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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALMA / Manuel Alegre
ALMA / Manuel Alegre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ALMA

 

Era dia de comício da oposição em Alma, presidido por minha avó materna, Beatriz, em representação de meu avô Geraldo Pais, chefe da Carbonária e fundador da República. O falecido tinha sido íntimo de Afonso Costa e era ainda a referência principal da tribo reviralhista. A minha avó, que tinha um solar perto de Viseu e saíra de uma família de tradição conservadora, levava muito a sério o seu papel de viúva revolucionária. Os republicanos do Distrito de Aveiro vinham regularmente a Alma prestar-lhe contas e pedir-lhe conselhos. Tanto quanto me recordo, era sempre a que defendia as soluções mais radicais, como, por exemplo, citando o bispo Santo Isidoro de Sevilha, matar o tirano. Os republicanos acenavam silenciosamente com a cabeça e por vezes entreolhavam-se, um pouco aflitos. A minha avó sentava-me ao pé dela e de certo modo eu era tratado como príncipe herdeiro. Os velhos republicanos manifestavam-me um carinho e uma atenção que era quase uma forma de respeito.

Alguns, quando me encontravam no Jardim Novo, na margem direita do rio Alma, perguntavam-me baixinho: Então, como é que se diz? E eu murmurava-lhes ao ouvido: Viva a República. O que era entendido como sinal mais que certo de que a sucessão estava por assim dizer assegurada. Pensando bem, eu era uma espécie de ungido, trazia em mim a graça da República e o sinal dos eleitos. Tal era ainda a força do meu avô materno. Os correligionários contavam com orgulho as suas façanhas. Eu ouvia fascinado essas histórias.

Gostava sobretudo da reconquista de Santarém aos monárquicos.

Nomeado governador-civil daquele distrito, Geraldo Pais exercia há uns meses o cargo quando, ausente na capital, recebeu a notícia de que a cidade fora tomada pelos monárquicos. Partiu imediatamente para Santarém. Quando chegou ao palácio foi interceptado por um oficial que lhe deu voz de prisão. Preso está o senhor, respondeu o Governador. O outro pôs-se em sentido, o meu avô desarmou-o e levantou-o ao ar, com uma só mão. A Companhia, espantada, apresentou armas a Geraldo Pais, meu avô, que recuperou assim Santarém para a República.

Eu gostava desta história e sentia uma íntima satisfação em ser neto de um homem capaz de vencer sozinho um exército inimigo. Não era por acaso que lhe chamavam Geraldo das Forças. A fama já vinha dos tempos de Coimbra e do dia em que, à frente da banda de música de Alma, ele pusera em debandada, manejando habilmente o pau, a investida dos adeptos de várias bandas rivais. Lembro-me de o ver esmagar nozes com os dedos. Dizia-se, também, que em certas sessões mais agitadas, partia a murro a sua carteira de deputado em São Bento. Os seus adversários da vila acusavam-no de ter mandado pôr uma bomba no lugar das aparições. A minha avó negava com veemência, tanto mais que era uma devota de Nossa Senhora de Fátima, junto de cuja imagem mantinha sempre uma vela acesa. Mas os inimigos políticos não desarmavam e diziam que, sendo ele deputado por Aveiro, não se vislumbrava por que outra razão teria sido nomeado governador-civil de Santarém. Fosse como fosse, o certo é que a lenda de Geraldo Pais, para o bem e para o mal, não deixava de crescer, alimentada com fervor pela minha avó, os seus correlegionários e os próprios inimigos.

O culto da República era, assim, uma forma de religião. Creio que para minha avó não havia grande diferença entre a devoção a Nossa Senhora, o culto da República e a fidelidade cega à memória do meu avô. Tudo fazia parte do mesmo sentimento de fé e da mesma capacidade de entrega e dedicação. Na qual, evidentemente, eu tinha um lugar destacado. Para a minha avó eu não era só o seu neto: era, sobretudo, a reincarnação do seu marido.

Tudo isto se passava numa casa em que o chefe de família, meu pai, Lourenço de Faria, era monárquico. Liberal, gostava ele de sublinhar. E então, quase a medo, às vezes clandestinamente, falava daqueles seus antepassados que tinham participado na revolta de Aveiro contra D. Miguel. O bisavô conseguira fugir para o Brasil, mas o irmão, seu tio bisavô, fora um dos enforcados e decapitados da Praça Nova, no Porto. Mártires da liberdade, os seus nomes estavam escritos no monumento a D. Pedro IV. Mas eu confesso, ao princípio não ligava muito a esta história. Talvez porque nela não entrasse a palavra República, que para mim tinha um significado mágico. Talvez porque meu pai não pudesse ou não quisesse competir com a influência da minha avó. Que, diga-se desde já, era completada e reforçada pela acção de minha mãe, Mariana, para quem o meu avô era uma outra forma de Deus. Ou talvez o único deus a que toda a vida ela prestou culto. De modo que eu estava praticamente condenado a ser republicano e revolucionário.

Só que naquele dia não havia apenas o tão esperado comício da oposição. À mesma hora, o Beira-Rio jogava contra o Vista Alegre. Por isso de nada serviram os rogos de minha avó e os ralhos de minha mãe. Nada me fazia ceder. E por nada deste mundo, muito menos por causa de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão. Meu pai, menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência. E às duas por três, perante tal insistência de uma e de outra, dei por mim a perguntar-me porque raio é que, afinal, eu não havia de ser, também, monárquico?

Meu pai ouvia, calado. De quando em vez piscava-me o olho. E a minha avó porque tens de ir, e a minha mãe era o que faltava que não. Até que subitamente meu pai explodiu: Não vai, não quer ir não vai, ele é meu filho e quem decide sou eu. Vamos os dois ao jogo.

E fomos.

Aos vinte minutos, já o Beira-Rio estava a perder por três a zero. Zeca Sucateiro, empoleirado na vedação, gritava para o Armandinho Alfaiate, que jogava a ponta esquerda: És um entrevado. Ao que o outro respondia: Entrevada era a tua avó. Diga-se de passagem que naquele tempo ainda um jogador podia saltar para fora do campo e ir às fuças à assistência. Era uma cena que se repetia: Zeca Sucateiro atezanava Armandinho e este, quando menos se esperava, ferrava-lhe dois tentos no focinho. Foi o que aconteceu ao findar a primeira parte, continuava o Beira-Rio a levar três.

Meu pai, além de campeão de atletismo, tinha sido jogador de futebol da Académica e possuía o diploma de treinador. Quando as coisas estavam a correr mal, o que era quase sempre, pediam-lhe ao intervalo para ele ir às cabinas tentar virar o resultado. Ele chegara a treinar o Beira-Rio, mas tinha-se chateado por causa de Zamora, o guarda-redes, (meu pai dizia keeper), assim chamado por imitar o outro, o grande Zamora da selecção de Espanha. Zamora, ou seja o Firmino, tinha qualidades. Era o que o meu pai dizia. O pior era o feitio. Sempre que Manuel Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto. Não que não gostasse de Zamora, mas tinha mau perder. Já com a selecção era a mesma coisa. Ao menos levassem as cores da Monarquia, dizia o Manuel Tinoco, que era republicano, fumava charuto e nunca tirava o chapéu à diplomata, nem mesmo para dormir, diziam as más línguas de Alma. Quando a selecção levava nove da Espanha, era assim que ele desabafava: Ao menos vestissem a camisola da monarquia, a da República não. E o mesmo acontecia sempre que, no seu entender, Zamora dava um frango. O que, diga-se em abono da verdade, frequentemente acontecia. Então, Manuel Tinoco começava a roer o charuto e dizia-lhe por detrás da baliza: Ao menos tira a camisola, não sujes as cores da tua terra. Zamora, isto é, o Firmino, ouvia uma, duas, três vezes. Mas às tantas não se aguentava: despia a camisola e desatava a correr pelo campo fora. Meu pai, que juntamente com seu irmão Tiago, tinha sido campeão nacional de estafeta de quatro por cem, levantava-se do banco e sprintava até o agarrar. Às vezes tinha de lhe pregar um par de estalos. E Zamora lá voltava para as redes do Beira-Rio.

Mas um dia, em que Manuel Tinoco tinha sido especialmente cáustico, ao ponto de lhe dizer: vai vestir a camisola do Beira-Mar, que era a pior coisa que se podia dizer a um beirariense, o Firmino não esteve com meias aquelas: saiu da baliza, amachucou o chapéu de Manuel Tinoco, o que por muitos foi tomado quase como um sacrilégio, despiu-se todo e saiu do campo em pelo.

Aí o meu pai chateou-se: Não corro atrás de um gajo nu.

E nunca mais treinou o Beira-Rio.

Mas lá ia às cabinas sempre que lhe pediam e as coisas, como era costume, estavam a correr para o torto. Não sei o que lhes disse naquele dia, mas aos dez minutos da segunda parte, já o Beira-Rio tinha reduzido para dois a três. Lembro-me perfeitamente do segundo golo: Armandinho foi marcar um corner, meu pai deu umas instruções e Almiro veio de trás e marcou. Foi de tal modo que Manuel Tinoco se virou para o meu pai e disse-lhe: Amigo Lourenço, este golo é seu.

Estava o jogo em ponto de rebuçado, quando apareceu Gonçalo Pena, republicano de sangue azul, vagamente primo do meu pai e ainda um pouco mais alto do que ele. Tinha um grande nariz curvo e o lábio inferior um pouco caído. Como o dos Braganças, dizia o meu pai. Vinha a pedido da minha avó. Está toda a gente à tua espera, disse ele. É uma vergonha se não vais.

Mas o Beira-Rio, que era uma equipa desgraçada, estava a jogar como há muito não se via: bola recebida, bola passada, ao primeiro toque, ataques pelos flancos, cruzamentos à linha, à inglesa, como o meu pai gostava. O que ele não conseguia suportar era quando o avançado centro tinha a bola e o ponta lhe pedia: cruza. Grande burro, dizia o meu pai, não se cruza do centro para a ponta, mas da ponta para o centro.

Gonçalo Pena não me largava. Era uma figura singular e não por acaso o haviam escolhido para mensageiro. Ele tinha sido um dos homens de confiança do meu avô Geraldo Pais e suspeitava-se que fora a paixão de minha tia Elvira, irmã de minha mãe, que morreu muito nova, tuberculosa. Dele se contavam histórias extraordinárias. Companheiro de carteira do meu pai no liceu de Aveiro, estava ele um dia a carregar cartuchos na aula de Francês, quando o professor, a quem chamavam o Comme Ici, de repente lhe disparou: Diga lá, ó Gonçalo, este lápis azul não é amarelo mas preto.

Contava o meu pai que ele se levantou e, muito sério, começou a argumentar que não podia ser, era um contra-senso, recusava-se a dizer, ainda por cima em francês, que era a língua de Descartes, uma frase sem lógica, completamente despida de sentido.

- O lápis ou é azul ou não é, se é azul não é amarelo e muito menos pode ser preto.

- Está bem, retorquiu o Comme Ici, eu não quero filosofia, o que eu quero é a frasezinha em francês.

Então, repentinamente, Gonçalo Pena dizia a frase em inglês, espanhol e francês: This stencil bleu no es amarillo but noir.

Meu pai ria até às lágrimas, Gonçalo Pena conservava-se de pé, imperturbável, o professor perdia a cabeça e, como não podia fazer mais nada, punha o meu pai no olho da rua, com falta de castigo.

Gonçalo Pena continuava a apertar comigo, enquanto o Armandinho, estimulado talvez pela bordoada que tinha dado em Zeca Sucateiro, atacava mais uma vez pela esquerda.

O antigo colega de carteira do meu pai era, como já disse, um homem alto, elegante, vestindo sempre do melhor, parecia um lorde. Dizia-se que era maçon e se entregava a práticas secretas, de espada e avental. Vivia ora em Alma ora em Lisboa, no Hotel Borges. E tinha dois pecados: conspirações e mulheres. Já ia na vigésima governanta. Recrutava-as por anúncio no Diário de Noticias. Elas vinham ao hotel e ele fazia a triagem. Às vezes aparecia em Alma com dois ou três oficiais reformados ou compulsivamente passados à reserva. Reuniam-se com a minha avó e falavam por subentendidos. Ficava no ar a expectativa próxima do levantamento, da pólvora e da revolução.

Verdade que Gonçalo Pena tinha sido um dos heróis das Trincheiras, quando, por altura da Traulitânia, os republicanos de Aveiro aguentaram o avanço dos monárquicos que vinham do Norte. Foi a batalha mais sangrenta da República e nela morreu mais gente do que em todas as outras revoluções, incursões e contra-revoluções: trinta e quatro mortos, tal foi o preço da resistência republicana. Mas os monárquicos não passaram.

Já ele me pegava no braço para me levar, quando o Armandinho, verdadeiramente de cabeça perdida, finta o defesa direito (meu pai dizia béque), corre até à linha e não se sabe, não se saberá nunca se com intenção ou sem querer, enfia a bola pelo ângulo superior direito e empata a partida.

Zeca Sucateiro não se aguentou, esqueceu-se da porrada e tentou entrar no campo para o abraçar. Mas o Armandinho ainda estava a ferver e foi preciso segurá-lo para ele não assentar mais um tento nas ventas de Zeca Sucateiro.

Exasperado com a minha recusa, Gonçalo Pena, que também tinha dado um pulo com o golo de Armandinho, foi parlamentar com o meu pai. Que mal o ouviu e acabou por ceder.

- Ó pá, isto agora está no papo, vai lá que elas ficam todas contentes.

Estávamos neste trinta e um de boca quando Neca Pereira, defesa central do Beira-Rio, que jogava de lenço branco a sair dos calções, resolveu ceifar o avançado centro do Vista Alegre em plena grande área.

- Penalti.

Todo o campo emudeceu. O próprio Gonçalo Pena deixou de insistir, dir-se-ia que também ele já esquecido do comício.

- Equipa de merda - disse.

Eu não gostei.

- Podem não jogar nada, mas são os nossos.

- Tens razão. Não jogam nada, mas são os nossos.

O árbitro apitou, o avançado do Vista Alegre correu para a bola, fez uma finta de corpo, Zamora não se deixou levar, a bola foi para o lado esquerdo e ele defendeu.

Foi o delírio. Só Gonçalo Pena, passado o entusiasmo, voltou à carga. Mas já o Beira-Rio estava de novo ao ataque. Então explodi: Não vou, eu sou monárquico, não quero ser republicano, eu sou monárquico.

E foi como se tivesse dito uma blasfémia. Gonçalo Pena ficou branco, abriu muito os olhos e não esteve com cerimónias: pregou-me uma estalada e agarrou-me pelo braço.

E lá fui, arrastado. Entretido a dar instruções para dentro do campo, o meu pai nem se apercebeu.

O comício era no Cine-Teatro, nome pomposo de um barracão que ficava entre a Câmara e a cadeia, já na parte baixa de Alma.

Aos poucos fomos deixando de ouvir o barulho do Campo de São Cristóvão e começaram a chegar até nós os ecos do comício. Caminhávamos apressados, sem falar. Gonçalo Pena segurava a minha mão com força, com medo talvez que lhe escapasse e voltasse para o jogo. Havia uma pequena multidão à porta do Cine-Teatro. Quem manda?, perguntava um. E os outros respondiam: Salazar, Salazar, Salazar.

- Provocadores - exasperou-se Gonçalo Pena, ao ver aquele grupo de fato domingueiro, arregimentado nas redondezas para vir perturbar o comício da oposição.

Vinha de lá de dentro a voz de Aurélio Silveira, ex governador-civil de Aveiro durante a Primeira República, talvez o mais íntimo de todos os companheiros de Geraldo Pais, meu avô.

Era uma espécie de João Semana, não usava estetoscópio, auscultava com a orelha e diziam os outros médicos que ninguém tinha o ouvido de Aurélio Silveira.

Percorria as serras a cavalo, da Urzeira ao Caramulo. Republicano avançado, sonhava com uma nova revolução francesa e com a igualdade universal. Não cobrava aos pobres, levava-lhes remédios, chegava onde ninguém mais, contentava-se que lhe dissessem onde havia lebres, que depois caçava a cavalo, com galgos. Ele e a mulher, a quem todos chamávamos Tia Matilde, pequena, magra, o cabelo muito preto, os olhos muito azuis, capaz de andar vinte quilómetros a pé, faziam e distribuíam A voz de Alma, jornal republicano e independente. Sempre que o censor, um oficial reformado que morava do outro lado do rio, lhe cortava um artigo, Aurélio Silveira esperava-o em cima da ponte com o seu pingalim de caçar lebres a cavalo. E já se sabia que o coronel não viria à vila tomar café.

Com mais corte, menos corte, A Voz de Alma lá ia levando o seu recado. E até o meu pai, que não era republicano mas tinha um fraco pelo Dr. Aurélio, colaborava com artigos sobre caça e outros desportos, sendo mais que certo que todos os anos, na data da morte do meu avô Júlio de Faria, considerado o maior desportista do seu tempo, dedicava um artigo à memória do pai, recordando, entre outros feitos, aquele célebre torneio de tiro aos pombos em que meu avô, apesar de monárquico e membro da Casa Real, ousara derrotar o rei D. Carlos, ganhando a Taça Eduardo VII.

- Provocadores - gritava Gonçalo Pena fora de si, ele que, segundo meu pai, era homem de poucas ameaças e chapada pronta.

À porta do Cine-Teatro havia um coro que procurava abafar com seus gritos os oradores.

- Quem manda?, perguntava, com um sorriso sacana, um tipo de bigodinho fino e olhos achinesados. E o grupo respondia: Salazar, Salazar, Salazar, Carmona, Carmona, Carmona.

Aquilo, não sei porquê, se pelas vozes, se pelas caras, se pelo todo, fazia-me um arrepio pela espinha acima. Olhava-se para eles e percebia-se que não eram dos nossos.

E à terceira vez que o sacaninha perguntou Quem manda? Gonçalo Pena respondeu-lhe: A puta que te pariu.

Foi um ver se te avias. Os dois primeiros, ainda Gonçalo Pena os derrubou. Mas eram muitos. Consegui furar e entrar na sala. Lá estava a minha avó, toda de negro vestida, com uma jóia de brilhantes na gargantilha. Ao lado a minha mãe, ostentando, ao peito, as armas da família do meu pai.

Assim que me viu, Aurélio Silveira interrompeu o discurso e apontou na minha direcção. Toda a sala se levantou a bater palmas, era como se tivesse chegado o menino Jesus. A muito custo consegui balbuciar ao Dr. Aurélio o que se passava.

- O nosso amigo Gonçalo Pena está lá fora a ser agredido por um bando de provocadores a soldo do regime. Mas não vamos responder a provocações, a nossa força é a razão.

Qual quê? Em menos de um fósforo, metade da sala estava cá fora a despachar o do bigodinho e acompanhantes.

- Não respondemos a provocações, repetia Aurélio Silveira.

Mas nessa altura já os atletas do Ginásio de Alma, que era uma instituição republicana, tinham malhado a bom malhar no tal que perguntava Quem manda? e no coro que respondia Salazar, Salazar, Salazar.

E quando Gonçalo Pena apareceu, cabelo em desalinho, boca a sangrar, Aurélio Silveira não se aguentou: Abaixo a Ditadura! Morra Salazar! Viva a República!

Ao vê-lo naquele estado, esqueci a bofetada, esqueci que me arrastara à força, impedindo-me de ver o jogo mais emocionante da minha vida, esqueci, até, por momentos, o golo do Armandinho e o penalti defendido pelo Zamora, esqueci tudo e não vi senão a frieza dos olhos do gajo de bigodinho fino e o sangue na boca de Gonçalo Pena. E então deixei sair aquele grito que vinha das profundezas do meu ser:

Viva a República!

 

Durante muito tempo, em Alma, não se discutiu senão a pancadaria no comício e a invasão do Campo de São Cristóvão a poucos minutos do fim do jogo entre o Beira-Rio e o Vista Alegre. As coisas passaram-se mais ou menos assim: à meia hora da segunda parte, estava o resultado em três a três e já o Zamora defendera um penalti, Neca Pereira mandou um biqueiro de cerca de trinta metros; a bola, diziam, porque, como se sabe, eu não vi, bateu na barra e transpôs a linha de golo. Isto era o que dizia toda a gente, menos o meu pai: Ná, a bola não entrou. O que levou Manuel Tinoco a rosnar: Lá está você a armar a imparcial. Foi golo limpo, só o ceguinho do liner é que não viu.

Se a bola entrou ou não, nunca ninguém o saberá dizer. E ainda hoje, passados tantos anos, nenhum dos sobreviventes se atreve a jurar que sim. Mas naquele dia, a quente, toda a gente viu a bola dentro da baliza. Toda a gente menos o meu pai e o fiscal de linha. E aí é que o caldo começou a entornar-se. A princípio, o árbitro hesitou. Alguns garantiam que apontou o centro do terreno, outros não tinham a certeza. O liner é que levantou logo a bandeirola.

Zeca Sucateiro foi o primeiro a mandar-lhe uma arrochada. Mas isso foi antes dos acontecimentos propriamente ditos. O árbitro começou por hesitar, viu o outro de bandeirola levantada e veio falar com ele. Não exactamente junto à linha, porque nessa altura havia já vários guarda-chuvas a tentar furar as costas do auxiliar do juiz da partida. Afastaram-se um pouco para dentro do terreno, parlamentaram e o árbitro mandou repor em jogo a bola que, entretanto, saíra pela linha de cabeceira pontapeada à toa por já não sei quem. E a partida recomeçou com os ânimos grandemente exaltados dentro e fora das quatro linhas. É possível que, entretanto, tivessem chegado notícias dos incidentes no comício. Certo, certo, foi o Neca Pereira meter a mão aos tomates e agitá-los com veemência nas barbas do juiz de linha, logo que o árbitro virou costas. À primeira vez, o homem fez de conta que não viu. Mas à segunda, à terceira ou à quarta, porque a partir daí, segundo se contava, Neca Pereira não fazia outra coisa senão sacudir os ditos, o da bandeirinha foi fazer queixa ao árbitro. Que não esteve com meias medidas: expulsou o Neca. Queixinhas, disse o béque centro para o fiscal de linha. E sacudiu-lhe outra vez as partes. Dizia-se que se esboçara então a primeira tentativa de invasão. O tenente Serafim, com o seu metro e oitenta e tal e o seu pingalim curto, conseguiu evitar o pior. Mas estava escrito.

Faltariam uns cinco minutos, talvez menos, quando o Armandinho, que estava a fazer o jogo da vida dele, fintou mais uma vez o beque direito e este, já de si mal-encarado, farto de tanta finta, enfiou uma cabeçada no ponta esquerda dentro da grande área. Aí sim, dizia o meu pai, aí fomos roubados, penalti descaradíssimo.

E foi o que toda a gente, naquele instante, viu.

A começar pelo Sucateiro, que driblou o tenente e se foi direito ao árbitro. Não se sabe ao certo quem foi o primeiro a arrear-lhe, sabe-se que o árbitro acabou internado no Hospital de Aveiro, com cinco costelas partidas, a cabeça rachada, o sobrolho direito deitado abaixo e a boca feita num bolo. A GNR abriu fogo. Para o ar, defendia-se o tenente. Mas uma rapariga que estava à varanda de um prédio, por detrás da baliza, do lado do poente, ainda apanhou com uma bala de raspão. Serafim desculpou-se: Ninguém a mandou pôr-se à varanda a ver o jogo de borla.

A notícia veio nos jornais, que sublinharam a necessidade de prevenir a violência nos campos de futebol. E o Governo, talvez assustado com o extraordinário apoio popular à manifestação da oposição democrática junto da estátua do presidente António José de Almeida, quando milhares de pessoas encheram por completo a Avenida Miguel Bombarda e as ruas circunvizinhas, emitiu uma nota oficiosa em que denunciava a agitação comunista e a tentativa de aproveitar a campanha eleitoral para subverter a ordem pública, como tinha acontecido em várias localidades, nomeadamente em Alma.

E as pessoas ficaram sem saber ao certo a que agitação se referia o comunicado do Governo, se à do comício, se à do campo de futebol.

Pelo sim pelo não, a oposição ligou os dois acontecimentos. Uma semana depois, aparecia em Alma, por debaixo das portas, um panfleto em que se destacava a determinação com que as massas populares fizeram frente às forças da repressão fascista que selvaticamente abriram fogo contra os espectadores indefesos no Campo de São Cristóvão, bem como aos provocadores que tentaram boicotar um comício legal da oposição democrática.

Torna-se, assim, cada vez mais evidente a natureza terrorista e antipopular do regime fascista, um regime ilegítimo, que só pela violência e pela repressão se mantém no poder. Mas torna-se, também, cada vez mais forte, continuava o panfleto, a consciência democrática e a determinação do Povo Português na luta pela reconquista da liberdade. A unidade e firmeza dos democratas e do Povo de Alma são um exemplo a seguir.

Quem não achou graça foi Antoninho Pena, Presidente da Câmara por assim dizer vitalício, primo direito de Gonçalo Pena e ainda aparentado com meu pai.

Tudo o que é reaccionário é teu primo, dizia, por vezes, a minha mãe, em horas de maior irritação.

Sim, és muito revolucionária, respondia, distraído, o meu pai, que não estava para chatices e a quem eu penso que, verdadeiramente, só a caça interessava. A abertura era para ele (e isso atingia a casa) um ritual quase sagrado, uma liturgia. Começava muito antes. Vejo-o ainda, no quarto do fundo, a carregar cartuchos. Parecia um guerreiro antigo em vésperas de batalha. Primeiro a pólvora, depois a bucha, finalmente o chumbo.

- Passa-me aí o rebordador, dizia-me, com um sorriso.

E havia nos seus gestos sabedoria, competência, elegância. O mesmo com a arma. Era um prolongamento do seu corpo. Nunca vi ninguém pegar assim numa espingarda, como se fosse para dançar. Uns dias antes da abertura, levava-me com ele ao campo para experimentar os cartuchos e afinar a mão. Seguia por vezes um guincho, muito alto, deixava-o passar por cima dele, curvava-se para trás e disparava. Era um tiro magnífico.

Costumava ir com ele aos torneios de tiro aos pombos e aos pratos. Sentia um secreto orgulho quando via a sua arma ser arrematada: ficava sempre entre as primeiras, apesar de só raramente ele participar. Era sobretudo nos torneios de tiro aos pombos que eu gostava de o ver. Ele nunca disparava mecanicamente, como aqueles atiradores supertreinados do Clube de Caçadores do Porto, que davam a impressão de matarem o pombo ainda na caixa. O meu pai tinha estilo. E como ele costumava dizer, o campeão é que faz o estilo. É certo que era mais alto e mais elegante do que os outros, mantinha ainda o físico e o porte do grande atleta que tinha sido. Mas era principalmente a maneira como pegava na espingarda e a forma de apontar: a arma seguia o movimento natural dos braços. Deixava o pombo levantar, esperava um pouco e só depois disparava, quase com o risco de ele cair do outro lado da rede. Mas era bonito e por isso é que ele recebia sempre tantas palmas, que agradecia, tirando o chapéu num gesto largo.

Talvez fosse um desporto bárbaro, creio que hoje está proibido, nem os ecologistas iam permitir. Mas era belo e nobre, e único.

O grande rival do meu pai, tanto na caça como nos torneios, era o seu maior amigo, quase irmão, marquês de Vilar, a quem eu tratava por Tio Zé. Uma vez, em Alba, na disputa de uma taça com o nome do meu avô paterno Júlio de Faria, ficaram os dois empatados e estiveram a atirar até não haver mais pombos. Desempataram no domingo seguinte e o meu pai, que nestas coisas não gostava de perder nem a feijões, ficou com um grande desgosto porque o Marquês ganhou o torneio e levou a taça. Tinha um solar muito velho, na margem esquerda do Mondego, onde se juntavam os companheiros de caça, monárquicos sem rei, antigos jogadores da Académica e até o Dr. Felismino, comunista confesso, que era um dos mais íntimos amigos do Marquês e do meu pai.

O Marquês era solteiro e a mãe costumava dizer que ele só casaria com uma perdiz ou uma tainha. Tal o vício da caça e da pesca, principalmente da caça às perdizes, em linha, na Beira Baixa.

Era ali que o meu pai se sentia bem. Estava entre os seus, havia em todos eles a orfandade de um mundo desaparecido e a alegria do companheirismo e das caçadas, eles eram os últimos fidalgos num tempo em que já não havia lugar para ordens de cavalaria. De certo modo eram marginais, viviam segundo outras regras e outros ritos.

A minha mãe tinha orgulho no meu pai, orgulho físico, por assim dizer. Mas havia nela uma energia que devia ter sido canalizada para a política, para os negócios, para o empreendimento, fosse qual fosse. As rotinas da casa não eram suficientes para tanta energia. E por isso não sei se ela chegou a perceber que a falta de ambição do meu pai era uma atitude de artista, um corte estético com o cinzentismo do dia a dia e com a mesquinhez de uma vida regida pela ganância e pelo espírito burguês do lucro, do sucesso e da carreira. O meu pai travava à sua maneira uma luta de classes do avesso: era um fidalgo à antiga, não suportava a burguesia. Tinha conhecido ainda os dias esplendorosos dos palácios, dos criados, das festas em grandes salões, da riqueza e da despreocupação.

A morte dos pais, sobretudo da mãe, minha avó Leonor, baronesa de Riba Rio, e a decadência patrimonial que se seguiu, levaram o meu pai a desinteressar-se de qualquer forma de vida profissional activa, salvo o estritamente necessário para garantir o sustento da família. De certo modo ele ficou sempre do outro lado, sem um queixume pelas quintas, os cavalos e os palácios perdidos. Sem azedume, nem inveja, nem sequer amargura. Apenas uma indisfarçável melancolia. Um dia, muito mais tarde, já perto do fim, ele disse: Eu demiti-me de viver.

Mas creio que não. Creio que ele nunca chegou a entrar e não desempenhou nunca qualquer função na ordem burguesa da vida. Foi um campeão e um caçador. Sobretudo um caçador.

Por isso a sua necessidade de apontar, por vezes sem arma, não se sabe a quê. Talvez à sua própria inquietação. Porque ele não era de ali. Ele era dos grandes espaços, das serras da Beira Baixa e dos territórios de ninguém entre o azul do céu e a Espanha. Talvez daquele ponto onde o rio Ponsul desagua no Tejo e começam então na margem portuguesa as grandes escarpas com seus grifos planando de asas muito abertas.

Para me perceber a mim mesmo não posso esquecer que nasci e fui criado entre a tensão da energia e o desprendimento da contemplação. Talvez, ao fim e ao cabo, fosse essa a tensão entre a República e a Monarquia. Essa fronteira passará sempre por dentro de mim, é uma guerra civil que no mais fundo de mim mesmo nunca se resolverá: energia e melancolia, acção e desinteresse, agitação e desprendimento. Sou de certo modo o fruto de um último combate travado na mesma família entre a República e a Monarquia. Não sei quem ganhou, não sei quem ganhará. Se é que não há senão perder.

Que era precisamente o que não queria Antoninho Pena, a quem a minha irmã Maria, então muito pequena, confundia com Winston Churchill, tal a parecença. Perder não era com ele. Nem prestígio, nem autoridade, nem muito menos poder. Ele era o chefe todo poderoso da vila, não um simples pau mandado do governo. Presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, só não era deputado porque não queria, antes o poder absoluto na vila do que uma migalha ou ilusão de poder em Lisboa. Da capital ele nunca poderia governar a sua terra, mas de Alma telefonava para Lisboa, dava opiniões, fazia-se ouvir, chegava, se preciso, ao próprio presidente do Conselho. Sob o seu mandato, nunca em Alma tinha havido desacatos, apesar da reconhecida força da oposição e do prestígio do seu falecido chefe, meu avô Geraldo Pais. Por isso Antoninho Pena estava furioso. Sentia-se directamente posto em causa e pessoalmente ofendido. Os incidentes apanharam-no desprevenido e puseram-lhe os nervos em franja. A nota oficiosa do governo fez-lhe subir a tensão arterial e o panfleto clandestino, notoriamente de inspiração comunista, deixou-o a ferver. O que mais o irritava, tanto na nota oficiosa, como, sobretudo, no texto oposicionista, era a confusão política, que a primeira deixava pairar e o segundo intencionalmente estabelecia, entre a invasão do campo de futebol e a desordem no comício. Falta de tacto político do redactor da nota governamental, alguns eram mais papistas do que o papa, não tinham o sentido da nuance nem da subtileza, tão necessárias, sobretudo na província, onde a política era uma velha arte de manha e dissimulação. Falta de tacto de uns e esperteza saloia dos outros, mais argutos, reconhecia Antoninho Pena, mais terra a terra, mais próximos da gente do povo e mais capazes de explorar o mínimo percalço e de levar a água ao moinho do comunismo. Porque o problema era esse: quem puxava os cordelinhos eram os comunistas, os outros, como o emproado do primo, que de certeza tinha molhado a sopa na redacção do manifesto, não passavam de instrumentos úteis, simples verbos de encher na estratégia da subversão. Por isso tinha decidido agir. E o melhor era começar, precisamente, por Gonçalo Pena.

O que ao certo se passou entre os dois nunca ninguém o saberá. Cada um contava a sua versão. Segundo Gonçalo Pena, o primo mostrou-lhe o panfleto e perguntou-lhe o que é que o cu tinha a ver com as calças.

- O cu com as calças?

- Sim, o cu com as calças.

- Não estou a perceber.

- Está, está, o primo está a perceber muito bem, eu quando digo cu quero dizer incidentes num campo da bola, que nada têm a ver com política, e quando digo calças quero dizer duas coisas, quero dizer a desordem que o meu caro primo provocou ao desatar à porrada a pessoas que pacificamente expressavam as suas preferências, e quero dizer a merda desta prosa em que se baralha tudo e se misturam alhos e bugalhos com uma única finalidade: atacar o governo e atacar-me a mim, a mim, António Pena, gritou, batendo com a mão no peito, já muito vermelho e quase a rebentar.

Gonçalo Pena disse que não se deixou impressionar. Conhecia o outro de ginjeira e sabia muito bem que, embora irritado, ele estava a representar. Era um actor. Mas para ele vinha de carrinho.

- Quem baralhou tudo foi a nota oficiosa, esse bocado de bosta é que ofendeu o bom nome da terra e o pôs em cheque a si.

Antoninho Pena teria sentido a estocada. O primo, mas era o próprio que contava, acertara-lhe onde mais lhe doía. E mudou de tom:

- O que me entristece é que o primo Gonçalo esteja a ser um joguete nas mãos dos comunistas.

- E a mim o que me faz espécie é que o primo Antoninho tenha sido desconsiderado desta maneira pela sua própria gente. É um desprestígio para a terra e para si.

Então Antoninho Pena irritou-se mesmo.

- Não me venha com desprestígio. Não sou eu que trago putas de Lisboa para me governarem a casa.

- Eu trago de Lisboa as putas que quiser e isso é cá comigo. O primo governa-se com a prata da casa e isso é lá consigo. Mas não foi com certeza para falar de putas que me mandou chamar.

Esta parte da narrativa de Gonçalo Pena causava sempre grande admiração pelo repentismo e pela acutilância da resposta. A principal fraqueza política de Antoninho Pena era o estado de mancebia em que publicamente vivia com Amelinha, uma ex-costureira que, segundo se murmurava, tinha passado primeiro pelos lençóis do primo Gonçalo e depois pela sacristia do padre Aníbal. Quando o Presidente da Câmara a instalou de cama e pucarinho foi um falatório. Mas com o tempo a vila acostumou-se. De amásia de padre, Amelinha tinha passado a concubina do presidente. Recebida em todas as casas, era ela que servia de mediadora para as cunhas e os empenhos. Pouco a pouco foi-se tornando uma instituição de utilidade pública. E já ninguém se preocupava muito com o santo sacramento do matrimónio. Por isso Antoninho Pena engoliu em seco. O primo Gonçalo tocara no intocável, a bem dizer chamara puta à sua Amélia, colocando ao mesmo nível das gajas de Lisboa aquela que para todos os efeitos era sua mulher. E isso ele não perdoaria nunca.

Mas ainda assim não se deu por achado.

- O primo lá sabe as linhas com que se cose. Mas depois não diga que não o avisei.

- Isso é uma ameaça?

- Olhe, primo, bardamerda. Eu não persigo ninguém, muito menos os do meu sangue. Mas também não confundo o cu com as calças. E não posso garantir que outros o não façam e não acabem por meter no mesmo saco os das calças e os do cu.

- E o primo a dar-lhe.

- E quem é que começou à porrada em cidadãos pacíficos, fui eu? E quem é que meteu a política na bola, fui eu? E esta merda, quem a cagou, fui eu? - perguntou Antoninho Pena mostrando o panfleto da oposição.

Mas a conversa já dera o que tinha a dar. Gonçalo Pena levantou-se e preparou-se para sair, mas não sem dar no outro, sempre segundo a sua versão, uma última estocada:

- Lamento o que os gajos de Lisboa lhe fizeram. E espero que os ensine a respeitar o bom nome da nossa terra.

- E eu espero que o primo ensine os comunistas a escrever português.

Despediram-se como se nada fosse. Mas Gonçalo Pena saiu de pé atrás. E Antoninho Pena ficou a remoer.

 

Começaram então os sinais.

A minha mãe dizia aproximações. Talvez por influência de Adelaide, mulher fantástica, alta, fartos seios para amamentar meninos e homens, os olhos muito negros, meio cigana meio nigromante.

Deitava cartas, organizava sessões de espiritismo, às vezes entrava em transe e os mortos falavam pela sua boca ou escreviam pela sua mão. Adelaide pertencia à casa, como outras mulheres de Alma que, para além das criadas de dentro e de fora, apareciam para pequenas tarefas, costuras, bolos, ou as cíclicas e ciclópicas limpezas que de vez em quando a minha mãe fazia talvez para dar vazão a uma energia irreprimível.

É possível que Adelaide fosse um pouco histérica. Ou então sentia a falta de Gonçalo Pena, a paixão da sua vida, que por pouco não incendiara noutros tempos, a vila inteira. Diziam que nas noites de amor ela dava grandes gritos, pior do que uma gata dos telhados, contava, já mirrada, sentada a um canto da cozinha, Lurdes Salvé Rainha, antiga criada da casa, que passava os dias na Igreja, com as outras beatas, a rezar. Trazia a cabeça enrolada em grandes panos brancos, eu nunca soube porquê, talvez fosse doença, aquilo fazia-me impressão e eu não gostava muito de vê-la ali por casa, onde vinha, regularmente, dar contas do que se dizia. Não gostava de Adelaide e sempre que podia mandava-lhe uma ferroada. Só não mordia mais, porque todos gostávamos de Adelaide, principalmente eu, a quem ela um dia agarrou as mãos durante muito tempo e depois, de olhos fechados, disse para a minha mãe: É este.

Como se eu fosse o designado.

Célebre, célebre, tinha ficado a sua ida a Lisboa, a pedido de Gonçalo Pena, que por ali então conspirava. Foi quase no fim da guerra civil de Espanha. Indalécio Prieto queria mandar umas armas para os resistentes portugueses aqui abrirem uma nova frente e assim ajudarem os republicanos espanhóis a inverter a marcha de uma guerra que começava a estar perdida. Do grupo, chefiado militarmente pelo Capitão Nuno Cruz, faziam parte, entre outros, Jaime Cortesão, que coordenava os civis, o escritor Manuel Mendes, o advogado José Magalhães Godinho e, claro está, Gonçalo Pena. Havia um problema: onde guardar as armas. Então Gonçalo Pena disse: eu mando vir a Adelaide.

Combinou-se que ela se instalaria numa pensão, simularia uma doença que um médico envolvido na conspiração viria confirmar, e as armas, até se encontrar melhor poiso, ficariam debaixo da cama.

Assim se pensou e assim se fez. Adelaide chegou, meteu-se na cama, veio o médico, receitou e Gonçalo Pena, à sorrelfa, trouxe as armas.

O problema foi quando, uma noite, em pleno amor, estando ele por baixo e ela por cima, Adelaide começou a cavalgar, a cavalgar e não se conteve: soltou um grito selvagem, interminável, que acordou os hóspedes e assustou a dona da pensão. Gonçalo Pena teve que assentar-lhe um tabefe e tapar-lhe a boca com a almofada. Quando a patroa bateu à porta, ele entreabriu e disse: Já está melhorzinha.

Mas teve que fazer voto de castidade enquanto não se encontrou outro destino para as armas, não fosse Adelaide acordar o inimigo com o seu grito que não era de gata mas de leoa, de leoa indomada e indomável, pensou de si para si Gonçalo Pena. E gostou tanto da expressão que não descansou enquanto a não sugeriu como frase de propaganda revolucionária. Sem que alguma vez o suspeitasse, foi por causa de um grito de amor que o general Norton de Matos mais tarde pronunciou a frase que a História registaria: oposição indomada e indomável.

Ainda hoje, não sei porquê, ao olhar o busto da República, quem eu vejo é Adelaide. Ou então, um seio de fora, é ela que sai do quadro de Delacroix.

Nunca mais se recompôs daquela paixão. Trazia-a dentro de si, suspirava alto, às vezes quase gemia. Parece que trago o homem agarrado à pele, dizia ela a minha mãe. E às vezes tinha visões.

Ai menina, ai menina, apareceu ela, uma manhã, a gritar, ai menina que vai acontecer uma grande desgraça, eu tive um sonho, eu vi.

E por mais que minha mãe lhe perguntasse, ela só repetia: ai menina, ai menina, que desgraça.

Só depois de muitos ais e suspiros, acabou por ser um pouco mais concreta, se assim se pode dizer:

- Vi um grande barco que o levava, ele chamava por mim, eu corria mas não conseguia agarrá-lo, o barco ia pela estrada fora, veja lá, menina, um barco pela estrada, ele a chamar e eu sem poder.

- Um barco? - perguntou a minha mãe, que levava muito a sério estas premonições.

- Um barco, sim, menina, onde é que já se viu um barco a andar na estrada?

Tarrafal, pensou a minha mãe. Tarrafal ou Peniche. Mas não disse nada. Procurou sossegar Adelaide, o que não era fácil.

Foi o primeiro sinal.

- Vão prender o Gonçalo, disse a minha mãe ao meu pai.

- Lá estás tu.

E não ligou.

Uns dias depois, outro sinal: à porta de Gonçalo Pena apareceram três pombas brancas degoladas.

- Ai menina, que o vão matar, concluiu logo Adelaide.

Meu pai, que lia o jornal, e nem sempre estava tão distraído como parecia, disse simplesmente:

- Foi o Antoninho Pena que as mandou lá pôr.

- Ó Senhor Lourenço, não diga isso.

- Digo, pois. Eles tiveram uma pega por causa do futebol, do comício ou lá o que foi, e agora o Antoninho, que é um sacana, quer ver se lhe mete medo.

Mas nem Adelaide nem a minha mãe se convenceram. Fenómenos daqueles eram sinais. E os sinais tinham de ser lidos como deve ser. De modo que combinaram uma sessão de espiritismo para aquela mesma noite.

Não sei o que nela se passou.

Ninguém nunca sabia, a não ser os que participavam nas sessões: a minha mãe, às vezes a minha avó, Adelaide, pessoas desconhecidas que vinham de fora, e Etelvininha, segundo se dizia, um médium excepcional. Quando a minha mãe acentuava as palavras médium e excepcional, meu pai não resistia: É do que o Beira Rio e a Académica estão a precisar, de um médium, um médium de ataque.

E a minha mãe ficava furiosa.

Além dos dons para comunicar com os mortos, Etelvininha tinha especiais predicados para lidar com os vivos. Já ia no quinto ou sexto homem.

- Uma loba, dizia Lurdes Salvé Rainha. Gostava deles altos, fortes e brutos, ela, que era tão pequena, tão magra e tão delicada.

Daquelas sessões sobravam por vezes umas folhas gatafunhadas. Eram recados vindos do além. A minha mãe conseguia ver naqueles hieróglifos a letra de mortos amados. Meu pai achava tudo aquilo uma pessegada, quase uma heresia. Mas uma vez a minha mãe mostrou-lhe uma das tais folhas e disse-lhe: Vê lá se não é a letra do teu pai.

Ele não respondeu, mas ficou perturbado. E nem sequer fez troça. Creio mesmo que ficou convencido que aquela era a letra de meu avô Júlio de Faria. A partir daí começou a ficar incomodado sempre que a porta da saleta da salamandra se fechava para uma sessão de espiritismo. Ainda tentava dizer uma piada, mas eu acho que depois daquele dia ele ficou com medo. Era um homem de uma grande coragem física, mas impressionava-se com o invisível e o insondável. Sou um bocado como ele. Aquelas sessões assustavam-me muito. E ainda hoje não gosto de passar em grandes corredores sombrios com retratos nas paredes. Como era o corredor que conduzia à saleta da salamandra. Em todas as outras salas, e também nos quartos, havia fogões. Só ali não. Aquela salamandra negra parecia-me uma boca para não sei o quê.

Fosse por esse ambiente um tanto sobrenatural criado pelas sessões de espiritismo e pelas visões de Adelaide, fosse pela tendência de minha mãe para o misterioso e o oculto, o certo é que comecei a ter uns arrepios, uns medos e umas esquisitices a que minha avó chamava fernicoques. Um dia a coisa foi mais longe. E logo foi interpretada como mais um sinal. Lurdes Salvé Rainha tinha vindo mais uma vez lá a casa. Apanhou-me no corredor, agarrou-me a cara e fixou-me longamente. Eu tive a sensação de estar a ser observado por uma caveira com olhos. Assustei-me, mas esqueci depressa. Mais tarde, na escola, revi aquele olhar no meio de uma caveira cheia de pensos. Senti uma bicada na nuca, um arrepio atrás, como nunca tinha sentido. E compreendi: era o olhar da morte. Então levantei-me e fugi, o professor ficou espantado, mas eu nem fui capaz de dizer nada, o coração batia-me com toda a força e eu precisava do colo de minha mãe, de uma mão que me agarrasse e me impedisse de cair no buraco negro. Não era a primeira vez. Uns dois anos atrás, tinha assistido ao enterro de um estudante que morrera de tifo. Os sinos dobravam a finados, havia estudantes vindos de Coimbra com as suas capas negras, mulheres, muitas mulheres encafuadas nos seus xailes, o enterro saiu da casa no cimo do Jardim Velho à luz de archotes, os sinos tocavam cada vez com mais força, como que dentro de mim, eu olhei o caixão e vi. Cheguei a casa muito excitado, peguei num lápis e escrevi num papel: aquela coisa preta aquela coisa preta aquela coisa preta. Assim, três vezes. A minha mãe leu, mostrou a uns espiritistas, uns acharam que era um sinal, outros que eu era médium. Eu via, sobre tudo de noite, aquela coisa preta, via o enterro como um grande buraco negro rodeado de archotes. E não conseguia dormir.

Agora eram os olhos de Lurdes Salvé Rainha no meio de uma caveira atada por ligaduras. E corria, corria. A Escola ficava ao lado do cemitério, em frente da Igreja. Do cimo do Cruzeiro via-se o Caramulo, o rio, os campos. Para mim era a vista mais linda. Mas daquela vez não via nada, só os olhos de Lurdes Salvé Rainha, os olhos da morte que me fitavam no meio de uma caveira. Cheguei a casa esbaforido: Vou morrer, vou morrer.

A minha mãe assustou-se, abraçou-me com força, mandou chamar o médico. Mas quem podia diagnosticar aquilo? Nos dias seguintes a cena repetiu-se. Comecei a ter medo de sair de casa, de ficar sozinho, de estar na Escola. Porque era de repente: uma bicada na nuca, um frio, um sufoco, a sensação de morte iminente. Ainda hoje estou convencido de que esse deve ser o primeiro ataque da morte: uma bicada na nuca.

Etelvininha dizia que alguém queria falar por mim. Adelaide jurava que era um sinal, um aviso, algo de terrível que estava para acontecer.

Vieram mais médicos. Mas não havia ciência para aquela doença do espírito. Abanavam a cabeça e o Dr. Alfredo, o grande mestre, doutorado na Sorbonne, Director do Hospital de Alma e expulso da cátedra por motivos políticos, confessou a minha mãe: A coisa pode tornar-se séria, o rapaz escapa-nos.

E era isso: eu estava a escapar-me. Sentia que se não me agarrassem a mão podia partir subitamente para não sei onde. O meu pai estava muito preocupado e procurava tranquilizar-me, garantindo-me que ao pé dele nem nada nem ninguém me podia fazer mal. Mas aquilo mantinha-se. Eu estava a escapar-me. O velho Dr. Alfredo, amigo de meu avô, carbonário e conspirador, tinha acertado no diagnóstico.

Desesperada, a minha mãe mandou vir de Espinho um médium de grande fama. Não disse nada ao meu pai e trouxe-o à minha presença. Eu olhei para ele e vi a cara, isto é: a caveira de Lurdes Salvé Rainha.

Fiquei pior. A minha mãe tentou sossegar o meu pai dizendo-lhe: são aproximações. Ele teve uma fúria e quase lhe batia. Mas a minha mãe não desistia facilmente. Adelaide e Etelvininha, desta vez com a cumplicidade de minha avó, também ela desesperada, prepararam-me um banho de unguentos e ervas. Fiquei todo besuntado, aquilo nunca mais saía, nem sequer com álcool. Elas bem esfregavam. Mas qual-quê. Não saía o unguento nem o mal. E eu definhava. Quer dizer: escapava-me. Só de pensar em Lurdes Salvé Rainha, começava a gritar. Veio o Dr. Aurélio, veio a Tia Matilde, mandaram recados para a minha tia Hermengarda, irmã do meu avô Geraldo, por quem eu tinha uma especial ternura. Ela veio de Alba e ficou vários dias à beira da minha cama. Segurava-me na mão e eu sossegava. Só ela, mais até do que a minha avó, a minha mãe e o meu pai, me trazia paz. A minha irmã Maria perguntava: São os espíritos? E eu ficava aterrado.

Então a minha tia começou a ler-me poesia.

Aquele ritmo trazia-me uma espécie de música interior. E eu ficava mais calmo. Ela lia-me Garrett, Antero, António Nobre e António Sardinha. Não gostava de Guerra Junqueiro. Ao contrário do irmão, meu avô, era monárquica e tinha afinidades com os integralistas. Eu gostava sobretudo da Nau Catrineta e da Barca Bela. Aprendi de cor as primeiras estrofes de Os Lusíadas. E disse à minha tia: quase se pode assobiar.

Também o meu pai vinha por vezes ler-me as Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano. Mas eu gostava sobretudo que ele me falasse de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que na minha imaginação se confundia com ele próprio, Lourenço de Faria, o caçador, meu pai.

Um dia a minha tia contou-me a triste história de D. Sebastião e do seu desaparecimento em Alcácer-Quibir. Ela nunca foi capaz de dizer que o rei morreu na batalha. Falava sempre dele como de um rei desaparecido. Aquela palavra Alcácer-Quibir passou a ter para mim um sentido mágico. Havia música nas suas sílabas, guitarras partidas, vento do deserto. Eu dizia-a baixinho e via os cavalos, os pendões, as lanças e as espadas no branco areal. Via o rei a cavalgar, até desaparecer ao longe, numa linha azul.

Foram dias e noites terríveis, mas carregadas de uma profunda e inigualável magia. A minha tia e o meu pai transmitiram-me ritmos e temas que para sempre ficaram dentro de mim. Mas não conseguiram arrancar-me aquela aflição. Eu continuava a escapar-me. Contaram-me depois que o meu pai tinha dito: O rapaz está com medo de morrer e se não lhe tiramos esse medo ele morre mesmo.

Foi o primeiro a compreender.

Talvez por isso, apareceu uma manhã a tirar-me da cama. Anda daí, vamos à caça. Eu fui e aquilo fez-me bem. Durante uns dias senti-me melhor e quase esqueci a caveira, o olhar, a coisa preta. O meu pai proibiu as sessões de espiritismo e deu ordens terminantes para não deixarem Lurdes Salvé Rainha voltar lá a casa.

Até que aconteceu uma coisa estranha, ainda hoje não a sei explicar.

Por aquela altura já as criadas costumavam meter-se comigo. Faziam-no com todos os rapazes desde muito cedo. Às vezes levantavam as saias e mostravam-me o que tinham entre as pernas. Não usavam calcinhas e via-se uma mancha de pelos pretos. Pintilheira, diziam elas. Depois metiam as mãos na vagina: Cona, diziam. E aquilo fazia com que algo de muito profundo se levantasse dentro de mim.

Virgolina sentava-se no banco da lenha, ao lado do fogão. Levantava as saias e ficava assim, de coxas à mostra. Quando me ia deitar deixava-se cair para cima de mim e esfregava-se, esfregava-se, quase me atafegava. Eu ficava com o sexo muito duro, tão duro que até doía. Às vezes ela mexia-lhe e eu pensava que ia desmaiar. Ela pedia para não contar nada a ninguém.

Ora depois daquela doença que ninguém sabia que nome tinha, estava eu uma noite a brincar com as criadas na cozinha, quando de repente disse à cozinheira: Levanta as saias. Ela riu-se muito e levantou-as. As outras riram. Mas eu estava muito sério: Deixa-me meter o meu pirilau na tua cona. Ela fez-se zangada e baixou as saias. Então passou-me não sei o quê pela cabeça, peguei num garfo e atirei-lho com toda a força. O garfo espetou-se-lhe no rabo, ficou a baloiçar para baixo e para cima e ela desatou a berrar. Ao ver aquilo, a minha mãe disse: O pequeno está possesso.

Talvez estivesse. Porque no dia seguinte, na Escola, de repente zás: a bicada na nuca, aquela coisa preta. Corri para casa e cheguei tão estafado que desmaiei nos braços de minha mãe. Recomeçou tudo. Voltaram a chamar o Dr. Alfredo, ele repetiu o que já tinha dito: O rapaz escapa-nos.

Tinha um olho um pouco descaído, a cabeça sempre inclinada para o lado esquerdo, uns grandes bigodes que alisava constantemente com a mão direita.

Aurélio Silveira aconselhou ginástica sueca e banhos frios. Era o que ele fazia todas as manhãs: uma sessão de ginástica, seguida de um chuveiro frio, mesmo no Inverno.

A minha mãe voltou à teoria das aproximações. E lá veio Etelvininha, sempre com grandes olheiras nas faces encardidas cobertas de rouge. Adelaide, essa estava lá sempre, fazia parte da casa. Contava-me histórias antigas, às vezes cantava. Deitava as cartas, agarrava-me as mãos, fechava os olhos. Por vezes dizia: Não consigo apanhá-lo.

A Tia Hermengarda voltou. Mas dessa vez nem ela.

Até que uma noite acordei muito aflito e a gritar: Vou morrer, vou morrer.

- O que foi?, perguntou o meu pai, diz-me, eu sou o teu pai, eu mato aquilo de que tu tens medo.

Eu apontei na direcção da janela e disse: Aquela coisa preta.

Enquanto a minha mãe, a minha avó e a minha tia se afadigavam de um lado para o outro, o meu pai foi buscar a espingarda de cinco tiros, apareceu no quarto, muito calmo, e perguntou-me outra vez:

- O que é, diz-me o que é e onde?

Eu repeti:

- Aquela coisa preta.

Então o meu pai apontou na direcção da janela e disparou cinco tiros seguidos. Voaram os vidros, choveram estilhaços, ficou tudo estarrecido, mas eu senti subitamente uma grande paz dentro de mim.

Olhei para o meu pai e comecei a rir. Ele abraçou-me e riu. Riu e chorou. Creio que foi uma das grandes alegrias da vida dele. E um dos momentos de absoluta cumplicidade entre nós.

Um e outro, sem palavras, compreendemos imediatamente: ele tinha acertado naquela coisa preta.

 

Dizia-se: a casa. E era como se fosse um castelo, um sítio sagrado, o último reduto. Ali vinham os velhos republicanos parlamentar e conspirar com a minha avó Beatriz, as raparigas namoradeiras confessar-se a minha mãe, que tinha uma certa propensão para orientar a vida de toda a gente, os espiritistas, alguns vagabundos, como o Lince, que não tinha outra referência senão a casa, as velhas da vila, antigas criadas e, mais raramente, amigos do meu pai, entre eles um inglês, Mister Spender, capaz de emborcar três ou quatro garrafas de tinto. A casa, reconstruída por Raul Lino, amigo de meu avô Geraldo, fica na parte baixa da vila, quase junto ao rio Alma, na Rua Bartolomeu Dias, mais conhecida por Rua da Cheia, talvez porque no Inverno, sempre que havia grandes chuvas, parecia um afluente do rio, que entrava pela casa dentro, alagando a adega, o jardim, a arrecadação da lenha (a que nós chamávamos casa da lenha) e os primeiros degraus das escadas, os da principal e os da cozinha. Era preciso andar de barco pela rua, quase rio,

Rio, a minha irmã e eu púnhamo-nos à varanda a ver as estranhas coisas e os animais que vinham na enxurrada: árvores, cadeiras, colchões, berços, laranjas, muitas laranjas, porcos, galinhas, às vezes vacas e cavalos. Depois da cheia a rua ficava entupida de lama, detritos, restos.

Era uma rua com muitos ofícios e oficinas.

Havia, em frente, o Vítor Sapateiro. Foi com a sua faca de cortar meias-solas que fiz a pequena cicatriz que ainda tenho na cara. Havia o forno da Rosa, onde se cozia o pão e os folares da Páscoa, um ovo no meio. Havia a oficina das bicicletas, onde eu ia pedir ao Leandro as tiras de câmara de ar com que se fazia as fisgas, conhecidas em Alma por atiradeiras. E havia a oficina do Ti Joaquim Marceneiro, onde eu passava horas a ouvir os canários a cantar e a olhar fascinado a arte de aplainar as tábuas e cortar, serrar, tornear a madeira. Gostava do cheiro e dos gestos, brincava com as aparas e a serradura, às vezes pedia-lhe para ele me fazer um pião de buxo, que era mais duro e resistia melhor às bicadas dos piões adversários. Também gostava de ver o Vítor a cortar meias-solas e a manejar a sovela. Ou a Tia Rosa a amassar o pão, a deitar-lhe o fermento, a levá-lo ao forno. Eram artes e ritos que tinham o seu ritmo, a sua técnica, a sua magia. Fascinavam-me os gestos precisos, exactos, com que o Ti Joaquim aplainava, o Vítor cozia e a Tia Rosa fazia saltar a massa nas suas mãos.

Pela rua passavam amola-tesouras, carros de bois, ciganos com suas carroças e seus cavalos. Eu tinha uma irresistível atracção pelos ciganos e pelo circo. Acampavam do outro lado do rio, sob os grandes plátanos, num largo chamado Além da Ponte, onde havia sempre um cheiro de fogueiras, de cavalos e de gente de passagem. Eu fugia muitas vezes para lá. Sentava-me à beira do rio a pescar e dava os ruivacos e os bordalos aos ciganos e aos saltimbancos. A minha mãe e a minha avó temiam que eles me levassem. Eu creio que tinha essa esperança.

A casa tinha duas entradas. A principal estava quase sempre fechada e só abria em dias especiais de festa ou de visita, como, por exemplo, na Páscoa, quando vinha o padre e nos dava a beijar o crucifixo. A outra estava permanentemente aberta, com um pequeno badalo que dava sinal sempre que alguém entrava ou saía. Era uma casa de três pisos: no primeiro, além do hall da entrada principal, ficavam a adega, a sala de engomar (em Alma dizia-se passar a ferro) e ainda, ao fundo do jardim, a casa da lenha e o cabanal, além do galinheiro e do canil; no segundo piso, a cozinha, a sala de jantar, a sala de visitas, o escritório, a sala da salamandra, designada por saleta ou salinha, a casa de banho e um quarto de hóspedes; os quartos de dormir ficavam no terceiro piso. Os quartos e o sótão, a que a minha mãe chamava forro, onde se guardavam arcas cheias de fatos e vestidos velhos, brinquedos, sapatos, raquetas de ténis, coisas misteriosas de outras eras. A sala de jantar e a sala de visitas, separadas por uma porta envidraçada, com o seu tecto de madeira, os seus fogões, um deles de azulejos, o contador indo-português do século XVII, as pratas, as porcelanas, os retratos a óleo dos meus avós, a grande mesa que tinha, numa das cabeceiras, mesmo em dias de festa, uma cadeira vazia onde se sentava, onde não se sentava, vá lá saber-se, Geraldo Pais, meu avô. Era uma sala grande, larga, harmoniosa. Havia nela um não sei quê, como não vi nunca mais, em nenhuma outra. Nem mesmo nas que tinham sido feitas à sua imagem e semelhança, em outras casas da vila. Não sei se era da mesa, se da lenha a crepitar no fogão, se do jogo de luz e sombra que vinha das janelas de guilhotina que davam para o jardim, com seus canteiros de buxo, seus pessegueiros e sua ameixieira, se do brilho dos móveis, das pratas e da porta envidraçada, se das cadeiras de couro preto em volta da mesa, se simplesmente de um ambiente, um calor, um cheiro próprio, como se a sala de jantar, também ela, tivesse uma respiração e um ritmo. Ou talvez uma alma. Talvez fosse isso. Há sítios, salas, objectos, que se apoderam da alma das pessoas. Há pequenas caixas, em cima das mesas, que podem estar cheias de gente. Por exemplo: havia uma chávena que tinha uma asa partida. Estava no armário com portas de vidro e ninguém lhe podia tocar. Para a minha avó era um prolongamento da filha morta, a minha tia Elvira, que não conheci e que sorria para mim de dentro de um retrato pendurado na parede da sala de visitas. Creio que por vezes ela saía do retrato. Ou era só uma sombra sentada aos pés da cama. Outras vezes passeava pelo quarto, seus longos véus voando levemente, era ela que povoava as insónias da minha infância, sempre que a mãe e o pai saíam à noite. A tia do retrato esteve aqui, dizia eu. A minha mãe ouvia franzindo um pouco o sobrolho direito, ninguém dizia que sim, ninguém dizia que não, uma subtil cumplicidade parecia estabelecer-se, talvez porque ninguém quisesse pactuar com o medo ou soubesse explicar o inexplicável.

Ela tinha morrido tuberculosa, como o tio Pedro, irmão do meu pai, que era um gigante de quase dois metros. Em quase todas as famílias havia retratos de raparigas e rapazes que eram novos e bonitos e tinham morrido de tuberculose.

Dizia-se que minha tia tinha sido a grande paixão de Gonçalo Pena, que dava com ela passeios a cavalo. E de meu tio Pedro contava-se que numa noite de passagem do ano se empoleirou na ponte da Barra e depois de beber meia garrafa de conhaque se lançou, vestido de smoking, num salto de anjo, para as águas da ria. Sabiam que estavam condenados e queriam viver muito depressa. Havia retratos deles, nos sanatórios, o meu tio sempre muito bem vestido, uma taça de champagne na mão, a sorrir, como quem se despede ou ri da própria morte, a minha tia mais soturna, deitada num canapé, franzindo um pouco o sobrolho, como a minha mãe. Havia neles algo de irremediável e talvez perigoso.

Mas nem todos os retratos me inquietavam.

O de minha avó Leonor, pintado a óleo, nunca me assustou. Eu olhava-a e ficava em paz. Talvez por toda a gente dizer que tenho os olhos verdes como ela, talvez pelo modo como o meu pai sempre a ela se referia. Íamos a Aveiro, ao jazigo da família, o meu pai benzia-se e de repente eu via-o muito pequenino, rezando, desamparado, ao pé da mãe. Apesar de ela ter morrido muito antes de eu nascer quando olhava para o retrato eu via a minha própria expressão e sentia que algo de muito profundo me ligava àquela avó.

Já o retrato do meu avô Geraldo era para mim outra inquietação. Não sei se pela saudade que eu sentia dele, se pela forma como tinha sido pintado: os olhos seguiam sempre quem o fitasse. Por vezes eu temia que o meu avô saísse do retrato, me pegasse pela mão, como costumava fazer, e me levasse por aí fora, até ao outro lado de tudo.

Enfim, era a casa. A casa com seus retratos, seus ruídos, seus silêncios e seus mistérios. O soalho de madeira que de noite rangia, os móveis muito antigos, de onde por vezes vinha um pequeno estalido. Quase como um gemido.

A minha avó Beatriz sentava-se a uma das cabeceiras da mesa, na outra havia uma cadeira vazia.

Meu pai perguntava sempre onde é que queriam que se sentasse. Era uma coisa que me encantava. Não que ele não soubesse, nem por distracção. Creio que era para marcar distâncias e desse modo significar que aquela não era verdadeiramente a sua casa. Às vezes parecia um hóspede. E provocava: Onde é que querem que eu me sente? Empregava o verbo na terceira pessoa do plural: Esconderam-me isto, tiraram-me aquilo. A minha mãe respondia: foi o inimigo. A minha avó, mais ríspida, dizia secamente: Foi o Getas. Que nunca ninguém soube quem era. Por vezes o meu pai falava do palácio de seu avô, o Barão. Tinha grandes jardins, era o maior de Aveiro. Ardeu numa noite e creio que esse fogo nunca se apagou completamente na memória do meu pai. Ele falava do picadeiro, dos cavalos, dos criados de libré, das carruagens, dos barcos. Sem ostentação nem azedume, apenas, como já disse, com uma certa melancolia. Mas para mim a casa era ali, quase junto ao rio que por vezes invadia a rua, entrava na adega e no jardim e estava, por assim dizer, dentro de nós.

Naquele tempo ainda os moliceiros navegavam de Aveiro até ao cais da vila para receber a lenha que, no Inverno, vinha pelo rio abaixo. Era um espectáculo bonito de se ver: o rio ficava cheio de toros que batiam nos pilares da ponte e se acumulavam em frente ao cais, onde iam sendo recolhidos.

As lampreias subiam em fins de Janeiro, princípios de Fevereiro. Eram pescadas à noite, ao candeio, junto à represa da nora. As enguias pescavam-se no ribeirinho que atravessava o campo até desaguar no rio. O meu pai costumava ir a elas com o Lince, que apanhava as minhocas na lama do ribeirinho e depois fazia o sertelo. Levavam um guarda-chuva, abriam-no e sacudiam para dentro as enguias que vinham agarradas às minhocas. Era engraçado. Mas eu gostava mais da pesca à linha. Nem sequer usava sediela, pescava com linha de cozer e era capaz de apanhar centenas de ruivacos, bordalos e bogas, junto à ponte ou nas escadas do cais.

Sim, naquele tempo ainda o rio estava vivo e fazia parte das nossas vidas. De certo modo era ele que marcava o ritmo das estações. As cheias, as narcejas que depois chegavam às suas margens, as sombrias e as labercas que eu caçava com a minha flaubert de nove milímetros. E as enguias, as lampreias, a lenha, os moliceiros.

Na Primavera, quando o azevém nascia nos campos, os rouxinóis e as toutinegras começavam a cantar à tarde nos salgueiros e a nora girava lentamente, com o seu gemido que era a música da vila de Alma.

No Verão, alguns, como o Lince, penduravam-se nos alcatruzes e depois deixavam-se cair na água. O Beira-Rio construía uma piscina fluvial, com cabeceiras de madeira, a uma distância de vinte e cinco metros e seis pistas separadas por cordas cheias de rolhas de cortiça. Ali se faziam festivais náuticos e por lá, já nos anos cinquenta, eu vi passar os melhores nadadores do país, como Fernando Madeira e Baptista Pereira, apoteoticamente recebido depois de ter vencido a Travessia da Mancha. Foi no rio Alma, primeiro junto à nora, mais tarde na piscina, que aprendi a nadar.

Ao fim da tarde, a malta vinha da escola e das fábricas, despia-se e mergulhava. Ninguém usava fato de banho, ninguém fazia cerimónia com as lavadeiras que batiam a roupa nas suas tripeças dentro do rio. Rapazes e homens tomavam banho nus, alguns vinham lavar-se no rio, ensaboavam-se com sabão macaco e mergulhavam. As lavadeiras riam-se e comentavam: Ai o filho da mãe que já pinta. E às vezes, depois da escola, nós vínhamos arrancar as canoilas do campo e lançá-las, ainda cheias de terra, para cima da roupa a corar no areal. Elas corriam atrás de nós e algumas chamavam filhos da puta aos próprios filhos. Eu gostava de vê-las com as mamas a dar a dar e as saias arregaçadas que deixavam à mostra as grossas coxas muito brancas. Fugíamos pelo campo fora até junto de um poço que ficava debaixo de uma árvore. Era o Cortiço. Abriam-se as braguilhas e exibiam-se os pirilaus para ver quem tinha o maior.

Em alguns despontava uma penugem. Fulano já pinta, dizia-se, com respeito. E era como que a passagem para outro estado. Como quando uma aguadilha aparecia depois da masturbação. Fulano já se esporra, dizia-se. E isso significava que fulano começava a ser um homem.

Vinha Setembro e ouviam-se as codornizes, cujo cantar o meu pai imitava na perfeição. Ele saía com o Lorde e eu maravilhava-me a ver o cão marrado, completamente parado, até que o meu pai dizia: rompe! e ele rompia, a codorniz levantava e o meu pai metia a espingarda à cara como se ele próprio fosse levantar voo também. Depois o Lorde, a abanar o rabo, trazia a codorniz à mão. Meu pai, que não era muito de festas, salvo à minha irmã quando ela era pequena, tirava-lhe a codorniz da boca e dizia-lhe num tom de voz que para o cão valia como uma carícia: cão bonito, cão bonito.

Também gostava de o ver atirar às narcejas, que levantavam aos ziguezagues, era um tiro difícil. Havia muitas nas traseiras das casas do outro lado da rua, nos pequenos charcos que ficavam depois das cheias.

Naquele tempo o rio e o campo estavam vivos. Ritmavam, como já disse, os ciclos e as estações. E de certo modo faziam parte da casa.

 

A Loja era onde tudo se sabia. Ficava quase em frente do Jardim Novo, no começo da Rua d’Os Lusíadas, mais conhecida por Rua Seca, por oposição à Rua da Cheia, que lhe era paralela, mais abaixo. Havia lojas de sapatos, de louças, de fazendas, de ferragens, além das barbearias, das farmácias e dos cafés. Mas aquela era a Loja, com maiúscula.

O dono, Florêncio Tavares, que eu tratava por Ti Florêncio, tinha sido companheiro de meu avô nas lutas revolucionárias. Lá figurava, de bacamarte na mão, ao lado de Geraldo Pais, no retrato em que se viam quase todos os carbonários de Alma. Dava-me botões para eu jogar quando era a época, porque tudo então tinha ciclo, até os jogos: havia o do pião, o da bilharda, o do botão, o do berlinde (em Alma dizia-se boindra).

Era a maior loja da vila, com um balcão rectangular, como o das grandes lojas dos filmes ingleses e americanos, com as suas fazendas desdobradas em cima do balcão, as cadeiras altas onde se sentavam o Ti Florêncio, seu filho Artur e os empregados mais antigos. Cheirava a lã, a fazenda e a serradura espalhada pelo chão nos dias de chuva. Ali se juntavam, a certas horas, principalmente ao fim da manhã e a meio da tarde, os republicanos, a quem o meu pai, ironicamente, chamava o reviralho. Falavam baixo, ao canto esquerdo, junto à cadeira de Ti Florêncio Tavares. De vez em quando vinham à porta deitar uma olhadela. Naquele tempo havia sempre alguém à espreita, alguém à escuta. Mesmo assim, a certas horas, o Ditador ficava por certo com as orelhas a arder. Malhava-se forte e feio na situação, recordavam-se os tempos ditosos da República, falava-se sobretudo no dia em que se abririam as garrafas especiais que cada um tinha em casa, à espera. Durante a guerra discutia-se a evolução das operações, citava-se a BBC, que se ouvia, à noite, clandestinamente. Florêncio Tavares, que era um pouco surdo, punha a mão esquerda em concha junto ao ouvido do mesmo lado, enquanto mordia ligeiramente o bigode grisalho. Pedia sempre para falarem mais alto ou para aumentarem o som da telefonia, mas ao contrário dos outros surdos, falava baixo, às vezes quase só para dentro. Era complicado conversar com ele: nem ouvia nem se deixava ouvir.

Na parede da Loja, por detrás da sua cadeira, tinha pendurado um grande mapa da Europa onde assinalava, com bandeirinhas inglesas, as vitórias dos Aliados. Porque então era assim: havia os Germanófilos e os anglófilos, os do Eixo e os dos Aliados, ou seja: os da situação e os da oposição. A Loja era claramente contra Hitler e Mussolini, pelos Aliados. Como já antes, segundo eu depreendia das conversas, tinha tomado o partido da República espanhola, contra Franco. Contava-se que meu avô acolhera refugiados espanhóis e os ajudara a emigrar clandestinamente para o México. Meu pai, que não se considerava nem da Situação nem da Oposição, porque era monárquico e dizia que não tinha rei, pendia, por educação e por convicção, para o lado dos ingleses. Creio que era mesmo o único ponto em que ele estava de acordo com os da Loja: na defesa da Inglaterra e no apoio aos Aliados contra os nazis. De tal modo que, andando ele a passear com meu avô Geraldo na Avenida, em Espinho, quando os altifalantes noticiaram a declaração de Guerra do Reino Unido à Alemanha, tiraram os chapéus e começaram aos vivas à Inglaterra. Era o que se contava, porque, nessa altura, eu era ainda muito pequeno.

Quase todos os seus amigos, aliás, incluindo o Marquês, talvez por solidariedade monárquica com o Rei Jorge VI ou por fidelidade à velha aliança, eram a favor da Inglaterra. Que tinha na Loja um dos seus principais bastiões. A começar, claro está, por Gonçalo Pena, que tinha dificuldade em conter-se e, ao contrário dos outros, falava alto. Fazia verdadeiros comícios contra Hitler e o fascismo, acabando quase sempre com violentos ataques a Salazar, que tratava também por Manholas. Tão alto ele falava, que até Florêncio Tavares lhe fazia sinal com a mão para se acalmar. Gonçalo Pena não era capaz. Acendia cigarro atrás de cigarro e espetava mais o beiço inferior, já de si descaído e avançado, a ponto de o meu pai lhe dizer que ele tinha boca de Bragança, o que, por mais estranho que pareça, não lhe desagradava de todo.

- No fim da guerra, dizia, no fim da guerra, isto cai.

- Ná, respondia o meu pai, acenando negativamente a cabeça.

Passavam na Loja caixeiros viajantes. E alguns não traziam só amostras, traziam novidades, boatos, jornais proibidos. Passavam ingleses. Na opinião do meu pai, trabalhavam todos para o Intelligence Service. Às vezes eu ficava junto de Florêncio Tavares a ouvir histórias e notícias da guerra. Europa era para mim uma palavra carregada de nostalgia. Dizia-se Europa e eu via Paris deserta e as tropas alemãs a desfilar, via a Torre de Londres, Churchill a fazer com os dedos o V da vitória, os destroços provocados por um bombardeamento. A primeira vez que passei os Pirenéus, andei à procura de casas bombardeadas. A ideia de Europa era inseparável da guerra, das ruínas, de multidões que se deslocavam com seus haveres por uma estrada fora. Para mim, não sei porquê, Europa começava em Além da Ponte. Talvez porque se parecesse com outros largos, noutras cidades, lá longe, à beira de um rio. Talvez por causa dos ciganos e saltimbancos que por ali passavam.

À noite ouvia-se a BBC. Era uma forma de comunhão com os Aliados. Comovia-me ouvir aquela voz que vinha de Londres, atravessava os países e chegava até nós com suas notícias e seus apelos. Ligava-se o aparelho, ouvia-se o indicativo, e para mim, aquele som, misturado com o ruído das interferências, era já a Europa, os bombardeamentos, a guerra.

Um dia, Gonçalo Pena chegou à Loja muito excitado.

- Imaginem vocês que o Botelho Moniz meteu no Campo Pequeno os grevistas do Ribatejo.

Eu não sabia quem era o Botelho Moniz, mas já tinha aprendido que não se faziam perguntas sobre os nomes das pessoas. Mas também não sabia o que era o Campo Pequeno, nem o que significava a palavra grevistas. E perguntei.

- Este miúdo tem a mania de perguntar tudo, disse Gonçalo Pena, que não gostava de ser interrompido.

Foi Florêncio Tavares que me explicou o que era o Campo Pequeno, uma praça de toiros onde não se deviam meter os homens que tinham parado de trabalhar como forma de protesto contra os baixos salários que recebiam.

- Percebeste? - perguntou Gonçalo Pena, ainda irritado, morto por retomar o fio à meada.

E à medida que ele ia contando, crescia na Loja a indignação. Gonçalo Pena falou também das greves em Lisboa, no Ribatejo e na Margem Sul. E leu à sucapa um recorte do Avante!, onde se falava do assassínio de um dirigente comunista chamado Alex. Tinha sido baleado pela polícia política. A palavra baleado fez-me impressão. Não precisei de perguntar: compreendi que queria dizer morto à bala. Mais impressionado fiquei quando Gonçalo Pena disse que o conhecia e acrescentou pormenores que tinha sabido em Lisboa. Ele ia de bicicleta numa estrada do Ribatejo, os polícias seguiram-no de carro e dispararam à queima-roupa.

Ainda hoje sonho com uma emboscada em que vou de bicicleta e na curva de uma estrada há um carro preto à minha espera. E lembro-me de que, a partir daquele dia, sempre que via um homem de bicicleta na estrada para Aveiro ou para o Caramulo, eu me perguntava se ele não andaria a fazer o mesmo que o outro e se de repente não apareceria um carro de onde disparavam para o matar.

Ainda vejo Florêncio Tavares a pôr no mapa as bandeirinhas inglesas. A Loja era uma Europa com suas cidades ocupadas e seus exércitos das sombras. Dizia-se Europa e era tudo o que se passava do outro lado, para lá das montanhas, algures no mapa. Como se aqui nada de verdadeiramente grande e extraordinário pudesse acontecer. Nem a guerra cá chegava, nem os bombardeamentos, nem os maquis, como então na Loja se chamava aos focos de resistência nas florestas da Europa. É certo que as sirenes por vezes tocavam. Mas era a fingir.

Não havia aviação inimiga para nos bombardear, nem abrigos para nos escondermos. Os carros tinham sido requisitados e andavam com os faróis pintados de azul. A gasolina estava racionada e havia automóveis, como o Citroen do Marquês, que funcionavam a gasogéneo, com uma espécie de cilindro enxertado atrás. As camionetas de carreira também, e levavam mais de uma hora a percorrer a distância entre Alma e Alba. Havia senhas de racionamento, bichas, pobreza. Às vezes, à noite, apagavam-se as luzes. Mas eram só ensaios. Confesso que tinha uma certa esperança que a guerra chegasse. Desconfio que o meu pai e Gonçalo Pena também. Pelo menos andaram uns tempos a carregar cartuchos com zagalotes. Não era concerteza para caçar codornizes.

Mas a guerra, só na BBC, à noite. Ou de dia, na Loja. Eu olhava para o mapa de Florêncio Tavares e via: a Europa. Creio que foi ali, na Loja, que pela primeira vez me senti europeu. E aqueles republicanos, embora os Aliados não saibam ou não queiram saber, foram tão europeus como os que se bateram em Dunkerque, nas Ardenas ou em Estalinegrado. Que foi a batalha seguida e sofrida com mais emoção e entusiasmo, sobretudo por Aurélio Silveira. Ele passava sempre a correr pela loja, entrava, dizia Olá gente, e saía. Tal qual como em minha casa. Ouvia-se o badalo da campainha da porta, uns passos rápidos e miudinhos e já se sabia: Olá gente. E ala, a pé, a cavalo, de bicicleta. No Verão, a remo: ia de bateira até à Costa Nova. Descia o rio Alma, depois o Vouga, até chegar à ria. E lá ia, pelo Canal das Pirâmides, rumo à Barra e à Costa Nova. Automóvel é que não. Ainda estou a ouvi-lo: Olá gente.

Mas quando foi da batalha de Estalinegrado, ele acrescentou: Estamos a aguentar-nos. Estamos, dizia ele. Porque Aurélio Silveira estava lá, com os russos, em Estalinegrado. Então sentava-se ao piano e tocava a Polonaise ou a Marselhesa, que eram para ele duas composições revolucionárias e universais. Era assim que ele estava com os russos, em Estalinegrado, ou com os ingleses, sob as bombas, ou com os resistentes, no maquis. Pela vida fora, sempre, até ao fim, ele tocaria a Polonaise e a Marselhesa, enquanto na sala ao lado, a Tia Matilde, com os olhos muito azuis, revia as provas de A voz de Alma ou escrevia os endereços dos assinantes.

E foi assim que eu fiz aquela guerra: ouvindo a BBC, à noite, em minha casa, com meus pais, a minha avó e Gonçalo Pena, ou em casa de Florêncio Tavares, no cimo da vila, dando um salto a casa de Aurélio Silveira para o ouvir tocar a Marselhesa ou para ajudar a Tia Matilde a distribuir o jornal. Mas sobretudo na Loja, pedindo por vezes ao Tio Florêncio para me deixar ser eu a pôr uma bandeirinha no mapa. Como naquele dia em que se decidiu que já era tempo de colocar, não uma bandeira inglesa, mas uma fitinha vermelha, porque era merecida, em Estalinegrado. Foi a mim que Florêncio Tavares pediu para o fazer. Acho que em homenagem a meu avô Geraldo Pais que, se fosse vivo, estaria de certeza connosco e com os russos, em Estalinegrado.

E a guerra acabou sem chegar cá. A oito de Maio de 1945, era dia de festa no Campo de São Cristóvão, Joaquim Marceneiro, que dirigia a instalação sonora, pediu-me, emocionado, para ser eu a anunciar o fim da guerra. Sempre em homenagem ao meu avô Geraldo. Então eu peguei no microfone e disse: Atenção povo do arraial, acabou a guerra, viva Portugal.

Na Loja comentou-se muito a notícia de que Salazar, pressionado pelas potências estrangeiras, tinha prometido eleições tão livres como na livre Inglaterra.

- Só se fôr para inglês ver, disse Manuel Tinoco, que, além de discutir futebol, também gostava, como republicano que era, de vir à Loja molhar a sopa. Mas nem pronunciava o nome de Salazar.

- Não quero sujar a boca.

E chamava-lhe sempre, desdenhosamente, o Manholas, ou o Botas.

No Outono desse ano, Gonçalo Pena voltou de Lisboa muito excitado. Ele ia e vinha sempre de táxi. Artur, o filho de Florêncio Tavares, comentava: Lá se foi mais um pinheiro.

Um dia perguntei-lhe o que é que ele queria dizer com aquilo. Então o Artur, que andava sempre a querer saber se eu já coçava a passarinha das meninas, explicou-me: sempre que mudava de governanta, Gonçalo Pena vendia um pinheiro.

Quando ele apareceu na Loja, regressado de mais uma saltada a Lisboa, Artur piscou-me o olho. E eu pensei: Mais um pinheiro.

Mas dessa vez ele vinha entusiasmado. Contou a reunião em que tinha participado no Centro Republicano Almirante Reis, durante a qual o seu amigo Mário Lima Alves apresentou as exigências da oposição para que as eleições pudessem ser, senão tão livres como na livre Inglaterra, ao menos minimamente honestas. Quando pediu o encerramento do Campo do Tarrafal, a sala veio abaixo com aplausos. Então Mayer Garção pediu às centenas de pessoas que ali se apertavam para assinarem o requerimento inicialmente apenas subscrito por onze.

- Nasceu o MUD, Movimento de Unidade Democrática, rematou Gonçalo Pena, martelando compassadamente as sílabas.

E lá se foram mais pinheiros, porque a partir de então Gonçalo Pena passou a andar de cá para lá, numa roda viva. Ia e vinha no mesmo táxi, trazia jornais, papéis, material, palavra que tanto podia significar um abaixo-assinado como algo de mais explosivo.

Subitamente as pessoas começaram a falar alto. Juntava-se muito mais gente na Loja, que passou a funcionar quase como um Centro Republicano. Esperava-se ansiosamente a chegada dos jornais, sobretudo o República e o Diário de Lisboa. A carrinha passava a caminho do Porto e quase não parava: atirava os maços de jornais e as pessoas corriam para comprar e comentar. A Loja exultava. Florêncio Tavares sorria, mordia o bigode e dizia:

- Agora vai.

Mas o meu pai torcia o nariz.

- Uma ditadura não cai por si nem com abaixo-assinados.

Referia-se às listas do MUD: toda a gente assinava.

Quando Gonçalo Pena veio pedir a assinatura de minha avó e de minha mãe, o meu pai comentou:

- Grande asneira. Estão a pôr a cabeça no cepo. E a poupar trabalho à polícia.

Tinha razão.

A páginas tantas, a Comissão Central do MUD anunciou que, só em Lisboa, já tinha mais de cinquenta mil assinaturas. O Governo, matreiro, pôs em dúvida. Os da oposição, de boa-fé, e na ânsia de conseguirem a legalização do movimento, anunciaram que iriam entregar as listas na Procuradoria Geral da República.

- Anjinhos, disse o meu pai.

Nessa altura, já os Aliados se estavam nas tintas para as aspirações democráticas dos portugueses e dos espanhóis. A guerra fria tinha começado. O melhor era deixar a Península Ibérica como ela estava.

Ao princípio, ainda Salazar, temeroso da onda de libertação, quis ensaiar uma aparência de abertura. Mas depressa compreendeu que americanos, ingleses e franceses tinham mais em que pensar.

Ressaibiado com as manifestações populares que se seguiram à guerra por todo o país, constatando, assim, de repente, quanto os portugueses desejavam vê-lo pelas costas, o antigo professor de Finanças decidiu apertar a tarraxa. Qual abertura, qual quê.

Os subscritores das listas começaram a ser despedidos, chamados à polícia, compulsivamente reformados ou demitidos: do Exército, da Universidade, da Função Pública, num processo persecutório que iria prolongar-se pelos anos fora.

Mas na Loja, nesse final de Outubro de 1945, ainda se acreditava. E foi com entusiasmo que se começou a preparar o comício da oposição para a campanha eleitoral de Novembro.

- Tem de ser presidido pela Beatriz, disse Florêncio Tavares.

Sempre a pensar no meu avô Geraldo Pais, aquele que aparecia no centro da fotografia dos carbonários, tirada no jardim da casa, muito antes de eu nascer.

 

Por essa altura andava eu na terceira classe, na Escola do Cruzeiro. Era meu companheiro de carteira o Nicolau, que tinha entrado comigo para o Colégio de São Leonardo, quando fizemos seis anos. Recordo essa manhã em que as nossas mães nos levaram pela ladeira acima, junto ao Quartel, eu pela mão, cabisbaixo, ele por uma orelha, a berrar, quase arrastado. Não se pode dizer que a nossa amizade tenha começado bem. Logo nesse dia andámos à pancada. Ele era um pouco esgalgado, pernas finas, faces encovadas, os olhos sempre muito abertos, nariz afilado, testa alta, media mais uns dois dedos do que eu. Dessa primeira vez foi ele que me derrubou e conseguiu pôr um joelho sobre o peito. Uns dias mais tarde fui eu que o virei de cangalhas. E assim sucessivamente, ora um ora outro, para gáudio dos mais velhos, que nos atiçavam. Era uma cena que já fazia parte dos recreios. Chegávamos a casa todos alanhados, mas nenhum de nós dizia nada. Até que o prefeito, o senhor Carvalho, mandou chamar as nossas mães e nos disse, na frente delas, que da próxima íamos para a rua.

Mas nem assim.

Só nos tornámos verdadeiramente amigos quando, uma tarde, tendo nós feito um desvio pelo campo de futebol, fomos obrigados a enfrentar um grupo do Bairro Novo. Eles queriam enxotar-nos, atiraram-nos pedras e nós fomo-nos a eles com unhas e dentes. O Nicolau quando mordia, mordia mesmo. Houve um que ficou sem um bocado da orelha esquerda. Ainda hoje tem a marca. Tão grande foi a nossa ferocidade, que eles acabaram por fugir. E passámos os dois a ser temidos.

É certo que por vezes, na Rua da Cheia, no Jardim Novo ou no Largo do Cruzeiro, se nos dava a zoeira, era um caso sério. Ninguém se aproximava, ninguém se metia, era só entre nós. Sempre a doer e a marcar: cabeça rachada, nariz a sangrar, um olho negro.

Mas já não passávamos um sem o outro. Ali estávamos, lado a lado, com os retratos de Salazar e Carmona na parede, naquela sala que cheirava a tinta, a raposinho, a peido. Era o cheiro da pobreza, naquele Outono de mil novecentos e quarenta e cinco. Contavam-se pelos dedos os que tinham sapatos. Alguns vinham de chancas, outros de tamancos, a maior parte descalços. Vestiam calças e camisas de cotim, a saca que traziam a tiracolo era da mesma fazenda, todos os anos oferecida por um benemérito emigrado no Brasil. No Inverno os dedos das mãos e dos pés inchavam com frieiras e os lábios ficavam gretados pelo cieiro. Havia doenças estranhas, a tinha, que provocava grandes peladas na cabeça, as impingens, que abriam feridas na cara, nos braços e nas pernas. Eram as doenças e as feridas da pobreza, da fome, do frio, do pouco.

No dia dos meus anos, convidava uma dúzia ou mais lá para casa. A minha avó mandava fazer grandes travessas de arroz doce, de letria e de leite-creme, aquela malta alambazava-se até mais não, era um fartar vilanagem.

Usávamos lousa e riscador, caderno de duas linhas para as cópias, canetas de pôr e tirar o aparo. Era preciso molhá-lo constantemente no tinteiro da carteira, os dedos andavam cheios de tinta, não havia sabão nem pedra-pomes que a tirasse, fazia parte da mão, estava na pele, ainda hoje lhe vejo a cor e lhe sinto o cheiro.

Aprendia-se a tabuada a cantar e os verbos à palmatoada. Quem ganhava batia e quem perdia estendia a mão. A classe ficava sempre à espera de ver quem é que no fim ia arriar em quem: se o Júlio em mim, se eu no Júlio, embora em gramática, sobretudo nos verbos, mas também no ditado, na leitura e na redacção, eu fosse mais forte. Mas ele, apesar do fato de cotim e dos pés descalços, era o melhor aluno, o que estudava mais, o mais atento, talvez o mais capaz. Eu não gostava daquele jogo. De ganhar, sim, mas não de dar palmatoadas nem de as levar. A palmatória, a que o professor chamava a menina dos cinco olhos, era para mim um símbolo do mal, algo como a cruz suástica que via nos filmes e nas revistas.

Ninguém ensinava gramática como Lencastre.

Não só as regras, mas a língua, a portuguesa língua, como ele dizia, usando, como mais tarde vim a saber, a expressão do poeta António Ferreira. Os verbos, o peso próprio de cada substantivo, o doseamento dos adjectivos, poucos mas bons, ensinava ele, as vírgulas, a virgulazinha que regula o trânsito, dizia Lencastre, fumando o giz ou escrevendo no quadro com a prisca. Cabelo quase ruivo, encrespado, andava com passos muito rápidos, os pés um pouco para fora. Tinha com a língua portuguesa uma relação, por assim dizer, carnal. Ou religiosa. Ou ambas. Sentia que a missão da sua vida era defender a língua, ensinar a falá-la com as sílabas todas, obrigar a escrevê-la sem erros, o predicado a concordar com o sujeito. Ai de quem, na leitura, comesse a última sílaba, ou de quem, na cópia, borrasse a escrita. Lencastre podia ficar completamente alterado por causa de uma sílaba engolida, uma vírgula mal posta, um erro de ortografia, um verbo mal conjugado. Agarrava no desgraçado pelos pés e obrigava-o a conjugar o verbo, assim, de cabeça para baixo. Era um homem de explosões e de repentes, por isso vivia-se um ambiente carregado de terror. Ainda agora, ao escrever isto, quase me encolho, para me proteger de possível vergastada. Alguns deixaram a escola por causa dele. Mas os que ficaram, tenho a certeza de que continuam a saber as regras e ainda hoje não ousam cometer um erro de ortografia. Sabe-se lá se Lencastre não aparece de repente para nos agarrar pelos pés e nos dar com a cabeça no chão.

Já com a Aritmética e a História, ele não afinava tanto. Cigarro ao canto da boca, raramente se sentava. Andava sempre de um lado para o outro, agitado, falando a olhar para longe ou talvez para dentro. De súbito parava ao pé de um e perguntava:

Diz lá, ó pequenino, conjuntivo presente do verbo colorir.

Se o infeliz se engasgava, pegava-lhe pelos fundilhos e mandava-o pelo ar. Não sei como nunca sucedeu uma tragédia.

Podia ter sido com o Nicolau. Por causa de um ditado. Não sei qual foi o erro do meu companheiro de carteira. Só vi o Professor tentar virá-lo do avesso e o Nicolau a morder-lhe a mão com toda a força. Lencastre soltou um grito e largou-o.

E o Nicolau, ala que se faz tarde.

Foi o cabo dos trabalhos. O meu pai, que às vezes caçava com o Professor, teve que ir apaziguá-lo. E o Nicolau só voltou à escola por uma orelha, desta vez pela mão firme do pai, nervoso como ele e com fama de poucos amigos. Republicano dos quatro costados, de cada vez que entrava na Loja, o que era raro, porque também ele tinha um estabelecimento, pegava-se com Manuel Tinoco.

Não por divergências políticas, mas por causa do futebol. Adolfo Trindade, pai do meu amigo, era um portista ferrenho, Manuel Tinoco, adepto e sócio, dizia ele mostrando o cartão, do Sporting Club de Portugal, assim mesmo, o nome bem silabado. Nem um nem outro eram dados a grandes tolerâncias, de modo que se pegavam sempre que, na Loja, ou no Café Sousa, começavam a falar de futebol.

Nicolau e eu tínhamos um código, por assobio consoante o ritmo e a entoação, sabíamos para o que era: futebol, berlinde, botão. E no Verão: rio.

Havia também a chamada para a escola. Era ele que todas as manhãs assobiava. Eu ia ter com ele à Rua Seca e lá íamos, subindo as escadas sem fim até ao Largo do Cruzeiro.

Em Junho, quando os dias ficavam mais longos, ele passava na rua e assobiava. Então saíamos ao encontro do crepúsculo, junto ao rio, para apanhar os besouros que voavam enlouquecidos, ou para caçar os pardais que pousavam em bandos nos plátanos de Além da Ponte, ou para ir aos melões das camionetas que chegavam de Campo de Besteiros. Às vezes, para, com outra malta, colocarmos os bancos do Jardim Novo em cima das árvores e arrastarmos depois para o areal do rio a carripana de três rodas do Dr. Lopes, que era o notário de Alma. Também subíamos ao Largo do Cruzeiro, para de lá espreitarmos os casais que se deitavam na Pensão Sousa. Mas isso era mais difícil: os cocas, mais velhos, não gostavam da nossa concorrência.

Naquele tempo jogava-se com bola de trapos. Havia dois que mediam os passos, caminhando um para o outro, o que ficava por cima começava a escolher. Era assim que se constituíam as equipas. Os melhores eram os primeiros a ser escolhidos.

Algumas bolas eram verdadeiras obras de arte, feitas com meias cheias de lã, fechadas depois em forma de cu de galinha. E havia os grandes desafios: bairro contra bairro, rua contra rua. Foi ali que, pela primeira vez, andava ele já então na quarta classe, eu vi o Nani driblar toda a equipa contrária e marcar um golo monumental na baliza que ficava do lado da Igreja.

Seria depois um dos melhores jogadores portugueses, mas eu creio que foi ali, com a bola de cu de galinha, que ele fez as mais fantásticas jogadas da sua vida.

No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impingens e sentia uma repugnância misturada com revolta.

Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não?

Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.

Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o Professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?

E no entanto ficou um certo ritmo, uma certa música. O ritmo do ditado e do riscador a escrever na lousa as primeiras letras. A música das vogais ditas em voz alta, com o Professor Lencastre, de palmatória em punho, a reger o coro. E também a música dos pintassilgos e das serezinas que a partir de Março cantavam nas árvores em volta e até mesmo no cemitério. A música da nora que no Verão chamava por nós, lá em baixo, no rio. E sobretudo a fala, a fala dos meus companheiros e da gente de Alma, um pouco cantada, um ritmo mais de poema do que de prosa.

Foi na escola, um pouco depois do comício presidido pela minha avó, que uma manhã eu tive um daqueles gestos a que minha mãe, pela vida fora, chamaria, com ar misterioso, repentes. Ele tem uns repentes, dizia ela, baixa, mal chegava ao ombro do meu pai, se é que chegava, com aquele seu jeito de falar avançando e recuando, como se estivesse a ensaiar a partida para uma corrida de corta-mato.

Todas as manhãs, quando o professor entrava, nós éramos obrigados a fazer a saudação romana virados para os retratos de Carmona e Salazar. Eu tinha visto no cinema os italianos e os alemães a fazer o mesmo gesto. Sabia que era a saudação nazi-fascista. Depois da guerra, com a publicação das imagens sobre os campos de concentração e o extermínio em massa dos judeus, aquela saudação tinha-se tornado insuportável. Até que um dia o professor entrou, eu levantei-me, mas não fiz a saudação. Lencastre apontou para mim e eu continuei na mesma. Estende o braço, disse ele. E eu não estendi. Estás a brincar comigo, ó pequenino? Eu respondi: não sou nazi.

Lencastre ficou atordoado, acendeu uma beata, começou a passear de um lado para o outro, pensei que ele me ia agarrar pelos fundilhos, mas o homem só dizia: Ó pequenino, ó pequenino. Sem saber o que fazer.

À tarde, na Loja, fui recebido como um herói.

Florêncio Tavares até me deu um beijo, ele que me ensinou, desde pequeno, a só apertar a mão, Bacalhau e mais nada, dizia ele.

Nos dias seguintes, o Nicolau, que não queria ficar atrás no heroísmo, mal apanhava o professor distraído, fazia manguitos aos retratos de Carmona e Salazar. Pouco a pouco a saudação foi caindo em desuso, até deixar de ser obrigatória. Foi uma das poucas consequências que a vitória dos Aliados teve em Portugal.

A minha mãe falava com orgulho daquele meu primeiro não. Para ela foi um sinal iniludível de que eu saía ao meu avô. Tem assim uns repentes, dizia ela, exactamente como o meu pai.

A escola das raparigas, porque nesse tempo a separação dos sexos era obrigatória, ficava perto do Hospital, quase à saída de Alma, na estrada para o Porto. Para lá entrou, mais tarde, a minha irmã Maria, que usava umas tranças curtas, com laços, e tinha umas sobrancelhas grossas, pretas, muito carregadas. Quando ela nasceu, levaram-me ao quarto de minha mãe, eu olhei e disse: parece um rato.

Só no catecismo havia mistura. As raparigas vinham à Igreja, ao fim da tarde, as catequistas contavam a vida de Jesus e obrigavam-nos a recitar as orações. Eu gostava sobretudo do Padre Nosso, tinha as palavras certas, ritmo, parecia um poema. Ainda hoje me comove, quando oiço os fieis entoá-lo nos enterros. Mas era ali, na Igreja, ao fim do dia, com a luz coada pelos vitrais, as imagens da Virgem e do Senhor dos Passos, os quadros da Paixão, era ali, recitado em coro, que o Padre Nosso parecia música. Sobretudo quando em mim se fixavam os olhos azuis de Maria do Ó, filha de um sargento que frequentava a Escola Central, instalada no quartel da vila por influência de meu avô Geraldo Pais, no tempo da Primeira República.

Ela era de Portimão e eu, propenso já ao romantismo, ao devaneio, senão mesmo ao desvario, pensava: moira encantada. Não sei se pelo nome, se pelo azul dos olhos, que era para mim a cor do sul, o certo é que ela me inspirou, não direi a primeira paixão, que só depois viria a saber o que era, mas o primeiro encantamento.

Mandava-lhe bilhetinhos pela minha irmã, ela respondia com outros, às vezes só com risinhos e olhos meigos, ao fim da tarde, sentada na Igreja, durante o catecismo. Às tantas já ninguém prestava atenção à catequista: olhavam ora para ela ora para mim, havia risinhos das raparigas, os rapazes faziam-lhes caretas, Nicolau, no meio da ladainha, começava a dizer baixinho, ao mesmo ritmo:

A Maria do Ó só olha pró Duarte, a Maria do Ó só olha pró Duarte.

Às vezes eu respondia-lhe com uma canelada, ele não se ficava e lá vinha o Padre Aníbal, com a batina abotoada de alto a baixo e as botas a ranger, repor a ordem nas aulas de catecismo.

Uma tarde sentei-me com ela nos degraus do Cruzeiro, contei-lhe que os namorados ciganos faziam juramentos de sangue e perguntei-lhe se ela não queria fazer um comigo. Ela acenou que sim, muito corada, e o meu coração bateu descompassadamente. Tinha sido pouco antes da Páscoa, no ano lectivo anterior. Ela disse-me que iria de anjo na procissão e eu tratei de ver se conseguia arranjar uma opa vermelha e pegar numa das borlas da bandeira da Irmandade.

As procissões da Semana Santa em Alma eram famosas. Sobretudo a do Encontro. Um dos andores, o do Senhor dos Passos, todo de roxo vestido, saía de Romarim, do lado do Caramulo. O da Mãe vinha da Igreja. O Encontro dava-se em frente à Câmara, perto do Jardim Velho. Vinha gente de todas as freguesias em redor. Cantava-se, chorava-se, mulheres e homens arrastavam-se de joelhos, no cumprimento de promessas. Por vezes, à aproximação dos andores, uma mulher disparava e entrava em transe. Os cegos e os paralíticos eram colocados debaixo do andor do Senhor dos Passos, que vinha aos ombros, de Romarim. Esperava-se o milagre, os cânticos e as preces redobravam de fervor, a própria banda tocava com mais força. Quem sabe se não seria desta? Choravam os cegos, as mães dos paralíticos gritavam, erguendo as mãos ao céu. Já uma vez acontecera. Um rapaz de nove anos, paralítico de nascença, quando o puseram debaixo do andor começou a tremer, a tremer e, de repente, desatou a andar.

Aurélio Silveira, Florêncio Tavares, Gonçalo Pena e outros republicanos laicos torciam o nariz. Aurélio Silveira dava uma explicação científica, falava de histerismo, do efeito da multidão e do medo sobre o rapaz. Mas o milagre estava comprovado e em vias de ser reconhecido, para maior glória do Senhor dos Passos e da Procissão do Encontro.

O momento supremo, aquele que todos esperavam, era o do Encontro. O Senhor dos Passos chegava de Romarim e encontrava-se com a Mãe, que de cima do Seu andor lhe abria os braços. Então o Padre Aníbal, de uma varanda, começava o sermão. A voz tremia-lhe, por vezes parecia que cantava, depois caía, até ficar quase só um soluço. Era uma voz que ondulava por cima da multidão, entrava no Povo, trazia as lágrimas da Mãe e do Senhor. Não era possível resistir. Havia mulheres que desmaiavam e homens de barba rija que puxavam dos seus lenços. A praça em frente à Câmara era um mar de gemidos, de ranho, de suspiros. Até que subitamente Padre Aníbal se calava. Havia um momento de espanto e desalento, depois o povo ajoelhava, os Andores juntavam-se e seguiam, lado a lado, para a Igreja.

Contava-se em Aveiro que, no século passado, querendo impressionar o rei D. Luís, de visita à vila, os de Alma tinham decidido fazer a procissão de Semana Santa em pleno Agosto. Era daí que lhes vinha a alcunha de judeus, gritada aos quatro ventos, de cada vez que o Beira-Rio jogava em Aveiro contra o Beira-Mar.

Judeus ou não, o certo é que no Distrito ninguém fazia procissões assim. Eu, para dizer a verdade, do que gostava mais era da procissão de quinta-feira à noite, quando Cristo era tirado da Cruz e passava, à luz das velas, na Rua da Cheia, acompanhado por uma grande multidão, ao ritmo apenas dos tambores da banda.

Assistíamos das varandas e um pouco mais adiante, em frente à casa de Gonçalo Pena, uma rapariga que trazia nas mãos o santo sudário, subia para um banco e cantava o vos omne, a que na vila simplesmente se chamava o vozone. Era de arrepiar.

E lá fui eu, de opa vermelha, segurando solenemente uma das borlas da bandeira da Irmandade, em todas as procissões daquela Semana Santa, trocando olhares com Maria do Ó, que seguia atrás, de anjinho.

No Outono seguinte, ela não voltou. O pai devia ter terminado o curso e eu nunca mais soube nada de Maria do Ó, com quem nunca cheguei a celebrar o juramento de sangue. Ficaram os olhares e os risinhos durante o catecismo, o cheiro do rosmaninho e do alecrim naquela procissão.

Às vezes, quando passo no adro da Igreja, oiço ainda a ladainha do Padre Nosso. E sempre que na Páscoa a procissão passa à porta de casa, eu vejo ainda, vestida de anjinho, a Maria do Ó, em cujos olhos muito azuis começava, para mim, o sul.

 

Era uma grande mesa antiga, rectangular. Mas para mim era uma nova távola redonda. Eu olhava e via: cavaleiros. Via-os de armadura e elmo, de cota de malha e lança, a cavalo, num campo de batalha. O meu pai, o Marquês, o cunhado, D. Diogo, o sobrinho, D. Jaime, o juiz, Dr. Vasco. E até o Dr. Felismino, comunista ferrenho, a quem as criadas tratavam por D. Felismino, embora ele protestasse que não, não era dom. Sim, D. Felismino, respondiam elas. Acabou por quase se resignar.

Eram as noites de sábado, em Vilar. Partíamos num D.K.W. descapotável, que tinham impingido ao meu pai. Tripolim, assim lhe chamava, tal era o barulho que fazia ao arrancar, até os garotos da rua fugiam. Eu assistia, espantado, à transformação do meu pai. Chegava a Vilar e os olhos brilhavam de outro modo. Como se regressasse de um exílio e de repente estivesse de novo entre os seus. Creio que era isso: aos sábados, em volta daquela mesa, ou depois, ao fogão, na sala de jogos, eles saíam de seus vários desterros e clandestinidades. Vilar era uma pátria, outro tempo, outro lugar, onde se abolia o quotidiano, a vida chata, a contrariedade burguesa dos horários e das profissões. Ali, durante um fim de semana ou apenas por umas horas, eles voltavam à antiga despreocupação, eram de novo senhores do seu tempo, das suas palavras e dos seus gestos, cavaleiros, pensava eu, cavaleiros já sem távola, já sem espada e sem batalha, mas cavaleiros de alma, que ninguém conseguiria nunca destroçar.

Os cães passeavam-se pela casa e havia, em gaiolas, um pouco por todos os lados, até na casa de banho, melros e rouxinóis que o Marquês importava.

Ele tinha um tique: quando estava nervoso soprava com os lábios, parecia um apito estragado. Ora um melro da Holanda imitava-o na perfeição, às vezes nem se sabia de onde vinha o assobio, se do melro se do dono.

- Ainda mato este gajo, dizia o meu pai, que embirrava com o pássaro, talvez por causa da imitação. Que era exactamente o que ele fazia quando se zangava com o amigo na caça. Não sabiam caçar um sem o outro. Mas zangavam-se quase sempre. Então o Marquês começava a apitar e dizia: O menino é um ganancioso de merda, está sempre a furar a linha. O meu pai apitava também e o outro ficava furioso: Macaco de imitação. Mas o meu pai continuava a apitar e respondia: Lá está você a perder o acento circunflexo, faça o favor de apitar senhor Marques, o que você quer é mama, meta as perdizes no olho do cu.

De tanto tirar o acento ao Marquês, quando se disputavam, o meu pai acabou por tratá-lo sempre assim. Como eu dizia Tio Zé, o meu pai passou a designá-lo por Ti Marques. A coisa pegou. E a certa altura, já o cunhado e o próprio sobrinho não o tratavam senão por Ti Marques.

Naquelas noites de sábado, contavam-se histórias, quase sempre as mesmas. E também se pregavam partidas, sobretudo ao meu pai, que era crédulo. Houve um tempo em que ele tentou trocar o cigarro pelo cachimbo. Mas não conseguia. Fumava uma cachimbada e logo a seguir um cigarro. Às vezes um charuto. Então o Marquês e os outros meteram-lhe pólvora no saco do tabaco. Eu reparei que nessa noite havia uma grande expectativa. D. Diogo, não se contendo, já tinha perguntado: Ó Lourenço, então o cachimbo? O meu pai não dava por nada. Terminado o jantar, para grande desespero dos outros, acendeu um cigarro. E depois outro. E outro ainda. O Marquês olhava para o juiz, o juiz piscava o olho a D. Jaime, o Dr. Felismino tossia, eles já nem sequer disfarçavam. D. Diogo, com os seus olhos muito azuis, sempre a sorrir, mesmo quando se zangava, perguntou com a voz sumida que tinha, como se viesse de fora para dentro: Ó pá, o cachimbo? Essa agora, respondeu o meu pai, que é que tem o cachimbo? Os outros olhavam, suspensos. Então o meu pai desconfiou:

- Que é que há? Nunca me viram fumar? E lá se decidiu. Quando acendeu o forno, o cachimbo disparou a rabiar que nem um foguete. Foi um pagode.

Eram assim as noites de sábado, em Vilar. Às vezes, o juiz, Dr. Vasco, já muito bebido, erguia o copo, para dar mais alegria às palavras, dizia. E discursava. Alto, cabelo todo branco, penteado para trás, fazia sempre o mesmo discurso. Eu quase o sabia de cor. Mas todos gostavam, estou convencido que até o Dr. Felismino, ainda que não aplaudisse. Falava do Graal, da espada, da cruz. E viajava pela História. Ora olhava as muralhas de Goa com Albuquerque, ora partia com ele à conquista de Ormuz. Tão depressa dobrava o Cabo das Tormentas, como recuava no tempo e aparecia no meio de um quadrado, em Atoleiros, a combater a Cavalaria de Castela. E depois cavalgava no areal fatídico, ao lado do rei: Sou um desaparecido, dizia, um monárquico sem rei, um cavaleiro perdido, um sebastianista, um gajo do caralho.

No Outono de quarenta e cinco, não muito depois dos acontecimentos que ocorreram em Alma, Gonçalo Pena foi connosco até Vilar, para uma caçada às codornizes. Lembro-me perfeitamente que jantámos arroz de bacalhau, que ainda hoje é um dos meus pratos preferidos, seguido de chanfana. Gonçalo Pena era um reputado garfo e um grande copo, capaz de percorrer dezenas de quilómetros para comer uma lampreia ou provar um bom tinto.

E chegou-lhe a valer. No bacalhau, na chanfana e no tinto do Marquês. Por assim dizer comeu e bebeu ao desafio com o juiz, que era outro campeão. Na minha opinião, quando o juiz começou a discursar, estavam os dois bêbados. Fosse por isso, ou por ser véspera de caçada, ou por a política estar a aquecer, fosse pelo que fosse, o certo é que Dr. Vasco se entusiasmou mais do que o costume. E não se limitou a dizer que era um cavaleiro perdido, um monárquico sem rei e um gajo do caralho. Pôs-se a recitar um poema de um poeta chamado Fernando Pessoa, que ninguém sabia então quem era, com excepção de Gonçalo Pena, que tinha convivido com ele no Martinho da Arcada, em Lisboa.

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, recitava o juiz. E a terminar, já com soluços na voz:

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora.

Fez uma pausa, voltou-se, como sempre, para o Marquês e disse: Eu sou um sebastianista, sou um sebastianista e não tenho rei, mas é a Hora, ó meus amigos, é a Hora de rasgar o nevoeiro e de voltar a ter um rei.

E já fora de si, saltou para cima da cadeira e começou a gritar: Real, real, viva a Monarquia, viva El-Rei de Portugal.

Gonçalo Pena não se conteve. Levantou-se, fez uma vénia ao Marquês, ergueu o copo e replicou:

Talvez eu seja um republicano sem República, por acaso, disse, olhando o copo, até sou um bebedor com pouco vinho, mas há uma coisa que vos garanto, se alguém me dá um viva à Monarquia, eu tenho de gritar, com vossa licença, viva a República.

E gritou mesmo. No que foi acompanhado pelo Dr. Felismino que, para grande admiração minha, até se levantou, ele que era sempre tão calado e tão discreto.

O juiz, que apesar da solenidade do cargo tinha fama de frequentemente substituir a sentença pela porrada, atirou-se a Gonçalo Pena. Que não se ficou. Só o meu pai os conseguiu separar, não sem levar de um e de outro, o que o irritou, a ponto de dizer: Mau, se é assim, também dou.

Estava tudo muito embatucado, ainda D. Jaime segurava o juiz e o meu pai Gonçalo Pena, quando o Marquês se levantou e disse: Agora proponho eu um brinde, viva a Real República de Vilar.

Foi remédio santo. Daí a pouco, já Gonçalo Pena e o Dr. Vasco estavam nos braços um do outro. Olhem para aquilo, disse o meu pai, quando, a páginas tantas, depois de muito mais tinto e conhaque, já o juiz dava vivas à República e Gonçalo Pena, abraçado a ele, tartamudeava: Real, Real.

Pensei comigo que nunca devia contar aquela cena. Nem à minha avó, nem à minha mãe, nem, muito menos, aos da Loja. Faço-o agora, porque já cá não está nenhum deles.

Não que alguma vez eu tenha interpretado o caso como uma qualquer abdicação ou traição de Gonçalo Pena, mas porque Vilar era especial e ninguém seria capaz de perceber. Nessa noite, aliás, não foi só o juiz nem Gonçalo Pena. Era já muito tarde, quando o Dr. Felismino, que tinha estado sentado, a um canto, a beber, sem falar, de repente saltou para cima da cadeira e com a voz embargada, muito rouca, gritou: Viva Staline. E partiu o copo, à russa. Toda a gente bateu palmas, incluindo o Dr. Vasco, o sebastianista.

 

- A oposição decidiu não ir às urnas, disse Gonçalo Pena. Os subscritores das listas do MUD começaram a ser presos e despedidos dos seus empregos. Fomos todos levados.

- Eu bem vos preveni, lembrou o meu pai.

Não havia medo nos olhos de Gonçalo Pena. Por mais estranho que pareça havia espanto. Também ele tinha acabado por se deixar iludir pelo seu próprio entusiasmo.

Era uma noite escura, de chuva e vento. As brasas da braseira brilhavam na sala da salamandra. Adelaide, que andava outra vez aflita, quase deu um grito. As cartas traziam-lhe indícios negativos, tinha visões, presságios, pressentimentos, em tudo ela via um sim ou via um não, uma luz, uma sombra, às vezes um triângulo, que era para ela um sinal de morte. Não sei ao certo o que ela viu, levantou-se muito agitada, a sacudir o xaile, como querendo apagar um fogo dentro de si.

Mas Gonçalo Pena nem se sentou. Vinha molhado, cabelo em desalinho, beiço caído e olhos arregalados.

- Vai tudo dentro, disse ainda.

- Seja o que Deus quiser, limitou-se a responder a minha avó.

Meu pai perguntou-lhe se não queria uma aguardente velha, mas Gonçalo Pena nem ouviu. Assim como entrou, assim saiu, nessa noite em que se ouvia lá fora a chuva e o vento.

- Eu bem avisei, disse ainda o meu pai.

No dia seguinte, na Loja, reinava o desencanto e a revolta. Contra Salazar. Mas sobretudo contra os Aliados. Eu próprio me sentia traído. Tanta noite, fielmente, a ouvir a BBC, tanta tarde a colocar no mapa as bandeirinhas da vitória. Cada um de nós, à sua maneira, também tinha entrado naquela guerra.

E agora os Aliados esqueciam-se de nós.

- Pior: estão feitos com o Manholas, disse Manuel Tinoco, que ainda trazia na lapela o emblema da Royal Air Force, a que simplesmente chamávamos RAF.

Foi então que Aurélio Silveira começou a virar-se decididamente para os russos. Ninguém tinha vivido como ele a batalha de Estalinegrado. Traído pelos Aliados, a sua esperança voltava-se agora para o Leste.

- República foi chão que deu uvas, o que ele quer é o comunismo - garantia Antoninho Pena comentando as entrelinhas de A voz de Alma.

Verdade se diga que depois dos acontecimentos da Vila, o Presidente da Câmara via comunistas por todo o lado, até ao primo Gonçalo ele chamava vermelhóide.

Por isso grande foi a surpresa quando a minha avó Beatriz recebeu uma carta dele solicitando-lhe um encontro urgente, afim de lhe expor um assunto do máximo interesse para a terra.

As opiniões dividiram-se: Dr. Alfredo e Florêncio Tavares acharam que minha avó devia responder afirmativamente, Aurélio Silveira admitiu que sim, desde que fosse Antoninho Pena a deslocar-se lá a casa. Gonçalo Pena pronunciou-se contra, seria uma capitulação.

Avó Beatriz agradeceu e disse que ia pensar.

Assim fez. Pensou, pensou e comunicou aos outros a decisão: estava pronta a encontrar-se com o presidente da Câmara, mas ali, na sua casa.

Os amigos concordaram e até Gonçalo Pena, mordido pela curiosidade, atenuou um pouco a intransigência inicial.

Antoninho Pena aceitou as condições impostas por minha avó.

Mandou-se abrir a entrada principal, a minha mãe, que era dada a solenidades, queria preparar a sala de visitas, mas a minha avó, que tinha o sentido das proporções, atalhou: Era o que faltava, recebo-o no Escritório.

Marcou-se o dia e, à hora combinada, lá veio

Antoninho Pena, agarrado à bengala. A minha irmã Maria estava fascinada, para ela era como se fosse o próprio Churchill.

Falaram os dois a sós, fechados no escritório.

Nunca ninguém ao certo saberá o que disseram um ao outro. Nessas coisas, a minha avó era uma tumba. Contava-se que um dia Afonso Costa lhe deu um documento para guardar e que nem ao meu avô ela revelou onde o escondera. Afonso Costa teve de vir pessoalmente recebê-lo de volta.

Ficaram todos mais ou menos arrelampados quando a minha avó lhes comunicou que Antoninho Pena queria dar o nome de Geraldo Pais a uma rua de Alma, tendo para o efeito proposto uma avenida nova, que estava a ser aberta na parte de cima da vila.

A minha mãe disse logo que era o que faltava, só se fosse a Rua da Cheia, a rua da casa onde ele tinha vivido, a nossa rua. Os outros interrogavam-se sobretudo sobre a intenção política de uma tal proposta que, aos olhos de todos, trazia água no bico. Antoninho Pena nem dava ponto sem nó, nem era homem para tais liberalidades. Homenagear assim o principal adversário político? Só se fosse para conseguir com ele morto o que não tinha conseguido com ele vivo.

Gonçalo Pena desconfiava, Aurélio Silveira, um pouco na linha de minha mãe, achava que dar o nome de Geraldo Pais a uma avenida em construção era o mesmo que desterrá-lo. Florêncio Tavares era o mais indeciso, por um lado gostava de ver o nome do amigo numa rua da terra, por outro temia que uma tal proposta se convertesse em propaganda situacionista.

A notícia espalhou-se rapidamente por Alma. Em breve não se discutia outra coisa: na Loja, no Café Sousa, no Jardim Novo, no Jardim Velho.

- Se calhar era o que ele queria - arriscou o meu pai.

- O quê? - perguntou minha mãe.

- Que toda a gente soubesse que ele quer dar o nome do teu pai a uma rua da terra, que toda a gente começasse a falar sobre isso.

- E tu o que é que achas? - quis saber a minha avó, que até aí não lhe tinha perguntado nada.

- Não acho nada, a Senhora é que sabe, a Senhora é que deve decidir. Se fosse comigo, eu aceitava. As intenções do Antoninho Pena passarão com ele, agora o nome da rua, esse fica.

- És capaz de ter razão - disse secamente a minha avó, perante o espanto de minha mãe.

E se bem o pensou, melhor o fez. Nesse mesmo dia informou os amigos que aceitava a proposta de Antoninho Pena. A quem, de imediato, escreveu no seu papel de carta sempre tarjado de luto.

Creio que minha mãe, com certa inclinação para comandar e decidir, nunca perdoou inteiramente esse acto soberano e solitário de minha avó Beatriz.

Diga-se de passagem que eu fiquei contente. Porque gostava de ver o nome de Geraldo Pais, assim escrito, com todas as letras, numa rua de Alma.

E porque admirava aquela maneira de a minha avó decidir as coisas. Nem foi por acaso que meu pai, quase sempre em conflito latente com ela, nesse dia me disse: A avó é uma Senhora.

O que na boca de Lourenço de Faria significava muito.

Antoninho Pena não perdeu tempo. A proposta foi formalmente aprovada em sessão de Câmara e anunciada em grandes parangonas n'O Intransigente, que era o órgão local da Situação.

Na Loja ainda se lamentou que a Rua da Cheia não tivesse sido a escolhida. Mas a minha avó tinha outra visão: Esta é uma rua velha, a vida vai passar lá por cima, acho que o Geraldo vai gostar.

Assim mesmo: como se ele estivesse presente ou fosse voltar para ver.

Eu compreendia a minha avó. De certo modo o meu avô nunca tinha partido completamente. Ele estava na casa, na cadeira vazia, no retrato, nas conversas, no pensamento.

Tamanha era ainda a sua presença que o próprio Antoninho Pena, seu adversário, sentia a obrigação, o impulso, fosse lá o que fosse de dar o nome dele a uma rua da terra. Um dia eu poderia passar e ler: Avenida Dr. Geraldo Pais. E sorrir então para o meu avô, que devia andar por ali algures, de mãos atrás das costas, como costumava.

 

A minha mãe teve sempre para mim grandes desígnios. Quais eles fossem não sei. Nem ela própria o saberia. Era uma força que vinha de dentro dela, uma obstinação. Ela queria grandes coisas para mim, um destino, talvez um milagre. Transmitiu-me desde pequeno essa crença em algo de superior que me esperava ou que eu devia cumprir. Talvez por isso vivia sempre numa tensão extrema, creio que muitas vezes à beira da ruptura. Por vezes desorganizava-se, adoecia. Ela não descansava: estava sempre interiormente orientada para um fim. E nunca satisfeita. Nem consigo nem com os outros. Não sei ao certo o que ela exigia. Nem talvez ela própria o soubesse. Sei que me incitava. Era uma fé que quase me obrigava a corresponder, sob pena de eu próprio me considerar um fraco. Não que me estimulasse a ser o melhor, nem sequer a competir. O que ela queria é que eu fosse diferente. Mais do que diferente: o outro, o único. Por ser seu filho. O seu. Sublinhado. Por isso tinha que deixar na vida um sinal, um marco, a marca. Ou cumprir a missão que nenhum de nós sabia ao certo qual fosse.

Tão grande era a sua confiança que de certo modo ela acabou por me transmitir a convicção de ter nascido para um desígnio. Não era fácil. Eu tinha de ser diferente, de pensar de outro modo, de encontrar a palavra, o gesto, a gesta. Não era fazer ou ser melhor. Era fazer ou ser como nunca ninguém. Um encargo para ela, por assim dizer um cargo, algo que ela não podia nunca descuidar. E se acaso as coisas não corriam como queria, se acaso eu não correspondesse, a culpa não era minha nem estava na ideia que de mim ela tinha construído, a culpa vinha de fora, da incompreensão dos outros, da pequenez, da inveja e da incapacidade de ver o óbvio: que eu era diferente e estava destinado a fazer o nunca feito.

Ora isso acabava por ter consequências: à força de representar esse papel não sei se não acabei por me tornar no personagem por ela imaginado. Cada um, disse não sei quem, talvez André Gide, é sempre aquilo que imagina que é. Não sei se não sou, em parte, quem a minha mãe engendrou que eu fosse. O actor e o seu duplo, a máscara, a persona, o heterónimo.

Havia regras. Por exemplo: não acusar ninguém, nem permitir nunca que outros pagassem por mim. O que me conduzia ao exagero de ser eu a pagar pelos outros. Alguém cometia uma falta e a classe era responsabilizada em bloco. Eu levantava-me e dizia: fui eu.

Era um comportamento ditado pela alta ideia que a minha mãe fazia de mim e que ela depois interpretava como mais um sinal que não vinha senão confirmar a sua íntima convicção.

Assim se foi criando um círculo vicioso em que as exigências e os padrões de comportamento foram sendo sempre cada vez mais elevados. Ela não se importava que eu não tivesse as melhores notas. Mas não admitia, não concebia sequer que eu não fosse o mais corajoso, o mais capaz de responder quando todos tinham medo, ou mesmo, em certas circunstâncias, o único, aquele que tinha de o fazer porque para isso de certo modo tinha nascido. A inabalável convicção de minha mãe tornou-se a razão de ser da sua vida. E transmitiu-se, com excepção do meu pai, ao resto da família, aos próprios amigos, senão mesmo aos inimigos.

Tive muitas vezes a impressão de que me exigiam o que não estavam dispostos a fazer e o que não esperavam de mais ninguém. Por isso, desde pequeno, vivi sempre, de certo modo, junto ao risco. A minha mãe não concebia que eu não vivesse intensa e perigosamente. Quando muito mais tarde eu fui preso por razões políticas, ela não entrou em pânico, nem ficou sequer aflita. Portou-se como se estivesse à espera e como se aquela prova fosse, até certo ponto, desejável e desejada ou simplesmente inevitável. A sua principal preocupação foi saber se eu aguentaria. Quando lhe disseram que sim ficou satisfeita. Mas como quem acha que nem poderia ser de outro modo. Para ela era como se tudo estivesse escrito.

Uma tal exigência provocava tensões e tinha uma lógica irrefragável: para ser o que ela queria que fosse eu teria que me rebelar contra a sua tendência para capitanear a minha vida. Foi a sua grande e insuportável contrariedade: ela controlou quase sempre toda a gente, mas a mim não. Transmitiu-me confiança e energia suficientes para lhe escapar. Mas não se confunda essa vontade de comando com recusa ou frieza. A minha mãe era terna. E tínhamos grandes ritos de afectividade. Eu nunca adormecia sem a minha mãe me vir trilhar a roupa e dar um beijo. Era um momento bom e único e insubstituível. Para ela eu corria sempre que sentia a tal bicada na nuca, o arrepio, a sensação de morte iminente. Ela incitava-me à guerra. Mas era a paz. Pelo menos naquele tempo marcado pelos ritmos lentos das estações, das suas tarefas, das suas doenças, dos seus ritos e dos seus jogos.

Tudo girava à volta da casa. E dentro da casa à volta da avó Beatriz e de minha mãe. De certo modo havia uma luta pelo poder; que talvez fosse, também, por mim. A minha mãe exigia, a minha avó protegia. Eu sabia que junto dela, fizesse o que fizesse, estaria sempre perdoado.

A minha irmã era ainda muito pequena. E o meu pai passava a semana quase toda fora. Às vezes, mesmo quando estava, era como se não estivesse completamente. Há pessoas que estão sempre ausentes, mesmo quando fisicamente estão ali. O meu pai era um pouco assim: partia frequentemente para não sei onde, talvez para outro tempo, talvez para outro espaço, o das serras da Beira Baixa, atrás de perdizes impossíveis de caçar. Um pouco como na poesia, onde, havia de o aprender depois, se anda sempre atrás de um verso que não há.

Naquele tempo as relações entre eles eram instáveis, ora muito boas ora muito más. Às vezes o meu pai ia uma temporada de castigo para o quarto do fundo. Normalmente por ciúmes de minha mãe, provocados por histórias que lhe vinham contar. Não que ele fosse propriamente um corredor de saias. Mas era um homem atraente, que agradava às mulheres. Talvez não tivesse muita paciência para a conquista. Era mais de sua natureza deixar-se conquistar.

Mas apesar das tensões, das zangas, dos ciúmes, havia entre eles uma relação forte, algo que se lhes impunha, talvez até contra a vontade de um e de outro. Seria a atracção dos contrários, porque eram diferentes em quase tudo, no físico (minha mãe pequenina, meu pai bastante alto), no temperamento (contemplativo, o do meu pai, frenético, o de minha mãe), na atitude (empreendedora, profundamente burguesa, a de minha mãe, desprendida, senhorial, a do meu pai). Casaram-se à revelia dos meus avós, quase clandestinamente, apadrinhados pelo Marquês. Só depois de eu nascer se reconciliaram com as famílias.

Fui assim o fruto de uma atracção conflitual que havia de tornar-se, com o tempo, numa cumplicidade mais forte do que as diferenças e as próprias desavenças.

Mas naquele tempo havia, por vezes, grandes cenas. Minha mãe e minha avó juntavam-se e pregavam sermões ao meu pai. Eu não percebia porquê, creio que ele também não. Talvez nem elas próprias ao certo percebessem. Falavam, falavam e o meu pai, olhando para mim, imitava com a mão o movimento de uma manivela. Mas de repente podia explodir. E então era terrível. A fúria dos Farias, dizia a minha avó. Devo confessar que compreendia o meu pai. Achava até que ele devia explodir mais vezes, porque sempre que tal acontecia restabelecia-se um equilíbrio de forças e havia um período de paz dentro de casa.

Era uma cena curiosa de se ver. Elas falavam, falavam. Quando menos se esperava o meu pai dava um berro e um salto. Depois ia buscar uma mala, metia roupa lá dentro e atirava tudo ao ar. Por vezes, se a fúria fosse mais profunda, armava a espingarda, a minha mãe, a minha avó e as criadas gritavam e fugiam, eu assistia, meio assustado, meio divertido, para não dizer entusiasmado. O meu pai metia dois cartuchos na espingarda, corria para o jardim e disparava dois tiros para o ar. Depois começava a rir, até às lágrimas. Fazia-me uma festa na cabeça, quase tão rara como as que fazia ao cão, e eu já sabia que, a seguir, era a paz. Nessa noite já ele não dormia no quarto do fundo. E no dia seguinte até a minha avó lhe falaria a sorrir, amenamente, quase com intimidade, o que só acontecia depois das grandes tempestades.

Um dia, não me contive.

- Porque é que o pai dá dois tiros para o ar?

- Eu não dou dois tiros para o ar.

- Então contra quem é?

Ele olhou-me, surpreendido.

- Há perguntas que não se fazem - disse.

E soprou o fumo que saía ainda dos canos da espingarda.

 

- Temos de interná-la e operá-la imediatamente, - disse o Dr. Alfredo ao meu pai, depois de ter observado a minha mãe, que gemia na cama, cheia de dores e de febre. - Temos de interná-la já, - repetia o velho cirurgião, - bem basta o que se passou com o rapaz dos Perestrelos.

Tinha sido pouco antes: Nuno Perestrelo, o menino bonito da terra, com um pouco de talento para tudo, dirigente de todos os clubes e associações, desde o Beira-Rio aos Bombeiros Voluntários, conhecia toda a gente e toda a gente gostava dele, teve o maior enterro de que há memória em Alma. Começou a sentir dores num sábado à tarde, de noite vieram-lhe os primeiros vómitos, mesmo assim quis acompanhar o Beira-Rio a Cucujães. Quando na segunda-feira o operaram já era tarde, a peritonite, naquele tempo, não tinha salvação.

Fosse por incarnar um certo espírito da terra, fosse simplesmente por ter morrido novo, Nuno Perestrelo adquiriu um perfil de lenda e de tragédia. Ainda hoje, meio século depois, a evocação da sua morte faz parte dos rituais de Alma. Os velhos companheiros falam dele e choram. Talvez com saudades de si mesmos, talvez por ele ter passado a personificar tudo o que poderia ter sido e não foi. Evocar Nuno Perestrelo é quase uma liturgia. Todos os anos, na data da sua morte, no Beira-Rio, nos Bombeiros, no Orfeão ou em qualquer outra agremiação, há uma sessão comemorativa. Então refaz-se aquele fatal fim-de-semana como um auto nunca escrito que todos os anos se reinventa: os primeiros sintomas, a sua recusa em ser hospitalizado antes do jogo do Beira-Rio em Cucujães, o súbito agravamento do seu estado, o internamento, a operação, a peritonite, a espera, a angústia, o desespero, os amigos que se juntavam nos corredores e à porta do hospital, o Dr. Alfredo saindo do quarto a abanar a cabeça, uma lágrima ao canto do olho, as rezas, as promessas, as velas, a agonia, a morte, o enterro. É algo que faz parte da identidade de Alma, da sua alma propriamente dita, da sua cultura e da sua memória. A morte de Nuno Perestrelo. Como a de Inácio Sanchez Mejia e a de Manolete, às cinco em sombra da tarde, algures, no tempo.

Por isso, quando a minha mãe foi internada eu pensei logo em Nuno Perestrelo. Era um tempo em que a morte estava sempre presente. Por assim dizer pairava, com suas asas de rapina, sobre as nossas vidas. Podia aparecer de repente, com a tuberculose, o tifo, a pneumonia, um simples abcesso, a peritonite. Adelaide deitava cartas e dizia que andava no ar uma ameaça.

Só que desta vez não era uma, eram duas. Uns dias depois da operação de minha mãe, ainda ela estava no Hospital, comecei a vomitar. Tinha dores violentas do lado direito, andava dificilmente, todo curvado. Aurélio Silveira chamou o Dr. Alfredo para confirmar o diagnóstico: apendicite aguda. E lá fui eu para o Hospital. Puseram outra cama no quarto de minha mãe e ali ficámos lado a lado.

Nunca cheguei a perceber a que é que ela tinha sido operada. Se só ao apêndice ou a algo mais. Fazia-se um grande mistério com certas doenças. De algumas, como a tuberculose, nem sequer se dizia o nome. Coisas de senhoras, miudezas, era o que me respondiam quando queria saber a doença de minha mãe.

Eu tinha muita febre, não parava de vomitar, mas os médicos hesitavam ainda sobre o momento da intervenção. Até que chegaram os resultados das análises ao sangue. Levaram-me à pressa para a sala de operações. Estou a vê-los: o Dr. Alfredo, de vasta cabeleira branca, a bata desabotoada, o olho esquerdo um pouco descaído, a Madre Joana, muito pequenina, com o polegar enfiado no meu pescoço, o anestesista a borrifar o algodão com clorofórmio, Aurélio Silveira, que procurava sorrir mas estava aflito. E mais ficou quando de súbito perguntei:

- É como o Nuno Perestrelo?

Não era, mas quase. O apêndice, inflamadíssimo, por pouco perfurava o intestino. Foi na hora H, diria depois o Dr. Alfredo. A última coisa de que me lembro é do anestesista a colocar-me sobre o rosto uma máscara de algodão, o cheiro a clorofórmio, as palavras do Dr. Alfredo a martelarem-me a cabeça e depois a despedaçarem-se, até ficar só uma luz intensa que pouco a pouco se extinguiu.

Uma operação era um acontecimento e eu senti-me importante. Estava ali ao lado de minha mãe, vinha gente à hora das visitas, tinha as madres e as enfermeiras sempre à minha volta, além da atenção do Dr. Alfredo, dos outros médicos, do meu pai, da minha avó, de todos os amigos da Loja e até de Gonçalo Pena, que passava pelo menos uma vez por dia trazendo as últimas notícias sobre a próxima revolução que vinha aí.

O que mais me encanitava era o dedo de Madre Joana no meu pescoço. Fazia-me cócegas, mas eu tinha vergonha de lhe dizer. Ainda hoje não suporto que me toquem no pescoço.

Acabei por perceber que a minha mãe não poderia ter mais filhos. De certo modo fiquei aliviado. Já tinha a minha irmã e os meus irmãos: os da Rua da Cheia, da Escola, do futebol e do rio. Os dos besouros e dos jogos que iam e vinham com o rolar das estações. Os que tinham sapatos. E os que não tinham.

A 27 de Janeiro de 1945, estava eu no Hospital de Alma, as tropas soviéticas, comandadas pelo coronel Petrenko, tomaram a cidade polaca de Oswiecum e descobriram o campo de concentração de Auschwitz, nome alemão da cidade. Eram 175 hectares, 300 barracões e quatro fornos crematórios ligados às câmaras de gás. Ali tinham sido exterminados mais de dois milhões de judeus. Na minha cama do hospital vi pela primeira vez as fotografias dos esqueletos amontoados, dos corpos descarnados e dos rostos sem expressão por detrás do arame farpado. Vi sobretudo aquela horrível imagem de uma mão a sair do forno crematório. Eu tinha nove anos, estava deitado ao lado de minha mãe no Hospital de Alma e nunca mais esqueci. Faltava pouco para o fim da guerra que daí a uns meses eu havia de anunciar, a pedido do Joaquim Marceneiro, aos microfones da instalação sonora do campo de São Cristóvão.

Do quarto do hospital ouviam-se os carros que passavam espaçadamente na estrada Porto-Lisboa. Eu gostava de os ouvir em casa, quando eles atravessavam, à noite, a ponte sobre o Rio Alma. Seguia em pensamento os que se dirigiam para o sul e imaginava Lisboa onde nunca tinha ido.

Naquele tempo eram poucos os carros que circulavam na estrada Porto-Lisboa, que passava por dentro de Alma, mesmo ao lado do Hospital.

Quase podiam contar-se pelos dedos os que se ouviam à noite. Aceleravam sempre depois de atravessarem a ponte, deixando dentro de mim uma certa nostalgia. Talvez porque fosse isso mesmo: uma aceleração no tempo parado, um movimento rápido em direcção à noite e ao desconhecido.

Era também o que sentia no Hospital, quando tinha dificuldade em adormecer, por causa das dores que me apertavam o ventre, do lado direito. Chamava Mãe, baixinho, ela respondia. E de quando em quando um carro acelerava a caminho do Porto ou de Lisboa.

O Dr. Alfredo contava à minha mãe a pergunta que eu tinha feito pouco antes da anestesia: É como o Nuno Perestrelo? E dizia: O raio do rapaz, até me atrapalhou.

E a minha mãe sorria com aquele sorriso que ela tinha quando lhe contavam o que no seu íntimo já sabia que havia de acontecer.

Então por sua vez ela contava à avó Beatriz, à Tia Matilde, à Tia Hermengarda, à Adelaide, a todos os que nos vinham visitar. Contava a pergunta que eu tinha feito, o espanto e até a atrapalhação do Dr. Alfredo. Ao princípio eu não percebia o que é que havia de extraordinário naquela história, nem porque é que a minha mãe a contava a toda a gente. Estavam impressionados por eu não ter chorado e por ter feito a pergunta serenamente. Para mim era simples: eu não queria morrer. Por isso foi com naturalidade que perguntei se aquela operação ia ser como a do outro. Foi inocentemente que perguntei. Para que não fosse, para exorcizar o perigo.

Mais tarde compreendi que para o Dr. Alfredo e os outros, foi como se lhes perguntasse se ia morrer, ou seja: se eles iam falhar outra vez.

Para a minha mãe, aquelas perguntas feitas por mim na mesa de operações não eram senão a confirmação do que ela já sabia desde que me sentira aos pontapés na barriga: eu era diferente e tudo o que fizesse ou dissesse, fosse em que circunstâncias fosse, seria sempre diferente, especial, inesperado. Por isso sorria com aquele sorriso de entendida quando o Dr. Alfredo lhe contava. E dessa vez, até o meu pai, que normalmente se irritava quando ela sorria assim, enxugou uma lágrima e disse: O miúdo é teso.

Mas não, não era. Pelo menos continuava a ter um grande medo de morrer. Por isso tinha feito aquela pergunta: para espantar a morte, para alertar os médicos e eles não deixarem que me acontecesse o que tinha acontecido ao outro. Eu não queria morrer. Mas não era fácil. Os sinos tocavam todos os dias a finados, os mortos falavam pelas cartas de Adelaide e mandavam recados pela mão de Etelvininha. Um simples abcesso podia matar. quanto mais uma operação. Ainda por cima a Madre Joana com o dedo no meu pescoço, como se fosse a morte a fazer-me cócegas. Por essa e por outras é que eu tinha de chamar: Mãe. E só quando ela me respondia eu ficava sossegado, a ouvir os carros que passavam, lá fora, em direcção à noite.

 

Havia a música dos pássaros. Acordava quase sempre a ouvir os pardais que faziam um grande chinfrim no telhado, logo que rompia o sol. A partir de Março eram também as serezinas, os verdilhões, os cartaxos, os pintassilgos. E as andorinhas que poisavam nos fios eléctricos, faziam ninho nos beirais e voavam baixo por entre as casas. Havia ainda os guinchos, que planavam alto, muito negros, sobre a vila. E as ferreirinhas, que nidificavam nas fendas do paredão e dos pilares da ponte. Ao fim da tarde eram os melros e os piscos que cantavam nos jardins e nos quintais das casas em volta. Os piscos, de peito vermelho e cauda sempre a abanar, saltitavam constantemente. Tinham um trinado triste e o meu pai não gostava que eu os perseguisse.

A minha especialidade eram as flosas, no Jardim Novo. Trepava para os bancos, debaixo das árvores, e quase lhes enfiava a fisga no rabo. Depois pendurava-as à cinta.

Rouxinóis e toutinegras cantavam nos salgueiros e choupos junto ao rio. Os pica-peixes voavam baixo e rápidos, soltando pios agudos e deixando rente à água um rasto de arco-íris. Nunca consegui caçar nenhum. Nem tão pouco a carriça pequenina, que se escondia nas silvas e nos buracos, nunca estava quieta. Eu tinha uma questão pessoal com a carriça. Andava atrás dela, agachava-me, esperava, por vezes conseguia apontar, o meu coração batia mais depressa, mas quando disparava já ela se tinha sumido. Ainda hoje estou para saber como é exactamente uma carriça.

Pouco depois de ser operado, o meu pai, com grandes protestos de minha mãe e minha avó, deu-me uma espingarda de dois canos, de nove milímetros, uma Flaubert. Foi de certeza o presente de que até hoje mais gostei. Abandonei a fisga e comecei as grandes caçadas. Partia de manhã cedo, quase sempre sozinho. Percorria o campo, junto ao rio, desde a vila a Romarim. Atirava sobretudo às sombrias e também às labercas. Às vezes o meu pai vinha ver, pedia-me a espingarda, pegava-lhe com um só braço, apontava no ar a uma sombria e ela tombava. Eu ficava deslumbrado.

Os pés doíam-me com a geada das manhãs e mal conseguia segurar a arma com as mãos enregeladas. Mas era uma paixão. Carregava os cartuchos quatro, cinco vezes, até ficarem inutilizados. Comprava fulminantes, pólvora, bucha, chumbo. E tinha uma pequena máquina de rebordar aqueles cartuchos vermelhos de nove milímetros.

As mulheres que traziam carregos à cabeça assustavam-se quando me viam e andavam mais depressa. As mães chamavam pelos filhos e uma das governantas de Gonçalo Pena disse que eu tinha um ar endemoninhado quando partia para o campo de espingarda ao ombro. Eu sentia uma alegria intensa quando desembocava no campo que era ali quase ao pé da porta. As sombrias e as labercas levantavam quase nas traseiras das casas que ficavam do outro lado da Rua da Cheia. Ali era o meu território e eu gostava daquela relação mágica com a várzea alagada, os salgueiros e os choupos, o piar tristíssimo das sombrias, o voo ondulado das labercas. Nessa altura do ano não restavam senão canoilas do milho que, lá para fins de Agosto, ultrapassava os dois metros.

Por vezes encontrava Gonçalo Pena. Ando às narcejas, dizia ele, embora eu soubesse que ele procurava sobretudo os bandos de labercas e pardais para ver se matava umas dezenas com um só tiro. Perdia-se por arrozadas de pássaros. E o meu pai dizia que, mal se falava em caça, ele começava a dar ao dente. Em certos fins de tarde, Gonçalo Pena ia até Além da Ponte com a calibre doze e cartuchos carregados com chumbo dez. Punha-se debaixo dos plátanos onde os pardais poisavam aos milhares. Disparava dois tiros. Não eram precisos mais para a arrozada. Mas uma vez aconteceu algo de extraordinário: Gonçalo Pena disparou dois tiros, esperou, olhou, e nada. Nem um só pardal. Parece impossível, disse ele. E voltou a disparar. Nada.

- Aqui há coisa, - disse, já muito irritado. Disparou de novo. Caiu, então, um pardal, um só. - Isto está engalinhado, - concluiu Gonçalo Pena. E foi-se embora para casa.

Mas no campo, nas suas pretensas saídas às narcejas, eu vi-o várias vezes derrubar seis ou sete labercas com um só tiro. Isso é indecente, dizia-lhe eu. E ele respondia: Estás a falar como o teu pai, mas eu quero que vocês se trabalhem. Eu calava-me, porque sabia que não era conveniente irritá-lo demais. Mas ficava sentido e contava ao meu pai, que invariavelmente comentava: Não é um caçador, é um predador e um comedor.

Embora não dissesse que não quando Gonçalo Pena o convidava para as arrozadas. Então eu quase perdia o respeito pelo meu pai. Um dia fiz-lhe um reparo. Ele riu e disse: Alguém tem de ajudá-lo a comer o bando.

Na Primavera íamos às rãs, que pescávamos do paredão, com anzol e um bocado de tijolo atado na linha, para as atrair. Elas saltavam e nós puxávamos. Depois trazíamo-las para casa e fazíamos coisas terríveis, como meter-lhes uma palhinha no rabo e assoprar. Era um tempo em que as crianças ainda não matavam outras crianças, só animais. Cobras, por exemplo. Eu nem as podia ver, ficava petrificado, até o nome me custava ouvir, ainda hoje me custa escrevê-lo. Mas o Nicolau pegava-lhes pelo rabo e batia-lhes com a cabeça no chão, duas, três vezes, em voltas muito rápidas.

Também caçávamos sardões, lindíssimos, com os seus vários tons de verde. Usava-se um chapéu velho: eles mordiam e ficavam sem dentes. Depois atava-se-lhes um fio ao pescoço e podia-se passear com eles pelas ruas.

E os grilos: mijava-se para a toca e eles saíam. Mas ficavam amuados e passavam os dias, nas gaiolas pequeninas, roendo as folhas de alface, sem cantar.

- Também gostavas que te mijassem em cima? - perguntava o meu pai, quando eu me queixava por o grilo não cantar. Houve um que fugiu da gaiola e resolveu vingar-se. Cantava por toda a casa, sem que ninguém fosse capaz de dar com ele. Cantava a toda a hora, aqui e ali, como se não fosse um mas muitos. Avó Beatriz dizia que já tinha o grilo na cabeça. E parecia que sim. O grilo enchia a casa toda. Só a minha irmã se divertiu.

Pedia-me para eu fazer chichi pelos cantos, a ver se ele aparecia.

Essa era a música: o grilo. Os pássaros, os ralos, as rãs. Os pardais nas manhãs ensolaradas de Inverno, as serezinas e as andorinhas em Março, os piscos e os melros na Primavera e no Verão. E também as toutinegras e os rouxinóis, nos salgueiros e nos choupos. Música da casa, da rua, do rio. Estava dentro de mim, era de certo modo a música do tempo que passava, devagar.

Enquanto as tropas aliadas, depois do desembarque na Normandia, viravam finalmente o curso da guerra, Aurélio Silveira, ao piano, tocava com mais força a Marselhesa, como se estivesse a entrar, com os russos, em Berlim. Cada um tinha as suas preferências. Meu pai era claramente pelos ingleses, como Florêncio Tavares e o próprio Manuel Tinoco. Gonçalo Pena, em parte pelo seu radicalismo anti-salazarista, inclinava-se cada vez mais para os russos. A minha mãe comovia-se com a França, talvez por causa das grandes palavras da revolução francesa que o meu avô Geraldo, segundo me contava, gostava de repetir nos discursos: Liberté, Égalité, Fraternité. Todas com maiúsculas. Eu amava a França, amava-a com paixão, como se fosse uma namorada. Talvez por causa da doçura do nome, das imagens de Paris, do som da língua e das canções, não sei. Talvez por causa do Frère Jacques que a minha tia Hermengarda me tinha ensinado, era eu muito pequeno. Ou do Cyrano de Bergerac, que ela me lia. Ou das cores da bandeira, o vermelho, o branco, o azul, sobretudo o azul. Ou talvez por causa da Marselhesa, que nunca fui capaz de ouvir sem um nó na garganta. Eu amava a França. Por qualquer razão misteriosa, amava profunda, dolorosa e apaixonadamente a França. A ocupação da França era a ocupação de uma parte de mim mesmo. À noite, na BBC, depois dos acordes da 5ª Sinfonia, eu esperava ansiosamente as notícias de França. E certas palavras adquiriram dentro de mim ressonâncias mágicas: a palavra maquis, a palavra résistance. La Résistance, dizia a minha mãe. E tinha lágrimas nos olhos. Eu lia as revistas, via os filmes, os documentários e a França, para mim, era uma rapariga de boina e gabardina numa rua de Paris. A França era uma noiva, uma paixão. Por isso chorei de alegria quando soube que Paris tinha sido libertada. Essa foi, verdadeiramente, para mim, a hora de vitória. Tanto que fui pedir a Florêncio Tavares para espetar, no mapa, sobre Paris, uma bandeira tricolor.

 

Em fins de Novembro de 1945, pouco depois de a Oposição ter desistido, recomeçaram em Alma os fenómenos. Primeiro foi uma gaivota pendurada na porta da casa de Gonçalo Pena. A governanta de serviço teve um badagaio e fugiu espavorida para Lisboa. Depois foi um gato enforcado numa das roldanas do toldo da Loja. A mim não se atrevem eles, disse Aurélio Silveira. Mas atreveram-se. E penduraram-lhe no badalo da porta um dos cisnes brancos do lago do Jardim Velho. Sempre quero ver se eles cá vêm, desabafou, indignada, a minha avó Beatriz. E vieram, logo no dia seguinte: três pombas mortas atiradas para a varanda da sala de visitas.

Então o meu pai, sem dizer água vai, dirigiu-se a casa de Antoninho Pena e garantiu-lhe que à próxima o pregava pelas orelhas no portão da Câmara Municipal.

- Dou-lhe a minha palavra de honra, - gritou-lhe o meu pai.

Era um costume que ele tinha, quase um tique: sempre que se irritava, saía-se com a palavra de honra. A partir daí o melhor era não o contrariar.

Antoninho Pena escreveu à minha avó queixando-se do destempero do seu genro. Mas durante uns tempos não aconteceu mais nada, os fenómenos pararam.

Até que, já Dezembro tinha chegado, uma manhã os pneus do DKW apareceram todos retalhados. Foi o cabo dos trabalhos. Meu pai teve uma fúria, uma daquelas exaltações que, segundo a minha mãe, eram uma característica da família. Já o teu avô Júlio era assim, dizia-me ela. Começou então Lourenço de Faria a armar a espingarda para, informava ele, ferrar um estoiro nesse sacana, ou seja: em Antoninho Pena.

Uma das criadas gritava: Acudam. Mas quem é que acudia. Já meu pai tinha deitado a mão à cartucheira quando chegou Gonçalo Pena, ainda de roupão, chamado à pressa.

Mas nem ele conseguiu.

Foi a minha irmã Maria que o travou, ao perguntar-lhe se ele ia à caça de pijama. Então o meu pai passou da fúria à gargalhada, como era, aliás, frequente. A coisa ficou por ali.

Antoninho Pena é que não. Nesse mesmo dia raspou-se para a quinta, perto de Sever do Vouga, não sem deixar uma carta em que jurava por todos os santos a sua inocência.

Por essa altura Adelaide instalou-se lá em casa. Recomeçou a ver barcos, triângulos, cruzes, velas. Andava de cabeça perdida e eu ouvi o meu pai dizer a Gonçalo Pena: Devias dar-lhe umas pranchadas.

Entretanto organizaram-se umas patrulhas nocturnas, capitaneadas ora por meu pai ora por Gonçalo Pena. A minha mãe e a minha avó andavam aflitas com medo que meu pai chumbasse alguém. Por sorte nenhum se mostrou. Estou convencido que quem quer que aparecesse teria levado um fogacho. Ainda por cima os cartuchos estavam carregados com zagalotes. Escumilha, dizia Gonçalo Pena, escumilha é o que esses gajos estão a precisar.

Mas não apareceu ninguém. Não se viram mais gaivotas, nem gatos, nem cisnes, nem pombas brancas degoladas. As patrulhas cessaram, meu pai acalmou, agora, aos serões, jogava-se bridge, que era o único jogo de cartas que ele suportava. E até Adelaide estava mais calma, talvez por aplicação do tratamento recomendado por meu pai, tanto mais que Gonçalo Pena continuava sem governanta.

Tudo corria, se assim se pode dizer, normalmente, quando uma madrugada apareceu uma mulher a gritar: Zeca, Zeca, Zeca, ai o meu Zeca, levaram o meu Zeca. Era a Abília, mulher do Zeca Sucateiro. De xaile pela cabeça, descalça, não se chegava a perceber se o choro tinha lágrimas ou não. Soluçava, encostava-se à parede e deixava-se descair, dava a impressão que estava prestes a desmaiar mas logo recomeçava: Zeca, Zeca, Zeca, levaram o meu Zeca.

Abraçava-se à minha mãe, caía de joelhos e de mãos postas, revirava os olhos para a minha avó.

Só muito tempo depois se conseguiu que ela dissesse coisa com coisa. Tinham vindo a meio da noite, quase arrombaram a porta e mal lhe deram tempo para se vestir. Entraram no quarto, chamaram-lhe comunista e logo ali, em frente dela e dos filhos estremunhados, deram-lhe uma bofetada. Viraram tudo do avesso, perguntaram onde é que ele escondia o Avante!, chamaram-lhe outra vez comunista e pregaram-lhe outra estalada. Ao meu Zeca, dizia ela, um pouco mais em si mas ainda soluçando, ao meu Zeca que só lê os jornais da bola por causa do Benfica. Ela não sabia dizer para onde o tinham levado, viu-o a ser arrastado para um carro que partiu a toda a velocidade, sem saber se para o Porto, se para Coimbra, se para Lisboa.

- Zeca, Zeca, Zeca, - recomeçava ela, - levaram o meu Zeca.

Foi por intermédio da Amelinha, entretanto regressada a Alma com Antoninho Pena, que se logrou saber: Zeca Sucateiro tinha sido levado para a sede da polícia no Porto, na Rua do Heroísmo, com razão, ainda que por acaso, assim chamada. Ninguém lhe conhecia qualquer actividade política, nunca ninguém o tinha ouvido falar contra o Governo. Zeca Sucateiro só costumava dizer mal dos árbitros, do Armandinho Alfaiate, do Beira Mar e do Sporting. De modo que toda a gente se interrogava sobre o porquê da sua prisão.

- Se calhar foi por causa da invasão do campo, - arriscou Manuel Tinoco, um pouco a medo, porque também ele tinha rasca na assadura. Qual invasão qual quê, argumentava Antoninho Pena, a Polícia sabe muito bem o que está a fazer. Os comunistas, com excepção do vermelhóide do meu primo Gonçalo, não se mostram, andam por aí com pele de cordeiro, ninguém sabe quem são, alguns até vão à missa e comungam para disfarçar, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado é que sabe.

Todas as manhãs Abília vinha saber notícias. A minha avó mandava recados a Amelinha, mas ela repetia o que já se sabia: ele estava no Porto.

Mariana, minha mãe, aliava a indignação a uma espécie de euforia: tinha agora uma causa concreta, podia agir, agitar e atesanar o meu pai para que escrevesse ao Lombardi, um antigo colega de liceu, oriundo de uma boa família da região, que era um dos chefes da polícia política. Mas o meu pai estava relutante. Não queria confusões e repugnava-lhe dirigir-se a um membro de tal polícia, apesar de, como dizia sempre, não ser da situação nem da oposição, mas um monárquico sem rei. Era uma questão de princípio. Talvez por causa de seu bisavô e de seu tio bisavô, mártires da liberdade.

Foi por essa altura que comecei a ligar a morte deste último, meu tio Clemente, a certos sonhos que eu tinha. Acordava por vezes com um rufar de tambor dentro de mim, ou sonhava, como ainda sonho, que estava, ou estou, a ser levado para um cadafalso.

Talvez não tenha sido apenas, como julgava a minha mãe, a influência de filmes de guerra. Sobretudo de um, americano, sobre a resistência francesa em que, já no fim, depois de Errol Flyn ter sido guilhotinado, alguém pergunta quem era afinal aquele homem e alguém responde: Era um francês.

Esse filme, ou talvez só essa frase, tinha-me impressionado muito. Não sei se por isso, ou se pelas histórias da revolução francesa e da sua guilhotina, que eu ouvia, quer na versão heróica de minha mãe, quer na descrição mais trágica de minha tia Hermengarda e de meu pai, o certo é que eu tinha e tenho ainda, nos meus sonhos, a desagradável sensação de estar preso, irremediavelmente perdido, na iminência de ser executado. Rufam tambores, algures, dentro de mim. Na minha memória, nos meus medos, quem sabe se no próprio sangue. É que uma noite, já não sei quando, ouvi o meu pai contar, como nunca o tinha feito, a execução de Clemente Albergaria, meu tio trisavô. Oiço ainda os tambores. Vejo ainda os presos a serem levados da Cadeia da Relação do Porto para a Praça Nova, distingo perfeitamente a forca, os miguelistas, fidalgos, padres, damas que bebiam champagne e vinho do Porto, enquanto os desgraçados eram conduzidos de baraço ao pescoço para o pahbulo. Clemente, Francisco Silvério, Manuel Luís Nogueira, Gravito, contava Lourenço de Faria, meu pai, emocionado: todos condenados a serem conduzidos com baraço e pregão pela ruas do Porto. A 7 de Maio de 1829 foram levados da Relação à Praça Nova, onde duas forcas tinham sido erguidas sobre os alicerces do monumento à revolução de 24 de Agosto de 1820. Então o carrasco João Branco executou a sentença. Três horas depois, estando tudo já consumado, os corpos decapitados foram levados para o Adro dos Enforcados, onde o coveiro Joaquim Manuel os sepultou, tendo mais tarde sido trasladados para outro lugar. As cabeças ficaram no patíbulo, sendo no dia seguinte recolhidas por

João Branco acompanhado pelo Meirinho das Cabeças, que as meteu num saco de couro e com elas se foi para Vila da Feira e Ovar, onde tomou um barco para Aveiro. A cabeça de Clemente ficou na Vila da Feira, tendo ali sido pregada, em frente da casa da mãe, num alto poste erguido pelo carrasco.

As outras foram para Aveiro, levadas pelo Meirinho, que viajava escoltado por destacamentos de infantaria e cavalaria. Todas as janelas se fecharam, todas as portas, a cidade encerrou-se num silêncio que era sinal de luto, mais forte do que um grito de protesto. Ninguém quis fornecer os postes. O juiz de fora mandou prender lavradores de Azurva, obrigados a trazer os pinheiros e carpinteiros que só à força levantaram os postes nos locais designados.

Assim contou meu pai, Lourenço de Faria, segurando na mão um velho livro, AVEIRO, BERÇO DA LIBERDADE, A REVOLUÇÃO DE 16 DE Maio de 1828 por Marques Gomes. E mais se emocionou quando leu parte da carta deixada por Gravito a sua filha: Muito te desejo te conserves sem alguma outra relação social, para não empenhares teu coração na sorte de outro homem em quem se puna como em mim a virtude, e ponha a tua em lances amargurados; se, porém, outro for o teu destino, te rogo que prefiras um homem dos sentimentos e dos princípios de teu pai, na certeza de que nem estes nem o patíbulo, em que vou terminar meus dias, podem servir-te de opróbrio.

Desta carta se tinham feito muitas cópias, andara de mão em mão e era sabida de cor pelos liberais. O meu pai lia-me aquele último apelo de um condenado e eu sentia que, por vias não explicáveis, as últimas horas de Clemente, meu tio trisavô, tinham chegado até mim, povoavam o meu sono com seu tambor, a sensação de irremediável e o patíbulo, algures, lá fora.

Talvez a notícia de que Zeca Sucateiro fora levado para o Porto tenha reavivado a história trágica de meu antepassado Clemente e seus outros companheiros. Para mim aquela prisão da Rua do Heroísmo era como a da Relação e eu já via o pobre do Zeca Sucateiro a ser levado, de baraço ao pescoço, para o patíbulo da Praça Nova. Apesar de o meu pai me dizer que Portugal tinha sido um dos primeiros países a abolir a pena de morte, eu não ficava sossegado. Lembrava-me, também, de um episódio ocorrido na Rua Duque da Terceira, no Porto, onde morava o meu avô Geraldo Pais. Um dia, era eu muito pequeno, creio mesmo que é uma das minhas primeiras recordações, estava eu a brincar no pátio da entrada, debaixo de um caramanchão, quando se ouviu uma grande gritaria: da casa em frente, um homem era arrastado para um carro preto por dois homens de gabardina, enquanto a mulher, que tentava agarrar-se a ele, ia sendo sacudida pelos outros dois. Comecei a chorar, aflito, a minha avó levou-me para dentro de casa e o Avô Geraldo, em roupão, à porta, dizia com a sua voz muito grave: Bandidos, pulhas. É uma das imagens mais antigas gravadas na minha memória. Por isso, nas noites que se seguiram à prisão de Zeca Sucateiro, tudo se misturava na minha cabeça, se é que não anda tudo misturado no tempo e na vida: Clemente, meu tio trisavô, caminhando para a forca de baraço ao pescoço, Errol Flyn a ser guilhotinado, aquele homem arrastado à força para um carro preto, a polícia a bater em Zeca Sucateiro e a levá-lo de noite para a sede na Rua do Heroísmo, no Porto, que para mim não era senão a Cadeia da Relação de onde, a 7 de Maio de 1829, os condenados tinham saído para o patíbulo erguido na Praça Nova. Então um tambor rufava no meu sono, as damas e os padres bebiam champagne, Zeca Sucateiro caminhava de baraço ao pescoço, ou talvez fosse o Avô Geraldo, ou talvez Clemente, ou o homem da Rua Duque da Terceira, ou talvez eu. As portas das casas fechavam-se, as janelas cobriam-se de panos pretos, mas apesar de tudo eu conseguia ver, espetada no cimo de um pau a meio da rua, a cabeça de Zeca Sucateiro, olhando melhor não era, era a cabeça de meu pai, quer dizer: de meu Tio Clemente, a minha própria cabeça, em frente da janela do quarto de minha mãe, enquanto o tambor rufava e a mulher do homem gritava, ou talvez fosse Abília, sim, era ela vestida de preto com uma carta na mão, que talvez fosse a carta de Gravito, já os tambores rufavam dentro de mim.

 

Passados uns dias, graças à mediação de Amelinha, lá se conseguiu que Abília pudesse visitar o marido. A minha avó pagou-lhe o bilhete da camioneta e recomendou-a a amigos do Porto que a recolheram e ajudaram. À volta trouxe uma carta. Um conhecido advogado da oposição estava pronto a defender Zeca Sucateiro, mas ainda não tinha sido autorizado a falar com ele. Abília contou que o marido estava bem de aspecto, mas um pouco baralhado da cabeça. Queixou-se que não dormia. Concluiu-se que tinha sido submetido à tortura do sono. Acusavam-no de ser membro do Partido Comunista e de ter organizado a invasão do Campo de São Cristóvão. Aterrorizaram a mulher, dizendo-lhe que ele só se salvaria se confessasse tudo e revelasse os nomes dos outros membros do partido que com ele espalhavam a subversão em Alma. Abília chorava e dizia que o Zeca estava perdido, quem é que lhe podia querer tanto mal, ele não era de nenhum partido, não se metia em política, como é que ele podia saber quem eram os outros. Vão matá-lo à pancada, o Senhor Inspector pediu-me para o convencer a confessar senão não pode fazer nada por ele, o que é que isto quer dizer Senhora D. Beatriz, ele não sabe nada, valha-me Deus, eles matam o meu homem.

A minha avó e a minha mãe tentavam acalmá-la. Mas o que é que se lhe podia garantir? A prisão de Zeca Sucateiro intrigava toda a gente.

Gonçalo Pena tinha-se informado e afirmava que ninguém sabia de nenhuma ligação de Zeca Sucateiro. Era mais que certo que ele estava preso por engano. A menos que pretendessem fabricar um bode expiatório. Não havia dúvida que ele tinha sido um dos primeiros a entrar em campo. E quase se podia jurar que também molhou a sopa quando toda a gente começou a bater no árbitro. Mas era o costume. Ninguém gostava de vir jogar ao Campo de São Cristóvão, já várias vezes interditado. Era uma maneira de ser, um temperamento, que o diga o ponta esquerda com quem Zeca Sucateiro embirrara desde sempre. Toda a gente em Alma sabia que a qualquer momento ele podia entrar em campo para agredir o árbitro, o fiscal de linha, um jogador adversário ou até mesmo do Beira-Rio. Nem era a primeira vez que Armandinho Alfaiate saltava a vedação para lhe ir às ventas. Eram cenas que já faziam parte do jogo no Campo de São Cristóvão.

- Assim é que tem piada, - dizia o meu pai.

O que valia a pena num desafio do Beira-Rio não era o fio do jogo, que praticamente não havia, era o Zeca Sucateiro a atezanar o Armandinho, Manuel Tinoco a exasperar Zamora, o guarda-redes, ou Neca Pereira a sacudir os tomates para o juiz de linha. Claro que, às vezes, muito raramente, o Beira-Rio era capaz de jogar à inglesa, ao primeiro toque, com bolas centradas junto à linha. Mas só acontecia em dias de inspiração, ou quando o meu pai, depois de muito rogado, acedia em ir aos balneários no intervalo. Em tardes assim até o Armandinho era capaz de driblar o béque direito em corrida. Não, o Beira-Rio não era propriamente, como num momento infeliz tinha dito Gonçalo Pena, uma equipa de merda; era, como gostava de afirmar Manuel Tinoco, no Café Sousa, uma equipa imprevisível,     capaz do melhor e do pior. Infelizmente, pensava eu, mais do pior que do melhor. E por isso é que Zeca Sucateiro perdia a tramontana. Não que fosse mau homem, era amor à camisola, amor ao Beira-Rio. E também ao Benfica, deve-se acrescentar. De tal maneira que passava a vida a resmungar por o Beira-Rio não usar o equipamento original, que era vermelho e não azul. Vermelho, dizia ele, vermelho como o do Benfica e o da bandeira.

- É capaz de ter sido por causa da cor, - lembrou de repente Manuel Tinoco, - o gajo estava sempre a falar naquilo, queria camisolas vermelhas, se calhar tomaram-no por comunista.

Era a hora em que o homem do chapéu pontificava no Café Sousa, a meio da Rua Seca, onde se concentravam as lojas, os barbeiros, os consultórios dos médicos e os escritórios dos advogados, as papelarias e as farmácias.

Havia ali um cheiro que já não há, a café, a tabaco, a torrada, a especiaria. Ninguém, nesse tempo, tomava café em casa. Depois do almoço e do jantar, ia-se ao Sousa. Meu pai pedia um pingo. As pessoas sentavam-se, conversavam, a uma mesa pontificavam o Juiz ou o Delegado, noutra Antoninho Pena, ao canto, do lado esquerdo, meio escondidos, os republicanos, sobretudo Manuel Tinoco. Numa sala do fundo ficavam os bilhares. Os ecos das tacadas juntavam-se ao ruído das conversas. Meu pai gostava de beber o pingo ao balcão, chamavam-no de aqui e de ali, ele passava por várias mesas sem se demorar. Tinha sempre um certo ar de quem pensa noutra coisa, falavam com ele e eu afligia-me com medo de que nem sequer ouvisse. Às vezes lá respondia, sobretudo a Gonçalo Pena ou Manuel Tinoco, mas com os outros, de um modo geral, não se interessava. Só em Vilar era diferente. Aí não se ausentava, falava, ria, participava e até tinha paciência para ouvir as histórias já muitas vezes contadas pelo Dr. Felismino, pelo Juiz ou pelo Marquês. Ele próprio gostava de repetir as histórias e as piadas.

Mas ali, no Café Sousa, era como se estivesse e não estivesse. A menos que se falasse de caça. Então voltava lá não sei de onde, prestava atenção e falava como se fosse professor de caça. Os outros escutavam-no com respeito e faziam-lhe perguntas sobre cães, galinholas, narcejas e a charola, uma variedade de perdiz sobre que gostava de dissertar. Também falava da Beira-Baixa, das grandes caçadas com o Marquês, e tirava fotografias da carteira onde se viam as perdizes alinhadas em terra.

- Por causa dessas e de outras é que já não há caça, - dizia Manuel Tinoco, que olhava as fotografias com desconfiança republicana.

Eu gostava do Café Sousa: das luzes, do rumor, do cheiro. Gostava de ver o Juiz a fumar, de boquilha comprida e os olhos pequeninos a piscar por detrás das grossas lentes dos óculos. E do Comandante do Quartel, com a mulher e as filhas, parecia sempre fardado mesmo quando trajava à civil e elas, dizia o meu pai, estavam sempre em sentido mesmo quando sentadas. Vinha, quando era vivo, o Nuno Perestrelo, ou Aurélio Silveira, que entrava e saía, vinha o solicitador, uma língua de prata, dizia-se, sabia tudo de toda a gente e deixava cair, aqui e ali, pequenas frases intrigantes que instalavam a dúvida e minavam as certezas. Havia a mesa do Benfica, do Porto, do Sporting e até do Belenenses, onde se sentavam, com orgulho de minoria, o Pereira da Farmácia, o Malaquias das Finanças e o Evaristo Chófer. Falavam-me das Torres de Belém, Capela, Vasco, Feliciano. E do maior de todos, o Pepe, levado pela morte em plena glória. Lançavam-me a isca de meu Tio Tiago, fundador do Clube e companheiro do velho Artur José Pereira, o maior jogador do seu tempo, segundo Lourenço de Faria, meu pai. Eu gostava do Belenenses, mas já nessa altura estava a ser endoutrinado por Joaquim Marceneiro, em cuja oficina, dizia ele, até os canários assobiavam à moda do Benfica. Mas gostava sobretudo da Académica, por causa do meu pai e talvez da fotografia, pendurada na parede do escritório, da equipa onde tinha jogado a médio centro. Às vezes íamos aos jogos a Santa Cruz, mais tarde ao Campo do Loreto, à entrada de Coimbra, um pouco antes da Estação Velha. A Académica entrava em campo a monte, às vezes de capa traçada. Meu pai levantava-se e soltava um grande grito, de lágrimas pela cara abaixo: Académica! Era uma palavra que vinha de dentro dele. Ainda hoje, se a digo alto, me comovo. Porque era mais que uma palavra, era uma senha, um código, que pouco a pouco passou a ter para mim um sentido mágico. Quando a Académica veio a Alma jogar um desafio amigável com o Beira-Rio, eu não me aguentei: bati palmas aos seus golos e gritei com a sua claque: A-ca-dé-mi-ca. Creio que Nicolau nunca me perdoou, eu próprio fiquei com uma sensação de pecado, mas as paixões são assim.

Para Manuel Tinoco a Académica era um ódio de estimação. O Dr. Alfredo, que vinha pouco ao Café, chegou a dizer-lhe, zangado: Você não é do Sporting, é do União.

Mas era sempre a mesma coisa: Manuel Tinoco desconfiava de tudo o que não fossem as suas próprias crenças ou paixões. Para ele, uma caçada em Espanha, com o Marquês, era algo de semelhante a uma incursão monárquica. A Académica cheirava-lhe a elitismo, por isso era suspeita. De nada valia lembrar-lhe que o seu primeiro presidente tinha sido o grande republicano António Luís Gomes.

Isso foi noutros tempos, retorquia.

Até que um dia, o pai do Nicolau, portista intransigente, disse a Manuel Tinoco que o Sporting era o clube da Situação. O sportinguista ficou branco, levantou-se e eu julguei que ele ia atirar-se ao outro. Mas Trindade não lhe deu tempo: Diz-me lá um nome, um só, de um republicano do Sporting?

Tinoco ficou atarantado, tão atarantado que tirou o chapéu e deixou-se cair na cadeira a coçar a cabeça. Por mais voltas que desse não se lembrava. Por fim, já de chapéu na cabeça, desentupiu: Eu. Eu sou republicano e sou do Sporting.

Ninguém se riu, foi quase patético. Digno, Manuel Tinoco levantou-se e saiu. Esteve quase uma semana sem aparecer. Deve ter sido o pior momento da vida dele.

Tudo, no Café Sousa, se discutia: heranças, namoros, exames, doenças, negócios, julgamentos, mexericos, futebol e política. Não admira que se comentasse o estranho caso de Zeca Sucateiro. Já os fenómenos tinham dado que falar. Todas as suspeitas recaíram então sobre Antoninho Pena. Mas nem Gonçalo Pena acreditava que o primo fosse responsável pela prisão de Zeca Sucateiro.

- O Antoninho é um cacique e um caceteiro, se for preciso até é capaz de contratar uns matadores, mas não é bufo, isso não.

Cheirava a café torrado, a pingo, a cigarro e a charuto. O Café Sousa era um pouco de cidade dentro da vila. Pelo movimento, pelo rumor, pelas conversas, pelo cheiro dos Luky Strike fumados pelas mulheres dos oficiais. E também pelos que passavam para Lisboa ou para o Porto e ali vinham comprar os pastéis de Alma. Passavam também os que iam visitar doentes ao Caramulo. Mulheres de chapéu e peles de raposa enroladas no pescoço, sentavam-se de perna traçada, faziam olhinhos ao meu pai, punham as cigarreiras de prata em cima da mesa, tiravam um cigarro e pediam-lhe lume.

Sempre que chegavam pessoas de fora as conversas paravam.

Era depois do almoço e do jantar que o Café tinha mais gente. Sobretudo homens, mulheres só as de fora, as dos oficiais ou as que estavam de passagem. Quando a minha avó entrava, era um acontecimento. Vinha o Sousa em pessoa cumprimentá-la e de todas as mesas os cavalheiros levantavam-se para a saudar. Usava sempre um chapéu com um véu preto de renda. Os homens beijavam-lhe a mão que ela estendia um pouco displicentemente. Não era pessoa para grandes confianças. Nem mesmo em casa. Eu era a excepção. Com os outros, mesmo com a minha mãe, ela marcava sempre uma certa distância. Enfim, era a viúva de Geraldo Pais e não deixava dúvidas a ninguém sobre o respeito que lhe era devido.

Pequena, embora não tanto como a minha mãe, andava de cabeça muito levantada, o que a fazia parecer mais alta. Ou talvez fosse o porte, a atitude. Dava a impressão de que olhava sempre de cima, mesmo quando falava com pessoas mais altas, como o meu pai, que às vezes não se continha: Lá está ela a olhar por cima da burra.

Mas também ele olhava assim. Dizem, aliás, que também herdei esse tique. Não é vaidade nem altivez. É uma atitude, um não gostar de andar curvado. Que era como muita gente naquele tempo andava: de olhos no chão, como se sempre de luto, em penitência. Era talvez a pobreza, a vida vidinha, o medo, o pouco. Guardo essa memória: a do pouco. Havia sempre pouco. Punham-se gáspeas nos sapatos, fundilhos nas calças, viravam-se os fatos e os casacos ficavam com os bolsos do lado direito. As mulheres das redondezas vinham à praça descalças, envoltas em grandes chailes negros que cheiravam a fumo, a chuva e a carqueja. Ou seja: a pouco. Abriam as pernas e mijavam onde estivessem, os homens riam-se, elas também. E havia os mendigos, aos sábados, a exibir as chagas. Pés em forma de pata de elefante, pernas roxas, negras, gangrenadas, eles catavam os piolhos, mostravam as feridas, entoavam uma ladainha, estendiam a mão.

Eu olhava para aquelas disformidades com um misto de fascínio e de repugnância. Nicolau embirrava com a exibição dos aleijões, macaqueava a ladainha, chamava-lhes nomes, às vezes atirava-lhes pedras. Não que fosse mau. Éramos inocentes e cruéis. Com os bichos e com as pessoas.

Com os protestantes, por exemplo. Eles reuniam-se numa pequena casa no cimo da vila, por detrás do quartel. Não tínhamos nada contra eles, sabíamos vagamente que eram diferentes e não resistíamos à tentação de os provocar. Mas um dia o meu pai soube e bateu-me. Foi das poucas vezes que o fez. Quem não respeita os outros não se respeita a si mesmo, disse. E estava muito zangado.

Já com os ciganos era diferente. Andávamos com eles, pescávamos peixes para lhes dar, ouvíamo-los cantar, as nossas mães viviam cheias de medo que um dia nos levassem. Mas eles gostavam de nós. Uma velha cigana disse-me, talvez por causa da cor dos olhos: pareces um cigano.

Eu tinha inveja dos ciganos, das suas fogueiras em Além da Ponte, das suas carroças que os levavam para o sul e passavam a fronteira. Não tinham casa, não eram obrigados a ir à escola, não estavam sujeitos a nenhum horário, a nenhuma obrigação.

Um dia, Zé Mafra, pai de um ciganito meu amigo disse-me uma coisa lindíssima, nunca mais a esqueci, parece um poema: cigano não tem casa, cigano só tem caminhos.

Era talvez por isso que eu não resistia a andar com eles: pelo que neles havia de vagabundagem, outros rios, outras terras, outras fronteiras. Hei-de casar com uma cigana, dizia eu às vezes. E a minha mãe via nisso mais um sinal. Mas não sei se achava graça. Creio que ela sempre teve medo que eu lhe fugisse.

Ia quase acontecendo quando o Circo Mariano se foi da vila para a Feira Franca de Viseu. Durante os dias em que permaneceu no Largo de Além da Ponte, eu estive apaixonado. Não por nenhuma artista, mas pelo circo. Todas as noites arranjávamos maneira de ir ao espectáculo. Gostávamos das trapezistas, dos palhaços, do ilusionista, das meninas vestidas com fatos de lantejoulas. Toda a gente se ria com os palhaços. Eu quase chorava. Mas o que profundamente me abalava por dentro era a música: a do trompete, a do acordeão, até a do serrote tocado pelo palhaço pobre. Era uma música alegre e triste que me fazia sentir uma grande saudade não sei de quê. Saudade de saudade, amor do amor. Havia os Faz-Tudo. E entre eles o Bicarbonato, que tinha a nossa idade e vinha connosco para o rio pescar. Ficou espantado com a nossa paixão pelo circo. Disse-nos que tinha nascido numa caravana e nunca conhecera outra casa. Para mim e para o Nicolau era uma espécie de herói saído de um filme ou de um livro de aventuras.

Falava do Ribatejo e do Alentejo, da Espanha, dos toiros, da Andaluzia. E nós imaginávamos essas terras distantes, as feiras, os largos, a vida errante. Estávamos apaixonados pelo circo. Talvez pelo mistério, talvez, simplesmente, porque estava de passagem. Era uma forma de descobrir a transitoriedade de tudo, do que é belo e efémero e tem de passar. Bicarbonato disse-nos que dali partiriam para a Feira Franca de Viseu.

Uma manhã chegámos ao Jardim Novo, olhámos para o outro lado do rio e não vimos nada. O circo tinha partido. Nem sei dizer o que senti: um vazio por dentro, uma agonia. Nesse dia não fui capaz de comer, quase não disse palavra. O miúdo está estranho, notou a minha mãe. Como explicar-lhe que era a saudade do circo? Zulmira, mãe do Nicolau, veio dizer a minha mãe que achava o filho muito esquisito.

No dia seguinte, na Escola, Nicolau disse: Temos que ir para Viseu. Mas como?, quis eu saber. Vamos no Vale de Vouga, respondeu. E disse-me que tinha tirado o necessário da caixa da loja de vidros do pai.

Fomos à estação saber o horário, arrumámos em segredo as nossas coisas e preparámo-nos para partir atrás do circo. Mas o Nicolau, contra o combinado, contou tudo à irmã mais velha. Fomos interceptados à porta da Estação por Manuel Trindade e pela minha mãe. Nicolau apanhou ali mesmo. E mais teria levado se minha mãe não acalmasse o dono da loja de vidros. Eles não sabiam o que estavam a fazer, disse ela. O que não era verdade, nós sabíamos.

Para minha grande surpresa, nem sequer me ralhou. Não me disse nada até casa. Só quando chegámos se mostrou um pouco triste por eu não lhe ter contado. E disse-me que eu lhe podia contar sempre tudo, fosse o que fosse. Então chorei e tentei explicar-lhe o que era difícil de explicar: que tinha uma paixão pelo circo, algo que eu nem sabia bem o que era. É uma saudade, mãe, uma saudade não sei de quê.

Ela fez-me uma festa, deu-me um beijo e disse-me que percebia muito bem. Não sei ao certo se sim, se em tudo aquilo ela viu apenas mais um sinal, ou se ela própria por vezes também tinha um sentimento assim, uma saudade de saudade, uma paixão.

 

Nas vésperas de Natal apareceu o Lince, meio homem, meio gato, dizia Lourenço de Faria, meu pai. Vivia ao deus dará, de quando em quando partia com saltimbancos, depois voltava. Dormia no forno da fábrica da telha, fazia uns biscates, no Verão roubava a fruta dos quintais. Ciclicamente, quando o frio apertava, ou a solidão e a fome, instalava-se lá em casa. Mariana, minha mãe, que tinha uma certa vocação para redentora, pregava-lhe grandes sermões. Ele ouvia de olhos no chão, não sei se percebia, mas obedecia-lhe cegamente. Ela mandava-o buscar lenha e ele saltava pela janela da cozinha para o jardim. Era um número de circo, que os meus amigos vinham ver, porque nem acreditavam quando eu lhes contava. A janela estava a uma altura de quatro metros do chão. Rachava lenha, fazia recados, tratava do jardim, consertava coisas, porque tinha uma grande habilidade manual. E secretariava o meu pai na caça ou na pesca às enguias e às lampreias. Era um especialista em capturar pássaros cantores, pintassilgos, pintaroxos, verdilhões. Como é que fazes, perguntava-lhe. Com visgo, dizia ele. Mas nunca explicava exactamente como, nem tão-pouco queria companhia. Depois ia vendê-los à praça ou à taberna da viela, onde podiam ver-se, penduradas, na porta, gaiolas cheias de pássaros.

Vinha e instalava-se, como se tivesse saído na véspera. Creio que ele se considerava da casa. Nunca falava de pai ou de mãe, nem se sabia se tinha irmãos. Talvez ele próprio não o soubesse. A minha mãe era para ele a única referência, a casa, o calor, o pão, o aconchego. Até o ralho. Sempre tive a sensação de que ele gostava que a minha mãe lhe ralhasse. Era um sinal de interesse e uma forma de ternura, a única que conhecia. Chegou a treinar, como guarda-redes, no Beira-Rio. Mas mal vestia a camisola de gola alta, à Zamora, perdia-se pela vaidade. Os voos eram magníficos. Mas, como dizia meu pai, para a fotografia. A bola vinha rasteira e ele lançava-se para o ar. Macaco de circo, comentava Manuel Tinoco a morder o charuto.

Eu ia com ele à pesca, sobretudo às carpas.

Sentávamo-nos num banco de salgueiro e ficávamos à espera. O isco eram bolas de broa amassadas com azeite e ele não pescava à bóia, mas com chumbada, ao fundo. Às tantas a ponteira da cana curvava-se e o Lince, muito concentrado, começava, dizia ele, a trabalhar a carpa, a cansá-la, até conseguir recolhê-la, com todo o cuidado, para um camaroeiro.

Trazíamos as carpas para a casa, mas a minha mãe não apreciava. E o Lince ia vendê-las às tabernas.

Quando uma criada se ia embora, o que era frequente, a avó Beatriz era difícil e a minha mãe, de tanto querer governar-lhes a vida acabava por exasperá-las, o Lince ia pelas redondezas procurar a substituta. Às vezes acertava, outras não. Então ouvia das boas. Bom e bonito foi quando a minha avó descobriu que ele tinha recrutado uma das putas que vinham ao sábado de Aveiro. O Lince jurou que não sabia, mas nunca mais a minha avó admitiu uma criada arranjada por ele.

As putas chegavam ao fim das tardes de sábado.

Juntavam-se a oeste da vila, um pouco fora, no começo da estrada para Aveiro. A rapaziada ia em grupo, os mais velhos às vezes levavam-nos para ver. Vinham operários das fábricas, homens e rapazes das aldeias em redor, alguns das faldas da serra, onde nem as putas chegavam. Elas aviavam aos dez e aos vinte, conforme fosse a freguesia. Era a Geral ou, como então se dizia, a Geraldina. Faziam uma cama de caruma encostada a um pinheiro, eles punham-se em bicha. Arregaçavam as saias, tiravam as calçinhas, deitavam-se e abriam as pernas, levantando um pouco os joelhos. Sai o primeiro, gritavam. E lá iam os da frente, um pouco enfiados, enquanto os outros se riam, nervosos, como uma equipa de futebol antes de entrar em campo.

Alguns baixavam as calças, outros nem isso, limitavam-se a desabotoar a braguilha. A mim dava-me vontade de rir vê-los assim, de rabo ao léu, acima, abaixo, acima, abaixo, como bombas de encher. Dá-me os teus leites todos, diziam elas, toma, toma, toma. Mas só mais tarde eu soube o que aquilo significava.

Às vezes os mais velhos perguntavam se também queríamos. Nós tínhamos vergonha e dizíamos que não. Uma vez Nicolau esteve quase. Mas eles começaram a rir, a puta disse que não estava para desmamar meninos, ele desatou a fugir e atirou-lhes pedras, de longe. Felizmente que a minha mãe e a minha avó nem sequer imaginavam. Mas alguém foi dizer ao meu pai. Ele chamou-nos, a mim e aos outros, quis ralhar-nos, mas não conseguiu. Eu conhecia bem o meu pai e via que ele estava divertido, com vontade de rir.

- Não diga nada à mãe, - pedi-lhe, envergonhado.

Então ele começou a rir a bandeiras despregadas. Depois lá disfarçou, pôs-se sério e disse-nos para nunca mais lá irmos senão era o cabo dos trabalhos. A coisa ficou por ali.

Mas uns tempos depois lá estávamos nós. Às vezes o Lince também ia. Se tinha dinheiro punha-se na bicha, se não sentava-se mais longe e masturbava-se furiosamente. Punheteiro de merda, gritavam os outros, correndo atrás dele. As putas acabavam por ter pena e já nem sequer lhe cobravam nada. Creio que foi por gratidão que ele acabou por recrutar uma, como criada, lá para casa. Quem afinou, mais ainda que a minha avó, foi o meu pai. Disse-lhe que era uma falta de respeito, enfiou-lhe um par de lambadas e ameaçou-o de nunca mais o deixar pôr o pé lá em casa.

O Lince apanhou um susto e desapareceu de novo. Mas nas vésperas daquele Natal de 1945 lá estava ele outra vez. Contou que tinha andado por Espanha. Ninguém ligou muito, mas eu acreditei. O que era uma fronteira para o Lince? Meio homem, meio gato, creio, até, que meio lobisomem. Pelo menos contava histórias de estarrecer às criadas, à noite, na cozinha. Disse que tinha encontrado lobisomens nas serras por onde andara, perto de Espanha. Eram iguais a nós, mas em certas noites de lua transformavam-se, ficavam metade lobos metade homens. Ele tinha-os visto nas montanhas, em noites de lua cheia. E punha-se ele próprio a uivar, sentado no banco da cozinha. As criadas ficavam fascinadas de terror, porque o medo é também uma forma de encantamento. Eu não acreditava que ele tivesse visto lobisomens a uivar no alto das montanhas. Mas gostava de ouvir. Havia na adega uma pele de um lobo morto pelo meu pai perto de Vinhais. Eu pedi-lhe para ele a pôr pelos ombros para ver que aspecto tinha. E acho que parecia um lobisomem.

Uma tarde ouvi uma espécie de guincho que vinha da casa da lenha. Fui espreitar: o Lince, com a pele de lobo pelas costas, estava a cavalgar a cozinheira. Ela ordenava: uiva, meu filho da puta, uiva. Mas ele só conseguia guinchar. E daí a pouco quem uivava era ela.

 

- É a pele da terra, dizia o Lince, colocando as grandes fatias de musgo na canastra.

O presépio de minha avó tinha fama. Construía-o junto à parede do fundo da sala de jantar, utilizando caixas de papelão e espelhos com que fazia as montanhas e os lagos da Judeia. Cobria os montes com flocos de neve, punha a cabana em Belém, com o Menino nas palhinhas, rodeado pela Mãe, por José, pelos pastores, pelo jumento e pela vaca. Depois as luzes, de várias cores. E uma estrela amarela que apontava o caminho aos reis do Oriente.

Também armava a árvore de Natal, com um pinheiro que o Lince cortava em Romarim. Mas eu preferia o presépio. Sempre achei que o de minha avó era o mais bonito de Alma, mais ainda do que o da Igreja. Trazia os meus amigos para eles verem. E toda a gente o admirava, até Aurélio Silveira e Florêncio Tavares, republicanos, laicos e anti-clericais, ainda que considerassem Jesus Cristo como um correligionário.

Então a casa ficava diferente. Talvez por causa do cheiro do musgo, das luzes a acender e a apagar na árvore e no presépio, talvez porque era Natal e havia um não sei quê no ar, tudo mudava, a casa, as pessoas, o ritmo.

Na cozinha era um frenesim. Não só pela actividade da minha avó, da minha mãe e das criadas, que se afadigavam a fazer filhós, rabanadas, bolo-rei, leite-creme, mas pelo constante ir e vir de Adelaide, Etelvininha, Tia Matilde, primas afastadas, vizinhas. As mulheres dominavam a cozinha, dominavam a casa, dominavam tudo.

Meu pai começava a ficar melancólico. Eu perguntava porque é que ele entristecia sempre que o Natal se aproximava. A minha mãe respondia-me que eram saudades. Eu creio que era feitio. Talvez fosse até um certo narcisismo. Lourenço de Faria, meu pai, comprazia-se naquela forma de celebrar só para si uma íntima alegria triste.

Naquele Natal éramos muitos à mesa. Claro que o narrador poderia organizá-los conforme entendesse. Mas eu estou a vê-los ainda, a minha margem de manobra é estreita. Numa das cabeceiras, a minha avó Beatriz, viúva revolucionária e republicana, com a sua jóia de brilhantes na gargantilha preta; na outra o Primo Frederico, monárquico integralista, sempre que se dizia o nome do rei levantava-se e fazia uma vénia apesar dos seus cento e vinte e tal quilos. Resfolegava um pouco quando comia, o que me fazia impressão. Gostava muito de papas de abóbora e tinha de pôr um guardanapo ao pescoço para não se sujar. Tia Hermengarda, com os seus olhos maliciosos sempre a sorrir por detrás das grossas lentes, Tia Matilde, a cabeça inclinada ora para um lado ora para o outro, Aurélio Silveira, que bebia de um trago o copo de vinho sempre que acabava de comer um prato, meu pai agora um pouco menos melancólico, minha mãe, que trazia ao peito o alfinete com as armas do meu pai, minha irmã Maria, de trança e sobrancelhas muito carregadas, o vaivém das criadas vestidas de preto com gola e punhos de renda brancos, imagens, andam aí pelo ar, guardadas na memória, às vezes no esquecimento, suspensas, autónomas.

Os murmúrios, as cumplicidades, as lembranças.

Já a avó Beatriz conta daquele Natal, há muito tempo, quando o avô a levou de manhã à cocheira para lhe oferecer um cavalo branco. Já Tia Hermengarda fala de minha avó Leonor e do seu palácio no Grande Canal, em Veneza. Já o Primo Frederico, que pela terceira vez repete o bacalhau, recorda a estadia do grande Gallito em casa de meu avô Júlio de Faria, em Aveiro.

Vejo ainda a lenha a arder no fogão, as luzes do presépio e do pinheiro, as velas da mesa, as lâmpadas do candeeiro suspenso irradiando por toda a sala. Oiço ainda o rumor das conversas, o tinir dos talheres de prata, o som do vinho a cair nos copos, o ruído dos pratos na cozinha. Como recuperar o crepitar da lenha, a luz, as vozes?

Mas eis que dou corda ao His Master Voice e coloco no prato um tango argentino, Plegária, se a memória não me falha. Já o meu pai se levanta e começa a dançar sozinho. Parece o Rudolfo Valentino, diz a Tia Hermengarda, que tinha um fraco pelo cinema e seus galãs.

Mas já eu folheio os álbuns desbotados cheios de mortos em festas luminosas, tios e tias, primos e primas de smoking e vestidos de noite. A música parece vir daqueles bailes e daquelas festas, enquanto o meu pai continua a dançar sozinho, ou talvez não. Quem eu vejo são os mortos e as mortas de smoking e vestidos de noite, são eles que dançam nos gestos e passos do meu pai na sala aquecida pelo lume do fogão, as luzes, as conversas, o calor da consoada.

Por volta das onze partiremos para Vilar onde todos os natais, à meia-noite, na capela do Marquês, se ouve a missa do galo.

Mas eu já só penso no dia seguinte. Levantar-me-ei cedo, muito cedo, para espreitar o sapatinho junto do fogão da sala de jantar. E sei que no regresso de Vilar terei o fogão do meu quarto aceso e adormecerei ouvindo a lenha crepitar, aconchegado, quente, pensando talvez nos três reis magos que a essa hora já devem seguir a estrela colocada pela minha avó sobre a cabana do presépio onde Jesus acaba de nascer.

 

Não por causa das pancadas, nem das noites sem dormir, nem das perguntas atrás de perguntas. Não foi por isso que Zé Sucateiro chorou no dia em que chegou a Alma e foi à Rua da Cheia agradecer à minha avó Beatriz.

- A Senhora desculpe, - disse ele, - eu não sei nada de política, nunca fui comunista nem coisa nenhuma, a Senhora perdoe que foi tão boa para os meus filhos mas eu não me aguentei, eu não conhecia mais ninguém e disse o nome da Senhora D. Beatriz e do Senhor Dr. Aurélio e do Senhor Gonçalo Pena. Ao princípio ainda tentei enganá-los, ainda disse o nome do Armandinho, do Neca Pereira e de quase toda a equipa do Beira-Rio, mas foram ver e depois moeram-me, com sua licença, de porrada.

Só me deixaram quando disse o nome da Senhora e dos outros, a bem dizer só me largaram mesmo quando eu falei no Senhor Gonçalo, acho que era o nome que eles queriam, - concluiu Zeca Sucateiro,     caindo, de joelhos, aos pés da minha avó que, serenamente, o levantou e disse: Deixa lá, são uns bandidos, agora vai para a tua mulher e os teus filhos.

Creio que Zeca Sucateiro nunca mais se perdoou a si mesmo. Era uma questão de brio, como se não tivesse sabido defender as cores da sua terra. Durante muito tempo não chamaria nomes a Armandinho Alfaiate, nem ao árbitro, nem sequer aos fiscais de linha. Ninguém o ouviria exigir a mudança da cor da camisola do azul para o vermelho, nem o veria pegar-se com Manuel Tinoco em defesa do Benfica. O ponta esquerda do Beira-Rio já não teria que saltar a vedação para lhe partir as fuças. Zeca Sucateiro ainda voltaria ao Campo de São Cristóvão. Mas nunca mais seria o mesmo. Algo dentro dele se perdera na sala de interrogatórios da Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado na Rua do Heroísmo, no Porto.

Quando soube que Zeca tinha dado o nome de Gonçalo Pena à Polícia, Adelaide ficou de cabeça transtornada. Desconfiava-se que ela andava a passar as noites em casa dele, tanto mais que não havia sinal de nova governanta e Gonçalo Pena não era homem para dormir sozinho. Quando a minha mãe lhe perguntou, ela ficou muito corada e respondeu: Credo, menina, cruzes canhoto, já tenho a minha conta. Mas ninguém se convenceu. Era mais que certo que Gonçalo Pena estava a seguir os conselhos de meu pai.

Foi a minha avó que o mandou avisar e lhe recomendou que era melhor ele precatar-se. E a Senhora?, perguntou o revolucionário. Eu aguardo, respondeu altivamente a minha avó.

Já Aurélio Silveira disse logo que só a tiro.

Lourenço de Faria, meu pai, foi lá explicar-lhe que esta guerra era uma guerra desigual. O médico ainda lembrou o tempo em que alguns monárquicos lá tinham ficado presos em casa, à guarda da Tia Matilde, sob palavra de honra que não fugiriam. Ela deixava-os sair para um passeio e eles voltavam. Nesse tempo os homens tinham palavra e tinham honra, gritava, muito exaltado, Aurélio Silveira. Isso era dantes, respondeu-lhe o meu pai, que se propôs levá-lo para a quinta do Marquês na Beira Baixa onde, além do mais, podia caçar umas lebres a cavalo. Os olhos pequeninos de Aurélio Silveira luziram logo. A caça à lebre, a cavalo ou com galgo, era o seu vício. Mas não podia virar as costas, sentir-se-ia desonrado se fugisse. Eles que venham, acabou por dizer.

Foram dias de grande tensão. Então?, perguntavam os republicanos que passavam, de fugida, pela Loja. Por enquanto nada, respondia Florêncio Tavares mordendo o bigode.  

Ninguém duvidava de que viriam. Terão coragem de prender a Beatriz? perguntava Florêncio Tavares como se a própria pergunta fosse já um sacrilégio.

Eles prendem quem quer que seja, respondia Gonçalo Pena, para quem todos olhavam como se fosse um morto adiado. Eu não tenho sarna, dissera ele, muito irritado, no Café Sousa.

- Se vierem a casa da Senhora, toca-se o sino a rebate, - dizia a Adelaide. Era o que se murmurava por toda a parte. O tenente Serafim andava preocupado. Entrava no Café e as pessoas calavam-se. Acabou por se dirigir a Manuel Tinoco: Olhe que eu sou da GNR, não sou da outra.

- A sua GNR, de republicana só tem o nome, retorquiu com maus modos o homem que nunca tirava o chapéu.

- Sirvo o país, não sirvo uma política, disse o tenente, muito ofendido.

- Amen, respondeu-lhe Manuel Tinoco.

Meu pai dizia que o ar estava carregado de electricidade. Sentia-se na Loja, no Café, na Rua, em Casa, nas conversas, nos olhares. E nos silêncios. Sobretudo nos silêncios. Que no caso de Adelaide eram sempre entrecortados por grandes suspiros. Alma estava à espera.

E os sinos tocaram a rebate. Não por causa de Beatriz Pais, minha avó, mas porque mataram em Romarim os filhos do Moleiro. A GNR tinha lá ido inspeccionar. Quiseram entrar e eles não deixaram. Ninguém sabia ao certo o que se tinha passado. Os três filhos do moleiro entrincheiraram-se dentro do moinho. Uns diziam que à espera que o pai chegasse, outros porque a Guarda tinha querido forçar a entrada. Certo, certo é que as praças tinham disparado e os três estavam mortos. Os sinos tocaram a rebate em Romarim, em Alma e nas aldeias em redor. Mataram os filhos do moleiro, mataram os filhos do moleiro, gritava-se de povoação em povoação, de rua em rua, de casa em casa. Ninguém tomava a defesa da Guarda. Só Zagalote, o legionário que tinha uma pala no olho esquerdo, tentava justificar a acção dos homens da GNR. Mas acabou por meter a viola no saco, tal a cólera do povo. O sangue excitava as pessoas, as mulheres pareciam possessas. Lourenço de Faria aconselhava calma. Mas também ele estava nervoso. Isto ainda dá para o torto, dizia.

E os sinos não paravam de tocar em Romarim. Nas ruas da aldeia andava gente de caçadeira em punho. Pelo sim pelo não a Guarda recolheu ao posto. O quartel entrou de prevenção. Chegaram reforços de Aveiro e de Coimbra, cortaram a estrada para o Caramulo e isolaram Romarim.

Alma parecia uma terra ocupada, como as que se viam nos filmes de guerra. Estes gajos parecem alemães, disse Nicolau, que queria passar para Romarim. São alemães que falam português. Heil Hitler, gritou ele, fazendo a saudação nazi em frente de um sargento que não achou graça e o mandou dispersar. Só se via povo e guardas com capacetes de guerra.

Que pode um narrador fazer em tais circunstâncias? Não acredito, como Sempre, que o artifício da arte consiga enganar a Guarda. E não tenho, como Llansol, os poderes mágicos de Aossê. De modo que não me resta senão correr pela margem do rio, com Nicolau e outros, até Romarim.

Tentámos subir pelo outro lado e vimos que a estrada também estava cortada. Tinham cercado Romarim. Voltámos para trás e viemos avisar que não se podia sair nem entrar em Romarim, nem quem fosse para o Caramulo nem quem de lá viesse. Os sinos deixaram de tocar a rebate. Passado um tempo começaram a dobrar a finados. Sentia-se uma tensão de morte e tragédia. Parece que cheira a sangue, dizia Adelaide. Etelvininha, cada vez mais magra e pequenina, apareceu, com seu nariz de milhafre, muito nervosa. Ela é pequena mas gosta deles grandes, costumava gracejar Gonçalo Pena, aludindo ao facto de viver amigada com o Isaac, remador dos Galitos de Aveiro, que media um metro e noventa, depois de ter enterrado o calmeirão do Tomé Telha, que morreu tuberculoso , devido, dizia-se à boca pequena, às exigências de Etelvininha, que era uma sanguessuga. Tirou os espíritos todos ao Tomé e ainda vai deixar o Isaac sem pinta de sangue. Isto era o que se murmurava em Alma, terra de muitas bocas venenosas.

Nesse dia, Etelvininha, que não sabia colocar a voz, falou mais esganiçado do que o costume. Contou que um dos moleiros ainda tinha chegado vivo ao Hospital.

- A mãe berrava que nem uma bezerra.

- Que raio de comparação, disse o meu pai.

Etelvininha estava muito nervosa, porque morava no caminho para Romarim e a Guarda não deixava passar ninguém.

Vieram os amigos, Tia Matilde, Aurélio Silveira, Florêncio Tavares. Mas havia muito mais gente que entrava e saía. Cada um tinha a sua versão, o que chegava por último acrescentava sempre mais um ponto, senão mesmo um conto. Mas ninguém tinha estado tão perto de Romarim como eu e os meus amigos. Sentíamo-nos importantes e não nos cansávamos de contar. Em tais situações só é verdadeiramente importante o que viu, o que esteve perto, o que falou com alguém da família. Ou então, mas isso é mesmo excepcional, com um dos mortos um pouco antes de ele morrer. Testemunhas oculares da morte dos moleiros não havia. Mas era cada vez maior o número dos que tinham ouvido os gritos e os tiros. E já aparecia quem tivesse visto um deles a ser levado para o Hospital. Eram testemunhas de peso.

Toda a gente contava a toda a gente. Mais urgente do que ouvir era falar, dar a notícia, passar a palavra. As pessoas juntavam-se nas ruas, as mulheres cruzando os braços e abanando as cabeças, os homens fazendo grandes gestos circulares. Em cada um havia um campeão pronto a lavar a afronta e a limpar o sangue com mais sangue.

Mas no dia seguinte a Guarda começou a mandar dispersar. Houve primeiro uns empurrões, depois uma coronhada. No começo da estrada para Romarim, um dos guardas, mais nervoso, disparou para o ar. Os jipes circulavam pelas ruas da vila ordenando às pessoas, através de altifalantes, para recolherem a casa. Os gajos são mesmo alemães, disse o Nicolau. E eu tinha a sensação de já ter visto aquele filme.

Alma era uma vila ocupada. Estado de sítio, dizia, indignado, Florêncio Tavares. E repetia as frases que às vezes declamava nos comícios: Não lhes basta o Tarrafal, querem fazer de Portugal inteiro uma prisão.

Mariana, minha mãe, que não resistia a grandes tiradas, aprovava entusiasmada. Quanto mais forte era a presença da Guarda nas ruas mais incendiárias eram as palavras que se diziam dentro de casa. Mas ninguém as sabia como Gonçalo Pena: É preciso responder à violência reaccionária com a violência revolucionária. Sempre gostei desta frase que ouvi, pela primeira vez, nos começos de 1946, muito antes da revolução cubana, da boca de Gonçalo Pena, estando a vila ocupada pela Guarda Nacional Republicana que, de republicana, sublinhava Manuel Tinoco, só tinha o nome.

Três dias e três noites durou o estado de sítio. Os mortos foram enterrados à sucapa. Pouco a pouco a vida voltou às suas rotinas. Uns dias depois, a BBC falou no estranho caso de três moleiros mortos em Alma, no distrito de Aveiro. Não acrescentou nada de novo, a não ser que em toda a zona centro a tropa tinha estado de prevenção. Eu ouvi a notícia como se de novo houvesse guerra. Agora já não na Europa, mas ali, onde a outra, a verdadeira, nunca tinha chegado.

Senti um certo orgulho. A BBC tinha falado de Portugal, o locutor pronunciou o nome de Alma e disse uma frase que para sempre me ficou no ouvido: Os sinos tocaram a rebate e o povo aglomerou-se nas ruas.

Em todas aquelas noites que se seguiram os amigos mais chegados e os velhos republicanos foram-se revezando lá por casa, creio que para protegerem Beatriz Pais, minha avó, ou, pelo menos, para estarem presentes no caso de alguma coisa acontecer. Até o Marquês apareceu, oferecendo a sua casa, o que foi particularmente apreciado por Aurélio Silveira:

Ainda há fidalguia.

Durante muito tempo comentou-se a morte dos moleiros. Mas nunca ninguém soube ao certo o que se passou. Ainda hoje a controvérsia se mantém. Talvez por um certo gosto português do mistério, do indefinido, do inextricável. A única certeza é a de que eles foram mortos a tiro pela Guarda. Meses depois do fim da guerra na Europa, era uma outra forma de guerra.

Como a espera, à noite, em volta da minha avó. Ainda se ouvia a BBC. Ainda se comentavam as notícias da guerra no Japão e das descobertas que se iam fazendo sobre os horrores nazis nos campos de concentração. Mas aquela tensão, aquele medo, aquela espera eram uma outra forma de guerra, frase que não sei se é minha, se do narrador, se de alguém que então a disse. Só sei que é verdadeira.

A nossa paz não tinha sentido. A nossa guerra era outra. Parecem alemães, tinha dito o Nicolau. De certo modo. Aurélio Silveira falava no Tarrafal: Os outros campos acabaram, o nosso continua. Adelaide deitava as cartas e via nos seus sonhos um barco negro pela estrada fora. Tarrafal ou Peniche, interpretava a minha mãe. E até o meu pai cortava por vezes as frases bombásticas dos republicanos:

Isto só vai a tiro.

Eu ouvia a BBC, escutava as conversas, percebia a tensão, a espera, o medo. E sentia-me traído pelos Aliados. Afinal éramos os únicos que não tínhamos vencido. A nossa paz tinha uma guerra por fazer. E era de certo modo uma outra forma de guerra.

 

Era uma daquelas manhãs em que minha mãe virava a casa do avesso. Não sei a que necessidade profunda correspondia tal operação. Talvez ao seu génio, que era o da intervenção, o do comando, o de agir sobre as coisas, mudá-las, empurrá-las, subvertê-las. As passadeiras das escadas e do corredor eram enroladas, os varões areados, os tapetes pendurados no jardim e furiosamente batidos. Não havia cadeira que ficasse direita ou móvel que não fosse arredado do seu lugar. As pratas e os talheres eram sujeitos a intensa esfregação, o soalho de madeira varrido e encerado, a minha irmã dizia: engraxado. As criadas e as mulheres a dias andavam numa fona, sob o comando operacional de Mariana, minha mãe. Aquela azáfama era incompreensível para o meu pai que apenas queria sentar-se tranquilamente a ler ou a escrever um artigo de caça a que ele, por auto-ironia, chamava artigo indefinido. Vou escrever um indefinido, dizia. E sentava-se à secretária. Mas naquele dia qual quê. Nem meiple, nem secretária, nem qualquer espaço possível. Parece a revolução, dizia Lourenço de Faria. De certo modo. As mulheres andavam de um lado para o outro como se estivessem dominadas por forças demoníacas. Sempre me impressionou, desde pequeno, a forma como as mulheres se entregam obsessiva e cegamente a tarefas cujo sentido por vezes nos escapa.

Foi numa manhã assim que ela apareceu, a prima Lúcia. Era um dos temores de minha mãe. Estiveste a dançar com ela, dizia a minha mãe a meu pai, quando ele por vezes punha no gramofone um tango argentino e começava a dançar sozinho. "Ela" era a prima Lúcia. E estava ali. Em absoluto contraste com aquela desarrumação. Alta, cabelos quase ruivos, os olhos acinzentados, um pouco como os do meu pai, sardenta, parecida com ele, como se fosse a sua versão feminina, o outro lado dele, ou a metade, ou o complemento, a companheira, aquela que. Eles eram bonitos e ficavam mais bonitos juntos.

Não havia propriamente sítio para receber a prima Lúcia, mas ela fez como se não desse por nada, a sua simples presença reordenava tudo. Olhei para ela e achei que parecia uma rainha. Creio que o meu pai pensava o mesmo, embora estivesse um pouco atrapalhado com aquela revolução dentro de casa. A desordem reina em Varsóvia, disse. Ela olhou para mim de um modo que nunca mais esquecerei. Creio que procurava em mim o que em mim pudesse haver de Lourenço de Faria, meu pai.

- Os olhos, disse ela. Tem os teus olhos. E os gestos, uma certa maneira de levantar a cabeça.

Pegou-me no queixo, olhou-me e sorriu. Foi de certo modo um olhar de amor. Amor e mágoa, algo de irremediável. Tive a sensação de que me olhava como se me estivesse a dizer adeus. Ou mais exactamente: como se me tivesse perdido. Foram breves instantes que para sempre se gravaram dentro de mim. Hoje sei que a partir daqueles momentos passei a fazer parte de um amor secreto, incompleto e talvez, por isso mesmo, indestrutível.

- É com ela que o teu pai costuma dançar sozinho, disse-me a minha mãe depois dela se ter ido embora.

Mas nem precisava de dizer nada, eu já tinha percebido. Eram primos, ainda hoje não sei em que grau, eu diria que eram gémeos ou, minha mãe me perdoe, que tinham sido feitos um para o outro.

Mas o meu pai, diziam, fugiu-lhe. Talvez por medo do excesso, talvez para a paixão nunca morrer, ou talvez porque acima de tudo ele amava as causas perdidas, as coisas inacabadas, as monarquias sem rei. Várias vezes ela tinha vindo ter com ele. Segundo a minha própria mãe contava, dizia que deixaria tudo por Lourenço, bastava ele fazer um sinal.

Mas talvez o meu pai soubesse que ela precisava de outra vida, viagens, embaixadas, carreira, um palco, outros espaços urbanos, as grandes capitais do mundo. O teu pai teve medo, disse-me, mais tarde, Mariana, minha mãe. Com ela seria obrigado a uma vida diferente e ele nunca esteve para isso.

Casada com um diplomata espanhol, vivendo ora em Madrid, ora em Buenos Aires, ora em Paris, ela era o outro lado, o outro mundo, a outra vida. É possível que meu pai sentisse nostalgia. Não que não gostasse de minha mãe. Mas por temperamento, por um certo pendor para a renúncia, se não mesmo para a abdicação. A verdade é que entre Lourenço de Faria e Mariana havia o que poderá talvez chamar-se a atracção dos contrários. Era uma cumplicidade pela diferença. Não creio que se completassem, sequer que se entendessem. Estavam condenados um ao outro por uma irremediável dissemelhança que os separava e aproximava.

Nunca mais vi a prima Lúcia. Foi quase uma aparição. Mas ela também ficou a fazer parte de mim. Guardei o seu olhar e tenho a certeza de que ela também levou o meu, como uma parte do seu próprio amor perdido. Quem sabe até que ponto essa visita me tocou? Às vezes pergunto-me se não andarei sempre a querer completar a paixão inacabada de Lourenço de Faria, meu pai. É possível que mais tarde eu tenha procurado o olhar dela no olhar de outras mulheres. Ou que ela tenha passado a ser também, sob outra forma, o meu amor ausente. Lembro a intensidade da sua presença, o cheiro, o rasto (ou o astro) que ficou da sua passagem. E a majestade. Como um símbolo de harmonia na grande desarrumação daquela manhã.

Que foi por acaso a do dia em que o carro dos bombeiros atravessou a vila tocando lancinantemente. Havia um afogado no Poço do Rio, a curva mais funda do Alma para onde as nossas mães constantemente nos recomendavam que não fôssemos, mas para onde éramos atraídos pelo perigo, pelo medo e por ser proibido. Dizia-se que em certas noites aparecia a boiar, vestida de branco, uma rapariga que há muitos anos ali se afogara no dia do seu noivado. Contava-se mesmo que por vezes ela saía das águas e corria pelo campo. Alguns juravam que já tinham visto. Ficava-se arrepiado e fascinado só de ouvir contar. Pior quando nos aproximávamos do local, uns quinhentos metros a montante da nora. Era onde o milho, no Verão, ficava mais alto e os salgueiros se entrelaçavam, cobrindo o rio com suas sombras. A corrente era mais forte, fazia remoinho e dizia-se que levava as pessoas para o fundo. E o fundo era tão fundo que não se via. Ali o rio era mais escuro, as sombras mais sombrias, o rumorejar das águas mais pungente.

Tinha-se medo, mas não se resistia. Mergulhar no Poço era uma prova, um rito, uma iniciação. Todos os rapazes tinham de o fazer. Desconfio que as próprias mães, apesar do terror, ficavam aliviadas quando sabiam que os filhos já tinham quebrado o interdito e recebido o baptismo daquelas águas perigosas. Era sinal de coragem e de virilidade. Por isso, mal aprendíamos a nadar, lá íamos, nas tardes quentes de Junho, tentar os demónios ou os anjos que se escondiam no Poço do Rio. O que mais me amedrontava e atraía era a imagem da morta a boiar em noites de lua cheia ou a correr pelos campos com seus longos véus esvoaçando. Lá fomos, várias vezes, a tremer, tentados pelo próprio medo.

Mas nunca vimos a noiva afogada no Poço do Rio. O que vimos foi o afogado que os bombeiros retiraram das águas. Era um aluno da Escola Comercial, natural de Cerejeira de Cima. Estava a pescar, caiu, não sabia nadar. Os bombeiros bem o viraram, massajaram e aspiraram, tentando tirar-lhe a água engolida. Nada a fazer. O rapaz estava morto e inchado.

Nunca mais voltas ao Poço do Rio, disse a minha mãe, quando soube. Mas o Poço era uma tentação irresistível.

Como o retrato de prima Lúcia que meu pai trazia na carteira. Não sei se minha mãe chegou a saber. Às vezes, quando o meu pai deixava o casaco abandonado, eu ia espreitar à pressa a fotografia clandestina. Ficava deslumbrado com tanta beleza e de certo modo era cúmplice de meu pai. Depois sentia remorsos, como se tivesse cometido um pecado. E corria a cobrir a minha mãe de beijos, sem que ela soubesse porquê.

Fiquei desde aí com a ideia de que todas as pessoas têm amores secretos e guardam alguns retratos proibidos. E se acontecesse o mesmo com a minha mãe? E se ela escondesse a fotografia de alguém que fosse para ela o que a prima Lúcia era para o meu pai? Esta simples dúvida deixava-me doente de ciúme. Tudo então se tornaria incerto dentro de mim como se de repente já não soubesse quem era quem, nem mesmo a minha mãe que, sabe-se lá, podia ter tido outros amores, retratos clandestinos, memórias secretas. Confusamente intuía que ninguém é dono de ninguém e que talvez nunca cheguemos verdadeiramente a saber quem são os que amamos, nem mesmo o pai, nem mesmo a mãe. Há sempre a possibilidade de uma paixão de que se não sabe, um amor impossível, uma memória não partilhada, um retrato escondido. E se? E se? E se? Sempre fui propenso a dúvidas obsessivas sobre os seres amados.

Talvez a prima Lúcia tenha alguma responsabilidade nisso.

Ela tinha aparecido naquela manhã de grande desordem na casa, numa situação de vantagem absoluta, como se fosse a imagem de uma outra ordem, outra harmonia e outra beleza, algures, lá fora, num outro mundo. Foi talvez injusto para a minha mãe ela chegar assim, de chofre, com sua elegância e sua beleza, no Lancia azul conduzido por um motorista fardado, precisamente à hora da máxima desarrumação, com a casa virada do avesso, os móveis, as cadeiras, nós próprios fora do lugar. Foi injusto e um pouco humilhante, porque ficaria sempre esse contraste e nunca mais ela deixaria de representar para mim o apelo doce, perigoso e talvez falso de um outro lado sem quotidiano e sem rotinas.

Nunca mais pude suportar a tirania das tarefas domésticas. E nunca mais tive certezas absolutas. Por baixo de um rosto amado pode haver outro rosto ou outra máscara. Talvez um desconhecido.

Tal foi o abalo da chegada da prima Lúcia naquela manhã de grande desarrumação.

 

E vieram as grandes cheias de Fevereiro. O rio encheu, transbordou, alagou o vale. A água quase cobria os pilares da ponte. Do Jardim Novo olhava-se a corrente cheia de toros de madeira, de laranjas, de animais mortos, porcos, galinhas, ovelhas. Mas já a cheia começava a aparecer pelo lado do Ribeirinho e a invadir de novo a Rua Bartolomeu Dias. Corri para casa. Em breve a rua seria um rio. Veio primeiro devagar, depois com mais força, quase em torrente. Inundou a oficina do Vítor Sapateiro, o forno da Rosa, a garagem do Leandro. Joaquim Marceneiro, já de botas altas, apressou-se a levar as gaiolas dos canários para a varanda de sua casa. Gonçalo Pena tirou a bateira da parede da adega. A minha irmã e calçámos botas de borracha e fomos para uma das varandas. Ainda passavam na rua mulheres de saias arregaçadas, de grossas coxas que eu gostava de ver. Vítor Sapateiro e Leandro, também de botas, transportavam às costas velhos e crianças apanhados desprevenidos. A cheia estava na rua, agora muito mais Rua da Cheia do que Rua Bartolomeu Dias, chegava já ao primeiro degrau das escadas da entrada secundária, começava a tapar o buxo do jardim. Adelaide, que estava lá em casa a costurar, já não conseguiu sair. Agora é que fazia jeito o barco dos teus sonhos, dizia minha mãe.

Credo menina, não brinque com coisas sérias.

Minha irmã e eu apreciávamos a metamorfose. Já a rua era um rio, já as primeiras bateiras circulavam, já um porco inchado tinha passado a boiar. Era a cheia. De certo modo era a festa.

Das traseiras de sua casa, Nicolau assobiava. Nada a fazer, só de barco. No dia seguinte não haveria escola, a cheia deveria durar pelo menos dois dias. As gaivotas pairavam sobre as margens inundadas. Poisavam nos pequenos cabeços ainda não cobertos pelas águas, por vezes picavam, à cata não se sabe de quê. E vieram as gralhas, com suas asas negras e seu grasnar.

Aurélio Silveira passou de barco, trazendo notícias que deixaram a minha avó e a minha mãe muito indignadas. Creio que era sobre a prisão de pessoas amigas no Porto e em Lisboa, das que tinham assinado as listas do MUD e participado nas candidaturas da oposição. Nessas alturas, a minha avó dizia sempre a mesma coisa: são uns malandros. E depois acendia uma vela junto da imagem de Nossa Senhora.

Aurélio Silveira estava preocupado. À tarde apareceram Florêncio Tavares e Gonçalo Pena. Ao menos terão que vir de barco, disse ele. Mas ninguém se riu. Voltava de novo a espera, a tensão, o medo.

Dizia-se que era uma das maiores cheias dos últimos anos e temia-se que as neves do Caramulo começassem a derreter. As pessoas de Alma, sobretudo as da Rua da Cheia, tinham uma certa tendência para o exagero, o drama, catastrofismo. Não se contentavam com cheias vulgares, queriam grandes tragédias, inundações nunca vistas. Quem as ouvisse diria que estavam à espera do irremediável. Hoje sei que era uma forma de teatro, o gosto da representação. Sempre que algo acontecia o povo entrava em cena e começava a representar. Fosse a cheia ou fosse o fogo, que era, em Alma, um espectáculo digno de se ver. Nesse tempo ainda as sirenes dos bombeiros não tinham sido instaladas, eram os sinos que tocavam a fogo, como se dizia.

As pessoas saíam de casa e começavam a correr. Está a tocar a fogo, há fogo, onde é o fogo? E lá iam. Nem que fosse em Romarim ou do outro lado do Rio, em Além da Ponte, ou nas aldeias em redor, Cerejeira de Cima, Cerejeira de Baixo, Alminhas, Olival, Urzeira, Várzea. Corriam os bombeiros para o quartel aos gritos, abotoando pelo caminho o fato-macaco. E depois o carro, vermelho berrante, parecia saído da boca do inferno, os bombeiros de capacete doirado encavalitados de um lado e do outro. Como não ficar excitado? O povo perdia a cabeça. Os sinos a badalar, as mulheres aos gritos, o carro dos bombeiros a toda a velocidade e a tocar a campainha. Não era possível resistir. Ia tudo atrás ver o fogo, o desenrolar das mangueiras, os machados, as ordens do Franquelim, que era guarda-redes suplente do Beira-Rio. Exasperava-se com os ajudantes improvisados, que só atrapalhavam. Como o Lince, por exemplo, que por vezes trepava a uma janela sem escada nem nada, só para se mostrar.

Dia de fogo era dia de grande representação colectiva. O importante era ver, intervir, estar lá, gozar o fogo, o acre prazer das dores alheias, consolar as vítimas, chorar com elas. Para depois cada um ser herói segundo o seu modo de contar.

Mariana, minha mãe, era um pouco assim, almense de raiz, também ela com tendência para o excesso e para o trágico. Por isso afirmava quase eufórica que se as neves do Caramulo derretessem a baixa de Alma ficaria completamente submersa. Maria, minha irmã, perguntava o que é que isso queria dizer. Afogada, respondia, dramática, a minha mãe, enquanto a minha irmã desatava a chorar cheia de medo.

Eu atirava barquinhos de papel para as águas da cheia. Aproveitava as idas e vindas do barco para dar uns passeios. Daquela vez a água quase tinha chegado à rua de cima, a Rua Seca. Ainda quis acompanhar Gonçalo Pena que foi de bateira e espingarda até aos campos, mas a minha mãe não deixou porque a corrente era forte e perigosa. Além de que, subitamente, podia vir a enxurrada do degelo.

Ouviam-se os tiros. Talvez fosse às narcejas, espavoridas, sem saber onde poisar. Mas Gonçalo Pena era homem para atirar a tudo, até às gralhas e às gaivotas. Meu pai andava por fora. Eu tive pena que ele não estivesse ali, para ir com ele até àquela espécie de mar onde tudo podia acontecer, não era a primeira vez que se tinham caçado patos e pescado grandes peixes transviados. Assim tinha de quedar-me pela varanda, quando muito podia dar uma volta de barco e ouvir notícias dos que conseguiam chegar ao rio e suas margens inundadas. Cheirava a laranjas, lama, lodo, galinhas mortas.

Era um cheiro amargo e doce, cheiro de cheia. Já uma vez tinham entrado enguias para o jardim da casa. Eu tinha medo das cobras que passavam nas águas a rabiar. As criadas, para me assustarem, diziam que tinham visto uma na adega. Nunca se sabia o que a cheia podia trazer. Creio que alguns esperavam um milagre, quem sabe se um cofre cheio de libras de oiro. Outros, mais mórbidos, não desesperavam de ver um cadáver a boiar na rua, como, segundo se contava, há muitos anos tinha acontecido. A minha irmã Maria esperava tudo, ninguém conseguia arrancá-la da varanda. Havia algo de mágico na cheia, ela quebrava a rotina e trazia a surpresa, a aventura, o inesperado. O rio entrava pela casa e era como se subisse pelo sangue. À noite ninguém saía, ouvia-se apenas o rumor das águas. Falava-se de casa para casa, de quintal para quintal, de janela para janela. Parece que já está a baixar, dizia o Euristides, marido da Rosa, especialista de leitões assados no forno do pão. Os boatos vinham da rua, davam a volta à vila, corriam as aldeias. Ora era um bombeiro afogado, ora uma rapariga desaparecida, ora um casal de velhos em cima do telhado de uma casa perto de Romarim. As criadas ficavam histéricas e falavam muito alto, Adelaide andava aos ais e eu desconfiava que ela esperava uma aberta para se escapulir até à casa de Gonçalo Pena.

À noite, na cozinha, contavam-se histórias de arrepiar: bruxas, afogados, sinos que tocavam debaixo de água, mulheres atiradas pelos maridos para o fundo dos poços, cobras que entravam pela boca das crianças para lhes sugar o leite. Havia dois poços no jardim da casa e eu adormecia a pensar no que poderia haver lá no fundo. Perguntava-me, por exemplo, se os peixes e as rãs que para lá lançávamos não se teriam transformado em monstros cegos e cheios de peçonha, capazes de aproveitarem a cheia para se escaparem pelo rio subterrâneo que, segundo se dizia, corria por debaixo da casa. Por vezes as criadas cantavam canções de embalar, romances, cantigas com uma toada alegre e triste e versos que ficavam no ouvido. Elas cantavam e puxavam-me para elas, encostavam-me ao peito e eu gostava do calor daqueles corpos que estremeciam apertados ao meu, enquanto as águas circulavam pela rua, pela adega, pelo jardim.

Na manhã seguinte Aurélio Silveira passou de novo, de bateira e botas altas, apressado, como sempre: Olá gente. Dizia o que tinha a dizer e lá ia para Romarim ou Urzeira, tratar dos doentes. Tinha havido mais prisões, esperava-se que a seguir fosse a Comissão Distrital de Aveiro, quer dizer, entre outros, ele próprio, Avó Beatriz, Gonçalo Pena, Florêncio Tavares, Dr. Alfredo.

Só para o fim da tarde as águas começaram a descer. Adelaide tinha passado a noite fora, em casa, dizia ela, na cama de Gonçalo Pena, sabia eu, sabia, aliás, toda a gente.

Já se começava a ver o buxo dos canteiros, já a lama a pouco e pouco aparecia, já as mulheres passavam de novo a pé, de saias arregaçadas. As águas do rio tinham baixado e já se viam nos pilares da ponte as marcas de cheias anteriores. Apesar dos negros vaticínios e dos apetites de catástrofe de minha mãe e alguns vizinhos, as neves do Caramulo não tinham derretido. Alma, uma vez mais, sobrevivera.

 

As meninas eram preparadas para a procriação e a submissão doméstica, a casa, o maridinho, os filhos, as fraldas, as meias a remendar, a agulha e o dedal, o ponto cruz, à mistura com novenas, rosários, o missal, o véu, a água benta. Era o modelo oficial de mulher portuguesa, temperado com Filipa de Vilhena a armar os filhos cavaleiros. Na escola, em casa, no catecismo. Talvez por isso a Igreja fosse o local onde começavam os namoros. Trocavam-se olharzinhos, aprendia-se a duplicidade da devoção e do bater de cílios. Pensava-se no casamento, no vestido de noiva, creio que, sobretudo, na noite de núpcias, na desvirginação e no sangue sobre a brancura. O nosso ideal estava nas meninas de cabeça coberta pelo véu, curvadas sobre o missal, olhos lânguidos e mãos postas. Víamo-las já a obedecer, a servir o jantar, a varrer o chão e a levantar, submissamente, as saias. E depois a ficarem de esperanças, palavra que só de ouvi-la era já uma emoção. O desejo supunha a tentação de palavras carregadas de sentidos ocultos, de partes do corpo escondidas por muitas saias, muitos véus, muitos tabus. O nosso amor nascia da proibição e do pecado e também da confissão e do remorso.

Ainda hoje eu penso nelas de mãos postas e cabeça baixa, as meninas que vinham da escola para o catecismo e brincavam connosco às casinhas, aos cavalinhos, aos ninhos e outros inhos mais. Estavam a ser educadas para o recato, a domesticidade e a putice, mas só em casa, só na cama e só sem ninguém saber. Para serem possuídas e para refrearem a tentação dos maridos e dos filhos para a iniciativa, a ousadia e a desobediência.

Não assim Mariana, minha mãe. Naquele tempo de fadas do lar, ela ansiava pela cidade, o cosmopolitismo, o risco, a intervenção. Onde outras ensinavam a subserviência, o respeitinho e o cuidadinho, senão mesmo a denúncia, ela incitava ao desacordo e à ruptura. E como não tinha espaço, nem cidade, nem batalhas, vivia em guerra consigo mesma. Ninguém percebia certas zangas de minha mãe. Eu creio que era com a rotina, o dia a dia, o rame rame. Por isso é que de quando em quando ela tinha de virar a casa do avesso, pôr tudo fora do lugar, bater nos tapetes, arear, esfregar, desarrumar. Era a sua forma de revolta e subversão. No meio do conformismo e da submissão geral, a minha mãe era uma espécie de Zorro feminino da revolta e da impaciência. O próprio espiritismo não era senão uma forma de heresia pessoal.

Beatriz, minha avó, era uma patrícia. O seu puritanismo era diferente, nada tinha a ver com dissimulação ou duplicidade, era antes uma rigidez, uma severidade do ser e do comportamento.

Tais foram os modelos de mulher que germinaram conflitualmente dentro de mim: meninas de olhos lânguidos, prontas para a submissão e a perversidade, uma mãe que era um apelo à guerra e um incitamento à desobediência, uma avó que para mim era tolerante e cúmplice e para os outros distante e altiva. E ainda a prima Lúcia, escondida na carteira do meu pai, que para mim personificaria sempre a tentação do amor ausente.

E as criadas, essas grandes iniciadoras. Antes de mais, Virgolina. Às vezes vinha para a casa da lenha comigo, com o Nicolau, o Desidério, que era de Romarim e parecia francês de tão loiro, o Júlio, talvez o melhor da classe. Sentávamo-nos e ela punha-se à nossa frente, de saia arregaçada, a coisa à mostra. Pirilaus de fora, ordenava ela. E organizava uma espécie de campeonato: quem se masturbasse duas vezes seguidas podia tocar-lhe. Ganhava quase sempre o Desidério, mas eu creio que ele fazia batota.

Virgolina não tinha a noção do pecado e por isso não sentia qualquer remorso. Tudo o que ela fazia estava tocado pela inocência. Foi uma boa professora. Ensinou-nos que o corpo não é proibido e que o melhor não é o prazer que se tem, é o prazer que se dá. Santa Virgolina, apetece-me dizer.

Não sei se sem ela eu teria escapado a uma das futuras reprodutoras que me faziam olhinhos durante a missa.

Mas talvez ninguém me tenha marcado tanto como a Tia Hermengarda, que foi a minha primeira cúmplice das aventuras do espírito. Morava em Alba, no coração da Bairrada, em frente do jardim da Vila. A casa ficava separada da rua por um gradeamento onde se enroscavam heras e flores de que me não lembra o nome, pareciam sinos essas flores azuis com um pequeno badalo tangido pela brisa nas tardes de Maio. Havia um jardim a quase toda a volta e no meio um pinheiro manso, velho como a casa, talvez mais velho ainda, com raízes grossas onde se tropeçava e que estavam debaixo da casa, dentro dela e nas próprias palavras da Tia que falava da árvore como de uma pessoa.

Depois da cheia parti para Alba com a minha avó. O primo Frederico, que era vizinho da Tia Hermengarda, mandou-nos buscar de carro de cavalos. Eram duas horas de Alma a Alba. Eu sentava-me ao lado de Zé Diogo, o cocheiro, que trazia uma prisca apagada no lábio inferior. Resmungava constantemente e ensinava-me a segurar as rédeas e a conduzir o Garrano e o Garrido, que tinha tendência a desviar-se para a direita. Eu gostava do cheiro dos cavalos, da música do trote, do estalido breve, seco, que Zé Diogo fazia com o pingalim, sem lhes tocar. Era uma arte que ele sabia, a das rédeas, do pingalim e dos cavalos, uma arte como outras que havia então e que pouco a pouco se perderam.

Ali estava, pois, em Alba, onde se viam muitos judeus ricos fugidos do nazismo, polacos, húngaros, alemães, pintores, músicos, médicos, alguns aristocratas.

Tia Hermengarda costumava sentar-se num pequeno terraço entre a casa e o jardim. Chamava-me para junto dela e lia-me em voz alta passagens de Cyrano de Bergerac. Nem sempre percebia muito bem, mas sentia uma grande compaixão por aquele poeta de nariz grande e revoltava-me que Roxane amasse outro através das palavras dele. Contava-me, também, a batalha de Monsanto, em que frente a frente tinham estado seu filho Bernardo e seu irmão Geraldo Pais, meu avô. Bernardo desempenhava uma qualquer função oficial nas colónias e andava sempre longe, pela Índia, por África, por Macau. Bateu-se contra a República em Monsanto.

Ferido numa perna, foi um dos últimos a retirar.

Não sei que partido ela tomou, se o do filho, se o do irmão, Geraldo Pais. Creio que o do filho, não tanto por ser monárquica, mas pela paixão das causas impossíveis e das batalhas perdidas. Como a de Alcácer-Quibir. Ela dizia a palavra e eu ouvia o galope dos cavalos, as fanfarras, os gritos, sobretudo aquele Ter Ter que tinha sido a nossa perdição. Depois via os corpos caídos, os pendões destroçados, os cavalos correndo sem cavaleiros e sem sentido. Alcácer-Quibir. E havia um som plangente, um eco de guitarra caída no areal. Por vezes o rei confundia-se dentro de mim com o Romeiro que apontava um retrato e dizia: Ninguém.

Tia Hermengarda era uma devota de Almeida Garrett. Lia-me poemas de Folhas Caídas, recitava a Barca Bela e alguns dos rimances do Romanceiro Português coligido pelo poeta. Por vezes líamos a meias o Frei Luis de Sousa. Para mim a parte decisiva era precisamente aquela em que o velho voltava, estava-se mesmo a ver que era ele, D. João de Portugal, mas ele não o revelava a Telmo já perdido de o saber e quando o aio finalmente lhe perguntava - Quem sois vós - ele apontava o retrato e respondia: Ninguém.

Chorávamos sempre os dois e eu sentia que de certo modo todos nós portugueses éramos um pouco como o velho que voltava de Alcácer-Quibir e ninguém reconhecia. O Romeiro era um certo Portugal, a grandeza passada e perdida, um retrato numa parede, todos nós e ninguém.

Então, quando ficávamos assim, derrotados e nostálgicos, Tia Hermengarda declamava uns versos de António Sardinha: Casa de Pedro-Sem e do Encoberto / Casa que tem tudo e não tem nada / Nem mesmo a cinza sobre o lar deserto.

Mas a revelação da poesia viria com o Só, de António Nobre, de quem meu avô Júlio de Faria tinha sido companheiro em Coimbra. Escrevo, aliás, à luz do candeeiro que alumiou António Nobre na Torre de Anto e que tem gravados os versos em que o poeta fala do meu avô. A Tia lia-me o Só e eu ficava com os versos na cabeça: Ai do Lusíada, coitado / que vem de tão longe, coberto de pó / que não ama, nem é amado. Cheguei a saber o livro quase todo de cor. Mais do que o sentido, era a música, as imagens, as palavras, algo que eu não sabia explicar mas que ficava dentro de mim como um ritmo, incessante, obsessivo. Há temas e ritmos recorrentes que vêm desses primeiros momentos de revelação e encantamento, que nunca mais se apagarão. Alcácer-Quibir, por exemplo: a carga mágica dessa palavra vem da Tia Hermengarda e do modo como ela a dizia. E o meu D. Sebastião é o seu, um D. Sebastião que é mais o Romeiro que o Encoberto do mito e da mistificação. Mais do que o sentido o que ficou foi o sem sentido, o inexplicável, o desaparecido que todos trazemos dentro de nós.

Ficou o sem sentido e ficou a música do relógio de parede que tocava de quarto em quarto de hora.

E o cheiro de alfazema que a Tia espalhava em pequenos sacos pela casa. O tinir das chaves que ela trazia, num grande molho, à cinta, o roçagar das saias que usou sempre compridas, até ao chão, o sabor do manjar branco servido em pequenos suportes de barro, a magia da casa que era inseparável da Tia, do seu olhar, do jeito inconfundível de fixar o chapéu com um alfinete, do modo como lia o Cyrano ou o Só e por vezes ficava um pouco nostálgica a pensar num rei perdido numa batalha num areal distante.

Também ali estão as minhas raízes, que em certos momentos da minha vida eu via como as raízes grossas do pinheiro que se cruzavam por baixo da casa e de certo modo estavam dentro de nós. Ainda hoje me é difícil voltar a Alba: estou sempre a ver a Tia sentada no terraço e a ouvir a música da casa que era como o passar do vento nos ramos altos do pinheiro manso.

 

Quando voltámos, já o rio Alma tinha abandonado as margens e regressado ao leito, embora ainda se vissem restos de lama e sujidade. A rua retomara o seu ritmo e os canários cantavam de novo na oficina de Joaquim Marceneiro. Lourenço de Faria, meu pai, estava outra vez no quarto do fundo, minha irmã convalescia da varicela, Mariana, minha mãe, tinha iniciado outro ciclo de limpezas e arrumações, que abrangiam agora o jardim, a adega, as entradas, a própria casa da lenha. Na Loja, fui dar com Gonçalo Pena a fazer um comício: Não me quilhem com discursos de neutralidade nem me venham dizer que Salazar salvou o País. A neutralidade de Portugal foi uma falsa neutralidade, Salazar obrigou a mocidade e os próprios jogadores de futebol a fazer a saudação fascista e esperou sempre a vitória dos nazis. Agora vai fazer-se com os vencedores e os Aliados vão pôr-nos os cornos mais uma vez.

Eram palavras que me tocavam profundamente. Talvez por ser uma criança e ter vivido tão intensamente a guerra do lado dos Aliados, eu sentia-me ainda mais traído do que os adultos. Nunca mais esse sentimento me abandonaria. Ainda hoje, quando oiço um certo blá-blá sobre a superioridade moral das democracias ocidentais, apetece-me dizer com Gonçalo Pena: Não me quilhem, não me lixem, não me fodam.

Naquele Inverno de 1946, eu andava na quarta classe e ouvia falar de prisões, tinha medo que viessem buscar a minha avó e as democracias ocidentais estavam-se pura e simplesmente borrifando para nós. Borrifando, assim mesmo. Era o que dizia Lourenço de Faria, meu pai, que admirava as monarquias nórdicas e me contava, com lágrimas nos olhos, o episódio magnífico daquele rei da Dinamarca que, no dia em que os alemães obrigaram os judeus a cozer no vestuário uma estrela amarela, saiu para a rua a cavalo ostentando ao peito a estrela de David. Isso, sim, é civismo, dizia o meu pai, emocionado.

Portanto, não me lixem. Eu era uma criança, tinha a idade da inocência e não esqueço, nunca mais esquecerei. Salazar prometera eleições para Novembro, mas a 22 de Outubro de 1945 a polícia política passou a chamar-se PIDE.

É certo que na Escola já não era obrigatório fazer a saudação fascista quando o professor entrava. Mas o resto continuava na mesma.

Por essa altura apareceu nos muros e paredes de Alma uma inscrição que deu que falar:

 

         Salazar = r (a cruz suástica)

 

Antoninho Pena barafustou contra o vermelhóide do primo, os situacionistas acusaram os comunistas e o reviralho. Mas os chefes da oposição estavam intrigados e nem eles próprios sabiam quem tinha sido. Hoje posso dizê-lo: fomos nós, os da quarta classe, Nicolau, Desidério, Júlio, eu próprio, mais uns tantos de que não me recordo, parece que também o Litos, filho do veterinário, que morreu cedo, do coração. Todos eles, aliás, já morreram. Só resto eu. Sim, hoje posso dizer, fomos nós, por vingança contra os Aliados, que estavam a proteger o inimigo de ontem. Gastámos uma data de giz e cal, mas toda a gente ficou a saber que havia, em Alma, quem não se rendesse e não esquecesse.

Disseram-me depois que uma rádio estrangeira tinha dado a notícia, atribuindo o feito aos comunistas. Mas não. Lembro-me perfeitamente: eu escrevia a palavra Salazar, Desidério fazia o sinal = e o Nicolau, que tinha mais jeito para o desenho, traçava a cruz suástica enquanto o diabo esfrega um olho. Não pedimos nenhuma medalha por isso, apenas quero que se saiba. Pelos meus amigos que estão no cemitério, em Alma, onde me apetecia ir agora perfilar-me diante de cada um deles.

Retomando o fio à meada, voltemos à Escola, onde o Professor Lencastre estava cada vez mais exigente. Queria que passássemos todos com distinção o exame da quarta classe e preparava alguns de nós, os poucos destinados ao Liceu, para o exame de admissão. Foi numa dessas aulas suplementares que aconteceu o que talvez fosse inevitável: por causa de uma vírgula mal posta ou de um verbo mal conjugado, já me não lembro bem, Lencastre tentou agarrar Nicolau pelos pés e bater-lhe com a cabeça no chão. Mas quem é que conseguia segurar o Nicolau. À segunda tentativa, já ele lhe tinha ferrado uma dentada na mão, para depois se escapulir e nunca mais voltar. Não houve quem o demovesse. Nem os enxertos de bordoada do pai, nem o choro da mãe, nem as conversas e os apelos dos amigos, sobretudo os de Duarte de Faria, eu próprio, que não queria que ele ficasse pelo caminho. Mas ficou mesmo. Por uma vírgula ou um verbo. Nicolau deixou de se preparar para o exame de admissão ao Liceu e decidiu que iria para a Escola Comercial e Industrial de Alma. Talvez fosse essa no fundo a sua vontade e aquele episódio apenas um pretexto que ele aproveitou. Não sei. Só sei que por uma vírgula, um verbo, um não sei quê de nada, toda a sua vida se alterou.

Entretanto eu já pensava com nostalgia no dia em que teria de deixar Alma para frequentar o Liceu no Porto, em Coimbra ou em Lisboa, ainda não se sabia ao certo lá em casa. Pensava nisso, à noite, quando me deitava e não conseguia conter as lágrimas: adeus rua, rio, Além da Ponte, adeus amigos, Jardim Novo, Jardim Velho, adeus Campo de São Cristóvão e Beira-Rio, adeus Zamora e Armandinho, adeus nora, lavadeiras, Poço do Rio. Adormecia a chorar baixinho, era já uma despedida.

Por essa altura o Júlio começou a andar esquisito. Não ria, não falava, não se interessava pelos jogos, aparecia menos vezes lá em casa. Não sei se seria o mais inteligente, mas era o que sabia mais. Trazia sempre as lições na ponta da língua, não se enganava nas contas nem dava erros no ditado, papagueava a história e a geografia, os rios, as serras, as linhas férreas. Era o melhor aluno, mas o pai trabalhava numa fábrica de ferragens e não tinha meios para o mandar para o Liceu, nem sequer para a Escola Comercial e Industrial. O Professor Lencastre ainda foi falar com ele. Mas nada a fazer, o Júlio estava condenado à oficina. Então perguntei aos meus pais porque é que uns podiam ir para o Liceu, mesmo que fossem burros e outros, como o Júlio, não, apesar de ser o melhor da classe? Responderam-me que a vida era assim. Eu achava que a vida estava mal. Era ainda mais injusto do que uns andarem de sapatos e outros não. Também o Professor Lencastre estava revoltado. Julgo até que ele começou a fazer de propósito para assustar mais uns tantos e obrigá-los a desistir do exame de admissão.

Agarrava-os pelos pés, batia-lhes com a cabeça no chão e perguntava:

Queres ser doutor, pequenino, queres ser doutor? Só se for da mula ruça.

Dizia que valia mais um dedo do Júlio do que as cabeças deles todas juntas. Mas eles não desistiram. E eu nunca mais esqueceria aquela injustiça, que viria a tornar-se numa obsessão e quase numa questão ontológica: seria eu o mesmo se, em vez de ser filho de Lourenço de Faria, fosse filho de um operário de uma fábrica de ferragens?

Quando li, pela primeira vez, as teses de Marx sobre Feuerbach, de quem eu me lembrei foi do Júlio. Mas não adianta saber se é a consciência que determina o ser ou o ser que determina a consciência, nem se o homem, mudando a circunstância, a si mesmo se modifica. O certo é que o Júlio, porque era pobre, não teve acesso ao Liceu nem à Universidade. Ainda perguntei ao meu pai se não podia pagar-lhe os estudos. Lourenço de Faria respondeu que infelizmente não, se fosse noutros tempos sim senhor, mas tudo tinha mudado, nós não éramos ricos e teríamos de fazer sacrifícios para tanto eu como a minha irmã podermos tirar um curso universitário.

Foi uma resposta que me surpreendeu. Só então percebi que o nosso estatuto social estava acima da situação económica e da riqueza. A nossa família era muito antiga, meu pai dizia que descendíamos de um ramo anterior à própria nacionalidade, mas as riquezas tinham-se esfumado. Ainda havia o solar da avó Beatriz, perto de Viseu, a casa de Alma, outra, anterior ao terramoto, em Lisboa. Mas não éramos senão uma família remediada. Nada podíamos fazer pelo Júlio. E os ricos?, perguntava eu. Os ricos de agora não são como nós, respondia o meu pai. Perguntei na Loja. A vida é assim, disseram.

Perguntei ao Padre Aníbal. E deu-me a mesma resposta. Só Aurélio Silveira me respondeu que era preciso lutar contra essa desigualdade.

A caridade, disse, não resolve nada, o que é preciso é uma revolução. Mas eu não percebia o que isso significava. Revolução era uma palavra forte, soava como uma bomba. Eu não via como uma palavra assim podia resolver o problema do Júlio. Andávamos juntos desde a primeira classe, quando ele vinha de chancas e trazia a lousa numa sacola de pano. Mas ele não iria para o liceu. Para mim era mais injusto do que não ter sapatos.

Perguntei ao Joaquim Marceneiro. Ele abanou a cabeça e disse que tinha sido sempre assim.

Perguntei ao Vítor Sapateiro. Ele estava a cortar sola, olhou-me duramente e respondeu: Estudar não é para os pobres. E havia azedume na sua voz, como se estivesse zangado comigo. Tive a impressão de que me considerava culpado. Fiquei magoado com o tom de Vítor Sapateiro e durante muito tempo não voltei à oficina dele, nem sequer para comentar, à segunda-feira, os jogos de Domingo e os relatos de Alfredo Quádrios Raposo, o melhor locutor desportivo de todos os tempos.

Nesse tempo não havia transmissões directas e ao fim das tardes de Domingo ainda não se sabiam os resultados. Era preciso esperar pelo resumo da primeira parte e o relato da segunda, que eu ouvia no RCA, em companhia dos meus amigos que não tinham rádio.

Ouvíamos então a voz inconfundível de Alfredo Quádrios Raposo anunciar os golos do Peyroteu, os tentos do Julinho, as grandes jogadas do Vasques e do Travassos, os cortes de cabeça de Feliciano, os dribles de Mariano Amaro, a recepção de bola com o peito de Francisco Ferreira, capitão do Benfica. E as defesas do Azevedo, do Capela, do Martins, do Barrigana, as intercepções do Guilhar, os remates fulminantes de Araújo. Ou os nomes raros dos jogadores do Sul, como o Abraão e o Grazina, do Olhanense, o Patalino e o Massano, do Elvas. Eram momentos inesquecíveis, sobretudo quando havia jogos entre os grandes. A minha irmã por vezes ia espreitar por detrás do aparelho e nenhum de nós compreendia muito bem como era possível o jogo estar a decorrer nas Salésias, em Alvalade, no Campo Grande ou na Constituição e nós em Alma a ouvir o relato como se estivéssemos a ver.

Seguíamos as palavras, as entoações de voz, as mudanças de ritmo, as pausas. E víamos. Era uma forma de ficção, quase sempre mais verdadeira do que a realidade. Nunca ninguém relatou como Alfredo Quádrios Raposo. Ele era a nossa ligação à capital, ao Estádio, ao jogo. Durante muito tempo ele foi a nossa festa, todos os Domingos, ao fim da tarde.

Os jogadores viviam na nossa imaginação como figuras de lenda. Conhecíamo-los apenas das fotografias dos jornais, da revista Stadium e dos cromos que comprávamos embrulhados em rebuçados para depois colarmos numa caderneta. Mas era na voz de Alfredo Quádrios Raposo que verdadeiramente víamos os jogadores. Entravam em nossa casa, todos os domingos, ao fim da tarde. Vinham na voz daquele locutor de quem nunca vi o rosto nem faço a mínima ideia de como era, se alto ou baixo, se magro, se gordo, se velho, se novo. Era uma voz, um brado na tarde triste, um drible, um centro cruzado, um remate de cabeça, uma defesa para canto, uma recarga, um golo. Primeiro no RCA, depois no Telefunken trazido da Alemanha por Tiago de Faria, meu tio, que o deu a meu pai, juntamente com uma espingarda, a troco de uma edição rara, senão mesmo a primeira, da Arte de Bem Cavalgar a toda a Sela, de D. Duarte.

Também esses velhos aparelhos, quando aqueciam, tinham um cheiro. Eu guardo comigo o cheiro do RCA e do Telefunken nas tardes de domingo, um cheiro inseparável da voz de Alfredo Quádrios Raposo e da imagem de Peyroteu a marcar, com Feliciano à ilharga, mais um golo do Sporting contra o Belenenses, no Estádio das Salésias.

Rostos, vozes, andam aí pelo ar, não se podem ter sumido, devem estar gravados algures, a prova é que estou a vê-los e a ouvi-los, são sete e meia da tarde de um domingo chuvoso na casa da Rua Bartolomeu Dias, mais conhecida pela Rua da Cheia, em Alma, alguém chama Duarte e só agora reparo que estão a chamar por mim, este que conta, eu próprio, Duarte de Faria.

 

Mais tarde contaram-se muitas versões. Ainda hoje se fantasia. Eu lembro-me de um grande reboliço, ainda não eram oito da manhã, Tia Matilde, lavada em lágrimas, abraçada a minha mãe. Tinham levado Aurélio Silveira de madrugada. A notícia espalhou-se pela serra e em algumas povoações os sinos tocaram a rebate. Prenderam o Dr. Aurélio. Era o que se ouvia de boca em boca, de aldeia em aldeia. Veio gente de Aveiro, de Coimbra, de Alba. Gonçalo Pena telefonou para Lisboa e Adelaide não fazia outra coisa senão dizer-lhe que fugisse. Meu pai chegou ao fim da tarde e eu nunca o vi tão indignado como quando minha mãe lhe disse que Aurélio Silveira tinha sido preso. Uma grande agitação reinava em Alma e havia já as mais diversas variações sobre como tinha sido, quantos eram, a que horas, se resistiu, se não. Eu sabia o que Tia Matilde contara: era ainda de noite, os cães começaram a ladrar, foram espreitar e viram um carro que fazia manobras em frente do portão. Pouco depois tocaram a campainha.

Aurélio Silveira percebeu, recusou-se a abrir a porta, pegou no chicote, depois na espingarda, Tia Matilde conseguiu impedir o pior. Mas não que ele viesse à janela desafiá-los, ainda que desarmado. Eram quatro, o condutor e mais três, num Citroen preto de onze cavalos. Como os da Gestapo, em França. Ou abrem a bem ou entramos à força, disseram eles. Aurélio Silveira vestiu-se e foi ele próprio que veio abrir. Eles mostraram a contrafé e disseram-lhe que tinham ordens para o levar. Para onde?, perguntou Tia Matilde. Para o Porto, responderam. E eu pensava: Rua do Heroísmo, onde esteve o Zeca Sucateiro. E já via Aurélio Silveira a ser torturado, de camisa branca ensanguentada, como Errol Flyn no filme sobre a Resistência francesa.

Deixaram-no arranjar uma maleta e passaram revista à casa, apreenderam livros, revistas, papéis. Até o livro de receitas, dizia Tia Matilde, que veio logo a correr para nossa casa.

Portanto, como dizia Gonçalo Pena, não me lixem, não me quilhem, não me ofendam nem me venham com falinhas mansas sobre o Dr. Salazar, o Professor, o presidente do Conselho do regime anterior, como dizem alguns, seraficamente. Eu não esqueço. Ele foi o aliado dos nazis, aterrorizou a minha infância, perseguiu os amigos do meu avô, mandou prender Aurélio Silveira, fez pairar a ameaça sobre a minha própria avó Beatriz Pais, uma senhora. Para além da saudação fascista a que éramos obrigados quando o professor entrava e que até os jogadores de futebol tinham de fazer, perfilados em frente da tribuna, nos estádios. Não me lixem, não me quilhem, o regime anterior foi um regime fascista e Salazar um tirano velhaco e mau. Senão vejamos: por que razão eram levados, de madrugada, homens bons, como Aurélio Silveira, ou que nunca sequer se tinham metido em política, como Zeca Sucateiro?

Por isso os sinos, na serra, tocavam a rebate. E havia cada vez mais gente nas ruas de Alma, eram os pobres que de repente ficavam sem médico e vinham perguntar o que era preciso fazer.

- Vai tudo para o Porto, a gente vai lá e solta-o, diziam os de Urzeira, onde Aurélio Silveira tinha uma quinta. Foram os primeiros a aparecer e não arredavam pé. Em frente da nossa porta, depois na casa de Aurélio Silveira, a dos muros cor de rosa, à beira rio. E era já tanta gente a circular por uma e outra rua, a entrar e sair das duas casas, que Antoninho Pena começou a ficar preocupado. Mandou dizer que já tinha contactado Lisboa e o Porto e que lhe tinham garantido que em breve tudo seria esclarecido. Mas o povo desconfiava, os republicanos não acreditavam e na serra ninguém queria ficar sem o seu médico.

Depois de grande insistência, Gonçalo Pena aceitou passar uns dias em Vilar, na casa do Marquês. Foi o Dr. Felismino quem o levou. E as ruas continuavam cheias de gente. Uns tantos ficaram a fazer companhia a Tia Matilde, outros vieram oferecer protecção a minha avó. Mas Lourenço de Faria, meu pai, zangou-se. Estou cá eu, disse. Não é preciso mais ninguém.

Era tarde, as trindades tinham soado há muito tempo e o vai vem não parava. Eu nunca tinha visto uma coisa assim. Era como se houvesse fogo ou cheia. Ou como no dia em que mataram os rapazes do moleiro. Os filhos de Alma não eram propensos à rotina. Dir-se-ia que estavam sempre à espera do rebate, da notícia, senão mesmo do boato, do acontecimento, ainda que só imaginado. Depois falavam, corriam, entravam e saíam, andavam de um lado para o outro, como se incumbidos de uma missão. Na realidade eram apenas mensageiros da notícia e do rebate, muitas vezes do rebate falso. Cada um contava à sua maneira, acrescentando sempre um pouco mais. Gostava de ter o poder ficcional dos meus conterrâneos de Alma. Instintivamente eles sabiam que só a ficção e a imaginação tornam verdadeira a realidade.

Ouvia-se o murmúrio das conversas nas ruas e o girar da nora que chegava até nós com seu gemido. Era a música de Alma: o rumor da rua, a nora. Quando chegava a Primavera os ralos, os grilos, as rãs. E também os gritos das mulheres que chamavam pelos filhos. Ouvia-se sobretudo o esganiçamento de Clodomira, a lavadeira, que chamava filho da puta ao próprio filho. Ó Justino, anda cá, meu filho da puta. E o Justino, que às vezes estava em minha casa, fazia-se desentendido.

Mas naquele dia só se falava da polícia que tinha vindo do Porto prender o Dr. Aurélio. Dizia-se que Gonçalo Pena andava fugido e que se calhar viriam nessa noite buscar a Senhora D. Beatriz, viúva do Dr. Geraldo Pais. Eu tinha a impressão de estar a ver um filme. O que mais me aborrecia era a gente que sem cessar entrava e saía, alterando os ritmos da casa. Meu pai irritava-se, minha mãe, almense de gema, parecia ligada à corrente, agitadíssima, quase contente por algo ter acontecido. Beatriz Pais, minha avó, mantinha-se distante, como se não fosse nada com ela. Perguntava por Tia Matilde e ordenava que nada lhe faltasse.

Com a noite as pessoas foram dispersando. Deixaram de ouvir-se conversas nas ruas e as vozes das mulheres a chamar pelos filhos. Jantámos tarde, nesse dia. Lembro-me, não sei porquê, de ter comido arroz de berbigão, de que ainda gosto muito. Os amigos começaram a recolher. Florêncio Tavares e Dr. Alfredo, que entretanto tinha aparecido, demoraram-se um pouco mais. Ainda se ouviu a BBC. Meu pai não quis ninguém a vigiar e acabámos por ficar só nós.

Mas eu não conseguia adormecer. Pensava em Aurélio Silveira, fechava os olhos e só via imagens de guerra. Chamei por minha mãe. Ela veio e sentou-se ao pé de mim. Perguntei-lhe se iam bater no Dr. Aurélio. Ela disse que não, que só iam fazer-lhe umas perguntas. Mas nem ela própria acreditava no que dizia. Falou de meu avô Geraldo Pais, da sua amizade de irmão com Aurélio Silveira e de como ambos tinham andado várias vezes fugidos durante as contra-revoluções monárquicas, no tempo da República.

Contou-me que tinha ido com o meu avô visitar o presidente António José de Almeida. E dos bons tempos de Santarém, em que andava a cavalo nas margens do Tejo. Falou durante muito tempo, depois deu-me um beijo e apagou a luz. Mas eu ouvia as vozes lá em baixo e acabei por me levantar e descer. Estavam sentados junto ao fogão da sala de visitas. A minha avó tricotava, meu pai lia, com a espingarda sobre os joelhos. Sentei-me no tapete, à entrada da porta. Ao princípio nem deram por mim. Mas eu espirrei e todos se espantaram com a minha presença. A mãe mandou-me para a cama, mas eu insisti tanto para ficar que a minha avó foi buscar uma manta, embrulhou-me nela e deitou-me no sofá, em frente do fogão. Fiquei acordado durante bastante tempo. Agora também a minha mãe tricotava uma camisola para a minha irmã, meu pai continuava a ler, a lenha crepitava no fogão ornado de azulejos. Havia um calor bom, uma serenidade, como se aquela sala fosse inviolável e aquela paz indestrutível. Ninguém diria que uma ameaça pairava sobre a casa e que eles tinham decidido ficar acordados toda a noite para não serem apanhados desprevenidos.

- Não me verão em robe de chambre, tinha dito a minha avó.

Estava com a gargantilha preta e a jóia de brilhantes. Até o meu pai tinha vestido o bleiser azul.

Eu ouvia o estalar das pinhas e das achas que ardiam depressa, com chamas altas, naquele fogão de magnífica tiragem. Sentia uma grande ternura e gostaria de poder agarrar para sempre a magia daqueles instantes. Olhava ora o meu pai ora a minha avó, ambos muito antigos, com uma forma de coragem que nunca mais encontrei. A minha avó parecia até mais preocupada com a etiqueta, se diria alguma palavra ou não, se devia ou não ter uma maleta preparada com o necessário. Lourenço de Faria, meu pai, dizia com o ar mais natural deste mundo que o primeiro a forçar a porta levava um estoiro.

Eles eram invencíveis, havia dentro deles algo que não se vergaria nunca. Já quase a adormecer senti uma inexplicável tranquilidade. Era talvez a certeza de que a eternidade estava dentro daquela noite e nunca nada a apagaria.

O meu pai virava tranquilamente a página do livro, a minha avó enrolava um novelo de lã que a minha mãe segurava nos dois braços. As chamas reflectiam-se no contador do século XVII, nos retratos a óleo dos meus avós e nas fotografias dos meus tios mortos, Elvira e Pedro. Mas nada, nessa noite, me assustava. Nem a espera, nem a incerteza, nem as sombras que dançavam em torno dos retratos e das fotografias. Embrulhado na manta, aconchegado na quentura do sofá, eu sentia uma grande confiança, quase uma euforia. Apesar da tensão que durante todo o dia tinha reinado em Alma e da excepcionalidade daquela vigilia, sentia-me absolutamente seguro e protegido. Não sabia ainda o que era o irremediável e não concebia sequer que uma qualquer força estranha pudesse perturbar a doce e quente ternura dessa noite. Sentados à volta do fogão, eles eram para mim a única ordem possível no mundo. Olhando Beatriz Pais, minha avó, apetecia-me gritar Viva a República.

Olhando Lourenço de Faria, meu pai, tinha vontade de clamar Real, Real. De certo modo eles eram dois guerreiros de algo que não tinha nome e para mim se confundia com a casa, com Alma e com o que eu então julgava ser a eternidade.

 

Acordei tarde, já na minha cama. Ninguém tinha vindo buscar a minha avó, nada se tinha passado. Mas o povo continuava a descer das aldeias da serra e a concentrar-se em frente à Câmara. Antoninho Pena mandou recado por Amelinha: estava a fazer os possíveis e o impossível para conseguir a libertação de Aurélio Silveira.

- Está borrado de medo, comentou Florêncio Tavares.

- Não me parece, disse, surpreendentemente, a minha avó. - Ele é politiqueiro, mas não é homem para se amedrontar facilmente. O que ele não quer é perder o prestígio. Aí é que está.

Os republicanos e cabecilhas da oposição foram-se juntando ao povo. Ouviram-se os primeiros protestos, os primeiros vivas, os primeiros morras. As tabernas iam-se enchendo e à medida que o tempo passava as bocas ficavam mais soltas. Falava-se em cortar a estrada e ocupar a Câmara.

- Até se podem começar a pendurar alguns nos candeeiros, dizia um de fato e chapéu pretos, pescoço de touro, nariz muito vermelho, a quem chamavam Ferrador.

- A gente vai lá e tira-o, diziam. Todos para o Porto, todos para a Câmara.

Ninguém sabia como, mas era o que gritavam.

Até que Antoninho Pena resolveu mostrar-se. Desceu, imponente, apoiado à bengala com bastão de prata. Fez-se um grande silêncio, o povo recuou um pouco. Então Antoninho Pena falou:

- Amanhã vou ao Porto e quem o tira de lá sou eu.

Não foi preciso dizer mais nada, todos aplaudiram. Ouviram-se vivas ao Senhor Presidente, Antoninho Pena apertava mãos, sossegava as mulheres, fazia festas às crianças, daí a pouco estava na taberna a beber um copo com o Ferrador.

- É tudo uma carneirada, cada um tem o Governo que merece, disse Manuel Tinoco, um tanto despeitado.

- Agora ele não tem outro remédio senão cumprir o prometido, comentou Beatriz Pais, minha avó, quando lhe contaram o que se tinha passado.

Mas Antoninho Pena nem precisou de ir ao Porto. Três dias depois, Aurélio Silveira estava de volta. Veio logo lá a casa e falou longamente com a minha avó. Não sei o que conversaram, só ouvi o que ele disse à saída: Está descansada, não é a nós que eles querem.

Não percebi o que ele quis dizer. E ninguém foi capaz de me explicar.

As serezinas, os verdilhões, os pintassilgos e demais passarada andavam de novo numa grande azáfama, preparando ninhos e ensaiando os seus trinados nupciais. Chilreavam de manhã, no jardim, viam-se em bandos pelos campos. Pela janela aberta da escola, eu ouvia aquele concerto que anunciava a Primavera. Sobretudo as serezinas, com o seu gorjeio estridente, que parecia uma saudação ao sol. Cantavam por Romarim e Cerejeira de Cima, vinham de Urzeira até Alminhas, poisavam nos ramos altos do carvalho ao lado da Igreja. Era a música de Março e Abril, com o contraponto dos melros, dos piscos, das toutinegras e dos rouxinóis ao anoitecer. Eu ouvia as serezinas e apetecia-me sair, correr pelos campos, sentir o cheiro forte das madressilvas por entre o zumbido das libelinhas e o rumorejar das águas do Rio Alma.

Era o tempo em que nos juntávamos no Cortiço, junto a um poço, no meio do campo, para o cigarro proibido, Definitivos ou Três Vintes, anedotas, histórias escabrosas de criadas, de primas, de costureiras, de pernas e de coisas que se tinham visto, gritinhos e gemidos que se tinham ouvido, enquanto os sexos inchavam e doíam, estimulados pela palavra, o palavrão, a imaginação e o mistério.

Quanto mais escondido mais apetecido. Pensava-se em coxas, coxinhas, dizia-se e era quase uma dor. Então contavam-se as proezas. Fulano tinha metido a mão debaixo das saias de fulana, durante a sessão da tarde de domingo, na última fila da plateia. Outro estivera de mãos dadas com sicrana. Outro, ainda, sentira uma mão desabotoar-lhe aos poucos a braguilha. E os sexos inchavam e doíam, no corpo e na cabeça. Sobretudo quando o Desidério contava que tinha visto os panos manchados de sangue da irmã. Falava-se de noites de núpcias, de virgindade, de tirar os três. Ninguém ao certo sabia o que era. Sabia-se que lhes doía e que sangrava. Era um sinal de posse. Por vezes os mais velhos descreviam com demorado comprazimento.

Elas tinham que ser virgens, tinham que sofrer e tinham que sangrar. Era esse o rito, o mito e o prazer. Algo como um sacrifício sobre a cama transformada em altar. Prazer do homem, prazer do macho. Posse e sangue. Crucificar as virgens, tirar-lhes os três. Força na verga é o que elas querem, diziam os mais velhos.

Mas nós tínhamos aprendido com Virgolina que elas também podiam gostar de outras coisas, de outra maneira. O sexo era um mistério que doía intensamente, uma dor misturada com prazer, quando se pensava em coxas e coxinhas, debaixo de saias onde se escondiam os três, o sangue e o pecado.

Às vezes eu ainda pensava em Maria do Ó. Via-a sempre de noiva, com grandes véus. Creio que a confundia com imagens de santas. O seu rosto ia-se esfumando e eu já só me lembrava do azul dos olhos. Por onde andaria ela? Ficaria o nome, o azul, um cheiro a incenso, um véu perdido.

Às vezes ainda eles me atezanavam: a Maria do Ó fazia olhinhos ao Duarte.

Mas quando se falava em coxas, coxinhas, conas e coninhas, eu nunca pensava nela. Éramos educados a separar amor e sexo. Havia as que eram para casar. E havia as outras. Havia a Igreja, o altar, o véu de noiva, o sacramento. E havia a casa da lenha, Virgolina, o pinhal, as putas, a geraldina.

No Cortiço tudo se misturava. Os mais velhos falavam de virgindade, dos três, de como é que tinha de se fazer. Então os véus rasgavam-se, as noivas confundiam-se com as putas e nós não víamos senão as coxinhas abertas, a sangrar.

Cantavam as serezinas, os pintassilgos pousavam em bandos no azevém, os verdilhões lançavam os seus apelos enrolados. Havia no campo uma agitação de zangãos, besouros, borboletas. A Primavera rompia em Alma e entrava-nos no sangue com seus pólens e sua música. Era bom abrir as janelas da sala de jantar, deixar entrar o cheiro das rosas do jardim, a doçura da brisa e do crepúsculo. E ouvir o melro a quem eu assobiava e que tentava imitar o assobio. Era bom e eu não sabia que nunca mais se repetiria aquele acordo com a casa, o campo, o rio, os cheiros, os sons e os ritmos do tempo que devagar corria em Alma.

Entretanto, Gonçalo Pena tinha regressado. No princípio de Maio jantou connosco. Entregou à minha mãe um embrulho que ela foi guardar no sótão.

Falou muito, mas eu percebi que ele estava triste.

Pouco depois do jantar apareceu Adelaide, vestida de preto, um xaile de seda pelos ombros. Era ainda uma mulher vistosa, com uma certa majestade. Subitamente, sem mais nem quê, começou a chorar. Gonçalo Pena ficou embatucado e o meu pai tentou disfarçar o embaraço. Percebi que qualquer coisa estava para acontecer e que todos já sabiam o que era.

Gonçalo Pena e meu pai beberam conhaque e fumaram charutos. Lourenço de Faria tinha uma grande dificuldade em ocultar os sentimentos, os olhos traíam-no sempre, ou porque riam sem ele querer, ou porque ficavam húmidos quando estava triste. Reparei que ele olhava para o amigo e fazia o gesto característico de limpar o canto do olho com as costas da mão. Compreendi então que era um jantar de despedida. E não me contive.

- Para onde é que vai?

Gonçalo Pena olhou para mim com um misto de surpresa e afecto.

- És um rapaz esperto, disse.

Então falaram sem rodeios. Gonçalo Pena sabia que queriam prendê-lo e não estava disposto a deixar-se apanhar. Partiria nessa mesma noite.

- Isto ainda está para durar, disse o meu pai. Ganharam um novo fôlego e vocês não têm apoios lá fora.

O revolucionário ficou pensativo.

- Dure o que durar. Tu correste estafetas e sabes como é: alguém tem que agarrar o testemunho e passá-lo a outro corredor.

Foi uma frase que nunca esqueci. Repeti-a muitas vezes a mim mesmo, a companheiros de jornada, aos meus próprios filhos.

À saída, ele disse-me: Não vais ter outro remédio senão entrar nesta estafeta.

Estou a vê-lo, com o seu metro e noventa, a caminhar ligeiramente curvado pela rua fora. E sempre que o recordo assim, naquela noite de partida, eu vejo um corredor. Hoje sei que ao despedir-se de mim com um aperto de mão ele estava a passar-me o testemunho. De certo modo ele era também um campeão. Ele e meu pai, os dois maiores que conheci, antes de Carlos Lopes arrancar para a vitória na Maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. E não é por acaso que falo do grande campeão português. Quem eu via na sua passada incomparável era meu pai Lourenço de Faria e seu amigo Gonçalo Pena. Ainda hoje não consigo reter as lágrimas quando revejo essa corrida. É talvez uma certa imagem de Portugal e dos seus grandes corredores solitários.

 

O exame da quarta classe era uma espécie de sagração. Fato novo, mães atrás. A minha, muito nervosa, encarando a distinção como uma questão de vida ou de morte. Lencastre também. Passeava no Largo, agitado, fumando cigarro sobre cigarro.

Mas só o Júlio ficou distinto. Nem eu nem nenhum dos outros em que Lencastre apostava tudo. Foi talvez um dos maiores desgostos de minha mãe.

Creio que ela se sentiu pessoalmente atingida, como se lhe tivessem feito uma afronta. Não me ralhou, voltou-se contra os examinadores. Para grande surpresa nossa, também o Professor Lencastre nos absolveu. Eu nunca o tinha visto assim: vermelho, cabelo eriçado, vociferando contra aquela corja de incompetentes e invejosos que tinham vindo à Escola de Alma unicamente para ajustar contas com ele. Pouco faltou para que minha mãe e ele provocassem uma sublevação no átrio.

A verdade, porém, é que só o Júlio tinha feito um exame completamente limpo: nem um erro, nem uma hesitação. Eu tinha-me enganado nos rios, Nicolau na gramática, outros nas contas ou no ditado. Mas Lencastre considerava-se vítima de perseguição e a sua vontade era agarrar os examinadores pelos pés e espetar-lhes os cornos (foi assim mesmo que ele disse) no chão.

A falta da palavra distinto, escrita a vermelho, adiante do meu nome, foi sofrida pela minha mãe como uma bofetada. Nem sequer podia admitir que o erro tinha sido meu, porque isso seria reconhecer a sua própria derrota. Mariana, minha mãe, não era pessoa para confessar fracassos, nem para perder, nem para dar a outra face. Durante muitos dias não falou noutra coisa, para grande irritação de meu pai, que se estava mais ou menos nas tintas para a distinção, o importante era que eu terminasse a escola primária e passasse no exame de admissão ao Liceu, como aconteceu, umas semanas mais tarde, em Aveiro.

Não foi grande alegria para mim. Sabia que terminava ali um ciclo da minha vida e que teria de deixar Alma, os amigos, o rio, a casa. Olhava as pessoas, a rua, os campos e tinha a sensação de já estar a dizer adeus. Os próprios jogos sabiam já a despedida.

Lá em casa, a minha mãe, contra a opinião do meu pai, começou a decidir-se por Lisboa. Para mim era mais estranha e mais longe do que a Europa a que me sentia ligado pela BBC, pela guerra, pelos filmes e, sobretudo, pelo mapa que Florêncio Tavares mantinha na parede da Loja.

Uma outra guerra tinha começado na China.

Mas o entusiasmo já não era o mesmo. Só Aurélio Silveira a seguia com verdadeiro interesse. Continuava a tocar a Marselhesa e a Polonaise como quem se prepara para uma barricada. Escrevia os editoriais, Tia Matilde organizava a distribuição do jornal.

Para todos eu olhava agora de outro modo. Começava a despedir-me e a guardar dentro de mim os rostos, os gestos, a fala, os tiques daquelas pessoas que eram o mundo fantástico da minha infância.

Adelaide, que suspirava cada vez mais alto e continuava a ler as cartas e a ter visões em que Gonçalo Pena aparecia e desaparecia.

Etelvininha, a quem o meu pai, vencendo um certo receio, perguntou porque não batia à máquina as mensagens do além.

Olhava agora cada canto da casa como se fosse pela primeira vez. Os móveis, as cadeiras, as pratas, a luz e a sombra de certos ângulos, a certas horas, certos ruídos, o estalar da madeira, o bicho roedor do tempo que de noite se ouvia em toda a casa. As rosas do jardim, os canteiros, o buxo, a ameixieira que tinha a minha idade. A casa da lenha, de tanta sugestão e descoberta. Eu abria a janela da sala de jantar, olhava o jardim à hora do crepúsculo e sentia o rumor da casa, as suas raízes e a sua perenidade. Estavam dentro de mim, eram a minha própria respiração. Como deixar a casa, o jardim, a rua, os amigos? Ouvia o assobiar de Nicolau e não conseguia imaginar-me numa cidade desconhecida sem um amigo que passasse na rua a chamar por mim.

A minha vida estava em Alma. Ali tinha aprendido tudo: a fala, a escrita, os jogos, a caça, os olhos azuis de Maria do Ó, as pernas abertas e as grossas coxas de Virgolina, o Cortiço, o rio, o Largo, Além da Ponte com seu cheiro de fogueiras, carroças e vagabundagem. E o Campo de São Cristóvão, o Beira-Rio, Manuel Tinoco, Zeca Sucateiro, Armandinho Alfaiate, Neca Pereira a sacudir os tomates e Zamora a despir a camisola e a correr pelo campo fora. Gonçalo Pena, com seu nariz adunco e seu beiço caído: por onde andaria ele?

Adelaide deitava cartas, mas as cartas não respondiam.

Os velhos republicanos apareciam agora menos vezes. Mas de quando em quando ainda havia reuniões, com Beatriz Pais, minha avó, a presidir.

Eu olhava os quadros na parede e a tia morta que às vezes sorria de dentro do retrato. Nesse Verão ainda me banhei nas águas do Alma. E foi então, uma tarde, no Poço do Rio. Eu ainda nadava mal e tinha atravessado, pela parte baixa, para o outro lado. Caía já a tarde quando o Lince, da margem direita, me veio chamar. Comecei a nadar um pouco mais abaixo, quase junto ao Poço, ainda hoje não sei porquê, talvez por uma irreprimível tentação. De repente quis pôr-me em pé e não consegui, comecei a esbracejar e a engolir água, distinguia vagamente o Lince, tinha até a impressão de que o sacana estava a rir-se, sem compreender. Eu batia na água desesperadamente e foi então, não sei se pelo sol que se reflectia no rio e me cegava, se pela aflição ou por uma espécie de euforia, foi então que me senti como que empurrado e já em pé, ao olhar para trás, eu vi ainda, não sei se um reflexo, ou se, ia jurar que sim, um adejar de brancos véus.

Não disse nada a ninguém. Nem sequer contei que tinha estado prestes a afogar-me. Mas ainda hoje estou convencido que fui salvo por mãos que, debaixo de água, me empurraram, Quem sabe se não foram as dela, as da noiva afogada, que de quando em quando aparecia a boiar no Poço do Rio?

Parti de camioneta para Lisboa, já no fim de Setembro. Não sei se a manhã estava cinzenta e triste ou se foi assim que ela se gravou na minha memória. Como saber o que é e o que não é, o que se inventa e acrescenta e o que se corta e encurta?

Senti um aperto na garganta ao passar a ponte. Olhei o rio, a nora, os salgueiros, os campos. Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia mãe.

 

                                                                                Manuel Alegre 

 

                      

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