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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACONTECEU NO SILÊNCIO / Corin Tellado
ACONTECEU NO SILÊNCIO / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ACONTECEU NO SILÊNCIO

 

A luxuosa sala de jantar apresentava um aspecto muito agradável, acolhedor, familiar...

 

Ricardo Herraiz pôs o talher em cima da mesa, limpou a boca ao guardanapo e bebeu um cálice de vinho do Porto. Depois levantou um pouco os olhos e olhou para sua filha através das lentes dos seus óculos de aros de ouro.

 

Mary, tenho uma surpresa para ti.

 

Verdade, papá?

 

Sim, filha.

 

A rapariga, frágil, bonita, olhos cor de turquesa, cabelo negro e dentes muito brancos, contemplou o pai com ansiedade.

 

De que se trata, papá?

 

A mãe interveio. Raquel San Juan era uma mulher formosa, de porte arrogante, olhar firme e feições bonitas. Teria aproximadamente uns trinta e cinco anos embora não os aparentasse. Tinha o cabelo muito preto, como o de sua filha, levemente ondulado, muito curto. Os olhos azuis, de olhar penetrante. Mary era mais frágil, menos mulher, mas era preciso ter em conta os seus dezassete anos.
Que novo capricho vais proporcionar-lhe, Ricardo? perguntou com voz grave. Não me agrada nada que a minha filha se converta num ser mecânico da moda.

 

Que palermice! exclamou o cavalheiro, sorrindo.

 

Não falei em caprichos, mas sim em surpresa.

 

Mamã, és muito austera. Papá, não lhe ligues. Raquel San Juan inclinou a cabeça e continuou a comer, indiferente.

 

Talvez não te agrade a notícia disse o cavalheiro, sorrindo carinhosamente, mas como sei que és uma fervorosa admiradora do Clube Milionários, de Bogatá...

 

Os olhos cor de turquesa brilharam de uma maneira indescritível. Os jogadores do Clube Milionários? Admirava-os a todos, amava-os a todos, invejava-os a todos.

 

Continua, por favor, paizinho. Que sucedeu? Algum novo jogador que assinou para o nosso clube?

 

Não, querida. A notícia que vou dar-te não é tão Interessante como pensas. Por agora temos de nos conformar com Di Stefano, mas...

 

Por quê essa paixão pelo futebol? perguntou a dama.

 

Era evidente que aquela conversa a incomodava muito, e, no entanto, o seu esposo e filha estavam sempre a falar de futebol. Porquê? Porque se atormentava daquela maneira? Já tudo tinha passado... Além disso, ela tinha um marido que a respeitava e a amava e uma filha, fruto daquela união.

 

Mamã, por Deus. Ficas sempre aborrecida quando nós falamos de futebol. Tu sabes que o prefiro a qualquer outra diversão.

 

Perfeitamente, minha filha. Não faças caso do que a tua mãe diz. Ela não percebe dessas coisas. E a prova
disso está em que nunca consegui levá-la a um desafio de futebol. Recordo-me de uma vez, quando estávamos em Bilbau, pedi-lhe para irmos ao estádio de San Mames, mas não consegui demovê-la.

 

É um desporto violento.

 

Que disparate, querida Raquel!

 

Voltou-se para a filha e acrescentou suavemente:

 

O que eu queria dizer-te, Mary, é que ontem chegou a Madrid um dos melhores jogadores do mundo. Ultimamente pertencia ao Clube dos Milionários, mas agora...

 

Jogará em Espanha?

 

Não, minha filha, retirou-se definitivamente. Tem

36 anos de idade e muitos milhões. Além disso é espanhol. Fomos bons amigos quando ele tinha dezoito anos e pertencia ao ”Barca”. Depois partiu e nunca mais quis jogar em clubes espanhóis.

 

O rosto de Raquel San Juan estava mais pálido do que de costume. Por certo que eram as palavras do seu esposo que lhe causavam o nervosismo indescritível que procurava dissimular. Aparentemente, parecia não ouvir as conversas, pois depois de tomar o café pusera-se a ler uma revista, com a qual encobria o rosto. No entanto, era evidente que ouvia com ansiedade, não perdendo uma só palavra das que o seu marido pronunciava.

 

Oh, papá, que interessante é tudo isso! Conta-me tudo, papá.

 

Refiro-me a Júlio Mora.

 

As mãos que seguravam a revista tremeram visivelmente. Um brilho estranho aflorou aos olhos azuis de Raquel San Juan. Júlio Mora! Quantas recordações lhe vieram à memória. Quantos sofrimentos!
Júlio Mora? gritou a rapariga, admirada. Oh, papá! Esse homem é o meu ídolo, garanto-te.

 

Raquel mordeu os lábios. Ricardo Her raiz sorriu indulgente.

 

És uma rapariga romântica disse, carinhoso. Júlio Mora, com efeito, é o ídolo de muitas mulheres, mas o nosso amigo há muito tempo que renunciou ao amor.

 

Por favor, papá, conta-me tudo que esteja relacionado com esse fenómeno.

 

Eu vou visitá-lo esta tarde. Já te disse que fomos grandes amigos. Quando aquilo...

 

Qual aquilo, paizinho? Raquel pôs-se em pé bruscamente.

 

Nem o pai, nem a filha deram pela sua falta. Ela afastou-se em direcção ao pequeno salão contíguo, deixou-se cair numa poltrona e, deitando a cabeça para trás, permaneceu muito quieta. De repente umas lágrimas rolaram-lhe pela face. Através da porta aberta chegava aos seus ouvidos a voz bem timbrada do seu marido.

 

Todos os homens, Mary, têm um período sentimental nas suas vidas. Júlio Mora teve o seu período na altura em que começava a triunfar. Era um bom moço, inteligente e muito arrogante, mas não pertencia a uma família da melhor sociedade. Antes pelo contrário, os seus pais eram uns simples lavradores de terras que não eram deles. O rapaz odiava o campo, o trabalho rude e a vida mesquinha que os seus pais levavam.

 

Um dia partiu da sua aldeia e veio para Madrid. Seis meses depois conheceu um senhor que o levou para Barcelona e o recomendou ao clube. Estes pormenores não têm grande importância, visto que pouco tempo depois Júlio Mora era o melhor jogador do Barcelona. Ganhou muito dinheiro, ambientou-se e conheceu uma mulher.

 

Raquel San Juan suspirou profundamente. Faltava-lhe o ar. Ouviu a voz da filha e estremeceu outra vez.

 

E quem era essa mulher, papá?

 

Nunca o soube, filha. Apenas sei que tinha muito dinheiro e ainda que não pertencesse a uma família aristocrática estava bem relacionada e, claro, os pais opuseram-se tenazmente àqueles amores.

 

E ela?

 

Dizem que estava verdadeiramente apaixonada por Júlio Mora, mas não devia ser tanto assim porque o deixou de um momento para o outro.

 

Essa mulher não tinha coração, papá! Raquel crispou as mãos nos braços da poltrona.

 

Talvez, querida admitiu Ricardo, com picardia. Mas é que tu és uma mulher desinteressada, tens a tua personalidade própria e uma grande força de vontade. A mulher que amava o nosso amigo Mora não devia ter nem personalidade própria nem força de vontade. Por outro lado, Mora era um rapaz de dezoito anos e ela teria, talvez, uns dezassete. Nessas idades ainda somos umas crianças.

 

Eu tenho essa idade e não o teria deixado.

 

Perfeitamente, Mary, mas já temos dito que tu és uma rapariga única. De qualquer maneira, é preciso ter em conta que aquela rapariguinha ignorava todos, visto que quando se soube, Júlio Mora já tinha partido de Espanha e assinava pelo Vasco da Gama, clube brasileiro. Nunca mais regressou a Espanha, nunca mais quis saber dos espanhóis e desprezou todas as ofertas que lhe fizeram a esse respeito. Os familiares dessa rapariga pintaram-lhe com horríveis cores o futuro dela ao lado do jogador internacional e ela, sem força de vontade, acabou por fazer aquilo que lhe disseram. Um dia, como já te disse, deixou-o sem qualquer explicação. Isto foi um rude golpe para o jogador, mas o que aconteceu depois ainda o foi mais.

 

Que sucedeu, papá?

 

Os jornalistas falaram dele. As notícias causaram grande efervescência entre os desportistas e os repórteres aproveitaram a ocasião para se ocuparem do caso. Julgaram, talvez, que proporcionavam popularidade ao jogador e não pensaram no coração do homem. Compreendes? Viu-se ridicularizado, humilhado na sua honra de homem, escandalizado sem motivo e vexado como o pior dos mortais. Repito que não foi esse o propósito dos meus colegas, mas as pessoas viram-no de outra maneira, e Júlio Mora renegou a sua pátria e creio que também as mulheres.

 

E como se chamava ela?

 

Tinha muito dinheiro, Mary, e os seus pais tiveram o cuidado de que a imprensa não divulgasse o seu nome. Nós, os amigos de Mora, sabíamos que estava apaixonado, que mantinha relações com uma rapariga, mas nunca perguntei quem era nem como se chamava. E por outro lado, quando aquilo surgiu falava-se numa mulher mas o seu nome nunca foi divulgado nem o de sua família.

 

Eu desprezo essa mulher, papá.

 

Ricardo sorriu. Olhou para o relógio e levantou-se.

 

Tenho de me ir embora, querida. Amanhã conhecerás Júlio Mora. Vou visitá-lo e convido-o para vir amanhã jantar connosco.

 

Foi até ao pequeno salão e inclinou-se para beijar a esposa.

 

Estás fria, querida murmurou. E pálida. Que tens?

 

Dói-me um pouco a cabeça.

 

Depois beijou a filha e indo buscar o chapéu e o sobretudo, saiu.

 

Era um homem de uns quarenta anos, de cabelo grisalho, testa grande e olhar bondoso.

 

Ouviste o que o papá disse, mãezinha?

 

Sim, querida. É uma história demasiado vulgar,

 

Vulgar? Não me parece.

 

Porque és uma rapariga demasiado romântica.

 

De qualquer forma, eu não teria procedido como procedeu a mulher que Mora amava.

 

Raquel levantou-se. Levou a mão ao cabelo para o compor e os seus olhos sonhadores, grandes, muito abertos, contemplaram a filha demoradamente.

 

Há situações na vida muito caprichosas, filha. Talvez essa mulher amasse com toda a sua alma e não fosse compreendida. Ou talvez a inexperiência a levasse a proceder como procedeu.

 

Afastou-se na direcção do seu quarto. Mary ficou profundamente pensativa. Depois encolheu os ombros e foi ter com a mãe.

 

Esta encontrava-se estendida sobre o leito com o olhar cravado no tecto.

 

Que desejas, Mary?

 

Conheceste essa mulher, mamã?

 

A dama apertou os dentes com força. Depois olhou para a filha severamente e disse com frieza:

 

És demasiado imaginativa. Deixa-me sozinha.

 

No vestíbulo do hotel encontrou seis jornalistas. Seguia-o um criado uniformizado.

 

É aqui, senhor disse o criado.

 

Ricardo Herraiz gratificou o seu acompanhante e entrou no luxuoso compartimento sem se fazer anunciar.

 

Parou à entrada da porta e contemplou com satisfação a figura do homem que se encontrava estendido sobre a cama, com as mãos debaixo da nuca, os olhos cravados no tecto e um cigarro preso nos lábios.

 

Meu amigo exclamou Herraiz, indo ao seu encontro e apertando-lhe efusivamente a mão que o outro lhe estendia. Como estás, meu caro?

 

Olá, Ricardo. Há muito tempo que não nos víamos.

 

É verdade. Há quase dezassete anos.

 

São muitos anos! repetiu Júlio, incorporando-se e aspirando o fumo do seu cigarro.

 

Tens tido muitas visitas?

 

Nenhumas, meu amigo. Não tenho querido receber ninguém, excepto tu, que entraste sem te fazeres anunciar.

 

Julguei que os jornalistas tinham saído daqui. Júlio franziu a testa.

 

Não quero nada com a Imprensa.

 

Fez-se um silêncio. Ricardo arrastou uma poltrona e sentou-se em frente da cama, onde Júlio permanecia estendido.

 

Sentes-te satisfeito por teres regressado à pátria?

 

Júlio afastou o olhar das aspirais que subiam lentamente e contemplou o seu amigo entre aborrecido e altaneiro.

 

Vens entrevistar-me?

 

Desta vez, francamente, não. É o amigo que te visita.

 

Hum!

 

E Júlio Mora apagou o cigarro num cinzeiro. Incorporou-se um pouco e suspirou. Depois estendeu a mão e tirou outro cigarro, mas antes de acendê-lo bebeu o resto de uma limonada que estava num copo.

 

Há muito tempo que deixei de ter simpatia pelos jornalistas.

 

Deram-te popularidade.

 

As sobrancelhas de Júlio franziram-se severamente. Popularidade? E que necessidade tinha ele de popularidade? Era um jogador internacional, sabia dominar a bola, tinha técnica. A sua fama tinha-a adquirido com o seu próprio esforço, não lha proporcionaram os jornalistas! Por outro lado, estes tinham divulgado demasiado a sua vida privada. Um jogador de futebol também tem coração! E eles, todos aqueles repórteres, estavam convencidos de que Júlio Mora apenas poderia amar a bola e a fama. Que sabiam eles!

 

Que tinham conseguido com todo aquele aparato de popularidade? Destroçaram a sua vida, o seu coração, a sua carreira e o que é pior, a sua ânsia de viver. E talvez pensassem que ele não tinha sofrido.

 

Em que pensas?

 

Deu uma fumaça e expeliu o fumo. As espessas espirais envolveram um tanto as duras feições rígidas da sua face bronzeada.

 

Era um homem interessante. Olhos claros, quase brancos, de olhar recto, penetrante, antes bondoso e sincero, agora duro, áspero, quase cruel. Nariz recto, boca de lábios grossos e sensuais, sempre húmidos. Antes aquela boca sorria; agora aparecia crispada. Queixo enérgico, denotando uma vontade férrea, dominadora. A pele morena, as sobrancelhas abundantes, de boa compleição física, peito largo e poderoso, parecia talhado em granito. E o cabelo muito preto, proporcionava ao rosto uma formosura exótica, estranha.

 

Nunca me senti tão vazio de ideias e pensamentos disse, por fim.

 

Ricardo voltou, a arrastar a poltrona para mais próximo da cama onde se encontrava estendido o seu amigo.

 

Júlio disse suavemente, neste momento, como já te disse antes, não é o jornalista que veio visitar-te. Sei que a Imprensa te prejudicou, ainda que posso garantir-te, sem desejo algum de prejudicar-te. Todos temos amores na vida, a uns resultam vazios, interessantes, superficiais; a outros, apaixonados, reais, tão fortes como a própria vida. Tu sentia-lo como nos últimos casos e por isso sentiste esse ódio para com a Imprensa. E se os jornalistas, meus colegas, fizeram daquilo uma novela sentimental foi, somente, porque julgaram, como todos os teus amigos também o pensaram, que o teu amor por aquela rapariga era uma atracção passageira, um amor sem importância, algo que se evaporaria logo que deixasses Barcelona.

 

Mas enganaram-se.

 

Certamente. Perdemos um jogador e um amigo.

 

O amigo voltou respondeu Júlio com indiferença.

 

Exactamente, o amigo voltou. Mas todos os amores de jogador, deixei-os no estrangeiro.

 

Era preciso.

 

E não pensas continuar a jogar?

 

Nem aqui, nem em parte nenhuma. A minha vida de profissional terminou. De agora em diante só pensarei em divertir-me. Não penso ficar em Espanha mais do que um mês ou dois, os necessários para tratar de alguns assuntos que tenho pendentes.

 

Ricardo acendeu um cigarro e olhando fixamente para Júlio, perguntou à queima-roupa:

 

Como se chamava aquela mulher, Mora?

 

Por um momento o futebolista ficou a olhá-lo entre surpreendido e divertido. Depois soltou uma gargalhada e disse:

 

Disso já nada resta, amigo Ricardo. Se quando a amava não divulguei o seu nome, como queres que o diga agora se tudo já morreu? Não, Ricardo, nunca ninguém saberá o nome daquela rapariga. Ainda me resta alguma coisa de honradez e de cavalheirismo e nunca prejudicarei a mulher que um dia amei. Não penses que lhe guardo rancor. Depois de tudo, ela não teve culpa. Era uma criança, não tinha a vontade ainda definida e o seu critério de mulher foi-se abaixo quando os seus pais lhe disseram que a meu lado nunca seria feliz. Ela foi iludida acrescentou pesaroso. Comigo teria sido a mulher mais feliz do mundo. Mas os seus pais não pensaram assim e talvez a tivessem casado com outro. Hoje já deve ter filhos, um marido e um lar, e não quero prejudicá-la.

 

Fez uma rápida transição e tirando o cigarro da boca, perguntou suavemente: E tu, Ricardo? Que fizeste? Casaste?;

 

Casei e tenho uma filha com dezassete anos. Já me, sinto velho. Casei pouco depois de teres partido. Foi uma coisa inesperada, sabes? Conhecia-a numa festa. Apresentaram-me os pais e um mês depois pedia-a em casamento. Casámos sete meses depois de nos conhecermos.

 

Precipitado como sempre, meu amigo.

 

Mas fui feliz e sou feliz. Levantou-se.

 

Tenho que ir porque antes de regressar a casa tenho de passar pelo jornal. Espero que nos vás visitar esta tarde. A minha filha Mary é uma fervorosa admiradora do futebol.

 

Acompanhou o amigo até à porta.

 

Terei muito gosto em visitá-los, Ricardo. Tenho umas coisas a tratar aqui e depois irei a tua casa.

 

É verdade que renunciaste ao jogo? Não pensas jogar na Suécia?

 

Nunca mais jogarei, Ricardo. E isto digo-o ao amigo jornalista.

 

Ricardo bateu no ombro de Júlio e saiu.

 

Júlio continuou de pé, junto à porta. Parecia pensativo. Depois fechou a porta e puxou da cigarreira. Tirou um cigarro e pô-lo na boca.

 

Ricardo tinha sido um dos seus melhores amigos. Ficou grato pela sua visita. Na sua condição de jornalista famoso, nunca tomou parte naquela campanha de publicidade que ele tanto censurara e que tanto o prejudicara na sua vida particular.

 

Não sabia se continuava a amá-la ou se a odiava.

 

Nunca mais a vira e tão-pouco a procuraria. Com certeza que casara, devia ter filhos e amaria o marido.

 

E ele continuava como sempre, aparentemente imutável, desfeito por dentro, destruídas todas as suas ilusões.

 

Amachucou, enraivecido, o cigarro e dispôs-se a arranjar-se um pouco antes de sair para a rua.

 

Parou o carro junto do passeio e entrou numa elegante pastelaria. Sentadas ao balcão havia um grupo de raparigas.

 

Júlio Mora ficou à porta.

 

Os seus olhos claros, de olhar profundo e perscrutador, cravaram-se no espelho no qual via três rostos de mulheres, mas ao futebolista só um deles lhe chamou a atenção.

 

Era igual, igual ao dela. Era como se o tempo não tivesse passado e Raquel San Juan lhe sorrisse carinhosamente, mostrando os seus dentes imaculadamente brancos, os olhos cor de turquesa, sonhadores, grandes, muito abertos.

 

Também aqueles olhos o olharam através do espelho. De repente, a cabeça de Mary Herraiz voltou-se e olhou-o.

 

Porque o olhava daquela maneira perscrutadora, como se pretendesse desnudar a sua alma e penetrar nos seus íntimos segredos?

 

Afastou o olhar com altivez, mas continuou a olhá-lo através do espelho.

 

Depois, nervosa, desassossegada e intranquila, pôs-se de pé. Convidou as suas amigas a segui-la e passaram, diante de Júlio Mora, sem olhá-lo sequer.

 

Júlio foi sentar-se ao balcão e apoiou o rosto nas palmas das mãos.

 

Que casualidade! No primeiro dia de estada em Madrid encontrava-se com ela. Com ela? Não. Tinham passado muitos anos. Raquel não era aquela rapariga, mas sim uma continuação dela mesma.

 

Seria por acaso sua filha?

 

Saiu sem nada tomar. Entrou no carro e andou sem destino.

 

Se ele tivesse casado com Raquel, agora poderia ter uma filha como aquela, com os mesmos olhos da mãe, o mesmo sorriso, o mesmo cabelo e o seu corpo espigado e belo.

 

Durante aqueles anos de desterro tinha aprendido a dominar-se. Nunca ninguém poderia dizer aquilo que sentia o coração de Júlio Mora, se emoção, tristeza ou aborrecimento. Tinha um domínio absoluto sobre si. Daí o seu rosto apresentar-se imutável, indiferente, diante da maior surpresa da sua vida.

 

Ricardo Herraiz foi ao seu encontro. De braço dado entraram no salão. Já na porta, os olhos de Júlio Mora cravaram-se na face muito pálida de Raquel San Juan. Viu também Mary, a mesma rapariga que tinha visto naquela manhã. Compreendeu tudo num instante e compreendeu também, que Ricardo não tinha qualquer culpa. Era o destino.

 

Mary foi ao seu encontro de mão estendida.

 

Esta manhã vi-o e estranhei que me olhasse daquela maneira. Já me conhecia?

 

Os olhos de Júlio, antes de responder, correram velozmente do rosto de Mary para o de sua mãe. Viu-a nervosa, alterada. Estaria com medo que ele dissesse alguma inconveniência? Não, aquele segredo morreria com ele, enquanto Raquel o desejasse. Depois de tudo, aquilo pertencia a um passado que não voltaria, e por outro lado, Ricardo era um bom amigo e não tinha culpa do que quer que fosse.

 

Conheceste-me tu a mim? perguntou Júlio, tratando-a por tu com naturalidade.

 

Não o conheci, mas estranhei a sua forma de olhar. Júlio esboçou um sorriso e disse galante:

 

Para uma rapariga tão bonita os homens têm forçosamente de olhar para ela. Depois, sem transição, acrescentou: se soubesse que eras filha do meu amigo Ricardo, tinha-te cumprimentado.

 

Avançou depois para Raquel. Quanto tempo passado e, no entanto, parecia que não se tinha passado um só dia sob aquele rosto de mulher, cujo olhar fixava agora a sua face. E ele tinha beijado aqueles olhos e ela tinha escondido no seu peito muitas vezes o rubor, e ambos tinham participado do mesmo beijo. E não obstante que diferente era tudo e que cruel era o Destino que voltava a enfrentá-los para recordar tempos que não podiam voltar.

 

Parou diante dela. Eram os mesmos olhos meigos, grandes, muito rasgados. A mesma boca, o mesmo cabelo...

 

Estendeu a mão, agarrando na dela levemente, mas mesmo assim ainda pôde notar que os dedos de Raquel San Juan, frios e rígidos, tremiam.

 

Como está, senhora?

 

E aquela pergunta causou-lhe uma sensação de angústia, uma raiva e ao mesmo tempo um prazer que quase abriu o seu peito numa cruel gargalhada. Angústia, porque apesar do tempo passado, a angústia dela era a sua própria. Raiva porque o tempo tinha passado e deixara uma ferida espantosa no seu coração. Prazer porque ela sofria e esse sofrimento demonstrava-lhe que ainda havia qualquer coisa dela própria, da fina e sensível Raquel, no seu coração de mulher apaixonada.

 

Raquel inclinou um pouco a sua gentil e bonita cabeça e não disse uma só palavra.

 

Ricardo meteu-lhe o braço e levou-o até ao improvisado bar. Mary aproximou-se deles, e Raquel, com um fútil pretexto, saiu do salão.

 

Mary, prepara um ”cocktail” para o nosso amigo.

 

E tu, não bebes? perguntou Júlio, surpreendido.

 

Há bastante tempo que os médicos me proibiram de beber álcool. Tenho uma doença no estômago que me há-de levar para a sepultura.

 

E sorria como se achando graça às suas próprias palavras.

 

Não jantou com eles. Desculpou-se. Não poderia resistir um minuto mais àquela incerteza. Além disso, Raquel permanecia silenciosa, com os olhos obstinadamente cravados no tecto. Parecia alheia a tudo quanto a rodeava.

 

Despediu-se deles afectuosamente, mas não prometeu voltar. Quando apertou a mão de Raquel, encontrou-a mais fria ainda do que uma hora antes. Olhou-a nos olhos, mas ao contrário daquilo que esperava, ela não o olhou.

 

Ao chegar à rua suspirou fundo.

 

Parecia-lhe que o tempo não tinha passado, que tudo era exactamente como dantes, que ele tinha acabado de despedir-se de Raquel à porta.

 

Vagueou pelas ruas como um sonâmbulo. Duas horas depois entrava no hotel, subia para os seus aposentos e sem acender a luz deixava-se cair ao lado da janela.

 

Fumando um cigarro ali permaneceu pensativo. O passado voltava com maior intensidade à sua memória. E não querendo recordar, esforçando-se por esquecer um passado que era a sua tortura, recordou com maior precisão os mais pequenos detalhes do seu amor com aquela rapariga que hoje pertencia a outro homem, ao seu melhor amigo, e tinha uma filha de dezassete anos.

 

Conhehecera-a de uma maneira muito original.

 

Ele estava num bar, fumando um cigarro. Naquela tarde jogava em Barcelona. Tinha conseguido escapar aos seus companheiros e estava entregue aos seus pensamentos.

 

De repente, apareceu na porta uma linda figura de mulher. Parecia uma criança. Tinha o cabelo muito preto, os olhos grandes e rasgados, cor de turquesa, e a boca sensual. Primeiro olhou-a com curiosidade, depois com interesse.

 

Ela parecia procurar alguém.

 

Júlio levantou-se e foi ao seu encontro.

 

Procuras alguém? Posso ajudar-te nalguma coisa?

 

Raquel contemplou-o agradecida. Tinha uma expressão ingénua. Além disso tinha debaixo do braço alguns livros de estudo. Estudante? Sim, ela disse-lho depois.

 

Andava no primeiro ano de Direito e desejava encontrar Júlio Mora.

 

Júlio Mora sou eu.

 

Ela contemplou-o agora com maior interesse. Ruborizou-se.

 

Ah, é o senhor! Desculpe, mas eu...

 

Fala sem receio, querida. Que desejas de mim?

 

Não há bilhetes para o jogo desta tarde e disseram-me que o senhor...

 

Deu-lhe o bilhete. Encontrou-se com ela à porta de sua casa, saiu com ela durante mais de seis meses. Tornaram-se noivos. Apaixonou-se por ela como um louco.

 

Não me deixam sair contigo disse ela, uma tarde. Não nos poderemos ver mais.

 

Enlouqueceste? Não compreendes que eu não posso viver sem ti?

 

Raquel chorou. Beijou-o desesperadamente. Que suaves e apaixonados eram aqueles beijos! E depois, a ingrata, a tonta deixara-o com medo dos seus pais.

 

Não sabia que o que sentia quando ambos se beijavam não poderia sentir com nenhum outro?

 

Raquel amava-o. Tinha a certeza disso e a prova tinha-a a partir daquele momento em que se viram às escondidas. Se antes a sua companhia era deliciosa, agora que o fruto era proibido, o encanto crescera até ao ponto de fazer daquele amor uma paixão indescritível.

 

Mas um dia, Raquel não voltou. Em vez da sua figura gentil, apareceu uma criada com uma carta.

 

Dizia assim:

 

”Meu queridíssimo Júlio:

 

Não posso suportar por mais tempo esta incerteza, este desassossego. Sinto muito. Juro-te, que nunca mulher nenhuma te amará como eu, mas não podemos continuar. Os meus pais já sabem de tudo. Ameaçaram que me levariam para longe daqui, e eu... eu... Oh, Júlio, quanto sinto!”

 

Apenas aquilo. Era uma carta ingénua, uma carta sem vida. Rasgou-a em mil pedaços e naquela noite bebeu até lhe faltarem as forças, o seu estado de embriaguez disse algo dos seus amores. Na manhã seguinte, os jornais noticiaram e ridicularizaram a sua paixão de homem desprezado. Ninguém devia saber aquilo e, no entanto, toda a gente tinha conhecimento.

 

Abandonou o clube. Tentou vê-la antes de partir. Escreveu-lhe uma carta que lhe foi devolvida.

 

Duas semanas depois, Júlio Mora deixava a Espanha.

 

O passado ficava para trás e voltava agora com maior brio, com maior desespero.

 

E o Destino, o cruel Destino, fizera-a esposa do seu melhor amigo, para maior escárnio e desventura.

 

Júlio passou a mão pela fronte, como se pretendesse afastar os pensamentos.

 

Levantou-se. Minutos depois saía para a rua.

 

E nessa noite voltou a beber tanto e de tal maneira que tiveram de levá-lo ao hotel.

 

Mudou de hotel.

 

Não desejava voltar a ver Ricardo.

 

Mas naquela noite assistiu a uma festa na embaixada francesa onde viu o casal Herraiz e a sua filha Mary. Raquel deslumbrante dentro da sua simplicidade. Ele, sério. Mary, bonita, frágil.

 

Cumprimentou-os apenas. Ele encontrava-se ao lado de outra mulher. Dançou com ela.

 

Parecia esquecer-se de que os seus amigos, especialmente Ricardo, observavam-no admirados, interrogando-se acerca do estranho comportamento de Júlio para com eles.

 

Júlio compreendeu que estava a pisar em falso e desculpando-se perante o seu par, foi ter com Ricardo e sua esposa.

 

Olá, meus amigos saudou, apertando primeiro a mão dela e depois a fiel e franca de seu amigo Ricardo.

 

Muito caro te vendes, Júlio. Telefonei-te para o hotel e disseram-me que já lá não estavas. Julguei que tinhas ido para a Estremadura.

 

Partirei amanhã.

 

A conversa desenrolava-se sem interesse. De repente, Júlio inclinou-se diante de Raquel e convidou-a para dançar.

 

Com tua licença, Ricardo disse o futebolista, carinhosamente.

 

Ricardo sorriu assentindo, e Júlio enlaçou, com naturalidade, a delgada cintura daquela mulher que fora o amor da sua vida.

 

Dançaram, primeiro em silêncio. Sentia-a tremer dentro do círculo dos seus braços. Levou-a para o canto direito, longe de seu esposo, e olhando-a nos olhos, disse baixinho:

 

O passado voltou, Raquel.

 

Os olhos da mulher levantaram-se rapidamente. Não havia neles nem no seu rosto quaisquer vestígios que denotassem a tristeza que sentia naquele momento. As pupilas femininas estavam limpas, a sua expressão era suave, mas isenta de rancor.

 

Não voltou, Júlio disse com naturalidade. Tudo passou. Isto...isto é muito diferente.

 

Porque pertences a outro homem?

 

Porque tenho um marido e uma filha, e sou feliz.

 

Feliz?

 

Duvidas?

 

Que entendes por felicidade?

 

A tranquilidade de consciência.

 

No que respeita a teu marido sim, podes ter tranquilidade de consciência, mas recorda o rapaz jovem, cheio de vida e de ilusões, que deixaste plantado sem qualquer explicação. Julgaste, talvez, que eu não tinha direito a amar, e no entanto...

 

Júlio pediu ela, ansiosamente, se pensas atormentar-me com o passado, se não tencionas ser para mim um bom amigo, peço-te, suplico-te que te afastes de nós.

 

Tens medo?

 

Não negou energicamente. Não tenho medo porque estou segura de mim mesma. Há dezoito anos que estou casada, ainda que não ame o meu marido apaixonadamente, quero-o bastante para o respeitar acima de tudo.

 

Se não fosses assim, Raquel, se não sentisses as coisas como sentes, eu não te teria amado. Não obstante, é doloroso ter passado por esta vida, ver a felicidade que passou próximo de nós e tê-la deixado escapar sem que qualquer de nós nos apercebêssemos disso. Hoje tens uma filha, uma filha interessantíssima, que é o teu próprio retrato, um marido e um lar, se não feliz, pelo menos tranquilo. E que tenho eu, Raquel? Que me ficou de tudo aquilo? Não te censuro, eras uma inconsciente, não tinhas força de vontade e deixaste-te dominar pelos teus pais.

 

Terminou a música e Júlio acompanhou Raquel até junto de Ricardo.

 

Agora suponho que queiras dançar tu, meu amigo. Ricardo esboçou um meio sorriso sarcástico.

 

Dançar eu! repetiu tristemente. Eu sou um homem submetido a uma prescrição facultativa rigorosíssima. Não posso dançar, não posso beber, não posso fumar em excesso, não posso fazer nada do que gostaria fazer.

 

Júlio olhou para Raquel, mas não encontrou o seu olhar. E sentiu uma coisa que desgarrava o seu coração, porque imaginou Raquel tão fina, tão distinta, tão amante da boa vida e da diversão, submetida àquele homem sem saúde. E tinha desprezado a felicidade a seu lado para unir-se a um homem doente. Que pena sentiu, que desassossego e que intranquilidade!

 

Não me convida para dançar, Júlio?

 

Voltou-se rapidamente. Os olhos cor de turquesa de Mary contemplavam-no brincalhões. Parecia-lhe que diante dele tinha a antiga Raquel, com os seus lábios sensuais, os seus olhos cheios de vida, o seu busto erguido e bem definido, as suas mãos suaves e expressivas.

 

E como se Raquel adivinhasse os seus pensamentos, ambos se olharam. Os dela pareceram dizer: ”Não brinques com a minha filha, não a iludas, porque tu nunca poderás fazer dela tua esposa. Estás amargurado, tens lidado com muitas mulheres, não saberás aquilatar o valor da minha filha”.

 

E os olhos masculinos disseram: ”Não receies, Raquel. Ainda que quisesse não poderia. Mary é como tu, mas eu amei-te e ainda te amo”.

 

Claro que sin, Mary exclamou, enlaçando-a pela cintura.

 

Dançaram alegremente, como dois rapazes. Júlio já não era um jovem. Tinha sobre seus ombros o peso enorme dos seus trinta e seis anos.

 

Danças muito bem, Mary. Quando foste apresentada em sociedade?

 

Há uns meses.

 

Diz-me quantos anos tens. Mas quero a verdade! No outro dia disseste-me que tinhas dezoito e isso não pode ser, pois os teus pais casaram um ano depois de eu partir de Espanha e isso aconteceu à dezoito anos.

 

Tenho dezassete, mas não digas a ninguém. Tratava-o por tu isso não desagradou a Júlio.

 

És uma rapariga deliciosa.

 

Galanteias-me?

 

Sou absolutamente sincero.

 

Levou-a até ao terraço. Acendeu um cigarro e contemplou-a fixamente através da obscuridade.

 

Não tens noivo, Mary?

 

Não! Não gosto de nenhum homem dos que tenho convivido até agora.

 

É porque ainda não chegou o teu.

 

Julgas que chegará?

 

Claro que sim.

 

Tu estiveste muito apaixonado por uma mulher, verdade? Continuas a amá-la?

 

Sempre.

 

Que belo! Os homens de hoje não amam assim.

 

Os homens de ontem, como os de hoje, quando amam de verdade são sempre fiéis. Os que não amam não são fiéis perante a mulher amada nem perante eles mesmos.

 

Voltaste a ver essa mulher?

 

Júlio soltou uma alegre gargalhada. Depois agarrou na mão de Mary e apertou-a suavemente, como faria a uma irmã. Quando ia levar aquela mão aos seus lábios, na porta do terraço perfilou-se a muda figura de Raquel San Juan. Os olhos daquela mulher cravaram-se acusadores, com desaprovação, na face um pouco pálida de Júlio. Este largou a mão de Mary e suspirou fundo. E naquele momento, Mary olhou para a porta e olhou para a mãe com firmeza.

 

Porque havia Júlio soltado a sua mão quase precipitadamente? E porque olhava sua mãe para o futebolista daquela maneira insistente, como se ele pudesse perceber a muda linguagem dos seus olhos?

 

Desassossegada e inquieta, foi ao encontro de sua mãe.

 

Raquel suspirou como se saísse de um profundo sonho e a sua boca entreabriu-se num sorriso apenas perceptível.

 

Vamo-nos embora, Mary. O papá não se sente bem.

 

Era frio o seu tom e frio o olhar que continuava a cravar em Júlio, que apagou o cigarro e caminhou atrás delas. Mas em vez de seguí-las, meteu-se no bar e pediu um ”coktail”.

 

Momentos depois, o carro dos Herraiz afastava-se pelas ruas desertas em direcção a sua casa.

 

Na manhã seguinte, Júlio, sem despedir-se, partiu para a província da Estremadura.

 

Comprou a quinta onde tinham vivido seus pais.

 

O seu administrador, por ordem sua, tinha transformado aquelas humildes casinhas, que anos antes pareciam envoltas na maior miséria, numa magnífica quinta de recreio, rodeada de campo, com todos os requisitos modernos e de uma elegância admirável.

 

Naquela manhã, dois meses depois de ter saído de Madrid, encontrava-se no terraço, fumando um aromático cigarro. O seu administrador, um rapaz jovem, de porte distinto, muito inteligente e bem relacionado, estava com ele.

 

De quem é aquela quinta que fica do outro lado da colina, Javier?

 

De Ricardo Herraiz.

 

Ricardo Herraiz! repetiu Júlio, com o pensamento torturado. É que não conseguia ver-se livre daquela família?

 

Porque voltava o Destino a fazer com que se encontrassem, se tinha partido de Madrid precisamente para não voltar a vê-los?

 

Ignorava que Herraiz tivesse propriedades por estes sítios desertos.

 

Este terreno foi ele que mo vendeu. Vendeu-mo por saber que era para ti.

 

Deu a volta e sentou-se numa poltrona.

 

Estava um dia de sol. Javier encostou-se a uma coluna.

 

Eram amigos, Javier jogava no Atlético, mas perdeu um dedo do pé direito e retirou-se. Conheceram-se na Suíça. Javier estudava e depois de conseguir um curso afastou-se de Espanha. Tornaram-se amigos. Javier não pôde continuar os seus estudos e Júlio ajudou-o a viver. Algum tempo depois, Júlio propôs-lhe administrar os seus bens e Javier aceitou agradecido. Desde então encontravam-se amiúde. Júlio agradecia-lhe infinitamente o interesse que Javier lhe dispensava e o zelo com que administrava o seu dinheiro.

 

Disseram-me que voltarás a jogar disse Javier, de súbito.

 

Jogar! Não, nunca mais jogarei. Vou refugiar-me nesta quinta. Converter-me-ei num lavrador. Já não sou novo para o futebol e prefiro retirar-me a tempo.

 

Sou do teu parecer. Pena é que eu não possa dizer outro tanto.

 

Olhou para o seu pé. Não parecia deformado nem se notava que lhe faltava um dedo.

 

De repente ambos voltaram a cabeça. O carteiro avançava pelo extenso parque, montado na sua bicicleta preta.

 

Agitava o correio na mão que tinha livre e quando deixou a bicicleta encostada a uma coluna, subiu ao terraço e pôs o correio em cima duma mesinha. Depois tirou o boné e com um lenço limpou o suor que lhe escorria da testa.

 

Faz um calor insuportável. Já sabem da notícia? Vem no jornal.

 

E sem dizer mais nada voltou a descer, montou na bicicleta e afastou-se, assobiando.

 

Júlio não se moveu. Continuava estendido numa cadeira de viagem, com um cigarro entre os lábios e as mãos caídas ao longo do corpo.

 

Vou ver que notícia é essa disse Javier, agarrando no jornal.

 

Desdobrou-o. Lançou uma exclamação sufocada.

 

Que atrocidade!

 

Júlio não se moveu. Dir-se-ia que se encontrava muito longe dali.

 

Javier leu com voz apenas perceptível:

 

”Faleceu o nosso companheiro de Imprensa, Ricardo Herraiz”.

 

Ouviste, Júlio?

 

Por toda a resposta, o ex-futebolista tirou do bolso uma carta de luto.

 

Mandaram-ma ontem disse. É terrível!

 

E levantou-se. O seu rosto extremamente pálido estava mais crispado do que nunca.

 

O Destino persegue-nos disse muito baixo. E retirou-se.

 

Javier ficou pensativo e desconcertado. Por que razão lhe falara Júlio no assunto? Porque não demonstrava o que na realidade sentia naquele momento?

 

Voltou a ler:

 

”Depois de grave doença, tivemos a desgraça de perder o nosso melhor amigo e companheiro...”

 

Amachucou o jornal e atirou-o para longe. O seu olhar fixou-se na bela quinta dos Herraiz. Lembrou-se de Mary, de Raquel e pensou em Júlio.

 

Era o único que conhecia o seu segredo. Que sentiria Júlio naquele momento? Prazer? Felicidade? Tristeza?

 

Júlio encontrava-se naquele momento no seu escritório, com a cabeça apoiada nas mãos.

 

Não sentia felicidade nem prazer. Experimentava uma profunda tristeza. Conhecera Ricardo o suficiente para dedicar-lhe uma grande amizade, porque ele nunca, nem nos momentos mais críticos lhe negara a sua amizade.

 

Ricardo era um homem leal, sincero, carinhoso e honrado.

 

Uma amálgama de encontradas sensações batalhavam no coração daquele homem que amava a recordação de uma mulher e, no entanto, ao sabê-la livre, não pensou nela nem um só momento.

 

Levantou a cabeça e olhou para o papel de carta que tinha diante de si. Ia escrever, dar os seus pêsames às duas mulheres. Mary acreditá-lo-ia. Raquel, não.

 

Amachucou o papel, desesperado.

 

A porta abriu-se e Javier apareceu à entrada.

 

Não posso escrever-lhe. Ela... Apertou a cabeça com ambas as mãos e gemeu: Julgará que sou o mais feliz dos homens e não é verdade, compreendes, Javier? Não é verdade. Não.posso sê-lo porque eu estimava Ricardo. Não pensei nem um momento sequer que Raquel é livre. E ela, o passado...

 

O passado é o teu pesadelo constante exclamou Javier, fechando a porta e aproximando-se do seu amigo.

 

O passado é uma tortura para ti. Sim, eu compreendo-te. Sei que não pensas em Raquel, por causa do marido ter falecido, mas não tens que revoltar-te perante o inevitável. A vida...

 

Que vais dizer da vida? Que me deu a mim a vida? Dinheiro! Julgava que o dinheiro proporcionava tudo e não é verdade. Estou a chegar ao fim da minha vida. E que me deu ela? Que adiantei? E agora, Raquel pensará...

 

Que te importa a ti o que Raquel possa pensar se tens a consciência tranquila?

 

Júlio levantou-se e pôs-se a passear pelo escritório. Parou diantte do seu amigo e esboçou um débil sorriso.

 

Pode ser que não acredites, Javier, mas a verdade é que Raquel deixou de existir para mim. Se amanhã continuar a pensar como hoje...

 

O coração humano é muito complexo, meu amigo.

 

E que queres dizer com isso?

 

Que amanhã esse coração pode dar uma volta e...

 

Fez uma rápida transição e acrescentou suavemente:

 

Escreve-lhes. Faz um esforço e escreve. Se Raquel pensar outra coisa, que importa? O teu dever é escrever-lhe.

 

Júlio sentou-se novamente à secretária e agarrou na caneta.

 

Nunca passei por um transe semelhante disse. Preferia voltar para a Colômbia antes de ver Ricardo afundado numa... Isto é desesperante!

 

Javier deixou-o só.

 

Sabia que Júlio passava por um momento crítico e sabia também que nunca, nunca poderia esquecer Raquel. Tinham sido dezoito anos a pensar continuamente nela e agora...

 

Tinham levado a urna com o cadáver.

 

Raquel San Juan, vestida de preto, pálida, parecia uma estátua, sentada numa poltrona olhando obstinadamente para o chão.

 

Mary, a seu lado, chorava silenciosamente. Fazia calor na habitação. Os criados andavam silenciosos de um lado para o outro. As amizades já tinham saído e as duas mulheres, sozinhas, pareciam duas figuras estáticas.

 

De súbito, uma figura masculina perfilou-se na porta. Raquel não olhou. Mary deu um grito, e levantando-se correu para Júlio Mora, abraçando-se a ele.

 

Soluçou sufocadamente. Por cima da cabeça juvenil que se ocultava no seu ombro, os olhos escuros de Mora cravaram-se nos de Raquel, que ao sentir que Mary se levantara bruscamente, levantou o olhar. Houve um brilho raro naqueles olhos femininos. E Júlio observou que pouco a pouco aqueles olhos enchiam-se de lágrimas.

 

O ex-futebolista acariciou a cabeça de Mary, tranquilizou-a com suaves palavras e depois foi até junto de Raquel, diante da qual se curvou.

 

Sinto muito, Raquel disse com voz enrouquecida. Não podes imaginar quanto lastimo o sucedido. Tentei escrever-te, mas pareceu-me algo impessoal para exprimir-te o que sentia o meu coração. Creio que não saberia expressá-lo e talvez te tivesse parecido uma coisa banal.

 

Obrigada disse Raquel, apertando dèbilmente a mão que ele lhe estendia. Ricardo antes de morrer entregou-me uma carta para ti. Levantou os olhos e olhando fixamente para Júlio, acrescentou baixinho: Nomeou-te tutor da minha filha.

 

O coração de Júlio deu uma volta dentro do peito. Foi algo que não pôde evitar, pois bruscamente exclamou com voz enrouquecida:

 

Não pode ser.

 

Pode sim, Mora acentuou Raquel, com estranho acento. Nomeou-te legalmente tutor da minha filha. E deu-me esta carta fechada para que te entregasse depois da sua morte.

 

Tirou um sobrescrito do seu vestido preto e entregou-o a Júlio, sem olhá-lo.

 

Júlio estava muito pálido e indisposto porque julgava que ela pensaria que se sentia satisfeito com aquela morte e não podia provar-lhe que estava enganada.

 

Agarrou na carta e observou-a como que hipnotizado.

 

Vejo que Ricardo tomou uma decisão que não te agrada, Raquel disse. Se não o desejares eu renuncio a ser tutor da tua filha.

 

Ele quis assim e eu nunca refutei as suas ordens. Respeitei sempre o meu marido e agora que já não existe maior é o motivo para continuar a respeitá-lo.

 

Mary, que já tinha visto algo de anormal entre sua mãe e Júlio, adivinhou muitas coisas naquele momento e exprerimentou uma compaixão indescritível por sua mãe. Soube quanto e porque tinha sofrido e sentiu uma pena profunda e dolorosa.

 

Foi junto dela e beijou-a sentidamente em ambas as faces. Depois disse baixinho, carinhosamente:

 

Precisamos de um homem que nos aconselhe, mamã. Júlio foi íntimo amigo do papá. Pode ser ele esse homem.

 

Júlio retirou-se e saiu para a rua. Tinha que afastar-se dali, daquelas duas mulheres, de tudo quanto lhe fizesse lembrar Ricardo.

 

No salãozinho, Mary apertou suavemente a mão de sua mãe.

 

Raquel apertou os dentes.

 

Depois murmurou, com voz apenas perceptível:

 

Vai chamá-lo, filha.

 

Mary apoiou as costas na janela. Vira Júlio afastar-se.

 

Um criado saiu para ir chamá-lo e quando a figura de Júlio apareceu novamente no pequeno salão, Raquel soluçava sufocadamente, afundada na sua poltrona.

 

Não podia conter a sua dor. Interrogava-se acerca de se teria feito feliz o seu marido e se não estava satisfeita com a felicidade minguadíssima que ele lhe proporcionara.

 

Por favor, mamã! É preciso resignarmo-nos.

 

Sim, ela resignar-se-ia. O que sentia era outra coisa, algo muito diferente.

 

Júlio passou aquele dia em casa delas. Não falava, mas a sua presença tornava-se num consolo indescritível para Mary. Além disso...

 

Mary era uma rapariga inteligente. Sabia que, ainda que sua mãe continuasse a chorar, estava ali aquele homem que tinha amado antes e depois de ter casado com seu pai. Não a censurava. Era a lei da vida, era o destino das criaturas, era o amor, que quando é sincero e profundo, nunca se afasta do coração.

 

Quando à noite Júlio se retirou para um hotel, levava os dedos crispados sobre aquela carta que Ricardo escrevera antes de morrer:

 

Sentado numa poltrona desdobrou a carta e leu-a com o coração despedaçado:

 

”Meu querido amigo:

 

Quando Raquel te entregar esta carta já estarei muito longe, tão longe que nunca mais poderei voltar. Sei que vou morrer, Júlio. Mas antes escrevo-te esta carta para participar-te uma coisa que tu julgas que eu ignoro. Sei quem foi a mulher da tua vida, meu querido amigo. Não o soube antes de casar, mas soube-o depois, quando numa tarde de chuva fria e desagradável a minha mulher saiu para ir fazer compras e eu, indiscreto, entrei no seu quarto e remexi nas suas gavetas privadas. Estavas ali, Júlio, sorridente e feliz, arrogante, com uma bola na mão e um cravo preso ao peito da tua camisola de jogador. O choque foi terrível, mas depressa me recompus e nunca disse a ninguém, nem o demonstrei, que tinha entrado no grande segredo que me negava o coração de minha mulher. Foi honrada, carinhosa e leal, mas nunca me amou como te amou a ti. Fui indulgente e amável com ela e amei-a profundamente. Agora que estou prestes a partir para sempre deixo-a nas tuas mãos, Júlio, assim como também a tutela da minha filha e peço-te que faças felizes as duas. Procura um homem bom para Mary, que seja honrado como eu fui e saiba estimá-la e aquilatar a sua bondade. Só te peço isso E peço-te, ainda, que faças feliz, também, a Raquel. O passado pode voltar. Eu nunca serei um obstáculo na vossa felicidade. A minha sombra nunca se interporá entre vocês, porque amei Raquel de tal modo que só desejei morrer para deixar-te um lugar no seu coração. Nada mais, meu amigo. Nunca te afastes da minha filha. Vela por ela, ama Raquel e respeita sempre a memória do teu amigo.

 

Ricardo.”

 

Os dedos de Júlio crisparam-se sobre o papel que ficou convertido numa bolinha. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa e os olhos estavam humedecidos.

 

Pobre Ricardo! Quanto sofrera! E que leal foi para ela e que nobre foi com ele e perante si mesmo.

 

Mas Ricardo estava enganado. Ele não poderia fazer Raquel feliz, porque Raquel já não era a menina de então; porque Raquel sempre o culparia da morte de seu marido, nunca deixaria de pensar que ele desejava a sua morte.

 

Alisou a carta, dobrou-a cuidadosamente e guardou-a no bolso. Nunca ninguém saberia o que aquela carta dizia. Seria um segredo que morreria com ele. Ainda que seguisse à risca tudo quanto Ricardo lhe pedira com respeito à filha, no que respeitava a Raquel seria um pouco diferente. A felicidade de Raquel não dependia dele, nada poderia fazer.

 

Na manhã seguinte voltou ao palacete de Ricardo Herraiz. Falou-lhes na conveniência de se mudarem para a quinta e assentou-se na viagem para dois dias depois.

 

Não voltou a ver Raquel. A Mary via-a todos os dias, mas esta passava as horas a chorar com a cabeça apoiada nas mãos.

 

O coração de Júlio estava despedaçado. Nunca pensou que fosse tão sensível e, no entanto, era-o de tal maneira que ainda que os seus olhos permanecessem secos, o coração parecia que lhe saía do peito.

 

Passaram-se dois meses.

 

Júlio teve necessidade de regressar a Madrid, a fim de tratar de alguns assuntos de Ricardo Herraiz. Soube que o dote de Mary era bastante considerável e que Raquel ficava com o suficiente para viver com luxo, comodamente. Assim, pois, quando tudo estava em ordem, Júlio regressou à quinta extremamente satisfeito.

 

Havia dois meses que não via Mary nem a sua mãe. Naquela tarde chegou à sua quinta e depois de tomar banho vestiu roupa de montar, mandou preparar o seu puro sangue e dirigiu-se para a quinta dos Herraiz.

 

Galopou a pensar nos sews próprios assuntos. Se tinha a intenção de voltar para a Colômbia agora era de todo impossível porque Ricardo tinha-o aprisionado ao lado daquelas duas mulheres que precisavam dele. Ele de boa vontade ter-se-ia afastado do passado que voltava, porque nem Raquel voltaria a amá-lo, nem ele tinha intenção de ocupar o lugar do seu amigo. Ricardo, na sua carta, garantia que a sua sombra não seria um obstáculo na sua felicidade e, não obstante, Ricardo, naquele sentido, estava enganado. A morte do seu amigo não só seria uma fonte de pesar para Raquel, como também o seria para ele. Os tempos tinham mudado e o amor deixara de existir.

 

”Tens a certeza?”, perguntou-lhe uma voz interior.

 

”Tenho! quase gritou desesperadamente. Porque não hei-de ter se já se passaram quase dezoito anos? Sim, é ridículo que depois de tantos anos continuasse a amar a mesma mulher, a mulher que me desprezou para casar com um homem que era muito mais velho do que ela, que não poderia fazê-la feliz porque ela era uma rapariga ingénua, iludida, pelo amor e ele de maneira nenhuma poderia compreendê-la”.

 

Deixou o cavalo preso a um poste e subiu as escadas.

 

Viu-a logo a seguir. Estava sentada numa poltrona, do outro lado da porta envidraçada que dava para o jardim. Parou e contemplou-a.

 

Naquele momento, Raquel parecia a rapariga ingénua daqueles belos tempos de ilusão. Tinha o cabelo negro, curto, cuidadosamente penteado. Olhava para o horizonte e tinha as mãos cruzadas sobre o colo. Estava sozinha e parecia concentrada em profundas reflexões.

 

Recordava-se talvez do que fora seu marido?

 

Avançou resolutamente e abriu a porta envidraçada. Raquel levantou rapidamente a cabeça.

 

Como estás, Raquel? perguntou, apertando a mão que ela lhe estendia.

 

Raquel encolheu levemente os ombros, mas nada disse. Júlio arrastou uma poltrona e sentou-se em frente dela.

 

Estás um pouco pálida.

 

E triste acrescentou com voz concentrada. Não quererás que ria às gargalhadas.

 

Por favor, Raquel. Comigo empregas uma ironia como se eu, em vez de ser teu amigo, fosse o maior Inimigo.

 

Raquel respirou fundo e pela primeira vez olhou-o fixamente nos olhos.

 

Júlio era a primeira vez que o tratava pelo seu nome e Júlio sentiu um fundo prazer, que não soube a que atribuir, não deves estranhar que te julgue meu inimigo. És o tutor de minha filha, eras um bom amigo de Ricardo e sei que o respeitarás, mas eu não posso confiar em ti, porque...

 

Júlio inclinou-se para ela e contemplou-a fixamente, como se quisesse ler o que lhe ia na alma. Além disso, os olhos masculinos cintilaram.

 

Não podes acreditar na minha sinceridade porque sabes que me fizeste muito mal e receias que eu te faça tão desgraçada como tu me fizeste a mim. Endireitou-se e respirou fundo. Não, Raquel. Sou um homem recto, sei recordar, mas não sei esquecer aquilo que amo. Não sei se hoje te amo como te amei. Não sei se te guardo rancor, se te odeio, se te admiro ou se me aborreces. Sei apenas que não sou um malvado e que Ricardo Herraiz foi para mim um bom amigo. A tua filha será uma filha para mim e tu serás a esposa do amigo e a mãe da filha. Repito que ignoro ainda o que representas na minha vida, mas se julgas que foi um prazer para mim a última vontade do teu esposo, estás lamentavelmente enganada, porque o meu desejo era voltar para a minha querida Colômbia.

 

Podes desistir.

 

Se o desejares. Olha-me de frente.

 

Sim, desejo-o.

 

Júlio suportou valentemente o golpe. O seu rosto inalterável permaneceu rígido, inexpressivo. Dir-se-ia que não tinha ouvido a resposta. Acendeu um cigarro, deu uma fumaça e expeliu o fumo com absoluta indiferença.

 

Já sabia que o desejavas, Raquel, mas eu sempre respeitei a última vontade de um morto e continuarei a respeitá-la mesmo que o não queiras.

 

Raquel mordeu os lábios.

 

De repente sacudiu a cabeça, agitou as mãos e perguntou friamente:

 

Que te dizia Ricardo na carta?

 

Júlio estava profundamente magoado. Gostaria que ela pudesse avaliar a sua dor e disse, com a mesma frieza:

 

Há muito tempo que Ricardo sabia o nome da mulher que destroçou a minha vida.

 

E levantou-se.

 

Raquel, pálida e a tremer também se levantou. Avançou para ele e agarrou com febril ansiedade a mão masculina.

 

Isso não é verdade gritou. Ricardo sempre acreditou...

 

Não continues, Raquel. Ricardo acreditou naquilo que tu gostavas que acreditasse. Ricardo era um homem nobre, leal e bondoso. Tu foste egoísta. Casaste com ele sem o amar e não o fizeste feliz.

 

Arrependeu-se depois de lhe ter dito aquilo.

 

Júlio sentiu uma sacudidela em todo o seu corpo. Agitou a cabeça, agarrou nas mãos de Raquel, apertou-as càlidamente e pediu baixinho:

 

Não faças caso do que disse, Raquel. Sou um bruto, não sei o que digo. Perdoa-me querida.

 

Raquel deu a volta lentamente, sem responder. Júlio caminhou para ela e agarrou-a pelos ombros.

 

Perdoa, Raquel. Juro-te...

 

Deixa-me só, Júlio. Por favor, não voltes a minha casa para me atormentares.

 

Deu a volta e olhou-o de frente. Por um espaço de fracção de segundo, aqueles olhos cor de turquesa confundiram-se com os olhos escuros de Mora, o qual impotente para conter aquele olhar que era o mesmo da ingénua Raquel, agitou a cabeça e a passos largos encaminhou-se para a saída.

 

Raquel ficou muda e estática, com a testa encostada no frio vidro da janela. Tremia. Compreendera nuns segundos o que não tinha compreendido durante aqueles intermináveis dezoito anos.

 

Ainda o amava. O passado estava ali, na figura daquele homem arrogante que tinha amado apaixonadamente, com toda a sua alma, há muitos anos.

 

Dirigiu-se para o seu quarto. Abriu a gaveta da sua secretária e tirou a fotografia de Júlio Mora. Ali sorria suavemente, mostrando a brancura imaculada dos seus dentes. Tinha então dezanove ou vinte anos. Era um rapaz leal e sincero. Amava-a de verdade.

 

Como seria agora Júlio Mora? Que propósitos eram os seus? Odiava-a ou recordava-a ainda com amor? Quanto mal lhe tinha feito! E, no entanto, o Destino unira-os de novo.

 

Apertou o retrato com febril ansiedade e olhou para o quadro pendurado no quarto.

 

Meu Deus, perdoa-me. Amei Ricardo como se ama o pai dos nossos filhos, mas o meu amor...

 

Horrorizada, rasgou em mil pedaços o retrato de Júlio. Gemeu desesperadamente e gritou fora de si:

 

Isto tem que morrer. Tenho de viver para a minha filha. A sombra de Ricardo, interpor-se-ia sempre na nossa felicidade. Não posso. Não posso!

 

Com os bocados da fotografia fechados na mão, que tinha guardado na gaveta da sua secretária durante tantos anos, atirou-se para cima da cama e escondendo a cabeça entre as mãos soluçou sufocadamente.

 

Mamã.

 

O seu rosto pálido e as mãos crispadas assustaram Mary, a qual correu para ela e se estreitou nos seus braços maternos.

 

Que tens, mamã? Porque estás assim? Choraste outra vez?

 

Raquel beijou apaixonadamente a testa da filha e pensou, como momentos antes, que não poderia dar-lhe um padrasto. Mary já era uma mulher, ela uma velha...

 

Mamã, estás a chorar outra vez! Oh, mamã, estás a chorar outra vez? Quanto me entristeces!

 

Raquel recompôs-se e agitou a cabeça.

 

Não choro, filha. Vem, senta-te e diz-me onde estiveste.

 

Andei pelo bosque galopando com o administrador de Júlio.

 

Com o administrador? E quem é esse administrador, minha filha?

 

Mary levou-a consigo para a salinha. Empurrou-a para o sofá e sentou-se a seu lado, com as mãos da mãe entre as suas.

 

É um rapaz encantador, mamã. Chama-se Javier... E é tão distinto!

 

Mary exclamou a dama. Não consentirei que voltes a sair com ele. Não gosto dessa amizade para ti.

 

Mas, mamã, Javier é um rapaz instruído, maravilhoso. Além disso só tem vinte e oito anos.

 

Tanto pior. Não quero ver-te com ele, Mary. És uma criança e seria perigosa essa amizade.

 

Mary, com os olhos húmidos, prometeu-lhe que não voltaria a sair com ele, mas Raquel soube que nos dias seguintes Javier e a sua filha encontravam-se frequentemente e em qualquer sítio.

 

Uma semana depois, enviou um bilhete a Júlio pedindo-lhe que passasse por sua casa.

 

Júlio não foi imediatamente, mas quatro horas depois, em mangas de camisa e umas calças de flanela, um tanto despenteado e as mãos sujas de lama, apresentou-se em casa de Raquel, onde esta, sentada numa poltrona, parecia esperá-lo. Ao vê-lo de pé diante dela, vestido daquela maneira descuidada, os seus olhos tiveram um raro brilho. Depois, já recomposta da desagradável impressão que Júlio lhe causara e contente porque o via mais galhardo e jovem que nunca, apostrofou-lhe com desejos de mortificá-lo:

 

É assim que te apresentas?

 

Querida Raquel, por Deus, não sejas...Inclinou-se para ela que continuava sentada, e acrescentou com voz enrouquecida: Estamos no campo, não te esqueças. Aqui não são precisas etiquetas. Além disso prosseguiu, mordaz, viste-me muitas vezes equipado de jogador, e nunca deixaste de gostar de mim por isso. Raquel, confessa e serás um pouco mais sincera.

 

Raquel levantou-se bruscamente. Que bonita estava! Não parecia ter trinta e cinco anos, mas sim vinte e cinco, ou talvez menos. Os olhos masculinos sorriram. Aquele sorriso exasperou ainda mais a mulher.

 

És um grosseiro disse indignada.

 

Júlio meteu as mãos nos bolsos e balanceou o corpo.

 

Perfeitamente, querida. Eu sou um grosseiro e tu uma iludida.

 

Inclinou-se para ela. Olhou-a.

 

Queres revoltar-te contra o inevitável e não pode ser, Raquel. Estás apaixonada por mim como no primeiro dia e acabarás por ser minha mulher, quer queiras, quer não. Tiveste durante muitos anos a minha fotografia dentro da gaveta do teu toucador...

 

Basta!

 

Porquê? Estou a dizer a verdade.

 

Estás a profanar a memória do meu marido.

 

Não te iludas. A memória do teu marido merece-me todo o respeito. Ricardo aprovaria as minhas palavras.

 

Cala-te!

 

Júlio incorporou-se e sacudiu elegantemente a cinza do cigarro. Depois olhou-a e perguntou suavemente:

 

Que queres de mim, Raquel? Raquel suspirou fundo.

 

Desejava perguntar-te que tipo de homem é o teu administrador disse depois de uma pausa.

 

Júlio esboçou um leve sorriso de fina ironia. Sabia, porque Javier lho tinha dito, que ele amava Mary e esta correspondia-lhe. Previa naquela pergunta uma decisão para acabar com aqueles amores. Assim, pois, quis atalhá-la antes que ela pudesse expressar o seu parecer sobre o assunto, e disse indiferente:

 

Javier é um homem sério.

 

Isso não basta.

 

É leal.

 

Não basta! gritou Raquel fora de si porque o laconismo dele produzia-lhe um mal-estar que nunca experimentara.

 

Porque não basta? Que desejas, então, para a tua filha? Desejas, por acaso fazer com ela o que os teus pais fizeram contigo? Não! Sou seu tutor, tenho poder e ordem do pai para procurar a felicidade de Mary e procurá-la-ei. Ai daquele que tentar interpor-se entre Mary e Javier! Ele é um cavalheiro. Não tem dinheiro, mas isso que importa? Eu também não tinha e, no entanto, ter-te-ia feito feliz. Que conseguiste tu casando com um homem cheio de dinheiro e carregado de elegância?

 

Cala-te! gritou Raquel.

 

Júlio Mora apertou os lábios, deu meia volta e afastou-se.

 

Raquel ficou ali encolhida, com as mãos na cabeça e os olhos cheios de lágrimas.

 

Recebeu-a naquela mesma noite.

 

Era uma carta em cujo sobrescrito se lia o seu nome.

 

Trouxe-a um criado dos Herraiz. Júlio e Javier encontravam-se no terraço tomando o fresco. Fazia muito calor e ambos estavam em mangas de camisa, com o cigarro na boca.

 

Júlio abriu o sobrescrito e olhou interessado para o conteúdo.

 

Que disparate! exclamou estendendo a carta a Javier. Olha o que fez o gèniozinho da tua sogra.

 

Que mal soa isto, Júlio! sorriu Javier, còmicamente.

 

De qualquer forma, sendo como é uma sogra jovem e bonita...

 

Como, brincas com a tua própria dor!

 

Sim! Como brinco do meu fracasso! Como me rio do tempo que passa e não voltará! Se Ricardo tivesse conhecido bem a sua esposa não aprovaria a sua maneira de raciocinar. Se eu não tivesse lido a carta de Ricardo disse depois, nunca voltaria a aproximar-me de Raquel.

 

Mas conheci Ricardo, soube aquilatar a sua bondade e sei que ele seria feliz se eu me casasse com a esposa.

 

Continuas a amá-la?

 

Júlio apagou o cigarro contra a balaustrada e olhou para o horizonte.

 

Mais do que a minha própria vida disse. Antes talvez não tivesse passado de uma ilusão frustrada, hoje é amor. O amor de um homem maduro que sabe o que quer. Mas nunca Raquel será minha mulher porque é teimosa, porque é voluntariosa, porque pensa que a sombra de Ricardo se interporá continuamente entre o nosso amor.

 

Fez uma rápida transição e perguntou:

 

Compreendeste o significado de ter rasgado a minha fotografia?

 

Creio que sim.

 

É fácil. Esta tarde chamou-me para me dizer que nunca consentirá que cases com Mary.

 

Mary falou-me nisso.

 

E que pensas fazer?

 

Amo Mary pelo que é e não pelo que tem. Amo-a e não estou disposto a renunciar ao meu amor pelo capricho de uma mulher histérica. Por outro lado, sei que Raquel não tem uma ideia enraizada de correr comigo. Quer enfrentar-se contigo e por isso te contraria...

 

Talvez. De qualquer modo esta fotografia rasgada dá-me a resposta.

 

E sem dar mais explicações, guardou no bolso o que restava do retrato e acendeu outro cigarro.

 

Na manhã seguinte, Júlio montado no seu puro-sangue internou-se no bosque com tão pouca sorte que o cavalo tropeçou e caiu por um precipício, ficando meio entalado nas rochas.

 

Duas horas depois, Javier e Mary, que passeavam na mesma direcção, viram as marcas deixadas no solo pelo animal. Dirigiram-se rapidamente para o fundo do barranco e viram Júlio que se arrastava a sangrar, procurando alcançar o cimo da lomba.

 

Enquanto Javier, de gatas, procurava chegar junto do seu amigo, Mary montou e foi procurar alguém que pudesse ajudá-los.

 

Tudo aconteceu rapidamente. Os criados da sua quinta acompanharam-na e meia hora depois, o corpo de Júlio, muito maltratado, chegou a casa de Raquel.

 

Como a quinta de Júlio ficava ainda um pouco distante, Mary, sem saber o que fazia, desesperada e enlouquecida, ordenou que o levassem para sua casa.

 

Raquel, que ainda não se tinha apercebido de nada, quando ouviu barulho correu escada acima e já não pôde ver mais do que o rosto daquele homem que tanto amava, banhado em sangue, estendido sobre a cama da própria filha.

 

Que sucedeu? perguntou, abrindo caminho por entre os presentes, com os olhos muito abertos, o rosto pálido.

 

O cavalo tomou o freio nos dentes, mamã gemeu Mary, soluçando. Temos que ir buscar um médico. Vai no carro, Javier acrescentou, olhando para o noivo. Vai tu mesmo.

 

Javier, mudo e muito pálido, saiu do quarto seguido dos criados.

 

Traz água, Mary pediu Raquel, com voz impessoal. Tratemos dele. Parece que as feridas não são muito profundas.

 

Parecia mentira que tivesse tanta serenidade. Era outra mulher perante a dor daquela desgraça inesperada. Estava muito pálida, é certo, mas a sua energia anulara por completo o desconcerto do seu rosto, agora muito mais bonito pela dor.

 

Quando Mary saiu do quarto aproximou-se de Júlio.

 

Júlio chamou baixo, acariciando o cabelo despenteado. Júlio, ouves-me?

 

Os olhos de Júlio quiseram abrir-se e inconscientemente procurou a mão feminina. Quis apertá-la, mas não pôde.

 

Júlio, querido...

 

Os lábios da mulher voltaram a fechar-se. Na testa corriam-lhe duas gotas de suor frio.

 

Fui um... um bruto...disse Júlio, com voz apenas perceptível. Ia... ia pensando...

 

Inclinou a cabeça para um lado.

 

Naquele momento chegou Mary.

 

A energia de Raquel cresceu ainda mais. Com suavidade limpou o sangue, lavou cuidadosamente o rosto. Tinha alguns arranhões, mas não feridas profundas.

 

Minutos depois chegava o médico. Ligou-lhe a cabeça, auscultou o ferido e disse que não podia mover-se, que havia qualquer coisa de comoção cerebral.

 

Os três, silenciosos, quietos, rígidos, permaneceram à cabeceira do doente.

 

Raquel, afundada numa poltrona junto à varanda. Mary, sentada numa cadeira baixa, ao lado da cama; Javier, mudo e sério, de pé, estava aos pés da cama.

 

Júlio permanecia imóvel. De vez em quando movia-se, delirava com palavras ininteligíveis.

 

Podem retirar-se disse Javier. Eu ficarei aqui a olhar por ele.

 

Não saio daqui respondeu Mary, com energia. Raquel nada disse, mas continuou sentada, muito quieta, com os olhos cravados no chão.

 

Desta maneira passaram-se três dias.

 

Quando Júlio abriu os olhos pela primeira vez e procurou ansiosamente os rostos amigos, não encontrou mais que dois: o de Mary e o de Javier.

 

Ela não estava! Teria sonhado... Pensou que ela estava ali, que não se retirara do seu lado, mas tudo fora um sonho.

 

Estás melhor?

 

Dói-me a cabeça, Mary. Porque não vais descansar?

 

Irei agora. Javier ficará aqui.

 

Que vá também descansar. Prefiro estar só.

 

Não perguntou por ela. Sentia-se deprimido e desiludido. Sabia, além disso, que a ela não podia interessar-lhe nada do que lhe acontecera, visto que não o tinha ido ver nem uma só vez. E, não obstante, parecia recordar que a mão de Raquel tinha acariciado o seu cabelo.

 

Naquela mesma tarde o médico compareceu ali e disse que se ao fim de mais dois dias as feridas da perna e da cabeça não abrissem que poderia sentar-se na cama.

 

Posso ir para minha casa, doutor? perguntou ansiosamente.

 

O médico moveu a cabeça negativamente.

 

Durante mais uma semana não pode sair daí. Ficou desarmado.

 

Era um fardo para ela. Não devia continuar ali.

 

Ao anoitecer, Javier e Mary saíram para o parque e ele ficou só. Olhava para a porta insistentemente, como se pretendesse arrastar até ao seu quarto a figura da mulher que parecia ignorar a sua presença. E como se os seus olhos tivessem poder magnético, a porta abriu-se e a esbelta figura de Raquel San Juan apareceu no umbral.

 

Era evidente a sua ansiedade, pois lia-se facilmente nas suas delicadas feições. Tinha os olhos muito abertos.

 

Júlio tinha os olhos semicerrados, como se estivesse a dormir. Ao vê-la não se moveu, dir-se-ia que o seu corpo não tinha vida.

 

Raquel avançou lentamente e ficou muito quieta ao lado da cama.

 

De repente, a mão de Júlio estendeu-se e agarrou nos dedos femininos.

 

Estás fria murmurou.

 

Raquel pareceu crescer. Era evidente que pretendia ocultar a forte impressão recebida. Quis retirar a sua mão, mas Júlio apertou-a càlidamente entre os seus dedos nervosos.

 

Senta-te, Raquel. Tens sido uma ingrata. Sabes que estava doente em tua casa e nem uma só vez vieste ver-me. Que depressa deixei de ser para ti um amigo! Esqueceste-me depressa.

 

Júlio dizia isto para saber se era certo o que sonhara, mas Raquel permaneceu muda. Absteve-se de responder.

 

Não obstante, deixou-se cair na beira da cama e olhou para aquele homem que tanto amara e que ainda continuava a amar como se em vez de ter trinta e cinco anos tivesse dezassete, como sua filha.

 

E era isto que Raquel não podia tolerar. Era aquela paixão que a destroçava, porque não queria convencer-se de que na sua idade ainda pudesse amar com o mesmo ímpeto da juventude.

 

Como te sentes? perguntou baixinho.

 

Bastante melhor.

 

Calaram-se. De repente, ela perguntou:

 

Onde está Mary?

 

Passeando no parque com Javier. Suponho que agora não te negarás a autorizar o casamento. Já conheces Javier o suficiente para saberes que se trata de um verdadeiro homem, honrado e bondoso.

 

Não consentirei que Mary case. É muito jovem, preciso dela a meu lado.

 

Júlio largou a mão dela e tentou erguer-se com fúria. As mãos de Raquel pousaram nos seus ombros obrigando-o a conservar-se na posição inicial. E foi naquele momento quando ficaram muito juntos, que Júlio, sem pensar em nada abraçou Raquel e apertou-a contra si, e antes que Raquel pudesse raciocinar, beijou-a. Foi um beijo interminável, como aqueles que, às escondidas, deram quando jovens, quando ambos só pensavam neles.

 

Raquel sentiu que todo o seu sangue lhe subia à cara. Tremeu-lhe o corpo de impotência e de raiva e, ainda que tivesse fechado a boca, sentiu a intensidade do beijo no mais íntimo do seu coração despedaçado.

 

És uma egoísta disse Júlio sem largá-la, encostando os seus lábios ao ouvido feminino. Precisas da tua filha e negas-lhe a felicidade. Porquê? Porque mudaste tanto? Porque não encontrei vida nos teus lábios, quando dantes me davas todo o teu coração em teus beijos? Porque és ingrata? Porque estiveste fechada no teu quarto durante estes dias e não vieste ver-me?

 

Raquel afastou-se com brusquidão. Limpou os lábios doridos e disse com acento surdo:

 

Não respeitaste sequer a memória do homem que foi teu amigo. És um canalha, Júlio Mora, um canalha e um...

 

Cala-te! Ricardo era um bom homem. Sabia que tu me amavas. Foste sua esposa, tiveste uma filha do vosso casamento, mas nunca lhe deste o teu coração. Que tiveste tu? Não tiveste dignidade porque casaste contra a tua vontade, nem tiveste coração porque lho negaste, como a minm. E não tiveste alma gritou nem a tens ainda hoje, porque pretendes fazer com a tua filha o que os teus pais fizeram contigo. Vai-te embora, Raquel. Prefiro estar só do que ver o teu rosto indiferente, o teu semblante inalterável perante a dor dos outros.

 

Estendeu o braço e indicou-lhe a porta.

 

Vai-te embora. vociferou com voz enrouquecida. Não quero ver-te mais. Não quero, ouves?

 

Raquel, com as mãos crispadas, retrocedeu até à porta, e quando chegou à esta, olhou-o de uma maneira estranha e afastou-se.

 

Júlio ergueu-se na cama e apertou as fontes. Eram lágrimas o que vislumbrara nos olhos cor de turquesa.

 

Entrou no seu quarto e deixou-se cair na cama.

 

Ocultou o rosto nas mãos e chorou como nunca chorara na sua vida.

 

Que mal a compreendia! Não via que se ela se emparedava sob a máscara da indiferença era porque o temia e a si própria, ao seu amor que cada vez se tornava mais intenso.

 

Ele ignorava que se invocava Ricardo era porque desejava fazê-lo compreender que ela se sacrificava pela recordação daquele homem que não fizera feliz.

 

E era certo. Não tivera coração nem alma, com sentimentos delicados espirituais. Vendera-se e entregara-se a Ricardo sem amá-lo, e agora...

 

Sentou-se na cama e olhou-se ao espelho. Parecia-lhe ridículo que na sua idade continuasse a amar um homem com a mesma intensidade e a mesma paixão da juventude. Já não era nenhuma criança. Tinha uma filha com dezassete anos e esta estava apaixonada.

 

”És uma egoísta. Pretendes fazer com a tua filha o que os teus pais fizeram contigo”. Não. Ela pretendia torcer o destino de Mary. Doía-lhe separar-se dela, perder os seus direitos de mãe.

 

Mas estes não eram motivos para que negasse totalmente a felicidade de sua filha. Era evidente que nem ela mesma sabia encontrar as causas da sua negativa, mas continuaria a negar mesmo que isso implicasse o desprezo de Júlio.

 

Saiu para o terraço e contemplou o jardim banhado pelo crepúsculo.

 

A primeira coisa que os seus olhos viram foi Mary a passear pelo parque de braço dado com Javier.

 

Gentis e formosos os dois; amando-se mutuamente. Sentia pena e raiva ao mesmo tempo e não soube definir as causas que motivavam aquela pena nem aquela raiva. Voltou a entrar em casa e resolutamente dirigiu-se para o quarto de Júlio.

 

Encontrou-o estendido sobre a cama.

 

Júlio chamou, baixinho.

 

O ferido levantou a cabeça lentamente. Os olhos masculinos estavam muito brilhantes.

 

Que desejas? Vens torturar-me mais?

 

Raquel sentou-se na beira da cama e a sua mão tremente acariciou os cabelos rebeldes.

 

Ouve, Júlio. Sei que te pareço injusta. Sei que fazes o juízo severo acerca da minha maneira de proceder... Sei muitas coisas que não posso explicar agora, mas volto a repetir-te que digas a Javier que não quero que passeie com a minha filha.

 

Tem que haver um motivo.

 

Talvez o meu próprio passado. Eu naquela altura amava-te. Amava-te com toda a minha alma acrescentou sem olhá-lo. Dei ouvidos aos meus pais e deixei-te. Nunca nada me custou tanto. Era uma rapariga inexperiente. Por isso não consinto nesse casamento. Mary pode estar apenas iludida e amanhã, ou depois, ou daqui a um ano ou sei lá quando, pode censurar-me por ter dado consentimento para se casar quando era ainda uma criança. Javier que parta e que volte daqui a algum tempo e se nessa altura ainda se amarem então que se casem. Se assim não suceder, não darei o meu consentimento.

 

E levantando-se, afastou-se antes que Júlio pudesse expor o seu parecer.

 

Passaram-se alguns dias.

 

Júlio pôde levantar-se e sentar-se próximo da janela, com uma manta por cima das pernas. A barba tinha crescido e o seu estado de espírito era desanimador.

 

Não dissera nada a Javier a respeito do desejo de Raquel. Era evidente o mau humor de Júlio e a ansiedade dos noivos, que continuavam a passear no parque, esperando de um momento para o outro que Raquel decidisse sair para afastar assim a sua filha do jovem administrador. Mas Raquel, como se deliberadamente decidisse esconder-se, passava quase todo o dia fechada no seu quarto.

 

A porta abriu-se repentinamente e a figura de Mary recortou-se no umbral.

 

Entra, querida.

 

Como te sentes?

 

Muito melhor. Esta tarde, ao anoitecer, irei para minha casa.

 

É muito cedo ainda, Júlio. É melhor esperares até estares restabelecido.

 

Júlio contemplou-a carinhosamente. Estendeu a mão e agarrou suavemente na de Mary. Apertou-a càlidamente e murmurou com tristeza:

 

Não quero privar a tua mãe do seu lar. Enquanto eu aqui estiver, a tua mãe passa os dias fechada no quarto. É uma ingratidão da minha parte privá-la dos seus passeios quotidianos pelo parque e pelo jardim.

 

Mary cravou os seus olhos perscrutadores na face um tanto descomposta do ex-futebolista.

 

Amaste-a muito, verdade? perguntou com brusquidão.

 

Júlio levantou rapidamente a cabeça.

 

Porque dizes isso, Mary?

 

Eu sei tudo, Júlio. É inútil negares.

 

O que é que tu sabes? interrogou Júlio, com surdo acento. Quem te disse? Javier?

 

Javier nada me disse. Desde o momento que foste a minha casa que relacionei a existência da minha mãe com o teu passado. Conheci todo o teu passado antes de te ter conhecido. Meu pai falou-me de ti na manhã desse dia. Disse que tinhas regressado a Madrid depois de uma ausência de muitos anos e falou da mulher que amaste, sem nomear o seu nome. Depois...

 

 

Cala-te, Mary! pediu Júlio, com voz ténue. O passado cada vez está a tornar-se pior para mim. Tenho de esquecê-lo.

 

Porquê? Os dois são livres. Amava o meu pai com toda a minha alma acrescentou, com os olhos rasos de lágrimas. Foi um homem ideal, bom, carinhoso e convpreensivo. Mas também amo a minha mãe e sei que ela sofreu muito. Por isso desejo que ela seja feliz. Meu pai não desaprovaria o vosso casamento, se...

 

Júlio largou a mão feminina e tirou uma carta do bolso que entregou à jovem.

 

Lê esta carta, Mary. Escreveu-a o teu pai antes de morrer.

 

Mary aceitou a carta e leu-a atentamente em voz baixa. Quando terminou tinha os olhos rasos de lágrimas. Voltou a entregá-la a Júlio e apenas disse:

 

Era o homem mais bondoso do mundo, o mais compreensivo, o mais resignado.

 

E levantou-se.

 

Nem tu nem a mamã tiveram qualquer culpa. Foi o Destino que se encarregou de tudo. Agora é preciso que saibam que se amam e até onde podeis amar-vos.

 

E saiu depois de beijar a testa daquele homem que sofria de uma maneira indescritível.

 

Apoiado a uma bengala, Júlio percorreu toda a galeria. No outro lado viu-a, quieta, quase rígida, com a cabeça encostada ao vidro da janela.

 

Caminhou devagar e parou atrás dela.

 

Continuas a pensar, verdade? Raquel voltou-se.

 

Júlio contemplou-a com mais tristeza do que com satisfação.

 

Não quero pensar disse Raquel, encostando-se à janela e olhando-o de frente.

 

Às vezes é conveniente não pensar; outras necessário. No nosso caso é quase uma obrigação.

 

Não temos nada em comum.

 

Já o tivemos, Raquel, e podemos continuar a tê-lo. Quando soube que Ricardo tinha morrido não experimentei qualquer satisfação. Pelo contrário, senti uma pena infinita, uma dor profunda, quase cruel. Agora não sinto pena nem alegria; apenas desejo que cases comigo e esqueçamos o passado. Repito que Ricardo sentir-se-á feliz lá no outro mundo. Por outro lado, és jovem, tens as tuas aspirações, mesmo que digas o contrário, e os teus infinitos desejos de viver e ser feliz. Se não sentisses isto não serias humana, e tu, Raquel, tal como eu, és realista, isenta de falsas ilusões.

 

Falava com voz monótona, muito baixa, mas enérgica. No fundo sentia-se tão deprimido como ela. E duvidava certamente, da felicidade que lhe oferecia, porque conhecia Raquel e sabia que ela, dali em diante poderia desfrutar de uma felicidade muito problemática uma vez que não lhe seria fácil esquecer a morte de um homem a que não tinha feito feliz como merecia.

 

Já não pode ser, Júlio disse ela, tristemente. O passado não voltará para ti nem para mim. Tu és jovem, talvez possas ser feliz com outra mulher. Seria ridículo que nesta altura, já com uma filha em idade de casar, e com tanto sofrimento no coração, tivesse coragem para prometer-te o que talvez não possa dar-te. Não... É conveniente que te afastes novamente, que vivas a tua vida e esqueças para sempre um passado que não pode voltar.

 

Sou razoável. Um dia agradecer-me-ás.

 

Agradecer-te? Não compreendes que nunca poderei agradecer-te que me negues a oportunidade de fazer-te feliz e ser feliz por minha vez? Eu não posso esquecer, porque durante muitos anos amei a tua recordação sem ver-te, sem ouvir a tua voz... Agora que te vejo, que te toco, que vivo a teu lado, como posso esquecer-te?

 

Raquel retorceu as mãos, uma na outra. Era evidente o seu nervosismo, o seu desassossego e a sua dor profunda que ele nunca poderia compreender.

 

Não fales assim pediu. Feres-me profundamente. Sê compreensivo, Júlio. O passado morreu, teve que morrer quando morreu Ricardo. Eu não poderia viver contigo. Não poderia! Olhou desesperadamente e acrescentou, com surdo acento: Não poderia sentir os teus beijos, não poderia ser uma esposa normal. Não poderia tolerar muitas coisas porque a sombra de Ricardo se interporia sempre entre os dois. Tens que perceber isto, tens que compreender, como eu, que não pode ser. Dentro de algum tempo, quando vires que eu não podia mudar, censurar-me-ias e eu não poderia suportar isso. Se eu tivesse amado Ricardo como te amei a ti, casaria contigo. Mas não o amei com o coração. Dei-lhe toda a minha vida, mas não pude dar-lhe o que não era meu. Tenho um grande remorso na consciência e se me casasse contigo, esse remorso converter-se-ia em suplício para mim.

 

Júlio agarrou nas mãos de Raquel e apertou-as de encontro ao seu peito.

 

Sofres, querida. Sofres demasiado sem motivo algum. Estas lutas psicológicas acabarão contigo. Porque não experimentas amar-me? Porque não te esforças em pensar que o passado não morreu, que eu sou um rapaz iludido com o meu futebol, com o meu clube e o teu amor, e tu uma rapariguinha sonhadora que ia todos os dias com os livros debaixo do braço ter com o seu namorado ao café?

 

Raquel fugiu-lhe com as mãos e suspirou fundo, como se lhe faltasse o ar. Olhou para longe e os seus olhos encheram-se de lágrimas.

 

Não posso pensar isso porque não sou uma iludida.

 

Tu mesmo disseste há pouco que era uma mulher realista. E é certo, Júlio. Somente penso que tenho trinta e seis anos e uma filha de dezassete.

 

E julgas que uma mulher na tua idade não pode amar? Ouve, Raquel. Uma mulher aos dezassete anos sonha que ama; uma mulher aos vinte e cinco ama, apenas; e uma mulher na tua idade ama e sabe o que quer, que é o importante.

 

Não pode ser, Júlio gritou fora de si, porque ele expunha-lhe as razões que ela concluíra muitas vezes. Não pode ser, compreendes?

 

Júlio, com violência, sacudiu-a pelos ombros.

 

És uma louca quase gritou. E acabarás por enlouquecer e eu também. Estás obcecada, mas raciocinarás para bem dos dois.

 

Há muito tempo que ando a raciocinar. Se julgas que nunca pergunto a mim própria o que hei-de fazer, estás enganado. Todos os dias, a qualquer hora e onde quer que seja, interrogo-me sobre o que devo fazer, e uma voz interior diz-me que devo respeitar a memória do meu marido.

 

Insensata! E pensas que deixas de respeitá-la se casares comigo? Julgas por acaso que eu não respeito a memória de Ricardo?

 

Largou-a. Deixou cair os braços ao longo do corpo, e deu uns passos para trás.

 

Bem, Raquel, não te esforces. Depois de tudo, sou do parecer de que se não estás disposta a esquecer tudo, é preferível as coisas serem como dizes. No entanto, lembra-te bem do que te digo: eu não voltarei a pronunciar uma palavra sobre este assunto recalcou com violência. Se um dia quiseres rectificar, terás de ser tu a tomar a iniciativa. Ah, mas não te esqueças de que ainda és nova, que tens o teu desejo de viver, as tuas paixões adormecidas, que quando menos esperares despertarão. Nessa altura já posso estar muito longe daqui. Dizem que a felicidade só nos bate à porta uma vez e se a deixamos fugir é difícil, quase impossível voltar a agarrá-la. Tu casaste com Ricardo, tiveram uma filha do vosso enlace, não saboreaste uma partícula de felicidade porque não o amavas. Se um dia mudares de ideia chama-me, porque estarei sempre disposto a correr para ti. E agora vou-me embora. Não sei para onde vou nem quando voltarei. Talvez volte daqui a um mês ou nunca mais.

 

Nem sequer lhe apertou a mão. Olhou-a por um momento, de uma maneira indefinível e, depois, apoiado na sua bengala, deu a volta e afastou-se pela galeria em direcção ao parque.

 

Raquel encostou novamente a testa na vidraça. E viu a arrogante figura perder-se no caminho da sua quinta.

 

Tudo tinha acabado. Não sabia se sentia satisfação ou felicidade. Apenas sabia que os seus olhos estavam rasos de lágrimas e que sentia o coração oprimido.

 

Quando a sua filha regressou ao anoitecer, disse tristemente:

 

Mamã, amanhã à tarde Júlio parte outra vez para o estrangeiro. Sabias?

 

Sim, sabia respondeu a mãe, secamente. Apenas os seus olhos tiveram um raro brilho ao elevarem-se para a fotografia de Ricardo Herraiz, que parecia desaprovar energicamente a determinação de sua esposa. Raquel observou aquela expressão e sentiu qualquer coisa muito rara subir-lhe do coração à boca. Mas não disse absolutamente nada.

 

Na tarde do dia seguinte o carro de Júlio Mora, comprido, estilizado, de um tom verde muito suave, parou diante da quinta de Raquel San Juan.

 

Saiu do carro e, com Javier, subiu as escadas de mármore até ao terraço.

 

Desejo falar com a senhora disse a um criado. Este olhou-o surpreendido, pois sabia que Júlio Mora era íntimo da família e causava-lhe profunda estranheza que se fizesse anunciar com tanta cerimónia.

 

Não obstante, aceitou o cartão de Javier e do próprio Júlio e retirou-se para o interior da habitação.

 

Minutos depois, eram introduzidos no salão principal. Adivinhava por acaso a dona da casa o significado daquela visita inesperada?

 

Talvez, visto que apareceu elegantemente vestida e acompanhada de sua filha, e recebeu-os como se nunca os tivesse visto antes.

 

Raquel estava firmemente resolvida a não estranhar o que quer que fosse. Se Júlio vinha visitá-la com tanta cerimónia, ela recebê-lo-ia do mesmo modo.

 

Sentem-se.

 

Venho pedir para o meu amigo Javier a mão de tua filha disse Júlio resolutamente, sério, frio, sem admitir lugar para dúvidas a respeito da formalidade do seu pedido.

 

Raquel sentiu algo raro que lhe sacudiu o corpo todo, mas rapidamente, quase com brusquidão, tomou uma determinação e causando a admiração de todos, disse no mesmo tom de voz, frio:

 

Pois bem. Quando pensam casar? Suponho que não pretenderão fazê-lo agora em virtude do recente falecimento de meu marido.

 

Tal como me pediste no outro dia, Javier vai fazer uma viagem. Vamos os dois. Não sei o tempo que permaneceremos fora. No entanto, quando regressarmos efectuar-se-á o casamento. Tens alguma coisa para dizer?

 

Raquel olhou para um de cada vez e depois disse:

 

Que mais poderei dizer se és o tutor de minha filha? Mesmo que eu não tivesse dado o meu consentimento, sei que se casariam.

 

Oh, mamã!

 

Não receies, Mary acrescentou Raquel bruscamente, cravando os olhos na filha. Podes casar com Javier. Não tenho qualquer objecção a fazer.

 

Senhora, prometo-lhe...

 

Não prometas nada, Javier cortou a dama, friamente. Aquilo que querias prometer-me a mim, promete-o a ti mesmo.

 

E sem dizer mais nada, saiu do salão. Júlio duvidou um momento. Depois, afastou Javier com brusquidão e saiu atrás de Raquel.

 

Raquel chamou.

 

A mulher parou no meio do corredor.

 

Júlio avançou para ela, pôs-lhe as mãos nos ombros e inclinando a cabeça para ela, disse:

 

Não quis magoar-te. Sei que Javier fará feliz a tua filha. Tem vivido comigo, desde que ganhei o primeiro dólar. Ele era um rapaz e eu já vivia o meu desespero.

 

Voltou a suavemente. Olharam-se nos olhos. Contemplou-a. Os olhos de Raquel estavam rasos de lágrimas.

 

Pensa em tudo o que te disse no outro dia e se pensares...

 

Raquel moveu a cabeça.

 

Vamos para Madrid. Isto aqui no Inverno é extremamente triste.

 

Num impulso que não pôde conter, Júlio abraçou-a e enquanto ela se esforçava para se libertar, beijou a demorada e apaixonadamente e quando a largou, viu que Raquel chorava.

 

Perdoa-me, querida.

 

Raquel nada disse. Era evidente que o beijo a impressionara, fazendo-a reviver.

 

Júlio inclinou a cabeça e beijou um por um os finos dedos e depois, sem voltar a olhá-la, afastou-se lentamente para o jardim.

 

Ela ficou quieta, rígida, com os lábios apertados e as mãos crispadas sobre o peito.

 

Passou-se um ano desde que Ricardo Herraiz morrera.

 

Tudo na vida se esquece, quanto mais um morto que não pode regressar nem nunca reavivar a recordação que paulatinamente se vai esfumando.

 

A dor de Raquel era cada vez menor. Um dia reconheceu que já não havia remorso no seu coração. Não é que não existisse totalmente, embora ela acreditasse o contrário. É que longe de Júlio, parecia-lhe não poder existir, visto que a causa daquele remorso não se encontrava presente.

 

Passava o tempo sempre no interior do seu palacete de Madrid, esquecida de todos e ela esquecendo tudo o que antes a tinha feito padecer.

 

Uma vez por outra, Mary mostrava-lhe as cartas de Javier, lia-as distraidamente, quase sem se fixar no seu significado. E quando Javier falava do seu amigo Júlio, os olhos de Raquel saltavam rapidamente aquelas linhas. Obstinada, desejava ignorar tudo o que se relacionava com aquele homem o qual amara e a quem, a seu pesar, talvez continuasse a amar.

 

E assim se iam passando os dias, até que numa tarde, encontrando-se ela no salãozinho a fazer renda, ouviu vozes de homem no vestíbulo e rapidamente levantou-se, disposta a saber de quem era aquela voz. Mas antes de chegar à porta, esta abriu-se e a figura arrogante de um homem recortou-se no umbral.

 

Era ele... Ele, com o seu cabelo um pouco mais prateado nas parietais, mais magro, mais triste.

 

Júlio! exclamou Raquel, com voz sumida, sem expressão, sem alegria, nem tristeza.

 

Júlio aproximou-se dela e agarrou-lhe nas mãos.

 

Apertou as càlidamente e levou-as aos lábios. Depois, com naturalidade, inclinou a sua alta estatura e roçou os seus lábios pelos de Raquel. Foi tão natural o procedimento de Júlio, tão simples e carinhoso, que se sentiu desconcertada.

 

Depois, Júlio agarrando-a pelos ombros encaminhou-a brandamente para a porta.

 

Olha disse, apontando o quadro que Javier e Mary formavam. Julgas que existe felicidade maior do que a destes jovens? Continuas a pensar que Mary não deve casar?

 

Se dei o meu consentimento é porque concordo na sua realização.

 

Perfeitamente. Suponho que não quererás dar demasiada publicidade a esse compromisso.

 

Que queres dizer?

 

Quero dizer que se casarão depois de amanhã na maior intimidade. Tu serás a madrinha e eu o padrinho.

 

Não fez qualquer objecção. Ainda que a fizesse, ele, não lha teria admitido. Assim, pois, inclinou a cabeça assentindo e ficou calada.

 

Casaram na quinta da Estremadura.

 

A cerimónia foi levada a cabo dentro da maior austeridade.

 

Naquele momento, Raquel e Júlio encontravam-se no terraço, com os olhos cravados na estrada por onde tinha desaparecido o carro que levava os noivos com direcção desconhecida.

 

Serão felizes disse Júlio, ao mesmo tempo que acendia um cigarro. Javier é um homem austero, formal, trabalhador e carinhoso. Mary ama-o com toda a sua alma de rapariga ingénua e, por outro lado, nenhuma nuvem turvará o horizonte da sua felicidade, porque tanto Mary como Javier nunca conheceram outros namoros.

 

Raquel retrocedeu uns passos e deixou-se cair numa poltrona. Júlio voltou-se para ela e apolando-se numa coluna, observou-a em silêncio. Os olhos de Raquel estavam rasos de lágrimas.

 

Pensava acaso em seu marido? Pensava em sua filha? Ou pensava, talvez, em que ela ainda era demasiado nova e tinha ânsia de viver?

 

Deus queira que Mary não se arrependa de ter casado tão nova.

 

Porque havia de arrepender-se?

 

Raquel elevou os olhos e cravou-os no rosto inalterável de Júlio.

 

Porque eu senti-o, compreendes? Arrependi-me no próprio dia do meu casamento, mas já era demasiado tarde.

 

É diferente. Javier ama a tua filha e esta ama Javier. Na tua vida havia a sombra de outro homem. Foste uma louca.

 

Depois amei-o respondeu Raquel.

 

Perfeitamente, mas era muito diferente. Raquel levantou-se e virou-lhe as costas.

 

Peço-te que não voltes a falar do passado. As nossas conversas recaem sobre o mesmo e eu já estou cansada.

 

Eu não tive a culpa. Bem sabes que jurei não falar mais no passado. Agora foste tu quem...

 

Por favor.

 

Desculpa. Calaram-se.

 

Júlio continuava a fumar, com os olhos cravados no parque.

 

Ela tinha-se recostado ao umbral da porta que dava acesso para o salão e também olhava para longe.

 

Júlio voltou-se lentamente e observou-a em silêncio. Os olhos femininos estavam cheios de lágrimas. Era tanto ou mais bonita que quando a conheceu. E se antes a tinha amado suavemente, deliciosamente, agora amava-a apaixonadamente, com desespero e loucura.

 

Mas era firme nos seus propósitos e preferia a morte que repetir o que já dissera milhares de vezes.

 

Assim, pois, apagou o cigarro contra a balaustrada, atirou a ponta para longe e endireitou-se.

 

Bem, Raquel, vou retirar-me. Se quiseres que fique para jantarmos juntos, fá-lo-ei com muito gosto.

 

Prefiro estar só respondeu ela friamente,

 

Então, até amanhã.

 

Sem olhar para ela, desceu lentamente as escadas e a sua figura foi desaparecendo entre os arbustos.

 

Raquel sentiu que algo molhara o seu rosto. Limpou os olhos e entrou em casa.

 

Nunca se sentiu tão só, tão fria nem tão triste.

 

Parecia que tudo chorava a ausência de Mary.

 

Jantou sozinha. Quando a lua começou a desenhar caprichosos arcos no jardim, saiu para o parque e andando lentamente aproximou-se de um banco onde se sentou, apoiou a cabeça entre as mãos e ficou muito quieta e calada.

 

De vez em quando o seu corpo oscilava como se chorasse.

 

O homem que permanecia junto dela interrogava-se porque chorava ela. E quando finalmente ela levantou um pouco a cabeça, encontrou os olhos que brilhavam suavemente na obscuridade.

 

Feliz daquele que pode chorar disse Júlio, sentando-se a seu lado.

 

Raquel nada disse. O luar iluminava agora as lágrimas que lhe corriam pelo rosto pálido.

 

Júlio sentiu algo muito doce, muito suave no coração. Aprisionou o rosto feminino entre as suas mãos febris e aproximou-o do seu.

 

Como sofres! murmurou baixinho. E que pouco posso fazer para mitigar o teu sofrimento.

 

Não sofro.

 

Que é isso, então, que vejo nos teus olhos?

 

Custa-me ter perdido, Mary.

 

Perdido? Porque és tão pessimista? Dizem que quando se casa uma filha se ganha um filho.

 

Dizem! repetiu ela, com amargura.

 

As mãos de Júlio apartaram com febril ansiedade o rosto feminino, que estava muito perto do seu. Os olhos de Raquel tinham-se cravado nos seus com um olhar indefinido. O homem respirou fundo e depois...

 

Não faças isso, Júlio. Cada vez que me beijas fazes-me mal.

 

Sacrificas-me.

 

E eu não me sacrifico?

 

Oh, Raquel! E confessas com essa indiferença que é um sacrifício para ti renunciar aos meus beijos?

 

Renunciar à vida quase gritou Raquel. E por favor, não voltes. Parte para longe. Estamos a pecar os dois.

 

Pecar? Enlouqueceste? Quando é que ouviste dizer que o amor é um pecado?

 

O nosso é. Parte, Júlio, peço-te, suplico-te.

 

Júlio, como que impulsionado por uma mola, levantou-se. Ia a retirar-se, mas de repente voltou-se, agarrou Raquel e oprimiu o corpo dela contra o seu e gemeu desesperadamente, beijando mil vezes a garganta feminina.

 

Estás a destroçar as nossas vidas. A tua porque és uma obcecada; a minha porque não tens compaixão por mim. Não tens o direito de fazer o que fazes.

 

Raquel lutou para sair dos seus braços, mas foi inútil. A Lua. só a Lua, foi testemunha daquela cena violenta que destroçou o coração de ambos. A boca de Júlio aderiu à dela. Beijou-a como um louco, perdendo o domínio que sempre tivera sobre si mesmo. Perdeu, inclusive, a noção do tempo e das coisas, e quando se apercebeu, Raquel tinha-lhe dado um par de violentas bofetadas.

 

És um canalha gritou fora de si. Nunca te perdoarei isto. Nunca. Acabaste com aquilo que havia de mais belo entre os dois!

 

E levando as mãos ao rosto, afogou um rouco gemido e afastou-se como louca, perdendo-se a sua figura na obscuridade.

 

Júlio correu atrás dela. Agarrou-a por um braço.

 

Oh, Raquel! gemeu afogadamente. Sei que procedi mal, mas... Destroçaste-me a minha vida quando era rapaz cheio de ilusões e destroçaste-a agora que sou um homem cheio de amargura por tua causa. Chamas-me canalha, mas tu não te apercebes de que és uma ingrata, uma mulher sem coração. Oh, Raquel, que dolorosa foi a vida para mim! E tão pouco soubeste compreender-me!

 

Raquel libertou-se com um puxão e voltou a correr com os olhos dilatados, abertos, como se quisesse abarcar de novo todo o horror da cena vivida minutos antes.

 

Júlio deixou cair os braços ao longo do corpo e previu que tudo morrera entre eles naquela noite.

 

A primeira coisa que Júlio fez na manhã seguinte foi ir a casa de Raquel.

 

Adivinhava a resposta que lhe daria a criada. A senhora tinha partido.

 

Também não o recebeu no seu palacete de Madrid.

 

A senhora estava indisposta. Não recebia ninguém.

 

E assim aconteceu durante uma semana, que lhe pareceu interminável. Não foi melhor sucedido nos dias que se seguiram.

 

Ao fim de um mês escreveu-lhe a seguinte carta:

 

”Querida Raquel:

 

”Sei que te fiz mal. Não pretendo desculpar-me, porque nunca me senti tão culpado de uma coisa como de ter-te ofendido. Mas tens que reconhecer que não me cabe toda a culpa. Tens-me feito muito mal. Repeliste-me quando começava a viver, e tu sabes que a ilusão de um rapaz jovem é tão grande e tão bonita como um mundo cheio de venturas. Tu não tiveste nada disso em consideração. Escarneceste das minhas ilusões, mataste-as com uma indiferença dolorosa, como se eu fosse uma partícula de barro numa montanha enorme. Não pensaste que era um homem, que te amava mais do que a minha própria vida. E enquanto tu casavas com outro, tinhas uma filha, e eras relativamente feliz dentro do teu lar tranquilo, ao lado de um marido bondoso e resignado, eu ia-me consumindo sozinho. Que cruel foste. E que mal soubeste compreender a tua crueldade! Agora regressei. Tu és livre. Continuo a amar-te e tu amas-me também. Repito que cometi um pecado, mas se o analisares a fundo, amar não é pecado. É uma grande virtude que tu não soubeste compreender porque não tens sensibilidade de mulher. Tenho de confessar-te que se voltássemos a estar sozinhos no jardim a cena repetir-se-ia, porque não tenho a culpa de amar-te com toda a minha alma. Não te procurarei mais, mas lembra-te, sempre que fizeres um exame de consciência, quando concluires que a tua vida é vazia, já estarei muito longe, sabe Deus aonde. Adeus, Raquel. Brincámos com o fogo e ambos nos queimámos, mas tu, iludida, não queres reconhecer a tua queimadura. A mim, essa queimadura desgraçou-me.

 

Júlio Mora”

 

Pôs a carta no correio naquela mesma tarde e ficou relativamente tranquilo. Esperou durante aquela semana por uma resposta e como não chegasse, silencioso, dorido, voltou a refugiar-se na sua quinta.

 

Tudo parecia sumido no maior silêncio.

 

Uma mulher sentada à sua secretária lia pela centésima vez aquela carta de letra clara, que a mão firme de Júlio Mora escrevera.

 

Raquel dobrou novamente a carta e meteu-a na gaveta. Depois apoiou os cotovelos no tampo da secretária e apoiou o rosto nas palmas das mãos.

 

Ignorava se sentia tristeza ou satisfação. Uma amálgama de loucas sensações e pensamentos indefinidos batalhavam dentro da sua cabeça.

 

Não podia esquecer a humilhação que ele lhe causara. Não podia esquecer os seus beijos de louco, os seus arrebatamentos, e não podia esquecer o seu marido morto.

 

Parecia-lhe que Ricardo, com o seu rosto branco e rígido, se interporia entre os dois. Porque ela amava loucamente Júlio, mais do que nunca, muito mais do que quando era uma rapariguinha e esperava por ele com os livros debaixo do braço.

 

Levantou-se e foi estender-se na cama, com as mãos atrás da nuca, pensativa e olhando fixamente para um ponto fixo no tecto.

 

Havia um mês que Mary casara. Ainda não tinham regressado. E que poderia ela fazer quando sua filha regressasse para casa? Júlio iria visitá-los, não podia negar-se a recebê-lo nem poderia dizer a sua filha o que se passava entre ambos.

 

Chorou desesperadamente. Não sabia verdadeiramente por que razão o fazia. Apenas sabia que estava desesperada e enlouquecida e que se continuasse assim acabaria por enlouquecer de verdade ou morreria de desespero.

 

Naquela mesma tarde soube que Javier e Mary regressariam à quinta no dia seguinte.

 

Pensou que Júlio partira novamente para o estrangeiro, e a primeira coisa que fez no dia seguinte foi mudar-se para a quinta.

 

Deixou o carro em frente da escadaria, subiu esta de dois em dois, parou a meio do terraço e olhou em volta.

 

Estava cansada. Da Madrid buliçosa, mundana e dinâmica, do seu palácio grande e silencioso, e da sua própria dor, que cada dia se tornava maior e mais insuportável.

 

Os seus olhos, quase sem ela se aperceber, detiveram-se na quinta de Mora. Contra o que esperava, a quinta não parecia morta, antes pelo contrário, estava cheia de vida. Seria que Júlio não partira para o estrangeiro? Teria regressado à quinta?

 

Viu também que na moradia próxima da sua, estava um carro de turismo, parado diante da escada. Aquela habitação sempre ela a vira vazia, com os arbustos enredados nas janelas, o jardim maltratado, os vidros das janelas sujos e, no entanto, agora o jardim apresentava-se cuidadosamente tratado, os vidros limpos e os arbustos desapareceram.

 

Chamou um criado e perguntou-lhe os nomes dos moradores daquela habitação.

 

Chegaram há um mês, pouco depois de a senhora ter partido. São um casal jovem com uma filha, aproximadamente com a idade da menina Mary. Dizem que são ingleses.

 

Depois de uma pequena hesitação, perguntou com estudada vacilação:

 

O senhor Mora está na sua quinta?

 

Sim, senhora apressou-se o criado a responder. É íntimo amigo da família inglesa. Sai muitas vezes a passear a cavalo com a senhora dessa habitação.

 

Podes retirar-te exclamou Raquel, com acento indefinido.

 

Foi para o pequeno salão e sentou-se numa poltrona.

 

Júlio Mora passeava a cavalo com a dama inglesa... Tê-la-ia esquecido? Júlio fora um...

 

Incorporou-se, e ao fazê-lo, os seus olhos cravaram-se na porta do jardim e apenas pôde conter um grito de protesto.

 

Ali, muito quieto, muito sério, muito frio, encontrava-se Júlio Mora. Olhando-a com os olhos semicerrados e um leve sorriso de ironia.

 

Que desejas? perguntou ela violentamente, sentindo que todo o seu sangue lhe subia ao rosto, porque não podia recordar a cena vivida entre os dois na obscuridade do jardim.

 

Júlio, com as mãos nos bolsos das calças de montar e o cigarro na boca, avançava para ela muito lentamente.

 

Recebeste a minha carta?

 

Recebi.

 

E, no entanto, não tive resposta.

 

Não tinha que responder. Era uma... uma carta cheia de imbecilidades.

 

Perfeitamente, Raquel. Das tuas palavras depreende-se que a vida para ti foi só isso: uma imbecilidade. Lastimo-te.

 

Nunca admiti a compaixão de ninguém e muito menos a tua. Julgo-me muito superior a ti.

 

Ah, julgas-te? disse Júlio, desagradàvelmente.

 

É porque ignoras que as pessoas às vezes acreditam em coisas absurdas. E tu, Raquel, és uma dessas pessoas,

 

Raquel dirigiu-se para a porta do jardim e abriu a porta de par em par.

 

Sai da minha casa. Não consentirei que voltes aqui, nem mesmo quando os meus filhos cá estiverem.

 

Júlio contemplou-a de uma maneira muito estranha. Apagou o cigarro e disse-lhe:

 

Fazes-me pena, querida. Estou a ver-te, dentro de alguns anos, sozinha, amargurada, no interior da tua casa. lendo novelas, imaginando que és a protagonista. É lamentável. És uma mulher obtusa, obstinada. Um dia recordarás estas palavras. Os filhos de Mary ainda que logicamente deveriam ser teus segundos filhos, converter-se-ão num pesado fardo, porque não são teus. Porque tu ainda te considerarás nova e sentir-te-ás deprimida e desesperada. E os risos de Mary, encantadora e feliz, serão bofetadas para ti. E a voz agradável de Javier, parecer-te-á o som do inferno. Sim, querida, quando uma mulher jovem se sente só e isenta de nobres amores, tudo o que a rodeia cansa-a e enfastia-a, e tu sentir-te-ás cansada e enfastiada até ao infinito. Repito que é lamentável, Raquel.

 

Basta! gritou a mulher fora de si.

 

Não te exaltes, querida. As verdades são sempre dolorosas. Adeus, Raquel.

 

Viu-o naquela mesma tarde, quando foi para o terraço com o fim de ver surgir na estrada o carro que traria novamente a sua querida filha.

 

Os cavalos estavam presos a uma árvore. Júlio estava estendido sobre a erva, com um cigarro na boca. A seu lado encontrava-se uma rapariga de cabelos louros e a pele queimada pelo sol. Aquela rapariga inclinava-se perigosamente para o ex-futebolista e Raquel fechou os olhos porque era capaz de jurar que o beijava.

 

Crispou os dedos sobre o binóculo e desviou a sua direcção novamente para a estrada, mas uma força superior levou-a outra vez a fixar o sítio onde eles se encontravam e pôde vê-los desaparecerem entre os arbustos.

 

Mordeu os lábios com tanta força, com tal desespero que fez sangue. Sentiu um nó na garganta e teve desejos de ir ter com eles para esbofetear a atrevida e arrancar com as unhas aquele que tanto a martirizara. E Depois, já no pequeno salão, sentada novamente numa poltrona, com o rosto entre as mãos, soluçou sufocadamente.

 

Quando sentiu o barulho do motor, voltou para o terraço e voltou a ver as duas figuras, de pé, muito próximas de sua casa. Levavam os cavalos pelas rédeas e Júlio ria às gargalhadas. Ao vê-la no terraço, com os olhos cravados na estrada, Júlio olhou na mesma direcção e ao ver que o carro se aproximava puxou a inglesa pela mão e em dois saltos chegaram junto de Raquel.

 

Porque vieste aqui? Porque não ficaste com ela? Júlio não se alterou. Estava mais simpático do que nunca. Vestia as mesmas roupas que de manhã e parecia um arrogante rapaz de trinta anos.

 

Quero estar ao pé de ti quando eles chegarem. Os olhos de Raquel faiscaram.

 

Mas antes deves ir lavar a cara.

 

Agora o rosto de Júlio contraiu-se empalidecendo um pouco.

 

Que tem a minha cara? perguntou com voz sufocada.

 

Está suja de ”baton”.

 

Júlio deu uma gargalhada. Era evidente o seu nervosismo e o seu mal-estar. Que diria Raquel de tudo aquilo? Que pensariam Mary e Javier?

 

Tirou o lenço do bolso e limpou a cara que imaginava suja.

 

E foi então quando Raquel se aproximou dele e com o seu lenço limpou-o. Fê-lo com suavidade. Ambos estavam muito juntos. Júlio passou-lhe a mão pela cintura e disse suavemente:

 

Tu é que tens a culpa.

 

Quando um homem é honesto e ama...

 

Sou honesto e amo. Tu bem o sabes.

 

Mas passeias com outra mulher e beijam-se às escondidas no bosque.

 

Raquel, fizeste de mim o homem mais desgraçado. Raquel afastou-se sem pressa e guardou o lenço. Virou-lhe as costas. O carro parara no caminho que dava para a garagem e o jovem casal saiu dele.

 

Júlio inclinou-se para Raquel e perguntou baixinho, ao seu ouvido:

 

Posso ver-te esta noite? Preciso de falar contigo. Por toda a resposta, Raquel avançou para a sua filha, abraçou-a e beijou-a nas faces e depois beijou Javier como se fosse seu próprio filho.

 

Mary beijou também Júlio e aproveitando uma desatenção de sua mãe, murmurou ao ouvido do seu tutor:

 

Suponho que arranjaram tudo.

 

Não, Mary; a tua mãe é uma estúpida.

 

Que expressão tão forte.

 

És feliz? perguntou Júlio.

 

Como nunca imaginei.

 

Isso é que importa.

 

Apertou a mão de Javier e com um fútil pretexto afastou-se.

 

Depois de ter jantado foi para o parque e meteu-se a caminho da quinta dos Herraiz, julgando que Raquel se encontraria no terraço com seus filhos, mas só comseguiu ver estes estendidos sobre cadeiras de viagem, tomando o fresco, e a sombra de Raquel que se encontrava no interior da salinha, com um livro nas mãos.

 

Olá, Júlio! Está uma noite maravilhosa, não te parece?

 

Com efeito, Mary. A noite está estupenda e o vosso amor delicioso. Depois de uma rápida transição, acrescentou: Vou falar um pouco com a tua mãe.

 

Chegou junto da porta da salinha. Raquel não levantou a cabeça. Não o tinha ouvido. Júlio avançou lentamente e deixou-se cair no sofá a seu lado.

 

Raquel deu um salto.

 

Que susto me pregaste.

 

Consegues ver com essa luz tão fraca?

 

Tenho uma vista estupenda.

 

Não é preciso esforçares-te para mo fazeres compreender. Demonstraste-mo muito bem esta tarde.

 

Dizes isso por causa do ”baton”?

 

Que se propunha Raquel? Porque o olhava com aquela indiferença, como se nunca nada tivesse havido entre os dois? Propunha-se desorientá-lo ou deixara de o amar para sempre?

 

Olhou-a perscrutador e apenas sorriu.

 

Não te compreendo. Raquel disse por fim.

 

A que te referes?

 

Ao teu carácter. Dantes não eras assim.

 

É que dantes não era viúva.

 

És cruel.

 

Sou humana.

 

Pois é muito cruel a tua humanidade.

 

Fez uma rápida transição e aproximando o seu rosto do de Raquel perguntou com voz apenas perceptível:

 

Diz-me, Raquel, que farias, que dirias ou que pensarias se um dia qualquer te dissesse que tinha casado com uma bela inglesinha?

 

O rosto de Raquel não se alterou. Não moveu um músculo da sua face. Dir-se-ia que esperava aquela pergunta.

 

Desejar-te-ia muita felicidade.

 

Só isso?

 

Que mais desejas?

 

E afastou os olhos rapidamente daqueles outros que estavam muito próximos dos seus. Era evidente o domínio que Raquel tinha sobre si mesma.

 

Porque me foges com o olhar?

 

Eu, fugir com o olhar? Isso é impressão tua. Júlio alcançou a mão feminina e apertou-a càlidamente.

 

Não podes esquecer-me, Raquel. Naquela mesma noite senti-te.

 

Cala-te. Não a recordes, porque...

 

Incomoda-te?

 

Sim, incomoda-me. Não poderei perdoar-te.

 

Perdoar? Raquel, querida, jura-me que não podes perdoar. Existe maior dor que a que produz o mesmo amor? Não. E tu sabe-lo tão bem como eu. Vais obrigar-me a cometer um disparate e depois...

 

Arrepender-te-ás.

 

Então, sabes que me custaria unir a minha vida à daquela rapariga.

 

Sim, sei.

 

Tem que haver uma explicação.

 

O teu amor por mim.

 

Admite-lo?

 

Admito-o em ti, mas não o quero para mim. Júlio sentiu um ruído no terraço. Olhou, Javier e Mary desciam as escadas em direcção ao parque.

 

Levantou-se e quis sair para o terraço, mas os braços de Júlio agarraram-na.

 

Bruscamente voltou-a para si.

 

Olha-me nos olhos, Raquel. Raquel olhou-o.

 

Porque me mentes? Porque não és corajosa e admites o teu amor e mo ofereces?

 

Ela tentou livrar-se. Júlio apertou-a mais. Ficaram muito juntos.

 

Deixa-me, por favor. Não quero...

 

O que é que não queres? Porque és tão cruel? Porque me negas o que os teus olhos me dizem?

 

Os meus olhos?

 

E tentou disfarçar com um sorriso irónico, que ele cortou com os seus lábios. Beijou-a apertadamente, demoradamente, até quase sufocá-la.

 

Magoas-me.

 

Prefiro matar-te a sentir a tua cruel indiferença. Além disso, se existisse... mas procura-la no mais intricado do teu ser, não porque a sintas, mas porque...

 

Deixa-me.

 

Quero beijar-te outra vez.

 

Por favor.

 

Brandamente, afastou-se do seu lado.

 

Aborreci-te, Raquel?

 

Vai-te embora e não te preocupes comigo. É melhor casares com essa inglesa, Júlio. Eu... eu...

 

Aproximou-se outra vez dela e beijou-lhe as mãos desesperadamente.

 

-Sentir-te-ias a mais desgraçada das mulheres. Disse-te muitas vezes que não voltaria a falar mais disto, mas não posso, compreendes? É me de todo impossível porque quanto mais tempo passa mais desejos tenho de tudo que te pertence. Lembra te, Raquel, de que fui o primeiro homem que amaste e que agora podes reparar todo o mal que me fizeste.

 

Não posso quase gritou a mulher.

 

Júlio soltou-a e caminhou para a porta do jardim.

 

Está bem, Raquel. Se cometer uma loucura não me culpes dela.

 

E dirigiu-se para o terraço.

 

Raquel apertou as mãos contra o coração e esteve quase a chamá-lo. Mas levantou os olhos, olhou para o retrato de seu marido, deixou cair os braços ao longo do corpo e sentou-se numa poltrona com o rosto entre as mãos.

 

Os dias passaram-se silenciosamente.

 

Mary e Javier percorriam todos os dias o bosque, a cavalo. Os dias eram esplêndidos e o sol ressequia as terras.

 

Raquel, sempre sentada no terraço, deixava correr as horas dentro da maior monotonia. Via Mary e Javier saírem e observava que paravam em frente da quinta de Júlio e que este trocava com eles um cumprimento, mas nunca os acompanhava. Não obstante, meia hora depois via-o sair a cavalo e dirigir-se para casa dos ingleses.

 

Naquela tarde, quando Mary e Javier regressaram, em vez de levar os cavalos para o prado como faziam habitualmente, subiram para o terraço e olharam-se antes de contemplar Raquel.

 

Que sucedeu, Mary? perguntou a mãe, intrigada. Javier sentou-se na balaustrada, e disse pensativo:

 

Vimos Júlio...

 

Com a inglesa cortou Raquel, com estudada indiferença.

 

Já sabias, mamã?

 

Claro, Mary. Quando cheguei à quinta, há uns dias, na manhã do dia em que chegaram, vi-os com os meus próprios olhos.

 

Eu não sabia de nada disse Javier aborrecido. Nunca pensei que Júlio...

 

Andavam a dançar no terraço da casa dela, mamã.

 

E depois, Mary? Que tem isso de anormal? Não é por acaso um homem solteiro? Pode fazer o que quiser. Por outro lado, tem idade suficiente para casar.

 

De qualquer maneira disse Mary nunca pensei que Júlio fosse capaz de casar com uma estrangeira. Além disso...

 

Não nos parece a mulher indicada para Júlio continuou Javier, também com desagrado.

 

Que sabem vocês, meus filhos! Sois uns sonhadores. Júlio é um homem prático. Quer casar e gosta dessa mulher.

 

Não pode gostar dela!

 

Raquel olhou para Mary. E foi nesse momento que viu os olhos de sua filha húmidos.

 

Mas, Mary! Porque choras? Que te importa a ti que Júlio case ou fique solteiro?

 

Mary, sem responder, correu para o interior do palacete e Javier seguiu-a.

 

Mary chamou o rapaz, alcançando-a na escada. Porque procedes dessa maneira?

 

Mary abraçou-se ao marido e murmurou sufocada mente, entre soluços:

 

A mamã sofre, querido. Dissimula. Sinto uns desejos tão grandes de chorar que não sei como posso conter-me. A minha mãe toda a vida esteve apaixonada por Júlio e ele bem o sabe. Não compreendo porque procede ele assim agora, sabendo, além disso, que magoa a mamã.

 

Tranquiliza-te. Irei falar com Júlio.

 

Não, querido, não faças isso.

 

Subiram juntos a escada. Entraram no seu quarto.

 

Javier limpou os olhos de Mary com um lenço e depois beijou-a na boca. Mary apertou-se contra ele e mumurou baixinho:

 

A mamã tem que ser tão feliz como eu o sou, querido.

 

Sê-lo-á! Verás como o será.

 

Eu li a carta que meu pai escreveu a Júlio antes de morrer e sei que o papá lá do céu abençoaria essa união. Se não a tivesse lido garanto-te que não pensaria assim, embora não desconhecesse que existiram relações entre Júlio e a mamã quando esta era rapariga. Mas depois de ler a carta...

 

Tranquiliza-te, querida. Verás como tudo se arranjará.

 

Entretanto, Raquel continuava sentada numa poltrona, no terraço, com o rosto entre as mãos.

 

Não chorava, mas tinha um nó na garganta que a impedia de respirar. Porque se casava Júlio? Porque não esperava?

 

E que podia esperar se ela...?

 

Apertou as fontes com ambas as mãos e de repente levantou a cabeça como se um poder magnético a impulsionasse.

 

Ali estava Júlio, olhando-a com os olhos semicerrados e de cigarro na boca.

 

Olá, Raquel. Sentes-te mal? Estás muito pálida.

 

Sinto-me muito bem.

 

E os pombinhos?

 

Chegaram agora mesmo e retiraram-se. Júlio encostou-se contra a coluna.

 

Está uma tarde estupenda.

 

Sim, está.

 

Até apetece Ir passear por aí. Fez uma rápida transição e acrescentou, indiferente: Se queres alguma coisa para Madrid...

 

Não, não quero nada.

 

Raquel não lhe perguntou se partia nem quando o fazia. Ele vinha envolto na maior indiferença mas se esperava desconcertar Raquel enganou-se, porque esta permaneceu inalterável, Absolutamente indiferente.

 

Gostava de me despedir de Mary e de Javier. Raquel tocou uma campainha e apareceu um criado.

 

Diga aos meus filhos que desçam. Momentos depois estavam ali Javier e Mary.

 

Júlio vai para Madrid e quer despedir-se de vocês disse Raquel com indiferença.

 

Vai partir? E por quanto tempo?

 

Não sei, Mary. Depende de muitas coisas.

 

Disseram que ias casar com a inglesa disse Javier.

 

É verdade?

 

Júlio deu uma fumaça e respondeu suavemente:

 

Os homens solteiros não são felizes.

 

Era, na verdade, uma resposta ambígua, que podia dizer muitas coisas ou nada.

 

Depois apertou a mão de Javier, beijou Mary na testa e estendeu a mão para Raquel que lhe estendeu a sua, friamente.

 

Minutos depois, a figura de Júlio Mora perdia-se no parque, em direcção a sua casa.

 

E naquela mesma noite, Mary e Javier souberam que os ingleses também tinham partido.

 

O que se passou no quarto de Raquel ninguém o soube. Não obstante, nós, que fomos mudos espectadores do seu desespero, podemos dizer que Raquel apertou entre as suas mãos o retrato do seu marido e beijou-o, pedindo-lhe perdão.

 

Ainda que tarde, compreendia que não podia viver sem Júlio. Amara-o sempre e continuava a amá-lo. Mas já era tarde. Ele mesmo preveniu-a na sua carta e depois com palavras.

 

Deitada na cama, chorou como nunca o tinha feito. Mas Raquel era orgulhosa e nunca daria o braço a torcer nem lhe pediria que voltasse para ela antes de cometer a loucura de casar-se com uma mulher que não podia amar.

 

Mudaram-se para Madrid.

 

Raquel aparecia sempre diante dos seus filhos envolta na mais absoluta indiferença. Dir-se-ia que não se lembrava da existência daquele homem que tanto a atormentara. No entanto, a realidade era muito diferente. A sós consigo mesma, no quarto solitário, estendida na cama com os olhos muito abertos e as mãos atrás da nuca, perguntava-se uma vez mais se seria preferível continuar na sua viuvez ou arriscar tudo, indo a casa de Júlio e dizer-lhe que o amava como a ninguém no mundo e pedir-lhe que casasse com ela. Mas esta última hipótese nunca a faria Raquel. E por outro lado, encontrava-se ali, dependurado na parede, o retrato de Ricardo.

 

Naquela tarde, depois de Javier ter saído, Mary vestiu-se precipitadamente e, entrando no carro, dirigiu-se para o centro da cidade.

 

Minutos depois batia à porta do quarto que Júlio Mora ocupava no hotel mais central de Madrid.

 

Entre.

 

Entrou. A primeira coisa que os seus olhos viram, um tanto desorbitados por não julgar Júlio capaz de semelhante coisa, foi a pequena figura da inglesa, sentada numa poltrona, com as pernas cruzadas, um cigarro na mão esquerda e um copo de uísque na outra. Em frente dela, também sentado numa poltrona, na mesma postura, encontrava-se Júlio Mora, o homem a quem ela vinha pedir uma explicação.

 

Mary ficou estática à. entrada. E Júlio, ao vê-la, empalideceu um pouco e pôs-se automaticamente de pé.

 

Mary! murmurou suavemente, encaminhando-se para ela e beijando as mãos frias da rapariga, que nunca recebera decepção maior. Como estás, querida? E o teu marido? E a mamã?

 

Mary apertou os lábios. Os seus olhos faiscaram. Por um momento julgou que não poderia conter-se e insultaria aquele homem como nunca mulher alguma o fizera, mas conteve-se, crispou as mãos e, o mais calmamente possível, disse:

 

Desejava falar contigo, mas já sei tudo quanto queria saber.

 

E, dando meia volta, dirigiu-se para a porta.

 

Mary!

 

Deixa-me, Júlio. Decepcionaste-me.

 

E desta vez a mão dele não pôde detê-la porque Mary desprendeu-se com um safanão e voltou de novo para o exterior do edifício.

 

Não se dirigiu logo para casa. Não pôde. Tinha de chorar de raiva, de decepção, de impotente. Júlio era um homem sem coração. Não tinha alma nem dignidade e zombara deles. De sua mãe, de Javier e dela. Nunca lhe perdoaria. E isto tendo em conta que Mary ignorava o sucedido entre sua mãe e o seu tutor.

 

Vagueou durante horas pelas ruas e, quando regressou a casa, entrou na salinha onde sabia encontrar àquela hora a sua mãe. A primeira coisa que os seus olhos observaram foi a esbelta figura de Raquel, de pé, junto da janela, com a testa encostada ao vidro.

 

Dispunha-se a retirar-se quando Raquel a viu através do vidro.

 

Que tens, Mary? De onde vens? Estás pálida, minha filha. Onde é que Javier te deixou?

 

Não estive com Javier. Fui dar um passeio.

 

Telefonaram-te.

 

Quem?

 

Raquel manteve-se serena. Dir-se-ia que o nome que ia pronunciar não representava nada na sua vida.

 

Júlio Mora.

 

E que queria ele?

 

Falar urgentemente contigo. Disse que te esperava em frente da nossa casa às sete da tarde.

 

Falaste com ele?

 

Falou a criada. Depois acrescentou friamente: Lembra-te, Mary, que és casada e que Javier talvez não goste que te encontres com Mora.

 

Javier e Mora, mamã, são como irmãos. Não te esqueças. Javier não pode ter ciúmes de Mora nem este daria motivos para tal.

 

Raquel nada disse. Com um pretexto fútil retirou-se e Mary consultou o relógio. Eram exactamente sete menos um quarto. Javier não tardaria em chegar.

 

Viu-o imediatamente, no passeio em frente de sua casa. Ao vê-la, Júlio avançou rapidamente para ela. Olhou-a docemente e apertou com força as mãos femininas.

 

Sinto muito, Mary. Se não tivesses vindo iria eu a tua casa para explicar-te por que razão estava ela no meu quarto do hotel.

 

Não tinhas que recorrer a tanto, Júlio disse Mary.

 

Mary, não posso voltar a tua casa depois de tudo aquilo...

 

Aquilo? E que é esse ”aquilo”, Mora?

 

Tu sabes que estou apaixonado pela tua mãe. Ela repele-me e eu tenho o direito de ser feliz. Não quero continuar a ser nómada, sem sossego, sem estabilidade. Casado, tudo seria diferente.

 

E vais casar com a inglesa? Júlio tapou-lhe a boca.

 

Não, Mary. Julguei que a podia amar, mas não pude. Oxalá a pudesse amar ou outra qualquer. Pez uma pequena pausa e perguntou: Que querias de mim, Mary? Porque me procuraste no hotel? Ela, a inglesa, estava no meu quarto porque foi despedir-se de mim. Partiu há coisa de meia hora.

 

Partiu!

 

Disse-o como se o fizesse para si só, como se aquela partida fosse uma libertação.

 

Ela fora ao hotel para censurar Júlio, mas uma vez que não tinha nada para censurá-lo em virtude das suas explicações, arranjou uma desculpa.

 

Ia convidar-te para jantares connosco. Penso que, pelo facto de a minha mãe não querer casar contigo, não vais negar-nos a tua amizade, a Javier e a mim.

 

Com efeito, Mary. Mas custa-me muito presenciar a indiferença da tua mãe

 

De qualquer maneira, esperamos-te. Olha, vem aí Javier.

 

Javier caminhava ao encontro deles com um sorriso nos lábios.

 

Olá!

 

Olá, Javier. A tua esposa acaba de me convidar para que vá jantar com vocês esta noite.

 

Espero que não desapontes a minha querida mulherzinha.

 

E Javier passou o braço pelos ombros de Mary e, puxando-a para si, beijou-a na testa.

 

Irei! exclamou Júlio. Irei jantar com vocês.

 

E depois de apertar as mãos dos jovens esposos, entrou no carro e afastou-se vagarosamente.

 

Disse a sua mãe poucos minutos antes de Júlio chegar. Raquel recebeu a notícia com absoluta indiferença. E Mary pensou que sua mãe não amava Júlio.

 

Quando a figura atlética de Júlio, interessante, arrogante e esbelto, se perfilou à entrada da sala de jantar, precedido por um criado, Raquel San Juan manteve-se impenetrável. Olhou para o ex-futebolista e apertou a mão que este lhe estendia.

 

E agora perguntamos a nós mesmos por que razão Raquel adquiria aquela fria atitude diante de Júlio, uma vez que quando se encontrava sozinha chorava e desesperava-se por reconhecer a sua imensa paixão por aquele homem?

 

Era uma luta psicológica que, aparentemente, não tinha explicação. No entanto, Raquel sabia dá-la a si mesma. Se Júlio, em vez de ter sido o primeiro e último amor da sua vida, fosse um homem que tivesse conhecido depois de morrer o seu marido, ter-se-ia casado com ele sem mais explicações. Na presente circunstância pensava que a sombra de Ricardo se interporia entre ela e o seu antigo amor. Por outro lado, remordia-lhe a consciência.

 

Não fizera o seu marido feliz por causa de Júlio e agora que este aparecia na sua vida, amando-a com o mesmo ímpeto de antes, parecia-lhe que cometia um sacrilégio unindo a sua vida à dele.

 

Estas eram as lutas de Raquel e por isso adquiria aquela frialdade atrás da qual emparedava o grande amor da sua vida. Sofria e desesperava-se e, no entanto, ninguém vislumbrava aquele sofrimento nem aquele infinito desespero.

 

O jantar decorreu na maior simplicidade e camaradagem, no que respeita a Javier, Mary e Júlio. Ela manteve-se indiferente.

 

Quando o jantar acabou, passaram ao salão. As grandes janelas envidraçadas estavam abertas e a brisa nocturna agitava os grossos reposteiros.

 

Raquel sentou se num sofá e, cruzando as pernas, permaneceu muito quieta com a chávena de café na mão. Tinha umas mãos lindíssimas, finas, brancas, compridas e magras, com as unhas ligeiramente curvadas. Júlio sempre gostara das mãos de Raquel, pela sua elegância, pela suavidade e pela doçura pessoalíssima que delas se desprendia. Naquela noite não deixou de admirar as mãos de Raquel, mas absteve-se de fazer o comentário que por um momento lhe aflorou aos lábios.

 

Mary e Javier sentaram-se noutro sofá em frente de Raquel, e Júlio não teve outro remédio senão sentar-se naquele onde se encontrava esta. Uma pequena mesa encontrava-se no meio dos quatro e a conversação versou, sem qualquer propósito deles, sobre o casamento.

 

Raquel permanecia muda, mas um bom observador teria notado facilmente que escutava com ansiedade, ainda que procurasse dissimular.

 

Um casamento entre duas pessoas que não se estimem dizia Javier, é um absurdo. E se um deles for falho de educação a felicidade nunca terá lugar no lar.

 

De qualquer forma observou Júlio, quando um homem se casa sem amor e a mulher é nobre, sincera, educada e delicada, não há dúvida de que o homem ou é uma besta ou ama, por fim, a esposa.

 

Mas isso é muito problemático.

 

Conforme o lado por que se observe o assunto, Mary. Eu próprio conheci alguns rapazes que se casaram porque os obrigaram a isso, ou por dinheiro, ou por conveniência de famílias. E sei que depois de uns meses de convivência ela apaixonava-se perdidamente por ele e este por ela.

 

Isso pode suceder quando a mulher não amou outro antes disse Javier, sem se aperceber que abordava ao de leve o caso de Raquel e de Júlio.

 

Conteve-se imediatamente e olhou para a sua sogra. Esta levava a chávena à boca e o seu rosto mostrava a mesma indiferença habitual nela.

 

Júlio, que observou a ansiedade do seu amigo, sorriu e disse:

 

Quando uma mulher é nobre, nunca une a sua vida a um homem que não ama. Tem o dever de guardar-se incólume para o seu primeiro amor.

 

Mary elevou vivamente a cabeça e olhou para sua mãe. Suspirou fundo. Raquel permanecia imutável, dir-se ia que não percebia absolutamente nada daquilo, mas era evidente o nervosismo que a dominava, mas só Júlio pôde aperceber-se disso por a conhecer muito bem. Olhou-a de frente e perguntou:

 

Que dizes tu, querida?

 

Raquel encolheu os ombros. Pôs-se de pé e fez um gesto de quem se encontra cansada.

 

Nunca intervenho em conversações que me aborrecem disse, indiferente. Por outro lado, não compreendo muito bem essas ideias. Eu casei com Ricardo sem amá-lo apaixonadamente e posso jurar que fui infinitamente feliz.

 

Mas não disse se tinha chegado a amá-lo nem se estava arrependida do casamento. Agitou a linda mão e, dando meia volta, acrescentou suavemente:

 

Sinto muito, queridos, mas estou muito cansada e vou retirar-me, com vossa licença. Podeis continuar com a vossa dissertação sobre o matrimónio, ainda que, repito, não seja um tema muito interessante.

 

E retirou-se.

 

Todos ficaram silenciosos. Júlio, recostado, fumava ansiosamente. Javier emudecera e Mary sentia-se furiosa.

 

Eram seis da tarde.

 

O carro de Júlio Mora, com este ao volante, deslizava suavemente por uma rua pouco movimentada. De repente os travões chiaram e o luxuoso veículo estacou. Estava em frente de um templo e, abrindo a porta, saiu para o passeio.

 

Olá, Raquel cumprimentou Mora. Se quiseres posso levar-te a casa. Ia precisamente visitá-los.

 

Raquel dobrou a sua mantilha e sem responder entrou no carro e sentou-se no assento da frente. Júlio ocupou o seu lugar ao volante e o carro voltou a deslizar suavemente.

 

Não esperava encontrar-te aqui disse ele, sem olhá-la. Vens todas as tardes à igreja?

 

Quase todas.

 

Que pedes tu a Nossa Senhora?

 

Não sejas curioso, Júlio.

 

Curioso? Porquê?

 

Venho à igreja apenas para rezar e não para pedir o que quer que seja.

 

Sempre foste muito devota. Lembro-me de quando me levavas todos os domingos a comungar.

 

Quase que apostava em como nunca mais voltaste a fazê-lo.

 

Júlio meditou por um momento.

 

Pode ser que não acredites, Raquel, mas a verdade é que me habituei de tal maneira a isso que não se passa um domingo que não vá à igreja receber o Senhor.

 

É uma qualidade muito estimável disse Raquel, sem estar muito certa de que fosse verdade.

 

Não é precisamente uma qualidade, mas antes uma grande virtude, ainda que duvides da veracidade das minhas palavras.

 

Raquel nada disse.

 

Parecia sumida em profundas reflexões, a julgar pela expressão do seu belo rosto. Estava mais bonito do que nunca, porque o seu cabelo curto, muito preto, muito brilhante e ligeiramente ondulado, realçava suavemente a face de delicadas feições, onde os olhos azuis, rutilantes, olhavam vagamente para longe, como se dali pudesse surgir a sua linda quimera e pudesse torná-la realidade.

 

Júlio, que conduzia o carro muito lentamente, não deixava de olhá-la. De repente, perguntou:

 

Pensas ficar viúva para sempre, Raquel?

 

Esta levantou bruscamente os olhos e cravou-os no rosto masculino.

 

É provável.

 

Só provável?

 

Não posso responder a uma coisa que mesma ignoro. Naquele instante o carro parou.

 

Estavam em frente do palácio de Raquel. Esta saiu e Júlio imitou-a.

 

Deu-lhe o braço. Raquel consentiu. Foi um gesto tão natural que qualquer reacção da sua parte tê-lo-ia ofendido.

 

Nunca apreciei tanto a formosura das tuas mãos como ontem à noite e não pude dizer-to.

 

Dispenso as tuas lisonjas.

 

Muitas vezes digo a mim próprio que ou és um bloco de gelo ou uma mulher sem alma, ou então uma hipócrita.

 

Podes eleger aquilo que te pareço.

 

E ele recordou com prazer uma passagem da vida de ambos e sentiu qualquer coisa comover-se no interior do seu ser.

 

Inclinou-se para ela e fê-la parar ao pé da escada de entrada.

 

És uma hipócrita. Sei que és apaixonada e dominas os teus desejos e as tuas paixões, mas um dia compreenderás que deixaste fugir a felicidade e quando quiseres agarrá-la será demasiado tarde.

 

Tu esperarás disse Raquel, com audácia e uma raiva que não sabia a que atribuir, ainda que no fundo do seu ser quisesse acreditar que ele recordava algo que continuamente a atormentava. Se não fosse aquilo!

 

Esperar! Talvez espere, Raquel, porque um homem que se mantém incólume durante dezassete anos, pode esperar toda a vida. Mas dizem que quem espera desespera e pode ser que eu um dia desespere, parta e não regresse.

 

Subiram as escadas lentamente e Raquel tocou a campainha.

 

A porta foi aberta por uma criada.

 

Diga aos meus filhos que desejo falar-lhes.

 

A menina e o senhor saíram.

 

Ficou desalentada. Se eles não estavam teria de ficar com Júlio no salãozinho e, certamente, aquele homem, o amor daquele homem e o ímpeto esmagador daquele homem que não queria amar e, no entanto, amava, produziam-lhe um medo indiscutível.

 

A criada retirou-se e Raquel olhou para o rosto impenetrável de Júlio.

 

Como vês, querido, eles não estão e eu não poderei dedicar-te muito tempo.

 

Júlio soltou uma ruidosa gargalhada e, sem deixar de rir, avançou para ela e sentou-se com prazer a seu lado.

 

Querida, isso é uma maneira como outra qualquer de me mandares embora. Mas não quero que ignores que Júlio Mora não entende as coisas por meias insinuações. Se quiseres que me vá embora di-lo sinceramente e eu obedecerei.

 

Podes retirar-te.

 

Júlio voltou a rir. Mostrava toda a brancura imaculada dos seus belos e bem tratados dentes. E aquele riso produziu em Raquel um bem-estar indiscutível, uma satisfação e uma felicidade que não quis confessar a si própria.

 

Sentiu as suas mãos subitamente aprisionadas entre as dele e viu a cabeça de Júlio inclinada sobre elas.

 

Que fazes. Deixa-me!

 

Júlio beijou-lhe apaixonadamente, os dedos, um por um, e depois olhou-a nos olhos. Contemplou-a demoradamente. Aquele olhar produziu em Raquel um nervosismo terrível. E como que magnetizada pela doçura daqueles olhos e pelo cálido apertão das mãos masculinas, foi aproximando pouco a pouco a sua cabeça à dele e, sem se aperceber, os seus lábios aderiram aos dele, largando-lhe nessa altura as mãos para poder abraçá-la.

 

Não podes continuar como até aqui, querida disse, baixinho. Confessa e depois...

 

Vai-te embora, Júlio. Estás a pôr-me louca.

 

Então confessa!

 

As mãos compridas, finas, nervosas, que ele tanto amara e amava, prenderam o seu rosto e oprimiu-o com febril ansiedade. A voz da mulher confessou, com acento sufocado, desesperadamente.

 

Sim, é verdade. Mais do que a própria vida, mais do que nada no mundo. Mas não pode ser. Ouves-me? Não pode ser e não será.

 

Levantou-se.

 

Júlio saltou do sofá e enlaçou-a pela cintura. O calor do corpo do homem desarmou-a novamente. Apertou-se contra ele, febril, desesperada. Júlio beijou-a e ela devolveu-lhe o beijo com todo o ímpeto da sua alma, a qual sempre tivera atormentada. Naquele momento deu-se por vencida e confessou que sim, que era verdade amá-lo como nunca amara ninguém.

 

Nunca como naquele momento Júlio conheceu o verdadeiro coração de Raquel. Conhecera o coração de Raquel criança, ingénua, sonhadora e idealista Mas a mulher que agora estava oprimida contra o seu corpo, que beijava na boca com ansiedade, era a Raquel mulher, a que amava impetuosamente, desesperadamente.

 

Quando quis contemplar os olhos cor de turquesa, ela desaparecia pela porta da sala de jantar e perdia-se diante dos seus olhos.

 

Júlio apertou os punhos dominado pelo imprevisto. depois, dando a volta, caminhou lentamente para o jardim.

 

Da janela, Raquel viu o carro dele distanciar-se e quando desapareceu por completo, envolto na débil bruma da noite, foi estender-se na cama com o rosto escondido entre as mãos.

 

Quando, naquela noite, Júlio se dirigiu para sua casa para jantar, novamente convidado por Mary e Javier, Raquel não compareceu à refeição.

 

Não se encontra bem disposta disse a criada.

 

E Júlio soube por que Raquel não compareceu ao jantar.

 

Júlio interrogava-se constantemente acerca do procedimento de Raquel, visto que, no dia seguinte, quando foi a sua casa, pela tarde, encontrou Raquel um pouco mais pálida, um pouco mais bela pela melancolia que cobria a sua face interessante, mas os seus olhos não denunciavam o mais leve vestígio do que sucedera na véspera entre ambos.

 

Apertou os punhos para conter o desejo de avançar para ela, sacudi-la, censurá-la e perguntar-lhe se tinha coração ou toda ela era matéria insensível.

 

Manteve-se sereno, no entanto, porque Mary e Javier estavam presentes, pois se assim não acontecesse diria algo ao ouvido de Raquel que talvez a desarmasse novamente.

 

Observou-a disfarçadamente e pôde ver que o semblante de Raquel se mantinha impenetrável. E procurou os seus olhos com ansiedade, mas não os encontrou nem uma só vez. E teve de se retirar sem poder trocar com ela uma palavra.

 

Era um hipócrita ou uma mulher sem alma?

 

No dia seguinte foi à igreja. O carro esteve ali parado mais de duas horas. Apesar de saírem da igreja muitas mulheres, nenhuma era ela. Desesperado, ferido no seu amor-próprio, foi para o hotel, sentou-se a uma secretária e escreveu uma carta com tanta raiva que a caneta parecia rasgar o papel, fazendo um forte ruído.

 

Meteu a carta no sobrescrito, saiu de novo para a rua e pô-la num marco de correio. Depois ficou mais tranquilo.

 

E quando caminhava pela rua sem rumo fixo, ouviu chamá-lo. Olhou e sentiu uma profunda alegria ao ver Javier.

 

Olá, rapaz! De onde vens a estas horas da noite?

 

Vou para casa. Que tens? Estás com cara de poucos amigos.

 

Estou aborrecido.

 

Mas porquê?

 

Júlio agarrou no braço de Javier e caminharam juntos, lentamente.

 

Esta vida é insuportável, Javier. Acabo por endoidecer. Quando chego ao hotel só vejo rostos inexpressivos, um cumprimento impessoal ali, um sorriso hipócrita mais além, um aperto de mãos que não diz nada... E pensas que um homem de coração, ansioso de carinho, pode viver assim? Tenho montões de dinheiro que não me serve para nada. Com esse dinheiro posso comprar um pouco de amor, mas não é esse género de amor que desejo. Quero um amor que pertença só a mim, uma mulher, um lar e filhos... Onde diabo poderei eu encontrar isso?

 

No amor.

 

E onde está o amor?

 

No coração de Raquel.

 

Raquel? vociferou Júlio, fora de si. Valente hipócrita. Decidi voltar ao futebol, Javier! acrescentou, desalentado, deixando cair os braços ao longo do corpo.

 

Partirei para a Colômbia novamente e talvez no futebol encontre o lenitivo para a minha dor.

 

Isso é uma barbaridade.

 

Porquê?

 

Porque tu já não poderás achar nenhum lenitivo no futebol. Amas muito e só tens esse amor.

 

Maldita Raquel! rugiu, com os punhos fechados.

 

Só ela tem a culpa de tudo quanto me sucede.

 

Escreve-lhe a dizer que vais partir. Obriga-a a raciocinar, e quem sabe se por fim Raquel se encontrará a si mesma.

 

Júlio não disse que lhe escrevera.

 

Raquel não compreende cartas sentimentais. É uma mulher sem alma.

 

Eu tenho outro conceito formado dela, meu amigo. Tem até uma alma muito grande. Enquanto o retrato de Ricardo estiver no seu quarto não esperes que Raquel te confesse o seu amor.

 

Tu julgas que eu ter-me-ia atrevido a solicitar o amor de Raquel se não tivesse o consentimento daquele que foi seu marido? Ele escreveu-me.

 

Dá a carta a ler a Raquel.

 

Para quê?

 

Pode ser que a faça mudar de ideia.

 

Raquel não muda nem com a ameaça de uma bomba atómica.

 

E, batendo com o pé no chão, gritou:

 

Chegámos a tua casa. Não penso voltar a molestá-la. Até à vista. Provavelmente parto amanhã no primeiro avião.

 

Javier olhou-o durante um momento e quando a figura arrogante do seu amigo desapareceu na obscuridade da noite, moveu a cabeça pensativamente e entrou no jardim da casa de Raquel.

 

Estavam na salinha.

 

Raquel, pensativa, um pouco mais pálida, estava sentada no sofá, como sempre. Mary, sentada em frente e Javier a seu lado.

 

Acabo de falar com Júlio disse Javier de repente. Está desesperado. Parece que parte amanhã no primeiro avião. Diz que voltará a jogar na Colômbia.

 

Se até àquela altura tinha permanecido indiferente, agora o rosto de Raquel elevou-se bruscamente, com os dentes muito apertados. Javier dissimulou e, fazendo de conta que não notou a ansiedade de Raquel, acrescentou:

 

Na realidade, Júlio tem toda a razão. Esteve a dizer que tem montões de dinheiro, com os quais podia comprar amor, mas que esse não é o amor que ele precisa para viver feliz. Nunca vi um homem tão aborrecido e mal-humorado. Nunca acreditei que Júlio fosse capaz de desesperar-se daquela maneira.

 

Tem as suas razões disse Mary bruscamente, com os olhos rasos de lágrimas. Não tem família nem parentes. Francamente, não é invejável a sua vida. Se está no hotel sofre; se em sua casa sofre com maior motivo porque...

 

Raquel levantou-se bruscamente. Ambos a olharam. Raquel, sem dizer palavra, deu a volta e caminhou para a porta. Desapareceu,

 

Disseste-o para molestar a mamã ou é verdade que viste Júlio?

 

Vi-o, Mary. Disse-me tudo isso e alguma coisa mais que não me atrevi a acrescentar para não ferir a fina sensibilidade da tua mãe.

 

Podias dizê-lo.

 

Mary!

 

Mary apertou-se contra osbraços masculinos e escondendo a cabeça no ombro de Javier murmurou entre soluços:

 

É teimosa, Javier. É orgulhosa. Tu não podes imaginar o que a mamã sofre. Mas domina-se como ninguém e sabe aparentar o que não sente. Ela está apaixonada por Júlio; sempre o esteve. Mas a memória de meu pai...

 

Qual memória, qual quê, Mary! Quando uma mulher é jovem tem direito à vida como outra qualquer, mesmo que seja viúva. O teu pai, antes de morrer, já sabia mais ou menos o que poderia suceder na existência de Raquel.

 

Sim, mas a mamã...

 

Sabes uma coisa, Mary? A tua mãe é, simplesmente, uma tonta.

 

Oh, Javier.

 

Javier apertou-a nos seus braços e tapou com os seus lábios a boca húmida da sua querida mulher.

 

Amor, gosto muito da tua mãe. Mas sei o que Júlio sofre por causa dela. Enquanto não casarem não deixarão de sofrer.

 

Passeava no quarto de um lado para o outro, precipitadamente. De repente, sentou-se na cama e contemplou, como que hipnotizada, o telefone.

 

”E se lhe telefonasse? E se lhe pedisse que esperasse, um pouco mais?”

 

Não podia fazê-lo. Mas se o não fizesse, ele partiria. E depois...

 

Apertou as fontes com ambas as mãos.

 

De repente, com mão febril, marcou um número.

 

Diga...

 

Raquel tinha os olhos rasos de lágrimas.

 

Desejo falar com o senhor Júlio Mora. Pouco depois Júlio estava ao telefone. Raquel nada disse. Apertou os punhos.

 

Mas quem será que está a entreter se comigo? gritou Júlio do outro lado.

 

Javier disse-me que partias amanhã.

 

Do outro lado do fio houve uma vacilação. Depois chegou aos seus ouvidos uma sonora gargalhada.

 

Ah! A couraçada Raquel San Juan está interessada na viagem deste infeliz mortal. A que devemos esse milagre?

 

Quanto lhe doeu aquela zombaria!

 

Desligou raivosamente e deixou-se cair na cama com o rosto entre as mãos. Pensou que ele voltaria a ligar, mas assim não aconteceu.

 

Apertou as fontes com as mãos e perguntou-se, uma vez mais, que devia fazer: se deixá-lo partir ou se procurá-lo no hotel e pedir-lhe que casasse com ela.

 

Mas não se mexeu. Dir-se-ia que aquele corpo não tinha vida. Esteve assim durante grande parte da noite. Ao amanhecer levantou-se e foi ver-se ao espelho. Este devolveu-lhe um rosto pálido e olheirento. Retrocedeu e, deixando-se cair numa poltrona, crispou as mãos, e com um olhar vago contemplou o quarto, indo por último cravar os olhos no retrato de Ricardo, cujo olhar parecia censurá-la. Ergueu-se, como que impulsionada por uma mola, e avançou como se estivesse hipnotizada.

 

Olhou para o rosto de Ricardo. Pensou no pouco feliz que ele foi a seu lado. E de repente sentiu o imperioso desejo de tirar dali o retrato e apertá-lo nas suas mãos.

 

- Meu Deus - gemeu. - Será possível que me guardes rancor, Ricardo? Fiz-te feliz quanto pude. Eu não tive a culpa de nada. Amava outro quando me casei contigo e pensei que podia esquecê-lo, mas enganei-me.

 

Estremeceu. Pareceu-lhe que os olhos de Ricardo sorriam e até lhe pareceu que os lábios masculinos, um pouco descoloridos, se abriam para dizer serenamente:

 

”Sê feliz com Júlio, Raquel. Sei que o meu amigo te merece. Tu não tiveste a culpa de nada. Amavas outro homem, não eras dona do teu coração e, no entanto, deste-me toda a tua vida e se não me deste o teu coração foi porque já não te pertencia. Não te guardo rancor; fizeste-me tão feliz quanto te foi possível. Procura Júlio, diz-lhe que o amas e casa-te com ele

 

”Esquece-me, Raquel. Amanhã é o aniversário da tua filha; dá-lhe um presente e que ele seja o meu retrato que até hoje tem estado no teu quarto. A partir de amanhã que esteja no quarto dela. Não deves, de forma alguma, obrigar o teu marido a olhar para o retrato de um homem que compartilhou anteriormente a tua vida. Vive o presente, esquece o passado e respeita sempre a memória do homem que tudo fez para te tornar feliz.

 

Os olhos de Raquel estavam muito abertos. Havia naquelas pupilas uma ânsia louca que não sabia a que atribuir. De repente sentiu a necessidade de seguir ao pé da letra o conselho misterioso, e com grande cuidado pôs o quadro sobre a cama e, ajoelhando-se, rezou baixinho, com muito fervor.

 

Quando Mary chegou ao salão naquela manhã havia sobre a mesa, ampla e cheia de flores, vários e valiosos presentes. O de Javier, um broche formosíssimo, de grande valor, além das flores dos criados; o presente de Júlio era um colar de pérolas de grande valor, acompanhado de um cartão muito expressivo. E havia também uma caixa grande, larga, sobre a qual Mary viu também um cartão de sua mãe.

 

Este foi o presente que mais chamou a atenção da rapariga, que apertou a mão de Javier e murmurou baixinho:

 

Gostaria de abri-lo agora mesmo, mas tenho medo que a mamã chegue.

 

E que importa isso?

 

Tens razão.

 

Abriu-o com mão febril. Diante dos seus olhos o sério e respeitável rosto de Ricardo Herraiz. Apenas puderam conter o grito de surpresa e satisfação que esteve a ponto de escapar dos seus lábios.

 

Olharam-se.

 

Foi a melhor prenda que Raquel San Juan podia fazer disse Javier, seriamente. Isso demonstra-nos que a tua mãe deu-se por vencida.

 

Mary, com os olhos rasos de lágrimas, deu o quadro a seu marido e disse baixinho:

 

Leva-o para o nosso quarto, querido. Eu vou falar à mamã.

 

Raquel encontrava-se sentada numa poltrona. Parecia uma estátua. Os seus olhos muito abertos, muito secos, olhavam fixamente num ponto. Ao sentir a porta abrir-se não se moveu; dir-se-ia que aquele corpo não tinha vida.

 

Mamã.

 

Raquel levantou-se como uma autómata e olhou para a filha.

 

Oh, mamã, quanto te agradeço!

 

Não devia tê-lo feito.

 

Devias, sim, mamã. ÉS jovem, tens direito à vida; o papá agradecer-te-á essa decisão. Além disso podes pertencer a outro e nunca deixares de respeitar a sua memória.

 

Raquel tapou o rosto com as mãos e soluçou.

 

Sentia-se deprimida, envergonhada. Parecia-lhe ridículo voltar a casar-se, tendo já uma filha casada, talvez quase a ser mãe por sua vez. E, no entanto, tinha direito à vida, como muito bem dissera Mary.

 

Já estou velha disse entredentes.

 

Velha? escandalizou-se Mary. Não digas atrocidades, mamã. Eu compreendi-te sempre desde o princípio. Soube que a mulher que havia na vida de Júlio eras tu e sei como Júlio te ama e como tu lhe correspondes, embora te esforces por disfarçar.

 

Raquel olhou-a como que alucinada.

 

Sabias? perguntou num fio de voz.

 

Soube-o desde o primeiro dia em que Júlio veio a nossa casa.

 

Raquel deixou-se cair sobre a cama e soluçou desesperadamente.

 

Mary aproximou-se dela e beijou-a. Depois, muito silenciosamente, saiu do quarto.

 

Ficou ali desarmada e magoada. Não sabia se devia gritar de angústia ou de satisfação. Não fez nada disso. Manteve-se quieta e, de repente, bateram à porta.

 

Entre.

 

Uma criada apareceu à porta.

 

O correio, senhora.

 

Deixa-o aí.

 

Quando ficou sozinha levantou-se e foi ver o correio. Haviam jornais, cartões, cartas... Uma delas chamou-lhe a atenção. Conhecia aquela letra.

 

A carta tremia-lhe entre os dedos. Era de Júlio, Sentou-se na beira da cama, abriu-a e leu-a:

 

”Raquel:

 

Depois de muito meditar decidi acabar para sempre as nossas relações ou uni-las para toda a vida. Se tu és uma mulher frívola, que tem prazer em despedaçar o coração de um homem, não estou disposto a suportar por mais tempo o teu estúpido jogo. Quando receberes esta carta talvez já esteja longe daqui. Lembra-te que esta é a última vez que te escrevo. Ou casas comigo ou partirei de Espanha para sempre; depois não me culpes do teu desespero.

 

Concluí que não tens coração. Ontem confessaste-me o teu amor. Hoje visitei-os e não consegui ver no teu rosto qualquer vestígio daquela confissão. O que é que tu pensas, Raquel? Pensarás, porventura, que eu sou um boneco ou um pobre diabo com quem se pode brincar? Sou um homem e amo-te. Assim, pois, esta carta é uma despedida, a menos que raciocines dentro de duas horas e venhas ter comigo ao hotel. Se a sombra de Ricardo é um obstáculo na nossa felicidade, como me fizeste compreender, lê a carta de Ricardo que tu mesma me entregaste depois da sua morte. Ricardo era um homem digno e honrado, sabia que me amavas e antes de morrer quis deixar bem expressa a sua vontade de que fosses feliz com o homem que sempre amaste. Lê essa carta e depois decide. Cumprimenta-te com todo o amor

 

Júlio.”

 

Durante uns momentos as mãos de Raquel conservaram-se crispadas com o papel entre os dedos. Depois baixou os olhos e olhou para a outra carta. Desdobrou-a e leu atentamente a carta que Ricardo escrevera.

 

Que bom que foste, Ricardo murmurou Raquel. Ocultou a cara entre as mãos e permaneceu silenciosa e rígida.

 

Depois levantou-se, limpou o rosto e alisando a saia preta desceu ao salão.

 

E a sua surpresa foi enorme ao encontrar ali Júlio Mora.

 

Porque fora a sua casa se dissera que não voltaria ali enquanto ela não lho pedisse? A explicação teve-a em seguida.

 

Mamã gritou Mary ao vê-la. Júlio veio trazer-me um ramo de orquídeas. Olha que bonitas, mamã!

 

Raquel trocou um rápido olhar com Júlio.

 

Era um olhar diferente dos outros, mas não encontrou no de Júlio interesse algum.

 

Ter-se-ia esquecido da carta? Seria que partia sem admitir uma explicação da parte dela?

 

Julguei que Júlio já te tinha enviado a prenda disse suavemente.

 

Claro que sim, mamã, mas Júlio acrescentou Mary com voz tremente parte às duas horas e eu quis que antes de partir visse o presente que me deste.

 

O rosto de Raquel não sofreu alteração alguma. Dir-se-ia que não percebera a intenção de sua filha.

 

Elevou os olhos e cravou-os em Júlio. Este recebeu o olhar daquelas pupilas sonhadoras e sentiu que estremecia dos pés à cabeça.

 

Certamente não pensava partir. Mas desejava estudar definitivamente a reacção de Raquel para aquilatar o amor que ainda pudesse nutrir por ele.

 

Vais de avião? perguntou Raquel, dominando o seu desespero.

 

Sim.

 

As duas horas?

 

Sim, às duas horas.

 

Raquel deu uns passos pelo compartimento. Era evidente o seu nervosismo. E por outro lado. sabia que todos os olhares estavam pendentes dela. Mas contra o que pudesse supor-se, Raquel mais uma vez se dominou e olhou para todos com absoluta indiferença.

 

Subitamente apareceu à portta do salão uma criada a chamar Mary. Esta saiu e Javier seguiu-a bruscamente.

 

Ficaram sós os dois.

 

Raquel retorceu as mãos, vacilou um momento e, por fim, disse num fio de voz:

 

Sempre julguei que não partias.

 

Júlio pôs a sua pasta numa poltrona e tirou a cigarreira do bolso do sobretudo. Bateu com o cigarro na unha do polegar esquerdo e sorriu. Nunca estivera tão arrogante como naquela manhã.

 

Raquel experimentou um acesso de raiva, que dominou novamente.

 

Talvez encontre no futebol aquilo que não consegui encontrar na vida.

 

Não soubeste procurar!

 

Pensas assim?

 

Raquel bateu com o pé no chão e gritou:

 

Se pretendes desconcertar-me, enganas-te.

 

Desconcertar-te? Não me faças rir, Raquel. Não pretendo fazê-lo porque ja o estás.

 

Raquel virou-lhe as costas.

 

Amanhã partiremos para a quinta disse subitamente, como se não pretendesse compreender as palavras dele. Se algum dia voltares a Espanha, espero que nos visites.

 

Toda a ironia de Júlio ruiu. Apagou o cigarro no cinzeiro, avançou para Raquel e olhou-a furioso.

 

É isso a única coisa que tens para me dizer? perguntou fora de si. Queres convencer-me de que és uma mulher de fferro?

 

Assim tens pensado.

 

Tens-me obrigado a isso. o que não é o mesmo. Mas sei que és uma mulher insensível. Andas a brincar comigo ou queres que te desfaça nos meus braços? Isto é uma comédia edionda, Raquel.

 

Ia a continuar, mas não poude porque os olhos dela, agora cravados nos seus estavam cheios de lágrimas.

 

Querida! murmurou baixinho, agarrando nas mãos femininas. Sou um bruto, mas...

 

Raquel olhou-o demoradamente.

 

Não

 

Recebi a tua carta, Júlio murmurou suavemente, Julguei que tinha de ir ao hotel dar a resposta.

 

Sentiu-se asfixiada. Pareceu-lhe que o mundo deixava de existir naquele momento.

 

Bendita sejas, querida. Quanto me fizeste sofrer! Mas a agora...

 

Os lábios de Raquel, os verdadeiros lábios, não aqueles que se encontravam frios quando ele lhe roubava à força um beijo, aderiram aos seus suavemente, apaixonadamente.

 

Seja para me matar ou amar disse com voz sufocada, aqui me tens. Eu já não podia resistir mais, Júlio. Apaixonei-me por ti quando era uma criança e agora que sou uma mulher puseste-me louca.

 

Bendita loucura que me traz a felicidade! disse Júlio, abraçando-a e beijando-a novamente com tanto ímpeto que, por um momento, ela julgou que o mundo acabava naquele momento.

 

Tudo estava silencioso.

 

Duas figuras estavam sentadas num sofá. As luzes estavam apagadas. Os dois, Júlio e Raquel, muito juntos, muito calados, estavam com os olhos cravados na obscuridade da noite, um pouco clareada pelo luar.

 

Tinham-se casado na manhã desse dia.

 

Mary e Javier estavam na quinta da Extremadura, e eles, sozinhos, permaneciam em Madrid e esperavam que o motorista aparecesse com o carro para os levar para longe de tudo aquilo.

 

Cheguei a pensar que nunca mais conseguiria fazer entrar-te na razão disse Júlio, de repente.

 

Eu também o pensei.

 

Porque és orgulhosa!

 

Não foi Isso, Júlio. Parecia-me que já não estava em idade para começar de novo. Tens que compreender que já tenho uma filha casada. Tinha receio...

 

Receio? Porque és assim?

 

Se não fosse assim talvez não me tivesses querido.

 

Sempre. Sempre. Desde o dia em que entraste naquele bar em Barcelona e me olhaste com esses olhos cheios de ternura.

 

Que exagerado!

 

Confessa que não gostaste logo de mim.

 

Não, não gostei.

 

Apertou-a violentamente. Fê-la levantar o rosto, que ficou muito próximo do seu.

 

Repete isso outra vez.

 

Raquel levantou os braços, passou-os em volta do pescoço masculino e beijou-a apaixonadamente. Depois disse com voz fraca:

 

Gostei de ti desde o primeiro momento. Já gostava de ti antes de te conhecer porque te imaginava tal como és.

 

Que deliciosa bruxa me saíste, querida.

 

Sabes o que estou a pensar?

 

Que ficamos em Madrid até amanhã.

 

Raquel levantou-se de um salto e riu suavemente.

 

És o homem mais encantador do mundo. Na verdade era isso que estava a pensar. Vai prevenir o motorista, anda.

 

Saiu e voltou pouco depois.

 

Avançou lentamente para ela e Raquel deixou-se prender nos seus braços fortes.

 

És deliciosa murmurou Júlio, apaixonadamente. Depois beijou-a.

 

Passaram-se dois anos.

 

A quinta de Júlio Mora estava naquela manhã mais bela do que nunca sob os raios quentes da Primavera.

 

No terraço da quinta dos Herraiz encontrava-se Mary, gatinhando ao lado do seu filhinho. Este era uma criança de dois anos, roliça, de cabelos pretos e olhos cor de turquesa.

 

São duas crianças disse Javier aparecendo à porta do terraço.

 

Mary, agora mais mulher, levantou-se rapidamente e correu para os braços que a esperavam.

 

Tens ciúmes?

 

Do meu filho? Que tonta!

 

Mesmo tonta e tudo sou o grande amor da tua vida. Lembras-te de quando casámos? Ralhavas-me porque quando me beijavas eu ruborizava-me como uma colegial.

 

Claro, nessa altura eras ainda uma criança.

 

Mas mesmo assim...

 

Estás a tornar-te vaidosa, meu amor?

 

Censuras-me?

 

Javier pôs-se sério e beijou-a na testa e depois nos lábios. Nunca poderei censurar-te, amor da minha vida, porque se o fizesse era a mesma coisa que censurar-me a mim próprio. Mas tem em consideração que o próximo filho tem que ser como eu.

 

Escreverei agora mesmo para França a comunicar o teu desejo disse Mary, rindo ironicamente.

 

No terraço de Júlio Mora, ou seja, na quinta próxima, passava se uma cena similar.

 

Uma criança de um ano brincava. Júlio estava próximo da criança, um pouco mais rejuvenescido pese aos dois anos passados. Olhava amorosamente para a cabecita de cabelos pretos que emolduravam um rosto bonito, onde os olhos escuros, brilhantes, sorriam brincalhões.

 

A filhinha de Raquel, bonita, sedutora, também mais juvenil que dois anos antes, apareceu à porta.

 

Podes chegar aqui por um momento, Júlio?

 

Não devo deixar o menino sozinho, Raquel. Raquel deu uma gargalhada. Era um riso fresco, jovial, cristalino.

 

Não...

 

Avançou para ele e meteu os seus compridos e finos dedos no cabelo de Júlio.

 

Também tu pareces um menino crescido disse inclinando a cabeça e pousando os seus lábios na boca masculina. Durante um ano não fizeste outra coisa senão passares as manhãs ao lado do nosso filho.

 

Júlio aprisionou os dedos que lhe revolviam os cabelos e murmurou intensamente, com voz sufocada:

 

Porque este menino é nosso, Raquel! O filho do nosso amor. Queres maior ventura? Tanto que eu sonhei com um filho dos dois e Deus fez-me a vontade.

 

Elevou os olhos e contemplou amorosamente o rosto resplandecente.

 

Cada dia que passa estás mais bela suspirou. Que fazes para que assim suceda?

 

Nada, absolutamente nada. Mentirosa.

 

Mas não quererás saber o que tenho para te dizer?

 

Claro que quero.

 

Raquel sorriu suavemente. Sentou-se a seu lado, levantou a criança nos braços e apertou-a suavemente contra o seu coração.

 

Desejava, apenas, dizer-te que chegou a inglesinha. A gargalhada de Júlio foi tão estridente que por um momento a criança fez uma careta como se fosse chorar.

 

Não sejas barulhento, Júlio. Assustaste o teu filho. Júlio, impetuoso, abraçou a mulher e a criança e beijando o ouvido de Raquel, disse:

 

A inglesinha e eu, querida ciumenta, fomos grandes amigos. Ela sabia que eu te amava e ajudava-me a esquecer-te. Foi uma grande camarada e estou-lhe muito agradecido. Suponho que virá visitar-nos e peço-te que a recebas bem.

 

Então quando desaparecias no bosque...

 

Cansava-a, Raquel, cansava-a a falar de ti, e ela, afável, ouvia-me com toda a atenção e no seu idioma disse-me muitas vezes que pela minha nobreza merecia a felicidade e que a obteria porque a merecia.

 

Muito comovente.

 

Não acreditas?

 

Raquel, antes de responder, pôs o menino no chão e chamou a ama. Esta veio prontamente, sentou-se ao lado do menino e Raquel, agarrando no braço de Júlio, empurrou-o para o salãozinho.

 

Que representa este mistério todo?

 

Raquel aproximou-se dele, oprimiu o seu corpo contra o de Júlio e abraçou-o, depois olhou-o profundamente nos olhos e murmurou com intensidade:

 

Se não acreditasse que assim fosse, não teria casado contigo, não teríamos o nosso filho e não seríamos agora infinitamente felizes.

 

E com um gesto meigo, cheio de naturalidade, pôs-se em bicos dos pés e ofereceu-lhe a sua boca.

 

Sou feliz, Raquel, porque és minha, porque me deste um filho e porque sei que Javier e Mary também são felizes. Olha-os.

 

Raquel soltou-se bruscamente e foi até à janela. Júlio situou-se atrás dela e ambos olharam para a quinta próxima.

 

Parece mentira que o tempo tenha passado tão rapidamente disse Júlio. Parece que nos casámos ontem. Que tu discutias comigo, que te negavas a dar consentimento para a tua filha casar, e no entanto... já temos filhos.

 

E depressa serei velha.

 

Júlio contemplou-a entre apaixonado e brincalhão.

 

Uma velha? riu feliz. Tu nunca serás velha, querida. Tens um coração que nunca envelhecerá e um rosto cheio de encanto, onde os olhos denunciam uma vida intensíssima, que mesmo depois da morte me fará feliz. Não, meu amor, nem tu nem eu podemos ser velhos, porque nos amamos desde crianças. Não podemos envelhecer porque tu guardaste o teu coração para mim. E esse coração será sempre jovem.

 

Sem olhá-lo, Raquel apertou a mão de Júlio e este inclinou a cabeça e beijou o cabelo de sua mulher, que continuava a olhar para a outra quinta.

 

Nunca envelheceremos repetiu ela suavemente.

 

O choro da criança levou-a novamente para o terraço.

 

E a vida continuou a rolar, a rolar como a bola que um dia foi impulsionada pelo pé do famoso futebolista internacional.

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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