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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACHERON / Sherrilyn Kenyon
ACHERON / Sherrilyn Kenyon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ACHERON

Primeira Parte

 

Um deus nasceu há onze mil anos. Amaldiçoado num corpo humano, Acheron teve uma vida de sofrimento. A sua morte humana originou um horror indescritível que quase destruiu a Terra. Trazido de volta contra a sua vontade, tornou-se o único defensor da humanidade. Só que não foi assim tão simples... Durante séculos, lutou pela nossa sobrevivência e escondeu um passado que não desejava revelar. Agora, tanto a sua sobrevivência, como a nossa, dependem da única mulher que o ameaça. Os velhos inimigos estão a despertar e a unir-se para matá-los – aos dois...

 

 

09 de Maio, 9548 A.C.

     —Mate esse bebê!

     O furioso decreto de Archon fazia eco nos ouvidos de Apollymi quando voou através dos marmóreos corredores do Katoteros. Havia um raivoso vento que soprava descendo pelos corredores, esmagando seu vestido contra seu incomodado corpo e açoitando seu amontoado cabelo loiro esbranquiçado como brincos. Quatro de seus demônios corriam atrás dela, protegendo-a dos outros deuses que estavam mais que ansiosos para cumprir as ordens de Archon. Seus demônios Caronte e ela já tinham despedaçado a metade de seu panteão. E estava disposta a matar ao resto.

     Não pegariam o seu filho!

     A traição ardeu no mais profundo de seu coração. Desde o momento de sua união, sempre tinha acreditado em seu marido. Inclusive quando tinha descoberto que Archon a tinha enganado, ainda o amava e tinha dado a bem-vinda aos seus bastardos em seu lar.

     Agora ele queria a vida de seu filho nonato[1].

     Como podia lhe fazer isso? Durante séculos tinha estado tentando conceber o filho de Archon… Era tudo o que sempre tinha querido.

     Seu próprio bebê.

     Agora devido à profecia das três pequenas… ciumentas bastardas de Archon, seu filho ia ser sacrificado e assassinado. Por causa do quê? As palavras que essas pequenas nojentas tinham sussurrado?

     Nunca.

     Este era seu bebê. Seu! E mataria a qualquer deus atlante que existisse para lhe proteger.

     —Basi! —Gritou por sua sobrinha.

     Basi apareceu no corredor diante dela cambaleando até que se segurou contra a parede. Como a deusa dos excessos, freqüentemente estava bêbada… O qual casava perfeitamente com o plano de Apollymi.

     Basi soluçou e riu bobamente.

     —Necessita-me, Titia? Por certo, por que está todo mundo tão irritado? Perdi algo importante?

     Apollymi a agarrou pelo pulso e então se teletransportaram fora do Katoteros onde os deuses atlantes tinham seu lar para baixar ao infernal reino do Kalosis onde governava seu irmão.

     Ela tinha nascido ali nesse úmido, proibido lugar. Esse era o único reino que realmente assustava a Archon. Inclusive com todo seu poder, conhecia a escuridão com a qual Apollymi exercia sua supremacia. Aqui, com seus poderes reforçados, poderia lhe destruir.

     Como deusa da morte, destruição e da guerra, Apollymi tinha um cômodo no opulento palácio de ébano de seu irmão para lhe recordar sua posição.

     Ali foi aonde levou a Basi.

     Apollymi fechou as portas e as janelas de seu aposento antes de convocar a seus dois mais confiáveis demônios protetores.

     —Xiamara, Xedrix, necessito-lhes.

     Os dois demônios que residiam nela como marcadas tatuagens se elevaram de seu corpo e se manifestaram diante dela.

     Em sua atual reencarnação, o tom de pele sempre mutante de Xiamara era vermelho, salpicado com branco. O comprido cabelo negro emoldurava uma cara de duende onde uns enormes olhos vermelhos brilhavam com preocupação. Xedrix, o filho de Xiamara compartilhava seus traços, mas sua pele estava salpicada com vermelho e laranja, algo que acontecia freqüentemente quando estava nervoso.

     —O que necessitas, akra? —Perguntou Xiamara, dirigindo-se a ela com o termo atlante para Senhora e Ama.

     Apolymi não tinha idéia do porquê Xiamara insistia em chamá-la de akra quando elas eram mais irmãs que ama e serva.

     —Protejam este aposento de todo o mundo. Não me importa se o mesmíssimo Archon exija entrar, o matais. Entendido?

     —Seus desejos são ordens, akra. Ninguém te incomodará.

     —Seus chifres têm que fazer conjunto com suas asas? —Perguntou Basi girando ao redor do poste da cama enquanto olhava aos demônios—. Quer dizer, realmente achas que já que são tão coloridos, teriam mais variedade. Acredito que Xedrix pareceria melhor se fosse laranja.

     Apollymi a ignorou. Não tinha tempo para a estupidez de Basi. Não se queria salvar a vida de seu filho.

     Queria esse filho e faria qualquer coisa por ele.

     Qualquer coisa.

     Com o coração martelando, agarrou sua adaga Atlante da gaveta da penteadeira e a sustentou nas mãos. O punho de ouro estava frio contra sua pele. Rosas negras e ossos se entrelaçavam e sobrecarregavam ao longo da lâmina de aço que brilhava na tênue luz. Esta era uma adaga criada para acabar com a vida.

     Hoje se usaria para dá-la.

     Deu um pulo ante o pensamento do que estava por vir, mas não havia outra maneira de lhe salvar. Fechando os olhos e agarrando a fria adaga, tentou não chorar, mas uma solitária lágrima se deslizou do canto do olho.

     Basta! Rugiu a si mesma antes de enxugá-la zangada. Era o momento para as ações, não para as emoções. Seu filho a necessitava.

     Sua mão tremendo por causa da fúria e do temor, foi para a cama e se deitou. Puxou seu vestido para expor seu ventre. Passou uma mão sobre seu distendido estômago onde seu filho estava esperando, protegido e ainda em perigo. Jamais voltaria a estar assim perto dele. Jamais o sentiria chutar e revolver-se sem descanso enquanto ela sorria em suave paciência. Ia separá-los inclusive embora não fosse tempo sequer para que Apostolos nascesse.

     Mas não tinha escolha.

     —Seja forte por mim, meu filho —sussurrou ela antes de rachar o ventre para expô-lo.

     —Oh, que repugnante! —Choramingou Basi— Vou v…

     —Não te movas! —Rugiu Apollymi—. Deixe este quarto e te arrancarei o coração.

     Abrindo os olhos desmesuradamente, Basi se congelou.

     Como se soubesse o que estava acontecendo, Xiamara apareceu ao seu lado. A pele vermelha e branca do demônio era a mais bela e leal de todo o exército de Apollymi. Em silencioso entendimento, Xiamara extraiu o bebê dela e ajudou a Apollymi a fechar a ferida.

     A demônio tirou o cachecol vermelho sangre que rodeava seu pescoço e envolveu a Apostolos nele antes de estender-lhe a Apollymi e lhe fazer uma profunda reverência.

     Apollymi deixou a dor física a um lado e tomou seu filho entre seus braços e o segurou pela primeira vez. A alegria a atravessou ao dar-se conta de que ele estava completo e vivo. Era tão diminuto, tão frágil, perfeito e bonito.

     Mais que tudo, era seu e o amava com cada parte de si mesma.

     —Viva por mim, Apostolos —disse ela, suas lágrimas fluindo finalmente. Estas caíam como gelo descendo por suas frias bochechas, brilhando na escuridão.

     —Quando for o momento oportuno, voltará aqui e reclamará seu lugar por direito como rei dos deuses. Assegurarei-me disso —baixou os lábios sobre sua testa azul.

     Seus olhos se abriram então para olhá-la. Mercúrio e prata, iguais aos dela, tempestuosos. E continham uma sabedoria longe inclusive da sua. Seria por aqueles olhos que a humanidade reconheceria sua divindade e por causa disso o ameaçariam. Acariciou sua bochecha com um diminuto punho como se entendesse que o fazia por ele.

     Ela soluçou ante o contato. Deuses, não era justo! Era seu bebê. Tinha esperado toda uma vida por isso e agora…

     —Maldito seja, Archon, maldito seja! Nunca te perdoarei por isso.

     Abraçava a seu filho contra ela e não queria deixá-lo ir.

     Mas devia fazê-lo.

     —Basi? —Estalou ante sua sobrinha quem ainda dava voltas ao redor do poste da cama.

     —Mmm?

     —Pegue-o. Ponha no ventre de uma rainha grávida. Entendeste-o?

     Ela se deixou ir e se endireitou.

     —Um, posso fazê-lo. O que acontece ao menino da rainha?

     —Una a força vital de Apostolos com a do filho da rainha. Deixe que saiba pelos oráculos que se meu filho morrer, morrerá o seu. —Isso deveria lhe proteger mais que tudo.

     Mas havia uma coisa mais a fazer. Apollymi arrancou o esfora branco de seu pescoço e a sustentou sobre o peito de Apostolos. Se alguém suspeitava que era seu filho ou algum deus detectava sua presença no reino humano, matariam-no imediatamente.

     Seus poderes seriam vinculados e selados até que fora o bastante crescido e forte para voltar a lutar. Colocou o círculo sobre seu peito e observou como sua divindade se deslizava dele ao esfora. Seu diminuto corpo se voltou do azul à pálida pele da humanidade.

     Agora estaria a salvo. Nem sequer os deuses saberiam o que tinha feito.

     Agarrando o esfora fortemente em sua mão, beijou sua testa uma vez mais antes de estender-lhe a sua sobrinha.

     —Toma-o. E não me traias, Basi. Se o fizeres, Archon será o último de seus temores. Assim me ajude, ou não descansarei até me banhar em suas vísceras.

     Os olhos marrons de Basi se alargaram.

     —Bebê no ventre. Reino humano. Não dizer a ninguém e não desobedecer. Entendi —ela desapareceu instantaneamente.

     Apollymi se sentou ali, observando o vazio onde tinham estado. Seu coração gritava, querendo que voltasse seu bebê.

     Se tão somente…

     —Xiamara, siga-a e te assegures de que faz o que lhe há sido ordenado.

     A demônio fez uma reverência antes de desaparecer.

     Com o coração quebrado, Apollymi se estendeu em sua sangrenta cama. Queria soluçar e gritar, mas do que serviria? Isso não faria nenhum bem. Suas lágrimas e rogos não evitariam que Archon matasse a seu filho. Suas bastardas lhe tinham convencido de que Apostolos destruiria seu panteão e substituiria a Archon como rei dos deuses.

     Assim seria.

     Com o corpo dolorido, ergueu-se da cama.

     —Xedrix?

     O filho de Xiamara apareceu ante ela.

     —Sim, akra.

     —Me consiga uma pedra do fundo do mar, por favor.

     Ele pareceu confuso pela ordem, mas a cumpriu rapidamente.

     Quando retornou, ela envolveu a pedra em seus braços. Fraca pelo nascimento de seu filho e sua própria raiva e dor, inclinou-se contra Xedrix e ele a sustentou em seus braços.

     —Me leve até Archon.

     —Está segura, akra?

     Ela assentiu.

     O demônio a ajudou a voltar para o Katoteros. Apareceram no centro do hall onde Archon estava sentado com suas filhas Chara e Agapa… Ironicamente as deusas da alegria e do amor. As duas tinham nascido geneticamente por parte de pai a primeira vez que Archon tinha visto Apollymi. Juntas as deusas tinham brotado de seu peito. Seu amor por Apollymi tinha sido legendário. Até que o tinha destruído por lhe pedir a única coisa que jamais lhe daria.

     A vida de seu filho.

     As feições de Archon estavam perfeitamente formadas. Alto e musculoso, permanecia com seu cabelo loiro brilhando na tênue luz. Realmente, era o mais bonito de todos os deuses. Uma pena que a beleza só fora superficial.

     Seus olhos azuis se entrecerraram ante o vulto em seus braços.

     —Era hora de que entrasse em razão. Dê-me esse menino.

     Ela se separou de Xedrix e depositou a pedra nos braços de seu marido.

     Archon a fulminou com o olhar.

     —O que é isto?

     —Isso é o que mereces, bastardo, e é tudo o que obterás de mim.

     Pela luz em seus olhos, sabia que ele queria golpeá-la. Não se atrevia. Ambos sabiam quem era o deus mais forte e esse não era ele. Governava só porque ela se sentava ao seu lado. Elevar-se contra ela seria o último engano que teria cometido.

   Pela lei Chthonian, um deus tinha como proibido matar a outro. Fazê-lo desataria sua fúria sobre o estúpido deus que os tivesse irritado. O castigo por tais ações era rápido, brutal e irreversível.

     Agora mesmo, Apollymi estava abraçando seu racional pensamento sobre suas turbulentas emoções por uma escassa margem. Se Archon a golpeava a deixaria a beira disto e ele sabia. Isso a faria esquecer do temor aos Chthonians e então desataria toda sua fúria contra ele. Não lhe importava quem fosse castigado e quem morrera… sempre que não fosse ela mesma.

     Paciência para a aranha… Recordou-se da citação favorita de sua mãe.

     Esperaria o momento propício até que Apostolos crescesse. Quando ele governasse no palácio de Archon e mostrasse ao rei dos deuses o que significava ser o todo poderoso.

     Pela segurança de seu filho, não incomodaria aos caprichosos Chthonians que ficariam do lado de Archon e assassinariam a seu filho. Eram os únicos que podiam arrancar permanentemente seus poderes e destruir a Apostolos.

     Depois de tudo, às filhas bastardas de Archon e sua amante Themis lhes tinha sido concedido o poder do destino sobre todos e tudo. E além de sua estupidez e temor, as Destinos Gregas tinham amaldiçoado acidentalmente a seu filho.

     Isso só era suficiente para fazê-la querer matar a seu marido que permanecia diante dela com o cenho franzido.

     —Condenaria a tudo por um filho? —Perguntou Archon.

     —Condenaria a meu bebê por três bastardas meio gregas?

     Suas fossas nasais se dilataram.

     —Pela primeira vez seja razoável. As meninas não se deram conta de que o estavam condenando quando falaram. Ainda estão aprendendo seus poderes. Temiam que ele as suplantasse em meu afeto. É por isso que nós lhes sustentamos as mãos quando nos falam de seus medos. E por causa disso, sua palavra é lei e não pode ser desfeito. Se viver, nós morreremos.

     —Então morreremos, porque ele viverá. Assegurei-me disso.

     Archon bramou antes de lançar a envolvida pedra através da parede. Uniu-se a Agapa e Chara e começaram a cantar.

     Os olhos de Apollymi se voltaram vermelhos ante o que estavam fazendo. Estavam aprisionando uma alma.

     A sua.

     E por causa de seus poderes unidos, poderiam ser capazes de pôr a ela de joelhos.

     Inclusive assim, ela riu. Mas mais que tudo, tomou nota de cada deus que se uniu para ajudar a seu marido a atá-la.

     —Todos vós vos arrependereis do que haveis feito este dia. Quando Apostolos retornar, vos pagareis caro.

     Xedrix se colocou entre ela e os outros. Apollymi colocou uma mão sobre seu ombro para evitar que atacasse.

     —Não vão nos fazer dano, Xedrix. Não podem.

     —Não —disse com amargura Archon—, mas permanecerá encerrada no Kalosis até que nos reveles a localização de Apostolos ou ele morra. Só então retornarás ao Katoteros.

     Apollymi riu.

     —Meu filho, em sua maturidade, terá o poder de vir até mim. Quando me libertar, o mundo que conhece morrerá. E te derrotarei. A todos vós.

     Archon sacudiu a cabeça.

     —O encontraremos. O mataremos.

     —Fracassarás e eu dançarei sobre sua tumba.

 

O Diário de Ryssa.

Princesa de Didymos.

23 de Junho, 9548 a.C.

    Minha mãe, a Rainha Aara, jazia em sua cama dourada, seu corpo suado, seu rosto pálido enquanto uma assistente lhe afastava o loiro cabelo úmido de seus olhos azul claro. Inclusive, através da dor, nunca tinha visto que minha mãe parecesse mais cheia de alegria do que parecia nesse dia e me perguntei se tinha sido assim feliz ante meu próprio nascimento.

     O aposento estava lotado por funcionários da corte e meu pai, o rei, estava de pé ao lado da cama com seu Chefe de Estado. As longas janelas de vidro estavam abertas, deixando que o ar fresco brindasse alívio ao calor do dia do verão.

     —É outro formoso garoto —proclamou felizmente a parteira, envolvendo ao recém-nascido em uma manta.

     —Pela mão da doce Artemis, Aara, encheu-me de orgulho! —disse meu pai enquanto um forte grito alegre transpassava aos ocupantes do aposento—. Gêmeos para governar sobre nossas ilhas gêmeas!

     Com apenas sete anos de idade, saltei para cima e para baixo regozijada. Por fim, e depois de numerosos abortos de minha mãe e filhos nascidos mortos, eu não tinha um irmão, e sim dois.

     Rindo, minha mãe aconchegou ao segundo menino em seu pálido seio enquanto uma parteira secundária limpava ao primogênito.

     Movi-me sigilosamente por entre a multidão para olhar ao bebê primogênito que estava com a parteira. Diminuto e formoso, retorcia-se e lutava para respirar através de seus pulmões recém-nascidos. Finalmente tinha tomado uma profunda e limpa inalação, quando ouvi o grito de alarme da mulher que o sustentava.

     —Zeus tenha misericórdia, o mais velho está mal formado, Majestades!

     Minha mãe elevou a vista com sua testa enrugada pela preocupação.

     —Como?

     A parteira o levou.

     Eu estava aterrorizada de que algo estivesse errado. O bebê me pareceu perfeito.

     Esperei enquanto o bebê estirava suas mãos por volta do irmão que tinha compartilhado a matriz com ele durante esses passados meses. Era como se procurasse o consolo de seu gêmeo.

     Em troca, minha mãe afastou a seu irmão, de sua vista e alcance.

     —Não pode ser —soluçou minha mãe—. É cego.

     —Não é cego, Majestade —disse a sábia mais anciã, enquanto se adiantava entre o grupo de pessoas. Suas roupagens brancas estavam profusamente bordadas com fios de ouro e levava posta uma coroa de ouro ornamentada sobre seu esvaído cabelo cinza—. Foi enviado a ti pelos deuses.

     Meu pai, o rei, entreabriu seus olhos furiosamente para minha mãe.

     —Foi infiel? —acusou-a.

     —Não, nunca.

     —Então como é que ele saiu de seus quadris? Todos aqui somos testemunhas.

     Todos no aposento olharam à sábia que cravou seus olhos sem expressão no diminuto bebê indefeso que clamava para que alguém o sustentara e lhe oferecesse consolo. Calor.

   Mas ninguém o fez.

     —Ele será um destruidor, este menino —disse a sábia, sua anciã voz em alto e timbrada de modo que todos pudessem ouvir sua proclamação—. Seu toque trará a morte a muitos. Nem sequer os mesmos deuses estarão a salvo de sua ira.

   Ofeguei, sem entender realmente o significado de suas palavras.

     Como poderia um mero bebê fazer mal a alguém? Ele era diminuto. Indefeso.

     —Então o mate agora! —ordenou meu pai a um guarda para que tirasse sua espada e matasse ao menino.

    —Não! —disse a sábia, detendo o guarda antes que ele pudesse consumar a vontade do rei—. Mate a este menino e seu outro filho morrerá também. Suas forças de vida estão ligadas. Esta é a vontade dos deuses, deverás criá-lo até a idade viril.

     O gêmeo mais velho soluçou.

     Solucei eu também, não entendia seu ódio por um simples bebê.

     —Não criarei um monstro —grunhiu meu pai.

     —Não tens nenhuma opção. —A sábia tomou ao bebê da parteira e o ofereceu a minha mãe.

     Franzi o cenho ante a nota de satisfação que vi nos olhos da parteira antes que a formosa mulher loira abrisse passagem por entre as pessoas para desaparecer da estadia.

     —Ele nasceu de seu corpo, Majestade —disse a sábia, arrastando minha atenção de volta para ela e minha mãe—. É seu filho.

     O bebê berrou ainda mais alto, estirando-se outra vez para alcançar a minha mãe. Sua mãe. Ela se encolheu afastando-se dele, aferrando ainda mais que antes, estreitamente, ao segundo a nascer.

     —Não o amamentarei. Não o tocarei. Afasta-o de minha vista!

     A sábia conduziu ao menino até meu pai.

     —E o que acontece contigo, Majestade? Não o aceitará?

     —Nunca. Esse menino não é meu filho.

     A sábia respirou fundo e apresentou ao menino à câmara. Seu agarrar era frouxo sem amor ou compaixão evidente em seu toque.

     —Então será chamado Acheron pelo Rio da Tragédia. Como o rio do Inframundo, sua viagem será escura, comprida e duradoura. Será capaz de dar a vida e tomá-la. Caminhará pela vida, só e desamparado, sempre procurando a bondade e sempre achando a crueldade.

     A sábia olhou para baixo, ao menino em suas mãos e pronunciou a simples verdade que perseguiria o menino pelo resto de sua existência.

     —Que os deuses tenham piedade de ti, pequeno. Ninguém mais o fará.

        

30 de Agosto, 9541 a.C.

     —Por que me odeiam tanto, Ryssa?

     Fiz uma pausa em meu tear para elevar a vista ante a tímida aproximação de Acheron. À idade de sete anos, ele era um menino incrivelmente bonito. Seu cabelo de ouro brilhava no quarto como se tivesse sido tocado pelos deuses que pareciam havê-lo abandonado.

     —Ninguém te odeia, akribos.

     Mas em meu coração eu sabia a verdade.

     E ele também.

     Aproximou-se mais de mim e vi o vermelho e colérico rastro de uma mão em seu rosto. Não havia lágrimas em seus tempestuosos olhos de prata. Tinha crescido tão acostumado a ser golpeado que já não parecia incomodá-lo.

     Ao menos, em nenhuma parte, que em seu coração.

     —O que aconteceu? —perguntei.

     Ele afastou o olhar.

     Deixei meu tear e atravessei a curta distância até seu lado. Ajoelhei-me frente a ele e brandamente lhe tirei o cabelo loiro de sua bochecha inflamada.

     —Conte-me-o.

     —Ela abraçou Styxx.

     Eu sabia sem perguntar quem era ela. Ele tinha estado com nossa mãe. Eu nunca tinha entendido como ela podia amar tanto a Styxx e a mim e, ainda assim, ser tão cruel com o Acheron.

     —E?

     —Eu também queria um abraço.

     Então o vi. Os delatores sinais de um menino que não queria nada mais que o amor de sua mãe. O superficial tremor de seus lábios, o leve lacrimejo de seus olhos.

     —Por que me pareço tanto a Styxx e ainda assim sou anormal, enquanto que ele não o é? Não entendo por que sou um monstro. Não me sinto como um.

     Não podia explicar-lhe já que eu, diferentemente de outros, nunca tinha visto a diferença. Como lamentava que Acheron não conhecesse a mãe como eu o fazia.

     Mas todos eles o chamavam de monstro.

     Eu só via um menininho. Um pequeno menino que não queria nada mais que ser aceito por uma família que queria desapossá-lo. Por que não podiam meus pais olhá-lo e ver a alma amável e suave que ele era? Tranqüilo e respeitoso, procurava não machucar jamais a alguém ou algo. Jogávamos juntos e nos ríamos. Sobretudo, sustentava-o enquanto ele chorava.

     Tomei sua pequena mão na minha. Uma mão suave. A mão de um menino. Não havia malícia nela. Nenhum crime.

     Acheron sempre foi um menino sensível. Enquanto que Styxx procurava choramingar e queixar-se sobre cada mínima coisa, agarrava meus brinquedos e aquele de qualquer outra criança perto dele, Acheron só tinha procurado fazer a paz. Consolar àqueles ao seu redor.

     Ele parecia mais crescido que um menino de sete anos. Havia momentos em que parecia inclusive mais crescido que eu.

     Seus olhos eram estranhos. Seus redemoinhos de cor prateada, traía o direito de nascimento que o vinculava aos deuses. Mas com toda isto segurança deveria fazê-lo especial não horrendo.

     Ofereci-lhe um sorriso que esperava aliviasse um pouco sua dor.

     —Um dia, Acheron, o mundo saberá exatamente o menino tão especial que és. Chegará o dia em que ninguém te temerá. Já o verás.

     Movi-me para abraçá-lo, mas ele se retirou. Estava acostumado que as pessoas lhe fizessem mal e embora ele soubesse que eu não o faria, ainda estava pouco disposto a aceitar meu consolo.

     Quando me pus de pé, abriu-se a porta a minha sala de estar. Um grande número de guardas entrou nela.

     Assustada ante a visão, retrocedi sem saber o que queriam. Acheron aferrou seus pequenos punhos à saia de meu vestido azul enquanto se acocorava por trás de minha perna direita.

     Meu pai e meu tio caminharam entre os homens até que se plantaram diante de mim. Os dois eram praticamente idênticos em aspecto físico. Tinham os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo loiro ondulado e a pele branca. Embora meu tio fosse três anos mais jovem que meu pai, ninguém nunca adivinharia ao olhá-los. Poderiam passar facilmente como gêmeos.

     —Disse-te que estaria com ela —disse meu pai ao tio Estes—. Está corrompendo-a de novo.

     —Não te preocupes —disse Estes—. Encarregarei-me do assunto. Nunca mais terá que te preocupares com ele.

     —O que queres dizer? —perguntei, espantada por seu tom terrível. Acaso tinham a intenção de matar a Acheron?

     —Não te importa —me respondeu bruscamente meu pai. Nunca tinha ouvido um tom tão áspero vindo dele antes. Fez com que me gelasse o sangue.

     Ele agarrou a Acheron e o empurrou para meu tio.

     Acheron parecia apavorado. Estendeu sua mão para mim, mas meu tio o agarrou bruscamente pelo braço e o separou de um puxão.

     —Ryssa! —chamou-me Acheron.

     —Não! —gritei, tratando de lhe ajudar.

     Meu pai me retirou e segurou.

     —Ele vai a um lugar melhor.

     —Aonde?

     —À Atlântida.

     Vi com horror como levavam a Acheron gritando para que eu o salvasse.

     A Atlântida estava a um longo caminho daqui. Muito longe, e até a muito pouco tempo, tínhamos estado em guerra com eles. Eu só tinha ouvido coisas terríveis sobre aquele lugar e sobre todos o que ali viviam.

     Elevei a vista a meu pai, soluçando:

     —Ficará assustado.

     —Os de sua espécie nunca têm medo.

     Os gritos de Acheron e as súplicas negavam aquelas palavras.

     Meu pai poderia ser um rei poderoso, mas estava equivocado. Eu conhecia o medo dentro do coração de Acheron.

     E conhecia o medo no meu próprio.

     Voltaria a ver meu irmão algum dia?

 

3 de Novembro, 9532 a.C.

     Passaram nove anos desde a última vez que vi meu irmão, Acheron. Nove anos e não passou nem um só dia para mim sem que me perguntasse o que estava fazendo. Como estava sendo tratado.

     Cada vez que Estes nos visitava, sempre o levava a um lado e lhe perguntava por Acheron.

     —Está bem e são, Ryssa. Aprecio-o como se fora de minha casa. Ele tem tudo o que quer. Estarei encantado de lhe dizer que perguntaste por seu bem-estar.

     Ainda assim, algo em meu interior não se contentava o suficiente com essas palavras. Pedi a pai repetidamente que enviasse a Acheron. Que lhe trouxesse para casa ao menos pelas festas. Como príncipe, nunca deveria ter sido enviado longe. Contudo ali, ele permanecia em um país que estava em constante conflito conosco. Inclusive, embora Estes fosse um embaixador, isso não mudava o fato de que se iam à guerra, Acheron, como príncipe Grego, morreria.

     E papai se negava a cada pedido que eu fazia.

     Tinha estado escrevendo a Acheron durante anos e ele normalmente me escrevia religiosamente.

     Suas cartas sempre eram breves, com apenas um punhado de detalhes, mas inclusive assim, eu entesourava cada uma.

     Assim quando me chegou uma carta há algumas semanas, não pensei que houvesse algo incomum nisso.

     Não até que a li.

    

Minhas mais estimadas e exaltadas saudações Princesa Ryssa.

Perdoe-me por meu atrevimento. Perdoe-me por minha rabugice. Encontrei uma de suas cartas escritas a Acheron e hei, com grande perigo para mim mesma, decidido lhe escrever. Não posso lhe dizer que danos acontecem a ele, mas se realmente ama a seu irmão como diz fazê-lo, então lhe peço que venha e o veja.

    

     Eu não disse nada a respeito da carta. Esta não tinha sido sequer assinada. Por tudo o que eu sabia podia ser uma armadilha.

     Ainda assim, não podia tirar a sensação de que não o era, que Acheron necessitava de mim.

     Durante dias me debati a respeito de ir até que não pude me conter mais.

     Tomando a meu guarda pessoal Boraxis comigo para minha proteção, escapuli-me do palácio e disse a minhas donzelas que dissessem a meu pai que estava visitando minha tia em Atenas. Boraxis pensou que eu era uma enorme estúpida por viajar todo o caminho até a Atlântida por uma carta que o autor nem sequer tinha assinado, mas não me importava.

     Se Acheron precisava de mim, então iria ali.

     Entretanto, essa coragem vacilou dias depois quando encontrei a mim mesma aos subúrbios da casa de meu tio na cidade capital de Atlântida. A brilhante construção vermelha era inclusive mais intimidante que nosso palácio em Didymos. Era como se tivesse sido desenhado sem outro propósito que inspirar temor e admiração. É obvio, como nosso embaixador, isto beneficiava tanto a Estes como impressionava aos nossos inimigos.

     Muito mais avançada que minha Grécia natal, a ilha do reino de Atlântida brilhava e resplandecia. Havia mais atividade dessas pessoas ao meu redor da que jamais tinha visto antes. Era realmente uma buliçosa metrópole.

     Tragando o temor que sentia, olhei a Boraxis. Mais alto que a maioria dos homens, com o cabelo negro trançado descendo por suas costas, era enorme e corpulento. Letal. E me era exageradamente leal, inclusive, embora fora um servente. Tinha estado me protegendo desde que eu era uma menina e sabia que podia depender dele.

     Nunca permitiria que me fizessem mal.

     Me recordando disso, subi as escadas de mármore, até a entrada dourada. Um servente abriu a porta, inclusive antes que a alcançasse.

     —Minha senhora —disse diplomaticamente, —Posso ajudá-la?

     —Vim para ver Acheron.

     Ele inclinou a cabeça e me disse que o seguisse ao interior. Encontrei estranho que o servente não me perguntasse meu nome ou negócios com meu irmão. Em casa, a ninguém lhe estava permitido aproximar-se da família real sem uma completa investigação.

     Admitir alguém desconhecido em nossa residência privada era um crime castigado com a morte. Ainda assim, a este homem não importava nos conduzir através da casa de meu tio.

     Uma vez que alcançamos outro salão, o homem frente a mim se voltou para olhar a Boraxis.

     —Sua escolta se unirá a você durante seu tempo com Acheron?

     Franzi o cenho ante a estranha pergunta.

     —Suponho que não.

     Boraxis aspirou ar com força. Havia preocupação em seus profundos olhos marrons.

     —Princesa…

     Pus-lhe a mão sobre o braço.

     —Estarei bem. Espere-me aqui e retornarei em seguida.

     Ele não parecia nada contente com minha decisão e honestamente, eu tampouco o estava, mas certamente ninguém me machucaria na casa de meu tio. Assim que o deixei ali e continuei descendo pelo corredor.

     E enquanto caminhávamos, o que mais me surpreendeu a respeito da casa de meu tio era quão extremamente silenciosa estava. Nem sequer se podiam ouvir murmúrios. Nem risadas. A ninguém falando.

     Só nossas pegadas ressonando sob o longo e escuro corredor. O mármore negro se estendia tão longe como alcançava a vista, refletindo nossas imagens quando nos dirigíamos através da opulência de nuas estátuas e exóticas plantas e flores.

     O criado me conduziu a um aposento no lado mais afastado da casa e abriu uma porta.

     Eu passei ao interior e vacilei, quando me dava conta que este era o dormitório de Acheron. Quão estranho era para ele me admitir ali sem saber que eu era a irmã de Acheron. Então outra vez, possivelmente ele o fizesse. Isso explicaria muitas coisas.

     É obvio, devia ser isso. Ele devia haver-se dado conta de que eu tinha uma grande semelhança com meus irmãos. Exceto pelos divinos olhos chapeados de Acheron, nós éramos idênticos.

     Me relaxando, joguei uma olhada. Era um cômodo excepcionalmente grande, com uma enorme chaminé. Havia dois sofás ante uma lareira de pedra com uma estranha estrutura entre elas. Isto me recordava ao bloco de castigo, mas isso não tinha sentido. Possivelmente fora algo único em Atlântida. Toda minha vida tinha ouvido que essa gente tinha estranhos costumes.

     A cama em si mesma era bastante pequena para um cômodo deste tamanho, com quatro altas colunas esculpidos com o complexo desenho de um pássaro. Em cada coluna, a cabeça do pássaro estava girada para baixo de modo que pudessem sustentar os ganchos que sujeitavam as negras cortinas, ainda assim ali não havia cortinas de cama.

     Assim como o vestíbulo que levava ao quarto, as paredes eram de um brilhante mármore negro que devolvia minha imagem à perfeição. E enquanto jogava uma olhada, me dei conta que não havia nenhuma janela em todo o quarto. Nem sequer havia um balcão. A única luz provinha dos parapeitos dispersos na parede. Isto fazia o quarto muito escuro e sinistro.

     Quão estranho…

     Três serventes estavam fazendo a cama de Acheron e uma quarta mulher os fiscalizava. A supervisora era uma mulher de pequena estatura que parecia estar ao redor dos quarenta ou algo assim.

     —Não é o momento —disse ela ao homem que me tinha conduzido através da casa—. Ele ainda está se preparando.

     O homem curvou o lábio ante ela.

     —Dirás tu a Gerikos que tenho a uma cliente esperando enquanto Acheron se atrasa?

     —Mas ele nem sequer teve tempo de comer ainda —insistiu a mulher—. Esteve trabalhando toda a manhã sem um só descanso.

     —Traga-o.

     Franzi o cenho ante suas sussurrantes palavras e sua conduta. Aqui algo não ia de todo bem. Por que meu irmão, um príncipe, estaria trabalhando?

     A mulher se voltou para uma porta no lado mais afastado do dormitório.

     —Espera —lhe disse, detendo-a—. Eu irei até ele. Onde está?

     A mulher lhe dedicou um aterrado olhar ao homem.

     —É seu tempo com ele —disse com firmeza o homem—. Deixa à dama fazer o que desejar.

     A mulher mais velha se colocou a um lado e abriu a porta de um hall. Quando passei através dela, ouvi a ela e ao homem reunir aos serventes e partir.

     De novo, quão peculiar…

     Vacilando, entrei na sala esperando encontrar ao irmão gêmeo de meu irmão Styxx. Um arrogante jovem que sabia tudo do mundo. Um insultante, homenzinho arrogante que se perguntaria por que o incomodava com tão insensata busca.

     Não estava absolutamente preparada para o que encontrei.

     Acheron estava sentado em uma enorme tina de banho a sós. Tinha suas costas descobertas para mim e inclinava sua cabeça loira para frente como se estivesse muito cansado para erguer-se enquanto se banhava. O comprido cabelo lhe caía passando os ombros e estava úmido, mas não molhado.

     Com o coração acelerado, movi-me para frente e adverti uma forte essência de laranjas no ar. Uma pequena bandeja de pão e queijo estava depositada no chão ao seu lado, sem tocar.

     —Acheron? —sussurrei.

     Ele se congelou durante um momento, então clareou sua cara na água. Deixou a tina e se envolveu rapidamente em uma toalha secando-se como se lhe desse completamente igual a eu tivesse interrompido em seu banho.

     Havia um ar de poder que o rodeava enquanto se secava com curtas e rápidas passadas, então lançou a toalha para um pequeno montão delas.

     Por um instante, estive cativada por sua juvenil e masculina beleza. Pelo fato de que não fizesse nenhum movimento por vestir-se ou cobrir-se. Tudo o que o adornavam eram trilhas de ouro. Tinha uma fina ao redor do pescoço que sustentava um pequeno pendente de algum tipo. As bandas mais grossas rodeavam cada um de seus bíceps na parte superior de seus braços e até a união do cotovelo com outra banda ao redor de seus pulsos. Uma corrente de pequenos círculos conectava cada banda ao longo de seus braços. E uma pequena banda de ouro com uma pequena argola estavam conectadas a cada um de seus tornozelos.

     Quando ele se aproximou de mim, fiquei atônita pelo que vi. Ele era o gêmeo idêntico de Styxx na aparência e ainda assim via algumas semelhanças entre ambos.

     Styxx se movia mais rápido. Mercurialmente.

     Acheron se movia devagar. Metodicamente. Era igual a uma sensual sombra cujos movimentos eram uma poética sinfonia de músculo, nervo e graça.

     Era mais magro que Styxx. Muito magro, como se não tivesse suficiente comida que comer. Inclusive assim, seus músculos eram extremamente bem definidos e polidos à perfeição.

     Ele ainda tinha esses estranhos olhos chapeados, mas só brilharam brevemente antes que afastasse o olhar para o chão a seus pés.

     Também havia algo estranho nisso. Um ar de desesperada resignação o rodeava. Era o que havia visto incontáveis vezes nos camponeses e mendigos que deviam reunir esmolas às portas de palácio.

     —Me desculpe, minha senhora —disse brandamente, sua voz estranhamente sedutora e suave enquanto falava entre dentes—. Não sabia que virias.

     Suas correntes titilaram brandamente no silêncio, ele se moveu atrás de mim igual a um suave e sedutor espírito. Alcançou a rodear meu pescoço e me desabotoou a capa.

     Aturdida por suas ações, não pensei em protestar quando me tirou a peça e a atirou ao chão. Não foi até que me afastou o cabelo do pescoço e se moveu para beijar a nua pele descoberta por ele.

     —O que estás fazendo?

     Ele parecia tão estranhado como me sentia eu, mas ainda mantinha seu olhar fixo no chão ante mim.

     —Não me instruiu para o que haveis pagado, minha senhora —disse brandamente—. Supus por vosso olhar que me queria suavemente. Equivoco-me?

     Fiquei tão sacudida por suas palavras, como também pelo fato de que ele continuava apertando a mandíbula.

     —Por que falas dessa maneira? Pagar por que? Acheron, sou eu. Ryssa.

     Ele franziu o cenho como se não recordasse seu nome. Ele se estirou até mim outra vez.

     Eu me coloquei a um lado e agarrei minha capa do chão.

     —Sou sua irmã, Acheron. Não me conheces?

     Seus olhos brilharam de aborrecimento quando encontraram seu olhar durante um instante.

     —Eu não tenho irmã.

     Meus pensamentos giraram enquanto tentava encontrar sentido a isso. Este não era o menino que me tinha escrito cartas quase cada dia, o menino que me contava seus dias de ócio.

     —Como podes dizer isso depois de todos os presentes e cartas que te enviei?

     Seu rosto se relaxou como se finalmente entendesse.

     —Ah, isto é um jogo que desejas jogar comigo, minha senhora. Desejas que seja teu irmão.

     Eu o olhei com frustração.

     —Não, Acheron, não é um jogo. Você é meu irmão e te escrevi quase a cada dia e tu, de volta, me escrevias.

     Eu podia sentir que ele queria me olhar e ainda não o fazia.

     —Sou analfabeto, minha senhora. Não serei capaz de brincar convosco dessa maneira.

     A porta atrás de mim se abriu de repente. Um homem baixo e gordinho que levava uma larga bata Atlante irrompeu nela. Estava lendo um pergaminho e não nos prestava atenção.

     —Acheron, por que não estás em teu… —sua voz diminuiu quando levantou o olhar para ver-me.

     Seu olhar se entrecerrou perigosamente.

     —O que é isto? —grunhiu. Voltou uns furiosos olhos para Acheron que retrocedeu dois passos—. Estás tomando clientes sem me notificar?    

     Eu vi o temor no rosto de Acheron.

     —Não, despotis —disse Acheron usando o termo atlante para professor—. Nunca faria tal coisa.

     A fúria curvou os lábios do homem. Agarrou a Acheron pelo cabelo e o obrigou a ajoelhar-se sobre o duro chão de pedra.

   —O que está fazendo ela aqui então? Estás te entregando novamente grátis?

     —Não, despotis —disse Acheron, apertando os punhos como se tentasse não estirar-se e tocar ao homem que lhe estava puxando o cabelo—. Por favor. Juro que não tenho feito nada de errado.

     —Deixe-o ir! —Agarrei a mão do homem e tentei obrigá-lo a afastar-se de meu irmão—. Como te atreves a atacar um príncipe! Terei tua cabeça por isso!

     O homem riu em minha cara.

     —Ele não é um príncipe. Não é verdade, Acheron?

   —Não, despotis. Eu não sou nada.

     O homem chamou por seus guardas para me escoltar para fora.

     Eles entraram imediatamente na sala para me agarrar.

     —Não irei —disse. Girei aos guardas e lhes dediquei meu mais altivo olhar—. Sou a Princesa Ryssa da Casa de Arikles de Didymos. Exijo ver meu Tio Estes. Agora. Mesmo.

     Pela primeira vez, vi a reserva penetrar nos olhos do homem.

     —Me perdoe, Princesa —disse ele, seu tom menos que de desculpa—. A levarei a sala de recepção de seu tio.

     Ele assentiu aos guardas.

     Horrorizada por sua arrogância, voltei-me para partir. No mármore negro, vi-o sussurrar algo a Acheron.

     O rosto de Acheron empalideceu.

     —Idikos prometeu que não teria que lhe ver mais.

     O homem puxou o cabelo de Acheron.

     —Fará como te digo. Agora te levante e te prepare.

     Os guardas fecharam a porta e me obrigaram a sair do cômodo. Conduziram-me através da casa até que chegamos a uma pequena sala de recepção que estava vazia à exceção de três pequenos assentos.

     Não sabia ou entendia o que estava passando ali. Se alguém houvesse tocado a mim ou a Styxx da maneira em que esse homem havia tocado a Acheron, meu pai o teria feito matar imediatamente.

     Ninguém tinha permitido nos falar sem o devido respeito e reverência.

     —Onde está meu tio? —perguntei aos guardas quando começaram a partir.

     —Está na cidade, Alteza. Voltará em breve.

     —Enviem–me até ele. Agora.

     O guarda inclinou a cabeça ante mim, então fechou a porta.

     Só tinha passado um curto tempo quando uma porta secreta se abriu ao lado da chaminé. Era a supervisora que tinha estado no aposento de Acheron quando cheguei, a mulher mais velha que tinha estado preocupada com seu bem-estar.

     —Sua alteza? —perguntou vacilante—. Sois realmente vós?

     Foi então que me dava conta quem devia ser ela.

     —Tu és a que me escreveu me pedindo que os visitasse?

     Ela assentiu.

     Eu respirei aliviada. Finalmente alguém quem poderia dar uma explicação.

     —O que está acontecendo aqui?

     A mulher exalou um profundo e desigual fôlego, como se o que fosse dizer a ferisse profundamente.

     —Eles vendem a seu irmão, mi lady. Fazem-lhe coisas que ninguém deveria sofrer.

     Meu estômago deu um tombo ante suas palavras.

     —O que queres dizer?

     Ela retorceu suas mãos no avental de seu vestido.

     —Que idade tens, minha senhora?

     —Vinte e três.

     —És donzela?

    Ofendeu-me que se atrevesse a fazer uma pergunta tão íntima.

     —Isso não é de vossa incumbência.

     —Me perdoes, minha senhora. Não quis vos ofender. Simplesmente tentava ver se entenderias o que eles lhe fazem. Sabeis que é um tsoulus?

     —É obvio, eu… —O absoluto horror me consumiu. Esse era um termo atlante que não tinha uma autêntica tradução em grego, mas conhecia a palavra. Eram homens e mulheres jovens treinadas como escravos sexuais para os ricos e os nobres. Ao contrário das prostitutas e outros dessa estirpe, eles eram cuidadosamente treinados e isolados a idade muito nova.

     A mesma idade que tinha tido meu irmão quando o afastaram de casa.

     —Acheron é um tsoulus?

     Ela assentiu.

     A cabeça me deu um tombo. Isto não podia ser.

     —Mentes.

     Ela negou com a cabeça.

     —É pelo que vos disse que viésseis, minha senhora. Sabia que não acreditarias a menos que o vísseis vós mesma.

     E ainda assim não acreditava. Não era possível.

     —Meu tio nunca permitiria tal coisa.

     —Vosso tio é o único que o vende. O que achais que paga esta casa?

     Senti-me doente com as notícias e ainda parte de mim se negava a acreditar em algo que era verdadeiramente óbvio.

     —Não acredito em ti.

     —Então venha, se te atreves, e veja por ti mesma.

     Eu não queria e ainda assim a segui pelos escuros passadiços da casa. Caminhamos sem fim até que alcançamos o hall onde Acheron se esteve banhando.

     Ela elevou o dedo a seus lábios para me advertir que guardasse silêncio.

     Foi então que os ouvi. Possivelmente fora virgem, mas não era ingênua. Tinha ouvido a outros copulando nas festas que meu pai me proibida atender.

     Mas pior que os sons de prazer eram os gritos de dor que ouvi de meu irmão. O homem estava machucando a Acheron e ele estava tomando grande prazer da dor que lhe causava.

     Dirigi-me para a porta só para encontrar à mulher em meu caminho.

     Ela falou em um tom baixo, mortal.

     —Detenha-os, minha senhora, e seu irmão sofrerá de maneira que não podes imaginar.

     Suas sussurrantes palavras passaram através de mim. Minha alma gritou para que o detivera. Mas a mulher tinha muita razão em tudo. Ela conhecia meu irmão e meu tio incluso melhor do que eu o fazia.

     A última coisa que queria era ver ele inclusive mais ferido.

     Finalmente. Depois do que pareceu uma eternidade, houve silêncio.

     Ouvi os fortes passos cruzando o dormitório, então a porta abrir-se e fechar-se.

     Aturdida, não podia respirar. Não podia me mover.

     A donzela abriu a porta a seu aposento para mostrar Acheron encadeado à cama por aqueles círculos. Os de seus pulsos e tornozelos tinham sido encadeados às argolas que decoravam os bicos de pássaro das quatro colunas.

     E eu estupidamente pensei que eram para enganchar as cortinas da cama.

     “Não me instruiu para o que haveis pagado. Supus por vosso olhar que me querias suavemente”.

     Essas palavras me rasgaram quando observei à mulher lhe soltando.

     Não podia tirar meus olhos da vista dele ali estendido, nu. Ferido. Sangrando.

     Meu irmão.

     As lágrimas encheram meus olhos quando recordei a última vez que o tinha visto. Sua cheia carinha tinha sido ferida, mas não desta maneira. Agora seus lábios estavam partidos, seu olho esquerdo inchado, o nariz manchado de sangue. Havia marcas de mãos vermelhas e machucados formando-se sobre a maior parte de seu corpo.

     Ninguém merecia isso.

     Adiantei-me um passo ao mesmo tempo em que a porta mais afastada se abria. A supervisora me indicou que saísse do aposento.

     Aterrada, deslizei às sombras onde poderia ouvir sem ser vista.

     Soou uma maldição.

     —O que aconteceu aqui?

     Eu reconheci a voz de meu Tio Estes.

     —Estou bem, Idikos. —disse Acheron, sua voz débil e cheia de dor. Soava como se ele deixasse a cama e caísse.

     Eu esperava que meu tio ficasse furioso com o homem que tinha ferido a Acheron. Não o fez. Sua fúria era para meu irmão.

     —És um verme —gritou Estes—. Te olhes. Não vales um só assim.

     —Estou bem, Idikos —insistiu Acheron em uma voz tão sumida que me revolveu o estômago—. Posso limpar meus…

     —Traga o bloco e castiga-o —Disse Estes, lhe interrompendo.

     Ouvi Acheron protestar, mas em vez de palavras sua voz foi amortecida como se algo lhe impedisse de falar.

     Eu desejava a coragem para irromper na habitação e lhes dizer que se detivessem, mas nem sequer podia fazer com que meus pés me obedecessem. Estava muito horrorizada para me mover.

     Escutei como as correntes tilintavam e então ouvi o som de madeira golpeando a carne.

     Acheron gritou, um amortecido som de dor.

     A surra continuou uma e outra vez até que Acheron finalmente calou. Afundei-me no chão, soluçando por ele. Levei-me o punho à boca, silenciando minhas lágrimas enquanto tentava pensar no que devia fazer. Como poderia parar isto?

     Quem no mundo acreditaria em mim? Estes era o mais amado irmão de meu pai. Não havia maneira de que ele aceitasse minha palavra sobre a dele. Nunca.

     —Lhe ponha na caixa —disse Estes.

     —Por quanto tempo? —respondeu o outro homem.

     Ouvi o aborrecido suspiro de Estes.

     —Inclusive com sua habilidade para sarar rapidamente, levará ao menos um dia antes que esteja o bastante bem para entreter outra vez. Encontra a Ores e diga que nos pague por nossas perdas. Cancela os encontros de Acheron e lhe deixe ali até amanhã pela manhã.

     —O que há a respeito da comida? —perguntou a supervisora.

     Estes bufou.

     —Se não puder trabalhar, não pode comer. Não ganhou sua comida este dia.

     Ouvi uma porta abrindo-se e fechando-se.

     —Agora, onde está minha sobrinha?

     —Está na sala de recepção —disse a donzela.

     —Não estava ali quando entrei.

     —Disse que ia à cidade —a supervisora acrescentou rapidamente—. Estará de volta em breve, estou segura.

     —Faça-me saber ao instante em que volte —grunhiu Estes—,diga que Acheron está fora, visitando uns amigos.

     O homem deixou a sala.

     Sentei-me no chão, olhando fixamente ao tanque do banheiro. Olhando fixamente as paredes desse cômodo.

     Quantos clientes teria entretido meu irmão? Quantos dias tinha vivido com o que eu somente tinha vislumbrado?

     Tinham passado nove anos. Certamente nem sempre tinha sido assim para ele. Verdade?

     O mero pensamento me adoecia.

     A supervisora voltou. Vi o horror em seus olhos e me perguntei se eu teria o mesmo olhar nos meus.

     —Quanto tempo hão estado lhe fazendo isto? —perguntei.

     —Eu venho trabalhando aqui quase um ano, minha senhora. Foi desde antes que eu viesse.

     Tentei pensar no que devia fazer. Eu era uma mulher. Nada em um mundo de homens de poder. Meu tio não me escutaria. De fato, meu pai nem sequer me escutaria.

     Nunca acreditaria que seu irmão pudesse fazer tal coisa. Assim como eu não podia acreditar que o carinhoso tio ao qual sempre tinha amado e adorado pudesse fazer tal coisa.

     Ainda assim não havia negação nisto.

     Como podia Estes vir ao nosso palácio e estar comigo e Styxx, sabendo que enquanto ele estava em casa, ele estava vendendo um menino que era idêntico a Styxx em todas formas, exceto por seus olhos?

     Isto não tinha sentido.

     A única coisa que sabia era que não podia deixar Acheron aqui. Não assim.

     —Podes trazer para minha escolta a esta sala sem que o vejam? —perguntei-lhe.

     A donzela assentiu.

     Ela me deixou e esperei em meu canto muito assustada para me mover.

     Quando ela voltou com Boraxis, finalmente encontrei a coragem para me levantar.

     Boraxis franziu o cenho enquanto me ajudava a me pôr em pé.

     —Vai tudo bem, minha senhora?

     Assenti aturdida.

     —Onde está Acheron? —perguntei-lhe à donzela.

     Ela me conduziu aos seus aposentos.

     Outra vez vi a cama que estava ainda desordenada e manchada de sangue. Afastando o olhar, segui-a a uma porta.

     Quando a abriu, Acheron estava no interior, ajoelhado sobre uma dura almofadinha que tinha duros vultos que lhe mordiam os joelhos, lhe causando dor. O interior do quarto era minúsculo, por isso sabia tinha sido construído sem nenhum outro propósito que o de castigá-lo. Ele estava nu, seu corpo ferido e ensangüentado. Os braceletes de seus pulsos tinham sido unidos as suas costas, mas o que tinha capturado minha atenção era a planta de seus pés.

     Estavam enegrecidos pelos machucados.

     Agora entendia o som que tinha ouvido. Que melhor lugar para golpear a alguém quando não queria que machucasse seu corpo? Ninguém veria as plantas de seus pés.

     Tão brandamente como pudemos, a donzela e eu o tiramos do armário. Havia uma estranha correia grampeada ao redor de sua cabeça. Quando a donzela a retirou, me dei conta que esta continha uma enorme bola com espinhos sob sua língua. Havia sangre fresco gotejando pelos cantos de sua boca.

     Estremeci-me quando a tirou e ele vaiou de dor.

     —Volta a me pôr ela —disse entre dentes quando a donzela lhe libertou as mãos.

     —Não —lhe disse—. Vou te tirar fora daqui.

     Ainda assim ele manteve seus dentes firmemente apertados.

     —Tenho proibição de partir, minha senhora. Jamais. Por favor, deveis me devolver. É pior quando luto com eles.

     Meu coração se rompeu ante suas palavras. O que lhe tinham feito que estava tão apavorado para inclusive tentar partir?

     Ele tentou retornar a sua sala de tortura, mas o impedi e o obriguei a voltar.

     —Não deixarei que te façam mal nunca mais, Acheron. Juro-o. Levar-te-ei para casa.

     Ele me olhou como se as palavras fossem estranhas para ele.

     —Eu tenho que ficar aqui —insistiu ele—Não é seguro para eu sair.

     Ignorei-lhe e me voltei para a donzela.

     —Onde estão suas roupas?

     —Não tem nenhuma, minha senhora. Não as necessita para o que eles o usam.

     Dei um pulo ante suas palavras.

     —Que assim seja.

     Envolvi-o em minha capa e com ajuda de Boraxis, o tiramos da casa enquanto Acheron protestava a cada passado do caminho. Minhas pernas e mãos estavam tremendo por medo de que fôssemos descobertos em algum momento por Estes ou algum de seus serventes.

     Felizmente a donzela conhecia cada curva da casa e saímos à rua.

     De algum modo, o fizemos em custoso herio[2] fechado detrás da casa. Boraxis subiu à parte de cima com o condutor enquanto Acheron e eu montávamos dentro. Sozinhos. Juntos.

     Não respirei realmente outra vez até que a casa de Estes desapareceu e estivemos aos subúrbios dos muros da cidade, cruzando a ponte e no caminho que eventualmente nos levaria aos cais.

     Acheron se sentava em um canto, olhando para fora através da pequena janela e sem dizer nada.

     Seus olhos estavam mortos. Sem vida. Como se tivesse visto o horror muitas vezes.

     —Necessitas de um médico? —perguntei-lhe.

     Ele negou com a cabeça.

     Queria lhe abraçar e lhe confortar, mas não estava segura que alguma coisa sobre a terra poderia fazê-lo.

     Nós viajamos em completo silêncio até que chegamos a um pequeno povoado. O condutor trocou os cavalos enquanto nós entrávamos em uma pequena casa para esperar. Eu aluguei um quarto a uma anciã de modo que pudéssemos nos lavar e descansar em paz.

     Boraxis encontrou ou comprou de algum modo roupas para Acheron. Eram um pouco pequenas para ele e de tecido áspero, mas ele não se queixou. Simplesmente as olhou e se vestiu no quarto alugado.

     Adverti que Acheron coxeava quando saiu do quarto onde eu o esperava no estreito corredor. Meu coração doeu ao pensar nele, caminhando com os pés feridos, e ainda assim, ele ainda não emitia palavras de queixa.

     —Vamos, Acheron, devemos comer enquanto podemos.

     O pânico cintilou em seus olhos. Este foi instantaneamente seguido por um olhar de resignação.

     —O que ocorre? —perguntei.

     Ele não respondeu. Simplesmente puxou o capuz de sua capa sobre a cabeça como se defendesse a si mesmo do mundo. Com a cabeça baixa e seus braços ao redor de si mesmo, seguiu-me a pequena copa de baixo.

     Eu dirigi a uma mesa na parte de trás, perto do calor.

     —A quem tenho que pagar pela comida? —perguntou Acheron rapidamente, sua cara completamente defendida pelo capuz.

     Olhei-lhe com o cenho franzido.

     —Tens dinheiro?

     Ele pareceu tão atônito por minha pergunta como eu o estava pela sua.

     “Se não puder trabalhar, não pode comer. Hoje não há ganhado sua comida”

     Meu estômago se encolheu quando recordei o que havia dito Estes. As lágrimas me estrangularam.

     Ele pensava que eu queria que ele…

     —Eu pagarei nossa comida, Acheron, com meu dinheiro.

   O alívio em sua cara espremeu inclusive mais meu coração.

     Sentei-me. Acheron rodeou a mesa e se ajoelhou no chão a minha direita, justo atrás de mim.

     Olhei-o estranhamente por cima do ombro.

     —O que estás fazendo?

     —Me perdoe, minha senhora. Não pretendia te ofender. —ele escorreu sobre seus joelhos várias polegadas mais.

     Completamente pasma, voltei-me e fiquei lhe olhando.

     —Por que estás no chão?

     Ele pareceu imediatamente decepcionado.

     —Vos esperarei no quarto.

     Ele se moveu para partir.

     —Espera. —disse-lhe, tomando pelo braço—. Não estás faminto? Estava te dizendo que não hás comido.

     —Estou faminto —disse simplesmente entre seus apertados dentes.

     —Então te sente.

     Outra vez se ajoelhou no chão.

     O que estava fazendo?

     —Acheron, por que estás no chão e não sentado à mesa comigo?

     Seu olhar era vazio, humilde.

     —Os putos não se sintam à mesa com pessoas decentes.

     Sua voz era tão constante como se simplesmente estivesse repetindo algo que se havia dito tão freqüentemente que não tinha nenhum significado para ele.

     Mas as palavras cortaram através de mim.

     —Não és um puto, Acheron.

     Ele não discutiu verbalmente, mas podia ver a dúvida em seus pálidos, tempestuosos olhos.

     Estirei-me para lhe tocar o rosto. Ele ficou ligeiramente rígido.

     Deixei cair minha mão.

     —Vamos —disse brandamente—, sente-se à mesa comigo.

     Ele fez o que lhe disse, mas parecia terrivelmente incômodo, como se temesse que alguém lhe arrebatasse o capuz do cabelo a qualquer momento. Uma e outra vez puxava o capuz para proteger-se.

     Foi então quando me dava conta que a segunda maneira de castigar a alguém quando não queres que as marcas sejam visíveis. A cabeça. Quantas vezes lhe teriam puxado o cabelo?

     Um criado se aproximou para tomar nota.

     —O que você gostaria, Acheron?

     —Minha vontade é a tua, Idika.

     Idika. Uma palavra atlante que um escravo usava para seu proprietário.

     —Não tens preferência?

     Ele negou com a cabeça.

     Pedi nossa comida e o observei. Mantinha o olhar no chão, seus braços rodeando seu corpo.

     Quando ele se moveu para tossir, captei uma olhada de algo estranho em sua boca.

     —O que é isso? —perguntei-lhe.

     Ele me olhou, então baixou o olhar.

     —O que é que, Idika? —perguntou outra vez com a mandíbula apertada.

     —Sou sua irmã, Acheron, pode me chamar de Ryssa.

     Ele não respondeu.

     Suspirando, voltei para minha pergunta original.

     —O que há em tua boca? Deixe-me ver tua língua.

     Ele separou obedientemente os lábios. Toda a linha central de sua língua estava perfurada e cheia de pequenas bolas douradas que brilhavam à luz. Eu nunca tinha visto nada igual a isso em minha vida.

     —O que é isso? —perguntei franzindo o cenho.

     Acheron fechou a boca e pela maneira em que moveu seus lábios e mandíbula, poderia dizer que estava esfregando as bolas contra o paladar de sua boca.

     —Erotiki sfairi.

     —Não entendo esse termo.

     —Esferas sexuais, Idika. Fazem mais estimulantes minhas lambidas àqueles aos que sirvo.

     Não tinha podido estar mais surpreendida se ele a tivesse esbofeteado. Ele não era consciente a respeito de algo que era tabu no mundo que eu conhecia.

     —Machucam-te? —não podia acreditar que estivesse fazendo essa pergunta.

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Só tenho que tomar cuidado de não deixar que golpeiem meus dentes por temor a que se rompam.

     Assim que isso é pelo que mantinha a mandíbula apertada quando falava.

     —Contudo é uma maravilha que possas falar.

     —Ninguém paga a um puto para usar sua língua para falar, Idika.

     —Tu não és um puto! —várias cabeças se voltaram, fazendo com que me desse conta que tinha falado mais alto do que tinha querido.

     Minhas bochechas arderam, mas não havia vergonha no rosto de Acheron. Ele simplesmente o aceitava como se ele não fora nada mais e não merecesse nada melhor.

     —Tu és um príncipe, Acheron. Um príncipe.

     —Então por que me deixastes?

     Sua pergunta me sobressaltou. Não só as palavras em si mesmas, mas também o sincero sentimento de dor em sua voz quando as disse.

     —O que queres dizer?

     —Idikos me disse que isso era o que diziam todos.

     Idikos. A forma masculina da palavra que um escravo usava para seu proprietário.

     —Quer dizer Estes?

     Ele assentiu.

     —Ele é seu tio, não seu idikos.

     —As pessoas não discutem com um látego ou uma surra, minha senhora. Ao menos não por muito tempo.

     Eu traguei ante suas palavras. Não, supunha que não.

     —O que te disse?

     —O rei me quer morto. Vivo só por que o filho ao que ama morrerá se eu morrer.

     —Isso não é verdade. Papai diz que te enviou longe porque temia que alguém tentasse te ferir. Tu és teu herdeiro.

     Acheron manteve o olhar no chão.

     —Idikos diz que eu sou uma vergonha para minha família. Indigno de estar com algum de vós. Isso é pelo que o rei me enviou longe e disse a todo mundo que eu estava morto. Eu só sou bom para uma coisa.

     Não necessitava que me dissesse qual era essa coisa.

     —Ele te mentiu —meu coração se rompeu com o peso da verdade—. Ele só nos esteve mentindo para mim e para Papai. Ele nos disse que tu estavas são e feliz. Bem educado.

     Ele riu com amargura ante isso.

     —Eu estou bem educado, Idika. Acredite-me, sou o melhor no que eles me treinaram para fazer.

     Como podia encontrar humor nisso?

     Afastei o olhar dele quando os serventes nos trouxeram a comida. Quando comecei a comer, adverti que Acheron não se moveu. Ele ficava olhando a comida diante dele com fome nos olhos.

     —Coma —lhe disse.

     —Não me destes minha porção, minha senhora.

     —O que queres dizer?

     —Vós comeis, e se eu vos agrado enquanto comeis, vós determinais quanta comida tenho que tomar.

     —Me agradar como… não espera. Não responda a isso. Não estou segura de que queira sabê-lo —Suspirei, então indiquei com um gesto seu prato e taça—. Tudo isso é para ti. Pode comer tanto ou tão pouco como queiras.

     Ele ficou olhando-o vacilante, então jogou uma olhada ao chão atrás de mim.

     Foi então que entendi por que se ajoelhou no chão.

     —Normalmente come no chão, verdade?

     Igual a um cão ou roedor.

     Ele assentiu.

     —Se for particularmente agradável —disse brandamente—, Idikos algumas vezes me alimenta de sua mão.

     O apetite me abandonou ante essas palavras.

     —Coma em paz, irmãozinho —lhe disse, minha voz quebrada pelas lágrimas não derramadas—. Coma tanto como queiras.

     Tomei o vinho, tentando assentar meu estômago e o olhei enquanto comia.

     Tinha maneiras perfeitas e de novo me surpreendeu o lentamente que comia. Quão meticulosamente se movia.

     Cada gesto era bonito. Preciso.

     E estava designado a seduzir.

     Movia-se igual a um puto.

     Fechei os olhos, queria gritar a injustiça disto. Era o primogênito. Era o único que devia ser herdeiro ao trono e ali estava…

     Como podiam lhe haver feito isso?

     E por que?

     Por que seus olhos eram diferentes? Por que esses olhos faziam que as pessoas se sentissem incômodas?

     Não havia nada ameaçador nesse menino. Ele não era igual a Styxx, a quem lhe conhecia por ter feito encarcerar e golpear as pessoas só por que lhe ofendiam. Um pobre camponês tinha sido golpeado por que tinha vindo ao palácio sem sapatos cobrindo seus pés. Sapatos dos quais não podia dispor.

     Acheron não jogava comigo a esse jogo de erro, ou ria de outros. Ele não tinha julgado a ninguém ou os tinha feito sentir-se insignificantes.

     Ao contrário, simplesmente se sentava ali comendo em silêncio.

     Uma família tinha entrado e se sentou na mesa ao lado deles. Acheron fez uma pausa ao advertir ao menino e à menina. O menino era alguns anos mais jovem que ele e a menina provavelmente de sua idade.

     Pelo olhar em sua cara, podia dizer que não tinha visto antes a uma família sentar-se juntos à mesa. Ele os estudou com curiosidade.

     —Posso falar, minha senhora?

     —É obvio.

     —Vós e Styxx se sentais e comeis com vossos pais dessa forma?

     —Eles também são teus pais.

     Ele voltou para sua comida sem fazer comentários.

     —Sim —disse—, algumas vezes jantamos com eles dessa maneira.

     Mas Acheron nunca o tinha feito. Inclusive quando tinha estado conosco em casa, tinha-lhe sido proibida a mesa familiar.

     Depois disso, ele não tinha falado. Nem sequer olhou à família. Simplesmente comeu com essas impecáveis maneiras suas.

     Belisquei a comida, mas encontrei que não tinha muita fome depois de tudo.

     Levei-nos de retorno aos nossos quartos para esperar que o condutor terminasse suas coisas e alimentasse aos cavalos. Estava quase entardecendo e não estava segura se continuaríamos viajando através da tarde ou não.

     Sentei-me na pequena cadeira e fechei os olhos para descansar. Tinha sido um dia muito comprido. Quase nem tinha chegado a Atlântida essa manhã e não tinha esperado retornar tão cedo. Sem mencionar o indevido estresse de roubar a meu irmão de meu tio. Nesse momento, tudo o que eu queria era dormir.

     Senti a Acheron frente a mim.

     Abrindo os olhos, vi-o nu outra vez à exceção de suas bandas.

     Eu franzi o cenho ante ele.

     —O que estás fazendo?

     —Devo a ti por minha comida e roupas, minha senhora —ele se ajoelhou aos meus pés e levantou a prega de meu vestido.

     Inclinei-me baixando-a e lhe agarrei as mãos.

     —Não se toca à família dessa maneira, Acheron. Está errado.

     A confusão cresceu em seu cenho.

     E então compreendi a mais horrível das verdades.

     —Estes há… tu há… —não podia assimilar ao dizer essas palavras.

     —Eu lhe pago cada noite por ser o bastante amável para me dar refugio.

     Jamais tinha desejado chorar tanto em minha vida e ainda assim descobri que meus olhos estavam extremamente secos… inclusive a raiva e o desgosto derrubavam sobre mim pelo que lhe tinham feito a meu irmão. Oh, se pudesse pôr as mãos sobre meu tio…

     —Vista-te, Acheron. Não necessito que me pagues por nada.

     Ele me deixou e fez o que lhe pedi.

     Durante o resto da tarde, observei-o enquanto se sentava em silêncio em um canto sem mover nem sequer um só músculo. Obviamente tinha sido treinado para fazer isso, também. Passei minha mente através dos horrores das revelações desses dias.

     Através do horror que devia ter sido sua vida.

     Meu pobre Acheron.

     Disse-lhe quando se alegraria papai de lhe dar a bem-vinda em casa. Quão feliz estaria mamãe de lhe ver outra vez.

     Ele escutava em silêncio enquanto seus olhos me diziam que não acreditava em nenhuma só palavra que eu dizia.

     Os putos não viviam em palácios.

     Podia ouvir seus pensamentos claramente.

     E honestamente, estava começando a duvidar dessas palavras eu mesma.

            

4 de Novembro, 9532 a.C.

     Acheron permaneceu tão silencioso o resto de nossa viagem para os cais que comecei a me preocupar. Não parecia bem. De fato, tendia a molhar-se em suor e tremer sem razão aparente. Sua pele se tingiu de um horrível tom cinzento.

     Sempre que lhe perguntava qual era o problema, ele só respondia que algumas vezes lhe acontecia.

     E quanto mais estávamos em contato com as pessoas, ele se voltava mais nervoso.

     —Estes não te encontrará —lhe disse, esperando aliviar seu medo.

     Não funcionou. Se acaso, ele se voltou mais apreensivo.

     Boraxis retornou com nossas moedas para a viagem através do Aegean[3] que nos levaria para casa em Didymos. Eu sabia que não deixaria de estar assustada até que o navio partisse.

     Estava temerosa de que a qualquer momento nos encontrasse meu tio e levasse a Acheron de volta.

     Foi justo depois de meio-dia que nos permitiram abordar o navio. Boraxis tomou a dianteira comigo no meio e Acheron nos seguindo.

     O primeiro oficial tomou as moedas de Boraxis e lhe deu indicações para nossos camarotes, deteve Acheron.

     —Abaixe seu capuz!

     Vi o pânico nos olhos de Acheron antes que o baixasse. Tão logo o tecido esteve abaixo, senti uma sensação estranha, como uma onda, deslizar-se através daqueles que estavam perto de nós. Todos os olhos se dirigiram para meu irmão.

     O primeiro oficial assentiu com a cabeça e me chamou.

     —Minha senhora, não permitimos aos escravos viajar na coberta principal.

     Lancei-lhe um olhar fulminante.

     —Ele não é um escravo.

     O primeiro oficial de fato riu ante isso. O alcançou a banda ao redor da garganta de Acheron e devorou seu pendente que tinha o símbolo de um abrasador sol.

     Acheron não se moveu ou falou. Só mantinha seu olhar abaixo.

     O primeiro oficial olhou de novo para mim.

     —Posso apreciar seu desejo por manter a seu tsoulus com você, minha senhora, mas ele deverá viajar sob coberta com os outros escravos.

     Não me tinha ocorrido fazer que removessem as bandas de Acheron. Na Grécia nossos escravos não tinham ouro, portanto não me tinha ocorrido que isso o delataria.

     —Nexos —chamou o primeiro oficial a outro marinheiro. —Escolta a este sob coberta.

     O aterrado olhar de Acheron alcançou o meu.

     —Por favor, Idika, não me mande até lá. Sozinho. Não podes.

     —Pagarei mais —lhe disse ao marinheiro.

     —Sinto muito, minha senhora. É política estrita. Os outros passageiros estariam extremamente molestos se rompermos as regras por você.

     Senti-me horrível por ele.

     —Está tudo bem, Acheron. Só são uns poucos dias e estaremos em casa.

     Minhas palavras só pareceram assustá-lo mais. Mas não disse nada mais enquanto Nexus se aproximou para levá-lo longe de mim.

     —Ele estará bem, sua Alteza —me assegurou Boraxis. —Seus camarotes não serão refinados, mas estarão limpos e servíveis.

   E Boraxis saberia. Ele uma vez foi escravo, antes que meu pai o libertasse.

     —Obrigado, Boraxis.

     Meu coração doía, me dirigi ao meu camarote me perguntando que faria Acheron pelos seguintes quatro dias.

              

8 de Novembro, 9532 a.C.

     Esperei coberta com o coração em um punho pela volta de Acheron. Nos passados quatro dias tinha tratado com tudo vê-lo, mas ninguém o permitiu. Aparentemente, os passageiros regulares não eram permitidos sob coberta, assim como aos escravos não eram permitidos acima.

     Quase todos tinham abandonado o navio, inclusive os marinheiros, enquanto Boraxis e eu esperávamos.

     Por fim, vi aparecer a Acheron. Assim como ao dia que o tinham levado abaixo, tinha seu capuz baixo, sua cabeça dobrada.

     Nenhuma só parte de seu corpo ou rosto podia vislumbrar-se debaixo dela.

     —Aí está! —Disse com regozijo ao vê-lo de novo.

     Não disse nada como resposta.

     Quando tratei de abraçá-lo, afastou-me. Quando tratei de encontrar seu olhar, ele se moveu e passou por mim.

     Suas ações me irritaram. Era esse o agradecimento que recebia por salvá-lo da loucura da casa de meu tio? Seguro que por mais nu que os camarotes para escravos houvessem estado, eram preferíveis a serem maltratados por outros.

     —Não seja tão petulante Acheron. Não tive alternativa.

     Ainda assim não disse nada.

     Queria sacudi-lo. Esta era a primeira vez que seu comportamento recordava a Styxx.

     —Qual é o problema? Me responda!

     —Quero ir para casa.

     Fiquei totalmente estupefata por seu pedido sussurrado que estava tingido com irritação.

     —Estás louco? Por que quereria alguma vez retornar a Atlântida?

     Ele não respondeu.

     Suspirando pela frustração, guiei-o a coberta. Uma vez que estivemos no cais, Boraxis foi procurar-nos uma carroça fechada para a viagem a casa.

     Acheron permanecia em silêncio. Não olhou ao redor ou mostrou interesse algum no fato de que estava a salvo das garras de Estes.

     —Estamos na Grécia agora. Não muito longe de casa.

     Quando ele não respondeu, suspirei e estive agradecida de ver uma carroça dirigindo-se perto de nós. Talvez isso acalmaria seu mal-estar.

     Enquanto se detinha ante nós, um nobre me chamou.

     —Meu senhor? —Perguntei enquanto se aproximava. Ele não era muito mais velho que eu. Suas roupas e porte me diziam que ele estava extremamente bem, apesar de que não o reconhecia como um aristocrata ou dignitário.

     Ele apenas me olhou. Era Acheron que chamava sua atenção. Acheron que retrocedia longe do homem.

     —É seu, minha senhora?

     Duvidei ao lhe responder.

     —Por que deseja sabê-lo?

     —Quero comprá-lo. Diga seu preço e o pagarei.

     A raiva me inundou.

     —Ele não está à venda!

     O homem finalmente me olhou. Juraria que vi a loucura em seus olhos azuis.

     —Pagarei o que desejes por ele.

     Boraxis nos alcançou e franziu o cenho em advertência para o homem.

     —Suba à carroça, Acheron.

     Acheron não falou enquanto rapidamente subia a ela.

     Quando tratei de me unir a ele, o homem me deteve.

     —Por favor, minha senhora. Tenho que tê-lo. Darei-lhe qualquer coisa que desejes.

     Boraxis obrigou ao homem a retirar-se.

     Subi-me dentro da carroça enquanto o homem tratava de me subornar.

     —Não posso acreditar nisto —murmurei. —Acontece sempre isto?

     —Sim.

     A resposta de Acheron foi apenas mais que um suspiro.

     Boraxis assegurou nossa porta.

     —Deverei montar com o condutor, minha senhora.

     Aproximou-me uma ânfora de vinho e o que se sentia como pão envolvido em tecido.

     —Se necessitar algo, me chame.

     —Obrigada, Boraxis.

     O assentiu, depois subiu ao assento fora.

     Tendo comido um grande café da manhã no navio, não estava faminta. Podia sentir o olhar fixo de Acheron, mas ele se mantinha coberto por seu capuz.

     —Queres um pouco?

     Perguntei aproximando a comida a Acheron.

     Enquanto a carroça começou a caminhar, ele descobriu a comida como um animal morto de fome. Foi até que se moveu para comer que finalmente vi um pouco de seu antebraço.

     Havia sangue incrustado ao redor da banda de ouro de seu pulso. Mas ele não parecia precaver-se disso enquanto absorvia migalhas de pão em sua boca.

     —Estás bem, Acheron?

     Ele só continuava comendo vorazmente.

     Quando acabou o pão, atacou a ânfora de vinho com o mesmo ardor. Foi até depois de muitos minutos que a baixou e deixou sair algo que soou como um suspiro de alívio.

     Alcancei seu braço machucado.

     Ele não se moveu enquanto me sentava perto e removia a banda para trás para descobrir uma feia ferida. Enquanto olhava seu sangrento pulso, precavi-me de mais machucados em seu antebraço.

     Então olhei seu rosto.

     Inalei bruscamente em alarme. Antes de pensar o que estava fazendo, puxei o capuz para baixo. Sua pele estava ainda pálida seu cabelo murcho e emaranhado.

     Mas era seu rosto o que me transfigurou. Escuros círculos púrpuras cresciam debaixo de ambos os olhos como se não tivesse dormido de todo. Seus lábios estavam gretados, em carne viva e sangrando. Em ambas as bochechas tinham hematomas como se alguém o tivesse esbofeteado repetidamente. Um olho estava vermelho pelos vasos sangüíneos arrebentados.

     Suas roupas estavam rasgadas e sujas.

     —O que te aconteceu?

     Olhou-me de uma maneira insolente que me atravessou.

     —Sou um tsoulus treinado, Idika, que deixou desprotegido por quatro dias. O que acredita que me fizeram?

     Horrorizada, chamei Boraxis enquanto Acheron recolocava seu capuz.

     A carroça se deteve imediatamente. Boraxis baixou e abriu a porta.

     —Sim. Alteza?

     —Me leve de volta ao navio.

     —Posso perguntar por que, Alteza?

     —Eles... eles...

     Não podia nem sequer dizê-lo.

     —Quero que todos os que tocaram a Acheron sejam postos em correntes!

     Boraxis franziu o cenho.

     Puxei de novo o capuz de Acheron para baixo e mostrei a Boraxis o golpeado rosto.

     —Olhe o que lhe fizeram!

     —Sua Alteza —disse Boraxis em um tom baixo e calmo. —Levar-lhe-ei de volta se o desejar, mas só o verdadeiro dono de Acheron pode demandar restituição do dano.

     Chiei meus dentes para ele.

     —Acheron não é um escravo.

     —Está marcado como escravo, Alteza. Isso é tudo o que importa.

     —Então isso lhes dá direito a abusar dele?

     —Novamente, Alteza, repito-lhe, só seu verdadeiro dono pode demandar restituição. Tudo o que a lei lhe dará será a compensação financeira por seu uso. Nenhum homem livre será castigado por usar um escravo.

     —Um escravo pode ser golpeado por feri-lo desta maneira! E isso é o que quero.

     —Alteza, um escravo não se atreveu a tocá-lo dessa maneira.

     Passei saliva.

     —O que estás dizendo?

     Boraxis olhou através de mim para Acheron.

     —Acheron? Quem te feriu?

     —Os marinheiros e uma vez que tiveram terminado, me venderam a um nobre que trouxeram sob a coberta.

     Boraxis retornou seu olhar ao meu.

     —Você é uma nobre e eu seu servente. Ninguém tomara em conta o que pensemos igual a ninguém se importará o que foi feito a um escravo.

     Então um horrível medo me atravessou.

     —Sabias que lhe fariam isto?

     —Não, Alteza. Assumi que seria deixado com os outros escravos, sozinho. Se tivesse tido qualquer pista de que o tinham prejudicado, teria-lhe advertido.

     Acreditei nele.

     Mesmo assim, nunca tinha estado tão zangada em minha vida. Se estivéssemos no reino de meu pai...

     Mas não estávamos. Boraxis tinha razão. Aqui, fora do reino de meu pai. Não tinha voz.

     Doente por este feito, assenti.

     —Nos encontre um lugar onde possamos fazer que removam suas bandas, Boraxis.

     —Não as pode remover. —Disse Acheron com pânico em sua voz. —É sentença de morte para qualquer tsoulus que alguém mais além de seu Idikos remova suas bandas.

     —Tu não és um escravo e não serás marcado como um!

     Ele encolheu-se longe de mim.

   Suspirando, olhei de volta para Boraxis.

     —Acheron necessita de mais comida e um lugar seguro para descansar e banhar-se. Também poderia usar roupa nova.

     —Perguntarei ao condutor por tal lugar. Alteza.

     Assenti para ele. Deixou-nos e subiu novamente. Uns segundos depois nos movíamos novamente.

     —Ninguém voltará a te machucar, Acheron.

     Lágrimas apareceram em seus olhos antes que colocasse novamente seu capuz para cima para cobrir seu rosto de mim.

     —Fala comigo, irmãozinho. Diga-me o que pensas.

     —Minha vontade é a tua, Idika.

     —Deixa de me chamar assim! Sou Ryssa. Não sou tua proprietária.

     Novamente, ele não respondeu a isso.

     Indignada, deixei-o consigo mesmo enquanto viajávamos a seguinte hora até que Boraxis nos encontrou uma hospedaria grande, onde poderíamos render um quarto a Acheron para que pudesse tomar um banho e descansar.

     Um pouco depois, Boraxis trouxe um ferreiro ao quarto.

     Toquei na porta de Acheron, então a abri para encontrá-lo recostado nu em sua cama. Fiz com que Boraxis e o ferreiro permanecessem no corredor enquanto entrava.

     —Acheron —disse brandamente, tratando de movê-lo para despertar.

     Detive-me enquanto via a grande quantidade de feridas e machucados que marcavam sua pele perfeita. Havia lugares onde se podiam observar as marcas de mãos completas de seu abuso. Deuses, o horror que deve ter passado sozinho no ventre do navio.

     Meu estômago se encolheu ante o sinal de minha falha ao protegê-lo. Como pude ter sido tão inútil? Coloquei um lençol sobre ele antes de agitá-lo muito brandamente e prometi mesma que ele não seria ferido desta maneira de novo.

     Ele despertou aterrorizado.

     —Tudo está bem —lhe assegurei.

     Olhou-me como se não estivesse seguro de que devesse acreditar em mim.

     —Boraxis? —chamei-lhe.

     Entrou com o ferreiro atrás dele. Logo que Acheron viu as ferramentas nas mãos do ferreiro, entrou em pânico e tratou de fugir.

     —Segure-o!

     Boraxis o fez, agarrou-o e o sustentou no chão enquanto o ferreiro trazia um grande par de pinças para romper as bandas.

     Acheron gritou e lutou como se lhe estivessem cortando as extremidades.

     —Por favor, pare! —rogou roucamente. —Por favor!

     Seus rogos me atravessaram, mas isso era algo que tinha que se fazer. Não queria que ninguém mais o confundisse com um escravo.

     —Está tudo bem, Acheron. És livre.

     Ainda assim, lutou até que a última banda tinha sido removida. Então permaneceu sem mover-se, com seus olhos fechados.

     —Conserve o ouro.

     Disse-lhe ao ferreiro, quem nesse momento me agradeceu e se foi.

     Olhei a Boraxis, estupefata pelas ações de Acheron.

     —Por que não querias que as removêssemos?

     —Tomou sua coberta de registro. Se um comerciante de escravos o encontra, ele não precisa ser devolvido ao seu dono. Qualquer um pode reclamá-lo.

     Grunhi ante as palavras que não queria escutar.

     —Ele não é um escravo.

     —Foi marcado como tal em sua mão, Princesa. Se alguém vir essa marca, eles saberão que não é um liberto.

     Franzi o cenho.

     —Que marca?

     Boraxis sustentou a mão direita de Acheron palma acima para me mostrar uma marca irregular em sua palma que parecia uma X através de uma pirâmide. Que estranho que não me tivesse precavido antes. Mas não fazia diferença para mim.

     —Ninguém saberá.

     —O ferreiro sabe, Alteza. Por essa razão, sugerir-lhe-ia que deixemos este lugar rápido que seja possível e cheguemos ao reino de seu pai antes que nos detenhamos novamente.

     Minha mandíbula se desencaixou.

     —Não está falando a sério?

     Por seu rosto, podia me precaver de que o estava fazendo.

     —Por favor, Alteza. Me escute nisto. A última coisa que quero é ver qualquer de vós ferido. Precisamos ir.

     —Por que não me disse da marca antes que o ferreiro removesse suas bandas?

     —Alteza, sou um escravo libertado. Não está em minha natureza questionar aos meus superiores. Vos amo e vos sirvo e segundo o decreto dos deuses, daria minha vida pela sua.

     Ele tinha razão. Tinha visto meu pai e Stixx golpear a muitos serventes por duvidar depois que lhe dessem uma ordem.

     Assentindo, foi a Acheron quem ainda não se moveu.

     —Venha, Acheron, devemos nos apressar.

     Olhou-me com seus olhos cheios de desespero.

     —Idikos me castigará duramente por isso. Tem idéia do que tem feito?

     —Estes não te machucará novamente. Sou sua irmã e vos dou minha palavra, estás a salvo.

     Ele sacudiu sua cabeça negando.

     —Ele me encontrará. Sempre o faz.

     —Quantas vezes escapaste?

     —As suficientes para saber que não vale a pena.

     —Desta vez o valerá.

     Pelo menos isso esperava. E por todos os deuses, pretendia fazê-lo. Ninguém merecia viver temeroso. Ninguém merecia ser golpeado e abusado. Especialmente não um menino que tinha nascido príncipe.

     Mas inclusive enquanto me prometia a mim mesma que o protegeria, uma parte de mim se perguntava se poderia.

     Assim como Acheron e Boraxis, eu também, era prisioneira a minha hierarquia. E inclusive contra minha vontade, minhas asas eram freqüentemente atadas.

  

15 de Novembro, 9532 a.C.

     Passou uma semana desde que deixamos a Atlântida. Uma semana que viajei com meu irmão que não sabia como rir ou sorrir. Ou inclusive, como formular uma opinião por sua conta. Cada vez que pergunto, sua resposta é sempre a mesma.

     —Tua vontade é a minha, Idika.

     Era suficiente para me fazer gritar.

     A última parte de nossa viagem foi novamente em navio, mas desta vez compramos um navio particular para que nos levasse a ilha onde nosso pai governa como rei. Não queria assumir mais riscos com Acheron ou sua segurança. Quanto mais tempo passava com ele, mais entendia. Era possuidor de um magnetismo sexual fora do normal.

     Qualquer um que o via desejava tocá-lo. Possuí-lo. Por essa razão se mantinha completamente coberto aonde fora que se aventurasse a sair em público. Por isso se encolhia quando alguém se aproximava. Nem sequer eu era totalmente imune ao profano desejo e me adoecia que pudesse senti-lo por meu próprio irmão. A pior parte era que podia jurar que quando conhecesse meus pensamentos, se esticaria como se ele se preparasse para meu ataque.

     Mas nunca o machucaria ou o tocaria dessa maneira. Ainda assim, não confiava em mim e honestamente não o podia culpar devido a sua experiência.

     Havia dito que Estes o protegia. Eu sabia a verdade. Não havia proteção no que nosso tio fazia, só controlava quanta gente atacava a Acheron de uma vez.

     Os Deuses deveriam castigar a Estes por isso.

     Como podia ter estado tão cega com esse monstro todos estes anos?

     Como inclusive meu pai podia permiti-lo? Preferiria pensar que não sabia nada a respeito. Era da única forma com a qual podia viver. E esperava com cada parte de meu ser não voltar a colocar os olhos sobre meu tio novamente.

     Era nosso quinto dia de viagem quando Boraxis finalmente me explicou porque Acheron estava tão pálido e lhe davam ataques de extrema sudorese e vômitos.

     Eram as drogas que Estes tinha usado para controlá-lo. A essência de laranja que tinha percebido era dos afrodisíacos que usavam para fazê-lo rogar por sexo e o outro era uma substância inalada para fazê-lo mais receptor e aceitar o que lhe faziam.

     Acheron estava tão fraco que me assustava. Precisávamos encontrar um médico que o pudesse ajudar. Boraxis insistia em que o melhor que podíamos fazer era comprar nossa própria provisão das drogas e mantê-lo drogado. Mas não podia fazer isso a meu próprio irmão. Precisava viver sua vida livre de tais coisas.

     Certamente, continuaria doente por elas. Tinham que sair de seu sistema eventualmente. Entretanto parecia debilitar-se cada dia mais.

     Agora, pelo menos, estávamos em casa.

     O palácio dominava sobre nós enquanto nos aproximávamos na carroça coberta. Não me atrevia a viajar com Acheron na carroça aberta onde qualquer vento que soprasse podia fazer cair seu capuz e expô-lo. As pessoas tendiam a voltar-se violenta ao vê-lo e já Boraxis se havia posto rude com alguns dos mais persistentes.

     Traguei saliva enquanto passávamos pelas portas do palácio e duvidei perto da entrada. Depois de minha coragem ao dizer a Acheron que tão bem-vindo seria em sua família, senti que minha coragem me abandonava.

     E se tinha razão? E se a Papai não lhe preocupava? Pelo que sabia, Papai estava consciente do que Estes lhe estava fazendo. Inclusive talvez o tinha aprovado. Só o pensamento me pôs doente, mas era algo para o qual tinha que me preparar. Era uma possibilidade.

     Acheron já estava muito ferido e temia machucá-lo ainda mais. A confiança era uma coisa frágil e apenas tinha começado a confiar em mim. Não queria que nada danificasse isso.

     Ou a ele.

     Então o levei pela entrada lateral e o dirigi para minhas câmaras, onde ninguém o incomodaria.

     —Vou até Papai. Espera aqui e voltarei rapidamente.

     Acheron não falou. Estava tremendo incontrolavelmente de novo. Em seu lugar, assentiu antes de dirigir-se para um canto e sentar-se no chão com as costas contra a parede. Estava tão bem coberto que parecia um saco de grão sobre o chão.

     Levantei uma vasilha de barro junto à chaminé e o coloquei junto a ele.

     —Se por acaso te adoeces.

     Novamente não respondeu de maneira nenhuma.

     Entristecida por isso, virei-me para Boraxis.

     —Permaneça com ele e te assegures de que ninguém o incomode.

     —Sim, sua Alteza.

     Esperando o melhor, deixei-o em minhas câmaras e fui falar com Papai a sós.

     Encontrei-o no pátio traseiro com Styxx. Ambos estavam reclinados em cadeiras acolchoadas enquanto comiam um leve sanduíche de mel e pão, enquanto Papai instruía a Styxx em assuntos de estado. Estavam rodeados de criados que atendiam todas suas necessidades. Que suntuosa visão eles formavam.

     O loiro cabelo de Styxx reluzia à luz do sol. Sua pele brilhava com vitalidade. Não tinha o tom cinzento de ter sido forçado a tomar drogas para que outros pudessem abusar dele. Inclusive desde minha posição, podia ver sua arrogância enquanto ordenava a todos ao seu redor.

     Pensei em Acheron e quis gritar ante a injustiça.

   —Olhe, é cabeça de novilho —disse Styxx ao momento de ver-me. O pequeno ogro sempre me tinha incomodado por meu loiro cabelo encaracolado—. Onde estiveste?

     —Fora —lhe disse. O trol não precisava saber sobre meus assuntos—. Papai poderei ter umas palavras a sós contigo?

     Dirigiu-lhe um irônico olhar para Styxx.

     —Tudo o que tenhas a me dizer pode ser dito frente a seu irmão. Um dia Styxx será teu rei e terás que responder ante ele.

     O pensamento fez com que o sangue se gelasse em minhas veias.

     —É certo —disse Styxx presunçosamente—. Isso significa que terás que me beijar os pés como todos.

     Papai riu.

     —És um patife.

     Mordi-me os lábios para me manter em silêncio. Como não podia ver que tão malcriado, odioso e troll era Styxx? Mas Papai sempre tinha estado cego para o comportamento malcriado de Styxx.

     —Então, por que estás aqui, gatinha? —Perguntou Papai—. Deseja uma nova bagatela ou roupas?

     O homem sempre tinha sido indulgente comigo. Pelo menos em algo que não envolvesse a Acheron.

     —Não. Quero trazer Acheron para casa.

     Papai se exaltou ante minha petição.

     —Agora vejamos. O que colocou em tua cabeça? Hei-te dito repetidamente como me sinto. Esse monstro não pertence aqui.

     Styxx curvou seus lábios.

     —Por que o quer aqui? É um perigo para todos nós.

     —Um perigo como?

     Este era um argumento tão familiar que podia responder com suas desculpas antes que eles o fizessem.

     Meu pai curvou seu lábio.

     —Não sabes o que um semideus pode fazer. Poderia matar a teu irmão enquanto dorme. Matar-me. Nos matar a todos.

     Como podia dizer isso? Acheron em nenhum momento tinha tentado me atacar. Nem sequer levantava a voz.

     —Por que não temes por Estes?

     —Estes o mantém sob controle.

     Com drogas. Então Papai sabia dessa parte. Era tudo o que podia fazer para manter minha indignação sob controle. E para me perguntar o que mais sabia sobre o trato que davam a Acheron.

     —Acheron pertence a este lugar, conosco.

     Papai ficou de pé.

     —Tu és uma mulher Ryssa, e uma mulher jovem. Tua mente estaria melhor ocupada com moda e decoração. Planejando teus vestidos para uma festa. Acheron não pertence a esta família. Nunca o fará. Agora, vá procurar tua mãe para fofocar. Styxx e eu temos assuntos importantes a discutir.

     Como que criada de serviço estará na cama de Styxx… Assuntos muito mais importantes que a vida de seu filho mais velho.

     Lancei-lhe um olhar

     —Assuntos mais importantes que teu próprio filho?

     —Ele não é meu filho.

     Sacudi a cabeça, incapaz de acreditar em sua negativa. Então Acheron tinha tido razão todo o tempo. Papai o tinha mandado longe intencionalmente e nunca lhe permitiria voltar. Por que não vi a verdade antes? Porque amava a meu pai. Para mim, sempre tinha sido atencioso e adorável.

     Pelo menos agora sabia a verdade.

     Agora o via pelo que realmente era. Desumano.

     Então toda a história que contou sobre proteger a Acheron não era verdade?

     —Do que estás falando?

     Inclusive não recordava suas próprias mentiras.

     —Me disseste que quando levaram a Acheron o faziam para protegê-lo. Disseste-me que os dois herdeiros não deviam crescer juntos porque seriam um alvo fácil para os inimigos. Disseste que traria Acheron para casa quando fora o suficientemente crescido. Alguma vez tiveste a intenção de ir atrás dele, verdade?

     —Nos deixe.

     Deixei-os. Sua visão e a de Styxx realmente me adoeciam nesse momento. E com cada passo que me afastava de meu pai, perdia o respeito que tinha pelo homem que uma vez adorei.

     Como podia havê-lo feito? Como era possível que não prestasse atenção? Como era possível que o mesmo homem que consentia para mim e a Styxx desse as costas a seu herdeiro?

     Retornei a minhas habitações para encontrar Acheron sentado no balcão. Tinha as pernas dobradas e o queixo sobre seus joelhos, os braços estavam cruzados ao seu redor.

     Estava suando novamente. Seus olhos estavam ocos e vazios. Parecia tão doente e frágil. Como podia meu pai temer a um menino que nem sequer cruzava o olhar com ninguém?

     Inclinei-me junto a ele e tratei de tocá-lo. Esticou-se como sempre o fazia.

     Acheron não gostava de ser tocado. Sem dúvida tinha sofrido suficientes toques para toda a vida.

     —Papai não está aqui

     Menti, inclusive enquanto me afogavam as palavras.

     Como poderia dizer a este menino a verdade? Tinha rogado por sua confiança, só para descobrir que era uma parva.

     Como podia lhe dizer que se fosse por seu pai, deveria ser enviado novamente a Estes para ser prostituído por qualquer um que estivesse disposto a pagar por ele?

     Não podia lhe dizer a verdade, assim como não poderia mandá-lo de volta a Atlântida.

     —Vou te levar ao palácio de verão para esperá-lo.

     Não me questionou, o qual permitiu que a culpa pousasse em meu coração. Mas o que importava? Levaria-o a um lugar onde estivesse a salvo. Seguro. Um lugar onde ninguém o machucaria ou o envergonharia.

     Levantei-me e o urgi a me seguir e o fez sem perguntas.

     Movemo-nos pelos salões traseiros da mesma maneira que entramos no palácio, como insignificantes e medrosos ladrões em lugar do herdeiro e princesa desta terra. Acheron não sabia que era um segredo ou que eu estava aterrorizada do que nos aconteceria se alguém nos visse.

     Por sorte não nos viram e em um curto período estávamos lá fora de novo. Mas em meu coração, continuava me perguntando quando tempo poderia estar longe antes que Papai arrastasse para casa.

     O que aconteceria então a Acheron?

    

18 de Novembro, 9532 a.C.

     O palácio de verão estava completamente vazio nesta época do ano. Só um pequeno punhado de serventes estavam na residência. Petra, nossa cozinheira, sua filha e seu marido que também era o jardineiro. A ama de chaves e o capataz finalizavam o pequeno número.

     Por sorte, todos me eram leais e nunca diriam ao meu pai que me alojava aqui com um convidado que se parecia com o herdeiro. Não expliquei a existência de Acheron e não perguntaram. Somente o aceitaram e acomodaram um aposento que estava somente a duas portas do meu.

     Acheron vacilava extremamente, enquanto entrava no quarto. Pela maneira com que olhava ao redor podia dizer que estava pensando no velho quarto no qual o tio o tinha vendido a outros.

     —Posso falar, Idika?

     Odiava quando me falava assim.

     —Hei-te dito repetidamente que não tens que me perguntar para falar Acheron. Diga o que seja que esteja em sua mente.

     Titio o tinha golpeado tão freqüentemente por falar que lhe era difícil romper o hábito.

     —Com quem compartilharei o quarto?

     Meu coração chorou ante sua sussurrada pergunta. Ainda lhe custava acreditar que não tinha que usar seu corpo para pagar por cada gentileza ou alimento.

     —É seu quarto Acheron. Não o compartilhará com ninguém.

     O alívio nesses olhos chapeados fez com que minha garganta se apertasse.

     —Obrigado, Idika.

     Não estava segura do que desprezava mais, sua insistência em me chamar de sua dona ou que me agradecesse por não vendê-lo.

     Suspirando, dei-lhe umas tapinhas gentis no braço.

     —Farei com que lhe tragam algumas roupas de Styxx para que uses.

     Ele virou-se antes de falar novamente.

     —Zangar-se-á quando souber que as hei tocado.

     —Não se zangará, Acheron. Acredite em mim.

     —Como o desejas. Idika.

     Mordi os lábios ante seu servilismo. Enquanto Styxx era detestávelmente dominante, freqüentemente fazendo com que as pessoas refizessem tarefas só por sentir o poder que tinha sobre eles, Acheron aceitava tudo o que faziam para ele sem queixar-se.

     Desejando que houvesse algo que pudesse fazer para que se sentisse a salvo e mais cômodo, deixei-o em seu quarto e fui descansar no meu. Só necessitava de um pequeno descanso do estresse de me preocupar com ele. Os serventes aqui eram em sua maioria velhos e a única coisa da qual me tinha precavido era que as pessoas mais velhas pareciam mais imunes a algo que tinha a Acheron possuído. Se não eram imunes, parecia que tinham menor motivação a atuar.

     Sem mencionar que o pessoal se precaveria que era da família e somente isso os manteria longe dele.

     Esperava.

     Cansada, fui para meu escritório e escrevi um bilhete rápido para Papai, fazendo de seu conhecimento que necessitava algum tempo longe de Didymos. Estava acostumado a minhas viagens, já que freqüentemente visitava minha tia viúva em Atenas ou vinha ao palácio de verão para simplesmente estar a sós. Como Acheron, valorizava minha solidão. Enquanto tivesse a Boraxis comigo e mantivera a meu pai informado de meu bem-estar e paradeiro, meu pai era indulgente com minhas viagens impulsivas.

     O único lugar que me tinha proibido visitar era Atlântida. Agora sabia porquê. E honestamente acreditava nele quando me dizia que estava muito longe e era uma viagem muito perigosa para uma mulher de minha idade sem uma escolta apropriada. Pouco tinha suspeitado que era para proteger a seu irmão e sua conduta licenciosa.

     Justo tinha finalizado de escrever a nota dizendo a meu pai que estava em Atenas, quando olhei para fora e me detive. Minha atenção foi cativada por um movimento fora da janela, no jardim. Ao princípio, não podia acreditar no que via.

     Era Acheron.

     Que estranho que fizesse algo sem permissão expressa. Quase nem se movia a menos que lhe mandasse que o fizesse. Tive que piscar duas vezes só para me assegurar que não estava sonhando. Mas não, era definitivamente ele...

     Inclusive, sendo um inverno suave, fazia suficiente frio para necessitar uma capa lá fora. Ainda assim permanecia, com os pés descalços, caminhando pelo pasto próximo à fonte. Tinha a cabeça dobrada para baixo e parecia estar enredando os dedos dos pés no pasto. Parecia como se estivesse desfrutando da sensação, mas como nunca sorria, era difícil de dizer.

     Que demônios estava fazendo?

     Agarrei a capa e me dirigi para o exterior para observá-lo.

     Logo que me viu me aproximar, encolheu-se até que esteve contra a longínqua parede de pedra. Sem nenhum outro lugar ao qual ir, atirou-se sobre seus joelhos e levantou seus braços como se fora a proteger a cabeça e o rosto.

     —Me perdoe Idika, por favor, eu não... não quis ofendê-la.

     Ajoelhei-me junto a ele e tomei seu rosto em minhas mãos para acalmá-lo. Esticou-se tanto ante meu contato que era uma maravilha que não se quebrasse.

     —Acheron, está tudo bem. Ninguém está aborrecido contigo. Não tens feito nada de errado. Shh...

     Ele tragou enquanto seu medo se transformava em confusão. Queridos Deuses, o que lhe tinham feito que tremia quando não tinha feito nada para merecê-lo?

     —Só tinha curiosidade do porque estavas aqui fora sem os sapatos postos. Faz frio e não quero que pegues uma febre.

     Minha preocupação o desconcertou tanto como seu medo me desconcertou...

     Gesticulou para seu quarto que tinha um pequeno terraço o qual, como o meu, abria-se até o jardim. A porta estava ainda entreaberta.

     —Não vi ninguém aqui e então pensei que estava a salvo. Só queria sentir o pasto. Não pensei fazer mal, Idika. Ia retornar ao meu quarto assim que terminasse. Juro-o.

     —Eu sei.

     Disse tomando seu rosto antes de soltá-lo. Relaxou-se um pouco agora que não o tocava.

     —Em realidade está tudo bem. Não estou zangada contigo. Mas não entendo porque quererias sentir o pasto estando tão frio. Está seco nesta época do ano.

     Passou sua mão sobre o pasto.

     —Nem sempre é assim?

     Franzi o cenho ante sua pergunta.

     —Nunca havias tocado o pasto antes?

     —Acredito que o fiz quando era pequeno. Mas não o recordo.

     Passou a mão sobre o pasto novamente em um gentil gesto que retorceu meu coração.

     —Só queria tocá-lo uma vez. Não deixarei meu quarto novamente, Idika. Deveria lhe haver pedido permissão antes. Perdoe-me.

     Baixou a cabeça.

     Queria alcançá-lo e tocá-lo de novo, mas sabia quanto odiava isso.

     —Não necessita de minha permissão Acheron. Podes vir aqui quando o desejes. És livre agora.

     Olhou para a palma marcada que continha a marca de escravo, então a fechou em um punho.

     —Idikos disse que o rei lhe fez prometer que nunca deixaria a casa.

     Fiquei com a boca aberta ante sua revelação.

     —Estiveste encerrado em seu quarto desde que chegou a Atlântida?

     —Nem sempre. Quando Idikos retorna de uma viagem, saúdo-o no saguão. Sou sempre ao primeiro que ele deseja ver. Então algumas vezes Idikos me tranca em seu escritório dos tornozelos ou a sua cama. E na noite vou ao salão de jantares e ao salão de baile quando temos festas.

     E cada noite dormia na cama de Estes. Já me havia dito tudo isso.

     —Mas nunca estiveste fora?

     Olhou-me, depois afastou o olhar. Isso era o que Estes tinha lhe ensinado a fazer desde que muita gente se desconcertava por seus tempestuosos olhos chapeados.

     —Tem-me permitido sentar no balcão entre clientes para que minha pele não seja pálida. Meara em ocasiões me permite comer fora.

     Tinha sabido por ele que Meara era a criada que me tinha escrito e quem lhe tinha ajudado a escapar. Tinha sido a mais gentil de seus guardiões e a única que se assegurou de que comesse e estivesse cômodo... quando não estivesse entretendo. A outra coisa que soube dele era que Estes utilizava a comida para controlá-lo.

     Acheron comia só quando havia agradado a outros. A quantidade que lhe estava permitida comer dependia de quantos clientes tinha visto esse dia e que tão felizes tinham ficado.

     O pensamento me adoeceu.

     —Amas a Meara, certo?

     —Sempre foi boa comigo. Inclusive quando sou mau, não me machuca.

     Mau. Definido por Estes, era quando qualquer cliente era rude com Acheron e que lhe deixava uma marca em seu corpo. Acheron devia lhes agradar de qualquer maneira que quisessem mesmo que quisessem ser rudes e ele o permitia, senão era castigado. Se não lhes permitia que o ferissem, não estavam de acordo e Estes o castigava o dobro de forte por não lhes haver dado o que tinham pago por ele. Acheron não podia ganhar essa batalha.

     Empunhei minhas mãos para evitar o impulso de levantá-las e tocá-lo. Só queria tomá-lo entre meus braços e abraçá-lo até que o pesadelo que tinha sido sua vida estivesse completamente apagado de sua memória.

     Mas como? Como poderia lhe fazer entender que estava a salvo agora? Que ninguém o tocaria novamente sem seu convite explícito? Que era livre de tomar suas próprias decisões e que ninguém o golpearia por expressar suas opiniões?

     Ou por caminhar fora para sentir o pasto em seus pés?

     Levaria tempo.

     —Retornarei ao meu quarto —apontei à porta que se abria para minha câmara—. Podes ficar aqui tanto como queiras. Quando tiveres fome, diga-o a Petra, a mulher alta e velha que conheceu quando chegamos e te preparará qualquer coisa que desejes. Se me necessitas, não duvides em vir ao meu quarto. O dia é teu, irmãozinho. Tudo o que te peço é que, por favor, ponhas os sapatos para que não caias doente.

     Ele assentiu e não se moveu até que pus suficiente distância entre nós para que estivesse seguro de que não poderia golpeá-lo. Queria chorar.

     Mas não havia nada a fazer exceto lhe mostrar que sentia o que dizia. Sua vida agora era sua.

     Retrocedendo, retornei ao meu quarto onde o observei enquanto colocava os sapatos que devia ter estado sustentando sob sua capa. Depois explorou o pequeno jardim durante horas. Deve ter tocado tudo o que havia, sentindo a textura e cheirando-o.

     Não foi até que o sol começou a se pôr que retornou ao seu quarto. Esperei uns poucos minutos antes de ir à cozinha e fiz com que Petra lhe levasse uma bandeja de comida.

     —Alteza? —Perguntou enquanto começava a me retirar—. Nosso convidado... está bem?

     —Está tudo bem. Só é tímido e calado.

     Assentiu antes de lhe fazer a bandeja e levar-lhe. Sua filha, cujo nome não podia recordar, sorriu-me do canto onde estava brincando perto do fogo.

     —Seu amigo parece perdido, Alteza. Como o cachorrinho que encontrei no verão passado. A princípio estava temeroso de deixar que alguém se aproximasse dele, mas continuei lhe falando e lhe deixando comida —apontou até o cão que estava dormido a trinta centímetros dela—. Agora é o melhor cão do mundo. Nunca deixa de estar ao meu lado.

     —Todos no mundo necessitam de gentileza, criança.

     Ela assentiu, antes de voltar a brincar.

     Olhei-a por um momento enquanto surgiam velhas lembranças. Acheron nunca tinha tido brinquedos incluso antes que Estes o levasse. Naquela época, compartilhava os meus com ele, mas isso era tudo o que tinha tido.

     A menina tinha razão. Meu irmão estava tristemente perdido. Só esperava que com o tempo estivesse tão cômodo aqui como o estava o cão. Que aprendesse a sentir-se bem-vindo em um mundo que tão obviamente o odiava.

 

Novembro 19, 9532 a.C.

     Hoje tinha dormido até tarde sem intenção. Era quase meio-dia antes que despertasse. E o que me tinha despertado era a coisa mais surpreendente de todas. Era o som da risada de um menino.

     Levantei-me e me pus uma capa de lã vermelha ao redor antes de caminhar para a janela para olhar para fora.

     Ali no jardim estava Acheron com a jovem filha do cozinheiro. Estavam sentados sobre um tecido com pão, carne, azeitonas e figos enquanto falavam e jogavam um jogo de jogo de dados. Não podia ouvir o que estavam dizendo, mas a pequena moça chiava rindo de vez em quando.

     Quando a moça decidiu levantar-se, estendeu a mão e tocou o ombro de Acheron. Não se encolheu absolutamente. Para meu assombro, realmente a elevou e a pôs de pé para que pudesse correr para dentro.

     Pela primeira vez desde que o encontrei, estava relaxado. Comia sem medo e seus traços não se enrugavam. Olhava abertamente e diretamente ao rosto da moça

     A menina voltou com seu pulso e o deu a Acheron. Ele tomou e pretendeu alimentá-la com uma azeitona. A moça chiou com deleite.

     Encantada pela brincadeira dirigi-me para fora para me unir a eles. Assim que Acheron me viu, a luz se foi de seus olhos. Vi como literalmente se retirou dentro de si mesmo e ficou temeroso imediatamente.

     —Deves ir, Maia —sussurrou à moça.

     —Mas eu gosto de jogar contigo, Acheron. Tu não te zangas comigo por ser tola ou fazer perguntas.

     —Podes ficar —adicionei rapidamente—. Não quis vos incomodar.

     Acheron manteve o olhar fixo no chão.

     Suspirei antes de observar à moça.

     —Maia, poderias me trazer uma taça de vinho da cozinha?

     —Sim, Alteza. Voltarei em seguida.

     Assim que saiu, voltei-me para Acheron, que estava retraído e temeroso de novo.

     —Estiveste ao redor de muitas crianças?

     Agitou sua cabeça.

     —Está proibido.

     —Mas parece tão a gosto com Maia. Por que?

     Envolveu sua capa mais firme ao redor de si antes de falar.

     —Não quer nada de mim mais que outro companheiro de jogos. Para ela, não sou diferente de qualquer outro adulto. Não lhe incomodam meus olhos e não é consciente de que não sou normal.

     —Não és diferente, Acheron.

     Olhava-me com esses misteriosos olhos.

     —Tu sentes atração por mim. Ainda não agiste, mas o sentes como todos os outros. Seu coração se acelera quando me vês me mover. Tua garganta seca enquanto teus olhos se dilatam. Conheço os sinais físicos. Vi-os muitas vezes.

     Era verdade e odiei o fato de que pudesse ver tão facilmente dentro de mim.

     —Nunca te tocaria dessa forma.

     Um tique começou em sua mandíbula antes que afastasse o olhar.

     —Gerikos e outros hão dito isso também. E quando já não podem resisti-lo, odeiam-me e me castigam como se tivesse controle sobre isto. Como se lhes fizesse me querer —nesse momento quando encontrou meu olhar, vi-o. A cólera que o queimava no mais profundo—. Cedo ou tarde todos os que estão ao redor me fodem, Idika. Todos.

     Sua cólera acendeu a minha.

     —E eu nunca te tocarei assim, Acheron.

     A dúvida nesses olhos queimava através de mim.  

     —O que acontece com Meara? —Perguntei, tentando lhe mostrar que nem todos éramos uns animais que tinham a intenção de montá-lo—. Ela nunca te tocou desse modo, agora, ou o fez?

     O olhar que me deu me disse a resposta. Meu estômago se encolheu.  

     —Era mais amável que a maioria.

     Não era de estranhar que não confiasse em mim. Como, em nome do Olimpo, alguma vez poderia convencê-lo de que eu não gostava desse modo quando todos os outros o tinham usado? Sim, sentia a atração antinatural da qual me falava. Mas não era um animal incapaz de controlar meus impulsos. Adoeceu-me que outros tivessem tão pouco controle e que o tivessem usado.

     —Me provarei ante ti, Acheron. Podes confiar em mim. Prometo-o.

     Antes que pudesse responder, Maia voltou com meu vinho. Ofereci-lhe um sorriso amável antes de tomá-lo.

     —Vós dois ides a jogar. Preciso ir me banhar e me vestir.

     Depois de me pôr de pé, dirigi-me para meu quarto. Na porta fiz uma pausa para olhá-los.

     Acheron estava rodando os dados enquanto Maia sustentava seu pulso. Tinha razão, tinha algo anormal que convocava a meu corpo. Inclusive quando tinha uma aparência doentia, era belo. Irresistível.

     Olhou-me e rapidamente afastou o olhar antes que entrasse em meu quarto.

     —És meu irmão, Acheron —sussurrei—. Não te ferirei —não só era uma promessa a ele, mas também a mim mesma.

  

15 de Dezembro, 9532 a.C.

     O aprazível inverno continuou. Alguns dias ainda eram bastante quentes para aventurar-se fora sem as capas.

     Mais de um mês havia passado desde que escapei com Acheron. As cartas enviadas a meu pai com falsas localizações ajudaram a nos manter seguros. Assim como os homens e mulheres que subornei para dar falsas pistas sobre nós em outras cidades. Só esperava que ele continuasse apoiando meu ardil até a primavera quando seria seguro viajar para nós.

     As drogas se foram do corpo de Acheron e quase nem reconhecia ao moço que tinha encontrado encadeado a uma cama.

     Seu dourado cabelo estava brilhante, tinha ganhado peso e agora poderia confundir-se com Styxx facilmente. Em tudo, exceto por aqueles turbulentos olhos chapeados, e sua personalidade tranqüila, introvertida. Não havia escandalosa jactância, nenhuma irritante presunção.

     Acheron era pensativo e respeitoso. Agradecido por qualquer bondade que lhe mostrasse. Podia sentar-se durante horas e não se mover ou falar. Sua atividade favorita parecia ser sentar-se no balcão e olhar até o mar, observando as ondas que chocavam na margem, olhando a saída e pôr-do-sol com uma fascinação que me assombrava.

     Ou jogando jogos de perseguição e dados com Maia. Ambos compartilhavam um vínculo que esquentava meu coração. Acheron nunca a feriu ou lhe levantou a voz. Inclusive a tocava muito raramente. E quando vinham suas incessantes perguntas, tinha mais paciência que qualquer um que tinha visto alguma vez. Inclusive Petra fez um comentário sobre ele e quão agradecida estava que Maia tivesse encontrado um desejoso companheiro de jogos.

     Hoje cedo, tínhamos estado fora na horta, tentando encontrar maçãs frescas embora já tinha passado a estação. Acheron tinha admitido finalmente uma preferência pela fruta, havia-me custado semanas antes que admitisse uma preferência por algo.

     —Achas que Papai virá logo? — ele perguntou.

     Consumi-me de medo. Não sei por que tinha mantido a mentira. Salvo que a verdade dos sentimentos de Papai era algo que não acreditava que precisasse saber. Era mais fácil lhe dizer que sua família o amava, que todos se sentiam para com ele como eu.

     —Possivelmente.

     —Eu gostaria de me encontrar com ele —disse enquanto cortava uma maçã com sua faca. Era a única que tínhamos encontrado e embora não estava o bastante fresca, a Acheron não parecia lhe importar—. Mas é a Styxx ao que mais queria encontrar. Só posso recordá-lo vagamente de antes.

     Era a única maneira em que se referiria ao tempo passado em Atlântida.

     Tinha deixado de falar de si mesmo como um puto, não havia dito nada a respeito de torturas ou abusos, nem sequer quando lhe pedia detalhes. Seus olhos se voltavam angustiados e baixava a cabeça. Assim aprendi a não perguntar, a não lhe recordar nada a respeito dos anos que passou com nosso tio.

     O único sinal revelador de seu tempo ali era a forma em que ainda se movia. Devagar, sedutoramente. Tinha sido treinado tão meticulosamente como um puto que ainda aqui, não podia livrar-se desses movimentos.

     O outro único aviso de seu passado eram as esferas em sua língua, que se negava a tirar, e a marca em sua palma.

     —Doeu muito quando me perfuraram —me havia dito quando lhe perguntei pelas esferas—. A língua estava tão torcida que não pude comer durante dias. Não quero ter que experimentá-lo de novo.

     —Mas não o farás, Acheron. Disse-te que não lhes permitirei te devolver para lá.

     Olhou-me com a mesma indulgência com a qual tinha olhado a Maia quando disse que os cavalos podiam voar, como um pai que não queria arruinar o engano do filho com a verdade.

     Assim que as esferas ficaram.

     Mas claro, Acheron também o fez.

 

20 de Janeiro, 9531 a.C.

     Hoje me sentei durante horas, olhando a Acheron. Despertou-se cedo como fazia freqüentemente e caminhava para a praia. Fazia tanto frio que temia que adoecesse, mas não quis transgredir sua liberdade. Tinha vivido tanto tempo com regras que ditavam seus movimentos e suas opiniões que não queria lhe impor nenhuma limitação.

     Às vezes a saúde da mente era ainda mais importante que a do corpo. E acreditava que necessitava de sua liberdade mais do que precisava ser protegido de uma pequena febre.

     Fiquei nas sombras, só querendo observá-lo. Caminhou durante quase uma hora no gelado fluxo das ondas. Não tinha nem idéia de como resistia à frieza, ainda parecia obter prazer da dor.

     Sempre que um dos animais marinhos era jogado à praia, colhia-o com grande cuidado para devolvê-lo à água para que seguisse seu caminho.

     Depois de um momento, escalou as pedras escarpadas onde se sentou com as pernas dobradas e o queixo descansando em seus joelhos. Olhou através do mar como se esperasse algo. O vento soprou seu belo cabelo e ao redor dele, sua roupa ondeava por sua força, enquanto a água pegava os suaves cachos dourados de suas pernas a sua pele.

     Ainda assim, não se moveu.

     Era quase meio-dia antes que voltasse. Reuniu-se comigo na sala de jantar para o almoço. Enquanto nos serviam, vi o irregular corte que tinha na mão esquerda.

     —Oh, Acheron! —ofeguei, preocupada com a profunda ferida. Tomei sua mão na minha para que pudesse examiná-lo—. O que aconteceu?

     —Caí-me contra as rochas.

     —Por que estavas sentado ali?

     Ele afastou-se, incômodo.

     O que só me preocupou mais.

     —Acheron? O que aconteceu?

     Tragou e deixou cair seu olhar ao chão.

     —Acreditarás que estou louco se lhe disser isso.

     —Não, não o farei. Nunca acreditaria tal coisa.

     Parecia ainda mais incômodo antes que falasse em um tom suave.

     —Às vezes ouço vozes, Ryssa. Quando estou perto do mar, são mais fortes.

     —Que vozes?

     Fechou seus olhos e tentou afastar-se.

     Tomei brandamente seu braço e o mantive em minha cadeira.

     —Acheron, me diga.

     Quando encontrou meu olhar, vi o medo e a angústia em seu interior. Era óbvio que era algo mais que tinha provocado que o golpeassem no passado.

     —São as vozes dos deuses Atlantes.

     Assustada pela resposta inesperada, olhei-o fixamente.

     —Chamam-me. Posso ouvi-los ainda agora como sussurros em minha cabeça.

     —O que é que dizem?

     —Dizem-me que retorne para casa, ao vestíbulo dos deuses para que possam me dar a bem-vinda. Todos menos um. A seu é mais forte que a dos outros e me diz que me afaste. Diz-me que os outros me querem morto e que não devo escutar suas mentiras. Que virá atrás de mim um dia e me levará para casa onde pertenço.

     Franzi o sobrecenho por suas palavras. Por seus olhos, todos sabíamos que Acheron era o filho de algum deus. Mas que eu soubesse, nenhum semideus tinha ouvido as vozes de outros deuses alguma vez. Pelo menos assim.

     —Mamãe diz que deves ser um filho de Zeus —lhe disse—. Disse que deve ter ido visitá-la uma noite, disfarçado como Papai, e que não sabia que tinha estado em sua cama até que tu nasceste. Assim por que ouviria as vozes dos deuses da Atlântida, quando nós somos gregos e seu pai é Zeus ou qualquer rei grego?

     —Não sei. Idikos me drogava sempre que as ouvia até que estava muito tonto e aturdido para notá-lo. Disse que é uma invenção de minha mente. Disse... —seu rosto se afligiu, afastou o olhar.

     —O que disse?

     —Que os deuses me amaldiçoaram. É sua vontade que sirva como o faço. É a razão pela qual nasci tão antinaturalmente e por que todos querem dormir comigo. Todos os deuses me odeiam e querem me castigar por meu nascimento.

     —Os deuses não te odeiam, Acheron. Como poderiam?

     Tirou seu braço de meu agarre e me lançou um olhar tão insolente que me assustei. Nunca tinha mostrado tal espírito.

     —Se não me odeiam, então por que sou assim? Por que meu pai me negou? Por que inclusive minha mãe nunca me olha? Por que fui mantido como um animal cujo único papel na vida é servir como meu amo me ofereça? Por que as pessoas não podem me olhar sem me atacar?

     Colhi seu rosto em minhas mãos, agradecida de que já não se esticasse quando o tocava.

     —Isso não tem nada a ver com os deuses. Só com a estupidez de outras pessoas. Alguma vez te ocorreu que os deuses me enviaram para que te liberasse porque não queriam ver-te sofrer mais?

     Seu olhar se baixou.

     —Não posso esperar isso, Ryssa.

     —Por que não?

     —Porque a esperança me assusta. O que acontece se isto é tudo o que sou? Um puto para ser trocado e vendido. Os deuses fazem aos reis e eles fazem às putas. É óbvio que papel escolheram para mim.

     Fiz uma careta de dor ante suas palavras. Honestamente, preferia as semanas quando se negava a mencionar que era um puto. Odiei as lembranças do que lhe tinha feito contra sua vontade, sobretudo essas desprezíveis esferas em sua língua, que se acendiam cada vez que falava.

     —Não estás maldito!

     —Então por que quando tentei me arrancar os olhos, não ficaram fora?

     Paralisada por essas palavras, não pude respirar durante vários segundos.

     —O que?

     —Tentei me arrancar os olhos três vezes, para que não pudessem ofender a outros, e cada vez que o fiz, voltaram para meu crânio por si mesmos. Se não estou maldito, por que fariam isso? —Elevou sua mão para me mostrar o corte que já tinha começado a sarar—. Lesões que para outros demoram semanas em sarar, curam em dias, se não horas, em mim.

     As lágrimas ardiam meus olhos pela dor em sua voz profunda. Não sabia o que dizer a isso.

     —Adoeceste. Vi-o.

     —Não por muito tempo. Não como uma pessoa normal e posso estar três semanas sem um só bocado de comida ou uma gota de água e não morro.

     O fato que soubesse quanto tempo podia estar sem alimento me disse que o tinham feito. Mas embora pudesse suportar tanto e não morrer, sofria a fome como o resto de nós. Sabia disso por estar tanto com ele.

     Fechei minha mão ao redor da sua.

     —Não sei qual é a vontade dos deuses, Acheron, ninguém sabe. Mas me nego a acreditar que é sua vontade te ferir desta maneira. És um presente precioso que foi desdenhado pelos que deveriam havê-lo apreciado. Essa é uma tragédia humana da qual não terá que culpar aos deuses. Os sacerdotes dizem freqüentemente que os presentes dos deuses às vezes são difíceis de aceitar ou identificar, mas sei em meu coração que tu és especial. Que és um presente à humanidade. Nunca duvides que lhe puseram aqui com algum propósito mais alto e esse propósito não é malvado ou para ser violado.

     Contive as lágrimas antes de beijar sua mão ferida.

     —Te amo, irmãozinho. E vejo em ti nada mais que bondade, inteligência, compaixão e simpatia. Espero que algum dia tu também o vejas.

     Ele pôs sua outra emano na minha.

     —Desejaria poder, Ryssa. Mas tudo o que vejo é a um puto que está cansada de ser usada.

 

15 de Fevereiro, 9531 a.C.

   O tempo tinha voado enquanto observava crescer a Acheron de um menino tímido e assustadiço, a um homem mais seguro de expressar suas próprias opiniões. Já não se abate nem mantém a cabeça baixa. Quando lhe falo, agora encontra meu olhar diretamente. Realmente, sua transformação foi a coisa mais formosa que alguma vez tenha visto.

     Não estou segura se há sido por minha influência, ou se há sido Maia quem finalmente o alcançou e tirou seu novo lado. Os dois são inseparáveis.

     Hoje estavam na cozinha enquanto Petra guisava. Estive de pé na entrada observando-os atentamente.

     —Tens que bater o pão assim —Maia o cortou em pedaços com suas diminutas mãos enquanto se ajoelhava sobre um tamborete alto para poder alcançar a mesa—. Faz de conta que é alguém que não te agrada —sussurrou forte como se compartilhasse um grande secreto.

     A expressão de Acheron brilhou com calidez.

     —Não acredito que haja alguém que não te agrade.

     —Bom, não, mas provavelmente há alguém que tu não gostas.

     Não perdi a tortura em seus olhos enquanto afastava o olhar. Perguntei-me quem encabeçava sua lista. Nosso pai ou nosso tio?

     —Necessitamos de mais leite.

     Acheron obedientemente o deu.

     Petra lhes jogou uma olhada, sorriu e sacudiu a cabeça ante eles enquanto Maia adicionava muito mais sal que o necessário.

     Maia limpou o nariz, que escorria, antes de pôr suas mãos de volta na massa. Encolhi-me, fazendo uma nota mental de não comer qualquer pão que tivessem cozinhado, mas Acheron não parecia ser tão receoso. Inclusive comeu um pedaço de bolo de lodo vários dias antes para fazer a Maia feliz.

     —Agora devemos lhes dar forma de pão. Vamos fazê-los pequeninos porque são meus favoritos.

     Acheron obedientemente o fez.

     Os cães começaram a ladrar.

     —Shh! —disse Maia enquanto separava um pedaço de massa e o aproximava de Acheron para que pudesse fazer um pão-doce—. Estamos trabalhando.

     O cão saltou e empurrou a Maia, quem perdeu o equilíbrio. Acheron a agarrou a mesmo tempo em que o cão saltava sobre sua perna, desequilibrando-o. Em um instante, estavam direitos, e no seguinte estavam no chão, com Acheron sobre suas costas e Maia em seu peito. O cão ladrou e dançou ao seu redor, chocando-se contra a mesa.

     A terrina de farinha que tinham estado usando caiu do borda e aterrissou sobre eles. Cobri minha boca enquanto os via, cheios de massa, farinha e leite. Só eram visíveis os amplos olhos assustados.

     Maia chiou de risada e para meu completo assombro, Acheron riu também.

     Seu som, combinado com um honesto sorriso, deixou-me atônita. Era absolutamente bonito quando sorria… inclusive quando estava coberto de farinha e massa.

     Seus olhos brilhavam enquanto limpava a farinha da cara e ajudava a Maia a tirar algo de suas bochechas.

     Petra deixou sair um som de desgosto enquanto tirava o cão da cozinha.

     —Parecem fantasmas preparados para me assustar até uma prematura morte. Que confusão!

     —Limparemos, Petra, prometo-o —disse Acheron enquanto punha a Maia de pé—. Não está machucada, ou sim?

     Maia sacudiu a cabeça.

     —Mas temo que nossos pães estão todos arruinados —seu tom era calamitoso de verdade.

     —Certo. Mas sempre podemos fazer mais.

     —Mas não serão tão bons.

     Contive uma risada. Sim, era verdade, o toque do nariz mucoso de Maia tinha sido a especiaria necessária para todo bom pão. Sem isso, estava segura de que a próxima fornada não estaria nem perto de ser tão boa. Entretanto, guardei esse comentário para mim mesma enquanto Acheron consolava à pequena menina.

     Acheron levou a Maia para fora para que assim pudessem sacudir a farinha de suas roupas e cabelos enquanto Petra ficava a limpar a cozinha. Depois de uns minutos, retornaram para ajudar.

     Observei com pavor que um príncipe pudesse ser tão considerado. Mas Acheron nunca se encolhia ao ajudar a Petra onde quer que ele e Maia estivessem na cozinha com ela. Era só sua natureza.

     E sempre adoraria a Maia como um paciente irmão mais velho.

     —Acheron? —Perguntou Maia enquanto colocava uma nova tigela para ela— Por que tens essas coisas chapeadas na língua?

     Olhou para outro lado.

     —Foram postas aí quando não era muito maior que tu.

     —Por que?

     Aparentou uma expressão ameaçadora.

     —Para poder assustar as meninas pequenas que me incomodassem.

     Ela soltou umas risadas enquanto ele fazia cócegas ligeiramente.

     —Não acredito que alguma vez possas assustar a alguém. És muito agradável para isso.

     Ele não fez nenhum comentário enquanto a ajudava a medir a farinha.

     Maia coçou a cabeça enquanto o observava com inocente curiosidade.

     —As esferas doem alguma vez?

     —Não.

     —Oh —elevou a cabeça para estudar seus lábios—. Alguma vez te tiraste elas?

     —Maia —disse Petra brandamente enquanto retornava para o cordeiro que estava temperando—. De verdade, não acredito que Acheron queira falar sobre elas.

     —Por que não? Acredito que são bonitas. Posso ter umas?

     —Não —disseram Acheron e Petra simultaneamente.

     Maia se zangou.

     —Bem, não vejo por que não. A princesa Ryssa tem umas pequenas bolas chapeadas em suas orelhas e as de Acheron são muito bonitas também.

     Acheron beliscou a ponta de seu nariz.

     —Doer-te-ão quando te puserem elas, akribos. É uma dor que não quererás conhecer nunca e é por isso que não me quero tirá-las. Não quero que ninguém me machuque assim outra vez.

     —Oh. É como a queimadura na mão da qual me contou?

     Petra se virou para eles.

     —Que queimadura na mão?

     —A que fez Acheron quando era pequeno. É muito bonita, também, como uma pirâmide. Disse que a obteve porque não escutou a sua mãe.

     Uma luz reveladora chegou aos olhos de Petra. Acheron não a passou por cima. Baixando sua cabeça submissamente, murmurou uma desculpa para Maia antes de ir-se.

     Segui-o.

     —Acheron?

     Deteve-se para voltar-se para mim.

     —Sim?

     —Não pretendeu dizer nada com suas perguntas.

     —Eu sei —respirou—. Mas não o faz menos doloroso, ou sim?

     Queria abraçá-lo tão desesperadamente. Se só me permitisse isso. Mas só Maia com sua inocência era capaz de alcançá-lo.

     —Podes tirar as bolas e podemos disfarçar sua mão. Ninguém saberá nunca.

     —Eu ainda saberei —riu azedamente—. Não podes desfazer o passado, Ryssa. Com marcas ou não em meu corpo, sempre está aí e sempre é brutal —seus olhos me queimaram e neles vi o angustiante menino não tão jovem que sempre conheci—. Porque da maneira em que saro, tens idéia de quantas vezes e quão profundo tiveram que queimar minha mão para marcá-la?

     As náuseas surgiram em meu interior. Era algo que nunca tinha considerado.

     —Seu passado terminou, Acheron. Tudo o que resta são as duas partes que não queres deixar ir.

     Sacudiu a cabeça negando antes que ondeasse a mão para o palácio.

     —Isto… tudo isto é um sonho e sabes. Um dia, muito em breve, vou despertar e terminará. Voltarei a ser o que era. Fazendo coisas que não quero. Andando a apalpar, sendo empurrado e golpeado. Não há necessidade de pretender o contrário.

     Como poderia fazê-lo sentir a salvo e seguro?

     —Por que não tomas minha palavra e acreditas em mim? O passado terminou. Agora tens um novo futuro. Boraxis vai de caminho a Sumer para entregar uma carta a minha melhor amiga. Uma vez que tenha sua palavra, teremos um lugar seguro aonde poderás ir e ninguém voltará a te machucar de novo.

     Sua expressão era desoladora e fria.

     —Não sei como confiar, Ryssa. Nem em ti nem em ninguém mais. As pessoas são imprevisíveis. Os deuses o são mais. As coisas que acontecem estão fora de nosso controle. Quero acreditar em ti, faço-o. Mas tudo o que ouço são as vozes dos deuses, e a tua. E logo vejo coisas… coisas que não quero ver.

     —Que tipo de coisas?

     Ele virou-se e se dirigiu ao seu quarto.

     Corri atrás dele e o agarrei para que se detivera.

     —Me diga. O que é que vês?

     —Vejo-me pedindo por uma misericórdia que nunca chega. Vejo-me abandonado nas ruas sem um lugar para descansar e ninguém ao meu lado disposto a me ajudar a não ser que seja em troca de algo que não quero dar.

     Deuses, como queria fazê-lo confiar em mim e no futuro que me ia assegurar que tivesse.

     —Isto não é um sonho, Acheron. É real e não vou te deixar retornar à Atlântida. Vamos te encontrar uma casa que seja segura.

     Olhou para outra parte, seus olhos tormentosos.

     —Por que não veio Papai? Se me ama como dizes, por que não veio em todos estes meses para ver-me? E por que está tratando de me encontrar outra casa?

     —Está ocupado —não podia suportar, inclusive agora, lhe dizer a dura verdade.

     —Segues dizendo isso e tentarei acreditar em ti. Mas sabes que lembro dele?

     Quase tinha medo de perguntar.

     —O que?

     —Vejo-o te mantendo longe de mim enquanto Idikos me tirava do quarto. Nunca esqueci o ódio que acendeu os olhos de Papai enquanto me olhava. Tive pesadelos durante anos por esse olhar. E agora dizes que o esqueceu? —Um músculo trabalhou em sua mandíbula—. Devo acreditar em ti realmente?

     Não, não deveria. Estava mentindo, mas não podia deixar que soubesse a verdade.

     —Um dia vais acreditar em mim, Acheron.

     —Isso espero, Ryssa. De verdade. Quero acreditar desesperadamente, mas não posso permitir que me decepcionem novamente. Estou cansado disso.

     Observei-o enquanto virava e me deixava parada aí. Era tão formoso. Alto. Orgulhoso. Apesar de tudo, ainda mantinha uma dignidade que não podia entender.

     —Te amo, Acheron —sussurrei, desejando que não fora a única em minha família que se sentisse dessa maneira para com ele.

     Por que não podiam ver o que eu via?

     E dentro estava a dor de saber quanta razão tinha Acheron. Cedo ou tarde, nosso pai viria. Quando esse dia chegasse, Papai nunca me perdoaria por tirar Acheron de Atlântida. Nunca me perdoaria pelas cartas embusteiras que lhe tinha escrito a respeito de onde estava ou das pessoas que Boraxis pagava em sua travessia para enganá-lo. Não tinha dúvida de que ambos, Papai e Estes, buscavam-nos enquanto Boraxis procurava um refúgio seguro para Acheron em outro país ou reino.

     Mas estava fazendo o que acreditava melhor para meu irmão. Tudo o que podia esperar era que pudesse garantir sua liberdade e felicidade, manter minhas promessas. Uma vez seguro longe daqui, retornaria a Didymos e enfrentaria a meu pai e sua ira.

     Por Acheron, faria qualquer coisa, inclusive pôr em perigo minha própria liberdade. Só esperava que Boraxis retornasse antes que meu pai pensasse em nos buscar aqui.

     Pode ser que os deuses tivessem misericórdia de nós no caso de que isso ocorresse.

   

18 de Março, 9531 a.C.

   O clima quente chegou milagrosamente como Perséfone deveria ter voltado para peito de sua mãe. Toda minha vida, hei preferido a primavera. O renascimento da terra e da beleza. Em particular, nossa ilha estava encantadora enquanto os trabalhadores vinham a plantar sementes e a cantar.

     Mas neste ano, senti pavor enquanto esperava notícias de Boraxis. Me havia enviado uma missiva só alguns dias antes, dizendo que poderia haver um lugar no reino de Kiza para Acheron. Tinham uma rainha que se rumorejava era anciã e amável. Seus próprios filhos estavam mortos, e possivelmente poderia dar a bem-vinda a um príncipe exilado.

     Esperava com todo meu coração que fora assim.

     E com cada dia que passa, temo que Papai estenda sua busca para nosso oásis. Mas cada vez tenho a esperança de que em troca pudesse me encontrar um marido, e então fora possível trazer Acheron a nossa casa para que assim pudesse protegê-lo. Então estaria por sempre mais além do toque de meu pai ou meu tio.

     Não quero pensar nisso por agora.

     A melhor parte de estar aqui foi que os serventes aceitaram de todo a Acheron e suas peculiaridades, e formamos uma particular família próxima. Em Acheron, encontrei o irmão que sempre quis. Enquanto Styxx é petulante, Acheron finalmente tinha aprendido a rir sem medo de atrair uma atenção indesejada.

     Hoje, encontrei-o com Maia lá fora no jardim. Ela tinha estado escrevendo letras na terra com uma vara e acostumando-as a Acheron.

     Foi então que recordei o que me havia dito em Atlântida a respeito de ser analfabeto, a vergonha que lhe tinha causado essa confissão.

     —Poderia ajudar? —Perguntei enquanto me aproximava deles.

     Maia se inclinou para Acheron e falou esse forte sussurro tão típico dela que era tão encantador como doce.

     —Será uma melhor professora que eu. Sabe todas as letras e como formar palavras com elas. Eu só sei umas quantas.

     Acheron me sorriu.

     —Poderias, por favor?

     Sua petição me impressionou até o coração. Nunca tinha pedido por nada antes.

     —Absolutamente —tomando a vara de Maia, comecei as lições para ambos para que assim pudessem ler.

     Acheron era um estudante esperto e absorvia tudo o que lhe ensinava com uma aptidão que era completamente milagrosa.

   —As letras Atlantes são diferentes das Gregas? —Perguntou enquanto observava o alfabeto.

     —Algumas são. Têm várias vocais ditongas das quais carecemos.

     Maia franziu o cenho.

     —Sua língua é como nosso grego?

     Sorri ante sua inocente pergunta.

     —Sua linguagem pode ser muito similar a nossa. Tanto que às vezes pode entendê-lo sem saber o significado das palavras. Mas é uma linguagem à parte. Pessoalmente, sei muito pouco, mas Acheron o fala correntemente.

     Seu rosto se iluminou enquanto o encarava.

     —Podes me ensinar isso.

     A reserva resplandeceu no profundo de seus olhos.

     —Se quiseres. Mas não é uma linguagem bonita.

     Não estive completamente de acordo. A diferença do grego, havia uma harmoniosa qualidade melódica na língua Atlante que os fazia parecer como se cantassem cada vez que falavam. Era um prazer escutar, mas claro, dada a experiência de Acheron em Atlântida, podia entender muito bem seu sentimento sobre a fealdade das pessoas e seu idioma.

     Acheron dirigiu sua atenção de novo para mim.

     —Os Atlantes e os gregos compartilham deuses também?

     Maia riu.

     —Não sabes a respeito dos deuses, Acheron?

     Sacudiu a cabeça.

     —Só sei o nome de Zeus porque muitos o usam para jurar e outros chamam Archon e Apollymi.

     Franzi o cenho ante os nomes do rei e a rainha do panteão Atlante.

     —Como sabes seus nomes?

     Não me respondeu, mas a aparência de seu rosto me fez suspeitar que deviam ser alguns dos que podia escutar em sua cabeça.

     —Bem —disse, tratando de aliviar o repentino mal-estar—, Zeus é o rei dos deuses Olímpicos e sua rainha é Hera.

     —Eu gosto de Artemisa —disse Maia mais alto—. É a deusa da caça e do parto. É uma das que salvou a vida de minha mãe quando nasci e estávamos doentes. A parteira jurou que ambas morreríamos, mas meu pai fez sacrifícios e oferendas a Artemisa e nos salvou.

     Acheron sorriu.

     —Certamente deve ser uma grande deusa e lhe devo muito porque te deixou nascer.

     Maia sorriu de orelha a orelha com feliz satisfação.

     No transcurso da tarde, repassei uma rápida lição dos deuses Gregos, mas a diferença da escritura, Acheron tinha tido um momento difícil compreendendo todos os nomes e seus títulos. Era como se eles fossem tão alheios a ele que não podia diferenciar um de outro. Constantemente os confundia.

     Passamos muitas horas aí até que Maia caiu adormecida sentada ao lado de Acheron.

     Suas feições se suavizaram enquanto a olhava e a embalava em seus braços.

     —Faz muito isto. Está falando um momento e depois cai profundamente adormecida no seguinte. Nunca tinha visto algo assim.

     Sorri ante a calidez que se filtrou em mim. Via-se tão fofo sustentando-a como um pai protetor. Dada a brutalidade de seu passado, sua habilidade para ainda sentir compaixão e mostrar ternura nunca deixava de me assombrar.

     —A amas, não?

     Sua expressão foi uma de horror puro e logo depois de descarada raiva.

     —Nunca a tocaria dessa forma.

     Seu rancor me desconcertou até que me dei conta do porquê estava tão zangado. Em seu mundo, o amor era um ato físico e não uma emoção. Só de pensá-lo fazia doer a meu coração.

     —O amor não tem que ser sexual, Acheron. Em sua forma mais pura não tem nada a ver com um ato físico.

     A confusão enrugou sua testa.

     —O que queres dizer?

     Gesticulei para a menina que sustentava tão protetoramente no refúgio de seus braços musculosos.

     —Quando miras a Maia, seu coração se suaviza, não?

     Ele assentiu.

     —A miras e tudo o que queres fazer é mantê-la a salvo do mal e cuidar dela.

     —Sim.

     Sorri-lhe.

     —Não queres nada dela exceto fazê-la feliz.

     Elevou sua cabeça curiosamente e estudou meu rosto.

     —Como sabes?

     —Porque é assim como me sinto contigo, irmãozinho. O amor que sentes por ela é o mesmo que sinto cada vez que penso em ti. Se alguma vez me necessitasses, não haveria penúria que não resistisse para estar ao teu lado logo que pudesse.

     Engoliu enquanto um olhar atormentado chegou a seus tempestuosos olhos prateados.

     —Me amas?

     —Com cada parte de meu coração. Faria qualquer coisa para te manter a salvo.

     Pela primeira vez desde que chegamos aqui senti como se finalmente o tivesse alcançado. E então a coisa mais milagrosa de todas aconteceu.

     Acheron tomou minha mão.

     —Então te amo, Ryssa.

     As lágrimas nublaram meus olhos enquanto as emoções me afogavam.

     —Eu também te amo, akribos. E não quero que o duvides nunca.

     —Não o farei —apertou minha mão—. Obrigado por ir me buscar.

     Nenhuma palavra tinha significado tanto para mim, nem tocado tão profundamente. Minha garganta estava tão apertada que nem sequer pude falar enquanto soltava minha mão para levantar-se com Maia em seus braços para poder dar-lhe a sua mãe. Observei-o partir e desejei com cada parte de minha alma que sempre se sentisse dessa maneira para comigo. Poderia suportar qualquer coisa exceto o ódio de meu irmão.

 

19 de Março de 9531 a.C.

     Hoje decidi ensinar a Acheron a ler com alguns dos pergaminhos que tenho em meu quarto. Apenas tínhamos começado quando notei algo diferente nele.

     As esferas em sua língua tinham desaparecido.

     —Tiraste-as. —tomei fôlego incapaz de acreditar no que estava vendo.

     Sua expressão era uma mescla entre a vergonha e o orgulho.

     —Decidi-me a acreditar em ti. Dizes que aqui estou a salvo e ninguém me levará outra vez. Quero acreditar nisso. Assim que me tirei elas e confio que os deuses me mantenham aqui contigo.

     Coloquei minhas mãos em seu rosto e eu gostei ainda mais que não ficasse rígido. Atraí-lhe aos meus braços e lhe abracei com força.

     —Aqui estás a salvo, irmãozinho. Juro-te.

     Pela primeira vez, me passou os braços em volta e me devolveu o abraço.

     Nada me comoveu mais em minha vida.

     Ouvi alguém clareando a garganta. Soltando-lhe vi a Petra na porta que nos trazia vinho e queijo.

     —Pensei que vos gostaria de um bocadinho.

     Assenti com a cabeça me afastando.

     —Seria estupendo. Obrigada.

     Ela assentiu com a cabeça e colocou a bandeja em uma mesinha auxiliar.

     Acheron ficou olhando-a até que nos deixou sozinhos e então disse:

     —Alguma vez pensaste em te casar, Ryssa?

     Duvidei e servi as taças.

     —Alguma vez e me pergunto por que Papai não me procurou um marido. A maioria das princesas está casada muito antes de chegar a minha idade. Mas Papai sempre diz que não encontra a ninguém que considere digno. —sorri—. A verdade é que não tenho pressa. Vi a tantas de minhas amigas casadas com ogros que se Papai quer levar mais tempo para me encontrar um marido agradável, certamente que posso esperar. Por que o pergunta?

     —Pensava em Petra e seu marido. Deste-te conta da forma em que riem quando estão juntos? E quando se separam estão tristes. Como se não pudessem suportar estar separados nem sequer uns minutos.

     Eu assenti.

     —Compartilham um grande amor um pelo outro. É uma pena que nem todos os casais casados sejam como eles.

     —Nossos pais eram assim?

     Desviei o olhar evocando imagens de como tinham sido meus pais antes do nascimento de Styxx e Acheron. Naqueles dias se amavam apaixonadamente. Quase nunca se separavam e meu pai idolatrava a minha mãe com um amor que parecia não ter fim.

     E então nasceram seus filhos. Desde aquele desafortunado dia meu pai não podia suportar estar perto de minha mãe. Culpava-a por Acheron.

     Foste a puta de um deus. Não o negues. Não pode ter saído de teu ventre de outra forma.

     Quanto mais proclamava minha mãe sua inocência, mais parecia odiá-la meu pai. Ao final disse que Zeus a tinha enganado e não tinha tido nem idéia de sua presença na cama.

     Em vez de aplacar a meu pai, sua confissão lhe enlouqueceu inclusive mais e proibiu qualquer contato com ela.

     —Não, Acheron. —disse em voz baixa enquanto lhe estendia uma taça—. Não se vêem quase nunca, salvo por questões de estado. Papai prefere a companhia de Styxx e seus senadores enquanto Mãe passa grande parte do tempo perdida em suas taças—. E eu o odeio. Tempos atrás minha mãe tinha sido maravilhosa. Agora era uma bêbada amargurada.

     Olhou-me tenso como se entendesse por que.

     —Pensa que alguma mulher me amará algum dia?

     —Pois claro que sim. Por que o duvidas?

     Tragou com força e me respondeu em voz tão baixa que quase não podia lhe ouvir.

     —Como poderia me amar alguém? Idikos diz que sou uma vergonha para as pessoas descentes. Que sou um bastardo sem pai e um puto desprezível. Certamente nenhuma mulher decente quererá nada comigo.

     —Isso é uma completa mentira. —disse com veemência—. Mereces o mundo inteiro e te asseguro que encontrarás uma mulher, além de mim, que aprecie quão maravilhoso és.

     Voltou a tragar com força.

     —Se alguma vez for tão afortunado te juro que ela nunca duvidará de meu amor.

     —Serás tão afortunado.

     Sorriu-me, mas era um sorriso vazio e havia em seus olhos suficiente dúvida para que os meus se enchessem de lágrimas.

     Clareando-me a garganta, tentei lhe distrair.

     —Vamos aprender as letras, que achas?

     Voltou-se por volta dos pergaminhos e durante quatro horas o vi esforçar-se com um ardor que não havia antes. E cada vez que lhe ouvia falar sem aquelas esferas na língua me elevava o coração. Era uma grande vitória e um dia próximo ganharia esta batalha e seu passado ficaria no esquecimento.

 

9 de Maio de 9531 a.C.

     Estava sozinha em meu quarto quando Maia abriu a porta.

     —Acheron está doente?

     Deixei a pluma e a olhei carrancuda.

     —Não lhe vi em todo o dia. Por que o perguntas?

     Ela coçou o nariz e me olhou completamente perplexa.

     —Fui lhe buscar para que amassássemos juntos, mas parecia que não se encontrava bem. Disse que lhe doía a cabeça e esteve pouco amável comigo. Acheron sempre é amável comigo. Quando voltei lhe levando um pouco de vinho, seu quarto estava vazio. Deveria me preocupar?

     —Não, akribos. —disse fingindo um sorriso que não sentia—. Corre à cozinha. Eu lhe buscarei.

     —Obrigada, Princesa. —Devolveu-me o sorriso antes de sair saltando.

     Preocupada eu mesma por ele, abri as portas que davam ao pátio. Acheron tinha passado muito tempo lá fora com a erva e as flores. Mas não estava ali.

     A seguinte parada foi à horta. Tampouco ali lhe encontrei.

     Depois de uma rápida busca por toda a casa, comecei a me preocupar de verdade. Nunca ia tão longe sozinho. E era muito estranho que fugira de Maia.

     Um pânico irracional me invadia quando saí de casa para procurar pelos arredores.

     Onde poderia estar?

     Se se tratasse de Styxx, seguramente que lhe encontrava flertando com alguma donzela na intimidade de seu quarto. Mas sabia que Acheron nunca faria algo assim.

     De repente me deu a luz.

     O mar…

    Não tinha estado no mar do inverno, mas não podia pensar em outro lugar onde procurar. Era o único lugar onde poderia estar. Sussurrando uma rápida prece aos deuses para que tivesse razão, baixei caminhando para a praia e as rochas onde ele estava acostumado a sentar-se.

     Tampouco estava ali.

     Mas enquanto subia, vi-lhe deitado de costas na areia com as ondas lhe passando por cima. Fiquei sem fôlego. Parecia que não se movia absolutamente.

     Molhado até os ossos, ele jazia na praia com os olhos fechados.

     Corri aterrorizada e me deixei cair ao seu lado. Pude ver quão pálida estava sua formosa cara antes de chegar até ele.

     —Acheron! —gritei com os olhos cheios de lágrimas de medo. Estava aterrorizada de que estivesse morto.

     Para meu imediato alívio, abriu os olhos e me olhou. Mas não se moveu.

     —O que fazes? —perguntei-lhe me fincando de joelhos ao seu lado. Meu vestido estava molhado e completamente estragado, mas não me importava. Minha vaidade não importava absolutamente. Só importava meu irmão.

     Apertou os olhos e disse em tom tão baixo que quase não podia ouvir com o ruído das ondas.

     —A dor não é tão forte se me deito aqui.

     —Que dor?

     Agarrou-me a mão. A sua tremia tanto que em resposta meu medo se multiplicou por dez.

     —As vozes de minha cabeça. Sempre são atrozes no dia de hoje, todos os anos.

     —Não o entendo.

     —Dizem-me uma e outra vez que é o aniversário de meu nascimento e que deveria ir até eles. Mas Apollymi me grita que me esconda e não lhes escute. Quanto mais alto grita ela, mais gritam os outros. É insuportável. Só quero que se vão. Estou me voltando louco, verdade?

     Apertei sua mão, retirei-lhe o cabelo úmido da testa e me dava conta de que não se barbeou. A barba de todo um dia escurecia suas bochechas e seu queixo, algo que nunca permitia. Acheron sempre estava impecavelmente asseado e vestido.

     —Hoje não é o aniversário de teu nascimento. Nasceste em junho.

     —Já sei, mas seguem gritando. Caí-me tentando chegar às rochas e descobri que no mar as vozes se atenuam.

     Nada disto tinha sentido.

     —Como é isso?

     —Não sei. Mas é assim.

     Uma onda rompeu na praia, lhe cobrindo totalmente. Não se moveu embora que a mim sacudiu de um lado a outro. Endireitei-me e lhe olhei enquanto cuspia água. Mesmo assim não fez intenção de sair do mar.

     —Vais sentir frio atirado aí.

     —Não me importa. Prefiro me pôr mal a lhes ouvir gritar tão forte.

     Desesperada por acalmar a ele, sentei-me por trás no chão com as pernas cruzadas e pus sua cabeça em meu regaço.

     —Melhor?

     Ele assentiu entrelaçando seus dedos com os meus e pôs minha mão sobre seu coração, me sujeitando ali. Pelo firme apertão, sabia que a cabeça seguia lhe doendo imisericordiosa.

     Não falamos durante horas, jazendo ali com minha mão em seu peito. Me adormeceram as pernas, mas não me importava. Estivemos tanto tempo fora, que Petra veio a ver como estava. Estava tão confusa como eu pela explicação de Acheron, mas, obediente, deixou-nos sozinhos e nos trouxe vinho e algo de comer.

     A Acheron doía tanto que não podia comer, embora pude fazer com que mordiscasse um pouco de pão.

     Ao anoitecer, as vozes se aquietaram o suficiente como para que pudesse levantar-se. Cambaleava-se.

     —Estás bem? —perguntei-lhe preocupada.

     —Um pouco enjoado pelas vozes. Mas agora não são tão fortes. —jogou-me um braço pelos ombros e juntos empreendemos o caminho de volta ao seu quarto.

     Fiz com que Petra lhe preparasse um banho quente e lhe cobri com uma toalha. Ainda estava pálido, seus traços tensos.

     Maia chegou correndo com dois copos de leite morno.

     —Me tinhas preocupada, Acheron. — arreganhou-lhe.

     —Sinto muito, pequena. Não queria te preocupa.

     —Encontra-te melhor?

     Ele assentiu.

     —Maia, —disse Petra da porta. —vem aqui e deixa que Acheron se banhe em paz.

     —Pus açúcar no leite —lhe confiou Maia antes de obedecer a sua mãe.

     —Espero que te sintas melhor logo.

     Encantada por seus cuidados, segui-a.

     —Ryssa.

     Parei-me na porta e olhei a Acheron que ainda estava envolvido na toalha.

     —Sim?

     —Obrigada por preocupar-se por mim e por ficar comigo. Vá te secar antes que resfries.

     —Sim, senhor. —disse sorrindo-lhe.

     Saí fechando a porta e me dirigi ao meu quarto. As portas estavam ainda abertas assim que as fechei. Ao fechá-las, passou algo do mais estranho.

     Ouvi um vago sussurro no vento.

     Apostolos.

     Carrancuda, olhei ao meu redor, mas não havia ninguém. De onde demônios vinha essa voz? E mais ainda, não conhecia ninguém que se chamasse Apostolos.

     Sacudi a cabeça para me clareá-la.

     —Agora ouço vozes, como Acheron.

     Era estranho para estar segura.

     Mas inclusive ao deixá-lo de lado, havia uma parte de mim que seguia perguntando-se. E, sobretudo, perguntava-me se isto não poderia ser uma nova ameaça para meu irmão.

     Só o tempo o diria.

 

23 de Junho, 9530 a.C.

     Ao final a resposta chegou. A Rainha de Kiza tinha aceitado acolher a Acheron. O mensageiro tinha chegado ontem com o aviso de Boraxis que estava a caminho daqui para escoltar a Acheron a salvo. Ele deveria chegar em outros três dias.

     Eufórica, planejava contar a Acheron essa noite durante a celebração surpresa do aniversário de seu nascimento.

     Meu irmão ia estar a salvo. Para sempre.

     Felizmente, nós tínhamos saído hoje à horta. Em realidade, passamos toda a manhã ali, rindo e provando a apreciada fruta do jardineiro. A horta estava bonita. Pacífica. As folhas eram de um impressionante verde, acentuado pelas vermelhas e douradas maçãs que explodiam em um doce e suculento sabor. Até os velhos muros de pedra estavam tranqüilos, cobertos por vinhas já florescidas.

     Não me estranha que Acheron o prefira a qualquer outro lugar do palácio. O ar primaveril era fresco e quente, poderia passar horas vendo a forma em que Acheron desfruta da coisa mais simples como o é a sensação do sol em sua pele. A grama sob seus pés descalços.

     Claro, sua vida não tinha tido muito daquelas duas coisas. Como desejaria ter podido lhe dar outra vida. Uma melhor. A vida que merecia, onde ninguém lhe tivesse feito mal por coisas que não podia evitar. Onde as pessoas pudessem vê-lo em toda essa beleza com que eu o vejo e soubesse a alma tão gentil que é. Não é esse monstro ao que lhe temem. Tão só é um rapaz que necessita de um bom lar e pais que o amem apesar de suas anormalidades.

     Enquanto o via inalar o cheiro de uma maçã antes de acrescentá-la ao montão que tinha escolhido, assombrei-me de quanto tinha mudado nos últimos meses. Pela primeira vez, recordou a um juvenil garoto de quatorze anos e não a um sem entusiasmo, desgastado ancião. Tinha aprendido finalmente a confiar em mim. Em confiar que aqui estava são e salvo. Que ninguém aqui lhe temia. Podia ser ele mesmo, sem ser servil ou temeroso de que o agarrassem e lhe fizessem mal. Ah, a dor que sinto quando penso na vida que levou em Atlântida. Como pôde nosso tio tratá-lo assim? Ainda posso ver Acheron encadeado. Ver esse vazio superficial em seus olhos quando pela primeira vez me olhou e não tinha idéia de quem era eu. De quem era ele.

     Posso haver falhado com ele antes, mas jurei que não falharia com ele de novo. Aqui conhece a paz e a felicidade. Aqui, farei o que mais possa para mantê-lo longe do mundo que não pode entendê-lo nem suportá-lo. Enquanto tomava as maçãs, recordou a um esquilo que salta de árvore em árvore recolhendo seu tesouro. Era um rapaz tão bonito. Em meu coração sei que ele e Styxx são gêmeos, e ainda enquanto o vejo, estremecem-me suas diferenças. Acheron se movia de maneira mais elegante. De maneira fluída. Era mais magro, seu cabelo um pouco mais dourado e seus músculos mais definidos. Sua pele mais suave. E esses olhos… Eram encantadores e aterradores.

     Depois de terminar, trouxe-me seu tesouro e o pôs em forma de círculo para que assim eu pudesse escolher que maçãs queria primeiro. Sempre foi assim considerado. Pensando nos outros antes que nele. Tinha existido como um animal do queal se abusava com o único fim de entreter os outros.

     —Pensas que Papai nos visitará logo? —perguntou enquanto ele deitava em seu flanco, me observando comer minha maçã.

     Podia sentir que ele estava me testando para ver se estava mentindo. Seus tempestuosos olhos chapeados eram absolutamente entristecedores cada vez que punha esse olhar tão penetrante. Não lhe surpreendia que Titio o batesse por olhar às pessoas. Era tão desconcertante e até aterrador estar sob tal escrutínio. Mas não merecia ser golpeado por algo que não podia evitar.

     —Estou pensando que tu e eu deveríamos fazer uma viagem em uns dias para visitar a rainha.

     Ele afastou o olhar, incômodo, enquanto brincava com sua própria maçã.

     Querendo apaziguá-lo e alentá-lo, estiquei-me para lhe afastar umas mechas de cabelo dourado dos olhos.

     —É esta a ternura do verdadeiro afeto do que me falaste? —perguntou em tom vacilante—, A única nas quais as pessoas que te amam, tocam-te sem pedir nada em troca?

     —Sim —respondi.

     Ele me sorriu, abertamente e honestamente igual a um menino.

     —Acredito que eu gosto.

     Então ouvi algo que fez que meu coração deixasse de pulsar.

     Havia passos aproximando-se. Sabia que não deveria haver tais sons em nosso paraíso temporário. Petra e Maia estava ocupadas na cozinha. O marido de Petra tinha ido ao povoado e o resto estava ocupado em seus afazeres.

     Só uma pessoa podia chegar dessa maneira.

     E soube que era nosso pai no instante em que Acheron se sentou, seu rosto extremamente encantado. Fechei os olhos e tremi de pânico na vez que fiz o esforço de me levantar e enfrentá-lo. Seu rosto zangado, Papai estava entre as velhas colunas de pedra que marcavam a entrada da horta com Styxx ao seu lado.

     O sangue se congelou em minhas veias.

     Queria dizer a Acheron que corresse e se ocultasse, mas era muito tarde. Já estavam muito perto.

     Só três dias mais e tínhamos estado a salvo longe dali. Quis chorar.

     —Papai —disse em voz baixa—. Por que estás aqui?

     —Onde estiveste? —exigiu enquanto avançava—. Te estive procurando e procurando até que me dei conta de vir aqui.

     —Disse-lhe isso, queria tempo…

     —Papai? —A voz entusiasmada de Acheron encheu meus ouvidos. Esta era a primeira vez que o jovem tinha visto seu pai desde que tinha sido enviado longe.

     Horrorizada, observei-o correr para abraçar a seu pai. Ao contrário de Acheron, eu sabia a recepção que receberia.

     Sem sequer me olhar, Papai o afastou sem piedade e fez uma careta de repugnância.

     Acheron franziu o cenho confuso de uma vez que me olhava pedindo uma explicação.

     Eu não podia falar. Como podia lhe dizer que lhe tinha mentido quando tudo o que tinha querido era fazer sua vida muito melhor?

     —Como te atreveste a tirá-lo de Atlântida? —grunhiu seu pai.

     Abri a boca para lhe explicar, mas me distraí com a maneira em que os gêmeos olhavam um ao outro.

     Fiquei apanhada por sua mútua curiosidade. Embora cada um sabia que o outro existia, jamais tinham estado juntos por mais de uma década. Nenhum dos dois recordava o que era ver-se e interagir um com o outro.

     A alegria cobria o rosto de Acheron. Podia notar que queria abraçar a Styxx, mas depois da bem-vinda de Papai estava vacilante.

     Styxx o olhava menos que entusiasmado. Olhava a Acheron como se fora um pesadelo feito realidade.

     —Guardas! —gritou papai.

     —O que estás fazendo?— Perguntei, incapaz de compreender por que papai chamaria os guardas para ir atrás de seu próprio filho.

     —Vou enviá-lo de volta aonde pertence.

     A mandíbula de Acheron se afrouxou e se voltou para mim com aterrorizados olhos.

     Meu coração pulsava grosseiramente com temor de que o voltassem a enviar a Atlântida.

     —Não podes fazer isso.

     Papai se voltou para mim com um olhar cheio de ódio.

     —Perdeste a cabeça, mulher? Por que mimaria a tal monstro?

     —Papai, por favor —suplicou Acheron, caindo de joelhos ante ele. Pôs seus braços ao redor das pernas de Papai na mais obsequiosa posição que lhe tinha visto desde que tínhamos deixado a Atlântida—. Por favor, não me envies de volta. Farei o que me peças. Juro-o. Serei bom. Não olharei a ninguém. Não farei mal a ninguém—. Acheron beijou os pés com reverência.

     —Não sou seu pai, verme, —disse-lhe Papai cruelmente da vez que chutava a Acheron para afastá-lo. Agora se dirigiu para mim com puro veneno—. Te disse isso, ele não pertence a esta família. Por que me desafias?

     —É seu filho —disse através de minhas lágrimas de ódio e frustração—. Como podes negá-lo? É teu rosto o que tem. O rosto de Styxx. Como podes amar a um e não ao outro?

     Papai se agachou e agarrou a mandíbula de Acheron fortemente com uma mão. Podia notar que seus dedos feriam as bochechas de Acheron ao mesmo tempo em que o levantava pondo-o em pé para que Acheron pudesse me olhar ao rosto.

     —Esses não são meus olhos. Não são os olhos de um humano!

     —Styxx, —disse, sabendo que se podia ganhá-lo para minha causa, poderia influenciar na opinião de Papai sobre Acheron—. É seu irmão. Olha-o.

     Styxx negou com a cabeça.

     —Eu não tenho irmão.

     Papai empurrou a Acheron que retrocedeu.

     Acheron ficou de pé sem dizer uma palavra alguma, seus olhos aturdidos ante a realidade do momento. Por seu rosto, podia saber que estava revivendo o pesadelo que tinha experimentado em Atlântida. Cada degradação.

     Vi como murchava diante de meus olhos.

     Foi-se o menino que finalmente, depois de meses de carinhosos cuidados, tinha aprendido a sorrir e a confiar, e em seu lugar estava o derrotado, o desesperançado que ela tinha encontrado.

     Seus olhos eram agora buracos vazios. Tinha-lhe mentido e ele sabia.

     Ele tinha acreditado em mim e agora esse frágil laço estava quebrado.

     Acheron deixou cair a cabeça e abraçou a si mesmo, como se com isso pudesse proteger-se da brutalidade de um mundo que não o queria nele.

     Quando os guardas entraram na horta e papai lhes disse que o levassem de volta a Atlântida, Acheron os seguiu sem uma palavra e sem lutar. Uma vez mais voltava a ser modesto e sem opinião. Era o que tinha sido.

     Com apenas umas bruscas palavras, Papai tinha refeito todos os meses de cuidadoso abrigo.

     Olhei a meu pai, odiando-o pelo que estava fazendo.

     —Estes abusa dele, Papai. Constantemente. Ele vende a Acheron para…

     Meu pai me esbofeteou por essas palavras.

     —É meu irmão de quem falas. Como te atreves!

     Ardia-me o rosto, mas não me importou. Não podia ficar calada e deixar que destruíssem a alma de um rapaz inocente que deveria ser mimado, não atirado a um lado como se não fora nada.

     —E esse é meu irmão ao qual desprezas. Como te atreves!

     Não esperei para ver o que dizia. Corri atrás de Acheron quem já tinha sido escoltado pelo guarda.

     Estava esperando que trouxessem os cavalos a entrada principal do palácio. Sua cabeça estava inclinada de forma tão baixa que recordava a uma tartaruga que tão somente queria meter-se em sua carapaça para que ninguém mais a visse. O apertão de seus braços era tão forte que seus nódulos eram brancos.

     Permanecia em pé igual a uma estátua.

     —Acheron?

     Negava-se a me olhar.

     —Acheron, por favor. Não sabia que viriam hoje. Pensei que estávamos a salvo.

     —Mentiste para mim —disse simplesmente, fixando o olhar no vazio chão—. Me disseste que papai me queria. Que ninguém deixaria que eu fosse embora daqui. Jurou-me isso.

     Envergonhada até a alma, tentei pensar em algo que lhe dizer. Mas não encontrava nada substancial.

     —Sinto-o muito —Aquela era uma vã desculpa incluso em meus ouvidos.

     Ele negou com a cabeça.

     —Nunca pus um pé fora de meus aposentos sem escolta. Nunca deixei a casa. Idikos me castigará por haver ido. Ele… —o horror encheu seus olhos enquanto abraçava a si mesmo inclusive com mais força.

     Não podia sequer começar a imaginar o que estava lhe esperando em Atlântida.

     Trouxeram os cavalos.

     Quando Acheron falou, suas palavras eram suaves, apenas um sussurro de seu atanazado coração.

     —Desejaria que me tivesses deixado como estava.

     Tinha razão, e no mais profundo de meu coração, o sabia. Tudo o que tinha feito em minha estupidez, era feri-lo ainda mais. Tinha-lhe mostrado uma vida melhor, uma onde era respeitado e onde podia escolher.

     Agora não teria nada a dizer sobre sua vida. Seria muito menos que nada em Atlântida.

     Solucei quando um guarda o agarrou e obrigou a entrar em um carro. Acheron nunca voltou a me olhar. Dava-me conta que ele realmente devia me odiar pelo que lhe tinha feito e não podia culpá-lo por isso.

     Com o coração doído, fiquei ali e os vi afastar-se.

     —Acheron! —gritou Maia quando saiu chorando pela porta.

     Só então ele se voltou. Sua cara estava estóica, mas vi lágrimas em seus olhos quando lhe disse adeus com a mão.

     Caindo de joelho, atraí Maia aos meus braços enquanto soluçava com o coração esmigalhado de tristeza que também me embargava.

     Acheron ia embora e não tinha esperança de libertá-lo outra vez. Papai se asseguraria disso.

     Então recordei as palavras que a velha sacerdotisa tinha proclamado no dia de seu nascimento.

     Que os deuses tenham piedade de ti, pequeno. Ninguém mais o fará.

     Agora sabia quanta razão tinha tido. Acheron tinha razão, os deuses o tinham amaldiçoado.

     De outra maneira teríamos tido nossos três dias…

      

Junho 23, 9530 a.C.

     Passou um ano desde a última vez que vi Acheron. Maia e eu nos sentamos na horta do palácio de verão durante horas esta tarde pensando nele. Nos perguntando o que estará fazendo. A forma em que estaria pagando. Disse a Maia que estava segura de que ele estava bem, mas em meu coração sabia a verdade. Estava tudo menos bem. Não havia como dizer o que lhe estariam fazendo, enquanto nós duas estávamos sentadas comendo azeitonas e queijo e jogando no quente sol.

     Enviei numerosas cartas a Acheron a Atlântida, mas tinham sido em vão. Ninguém me dizia nada dele. A donzela que originalmente se contatou comigo tinha morrido em suspeitas circunstâncias, ao menos isso escutei em uma conversação entre meu pai e meu tio não muito depois de que Acheron tinha voltado para Atlântida.

     Estes não me falava desde então.

     Tentei perguntar a meu tio em sua última visita a respeito de Acheron. Ele me empurrou para um lado com amargo desprezo. Ele sabe que eu sei o que está fazendo e já não me reconhece nem o mínimo.

     Estou morta para meu tio. Não é que realmente me importe neste momento. Ele morreu para mim no momento em que vi meu irmão amarrado a uma cama devido à avareza de Estes.

     Mas, perguntou-me como se sentirá Acheron a respeito de mim. Se inclusive pensava em mim. Odiaria-me pelo que tinha acontecido? Ou estava tão drogado agora que nem sequer recorda meu nome?

     Não podia sabê-lo.

     Não tinha esperança de salvá-lo de novo. Devido ao que tinha feito, Papai agora me mantém em situação de extremo cuidado em todo momento. Já não tenho a liberdade de viajar sem sua permissão. Boraxis foi redesignado a limpar os estábulos e substituído por outro guarda que se recusa a me falar.

     Inclusive Styxx quase nem reconhece minha presença.

     —Como podes deixar que teu próprio gêmeo sofra assim? —Perguntei-lhe apenas uma semana depois que Acheron tinha sido enviado a Atlântida.

     —Estes nunca faria uma coisa assim. Trata-se de outra de tuas mentiras destinadas a fazer libertar Acheron. Deverias estar agradecida que não sou rei ainda. Te teria açoitado por esse tipo de traição.

     Queria enforcá-lo por sua obstinação.

     Ainda mais perturbadores eram os rumores que tinha ouvido a respeito de problemas políticos entre a Grécia e Atlântida. Nossa trégua parecia estar ameaçada. O que aconteceria com Acheron se se reatava a guerra? Apesar de que Styxx e Papai o negavam, Acheron seguia sendo um príncipe grego. Ele poderia facilmente ser feito prisioneiro e executado...

     Perguntava-me se Papai tinha considerado o fato de que se Acheron era assassinado, perderia seu precioso Styxx no processo. O mais provável era que tinha esquecido essa parte da profecia.

     Mas eu a recordava e me entristecia pelo irmão que duvidava voltar a ver.

     Acheron estava perdido para mim agora.

     Se só pudesse vê-lo uma última vez...

 

21 de Setembro, 9529 a.C.

     Estes faleceu há dois dias enquanto se alojava conosco em Didymos. Styxx e meu pai estavam naturalmente com o coração partido. Mas eu não estava tão desolada. Embora uma parte de mim se entristecia por sua prematura morte, outra parte se regozijava. Embora Estes fosse bastante jovem para ter tido o ataque que acabou com sua vida, não pude evitar me perguntar se não tinha sido enviado pelos deuses para castigá-lo pelo que tinha feito a Acheron. Talvez era pouco caridoso de minha parte pensar isso. Ainda assim, não me poderia evitar perguntá-lo.

     Agora nos estamos dirigindo a Atlântida para recolher Acheron e levá-lo para casa de uma vez por todas.

     Para casa, onde pertence.

     Devido à iminente guerra com Atlântida, Papai tem a intenção de fechar a casa de Estes e vendê-la. Não podia estar mais emocionada pela notícia. E estava segura de que Acheron o estaria ainda mais. Não cabia dúvida de que ele não quereria mantê-la ainda menos que eu.

     Antes de deixar a casa, tinha sido preparada uma suíte para Acheron no palácio. Não podia esperar para vê-lo de novo. O que encontrava quase cômico era que, depois de me evitar durante tanto tempo, Papai e Styxx me permitiram acompanhá-los. É obvio que era só para que eu mantivera afastado a Acheron deles. Mas não me importava sempre e quando o visse de novo.

     Só uns dias mais e nos chegaríamos a Atlântida. Desta vez, quando recolhesse a Acheron, ele ficaria onde estaria a salvo.

    

26 de Setembro, 9529 a.C.

   Estava extremamente emocionada quando vi a casa de Estes de novo. Não muito tinha trocado desde minha última visita. Inclusive, o mesmo servente abriu a porta. Ele parecia surpreso ao nos ver os três, especialmente a meu pai.

     —Vim a recolher a Acheron —anunciou meu pai. —Me levem a ele.

     Sem uma palavra, o sombrio velho nos levou pelo mesmo corredor que eu tinha atravessado uma vez. Para o quarto que tinha açoitado meus pesadelos e pensamentos.

     Minha felicidade morreu enquanto chegamos a ela e a realidade se estrelou contra mim.

     Nada tinha mudado.

     Nada.

     Soube mesmo antes que o servente abrisse a porta.

     E quando abriu, meus piores temores foram confirmados com uma claridade cristalina.

     —O que é isto? —rugiu meu pai.

     Cobri-me a boca com as mãos quando vi Acheron em sua cama com um homem e uma mulher, todos eles estavam completamente nus e enredados entre os lençóis. Estava horrorizada pela visão do que estavam fazendo a Acheron. Pelo que ele lhes estava fazendo.

     Em toda minha vida, nunca tinha visto tanta depravação.

     O homem se retirou de Acheron com uma feroz maldição.

     —Que demônios é isto? —exigiu em um tom igualmente imperioso. Poderia dizer por seu tom que ele era um Atlante com riqueza e poder—. Como se atreve a nos interromper?

     Acheron deu um último e brincalhão empurrão e lambeu o corpo da mulher antes de deitar-se sobre suas costas. Ele jazia desavergonhadamente na cama, sorrindo.

     —Príncipe Ydorus —disse Acheron ao homem zangado, referindo-se a meu pai. —Apresento-lhe ao rei Xerxes de Didymos.

     Isso tirou algo da brabeza do príncipe, mas não muita.

     —Nos deixe —lhe exigiu meu pai.

     Ofendido, o príncipe recuperou suas roupas e a sua acompanhante e fez o que meu pai ordenou.

     Acheron limpou a boca com os lençóis. Sua pele, uma vez mais, tinha essa doente tonalidade cinza. Estava inclusive mais magro que da última vez que o tinha visto neste quarto, seus traços gastos. E uma vez mais estava adornado com as bandas de ouro em seu pescoço, braços, pulsos e tornozelos.

     O pior de tudo foi que tinha visto as esferas em sua língua enquanto falava. Já não apertava os dentes como se envergonhasse do que era. Agora era como se se orgulhasse disso.

     —Então, o que lhe traz por aqui, Majestade? —Perguntou Acheron, seu tom zombador e frio— Deseja passar tempo comigo, também?

     Foi então que me dava conta que o rapaz ferido que tinha salvado se foi. O homem na cama estava amargurado. Zangado. Desafiante.

     Este não era o rapaz que timidamente escapuliu de seus aposentos para poder sentir o pasto sob seus pés.

     Este era um homem que tinha sido utilizado muitas vezes. E queria que o mundo soubesse exatamente quanto o odiava ele e a todos os que formava parte dele.

     —Te levante —lhe grunhiu meu pai—. Te cubra.

     Um canto de sua boca se curvou em uma expressão zombadora.

     —Por que? As pessoas pagam quinhentas peças de ouro por hora para ver-me nu. Deverias estar honrado de poder me ver grátis.

     Papai se aproximou dele, agarrou-o rudemente por seu braço e o atirou à cama.

     Acheron cobriu a mão de Papai com a sua e lhe fez um som de reprovação com a língua.

     —São mil peças de ouro por hora se quereis me bater.

     Senti a bílis subir por minha garganta.

     Papai golpeou a Acheron tão forte que caiu ao chão sobre suas nuas costas.

     Rindo-se, Acheron lambeu o sangue que havia em seus lábios antes de limpar-se com a parte posterior de sua mão cheia de cicatrizes.

     —São quinze mil por me fazer sangrar.

     Meu pai franziu seus lábios.

     —És repugnante.

     Com um sorriso irônico, Acheron girou e elegantemente ficou de pé.

     —Cuidado, Papai, realmente poderias ferir meus sentimentos. —Caminhou ao redor de meu Pai como um orgulhoso e espreitador leão, olhando-o de cima a baixo—. Oh espera, me esquecia. Os putos não têm sentimentos. Não temos dignidade que possas ofender.

     —Eu não sou seu pai.

     —Sim claro, conheço bem a história. Impactou-me há anos. Tu não és meu pai e Estes não é meu tio. Salva sua reputação se todo mundo pensar que sou um pobre mendigo que encontrou na rua e deu proteção. Está certo vender a um mendigo sem lar, a um pobre bastardo. Mas a aristocracia olha mal aos que vendem a seus familiares.

     Papai o bateu de novo.

     Acheron ria, sem perturbar-se pelo fato de que agora seu nariz sangrava conjuntamente com seus lábios.

     —Se realmente querem me machucar, eu optaria pelos látegos. Mas se seguem me batendo o rosto fareis que Estes se zangue realmente. Não gosta que ninguém marque minha “beleza”.

     —Estes está morto —lhe grunhiu meu pai.

     Acheron se congelou em seu lugar, logo pestanejou como se não pudesse acreditar no que tinha escutado.

     —Estes está morto? —repetiu vagamente.

     Meu pai o olhou desdenhosamente.

     —Sim. Desejaria que fosses tu em seu lugar.

     Acheron tomou uma profunda pausa, o alívio em seus olhos era tangível.

     Quase podia ouvir seus pensamentos em minha cabeça.

     Acabou-se. Finalmente acabou.

     O óbvio alívio de Acheron pôs ao meu pai furioso.

     —Como te atreves a não ter lágrimas por ele? Te cuidou e protegeu.

     Acheron o olhou secamente.

     —Me acreditem, paguei-lhe muito bem por sua moradia e cuidado. Cada noite quando me levou a sua cama. Todos os dias quando vendeu a qualquer um que pagara seu preço.

     —Estás mentindo!

     —Sou um puto Papai, não um mentiroso.

     Papai o atacou então. Golpeou e chutou furiosamente a Acheron quem não se preocupou em lutar ou proteger-se. Não cabia dúvida de que tinha sido treinado para suportar isso também. Corri para Acheron, tratando de protegê-lo.

     Styxx balançou a Papai para trás.

     —Por favor, Papai —lhe disse— Te tranqüilize! A última coisa que precisas é machucar a seu coração. Não quero ver-te morrer como Estes o fez.

     Acheron jazia no chão uma vez mais. Seu rosto coberto de sangue e machucados, que já tinham começado a inchar-se.

     —Não —disse, me afastando dele. Cuspiu o sangue de sua boca ao piso, onde aterrissou em um vermelho atoleiro.

     —Fora —lhe grunhiu Papai—. Não quero ver-te nunca mais.

     Acheron riu e dirigiu um olhar a Styxx

     —Isso vai ser um pouco difícil, não achas?

     Papai começou a aproximar-se dele uma vez mais, mas Styxx se interpôs entre eles.

     —Guardas! —gritou Styxx.

     Apareceram imediatamente.

     Styxx assinalou a Acheron com um movimento de seu queixo.

     —Ponham a este lixo na rua onde pertence.

     Acheron ficou de pé.

     —Não necessito sua ajuda. Posso sair pela porta eu sozinho.

     —Necessitas de roupa e dinheiro —lhe disse.

     —Não merece nada —disse meu pai—. Nada além de nosso desprezo.

     A maltratada cara de Acheron estava completamente estóica.

     —Então sou rico por efeito da abundância do que vós me haveis demonstrado. —deteve-se na porta para sorrir insolentemente a nosso pai pela última vez—. Sabes, levou muito tempo me dar conta do por que me odeias tanto. —Seu olhar se dirigiu a Styxx—. Mas claro, não sou eu ao que realmente odeias, não é assim? O que realmente desprezas é o muito que queres foder a teu próprio filho.

     Meu pai gritou de ira.

     Com a cabeça bem alta, Acheron deixou o quarto.

     —Como pudeste? —Perguntei a Papai—. Disse há anos o que Estes estava fazendo com ele e tu o negaste. Como podes culpá-lo por isso?

     Meu pai me grunhiu.

   —Estes não fez isto, Acheron o fez ele mesmo. Estes me falou sobre a maneira em que se exibia. A forma em que tenta a todos. É um destruidor justo como disseram em seu nascimento. Não descansará até que arruíne a cada pessoa que o rodeia.

     Estava consternada. Como podia um homem conhecido por seu sentido prático, ser tão cego e estúpido?

     —É só um rapaz confuso, Papai. Necessita de uma família.

     Como sempre, Papai me ignorou.

     Desgostada com ele e Styxx, retire-me do aposento, seguindo a Acheron.

     Alcancei-o enquanto estava saindo da casa e o fiz deter-se. A tortura e dor que havia em seus olhos de prata me destruíram. Não havia volta para ele desta vez. Nem sequer me perguntava o porquê. Assim como todos os demais, ele simplesmente aceitava isto como culpa sua.

     —Aonde vais? —Perguntei-lhe.

     —Importa?

     Era importante para a mim. Mas sabia que não ia responder.

     Tirei-me o manto e o envolvi ao redor de seus ombros para que, ao menos, sua nudez ficasse coberta. Levantei o capuz para proteger sua cabeça e sua beleza, sabendo que seria uma modesta proteção do mundo que o rodeava.

     Ele pôs sua mão sobre a minha, e logo levantou minha mão direita para seus lábios ensangüentados e beijou meus nódulos.

     Sem outra palavra, virou-se e se foi.

     Fiquei na porta observando-o enquanto caminhava através da lotada rua e me dava conta de que estava equivocada, sim tinha dignidade. Caminhava pela rua com o orgulhoso porte de um rei.

 

17 de Maio, 9529 a.C.

   Estava hoje no mercado, comprando com minha criada Sera quando vi um homem excepcionalmente alto passar pelo meu lado. A princípio, pensei que era Styxx, sobretudo quando uma repentina rajada de vento retirou o capuz de sua cabeça e vi seu rosto incrivelmente bonito.

     Mas quando comecei a chamá-lo, dava-me conta de que usava o chitão escarlate de uma prostituta —estava proibido por lei que as prostitutas apareçam em público usando qualquer outra coisa e suas cabeças sempre deviam estar cobertas. Se uma prostituta era descoberta mesclando-se com as pessoas sem vestir desse modo para advertir às pessoas "decentes" do que eram, podiam ser executadas.

     Acheron rapidamente cobriu de novo a cabeça enquanto se movia através da multidão.

     Parecia muito melhor que da última vez que o tinha visto. Sua pele estava dourada e bronzeada, e já não era dolorosamente magro. Seu chitão cobria um ombro, deixando descoberto o outro. Um bracelete de ouro gravado rodeava seus bíceps esquerdo em um musculoso braço.

     Para mim, ele era sem dúvida o mais bonito dos homens —incluso sendo meu irmão. Teria que ser cega para não notá-lo.

     Deixando Sera procurando mais tecido, segui-o, agradecida de encontrá-lo vivo e bem.

     Entretanto, rompia meu coração que seguisse se vendendo.

     Reuniu-se com uma atraente mulher mais velha em uma das cabines, quem sustentava um anel frente a ele.

     —Serve-te? —perguntou-lhe.

     Ele entregou novamente a ela.

     —Não quero um anel, Catera. Mas te agradeço por havê-lo pensado.

     Ela devolveu o anel ao vendedor, logo percorreu de cima e para baixo seu braço nu em uma íntima carícia.

     Uma carícia de amantes.

     Ele não reagiu absolutamente.

     —Meu precioso Acheron —lhe disse com uma risada—. És tão diferente de meus outros empregados. Tomas só o que ganhas e dás gorjetas a todos os criados, por isso são tão amáveis contigo. Acredito que nunca vou entender-te. —Ela tomou sua mão e o levou através das cabines—. Umas sábias palavras para ti, akribos, precisas aprender a aceitar presentes.

     Ele se burlou de suas palavras.

     —Não há tal coisa como um presente. Se eu aceitaria isso de ti, cedo ou tarde me pedirá um favor em troca. Nada na vida é dado verdadeiramente sem esperar algo em troca.

     Catera lhe fez ruído com a língua

     —És muito jovem para ser tão cínico. Que lhe fizeram para que sejas tão desconfiado?

     Ele não disse nada.

     Mas em meu coração, eu sabia os horrores de seu passado. Sabia o que tinha roubado sua confiança. Não duvidava que eu era um dos fatores chaves que o tinham convertido neste amargo estranho que quase nem reconheço.

     À medida que caminhava, a mulher falava sem cessar, tratando de atrair sua atenção para outras bobagens e coisas assim. Ele só as olhava silenciosamente, e logo seguia caminhando.

     Fiquei atrás, me assegurando de que não me vissem. Não que fora difícil. Acheron mantinha o olhar encurvado como se não quisesse olhar a ninguém ao redor dele enquanto que Catera só via ele.

     Um homem se aproximou deles e puxou-a.

     Acheron avançou uns postos mais enquanto eles falavam. Doía-me vê-lo. Ver a forma em que os vendedores curvavam seus lábios ao olhá-lo. A forma em que as pessoas "decentes" evitavam olhá-lo ou olhavam depreciativamente a suas roupas.

     Mas ainda mais horrível que isso, era a forma em que suas expressões mudavam no momento em que viam seu rosto. A ardente e quente luxúria era inegável. A intensidade dela era aterradora.

     Pouco sabiam eles que se não fora por um defeito de nascimento e o infundado ódio de meu pai, Acheron teria sido seu futuro rei.

     Punha-me furiosa e, ao mesmo tempo, não havia nada podia fazer para ajudar.

     Como odiava ter nascido mulher em um mundo onde as mulheres eram pouco mais que sujeira.

     Catera retornou ao seu lado.

     Acheron olhou ao homem que ainda os estava vendo. Os olhos do homem eram famintos.

     Os de Acheron estavam vazios.

     —Queria me comprar. —era uma afirmação, como se estivesse mais que acostumado a isso.

     Ela riu ante isso.

     —Todos querem te comprar, akribos. Se alguma vez te quisera vender como escravo, sem dúvida seria mais rica que Midas.

     Uma sombra de dor escureceu seus olhos ante suas palavras.

     —Devo retornar e me preparar para…

     —Não —disse ela, interrompendo-o—. Este dia é teu para fazer com ele o que te agrade. Trabalhas muito duro. Não podes estar lá dentro todo o tempo.

     Sua mandíbula se esticou ante suas palavras.

     —Eu não gosto de estar rodeado de pessoas.

     —E, entretanto, não te importa ter sexo com elas. Não o entendo.

     Começou a afastar-se dela.

     —Acheron —disse, balançando-o para que se detivera—. Desculpe. Eu somente... —Ela fez uma pausa e esfregou sua mão—. Não podes seguir desta maneira. Ninguém vê clientes desde que acorda até que dorme, um dia atrás do outro sem parar. Não me interprete mal, eu gosto do dinheiro que fazes para mim, mas ao passo que vais, vais acabar morto antes que tenha vinte e um anos. E te disse que não deixaria que ninguém te fizesse mal em minha casa. Eu cuido de meu pessoal, especialmente aos que são tão populares como tu o és. —Ela pressionou uma pequena bolsa na mão dele—. Tome o resto do dia e desfrute-o. Vá a uma peça de teatro. Vá embebedar-te. Anda e desfruta de ser jovem enquanto possas, vejo-te esta noite.

     A mulher se afastou dele.

     Acheron apertou a bolsa em sua mão antes de colocá-la dentro de sua túnica, e logo se dirigiu em direção oposta.

     Em pedaços, fique ali, debatendo a quem seguir.

     Enviei a meu guarda-costas atrás da mulher. Sabia que não podia me reunir com ela abertamente, alguém poderia nos ver juntas e informar isso ao meu pai. Assim tive que convidá-la a uma pequena hospedaria.

     Paguei ao dono para que me deixasse em um pequeno aposento na parte traseira aonde pudesse falar com Catera sem ser vista.

     Minutos mais tarde, meu guarda-costas apareceu com Catera ao seu lado. Deixou-nos sozinhas e se dirigiu para cuidar da porta.

     —Minha senhora —disse Catera, incomodamente—. O que posso fazer por você?

     —Por favor, tome assento. —Indique-lhe a cadeira diante de mim.

     Evidentemente nervosa, ela tomou assento.

     Suavizei minha expressão, com a esperança de acalmar seus nervos.

     —Queria lhe perguntar sobre... —duvidei sobre dizer "meu irmão". Tal conhecimento poderia machucá-lo—. Acheron —terminei—. Onde o encontrou?

     Ela sorriu conocedoramente.

     —É bonito, não achas? Mas por desgraça, ele não está à venda. Se você, minha dama, está interessada em comprar seus serviços…

     —Não! —disse, emocionada por sua sugestão. Mas logo me dava conta que era lógico que ela pense isso—. Ele… recorda a alguém.

     Ela assentiu.

     —Sim, ele é quase idêntico em aspecto ao Príncipe Styxx. Muitos de meus clientes pensam o mesmo. Foi muito lucrativo para ele.

     Pouco sabia ela que essa era a parte mais destrutiva de meu irmão.

     —Onde o encontrou? —Repeti.

     —Por que quereis sabê-lo?

     Não me atrevia a lhe dizer a verdade.

     —Por favor —lhe disse tranqüilamente—. Posso-lhe pagar o que desejar, só necessito que responda umas quantas perguntas sobre ele. —Pressionei uma dúzia de moedas de oro em sua mão.

     Ela as guardou.

     —Eu não sei de onde é. Nega-se a falar disso. Entretanto, por seu acento, suponho que é de origem Atlante.

     —Ele veio a vós?

     Ela assentiu.

     —Apareceu em minha porta traseira há vários meses. Vestido com farrapos e descalço, luzia igual a qualquer outro mendigo, salvo que estava recém banhado e parecia que tinha tratado de manter limpa sua roupa. Estava pálido, tão magro e tão fraco pela fome que quase nem podia manter-se de pé.

     Estava horrorizada pelo que ela descrevia.

     —Disse que estava procurando trabalho e queria saber se eu tinha algo que ele pudesse fazer. Disse-lhe que não estava contratando, mas ele tinha ouvido em outro bordel que eu estava procurando um novo prostituto. Fiz tudo o que pude para não rir dele. Não podia imaginar a ninguém pagar por essa miserável criatura. Meu primeiro impulso foi despejá-lo.

     —Por que não o fez?

     —Não posso explicá-lo. Embora aparentemente estava prejudicado, havia algo inegável sobre ele. Algo sedutor que trouxe calor sobre mim. Fez-me querer tocá-lo apesar de que estava fraco e débil. Logo me disse a coisa mais incrível de tudo. Disse-me que se eu lhe desse cinco minutos, ele me daria três orgasmos.

     Eu fique boquiaberta ante suas palavras.

     Ela riu ante minha expressão.

     —Eu também estava surpreendida. Estive ao redor de um montão de homens fanfarrões em meu tempo que tal reclamação não era nova. Mas eu estava um pouco intrigada ao escutá-lo da boca de alguém tão jovem. A princípio pensei que era como muitos dos jovens que vêm a mim, a maioria deles com pouca ou nenhuma experiência, acreditam que a prostituição é uma forma fácil de fazer dinheiro. Não têm idéia de quão difícil é fisicamente. Quanto te custa espiritualmente. Imaginei que era de uma granja e tinha chegado à cidade para tratar de fazer-se rico.

     Traguei temerosamente antes de falar.

     —Fizestes te provar suas palavras?

     Ela riu.

     —Minha senhora, na minha idade, sou afortunada se tiver três orgasmos em um ano. Assim que lhe disse que se era tão bom como dizia então o contrataria. O que eu descobri foi que, inclusive meio morto pela fome, era melhor do que dizia. Estive com os melhores e suas habilidades não têm rivais.

   Meu estômago se apertou ante suas palavras. Eu sabia muito bem quanta prática tinha tido.

     —Assim que o aceitou.

     Ela assentiu.

     —É uma decisão que não lamentei. Não tinha nem idéia do bonito que se podia pôr com apenas umas quantas comidas e um pouco de descanso. Tampouco que ia ser tão surpreendentemente parecido ao Príncipe Styxx. Mantive-o comigo durante três semanas antes de deixá-lo trabalhar. Desde a primeira noite que tomou clientes, era tão popular que tivemos que começar uma lista de espera. Se estás interessada na compra de uma hora com ele, posso a pôr na lista, mas em realidade, serão ao menos dez semanas antes que haja um lugar.

     Sentei-me ali aturdida por suas palavras. Aturdida pelo que tinha resultado do pequeno menino eu estava acostumada a sustentar em meu joelho e balançá-lo, enquanto ria.

     O que lhe tinham feito? Como podia esta ser sua vida? Não era justo e me fazia querer chorar.

     —Há alguma forma na qual eu poderia falar com ele em particular?

     Catera a olhou cépticamente ante a sugestão.

     —Ele prefere não falar com seus clientes.

     —Não quero ser uma cliente, —disse-lhe severamente—. Eu o conheço pessoalmente.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante isto.

     —Um amigo?

     —Algo parecido. —Disse-lhe, não querendo deixar a seu conhecimento a verdade de nossa relação. Eu tirei mais dinheiro e o entreguei—. Por favor. Pagarei-te o que seja se me dás uns quantos minutos a sós com ele.

     Ela o considerou durante vários pulsados antes de lhe responder.

     —Muito bem, se você pode vir a meu bordel esta noite…

     —Não posso ser vista por ninguém nesse lugar.

     —Entendo, mas duvido que ele saia para encontrar-se contigo. Nega-se a ver alguém fora dos locais. Hoje é o primeiro dia desde sua chegada que fui capaz de conseguir que saísse.

     —Mas —disse cuidadosamente—, se pode vir pela madrugada, rara vez há alguém nos arredores. Estamos limpando-o pela noite e todos nossos clientes se foram. Posso lhe deixar entrar para vê-lo então.

     Aliviada, sorri-lhe.

     —Obrigada. Verei-lhes ao amanhecer.

 

18 de Maio, 9529 a.C.

   A manhã era tão fria como temia que fora. Sozinha, escapuli-me do palácio e me deslizei silenciosamente através da cidade, seguindo as indicações de Catera até que encontrei sua localização.

     Como havia predito, não havia ninguém ao redor.

     Deixou-me entrar através da porta negra, então me dirigi rapidamente através da casa a um aposento mais afastado da parte de trás. Mantive a cabeça e o rosto bem cobertos e fiz todo o possível para não olhar às pobres almas que passavam.

     Abriu uma porta.

     Dava um passo vacilante ao interior, esperando ver Acheron. Não estava ali. Entretanto, ouvi a água chapinhando no quarto situado ao outro lado e soube que devia estar banhando-se.

     O mofado cheiro de sexo persistia no cômodo e tentei não olhar em volta da cama recém feita. Fechei os olhos quando pensei em Styxx e na maneira em que vivia sua vida com comodidade e paz enquanto Acheron era forçado a isto.

     Não podia imaginar a degradação que Acheron devia sofrer a cada dia. A dor.

     Entrou no quarto completamente nu, secando o cabelo com uma toalha. Ficou parado brevemente quando captou minha presença justo ao lado da soleira.

     —Me perdoe, Minha Senhora —disse com essa sensual e suave voz sua que continha um matiz de acento atlante. Estava agradecida de que ao menos as esferas não estivessem recobrindo sua língua—. Pensei que passaria a noite.

     Baixei o capuz.

     Reconhecendo-me instantaneamente, entrecerrou seu olhar.

     —Bom, se for minha irmã Ryssa. Diga-me, está aqui para me salvar ou para me foder? Oh espera, esqueci-o. Quando me salvaste, me fodeste, não é certo?

     As lágrimas picaram meus olhos ante seu hostil desdém. Mas, quem podia culpá-lo?

     —Não tens que ser tão cruel.

     —Me desculpe se minhas maneiras forem deficientes. Sendo um puto, não estou muito versado em como falar com pessoas decentes. O único momento em que conversam comigo é para me dar instruções sobre como fodê-las melhor —atirou a toalha sobre a cama e se moveu para uma cadeira junto à janela.

     Me ignorando, sentou-se e abriu uma caixa sobre a mesa. Observei em silêncio enquanto colocava várias ervas estranhas e flores em um frasco. Acendeu-as, então fechou a tampa. Agarrando um pequeno bol de argila, sustentou-o frente a seu rosto, cobrindo-a boca e o nariz, e inalou.

     —O que estás fazendo?

     Fez várias inspirações antes de afastar o bol de argila de sua boca.

     —Estou usando Xechnobia —ante meu cenho franzido, me explicou—. É isso uma droga, Ryssa.

     —Estás doente?

     Riu disso, então inalou mais.

     —É uma questão de opiniões —fez uma pequena pausa. Um tique começou em sua mandíbula quando a olhou de perto—. A uso de modo que possa esquecer quantos pares de mãos tive sobre mim em um só dia. Permite-me dormir em paz.

     Tinha ouvido tais coisas, mas em meu mundo não existiam. Não duvidei de que foi Estes que lhe tinha ensinado a droga. Queria chorar ante o que se converteu o Acheron que estava acostumado a assar pão e brincar com Maia.

     —Assim, por que estás aqui, Princesa? —perguntou.

     —Queria te ver.

     —Por que?

     —Por que estava preocupada contigo. Hoje te vi no mercado e queria ver como estavas indo.

     Acheron acrescentou mais ervas à panela, então soprou para dispersar as brasas ao redor.

     —Estou bem. Agora podes voltar para casa e dormir até tarde e com a consciência tranqüila —o sarcasmo que ridicularizava seu tom me aguilhoou profundamente na alma.

     Sacudi a cabeça quando as lágrimas se acumularam em meus olhos.

     —Como podes te fazer isto?

     Arqueou uma sobrancelha de modo zombador.

     —Sou um cão treinado, Ryssa. Só estou fazendo o que me treinaram para fazer.

     —É tão degradante. Como podes ter voltado para isso?

     Em seus tempestuosos olhos vi a raiva que me perfurava.

     —Voltar para isto? Por que, irmã mais velha, falas como se fosse algo ruim. Para mim é o paraíso. Só tenho que foder a dez ou doze pessoas em uma noite, geralmente só uma por vez. Por fim me permite comer em uma mesa, não no chão ou no colo de alguém. Ninguém me faz implorar por comida ou me castiga alguns dias ao ano quando estou doente e não posso trepar. Se alguém me fere ou me bate Catera os proíbe em seu bordel, Inclusive me paga por meu trabalho e tenho um dia livre uma vez na semana. O melhor de tudo, quando vou dormir, vou sozinho à cama. Nunca estive melhor.

     Queria gritar ante o horror que descrevia. O fato que soubesse que essa era a verdade só me feria mais.

     —E estás contente de viver dessa maneira?

     Deixou a panela de argila sobre a mesa e me perfurou com seu mercúrio olhar.

     —Honestamente, que pensas, Princesa?

     —Penso que vales mais que isso.

     —Bom, não és especial por ser capaz de me ver como algo mais que um puto? Deixa que te instrua sobre o que vê o resto do mundo. Deixei a Atlântida e estive doente durante semanas pelas drogas que Estes me tinha obrigado a engolir.

     Recordava bem quão doente tinha estado quando o tinha seqüestrado.

     —Não tinha nada exceto o himation que me deste. Nem dinheiro, nem roupa. Nada.

     —Assim voltou a te prostituir?

     —Que escolha tinha? Viajei por toda parte tentando encontrar trabalho fazendo outra coisa, mas ninguém me dava trabalho. Quando as pessoas me vêem, só querem uma coisa de mim e por casualidade sou muito bom nisso. Diga-me, Princesa, se Papai te atirasse amanhã, nua às ruas, o que farias? O que sabes fazer?

     Elevei o queixo.

     —Poderia encontrar algo.

     —Te desafio para que o tentes, Princesa. —indicou para a porta por trás dele—. Adiante. Nem sequer sei como varrer um chão. Tudo o que sei é como usar meu corpo para dar prazer aos outros. Estava doente e só sem nenhuma referência, amigos, família ou dinheiro. Estava tão fraco pela fome que inclusive um mendigo roubou teu himation enquanto estava deitado no chão, esperando a morte e incapaz de evitar que o roubasse. Assim não venhas aqui com seus desdenhosos olhos e me olhes como se estivesse por baixo de ti. Não necessito tua caridade e não necessito tua compaixão. Sei exatamente o que vês quando me olhas.

     —De verdade?

     Levantou-se e abriu os braços, me mostrando seu perfeito corpo nu.

     —Vejo-o claramente em seu rosto. O que vês é ao patético menino pequeno que beijava os pés de seu pai e lhe rogava que não lhe enviasse a prostituir-se. Vês o puto que dava prazer a um príncipe e então foi despejado de sua casa.

     Sacudi a cabeça negando-o.

     —Não, Acheron. O que vejo é um menino pequeno que estava acostumado a correr para mim e me perguntar por que seus pais não o amavam. O mesmo pequeno querubim de cabelo dourado que perseguia os raios de sol em meu quarto e ria quando caíam em sua palma. Tu és meu irmão e nunca verei nada mau em ti.

     A raiva em seu rosto se intensificou até o ponto que pensei que possivelmente me batesse.

     —Vá embora.

     Me cobrindo a cabeça, girei-me e parti.

     Esperei que me detivesse. Não o fez.

     E com cada passo que dava, chorava com mais intensidade pelo que tinha descoberto esta manhã. Meu precioso Acheron se foi e em seu lugar estava um homem que não queria ter nada a ver comigo.

    A pior parte era que não podia lhe culpar por isso. Era tudo tão injusto. Deveria estar em suas câmaras reais com serventes atentos a seu gesto e chamada.

     Em vez disso estava encerrado em um pesadelo do qual nenhum de nós poderia lhe libertar. Certamente esta não seria sua vida. Certamente Acheron significava mais que isso.

     Mais como podia negar o que tinha visto? Tinha razão. As pessoas só queriam uma coisa dele. E a menos que Papai estivesse disposto a protegê-lo, Catera era melhor que nada.

     Meu irmão mais novo era um puto. Era hora de que eu me desse conta da realidade.

 

23 de Agosto, 9529 a.C.

     O dia tinha amanhecido com a mais desprezível das reuniões. Tinha me informado que meu pai e seus senadores tinham decidido tentar aplacar ao deus Apolo com um sacrifício humano.

     Eu.

     Embora a Guerra tinha estalado entre a Grécia e Atlântida, os reis gregos tinham estado pensando em alguma maneira de evitá-la. Mas os Apolitas que governavam a Atlântida nos odiavam e estavam decididos a fazer da Grécia nada mais que outra província atlante.

     Temendo serem escravas da tecnologia superior dos Atlantes, as capitais gregas tinham lutado com cada coisa que tínhamos.

     Infelizmente, não pareceu ser o bastante. Apolo favorecia aos Atlantes e aos Apolitas que tinha criado e que compartilhavam a Atlântida com eles. Até o ponto de que sempre que lutassem à luz do dia, eram invencíveis.

     Os Reis gregos estavam acabados. Assim que as sacerdotisas e os oráculos se reuniram para ver, qualquer coisa, que pudesse devolver o favor de Apolo às pessoas que originalmente o tinham venerado.

     —O deus só pode ser distraído e tentado pela mais bela de todas as princesas —tinha proclamado ante todos o Oráculo de Delphi.

     Alguns lunáticos tinham me renomado então como a dita princesa.

     A esses homens, poderia matá-los.

     —Por favor, pai —lhe roguei, indo atrás dele e Styxx. Dirigiam-se para a sala do Senado e não tinham tempo para mim. Não é que isso fora incomum.

     —Basta, Ryssa —disse com severidade—. A decisão está tomada. Serás a oferenda para Apolo. Te necessitamos do nosso lado se formos ganhar esta guerra contra os Atlantes. Tanto como continue favorecendo-os e ajudando-os, nunca teremos uma oportunidade. Se fores sua amante, voltar-se-á mais amável para nossa gente e possivelmente se incline a nossa causa.

     Golpeou-me na cara o que fora a ser trocada e vendida sem mais como…

     Fiquei de pedra quando pensei em Acheron. Finalmente entendia como se sentia.

     Entendia que era não ter nem voz nem voto no que se fizesse com meu corpo.

     Era um sentimento terrivelmente doentio. Não me estranhava que me jogasse de seu quarto. Em minha inocência tinha agido de maneira bastante santarrã sobre algo que não entendia.

     Entretanto, não estava de acordo com eles. Decidida, segui a Papai e Styxx de volta pelo corredor.

     Quando nos aproximamos do vestíbulo principal, o som de um pequeno grupo de senadores conversando no átrio me deteve em seco.

     —É igual a Styxx.

     Meu pai e Styxx também se detiveram quando o ouviram.

     —O que dizes? —perguntou outra voz.

     —É certo —disse o primeiro senador—. Não poderiam parecer-se mais a não ser que tivessem nascido gêmeos. A única diferença é a cor de seus olhos.

     —Seus olhos são estranhos —interrompeu um terceiro senador—. Poderia dizer-se que é o filho de algum deus, mas não diz de qual.

     —E é tão hábil como dizes?

     —Sim —disse o segundo—. Te disse-o, Krontes, tens que lhe visitar. Imaginar-se que é Styxx me ajudou imensamente a tratar com o real idiota. Passa uma hora com Acheron de joelhos e da próxima vez que veja Styxx, terá uma perspectiva completamente nova.

     Eles riram.

     Senti o sangue drenando-se de meu rosto quando Papai e Styxx se voltaram com vermelha fúria.

     —Deverias ter estado ontem à noite em nosso banquete —disse o primeiro homem—. O vestimos com túnicas reais e o passeamos igual a uma rameira quente.

     Senti-me repentinamente doente.

     Papai se dirigiu direto para o grupo, chamando os guardas para que os prendessem por difamar a Styxx de tal maneira.

     Styxx difamado.

     Uma histérica risada surgiu de meu interior enquanto me dobrava de dor. Que Zeus proibisse que Styxx fora insultado. Não importava que fosse Acheron quem estava sendo degradado e obrigado a lhes servir.

     Acheron nunca importava.

     Ao menos não a ninguém exceto a mim.

 

23 de Junho, 9529 a.C.

     Amanhecia quando deixei, sozinha, o palácio. Era uma estúpida busca a qual me propunha, mas não podia me deter. Hoje Acheron completaria dezenove anos.

     Em meu coração sabia que ninguém lhe daria um presente pelo aniversário de seu nascimento. Perguntava-me se inclusive saberia o dia exato no qual tinha vindo a este mundo. E pensei na celebração que tinha planejado e que nosso pai tinha arruinado lhe devolvendo a Atlântida.

     Apertei seu presente sob meu himation enquanto caminhava através das abandonadas ruas para o local no qual já tinha estado antes.

     Chamei à escura porta e perguntei por Catera. Depois de uma breve espera, apareceu com o cenho franzido.

     —Minha senhora? Por que estais aqui?

     Sorri-lhe com amabilidade.

     —Quero ver de novo a Acheron. Só por uns minutos.

     A tristeza escureceu seus olhos.

     —Desejaria poder vos ajudar, minha senhora, mas já não está aqui.

     Um sorvete terror me rasgou o coração.

     —O que? Aonde foi?

     —Não sei aonde o levaram.

     —Levaram? —sussurrei a palavra cautelosamente, esperando que não queria dizer o que pensava.

     Infelizmente, o fazia.

     —Foi detido há vários meses. Os guardas do rei vieram ao entardecer. Irromperam pela porta exigindo que lhes mostrasse ao real impostor. Acheron foi tirado de sua cama enquanto estava dormindo e o encadearam, então o arrastaram fora daqui e não tornei a ouvir nada desde então.

     Meus dedos se intumesceram, senti cair meu presente ao chão enquanto ficava ali muito atônita para me mover.

     —Meu pai o seqüestrou?

     É obvio que o tinha feito. Deveria me haver dado conta disso eu mesma. Não duvidava que tivesse enviado a seus homens no mesmo dia que escutou o bate-papo dos senadores. Que tipo de parva era que não o comprovei?

   Mas claro, tinha estado muito ocupada pensando em meu iminente destino com Apolo. Envergonhava-me não ter posto a Acheron na frente. Não havia maneira de dizer o que lhe tinham feito.

     Meu único consolo era o conhecimento de que Papai não podia matá-lo. Não sem matar também a Styxx.

     Catera recolheu meu presente e o me envolveu devolvendo-o.  

     Agradeci-lhe por costume e me parti.

     Acheron tinha que estar em algum lugar do palácio. Não importava o que custasse, ia encontrar-lhe e tirá-lo dali.

 

23 de Junho, 9529 a.C.

     Era meio-dia antes que finalmente encontrasse o paradeiro de Acheron. Sabia bem que perguntar a meu pai por sua localização, só provocaria seu aborrecimento comigo, e não me inteiraria de nada que já não conhecesse, de maneira que recorri a subornar aos guardas do palácio.

     Inclusive isso foi mais fácil de dizer que fazer, já que a maioria deles não sabia nada absolutamente e aqueles que sabiam, tinham muito medo da ira de meu pai para falar disso.

     Mas por fim, tinha a resposta. Meu irmão tinha sido levado a parte mais baixa do palácio, sob os alicerces onde mantinham o pior tipo de criminosos: violentadores, assassinos, traidores…

     E um jovem príncipe cujo pai o odiava por nenhuma outra razão que ter nascido.

     Não queria baixar ali onde podia ouvir os lamentos e gemidos dos condenados, onde podia cheirar sua carne podre e torturada. Era só o conhecimento de que Acheron estava ali, o que me fez encontrar a coragem que necessitava para visitá-lo.  

     Estava absolutamente segura que se lhe tivessem dado uma opção, não teria estado ali tampouco.

     Baixei, pelos serpenteantes corredores, puxando minha capa incluso mais perto para me esquentar. Estava tão úmido e frio aqui. Escuro. Imperdoável. Nem ainda meu toque poderia desterrar a escuridão.  

     Quando passei as celas, aqueles que poderiam ver a luz gritaram por minha misericórdia. Entretanto, não era minha misericórdia o que eles necessitavam para serem livres. Era meu pai.  

     Desgraçadamente, ele não tinha nenhuma de sobra...

     O capitão dos guardas me levou a uma porta pequena no mesmo fim do corredor, mas se negou a abri-la. Podia ouvir o som de água que gotejava dentro, mas nada mais. Havia um cheiro fétido penetrando o ar e me asfixiando. Não tinha nenhuma idéia do que o causava. De verdade este era um lugar aterrador.  

     —Simplesmente me entregue a chave. Juro que ninguém nunca saberá.

     O rosto do guarda empalideceu.

     —Não posso, Sua Alteza. Sua Majestade deixou claro que qualquer um que abrisse esta porta seria sentenciado a morte. Tenho filhos a alimentar.

     Compreendi seu medo e não duvidei de que meu pai realmente o matasse por tal afronta. Os deuses sabiam, ele tinha matado homens por menos que isso. Assim que lhe agradeci e esperei que me deixasse sozinha antes de me ajoelhar sobre o frio e úmido chão e abrir a trampa que tinha sido desenhada para passar a comida do corredor à cela.

     —Acheron?— chamei—. Estás ali?

     Tombei-me sobre o asqueroso chão para tratar de ver através da pequena abertura no chão, mas não podia ver nada. Nem um só pedaço de pele ou vestimenta ou luz.  

     Finalmente, escutei um muito ligeiro sussurro.

     —Ryssa? —sua voz era débil e áspera, mas me encheu de alegria.

     Estava vivo.  

     Estirei a mão através da abertura como uma oferenda a ele.

     —Sou eu, akribos.

     Senti como sua mão tomava a minha. Estreitando-a muito brandamente. Seus dedos eram magros, esqueléticos, sua carícia gentil.

     —Não deverias estar aqui —disse nesse tom áspero—. Não permite a ninguém falar comigo.

     Fechei os olhos ante suas palavras e respirei entrecortadamente. Queria lhe perguntar se estava bem, mas eu sabia muito bem. Como podia estar bem vivendo em uma pequena cela como um animal?

     Apertei sua mão com mais força.

     —Quanto tempo levas aqui?

     —Não sei. Aqui não há modo de distinguir o dia da noite.

     —Não tens uma janela?

     Ele riu amargamente disso.

     —Não, Ryssa. Não tenho nenhuma janela.

     Quis chorar por ele.  

     Soltou minha mão.

     —Deveis ir, princesa. Não pertenceis a este lugar.

     —Tu tampouco. —Tentei alcançá-lo, mas não senti outra coisa mais que o sujo chão.

     —Acheron?

     Ele não respondeu.

     —Acheron, por favor. Só preciso escutar o som de sua voz. Preciso saber que estás bem.

     Respondeu-me o silêncio.

     Fiquei ali tombada por um longo momento com minha mão ainda em sua cela, esperando que a voltaria a tomar. Não o fez. Enquanto esperava, segui lhe falando embora ele negava a me responder. Não é que o culpasse.

     Tinha todo o direito para estar zangado e mal-humorado. Não poderia imaginar o horror deles arrastando-o través das ruas para encerrá-lo neste lugar.

     E por que?  

     Alguns imaginavam o desprezo que meu pai sentia? Alguns necessitavam que Styxx tivesse que aliviar sua dignidade? Me enfastiava.  

     Não parti até que um servente lhe trouxe o jantar. Uma tigela de aguada sopa e água fétida. Olhei-o fixamente, com horror.

     Esta noite Styxx jantaria seus pratos favoritos e comeria até que estivesse cheio e satisfeito, enquanto os nobres se reuniriam para lhe desejar bens e adorá-lo em cada desejo. Papai o encheria de presentes e derramaria amor e bons desejos.

     E aqui Acheron se sentariam em uma suja cela. Sozinho. Faminto. Em correntes.  

     Com meus olhos cheios de lágrimas, vi o servente fechar a porta e nos abandonar.

     —Feliz aniversário, Acheron. —sussurrei, sabendo que não podia me escutar.

  

22 de Outubro, 9529 a.C.

     Durante os últimos meses, tinha-me estado preparando para minha união com Apolo. Durante as horas da manhã antes que o palácio começasse a revolver-se com atividade, esmerei-me em visitar Acheron em sua cela. Ele raramente falava, mas de vez em quando lhe tirava uma ou duas palavras.

     Apreciava cada uma delas.

     Só desejava que participasse mais em nossas discussões. Entristece-me dizer que às vezes era bastante brusca com ele, inclusive me zangava. Eu fazia tal esforço, e me arriscava muito para vê-lo e lhe trazer as guloseimas de pão e doces. Ao menos poderia ser pouco cordial comigo.  

     Mas ao que parece, isso era pedir muito.  

     Era tarde e eu tinha estado reunida com Papai, Styxx e o Alto Sacerdote no estúdio de Papai para discutir o que teria que levar para a cerimônia que me ligaria a Apolo.  

     Originalmente o concílio tinha querido me oferecer ao deus completamente nua. Por sorte o sacerdote lhes tinha desalentado disto e agora havia muito debate sobre o vestido correto e a joalheria.  

     Enquanto o escriba tomava apontamentos, Styxx caiu repentinamente doente. Muito fraco para estar de pé, derrubou-se no chão onde se caiu como um menino pequeno, tremendo. Cada pulsado do coração parecia fazê-lo mais pálido. Mais débil.  

     Aterrada, olhei como Papai o recolhia em seus braços e o levava ao seu quarto. Segui-os, assustada do que o poderia havê-lo possuído. Embora brigávamos freqüentemente, eu de fato amava a meu irmão e a última coisa que queria era vê-lo ferido.  

     Papai o pôs na cama e chamou um médico. Adiantei-me, tentando ajudar, mas não havia realmente nada que eu pudesse fazer. Styxx não podia sequer falar. Respirava como se tivesse a garganta ressecada e seus pulmões estivessem danificados... Olhava-me fixamente, seus próprios olhos cheios de terror ao que estava lhe acontecendo.

     Orando por ele, tomei sua mão na minha e o sustentei da forma que freqüentemente tinha feito com Acheron. Era estranho que Styxx tolerasse meu toque, o que me dizia quão doente estava.  

     Quando os médicos chegaram, Styxx se tinha posto fantasmagoricamente pálido e gasto.  

     Eu parti para que pudessem examiná-lo e enquanto eles trabalhavam, olhei ansiosamente.

     —O que é? —perguntou Papai, sua voz carregada com preocupação.  

     Os médicos pareciam confundidos.

     —Nunca vi algo como isto, Senhor.

     —O que? —perguntei, minha voz quebrando-se.  

     O médico principal suspirou.

     —É como se ele estivesse a ponto de morrer de sede e fome embora saiba que ele nunca perde uma só comida. Por sua aparência duvido que passe de hoje. Não tem sentido. Como um príncipe poderia ter estes sintomas?

     Meu coração se deteve ante suas palavras e imediatamente soube a fonte da enfermidade de Styxx.

     —Acheron —disse a meu pai—. Ele está morrendo.  

     Meu pai não me ouviu. Ele estava muito ocupado gritando ao médico para que curasse a seu herdeiro.

     —Papai! —gritei, agitando seu braço para obter sua atenção—. Styxx está morrendo porque Acheron está morrendo. Não recorda o que disse a Sábia quando eles nasceram? Se Acheron morrer, também morrerá Styxx. Acheron é o que está morrendo de fome em sua cela da prisão. Se nós o curarmos, Styxx viverá.  

     Com seu rosto furioso, chamou a seus guardas e pediu que trouxessem Acheron ao Salão do trono.

     Eu corri atrás deles, enquanto percorreram o longo palácio e desceram às profundidades, à cela, para levá-lo de volta. Como sempre, estava úmido e pestilento. Odiava este lugar e me incomodou muito que Acheron tivesse sido confinado aqui todos estes meses.  

     Com o coração pulsando, fiquei atrás enquanto eles abriam a porta da cela. Finalmente o veria de novo.  

     Deram um passo para trás, me mostrando a Acheron.  

     Nunca em minha vida tinha amaldiçoado em voz alta, mas amaldiçoei vilmente quando vi como tinham encerrado a meu irmão.

     O quarto era tão pequeno que lhe tinham obrigado a que se sentasse dobrado. Era ainda menor que o que Estes tinha usado em Atlântida para castigá-lo. Acheron estava literalmente curvado como uma bola. Não havia nenhuma luz absolutamente no interior.  

     Meu irmão tinha vivido em total escuridão e sujeira durante quase um ano. Incapaz de mover-se ou estirar-se, ou para aliviar-se inclusive. Nem sequer os animais eram tratados tão insuficientemente. Por que Acheron nunca me havia dito o que jazia de seu lado da porta?  

     O guarda tentou tirá-lo. Muito fraco para protestar, Acheron se esparramou através do vestíbulo. Seu fedor e o do quarto era tão rançoso que fez com que meu estômago desse um tombo. Me obrigando a tampar o nariz para não vomitar.

     Acheron se estendeu sobre suas costas, sua respiração pouco profunda e débil. Estava tão magro que não parecia real deitado ali. Podia ver cada osso em seu corpo. Uma barba espessa cobria sua cara e seu cabelo pendurava ao seu redor como uma frágil teia de aranha. Parecia um homem velho, e não um rapaz de dezenove anos.  

     Ajoelhei-me ao seu lado e pus sua cabeça em meu regaço.

     —Acheron?  

     Ele não respondeu. Como Styxx, estava muito fraco para fazer algo mais que me olhar inexpressivamente.

     —Levem-no para cima, ao meu quarto —ordenei ao guarda.  

     Ele encurvou seu lábio em repugnância.

     —Minha senhora, ele está asqueroso.  

     —O levarás a minha cama ou farei com que lhe castiguem por tua insolência.

     A indecisão brincou por seu rosto durante vários minutos antes que obedecesse. Pedi que outro guarda tirasse comida e bebida enquanto eu os seguia.  

     Cada passo parecia levar muito tempo. Não poderia acreditar que a casca de um humano nos braços do guarda fora o mesmo rapaz bonito que perseguia Maia em nosso jardim. Como pôde meu pai lhe fazer isto?  

     Como pôde Acheron fazer-se isto?  

     Entrando em meu quarto, o guarda o pôs em minha cama, então saiu imediatamente. Enviei a minhas criadas atrás de água e panos para que assim pudéssemos lavar algo de sua sujeira.  

     Era tão horrível estar perto dele deste modo. Cheirava tão mal, parecia tão débil... Como poderia alguém sofrer tal tragédia? Senti-me completamente desesperada.  

     Usando a coberta, tentei limpar algo da sujeira de seu rosto.  

     Minhas criadas voltaram ao mesmo tempo em que traziam a comida.  

     Embalei a cabeça de Acheron enquanto o alimentava cuidadosamente com pequenos pedaços de pão. Mas não parecia querer mastigar. Eu não sabia se estava muito fraco ou muito vivo saber que era o pão em sua boca.

     —Minha senhora —disse Kassandra— vos danificareis a roupa tocando-o dessa forma.  

     —Não me importa —E não o fazia. Tudo o que me importava era salvar sua vida. Derramei lentamente o vinho em sua boca—. Coma, Acheron —sussurrei.

     Fracamente, ele afastou sua cabeça de mim.

     —Por favor —rogou, sua voz um tosco, rouco sussurro—. Deixe-me morrer.  

     As lágrimas me afogaram quando me dava conta que devia havê-lo feito de propósito. Sem dúvida tinha estado deixando de comer, rogando para que a morte viesse e o libertasse desse buraco onde tinha estado preso.  

     O mais amável que poderia fazer era deixá-lo ir.  

     Mas não podia. Não só perderia a ele, mas também perderia a Styxx e amava a meus dois irmãos.

     —Fica comigo, Acheron, —sussurrei.

     Mas ele não o fez por mim. Em troca, ele lutou pela morte e os dias passaram enquanto olhava aos médicos de meu pai que violentamente o forçavam a alimentar-se enquanto ele tentava cuspir a comida... eram implacáveis em sua atenção.  

     Mantiveram-no amarrado a minha cama e abriram seus lábios para que pudessem verter leite, vinho e mel por sua garganta. Ele tentava cuspir a comida e bebida só para lhe golpearem e lhe sustentarem sua boca e nariz até que tragasse.  

     Ele os amaldiçoou e me amaldiçoou.  

   Não podia culpá-lo.

     Todos os dias eram um pesadelo para ele enquanto Styxx se fazia mais forte no consolo, com todos esbanjando louvores sobre ele e lhe servindo cada uma de suas exigências. Enquanto isso os machucados danificavam a pele de Acheron, sobretudo sua mandíbula que constantemente sujeitavam. Os médicos exigiram que lhe “alimentasse” a cada duas horas pelo menos.

     Cada vez que os guardas e serventes apareciam com esses mantimentos, ele se esticava e me lançava o mais desaprovador de seus olhares.  

     Quando ficou mais forte, as lutas se voltaram mais fortes, até que finalmente deixou de lutar por completo. Os odiosos olhares de aborrecimento foram substituídos por uns de desesperada resignação que me feriram ainda mais. Ainda o deixaram amarrado e eu compreendi que em realidade não tinha mudado sua posição. Só sua localização era diferente.  

     A realidade de meu irmão era sempre a mesma.

  

1 de Novembro, 9529 a.C.

     Hoje Papai mudou a Acheron a um novo aposento no mesmo corredor que o meu. Uma vez mais, ele estava amarrado com os braços e pernas estendidas na cama, mas ao menos desta vez estava vestido. Os alimentos continuaram, mas agora só ocorriam cinco vezes ao dia.

     Eu me esmerei em ver Acheron em cada oportunidade que podia e cada vez que o via meu coração se rompia mais.

     Acheron nunca se moveu ou me falou durante minhas visitas. Jazia ali, olhando fixamente ao teto como se fora imune ao que estava passando ao seu redor.

     —Desejaria que me falasse, Acheron.  

     Ele atuava como que se não estivesse ali.  

     —Tens que saber que eu te amo. Não quero te ver desta maneira. Por favor, irmãozinho. Poderia me olhar pelo menos?  

     Ele nem sequer pestanejou.

     Sua falta de resposta me encolerizou e uma parte de mim queria atacá-lo verbalmente. Mas sustentei minha língua. Ele tinha sido desprezado o suficiente pelos insultos de meu pai e os guardas e serventes que o alimentaram.  

     Não havia nada mais que pudesse fazer. Doente por reconhecê-lo, deixei-o e continuei meus preparativos para Apolo.  

  

20 de Novembro, 9529 a.C.

     Acheron continuou deitado, imóvel, em sua cama. Olhava fixamente ao teto como sempre, me ignorando enquanto tentava falar com ele.  

     —Desejaria que me falasse, Acheron. Sinto falta da maneira em que conversávamos juntos. Eras meu melhor amigo. A única pessoa com quem eu poderia falar na vida, quem não diria cada palavra que disse a Papai.

     Outra vez, não houve resposta.  

     O que o faria me reconhecer? Certamente ele não poderia continuar jogado na cama assim. Então de novo, dado o fato que ele tinha estado sentando-se em um buraco diminuto estes passados meses, ele provavelmente havia mais que se acostumado a não se mover.

     Meu coração sofria por ele, comecei sair da cama quando notei algo estranho. Franzindo o sobrecenho, aproximei-me da coluna da cama onde seu tornozelo estava assegurado por um grilhão de metal. Levou um segundo para compreender o que estava olhando. Sangre fresco e seca cobria o metal.  

     Eu me encolhi quando vi sua pele em carne viva e sangrenta que estava principalmente oculta de minha vista pelas algemas. Assim Acheron não estava desse modo sempre inerte. Das feridas que marcavam cada braço e perna, podia dizer que tinha estado lutando furiosamente por sua liberdade sempre que ele estava sozinho.  

     Quando observei o sangue, minha própria visão ficou vermelha. Já tinha tido bastante deste abuso.

     Minha fúria ardendo lentamente, deixei seu quarto para encontrar a nosso pai.  

     Depois de uma busca rápida, inteirei-me que ele estava fora na área de treinamento olhando como Styxx praticava luta com a espada.  

     —Papai?  

     Ele me lançou um olhar agitado por ter ousado interromper seus estímulos a Styxx.          

     —Há algum problema?

     —Se o houver, de fato. Quero a Acheron libertado O exijo.  

     Ele sorriu com desprezo a meu pedido.

     —Por que? O que faria ele com isso?  

     Eu queria que ele entendesse o que estava fazendo a alguém que nunca lhe causou dano. Alguém que era sua própria carne e sangue.

     —Não podes lhe deixar amarrado como uma besta, Papai. É cruel. Ele não pode nem sequer assistir a suas necessidades básicas.

     —Nem ele pode nos envergonhar.

     —Nos envergonhar como?  

     —Mulheres — ele grunhiu—. Tu estás sempre cega. Não podes ver o que é ele?

     Eu sabia exatamente quem e o que meu irmão era.

     —É um rapaz, Papai.  

     —É um puto.

     Havia mais veneno nessas palavras que na cova da serpente onde meu pai jogava seus inimigos.  

     Isto fez minha ira ferver.

     —Era um escravo torturado que tu jogaste à rua. O que se supunha que ia fazer?

     Respondeu-me com um grunhido selvagem.  

     Mas me neguei a ceder.

     —Não permitirei isto, Papai. Não suportarei isto outro minuto mais. Assim me ajude, se não o liberas desses grilhões, tosquiar-me-ei o cabelo e me marcarei o rosto ao extremo de que já não servirei de utilidade nem a Apolo nem a ninguém.

     —Não te atreverias.

     Pela primeira vez em minha vida, olhei-o fixamente como a um igual. Não havia nenhuma dúvida dentro de mim que poderia levar a cabo a ameaça.

     —Pela vida de Acheron, eu o faria. Merece ser tratado melhor do que o é.

     —Não merece nada!

     —Então podes procurar a outra mulher para puta de Apolo.

     Seus olhos se escureceram de tal maneira que eu estava segura que me bateria por minha intrepidez.  

     Mas finalmente, eu ganhei esta batalha.  

     Essa mesma tarde Acheron foi libertado de sua cama. Ele permanecia ali quando as correntes se abriram e vi a suspeita em seus olhos. Estava esperando que algo pior acontecesse.  

     Uma vez que os grilhões se foram, ordenei aos guardas que deixassem o quarto. Acheron não se moveu até que estivemos sozinhos. Devagar, enojadamente, empurrou-se a me olhar. Estava inseguro, com seus músculos débeis pela falta de uso.

     Seu comprido cabelo loiro estava emaranhado e gordurento. Sua pele doentiamente pálida pela escuridão que tinha sido seu lar. Uma barba espessa cobria suas bochechas. Havia círculos profundos debaixo seus olhos, mas não estava tão gasto, a atroz alimentação lhe tinha agregado bastante peso pelo que ele parecia pelo menos humano.

     —Não podes deixar este quarto —lhe adverti—. Papai foi explícito em suas condições que lhe permitem estar livre só aqui sempre e quando te mantiveres escondido.

     Acheron gelou ante minhas palavras e me deu um agudo e frio olhar.

     —Pelo menos já não estás amarrado.

     Não me falou. Já não o fazia. Mas seus turbulentos olhos cor prata diziam muito. Falaram-me da dor e da agonia que constituía sua vida. Acusavam e se doíam.  

     —Meus aposentos estão duas portas abaixo.

     —Não posso sair —grunhiu—. Não é o que disseste?

     Abri a boca, então fiz uma pausa. Ele tinha razão. Tinha me esquecido disso.

     —Então eu virei a te visitar.  

     —Não te incomodes.

     —Acheron.

     Ele interrompeu minhas palavras com um cortante olhar enfurecido.

     —Recordas o me disseste em sua última visita a minha cela?  

     Esforcei-me em recordar. Tinha estado zangada com ele por não me falar, mas isso era tudo o que recordava.

     —Não.

     —Vá e morre, para o que me importa. Já não posso me preocupar mais por ti.

     Fiz uma careta de dor ante as palavras que nunca devia ter pronunciado. Cortaram-me a alma profundamente, que não era nada comparado a como deveriam fazê-lo sentir. Se só tivesse sabido a miséria em que se encontrava...

     —Estava zangada.  

     Ele torceu seus lábios.

     —E eu estava muito fraco para te responder. É difícil falar quando passa os dias com nada mais que a escuridão e ratos por companhia. Mas claro, tu não sabes como é ter ratos e pulgas te mordendo, não é verdade? O que é te sentar em sua própria merda.  

     —Acheron.

     Suas fossas nasais se dilataram.

     —Me deixe, Ryssa. Não necessito de tua caridade. Não necessito nada de ti.

     —Mas…

     Ele me tirou do quarto e me fechou a porta de repente na cara.  

     Olhei-a fixamente até que um movimento junto a mim capturou minha atenção. Os guardas de Acheron. Tinha dois deles para assegurar-se que não infringiria nenhum mandato de Papai.

     Assim que este era seu destino. Eu somente tinha mudado a localização de sua prisão. Ainda não era livre.  

     Minha alma sofria no mais profundo por ele. Ele estava vivo, mas com que propósito? Possivelmente teria sido mais amável permitir-lhe morrer depois de tudo. Mas como podia fazê-lo? Ele era meu irmão e eu o amava inclusive quando ele me odiava.  

     Doente, voltei-me e retornei aos meus aposentos, mas ali não encontrei nenhuma paz. Tinha sido pouco caridosa com Acheron. Dura. Irrefletida. Com razão ele não queria me falar.  

     Mas eu não poderia deixá-lo com isto. Daria-lhe tempo. Possivelmente ele retornasse no futuro.

     Pelo menos, esperava no mais profundo que o encontrasse por si mesmo e me perdoasse por ser como todos os outros. Por feri-lo quando eu devia haver lutando por ele.

 

1 de Dezembro, 9529 a.C.

     À medida que passavam os dias, eu aprendi mais coisas a respeito das ordens de meu pai para o trato de Acheron. Não estava permitido entrar ninguém no quarto de Acheron, à exceção de mim mesma, a quem ele se negava a ver, e tudo o que ele tocava era destroçado e queimado.

     Tudo.

     Seus pratos, seus lençóis. Inclusive suas roupas. Esta era a humilhação pública de Papai para com Acheron.

     Aquilo me adoecia.

     Até o dia em que fiz a descoberta mais assombrosa de todas.

     Tinha ido com várias amigas para ver uma representação ao meio-dia. Não era algo que estivesse acostumada a fazer normalmente, mas Zateria estava completamente desesperada por um dos atores e tinha insistido em que eu o julgasse por mim mesma.

     Estivemos rindo entre nós quando de repente reparei em alguém que estava sentado duas filas mais abaixo de nós na seção camponesa. Estava sentado somente com um peplo[4] que o protegia. Tinha o capuz posto sobre a cabeça de modo que não podia dizer nada a respeito de suas feições e ainda assim havia algo estranhamente familiar nele.

     Não foi até que acabou a representação e o homem se levantou que me dava conta de por que me era familiar.

     Era Acheron.

     Baixou o capuz, mas eu já tinha vislumbrado a beleza de seu rosto e sabia que Styxx nunca teria se rebaixado a vir a algo tão comum como um jogo de meio-dia. Inclusive se o fazia, ele nunca estaria nos assentos dessa seção.

     Desculpei-me com meus amigos para ir atrás dele.

     —Acheron?

     Ele vacilou um instante antes de baixar ainda mais o capuz e continuar seu caminho.

     Me apressando para lhe alcançar, puxei-o para que se detivera.

     Ele me olhou friamente.

     —Vais dizer a ele?

     —Não —ofeguei, sabendo que “ele” era nosso pai—, por que o faria?

     Ele começou a afastar-se, mas eu o detive outra vez.

     Sua expressão era exasperada.

     —Que é Ryssa?

     —Como vieste aqui? Os guardas…

     —Subornei-os —disse ele em um tom contido.

     —Com o que? Não tens dinheiro.

     O olhar que me dedicou respondeu essa resposta de forma contundente. Senti náuseas com o simples pensamento do que tinha usado para escapar do palácio.

     Ele entrecerrou os olhos sobre mim.

     —Não pareça tão horrorizada, Ryssa. Fui golpeado por muito menos que uma tarde de liberdade. Ao menos eles são amáveis comigo.

     As lágrimas aguilhoaram meus olhos.

     —Não podes continuar fazendo isso.

     —Por que não? É tudo o que querem de mim.

     —Isso não é verdade.

     —Não?

     Observei-o enquanto arrancava o capuz. Podia sentir a onda que atravessou a todo mundo ao redor de nós em como as pessoas fixavam o olhar nele.

     O repentino ensurdecedor silêncio. Era tão tangível e não havia engano na atenção que estava imediatamente enfocada sobre ele.

     Somente nele.

     As cabeças das mulheres se juntavam enquanto riam bobamente e tratavam de passar desapercebidas em seu ávido olhar. Os homens não eram tão sutis. Não havia dúvida no fato de que cada um deles o ficava olhando com desejo. Com desejo.

     Eu não era mais imune a sua nada natural atração do que eram eles, mas a minha estava temperada pelo fato de que fomos família.

     —Queres saber realmente por que me odeia teu pai?

     Eu sacudi a cabeça. Conhecia a resposta. Acheron o havia dito no dia em que Papai o tinha banido. Por que ele, também, sentia-se atraído por Acheron e desprezava ao menino por isso.

     Acheron me empurrou para passar, saindo do estádio. A cada passo que dava, assediavam-lhe com oferecimentos e convites. Inclusive uma vez que voltou a colocar o capuz, as pessoas não paravam de lhe chamar e lhe perseguir através da rua.

     Apressei-me atrás dele.

     —Não seja assim —disse um homem enquanto se arrastava atrás de Acheron—. Seria um mentor muito benéfico.

     —Não tenho necessidade de um mentor, —disse Acheron enquanto continuava caminhando.

     O homem o agarrou com rudeza.

     —O que queres?

     —Quero que me deixem sozinho.

     O homem baixou o capuz de Acheron.

     —Me diga seu preço. Pagarei qualquer coisa para te ter.

     Esse fundido e vazio olhar apareceu nos olhos de Acheron fazendo com que o homem se separasse dele.

     —O que é isto?

     Meu sangue se congelou quando reconheci a hostil e demandante voz de meu pai. Tinha estado tão concentrada em Acheron e no desconhecido que não me tinha dado conta de que Papai e seus próximos estavam passeando.

     Agora a atenção de pai caiu completamente em Acheron cuja cara se voltou de pedra.

     Papai arrebatou brutalmente a Acheron o capuz da cabeça e o empurrou para seus guardas a quem lhes ordenou tomassem em custódia. Acheron foi escoltado de volta ao palácio onde Papai o golpeou por sua desobediência.

     Tentei mitigar o castigo, mas Papai não escutava. Eles arrastaram a Acheron ao interior do pátio fora da sala do trono de meu pai que estava reservado para os castigos. Os guardas lhe rasgaram a roupa deixando-o nu e o deram sessenta e cinco chicotadas nas costas. Não podia olhar, mas ouvia cada assobio do látego quando viajava através do ar e cada chicotada que cortava através de sua pele.

     Acheron grunhia e várias vezes o ouvi cair, só para que meu pai ordenasse aos guardas que o pusessem de novo em pé. Nenhuma só vez gritou.

     Quando finalmente terminou, voltei-me para ver Acheron inclinado contra o poste, sangrando, suas mãos ainda firmemente atadas. Os guardas lhe lançaram uma tosca manta por cima antes que suas cordas fossem cortadas e fosse arrastado de retorno ao seu quarto e encerrado dentro.

     Tudo o que pude fazer foi sustentar depois a Acheron. Pela primeira vez, ele não se colocou a um lado. Permanecia deitado com a cabeça em meu regaço como estava acostumado a fazer quando éramos meninos. Quando me rogava que lhe dissesse por que nossos pais lhe odiavam.

    Esperei a que alguém viesse e atendesse suas destroçadas costas.

     Ninguém o fez.

     Só depois me dava conta de que Papai o tinha proibido. Assim que me sentei com o Acheron durante horas, sustentando sua cabeça enquanto ele chorava silenciosamente pela dor.

     Se chorava pelo furioso pulsado de suas costas ou a profunda dor em seu coração, isso não sabia. Deuses, como desejava lhe levar de volta ao dia na horta quando tínhamos estado sozinho os três jogando e rindo. Longe a algum lugar onde pudesse ser livre e apático, onde fosse um rapaz normal de dezenove anos como deveria havê-lo sido.

     Quando finalmente dormiu, continuei passando minha mão através de seu cabelo dourado, enquanto observava os horríveis vergões em suas costas. Não podia imaginar uma dor tão forte.

     —Te amo, Acheron —sussurrei, desejando que meu amor fora bastante para protegê-lo disto.

 

10 de Dezembro, 9529 a.C.

     Depois desse dia, nunca falei outra vez do fato de que sabia que Acheron continuava escapando do palácio para ir às apresentações. Muitos dias o segui só para me assegurar que ninguém o incomodava. Que ninguém sabia o que estava fazendo.

     Mantinha-se nas sombras, sua identidade cuidadosamente guardada. Sua cabeça sempre para baixo, seu olhar no chão quando passava através da confiada multidão.

     Acheron arriscava muito para ir. Ambos sabíamos. Uma vez lhe perguntei por que se atrevia a tanto e ele simplesmente me respondeu que isso era tudo o que o confortava.

     Gostava de ver os participantes nos jogos. Gostava de imaginar que ele era um deles. Como podia culpá-lo por isso quando tinha desfrutado tão pouco de sua vida?

     Com minha união com Apolo aproximando-se criticamente, passei mais e mais tempo nos aposentos de Acheron. Só ele não via o evento como algum mágico momento que eu deveria estar esperando com gozo e entusiasmo.

     Ele o via pelo horror que era.

     Eu também estava sendo prostituída. Só que meu pai via minha prostituição como nobre e maravilhosa.

     —Doerá muito quando ele me tomar? —perguntei a Acheron quando se sentou em seu balcão que olhava mais abaixo por volta do mar.

     Eu estava no chão enquanto Acheron se sentava no batente como fazia sempre. Ele se balançava precariamente sobre a borda deste qual gota que cai ao rugente mar.

     Aterravam-me as alturas, mas ele parecia ignorante ante o perigo.

     —Depende de Apolo e seu humor. Sempre depende de teus amantes e quanta força usarão. Quanto prazer tomem te causando dor.

     Isso não me aliviava desde que não podia controlar o humor de ninguém.

     —Foi dolorosa tua primeira vez?

     Ele assentiu sutilmente, seus olhos obscurecidos.

     —Ao menos não terá uma audiência quando te violar.

     —Tu sim?

     Ele não respondeu, mas tampouco é que fora a fazê-lo. Sua expressão me dizia que sim.

     Meu coração doeu por ele e pelo horror que devia ter passado, baixei o olhar para o cordão que estava enrolando em minhas mãos.

     —Achs que Apolo me machucará?

     —Não sei, Ryssa —seu tom mostrava sua impaciência. Ele sempre odiava falar sobre o coito. De fato, odiava falar, todo o tempo.

     Mas eu tinha que saber o que viria e não havia ninguém que falasse comigo de tais coisas. Encontrei seu tempestuoso olhar.

     —Quanta dor pode ser?

     Ele afastou o olhar, baixando-o até o mar.

     —Tenta não pensar nisso. Só fecha os olhos e imagina que é um pássaro. Imagina que vive acima entre as nuvens e que não há nada que possa te alcançar. És livre de voar aonde queiras ir.

     —É o que fazes?

     —Algumas vezes.

     —E nas outras?

    Ele não respondeu.

     Assim que nos sentamos ali em silêncio, escutando as ondas romper abaixo contra as rochas. Pela primeira vez, finalmente entendia algo de sua dor. Sua humilhação. Eu não queria formar parte de meu futuro e ainda assim não tinha escolha.

     Enquanto escutava as ondas, recordei o tempo que tínhamos passado a sós quando ele era um menino. Das horas que estava acostumado a passar sobre as rochas, escutando o mar e as vozes que o chamavam.

     —Ainda ouve as vozes dos deuses, Acheron?

     Ele assentiu.

     —Ouve-as agora?

     —Sim.

     Fazia anos, ele me tinha contado que eram os deuses chamando-o. Lhe dizendo que viesse para casa.

     —Pensas fazer o que lhe dizem?

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Jamais quero retornar a Atlântida. Odeio estar ali.

     Isso podia entendê-lo e fazia que me perguntasse quanto mais deveria ele odiar estar aqui. A pena sempre o seguia e não era culpa sua. Quão doloroso não ser capaz de mostrar tua própria cara por temor a que as pessoas te assaltem. Fosse aonde fosse, todo mundo queria aproximar-se dele com um desespero que não tinha sentido para mim.

     Inclusive eu o desejava. Só estava agradecida de que ele não pudesse sentir esses impuros pensamentos que vinham a mim nos piores momentos possíveis.

     Mas ao contrário de outras pessoas em minha vida, eu nunca atuei sobre eles. Ele era meu irmão e eu só queria protegê-lo. Ao contrário que o resto de minha família, ele via meu eu real e me amava apesar de minhas falhas. Justamente assim como o amava eu apesar das suas.

     —Irá comigo amanhã ao templo? —perguntei em voz baixa.

     Ele ficou perplexo pela pergunta.

     —Por favor, Acheron. Estou tão assustada do que estão planejando. Não quero ser a querida de um deus. Nunca fui tocada por um homem. Nunca fui beijada. Não acredito ter a coragem para isto.

     —Não é difícil, Ryssa. Só minta e atue como se te gostasse.

     —E se eu não gosto?

     —Finge que você gosta. Ele estará tão concentrado em seu próprio prazer que nunca advertirá sequer se estiver sorrindo ou chorando. Só lhe diga quão hábil é e o bem que se sente. Isso é tudo o que importa.

     Levantei-me do meu lugar no chão e agarrei sua mão na minha. Fiquei olhando fixamente a força de seus curtidos tendões. Tinha passado por muito. Sinceramente, não tinha direito a me queixar ou me lamentar de meu destino. Ninguém tinha estado ali para lhe consolar através dos terrores de sua vida.

     Mas eu não era tão forte como Acheron. Não podia fazer isto sozinha. Queria… não, necessitava que alguém estivesse ali. Alguém em quem confiasse que me dissesse a verdade e visse o amanhã pelo horror que era.

     —Por favor, vem comigo.

     Ainda havia reserva em seus olhos. Não queria fazê-lo, mas assentiu de todas as maneiras.

     Agradecida, beijei-lhe a mão e a apertei na minha. Só ele entendia meus temores. Sabia o que era ser vendido contra sua vontade.

     Nisto éramos almas gêmeas.

 

11 de Dezembro, 9529 a.C.

     Tratei de dormir, mas só o fiz irregularmente. Este seria o pior dia de minha vida. Hoje, meu próprio pai, me ataria a um Deus...

     Quando foi hora de ir ao templo, encontrei a Acheron no corredor fora de meus aposentos usando o peplo de coloração insossa que utilizava para ir aos jogos. Como sempre, estava colocado sobre sua cabeça para protegê-lo dos outros.

     Era bom de sua parte vir comigo, inclusive quando eu sabia que ele não queria. Desejava sustentar sua mão para que me desse coragem, mas não me atrevia por medo de dirigir a atenção para ele. A última coisa que quereria seria que o ferissem por minha culpa.

     Sem uma palavra, seguiu atrás de mim e minhas criadas enquanto deixávamos o palácio. Pensei que Papai me esperaria lá fora, mas me disseram que ele já estava no templo.

     Duvidei, aí, na rua, enquanto me abandonava a coragem e me deixava com as pernas trementes.

     Me virando, encontrei o olhar de Acheron.

     —Deveria correr?

     —Eles sempre me traziam de volta quando tratava de fazê-lo e me faziam sofrer muito pelo intento.

     Meu estômago se encolheu, inclusive mais, enquanto recordava a vez que o tinha tirado de Atlântida. Ele me havia dito que seria castigado por minhas ações, mas nunca me havia dito como.

     —O que te fez Titio depois que te afastei de...

     O colocou sua mão sobre meus lábios e sacudiu a cabeça.

     —Nunca quererias sabê-lo.

     Olhei em seus olhos chapeados e vi a dor que estava lá e foi então quando entendi completamente porque ele não tinha deixado para trás a vida que nosso tio lhe tinha ensinado. Recordei o que me havia dito no bordel.

     Sem outra habilidade, não havia nada que qualquer um de nós pudesse fazer. Nenhuma maneira de nos manter a nós mesmos.

     “Tratei de encontrar um trabalho honrado”.

     Suas palavras me atormentavam agora.

     Acheron tinha razão. Encontrariam-me e me castigariam.

     Tomando uma profunda inalação para me encher de coragem, girei-me e me dirigi para o distrito dos templos.

     Havia uma multidão esperando por mim para celebrar o fato de que estava sendo vendida contra minha vontade a um Deus. Seis pequenas meninas permaneciam com cestas de pétalas de rosas vermelhas e brancas em suas mãos. Disseminaram-nas aos meus pés enquanto levavam para o templo de Apolo.

     Na porta, encontrei ao meu pai. Ele me sorriu até que seu olhar passou sobre meu ombro para ver meu alto “guarda”.

     Um grunhido curvou seus lábios.

     —O que está fazendo ele aqui?

     —Pedi-lhe que viesse.

     Papai empurrou a Acheron pelas costas.

     —Ele não pode estar aqui. É impuro.

     —Quero-o aqui.

     —Não!

     Olhei para trás para ver como Acheron levantava o queixo como se suas palavras não o ferissem, mas vi a dor em seu olhar.

     —Esperarei por ti lá fora, Ryssa.

     Papai fez um som de desgosto e soube que era só medo de fazer uma cena frente Apolo o que o impedia de fazer algo. Entretanto, depois haveria castigo para Acheron. Disso não tinha dúvida.

     Estendi a mão para meu irmão, mas Papai me empurrou para a porta. Lágrimas apareceram em meus olhos enquanto asfixiava. Tratei de lhe falar com Acheron, mas não podia fazer com que minha voz cooperasse.

     Acheron se afastou, para a multidão.

     Queria vê-lo. Necessitava de sua força, mas não havia nada que pudesse fazer.

     Contra minha vontade, arrastaram-me para o templo e para um destino do qual eu não queria ser parte.

 

9529 AC – 7382 AC

 

11 de Dezembro, 9529 a.C.

     Acheron se afastou do templo de Apolo. Uma cólera de impotência lhe carcomia as vísceras. Estava cansado de que lhe recordassem seu lugar neste mundo.

     Que lhe recordassem que ele não era nada.

     Sem dúvida, seu pai o castigaria depois por isso. Não, preocupava-lhe.

     Já não sentia a dor física como o resto do mundo. Muitos dias de ser usado e abusado lhe tinham deixado vazio e incapaz de sentir grande coisa exceto ódio e ira.

     Essas duas emoções lhe queimavam por dentro constantemente.

     Tinha sido um puto contra sua vontade e agora isso era usado contra ele, como se ele tivesse tido escolha sobre o assunto. Como se tivesse desfrutado ao ser manuseado e golpeado.

     Então assim será.

     Procurando alguma forma de vingança sobre aqueles que o tinham amaldiçoado a seu destino, encontrou-se a si mesmo cruzando a rua para dirigir-se ao templo de Apolo.

     Estava vazio. O mais provável era que os ocupantes e guardiões tivessem cruzado a rua para serem testemunhas do sacrifício de sua irmã.

     Porcos de merda.

     Não havia nada que às pessoas gostassem mais que ver alguém mais sendo humilhado, especialmente à nobreza. Dava-lhes um sentimento de poder. Um sentido de superioridade. Mas no profundo de suas mentes, todos sabiam a verdade. Só estavam agradecidos de não serem eles os degradados.

     O caminhou para a nave central que estava emoldurada por imensas colunas que se estreitavam para o céu. Colunas que se dirigiam para a estátua de uma mulher. Ele nunca tinha estado dentro de um templo antes. Os putos não eram bem-vindos, posto que os deuses as tinham abandonado e a raça humana as tinha condenado.

     Insolentemente, baixou seu capuz enquanto dirigia o olhar para cima à imagem esculpida da deusa. Feita de ouro sólido, ela era formosa. O peplo parecia balançar-se por um vento invisível e sustentava um arco em uma mão e uma aljava de flechas às costas. A mão esquerda descansava em um alto e garboso cervo que estava esfregando-se contra sua perna.

     Olhou fixamente a escritura da placa que havia a seus pés, mas não podia lê-la.

     Vagamente recordava a Ryssa tratando de lhe ensinar a ler a muitos anos, quando o tinha resgatado. Não tinha visto um pergaminho ou uma palavra desde então.

     Enquanto riscava a primeira letra do nome da deusa, acreditou reconhecê-la.

     Era um A. Ryssa lhe havia dito que seu próprio nome começava com essa letra.

     Ele percorreu mentalmente seu limitado conhecimento dos deuses e o que sabia deles, enquanto tentava recordar a um cujo nome soasse similar ao seu.

     —Tu deves ser Atenea —disse em voz alta.

     Tinha sentido, Atenas era a deusa da guerra e sustentava um arco em sua mão.

     —Desculpa? Atenea?

     Virou-se rapidamente para a voz zangada atrás dele. A mulher era incrivelmente voluptuosa com um comprido e encaracolado cabelo avermelhado e escuros olhos verdes. Sua beleza era natural e penetrante. Se fosse capaz de sentir-se sexualmente atraído por alguém, poderia inclusive desejá-la. Mas honestamente, havia fodido com tanta gente que poderia viver o resto de sua vida sem nenhum outro corpo por baixo, sobre ou perto dele.

     Vestida com um traje branco vaporoso, colocou as mãos sobre os quadris curvilíneos.

     —Estas cego? Ou só és estúpido?

     Ele grunhiu ante os insultos.

     —Nada disso.

     Aproximou-se dele com um olhar agudo antes de gesticular para a estátua atrás dele.

    —Então como é que não reconhece uma imagem de Artemisa quando a vês?

     Acheron pôs os olhos em branco ante a menção da irmã gêmea de Apolo. Deveria havê-lo sabido já que os templos estavam tão juntos.

     —É ela tão inútil como seu irmão?

     A boca da mulher caiu aberta. Parecia assombrada por sua pergunta.

     —Como?

     A cólera queimou dentro dele enquanto via os tributos colocados no altar ante a imperial deusa. Ele lançou o braço contra eles, fazendo-os voar. As jarras se partiram contra o chão enquanto pequenas flores, brinquedos e outras oferendas se disseminaram e rodaram sobre o mármore.

     —Por que se incomodam quando ninguém no Olimpo os escuta e se o fazem, é óbvio que não lhes importa?

     —Estás louco?

     —Sim, estou —disse entre dentes—. Louco por este mundo onde não somos nada para os Deuses. Louco pelos Destinos que nos puseram aqui sem outro propósito exceto o de brincar conosco para seu pequeno entretenimento. Desejaria que todos os deuses estivessem mortos e desaparecidos.

     A mulher grunhiu, dirigindo-se a ele. Acheron capturou sua mão antes que pudesse esbofeteá-lo.

     Ela gritou e algo o golpeou de dentro, lançando-o diretamente ao chão. A dor se estendeu através do corpo.

     Uma força invisível o levantou do chão e o jogou contra a parede. O fôlego o abandonou enquanto era fixado ao tabique, a uns bons três metros sobre o chão.

     A mulher o olhou.

     —Deveria te matar!

     —Por favor, faça-o.

     Artemisa reteve o último raio de energia que teria mandado a este humano direto ao Tártaro onde pertencia e o deixou cair ao chão. Nunca tinha conhecido a ninguém que não a reconhecesse ao vê-la. Nunca tinha conhecido a ninguém que pudesse sentir sua presença sobrenatural e seus poderes de deusa e, entretanto, este humano parecia imune a eles.

     Olhou como se levantava e permanecia de pé, insolentemente diante dela. Era um jovem muito bonito. Concedia-lhe isso. Seu rosto era perfeito em sua beleza, escuras pestanas loiras emolduravam uns tempestuosos olhos chapeados que queimavam com ódio. Ninguém a tinha desafiado com tal olhar.

     Seu comprido e ondulado cabelo loiro emoldurava suas formas à perfeição. Parecia ser suave e era como pouco, tentador.

     E seu corpo... era plano e musculoso. Bronzeado. Formoso. Havia algo nele que provocava que a boca enchesse de água por lhe provar. Nunca em sua vida havia sentido um desejo tão incrível por nenhum homem.

     Uma coisa mais. Era mais alto que ela, uma raridade mortal que apreciava.

     —Tens idéia de quem sou? —perguntou-lhe.

     —Julgando por teu aborrecimento e o que acabas de me fazer, assumirei que és Artemisa.

     Então não era tão estúpido depois de tudo.

     —Então te incline e te desculpe.

     Em lugar disso, ofereceu-a um intenso olhar que causou com que seu estômago se agitasse. Caminhou para ela com um elegante pavoneio que fez com que seu corpo inteiro se ondulasse como o de uma pantera. Uma estranha necessidade a atravessou. Não entendia o que estava sentindo, fora o que fosse, deixava-a sem fôlego e débil.

     Ele colocou uma cálida mão contra sua bochecha enquanto olhava fixamente seu rosto com esses cativantes olhos que pareciam hipnotizá-la.

     —Então és uma deusa —disse, com uma voz grossa enquanto a examinava audazmente. As pupilas se dilataram...

     O estômago dela se encolheu inclusive mais. Sua proximidade a abrasava. Seus olhos a fascinavam.

     Ela nunca havia sentido algo como isto.

     Antes que ela se desse conta de suas intenções, ele a colocou entre os braços e a beijou.

     Artemisa não podia respirar enquanto o saboreava. Uma parte dela estava ultrajada de que ele se atrevesse a isto, mas outra estranha parte estava encantada pela inesperada sensação de seus lábios sobre os seus. De sua língua explorando a boca.

     Os braços a rodearam enquanto a atraía mais perto dele.

     Dava-lhe voltas a cabeça quando ele a retirou ligeiramente e arrastou seus lábios da boca ao pescoço. Os calafrios a percorriam e ao mesmo tempo em que um incrível calor bulia por dentro. Tudo o que queria era colocá-lo mais perto…

     Sentir cada centímetro de seu corpo.

     Ele fez um ruído apreciativo contra a pele que lhe causou estragos.

     —Tens um gosto divinamente.

     Ele caiu de joelhos ante ela.

     —O que estás fazendo? —Perguntou enquanto ele levantava um dos pés em suas mãos. Não entendia que estava acontecendo. Parecia como se não tivesse controle de si mesma. Esta… criatura a forçava de uma maneira que era totalmente sobrenatural.

     Ante o olhar dele, sentiu como se seu estômago quisesse sair.

     —Beijando teus pés, deusa. Não é isso o que se supõe que devo fazer?

     Bom, sim, mas enquanto ele mordiscava o peito do pé ela não pôde suprimir um profundo gemido de prazer. Artemisa se apoiou contra a parede enquanto sua boca trabalhava magicamente sobre os sensíveis tendões do pé.

     Ela nunca tinha conhecido algo tão rico, um calor tão abrasador percorrendo seu sangue. E ele não se deteve no pé, deslizou seus lábios sobre a perna, para a parte de trás do joelho.

     Artemisa lutava por respirar.

     Então ele moveu sua boca mais acima.

     —O que estás fazendo?

     Suspirou enquanto seu quente fôlego caía sobre suas nádegas.

     —Estou te beijando o traseiro. Não se supõe que as pessoas têm que fazer isso?

     —Não dessa maneira.

     Ela grunhiu quando ele a mordiscou a parte alta das nádegas. Deveria detê-lo. Ele não tinha nenhum direito de tocá-la desta maneira e, entretanto, não queria que se detivera. Sentia-se tão bem.

     Ele a separou as pernas brandamente.

     Com uma mente própria, as pernas lhe obedeceram. Artemisa olhou para baixo e o viu com os olhos fechados enquanto a atormentava com prazer.

     Sentiu suas mãos sobre ela enquanto a tocava onde nenhum outro homem a havia tocado antes. Seus dedos percorreram a fenda, fazendo-a queimar-se inclusive mais antes de tomá-la com a boca.

     Baixando o braço, ela enterrou a mão entre seu cabelo enquanto a saboreava.

     Seus sentidos se voltaram loucos enquanto se entregava totalmente a ele e as lambidas que lhe dava a enviavam a uma altura inimaginável. Cada uma delas enviava um quente arrepiou através dela. A garganta secou um instante antes que seu corpo se calcinasse.

     Artemisa chorou enquanto experimentava seu primeiro orgasmo.

     Aterrorizada e envergonhada, desapareceu.

     Acheron se sentou no solo aturdido pela incredulidade. O gosto e o cheiro da Artemisa transpassaram seus sentidos. Seu corpo queimava com dolorosa necessidade.

     Ele nunca tinha experimentado o desejo antes. Seu corpo sempre tinha reagido ao ser estimulado por outros ou pelas drogas, mas realmente ele nunca quis tocar a ninguém.

     Até agora.

     Agora desejava a uma mulher... não, desejava a uma deusa e isso não tinha sentido para ele.

     Riu amargamente.

     —O mínimo que pudeste ter feito era me matar, Artemisa —gritou. Esse tinha sido seu único objetivo quando se aproximou dela pela primeira vez.

     Mas no momento que a havia tocado, tinha sentido desejo real.

     Incapaz de esquecer isso, limpou a boca e ficou de pé. Girando, olhou à estátua que de maneira nenhuma tinha semelhança com ela. Dirigiu-lhe uma sarcástica saudação.

     Seu corpo tinha uma fome estranha, abandonou o templo e fez a longa caminhada de volta ao palácio sozinho. E com cada passo que dava, sua raiva crescia inclusive mais do que tinha crescido antes.

     Havia um inquietante silêncio enquanto caminhava através dos corredores de mármore da casa de seu pai sem destino em mente. Todos tinham ido ver o sacrifício de Ryssa. Perguntava-se ociosamente se serviria de algo. Se o favor de Apolo para com os Atlantes poderia ser trocado para os Gregos.

     Não é que lhe importasse. Nem os Atlantes nem os Apolitas tinham sido mais gentis com ele do que tinham sido os gregos.

     Tudo o que eles queriam lhe fazer era fodê-lo.

     Suspirando, encontrou a si mesmo no grande e impressionante salão do trono de seu pai. Era a primeira vez que entrava caminhando, devido a que nas vezes anteriores tinha sido arrastado pela porta encadeado.

     Entreabriu o olhar sobre os dois tronos dourados colocados ao final. Tronos que deviam ter pertencido a sua mãe e a seu pai, mas como sua mãe tinha sido desterrada por seu nascimento, Styxx tinha ocupado seu lugar. Muito mau que a velha bruxa tivesse morrido em seu isolamento. A teria gostado de ver seu precioso Styxx coroado Rei.

     Styxx. Seu irmãozinho.

     Acheron amaldiçoou. Se não fora pelos olhos, ele teria sido quem estaria sentado à direita de seu pai.

     Ninguém se atreveria a incomodá-lo. Ninguém jamais o teria forçado a ajoelhar-se para...

     Grunhiu ante as lembranças.

     Era tão injusto.

     Não tinha pedido esta vida. Nunca tinha pedido para nascer. Nunca tinha pedido ser um semideus.

     Podia escutar a voz de Estes na cabeça “Olhem. Filho de um Olímpico. Quanto pagaria por uma provadinha a um deus Grego?”

     Acheron nem sequer sabia quem era seu pai. Sua mãe sempre se declarou inocente sobre as circunstâncias de seu nascimento e nenhum deus tinha dado um passo adiante para lhe reconhecer.

     Zangado por esse feito, cruzou a sala para sentar-se no trono de seu pai. O homem morreria se o visse apetrechado sobre ele e isso lhe deu um instantâneo momento de satisfação. Seu pai o faria queimar.

     Talvez deveria deixar que seu pai o encontrasse aqui. Ao rei lhe estaria bem empregado saber que um puto tinha profanado seu amado trono.

     Um puto... estremeceu-se com o mero pensamento.

     Por direito de nascimento, tudo isto deveria ter sido seu. Fechando os olhos, Acheron tratou de imaginar como teria sido o mundo se ele tivesse olhos azuis como Styxx.

     As pessoas o respeitariam.

     Respeito.

     A palavra pendurava como um fantasma em sua mente. Essa era a única coisa pela qual tinha rogado.

     —Não queres ser amado?

     Ele abriu os olhos para ver que Artemisa estava parada no centro do aposento, estudando-o.

     —Todo mundo afirma me amar —pelo menos enquanto o fodiam. Infelizmente, essa afirmação terminava no minuto que obtinham a satisfação—. Tive mais que suficiente do amor de outras pessoas. Prefiro não o ter por um momento.

     Ela franziu o cenho. Era uma expressão delicada que ele encontrou doce.

     —Tu és um ser humano estranho.

     Ele se burlou disso.

     —Sou um semideus. Não o podes ver?

     Seu cenho se pronunciou mais enquanto se aproximava dele.

     —De quem és?

     —Hão-me dito que de Zeus.

     Ela negou com a cabeça ao escutar isso.

     —Tu não és filho de um Olímpico. Eu saberia se fosses. Nós sempre podemos sentir aos nossos.

     Essas palavras penetraram no coração como uma faca.

     —Então de quem sou filho?

     Ela tomou seu queixo na cálida e suave mão para que ele elevasse a vista e poder olhar fixamente seus incomuns olhos. Olhos que ele tinha odiado toda sua vida. Olhos que o tinham traído.

     —Tu és humano.

     —Mas meus olhos...

     —São estranhos, mas os defeitos de nascimento são comuns entre sua espécie. Não há poderes de deus dentro de ti. Nada que te marque como divindade. És humano.

     Acheron fechou os olhos enquanto a dor o assediava. Então era o filho de seu pai depois de tudo.

     Era a última coisa que queria ouvir. Um defeito de nascimento. Um simples acidente de nascimento o tinha privado de tudo. Queria gritar de cólera.

     —Por que estás aqui? —Perguntou, abrindo os olhos para encontrar Artemisa lhe olhando fixamente.

     Ela ignorou a pergunta.

     —Por que não me temes?

     —Deveria?

     —Poderia te matar.

     —Pedi-te que o fizeras, mas não o fizeste.

     Ela inclinou a cabeça como se a tivesse surpreendido completamente.

     —Tu és muito bonito para ser humano.

     —Eu sei.

     Artemisa franziu o cenho ante suas palavras. Não tinham sido ditas arrogantemente. Ao contrário, as havia dito com ira, como se sua beleza lhe incomodasse. Era diferente a qualquer humano que ela tinha conhecido.

     Se não estivesse segura, ela teria acreditado em sua história de divindade. Havia algo sobrenatural sobre o desejo que ele a provocava.

     Mas os deuses e sua descendência tinham uma essência que era facilmente identificável. Tudo o que ela sentia dentro deste humano era ódio, desprezo. E isto a machucava e a machucava tanto que era quase doloroso estar perto dele.

     —Por que estás tão triste?

     —Tu nunca o entenderias.

     Provavelmente não. A tristeza não era algo que normalmente sentisse. Quanto ao desprezo...

     Era completamente estranho para ela.

     Em toda sua existência, ela jamais tinha desejado consolar a um humano. Hoje ela o fez e não sabia por que.

     —Alguma vez sorris? —Perguntou-lhe.

     Ele negou com a cabeça.

     —Nunca?

     —Não. Tudo o que provoca é que as pessoas se arrastem até mim. Os faz me desejar mais.

     —Mas pensei que todos os humanos rogavam por serem desejados.

     Novamente ele franziu o cenho.

     —Conhece o termo Atlante tsoulus?

     —Escravo sexual?

     Dedicou-a um olhar fixo em branco.

     Artemisa inalou enquanto captava seu significado.

     —Tu és um deles?

     —Era-o.

     Sua visão se obscureceu ante a informação.

     —E ousaste me tocar?

     —Então, me matarás agora?

     Isso fez com que sua cólera diminuíra sob outra onda de confusão. Quem era este homem que a desafiava como nenhum outro o tinha feito antes?

     —Se tanto desejas morrer por que não te matas tu mesmo?

     Seus lábios se curvaram enquanto seus olhos ondulavam com fúria.

     —Cada vez que o tentei, fui devolvido e castigado por isso. Parece ser que os deuses não me querem morto, então imaginei que se um dos seus me matava, então encontraria finalmente a paz.

     —Então não estás destinado para morrer.

     Ele ficou de pé com um grunhido tão feroz que Artemisa de fato retrocedeu um passo por medo.

     —Não te atrevas a dizer essa palavra diante de mim. Nego-me a acreditar que este era meu destino. Não estava destinado a ser isto. Nunca quis ser...

   A dor em seus olhos a perfurou.

     —Isto não pode ser para o qual nasci.

     —É o destino da raça humana sofrer. Por que tu deverias ser diferente?

     Acheron não podia respirar enquanto suas palavras penetravam profundamente nele. Uma e outra vez em sua mente via si mesmo e seu passado. Via os horrores e degradações que tinha sofrido.

     Mas os pensamentos mais terríveis eram aqueles do futuro. Para sempre sozinho, sem ninguém exceto o desdém e o abuso por companhia. Sendo forçado a comer contra sua vontade ou pior, vendido como um saco de aveia.

     Muito zangado para falar, saiu rapidamente do salão e se dirigiu a sua “prisão”. Reconhecia que era melhor que o vão no qual seu pai o tinha confinado inicialmente, mas ainda era uma prisão.

   Era tudo o que ele conheceria e se seu pai obtinha seu objetivo, séria confinado nesse lugar para o resto de sua vida.

     Ao menos hoje não havia guardas lá fora. Inclusive a eles tinha dado um dia de liberdade. Um dia para fazer o que quisessem.

   —Por que fugiste?

     Deteve-se em seco enquanto Artemisa aparecia ante ele.

     —Por que me segues?

     —Deixou-me curiosa.

     —Curiosa sobre o que?

     —Sobre ti.

     Ele riu amargamente ante isso. Inclusive uma deusa não era melhor que os humanos que o caçavam.

     —Queres-me nu para que possas me explorar?

     Suas bochechas se escureceram, mas ainda assim ele viu o quente olhar em seus olhos.

     Também se precaveu que ela não o contradisse. Então assim será.

     Artemisa olhava como seu recém descoberto humano lentamente soltava o broche de seu peplo. Deveria detê-lo, sabia, mas não podia obrigar a si mesma a dizer as palavras.

     Tremeu pela espera de como se veria nu. Não era assombroso que seu irmão passasse tanto tempo com as fêmeas humanas. Se elas eram a metade de provocadoras...

     Ele deixou cair seu peplo ao chão.

     Seus pensamentos se disseminaram, ela tragou quando viu sua nudez, era inclusive mais bonito do que suspeitava.

     Sua pele era leonada, tentadora e se estirava sobre um corpo que estava finamente posto a ponto e bem musculoso.

     Contra sua vontade, seu olhar desceu para a parte dele que era unicamente masculina. Estava bem dotado e enquanto o olhava, seu pênis cresceu, engrossando-se enquanto lentamente se levantava para curvar-se contra seu corpo. Seus testículos apertadas.

     Nunca tinha visto um homem como este. Cheio de desejo. Tão atrevido e sem inibição por medo a ela.

     Ele fechou a distância entre eles.

     —Não queres me tocar?

     Se o desejava, mas não podia mover-se. Não podia respirar. Ela sentia o calor de seu corpo o comovedor passo de seu fôlego contra o rosto.

     Sua proximidade era intoxicante.

     A tomou uma mão com a sua e a dirigiu para sua ereção. Seu puxão era firme enquanto ele deslizava sua palma contra a ponta do pênis. Estava tão suave e, entretanto tão duro.

     Ela tragou enquanto ele a dirigia lentamente ao longo de toda sua longitude até que a fez esfregar contra o suave saco. Ela mordeu o lábio enquanto ele esfregava a si mesmo acompanhando sua palma. Seu corpo era tão diferente ao seu. Tão incrível e sedutor.

     Ele libertou sua mão.

     Seu primeiro instinto foi retirar-se, mas não era tímida. Em vez disso, percorreu com a parte posterior dos dedos a parte baixa de seu saco, permitindo que seu testículo se curvassem ao seu redor. Ela sentia seu corpo tão estranho.

     Ela levantou a mão para uma sossegada exploração sobre seu estômago até seu peito.

     Ele não se moveu para tocá-la. Só permaneceu junto a ela em silêncio enquanto explorava cada centímetro de seu corpo. Seus inquietantes olhos chapeados eram incríveis. Ela nunca tinha visto outros iguais. Nunca havia sentido nada melhor que sua pele masculina sob sua mão.

     Oh, mas ele era delicioso.

     —Queres que te foda?

     Ela se estremeceu ante a pergunta que deveria havê-la ofendido até o mais profundo de seu ser. Ante o profundo acento de sua voz. Desejava-o com uma loucura que a consumia.

     Se só pudesse.

     —Não —disse ela em voz baixa. Olhou para ele. Seu olhar a abrasava—. Quero que me faças o que me fizeste antes. Me faça sentir isso de novo.

     Agarrou-a pela mão e a dirigiu para uma cama onde poderiam estar a sós. Sem serem incomodados.

     Ela não deveria estar fazendo isso. Era uma deusa virgem. Intocada por homem ou deus algum.

     Pelo menos até hoje.

     Ninguém a tinha beijado antes. Ninguém a havia possuído. Era conhecida por matar a homens só porque a haviam visto nua e, entretanto com este, ela estava mais que disposta a deixar-se seduzir.

     Não sabia por que assim como tampouco compreendia a compulsão dentro dela de estar com ele.

     Ele só a fazia sentir estranhamente feliz. Cálida. Decadente. Desejável.

     Acheron a colocou de costas contra o colchão. Ela estava nervosa; isso era algo ao qual ele estava acostumado em mulheres sem experiência. Ainda assim, ela era formosa. Seu cabelo avermelhado se esparramou sobre os travesseiros, fazendo com que ficasse ainda mais duro. E não era um sentimento ao qual estivesse acostumado.

     A essência de rosas se uniu a sua pele. Beijou-a brandamente sobre os lábios enquanto deslizava a mão para cima por sua perna, levantando a ponta do vestido. Ela se esticou um pouco, mas rapidamente relaxou. Era tímida.

     Não querendo envergonhá-la, ele deixou que seus lábios se arrastassem lentamente por seu corpo.

     Artemisa estava desconcertada enquanto o via desaparecer baixo as dobras de seu vestido branco. Mesmo assim ela podia senti-lo mover-se. Sentir suas costeletas roçando contra a panturrilha enquanto riscava uma quente linha de beijos para cima pela parte interna da coxa até alcançar a parte dela que doía por ele.

     Ela gemeu no instante que seus lábios e língua encontraram esse ponto. Mordendo a palma da mão se rendeu ao prazer que a dava. Era deslumbrante e excitante. Não havia dúvida porque os outros deuses e humanos arriscavam tanto por isso.

     Desta vez, quando culminou, ela compreendeu claramente o que estava passando a seu corpo. Pelo menos o fez até que ele a fez vir uma e outra vez.

     Acheron grunhiu ante o sabor de Artemisa. Ante o som dos gritos que enchiam seus ouvidos. Ele amava a forma em que ronronava. A sensação de sua mão no cabelo, puxando.

   Ela golpeou com a outra mão o colchão.

     —Tens que parar. Por favor. Não posso suportar mais.

     Ele lhe deu uma comprida lambida final antes de separar-se.

     —Estás segura?

     Ela assentiu.

     A contra gosto, fez o que lhe pediu e se moveu para estirar-se junto a ela apesar de que seu próprio corpo estava longe de ser satisfeito.

     Artemisa se colocou sobre seu peito, escutando sua respiração entrecortada. Ele ainda estava duro e rígido.

     —Não te dói permanecer assim? —Perguntou ela, deslizando a mão sobre seu pênis.

     Ele tomou uma aguda respiração como se sua carícia lhe doesse.

     —Sim.

     —Não podes dar prazer a ti mesmo?

     —Posso —estudou seu rosto—. Você gostaria de vê-lo?

     Antes que ela pudesse responder, a agarrou uma mão colocando sua palma contra ele.

     Acheron fechou os olhos ante o calor de sua mão contra o pênis. O sexo não significava nada para ele. Nunca o tinha feito, era só algo que se esperava dele.

    Masturbou-se ante multidões e com amantes muitas mais vezes das quais podia recordar. Por alguma razão parecia que as pessoas obtinham prazer ao vê-lo gozar. Apenas sentia a descarga momentânea de hormônios. Era um penetrante prazer, que rapidamente evaporava.

     Fazia muito tempo que aprendeu a desejar algo mais que isto.

     Mas não estava destinado a obtê-lo e de todas maneiras ele não sabia o que era que realmente queria. Artemisa estava aqui porque, assim como muitos outros antes que ela, tinha curiosidade a respeito de seu corpo. Ela poderia voltar a visitá-lo. Ou poderia não fazê-lo.

     No passado o golpeavam se um amante não retornava a ele.

     Em Atlântida, tudo o que tinha dependia de sua habilidade para fazer com que as pessoas o desejassem. Quanto lhe permitiam dormir. Quanta comida.

     Quanta dignidade.

     Se seus amantes não se sentiam satisfeitos depois de lhe deixar, era golpeado por isso.

     Agora seu pai o golpearia se se inteirava disto. O rei demandava celibato de um homem que nunca tinha conhecido. Mas de verdade, tinha desfrutado estar com a Artemisa. Seu toque era gentil. Sua pele suave e cremosa.

     Inalando, imaginou o que seria deslizar-se dentro de seu corpo. Não, melhor ainda, imaginou como seria que o sustentara perto de seu corpo como se lhe importasse. Só pensar em alguém preocupando-se com ele, realmente preocupando-se com ele foi suficiente para quase fazê-lo sorrir. Mas era consciente.

     O que tinha era um estúpido sonho que tinha sido alimentado por Ryssa e Maia tempos atrás, quando tinha sido crédulo. Essas ilusões tinham sido destroçadas há tempo.

     Artemisa era uma deusa. Tinha sorte de que ela não se indignasse por estar no mesmo aposento com ele. Agradaria-a porque era o que estava treinado a fazer.

     Não podia haver nenhum tipo de relação entre eles. Sem dúvida desapareceria logo como acabasse. E estaria sozinho de novo.

     Nada em sua vida tinha mudado realmente.

     Artemisa olhou o rosto de Acheron enquanto ele usava sua mão para acariciar-se. Era estranho tocar a um homem desta maneira e se perguntava que pensamentos rondavam por sua cabeça. Normalmente ela podia escutar os pensamentos dos mortais no momento que desejasse, mas pela primeira vez, não pôde.

     Que estranho...

     Ele se endureceu inclusive mais antes que sua quente semente fora disparada através de seus dedos. Em lugar de chorar, como ela o tinha feito, ele apenas suspirou entrecortadamente, depois a libertou.

     Ela percorreu com a mão sua cálida umidade, estudando-a.

     —Então, isto é o que faz que uma mulher fique grávida.

     —Na maioria dos casos.

     —Na maioria?

     Ele franziu o cenho.

     —O meu é o suficientemente inofensivo.

     —Como é isso?

     —Fui esterilizado na puberdade. Deusa. Minha classe sempre o é. Ninguém deseja ficar grávida de um puto.

     Artemisa arqueou suas sobrancelhas ante seu discurso.

     —Podem os humanos fazer isso?

     —Não, mas os Atlantes podem. Aprenderam o procedimento dos Apolitas.

     Ela estudou seu fluido de novo.

     —É uma lástima o que te fizeram —disse Artemisa em voz baixa—. És muito formoso para ser estéril. Queres que te arrume?

     —Não, não há razão para fazê-lo. Hei-te dito, ninguém daria a bem-vinda a uma criança concebida por mim.

     Foi a dor em seus chapeados olhos enquanto falava que provocou uma dor tão pouco familiar no peito.

     Seu pobre humano.

     Ele parecia espetacular descansando contra os lençóis brancos que faziam destacar a larga extensão de bronzeada pele masculina. Cada músculo de seu corpo era um exemplo de perfeição. Era tão tentador. Quente. E era completamente descarado a respeito de sua sexualidade nua. A respeito do que tinham feito. Não se pavoneava ou era arrogante por havê-la tocado.

     Tratava-a como se ela fora...

     Humana.

     A maioria de sua família não podia suportá-la. Os humanos a temiam, inclusive seus servas riam entre elas, mas ficavam em guarda no momento que ela se aproximava.

     Mas este homem...

     Era diferente. Não tinha medo de nada ou de ninguém. Como uma besta poderosa e agressiva, era desafiante e ousado. Implacável ante sua presença. Era dócil agora, mas o poder nele era inegável. Isso assustava inclusive a ela.

     —Tens amigos? —Perguntou ela.

     Ele negou com a cabeça.

     —Por que não?

     —Suponho que não valho.

     Artemisa franziu o cenho ante seu raciocínio.

     —Eu posso ser uma. Tampouco tenho nenhum e sou mais que valiosa. Talvez há um defeito em nós.

     Ela fez uma pausa enquanto pensava nisso.

     —Não, isso tampouco pode ser certo. Eu não tenho defeitos e, entretanto estou tão só como o estás tu.

     Nunca antes se precaveu Artemisa de que tão só estava realmente. Seu irmão gêmeo tinha amigos. Tinha amantes. Apolo era a coisa mais próxima a um amigo que tinha conhecido, mas inclusive ele era reservado ao seu redor. Apolo nunca a convidava a fazer coisas a menos que envolvessem destruição ou castigo. Não ria com ela ou a convidava a entreter-se ou jogar.

     Pela primeira vez em sua vida, precavia-se que quão só realmente estava.

     —Tu gostarias de ser meu amigo?

     Acheron ficou completamente atônito ante a inesperada pergunta.

     —Serias minha amiga?

     Ela inclinou a cabeça enquanto o olhava com um pequeno franzimento do divino cenho. Era brilhante e etérea, muito longe do alcance de alguém como ele.

     —Bom, sim. Quer dizer, não podemos deixar que os outros saibam, mas eu gostaria de ver o que podes me mostrar. Quero aprender mais deste mundo e de ti.

     Sorriu calidamente ante ele como se fora realmente sincera com sua oferta. Recordou-lhe que tão rara era a sinceridade para ele. E a amizade...

     Era um sonho elusivo que não permitia a si mesmo. As pessoas como ele não tinham amigos. Assim como não tinham amor ou gentileza. Mesmo assim, encontrou que uma parte desconhecida de si mesmo doía de desejo por isso.

     Doendo de desejo por ela.

     —Então somos amigos? Prometo-te que jamais te arrependerás.

     Tinha que ser o momento mais estranho de sua vida e dado o pouco comum de sua existência, isso era dizer muito. Como podia um puto ser amigo de uma Deusa?

     Acheron puxou o lençol da cama e limpou a si mesmo.

     —Acredito que te arrependerás de ser minha amiga.

     Ela deu de ombros.

     —Duvido-o. Tu és humano. Só estarás vivo… o que? Outros vinte e tantos anos? É tão pouco tempo a apenas se importar e duvido que continuemos sendo amigos uma vez que estejas velho e pouco atrativo. Além disso, arrependimento não é algo que um olímpico sinta.

     Ela sorriu enquanto acariciava seus lábios.

     —Me beije. Beije-me e me deixe saber que somos amigos.

     Era um pensamento ridículo e inclusive assim se encontrou fazendo exatamente o que lhe pedia.

     Amigos.

     Os dois. Ele queria rir ante o pensamento. Em lugar disso, fechou os olhos e a inalou. Suas mãos se sentiam sublimes no cabelo. E enquanto se beijavam, ele queria sua amizade com um desespero que doía. Sua única esperança era ser merecedor dela.

 

13 de Dezembro, 9529 a.C.

     —O que estás fazendo?

     Acheron abriu os olhos para encontrar a Artemisa parada no balcão a uns metros dele. Apesar de estar gelando, estava sentado no parapeito, apoiado contra uma coluna enquanto escutava ao turbulento mar debaixo dele.

     —Estava tomando um pouco de ar fresco. O que estás fazendo tu?

     —Estava aborrecida —disse com um bico nos lábios.

     Isso o divertiu.

     —Como pode um deus aborrecer-se?

     Ela deu de ombros.

     —Não há muito que possa fazer realmente. Meu irmão está fora com tua irmã. Zeus dirige um concílio e nunca me deixa participar. Hades está com Perséfone. Meus koris estão banhando-se e pulando umas com as outras e me ignorando. Estou aborrecida. Pensei que talvez tu terias alguma idéia de algo que pudéssemos fazer juntos.

     Acheron soltou um longo e cansado suspiro. Sabia aonde levava tudo isto e ainda assim se sentiu motivado a perguntar retoricamente.

     —Posso pelo menos ir para dentro onde se está mais quente antes de me tirar a roupa?

     Ela franziu o cenho.

     —É isso o que os humanos fazem quando estão aborrecidos?

     —É o que fazem comigo.

     —E desfrutas com isso?

     —Não realmente —respondeu com honestidade.

     —Oh —fez uma pausa de um segundo antes de continuar—. Bom, então, o que é que fazes para te divertir?

     —Vou ao teatro.

     Cruzando os braços, aproximou-se dele.

     —Isso são histórias inventadas onde as pessoas se fazem passar por outras pessoas, verdade?

     Ele assentiu.

     Por seu rosto podia dizer que ela não entendia por que ele encontrava isso entretido.

     —E te gosta isso mais que estar nu?

     Realmente nunca tinha pensado nisso, mas…

     —Sim. Por um momento me faz esquecer quem sou.

     Ela parecia até mais confusa.

     —Gostas de te esquecer de ti?

     —Sim.

     —Mas isso não te confunde?

     Nem a metade do que lhe confundia esta conversação.

     —Não.

     Artemisa lhe tocou o braço com os dedos.

     —Acredito que se não fora um deus tampouco eu gostaria de recordar quem sou. Posso entender porque as pessoas se sentem dessa maneira. Então, há alguma obra a qual possamos ir?

   —No povoado há uma a cada tarde.

     —Então devemos ir —ela disse firmemente.

     Acheron soprou, desejando que tudo fora tão fácil como ela parecia pensar.

     —Não posso ir.

     —Por que não?

     Ele olhou para as portas do dormitório fechadas a sete chaves com um golpe desde a última vez que lhe tinham arrojado aqui e abandonado para que apodrecera. Oh espera, isso tinha sido ontem.

     —Meus anteriores guardas foram decapitados por deixar que saísse. Os novos são mais cautelosos. Se tento lhes falar, tiram as espadas, empurram-me e fecham as portas.

     Ela deu de ombros.

     —Eles não são nenhum problema para mim. Posso te levar ao povoado.

     Com um balanço de pernas, Acheron desceu do parapeito enquanto a esperança crescia dentro dele. Odiava estar apanhado como um animal raivoso. Sempre o tinha feito. Tudo o que tinha feito durante os dois últimos dias era sonhar estando fora durante um breve momento. Mas só havia duas formas de sair de seu quarto, através das portas por trás da Artemisa ou saltando por cima do parapeito de pedra para cair trezentos metros sobre as rochas que havia abaixo.

     —De verdade?

     Ela assentiu.

     —Se desejas ir, claro.

     Sentiu como se algo dentro do peito se libertasse com suas palavras. Poderia beijá-la por isso.

     —Irei por minha capa.

     Artemisa seguiu seu novo amigo para o quarto e olhou como tirava uma capa que havia debaixo do colchão de palha.

     —Por que a guardas sob a cama?

     —Tenho que esconder minha capa ou as criadas a queimariam —respondeu enquanto a sacudia.

     —Por que?

     Dirigiu-a um olhar em branco.

     —Disse-te que supostamente não me posso ir daqui.

     Ela não entendia isso. Por que o manteriam encerrado dentro deste pequeno aposento?

     —Fez algo errado para que te mantenham prisioneiro?

     —Meu único crime foi ter nascido de pais que não querem saber nada de mim. Meu pai não quer que ninguém saiba que seu filho mais velho é deformado, assim, devo permanecer aqui até que morra de velho.

     Uma estranha dor flutuou no estômago de Artemisa enquanto se sentia triste por ele. Havia ocasiões nas quais também se sentia prisioneira, entretanto ninguém nunca a tinha feito sentir excluída de algum jeito.

     Baixou o olhar para as pernas musculosas.

     —É por isso que tens teus pés nus?

     Ele assentiu enquanto envolvia a capa ao redor de seu corpo e colocava o capuz sobre a cabeça.

     —Estou preparado.

     —E teus sapatos?

     Olhou-a perplexo por sua pergunta.

     —Não tenho. Já te disse. Não me permitem sair.

     Agora que o pensava, deu-se conta que ela tampouco levava sapatos em seu templo.

     —Não terás frio nos pés?

     —Estou acostumado.

     Ela encolheu os dedos do pé dentro de seus sapatos quando pensou como seria caminhar descalça sobre as frias pedras no inverno. Seria uma sensação miserável que nenhum humano deveria suportar. Sacudindo a cabeça, fez com que se manifestassem um par de sapatos de couro quente sobre os pés.

     —Assim, está muito melhor.

     Acheron olhou assombrado os sapatos de cor marrom escuro forrados de pele. Sentia-os estranhos contra a pele. Mas eram incrivelmente quentes e suaves.

     —Obrigado.

     Ela lhe sorriu como se os sapatos a agradassem tanto como a ele.

     —De nada.

     O seguinte que soube, é que se encontravam no centro do povoado. Acheron observou boquiaberto que estavam parados junto a um poço. Ninguém na ocupada multidão parecia precaver do fato de que eles tinham aparecido realmente de um nada. Imediatamente comprovou que o capuz cobria totalmente seu rosto para assegurar-se de manter-se oculto de todos aqueles que estavam ao seu redor.

     —O que fazes? —Perguntou Artemisa.

   —Não quero que ninguém me veja.

     —Oh, essa é uma boa idéia. —Um momento depois, levava uma capa luxuosamente tecida que colocou de idêntica maneira a de Acheron—. Como pareço?

     Antes que pudesse evitá-lo, um sorriso curvou os lábios de Acheron ante sua inocente pergunta. Rapidamente o tirou. Sabia melhor que ninguém o que um sorriso podia conduzir. Sempre o punha em problemas.

     —Estás bonita.

     —Por que me dizer isso te incomoda?

     Acheron apertou os dentes ante a simples verdade que o tinha açoitado toda sua vida.

     —As pessoas destroem a beleza quando a encontram.

     Ela inclinou a cabeça.

     —Como pode ser?

     —Por natureza as pessoas são mesquinhas e ciumentas. Invejam o que lhes falta e devido que não sabem como adquiri-la, tratam de destruir a qualquer um que a tem. A beleza é uma dessas coisas que mais odeiam em outros.

     —A sério achas isso?

     —Fui atacado muitas vezes por esse motivo. Qualquer coisa que eles não possam possuir, tratam de arruiná-lo.

     Artemisa estava estupefata ante seu cinismo. Tinha ouvido comentários similares de algum dos deuses. Seu pai, Zeus, sempre estava fazendo declarações parecidas. Mas para um humano tão jovem...

     Acheron era estranhamente astuto em ocasiões. Se não estivesse segura, quase poderia acreditar em sua declaração de divindade. Ele era um pouco mais perceptivo que a maioria dos humanos.

     —Aonde vamos? —Perguntou, trocando de tema.

     —A porta comum é para cá.

     Dirigiu-a para uma pequena porta onde um grupo de sujos e imundos humanos se reunia.

     Curvando os lábios com repugnância, parou-o de um puxão.

     —Devemos entrar através da porta comum com a gente comum?

     —Custa entrar através das outras.

     Como poderia ser um problema? Pensou ela.

     —Não tens dinheiro?

     —Não —a disse com o cenho franzido.

     Com um suspiro, ela fez aparecer uma pequena bolsa e o entregou a ele.

     —Aqui tens. Nos consiga assentos decentes. Sou uma deusa. Não me sinto com a gente comum.

     Vacilou antes de obedecê-la. Vacilou. Ninguém jamais o tinha feito. Ainda parecia esquecer o fato de que era uma divindade. Por um lado, que pudesse ser tão arrogante o sentia como um insultou, mas por outro a cativava. Gostou do sentimento de ser nada mais que uma mulher para um homem.

     Especialmente para um tão incrivelmente bonito.

     Mas ele precisava respeitar seu status de deusa. Era, depois de tudo, a filha de Zeus. Poderia matá-lo se quisesse.

     Então porque não o fizeste? Sua provocação ecoou na cabeça enquanto o recordava tão orgulhoso e desafiante em seu templo. Definitivamente era um humano estranho.

     E nesse preciso momento lhe gostou só por sua beleza.

     Artemisa permaneceu ao seu lado enquanto comprava entradas e a conduzia a uma área separada dos camponeses. Os assentos aqui estavam menos lotados e cheios com nobres e as famílias dos senadores. Acheron pagou mais dinheiro para comprar um almofada cheia que colocou sobre a pedra para sua comodidade.

     —Não compras uma para ti? —Perguntou-lhe enquanto tomava assento sobre a almofada.

     —Não necessito de uma.

     Devolveu-a o moedeiro.

     Enrugando o nariz, ela olhou fixamente a dura pedra onde ele se sentou fazendo caso omisso do frio.

     —Não estás incômodo?

     —Não. Estou acostumado.

     Estava acostumado a muitas coisas que não eram naturais. Um sentimento estranho a transpassou. De fato, incomodou-a que ele estivesse abusando de si mesmo. Ele não devia carecer de coisas e definitivamente não enquanto estivesse com ela. Estalando os dedos, ela materializou uma almofada debaixo dele.

     Olhou-a com uma expressão tão perplexa que era quase cômica.

     —Não deverias te sentar sobre a fria pedra, Acheron.

     Acheron tocou a almofada acolchoada de cor azul que tinha debaixo com incredulidade. Só Ryssa se preocupou alguma vez por sua comodidade. Bom e em ocasiões Catera. Mas o cuidado de Catera provinha do desejo de fazer mais dinheiro a custa dele. Artemisa não tinha razões para preocupar-se se estava golpeado ou tinha frio. Não era nada para ela e ainda assim tinha feito algo realmente amável por ele. Fez-lhe desejar sorrir, mas ainda não confiava plenamente nela. Tinha sido enganado muitas vezes pela aparente bondade das pessoas que tinham sido motivadas só por seu egoísmo.

     Seu peito se contraiu com as lembranças do tempo quando ficou sem lar depois que seu pai o tinha despejado da casa de Estes.

     —Dar-te-ei trabalho, rapaz...

     Apertou os olhos em um esforço para apagar o horror que tinha seguido a sua confiança cega. Realmente odiava às pessoas. Eram cruéis e usavam os outros.

     Todos foram cruéis com ele.

     —Vinho para meu senhor e senhora?

     Acheron levou um momento para perceber de que o velho vendedor estava falando com ele. Atônito pela mostra de respeito, não foi capaz de formular uma resposta.

     —Sim —disse Artemisa imperiosamente. Deu-lhe uma moeda em troca das duas taças de vinho.

     —Obrigado, minha senhora. Meu senhor, espero que desfrutem do espetáculo —disse o vendedor enquanto se inclinava ante eles.

     Acheron não podia falar enquanto tomava a taça da mão de Artemisa. Ninguém o tinha tratado com tanto respeito desde o tempo que tinha passado com Ryssa e Maia no palácio de verão. E nunca ninguém se inclinou ante ele.

     Ninguém.

     Sua garganta se apertou, com lentidão tomou o vinho.

     Artemisa se deteve para estudá-lo.

     —Há algum problema?

     Acheron negou com a cabeça, incapaz de acreditar que estava sentado junto a uma deusa. Em público. Usando roupa. Que voltas estranhas dava a vida.

     Artemisa agachou a cabeça, tratando de encontrar seu olhar.

     Por hábito, Acheron afastou os olhos.

     —Por que não me olhas? —Perguntou Artemisa.

     —Estou te olhando.

     —Não, não o faz, sempre baixas o olhar quando alguém se aproxima de ti.

     —Posso ver-te apesar disso. Faz muito tempo aprendi como ver sem olhar diretamente às coisas.

   —Não entendo.

     Acheron suspirou enquanto girava a taça nas mãos.

     —Meus olhos fazem com que as pessoas se incomodem, por isso os mantenho ocultos o melhor que posso. Assim evito que as pessoas se zanguem comigo.

     —As pessoas se zangam contigo por lhes olhar?

     Acheron assentiu.

     —Como se sente isso?

     O tragou ante as lembranças que o cortavam até a alma.

     —Dói.

     —Então deves lhes dizer que não o façam.

     Como se fora assim fácil.

     —Não sou um Deus, Artemisa. Ninguém me escuta quando falo.

     —Eu o faço.

     Assim parecia, e isso significava muito para ele.

     —És única.

     —Certo. Talvez deverias passar mais tempo ao redor dos Deuses.

     Ele soprou ante a idéia.

     —Odeio aos deuses, recordas?

     —Não me odeias, verdade?

     —Não.

     Artemisa sorriu. Suas palavras a aliviaram e não estava segura do porquê. Intrigada por ele, levantou-se para tocar suas costas. No momento em que o fez, ele inalou e exalou rapidamente entre dentes.

     —Qual é o problema?

     —Minhas costas ainda se ressentem.

     —Se ressentem do que?

     De algum jeito conseguiu transmiti-la um olhar zombeteiramente insolente sem olhá-la diretamente.

     —Disse-te que tinha sido proibido abandonar meu quarto. Minha viagem ao seu templo custou.

     —O que te custou?

     Ele suspirou enquanto o espetáculo começava.

     —Vamos ver a obra, por favor.

     Girando a atenção para os atores, ela escutou enquanto contavam uma história insípida que não a motivava nenhum interesse. O humano ao seu lado... esse era outra coisa. Cativava-a enormemente.

     No momento que ela se aproximava de um humano de qualquer tipo, ele ou ela se arrastavam e pediam sua aprovação. Inclusive a realeza. Ou eles a olhavam fixamente como se fora sublime, coisa que é obvio era. Mas este humano não fazia nada disso. Parecia esquecer o fato de que podia matá-lo com um olhar. Inclusive agora, ignorava-a totalmente.

     Que estranho.

     —Por que contínuas cantando esse grupo?

     —É o coro —sussurrou ele. Sua atenção estava centrada sobre os atores abaixo deles.

     —Estão mal afinados.

     Ele franziu o cenho.

     —Mal afinados?

     —Sua entonação... não é correta.

     —Desafinados —a corrigiu enquanto se virava de novo para o cenário—. Não, não o estão. Soam bem.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante seu tom molesto.

     —Estás discutindo comigo?

     —Não estou tratando de discutir contigo, deusa. Estou tratando de escutar o que estão dizendo os atores. Shh.

     Não… não ele realmente não a tinha mandado calar! A coragem a invadiu.

     —Como? Acheron? Shh?

     Pela primeira vez, ele encontrou seu olhar e não houve confusão na agitação desses tempestuoso olhos chapeados.

     — Não é momento de falar, Artemisa —se virou de novo para o cenário.

     Ofendida, arrebatou-lhe o capuz da cabeça para conseguir sua completa atenção. Imediatamente se deu conta que tinha cometido um engano. Todas as pessoas ao redor ficaram fascinadas com Acheron cujo rosto tinha perdido toda a cor.

     Sem uma palavra para ela, cobriu-se de novo e se apressou para a saída. Várias das pessoas ao redor dela lhe seguiram depois.

     Curiosa, subiu a escada do estádio para encontrar a Acheron rodeado de gente. Ele parecia apavorado enquanto tentava se separar de seu caminho às pessoas que queriam dirigir-se a ele.

     Um dos homens o agarrou rudemente pelo braço.

     —Deixe-me ir —grunhiu, empurrando ao estranho.

     O homem apertou o puxão tanto que Acheron se estremeceu por isso.

     Enfurecida pelo abuso sobre seu amigo. Artemisa afundou as unhas na mão do homem que fez uma careta de dor. No momento que soltou a Acheron, ela o puxou pela mão e se teletransportaram de volta ao quarto.

     Ela esperava gratidão.

     Ele não lhe deu nada disso. Em seu lugar, virou-se para ela com fúria emanando de todo seu ser.

     —Como te atreves a me fazer isso!

     —Salvei-te.

     Seu intolerante olhar foi tão acusador como seu tom incluso enquanto se mantinha aos seus pés.

     —Me expuseste!

     Não entendia por que ele a culpava de algo do qual não era culpada.

     —Estavas me ignorando.

     —Estava tratando ver a obra. É por isso pelo que fomos, não?

     —Não. Fomos tratar de evitar que me aborrecesse. Recordas? Estava me aborrecendo de novo.

     Isso não o acalmou nem o mínimo. Se acaso. Parecia que o tinha feito zangar ainda mais.

     —Então podes seguir aborrecida em outro lugar.

     Artemisa estava horrorizada.

     —Me estás expulsando do quarto?

     —Sim.

     A raiva nublou sua visão. Ninguém jamais a tinha tratado desta maneira.

     —Quem achas que és?

     —Aquele a quem quase atacam porque és uma desconsiderada.

     —Não sou desconsiderada.

     Ele gesticulou para a porta atrás dela.

     —Saia. Eu não gosto de estar ao redor das pessoas. Prefiro estar sozinho.

     Ela lhe franziu o cenho.

     —Estás real e verdadeiramente zangado comigo, certo?

     Ele pôs os olhos em branco como se estivesse exasperado com ela.

     Atônita. Artemisa ofegou para ele.

     —Os seres humanos não se zangam comigo.

     —Este o faz. Agora, por favor, saia.

     Deveria fazê-lo e, entretanto, não era capaz. Este homem dava ordens a ela e deveria estar enfurecida e apesar de tudo não estava realmente zangada. Até uma parte dela estava tentada a lhe pedir perdão. Mas as deusas não faziam isso aos humanos.

     —Por que as pessoas te rodearam assim? —perguntou, querendo entender sua hostilidade injustificada para com ela.

     —És a deusa. Diga-me tu.

     —As pessoas normalmente não fazem isso a outras pessoas sem uma razão. Estás amaldiçoado?

     Ele riu amargamente.

     —Obviamente.

     —Que fizeste?

     —Nasci. Ao que parece isso é tudo o que necessitam os deuses para arruinar a alguém. —tirou os sapatos e os entregou a ela—. Tome teus sapatos antes de ir.

     —Te dei-os.

     —Não quero teu presente.

     —Por que não?

     Seu olhar estava no chão, mas não tinha perdido a fúria e o desprezo.

     —Porque me farás pagar por eles e estou cansado de pagar pelas coisas. —Deixou os sapatos no chão e se encaminhou a sacada.

     Ignorando os sapatos. Artemisa o seguiu.

     —Estávamos nos divertindo. Eu gostei até que me fizeste zangar.

     Ele deixou cair seu olhar para o piso ao mesmo tempo em que toda a irritação se evaporava de seu rosto.

     —Desculpe-me minha senhora. Não queria ofendê-la.

     Deixou-se cair sobre seus joelhos frente a ela.

     —O que fazes?

     —Tua vontade é a minha, akra.

     Artemisa deu um puxão a sua capa. Ele nem se alterou nem se moveu. Ele simplesmente ficou ali como um estúpido suplicante.

     —Por que te comportas assim?

     Ele manteve o olhar sobre o chão.

     —É o que queres, não? Um servente que a entretenha?

     Sim, mas não queria isso dele.

     —Tenho serventes. Pensei que éramos amigos.

     —Eu não sei como ser amigo. Só sei como ser um escravo ou um amante.

     Artemisa abriu a boca para falar, mas antes que pudesse, a porta do aposento se abriu com um golpe. Imediatamente se fez invisível escondendo-se nas sombras.

     Dois guardas entraram.

     Assim que Acheron os viu, ficou de pé e se manteve na bancada enquanto se dirigiam a ele. Sua cara era fria e estóica.

     Sem uma palavra, agarraram-no e o arrastaram para o corredor. Intrigada sobre os motivos, seguiu-os, assegurando-se de manter-se oculta.

     Acheron foi conduzido ao salão do trono onde ela tinha estado com ele há três dias. Os guardas lhe obrigaram a ajoelhar-se diante dos tronos que estavam ocupados por um humano mais velho e um jovem idêntico em beleza a Acheron. Só que não tinha os olhos chapeados de Acheron, e carecia dessa natureza irresistível. Era como qualquer outro humano e ela lhe tomou uma aversão imediata.

     —Como você ordenou, Senhor, ele não deixou o quarto —disse firmemente o guarda à esquerda de Acheron—. Nos asseguramos disso.

     Os olhos azuis do rei eram penetrantes.

     —Não estavas na praça há um momento, teritos?

     Os olhos de Artemisa se abriram ante a palavra que significava lesma.

     Acheron olhou desafiantemente ao rei.

     —Por que teria que estar na praça, Papai?

     O rei curvou seu lábio.

     —Trinta e seis chicotadas por sua insolência, depois encerrem-no em seus aposentos.

     Acheron fechou os olhos quando os guardas o agarraram pelo cabelo e o arrastaram para umas portas batentes que davam a um pequeno pátio.

     Com o cenho franzido Artemisa olhou como o despiam e logo o atavam a um poste. As perfeitamente formadas costas estavam cobertas de contusões escuras, fios vermelhos e cortes. Não era de se estranhar que tivesse retrocedido quando ela lhe tocou. Tinha que doer uma barbaridade.

     Incapaz de detectar sua presença, o guarda mais jovem caminhou ao seu lado e tirou um látego do cinto antes de dirigir-se a Acheron.

     Acheron se endureceu e se abraçou contra o poste como se soubesse o que passaria a seguir.

     O látego assobiou pelo ar, antes de contatar com as machucadas costas.

     Com um ofego, Acheron agarrou o poste com tanta força que seus braços e pernas se perfilaram e esticaram. Era como se estivesse tratando de fundir-se com o mastro.

     Hipnotizada pela visão, observou como chovia chicotada atrás de chicotada sobre as costas. Nenhuma só vez gritou ou implorou misericórdia, o máximo que fazia era respirar entrecortadamente e amaldiçoar a eles e a toda sua família.

     Quando terminaram, os guardas lhe soltaram. Com o rosto cinzento, Acheron recolheu sua roupa do chão onde os guardas a tinham deixado cair, mas não teve tempo para vestir-se antes que eles o arrastassem para seu quarto e o lançassem dentro.

     A porta tremeu quando os guardas a fecharam com uma portada que ecoou.

     Artemisa caminhou através da porta fechada para encontrar-se com Acheron deitado no chão, onde o tinham soltado. Seu sangrento cabelo loiro estava enredado e jogado para trás enquanto as feridas das costas seguiam sangrando. Ele não fez nenhum movimento para cobrir-se ou queixar-se. Simplesmente olhava fixamente ao vazio.

     —Acheron?

     Não a respondeu.

     Materializou-se diante dele, ajoelhando-se ao seu lado.

     —Por que te bateram?

     Ele deixou sair um suspiro entrecortado enquanto apertava o punho na roupa que sustentava em um montão.

     —Não me faças perguntas, não me sinto com vontades de responder.

     Seu coração se acelerou, tocou um dos vergões sangrentos de seu ombro direito. Ele vaiou ante seu tato. Retirando a mão, ela franziu o cenho. Seu sangue quente, pegajoso cobria as pontas dos dedos. Retrocedeu, olhando fixamente seu corpo nu. Pela primeira vez, ela sentiu uma onda de culpabilidade atravessando-a o peito.

     Tinham-lhe castigado por sua culpa. Se não lhe tivesse tirado do quarto, eles não lhe teriam feito isto. Uma parte dela estava zangada porque ele tinha sido ferido.

     —Eu não gosto do que te têm feito —lhe sussurrou.

     —Por favor, somente me deixe sozinho.

     Mas ela não podia. Queria fazer algo por ele, colocando a mão sobre seu ombro fechou os olhos antes de sará-lo.

     Acheron ofegou devido a terrível dor que percorria seu corpo. Um segundo mais tarde, toda essa dor se foi. Esticou-se, esperando que voltasse.

     Mas não o fez.

     —Estás melhor?

     Olhou-a fixamente com incredulidade.

     —O que fizeste?

     —Sou uma deusa da cura, então te curei.

     Girando sobre as costas, surpreendeu-se de que a dor não retornara. Durante os últimos três dias tinha sido golpeado em várias ocasiões porque tinha ousado acompanhar Ryssa ao templo. Francamente, tinha começado a temer que sua pele nunca se curaria completamente.

     Mas Artemisa lhe tinha ajudado.

     —Obrigado.

     A deusa sorriu enquanto lhe afastava o cabelo do rosto.

     —Não quis que eles te machucassem.

     Acheron cobriu sua mão com a sua antes de beijar sua palma que tinha sabor de rosas e mel. Para seu completo assombro, sentiu seu corpo excitar-se. Só por isso, esperava que Artemisa saltasse sobre ele.

     Em troca ela observava como seu pênis se endurecia.

     —Sempre faz isso?

     —Não. —Raramente ficava duro a menos que lhe obrigasse ou estivesse drogado.

     Sua testa se enrugou enquanto ela lhe tocou o peito. Estava acostumado que as pessoas sentissem curiosidade por ele. Desde que assumiam que era filho de um deus, todos queriam tocá-lo, explorar seu corpo.

     Entretanto, ela duvidava. Sua mão se movia contra seu abdômen ligeiramente, como se estivesse temerosa de tocar a parte dele que estava olhando fixamente.

     —Não te farei nada que não queiras —disse em voz baixa.

     Os olhos de Artemisa cintilaram.

     —Certamente que não. Mataria-te se o fizesse.

     Ninguém tinha sido tão direto antes, mas a ameaça sempre tinha pendurado sobre sua cabeça. Depois de sair de Atlântida muitos de seus clientes lhe ameaçaram por muitas razões. A maioria políticos ou possessivos. Tinham medo de que pudesse falar sobre o que queriam fazer a seu Príncipe Styxx ou não queriam lhe compartilhar com ninguém mais.

     Em três ocasiões quase o tinham matado.

     Não sabia por que as pessoas reagiam ante ele da forma em que o faziam. Jamais o entendeu. Artemisa, inclusive com sua divindade, não parecia diferente de qualquer outra pessoa.

     Exceto seu toque o incendiava.

     Acheron fechou os olhos quando sua mão roçou ligeiramente a ponta do pênis. A necessidade dentro dele foi inesperada e surpreendente. Deveria sentir-se zangado pelo que ela lhe tinha feito e, entretanto, não podia encontrar nenhuma ira dentro dele neste momento. Só um desejo por ela que não compreendia.

     Um ruído soou no corredor.

     Artemisa se retirou com um agudo suspiro.

     —Podem nos ver.

    O seguinte que soube foi que ele estava dentro de um brilhante aposento de mármore branco. Acheron girou sobre seus pés lentamente, tratando de entender onde se encontrava.

     Havia uma cama incrivelmente grande contra uma parede. Os lençóis e cortinas eram tão brancos como tudo o que havia ali. Ele única cor que destacava era o do ouro puro.

     —Onde estou?

     —No Monte Olimpo.

     Afrouxou-lhe a mandíbula.

     —Como?

     —Trouxe-te para meu templo. Não te preocupes. Ninguém entra em meus aposentos. São sagrados.

     Artemisa se aproximou dele com um sorriso no rosto. Esfregou a bochecha contra a sua e um instante depois uma roupagem vermelha apareceu sobre seu corpo.

     —Aqui ninguém nos incomodará.

     Acheron não podia formar um pensamento coerente enquanto olhava o esplendor que o rodeava. O teto sobre sua cabeça era de ouro sólido e esculpido com brilhantes cenas de paisagens florestais.

     Como podia ser isto? Como podia um puto estar no aposento de uma deusa conhecida por sua virgindade? O puro pensamento era risível.

     Mesmo assim aí se encontrava...

     Artemisa o puxou pela mão e lhe conduziu para a bancada que dava a um jardim repleto de resplandecentes flores. O desdobramento de cores era quase tão formoso como a deusa ao seu lado.

     —O que pensas? —perguntou Artemisa.

     —Que isto é maravilhoso.

     —Pensei que isto te gostaria —disse com um sorriso.

     Acheron a olhou com o cenho franzido.

     —Como podes te aborrecer aqui?

     Ela olhou à distância e engoliu. Uma profunda tristeza escureceu seus olhos verdes.

     —Aqui me sinto sozinha. São poucas as ocasiões em que alguém quer dirigir-se a mim. Às vezes caminho pelo bosque e um cervo se aproxima de mim, mas eles realmente não têm muito a dizer.

     Ele soltou um suspiro sobressaltado ante a incrível cena.

     —Poderia ser feliz perdido nestes bosques e sem falar com uma alma outra vez enquanto viva.

     —Mas só viverias uns poucos anos. Não tens nem idéia do que é a eternidade. O tempo não tem nenhum significado. Só se estende e se detém sempre no mesmo.

     —Não sei. Penso que eu gostaria sempre… se pudesse viver sob minhas próprias condições.

     Ela lhe sorriu.

     —Posso ver-te como és agora mil anos no futuro —seus olhos se acenderam—. Oh, espera, há algo que tenho que compartilhar contigo.

     Acheron inclinou a cabeça com curiosidade enquanto ela estalava os dedos e um peculiar pacote marrom aparecia na palma de sua mão. Para a seguir oferecer-lhe.

     —O que é isto?

     —Chocolate —respondeu com um ofego— Hershey’s. Deves prová-lo.

     Ele o agarrou e o sustentou diante do nariz. Cheirava doce, mas não estava seguro sobre o sabor. Quando ele tentou levar-lhe à boca, Artemisa o tirou da mão.

     —Tens que desembrulhá-lo primeiro bobinho. —Enquanto ria, rasgou o papel marrom e um estranho material de prata que o envolvia, cortou uma parte e o deu.

     Com cautela, Acheron lhe deu uma dentada. No instante que se derreteu sobre a língua, sentiu-se no céu.

   —Isto é delicioso.

     Ela lhe alcançou a barra de novo.

     —Eu sei. Vem do futuro, supõe-se que não podemos ir lá, mas não o posso remediar. Há algumas coisas pelas quais não posso esperar e o chocolate é uma delas.

     Ele lambeu os restos da ponta dos dedos.

     —Poderia me levar ao futuro?

     Ela negou rapidamente com a cabeça.

     —Meu pai me mataria se levasse a um mortal ali.

     —Um deus não pode matar a outro.

     —Sim, podem. Acredite em mim. Supõe-se que está proibido, mas isto nem sempre lhes detém.

     Acheron tomou outro bocado enquanto considerava suas palavras. Desejaria abandonar este tempo. Ir a um lugar onde ninguém conhecesse nem a ele nem a seu irmão. Onde não tivesse passado e pudesse levar uma vida normal, onde ninguém lhe tentasse possuir. Seria a perfeição. Mas tinha aprendido pelo caminho difícil que tal lugar não existia.

     Artemisa lhe tirou a barra e deu uma pequena dentada. Um pedacinho se desfez sobre seu queixo.

     Acheron estendeu a mão para tirar-lhe.

     —Como fazes isso? —perguntou ela.

     —O que?

     —Me tocar sem medo? Todos os humanos tremem ante os deuses, mas tu não. Por que?

     —Provavelmente porque não tenho medo de morrer —disse dando-se de ombros.

     —Não?

     —Não. Tenho medo de reviver meu passado. Pelo menos com a morte, ficaria para trás. Acredito que seria um alívio.

     —És um homem estranho, Acheron —disse ela sacudindo a cabeça—. Diferente a qualquer um dos que conheci.

     Caminhando para trás, puxou-o pela mão e o dirigiu para o dormitório.

     Acheron foi voluntariamente.

     Artemisa não pronunciou uma palavra enquanto se ajoelhava sobre a cama, e se virava para ele. Atraiu-lhe aos braços para lhe dar um beijo incrivelmente quente.

     Acheron fechou os olhos quando sentiu sua língua sobre a sua. Que estranho… quando estava com ela não se sentia como um puto. Ninguém lhe estava obrigando. Nenhum deles queria nada exceto acabar com a solidão.

     Sempre se tinha perguntado. O que se sentiria sendo normal?

     Artemisa se separou para olha-o fixamente.

     —Me prometas que nunca me trairás, Acheron.

     —Nunca farei nada para te machucar.

     Seu sorriso lhe cegou antes que lhe empurrasse sobre o colchão e caísse de costas. Ela se sentou escarranchada sobre os quadris enquanto lhe retirava o cabelo do pescoço.

     —És tão bonito —sussurrou.

     Acheron não fez nenhum comentário. Hipnotizou-o quando lhe olhou com esses olhos verdes e sua pele tão lisa e suave o atormentava. Ao menos até que ele viu um brilho de presas.

     Um instante depois uma dor cegadora lhe transpassou o pescoço. Tentou mover-se, mas não podia. Nem sequer um músculo.

     O coração esmurrava dolorosamente, mas cedeu ante um prazer inimaginável. Só quando o prazer substituiu à dor pôde mover-se. Colheu sua cabeça no pescoço enquanto ela seguia absorvendo e chupando até que seu corpo explodiu no orgasmo mais intenso que alguma vez tinha tido.

     Logo notou como as pálpebras se fechavam como se fossem de chumbo. Tratou de lutar contra a escuridão, mas não pôde.

     Artemisa se retirou e lambeu o sangue de seus lábios enquanto sentia que Acheron desmaiava, ela nunca tinha tomado sangue humano antes... era incrível. Não era estranhar que seu irmão o fizesse tão freqüentemente. Havia uma vitalidade da qual careciam os imortais. Era tão intoxicante que tomou toda sua força não a beber mais. Isso o mataria.

     Era a última coisa que ela desejava. Acheron a fascinava. Não se estremecia ou adulava. Apesar de que era um mortal, considerava-a como uma igual.

     Encantada com seu novo mascote, recostou-se de lado e se aconchegou contra ele.

     Este era definitivamente o começo de uma grande amizade...

 

14 de Dezembro, 9529 a.C.

     Acheron despertou com uma dor aguda na cabeça. Abrindo os olhos, encontrou-se nu sobre a cama. Não foi até que se moveu e não sentiu dor alguma que recordou tudo o que tinha passado no dia anterior.

     Tudo.

     Contendo o fôlego, tocou o pescoço para encontrar um pequeno rastro de sangue seco onde Artemisa o tinha mordido. Mas essa era a única marca em seu corpo. Todos os sinais da surra tinham desaparecido.

     O que era uma pequena mordida comparada com isso?

     Jogou uma olhada ao redor de seu aposento. Como retornei aqui? Não podia recordar essa parte. A última coisa em sua memória era Artemisa mordendo-o em sua cama e um sentido de cansaço que o ultrapassava.

     Alguém golpeou a porta antes de abri-la. Sabia quem era antes de ver a pequena mulher loira que era Ryssa. Ninguém mais anunciava sua chegada.

     Rapidamente limpou o sangue e cobriu o pescoço com o cabelo antes que se aproximasse o suficiente para notá-lo.

     Suas bochechas estavam ruborizadas e ia vestida com um conjunto arroxeado. Era a primeira vez que a via desde que Apolo a tinha reclamado.

     Antes que pudesse falar, ela se lançou aos seus braços e chorou.

     Acheron a abraçou enquanto a balançava.

     —O que aconteceu? Machucou-te?

     —Foi gentil —disse entre soluços—. Mas me assustou e me machucou em algumas ocasiões.

     Apertou seu abraço.

     —Como o suportas?

     Houve muitas vezes que ele havia feito a mesma pergunta a si mesmo.

     —Tudo se arrumará, Ryssa.

     —Arrumar-se-á?

     Ela se afastou para olhá-lo fixamente enquanto tratava de ver se deveria acreditar nele ou não.

     Acheron agarrou seu rosto entre as mãos.

     —Endurecer-te-ás e sobreviverás.

     Ryssa apertou os dentes ante as palavras das quais era consciente que Acheron conhecia tão bem.

     —Não quero regressar a ele. Senti-me tão nua e exposta apesar dele não ser particularmente mau ou pouco gentil. Mas tinhas razão. Não lhe importou o que eu pensava ou sentia. Tudo o que lhe importava era seu prazer. —Negou com a cabeça enquanto obtinha um novo entendimento sobre seu irmão que nunca tinha tido antes.

     Sua vergonha era só um exemplo. Acheron tinha muitos. Era horrível estar à mercê de alguém mais. Não poder dizer nada sobre o que faziam com seu corpo. Sentia-se tão usada...

     —Quero fugir disto.

     Ele tomou sua mão entre as suas.

     —Eu sei. Mas estarás bem. De verdade. Te acostumarás.

     Não se sentia dessa maneira. Estava terrivelmente dolorida e ainda sangrava pela invasão de Apolo em seu corpo. Ele tinha tomado cuidado com ela e, entretanto também tinha sido cruel. A última coisa que ela queria era estar a sua mercê novamente.

     —Ryssa!

     Ela saltou ante o grito de seu pai.

     Acheron se esticou.

     —Deves ir.

     Ela não queria, mas também tinha medo de colocar Acheron em problemas. Sorvendo as lágrimas, retirou-se e viu uma crua simpatia nos tempestuosos olhos chapeados.

     —Te amo, Acheron.

     Acheron apreciou essas palavras. Ryssa era a única pessoa que o tinha amado alguma vez. Em ocasiões ele odiava esse carinho porque lhe obrigava a fazer coisas que o feriam, mas a diferença dos outros, sabia que suas ações eram motivadas pela bondade.

     Ela se escapuliu da cama e atravessou correndo o aposento, para o corredor.

     Escutou a zangada maldição de seu pai através das paredes.

     —O que estavas fazendo ali?

     Acheron se estremeceu. Pelo menos Ryssa não tinha que temer ser golpeada. Não tinha conhecimento de que seu pai alguma vez a tivesse batido.

     —Agora és a amante de um deus. Não deves estar em companhia de gente como ele de novo. Entendes? O que pensaria Apolo? Repudiaria-te e cuspiria sobre ti.

     Não pôde escutar a suave resposta de Ryssa.

     Mas as palavras de seu pai o rasgaram. Assim não era o suficientemente digno para estar em companhia de Ryssa, mas podia seguir acompanhando a Artemisa. Perguntava-se como lutaria seu pai com esse conhecimento. Se isso faria com que seu pai o olhasse com algo mais que escárnio nos olhos.

     O mais provável era que não.

     Suas portas se abriram tão bruscamente que se escutou um estrondo. O rei cruzou a habitação a longas pernadas com fúria. Acheron olhou longe e se esforçou para que toda a emoção abandonasse seu rosto.

     Que se foda. Se seu pai queria odiá-lo, que o odiasse. Já estava cansado de esconder-se e encolher-se. Golpes e insultos os podia suportar.

     Com as asas do nariz abertas, Acheron encontrou o olhar zangado de seu pai sem estremecer-se.

     —Bom dia Papai.

     Esbofeteou-o tão forte, que Acheron provou o sangue enquanto a dor estalava dentro do crânio. Ofegou, sacudindo a cabeça para clareá-la. Então encontrou o furioso olhar fulminante do Rei.

     —Não sou teu pai.

     Acheron limpou o sangue com a parte posterior da mão.

     —Há algo no qual possa te ajudar?

     —Por favor, pai. —Rogou Ryssa cruzando o quarto. Puxou-o pelo braço antes que pudesse avançar sobre Acheron novamente.

     —Vim a ele a minha chegada. Acheron não fez nada de errado. É minha culpa não a sua.

     O rei elevou um dedo ossudo como gesto de condenação ante Acheron.

     —Permaneça longe de minha filha. Entendeste-me? Se te encontrar perto dela novamente, farei-te desejar não ter nascido.

     Acheron riu amargamente.

     —E como seria isso diferente de um dia normal?

     Ryssa pôs a si mesma frente a seu pai quando se pendurava sobre Acheron.

     —Pare pai. Por favor. Tinha perguntas sobre Apolo. Não deveríamos nos enfocar nisso?

     Ele lançou um olhar superior e condenatório ao Acheron.

     —Não mereces que te dedique meu tempo.

     Com isso, ele arrastou Ryssa fora do aposento.

     —Sela esta porta e a mantenha fechada. O dia de hoje ele pode passar sem comida.

     Acheron se apoiou contra a parede e negou com a cabeça. Se seu pai pretendia controlá-lo com a comida, deveria ter passado mais tempo com Estes. Esse bastardo tinha sabido como manter a comida sobre ele.

     Suas vísceras se apertaram ante a lembrança de seus rogos a Estes inclusive por uma gota de água para minguar sua sede.

     —Não ganhaste nada e nada é o que tens... Agora, te coloque de joelhos e me agrade, então veremos se vales o sal.

     Apertando os olhos para mantê-los fechados fez com que as imagens desaparecessem. Odiava rogar e ajoelhar-se. Mas a única coisa que podia fazê-las desaparecer completamente era a lembrança de uma deusa que o tinha reclamado.

     —Artemisa? —Sussurrou seu nome com medo de que alguém pudesse de fato lhe ouvir chamando-a. Honestamente esperava que o ignorasse como o faziam todos.

    Não o fez.

     Apareceu ante ele. A mandíbula de Acheron se abriu ligeiramente pela surpresa. Seu comprido cabelo vermelho parecia brilhar ante a tênue luz. Seus olhos estavam vibrantes e quentes com bem-vinda. Não havia nada em sua conduta que o condenasse ou burlasse dele.

     —Como te sentes? —Perguntou ela.

     —Melhor contigo ao meu lado.

     Um pequeno sorriso jogou com as bordas de seus lábios.

     —Sério?

     Ele assentiu.

     Seu sorriso se fez mais amplo enquanto se aproximava da cama e engatinhava sobre ele.

     Acheron fechou os olhos enquanto o doce cheiro de sua pele enchia sua cabeça. Queria enterrar o rosto em seu cabelo e só inalá-lo. Desenhando seus lábios, ela retirou seu cabelo do pescoço antes de tocar a pele que tinha mordido.

     —És bastante forte para ser humano.

     —Treinaram-me para ser resistente.

     Ignorando o comentário, ela franziu o cenho.

     —Segues sem me olhar.

     —Te olho Artemisa.

     E o fazia, via cada linha de seu rosto, cada curva de seu luxurioso corpo.

     Ela tomou seu rosto com as mãos e virou sua mandíbula para obrigá-lo a olhá-la de frente. Ainda assim Acheron manteve o olhar sobre os joelhos que apareciam por baixo do vestido.

     —Me olhe.

     Acheron queria correr. Tinha passado sua vida inteira sem olhar diretamente para ninguém exceto nas contadas ocasiões que queria mostrar seu desafio. E por esse momento de atrevimento, tinha sido cruelmente golpeado.

     —Acheron... O-lhe-me.

     Dando força a si mesmo esperando seu ataque, obedeceu-a. Seu coração se apertou assim como todo seu corpo se esticou, esperando ser ferido.

     Artemisa se sentou retirando-se até sua virilha com expressão contente.

     —Aí está. Não foi tão difícil ou sim?

     Mais difícil do que ela poderia imaginar alguma vez, mas a cada segundo que passava e ela não o golpeava por olhá-la, relaxava um pouco mais.

     Ela sorriu.

     —Eu gosto de seus olhos, são estranhos, mas formosos.

     Formosos? Seus olhos? Eram repugnantes. Todos, incluindo Ryssa, estavam temerosos deles.

     —Não te importa que te olhe?

     —Em absoluto. Pelo menos assim sei que estás prestando atenção em mim. Eu não gosto da forma em que seus olhos dançam através do quarto como se estiveras distraído.

     Isso era uma novidade para ele.

     —Como poderia me distrair algo enquanto estás comigo? Asseguro-te que quando estás perto, tudo o que vejo é a ti.

     Ela brilhou em satisfação.

     —Agora por que me chamou?

     —Não estou seguro. Honestamente, não pensei que virias. Só sussurrei teu nome, esperando que responderas.

     —És um humano parvo. Estás novamente encerrado?

     Ele assentiu.

     —Não podemos permiti-lo. Venha.

     As palavras apenas tinham abandonado seus lábios quando já estavam de volta no aposento dela.

     Acheron novamente estava vestido de vermelho, o que era estranho dado que todo o resto era brando ou dourado.

     —Por que sempre me vestes desta cor?

     Ela mordeu o lábio enquanto caminhava em volta dele. Deslizando o dedo por seu corpo.

     —Eu gosto da maneira em que te vês com ele. —parou diante dele para poder ficar nas pontas dos pés e beijá-lo.

     Acheron lhe deu o que queria. Tinha sido treinado para dar prazer a quem estivesse com ele. A não tomar nada para si mesmo. Suas necessidades não tinham importado. Era só uma ferramenta para ser usada e esquecida.

     Mas com a Artemisa não se sentia assim. Assim como Ryssa, ela lhe fazia sentir que era uma pessoa. Que podia ter seus próprios pensamentos e não era errado. Podia olhá-la e ela não o castigaria por isso.

     Artemisa suspirou enquanto Acheron a aproximava mais. Amava a forma em que a sustentava. A maneira em que seus músculos se esticavam contra seu corpo. Era tão bonito e tão forte. Tão sedutor. Tudo o que queria era estar a sós com ele desta maneira. Sentir seu coração pulsar contra os seios.

     Seu fôlego misturado com o seu. Ela podia sentir seus dentes crescendo como se sua fome por ele se incrementasse inclusive mais...

     Ela se retirou e encontrou seu olhar para que o pudesse vê-la tal qual era agora. Ele nem sequer piscou ante suas presas, em seu lugar inclinou a cabeça e a ofereceu o que mais queria. Ninguém nunca se ofereceu assim. Normalmente ela se alimentava de seu irmão ou de uma de suas criadas. Mas não se preocupavam por isso.

     O coração se acelerou, quando ela roçou o pescoço com sua mão enquanto afundava profundamente as presas.

     Acheron ofegou entre dentes quando a dor se estendeu através de seu corpo. Mas foi rapidamente substituído por um prazer tão profundo que fez com que seu pênis se endurecesse. Debilitado por isso ele cambaleou. Artemisa o seguiu, sujeitando-o inclusive mais forte.

     Sua cabeça se afundou enquanto tudo ao seu redor se voltava afiado e claro. Ele sentiu seu fôlego sobre a pele, escutou como o sangue bombeava através das veias. Cada parte dele parecia viva. Tão forte e por vez tão débil. Cambaleou-se novamente, caindo contra a parede atrás dele.

     —Acheron?

     Ele escutava sua voz, mas não podia respondê-la.

     Artemisa lambeu o sangue dos lábios enquanto via a tintura azulada em sua pele. Sua respiração era tão superficial que ela meio esperava que morresse.

     —Acheron?

     Seus olhos estavam meio abertos. Parecia que não havia reconhecimento em seu olhar fixo nela e não a escutava.

     Temerosa de havê-lo ferido, o transportou de volta a sua cama e o recostou gentilmente. Ela tomou sua mão entre as suas e as esfregou.

     —Acheron, por favor, diga algo.

     Ele sussurrou algo em Atlante, mas ela não pôde entendê-lo. Com uma última expulsão de fôlego, desmaiou. Artemisa saltou para trás quando seu corpo inteiro começou a mudar a um vibrante azul enquanto seus lábios, unhas e cabelo ficavam negros. Um instante depois, parecia normal.

     O que no Olimpo? Nunca tinha visto algo assim. Teria sido causado por sua alimentação?

     Tragando, engatinhou mais perto dele e o pressionou com um dedo. Estava completamente inconsciente.

     Fazendo aparecer uma cálida pele, cobriu-o e o observou enquanto respirava fracamente. Enquanto dormia ela riscou a forma de seus lábios, a longitude de seu nariz. Suas formas eram afiladas e perfeitas. Assim como seu corpo. Não entendia porque a atraía tanto. Temerosa de ser dominada tinha pedido ao seu pai quando era uma menina que a fizesse imune ao amor e a desse a virgindade eterna. Zeus a tinha concedido essa petição. Mesmo assim enquanto olhava a Acheron descansando, maravilhava-se ante as emoções que sentia por ele. Não eram parecidas com nada que houvesse sentido antes.

     Desfrutava da forma em que ele falava com ela. A forma em que a sustentava e a fazia gritar de prazer com seus toques e lambidas. Sobretudo, amava seu sabor quando se alimentava dele.

     É só um mascote.

     Sim, isso era. Não tinha nenhum sentimento real por ele. Parecia com os veados que viviam em seu bosque. Formosos para olhar e para tocar. Eles a lambiam e se esfregavam contra ela também. E como eles ela estava segura de que ele a aborreceria com o tempo. Tudo o fazia.

     Mas no momento tinha a intenção de desfrutar de seu mascote todo o tempo que pudesse.

     Acheron despertou com muito apetite. A dor da fome era tão feroz que a princípio pensou que estava de novo no escuro vão sob o palácio de seu pai. Mas enquanto abria os olhos e via o teto dourado sobre ele, recordou que estava com Artemisa.

     Sentou-se lentamente para encontrar a si mesmo só na cama. Ouvia vozes lá fora. Começou a levantar-se e dirigir-se para elas, mas pensou melhor. Artemisa o tinha deixado aí por uma razão. Nada bom viria se abrisse essas portas.

     Então se sentou sobre a cama, o estômago lhe doía enquanto escutava palavras entrecortadas e sem sentido. As vozes se atenuavam através do ouro e da pedra. Não tinha nem idéia da hora que era ou quanto tinha dormido.

     Parecia que tinha passado uma eternidade antes que Artemisa aparecesse por fim. Ela se aproximou e sorriu.

     —Estás acordado.

     Ele assentiu.

     —Não quis te incomodar. Soava ocupada.

     Ela fechou a distância entre eles para tomar sua bochecha.

     —Estás faminto?

     —Esfomeado.

     Ela moveu a mão e uma mesa coberta de comida apareceu junto à cama.

     Acheron ficou estupefato ante o banquete.

     —Se quiseres algo mais, peça-me isso.

     —Não, isto é maravilhoso —se levantou para ir atrás de uma fornada de pão. Os olhos se abriram ante seu sabor, quente e coberto com mel, era o melhor que tinha comido.

     Artemisa lhe aproximou uma taça de vinho.

     —Por Deus, estás faminto.

     Ele tomou a taça agradecido para tomar um profundo gole de seu rico sabor.

     —Obrigado, Artie.

     Ela arqueou uma sobrancelha ante seu inesperado apelido.

     —Artie?

     Acheron se estremeceu enquanto se dava conta de sua enfiada de pés pelas mãos.

     —Artemisa, quis dizer Artemisa.

     Ela o acariciou com o nariz.

     —Penso que eu gosto de Artie. Nunca ninguém me tinha chamado assim antes.

     Acheron baixou a cabeça para beijar sua mão.

     Artemisa não podia respirar enquanto que esse simples toque a eletrificava. O que havia neste homem que acendia seu ser inteiro? Desejava sustentá-lo e protegê-lo. Mais que isso, desejava devorar cada centímetro de seu exuberante corpo.

     Fechando os olhos, reclinou-se contra ele e inalou a essência intoxicante que era todo masculino e todo dele.

     —Coma, Acheron —sussurrou—. Não quero que estejas faminto.

     Ele se afastou e ela sentiu o repentino frio que deixava a ausência de seu calor como um golpe contra seu estômago. Olhou-o enquanto ele umedecia o pão em um pequeno prato de mel antes de dar uma dentada e sorrir, um sorriso tão formoso que fez com que seu coração se estremecesse.

     Voltou a molhar outro pedaço, então se virou para ela.

     —Queres um pouco?

     Ela assentiu, ele o sustentou ante ela para que desse uma dentada. Artemisa abriu a boca. Enquanto colocava o pão em sua língua, ela lambeu seus dedos que eram deliciosos. Doces e salgados, abriram-lhe o apetite por mais.

     Seus olhos se escureceram, causando que uma onda de desejo se iniciasse profundamente dentro dela. Ele afundou o dedo no mel, para desenhar seus lábios antes de aproximá-la e beijá-la. O sabor dele combinado com o mel era mais do que podia suportar.

     Guiando-o para a cama, recostou-se sobre o colchão e puxou sua mão até que ele esteve sobre ela.

     Acheron grunhiu ante a visão de Artemisa debaixo dele.

     —És incrivelmente bela.

     Artemisa não podia articular palavra. Estava completamente cativa pelo olhar de ternura em seu rosto. Ninguém nunca a tinha olhado dessa maneira. E quando colocou seus lábios contra a garganta, todo pensamento racional se perdeu no fogo dentro dela.

     Ela nunca tinha estado completamente nua com ninguém. Mas enquanto ele a despojava de seu traje não protestou. Com uma exasperante lentidão ele deslizou a roupa por seu corpo até que esteve nua ante ele. Ele não fez movimento algum para tirar sua própria roupa.

     Em lugar disso, ele levantou seu pé para mordiscar sua planta do pé. Mordendo o lábio ante a deliciosa tortura, observou-o enquanto subia lentamente por sua perna.

     Ele se deteve para lamber gentilmente a parte interna de sua panturrilha.

     —Queres que me detenha?

     Artemisa negou com a cabeça.

     —Eu gosto de como me tocas.

     Seu olhar a abrasou enquanto que com uma ligeira cotovelada separara um pouco mais suas coxas para tocar a parte dela que mais lhe necessitava. Ela afundou os dedos em seu cabelo e os fechou em punhos.

     Acheron se retirou com um sussurro como se o tivesse machucado.

     Ela franziu o cenho.

     —Há algo de errado?

     —Por favor, não tomes nem puxes meus cabelos. Odeio quando as pessoas fazem isso.

     —Por que?

     —Faz-me sentir como lixo.

     Não havia engano na profunda dor de sua voz.

   —Não o entendo.

     —As pessoas me agarravam pelo cabelo para me controlar ou para me manter aos seus pés. Eles me puxavam o cabelo enquanto me violentavam e me humilhavam. Eu não gosto disso.

     Artemisa acariciou sua bochecha, tratando de consolá-lo.

     —Desculpe Acheron. Não sabia. Há algo mais que tu não gostas?

     Acheron congelou ante a pergunta. Nenhum amante antes lhe tinha perguntado isso. Não podia acreditar ainda que a houvesse dito que não gostava que lhe tocassem o cabelo. Não era algo que normalmente fizesse, mas como ela tinha perguntado se sentia animado a informá-la.

     —Eu não gosto que ninguém respire na parte de trás de meu pescoço. Recorda-me ser um escravo sem vontade e faz com que minha pele se estremeça.

     —Então nunca te farei isso.

     Essas palavras o tocaram tão dentro que trouxeram lágrimas aos olhos. Tragou o vulto da garganta antes que o engasgasse. Não havia nada que ele não fizesse para agradar a sua deusa. Artemisa era toda amabilidade. Não podia imaginar porque ela quereria ser amiga de alguém tão baixo como um ex-escravo, mas estava agradecido de estar com ela.

     Desejando agradá-la, não porque tivesse que fazê-lo e sim só porque o desejava, tomou seu tempo para provocar seu corpo até que ela gritou seu nome. Fiel a sua palavra não lhe agarrou pelo cabelo enquanto gozava. Simplesmente afundou suas unhas nos ombros.

     Agradecido de que tivesse mantido sua palavra, ele engatinhou sobre seu corpo e a atraiu contra seus braços.

     Artemisa suspirou enquanto descansava contra ele. Acheron ainda estava totalmente vestido.

     —Por que não tomas nada para ti mesmo?

     —Realmente não encontro prazer no sexo.

     Ela franziu o cenho.

     —Como é possível que não o desfrutes?

     Não podia sequer começar a lhe explicar que nada sobre o sexo o fazia sentir bem. Gostava de tocá-la, mas não tinha a mesma reação ao seu toque que ela tinha com o seu. Os orgasmos eram prazenteiros, sem dúvida. Só que não lhe importavam se tinha ou não um.

     —Desfruto-o.

     Mentiu ele. Faria bem a ela escutar isso. Manteria a verdade dentro dele. Honestamente amava estar com ela. Quando estavam juntos se sentia como um homem sem passado. Via a si mesmo como seu amigo e se gostava a uma deusa, não poderia ser tão repugnante como seu irmão e seu pai lhe faziam acreditar.

     Ela se esfregou contra seu corpo.

     Acheron fechou os olhos e saboreou a sensação de seu quente corpo contra o seu.

     —Desejaria poder ficar aqui para sempre.

     —Se fosses mulher poderias, mas só meu irmão tem permissão de entrar em meu templo. Nenhum outro homem.

     —Mas estou aqui agora.

     —Eu sei, e é nosso segredo. Não podes dizer a ninguém.

     —Não o farei.

     Ela se elevou para lhe dirigir um olhar de advertência.

     —A sério Acheron. Nem sequer em seus sonhos poderás sussurrar uma palavra a respeito de mim.

     —Me acredite Artie, manter secretos é uma das coisas que aprendi rapidamente em minha vida. Sei quando manter minha boca fechada. Além disso, ninguém realmente me fala de todas as maneiras.

     —Bem, agora é tempo de que retornes a sua casa.

     Em um minuto estava em seu templo junto a ela, ao seguinte estava em sua cama nu de novo. Precaveu-se muito tarde que não tinha comido nada realmente. Demônios, estava escuro lá fora. Tinha perdido a maior parte do dia. Enquanto que seu pai não tivesse mandado guardas para golpeá-lo ninguém saberia de sua visita ao Olimpo.

     Suspirando Acheron colocou um braço sobre os olhos. Talvez pudesse dormir até que Artemisa viesse atrás dele de novo.

     Mas inclusive enquanto o pensamento aparecia em sua cabeça soube que não poderia durar. Um puto não poderia ser amigo de uma deusa. Era impossível. Cedo ou tarde Artemisa seria como qualquer outro.

     Mesmo assim profundamente em seu coração havia um pouco de esperança de que talvez, só talvez, Artemisa devido a seu status de deus fora diferente.

     —Venderia minha alma para te manter e te proteger Artie —sussurrou, perguntando-se se poderia escutá-lo. Se tão só o também tivesse nascido dos deuses.

     Ele negou com a cabeça ante a dura realidade que conhecia muito bem.

     —E se os desejos fossem cavalos, poderia ter fugido na infância.

     Não, isto era tudo o que poderia ter. Tudo o que podia fazer era assegurar-se de que ninguém soubesse a verdade. Que os deuses lhe ajudassem se alguém alguma vez o fazia.

 

12 de Janeiro, 9528 a.C.

     Acheron se sentou na sacada de seu parapeito, sentindo saudades de Artemisa. Estava fora atendendo um festival que se dava em sua honra e queria espiar as pessoas em pessoa. Era estranha e gostava de ver como o povo a adorava enquanto fingia ser uma mortal.

     Encontrava-o estranhamente encantador e tinha que admitir que estas últimas semanas tinham sido as melhores de sua vida.

     Artemisa era a única pessoa que lhe permitia ser ele mesmo. Se não gostava de algo, podia dizer-lhe e ela lhe prometia que não aconteceria de novo.

     Nunca tinha quebrado sua palavra. Isso mais que qualquer coisa era um sonho feito realidade. E como passavam tanto tempo juntos e Acheron não causava problemas ou escapava de seus guardas, seu pai o deixava tranqüilo. Não podia recordar um momento, exceto pelos meses com Ryssa, em que tivesse passado tanto tempo sem que o golpeassem ou abatessem.

     O indulto era divino.

     Repentinamente as portas de seu quarto se abriram.

     As vísceras dele se esticaram. Temeroso de que fora seu pai vindo atrás dele, agarrou a pedra que tinha debaixo.

     Não era ele. Ryssa avançou com passos largos dentro do quarto com o sorriso mais brilhante que tinha visto em seu rosto.

     —Bom dia, irmãozinho.

     —Bom dia —saudou vacilante, admirando-se por seu humor e do fato de que tivesse deixado as portas abertas—. Acontece algo errado?

     Talvez seu pai finalmente tinha morrido. Era o melhor que podia esperar. Detendo-se frente a ele, tirou uma pequena bolsa que trazia atrás de suas costas e o entregou.

     —És livre.

     Seu pai devia estar morto.

     Acheron balançou as pernas para baixo.

     —O que queres dizer?

     —Descobri um dos benefícios de dormir com Apolo. Papai agora me escuta. Seus guardas se foram e terá um estipêndio mensal para que o gastes como desejes —pôs a bolsa em suas mãos—. Também procurei te reservar um espaço no estádio para qualquer obra. Ninguém se não tu será permitido sentar-se ali. Jamais.

     Não podia acreditar no que estava escutando.

     —Quais são as condições?

     Seu sorriso desapareceu enquanto mostrava os dentes com irritação.

     —Típico comentário de Papai. Não te está permitido envergonhar a ele ou à família. Não sei explicá-lo, mas enquanto não te mistures com ninguém acredito que estarás bem.

     Acheron se mofou ante a idéia.

     —Não tenho intenções de me misturar com ninguém.

     Ao menos não publicamente. Cansou-se disso há muito tempo. Não gostava de ser um espetáculo.

     Ela se aproximou.

     —Te gostaria de ir a uma obra comigo?

     —O que acontece com Apolo?

     —Está fora com sua irmã. Tenho quase todo o dia para mim —lhe estendeu a mão—. O que dizes, irmãozinho? Celebramos tua liberdade?

     Acheron lhe ofereceu um sorriso real, algo que nunca fazia.

     —Obrigado, Ryssa. Não sabes o que isto significa para mim.

     —Acredito que tenho uma idéia.

     Acheron foi recolher seu manto debaixo do colchão… e os sapatos que Artemisa lhe tinha dado. Sustentou os sapatos por um momento, sentindo saudades da deusa ainda mais que antes.

     Como desejaria celebrá-lo com ela, mas teria que esperar.

     Depois de vestir-se rapidamente, seguiu Ryssa fora do quarto. No corredor, vacilou enquanto olhava ao redor das brilhantes paredes. Com exceção do dia do oferecimento de Ryssa a Apolo, jamais tinha deixado seu quarto saindo pelas portas sem ter tido que subornar aos guardas com sexo.

     O grau em que sua vida tinha mudado o golpeou com força. Já não era um escravo. Já não era um prisioneiro. Era livre agora.

     Acheron levantou a cabeça orgulhosamente com o conhecimento de que tinha dinheiro e não tinha tido que foder com ninguém para consegui-lo. Mais que isso, tinha uma amiga e amante que o tratava como se importasse.

     Pela primeira vez em sua vida, sentiu-se como um ser humano e não como uma posse ou um objeto. Era um sentimento condenadamente bom e não queria que acabasse.

     Ryssa tomou sua mão entre as suas e o levou através dos corredores para fora pela porta da frente, como se não estivesse envergonhada nem o mínimo de que a vissem em sua companhia. Mas à medida que se moviam entre as pessoas, Acheron se deu conta que uma coisa não tinha mudado.

     As reações das outras pessoas para com sua beleza. Atirou o capuz sobre o rosto e manteve os olhos no chão aos pés de Ryssa. Tinha passado tanto tempo com Artemisa ultimamente que se esqueceu deles e da grande repulsão que lhe causavam.

     Enquanto caminhavam cruzando a praça do povoado, fez uma pausa. Havia um grupo de meninos com um professor detidos em frente do templo. Um menino por volta dos sete anos estava lendo o texto que estava escrito aos pés do deus.

     —Em todas as coisas moderação. A chave do futuro é entender o passado.

     —Acheron?

     Pestanejou ante a voz de Ryssa e virou para olhá-la, observando-a com o cenho franzido.

     —Todos os meninos sabem ler?

     Jogou uma olhada aos estudantes.

     —Nem todos. São filhos de senadores. Vêm aqui para aprender sobre o panteão e ver como os sacerdotes servem aos deuses enquanto seus pais elaboram as leis que governam ao povo.

     Acheron se fixou nas palavras que não tinham nenhum significado para ele. Estava muito envergonhado de admitir ante a Ryssa que não recordava quase nada de suas lições com Maia.

     —Todos os nobres podem ler, não é verdade?

     Ela puxou sua mão sem lhe responder.

     —Vamos chegar tarde à obra.

     Acheron deu a volta e a seguiu.

     —Soubeste algo de Maia?

     Ryssa sorriu.

     —Casou-se o ano passado e está esperando a seu primeiro filho.

     As notícias o impactaram. Não gostava da idéia de um homem machucando a menina a qual tinha tido tanto carinho. Esperava que quem quer que se casou com ela a tratasse com o respeito que merecia.

     —Não é muito jovem para isso?

     —Não realmente. A grande maioria das meninas se casa a essa idade. Eu fui uma rara exceção, mas Papai rechaçou a todos os pretendentes que pediram minha mão.

     —Por que?

     —Honestamente, não sei. Nunca me explicaria isso. Suponho que devo estar agradecida com Apolo. Se não fora por ele, estou segura que estaria vivendo minha vida como uma solteirona.

     Poderia pensar em algumas coisas piores que essa. Mas sua irmã estava se permitindo suas ilusões supôs.

     —Faz-te Apolo feliz agora?

     —É gentil a maior parte do tempo.

     Havia uma tristeza em seus azuis olhos que desmentia suas palavras.

     —Mas?

     Tocou seu pescoço com um nervoso gesto que o fez franzir o cenho com indulgência.

     —Não me permitem falar do que fazemos quando estamos juntos.

     Assim Apolo se alimentava dela da mesma maneira em que Artemisa bebia dele. Fez-lhe se perguntar se todos os deuses faziam isso ou era algo único entre Artemisa e Apolo.

     —Mereces ser feliz, Ryssa. Mais que ninguém que conheço.

     Ela sorriu-lhe.

     —Não é verdade. És tu quem merece felicidade. Poderia estrangular a Papai por sua cegueira.

   —Já não me importa muito —disse honestamente—. Prefiro ser ignorado do que maltratado.

     Ela sacudiu a cabeça antes de evitar a multidão para lhe mostrar onde o proprietário tinha feito uma entrada especial para os assentos reais reservados para eles.

     Acheron vacilou. Estavam separados da multidão por um cordão e cada um dos dez assentos estava coberto com uma almofada. Mas o que não gostou era do fato de que a área se destacava e os outros seguiam lhes jogando uma olhada. Odiava que as pessoas enfocassem sua atenção nele.

     Mas não queria insultar o presente de Ryssa. Puxando seu manto, seguiu-a até os assentos.

     Nenhum falou enquanto os atores saíam a atuar. Acheron os observava e pensava nos meninos que tinha visto em seu caminho até aí. Queria ler da maneira em que eles o faziam. Artemisa merecia um consorte que fora educado.

     Talvez se pudesse ler, não teria que esconder sua amizade…

     Artemisa sentiu a presença de seu irmão como um toque físico. Como gêmeos, ambos compartilhavam um laço especial.

     E um ódio especial.

     Não sabia quando se converteram em inimigos amistosos, mas era um fato real. Embora não havia nada que não fizessem um pelo outro, apenas podiam suportar-se estando na mesma habitação.

     Deixando o ódio a um lado, não podia negar que Apolo era um dos deuses mais belos. Seu brilhante cabelo loiro era curto e as magras linhas de seu rosto faziam destacar sua pequena barba. Seus olhos azuis exalavam um inteligente poder e um rastro de crueldade.

     Arqueou-lhe uma sobrancelha.

     —Estou surpreso de ver-te por aqui.

     —Poderia dizer o mesmo de ti. Já era hora de que saísse da cama de sua mascote humana. Estava começando a pensar que era ela a que controlava a ti.

     Seu olhar se voltou ártico.

     —E o que é que manteve a ti ocupada? Papai disse que não estiveste nos salões Olímpicos há semanas.

     Ela deu de ombros.

     —É aborrecido.

     —Isso nunca te deteve antes.

     Pôs os olhos em branco a ele.

     —Importa-te? Estou tratando de ver como me adoram os humanos.

     Antes que pudesse afastar-se, Apolo a agarrou pelo braço e a aproximou dele para assim lhe sussurrar ao ouvido.

     —Não vieste a te alimentar a algum tempo. De quem estiveste tomando teu sustento?

     —O que te importa?

     Ele aferrou seu pescoço enquanto seus dentes caninos se alargavam.

     —É só por um tempo que podes te alimentar de um humano antes que sintas fome de algo um pouco mais substancial.

     Baixou a cabeça para seu pescoço.

   Artemisa se afastou dele.

     —Não estou interessada.

     Os olhos de Apolo flamejaram de vermelho.

     —Recorda o que aconteceu ao último homem com o qual te divertiste?

     Abateu-se ante o aviso. Orión. Artemisa tinha tido ao homem, mas antes que pudesse aproximar-se dele, Apolo a tinha enganado ciumentamente para que o matasse com uma de suas flechas. Depois seu irmão tinha posto sua imagem nas estrelas para que sempre recordasse que Apolo era o único homem do qual podia se alimentar.

     —Não me diverti com Orión.

     Forçou-a a enfrentá-lo.

     —Precisas te alimentar.

     Sim, mas não queria se alimentar de seu irmão. Queria a Acheron.

     Apolo a arrastou para as sombras do templo enquanto os humanos se reuniam fora para lhe render tributo. Não queria segui-lo. Mas se não o fazia, saberia que estava com alguém e que Zeus ajudasse a Acheron então. Seu irmão o destroçaria.

     Seu coração sofreu, tratou de não se abater enquanto seu irmão a atraía e lhe oferecia o pescoço. Ela tomou e em sua mente simulou que era Acheron. Ainda assim, pôde saborear a diferença entre os dois. O sangue de Apolo carecia de espírito. Não havia uma carreira desbocada dentro dela enquanto o provava. Nenhum fogo que a fizesse querer sustentá-lo.

     Isto era só sangue.

     Quando tomou o suficiente para aplacá-lo, retirou-se e lambeu os lábios.

     Então Apolo a atacou. Seus dentes rasgaram através dos tendões de seu pescoço, deixando-o palpitando. Queria esbofeteá-lo e muitas vezes no passado o tinha feito. Condenada Hera por sua maldição. A cadela ciumenta tinha querido assassinar a ambos durante seu nascimento e porque Artemisa tinha ajudado a sua mãe a dar a luz a Apolo, esse tinha sido seu castigo. Não havia nada pior que ter que alimentar a sua própria espécie. Era uma lição que ela e Apolo conheceriam pelo resto de suas vidas.

     Sua cabeça se aliviou, tratou de pensar claramente. Apolo estava tomando muito sangue. Era algo que sempre fazia quando estava zangado com ela.

     Apertando os dentes, deu-lhe uma joelhada na virilha. Apolo a soltou com uma maldição, lhe rasgando o pescoço. Sua maldição se uniu a dele enquanto cobria a profunda ferida com a mão.

     —És um bastardo!

     Ele aferrou seu antebraço, queimando-a com seu puxão.

     —Recorda o que te hei dito. Encontro-te com um homem mortal e o matarei.

     Artemisa lhe arrebatou seu braço.

     —Vá jogar com seus humanos e me deixe em paz.

     Com sua sorte estar pelo festival completamente machucada, transportou-se de volta ao seu templo. Mas estava tudo tão solitário. Seus koris se foram ao dia.

     Olhou para sua cama e imaginou a sombra de Acheron aí, seu sorriso esquentando-a enquanto a agradava com seus beijos e gentis carícias.

     Necessitando-o desesperadamente, transportou-se ao seu quarto. No instante em que o viu sentado com as pernas cruzadas no piso com suas costas para ela, seu coração se iluminou. Sem nenhum pensamento ou vacilação, correu para ele e o abraçou.

     Acheron se assustou quando Artemisa se atirou sobre suas costas e o envolveu com seus braços fortemente. Ainda assim, seu cheiro o encheu.

     —Senti saudades hoje —ele sussurrou em seu ouvido, lhe enviando calafrios por todo o corpo.

     —Também senti saudades.

     Seu abraço se apertou antes de soltá-lo e posar seu queixo em seu ombro.

     —O que estás fazendo?

     Acheron agarrou o pergaminho do piso e o dobrou para que não pudesse ver o que era.

     —Nada.

     —Estavas fazendo algo… — tomou o pergaminho antes que pudesse detê-la e o abriu. Franziu o cenho ante suas infantis marcas—. O que é isto?

     Sentiu o calor que fez arder seu rosto por ter sido apanhado.

     —Estava tratando de me ensinar a escrever.

     —Por que?

   —Porque não sei como e desejo aprender.

     Ela baixou o pergaminho e o olhou com incredulidade.

     —Não sabes ler?

     Acheron deixou cair a cabeça enquanto a vergonha o atravessava.

     —Não.

     Artemisa levantou seu queixo com uma gentil carícia para enlaçar seu olhar com a seu.

     —Agora já podes.

     Acheron ofegou quando uma dor insignificante o percorreu. Entregou-lhe o pergaminho.

     —Escreva seu nome.

     Assombrado pelo que acabava de lhe passar, Acheron tomou a pluma e soube como escrever as letras. Escreveu seu nome sem falhas.

     —Não entendo.

     —Sou uma deusa, Acheron. E não quero que baixes a cabeça com vergonha. Agrada-te?

     —Mais que tudo.

     Seu sorriso o deslumbrou.

     —Vem comigo. Estou de humor para caçar.

     —Não sei como caçar.

     —Saberás.

     Fiel a suas palavras, tão logo estiveram no bosque, entregou-lhe um arco e uma flecha e tal como com a escritura, soube exatamente o que fazer.

     Que maravilhoso ser capaz de fazer algo sem todos os anos de aprendizagem. Mas em realidade, havia algo que desejava mais que saber escrever ou caçar.

     —Podes me ensinar a brigar?

     Artemisa se voltou para ele com uma expressão atordoada.

     —O que?

     —Quero saber como lutar.

     Franziu o cenho, então perguntou o único que não falhava em pronunciar.

     —Por que?

     —Estou cansado de ser golpeado. Quero saber como me defender.

     Artemisa estava assombrada por seu pedido. Uma imagem de Apolo golpeando-o atravessou sua cabeça tão bruscamente que se estremeceu. Como a maioria dos homens, sabia que Apolo era um bastardo controlador. A última coisa que queria era mostrar-se vulnerável ante Acheron. Ensinar a um homem a brigar não podia conduzir a nada bom.

     —Não acredito. Não deixarei que ninguém te machuque, Acheron. Sou toda a proteção que necessitas.

     —Que tal se te aborreces de mim?

     Colheu sua bochecha em sua mão.

     —Como poderia alguma vez me aborrecer de ti?

     Acheron lhe ofereceu um sorriso que não chegou a seus olhos.

     —Realmente desejaria que me ensinaras.

     Sua insistência fez estalar seu temperamento.

     —Já te hei dito que não —lhe espetou.

     Acheron se deteve ante a hostilidade de seu tom. Conhecia a ira e de onde se derivava.

     —Quem te bateu?

     Artemisa levantou seu arco.

     —Acredito que há um veado por este caminho.

     —Artie… —a agarrou para detê-la—. Conheço o som em tua voz. Tive-o muito na minha para não reconhecer o que significa. Quem te machucou?

     Vacilou por tanto tempo que duvidou que lhe respondesse, mas quando o fez seu tom era tão baixo que quase nem pôde escutá-la.

     —Outros deuses.

     Impactou-lhe a confissão.

     —Por que?

     —Por que se bate em alguém? —Seus olhos estavam furiosos de novo—. Faz com que se sintam mais poderosos. Não deixarei que me golpeies. Jamais.

     —Nunca o faria —disse, com a voz cheia de convicção—. Não poderia fazer a outro mais do que me têm feito para cortar meu coração. Só desejo me proteger.

     —E já lhe disse isso. Te protegerei.

     Acariciou seu braço antes de deixar cair a mão e dar um passo atrás.

     —Então deverei confiar em ti, Artie. Mas quero que saibas que não confio facilmente. Por favor, não sejas como todos os demais e rompas tua palavra. Detesto que mintam para mim.

     Beijou-o brandamente na bochecha.

     —Vamos caçar.

     Acheron assentiu antes de tomar uma nova flecha e aplacar à única amiga real que tinha tido. Ela não o evitava e ele não tratava de ocultar-se. O que o atemorizava, entretanto, eram os sentimentos que o embargavam quando não estava perto.

     Estava apaixonado por uma deusa e sabia quão estúpido era. Deixando de lado de todas as coisas que podia ser, nunca tinha sido um parvo.

     Até agora.

     O fazia sentir completo. Feliz. E não queria que essa sensação se fora.

     Afastando longe esse pensamento, tomou ar ante a presa. Enquanto suspirava, ela correu para ele e lhe fez cócegas. A flecha voou fora de sua marca, cravando-se em uma árvore perturbando a um esquilo que de verdade lhe arrojou uma noz.

     Acheron riu antes de estreitar seu olhar nela. Arrojou seu arco a um lado e a espreitou.

     —Arruinaste meu tiro perfeito. Vais pagar por isso.

    Artemisa soltou seu arco antes de escapar.

     Correu atrás dela enquanto tratava de desaparecer entre as árvores. Sua risada o divertiu fazendo-o rir mais. Apanhou-a pela direita quando alcançava o riacho.

     Envolvendo-a com seus braços em sua cintura, balançou-a ao redor.

     Artemisa não pôde respirar quando o peso dele a impactou. A visão de seu sorriso, a luz nesses mágicos olhos…

     A fez querer gritar de êxtase.

     A fez girar enquanto os pássaros cantavam uma melodia especial para eles. Estava perdida nesse espaço e tempo com ele. Isto era o que sempre tinha querido. O que sempre tinha necessitado.

     A Acheron não importavam seus caprichos ou seu mau humor. Tampouco o estremecimento de que se alimentasse dele. A aceitava como era e o agüentava apesar de tudo.

     Quis perder-se nesse momento e com ele para toda a eternidade.

     —Faça amor comigo, Acheron.

     Acheron se congelou com suas palavras enquanto seu rosto empalidecia.

     —O que? —Deixou-a de novo no chão.

     Afastou o formoso cabelo de sua cara.

     —Quero te conhecer como uma mulher. Quero te sentir dentro de mim.

     Soltou-a e deu um passo para trás, sua expressão era reservada.

     —Não acredito.

     —Por que não?

     Tragou e viu o medo nesses chapeados olhos.

     —Não quero que nada mude entre nós. Eu gosto de ser teu amigo, Artie.

     —Mas já me há tocado em lugares como ninguém tem feito. Por que não querias estar dentro de mim?

     —És virgem.

     —Só um pequeno termo técnico. Por favor, Acheron. Quero me compartilhar contigo.

     Acheron olhou longe enquanto as emoções ardiam em seu interior. O que lhe oferecia era inimaginável. Entretanto, tinha tido numerosas princesas e nobres que tinham chegado a ele para que preparasse seus corpos com gentileza para a cópula com outros homens.

     Parthenopaeus… o que perfura a virgindade. Assim era como Estes e Catera tinham oferecido seus serviços a suas clientes femininas. A reputação de Acheron por sua suavidade tinha sido legendária. O feito de que estivesse extremamente bem dotado e ainda assim fora cuidadoso não o tinha prejudicado tampouco.

     Agora uma deusa se oferecia a ele. Qualquer outro homem saltaria diante da oportunidade. Para o que importava, qualquer outro homem já estaria nu.

     Mas diferente do resto, entendia as complexidades físicas da intimidade. Ainda quando tinham pedido e pago por isso, havia mulheres que choravam pela perda de sua inocência. Outras a amaldiçoavam e a elas mesmas. Algumas se tornavam violentas ante a perda. E um pequeno punhado se regozijava.

     O problema era que não sabia de quais era Artemisa.

     —Não quero te machucar.

     Caminhou até seus braços.

     —Por favor, Acheron. Quero te sentir dentro de mim quando me alimentar de ti.

     —Realmente não acredito que devas.

     Seus olhos caíram com fúria sobre ele.

     —Bem. Vai então. Fora de minha vista.

     —Artie…

     Era muito tarde. Estava de volta em seu quarto. Só.

     —Desculpe —sussurrou, com a esperança de que o escutasse.

     Se o ouviu, não lhe deu nenhuma pista disso.

     Devias ter te deitado com ela. Era realmente importante? Deitou-se com todos outros. Mas os outros tinham sido só corpos para que ele os agradasse. Artemisa era diferente.

     A amava.

     Não, não era tão simples como isso. O que sentia por ela... desafiava ao amor. Necessitava-a de uma forma que não acreditava possível e agora a tinha zangado.

     Com seu coração pesaroso, só esperava encontrar uma forma de reconquistá-la e fazer que o perdoasse.

 

26 de Janeiro, 9528 a.C.

     Tinham passado duas semanas desde a última vez que Acheron tinha visto a Artemisa e cada dia que passava, desanimava-se ainda mais. Ela se negava a responder suas chamadas.

     Nem sequer se incomodava em ir aos jogos. Nada podia aliviar a dor que havia em seu interior por querer estar com ela. Tudo o que queria era vê-la outra vez.

     Jogando a cabeça para trás, engoliu o último gole de vinho da garrafa da qual tinha estado bebendo. Furioso e ferido, lançou-a sobre o parapeito para deixar que se estrelasse contra as rochas debaixo. Alcançou uma nova garrafa e tentou tirar a cortiça. Estava muito bêbado para obtê-lo.

     —Acheron?

     Ficou imóvel ante o som da única voz que tinha estado rogando ouvir.

     —Artie? —Tentou ficar em pé, mas em vez disso caiu de traseiro ao chão. Elevando o olhar, viu-a nas sombras de seu aposento.

     Ela deu um passo adiante com a cara pálida e contraída. O olho esquerdo estava inchado e tinha uma tênue marca avermelhada com o rastro da mão de alguém.

     A raiva obscureceu seu olhar.

     —Quem te bateu?!

     Artemisa retrocedeu, temerosa do homem ante ela. Nunca tinha visto Acheron bêbado, mas cada vez que tinha visto Apolo nesse estado, ele se voltava violento.

     —Eu retornarei…

     —Não —ofegou ele, a voz era um rouco suspiro—, Por favor, não te vás.

     Ele lhe estendeu a mão.

     Seu primeiro instinto foi fugir, tragou saliva e se recordou a si mesma que era uma deusa. Ele era um humano e não podia feri-la de maneira nenhuma. As pernas a tremiam ligeiramente, estirou-se lentamente e tomou sua mão nas suas.

     Acheron a levou a bochecha e fechou os olhos como se estivesse contente de morrer agora, como se tocá-la fora o prazer maior que pudesse imaginar. Enterrou o rosto contra sua pele e inalou profundamente.

     —Senti tantas saudades de ti…

     Também tinha sentido saudades dele. Todos os dias jurava que não ia lhe ver, mas hoje…

     Depois do ataque de Apolo, necessitava que a abraçasse alguém que soubesse que não ia feri-la.

     —Tens um aspecto horrível —disse ela, franzindo o cenho ante a grossa e espessa barba que tinha crescido sobre o rosto—. E cheiras mal.

     Ele riu ante suas críticas.

     —É culpa tua que me veja assim.

     —E isso por que?

     —Pensei que te tinha perdido.

     Essas angustiosas palavras a tocaram tão profundamente que trouxeram lágrimas aos olhos. Caindo de joelhos, sacudiu a cabeça ante ele.

     Antes que pudesse falar, lhe sussurrou ao ouvido:

     —Te amo, Artie.

     A respiração ficou entupida na garganta.

     —O que hás dito?

     —Te amo. —inclinou-se contra ela e lhe passou o braço ao redor do pescoço antes de desabar e desmaiar.

     Artemisa se sentou ali, lhe sustentando enquanto suas palavras ressonavam até o fundo de sua alma. Acheron a amava…

     Baixou o olhar ao rosto que ainda era incrivelmente bonito apesar do estado desarrumado. Amava-a. Isso acabou por fazê-la chorar de uma maneira em que não tinha chorado desde que era uma menina. E odiou o fato de que ele pudesse fazê-la sentir assim. Odiou o fato de que aquelas palavras significassem tanto para ela quando não deveriam significar nada absolutamente.

     Mas a verdade era a verdade e não podia negá-la.

     —Eu também te amo —sussurrou sabendo que nunca poderia dizer-lhe se estava acordado. Isso daria a ele, um mortal, muito poder sobre ela.

     Mas nesse momento, podia lhe dizer a verdade que queria negar com cada parte de si mesma. Como podia uma deusa estar apaixonada por um homem? Especialmente ela? Supunha-se que era imune a isso. Mas alguma coisa neste mortal tinha entrado em sua alma.

     Se tão somente fora um deus…

     Não o era e não era possível que fosse. Era humano e não qualquer humano. Era um escravo. Um puto que tinha sido brutalmente usado por todos ao seu redor. Burlaram dele e burlariam dela por estar com ele. Contraiu o rosto diante da verdade. Tinha tido muitos problemas com sua credibilidade no que concernia aos outros deuses. Se se inteirassem disto, tirar-lhe-iam seus poderes e a desterrariam ao mundo humano.

     Não podia permiti-lo.

     Nem sequer por Acheron. Isto era mais do que podia dar. Mais do que podia suportar. Tinha visto quão cruéis eram os humanos uns com os outros. A última coisa que queria era estar desprotegida nesse mundo a mercê de pessoas que não tinham coração. Só tinha que ver o que tinham feito a Acheron. Ele nem sequer podia caminhar em público sem que alguém o ferisse.

   Imaginava o que a fariam se descobrissem que tinha sido uma deusa…

     Destroçariam-na.

     Soluçando, aproximou-o dela e o levou desse estúpido e mesquinho mundo.

     Em sua própria cama, passou a mão sobre ele e o asseou de modo que parecesse igual ao Acheron que ela amava. Seu cabelo estava suave e limpo, suas bochechas lisas e suaves enquanto jazia nu sobre o colchão de plumas. Cada músculo de seu corpo estava fortemente esculpido.

     As linhas de seu abdômen…

     Como podia alguma mulher não amar um rosto e um corpo tão perfeitos?

     Querendo estar tão perto dele como fosse possível, tirou a roupa e depois se estendeu na cama ao seu lado. Fez aparecer um lençol para cobri-los enquanto se aconchegava perto e escutava sua respiração.

     Enquanto ele dormia, ela passou a mão sobre os músculos que cobriam seu peito. Seu corpo era perfeito. Magro e adequadamente musculoso, parecia poderoso incluso estando inconsciente. O calor a percorreu enquanto lhe acariciava o mamilo. Este se enrugou em resposta ante o toque, fazendo-a sorrir.

     E se perguntou se saberia como... Acheron sempre a saboreava, mas ela nunca tinha feito a ele. Era tímida com respeito ao seu corpo. Mas com ele desta maneira, encorajou-se.

     Afundando a cabeça, levou a língua sobre a ponta tensa. Hmmm, ele saboreava realmente bem. Sua pele era salgada e cheirava completamente a Acheron. Doía-lhe o corpo, moveu-se devagar sobre seu peito, provando cada centímetro deste.

     Não foi até que alcançou o estômago que ela se retirou. Ele tinha todo o torso sem pêlo exceto por um pequeno lance de cabelo que ia desde seu umbigo para baixo até a zona mais espessa no centro de seu corpo. Ela sepultou a mão ali, permitindo que o pêlo áspero passasse através dos dedos. Diferente dos cabelos de sua cabeça, estes eram frisados e quando passou a mão por eles, seu pênis começou a endurecer-se.

     Artemisa o tocou com cautela. Estava fascinada com a parte dele que era tão diferente de seu próprio corpo. A princípio foi capaz de movê-lo a vontade, mas em pouco tempo esteve tão duro e rígido que tudo o que pôde fazer foi baixar a mão por sua longitude e fazer com que o pênis dançasse em resposta ao seu toque.

     Que estranho...

     Igualmente estranha era a umidade que gotejava da ponta. Jogou uma olhada para cima para assegurar-se de que ele ainda estava inconsciente. Confiante, mordeu o lábio, logo lentamente avançou aproximando-se mais. O coração a golpeava com temor e curiosidade, baixou a cabeça para prová-lo.

     Artemisa gemeu profundamente em sua garganta. Não havia nada atemorizante a respeito disto. Em realidade, nada atemorizante a respeito de Acheron nem o mínimo. Sorrindo, retirou-se para lhe colher na mão.

     Ele seguia dormido, inconsciente do fato de que o estava explorando.

     Ela se ergueu subindo por seu corpo para beijar aqueles lábios que a tinham açoitado estes últimos dias em seus sonhos. Não podia suportá-lo mais…

     —Acorda para mim, Acheron.

     Acheron estava aturdido enquanto tratava de enfocar seus pensamentos. Mas tudo o que ele podia ver era Artemisa. Estava inclinada sobre ele com seus verdes olhos lhe abrasando com seu calor.

     —Me roubas o fôlego —sussurrou ele.

     Ela sorriu muito docemente antes de lhe mordiscar o queixo com os dentes.

     Ele já estava duro e enfermo devido à exploração dela. Era isto um sonho? Tinha tal confusão mental que não o podia assegurar. Havia como uma neblina sobre tudo.

     —Me mostre teu amor —sussurrou ela em seu ouvido.

     Queria e com ela sobre ele dessa maneira não podia lembrar-se de suas objeções para fazê-lo. Girou o rosto para o seu e a beijou profundamente. Ele nunca tinha querido fazer amor com ninguém antes, mas agora mesmo queria estar dentro dela com uma loucura tão inesperada que o rasgou e o deixou sem forças.

     Com a cabeça lhe dando voltas, rodou sobre ela e baixou a cabeça para excitar seu seio direito.

     Artemisa ofegou ante a sensação da língua acariciando-a. O estômago se contraía bruscamente com cada deliciosa lambida. E para seu assombro, de fato gozou por isso.

     Ofegando, agarrou-lhe a cabeça e tremeu enquanto onda pós onda de prazer varriam por ela. Não tinha tido nem idéia de que ele pudesse fazer isto.

     Ele grunhiu inesperadamente, antes de começar a descer por seu corpo. Separou de uma cotovelada suas coxas para contemplá-la, com uma fome tão crua que a provocou um calafrio.

     —Me toque, Acheron. Mostre-me o que podes fazer.

     Ele a percorreu com um comprido dedo, fazendo-a estremecer-se em resposta. Um instante mais tarde enterrou a boca contra ela. Ela lançou um grito quando sua língua a atormentou. Era insuportavelmente prazeroso.

     E ela quis mais.

     Pela primeira vez, ele deslizou um dedo dentro dela enquanto a saboreava. A intrusão era surpreendente ao mesmo tempo incrivelmente prazerosa. Quando ele deslizou outro dedo dentro, ela se esticou.

     —O que fazes?

     Ele encontrou seu olhar antes de atirá-la outra deliciosa lambida.

     —Procuro que seu corpo esteja preparado para mim de modo que não te faça mal quando entre em ti. —retirou-se. —Mudaste que opinião?

     Ela sacudiu a cabeça.

     —Desejo-te, Acheron.

     Beijou-a a sua maneira, subindo devagar por seu corpo enquanto seguia excitando-a com a mão.

     Artemisa se aferrou a ele enquanto outro orgasmo se derramava por ela. No momento em que este começou, Acheron se deslizou profundamente dentro de seu corpo. Moveu-se tão rapidamente e com tanta suavidade que em vez de fazê-la dano, isto aumentou seu orgasmo a um nível cegante.

     Sua cabeça se esfregou daqui para lá no travesseiro enquanto tratava de encontrar sentido a isto. Mas não havia nenhum sentido nisso. E quando Acheron começou a empurrar devagar e profundamente contra ela, gemeu extasiada.

     Acheron se perdeu nos suspiros complacentes que Artemisa fazia, o que emparelhou seus golpes. Ela o sujeitava de um modo como ninguém jamais o tinha feito antes...

     Como se ele significasse algo para ela.

     As lágrimas ferroavam por trás dos olhos enquanto se impulsionava ainda mais profundo nela. Já não estava ébrio, estava em glória. Tudo o que podia ver era seu belo rosto.

     Os olhos dela se escureceram um instante antes que lhe afastasse o cabelo do pescoço e afundasse seus dentes nele. No momento em que o fez, ela gozou outra vez.

     A sensação dela bebendo dele enquanto seu corpo se aferrava ao seu o conduziu até a margem. Incapaz de suportá-lo, ele também gozou em uma onda cegante de êxtase.

     Desabou em cima dela enquanto esta se alimentava. Entre seu orgasmo e a perda de sangue, estava débil e satisfeito. Ela lhe fez rodar sobre suas costas para assim poder beber ainda mais.

     Neste momento Acheron lhe teria dado qualquer coisa que lhe pedisse. Inclusive sua vida.

     Artemisa se retirou quando com a perna tocou algo molhado na cama. Jogando uma olhada para baixo, viu seu sangue mesclado com o sêmen no colchão. A realidade do que acabava de fazer se precipitou sobre ela com uma força tão aguda que fez pedaços toda sua felicidade.

     Ela já não era virgem.

     Se Apolo ou os outros se inteiravam...

     Estaria arruinada. Ridicularizada. Humilhada.

     O que tinha feito?

     Foste profanada por um puto humana...

     Com as pálpebras meio caídas, Acheron estendeu uma mão para ela. Esta se retirou enquanto o coração se fechava de repente dentro de seu peito. Isto era terrível. Horrível. Aterrorizada pelo que lhe tinha permitido fazer, abandonou a cama, sentindo-se doente.

     Acheron a seguiu.

     —Artemisa?

     —Não me toques! —grunhiu quando ele tratou de sujeitá-la. Ela lhe deu um empurrão.

     —Te machuquei?

     A preocupação de sua voz deixou um buraco irregular no coração. Mas isto não era nada comparado com a vergonha e o medo que sentia.

     —Arruinaste-me.

     Naquele instante lhe odiou pelo que tinham feito. Como se atreveu ele a fazê-la desejá-lo desta maneira? Fazer com que se esquecesse de quem era e por que sua virgindade era tão importante.

     Deuses queridos, o que tinha feito?

     Queria matá-lo e ainda assim não poderia. Como podia odiá-lo com tanta vontade e ainda desejá-lo tão ardentemente?

     —Por que me tocaste?

     Ele pareceu assombrado pela pergunta.

     —Tu me pediste isso.

     —Não te pedi que me beijaras em meu templo —o acusou—. Eu nunca tinha conhecido um beijo antes. E então tu me tocaste... —esbofeteou-lhe com força pela afronta.

     Acheron cambaleou para trás ante o golpe enquanto sua bochecha ardia. Antes que ele pudesse recuperar-se, Artemisa o atacou, com bofetadas e murros. Quando isto não pareceu satisfazê-la, jogou-o contra a longínqua parede e ali o manteve com seus poderes de deusa.

     Eu te protegerei...

     As palavras dela soaram em seus ouvidos quando ele a olhou de cima, esperando que finalmente o matasse. Sinceramente preferia estar morto a sentir como o coração lhe estilhaçava pelo que ela estava fazendo.

     Ela tinha mentido.

     De repente, caiu de golpe no chão. Aquela mesma força invisível o derrubou e o sustentou contra o mármore enquanto Artemisa se aproximava dele com um olhar feroz.

     —Assim colaboras. Diga em toda tua vida uma palavra sobre isto a uma só alma e te verei aniquilado tão dolorosamente que teus gritos pedindo clemência ressonarão ao longo da eternidade.

     Aquelas palavras trouxeram lágrimas aos olhos ao lhe recordar a outros tantos que o tinham odiado porque ansiavam estar com ele. Quantos dignitários e nobres tinham vindo a ele e logo o tinham amaldiçoado ao momento seguinte de que lhes tivera satisfeito?

     Viviam com o medo de que um puto arruinasse suas apreciadas reputações. Tinham-lhe tirado a chutes da cama ou o tinham atirado ao chão, amaldiçoando-o por sua própria luxúria como se ele tivesse querido isto.

     Por que tinha chegado a pensar por um momento que Artemisa seria alguém diferente?

     Afinal, ele era o que era.

     Nada.

     —Me ouves? —grunhiu Artemisa em seu rosto.

     —Ouço-te.

     —Arrancar-te-ei a língua.

     Ele teve que se obrigar a não rir ante uma ameaça que experimentava pela primeira vez. Mas ele sabia a verdade. Sua língua tinha mais valor que qualquer outra coisa posto que esta lhes proporcionou a maior parte do prazer.

     —Tua vontade é minha vontade, akra.

     Ela o agarrou pelo cabelo e puxou sua cabeça para cima para obrigá-lo a olhá-la.

     —Sou a deusa Artemisa.

     E ele era Acheron Parthenopaeus. O puto maldito. Escravo desprezado. Incapaz de ser amado por alguém.

     Quão estúpido tinha sido ao engolir suas mentiras. Pensar que por um minuto algo como ele poderia ter tido alguma vez valor para uma deusa.

     Artemisa viu a dor em seus olhos e isto a rasgou o coração. Não queria lhe fazer isto, mas que opção tinha? Ele estaria morto em umas décadas, mas sua própria vergonha seria eterna se alguma vez a notícia disto chegava aos outros deuses.

     Os humanos não eram dignos de confiança. Jamais.

     —Recorda que minha ira será legião. —Lhe puxou o cabelo como advertência antes de enviá-lo de volta ao seu mundo.

     Transtornado, Acheron se sentou no chão de seu quarto. Intumescido pelo rechaço e o ataque, avançou lentamente até a bancada com vista ao mar e descansou a cabeça contra o parapeito de pedra. Ouviu as vozes dos Atlantes lhe chamando.

     Mais que nunca antes estava tentado a ir. Que importância teria se o matavam?

     Se pudesse estar seguro de que não abusariam mais dele, iria até eles. Mas no profundo do coração estava o medo de que eles só o convocassem para assim poder torturá-lo também. Inclinando a cabeça, chorou e à medida que caía cada lágrima odiou Artemisa por isso.

     Ninguém o tinha feito chorar desta maneira em anos. Não desde o dia em que Estes tinha vendido sua virgindade ao melhor apostador e logo tinha celebrado uma festa para que todo mundo observasse a brutal violação que lhe tinha causado dor e hemorragias durante dias depois. Inclusive agora a risada e as brincadeiras o perseguiam.

     Rompo ao puto para o resto de nós...

     Acheron golpeou o punho contra a pedra, querendo que a dor apagasse a vergonha dentro dele. Mas não houve nenhum alívio. Nenhuma piedade. Nada podia levar-lhe.

     O puto estava cansado agora. Por fim estava vencido. E não era pela mão de seu professor ou um cliente.

     Tinha sido pela mão da única pessoa a quem tinha amado alguma vez. Derrotado e perdido, Acheron se deitou no frio balcão e fechou os olhos, rezando para que a morte finalmente viesse e terminasse com este pesadelo que era sua vida.

 

28 de Janeiro, 9528 a.C.

    Ryssa estava na sala do trono de seu pai enquanto, Styxx, Apolo e ele riam juntos, ignorando-a. O qual era habitual. Mas o que ela odiava era o fato de que Apolo a quisesse para ele desde o primeiro momento de sua chegada. Ele a tratava como a uma posse cujo único objetivo era sorrir e adular sua presença. E isto a fez perguntar-se se assim foi como Acheron se havia sentido na casa de Estes.

     E o que se o deus era excepcionalmente belo? Aborrecia o modo em que ele a tratava, como se ela fora insignificante. A única coisa pior desse tratamento para ela, era a insistência de seu pai em que estava abençoada ao estar na presença do deus.

     Se isto era estar abençoada, odiaria ver-se maldita.

     Voltou a cabeça quando vislumbrou uma criada que vacilava na entrada. Bonita e tímida, a moça era um ano ou dois mais jovem que Styxx.

     —Acontece algo, Hestia? —perguntou à criada.

     Hestia olhou aos homens timidamente antes de dirigir-se ao lado de Ryssa a fim de poder lhe falar em um tom suave.

     —Sua Majestade queria que eu lhe informasse se... —o olhar da Hestia retornou ao rei antes de terminar a oração— o prisioneiro real deixava de comer.

     O prisioneiro real. Acheron. O coração de Ryssa palpitou atemorizado.

     —Está doente?

     Ela clareou garganta.

     —Não que eu saiba, Sua Alteza. Não o vi em dias. Eu deixo a comida e quando volto está sem tocar. E ninguém adormecido na cama.

     —O que? —o rugido de seu pai fez a ambas saltar—. Guardas! Me sigam. —Bramou da sala em sua direção.

     Atemorizada por seu irmão, Ryssa correu atrás dele.

     —O que acontece aqui? —perguntou Apolo a Styxx enquanto os dois seguiam seu rastro.

     Styxx fez um som de profundo desgosto na cavidade de sua garganta.

     —Isso é Acheron. É um escravo sem valor que estava acostumado a ser um tsoulus. Infelizmente sua vida está atada à minha, assim temos que mantê-lo são. Embora eu me sinto bem, assim estou seguro de que ele faz isto só para chamar a atenção. Que os deuses não nos permitam alguma vez nos deixar esquecer sua presença aqui por um só dia.

     Ryssa apertou os dentes. A última coisa que Acheron queria era qualquer tipo de atenção por parte de Styxx ou de seu pai. Mas na mente egoísta de Styxx ele não podia compreender o desejo de Acheron de esconder-se de suas gloriosas presenças.

     Seu pai entrou enfurecido no quarto de Acheron, logo se deteve em seco. Ela entrou atrás dele e fez um alto para explorar o interior vazio. Não havia sinal algum de Acheron.

     Seu pai se voltou para ela com um furioso cenho franzido.

     —Disse-te que não podias confiar nele.

     Ryssa lhe ignorou enquanto ia a um lugar que seu irmão freqüentava. A bancada.

     A princípio não o viu, mas quando se inclinou sob a marquise que a protegia da tormenta passageira, viu uma figura fora de sua visão periférica. Era Acheron sentado na lateral com os joelhos pregados e seus braços dobrados sobre eles. Completamente nu, ele olhava fixamente ao espaço como se não fora consciente do frio glacial e da chuva que jorrava por seu corpo. O cabelo estava pego à cabeça e a barba crescida de pelo menos dois dias polvilhava suas bochechas…

     Procurando ficar fora da chuva, aproximou-se lentamente a ele.

     —Acheron?

     Ele não respondeu. Havia algo nele que não estava bem. Era como se tivesse morrido, mas sua alma não tivesse abandonado seu corpo ainda.

     Ela se ajoelhou a seu lado.

     —Irmãozinho?

     Ele voltou àqueles olhos sobre ela com uma fúria que não tinha visto desde a manhã em que a tinha jogado fora do bordel.

     —Me deixe —grunhiu em um tom tão feroz que realmente a assustou.

     Pela extremidade do olho, viu a fúria de seu pai.

     —Não te atrevas a lhe falar desse modo.

     —Que te fodam, bastardo.

     Styxx deixou escapar um profundo grunhido enquanto se adiantava para Acheron.

     Ryssa caiu para trás quando Acheron ficou em pé e correu para Styxx com a mesma fúria. Ela cobriu a boca quando os dois se chocaram sob a torrencial chuva. Nenhuma só vez tinha visto Acheron golpear a outra alma vivente. Mas brigava com Styxx com tudo o que tinha.

     Apolo puxou-a para trás para evitar que eles a ferissem acidentalmente.

     Styxx tinha sido treinando para lutar desde os cinco anos pelos melhores instrutores que seu pai pôde contratar. E estava dando uma surra a Acheron sob a chuva. Inclusive assim, Acheron lutava com tanta força como podia.

     Mas de longe não era rival para seu gêmeo. Styxx lhe chutou nas costelas.

     —És patético.

     Acheron rodou na água e ficou em pé. Quando foi de novo até Styxx, este lhe golpeou outra vez. A chuva rodava por seu rosto, mesclando-se com o sangue que corria desde seu olho, nariz e boca. Apesar disso correu para Styxx, uma e outra vez como se pensasse que sua vontade era suficiente para vencer ao seu irmão gêmeo.

     —Guardas, lhe agarrem —ordenou o pai.

     Acheron tentou lutar com eles quando se aproximaram para submetê-lo, mas já estava debilitado por Styxx. Arrastaram-no de volta ao quarto onde seu pai esperava.

     Seu pai enterrou a mão no cabelo molhado de Acheron e atirou de sua cabeça para trás de modo que Acheron pudesse ver o completo desprezo que guardava o rei a seu filho mais velho.

     —Lhe golpeiem até que não reste pele nas costas. Se desmaiar, lhe despertem e lhe golpeiem de novo.

     Acheron riu desapaixonadamente.

     —Eu também te amo, Papai.

     Seu pai lhe bateu com o dorso da mão.

     —Lhe tirem daqui.

     —Papai? —perguntou Apolo com um olhar assombrado, arqueando as sobrancelhas.

     Seu pai se burlou:

     —Ele me chama assim, mas não é meu filho. Minha anterior rainha se prostituiu e gerou essa abominação.

     Ryssa sentiu cair as lágrimas ante a condenação de seu pai.

     —Ele é humano, pai.

     Todos riram dela. Incapaz de permanecer ante suas brincadeiras, seguiu aos guardas para oferecer consolo a Acheron.

     Mas quando chegou ao pátio onde o estavam golpeando, ele já estava ensangüentado. Mas ao contrário que outras vezes que o castigavam, ele lutava contra seus atacantes.

     —Me bata outra vez! —chiou-lhe ao guarda—. Com força!

     A desenfreada raiva nele a impactou completamente. Ele realmente estava rindo dos guardas como se lhe resultasse prazeroso o que lhe estavam fazendo.

     Tornou-se louco?

     O que lhe tinha acontecido?

     Acheron os incitou até que desmaiou pela surra. Os guardas trocaram um cauteloso olhar uns com os outros antes que o mais alto deles alcançasse um balde de água para revivê-lo.

     Ryssa lhe pôs a mão sobre o ombro.

     —Por favor, não —rogou ela.

   —Alteza… seu pai se zangará se descobrir que não cumprimos suas ordens.

     —Eu não o direi se tu não o fazes. Por favor. Ele já passou por bastante.

     O guarda assentiu, então o baixou. Ela viu a compaixão nos olhos de ambos quando levaram a Acheron de volta ao quarto, sob sua supervisão, deixando-o de barriga para baixo sobre a cama. Deram meia volta e a deixaram sozinha com seu irmão tão pateticamente vulnerável estendido sobre a cama, sangrando.

     Ryssa não tinha idéia de onde partiram Apolo, seu irmão e seu pai. E para ser sincera, não lhe importava. Todos eles podiam apodrecer-se por sua crueldade.

     Com mão tremente devido à pena por seu irmão, afastou o cabelo da bochecha de Acheron. Ele estava ardendo de febre.

     —Não te preocupes, Acheron. Eu cuidarei de ti.

     —Bom, isso foi realmente entretido.

     Artemisa afastou o olhar de seus koris que estavam banhando-se na fonte fora do templo para fixá-la em seu irmão a seu lado.

     —O que?

     —Minha favorita tem um irmão ilegítimo ao qual odeiam.

     Seu coração deu um salto ante a menção de Acheron.

     —Seriamente? —disse ela, esperando que não detectasse o tom entrecortado de sua voz.

     Ele assentiu antes de tomar assento perto dela.

     —Nunca tinha visto nada igual àquilo. Ele estava sentado nu sob a chuva completamente quieto, sem incomodar a uma alma, e eles o golpearam com ira, então o levaram arrastado para açoitá-lo.

     Artemisa se forçou a não reagir nem a mínima forma ante as notícias.

     —Por que?

     —Nem idéia. Mas juraria que o príncipe herdeiro teve uma ereção quando o imobilizou no chão e o golpeou.

     Artemisa afastou o olhar enquanto recordava quantas vezes Apolo a tinha tratado de maneira muito similar. Era estranho que não visse suas próprias ações refletidas nos humanos. Seu pobre Acheron. Queria ir atrás dele, mas não se atrevia.

     Apolo riu.

     —Entretanto concedo o mérito ao humano, lutou contra eles igual a um leão. Inclusive lhes desafiou a golpeá-lo com mais força.

     As lágrimas se acumularam estrangulando-a. Artemisa piscou rapidamente para as dispersar.

     —Nunca entenderei aos humanos.

     —Isso é pelo qual meus Apolitas os submeterão um dia. Os humanos são muito defeituosos.

     Ela sacudiu a cabeça ante o plano de seu irmão para derrocar as pessoas que seu pai tinha criado.

     —Os humanos gregos sabem que não vais respaldar-lhes em sua guerra contra os Atlantes e os Apolitas?

     —Estás louca? É obvio que não. Deixe-lhes que ofereçam a suas filhas e façam sacrifícios. O que me importa?

     Artemisa arqueou uma sobrancelha ante isto.

     —Importa-te tua favorita, não é certo?

     Ele deu despreocupadamente de ombros.

     —Entretém-me no momento. Mas há muito mais mulheres deliciosas no mundo. Além disso, ao final envelhecerá e me desfarei dela.

     —Eles envelhecem muito rápido. —Isso era mais para seu benefício que para o dele. Certamente Acheron não a atrairia uma vez desaparecesse sua beleza.

     Apolo não disse nada.

     Artemisa se perguntou sobre sua presença no jardim de seu templo.

     —Por que não estás com tua favorita?

     —Está com o escravo, lhe atendendo. Uma vez que o golpearam, voltou-se muito mal-humorada para meu gosto.

     —E tu o toleras?

     Ele deu de novo de ombros.

     —Acredito que seu irmão ilegítimo deve lhe haver aconselhado sobre como me agradar. Conduziu-se de uma maneira muito conhecedora e completa para uma virgem. Styxx me contou que estavam acostumados a vender ao bastardo aos humanos para sexo. Pelo visto é uma tradição familiar.

     As notícias a surpreenderam. Normalmente seu irmão fugia de qualquer uma que fosse impudica.

     —Ryssa esteve com outros?

     —Não. A teria matado. Quando não estou por aí, a mantêm bem guardada. Mas acho fascinante que me ofereçam ela de tal maneira. Nunca farei isso com minha filha.

     Artemisa jogou uma olhada a Satara, a jovem filha de Apolo a qual estava dançando na fonte com outras de suas koris.

     —Não, tu só me deste a sua filha para que fora criada.

     —Te dei a minha filha para que te alimentaste quando eu não ando por aqui e te mantiveras afastada dos humanos. Ela nunca será tocada por nenhum homem.

     —Ainda é jovem. O que passará quando crescer e decida tomar um consorte?

     Os olhos de Apolo brilharam com fúria.

     —Matarei a ambos.

     Artemisa estava espantada por suas palavras.

     —Mataria a sua própria filha?

     O olhar dele a atravessou.

     —Mataria a minha própria gêmea se prostituísse a si mesma com um homem. Satara é um dos muitos filhos que tenho. Mas nenhum deles me envergonhará sem sentir todo o peso de minha ira.

     —Inclusive se ela o ama?

     Ele curvou os lábios com desgosto.

     —O que és tu? Afrodita? Não me fales de amor. És uma deusa. Não há amor para nós. Só luxúria a qual desaparece. Um homem pode procurar amantes, mas para uma mulher fazer tal coisa…

     Convertia-a em uma puta. Ela conhecia a postura de seu irmão sobre isto.

     Como se pudesse ouvir o que se dizia dela, Satara deixou de brincar para olhar ao seu pai.

     —Vou embora. —Apolo se desvaneceu.

     Artemisa não perdeu o olhar de desilusão no rosto de Satara porque seu pai não se incomodou em falar com ela. Um instante depois, empurrou a kori mais próxima a ela e partiu airadamente.

     Artemisa sacudiu a cabeça. Aparentemente a violência corria intensamente por seus genes.

     Seus pensamentos voltaram para Acheron e a culpa a investiu. O que lhe tinha feito tinha estado errado e sabia. Mas como podia enfrentar-se a ele depois da forma na qual tinha agido?

     És uma deusa. Ele deveria estar agradecido de que sequer o notaste.

     Essa era a maneira na qual tinha sido criada. Ainda assim Acheron era diferente. Ele não tinha sido só outro humano. Tinham sido amigos.

     E ela o tinha ferido por medo. Tinha-lhe feito muitas coisas que tinha jurado que nunca faria. Coisas que ela sabia que o feriam e humilhavam.

     Por que?

     Fechando os olhos, pôde lhe ver perseguindo-a através do bosque. Ouvir sua risada enquanto brincava com ela.

     Ninguém a tinha feito sentir-se assim. Ninguém.

     E o tinha estragado por ser estúpida.

     Ele é humano. A quem lhe importa? Essa seria a postura de Apolo. Se tão somente pudesse compartilhá-la. Mas profundamente em seu coração sabia a verdade. Sentia saudades dele e lhe doía pensar que ele tinha sido ferido outra vez por seu pai.

     Nem sequer o penses…

     Era muito tarde. Já se havia desmaterializado do jardim ao quarto dele. Flutuou nas sombras de onde viu sua irmã inclinada sobre ele.

     —Por favor, coma, Acheron —sussurrou Ryssa—. Não quero que lhe façam mais dano. Papai diz que se te negares a comer fará com que lhe alimentem a força. —Ela sustentou um pedaço de pão diante de sua boca.

     Ele voltou a cabeça de lado.

     Artemisa viu a crua dor no rosto de Ryssa.

     —Certo. Não quero que te façam mais dano. —A princesa levou o pão à boca e o tragou inteiro. Depois disso, comeu-se toda sua comida.

   Com os olhos cheios de pena, Ryssa se levantou.

     —Direi-lhes que o comeste. —Quando ela estirou uma mão para Acheron, este a agarrou e a separou dele.

     Com gesto aflito, ela suspirou.

     —Dorme em paz, irmãozinho. Assegurarei-me de que ninguém te incomode.

     Artemisa não se moveu até que Ryssa os teve deixado sozinhos. Materializando-se em uma forma sólida, saiu das sombras.

     Acheron fez uma careta ante ela.

     —Me deixe.

     —Não deverias usar esse tom comigo.

     Ele soltou uma gargalhada, então contraiu a cara como se lhe doesse algo.

     —Tenho aspecto de que me preocupe com o que possas me fazer? Tire seu traseiro fora daqui e me deixe sozinho.

     —Acheron…

     —Saia! —espetou ele, então vaiou como se a dor fora severa—. Me deixaste claro que já não existo para ti. Como podes ver, não te necessito para me espancar ou me golpear. Há muitos outros que competem por essa honra.

     Ela se ajoelhou perto da cama com seu coração partindo-se ante as contusões em seu rosto... ante as feridas que desfiguravam suas costas.

     —Posso te curar.

     —Não quero tua cura. Não quero nada de ti salvo sua ausência.

     —Não faças isto, Acheron.

     Acheron amaldiçoou.

     —Estou por suplicar misericórdia. De todos os modos, ninguém presta atenção quando o faço. Melhor deveria morrer de pé com toda a dignidade que um puto possa obter, que me arrastar sobre meu ventre como um escravo sem valor.

     Ela sacudiu a cabeça enquanto tentava lhe explicar o que tinha acontecido.

     —Estava assustada pelo que tínhamos feito.

     O olhar dele a atravessou como uma adaga.

     —E estou farto de ser o arrependimento de todo o mundo. Minha mãe morreu envergonhada porque me tinha dado a luz. Meu pai e irmão me desprezam e minha irmã quase nem pode me olhar aos olhos. E tu... tu me fizeste realmente acreditar em algo. Confiei em ti e mentiste para mim.

     —Eu sei e o sinto. —Ela colocou a mão na bochecha sem raspar, esperando fazê-lo entender verdadeiramente quão sincera era—. Estou aqui agora, não como uma deusa, mas sim como sua amiga. Sinto falta de ti quando não estás ao meu redor.

     Acheron quis afastá-la de um empurrão, mas a verdade era que não podia. Não importava o muito que precisava odiá-la, ele não sabia como.

     Os olhos dela o atormentaram antes que esta os fechasse e curasse seu corpo dolorido.

     Ele soltou uma exalação cansada enquanto a dor desaparecia e o abandonava totalmente de novo.

     —Não esperes que te agradeça por isso.

     —Não é dessa maneira. Não peço perdão aos humanos. Nunca. Ainda assim pedi-a a ti...

     Ele entendeu o que lhe estava dizendo, mas isto não aliviou a dor dentro de seu coração onde ela o tinha apunhalado.

     —Não quero mais sua amizade, Artie. Terás que encontrar outro puto que te entretenha.

     Antes inclusive de que ele pudesse piscar, ela se pôs sobre ele e o empurrou de volta à cama. Acheron inalou bruscamente quando ela afundou os dentes em seu pescoço. Desta vez não houve nenhum prazer para ele. Só a dor o sacudiu com cada gota que ela drenava. Ainda pior, manteve-o paralisado de modo que ele não pudesse mover-se ou lutar contra ela.

     Este era um ato de violação e ele sabia. Tinham-no agredido suficientes pessoas em um desdobramento de poder para não reconhecê-lo quando acontecia.

     Rogue-me piedade, puto. Diga-me quanto desfrutas.

     Acheron lutou para permanecer consciente enquanto as vozes do passado ecoavam em sua cabeça. A dor e a frustração se erigiam dentro dele enquanto a raiva impotente fervia profundamente.

     Finalmente Artemisa se afastou com brutalidade. Pela expressão perplexa em seu rosto poderia dizer-se que estava surpreendida de vê-lo ainda consciente.

     Acheron tragou saliva enquanto a olhava de baixo com desprezo.

     —Estamos em paz agora? Ou queres violar meu corpo tanto como violaste minha alma?

     A dor cortou através dele quando todas suas feridas e contusões da surra reapareceram. Gritou ante a intensidade quando este aumentou inclusive mais do que tinha sido antes.

     Artemisa permaneceu de pé lhe fulminando com o olhar de cima.

     —Não burlarás de mim, humano. Já tive bastante de sua ridicularia. —E com isto desapareceu.

     Acheron fechou os olhos enquanto o alívio discorria por ele. Talvez agora lhe deixariam em paz.

     Mas quando ele procurou o bem-estar em sua mente, em vez da horta na qual ele tinha brincado no palácio de verão naquele dia de primavera, foi uma imagem da Artemisa a qual lhe apareceu. Uma imagem de sua breve amizade antes que se tornou uma depravada.

     Ele teve saudades daquele momento de calma.

     —Acabou-se —disse em voz baixa. Tinha terminado sendo seu brinquedo. Sua vida tinha sido controlada por outros por muito tempo. Era o momento de que deixasse de tratar de agradar a todos os outros e aprendesse a viver por si mesmo. Jamais permitiria de novo que ninguém tivesse poder sobre ele.

     Especialmente os deuses.

13 de Fevereiro, 9528 a.C.

     Acheron passou através do centro do povoado em seu caminho para o estádio para ver a última obra. Entrando no mercado, fez uma pausa, quando vislumbrou uma sombra pelo canto de seu olho. Virou rapidamente para ela, só para ver nada. Inseguro de que fosse Artemisa seguindo-o, evadiu-se atrás de um pequeno grupo de pessoas.

     Sentiu-se tão vazio por dentro. Tão usado. Honestamente, não queria voltar a vê-la outra vez. O mero pensamento dela, assentava sua ira em fogo e, entretanto, havia também uma tristeza tão profunda ante a perda do que pôde ter sido entre os dois, que quase o fez cair de joelhos.

     Não queria ser usado nunca mais. Nem sequer por amor.

     Por que não? Já foste utilizado por todos os demais.

     Apertou os dentes ante a brutal verdade em que não queria pensar.

     —Avó, está-nos enganando.

     A voz do menino atraiu sua atenção para a mesa próxima. Havia uma mulher de trançado cabelo encanecido, misturado com negras mechas. Seus olhos eram de um branco leitoso e estava parada com uma mão sobre o ombro do menino. Não mais de sete ou oito anos, tinha cabelo escuro e um rosto tão inocente que era comovedor. Embora suas roupas estivessem puídas, ambos iam banhados e limpos.

     O vendedor levantou a mão para ele como se fora a golpeá-lo.

     Retrocedendo, o rosto do menino perdeu toda cor.

     —Merus? —sua avó sussurrou. —O que está acontecendo?

     —N-nada, avó. Estava equivocado.

     Acheron não soube por que, mas o temor do menino o atravessou como uma adaga. Como se atrevia o homem a tomar vantagem da anciã e sua carga, quando era óbvio que nenhum dos dois tinha muito neste mundo.

     Antes de pensar melhor, deu um passo adiante.

     —Tens que lhes dar pelo que pagaram.

     O homem começou a discutir até que notou a extrema altura de Acheron, quem era uma cabeça mais alto que ele. Embora Acheron fosse magro, era o suficientemente musculoso para intimidar. Felizmente, o vendedor não tinha idéia que Acheron não sabia nada sobre luta. Os olhos do homem se alargaram ante a qualidade da roupa que vestia – um chitón[5] real que Ryssa tinha insistido que vestisse sempre que se aventurasse para as Obras.

     —Não os estava enganando, meu Senhor.

     Acheron olhou abaixo para o menino, quem o olhou boquiaberto ante sua altura.

     —O que é que viste, menino?

     Merus tragou antes de dobrar seu dedo a Acheron.

     Suavizando seu rosto para não assustar ao menino mais do que já estava, Acheron se inclinou.

     O menino sussurrou forte em seu ouvido.

     —Ele tinha seu polegar na balança. Minha Ya Ya[6] me disse que sempre lhe dissesse quando fizessem isso. Diz que é enganar.

     —Assim é —Acheron o acariciou no braço antes de endireitar-se para olhar ao vendedor. — Quanta farinha estavas comprando, Merus?

     —Três libras.

     —Então observarei como são medidas de novo.

     O rosto do vendedor se tornou um vermelho vivo enquanto vertia a farinha e lhe mostrava que estava na verdade por baixo da marca. Amaldiçoando por baixo, o vendedor acrescentou mais até que alcançou o peso correto. Havia malícia em seu olhar para Merus uma vez que selou novamente o saco e o estendeu ao menino.

     —Merus? —Disse Acheron, mantendo seu olhar enlaçado com o do vendedor, que não podia ver seu rosto.

     O menino olhou para ele.

     —Sim, meu Senhor?

     —Se alguma vez descobrir que enganaram a sua Ya Ya ou te machucam, quero que vá ao palácio e perguntes pela Princesa Ryssa. Diga-lhe que Acheron te enviou e se assegurará que te tratem justamente e assim, quem seja, que te faça mal, será castigado por isso.

     Seus olhos se iluminaram enquanto os do vendedor se escureceram.

     —Obrigado, meu Senhor.

     A avó posou uma suave mão sobre o antebraço de Acheron.

     —Que os deuses te abençoem por tua amabilidade, meu Senhor. Verdadeiramente, és precioso para este mundo. Muito obrigada.

     Suas palavras tocaram seu coração e lhe fizeram um nó na garganta. Se só fossem verdade. Mas não o eram, e a anciã retrocederia com horror se soubesse o braço de quem estava tocando.

     —Que os deuses vos acompanhem —sussurrou tranqüilamente antes que começasse a afastar-se deles.

     Não tinha passado muito quando Merus chegou até ele.

     —Meu Senhor?

     Era tão estranho que alguém o chamasse assim.

     —Sim?

     —Eu sei que estamos por baixo de ti, meu Senhor, mas minha Ya Ya me enviou a te perguntar se compartilharia o pão conosco, assim ela pode agradecer sua bondade. Sei que é cega, mas é uma cozinheira maravilhosa. Nós assamos o pão que o padeiro vende ao Rei e sua corte.

     Acheron olhou atrás para onde estava à anciã de pé orgulhosamente, embora ela não pudesse ver a buliçosa atividade que a rodeava. Por debaixo deles... se o menino soubesse quem era ele realmente, o teria evitado como todos os outros.

     Ambos o fariam.

     Ainda assim, Acheron vacilou. Ele deveria ir antes que eles conhecessem a verdade sobre ele, mas não queria insultá-los e fazê-los sentir menos como as pessoas o faziam sentir a ele.

     Assim, em vez disso, assentiu.

     —Eu gostaria muito disso, Merus. Obrigado por perguntar.

     O menino sorriu, e o conduziu até onde estava sua avó esperando nos subúrbios do mercado.

     —Ele está comigo, Ya Ya.

     Os amáveis traços de seu rosto se enrugaram quando sorriu e falou em direção oposta onde estava.

     —Obrigada, meu Senhor. Talvez não será tão elegante como ao qual está acostumado, mas te prometo que nunca provaste algo melhor.

     —Estamos aqui, Ya Ya.

     Suas bochechas se ruborizaram.

     —Me perdoe, meu Senhor. Temo-me que sou um pouco inepta com a orientação.

     —Não me importa. —Tomou os pacotes de Merus, o menino sustentava. —Eu levarei estes, se queres ajudar a sua Ya Ya chegar em casa—. Estava assombrado de quão pesada era a carga para o menino.

     Radiante, Merus tomou a mão de sua avó e a dirigiu através da multidão.

     —Meu nome é Eleni, meu Senhor.

     —Por favor, me chame Acheron. Vivo no palácio, mas não sou alguém de importância.

     —Ele parece importante, Ya Ya. Tem muito bons sapatos e roupa, e é realmente, realmente alto.

     Ela estalou com desaprovação para seu neto.

     —Não é agradável contradizer as pessoas, Merus. Recorda o que te hei dito. As aparências freqüentemente te enganam. Um homem pobre pode vestir as túnicas de um príncipe e um príncipe pode estar descalço na rua. Podemos julgar às pessoas por suas ações e não pela roupa que usam. —Seu sorriso era um de completa serenidade. —E pelas ações de Lorde Acheron hoje, sabemos que é nobre e amável.

     Acheron se deteve quando suas palavras o tocaram profundamente. Nunca em sua vida se havia sentido como nada mais que um puto e, entretanto, com estas duas pessoas, que se vestiam com farrapos, sentia-se como um Rei. Foi tal a estranha sensação que ele, em realidade, levantou seu queixo um grau.

     Merus abriu a porta de uma pequena casa que estava assentada entre uma fileira delas. Acheron teve quase que se inclinar ao dobro para caber na curta entrada, enquanto os seguia adentro. A sala principal era pequena e apinhada, mas se sentia como em casa. Havia uma energia no lugar que lhe deixava saber que Merus e Eleni eram muito felizes juntos.

     Entretanto, isso lhe permitiu apreciar quanto espaço necessitava para mover-se. As vigas eram muito baixas, que quase deu a si mesmo uma contusão dois segundos depois de entrar.

     —Estás bem, Lorde Acheron? —perguntou Merus.

     Acheron assentiu sem afastar a mão de sua testa, que palpitava pela colisão com a madeira.

   —O que aconteceu? —perguntou Eleni com um tom de pânico.

     —Como disse, Lorde Acheron é extremamente alto. Bateu a cabeça no teto.

     Os olhos de Eleni se alargaram. Aproximou-se dele ondeando uma mão frente a ela.

     Acheron tomou sua mão na dele e a pôs sobre seu ombro assim ela poderia saber quão alto ele era.

     —Oh, minha graça! —exclamou ela. —És enorme. Como um dos deuses.

     Embora fosse outra coisa a mais que o fazia um fenômeno ante as pessoas normais, também fazia que Estes e Catera ganhassem bom dinheiro com aqueles de tamanho baixo que gostavam da sensação de poder que tinham sobre alguém de sua altura.

     Movendo-se com uma graça que parecia insondável para ele, Eleni cruzou o piso como se visse cada coisa que havia e tirou uma cadeira para ele.

     —Melhor te sentares, meu Senhor. Só posso imaginar quão asfixiante deve ser para ti nossa pequena casa.

     —Que nada —disse ele honestamente. Embora estava temeroso de se chocar com algo mais, mas bem gostava de seu pacífico lar.

     —Nos traga um pouco de leite, Merus.

     O menino saiu correndo para a porta.

     Acheron observou enquanto ela se dirigia para a estufa e atiçava o fogo sem esforço. Assombrava-se de como sabia onde estava tudo. Não havia enganos ou queimaduras.

     —Meu Senhor? —perguntou ela, enquanto tirava uma faca da gaveta. —Posso te fazer uma pergunta intrometida?

     —Se assim o desejas.

     —Por que estás tão triste?

     Ele começou a negá-lo, mas por que? Ela não o conhecia, nem ele conhecia a ela. Francamente, estava surpreso de como ela podia reconhecer seu humor sem nenhum tipo de pista visual.

     —Como podes notá-lo?

     —O som de tua voz quando falas. Ouço o peso de sua tristeza nela e um forte acento Atlante.

     Ela era infalivelmente ardilosa enquanto cortava, colocava para esquentar o pão sobre um talho de pedra.

     —É a perda de uma pessoa o que te entristece?

     Suas vísceras se ataram ante o pensamento da Artemisa.

     —Uma amiga

     —Então choro contigo —disse ela em tom reconfortante. —Eu perdi muitos amigos através dos anos, e aos meus filhos. A perda é sempre dura. Mas tenho a Merus e tomo tanto orgulho de seu crescimento. Ele é tão bom menino. Não tens idéia de quanto um filho significa para seus pais. Estou segura que os teus devem sorrir cada vez que te vêem.

     Incapaz de suportar as feridas que ela abriu, Acheron se levantou.

     —Provavelmente deveria ir.

     Ela se viu assolada.

     —Disse algo que não devia?

     —Não. —Ele não quis que se sentisse mal quando sua intenção tinha sido consolá-lo. Não era sua culpa que a única pessoa que o amasse fora sua irmã e que seus pais o tinham amaldiçoado desde o momento em que nasceu. —Estava-me dirigindo para o estádio para uma obra quando me detive no mercado. Deveria ir antes de perder mais dela.

     Ela tomou sua mão na sua, e se paralisou quando seus dedos tocaram sua marca de escravo. Seu puxão se apertou.

     —És um escravo?

     Sentiu sua cara arder enquanto a humilhação arrasava sobre ele. Quis amaldiçoar o descobrimento acidental.

     —Era-o. Sinto muito. Não deveria ter vindo aqui.

     Mas ela não o soltou. Cobriu suas mãos com a suas e lhe ofereceu um sorriso de amizade.    

     —Te tire o manto e sente-se, Acheron. Não tens feito nada pelo que devas te desculpar. Admiro-te por haver te detido a nos ajudar. Não é algo que um nobre fizesse, embora rara vez eles se incomodam em ajudar aos menos afortunados. Para um homem liberto falar em defesa de outro leva bastante coragem e caráter. O que fizeste é o mais nobre e amável e eu me sentiria honrada se tu te sentaras à mesa conosco.

     Acheron não podia respirar quando as emoções se juntaram e fecharam sua garganta. Não estava habituado a que ninguém lhe dissesse elogios fora de uma cama.

     —Obrigado.

     Sorrindo, ela acariciou sua mão antes que ela o deixasse ir.

     —Sabes, meu pai estava costumava a me dizer todo o tempo quando era menina que quando conhecemos alguém pela primeira vez não recordamos o que foi dito ou o que vestia. O que mais recordamos é como essa pessoa nos fez sentir. Tu fizeste sentir a meu neto importante ao defendê-lo e me hás feito eternamente agradecida por tão desinteressada ação. Graças a ti, rapaz.

     E os dois lhe tinham dado dignidade. Ela tinha razão. Ele sempre recordaria isso.

     Merus retornou com uma jarra de argila, sem fôlego.

     —Tenho muito leite, Ya Ya. Está o pão pronto?

     —Quase, meu querido—. Ela tomou o leite e o verteu nos copos para eles.

     Merus levou um copo a Acheron e o assentou frente a ele.

     —Lutaste muitas batalhas, meu Senhor?

     Ele baixou seu capuz para sorrir ante a inocente pergunta.

     —Não, Merus. Nenhuma, e, por favor, só me chame Acheron.

     —Está bem, akribos —disse Eleni com gentileza. — Acheron não gosta dos títulos.

     Merus agarrou seu próprio copo e retornou à mesa com ela. Subiu à cadeira junto a Acheron.  

     —Podes brigar com uma espada?

     —Não de tudo.

     —Oh… —se via decepcionado por isso. —Então, o que que fazes?

     —Merus —o arreganhou sua avó. —Nós não interrogamos aos nossos convidados—. Ela sacudiu sua cabeça. —Perdoe-o, Acheron. Só tem sete anos e ainda está aprendendo.

     —Não me incomoda. Eu tenho dezenove e ainda estou aprendendo.

     Merus chiou de risada.

     Eleni trouxe o pão à mesa e o pôs ante Acheron junto com uma jarra de mel e manteiga.

     —Tens um espírito do mais generoso. Isso é muito raro nestes dias e idade.

     Merus coçou a orelha como se estivesse confuso pelas palavras de sua avó.

     —Mas o que se ele não for o que parece? Tu sempre me dizes que às vezes as pessoas colocam máscaras e não podemos saber o que há dentro deles.

     Eleni revolveu seu cabelo.

     —Tens razão, pícaro. Não podemos ver realmente o que há nos corações dos outros. Quando não era muito mais velha que tu, meu pai estava acostumado a cobrar aos meus irmãos por seu alojamento e sustento. Todo mundo pensou que ele era malvado por fazer isso a seus próprios filhos. Meus irmãos o odiavam por isso.

     —Por ser pobre? —perguntou Acheron.

     Ela sacudiu sua cabeça.

     —Não. Minha família, de fato, tinha bastante dinheiro porque meu pai era um avaro com cada moeda. As pessoas o odiaram por isso também, embora o que eles não tinham entendido é que, quando era menino, ele e sua família foram expulsos de seu lar por falta de dinheiro. Sua irmã, um bebê, a quem amava mais que a ninguém, adoeceu ao ficar sem casa. Morreu de fome nos seus braços e ele jurou então que ninguém a quem amasse morreria por causa da pobreza outra vez.

     Acheron sentiu pelo pobre homem. Tendo conhecido tal pobreza nele mesmo, podia entender o raciocínio do homem. Não havia nada pior que a fome. Nada pior que viver na rua sem nenhuma proteção dos elementos… ou de outras pessoas.

     Merus endireitou sua cabeça

     —Mas, por que ele cobrou a seus irmãos se tinha muito dinheiro?

     Seus traços se suavizaram enquanto embalava seu rosto gordinho.

     —Ele estava pondo todo o dinheiro em um lado para quando meus irmãos estivessem preparados para casar-se.

     —Por que, Ya Ya?

     Ela ainda não perdia a paciência com ele.

     —Porque tu não podes te casar até que possas te costear o preço de uma noiva e deves ter um lar para tomar esposa. Quando meus irmãos as encontraram, meu pai tirou todo o dinheiro que eles tinham pago ao longo dos anos. Ele o tinha deixado de lado na forma de economia de modo que cada um meus irmãos tivessem uma pequena fortuna para estabelecer uma casa quando fossem o bastante crescidos. Ao final, não era a pessoa tão má que todos pensavam que era. O que ele fez foi para seu benefício, já que era dinheiro, e eles o teriam esbanjado sem sensatez. Isto nos ensina que nunca sabemos o que há no coração das pessoas quando as julgamos. Ações que às vezes parecem significar o que não são. Mas bem se realizam pelos que amamos com o fim de nos proteger sem que nós o sabemos.

     Merus ofereceu o prato de pão a Acheron.

     —Ya Ya diz que as visitas têm sempre a primeira escolha.

     Acheron sorriu antes de tomar um pedaço de pão e untá-lo.

     —Obrigado, Merus.

     A seguir serviu a si mesmo e logo sua avó. A normalidade de todo se fechou de repente em Acheron. Aqui ele se sentou, com a cabeça descoberta e nenhum dos dois reagiu absolutamente. Não havia furtivos nem luxuriosos olhares que eles tratassem de esconder. Nem movimentos nervosos.

     Ele era só outra pessoa para eles. Deuses, quanto significava isso para ele.

—Tens razão —disse ele depois de comer o pão—. Este é o melhor que alguma vez comi.

     Eleni elevou seu queixo com orgulho.

     —Obrigada. Aprendi esta arte com minha mãe. Ela era a padeira mais habilidosa de toda a Grécia.

     Acheron sorriu.

     —Certamente de todo o mundo. Não posso imaginar algo melhor que isto.

     —Sua confeitaria —disse Merus com a boca cheia de comida—. Poderia te fazer chorar.

     Acheron riu.

     —Imagino que um homem se veria bem estranho chorando sobre sua comida.

     Merus saboreou seus lábios.

     —Me acredite, vale a humilhação.

     Eleni revolveu seus cabelos.

     —Coma, garoto. Precisa crescer forte e alto, como Acheron.

     Acheron não falou enquanto terminava o pão. Atrasou-se mais que pôde, mas muito rápido já tinha terminado e era hora de ir-se.

     —Obrigado outra vez —lhes disse.

     Eleni se levantou com ele.

     —Foi um prazer, Acheron. Sinta-se livre de retornar quando quiser provar algum de meus bolos.

     Merus lhe sorriu abertamente.

     —Terei uma toalhinha preparada.

     —Estou seguro que o terá. —Levantando seu capuz, Acheron se assegurou de cobrir-se completamente—. Que tenham um bom dia.

     —Que os deuses te acompanhem.

     Se só ela soubesse. Acheron, com cuidado, escapou-se pela porta, fazendo seu caminho de volta para a colina onde estava situado o Palácio. Estranho, tinha tentado escapar ao mundo da fantasia através das tramas das obras e em vez disso, seu espírito se elevou muito alto com um inesperado encontro com pessoas reais. Eleni e Merus lhe tinham dado muito mais que uma fugida.

     Tinham-lhe dado normalidade. Embora fora só por um momento. E isso tinha significado tudo para ele. Sentia-se melhor do que tinha estado em muito tempo.

     Ao menos até que retornasse para casa.

     Vacilou no corredor de entrada quando viu a grande reunião de nobres e membros do Senado acompanhados de suas famílias. Não é que devesse ser uma surpresa, mas ninguém lhe disse que ali haveria uma festa.

     Se tivesse sabido, teria se encerrado em seu quarto. Sua experiência com este tipo de eventos nunca tinham sido boa. É obvio, no passado, tinha sido a atração/fascinação para todos os convidados. Um calafrio o percorreu quando recordou as vezes que tinha sido exposto em torno e maltratado antes que alguém no grupo o jogasse no chão…

     Puxando seu capuz mais abaixo, manteve-se nas sombras enquanto fazia seu caminho para as escadas. Com muita sorte ninguém se aproximaria dele.

     Entretanto, enquanto se afastava do salão de baile, a voz de seu pai o parou em seco.

     —Agradeço a todos por celebrarem comigo. Não é todo o dia que um Rei se sente tão abençoado.

     Acheron se arrastou mais perto da porta para ver seu pai sobre um tablado. Ryssa de pé a sua esquerda com Apolo ao seu lado. O braço do deus estava possessivamente envolvido ao redor de seus ombros. Styxx estava à direita de seu pai. Suas mãos sustentavam as de uma alta e formosa mulher de cabelo escuro.

     —Levantemos nossas taças em honra de minha única filha, a consorte humana do deus Apolo, quem está agora esperando um filho, e de meu único filho, quem contrairá matrimônio com Nefertari, Princesa do Egito. Que os deuses benzam a ambos e que nossas terras para sempre floresçam.

     O amargo ciúme o arrasou enquanto o escutava. Golpeou-o tão forte no coração, que tudo o que podia fazer era não baixar seu capuz e dizer alto ao seu pai que ele na realidade tinha outro filho. Mas, com que propósito?

     Seu pai só o negaria e logo o golpearia por sua afronta e vergonha.

     A ira varreu com o ciúme, beijava orgulhosamente a Ryssa e logo a Styxx.

     —Por meus amados filhos —disse ele à multidão uma vez mais—. Que vivam muito tempo.

     Um grito ensurdecedor se levantou de todo o mundo, exceto de Acheron, que não podia respirar pelo peso da agonia e do rechaço.

     Eu sou o mais velho…

     —És um deformado puto e um escravo —a voz de Estes ecoou desde seu passado—. Não falará ao menos que te nomeiem. Nunca olhes a ninguém ao rosto. Deves estar agradecido que te tolero em minha casa. Agora te ponha de joelhos e me dê prazer.

     Acheron queria morrer enquanto a vergonha o enchia. Seu pai tinha razão. Não havia nada sobre ele que valesse o que o amassem e definitivamente nada que garantisse qualquer tipo de orgulho. Agachando sua cabeça, fez seu caminho para as escadas que levavam ao seu quarto.

     —Acheron?

     Congelou-se com o sussurro atrás dele.

     —O que é que queres, Artemisa?

     —Quero meu amigo de volta.

     Acheron fechou seus olhos contra as lágrimas que escondia dentro de si. Desejava desesperadamente ser valorizado por alguém. Qualquer um. Não pelo que receberia deles, mas sim porque eles se preocupariam com ele.

     Artemisa se moveu até parar justo por trás dele. Tão perto que podia sentir sua presença como se eles estivessem se tocando.

     —Senti saudades de ti.

     Ele queria reclamar com ela. Gritar-lhe o muito que tinha odiado o que lhe tinha feito.

     Rogar-lhe que jamais o machucasse outra vez.

     Mas, qual era o fim? Os humanos não eram mais que brinquedos dos deuses. Ele só estava mais perto de um que os outros.

     —Estou perdoado então? —perguntou ele, odiando a si mesmo pela servil pergunta.

     —Sim. —Ela se pressionou contra suas costas e envolveu seus braços ao seu redor.

     Apertando seus dentes, forçou-se a não se endurecer ou afastá-la longe.

     —Obrigado.

     Artemisa quis chorar pela sorte que sentiu. Tinha seu Acheron de volta… ela não podia acreditar no muito que tinha sentido saudades dele. Quão temerosa estava de seu rechaço.

     Mais que tudo, ela queria ele que soubesse quão contente estava por ter sua amizade de volta.

     —Prometo-te, que nunca te machucarei outra vez.

     Acheron não acreditou nisto por nenhum instante. Ela tinha destroçado sua confiança no momento em que o tinha tomado pelos cabelos, sabendo o muito que ele desprezava isso. Sabendo quão degradante era essa ação para ele.

     Teria preferido que ela simplesmente jogara umas moedas e tivera se afastado.

     Artemisa puxou-o contra ela e o beijou como um amante. Ele devolveu o beijo com toda a paixão de alguém que foi pago por isso. Que triste que ela não pudesse ver a diferença entre um beijo que ele sentia e um beijo nascido da obrigação. Por isso, ele era o melhor puto que o dinheiro podia comprar.

     Quando se moveu para trás, pôde ver a felicidade em seu olhar. Como queria a sentir ele também.

     —Tu nunca mais duvidarás de meu afeto —sussurrou ela contra seus lábios.

     Acheron não respondeu quando ela caiu sobre seus joelhos diante dele. Franziu o cenho em confusão até que ela correu a mão por seu pênis antes de aproximar a ponta dentro de sua boca. Ofegando de comoção e prazer, quase cambaleou para trás. Nunca ninguém tinha feito isto antes a ele.

     Seu trabalho era dar prazer. Não correspondia aos outros, menos a uma deusa, agradar a ele. Toda a ira dentro dele desapareceu sob o assalto de sua língua em seu corpo. Não havia sentido algo como isso antes… nunca sonhou quão bom poderia ser. Sua mão acariciava e embalava seu saco enquanto seu quente fôlego o chamuscava. O amor por ela que ele tinha negado e enterrado voltou com uma fúria tão intensa que lhe enviou um orgasmo imediato.

     Artemisa se retirou, cuspindo enquanto rapidamente o cobria com a saia de seu silêncio.

     —Isto é tão desagradável. Como pode alguém desfrutar disto?

     Acheron não podia responder enquanto agarrou a si mesmo para que seu corpo terminasse o que ela tinha começado.

     Ela levantou a vista para ele com um sorriso vacilante enquanto lambia os lábios.

     —Tu desfrutaste disto, não é verdade?

     —Sim —disse ele, com voz rasgada.

     —Estou perdoada?

     Acheron correu seu polegar sobre seu lábio superior onde um rastro de sua semente tinha ficado. Com seu olhar firme, ela deslizou sua língua na ponta de seu dedo para saboreá-lo. A visão dela fazendo isso… a sensação de sua língua sobre sua pele foi a coisa mais incrível que ele jamais tinha experimentado.

     Esgotado e satisfeito, tudo o que ele pôde fazer foi assentir.

     Seu sorriso se ampliou quando ela se levantou e puxou-o para outro beijo. A seguinte coisa que ele soube, foi que estavam em seu quarto do templo e ele estava completamente nu. Ela mordiscou seus lábios, esfregando suas mãos sobre seu peito. —Faça amor comigo, Acheron.

     Suas palavras enviaram uma onda de frio através dele.

     —Não quero ser golpeado hoje, Artie. Sofri muita vergonha esta tarde.

     Rindo, ela puxou sua cabeça para baixo de modo que pudesse beijá-lo rudemente, mordendo sua pele até que ele temeu ficar machucado.

     —Não te golpearei. Promessa. —Tomou sua mão e o dirigiu até sua cama. Rodou sobre suas costas e o devorou sobre seu corpo nu.

     Acheron ainda estava indeciso. Artemisa o derrubou sobre suas costas. Ela era implacável em suas demandas e seu corpo fez exatamente para o que tinha sido treinado para fazer... endureceu-se para ela.

     Fechando seus olhos, desejou ser neutro como uma criança. Sua vida teria sido imensamente mais fácil.

     Enquanto ela mesma se deslizava sobre ele, perguntava-se como uma deusa não podia notar o que havia em seu interior. Não tinha idéia de quão pouco queria ele isto dela nesse momento. Reservado e aterrorizado do abuso que lhe daria uma vez que tivera terminado, ele a agradou o melhor que pôde.

     Para que o momento em que ela esteve completamente saciada, seu corpo estava dolorido. Deslizando-se dele, ela suspirou alegremente. Ela alcançou seu rosto ao tempo que virava sua cabeça ante a expectativa de uma bofetada.

     —O que está errado?

     Ele tragou enquanto ela lhe atirava um travesseiro sobre ele e logo o punha debaixo de sua cabeça.

     —Nada.

     Apoiou-se sobre si mesmo de maneira que pudesse riscar as linhas de seu rosto com as pontas de seus dedos.

     —Acredito que te manterei comigo esta noite.

     Antes que pudesse responder uma algema de ouro se fechou sobre seu tornozelo. Uma corrente ao final se entrelaçou na coluna da cama.

     —Para que é isto?

     —Para me assegurar que não vagará ao redor enquanto eu durmo.

     Acheron puxou seu pé fazendo tilintar os elos. Era tudo o que podia fazer para enterrar sua raiva e não gritar em frustração.

     —Eu não gosto disto, Artemisa. Não sou um cão que deve ser encadeado fora de sua casa porque temas que urine no tapete.

     Ela estalou com desaprovação para ele.

     —Pelo contrário. É para sua própria segurança.

     A brutalidade da alimentação forçada também tinha sido por seu bem. Não podia suportar estar encadeado. Mais que nenhuma outra coisa, isto o fez sentir um puto outra vez.

     —Por favor, não me faças isto. Prometo-te que não sairei de tua cama enquanto dormes.

     Artemisa vacilou. Ela não podia dizer se ele estava o suficientemente zangado para lhe devolver o golpe ou não. Pelo que ela sabia, ele poderia partir até o corredor dos deuses só por malícia.

     Os humanos eram traiçoeiros dessa maneira.

     Mas ao final, decidiu confiar nele. A corrente desapareceu.

     —Se me traíres, Acheron…

     —Me farás sofrer por toda a eternidade. Eu sei. Escutei a ameaça da primeira vez que a pronunciou.

     —Bem. Agora seja um homem bom e me dê seu pescoço.

     Ele, diligentemente jogou seus cabelos para trás expondo a beleza de sua pele bronzeada e a curva deliciosa de sua garganta.

     Sua boca encheu de água, mergulhou sua cabeça para saboreá-lo e nesse momento não pôde evitar o prazer da mordida. Ela o deixou senti-lo completamente. Embalando sua cabeça contra ela, ele chegou até seus braços enquanto ela se embriagava dele.

     Satisfeita, Artemisa observou seus olhos tremendo que se fecharam.

   —Serás meu, Acheron. Por tanto tempo como dure sua beleza. Não vou te compartilhar com ninguém. Nunca.

     Logo ela o veria morto.

 

3 de Abril, 9528 a.C.

     Acheron estava aprendendo lentamente a confiar de novo em Artemisa. Isso ou estava se convertendo em um mascote mais obediente. Havia momentos em que não estava seguro em que categoria tinha caído.

     Ia a ele quando se encontrava aborrecida e faminta e o ignorava quando tinha outras obrigações.

     Mas ao menos mantinha sua palavra de não golpeá-lo mais. De fato, não tinha sido machucado em semanas desde que Artemisa o mantinha também fora do caminho de seu pai.

     Nesse momento estava sentado em seu templo, em uma carruagem branca estacionada no meio da sala de recepção. Uma das donzelas a tinha chamado para que saísse e ela o tinha deixado encerrado antes de ir. Aborrecido até o cansaço, deixou vagar o olhar pelo quarto até que encontrou uma cítara dourada recostada sobre uma almofada num canto do chão.

     Fascinado, tomou o instrumento e o sustentou reverentemente em suas mãos. Não havia tocado música desde que tinha deixado Atlântida. A música era uma das coisas para as quais o tinham treinado e tinha aptidão natural.

     Algo que sempre lhe tinha gostado era de como o fazia sentir. Como nas obras, podia perder-se nas canções e notas.

     Rasgou as cordas e se abateu ante quão desafinadas estavam. Mas depois de um minuto, tinha-as retornado à perfeição. Alegre por uma vez, começou a tocar.

    

     Artemisa se deteve logo depois de materializar-se novamente em seu templo. A princípio, pensou que era sua sobrinha Satara tocando a cítara com a qual costumava entreter a ela e a seus koris. Até que escutou a profunda e formosa voz masculina cantando em um perfeito tom baixo. A canção, tão tenra e sincera, trouxe lágrimas aos seus olhos.

     Nunca suspeitou que Acheron possuíra tal talento. Nem sequer as musas podiam competir.

     Solidificando-se no quarto, escutou-o enquanto ele permanecia de costas para ela.      

     —É assombroso! —exclamou, indo sentar se por trás dele.

     Ele se deteve instantaneamente.

     Quando começou a deixá-la a um lado, interrompeu-o.

     —Por favor, continua tocando.

     —Só eu gosto de tocar quando estou a sós.

     —Por que?

     —Porque faz com que as pessoas queiram foder-me.

     Artemisa estalou ante sua obstinação.

     —Não deverias usar esse vocabulário frente a mim, Acheron. Sou uma deusa. Tens que me mostrar mais respeito.

     —Me perdoe, akra.

     Recostou-se e suspirou ante sua submissão. Odiava cada momento em que adotava esse tom. Era o fogo e o desafio nele o que ela ansiava. Sempre que estivesse relaxado, esse era o lado que lhe mostrava. Mas no instante em que o corrigia, imediatamente caía nesse rol de puto, como agora.

     E ela o desprezava.

     Empurrou o instrumento para ele.

     —Poderias tocar para mim? Só estamos os dois e eu gostaria de escutar tua voz.

     Ele recolocou a cítara em seu regaço e ociosamente a rasgou.

     Inclinou-se para suas costas e o sustentou enquanto tocava.

     —Que outros talentos tens que mantiveste escondidos para mim?

     —Sou um perito no que seja que entretenha aos outros.

     —Como o que?

     —Instrumentos musicais, canções, massagens, dança e fodendo.

     —Acheron!—. Escondeu seu sorriso em seu ombro. Assim não era tão submisso depois de tudo.

     —Só estava respondendo tua pergunta.

     Com certeza que sim… seu Acheron podia ser um tanto manejável e em mais de uma forma.      

   —Podes dançar tão bem como tocas?

     —Melhor.

     Encontrou isso impossível de acreditar.

     —Ensina-me.

     —Mas não haverá música se me detiver para dançar.

     Tirou-lhe a cítara das mãos.

     —Haverá—. Usou seus poderes para continuar a canção—. Agora me mostre o que podes fazer.

     Ele ficou de pé e virou o rosto para ela. Estendendo a mão, esperou até que a tomasse antes de soltá-la sobre seus pés. Fazendo honra a suas palavras, era um elegante bailarino. Movia-se com uma beleza cheia de graça que parecia quase divina.

     Quanto mais dançavam mais desejava ela saboreá-lo. Com o corpo em chamas, saltou a seus braços, tentando despi-lo.

     —Artemisa! —a chamada de Apolo a sacudiu.

     Acheron viu as portas do templo abrirem-se. O seguinte que soube, é que estava atirado no chão de seu próprio quarto. A pedra se estrelou dolorosamente contra seu corpo enquanto caía de repente sobre as costas. O ar saiu precipitadamente dele com um ruidoso ui.

     —Pudeste me deixar em pé ou na cama —disse entre dentes.

     Uma luz brilhante cintilou no quarto um momento antes que a cítara aterrissasse sobre seu estômago. Acheron amaldiçoou de dor. Tinha sido um bom gesto de sua parte, mas maldição… para ser uma renomada deusa por sua pontaria na caça, sua pontaria nisto deixava muito a desejar.

     Apenas estava se pondo de pé quando suas próprias portas se abriram para dar passo a Ryssa.

     —Onde estiveste? —demandou em um tom que poucas vezes tinha escutado que utilizasse para dirigir-se a ele. Era uma mescla de raiva e preocupação—. Estive te procurando. Partiu-te durante horas.

     Era estranho como o tempo no Olimpo passava de diferente forma que aqui. Para ele, só tinham passado uns minutos.

     —Não estava em nenhum lugar importante.

     Estreitou o olhar sobre ele enquanto se aproximava. Era um olhar fixo de sondagem como se tratasse de desentranhar algum mistério.

     —Há algo diferente em ti.

     —Não há nada diferente.

     —Sim, há. Já não te encolhes como o fazias. Me olhas quando te falo. Há uma confiança e paz que antes não havia. O que causou esta mudança?

     —Não tenho idéia do que estás falando.

     Ryssa deu um passo mais, e então se congelou. O olhar se fixou em seu pescoço e antes que pudesse detê-la, alcançou-o e lhe afastou o cabelo para trás. Ofegou.

     —Estiveste com a Artemisa.

     O terror o encheu, mas se guardou de demonstrá-lo enquanto amaldiçoava em silêncio.

     —Não estive com ninguém.

     —Não sou tola, Acheron. Conheço as marcas que deixam os deuses —Olhou a cítara—. Conheço seus presentes.

     Maldição. Devia ter pensado nisso. Mas já era muito tarde. Tudo o que podia fazer era mentir e esperar que acreditasse nele.

     —Não estive com ninguém.

     —Por que não o dizes a Papai? —virou para ir-se.

     Acheron a agarrou pelo braço.

     —Escuta Ryssa. Não estive com ninguém. Não sei nada do que me estás falando. Se me amas embora seja um pouco, esquecerás este momento e fingirás que não viste nada… por favor.

     Ela posou uma tenra mão em sua bochecha.

     —Te amo, irmãozinho. Nunca te trairia. Se não queres que o diga, então não o farei.

     Ele moveu a mão para os lábios para poder lhe dar um beijo de gratidão.

     —Agora, para que me estiveste procurando todo o dia?

     —Queria ir ao mercado, mas não queria ir com um criado. Pensei que desfrutarias do passeio.

     —Por que não me perguntaste?

     Acheron olhou por cima dela e viu Styxx fora da porta com uma lívida expressão.

     Ryssa virou para olhá-lo com o cenho franzido.

     —Não pensei que tu gostarias. É bastante comum para ti, não é verdade?

     Styxx torceu o lábio.

     —Preferes estar com uma abominação que comigo?

     —Acheron não é uma abominação.

     Nada escondeu a dor nos olhos de Styxx e isso confundiu a Acheron, que seu irmão se sentisse dessa maneira considerando toda as pessoas que o amavam, respeitavam e admiravam.

     —Por que sempre o defendes? —perguntou-lhe, a voz carregada de dor e ira—. Cada vez que olhamos ao redor, já estás escapulindo-te para estar com ele.

     Ryssa estava horrorizada.

     —Pelos deuses, estás ciumento?

     —Desse verme? Nunca!

     Mas o estava. Acheron podia vê-lo claramente.

     Styxx enterrou os talões e se afastou furiosamente. Ryssa correu atrás dele e o deteve no centro do corredor. Acheron foi até a porta para observá-los.

     —Styxx… o que é que passas contigo?

     —O que acontece? O fato de que minha irmã desfile pelos arredores com um puto e degrade a si mesma lhe rogando por consolo quando nem sequer reconhece ao irmão que a ama.

     —Tu nunca quiseste estar comigo. Tudo o que tens feito é ridicularizar a mim e a minhas ações, como agora.

     Sacudiu a cabeça.

     —Não o recordas, não é verdade?

     —Recordar o que?

     —Qualquer momento em que Acheron e eu nos cruzávamos, corrias a embalá-lo enquanto me ignoravas. Cada vez que te alcançava não podias sem nem te incomodar comigo. Acheron é tudo o que te há importado.

     Ryssa negava com a cabeça com a mesma incredulidade que Acheron compartilhava.

     —Não é possível que estejas ciumento de Acheron.

     —Não te atrevas a rir de mim! —Seus olhos se entrecerraram perigosamente—. Sou o príncipe e herdeiro. Posso te assassinar, irmã ou não.

     Acheron viu as lágrimas em seus olhos enquanto que aquela ameaça e fúria o envolviam. Deixou a porta para defender a sua irmã.

     —Não te atrevas a lhe falar assim!

     Styxx o esbofeteou tão forte, que os lábios e nariz explodiram em sangue.

    —Não te atrevas a te dirigir a mim outra vez. Desejo que pelos deuses saibas a humilhação que me causaste. Sempre que entro em uma habitação vejo as sarcásticas olhadas, escuto os comentários sussurrados e insultos sobre meu gêmeo e suas habilidades sem igual. Por causa tua não conheci minha mãe. Quase nem conheço minha irmã. Odeio-te com uma paixão tão fervente que não posso imaginar maior prazer que te assassinar. Se só os deuses me concedessem esse desejo.

     —Styxx! —exclamou Ryssa—. Como te atreves?

     Os lábios se torceram ante ela.

     —Não te atrevas a me arreganhar. Ao final os dois não são mais que putas. Por debaixo de mim—. E partiu.

     O coração de Acheron sangrou por sua irmã enquanto as lágrimas rodavam pelo rosto. Devorou-a para seus braços.

     —Não és nenhuma puta, Ryssa.

     —Não o sou? Diga-me qual é a diferença entre nós?

     —És amada e reclamada por um que te leva a sua cama. Me acredite, há uma grande diferencia.

     Não, sua irmã era amável e delicada de nascimento. Era uma dama. Styxx era um imbecil. E a única merda na família era claramente, Acheron.

23 de junho, 9528 a.C.

     —Feliz aniversário, Acheron.

     Acheron se virou para onde provinha o som da voz de Ryssa. Dolorido pela noite que passou com Artemisa, encontrava-se um pouco desorientado. Tinha ido a sua cama no Olimpo, mas em algum momento devia ter retornado ao seu próprio quarto.

     —Bom dia, irmã. —via-se particularmente radiante hoje. O cabelo loiro caía ao redor da cabeça em pequenas tranças que estavam sustentadas em seu lugar por um jogo de pentes de prender cabelos prateados que tinha comprado para ela umas poucas semanas antes, quando tinham ido juntos ao mercado. O leve vestido azul que usava fazia com que seus olhos brilhassem radiantes enquanto punha as mãos contra seu estômago. Sua gravidez apenas se notava.

     —Te levante e vista-te. Hei dito ao cozinheiro que te prepare um café da manhã especial de celebração só para nós dois. Trarão-nos a comida em breve.

     Olhou por trás dela, mas não viu nada.

     —Onde está?

     —No andar de baixo.

     Acheron sacudiu a cabeça.

     —Não me está permitido comer na sala de jantar. Sabes.

     Afastou suas palavras.

     —Papai esteve até tarde com Styxx. Não despertarão até dentro de umas horas. Quero te dar este pedacinho de normalidade, irmãozinho. Merece-o. Agora te vista rápido e te una ali comigo.

     Acheron em realidade não queria fazê-lo. Odiava aventurar-se nos aposentos do andar de baixo, onde sua família havia dito claramente que não era bem-vindo. Mas Ryssa se colocou em problemas por ele. O mínimo que podia fazer era alegrá-la.

     Deixando a cama, vestiu-se rapidamente e se reuniu com ela no vestíbulo. Ela envolveu o braço ao redor do dele e sorriu.

     —Esta é a primeira vez que celebramos o aniversário de seu nascimento juntos. Agora tens vinte anos e no próximo ano alcançarás a maior idade.

     Como se isso fosse fazer uma diferença para ele.

     —Há uma festa planejada para Styxx?

     Ela desviou o olhar com expressão inquieta.

     —Sim. Esta noite como cada ano.

     —Então desaparecerei.

     O olhar em seus olhos refletiu a dor que sentia por dentro. Mas ambos sabiam que seria tão bem-vindo à festa como uma praga de desprezíveis rãs. Sem dizer uma palavra, levou-o para a sala de jantar onde tinha disposto um grande bufê.

     —Não estava segura do que irias quere assim fiz com que preparam um pouco de tudo. —Tomou um prato e o estendeu antes de beijá-lo na bochecha—. Feliz aniversário, irmãozinho.

     Nada poderia havê-lo emocionado mais.

     —Obrigado.

     Seguiu-a enquanto lhe explicava os diversos pratos.

     Enquanto Acheron alcançava um pedaço de fruta, lhe tomou a mão e riu.

     —Não comemos isso. São decorativas. —Golpeou-a com a mão—. Vês? É gesso.

     Riram juntos ante sua ignorância.

     —Oh, faz bem a um pai escutar aos seus filhos rindo um com outro.

     Acheron congelou ante o som de seu pai entrando em quarto atrás dele. Terror frio se filtrou em todo seu ser.

     Ryssa cobriu seu pânico com um deslumbrante sorriso.

     —Bom dia, Papai. Haviam-me dito que te levantarias tarde hoje.

     —Há muito que fazer com os preparativos da celebração de Styxx. —Aplaudiu afetuosamente no ombro a Acheron antes de beijar sua bochecha.

     Saboreou e amaldiçoou o abraço a sua vez, Acheron fechou os olhos e conteve o fôlego. Seus olhos chapeados poderiam traí-lo. Sempre o faziam.

     —Estou surpreso de ver-te levantado, patife. Escutei que tinha levado três mulheres a sua cama ontem à noite. Satisfizeram-te bem, confio.

     Ryssa clareou garganta.

     —Papai, poderia falar umas palavras contigo lá fora?

     —Absolutamente.

     Acheron deixou escapar um leve suspiro de alívio enquanto seu pai caminhava longe dele. Colocou o prato abaixo e deu um passo para a porta quando o impensável aconteceu.

     Styxx entrou em quarto com um de seus amigos.

     —O que é isto? O que estás fazendo tu aqui?

     Seu pai se voltou e amaldiçoou antes de olhar com fúria a Ryssa.

     —Enganou-me?

     —Não exatamente.

     A fúria distorceu seu rosto enquanto fechava a curta distância que os separava e esbofeteava a Acheron tão forte que o desequilibrou facilmente. Caiu ao chão, aturdido pelo golpe que lhe fez perder um dente frontal e lhe destroçou o nariz.

     —Te atreveste a profanar minha mesa!

     Ryssa avançou para eles.

     —Papai, por favor! Eu o trouxe aqui. Foi minha idéia.

     Voltou-se para ela com malícia.

     —Não te atrevas a defendê-lo. Ele sabe bem. —Levantou Acheron pelos cabelos e o empurrou contra a parede—. Quero que tudo o que tocou seja queimado. Agora! —Gritou aos serventes—. E tirem toda a comida.

     Acheron riu.

     —Realmente deve te incomodar não poder te desfazer de mim tão facilmente.

     Seu pai lhe deu um duro murro no estômago.

     —Pai, por favor. —Suplicou Styxx. —Recorda seu coração.

     Seu pai lançou a Acheron a um lado, lhe arrancando um punhado de cabelo no processo.

     —Tire este lixo fora de minha vista.

     —Guardas! —Rugiu Styxx. —Lhes leve ao bastardo lá fora e o batam-no.

     Acheron se ergue antes de aproximar-se de seu gêmeo.

     —Me diga uma coisa, irmão. O que te zangas mais sobre mim? O fato de que compartilho seu rosto ou o fato de que conheço exatamente o que queres fazer a teu melhor amigo… e com que freqüência? —Lançou um olhar significativamente ao homem que se encontrava por trás de Styxx que olhou para o outro lado com a cara vermelha. Acheron lhe sorriu—. É agradável ver-te de novo, Lorde Dorus, especialmente vestido.

     Styxx deixou sair um alarido de dor um instante antes de correr para ele, que tratou de defender-se. Mas era inútil. Seu irmão passava horas ao dia treinando para lutar. O melhor que pôde fazer foi cobrir a cabeça e tratar de proteger o rosto. Styxx o propinou golpe atrás de golpe nas costelas até que os guardas finalmente o afastaram.

    —Quero que sinta cada açoite.

     Acheron cuspiu sangue aos pés de Styxx.

     —Feliz aniversário para ti também.

     Com os ouvidos livres das palpitações de seu sangue e das maldições de Styxx, finalmente escutou os soluços de sua irmã enquanto suplicava ao seu pai por uma misericórdia que não tinha intenção de outorgar.

     Um guarda apertou o punho profundamente no cabelo de Acheron, então o empurrou fora da sala para o pátio que ele conhecia intimamente. Só deveriam mover sua cama aí fora e economizar todo o esforço.

     Rangeu os dentes enquanto lhe atavam as mãos e as roupas eram despojadas de seu corpo. Amaldiçoou aos deuses depois que o primeiro açoite cortasse a pele de suas costas. Malditos eles por isso. Era suficientemente ruim que o abandonassem, mas condená-lo a ter a habilidade de sarar a maioria das feridas, faziam seus castigos muito piores. Em lugar de tecido cicatrizado que formasse uma barreira contra o abuso, pele nova crescia a cada vez, o que significava que eles golpeavam carne fresca com cada açoite.

     E doía…

     Perdeu a conta das chicotadas enquanto tratava de enfocar-se em qualquer outra coisa. O suor misturado com o sangue que emanava das feridas em seu rosto fazia com que ardessem muito mais. De todas as maneiras o golpeavam.

     —Basta.

     Acheron franziu o cenho através da neblina de dor enquanto reconheceu a voz de Styxx. Sua respiração era desigual, não podia imaginar por que Styxx deteria o castigo que tinha pedido.

     Até que seu irmão aproximou seu rosto até estar olho com olho. O ódio no olhar de Styxx era penetrante.

     —Nos deixem. —Ordenou aos guardas.

     Acheron escutou como se fechava a porta. Abriu a boca para mofar-se de seu irmão, mas antes que o fizesse, Styxx estampou uma barra de ferro ao longo das costelas com suficiente força para levantá-lo de seus pés. Toda respiração escapou rapidamente de seus pulmões.

     —Achas que és tão fodidamente esperto… —Se mofou—. Vamos ver quão esperto és agora.

     Styxx desapareceu de sua vista. Voltou um momento depois com um marcador de ferro vermelho vivo. O pânico o encheu. Brigou contra as ataduras com cada porção de força que tinha. Mas estava debilitado pela surra e o dominaram completamente.

     Com um brilho de sádica satisfação, pôs o ferro sobre o rosto de Acheron. Gritando, Acheron tratou de afastar-se, mas tudo o que pôde fazer foi cheirar a carne queimada. Sentindo a profunda e penetrante dor que o atravessava.

     Sorrindo, Styxx o separou e caminhou por trás dele novamente.

     Pendurando flácidamente, não pôde fazer nada mais que gritar pela agonia de seu rosto que continuava queimando. Quando Styxx retornou, levava um novo ferro.

     —Por favor, m… m…misericórdia —rogou—. Por favor, não… irmão.

     —Não somos irmãos, Bastardo! —Styxx gritou antes de pôr o ferro contra a virilha de Acheron.

     Gritou. Lágrimas se derramaram enquanto rogava para que a morte chegasse e detivera esta tortura.

     —Onde estão suas risadas agora? —Perguntou Styxx, removendo o ferro a um lado—. Nunca voltará a te burlar de mim de novo, tu, fodido puto.

     Acheron sentiu algo frio e afiado lhe perfurar a bochecha. Olhando para baixo, viu a adaga na mão de Styxx que a tinha enterrado até o punho. Provou mais sangre na boca enquanto se afogava nele e a dor o queimava.

     —Não te preocupes —disse Styxx movendo a adaga de um puxão—. Viverás. —Deslizou a lâmina para baixo através da bochecha sem queimar de Acheron, abrindo-a até o osso.

     Styxx o cortou, logo se afastou sem sequer jogar uma olhada para trás.

     Acheron jazeu na terra, a cabeça dando voltas enquanto uma dor inimaginável o atravessava.

     —Por favor, deuses —murmurou desesperadamente. —Por favor, me permitam morrer.

     Exalou profundamente e se rendeu à escuridão.

     Artemisa estava tratando de ser paciente enquanto observava as oferendas que os humanos levavam ao seu altar. Mas isso não lhe interessava.

     Não tinha visto Acheron em dois dias e esta era a celebração de seu aniversário, algo que não teria sabido se Apolo não lhe houvesse dito sobre a festa desta noite. Não sabia por que Acheron não o tinha mencionado, mas assim era ele de estranho.

     Apolo não ia à festa, mas sua mascote sim.

     O que significava que Artemisa era livre para visitar Acheron depois.

     Obrigatoriamente tinha permanecido em seu templo durante todo o dia. O sol se pôs uma hora antes e enquanto o dia se voltava noite, estava inquieta para que terminasse.

     Um homem velho se aproximou com uma cabra.

     Oh, isto não servia de nada. O que ia fazer com uma cabra? Estalando os dedos, concedeu-lhe seu desejo incluso antes de escutá-lo.

     Agarrou o anel que tinha feito para Acheron e os abandonou sabendo que continuariam fazendo oferendas nas quais não estava interessada. A diferença destes outros gementes, patéticos humanos, seu Acheron poderia agradá-la.

     Inclusive quando não queria agradá-la, o fazia.

     Sorrindo, materializou-se em sua bancada, esperando que estivesse em sua posição habitual.

     Estava vazio. Franzindo o cenho, olhou sobre a borda para ver os nobres e dignitários reunidos pelas festividades. Certamente Acheron não estava aí. Não gostava de tais eventos.

     Caminhou através das portas sem as abrir. Seu cenho se dissolveu enquanto via Acheron já na cama. Bom. Podia unir-se a ele aí.

     Mas enquanto se aproximava, diminuiu o passo. Seu fôlego era superficial e desigual. Jazia com as costas para ela e ao aproximar-se, viu as manchas rosas nos lençóis.

     Sangue. Sangue de Acheron.

     Era muito mais do que alguma vez tinha visto.

     Aterrorizada, moveu-se ao redor da cama para encontrá-lo chorando em silêncio. Mas isso não foi o que mais a surpreendeu. Era a vista de seu belo rosto. Ou o que restava dele.

     Um lado tinha uma ferida bestial e enorme que expunha parte do osso e do outro, uma queimadura que tinha deixado seu olho esquerdo parcialmente fechado, a carne queimada e a boca torcida.

     —O que aconteceu? —Demandou enquanto o aborrecimento a rasgava.

     Ele não respondeu, mas a vergonha em seus olhos, a dor, rasgaram seu coração. Ajoelhando-se no chão, pôs a mão em sua bochecha queimada.

     —Me mate —exalou—. Por favor.

     Essa súplica dilaceradora trouxe lágrimas aos seus olhos. Querendo entender, usou seus poderes para ver que lhe tinha ocorrido. Enquanto cada cena desfilava em sua mente, a fúria crescia.

     Como se atreviam a fazer isto a ele!

     Sentiu que seus dentes cresciam ao triplo, tão afiados como sua necessidade de vingança.

     Acheron gritou enquanto Artemisa curava seu maltratado corpo. Em cada lugar onde estava mal ferido, a cura era igualmente dolorosa.

     Uma vez curado, Artemisa o recolheu em seus braços e o sustentou de uma forma que ninguém nunca antes o tinha feito, como se lhe preocupasse.

     —Sinto-o tanto, Acheron. Por que não me chamaste?

     —Não terias vindo.

     —Sim, o teria feito.

     Mas sabia a verdade. Nunca teria arriscado a ser vista.

     —Agora estás aqui. Isso é suficiente para mim.

     Assentiu enquanto lhe penteava o cabelo retirando-o de seu rosto.

     —E pobre dos bastardos por isso. Os que te machucaram sofrerão por isso. —Tomando a mão, tragou-o da cama.

     Quando começou a ir para a porta, ele se congelou.

     —O que estás fazendo?

     —Vou fazê-los pagar.

     —Como?

     Ela riu malévolamente.

     —Confia em mim, amor. O desfrutarás.

     A seguinte coisa que soube é que estavam no salão de baile, sem serem vistos pelos farristas. Artemisa caminhou para Styxx que estava ao lado de sua prometida, rindo presunçosamente com um grupo de amigos que estavam burlando-se de uma jovem pouco atrativa no canto. A mulher tinha lágrimas nos olhos enquanto tratava de ignorar as risadas e os comentários brutais.

     Inclinou-se para frente para sussurrar no ouvido de Styxx.

     —Queres ver humilhação, tu pequeno patife? Estás a ponto de ter uma lição de primeira mão sobre isso.

     Um segundo Styxx estava rondo. No seguinte estava vomitando sobre Nefertari e seus amigos. De fato, vomitou tão fortemente que perdeu o controle de sua bexiga e se molhou. Quando tratou de correr, tropeçou e caiu no desastre.

     Acheron olhou para outra parte, como aborrecido por isso, como todos os outros.

     Mas não tinha terminado. Elevando a mão, abriu as portas duplas que davam ao jardim. Uma matilha de cães zangados entrou e correram atrás de Styxx em vingança.

     Seu pai correu até o herdeiro que estava no chão, gritando por ajuda.

     Artemisa brindou a Acheron um sorriso torcido antes que todos na festa, exceto Ryssa e a mulher que da qual se burlaram, adoecessem-se. Os guardas trataram de proteger a Styxx dos cães um instante antes que descarregassem seus estômagos por todo o príncipe.

     Fechando a distância entre eles, uniu suas mãos satisfeita.

     —Não sei tu —disse com um brilho malévolo nos olhos verdes—, mas eu me sinto melhor. —Olhou orgulhosamente ao redor—. Estarão melhor pela manhã. Mas nenhum deles estará fora de suas camas até muito depois de amanhã. Pelo que diz respeito a Styxx, sentirá os efeitos de sua crueldade pelo menos uma semana.

     Acheron desejou obter satisfação na dor ao seu redor, mas não. Ninguém merecia o que ela tinha feito esta noite mais do que ele merecia o que Styxx lhe tinha feito.

     Ela inclinou a cabeça.

   —Não estás feliz?

     Jogou uma olhada aos pobres desgraçados ao seu redor.

     —Obrigado por me vingar. Significa muito, Artie. De verdade. Mas tendo estado no extremo receptor da crueldade minha vida inteira, não obtenho prazer em machucar aos outros, assim, não, não me faz feliz vê-los assim. Especialmente àqueles que nunca me têm feito mal.

     —És um parvo por não fazê-lo. Eles não seriam tão amáveis contigo.

     Em sua experiência, estava correto. Mesmo assim, não podia deixar-se levar pela risada ante a humilhação que sofreram.

     Artemisa deixou escapar um som de desgosto.

     —És um humano tão estranho… —Colheu a bochecha com a mão—. Advirto-te que, se alguma vez voltar a marcar seu rosto de novo desatarei uma agonia da qual nunca se reporá.

     A ira e a sinceridade de seu olhar o queimaram. Só Ryssa tinha estado alguma vez tão indignada por seus castigos. O fato de que se preocupasse fez com que percorresse um comprido trecho no caminho para apagar a irritação que tinha albergado contra os deuses.

     Na verdade, tinha mantido sua palavra e não tinha feito nada para machucá-lo.

     Não confies nela.

     Mas seu coração queria acreditar que em algum nível o amava, que se preocupava.

     Levantou-se para beijá-lo. No instante que os lábios se tocaram, levou-o ao seu templo. Acheron sentiu uma estranha energia atravessá-lo.

     —O que…?

     Os olhos de Artemisa adquiriram um brilhante resplendor.

     —Dei-te o poder para lutar e proteger a ti mesmo. Tinhas razão. Nem sempre posso estar ali quando me necessitas. Mas —colocou a ponta de seu dedo sobre seus lábios—. Não poderás usar essas habilidades sobre um deus, só com um humano.

     —Por que quereria atacar a um deus?

     Ela inclinou a cabeça contra seu ombro e inalou a essência masculina. Adorava a inocência em seu interior que não podia sequer conceber em feri-la.

     —Alguns homens o fazem.

     —Os homens fazem um montão de coisas com as quais não estou de acordo.

     —E é por isso que te dou os poderes que necessitas. Não quero que te firam outra vez dessa maneira.

     Acheron tratou de lutar contra o amor que se inchava dentro dele. Mas não podia. Não quando lhe dava tanto. Nem quando o tocava dessa maneira e o fazia sentir-se decente e querido.

     Apertou-o contra ela, então se separou para lhe estender uma pequena caixa.

     —O que é isto?

     —Meu presente para celebrar seu nascimento. Abra-o.

     Atônito, olhou-a boquiaberto. Honestamente, não podia assimilar o que estava sustentando em suas mãos.

     —Estás me dando um presente?

     —É obvio.

     Mas não podia ser tão simples. Nada o era.

     —O que queres em troca?

     Ela franziu o cenho.

     —Não quero nada em troca, Acheron. É um presente.

     Ainda assim sacudiu a cabeça em uma negação.

     —Nunca se dá nada livremente.

     Ela fechou as mãos ao redor dele e acariciou seus dedos.

     —Este te dá livremente, akribos. E desejo ver-te abri-lo.

     Realmente, não podia entendê-lo. Por que o dava um presente?

     Com o coração acelerado, abriu a caixa para encontrar dentro um anel. Agarrando-o, viu um duplo arco e flecha sobre ele, mas quando moveu o anel, mudou à imagem da Artemisa no ato.

     Ela sorriu felizmente.

     —É um anel insígnia. O dou aos meus seguidores aos quais outorgo a habilidade de me convocar. A maioria deles tem que procurar uma árvore e realizar um ritual e dizer as palavras corretas. Mas tu, meu Acheron, podes me convocar a qualquer momento.

     Quando começou a colocar o anel, deteve-o.

     —Deverias estar resguardado sobre seu coração —apareceu uma corrente de ouro e quando o colocou ao redor do pescoço, lhe ocorreu outro pensamento. Não era só sobre seu coração… Resguardar este anel era também ocultá-lo à vista.

     Ao menos pensou o bastante em ti para te dar um presente.

     Isso era verdade.

     Beijou-lhe a bochecha, então manifestou uma espada em sua mão. Passando-lhe deu-lhe uma piscada.

     —Mostre-me o que fazes.

     —O que queres dizer?

     Ela inclinou a cabeça por volta de duas guerreiras sombras atrás dele.

     —Lute com eles, Acheron. Qualquer coisa que necessites para vencê-los será tua.

     Cético, afastou-se um passo. Mas no momento em que eles se aproximaram, seu corpo sabia instintivamente como lutar.

     Sorriu com satisfação enquanto via Acheron combater com as sombras. Fazia uma boa ação por seu humano. E enquanto o observava, o calor invadiu cada parte dela. Movia-se igual ao mercúrio. Seus músculos se ondeavam e flexionavam, esforçando-se e refinando-se com cada golpe que parava e entregava. Sua fome aumentava e se perguntou por que seu sangue era tão aditivo… Mais inclusive que ao de seu irmão.

     Por que desejava Acheron assim?

     Contudo não negava sua atração. Agora mesmo, tudo o que queria era lançá-lo à cama e mantê-lo ali pelo resto da eternidade.

     O sorriso que lhe dedicou quando terminou com seus oponentes fez com que se derretesse.

   —Te disse —disse ela, aproximando-se dele.

     Acheron sustentou a espada em seu punho com uma confiança que nunca tinha conhecido em ninguém fora da cama. Não podia acreditar que finalmente soubesse como lutar tão bem como sabia como usar seu corpo para dar prazer aos outros. Era uma mescla vertiginosa. Poder…

     Agradecido a Artemisa, atirou a espada a um lado e a atraiu aos seus braços. Algo estranho rasgou através dele. Era como se uma parte sua tivesse sido liberada e o sacudia até os alicerces.

     Estremeceu-se quando viu os olhos chapeados voltarem-se vermelhos ao mesmo tempo em que seus lábios se voltavam negros. Tinha acontecido tão rápido que não estava segura de haver imaginado.

Então Acheron tomou posse de sua boca com uma fúria envenenada. Sentiu seu poder e isso a fez estremecer-se. Com o coração pulsando acelerado, rendeu-se. Empurrou-a para a parede atrás dele. Os lábios e língua queimando-a, e fazendo-a saber exatamente o muito que tinha estado contendo-se por ela todos esses meses passados.

     Este era um novo lado de seu mascote. E quando entrou nela, quase desmaia do prazer absoluto do ato.

     Era tão selvagem e sem domesticar como um predador em liberdade. O som de sua respiração, pontuado por grunhidos de prazer pendendo fogo a sua alma. Uma risada ficou presa em sua garganta. Se tivesse sabido que teria sido assim, tinha-lhe dado o presente há muito tempo.

     Deixando escapar um grito quando o orgasmo a atravessou, afundou as unhas em sua pele. Mas ele nem sequer se deteve enquanto se entregava aprofundando com fortes investidas em seu corpo. Não tinha pensado que fosse possível, mas seu prazer se incrementou enquanto explodia outro orgasmo.

     Quando ele finalmente gozou, ela estava completamente débil e saciada. Tanto que se deu conta que não se alimentou.

     Bendito Olimpo, Como podia ser?

     Sem esforço, Acheron a tomou em seus braços e a levou de volta ao templo, ao seu dormitório.

     —Como podes te mover sequer depois de tudo isto? —Perguntou sem fôlego.

     —Deusa, poderia voar agora mesmo se me pedisse isso.

     Rindo, Artemisa se recostou fracamente sobre a cama enquanto seu corpo permanecia animado por sua lembrança.

     Estendeu-se ao seu lado, então depositou uma chuva de beijos sobre os lábios e peitos.

     Ela sacudiu a cabeça ante ele.

     —Estás animado este dia.

     Deteve-se ante suas palavras antes que traísse a si mesmo. Não estava animado. A verdade era que suas ações tinham feito com que se apaixonasse por completo outra vez. Recordou no ato por que se havia aberto a ela. Artemisa era amável quando decidia sê-lo.

     Se não tivesse se preocupado por ele, suas feridas hoje não a teriam comovido. As feridas só significavam largos lucros para ele. Mas tinha estado realmente zangada com seu benefício.

     Ele tomou sua mão e a dirigiu aos lábios para poder lhe beijar a palma da mão.

     —Sempre serei teu servo, minha deusa. Prometo a ti para sempre.

     Ela riu bobamente.

     —Meu Acheron, não tens conceito de sempre.

     —Então prometo a ti pelo resto de minha vida.

     Afastou-lhe o cabelo, retirando-o de seu rosto.

     —Aceito essa promessa… E é a melhor que ouvi no dia de hoje. Agora venha me alimentar. Deixa-me terrivelmente faminta.

     Acheron se deslizou sobre seu corpo e lhe ofereceu seu pescoço. Ante a pontada de dor, recordou a Styxx pondo a marca sobre sua pele.

     Vaiando, afastou-se instintivamente. Sentiu a carne rasgada enquanto o sangue fluiu livremente pela ferida. Tratou de cobri-la, mas o sangue jorrava entre seus dedos, cobrindo-os e manchando os linhos brancos debaixo dele.

     Artemisa aspirou bruscamente enquanto se dava conta do que Acheron fazia. Seu sangue os cobria a ambos. Agarrou seu pescoço e o sustentou perto enquanto curava a ferida. Tremeu contra ela.

     —Nunca voltes a fazer isso, Acheron.

     Agora estaria muito fraco para ela. Conteve sua ira. Normalmente o teria castigado, mas já tinha tido suficiente. Limpando-o, recostou-o na cama para deixá-lo descansar.

     Tratou de manter-se acordado, mas seus olhos finalmente piscaram até fechar-se. Artemisa olhou fixamente para a formosa nudez em sua cama. As pernas e braços eram tão longos e elegantes, tão incrivelmente bem formados. Os músculos de seu estômago estavam cortados tão profundamente que pareciam cinzelados. E enquanto recordava a forma em que lhe tinha feito amor, ficou quente de novo.

     —Sempre deverias me tocar dessa maneira.

     Se só pudesse escutá-la.

     Estendeu-se para deslizar a mão por seu cabelo e no instante que fez contato, o cabelo se voltou azeviche. Afastou-se de repente e observou enquanto o azul piscava sobre sua pele.

     Aterrorizada, levantou-se de um salto da cama. O número vinte e um se escreveu ao longo de sua coluna antes que a cor desaparecesse e ele retornasse ao seu estado normal.

     Ela franziu o cenho confusa. Era uma reação por seu presente ou por alimentar-se dele? Nunca se tinha alimentado de um humano antes. Todos eles faziam isto?

     De novo o ouviu sussurrar em Atlante.

     —Não foi um feliz aniversário. Quero voltar para casa agora.

     —Acheron? —aproximou-se dele lentamente antes de sacudi-lo para despertá-lo.

     Abriu os olhos. Em lugar de prateado, eram tão negros que nem sequer pôde ver as pupilas. Logo piscou e voltou a dormir.

     Isto não era normal.

     —O que és?

     Cada poder divino que possuía lhe dizia que era humano. Mas isto não era típico dessa espécie.

     —Artemisa!

     Afastou-se de repente e se vestiu enquanto escutava o alarido de Apolo. Deixando a Acheron dormir em sua cama, materializou-se no centro de seu saguão, onde seu irmão estava com uma careta de aborrecimento no rosto.

     —Alguma coisa está errada?

     —Eu. Necessito de comida.

     Cruzou os braços sobre seu peito.

     —Por que estás tão zangado a respeito?

     —Quero a minha humana, mas está grávida e não pode sofrê-lo.

     —Tens outros.

     —Não os quero. —Agarrou-a. No momento que o fez se deteve, logo farejou seu cabelo. —Estiveste com um homem?

     Seu coração vacilou. Pouco disposta a trair a Acheron, esbofeteou a mão de Apolo.

     —Por que dirias tal coisa?

     —Há um cheiro estranho em ti. E é masculino

     Virou os olhos para cobrir o medo dentro dela.

     —Estive com humanos todo o dia, aceitando suas oferendas. Devo empestar ao seu fedor.

     Ele fechou o punho em seu cabelo. Artemisa fez uma careta, finalmente entendendo por que Acheron encontrava esse gesto tão ofensivo. Apolo limpou com o dedo atrás de sua orelha, então o estudou.

     —Sangue? Te alimentaste de outro?

     Endureceu-se e encontrou o olhar fixo em seu rosto.

     —Não sabia quando voltarias e estava faminta.

     Seus olhos se aguçaram.

     —Encontraste-te um mascote masculino?

     Arranhou a mão com a qual a sustentava seu cabelo.

     —És meu irmão mais novo, não meu amante. Agora me liberte ou sente a plenitude de minha ira.

     Empurrou suas costas.

     —Melhor deveria te recordar quem sou e quem és, irmã. —Franziu os lábios como se de repente lhe desgostasse—. Preferiria me alimentar de um criado.

     Artemisa conteve o fôlego até que partiu. O corpo inteiro estava tremendo de medo pela ira de seu irmão.

     A porta do quarto se abriu. Virou para ver Acheron olhando-a fixamente. Inclinou-se contra a porta com um braço apoiado. A mescla de poder e debilidade era fascinante.

     —Brigaria com ele pela desonra que sofreste.

     Seu coração estava quente pelo pensamento.

     —Nunca poderás brigar com ele, Acheron. Não tens poder para brigar com um deus. Mataria-te sem piscar. —Cortou a distância entre eles e envolveu seu braço ao redor de sua magra cintura—. Venha, meu doce. Precisas descansar.

     Mas enquanto o retornava à cama, o medo dentro dela cresceu. Se Apolo alguma vez se inteirava a respeito de Acheron, nenhum poder no Olimpo seria capaz de salvar sua vida.

 

25 de Agosto, 9528 a.C.

     Acheron jazia em sua cama, sentindo saudades de Artemisa. Mantendo seu anel sobre seu coração, sorriu ante a lembrança dela na última noite. Durante as semanas passadas tinha sido tão amável e bondosa com ele. Ninguém, nem inclusive sua irmã, tinha sido alguma vez mais solícita.

     Fechando seus olhos, pôde vê-la correndo até ele em seu jardim, rindo. Passaram horas caçando, praticando tiro ou só jazendo juntos em seu jardim enquanto ele tocava para ela e ela lia para ele.

     Como desejava que pudessem ficar assim.

     Infelizmente, ela não podia ter uma mancha sobre sua reputação e ele o entendeu, mesmo que o odiasse.

     Um golpe soou em sua porta.

     Rodando, viu Ryssa empurrar a porta. Fechou a porta cuidadosamente antes de apressar-se para ele. Foi surpreendentemente ágil dada a distensão de seu estômago.

     —Vens?

     Agora aí havia uma pergunta a que não estava acostumado a escutar de sua irmã.

     —Aonde?

     —Ao templo de Artemisa?

     Novamente, uma pergunta a que não estava acostumado a escutar.

     —Sobre o que estás falando?

     —Este é o dia de seu banquete. Haverá jogos e oferendas em seu templo todo o dia. Papai já enviou sua oferenda e está fiscalizando aos outros, mas penso que poderias ir também.

     Não com seu pai. Estava louca? Tinha estado fazendo um ponto para evitar qualquer contato algum com ele ou Styxx.

     Acheron sacudiu sua cabeça.

     —Não acredito que deva.

     Ela o interrompeu.

     —Estás louco? Não pensas que Artemisa poderia se ofender se alguém próximo não mostra a ela seu respeito?

     Acheron franziu o cenho. Faria-o? Artemisa poderia ser temperamental algumas vezes.

     Estarei no templo todo o dia, mas te verei depois. Desejo que não tivesse que esperar tanto para ver-te.

     Poderia isso ter sido um convite disfarçado?

     Não, Artie era algo, menos sutil.

     —Não tenho uma oferenda.

     Ryssa empurrou seu homem.

     —Faça uma de coração. Não lhe importará que seja. Mas tens que mostrar sua apreciação aos deuses, Acheron. É imprudente não honrá-los, especialmente quando um esteve mostrando um grau de favoritismo. —Sorriu-lhe—. Agora te vista. Tenho que ir e não posso esperar por ti. Mas te observarei no templo, não demores muito.

     Acheron não se moveu da cama até que Ryssa o deixou. Ainda não estava seguro se esta era a melhor idéia. Mas enquanto mantivera sua presença encoberta, não deveria haver nenhum mal. Só iria, faria uma oferenda e partiria.

    Ninguém, outra mais que Artemisa, nem sequer saberiam que tinha estado aí. E se isso a agradaria…

     Como não poderia honrá-la em seu dia de banquete depois de tudo o que lhe tinha dado? Queria que ela soubesse o muito que a amava. Queria que visse que estava disposto a arriscar sua vida por ela.

     Só de pensar em fazê-la feliz trouxe um sorriso ao seu rosto. Saindo da cama, tratou de pensar no que poderia desfrutar Artemisa. Gostava de escutá-lo tocar e amava seu corpo e sangue. Mas se ele fizesse uma oferenda pública disso, a zangaria…

     Pétalas de rosas brancas, por sua pureza e graça. E pérolas. A deusa amava as pérolas. Inclusive o tinha levado a mergulho de pérolas.

     Era isso, isso seria um presente perfeito para lhe mostrar que tão puro era seu amor e admiração por ela.

     Vestiu-se rapidamente, então se dirigiu ao mercado para comprar o que necessitava.

     Ao meio-dia, estava em seu templo o qual estava abarrotado com gente. Nobres e oficiais tinham uma entrada separada onde suas oferendas eram bentas pelos sacerdotes. Embora tecnicamente qualificado, Acheron ficou na fila comum. Não queria fazer qualquer coisa que atraíra a atenção para ele ou arriscar-se a zangar ao seu pai que se sentava em seu trono justo à direita da estátua de Artemisa, observando às pessoas. Apolo, Styxx e Ryssa estavam com ele.

     Cautelosamente, Acheron seguiu jogando uma olhada, rezando aos deuses que seu pai não o visse. Poderia fazer sua oferenda rapidamente e ir embora.

     Ninguém saberia.

     Mantendo seu rosto coberto, deu seus presentes ao sacerdote para que pudesse colocá-los no altar.

     —Qual é seu pedido à deusa, paidi?

     Acheron sacudiu a cabeça.

     —Nada, papas. Só lhe ofereço meu respeito e amor.

     O sacerdote assentiu com aprovação antes de tomar uma pequena tigela de pétalas de rosa e pérolas. Enquanto Acheron se afastava, alguém na multidão o empurrou, cambaleando-se sobre uma mulher que segurava um bebê. Ela gritou enquanto perdia seu equilíbrio e seu agarre.

     Acheron congelou enquanto compreendeu que o bebê golpearia o chão a não ser que ele deixasse cair sua capa para agarrá-lo. Se fazia isso, seria exposto e assim perto como estava de seu pai, não havia maneira de que escapasse sem ser notado.

     Mas não havia opção.

     Apanhou ao infante em seu peito enquanto a mãe caía. Estendendo o braço para salvá-la, ela tomou sua capa e a deixou livre.

     Acheron estremeceu enquanto toda a atenção se voltava até ele. Sempre tinha odiado esta atenção e se ele pudesse, faria-se invisível. Mas não havia escapatória disto.

     Rugindo com irritação, seu pai ficou rapidamente em pé.

     Doente do estômago, Acheron ajudou à mulher a levantar-se e lhe devolveu o bebê.

     Ela estava soluçando em alívio.

     —Muito obrigada por sua amabilidade. Bendito seja por salvar ao meu filho.

     —Agarrem-no! —ordenou seu pai aos guardas.

     Acheron encontrou o olhar de Ryssa e viu seu próprio horror refletido no rosto de sua irmã enquanto os guardas o agarravam por seus braços e o arrastavam ante seu rei. O pensamento da briga atravessou sua mente, mas qual era a utilidade? Eles só estavam fazendo o que lhes haviam dito. Além disso, a multidão ao redor deles estava apertada e gente inocente seria machucada se o fazia.

     Encontrou a fúria de seu pai sem encolher-se.

     —Como te atreves a desonrar este templo! —voltou-se para os guardas—. Encerrem-no em seus aposentos até que termine aqui.

     Acheron sorriu malignamente. Uma promessa tão doce dos lábios de seu pai. Não podia esperar até o anoitecer.

     Pela primeira vez, Acheron olhou para Apolo cuja mofa para ele era tangível. Se só o Deus soubesse a verdade…

     Tomando uma respiração desigual, observou aos sacerdotes remover sua oferenda do altar enquanto era arrastado do templo.

 

     Artemisa olhou para cima desde seu citara enquanto Apolo se manifestava em sua sala de visitas. Tinha estado tratando de tocá-la da maneira que Acheron o fazia, mas não tinha talento para a música. Sua frustração estava já alta e a presença de seu irmão fazia pouco para aliviá-la.

     —O que estás fazendo aqui?

     Ele sorriu presunçosamente.

     —Por que não estava em Didymos hoje?

     —Disseste que ias estar em meu lugar. Não vi o ponto de que ambos estivéssemos aí. —Mas a verdade era que não queria estar próxima da família de Acheron. Eles a desgostavam. Se tivesse ido, Styxx teria tido muito mais que só uma enfermidade do estômago visitando-o. É obvio que isso poderia alertar a seu irmão a respeito de seus sentimentos por Acheron assim pensou melhor que só se mantivera longe deles. — Por que? Perdi-me algo?

     Ele puxou um formoso fio de pérolas ante ela. Estavam cobertas com pétalas de rosas brancas. Artemisa franziu o cenho enquanto ia atrás delas.

     —O que é isto?

     —O Príncipe Puto trouxe essas para ti.

     Seu coração cessou de pulsar.

     —Como?

     —Realmente foi entretido. Veio com o resto da imundície e depois o entregou estas dizendo que não pedia nada de ti em troca por seu presente, foi expulso. A última coisa que soube, era que iam fazê-lo pagar por te desonrar.

     Tomou cada pedaço de controle que tinha para não trair sua relação. Mas na verdade, a garganta lhe ardia com lágrimas por seu Acheron… e amarga irritação de que o ferissem novamente. Queria beijar as pérolas que lhe tinha presenteado porque ela sabia que era diferente dos outros tributos, o seu tinha vindo verdadeiramente de seu coração. Mais que isso, queria ir até Acheron e ajudá-lo.

     Se só pudesse.

     Acalmando-se, puxou as pérolas.

     —Por que me traria elas?

     —Pensei que deverias saber que um puto transgrediu seu templo. Zeus sabe, que não toleraria tal pessoa no meu. Iremos exatamente por nossa própria vingança sobre o puto?

     Ela retornou a rasgar sua cítara.

     —Não vale meu tempo.

     —Desde quando não tens tempo para a vingança?

     —Desde que prefiro estar aqui e tocar. Agora saia e visita a um de tuas mascotes. Não posso estar molesta contigo.

     —Faz o que queiras.

     Artemisa não se moveu até depois de que a deixara. No momento que o fez, estendeu sua mão para as pérolas. Elas voaram em sua mão. As esfregando contra seu coração, foi ver se poderia ajudar a Acheron.

 

    Acheron estava no pátio com as mãos atadas por cima de sua cabeça. Seus lábios e o nariz já sangravam dos golpes que Styxx alegremente tinha chovido sobre ele.

   Ele cuspiu sangue sobre a terra antes que estreitasse um olhar assassino ao seu irmão.

     —Não deverias estar no templo ainda?

     Styxx lhe deu um murro tão duro que suas orelhas soaram.

     Acheron riu ante a patética bofetada.

     —Golpeias como uma anciã.

     Styxx caminhou para frente, mas foi detido por seu pai que entrou através das portas. O aspecto em seu rosto era um de supremo desgosto.

     Acheron suspirou.

     —Sei que não devia ter ido. Poderíamos só começar a surra, finalizá-la e me deixar retornar ao meu quarto?

     Seu pai estreitou os olhos.

     —Por que estás tão ansioso de ser golpeado?

     —É a única atenção que obtenho de ti, Papai. Como com Estes. Assim deixa que os golpes comecem.

     Seu pai enterrou seus dedos em seu rosto enquanto o ódio ardeu em seus olhos azuis.

     —Hei-te dito que não menciones o nome de meu irmão com tua asquerosa boca. —Seu olhar desceu para o colar que Acheron levava.

     Acheron conteve seu fôlego enquanto se dava conta de que tinha esquecido de tirar o presente de Artemisa antes de ir ao seu templo. Seu coração se deteve e pela primeira vez ele provou o medo enquanto seu pai libertava seu rosto e o arrancava para examiná-lo.

     —O que é isto?

     Acheron se forçou a permanecer calmo e despreocupado.

     —Uma bagatela que comprei.

     Styxx o olhou por sobre o ombro de seu pai.

     —É o mesmo anel que os sacerdotes da Artemisa usam para convocá-la. —Suas feições se endureceram—. O roubaste!

     Seu pai o tirou do pescoço, causando que a corrente cortasse sua pele antes de romper-se.

     —Achas que os deuses dão uma merda por ti?

     Não como regra, mas Artemisa sim.

     Styxx tomou o anel e tomou uma concha de água.

     —Devemos ensinar ao ladrão uma lição. —antes que Acheron pudesse se mover, Styxx empurrou o anel na boca de Acheron e derramou água nela, forçando-o a engoli-lo.

     Lágrimas se aglomeraram nos olhos de Acheron enquanto o anel arranhava sua garganta e queimava. Engasgou-se com ele e a água, mas Styxx não amainou até que esteve satisfeito de que o anel fosse completamente tragado.

     Acheron tossiu e cuspiu, tratando de recuperar seu fôlego.

     Styxx agarrou seu cabelo.

     —Um puto desonrou a nossa amada deusa virgem no dia de sua festividade. Acredito que deve ser castrado publicamente.

     Os olhos de Acheron se ampliaram ante o castigo.

     Seu pai riu com aprovação antes de cortá-lo.

     —Isso agradaria a Artemisa, acredito.

   Acheron tratou de correr, mas seu pai o agarrou e o atirou ao chão.

     Acheron se levantou para encontrar Ryssa unindo-se a eles. Seu pai o golpeou de novo e o girou ao redor para que pudesse sujeitar Acheron à parede com seu antebraço atravessado sobre a garganta de Acheron.

     —Te explique, puto. O que te fez te aventurar ao templo?

     Ryssa correu até Acheron.

     —Diga-o. Deves dizê-lo.

     O medo o agarrou enquanto negava com a cabeça para ela.

     —Nos dizer o que?

     —Não o faça, Ryssa, —Acheron sussurrou desde sua garganta apertada enquanto tratava de empurrar a um lado o braço de seu pai—. Rogo-lhe isso. Se me amar embora seja um pouquinho, não me traias.

     —Vão castrar-te. Se conhecerem a verdade, te deixarão partir.

     —Não me importa.

     Ryssa afastou ao seu pai dele.

     —Pare Papai! É inocente. Está com Artemisa. Diga-o Acheron! Pelos deuses, lhe diga a verdade para que pare esta surra.

     Seu pai o atirou ao chão. Logo o chutou nas costas e pressionou um pé na garganta de Acheron ao ponto que a bílis aumentou até afogá-lo.

     —Que mentiras lhe contaste, verme?

     Acheron tratou de empurrar o pé longe, mas seu pai o pressionou inclusive mais duro contra sua traquéia. Falar era tudo menos impossível.

     —Nada, p-p-por favor…

     —Blasfemo. —Seu pai se afastou então e deixou de estrangular a Acheron enquanto ele tratava desesperadamente respirar através de seu esôfago machucado—. Dispam-no e arrastem-no ao templo de Artemisa. Deixaremos que a deusa testemunhe seu castigo e se realmente estiver com ela, então estou seguro que sairá em sua defesa—. Voltou um olhar presunçoso a Ryssa.

     Os guardas se moveram para frente, mas Ryssa ficou na frente dele. A única maneira de tê-lo seria machucar a ela e possivelmente ao bebê que levava.

     —Pai, não podes.

     —Isto não te concerne.

     —Se lástimas a Acheron, Artemisa desatará horrores inexprimíveis sobre ti.

     Seu pai riu.

     —Estás louca?

     —Não, Ryssa, por favor, pare! —Implorou Acheron—. Não o faças.

     —Acheron é seu consorte.

     Acheron não pôde respirar enquanto essas palavras soavam em seus ouvidos… Ryssa o tinha traído. Mas em seu mundo os deuses protegiam a seus mascotes. Não tinha razão para pensar que Artemisa não viria a salvá-lo da maneira que Apolo a salvasse. Uma pena que Artemisa não fora como seu irmão. Fechando seus olhos, desejou-se morto.

     Quando os abriu, viu um contorno de Artemisa nas sombras. Estava sustentando suas pérolas.

     A risada de seu pai se mesclou com a de Styxx.

     —És o consorte de Artemisa?

     Acheron não pôde responder enquanto via o olhar de horror marcado no rosto de Artemisa. Desapareceu por trás de um olhar de fúria tão evidente que o chamuscou.

     Seu pai se burlou.

     —Realmente esperas que creia que uma deusa teria algo a fazer contigo?

     Acheron não pôde falar. Não podia nem sequer negá-lo. Artemisa tinha congelado suas cordas vocais.

     Pensa no que lhe disse…

     Acheron sacudiu sua cabeça para ela, tratando de fazê-la entender que não havia dito a ninguém.

     Seu pai o agarrou pela garganta de novo.

     —Bom. Vamos ver o que a deusa pensa de ti. —voltou-se para os guardas—. Levem-no ao templo da Artemisa. —burlou-se de Acheron—. Se significar tanto para a deusa, certamente virá a te salvar. Se não, ensinaremos ao mundo o que fazemos às putas blasfemas. Golpeiem-no no altar até que Artemisa se mostre.

     —Não! —Chiou Ryssa.

     Era muito tarde. Completamente nu, Acheron foi arrastado sem cerimônias fora do palácio e através das ruas abarrotadas.

     Seu corpo estava ensangüentado antes que chegasse ao templo. Todo mundo se afastou ao tempo que os guardas o arrastavam ao altar e o amarravam entre duas colunas.

     —O que é isto? —exigiu o líder dos sacerdotes.

     —Por ordens do rei, o blasfemo será castigado até que a deusa apareça. Ele será golpeado em seu nome até que se mostre para detê-lo.

     Acheron encontrou o olhar de Artemisa e a satisfação nesses olhos verdes o queimou.

     —Disse-te que aconteceria se me traías. —Sua voz sussurrou através de sua cabeça.

     Afogou-se em suas lágrimas enquanto a primeira chicotada fatiou através de suas costas.

     —Não te traí, —sussurrou—. O juro.

     Artemisa se moveu para frente e o golpeou sobre o rosto com as pérolas que lhe tinha presenteado.

     —Batam nele com mais força, —sussurrou ao seu castigador. —Façam que sinta cada chicotada.

     Acheron gritou enquanto as chicotadas cortavam mais profundas.

     A multidão ovacionou sua surra. Lembranças reprimidas o atravessaram mais afiadas que as chicotadas. Estava de novo na casa de Estes, rodeado de gente, arrastando-o, agarrando-o, chamando por sua submissão e humilhação. Quantas vezes vaiaram? Rindo e burlando?

     —Me rogue misericórdia, puto… —A voz de seu tio era forte e clara.

     Acheron sustentou o olhar de Artemisa. Como podia fazer isto a ele? Como?

     Artemisa por dentro se encolhia ante a tortura e a dor nesses tempestuosos olhos chapeados. Acusavam-na como se estivesse equivocada. Advertiu-lhe do que passaria se dizia a qualquer um. Pensou por um minuto que ela tinha estado brincando?

     —Dei-te tudo, —grunhiu-lhe, assegurando-se de que só Acheron podia vê-la ou escutá-la—. Tudo!

     Ele baixou a cabeça antes de sussurrar no mais baixo de seus tons.

     —Te amo.

     Artemisa chiou em ultraje de que se atrevesse a lhe dizer isso depois do que tinha feito neste dia. Se alguém descobria que lhe tinha permitido tocá-la, estaria arruinada. Pensou que seu miserável amor poderia diminuir sua humilhação? Sua ruína? Era amor a pôr de joelhos para que a ridicularizassem ao seu lado?

     —Golpeia mais forte! —urgiu ao guarda—. Quero seu sangue cobrindo o piso de meu templo.

    Isso lhe ensinaria!

     —Não és ninguém para mim, humano, —burlou-se em sua orelha—. Nada.

     Acheron deixou correr suas lágrimas enquanto Artemisa o abandonava. Não havia necessidade de rogar seu perdão ou misericórdia quando era óbvio que era evidente que não havia nenhum que lhe concernisse. Mais que isso, sentiu-a lhe arrancar sua habilidade de lutar. Tomou tudo dele.

     Incapaz de suportar a dor, rendeu-se à inconsciência. Mas foi efêmera enquanto o reviviam para golpeá-lo mais.

     Em sua terceira sessão, abriu os olhos para encontrar ao seu pai e Styxx parados frente a ele.

     —Onde está tua deusa, verme?

     Olhou a Ryssa cuja cara estava pálida e marcada. Viu a culpa em seu olhar enquanto lágrimas fluíam por suas bochechas.

     —Não tenho deusa. —Não tinha a ninguém e sabia—. Só me castrem e acabemos de uma vez.

     Mas não o fizeram. Preferiram golpeá-lo até que perderam a conta das chicotadas. Vagando fora e dentro da consciência, não estava seguro quando se deteve finalmente a surra. Não pôde sentir nada mais que uma extrema dor nas costas.

     De todas as formas não havia misericórdia para ele. Deixaram-no amarrado diante do altar onde a multidão podia acrescentar seus próprios golpes em defesa de sua querida deusa.

Durante três dias, Acheron pendurou ali sem comida nem conforto. O mais próximo que teve foi ver Merus aproximando-se dele.

     O menino se deteve ante ele com um cenho.

     —Pensei que eras um nobre. Mentiste-nos. —Seus olhos zangados, levantou uma pedra do chão e a lançou para Acheron. Deu-lhe no peito.

     Inclinando sua cabeça para trás, Acheron olhou acima para ao teto dourado.

     —Por que?! —gritou aos deuses. Por que tinham feito isto a ele? Por que este era seu destino?

     Tinha nascido príncipe. Deveria ser honrado como tal e em seu lugar, não era nada. Certamente devia estar maldito. Não havia outra razão para esta vida. Nenhuma razão para seu sofrimento. E nesse instante odiou todo este planeta. A todos.

     Com um grito de batalha nascido do desespero e da tortura, lutou contra as correntes. Mas não havia ninguém para preocupar-se e nenhum modo de libertar-se. Tudo o que tinha obtido ao fazê-lo era reabrir as feridas em suas costas e fazer-se novas nos pulsos. Ao final, só se fez mais dano.

     Assim permaneceu até a tarde do terceiro dia. Os guardas retornaram para libertá-lo, mas antes de fazê-lo, tinham-lhe raspado a cabeça e gravado o símbolo do duplo arco da Artemisa em seu crânio.

     Acheron riu ante a ironia. Seu nome tinha sido marcado em seu coração antes disto e agora levava publicamente o símbolo da deusa que nunca voltaria a reconhecer. A crueldade disto era insuportável.

     Uma vez que terminaram, foi levado para fora até a rua onde um cavalo esperava. Suas mãos estavam atadas a frente dele para que o cavalo pudesse arrastá-lo toda a volta para o palácio. Ao tempo que chegou, havia pouco no que não restasse pele sobre seu corpo.

     Apenas consciente, foi levado ao seu quarto e atirado ao interior. Acheron deu um passo e caiu de joelhos. Muito fraco para mover-se, esparramou-se no chão. Mas ao menos a pedra estava fria contra suas feridas, inclusive o pensamento as fazia pulsar.

     Não haveria Artemisa para lhe ajudar desta vez. Nenhuma deusa para lhe oferecer um socorro ou refúgio.

     —Não és nada para mim, humano. —Essas palavras estariam gravadas para sempre em seu coração.

     Assim seja.

     Fechando os olhos, não tinha nenhuma esperança para o futuro. Nenhum desejo para alguma vez recuperar-se ou mover-se adiante. Sua irmã e seu amante o tinham destroçado pela última vez. Havia um “sinto muito”, que uma desculpa não podiam sarar, e desta vez, Acheron tinha chegado ao seu limite.

     Não havia nada mais que pudessem fazer para machucá-lo. Com a alma doente, arrastou-se profundamente dentro de si mesmo e jurou que nunca abriria a si mesmo a alguém novamente.

 

2 de Setembro, 9528 a.C.

    Artemisa se sentou sozinha em seu divã, querendo chorar. Apolo tinha contado a todo deus no Olimpo sobre Acheron e sua pretensão de ser seu consorte.

     Estiveram rindo todos dela desde então.

     —Deverias estripá-lo no chão de seu templo —havia dito Zeus ontem à noite enquanto ela visitava seu pavilhão.

     Apolo se tinha mofado:

     —Não pode. Sua vida está atada ao seu irmão gêmeo e se morrem me arruinariam a diversão por uma temporada. Mas é para morrer de risada com as mentiras que contam estes humanos.

     Afrodite tinha posto os olhos em branco.

     —Não posso imaginar que um puto pense que poderia pretender uma relação com a Artemisa de entre todos os deuses. Comprovou alguém seu estado mental?

     —Definitivamente está louco —havia dito Apolo—. Soube da primeira vez que o vi.

     Depois disto, Artemisa não havia tornado a aproximar-se de nenhum dos outros. Mas inclusive pior que suas risadas era o doentio nó em seu estômago pela dor que sabia que Acheron sentia.

     Ele o merece.

     Isso era certo. Sua traição merecia uma morte dolorosa e ainda com tudo o que ela queria fazer era lhe abraçar. Sentia falta da maneira em como a fazia sentir. O sabor de seus lábios...

     Quando estava com ela, ela sorria todo o tempo. Havia algo nele que a fazia feliz. Nada mais importava realmente exceto eles dois.

     Ele te traiu.

     Isto era algo que não podia perdoar. Ele a tinha convertido em uma boba. A única coisa que a salvava era o fato de que nenhum dos outros acreditou nas pretensões dele.

     Ainda assim ainda, tudo que queria era ir até ele...

     —Artemisa, convoco-te à forma humana. —Ryssa conteve o fôlego dentro do templo de Artemisa, temendo que a deusa a ignorasse. Percorreu-o com o olhar, assegurando-se novamente de que estava absolutamente só—. Deusa, por favor, ouça minha chamada e venha a mim. Preciso ver-te.

     Uma trêmula neblina apareceu à direita do altar. Ryssa sorriu enquanto a névoa se condensava para dar forma uma ruiva incrivelmente formosa. Os traços de Artemisa eram muito similares aos de Apolo, exceto o rosto da deusa tinha uma estrutura óssea mais sutil.

     —O que queres, humana?

     —Estou aqui por parte de Acheron.

     Os olhos de Artemisa arderam com cólera.

     —Não conheço ninguém com esse nome. —Começou a desaparecer.

     —Não, por favor... isto não é culpa sua. Ele não o disse a ninguém. Eu o fiz.

     Artemisa se materializou de novo quando aquelas palavras a arrasaram. Fulminou com o olhar à pequena beleza loira que levava ao filho de seu irmão.

     —O que?

     Ryssa deu um passo para frente, seus olhos brilhavam com lágrimas não derramadas.

     —Acheron nunca há dito nenhuma só palavra sobre ti a ninguém, nem sequer a mim. Vi a ferida de mordida em seu pescoço e soube que tinha que ser tu. Por favor, se me equivoquei, então me perdoe. Mas se tiver razão, não queria que estivesses zangada com ele por algo que ele não fez.

     Artemisa olhou com ferocidade para seu inchado abdômen.

     —Melhor te alegre de levar a filho de meu irmão. Essa é a única razão pela qual ainda estás viva. Sim alguma vez voltares a unir meu nome ao de Acheron, pelo Rio Estigia que farei que cubram com tua pele o muro de meu templo.

     Artemisa partiu em um brilho, mas se deteve antes de voltar para o Olimpo. Na realidade, seu coração estava cantando pelo fato que ele não a tinha traído. Seu Acheron tinha sido fiel...

     Aliviada, foi vê-lo.

     Ele jazia nu no chão de seu quarto diante da cama. Ela franziu o cenho ante a visão de sua cabeça raspada e as selvagens feridas que ainda permaneciam esculpidas por todo seu corpo. Mas aquela que parecia ser a mais dolorosa era a de seu próprio símbolo que estava ainda em carne viva na parte de trás de seu crânio.

     —Acheron?

     Ele abriu os olhos, mas não falou.

     Ela estirou uma mão para lhe curar. Antes que pudesse tocá-lo, ele agarrou seu pulso com sua mão. Seu apertão a surpreendeu. Não teria pensado que ele teria tal força em semelhante condição.

     —Não quero nada de ti.

     —Pensei que me tinhas traído.

     —Eu não falto com a minha palavra, Artemisa. Jamais.

     —Como ia sabê-lo eu?

     Ele riu amargamente.

     —O que? Pensas que umas chicotadas bastam para me quebrar? És uma deusa. Como podes saber tão pouco?

     —Tu não tens nem idéia quão duro é ser um deus. As vozes chorosas que sempre estão clamando ajuda pelas coisas mais insignificantes. «Quero um novo par de sapatos. Quero mais grãos na colheita» Aprendes a te desconectar.

     —Essas coisas podem ser insignificantes para ti, mas para alguns humanos até algo tão inofensivo como um momento de paz pode marcar toda a diferença em uma vida. Um sorriso. Um minúsculo ato de bondade. Isto é tudo o que demandamos.

     —Bem, estou aqui com minha bondade.

     Acheron se burlou:

     —Estou cansado de ser seu mascote, Artemisa. Não resta nada mais dentro para te dar.

     A cólera dele acendeu a sua própria.

     —És um humano. Tu não me dás ordens.

     Acheron suspirou. Ela tinha razão. Quem era ele, um verme desprezível, para lhe dizer algo? Além disso, não estava em condições de discutir com ninguém.

     —Me perdoe, akra. Esqueci meu lugar.

     Ela sorriu e lhe passou uma mão por sua cabeça calva.

     —Este é o Acheron que conheço.

     Não, o não era. Este era o Acheron que foi comprado e vendido. A vazia casca de ovo que atuava para a diversão de outros, mas que não sentia nada por dentro. Que patético! Que seu coração significasse tão pouco para alguém, que nem sequer ela pudesse reconhecer o fato de que este lhe faltasse.

     Liberando sua mão, ele ficou imóvel enquanto ela o curava. Por uma vez tolerou a dor.

     Uma vez feito, ela se recostou para olhar sua obra e logo fez uma careta.

     —Ah, essa calvície tem que desaparecer. Eu gosto muito de teu cabelo.

     Este cresceu perfeitamente e apesar disso Acheron não se moveu.

     Zangada, Artemisa cruzou os braços sobre seu peito.

     —Não podes ao menos me agradecer por te curar?

     Dado o fato que ela era a razão pela qual foi golpeado tão duramente, o mero pensamento de agradecer-lhe lhe entupia na garganta. Mas por outro lado estava acostumado a coisas semelhantes a esta.

     —Obrigado, akra.

     Como um menino ignorante de que há quebrado seu brinquedo favorito, ela sorriu satisfeita.

     —Deveríamos sair para caçar hoje.

     Acheron não falou quando ela o levou ao seu bosque privado e o vestiu de vermelho como se fora seu pulso e não um homem de carne e osso. Seu rosto estava radiante quando lhe deu um arco e a aljava. Ele jogou a aljava às costas sem comentários e a seguiu quando ela encabeçou a busca de cervos.

     Ela tagarelava sem parar sobre nada em particular enquanto ele fazia o que lhe tinha pedido, e tentava fazer todo o possível para não sentir nada absolutamente.

     —Estás terrivelmente calado —disse ela uma vez se deu conta de que ele não participava de sua conversação.

     —Me perdoe, akra. O que tu gostarias que eu dissesse?

     —Qualquer coisa que tenhas na mente.

     —Não há nada em minha mente.

     —Nada? Não tens nenhum pensamento absolutamente? —disse ela mal-humorada.

     Ele negou com a cabeça.

     —Como pode ser? —Ela fez um bico com petulância—. Estás tentando me castigar, verdade?

     Ele evitou toda emoção em sua voz, sobretudo a cólera que lhe provocava.

     —Eu nunca pretenderia te castigar, Deusa. Esse não é meu lugar.

     Ela o agarrou por seu cabelo, provocando nele uma careta antes que o obrigasse a encontrar seu olhar penetrante.

     —O que passa contigo?

     Acheron respirou fundo enquanto se preparava para o que ia acontecer. Uma coisa que tinha aprendido vivendo com seu tio, é que a luxúria anulava a cólera. Ela ainda poderia golpeá-lo mais tarde, mas se ele a agradava o suficiente, o castigo não seria tão severo.

     Deu um passo aproximando-se e a beijou.

     Tal como esperava, ela afrouxou o agarre em seu cabelo e se derreteu em seus braços. O estranho, é que ele se sentiu mais como um puto neste momento do que se havia sentido nunca antes e não entendeu porquê.

     Possivelmente porque não deveria ter que usar seu corpo para negociar com alguém a quem tinha entregue seu coração. Apesar disso aqui estava ele, usando seu toque para aliviar a cólera dela... como sempre.

     Enojado de si mesmo, ofereceu-lhe seu pescoço e sucumbiu à morte de um covarde quando ela tomou.

     Mas que mais podia fazer? Era foder ou ser golpeado. Embora para ser sincero, ele já não podia dizer qual das duas coisas era mais dolorosa para ele. Uma deixava cicatrizes em seu corpo.

     A outra, cicatrizes em sua alma.

 

14 de Setembro, 9528 a.C.

    Acheron se sentou na varanda de sua bancada, bebendo. Estava desconcertado por como Artemisa tinha conseguido lhe fazer sentir tão sujo e como apesar de que os dias passavam se sentia cada vez mais como o que seu tio lhe tinha feito sentir.

     —Irmão?

     Ele inclinou sua cabeça para trás para ver Ryssa aproximando-se.

     —Sim?

     —Sinto te incomodar, mas estou muito dolorida pelo bebê. Poderias, por favor, fazer essa coisa que me fazes para que me sinta melhor?

     Ele bufou ante as palavras que poderiam tão facilmente ser mal interpretadas. Graças aos deuses seu pai não o tinha ouvido.

     —Isso se chama massagem.

     —Podes fazê-lo?

     —Claro. —Como em todo o resto, ele tinha sido bem instruído sobre cada músculo do corpo humano e lhe tinham treinado como lhes relaxar e agradar. Deslizando-se da bancada, fez com que ela se sentasse no chão e se reclinasse para frente de modo que ele pudesse aliviar a tensão em suas costas.

     —Mmm —exalou ela—. Isto é a coisa mais mágica que fazes.

     Em realidade não. Ele estava simplesmente contente por poder usá-lo em alguém que não ia dar meia volta e começar a foder-lhe por isso.

     —Estás realmente tensa.

     —Não posso conseguir estar cômoda. Dói-me por toda parte.

     —Então só respira. Tirarei-te os nós e te sentirás muito melhor. —Ele desceu até o ponto de pressão e cravou sua unha.

     Ryssa soltou um gemido satisfeito.

     —Como podes fazer isto?

     —Muitíssima prática. —E muitíssimas surras cada vez que o tinha feito mal.

     —Juro-te que deveríamos fazer tuas mãos em bronze.

     A maioria das pessoas se sentia dessa maneira, mas por muitos outros motivos.

     Ela lhe jogou uma olhada por cima do ombro.

     —Pensas ficar escondido até que te volte a crescer o cabelo?

     Acheron fez uma pausa quando a dor lhe atravessou ante o aviso. O único momento em que ele tinha cabelo era sempre que Artemisa aparecia, ainda quando esta era a causadora disto ela odiava a visão dele assim. No momento em que o abandonava, seu cabelo voltava para seu estado real.

     —Não tenho nenhuma razão para partir. E ponto.

     —Pensei que desfrutavas indo aos jogos. Apesar disso não estiveste em muito tempo.

     Nem sequer estes podiam aliviar a dor que ele sentia por dentro. A traição. Em todo caso, ver os jogos o voltava ainda mais sombrio.

     —Prefiro ficar só em meu quarto, Ryssa.

     Ela abriu sua boca para falar, mas suas palavras morreram ocultas por um guincho de dor.

     —Ryssa?

     —É o bebê... já vem!

     O coração de Acheron palpitou com força enquanto se elevava para ficar de pé, logo a recolheu em seus braços. Levou-a ao quarto dela antes de sair para localizar a suas criadas para que pudessem chamar as parteiras e ao seu pai.

     —Acheron —lhe chamou quando ele começava a retirar-se—. Por favor, não me abandones. Estou assustada. Sei que podes fazer com que minha dor seja menor. Por favor...

     —Papai me golpeará se fico.

     Ela gritou quando outra contração a agarrou.

     Incapaz de deixá-la assim, ele foi até a cama e começou a massageá-la outra vez.

     —Respire, Ryssa —disse em tom tranqüilo, aplicando uma pressão em sentido contrário ao lugar onde estava tensa.

     —O que é isto?

     Ele se encolheu ante o grunhido na voz de seu pai. Ryssa se virou para olhá-lo.

     —Papai, por favor. Acheron pode me aliviar a dor.

     Seu pai o separou de um empurrão.

     —Saia daqui!

     Acheron não disse nada enquanto obedecia. Ele se cruzou com Styxx e uma fila de senadores no corredor que entravam para testemunhar a culminação da união entre sua irmã e Apolo. Vários deles se burlaram dele e fizeram comentários em voz baixa. Um par incluso lhe fizeram proposições.

     Ignorou-lhes e continuou para seu quarto. Logo fechou com chave as portas para assegurar-se que ninguém o seguisse para dentro.

     Desejando ter podido ajudar a sua irmã, sentou-se em seu quarto e escutou seus chiados, soluços e gritos que continuaram durante horas. Deuses, se isto era um parto era um milagre que alguma mulher o suportasse.

     Por que o faziam?

     E até tendo suportado algo tão horrorosamente doloroso, como poderia uma mãe rechaçar ao mesmo menino pelo qual tinha lutado tão arduamente, e pelo qual tinha sofrido tanto tempo, até lhe parir?

     Esforçou-se em recordar o rosto de sua mãe. Tudo o que realmente podia recordar era o olhar de ódio em seus olhos azuis. «És repulsivo». Cada vez que se aproximou o tinha esbofeteado lhe afastando.

     Mas nem todas as mães eram dessa maneira. Ele as tinha visto no mercado e nos degraus durante os jogos. As mães abraçavam a seus filhos com amor, como com a que ele tropeçou no templo de Artemisa. Seu bebê tinha significado tudo para ela.

     Acheron passou o dorso de seus dedos contra sua própria bochecha. Fechando os olhos, fingiu que esta era a suave carícia de uma mãe, que uma mulher o estava tocando tão docemente. Então se burlou de sua própria estupidez. Quem necessitava de ternura? Tudo o que tinha a fazer era passar perto de qualquer ser humano e teria todas as carícias que quisesse.

     Mas eles nunca amavam e nunca vinham sem condições e um preço.

     —É um menino! —O grito de seu pai foi amortecido pelas paredes e seguido de um grito enorme que ressonou.

     Acheron sorriu, feliz por sua irmã. Tinha dado a Apolo um filho. A diferença de sua mãe, ela seria honrada por seu trabalho.

    As horas passaram enquanto esperava até assegurar-se de que todos a tinham deixado.

     Acheron se dirigiu ao seu quarto, mas foi bloqueado pelos guardas de fora.

     —Disseram-nos que te mantivéramos afastado. De maneira nenhuma tens permissão de ver a princesa.

     Quão estúpido por sua parte pensar de outra maneira. Sem uma palavra, Acheron retornou ao seu quarto. Sem nada mais a fazer, deitou-se.

     —Acheron?

     Ele despertou de repente ante a chamada sussurrada. Abrindo os olhos, encontrou a Ryssa de joelhos ao seu lado.

     —O que fazes aqui?

     —Ouvi que eles não te deixavam entrar, assim esperei até que fui livre de vir a ti. —Ela sustentava um pequeno vulto para que ele o examinasse. — Te apresento ao meu filho, Apollodorus.

     Um sorriso curvou os lábios dele quando viu a diminuta criatura. Ele tinha um abundante cabelo negro e olhos profundamente azuis.

     —É lindo.

     Ryssa lhe devolveu o sorriso antes que pusesse ao bebê em suas mãos.

     —Não posso, Ryssa. Poderia lhe fazer mal.

     —Não vais fazer lhe mal, Acheron. — Ela lhe mostrou como lhe sustentar a cabeça.

     Assombrado, Acheron não podia acreditar que o amor que ele sentiu dentro de si se fizesse ainda maior.

     Ryssa sorriu.

     —Gosta de ti. Ele esteve se queixando toda a noite com as babás e comigo, mas olhe que tranqüilo está contigo.

     Era certo. O bebê deu um minúsculo suspiro e logo dormiu. Acheron riu quando lhe examinou os dedos diminutos que nem sequer pareciam reais.

     —Tu estás bem?

     —Dolorida e muito cansada. Mas não podia dormir até ver-te. Te amo, Acheron.

     —Eu também te amo. —A contra gosto, ofereceu a Apollodorus—. Melhor que vais antes que te peguem. Papai ficaria extremamente zangado com ambos.

     Assentindo, ela tomou ao bebê e partiu.

     Não obstante o cheiro do bebê ficou com ele, como o fez a imagem da inocência. Era difícil de acreditar que ele tivesse sido tão pequeno alguma vez e ainda mais difícil de acreditar que tivesse sobrevivido dada a animosidade que sua família albergava a ele.

     Enquanto tentava voltar a dormir se perguntou o que seria ter uma mulher que sustentara a seu filho com tal amor e orgulho. Imaginar o rosto de uma mulher tão alegre porque tinha dado a luz a uma parte dele...

     Mas nunca aconteceria. Os médicos de seu tio se encarregaram disso. Seu pênis se sacudiu ante a lembrança de sua cirurgia.

     É para melhor.

     Tão imperfeito como era para o resto do mundo que o aborrecia, não podia imaginar nada pior que ver seu filho desprezá-lo. Fazer com que seu próprio filho lhe negasse.

     É obvio, se ele tivesse um, jamais lhe daria motivo para odiá-lo. Ele o abraçaria e o amaria acontecesse o que acontecesse.

     Durma, Acheron. Simplesmente te esqueça de tudo.

     Fechando os olhos, soltou um suspiro cansado e tratou de dormir outra vez.

     —O que fazes?

     Ele abriu os olhos para encontrar a Artemisa em sua cama, ao seu lado.

     —Tentava dormir.

     —Ah... Te inteiraste de nosso sobrinho?

     —O fiz. Ryssa acaba de estar aqui com ele.

     Ela enrugou o rosto.

     —Não encontras aos bebês sujos e repugnantes?

     —Não. Pensei que era lindo.

     —E quem não? —burlou-se ela—. Eu penso que são fedorentos e queixumeiros. Nunca estão contentes. Sempre exigindo. Putz!, nem posso imaginar passar por tudo isso para ter algo tão asqueroso preso a mim.

   Acheron pôs os olhos em branco quando imaginou todas as pobres criaturas que foram dadas a Artemisa. Obviamente ela dedicou a seu cuidado a alguém muito mais maternal.

     —Acredito que os gregos deveriam haver-se informado disto sobre ti antes que te declarassem deusa do parto.

     —Bom, isso é porque ajudei a minha mãe a dar a luz a Apolo. Isso foi diferente. —Ela estirou a mão para baixo para lhe colher brandamente em sua mão—. O que tenho aqui?

     —Se não souber já, Artie, nenhuma quantidade de explicação vai ajudar-te.

     Ela riu do profundo de sua garganta enquanto seu membro se endurecia ainda mais.

     —Eu esperava te encontrar ainda acordado.

     Acheron não fez nenhum comentário quando ela baixou sua cabeça para tomá-lo em sua boca. Ele olhou para cima, ao teto, enquanto lhe passava a língua. Provavelmente seria mais agradável se ele não tivesse que se assegurar de manter-se sob controle. Mas sabia que não devia gozar com ela desse modo. Ela gostava de seu sabor, mas não gostava quando ele se liberava em qualquer lugar que não fora em seu interior.

     Inclusive então ela só o tolerava.

     Ele se sacudiu quando esta o beliscou o bastante forte para lhe machucar. Ela curvou seus dedos no cabelo ao redor de seu membro. Suspirando, Acheron lamentava não poder voltar ao início de sua relação. De volta a quando isto tinha significado então muito mais que somente chupar-lhe.

     Ela lhe deu uma lambida longa antes de retirar-se. Ele esperava que retornasse aos seus lábios. Em troca ela afundou os dentes na parte superior de sua coxa a apenas cinco centímetros de seu saco.

     Chiando de dor, teve que se conter para não afastá-la e fazer-se inclusive mais dano.

   A dor rapidamente passou a ser uma onda de prazer extremo. Mas não lhe permitiu gozar ainda.

     —Quero-te profundamente dentro de mim, Acheron.

     Fazendo-a rodar sobre seu estômago, ele apoiou os quadris dela em alto sobre os travesseiros e aceitou seu pedido. Agarrou os quadris em suas mãos e se sepultou profundamente em seu interior. Empurrou contra ela até que esta teve os suficientes orgasmos para lhe pedir que parasse. Ficando de barriga para cima, ela riu satisfeita.

     Artemisa suspirou saciada até que se deu conta de que ele ainda estava duro.

     —Por que não terminaste?

     Acheron deu de ombros.

     —O fizeste tu.

     —Mas tu não.

     —Viverei.

     Ela soltou um som de desgosto.

     —Acheron? O que te acontece ultimamente?

     Acheron apertou os dentes, sabendo que era melhor não responder a sua pergunta. Ela não queria ouvir nada além de quão maravilhosa era.

     —Não quero brigar, Artemisa. O que importa? Tu ficaste satisfeita, não?

     —Sim.

     —Então tudo está bem no mundo.

     Ela se apoiou sobre um de seus braços elevando-se para lhe olhar fixamente enquanto ele descansava ao seu lado.

     —Realmente não te entendo.

     —Na realidade não sou complicado. —Tudo o que ele pedia eram as duas coisas que ela não podia lhe dar.

     Amor e respeito.

     Ela arrastou uma unha longa ao redor do pescoço dele.

     —Onde está meu anel, o que te dei?

     Acheron se estremeceu ante a lembrança de ser obrigado a tragá-lo.

     —Perdeu-se.

     —Como pôde ser tão insensível?

     Insensível, ele? Ao menos não tinha jogado seu presente ao rosto e logo a tinha golpeado por isso.

     —Onde estão as pérolas que te dei?

     O rosto dela se voltou vermelho.

     —Bom. Conseguirei-te outro.

    —Não o faças. Não necessito de nenhum.

     Seus olhos se escureceram furiosamente.

     —Estás rechaçando meu presente?

     Como se ele fora a aceitar alguma vez outro presente assim dela. Já tinha tido suficiente mau trato.

     —Não rechaço nada. Só que não quero me arriscar a te envergonhar. Considerando tudo que passou, realmente não acredito que seja judicioso que eu tenha algo que é tão claramente seu.

     —Esse é um bom argumento. —Sorriu-lhe—. Tu me és leal sempre, verdade?

     —Sim.

     Ela lhe beijou a bochecha.

     —Faria melhor em ir agora. Boa noite.

     Depois que ela se foi, Acheron rodou sobre suas costas. Fechando os olhos, permitiu que seus pensamentos vagassem. Em sua mente ele imaginou a uma mulher com olhos amáveis. Uma que agarrasse sua mão em público, que estivesse orgulhosa de estar com ele.

     Imaginou como poderia cheirar seu cabelo, como seus olhos se iluminariam cada vez que lhe olhasse. Os sorrisos que compartilhariam. Então a imaginou lhe beijando um atalho para baixo por seu corpo, a imaginou elevando seus olhos para ele enquanto ela descia por ele.

     Com sua respiração irregular, empurrou-se contra sua mão, fingindo que era ela a que ele fazia amor.

     —Te amo, Acheron... —Podia ouvir sua voz tão doce e serena... sobretudo, seria sincera.

     Ele ofegou quando o sêmen quente cobriu sua mão e se filtrou entre seus dedos e não dentro de uma mulher que o amava.

     Estremecendo-se e só parcialmente satisfeito, abriu os olhos a brutal realidade de sua vida.

     Ele estava sozinho.

     E nenhuma mulher, mortal ou qualquer outra coisa, o reclamaria gostosamente jamais.

    

23 de Outubro, 9528 a.C.

    Acheron rodou na cama tratando de dormir. Apollodorus estava gritando tão alto que fazia eco em todo o caminho até seu quarto. O bebê chorou durante horas.

     Supunha-se que não devia aproximar-se do menino, entretanto, não podia suportar o som de tanta ira e infelicidade. Incapaz de tolerá-lo um minuto mais, saiu da cama e se vestiu.

     Silenciosamente, caminhou pelo corredor até o quarto de Ryssa, assegurando-se que ninguém o visse. Abriu um pouco a porta para ver Ryssa e sua babá no salão trocando ao bebê que havia entre elas.

     —Por que está fazendo isto? —perguntou Ryssa com um tom que soava como se estivesse a ponto de chorar.

     —Não sei, Alteza. Às vezes o bebês choram sem nenhuma razão.

     Ryssa acariciou a cabeça do bebê que a babá estava balançando em seus braços.

     —Por favor, filho, tenha piedade de sua mãe e descanse. Não posso resistir muito mais.

     Acheron entrou no quarto.

     —Eu o pegarei.

     A cara da babá empalideceu enquanto se virava.

     —Está bem, Delia. Deixa que Acheron veja se pode acalmá-lo.

    A babá pareceu duvidar, mas afinal obedeceu.

     Acheron tomou a seu sobrinho e o meteu na curva de seu cotovelo.

     —Olá, pequeno. Tu não vais incomodar a mim, não é verdade?

     Apollodorus suspirou profundamente como se fora a soltar outro gemido, então abriu os olhos. Olhou fixamente a Acheron por vários segundos antes que gorjeara com calma e logo se fecharam para dormir.

     —Isso é um milagre —exclamou a babá—. O que é que fizeste?

     Acheron se encolheu enquanto colocava a Apollodorus sobre seu ombro.

     Ryssa sorriu.

     —Isso é. Nomeio-te seu babá.

     Acheron riu ante a idéia dele sendo babá de alguém.

     —Vá para a cama, irmã. Vê-te exausta.

     Assentindo agradecidamente, partiu. A babá estendeu as mãos para o bebê.

     Acheron o entregou, mas no momento em que Apollodorus deixou seus braços, o bebê despertou e gritou outra vez.

     Ryssa saltou.

     —Pelo amor dos deuses, deixa que Acheron sustente ao menino. Não poderei suportar outra hora disto.

     A babá obedeceu imediatamente.

     Outra vez embalado contra Acheron, Apollodorus dormiu.

     —Onde o posso pôr? —perguntou Acheron.

     Ryssa se deteve.

     —Melhor não se arriscar com o quarto das crianças. Papai ou Styxx poderiam entrar lá. —Olhou à babá—. Vá ao quarto das crianças e nos cubra se por acaso alguém perguntar por ele.

     —Sim, Sua Alteza —se inclinou e saiu.

     Ryssa acariciou seu braço com gratidão.

     —Desperta-me quando estiver preparado para alimentar-se. Enquanto isso, devo dormir.

     Acheron a beijou brandamente na bochecha.

     —Descanse. Voltaremos quando ele o necessite. —Observou-a subir à cama antes de levar ao seu sobrinho ao seu quarto.

     —Bom, ao que parece seremos só os dois, pequeno. O que dizes se nos despimos, embebedamos e vamos procurar algumas criadas?

     E o bebê, na realidade, sorriu-lhe como se o entendesse.

     Acheron assentiu.

   —Assim que isso é, não? Apenas um mês de idade e já és um lascivo. É filho de seu pai.

     Sentando-se na cama, apoiou suas costas contra a cabeceira e levantou os joelhos assim podia deitar a Apollodorus contra suas pernas e embalá-lo. Acheron lhe fez cócegas na barriga fazendo-o rir e chutar seu estômago.

     O diminuto bebê o assombrava. Nunca tinha estado junto de um antes. Apollodorus tomou seu dedo na pequena mão e o dirigiu à boca para assim chupar o nódulo de Acheron. A sensação das gengivas sem dentes foi tão estranha, entretanto, isto pacificou ao bebê ainda mais.

     Como podia alguém odiar algo tão puramente inocente? Algo indefeso?

     Os pensamentos deram voltas ao redor de sua mente enquanto pensava em seus pais e tratava de entendê-los. Podia compreender um pouco do ódio de seu pai agora. Não é que Acheron fora a sair de seu caminho só para agradar ao homem.

     Mas quando menino…

     Quantas vezes foi esbofeteado pelo simples fato de olhar a alguém? Quantas vezes havia Estes amarrado suas mãos às costas e repreendê-lo com fúria por fazer uma simples pergunta?

     Mas pior que suas lembranças eram os temores de que alguém pudesse machucar a este bebê de tal maneira.

     —Matarei a qualquer um que queira te machucar assim, Apollodorus. Prometo-lhe isso, ninguém te fará chorar alguma vez.

     O bebê bocejou e sorriu antes de fechar seus olhos. Ainda sustentando o dedo de Acheron enquanto dormia. Uma calidez se propagou através de Acheron. Não havia julgamentos ou ira nesse bebê. Ele o aceitava sem nenhuma malícia.

     Sorrindo, posou o bebê sobre a cama para que dormisse mais confortavelmente e o cobriu com uma manta.

     Acheron jazeu por horas, vendo-o dormir em perfeito repouso. Ele mesmo, exausto ao fim, adormeceu-se.

     Acheron?

     Acheron despertou para encontrar-se com Ryssa frente a ele. Estava recostado de lado com sua mão sobre o estômago de Apollodorus. O bebê ainda tinha que despertar, mas pelo movimento de subida e descida do diminuto peito, soube que estava bem.

     —Que horas são?

     —Meia manhã. —Parecia incrédula—. Como fizeste para que ele dormisse toda a noite?

     —Não sei. Estávamos falando sobre putarias e caiu dormido.

     Ela voltou a rir.

     —Não te atrevas a corromper a meu bebê, pícaro.

     Acheron retirou a mão para que Ryssa pudesse pegar ao bebê. Apollodorus abriu seus olhos e sorriu a sua mãe antes de pôr um punhozinho na boca para chupá-lo.

     —O que seja que tenhas feito, te abençôo por isso. É o primeiro sono bom que tenho há meses —olhou para o lado da porta—. Agora, me deixe partir antes que Papai saiba que estamos aqui.

     Por favor. Era a última coisa que ele necessitava.

     Estirando-se, Acheron se sentou na cama. Era mais tarde que o que usualmente se levantava. Preferia levantar-se antes que o resto da família e atender suas necessidades sem nenhum medo de encontrar-se com alguém.

     Dito isto, agora era muito tarde para que alguém se metesse em seu caminho.

     Agarrou sua roupa e sua navalha e se dirigiu à sala de banhos. Felizmente o enorme quarto estava vazio. Como sempre, pôs a navalha no vão da parede e pendurou suas roupas.

     Nu, desceu pelas escadas que entravam na água morna e que se sentia incrivelmente bem sobre sua pele. A piscina lhe chegava até a cintura a menos que se sentasse e longa como uma mesa de jantar. Acheron se ajoelhou e se virou para trás para molhar seu recortado cabelo e assim poder lavá-lo. Fechando os olhos, suspirou com satisfação. Esta era a melhor parte do dia.

     Levantou-se e alcançou o sabão, então se congelou quando se deu conta que já não estava sozinho.

     Nefertari estava aí, observando-o com esse olhar ardente que ele conhecia muito bem.

     Acheron retirou a mão e deu um passo atrás no lago.

     —Me perdoe, minha Senhora. Não foi minha intenção interferir em seu tempo.

     Ela o olhava como um gato olhando a um camundongo e quando ele foi alcançar a toalha ela o deteve.

     —Como é que és muito mais bonito que teu irmão gêmeo? —Puxou o alfinete de seu vestido e o deixou cair. Seu nu corpo era formoso, mas ele não queria nenhuma parte dele.

     Acheron emergiu da piscina, mas lhe bloqueava a saída.

     —Tenho que ir.

     Rindo, ela se envolveu em seu corpo.

     —Não, não tens. —Mordiscou seu queixo com seus dentes.

     —Estou com alguém.

     —Eu também.

     Acheron tratou de escapar, mas ao menos que a ferisse, não havia nada que pudesse fazer enquanto ela o aferrasse assim. Escapando do agarre, começou a afastar-se só para pisar no sabão que tinha deixado a um lado da piscina. Golpeou-se contra o piso tão forte que lhe tirou o ar.

     Nefertari esteve sobre ele em um instante.

     —Faça amor comigo, Acheron.

     Ele rodou com ela, e justo quando se estava levantando, as portas se abriram.

     O sangue se drenou completamente de seu rosto quando viu Styxx e a todo seu séqüito aí. Eles pararam em seco, seus olhos sem perder nenhum detalhe.

     Acheron amaldiçoou quando se deu conta quão indiscutível parecia isto. Quão irrefutável era.

     Nefertari começou a gritar e a golpeá-lo.

     —Não me violentes! Por favor!

     Sentindo-se doente, rodou longe. Ela se revolveu e se lançou para Styxx, onde chorou como se tivesse o coração quebrado.

     —Graças aos deuses que chegou quando o fizeste. Foi terrível.

     Styxx a entregou aos seus guardas.

     Acheron se elevou e lentamente ficou de pé para enfrentar ao seu gêmeo, cuja fúria era tão grande que as bochechas estavam salpicadas de vermelho. Sabia que embora tratasse de explicá-lo, Styxx nunca acreditaria nele.

     Assim deixou que o agarrassem. Eles o levaram e o encerraram nas celas debaixo do palácio. Acheron fez uma careta de dor enquanto o cravavam na fossa que trouxe de volta “carinhosas” lembranças. Envolveu-se com os braços, tratando de reter um pouco de calor. Mas nada podia esquentar o frio que havia em sua alma ante o temor do que fossem fazer-lhe depois disto.

     —Artemisa? —exalou brandamente seu nome.

     Ele podia sentir sua presença embora não a pudesse ver.

     —O que estás fazendo aqui?

     —Fui acusado de violação.

     Sentiu uma severa pressão em seu pescoço por onde ela o agarrou.

     —O fizeste?

     Ele tossiu.

     —Já sabes.

     A pressão se retirou.

     —Então, por que estás aqui?

     —Eles não acreditarão em minha inocência e eu juro por minha alma que não a toquei… Eu… eu necessito de sua ajuda.

     —Como?

     Ele olhou para onde estava a sombra dela e disse a única coisa que tinha desejado em sua vida.

     —Me mate.

     —Sabes que não vou fazê-lo.

     —Vão castrar-me, Artemisa. Entendes isso?

     —Eu o ajeitarei.

     Acheron riu amargamente.

     —Tu o ajeitarás. Essa é sua resposta?

     —Bom, o que queres que faça?

     —Me mate —gritou.

     —Não sejas tão melodramático.

     —Melodramático? Vão encadear-me, abrir meu escroto e remover meu testículo, e depois vão esmagar o canal. Todo isso enquanto eu sinto tudo o que fazem e te asseguro que não vão ser gentis. Como merda é isso de melodramático?

     Ela mofou de sua cólera.

     —E eu o repararei depois disso. Assim não tens nada do que se preocupar.

     Horrorizado por sua atitude e despedida, sentiu quando se afastava dele. Querendo matar a todos, golpeou sua cabeça contra a parede.

     Deveria ter lutado…

     Mas honestamente, que bem lhe faria isso? Teriam-no superado e golpeado até que não tivesse ficado nada para brigar. E logo o teriam arrastado até aqui de todos os modos.

     Alheio a tudo, não soube quanto tempo tinha passado antes que os guardas retornassem atrás dele. Foi arrastado para fora e encadeado e logo o levaram até o salão do trono de seu pai. Nu, foi forçado a ajoelhar-se ante Styxx, seu pai e Nefertari que ainda seguia chorando.

     O rei o olhou sem piedade.

     —Encontro-me em um dilema. O crime que cometeste se castiga com a morte. Mas em vista que não posso fazer isso, decidi te castrar. Sem dúvida é o que devia ter feito desde seu nascimento.

     Acheron riu ante a ironia.

     —Isso teria sido muito piedoso de sua parte. Sem mencionar o zangado que se teria posto seu irmão por neutralizar ao seu brinquedo favorito.

     Seu pai se levantou do trono com um violento grito.

     Acheron não se estremeceu.

     —Não te zangues, Papai. Não é que não soubeste o que Estes me fazia. De fato seu grande sonho era que tu morreras e deixasse a Styxx com ele para assim desfrutar dos dois em sua cama de uma vez.

     As maldições de seu pai ecoaram em seus ouvidos como se o homem se assentasse com a ira das Fúrias. O primeiro golpe caiu a Acheron na mandíbula. O seguinte lhe rompeu o nariz que palpitava violentamente. Golpe atrás de golpe lhe choveram em cima.

     Acheron lhes deu a bem-vinda a cada um enquanto continuava burlando do rei. Ao melhor seu pai poderia matá-lo. Ao final estaria tão insensível ante os golpes que não sentiria totalmente a dor do que lhe fizessem.

     —Papai, por favor! —disse Styxx, afastando-o. Virou para Acheron que estava jazendo de flanco—. Não és mais que um montão de merda. —Styxx o chutou tão forte no flanco que se escutou como se rompiam as costelas. A força do golpe o fez rodar sobre as costas. O seguinte chute de Styxx foi aterrissar firmemente entre suas pernas.

     Acheron gritou de insuportável dor enquanto seu irmão o chutava repetidamente até que esteve seguro que não necessitaria que o castrassem.

     —Tragam ao médico! —rugiu seu pai—. Vejamos como acaba este bastardo.

     Ofegando em um esforço de tomar ar para seu espancado corpo, Acheron foi posto em uma fria laje de pedra, os braços encadeados sobre a cabeça e as pernas abertas e encadeadas.

     Ele inclinou sua cabeça para trás e riu deles.

     —Se estás planejando uma festa, Papai, precisaa me encadear de barriga para baixo primeiro.

     —Amordacem a essa imundície.

     Um dos guardas lhe colocou um pano na boca. Acheron viu a sombra do médico aproximar-se. Esticou seu agarre nas correntes preparando a si mesmo para o que ia vir.

     Mas nenhuma preparação podia reduzir a dor do que lhe fizeram. Acheron gritou em agonia até que sua garganta esteve em carne viva e sangrenta como o resto de seu corpo.

     Ao momento em que o arrojaram de novo em seu quarto, ele estava espiritualmente intumescido se só o resto dele o estivesse também. Incapaz de parar, arrastou-se pelo chão até a pequena mesa onde tinha deixado uma faca de seu jantar da noite anterior. Alcançando-o, tomou com mão tremente.

     Estava tão cansado de implorar, tão cansado de sofrer. Incapaz de suportar um dia mais disso, abriu os pulsos e observou como o sangue se derramava.

 

25 de Outubro, 9528 a.C.

    Acheron amaldiçoou de maneira repugnante quando despertou pela extrema dor. Por que não estava morto? Mas então soube. Enquanto que a vida de Styxx estivesse ligada à sua ninguém teria piedade dele. Jamais. Arrasado pelo desespero, tentou mover-se só para encontrar-se preso à cama.

     Deixou escapar um grito de frustrada fúria antes de golpear cabeça contra o colchão de palha.

     Um movimento a sua direita atraiu seu olhar e se congelou ao ver a pequena mulher de pé ali. Era Ryssa, vestida em púrpura e ouro.

     Ela se aproximou e o olhar de pena e culpa em seus olhos foi suficiente para trazer lágrimas aos seus.

     —Não o disse, —sussurrou ela—. Styxx desmaiou e Papai te encontrou. —As lágrimas caíam por seu rosto—. Não posso acreditar no que te fizeram. Sei que não tocaste a Nefertari. Jamais terias feito tal coisa a ninguém e o disse repetidamente. Nunca ouviram nenhuma palavra do que dizia… Sei que isto não ajuda, mas Styxx rompeu seu compromisso com ela e a enviaram de volta ao Egito. Sinto muito, Acheron. —Inclinou sua cabeça contra a dele e chorou silenciosamente em seu ouvido.

     Acheron reteve suas próprias lágrimas. Não havia necessidade de chorar. Esta era sua vida e não importava o que tentasse, nunca melhoraria.

     Ademais Artemisa o curaria…

     Queria gritar em amarga frustração e raiva ante a altiva atitude da deusa.

     Ryssa lhe acariciou a bochecha.

     —Não vais falar comigo?

     —E dizer o que, Ryssa? Acredito que minhas ações falam o bastante, inclusive para que um surdo as ouça. Mas de todos os modos ninguém me escuta.

     Ela limpou as lágrimas enquanto passava numa tenra carícia os dedos através de seu cabelo.

     —É tão injusto para ti.

     —A vida não está acostumada a ser justa —ofegou ele—. Isto não é a respeito de justiça. É sobre a resistência e o quanto podemos sofrer.

     Estava já tão cansado... Mas ninguém lhe deixaria dormir.

     Através das paredes ouviu chorar a Apollodorus.

     —Teu filho te necessita, Princesa. Tens que ir até ele.

     —Meu irmão também me necessita.

     Ele deixou escapar um cansado suspiro.

     —Não. Acredite-me. Não necessito de ninguém.

     Ela pressionou os lábios contra sua bochecha.

     —Te amo, Acheron.

     Não disse nada quando ela se retirou. Agora mesmo não havia esse tipo de amor em seu interior. Só podia sentir a angústia e o desespero. Voltando a cabeça, baixou o olhar à atadura branca que envolvia seu pulso. A tinham acolchoado para que não pudesse voltar a abrir a ferida e acabar o que tinha começado.

     De modo que assim era então.

     Fechando os olhos, pensou em seu futuro. De nada que trocara. De viver submetido e golpeado… para sempre.

     Bramou ante o peso de sua desesperança. Então brigou contra suas restrições com tudo o que tinha. Mas não foi suficiente para rompê-las.

     Nunca seria suficiente de nada.

     Bramando ainda mais forte, tomou consolo na latente dor de suas feridas.

     Ryssa chegou correndo entrando no quarto.

     Acheron a ignorou enquanto tentava romper as correntes que o mantinham amarrado.

     —Já tive bastante e quero que acabe!

     Ela o abraçou para contê-lo. Ele tentou lutar contra ela, mas não podia.

     —E sei, Acheron. Eu sei.

     Não, não sabia. Graças aos deuses que ela não tinha idéia de quão fodidamente atroz era sua vida. Com quanta dor tinha vivido. Com quanto rechaço.

     Golpeou a cabeça contra a cabeceira e finalmente deixou cair suas lágrimas. Inclusive embora fosse um homem, sentia-se como um menino estirando-se pela carícia de sua mãe para só obter uma bofetada.

     —Me embebede, Ryssa.

     Ela se voltou para trás.

     —O que?

     —Pelo amor dos deuses, me dê algo que faça com que deixe de doer tanto. Álcool ou drogas, não me importa qual. Só faça que vá… Por favor.

     Ryssa queria negar-lhe. Não acreditava em fugir de seus problemas, mas quando lhe olhou e viu o sangue gotejando das feridas de seu corpo e as lágrimas em seus olhos, não pôde deixar lado seu único pedido.

     Ninguém deveria sofrer tanto. Ninguém.

     Contra sua vontade, baixou o olhar ao seu pênis. O sangue ali lhe revolveu o estômago. A crueldade do que lhe tinham feito não tinha medida… O fato de que ambos, seu Pai e Styxx obtivessem tanto prazer em suas ações a desgostava a um nível que jamais tinha sonhado que existisse. Jamais voltaria a sentir bem com nenhum deles.

     —Voltarei agora mesmo.

     Correu ao seu quarto e pegou a única garrafa de vinho que tinha.

     —Nera? —disse a sua donzela que estava varrendo as escadas— Poderias conseguir mais vinho e me trazer ao quarto de Acheron?

     A confusão piscou no cenho da miúda garota, mas o aceitava antes que perguntar a sua senhora.

     —Quanto mais, Princesa?

     —Tanto como possas levar.

     Ryssa voltou para seu quarto com o que tinha. Ele se deslizou fora da cama com apenas um lençol lhe cobrindo. O sangue seco e os machucados danificavam a maior parte de seu corpo e a dor em seus olhos chapeados lhe roubava o fôlego.

    Doendo-se por ele, limpando as lágrimas dos olhos antes de lhe levantar a cabeça e lhe ajudar a beber.

     —Que os deuses te abençoe por tua amabilidade —ofegou ele quando ela terminou.

     Nera chegou com mais. Ryssa trocou as garrafas com ela, então a inclinou aos lábios de Acheron. Não foi até a terceira garrafa que esteve completamente bêbado.

     —Acheron? —Perguntou, temendo que possivelmente lhe tivessem dado muito.

     Ele deixou escapar um comprido suspiro antes que seu atormentado olhar capturasse o seu.

     —Me prometa uma coisa, Ryssa.

     —Qualquer coisa.

     —Não odeies jamais ao seu filho. Por favor —seus olhos bateram as asas fechando-se antes que desmaiasse.

     Chorando, Ryssa o sustentou perto enquanto se doía por ele. Mataria a qualquer um que se atrevesse a ferir seu filho dessa maneira. Inclusive ao seu próprio pai. Mas Acheron nunca conheceria tal amor, tal carinho e isso lhe rompia o coração, inclusive mais.

     —Dorme em paz. Irmãozinho. Dorme em paz.

     Limpando as lágrimas, deixou-o sozinho e foi comprovar a Apollodorus. Durante o resto do dia sustentou ao seu filho perto dela, lhe prometendo que nunca seria ou estaria sozinho no mundo. Que sempre o amaria e o protegeria de qualquer um que lhe fizesse mal.

     Se só sua mãe tivesse feito tal promessa a Acheron.

    

27 de Outubro, 9528 a.C.

    Acheron se recostava na cama com o topo do nariz lhe picando tanto que realmente fazia caso omisso ao resto de sua dor. Venderia sua alma se só pudesse coçar-se. Um brilhante brilho a sua esquerda chamou sua atenção.

     Era Artemisa. Vestida de branco, estava tão formosa como sempre e a odiava por isso.

     Seu estômago se encolheu ante a raiva que finalmente lhe recordava.

     —O que estás fazendo aqui?

     —Estava aborrecida.

     Bufou ante sua petulância e ao fato de que viesse até ele agora.

     —Temo-me que não poderei te entreter mais. Já não serei capaz disso.

     Ela puxou o lençol e curvou o lábio ao ver o que tinham feito ao seu pênis.

     —Ui! O que te fizeram?

     Ele fechou os olhos quando o banhou a humilhação.

     —Castraram-me, recorda? Inclusive fui o bastante estúpido para te pedir ajuda.

     —Oh, isso. —Ela estalou os dedos.

     Acheron ofegou quando seu pênis foi atravessado inclusive por mais dor. Doía tanto que lhe tirou a respiração e trouxe lágrimas aos seus olhos.

     —Vê? Já estás melhor.

     Com a respiração entrecortada, ainda estava em chamas.

     —Já não tens o cabelo comprido.

     Isso era tudo o que lhe importava? Que não tivesse o cabelo comprido? Era uma boa coisa que não pudesse mover-se, de outro modo possivelmente teria ido acima de pescoço por esse comentário.

     —Por que estás encadeado?

     Se ela fizesse uma pergunta estúpida mais, realmente ia estrangulá-la.

     —Para evitar que me suicide.

     —Por que farias isso?

     Acheron apertou os dentes. Que bem faria explicar-lhe? A ela não poderia importar menos. Menos ainda lhe tinha importado quando tinha rogado que o fizesse por ele. Exceto pelo fato de que se aborreceria e possivelmente realmente tentasse e encontrasse outro homem ao qual saltar em cima. Os deuses proibiriam que o membro de outro homem realmente a satisfizera.

     —Pareceu uma boa idéia naquele momento. Atualmente já não tanto.

     Ela lhe olhou com aborrecimento.

     —Terei que conseguir que te soltem, juro-o, causas mais problemas do que vales. Espera aqui.

     Acaso tinha escolha?

     —Não te preocupes —gritou depois que ela se desvanecesse— Não posso me levantar nem para mijar.

     E o nariz ainda lhe picava.

     Não passou muito antes que seu pai entrasse no quarto olhando-o com desgosto. Aquilo era novo?

     Como sempre, o rei se via esmeradamente arrumado. Seu cabelo loiro estava perfeitamente penteado e suas túnicas brancas brilhavam à luz do sol.

     Acheron se encontrou com seu cenho impávidamente.

     —Posso vos ajudar?

     Os olhos azuis de seu pai se iluminaram com fúria.

     —Que mais terás que fazer para te ensinar teu lugar?

     Teu lugar? Esse deveria ser como o herdeiro de seu pai. Deveria ser o de um reverenciado príncipe.

     Em vez disso, estava estendido e encadeado a uma cama, sua nudez só coberta pelo ensangüentado lençol que Artemisa havia voltado a lhe pôr em cima de modo que não tivesse que ver a obra do açougueiro. Estava imundo pela falta de asseio e não duvidava que seu cabelo estaria tão esfarrapado como sua barba.

     Acheron afastou o olhar.

     —Conheço meu lugar.

     Seu pai chutou a cama. Assim Artemisa tinha conseguido lhe libertar.

     —As criadas estão doentes para limpar tua sujeira, não é que as culpe. Por essa razão, vais ser libertado. Mas se fizer algo estúpido, juro por todos os deuses que te encadearei à parede em uma masmorra e te deixarei ali para que apodreças.

     Ele já lhe tinha feito isso.

     —Não vos preocupeis, Papai. Permanecerei fora de seu caminho.

     —Melhor que seja assim. —Indicou aos guardas atrás dele que tirassem os grilhões.

     Finalmente, Acheron pôde coçar o nariz outra vez. Apenas tinha acabado de fazê-lo antes que Styxx entrasse no quarto e lhe atirasse um objeto azul pálido.

     Acheron franziu o cenho até que se deu conta que era uma das togas de Ryssa.

     Styxx riu.

     —Pensei que possivelmente querias algo acorde a teu novo tu.

     Seu olhar se voltou vermelho de raiva.

     Antes que pudesse pensá-lo, Acheron saiu da cama. Atirou Styxx contra o chão e lhe golpeou a cabeça contra a pedra, querendo parti-la igual a um melão. Conseguiu aplicar-lhe seis bons sólidos golpes até que os guardas o tirassem do estômago de Styxx.

     Acheron se encontrou lutando com eles com tudo o que tinha, mas lhe sustentaram os braços às costas de modo que não havia muito que pudesse fazer exceto amaldiçoá-los. Obrigado, Artemisa, por retirar teu presente.

     Styxx se levantou do chão com uma furiosa maldição própria. Agarrou a espada de seu pai e teria matado a Acheron se seu pai não o tivesse detido.

     —Levem-no lá fora e lhe golpeiem —bramou seu pai.

     —Não!

     Acheron levantou o olhar para ver Ryssa no corredor.

     A expressão de seu pai era de uma completa incredulidade.

     —O que hás dito?

     Ela cruzou os braços sobre o peito e se manteve forte e decidida dentro das portas abertas.

     —Já me ouvistes, Papai. Disse não.

     O rosto do rei avermelhou de fúria.

     —Tu não me dizes o que fazer, mulher.

     —Tens razão —disse ela calmamente—. Não posso vos dar ordens. Não tenho poder sobre vós, mas como a amante de Apolo, tenho algo a dizer no que a ele se refere e a quem ele perdoa, especialmente com respeito a minha própria família… —Olhou de maneira significativa a Acheron e voltou de novo para ele—. Estou farta de que se abuse de Acheron. Nunca mais.

     O rei indicou para Styxx.

     Ele olhou a Acheron e assentiu.

     —Sangrou mais do que lhe corresponde.

     —Styxx está sangrando.

     Seu olhar foi à toga no chão.

     —E por sua crueldade eu diria que recebeu uma leve sentença.

     Styxx a fulminou com o olhar.

     —Um dia, Ryssa, serei teu rei. Farás bem em recordar isso.

     Ela encontrou seu aborrecimento levemente divertido.

     —E eu sou a mãe de um semideus. Faria bem em recordar isso, irmão.

     Styxx a empurrou quando saiu do quarto. Seu pai sacudiu a cabeça.

     —Mulheres —balbuciou antes de ir embora deixando-os a sós.

     Ryssa se inclinou e agarrou a toga do chão antes de apertá-la igual a uma bola.

     —Desculpar-me-ia por ele, mas não há desculpa que valha —bufou ela—. Só desejaria poder ter usado esse teu argumento antes. Pouco sabem eles que a Apolo não poderia importar menos o que eu pense. Mas esse será nosso segredo, certo?

     Acheron deu de ombros quando se separou da cama e puxou o lençol rodeando-se com ele para cobrir sua nudez do olhar de sua irmã.

     —Só ficaria atônito se Papai me mostrasse outra coisa que desprezo.

     Ela deixou escapar outro comprido e triste suspiro.

     —Devo conseguir uma bandeja de comida para te enviá-la ao banho?

     Ele negou com a cabeça.

     —Não tenho intenção de ir ali outra vez.

     —Tens que te banhar.

     Não realmente. Possivelmente se cheirasse o bastante mal ninguém o incomodaria já. Mas não estava disposto a discutir com sua irmã.

     —Deveria ir e descansar enquanto Apollodorus não te necessite.

     Ela lhe deu um gentil abraço antes de partir.

     Ryssa apenas tinha fechado as portas antes que Artemisa saísse das sombras.

     Ela lhe sorriu.

     —Diz obrigado, Artemisa.

     —Só se posso dizê-lo chiando os dentes.

     Ficou boquiaberta como se não pudesse acreditar em seu aborrecimento.

     —Não estás agradecido?

   Acheron levantou as mãos a modo de rendição.

     —Não quero brigar contigo, Artie. Honestamente. Só quero lamber as feridas durante um momento.

   Ela materializou-se a suas costas e puxou-o contra si.

     —Eu posso lambê-las por ti. —Ela afundou sua mão para cobri-lo.

     Encolhendo-se por suas carícias, Acheron lhe afastou a mão do pênis.

     —Dado que há passado menos de uma semana desde que me cortaram os ovos, Artemisa, não estou de humor.  

     Ela fez um som de desgosto.

     —Não sejas tão bebê. Agora estás intacto. O celebremos lhes dando uso. —Soprou ela ao ouvido.

     Acheron saltou afastando-se. Naturalmente, ela o seguiu.

     Só lhe dê o que quer. De outro modo isto continuaria até o ponto que ficasse furiosa e provavelmente o atacasse. Preferiria que me arrancassem os olhos. É obvio, se regenerariam sozinhos o que o fazia perguntar-se se suas bolas não teriam feito o mesmo sem a ajuda de Artemisa.

     Honestamente, não tinha sentido lutar nisto. Não era como se não tivesse sido forçado a ter sexo com pessoas as quais detestava antes. Todo um argumento que atrasaria o inevitável e conseguiria que o ferissem de novo.

     Possivelmente também consiga te libertar disso o mais rápido possível.

     Voltou-se para olhá-la.

     —Onde me queres?

     As palavras quase nem tinham deixado seus lábios antes que se encontrasse de costas, sobre sua cama com ela nua em cima dele.

     —Senti saudades de ti, Acheron.

     Ele fez uma careta quando ela afundou os dentes em seu pescoço e então fez o que sempre fazia. Deu-lhe prazer e não tomou nada para si mesmo.

     Ela nem sequer se deu conta, exceto para dizer que gostava quando não estavam tão sujos como quando o estavam sempre que ele ejaculava. Agora se recostou sujeitando-a enquanto ela ronronava de satisfação.

     E Acheron ainda estava vazio por dentro.

     Artemisa se sentou e se envolveu em um lençol.

     —Melhor que retornes agora. Hades está dando uma festa no templo de Zeus esta noite e tenho que fazer ato de presença.

     Ele nem sequer tinha tido tempo de abrir os lábios antes de estar de volta em seus aposentos a sós… Como um móvel descartado com o qual esteve para passar o tempo. Foi lavar a tigela e verteu um pouco de água do cântaro para assear-se e barbear-se, depois se vestiu.

     Doente até a alma, considerou ir aos jogos. Mas por que se preocupar? Precisaria muito mais que isso para que o ferissem interiormente. E quando olhou ao redor de sua prisão, seu olhar caiu no vinho que Ryssa tinha comprado. Infelizmente não era o bastante forte para encher o vazio buraco que ardia.

     Agarrando sua bolsa de moedas e capa, deixou o palácio e foi à rua onde todos os compositores estavam relegados. Não levou muito encontrar seu velho comerciante. Baixo e gordinho, o homem era calvo com uma boca cheia de dentes podres, e permanecia na esquina no exterior do pior bordel da cidade.

     Euclid sorriu no momento em que o viu aproximar-se.

     —Acheron, passou muito tempo.

     —O mesmo digo. Tens alguma Erva de Morfeo?

     Ele se lambeu com avidez.

     —É obvio que sim. Quanto queres?

     —Tudo o que tenhas.

     Arqueou uma sobrancelha ante isso.

     —Tens suficientes moedas?

     Acheron lhe estendeu sua bolsa.

     Impressionado, Euclid tirou um pequeno arco de madeira do carro que para os não iniciados ou ingênuos parecia conter só farrapos. Estendeu a Acheron o arco para que o inspecionasse. Acheron o abriu e levou as ervas ao nariz. A acre lavanda não era bastante para mascarar a erva que o aliviaria.

     Acheron o fechou.

     —Obrigado. Necessitarei da corda e das panelas para isso também.

     Euclid as estendeu em troca de mais moedas.

     —Terei mais na próxima semana. Qualquer coisa que necessites, faça-me saber e se não tiver moedas para isso, seguro que os dois podemos chegar a um acordo. —Arrastou um sujo dedo descendo pelo lado do rosto de Acheron.

     Não sabia por que se ofendia. Depois de tudo, era uma prática comum para os putos oferecer seus corpos em troca de mercadoria, mas por alguma razão isso o cortava profundamente.

     —Obrigado, Euclid.

     Baixando o capuz, continuou seu caminho através dos escuros becos de volta ao palácio e seu quarto.

     Ali na escuridão, abriu o arco e mesclou as ervas. Quão estranho que recordasse a quantidade exata a usar.

     “Inala-o menino. Isto fará que tudo seja muito mais prazeroso para ti”.

     Seus intestinos se encolheram ao ouvir a voz de Estes em sua cabeça. Na primeira vez que a tinha dado, seu tio o tinha segurado no chão e o tinha obrigado a respirá-lo. Depois disso, Acheron tinha necessitado de muito pouca coação. Seu tio tinha tido razão, isto o fazia muito mais passível já que afastava tudo de sua consciência e briga. O fazia um estúpido suplicante a qualquer ato degradante que queriam realizar com ele.

     Queimou as ervas e soprou até conseguir carbonizar ligeiramente a quantidade correta para que os vapores fossem suficientemente potentes. Fechando os olhos, agarrou a máscara de argila e a manteve no nariz, então inalou até que toda a dor se deteve.

     Com a cabeça à deriva, derrubou-se sobre a cama e se deitou de modo que podia ver o teto inclinando-se e girando.

     Apostolos? Onde estás?

   —Olá, vozes —suspirou ele. Sempre se faziam mais fortes quando estava alto.

     Queremos que venha para casa, Apostolos. Nos diga onde te encontrar.

     Ele olhou ao redor do quarto e suspirou.

     —Estou em um quarto escuro.

     Onde?

     Acheron riu, então se enroscou sobre seu estômago e grunhiu ante a sensação da áspera roupa contra seu corpo. Deixou escapar uma esfarrapada respiração quando seu pênis se endureceu. Artemisa tinha se desfeito dele muito cedo. A droga o estava pondo incrivelmente quente.

     Como sempre, a ela não importava nem o mínimo o que ele fizesse. Cada vez que ia a sua cama, ela enrugava o nariz desagradavelmente. Por isso para ele era mais fácil só fodê-la e dar prazer a si mesmo depois quando estava a sós.

     Ofegou bruscamente quando o lençol roçou seus mamilos. O prazer era intolerável. Mas se negava a tocar a si mesmo.

     Não queria libertação nem nenhum tipo de prazer. Só queria paz.

     Mais que isso, queria ser acariciado por alguém que desse uma merda por ele. E certamente esse não era ele.

 

12 de Novembro, 9528 a.C.

    Acheron estava sentado em sua bancada, deixando que os gelados ventos o esfriassem quando se deu conta de que sua irmã estava na janela lhe observando. Fez-lhe um gesto para que entrasse.

     Os dentes começaram a lhe baterem imediatamente.

     —Aqui fora faz frio.

     —Para mim parece bom. —Ele realmente estava suando.

     Ryssa entrecerrou os olhos suspeitosamente quando se aproximou dele.

     —O que tens feito?

     —Não tenho feito nada. Absolutamente nada. —Quase nem tinha força para comer.

     Ela sacudiu com fúria a cabeça.

     —Estiveste tomando essas drogas outra vez, verdade?

     Acheron afastou o olhar.

     Ela lhe agarrou o rosto e o obrigou a olhá-la.

     —Por que farias tal coisa?

     —Não comece comigo, Ryssa.

     —Acheron, por favor —disse com voz forçada enquanto o soltava—, estás matando a ti mesmo.

     Desejava-o. Baixando o olhar, virou o pulso para ver a perfeita e irrepreensível pele. Não havia rastro dos cortes que havia seccionado sua pele e suas veias.

     —Não posso suicidar-me. Os deuses sabem que o tentei. Não há via de fuga para mim assim aqui estou sentado, esperando o momento oportuno até que os deuses acabem com minha vida, enquanto tento ficar à margem do caminho de todo o mundo.

     Ela lhe penteou o cabelo afastando-os dos olhos.

     —Pareces terrível. Quando foi a última vez que te banhaste?

     Ele a colocou a um lado, zangado pela pergunta.

     —Da última vez que me banhei, fui acusado de violação e castrado. Não te ofendas, prefiro feder.

     Ela sacudiu a cabeça.

     —Quando foi a última vez que comeste?

     —Não sei. —ele coçou as barbudas bochechas—, Qual é a diferença? Não é como se Papai fosse me deixar passar fome até morrer. Comerei quando tiver que fazê-lo. Quando eles me obriguem.

     A seguinte coisa que soube, é que Ryssa o alcançou e lhe agarrou a orelha e a beliscou com força.

     —Vais comer agora mesmo.

     —Ei! —Estalou Acheron, mas ela se negava a deixá-lo ir. Com um determinado puxão, tirou-o do parapeito e o obrigou a segui-la ao quarto. Era bastante menor que ele, que era quase o dobro de seu tamanho e teve que lutar para manter seus frenéticos passos—. Sabes que sou maior que tu —lhe recordou ele.

     —Sim, mas eu sou mais mesquinha e louca. —Soltou sua mão de um puxão, lhe dando uma última ferrada ao seu lóbulo.

     Franzindo o cenho, ele esfregou-se a orelha.

     Ela indicou sua penteadeira onde havia um prato com fruta, pão e queijo esperando.

     —Sente-se e coma. Agora!

     —Sim, Sua Majestade.

     Quando Acheron se estirou para um pedaço de queijo, captou seu reflexo. Os olhos afundados, tintos de vermelho olhavam fixamente a um homem desalinhado. A barba esta andrajosa, o cabelo curto desgrenhado. Parecia mais como um ancião que como um jovem.

     Estava bem, sentia-se tão velho como parecia. Afastando o olhar, levou o queijo à boca enquanto Ryssa servia uma taça de vinho.

     Deixou-lhe para caminhar à porta que conduzia ao quarto da donzela.

     —Nera? Poderias me preparar um banho em meu quarto? E me encontre uma navalha de barbear.

     Acheron não falou enquanto comia. Honestamente, estava faminto. As donzelas não haviam lhe trazido comida e não se atrevia a ir procurá-la por si mesmo dada a maneira em que seu pai tinha reagido da última vez que o encontrou perto da cozinha e da sala de jantar.

     Quando Ryssa retornou, estava sustentando a Apollodorus. O bebê sorriu no momento em que viu Acheron e se estirou para ele.

     Incapaz de negar-se, Acheron o pegou em seus braços.

     —Saudações, sobrinho. Como estiveste?

     Ele gorjeou em resposta.

     Acheron levantou o olhar para Ryssa que sustentava panos para um fralda.

     —Cresceu desde a última vez que o vi.

     —Sim, tem-no feito.

     Acheron observou o escasso cabelo do bebê.

     —Também estás ficando calvo.

     Ryssa riu repentinamente.

     —Tu fizeste o mesmo. Todo o cabelo negro te caiu e então te voltaste loiro.

     Apollodorus se estirou e lhe puxou a barba.

     Acheron estendeu o bebê a Ryssa.

     —Estou muito sujo para lhe segurar.

     —Não importa a ele. Só está encantado de ver seu tio outra vez. Sentiu saudades de ti.

     Ele também tinha sentido saudades dele.

     Acheron abraçou ao bebê mais ainda enquanto olhava a sua irmã.

     —Isto é injusto, Ryssa. Sabes o que me ocorrerá se pai sequer me encontrar aqui. E se me vê perto de Apollodorus…

     Ela colocou uma mão sobre seu ombro.

     —Eu sei, Acheron.

   A porta se abriu para deixar entrar as criadas que traziam uma enorme tina de água quente. Ryssa agarrou ao bebê enquanto Acheron comia mais.

     Uma vez o banho esteve preparado, deixou-o sozinho.

     Com mais entusiasmo do que queria, Acheron se afundou na fumegante água quente e suspirou. Tinha passado muito tempo desde que tomou um banho e quase tinha esquecido como se sentia. Inclusive assim, não lhe importava o risco.

     —Te amo, Ryssa —sussurrou.

     Era a única que realmente se preocupava com ele. Artemisa o queria como amante, mas era uma deusa e o seu era um amor egoísta… muito parecido ao de Estes. Por tanto tempo como ele a agradasse, ela seria amável. Concedia que ela dava mais do que Estes tinha dado jamais, mas ainda tinha limites sobre o que fazia.

     O que mais machucava de Artemisa eram as lembranças de como tinham sido no começo. Desejava essa inocência em seu passado. Aquele sentimento que ele tinha significado alguma coisa para ela…

     Tentando não pensar nisso, estirou-se até a navalha que finalmente raspou suas barbudas bochechas. Uma vez terminado, arrastou-se fora da tina e alcançou suas roupas limpas.

     Depois de vestir-se, bateu na porta da donzela.

     —Terminei. Obrigado.

     Ryssa se uniu então a ele antes de fechar a porta de modo que a donzela não pudesse lhes ouvir.

     —Por favor, não tomes mais drogas, Acheron. Eu não gosto do que te fazem —a preocupação em seus pálidos olhos azuis o escaldaram.

     —As deixarei.

     —Promete-o?

     Ele assentiu.

     —Mas só por ti.

     Ela lhe sorriu.

     —Parece-te muito melhor. Sempre que quiseres te dar um banho, venha aqui e farei com que te preparem um. —elevou-se sobre as pontas dos pés para lhe abraçar.

     Acheron a apertou, retirando-se depois. Tinha permanecido ali já muito tempo. Ambos sabiam que era muito risco para ele estar em seus aposentos enquanto o resto da casa estava acordada.

     Entrando em seu quarto outra vez, ficou olhando o arco de Raiz de Morfeo que estava sobre a mesa.

     Atire-o.

     Não, não podia. Adoeceria outra vez se o deixava de repente. Sua existência era o bastante miserável sem isso. Faria o que lhe tinha prometido a Ryssa. Limparia-se disso.

     —Acheron?

     Esticou-se ante a voz de Artemisa. Como sabia o preciso momento para vir para lhe ver?

     Bem olhado, era uma deusa.

     —Bom dia, Artie.

     Apareceu atrás dele e lhe passou um braço ao redor da cintura.

     —Mmm, cheiras bem.

     Era pelo banho misturado com as drogas.

     —Acabo de me banhar.

     Retrocedendo, ela franziu o cenho ante ele.

     —Pareces estranho. Estás doente?

     —Não.

     —Então venha. Estou de humor para dançar.

     Acaso tinha escolha? Mas não estava de humor para desafiá-la. Estava aprendendo a evitar as surras e desfrutava disso.

     Artemisa o levou ao seu templo. Acheron se animou brevemente quando viu o que ela tinha feito. Havia véus por todo o lugar enquanto a música tocava muito baixa. Ordenou-se um pequeno banquete.

     Olhou-a com o cenho franzido.

     —O que é isto?

     Ela lhe ofereceu um tenro sorriso.

     —Passou algum tempo desde que estivemos juntos. Queria que esta fosse uma noite especial. Você gosta?

     Estava muito surpreso para pensar.

     —Fizeste isto por mim?

     —Bom, a verdade é que não organizaria uma velada romântica para meu irmão ou um de meus koris —foi à mesa e levantou uma caixinha—. E fiz que Hefesto fizesse isto para ti.

     Acheron estava completamente atônito enquanto ficava olhando a caixa e o que isso significava. Aquilo estava tão longe de seu caráter que por um momento se perguntou se alguém lhe teria golpeado na cabeça.

     —Tens um presente para mim?

     —Bom, queria algo para substituir o anel. Não podes levar isso contigo, mas podes deixá-lo aqui e usá-lo quando me visitares.

     Com curiosidade, abriu a caixa para encontrar um par de braceletes de ouro.

     Artemisa lhe apertou o antebraço.

     —É para teus pulsos sempre que caçarmos. Nunca dizes nada, mas sei que a corda do arco te arranha o pulso quando disparas. Protegerão-te a pele e se assegurarão de que as flechas voem sempre na direção correta.

     Era um pensamento tão incrível e lhe recordava quão fácil tinha sido lhe dar seu coração. Por que não seria sempre desta maneira?

     —Obrigado, Artie.

     —Faz-te feliz?

     Ela era quase infantil em seu esforço para lhe agradar. Acheron lhe retirou o cabelo do rosto de modo que pudesse lhe beijar a bochecha.

     —Faz-me mais que feliz.

     —Bem. Estiveste tão triste ultimamente e eu não gosto quando estás triste.

     Então por que fazia coisas que o incomodavam? Não o entendia, mas ela agora o estava tentando. Não ia jogar-lhe o passado na cara.

     Estendeu-lhe a mão.

     —Dançamos?

     Sorrindo, tomou sua mão e lhe permitiu fazê-la girar. Sua risada encheu seus ouvidos.

     Acheron desejou sentir desesperadamente sua alegria. Mas não havia nada nele exceto um fugaz sentimento de alívio de que ela não o atirasse ao chão e saltasse sobre ele. É obvio ainda estava atordoado pelos restos da raiz de Morfeo que tinha tomado há um par de horas. Esta era a parte onde seu corpo estava calmo e podia funcionar sem estar quente ou tonto.

     Artemisa apoiou a cabeça contra seu peito e suspirou enquanto se balançavam ao compasso da música.

     Os deuses sabiam quanto desejava voltar a lhe fazer amor. Mas estava assustado por desejá-lo. Cada vez que baixava a guarda, o machucava. Se ao menos reconhecesse ante o mundo que eram amigos. Ou lhe permitisse saber que realmente significava algo para ela.

     Tragou saliva desejando que ela reconhecesse sua amizade.

     —Artie?

     —Sim?

     —Passarias comigo todo o dia de amanhã?

     Ela sorriu com cara de felicidade.

     —Posso te recolher pela manhã.

     —Aqui não. Em Didymos.

     Ela afastou-se dele.

     —Não sei, Acheron. Alguém poderia nos ver.

     Sempre acabavam igual.

     —Podes tomar outra forma. Não tens que parecer tu.

     Ela deixou escapar um suspiro frustrado.

     —Por que é tão importante para ti? Por que não ficas aqui comigo?

     Não o digas...

     Mas não pôde evitá-lo. As drogas não lhe deixavam sujeitar a língua.

     —Aqui não me sinto humano.

     Ela franziu o cenho.

     —O que?

     Acheron se afastou dela indeciso. Parte dele não queria lhe dizer a verdade, mas a outra estava doente de ocultar-lhe.

     —Estar aqui faz com que me sinta como um mascote. É como viver na casa de meu tio em Atlântida. Não me permites deixar seu dormitório a menos que estejas comigo. Não posso sair para fora sem tua permissão. É degradante.

     —Degradante? —Olhou-o com os olhos entrecerrados—. Estás no templo de uma deusa do Olimpo. Como em nome de Zeus podes te sentir degradado por isso?

     Tu. Puto. Dado seu tom, as palavras eram intercambiáveis. Cravaram-lhe igual a uma faca lhe atravessando o coração.

     —Me perdoe, akra. Não estou em posição de te fazer pedidos.

     Ela curvou o lábio.

     —Oh, deixa já esse tom choramingante. Odeio quando fazes isso. Só saia.

     Foi imediatamente jogado de volta ao seu quarto. Jogou uma olhada ao redor do simples mobiliário e as escuras sombras.

     —Estou tão doente de tudo isto…

     Desesperado para que acontecesse algo agarrou a capa e saiu do palácio, à cidade. Não parou até que chegou a casa de Merus e Eleni. A luz do lar piscava atrás das persianas fechadas e imaginou aos dois dentro, rindo e brincando.

     Uma família.

     Conhecia a palavra, mas a verdade é que não compreendia o significado. Não sabia como seria ser recebido no lar. Saber que aí fora havia uma pessoa que morreria por ele.

     Aqui nunca encontrarás essa sensação.

     Acheron percorreu com a vista a rua vazia e recordou o dia em que seu pai lhe tinha jogado da casa de Estes. Tinha vagado durante meses tentando encontrar um lugar onde descansar. Tinha tentado encontrar trabalho. Todos se negaram a dar-lhe. Ao menos para qualquer outra coisa que não fora se prostituir.

     És tão bonito... lhe daremos um bom uso a esse corpo...

     Estremeceu-se ante as amargas lembranças que lhe obcecavam.

     Quero sair daqui.

     E tentou procurar uma saída. Foi de cidade em cidade, de povoado em povoado e em todas partes era o mesmo. Não tinha aonde ir nem a ninguém que lhe quisesse por mais tempo do que se necessitava para foder-lhe. A única razão pela qual havia voltado tinha sido a lembrança de sua irmã e o verão em que se sentiu como uma pessoa e não como um objeto.

     Com o estômago revolto levantou a vista até o palácio sobre a colina que brilhava como uma estrela mágica.

     E ainda, aquelas vozes próprias lhe sussurravam.

     Venha conosco, Apostolos. Venha para casa...

     Acheron riu com amargura.

     —Para que? Para que possam foder-me como todos os outros?

     Não tinha lugar para onde ir. Não havia libertação para sua tortura. A única razão que tinha para seguir vivendo eram as duas únicas pessoas que não lhe julgavam.

     Ryssa e Apollodorus. Que os deuses tivessem piedade dele se os perdia. Nunca seria capaz de seguir vivendo se eles abandonassem este mundo sem ele.

 

18 de Fevereiro, 9527 a.C.

     —Não sei o que há entre tu e esse menino, mas és a babá mais assombrosa que vi.

     Acheron riu ante o comentário de Ryssa quando pegou a Apollodorus dos seus braços. Nenhum dos dois podia entender por que a presença de Acheron acalmava ao seu sobrinho, mas não se podia negar que cada vez que Apollodorus estava inquieto se acalmava imediatamente ante a presença de Acheron. De fato, Ryssa tinha começado a deixar com ele o menino a cada noite para poder dormir.

     —Sabes que podes lhe deixar comigo sempre que queiras. Acredito que nos levamos bem porque nós dois funcionamos ao mesmo nível. —Acheron alvoroçou o cabelo de seu sobrinho.

     Sorrindo, Ryssa agasalhou com a manta a Apollodorus.

     —Graças aos deuses que te tenho. Não sei o que faria sem que me ajudasses com ele.

     Um instante depois, as portas do quarto de Acheron se abriram de repente. Seis guardas irromperam no aposento e lhe seguraram contra o chão.

     —O que é isto? —Perguntou Ryssa.

     Não responderam. Acheron lutou contra eles, mas, ao final, o aprisionaram enquanto o menino chorava protestando.

     —Não tem feito nada! —Gritou Ryssa enquanto lhes seguia fora do quarto baixando ao vestíbulo.

     Não pararam até chegar à sala do trono e lhe puseram de joelhos à força ante seu pai e Styxx que estavam sentados muito presunçosos em seus tronos enquanto lhe olhavam com desdém.

     Acheron lhes olhou com os olhos cheios de ódio.

     —Por que estou aqui?

     Seu pai desceu do trono rugindo de ira.

     —Tu não me perguntas, traidor.

     Acheron, aturdido, não pôde nem sequer piscar durante todo um minuto.

     —Pai! —Disse Ryssa com brutalidade—, perdeste o juízo?

     Sua resposta foi cruzar o rosto de Acheron.

     —Onde estavas ontem à noite?

     Acheron ofegou da dor que explodiu na bochecha e no olho. Tinha estado com Artemisa, mas isso não se atrevia a dizer ao seu pai.

     —Estive em meu quarto.

     Seu pai lhe esbofeteou outra vez.

     —Mentiroso. Tenho testemunhas que lhe viram em um bordel planejando minha morte.

     Assombrado, não pôde nem sequer responder. Tudo o que podia fazer era olhar a Styxx e a temerosa luz nos olhos do príncipe lhe disseram exatamente quem tinha estado no bordel.

     —Não tenho feito tal coisa.

     Seu pai lhe bateu de novo antes de voltar-se para os guardas.

     —Lhe torturem até que decida nos dizer a verdade.

     Acheron gritou sua inocência enquanto lutava com os guardas que lhe sujeitavam.

    —Não, papai! —Ryssa se lançou para frente.

     O rei se voltou para ela com um grunhido animal.

     —Não vais salvar-lhe desta vez. Cometeu traição e não vou permitir que isso fique sem resposta.

     Com o fôlego entrecortado, Acheron, sujeito pelos guardas, encontrou e sustentou o olhar de Styxx. Como podia seu irmão planejar a morte de um homem que beijava aonde ele pisava? Teria matado para ter só uma mínima parte do amor que Styxx desdenhava.

     Mas não havia necessidade de pedir clemência. Seu pai já tinha tomado uma decisão. Só Acheron, o bastardo, podia ser o traidor. Styxx nunca. A única pessoa que podia lhe exonerar era Artemisa. E ela morreria antes de admitir abertamente que tinha estado com ele em seu templo na noite anterior.

     Acheron foi arrastado fora da sala do trono e levado aos calabouços da parte de baixo.

     Embora lutasse com os guardas cada degrau do caminho não foi suficiente para evitar que lhe tirassem a roupa do corpo e lhe encadeassem no bloco de interrogatórios. A pedra de granito lhe gelou até os ossos. Havia manchas de sangue na pedra e sem dúvida seu próprio sangue se mesclaria logo com o dos que tinham sido torturados e mortos antes dele.

     Fechando os olhos, Acheron tentou pensar em alguma coisa, algo que lhe protegesse do que estava por vir. Mas quando o interrogador se aproximou, soube que não havia nada que pudesse fazer.

     Nada ia salvá-lo disto.

     —O rei quer os nomes de todos os que estiveram contigo.

     Acheron se estremeceu de dor ante o que viria quando dissesse a verdade.

     —Não estive com ninguém.

     Passou um látego de aço vermelho pelo peito de Acheron.

     Acheron gritou ao dar-se conta de quão impossível ia ser tudo isto.

     Ryssa estava aterrorizada quando voltou para seu quarto e agarrou ao seu filho que chorava nos braços da babá. O que ia fazer?

     Ao contrário de seu pai, sabia quem era o verdadeiro traidor. Se as testemunhas tinham visto alguém alto, loiro e que se parecia com Acheron, esse era Styxx. Acheron não tinha nada a ganhar matando ao rei se não fora a vingança e não era esse tipo de pessoa.

     Sem mencionar que Acheron nunca aparecia descoberto em público e especialmente não em um bordel. Se tivesse sido assim, ainda estaria ali, sacudindo-se de cima às pessoas.

     —O que tens feito, Styxx? —Sussurrou através do nó que tinha na garganta.

     Por que conspiraria contra seu próprio pai? Então soube, a história da humanidade estava escrita por filhos que queriam mais e estavam dispostos a fazer qualquer coisa para consegui-lo. Ainda assim, tinha pensado que Styxx estava por cima de tais maquinações. Quem tinha envenenado sua mente?

     —Tenho que encontrar a Artemisa. —Não havia ninguém mais que pudesse ajudá-la a salvar Acheron.

Ryssa se dirigiu a sua porta para sair, mas antes que tivesse dado três passos as portas se abriram em entraram os mesmos guardas que tinham detido a Acheron.

     —Vossa alteza, temos que vos levar para que vos interroguem.

     Ela gelou o coração ante essas palavras.

     —Me interrogar? Não pode ser.

     Mas sim que o era. A rodeando a levaram a quarto de guerra de seu pai, onde a esperava junto com Styxx.

     Dirigiu a ambos a mais fria das olhadas que pôde esboçar.

     —O que é tudo isto, Papai?

     Nunca tinha parecido tão velho como nestes momentos. Seus formosos traçgos estavam tensos com a tristeza.

     —Por que me trairias, Filha?

     —Nunca tenho feito nada para te trair, Papai. Nunca.

     Ele moveu a cabeça.

     —Tenho uma testemunha que chegou ante mim e há dito que estava com Acheron ontem à noite.

     Lançou um olhar assassino a Styxx.

     —Então estão mentindo como mentiram com respeito a Acheron. Eu estava com Apolo ontem à noite. Convoque-lhe e comprova-o.

     O rosto de Styxx ficou branco.

     Assim também tinha pensado em desfazer-se dela. Não podia acreditar na estupidez de seu pai no que a Styxx concernia.

     O alívio se estendeu pelo cenho de seu pai.

     —Alegra-me que se equivocaram, gatinha —posou a mão gentilmente em seu rosto—. O só pensamento de minha amada filha me traindo...

     E seu amado filho?

     Olhou além de seu pai e viu Styxx com os olhos cravados ao chão.

     —Acheron é inocente.

     —Não, menina. Desta vez não. Tenho muitas testemunhas que lhe viram ali.

     Como podia lhe fazer ver a verdade?

     —Acheron nunca estaria em um bordel.

     —É obvio que sim. Trabalha em um. Onde mais poderia ir?

     A qualquer lugar menos aí. Acheron odiava cada minuto que passa naqueles lugares.

     —Por favor, Papai. Já lhe tem feito bastante. Deixe-lhe em paz.

     Ele negou com a cabeça.

     —Há um ninho de víboras a meu redor e até que não descubra os nomes de cada um com os quais falou não retrocederei.

     As lágrimas encheram seus olhos ao dar-se conta do pesadelo pelo qual iam fazer passar a Acheron. Outra vez.

     —Os sacerdotes dizem que Hades reserva um lugar especial no Tártaro para os traidores. Estou segura de que o nome real de seu traidor já foi gravado ali enquanto falamos.

     Styxx se negou a olhá-la.

     Assim voltou a olhar ao seu pai.

     —Todos estes anos, Acheron só procurou teu amor, Papai. Um momento em que lhe olhasses com outra coisa que não fora ódio ardendo em seus olhos. Nada mais que uma palavra amável e cada vez lhe negaste e lhe tem machucado. Destroçaste ao filho que só queria te amar. Liberte-lhe antes que lhe faça um dano irreparável, imploro-te isso.

     —Traiu-me pela última vez.

     —Traído? —Perguntou, profundamente ferida por seu raciocínio—. Papai, não pode acreditar em algo assim. A única coisa que pretende é estar fora de tua vista. Que não te dês conta que está perto. Encolhe-se cada vez que se pronuncia teu nome. Se deixasse de ser tão cego durante um minuto, verias que nunca se mescla com as pessoas e que nunca te traiu.

     —Era um puto! —Rugiu.

     —Era um menino que tinha que comer, Papai. Sua própria família lhe repudiou. Traíram-lhe os que deviam lhe haver protegido de qualquer mal. Eu estava ali quando nasceu e lembro como todos vós lhe voltareis às costas. Recorda-o? Recorda sequer quando lhe quebrou o braço? Tinha só dois anos e quase não sabia falar. Aproximou-se para te abraçar e tu lhe empurraste tão forte que lhe quebraste o braço como se fora um raminho. Quando gritou lhe esbofeteaste e te afastasse.

     —E por isso, planejou seu assassinato, Papai. —Styxx interveio por fim—. Não deixes que uma mulher te afaste do que deve fazer-se. As mulheres são nossa maior debilidade. Nos acossam com nossas culpas e nosso amor por elas. Quantas vezes não me hás isso dito? Não podes escutá-las. Pensam com o coração e nós com o cérebro.

     O rosto de seu pai se voltou de pedra.

     —Não deixarei que consiga o que quere desta vez.

     As lágrimas correram livremente por seu rosto ante a cegueira de seu pai.

     —Desta vez? Quando deixaste que Acheron conseguisse o que queria?

     Sacudiu as lágrimas dos olhos e tentou lhe fazer raciocinar.

     —Te proteja da víbora em seu armário. Não é outra das coisas que dizes sempre, Papai? —Lançou um significativo olhar a Styxx—. A ambição e o ciúme estão no coração de todos os traidores. A única ambição de Acheron é permanecer fora de tua vista e se estivesse ciumento, não seria de ti. Mas sei de outro cuja vida melhoria imensamente se tu não estiveras.

     Seu pai a esbofeteou.

     —Como ousas implicar ao seu irmão?

     —Já lhe disse isso, Papai. Odeia-me. Não me surpreenderia se também tivesse se deitado com o puto.

     Ryssa tirou o sangue dos lábios.

     —A única pessoa desta família que se deita com putas és tu, Styxx. Pergunto-me se Acheron foi supostamente visto em teu bordel favorito... —Com estas palavras saiu da habitação para a rua.

     —Nos deixem!

     Acheron quase nem reconheceu o som da voz de seu pai através da pulsante e atroz dor. Nenhuma parte de seu corpo tinha sido respeitada ou deixada sem violar. Doía-lhe inclusive piscar.

     Uma vez que o quarto esteve vazio, seu pai se aproximou onde jazia no bloco de pedra.

     Para seu completo desconcerto, seu pai se aproximou dele uma concha com água para que bebesse.

     Acheron se encolheu de dor esperando que o rei lhe ferisse com a concha. Não o fez. Em realidade, seu pai lhe levantou a cabeça e lhe ajudou a beber. Salvo pelo fato de que poderia matar a Styxx, pensou que poderia estar envenenada.

     —Onde estiveste ontem à noite?

     Acheron sentiu que uma lágrima solitária se deslizava pela borda do olho ao escutar a pergunta que lhe tinham feito uma e outra e outra vez. O salgado da lágrima ardeu na ferida aberta de sua bochecha quando tomou fôlego de forma entrecortada e agônica.

     —Me diga o que queres que diga, akri. Diga-me o que é que evitará que sigam me machucando.

     Seu pai estrelou a concha contra a pedra ao lado do rosto de Acheron.

     —Quero os nomes dos homens com os quais estiveste.

     Não sabia os nomes dos senadores. Raramente lhe diziam seu nome depois de lhe haver fodido.

     Acheron sacudiu a cabeça.

     —Não estive com ninguém.

     Seu pai enterrou a mão em seu cabelo e lhe forçou a lhe olhar.

     —Me diga a verdade, maldito seja.

     Perdido na dor, Acheron lutou por inventar uma mentira que seu pai pudesse acreditar, mas, assim como com o interrogador, voltou para a simples verdade.

     —Não tenho feito nada. Não estive ali.

     —Então, Onde estiveste? Tens alguma testemunha de suas aventuras?

     Sim, mas ela nunca se apresentaria. Se em vez dele fora Styxx... Mas não, Artemisa nunca apoiaria a um desprezível puto como ele.

     —Só tenho minha palavra.

     Seu pai rugiu de ira. Aproximou-se, mas antes que pudesse lhe alcançar, ficou congelado.

     Acheron conteve o fôlego enquanto tentava compreender o que estava passando. Um instante depois Artemisa apareceu ao seu lado.

     Assombrado, não pôde fazer outra coisa que olhá-la.

     —Tua irmã me disse do que te acusavam. Não te preocupes, teu pai não recordará nada disto. E tu irmão tampouco.

     Acheron tragou enquanto tratava de entender o que lhe estava dizendo.

     —Estás me protegendo?

     Ela assentiu. Um instante depois estava de volta em seu quarto e curado. Acheron jazia de costas em sua cama, mais agradecido do que as palavras podiam expressar. Mas ainda assim, não se mitigava a dor que tinha suportado. Nem tampouco ocultava o fato de que Styxx estava planejando destronar ao seu próprio pai.

     O que ia fazer?

     Artemisa se materializou a seu lado. Sua expressão era triste ao retirar o cabelo da cara.

     —Ryssa nos recordará? —Perguntou-lhe.

     —Não. De agora em diante nem sequer recordará que tu e eu nos conhecemos. Possivelmente deveria havê-lo feito antes. Mas parecia que podia ter a boca fechada. Agora não terei que me preocupar por isso.

     Era o melhor.

     Olhou Artemisa assombrado pelo que tinha feito. Não, não lhe tinha apoiado, mas lhe tinha salvado. Era um grande passo adiante desde a última vez que lhe tinha deixado a mercê de seus “cuidados”.

     —Obrigado por vir a mim.

     Ela posou a mão em sua bochecha.

     —Eu gostaria de poder te levar longe daqui.

     Era a pessoa que podia fazê-lo. Mas seu medo era muito grande. Possivelmente tinha razão. Que bem lhe faria tornar-se a perder por ele?

     Não o merecia.

     Acheron a beijou nos lábios embora interiormente seguia gelado. Não tinha onde ir e estava cansado de estar aqui onde as pessoas lhe odiavam.

     Styxx…

     Em um abrir e fechar de olhos a resposta mais clara veio a ele. Por que não tinha pensado antes nisso?

     Afastando-se de Artemisa, sustentou-lhe a mão.

     —Deverias ir antes que alguém irrompa aqui dentro.

     —Ver-te-ei amanhã.

     —Não se podia evitá-lo.

     —Até manhã.

     Acheron observou como ela desaparecia e ao segundo de haver-se ido, imediatamente fez planos para o que estava por vir.

     Seu pai se negaria a deixar-lhe morrer tanto tempo enquanto sua vida estivesse atada a de Styxx e Styxx estava planejando a morte de seu pai.

     A resposta era simples. Se ele matava a Styxx, seu pai estaria a salvo e ele seria livre.

     Paz. Finalmente teria paz.

 

19 de Fevereiro, 9527 a.C.

     Acheron esperou até que o palácio esteve completamente em silêncio. Em menos de uma hora o sol se levantaria…

     Styxx e ele, ambos estariam mortos. O mero pensamento lhe conduziu mais felicidade que qualquer coisa que pudesse imaginar.

     Mais que ansioso, sustentou com firmeza a adaga, passando aos guardas e deslizando-se pela porta do aposento de Styxx. Fechou-a brandamente. Como uma sombra, percorreu o caminho para a amaciada cama de plumas onde seu irmão dormia. Pesadas cortinas penduravam para proteger ao herdeiro da travessa brisa.

     Mas não o podiam proteger de Acheron.

     Com o olhar sombrio, Acheron afastou as cortinas. Nu, exceto por seu colar com o emblema real, dormia sobre seu flanco, completamente vulnerável.

     Todos esses anos de abuso, de brincadeira, atravessaram sua mente, assim como a lembrança da forma em que preferia vê-lo castigado pelo ato de traição que ele tinha cometido.

     Levantou a adaga. Uma incisão… um corte…

     Paz.

     Faça-o!

     Começou a descer lentamente, então se deteve antes de fazer contato com a garganta do príncipe.

     Silenciosamente, amaldiçoou-se quando se deu conta da verdade sobre ele. Não podia fazê-lo. Não a sangue frio. Não sem piedade.

     Aborrecido, deu um passo para trás dando-se conta de que era um covarde.

     Não, não era um covarde. Não importava o que tivesse acontecido em seu passado. Eram irmãos. Gêmeos. Não podia matar ao seu irmão. Ainda quando o bastardo o merecia.

     Tua dor não se deterá até que o faças.

     Ele não mostraria tanta misericórdia.

     Era verdade. Preferia vê-lo golpeado, castrado, inclusive morto se seu pai fora capaz de fazê-lo.

     Styxx não tinha piedade, nem lástima, nem sequer compaixão, e se permitia que vivesse, o abuso para com Acheron continuaria. E provavelmente pioraria quando Styxx assassinasse ao seu pai. E uma vez que seu pai não estivesse, machucaria a Ryssa.

     Já tinha feito essas ameaças. Repetidamente.

     Poderia assassiná-la com impunidade. O sangue de Acheron se congelou ante essa realidade. Se não o fazia por ele, o faria para proteger a sua irmã e seu filho.

     Styxx tinha que morrer.

     —Me perdoe, irmão —sussurrou um instante antes de apunhalá-lo no coração.

     Styxx ofegou enquanto seus olhos se abriam. Acheron cambaleou para trás, dentro das sombras enquanto seu irmão tratava de arrastar-se fora da cama. Caindo ao piso, paralisou enquanto o sangue emanava da ferida e inundava o chão.

     Respirando com dificuldade, Acheron esperou que a morte também o reclamasse.

     Não aconteceu, e com cada pulsado do coração, o pânico começou a crescer.

     Sentia-se como sempre. Como podia ser isso?

     Talvez Styxx não estava morto. Aterrorizado de só havê-lo ferido, foi até ele e pressionou a mão contra seu pescoço. Não havia pulso algum. Nenhum movimento ou outro sinal de vida. Virando o corpo, observou que a pele e os lábios se tornavam azuis, os olhos abertos e fixos.

     Styxx estava morto.

     E ele ainda vivia.

     Horrorizado, correu para a porta e pelo corredor de volta ao seu quarto, passando a dormitados guardas. Não! A palavra fazia eco em sua mente uma e outra vez enquanto tratava de entendê-lo. Se ele morria, Styxx morria. Se Styxx morria…

     Nada lhe acontecia? Como podia ser isto?

     Por que os deuses fariam algo assim? Não tinha nenhum sentido.

     Assassinou ao teu próprio irmão. Seu gêmeo.

     Apoiou-se contra a porta fechada enquanto um horror absoluto se apoderava dele. Eles poderiam assassiná-lo se se inteirassem da verdade. Seu pai não perdoaria isto. Rasgariam-no…

     Subitamente, um alarme soou no palácio enquanto os guardas gritavam uns aos outros, clamando no corredor.

     Já hão descoberto o corpo. Deuses me ajudem!

     Alguém golpeou a sua porta.

     —Acheron?

     Era Ryssa. Abriu a porta para vê-la aí, pálida e com o cabelo desordenado. Vestia uma capa vermelha sobre o vestido azul.

     —Queria estar segura que estavas bem. Alguém tratou de matar a Styxx esta noite.

     Tratou? Não, ele tinha tido fodidamente êxito.

     —O que queres dizer?

     Antes que pudesse responder, viu-o atrás de Ryssa, a cara avermelhada pela fúria enquanto guiava aos guardas em uma busca pelos quartos.

     —Encontrem ao meu atacante! Quero-o agora. Escutam-me? Procurem em cada canto até que dêem com ele!

     Acheron piscou com incredulidade.

     Styxx estava vivo? Não estava preparado para o que isso significava. Styxx tinha ressuscitado.

     Por que?

     Ryssa sacudiu sua cabeça.

     —Viu a alguém?

     —Estava em meu quarto —mentiu.

     Como se o sentisse, Styxx congelou e logo virou para ele. Apesar de estar coberto de sangue não havia rastro da ferida que o tinha assassinado.

     —Guardas! —Rugiu.

     Acheron retrocedeu com temor.

     Styxx o apontou.

     —Resguardem-no. Meu atacante poderia descobrir que para me assassinar tem que assassinar a ele primeiro. Quero que alguém resguarde suas costas todas as horas.

     Se tão somente seu irmão soubesse… Graças aos deuses que não era assim.

     —Que noite horrível —disse Ryssa. —Melhor ir até Apollodorus. Sei que toda esta comoção o assustará.

     Acheron não se moveu até que ela partiu. Através de uma fresta na porta, pôde observar aos guardas irrompendo no vestíbulo e inspecionando os quartos. Seu irmão estava vivo. Não podia deixar passar esse fato.

     Assim que suas vidas não estavam realmente enlaçadas. Ao menos não em um sentido tradicional. Se morria, Styxx morria. Se seu irmão morria… não havia nenhum efeito nele.

     Seu pai estava correto. Não era normal.

     Por que os deuses protegeriam a ele e não a Styxx? Não tinha nenhum sentido.

     Retirando-se ao quarto, decidiu esperar que terminasse a busca e que a casa estivesse em silêncio outra vez. Uma vez que fora seguro poderia partir sem ser visto. Envolveu-se com o manto e se encaminhou às escuras ruas.

     Manteve-se escondido enquanto mantinha o rumo através dos becos para o templo de Apolo. Uma vez ali, golpeou a porta.

     —Estamos fechados.

     —Venho da casa real —disse Acheron forçadamente. —É imperativo que veja o oráculo.

     A porta se abriu parcialmente até que o velho sacerdote vislumbrou seu rosto. A conduta mudou imediatamente a uma de submissão.

     —Príncipe Styxx, me perdoe. Não me tinha dado conta que eras tu.

     Acheron não se incomodou em corrigi-lo. Pela primeira vez, agradeceu que fossem gêmeos.        

     —Me leve ao oráculo.

     Sem mais vacilações, o sacerdote o guiou através do caminho cheio de colunas à parte de trás, aos pequenos aposentos que estavam reservados para os sacerdotes e assistentes. A sala do oráculo era ligeiramente maior que as outras. Estava vazia e desolada com apenas uma pequena cama de pano listrado.

     —Senhora? —Chamou o sacerdote enquanto se aproximava da cama. —O príncipe deseja falar umas palavras convosco.

     Uma mulher loira, que não podia ter mais de quinze anos se sentou na cama e com ajuda do sacerdote ficou de pé, caminhando para ele. Pela maneira em que se movia, Acheron soube que estava drogada. Notavelmente.

     O sacerdote a conduziu até uma alta cadeira que estava assentada sobre uma fonte de vapores. Pelo cheiro, adivinhou que continha Raiz de Morfeo mesclada com Ripsi Opsi, um componente que criava fantásticas alucinações. Era algo que tinha tomado só uma vez depois que Euclides cantou seus louvores, mas isso tinha sido suficiente. Tinha-o deixado com delírios e pesadelos durante dois dias.

     —Nos deixe —espetou ela ao sacerdote. —Conheces a lei.

     Ele se retirou instantaneamente.

     A garota puxou o manto sobre sua cabeça e adicionou mais água à ebulição de ervas para que defumassem mais.

     —Tu não és o príncipe.

     Acheron franziu o cenho.

     —Como sabes isso?

     —Eu sei tudo —disse ela vilmente. —Sou o oráculo e tu és o primogênito maldito que o rei nega.

     Isto último não era de conhecimento comum, o que lhe fez acreditar em suas habilidades.      

     —Então me digas porquê estou aqui.

     Ela aspirou os vapores e se retorceu sobre o tamborete como se escutasse as mesmas vozes que o atormentavam. Quando abriu os olhos, cravou-os nele como lanças.

     —Não podes matá-lo. Está proibido para ti morrer.

     —Por que?

     Inalou outra vez. Os olhos se voltaram de uma brilhante sombra dourada.

     —Na marca do sol jaz uma incisão de prata. Não uma, nem duas, e sim três vezes. A marca do pai à direita, a da mãe à esquerda e no centro está a de quem une aos dois. Três vistas entrelaçadas. Tu és o que és embora ainda não sabes. Saberá. Aproxima-se o dia em que seu destino se manifestará. Caminha com coragem e escuta. O teu é um nascimento de dor, mas um de necessidade. Akri di diyum…

     O Amo e Senhor regerá…

     Ela o alcançou e posou a mão em seu ombro.

     —Tua vontade criará as leis do universo.

     —O que estás dizendo?

     —Quem luta com seu destino perderá. Abraça teu destino, Acheron. Quanto mais dura é a luta mais doloroso é o nascimento. —Ela desmaiou.

     Quase nem pôde agarrá-la antes que caísse ao chão. Carregando-a nos braços a levou até a cama e a recostou. Continuava murmurando palavras sem sentido a respeito de aves e demônios vindo atrás dele.

     Ainda mais confuso do que tinha estado antes, deixou-a aos cuidados dos sacerdotes e empreendeu seu caminho de volta ao palácio.

     A profecia era insensata.

     Tinha que sê-lo. Por que os deuses escolheriam a um puto para mover-se? Por que sua vontade seria a vontade do universo?

     Ela estava drogada…

     De todos os homens, sabia o desconcertante que era isso. Não eram mais que alucinações como as quais ele mesmo tinha tido. Ele não era nada.

     Entretanto, dentro de sua mente se repetiam duas palavras uma e outra vez.

     E se…?

 

3 de Março, 9527 a.C.

      Acheron estava sentado no quarto das crianças, dando tiras de carne a Apollodorus. Os dois tinham estado sozinhos a maior parte da manhã enquanto Ryssa jazia com uma terrível dor de cabeça. Não sabia por que seu sobrinho parecia adorá-lo, mas o menino poderia segui-lo onde fora.

     Era a única coisa boa em sua vida.

     Apollodorus deixou sair um comprido arroto, logo riu com graça.

     Acheron levantou suas sobrancelhas.

     —Acredito que já estás cheio, meu Senhor.

     O bebê caiu e riu. Acheron o carregou, apoiando-o contra seu ombro.

     Acabava de recostá-lo para a sesta quando as portas do quarto de crianças se abriram. Por um momento, temeu que pudesse ser seu pai ou Apolo, mas felizmente era Ryssa acompanhada de uma jovem e diminuta mulher loira.

     Tomou um momento dar-se conta quem era ela.

     Maia.

     —Acheron! Olhe quem veio de visita com sua mãe.

     A sorte encheu por completo seu ser enquanto se levantava para saudar.

     —É bom voltar a ver-te. —Abraçou-a estreitamente.

     Ela afastou-se para observá-lo com um sorriso.

     —Acheron… foi muito tempo. Não mudaste nada.

     Mas ela sim. E quando percorreu seu braço com uma inquietante carícia, congelou-se com temor. Especialmente quando essa luz familiar chegou aos seus olhos. Era como se não pudesse controlar-se. Condenada maldição.

     Não Maia…

     Retrocedendo, pôs distância entre eles.

     —O que te traz aqui?

     —Vim com minha mãe.

     Ryssa lançou um pálido sorriso que lhe indicou que a cabeça ainda lhe doía.

     —Ficarão uma semana.

     Essas notícias deviam alegrá-lo, mas em vez disso o atemorizaram.

     —De verdade?

     Maia se aproximou lentamente, como uma leoa faminta de um pedaço dele.

     —Tu e eu devemos nos pôr ao dia.

     Antes que pudesse responder, uma criada chamou Ryssa.

     Sua irmã fez uma careta de dor e pressionou a mão contra a têmpora, logo os olhou.

     —Volto já.

     Maia deu um passo aproximando-se.

     —Tinha esquecido quão belo eras…

     Pôs uma mão no ombro para afastá-la.

     —Disseram-me que tens marido agora.

     —Não está comigo. —inclinou-se provocativamente.

     —Não —disse firmemente. —Não farei isto contigo.

     Ela lambeu seus lábios enquanto lhe lançava um olhar por entre suas pestanas.

     —Já não sou uma menina, Acheron. Sou uma mulher adulta com um bebê próprio.

     —E eu não tenho nenhum interesse em ti dessa maneira.

     Estirou-se para sua virilha.

     Acheron agarrou a mão antes que fizesse contato.

     —Maia, cuidei-te quando eras uma menina.

     —E agora quero que cuides de mim como uma mulher.

     —Por favor, pare.

     —Por que? És mais jovem que meu marido. —Tratou de retirar a mão de seu agarre—. Não me encontras atrativa?

     Ryssa retornou.

     Soltou-a e rapidamente se afastou.

     —Tenho que ir agora.

     —Algo vai mal? —Perguntou Ryssa.

     Mais do que alguma vez poderia lhe dizer.

     —Não. Estou bem. Só tenho que ir. —Praticamente correu fora do quarto e não se deteve até que esteve certamente encerrado em seus aposentos.

     Apoiando-se contra a porta, amaldiçoou pelo que tinha passado. O que é que estava errado que qualquer um que passasse da puberdade queria fodê-lo?

     Estava tão cansado de que todo mundo o estivesse agarrando, lhe piscando os olhos, olhando-o sugestivamente. Isso não era normal e agora com Maia se deu conta de algo terrível.

     Nunca poderia ter uma relação normal com ninguém.

     Pai, irmã, inclusive uma amizade da infância.

     No momento que alguém passasse da puberdade, estava acabado para ele. Doente ante esse pensamento, deslizou-se para o chão apoiado contra a porta, odiando qualquer maldição que os deuses lhe tivessem dado.

 

22 de Junho, 9527 a.C.

    Amanhã Acheron alcançaria a maioridade. Vinte e um. Deveria estar excitado, mas as palavras do oráculo lhe obcecavam. Mais que isso era a expressão no rosto de Maia quando tentou lhe agarrar.

     —Algo tem que mudar. —Disse com o olhar pesado. Seu irmão ainda conspirava para assassinar ao seu pai e aqui estava ele, sentado sem fazer nada exceto não cruzar o caminho de ninguém, esperando que nem sequer lhe vissem.

     —Acheron?

     Voltou a cabeça e se encontrou com Ryssa que tinha se unido a ele na bancada. Olhou-lhe com os olhos entreabertos.

     —Já estás com esse tema outra vez, verdade?

     —Só hoje e amanhã. —Admitiu baixinho.

     —Por que?

     Porque Artemisa lhe tinha arrancado o coração e não tinha a força suficiente para viver sem ele durante os próximos dois dias.

     Era a velha briga entre os dois. Pedia à deusa que lhe reconhecesse ou ao menos que fora a lhe ver no dia do aniversário de seu nascimento e ela ria em sua cara. Mais ainda, estava cansado de ver todas as celebrações especiais que planejavam para o aniversário de nascimento de Styxx. Celebrações planejadas por um homem cuja vida poderia terminar logo às mãos do mesmo filho que cobiçava tão ferventemente. Irônico, sim. Mas não deixava de doer.

     —Acheron. —Ryssa agarrou seu queixo e lhe forçou a olhá-la—. Me ouves?

     —A verdade é que não.

     Viu a frustração em seus olhos.

     —O que vou fazer contigo?

     —Me bata, como todos.

     Olhou-lhe colérica.

     —Não tem graça.

     Tentava que não a tivesse. Era um fato simples de sua vida, motivava a todos os quais havia ao seu redor a atos de extrema violência.

     Ela moveu a cabeça antes de dar um passo para trás.

     —Sabes que não deixo que Apollodorus se aproxime de ti quando estás assim.

     Essa era a desvantagem.

     —Eu sei. Não seria muito maternal de sua parte. Não é que eu saiba muito como se comportam as mães com seus pequenos. Acredito que o vi uma vez em uma obra só que a mãe alimentou a um leão com seu filho. Que mal que minha própria mãe não fora tão misericordiosa, verdade?

     Ela recostou a cabeça sobre seu ombro e lhe beijou justo atrás da orelha, lhe enredando carinhosamente o cabelo.

     —Teu cabelo é mais claro que antes. Parece-me que eu gosto deste longo. Cortaste-o?

     Ele negou com a cabeça.

     —Qualquer um que me corte o cabelo quer dormir comigo depois. Acredito que vou deixar que cresça até os pés ou até que Papai se zangue o suficiente para me tosquiar outra vez. Possivelmente deveria ir fazer outra oferenda aos deuses. Ouvi que Atenas tem uma festa em uns dias.

     Ela deixou escapar um suspiro agitado.

     —Estás de um humor hoje...

     Eram as drogas combinadas com a frustração. Sempre tinha odiado estar assim em Atlântida. Nunca lhe tinha pagado bem seu descaramento sarcástico. E lhe matava que lhe enchessem de drogas e depois lhe castigassem pelos efeitos que as drogas tinham em sua mente e seu corpo.

     Artemisa lhe tinha um estranho amor-ódio por este tipo de humor. Umas vezes gostava e outras lhe castigavam por isso. O problema era que nunca sabia como tomaria até que fosse muito tarde.

     Ryssa se retirou com desânimo. Sua dor era tangível e não havia nada que pudesse fazer para lhe aliviar. Queria chorar pelo peso de sua incapacidade para ajudar no que a ele concernia.

     A pior parte era o que tinha passado entre ele e Maia, mas não queria contar-lhe. Pensava que Maia tinha sucumbido ao mesmo impulso de todos os outros. Devia ser algo relacionado com a puberdade. Antes da maturidade sexual as crianças não podiam discerni-lo. Mas depois...

     Seu pobre Acheron.

     Se ao menos houvesse alguém que pudesse controlar-se ante ele.

     Eu sou a única.

     De maneira nenhuma se considerava especial. Mas isso não mudava o fato de que Acheron estava sozinho. Sempre tinha estado sozinho. Seu pai nunca deveria ter permitido que se casasse e depois do quase assassinato de Styxx, outra vez havia guardas apostados na porta de Acheron. A pouca liberdade que tinha acabou.

     Depois de anoitecer, Acheron contemplava a atividade no pátio. O que mais lhe chamou a atenção foi a longa procissão de arautos que precediam à Princesa de Tebas. A nova noiva de Styxx. Casavam-se em duas semanas a contar de manhã.

     Desta vez, tinha planejado manter-se afastado da mulher de seu irmão. Como se compreendessem o perigo, doeram-lhe as bolas de repente ante o pensamento de que lhe cortassem outra vez.

     Encolhendo-se, Acheron amaldiçoou ao seu irmão pela castração. Styxx sabia a verdade sobre o que tinha feito sua noiva, mas ao bode não lhe importava.

     E o que? O que significava sua humilhação? A única coisa que importava era o precioso Styxx e sua dignidade.

     Suspirando, voltou a pensar no oráculo. Akri di diyum.

     O que poderia significar?

     O amo e senhor reinará.

     Já reinava no dormitório, que mais restava?

     É só um oráculo drogado, Acheron, esqueça-o. Sempre falavam em adivinhações sem significado. E não havia o que se assombrar. A rameira tinha estado mais alta então do que ele o estava agora. Possivelmente deveria começar a contar suas próprias profecias.

     Oh espera, já tinha uma…

     Artemisa não se aproximaria dele nem hoje nem amanhã, mas ao terceiro dia saltaria sobre ele até que estivesse coxeando.

     Vê… Profeta. Conhecia o futuro incluso melhor do que o fazia o oráculo.

     Rindo amargamente, deslizou-se do parapeito e se dirigiu à cama.

     A coisa seguinte que soube, era que estava no templo da Artemisa, deitado no chão aos seus pés.

     —Uma pequena advertência seria agradável, Artemisa.

     Rindo, ela envolveu seus braços ao redor de seus ombros e lhe cheirou o pescoço.

     —Estava me sentindo faminta.

    Deveria havê-lo sabido.

     —Disseste que não poderias me ver até depois de amanhã.

     Ela lhe acariciou o pescoço com as unhas, lhe causando calafrios que subiam e desciam por seu corpo.

     —Houve uma pausa assim fiz tempo para ti. Um pouco de gratidão poderia te vir bem.

     Inclinou a cabeça para olhá-la com diversão.

     —Não podes ver a gratidão gotejando de mim?

     Beliscou-lhe a ponta do nariz.

     —O sarcasmo não vai bem contigo.

     —Ainda assim faz com que me desejes cada vez que o sou.

     Ela sorriu.

     —Como acertas para me ler tão bem?

     Não era difícil. Adorava o fato de que ele não estivesse encantado por ela. O fato de que seus olhos se dilatassem e sua respiração se incrementasse eram pistas bastante difíceis de perder.

     Ela lhe mordiscou os lábios.

     —Senti saudades.

     Um agudo ofego interrompeu seu jogo.

     Acheron se congelou ante o som que fez com que Artemisa se levantasse do divã rugindo de raiva. Ali frente a eles estava uma alta e esbelta mulher com o cabelo avermelhado. Seus olhos escuros estavam rodeados de medo.

     —O que estás fazendo aqui, Satara?

     —Eu só… e-e-eu não vi nada, Tia Artemisa. Perdoe-me.

     Artemisa a agarrou pelo cabelo e puxou-a aproximando-a.

     —Me olhe —suas presas se alargaram e seus olhos eram vermelhos matizados com laranja—. Diga uma só palavra do que viu aqui e não haverá poder que salve tua vida ou tua alma. Entendeste-o?

     Satara assentiu vigorosamente.

     Artemisa a colocou a um lado.

     —Saia e não te atrevas a voltar até que te convoque.

     Ela desapareceu imediatamente.

     Artemisa se voltou para ele com vingança.

     —Isto é tudo tua culpa!

     É obvio que o era.

     —Foste a única que me trouxe aqui.

     —Silêncio! —Esbofeteou-o ela.

     Acheron grunhiu ante o sabor do sangue em sua boca. Queria lhe devolver o golpe, mas conhecia as repercussões. Ele era mortal e ela não. Mais ainda. Tanto como essa bofetada lhe doía mentalmente, ele não a trataria assim. Ninguém deveria sangrar por ternura.

     Estavam malditamente seguros que não teriam que sangrar por amor.

     —Terminaste? —Perguntou ele.

     Voltou-se então sobre ele com suas presas.

     Acheron vaiou quando ela derrubou a fúria contra Satara sobre ele. Sentiu duas gotas de sangue caindo de seus lábios, descendo por seu peito. A dor o queimava enquanto ela se alimentava sem pensar nele para nada.

     Quando terminou, colocou-o a um lado.

     Débil pela perda de sangue, caiu de joelhos.

     Ela lhe agarrou pelo cabelo e puxou-o para trás contra ela. Uma faca apareceu em sua mão e ela o sustentou ante seu coração.

     Acheron encontrou seu olhar e esperou.

     —Me mate, Artie. Acaba com isto.

     Seus olhos se escureceram até o ponto de que não estava seguro se ela acabaria com ele, mas justo quando a adaga ia até seu coração, ela mudou a direção e a mandou voando contra a parede. Envolveu os braços ao seu redor e o manteve perto dela enquanto soluçava.

     —Por que fazes que te deseje?

    Acheron riu amargamente.

     —Não sou o único que o faz. Acredite-me.

     Se tivesse opção, ninguém voltaria jamais para lhe desejar outra vez.

     Ela o separou de seus braços.

     —Só vá embora.

     Acaso tinha escolha?

     Ao menos desta vez, ela o havia devolvido a sua cama. Mas ainda estava sangrando por seu jantar. Suspirando, levantou-se para atender a ferida.

     —Tu és o único homem que esteve alguma vez em seu templo… além de meu pai.

     Acheron se virou de repente para ver Satara de pé perto de sua cama.

     —O que estás fazendo aqui?

     —Quero conhecer o homem que poderia fazer que Artemisa arriscasse tudo.

     Agüentou o fôlego de puro pânico.

     —Destruiria aos dois se soubesse que estás aqui.

     Satara deu de ombros despreocupadamente.

     —Não presta nenhuma atenção ao reino dos humanos. Acredite-me.

     Acheron não se moveu enquanto ela atravessava a curta distância entre eles.

     Franzindo o cenho lhe estudou como se fora uma curiosidade disforme.

   —És belo. Possivelmente eu também arriscaria meu bem-estar por ti. —Estendeu a mão para lhe tocar o rosto.

     Acheron lhe agarrou a mão.

     —Tens que ir.

     —Eu seria uma amante mais amável do que é Artemisa.

     Justo o que necessitava.

     —Olhe. —Disse Satara com firmeza—. Posso dizer por seus olhos que é um semideus como eu. O fato de que seu sangue a nutra é a prova. Juro-te isso, não seria tão insensível. Sem mencionar que, com os poderes que tenho, tu e eu poderíamos arrebatar os seus. Imagine o dois semideuses com o poder de um deus. Seríamos invencíveis.

     —Não há nada que seja invencível. Sempre há alguma falha em todo ser, não importa quão capitalista seja. Uma debilidade... Tu reconheces que eu sou a de Artemisa. Alguém saberá a tua e averiguarão a minha. Para bem ou para mau, dei-lhe minha palavra e não voltarei atrás.

     Ela lhe sorriu sarcástica como se fora deficiente mental.

     —Então és tolo.

     —Chamaram-me de coisas piores.

     Ela sacudiu a cabeça.

     —E estás contente sendo seu cachorrinho fraldiqueiro?

     Não o estava. Mas que opções tinha?

     —Volto a te dizer que lhe dei minha palavra e não sou um mentiroso.

     Soprou depreciativa.

     —Então temo que te julguei mal. De qualquer forma, estou em um dilema. Se ela se inteira disto me matará, sobrinha ou não sobrinha. Mas como ao que parece, és um homem de palavra, tenho tua promessa de que nunca dirás a Artemisa o que falamos hoje?

     —Eu não gosto de conspirar para que alguém caia, nem sequer tu. Dito isto, se alguma vez for contra Artemisa, então lhe direi o que hás feito. Enquanto ela esteja a salvo, tu estás a salvo. Juro-o.

     Ela inclinou a cabeça como se estivesse desconcertada por sua ameaça.

     —Farias um trato comigo para proteger à mesma porca que logo poderia te golpear com a mesma lealdade que tu mostras a ela?

     Acheron deu de ombros.

     —Estou protegendo a minha melhor amiga. Para o bem ou para o mal. Permanecerei do seu lado.

     Satara sacudiu a cabeça.

     —Então tu e eu temos um acordo. Só espero que a encontres merecedora de sua lealdade.

     Ele também. Mas assim como Satara, de algum modo o duvidava.

     Com uma última olhada, Satara o deixou.

     Acheron passou uma mão pelo cabelo enquanto tentava buscar um sentido àquilo. Assim Artemisa tinha muitas pessoas que a tratavam como seu pai. Maldição. O que tinha o poder que fazia com que todos o cobiçassem? Por que as pessoas não podiam contentar-se com o que tinham? Por que deviam voltar família e os amigos uns contra os outros por algo tão estupidamente inocente? Alguma coisa que com o passado do tempo já não importaria…

     Quando o amor era demonstrado a alguém? Como podiam deixar que a avareza e o egoísmo jogassem tudo a perder? Não o compreendia.

     O amor era tão puro e inocente quando se entrega, especialmente quando se entrega incondicionalmente. Por que não podiam aqueles que o recebem vê-lo como o belo presente que era? Por que tinham que usá-lo como uma ferramenta para machucar ao que o entrega?

     Como Artemisa fazia com ele.

     E Styxx com seu pai.

     Por isso amava ao seu sobrinho. Apollodorus não pedia nada mais que atenção e quando lhe abraçava e lhe dava um beijo com babas na bochecha era puro e contente amor. Não havia subterfúgios. Não era dar para conseguir algo em troca.

     Por que não podia o mundo ser assim?

     E outra vez, a quem ia perguntar estas coisas? Sua própria mãe tinha sido incapaz de mostrar a mais mínima compaixão para com ele.

     O amor, infelizmente, era uma debilidade desperdiçada naqueles que não a mereciam.

     Acheron agarrou a garrafa de vinho de em cima da mesa e tirou a cortiça. Não havia muita distração ao redor, mas este pouco era imensamente melhor que nada. Os deuses sabiam que não podia encontrar distração em nenhum outro lugar. Possivelmente deveria ter aceitado a oferta de Satara.

     Mas, a que preço? Sempre há um preço para tudo na vida. Por este conhecimento, quase poderia agradecer a Estes.

     Nada é grátis neste mundo.

     Nada.

     —Acheron?

     Esticou-se ante o som da voz de Artemisa. Não a via por nenhuma parte. Mas podia senti-la como um sussurro na alma.

     Manifestou-se atrás dele.

     —Sinto muito, Acheron. Não deveria te haver tratado assim.

     —Então, por que o fizeste?

     Ainda invisível, acariciou-lhe o ombro com o nariz.

     —Estava assustada. E deixei que meu medo me guiasse.

     —És uma deusa.

     —Sou uma de tantos e não tão poderosa como outros. Sabes o que fazem a uma deusa quando tiram seus poderes? Exilam-na a terra para que viva entre humanos que abusam e se mofam dela. É isso o que queres me fazer?

     E por que não? Isso era o que ela queria lhe fazer.

     Infelizmente, ele não era tão cruel.

     —Não, só quero o melhor para ti, Artie. Mas estou cansado de que tome tudo de mim. Não sou um boneco sem cérebro que podes açoitar quando estás frustrada.

     Ela materializou-se e ele pôde ver a sinceridade naqueles formosos olhos verdes.

     —Eu sei e o tento. De verdade. Estás sendo impaciente comigo.

     —Impaciente?

     Ela franziu o cenho.

     —Não é a palavra adequada, verdade? Não sei por que as confundo às vezes.

     Esses momentos, quando ela se permitia ser vulnerável, eram os que lhe faziam querê-la. Eram os que lhe permitiam querê-la.

     Agarrando seu rosto entre as mãos, deu-lhe um tenro beijo.

     Artemisa suspirou ao percorrê-la uma onda de alívio. Queria-lhe tanto e apesar disso estava tão aterrorizada do que significava lhe amar. De verdade que nem sempre queria lhe ferir. Era a única pessoa com a qual podia ser ela mesma. Com os outros deuses tinha que ser feroz e defensiva e com os mortais tinha que ser divina e intolerante.

     Acheron era a pessoa que a fazia permitir rir. Era o único que a sustentava e a fazia sentir cálida por dentro. Mas o problema era que assim que se abria sentia a frieza do interior dele e sabia que, embora lhe fosse leal, não o fazia feliz. Isso era o que mais doía. A dor em seu interior que ela não podia aliviar a fazia querer arremeter contra ele de pura raiva e lhe machucar por não se abrir a ela como ela se abria com ele.

     Por que não podia sentir o que ela sentia?

     Inclusive agora havia reserva em sua carícia. Uma dúvida e não entendia por que.

     Como poderia fazer com que a amasse como quando se conheceram?

     Queria lhe castigar por não amá-la como lhe amava. Fazer-lhe rogar por seu amor. Mas como?

     Ao afastar-se, seu olhar se fixou no pescoço e se envergonhou do que lhe tinha feito enquanto se alimentava. Era algo que Apolo teria feito a ela.

     —Não queria te machucar.

     Acheron conteve o fôlego ante as palavras que lhe haviam dito tantas vezes. Por uma vez, não poderia alguém pensar antes de lhe machucar?

     —Estou bem. —Mas a verdade era que não o estava. Nunca tinha levado bem a dor.

     Simplesmente se tinha acostumado a ela.

     Afastou-lhe o cabelo da cara.

     —Pareces tão cansado. Não deveria ter tomado tanto sangue de ti. —Empurrou-lhe para a cama—. Deverias descansar.

     Certo. Não havia maneira de saber que horrores teria que confrontar pela manhã. Outra castração ou uma surra ou somente os murros emocionais nos quais Artemisa era tão boa.

     Não podia esperar.

     —Virás amanhã? —Perguntou de novo, desesperado por não estar sozinho enquanto o mundo inteiro derramava bons desejos sobre seu irmão gêmeo.

     Artemisa duvidava. Queria ir, mas Apolo estaria ali para as celebrações em honra de Styxx. Tinha que tomar cuidado. Porque eram deuses e gêmeos e ele podia senti-la quando estavam por perto. Se a sentia a buscaria e isso poderia custar a vida a Acheron.

     —Sabes que tenho um festival. Como poderia perdê-lo?

     Ele afastou o olhar e a dor que transmitiu lhe partiu o coração.

     —Virei a ver-te ao dia seguinte.

     Acheron controlou suas emoções.

     —Esperar-te-ei ansioso então.

     —Estás sendo áspero comigo?

     —Não —Estava doído—. Espero que tenhas um bom festival.

     Artemisa lhe acariciou o cabelo com a mão.

     —Pensarás em mim quando for?

     —Sempre o faço.

     Ela se inclinou para lhe beijar a bochecha.

     —Sempre fazes que me sinta tão especial.

     E ela sempre o fazia sentir-se igual a uma merda. Ela colocou o braço sob o seu de maneira que pudesse lhe pegar a mão. Ele a sustentou em seu coração e deixou escapar um suspiro.

     Quando o fez, um mau pressentimento o atravessou. Algo ia acontecer amanhã. Podia senti-lo em cada parte dele. Fosse o que fosse, ia mudar a ele e a Artemisa para sempre.

     Akri di diyam.

 

23 de Junho, 9527 a.C.

    Acheron se sentava sobre o parapeito de sua bancada na escuridão, completamente bêbado, enquanto observava o elaborado vestuário dos convidados que chegavam para a festa de aniversário lá embaixo, no palácio. Apertava as costas contra o edifício, enquanto que as pernas se estendiam ante ele em um precário equilíbrio. Não estava seguro de quanto tinha bebido até o momento.

     Infelizmente, não era o suficiente para matá-lo. Mas se tinha sorte, possivelmente ainda poderia cair às rochas de onde estava pendurado, a uns trezentos metros mais abaixo e morreria ali horrorosamente.

     Isso fodería definitivamente a festa de aniversário de seu irmão gêmeo. Pela primeira vez em semanas, riu ante o pensamento de Styxx caindo fulminado frente aos nobres e dignitários congregados.

     Estaria-lhes bem empregado.

     —Também é meu aniversário —gritou sabendo que ninguém podia lhe ouvir. Inclusive se pudessem, não lhes importaria.

     Acheron voltou a cabeça e se encolheu quando a dor lhe atravessou. Odiava o fato de só Artemisa pudesse lhe provocar tanta angústia. Protegeu tão cuidadosamente a si mesmo da crueldade dos outros. Mas Artemisa feria-lhe a um nível que ninguém mais conseguia.

     E assim como todo mundo, não lhe importava quanto lhe machucava.

     E outra vez, deveria estar agradecido. Ao menos este ano não estava celebrando o aniversário de seu nascimento na prisão…

     Ou em um bordel.

     Sempre sozinho. Inclusive quando estava entre uma multidão, rodeado por gente, estava sozinho.

     Verdadeiramente, estava cansado disto. Ninguém o amava. A única razão pela qual sua mal chamada família se preocupava se ele vivia ou morria era por que se ele morria, seu amado Styxx morreria também.

     —Já tive o bastante.

     Embora só tinha vinte e um anos, estava tão cansado como um ancião. Tinha vivido mais que seus anos e não queria mais dor. Nem mais solidão.

     Era hora de acabar com isto.

     As vozes que ouvia na cabeça gritavam agora com mais força. Chamavam para casa…

     Acheron ficou de pé sobre a bancada. Os ventos se elevavam de baixo, por cima dele, movendo seu cabelo enquanto baixava o olhar por volta do mar escuro. Atirou a taça e observou como caía dando tombos para baixo, desaparecendo de sua vista.

     Um passo.

     Sem dor.

     Tudo terminaria.

     —É a hora —tomou fôlego. Desta vez não havia ninguém ali para lhe deter. Nenhuma Ryssa que puxasse-o para trás. Nenhum pai que lhe atasse e o impedisse. Nenhum Estes que chamasse o médico.

     Liberdade.

     Fechando os olhos, se deixou ir e deu um passo adiante.

     Medo e alívio lhe estremeceram enquanto se precipitava através de um ar sem peso. Em um momento conseguiria a paz tão longamente procurada.

     De repente, algo duro lhe golpeou o estômago. Acheron ofegou de dor. Abriu os olhos por reflexo.

     Em vez de cair estava elevando, afastando-se do mar. O som das ondas rompendo contra as rochas foi substituído pelo forte bater de asas gigantes. Voltou-se e viu uma demônio lhe segurando. Justo como o oráculo havia predito.

     —Me solte! —gritou tentando libertar-se.

     Não lhe soltou. Não até que lhe devolveu ao balcão onde tinha estado.

     Acheron cambaleou para trás enquanto ela se pendurava no parapeito e lhe observava de perto. Tinha um cabelo negro e comprido que lhe caía sobre a pele branca e vermelha e de aspecto marmórea. Os olhos brilhavam na escuridão, as íris brancas rodeadas de um vívido vermelho. Assim como o cabelo, as asas e os chifres eram negros.

     —O que estás fazendo? — ele perguntou com a voz carregada de veneno.

     —Akri deveria ser mais cuidadoso —sussurrou ela amavelmente —Se Xiamara tivesse chegado um momento depois, terias morrido.

     —Queria morrer.

     Ela inclinou a cabeça em um gesto que recordava a um pássaro.

     —Mas por que, Akri? —Olhou por cima do ombro para as pessoas que ainda chegavam.

     —Vêm tantos a celebrar seu aniversário humano.

     —Não vêm por mim.

     Xiamara franziu o cenho.

     —Mas és o príncipe. O Herdeiro.

     Ele riu com amargura.

     —Sou o herdeiro de merda nenhuma e o príncipe de nada.

     —Não. Tu és Apostolos, filho de Apollymi. Reverenciado por todos.

     —Eu sou Acheron, filho de ninguém. Reverenciado só dentro dos limites de um dormitório.

     Ela baixou lentamente até ele. Suas asas se pregaram sobre seu ágil corpo.

     —Não recordas teu nascimento. Compreendo-o. Fui enviada aqui por sua mãe com um presente para ti.

     Estava tentando seguir suas palavras, mas tinha a mente muito embotada pela bebida. A demônio estava louca. Devia lhe haver confundido com outro.

     —Minha mãe está morta.

     —A rainha humana, sim. Mas sua verdadeira mãe, a deusa Apollymi, está viva e te envia todo seu amor. Eu sou sua mais fiel servidora, Xiamara, e estou aqui para te proteger como protegi a ela.

     Acheron negou com a cabeça. Estava bêbado. Alucinando. Possivelmente já estava morto.

     —Te afaste de mim.

     A demônio não o fez. Antes que pudesse escapar, colocou-lhe um pequeno círculo sobre o coração.

     Acheron gritou quando a dor lhe atravessou. Nunca em toda sua vida havia sentido nada parecido e dadas às torturas as quais lhe tinham submetido, era muito para dizer. Era como se um fogo venenoso corresse por suas veias, rasgando todo seu corpo.

     Do centro de seu peito onde estava o círculo, sua pele mudou de leonada a um azul marmóreo…

     E quando a dor e a cor se desdobraram, imagens e vozes gritavam, lhe perfurando os ouvidos. Os cheiros assaltaram seu nariz. Inclusive a roupa queimava contra sua pele. Caiu ao chão e se encolheu em uma bola enquanto cada sentido que possuía era assaltado.

     —És o deus Apostolos. Arauto e filho de Apollymi a Destruidora. Tua vontade é a vontade do universo. És o destino final de tudo…

     Acheron continuou negando com a cabeça. Não. Isto não podia ser.

     —Não sou nada. Não sou nada.

     A demônio levantou a cabeça.

     —Por que não estás contente? Agora és um deus.

     A fúria lhe atravessou com força ao agarrar a demônio. Não entendia seus poderes nem nada do que lhe estava acontecendo, mas todos os anos de sua vida, todas as degradações e horrores lhe atravessaram. Deixou que tudo isso passasse de sua mente a dela.

     A demônio gritou enquanto afastava a cabeça de repente.

     —Ni! Supunha-se que isto não passaria a ti, Akri. Isso não…

     Agarrou-a e a obrigou a manter seu olhar.

     —Foi o suficientemente mau quando acreditavam que era o filho humano de um deus. Podes imaginar o que me farão agora? Me tire estes poderes!

     —Não posso. São teu direito de nascimento.

     Acheron caiu para trás, golpeando-a cabeça contra o chão de pedra.

     —Não! —gritou— Não! Não quero isto. Só quero que me deixem em paz.

     Xiamara tentou lhe abraçar.

     Acheron a empurrou.

     —Não quero nada de ti. Já me tens feito bastante mal.

     —Akri…

     —Saia de minha vista!

     Seus olhos brilharam vacilantes.

     —Teus desejos são meus —O círculo que sujeitava contra ele apareceu como um pendente ao pescoço—. Se me necessitares, Akri, me chame e virei.

     Acheron apertou a palma da mão contra o crânio que lhe doía e lhe pulsava com novas vozes e sensações. Se sentia como se estivesse voltando louco, e possivelmente o estivesse. Possivelmente a crueldade tinha destroçado sua saúde mental ao final.

     Ouviu que o demônio partia enquanto vozes desconhecidas sussurravam e gritavam em sua mente. Era como se pudesse ouvir o mundo inteiro de uma vez. Conhecia cada pensamento, cada desejo, cada medo.

     Tinha a respiração entrecortada, queria encontrar uma saída para tudo isto. Puxou o pendente, mas não se rompeu. Em vez disso, brilhou na palma de sua mão.

     Chorando, quis voltar a saltar. Infelizmente, não podia nem se sustentar em pé. Estava tão enjoado... tão doente...

     E agora, o que lhe tinham feito?

   Apollymi passeava de cima a baixo pelo pequeno pátio no Kalosis, esperando que Xiamara voltasse.

     —Onde está a matera da Simi?

     Voltou-se ligeiramente para olhar à filha menor de Xiamara que estava na porta. Chamava-se como sua mãe, Xiamara e Simi, palavra Caronte que significava “garotinha”, tinha quase trezentos anos, mas não parecia maior que uma menina humana de quatro anos. Ao contrário dos humanos e dos deuses, os demônios Caronte demoravam muito em amadurecer.

     Apollymi se ajoelhou e abriu os braços a Simi.

     —Ainda não retornou, coração. Mas não demorará.

     Simi fez um bico antes de correr para ela e enlaçar os braços ao redor do pescoço de Apollymi. Meteu na boca o pequeno polegar e enterrou profundamente a outra mão no cabelo de Apollymi.

     Apollymi fechou os olhos enquanto abraçava à pequena demônio. Como desejava ter podido abraçar assim ao seu próprio filho! Só uma vez. Em vez disso, contentava-se prodigalizando seu amor sobre a simi de Xiamara enquanto esperava que seu filho crescesse o suficiente para libertá-la.

     Simi apoiou a cabeça no ombro de Apollymi enquanto Apollymi cantava para ela.

     —Por que Akra está triste?

     —Não estou triste, Simi. Estou ansiosa.

     —Ansiosa é como quando Simi come muito e lhe dói o estômago?

     Apollymi sorriu e lhe deu um beijo na cabeça.

     —Não exatamente. É quando não podes esperar que aconteça algo.

     —Oooooh como quando Simi tem fome e está esperando que sua matera a alimente.

     —Algo assim.

     Apollymi sentiu um movimento no ar. Olhou às sombras e viu a figura do corpo de Xiamara. Durante todo um minuto, não pôde mover-se enquanto esperava que sua melhor amiga se aproximasse.

     Mas Xiamara vacilava e isso fez com que lhe parasse o coração.

     —O que acontece?

     Xiamara estendeu as mãos para Simi que foi agradecida para sua mãe. A demônio abraçou a sua filha enquanto as lágrimas corriam por suas bochechas.

     Apollymi sentiu que seus próprios olhos se empanavam e o medo a atanazava.

     —Xi? Conte-me.

     Fechou os olhos apertadamente enquanto seguia balançando a sua filha.

     —Não sei como te dizer isso Akra.

     Quanto mais vacilava, Apollymi se sentia mais embargada pela preocupação.

     —Não está bem? Ainda estou prisioneira aqui, assim sei que está vivo.

     —Está vivo.

     —Não... não me quer?

     Xiamara moveu a cabeça e deixou a Simi no chão.

     —Vá procurar a sua irmã, Simi. Preciso falar com Akra a sós.

     Chupando o polegar, Simi se foi saltando.

     Quando Xiamara a olhou ao rosto, Apollymi sentiu que o sangue abandonava suas bochechas.

     —O que não estás me contando?

     Xiamara sorveu as lágrimas antes de pôr uma mão sobre o ombro de Apollymi e lhe transferir as imagens que Apostolos lhe tinha dado. A incredulidade e o horror sacudiram a Apollymi ao ver o que tinham feito ao seu menino.

     Essas emoções deram passo a uma fúria tão profunda que tudo o que pôde fazer foi gritar. O som de seu grito ecoou por todo o Palácio dos Mortos até o Katoteros, onde vivia o resto dos deuses.

     Toda atividade cessou quando os outros deuses atlantes ouviram o som da pena mais pura.

     Um por um, voltaram-se para enfrentar a Archon cujos traços tinham empalidecido.

     —Está livre? —perguntou Epithymia, a deusa do desejo.

     Archon  negou com a cabeça.

     —Já estaria aqui se tivesse se libertado. Não. Aconteceu algo. Por agora, estamos a salvo. —Ao menos, esperava que o estivessem.

     Apollymi se afastou de Xiamara enquanto as imagens, uma atrás de outra, gravavam-se em sua mente. O que os humanos tinham feito ao seu filho...

     —Matarei a todos —grunhiu entre os dentes apertados—. Tudo o que lhe tenha posto a mão em cima morrerá entre chamas, me rogando clemência e não a haverá para nenhum. Para nenhum! —Olhou a Xiamara—. E Archon conhecerá o peso de toda minha ira. Já não resta nada para ele em meu interior.

     Xiamara envolveu suas asas negras ao redor de seu corpo.

     —Mas Apostolos se nega a aceitar o que é dele. Rechaçou-me.

     —Ainda assim, vá atrás dele, Xi. Console-lhe e lhe ajude a compreender o que tem que fazer. Diga-lhe que, quando vier a mim tudo se arrumará.

     —Tentarei-o, Akra.

     Acheron jazia na escuridão de seu quarto, tentado respirar enquanto se estremecia pela dor de seus afligidos sentidos. De repente, ouviu em sua cabeça uma voz suave e gentil que afogou todo o resto. Realmente, era o som mais belo que tinha ouvido nunca.

     Sua respiração se suavizou e a dor se aliviou.

     —Estou contigo, Apostolos.

     —Quem és?

     —Esta é a voz de tua mãe.

     Olhou a escuridão com olhos entreabertos e viu a demônio de joelhos ao seu lado. Afastou-se dela, enrolando-se sobre si mesmo como uma bola.

     —Não tenho mãe. Abandonou-me quando nasci.

     —Não, Akri. —disse a demônio brandamente— Eu fui a que te afastou dos braços de tua mãe enquanto ela chorava de medo por ti. Tua mãe, Apollymi, escondeu-te no reino dos humanos para te proteger dos deuses que te queriam morto. Juro-te por minha vida. Nenhuma das duas queríamos que te fizessem mal. Supunha-se que te criariam como um príncipe. Mimariam-te. Amariam-te. Nada disto deveria ter acontecido.

     Parecia impossível de acreditar.

     —Não o entendo. Por que me queriam morto os deuses?

     —Foi profetizado que tu serias o fim dos deuses Atlantes. Mas tens que entender quanto te ama tua mãe. Arriscou sua vida e desafiou aos outros deuses para te salvar e te manter escondido até que foras o suficientemente crescido para utilizar seus poderes e lhes desafiar. Inclusive agora, ela segue prisioneira, esperando que vás buscá-la. A liberá-la Apostolos, e ela devolverá o bem por cada mal que te foi feito.

     —Como?

     —Destruirá a todos e cada um dos que te machucaram. —A demônio lhe acariciou o cabelo como se fora a mãe que lhe havia descrito.

     —És o filho mais amado de todos quanto tenham nascido. Cada dia me sentei junto a tua mãe enquanto ela chorava tua perda e se doía por não te ter com ela. Venha comigo para casa, Apostolos. Venha conhecer tua mãe.

     Queria fazê-lo. Mas...

     —Como sei que posso confiar em ti?

     —E por que te mentiria?

     Todos mentem, especialmente a ele.

     —Por um bom montão de razões.

     Xiamara. Já vêem. Deixe-lhe, rápido.

     A demônio retrocedeu da cama.

     —Os deuses não podem me encontrar contigo ou saberão quem és e onde estás. Escuta a voz de tua mãe, eu voltarei logo que possa. Mantenha-te oculto, Oh prezado! —desapareceu-se instantaneamente.

     Acheron jazia sozinho, escutando as vozes que se enredavam em seu interior. Ouviu risadas e lágrimas, maldições e gritos.

     Até que a voz de sua mãe lhe acalmou outra vez. Enfocou somente sobre esse tom e fechou os olhos enquanto o tom levava as outras vozes que faziam com que lhe pulsasse a cabeça.

     Havia-lhe dito a verdade a demônio? Atreveria-se a acreditar por um só momento que era o amado filho de alguém?

     Certamente era absurdo.

     Envolveu com a mão o pendente e o estudou. Era uma pedra de algum tipo, de aparência leitosa e iridescente. E então olhou a palma de sua mão onde tinha sido gravada a marca de escravidão.

     Tinha desaparecido sem deixar rastro. Como podia ser?

     Sou um deus que foi um escravo...

     Não um escravo qualquer. O mais baixo de todos.

     Acheron cobriu os olhos com a mão enquanto lhe esmagava a vergonha. E enquanto jazia ali, as imagens desfilavam ante ele... Viu o passado, o presente e o futuro através das experiências das pessoas. Podia ouvir suas esperanças e seus temores. Podia ouvir a mesma essência do universo.

     Pela primeira vez, via os que o tinham pior que ele. Aos que o tinham melhor. Os gritos das mães que tinham perdido seus filhos. As crianças que não tinham pais. Os mendigos e os reis...

     Agora entendia o que Artemisa tinha querido dizer quando lhe disse que ela não prestava atenção ao mundo dos humanos. Era assustador. Horripilante. Toda essa gente que necessitava de ajuda. E enquanto imaginava a si mesmo prestando viu os numerosos resultados em sua mente.

     Mas o que não podia ver era sua vida.

     Ou a de Ryssa.

     Nem sequer a de Artemisa. Por que? Não tinha sentido. Como se algo de tudo isto o tivesse. Acheron riu ante o absurdo que supunha.

     Ao abrir os olhos deu-se conta que já não estava sobre o chão. Estava flutuado sobre ele. Soltou um grito afogado e então caiu ao chão. A dor lhe atravessou e sua pele se voltou de novo marmórea e azul. Suas unhas se voltaram negras e começaram a crescer...

     Algo não ia bem. Seu corpo lhe era estranho. Olhando sua pele marmórea tentou compreender por que era dessa cor.

     Como poderia esconder isto a sua família? Queres fazê-lo? Uma risada sádica lhe atravessou ao imaginar o rosto de seu “pai” quando lhe dissesse quem e o que era.

     —Sou um deus.

     Não um semideus e sim um deus completo. Um com um preço sobre sua cabeça, com um panteão inteiro decidido a lhe matar. Era ridículo. Desafia a fé e ainda assim era... azul.

     Acheron tentou levantar-se, mas uma onda de enjôo lhe voltou a pôr de joelhos. Olhou à cama desejando poder alcançá-la. A seguinte coisa que soube foi que estava sob os lençóis.

     Abriu os olhos desmesuradamente ante as implicações do que isto significava. Era um deus com os mesmos poderes que Artemisa.

     Ou possivelmente não. Como funcionavam os poderes de um deus?

     —Acheron?

     Esticou-se ante o som da voz de Ryssa com ele no quarto. Olhando para baixo, notou que sua pele voltava a ser normal e agradeceu que a manta lhe cobria completamente.

     —Sim?

     —Estás doente?

     Tecnicamente, não. Nem sequer estava bêbado já.

     —Só estou descansando.

     Sentiu que se sentava junto a ele na cama e lhe agasalhava com a manta.

     —Me olhas, por favor?

     Aterrorizado pelo que podia acontecer enquanto ela estava sentada ali, destampou-se a cabeça.

     Ela sorriu.

     —Não te vi em todo o dia e queria te dar isto. —Estendeu-lhe uma caixa pequena.

     O presente fez com que lhe apertara a garganta.

     —Obrigado. —lhe devolvendo o sorriso o abriu e encontrou um pequeno medalhão engastado em um bracelete. Era o símbolo de um sol atravessado por três raios. Franziu o cenho ante o emblema que lhe resultava estranhamente familiar.

     —Sei que é estranho, mas o vi no mercado e me recordou a ti. O joalheiro me disse que era um símbolo de força.

     —É atlante. —O desenho do sol era o de Apollymi... sua mãe.

     Hei-lhe posto triste. Por que o terei escolhido? Oh, não...

     Estava ouvindo os pensamentos da cabeça de Ryssa.

     —É lindo. Obrigado.

     Ela tentou pegá-lo.

     —Posso...

     Cobriu sua mão com a sua.

     —Eu adorei, Ryssa.

     Só o diz para que não me ofenda. Sinto-o tanto, Acheron. Não escolhi algo atlante de propósito. Como pude ser tão estúpida?

     Era desconcertante escutar tão claramente seus pensamentos enquanto ela mantinha o falso sorriso.

     —Se estiveres seguro...

     Ele assentiu.

     —Estou seguro. Obrigado. —repetiu.

     Que idiota sou. Aqui me tens, tentando que pelo menos tenha um presente e o estraguei com minha estupidez.

     O sincero amor que sentiu nessas palavras fez com que os olhos se enchessem de lágrimas. Sua irmã lhe queria de verdade... mais do que ele imaginava.

    Levou-se sua mão aos lábios e a beijou.

     —És tudo para mim, Ryssa. Sabes, verdade?

     —Te amo, Acheron. —E desejaria poder fazer este dia tão especial para ti como deveria ser. Não é justo que estejas aqui sozinho.

     —Ryssa! —o grito de seu pai foi suficiente para fazer com que Acheron olhasse com intensidade à porta.

     Ryssa franziu o cenho. Deuses queridos, o que acontece com seus olhos?

     Acheron desviou o olhar, assustado do que agora podiam parecer seus olhos. Seu corpo ainda estava normal, mas e os olhos?

     A porta se abriu de repente e seu pai apareceu na soleira.

     —O que estás fazendo aqui? É a hora do brinde por teu irmão.

     Ela ficou de pé e levantou o queixo.

     —Estava dando teu presente ao meu irmão.

     —Não te atrevas a te pôr impertinente. Requer-se tua presença. Já.

     —Vá, Ryssa. —Acheron deixou escapar o fôlego—. Teu pai te requer.

     Puto ímpio.

     Acheron riu ante os pensamentos do rei. Se o pobre soubesse...

     A última palavra que alguém utilizaria para lhe descrever seria ímpio. Os deuses saíam dos móveis para lhe conhecer.

     O rei não se moveu quando Ryssa passou ante ele. Ficou na soleira da porta lançando a Acheron um olhar carregado de ira.

     —Assim por fim desististe de me chamar de pai.

     Acheron deu de ombros.

     —Me acredite, sei que não és meu pai. E estou seguro de que teu filho está te esperando abaixo para ouvir sua mais apreciada ode em sua honra.

     Deve estar bêbado.

     —Não te movas daqui.

     —Não te preocupes. Não tenho intenção de te foder a festa. —Ainda... é obvio, se seu plano original tivesse funcionado, o rei estaria chorando a seu querido filho neste mesmo momento.

     Deveria ter feito que açoitassem ao bode, mas isso teria ofuscado a festa de Styxx. Imbecil presunçoso... O rei se retirou e fechou a porta.

     Acheron sacudiu a cabeça tentando desfazer-se dos pensamentos do rei. Agarrou o presente de Ryssa para observá-lo. Que irônico que o tivesse presenteado precisamente essa noite. Era como se sua mãe a tivesse guiado.

     —Apostolos?

     Congelou-se ante a vacilante voz feminina que tinha ouvido tantas vezes em sua vida pensando que estava louco.

     —Matera?

     —Meu filho. Juro-te que te vingarei. Mas deves tomar cuidado. Xiamara voltará e te ensinará a usar teus poderes. Não o uses de momento e assim Achron não poderá te encontrar. Permanece escondido e quando os outros tenham cessado suas maquinações, ela te trará para mim e eu me assegurarei que ninguém volte a te fazer mal. Juro-te isso por minha vida.

     Sentiu o mais leve dos sussurros contra sua bochecha... como uma pequena carícia antes que o ar ficasse quieto de novo.

     Apertando os dentes, sentiu que a dor o afligia. Sua mãe lhe amava... Sua verdadeira mãe.

     Queria vê-la com desespero. Saber, tão somente uma vez, que se sentia tendo um pai que lhe olhasse da forma em que o rei olhava a Styxx ou a Ryssa. Com orgulho. Com amor.

     Sou amado.

     E ainda mais, Artemisa já não teria que se envergonhar dele. Era impensável que uma deusa estivesse com um puto, mas não havia nada de vergonhoso que estivesse com outro deus.

     Ela poderia lhe amar abertamente...

     Queria gritar de alegria. Apertando o bracelete de Ryssa contra o peito, sorriu ante o pensamento de dizer a Artemisa o que lhe tinha acontecido. Certamente ficaria muito contente.

     Como poderia não está?

     Mas ainda assim, tinha uma estranha sensação de apreensão que lhe avisava que deveria temer o que o amanhã podia trazer consigo.

 

24 de Junho, 9527 a.C.

      Acheron passeava de um lado a outro, desesperado para que Artemisa aparecesse e pudesse surpreendê-la com seu recém estreado papel. A manhã tinha sido interessante descobrindo coisas novas sobre si mesmo. Podia mover objetos com apenas um pensamento. Como Artemisa, podia teletransportar-se dentro e fora do quarto. Vale que sua mãe lhe havia dito que não usasse seus poderes, mas francamente, não podia evitá-lo. Controlavam a ele mais do que ele controlava os poderes. E ainda escutava as vozes das pessoas que lhe rodeavam, inclusive as dos que estavam em terras longínquas. Algumas vezes lhes escutava tão alto que a dor nos ouvidos o fazia cair de joelhos. Cada pensamento. O mundo inteiro jazia nu aos seus pés. A única paz que tinha era com o Apollodorus cujos desejos eram singelos. Comer, dormir e que o balançassem e amassem. Tinha muito mais distração simplesmente tendo nos braços ao seu sobrinho, era como se todo o resto das vozes que gritavam se suavizassem permitindo a Acheron enfocar sobre si mesmo.

     —Acheron?

     Voltou-se ao entrar Ryssa em seu quarto como uma explosão de agitação, com Apollodorus nos braços. Apolo é um idiota. Estou tão cansada de ser seu brinquedinho ou sua comida. Pensa que não tenho outra coisa a fazer que acudir quando estala os dedos.

     —Tenho que sair um momento. Poderia ficar com Apollodorus, por favor? Sua babá não pode fazer com que deixe de chatear e eu não posso lhe atender agora.

     —Seu pai é um porco egoísta que pensa que sou sua puta treinada.

     —Não te importa?

     Acheron sacudiu a cabeça num esforço por determinar o que tinha ouvido com as orelhas e o que com a mente. Era extremamente desconcertante.

     —Não me importa. —Agarrou a Apollodorus entre seus braços.

     Mamãe? Me pegue…

     Acheron apertou o abraço em torno de seu sobrinho.

     —Tenho-te. Não te preocupes.

     —Obrigado. — Não sei o que faria sem ti, akribos. És o único no qual posso me apoiar. O resto são todos uns inúteis.

     —Voltarei logo que possa. —Deu um beijo rápido na cabeça de Apollodorus e saiu correndo do quarto amaldiçoando a Apolo a cada passo.

     Olhou ao seu sobrinho que estava olhando a ele com curiosidade.

     —Não tinha nem idéia de que tua mãe utilizasse essa linguagem.

     Apollodorus riu como se lhe compreendesse. Theo joga comigo?

     —Claro. —Acheron se ajoelhou no chão e lhe pôs de pé. Assim Apollodorus podia agarrar-se a ele e caminhar.

     Api ama a Theo.

     Acheron sorriu ante o apelido que o menino dava a si mesmo. Api ama ao seu tio. Entesourou as palavras. Fechando os olhos, tratou de imaginar o homem em que se converteria seu sobrinho, mas, assim como Ryssa, não conseguiu ver nada. Era estranho. De cada pessoa que lhe aproximava via seu futuro com total claridade.

     Por que não com os mais próximos a ele?

     Apollodorus caiu de traseiro e chupou o polegar.

     —Bom, o que vamos fazer nós dois enquanto tua mamãe não está?

     Cócegas na barriga.

     Acheron riu.

     —Certo. —Agradou-lhe e Apollodorus riu com deleite. Deu a volta e lhe deu chutes enquanto sujeitava a mão de Acheron sobre o estômago.

     A pura simplicidade da alegria de seu sobrinho e seu amor lhe chegaram tão profundamente ao interior que quis abraçar o menino por toda a eternidade e mantê-lo a salvo. Não havia nada que amasse mais que a este pequeno ser. Rogava que sempre fora como agora entre eles. Que nem palavras dolorosas nem ações lhes separassem.

     O que pensaria o pequeno quando se fizesse maior e Styxx e seu pai lhe dissessem o que tinha sido no passado? Compreenderia o menino que tudo isso tinha sido contra a vontade de Acheron? Que alguma vez teria sido assim e tivesse tido escolha?

     Ou pior, seria o menino como Maia…?

     Encolheram-lhe as tripas ante o pensamento. Levantando ao menino, Acheron lhe apertou contra o peito tão forte como pôde sem lhe machucar.

   —Por favor, não me odeies nunca, Api. De ti, não poderia suportá-lo.

     Api ama a Theo.

     Acheron adorou cada sílaba.

     —Que comovedor!

     Abriu os olhos e se encontrou a Artemisa de pé ante eles.

     —Conhecias o Apollodorus?

     Ela deu de ombros.

     —A verdade é que não. Apolo tem quantidade de bastardos. Mas é bastante fofo para ser um humano pequeno e fedorento, suponho.

     Acheron tentou escutar seus pensamentos. Mas, ao contrário que com os humanos, não era fácil. Tinha que se esforçar e só conseguia ouvir fragmentos.

     Ponha ao menino no chão. Quero estar contigo.

     —Onde está sua mãe?

     —Com Apolo.

     Ela pôs os olhos em branco e suspirou.

     —Essa coisa, não tem um guardião?

     —Sim e neste momento resulta que o guardião sou eu.

     Ela colocou as mãos nos quadris.

     —Sente-se, Artie e te apresentarei a teu sobrinho. Suas dentadas não doem. —Ao contrário que as dela.

     Todo seu porte mostrou a agitação que sentia quando se sentou ao seu lado.

     —Está molhado?

     —Não está molhado.

     Apollodorus manteve a mão na boca enquanto olhava a Artemisa com curiosidade. Ela não é boa, theo…

     Acheron riu ante o pensamento.

     Artemisa lhes lançou um olhar feroz.

   —O que é tão gracioso?

     —Nada. —disse perguntando-se por que ela não poderia ouvir os pensamentos do menino. Picava-lhe a curiosidade sobre quanto podiam diferir os poderes de um deus e de outro. Possivelmente havia uma quantidade de coisas que ele podia fazer e ela não—. Como deusa, podes ouvir o que as pessoas pensam?

     Ela pôs os olhos em branco.

     —Ponho todo meu empenho em que não. São sempre tão aborrecidos. Ou estão intrigando para fazer mal a alguém ou estão pedindo algo. As pessoas são insetos.

     A raivosa hostilidade lhe pegou despreparado. Embora algumas das pessoas que conhecia eram mesquinhas, nunca insultaria a um inseto comparando-o com os cretinos que tinham abusado dele.

     —Incluído eu?

     Encontrava desconcertante não poder ouvir o que estava pensando.

     Ainda assim, sendo um deus, não deveria ela saber que estava sentada junto a outro deus? Como podia ser que ela não soubesse o que lhe tinha passado ontem à noite?

     —Notas algo diferente em mim?

     —À parte de que estás abraçando a uma criança fedorenta, não. —Deixou cair a mão—. Sei que os humanos montam um grande alvoroço no aniversário de seus nascimentos, mas o que realmente os fazem especiais é que estão a um dia menos da morte. Quem quereria celebrar isso?

     Acheron bufou ante sua resposta. Assim não podia notar sua divindade recém estreada. Fascinante.

     —Não estava falando de minha idade.

     —Então, do que? Não cortaste o cabelo e posso dizer pela forma em que essa coisa pequena está subindo por cima de ti e que não te estremeces de que hoje não te açoitaram. Que mais aconteceu?

     O fato de que pudesse ser tão arrogante ante suas surras desatou sua cólera. A cadela deveria ter sofrido sua dor e sua humilhação para compreender que não era algo que se pudesse tomar superficialmente.

     —Nada.

     Ela descartou sua resposta hostil.

     —És um sujeito muito estranho.

     Apollodorus se arrastou até Artemisa. Olharam-se um ao outro durante um minuto inteiro antes que ele sorrira e pusesse sua mãozinha úmida no braço dela.

     —Argh, que asco. —limpou-se o braço.

     Acheron abriu os braços e Apollodorus voltou a ele.

     —Como o suportas? —Artemisa se estremeceu quando ele levantou o menino e Apollodorus lhe deu um beijo cheio de babas na bochecha.

     —O amo, Arti. Não há nada que me desgoste nele.

     Ela se estremeceu ainda mais, como se fora a coisa mais repulsiva que pudesse imaginar-se.

     —Queres teus próprios filhos, certo? —O tom acusatório lhe deixou pasmado. Era como se ela pensasse que era imbecil por desejar algo assim.

     Acheron manteve abraçado ao seu sobrinho enquanto considerava a idéia que jamais lhe tinha passado pela cabeça.

     —Posto que não posso os ter, nunca pensei nisso.

     —Mas se pudeste?

     Olhou ao seu sobrinho e sorriu. Daria qualquer coisa para poder criar algo tão prezado.

     —Não posso pensar em um dom maior que ter meu próprio filho me olhando como me olha Api.

     —Então te encontraremos um filho.

     Ele riu da idéia antes de mudar ao tema que realmente lhe importava e era muito mais factível.

     —me diga uma coisa, Arti. Se eu fosse um deus, reconheceria nossa amizade ante os outros?

     Ela fez um ruído de completo desgosto do fundo da garganta.

     —Tu não és um deus, Acheron.

     —Mas, se o fora…

     —Por que tens essas idéias tão ridículas?

     —Por que não queres me responder?

     —Porque não importa. Não és um deus. Já te hei isso dito, seus olhos são uma deformidade. Nada mais.

     Como podia ser um deus tão cego para não reconhecer a outro de sua espécie? Ou sua mãe era realmente tão poderosa que lhe tinha protegido completamente de todos os deuses?

     —E não conheces nenhum deus que tenha os olhos como meus?

     —Não.

     Possivelmente não fora questão de divindade… Podia que fora porque pertenciam a diferentes panteões.

     —Alguma vez viu a um deus atlante?

     Exasperada, deu-lhe um golpe tão forte que as unhas lhe soaram.

     —Por que estás tão perguntão hoje?

     —Por que te zangas tanto por uma simples pergunta?

     —Porque quero passar o tempo contigo sem essa coisa pega a ti. Não poderíamos lhe pôr em uma jaula?

     Acheron se horrorizou.

     —Artemisa!

     —O que? Estaria a salvo.

     —Choraria e teria medo.

     —Certo —ficou de pé e os olhou—. Voltarei quando te libertares dele. —e desapareceu imediatamente.

     Apollodorus lhe olhou com curiosidade. Acheron lhe deu uns tapinhas nas costas enquanto movia a cabeça.

     —Bom, Api, essa era sua tia Artemisa em toda sua glória.

     Artimisa.

     Sorriu ante os intentos do menino de pronunciar o nome em sua cabeça.

     —Se aproxima o bastante. Embora a verdade é que não importa. Não acredito que vá vir a te ver freqüentemente.

     Achi está com Api.

     Sorriu amplamente ante a maneira em que Apollodorus pronunciava seu nome.

     —Achi sempre estará contigo.

     Lançando um risinho, Apollodorus se enconlheu em seu regaço e inclinou a cabeça. Acheron acariciou as pequenas costas e antes que se dar conta de que o pequeno estava adormecido.

     Agarrou-lhe nos braços e lhe sustentou contra o ombro onde o som dos suaves roncos do pequeno mantinha a raia ao mundo em sua cabeça. Estava em paz com o universo e se perguntava se sua mãe lhe teria abraçado assim.

     Pela primeira vez em sua vida, pensou que sim. Ao menos sua verdadeira mãe.

     Apollymi.

    Apollymi continuou passeando de um lado a outro enquanto Xiamara se mantinha de pé, olhando-a.

     —Essa deusa grega segue vendo meu filho. Achas que poderíamos usá-la para lhe proteger?

     Xiamara duvidou. Possivelmente não devesse ocultar nada a sua amiga, mas se Apollymi soubesse a totalidade do que tinha sido a vida humana de Apostolos, não saberia dizer o que poderia fazer.

     —Não sei, akra. Os gregos não são como nós e Artemisa não é tão poderosa dentro de seu panteão. Acredito que estaria assustada de lhe ajudar.

     Apollymi grunhiu de frustração.

     —Temos que fazer algo.

     —Posso lhe trazer aqui, mas no momento em que o faça, Achron e os outros cairão sobre nós e nos atacarão.

     —Não tenho medo. Uma vez que esteja livre, posso derrotá-los e, além disso, temos seu exército. Mas com Apostolos... lhe atacariam e algum deles poderia lhe matar enquanto nós estivéssemos ocupadas com os outros.

     Essa devia ser a única razão pela qual Apollymi tinha fugido deles estando grávida. O medo por seu filho a separou da batalha. Um golpe perdido e poderia ter terminado com a vida de seu filho. Esse era um risco que jamais correria.

     —Devo convocar a Chthonian?

     Apollymi parou ante a pergunta e o coração lhe deu um tombo. Embora os Chthonians originalmente fossem humanos de nascimento, possuíam os poderes dos deuses e funcionavam, por assim dizê-lo, como uma unidade policial para os diferentes panteões. Mantinham a ordem e evitavam as guerras entre deuses. Mas também tinham seus próprios planos nos quais nem sempre iam a interesse do universo e definitivamente não em seu próprio interesse. Não confio neles. Para manter a paz antes matariam a Apostolos que o salvá-lo. Não posso correr esse risco. —A frustração aninhava em seu interior. Enquanto Apostolos estivesse em forma humana, era vulnerável. Poderiam lhe matar tão facilmente agora mesmo... Como poderia ter ao seu filho sem pôr em perigo sua vida?

     Jaden...

     Voltou-se para olhar a Xiamara.

     —Akra —disse com um tom de reprimenda—. Não estarás pensando o que penso que estás pensando, verdade?

     —Pode-se fazer uma troca com Jaden para que traga aqui a Apostolos. Mas necessitaria de um demônio para lhe convocar. —Lançou a Xiamara um olhar de cumplicidade.

     Jaden era um intermediário que arrumava entendimentos entre os demônios e a força primária do universo. Seu poder se equiparava, se não é que superava, ao de um deus. Se havia um ser que podia proteger ao seu filho e devolvê-lo, era ele.

     —Sabes que não há nada que não fizesse por ti, Apollymi. Mas Jaden é imprevisível. Inclusive se aceita o trato, teremos que lhe oferecer algo supremo por isso.

     Honestamente, não lhe importava. Daria qualquer coisa por seu filho.

     —O que pediria em troca de seus serviços?

     —Não há forma de sabê-lo.

     Apollymi se aproximou do lago no qual podia espiar o universo de suas águas. Poderia havê-lo usado para vigiar a Apostolos crescendo para a maturidade, mas o temor por sua segurança a tinha retido de fazê-lo. Se Achron soubesse que estava vendo seu filho, teria sido capaz de usar o lago para encontrar a Apostolos ele mesmo. Inclusive agora, não se atrevia a usá-lo para ver seu filho. Era um risco que se negava a assumir.

     Levantou a água do lago formando uma bola iridescente no ar. E ali, no centro, enfocou seus poderes para encontrar a Jaden e averiguar o que mais desejava.

     Sombras escuras giraram e se retorceram. Depois começaram a tomar forma...

     No momento em que começavam a serem reconhecíveis se dissolveram. Apollymi soltou uma maldição. O poder que o possuía não lhe permitiria saber como controlá-lo.

     Maldito seja!

     A ira e a pena se mesclaram em seu interior. De acordo, pois.

     —Lhe convoque e lhe ofereça meus poderes e minha vida se me outorgar cinco minutos a sós com meu filho antes que eu morra. E sua promessa de que protegerá a Apostolos o resto de sua vida.

     Xiamara a olhou boquiaberta soltando uma risada nervosa salpicada de incredulidade.                

     —Apollymi, não podes.

     Enfrentou o olhar de sua amiga.

     —Se fossem Xedrix, Xirena ou Simi?

     Xiamara amaldiçoou dando-se conta de que ela faria exatamente o mesmo para proteger aos seus filhos.

     —Estás segura?

     —É meu filho, Xi. A única parte de mim que merece viver. Seja o que seja que se necessite para salvar sua vida, feche o trato. Só quero lhe abraçar uma vez antes de morrer.

     Xiamara a atraiu para ela em um abraço e a apertou forte.

     —És a mulher mais valente que conheci, akra. Farei o que pedes inclusive embora não queira fazê-lo.

     —Te vincularás a ele quando tiver ido?

     —Sabes que o farei. Depois de tudo o que passamos juntas, daria minha vida por ti e por teu filho.

     Apollymi se afoga em lágrimas.

     —Então és a melhor amiga que alguém possa ter.

     Xiamara apertou o abraço antes de dar um passo atrás.

     —Voltarei logo que possa.

     Abatida, mas esperançada, Apollymi olhou sair Xiamara. Olhou ao lago, desesperada para ver seu filho, mas sabia que era melhor não tentá-lo. No momento em que Xiamara tinha desbloqueado os poderes de Apostolos, tinha alertado aos outros.

     O Dia do Juízo tinha chegado. Por todos os deuses do universo, os faria pagar pelo que tinham feito ao seu filho e por cada dia que a tinham feito viver sem ele.

 

24 de Junho, 9527 a.C.

    Acheron caminhava pelo centro da cidade, sentindo o poder da vida movendo-se por suas veias. Era como se agora, verdadeiramente, formasse parte do universo. As cores eram mais vibrantes, cada som… podia ouvir o batido dos corações e o sangue correndo pelas veias. Sabia instantaneamente o nome de cada pessoa que passava. Seu passado, seu presente e seu futuro.

     Nada lhe estava oculto. Podia sentir o poder das eras. Sentia-se invencível.

     Mmmm. Eu adoraria ter um pedaço disso.

     Voltou-se para a mulher cujos pensamentos tinha na mente. Ela desviou imediatamente o olhar como se se envergonhasse de sua lascívia.

     Acheron parou de repente e se deu conta de algo.

     Com seus poderes desbloqueados, as pessoas não saltavam sobre ele como antes. Baixou o capuz para provar sua teoria, posto que podia teletransportar-se a qualquer lugar com tão somente um pensamento. O familiar tremor percorreu àqueles que lhe viram, mas pela primeira vez em sua vida, mantiveram a distância. Era como se pudessem sentir os poderes em seu interior e soubessem que era melhor não se aproximar.

     Assombrado, tirou-se a capa e a estendeu a um mendigo enquanto seguia caminhando pelas ruas descoberto. Exposto. Assim que isto era sentir-se normal. Era incrível viver sem medo. Sem que lhe machucassem nem lhe fizessem mal.

     Querendo rir de alívio e excitação, dirigiu-se para o templo de Artemisa e entrou sem temor.

     O templo estava vazio a essa hora do dia. Encorajado por seus poderes, aproximou-se de sua estátua.

     —O que estás fazendo aqui?

     Viu a Artemisa nas sombras.

     —Queria ver-te.

     —Deverias saber que é melhor que não venhas aqui. —grunhiu com tom baixo e feroz—. O que aconteceria te visse alguém?

     Ele estalou a língua.

     —Que há nisto, Arti? Por que não posso fazer uma oferenda a uma deusa? Tão ofensivo te pareço?

     Artemisa franziu o cenho. Havia algo diferente hoje em Acheron. Uma essência de poder que ondulava… como a presença de um deus, mas ela sabia bem que não podia ser.

     —Estás bêbado?

     O sorriso dele era realmente encantador.

     —Já não posso me embebedar.

     —O que queres dizer?

     —Nada. —aproximou-se dela como um animal selvagem espreitando a sua presa. Lento. Sensual. Sedutor. Estava como hipnotizada pela fluida beleza de seus movimentos que gotejavam uma sexualidade antinatural. Antes que pudesse mover-se, atraiu-a com força contra ele e beijou seus lábios.

     O fogo a percorreu esquecendo-se de que estava com ele ao descoberto. Não a tinha beijado assim desde muito tempo. A seguinte coisa que soube é que estavam em seu dormitório no Olimpo.

     Que estranho, não recordava havê-los trazido aqui… Mas perdeu o fio do pensamento no instante em que a agarrou nos braços e a levou para a cama. Adorava quando a levava nos braços. A fazia sentir-se tão feminina.

     Acheron não sabia de onde vinha a súbita onda de desejo. Era arrasadora e estimulante. Não recordava ter querido estar com alguém tanto como desejava estar com Artemisa neste momento. Era como se tivesse que tê-la já mesmo.

     Como se algo em seu interior empurrasse a possuí-la e dominá-la.

     As presas dela se alargaram enquanto fazia que desaparecessem as roupas de ambos.

     —És tão belo, —disse com um muito ligeiro ceceio—. Te quero dentro de mim enquanto me alimento.

     Mas ele não estava de humor para isso. Atraiu-a para ele para encontrar seus lábios e poder beijá-la com a fúria e a força que ferviam em seu interior. Era como se não ficasse humanidade. Grunhindo por baixo, deu-lhe a volta até pô-la sobre o estômago, abriu-lhe as pernas amplamente e a penetrou por trás.

     Artemisa ofegou ao inundar seu corpo um inimaginável prazer. Acheron nunca tinha sido tão enérgico com ela. Mas ainda assim, seguia sendo doce. A mescla a cegou de êxtase. Seu impulso era tão profundo e forte. Poderoso. Sentia-o como se estivesse tocando uma parte de sua alma imortal.

     —Me diga por quem estás faminta, Artemisa. —grunhiu em sua orelha.

     Ela conteve o fôlego quando ele particularizou cada palavra com uma profunda investida.

     —Por ti.

     —E a quem anseias?

     —Só a ti.

     —Então diga meu nome. Quero que o digas enquanto estou dentro de ti. Enquanto te possuo.

     —Acheron. —gritou de prazer.

     Ele retirou-se de seu interior e lhe deu a volta para que o olhasse ao rosto. Com a respiração entrecortada, olhou-a com um desejo tão ardente que a escaldou. Agora não havia nada servil nele. Estava com ela de igual para igual.

     Não, ele era mais que isso.

     Seu beijo a queimou antes de voltar a entrar nela. Artemisa arqueou as costas lhe empurrando inclusive mais profundo.

     Ele se retirou e tomou seu rosto entre as mãos enquanto a cavalgava fundo e forte. Seus olhos chapeados destelharam de vermelho.

     —Me olhe enquanto estou dentro de ti e diga meu nome outra vez.

     —Acheron.

     —E quem te dirige, deusa? Quem é o único homem que faz com que te molhes de desejo?

     Ela gritou no limite do orgasmo.

     Ele se congelou como se soubesse e a frustração foi quase suficiente para que lhe esbofeteasse.

     —Me responda, Artemisa. Se queres gozar, me diga diante de quem respondes.

     Ela levantou o corpo e pôs as pernas ao redor de seus magros quadris.

     —Diante de ti, Acheron. Só diante de ti.

     Desceu sobre seus lábios com outro beijo abrasador antes de voltar a empurrar contra ela. Incapaz de suportá-lo, retirou-lhe o cabelo do pescoço e lhe afundou profundamente os dentes.

     No momento em que o fez, ele se enterrou totalmente até a base enquanto ambos gozavam.

     Artemisa gritou e se retorceu em uma felicidade incomparável.

     Acheron se sentia paralisado pelos espasmos que percorriam seu corpo. Era tão estranho que gozasse dentro dela que a novidade lhe cegou temporalmente. Ela se aferrou ao seu corpo e lhe deu a volta para lhe pôr de costas para poder alimentar-se.

     Jazia completamente satisfeito enquanto ela tomava seu sangue. Pela primeira vez não se sentia débil.

     Artemisa se afastou para lhe olhar com expressão sobressaltada. Tinha os olhos chapeados e os lábios cobertos com seu sangue.

     —O que és?

     Antes de poder respondê-la sentiu essa estranha frieza filtrando-se em seu interior com o estremecimento de eletricidade que era o arauto de que se estava voltando azul.

     Ofegando, Artemisa se afastou até os pés da cama, encolheu-se nua como se estivesse pronta para lhe atacar.

     Acheron jogou a cabeça para trás e seus poderes surgiram em uma onda tão poderosa que fizeram pedacinhos às janelas do aposento.

     —Fora! —Ela uivou. Mas desta vez, quando tentou lhe devolver ao mundo dos humanos, ele se negou a partir.

     Agarrou-a e a atraiu contra ele. Como suspeitava, viu sua mão, azul contra a palidez de seu braço.

     —O que acontece, Arti? Agora me tens medo?

     Artemisa tragou saliva ante a vista de seu precioso Acheron. Tinha desaparecido o belo homem loiro de cada um de cujos traços era perfeito. O que via agora era sinistramente formoso. Sua pele se ondulava em uma sinfonia de azuis. Seu cabelo era negro, como seus lábios e suas unhas.

     E seus olhos…

     Destelhavam do prateado a vermelho uma e outra vez.

     Este era um deus da destruição e ela sabia. Podia sentir os poderes que faziam dos seus uma brincadeira, inclusive dos que possuía Zeus. Acheron poderia matá-la…

     —Enganaste-me! —acusou-lhe.

     —Eu não tenho feito nada. —sua pele voltou a ser normal—. Ofereci-te meu coração uma vez, Artemisa. Disse-me que não era o suficientemente bom para ti. Sou-o agora?

     Não, isto era pior ainda. Trazer um deus mais poderoso ao Olimpo…

     Poderiam matá-la.

     —O que queres? —perguntou aterrorizada pelo que poderia responder. Tinha vindo a destruir a todos eles?

     Ele estendeu uma mão azul de aspecto marmóreo e a posou em sua bochecha. Seus olhos a queimaram com atormentada necessidade.

     —Quero que me ames.

     —Pois claro que te amo.

     —Dizes isso só porque agora me tens medo. Posso senti-lo.

     —Não, Acheron. É a verdade. Amei-te desde o momento em que me beijou pela primeira vez.

     Seus olhos se voltaram de um vermelho chamejante e vibrante.

     —Então, prova-o.

     —Como?

     —Passeia comigo pelo palácio em Didymos. Ao meu lado. Como minha igual.

     O mero pensamento a horrorizou.

     —Não posso fazer isso.

     —Sou um deus. Por que não poderias passear com um deus?

     Artemisa negou com a cabeça. Não era tão singelo.

     —Eras um puto.

     Acheron se encolheu quando as palavras o rasgaram com a ferocidade de lâminas cortantes.

     —Sou uma deusa virgem —disse energicamente. —Ninguém pode saber nunca que me seduziu um vulgar prostituto. Deus ou não deus, não posso te reivindicar. Nunca.

     Assim, seguia sem ser o bastante bom. Deus ou não deus seguia sendo nada mais que lixo indesejável. Uma vergonha. Nem sequer sua mãe podia lhe reclamar.

     O coração lhe fez pedaços e tomou fôlego profundamente quando ela retrocedeu com medo. Nesse momento, odiava a si mesmo pelo que era e o que tinha sido.

     Um valentão.

     Não era melhor que aqueles que lhe fizeram implorar e se arrastar por um gesto amável. O só pensamento lhe pôs doente.

     Saindo da cama, pôs de pé a Artemisa. Nua e tremendo ficou quieta na escuridão do quarto, confundida por tudo o que tinha acontecido.

     Acheron era um deus.

     Mas de que panteão? Ainda podia sentir o poder de seu sangue. Esse poder misturado com o seu lhe dava um vislumbre das habilidades que possuía.

     Era um destruidor. Um assassino de deuses. Todo o panteão vivia no temor dos deuses escuros. Os que podiam dar ordens à fonte primitiva do universo. Não havia muitos que possuíssem essa habilidade e nenhum dos deuses gregos a tinha.

     Nenhum.

     Mas Acheron sim.

     —O que tenho feito?

     Sua tola despreocupação bem poderia ser a causa da morte de todos eles.

 

25 de Junho, 9527 a.C.

Meia-noite

  Xiamara estava de pé ante um velho e nodoso carvalho que tinha crescido na ladeira da montanha. Desde o começo dos tempos, associava-se às árvores com os deuses. As raízes se afundavam profundamente no coração da terra estendendo-se para seu centro com os ramos remontando-se para o céu.

     Levavam a vida da terra em seu núcleo e cada árvore levava um pedaço do espírito universal que vinculava a todos os mundos e a todas as criaturas.

     Estavam compostas de três dos quatro elementos básicos. Ar, água e terra. E quando se queimavam, uniam-se todos.

     Mas a parte mais importante de uma árvore era que, quando se mesclava com sangue humano e com a sua, podia convocar a uma das criaturas mais poderosas do universo.

     Al Baraka.

     Jaden.

     Ninguém sabia de onde vinha nem quando tinha sido criado, gerado ou trazido ao mundo. Se era humano, demônio ou de que espécie. Mas se um demônio necessitava de algo, ele era o único com quem negociar.

     Com o coração acelerado, derramou nas raízes da árvore o sangue humano que uma das sacerdotisas de Apollymi tinha dado. Depois fez um corte em sua própria mão e sussurrou as palavras para chamar o negociador.

     —Convoco-te com a voz e o sangue. Com o peso da lua e a força da madeira sagrada. Vem a mim, Escuridão. Assim dizem os deuses, que assim seja.

     Brilhou um raio e se levantou um pesado vento. Xiamara pregou as asas para que não se danificassem com a tormenta.

     Uma névoa negra formava redemoinhos levantando-se da terra, espessa e pesada ao enrolar-se na árvore.

     Jaden era muito teatral.

     Retrocedeu um passo e viu que a névoa tomava a forma do corpo de um homem. Lentamente se solidificou em um par de olhos desumanos. Um era marrom escuro e profundo e o outro de um verde vibrante. A partir desses olhos se formou um rosto tão bonito como qualquer homem pudesse desejar. O cabelo negro repousava sobre uns ombros largos e musculosos. O poder imisericordioso e a intolerância gotejavam de cada fibra do ser.

     Estava quieto sobre um ramo alto, olhando-a de cima. Uma calça de couro marrom escuro e uma capa marrom lhe camuflavam perfeitamente com a árvore.

     —Bela Caronte —disse utilizando a língua nativa dela com uma voz tão profunda que ressonava em seus ossos—. Diga-me por que vieste em nome de sua senhora quando sabes que não faço trato com os deuses.

     Xiamara deixou que suas asas batessem para trás as abrindo como sinal de confiança. Até as tendo preas ao corpo, Jaden poderia arrancar-lhe se quisesse.

     —Porque amo a Apollymi e estou aqui não em representação sua, e sim para fazer um trato contigo para mim mesma.

     Arqueou uma sobrancelha ante suas palavras.

     —Como é isso?

     —Sei que não podes tomar sua vida ou fazer tratos com ela. Assim, venho a ti como demônio livre, por mim mesma e por minha própria vontade para negociar contigo pelo que ela deseja.

     Ele recostou-se contra a árvore com um joelho dobrado e cruzou os braços sobre o peito.

     —O que me ofereces, demônio?

     —Minha alma. Minha vida. O que seja necessário para unir Apollymi com seu filho. O que seja menos a vida ou a liberdade de um de meus filhos.

     Ele entreabriu os olhos estudando sua oferta.

     —Estás vinculada a Apollymi.

     —Sim e não. Estou vinculada por amizade e amor. Não por escravidão. Estivemos juntas desde a infância e isso foi antes de que minha raça fora escravizada pela sua.

     Jaden deixou escapar um comprido suspiro.

     —E o que acontece com tua Simi? Não temes por ela se a deixares sem sua mãe para protegê-la?

     Xiamara piscou para tirar as lágrimas ante o pensamento de sua filha mais jovem crescendo sem ela.

     —Sei que Apollymi se ocupará de que tenha todo o melhor deste mundo. Criei a dois pequenos até a idade adulta. Apollymi só tem um filho. Nenhuma mãe deveria estar sem seu simi, nem sequer uma deusa. Daria-lhe o que mais deseja.

     Jaden saltou da árvore para aterrissar com graça ante ela. Era tão alto que tinha que dobrar o pescoço ligeiramente para lhe olhar.

     —Sabes quão estranho é que me peçam que faça um trato tão altruísta, especialmente em nome da amizade e não por parentesco? —Passou um dedo gelado por sua bochecha—. Está verdadeiramente disposta a morrer para dar a sua amiga cinco minutos com seu filho?

     —Se isso for o que pedes, sim.

     Ele deixou cair a mão. Seus olhos sem alma não traíam nenhuma emoção nem indicação nenhuma de seu estado de ânimo.

     —Devo considerar tudo isto. Me dê até manhã de noite para me decidir. Terás minha resposta então.

     Deixou-se cair sobre um joelho ante ele.

     —Obrigada, akri. Xiamara esperará sua decisão.

     Ele desapareceu no vento.

     Xiamara se levantou e voltou até Apollymi para fazê-la saber que Jaden estavam considerando o trato. O que nunca lhe diria eram os termos exatos com os quais estavam negociando.

    Acheron inclinou o copo, esvaziou-o e amaldiçoou atirando-o contra a parede. Tinha bebido tanto que deveria estar cego de intoxicação. Ainda assim, estava completamente sóbrio. Nem sequer as drogas funcionavam nele.

     Todo seu ser tinha sido alterado.

     Maldito seja.

     Sentiu o ar mover-se por sua pele. Franzindo o cenho, viu Artemisa materializar-se ante ele.

     Acheron levantou uma sobrancelha surpreso.

     —Não esperava voltar a ver-te... nunca mais.

     Um sorrisinho brincava na comissura dos lábios quando lhe olhou com acanhamento.

     —Eu sei. Quero me desculpar pelo que te disse antes. Estava equivocada.

     Cada sentido de seu corpo ficou em alerta.

     —Estás te desculpando comigo?

     Ela assentiu enquanto se aproximava da cama. Subiu e se deitou junto a ele.

     —Inclusive te trouxe uma oferenda de paz.

     —Uma oferenda de paz?

     Estendeu-lhe uma pequena tigela coberta.

     Franzindo ainda mais o cenho, destampou a tigela e encontrou uma substância pegajosa e amarela que parecia fruta. Nunca tinha visto nada parecido.

     —O que é isto?

     —Ambrósia. O alimento dos deuses.

     Levantou a tigela e a cheirou. Era ácido e forte com algo mais que o fazia tentadoramente deleitável.

    —Por que me trazes isto?

     —Agora é um deus. Deverias comer o que comemos nós. —Sua expressão era tenra. Acariciou-lhe a coxa e lhe olhou por entre as pestanas—. Incluso eu o como. É delicioso.

     Impulsionado por algo que não podia explicar nem negar, pegou um pouco e o provou. Era muito mais doce do que cheirava. Artemisa tinha razão. Nunca tinha provado nada melhor.

     Ao menos, isso pensava até que o quarto começou a dar voltas. As pálpebras lhe pesavam e os músculos lhe afrouxaram; a respiração lhe voltou trabalhosa. Imediatamente, reconheceu os efeitos biológicos. A raiva acendeu seu sangue enquanto todos esses anos de ser drogado contra sua vontade desfilavam por sua mente.

     —Drogaste-me!

     Ela saltou da cama.

     —Me perdoe, Acheron.

     De todas as coisas que lhe tinha feito, esta traição foi a que lhe feriu mais duramente.

     —O que tens feito?

     Artemisa não respondeu enquanto lhe via mudar de humano a azul e a humano outra vez.

     Tentou alcançá-la, mas ela se assegurou de manter a distância até que desmaiou. Não sabia o que teria feito com ela se a tivesse alcançado. Quando caiu sobre a cama, soltou um suspiro de alívio.

     Tinha deixado que Hypnos preparasse uma beberagem a qual nem os deuses fossem imunes. Estava aterrorizada pensando que não funcionasse com Acheron.

     Graças a Zeus que tinha funcionado.

     Tremendo-lhe as mãos, tirou a adaga da bainha que levava oculta na coxa. Hefaistos a tinha forjado no Olimpo e, como a droga, também funcionaria com um deus. Inclusive havia cobrto a lâmina com sangue de Titã para estar segura. Um corte e Acheron estaria morto.

     Mordendo o lábio se inclinou sobre seu corpo perfeito e nu que estava refestelado, lhe olhando enquanto respirava brandamente. O cabelo loiro caía sobre os formosos rasgos de seu rosto lhe fazendo parecer quase infantil e necessitado em seu repouso.

     Recordava das vezes que esses lábios a tinham dado prazer. A rajada de felicidade nos olhos chapeados quando a olhava. Mas isso tinha sido quando era humano. Agora era uma ameaça, não só para ela, mas também para cada um dos deuses do Olimpo.

     Um só corte...

     Tinha a garganta exposta, como a esperando. Mas quando se aproximou para cortar a carótida, a imagem dele rindo com ela apareceu em sua mente.

     “Te amo, Arti.”

     Ninguém a tinha amado nunca. Não como ele. Acheron nunca a tinha ferido. Nunca exigia. Só pedia.

     E se dava livremente a ela...

     Mate-o, maldita seja. Faça-o!

     Artemisa apertou com força a faca. Levantou-o com a intenção de lhe apunhalar. Mas não pôde. Uma e outra vez, imagens suas lhe passavam pela mente.

     Acheron amando-a e ela amando a ele.

     Soluçando, deixou cair a faca e pôs a cabeça em seu peito. Como homem a tinha exposto e ameaçado como ninguém mais tinha feito. Como deus, ameaçava a mesma existência de todo seu panteão. Tinha que se desfazer dele.

     Mas não podia.

     Furiosa por sua debilidade, voltou a lhe colocar na cama. Riscou com os dedos a linha de sua mandíbula e quis chorar. Teria que ter feito algo.

     Possivelmente poderia encontrar outro deus que lhe matasse...

    Acheron ouviu alguém gritando. O som era horrível e lhe encolhia as tripas. Ressonava por toda o quarto. Rodando pela cama, tentou levantar-se, mas não pôde. Estava ainda sob o efeito da droga que lhe tinha dado Artemisa. Não tinha controle sobre seu corpo absolutamente.

     Então ouviu Apollodorus chorando.

     Theo! Api precisa de Theo! Mamãe! Mamãe venha com Api! Mamãe!

     Acheron queria ir até o pequeno, mas não podia. A cabeça estava de uma maneira atroz e inclusive o mais leve movimento o fazia enjoar-se.

     —Ver-te-ei amanhã, akribos —sussurrou a seu sobrinho antes desmaiar outra vez.

     Ainda assim, seguia ouvindo os gritos em seu drogado estupor.

    

25 de Junho, 9527 a.C.

Meio-dia

    Acheron despertou com o som da pena absoluta. Alguém chorava como se o coração lhe estivesse destroçando. Piscando, viu que a luz brilhante do sol entrava pelas janelas abertas.

     A cabeça lhe pulsava atrozmente ao levantar-se da cama e quase caiu quando o estômago lhe deu um agudo tombo. Não tinha se levantado tão enjoado desde que abandonou a casa de Estes. Sentia-se como se lhe tivessem metido uma overdose de algo.

     Artemisa.

     Na cegante luz, recordou seu “presente”. Mais que isso, recordou-a sustentando uma faca sobre ele enquanto debatia se lhe matava ou não.

     —Fodida puta —grunhiu.

     Um instante depois as portas se abriram de repente. O som lhe ressonou tão forte na cabeça que lhe fez encolher-se e a cabeça lhe pulsou ainda mais.

     —Não tão forte —sussurrou.

     A seguinte coisa que soube era que Styxx lhe agarrava pela garganta. Empurrava-lhe contra a cama e ficava escarranchado sobre ele.

     —Estás bêbado?

     Acheron negou com a cabeça.

     Styxx lhe esbofeteou. Agarrou a bolsa de ervas que havia sobre a mesinha e a atirou a Acheron ao rosto.

     —Puto inútil. Jazendo aí, bebendo e te drogando enquanto assassinavam a minha irmã. —Styxx lhe golpeava uma e outra vez.

     Acheron tentou bloquear os golpes, mas tinha os músculos e as reações duras pelas drogas de Artemisa. Levou-lhe todo um minuto para que aquelas palavras atravessassem a névoa de sua mente.

     —O que hás dito?

     —Ryssa está morta, safado!

     Não! A negação ressonava em sua cabeça. Não tinha ouvido bem. Styxx era um idiota.

     Certamente nem sequer os deuses que lhe odiavam lhe teriam feito algo assim.

     Esquecendo-se de Styxx, Acheron se forçou a sair da cama e se dirigiu a tropicões para os aposentos de Ryssa. Ignorante do fato de que estava nu, andou até que se encontrou com o rei que sustentava Ryssa nos braços. Parecia uma boneca. Tinha a cara azul e seu corpo...

     Engasgou-se ante o que viu. Tinham-na feito pedaços. O rosto e o corpo estavam rasgados por algo que pareciam garras. Havia sangre por toda a cama e no chão. Caindo de joelhos, Acheron não podia respirar nem pensar salvo na agonia do que estava vendo.

     Ryssa estava morta.

     E foi então, quando ali no chão ante ele, viu Apollodorus e à babá. Ambos ensangüentados. Ambos os mortos.

     Acheron golpeou a cabeça contra o chão de pedra, tentando o melhor que podia clarear a névoa que tinha na mente. Tentando sentir algo que não fora o coração destroçado.

     —Ouvi-lhes... —sussurrou quando a realidade da noite anterior lhe golpeou com punhos mais poderosos que qualquer um dos que lhe tivessem golpeado antes.

   Maldita seja, Artemisa! Tinha os poderes de um deus, mas não o poder de voltar atrás e salvar às duas únicas pessoas que lhe tinham amado como nunca. E por que? Por que essa puta lhe tinha drogado!

     Gritou de angústia.

     Nesse instante, em sua mente, viu se desenvolver todos os acontecimentos. Viu os que entraram no aposento pela janela assassinando-os. Ouviu Ryssa lhe chamando pedindo socorro.

     Ouviu Apollodorus gritar outra vez chamando ao seu tio...

     De repente, algo lhe golpeou nas costelas. A força do golpe lhe lançou de lado. Ao levantar a vista viu a cara furiosa de Styxx enquanto lhe chutava o estômago. E depois seu gêmeo estava em cima, lhe golpeando a cabeça contra o chão uma e outra vez.

     —Por que não aconteceu contigo, verme insignificante?

     Acheron nem sequer pensava em proteger-se. Nesse momento queria morrer também. Já não tinha nenhuma razão para seguir vivendo. Ryssa e Apollodorus se foram.

     Inclusive Artemisa tinha querido lhe matar.

     Uma raiva impotente lhe percorreu. Rugindo de raiva, afastou a Styxx, mas antes que pudesse ficar de pé, uma luz brilhante explodiu por toda o cômodo. Acheron levantou o braço para proteger os olhos quando Apolo se manifestou.

     Houve um completo silêncio enquanto o deus olhava lentamente por toda o quarto, absorvendo cada detalhe. Inclusive o rei tinha deixado de chorar esperando a reação do deus.

     Apolo não falou quando viu que Ryssa jazia morta nos braços de seu pai e o corpo sem vida de seu filho ainda nos braços da babá assassinada grosseiramente.

     —Quem há feito isto? —perguntou Apolo entre os dentes apertados.

     Styxx assinalou a Acheron.

     —Ele lhes deixou morrer.

     Antes que Acheron pudesse pensar em negar as palavras, Apolo se virou e lhe deu tão forte com o punho que o levantou e o estrelou contra a parede a três metros do chão.

     A Acheron doía todo o corpo quando caiu ao chão. Apolo lhe agarrou pelo cabelo e puxou a cabeça. Acheron tentou afastar-se, mas ainda tinha muito fracos os músculos.

    O deus lhe esbofeteou com o verso da mão. O sangue e a dor explodiram ao lhe romper o nariz e lhe partir os lábios. Apolo caiu em cima dele com tanta fúria que Acheron não podia recuperar-se de um golpe antes que lhe desse outros dois.

     —Artemisa! —gritou Acheron necessitando sua ajuda para acalmar ao seu irmão.

     —Não te atrevas a pronunciar o nome de minha irmã, puto rasteiro. —Apolo tirou uma adaga de sua cintura e agarrando a língua de Acheron, a cortou.

     Acheron se engasgou ao encher a boca dele de sangue. Uma dor inimaginável o inundou, até o ponto que tudo no que podia pensar era em tentar arrastar-se longe do alcance de Apolo.

     Mas Apolo lhe agarrou pela garganta em um apertão tão forte que deixou uma queimadura da palma de sua mão na pele.

     —Akri! Ni! —os gritos de Xiamara encheram o aposento quando apareceu sobre ele e se lançou sobre Apolo. Apartou ao deus de um golpe e se colocou entre eles.

     —Fora de meu caminho, demônio —exigiu Apolo.

     Sua resposta foi lançar-se para o deus. Ambos se enredaram em um borrão de luz e plumas enquanto golpeavam um ao outro.

     As lágrimas deslizavam dos olhos de Acheron enquanto lutava contra a dor que lhe arrastava à inconsciência. Com o único pensamento de matar a Apolo, arrastou-se até onde a faca tinha caído. Seu próprio sangue cobria a lâmina. Com uma fúria nascida da dor e de todos os anos de abusos, Acheron a agarrou e se voltou para os combatentes.

     Ryssa não tinha significado nada para Apolo. Não mais do que ele significava para Artemisa. Sua irmã aborrecia ao deus e agora o safado atuava como se sua morte significasse algo para ele.

     Não era justo e pelos deuses que lhe tinham gerado não ia deixar que o deus seguisse atacando a demônio de sua mãe. Sua fúria prendeu fogo à lâmina fazendo que brilhasse enquanto corria para eles.

     Acheron fixou a vista em Apolo e se esqueceu da briga. Tudo o que podia pensar era em esfaquear o cruel coração do deus. Mas ao alcançar Apolo, o deus empurrou para trás a Xiamara contra Acheron. Voltou-se para ele com os olhos exagerados e lhe encolheu o estômago quando se deu conta de que Apolo tinha empurrado a demônio contra a faca.

     Acheron sentiu que seu sangue lhe empapava a mão. Olhando a ferida ela retrocedeu com um gritito de dor. Queria lhe dizer algo, mas era impossível sem língua. Abraçou-a contra ele enquanto ela lutava para respirar.

     Ela levantou uma mão ensangüentada e a pôs sobre a bochecha.

   —Apollymi te ama —lhe sussurrou em Caronte, uma língua que de algum jeito, entendia embora não a tinha ouvido falar antes—. Proteja a sua mãe, Apostolos. Seja forte por ela e por mim —então a luz se apagou em seus olhos e seu último fôlego saiu de seu corpo.

     Acheron jogou atrás a cabeça e tentou desafogar a fúria de seu interior. Mas só exalou um grito estrangulado. Agarrando a faca, girou-se para Apolo.

     Apolo agarrou sua mão e lhe arrancou a faca. O deus lhe agarrou pela garganta outra vez e lhe atirou ao chão. Acheron lhe deu um chute e se afastou rodando.

     Então captou uma sombra em um canto. Ficou congelado quando viu Artemisa ali, de pé, olhando a briga com as mãos sobre a boca. Tinha os olhos cheios de horror.

     Necessitando dela, estendeu a mão para ela.

     Ela negou com a cabeça e deu um passo para trás, fora da vista de seu irmão.

     Nesse instante, algo dentro dele morreu. A frieza encheu cada centímetro de seu corpo.

     Artemisa se negava a intervir. Inclusive agora que estava ferido mais dolorosamente do que qualquer humano pudesse estar, seu amor não era suficiente. Não se importava com ele.

     Cansado, abatido pela dor e derrotado, rodou sobre suas costas no mesmo momento em que Apolo apareceu ante ele. Enfrentou o olhar irado do deus. Grunhindo de raiva, Apolo afundou a adaga profundamente no coração de Acheron e lhe cortou até o umbigo.

     Uma agonia impossível de mitigar lhe queimou por todo o corpo enquanto o deus lhe estripava lentamente sobre o chão a menos de um metro do corpo de Ryssa, ali mesmo, frente a Artemisa.

     Com as lágrimas caindo dos olhos, a luz e a dor começaram a desparecer.

 

    Artemisa permaneceu nas sombras, chorando silenciosamente enquanto via como seu irmão afastava o corpo de Acheron de um chute. Não foi até que Apolo se aproximou do rei que estava sobre a cama quando este se deu conta de que Styxx também jazia morto na porta.

     Não é que a Artemisa importasse o príncipe.

     Com o coração dolorido, deslizou-se pela parede até aconchegar-se num canto com o choroso olhar fixo em Acheron e o que restava dele.

     Pensava que sua morte a aliviaria. A agonia por sua perda a rasgou com uma finalidade que a deixou privada de qualquer pensamento.

     Só emoções nuas.

     Doía a um nível que não acreditava possível.

     Os gritos de dor do rei igualavam os de sua alma, quando Apolo recolheu Ryssa de seus braços e se deu conta de que seu herdeiro estava morto.

     Apesar de toda sua dignidade e seu poder, o rei se arrastava pelo chão para Styxx e gritava enquanto balançava a seu filho contra si.

     Ninguém chorava por Acheron.

     Ninguém salvo ela.

     Incapaz de seguir olhando voltou para seu templo onde destroçou cada espelho, cada peça de cristal e porcelana. Sua raiva atravessou o aposento, destroçando tudo ao seu redor.

     O que tinha feito?

     —Deixei-o morrer.

     Não, tinha tentado lhe matar. A noite passada tinha querido matá-lo. Mas nunca tinha sonhado o muito que ele significava para ela.

     Seu contato, sua amizade…

     Agora ele se foi. Para sempre.

     —Te amo, Acheron —soluçou, puxando o cabelo.

     Acabou-se. Ninguém saberá de vós dois agora. Estás a salvo.

     Parecia uma preocupação tão insignificante comparada com o fato de que viveria toda a eternidade sem ver outra vez seu rosto…

    Apollymi ofegou quando sentiu que o peso em seu peito se libertava. Sem que o dissessem, soube que agora tinha a habilidade para abandonar o Kalosis.

     Abandonar…

     —Não! —gritou ela quando se deu conta do significado. Só havia uma maneira de obter sua libertação.

     Apostolos estava morto.

     Essas três palavras rondavam por sua cabeça até pô-la doente.

     Não querendo acreditá-lo correu para o lago e convocou o olho do universo. Ali, na água, viu Xiamara jazendo morta no chão do palácio e a Apostolos…

     Não!

     Do mais profundo de seu ser, um uivo de raiva e dor começou a acumular-se e quando largou mão dela, destroçou o lago e estremeceu todo o jardim.

     —Sou Apollymi Thanata Deia Fonia! —até que teve a garganta sangrando e em carne viva.

     Era a destruição final.

     E ia trazer seu filho para casa.

     Que os deuses tivessem piedade uns dos outros porque ela não ia ter nenhuma.

 

25 de Junho, 9527 a.C.

Tártaro

    Hades, o deus Grego da Morte e do Inframundo, permaneceu no centro de sua sala do trono, olhando incrédulo ao seu novo recém-chegado que jazia em uma das celas mais escuras do Tártaro.

     E ele não tinha sido quem o tinha posto ali…

     Baixou o olhar ao relógio de seu pulso e apertou os dentes. Ainda faltavam três meses para que sua esposa retornasse ao Inframundo com ele. Mas honestamente, tinha que falar com ela.

     Isto não podia esperar.

     —Perséfone? —chamou, esperando que sua mãe não estivesse o bastante perto para lhe ouvir. A velha puta teria um ataque se os pegava juntos. Não é que isso fora algo ruim… se a matava.

     Uma imagem de sua esposa flutuou na escuridão ao seu lado.

     —Ovelhinha! —ofegou Perséfone— Sentia falta de ti terrivelmente.

     Realmente odiava os apelidos que se inventava para ele. Graças aos deuses que só os usava quando estavam os dois sozinhos. De outro modo, seria o bobo de todos os deuses. Mas podia perdoar a sua esposa qualquer coisa.

     —Onde está tua mãe?

     —Fora com Zeus jogando uma olhada a uns campos, por que?

     Bom. A última coisa que precisava era que Demeter chegasse e os pegasse falando.

     Isso lhe devolveu ao seu “dilema”. A fúria transpassou quando fez um gesto para a parede que mostrava as celas onde os prisioneiros estavam encerrados.

     —Porque me estou pondo realmente doente de limpar os destroços dos outros deuses e agora mesmo eu adoraria saber que traseiro tenho que chutar por este último fiasco.

     Ela se materializou ao seu lado.

     —O que aconteceu?

     Agarrando-a pela mão, aproximou-a da cela onde podiam ver de fora, mas o que estava dentro era incapaz de vê-los.

     Ao menos isso era o normal. Neste caso, quem sabia o que o ocupante podia ou não podia ver?

     Assinalou ao deus de pele azul que parecia um novelo no chão.

     —Alguma idéia de quem lhe matou e lhe mandou aqui?

     Com os olhos totalmente abertos, Perséfone negou com a cabeça.

     —O que é isso?

     —Bom, não estou muito seguro. Acredito que possivelmente é um deus… atlante… Mas nunca antes vi nada parecido. Chegou recentemente e não se moveu. Tentei destruir sua alma e enviá-la ao esquecimento eterno, mas acredito que não tenho os poderes suficientes para fazê-lo. De fato, estou convencido de que se voltar a tentá-lo tudo o que conseguirei será encher o saco dele.

     Perséfone assentiu.

     —Bom, carinhosinho, meu conselho é que se não podes lhe destruir te faças amigo dele.

     —Amigo dele, como?

     Perséfone sorriu ao seu marido que não era uma entidade sociável nem de longe. Alto e musculoso com o cabelo e os olhos negros, estava muito bem, inclusive quando estava aturdido e zangado.

     —Espera aqui. —Abriu a porta da cela e se aproximou devagar ao deus desconhecido.

     Quanto mais se aproximava dele, mais entendia a preocupação de Hades. Emanava tanto poder do deus que até o ar ondulava. Moveu-se entre deuses toda sua vida, mas este era diferente. Tinha uma atrativa pele azulada cobrindo um corpo de perfeitas proporções. O cabelo comprido e negro aberto em leque. Tinha dois chifres negros na cabeça e lábios e garras negras.

     E mais que isso, não era um deus da criação. Era da destruição definitiva.

     Seph, saia daí.

     Levantou a mão para indicar ao seu marido que estava bem. Com as pernas tremendo pela inquietação, estirou a mão para tocar ao deus.

     Ele abriu os olhos, eram de um amarelo alaranjado bordeado de vermelho. Trocaram disso a redemoinhos chapeados. E estavam cheios de uma crua angústia.

     —Estou morto? —perguntou, sua voz demoníaca.

     —Queres estar morto? —realmente tinha medo de sua resposta porque se não queria estar morto, poderia haver sérias conseqüências.

     —Por favor, me diga que ao final o consegui.

     Essas desesperadas palavras a chegaram ao coração. Aproximando-se para lhe consolar, afastou-lhe o cabelo da bochecha azul.

     —Estás morto, mas como deus vives.

     —Não o entendo. Não quero ser diferente de ninguém. Só quero que me deixem em paz.

     Perséfone lhe sorriu.

     —Podes ficar aqui todo o tempo que queiras —fez aparecer um travesseiro para ele e o colocou debaixo da cabeça. Então lhe cobriu com uma manta.

     —Por que estás sendo tão amável comigo?

     —Porque parece que o necessitas —lhe deu palminhas no braço antes de erguer-se—. Se necessitares de algo, eu sou Perséfone. Meu marido, Hades, é o chefe aqui. Nos chame e viremos.

     Assentiu sutilmente com a cabeça antes de fechar os olhos e voltar a estender-se imóvel na escuridão.

     Desconcertada, voltou-se para seu marido.

     —É inofensivo.

     —Inofensivo e um ovo. Seph? Estás louca? Não podes sentir os poderes que tem?

     —Oh, sinto-os. Aproxime-te e terás pesadelos. Mas não quer nada. Está ferido, Hades. Gravemente. Tudo o que quer é que o deixem em paz.

     —Sim, claro. Deixá-lo só em meu Inframundo. Outro deus com poderes que rivalizam com meus? Sabe que há uma razão pela qual os panteões não se misturam.

     —Tu podes te aliar com ele —disse ela, tentando acalmá-lo—. Ter um amigo nunca é ruim.

     —Até que os amigos se voltam contra ti.

     Ela sacudiu a cabeça.

     —Hades.

     —Sou muito mais velho que tu, Seph. Vi o que acontece quando um deus se volta contra outro.

     —E eu acredito que ele não fará mal a nenhum de nós —ficou nas pontas dos pés para lhe beijar a bochecha—. Tenho que ir antes que minha mãe sinta minha falta. Já sabes como fica quando te vejo durante o tempo que a corresponde.

     —Sim e uma coçada no…

     Ela lhe fechou os lábios antes que pudesse deixar voar o insulto.

     —Amo a ambos. Agora seja bom e cuide de nosso convidado.

   Só sua esposa podia ameaçá-lo dessa maneira e ser tão despreocupada com seu corpo. Mas seu coração lhe pertencia e daria a ela qualquer coisa.

     Beijou-a o dedo.

     —Sinto falta de ti.

     —Eu também a ti. Voltarei logo para casa.

     Logo, sim… claro.

     Mas não havia nada a fazer.

     Assentiu sombríamente, e então amaldiçoou quando ela desapareceu afastando-se dele. Maldita cadela, Demeter, por amaldiçoá-los a viver separados a metade do ano. Mas agora mesmo tinha problemas maiores que a mãe de sua esposa.

     E com seus mais de dois metros, esse assassino de deuses era definitivamente um problema enorme.

 

25 de Junho, 9527 a.C.

Didymos

    Com o vento gelado revoando entre o pálido cabelo fantasmagórico e esmagando o traje contra seus membros, Apollymi cambaleava sobre as rochas onde o corpo de Apostolos jazia como um trapo. Tinham atirado ao seu precioso filho ali como se não fora nada.

     Nada…

     As lágrimas não derramadas a atormentavam. Estava tão fria por dentro. Tão abatida. Tão… Não havia palavras para descrever a angústia de ver o corpo de seu filho jazendo de barriga para baixo na água, abandonado e esquecido.

     Atirado como um dejeto.

     Depois de tudo o que lhe tinham feito, nem sequer lhe tinham dado um funeral decente.

     Débil pela dor, caiu de joelhos em um atoleiro de água e lhe tirou dentre as rochas até a praia. Incapaz de suportá-lo, gritou fazendo com que os pássaros desdobrassem o vôo.

     —Apostolos!

     Mas ele não podia ouvi-la. Seu corpo estava tão frio como seu coração. Seus olhos chapeados estavam abertos, com o olhar fixo e inclusive agora redemoinhavam como um dia de tormenta. E ainda com todo o horror de sua morte, seus traços eram serenos.

     E formosos. Mais do que qualquer mãe tivesse podido esperar. Viu si mesma em seu rosto. Viu que suas esperanças sobre ele se realizaram. Estava tão perfeitamente formado… Tão alto e tão forte…

     E lhe tinham feito uma carnificina. Tinham-lhe torturado. Tinham violado e humilhado ao seu filho. Seu precioso menino.

     Engasgando-se com um soluço, passou a mão pela longa navalhada de seu peito para selá-la. Só então, quando ficou perfeito outra vez, começaram a cair as lágrimas enquanto punha os lábios sobre sua bochecha para lhe beijar e chorar.

     Era a primeira vez que lhe abraçava desde o momento em que lhe tirou de seu ventre. Abraçando-lhe forte, balançou-lhe sobre a praia e libertou todo o horror de seu interior.

     —Tentei te proteger, Apostolos —sussurrou em seu ouvido—. O tentei com todas as minhas forças.

     Tinha falhado miseravelmente e em seu intento tinha feito com que a vida de seu filho fora insuportável.

     Querendo lhe confortar e sabendo que era muito tarde, tentou fútilmente lhe esquentar os braços esfregando-lhe.

     Se pudesse olhá-la. Ouvir sua voz. Mas nunca mais poderia.

     E nunca lhe ouviria chamá-la matera.

     Era mais do que podia suportar.

     —Por favor —suspirou—. Por favor, volte para mim, Apostolos. Juro-te que desta vez te manterei a salvo. Não deixarei que ninguém te faça mal. Por favor, querido, não posso viver sabendo que te matei. Não posso. Me olhe, por favor.

     Mas não podia olhá-la e ela sabia.

     Se tivesse o poder de lhe devolver a vida. Mas, ao contrário de seu pai, ela tinha nascido para a destruição. A morte. A pestilência. A guerra. Esses eram seus dons para o mundo. Não havia nada que pudesse fazer para trazer de volta da morte ao que mais queria no mundo.

     —Por que? —gritou-lhe ao céu. Onde estavam agora os Chthonianos para exigir sangue pela morte de seu precioso filho? Por que não estavam aqui em nome de Apostolos?

     Não lhe importava. A ninguém importava, salvo a ela.

     E a Xiamara que tanto tinha tratado de lhe salvar. Xiamara, sua amiga mais próxima. A única em que tinha sido capaz de confiar. Mais unidas que irmãs, mais que mãe e filha. E agora ela também se foi.

     Apollymi estava sozinha. Amargamente sozinha.

     Embalou a cabeça de seu filho junto aos seus seios e gritou tão alto que o vento levou o som de seu grito até os salões de Atlântida.

     —Maldito seja, Archon! Maldito seja!

     Como podia ter assegurado alguma vez que a amava? Como podia ter permitido que Apostolos morrera desta maneira, com tanta dor?

     Tinha o coração quebrado; enterrou a cabeça no molhado cabelo loiro de seu filho e chorou até que se esgotaram seus soluços.

     Então surgiu a fúria e jogou fortes raízes em seu coração. Ambos tinham sido traídos pelos que se supunha que deviam lhes amar e lhes honrar.

     Agora teriam que pagar com o inferno.

     Era a hora de levar ao seu filho para casa, aonde pertencia. Era a hora de fazer que sua mal chamada família sangrasse por sua traição.

     Uma vez traçado seu rumo, Apollymi vestiu ao seu filho com a promessa negra própria de sua posição. Era seu direito de nascimento. Como filho da Destruidora seu símbolo era o sol que representava a ela, atravessado pelos três raios de seu poder.

     Ele não era lixo. Ele era um deus atlante.

     E era o filho da Destruidora.

     Levantando-lhe das ondas e lhe embalando nos braços, deslocou a ambos até o Katoteros.

     Era uma ilha rodeada de ilhas. Tão bela que tirava o fôlego, não havia lugar no reino dos humanos que pudesse comparar-se a ele. De pé no lugar mais alto onde sua mãe residia, o Vento do Norte gritava em seu nome, Apollymi percorreu com a vista a paisagem que devia ter pertencido a Apostolos.

     As ilhas cintilavam sob a perfeita luz do sol que tentava esquentar sua fria pele. Era inútil.

     A ilha de sua direita albergava as terras paradisíacas onde as almas dos atlantes descansavam até sua reencarnação. A de sua esquerda tinha sido tomada pelos Carontes antes que a desterrassem; ao contrário de sua família seus demônios tinham permanecido fiéis a ela. Tinham-na seguido ao Kalosis.

     E a ilha frente a ela se supunha que ia ser o lar de seu filho.

     Mas o fato de ser a que possuía o ponto mais alto do Katoteros era o que captava sua atenção. O ponto que regia e unia todas as ilhas. Era ali onde se erigiu a residência dos deuses.

     A residência de Archon.

     Escurecendo sua visão, moveu-se até ali, fora do grandioso vestíbulo de mármore que se elevava alto e orgulhoso enquanto olhava ao mundo de sua altura. Ondas de música e risadas chegaram até ela.

     Música e risadas.

     Alheios ao que se aproximava e teriam que enfrentar, os deuses davam uma festa. Uma fodida festa. Podia sentir a presença de cada um dos deuses ali dentro. Todos eles. Festejando. Rindo. Aclamando. Divertindo-se.

     E seu amado filho estava morto.

     Morto!

     Seu mundo se fez pedaços. E eles riam.

     Apertando a Apostolos contra si, subiu as escadas com enganosa calma e abriu de repente as portas com seus poderes. O vestíbulo de mármore branco era circular e havia estátuas dos deuses situadas contra a parede a cada metro e meio.

     O coração lhe palpitava com fúria vingadora. Passou sobre seu emblema do sol que tinha sido engastado no chão no centro do vestíbulo. Ao passar sobre ele, trocou-o pelo de Apostolos. Um a um os raios de poder atravessaram seu símbolo.

     Agora as cores vermelha e negra representavam sua dor e o sangue derramado de seu filho.

     Sem vestígio de dúvida, dirigiu-se diretamente ao jogo de portas douradas que levavam a salão do trono de Archon. Ao salão onde os deuses se divertiam enquanto seu filho jazia morto devido a sua traição.

     Por todos os poderes escuros do universo, não ririam por muito mais tempo.

     Abriu as portas com a força completa de sua fúria. O estrépito ressonou quando as portas se estrelaram contra as paredes de mármore e saíram de suas dobradiças para cair sobre o chão perfeito e brilhante.

     A música se deteve imediatamente.

     Cada deus no salão se voltou para olhá-la e um a um seus rostos empalideceram.

     Sem uma palavra, Apollymi caminhou com seu filho nos braços e com uma calma que não sentia, para o estrado onde estava colocado seu trono negro ao lado do trono dourado de seu marido. Archon se levantou ao aproximar-se e se colocou a um lado como se quisesse falar com ela.

     Ela lhe ignorou e colocou a Apostolos no trono de Archon, onde devia estar. Com mãos trementes, sentou-lhe e colocou cuidadosamente cada uma de suas mãos sobre os braços. Levantou-lhe a cabeça e retirou o cabelo loiro do rosto azulado até que pareceu que ia piscar e mover-se a qualquer momento.

     Só que nunca voltaria a piscar.

     Estava morto.

     E eles também.

     O coração do Apollymi pulsava com fúria enquanto reunia seus poderes. Um vento selvagem soprou pelo salão levantando o cabelo dela, lhe brilhando os olhos vermelhos. Voltou-se para os deuses e os fulminou com o olhar enquanto eles agüentavam o fôlego à espera de sua ira.

     Até que olhou a Archon.

     Só então falou com uma voz que estava misturada com o ódio.

     —Olhe ao meu filho.

     Ele se negou.

     —Olhe-o, maldito seja —grunhiu—. Quero que olhe o que tens feito.

     Archon se estremeceu antes de assentir e o alívio que viu em seus olhos elevou sua ira a um nível ainda mais alto. Como tinha admitido em sua cama a alguém tão cruel e pútrido?

     Em seu corpo?

     Apollymi grunhiu:

     —Suas bastardas privaram da vida ao meu filho. Essas pequenas putas lhe amaldiçoaram. E tu —disse com desprezo na palavra— ousaste protegê-las em lugar de proteger ao meu menino!

     —Apollymi...

     —Nunca voltes a pronunciar meu nome —lhe selou a boca com seus poderes—. É bom que tenhas medo. Mas tuas cadelas bastardas estavam equivocadas. Não será meu filho que destruirá este panteão. Serei eu. Apollymia Katastrafia Megola Pantokrataria Thanatia Atlantia deia oly!

     Apollymi a Grande Destruidora. Toda-poderosa. Morte dos Deuses da Atlântida.

     E então todos se amontoaram nas portas ou se teletransportaron para fora, mas Apollymi não deteve nenhum. Apelando à parte mais escura de sua alma, selou as portas do salão. Ninguém ia sair dali até que ela fora aplacada.

     Ninguém.

     Se os Chthonianos a matassem por isso, que assim fora. Estava morta por dentro de todas as formas. Não se preocupava com nada exceto de fazer pagar a todos eles pela participação que tinham tido no sofrimento de seu filho.

     Archon caiu de joelhos tentando suplicar sua piedade. Mas não restava nada dentro dela exceto um ódio tão poderoso e amargo que realmente podia saboreá-lo.

     Atirou-lhe para trás de um chute e o fez explodir até que não foi mais que uma estátua vestígio de um deus.

     Basi gritou quando Apollymi se voltou para ela.

     —Ajudei-te. Ajudei-te! Deixei-lhe onde me disseste.

     —E uma merda. Só choramingaste e me aborreceste. —Apollymi a fez estalar no esquecimento.

     Um a um enfrentou aos deuses que uma vez considerou sua família e os converteu em pedra enquanto sua fúria reclamava vingança. Em vão tentaram dominá-la, pois uma vez que sua ira se desatou, não havia poder no universo que a detivera.

   Exceto o filho que eles, estupidamente, tinham matado. Só Apostolos poderia havê-los salvado.

     O único ante o que duvidou por um momento foi seu amado neto político, Dikastis, o deus da justiça. Ao contrário dos outros, não se encolheu de medo nem suplicou. Tampouco lutou com ela. Permanecia de pé com uma mão apoiada no respaldo da cadeira, enfrentando seu olhar com calma, como um igual.

     Porque compreendia a justiça. Compreendia sua ira.

     Inclinando a cabeça com respeito não se moveu quando o golpeou.

     E ao final, aí estava Epithymia. Sua meio irmã. A deusa da saúde e do desejo. Ela era a cadela em que Apollymi bobamente tinha crédulo mais que nos outros.

     Apollymi a enfrentou com os olhos cheios de cristalinas lágrimas de gelo.

    —Como pudeste?

     Pequena e frágil na aparência, Epithymia a olhava do chão onde estava encolhida de medo.

     —Fiz o que me pediste. Deixei-lhe no mundo dos homens e me assegurei de que nascesse no seio de uma família real. Inclusive tentei que a rainha lhe amamentasse. Por que irias destruir-me?

     Apollymi queria lhe tirar os olhos pelo que tinha feito.

     —O tocou, puta! Sabias o que isso lhe faria. Ser tocado pela mão do desejo e não ter os poderes de um deus para rebatê-lo... Fez com que cada humano que o olhasse se voltasse louco de luxúria para possuir-lhe. Como pudeste ser tão descuidada?

     Então viu a verdade nos olhos de sua irmã.

     —O fizeste de propósito.

     Epithymia tragou com força.

     —E o que se supunha que tinha que fazer? Escutaste às Moiras quando falaram. Proclamaram que ele seria a morte de todos nós. Ele poderia nos haver destruído.

     —Pensaste que os humanos lhe matariam em seus esforços para possuir-lhe?

     Uma lágrima deslizou pela bochecha de Epithymia.

     —Só queria nos proteger.

     —Era teu sobrinho —cuspiu Apollymi.

     —Eu sei e o sinto.

     Não tanto como o vais sentir.

     Apollymi a olhou com desprezo.

     —Eu também. Sinto ter acreditado em ti com a única coisa que sabias que amava sobre todo o resto. Puta ingrata. Espero que tuas ações te persigam por toda a eternidade. —E Apollymi golpeou a sua irmã.

     E ainda não estava aplacada. Inclusive com todos eles mortos.

     O buraco em seu interior seguia ali e doía tanto que a única coisa que podia fazer era gritar. Gritou até que teve a garganta em carne viva. Estendendo os braços, fez explodir o salão até que não restou dele mais que escombros. Não restava nada salvo suas lembranças das esperanças que albergava para seu filho agora morto.

     Ainda doía.

     Apollymi limpou as lágrimas do rosto enquanto olhava o que tinha feito. Não restava satisfação a sentir.

     Só justiça a dispensar.

     —Um menos...

     Voltou-se e se encaminhou à ilha onde Archon tinha criado um reino para ela.

     A Atlântida.

     Aqueles pobres tolos tinham pensado golpear a Apolo matando ao seu filho e a sua amante. Hoje se encolhiam de medo de serem descobertos e castigados por suas ações. Mas não era o Grego o que os queria mortos.

     Era ela. Seu mecenas.

     Seria por sua mão e pelos atos cometidos contra seu filho pelo que sofreriam e morreriam.

     Sem piedade. Isso era tudo o que tinham dado a Apostolos e era tudo o que lhes devolveria.

     Com um movimento do braço, afundou toda a ilha no mar e escutou a beleza dos gritos de horror e as súplicas de clemência e libertação enquanto os ventos golpeavam e acabavam com suas pútridas vidas. Era a música mais doce que tinha ouvido. Deixem que supliquem...

     Se Apostolos e Xiamara pudessem estar aqui.

     O último reino das ilhas desapareceu no mar quando o sol se punha. Apollymi se voltou e olhou para a terra da Grécia.

     Seriam os últimos a sofrer. Não só os humanos que tinham feito mal ao seu filho, mas também todos os fodidos e presunçosos deuses que pensavam que eram tão espertos.

     Sobretudo, pagariam as filhas bastardas de Archon. Acreditavam-se a salvo no Olimpo aos cuidados de sua mãe. Mas as três Moiras não eram nada em comparação com a filha do Caos.

     A mãe da destruição absoluta.

     Seus gritos de agonia era o que mais ia saborear.

 

Junho 25, 9527 a.C.

Monte Olimpo

    Magro e de estatura pequena, com olhos e cabelo escuros, Hermes voou através do salão de Zeus até que chegou ante seu pai que parecia só uns anos mais velho que ele. Hermes não estava seguro do que acontecia a maioria dos deuses que estavam reunidos aqui sem fazer nada.

     Ignoraram a Hermes até que falou.

     —Conhece o ditado, “Não mates ao mensageiro”? Tenho-o muito perto do coração.

     Zeus franziu o cenho e se levantou da cadeira onde tinha estado jogando xadrez com Poseidón. Vestido com uma flutuante túnica branca, Zeus tinha o cabelo loiro curto e vívidos olhos azuis.

     —O que ocorre?

     Hermes fez um gesto para a parede de janelas por onde se podia ver o reino dos humanos.

     —Algum de vós jogou uma olhada a Grécia em digamos, uma hora ou algo assim?

     Artemisa estava sentada à mesa do banquete frente a Afrodita, Ateneu e Apolo e conteve o fôlego quando a atravessou um mau pressentimento.

     Apolo pôs os olhos em branco e agitou a mão num gesto elegante de despreocupação.

     —O que? Reagem ante o fato de que tenha amaldiçoado aos Apolitas?

     Hermes moveu a cabeça em um gesto de negação sarcástica.

     —Não acredito que lhes incomode tanto como o fato de que a ilha de Atlântida há desaparecido e a deusa atlante Apollymi está causando grandes danos em nosso país, destruindo tudo e a todos os que toca. —Hermes lançou a Apolo um olhar petulante—. E se por acaso têm curiosidade, dirige-se diretamente para cá. Posso estar equivocado, mas me parece que a senhora está extremamente zangada.

     Artemisa se encolheu ante as palavras.

     Zeus se voltou para Apolo.

   —O que tens feito?

     Apolo ficou branco, com o medo tingindo os olhos, toda a arrogância desaparecida.

     —Amaldiçoei a minha gente, não à sua. Não tenho feito nada aos atlantes, Papai. A menos que seu sangue se haja mesclado com ao de meus Apolitas, está a salvo de minha maldição. Não é minha culpa.

     A Artemisa encolheu o estômago. Levou a mão à boca ao compreender a que panteão devia ter pertencido Acheron. Aterrorizada ante o que ela e Apolo tinham posto em marcha, abandonou o salão onde os deuses se preparavam para a guerra e voltou para seu templo para poder pensar sem que os gritos iracundos soassem em seus ouvidos.

     —O que posso fazer?

     Estava a ponto de convocar a seus koris quando as três Moiras apareceram em seu quarto. Trigêmeas no cume da beleza da juventude, seus rostos eram uma cópia perfeita umas das outras. Mas só isso as unia. A mais velha, Atropos, era ruiva enquanto que Cloto era loira e a pequena, Lachesis, era morena. Eram filhas da deusa da justiça. Ninguém sabia com segurança quem era o pai, mas muitos pensavam que era Zeus.

     Uma coisa que sabiam todos os deuses do Olimpo era que estas três moças eram as mais poderosas de todo o panteão. Inclusive Zeus tentava evitá-las.

     Desde o momento em que tinham chegado, há uma década, todo mundo se mantinha afastado delas. Quando as três se agarravam pela mão e lançavam uma predição, convertia-se em uma lei do universo e ninguém era imune a ela.

     Ninguém.

     Artemisa não podia imaginar por que estavam em seu templo.

     —Se não lhes importar, estou um pouquinho ocupada agora mesmo.

     Lachesis a agarrou pelo braço.

     —Artemisa, deves nos escutar. Fizemos algo terrível.

     Era por isso que os deuses as temiam. Sempre estavam fazendo algo terrível a alguém.

     —O que quer que seja, terá que esperar.

     —Não —disse Atropos lúgubre—. Não pode esperar. Apollymi vem a nos matar.

     Assombrada pela informação, Artemisa franziu o cenho.

     —O que?

     Atropos tragou saliva.

     —Nunca dirás a ninguém o que vamos contar-te. Entendes? Nossa mãe nos fez jurar que guardaríamos o segredo.

     —Que secreto guardaria?

     —Jura-nos Artemisa —exigiu Clothos.

     —Juro-o. E agora me digam o que está acontecendo. —E o mais importante, no que afetava a ela.

     Atropos falava em sussurros, como se temesse que alguém fora do templo pudesse escutá-la.

     —Nosso pai é Archon, o rei dos deuses atlantes. Teve um caso com nossa mãe Themis e nos teve. Nossa mãe nos mandou à Atlântida paraa viver e nosso pai nos aceitou. Apollymi é nossa madrasta e nós intencionadamente amaldiçoamos a nosso meio irmão quando soubemos que ia nascer.

     —Foi um acidente —soltou Cloto—. Não queríamos lhe amaldiçoar.

     Lachesis assentiu.

     —Éramos só umas meninas e ainda não compreendíamos nossos poderes. Nunca quisemos amaldiçoar ao nosso irmão. O queríamos, juro-o.

     Artemisa ficou gelada por dentro.

     —Acheron? Acheron é seu irmão?

     Cloto assentiu.

     —Apollymi apenas nos suportava quando vivíamos com eles. Fomos o lembrança da infidelidade de nosso pai e nos odiava por isso.

     Não tinha sentido, como tampouco tinha seu medo. Artemisa tentou compreender o que a estavam contando.

     —Mas todo mundo sabe que Archon nunca foi infiel a sua esposa.

     Lachesis soprou.

     —Essa é a mentira que mantém os deuses atlantes para que Apollymi não lhes faça mal. Não compreendes quão poderosa é. Pode nos matar sem piscar. Todos os deuses temem seu poder. Inclusive Archon. É tão infiel como a maioria dos homens e por isso estamos assim.

     —Quer-nos mortas —repreendeu Cloto.

     Artemisa ainda estava tentando assimilar a história.

     —Como exatamente amaldiçoaram a Acheron?

     —Fomos tão estúpidas —disse Atropos—. Quando Apollymi começou a dar mostras de sua gravidez falamos irreflexivamente e outorgamos a Apostolos o poder do destino final. Dissemos que seria a morte de todos nós e parece que estamos a ponto de ver nosso desaparecimento.

     Artemisa estava ainda mais confusa.

     —Mas não é ele quem vos ameaça. É sua mãe.

     Cloto assentiu.

     —E matará a todos pela parte que nos toca na maldição. Inclusive tu.

     —Eu não tenho feito nada!

     Atropos se burlou dela enquanto as jovens a rodeavam.

     —Sabemos o que tens feito, Artemisa. Vimos tudo. Fizeste-lhe inclusive mais dano que nós. Voltou as costas quando Apolo lhe estripou sobre o chão e Apollymi sabe.

     O medo a atravessou. Se o que diziam era correto, não haveria nenhuma piedade por parte de Apollymi. Verdadeiramente, não merecia piedade, mas por outro lado, Artemisa realmente não queria morrer.

     —O que podemos fazer? Como a derrotamos?

     Atropos suspira pesadamente.

     —Não podes derrotá-la. É a toda-poderosa. O único que podia igualar seus poderes era seu filho.

     Nesse caso, tinham problemas sérios posto que Acheron estava morto. Não podia alguém lhe haver dito antes que lhe deixasse nas mãos de Apolo? Esta informação chegava um pouquinho tarde e poderia ter sido muito mais benéfica na primeira hora do dia.

     —Estamos mortas. —Artemisa tomou fôlego enquanto que as imagens de si mesmo sendo estripada pela mãe de Acheron corriam por sua mente.

   —Não —disse Clotho com firmeza sacudindo-a pelo braço—. Tu podes lhe trazer de volta.

     Artemisa olhou à mulher com o cenho franzido.

     —Tornaste-te louca? Não posso lhe trazer da morte!

     —Sim que podes. Tu és a única que tem o poder.

     —Não. Não o tenho.

     Atropos a grunhiu.

     —Bebeu seu sangue, Artemisa. Absorveu algo de seu poder.

     Clotho assentiu.

     —Ele é o Destino Final. Podes ressuscitar aos mortos, o que significa que tu também.

     Artemisa tragou com força.

     —Estão seguras?

     As três assentiram ao uníssono.

     Ainda assim, Artemisa não estava segura. É obvio que tinha saboreado os poderes de Acheron, mas esse em particular estava reservado para um grupo seleto de deuses e se falhavam ao lhe trazer de volta...

     Só poderia piorar a situação.

     Atropos a agarrou pelo braço.

     —Os deuses atlantes utilizaram seus poderes combinados para atar a Apollymi. Enquanto Apostolos viva no mundo dos humanos, ela estará encerrada no Kalosis.

     Lachesis a agarrou pelo outro braço e assentiu.

     —Trazemos-lhe de volta e a encerramos outra vez.

     —Estaremos a salvo —lhe disse Clotho—. Todas nós.

     —Serás a salvadora do panteão —disseram as três ao uníssono.

     Tinha de verdade outra saída? Tomando fôlego profundamente para dar-se ânimos, Artemisa assentiu.

     —O que tenho que fazer?

     —Terás que fazer que beba teu sangue —disse Atropos como se fora a coisa mais fácil de fazer do mundo.

     —E como o faço?

     —Com nossa ajuda.

    Acheron jazia no chão com tranqüila serenidade, insensível por fim a seu passado e ao seu presente. Estava em paz de uma forma em que não o tinha estado nunca. As paredes da cova lhe defendiam das vozes dos outros. Nem sequer os deuses estavam em sua cabeça.

     Pela primeira vez em sua vida, tinha um silêncio total.

     Não lhe doía o corpo, não sentia dor. Nada. E adorava esta sensação de tranqüilidade.

     —Acheron?

     Esticou-se ao ouvir a voz de Artemisa. É obvio, a cadela ia incomodar-lhe em seu paraíso. Nunca ia deixar-lhe em paz.

     Maldita sejas.

     Tentou lhe dizer que se fora, mas de seus lábios só saiu um rouco grasnido. Tossiu tentando clarear a garganta para falar.

     Mas as palavras não saíram. O que estava passando? Por que lhe tinham tirado a voz?

     Artemisa lhe jogou um olhar tenro e preocupado ao aparecer ante ele.

     —Temos que falar.

     Ele a afastou, mas ela se negou a partir.

     —Por favor —lhe pediu com um olhar que haveria disolvido sua resolução só uns dias antes. Mas essa preocupação por ela sumiu—. Só umas palavras e te deixarei em paz. Para sempre, se quiseres.

     Como iam conversar se não podia falar?

     Ela lhe aproximou uma taça.

     —Beba isto e poderei falar contigo.

     Furioso com ela e querendo descarregar sobre ela sua cólera, agarrou a taça e esvaziou o conteúdo sem saboreá-lo sequer.

     —Vai ao Tártaro e te apodreça —lhe grunhiu agradecido de que desta vez pudesse notar o veneno em sua voz.

     Então aconteceu algo. A dor e o fogo rasgaram seu corpo como se algo estivesse incendiando seus órgãos internos. Ofegando, olhou a Artemisa.

     —E agora o que me tens feito?

     Não havia piedade nem remorso em seu olhar.

     —O que tinha que fazer.

     Num momento estava na tranqüila escuridão dos domínios de Hades e ao seguinte estava de pé nas praias de Didymos, não longe de palácio.

     Ou do que restava dele.

     Confundido, olhou ao seu redor tentando entender que tinha passado a ele e à terra. Mas antes de poder adivinhá-lo uma dor abrasadora lhe atravessou com tal ferocidade que lhe pôs de joelhos sobre as ondas.

     Acheron uivou, desejando que passasse.

     De repente, Artemisa estava ante ele. Agarrando-lhe com os braços, sustentou-lhe fortemente enquanto as ondas rompiam sobre eles.

     —Tinha que te trazer de volta.

     Separou-a de seu lado enquanto olhava ao seu redor os ardentes restos de Didymos.

     —O que tens feito?

     —Não fui eu. Foi tua mãe. Destruiu tudo e a todos os que estiveram perto de ti. E vem ao Olimpo para nos matar. É por isso que te trouxe de volta. Nos teria matado a todos se não o faço.

     Olhou-a com tal fúria que esteve seguro de que seus olhos eram vermelhos.

     —E pensas que me importa algo? —afastou o olhar dela e parou em seco com a dor retorcendo seu estômago. A agonia fez com que dobrasse sobre si mesmo e lutasse para recuperar o fôlego.

     Artemisa se aproximou dele lentamente. Ficou parada lhe olhando.

     —Eu não tenho o controle, Acheron. Te vinculei a mim com meu sangue. Me pertences.

     Essas duas palavras incendiaram sua cólera. Sentia o calor familiar lhe rasgando enquanto sua aparência humana dava passo a sua forma de deus. Elevando-se sobre a dor, estendeu a mão e agarrou a Artemisa em um firme sujeição.

     —Subestimas seriamente meus poderes, cadela.

     Ela apertou sua mão tentando soltar-se de seu puxão animal.

     —Me mate e te converterás no pior monstro que possas imaginar. Necessitas de meu sangue para manter a sanidade. Sem ele, te converterás num assassino sem consciência que busca unicamente destruir a quem quer que entre em contato contigo, assim como tua mãe.

     Acheron rugiu de frustração. A cadela tinha pensado em tudo. Inclusive sendo um deus, era um escravo.

     —Odeio-te.

     —Eu sei.

     Separou-a dele e lhe deu as costas.

     —Acheron, ouviste o que te hei dito? Terás que te alimentar de mim.

     Ignorou-a e empreendeu a caminhada da praia até a colina onde, uma vez, levantou-se o palácio real. Agora não restava dele mais que cinzas ardentes e pedras quebradas. Havia corpos de serventes e mercadores por toda parte.

     Com os olhos cheios de lágrimas, andou por entre os escombros, procurando um sinal de Ryssa ou de Apollodorus. Doído e quebrado, utilizou seus poderes para retirar as pedras e os mármores até que descobriu o que tinha sido seu quarto.

     Ali, entre as ruínas encontrou três dos diários que tão meticulosamente conservava. Estavam um pouco chamuscados pelo fogo, mas, milagrosamente, estavam intactos. Abriu o primeiro e viu sua escritura infantil descrevendo o dia em que ele tinha nascido e a alegria que sentia ao ter irmãos gêmeos. Limpou as lágrimas e o fechou, colocando-lhe junto ao coração como se ouvisse sua voz através das palavras.

     Sua preciosa irmã se foi e era por sua culpa.

     Dolorido por esta verdade, viu um dos pentes de cabelos de prata que lhe tinha dado.

     Recolheu-o e o levou aos lábios.

     —Sinto haver falhado contigo, Ryssa. Sinto muito.

     Sentou-se ali e se deu conta de quão patético era que tudo o que restava de uma vida tão vibrante e uma alma tão formosa fossem coisas tão minúsculas. Três diários e um pente de cabelo quebrado. Isso era tudo o que restava de sua preciosa irmã. Jogando a cabeça para trás, chorou de dor.

     —Apostolos... por favor, não chores.

     Sentiu a presença de sua mãe.

     —O que tens feito, Matera?

     —Queria que pagassem por te machucacrem.

     Acaso importava? O que lhe tinham feito não era nada comparado com o que se havia feito neste dia.

     —E agora pertenço a Artemisa.

     O grito de sua mãe ecoou ao seu.

     —Como?

     —Me vinculou a ela com seu sangue.

     Podia sentir sua própria ira na voz de sua mãe.

     —Venha para mim, Apostolos. Liberte-me e destruirei a essa cadela e às bastardas que te amaldiçoaram.

     Acheron sacudiu a cabeça. Deveria fazê-lo. Claro que deveria. Não mereciam outra coisa. Mas ainda assim, não podia decidir-se a destruir o mundo. A matar pessoas inocentes.

     Sua mãe apareceu diante dele como uma sombra translúcida. Acheron conteve o fôlego ao vê-la pela primeira vez. Era a mulher mais bela que tinha visto nunca. Seu cabelo, branco como a neve recém caída, estava preso por uma coroa que resplandecia de diamantes. Seus olhos pálidos e chapeados redemoinhavam como os seus. Seu vestido negro flutuava sobre seu corpo ao estender a mão para ele.

     Tentou tocá-la, mas a mão passou através dele.

     —És meu filho, Apostolos. A única coisa em minha vida que amei de verdade. Teria dado minha vida pela tua. Venha a mim, meu menino. Quero te abraçar.

     Entesourou cada palavra que disse.

     —Não posso, Matera. Não posso se isso significa sacrificar o mundo. Nego-me a ser tão egoísta.

     —Por que proteger um mundo que te deu as costas?

     —Porque eu sei o que se sente ao ser castigado por coisas que não são culpa tua. Eu sei o que é que te forcem a fazer coisas más e contra tua vontade. Por que imporia algo assim aos outros?

     —Por que seria o justo!

     Olhou para os corpos esparramados que havia ao seu redor.

     —Não. Só seria cruel. A justiça dos humanos está mais que servida.

     Os olhos dela flamejaram com ira.

     —E Apolo e Artemisa?

     Ele chiou os dentes ante a menção de seus nomes.

     —Têm o poder da lua e do sol. Não posso lhes destruir.

     —Eu sim.

     E isso destruiria a terra inteira e aos que viviam nela. Por isso não podia libertá-la.

     —Não sou merecedor de que desates o fim do mundo, Matera.

     Os olhos dela queimaram com sua sinceridade.

     —Para mim o és.

     Nesse momento, teria vendido sua alma para poder abraçá-la.

     —Te amo, Mamãe.

     —Nem de perto a como te amo eu, m’gios.

     M’gios. Meu filho. Tinha esperado toda sua vida que alguém lhe reclamasse. Mas por muito que amasse a sua mãe, não terminaria com o mundo por isso.

     De repente um vento frio se levantou ao seu redor, rasgando sua roupa e lhe revolvendo o cabelo, mas sem lhe machucar. O mundo ao seu redor desapareceu e se encontrou sobre solo estranho. A imagem de sua mãe piscou ao seu lado.

     —Isto é Katoteros. Teu direito por nascimento.

     Franziu o cenho ante a pilha de escombros.

     —Está em ruínas.

     Ela lhe lançou um olhar envergonhado.

     —Estava um pouco desgostada quando vim.

     Um pouco?

     —Fecha os olhos, Apostolos.

     Confiando nela completamente, fechou-os.

     —Tome ar.

     Tomou fôlego profundamente e então sentiu a sua mãe dentro dele. Seus poderes se mesclavam com os seus e em uma piscada, as ruínas se juntaram para formar um belo palácio de ouro e mármore negro. A presença de sua mãe puxava-o.

     —Bem-vindo a casa, palatimos. Queridíssimo.

     As portas se abriram e Acheron as atravessou. Sua roupa mudou. O cabelo cresceu, comprido e negro e um traje longo e solto flutuava atrás dele ao caminhar sobre o chão de mármore branco. Parou ante o símbolo do sol atravessado por três raios.

     Sua mãe se deteve quando se deu conta de que estava estudando-o.

     —O sol de ouro é meu símbolo e representa o dia. Os raios de prata representam a noite. O raio da esquerda sou eu e o passado, o da direita é seu pai e o futuro. Tu és o raio do centro que nos une e ata a nós três e é o presente. Este é o símbolo do Talimosin e representa seu domínio sobre o passado, o presente e o futuro.

     Franziu o cenho ante o termo atlante.

     —O Arauto?

     Ela assentiu.

     —Tu, Apostolos. Tu és o Talimosin. O destino final de tudo. Tuas palavras são lei e tua ira absoluta. Tome cuidado com o que dizes porque o que digas, inclusive sem querer, determinará o destino da pessoa com a qual falas. É uma carga e nunca a teria posto sobre teus ombros. E ideio essas cadelas por havê-lo feito. Mas não posso desfazer o que te deu. Ninguém pode.

     —Exatamente, quais são meus poderes?

     —Não sei. Tirei-os de ti e nunca os estudei por medo a te expor aos outros. Só sei o que as filhas de Archon predisseram. Mas aprenderás com o tempo. Só desejaria que viesse a mim para poder te ajudar até que sejas mais forte.

     —Matera...

     —Já sei —elevou a mão—. Respeito-te por ser o homem que és e estou orgulhosa de ti. Mas, se mudares de opinião, sabes onde estou.

     Ele lhe sorriu.

     —Enquanto isso, tudo isto é teu.

     Acheron olhou às estátuas e de algum jeito, soube quem eram todos e cada um deles. Aproximando-se das portas douradas, viu a imagem de sua mãe à esquerda e de Archon à direita.

     Através das portas abertas viu os restos dos deuses onde sua mãe os tinha atacado. Estavam congelados no horror de seus últimos momentos.

     Sua mãe não mostrou o mínimo remorso pelo que lhes tinha feito.

     —Se sua vista te incomoda, há um quarto sob a sala do trono onde podes pô-los. Enquanto eu estou encerrada no Kalosis, meus poderes não me permitem levá-los ali. Mas tu não deverias ter problemas.

     Fechando os olhos, desejou que as estátuas não estivessem. Em um instante, tinham desaparecido. Não tinha nenhuma vontade de ver as imagens das pessoas que lhe queriam morto.

     Sua mãe sorriu aprovadora.

     —Deverias ter a habilidade de ir e vir do reino dos humanos a tua vontade. Encontrarás que Katoteros é um lugar grande com áreas inexploradas. Nas cúpulas das montanhas faz muito vento... e no ponto mais ao norte podes ouvir a voz de tua avó, o Vento do Norte. Zenobi te sussurrará e te ajudará na minha ausência. Em qualquer momento que necessites de consolo, vá ali e deixa que te abrace.

   —Obrigado, Matera.

     —Devo ir já e deixar que te adaptes. Se me necessitares, chama e aparecerei.

     Inclinou a cabeça ante ela enquanto desaparecia e lhe deixava sozinho neste lugar estranho.

     Era tão estranho estar aqui que levou um tempo para acostumar-se. Fechando os olhos, podia ver os deuses como tinham sido. Ouvia o eco de suas vozes no mais fraco dos sussurros. E quando abriu os olhos, iam-se e não ouvia nada.

     Moveu-se pelo aposento e se deu conta de que levava uma espécie de calças de couro.

     Calças.

     Que estranho saber os nomes de tudo e de todos sem sequer tentá-lo. Qualquer informação que necessitasse, tinha instantaneamente.

     Cruzando o cômodo, aproximou-se do trono negro e dourado... o de Archon. Uma imagem do corpo morto de Archon apareceu em sua mente. No momento, Acheron estava sentado no trono, olhando a sala resplandecente e vazia. Embora decorada e dourada, era estéril.

     Não havia vida no palácio. Não havia consolo.

     Levantou-se e uma larga vara apareceu ao seu lado. De uns dois metros de comprimento, tinha seu emblema em ouro e prata no extremo superior. Havia palavras atlantes inscritas na suave madeira.

     Por esta, o Talimosin será conhecido. Lutará por ele mesmo e pelos outros. Seja forte.

     Seja forte. Apertou os dentes ante as palavras que Xiamara lhe tinha sussurrado. Agarrando firmemente a vara, se teletransportou ao ponto mais ao norte das montanhas. O sol estava começando a se pôr e os ventos açoitavam sua forma detrás dele. Agarrou forte a vara e olhou por cima do ombro para o palácio que se levantava abaixo.

     Então o escutou.

     Apostolos... sente minha força. Será tua quando a necessitares.

     Sorriu sinistramente ao sentir a carícia de sua avó na pele. Sua visão agora alcançava muito mais que a visão humana. Sentia o pulso do universo em suas veias. Sentia o poder da fonte primitiva e pela primeira vez assumiu seu lugar no cosmos.

     Sou o deus Apostolos. Sou a morte, a destruição e o sofrimento. E serei o que traga o Telikos, o fim do mundo.

     Isso se conseguia aprender a utilizar seus poderes. Acheron riu ante esta verdade.

     Deu a volta e começou a descer a montanha para a sala do trono do palácio de Archon. Não, agora era seu. A tristeza lhe afundou muito dentro ao dar-se conta de que embora sua mãe e sua avó estavam com ele em espírito, seguia estando sozinho no mundo.

     Completamente sozinho.

     Ficou congelado ao ouvir que algo se movia atrás do trono. Era um som como se alguém brincasse de correr, como um roedor muito grande. Com o cenho franzido se teletransportou a ele, preparado para matar ao que queira que ousasse profanar sua nova casa.

     O que encontrou lhe deixou completamente atônito.

     Era uma pequena demônio com a pele como de mármore vermelho e branco e comprido cabelo negro. Uns pequenos chifres vermelhos se sobressaíam por entre os cachos emaranhados, levantou a vista para lhe olhar com olhos vermelhos bordeados de laranja.

     —És tu meu akri? —perguntou com tom infantil.

     —Não sou o akri de ninguém.

     —Oh. —olhou a seu redor—. Mas akra me enviou aqui. Disse que meu akri estaria me esperando. A Simi está confusa. Perdi a minha mamãe e agora a Simi necessita a seu akri. —sentou-se no chão e começou a chorar.

     Acheron deixou a vara e agarrou nos braços à pequena.

     —Não chores. Tudo está bem. Encontraremos a tua mãe.

     Ela negou com a cabeça.

     —Akra disse que a mamãe da Simi está morta. Esses malvados gregos mataram à mamãe da Simi. Agora a Simi necessita que seu akri a queira.

     Acheron a balançava docemente nos braços quando a sombra de sua mãe apareceu ante ele.

     Sua mãe lhes sorriu.

     —Ele é seu akri, Simi.

     Acheron a olhou com o cenho franzido.

     —O que?

     —Sua mãe era tua protetora, Xiamara. Assim como tu, Simi está sozinha no mundo, sem ninguém que cuide dela. Necessita-te, Apostolos.

     Olhou aqueles olhos grandes que tragavam a carinha pequena e redonda da demônio. Olhou-lhe piscando com a mesma confiança e inocência de Apollodorus. E esteve perdido naquele amoroso olhar que nem lhe julgava nem lhe condenava.

     —Te vincule a ele, Simi. Proteja ao meu filho como tua mãe me protegeu.

     A idéia de atar-se a alguém aterrorizou a Acheron. Não queira que ninguém estivesse escravizado a ele.

     —Não quero um demônio.

     —A jogarias no mundo sozinha?

     —Não.

     —Então é tua.

     Antes que pudesse voltar a protestar, sua mãe desapaareceu.

     Simi se aconchegou contra ele e apoiou a cabeça em seu ombro.

     —Sinto falta da minha mamãe, akri.

     A culpa lhe golpeou ante suas palavras enquanto a abraçava forte. Se não fora por ele, sua mãe ainda estaria viva para cuidar dela.

     —Onde está teu pai, Simi?

     —Morreu antes que Simi nascesse.

     —Então eu serei teu pai.

     —De verdade? —perguntou esperançada.

     Ele assentiu, sorrindo.

     —Juro-te que não te faltará nada.

     Seu inocente sorriso lhe esquentou o coração.

     —Então a Simi tem o melhor akri-papai do mundo —lhe abraçou forte—. Simi quer a seu akri. —logo que as palavras saíram de sua boca desapareceu como sua mãe. Mas ao desaparecer, sua pele justo sobre seu coração, ardeu.

     Vaiando, Acheron abriu sua túnica e encontrou um pequeno dragão de cores adornando sua pele. Tocou-o com cautela e ouviu a risada de Simi em sua cabeça. A tatuagem empreendeu uma subida pela pele para o pescoço. O movimento lhe fez cócegas até que se assentou em sua clavícula.

     —Agora Simi é parte de ti, Apostolos. Enquanto esteja em seu corpo não poderá te falar a menos que a chame. Mas poderás monitorar seus sinais vitais. Se perceber que está em perigo, aparecerá ante ti em forma de demônio para te proteger.

     —Mas é só um bebê.

     —Inclusive sendo um bebê, é letal. Não te equivoques. Os Carontes por natureza são assassinos. Estará faminta e deverá alimentá-la freqüentemente. Se não o fizer, comer-se-á o que tenha à mão, inclusive a ti. Te assegure de que não esteja muito faminta. E o última coisa que deves saber é que sua espécie envelhece lentamente. Apenas um ano de desenvolvimento em um humano equivale a cem anos dos seus.

     Isso não soava bem.

     —O que estás dizendo?

     —Tua Simi tem uns trezentos anos.

     Acheron ofegou ante a informação.

   —Não deveria estar com outro demônio que possa treiná-la?

     —Tu és tudo o que tem no mundo. Cuida dela. Como há dito, agora é seu pai. Tu serás quem a ensine tudo o que deva saber.

     Acheron pôs a mão sobre a tatuagem de seu ombro. Era pai...

     Mas como poderia treinar e proteger a sua filha demônio se nem sequer sabia como usar seus próprios poderes?

 

30 de Junho, 9527 a.C.

Atenas, Grécia

    Acheron estava desesperado para encontrar comida para Simi. Ele tinha despertado essa manhã depois que ela lhe mordera a mão. Felizmente, tinha-a detido antes que fizesse outra coisa que lhe perfurar a pele.

     —Supõe-se que não tens que morder ao seu pai, Simi —lhe disse amável, mas firmemente.

   —Mas Simi estava faminta e akri estava deitado aí, quieto e com aspecto apetitoso.

     E pensou que o pior que podia acontecer era ver-se apetitoso para os excitados humanos…

     Mas agora, enquanto percorriam as ruas do que uma vez foi uma grande cidade, deu-se conta do enorme dano que sua mãe tinha feito no breve tempo que esteve solta. O mundo que ele conhecia se foi. Caminhos e edifícios tinham sido arrasados. As pessoas jaziam mortas por toda a Grécia…

     Apollymia Katastrafia Megola.

     Apollymi a Grande Destruidora. Enquanto uma pequena parte se sentia agradecida por seu amor, a outra se horrorizava pelo que tinha feito. Tantas vidas perdidas. O mundo inteiro disperso em ruínas. Toda a Atlântida estava agora perdida. A humanidade tinha retrocedido à Idade de Pedra. Toda sua tecnologia e ferramentas perdidas.

     Os sobreviventes choravam nas ruas que os deuses os tinham abandonado, quando a verdade era, que teria sido melhor se assim tivesse sido. Todos eles tinham sido desafortunadas vítimas de uma guerra que nem sequer sabiam por que se brigou.

     Agarrou a mão de Simi enquanto caminhavam pelos arredores, procurando um mercado. Em forma humana, ela parecia muito similar a ele. Ambos tinham comprido cabelo negro e enquanto seus olhos eram do mesmo prateado cambiante, os dela eram de um azul claro. Parecia uma pequena menina a passeio com seu papai.

     —Ei, Simi. Encontrei-te algo para que comas.

     Acheron se voltou de repente para a profunda voz masculina que os chamava. Havia um homem alto, de cabelo escuro com barba espessa. Sua pele era escura como a de um Sumério, embora falava um grego impecável. Acheron manteve Simi por trás dele para evitar que corresse para ele.

     —Quem és tu?

     O homem avançou ao redor de uma coluna caída para ajoelhar-se frente a Simi. Pôs uma cesta aos seus pés, descobrindo fatias de pão, pescado e queijo.

     —Sei que estás faminta, doçura. Toma-o.

     Simi soltou um chiado de prazer antes de saltar sobre a comida com ira.

     O homem ficou de pé e ofereceu seu braço a Acheron.

     —Meu nome é Savitar.

     Acheron franziu o cenho ante a tatuagem de uma ave que marcava seu antebraço antes que o sacudisse.

     —Como conheces Simi?

     Um canto de sua boca se levantou.

     —Conheço muitas coisas, Acheron. Vim para te ajudar a que aprendas teus poderes e que compreendas ao teu demônio Simi. Ela é ainda muito jovem para ser deixada a um insensível cuidado e a última coisa que quisera ver é a um dos dois feridos por isso.

     —Nunca a machucaria.

     —Eu sei, mas os Carontes têm necessidades especiais que deves entender. De outra maneira, ela poderia morrer… assim como tu.

     Acheron sentiu arrepiar os pêlos da nuca e não soube porquê. Havia algo a respeito desse ser que chocava com sua divindade e o fazia cauteloso.

     —Estás me ameaçando?

     Savitar riu.

     —Eu nunca ameaço. Simplesmente mato aos que me incomodam. Relaxe, Atlante. Estou aqui como teu amigo.

     Uma vez que Simi tinha devorado até o último miolo, Savitar a tomou em seus braços para carregá-la enquanto caminhavam entre as derrubadas ruas.

     —Ela é impressionante, não?

     —Minha mãe ou Simi?

   Savitar riu.

     —Ambas, mas eu estava falando de tua mãe.

     Acheron olhou ao redor e suspirou ante a destruição que sua mãe tinha causado.    

     —Sim, é —E enquanto caminhavam Acheron se deu conta de algo—. Não posso escutar seus pensamentos.

   —Não, não podes. E nunca o farás. Encontrarás que alguns dos altos seres do universo serão silenciosos para ti. Alguns deuses, demônios e outras criaturas especiais. Todos temos secredos, mas será reconfortante para ti saber que a maioria tampouco será capaz de escutar os teus.

     Isso era reconfortante.

     —Tu podes escutá-los?

     —A resposta que buscas é não, mas a verdade é, que te escuto, Acheron, e sim, sei tudo sobre teu passado.

     Ele amaldiçoou ante o que não queria inteirar-se.

     —O que acontece com os outros? Eles conhecerão meu passado?

     —Alguns o farão —Savitar mudou a Simi de braço, logo fez uma pausa para olhá-lo—. Não me interessa teu passado, Acheron. É teu futuro o que me importa de ti. Quero estar seguro que tens um e que compreendes quão importante é para o balanço de poder.

     —Balanço de poder? Não entendo.

     —Apolo amaldiçoou aos seus Apolitas.

     —E minha mãe assassinou a todos.

     Savitar sacudiu sua cabeça.

     —Muitos morreram com a Atlântida, mas há milhares deles que estão espalhados pelo Mediterrâneo e que vivem em outros países agora, entre eles o próprio filho de Apolo, Strykerius. Todos eles foram malditos para morrer em seu vigésimo sétimo aniversário. Todos eles.

     —Então, como é que têm um problema? Se eles morrerão em alguns anos, estarão extintos.

     Savitar acariciou a cabeça de Simi antes de reatar a caminhada.

     —Não vão morrer, Acheron. Viverão e procriarão muitas vezes.

     —Como?

     Savitar suspirou antes de responder.

     —Uma deusa os guiará e lhes ensinará como caçar as almas humanas para evitar a maldição de Apolo.

     Acheron estava impactado.

     —Não entendo. Por que alguém faria tal coisa?

     —Porque o universo é complicado e há um delicado balanço em todas as coisas que deve ser mantido.

     —Sim, mas se tu sabes que essas pessoas morrerão, não podes deter a deusa que os ensinará?

     —Poderia. Mas isso poderia desfiar a essência mesma do universo.

     A frustração correu através de Acheron. Não entendia. Como alguém falharia em ajudar ao outro se tinha o poder para fazê-lo?

     Savitar tomou uma pedra do chão e a sustentou em sua mão.

     —Me diga, o que aconteceria se eu jogar isto com todo meu poder?

     Acheron franziu o cenho até que viu a imagem em sua cabeça. Era a pedra viajando através do ar… acelerou até que golpeou a um homem no ombro, ferindo-o. Não, não qualquer homem. Um soldado. Seu braço agora imprestável, a ferida feita pela pedra o forçou a começar a implorar…

     Oito pessoas morreram porque o soldado já não pôde protegê-los em batalhas que nem sequer brigariam em anos vindouros. Mas foram essas pessoas que morreram…

     —E isto continua sem cessar —disse Savitar—. Uma pequena decisão: jogo a pedra ou a solto? E milhares de vidas mudam por uma inócua decisão. —Ele deixou que a rocha caísse ao chão.

     Era agora inofensiva outra vez e a história se escreveu como se supunha que devia ser.

     Savitar sorriu a Simi que se ficou adormecida em seus braços.

     —Tu e eu estamos malditos em compreender como a menor das decisões feitas por cada ser pode afetar ao resto do universo. Eu sei que o que deveria acontecer… precisa acontecer. E se eu detiver algo tão simples como jogar uma pedra, isso poderia arrastar fatais conseqüências. Entretanto, diferente de ti, não vejo o futuro até depois que atuo. No momento em que faço algo, então vejo tudo desdobrado desde esse ponto. És afortunado. Tu vês o futuro antes de agir.

     —Mas não vi a morte de minha irmã.

     —Não. Os Destinos Gregos, quando te amaldiçoaram, cegaram-te ao futuro dos mais próximos a ti. Qualquer um que te importe será teu ponto cego.

     —Isso não está certo.

     —Bom, rapaz, te reforce. Isto é ainda pior. Tampouco serás capaz de ver teu próprio futuro ou o futuro de alguém que impacte seriamente o teu.

     Acheron apertou os dentes ante essa injustiça.

     —Tu podes vê-lo?

     —É pelo que estou aqui.

     —Então me diga o que vês.

     Savitar negou com a cabeça.

     —Só porque possas, não significa que devas. Se soubesse o que há em seu futuro, evitarias fazer as mesmas coisas que deves fazer a fim de que tudo se desenvolva apropiadamente. Uma pequena e inócua decisão e seu destino se verá alterado para sempre.

     —Mas tu podes ver teu futuro.

     —Só depois de havê-lo posto em ação e não posso mudá-lo.

     Acheron sacudiu sua cabeça enquanto deliberava quem estava mais maldito. O que estava cego ou o que via, mas não tinha poder de detê-lo.

     Savitar o aplaudiu nas costas.

     —Sei quão confuso deve ser para ti ter todo este poder e conhecimento e não saber como canalizá-lo. Ou desaparecê-lo.

     Acheron assentiu.

     —É difícil.

     Savitar sorriu.

     —É por isso que a primeira coisa que vou ensinar-te é como lutar.

     —Por que lutar?

     Savitar ria enquanto caminhavam.

     —Porque vais necessitá-lo. Uma guerra se aproxima, Acheron, e deves estar preparado.

     —Uma guerra? Que tipo de guerra?

     Savitar se recusou a responder. Em vez disso, sacudiu a Simi para despertá-la.            

     —Pequena, necessito que retornes com seu akri e estejas com ele enquanto luta. Não se preocupe, é só uma luta fingida. Não é necessário que saias a protegê-lo.

     Simi assentiu adormecida antes de obedecer. Ela se encaixou no braço de Acheron.

     —Te mova, Simi —lhe disse Savitar—. Vá ao seu pescoço onde não sejas golpeada.

     Acheron se franziu ante suas ordens.

     —Pode sentir um golpe quando está em minha pele?

     —Sim. E se ela é apunhalada enquanto está ali e isso te fere, ferirá ela também. Proteja ao seu demônio, rapaz.

     A seguinte coisa que Acheron soube, é que estavam em uma praia.

     —Takeshi!— gritou.

     Uma fumaça negra formou redemoinhos na terra.

     Acheron deu um passo para trás quando a fumaça clareou revelando a um homem em armadura como nunca tinha visto antes. Vermelho sangue, estava feita em brilhante metal. Escandalosas lâminas esculpidas se curvavam sobre seus ombros enquanto uma peça do pescoço chegava a cobrir a parte inferior de seu rosto. Tudo o que podia ver-se eram seus olhos e uma vermelha tatuagem ornamental que estava desenhado através de sua testa.

     Seu cabelo negro tinha pontas pintadas de vermelho. Seus olhos exóticamente inclinados como um gato selvagem, eram profundos, vermelhos sangue. Mas no momento em que esses olhos se centraram em Savitar, iluminaram-se com amizade. O metal ao redor de seu pescoço se dobrou até debaixo de seu formoso rosto mostrando um homem não mais velho de um ano ou dois que Acheron.

     —Savitar-san —o saudou com um sorriso torcido—. Passou muito tempo.

     Savitar inclinou sua cabeça para ele.

     —E chamando por um favor.

     Com uma mão descansando no punho de sua espada, Takeshi estalou enquanto observava ao redor da praia.

     —Sav, tens que deixar de fazer isto. Estou ficando sem lugares para pôr os corpos.

     Savitar riu.

     —Nada disso. —Deu um passo para trás para permitir que os dois se avaliassem—. Takeshi, apresento Acheron. Acheron, este é Takeshi-sensei. Escuta-o e ele te ensinará a lutar em formas que não podes imaginar.

     Takeshi estreitou seu olhar sobre Acheron.

     —Me farias treinar a um novo deus?

     Savitar se inclinou e sussurrou a Takeshi algo que não pôde ouvir.

     Takeshi assentiu.

     —Como desejas, irmão. —Aproximando-se de Acheron, sorriu e golpeou o cajado das mãos de Acheron. Deixou escapar um suspiro de descontentamento—. Tenho muito que te ensinar. Venha e aprende a arte da guerra do que a inventou.

     Arrogante, Acheron avançou para ele, depois de tudo era um deus, certamente podia lutar. Ao menos isso pensava até que Takeshi o fixou na terra com um movimento tão rápido que nem sequer se deu conta que o homem tinha entrado em ação até que não esteve de cara na areia.

     —Nunca tires os olhos de teu oponente —disse Takeshi dando um passo para trás para permitir a Acheron levantar-se—. E nunca penses que não tens que trabalhar por uma vitória. Ainda agora, poderias me surpreender.

     Acheron franziu o cenho.

     Takeshi pôs os olhos em branco.

     —Me surpreenda Atlante. Ataque. Isto não é um baile de festa.

     Acheron foi para ele e outra vez, aterrissou de cara na areia.

     —Sabes, isto não me está dando confiança. De fato, acredito que simplesmente me jogarei aqui um momento e tomarei sol.

     Takeshi riu e logo deu tapinhas nas costas dele.

     —Te levante, Acheron. —Olhou sobre seu ombro a Savitar que estava agora sentado em uma rocha observando-os—. Não se zanga facilmente. Isso é bom.

     Acheron riu amargamente.

     —Sim, sou mais de um lento cozido até que o fervor o arruína tudo, homem.

     Takeshi virou para Acheron e lhe estendeu seu bastão.

     —Só recorde, a ira é sempre tua inimiga. Deves manter tuas emoções sob controle. No momento em que perdes o controle delas, perdes a luta sempre.

     Acheron deu voltas à barra ao redor e a levou em um bloqueio defensivo.

     Takeshi lhe estalou.

     —Sempre sejas o atacante. Um defensor nunca ganha.

     —Os defensores conseguem que lhes chutem os traseiros. —disse Savitar—. Acredite em mim. Tenho impressões da greta em cada par de sapatos que possuo.

     Takeshi lhe arqueou uma sobrancelha.

     —Quer lhe ensinar tu?

     —A verdade é que não.

     —Então te cale ou pegue uma espada e venha me ajudar.

     O humor escapou do rosto de Savitar.

     —Isso é um desafio?

    —Seria, se não fora porque sei que é um fato que és muito preguiçoso para levantar uma.

     —Preguiçoso? Mesoula?

     —Eqou —o insultou Takeshi.

     Savitar se transportou da rocha, para parar frente a Takeshi com uma espada que, Acheron, não tinha visto nunca. Ele arremeteu contra a armadura de Takeshi. A seguinte coisa que soube é que ambos estavam em guerra.

     Takeshi se mofou.

     —Ah, brigas como um demônio efeminado.

     —Demônio efeminado? Terás visto alguma vez um demônio efeminado?

     —Matei três esta manhã.

     Savitar soprou para sua garganta. A folha assobiou através do ar, falhando por pouco o pomo de adão do homem.

     Sentindo-se ignorado, mas agradecido de não estar no meio dessa titânica luta, Acheron foi sentar-se na rocha que Savitar tinha deixado vaga.

     Savitar empurrou a Takeshi para trás.

     —Tua mãe foi uma pastora de cabras.

     —É uma honorável profissão.

     —Sim, para uma cabra.

     Takeshi soprou ao redor e chutou Savitar. Savitar reagiu e retornou com um movimento para cima que apenas falhou a estripá-lo.

     Takeshi negou com a cabeça.

     —Estiveste bebendo esta manhã? Como pudeste falhar? Juro que lutei com mulheres anciãs com melhores reflexos.

     —O fato que brigues com mulheres anciãs me diz o oxidado que te tornaste. O que? Teu ego necessitava de um empurrão e foram quão únicas pudeste encontrar para golpear?

     —Savitar, Savitar, Savitar. Ao menos ganhei. Não foste tu que choraste ao conselho que deveria salvar teu traseiro do ataque de um de quatro anos?

     Savitar abriu a boca com fúria fingida.

     —Demônio tarranino… de quatro anos. Não esqueças a parte mais importante. Esses bastardos são incubados até adultos e não era só um. Era um enxame deles.

     —Assim admites que tiveste ajuda?

     —Oh, acabou-se, sensei. Estarás provando a areia…

     Acheron sacudiu sua cabeça ante suas brincadeiras. Enquanto se davam duro um ao outro, havia um espírito de boa natureza que lhe deixava saber que não diziam a sério nenhuma palavra. É como se estivessem treinando com palavras da mesma maneira com que treinavam com suas espadas.

     Honestamente, assombravam-no. Nunca tinha tido um amigo com quem fazer isso. Invejava-os.

     Savitar escapou de uma feia chave de luta livre.

     —Ei, não estamos esquecendo algo?

     —Tua dignidade?

     Savitar pôs seus olhos em branco.

     —Não, estás me confundindo contigo outra vez. Ele apontou onde Acheron estava sentado— Não se supõe que deves treinar a ele?

     Takeshi deixou sair um insultante bufo.

     —Assim admites minha superioridade desviando minha atenção ao neófito…

     —Não admito uma merda. Simplesmente estou apontando ao fato que tu e eu já sabemos como brigar e ele não. Seria uma boa idéia que ele aprendesse.

     —Verdade. —Takeshi pôs a espada atravessada sobre seus ombros onde a sustentou com ambas as mãos e sorriu a Acheron—. Estás preparado para começar de novo?

     —Claro. Meu ego já teve tempo suficiente para recuperar um mínimo de dignidade. Nos asseguremos de esmagá-lo de novo antes que confunda a mim mesmo com um deus.

     Takeshi riu.

     —Eu gosto dele, Savitar. Encaixa conosco.

     —É por isso que te chamei. —Savitar entregou sua espada a Acheron—. Boa sorte, rapaz.

     —Obrigado.

     Acheron passou o resto do dia treinando com Takeshi que devia ser o pior mandão que teria nascido nunca. Ele o treinou até que Acheron esteve seguro que cairia de puro esgotamento. No momento em que o sol se pôs e esteve livre para descansar, seu corpo inteiro sofria.

     Ainda assim, sentia-se mais crédulo de suas habilidades do que tinha estado antes.

     Savitar lhe entregou seu bastão.

     —Vá ao Katoteros e começaremos de novo na manhã.

     Ainda inseguro do porquê Savitar o estava ajudando, desejou ao Seu… Mestre… boa noite e retornou para casa.

     Acheron parou em curto quando viu a Artemisa no salão de trono esperando por ele.  

     —O que é que queres?

     —Não te vi em dias.

     —E que coisa mais bela há sido.

     Ela estreitou seu olhar.

     —Disse-te que tinhas que te alimentar de mim.

     Acheron a olhou fríamente.

     —Acredito que prefiro ser um monstro sádico… como tu.

     Ela lhe torceu o lábio.

     —Assim que isso é tudo então. Simplesmente vais ser cruel comigo.

     —Cruel contigo? Cruel? —repetiu furiosamente—. Foda-te Artemisa! —Suas palavras foram marcadas por um vento tão forte, que a atirou ao chão de traseiro. Ele se aproximou e viu o medo em seus olhos. Houve um tempo em que o medo poderia ter acendido a culpa e a compaixão dentro dele. Hoje só o incomodava—. Estava destroçado no chão por teu irmão enquanto tu observavas. Então, quando finalmente estava feliz em algum lugar, os deuses o proibam, me enganaste para beber seu sangue para me atar a ti. E tu pensas que sou cruel? Cadela, por favor, tu não viste ainda a crueldade.

     Ela cobriu seus ouvidos com suas mãos e se abateu no chão.

     Que efetivamente conseguiu converter sua ira e aplacá-la já que tinha um pouco de lástima por ela e odiou a si mesmo por isso. Ela não merecia sua lástima. Só seu desprezo.

     —Te amo, Acheron.

     Ele se mofou.

     —Se isso que me mostras é amor, preferiria que me odiaras e que terminaras comigo.

     Ela estalou em lágrimas.

     Acheron inclinou sua cabeça para trás e amaldiçoou o fato que aquelas lágrimas o afetassem. Por que se preocupava? Que caralho estava errado com ele que em realidade o que queria era confortá-la?

     Sou inclusive mais imperfeito do que ela é.

     Ele estrelou o cajado contra o piso, fazendo-a chorar ainda mais forte.

     —O que é que queres de mim, Artie?

     —Quero meu amigo de volta.

     —Não —disse ele amargamente—. O que queres é seu mascote de volta. Nunca fui seu amigo. Os amigos não se envergonham uns dos outros. Não vivem com temor de que outras pessoas os vejam juntos.

     Ela o olhou com seus olhos verdes nadando em lágrimas.

   —Sinto muito. Aí está, disse. Desejaria voltar e reparar tudo o que aconteceu. Mas não posso. Desejaria poder salvar ao nosso sobrinho. Desejaria ter sido mais decente contigo. Desejaria… — ela fez uma pausa, mas foi muito tarde. Ele o escutou alto e claro.

     —Que não tivesse sido um puto. Acredite-me, o que sentes a respeito disso é uma minúcia em comparação com meus sentimentos. Tu nunca foste degradada e usada. Sou eu que tenho que viver com o passado. Não tu. Deverias estar agradecida que esses pesadelos não perturbem teu sono.

     —Eu tenho meus próprios pesadelos, obrigado.

     Talvez sim. Depois de tudo, ela foi a desgraçada menina que teve que suportar a Apolo.

     Ela o olhou.

     —A comida já não te pode sustentar mais, Acheron. Nem sequer tens que comer comida humana. Mas sim tens que te alimentar de mim ou reverterás a Profecia do Destruidor. Não terás nenhuma compaixão pelo mundo e o destruirás.

     Um músculo esticou em sua mandíbula. Queria chamá-la de mentirosa, mas ele conhecia a verdade. Já sentia as violentas urgências em seu interior. E a odiou por seu “presente”.

     Amaldiçoando, estendeu-lhe sua mão.

     Ela a tomou e ele puxou-a para pôr ela de pé e atrai-la aos seus braços. Então, justo quando começava a devastar sua garganta, retrocedeu e a mordeu com gentileza.

     Ao final do dia, ele não era um monstro. Não poderia embrutecer com ela ainda quando o merecesse.

     Ele lhe tinha feito uma promessa, e embora tenha sido um ladrão e um puto, não era um mentiroso. Não se serviria dela, como ela se serviu dele. Sempre seria melhor que isso.

     Artemisa ofegou quando sentiu os poderes de Acheron surgir ao seu redor. Sua pele frisada de azul enquanto bebia dela. O calor de seu fôlego em sua pele acendeu seu desejo, mas quando tratou de lhe tirar a roupa, ele a deteve.

     Não estou de humor para brincar com a comida, Artemisa.

     Ela fechou seus olhos enquanto escutava sua voz em sua cabeça.

     Quando tomou o que devia para encher-se, deu um passo para trás afastando-se dela. Seus olhos eram de um brilhante vermelho enquanto limpava o sangue dos lábios.

     —Necessito de um tempo longe de ti.

     Essas palavras se deslizaram através dela.

     —O que estás dizendo?

     —Me envie uma kori com teu sangue.

     —Não.

     Desta vez, ele se voltou para ela com todos seus poderes acesos.

     Artemisa se encolheu ante a visão de sua verdadeira forma de deus. Era colossal e aterrador.

     —Farás como eu o ordeno —grunhiu dentre suas presas—. Trouxeste-me de volta contra minha vontade e não me dirás como viver esta nova vida. Entendeste?

     Ela assentiu lentamente enquanto seu coração se rompia outra vez ante o que tinha perdido.

     —Enquanto estás me dizendo o que devo fazer, deverias saber que quando te trouxe de volta, Styxx voltou contigo. E ele está cheio, inclusive com mais fúria e ódio que tu.

     Acheron amaldiçoou ante a menção de seu gêmeo.

     —Onde está ele?

     —Está na Ilha Desaparecida sob o cuidado de um deus que me deve um favor. Não pode machucar a ninguém onde está e é um bom lugar com todos seus desejos cumpridos.

     —Então deixe-o aí. Não tenho desejos de voltar a ver seu rosto.

     —Mas bem difícil, não?

     Ele torceu seus lábios ante o aviso.

     —Não me pressiones, Artie. Estou a um passado da beira e não me custaria muito atravessá-lo. Acredite-me, não me queres aí. Agora saia fora da minha vista. Não quero nunca mais voltar a ver-te aqui em meus domínios.

     Suas lágrimas começaram a cair de novo, mas desta vez não lhe afetaram. Recusou-se a permitir isso. Ela o tinha mudado do homem que tinha sido.

     O puto tinha morrido e o deus da destruição tinha nascido. Maldito. Odiado. Poderoso. Letal.

     Seu ódio pelo mundo estava esculpido em seu coração. Seu passado era um peso que carregava em suas costas e seu futuro era incerto.

     Tinha inimigos em abundância que o queriam morto, uma mãe zangada que queria escapar para destruir o mundo, um bebê demônio que tinha que alimentar a cada poucas horas, dois lunáticos que o treinavam para uma guerra que nem sequer podia explicar e uma deusa excitada que o queria encadeado a coluna de sua cama.

     Sip… era “bom” estar de volta no reino mortal. Não podia esperar para ver o que o amanhã traria. Era muito mau que não tivesse uma advertência de seu lugar nele.

     Condenados Destinos… suas irmãs que o traíram e condenaram a esta existência.

     Um dia, faria pagar em retribuição a essas cadelas.

        

10 de Abril, 9526 a.C.

Monte Olimpo

    Acheron não sabia por que tinha concordado encontrar-se com Artemisa. Só pensamento de vê-la nesse momento era suficiente para pô-lo fisicamente doente… se ele pudesse adoecer. Durante quase um ano tinha estado limpando o caos de Apolo. Havia uma infinidade de Apolitas convertendo-se em Daimons chupa-almas diariamente.

     Não é que os culpasse realmente. Tinha sido um grupo pequeno de homens os quais a rainha Atlante tinha enviado para assassinar a sua irmã e seu sobrinho. Ciumenta pelo fato que Apolo já não retornasse a sua cama, a rainha Atlante verteu todo seu veneno sobre Ryssa. No meio da noite, os homens da rainha tinham entrado no dormitório de Ryssa, assassinando-a enquanto estava alimentando a Apollodorus.

     Depois que Apolo terminara de matar Acheron, o deus se voltou sobre a mesma raça que tinha criado. Como os assassinos tinham feito para parecer como se um animal tivesse esmigalhado Ryssa e Apollodorus, Apolo os amaldiçoou a alimentarem-se uns dos outros. Só o sangue Apolita podia sustentá-los. O que é que havia entre Apolo, Artemisa e o sangue?

     Como se não fora suficiente com a maldição, Apolo os tinha banido do sol, assim não poderia vê-los nunca mais nem recordar sua traição. E para não ficar atrás, tinha condenado à raça inteira a morrer lenta e dolorosamente em seu aniversário de vinte e sete anos, a mesma idade que Ryssa tinha tido.

     Dada a severidade com que os castigou, Acheron poderia ter pensado que o deus amou a sua irmã Ryssa. Ele sabia melhor. Apolo não era capaz de amar mais do que Artemisa o fazia. Não era mais que uma demonstração de poder. Uma advertência a quem pensasse voltar-se contra ele, dizia que tinha destruído a Atlântida para vingar-se dos Apolitas.

     Estúpido bastardo. E estúpidas as pessoas por acreditarem em suas mentiras.

     Acheron guardou silêncio, não para proteger ao deus, mas sim porque a patética arrogância de Apolo o divertia.

     Por sua própria estupidez o deus ia ser desfeito. Inclusive agora a mãe de Acheron estava sentada em sua prisão planejando a morte do deus… junto com a de Artemisa. Logo que havia Apolo condenado ao seu povo, Apollymi tinha ido atrás de Strykerius, o condenado filho de Apolo, e lhe tinha mostrado como evitar a morte tomando as almas humanas dentro dos corpos Apolitas e assim prolongar a vida.

     Com razão Savitar tinha recusado dizer o nome da deusa contra a qual Acheron deveria lutar.

     Sua própria mãe. Ela era a que dirigia o exército Daimon que se estabeleceu para sua própria vingança. Devia havê-lo sabido.

     Mas então sua revanche tinha sido mais direta. Ele caçou a todos os que tinha assassinado a sua irmã e sobrinho, aqueles que tinham sobrevivido ao ataque de sua mãe, e os tinha feito desejar nunca ter nascido com terminações nervosas.

     Agora estava em guerra com sua mãe.

     Acheron suspirou pesadamente.

     —Um dia, vou matar essas condenadas Destinos.

     Mas não seria hoje. Hoje ia se encontrar com Artemisa para ver por que tinha estado chiando e ameaçando matá-lo todos estes passados meses. Entre ela e sua mãe o afligiam, esta era a primeira vez desde que tinha morrido que sua cabeça estava livre de sua incessante perseguição.

     Sentiu a ondulação de poder descer por sua coluna o que anunciava sua chegada. Se tensou ante a espera de escutar sua mal-humorada voz. Quando ela não começou a gritar com ele, virou sua cabeça para encontrá-la vacilante.

     —Por que estás nervosa, Artemisa?

     —Estás muito diferente agora.

     Ele riu ante seu agudo sentido de percepção. Ele era diferente agora. Não mais um submisso escravo, e sim um zangado deus que só queria que o deixassem em paz.

     —Eu não gosto de seu cabelo negro.

     Ele lhe lançou um cômico olhar.

     —E eu não gosto de tua cabeça sobre teus ombros. Suponho que não podemos ter o que queremos, não? —Estreitou seu olhar sobre ela—. Não tenho tempo para esta merda. Se o que queres é me olhar bobamente, então pode sadmirar minhas costas enquanto me afasto de ti.

     Ele deu a volta.

     —Espera!

     Contra seu melhor juízo, vacilou.

     —Para que?

     Ela se aproximou dele como se estivesse aterrorizada.

     —Por favor, não esteja furioso comigo, Acheron.

     Ele riu amargamente ante suas palavras.

     —Oh, fúria, nem sequer começa a descrever como estou contigo. Como te atreves a me trazer de volta?

     Ela tomou ar enquanto suas feições se esticavam.

     —Não tive opção.

     —Todos temos opções.

     —Não, Acheron. Nós não.

     Como se ele acreditasse. Ela sempre tinha sido egoísta e vã e não duvidava que essa fora a razão pela qual tinha sido trazido de volta em vez de ter sido deixado morto.

     —É por isso que me convocaste? Queres te desculpar?

     Ela sacudiu sua cabeça.

     —Não lamento o que fiz. Faria-o de novo uma e outra vez em um balanço de coração.

     —Pulsado —grunhiu ele, corrigindo-a.

     Ela dispensou a palavra com a mão.

     —Quero que haja paz entre nós.

     Paz? Estava louca? Era afortunada de que não a matasse nesse momento. Se não fora pelo temor do que poderia acontecer, já o teria feito.

     —Nunca haverá paz entre nós. Jamais. Fez pedacinhos qualquer esperança disso quando observaste a teu irmão me assassinar e te recusaste a falar em meu nome.

     —Tive medo.

     —E fui massacrado e estripado como um animal em sacrifício. Desculpe-me se não sentir sua dor. Estou muito ocupado com a minha. —Virou para deixá-la quando ela o deteve de novo.

     Foi então que escutou o choramingar de um bebê. Franzindo o cenho, viu com horror como tirava um infante dentre as pregas do peplo.

     —Tenho um bebê para ti, Acheron.

     Puxou seu braço longe dela enquanto a fúria queimava cada parte dele.

     —Maldita cadela! De verdade pensou que poderias alguma vez substituir ao meu sobrinho a quem deixou morrer? Odeio-te. Sempre te odiarei. Por uma vez em tua vida, faça o correto e devolva-o a sua mãe.

     Então ela o esbofeteou com força suficiente para lhe partir os lábios.

     —Vá e te apodreça, bastardo sem valor.

     Rindo, limpou o sangue com o dorso da mão enquanto lhe lançava um olhar venenoso.

     —Pode que seja um bastardo sem valor, mas melhor que ser uma puta frígida que sacrificou ao único homem que alguma vez a amou porque era muito egoísta para salvá-lo.

     O olhar em seu rosto o chamuscava.

     —Eu não sou a puta aqui, Acheron. És tu. Comprado e vendido a qualquer um que pudesse pagar por seu preço. Como te atreves a pensar por um minuto que alguma vez fosse digno de uma deusa.

   A dor dessas palavras abrasou permanentemente um lugar em seu coração e alma.        

     —Tens razão, minha Senhora. Não sou digno de ti ou de alguém mais. Só sou um pedaço de merda jogado nu à rua. Perdoe-me por te haver sujado.

     Então desapareceu.

     Sua relação estava acabada. Não havia poder no universo que o fizesse voltar a lhe falar.

     Necessitas seu sangue.

     E o que? Deixar que o mundo morresse para que lhe importava. Melhor que todo mundo perecesse que passar cinco minutos escravizado a essa cadela. Já estava cansado de ser o bode expiatório. Por uma vez ia pensar nele e que o resto se fodesse.

     —Estou fora, Artemisa. Completamente fora.

 

Grécia, 7382 a.C.

   Acheron sentiu uma presença por trás dele. Virou redondamente, com o bastão preparado para bater, esperando que fora outro Daimon atacando-o.

     Não o era.

     Em troca, encontrou Simi pendurando de barriga para baixo de uma árvore, suas longas asas de morcego cor roxo-violeta pregadas contra seu infantil corpo. Vestia uma folgada túnica grega negra que ondeava brandamente com a brisa da noite. Seus olhos vermelhos sangre brilhavam de forma misteriosa na escuridão, enquanto sua longa trança negra balançava desde sua cabeça, até o chão.

     Acheron relaxou, e apoiou uma das bordas de seu bastão sobre a úmida erva enquanto a observava.

     —Onde estiveste, Simi? —perguntou com dureza. Tinha estado chamando o demônio Caronte durante a última meia hora.

     —Oh, só dando uma volta, akri, —disse ela, sorrindo enquanto se balançava para trás e adiante no ramo. —Akri sentiu saudades?

     Acheron suspirou. Amava a Simi mais que a sua vida, mas desejou ter tido um demônio amadurecido como acompanhante. Não um que ainda aos cinco mil anos de idade, funcionava ao nível de uma menina de cinco anos.

     Passariam séculos antes que Simi amadurecesse completamente.

     —Entregou minha mensagem? —perguntou.

     —Sim, akri, —disse ela, usando o termo atlante para meu senhor e amo. —Entreguei-o tal como tu disseste, akri.

     A pele atrás do pescoço de Acheron arrepiou. Havia algo em seu tom que o inquietava.

     —O que fizeste, Simi?

     —Simi não fez nada, akri. Mas...

     Ele esperou enquanto ela olhava nervosamente ao redor.

     —Mas? —insistiu.

     —Simi teve fome em seu caminho de volta.

     Ele se congelou de terror.

     —A quem comeste desta vez?

     —Não era um quem, akri. Era algo que tinha chifrinhos em sua cabeça como eu. De fato, havia um montão. Todos tinham chifrinhos e faziam um estranho som… mu-mu.

     Franziu o cenho com sua descrição.

     —Queres dizer vacas? Comeste gado?

     Ela sorriu de arelha a orelha.

     —Isso, akri. Comi gado.

     Então por que parecia tão preocupada?

     —Isso não é tão ruim.

     —Não, de fato foi bastante bom, akri. Por que não falou com a Simi sobre as vacas? São muito saborosas quando estão assadas. A Simi gostou muito. Precisamos conseguir algumas mu-mus. Acredito que caberiam em casa.

     Ignorou seu último comentário.

     —Então por que estás preocupada?

     —Porque esse homem realmente alto com um só olho saiu de uma caverna e estava gritando com Simi. Ele disse que Simi era malvada por comer as vacas e que teria que pagar por elas. O que significa isso, akri? Pagar? A Simi não sabe nada sobre pagar.

     Acheron desejava poder dizer o mesmo.

     —Esse homem realmente grande, era um ciclope?

     —O que é um ciclope?

     —Um filho de Poseidón.

     —Oh verás, isso foi o que disse. Só que ele não tinha chifrinhos. Em troca, tinha uma enorme e calva cabeça.

     Acheron não queria discutir sobre a grande cabeça calva do ciclope com seu demônio. O que precisava saber era o que fazer para corrigir o voraz apetite dela.

     —Então, o que foi que te disse o ciclope?

     —Que estava furioso com Simi por comer o gado. Disse que as vacas cornudas pertenciam a Poseidón. Quem é Poseidón, akri?

     —Um deus grego.

     —Oh olhe então, Simi não está em problemas. Só mato ao deus grego e tudo estará bem.

     Teve que esconder seu sorriso ante ela.

     —Não podes matar a um deus grego, Simi. Não está permitido.

     —Aqui vai de novo, akri, dizendo que não a Simi. Não comas isso, Simi. Não mates isso, Simi. Fique aqui, Simi. Vá ao Katoteros, Simi, e espere que te chame. —Ela cruzou os braços sobre seu peito e lhe lançou um severo olhar com o sobrecenho franzido—. Eu não gosto que me digam não, akri.

     Acheron fez uma careta ante a dor que estava se iniciando por trás de seu crânio. Desejou que lhe tivesse dado um papagaio como mascote em seus vinte e um aniversários. O demônio Caronte ia ser sua morte... outra vez.

     —E por que estás chamando a Simi, akri?

     —Queria sua ajuda com os Daimons.

     Ela relaxou e voltou a balançar-se em seu ramo.

     —Tu não pareces necessitar de nenhuma ajuda, akri. Simi pensa que te ocupou bastante bem deles por sua conta. Eu gostei particularmente da maneira em que esse Daimon girou no ar antes que o matasse. Muito lindo. Não sabia que eram tão coloridos quando explodiam.

     Ela deslizou do ramo e foi parar ao seu lado.

     —Aonde vamos agora, akri? Levará Simi a algum lugar frio outra vez? Eu gostei desse último lugar ao que fomos. A montanha era muito bonita.

     Acheron?

     Ele fez uma pausa enquanto sentia Artemisa convocando-o. Deixou sair outro longo e sofrido suspiro.

     Durante dois mil anos, tinha estado ignorando-a.

     Entretanto insistia em lhe chamar.

     Houve um tempo onde o buscava em “carne e osso”, mas lhe tinha bloqueado essa habilidade.

     Sua telepatia mental com ele era o único contato que não podia romper completamente.

     —Venha, Simi, —disse, começando sua viagem que o levaria de volta a Therakos. Os Daimons tinham instalado ali uma colônia onde estavam caçando aos pobres gregos que viviam em um pequeno povoado.

     Acheron. Necessito de sua ajuda. Meus novos Dark-Hunters necessitam de um treinador.

     Congelou-se ante as palavras de Artemisa.

     Novos Caçadores Escuros? Que infernos era isso?

     —O que tens feito, Artemisa? —sua voz sussurrou ao vento, viajando ao Olimpo onde ela esperava em seu templo.

     Assim, falas comigo. Ele escutou alívio em seu tom. Tinha começado a me perguntar se ouviria o som de tua voz de novo.

     Acheron franziu o lábio. Não tinha tempo para isto.

     Acheron?

     Ignorou-a.

     Ela não captou a indireta.

     A ameaça Daimon está se espalhando mais rápido do que podes contê-la. Necessitas de ajuda, e lhe estou oferecendo isso.

     Ele se mofou ante a idéia de sua ajuda. As deusas gregas nunca tinham feito nada por alguém que não fossem elas mesmas desde o começo do tempo.

     —Me deixe tranqüilo, Artemisa. Tu e eu, terminamos. Tenho trabalho a fazer e não tenho tempo para que me incomodes.

     Certo então. Enviarei-os para enfrentarem-se aos Daimons sem estarem preparados. Se morrerem, bom a quem importa um humano? Simplesmente posso criar mais como eles para lutar.

     Era um truque.

     E ainda assim em suas vísceras, Acheron sabia que não o era. Ela provavelmente teria feito mais Dark-Hunters, e se realmente o tinha feito, então definitivamente o faria outra vez.

     Especialmente se isso o fizesse sentir culpado.

     Maldita. Teria que ir ao seu templo de novo. Pessoalmente, teria preferido ser estripado.

     Suas vísceras se apertaram ante a memória e não agradeceram sua brincadeira.

     Olhou ao seu demônio.

     —Simi, preciso ver Artemisa agora. Tu voltas para Katoteros e não te metas em problemas até que eu te chame.

     A demônio fez uma careta.

     —Simi não gosta de Artemisa, akri. Desejaria que tivesse deixado Simi matar a essa deusa. Simi queria puxar seu longo cabelo vermelho.

     Ele conhecia o sentimento.

     —Eu sei, Simi, é por isso que quero que fiques no Katoteros. —Ele pôs-se a andar, então deu volta para enfrentá-la. —E por mim, por favor, não coma nada até que eu retorne. Especialmente não a um humano.

     —Mas…

     —Não, Simi. Nada de comida.

     —Não, Simi. Nada de comida, —burlou-se—. A Simi não gosta disto, akri. Katoteros é aborrecido. Não há nada divertido ali. Só velha gente morta que quer voltar aqui. Blah!

     —Simi… —disse, sua voz densa com ameaça.

     —Escuto e obedeço, akri. Simi nunca disse que o faria em silêncio.

     Ele meneou a cabeça ante a incorrigível demônio, e impulsionou a si mesmo da terra até o templo de Artemisa no Olimpo.

     Acheron parou em cima da dourada ponte que atravessava um sinuoso rio. O som da água fazia eco sobre as escarpadas bordas da montanha que se elevava ao seu redor.

     Nos últimos dois mil anos, nada tinha mudado.

     Toda a cúpula da montanha estava salpicada de cintilantes pontes e atalhos, cobertos por uma névoa de arco-íris, que levava aos diversos templos dos deuses.

     Os vestíbulos do Monte Olimpo eram opulentos e enormes. Perfeitos lares para os egos dos deuses que viviam dentro deles.

     O de Artemisa era feito de ouro, com uma cúspide arqueada e brancas colunas de mármore. A vista do céu e do mundo debaixo desde seu salão do trono tirava a respiração.

     Ou isso tinha pensado em sua juventude.

     Mas isso tinha sido antes que o tempo e a experiência tivessem azedado sua apreciação. Para ele agora não havia nada de espetacular ou belo aqui. Somente via a egoísta vaidade e frieza dos Olímpicos.

     Estes deuses novos eram muito diferentes dos deuses com os quais Acheron se criou desde seus dias como humano. Todos menos um dos deuses Atlantes tinham estado cheios de compaixão. Amor. Amabilidade. Clemência.

     Seu iminente nascimento tinha sido a única ocasião em que os Atlantes deixaram que seu temor os liderasse, esse equívoco havia custado a todos eles suas vidas imortais, e permitiram aos deuses Olímpicos substitui-los.

     Tinha sido um triste dia para o mundo humano em mais de uma forma.

     Acheron forçou a si mesmo a cruzar a Ponte que levava ao templo de Artemisa. Dois mil anos atrás, tinha deixado este lugar, e esperado nunca voltar.

     Devia ter sabido que cedo ou tarde ela idearia um plano para trazê-lo de volta.

     Com suas vísceras contraídas pela fúria, Acheron usou seu telecinese para abrir as enormes portas douradas. Foi instantaneamente assaltado com o som dos ensurdecedores gritos das acompanhantes de Artemisa. Não estavam acostumadas absolutamente a que um homem entrasse nos domínios privados de sua deusa.

     Artemisa vaiou ante o estridente som e a seguir desintegrou a cada uma das mulheres que a rodeavam.

     —Acabas de matar as oito? —perguntou Acheron.

     Artemisa esfregou seus ouvidos.

     —Deveria, mas não, simplesmente as joguei no rio de fora.

     Surpreso, contemplou-a. Pouco comum para a deusa que ele recordava. Possivelmente tinha adquirido um grau de compaixão e misericórdia depois dos últimos dois mil anos.

   Conhecendo-a, isso era altamente improvável.

     Agora que estavam sozinhos, ela desceu de seu acolchoado trono de marfim e se aproximou dele. Vestia uma suave túnica branca que abraçava as curvas de seu voluptuoso corpo e seus escuros cachos castanhos resplandeciam na escuridão.

     Seus verdes olhos brilhavam calidamente lhe dando a bem-vinda.

     O olhar o atravessou como uma lança. Quente. Penetrante. Doloroso. Sabia que vê-la de novo seria duro para ele, essa era uma das razões pelas quais sempre ignorava suas chamadas.

     Mas saber algo e experimentá-lo, eram duas coisas inteiramente diferentes.

     Não estava preparado para as emoções que ameaçavam ultrapassá-lo agora que a via de novo. O ódio. A traição. O pior de todas era a necessidade.

   A fome.

     O desejo.

     Havia ainda uma parte dele que a amava. Uma parte dele que estava disposta a lhe perdoar tudo.

     Inclusive sua morte…

     —Pareces bem, Acheron. Cada parte tão charmosa como o estava a última vez que te vi. —Ela se aproximou para tocá-lo.

     Ele deu um passo atrás, fora de seu alcance.

     —Não vim aqui para conversar, Artemisa, eu...

     —Estavas acostumado a me chamar de Artie.

     —Estava acostumado a fazer um montão de coisas que já não posso fazer. —Dirigiu-lhe um duro olhar para lhe recordar tudo o que lhe tinha arrebatado.

     —Ainda estás furioso comigo.

     —Isso achas?

     Os olhos dela cuspiram fogo esmeralda, lhe recordando o demônio que residia em seu divino corpo.

     —Poderia te haver forçado a vir a mim, sabes. Fui muito tolerante com teu desafio. Mais do que deveria.

     Ele olhou para o outro lado, sabendo que tinha razão. Ela, somente, possuía a fonte de alimento que ele necessitava para funcionar. Quando estava muito tempo sem seu sangue, convertia-se em um assassino incontrolável. Um perigo para qualquer um que estivesse perto dele.

     Só Artemisa possuía a chave que o mantinha tal como era. São. Inteiro.

     Compassivo.

     —Por que não me forçaste a vir ao seu lado? —perguntou ele.

     —Porque te conheço. Se tivesse tentado, tu nos terias feito pagar aos dois por isso.

     De novo, ela tinha razão. Seus dias de subjugação há muito que tinham acabado. Ele tinha tido muito mais do que lhe correspondia durante sua infância e juventude. Tendo saboreado a liberdade e o poder, tinha decidido que gostava muito disso para voltar a ser o que tinha sido anteriormente.

     —Me conte destes novos Dark-Hunters, —disse—. Por que os criou?

     —Disse-o, necessitas de ajuda.

     Franziu seu lábio em irritação.

     —Não necessito de tal coisa.

     —Os outros deuses gregos e eu estamos em desacordo.

     —Artemisa… —grunhiu seu nome, sabendo que ela estava mentindo sobre isto. Ele era mais que capaz de controlar e matar os Daimons que caçavam aos humanos—. Juro...

     Apertou seus dentes enquanto pensava nos prematuros dias de sua nova vida. Não tinha tido a ninguém para lhe mostrar o caminho. Ninguém para lhe explicar o que precisava fazer.

     Como viver.

     Os novos estariam perdidos sem um professor. Confusos. E o pior de tudo, seriam vulneráveis até que tivessem aprendido a usar seus poderes e ali não havia um Savitar que pudesse lhes ensinar.

     Maldita fosse.

     —Onde estão?

     —Esperando em Falossos. Escondem-se em uma caverna que os mantém afastados da luz do sol. Mas não estão seguros do que devem fazer ou como encontrar aos Daimons. São homens com necessidade de liderança.

     Acheron não queria que fazer isto. Desejava liderar a alguém tanto como quereria seguir as ordens de outro. Não desejava tratar com outras pessoas absolutamente.

     Nunca tinha desejado algo em sua vida exceto que o deixassem tranqüilo.

     O pensamento de interagir com outros…

     Isso fez com que seu sangue corresse gelado.

     Meio tentado seguir seu próprio caminho, Acheron sabia que não poderia. Se não treinasse aos homens a respeito de como lutar e matar aos Daimons, terminariam mortos. E estar morto sem uma alma era uma existência muito ruim. Ele, de todos os homens, sabia disso.

     —Está bem —disse—. Os treinarei.

     Ela sorriu.

     Acheron cintilou desde seu templo de volta a Simi, e lhe ordenou ficar quieta um pouquinho mais. A demônio só complicaria um já por si só complicado assunto.

     Uma vez que esteve seguro de que ela ficaria, se teletransportou a Falossos.

     Encontrou aos três homens encolhidos na escuridão tal como Artemisa havia dito. Estavam conversando tranqüilamente entre eles, agrupados ao redor de um pequeno fogo para esquentar-se e seus olhos ainda lacrimejavam pelo brilho das chamas.

     Seus olhos já não eram humanos, e não poderiam suportar o brilho que viesse de qualquer fonte de luz.

     Tinha muito que lhes ensinar.

     Acheron se adiantou, saindo das sombras.

     —Quem és tu? —perguntou o mais alto tão logo lhe viu. O homem era sem dúvidas um Dórico com comprido cabelo negro. Era alto, poderosamente constituído, e ainda vestido com sua armadura de batalha a qual necessitava urgentemente de cuidado e reparação.

     Os homens com ele eram Gregos loiros. Suas armaduras não estavam melhor que a do primeiro homem. O mais jovem deles tinha um buraco no centro do peitoral de sua armadura onde tinham atravessado seu coração com uma fêmea de javali.

     Estes homens nunca poderiam sair e misturar-se com as pessoas vivas vestindo assim. Cada um deles precisava de cuidados. Descanso.

     Instrução.

   Acheron baixou o capuz de sua negra túnica e observou a cada homem a sua vez.

     Quando notaram a tempestuosa cor prata de seus olhos, os homens empalideceram.

     —És um deus? —Perguntou o mais alto—. Foi dito que um deus nos mataria se ficávamos em sua presença.

     —Sou Acheron Parthenopaeus, —disse ele brandamente. —Artemisa me enviou para lhes treinar.

     —Sou Callabrax deo Likonos, —disse o mais alto. Assinalou ao homem a sua direita—. Kyros de Seklos. —depois ao mais jovem de seu grupo—, e Ias da Groesia.

     Ias permanecia por trás, seus escuros olhos vazios. Acheron podia ouvir seus pensamentos tão claramente como se estivessem em sua própria mente. A dor do homem lhe alcançou, fazendo com que seu próprio estômago se contraísse em simpatia.

     — Quanto tempo passou desde que foram criados? —perguntou-lhes Acheron.

     —Umas poucas semanas para mim, —disse Kyros.

     Callabrax assentiu.

     —Eu fui criado ao redor do mesmo tempo.

     Acheron olhou a Ias.

     —Faz dois dias, —disse ele, sua voz oca.

     —Ainda está doente pela conversão, —contribuiu Kyros—. Faz quase uma semana que eu pude... me ajustar.

     Acheron afogou o impulso de rir amargamente. Era uma excelente palavra para descrevê-lo.

     —Matastes já algum Daimon? —perguntou-lhes.

     —Tentamos, —disse Callabrax—, mas é muito distinto de matar soldados. São mais fortes. Mais rápidos. Não morrem facilmente. Já perdemos a dois homens com eles.

     Acheron se sobressaltou ante o pensamento de dois homens não preparados indo contra os Daimons e a terrível existência que lhes esperava quando tivessem morrido sem almas.

     Seguido da lembrança de sua primeira luta...

     Manteve a lembrança longe de sua mente. Embora Takeshi tivesse sido um grande professor, nunca tinha brigado com um Daimon. E a única coisa que Acheron tinha aprendido é que ambos ele e Savitar tinham falhado em lhe dizer tudo. Esses primeiros anos tinham sido duros e brutais.

     —Os três comeram esta noite?

     Eles assentiram.

     —Então me sigam lá fora e lhes ensinarei o que precisam saber para matar aos Daimons.

     Acheron trabalhou com eles até que quase chegou a alvorada. Compartilhou com eles tudo o que pôde durante uma noite. Ensinou-lhes novas táticas. Onde e como os Daimons eram mais vulneráveis.

     Ao finalizar a noite, deixou-os em sua caverna.

     —Encontrar-lhes-ei um lugar melhor para se esconderem durante a luz do dia, —prometeu-lhes.

     —Sou um Dórico, —disse Callabrax com orgulho—. Não requeiro nada mais do que tenho.

     —Mas nós não, —disse Kyros—. Uma cama seria muito bem-vinda para Ias e para mim. Um banho mais ainda.

     Acheron inclinou sua cabeça, a seguir se dirigiu a Ias para que lhe acompanhasse lá fora.

     Ele ficou atrás e Ias saiu primeiro, então o levou longe do ouvido dos outros.

     —Queres ver tua esposa de novo, —disse Acheron brandamente.

     Ele elevou a vista, pasmado.

     —Como sabes disso?

     Acheron não respondeu. Inclusive como humano, tinha odiado as perguntas pessoais já que a maioria freqüentemente lhe levava a conversações que não queria ter. Irritando-se por lembranças que queria manter enterradas.

     Fechando seus olhos, Acheron deixou que sua mente vagasse, através do cosmos até encontrar à mulher que atormentava a mente de Ias.

     Liora.

     Era uma mulher formosa, com cabelo tão negro como a asa de um corvo. Olhos tão claros e azuis como o mar aberto.

     Não era surpreendente que Ias sentisse falta dela.

     Nesse momento, a mulher estava de joelhos, chorando. Por favor, —suplicava aos deuses—. Por favor, me devolvam ao meu amor. Por favor, deixem que meus filhos tenham ao seu pai em casa.

     Acheron sentiu simpatia por ela, ante a vista e o som de seus temores. Ninguém lhe havia dito ainda o que tinha acontecido. Ela estava rezando pelo bem-estar de um homem que já não estaria com ela.

     Isso o perturbou.

     —Entendo sua tristeza, —disse a Ias—. Mas não pode lhes deixar saber que agora vives nesta forma. Os humanos lhe temerão se voltar para casa. Tratarão de te matar.

     Os olhos de Ias se inundaram de lágrimas e quando falou, suas presas cortaram seus lábios.

     —Liora não tem a ninguém mais que cuide dela. Era uma órfã e meu irmão foi assassinado no dia anterior a mim. Não há ninguém que proveja aos meus filhos.

     —Não podes retornar.

     —Por que não? —perguntou Ias com fúria—. Artemisa disse que poderia ter minha vingança sobre o homem que me matou e logo viveria para servi-la. Não disse nada a respeito de que não pudesse ir ao meu lar.

     Acheron apertou o punho em seu bastão.

     —Ias, pensa por um momento. Já não és humano. Como achas que agiria seu povo se voltasse para casa com presas e olhos negros? Não podes te aventurar à luz do dia. Tua lealdade é para toda a humanidade, não só para tua família. Ninguém pode cumprir com as obrigações de ambas. Não podes voltar jamais.

     Os lábios do homem tremeram, mas assentiu compreendendo.

     —Eu salvo aos humanos enquanto minha inocente família é jogada para morrer de fome sem ninguém para protegê-los. Assim, que esse é o trato.

     Acheron olhou para o outro lado enquanto seu coração se condoía pelo homem e sua família.

     —Vá lá dentro com os outros —disse Acheron.

     Observou a Ias voltar enquanto pensava nas palavras do homem. Não podia deixá-lo assim.

     Acheron podia se virar sozinho, mas os outros…

   Fechando seus olhos, desejou a si mesmo de volta a Artemisa.

     Desta vez, quando suas mulheres abriram suas bocas para gritar, Artemisa congelou suas cordas vocais.

     —Nos deixem —ordenou-lhes.

     As mulheres se apressaram para a porta tão rápido como puderam, fechando-a de um golpe atrás delas.

     Logo que estiveram sozinhos, Artemisa lhe sorriu.

     —Retornaste. Não esperava ver-te tão cedo.

     —Não, Artemisa, —disse ele, refreando o caráter brincalhão dela antes que começasse—. Basicamente estou de volta para gritar contigo.

     —Para que?

     —Como te atreves a mentir a esses homens para lhes ter ao teu serviço?

     —Eu nunca minto.

     Ele arqueou uma sobrancelha.

     Parecendo incômoda imediatamente, ela clareou a garganta e se reclinou em seu trono.

     —Tu eras diferente e eu não menti. Simplesmente esqueci de mencionar umas poucas coisas.

     —Isso é semântica, Artemisa, e não se trata de mim. É sobre o que lhes tens feito. Não podes deixar esses pobres bastardos ali fora como tens feito.

     —por que não? Tu sobreviveste bastante bem por tua conta.

     —Eu não sou como eles e sabes muito bem. Não tinha nada em minha vida pelo qual valesse a pena voltar. Nem família, nem amigos.

     —Tenho que objetar a isso. O que fui eu?

     —Um equívoco que estive lamentando durante os últimos dois mil anos.

     Seu rosto se avermelhou. Saiu de seu trono e desceu dois degraus para parar ante ele.

     —Como te atreves a me falar dessa maneira!

     Acheron tirou rapidamente sua capa e furiosamente a jogou nela e a seu bastão em um canto.

     —Me mate por isso, Artemisa. Vamos, adiante. Nos faça a ambos um favor, e livra-me de minha miséria.

     Ela tentou esbofeteá-lo, mas ele apanhou sua mão na sua e a olhou fixamente aos olhos.

     Artemisa viu o ódio no olhar de Acheron, a mordaz condenação. Suas furiosas respirações se mesclaram e o ar ao redor deles crepitou furiosamente enquanto seus poderes chocavam.

     Mas não era sua fúria o que ela queria.

     Não, nunca sua fúria…

     Seu olhar lhe percorreu. Sobre os planos perfeitamente esculpidos de seu rosto, suas altas maçãs do rosto, seu longo, aquilino nariz. A negrume de seu cabelo.

     O misterioso mercúrio de seus olhos.

     Nunca tinha havido um deus ou mortal nascido que pudesse igualar sua perfeição física.

     E não era só sua beleza o que atraía às pessoas até ele. Não era sua beleza o que a atraía.

     Ele possuía um cru, estranho tipo de carisma masculino. Poder. Força. Encanto. Inteligência. Determinação.

     Olhá-lo era desejá-lo.

     Vê-lo era padecer por tocá-lo.

     Tinha sido criado para agradar, e treinado para o prazer. Tudo nele, dos ondulantes músculos até o profundo e erótico timbre de sua voz, seduzia a qualquer um que tivesse contato com ele. Como um letal animal selvagem, movia-se com uma primitiva promessa de perigo e poder masculino. Com a promessa de uma suprema realização sexual.

     Eram promessas que cumpria muito bem.

     Em toda a eternidade, ele foi o único homem que a tinha feito vulnerável. O único homem que ela tinha amado.

     Tinha poder nele para matá-la. Ambos sabiam. E ela encontrava o fato de que não o fizesse intrigante e provocador.

     Sedutor e erótico.

     Tragando, recordou-o como tinha sido a primeira vez que se conheceram. Sua força. A paixão. Desafiante, ele tinha permanecido de pé em seu templo e tinha rido quando ela ameaçou matá-lo.

     Ali ante sua estátua, atreveu-se a fazer o que nenhum homem antes ou depois se atreveu...

     Ela ainda podia saborear esse beijo.

     A diferença de outros homens, nunca tinha lhe temido. Agora, o calor de sua mão em sua carne a calcinava, mas seu toque sempre o tinha feito. Não havia nada que desejasse mais que o sabor de seus lábios. O fogo de sua paixão.

     E com um equívoco, tinha-o perdido.

     Artemisa queria chorar pelo desanimador de tudo isso. Tinha tentado uma vez, há muito, de voltar atrás as mãos do tempo e refazer essa manhã.

     De voltar a ganhar o amor e a confiança de Acheron.

     O Destino a tinha castigado severamente por sua audácia.

     Durante os últimos dois mil anos, tinha tentado tudo para trazê-lo de volta ao seu lado. Nada tinha funcionado. Nada tinha se aproximado de conseguir que a perdoasse ou voltasse para seu templo.

     Nada até que lhe ocorreu a única coisa pela qual ele nunca poderia dizer que não: uma alma mortal em perigo.

     Acheron faria qualquer coisa para salvar aos humanos. Seu plano para fazê-lo responsável pelos Dark-Hunters, que tinha criado com a ressurreição de seus poderes, tinha funcionado e agora ele estava de volta.

     Se só pudesse conservá-lo.

     —Queres que os liberte? —perguntou ela.

     Por ele, ela faria qualquer coisa.

     —Sim.

     Por ela, ele não faria nada. Não a menos que o forçasse a isso.

     —O que farás por mim, Acheron? Conheces as regras. Um favor requer um favor.

     Ele a soltou com uma furiosa maldição e se afastou dela.

     —Aprendi o suficiente para não jogar este jogo contigo.

     Artemisa deu de ombros com uma indiferença que não sentia. Neste mesmo momento, tudo o que lhe importava estava em xeque.

     Se ele dizia que não, isso a destruiria.

     —Bem, eles continuarão como Dark-Hunters, então. Sozinhos sem ninguém para lhes ensinar o que precisam saber. Ninguém que se preocupe com o que lhes aconteça.

     Ele soltou um comprido, cansado suspiro.

     Ela queria consolá-lo, mas sabia que rechaçaria seu toque. Ele sempre tinha rechaçado consolo ou distração. Era mais forte do que qualquer um tinha direito a ser.

     Quando a olhou, seu olhar enviou um cru, sensual estremecimento sobre ela.

     —Se estão para servir a ti e aos deuses, Artemisa, há coisas que necessitam.

     —Como o que?

     —Armaduras, por exemplo. Não podes enviá-los para lutar sem armas. Necessitam de dinheiro para conseguir comida, roupas, cavalos e inclusive criados para velar por eles durante a luz do dia enquanto descansam.

     —Pedes muito para eles.

     —Peço só o que necessitam para sobreviver.

     Ela negou com a cabeça.

     —Tu nunca pediste nada disso para ti. —Ela se sentia ferida agora por esse fato.

     Ele nunca pediu nada.

     —Não necessito de comida e meus poderes me permitem procurar todo o resto que necessite. E como amparo, tenho a Simi. Eles não durarão sozinhos.

     Ninguém dura sozinho, Acheron.

     Ninguém.

     Nem sequer tu.

     Nem eu especialmente.

     Artemisa levantou seu queixo, determinada a tê-lo ao seu lado sem importar as conseqüências.

     —E de novo te digo o que me darás pelo que eles necessitem?

     Acheron olhou para o outro lado, com suas vísceras contraídas. Sabia o que ela desejava e a última coisa que queria era dar-lhe.

     —Isto é para eles, não para mim.

     Ela deu de ombros.

     —Bem então, eles podem passar sem isso dado que não têm nada com o que negociar.

     Sua fúria se acendeu profundamente por seu despreocupado abandono ante suas vidas e bem-estar. Ela não tinha mudado para nada.

     —Maldita seja, Artemisa.

   Ela se aproximou dele lentamente.

     —Desejo-te, Acheron. Desejo-te de volta como eras antes.

     Ela o queria como a um puto. Seu puto. Ele se encolheu interiormente enquanto a mão dela embalava seu rosto em sua mão. Eles nunca poderiam voltar para o que tinham sido antes. Tinha aprendido muito sobre ela desde então.

     Tinha sido enormemente traído uma vez.

     Poderia dizer que aprendeu lentamente, mas isso não era certo. O que tinha estado era tão desesperado por alguém ao qual lhe importasse que tinha ignorado o lado escuro da natureza dela.

     Ignorado, até que ela havia lhe voltado as costas e lhe tinha deixado para que morresse. Alguns crimes estavam por cima de sua capacidade para perdoar.

     Seus pensamentos passaram de si mesmo aos inocentes homens que estavam vivendo em uma caverna. Homens que não sabiam nada de seus novas existências ou inimigos. Não os podia deixar ali dessa maneira.

     Ele havia custado a muitas pessoas suas vidas, seus futuros.

     De maneira nenhuma poderia deixá-los perder também suas almas e vidas.

     —De acordo, Artemisa. Darei-te o que queres, se tu lhes dás o que eles necessitam para sobreviver.

     Ela se iluminou.

     —Mas, —continuou ele—, minhas condições são estas: vais pagar-lhes cada mês um salário que lhes permita comprar o que seja que eles necessitem ou desejem. Como enfatizei antes, necessitarão de escudeiros que se ocupem pessoalmente deles, para que não tenham que se preocupar de procurar comida, roupas ou armas. Não quero que se distraiam de seu trabalho.

     —Bem, encontrarei humanos que os servirão.

     —Humanos vivos, Artemisa. Quero que lhes sirvam por sua própria vontade. Sem mais Dark-Hunters

     Olhou-o boquiaberta.

     —Três deles não são suficientes. Necessitamos de mais para manter aos Daimons sob controle.

     Acheron fechou seus olhos enquanto sentia o interminável desta relação. Muito facilmente podia ver no futuro e aonde se dirigia isto.

     Entre mais Dark-Hunters, mais enredado estaria ele com ela. Não havia maneira de evitar que o atasse a ela para sempre.

     Ou havia alguma?

     —Muito bem, —disse ele—. Cederei nisto, se aceitar a lhes procurar uma maneira para deixar de estar ao teu serviço.

     —O que queres dizer?

     —Quero que estabeleças para os Dark-Hunters uma maneira de recuperar suas almas, para que assim eles não estejam atados a ti se isso for o que escolhem.

     Artemisa retrocedeu. Isto não era algo que tivesse previsto. Se lhe dava isto, então inclusive ele estaria amarrado a isso.

     Poderia abandoná-la.

     Tinha esquecido quão ardiloso podia ser Acheron. Quão bem conhecia as regras do jogo, e como manipular a elas e a ela.

     Realmente era seu igual.

     E se se negava a lhe dar isto, então a deixaria de todas as formas. Não tinha escolha, e ele sabia bem.

     Entretanto, ainda havia coisas que poderiam mantê-lo ao seu lado. Uma maneira que ela sabia que asseguraria sua presença em sua vida por toda a eternidade.

     —Muito bem. Façamos as regras para governá-los, então. —Sentiu que os pensamentos dele se dirigiam de volta a Ias. Compadecia ao pobre soldado grego que amava a sua esposa. Piedade, misericórdia e compaixão seriam sempre sua perdição.

     —Número um, é que eles devem morrer para reclamar suas almas.

     —Por que? —perguntou ele.

     —Uma alma só pode ser libertada de um corpo no momento da morte. Do mesmo modo, só pode retornar a um corpo que já não esteja funcionando. Enquanto eles “vivam” como Dark-Hunters, nunca poderão ter suas almas de novo. Essa não é minha regra, Acheron, é simplesmente a natureza das almas… perguntes a tua mãe se duvidas de mi.

     Ele franziu o cenho ante isso.

     —Como matas a um Caçador Escuro imortal?

     —Bem, poderíamos cortar suas cabeças ou lhes expor à luz do dia, mas dado que isso danificaria seus corpos além de toda reparação, isso não serve ao propósito.

     —Não és divertida.

     E tampouco o era ele. Ela não queria libertá-los de seu serviço. Sobretudo, não queria libertar a ele.

     —Tens que lhes drenar seus poderes do Dark-Hunter, —disse-lhe—. Fazer a seus imortais corpos vulneráveis para atacá-los e logo deter os batimentos de seus corações. Unicamente então morrerão de uma forma que lhes permita voltar para a vida.

     —Bem, isso posso fazê-lo.

     —De fato, tu não podes.

     —O que queres dizer?

     Ela lutou contra a ansiedade de sorrir. Aqui era onde o tinha.

     —Há umas poucas leis que precisas saber sobre as almas, Acheron. Uma é que o possuidor deve dá-la livremente. Desde que eu possuo suas almas...

     Acheron amaldiçoou.

     —Eu terei que negociar contigo por cada alma.

     Ela assentiu.

     Ele pareceu pouco satisfeito ante a informação. Mas se recuperaria, com tempo. Sim, definitivamente se recuperaria...

     —Que mais? —perguntou.

     Agora sua única regra que o ataria a ela para sempre.

     —Unicamente um sincero e puro coração pode libertar a alma de volta a um corpo. Quem retorne a alma deve ser a única pessoa a qual os ame acima de qualquer outro. Uma pessoa a qual eles amem e confiem também.

     —Por que?

     —Porque a alma necessita de algo que a motive ao movimento, de outra forma, fica onde está. Eu uso a vingança para motivar à alma em minha posse. Só uma emoção igual poderosa motivará à alma de volta ao seu corpo. Como eu posso escolher essa emoção, escolho que seja o amor. A mais bela e nobre de todas as emoções. A única pela qual vale a pena voltar.

     Acheron olhou fixamente o piso de mármore enquanto suas palavras sussurravam ao redor dele.

     Amor.

     Confiança.

     Umas palavras tão singelas de dizer. Umas palavras tão poderosas para sentir. Invejava àqueles que conheciam seu verdadeiro significado. Ele realmente nunca tinha conhecido nenhuma delas. Traição, dor, degradação, desconfiança, ódio. Essa era sua existência. Isso era a única coisa que lhe tinha sido mostrada.

     Parte dele queria dar a volta e deixar Artemisa para sempre.

     Devolvam-me ao meu amor. Por favor, farei algo para tê-lo aqui em casa... As palavras de Liora ressonavam em sua cabeça. Podia ouvir suas lágrimas incluso agora. Sentir sua dor.

     Sentir a dor de Ias enquanto pensava em seus filhos e em sua esposa. Sua preocupação por seu bem-estar.

     Acheron nunca tinha conhecido esse tipo de amor desinteressado. Nem antes nem depois de sua morte.

     —Me dê a alma de Ias.

     Artemisa arqueou uma sobrancelha.

     —Estás de acordo com o preço que peço por isso, e com as condições para sua libertação?

     Seu coração se encolheu ante suas palavras. Recordou ao jovem que tinha sido tempos atrás.

     Tudo tem um preço, Acheron. Ninguém consegue nunca nada grátis. Seu tio lhe tinha ensinado bem o preço da sobrevivência.

     Acheron tinha pago bem caro por tudo o que tinha tido ou querido. Comida. Refúgio. Roupas. Pago com carne e sangue.

     Algumas coisas nunca mudam. Uma vez puto, sempre puto.

     —Sim, —disse, com a garganta apertada—. Estou de acordo. Pagarei.

    Artemisa sorriu.

     —Não pareças tão triste, Acheron. Prometo-te que o desfrutarás.

     Seu estômago se encolheu mais ainda. Também tinha ouvido essas palavras antes.

     Era entardecer quando Acheron retornou à caverna.

     Não estava sozinho enquanto caminhava subindo a pequena elevação. Liderava a dois homens e quatro cavalos.

     —O que é tudo isto? —perguntou Callabrax.

     —Estes vão ser os escudeiros para ti e para Kyros. Vieram para mostrar a ambos as casas aonde vais viver. Olharão por tudo o que necessiteis e eu virei mais tarde para terminar nosso treinamento.

     Uma pontada de medo escureceu os olhos de Ias.

     —O que acontece comigo?

     —Tu vens comigo.

     Acheron esperou até que os outros dois tiveram montado seus cavalos e se afastado, antes de voltar-se para Ias.

     —Estás preparado para ir para casa?

     Ias pareceu surpreso.

     —Mas disseste...

     —Estava equivocado. Podes retornar.

     —O que acontece com meu juramento a Artemisa?

    —Já foi solucionado.

     Ias o abraçou como a um irmão.

     Acheron se encolheu ante o contato, especialmente já que agravava as profundas feridas em suas costas que Artemisa lhe tinha feito em troca pela alma de Ias, ao menos essa era a mentira que disse a si mesmo. Mas ele sabia a verdade. Golpeava-o para castigá-lo pelo fato de que o amava.

     E essas marcas não eram nada comparadas com as ainda mais profundas feridas que residiam em sua alma.

     Sempre tinha odiado a tudo o que o tocasse.

     Com suavidade, afastou a Ias.

     —Vamos, vejamos seu lar.

     Acheron os cintilou de volta à pequena granja de Ias, aonde sua esposa acabava de enviar aos seus dois filhos à cama.

     Seu formoso rosto empalideceu enquanto os via ao lado de seu fogo.

     —Ias? —Ela piscou—. Disseram-me esta manhã que estavas morto.

     Ias moveu sua cabeça, seus olhos brilhantes.

     —Não, meu amor. Estou aqui. Vim para casa, para ti.

     Acheron inspirou profundamente enquanto Ias corria para ela e a abraçava estreitamente. Tinha percorrido um longo caminho para acalmar a dor das costas.

     —Ainda há um par de coisas, Ias —disse brandamente Acheron.

     Ias se voltou atrás com o cenho franzido.

     —Sua esposa terá que libertar tua alma de volta ao seu corpo.

     Liora franziu o cenho.

     —O que?

     Ias beijou sua mão.

     —Jurei a mim mesmo servir a Artemisa, mas ela vai deixar-me ir, para que possa retornar a ti.

     Ela parecia desconcertada ante suas palavras.

     Ias olhou para Acheron.

     —O que devemos fazer?

     Acheron duvidou, mas não havia forma de evitar lhe dizer o que tinha que ser feito.

     —Terás que morrer de novo.

     Ele empalideceu um pouco.

     —Estás seguro?

     Acheron assentiu e entregou sua adaga a Liora.

     —Terás que apunhalá-lo no coração.

     Ela pareceu horrorizada e espantada ante sua sugestão.

     —O que?

     —É a única maneira.

     —É assassinato. Serei enforcada.

     —Não, juro-o.

     —Faça-o, Liora, —urgiu Ias—. Quero estar de novo contigo.

     Com seu rosto cético, ela tomou a adaga em sua mão e tratou de pressioná-la dentro do peito dele.

     Não resultou. Tudo o que fez a lâmina foi ferroar a pele.

     Acheron fez uma careta enquanto recordava o que Artemisa havia dito sobre os poderes dos Dark-Hunters. Um humano comum não seria capaz de ferir um Dark-Hunters com uma adaga.

     Mas ele poderia.

     Tomando a adaga de Liora, atravessou limpamente o coração de Ias. Ias tropeçou para trás, ofegando.

     —Não te assustes, —disse Acheron, estendendo-o no piso ante o fogo—. Estou contigo.

     Acheron se levantou e empurrou Liora ao seu lado. Tomou o medalhão de pedra que continha a alma de Ias de sua bolsa.

     —Tens que tomar isto em sua mão quando ele morrer, e libertar sua alma de volta ao seu corpo.

     Ela tragou.

     —Como?

     —Pressione a pedra sobre sua marca com o arco e a flecha.

     Acheron esperou até o momento justo antes que Ias morresse. Entregou o medalhão a Liora.

     Ela gritou tão logo lhe tocou a mão e o jogou no chão.

     —Está ardendo! —chiou ela.

     Ias abria a boca enquanto lutava para viver.

     —Levante-o —ordenou Acheron a Liora.

   Ela soprou ar fresco em sua palma, enquanto negava com a cabeça.

     Acheron estava horrorizado com suas ações.

     —O que acontece contigo, mulher? Vai morrer se não lhe salvas. Recolha sua alma.

     —Não. —Havia uma luz determinada em seus olhos que ele não pôde entender.

     —Não? Como podes te negar? Ouvi-te rogando por ele para que voltasse para ti. Disseste que darias qualquer coisa para que seu amado retornasse.

     Ela deixou cair sua mão e lhe cravou um frio olhar.

     —Ias não é meu amado. É Lycantes. Era por ele por quem eu rogava, e agora está morto. Contaram-me que o fantasma de Ias o tinha assassinado porque ele tinha matado a Ias em batalha, para que nós dois pudéssemos juntos criar aos nossos filhos.

     Acheron ficou mudo ante suas palavras. Como não pôde havê-lo visto antes? Era um deus. Por que isto lhe teria sido ocultado?

     Olhou a Ias e viu a dor em seus olhos antes que se voltassem vazios e Ias morrera.

     Com seu coração martelando, Acheron levantou o medalhão e tratou de libertar a alma ele mesmo.

     Não funcionou.

     Furioso, congelou a Liora em seu lugar antes de matá-la por suas ações.

     —Artemisa! —gritou ao teto.

     A deusa apareceu na choça.

     —Salve-o.

     —Não posso mudar as regras, Acheron. Disse-te as condições e tu esteveste de acordo com elas.

     Ele avançou de volta a mulher que era agora uma estátua humana.

     —Por que não me disseste que ela não o amava?

     —Não tinha forma de sabê-lo, não além das quais tinhas tu. —Seus olhos se obscureceram—. Inclusive os deuses podem cometer erros.

     —Então, por que ao menos não me disseste que o medalhão a queimaria?

     —Disso não sabia. Não me queimava e a ti tampouco. Nunca tive a um humano que sustentasse um antes.

     A cabeça de Acheron zumbiu com culpa e pesar. Com ódio para si mesmo e para ela.

     —O que acontecerá com ele agora?

     —É uma Sombra. Sem um corpo ou alma, sua essência está presa no Katoteros.

     Acheron rugiu com a dor pelo que lhe estava dizendo. Tinha matado a um homem, e lhe tinha sentenciado a um destino muito pior que a morte.

     E para que?

     Por amor?

     Por misericórdia?

     Deuses, era tão estúpido.

     Melhor que ninguém, deveria ter sabido fazer as perguntas corretas. Deveria ter sabido melhor, antes de confiar no amor de outra pessoa.

     Maldito seja, quando aprenderia?

     Artemisa se inclinou até ele e levantou seu queixo com a mão até que a olhou.

     —Me diga, Acheron, há alguém em quem confias o suficiente para libertar tua alma?

 

 

[1] Nonato: Não nascido de parto normal, e sim por meio de uma cesárea.

[2] Herio: carroça.

[3] Mar Egeu, é a parte do Mar Mediterrâneo compreendida entre a Grécia e Turquia.

[4] Peplo (do latim peplum) é uma túnica feminina da Antiga Grécia que levavam as mulheres anteriores aos anos 500 a.C. É uma peça retangular de grandes pregas dobrada em dos e costurada afim de formar una espécie de tubo cilíndrico donde a parte superior desce sobre o peito (e, às vezes, também sobre os ombros). As duas metades do tecido são unidas por um alfinete sobre cada ombro. Se prende a cintura por um cinturão. De tecido pesado ( em geral). Podia ser totalmente aberto por um dos lados ou fechado e era sempre mais comprido que a altura daquele que usava. As vezes vinha com uma pequena capa no mesmo tecido.

[5] O chitão (em grego χιτών) é uma prenda de vestir da Grécia Antiga. É uma túnica usada tanto pelos homens como pelas mulheres.

[6] Ya: avó em grego.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

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