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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALERTA FINAL / Lee Child
ALERTA FINAL / Lee Child

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ALERTA FINAL

Primeira Parte

 

Hook Hobie devia sua vida inteira a um segredo de quase trinta anos. Sua liberdade, seu status, seu dinheiro, tudo. E, como qualquer sujeito cuidadoso nessa situação particular, estava disposto afazer o que fosse preciso para proteger seu segredo. Porque tinha muito a perder. A vida inteira.

A proteção na qual se sustentava havia quase trinta anos baseava-se em apenas duas coisas. As mesmas duas coisas que qualquer pessoa usa para se proteger do perigo. Da mesma forma que um país se protege de um míssil inimigo, da mesma forma que o morador de um apartamento se protege de um ladrão, da mesma forma que um boxeador fecha a guarda contra uma tentativa de nocaute. Detecção e resposta. Fase um, fase dois. Primeiro você identifica a ameaça, depois você reage.

A fase um era o sistema de alarme preliminar. Havia sido modificado ao longo dos anos, assim como as circunstâncias haviam mudado. Agora, estava bem-ensaiado e simplificado. Constituía-se de duas camadas, como dois fios de alarme concêntricos. O primeiro estava a dezoito mil quilôme­tros de casa. Era um sinal de alerta muito antecipado. Uma chamada para despertar. Avisaria que eles estavam se aproximando. O segundo estava oito mil quilômetros mais próximo, mas ainda a 10 mil quilômetros de distância.

Uma ligação do segundo ponto avisaria que eles estavam prestes a chegar muito perto. Serviria para avisar que a fase um chegara ao fim e que a fase dois estava começando.

A fase dois era a reação. Ele sabia muito bem qual deveria ser. Passara quase trinta anos pensando nisso, mas só havia uma única reação viável. E era fugir. Desaparecer. Ele era um cara realista. Durante toda a vida, or­gulhara-se de sua coragem e sua astúcia, de sua tenacidade e sua fortaleza. Sempre fizera o necessário sem pensar duas vezes. Mas sabia que, ao ouvir os sinais de alerta daqueles distantes fios de alarme, tinha que sair de lá. Porque nenhum homem seria capaz de sobreviver ao que viria depois dele. Nenhum homem. Nem mesmo alguém tão implacável quanto ele.

O perigo subira e descera, como a maré dos anos. Por longos períodos, estivera certo de que seria inundado a qualquer momento. Para então serem substituídos por longos períodos em que nada parecia ser capaz de atingi-lo. Às vezes, a sensação de amortecimento do tempo fazia com que ele se sentisse seguro, afinal, trinta anos é uma eternidade. Mas, outras vezes, parecia um piscar de olhos. Às vezes, ficava à espera da primeira ligação hora após hora. Planejando, suando, mas sempre ciente de que poderia ser forçado a fugir a qualquer momento.

Ele ensaiara tudo em sua mente milhões de vezes. Do jeito que ele espe­rava, a primeira ligação viria talvez um mês antes da segunda. Seria um mês para se preparar. Amarraria as pontas soltas, fecharia as coisas, sacaria o dinheiro, faria a transferência dos ativos, acertaria as contas. Depois, quando recebesse a segunda ligação, decolaria. Imediatamente. Sem hesitação. Era só se mandar e ficar bem longe.

Mas, do jeito que aconteceu, as duas ligações chegaram no mesmo dia. A segunda veio antes da primeira. O fio de alarme mais próximo foi detonado uma hora antes do mais distante. E Hook Hobie não fugiu. Abandonou trinta anos de planos cuidadosos e ficou lá para encarar a briga...

 

 

JACK REACHER VIU O CARA ENTRAR PELA PORTA. Na verdade, não havia porta. O cara apenas entrou pela par­te da parede da frente que não estava lá. O bar abria direto para a calçada. Havia mesas e cadeiras lá fora, sob uma tre­padeira seca, que ainda dava um mínimo de sombra. Era um ambiente contínuo, de dentro para fora, passando por uma parede que não existia. Reacher achava que poderia haver algum tipo de grade que poderiam prender na abertura, quando o bar fe­chasse. Se fechasse. Reacher certamente nunca vira o bar fechar, e olha que ele cumpria um horário de trabalho bem radical.

O cara ficou em pé, esperando, alguns metros dentro da sala escura, piscando, deixando que os olhos se acostumassem à penumbra, após sair do branco escaldante do sol de Key West. Era junho, exatamente quatro da tarde, na parte mais ao sul dos Estados Unidos. Mais ao sul até do que a maior parte das Bahamas. Um sol branco e intenso, um calor extremo. Reacher sentou à mesa, no fundo do bar, bebeu um gole-d'água de uma garrafa plástica e esperou.

O cara olhava em torno. O bar tinha teto baixo, era construído com tábuas velhas, ressecadas e até ficarem bem escuras. Pareciam ter vindo de um daqueles velhos veleiros. Pedaços espalhados de sucata náutica estavam pregados nelas. Objetos de latão e globos de vidro verde. Pedaços de redes velhas. Equipamento de pesca, era o que Reacher achava, apesar de nunca ter pescado um peixe na vida. Ou velejado. Além de tudo aquilo, havia uns dez mil cartões de visita pregados ao longo de cada centímetro quadrado livre, incluindo o teto. Alguns deles eram novos, outros, velhos e enrola­dos, representando empreendimentos que haviam passado por lá décadas atrás.

O cara avançou um pouco mais pela penumbra, na direção do balcão. Era velho. Uns sessenta anos, altura média, corpulento. Um médico o teria considerado acima do peso, mas Reacher viu apenas um homem robusto começando a descer a ladeira. Um sujeito que encarava a passagem do tem­po com elegância, sem se preocupar muito com isso. Estava vestido como alguém de uma cidade do norte que precisou se arrumar às pressas para viajar para um lugar quente. Calças cinza leves, largas no alto, estreitas na base, um paletó bege fino e amassado, uma camisa branca com o colari­nho bem aberto, mostrando a pele branco-azulada do pescoço, meias es­curas, sapatos urbanos. Reacher desconfiou que ela era de Nova York ou de Chicago, talvez de Boston, tendo passado a maioria de seus verões no ar condicionado dos prédios ou dos carros; essas calças e esse paletó ficaram enfiados no fundo do armário desde que foram comprados, uns vinte anos antes, e saíam de lá apenas de vez em quando, para serem usados em situa­ções apropriadas.

O cara chegou até o balcão e tirou a carteira de dentro do paletó. Estava recheada e era feita de couro preto fino. O tipo de carteira que se molda em torno do que quer que estivesse enfiado lá dentro. Reacher viu o cara abri-la com um movimento rápido, mostrá-la para o barman e fazer uma pergunta em voz baixa. O barman olhou para outro lado, como se tivesse sido insul­tado. O cara afastou a carteira e ajustou as mechas grisalhas do cabelo sobre o couro cabeludo suado. Murmurou outra coisa, e o barman tirou uma cer­veja duma caixa de gelo. O velho segurou a garrafa fria contra o rosto por um momento e depois deu um longo gole. Arrotou discretamente por trás da mão e sorriu, como se uma pequena decepção tivesse sido amenizada.

Reacher acompanhou seu gole longo fazendo o mesmo com a garrafa-d'água. O sujeito que tinha o melhor condicionamento físico que ele já co­nhecera fora um soldado belga que jurava que a chave para a boa forma era fazer qualquer coisa que você estivesse a fim, desde que bebesse cinco litros de água mineral todos os dias. O belga era um sujeito pequeno e magro, com metade do seu tamanho, portanto, em vez de cinco, Reacher teria que beber dez litros por dia. Dez garrafas de um litro. Seguiu a recomendação desde que chegara ao calor das Keys. Estava funcionando. Nunca se sentira melhor. Todos os dias, às quatro da tarde, ele se sentava àquela mesa escura e bebia três garrafas de água sem gás, à temperatura ambiente. Estava tão viciado em água como já tinha sido em café.

O velho estava encostado de lado no balcão, ocupado com sua cerve­ja. Varrendo a sala com os olhos. Reacher era a única pessoa lá, além do barman. O velho afastou-se do balcão com um movimento do quadril e se aproximou. Balançou a cerveja com um gesto vago, como se perguntasse posso ir até aí? Reacher apontou para a cadeira diante dele e quebrou o lacre de plástico da terceira garrafa. O homem sentou-se pesadamente. A cadeira pareceu estar sendo esmagada por ele. Era o tipo de cara que guarda chaves, dinheiro e lenço nos bolsos das calças, o que aumentava a largura natural dos quadris.

Você é Jack Reacher? — perguntou.

Nada de Chicago ou Boston. Nova York, com certeza. A voz soava exa­tamente como a de um conhecido de Reacher que passara seus vinte pri­meiros anos sem nunca se afastar mais de cem metros da avenida Fulton.

Jack Reacher? — perguntou o velho de novo.

De perto, tinha olhos pequenos e espertos e sobrancelhas grandes. Reacher bebeu e olhou para ele através da água clara em sua garrafa.

Você é Jack Reacher? — perguntou o cara pela terceira vez.

Reacher colocou a garrafa na mesa e balançou a cabeça.

Não — mentiu.

Os ombros do velho caíram levemente, estava desapontado. Puxou o punho da camisa e olhou o relógio. Moveu sua massa para a frente na ca­deira, como se fosse levantar, mas sentou-se de volta, como se de repente houvesse tempo de sobra.

Quatro e cinco — disse.

Reacher concordou. O cara acenou com a garrafa vazia para o barman, que se abaixou para pegar outra gelada.

O calor — disse. — Me pega de jeito.

Reacher concordou de novo e tomou mais um gole da água.

Você conhece algum Jack Reacher por aqui? — perguntou o cara.

Reacher deu de ombros.

Alguma descrição? — perguntou de volta.

O cara deu um longo gole na segunda garrafa. Limpou os lábios com as costas da mão e aproveitou para esconder um segundo arroto discreto.

Na verdade, não. Um grandalhão, é tudo o que eu sei. Por isso que te perguntei.

Reacher assentiu.

Tem muitos grandalhões por aqui. Tem grandalhões em tudo quanto é lugar.

Mas você não conhece o nome?

Deveria? — perguntou. — E quem quer saber?

O cara sorriu e acenou com a cabeça, como um pedido de desculpas por um lapso de boas maneiras.

Costello — respondeu. — Prazer em conhecê-lo.

Em resposta, Reacher assentiu de volta e levantou a garrafa levemente.

Rastreador? — perguntou.

Detetive particular — respondeu Costello.

Procurando um cara chamado Reacher? — perguntou Reacher. — O que ele fez?

Costello deu de ombros.

Nada, pelo que sei. Apenas me pediram para encontrá-lo.

E você acha que ele está aqui embaixo?

Estava na semana passada. Ele tem uma conta bancária em Virgínia e está mandando dinheiro para lá.

Daqui de baixo, de Key West?

Costello concordou.

Toda semana — respondeu. — Há três meses.

E daí?

Daí que ele está trabalhando por aqui — disse Costello. — Pelo me­nos, tem trabalhado, há três meses. Acho que alguém deve conhecê-lo.

Mas ninguém conhece — disse Reacher.

Costello balançou a cabeça.

Subi e desci a Duval perguntando para todo mundo. Parece que é ali que a ação acontece nesta cidade. O mais próximo que cheguei foi num bar de strippers, uma garota de lá disse que tinha um sujeito grandão por aqui, há exatos três meses, que vinha beber água todo dia, às quatro horas, aqui.

Ele ficou em silêncio, olhando firme para Reacher, como se fizesse um desafio direto. Reacher tomou um gole da água e encolheu os ombros.

Coincidência — disse.

Costello concordou.

Acho que sim — disse em voz baixa.

Ele levou a garrafa de cerveja até os lábios e bebeu, mantendo seus sá­bios e velhos olhos focados no rosto de Reacher.

Tem uma grande população temporária aqui — disse Reacher. — As pessoas vêm e vão o tempo todo.

Acho que sim — repetiu Costello.

Mas vou ficar de ouvidos abertos — disse Reacher.

Costello concordou.

Eu agradeço — respondeu de um jeito ambíguo.

Quem quer encontrá-lo? — perguntou Reacher.

Minha cliente — respondeu Costello. — Uma senhora chamada Jacob.

Reacher tomou um gole da água. Aquele nome não significava nada para ele. Jacob? Nunca ouvira falar dessa pessoa.

Está bem. Se encontrá-lo por aqui, eu te aviso, mas não fique muito esperançoso. Não costumo encontrar muita gente.

Você trabalha?

Reacher assentiu.

Cavo piscinas — respondeu.

Costello ponderou, como se soubesse o que eram piscinas, mas como se nunca tivesse parado para pensar como elas chegavam lá.

Operador de escavadeira?

Reacher sorriu e balançou a cabeça.

Não por aqui — respondeu. — Nós escavamos com as mãos.

Com as mãos? — repetiu Costello. — Como assim? Com pás?

Os terrenos são muito pequenos para as máquinas — explicou Reacher. — As ruas são muito estreitas, as árvores, muito baixas. Saia da Duval e você vai ver.

Costello concordou mais uma vez. De repente, pareceu muito satisfeito.

Então provavelmente não vai conhecer esse tal de Reacher — disse. — Segundo a sra. Jacob, ele era um oficial do Exército. Então fui verificar, e ela estava certa. Era um major. Medalhas e tudo o mais. Um manda-chuva da Polícia do Exército, foi o que me disseram. Não se encontra um cara desses cavando piscinas com uma porcaria de pá.

Reacher tomou um longo gole em sua água para esconder sua expres­são.

E como se encontra um cara desses?

Aqui no sul? — perguntou Costello. — Não tenho certeza. Segu­rança de hotel? Tocando algum tipo de negócio? Talvez tenha um iate e o alugue para passeios.

E por que ele teria vindo parar aqui, afinal?

Costello concordou, como se estivesse concordando com uma opinião.

Certo — disse ele. — Isso aqui é um inferno. Mas ele está aqui, com toda certeza. Deixou o Exército há dois anos, colocou o dinheiro no ban­co mais próximo do Pentágono e desapareceu. A movimentação da conta mostra o dinheiro sendo transferido pra tudo quanto é lugar, e depois, há três meses, as transferências passaram a sair daqui. Então, ele andou por aí por um tempo e depois se ajeitou por aqui, fazendo alguma grana. Vou encontrá-lo.

Reacher assentiu.

Ainda quer que eu pergunte por aí?

Costello balançou a cabeça. Já estava planejando o próximo movi­mento.

Não se preocupe com isso — respondeu ele.

Ajeitou o corpanzil na cadeira e tirou um rolo amassado de dinheiro do bolso da calça. Deixou uma nota de cinco sobre a mesa e se afastou.

Prazer em conhecê-lo — disse em voz alta, sem olhar para trás.

Caminhou para a rua, passou pela parede inexistente, entrou no clarão da tarde. Reacher bebeu o que restava da água e o observou ir embora. Às quatro e dez.

Uma hora mais tarde, Reacher descia a avenida Duval, pensando em novos acertos bancários, escolhendo um lugar para jantar mais cedo e se pergun­tando por que mentira para Costello. Sua primeira conclusão foi que iria sacar o dinheiro e ficar com um maço de notas no bolso da calça. A segun­da foi que iria seguir o conselho de seu amigo belga e comer um bife grande e sorvete com mais duas garrafas de água. A terceira foi que havia mentido porque não havia razão para não mentir.

Não havia motivo algum para que um detetive particular de Nova York estivesse atrás dele. Jamais tinha morado em Nova York. Ou em qualquer outra cidade grande do norte. Na verdade, nunca tinha morado em lugar algum. Essa era a característica que definia sua vida. Era o que o fazia ser quem era. Filho de um oficial dos Fuzileiros Navais, fora carregado para todos os cantos do mundo desde o dia em que sua mãe saiu com ele da maternidade, em uma enfermaria em Berlim. Não tinha morado em lugar algum, a não ser em uma interminável confusão de bases militares, a maio­ria em locais distantes e inóspitos do planeta. Então, também se alistou no Exército, como investigador da Polícia do Exército, e viveu e trabalhou nas mesmas bases, tudo de novo, até os dividendos da paz fecharem sua unida­de e ele ser liberado. Voltou para casa, nos Estados Unidos, e vagueou por lá como um turista com pouco dinheiro, até chegar à extremidade do país, com as economias chegando ao fim. Passara uns dois dias cavando buracos no chão, os dois dias se estenderam por duas semanas e depois meses, e lá estava ele.

Não tinha parentes vivos que pudessem lhe deixar uma fortuna em testamento. Não devia dinheiro para ninguém. Nunca tinha roubado ou enganado qualquer pessoa. Não tivera filhos. Vivia apenas com alguns pedaços de papel, da maneira que seria possível a um ser humano viver. Era praticamente invisível. E jamais conhecera alguém chamado Jacob. Tinha absoluta certeza disso. Então, o que quer que Costello quisesse não lhe interessava. Por certo não o suficiente para botar a cabeça para fora e se envolver com o que quer que fosse.

Porque ser invisível tornara-se um hábito. Na parte frontal de seu cére­bro, ele sabia que isso era algum tipo de reação complexa e alienada à sua situação. Dois anos antes, tudo tinha virado de cabeça pra baixo. Ele dei­xara de ser um peixão nadando num pequeno lago e passara a ser um nin­guém. Deixara de ser um membro sênior, valorizado, de uma comunidade altamente estruturada para se tornar apenas mais um entre 270 milhões de civis anônimos. De ser necessário e procurado para ser apenas alguém sobrando. De estar onde lhes diziam que deveria estar a cada minuto do dia para se ver diante de cinco milhões de quilômetros quadrados e talvez mais uns quarenta anos pela frente, sem qualquer mapa ou horário. A par­te frontal do seu cérebro dizia-lhe que sua reação era compreensível, mas defensiva, a reação de um homem que gostava de estar só, mas que temia a solidão. Dizia-lhe que era uma reação extrema com a qual deveria lidar.

Mas a parte oculta do seu cérebro, enterrada atrás dos lobos frontais, dizia que ele gostava daquilo. Gostava do anonimato. Gostava do segredo. Sentia-se aquecido, confortável e reconfortado. Zelava por aquilo. Sentia-se amistoso e gregário na superfície, sem jamais falar muito de si mesmo. Gostava de pagar em dinheiro e viajar pelas estradas. Jamais aparecia nas listas de passageiros ou nos carbonos dos canhotos de cartão de crédito. Não dizia seu nome a ninguém. Em Key West, havia se registrado num hotel barato com o nome Harry S. Truman. Dando uma olhada no livro de registro, viu que não tinha sido o único. A maioria dos 41 presidentes dos EUA havia passado por lá, mesmo aqueles de quem ninguém ouvira falar, como John Tyler e Franklin Pierce. Descobrira que os nomes não signifi­cavam muito nas Keys. As pessoas apenas acenavam, sorriam e davam um oi. Todo mundo presumia que todos tinham algum motivo para se manter discretos. Sentia-se confortável lá. Confortável demais para sair apressado.

Caminhou por uma hora em meio ao calor barulhento e depois saiu da Duval, indo para um restaurante discreto, com mesas num pátio, onde o conheciam de vista e serviam sua marca de água favorita, além de um bife cujas beiradas sobravam pelos dois lados do prato ao mesmo tempo.

O bife veio com um ovo, batatas fritas e uma mistura complicada de algum tipo de verdura de climas quentes; o sorvete veio com calda de chocolate quente e castanhas. Bebeu mais um litro de água e completou com duas xí­caras de café preto forte. Afastou-se da mesa e ficou sentado ali, satisfeito.

Tudo certo? — a garçonete sorriu.

Reacher sorriu de volta e concordou com a cabeça.

No ponto certo — respondeu ele.

Você parece ter ficado satisfeito.

Estou ótimo.

Era verdade. Seu próximo aniversário seria o trigésimo nono, mas ele se sentia melhor do que nunca. Sempre fora forte e estivera em boa forma, mas os últimos três meses o levaram a um novo patamar. Tinha dois metros e pesava uns cem quilos quando deixara o Exército. Um mês depois de se juntar à turma das piscinas, o trabalho e o calor o deixaram com 95 quilos.

Mas, nos dois meses seguintes, havia recuperado todo o peso e chegado a 113 quilos de puro músculo. Sua carga de trabalho era extraordinária. Ele calculava carregar cerca de quatro toneladas de terra, pedras e areia todos os dias. Tinha desenvolvido uma técnica de escavação, remoção, giro e descarga da terra com sua pá que fazia com que cada parte do seu corpo trabalhasse o dia inteiro. O resultado era espetacular. Estava bronzeado, um marrom-escuro, e na melhor forma de sua vida. Como uma camisinha cheia de amêndoas, é o que uma garota lhe dissera. Ele achava que tinha que comer cerca de dez mil calorias por dia só para manter o equilíbrio, além de beber os dez litros de água.

Então vai trabalhar hoje à noite? — perguntou a garçonete. Reacher deu uma gargalhada. Ganhava por um programa de exercícios

pelo qual a maioria das pessoas pagaria uma fortuna em qualquer academia reluzente e agora ia para seu trabalho noturno, algo pelo qual era pago mas que a maioria dos homens faria de graça e com boa vontade. Era o porteiro no bar de strippers que Costello mencionara. Na Duval. Ficava lá a noite toda sem camisa, com cara de durão, bebendo de graça e garantindo que as moças nuas não fossem incomodadas. E então lhe pagavam cinqüenta dólares pelo serviço.

E uma obrigação, mas alguém precisa fazer o serviço.

A garota deu uma risada com ele, que pagou a conta e voltou para a rua.

Dois mil e quatrocentos quilômetros ao norte, logo abaixo de Wall Street, na cidade de Nova York, o presidente da empresa pegou o elevador para descer dois andares, até a sala do diretor financeiro. Os dois homens en­traram juntos no escritório e se sentaram lado a lado, atrás da mesa. Era o tipo de escritório caro, com uma mesa cara, típicos de quando os tempos estavam favoráveis, mas que depois ficaram lá, como uma muda reprova­ção, quando os tempos ficavam difíceis. O escritório ficava num andar alto, carvalho por toda parte, cortinas de tecido claro, toques de bronze, uma enorme mesa de pedra, uma luminária italiana, um enorme computador que custou bem mais do que o necessário. O computador estava ligado, esperando por uma senha. O presidente digitou o código e teclou ENTER, a tela se transformou numa planilha. Era a única planilha que contava a verdade sobre a empresa. E por isso era protegida por senha.

Vamos mesmo fazer isso? — perguntou o presidente.

Aquele tinha sido do Dia D. D de downsizing, a reestruturação, na lin­guagem dos negócios.

O gerente de recursos humanos estava na fábrica, em Long Island, ocu­pado desde às oito da manhã. A secretária dele ajeitara uma longa fila de cadeiras no corredor, do lado de fora do escritório, e as cadeiras estavam ocupadas por uma longa fila de pessoas. As pessoas passaram a maior parte do dia à espera, mudando de lugar de cinco em cinco minutos para final­mente chegar ao começo da fila e entrar na sala do gerente de RH para uma entrevista de cinco minutos que dava cabo de sua subsistência, um muito obrigado e adeus.

Vamos mesmo fazer isso? — repetiu o presidente.

O diretor financeiro estava copiando alguns números grandes em uma folha de papel. Subtraiu um do outro e olhou para um calendário. Deu de ombros.

Em tese, sim — respondeu. — Na prática, não.

Não? — repetiu o presidente.

É o fator tempo — disse o diretor financeiro. — Fizemos a coisa certa lá na fábrica, sem dúvida. Oitenta por cento das pessoas se foram, uma eco­nomia de 91 por cento da folha de pagamento, porque mantivemos apenas os funcionários mais baratos. Mas pagamos a todos até o fim do mês que vem. Assim, a melhoria do fluxo de caixa não nos afeta por seis semanas. E, na verdade, o fluxo de caixa agora fica bem pior, porque os cretinos estão todos lá sacando seus cheques correspondentes a seis semanas de trabalho.

O presidente suspirou e concordou.

Então, de quanto precisamos?

O diretor financeiro usou o mouse e ampliou a janela.

Um milhão e cem mil dólares — respondeu. — Por seis semanas.

Banco?

Esqueça — o diretor financeiro disse. — Estou indo lá todo dia para puxar o saco dos caras, só para não aumentar o que já devemos a eles. Se eu pedir mais, vão rir da minha cara.

Coisas piores podem acontecer com você — disse o presidente.

Não é essa a questão — respondeu o diretor financeiro. — A questão é que, se eles tiverem algum sinal de que não estamos saudáveis, vão execu­tar a dívida. Num piscar de olhos.

O presidente tamborilou com os dedos sobre a mesa de carvalho e en­colheu os ombros.

Vou vender algumas ações — disse.

O diretor financeiro balançou a cabeça.

Você não pode — explicou pacientemente. — Se colocar essas ações no mercado, o preço vai despencar até o chão. Nossos empréstimos estão garantidos pelas ações e, se elas caírem ainda mais, eles nos fecharão ama­nhã.

Merda — disse o presidente. — Faltam ainda seis semanas. Não vou perder tudo por causa de uma porcaria de seis semanas. Não por uma merreca de um milhão de dólares. É um valor insignificante.

Um valor insignificante que nós não temos.

Tem que haver algum lugar onde a gente consiga isso.

O diretor financeiro não respondeu nada. Mas estava sentado ali, como se tivesse algo mais a dizer.

O quê? — perguntou o presidente.

Ouvi uma conversa — disse. — Uns caras que eu conheço. Talvez tenha alguém a quem possamos recorrer. Por seis semanas, pode valer a pena. Tem uma possibilidade de que ouvi falar. Algo do tipo um credor de último recurso.

Confiável?

Aparentemente — o diretor financeiro disse. — Parece muito res­peitável. Um escritório grande no World Trade Center. Especializado em casos assim.

O presidente olhou para a tela.

Casos assim como?

Assim — o diretor financeiro repetiu. — Como quando você já está quase chegando em casa a salvo, mas os bancos têm a visão curta demais para perceber.

O presidente concordou com a cabeça e olhou em torno do escritório. Era um lugar bonito. E seu próprio escritório ficava dois andares acima, num canto, era ainda mais bonito.

Está bem — disse. — Pode fazer isso.

Eu não posso — disse o diretor financeiro. — Esse cara não lida com ninguém abaixo do nível da presidência. É você quem tem que ir lá.

Uma noite tranqüila começou no bar de strippers. Uma noite no meio de uma semana de junho, muito tarde para os pássaros fugindo do frio ou para o início da primavera, mas cedo demais para os veranistas que iam se bronzear. Nada mais do que umas quarenta pessoas a noite toda, duas ga­rotas no bar, três outras dançando. Reacher estava assistindo a uma mulher chamada Crystal. Ele desconfiava que não fosse o nome verdadeiro dela, mas nunca perguntou. Era a melhor. Ganhava muito mais do que Reacher ganhara como major da Polícia do Exército. Uma parte do dinheiro ela gastava para andar num velho Porsche preto. Às vezes, Reacher o ouvia no início da tarde, roncando e bufando em volta dos quarteirões onde ele estava trabalhando.

O bar ficava numa sala comprida, no segundo andar, com uma pista e um pequeno palco circular com uma barra brilhante. Uma fila de cadeiras serpenteava ao redor da pista e do palco. Havia espelhos por toda parte, e, onde não eram cobertas por eles, as paredes eram pintadas de preto liso. Todo o lugar pulsava e vibrava com a música alta saindo de meia dúzia de alto-falantes, suficientes para abafar o ronco do ar-condicionado.

Reacher estava de costas para o bar, a um terço do caminho do salão. Perto o suficiente da porta para ser visto de imediato e suficientemen­te dentro da sala para que as pessoas não esquecessem que ele estava lá. Crystal tinha acabado sua terceira dança e estava arrastando um cara ino­fensivo para os bastidores, para um show particular de vinte pratas, quan­do Reacher viu dois homens surgirem no alto da escada. Gente estranha, vindo do norte. Talvez uns trinta anos, sarados, pálidos. Ameaçadores. Caras durões do norte, com ternos de mil dólares e sapatos brilhantes. Ali no sul, com um jeito apressado, ainda vestindo as roupas da cidade. Esta­vam diante da mesa e discutiam sobre a taxa de três dólares de consumação. A garota na mesa olhou ansiosamente para Reacher. Ele desceu de sua ban­queta. Aproximou-se.

Algum problema, amigos? — perguntou.

Tinha usado o que chamava de andar de universitário. Já tinha ob­servado que os meninos universitários andavam de um jeito tenso, como se mancassem um pouco. Especialmente na praia, com calção de banho. Como se fossem tão musculosos que as pernas não podiam se mover nor­malmente. Achava que isso tornava aqueles adolescentes de setenta quilos um tanto cômicos. Mas aprendera que, para um cara de quase dois metros e uns 115 quilos, o andar parecia bem assustador. O andar de universitário era uma ferramenta de seu novo emprego. Uma ferramenta que funciona­va. Com certeza, os dois rapazes, com seus ternos de mil dólares, pareciam um tanto impressionados.

Algum problema? — perguntou de novo.

Em geral, aquilo era o bastante. A maioria dos rapazes recuava nesse ponto. Mas não esses dois. Ao se aproximar, sentiu algo vindo deles. Uma certa combinação de ameaça e confiança. Talvez fosse arrogância. Algo que sugeria que, em geral, conseguiam fazer as coisas do jeito deles. Mas esta­vam longe de casa. Bem longe do próprio campo de jogo para se comportar com um pouco mais de circunspecção.

Nenhum problema, Tarzan — respondeu o da esquerda.

Reacher sorriu. Já havia sido chamado de um monte de coisas, mas Tarzan era novidade.

Três dólares para entrar — disse. — Mas para dar meia-volta e descer a escada é de graça.

A gente só quer falar com uma pessoa — disse o da direita.

Os dois tinham sotaque. De algum lugar de Nova York. Reacher deu de ombros.

A gente não conversa muito por aqui — respondeu. — A música é muito alta.

Qual é o seu nome? — perguntou o da esquerda. Reacher sorriu novamente.

Tarzan — respondeu.

Estamos procurando um cara chamado Reacher — o homem devol­veu. — Jack Reacher, conhece?

Reacher balançou a cabeça.

Nunca ouvi falar — disse ele.

Então, precisamos conversar com as meninas — disse o cara. — Nos disseram que talvez elas o conheçam.

Reacher balançou a cabeça novamente.

Não conhecem — disse.

O cara da direita olhava por cima do ombro de Reacher, para a sala longa e estreita. Examinava as garotas atrás do balcão. Estava percebendo que Reacher era o único segurança de plantão.

Está bem, Tarzan, chega para lá — disse. — A gente vai entrar agora.

Vocês sabem ler? — perguntou Reacher. — Até as palavras grandes?

Ele apontou para um cartaz pendurado acima da mesa. Letras grandes de tinta fluorescente sobre um fundo preto. Dizia: "A gerência reserva-se o direito de recusar a admissão."

Eu sou a gerência — disse Reacher. — Estou recusando a admissão de vocês.

O homem olhou da placa para a cara de Reacher.

Precisa de tradução? — perguntou Reacher. — Em palavras de uma sílaba? Significa que sou o chefe e vocês não podem entrar.

Me poupe, Tarzan — o sujeito disse.

Reacher deixou que ele se aproximasse, até ficarem ombro a ombro. Então, ergueu a mão esquerda e o segurou pelo cotovelo. Segurou a articu­lação com a palma da mão e enfiou os dedos nos nervos da parte inferior do tríceps do sujeito. É como levar golpes contínuos no osso do cotovelo. O sujeito começou a pular como se estivesse recebendo descargas de ele­tricidade.

Para a escada — disse Reacher gentilmente.

O outro cara estava ocupado, calculando as chances. Reacher percebeu o que ele estava fazendo e avaliou que estava na hora de deixar as coisas bem às claras. Ergueu a mão direita até o nível dos olhos para confirmar que ela estava livre e pronta para entrar em ação. Era uma mão grande, morena, cheia de calos causados pela pá, e o cara entendeu o recado. Deu de ombros e começou a descer a escada. Reacher o seguiu, levando o colega com firmeza pelo braço.

Vamos nos ver de novo — disse o sujeito.

Traga todos os seus amigos! — falou Reacher em voz alta, escada abaixo. — Três dólares cada para entrar.

Ele se voltou para o salão. Crystal estava em pé, logo atrás dele.

O que eles queriam? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

Estavam procurando uma pessoa.

Alguém chamado Reacher?

Ele concordou.

Segunda vez hoje — disse ela. — Teve um coroa aqui antes. Ele pa­gou os três dólares. Quer ir atrás deles? Conferir quem são?

Ele hesitou. Ela pegou a camisa dele de cima da banqueta do bar e es­tendeu para ele.

Vai lá — disse ela. — Está tudo bem por aqui. A noite está calma.

Ele pegou a camisa. Acertou as mangas, que estavam do avesso.

Obrigado, Crystal — disse.

Vestiu e abotoou a camisa, e dirigiu-se para a escada.

De nada, Reacher — respondeu ela mais alto.

Ele se virou, mas ela já estava voltando para o palco. Ele olhou fixamen­te para a garota da mesa e saiu para a rua.

Key West às 11 da noite é tão animada quanto de dia. Algumas pessoas estão no meio da noitada, outras estão apenas começando. Duval é a rua principal, percorre toda a ilha, de leste a oeste, bem iluminada e barulhenta.

Reacher não estava preocupado se os caras estavam esperando por ele na Duval. Muita gente. Se tivessem a intenção de se vingar, escolheriam um local mais discreto. Havia boas opções. Fora da Duval, especialmente para o norte, as coisas se acalmavam depressa. A cidade é uma miniatura. As quadras são minúsculas. Uma pequena caminhada, e você já percorreu vinte quadras, para um lugar que Reacher considerava o subúrbio, onde cavava piscinas em pequenos quintais, nos fundos de pequenas casas. A iluminação da rua diminuía, e o ruído dos bares desaparecia em meio ao zumbido intenso dos insetos noturnos. O cheiro de cerveja e fumaça era substituído pelo odor pesado da vegetação tropical que brotava e morria nos jardins.

Ele caminhou por uma espécie de espiral em meio à escuridão. Viran­do ao acaso pelas esquinas, circulando por áreas silenciosas. Ninguém por perto. Caminhava pelo meio da rua. Ninguém se escondendo nos umbrais, ele queria deixar quatro ou cinco metros de espaço aberto para se resguar­dar. Não temia ser atingido por um tiro. Os caras não tinham armas. Os ternos comprovavam isso. Justos demais para esconder armas. E os trajes diziam que tinham ido para o sul com pressa. De avião. Não é fácil entrar num avião armado.

Desistiu depois de caminhar quase dois quilômetros. A cidade era pe­quena, mas mesmo assim grande o bastante para que dois sujeitos se per­dessem no meio dela. Virou para a esquerda, margeando o cemitério, e seguiu de volta para o barulho. Havia um cara na calçada, encostado na cerca de aramado. Esparramado e inerte. Não era uma visão incomum em Key West, mas havia algo errado. E algo familiar. O que estava errado era o braço do sujeito. Estava preso sob o corpo. Os tendões do ombro deveriam estar doendo o bastante para cortar a bebedeira ou o barato em que o sujei­to poderia estar. O que havia de familiar era a claridade de um velho paletó bege. A metade superior do cara estava sob a luz, a outra metade estava no escuro. Paletó bege, calça cinza. Reacher parou e olhou ao redor. Caminhou até lá. Agachou-se.

Era Costello. Seu rosto transformado em uma massa.

Uma máscara de sangue. Rios de sangue incrustados e marrons por todo o triângulo de pele pálida, azulada, da cidade aparecendo sob a gola da camisa. Reacher sentiu o pulso atrás da orelha. Nada. Tocou a pele com as costas da mão. Frio. Não havia rigor, mas era uma noite quente. O cara estava morto havia uma hora, talvez.

Verificou dentro do paletó. A carteira recheada desaparecera. Então, ele viu as mãos. As pontas dos dedos tinham sido cortadas. Dos dez dedos. Cortes rápidos e eficientes em ângulo, com algo limpo e afiado. Não um bisturi. Uma lâmina maior. Talvez uma faca curva de cortar carpete.

 

- A CULPA É MINHA — DISSE REACHER. Crystal balançou a cabeça.

Você não matou o cara — disse ela. E olhou para ele firmemente.

Matou?

Eu o levei à morte — respondeu. — Qual a di­ferença?

O bar tinha fechado à uma da manhã, e estavam sentados em duas cadeiras, lado a lado, perto do palco vazio. As luzes estavam apagadas e não havia mais música. Nenhum som, a não ser o ruído do ar-condicionado funcio­nando a um quarto da potência, sugando o cheiro de fumaça e suor para lançá-los no meio da noite calma das Keys.

— Eu deveria ter contado a ele — disse Reacher. — Eu deveria ter dito, Claro, que sou Jack Reacher. E então ele me diria o que tivesse a dizer, estaria de volta em casa agora, e eu poderia continuar a ignorar a história do mes­mo jeito. Eu estaria na mesma, e ele ainda estaria vivo.

Crystal vestia uma camiseta branca. E nada mais. Uma camiseta bem longa, mas não o suficiente. Reacher não estava olhando para ela.

Por que você se importa? — perguntou ela.

Era uma pergunta das Keys. Não indiferente, apenas impressionada por ele se preocupar com um estrangeiro vindo quase de outro país. Ele olhou para ela.

Me sinto responsável — respondeu.

Não, você se sente culpado — disse ela.

Ele concordou.

Não deveria — disse ela. — Você não o matou.

E tem alguma diferença? — perguntou ele novamente.

Claro que tem. Quem era ele?

Um detetive particular. Estava me procurando.

Por quê?

Ele balançou a cabeça.

Não faço idéia.

Aqueles outros caras estavam com ele?

Ele balançou a cabeça outra vez.

Não. Aqueles caras o mataram.

Ela olhou para ele, assustada.

Foram eles?

É o que eu acho. Com certeza não estavam com ele. Eram mais jo­vens e mais ricos. Vestidos daquele jeito? Com aqueles ternos? Não pare­ciam seus subordinados. De qualquer forma, ele me pareceu um solitário. Então, aqueles dois estavam trabalhando para outra pessoa. Provavelmente lhes disseram para segui-lo até aqui e descobrir que diabos ele estava fa­zendo. Ele deve ter pisado nos calos de alguém lá no norte, criado algum problema. E aí veio descendo para o sul. Eles o pegaram, deram-lhe uma surra para que dissesse o que estava procurando. E também vieram me pro­curar.

Eles o mataram para saber o seu nome?

Parece que sim — respondeu ele.

Você vai falar com a polícia?

Outra pergunta das Keys. Envolver a polícia em qualquer assunto era tema para debates longos e sérios. Ele negou com a cabeça outra vez.

Não — respondeu.

Eles vão rastreá-lo e logo estarão procurando por você também.

Não de imediato. Não tem nenhuma identidade no corpo. E nenhu­ma impressão digital. Podem levar semanas para descobrir quem ele era.

E o que você vai fazer?

Vou procurar a sra. Jacob. A cliente. Ela está me procurando.

Você a conhece?

Não, mas quero encontrá-la.

Por quê?

Ele deu de ombros.

Preciso saber o que está acontecendo.

Por quê?

Ele se levantou e olhou para ela pelo espelho da parede. Subitamente, fi­cara muito inquieto. Subitamente, estava mais do que pronto para retornar para a realidade de uma vez.

Quer saber por quê? O cara foi morto por alguma coisa que tem a ver comigo, e isso me faz envolvido, certo?

Ela esticou uma longa perna nua para a cadeira que ele tinha acabado de desocupar e ponderava sobre seu sentimento de envolvimento como se fosse algum tipo de hobby obscuro. Legítimo, mas estranho, como uma dança folclórica.

Certo, então como? — perguntou ela.

Vou até o escritório dele. Talvez ele tenha uma secretária. Pelo menos deve ter algum registro lá. Números de telefone, endereços, contratos com clientes. Essa sra. Jacob, provavelmente, é o seu caso mais recente. Deve estar no topo da pilha.

E onde fica o escritório dele?

Não sei. Em algum lugar de Nova York, pelo jeito que ele falava. Sei o nome dele, sei que era um ex-policial. Um ex-policial chamado Costello, com uns sessenta anos. Não deve ser muito difícil de encontrar.

Ele era um ex-policial? Por quê?

A maioria dos detetives particulares é, certo? Eles se aposentam cedo e, duros, ficam por aí um pouco, se ajeitam por conta própria, vão tratar de divórcios e de pessoas desaparecidas. E essa história com o meu banco? Ele sabia todos os detalhes. Não tem outro jeito de saber essas coisas se não for pedindo um favor a algum colega ainda na ativa.

Ela sorriu, levemente interessada. Levantou-se e se aproximou dele no bar. Ficou bem próxima, encostando a cintura contra sua coxa.

Como você sabe essas coisas complicadas?

Ele ouviu o barulho do ar passando pelos exaustores.

Eu mesmo já fui investigador. Polícia do Exército. Treze anos. Eu era muito bom nisso. Não sou apenas um rostinho bonito.

Você nem mesmo é um rostinho bonito — devolveu ela. — Não fique se achando. Quando começa?

Ele olhou a escuridão ao redor.

Agora mesmo, acho. Com certeza deve ter algum voo cedo saindo de Miami.

Ela sorriu de novo, desta vez, com cautela.

E como você vai chegar a Miami? A essa hora da noite?

Ele lhe devolveu o sorriso. Confiante.

Você vai me levar.

Dá tempo de eu me vestir?

Só os sapatos.

Ele foi com ela até a garagem, onde o velho Porsche estava escondido. Abriu a porta, ela entrou no carro e ligou o motor. Levou-o até o hotel onde ele estava hospedado, a menos de um quilômetro ao norte do bar, dirigin­do devagar, dando um tempo para o óleo aquecer. Os pneus largos batiam na pavimentação quebrada e pulavam nos buracos. Ela diminuiu até parar diante de uma entrada néon e esperou, o motor acelerado. Ele abriu a porta e, suavemente, fechou-a outra vez.

Vamos embora logo — disse ele. — Não tem nada aqui que eu queira levar.

Sob as luzes do painel, ela assentiu.

Está bem, aperte o cinto — disse Crystal.

Ela engatou a primeira e arrancou pela cidade. Seguiu pela avenida North Roosevelt. Conferiu os ponteiros do painel e virou a esquerda, para a estrada aterrada sobre o mar. Ligou o detector de radares. Pisou no ace­lerador até o carpete, e as rodas traseiras escavaram a pista. Reacher foi pressionado para trás, sobre o couro do assento, como se estivesse saindo de Key West a bordo de um avião de caça.

 

Ela manteve o Porsche a mais de cento e cinqüenta por todo o caminho para o norte, até Key Largo. Reacher estava gostando do passeio. Ela era uma excelente motorista. Suave, com movimentos econômicos, mudando tranqüilamente as marchas, mantendo o motor ronronando, dirigindo o carro pequeno pelo centro da pista, usando a força das curvas para pe­gar impulso nas retas. Ela sorria, o rosto perfeito iluminado pelas luzes vermelhas do painel. Não era um carro fácil de dirigir em alta velocidade. O motor pesado fica bem atrás do eixo traseiro, pronto para balançar como um pêndulo teimoso, pronto para armar uma cilada contra o motorista que perder o momento por uma fração de segundo. Mas ela o levava muito bem. Quilômetro por quilômetro, cobrindo o terreno tão rápido quanto um pequeno avião.

Até que o detector de radares começou a apitar, e as luzes de Key Largo apareceram mais à frente. Ela freou com firmeza, e o motor roncou pela cidade, depois voltou a pisar forte e disparou para o norte, em direção ao horizonte escuro. Uma curva fechada para a esquerda, cruzando a ponte para o continente americano, para o norte, rumo a uma cidade chamada Homestead por uma estrada plana que cruzava o pântano. Depois, à direita para a estrada principal, velocidade máxima por todo o caminho, o detec­tor de radares funcionando a toda, até chegarem ao terminal de partida de Miami, antes das cinco da manhã. Ela diminuiu, parou no local de desem­barque e esperou com o motor ligado.

Bem, obrigado pela carona — disse Reacher. Ela sorriu.

Foi um prazer. Acredite.

Ele abriu a porta e ficou ali, sentado, olhando para a frente.

Está bem. Vejo você depois, eu acho.

Ela balançou a cabeça.

Não vê, não. Caras como você não voltam. Vocês vão embora e não voltam mais.

Ele ficou sentado no calor do carro. O motor pipocava e borbulhava. Os silenciosos estalavam ao esfriar. Ela se inclinou para ele. Pisou na embreagem e engatou a marcha em primeira, liberando o caminho para chegar mais perto. Enroscou o braço por trás da cabeça dele e o beijou com força nos lábios.

Adeus, Reacher. Fico feliz de pelo menos saber o seu nome.

Ele a beijou de volta, um beijo intenso e longo.

E qual é o seu nome? — perguntou ele.

Crystal — respondeu ela e riu.

Ele riu com ela, levantou-se e saiu do carro. Ela se inclinou sobre o banco e puxou a porta atrás dele. Ligou o motor e saiu dirigindo. Ele ficou sozinho, na calçada, olhando-a se afastar. Ela fez uma curva na frente de um ônibus de hotel e saiu de vista. Três meses de sua vida desapareceram com ela, como a fumaça do escapamento.

 

Cinco da manhã, a oitenta quilômetros ao norte da cidade de Nova York, o presidente estava deitado em sua cama, totalmente acordado, olhando para o teto. Acabara de ser pintado. Toda a casa acabara de ser pintada. Ele pagou aos decoradores mais do que a maioria de seus empregados ganha em um ano. Na verdade, ele não pagou nada. Maquiou a fatura para entrar na contabilidade e foi a empresa que fez os pagamentos. A despesa estava escondida em algum lugar da planilha secreta, parte de uma soma total que ultrapassa a casa dos sete dígitos na conta de manutenção predial. Um total de sete dígitos na parte das despesas, arrastando seu negócio para o fundo como um navio adernado por uma carga pesada. Como uma palha que quebra as costas de um camelo.

Seu nome era Chester Stone. O nome de seu pai era Chester Stone, e o de seu avô também. O avô fora o fundador do negócio, na época em que planilhas se chamavam livros-razão e eram preenchidos a mão, com uma caneta. O livro-razão de seu avô era bem mais pesado no lado das receitas. Ele fora um fabricante de relógios que percebeu os apelos da nascente in­dústria cinematográfica muito cedo. Usou seus conhecimentos com engre­nagens e pequenos e intrincados mecanismos para construir um projetor. Trouxe para o negócio um sócio em condições de obter grandes lentes vin­das da Alemanha. Juntos, dominaram o mercado e fizeram uma fortuna. O sócio morreu jovem e não deixou herdeiros. O cinema explodiu de uma costa à outra. Centenas de salas de cinema. Centenas de projetores. Depois, milhares. E, então, dezenas de milhares. Depois, o som. E o CinemaScope. Vendas enormes, gigantes, tudo no lado das receitas do livro-razão.

E, então, a televisão. Salas de cinema fecharam, e as que se mantive­ram abertas ficaram com seus equipamentos antigos até se desmancha­rem. Seu pai, Chester Stone II, assumiu o controle. Diversificou. Mirou na demanda dos filmes em casa. Projetores de oito milímetros. Câmeras que funcionavam como relógios. A era animada do Kodachrome. Zapruder. A nova fábrica. Lucros vultosos piscando nas lentas fitas magnéticas de um dos primeiros computadores gigantes da IBM.

E então os filmes voltaram. Com o pai moribundo, o jovem Chester Stone III assumiu o legado, as salas multiplex se espalhando por todo lado. Quatro projetores, seis, doze, dezesseis, onde antes havia apenas um. A che­gada do som estéreo. Cinco canais, Dolby, Dolby Digital. Riqueza e sucesso. Casamento. A mudança para a mansão. Os carros.

Então, o vídeo. Os filmes domésticos de oito milímetros mais mortos do que qualquer outra coisa que pudesse morrer. A concorrência. Licitações acirradas, com novos concorrentes surgindo sob seus pés, da Alemanha, do Japão, da Coréia e de Taiwan, tomando conta dos multiplexes. A bus­ca desesperada por qualquer coisa que pudesse ser fabricada com peque­nos retalhos laminados de metal e engrenagens de precisão. O que quer que fosse. O despertar para um pesadelo de que qualquer coisa mecânica pertencia ao passado. A explosão dos microchips de estado sólido, RAM, videogames. Lucros enormes com coisas que ele não tinha a menor idéia de como fabricar. Prejuízos enormes começaram a se acumular no interior silencioso do software de seu computador de mesa.

Sua mulher agitou-se do seu lado. Ela piscou, abrindo os olhos, e girou a cabeça para a esquerda e para a direita, primeiro para conferir o relógio, depois para olhar para o marido. Ela percebeu seu olhar, fixo no teto.

— Não está dormindo? — perguntou baixinho.

Ele não respondeu. Ela desviou o olhar. Seu nome era Marilyn. Marilyn Stone. Estava casada com Chester havia muito tempo. Tempo suficiente para saber. Ela sabia de tudo. Não tinha os detalhes reais, nenhuma prova de fato, qualquer participação, mas, de qualquer maneira, sabia de tudo. Como não saberia? Tinha olhos e um cérebro. Havia muito tempo que ela não via os produtos do marido exibidos orgulhosamente nas vitrines de qualquer loja. Havia muito tempo que um proprietário de multiplex não ia jantar com eles, para comemorar um novo grande pedido. E havia muito tempo que ela não via Chester dormir por uma noite inteira. Assim, ela sabia.

Mas não se importava. Na riqueza e na pobreza, fora o que dissera, e era o que quisera dizer. A riqueza fora boa, mas a pobreza também poderia ser. Não que eles fossem algum dia ficar pobres, como algumas pessoas são po­bres. Venderiam a porcaria da casa, liquidariam toda a lamentável confusão, e ainda assim continuariam com mais conforto do que ela jamais imaginara ter. Ainda eram jovens. Bem, não tão jovens, mas tampouco eram velhos. Saudáveis. Tinham interesse em comum. Tinham um ao outro. Valia a pena ter Chester. Grisalho, mas ainda em forma, firme e vigoroso. Ela o amava. Ele a amava. E ela ainda valia a pena, sabia disso. Quarenta e poucos anos, mas com a cabeça de 29. Ainda magra, loura, ainda excitante. Aventureira. Alguém que valia a pena ter, no sentido antigo da expressão. Ficaria tudo bem. Marilyn Stone respirou fundo e rolou na cama. Aconchegou-se no colchão. Caiu no sono de novo, cinco e meia da manhã, enquanto seu ma­rido se mantinha silencioso ao seu lado e olhava para o teto.

 

Reacher estava no terminal de partidas, respirando o ar fechado, seu bronzeado assumindo um tom amarelado sob a luz fluorescente, ouvindo dezenas de conversas em espanhol e conferindo um monitor de televisão. Nova York estava no topo da lista, como achou que estaria. O primeiro vôo do dia era um Delta, para LaGuardia, por Atlanta, em meia hora. O segundo era da Mexicana, indo para o sul, o terceiro, da United, também para LaGuardia, mas direto, partindo em uma hora. Ele foi para o balcão de passagens da United. Perguntou o preço de um bilhete apenas de ida. Concordou e se afastou.

Caminhou para o banheiro e parou diante do espelho. Usando as me­nores notas, tirou o rolo do bolso e contou o preço que acabara de ser in­formado. Em seguida, abotoou a camisa até em cima e alisou o cabelo com a palma das mãos. Saiu do banheiro e caminhou para o balcão da Delta.

O preço do bilhete era o mesmo da United. Ele sabia disso. Sempre é, de algum jeito. Contou o dinheiro, notas de um, de dez e de cinco, a moça do balcão pegou o maço, ajeitou as notas e colocou-as nos escaninhos.

Seu nome, senhor? — perguntou ela.

Truman — respondeu Reacher. — Como o presidente.

A garota olhou-o com indiferença. Provavelmente, nascera em outro país, nos últimos dias de Nixon. Talvez durante o primeiro ano de Carter. Reacher não se importava. Ele nascera em outro país, no início do mandato de Kennedy. Não tinha nada a dizer. Truman também era história antiga para ele. A garota digitou o nome em seu console e imprimiu o bilhete. Colocou-o num envelope com um globo terrestre vermelho e azul e o re- teve bruscamente.

Posso fazer o seu check-in imediatamente — disse.

Reacher concordou. O problema de pagar em dinheiro por uma pas­sagem aérea, em especial no aeroporto internacional de Miami, é a guerra contra as drogas. Caso ele chegasse com um jeito arrogante e tirasse o rolo de notas de cem do bolso, a garota seria obrigada a pressionar um peque­no botão escondido no chão, sob o balcão. Em seguida, ficaria digitando aleatoriamente no teclado até a chegada dos policiais, pela esquerda e pela direita. Os policiais veriam um cara enorme e rude, todo bronzeado e com um rolo de dinheiro na mão, e pensariam na hora que se tratava de um courier. A estratégia da polícia é ir atrás das drogas, é claro, mas também seguir o dinheiro. Ela não permite que você faça um depósito bancário ou comece a gastar sem começar a ficar inquieta. Para eles, os cidadãos normais usam cartões de plástico para qualquer compra grande. Especialmente para via­jar. Especialmente num balcão de aeroporto, vinte minutos antes da de­colagem. E essa suposição acabaria em atrasos, confusão e papelada, três coisas que Reacher sempre procurava evitar. Por isso, criara uma encenação cuidadosa. Apareceu com o jeito de um cara que nem mesmo podia ter um cartão de crédito se quisesse, como um encrenqueiro azarado e falido. A camisa abotoada até em cima e o dinheiro cuidadosamente contado fi­zeram o truque. Davam a ele um jeito envergonhado, constrangido. Atraía os funcionários do balcão para o seu lado. Eram todos mal-pagos, dando duro para dar conta de seus próprios cartões de plástico. E, assim, olhavam para ele e viam apenas um sujeito vindo pela mesma estrada que eles. A simpatia era a reação instintiva, e não a suspeita.

Portão B, senhor — disse a moça. — Coloquei-o na janela.

Obrigado — respondeu.

Dirigiu-se ao portão e 15 minutos depois estava acelerando na pista, sentindo-se como se estivesse de volta ao Porsche de Crystal, a não ser pelo espaço muito menor para as pernas e por o assento ao lado estar vazio.

Chester Stone desistiu às seis horas. Desligou o alarme meia hora antes de tocar e saiu da cama, em silêncio, para não acordar Marilyn. Tirou o rou­pão do cabide e arrastou-se para fora do quarto, descendo a escada para a cozinha. A acidez no estômago estava forte demais para ele encarar um café da manhã completo, por isso, tomou apenas um café e foi para o chuveiro, na suíte de hóspedes, onde não teria problema fazer barulho. Queria deixar Marilyn dormir, e não queria que ela soubesse que ele não conseguia. Todas as noites ela acordava e fazia algum comentário sobre ele estar acordado, mas nunca ia adiante, e ele achava que ela já esquecera de manhã, ou então que considerasse que fora um sonho. Estava certo de que ela não sabia de nada. E satisfeito com isso, pois as coisas já estavam ruins o bastante ape­nas com seus problemas, sem ter que se preocupar se ela também estava preocupada.

Fez a barba e ficou pensando durante todo o banho sobre o que vestiria e como agiria. A verdade é que estaria abordando o sujeito quase de joe­lhos. Um credor de último recurso. Sua última esperança, a última chance. Alguém que detinha todo o futuro dele na palma da mão. Então, como abordar um cara assim? Não de joelhos. Não era assim que o jogo dos negó­cios funcionava. Se você demonstra que precisa muito de um empréstimo, não consegue nada. Só vai conseguir se demonstrar que, na verdade, não precisa. Como se fosse algo sem maior importância para você. Como se fosse uma decisão difícil, em que você até deixa o cara subir no seu barco para ganhar uma parte dos enormes lucros que estão à espera logo ali na frente. Como se o maior problema fosse decidir exatamente qual oferta de empréstimo você estaria disposto a considerar.

Uma camisa branca, com certeza, e uma gravata discreta. Mas qual ter­no? Os italianos seriam muito ostensivos. Nada de Armani. Precisava da aparência de um homem sério. Rico o suficiente para comprar uma dúzia de Armanis, mas, por outro lado, sério demais para considerar essa possi­bilidade. Sério e preocupado demais com o peso dos negócios para perder tempo fazendo compras na avenida Madison. Decidiu que o legado era o ativo a ser empregado. Um legado contínuo de três gerações de negócios bem-sucedidos, que talvez se refletissem em uma abordagem dinástica ao vestuário. Tal como o seu avô levara seu pai ao próprio alfaiate, seu pai tam­bém o levou. Então, ele pensou em seu terno da Brooks Brothers. Velho, mas bonito, um quadriculado discreto, arejado, um pouco quente para ju­nho. Será que um terno da Brooks Brothers funcionaria como blefe, como se dissesse "Sou rico e bem-sucedido, e não me importa o que estou vestin­do"? Ou será que pareceria um derrotado?

Tirou o terno do armário e colocou-o sobre o corpo. Clássico, mas desajeitado. A aparência de um derrotado. Guardou-o de volta. Experi­mentou o Savile Row cinza, de Londres. Perfeito. O ar de um cavalheiro de estirpe. Sóbrio, de bom gosto e absolutamente confiável. Escolheu uma gravata com um estampado suave e sapatos pretos e compactos. Vestiu-se e virou para a esquerda e para a direita diante do espelho. Não poderia fi­car melhor. Como se até ele pudesse vir a confiar em si mesmo. Terminou o café, limpou os lábios e seguiu para a garagem. Ligou o Mercedes e che­gou ao estacionamento Merritt Parkway, que estava vazio, às 6h45.

 

Reacher ficou cinqüenta minutos em terra, em Atlanta, decolou de novo e voou para o leste e para o norte, rumo a Nova York. O sol estava sobre o Atlântico e entrava pelas janelas da direita, com o brilho congelante do amanhecer nas grandes altitudes. Ele bebia café. A aeromoça lhe oferecera água, mas ele preferira o café. Estava grosso e forte, e ele o bebia puro. Usava o café como combustível para a mente, tentando descobrir quem poderia ser essa tal de sra. Jacob. E por que teria pagado a Costello para atravessar o país atrás dele.

Ficaram na fila de aterrissagem sobre o LaGuardia. Reacher adorava aquilo. Lentos círculos baixos sobre Manhattan, no sol claro da manhã. Como um milhão de filmes, sem a trilha sonora. O avião balançando e se inclinando. Os prédios altos, deslizando sob eles, com o matiz dourado do sol. As Torres Gêmeas. O Empire State Building. O Chrysler, seu favorito. Citicorp. E então davam a volta e começavam a descer rumo ao litoral norte do Queens, até pousar. Os prédios de Midtown do outro lado do rio pas­sando acelerados pelas janelinhas, enquanto o avião taxiava até o terminal.

 

Seu compromisso estava marcado para as nove horas. Odiava isso. Não por causa da hora. Nove horas já era o meio da manhã de trabalho na maio­ria dos escritórios de Manhattan. Não era a hora que o incomodava. Mas, sim, o fato de precisar ter um compromisso. Fazia muito tempo desde que Chester Stone precisara marcar um compromisso com alguém. Na verdade, não conseguia sequer se lembrar com precisão de ter marcado algum com­promisso para ir se encontrar com alguém. Seu avô talvez tenha marcado, lá no começo da empresa. Depois disso, as coisas funcionaram exatamente ao contrário. Os três Chester Stones, o primeiro, o segundo e o terceiro, tinham secretárias que gentilmente procuravam encaixar os suplicantes numa agenda lotada. Muitas vezes as pessoas tinham que esperar dias para que uma janela provisória se abrisse na agenda, e depois horas na antessala. Mas agora era diferente. E isso o consumia.

Estava adiantado, pois estava ansioso. Passara quarenta minutos no es­critório, revisando suas opções. Não tinha nenhuma. De um jeito ou de outro, estava a 1,1 milhão de dólares e seis semanas do sucesso. E aquilo também o sufocava. Porque não se tratava de uma queda seguida por uma explosão grandiosa. Não era um desastre total. Tratava-se de uma resposta realista e ponderada ao mercado, que estava quase ali, mas ainda faltava um pouco. Como uma tacada heróica de golfe em que a bola caía a centímetros do green. Muito, muito perto, mas não o suficiente.

Nove da manhã, o World Trade Center sozinho é a sexta maior cidade do estado de Nova York. Maior do que Albany. Apenas 16 acres de ter­ra, mas uma população diária de 130 mil pessoas. Chester Stone sentia-se como se a maioria delas girasse ao seu redor, com ele em pé, no meio da praça. Seu avô estaria no meio do rio Hudson. O próprio Chester assistira de seu escritório o avanço do aterro sobre a água e as duas torres gigantes se erguerem sobre o leito seco do rio. Olhou o relógio e entrou. Pegou um elevador para o octogésimo oitavo andar e desceu num corredor silencioso e deserto. O teto era baixo, e o corredor era estreito. Portas trancadas le­vavam aos escritórios. Tinham pequenas janelas de vidro retangulares no centro. Localizou a porta certa, olhou pelo vidro e apertou a campainha. A fechadura se abriu com um clique, e ele entrou numa recepção. Parecia um escritório normal. Surpreendentemente normal. Um balcão de bronze e carvalho, um esforço de opulência, e um recepcionista sentado atrás dele. Parou, acertou a postura e avançou em sua direção.

— Chester Stone — disse com firmeza. — Tenho uma hora marcada às 9h com o sr. Hobie.

O recepcionista homem foi a primeira surpresa. Esperava uma mulher. A segunda surpresa foi ser levado diretamente para dentro. Não o deixaram esperando. Achou que fosse ter que esperar por algum tempo, na recepção, em alguma cadeira desconfortável. Era o que ele mesmo teria feito. Se um sujeito desesperado fosse atrás dele em busca de um empréstimo salvador, ele o deixaria suar por vinte minutos. Com certeza, esse era um movimento psicológico básico.

O escritório interno era muito grande. As paredes tinham sido remo­vidas. Estava escuro. Uma das paredes era totalmente de janelas, mas elas estavam ocultas por persianas verticais, apenas com pequenas frestas abertas. Havia uma grande mesa. Diante dela, três sofás formavam um quadrado. Ha­via luminárias na extremidade de cada sofá. Uma enorme mesa de centro foi posta no meio, bronze e vidro, sobre um tapete. O lugar todo parecia uma sala de estar montada na vitrine de uma loja.

Havia um homem atrás da mesa. Stone iniciou a longa caminhada na direção dele. Desviou-se dos sofás e apressou-se ao passar de lado pela mesa de centro. Aproximou-se da mesa. Estendeu a mão direita.

— Sr. Hobie? — disse ele. — Sou Chester Stone.

O homem atrás da mesa tinha uma queimadura. A cicatriz descia por toda a lateral de seu rosto. Era escamosa, como a pele de um réptil. Stone desviou olhar, horrorizado, mas ainda podia ver com o canto dos olhos. Tinha a textura de um pé de galinha cozido demais, uma cor rosada, pouco natural. O cabelo não crescia no ponto em que chegava ao couro cabe­ludo. Ali brotavam alguns tufos desgrenhados que se juntavam ao cabelo normal do outro lado. O cabelo era grisalho. As cicatrizes eram duras e protuberantes, mas a pele do lado não queimado era macia e lisa. O cara devia ter uns 50 ou 55 anos. Ficou sentado ali, a cadeira bem junto da mesa, as mãos sobre as pernas. Stone estava em pé, forçando-se a não desviar o olhar, a mão direita estendida sobre a mesa.

A situação era muito estranha. Não havia nada mais estranho do que ficar ali de pé, pronto para apertar as mãos, e o gesto ser ignorado. Uma tolice ficar daquele jeito, mas seria ainda pior retirar a mão. Assim ele a manteve estendida. E o homem se moveu. Usou a mão esquerda para afastar-se da mesa. Trouxe a mão direita para cima, para encontrar a de Stone. Mas não era uma mão. Era um brilhante gancho de metal. Começava bem antes, na altura do punho. Não se tratava de uma mão artificial, tam­pouco um dispositivo protético elaborado, mas apenas um gancho simples, com a forma de um J maiúsculo, forjado em aço inoxidável, brilhante e po­lido como uma escultura. Stone quase o segurou, mesmo assim, mas então retirou a mão e ficou gelado. O homem sorriu generosamente, com a parte do rosto que se movia. Como se aquilo não importasse nem um pouco para ele.

Me chamam de Hook Hobie — disse.

Estava sentado com o rosto rígido, o gancho erguido como se segurasse um objeto a ser examinado. Stone engoliu em seco e procurou recuperar a compostura. Pensou se seria o caso de estender a mão esquerda. Sabia que algumas pessoas faziam isso. Seu tio-avô tivera um derrame. Nos últimos dez anos de vida, sempre usava a mão esquerda para cumprimentar.

Sente-se — disse Hook Hobie.

Stone assentiu com gratidão e se afastou. Sentou-se na extremidade do sofá. O lugar o deixava de lado, mas ficava satisfeito apenas por estar fazen­do algo. Hobie olhou para ele e colocou o braço sobre a mesa. O gancho bateu na madeira com um discreto som metálico.

Você quer dinheiro emprestado — disse ele.

O lado queimado do rosto totalmente imóvel. Era grosso e duro como as costas de um crocodilo. Stone sentiu a acidez tomar conta do estômago e desviou o olhar para baixo, na direção da mesinha de centro. Então, con­cordou com a cabeça e esticou as mãos sobre os joelhos das calças. Assentiu novamente e tentou se lembrar do roteiro.

Preciso cobrir uma lacuna — disse ele. — Seis semanas, 1,1 milhão.

E o banco? — perguntou Hobie.

Stone olhou para o chão. O tampo da mesa era de vidro, e havia um tapete estampado por baixo. Ele encolheu os ombros como um homem sábio que pondera sobre uma infinidade de questões arcanas do mundo dos negócios, concentrados num único gesto, para se comunicar com outro homem que ele jamais sonharia em insultar sugerindo que fosse alguém ignorante nessas questões.

Prefiro não — disse ele. — Temos um pacote de crédito já existente, é claro, mas consegui as taxas mais favoráveis que se possa imaginar com base na premissa de que seriam valores fixos, prazos prefixados, coisas as­sim, sem nenhum componente de rolagem. Você entende que não quero perturbar esses acertos com uma quantia tão trivial.

Hobie moveu o braço direito. O gancho foi arrastado sobre a madeira.

Conversa fiada, sr. Stone — disse ele calmamente.

Stone não respondeu. Estava escutando o gancho.

Você serviu as forças armadas? — perguntou Hobie.

Perdão?

Foi convocado? Vietnã?

Stone engoliu. As queimaduras e o gancho.

Eu não fui — respondeu. — Rejeitado, por causa da faculdade. Eu gostaria muito de ter ido, é claro, mas a guerra já tinha terminado quando me formei.

Lentamente Hobie concordou com a cabeça.

Eu fui — disse ele. — E uma das coisas que aprendi lá é o valor de recolher informações. É uma lição que uso nos meus negócios.

O escritório escuro ficou em silêncio. Stone assentiu. Moveu a cabeça e olhou para a borda da mesa. Mudança de roteiro.

Certo — disse. — Não pode me culpar por tentar encarar isso com bravura, certo?

Você está meio afundado na merda — disse Hobie. — Na verda­de, está pagando muito alto por seus créditos bancários, e eles vão recusar qualquer pedido de fundos adicionais. Mas você está fazendo um bom tra­balho para sair do buraco. Está quase escapando do fogo.

Quase — concordou Stone. — Faltam apenas seis semanas e 1,1 mi­lhão. Só isso.

Eu me especializei — disse Hobie. — Todo mundo se especializa. Minha área são casos exatamente como o seu. Fundamentalmente, empre­sas sólidas, em situações limitadas de exposição temporária. Problemas que não podem ser resolvidos pelos bancos, porque eles também se especiali­zam, em outras áreas, como serem uns merdas, burros e sem um mínimo de imaginação.

Ele moveu o gancho outra vez, raspando carvalho da mesa.

Meus honorários são razoáveis — disse. — Não sou nenhum tuba­rão. Não estamos falando de juros de cem por cento aqui. Acho que vejo uma possibilidade de adiantar 1,1 milhão para você, a seis por cento, para cobrir as seis semanas.

Stone passou as mãos sobre as coxas novamente. Seis por cento para seis semanas? Equivalente a uma taxa anual de quanto? Quase 52 por cento. Tomar emprestado 1,1 milhão agora, pagar tudo de volta com mais 66 mil dólares de juros em seis semanas. Onze mil dólares por semana. Não che­gavam a ser os termos de um agiota. Mas também não ficavam muito longe disso. Mas, pelo menos, o cara estava dizendo que sim.

E quanto às garantias? — perguntou Stone.

Assumo uma posição acionária — respondeu Hobie.

Stone forçou-se a erguer a cabeça e olhar para ele. Imaginou que isso era algum tipo de teste. Engoliu em seco. Sentindo-se tão perto, achou que a melhor política seria a honestidade.

As ações não valem nada — disse calmamente.

Hobie acenou com sua horrível cabeça, como se estivesse satisfeito com a resposta.

Não no momento — respondeu. — Mas em breve vão valer alguma coisa, certo?

Só depois que não estivermos mais expostos. Um beco sem saída? As ações só voltam a subir depois de eu pagar de volta a vocês. Quando eu estiver fora da linha de fogo.

Então, eu vou valorizá-las. Não estou falando de uma transferência temporária. Vou assumir uma posição patrimonial e vou mantê-la.

Mantê-la? — perguntou Stone. Não conseguia disfarçar a surpresa na voz. Cinqüenta e dois por cento de juros e um lote de ações de brinde?

Sempre mantenho — disse Hobie. — É uma questão sentimen­tal. Gosto de manter uma pequena parte de todas as empresas que ajudo. A maioria das pessoas fica contente com este acordo.

Stone engoliu. Desviou o olhar. Avaliou suas opções. Deu de ombros.

Certo — respondeu. — Acho que tudo bem.

Hobie chegou para esquerda e abriu uma gaveta. Pegou um formulário impresso. Empurrou-o até a frente da mesa.

Preparei isso — disse ele.

Stone dobrou-se para a frente sobre o sofá e pegou o papel. Um con­trato de empréstimo, 1,1 milhão de dólares, por seis semanas, a seis por cento, e um protocolo padrão de transferência de ações. Um lote que, não muito antes, valia um milhão de dólares, e poderia voltar a valer em breve, muito breve. Ele piscou.

Não tem jeito — disse Hobie. — Como eu disse, eu me especializei. Conheço bem esse nicho do mercado. Você não vai achar nada melhor em nenhum outro lugar. O fato é que você não vai conseguir mais porra ne­nhuma com mais ninguém.

Hobie estava a uns dois metros de distância atrás da mesa, mas Stone sentiu como se estivesse ao seu lado no sofá, o rosto horrível grudado no seu, o gancho brilhante rasgando suas entranhas. Concordou, apenas um silencioso e leve movimento da cabeça, e procurou sua gorda caneta Montblanc no bolso interno do paletó. Chegou para a frente e assinou nos dois campos, sobre o vidro frio e duro da mesa de centro. Hobie o observa­va e confortou-o com um aceno de cabeça.

Suponho que você vai querer o dinheiro na sua conta operacional. Onde os outros bancos não vejam?

Stone concordou novamente, confuso.

Seria bom — respondeu.

Hobie fez uma anotação.

Estará lá em uma hora.

Obrigado — disse Stone. As coisas pareciam apropriadas.

Bem, agora sou eu quem está exposto — disse Hobie. — Seis sema­nas, sem nenhuma garantia real. Não é um dos melhores sentimentos.

Não vai ter problema algum — disse Stone, com os olhos baixos.

Hobie concordou.

Tenho certeza de que não haverá — disse. Inclinou-se e apertou o interfone na sua frente. Stone ouviu uma campainha fraca vindo da antes- sala.

O dossiê Stone, por favor — disse Hobie ao microfone.

Fez-se silêncio por um momento; depois, a porta se abriu. O homem da recepção foi até a mesa. Carregava uma fina pasta de arquivo verde. Cur­vou-se e colocou-a diante de Hobie. Voltou a sair e fechou a porta em silên­cio. Hobie usou o gancho para empurrar a pasta até a beirada da mesa.

Dê uma olhada — disse.

Stone dobrou-se para a frente e pegou a pasta. Abriu-a. Estava cheia de fotografias. Várias fotos grandes de dez por quinze, em papel brilhante, pre­to e branco. A primeira era de sua casa. Claramente tirada de dentro de um carro parado diante da entrada da garagem. A segunda era de sua esposa. Marilyn. Uma foto tirada com uma teleobjetiva, enquanto ela caminhava pelo jardim de flores. A terceira era de Marilyn saindo do salão de beleza na cidade. Uma foto granulada, imagem de teleobjetiva. Disfarçada, como as fotos de vigilância. A quarta era um close da placa do seu BMW.

A quinta fotografia também era de Marilyn. Tirada à noite, pela janela do quarto. Ela estava vestida com um roupão de banho. O cabelo solto, pa­recendo úmido. Stone olhou para ela. Para obter essa imagem, o fotógrafo teve que ir para o gramado dos fundos. Sua visão ficou turva, e seus ouvidos zumbiam com o silêncio. Então, juntou as fotos de novo e fechou a pasta. Colocou-a de volta na mesa, lentamente. Hobie inclinou-se para a frente e pressionou o grosso papel verde contra a ponta de seu gancho. Usou-o para puxar a pasta de volta para si. O gancho raspou a madeira com um som alto em meio ao silêncio.

Esta é a minha garantia, sr. Stone — disse ele. — Mas, como o senhor me disse, tenho certeza de que não haverá qualquer problema.

Chester Stone não disse nada. Apenas se levantou e seguiu seu cami­nho, desviando de todos os móveis até a porta. Passou pela recepção, pelo corredor e chegou ao elevador. Desceu os 88 andares e voltou para a rua, onde o sol brilhante da manhã acertou-lhe o rosto como um golpe.

 

O MESMO SOL BATIA NA NUCA DE REACHER EM seu caminho para Manhattan, no banco de trás de um táxi pirata. Ele preferia usar as operadoras sem licença, se ti­vesse escolha. Era adequado ao seu anonimato habitual. Não havia qualquer motivo para que alguém, algum dia, quisesse rastrear seus movimentos conversando com motoristas de táxi, mas nada mais seguro do que um motorista impedido de reconhecer que era um motorista. Sem falar que ele ainda podia negociar a tarifa. Não havia muito o que negociar com o taxímetro de um táxi regular.

Chegaram à ponte Triborough e entraram em Manhattan pela rua 125. Seguiram para o oeste, passando pelo tráfego até a praça Roosevelt. Reacher pediu que o motorista estacionasse por ali, enquanto ele olhava em volta e refletia por um momento. Estava considerando um hotel barato, mas com telefones que funcionassem e catálogos intactos. Sua conclusão foi de que não conseguiria atender a esses três requisitos naquela vizinhança. Mas saiu do carro assim mesmo e pagou a viagem. Aonde quer que fosse, faria o trecho final a pé. Uma interrupção no trajeto, sozinho. Combinava com seu hábito.

 

Os dois rapazes em seus amassados ternos de mil dólares esperaram até que Chester Stone estivesse fora do caminho. Entraram no escritório, des­viaram-se dos móveis e postaram-se em silêncio diante da mesa. Hobie le­vantou os olhos para eles e abriu uma gaveta. Afastou o contrato assinado e a pasta com as fotos, e pegou um bloco novo de papel amarelo. Depois, deixou o gancho pousar sobre a mesa e girou a cadeira de forma que a luz tênue da janela iluminasse o lado liso de seu rosto.

Bem?

Acabamos de voltar — disse o primeiro sujeito.

Conseguiram a informação que eu pedi?

O segundo cara assentiu. Sentou-se no sofá.

Ele estava atrás de um cara chamado Jack Reacher.

Hobie anotou o nome no bloco amarelo.

Quem é ele?

Fez-se um breve silêncio.

Não sabemos — disse o primeiro.

Hobie concordou com a cabeça, lentamente.

Quem era o cliente de Costello?

Outro momento de silêncio.

Também não sabemos — respondeu o homem.

São perguntas muito básicas — comentou Hobie.

O homem apenas olhou para ele, em silêncio, inquieto.

Vocês não pensaram em perguntar essas coisas tão básicas?

O segundo cara assentiu.

A gente perguntou. Perguntamos como doidos.

Mas Costello não respondeu?

Ele ia responder — disse o primeiro.

Mas...

Ele morreu na nossa frente — completou o segundo. — Ficou de pé e morreu. Era velho, obeso. Deve ter sido um ataque do coração, eu acho. Sinto muito, senhor. Nós dois sentimos.

Hobie concordou de novo, lentamente.

Alguma exposição?

Zero — respondeu o primeiro. — Não tem como identificá-lo.

Hobie olhou para a ponta dos dedos de sua mão esquerda.

Cadê a faca?

No mar — respondeu o segundo.

Hobie moveu o braço e batucou um ritmo rápido na mesa, com a ponta do gancho. Refletiu profundamente e assentiu, decidido.

Certo, não foi culpa de vocês, eu acho. Um coração fraco, o que se pode fazer?

O primeiro homem relaxou e sentou-se junto ao parceiro no sofá. Livra­ram-se do anzol, o que tinha um significado especial naquele escritório.

Precisamos descobrir quem é o cliente — disse Hobie em meio ao silêncio.

Os dois concordaram e ficaram à espera.

Costello devia ter uma secretária, certo? — disse Hobie. — Ela vai saber quem era o cliente. Tragam ela para mim.

Os dois continuaram no sofá.

O quê?

Esse Jack Reacher — disse o primeiro. — Parece que é um cara grande, ficou três meses nas ilhas Keys. Costello nos contou que as pessoas estavam falando de um cara grandalhão, que estava lá havia três meses, trabalhando à noite num bar. Então, fomos vê-lo. Tinha um cara grande e durão lá, mas disse que não era Jack Reacher.

— E daí?

— No aeroporto de Miami — completou o segundo. — Pegamos o voo da United porque era direto. Mas tinha um voo saindo logo antes, da Delta, passando por Atlanta e chegando a Nova York.

E?

O cara grande do bar... a gente viu ele indo para o portão de embar­que.

Têm certeza?

O primeiro assentiu.

Noventa e nove por cento de certeza. Estava muito longe na nossa frente, mas é um cara bem grande mesmo. Difícil de não ver.

Hobie começou a batucar com o gancho na mesa de novo. Perdido em seus pensamentos.

Certo, é o Reacher — disse. — Tem que ser, né? Com o Costello perguntando por ali, depois vocês dois aparecem fazendo perguntas no mes­mo dia, ele se assusta e foge. Mas para onde? Para cá?

O segundo cara concordou.

Se ele não desceu do avião em Atlanta, está aqui.

Mas por quê? — perguntou Hobie. — Quem diabos é ele?

Ele refletiu por um momento e respondeu à própria pergunta.

A secretária vai me dizer quem era o cliente, correto? — sorriu. — E o cliente me dirá quem é esse tal de Reacher.

Os dois homens de ternos bacanas concordaram em silêncio e se levan­taram. Desviaram-se dos móveis e saíram do escritório.

 

Reacher caminhava para o sul, por dentro do Central Park. Tentava ava­liar a dimensão da tarefa a que se propusera. Acreditava estar na cidade certa. Os três sotaques eram definitivos. Mas teria que procurar no meio de uma imensa população. Sete milhões e meio de pessoas espalhadas por cinco bairros, chegando a 18 milhões, se considerasse a área metropolitana. Dezoito milhões de pessoas tinham um foco bem limitado se buscassem algum serviço urbano especializado, como um detetive particular rápido e eficiente. A intuição lhe dizia que Costello ficava em Manhattan, mas era perfeitamente possível que a sra. Jacob morasse no subúrbio. Se você é uma mulher morando no subúrbio e precisa de um detetive particular, onde irá procurar? Com certeza não será perto do supermercado ou da videolocadora. Muito menos no shopping, ao lado das butiques. Você pega o catálogo de páginas amarelas da cidade grande mais próxima e começa a ligar. Após uma conversa inicial, o cara talvez pegue o carro e vá até sua casa, ou você pega o trem e o encontra em algum lugar de uma área densamente habitada que se estende por centenas de quilômetros quadrados.

Ele desistira dos hotéis. Não precisaria, necessariamente, investir muito tempo. Poderia acontecer de ele precisar apenas entrar e logo depois sair, em menos de uma hora. E talvez fosse usar mais informações do que os hotéis podem oferecer. Precisava de catálogos dos cinco bairros e dos su­búrbios. Os hotéis não têm tudo isso. E ele não precisaria pagar as taxas que os hotéis gostam de cobrar pelas ligações telefônicas. Cavar piscinas não fora um trabalho que o deixara rico.

Assim, dirigiu-se para a biblioteca pública. Rua 42, esquina com a Quin­ta Avenida. A maior do mundo? Não lembrava. Talvez sim, talvez não. Mas, com certeza, grande o bastante para ter todos os catálogos telefônicos de que precisava, além de mesas amplas e cadeiras confortáveis. Pouco mais de seis quilômetros da praça Roosevelt, uma caminhada acelerada de cerca de uma hora, interrompida apenas pelo tráfego dos cruzamentos e um rápi­do desvio numa papelaria para comprar um bloco de notas e uma caneta.

 

A próxima pessoa a entrar no escritório de Hobie foi o recepcionista. Entrou e trancou a porta atrás de si. Aproximou-se e sentou na ponta do sofá mais próximo da mesa. Olhou em silêncio para Hobie, longa e firmemente.

O que foi? — perguntou Hobie, mesmo sabendo o que era.

Você tem que ir embora — disse o recepcionista. — Ficou muito arriscado agora.

Hobie não respondeu nada. Apenas segurou o gancho com a mão es­querda e percorreu a curva maligna de metal com os dedos restantes.

Você planejou — continuou o recepcionista. — Você prometeu. Não faz sentido planejar e prometer se você não pretende cumprir o que se pro­pôs a fazer.

Hobie deu de ombros. Não disse nada.

Recebemos as notícias do Havaí, certo? — disse o recepcionista. — Você planejou a fuga assim que isso acontecesse.

Costello nunca esteve no Havaí — disse Hobie. — Nós verificamos.

Então, isso só piora as coisas. Outra pessoa foi ao Havaí. Alguém que a gente não sabe quem é.

Rotina — disse Hobie. — Só pode ter sido. Pense bem. Não há mo­tivo algum para alguém ir ao Havaí sem que tenhamos recebido as notícias do outro lado. É uma seqüência, você sabe disso. A outra ponta dá notícias, depois o Havaí: etapa um, etapa dois, e então é a hora de partir. Não antes.

Você jurou — repetiu o homem.

Muito cedo. Não tem lógica. Pense bem. Você vê uma pessoa com­prar um revólver e uma caixa de munição, depois, ela aponta o revólver para você. Você fica com medo?

Claro que fico.

Eu não. Porque ela não carregou a arma. A etapa um é comprar a arma e as balas, a dois é carregá-la. Até ouvirmos falar do outro lado, o Havaí é uma arma sem munição.

O recepcionista recostou a cabeça e olhou para o teto.

Por que você está fazendo isso?

Hobie abriu a gaveta e pegou o dossiê Stone. Pegou o contrato assinado. Inclinou o papel até que a luz suave da janela iluminasse a tinta azul-clara das duas assinaturas.

Seis semanas — disse ele. — Talvez menos. É só do que eu preciso.

O recepcionista ergueu a cabeça novamente e olhou ao redor com os olhos semicerrados.

Precisa para quê?

Para a maior tacada da minha vida — disse Hobie.

Ele ajeitou o papel sobre a mesa e o prendeu sob o gancho.

O Stone acabou de me passar toda a sua empresa. Três gerações de suor e trabalho duro, e o imbecil acabou de botar tudo na minha mão de bandeja.

Não, o que ele te serviu foi bosta numa bandeja. Você perdeu 1,1 milhão de dólares em troca de um pedaço de papel que não vale nada.

Hobie sorriu.

Relaxe, deixe que eu penso nas coisas, está bem? Eu é que sou bom nisso, certo?

Certo, então como? — perguntou o sujeito.

Você sabe o que ele possui? Uma fábrica enorme em Long Island e uma mansão gigante em Pound Ridge. Quinhentas casas em loteamentos ao redor da fábrica. Algo em torno de uns três mil acres contando tudo, na área nobre de Long Island, perto da praia, implorando para ser explorada.

As casas não são dele — retrucou o cara.

Hobie concordou.

Não, a maioria é hipotecada para algum pequeno banco do Brooklyn.

Certo, então como? — perguntou o homem de novo.

Imagine só isso — disse Hobie. — Suponha que eu coloque essas ações no mercado.

Você vai receber uma merreca — respondeu o homem. — Não têm valor algum.

Exato, não têm o menor valor. Mas os banqueiros dele ainda não sa­bem disso. Ele mentiu para eles. Deixou os problemas fora das vistas deles. Que outro motivo ele teria para vir me procurar? Assim, vamos esfregar na cara dos banqueiros que as ações que eles detêm não valem porcaria ne­nhuma. Uma avaliação vinda direto da Bolsa. É o recado que vão receber: essas ações não valem mais merda nenhuma. E aí?

Eles entram em pânico — respondeu o cara.

Correto — disse Hobie. — Entram em pânico. Ficam expostos, com ações sem valor. Se borram todos, até que Hook Hobie chega e oferece vinte centavos para cada dólar de dívida do Stone.

E eles vão aceitar isso? Vinte centavos?

Hobie sorriu. A pele da cicatriz ficou enrugada.

Vão aceitar, sim — disse. — Vão comer minha outra mão para se livrar de tudo. Vão incluir todas as ações que eles têm, como parte do ne­gócio.

Certo, e depois? E as casas?

A mesma coisa. Sou o dono das ações, a fábrica é minha e eu a fecho. Acabaram-se os empregos, quinhentas hipotecas sem pagamento. O banco do Brooklyn vai ficar bem abalado com um negócio desses. Eu compro as hipotecas por dez centavos, executo todo mundo e ponho todos para fora. Contrato dois tratores e fico com três mil acres de terreno de primeira em Long Island, ao lado da praia. E mais uma enorme mansão em Pound Ridge. Tudo vai me custar uns 8,1 milhões de dólares. Só a mansão vale dois. Isso me deixa com um pacote de 6,1 milhões, que eu posso vender por cem milhões, se fizer tudo certo.

O recepcionista olhava para ele.

É por isso que preciso de seis semanas — disse Hobie.

Mas o recepcionista estava balançando a cabeça.

Não vai funcionar. É um velho negócio de família. Stone ainda é o dono da maioria das ações. Nem tudo foi negociado. O banco só tem al­gumas. Você seria um sócio minoritário. Ele não vai deixar você fazer isso tudo.

Hobie balançou a cabeça em resposta.

Ele vai me vender. Tudo. Cada centímetro quadrado.

Não vai.

Vai sim.

 

Havia boas e más notícias na biblioteca pública. Várias pessoas chamadas Jacob apareciam nos catálogos como moradoras de Manhattan, do Bronx, do Brooklyn, do Queens, de Staten Island, de Long Island, de Westchester, da costa de Jersey, de Connecticut. Reacher considerou um raio de uma hora da cidade. As pessoas a uma hora de distância se voltam por instinto para a cidade quando precisam de alguma coisa. Se estiverem mais longe do que isso, é mais improvável. Ele marcou os nomes no caderno e contou 129 candidatos com chances de serem a ansiosa sra. Jacob.

Mas as páginas amarelas não tinham nenhum detetive chamado Costello. Havia vários Costellos no catálogo, mas nenhum com indicações profissionais. Reacher suspirou. Estava desapontado, mas não surpreso.

Seria bom demais para ser verdade simplesmente abrir o livro e achar "Investigações Costello — Especializados em encontrar ex-policiais do Exército nas ilhas Keys".

Muitas agências têm nomes genéricos e várias competem para aparecer no alto da lista alfabética, começando com um A maiúsculo. Ace, Acme, A-One, AA Investigações. Outras tantas têm referências geográficas, como Manhattan ou Bronx. Outras miravam clientes maiores, usando palavras como "serviços paralegais". Uma afirmava o legado da profissão intitulando-se Olho Vivo. Outras duas tinham apenas mulheres na equipe e só acei­tavam casos de outras mulheres.

Ele pegou o catálogo de assinantes de novo, virou uma página do ca­derno e copiou 15 números de delegacias de Nova York. Ficou ali sentando, ponderando suas opções. Depois, caminhou para fora, passou pelos leões gigantes agachados e foi até um telefone público na calçada. Equilibrou o caderno sobre o aparelho, ao lado de todas as moedas de 25 centavos que tinha no bolso, e começou a percorrer a lista de delegacias. Em cada uma, pedia para falar com a administração. Achou que conseguiria falar com algum sargento grisalho cuidando da burocracia e que saberia tudo de que precisava.

Acertou no alvo na quarta ligação. As três primeiras delegacias não aju­daram em nada e não lamentaram nem um pouco por isso. Começou do mesmo jeito, um toque, uma transferência rápida, uma pausa demorada, depois um alô cansado quando o telefone foi atendido nas profundezas de alguma sala cheia de arquivos.

Estou querendo falar com um cara chamado Costello — disse ele. — Aposentou-se do serviço e foi trabalhar como detetive particular, não sei se por conta própria ou para alguém. Deve ter uns sessenta anos.

Sei, quem é você? — respondeu uma voz. O mesmo sotaque. Pode­ria ser o próprio Costello do outro lado da linha.

Carter — respondeu Reacher. — Como o presidente.

E o que você quer com o Costello, sr. Carter?

Tenho uma coisa para ele, mas perdi o cartão — disse Reacher. — Não achei o número dele no catálogo.

É porque o Costello não está no catálogo. Ele só trabalha para advo­gados. Não trabalha para o público geral.

Então você conhece ele?

Se conheço? Claro que conheço. Ele trabalhou como detetive neste prédio por 15 anos. Não é de surpreender que eu o conheça.

Sabe onde é o escritório dele?

Lá no Village, em algum lugar — disse a voz e parou.

Reacher suspirou, afastando-se do telefone. Difícil, muito difícil.

O senhor sabe onde no Village?

Avenida Greenwich, se lembro bem.

Sabe o número?

Não.

O telefone?

Não.

O senhor conhece uma mulher chamada Jacob?

Não, eu deveria?

Apenas uma tentativa. Ela era cliente dele.

Nunca ouvi falar.

Está bem, obrigado pela ajuda — disse Reacher.

É isso — disse a voz.

Reacher desligou, deu meia-volta, subiu os degraus e entrou de vol­ta. Procurou novamente no catálogo de assinantes, Costello na avenida Greenwich. Nada. Colocou os catálogos de volta na prateleira, saiu de novo no sol e começou a caminhar.

 

A avenida Greenwich é uma rua longa e reta, atravessando diagonalmen­te a sudeste entre as ruas 14 e 8, e chegando até a esquina das ruas 8 e 6. Seus dois lados são ocupados pelos agradáveis prédios baixos do Village, alguns deles com pequenas lojas e galerias instaladas em porões acessíveis diretamente da calçada. Reacher caminhou primeiro pela calçada norte e não encontrou nada. Desviou-se do tráfego no final e voltou pelo outro lado, onde encontrou uma pequena placa de cobre, exatamente na metade da rua, presa a um portal de pedra. A placa era um retângulo bem-polido, no meio de um grupo de outros iguais, e dizia Costello. A porta era preta e estava aberta. Dentro, uma pequena portaria com um quadro de avisos de feltro e letras brancas de plástico indicando que o prédio se subdividia em dez pequenos escritórios. O número cinco estava identificado como Costello. Passando da portaria, havia uma porta de vidro, trancada. Reacher apertou a campainha para o número cinco. Ninguém respondeu. Forçou a porta com os nós dos dedos, mas não adiantou nada. Então tocou a cam­painha do seis. Uma voz distorcida atendeu.

— Sim?

— Correio — disse, e a fechadura da porta de vidro zumbiu e se abriu.

Era um prédio de três andares, quatro, contando com o porão separado. Os conjuntos um, dois e três ficavam no primeiro andar. Ele subiu a escada e chegou ao quatro, à esquerda, o seis, à direita, e o cinco, nos fundos, com a porta sob o lance inclinado da escada, que subia para o terceiro andar.

A porta era de mogno brilhante e estava aberta. Não escancarada, mas claramente aberta. Reacher a empurrou com a ponta do pé, e ela girou nas dobradiças, revelando uma pequena e silenciosa recepção, do tamanho de um quarto de pensão. Era decorada em tons pastel, entre um cinza-claro e um azul-claro. Um carpete grosso no chão. A mesa da secretária tinha formato de L, com um telefone complicado e um computador elegante. Um armário de arquivo e um sofá. Havia uma janela de vidro martelado e outra porta para a sala interna.

A recepção estava vazia e silenciosa. Reacher entrou e fechou a porta atrás de si com o calcanhar. A tranca estava aberta, como se o escritório es­tivesse aberto. Avançou pelo carpete até a porta interna. Envolveu a mão na barra da camisa e girou a maçaneta. Entrou numa segunda sala, do mesmo tamanho. A sala de Costello. Viu fotografias em preto e branco emoldura­das de uma versão mais jovem do homem que ele encontrara nas Keys, ao lado de comissários e capitães da polícia, e com políticos locais que Reacher não reconhecia. Costello fora um homem magro, há muitos anos. As fotos mostravam-no engordando e envelhecendo, como uma propaganda de die­ta ao contrário. As fotografias estavam reunidas numa parede, à direita da mesa. Sobre a mesa, havia um mata-borrão e um antiquado tinteiro, além de um telefone. Atrás da mesa, uma cadeira de couro, amassada pelo peso de um homem pesado. A parede da esquerda tinha uma janela, de vidro mais escuro, bem como alguns armários trancados. Diante da mesa, um par de cadeiras para os clientes, cuidadosamente colocadas em um ângulo simétrico e confortável.

Reacher voltou para a primeira sala. Havia cheiro de perfume no ar. Contornou a mesa da secretária e achou a bolsa da mulher, aberta, acomo­dada junto ao painel à esquerda da cadeira. A aba estava para fora, revelan­do uma carteira de couro macio e uma caixa plástica de lenços umedecidos. Ele pegou o lápis e usou a ponta com borracha para afastar a caixa de len­ços. Sob ela, uma mistura de cosméticos, um molho de chaves e o aroma suave de colônia cara.

O monitor do computador mostrava o padrão líquido de um prote­tor de tela que reproduzia um redemoinho. Ele usou o lápis para mexer no mouse. A tela piscou e acendeu para mostrar uma carta incompleta. O cursor piscava pacientemente no meio de uma palavra inacabada. A data sob o cabeçalho era a daquele dia. Reacher pensou no corpo de Costello, es­palhado numa calçada junto ao cemitério de Key West, olhou para a bolsa colocada com cuidado perto da cadeira da mulher ausente, a porta aberta, a palavra pela metade, e sentiu um calafrio.

Voltou a usar o lápis, agora para sair do processador de texto. Uma ja­nela se abriu e perguntou se ele queria salvar as alterações na carta. Fez uma pausa e clicou em Não. Abriu a tela do gerenciador de arquivos e conferiu as pastas. Procurava uma fatura. Bastava olhar ao redor para perceber que Costello tinha um negócio organizado. Organizado o bastante para emitir uma fatura antecipada antes de sair em busca de Jack Reacher. Mas quando essa busca teria começado? Deve ter seguido uma seqüência clara. As ins­truções da sra. Jacob chegando no começo, nada a não ser um nome, uma descrição vaga sobre seu tamanho, seu serviço militar. Costello deve então ter ligado para o arquivo central do Exército, um complexo bem-protegido em Saint Louis que armazena toda a papelada relativa a qualquer homem ou mulher que algum dia tenha usado farda. Cuidadosamente protegido de duas maneiras: fisicamente, com portões e cercas, e, burocraticamente, com uma enorme sucessão de níveis burocráticos concebidos para desestimular o acesso frívolo. Após pacientes consultas, ele teria descoberto seu desli­gamento com honras. Então, uma pausa diante de um beco sem saída. Se­guida do lance improvável com a conta bancária. Ele ligaria para um velho colega, cobraria antigos favores, mexeria alguns pauzinhos. Talvez um fax borrado de um extrato vindo de Virgínia, uma descrição passo a passo de créditos e débitos pelo telefone. E o vôo apressado para o sul, as perguntas pela da Duval, os dois caras, os socos, a faca de cortar carpete.

Uma seqüência relativamente curta, mas Saint Louis e Virgínia devem ter demorado bastante. O palpite de Reacher era de que obter boas infor­mações nos registros deve ter levado uns três dias, talvez quatro, para um cidadão como Costello. O banco de Virgínia não deve ter sido mais rápido. Favores nem sempre são concedidos imediatamente. O tempo tinha que ser respeitado. Então, digamos uns sete dias de trâmites burocráticos, separa­dos por um dia de reflexão, mais um para começar e outro para terminar. Talvez tenham se passado uns dez dias desde que a sra. Jacob colocou as coisas em movimento.

Ele clicou numa subpasta com o nome FATURAS. O painel da di­reita da tela mostrou uma enorme lista de nomes de arquivo, em ordem alfabética. Ele percorreu a lista com o cursor de cabo a rabo. Nada de Jacob no J. A maioria eram apenas iniciais, acrônimos longos, talvez para nomes de empresas. Ele conferiu as datas. Nada com exatamente dez dias. Mas havia um com nove dias. Talvez Costello tenha sido mais rá­pido do que Reacher supunha, ou talvez sua secretária fosse mais lenta. O arquivo estava identificado como SGR&T-09. Ele clicou no arquivo, o disco rígido fez barulho de leitura, e a tela mostrou uma fatura de mil dó­lares para a localização de uma pessoa desaparecida, emitida contra uma empresa de Wall Street chamada Spencer Gutman Ricker & Talbot. Havia um endereço para faturamento, mas nenhum número telefônico.

Reacher fechou o gerenciador de arquivos e abriu o banco de dados. Procurou SGR&T novamente e uma página com o mesmo endereço apa­receu, mas desta vez com números de telefone, fax, telex e e-mail. Ele se abaixou e usou os dedos para pegar um par de lenços de papel da bolsa da secretária. Envolveu um deles no gancho do telefone e abriu o outro sobre o teclado. Discou o número pressionando as teclas sob o lenço. Um primei­ro toque soou por um segundo, e a ligação foi atendida.

Spencer Gutman — disse uma voz clara. — Em que posso ajudar?

A sra. Jacob, por favor — disse Reacher, com um tom apressado.

Um momento — disse a voz.

Uma música rápida e uma voz masculina. Soou brusco, mas atencioso. Talvez um assistente.

A sra. Jacob, por favor — repetiu Reacher.

O homem parecia ocupado e atrapalhado.

Ela já foi para Garrison, e receio realmente não saber quando volta para o escritório.

Você tem o endereço em Garrison?

Dela? — disse o homem, surpreso. — Ou dele?

Reacher fez uma pausa, ouviu o tom surpreso e arriscou.

Dele, quer dizer. Acho que perdi.

Provavelmente perdeu — respondeu a voz. — Estava impresso erra­do, receio. Já devo ter redirecionado pelo menos umas cinqüenta pessoas nesta manhã.

Ele deu o endereço, aparentemente sabia de cor. Garrison, Nova York, uma cidade a cerca de noventa quilômetros subindo pelo rio Hudson, mais ou menos em frente a West Point, onde Reacher passara quatro longos anos.

Acho que você vai ter que se apressar — disse o homem.

Sim, eu vou — respondeu Reacher e desligou, confuso.

Fechou o banco de dados e fechou todos os aplicativos. Deu mais uma olhada na bolsa abandonada da secretária, respirou seu perfume outra vez e saiu da sala.

 

A secretária morrera cinco minutos depois de revelar a identidade da sra. Jacob, o que ocorreu cinco minutos depois de Hobie começar a usar seu gancho. Estavam no banheiro executivo dentro do escritório no octogésimo oitavo andar. Era o local perfeito. Espaçoso, cora uns cinco metros quadra­dos, bem grande para um banheiro. Algum decorador caro colocara granito cinza nas seis superfícies, nas paredes, no piso e no teto. Havia um grande boxe com um chuveiro, com uma cortina de plástico transparente e um trilho de aço inoxidável. O trilho era italiano, exagerado para a tarefa de segurar uma cortina plástica. Hobie descobrira que o trilho agüentava o peso de uma pessoa inconsciente, algemada a ele pelos pulsos. Algumas vezes, pessoas mais pesadas do que a secretária estiveram penduradas ali, enquanto ele fazia perguntas urgentes ou as persuadia a ter juízo e seguir o curso de alguma ação.

O único problema era o isolamento acústico. Ele tinha certeza de que estava tudo certo. Era um prédio sólido. Cada uma das Torres Gêmeas pesa mais do que meio milhão de toneladas. Uma enorme quantidade de aço e concreto, paredes sólidas e grossas. E ele não tinha vizinhos curiosos. A maioria das salas do octogésimo oitavo andar era alugada por missões comerciais de países pequenos e obscuros, e seus funcionários operacionais passavam a maior parte do tempo nas Nações Unidas. O mesmo valia para o octogésimo sétimo e o octogésimo nono. Esse era o motivo para ele estar onde estava. Mas Hobie era um homem que jamais corria riscos desneces­sários, se pudesse evitá-los. Por isso a fita isolante. Antes de começar, ele sempre preparava alguns pedaços de fita de quinze centímetros, tempora­riamente coladas na parede. Um deles era colocado sobre a boca da vítima. Quando ela, quem quer que fosse, começava a concordar loucamente com a cabeça, os olhos saltados, ele arrancava a fita e esperava pela resposta. Se houvesse gritos, ele pegava o próximo pedaço de fita e voltava ao trabalho. Em geral, obtinha a resposta desejada após retirar o segundo pedaço.

Em seguida, o chão de pedras permitia que a operação de limpeza fosse simples. Bastava deixar o chuveiro bem aberto, jogar alguns baldes cheios de água pelo chão, trabalhar com vontade com um rodo, e o lugar estava a salvo novamente, tão rápido quanto a água era drenada pelos oitenta e oito andares até o esgoto. Não que fosse o próprio Hobie a trabalhar com o rodo. Um rodo precisa de duas mãos. O segundo jovem fazia a limpeza, com suas calças caras dobradas, sem as meias e os sapatos. Hobie já estava do lado de fora, sentado à mesa, conversando com o primeiro rapaz.

Vou conseguir o endereço da sra. Jacob, e você vai trazê-la para mim, ok?

Pode deixar — respondeu o sujeito. — E quanto a essa aí?

Ele acenou com a cabeça em direção à porta do banheiro. Hobie seguiu seu olhar.

Espere até de noite — disse ele. — Coloque algumas das roupas dela de volta e a leve para o barco. Descarregue-a a uns quatro quilômetros lá no meio da baía.

Provavelmente o mar vai trazê-la de volta — disse o sujeito. — Em uns dois dias.

Hobie deu de ombros.

Não importa — respondeu ele. — Em dois dias vai estar toda incha­da. Vão achar que caiu de algum barco. Com aqueles ferimentos, vão achar que foi a hélice.

 

O hábito de andar incógnito tinha suas vantagens, mas também trazia problemas. A melhor maneira de chegar a Garrison rapidamente seria alugar um carro e ir direto para lá. Mas alguém que opta por não usar cartões de crédito e não anda com a carteira de motorista não conta com essa opção. Assim, Reacher estava de volta a um táxi, rumo à estação Grand Central. Tinha certeza de que um trem da linha Hudson passava por lá. Desconfia­va que alguns trabalhadores da cidade moravam até mais ao norte do que aquilo. Caso contrário, os grandes Amtraks que iam para Albany e para o Canadá provavelmente paravam lá.

Pagou o táxi e abriu caminho no meio da multidão até as portas. Des­ceu a longa rampa e chegou ao gigantesco corredor. Olhou ao redor e fixou os olhos na tela de partidas. Tentou se lembrar da geografia local. Os trens do percurso Croton — Harmon não serviam. O ponto final era muito ao sul. Ele precisava chegar pelo menos a Poughkeepsie. Percorreu a lista para baixo. Nada a fazer. Nenhum trem por ali na próxima hora e meia que o levasse para Garrison.

Seguiram o roteiro normal. Um deles desceu os noventa andares até o an­dar de carga subterrâneo e achou uma caixa vazia. As caixas dos refrigera­dores eram as melhores, ou as de máquinas de refrigerantes, mas uma vez ele resolveu o assunto com uma caixa de TV a cores de 35 polegadas. Desta vez, achou a caixa de um arquivo de aço. Pegou um carrinho da limpeza na rampa de carga e o empurrou até o elevador de serviço. Subiu de volta para o octogésimo oitavo andar.

O outro cara a estava fechando dentro de um saco plástico para corpos, dentro do banheiro. Dobraram o corpo dentro da caixa e usaram o resto da fita isolante para fechar bem a caixa de papelão. Depois, a colocaram de volta no carrinho e foram novamente para o elevador. Desta vez, desceram no andar da garagem. Empurraram a caixa até o Suburban preto. Contaram até três e a ergueram para dentro do bagageiro. Fecharam e trancaram a porta. Afastaram-se e olharam para trás. Janelas bem escurecidas, a gara­gem igualmente às escuras, nenhum problema.

Ah, quer saber? — perguntou o primeiro. — Nós baixamos o banco traseiro e colocamos a sra. Jacob junto com ela. Resolvemos tudo com uma viagem só, esta noite. Não gosto de sair naquele barco mais vezes do que o necessário.

Está bem — respondeu o segundo. — Tinha mais caixas lá?

Essa era a melhor. Depende de a sra. Jacob ser grande ou pequena, eu acho.

Depende de ele acabar com ela hoje à noite.

Você tem alguma dúvida? Com o humor que ele está hoje?

Caminharam juntos até outra vaga e destrancaram um Chevy Tahoe preto. Irmão mais novo do Suburban, mas ainda assim um carro enorme.

Então, onde ela está? — perguntou o segundo cara.

Uma cidade chamada Garrison — respondeu o primeiro. — Subin­do o Hudson, passando de Sing Sing. Uma hora, uma hora e meia.

O Tahoe deu a ré para sair da vaga e cantou os pneus circulando pela garagem. Sacolejou ao sair da rampa para o sol e seguiu para a rua West, onde virou à direita e acelerou rumo ao norte.

 

A RUA WEST VIRA DÉCIMA PRIMEIRA AVENIDA AO passar pelo píer 56, onde o tráfego rumo ao oeste deságua da 14 e vira para o norte. O grande Tahoe preto ficou pre­so no congestionamento, e sua buzina somou-se à frustração das demais que disparavam contra os prédios altos e ecoavam pelo rio. Arrastaram-se por nove quarteirões, viraram à esquerda na rua 23, depois viraram novamente para o norte, entrando na rua 12. Foram um pouco mais rápido do que uma caminhada até passarem por trás do centro de convenções Javits e voltaram a engarrafar outra vez no tráfego que vinha da 42 oeste. A 12 vi­rava rodovia Miller e continuava lenta, por todo o caminho passando por cima da enorme confusão do velho pátio de manobras dos trens. A Miller se transformava na avenida Henry Hudson. Ainda era uma via lenta, mas a Henry era, tecnicamente, a 9A, que virava a rota 9 em Crotonville e levava a todos para o norte até Garrison. Uma linha reta, nenhuma curva, mas ainda estavam em Manhattan, presos no parque Riverside, mais ou menos meia hora antes de escaparem.

 

O processador de texto foi a pista principal. O cursor, piscando paciente­mente no meio de uma palavra. A porta aberta e a bolsa abandonada eram convincentes, mas não definitivas. Quem trabalha em escritório pega suas coisas e fecha as portas, mas nem sempre. A secretária poderia simples­mente ter saído para o corredor e se envolvido com algum assunto, um papel timbrado ou um pedido de ajuda para operar a copiadora de alguém, esticando para um café e alguma boa fofoca sobre o encontro da noite an­terior. Uma pessoa que achava que ficaria fora uns dois minutos poderia deixar a bolsa para trás e a porta aberta, e acabar ausente por meia hora. Mas ninguém deixa um trabalho aberto no computador sem salvar. Nem mesmo por um minuto. E foi o que aquela mulher fez. A máquina pergun­tou: DESEJA SALVAR AS ALTERAÇÕES? O que significava que ela havia levantado da mesa sem clicar no ícone SALVAR, um hábito tão forte quan­to respirar para as pessoas que passam os dias enfrentando o software.

O que dava uma complexidade muito ruim à história toda. Reacher passou pelo outro salão da Grand Central, com um copo de meio litro de café preto que comprou numa máquina. Apertou o lacre para baixo e en­fiou o rolo de notas no bolso. Era grosso o bastante para o que ele queria fazer. Voltou pelo caminho onde o trem de Croton esperava para sair.

 

O estacionamento da Henry Hudson distribui-se num emaranhado de rampas curvas em torno da rua 170, e as pistas para o norte surgiam no­vamente com placas indicado a Riverside. A mesma via, a mesma direção, nenhuma curva, mas a dinâmica complexa do tráfego pesado significa que, se um motorista reduz a velocidade para abaixo da média, toda a rodovia reduz radicalmente, com centenas de pessoas presas até bem atrás, tudo por causa de algum forasteiro que, mais à frente, ficara confuso por alguns instantes. O grande Tahoe preto teve que parar completamente diante do forte Washington e se viu reduzido a um lento anda e para ao longo de toda a ponte George Washington. A rodovia Riverside alarga-se e permite andar em terceira antes de as placas voltarem a indicar a Henry Hudson e o tráfego parar de novo na praça do pedágio. Esperaram na fila para pagar a quantia que os permitiria sair da ilha de Manhattan e seguir para o norte, através do Bronx.

 

Existem dois tipos de trens que seguem ao longo do rio Hudson, entre a Grand Central e a Croton-Harmon: os locais e os expressos. Os expres­sos não vão nem um pouco mais rápidos em termo de velocidade, mas param com menos freqüência. Reduzem o tempo de viagem para em torno de 49 e 52 minutos. Os locais param em todas as estações, e as paradas repetidas, as esperas e o tempo de aceleração fazem com que a viagem para qualquer lugar dure entre 65 e 73 minutos, o que dá à linha expressa uma vantagem de 24 minutos.

Reacher estava num local. Ele pagara 5,50 dólares por uma passagem só de ida, fora do horário de pico, e estava sentado de lado, num banco para três pessoas, ligado pelo excesso de café, a cabeça apoiada na jane­la, perguntando-se exatamente onde ia parar e o que faria lá quando che­gasse. E se chegaria a tempo de fazer, de um jeito ou de outro, fosse lá o que fosse.

 

A rota 9A virou 9 e fez uma curva suave afastando-se do rio para passar por trás de Camp Smith. Chegando em Westchester, era uma via bastante rápida. Não chegava a ser uma pista de alta velocidade, pois tinha muitas curvas e era irregular demais para manter uma alta velocidade, mas estava liberada e sem trânsito, uma colcha de retalhos de seções antigas e novos trechos cortando a mata. Havia alguns terrenos em construção espaçados, com grandes cercas com laterais pintadas e nomes otimistas em relevo em colunas poderosas flanqueando os portões de entrada. O Tahoe acelerava ao longo do caminho, um dos sujeitos dirigindo e o outro com um mapa aberto sobre os joelhos.

Passaram por Peekskill e começaram a procurar uma entrada para a esquerda. Encontraram a saída e viraram em direção ao rio, que achavam estar à sua frente, um espaço aberto na paisagem. Entraram na cidade de Garrison e começaram a procurar o endereço. Não era fácil. As áreas resi­denciais eram dispersas. Era possível ter um código postal de Garrison e morar bem além. Isso era óbvio. Mas acharam a estrada correta, fizeram as curvas necessárias e chegaram à rua procurada. Observando as caixas de correio, reduziram e seguiram ao longo da floresta que rareava acima do rio. A rua fez uma curva e se abriu. Eles continuaram a avançar. Então viram a casa certa logo à frente, diminuíram abruptamente e estacionaram junto ao meio-fio.

Reacher saiu do trem em Croton, 71 minutos depois de ter subido a bordo. Subiu a escada e foi para a fila de táxis. Havia quatro operadoras enfileiradas, todas viradas para a entrada da estação, todas usando modelos antigos de utilitários Caprice, com laterais imitando madeira. O primeiro moto­rista a se manifestar foi uma mulher volumosa, que pôs a cabeça para fora como se estivesse pronta para ouvir.

Você conhece Garrison? — perguntou Reacher.

Garrison? — perguntou ela. — É bem longe, senhor, mais de trinta quilômetros.

Sei onde é — respondeu ele.

Pode dar uns quarenta dólares.

Pago cinqüenta. Mas preciso chegar lá imediatamente.

Sentou-se no banco da frente, ao lado dela. O carro cheirava como to­dos os táxis velhos, tomado pelo odor adocicado do purificador de ar e de limpador de estofamento. O marcador indicava milhares de quilômetros rodados, e o carro deslizou como um barco sobre águas lisas quando a mu­lher acelerou para fora do estacionamento, entrou na rota 9 e seguiu para o norte.

Pode me dizer o endereço? — perguntou ela, olhando para a rua.

Reacher repetiu o que o assistente lhe dissera no escritório de advoca­cia. A mulher concordou e acelerou para uma viagem rápida.

De frente para o rio — disse.

Ela dirigiu por 15 minutos, passou por Peekskill, depois reduziu, pro­curando uma entrada específica à esquerda. Fez a curva com a banheira seguiu para oeste. Reacher pressentia o rio mais à frente, uma abertura de quase dois quilômetros na floresta. A mulher sabia aonde estava indo. Seguiu por todo o caminho até o rio e virou para norte, em uma estrada de terra. Os trilhos do trem corriam paralelamente entre eles e a água. Não havia trens passando. A terra se perdia, e Reacher conseguia ver West Point mais à frente, à esquerda, a menos de dois quilômetros do outro lado da água azul.

Deve ser em algum lugar por aqui — disse ela.

Era uma rua estreita, limitada por cercas de ranchos de madeira nua e por um acostamento alto, coberto pela vegetação típica. Havia caixas de correio a intervalos de cerca de cem metros, e postes com cabos pendura­dos passando pelo alto das árvores.

Opa — disse a mulher, surpresa. — Acho que é aqui.

A rua já era estreita, mas ficara simplesmente intransitável. Uma lon­ga fila de carros estava estacionada ao longo do acostamento. Talvez uns quarenta automóveis, vários deles pretos ou azul-marinho. Todos modelos novos de sedãs ou grandes utilitários esportivos. A mulher reduziu no meio da pista. A fila de carros estacionados ocupava toda a frente da casa. Outros dez ou doze carros estavam estacionados no pátio diante da garagem. Dois deles eram sedãs Detroit lisos, verdes. Veículos do Exército. Reacher era ca­paz de identificar um assunto do Departamento de Defesa a um quilômetro de distância.

Certo? — perguntou a mulher.

Acho que sim — respondeu ele, cauteloso.

Pegou uma nota de cinqüenta de seu maço e deu a ela. Saiu e ficou em pé no meio da rua, em dúvida. Ouviu o táxi se afastando de ré. Caminhou voltando pela rua. Olhou para a longa fila de carros. Olhou para a caixa de correio. Havia um nome em pequenas letras de alumínio sobre ela. O nome era Garber. Um nome que ele conhecia tão bem quanto o seu.

A casa ficava num lote grande, com um jardim destratado e uma apa­rência que ficava entre o normal e o descuidado. A casa em si era baixa e larga, cedro escuro, telas escuras nas janelas, uma grande chaminé de pe­dra, algo entre uma modesta casa de subúrbio e uma casa de campo confor­tável. Era muito tranqüila. O ar tinha um cheiro morno, úmido e fecundo. Reacher conseguia ouvir a intensa atividade dos insetos na vegetação ras­teira. Sentia o rio além da casa, um vazio de quase dois quilômetros arras­tando sons perdidos para o sul.

Aproximou-se e ouviu o som abafado da conversa atrás da casa. Pessoas falando em voz baixa, muitas pessoas, talvez. Caminhou em direção ao som e chegou dando a volta pela lateral da garagem. Estava sobre um lance de degraus de cimento, olhando para o oeste pelo quintal dos fundos, para o rio, azul e ofuscante sob o sol. A pouco mais de um quilômetro e meio, através da bruma, um pouco a noroeste, via a academia de West Point, bai­xa e cinzenta na distância.

O quintal dos fundos era uma área plana, desmatada, sobre a bancada do rio. Era coberto de grama comum, bem-aparada, e havia uma multidão solene de umas cem pessoas sobre ela. Todos vestidos de preto, homens e mulheres, ternos pretos e gravatas, blusas e sapatos, a não ser por meia dúzia de oficiais do Exército, trajando fardas completas. Todos falavam em voz baixa, sobriamente, equilibrando pratinhos de papel e copos de vinho, a tristeza visível nos ombros caídos.

Um funeral. Ele estava entrando de penetra num funeral. Ficou em pé ali, atrapalhado, destacando-se contra o horizonte nas roupas que enfia­ra no dia anterior, nas Keys, de algodão desbotado, uma camisa amassada amarelo-clara, sem meias, sapatos velhos, pelos manchados pelo sol aparecen­do por todo lado, barba de um dia no rosto. Olhou para o grupo de pessoas em luto como se de repente tivesse batido palmas e todos ficassem em silêncio olhando para ele. Não conseguia se mover. Todos o olhavam em silêncio, intrigados; ele olhou de volta, sem expressão. Ficaram em si­lêncio. Imóveis. Então uma mulher se moveu. Entregou o prato de papel e o copo para a pessoa mais próxima e se aproximou.

Era jovem, em torno dos trinta, vestida como os outros, com um sóbrio traje preto. Estava pálida e abatida, mas muito bonita. Bonita de doer. Mui­to magra, alta com seu salto alto, pernas longas cobertas por uma meia lisa e escura de lycra. Cabelo louro liso, longo e simples, olhos azuis, membros esguios. Caminhou suavemente pelo gramado e parou no pé dos degraus de cimento da escada, como se esperasse que ele descesse até ela.

Olá, Reacher — disse delicadamente.

Ele olhou para ela. Ela sabia quem ele era. E ele sabia quem era ela. A lembrança chegou até ele como um filme de animação em stop motion atravessando 15 anos em um único olhar. Uma adolescente que cresceu e desabrochou em uma linda mulher bem diante de seus olhos, tudo numa fração de segundo. Garber, o nome na caixa de correio. Leon Garber, por muitos anos, seu oficial superior. Lembrou-se de quando se conheceram, familiarizando-se em churrascos em quintais domésticos em noites quen­tes e úmidas nas Filipinas. Uma garota esguia entrando e saindo graciosa­mente das sombras em torno da casa fria da base, mulher o suficiente aos 15 anos para ser extremamente cativante, mas ainda muito menina para ser totalmente proibida. Jodie, a filha de Garber. Sua filha única. A luz da vida dele. Aquela era Jodie Garber, 15 anos depois, crescida e linda, à espera dele aos pés de uma escada de cimento.

Ele olhou para a multidão e desceu até o gramado.

Olá, Reacher — repetiu.

A voz dela era baixa e desanimada. Triste, como a cena ao seu redor.

Olá, Jodie — respondeu ele.

Então ele quis saber quem tinha morrido. Mas não conseguia formular a pergunta sem que soasse insensível ou estúpido. Ela percebeu seu dilema, e assentiu.

Papai — disse simplesmente.

Quando? — perguntou ele.

Há cinco dias — respondeu ela. — Esteve doente nos últimos meses, mas foi repentino no final. Uma surpresa, eu acho.

Ele concordou lentamente.

Eu sinto muito — disse.

Olhou para o rio, e a centena de rostos diante dele virou uma centena de rostos de Leon Garber. Um homem atarracado e robusto. Um enorme sorriso que sempre exibia, estivesse feliz, aborrecido ou em perigo. Um homem corajoso, física e mentalmente. Um grande líder. Honesto em tem­po integral, justo e perspicaz. Um modelo para Reacher durante seus vi­tais anos de formação. Seu mentor e seu padrinho. Seu protetor. Ele nadou contra a maré e promoveu Reacher duas vezes em 18 meses, o que o tornou o mais jovem major da força de pacificação que alguém poderia lembrar. Então, abriu as mãos e sorriu, recusando qualquer crédito pelo sucesso de Reacher que se seguiu.

Eu sinto muito mesmo, Jodie — repetiu ele.

Ela concordou, lentamente.

Não dá para acreditar — disse ele. — Não consigo entender. Estive com ele a menos de um ano. Estava em ótima forma. Ficou doente?

Ela concordou outra vez, ainda em silêncio.

Mas ele era sempre tão forte... — disse ele.

Ela concordou, com tristeza.

Era mesmo, não era? Sempre tão forte.

E não era velho — disse ele.

Sessenta e quatro.

Então, o que foi que aconteceu?

O coração — respondeu ela. — Foi o que o pegou no final. Lembra como ele sempre gostou de fingir que não tinha um?

Reacher balançou a cabeça afirmativamente.

O maior coração que já existiu.

Eu descobri isso — disse ela. — Quando a mamãe morreu, ficamos muito amigos por dez anos. Eu o amava.

Eu também o amava — disse Reacher. — Como se fosse o meu pai, não o seu.

Ela concordou novamente.

Ele ainda falava de você o tempo todo.

Reacher olhou para longe. Observou os prédios desfocados de West Point, acinzentados por trás da bruma. Estava atordoado. Chegara àquela faixa de idade em que as pessoas que conhecera começavam a morrer. Seu pai estava morto, sua mãe estava morta, seu irmão estava morto. Agora, a pessoa mais próxima do que poderia substituir um parente também estava morta.

Ele sofreu um infarte há seis meses — disse Jodie. Ficou com os olhos marejados e colocou os cabelos lisos e longos atrás da orelha. — Recuperou-se um pouco... por um tempo, parecia estar ótimo, mas na verda­de estava piorando rapidamente. Os médicos chegaram a considerar uma ponte de safena, mas ele teve uma piora súbita e se foi, rápido demais. Não teria sobrevivido à cirurgia.

Eu sinto muito — disse ele pela terceira vez.

Ela foi para o lado dele e passou o braço pelo dele.

Não lamente — disse ela. — Ele sempre foi um homem muito feliz. Melhor que tenha ido rápido. Eu não suportaria vê-lo perdendo a alegria aos poucos.

Um flash passou na mente de Reacher, o velho Garber, agitado e in­tenso, uma bola de fogo de energia, e entendeu como seria desesperador caso se tornasse um inválido. Compreendeu também como aquele coração sobrecarregado enfim abriu mão da luta. Assentiu, tristemente.

Venha falar com algumas pessoas — disse Jodie. — Talvez você conheça alguém.

Não estou vestido para isso — disse ele. — Sinto-me mal. Acho me­lhor ir embora.

Não tem problema — disse ela. — Você acha que papai se importa­ria?

Garber apareceu em sua mente com seu velho e surrado boné cáqui. Era o oficial mais malvestido do Exército dos Estados Unidos, durante to­dos os 13 anos que Reacher servira sob suas ordens. Deu um leve sorriso.

Acho que ele não se importaria — respondeu ele.

Caminharam pelo gramado. Ele reconheceu talvez umas seis pesso­as, entre os cem presentes. Dois dos caras de farda lhe eram familiares. Trabalhara com um punhado dos que usavam terno, aqui e ali, em outra época. Apertou as mãos de dezenas de pessoas e tentou prestar atenção aos nomes, mas as palavras entravam por um ouvido e saíam por outro. Então, a conversa em voz baixa recomeçou, assim como as comidas e bebidas, a multidão se fechou ao seu redor, e a sensação de sua chegada inoportuna foi amenizada e logo esquecida. Jodie ainda segurava o seu braço. A mão dela estava fria sobre sua pele.

Estou procurando uma pessoa — disse ele. — É por isso que estou aqui, na verdade.

Eu sei — disse ela. — Sra. Jacob, certo? Ele concordou.

Ela está aqui? — perguntou ele.

Eu sou a sra. Jacob — disse ela.

Os dois caras no Tahoe preto pararam mais para trás da fila de carro e longe da fiação, para que o telefone do carro funcionasse sem interferência. O motorista discou um número, e o toque preencheu o silêncio do veículo. A ligação foi atendida a oitenta quilômetros ao sul e 88 andares acima.

Problema, chefe — disse o motorista. — Tem algum lance aconte­cendo por aqui, um funeral ou coisa do tipo. Deve ter umas cem pessoas circulando. Não temos a menor chance de pegar essa sra. Jacob. Não dá nem para saber quem ela é. Tem dezenas de mulheres, ela pode ser qual­quer uma.

Hobie soltou um grunhido pelo alto-falante.

-E?

Sabe o cara do bar lá de Key West? Ele acabou de aparecer aqui na porra de um táxi. Chegou aqui uns dez minutos depois da gente e foi direto lá para dentro.

O alto-falante estalou. Nenhuma resposta compreensível.

Então, o que a gente faz? — perguntou o motorista.

Fiquem aí — disse a voz de Hobie. — Talvez fosse bom esconder o carro e vocês ficarem de olho. Esperem até todo mundo sair. É a casa dela, pelo que eu sei. Talvez a casa da família, ou uma casa de fim de semana. Então, todo mundo vai sair e ela vai ser a única que vai ficar. Não voltem para cá sem ela, ok?

E o grandalhão?

Se ele for embora, esqueçam. Mas, se ficar, sumam com ele. Mas me tragam essa tal de Jacob.

— Você é a sra. Jacob? — perguntou Reacher.

Jodie Garber assentiu.

Sou, fui — disse ela. — Me divorciei, mas mantive o nome por causa do trabalho.

Quem era ele?

Ele encolheu os ombros.

Um advogado, como eu. Na época, parecia uma boa idéia.

Há quanto tempo?

Três anos no total, do começo ao fim. Nos conhecemos na faculdade de Direito, nos casamos e começamos a trabalhar. Eu fiquei em Wall Street, mas ele foi para um escritório em Washington, há uns dois anos. O casa­mento não andou com ele, meio que se desmanchou. A papelada terminou no último outono. Mal consigo lembrar quem era ele. Apenas um nome, Alan Jacob.

Reacher estava de pé no quintal ensolarado e olhava para ela. Percebeu que se sentia chateado por ela ter sido casada. Ela fora uma criança magricela, mas absolutamente linda aos 15 anos, autoconfiante e inocente, e um pouco envergonhada de tudo, ao mesmo tempo. Ele acompanhou a batalha entre a timidez e a curiosidade, quando ela se sentava e criava coragem para conversar com ele sobre a vida e a morte, o bem e o mal. Então, mexia os dedos e apertava os joelhos magros e desviava a conversa para temas como amor e sexo, homens e mulheres. Até ruborizar e desaparecer. Ele ficava sozinho, gelado por dentro, cativado por ela e furioso consigo mesmo por isso. Dias depois, ele a via em algum lugar em torno da base, ainda bem vermelha. E agora, 15 anos mais tarde, era uma mulher adulta, formada em Direito, casada e divorciada, linda, calma e elegante, no quintal do pai morto, com o braço ennado no seu.

Você é casado? — perguntou ela.

Ele balançou a cabeça.

Não.

Mas é feliz?

Sou sempre feliz. Sempre fui, sempre serei.

Fazendo o quê?

Ele deu de ombros.

Nada de mais — respondeu ele.

Olhou por sobre a cabeça dela e percorreu os rostos na multidão. Pessoas cumpridoras de seus deveres e ocupadas, vidas cheias, boas carrei­ras, todas seguindo adequadamente de A para Z. Ele as olhou e se pergun­tou se eles eram os tolos, ou se o tolo era ele. Lembrou-se da expressão no rosto de Costello.

Acabei de voltar das ilhas Keys — disse. — Cavava piscinas com uma pá.

A expressão dela não se alterou. Ela tentou apertar seu antebraço com a mão, mas a mão era muito pequena e o braço era muito grande. Ele sentiu a leve pressão da palma dela.

Costello achou você lá? — perguntou ela.

Ele não me achou para me convidar para um funeral, pensou ele.

Precisamos falar sobre Costello — disse ele.

Ele é bom, não é?

Não o bastante, pensou ele. Ela se afastou, para circular entre os con­vidados. As pessoas aguardavam para lhe oferecer segundas condolências. Começavam a se soltar um pouco mais por causa do vinho, e o volume das conversas começava a ficar mais alto e mais sentimental. Reacher ca­minhou até um pátio, onde havia uma longa mesa de comida coberta com uma toalha branca. Serviu-se de galinha fria e arroz num prato de papel e pegou um copo-d'água. Havia um conjunto de móveis de jardim no pátio, ignorado pelos demais por causa das manchas deixadas por pingos das ár­vores. O guarda-sol branco desbotado estava aberto. Reacher abaixou-se sob ele e ficou sentado sozinho numa das cadeiras sujas.

Observou a multidão enquanto comia. As pessoas relutavam em ir em­bora. O afeto pelo velho Leon Garber era palpável. Um cara como aquele desperta a afeição das pessoas, talvez até demais para que demonstrassem diante dele, e isso acaba aflorando mais tarde. Jodie se movia pelo grupo, apertando mãos, sorrindo com tristeza. Todos tinham alguma história para contar, um caso engraçado em que Garber deixava transparecer seu cora­ção de ouro por trás do exterior irascível. Ele também poderia acrescentar algumas histórias. Mas não faria isso, pois Jodie não precisava que ninguém lhe dissesse que seu pai era um dos mocinhos. Ela sabia. Ela se movia com a serenidade de alguém que amara o pai por toda a vida e fora igualmente amada. Não havia nada que ela lamentasse não ter dito a ele, nada que ele deixara de dizer a ela. As pessoas vivem e morrem, e, contanto que tenham feito o que é certo, não há muito o que lamentar.

 

Eles acharam um local na mesma rua, obviamente uma casa de campo, bem-fechada e desocupada. Estacionaram o Tahoe de ré atrás da garagem, onde não podia ser visto da rua, mas pronto para partir em perseguição. Pegaram as nove milímetros do porta-luvas e as enfiaram nos bolsos das calças. Voltaram para estrada e se esconderam entre os arbustos.

Não era muito simples. Estavam a apenas oitenta quilômetros ao norte de Manhattan, mas poderia perfeitamente ser no meio da selva de Bornéu. As trepadeiras se enroscavam por toda parte, prendendo-se ne­les, fazendo-os tropeçar, chicoteando seus rostos e mãos. A mata selvagem era constituída de vegetação secundária, com árvores nativas de folhas largas, basicamente inúteis, cujos galhos baixos se retorciam em todas as direções. Eles foram caminhando de volta, forçando a passagem. Quando chegaram na altura do acesso para a garagem de Garber, estavam ofegantes e engasgados com o cheiro do musgo e com a poeira do pólen. Forçaram o caminho até o terreno e encontraram uma depressão no solo, onde se es­conderam. Abaixaram-se, olhando para a esquerda e a direita, para ter uma boa visão do acesso que vinha do quintal dos fundos. As pessoas estavam se dirigindo à saída, prestes a ir embora.

Começava a ficar óbvio quem era a sra. Jacob. Se Hobie estivesse certo, e ali fosse a casa dela, então era a loura magra apertando as mãos dos ou­tros e se despedindo, no papel de anfitriã. Os convidados iam embora, ela ficava. Era a sra. Jacob. Eles a observaram, o centro das atenções, sorrindo corajosamente, abraçando, acenando. As pessoas ocuparam o caminho da garagem, sozinhas, aos pares, depois em grupos maiores. Os carros davam a partida. A fumaça azulada dos escapamentos se espalhava. Os dois ouviam os assobios e o ronco dos motores acelerando quando os motoristas se li­vravam da fila estreita de carros estacionados. Os pneus girando na rua pavimentada. O barulho dos motores acelerando ao descer a rua. Seria fá­cil. Logo ela estaria em pé ali, completamente sozinha, comovida e triste. E então receberia um par de visitantes extras. Talvez os visse se aproximan­do e achasse que fossem convidados tardios para o velório. Afinal, estavam vestidos com ternos e gravatas pretas. O que se usa no centro financeiro de Manhattan combina perfeitamente com um funeral.

 

Reacher acompanhou os dois últimos convidados subindo os degraus de cimento para fora do quintal. Um era um coronel, e o outro, um general de duas estrelas, ambos em fardas imaculadas. Era o que ele esperava. Num lugar com bebida e comida de graça, os militares eram sempre os últimos a ir embora. Ele não conhecia o coronel, mas lembrou-se vagamente de já ter visto o general. Achou que ele também o reconheceu, mas nenhum dos dois tentou se lembrar de onde. Nenhum dos dois queria começar uma conversa complicada do tipo "o que você anda fazendo agora".

Os militares apertaram a mão de Jodie com formalidade, em seguida, ficaram em posição de sentido e prestaram uma continência. Movimentos precisos de marcha, botas brilhantes sobre o asfalto, olhos duros para a frente, fixando um quilômetro à frente, tudo um tanto bizarro na quietude verde de uma rua de subúrbio. Entraram no último carro que sobrava es­tacionado diante da garagem, um dos sedãs verdes parados mais próximos da casa. Os primeiros a chegar, os últimos a sair. Tempos de paz, nada de Guerra Fria, nada para fazer o dia inteiro. Era por isso que Reacher ficara feliz por ser liberado, e, enquanto observava o carro verde virar e se afastar, sabia que estava certo por se sentir feliz.

Jodie foi para o lado dele e pegou seu braço novamente:

— Então — disse em voz baixa. — E isso.

Restava apenas o silêncio crescente à medida que o carro verde desapa­recia na estrada.

Onde ele foi enterrado? — perguntou Reacher.

No cemitério da cidade — respondeu ela. — Poderia ter sido em Arlington, é claro, mas ele não quis. Quer ir até lá?

Ele balançou a cabeça.

Não, não faço esse tipo de coisa. Não faz diferença para ele agora, não é? Ele sabia que eu sentiria a falta dele, eu disse isso para ele há muito tempo.

Ela concordou. Segurou o braço dele.

Precisamos falar sobre Costello — disse ele outra vez.

Por quê? — perguntou ela. — Ele te passou a mensagem, certo?

Ele balançou a cabeça.

Não, ele me achou, mas fiquei desconfiado. Disse que não era Jack Reacher.

Ela o olhou, surpresa.

Mas por quê?

Ele deu de ombros.

Hábito, acho. Eu não ando por aí atrás de confusão. Não reconheci o nome Jacob, então simplesmente o ignorei. Eu estava satisfeito, morando tranqüilamente lá no sul.

Ela ainda olhava para ele.

Acho que eu deveria ter usado o nome Garber — disse ela. — Era assunto do meu pai, de qualquer modo, nada a ver comigo. Mas fiz através da firma e nem pensei mais nisso. Você teria falado com ele, caso ele men­cionasse Garber, certo?

É claro — respondeu ele.

E não precisava se preocupar, pois não é nada importante.

Podemos entrar? — perguntou ele.

Ela voltou a se surpreender.

Por quê?

Porque, na verdade, é bem importante.

Eles a viram levá-lo para dentro pela porta da frente. Ela puxou a tela, e ele a manteve aberta enquanto ela abria a maçaneta da porta. Uma grande por­ta de entrada, de madeira marrom, pesada. Entraram, e a porta se fechou atrás deles. Dez segundos depois, uma luz fraca apareceu numa janela, bem mais para a esquerda. Uma sala de estar, ou outro aposento mais recolhido, eles desconfiaram, tão oculto pelas folhagens do lado de fora que precisava ser iluminado até durante o dia. Eles se agacharam na vala úmida e aguar­daram. Os insetos voejavam sob o sol ao redor deles. Os dois se olharam e ouviram. Nenhum som.

Levantaram-se e abriram caminho até a entrada da garagem. Correram agachados até o canto da garagem. Encostaram na lateral e esgueiraram-se até a frente. Seguiram até a parte frontal da casa. Tiraram as pistolas dos bolsos dos paletós. Seguraram-nas apontadas para o chão e seguiram, um de cada vez, para a varanda frontal. Reagruparam-se e pisaram lentamente sobre a madeira velha. Acabaram agachados no chão, com as costas pres­sionadas contra a casa, um de cada lado da porta da frente, as pistolas nas mãos, prontas. Ela tinha entrado por ali. Ela iria sair. Era só uma questão de tempo.

 

— Alguém o matou? — repetiu Jodie.

E sua secretária também, provavelmente — disse Reacher.

Não acredito — disse ela. — Por quê?

Ela o tinha levado pelo corredor escuro até um pequeno aposento, na extremidade da casa. Uma janela pequena, as paredes cobertas por madeira e a mobília pesada de couro deixavam o ambiente escuro, por isso ela acen­deu um abajur, e o lugar assumiu a atmosfera aconchegante de um recesso masculino, como os bares anteriores à guerra que Reacher conheceu na Europa. Havia prateleiras de livros, edições baratas compradas por assina­turas fazia décadas e fotos desbotadas e com as bordas enroladas pregadas na beirada das prateleiras com percevejos. Uma mesa simples, o tipo de lugar que um homem velho e com um sub-emprego usava para fazer suas contas e calcular os impostos, imitando o que costumava fazer quando ti­nha um emprego.

Eu não sei por quê — disse Reacher. — Não sei de nada. Nem mes­mo por que você o mandou atrás de mim.

Papai queria falar com você — respondeu ela. — Ele não chegou a me dizer o motivo. Eu estava ocupada, tinha um julgamento, um negócio complicado, durou meses. Estava preocupada. Tudo o que sei é que ele fi­cou doente e estava indo ao cardiologista, certo? Ele conheceu alguém lá e se envolveu com alguma história. Estava preocupado com aquilo. Parecia que se sentia sob o peso de alguma grande obrigação. Mais tarde, quan­do piorou, sabia que teria que deixar o assunto de lado e começou a falar que deveria te encontrar, para você dar uma olhada, pois você era a pessoa que poderia fazer alguma coisa a respeito. Ele estava ficando muito inquieto, o que não era nada bom, por isso eu disse que ia contratar Costello para te achar. Sempre trabalhamos com ele no escritório, e parecia ser o mínimo que eu poderia fazer.

A história fazia algum sentido, mas o primeiro pensamento de Reacher foi por que eu? Dava para entender o problema de Garber. No meio de algum assunto, a saúde começa a falhar, sem querer abandonar uma obrigação, precisando de ajuda. Mas um cara como Garber podia conseguir ajuda em qualquer lugar. As páginas amarelas de Manhattan estavam cheias de investigadores. E, se era alguma coisa muito complicada, ou pessoal de­mais para um detetive particular da cidade, era só ele pegar o telefone, e uma dúzia de seus amigos da polícia do Exército iriam correndo. Duas dú­zias. Cem. Todos querendo ajudar e ansiosos por retribuir suas inúmeras gentilezas e favores, que se estendiam ao longo de todas as suas carreiras. Assim, Reacher se perguntava por que ele, em especial.

Com quem ele se encontrou no cardiologista?

Ela encolheu os ombros, desanimada.

Não sei. Eu estava preocupada. Não cheguei a me envolver com isso.

Costello veio até aqui? Conversou diretamente com ele?

Ela concordou com a cabeça.

Eu o chamei e lhe disse que faria o pagamento pela firma, mas que era para ele vir aqui para saber dos detalhes. Ele me ligou de volta uns dois dias depois e disse que tinha conversado com papai e que, no fim das contas, tudo se resumia a te encontrar. Ele queria que eu contratasse Costello oficialmente, pois o caso poderia ficar caro. Então, naturalmente, foi o que eu fiz, pois não queria que papai se preocupasse com o custo de coisa alguma.

E foi por isso que ele me disse que o nome de sua cliente era sra. Jacob — disse Reacher. — E não Leon Garber. E foi por isso que eu o igno­rei. E assim ele acabou sendo morto.

Ela balançou a cabeça e olhou para ele com firmeza, como se ele fosse um sócio júnior que tinha acabado de fazer um trabalho malfeito. Pegou-o de surpresa. Ele ainda pensava nela como uma garota de 15 anos, e não uma advogada de trinta, que passara muito tempo se preocupando com julgamentos longos e complexos.

Non sequitur — disse ela. — Está claro o que aconteceu, certo? Papai contou a história para Costello, que procurou algum atalho antes de ir atrás de você, mexeu em algum vespeiro e chamou a atenção de alguém. Esse alguém o matou para descobrir quem ele estava procurando e por quê. Não faz diferença o jogo que você jogou. Eles ainda teriam ido atrás de Costello para perguntar a ele exatamente quem o colocou naquele rastro. Então, fui eu quem o matou, no final.

Reacher balançou a cabeça.

Foi Leon. Através de você.

Ela balançou a cabeça por sua vez.

Foi a pessoa na clínica de cardiologia. Ela, através de papai, através de mim.

Preciso saber quem é essa pessoa — disse ele.

Faz diferença agora?

Acho que faz — disse ele. — Se Leon estava preocupado com alguma coisa, eu também estou. Era assim que funcionava com a gente.

Jodie concordou, em silêncio. Levantou-se depressa e foi até as prate­leiras. Usou as unhas como pinça e destacou o percevejo de uma das fotos. Olhou-a com atenção e depois a entregou para ele.

Lembra disso? — perguntou ela.

A fotografia devia ter uns 15 anos, as cores desbotando para tons pastel, como ocorre com velhas fotos em papel Kodak expostos ao tempo e à luz do sol. Mostrava o brilho intenso do céu de Manila sobre um quintal de terra. Leon Garber estava à esquerda, em torno dos cinqüenta, vestindo sua amassada farda verde-oliva. O próprio Reacher estava à direita, 24 anos, um tenente, trinta centímetros mais alto do que Garber, sorrindo com todo o vigor flamejante da juventude. Entre os dois, Jodie, 15 anos, um vestido de verão, um braço nu nos ombros do pai, o outro em torno da cintura de Reacher. Os olhos franzidos sob o sol, sorrindo, inclinada para Reacher como se abraçasse sua cintura com toda a força de sua frágil estrutura.

Lembra? Ele tinha acabando de comprar a Nikon no posto militar. Com disparador automático. Pegou um tripé emprestado e mal podia espe­rar para experimentar.

Reacher assentiu. Lembrava. Lembrava-se do cheiro do cabelo dela na­quele dia, sob o sol quente do Pacífico. O cabelo limpo e jovem. Lembrava-se da sensação do corpo dela encostado no seu. Da sensação do braço longo e fino em torno de sua cintura. Lembrava-se de gritar para si mesmo, segure sua onda, cara, ela só tem 15 anos e é filha do seu comandante.

Ele dizia que essa era sua foto de família. Sempre disse isso.

Ele concordou novamente.

E é por isso. Era assim que funcionava com a gente.

Ela olhou para a foto por um longo tempo, algo passou por seu rosto.

E ainda tem a secretária — disse ele. — Eles foram saber quem era o cliente. Ela deve ter dito a eles. E, mesmo que não tenha dito, eles vão des­cobrir de qualquer jeito. Precisei de apenas trinta segundos e uma ligação. Então agora eles vêm atrás de você para perguntar quem está por trás disso tudo.

Ela o olhou fixamente e colocou a velha foto sobre a mesa.

Mas eu não sei quem é.

E você acha que eles vão acreditar nisso?

Ela concordou, vagamente e olhou para a janela.

Certo, e o que a gente faz?

Você vai dar o fora daqui — disse ele. — Com toda certeza. Solitário e isolado demais. Você tem onde ficar na cidade?

É claro — disse ela. — Um loft, na baixa Broadway.

Tem um carro aqui?

Ela confirmou com a cabeça.

Claro, na garagem. Mas eu pretendia passar a noite aqui. Preciso encontrar o testamento, ver a papelada, fechar as coisas. Ia embora amanhã de manhã cedo.

Faça todas essas coisas agora — disse ele. — O mais rápido que pu­der e vá embora. Estou falando sério, Jodie. Quem quer que sejam essas pessoas, não estão de brincadeira.

O olhar no rosto dele falava mais do que as palavras. Ela concordou rapidamente e se levantou.

Certo, a mesa. Você pode me ajudar.

Desde o treinamento na escola militar até ser reformado por motivo de saúde, Leo Garber serviu o Exército por quase cinqüenta anos, de uma maneira ou de outra. Isso era perfeitamente visível em sua mesa. As gavetas de cima continham canetas, lápis e réguas, tudo em ordem. As de baixo eram maiores, com pastas suspensas penduradas em hastes retas. Cada uma de­las com uma etiqueta cuidadosamente escrita a mão. Impostos, telefone, eletricidade, óleo da calefação, manutenção do jardim, garantias de eletro­domésticos. Havia uma etiqueta mais nova, de cor diferente: ÚLTIMAS VONTADES E TESTAMENTO. Jodie percorreu os arquivos e acabou ti­rando todas as pastas de dentro das gavetas. Reacher achou uma maleta de couro surrada no armário do escritório, e enfiaram todas as pastas ali dentro. Forçaram a aba até conseguir fechar. Reacher pegou a velha foto da mesa e a olhou novamente.

Você se ressente? — perguntou ele. — Do jeito que ele pensava a meu respeito? Família?

Ela parou na porta e assentiu.

Eu me ressentia como uma doida — disse ela. — E um dia vou lhe dizer exatamente por quê.

Ele apenas olhou para ela enquanto ela se virava e sumia pelo corredor.

— Vou pegar minhas coisas — falou em voz alta. — Cinco minutos, está bem?

Ele foi até a prateleira e prendeu a velha foto de volta ao lugar original com o percevejo. Apagou a luz e saiu da sala carregando a maleta de cou­ro. Ficou no saguão silencioso, olhando ao redor. Era uma casa agradável. Fora ampliada em algum momento de sua história. Isso era claro. Havia um grupo central de cômodos que fazia algum sentido em termos de disposi­ção, e então outros cômodos saindo do saguão modificado onde ele estava. Ramificavam-se arbitrariamente saindo de pequenos vestíbulos internos. Pequenos demais para serem considerados uma ala, grandes demais para serem originais. Caminhou ao acaso pela sala de estar. As janelas davam para o quintal e para o rio, com o prédio de West Point visível de um ân­gulo ao lado da lareira. O ar estava parado, cheirando a polimento antigo. A decoração estava desbotada e era bem simples. Um piso neutro de ma­deira, paredes creme, mobília pesada. Uma TV antiga, nenhum aparelho de videocassete. Livros, quadros, mais fotos. Nada combinava. Um lugar não planejado, que se adaptou com o tempo, confortável. Com sinais de que fora habitado.

Garber deve ter comprado a casa há uns trinta anos. Provavelmente quando a mãe de Jodie engravidou. Era um procedimento normal. Com freqüência, os oficiais casados com filhos compravam uma casa, em geral perto de sua primeira base de serviço ou de algum outro lugar que acha­vam que seria central em sua vida, como West Point. Compravam a casa e ela geralmente ficava vazia enquanto viviam no estrangeiro. A questão era ter uma âncora, um lugar reconhecível para o qual sabiam que iam voltar quando tudo se acabasse. Ou onde suas famílias pudessem morar, caso o posto no exterior não fosse adequado, ou se a educação dos filhos exigisse mais estabilidade.

Os pais de Reacher não seguiram esse caminho. Jamais compraram uma casa. Reacher jamais morara numa casa. Alojamentos severos e prédios mi­litares foram os lugares onde morou, e, depois disso, em hotéis baratos. E tinha plena certeza de que jamais quisera nada diferente. Certeza absoluta de que não queria morar numa casa. O desejo apenas passava por ele. O en­volvimento necessário o intimidava. Era um peso físico, exatamente como a pasta que tinha nas mãos. As contas, os impostos, o seguro, as garantias, os consertos, a manutenção, as decisões, um novo telhado ou um novo fogão, carpete ou tapetes, os orçamentos. Os cuidados com o jardim. Ele foi até a janela e olhou para o gramado. Cuidar do jardim juntava-se a todos os pro­cedimentos fúteis. Primeiro, você gasta muito tempo e dinheiro para que a grama cresça, para depois gastar mais tempo e dinheiro aparando-a para que não cresça mais. Então reclama que está muito alta, depois que está muito curta, e coloca regadores para gastar água e mais dinheiro durante todo o verão, e, no outono, gasta ainda mais com os adubos químicos.

Uma maluquice. Mas, se alguma casa poderia fazer com que mudasse de idéia, seria a de Garber. Era tão casual, tão pouco exigente. Parecia pros­perar com a negligência benigna. Quase conseguia se imaginar morando ali. E a vista era poderosa. O grande Hudson, com suas águas correndo, reconfortante e presente. O velho rio continuaria a correr, o que quer que fizessem com as casas e a vegetação que manchava os bancos dos quintais.

— Bem, acho que estou pronta — Jodie avisou.

Ela apareceu na porta da sala de estar. Carregava uma bolsa de couro e havia tirado a roupa preta do funeral. Vestia uma calça Levis desbotada e uma camiseta azul-clara, com uma pequena logo que Reacher não conse­guiu decifrar. Tinha escovado o cabelo, e a estática fazia com que alguns fios se arrepiassem. Ela os alisava de volta com a mão, prendendo-os atrás da orelha. A camiseta azul realçava seus olhos e contrastava com a pele le­vemente dourada. Os últimos 15 anos não haviam feito mal algum a ela.

Eles atravessaram a cozinha e trancaram a porta dos fundos. Desliga­ram todos os eletrodomésticos que puderam ver e fecharam bem as tornei­ras. Foram para o saguão e abriram a porta da frente.

 

REACHER FOI O PRIMEIRO A SAIR POR INÚMERAS razões. Normalmente, teria deixado Jodie sair na sua frente — era de uma geração que ainda carregava alguns dos últimos vestígios de boas maneiras dos americanos m —, mas ele aprendera a ser cuidadoso com suas demonstrações de cavalheirismo até saber exatamente como a mulher reagiria. Além disso, era a casa dela, não a dele, o que alterava toda a dinâmica, afinal era ela quem tinha a chave para trancar a porta atrás deles. Assim, por todos esses motivos, ele foi a primeira pessoa a pôr o pé na varanda e a primeira a ser vista pelos dois homens.

Sumam com o cara grande e me tragam a sra. Jacob, foi o que Hobie lhes dissera. O cara da esquerda partiu para um tiro direto, enquanto ainda estava sentado no chão. Estava tenso e pronto, seu cérebro levou menos de um segundo para processar o que o nervo óptico lhe transmitia. Ele sentiu a porta da frente se abrir, viu a tela se movendo para fora, viu alguém pisando na varanda, reconheceu o cara grande saindo primeiro e atirou.

O da direita estava malposicionado. A tela abriu com um rangido, di­reto em seu rosto. Por si só, isso não chegava a ser um obstáculo, pois uma trama de nylon fina, projetada para impedir a entrada de insetos, não é muito eficiente para impedir uma bala, mas ele era destro, e a moldura da tela, ao se abrir, foi diretamente para a mão com a arma. Isso fez com que ele hesitasse e se erguesse para a frente, contornando o arco da moldura que se abria. Ele a parou com a mão esquerda e a empurrou, dobrando-se ao seu redor ao mesmo tempo que erguia a mão direita para tomar posição.

Nesse momento, Reacher já funcionava no modo inconsciente e ins­tintivo. Tinha quase 39 anos, e suas lembranças chegavam a uns trinta e cinco de todo esse tempo, até os fragmentos mais obscuros de sua infância, lembranças repletas com nada mais além do serviço militar, do seu pai, dos amigos dos seus pais, dele mesmo, de seus próprios amigos. Jamais conhe­cera a estabilidade, jamais passara um ano inteiro na mesma escola e jamais trabalhara das nove às cinco — de segunda à sexta —, jamais contara com outra coisa a não ser com a surpresa e a imprevisibilidade. Uma parte de seu cérebro se desenvolvera de maneira toda desproporcional, como um mús­culo grotescamente super-treinado, o que o levava a considerar perfeita­mente razoável que, ao sair pela porta da casa de um tranqüilo subúrbio de Nova York, visse os dois homens que vira pela última vez a milhares de quilômetros de lá, nas ilhas Keys, agachados e apontando pistolas nove milímetros para ele. Nenhum choque ou surpresa, nada de engasgar com medo ou entrar em pânico. Nenhuma pausa, hesitação ou qualquer inibição. Apenas a reação instantânea diante de um mero problema mecânico colocado diante dele como um diagrama mecânico envolvendo tempo, es­paço, ângulos, balas sólidas e carne macia.

A maleta pesada estava na sua mão esquerda, balançando para a frente ao ser carregada. Ele fez duas coisas de uma vez. Manteve o balanço, reno­vando a força para lançar a pasta para frente e para fora. A segunda foi girar o braço direito para trás e golpear Jodie no peito, lançando-a de volta para dentro do saguão. Ela tropeçou para trás, e a maleta em movimento rece­beu a primeira bala. Reacher sentiu o impacto em sua mão. Ele a impul­sionou para completar o balanço, inclinando-se para a varanda como um mergulhador hesitando diante da água fria da piscina, e acertou o cara da esquerda com um golpe torto no rosto. Ele estava semilevantado, agachado e sem equilíbrio, e o golpe da pasta o derrubou para trás e o tirou de ação.

Mas Reacher não o viu cair, pois seus olhos já estavam no outro sujeito que dava a volta pela tela, com a pistola a 15 graus de chegar à posição de tiro. Reacher usou o impulso do balanço da pasta para se lançar para a fren­te. Deixou que a alça o puxasse pelos dedos e o lançasse num mergulho com o braço direito acelerando de trás, cruzando diretamente sobre a varanda. A pistola oscilou e o acertou em cheio no peito. Ele a ouviu disparar e sentiu o calor da boca do cano queimar sua pele. A bala saiu pelo lado, passando sob o braço esquerdo erguido e foi acertar a garagem distante, quase ao mesmo tempo que seu cotovelo acertava o sujeito no rosto.

Um cotovelo em alta velocidade, empurrado por 114 quilos de peso corporal, faz bastante estrago. Atingiu a moldura da tela e acertou o cara no queixo. O impacto percorreu toda a articulação da mandíbula, forte o suficiente para transmitir toda a força até o cérebro do sujeito. Reacher po­dia ver, pelo jeito desarticulado como ele caiu de costas, que estava fora de combate. Então a mola da porta de tela gemeu de volta, fechando-a, e o cara da esquerda arrastou-se pelas tábuas da varanda em busca de sua arma, que tinha caído longe. Jodie estava no centro do portal, curvada, as mãos sobre o peito, tentando respirar. A velha pasta de couro quicava sobre o gramado da frente.

O problema era Jodie. Ele estava separado dela por pouco mais de dois metros, e o cara da esquerda estava entre os dois. Se ele pegasse a arma e mirasse com a direita, Jodie seria a mira perfeita. Reacher afastou o homem inconsciente e jogou-se para a porta. Fechou a tela atrás de si e caiu para dentro. Arrastou Jodie um metro para dentro do saguão e bateu a porta. Ela quicou e bateu três vezes, enquanto o cara disparava atrás dele, e pó e lascas de madeira saltaram no ar. Ele passou a tranca e empurrou Jodie em direção à cozinha.

Tem como a gente chegar à garagem?

Pela passagem coberta — disse ela, ofegante.

Era o mês de junho, as janelas contra tempestades estavam arriadas, e o acesso para a garagem não passava de uma passagem larga com telas dos dois lados, do chão ao teto. O cara da esquerda estava usando uma Beretta M9, que começara o dia com 15 tiros no carregador. Já tinha disparado quatro, um na maleta e três na porta. Restavam 11, o que não era reconfortante, quando tudo o que havia entre eles eram alguns metros quadrados de tela de nylon.

Chaves do carro?

Ela as catou dentro da bolsa. Ele as pegou e as fechou na mão. A porta da cozinha tinha um painel de vidro que dava direto para a entrada da ga­ragem, com outra porta idêntica do outro lado.

Aquela porta está trancada?

Ela concordou, sem fôlego.

A verde. A verde é a da garagem.

Ele olhou o molho de chaves. Viu uma velha Yale, com uma camada apagada de tinta verde. Abriu a porta da cozinha devagar, ajoelhou-se e colocou a cabeça para fora, mais baixo do que seria de se esperar. Olhou em torno, para os dois lados. Não havia sinal do cara esperando do lado de fora. Pegou então a chave verde e a segurou para a frente, como uma minús­cula lança. Ficou em pé e disparou. Enfiou a chave na fechadura, girou-a e a retirou. Empurrou a porta para abri-la e acenou para Jodie vir atrás dele. Ela se jogou para dentro da garagem, e ele bateu a porta atrás dela. Trancou e ouviu. Nenhum som.

A garagem era um espaço amplo e escuro, vigas espaçadas, estrutura aparente, cheirando a óleo de motor e creosoto. Estava cheia de trastes, cortadores de grama e mangueiras, cadeiras de jardim, coisas antigas que pertenceram a um homem que parara de comprar novidades há vinte anos. A porta principal, portanto, era do tipo manual que subia por trilhos cur­vos de metal. Nenhum mecanismo. Nenhum sistema elétrico. O piso era de concreto liso, gasto e polido. O carro de Jodie era um Oldsmobile Bravada, verde-escuro, com toques dourados. Estava lá parado no escuro, de frente para a parede. As etiquetas na tampa traseira diziam ser um motor V-6, com tração nas quatro rodas, o que seria útil, mas a velocidade da arranca­da do V-6 seria crucial.

Vá para o banco de trás — sussurrou ele. — Abaixe-se no chão, ok?

Ela entrou agachada, a cabeça primeiro, e deitou atravessada sobre

o ressalto da transmissão. Ele atravessou a garagem e achou a chave da por­ta para o quintal. Abriu-a, olhou para fora e ouviu. Nenhum movimento, nenhum som. Depois, voltou para o carro, colocou a chave na ignição e o ligou, para poder chegar o banco elétrico totalmente para trás.

Volto em um minuto — sussurrou.

A bancada de ferramentas de Garber era tão arrumada quanto a mesa de seu escritório. Havia um painel na parede, com um conjunto completo de ferramentas cuidadosamente organizadas. Reacher pegou um pesado mar­telo de carpinteiro e o ergueu. Saiu para o quintal e arremessou o martelo, numa diagonal da casa, sobre os arbustos que tinha visto na frente. Contou até cinco, para dar tempo de o sujeito ouvir e reagir, correndo para lá de onde quer que estivesse se escondendo. Depois, voltou para o carro. Ficou junto da porta aberta e virou a chave, com o braço esticado. Acionou a ig­nição. O motor ligou imediatamente. Ele correu agachado para a traseira e puxou a porta para cima. Ela subiu com um estrondo pelo trilho de metal. Jogou-se no banco do motorista, engatou a ré e afundou o pé no acelerador. Os quatro pneus cantaram no concreto liso, e o carro disparou para fora da garagem. Reacher viu o cara com a Beretta, afastado, à sua esquerda no gramado da frente, girando para olhar para eles. Acelerou por toda a saída da garagem e saiu de ré na estrada. Freou com força, virou a direção, pegou velocidade e disparou em meio à fumaça dos pneus.

Acelerou forte por cerca de cinqüenta metros e reduziu. Encostou gentilmente, logo ao passar da entrada da garagem do vizinho. Engatou a ré e subiu pela entrada, mas entrando com o carro pela vegetação.

Acertou a direção e desligou o motor. Atrás dele, Jodie se esforçou para levantar do chão e olhar em volta.

Que diabos estamos fazendo aqui? — perguntou ela.

Esperando.

Esperando o quê?

Eles darem o fora daqui.

Ela suspirou, meio atônita, meio furiosa.

Não vamos esperar, Reacher, vamos direto para a polícia.

Ele virou a chave novamente para poder acionar o vidro da janela. Abriu completamente para poder ouvir o som do lado de fora.

Não posso ir para a polícia — disse ele, sem olhar para ela.

Que negócio é esse? Por que não?

Porque eles vão começar a me investigar por causa do Costello.

Você não matou Costello.

E você acha que eles vão estar dispostos a acreditar nisso?

Eles têm que acreditar, porque não foi você, simples assim.

Pode demorar até eles encontrarem alguém melhor para ir atrás. Ela fez uma pausa.

Então, o que você está dizendo?

Estou dizendo que é muito mais vantajoso ficar longe da polícia. Ela balançou a cabeça. Ele a observou pelo espelho.

Não, Reacher, precisamos da polícia. Ele fixou seus olhos nos dela pelo espelho.

Lembra o que Leon costumava dizer? Ele dizia "que diabos, eu sou a polícia".

Bem, ele era, e você foi. Mas há muito tempo.

Não tanto assim, para nenhum de nós.

Ela ficou em silêncio. Sentou mais para frente. Inclinou-se para ele.

Você não quer ir à polícia, certo? É isso, não é? Não que não possa, só não quer ir.

Ele se virou um pouco no assento do motorista, para poder olhar de frente para ela. Viu os olhos dela descerem até a queimadura em sua cami­sa. O desenho de uma lágrima comprida tinha se formado ali, uma mancha escura de fuligem, partículas de pólvora tatuadas no tecido de algodão. Ele desabotoou e abriu a camisa. Olhou para baixo. A mesma queimadura em formato de lágrima na pele, os pelos enegrecidos e retorcidos, uma bolha começando a se formar, vermelha e intensa. Ele lambeu o polegar e o pres­sionou sobre a bolha, com uma careta.

Eles mexem comigo, eles vão se ver comigo.

Ela olhou para ele.

Você é absolutamente inacreditável, sabia? Ruim como o meu pai. Temos que ir à polícia, Reacher.

Não posso fazer isso — disse ele. — Vão me colocar na cadeia.

Temos que ir — repetiu ela.

Mas com desânimo. Ele fez que não com a cabeça e não respondeu nada. Olhou-a com atenção. Era uma advogada, mas também era a filha de Leon, e sabia como as coisas funcionavam do lado de fora, no mundo real. Ela ficou em silêncio por um bom tempo, deu de ombros, vencida, e colo­cou a mão sobre seu osso esterno, como se estivesse dolorido.

Você está bem? — perguntou ele.

Você me acertou de jeito — respondeu ela.

Poderia alisar como mais jeito ainda, pensou ele.

Quem eram aqueles caras? — perguntou ela.

Os dois que mataram Costello — disse ele.

Ela assentiu. Depois, suspirou. Seus olhos azuis se moveram de um lado para outro.

Então, para onde vamos?

Ele relaxou. E sorriu.

Qual seria o último lugar em que iriam nos procurar?

Ela encolheu os ombros. Tirou a mão do peito e alisou o cabelo.

Manhattan? — disse ela.

A casa — disse ele. — Eles nos viram fugir, não acham que vamos dar meia-volta.

Você é louco, sabia?

Precisamos da maleta. Leon pode ter feito anotações.

Ela balançou a cabeça, atordoada.

E precisamos fechar o lugar de novo. Não podemos deixar a garagem aberta. Vai ser invadida por guaxinins. Famílias inteiras daqueles porcarias.

E então ele levantou a mão. Colocou os dedos nos lábios. Ouviram o barulho de um motor dando a partida. Possivelmente um grande V-8, a uns duzentos metros de distância. O som dos pneus em uma estrada pedregosa a distância. O ronco do acelerador. Depois uma forma negra passou rapidamente diante deles. Um enorme jipe preto com rodas de alu­mínio. Um Yukon, ou um Tahoe, dependendo se atrás estava escrito GMC ou Chevrolet. Dois caras dentro dele, ternos pretos, um deles dirigindo e o outro reclinado em seu assento. Reacher colocou a cabeça toda para fora da janela e ouviu o som se perder no silêncio, em direção à cidade.

Chester Stone esperou por mais de uma hora em seu escritório, e en­tão ligou para o andar de baixo e pediu que o diretor financeiro falasse com o banco para verificar a conta operacional. Mostrava um crédito de 1,1 milhão de dólares, transferido havia 15 minutos, de um escritório em Cayman, de uma sociedade fiduciária das Bahamas.

Está lá — disse o homem das finanças. — Você conseguiu, chefe.

Stone apertou o telefone e se perguntou exatamente o que ele tinha conseguido.

Estou descendo. Quero conferir os números.

Os números são bons — disse o diretor. — Não precisa se preocupar.

Estou descendo assim mesmo — retrucou Stone.

Ele desceu os dois andares de elevador e encontrou o diretor financeiro em sua sala luxuosa. Digitou a senha e abriu a planilha secreta. O homem das finanças assumiu o computador e digitou o novo saldo disponível na conta operacional. O software fez os cálculos, e as contas apareceram equi­libradas, seis semanas à frente.

Viu? — disse. — Bingo.

E quanto ao pagamento dos juros? — perguntou Stone. — Onze mil por semana? Seis semanas? Meio pesado, não?

Temos como pagar?

O homem assentiu, confiante.

Com certeza. Devemos setenta e três mil para dois fornecedores. O dinheiro está na conta, pronto para sair. Se perdermos as faturas, eles te­rão que reapresentar, e a gente fica com essa grana liberada por um tempo.

Ele tocou na tela e apontou para um provisionamento contra faturas recebidas.

Setenta e três mil, menos onze mil por semana, durante seis sema­nas, nos deixa com uma sobra de sete mil. Podemos até jantar fora algumas vezes.

Faça a conta de novo, ok? — pediu Stone. — Confira novamente.

O sujeito lançou-lhe um olhar, mas executou o comando. Tirou 1,1 mi­lhão, e o resultado ficou vermelho, colocou-o de volta, e o saldo voltou a ficar equilibrado. Cancelou o provisionamento contra as faturas, subtraiu onze mil a cada sete dias e completou um período de seis semanas com um excedente operacional de sete mil dólares.

Certo — disse —, mas no verde.

Como faremos o pagamento do principal? — perguntou Stone. — Precisamos ter 1,1 milhão disponíveis em seis semanas.

Sem problema. Tenho tudo calculado. Vamos ter o dinheiro a tempo.

Mostre-me, ok?

Certo, está vendo aqui? — Ele tocou na tela em outra linha, listando os pagamentos futuros dos clientes. — Esses dois atacadistas nos devem 1,173 milhão, que cobre exatamente o principal e mais as duas faturas ven­cidas, e a data é daqui a exatas seis semanas.

E vão pagar no prazo?

O homem encolheu os ombros.

Bem, sempre pagaram.

Stone olhou para a tela. Os olhos percorreram as linhas de cima para baixo, da esquerda para a direita.

Refaça tudo de novo. Tripla conferência.

Não precisa suar, chefe. A conta fecha.

Apenas faça, está bem?

O homem concordou. Era a empresa de Stone, afinal de contas. Fez tudo outra vez, repetiu os cálculos do começo ao fim, e o resultado foi o mesmo. 0 1,1 milhão de Hobie desapareceu sob a enxurrada de contra-cheques, os dois fornecedores ficaram famintos, os juros foram pagos, os pagamentos dos atacadistas entraram, Hobie recebeu seu 1,1 milhão de volta, os forne­cedores receberam o pagamento atrasado, e a planilha acabou mostrando a mesma sobra trivial de sete mil dólares.

Não precisa suar, chefe — repetiu o homem. — A conta fecha.

Stone olhava para a tela, imaginando se aquela sobra de sete mil seria

suficiente para mandar Marilyn para a Europa. Provavelmente, não. Não por seis semanas, pelo menos. E isso a alertaria. Ela ficaria preocupada. Perguntaria por que ele a estava mandando viajar. E ele teria que contar. Ela era muito esperta. O bastante para arrancar a verdade dele, de um jeito ou de outro. E, no final, se recusaria a ir para a Europa e também acabaria com o olhar fixo no teto à noite, por seis semanas.

 

A maleta ainda estava lá, jogada no gramado da frente. Tinha um buraco de bala num dos lados. Sem buraco de saída. A bala deve ter atravessado o couro, o compensado rígido da carcaça, até parar no meio da papelada. Reacher sorriu e carregou-a de volta, juntando-se a Jodie na garagem.

Deixaram a caminhonete no asfalto diante da garagem e entraram pelo mesmo caminho por onde tinham saído. Baixaram a porta de correr da garagem e seguiram pelo acesso à casa. Trancaram a porta interna com a chave verde e atravessaram a cozinha. Trancaram a porta da cozinha, passa­ram sobre a bolsa de couro de Jodie, abandonada no saguão. Reacher levou a maleta para a sala de estar. Mais espaço e mais luz do que no estúdio.

Abriu a maleta e tirou as pastas de arquivo, espalhando-as sobre o chão. A bala caiu com elas e quicou sobre o tapete. Uma Parabellum de nove milímetros padrão, toda revestida de cobre. Levemente amassada na ponta, pelo impacto com a placa de compensado, mas, fora isso, intacta. O papel amortecera todo o impacto ao longo de um trajeto de 45 centímetros. Dava para ver o buraco, atravessando metade dos documentos. Ele sopesou a bala na palma da mão e viu Jodie na porta, observando-o. Jogou a bala para ela. Ela a pegou no ar, com uma mão.

Suvenir — disse ele.

Ela a jogou para cima, como se estivesse quente, e a atirou na lareira. Sentou-se no chão, encostada nele, diante da massa de papéis. Ele sentiu seu perfume, um cheiro que não reconhecia, algo suave e muito feminino. A camiseta era grande demais para ela, larga e disforme, mas, de algum jeito, realçava suas formas. As mangas cobriam metade das mãos, chegando quase até os dedos. A calça Levis estava apertada em torno da cintura fina com um cinto e ficava ligeiramente frouxa nas pernas. Parecia frágil, mas ele se lembrava da força de seus braços. Esguia, mas rija. Ela se inclinou para examinar os arquivos, e seu cabelo caiu para a frente. Ele sentiu o mes­mo aroma suave de que se lembrava de 15 anos atrás.

O que estamos procurando? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

Saberemos quando encontrarmos, eu acho.

Examinaram tudo com atenção, mas não acharam nada. Não havia nada lá. Nada atual, nada significativo. Apenas uma massa de papéis da casa, subitamente velhos e patéticos, referindo-se a uma vida doméstica que tinha chegado ao fim. O item mais recente era o testamento, que es­tava em sua própria pasta, fechado em um envelope identificado por uma caligrafia cuidadosa. Cuidadosa, mas lenta e trêmula, a caligrafia de um homem que acabava de voltar do hospital, após o primeiro ataque cardíaco. Jodie levou-o para o saguão e o enfiou na bolsa.

Alguma conta sem pagar? — perguntou ela de lá.

Havia uma pasta com a etiqueta PENDÊNCIAS. Estava vazia.

Não vi nenhuma — respondeu ele em voz alta. — Ainda devem che­gar, certo? Não chegam mensalmente?

Ela o olhou da porta e sorriu.

Sim, chegam — respondeu. — Mensalmente, todos os meses.

Uma das pastas tinha escrito SAÚDE. Estava lotada com recibos do hospital e da clínica, além da enorme e eficiente correspondência da segu­radora. Reacher folheou todos os documentos.

Meu Deus, custa tudo isso?

Jodie voltou e se abaixou para olhar.

Com certeza — disse ela. — Você tem seguro?

Ele olhou para ela, inexpressivo.

Talvez do Departamento de Veteranos, pelo menos por um período.

Você deveria verificar. Ter certeza.

Ele deu de ombros.

Me sinto bem.

Papai também se sentia. Por sessenta e três anos e meio.

Ela se ajoelhou ao lado dele de novo, e ele viu seus olhos enevoarem. Colocou a mão sobre o braço dela, suavemente.

Dia difícil, não é?

Ela concordou e piscou. Depois ergueu a cabeça com um leve sorriso de ironia.

Inacreditável. Enterrei meu pai, dois assassinos atiraram em mim, infringi a lei ao não reportar mais crimes do que consigo enumerar e aí me meto com um cara louco que me convence a participar de uma ação maluca do tipo vigilante. Sabe o que papai teria me dito?

O quê?

Ela contraiu os lábios e baixou a voz, numa imitação próxima dos resmungos bem-humorados de Garber.

Nada como um bom dia de trabalho, garota. É o que ele teria me dito.

Reacher sorriu de volta e apertou o braço dela novamente. Depois, fo­lheou a papelada médica e pegou um documento timbrado.

Vamos achar essa clínica — disse.

 

O debate era intenso dentro do Tahoe, sobre se deviam voltar ou não. O fracasso não era uma palavra bem-vista no vocabulário de Hobie. Talvez fosse melhor simplesmente pegar um avião e desaparecer. Se mandar para o mais longe possível. Era uma perspectiva atraente. Mas eles tinham certe­za de que Hobie os encontraria. Não tão cedo, mas encontraria. E essa não era uma perspectiva atraente.

Então voltaram a atenção para a redução dos danos. Era óbvio o que tinham a fazer. Fizeram as paradas necessárias e gastaram um tempo razoá­vel numa lanchonete, logo na saída sul da rodovia 9. Após passarem por todo o tráfego de volta para a ponta sul de Manhattan, já tinham toda a história pronta.

Muito fácil — disse o primeiro. — Esperamos por horas, e por isso chegamos tão tarde. O problema é que tinha um monte de soldados lá, al­gum tipo de cerimônia, mas com rifles por todo lado.

Quantos? — perguntou Hobie.

Soldados? — perguntou o segundo. — Pelo menos uma dúzia. Uns 15, talvez. Estavam circulando por todo lado, era difícil contar exatamente quantos. Algum tipo de guarda de honra.

Ela foi embora com eles — continuou o primeiro. — Devem tê-la escoltado desde o cemitério, e depois ela voltou para algum lugar, com eles atrás.

E vocês não pensaram em segui-la?

Não tinha como — disse o segundo. — Estavam dirigindo devagar, uma longa fila de carros. Como a procissão de um funeral. Eles veriam a gente num segundo. Não dava para simplesmente entrar no final da pro­cissão, certo?

E o grandalhão lá das ilhas Keys?

Ele saiu bem cedo. A gente deixou ele ir. Estávamos de olho na sra. Jacob. Já dava para saber que era ela. Ela ficou por lá, depois saiu, cercada por esse bando de militares.

E o que vocês fizeram?

Conferimos a casa — comentou o primeiro. — Tudo trancado. En­tão fomos à cidade para ver de quem era. Tudo listado na biblioteca públi­ca. A casa estava registrada em nome de um Leon Garber. Perguntamos à bibliotecária se ela sabia de alguma coisa, e ela só nos mostrou o jornal. Página três, uma matéria sobre o cara. Acabou de morrer do coração. Viúvo, a única parente viva é a filha, Jodie, ex-senhora Jacob, uma jovem e impor­tante advogada financeira do escritório Spencer Gutman Ricker & Talbot, de Wall Street, que mora na baixa Broadway, bem aqui, em Nova York.

Hobie concordou lentamente e batucou na mesa com a ponta do gan­cho, um ritmo rápido e curto.

E quem era esse Leon Garber, exatamente? Por que tantos soldados em sua homenagem?

Polícia do Exército — respondeu o primeiro.

O segundo cara concordou.

Foi para a reserva com três estrelas e mais medalhas do que dá para contar, serviu por quarenta anos, Coréia, Vietnã, tudo quanto é lugar.

Hobie parou de batucar. Ficou imóvel, a cor sumiu do seu rosto, dei­xando a pele branca, a não ser pelo brilho rosado da queimadura, destacan­do-se vivamente na penumbra.

Polícia do Exército — repetiu baixinho.

Ficou sentado por um longo tempo, com essas palavras nos lábios. Imó­vel, olhando para o espaço, até levantar o gancho da mesa e girá-lo diante dos olhos, lentamente, examinando-o, permitindo que os finos raios de luz que passavam pela persiana captassem suas curvas e contornos. Estava tre­mendo, por isso segurou-o com a mão esquerda e o firmou.

Polícia do Exército — disse novamente, olhando para o gancho. E então transferiu o olhar para os dois homens nos sofás.

Saia da sala — disse para o segundo.

O sujeito olhou uma vez para seu parceiro e saiu, fechando a porta com cuidado. Hobie empurrou a cadeira para trás e se levantou. Saiu de detrás da mesa, deu a volta e parou bem atrás do primeiro cara, que ficou sentado imóvel no sofá, sem ousar se virar e olhar.

Seu colarinho era tamanho dezesseis, o que correspondia a um pesco­ço com diâmetro pouco maior do que doze centímetros, supondo que o pescoço humano é um cilindro mais ou menos circular, uma aproximação que Hobie sempre gostava de fazer. O gancho de Hobie era uma simples curva de aço, como um J maiúsculo, de tamanho generoso. O diâmetro interno da curva era de doze centímetros. Moveu-se com rapidez, passando o gancho sob a cabeça do homem e forçando-o contra sua garganta. Deu um passo para trás e puxou com toda a força. O cara jogou-se para cima e para trás, os dedos tentando agarrar o metal frio para aliviar a pressão sufocante. Hobie sorriu e puxou mais forte. O gancho estava preso a um pesado encaixe de couro, preso ao coto do que restava do braço por uma presilha firmemente amarrada ao bíceps, acima do cotovelo. O conjunto do antebraço era apenas para estabilizar. Era a presilha superior, menor do que a articulação do cotovelo, que fazia toda a força e tornava impossível que o gancho se soltasse do braço. Ele puxou até que os grasnidos se transfor­massem em guinchos entrecortados e a vermelhidão no rosto do homem começasse a ficar azul. Então, soltou dois centímetros e aproximou-se da orelha do sujeito.

Ele tinha um grande hematoma na cara. Que merda foi aquela?

O cara guinchava e gesticulava freneticamente. Hobie torceu o gancho, aliviando a pressão sobre as cordas vocais do homem, mas colocando a ponta na área macia sob sua orelha.

Que merda foi aquela? — perguntou novamente.

O cara sabia que, naquele ângulo, uma pressão extra no gancho faria com que sua pele fosse rasgada naquele triângulo vulnerável sob a mandíbula. Ele não sabia muito de anatomia, mas sabia que estava a dois centí­metros da morte.

Eu conto — guinchou. — Eu conto.

Hobie manteve o gancho na posição, torcendo-o cada vez que o cara hesitava, de forma que a história verdadeira não demorou mais do que três minutos para ser contada, do começo ao fim.

Vocês falharam comigo — disse Hobie.

Sim, falhamos. — O sujeito engasgou. — Mas a culpa foi dele. Ele ficou todo atrapalhado atrás da tela da porta. Foi um inútil.

Hobie puxou o gancho.

Em comparação a quê? Ele foi inútil e você foi útil?

A culpa foi dele. — O sujeito engasgou novamente. — Ainda sou útil.

Você vai ter que provar isso para mim.

Como? — O sujeito guinchou. — Por favor, como? E só me dizer.

Fácil. Você pode fazer uma coisa para mim.

Sim. — O sujeito engasgou. — Sim, qualquer coisa, por favor.

Me traga a sra. Jacob! — gritou Hobie.

Sim! — gritou o cara de volta.

E não faça cagada de novo! — gritou Hobie.

Não. — O sujeito engasgou. — Não, não vamos, eu juro.

Hobie torceu o gancho de novo, duas vezes, no compasso de suas pa­lavras.

Nada de nós. Só você. Porque você pode fazer outra coisa para mim.

O quê? — O sujeito guinchou. — Sim, o quê? Qualquer coisa.

Livre-se do seu parceiro inútil — sussurrou Hobie. — Esta noite, no barco.

O homem concordou tão vigorosamente quanto o gancho permitia que movesse a cabeça. Hobie inclinou-se para a frente e afastou o gancho. O sujeito despencou para o lado, engasgando e golfando no tecido do sofá.

E me traga sua mão direita — sussurrou Hobie. — Como prova.

 

Eles descobriram que a clínica que Leon freqüentava não era um lugar independente, mas apenas uma unidade administrativa dentro de uma gigantesca instalação hospitalar que atendia todo o baixo condado de Putnam. Havia um prédio de dez andares num imenso parque, com consultórios médicos de todas as especialidades ao redor da base. Ruas estreitas serpenteavam pelo jardim bem-cuidado, até pequenos becos sem saída com consultórios baixos ao redor para os médicos e dentistas. Qualquer coisa de que os especialistas não pudessem dar conta nos consultórios era trans­ferida para os leitos alugados no prédio principal. Assim, a clínica de cardiologia era uma entidade teórica, constituída por uma população variável de médicos e pacientes, dependendo de quem estava doente e da gravidade. A correspondência do próprio Leon mostrava que ele estivera em diversos locais, desde a UTI, no começo, à enfermaria de recuperação, depois, em um dos consultórios para pacientes externos, e de volta à UTI, em sua visita final.

O nome do cardiologista era a única constante em toda a papelada, dr. McBannerman, que Reacher imaginou ser um velhote simpático, de cabe­los brancos, erudito, sábio e gentil, talvez de uma antiga linhagem escoce­sa, até Jodie lhe dizer que havia encontrado com a doutora McBannerman diversas vezes, uma mulher de uns trinta e cinco anos, de Baltimore. Ele dirigia a caminhonete de Jodie pelas curvas das vias estreitas enquanto ela procurava o consultório certo, à esquerda e à direita. Ela reconheceu o lugar no final de um beco, uma estrutura baixa de tijolos, friso branco, com algum tipo de halo antisséptico brilhante ao redor, característico dos hos­pitais. Havia uma meia dúzia de carros estacionados do lado de fora, com uma vaga livre, na qual Reacher entrou de ré.

A recepcionista era uma senhora pesada e intrometida, que deu as boas-vindas a Jodie com simpatia. Ela os convidou a esperar McBannerman no consultório interno, o que provocou olhares dos demais pacientes na sala de espera. O consultório era um local inofensivo, claro, estéril e silencioso, com uma mesa de exame e um enorme diagrama do interior de um cora­ção humano na parede atrás da mesa. Jodie olhava para o quadro, como se perguntasse afinal, que parte acabou falhando? Reacher sentia o próprio coração, grande e musculoso, batendo suavemente em seu peito. Sentia o sangue sendo bombeado e o pulsar em seus punhos e no pescoço.

Esperaram por cerca de dez minutos, até que a porta interna se abriu e a dra. McBannerman entrou, uma mulher de cabelos lisos e escuros, jaleco branco, um estetoscópio no pescoço, como se fosse um crachá da profissão, e uma expressão preocupada.

Jodie, sinto muitíssimo por Leon.

Era noventa e nove por cento sincera, mas havia um traço de preocu­pação. Deve estar preocupada com um possível processo por erro médico, pensou Reacher. A filha do paciente era uma advogada e estava bem ali em seu consultório, logo depois do funeral. Jodie também percebeu e assentiu, um leve gesto de conforto.

Vim apenas agradecer. Você foi absolutamente perfeita, em todos os momentos. Ele não poderia ter sido mais bem-cuidado.

McBannerman relaxou. O um por cento de preocupação se desfez. Ela sorriu, e Jodie olhou para o grande diagrama novamente.

Afinal, que parte falhou? — perguntou ela.

McBannerman acompanhou seu olhar e encolheu levemente os om­bros.

Bem, acho que todas elas, na verdade. E um músculo grande e com­plexo, batendo e batendo, trinta milhões de vezes por ano. Se resiste a dois bilhões e setecentos milhões de batidas, que são noventa anos, dizemos que está velho. Se bate apenas um bilhão e oitocentos milhões de vezes, são sessenta anos, e chamamos de doença cardíaca prematura. Consideramos esse o maior problema de saúde da América, mas a verdade é que, cedo ou tarde, ele para de bater.

Ela fez uma pausa e olhou diretamente para Reacher. Por um segundo, ele achou que ela havia notado algum sintoma nele. E então se deu conta de que ela estava esperando ele se apresentar.

Jack Reacher — disse ele. — Eu era um velho amigo de Leon.

Ela assentiu lentamente, como se um quebra-cabeça acabasse de ser completado.

O famoso major Reacher. Ele falava muito de você.

Ela o observou abertamente, interessada. Percorreu seu rosto até que os olhos pararam no peito. Ele não tinha certeza se era por motivos especiali­zados ou se apenas vira a marca da queimadura deixada pelo disparo.

Ele falou de alguma outra coisa? — perguntou Jodie. — Parece que ele estava preocupado com algo.

McBannerman virou-se para ela, confusa, como se pensasse: bem, todos os meus pacientes se preocupam com alguma coisa, tipo vida e morte.

Que tipo de coisa?

Não sei bem — disse Jodie. — Talvez algum assunto com que algum outro paciente possa tê-lo envolvido?

McBannerman encolheu os ombros, com um olhar inexpressivo, como se não tivesse nada a dizer, mas então pareceu lembrar.

Bem, na verdade ele mencionou alguma coisa. Me disse que tinha uma nova missão.

Falou o que era?

McBannerman balançou a cabeça.

Não mencionou nenhum detalhe. No início, parecia aborrecê-lo. Estava relutante sobre o assunto, a princípio. Como se alguém tivesse lhe passado alguma tarefa tediosa. Mas acabou ficando bem mais interessado depois. A ponto de começar a ficar excitado demais. Seus eletros dispara­ram, e eu não achei aquilo nada bom.

Tinha relação com algum outro paciente? — perguntou Reacher.

Ela balançou a cabeça novamente.

Não sei mesmo. É possível, eu acho. Eles passam muito tempo juntos lá na recepção. Conversam entre si. São idosos, muitas vezes entediados e solitários, me parece.

Pareceu uma repreensão. Jodie enrubesceu.

Quando ele mencionou isso pela primeira vez? — perguntou Reacher, rapidamente.

Março? — respondeu McBannerman. — Abril? Logo depois de virar um paciente externo, de qualquer modo. Pouco antes de ir ao Havaí.

Jodie olhou para ela, surpresa.

Ele foi para o Havaí? Eu não sabia disso.

McBannerman assentiu.

Ele faltou uma consulta, e perguntei o que havia acontecido, ele me disse que tinha ido passar dois dias no Havaí.

Havaí? Por que ele iria ao Havaí sem falar comigo?

Não sei por que ele foi — disse McBannerman.

Ele estava em condições de viajar? — perguntou Reacher. Ela balan­çou a cabeça.

Não, e acho que ele sabia que era uma bobagem. Talvez tenha sido por isso que não mencionou.

Quando ele se tornou um paciente externo? — perguntou Reacher.

No início de março — disse ela.

E quando ele foi para o Havaí?

Meados de abril, eu acho.

Ok — disse ele. — Você pode nos dar uma lista de seus pacientes externos desse período? Março e abril? Pessoas com quem ele pode ter con­versado?

McBannerman já estava balançando a cabeça.

Não, sinto muito, não posso fazer isso. E um assunto confidencial.

Ela apelou com os olhos para Jodie, médica para advogada, de mulher para mulher, uma expressão de você sabe como são essas coisas. Jodie assen­tiu, compreensiva.


Talvez você possa perguntar para a recepcionista. Quem sabe ela viu papai conversando com alguém lá. Isso seria apenas uma conversa en­tre terceiros, nenhuma questão confidencial envolvida. Na minha opinião, claro.

McBannerman sabia reconhecer um impasse. Ela chamou pelo inter- comunicador e pediu que a recepcionista fosse até lá. Fizeram a pergunta para a mulher, e ela começou a concordar enfaticamente, respondendo an­tes mesmo de terem terminado de falar.

Sim, é claro. O sr. Garber estava sempre conversando com aquele casal simpático de velhinhos, o homem com problema na válvula. No ventrículo superior direito. Não conseguia mais dirigir, então era sua esposa quem o trazia. Um carro horroroso. O sr. Garber estava fazendo alguma coisa para eles, tenho certeza disso. Estavam sempre lhe mostrando fotos antigas e pedaços de papel.

Os Hobie? — perguntou McBannerman.

Isso mesmo, eles ficavam todos misteriosos juntos, os três, o sr. Garber e os velhos, o senhor e a sra. Hobie.

 

HOOK HOBIE ESTAVA SOZINHO EM SUA SALA, ouvindo os ruídos distantes do prédio gigantesco, no oc­togésimo oitavo andar, pensando intensamente, mudan­do os planos. Ele não era um cara inflexível. Orgulhava-se disso. Admirava a maneira como era capaz de mudar e se adaptar, ouvir e aprender. Era o que lhe dava alguma van­tagem, seu diferencial.

Tinha ido para o Vietnã praticamente sem ter idéia de suas habilidades. Praticamente sem qualquer noção do que quer que fosse, pois era muito jovem. Não apenas jovem, mas proveniente de um ambiente repressivo, num subúrbio em que não havia nada que possibilitasse algum tipo de expe­riência.

O Vietnã o modificou. Poderia tê-lo quebrado. Como quebrou inú­meros outros. Para todos os lados, havia pessoas se despedaçando. E não eram apenas garotos como ele, mas mais velhos também, os profissionais de carreira, no Exército havia anos. O Vietnã caiu pesado sobre as pessoas, algumas foram esmagadas, outras não.

Ele não foi. Apenas olhava ao redor, mudava e se adaptava. Ouvia e aprendia. Era fácil matar. Ele era um sujeito que nunca tinha visto nada morto antes, a não ser um bicho atropelado na estrada, esquilos, coelhos ou um gambá fedorento de vez em quando, nos caminhos cobertos de folhas perto de sua casa. No primeiro dia lá, viu oito corpos americanos. Era a patrulha terrestre, cuidadosamente triangulada pelos disparos dos morteiros. Oito homens, 29 pedaços, alguns bem grandes. Um momen­to de definição. Seus colegas ficaram em silêncio, alguns vomitaram e ge­meram, abjetamente, sem conseguir acreditar. Ele se manteve intocado.

Começou como negociador. Todo mundo queria alguma coisa. Todos reclamando do que não tinham. Era absurdamente fácil. Tudo o que era preciso fazer era ouvir. Havia um cara que fumava, mas não bebia. Um outro que adorava cerveja, mas não fumava. Era pegar os cigarros de um e trocar pela cerveja do outro. Cobrar uma comissão. Guardar uma pequena parte para si mesmo. Tão fácil e óbvio que ele não acreditava que não fizes­sem por si mesmos. Ele não levava a coisa a sério, pois tinha certeza de que não ia durar. Não ia demorar muito para que percebessem e o eliminassem como intermediário.

Mas jamais perceberam. Foi sua primeira lição. Ele era capaz de fazer coisas que outras pessoas não conseguiam. Conseguia ver o que outros não viam. Então, prestou mais atenção. O que mais eles queriam? Um monte de coisas. Garotas, comida, penicilina, discos, missões no acampamento base, mas nada de lavar latrinas. Botas, repelente de insetos, armas cromadas na cintura, orelhas secas dos corpos dos vietcongues como lembranças. Maconha, aspirina, heroína, agulhas limpas, missões seguras nos últimos cem dias de um período de serviço. Ele ouvia, aprendia, pesquisava e ob­servava.

Até fazer seu grande lance. Fora um grande salto, para o qual sempre olhava com um imenso orgulho. Serviu como padrão para outros passos gigantescos que deu mais tarde. Veio em resposta a um par de problemas

que ele vinha encarando. O primeiro era a trabalheira que aquilo tudo es­tava dando. Encontrar coisas físicas específicas às vezes era complicado. Encontrar garotas sem doenças ficara muito difícil, e virgens se tornara impossível. Conseguir um suprimento contínuo de drogas era arriscado. Outras coisas eram tediosas. Armas bacanas, suvenires dos vietcongues, até mesmo botas decentes: tudo levava tempo para ser obtido. A rotação dos novos oficiais estava acabando com seus adorados negócios na zona segura longe dos combates.

O segundo problema era a competição. Estava começando a perceber que não era o único. Raro, mas não exclusivo. Outros caras estavam en­trando no jogo. Um mercado livre se desenvolvia. Seus negócios eram oca­sionalmente rejeitados. As pessoas se afastavam dele, dizendo que tinham acordos melhores em outro lugar. Ele ficava chocado.

Mudar e se adaptar. Refletiu profundamente. Passou uma noite sozinho, deitado em sua cama estreita, com seu uísque barato, pensando. Ele fez a transição. Por que ir atrás de coisas físicas específicas, difíceis de encontrar, e que só ficariam mais difíceis? Por que ir atrás de um médico perguntar o que ele queria em troca do crânio descarnado e fervido de um vietcongue, como chamavam os vietcongues? Por que ir atrás do que quer que fosse que o sujeito quisesse e trazer de volta para pegar o tal crânio? Por que ficar ne­gociando com todas aquelas coisas? Por que não usar apenas a commodity mais comum e disponível de todo o Vietnã?

Dólares americanos. Ele se tornou um agiota. Mais tarde, ria daqui­lo, com melancolia, quando estava se recuperando e tinha tempo para ler. Foi uma progressão absolutamente clássica. As sociedades primitivas co­meçaram com o escambo e, depois, progrediram para uma economia ba­seada no dinheiro. A presença dos americanos no Vietnã começou como uma sociedade primitiva. Com toda a certeza. Primitiva, improvisada, desorganizada, arrastando-se pela superfície enlameada daquele país hor­rível. Então, com o passar do tempo, foi crescendo, se estabelecendo e ama­durecendo. Se desenvolveu, e ele foi o primeiro do seu tipo a se desenvolver junto. O primeiro e, por muito tempo, o único. Era uma fonte de imenso orgulho para ele. Provou que era melhor do que o restante. Mais inteligente, imaginativo, mais apto a mudar, se adaptar e prosperar.

Dinheiro vivo era a chave para tudo. O cara queria botas, ou heroína, ou uma garota que um amarelo inventara que tinha 12 anos e era virgem, ele ia lá e comprava com o dinheiro emprestado do Hobie. Realizava seu desejo hoje e pagava na semana seguinte, com um percentual de juros. Hobie precisava apenas ficar sentado ali, como uma aranha gorda no meio da teia. Não precisava ir a lugar algum. Nenhuma confusão. Ele pensara muito sobre aquilo. Logo percebeu o poder psicológico dos números. Nú­meros pequenos, como o nove, soavam pequenos e amigáveis. Nove por cento era sua taxa favorita. Parecia quase nada. Nove, apenas um rabis­co num pedaço de papel. Um único algarismo. Menos do que dez. Quase nada mesmo. Era assim que os outros soldados encaravam. Mas nove por cento por semana eram 468 por cento ao ano. Alguém deixava de pagar a dívida por uma semana, e os juros compostos pulavam. Os 468 por cento chegavam muito rapidamente a mil por cento. Mas ninguém percebia isso. Ninguém, a não ser Hobie. Todos viam o número 9, um único algarismo, pequenino e amigável.

O primeiro que não pagou foi um cara grande, selvagem, feroz, com uma mentalidade bem abaixo do normal. Hobie sorriu. Perdoou-lhe a dívi­da e a descartou. Sugeriu que ele poderia retribuir a generosidade assumin­do o cargo de seu cobrador. Não houve mais inadimplentes depois disso. Chegar ao método exato de dissuasão foi algo complexo. Um braço ou per­na quebrados serviam apenas para tirar o sujeito da linha de frente, no hospital de campo, onde estava seguro e cercado de enfermeiras de branco que provavelmente ficariam excitadas se ele inventasse alguma descrição heróica de como se ferira. Uma fratura mais extensa poderia até mesmo fazer com que fosse afastado do serviço, considerado inválido e enviado de volta para os Estados Unidos. Nenhum ganho, no caso. Absolutamente nada. Assim, Hobie instruiu seu cobrador a usar estacas punji. Eram uma invenção dos vietcongues, pequenas estacas pontudas de madeira, como um espeto de churrasco, cobertas de fezes de búfalo, que são venenosas. Os vietcongues as escondiam em buracos rasos, onde os soldados pisavam e feriam os pés com cortes infectados. O cobrador de Hobie pretendia usá-los nos testículos dos devedores. O sentimento entre a clientela de Hobie era de que as conseqüências médicas de longo prazo não valiam o risco, mesmo fugindo da dívida e deixando a farda para trás.

Quando Hobie se queimou e perdeu parte do braço, já era um homem muito rico. Seu golpe seguinte seria levar toda a fortuna para casa, completa e sem ser detectada. Não era tarefa para qualquer um. Não nas circunstân­cias específicas em que ele se encontrava. Era uma prova adicional de sua grandiosidade. Assim como toda a sua história subsequente. Ele chegou a Nova York após uma viagem tortuosa, aleijado e desfigurado, e imediata­mente se sentiu em casa. Manhattan era uma selva, em nada diferente das selvas da Indochina. Portanto, não havia motivo para que começasse a agir de forma diferente. Nenhum motivo para modificar sua linha de negócios. E, dessa vez, ele começava com uma grande reserva de capital. Não estava começando do zero.

Atuou como agiota por anos. Construiu um grande negócio. Tinha o capital e tinha a imagem. A cicatriz da queimadura e o gancho tinham um forte significado visual. Ele atraiu uma grande quantidade de auxiliares. Alimentou ondas notáveis e gerações de imigrantes e de gente miserável. Brigou com os italianos para se manter nos negócios. Pagou batalhões in­teiros de policiais e procuradores para se manter invisível.

E, então, fez sua segunda grande transformação. Semelhante à primei­ra. Um processo de reflexão profunda e radical. As respostas para um pro­blema. O problema era meramente a escala insana do negócio. Tinha muito dinheiro nas ruas, mas tudo em dinheiro miúdo. Milhares de diferentes negócios, cem dólares aqui, cento e cinqüenta ali, nove ou dez por cento por semana, quinhentos ou mil por cento ao ano. Muita papelada, muito aborrecimento, correria o tempo todo só para manter o negócio andan­do. Subitamente, percebeu que menos poderia ser mais desse jeito. A idéia lhe ocorreu num flash. Cinco por cento dos milhões de alguma empresa valiam mais em uma semana do que quinhentos por cento das merrecas da rua. O projeto tomou conta dele como uma febre. Suspendeu todos os empréstimos e acionou todas as engrenagens para receber tudo o que lhe deviam. Comprou ternos e alugou um escritório. Da noite para o dia, tor­nou-se um financista corporativo.

Um ato de pura genialidade. Ele farejara a margem cinzenta que fica logo à esquerda das práticas comerciais convencionais. Encontrara uma enorme clientela de tomadores que simplesmente estava à margem da­quilo que os bancos consideravam aceitável. Uma enorme clientela. Uma clientela desesperada. Acima de tudo, uma clientela de fracos. Alvos fracos. Homens civilizados, chegando nos seus ternos, para pedir um milhão de dólares, representando um risco bem menor do que um sujeito de camiseta querendo cem pratas, num pardieiro com um cão raivoso atrás da porta. Alvos frágeis, facilmente intimidáveis. Não acostumados com a dura rea­lidade da vida. Ele soltava os cobradores e se reclinava na cadeira, vendo sua clientela aumentar, os empréstimos crescerem aos milhões, suas taxas de juros chegarem à estratosfera e seus lucros dispararem como jamais ele imaginara. Menos é mais.

Era uma área comercial nova e maravilhosa. Havia problemas ocasio­nais, é claro. Mas eram administráveis. Ele modificou a tática de dissuasão. Esses devedores novos e civilizados eram vulneráveis através de suas famí­lias. Esposas, filhas, filhos. Normalmente, bastava ameaçá-los. De vez em quando, era necessário entrar em ação. Em geral, era divertido. Esposas frágeis de casas do subúrbio e suas filhas podiam ser bem divertidas. Um bônus. Um negócio maravilhoso. Conquistado pela disposição constante para mudar e se adaptar. Lá no fundo, ele sabia que seu talento para a fle­xibilidade era sua maior força. Jurara a si mesmo jamais se esquecer desse fato. E era por isso que estava sozinho em sua sala, ouvindo os ruídos dis­tantes do prédio gigantesco, no octogésimo oitavo andar, pensando inten­samente, mudando os planos.

 

Oitenta quilômetros ao norte, em Pound Ridge, Marilyn Stone tam­bém estava mudando de idéia. Era uma mulher inteligente. Sabia que Chester estava com problemas financeiros. Não podia ser outra coisa. Ele não estava tendo um caso. Ela sabia disso. Os maridos dão vários sinais quando estão tendo um caso, e Chester não dava nenhum deles. Não ha­via qualquer outro motivo para ele se preocupar. Então, eram problemas financeiros.

Sua primeira intenção fora esperar. Apenas se manter firme e aguar­dar o dia em que ele finalmente precisasse desabafar e se abrisse com ela. Ela planejara esperar por esse dia e então entrar em ação. Ela poderia ad­ministrar a situação dali para frente, não importava o que os aguardasse, dívidas, insolvência, até a falência. As mulheres são boas para administrar situações assim. Melhores do que os homens. Ela poderia adotar medidas práticas, poderia oferecer qualquer consolo que fosse necessário, poderia caminhar entre as ruínas sem o sentimento de fracasso desesperado que o ego de Chester lhe acarretaria.

Mas agora estava mudando de idéia. Não podia esperar mais. Chester estava se matando de preocupação. Então ela teria que ir em frente e fazer algo a respeito. Não adiantava falar com ele. O instinto o levava a esconder os problemas. Ele não queria que ela se aborrecesse. Negaria tudo, e a situa­ção só faria piorar. Assim, ela teria que entrar em ação sozinha. Pelo bem dele e o dela também.

O primeiro passo, obviamente, seria contratar um corretor. Fosse qual fosse a dimensão do problema, vender a casa seria necessário. Se isso seria o bastante ela não tinha como saber. Poderia resolver por si só, ou não. Mas era o ponto de partida natural.

Uma mulher rica morando em Pound Ridge, como Marilyn, tinha mui­tos contatos na área imobiliária. Um degrau abaixo na escala do status, onde as mulheres estão confortáveis, sem serem ricas, muitas delas trabalham como corretoras. Trabalham em meio expediente e procuram fingir que é um hobby, como se estivessem mais interessadas na decoração de interiores do que no mero comércio. Marilyn podia listar, de imediato, quatro boas amigas com quem poderia contar. Estava com a mão no telefone, tentando escolher para qual ligaria. No final, escolheu uma mulher chamada Sheryl, a menos conhecida das quatro, mas que lhe parecia ser a mais competente. Estava levando o trabalho a sério, e sua imobiliária também precisava do negócio. Ela discou o número.

Marilyn. — Sheryl atendeu. — Que ótimo falar com você. Em que posso ajudar?

Marilyn respirou profundamente.

Talvez coloquemos a casa à venda — disse ela.

E você me procurou? Marilyn, obrigada. Mas por que, meu Deus, vocês estão pensando em vender? É uma casa adorável. Vocês vão se mudar de estado?

Marilyn respirou fundo novamente.

Acho que Chester está quebrando. Não quero falar sobre isso, mas acho que precisamos de alguns planos de emergência.

Houve uma pausa. Nenhuma hesitação, nenhum constrangimento.

Acho que você está sendo muito sábia — disse Sheryl. — A maioria das pessoas espera demais e acaba vendendo às pressas, com prejuízo.

A maioria das pessoas? Isso acontece muito?

Está brincando? A gente vê isso o tempo todo. Melhor encarar logo e conseguir vender pelo que vale realmente. Você está fazendo a coisas certa, acredite em mim. Mas as mulheres em geral são assim, Marilyn, porque lidamos com essas coisas melhor do que os homens, não é mesmo?

Marilyn respirou aliviada e sorriu ao telefone. Sentiu que estava fazen­do o que era mais certo e com a pessoa mais indicada para ajudá-la.

Vou listá-la imediatamente — disse Sheryl. — Sugiro pedir pouco menos do que dois milhões, não indo abaixo de 1,9 milhão. Isso é viável e deve atrair uma venda com relativa rapidez.

Quanto tempo?

No mercado atual? — perguntou Sheryl. — Na sua região? Umas seis semanas. Sim, acho que podemos garantir perfeitamente uma oferta no prazo de seis semanas.

 

A dra. McBannerman estava ainda muito ciente das questões de confidencialidade. Assim, apesar de entregar o endereço do senhor e da sra. Hobie, ela não liberaria o telefone. Jodie não viu qualquer lógica legal naquilo, mas a doutora parecia satisfeita, portanto ela achou por bem não questionar.

Apenas apertaram as mãos, e ela saiu apressada de volta para a sala de espe­ra e para o carro do lado de fora, seguida por Reacher logo atrás.

Bizarro — disse a ele. — Viu aquela gente? Na recepção?

Exatamente — respondeu Reacher. — Idosos, quase mortos.

Era assim que papai estava, no final. Exatamente assim, eu acho. E desconfio que o velho sr. Hobie não vai estar diferente. Então, o que esta­vam aprontando para que aquelas pessoas começassem a ser assassinadas?

Entraram juntos no Bravada. Do assento de passageiros, ela se esticou para pegar o telefone do carro. Reacher ligou o motor para ventilar. Ela dis­cou para informações. Os Hobie moravam ao norte de Garrison, passando por Brighton, na próxima cidade junto à ferrovia. Ela anotou o número com um lápis numa folha de seu bloco e discou imediatamente. Chamou por um longo tempo, até uma voz de mulher atender.

Sim? — disse a voz, hesitante.

Sra. Hobie? — perguntou Jodie.

Sim? — repetiu a voz, trêmula. Jodie a imaginou uma mulher velha e enferma, grisalha, magra, possivelmente vestindo um roupão florido, segurando um telefone velho, numa casa escura cheirando a comida rançosa e polidor de móveis.

Sra. Hobie, sou Jodie Garber, filha de Leon Garber.

Sim? — disse a mulher, mais uma vez.

Ele morreu, infelizmente, há cinco dias.

Sim, eu sei — comentou a velha senhora. Ela parecia triste. — A recepcionista da dra. McBannerman nos disse na consulta de ontem. La­mentei muito ao saber. Era um homem bom. Era muito gentil com a gente. Estava nos ajudando. E nos falou de você. Você é advogada. Sinto muito por sua perda.

Obrigado. Mas a senhora pode me dizer em que ele estava ajudando vocês?

Bem, não importa mais, não é mesmo?

Não? Por que não?

Bem, porque seu pai morreu. Sabe, receio que ele fosse mesmo a nossa última esperança.

Do jeito que ela falou aquilo, parecia realmente ser sincero. Sua voz era baixa. Havia uma queda de resignação ao final da frase, uma espécie de cadência trágica, como se estivesse desistindo de algo muito importante e esperado. Jodie a imaginou, a mão ossuda segurando o telefone junto ao rosto, uma lágrima úmida sobre a face fina e pálida.

Talvez não fosse. Talvez eu possa ajudar vocês.

A linha ficou em silêncio. Apenas um fraco sibilo.

Bem, acho que não. Não sei se é o tipo de coisa que um advogado normalmente poderia resolver, entende?

Que tipo de coisa é?

Não acho que importe agora.

A senhora não pode me dar alguma idéia?

Não, acho que está tudo acabado — disse a senhora, como se seu velho coração estivesse se partindo.

Ela voltou a ficar em silêncio. Jodie olhou para fora, pelo para-brisa, na direção do consultório da dra. McBannerman.

Mas como meu pai poderia ajudar vocês? Era algo que ele conhecia bem? Por ser do Exército? Era isso? Alguma coisa a ver com o Exército?

Sim, isso mesmo. É por isso que acho que você não poderia nos ajudar, como advogada. Nós tentamos os advogados, sabe? Precisamos de alguém que seja ligado ao Exército, eu acho. Mas muito obrigado por sua oferta. Você está sendo muito generosa.

Tem uma outra pessoa aqui — disse Jodie. — Ele está aqui comigo agora. Trabalhou com meu pai no Exército. Está disposto a ajudar vocês, se puder.

A linha voltou a ficar em silêncio. Apenas o fraco sibilar e a respiração. Como se a velha senhora estivesse pensando. Como se precisasse de tempo para se ajustar a algumas novas ponderações.

O nome dele é major Reacher — disse Jodie em meio ao silêncio. — Talvez o meu pai o tenha mencionado. Serviram juntos por um longo tempo. Meu pai mandou buscá-lo quando percebeu que não poderia con­tinuar por mais tempo.

Mandou buscá-lo? — repetiu a senhora.

Sim, creio que meu pai achava que o major Reacher poderia assumir no lugar dele, sabe? Continuar ajudando vocês.

Ele também era da Polícia do Exército?

Sim, era. Isso importa?

Não tenho muita certeza — respondeu a senhora.

Ela voltou a ficar em silêncio. Estava respirando bem junto ao telefone.

Ele pode vir aqui em nossa casa? — perguntou ela subitamente.

Nós dois iremos. A senhora gostaria que fôssemos agora?

Silêncio de novo. Respiração, reflexão.

Meu marido acabou de tomar o remédio — disse a senhora. — Está dormindo agora. Ele está muito doente, sabe?

Jodie assentiu dentro do carro. Abriu e fechou a outra mão, frustrada.

Sra. Hobie, pode nos dizer do que se trata?

Silêncio. Respiração, reflexão.

É melhor deixar meu marido dizer a vocês. Acho que ele pode expli­car melhor do que eu. E uma longa história, eu às vezes fico confusa.

Está bem. Quando ele estará acordado? — perguntou Jodie. — A gente deveria ir um pouco mais tarde?

A senhora fez outra pausa.

Normalmente ele dorme direto, depois do remédio — disse ela. — E uma bênção, na verdade, eu acho. Será que o amigo do seu pai poderia vir amanhã de manhã bem cedo?

Hobie usou a ponta do gancho para pressionar a campainha do intercomunicador. Inclinou-se para a frente e chamou o recepcionista. Usou o nome do sujeito, uma intimidade incomum para Hobie, em geral causada pelo estresse.

Tony? Precisamos conversar.

Tony deixou o balcão de cobre e carvalho da recepção e foi até o sofá, desviando da mesa de centro.

Garber foi quem esteve no Havaí — disse ele.

Tem certeza? — perguntou Hobie.

Tony assentiu.

Pela American, White Plains para Chicago, Chicago para Honolulu, 15 de abril Voltou no dia seguinte, 16, pela mesma rota. Pagou com um cartão Amex. Está tudo no computador.

Mas o que ele fez lá? — perguntou Hobie, meio que para si mesmo.

Não sabemos — murmurou Tony. — Mas podemos adivinhar, não é?

O escritório mergulhou num silêncio ameaçador. Tony observou o lado intacto do rosto de Hobie, esperando uma resposta.

Recebi notícias de Hanói — disse Hobie em meio ao silêncio.

Meu Deus, quando?

Há dez minutos.

Minha nossa, Hanói? Merda, merda, merda!

Trinta anos. E agora aconteceu. Tony se levantou e foi até atrás da mesa.

Usou os dedos para abrir duas frestas na persiana. Uma barra do sol da tarde atravessou a sala.

Então, você deve partir agora. Ficou muito, muito perigoso.

Hobie não disse nada. Fechou o gancho entre os dedos da mão esquerda.

Você prometeu. — Tony foi enfático. — Fase um, fase dois. E as duas aconteceram. As duas etapas! Pelo amor de Deus!

Ainda vai levar algum tempo. Não vai? Agora mesmo, eles ainda não sabem de nada.

Tony balançou a cabeça.

Garber não era nenhum idiota. Sabia de alguma coisa. Se foi para o Havaí, tinha um bom motivo.

Hobie usou o músculo do braço esquerdo para guiar o gancho até o rosto. Passou o aço liso e frio pelo tecido queimado. Às vezes, a pressão da curva rígida aliviava a coceira.

E sobre esse tal de Reacher? — perguntou ele. — Algum avanço?

Tony olhou pela fresta da persiana, do octogésimo oitavo andar.

Liguei para Saint Louis. Também era da Polícia do Exército, estivera sob o comando de Garber por uns 13 anos. Fizeram outra consulta sobre ele, há dez dias. Deve ter sido Costello.

Então, por quê? Para que a família Garber contrata Costello para encontrar um ex-colega da força? Por quê? Que diabos!

Não faço a menor idéia. O cara é um vagabundo. Estava cavando pis­cinas lá onde Costello foi. — Hobie concordou, vagamente. Estava imerso em pensamentos.

Um policial do Exército — disse para si mesmo. — Que virou um vagabundo.

Você deveria se mandar — disse Tony novamente.

Não gosto da Polícia do Exército — disse Hobie.

Eu sei que não.

Então, que merda esse intrometido está fazendo aqui?

Você devia se mandar — disse Tony pela terceira vez. Hobie con­cordou.

Sou um cara flexível. Você sabe disso.

Tony deixou a persiana voltar para o lugar. A sala escureceu.

Não estou lhe dizendo para ser flexível. Estou falando que você tem que seguir o que planejou desde o começo.

Eu mudei o plano. Quero o negócio do Stone.

Tony voltou a dar a volta pela mesa e reocupou seu lugar no sofá.

É muito arriscado ficar por aqui por isso. As duas ligações foram feitas Vietnã e Havaí, pelo amor de Deus!

Sei disso — disse Hobie. — Então mudei os planos novamente.

De volta ao que era antes?

Hobie encolheu os ombros e balançou a cabeça.

Uma combinação. Nós damos o fora, com certeza, mas só depois de eu cravar o Stone.

Tony suspirou e colocou a palma das mãos no estofado.

Seis semanas, muito tempo. O Garber já esteve no Havaí, pelo amor de Deus! Ele era algum general importante. Obviamente, sabia das coisas, caso contrário, por que teria ido até lá?

Hobie assentia. Sua cabeça entrava e saía de uma fina linha de luz que atingia os tufos grisalhos do cabelo em meio à pele queimada.

Ele sabia de alguma coisa, concordo. Mas ficou doente e morreu. O que ele sabia foi com ele. Caso contrário, por que sua filha recorreria a uma porcaria de detetive particular e a um vagabundo desempregado?

Então, o que você está dizendo?

Hobie deslizou o gancho para debaixo da mesa e apoiou o queixo na mão boa. Deixou os dedos se espalharem sobre a cicatriz. Uma pose que usava de forma subconsciente, quando pretendia aparentar estar confortá­vel e inofensivo.

Não posso desistir do Stone — disse. — Você não entende, certo? A mesa está posta, é só chegar e se servir. Se eu desistir disso, não vou me perdoar pelo resto da vida. Seria uma covardia. Fugir é sábio, concordo com você, mas fugir cedo demais, mais cedo do que o necessário, seria co­vardia. E eu não sou um covarde, Tony. Você sabe disso, certo?

Então, o que você está dizendo? — perguntou Tony novamente.

Fazemos as duas coisas juntas, mas acelerando. Concordo com você que seis semanas é tempo demais. Precisamos sair fora antes das seis sema­nas. Mas não vamos sem levar a grana do Stone. Por isso, vamos acelerar.

Certo. Como?

Eu coloco as ações no mercado hoje — disse Hobie. — Elas vão cair até o chão nove minutos antes de soar o sino de encerramento. Tempo sufi­ciente para a mensagem chegar aos bancos. Amanhã de manhã, Stone virá aqui completamente desesperado. Eu não vou estar aqui amanhã, então você dirá a ele o que queremos e o que faremos se ele não nos der. Vamos quebrar a banca em dois dias, no máximo. Eu faço a pré-venda dos ativos de Long Island, para não haver atrasos daquele lado. Enquanto isso, você vai fechando as coisas por aqui.

Certo. Como? — Tony perguntou novamente.

Hobie olhou em torno para o escritório sombrio, para os quatro cantos.

Simplesmente largamos este lugar para trás. Seis meses de aluguel perdidos, mas dane-se. Aqueles dois idiotas que estão bancando meus cobradores não serão problema. Um deles vai se livrar do outro hoje à noi­te, e você trabalha com ele até ele me trazer a tal sra. Jacob, e aí se livra dela e dele juntos. Vende o barco, os carros, e damos o fora, sem pontas soltas. Uma semana. Só uma semana. Acho que podemos nos dar uma semana, certo?

Tony concordou. Inclinou-se para a frente, aliviado diante da perspec­tiva de entrar em ação.

E sobre esse tal de Reacher? Ele ainda é uma ponta solta.

Hobie deu de ombros na cadeira.

Tenho um plano separado para ele.

Não vamos encontrá-lo. Não nós dois sozinhos. Não em uma sema­na. Não temos tempo para ficar procurando por ele.

Não vamos precisar.

Tony olhou para ele.

Precisamos, chefe. Ele é uma ponta solta, certo?

Hobie balançou a cabeça. Deixou a mão cair de sob o rosto e tirou o gancho de debaixo da mesa.

Farei do jeito eficiente. Não precisamos gastar energia indo atrás dele. Vou deixar que me encontre. E ele vai. Conheço esse pessoal da Polícia do Exército.

E então?

Hobie sorriu.

Então ele vive feliz para sempre. Trinta anos, pelo menos.

 

— Então, e agora? — perguntou Reacher.

Ainda estavam no estacionamento do lado de fora do prédio longo e baixo do consultório de McBannerman, o motor em ponto morto, o ar-refrigerado a toda para compensar o sol batendo em cheio na pintura verde-escura do Bravada. As ventoinhas estavam direcionadas para todo lado, e ele sentia o perfume sutil de Jodie-misturado ao freon do ar. Naquele mo­mento, ele era um sujeito feliz, vivendo uma antiga fantasia. Muitas vezes no passado ele especulara sobre como seria estar à distância de um toque dela quando ela fosse uma mulher adulta. Algo que ele jamais imaginara vi­ver. Acreditava que perderia o contato com ela e nunca mais a encontraria. Achava que seus sentimentos iriam apenas desaparecer ao longo do tempo.


Mas ali estava ele, sentado ao lado dela, respirando seu perfume, olhando de esguelha para suas pernas longas, estendendo-se pelo banco até o apoio para os pés. Sempre achara que ela cresceria e se tornaria uma mulher espe­tacular. Agora se sentia um pouco culpado por subestimar o grau de beleza que ela atingiria. Suas fantasias não fizeram justiça ao que ela se tornou.

É um problema — disse ela. — Não posso ir lá amanhã. Não posso mais ficar sem trabalhar. Estamos muito ocupados, e tenho que continuar a faturar as horas.

Quinze anos. Muito ou pouco tempo? O suficiente para mudar uma pessoa? Parecia pouco tempo para ele. Ele não se sentia diferente da pessoa que fora há 15 anos. Era o mesmo, pensando do mesmo jeito, capaz de fazer as mesmas coisas. Adquirira uma grossa camada de experiência ao longo desse tempo, estava mais velho, mais vivido, mas ainda era a mesma pessoa. Mas sentia que ela devia estar diferente. Tinha que estar, com certeza. Os 15 anos dela tinham sido um grande salto, ela passara por transições maio­res. Colégio, faculdade, curso de Direito, casamento, divórcio, a sociedade no escritório, horas a serem faturadas. Então, agora ele se sentia em águas desconhecidas, incerto de como se relacionar com ela, pois lidava com três coisas separadas, todas em conflito dentro de sua cabeça: a realidade dela como urna garota — há 15 anos —, como ele a imaginava depois e agora como ela era de fato. Sabia tudo sobre duas dessas coisas, mas não sobre a terceira. Conheceu a menina. Conheceu a adulta que inventara em sua cabeça. Mas não conhecia a realidade, e isso o deixava inseguro, pois subi­tamente queria evitar cometer qualquer erro estúpido com ela.

Você terá que ir sozinho — disse ela. — Tudo bem?

Claro. Mas esse não é problema aqui. Você precisa ter cuidado.

Ela concordou. Puxou as mãos para dentro das mangas e abraçou a si mesma. Ele não sabia por quê.

Vou ficar bem, eu acho — disse ela.

Onde é seu escritório?

Wall Street e baixa Broadway.

É onde você mora, certo? Baixa Broadway?

Ela concordou.

Treze quadras. Em geral, vou caminhando.

Amanhã, não — disse ele. — Vou levar você de carro.

Ela pareceu surpresa.

Você vai?

Com certeza que vou — disse ele. — Treze quadras a pé? Pode es­quecer, Jodie. Você estará em segurança dentro de casa, mas eles podem te pegar na rua. E quanto ao escritório? É seguro?

Ela concordou novamente.

Ninguém entra, não sem hora marcada e identificação.

Certo — disse ele. — Então passo a noite no seu apartamento e levo você, de porta a porta, de manhã. Depois volto para cá e vou visitar esses Hobie, e você fica no escritório até eu voltar para te buscar, ok?

Ela ficou em silêncio. Ele voltou atrás e avaliou o que tinha dito.

Quer dizer, você tem um quarto sobrando, certo?

É claro — disse ela. — Tenho um quarto sobrando.

Então, tudo bem?

Ela concordou, silenciosamente.

Então, e agoraí — perguntou ele. Ela se virou de lado no banco. O jato de ar do centro do painel soprou seu cabelo sobre o rosto. Ela o ajeitou de volta atrás da orelha, e seus olhos agitaram-se para cima e para baixo. Depois, sorriu.

Precisamos fazer compras — disse ela.

Compras? Para quê? Do que você precisa?

Não é o que eu preciso, mas você.

Ele a olhou, alarmado.

Do que eu preciso?

Roupas — respondeu ela. — Você não pode ir visitar aqueles pobres velhinhos parecendo algo entre um vagabundo de praia e um selvagem de Bornéu, não é?

Ela então se inclinou para o lado e tocou a mancha da camisa dele com a ponta dos dedos.

E precisamos de uma farmácia. Você precisa de alguma coisa para essa queimadura.

— Que diabos você está fazendo? — gritou o diretor financeiro.

Ele estava na porta do escritório de Chester Stone, dois andares acima de sua própria sala, apoiando-se no portal com as duas mãos, ofegando com esforço e fúria. Não tinha esperado pelo elevador. Subira correndo pela escada de emergência. Stone olhava para ele, sem entender.

Seu idiota! — gritou ele. — Eu falei para não fazer isso!

Fazer o quê? — perguntou Stone de volta.

Colocar as ações no mercado! — gritou o homem das finanças. — Eu falei para não fazer isso!

—- Eu não coloquei. — disse Stone. — Não tem nenhuma ação no mer­cado.

Claro que tem, porra! Uma fatia enorme, largada ali, sem fazer coisa nenhuma. As pessoas estão fugindo delas como se fossem radioativas.

O quê?

O diretor financeiro segurou o fôlego. Olhou para o patrão. Viu um ho­mem pequeno e abatido, vestindo um ridículo terno inglês, sentado diante de uma mesa que, sozinha, valia cem vezes mais do que todos os ativos líquidos da empresa.

Seu imbecil, eu falei para não fazer isso. Por que simplesmente não pegou uma página do Wall Street Journal e anunciou: "Ei, pessoal, minha empresa não vale mais do que um monte de cocô"?

Do que você está falando? — perguntou Stone.

Estou com os bancos no telefone. Estão acompanhando as cotações no ticker. As ações Stone apareceram há uma hora, e o preço está despen­cando mais rápido do que a porra dos computadores consegue acompanhar. São impossíveis de vender. Você lhes mandou uma mensagem, pelo amor de Deus! Disse que está insolvente. Disse a eles que lhes deve 16 milhões de dólares em títulos, mas que não valem míseros 16 centavos.

Eu não coloquei as ações no mercado — repetiu Stone. O diretor financeiro concordou sarcasticamente.

Então, quem foi? Papai Noel?

Hobie. Só pode ter sido. Meu Deus, por quê?

Hobie?

Stone concordou.

Hobie? — repetiu, incrédulo. — Que merda! Você deu ações para ele?

Tive que dar. Não tinha outro jeito.

Que merda! — repetiu o outro, bufando. — Consegue entender o que ele está fazendo?

Stone o olhou, sem entender a princípio, depois concordou, apavorado.

O que a gente faz?

O diretor financeiro deixou as mãos caírem da moldura da porta e deu as costas para Stone.

Esqueça "a gente". Não tem mais "a gente". Estou me demitindo. Estou fora. Você se vira para resolver.

Mas foi você quem recomendou o cara! — gritou Stone.

Eu não recomendei que você lhe desse ações, seu imbecil — gritou o cara de volta. — O que você é? Um retardado? Se eu te mandasse visitar o aquário das piranhas você ia colocar a porra do dedo dentro da água?

Você precisa me ajudar — disse Stone.

O sujeito apenas balançou a cabeça.

Você está por conta própria. Estou me demitindo. Minha sugestão agora é que você desça até onde era o meu escritório, para começar. Tem um monte de telefones tocando na minha antiga mesa. Recomendo que você atenda o que estiver tocando mais alto.

Espere aí! — gritou Stone. — Preciso de sua ajuda.

Contra Hobie? — gritou o outro de volta. — Vai sonhando, meu chapa.

E se foi. Simplesmente se virou, saiu pela sala da secretária e desapare­ceu. Stone saiu de trás da mesa e ficou em pé na porta, olhando-o ir em­bora. O escritório estava em silêncio. A secretária tinha ido embora. Mais cedo do que deveria. Ele saiu pelo corredor. O departamento de vendas, à direita, estava deserto. O marketing, à esquerda, estava vazio. As copia­doras estavam em silêncio. Ele chamou o elevador, e o mecanismo fez um barulho muito alto em meio ao silêncio. Desceu os dois andares sozinho.

A sala do diretor financeiro estava vazia. As gavetas estavam abertas. Os objetos pessoais tinham sido levados. Ele caminhou pela sala. A luminária italiana estava acesa. O computador estava desligado. Os telefones estavam fora do gancho, sobre a mesa de carvalho. Ele pegou um deles.

Alô? — disse. — Aqui é Chester Stone.

Ele repetiu duas vezes, no silêncio eletrônico. Uma mulher então aten­deu e pediu que aguardasse. Uma seqüência de cliques e tons. Uma música tranqüila.

Sr. Stone? — uma nova voz atendeu. — Aqui é o setor de insolvência.

Stone fechou os olhos e apertou o telefone.

Por favor, aguarde o diretor — disse a voz.

Mais música. Violinos barrocos, furiosos, incansáveis.

Sr. Stone? — disse uma voz profunda. — Aqui é o diretor.

Olá — respondeu Stone. Era tudo o que lhe ocorreu dizer.

Estamos dando alguns passos — disse a voz. — Estou certo de que o senhor entende nossa posição.

Certo — respondeu Stone. Pensava em que passos seriam esses. Processo? Prisão?

Nós estaremos cobertos amanhã de manhã, na abertura do mercado — disse a voz.

Cobertos? Como?

Estamos vendendo a dívida, obviamente.

Vendendo? — repetiu Stone. — Não entendo.

Não a queremos mais — disse a voz. — Tenho certeza de que o se­nhor entende isso. A situação está muito além dos parâmetros que conside­ramos satisfatórios. Por isso, estamos vendendo. É o que as pessoas fazem, certo? Se têm algo que não querem mais, vendem, pelo melhor preço que conseguirem.

Para quem vocês estão vendendo? — perguntou Stone, atordoado.

Para uma sociedade fiduciária de Cayman. Fizeram uma oferta.

E onde é que nós ficamos?

Nós? — repetiu a voz, confusa. — Não nos deixa em lugar algum. Suas obrigações conosco estão encerradas. Não existe "nós". Nosso rela­cionamento está encerrado. Meu único conselho é que o senhor jamais tente retomá-lo. Estaríamos inclinados a considerar isso um insulto, somado à injúria.

Então, para quem eu devo agora?

Para a companhia das ilhas Cayman — respondeu a voz, paciente­mente. — Tenho certeza de quem quer que esteja por trás dela entrará em contato muito em breve com o senhor, com suas condições de pagamento.

Jodie dirigiu. Reacher saiu, deu a volta pela frente do carro e entrou pelo lado do passageiro. Ela passou por cima do console central e puxou o banco para a frente. Seguiu para o sul, pelos ensolarados reservatórios Croton, seguindo para a cidade de White Plains. Reacher se virou, olhando para trás. Ninguém os seguia.

Nada suspeito. Apenas uma perfeita tarde preguiçosa de junho nos subúrbios. Ele precisava tocar na bolha sob a camisa para lembrar a si mes­mo de que alguma coisa tinha acontecido.

Ela seguiu para um enorme shopping center. Um prédio gigantesco, do tamanho de um estádio, orgulhoso de sua altura em meio a torres de escritórios e a um emaranhado de avenidas engarrafadas. Ela seguiu pela esquerda e pela direita, cruzando as pistas de tráfego, e desceu por uma rampa em curva até a garagem. Estava escuro lá embaixo, o concreto empoeirado e manchado de óleo, mas havia uma porta de cobre e vidro a dis­tância, levando diretamente para dentro de uma loja resplandecente de luz. jodie achou uma vaga a cerca de cinqüenta metros da porta. Estacionou facilmente e foi até uma máquina fazer algo. Voltou e colocou um pequeno tíquete sobre o painel, visível pelo para-brisa.

Certo — disse ela. — Para onde, primeiro?

Reacher deu de ombros. Essa não era sua especialidade. Já havia com­prado muitas roupas nos dois últimos anos, pois desenvolvera o hábito de comprar coisas novas em vez de lavar as velhas. Um hábito defensivo.

Protegia-se de ter que carregar qualquer bagagem grande e de ainda ter que aprender as técnicas exatas da lavagem de roupas. Sabia da existência de lavanderias automáticas e de lavagem a seco, mas tinha um certo receio de se ver sozinho numa lavanderia e não saber os procedimentos corretos. E entregar as roupas para um serviço de lavagem a seco implicava o compromisso de voltar ao mesmo local físico no futuro, o tipo de compromisso sobre o qual se sentia relutante de assumir. A prática mais objetiva era comprar novas e jogar fora as velhas. Por isso ele comprava roupas, mas saber exatamente onde era algo difícil de dizer. Em geral, apenas via as roupas na vitrine de uma loja, entrava, comprava e saía, sem registrar a identidade do estabelecimento que acabara de visitar.

Tinha um lugar aonde eu ia em Chicago — disse ele. — Acho que era uma cadeia de lojas, um nome curto. Hole? Gap? Uma coisa assim. Eles tinham os tamanhos certos.

Jodie riu. Passou o braço pelo dele.

A Gap — disse ela. — Tem uma bem aqui.

A porta de cobre e vidro levava direto para uma loja de departamentos. O ar estava frio, cheirava a sabão e perfume. Passaram pelos cosméticos e chegaram a uma área cheia de pilhas de roupas de verão em cores pastel. Saíram então para o corredor principal do shopping. Era oval como uma pista de corrida, cercado de lojas, uma estrutura que se repetia por mais dois andares acima deles. Os corredores eram acarpetados, havia música, e as pessoas pipocavam por todo lado.

Acho que a Gap é lá em cima — disse Jodie.

Reacher sentiu o cheiro de café. Uma das unidades do outro lado tinha o aspecto de um café, como um lugar na Itália. As paredes internas eram pintadas como se fossem ao ar livre, e o teto era todo preto, como um céu noturno. Um lugar fechado que parecia aberto, num shopping que preten­dia se parecer com uma rua ao ar livre, a não ser pelo fato de ter carpetes.

Quer um café? — perguntou ele.

Jodie sorriu e balançou a cabeça.

Primeiro, as compras; depois, café.

Ela o conduziu para a escada rolante. Ele sorriu. Sabia como ela se sentia. Também se sentira assim, há 15 anos. Ela viera até ele, nervosa e hesitante, durante uma visita de rotina à estufa, em Manila. Território familiar para ele, apenas rotina, nada demais mesmo. Mas um lugar novo e estranho para ela. Ele se sentira ocupado e feliz, e um tanto professoral. Fora divertido estar com ela, mostrar-lhe o lugar. Agora, ela se sentia da mesma forma. Todo esse negócio de shopping não era nada para ela. Ela voltara para os Estados Unidos há muito tempo e aprendera os detalhes. Agora, era ele o estrangeiro no território dela.

E que tal este lugar? — perguntou ela.

Não era a Gap. Era uma loja exclusiva, com um design marcante a base de telhas usadas e madeiras reaproveitadas de algum celeiro velho. As rou­pas eram de algodão grosso e tingidas com cores desbotadas, cuidadosa­mente dispostas em carroções rústicos, com rodas revestidas de ferro.

Ele deu de ombros.

Tudo bem, para mim.

Ela pegou sua mão. Ele sentiu a palma fresca e macia na sua. Ela o le­vou para dentro, ajeitou o cabelo atrás das orelhas, inclinou-se e começou a examinar o mostruário. Fazia como ele já vira outras mulheres fazendo. Com movimentos rápidos, ia combinando diferentes itens. Calças, ainda dobradas, sobre a metade inferior de uma camisa. Um casaco jogado late­ralmente sobre as duas peças, com a camisa aparecendo no alto, e, as calças, embaixo. Os olhos semicerrados, os lábios contraídos. Um balançar da ca­beça. Outra camisa. Um movimento de aprovação. Compras de verdade.

O que você acha? — perguntou ela.

Escolhera uma calça cáqui, pouco mais escura do que o normal. Uma camisa quadriculada com tons discretos, verdes e marrons. Um casaco fino, marrom-escuro, que parecia combinar perfeitamente com o resto. Ele aprovou.

Tudo bem, para mim — repetiu.

Os preços estavam escritos a mão em pequenas etiquetas presas às rou­pas com um barbante. Ele virou uma delas com a ponta do dedo.

Minha nossa! — exclamou. — Pode esquecer.

É o que vale — respondeu ela. — São de qualidade.

Não tenho como pagar, Jodie.

Só a camisa custava tanto quanto ele já pagara por um traje comple­to. Vestir uma coisa daquelas custaria o que ele ganhava num dia inteiro cavando piscinas. Dez horas, quatro toneladas de areia, pedra e terra.

Eu compro para você.

Ficou ali parado, com a camisa na mão, incerto.

Lembra do colar? — perguntou ela.

Ele fez que sim. Lembrava. Ela se apaixonara por um colar especial em uma joalheria de Manila. Um cordão todo de ouro, grosso, estilo egípcio. Não era muito caro, mas fora das possibilidades dela. Leon estava num momento de estimular a autodisciplina da filha e não aprovaria a despesa. Reacher, portanto, comprou o colar. Não era aniversário ou qualquer data, ele simplesmente gostava dela, e ela gostava do colar.

Eu fiquei tão feliz... — disse ela. — Achei que fosse explodir. Tenho até hoje, ainda uso. Então me deixe retribuir, ok?

Ele refletiu um pouco. Concordou.

Ok — disse.

Ela podia comprar. Era uma advogada. Provavelmente, tinha uma for­tuna. E era um negócio justo, em termos relativos, se pensasse em custo versus receita e 15 anos de inflação.

Ok — disse outra vez. — Obrigado, Jodie.

Você precisa de meias e outras coisas, certo?

Pegaram um par de meias cáqui e duas cuecas brancas, estilo boxer. Ela foi até o caixa e usou um cartão dourado. Ele pegou as roupas e as levou até um provador, arrancou as etiquetas de preço e vestiu tudo. Transferiu o dinheiro para o bolso da calça nova e jogou as roupas velhas na lixeira. Sentiu as roupas novas rígidas, mas lhe pareceram muito bem no espelho, contrastando com seu bronzeado. Saiu da cabine.

Ótimo — disse Jodie.

Agora, farmácia.

E, depois, café — completou ele.

Ele comprou lâmina e creme de barbear, uma escova e pasta de dentes. E um frasco pequeno de pomada para queimaduras. Ele mesmo pagou e carregou tudo num envelope de papel pardo. A farmácia era perto da praça de alimentação. Ele viu um lugar de grelhados com um cheiro bom.

Vamos jantar — disse ele. — Só café é pouco. Eu pago.

Está bem — disse ela e voltou a lhe dar o braço.

O jantar para os dois custou o preço da camisa nova, o que ele achou absurdo. Comeram a sobremesa, tomaram café, e então algumas das lojas já estavam fechando.

Ok, para casa — disse ele. — E vamos agir com muito cuidado a partir daqui.

Atravessaram a loja de departamentos, seguindo o percurso inverso do mostruário, primeiro, as roupas de verão de algodão em tons pastel, e, depois, o cheiro penetrante dos cosméticos. Ele mandou que ela ficasse do lado de dentro da porta de vidro e cobre, e percorreu o interior quente e abafado da garagem com os olhos. Uma possibilidade em um milhão, mas que valia levar em consideração. Não havia ninguém lá, apenas as pes­soas apressadas voltando para seus carros, carregadas de bolsas estufadas. Caminharam juntos até o Bravada, e ela se sentou no banco do motorista. Ele entrou ao lado dela.

Que percurso você faz normalmente?

Daqui? Pela rodovia FDR, eu acho.

Ok — disse ele.

Siga na direção de LaGuardia e depois descemos para o Brooklyn, Pela ponte do Brookiyn.

Ela olhou para ele.

Tem certeza? Se você quer bancar o turista, tem lugares melhores para a gente ir do que o Bronx e o Brooklyn.

Regra número um — disse ele. — Ser previsível não é seguro. Você normalmente faz o mesmo caminho, hoje fará um diferente.

Sério?

Pode apostar. Eu já fui segurança profissional de VIPs.

Então eu sou uma VIP, agora?

Pode apostar que sim — repetiu ele.

Uma hora depois, já estava escuro, a melhor condição para passar pela ponte do Brooklyn. Reacher sentiu-se como um turista quando desceram pela rampa e cruzaram a ponte para deparar com a vista repentina do baixo Manhattan diante deles, com um bilhão de luzes por todo lado. Uma das vistas mais incríveis do mundo, pensou, com o olhar de quem já inspecio­nara boa parte da concorrência.

Suba algumas quadras para o norte — disse ele. — Vamos fazer a volta. Eles esperam que façamos o caminho direto.

Ela fez uma curva aberta para a direita e seguiu para o norte, pela Lafayette. Virou duas vezes à esquerda e voltou rumo ao sul, pela Broadway. O sinal na Leonard estava vermelho. Reacher olhou adiante, em meio ao brilho da iluminação néon

Três quadras — disse Jodie.

Onde você estaciona?

Garagem, no subsolo.

Certo, pare uma quadra antes — disse ele. — Vou dar uma olhada. Dê outra volta e me encontre. Se eu não estiver esperando na calçada, vá para a polícia.

Ela entrou à direita, na Thomas. Parou e o deixou sair. Ele bateu le­vemente no capô, e ela arrancou novamente. Ele virou a esquina e achou o edifício. Era um grande prédio quadrado, com uma portaria reforma­da, pesadas portas de vidro, uma grande fechadura, uma fileira vertical de quinze campainhas com nomes impressos atrás de janelinhas plásticas. O apartamento 12 mostrava Jacob/Garber, como se fossem duas pessoas mo­rando lá. Pessoas na rua, algumas vadiando em bandos, outras, caminhan­do, nenhuma de interesse. A entrada da garagem ficava mais adiante, na calçada. Era uma rampa abrupta para a escuridão. Ele desceu. Silencioso e mal-iluminado. Duas filas de oito vagas, quinze no total pois a rampa para a rua ficava onde seria a décima sexta. Onze carros estacionados. Ele verificou o lugar em toda a extensão. Ninguém escondido. Subiu a rampa e correu de volta para a Thomas. Desviou do tráfego, atravessou a rua e aguardou. Ela vinha para o sul e cruzou o sinal em sua direção. Ela o viu, estacionou, e ele entrou ao lado dela de novo.

Tudo limpo — disse ele.

Ela retornou ao tráfego até entrar à direita e descer a rampa. Os faróis pularam e oscilaram. Parou o carro no corredor central e entrou de ré em sua vaga. Desligou o motor e apagou o farol.

Como subimos? — perguntou ele.

Ela apontou.

Uma porta para a entrada.

Um lance de escadas dava para uma enorme porta industrial, com uma chapa de metal fixada nela. Tinha uma enorme tranca, igual a da porta de vidro da rua. Saíram do carro e o trancaram. Ele carregou a bolsa dela. Seguiram para a escada e subiram até a porta. Ela liberou a tranca e ele escancarou a porta. A portaria estava vazia. Um único eleva­dor diante deles.

Moro no quarto andar — disse ela.

Ele apertou o botão do cinco.

Vamos chegar descendo pela escada — disse ele. — Só por garantia.

Usaram a escada de incêndio e desceram para o quarto. Ele a deixou esperando no patamar da escada e foi espiar. Um corredor deserto. Alto e estreito. Apartamento 10 para a esquerda, 11 para a direita e o 12 à frente.

Vamos lá — disse ele.

A porta era preta e grossa. Olho mágico na altura do rosto, duas trancas. Ela abriu com as chaves, e eles entraram. Ela trancou novamente e colocou uma velha barra articulada atravessada ao longo de toda a porta. Reacher a fixou nos encaixes. Era de ferro, e, enquanto estivesse ali, ninguém entraria. Ele apoiou a bolsa na parede. Ela acendeu os interruptores, iluminou o apartamento e esperou junto à porta enquanto Reacher ia na frente. Entrada, sala de estar, cozinha, quarto, banheiro, quarto, banheiro, closets. Aposentos grandes, muito altos. Ninguém lá dentro. Ele voltou para a sala, livrou-se do casaco novo, jogou-o numa cadeira e virou-se para ela, relaxado.

Mas ela não estava relaxada. Dava para perceber. Evitava olhar direta­mente para ele, mais tensa do que estivera o dia todo. Estava parada diante da porta, mexendo os dedos sob as mangas compridas que quase cobriam suas mãos. Ele não fazia idéia do que havia de errado.

Você está bem? — perguntou ele.

Ela balançou a cabeça para a frente e para trás, fazendo um oito para jogar o cabelo por trás dos ombros.

Acho que vou tomar um banho — disse. — E cair na cama, sabe como é, né?

Dia difícil, né?

Inacreditável.

Ela passou ao largo dele a caminho do quarto, mantendo distância. Acenou com um gesto curto, tímido, apenas os dedos para fora da manga.

Que horas, amanhã? — perguntou ele.

Sete e meia está bom — respondeu ela.

Ok, boa-noite, Jodie.

Ela acenou e desapareceu pelo corredor. Ele ouviu a porta do quarto abrir e fechar. Ficou olhando para o corredor por um bom tempo, surpreso. Depois, sentou-se no sofá e tirou os sapatos. Estava inquieto demais para dormir. Andou pelo apartamento com as meias novas, examinando o lugar.

Não era exatamente um loft. Apenas um velho prédio com um pé-direito muito alto. O revestimento era original. Provavelmente, uma constru­ção industrial. As paredes externas eram de tijolos jateados de areia, e as internas de gesso liso e branco. As janelas eram enormes. Provavelmente, instaladas de forma a iluminar as máquinas de costura, ou o que quer que funcionasse lá cem anos antes.

As partes de tijolo das paredes tinham uma cor natural e quente, mas tudo o mais era branco, a não ser pelo piso, de tábuas claras de bordo. A decoração era suave e neutra, como uma galeria. Nenhum sinal visível de que mais de uma pessoa jamais morara ali.

Nenhum sinal de gostos concorrentes. Todo o ambiente era muito uni­forme. Sofás brancos, cadeiras brancas, prateleiras em simples seções cúbi­cas, pintadas com o mesmo tom de branco usado nas paredes. A encanação de vapor grande e os radiadores feios, tudo pintado de branco. A única cor mais forte na sala vinha de uma cópia de um quadro de Mondrian, em tamanho real, na parede sobre o sofá maior. Uma cópia adequada, feita a mão, óleo sobre tela, com as cores certas. Nada de vermelhos, azuis e ama­relos berrantes, apenas os tons neutros e corretos, com pequenas rachadu- ras no branco, que mais se aproximava de cinza. Ele ficou diante do quadro por um longo tempo, totalmente surpreso. Piet Mondrian era seu pintor favorito, de todos os tempos, e exatamente esta pintura era a que ele mais gostava. Chamava-se Composição com vermelho, amarelo e azul. Mondrian pintou o original em 1930, e Reacher viu o quadro em Zurique, na Suíça.

Um armário alto ficava diante do sofá menor, pintado com o mesmo tom de branco de tudo o mais. Uma TV pequena, um aparelho de vídeo, o receptor da TV a cabo, um CD player com enormes fones de ouvido conectados. Uma pequena pilha de CDs, a maioria de jazz dos anos 1950, coisas de que ele gostava, mas sem exageros.

As janelas davam para a baixa Broadway. O rumor constante do tráfego somava-se ao brilho néon subindo e descendo a rua, o som ocasional de uma sirene chegava irregularmente, conforme atravessava os espaços entre os prédios. Ele enviesou a persiana usando a haste plástica transparente e olhou para a calçada. Alguns grupos dispersos de pessoas ainda circu­lavam. Nada que o deixasse nervoso. Voltou a girar a haste para fechar a persiana.

A cozinha era grande e alta. Todos os armários eram de madeira, pin­tados de branco, e os eletrodomésticos, de tamanho industrial, eram de aço inoxidável, como fornos para pizza. Ele já morara em lugares menores do que a geladeira. Abriu a porta e viu uma dúzia de garrafas de água da sua marca favorita, as mesmas que ele adorava tomar nas Keys. Abriu uma delas e foi para o quarto de hóspedes.

O quarto era branco, como tudo o mais. Os móveis eram de madeira, inicialmente com um acabamento diferente, mas agora pintados de branco como as paredes. Ele deixou a água na mesa de cabeceira e foi ao banhei­ro. Ladrilhos brancos, banheira branca, tudo em superfícies esmaltadas e ladrilhadas. Fechou as persianas, despiu-se e colocou as roupas novas dobradas numa prateleira do closet. Afastou a coberta e enfiou-se na cama, onde ficou pensando.

Ilusão e realidade. O que eram nove anos, afinal? Muito tempo, pensou, quando ele tinha 24 e, ela, 15, mas o que era isso agora? Ele tinha 38, ela, 29, ou 30, não estava certo. Qual era o problema então? Por que não estava fazendo algo? Talvez não fosse a questão da idade. Talvez fosse Leon. Era a filha dele e sempre seria. O que o deixava com a ilusão culpada de que Jodie era algo entre uma irmã mais nova e uma sobrinha. Obviamente, isso o inibia, mas era apenas uma ilusão, certo? Ela era a filha de um velho amigo, só isso. Um velho amigo que agora estava morto. Por que então ele se sentia tão mal ao olhar para ela, imaginando tirar-lhe a camiseta e soltar o cinto em torno de sua cintura. Por que não estava simplesmente fazendo isso? Que droga estava fazendo no quarto de hóspedes em vez de estar do outro lado da parede, na cama junto com ela? Como sonhara dolorosamente estar em incontáveis noites esquecidas do passado, algumas delas vergonhosas, ou­tras, ansiosas.

Porque, presume-se, as realidades dela tinham raízes nos mesmos tipos de ilusão. Para uma irmã ou sobrinha mais nova, ele seria o irmão mais velho ou o tio. O tio favorito, com certeza, pois sabia que ela gostava dele. Havia muito afeto na história. Mas isso só piorava tudo. Afeto por tios fa­voritos era um tipo específico de afeto. Tios favoritos existiam para coisas específicas. Programas de família, como compras e mimos, uma coisa ou outra. Tios favoritos não estavam lá para dar em cima das sobrinhas. Isso seria totalmente inesperado, como uma traição devastadora. Terrível, indesejado, incestuoso, traumático.

Ela estava do outro lado da parede. Mas ele não podia fazer nada a res­peito. Nada. Jamais aconteceria. Sabia que ficaria louco, por isso forçou-se a afastar o pensamento dela e a começar a se concentrar em outras coisas. Coisas bem reais, com certeza, não apenas ilusões. Os dois sujeitos, quem quer que fossem. Já teriam descoberto o endereço dela agora. Havia inú­meras maneiras de descobrir onde alguém morava. Poderiam estar do lado de fora do prédio, naquele exato momento. Ele voltou a percorrer o apar­tamento em sua mente. A entrada da portaria, trancada. A porta de acesso à garagem, trancada. A porta de entrada para o apartamento, trancada e com a barra. As janelas, todas fechadas e com as persianas fechadas. Esta noite, ao menos, estavam a salvo. O perigo estaria na manhã seguinte. Mui­to perigo, possivelmente. Ele se concentrou em fixar os dois sujeitos em sua mente enquanto adormecia. O carro, os ternos, o físico, os rostos.

Mas, naquele exato momento, apenas um dos caras tinha um rosto. Os dois tinham saído de barco juntos, 16 quilômetros ao sul de onde Reacher es­tava deitado, nas águas escuras do porto sul de Nova York. Trabalharam juntos para abrir o saco plástico e soltar o corpo frio da secretária nas ondulações oleosas do Atlântico. Um deles virou-se para o outro, com uma piada suja nos lábios, e foi atingido em cheio no rosto com um tiro da Beretta com silenciador. E de novo, e de novo. A queda lenta do corpo co­locou as três balas em lugares diferentes. O rosto dele se transformara num enorme ferimento mortal, escurecido na noite. O braço foi colocado sobre a amurada de mogno, e a mão direita, cortada com o cutelo roubado de um restaurante. Foram necessários cinco golpes. Um trabalho sujo e brutal. A mão foi colocada num saco plástico, e o corpo lançado na água, sem qualquer som, a menos de vinte metros de onde o corpo da secretária já estava afundando.

 

JODIE ACORDOU CEDO NA MANHÃ SEGUINTE, o que não era comum. Em geral, dormia profundamente até o alarme disparar e ela se arrastar para fora da cama e ir para o banheiro, ainda lenta de sono. Mas, naquela ma­nhã, acordou uma hora antes de o alarme tocar, alerta, a respiração leve, o coração disparando gentilmente no peito.

Seu quarto era branco, como todos os demais cômodos, e a cama era king size, com uma estrutura de madeira branca, a cabeceira encostada na parede de frente para a janela. O quarto dos hóspedes era colado ao seu, disposto da mesma maneira, simétrico, mas invertido, pois dava para a direção oposta. O que significava que a cabeça dele estava a 45 centímetros da dela. Do outro lado da parede.

Ela sabia do que as paredes eram feitas. Comprara o apartamento na planta. Entrara e saíra de lá durante meses, acompanhando a conversão.


A parede entre os dois quartos era original, com cem anos de idade. Uma grande viga de madeira atravessava o piso, com tijolos apoiados sobre ela até o teto. Os construtores simplesmente haviam reforçado os tijolos nos pontos mais fracos, cobrindo-os com argamassa no estilo europeu, com um reboco sólido de estuque. O arquiteto achou que aquela era a maneira certa. Deixava o revestimento mais sólido, com mais resistência ao fogo e isolava o som. Mas também era um sanduíche de mais de trinta centímetros de estuque e tijolos entre ela e Reacher.

Ela o amava. Não tinha a menor dúvida disso. Com certeza, nenhuma dúvida. Sempre o amara, desde o começo. Mas isso estava certo? Tudo bem amá-lo do jeito que ela o amava? A pergunta já a deixara agoniada antes. Passara noites em claro pensando nisso, há muitos anos. Consumira-se de vergonha por seus sentimentos. A diferença de nove anos era obscena. Ver­gonhosa. Ela sabia disso. Uma menina de 15 anos não podia se sentir assim em relação a um oficial, colega de seu pai. O protocolo militar fazia com que isso fosse praticamente um incesto. Era como sentir alguma coisa por um tio. Quase como se fosse pelo próprio pai. Mas ela o amava. Sem a me­nor sombra de dúvida.

Ficava perto dele sempre que podia. Conversava com ele o máximo possível, tocava-o em qualquer oportunidade. Tinha sua própria cópia da fotografia de Manila, tirada com o temporizador, ela com o braço na cintu­ra dele. Guardara-a dentro de um livro por 15 anos. Olhou para ela inúme­ras vezes. Por anos, nutrira o sentimento de tê-lo tocado, abraçando-o forte para a câmera. Ainda se lembrava do sentimento exato do contato com ele, a constituição larga, o cheiro.

Os sentimentos nunca chegaram a desaparecer, de fato. Ela até desejara isso. Quisera que não passassem de uma coisa de adolescente, uma paixão juvenil. Mas não era. Ela sabia que não pelo jeito como os sentimentos per­duraram. Ele desaparecera, ela cresceu e foi em frente, mas os sentimentos estavam sempre ali. Jamais diminuíram, mas acabaram seguindo uma li­nha paralela ao fluxo principal de sua vida. Sempre presentes, sempre reais, sempre fortes, mas não necessariamente conectados à realidade do dia a dia, não mais. Como as pessoas que ela conheceu, advogados, banqueiros, mas que na verdade gostariam de ter sido dançarinos ou jogadores de bei­sebol. Um sonho do passado, desconectado da realidade, mas que definia totalmente a identidade da pessoa envolvida. Um advogado, que queria ter sido dançarino. Um banqueiro, que queria ter sido jogador de beisebol. Uma mulher de trinta anos, divorciada, que queria ter ficado com Jack Reacher a vida toda.

O dia anterior, provavelmente, fora o pior de toda a sua vida. Ela en­terrara o pai, seu último parente sobre a Terra. Fora atacada por homens armados. Conhecia gente que fazia terapia por muito menos. Poderia ter caído prostrada pelo sofrimento e pelo choque. Mas não caiu. O dia an­terior fora o melhor de sua vida. Ele aparecera como uma visão sobre os degraus, atrás da garagem, diante do quintal. O sol de meio-dia em cheio sobre sua cabeça, iluminando-o. Seu coração disparou, e os velhos senti­mentos afastados do centro de sua vida retornaram, mais fortes e intensos do que nunca, como uma droga correndo pelas veias, como uma sucessão de trovoadas.

Mas tudo fora uma perda de tempo. Ela sabia disso. Tinha que enfren­tar a realidade. Ele olhou para ela como se olhasse para uma sobrinha ou para a irmã mais nova. Como se a diferença de nove anos ainda contasse. O que não era mais o caso. Um casal com uma pessoa de 24 e outra de 15 certamente teria sido um problema. Mas 30 e 39 era perfeitamente aceitá­vel. Existiam milhares de casais com diferenças ainda maiores. Milhões de casais. Homens de 70 anos casados com mulheres de 20. Mas a diferença ainda contava para ele. Ou talvez ele estivesse muito acostumado a vê-la como a filha de Leon. Como uma sobrinha. Como a filha do comandante. As normas da sociedade ou o protocolo militar o deixara cego para a possi­bilidade de olhar para ela de outro modo. O ressentimento por isso sempre a consumira. E ainda consumia. O afeto de Leon por ele, tratando-o como um filho, fizera com que ele se afastasse dela. Impossibilitara qualquer pos­sibilidade desde o começo.

Passaram o dia como irmão e irmã, como tio e sobrinha. Ele estava muito sério, como um guarda-costas, como se ela fosse sua responsabi­lidade profissional. Tinham se divertido, e ele cuidara de sua segurança física, mas nada além disso. Jamais haveria algo mais. E não havia nada que ela pudesse fazer a respeito. Nada. Ela já tinha chamado alguns caras para sair. Todas as mulheres da idade dela já tinham feito isso. Era permissível. Aceito, até mesmo, normal. Mas o que ela diria para ele? O quê? O que uma irmã diria para um irmão, ou uma sobrinha para um tio, sem causar escândalo, choque e nojo? Portanto, nada aconteceria, e não havia absolutamente nada que pudesse fazer a respeito.

Espreguiçou-se na cama e colocou as mãos para trás. Encostou as pal­mas suavemente na parede divisória e as deixou ali. Ao menos ele estava no apartamento dela; ao menos, ela podia sonhar.

 

O sujeito teve menos de três horas de sono após voltar sozinho com o barco para a rampa, trancá-lo e cruzar a cidade de volta até deitar na cama. Estava de pé novamente às 6h, de volta às ruas às 6h20, após uma ducha e nada de café da manhã. A mão enrolada num plástico, embrulhada no Post de on­tem e transportada numa sacola da Zabars, que sobrou da última vez que ele comprou ingredientes para preparar o próprio jantar em casa.

Usou o Tahoe preto e passou rapidamente pelo pessoal das entregas matinais. Estacionou no subsolo e subiu para o octogésimo oitavo andar. Tony, o recepcionista, já estava no balcão de cobre e carvalho. Mas podia perceber, pelo silêncio, que não havia mais ninguém. Levantou a sacola da Zabar's como um troféu.

Trouxe isso para o Hook — disse.

Ele não está aqui hoje — disse Tony.

Ótimo — respondeu o cara, mal-humorado.

Enfie lá na geladeira — mandou Tony.

Havia um pequeno frigobar na recepção. Estava lotado e bagunçado, como é comum nas geladeiras de escritórios. Manchas de café nas pratelei­ras, canecas manchadas no interior. A geladeira era um item em miniatura sob o balcão. O sujeito afastou uma caixa de leite e meia dúzia de latas de cerveja, e dobrou a bolsa dentro do espaço que sobrou.

O alvo de hoje é a sra. Jacob — disse Tony. Ele estava na porta da cozinha.

Sabemos onde ela mora. Baixa Broadway, ao norte da prefeitura. Oito quadras daqui. Os vizinhos dizem que ela sai às 7h20 e vai a pé para o trabalho.

Que fica exatamente onde? — perguntou o sujeito.

Wall Street com Broadway — respondeu Tony.

Eu dirijo, você pega ela.

 

Chester Stone dirigiu para casa na hora normal e não disse nada para Marilyn. Não havia nada que pudesse dizer. A velocidade da queda o deixa­ra transtornado. Todo o seu mundo virara do avesso num período de ape­nas 24 horas. Ele simplesmente não sabia onde se segurar. Planejara ignorar tudo até de manhã e então ir falar com Hobie e ponderar alguma coisa. Em seu íntimo, não acreditava que não pudesse se salvar.

A empresa tinha noventa anos, pelo amor de Deus. Três gerações de Chester Stone. Era muita coisa para desaparecer da noite para o dia. Então, ele nada disse, passando a noite num estado de torpor.

Marilyn Stone tampouco disse qualquer coisa para Chester. Ainda era muito cedo para ele saber que ela tinha entrado em ação. As circunstâncias tinham que estar certas para a conversa acontecer. Uma questão de ego. Ela apenas se manteve ocupada, com as atividades noturnas normais e depois tentou dormir, enquanto ele se mantinha acordado ao lado dela, olhando para o teto.

Quando Jodie colocou a palma das mãos na parede divisória, Reacher estava no chuveiro. Ele tinha três rotinas diferentes para o banho, a cada manhã escolhia qual delas seria adotada. A primeira era um ba­nho rápido, nada mais. Levava 11 minutos. A segunda era barba e chu­veiro, 22 minutos. A terceira era um procedimento especial, raramente utilizado. Incluía uma chuveirada, sair para fazer a barba e voltar para chuveiro. Levava mais de meia hora, mas a vantagem era o umedecimento. Alguma garota explicara que a barba ficava melhor com a pele já completamente úmida. E também dissera que não fazia mal algum usar o xampu duas vezes.

Ele estava usando o procedimento especial. Chuveiro, barba, chuvei­ro. Sentia-se bem. O banheiro do quarto de hóspedes de Jodie era grande e alto, e o chuveiro estava numa altura suficiente para ele ficar de pé sob ele, o que não era comum. Diversos frascos de xampu estavam cuidadosa­mente alinhados. Ele suspeitou de que fossem marcas que ela experimen­tara e, não gostando, relegara para o quarto dos hóspedes. Mas ele não se importava. Achou um que dizia ser para cabelos secos e danificados pelo sol. Achou que era exatamente do que precisava. Derramou-o na concha da mão e ensaboou-se. Esfregou todo o corpo com um sabonete amarelo e enxaguou-se. Pingou por todo o chão enquanto se barbeava diante da pia. Foi cuidadoso, subindo desde as clavículas, em torno da base do nariz, pelos lados, para cima, para baixo. Depois voltou para o chuveiro e tomou outro banho.

Dedicou cinco minutos aos dentes, com a escova nova. As cerdas eram duras e pareciam estar fazendo um bom trabalho. Depois, secou-se e sacu­diu as roupas novas para tirar as pregas. Vestiu a calça, mas não a camisa, e foi para a cozinha, atrás de alguma coisa para comer.

Jodie estava lá. Também estava fresca, recém-saída do banho. O cabelo escurecido pela água e escorrido. Vestia uma camiseta muito grande, que terminava a poucos centímetros dos joelhos. O tecido era fino. Suas pernas eram longas e lisas. Estava descalça. Era muito magra, exceto nos locais onde não devia ser. Ele perdeu o fôlego.

Bom-dia, Reacher — disse ela.

Bom-dia, Jodie — respondeu ele.

Ela olhava para ele. Seus olhos o percorriam inteiro. Havia algo em sua expressão.

Essa bolha — disse ela. — Parece pior.

Ele olhou para baixo. Ainda estava vermelha e irritada. Espalhava-se um pouco, intumescida.

Você passou a pomada? — perguntou ela.

Ele fez que não com a cabeça.

Esqueci — respondeu.

Vá pegar — mandou ela.


Ele voltou ao banheiro e achou a pomada dentro de sua bolsa marrom. Levou-a para a cozinha. Ela pegou de sua mão e abriu. Perfurou o selo de metal com a ponta plástica e espremeu um pouco da pomada na ponta do indicador. Ela estava concentrada, a língua entre os dentes. Aproximou-se dele e ergueu a mão. Tocou a bolha suavemente e esfregou com a ponta dos dedos. Ele olhou com rigidez por cima da cabeça dela. Ela estava a um palmo dele. Nua, sob a camisa. Esfregando seu peito nu com a ponta dos dedos. Ele queria tomá-la nos braços. Desejava erguê-la do chão e apertá-la junto de si. Beijá-la com gentileza, começando pelo pescoço. Queria erguer-lhe o rosto para o seu e beijá-la na boca. Ela fazia pequenos círculos suaves sobre seu peito. Ele sentia o cheiro do cabelo dela, úmido e brilhante. Sentia o perfume de sua pele. Ela percorria a extensão do ferimento com o dedo. Um palmo de distância, nua sob a camiseta. Ele engasgou e cerrou as mãos. Ela deu um passo atrás.

Está doendo? — perguntou ela.

O quê?

Eu estava te machucando?

Ele viu a ponta do dedo, brilhando com a pomada.

Um pouquinho.

Ela assentiu.

Me desculpe — disse. — Mas é preciso.

Ele concordou.

Acho que sim.

E a crise passou. Ela atarraxou a tampa no tubo e se afastou, apenas para não ficar parada. Ele abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água. Achou uma banana numa tigela sobre a bancada. Ela colocou o tubo de pomada sobre a mesa.

Vou me vestir — disse ela. — Precisamos ir andando.

Certo — respondeu ele. — Estarei pronto.

Ela desapareceu para dentro do quarto, ele bebeu a água e comeu a fru­ta. Caminhou de volta para o quarto, vestiu a camisa e a enfiou para dentro da calça. Achou as meias, os sapatos e o casaco. Foi para a sala, esperar por ela. Abriu totalmente a persiana, destravou a janela e a ergueu. Inclinou-se para fora e examinou a rua, quatro andares abaixo.

Muito diferente sob a luz matinal. O brilho néon desaparecera, e o sol surgia sobre os edifícios do outro lado, refletindo-se pela rua. Os bandos ociosos da noite também haviam desaparecido, substituídos por trabalha­dores de andar determinado, indo para o norte e para o sul, carregando copos de papel de café e bolinhos enrolados em guardanapos. Os táxis espremiam-se rua abaixo, em meio ao tráfego, buzinando para os sinais abrirem. Uma brisa leve soprava, e ele sentia o cheiro do rio.

O prédio ficava do lado esquerdo da baixa Broadway. A rua era de mão única para o sul, da esquerda para a direita sob a janela. Em sua caminhada normal para o trabalho, Jodie saía da portaria e virava à direita, caminhan­do na mesma direção do tráfego. Ela se mantinha na calçada da direita, para ficar no sol. Atravessava a Broadway num sinal seis ou sete quarteirões mais abaixo. Caminhava as duas últimas quadras do lado esquerdo e depois virava à esquerda, descendo Wall Street à direita, até o escritório.

Então, como pretendiam pegá-la na direção contrária? Pense como o inimigo. Pense como os dois sujeitos. Físicos, nenhuma sutileza, preferin­do uma abordagem direta, dispostos e perigosos, mas não tão experientes a ponto de superar o entusiasmo amador. Estava muito claro o que fariam. Usariam um carro de quatro portas esperando numa rua lateral, umas três quadras ao sul, estacionado na pista da direita, voltado para o leste, pronto para disparar e pegar a direita na Broadway. Estariam esperando juntos no banco da frente, em silêncio. Estariam observando à esquerda e à direita pelo para-brisa, observando a faixa de pedestres diante deles. Estariam a espera de vê-la atravessar a rua apressada, ou parada, aguar­dando o sinal abrir. Esperariam um instante para ela se afastar e virariam à direita. Dirigindo devagar. Ficariam atrás dela. Perto do meio-fio. Avan­çando. Até o sujeito no banco de passageiro sair, agarrá-la, abrir a porta de trás e empurrá-la para dentro, enfiando-se depois dela no banco de trás. Um único movimento rápido e brutal. Uma tática rude, sem dificuldades. Nenhuma dificuldade, aliás. Com uma razoável garantia de dar certo, de­pendendo do alvo e do nível de alerta. Reacher já fizera a mesma coisa, várias vezes, com alvos maiores, mais fortes e mais atentos do que Jodie. Uma vez, fizera isso com o próprio Leon no volante.

Inclinou-se sobre a cintura, colocando todo o tronco para fora da jane­la. Virou a cabeça para a direita e observou toda a rua. Olhou atentamente para as esquinas, dois, três e quatro quadras na direção sul. Seria numa daquelas.

Pronto — chamou Jodie.

Desceram os noventa andares juntos, até a garagem do subsolo. Caminha­ram para a zona certa, seguindo até as vagas alugadas junto com o conjunto de salas.

É melhor pegarmos o Suburban — disse o cobrador. — É maior.

Certo — respondeu Tony. Ele destrancou o carro e sentou-se no banco do motorista. O cobrador se acomodou no banco ao lado. Olhou para trás, para o bagageiro vazio. Tony ligou o motor e saiu em direção à rampa que dava para a rua.

Então, como vamos fazer isso? — perguntou Tony.

O cara sorriu, confiante.

Muito fácil. Ela vai estar andando para o sul, na Broadway. Vamos esperar do outro lado de uma esquina, até ela aparecer. Umas duas quadras mais para baixo do prédio dela. Vemos ela atravessando a rua, damos a volta na esquina, emparelhamos com ela e pronto, certo?

Errado — respondeu Tony. — Vamos fazer de outro jeito.

O sujeito olhou atravessado para ele.

Por quê?

Tony acelerou o carro grande para cima, saindo para a luz do sol.

Porque você não é muito inteligente — respondeu. — Se é assim que você faria, é porque deve ter um jeito melhor, certo? Você estragou tudo em Garrison. Vai estragar tudo aqui. Provavelmente, ela está com o tal de Reacher. Ele pegou vocês lá, vai te pegar aqui. Então, qualquer plano que você ache melhor, será a última coisa que vamos fazer.

Então, como é que vai ser?

Vou te explicar com todo o cuidado — respondeu Tony. — De um jeito bem simples.

Reacher baixou a janela para voltar a fechá-la. Passou o trinco e desceu a persiana de volta à posição. Ela estava em pé, no meio da porta, o cabelo ainda escurecido pelo banho, com um vestido simples de linho, sem man­gas, as pernas nuas, sapatos lisos. O vestido tinha a mesma cor do cabelo molhado, mas ficaria mais escuro quando o cabelo clareasse ao secar. Car­regava uma bolsa e uma maleta grande de couro, do tamanho que ele já vira pilotos comerciais usando. Era obviamente pesada. Ela baixou a maleta e afastou a bolsa, que estava no chão, junto à parede, onde o deixara na noite anterior. Ela tirou o envelope com o testamento de Leon do bolso externo, abriu a maleta e o colocou lá dentro.

Quer que eu carregue isso? — perguntou ele.

Ela sorriu e balançou a cabeça.

Consulte seu sindicato — respondeu. — O serviço de guarda-costas não inclui frete por aqui.

Parece bem pesada — disse ele.

Já sou uma menina crescida — respondeu ela, olhando-o.

Ele concordou. Tirou a velha barra de ferro dos encaixes da porta e a deixou na vertical. Ela inclinou-se junto dele e abriu as trancas. O mesmo perfume, sutil e feminino. Os ombros sob o vestido eram delicados, quase finos. Músculos pequenos no braço esquerdo contraíam-se para equilibrar a maleta pesada.

Que tipo de direito você faz por lá? — perguntou ele.

Finanças — respondeu ela.

Ele manteve a porta aberta. Olhou para fora. O corredor estava vazio. O mostrador do elevador indicava que alguém descia para a rua, do terceiro.

Que tipo de finanças?

Eles saíram e chamaram o elevador.

Negociação de dívidas, principalmente. Sou mais uma negociado­ra do que uma advogada na verdade. Tipo uma consultora ou mediadora, entende?

Ele não entendia. Jamais estivera endividado. Não por algum tipo de virtude inata, mas simplesmente porque jamais tivera a oportunidade. Todas as suas necessidades básicas foram supridas pelo Exército. Um teto sobre a cabeça, comida no prato. Jamais criara o hábito de querer muito mais. Mas conhecia sujeitos que se meteram em problemas. Compraram casas com hipotecas e carros com planos de financiamento. Às vezes, atra­savam os pagamentos. O escriturário da companhia era acionado. Conver­sava com o banco, descontava o valor necessário diretamente do soldo da pessoa. Mas ele desconfiava de que isso era troco em comparação com as cifras com que ela trabalhava.

Milhões de dólares? — perguntou.

O elevador chegou. As portas se abriram.

No mínimo — respondeu ela. — Normalmente, dezenas de milhões; algumas vezes, centenas.

O elevador estava vazio. Eles entraram.

E você gosta? — perguntou ele.

O elevador começou a descer, rangendo.

Com certeza — disse ela. — A pessoa precisa de um emprego, o melhor possível.

O elevador parou, com um sacolejo.

E você é boa nisso?

Ela assentiu.

Sim — respondeu simplesmente. — A melhor de Wall Street, sem dúvida alguma.

Ele sorriu. Era a filha de Leon, com toda a certeza.

As portas do elevador se abriram. A portaria estava vazia, a porta da rua bem-fechada, uma mulher corpulenta descia as escadas para a rua.

Chaves do carro? — pediu ele.

Estavam na mão dela. Um grande molho de chaves num chaveiro de bronze.

Espere aqui. Vou dar a ré até a escada. Só um minuto.

A porta da portaria para a garagem abria por dentro, com uma barra de pressão. Ele passou por ela, desceu pelos degraus de metal, examinou as sombras à frente, enquanto caminhava. Não havia ninguém. Ninguém visível, ao menos. Avançou com confiança até o carro errado, um grande Chrysler escuro, a duas vagas do carro de Jodie. Deitou-se no chão e olhou ao redor, sob os demais carros. Não havia nada.

Ninguém escondido no chão. Levantou e, então, contornou o capô do Chrysler. Circundou o carro seguinte e voltou a se deitar, espremido entre a traseira do Oldsmobile e a parede. Inclinou a cabeça sob o carro e procurou fios onde não deveriam existir. Tudo limpo. Nada de armadilhas.

Destrancou a porta e sentou diante da direção. Ligou o motor e seguiu pelo corredor. Encostou de ré no pé da escada. Inclinou-se sobre o banco do passageiro e abriu a porta enquanto Jodie vinha da portaria. Ela desceu a escada rapidamente e entrou no carro, tudo em um movimento contínuo e fluido. Bateu a porta, e ele saiu de frente, subindo a rampa direto para a rua.

O sol da manhã, do leste, piscou uma vez nos seus olhos e logo mu­dou de posição quando viraram para o sul. A primeira esquina ficava trinta metros à frente. O tráfego estava lento. Apenas lento, não chegava a parar. O sinal os fez parar três carros antes da curva. Ele estava na pista da direita, fora do ângulo de visão da outra rua do cruzamento. O tráfego seguia da direita para a esquerda ali, diante dele, três carros adiante. Podia ver que o fluxo mais à frente estava lento, desviando de algum tipo de obstáculo. Um veículo estacionado, talvez. Provavelmente um veículo de quatro por­tas estacionado, esperando alguma coisa. O fluxo lateral parou, o sinal da Broadway ficou verde.

Ele passou pelo cruzamento com a cabeça virada, meio olho para a frente e o restante da atenção voltado para as laterais. Não havia nada. Ne­nhum veículo de quatro portas estacionado. A obstrução era um cavalete listrado diante de um bueiro aberto. Um caminhão da companhia elétrica parado dez metros à frente, na rua. Um grupo barulhento de operários na calçada, bebendo refrigerante de latinhas. O tráfego fluiu. Voltou a parar no sinal seguinte. Ele estava quatro carros atrás.

Não era a rua. O padrão do tráfego estava errado. Fluía para oeste, da esquerda para a direita diante dele. Tinha uma boa visão para a esquerda. Dava para ver cinqüenta metros rua abaixo. Nada. Não era aquela rua. Teria que ser na próxima.

Idealmente, teria preferido fazer mais do que dirigir direto e passar pe­los sujeitos. Uma idéia melhor seria dar a volta no quarteirão e aparecer por trás deles. Parar o carro uns cem metros atrás e caminhar até eles, chegando por trás. Estariam voltados para a frente, observando a calçada pelo para-brisa. Ele poderia dar uma boa olhada nos dois, pelo tempo que quisesse. Poderia até entrar no carro deles. As portas traseiras estariam destranca­das, com certeza. Os dois estariam olhando diretamente para a frente. Ele entraria por trás, colocaria uma mão do lado de cada cabeça e bateria uma contra a outra, como um tocador de címbalos mandando ver numa banda. E faria isso de novo e de novo, até que começassem a responder a algumas perguntas básicas.

Mas não faria isso. Manter a concentração na tarefa atual era sua regra. A tarefa atual era levar Jodie até o escritório, protegida e em segurança. O trabalho de guarda-costas é um trabalho de defesa. Se atacar entrasse na receita, nenhuma das duas coisas sairia bem-feita. Como dissera a ela, já vivera disso. Tinha o treinamento. Um ótimo treinamento e muita expe­riência. Portanto, manteria a defensiva e consideraria uma grande vitória vê-la entrando pela porta do escritório, com toda a segurança. E ele não diria a ela o tamanho do problema em que ela estava metida. Não que­ria que começasse a se preocupar. Não havia qualquer motivo para que aquilo que Leon começara acabasse se transformando em algum tipo de angústia para ela. Leon não desejaria isso. Leon gostaria apenas que ele tomasse conta de tudo. Então era isso que iria fazer. Deixá-la na porta do escritório, sem grandes explicações, sem avisos ameaçadores.

O sinal ficou verde. O primeiro carro arrancou, depois, o segundo. E o terceiro. Ele começou a andar. Conferiu a distância diante dele e virou a cabeça para a direita. Onde estavam? A outra rua do cruzamento era estreita. Duas pistas de tráfego parado, esperando o sinal abrir. Ninguém estacio­nado na pista da direita. Nada à espera. Não estavam lá. Ele avançou len­tamente ao longo de todo o cruzamento, examinado à direita. Ninguém lá. Suspirou, relaxou e olhou para a frente. Então ouviram um pesado choque metálico. Um tremendo golpe de metal na traseira. A lataria sendo rasgada, aceleração instantânea e violenta. O carro foi lançado para a frente e detido pela traseira do veículo diante deles. Os airbags explodiram. Ele viu Jodie quicando em seu banco, esmagando-se contra o cinto de segurança, o cor­po sendo parado de forma abrupta, a cabeça seguindo o impulso violento para a frente. Em seguida, quicando de volta após bater no airbag, atin­gindo o protetor de cabeça do banco. Ele viu o rosto dela fixo no espaço, exatamente paralelo ao seu, com o interior do carro borrado e girando em torno, pois sua cabeça fazia a mesma coisa que a dela.

O duplo impacto arrancou suas mãos da direção. O airbag esvaziava diante dele. Ele desviou os olhos para o espelho e viu uma capô preto gi­gante enterrado na traseira do carro deles. O alto de uma grade cromada brilhante toda deformada. Alguma enorme caminhonete 4x4. Um homem lá dentro, visível atrás do vidro com película. Ninguém que ele conhecesse. Os carros buzinavam atrás deles, e o tráfego desviava para a esquerda para escapar da obstrução. Rostos voltados para olhar. Ouviu-se um forte silvo em algum lugar. Vapor de seu radiador, ou talvez um zumbido dentro de seu ouvido, após as súbitas e violentas explosões. O sujeito de trás estava saindo do 4x4. As mãos erguidas num pedido de desculpas, preocupação e medo no rosto. Estava saindo por trás da porta de seu carro, no meio do fluxo lento de carros, indo em direção à janela de Reacher, olhando para a confusão de metal retorcido ao passar pela batida. Uma mulher saía do sedã da frente, parecendo confusa e zangada. O tráfego se complicava em torno deles. O ar agitava-se com o calor dos motores superaquecidos e era tomado pelo barulho das buzinas. Jodie aprumava-se no assento, sentindo a nuca com os dedos.

Você está bem? — perguntou ele.

Ela ficou parada por algum tempo, até concordar com a cabeça.

Estou bem — respondeu. — E você?

Sim.

Ela cutucou o airbag vazio com um dedo, fascinada.

Esses negócios funcionam mesmo, não é?

Primeira vez que vejo um funcionar.

Eu também.

Então alguém batia na janela do motorista. O sujeito do carro de trás estava ali, em pé, usando os nós dos dedos para bater no vidro com urgên­cia. Reacher olhou para ele. O sujeito gesticulava para que ele abrisse, com urgência, como se estivesse ansioso com alguma coisa.

Merda! — gritou Reacher e pisou no acelerador. O carro foi para a frente, empurrando o sedã destruído da mulher. Conseguiu avançar por um metro, virando para a esquerda, as lâminas de metal rangendo.

O que você está fazendo? — gritou Jodie.

O sujeito segurava a maçaneta da porta. A outra mão dentro do bolso.

Abaixe-se — Reacher gritou.

Ele engatou a ré e voltou pelo espaço de um metro que tinha aberto, batendo no 4x4 parado atrás. O novo choque proporcionou-lhe mais trinta centímetros. Engatou a marcha para a frente, girou a direção e forçou o carro para a esquerda. Esmagou o canto traseiro do sedã, provocando uma nova chuva de vidro. O tráfego atrás voltou a se desviar bruscamente. Ele olhou para a direita, e um dos caras que vira em Key West e em Garrison estava na janela, com a mão na porta de Jodie. Ele pisou no acelerador e voltou a dar ré, girando a direção. O cara segurava firme, puxado para trás pelo braço, arrancado do chão pela violência do movimento. Reacher forçou a passagem para trás, entrando na caminhonete preta, e voltou a ir para a frente, fazendo o motor guinchar, girando a direção. O cara voltou a ficar de pé, ainda agarrado à maçaneta da porta, sacudido e arrastado, o outro braço e as pernas se debatendo, como se fosse um vaqueiro e o carro, um novilho tentando escapar do laço. Reacher afundou o pé e virou o carro para fora, passando junto ao canto do sedã destruído, e livrou-se do cara jogando-o contra a caminhonete. O para-choque acertou-o nos joelhos, e ele deu uma cambalhota, a cabeça acertando o vidro traseiro. Pelo espelho, Reacher viu uma mancha de braços e pernas sendo jogada pelo impulso sobre o teto e depois cair, espalhando-se pela calçada.

— Cuidado! — gritou Jodie.

O sujeito da caminhonete ainda estava junto à janela do motorista. Reacher tinha mudado de pista, mas o fluxo do tráfego estava lento, e o cara corria rápido ao lado dele, tentando tirar alguma coisa do bolso. Reacher virou bruscamente para a esquerda, ficando paralelo a um caminhão na pista ao lado. O cara ainda corria, um pouco de lado, segurando a maçaneta e pegando alguma coisa do bolso. Reacher jogou o carro para a esquerda outra vez, fazendo com que o sujeito fosse de encontro à lateral do cami­nhão. Ouviu o baque surdo da cabeça do homem contra o metal, e ele de­sapareceu. O caminhão freou bruscamente, tomado pelo pânico, e Reacher entrou na sua frente, virando para a esquerda. A Broadway era uma massa sólida de trânsito. À sua frente, uma colcha de retalhos brilhantes de cores metálicas, os tetos dos sedãs cintilando sob o sol, desviando para a direita e para a esquerda, arrastando-se para a frente, soltando fumaça, disparando as buzinas. Ele virou mais uma vez para a esquerda, cruzando uma faixa de pedestres com o sinal fechado, uma multidão de pedestres afastando-se do seu caminho. O carro sacudia e pulava, puxando forte para a direita. O indicador de temperatura estava fora da escala. O vapor fervia por entre as frestas em torno do capô fechado. O airbag esvaziado estava pendura­do sobre seus joelhos. Ele forçou o carro para a frente e entrou de novo à esquerda, em um beco cheio de lixo de restaurantes. Caixas, tambores vazios de óleo de cozinha, estrados de madeira empilhados com verduras estragadas. Enfiou a frente do carro sob uma pilha de caixotes de papelão, que se espalharam pelo capô amassado e quicaram no para-brisa. Desligou o motor e tirou a chave.

O carro ficou muito grudado à parede, impedindo Jodie de abrir a por­ta. Ele pegou a maleta e a bolsa dela, e jogou-as para fora. Espremeu-se para sair e se voltou para ela. Jodie tentava sair passando por cima dos bancos, atrás dele. O vestido estava subindo. Ele a pegou pela cintura e, com ela apoiando a cabeça em seu ombro, puxou-a para fora. Ela se segurou com for­ça, as pernas nuas em torno de sua cintura. Ele se virou e se afastou com ela por cerca de dois metros. Ela não pesava quase nada. Colocou-a em pé e voltou para pegar as bolsas. Ela alisava o vestido sobre o quadril. Ofegante. O cabelo úmido todo espalhado.

— Como você soube? — perguntou, arfando. — Que não era um aci­dente?

Ele lhe entregou a bolsa e ficou segurando a maleta pesada. Pegou-a pela mão, descendo o beco de volta para a rua, pulsando com a descarga de adrenalina.

Fale enquanto anda — respondeu.

Viraram à esquerda e seguiram para o leste, rumo à Lafayette. O sol da manhã batia em seus olhos, a brisa do rio soprava em seus rostos. Atrás deles, ouviam a confusão do tráfego na Broadway. Caminharam juntos por cerca de cinqüenta metros, apressados, a respiração acelerada, mas se acal­mando.

Como você soube?

Estatísticas, acho. Quais as chances de nos metermos num acidente exatamente na manhã em que desconfiamos que esses caras viriam atrás de nós? Uma em um milhão, sendo otimistas.

Ela concordou. Um leve sorriso no rosto. Cabeça erguida, ombros para trás, recuperando-se rápido. Nenhum sinal de choque. Era a filha de Leon, com toda a certeza.

Você foi ótimo — disse. — Reagiu muito rápido.

Ele balançou a cabeça enquanto caminhava.

Não, fui um bosta. Um imbecil. Um erro atrás do outro. Eles mu­daram a equipe. Um sujeito novo no comando. Nem cheguei a pensar nis­so. Achei que seria a mesma dupla original de idiotas, nunca pensei que colocariam alguém mais inteligente. E, quem quer que ele fosse, era bem esperto. Foi um bom plano, quase deu certo. Nem vi quando chegaram. E, quando aconteceu, ainda perdi um tempo enorme conversando sobre a porcaria dos airbags.

Não se sinta mal — disse ela.

Me sinto mal. Leon tinha uma regra básica: faça a coisa certa. Graças a Deus que ele não estava lá para ver a minha cagada. Ele sentiria vergonha de mim.

Uma sombra passou pelo rosto dela. Ele se deu conta do que dissera.

Me desculpe — disse. — Ainda não consigo acreditar que ele esteja morto.

Eles saíram na Lafayette. Jodie foi para a beira da rua, à procura de um táxi.

Bem, ele está — disse ela com suavidade. — E a gente vai se acostu­mar com isso, eu espero.

Ele concordou.

E me desculpe pelo seu carro. Eu deveria ter visto eles chegando.

Ela deu de ombros.

É um leasing. Vão me mandar outro igualzinho. Agora já sei que ele agüenta uma batida, certo? Quem sabe um vermelho?

Você deveria dizer que ele foi roubado. Chamar a polícia e dizer que não estava na garagem quando você foi pegá-lo hoje de manhã.

Isso é fraude — respondeu ela.

Não, isso é inteligência. Lembre-se de que não posso encarar a polí­cia me fazendo perguntas sobre isso. Nem tenho carteira de motorista.

Ela refletiu um pouco. Depois, sorriu. Como uma irmã mais nova per­doando o irmão por alguma rebeldia, pensou ele.

Certo — disse. — Vou ligar do escritório.

Do escritório? Você não vai para escritório nenhum!

Por que não? — perguntou ela, surpresa.

Ele acenou vagamente para trás, na direção da Broadway.

Depois do que aconteceu lá? Quero você onde eu possa te ver, Jodie.

Preciso trabalhar, Reacher. E seja racional. O escritório não se tornou perigoso só pelo que aconteceu lá atrás. E uma situação comple­tamente diferente, certo? O escritório ainda é um lugar tão seguro quan­to antes. E você estava satisfeito pelo fato de eu ir para lá antes, portanto, o que mudou?

Ele olhou para ela. Queria responder tudo mudou. Pois o que quer que Leon tenha começado com o velho casal da clínica de cardiologia se transformara em algo envolvendo profissionais quase competentes. Quase competentes que estiveram a quase um segundo de levar a melhor naquela manhã. E ele queria dizer: Eu te amo e você está em perigo, não quero que vá para nenhum outro lugar onde eu não possa ficar de olho em você. Mas não podia dizer uma coisa dessas. Por que se comprometera em manter tudo a distância. Tudo, o amor e o perigo. Assim, apenas encolheu os om­bros, desconfortável.

Você deveria vir comigo — disse ele.

Por quê? Para ajudar?

Ele concordou.

Sim, para me ajudar com os velhinhos. Eles vão falar com você por­que é a filha do Leon.

Você me quer ao seu lado por que eu sou a filha do Leon?

Ele concordou novamente. Ela viu um táxi e fez sinal.

Resposta errada, Reacher.

Ele argumentou, mas não chegou a lugar algum. Ela estava decidida e não ia mudar de idéia. O melhor que ele poderia fazer era deixar que ela resolvesse seu problema imediato: alugar um carro para ele, com o cartão dourado e a carteira de motorista dela. Pegaram o táxi para Midtown até uma loja da Hertz. Ele esperou do lado de fora, no sol, por 15 minutos, até ela aparecer pelo outro lado da quadra, em um Taurus novinho, e parar para ele entrar.

Ela seguiu pelo caminho de volta, para o sul da cidade, até a Broadway. Passaram pelo prédio dela e pelo local da emboscada, três quadras ao sul. Os carros batidos não estavam mais lá. Havia cacos de vidro na sarjeta e manchas de óleo no asfalto, nada mais. Ela seguiu para o sul e estacionou diante de um hidrante, na frente da porta do escritório. Deixou o motor ligado e empurrou o assento todo para trás, pronto para a troca de moto­rista.

Ok — disse ela. — Você me pega aqui às sete horas?

Tarde assim?

Estou chegando tarde, vou ter que sair tarde.

Não saia do prédio, está bem?

A calçada na frente do prédio era muito larga; ele caminhou até lá e a acompanhou com os olhos por todo o trecho, até ela entrar. Ela cruzou a calçada rapidamente, as pernas em movimento, como numa dança sob o vestido. Virou-se para ele, sorriu e acenou. Empurrou a porta giratória, balançando a maleta pesada. O prédio era alto, talvez uns sessenta andares. Provavelmente, algumas dezenas de conjuntos comerciais alugados para dezenas de empresas diferentes, ou mesmo centenas. Mas a situação pa­recia ser segura o bastante. Um grande balcão de recepção ficava bem em frente à porta giratória. Uma fileira de seguranças sentados atrás dele, e, por trás deles, uma sólida divisória de vidro, de alto a baixo e de um lado a outro, com uma porta acionada por um botão sob o balcão. Os elevadores ficavam depois da divisória de vidro. Não tinha como entrar, a não ser que os seguranças permitissem. Ele concordou consigo mesmo. Talvez fosse mesmo seguro. Talvez. Dependeria da competência dos recepcionistas. Ele a viu falando com um deles, a cabeça inclinada, os cabelos louros caindo para a frente. Em seguida, ela seguiu para a porta de vidro, esperou e em­purrou. Foi até os elevadores e apertou um botão. Uma porta se abriu. Ela entrou e ficou de frente para a porta, segurando a maleta com as duas mãos ao passar pela porta, que se fechou em seguida.

Ele esperou na calçada por um minuto e depois cruzou a calçada apres­sado, empurrando a porta giratória com os ombros. Andou até o balcão como se tivesse feito aquilo todos os dias de sua vida. Dirigiu-se ao se­gurança mais velho. Os mais velhos geralmente são os mais descuidados. Os mais jovens ainda alimentam sonhos de progresso.

Me chamaram no Spencer Gutman — disse, olhando o relógio.

Nome? — perguntou o velho.

Lincoln — respondeu Reacher.

O sujeito era grisalho e cansado, mas fez o que devia fazer. Pegou uma prancheta de um escaninho e a analisou.

Você tem hora marcada?

Eles só me biparam. Alguma coisa urgente, eu acho.

Lincoln, como o carro?

Como o presidente — respondeu Reacher.

O velho assentiu e passou o dedo rapidamente por uma longa lista de nomes.

Você não está na lista — disse. — Não posso deixar você entrar se não estiver na lista.

Trabalho para o Costello — disse Reacher. — Eles precisam de mim lá em cima, tipo imediatamente.

Eu posso ligar para eles. Quem te bipou?

Reacher deu de ombros.

O sr. Spencer, eu acho. É com ele que eu normalmente falo.

O sujeito pareceu ofendido. Colocou a prancheta de volta ao escaninho.

O sr. Spencer morreu há dez anos — disse. — Se quiser entrar, trate de ter um compromisso marcado corretamente, ok?

Reacher concordou. O lugar era mesmo seguro. Deu meia-volta e se­guiu para o carro.

 

Marilyn Stone esperou o Mercedes de Chester sair de vista, depois correu de volta para dentro de casa e pôs mãos à obra. Era uma mulher séria e sabia que uma possível lacuna de seis semanas entre pôr a casa à venda e fechar o negócio precisaria de um investimento consistente.

A primeira ligação foi para o serviço de faxina. A casa estava perfeita­mente limpa, mas ela queria remover alguns móveis. Achava que mostrar a casa um pouco mais vazia criaria impressão de mais espaço. Pareceria ainda maior do que realmente era. E ainda evitaria influenciar um poten­cial comprador sobre o que ficaria bem e o que não ficaria. Por exemplo, a cômoda italiana no saguão ficava perfeita onde estava, mas ela não queria que um potencial comprador achasse que nada mais funcionaria bem ali. O melhor era não ter nada lá e deixar que a imaginação da pessoa preen­chesse o espaço, quem sabe com alguma peça que já possuísse.

Portanto, se ia retirar alguns móveis, precisava que o serviço de limpeza fizesse a faxina dos espaços vazios. Uma certa ausência de móveis criava um aspecto espaçoso, mas áreas vazias óbvias davam uma impressão triste. Assim, ligou para eles e também para o pessoal de mudanças e guarda-móveis, pois precisaria de algum lugar para deixar os móveis retirados. Depois, ligou para o serviço de manutenção da piscina e também para os jardineiros. Queria que aparecessem todas as manhãs, até ordem em contrário, rara uma hora de trabalho todo dia. Precisava que o quintal ficasse absolu­tamente perfeito. Mesmo nesse nicho de mercado, sabia que uma calçada perfeita era fundamental.

Depois, tentou se lembrar de outras coisas que lera, ou de que já tinham comentado com ela. Flores, é claro, em vasos por todo o lugar. Ela telefonou para o florista. Lembrou-se de que alguém mencionara que pratinhos com limpador de janela neutralizavam qualquer outro cheiro estranho que as casas costumam ter. Algo a ver com a amônia. Lembrou-se de ter lido que um punhado de grãos de café aquecidos no forno proporcionava um deli­cioso cheiro de boas-vindas. Colocou então um pacote novo na gaveta de utensílios, pronto. Imaginou que, se colocasse um pouco de café no forno a cada vez que Sheryl ligasse para dizer que estava a caminho com um clien­te, eles chegariam na hora certa, em termos de aroma.

 

O DIA DE CHESTER STONE COMEÇOU NORMALMENTE. Dirigiu para o trabalho no horário normal. O Mercedes-Benz rodava tão macio quanto nos outros dias. O sol brilhava, como deveria brilhar em junho. O caminho para a cidade foi tranqüilo. O tráfego de sem­pre, nem mais, nem menos. Os vendedores de rosas e de jornal de sempre nas praças dos pedágios. O congestio­namento na entrada de Manhattan, comprovando que ele tinha saído na hora certa, como sempre fazia. Estacionou na vaga alugada de sempre, no subsolo de seu prédio, e subiu de elevador até as salas da empresa. Foi aí que a normalidade do dia acabou.

O lugar estava vazio. Era como se a empresa tivesse desaparecido da noite para o dia. O pessoal desaparecera por instinto, como ratos de um navio afundando. Um único telefone tocava numa mesa distante. Não havia ninguém para atender. Todos os computadores estavam desligados. As telas dos monitores eram quadrados cinza, refletindo as linhas luminosas das lâmpadas do teto. Sua sala era sempre silenciosa, mas agora havia uma cal­ma estranha caindo sobre ela. Ele entrou e ouviu o som como se fosse de uma tumba.

Eu sou Chester Stone — falou em meio ao silêncio.

Falou apenas para produzir algum ruído no lugar, mas sua voz soou como um grasnido. Não havia eco, pois o carpete grosso e as paredes de compensado absorviam o som como esponjas. Sua voz apenas desapareceu no vazio.

Merda! — exclamou.

Sentia raiva. Principalmente da secretária. Ela trabalhava com ele havia muito tempo. Era o tipo de empregado que ele esperava que fosse leal, com uma mão discreta em seu ombro, um brilho no olhar, a promessa de ficar e enfrentar os problemas, fossem qual fossem. Mas ela fez o mesmo que todos os outros. Ouviu os boatos do departamento financeiro, de que a empresa estava quebrada, que os salários não seriam pagos, e esvaziou uma caixa de arquivos velhos e a entulhou com as fotos em molduras vagabundas de seus malditos sobrinhos, com a plantinha raquítica, com o lixo das gavetas, e levou tudo para casa, de metrô, até seu apartamento arrumadinho, onde quer que fosse. O apartamento arrumadinho, decorado e mobiliado com os salários dos bons tempos. Devia estar sentada lá, de roupão, tomando café devagar, uma manhã de folga inesperada, para nunca mais voltar, talvez procurando outras vagas nos classificados dos jornais, escolhendo a pró­xima escala.

— Merda! — repetiu.

Deu meia-volta, atravessou as baias das secretárias e voltou para o ele­vador. Desceu para a rua e saiu caminhando pelo sol. Virou para a direita, caminhando rápido, furioso, com o coração disparado. A massa brilhante e enorme das Torres Gêmeas erguia-se diante dele. Cruzou a esplanada com pressa e entrou, rumo aos elevadores. Estava suando. O frescor do ar-refrigerado da portaria atravessou seu paletó. Ele subiu pelo elevador expresso até o 88. Saiu e seguiu pelo corredor estreito, para a recepção de bronze e carvalho de Hobie, pela segunda vez em vinte e quatro horas.

O recepcionista estava sentado atrás do balcão. Do outro lado da re­cepção, um homem robusto, com um terno caro, saía da pequena cozinha, carregando duas canecas numa das mãos. Stone sentiu o cheiro de café. Viu o vapor subindo e a espuma marrom girando nas canecas. Olhou para os dois homens.

Quero falar com Hobie — disse.

Eles o ignoraram. O mais forte foi até o balcão e colocou uma das canecas diante do recepcionista. Depois, passou por trás de Stone e se posi­cionou próximo à porta. O recepcionista inclinou-se para a frente e girou a caneca de café, ajustando cuidadosamente o ângulo da alça até uma posição confortável para segurá-la.

Quero falar com Hobie — repetiu Stone, olhando firme para a frente.

Meu nome é Tony — disse o recepcionista.

Stone virou-se e olhou para ele, sem entender. O sujeito tinha uma mancha vermelha na testa, como de uma batida recente. O cabelo estava recém-penteado, mas molhado, como se tivesse pressionado uma toalha gelada em sua cabeça.

Quero falar com Hobie — disse Stone, pela terceira vez.

O sr. Hobie não está no escritório hoje — disse Tony. — Eu cuidarei dos seus negócios, por ora. Temos assuntos sobre os quais discutir, não temos?

Sim, temos — disse Stone.

Então, podemos entrar? — disse Tony, se levantando.

Ele acenou para o outro cara, que deu a volta pelo balcão e assumiu a posição na cadeira. Tony saiu e foi até a porta da sala interna. Segurou a porta aberta, e Stone entrou pela mesma penumbra do dia anterior. As persianas ainda estavam fechadas. Tony seguiu pelo escuro, até a mesa. Con­tornou-a e se sentou na cadeira de Hobie. A base de molas rangeu em meio ao silêncio. Stone seguiu atrás dele. Depois parou e olhou para a esquerda e para a direita, pensando onde se sentaria.

Você vai ficar de pé — disse-lhe Tony.

O quê? — reagiu Stone.

Você ficará de pé durante toda a entrevista.

O quê? — repetiu Stone, atônito.

Bem em frente à mesa.

Stone apenas ficou lá, os lábios pregados.

Braços junto ao corpo — disse Tony. — Acerte a coluna e não se curve.

Disse isso calmamente, em voz baixa, com um tom casual, sem qual­quer movimento. Depois, voltou a ficar em silêncio. Apenas ruídos fracos de fundo, vindos de algum lugar do prédio, e o bater do coração de Stone. Seus olhos se ajustavam às sombras. Dava para ver as marcas na mesa dei­xadas pelo gancho de Hobie. Formavam um traçado raivoso, escavado na madeira. O silêncio era desconfortante. Não tinha a menor idéia de como reagir a isso. Olhou para o sofá à esquerda. Era humilhante continuar em pé. Ainda mais quando ordenado por uma porcaria de recepcionista. Olhou para o sofá à direita. Sabia que tinha que reagir. Deveria ir em frente e se sentar num dos sofás. Bastava um passo para a esquerda ou para a direita e se sentar. Ignorar o sujeito. Era só isso. Sentar e mostrar para o cara quem é que mandava. Como devolver uma bola perfeita ou marcar um ace. Sente-se, pelo amor de Deus, disse a si mesmo. Mas as pernas não obedeciam. Era como se estivesse paralisado. Ficou parado, a um metro da mesa, rígido pelo ultraje e pela humilhação. E pelo medo.

Você está vestindo o paletó do sr. Hobie — disse Tony. — Pode reti­rá-lo, por favor?

Stone olhou para ele. Depois olhou para baixo, para o seu paletó. Era o Savile Row. Se deu conta de que, pela primeira vez na vida, acidentalmen­te, vestia a mesma roupa dois dias seguidos.

Esse paletó é meu — respondeu.

Não, é do sr. Hobie.

Stone balançou a cabeça.

Eu o comprei em Londres. É meu, com toda a certeza.

Tony sorriu no escuro.

Você não entende, não é? — disse ele.

Entender o quê? — respondeu Stone, confuso.

Que o sr. Hobie é o seu dono agora. Você é dele. E tudo o que você tem é dele.

Stone olhou para ele. A sala ficou em silêncio. Apenas os ruídos fracos do prédio e o bater de seu coração dentro do peito.

Portanto, tire o terno do sr. Hobie — disse Tony, em voz baixa. Stone apenas olhava para ele, abrindo e fechando a boca, sem emitir som algum.

Tire — disse Tony. — Não é propriedade sua. Você não deveria ficar aí, vestindo o paletó dos outros.

A voz era baixa, mas ameaçadora. O rosto de Stone estava rígido pelo choque, mas subitamente seus braços começaram a se mover, como se es­tivessem fora de seu controle consciente. Debateu-se para tirar o paletó e segurou-o pelo colarinho, como se estivesse no departamento de roupas masculinas, devolvendo um terno após experimentá-lo e não gostar.

Sobre a mesa, por favor — Tony disse.

Stone deixou o paletó sobre a mesa. Alisou-o e sentiu o relevo da lã de boa qualidade pela superfície áspera. Tony puxou-o para perto e começou a vasculhar os bolsos, um de cada vez. Ajeitou o conteúdo em uma pequena pilha diante de si. Embolou o paletó e arremessou-o com descaso por sobre a mesa, para o sofá da esquerda.

Pegou a Montblanc. Apreciou-a com uma pequena contração da boca e a guardou no próprio bolso. Depois, pegou o molho de chaves. Espalhou-as pela mesa e as levantou uma a uma. Escolheu a chave do carro e a ergueu, segurando-a entre o indicador e o polegar.

Mercedes?

Stone assentiu, sem reação.

Modelo?

500SEL — murmurou Stone.

Novo?

Stone deu de ombros.

Um ano.

Cor?

Azul-escuro.

Onde está?

No meu escritório — disse Stone em voz baixa. — No estacionamento.

Vamos buscá-lo mais tarde — retrucou Tony. Abriu a gaveta e jogou as chaves lá dentro. Empurrou-a para fechá-la de novo e voltou a atenção para a carteira. Segurou-a de cabeça para baixo, sacudiu-a e separou o conteúdo com os dedos. Quando ficou vazia, jogou-a sob a mesa. Stone a ouviu batendo na lata de lixo. Tony olhou uma vez para a foto de Marilyn e jogou-a no mesmo lugar que a carteira. Stone ouviu um barulho mais baixo, quando papel fotográfico rígido bateu no metal. Tony empilhou os cartões de crédito com três dedos e afastou-os para o lado, como um crupiê.

A gente conhece um cara que vai nos pagar uns cem dólares por eles — disse.

Depois organizou as notas de dinheiro, separando-as por valor. Con­tou-as e as prendeu com um clipe de papel. Jogou-as na mesma gaveta que as chaves.

O que é que vocês querem? — perguntou Stone.

Tony olhou para ele.

Eu quero que você tire a gravata do sr. Hobie — respondeu. Stone encolheu os ombros, impotente.

Não, falando sério, o que é que vocês querem de mim?

Dezessete milhões e cem mil dólares. É o que você nos deve.

Stone concordou.

Eu sei. Vou pagar a vocês.

Quando? — perguntou Tony.

Bem, vou precisar de algum tempo — disse Stone.

Tony concordou.

Está bem. Você tem uma hora.

Stone olhou para ele.

Não, eu preciso de mais de uma hora.

Uma hora é tudo o que você tem.

Não posso fazer isso em uma hora.

Eu sei que não pode — disse Tony.

Você não pode fazer isso em uma hora, um dia, uma semana, nem em um ano, porque você não passa de um merda inútil que não consegue sair de um saco cheio de lixo, não é?

O quê?

Você é uma desgraça, Stone. Pegou uma empresa que seu avô se matou para construir e que seu pai deixou ainda maior, jogou tudo pela privada e deu a descarga, porque você é um completo idiota, não é mesmo?

Stone encolheu os ombros, sem resposta. Depois, engoliu.

Certo, eu levei alguns baques — respondeu. — Mas o que eu poderia fazer?

Tirar a gravata! — gritou Tony.

Stone deu um pulo e levou as mãos para cima rapidamente, atrapalhando-se com o nó.

Tire isso logo, seu merdinha! — gritou Tony.

Ele arrancou a gravata. Deixou-a sobre mesa. Ficou lá, embolada.

Obrigado, sr. Stone — disse Tony, em voz baixa.

O que é que vocês querem? — Stone murmurou.

Tony abriu outra gaveta, de onde tirou uma folha de papel manuscri­ta. Era amarela, coberta de garranchos espremidos e desordenados. Algum tipo de lista, com a soma dos números no pé da página.

Nós temos 39% de sua empresa — disse ele. — Nesta manhã. O que nós queremos são mais 12%.

Stone olhou para ele. Fez as contas de cabeça.

A maioria das ações?

Exatamente — disse Tony.

Temos 39%, mais 12% e ficamos com 51%, o que de fato representa­ria a maioria das ações.

Stone engoliu novamente e balançou a cabeça.

Não — disse. — Não, não vou fazer isso.

Ok, então queremos 17,1 milhões de dólares em uma hora.

Stone ficou parado, olhando com nervosismo para a esquerda e a direi­ta. A porta foi aberta atrás dele, e o homem forte com o terno caro entrou, caminhando silencioso pelo carpete até parar atrás do ombro esquerdo de Tony, de braços cruzados.

O relógio, por favor — pediu Tony.

Stone olhou para o pulso direito. Era um Rolex. Parecia de aço, mas era platina. Comprara em Genebra. Soltou a fivela e o entregou. Tony assentiu e jogou em outra gaveta.

—- Agora, tire a camisa do sr. Hobie.

Você não pode me fazer dar mais ações — disse Stone.

Acho que posso. Tire a camisa, ok?

Olha, não vou me intimidar — disse Stone, com toda a confiança que podia.

Você já está intimidado — respondeu Tony. — Não está? Prestes a sujar as calças do sr. Hobie. O que seria um erro muito grande, aliás, por que nós o obrigaríamos a limpar.

Stone não disse nada. Apenas olhou para um ponto no ar, entre os dois homens.

Doze por cento das ações — disse Tony, gentilmente. — Por que não? Não valem nada. E você ainda ficará com 49%.

Preciso falar com meus advogados — disse Stone.

Certo, vá em frente.

Stone olhou em torno da sala, desesperado.

Onde está o telefone?

Não tem nenhum telefone aqui — disse Tony. — O sr. Hobie não gosta de telefones.

Então como?

Grite — respondeu Tony — Grite bem alto, e pode ser que seus advogados escutem.

O quê?

Grite — repetiu Tony. — Você é mesmo bem lento, não é mesmo, sr. Stone? Basta somar dois mais dois para chegar a uma conclusão. Não tem nenhum telefone aqui, você não pode sair da sala e quer falar com seus advogados, então vai ter que gritar.

Stone olhava para o vazio.

Grite, seu merdinha inútil! — gritou Tony para ele.

Não, não posso — respondeu Stone, sem esperanças. — Não enten­do o que você está dizendo.

Tire a camisa! — gritou Tony.

Stone balançou a cabeça com violência. Hesitou, com os braços a meio caminho.

Tire logo, seu merdinha! — gritou Tony.

As mãos de Stone se moveram para cima e desabotoaram a camisa, até embaixo. Ele a tirou com raiva e a ficou segurando, trêmulo, com a camiseta debaixo.

Dobre direitinho, por favor — ordenou Tony. — O sr. Hobie gosta de suas coisas bem-arrumadas.

Stone fez o melhor que pôde. Sacudiu a camisa pelo colarinho e a do­brou duas vezes pelo meio. Abaixou-se e a deixou enquadrada sobre o pa­letó, no sofá.

Libere os 12% — disse Tony.

Não — respondeu Stone, fechando os punhos. Silêncio. Silêncio e escuridão.

Eficiência — disse Tony em voz baixa. — É do que nós gostamos aqui. Você deveria ter prestado mais atenção à eficiência, sr. Stone. Talvez então seu negócio não tivesse ido para o esgoto. Então, qual o jeito mais eficiente para fazermos isso?

Stone encolheu os ombros, impotente.

Não sei do que você está falando.

Eu explico — disse Tony. — Queremos que você concorde. Quere­mos sua assinatura num pedaço de papel. Então, como conseguimos isso?

Vocês nunca vão conseguir isso, seu idiota! — respondeu Stone. — Vou a falência primeiro, cacete! Capítulo 11 do Código de Falências, ban­carrota. Vocês não vão tirar nada de mim. Nada. Vão ficar na justiça uns cinco anos, no mínimo.

Tony balançou a cabeça pacientemente, como um professor primário ouvindo a resposta errada pela milésima vez em um longa carreira.

Façam o que quiserem — disse Stone. — Não vou lhes dar a minha empresa.

A gente pode te machucar — disse Tony.

Os olhos de Stone moveram-se para baixo, olhando para a mesa, sob a penumbra. A gravata ainda estava lá, exatamente sobre os riscos profundos do gancho.

Tire as calças do sr. Hobie! — gritou Tony.

Não, não tiro, droga! — gritou Stone de volta.

O sujeito ao lado de Tony enfiou a mão sob o outro braço. Ouviu-se um gemido de couro. Stone olhou para ele, incrédulo. O sujeito pegou uma pequena pistola preta. Esticou o braço e mirou, no nível dos olhos, sem he­sitar. Desviou da mesa e foi em direção a Stone. Mais e mais perto. Os olhos de Stone estavam fixos e arregalados. Fixos na arma. Mirava o seu rosto. Ele tremia e suava. O sujeito caminhava silenciosamente, a arma se aproxi­mava, e os olhos de Stone ficavam vesgos, seguindo-a. A arma acabou com o cano apoiado em sua testa. O sujeito a pressionava. O cano era duro e frio. Stone tremia. Inclinava-se para trás, fugindo da pressão. Tropeçando, tentando focalizar o borrão preto em que a arma tinha se transformado. Nem sequer viu a outra mão do homem se fechando. Nem mesmo o golpe se aproximando. Acertou-o com força no fígado, e ele caiu como um saco, as pernas dobradas, retorcido, engasgando e com ânsias.

Tire as calças, seu merda! — gritou Tony para ele, no chão.

O outro cara o chutou com selvageria, Stone uivou de dor e rolou so­bre as costas, como uma tartaruga, engasgando, com engulhos, arrancando o cinto. Conseguiu soltá-lo. Procurou os botões e o zíper. Tirou as calças apressadamente pelas pernas. Ficaram presas nos sapatos, e ele as forçou a sair, tirando-as pelo avesso.

Levante-se, sr. Stone — disse Tony, em voz baixa.

Stone ficou em pé com esforço, desequilibrado, inclinado para a frente, a cabeça baixa, ofegante, o estômago revirado, as pernas finas, brancas e sem pelos saindo da cueca samba-canção, ridículas meias pretas e sapatos nos pés.

A gente pode te machucar — disse Tony. — Deu para entender isso, agora?

Stone assentiu e engasgou. Pressionava o ventre com os braços. Com ânsias de vômito e engulhos.

Entendeu, agora? — Tony perguntou outra vez. Stone forçou-se a concordar novamente.

Diga as palavras, sr. Stone — ordenou Tony. — Diga que nós pode­mos te machucar.

Vocês podem me machucar — disse Stone, engasgado.

Mas não vamos. Não é assim que o sr. Hobie gosta que as coisas sejam feitas.

Stone ergueu a mão e enxugou as lágrimas dos olhos, olhou para cima, esperançoso.

O sr. Hobie prefere machucar as esposas — disse Tony. — Eficiência, entende? Os resultados são bem mais rápidos. Portanto, a esta altura, você deveria começar realmente a pensar em Marilyn.

 

O Taurus alugado era muito mais rápido do que o Bravada. Nas estradas se­cas do mês de junho, não tinha comparação. Talvez nas neves de janeiro, ou no gelo de fevereiro, ele poderia ter apreciado o uso contínuo de tração nas quatro rodas, mas, para uma viagem rápida Hudson acima, em junho, um sedã normal tinha todas as vantagens sobre um utilitário, com absoluta cer­teza. Era baixo e estável, rodava com suavidade, segurava bem nas curvas, tudo o que se deve esperar de um automóvel. Além de ser silencioso. O rádio estava sintonizado numa estação potente da cidade, e uma mulher chamada Wynonna Judd lhe perguntava por que não eu? Ele tinha a impressão de que não deveria estar gostando tanto assim de Wynonna Judd, porque, se al­guém lhe perguntasse se ele gostava de cantoras country melosas e suas can­ções de amor, provavelmente diria que não, com base em seus preconceitos. Mas Judd tinha uma voz e tanto, e a música contava com um violão fantás­tico. E a letra o pegava de jeito, porque imaginava Jodie cantando para ele, e não Wynonna Judd. Ela cantava por que não eu, enquanto você envelhece? Por que não eu? Ele começou a cantar junto, sua voz grave e rouca fazendo fundo com o contralto agudo, e, quando a música chegou ao fim e os anún­cios começaram, ele pensava que, se algum dia tivesse uma casa com um aparelho de som, como todo mundo, ele compraria o disco. Por que não eu?

Seguia para o norte, pela rodovia 9, tinha um mapa da Hertz aberto ao lado, grande o suficiente para mostrar que Brighton ficava na metade do caminho entre Peekskill e Poughkeepsie, seguindo para o oeste, à direita do Hudson. O endereço do casal de idosos estava junto, anotado na folha do bloco de receitas do consultório de McBannerman. O Taurus seguia a pou­co mais de cem, rápido o bastante para levá-lo até lá e devagar o suficiente para não ser incomodado pela polícia, que ele desconfiava estar escondida atrás das árvores de cada esquina, pronta para aumentar a receita munici­pal com seus radares portáteis e blocos de multas.

Levou uma hora para retornar a Garrison e achou que deveria seguir para o norte, por uma estrada principal, que ele lembrava que serpenteava para o oeste, passando pelo rio, na direção de Newburgh. Provavelmente, sairia daquela estrada logo depois de cruzar o Hudson e entraria em Brighton, por cima. Seria então apenas o caso de procurar o endereço, o que poderia não ser tão fácil.

Mas foi. A estrada que o levava para o sul, rumo a Brighton, saindo da principal que seguia para oeste, tinha o mesmo nome que aparecia na segunda linha do endereço dos dois velhinhos. Ele seguiu para o sul, atento às caixas de correio e aos números das casas, mas começou a complicar. As caixas de correio estavam agrupadas em grupos de seis, em intervalos de centenas de metros, sozinhas, sem nenhuma conexão clara com casas es­pecíficas. Na verdade, havia pouquíssimas casas visíveis. Parecia que eram todas estradinhas rurais, de terra e asfalto gasto, entrando à esquerda e à direita para dentro da mata, como se fossem túneis.

Mas achou a caixa certa. Estava numa estaca de madeira, apodrecida pelo tempo e inclinada para a frente pela ação do solo congelado no inverno. Vigorosas trepadeiras verdes e espinhentas retorciam-se ao seu redor. Era uma caixa grande, de um verde desbotado, com o número da casa pintado na lateral com uma caligrafia apagada, mas imaculada. A portinhola esta­va aberta, pois a caixa estava completamente lotada de correspondências. Ele pegou tudo de lá e ajeitou ao seu lado, no banco do passageiro. Fechou a portinhola com um rangido e viu um nome pintado na frente dela, com a mesma caligrafia caprichada e apagada: Hobie.

As caixas de correio ficavam todas à direita da rua, para facilitar o tra­balho do carteiro, mas as trilhas seguiam nas duas direções. Quatro delas eram visíveis de onde ele estava, duas para a esquerda e duas para a direita. Ele deu de ombros e seguiu pela primeira, à direita, na direção do rio.

Era o caminho errado. Havia duas casas descendo por ali, uma ao nor­te, outra ao sul. Uma delas tinha uma placa dupla nos portões: Kozinsky. A outra tinha um Pontiac Firebird vermelho e brilhante estacionado sob uma cesta de basquete, na entrada da garagem. Bicicletas de crianças esta­vam espalhadas pelo gramado. Nenhum sinal convincente de que pessoas idosas e enfermas moravam ali.

A primeira trilha para a esquerda também estava errada. Achou o lu­gar certo na segunda trilha à direita. Um caminho com grama alta seguia para o sul, paralelo ao rio. Uma velha caixa de correio enferrujada no por­tão, dos tempos em que o serviço de correio estava disposto a chegar um pouco mais próximo das casas. O mesmo verde desbotado, só que ainda mais apagado. A mesma caligrafia, esmaecida como um fantasma: Hobie. Os fios elétricos e do telefone entravam pelo alto, cobertos de trepadeiras penduradas como cortinas. Ele entrou com o Taurus pelo caminho, roçan­do a vegetação dos dois lados, até parar atrás de um velho Chevrolet sedã, estacionado em ângulo sob uma área coberta. Era um automóvel grande, o capô e o bagageiro do tamanho de pistas de pouso, e a cor assumindo aque­le marrom desbotado e manchado de todos os carros velhos.

Ele desligou o motor e saiu em meio ao silêncio. Abaixou-se para den­tro de novo para pegar o bolo de correspondências e ficou ali, com ele na mão. A casa tinha apenas um andar baixo, estendendo-se de onde ele estava para o oeste, na direção do rio. Tinha a mesma cor marrom do carro, tábuas e telhas antigas. O quintal era uma catástrofe. Aquilo em que um jardim que um dia foi cuidado acaba por se transformar após 15 anos de abando­no, entregue às primaveras úmidas e aos verões quentes. Um caminho que já fora largo saía do estacionamento coberto até a porta da frente, mas se tornara estreito como uma prancha de embarque, tomado pelo mato. Ele olhou em torno e imaginou que um pelotão de lança-chamas seria mais útil ali do que os jardineiros.

Foi até a porta, com o mato se enroscando e ficando preso nos calca­nhares. Havia uma sineta, mas a ferrugem a imobilizara. Inclinou-se para a frente, bateu de leve na madeira, com os nós dos dedos, e esperou. Sem resposta. Bateu de novo. Dava para ouvir a mata fervilhando atrás dele. Barulho de insetos. Os estalos do silenciador esfriando sob o Taurus na entrada. Bateu de novo. Esperou. Ouviu um estalar das tábuas do piso no interior da casa. O som adiantava os passos de alguém em direção à porta. Os passos pararam do outro lado da porta, e uma voz fina e abafada de mulher atravessou a madeira da porta.

Quem está aí? — perguntou.

Reacher — respondeu ele. — O amigo do general Garber.

Falou em voz alta. Atrás dele, ouviu uma agitação alarmada em meio à vegetação. Animais furtivos fugindo. Diante dele, ouviu o som de uma fechadura pesada sendo aberta e as trancas recuando. A porta foi aberta com um rangido. O interior estava escuro. Ele deu um passo à frente, nas sombras das calhas e viu uma velha senhora aguardando. Tinha talvez uns oitenta anos, magra como um graveto, cabelos brancos, curvada, usando um vestido estampado com flores desbotadas que se alargava na cintura por cima de uma anágua de nylon. O tipo de vestido que ele já vira em fotos de mulheres em festas nos jardins das casas de subúrbio dos anos 1950 e 1960. O tipo de vestido que costuma ser usado com compridas luvas bran­cas, um chapéu largo de brim e um alegre sorriso burguês.

Nós estávamos à sua espera — disse ela.

Ela se virou e ficou de lado. Ele assentiu e entrou. A largura da saia obrigou-o a abrir caminho, com um ruído alto do roçar de nylon.

Trouxe sua correspondência — disse a ela. — A caixa estava cheia.

Ele mostrou a grossa pilha de envelopes amassados e esperou.

Obrigada — respondeu ela. — O senhor é muito gentil. É uma longa caminhada até lá, e não gostamos de parar o carro ali, para não sofrer uma batida por trás. É uma rua muito movimentada. As pessoas correm terrivelmente, o senhor sabe. Muito mais rápido que deveriam, eu acho.

Reacher concordou. Era talvez a rua mais tranqüila que ele já vira. Dava para dormir a noite inteira no meio da rua, com uma boa chance de sobre­viver até de manhã. Ele continuava segurando a correspondência. A senho­ra não demonstrou qualquer curiosidade a respeito.

Onde a senhora quer que eu deixe isto?

Pode colocar na cozinha, por favor?

O corredor era sombrio, as paredes revestidas de madeira escura. A cozinha era ainda pior. Tinha uma janela pequena, com um vidro ama­relado. A mobília da cozinha era coberta por um verniz sujo, além de al­guns curiosos eletrodomésticos esmaltados, salpicados com manchas verdes e cinzas, apoiados em pernas curtas. O lugar cheirava a comida ve­lha e forno quente, mas estava limpo e arrumado. Um tapetinho cobria o linóleo gasto. Um par de óculos grossos fora colocado verticalmente den­tro de uma caneca de louça lascada. Ele pôs a pilha de correspondência junto à caneca. Quando o visitante fosse embora, ela usaria os óculos para ler a correspondência, mas apenas depois de colocar seu melhor vestido de volta ao armário, com a naftalina.

Posso lhe oferecer um pedaço de bolo? — perguntou ela.

Ele olhou para o fogão. Havia um prato de porcelana em cima dele, co­berto com um pano de linho puído. Ela preparara alguma coisa para ele.

E café?

Uma antiga cafeteira de esmalte verde estava ao lado do fogão. Tinha uma tampa de vidro verde e estava ligada à eletricidade por um fio isolado, desencapado e esgarçado. Ele concordou.

Adoro café e bolo — disse ele.

Ela assentiu de volta, satisfeita. Apressou-se à frente, amassando a saia contra a porta do forno. Usou um polegar magro e trêmulo para ligar a cafeteira. Já estava pronta para ser ligada, com o café e a água.

É só um momento — disse ela, ficando em silêncio e esperando. A velha cafeteira começou a engasgar com um ruído alto.

Então venha conhecer o sr. Hobie. Ele já está acordado e muito an­sioso para conhecer o senhor. Enquanto esperamos a máquina.

Ela o levou pelo corredor até uma pequena sala de estar, nos fundos. Media cerca de três metros quadrados, uma mobília pesada com poltro­nas e sofás, cristaleiras na altura do peito, cheias de enfeites de porcelana. Um homem velho estava sentado em uma das cadeiras. Vestia um terno de sarja rígido, azul, gasto e lustroso em alguns lugares, pelo menos três vezes o tamanho de seu corpo encolhido. O colarinho da camisa formava um aro frouxo em torno do pescoço pálido e esquelético. Tufos brancos e esparsos eram tudo o que lhe restara de cabelo. Os pulsos pareciam lápis saindo da manga do terno. As mãos eram finas e ossudas, apoiadas frouxamente nos braços da cadeira. Tinha tubos plásticos transparentes em torno das ore­lhas, saindo de sob o nariz. Atrás dele, havia um cilindro de oxigênio em um carrinho. Ele olhou para cima e inspirou ruidosamente o oxigênio para o esforço de erguer a mão.

Major Reacher — disse. — Muito prazer em conhecê-lo.

Reacher deu um passo à frente, segurou e apertou a mão. Era fria e seca, como a mão de um esqueleto envolta em flanela. O velho fez uma pausa, sugou mais oxigênio e falou novamente.

Meu nome é Tom Hobie, major. E esta dama adorável é minha es­posa, Mary.

Reacher assentiu.

Prazer em conhecê-los. Mas já não sou mais um major.

O velho concordou e sugou o gás pelo nariz.

O senhor serviu. Portanto, acredito que faz jus ao seu posto.

Uma lareira baixa, de pedra bruta, ocupava o centro de uma das pare­des. A prateleira sobre ela estava coberta de fotografias em molduras enfei­tadas de metal prateado. A maioria eram fotos coloridas da mesma pessoa, um jovem de farda verde-oliva, em diferentes poses e situações. Entre elas, havia uma mais antiga, em preto e branco, retocada, de outro homem de farda, alto, ereto, sorrindo, um cabo de outra geração de serviço. Provavel­mente, o próprio sr. Hobie, antes de seu coração fraco começar a matá-lo por dentro, ainda que fosse difícil para Reacher ter certeza. Não havia se­melhança.

Sou eu — confirmou Hobie, acompanhando seu olhar.

Segunda Guerra? — perguntou Reacher.

O velho concordou com olhos tristes.

Nunca saí do país — comentou. — Fui voluntário bem antes da con­vocação, mas já tinha um coração fraco, mesmo naquela época. Não me deixaram ir. E, por isso, fiquei num depósito, em Nova Jersey.

Reacher concordou. Hobie estava com a mão para trás, mexendo na válvula do cilindro, aumentando o fluxo de oxigênio.

Vou buscar o café agora — disse a senhora. — E o bolo.

Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Reacher.

Não, está tudo bem — respondeu ela, saindo da sala com o vestido farfalhando.

Sente-se, major, por favor — disse Tom Hobie.

Reacher concordou e sentou-se em silêncio, numa pequena poltrona próxima o bastante para ouvir a voz fraca do velho. Podia ouvir sua res­piração ruidosa. Nada mais, apenas o chiado fraco do alto da garrafa de oxigênio e o tilintar da louça na cozinha. Os sons pacientes da casa. A ja­nela tinha uma persiana de plástico verde-lima, enviesada para baixo, para bloquear a luz. O rio estava lá fora, em algum lugar, possivelmente além do quintal tomado pelo mato, uns cinqüenta quilômetros ao norte da casa de Leon Garber.

Aqui está — anunciou a sra. Hobie do corredor.

Ela voltava para a sala empurrando um carrinho. O jogo de chá em cima, xícaras, pires, pratos, uma pequena jarra de leite e um açucareiro. O guardanapo de linho estava afastado, mostrando um bolo com algum tipo de cobertura amarela. Limão, talvez. A velha cafeteira estava lá, chei­rando a café.

Como o senhor gosta?

Sem leite e sem açúcar — respondeu Reacher.

Ela colocou o café numa xícara, o pulso fino trêmulo pelo esforço. A xí­cara trepidou no pires quando ela a estendeu para ele. Em seguida, serviu-o com uma fatia de bolo num prato. O prato tremeu. A garrafa de oxigênio chiou. O velho preparava sua história, dividindo-a em pedaços menores, armazenando oxigênio suficiente para cada um deles.

Eu era um gráfico — disse subitamente. — Tinha minha própria gráfica. Mary trabalhava para um grande cliente meu. Nós nos conhecemos e nos casamos na primavera de 1947. Nosso filho nasceu em junho de 1948.

Ele se virou e passou os olhos pela fileira de fotografias.

Nosso filho, Victor Truman Hobie.

A sala ficou em silêncio, como em sinal de respeito.

Acredito no dever — disse o velho. — Eu não tinha condições de servir, e lamento isso. Lamento profundamente, major. Mas era feliz ser­vindo o meu país do jeito que era possível, e foi o que fiz. Criamos nosso filho da mesma maneira, para amar e servir o país. Ele foi voluntário para o Vietnã.

O velho sr. Hobie fechou a boca e sugou o oxigênio pelo nariz, uma, duas vezes, depois se inclinou para o chão, ao lado, e pegou uma pasta de couro. Apoiou-a sobre as pernas magras e abriu-a. Tirou uma foto e a pas­sou adiante. Reacher equilibrou a xícara e o prato, e chegou para a frente, para pegar a foto da mão trêmula. Um retrato colorido e desbotado de um menino num quintal. O menino tinha 9 ou 10 anos, cheio de dentes, risonho, sardento, com uma tigela de metal enfiada na cabeça, um rifle de brinquedo no ombro, as calças jeans esticadas e enfiadas dentro das meias para parecer uma farda de campanha enfiada nas perneiras.

Ele queria ser soldado — disse o sr. Hobie. — Sempre. Era sua ambi­ção. Eu sempre aprovei, é claro. Não conseguimos ter outros filhos, e Victor ficou sozinho, a luz de nossas vidas, e achei que ser um soldado e servir seu país era uma boa ambição para o filho único de um pai patriota.

Silêncio de novo. Tosse. O chiado do oxigênio. Silêncio.

O senhor concordou com o Vietnã, major? — perguntou Hobie subitamente.

Reacher deu de ombros.

Eu era muito jovem para ter alguma opinião — respondeu. — Mas, sabendo o que sei agora, não, eu não aprovaria o Vietnã.

Por que não?

Lugar errado — respondeu Reacher. — Hora errada, motivos erra­dos, métodos errados, abordagem errada, liderança errada. Nenhum su­porte real, nenhuma vontade real de vencer, nenhuma estratégia coerente.

O senhor teria ido?

Reacher assentiu.

Sim, eu teria ido — respondeu. — Sem escolha. Eu também era filho de um soldado. Mas eu sentiria ciúmes da geração do meu pai. Muito mais fácil ir para a Segunda Guerra.

Victor queria pilotar helicópteros — disse Hobie. — Era apaixona­do por eles. Culpa minha, novamente, acho. Eu o levei a uma exposição, paguei duas pratas para ele dar sua primeira volta num. Um velho Bell, um pulverizador de lavouras. Depois disso, tudo o que ele queria ser era um piloto de helicóptero. Então resolveu que o Exército era o melhor lugar para aprender.

Tirou outra foto da pasta e a entregou. O mesmo menino com o dobro da idade, alto, ainda sorridente, uma nova farda, em pé diante de um heli­cóptero do Exército. Um H-23 Hiller, antigo equipamento de treino.

Isso é no forte Wolters — disse Hobie. — Lá embaixo, no Texas. Es­cola de pilotos de helicópteros do Exército.

Reacher assentiu.

Ele pilotou helicópteros no Vietnã?

Ficou em segundo lugar da turma. Não foi nenhuma surpresa para a gente. Sempre fora um ótimo aluno, desde o colegial. Era bom especial­mente em matemática. Entendia de contabilidade. Achei que iria para a universidade e depois entraria na sociedade comigo, para cuidar dos livros. Estava contando com isso. A escola foi difícil para mim, major. Não tenho motivos para sentir vergonha disso agora. Não sou um homem de estudo. Foi sempre uma coisa maravilhosa ver Victor indo tão bem. Era um me­nino muito inteligente. E também muito bom. Inteligente, carinhoso, bom coração, um filho perfeito. Nosso único filho.

A velha senhora estava em silêncio. Não comia o bolo nem bebia o café.

A formatura foi no forte Rucker — disse Hobie. — Lá no Alabama. Fomos até lá para ver.

Pegou a foto seguinte. Uma cópia da que estava emoldurada sobre a lareira. O céu e a grama desbotados em tons pastel, um garoto alto de farda, o quepe cobrindo os olhos, o braço nos ombros de uma mulher mais velha, usando um vestido estampado. A mulher era magra e bonita. A fotografia estava um pouco fora de foco, o horizonte levemente tremido. Tirada por um marido e pai atrapalhado, sem fôlego de tanto orgulho.

Esses são Victor e Mary — disse o velho. — Ela não mudou nada, não é mesmo? Desde aquele dia até hoje.

Nem um pouco — mentiu Reacher.

Nós amávamos aquele menino — a senhora disse em voz baixa. — Foi para o Vietnã duas semanas depois dessa foto.

Julho de 1968 —disse Hobie. — Tinha 20 anos.

O que aconteceu? — perguntou Reacher.

Serviu um período completo — respondeu Hobie. — Foi condeco­rado duas vezes. Voltou para casa com uma medalha. Eu já podia ver que a idéia de cuidar dos livros da contabilidade de uma gráfica era muito pouco para ele. Achei que cumpriria seu período e conseguiria um emprego de piloto nas companhias de petróleo. Lá no Golfo, talvez. Estavam pagando muito bem na época para os pilotos do Exército. Ou da Marinha, ou da Aeronáutica, é claro.

Mas ele voltou para lá — disse a sra. Hobie. — Voltou para o Vietnã.

Assinou para um segundo período — disse Hobie. — Não precisava. Mas disse que era seu dever. Disse que a guerra não tinha acabado e que era seu dever participar. Disse que esse era o significado de ser patriota.

E o que aconteceu? — perguntou Reacher.

Fez-se um longo silêncio.

Ele não voltou — respondeu Hobie.

O silêncio pesava na sala. Em algum lugar, um relógio fazia tique-taque. Foi ficando cada vez mais alto até preencher o ar como golpes de martelo.

Isso me destruiu — disse Hobie em voz baixa.

O oxigênio chiava para dentro e para fora, entrando e saindo de uma garganta contraída.

Simplesmente, me destruiu. Eu costumava dizer que trocaria todo o resto da minha vida por apenas mais um dia com ele.

O resto da minha vida — ecoou a esposa. — Por apenas mais um dia com ele.

Falando sério — completou Hobie. — E ainda trocaria. Ainda troca­ria, major. Olhando para mim agora, não parece um grande negócio, não é? Não me resta muita vida. Mas eu dizia isso naquela época e continuei afirmando isso todos os dias, por trinta anos, e, que Deus seja minha teste­munha, era a pura verdade, todas as vezes que eu disse. O resto da minha vida por apenas mais um único dia com ele.

Quando ele foi morto? — perguntou Reacher, gentilmente.

Ele não foi morto — respondeu Hobie. — Foi capturado.

Prisioneiro?

O velho concordou.

A princípio, nos disseram que estava desaparecido. Achamos que estava morto, mas agüentamos, com esperança. Foi considerado desapare­cido e foi mantido assim. Jamais recebemos a informação oficial de que ele foi morto.

E por isso esperamos — disse a sra. Hobie. — Apenas ficamos espe­rando, por anos e anos. Então, começamos a perguntar. Eles nos disseram que Victor estava desaparecido, possivelmente, morto. Era tudo o que di­ziam. O helicóptero dele foi derrubado na selva, e jamais encontraram os destroços.

Nós aceitamos isso — disse Hobie.

Sabíamos como eram as coisas. Muitos rapazes morreram sem uma sepultura conhecida. Muitos rapazes sempre morrem, na guerra.

E então construíram o memorial — disse a sra. Hobie.

O senhor conhece?

A Parede? — perguntou Reacher. — Em Washington? Sim, estive lá. Eu vi. Foi muito tocante.

Eles se recusaram a colocar o nome dele lá — disse Hobie.

Por quê?

Nunca explicaram. Nós pedimos e imploramos, mas nunca nos dis­seram exatamente por quê. Apenas que ele não era mais considerado uma baixa.

Perguntamos então o que ele era considerado — disse a sra. Hobie. — Nos disseram apenas que era um desaparecido em combate.

Mas havia outros desaparecidos no Muro — disse Hobie.

Silêncio de novo. O relógio deu sua martelada no outro aposento.

O que o general Garber falou sobre isso? — perguntou Reacher.

Ele não entendeu — disse Hobie. — Não entendeu nem um pouco. Ainda estava verificando quando morreu.

Mais silêncio. O oxigênio chiou, e o relógio martelou.

Mas nós sabemos o que aconteceu — disse a sra. Hobie.

Sabem? — perguntou Reacher para ela. — O quê?

A única coisa que se encaixa — disse ela. — Ele foi feito prisioneiro.

E nunca foi solto — completou Hobie.

É por isso que o Exército está abafando o caso — disse a sra. Hobie.

O governo está constrangido pela situação. A verdade é que alguns dos nossos meninos nunca foram libertados. Os vietnamitas ficaram com eles, como reféns, para receber auxílio estrangeiro, reconhecimento comer­cial e créditos nossos, depois da guerra. Como uma chantagem. O governo esconde isso há anos, apesar de nossos filhos ainda serem prisioneiros lá. Por isso não podem admitir. Escondem e não falam disso.

Mas agora temos como provar — disse Hobie. Ele tirou outra foto da pasta e a entregou. Era uma impressão recente. Em cores nítidas. Uma foto tirada com teleobjetiva, em meio a uma vegetação tropical. Arame farpado preso a estacas de uma cerca de bambu. Uma pessoa asiática de uniforme marrom, com uma badana em torno da cabeça. Um rifle nas mãos. Um AK-47 soviético, nitidamente. Sem dúvida alguma. E outra pessoa na foto. Um homem branco, alto, aparentando uns 50 anos, emaciado, esquelético, curvado, grisalho, vestindo uma farda desbotada e rasgada. Desviando o olhar do soldado asiático, intimidado.

Esse é o Victor — disse a sra. Hobie. — É o nosso filho. Essa foto foi tirada no ano passado.

Passamos trinta anos perguntando por ele — disse Hobie. — Nin­guém nos ajudou. Pedimos para todo mundo. Até encontrarmos um homem que nos falou desses campos secretos de prisioneiros. Não existem muitos. Uns poucos, com alguns prisioneiros. A maioria deles já morreu. Ficaram velhos e morreram, ou morreram de fome. Esse homem foi até o Vietnã e verificou para a gente. Conseguiu chegar bem perto e tirar essa foto. Conseguiu até falar com outros prisioneiros pela cerca. Escondido, à noite. Ele correu um grande risco. Perguntou o nome do prisioneiro que ele havia acabado de fotografar. Era Vic Hobie, piloto de helicóptero da Primeira Cavalaria.

O homem não tinha dinheiro para um resgate — disse a sra. Hobie. — E nós já demos a ele tudo o que tínhamos para a primeira via­gem. Não sobrou nada. Então, quando conhecemos o general Garber no hospital, contamos nossa história para ele e pedimos que tentasse levantar o dinheiro junto ao governo.

Reacher olhou para a foto. Olhou para o homem magro com o rosto cinzento.

Quem mais viu essa foto?

Apenas o general Garber — respondeu a sra. Hobie.

O homem que tirou a foto nos disse para mantê-la em segredo porque é muito delicada, em termos políticos. Muito perigosa. Uma coisa terrível, enterrada na história do país. Mas tivemos que mostrá-la para o general porque ele estava numa posição em que poderia nos ajudar.

Então, o que vocês querem que eu faça? — perguntou Reacher.

O oxigênio chiou em meio ao silêncio. Entrando e saindo, entrando e saindo pelos tubos de plástico transparente. A boca do homem se movia.

Eu só quero ele de volta — disse. — Eu só quero vê-lo novamente, só mais um dia antes de morrer.

Depois disso, os dois velhos encerraram a conversa. Viraram-se juntos e fixaram os olhares enevoados nas fotos sobre a lareira. Reacher ficou de lado, sentado, em silêncio. O velho virou-se de volta e usou as duas mãos para erguer a pasta de couro dos joelhos ossudos e a estendeu para ele. Reacher inclinou-se para a frente e a pegou. A princípio, achou que fosse para ele colocar as três fotos de volta, mas percebeu que o bastão estava sendo passado para ele. Como uma cerimônia. A busca deles se tornara a de Leon, e agora passava a ser sua.

A pasta era fina. Além das três fotos que ele vira, continha nada mais do que algumas cartas ocasionais do filho e cartas oficiais do Exército. Um maço de papéis referente à liquidação de suas economias e a transferên­cia via cheque administrativo de dezoito mil dólares para um endereço no Bronx, para financiar uma missão de reconhecimento no Vietnã liderada por um homem chamado Rutter.

As cartas do menino começavam com bilhetes rápidos de diferentes lugares do sul, à medida que ele passava pelos fortes Dix, Polk, Wolters, Rucker, Belvoir e Benning, ao longo de seu percurso de treinamento. De­pois um bilhete curto, em trânsito pelo Alabama, quando embarcou num navio para a viagem de um mês pelo canal do Panamá para o oceano Pacífico e até a Indochina. Depois, o papel fino dos mailgrams do Exército, enviados do Vietnã, oito da primeira temporada, seis da segunda. O papel tinha trinta anos, rígido e ressecado, como papiros antigos. Como algo des­coberto por arqueólogos.

Ele não tinha sido um correspondente muito assíduo. As cartas esta­vam repletas das frases banais dos soldados jovens quando escrevem para casa. Centenas de milhares de pais do mundo todo devem ter recebido e guardado velhas cartas como essas, de diferentes épocas, guerras, línguas, mas com as mesmas mensagens: a comida, o clima, rumores de ação, pala­vras de conforto.

As respostas do Exército atravessavam trinta anos de tecnologia de ga­binete. Começavam com cartas datilografadas em velhas máquinas manuais, algumas delas mal-alinhadas, outras com espacejamento errado, com halos vermelhos por onde a fita tinha escorregado. Depois, as máquinas elétricas, mais firmes e uniformes. Então, os processadores de texto, em impressões imaculadas em papel de melhor qualidade. Mas as mensagens eram todas as mesmas. Nenhuma informação. Desaparecido em ação, possivelmente morto. Condolências. Nada mais.

O negócio com o sujeito chamado Rutter os deixara sem um centavo. Houvera um modesto investimento em fundos mútuos, e algum dinhei­ro fora depositado. Uma folha coberta por uma caligrafia trêmula, que Reacher desconfiou que fosse da senhora, totalizava suas necessidades men­sais, repetindo os números diversas vezes, listando-os até corresponderem com a receita de suas pensões e liberando o capital. Os fundos foram resga­tados 18 meses antes e somados ao dinheiro em caixa. O total foi enviado para o Bronx. Um recibo de Rutter discriminava o total em relação ao custo da expedição exploratória, pronta para partida imediata. Um documento solicitava toda e qualquer informação que pudesse ser útil, incluindo o nú­mero de inscrição no Exército, histórico e quaisquer fotografias existentes. Uma carta, datada de três meses depois, detalhava a descoberta do campo de prisioneiros remoto, a arriscada foto clandestina e a conversa sussurrada através da cerca. Mencionava a perspectiva de uma missão de salvamento, planejada em detalhes, a um custo projetado de 45 mil dólares, a ser assu­mido pelos Hobie. Quarenta e cinco mil dólares que eles não tinham.

— O senhor vai nos ajudar? — perguntou a velha senhora em meio ao silêncio. — Está tudo claro? Tem alguma coisa que o senhor precise saber?

Ele olhou para ela e percebeu que ela o estivera acompanhando en­quanto estudava o dossiê. Ele fechou a pasta e olhou para baixo, para a capa de couro gasta. Naquele exato momento, a única coisa que gostaria de saber era: por que diabos Leon não falou a verdade para aquela gente?

 

MARILYN STONE PERDEU O ALMOÇO PORQUE estava ocupada, mas não se importou, pois estava sa­tisfeita com o jeito que a casa tomava. Pensava todo o negócio de maneira muito desprendida, o que a deixava um pouco surpresa consigo mesma, pois era a sua casa, afinal, que ela se preparava para vender, sua própria casa, o lugar que escolhera com cuidado, reflexão e animação tantos anos antes. Fora o lugar dos seus sonhos. Muito maior e melhor do que qualquer coisa que imaginara ter. Chegava a sentir arrepios, na época, só de pensar sobre a casa. Quando se mudou, parecia ter morrido e ido para o paraíso. Agora, olhava para o lugar como um item de exposição, com finalidades de marketing. Não via mais os aposentos que havia decorado, onde vivera, se emocionara e fora feliz. Nenhuma dor. Nada de olhares nostálgicos para lugares onde Chester fizera alguma brincadeira onde riu, comeu e dormiu. Apenas uma determinação súbita e comercial para elevar todo o lugar a um novo patamar de irresistibilidade.

O pessoal da mudança chegou primeiro, exatamente como ela plane­jou. Orientou-os a retirar o aparador do saguão e a poltrona de Chester da sala. Não se tratava de um móvel feio, mas claramente estava sobrando ali. Era a poltrona favorita dele, escolhida do jeito que os homens escolhem as coisas, por conforto e familiaridade, não por estilo ou adequação. Foi a úni­ca coisa que trouxeram da casa anterior. Ele a colocou perto da lareira, na diagonal. Ela passou a gostar da poltrona, dia após dia. Deixava a sala com um aspecto confortável, vivo. Um objeto que quebrava o aspecto de casa de revista com um toque familiar. Exatamente por isso, tinha que sair.

Pediu aos carregadores que também removessem a pesada mesa de ma­deira da cozinha. Ela refletira bastante sobre aquela mesa. Com certeza, dava um certo sentido à cozinha. Um local adequado de trabalho, suge­rindo refeições trabalhosas, planejadas e preparadas ali. Mas sua ausência criava um espaço contínuo de nove metros de piso de cerâmica até a janela saliente. Ela sabia que, com um novo polimento do piso, a luz da janela ba­nharia os nove metros abertos num mar de espaço. Assumiu a perspectiva de um comprador e se perguntou o que a deixaria mais impressionada. Uma cozinha funcional? Ou uma com espaço de sobra? Assim, a grande bancada foi para o caminhão da transportadora.

A TV do estúdio também foi para lá. Chester tinha um problema com aparelhos de TV. O vídeo tinha matado o segmento de filmes domésticos de seu negócio, e ele não nutria entusiasmo algum pelos melhores e mais novos produtos de seus concorrentes. Portanto, a TV era um aparelho RCA obsoleto, nem sequer um modelo de console. Tinha uma brilhante moldura cromada em torno da tela e um vidro que se projetava para fora como um aquário bojudo. Ela já vira modelos melhores jogados no lixo da calçada ao olhar pela janela do trem, na estação da rua 125. Assim, pediu aos carrega­dores que a tirassem do estúdio e colocassem a estante de livros da suíte de hóspedes no lugar. Achou que o aposento era um lugar muito mais adequa­do. Apenas com a estante, os sofás de couro e os abajures com cúpulas es­curas, o estúdio ficava com o aspecto de um espaço de pessoas cultas. Uma sala de inteligência. Algo inspirador. Como se o comprador fosse adquirir um estilo de vida, não apenas uma casa.

Passou algum tempo escolhendo os livros para a mesinha de centro, até a chegada do florisía com caixas de papelão cheias de botões. Pediu que a moça lavasse todos os vasos e a deixou a sós com uma revista européia, para que copiasse todos os arranjos. Um rapaz do escritório de Sheryl trou­xe a placa de "Vende-se", e ela mandou fincá-la junto à caixa de correio. A equipe de jardinagem chegou no momento em que a transportadora ia embora, o que causou uma certa dificuldade para manobrar e estacionar os veículos. Ela mostrou o jardim para o chefe da equipe, explicando o que precisava ser feito, e voltou para dentro de casa, antes dos barulhentos cortadores de grama serem ligados. O piscineiro bateu na porta ao mesmo tempo que o pessoal da limpeza. Ela ficou olhando para a direita e para a esquerda, entre eles, momentaneamente perdida sobre por onde começar. Mas assentiu com firmeza e pediu que os faxineiros esperassem, levando o menino da piscina para fora, para mostrar o que ele precisava fazer. Depois, apressou-se de volta, sentindo-se faminta ao se dar conta de que não almo­çara, mas cheia de satisfação diante dos progressos que fazia.

 

Os dois o acompanharam até a porta. O velho respirou o oxigênio neces­sário para se levantar da cadeira e depois pegou o carrinho com o cilindro de oxigênio, apoiando-se parcialmente nele como se fosse uma bengala, ao mesmo tempo que o empurrava como se transportasse um saco de tacos de golfe. A esposa apressou-se na frente, a saia roçando pelas laterais da porta e das paredes do corredor. Reacher seguiu atrás deles, com a pasta de couro debaixo do braço. A senhora abriu a fechadura, e o velho parou, ofegante e firmando-se na alça do carrinho. A porta se abriu, e uma rajada de ar fresco entrou.

Ainda tem algum dos velhos amigos de Victor por aqui? — pergun­tou Reacher.

Isso importa, major?

Reacher deu de ombros. Há muito tempo ele aprendera que a melhor maneira de preparar as pessoas para más notícias era aparentando ter sido muito cuidadoso, desde o começo. As pessoas reagiam melhor se achassem que todas as possibilidades tinham sido esgotadas.

Preciso apenas de um pouco mais de contexto — disse.

Eles pareceram desconcertados, mas dispostos a pensar nisso, afinal, era a última esperança. Ele tinha a vida de seu filho nas mãos, literalmente.

Ed Steven, eu acho, na loja de ferramentas — disse o sr. Hobie, por fim. — Unha e carne com Victor desde o jardim de infância até terminarem o segundo grau. Mas isso foi há 35 anos, major. Não vejo como pode ajudar agora.

Reacher concordou, pois de fato não importava agora.

Eu tenho o telefone de vocês — disse. — Ligo assim que souber alguma coisa.

Estamos contando com o senhor — disse a senhora.

Reacher concordou novamente.

Foi um prazer conhecer vocês — disse. — Obrigado pelo café e pelo bolo. E sinto muito por toda a situação.

Eles não responderam. Eram palavras sem esperança. Trinta anos de agonia, e ele sentia muito pela situação? Ele apenas se virou, apertou suas frágeis mãos e voltou-se para o caminho coberto de mato. Seguiu para o Taurus, carregando a pasta, olhando firme para a frente.

Deu a ré pela entrada da garagem, roçando a vegetação dos dois lados, e saiu pela estradinha. Virou à direita, para o sul, pela estrada silenciosa da qual saíra para encontrar a casa. A cidade de Brighton aparecia nítida à frente. A estrada se alargava e seguia suavemente para lá. Passava por um posto de gasolina e outro de bombeiros. Um pequeno parque municipal com uma quadra de beisebol. Um supermercado com um grande estacio­namento, um banco, uma série de lojinhas na mesma fachada, recuada em relação à rua.

O estacionamento do supermercado parecia ser o centro geográfico da cidade. Ele passou devagar e viu uma creche, com uma fileira de va­sos de folhagens irrigados por um sprinkler, formando um arco-íris sob o sol. Depois, um grande galpão vermelho e desbotado, com seu próprio estacionamento: Ferragens Steven. Entrou com o Taurus e estacionou junto a um depósito de madeira, nos fundos.

A entrada era uma porta insignificante na extremidade do galpão. Dava para um labirinto de corredores lotados de coisas que ele jamais precisaria comprar. Parafusos, pregos, porcas, ferramentas manuais, ferramentas elé­tricas, latas de lixo, caixas de correio, painéis de vidro, molduras de janelas, portas, latas de tinta. O labirinto conduzia ao centro, onde quatro balcões formavam um quadrado iluminado por lâmpadas fluorescentes. Dentro deste curral, estavam um homem e dois garotos, vestiam calças, camisetas e aventais vermelhos de lona. O homem era magro e pequeno, em torno dos cinqüenta anos, e os garotos eram nitidamente seus filhos, versões mais jovens do mesmo rosto e físico, talvez uns 18 e 20 anos.

Ed Steven? — perguntou Reacher.

O homem assentiu e voltou a cabeça para ele, levantando as sobran­celhas como alguém que passara trinta anos lidando com as demandas de vendedores e clientes.

Posso conversar com você sobre Victor Hobie?

O homem fitou-o inexpressivamente por um segundo e desviou o olhar para os filhos, como se voltasse no tempo, percorrendo todas as suas vidas e além, até a época em que soube de Victor Hobie pela última vez.

Ele morreu no Vietnã, não foi? — perguntou de volta.

Preciso de algumas informações.

Investigando para os pais dele, de novo? — Perguntou sem demons­trar surpresa, também com um certo cansaço. Como se os problemas dos Hobie fossem bem conhecidos na cidade e tolerados pacientemente, mas sem qualquer emoção ou simpatia urgente.

Reacher concordou.

Preciso ter uma idéia do tipo de pessoa que ele era. Parece que você o conheceu muito bem.

O olhar de Steven voltou a ficar inexpressivo.

Bem, eu conheci, acho. Mas éramos apenas garotos. Eu estive com ele apenas uma vez depois do colegial.

Poderia me falar dele?

Estou muito ocupado e também tenho que descarregar um material.

Eu poderia dar uma mão, e a gente conversaria enquanto isso.

Steven começou a ensaiar um não rotineiro, mas, ao olhar para Reacher, percebeu seu tamanho e sorriu como um empregador a quem ofereceram uma empilhadeira de graça.

Ok — respondeu ele. — Lá atrás.

Ele saiu do quadrado e levou Reacher até uma porta dos fundos. Uma caminhonete empoeirada estava parada ao sol, junto a um galpão aberto com telhado de zinco. A caminhonete estava carregada com sacos de ci­mento.

As prateleiras do galpão aberto estavam vazias. Reacher tirou o casaco e o colocou sobre o capô do carro.

Os sacos eram de papel grosso. Ele sabia, do seu tempo com o pessoax das piscinas, que, se usasse as duas mãos no meio dos sacos, eles se dobra­riam e poderiam abrir. A maneira certa era enfiar a palma por um canto e erguê-los com uma só mão. Isso também evitaria a poeira na camisa nova. Os sacos pesavam 45 quilos, então ele ergueu dois de cada vez, um em cada mão, equilibrando-os distantes do seu corpo. Steve o observava como se fosse uma atração secundária de um circo.

Então, me fale de Victor Hobie — grunhiu Reacher. Steven deu de ombros. Estava apoiado num poste, sob o telhado de zinco, protegido do sol.

Faz muito tempo — disse. — O que posso dizer? Não passávamos de garotos, sabe? Nossos pais participavam juntos da Câmara de Comércio. O dele era gráfico. O meu tocava esse lugar, ainda que na época fosse apenas uma madeireira. Estivemos juntos durante toda a escola. Entramos para o jardim no mesmo dia e nos formamos no colegial no mesmo dia. Depois disso, só estive uma vez com ele, quando voltou para casa, do Exército. Tinha passado um ano no Vietnã e ia voltar para lá.

E que tipo de cara ele era?

Steven deu de ombros novamente.

Não me sinto muito à vontade para dar uma opinião.

Por quê? Alguma má notícia por aí?

Não, não, nada disso — disse Steven. — Nada a esconder. Era um bom garoto. Mas eu estaria dando a opinião de um garoto sobre outro garoto de 35 anos atrás, certo? Pode não ser uma opinião confiável.

Reacher parou, um saco de 45 quilos em cada mão. Olhou de volta para Steven. Ele estava encostado no poste, com seu avental vermelho, magro e firme, a imagem exata do que Reacher considerava um americano caute­loso, dono de um comércio numa cidade pequena. O tipo de sujeito cujo julgamento poderia ser considerado razoavelmente sólido. Ele concordou.

Certo, eu entendo. Vou levar isso em consideração.

Steven assentiu de volta, como se as regras do jogo estivessem claras.

Quantos anos você tem?

Trinta e oito.

É daqui?

Reacher balançou a cabeça.

Não sou de nenhum lugar muito certo.

Certo, uma ou duas coisas que você precisa entender. Esta é uma ci­dade pequena, de subúrbio, e eu e Victor nascemos aqui, em 1948. Já tínha­mos 15 anos quando Kennedy foi morto, 16 antes da chegada dos Beatles e 20, quando ocorreram aquelas revoltas em Chicago e em Los Angeles. Você sabe do que estou falando?

Um mundo diferente — respondeu Reacher.

Pode apostar que era mesmo — concordou Steven. — Nós cresce­mos num mundo diferente. Toda a nossa infância. Para nós, um garoto ousado era aquele que colocava cartas de beisebol nas rodas de sua bicicleta Schwinn. É preciso ter isso em mente para ouvir o que vou dizer.

Reacher concordou. Ergueu o nono e o décimo sacos da traseira da ca­minhonete. Estava suando um pouco, preocupado com o estado da camisa quando encontrasse com Jodie, em breve.

Victor era um garoto muito correto — disse Steven. — Muito correto e normal. E, como eu disse, para fins de comparação, isso foi numa época em que a gente achava que era a cereja do sundae por ficar na rua depois das nove numa noite de sábado, bebendo milk shakes.

Ele se interessava pelo quê? — perguntou Reacher.

Steven suspirou, após encher as bochechas de ar, e deu de ombros.

O que posso dizer? As mesmas coisas que o restante de nós, acho. Beisebol, Mickey Mantle. A gente gostava do Elvis, também. Sorvete e do Cavaleiro Solitário. Coisas assim. Tudo normal.

O pai disse que ele sempre quis ser soldado.

Todos queríamos. Primeiro, eram os caubóis e os índios, depois, os soldados.

Então, você foi para o Vietnã?

Steven balançou a cabeça.

Não, eu passei da fase daquela história de soldado. Não que eu de­saprovasse. Você tem que entender que isso foi antes, muito antes de toda aquela história dos cabeludos chegar aqui. Ninguém se opunha aos mi­litares. Eu também não tinha medo. Naquela época, não tínhamos nada a temer. Éramos os EUA, certo? Chegaríamos lá e chutaríamos a bunda daqueles amarelos de olho puxado, seis meses, no máximo. Ninguém se preocupava sobre ir para lá. Só que parecia fora de moda. A gente respei­tava aquilo, adorava as histórias, mas parecia coisa do passado, entende o que digo? Eu queria entrar para os negócios. Queria transformar o pátio do meu pai numa grande empresa. Parecia a coisa certa a ser feita. Para mim, parecia uma coisa mais americana do que entrar para o Exército. Naquela época, parecia tão patriótico quanto.

Então você escapou da convocação? — perguntou Reacher.

Steven concordou.

A junta militar me convocou, mas eu estava esperando a confirma­ção para a faculdade, e eles me deixaram passar. O meu pai era amigo do presidente da junta, o que não fez mal a ninguém.

E como Victor reagiu a isso?

Numa boa. Não tinha nenhum problema. Eu não era anti-guerra nem nada. Apoiava o Vietnã, como todo mundo. Era apenas uma escolha pessoal, entre o ontem e o amanhã. Eu queria o amanhã, Victor queria o Exército. Ele meio que sabia que aquilo era bem... sério. A verdade é que ele foi muito influenciado pelo pai, que foi reformado na Segunda Guerra. O meu pai foi da infantaria, serviu no Pacífico. Acho que o Victor meio que achava que sua família não tinha feito a parte dela. E ele então queria fazer isso, como um dever. Parece meio antiquado agora, não é? O dever? Mas todo mundo pensava assim naquela época. Sem chance de comparação com a molecada de hoje. A gente era muito sério e antiquado por aqui, Victor talvez fosse um pouco mais do que o restante de nós. Muito sério, muito honesto, mas não muito mais do que o normal.

Reacher já tinha carregado três quartos dos sacos. Parou e descansou apoiado na porta da caminhonete.

Era inteligente?

O suficiente — disse Steven. — Ia bem na escola, mas não era bri­lhante. Tinha uns outros meninos por lá que, com o passar dos anos, foram ser advogados, médicos, essas coisas. Um deles foi para a NASA, um pouco mais jovem do que eu e Victor. Ele era bem inteligente, mas se esforçava, eu lembro.

Reacher voltou para os sacos. Encheu as prateleiras mais distantes pri­meiro, o que achou bom, pois os braços começavam a doer.

Alguma vez ele se meteu em confusão?

Steven pareceu impaciente.

Confusão? Você não me ouviu direito, meu caro. Victor era o senhor certinho, numa época em que o pior moleque seria um anjo nos dias de hoje.

Faltavam seis sacos. Reacher esfregou a palma das mãos nas calças.

Como foi quando você esteve com ele dá última vez? Entre as duas temporadas?

Steven parou para pensar.

Um pouco mais velho, acho. Eu tinha envelhecido um ano, ele pare­cia ter envelhecido cinco. Mas não estava diferente. O mesmo cara. Sério, dedicado. Fizeram um desfile para ele quando voltou para casa porque ti­nha ganhado uma medalha. Ele ficou muito constrangido, disse que a me­dalha não era nada. Depois, foi embora de novo e nunca mais voltou.

Como você se sentiu?

Steven fez outra pausa.

Bem mal. Era um cara que eu conhecia a vida toda. Eu preferia que ele tivesse voltado, é claro, mas achei bom que não voltasse numa cadeira de rodas ou algo do tipo, como tantos deles.

Reacher terminou o trabalho. Ajeitou o último saco na prateleira com o punho e apoiou-se no poste, do lado oposto a Steven.

E sobre o mistério? Sobre o que aconteceu com ele?

Steven balançou a cabeça e sorriu com tristeza.

Não tem mistério. Ele foi morto, e os dois velhos se recusam a aceitar três verdades desagradáveis, é tudo.

Que são...

Simples — disse Steven. — A primeira verdade é que o filho deles morreu. A segunda é que morreu no meio de uma floresta impenetrável, onde ninguém vai encontrá-lo. A terceira é que o governo foi desonesto com as coisas daquela época e parou de incluir os desaparecidos entre os mortos, para manter os números dentro do razoável. Eram uns... quantos? Uns dez rapazes no helicóptero de Vic quando ele foi derrubado? São dez nomes que eles vão manter longe dos telejornais. Foi a política adotada, e agora é tarde demais para admitirem alguma coisa.

É o que você acha?

Com certeza — disse Steven. — A guerra ficou ruim, e o governo ficou ruim com ela. Bem difícil para minha geração aceitar, é o que eu te digo. Vocês, que são mais novos, talvez fiquem mais à vontade com isso, mas é melhor acreditar que os mais velhos, como os Hobie, nunca vão en­tender isso.

Ele ficou em silêncio e olhou distraidamente da caminhonete vazia para as prateleiras cheias.

Você carregou uma tonelada de cimento aí. Quer entrar para se lavar? Posso te pagar um refrigerante?

Preciso comer — disse Reacher. — Perdi o almoço.

Steven assentiu e sorriu tristemente.

Siga para o sul. Tem uma lanchonete logo depois da estação de trem. É onde a gente costumava tomar milk shakes, nos sábados, depois das nove, achando que éramos praticamente Frank Sinatra.

A lanchonete obviamente fora reformada várias vezes desde que aqueles meninos ousados, com cartas de jogadores de beisebol presas nas rodas de suas bicicletas, ficavam lá nas noites de sábado bebendo milk shakes. Agora tinha um jeitão meio anos 1970, baixa e quadrada, com uma fachada de ti­jolos, telhado verde, luzes néon estilo anos 1990, com desenhos elaborados em todas as janelas, em tons cor-de-rosa choque e azul. Reacher carregou a pasta de couro consigo e abriu a porta para fora, entrando no ar gelado com odor de hambúrgueres, freon do ar condicionado e do produto forte que usavam nas mesas antes de passarem um pano nelas. Sentou-se no balcão, e uma garota grande e alegre, de vinte e poucos anos, enquadrou-o, colo­cando um prato, talheres e um guardanapo diante dele, entregou-lhe um cardápio do tamanho de um mural, com fotografias dos pratos ao lado das descrições por escrito. Ele pediu um hambúrguer grande, com queijo suíço, malpassado, salada de repolho e cebolas, e fez uma polpuda aposta consigo mesmo de que o sanduíche não se pareceria nem um pouco com a fotogra­fia. Bebeu a água gelada e encheu de novo o copo, antes de abrir a pasta.

Concentrou-se nas cartas de Victor para os pais. Eram 27 no total, 13 dos postos de treinamento e 14 do Vietnã. Confirmavam tudo o que Ed Steven dissera. Gramática e ortografia corretas, frases curtas e objetivas. A mesma caligrafia que todas as pessoas alfabetizadas nos Estados Unidos usavam entre os anos 1920 e os 1960, mas com uma inclinação para trás. Um canhoto. Nenhuma das 27 cartas passava de algumas linhas na segunda página. Uma pessoa aplicada. Alguém que sabia não ser muito educado finalizar uma carta pessoal na primeira página. Uma pessoa educada, apli­cada, canhota, banal, convencional e normal, com uma formação sólida, sem ser nenhum gênio.

A garota lhe trouxe o hambúrguer. Estava correto, mas muito diferente do banquete gigante mostrado na foto do cardápio. O repolho boiava em vinagre branco num copinho de papel, e as cebolas empanadas estavam grossas e uniformes, como pequenos pneus marrons. As fatias de queijo suíço eram tão finas que chegavam a ser transparentes, mas tinham gosto de queijo.

A foto tirada após a formatura em Rucker era mais difícil de interpretar. Estava fora de foco, e a aba do quepe deixou os olhos de Victor na sombra. Seus ombros estavam para trás, o corpo tenso. Cheio de orgulho ou com vergonha da mãe? Era difícil dizer. No fim, Reacher votou no orgulho, por causa da boca. Uma linha fina, levemente curvada para baixo nas extremi­dades — o tipo de boca que exige um controle firme dos músculos faciais para impedir um enorme sorriso de alegria. A fotografia de um sujeito no momento máximo de sua vida até então. Todas as metas atingidas, todos os sonhos realizados. Duas semanas depois, estava embarcado. Reacher per­correu as cartas em busca do bilhete enviado em trânsito. Fora escrito de um beliche, antes do embarque. Enviado por um escriturário, no Alabama. Frases sóbrias, uma página e um quarto da segunda. As emoções cuidado­samente controladas. Não comunicava nada, de fato.

Ele pagou a conta e deixou dois dólares de gorjeta para a garçonete, por sua animação. Será que ela escreveria uma página e um quarto comportada de coisa nenhuma no dia em que estivesse de partida para a guerra? Não, mas ela jamais estaria de partida para a guerra. O helicóptero de Victor foi abatido uns sete anos antes de ela nascer, e o Vietnã a fez sofrer somente nas aulas de história do terceiro ano do ensino médio.

Ainda era cedo demais para voltar direto para Wall Street. Jodie dissera sete horas. Teria que matar pelo menos umas duas horas, no mínimo. En­trou no Taurus e ligou o ar-refrigerado no máximo, para expulsar o calor. Depois, esticou o mapa da Hertz sobre o couro rígido da pasta e traçou a rota para sair de Brighton. Poderia pegar a rota 9, para o sul até a alameda Bear Mountain, seguir para o leste pela Bear até a Taconic, virando para o sul até a Sprain, que o levaria direto para a alameda Bronx River. Pela Bronx, ele iria direto para os Jardins Botânicos, um lugar que jamais visita­ra e que tinha muita vontade de conhecer.

 

Marilyn almoçou um pouco depois das três. Conferiu o trabalho da equipe de limpeza antes de os liberar; estava tudo perfeito. Usaram um vaporizador para limpeza no tapete do saguão, não porque estivesse sujo, mas por ser a melhor forma de recuperar a parte amassada pelos pés da cômoda. O vapor fez com que as fibras de lã se avolumassem, e, após uma aplicação caprichada, ninguém diria que um móvel pesado ficara ali.

Ela tomou um banho demorado e secou o boxe com uma toalha de papel, para deixar os ladrilhos secos e brilhantes. Penteou e deixou o ca­belo secar naturalmente. Sabia que a umidade de junho aumentaria sua ondulação. Depois, vestiu-se com apenas uma peça de roupa. A favorita de Chester, um vestido de seda cor-de-rosa escuro, que funcionava melhor sem nada por baixo. Ficava um pouco acima do joelho e, apesar de não chegar a ser apertado, ajustava-se nos lugares certos, como se tivesse sido feito sob medida para ela, o que era a verdade, ainda que Chester não sou­besse disso. Ele achou que fora apenas um golpe de sorte. Ela achou bom deixá-lo com essa impressão, não por causa do dinheiro, mas por ela se sen­tir... bem... um pouco despudorada por mandar fazer algo tão sexy para si mesma. E o efeito sobre ele era, com toda certeza, despudorado. Era como um gatilho. Usava aquele vestido quando achava que ele merecia alguma compensação. Ou distração. E ele ia precisar de distração naquela noite. Chegaria e encontraria a casa à venda e a esposa assumindo o comando. Por qualquer dos antigos ângulos que ela olhasse para a situação, sabia que seria uma noite difícil e estava disposta a usar qualquer vantagem disponí­vel, despudorada ou não.

Ela escolheu o sapato Gucci de salto alto, que combinava com a cor do vestido e fazia com que suas pernas parecessem longas. Voltou para a cozinha, almoçou uma maçã e um pedaço de queijo sem gordura. Subiu de volta, escovou os dentes mais uma vez e pensou na maquiagem. Nua sob o vestido e o cabelo em estilo natural, o certo seria não usar maquiagem al­guma, mas aceitava que seria um pouco demais para si mesma e encarou a longa tarefa de se maquiar de forma a parecer que nem se dera ao trabalho.

Levou vinte minutos, depois fez as unhas das mãos e dos pés, pois acha­va que ficaria descalça em pouco tempo. Passou seu perfume favorito, ape­nas para ser percebido, sem tomar conta do ambiente. O telefone tocou nesse momento. Era Sheryl.

— Marilyn? — disse ela.

Seis horas no mercado e você já tem um interessado!

Tenho? Mas quem? E como?

Eu sei, no primeiro dia, antes mesmo de você anunciar, não é ma­ravilhoso? Trata-se de um cavalheiro que está se mudando com a família e passou pela área, para sentir o local, e viu a placa. Veio direto falar comigo para discutir os detalhes. Você está pronta? Posso levá-lo aí?

Nossa, agora? Assim? Isso foi rápido! Mas sim, acho que estou pron­ta. Quem é, Sheryl? Você acha que é um comprador sério?

Com toda a certeza e vai estar aqui apenas hoje. Amanhã precisa voltar para o oeste.

Certo, então pode trazê-lo. — Estarei pronta.

Ela se deu conta de que estivera ensaiando toda a rotina, de maneira inconsciente, sem de fato perceber. Apressou-se, mas sem se atrapalhar. Desligou o telefone e foi direto para a cozinha colocar o forno em fogo baixo. Colocou uma colher de grãos de café num pires e o pôs na prateleira do meio. Fechou o forno e foi para a pia. Jogou o miolo da maçã no lixo e deixou o prato na lavadora. Secou a pia com papel toalha e chegou para trás, as mãos na cintura, avaliando a situação. Foi até a janela e posicionou a persiana para que a luz brilhasse no piso.

Perfeito — disse a si mesma.

Correu de volta para cima e começou pelo segundo andar. Entrou em todos os quartos, examinando, verificando, arrumando as flores, inclinan­do as persianas, afofando os travesseiros. Acendeu as luzes por toda parte. Tinha lido que acender as luzes depois de o comprador já estar no ambiente era uma mensagem clara de que a casa era escura. Melhor deixar tudo aceso desde o princípio, uma mensagem clara de boas-vindas entusiasmadas.

Apressou-se para descer as escadas. Na sala de estar, abriu as persia­nas, para mostrar a piscina. No estúdio, acendeu as lâmpadas de leitura e inclinou a persiana até quase fechar, para criar um ambiente aconchegante. Depois, foi para a sala de visitas. Merda, a mesinha lateral de Chester ainda estava lá, bem ao lado de onde ficara a poltrona. Como pode não ter visto isso? Agarrou-a com as duas mãos e correu para as escadas do porão. Ouviu o carro de Sheryl nos cascalhos. Abriu a porta do porão, desceu correndo, largou a mesa lá e correu de volta. Fechou a porta e foi para o lavabo. Alisou a toalha de convidados, ajeitou o cabelo e olhou-se no espelho. Meu Deus! Estava usando o tubinho de seda. Sem nada por baixo. A seda prendia-se à pele. Que diabos esse pobre sujeito ia pensar?

A campainha tocou. Ficou gelada. Daria tempo de se trocar? Claro que não. Já estavam na porta, tocando a campainha. Algum casaco? A campai­nha tocou novamente. Respirou fundo, agitou o quadril para soltar o tecido e foi para a entrada. Respirou novamente e abriu a porta.

Sheryl olhou surpresa para ela, mas Marilyn já olhava para o compra­dor. Um homem alto, de 50 ou 55 anos, grisalho, usando um terno escuro, um pouco de lado, olhando para trás, para as folhagens ao longo do acesso para a garagem. Ela olhou para baixo, para os sapatos, Chester sempre dizia que a riqueza e a educação aparecem nos pés. Pareciam muito bons. Sapa­tos Oxford pesados, muito bem-engraxados. Ela esboçou um sorriso. Seria isso mesmo? Uma venda em seis horas? Seria algo incrível. Sorriu com ar conspiratório para Sheryl e virou-se para o homem.

— Entrem — disse animadamente e estendeu a mão.

Ele desviou o rosto do jardim para fitá-la. Olhou direto para ela, aberta e ostensivamente. Ela se sentiu nua sob seu olhar. Estava quase nua. Mas acabou devolvendo o olhar, porque viu sua terrível queimadura. Um dos lados da cabeça era apenas uma massa de cicatrizes rosadas e brilhantes. Manteve o sorriso educado congelado no rosto e a mão estendida. Ele fez uma pausa. Ergueu a mão ao encontro dela. Mas não era uma mão. Era um gancho de metal brilhante. Não se tratava de uma mão artificial, tampou­co de um dispositivo protético elaborado, apenas um metal curvo de aço brilhante.

 

Reacher estava no meio-fio diante do prédio de sessenta andares em Wall Street dez minutos antes das sete. Manteve o motor ligado e percorreu um triângulo com os olhos, começando na porta de saída do prédio e avan­çando lateralmente pela praça até uma distância em que alguém poderia se aproximar dela antes dele.

Não havia ninguém dentro do triângulo que o preocupasse. Ninguém parado, ninguém observando, apenas o fluxo estreito de trabalhadores de escritórios esbarrando uns nos outros, os paletós nos braços, pesadas male­tas nas mãos. A maioria virando para a esquerda na calçada, seguindo para o metrô. Alguns se desviando dos carros no meio-fio para pegar um táxi no meio do trânsito.

Os demais carros estacionados eram inofensivos. Uma caminhonete da UPS estacionada duas vagas à frente e dois veículos de empresas com os motoristas parados próximos a eles, procurando seus passageiros. A agi­tação inocente no fim cansativo de um dia cheio. Reacher recostou-se de volta ao assento para esperar, os olhos percorrendo a esquerda e a direita, para a frente e para trás, sempre retornando para a porta giratória.

Ela saiu antes das sete, antes do que ele esperava. Pôde vê-la pelo vidro, na portaria. Viu seu cabelo e o vestido, o movimento das pernas quando ela saiu de lado, para a saída. Imaginou se ela não teria apenas ficado à espera, lá no alto. O tempo era plausível. Ela poderia ter visto o carro pela janela e ido direto para o elevador. Ela empurrou a porta e saiu para a calçada. Ele saiu do carro, deu a volta pela frente até a calçada e ficou esperando. Ela carregava a valise de tripulante de avião. Passou por uma faixa de sol, e seu cabelo iluminou-se como uma auréola. Sorriu a uns dez metros dele.

Olá, Reacher! — exclamou.

Olá, Jodie — respondeu ele.

Ela sabia de alguma coisa. Dava para ver no seu rosto. Tinha ótimas notícias para ele, mas sorria como se pretendesse provocá-lo.

O que foi? — perguntou ele.

Ela sorriu de novo e balançou a cabeça.

Você primeiro, ok?

Sentaram-se no carro, e ele contou tudo o que ouvira do velho casal. Ela ficou sombria, seu sorriso se apagou. Ele lhe entregou a pasta de couro para que desse uma olhada no conteúdo, enquanto ele enfrentava o tráfego numa volta estreita no sentido anti-horário para ficarem de frente para a Broadway, para o sul, a duas quadras do prédio dela. Ele estacionou junto ao meio-fio, na frente de um café. Ela lia o relatório de reconhecimento de Rutter e estudava a fotografia do homem grisalho e emaciado junto com o soldado asiático.

Incrível — disse ela em voz baixa.

Me dê suas chaves — respondeu ele. — Peça um café, e eu volto a pé para cá depois de verificar que seu prédio está ok.

Ela não fez objeção. A fotografia a deixara abalada. Apenas pegou as chaves na bolsa, saiu do carro e cruzou a calçada direto para o café. Ele a observou entrar e saiu com o carro, descendo para o sul. Entrou direto na garagem dela. Era um carro diferente e achou que, se alguém estivesse à espera, hesitaria por tempo suficiente para dar a ele a vantagem de que po­deria precisar. Mas a garagem estava tranqüila. Apenas o mesmo conjunto de veículos estacionados, como se não tivessem saído de lá o dia inteiro. Ele estacionou o Taurus na vaga certa e subiu pela escada de metal até a por­taria. Ninguém lá. Ninguém no elevador, ninguém no corredor do quarto andar. A porta do apartamento estava intacta. Ele abriu e entrou. Silêncio, o ar parado. Ninguém lá.

Voltou para a portaria pela escada e saiu para a rua pela porta de vidro. Subiu as duas quadras e entrou no café, encontrando-a sozinha, numa mesa cromada, lendo as cartas de Victor Hobie, um expresso intocado ao lado do cotovelo.

Você vai beber isso? — perguntou ele.

Ela deixou a foto da selva por cima das cartas.

Isso tem grandes implicações — disse ela.

Para ele, aquilo fora um não. Ele pegou a xícara e engoliu o café de uma só vez. Tinha esfriado um pouco e estava maravilhosamente forte.

Vamos lá — disse ela. Deixou que ele carregasse sua valise e deu-lhe o braço para a caminhada de duas quadras. Ele devolveu as chaves da porta, e entraram juntos na portaria, subiram em silêncio no elevador. Ela abriu o apartamento e entrou antes dele.

Então é o pessoal do governo que está atrás da gente — disse ela.

Ele não respondeu. Apenas se livrou do casaco novo e o deixou no sofá, sob a cópia do Mondrian.

Só pode ser — continuou.

Ele foi até a janela e afastou as persianas. As últimas luzes do dia brilha­ram na sala branca.

Estamos próximos dos segredos desses campos de prisioneiros — disse ela. — E por isso o governo quer nos silenciar. A CIA ou alguém.

Ele foi até a cozinha. Abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água.

Estamos em grande perigo — continuou. — Você não parece muito preocupado.

Ele deu de ombros e bebeu um gole-d'água. Estava muito gelada. Pre­feria natural.

A vida é muito curta para a gente se preocupar — respondeu.

Papai estava preocupado. Seu coração até piorou.

Ele concordou.

Eu sei. Sinto muito.

Então porque você não está levando a sério? Não acredita?

Acredito. Acredito em tudo o que me contaram.

E a fotografia é a prova, certo? O lugar existe, é óbvio.

Sei que existe. Estive lá.

Ela olhou para ele.

Você esteve lá? Quando? Como?

Não faz muito tempo. Cheguei tão perto quanto esse tal de Rutter.

Meu Deus, Reacher! O que você vai fazer então?

Vou comprar uma arma.

Não, temos que falar com a polícia. Ou, quem sabe, com os jornais. O governo não pode fazer isso.

Você me espera aqui, ok?

Aonde você vai?

Vou comprar uma arma. E, depois, uma pizza para a gente. Eu trago para cá.

Você não pode comprar uma arma, não na cidade de Nova York, pelo amor de Deus! Existem leis. Você precisa de uma identificação, autori­zações e ainda precisa esperar cinco dias, de qualquer jeito.

Posso comprar uma arma em qualquer lugar. Principalmente, na ci­dade de Nova York. Você quer pizza de quê?

Você tem dinheiro o suficiente?

Para a pizza?

Para a arma.

A arma vai sair mais barato do que a pizza. Tranque a porta depois que eu sair, está bem? E não abra, a não ser que veja que sou eu pelo olho mágico.

Ele a deixou plantada no meio da cozinha. Desceu pela escada até a por­taria e ficou no meio da calçada por tempo suficiente para se entender com a geografia. Havia uma pizzaria descendo a quadra. Foi até lá e pediu uma grande, metade anchova e alcaparra, metade calabresa, para a viagem. Ele buscaria em meia hora. Depois, desviou do tráfego na Broadway e seguiu para a direita. Já estivera em Nova York muitas vezes para saber que o que diziam era verdade. Tudo acontece rápido por lá. As coisas mudam rápido. Em termos cronológicos e em termos geográficos. Um bairro se mistura com outro em poucas quadras. Às vezes, a parte da frente de um edifício é um paraíso da classe média, e, nos fundos, um monte de vagabundos dor­me no beco. Ele sabia que uma caminhada rápida de dez minutos o levaria a mundos bem distantes dos apartamentos caros da área de Jodie.

Achou o que estava procurando nas sombras sob o acesso para a ponte do Brooklyn. Um emaranhado de ruas abrigava-se ali, e um gigantesco pro­jeto residencial espalhava-se para o norte e para o leste. Algumas lojinhas entulhadas e uma quadra de basquete com correntes em lugar da rede sob os aros. O ar estava quente e úmido, tomado por fumaça e barulho. Ele virou a esquina e parou, apoiando-se no alambrado, com os ruídos do jogo de basquete atrás, observando a colisão de dois mundos. O fluxo rápido dos carros e das pessoas caminhando apressadas, e uma quantidade equivalente de carros parados com motores ligados e grupos de pessoas ao redor. Os carros em movimento desviavam dos que estavam parados, buzinando e acelerando, e os pedestres empurravam e reclamavam, desviando pelas sar­jetas dos grupos de desocupados. Algumas vezes, um carro fazia uma para­da rápida e um garoto disparava para a janela do motorista. Uma conversa rápida e o dinheiro trocava de mãos como num passe de mágica. O garoto corria de volta, entrava por uma porta e desaparecia. Minutos depois esta­va de volta, correndo para o carro. O motorista olhava para os dois lados, aceitava o pacotinho e se metia de volta no trânsito, em meio a uma nuvem de fumaça do escapamento e ao som das buzinas. O garoto então voltava para a calçada e esperava.

Algumas vezes, a negociação era a pé, mas o esquema era sempre o mesmo. Os garotos eram avião. Levavam o dinheiro para dentro e traziam os pacotes para fora, jovens demais para ir a julgamento. Reacher os ob­servava usando três portas em especial, espaçadas ao longo da fachada do prédio. A do meio era a mais movimentada. O dobro, em termos de volume comercial. Era o décimo primeiro prédio, a partir da esquina de baixo. Ele se afastou da cerca e virou para a direita. Um terreno vazio mais à frente permitia ver uma pedaço do rio. A ponte rugia sobre sua cabeça. Ele virou para o norte e entrou por um beco estreito por trás dos prédios. Olhou adiante, enquanto caminhava, e contou 11 saídas de incêndio. Desceu o olhar para o nível do solo e viu um sedã preto estacionado no espaço es­treito junto à entrada de serviço do décimo primeiro prédio. Um garoto de uns 19 anos sentado no capô tinha um telefone celular na mão. O guarda da porta dos fundos, o nível seguinte da escala em relação a seus irmãozinhos correndo para cima e para baixo pela calçada.

Não havia mais ninguém por perto. O garoto estava sozinho. Reacher seguiu pela viela. A maneira certa de fazer isso era caminhar apressado, olhando para algo bem além de seu alvo. Fazer com que o rapaz achasse que não tinha nada a ver com coisa alguma. Reacher fingiu, conferindo o relógio e olhando bem à frente, na distância. Apressou-se pelo caminho, quase correndo. No último minuto, desviou os olhos para o carro, como se tivesse sido puxado de volta ao presente por um súbito obstáculo. O garoto olhava para ele. Reacher se desviou para a esquerda, onde sabia que o ângu­lo do carro não permitiria sua passagem. Parou exasperado e desviou para a direita, virando com a fúria reprimida de um homem apressado retido por um incômodo. Jogou o braço esquerdo ao virar e acertou o garoto em cheio no lado da cabeça. O garoto despencou, e Reacher o acertou de novo, com a direita, apenas um golpe curto, quase gentil. Não havia motivo para mandá-lo para o hospital.

Deixou-o escorregar pelo capô, sem ajuda, para avaliar a extensão do nocaute. Uma pessoa consciente sempre amortece a queda. O garoto não. Caiu no chão da viela com uma batida seca. Reacher o virou e conferiu seus bolsos. Tinha uma arma, mas não era o tipo de coisa que ele levaria orgu­lhoso para casa. Era uma pistola chinesa, calibre 22, um tipo de imitação de alguma coisa soviética, provavelmente inútil, para início de conversa. Ele a jogou para fora de alcance, debaixo do carro.

Sabia que a porta dos fundos do prédio estaria destrancada, pois essa é a finalidade das portas dos fundos quando a pessoa está tocando negócios tão lucrativos a 150 metros da delegacia. Eles vêm pela frente, e você precisa ter como sair pelos fundos sem se preocupar em ter que achar a chave. Abriu a porta ligeiramente com o pé, olhando para a escuri­dão. Uma porta interna no corredor escuro, à direita, dando para uma sala com a luz acesa. A uns dez passos de distância.

Nenhum motivo para esperar. Não fariam uma pausa para o jantar. Ele percorreu os dez passos e parou diante da porta. O prédio cheirava a decadência, suor e urina. Estava em silêncio. Um prédio abandonado. Ele ouviu. Uma voz baixa vinha da sala. Depois, uma resposta. Duas pessoas, no mínimo.

Escancarar a porta e ficar parado tomando pé da cena lá dentro não era a maneira certa de agir. O sujeito que para por um milésimo de segundo é aquele que morre antes de seus colegas. Reacher estimou que o prédio ti­nha uns 45 metros de largura, sendo que o corredor onde ele se encontrava devia ocupar um metro. Então planejou estar do outro lado dos 44 metros restantes dentro da sala antes mesmo de saberem que ele estava lá dentro. Ainda estariam olhando para a porta, imaginando quem mais viria atrás dele.

Tomou fôlego e arrombou a porta como se ela nem sequer existisse. Ela se espatifou nas dobradiças, e ele cruzou a sala em duas enormes passadas. Pouca luz. Uma única lâmpada. Dois homens. Pacotes na mesa. Dinhei­ro na mesa. Um revólver na mesa. Ele acertou o primeiro com um chute giratório na têmpora. O cara caiu de lado, e Reacher pegou-o com o joelho na barriga no caminho para o outro cara, que estava se levantando da ca­deira de olhos arregalados e a boca aberta, em choque. Reacher mirou no alto e o derrubou com um golpe do antebraço perfeitamente horizontal entre as sobrancelhas e o início da testa. Com força suficiente, é o bastante para apagar o sujeito por uma hora, mas seu crânio continua inteiro. Ele tinha saído para fazer compras, não para execuções.

Ficou parado, atento ao corredor. Nada. O sujeito na viela dormia, e o barulho da rua desviava a atenção dos garotos na calçada. Olhou para a mesa e desviou o olhar de novo, pois o revólver que estava ali era um Colt Detective Special. Um revólver calibre 38, de aço azulado com punho preto de plástico. Um cano curto de cinco centímetros. Nada bom. Nem de longe o tipo de coisa que ele estava procurando. O cano curto era um incômo­do, mas o calibre era frustrante. Lembrou-se de um policial de Louisiana que conhecera, capitão da polícia de alguma pequena jurisdição ribeirinha. O sujeito fora para a Polícia do Exército como consultor de armas de fogo, e Reacher recebera as instruções necessárias para tratar com ele. O sujeito contou várias histórias das desgraças causadas pelas armas calibre 38 que seus homens vinham usando. Disse que não se pode confiar nelas na hora de derrubar alguém, principalmente se o cara estiver indo para cima de você cheio de pó de anjo na cabeça. Contou a história de um suicida. O cara precisou dar cinco tiros de 38 na cabeça para dar cabo de si. Reacher ficou impressionado pela expressão de tristeza e decidira desde então ficar longe dos 38, uma política que não pretendia mudar agora. Deu as costas para a mesa e ficou parado, ouvindo novamente. Nada. Aproximou-se do sujeito que acertara na cabeça e vasculhou seu casaco.

Os negociantes mais ocupados ganham mais dinheiro, e quem ganha mais dinheiro compra os melhores brinquedos, e era por isso que estava naquele prédio, e não no dos outros rivais rua acima ou abaixo. Encontrou exatamente o que queria no bolso esquerdo interno do sujeito. Algo muito melhor do que um minúsculo Detective Special 38. Uma grande pistola automática preta, uma Steyr GB, uma bela nove milímetros, favorita de seus amigos das Forças Especiais durante a maior parte da carreira. Pegou a arma e a conferiu. O pente estava carregado com todas as 18 balas, e a câmara cheirava como se jamais tivesse sido usada. Puxou o gatilho e ob­servou o mecanismo se mover. Remontou a arma e enfiou-a no cinto, nas costas, e sorriu. Abaixou-se perto do sujeito desmaiando e sussurrou:

— Compro sua Steyr por um dólar. É só balançar a cabeça se isso for um problema, ok?

Sorriu de novo e se levantou. Tirou um dólar de seu maço de notas e deixou-o sob o revólver Detective Special, na mesa. Voltou para o corredor. Tudo calmo. Voltou os dez passos e saiu para a luz. Olhou para a direita e para a esquerda, viela acima e abaixo, e foi até o sedã estacionado. Abriu a porta do motorista, localizou a alavanca para abrir a mala. Lá dentro, en­controu apenas um bolsa de lona preta, vazia. Havia uma caixa pequena de munição de nove milímetros sob um emaranhado de fios vermelhos e pre­tos para conectar duas baterias. Ele colocou a munição na bolsa e afastou-se com ela. A pizza o esperava quando voltou para a Broadway.

 

Foi repentino. Aconteceu sem aviso. Assim que entraram em casa e a porta foi fechada, o homem bateu em Sheryl, um golpe maldoso, com as costas das mãos no rosto, ou com o que quer que houvesse dentro da manga vazia. Marilyn ficou congelada pelo choque. Viu o homem se virando com vio­lência, o gancho sendo erguido num arco brilhante. Ouviu o estalo úmido do braço acertando o rosto de Sheryl e cobriu a boca com as duas mãos, como se fosse fundamental que não gritasse. Viu o homem girando em sua direção, enfiando a mão esquerda sob o braço direito e tirando uma arma. Ela viu Sheryl caindo para trás, espalhada sobre o tapete, ainda estava úmi­do pela limpeza a vapor. Viu a arma percorrendo um arco em sua direção, o mesmo movimento usado antes, só que na direção inversa, direto para ela. O revólver era feito de um metal cinza, coberto de óleo. Era fosco, mas brilhava. Parou na altura de seu peito e ela olhou para baixo, observando a arma, e tudo o que conseguiu pensar foi então um revólver de metal de verdade é assim.

— Se aproxime — disse o homem.

Ela estava paralisada. As mãos coladas no rosto, os olhos tão arregala­dos que pareciam prestes a rasgar a pele.

Mais perto — repetiu ele.

Ela olhou para baixo, para Sheryl. Ela se esforçava, apoiada nos coto­velos. Os olhos vesgos e o sangue escorrendo do nariz. O lábio superior inchava, e o sangue pingava do queixo. Os joelhos estavam para cima, e a saia, aberta. Dava para ver a linha onde tecido fino da meia-calça ficava mais grosso, no alto. A respiração era entrecortada. Os cotovelos cederam, escorregaram para a frente, e os joelhos se abriram. A cabeça bateu no chão com um baque macio e virou para o lado.

Perto — disse o homem.

Ela o olhou no rosto. Era rígido. As cicatrizes pareciam plástico endu­recido. Um dos olhos era coberto pela pálpebra, grossa e áspera como um polegar. O outro era frio e não piscava. Ela olhou para a arma. Estava a trinta centímetros de seu peito. Imóvel. A mão que a segurava era lisa. As unhas bem-cuidadas. Ela avançou um quarto de um passo.

Mais.

Ela deslizou o pé para a frente até a arma tocar o tecido do vestido. Sen­tiu a firmeza e o frio do metal cinza atravessando a seda fina.

Mais perto.

Ela olhou para ele. Seu rosto estava a dois palmos do dela. No lado esquerdo, a pele era cinza e com pregas. O olho bom era cercado de rugas. O olho direito piscava. A pálpebra era lenta e pesada. Descia e depois subia, deliberadamente, como uma máquina. Ela se inclinou para a frente, dois centímetros. A arma pressionou seu peito.

Mais.

Ela moveu o pé. Ele reagiu com uma pressão equivalente da arma. O metal pressionava a carne macia, esmagando o seio. A seda era repuxada em uma cratera profunda. Puxava o mamilo para o lado. Estava machu­cando. O homem ergueu o braço direito. O gancho. Colocou-o diante de seus olhos. Uma curva de aço lisa, polida a ponto de brilhar. Girou-o lenta­mente, com um movimento estranho do antebraço. Ela ouviu o barulho do couro dentro da manga dele. A ponta do gancho fora trabalhada para ficar muito afiada. Ele girou a ponta para fora e apoiou a parte externa da curva em sua testa. Ela se encolheu. Era fria. Ele arrastou o gancho para baixo e percorreu a curva de seu nariz. Por baixo do nariz. Pressionou-o contra o lábio superior. Desceu mais e fez mais pressão, forçando-a a abrir a boca. Bateu suavemente contra seus dentes. O lábio inferior estava seco e grudou no metal. Ele arrastou o lábio para baixo com o aço até a pele tenra se soltar. Percorreu a curva do queixo. Desceu sob o queixo até a garganta. Subiu de novo poucos centímetros, sob o maxilar, até forçar a cabeça dela para cima, usando a força do ombro. Olhou-a nos olhos.

Meu nome é Hobie — disse.

Ela estava na ponta dos pés, tentando tirar a pressão da garganta. Co­meçava a engasgar. Não lembrava de ter respirado desde que abrira a porta.

O Chester falou de mim?

A cabeça dela inclinava-se para cima. Ela olhava para o teto. A arma enfiava-se em seu seio. Não estava mais fria. O calor do seu corpo aquecera o metal.

Ela balançou a cabeça, um movimento curto e urgente, apoiado sobre a pressão do gancho.

Ele não falou de mim?

Não — engasgou ela. — Por quê? Deveria ter falado?

Ele tem segredos?

Ela balançou a cabeça novamente. O mesmo movimento curto e ur­gente, de um lado para outro, a pele do pescoço repuxada nas duas direções contra o metal.

Ele falou com você sobre os problemas financeiros?

Ela piscou. Balançou a cabeça outra vez.

Então ele tem segredos.

Parece — disse, engasgada. — Mas eu sabia assim mesmo.

Ele tem alguma namorada?

Ela piscou de novo. Fez que não com a cabeça.

Como você pode ter certeza? — perguntou Hobie. — Se ele tem segredos...

O que você quer? — perguntou, arfando.


Mas acho que ele não precisa de uma namorada. Você é uma mulher muito bonita.

Ela piscou de novo. Estava na ponta dos dedos dos pés. Os saltos Gucci estavam fora do chão.

Acabei de lhe fazer um elogio — disse Hobie. — Você não deveria responder alguma coisa? Com educação?

Ele aumentou a pressão. O aço foi mais fundo na pele do pescoço. Ela tirou um pé do chão.

Obrigada — respondeu ela, arquejante.

O gancho diminuiu a pressão. Os olhos dela voltaram para a horizontal, e os saltos tocaram o tapete. Ela percebeu que respirava. Ofegante, para dentro e para fora, para dentro e para fora.

Uma mulher muito bonita.

Ele baixou o gancho para longe do pescoço dela. Tocou sua cintura. Percorreu a curva do quadril para baixo. Desceu pela coxa. Ele a fixava no rosto. A arma pressionava a carne com força. O gancho virou, e a parte de fora da curva subiu pela coxa, deixando a ponta para baixo. Voltou a descer. Ela sentiu quando passou da seda para sua perna nua. Era afiado. Não como uma agulha. Como a ponta de um lápis. Parou de se mover. Voltou a subir. Ele pressionava, suavemente, sem cortá-la. Ela sabia disso. Mas deixava um sulco sobre sua pele firme. Movia-se para cima. Deslizou sob a seda. Ela sentiu o metal contra a pele da coxa. Movendo-se para cima. Ela sentia a seda do vestido embolando e se acumulando sobre o gancho. Que subia. A barra atrás do vestido deslizava para cima, subindo por suas pernas. Sheryl agitou-se no chão. O gancho parou de se mover, e o pavoroso olho direito de Hobie girou lentamente para o lado e para baixo.

Coloque a mão no meu bolso — ordenou.

Ela olhou para ele.

Sua mão esquerda, no meu bolso direito.

Ela teve que chegar mais perto para alcançar o espaço mais abaixo, en­tre os braços dele. Seu rosto ficou próximo ao dele. Ele cheirava a sabonete. Apalpou em torno do bolso. Enfiou os dedos lá dentro e fechou-os sobre um pequeno cilindro. Puxou-o para fora. Era um rolo usado de fita vedante de dois centímetros de diâmetro. Prateada. Restando talvez uns cinco me­tros. Hobie afastou-se dela.

Prenda os pulsos de Sheryl.

Ela se retorceu nos quadris para que a barra do vestido voltasse para o lugar. Ele a observou fazendo isso e sorriu. Ela olhou do rolo de fita para Sheryl, caída no chão.

Vire-a — disse ele.

A luz que entrava pela janela iluminava a arma. Ela se ajoelhou ao lado de Sheryl. Empurrou um ombro e puxou o outro, até o corpo se virar diante dela.

Junte os cotovelos dela.

Ela hesitou. Ele moveu a arma uma fração para cima e depois o gancho, os braços abertos numa exibição de superioridade pelas armas. Ela torceu o rosto. Sheryl agitou-se novamente. O sangue formara uma poça no tapete. Marrom e pegajoso. Marilyn usou as duas mãos para juntar os cotovelos nas costas dela. Hobie olhou para baixo.

Coloque-os bem juntos.

Ela soltou a fita com a unha e puxou um pedaço. Enrolou em torno dos braços de Sheryl, logo abaixo dos cotovelos.

Apertado — disse ele. — Até em cima.

Ela deu várias voltas na fita, acima e abaixo dos cotovelos, até os pulsos. Sheryl tremia e se debatia.

Certo. Coloque-a sentada.

Ela arrastou a outra para que ficasse sentada, com os braços enrolados na fita para trás. O rosto era uma máscara de sangue. O nariz inchara e começava a ficar azul. Os lábios estavam intumescidos.

Coloque a fita em sua boca.

Ela usou os dentes para cortar um pedaço de uns quinze centímetros. Sheryl piscava, tentando focalizar os olhos. Marilyn encolheu os ombros diante dela, impotente, como um pedido de desculpas, e colou a fita sobre sua boca. Era uma fita grossa, com fibras de reforço fundidas ao revesti­mento de plástico prateado. Era brilhante, mas não escorregadia, devido às fibras entrecruzadas em relevo. Ela passou os dedos de um lado ao outro para grudá-la. As narinas de Sheryl começaram a borbulhar, e seus olhos se arregalaram, em pânico.

Meu Deus, ela não consegue respirar! — exclamou Marilyn.

Ela se apressou para soltar a fita de novo, mas Hobie chutou sua mão para longe.

Você quebrou o nariz dela — disse Marilyn. — Ela não pode respirar.

O revólver apontava para baixo, para a cabeça dela. Com toda a firme­za. A meio metro de distância.

Ela vai morrer!

Sem dúvida — respondeu Hobie.

Ela olhou para ele, horrorizada. O sangue fazia um ruído áspero, borbulhando pelas vias respiratórias fraturadas. Os olhos de Sheryl estavam tomados de pânico. Seu peito arfava. Os olhos de Hobie estavam cravados no rosto de Marilyn.

Você quer que eu seja bonzinho? — perguntou.

Ela concordou, com energia.

Você vai ser boazinha de volta?

Ela olhou para a amiga. O peito arfava convulsivamente, buscando o ar que não estava lá. A cabeça se movia de um lado para o outro. Hobie incli­nou-se para baixo e virou o gancho de forma que a ponta ficou raspando a fita sobre a boca de Sheryl enquanto ela sacudia a cabeça. Ele deu um golpe firme e forçou a ponta através da fita prateada. Sheryl congelou. Hobie mo­veu o braço, para cima para baixo, para a esquerda e para a direita. Puxou o gancho de volta. Deixara um buraco rasgado na fita, com o ar chiando para dentro e para fora. A fita era sugada e soprada contra os lábios dela, em seu esforço desesperado para respirar.

Eu fui bonzinho — disse ele. — Agora, você está me devendo, certo?

Sheryl sugava o ar com força pelo buraco na fita. Sua concentração esta­va toda ali. Os olhos virados para baixo, como se para confirmar que havia ar diante dela para que pudesse inspirar. Marilyn a observava, de cócoras sobre o salto alto, gelada de terror.

Ajude-a a ir para o carro — ordenou Hobie.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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