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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMARGA HUMILHAÇÃO / Corin Tellado
AMARGA HUMILHAÇÃO / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

O tímido e gentil médico Pedro Olaizola tem seu coração despedaçado pela cruel Yousi Sarda, a garota rica e mimada por quem se apaixonara e que aceitara seu pedido de casamento apenas para poder ridiculariza-lo em publico e divertir-se com suas amigas tão fúteis quanto ela. Cinco anos depois ele está de volta, rico e famoso, para o acerto de contas.

 

 

 

 

                     CINCO ANOS ANTES

Berta o contemplou com tristeza. Não era a primeira vez que o via naquele estado. Naquela noi­te, seu coração sofria mais do que nunca; só então compreendeu que a alma de Pedro se entregara toda àquele amor. Inúmeras vezes o vira chegar devagar, olhar ausente e ríctus amargo na boca. Desta vez, foi diferente. Ele, sempre tão calado, tão metido con­sigo mesmo, avesso a que alguém participasse de sua dor, vinha com uma expressão de desespero nos olhos. Trazia uma ruga profunda na testa e sua atitude de­nunciava a derrota sofrida.

— Pedro, eu daria tudo para...

Não terminou a frase. A figura do irmão, de pé diante dela, se erguia rígida, com as mãos crispadas e um brilho estranho nas pupilas.

Era um homem alto e forte. Extremamente ele­gante. Possuía os olhos mais límpidos do mundo. Eram de cor cinza, de expressão enigmática e pro­funda, tinham um quê de doçura e, quem sabe, de timidez. Os cabelos negros e brilhantes emoldura­vam um rosto enérgico, de feições acentuadas. Era uma face viril. A fronte era larga, com entradas pronunciadas. Via-se que era um homem dedicado

aos estudos. Nos livros aprendera muito, mas o desen­canto lhe amargurava a vida. Toda a sua ciência pouco lhe servira para lograr a felicidade ao lado da ingrata. "Lamento decepcioná-lo, Pedro. Você estudou demais. Para que, afinal? Esqueceu-se de sua condição de ser humano e enfurnou-se nos livros. Não é com leituras que se conquista uma mulher igual a mim".

Pedro crispou as mãos, relembrando as frases cruéis. Berta tinha o coração em frangalhos. Ele era tão bom! Criatura leal e carinhosa que nunca admi­tira a possibilidade de vir a sofrer por causa de outrem.

— Não se aflija, Berta — deu uma risadinha seca. — Tudo está perdido. Valho tão pouca coisa!

Falava com os dentes cerrados. Nas pupilas luzia a cólera mal contida.

— Como pode dizer uma coisa dessas, Pedro? Você, um homem que dedicou o melhor de sua vida aos livros, uma criatura que não fez outra coisa senão estudar, tudo para o bem da Humanidade.

Pedro abanou a cabeça e riu alto. Berta estava cada vez mais desolada.

— O amor não quer nada com os inteligentes. Quanto mais ignorante, melhor. Esta é a opinião de Yousi.

—    Yousi é uma ingrata.

— Yousi é uma mulher bonita — falou baixinho. — Uma mulher muito bonita que odeio, tal a forca do meu amor.

À expressão cie desespero sucedeu uma de serenidade. Berta sentiu-se mal. O irmão prosseguiu:

— Algum dia, Yousi vai lembrar-se desta noite, e a recordação será terrível para ela.

Sacudiu a cinza do cigarro e, com uma das mãos, acariciou o queixo de Berta.

— Não deve se preocupar, minha irmã. Afinal, é a primeira vez que me apaixono. Péssimo resulta­do. Vou me converter em um solteirão taciturno, ex­celente tio para seus filhos.

— Não diga isso; é muito jovem. Existem outras mulheres. Vai se apaixonar de novo e Yousi passará como urna ilusão fugaz.

— Como pode dizer uma coisa dessas com tanta segurança? Vamos, querida, seja sincera: Acredita seu irmão capaz de pensar em outra mulher!

Berta baixou os olhos. Deu meia volta, Ela o conhecia bem. Não ignorava a firmeza de sentimentos do mano. Sentiu um medo espantoso. As reações de Pedro demoravam a surgir, mas eram terríveis. Te­meu por Yousi e temeu pelo irmão. Ele nunca mais voltaria a ser o mesmo.

— Obrigado pelo seu silêncio, Berta. Não vou me esquecer nunca de sua compreensão. É quanto

basta, Farei com que Yousi Sardá sempre se lembre de mim. Quanto a mim, vou tentar esquecê-la, ain­da que para tanto transcorram dez anos,

— Oh, Pedro, se você conseguisse esquecer!

— Esquecerei! Amo e odeio com a mesma inten­sidade e, tenho a certeza de que algum dia aconte­cerá o mesmo com Yousi. Vou empreender uma lon­ga viagem, Berta. Talvez passe a residir no estran­geiro. Vou exercer minha profissão de médico em qualquer capital.

Berta o fitou com olhos súplices. Era uma se­nhora loura, de uns trinta anos. Tinha algo em co­mum com o irmão, apesar de seus olhos serem azuis, grandes, diáfanos e puros. Era de pequena estatura. Muito delicada e feminina. Estendeu as mãos e aper­tou, angustiada, o braço musculoso do irmão.

— Pedro, você falou em residir no estrangeiro, porque? Logo agora que seu nome se projeta no mun­do da ciência! Meu Deus, parece que enlouqueceu! Não sabe o que vai fazer. Como pode cortar cerce uma carreira tão brilhante e promissora. Está que­rendo destruir seu coração e sua mente.

Pedro gargalhou demasiado forte. Não podia es­tar sendo sincero na sua expansão.

— Não se aflija, Berta. Minha carreira perdeu o objetivo. Quanto a meu coração, já não existe. Adormeceu. E minha mente está quietinha. Algum dia, volto.

—    Algum dia? Quando?

— Quando? — e encolheu os ombros. — Quan­do deixar de ser um homem tímido.

Berta ficara de boca aberta. Dissera tímido, sim, devia ser aquele o defeito que a moderna e atirada Yousi lhe lançara em rosto. De fato, Pedro sempre fora esquivo com as mulheres, não obstante ser um mundano consumado. Ela sempre o vira galante, atencioso com os mulheres belas. Porém, faltava-lhe alguma coisa. Bem verdade, o irmão não era um doidivanas, era um homem sério, até sisudo. Não se podia atribuir àquela faceta de seu caráter a timidez.

— Você não é tímido — falou com convicção. — É um homem de bem, de sadia moral. Isto não é um defeito, é uma qualidade. Pena que Yousi não tenha sabido apreciá-lo. É uma moça muito jovem, foi apresentada à sociedade há apenas dois meses. É rica demais, sua família pertence à melhor aristocracia do país. Vive rodeada de admiradores e é natural que se julgue única no mundo. Tem a cabeça cheia de ilusões que desaparecerão com o passar dos anos. Aos dezoito, somos assim.

Pedro olhou para a irmã com carinho. Acariciou- lhe a face e falou com meiguice:

— Berta você nunca foi frívola. Sempre se mos­trou uma pessoa sensata. E, entretanto, não lhe fal­tou beleza, encanto e sedução. Talvez até tenha sido mais bela e requestada do que Yousi. Também sem­pre foi dona de considerável fortuna. O demônio da vaidade nunca a cegou. Conheceu Rafael e casou-se com ele, loucamente apaixonada. Foi um amor franco, sincero, condizente com sua alma pura. Yousi não sabe amar porque não tem coração. Certamente se casará com um homem de dinheiro e será feliz vivendo uma vida mundana, brilhando nos salões. Apraz-Ihe um ambiente artificial e hipócrita. Sim, Yousi Sardá é uma mulher egoísta.

— Você é um rapaz jovem, rico, com uma brilhante carreira que elevará bem alto seu nome no mundo da ciência. Que mais poderia desejar Yousi?

Pedro sorriu com desdém.

— Querida, você é tão nobre que não consegue perceber certos aspectos da personalidade de Yousi. Fui um néscio, ela brincou comigo por uma curta temporada. Isto a ajudava a passar o tempo. De­pois que suas amigas souberam de nosso namoro, viu que o assunto perdia em interesse. Despachou-me, dizendo que eu não sabia nada. sobre o coração das mulheres. Colocou-me em situação ridícula. Abandonou-me. E eu que a amei tanto! — confessou leal­mente seu amor pela ingrata e pôs à mostra a ferida de seu coração. — Teria sido o homem mais feliz do mundo! Mas tal não aconteceu. No início, demonstrou que me queria bem, depois cansou-se. Fui um jo­guete para a pérfida.

A fisionomia de Pedro estava alterada. Cami­nhou pelo aposento e parou junto à porta.

— Não foi apenas uma experiência amarga, foi a destruição total de minhas esperanças. Algum dia vou me vingar de Yousi Sardá. Quando? Pouco me importa que seja hoje, ou daqui há dez anos! A ver­dade é que não perdôo o ridículo que me inflingiu esta noite. Agora, parto em viagem. Só vim para me despedir de você e das crianças. Damião já prepa­rou minha bagagem. Embarco no avião pela manhã, rumo a um mundo melhor.

— Pedro, eu lhe peço, reflita pelo menos dois dias. Não vá. É o seu futuro e suas ilusões que es­tão em jogo. Não vá.

Por favor, Berta, não continue. O futuro a Deus pertence e quanto às minhas ilusões, já não existem. Perdi-as todas esta noite.

Berta voltou a segurar-lhe o braço e olhou-o bem de frente.

—- Pedro, — sua voz era um soluço — não pro­cure mais ocultar seu sofrimento. Sei que nunca se esquecerá de Yousi Sardá e do grande amor que tem por ela.

O rapaz esboçou um sorriso que era mais uma ca­reta.

— Minha amiga, não reneguei o amor que tenho por Yousi. Entretanto, você conhece minha vontade férrea que, muitas vezes, me obrigou a preferir os li­vros aos folguedes naturais à rapaziada de minha ida­de. Se soube dominar os impulsos, quando não estava em jogo meu coração, de que não sou capaz agora? Minha vontade aceita o desafio — apertou as mãos da irmã e despediu-se. — Adeus, querida. Continue amando seu marido e filhos. É uma mulher boa e digna. Que Deus a abençoe!

—    Pedro!

—    Adeus, Berta. Algum dia volto.

Berta afundou-se numa poltrona e desatou em soluços. O ódio que Pedro alimentava no coração lhe dava um medo pavoroso. Receava que o rapaz nunca mais conseguisse ser feliz.

Uma hora mais tarde, Rafael chegou. Berta con­tinuava afundada na poltrona. Viu o marido que entrava, correu até ele e abraçou-o fortemente.

— Oh, Rafael. Meu coração está sangrando. Pedro partiu de viagem.

Rafael beijou-lhe a fronte e calmo, ponderou:

—    Eu no seu lugar teria feito o mesmo.

—    Será que não sabe?

— Sei de tudo. Quem me contou foi Carlos Mi­randa. Ele estava na festa e viu quando Yousi hu­milhou seu irmão na frente das amigas. Foi um mo­mento terrível. A moça disse-lhe que não servia para nada. Pedro inclinou-se e, antes de lhe dar as costas, murmurou: "Não sou ninguém. " E afastou-se. Po­rém, continuou dançando com outras, como se nada tivesse acontecido. Mas nós que o conhecemos...

—    Sinto medo, Rafael!

— Por enquanto, não precisa temer. Mas tar­de, sim. Pedro é homem que não esquece, apesar de saber esconder muito bem seus sentimentos. Yousi é uma mulher sem alma. Não vai casar nunca; todos conhecem sua falta de coração.

—- A triste verdade é que Pedro foi humilhado e contra isso seu orgulho se revolta.

Rafael Salaverria deu uma gargalhada discreta e abraçou a esposa.

— Como pode ser tão ingênua! Pedro não parte porque foi humilhado. Não é esta razão. Algum dia vai voltar, e então veremos quem foi realmente derrotado. Pedro Olaizola é por demais famoso. É homem que não se deixa rebaixar em vão. Não enca­ra a possibilidade de uma derrota.

 

A silhueta esguia e formosa de Yousi Sardá se re­cortava sob o céu azul. Estava no terraço do "Náutico". Rodeada de admiradores, dava boas gargalhadas recor­dando o incidente da véspera.

A boca era sensual, provocante. Os dentes, uma fileira de pérolas. Os olhos, de cor indefinida, em­briagavam. Quando satisfeita consigo mesmo, as pupilas luziam verde suave. Se zangada, o brilho era frio, de aço embaçado. Os olhos de Yousi sempre ex­pressavam o sentimento que lhe ia n'alma. A jovem odiava aquela transparência que desvendava seu ín­timo. Não queria ser sincera.

Seu corpo era o de uma deusa pagã. Tinha uma arrogânsia que desafiava. O cabelo era negro e on­dulava ao vento. Fascinava. No ângulo era uma mulher fria; sua aparência era de uma criatura temperamental. Sua personalidade era tão acentuada que apagava a presença das amigas. Era uma rainha, ti­nha muito de tirana.

Aquela manhã, trazia um roupão de praia, sem mangas e com largo decote. Parecia uma figura egres­sa de uma revista de modas.

—    Pedro, a estas horas, deve estar chorando co­mo uma criança no seu quarto de solteiro. Certa­mente, seu inseparável Damião deve estar enxugando-lhe as lágrimas — expressou-se entre risadas. — Nunca vi uma fisionomia tão imbecil como a dele quando lhe disse que não me interessava.

Carlos Miranda estava sentado no balaustre do terraço, pronto para dar um mergulho no mar. Ouviu as palavras ferinas de Yousi. Parou em meio a pose e, irônico, sentenciou:

— Srta. Sardá, convém não desafiar o firmamento; é bem possível que desabe sobre seu rosto.

— Fala em benefício de Pedro?

—    É apenas uma advertência às suas palavras.

— Não me estava dirigindo a você — respondeu malcriada.

— Disso sei eu, bela sereia. Uma louca como a senhorita não deve dirigir a palavra a um homem sen­sato como eu. Ontem a noite procedeu muito mal, e quero que saiba que tenho muita pena de você. Te­nho mesmo muita pena. Foi vítima de sua própria crueldade, imagino o que não lhe acontecerá quando Pedro Olaizola voltar.

Yousi não entendeu bem o insulto. Estava ha­bituada à linguagem desabrida de Miranda e até que achava graça nele. Na mente só lhe ficou o final da frase; "quando Pedro Olaizola voltar". Teria Pedro embarcado para algum lugar? Não precisou pergun­tar. O bando todo rodeou Carlos Miranda e crivou-o de perguntas.

—    Olaizola saiu de viagem?

—    Tem certeza, Miranda?

—    Quando partiu?

Só Yousi ficou calada. Recostada na balaustrada queria ouvir o que Miranda ia responder. Aguarda­va uma explicação. Este fitava o mar e sorria. Lentamente voltou-se para o bando estúpido de admira­dores da sereia, encarou a protagonista da cena e disse brincalhão:

— Pedro embarcou esta manhã para o estrangei­ro. Foi participar de um conclave científico.

— Mero pretexto — comentou, venenosa, uma amiga de Yousi.

— O pretexto, menina cabelo de espiga, algum dia Olaizola vai lhe dizer.

E com estas palavras dúbias, Miranda atirou-se ao mar.

Yousi continuava cercada por seus admiradores. Eles a enfadavam um pouco. Nossa heroína era uma criatura bastante complexa. Havia épocas em que desprezava a companhia dos amigos e preferia isolar- se; outras em que se fazia a líder do bando de pân­degos. Naquela manhã, ouvia os comentários do grupo sem apartear; mais tarde, sem um cumprimen­to de cabeça sequer, deu meia volta a volver e anun­ciou que ia para casa. Sobre o incidente da véspera não pronunciou mais uma palavra. Era coisa do pas­sado.

Yousi pilotava seu próprio automóvel, um con­versível. A meio caminho do seu palacete, tomou por um atalho solitário. Conduzia a boa velocidade e pensava na noite anterior. Não poucas vezes hu­milhara seus namorados numa festa, num baile do casino e até na praia. Nenhum deles se dava por achado e continuavam a cortejá-la, na vã esperança de algum dia lograr seu amor. Bobocas! Filhinhos do papai que só faziam gastar o dinheiro que a família lhes dava!

A imagem de Pedro Olaizola cresceu na sua mente e sentiu um frio glacial. O rapaz, desde o momento em que a conhecera, tornara-se seu admirador mais assíduo. Não a largava um momento. Ela incentivou a corte e o exibiu perante as amigas e a socieda­de que ambos freqüentavam. Esperara até a festa da véspera para desdenhá-lo.

"Yousi, eu a amo e gostaria de saber se sou cor­respondido. Meu desejo é propor-lhe casamento e fazê-la feliz. "

Isto lhe dissera Pedro ao ouvido, durante a dan­ça. Ela respondera com uma sonora gargalhada. Casar-se com Pedro? Que absurdo, nunca tal idéia lhe passara pela cabeça. Pensou consigo mesma; "a na­tural timidez de meu namorado desapareceu sob os efeitos do álcool ingerido". Quis averiguar e olhou-o bem de frente com um sorriso irônico. Os olhos pro­fundos a fitavam com paixão, porém, não indicavam nenhuma das perturbações causadas pela bebida. En­tão, concluiu: "o amor afugenta a timidez".

Riu de novo, feliz. Achou gozadíssimo que Pe­dro se atrevesse a declarar seu amor. Nunca o jul­gou capaz de tanta coragem. Mais uma conquista para a sua lista de admiradores. Outro paladino.

Desta vez, estava enganada. Pedro era diferente.

Yousi reuniu-se às suas amigas e com crueldade malsã, expressou-se alto para que Pedro ouvisse:

— Meninas, que lhes parece? Este médico famoso acaba de pedir-me em casamento. Não é para morrer de rir?

Viu como Pedro empalidecia. Os outros quando se declaravam não perdiam a cor, só os olhos fitavam a deusa, súplices. Eram ridículos. Com Pedro fora diferente, e ela sentiu uma raiva surda que não sabia a que atribuir.

Virou-se para Ele, furiosa, talvez porque não visse a expressão de súplica a que estava habituada.

"Você não vale nada. Quando decidir me amarrar será com um homem que não trema diante de mim".

Imbecil que ela fora! Não soubera compreender a Pedro. Ela era incapaz de amar e, por isso, não podia avaliar o mundo de carinho que encerrava o coração do jovem médico.

Yousi era frívola, namoradeira. Apreciava as emoções fortes e a companhia da rapaziada da cidade. Pedro era tão tímido que ela chegava a sentir pena. Seus galanteadores eram audaciosos e, não poucas ve­zes, lhe pediram um beijo. Concedê-lo ou não, era assunto seu. O médico nunca se atrevera a tanto. Limitava-se a apertar-lhe a mão e a fitá-la com doçura infinita. Mas ela para prender-se a um homem neces­sitava de mais, muito mais. Sua natureza fria pedia alguém que a fizesse vibrar e Pedro nunca penetrara até o âmago de seu coração.

Yousi ignorava que já trazia no seu coração a fi­gura viril de Olaizola. A imagem do homem a fazia palpitar e dava vida a seu corpo formoso.

"Eu não sou nada". As palavras voltavam a ecoar no cérebro da jovem. Por que exatamente aquela frase? O que queria dizer? Relembrou que depois da desfeita que recebera, não voltou a fitá-la. Distraiu- se o resto da noite com as outras elegantes. Será que quisera lhe despertar ciúmes? Riu. Abandonou o atalho na estrada e rumou para a cidade. Ainda não nascera o homem que aprisionaria seu coração.

Só lamentava uma coisa: Pedro não se ter dobra­do aos seus caprichos. Estava despeitada. Todos os seus admiradores, sem exceção, mesmo repelidos, con­tinuavam a cortejá-la. A reação de Pedro fora outra.

Encolheu os ombros e pensou que não valia a pena preocupar-se com tão pouco. Mero incidente sem importânsia. O que ela tinha a fazer era aprovei­tar a vida, intensamente.

Chegou ao palacete. Deixou o carro no jardim, abriu a portinhola e, em dois saltos, foi até a varanda onde os pais tomavam um aperitivo.

— Bom dia — cumprimentou, alegremente, es­quecida de seus pensamentos anteriores. — Não saíram hoje?

O pai, senhor alto e elegante, de aparência mar­cial, olhou para a filha com orgulho. Como era bo­nita!

— Não, não saímos. E você de onde vem a estas horas matinais?

—- Estou chegando da praia.

Carinhosamente, Yousi beijou aos pais. Eram os únicos seres que valiam sua afeição. Amava-os do mais profundo de sua alma, aquela alma que ainda não havia desabrochado por completo. Ela própria não sabia o que queria, também, não se dera ao tra­balho de analisar seus sentimentos. Para que?

A mãe, bonita mulher de feições regulares e do­ces, fitou a filha com ar sério. Ambas se pareciam, porém, a mais velha não tinha a arrogânsia da moça, o olhar provocante com cambiantes verde-cinza.

— Desde ontem que não a vejo, Yousi. Hoje, quando fui ao seu quarto, já tinha saído para a praia.

—    O ar da manhã é sempre mais saudável.

— De fato. A verdade, Yousi é que você age como bem entende, vive à mercê de seus próprios ca­prichos.

— Oh, mamãe! Por que está aborrecida comigo? Será que a festa não lhe agradou?

A fisionomia da senhora ficou mais séria ainda e tentou esconder a expressão de desagrado, levando o copo até os lábios e bebendo o conteúdo. Depois contemplou o rosto belo da filha.

—- Yousi, tenho algo de muito importante para lhe perguntar.

— O que é, mamãe?

—    Você sabe muito bem.

— Está vendo, papai, a senhora Sardá está muito enigmática, esta manhã. Confesso que não estou entendendo nada — e riu, brincalhona.

— Yousi, ontem a noite, você só dançou uma vez com Pedro Olaizola. Por que o rapaz não a procurou mais durante a festa?

—    Certamente preferiu outras a mim.

—    Tem tanta certeza assim?

Yousi pestanejou, nervosa. Por nada deste mun­do queria que seus pais soubessem do incidente da véspera. Fez um esforço e soltou uma risada cris­talina. O pai a encarou com surpresa.

— Yousi — ponderou — não sei o que aconteceu ontem, a noite entre você e Olaizola. Não vou insistir para que conte. Como sua mãe insinua, acho que agiu, mais uma vez, levianamente. Não posso passar o resto da minha vida dando conselhos a minha filha. Esta manhã, é a última vez que o faço. Duvido que venha a encontrar alguém igual a Olaizola. Você pode se casar com outro e ser relativamente feliz. Mas não há nenhum igual a Pedro. Hoje, ainda é um nome pouco conhecido, mas já está firmando sua repu­tação como uma das primeiras figuras da ciência. Sua mãe e eu pensamos que já tem idade suficiente para casar. Com menos um ano, seus pais já eram casados. Bem verdade, eu era homem feito quando desposei sua mãe. A diferença nunca foi obstáculo para nossa felicidade. Pedro tem dez anos a mais que você. É idade apropriada para constituir um lar. Por que não se casa com ele?

— Não lhe tenho bastante amor — murmurou com humildade. E depois, que adianta pensar nele? Olaizola embarcou esta manhã para o estrangeiro.

—    Pedro viajou? Tem certeza, Yousi?

— Sim mamãe. Foi Carlos Miranda quem disse hoje de manhã, na praia. Foi assistir a uma reunião científica.

— Uma pena, minha filha. Você deixou fugir a felicidade. Provavelmente se casará com outra, mas nunca será tão feliz. Pedro é o marido ideal. Alguma coisa você fez e deve ter a consciência pesada.

As palavras do pai calaram fundo no espírito da moça. Encolheu os ombros e mudou de conversa. Al­gum dia, a frase lhe voltaria à mente e, então, o irre­mediável teria acontecido.

 

O tempo passou, e Yousi esqueceu-se, por com­pleto, da existência de Pedro Olaizola. Era coisa mor­ta, seu temperamento não admitia nada ressuscitado.

Continuava a desprezar seus admiradores. Namorava-os para mais tarde recusá-los. Sua beleza só fi­zera tornar-se mais esplêndida com os anos. Era uma figura de primeiro plano na grande cidade. Era a mulher mais bela, mais admirada e mais requestada. Suas amigas, na maioria, já tinham constituído lares felizes. Ela, desdenhosa, prosseguia seu caminho de mulher sem peias.

O nome de Pedro Olaizola aparecia freqüente­mente nas páginas dos jornais. Seu nome era pro­nunciado com entusiasmo, elogiavam-lhe a inteligên­cia e suas descobertas científicas salvavam milhares de vidas nos hospitais. Sua fotografia estava nas revistas. Sua volta à pátria era noticiada para breve. Era um homem famoso, admirado pelo mundo todo. Pu­blicara livros que despertavam grande interesse e suas conferências eram atentamente ouvidas pelos mais doutos.

Cinco anos transcorreram velozes para Yousi. Para o jovem médico, Estes cinco anos encerravam triunfo sobre triunfo.

Certa manhã, viu na revista, que tinha no colo, a figura arrogante de Pedro Olaizola. Estava em companhia de sua amiga Paulina Montoya. Bateu- lhe no ombro e mostrou-lhe a fotografia.

— Olha, Paulina, já foi um dos meus preten­dentes.

A outra, com indiferença, olhou a revista. Yousi tivera tantos admiradores! Quando viu o retrato do médico famoso, exclamou:

—    Pedro Olaizola!

—    Sim, é Ele.

— Como teve coragem de desdenhar a Esse ho­mem a quem o mundo inteiro admira? Vamos, seja menos pretenciosa.

Yousi ficou furiosa; amassou o papel da revista.

—- Acha que eu não valho nada, Pauli? Esse mé­dico admirado pelo mundo inteiro, foi recusado por mim. Vamos embora, querida? Estão nos esperando no clube.

Paulina Montoya era bem mais moça que Yousi. Era menina de colégio ao tempo em que Pedro fizera a corte à amiga. Por não ter assistido ao namoro não acreditava que a outra tivesse conquistado sujeito tão importante.

Paulina era encantadora e muito vaidosa, pois se sabia atraente. Valeu-se de um momento de dis­tração de Yousi e arrancou a folha da revista. Escon­deu o retrato debaixo de sua blusa.

As duas estavam no automóvel de Yousi, quando Paulina falou:

— Vou lhe fazer uma confissão, mas vai prometer que não se rirá de mim.

Yousi encarou-a ironicamente, com expressão risonha.

—    Pode falar, juro que não rio. Quem é Ele?

Paulina mostrou a folha amassada que escondera sob a blusa.

Yousi comentou:

—    Por que guardou a fotografia de Olaizola?

— Esta é minha confissão: estou loucamente apai­xonada por Este médico.

Os belos olhos da senhorita Sardá se abriram desmesuradamente. Não pôde impedir uma risada cris­talina.

—    O que está dizendo, menina?

—    Estou apaixonada por Olaizola.

— Desde quando? Onde o conheceu? Não vai me dizer que se apaixonou por fotografia? Seria o cúmulo! Um amor platônico!

E de novo o riso lhe rebentou fácil. A amiguinha, com seus inocentes dezoito anos, mal conseguiu conter as lágrimas.

— Nunca falei com Ele. Sabe que fui educada em Paris. Uma colega minha, espanhola, adoeceu gravemente. Muitos médicos e especialistas vieram vê-la. Nenhum atinava com a moléstia. Os pais da doente chamaram a Olaizola. Ele nunca abandonava seu laboratório, mas como se tratava de uma compa­triota, abriu uma exceção. Na semana seguinte, Marisa Jordan entrava em franca convalescência.

— Quer dizer que o famoso médico, espécie de semideus, curou-a.

— É pecado brincar com coisas sérias, Yousi. Marisa ficou boa. Ele vinha visitá-la todas as tardes, e nós nos postávamos na janela para vê-lo chegar. Tinha uma expressão tão doce! O sorriso que lhe pai­rava nos lábios era o de um anjo. E como era bonito e elegante! Parecia um ator de cinema.

—    Conclusão: todas se apaixonaram por Ele.

— Nada de ironias, querida. Quem mais se apaixonou fui eu.

— Não se aflija, minha amiga. No mês que vem, Ele estará aqui. Ainda não reparou no grande hospital que estão construindo nos arredores da cidade? É pa­ra Ele. Vai instalar um sanatório como não existe outro na Espanha. É o que diz a revista. Mas não alimente ilusões. Pedro é uma criatura muito tímida e só gosta de estudar e pesquisar.

— Oh! Yousi, como pode ser tão injusta? Olaizola nunca me pareceu um homem tímido e desajeitado.

— Pois olha, é o que Ele é. Não me fale mais desse homem, estou farta de ouvir seu nome.

Pisou o acelerador. O carro corria a grande ve­locidade. Paulina a encarou assustada. Não disse palavra, tinha medo da expressão fria e cruel daquele rosto inquietante.

Chegaram ao clube e Yousi se mostrou alegre e comunicativa. Flertou, descaradamente, com Carlos Miranda. Queria esquecer que Pedro Olaizola existia.

Paulina não compreendia aquele coração.

Tem­pos depois, os jornais anunciavam a chegada do grande luminar da ciência.

O sanatório foi inaugurado com a presença das altas autoridades. O bispo local benzeu as instala­ções, e os jornais noticiaram o acontecimento em grandes manchetes.

Desde a noite da humilhação, até aquela data, cinco anos haviam passado.

 

                                                 CAPÍTULO I

Era o mesmo e, todavia parecia diferente. Os olhos cinzas tinham expressão diversa. Antes fitavam as coisas de maneira vaga, agora, em suas pupilas luzia um brilho que intimidava. Era um olhar manso, pro­fundo, perscrutador. A fronte tornara-se mais larga e as têmporas eram cor de prata. Como era dominadora a figura altiva do homem a quem todos enca­ravam com respeito.

Berta não se cansava de contemplar o irmão. Segurava-lhe as mãos, afastava-se, volvia a abraçá-lo e ria nervosa.

— Ó Pedro, que bom que voltou! Não imagina como sofri por você. Eu sabia que viria a ser famo­so, endeusado. Mas como deve ter se esforçado para alcançar a glória, quanto desprendimento isso não exigiu!

— Desprendimento, dizes? Sim, tive que me des­ligar de muito conforto material. Porém, o espírito nunca renegou a si mesmo.

Rafael dava-lhe pancadinhas afetuosas nas costas.

— Permita-me que o cumprimente, Pedro. A grandeza do que realizou não impressiona só aos seus familiares e sim à Humanidade toda.

— Que exagero, querido cunhado! Quer vir co­migo até o clube. Sinto ganas de reviver o passado. — Virou-se para Berta e sorridente disse: — Numa coisa, querida irmã, tens razão. O afastamento por cinco anos da terra natal não foi coisa fácil. Quanto ao restante, não foi tão grande o sacrifício imposto.

Era a primeira vez, desde que chegara, que pude­ra passar tantas horas conversando com a irmã e o cunhado. O sanatório tomava-lhe todo o tempo. Havia tanto que organizar, que dirigir! Finalmente, as coisas estavam seguindo seu curso normal e podia des­pender mais tempo ao lado dos seus.

Rafael escusou-se. Não podia ir ao clube porque aguardava um cliente. Beijou a esposa e encami­nhou-se para a porta. Pedro fez o mesmo. Berta reteve-o pelo braço.

—    O que quer, minha irmã?

—    Já se curou, Pedro?

—    Curado? Não estou entendendo.

E Pedro deu uma risada forte e sincera. Berta ficou feliz.

— Minha querida — ressoou a voz gutural e can­tante, aliás o seu maior fascínio, — Yousi Sardá nunca encontrará um homem que tolere seus inúmeros de­feitos. Poderá se casar mas nunca com um homem de verdade. Não faltam manequins de salão que queiram juntar às muitas conquistas mais uma pérola. Não precisa se preocupar por mim, Berta — e baixi­nho, inclinando-se para bem perto da irmã, acrescen­tou: — Meu coração é invulnerável.

E despediu-se, sabendo que a deixava tranqüila. Encaminhou-se para o jardim e entrou no seu carro. Segurou o volante com mão forte e pisou o acelerador.

O auto arrancou com força possante.

 

Percebeu-a recostada no balcão do bar. Numa das mãos segurava um copo de bebida; dos lábios desdenhosos pendia um aromático cigarro.

Ele ficou em pé no umbral da porta, as mãos metidas nos bolsos do paletó. Sua silhueta elegante e varonil atraia os olhares femininos. Ele, indiferente ao sucesso, caminhou até junto dela e estacou.

—    Mais linda ainda, mas sempre a mesma.

A voz de inflexões guturais fez com que um cala­frio percorresse o corpo escultural da sereia. Girou no tamborete alto e seus olhos verdes cravaram-se no homem que perecia lhe desnudar o corpo e a alma.

A sensação foi de raiva e despeito. Achou-o mais atraente do que nunca. Reagiu e deu uma gargalha­da sarcástica.

— O famoso doutor Olaizola também é o mes­mo de sempre.

— Com a diferença de que hoje sou alguém, e antes não era nada.

—    No que diz respeito a mim, dá no mesmo.

—    Pode ser. Não me convida?

— Não está nos meus hábitos convidar aos ho­mens.

— Uma moça tão evoluída como Yousi Sardá não liga a essas formalidades — sentou-se no tambo­rete ao lado e pediu para o enpregado: — A senhorita me convidou para um coquetel, pode trazê-lo.

Yousi sentiu que o sangue lhe subia à cabeça. Fez um tremendo esforço e refreou a cólera.

— Como é possível que esteja sozinha! Que fez de sua corte de admiradores?

— Vou embora — foi a resposta que deu, des­cendo do tamborete.

Olaizola puxou-lhe o braço e apertou-o com força.

— É muito orgulhosa, querida Yousi. Nunca a esqueci. Não me foi possível.

— É um grande comediante. Não interessa que não me tenha esquecido. Para mim dá no mesmo.

—    Para mim, não.

Livrou-se da mão que a retinha e com passo se­guro foi até a porta. Pedro fez o mesmo.

—    Vou conduzi-la no meu automóvel

— Obrigada. O meu carro ficou em casa. Gosto de fazer o trajeto a pé.

—    Tem algum encontro marcado?

Ela retrucou, feroz:

—    Quais as suas intenções?

—    As de um apaixonado.

O tom era firma e viril. Yousi sentiu novo ca­lafrio. Ergueu os olhos e encontrou o olhar baço e, ao mesmo tempo, penetrante.

— Vem comigo de automóvel, vou ao sanatório e, de passagem, posso deixá-la em casa.

Sem saber bem porque, Yousi aceitou o convite e sentou ao lado do volante.

— Não me parece o mesmo Pedro — falou, pela primeira vez em sua vida, com sinceridade. — Mudou muito.

— Os anos não passam em vão. Aprendi muito por Este mundo afora.

—    O que aprendeu?

— Um pouco de tudo.

—    Do amor também?

—    Está me perguntando se tive paixões?

—    Sim.

O riso de Pedro soou estridente. Parou o carro e olhou-a fixamente. A expressão de suas pupilas era tão intensa que Yousi apequenou-se. Encontrar al­guém de mais forte do que ela.

—    Quando sai daqui era um homem apaixonado.

—    O que está me dizendo?

— Sobre o amor só existiu em minha vida recor­dações. Elas encheram as minhas horas e me ajuda­ram a vencer. Acabaram por me trazer de volta à minha cidade querida e até a ingrata que me des­denhou.

Falava com tanta paixão e segurança que a jovem, em vez de sentir despertar o riso, permanecia imóvel. Não conseguia desviar seus olhos do homem, sentia-se como atraída por um imã.

Pedro inclinou a cabeça para mais perto da jovem e penetrou fundo nos olhos verdes, diáfanos e trans­parentes.

— Não tem coração, não é verdade, Yousi — e apertava-lhe fortemente, as mãos. — Nos seus folgue­dos de menina-moça foi deixando que Ele se perdesse. Hoje, está completamente amortecido. Não sabe o que perde, não sabendo amar.

— Diz que eu não sei amar? Meu Deus, talvez não saiba, mas...

—    Vou lhe ensinar.

—    E saberá?

— Aos poucos, acabarei por enlouquecê-la de amor.

Yousi não adivinhou nas palavras o propósito de aniquilá-la.

— Deixe-me, deixe-me — e puxou as mãos apri­sionadas nas dele. — Deixe-me em paz. Estamos diante de minha casa.

—    Quando nos revemos?

—    Rever?

—    Sim, para enlouquecê-la.

Pronunciou as últimas palavras com certa gula.

Yousi abriu a portinhola e pulou para a calçada.

— Voltaremos a nos rever — disse com uma ex­pressão que teria derretido o coração de qualquer outro que não fosse Pedro. — Vamos ver se consegue me enlouquecer.

— Bam sabe que vou consegui-lo.

— Não diga! Oh, Pedro, em que conquistador se transformou!

Sempre rindo afastou-se e subiu a escadaria de mármore do palacete. No topo virou-se e acenou.

Pedro pôs o auto em movimento e desapareceu na curva. Sua expressão mudara subitamente. Era dura e terrível. Se tivesse podido vê-la, Yousi teria tre­mido.

 

                                             CAPÍTULO II

Voltou a rever Yousi. Claro que voltou. Jurara a si mesmo lograr seu propósito. Progredia e pouco faltava para o passo definitivo.

A segunda entrevista ocorreu no salão do Náu­tico. Reviu os mesmos grupos que presenciaram sua humilhação de cinco anos atrás. No fundo de sua alma fervia o ódio, porém, suas pupilas demonstravam paixão intensa e enigmática.

Chegou atrasado, já era noite. Tivera muito trabalho no sanatório e nem tudo correu a seu gosto.

Percebeu Yousi só, recostada no peitoril do ter­raço, os olhos cravados nas águas do mar. A jovem estava de costas. Aproximou-se e roçou-lhe a nuca com os lábios.

—    Curioso, parece que sabe pensar.

A moça voltou-se brusca. Os olhos verdes se cra­varam nas pupilas cinzas.

—    Seus olhos queimam. Gosto deste logo.

—    Não receia ficar queimado?

— Você me ajuda a apagar o incêndio. Vamos dançar?

—    Aqui?

—    Por que não? Adiante tem dois pares.

Ela hesitou. Ele enlaçou-a e ela deixou-se con­duzir.

Contra a sua vontade, o seu corpo tremia. Os braços viris a aprisionavam, sentia-se enlouquecer. Nunca ninguém a enlaçara daquela maneira, nunca olhos masculinos a queimaram com tanta sutileza. Seu coração era prêsa de uma amálgama de sensações loucas.

"Estou me deixando prender e, pior ainda, por um homem que desprezei há cinco anos atrás. "

"Que tinha Pedro no olhar que a atraía silenciosamente? Porque o pulsar do coração masculino a in­quietava? Que tinham seus braços que condensavam tanto poder de magia? Afinal de contas, não era o mesmo Olaizola? Sim, menos a timidez. O olhar era audaz e desnudava seu íntimo com cobiça. A pala­vra era fácil, e a boca subjugadora. "

Suspirou com força e apertou os lábios. Os bra­ços de Pedro ajustaram-se mais à cintura delgada, sua boca roçou a diminuta orelha.

— O que tem? Porque suspira? Em que está pensando?

—    Eu mesma não sei.

— Diz a verdade?

A inquietação de Yousi aumentava. Por que aquela entonação? Por que seus lábios a roçaram? Queimaram como brasa ardente.

— Não me responde?

— Pedro, pergunto a quantas mulheres conquis­tou em suas andanças? Quantas vezes se sentiu apaixonado?

Um sorriso irônico bailou nos lábios de Pedro. Novamente, inclinou a cabeça até o rosto belo e cravou suas pupilas nos olhos verdes.

— Um homem como eu pode lidar com centenas de mulheres, sem amar a nenhuma. Já lhe disse que meu coração ficou aqui, prêso ao seu. Caminhei pela vida em busca de satisfações espirituais. De tudo fi­cou uma recordação.

— E agora? — não conseguiu reprimir a ansiedade na sua pergunta.

—    Agora o que?

— Continua pensando no seu amor do passado?

— Nem um instante deixei de pensar nele. Continuarei assim toda a vida.

—    Até que logre êxito.

Apertou-a tão junto de si que Yousi se viu retra­tada, pequenininha, nos olhos cinzas de aço.

— Perece que sim. Este amor tem que ser meu. Sempre fui constante e fiel. Fiz por merecê-lo e pa­rece que já o estou ganhando.

Estava escuro. Dois faróis iluminavam, fraca­mente, o terraço. O marulhar das águas aumentava o encantamento. Do salão de baile, vinham os acordes de uma música suave que se diluía no ar. Os dois bailavam, bem juntinhos, num canto do terraço. Um pouco adiante um outro par. No balaustre, sentado, estava Carlos Miranda observando. Um sorriso sar­cástico deformava-lhe os contornos da boca. Fumava. Numa das reviravoltas, o olhar de Pedro encontrou o de Carlos. Sorriu enigmático. O amigo não compre­endeu o significado do enigma. Conhecia muito bem a Pedro e julgava por si o quanto Ele fora ferido pelo atrevimento de uma mulher, e ainda por cima em pú­blico.

Abandonou o terraço pelo balcão do bar.

—    Carlos, você viu Yousi?

— É minha convidada, Cora. Yousi está dançan­do no terraço com Olaizola.

Cora alargou o olhar. Era amiga da Srta. Sardá e sabia que o importante médico não esquecera a desfeita de cinco anos atrás.

— Dança com Pedro? Yousi não tem juízo. De­via saber que o rapaz nunca lhe perdoará a ofensa de cinco anos atrás.

— Querida Cora, os homens são uns bobões, como vocês dizem. Pedro sempre esteve apaixonado por Yousi.

— Sabe tão bem quanto eu que Pedro não é um fútil. É um cavalheiro digno e...

— Ora... quando o amor bate a porta, tudo fica esquecido.

— Como pode falar assim, você que é incapaz de amar.

— Pois olha, menina, estou apaixonado por você, e se não fosse tão louquinha há muito tempo que teria me declarado.

—    Eu sou louquinha?

— Yousi é uma doidivanas e você anda com ela. Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és.

—    Você é um sabidão!

Deu meia volta e deixou-o só. Ele acendeu outro cigarro e ficou contemplando os anéis de fumaça. Cora era uma menina loura e bonita. Tinha olhos azuis, da cor do céu, mas era tão frívola quanto o res­to do bando de Yousi. Carlos era rico e queria consti­tuir um lar. Mas não seria nunca com uma mulher que só pensasse em vestidos e dinheiro. Não aprovava a desenvoltura da mulher moderna.

Soergueu o corpo derreado. Olaizola e Yousi se aproximavam do bar. A moça notou-o com um so­bressalto, fez menção de retroceder. A mão de Pedro não a deixou recuar. Carlos pensou que pela primeira vez Yousi se dobrava à vontade de um homem. Riu, divertido, e cumprimentou a ambos.

— Olá, Pedro, há mais de três horas que ando a sua procura. Queria trabalhar com você no sanatório. Sabe que tenho o diploma, mas não o utilizei. Será que tem um lugar para mim?

—    Quer liquidar com a Humanidade, Carlos?

— Não estou falando com você, Yousi. Estou me dirigindo a seu noivo.

Os olhos de Yousi se revolveram inquietos e pro­curaram o rosto sério de Pedro, como que esperando um desmentido. Pedro não disse nada, continuou apertando o braço da jovem, dando a entender que Carlos não se enganara. Encolerizada, não conseguiu compreender o procedimento de Pedro. Pensou em desmentir ela mesma; mas sentiu um medo estranho e ficou aterrorizada consigo mesma.

— Acho que tenho alguma coisa para você e fico satisfeito com seu propósito. Procure-me amanhã no meu escritório, na Casa de Saúde. Conversaremos com vagar.

—    Vai admitir Carlos no corpo clínico?

— Por que não, Yousi. É um prazer ter quem se ofereça para auxiliar uma obra humanitária. Até amanhã, Carlos, e uma boa noite. Vamos, querida?

 

— Não posso compreender como aceitou no cor­po clínico do sanatório aquele malandro.

O automóvel deslizava, veloz. Pedro no volante, e Yousi a seu lado, reclinada no banco, deliciando-se com a noite.

Pedro ouviu-a e virou-se ligeiramente. Estava uma beleza. Os cabelos negros, sedosos e brilhantes, encobriam metade de uma das faces. Os olhos claros, intensamente brilhantes, pareciam pirilampos. Ren­deu homenagem à beleza, mas não sentiu desejo de possuí-la, nem sequer de beijá-la. Algo em seu co­ração endurecera, e nada que proviesse daquela mu­lher podia causar o degelo.

— Por que o tacha de malandro? Carlos e eu sem­pre fomos grandes amigos, conto-o entre os melhores.

—    Desculpe — balbuciou medrosa.

Pedro continuou:

— Tantas e tantas vezes brincou de amor com Ele que acabou por odiá-lo. Quase sempre acontece isso com aqueles que conhecem nossos defeitos.

—    Pedro!

— Perdoe, querida, não foi minha intenção ofen­dê-la.

Yousi encarou-o bem nos olhos.

— Por que anda comigo? Que tem em mira? Por que não desmentiu Carlos quando Ele disse que você era meu noivo?

—    E não somos?

—    Bem sabe que não.

A frase foi pronunciada com energia. Pedro riu um riso discreto, manhoso. Achou graça na negativa.

Parou o automóvel e seus braços enlaçaram Yousi. Apertou-a contra si. A moça não conseguiu se des­prender. Ficou inerte e aos poucos se abandonou à pressão. Desafiava-o.

— Você deseja que nós sejamos noivos — sussurrou baixinho, bem junto ao rosto dela. — Essa é a sua vontade, porque nenhum homem até agora lhe fez sentir o que sente a meu lado. É uma criatura fria e com Esses olhos verdes desafia o mundo inteiro. Mas eu não pertenço a Esse mundo. Sou um ser a parte e isto você aprendeu. Vou lhe dar um beijo e você vai me corresponder. Quero dormir com um sabor de mel nos lábios. Sei que você também quer. Carrega alguma coisa a mais, além da frieza de seu coração. No seu íntimo existe um fogo que até agora ninguém acendeu e por isso estou a seu lado para alimentá-lo.

—    É... é...

—    Sou. Isto diz tudo.

Yousi sentiu o torpor da inconsciência. Queria desprezá-lo, dizer que na sua alma só existia o ódio e o desdém. Não conseguiu, a forca dos olhos cinzas a mantinham estática. Queria libertar-se do círculo de ferro e fugir airosa. Não podia fazer nada. Estava embriagada e aquela firmeza varonil dominava o mais íntimo do seu ser.

Viu o rosto enérgico que se aproximava. Viu as feições belas, viu o olhar em chamas. Não, não podia fugir.

— É divina — falou Pedro com uma paixão que lhe infundiu medo. — Eu...

Não terminou. Sua boca mordeu avidamente a dela. Tinha um laivo de raiva dele mesmo e de Yousi. Raiva, porque no seu coração ainda palpitava algo de bom daquele amor. Raiva de Yousi por que ela se entregava, e Ele não a queria.

Séculos, minutos, ou apenas segundos? Para Yousi foi a eternidade. Queria ficar assim para sempre; enlaçada pelos braços viris, bocas coladas.

Nunca, ninguém a beijara daquela maneira. Nunca estremecera com o contato. Seu coração subiu todo e sua ânsia converteu-se numa carícia. Quando Pedro a sentiu vencida, largou-a, súbito. Cravou os olhos úmidos na estrada. A boca se crispou numa careta e as mãos quase amassam o volante. O automóvel arrancou desenfreado.

Yousi suspirou com força. Nunca se sentira tão humilhada. Julgou que Pedro devia dizer-lhe algo. Pedir desculpas ou, simplesmente, confessar o seu amor. Nada. Ele firme, severo, conduzia, fumando avidamente um cigarro. Por que reação tão inesperada? Por que não se desculpava? Porque não expressava seu carinho?

Entre os dois reinou o silêncio. O auto chegou junto ao portão do palacete dos Sardá.

Yousi o fitou. Esperava uma palavra que lem­brasse o ocorrido. Enganou-se. A boca de traço firme distendeu-se num sorriso de cordialidade e em tom normal, Ele despediu-se.

— Amanhã nos vemos no Náutico, querida.

Yousi cerrou os lábios e não disse nada. Desceu do carro e encaminhou-se para as escadarias que con­duziam ao terraço iluminado. Penetrou no vestíbulo, desaparecendo.

O carro de Pedro ganhou velocidade. Um rosto

enérgico ria, ria e ria.

 

Deitou-se no leito, parecia uma ovelha ferida. Nunca esqueceria a humilhação daquela noite. Cer­rava os punhos e jurava vingança contra o homem cí­nico. De um salto, levantou-se e murmurou para si mesma que não podia vingar-se, porque, pela primei­ra vez, estava apaixonada.

Sim, apaixonada como uma colegial. Apaixonada por um homem a quem desfeiteara em público. An­dou de um lado para o outro no aposento. Nunca se sentira tão insignificante e perturbada. Não era mais a mesma. Sua personalidade tinha sido destroçada por Ele, perdera toda a fortaleza moral e espiritual. Estava apaixonada. E o pior é que não tinha ânimo para arrancar de seu coração aquele amor. Nunca pudera imaginar que caísse vítima de sentimento tão intenso. Não conseguia arrancar de sua boca o gosto do beijo dele. Estava enlouquecendo de desespero porque não queria amar.

Voltou a estender-se no leito, mordendo suas pró­prias mãos com raiva. Se pudesse teria perfurado o coração de Pedro Olaizola. Sobretudo fora impru­dente. Acreditou-se revestida de uma couraça e se deixara levar para uma abismo pelo qual despencava. Amava com todas a forças de sua alma. Não a alma fria que o mundo conhecia, e, sim, aquela que trazia oculta no mais íntimo e que agora despertava.

Ouviu os passos de seu pai. Ergueu-se do leito e sentou-se frente a penteadeira. O progenitor entrou no quarto.

—    Ainda não se deitou, minha filha?

—    Ainda não, papai. O senhor vai sair?

— Sim, vamos a ópera. Estranho que fique em casa, isto é a primeira vez que acontece.

— Algum dia tenho de me deitar mais cedo. É questão de formar o hábito.

—    Quer dizer que não vem conosco?

—    Hoje, não. Amanhã, talvez.

O pai olhou com atenção a imagem refletida no espelho.

— Quem lhe trouxe esta noite? De quem era o automóvel em que chegou?       

—    De Olaizola.

— Recomeçou o namoro? Espero que desta vez se mostre mais sensata. Nada de bobagens e brinca­deiras.

—    Tenho medo de que desta vez seja eu a vítima.

—    Olaizola é um cavalheiro.

— É...

O pai fingiu não perceber o desânimo contido na pequena palavra. Beijou a filha e saiu.

Yousi vestira o pijama e estirou-se no leito, mãos atrás da nuca. Estava linda! Sonhou com o amor, sonhou que os braços de Olaizola a arrebatavam. Sen­tiu o peito másculo e o pulsar do coração forte. Inun­dou-se de felicidade.

Depois jurou a si mesma que não sairia mais com o rapaz. Estava decidida a flertar com o maior nú­mero possível de rapazes e demonstrar em relação a Pedro uma indiferença que, em absoluto não sentia.

Não realizou seu propósito. Estava apaixonada e sua vontade já não lhe obedecia.

No dia seguinte foram vistos juntos. Outros e outros dias se seguiram. Eram bailes, passeios notur­nos, festas. O amor avassalava Yousi.

 

                                               CAPÍTULO III

Há muitos dias que não ia visitar Berta. Aquela tarde, antes de encontrar-se com Yousi no clube, deci­diu passar pela casa da irmã.

Encontrou Berta na saleta de estar com seus fi­lhos. Ela estava sentada no divã, enquanto as duas crianças brincavam no chão com cavalos de chumbo. Rafael estava afundado numa poltrona lendo uns do­cumentos.

Ao verem a figura de Pedro na porta, os esposos se levantaram e as crianças correram para abraçar o tio. Passadas as primeiras efusões, Pedro sentou-se numa confortável poltrona.

— Está fazendo um frio dos diabos! Tenho os dedos congelados. Não saiu hoje, Rafel?

— Preferi ficar em casa, examinando Estes do­cumentos. À noite, vamos a ópera.

Berta chamou a ama-seca que tirou as crianças da sala de estar. Ficaram os três adultos. Pedro sentiu-se alvo do olhar perscrutador da irmã.

— Em que está pensando a moralista Berta? — perguntou em tom galhofeiro.

— Já sabe. Espero que daqui por diante se mos­tre mais comedido.

—    Comedido?

— Sim, estou aborrecida com você. Tem plena consciência de que está agindo mal. Não tem o di­reito de comprometer da maneira que o vem fazendo a uma moça honesta, de família honrada, para depois abandoná-la.

Pedro escancarou os olhos. A expressão irônica desaparecera para dar lugar a uma seriedade terrível.

— Não sei a que se refere, Berta. Suponho que fala a respeito de Yousi. Para lhe ser franco, confes­so que nunca pensei em outra mulher em minha vida.

— Sua suposição é certa. Quando falei, pensava em Yousi Sardá.

O médico arqueou as sobrancelhas.

— Por que pensa mal de mim? Gosto de Yousi e vou me casar com ela.

O casal, como que de comum acordo, se pôs de pé. A Berta quase falta a respiração. Rafael, nervoso, acendeu um cigarro.

— Se ouvi bem, disse que vai se casar com ela, não é isto?

—    Sim, Berta. Yousi é uma criatura adorável.

—    E... e o incidente de...

— Quer se referir a desfeita que me infligiu há cinco anos atrás? — sorriu enigmático. Berta não gostou do sorriso. O irmão prosseguiu: — Per­tence a um passado longínquo. Estamos vivendo o presente, é o que importa.

Berta tornou a sentar-se. Rafael passeava nervo­so pelo aposento. Pensava conhecer o cunhado e es­tava certo que o espinho cravado no coração de Pedro, há cinco anos atrás, ainda o trespassava. Por fim, fa­lou atropeladamente:

— A verdade, Pedro, é que não julgo Yousi a mulher ideal para você. É uma moça muito desenvolta e bastante malcriada. Não acredito que possam ser felizes. São feitos de estofos muito diferentes.

— O amor opera milagres, caro amigo. Yousi será uma esposa modêlo e uma grande dama que dará brilho ao nome que herdei.

—    Pedro,... eu pensei, eu pensei que...

— O que é isso, Berta? A surpresa a faz gaguejar. Vão se preparando para irem em breve ao palacete Sardá e solicitar a mão da filha para o cunhado e irmão. Agora tenho que ir embora. Marquei encon­tro com Yousi no clube.

Não quis mais ouvir sobre a reação do casal. Beijou a irmã e bateu nas costas do cunhado. Des­pediu-se.

Berta e Rafael se entreolharam.

—    Que pensa de tudo isto, Rafael?

—    Nada de tranqüilizador, querida.

— Sinto-me assustada. Conheço bem meu ir­mão. Sei que é capaz de amar com toda a intensidade a quem o mereça. Também sei que leva o ódio aos limites mais extremados. Tem uma natureza ranco­rosa. Sempre me lembro da ocasião em que papai lhe proibiu de ir caçar com os amigos.

Este esporte era o favorito de Pedro. Aguardava as férias com ansiedade para dedicar-se de corpo e alma à sua distração preferida. Naquele ano cance­lara muitos compromissos e seu nome figurava para a temporada de setembro. Durante sua estadia na nossa propriedade rural, mal olhou para os livros, passava o tempo caçando. Papai, que era um homem enérgico e severo, renovou a proibição de maneira terminante. Os amigos de Pedro tinham vindo para buscá-lo e tudo aconteceu em presença dos mesmos. Pedro estava pronto para sair, quando Papai o chamou. Relem­brou-lhe os estudos e afirmou que enquanto não se preparasse para os exames próximos não devia percor­rer os bosques em caçadas. Pedro mordeu os lábios, retirou-se e se trancou no quarto. Desde aquele dia, nunca mais se dedicou ao seu esporte favorito. Passou um ano, outro e outro e meu irmão nunca mais segurou sequer um fuzil. Por várias vezes, papai convi­dou-o para caçar. Sempre recusou. Eu sabia como adorava o esporte e como sentia quando via seus ami­gos partirem para a caça. Pedro é um homem muito rancoroso e tem uma vontade de ferro. É uma das criaturas mais controladas que já conheci. Não é à toa que sinto medo. Sei que odeia Yousi, e assim mesmo vai se casar com ela. Já imaginou que tipo de vida vai proporcionar à esposa?

— Não acredito que Pedro a faça infeliz propositalmente.

— Oh, Rafael, como conhece mal a meu irmão! Sei do que é capaz.

— Nesse caso, penso que agiríamos bem avisando aos pais da Srta. Sardá.

Berta pulou da poltrona.

— Que idéia, Rafael. Pedro nunca nos perdoaria a iniciativa. E depois, quem sabe, talvez esteja en­ganada.

— É melhor tranqüilizar-se, querida. É bem possível que esteja incidindo em erro.

Mas a irmã não se enganava. Pedro continuava tão rancoroso e com a mesma vontade de ferro que tinha em criança. Quantas vezes Berta chorara e pe­dira a Deus que modificasse o temperamento do irmão.

O salão de festas do clube estava muito animado. Na pista, dançavam muitos pares e nas mesas ao redor outros tantos assistiam à festa. Yousi estava numa mesa, rodeada de amigos. A conversação era geral; a Srta. Sardá guardava silêncio, os olhos cravados na porta. Aguardava com ansiedade a figura máscula de Pedro.

Estava imersa nos seus pensamentos. Nunca sen­tira tamanha sensação de vazio. Perdera o riso fácil, não tomava parte nas brincadeiras e ditos chistosos dos amigos. As coisas perderam a graça para ela. Vivia na iminência de um constante perigo. Não ignorava a natureza da ameaça que pendia sob sua cabeça. Vivia inquieta.

Ela que antes era tão alegre e despreocupada, tor­nara-se triste, nervosa. De quem era a culpa? De Pedro?

A bela Yousi suspirou. Muitos eram os olhos que a fitavam. Esboçou um sorriso que a tornou mais linda do que nunca. Os olhos verdes refletiam uma melancolia tão profunda! Desaparecera a arrogânsia desafiadora que, por vezes, a tornava tão antipática. Os cabelos estavam penteados para trás; a pele sua­ve, tépida, dava-lhe maior encanto e sedução. Vestia um elegante modêlo cinza. O traje era de passeio. Os sapatos tinham saltos muito finos e altos. Sempre fora exótica e, agora, mais ainda porque abandonara a atitude de provocação.

A mudança na personalidade de Yousi fora obser­vada por todos, e, com razão de sobra, apontavam o artífice de tão maravilhosa obra: Pedro Olaizola.

— Você tem muita sorte, Yousi — dizia Paulina Montoya. — Como eu a invejo!

A Srta. Sardá ergueu os olhos e perguntou:

—    Por que me inveja?

—    Pelo noivo esplêndido que arranjou.

Uma risadinha sardônica acolheu as palavras. Noivo esplêndido! Que triste ironia, que grande ab­surdo! A moça mimada e bafejada pela sorte nunca se imaginara, algum dia, em situação tão aflitiva.

Todos falavam de Pedro como se fosse seu noivo. Ela era obrigada a sorrir e a consentir. Na verdade, ignorava com que intuito Pedro a cortejava, passeiava com ela e chegara a ponto de beijá-la. Ah, como se sentia envergonhada!

Ela que sempre fora orgulhosa e altiva, ela a mais soberana das criaturas, sentia-se humilhada e submis­sa ante a vontade de um homem que não conseguia compreender.

Mordeu os lábios e desviou o olhar de Paulina. Esta saíra a dançar com um dos companheiros de mesa. Ficaram a sós Yousi e Cora.

Cora só fazia abanar a cabeça e terminou por co­mentar:

— Acabaste tropeçando, Yousi. É uma pena. Sempre acreditei na sua e na minha invulnerabilidade e ambas terminamos por perder a cabeça.

— Não vai me contar que também se apaixonou.

—    Esta é a verdade, amo a Carlos Miranda.

Yousi sobressaltou-se e encarou a amiga. Esque­ceu seus problemas pessoais para só pensar no que Co­ra acabara de lhe dizer.

—    Está falando sério, minha amiga?

—    Tão sério quanto estou a seu lado.

— Estamos as duas no mesmo barco. Eu me apaixonei por Olaizola e não sei o que vai ser de mim.

—    Você vai casar breve, Yousi.

— Acha graça que sobre Esse assunto todos es­tejam mais adiantados do que eu. A verdade é que ignoro tudo sobre o meu propalado noivado.

— Mas já ouvi milhões de vezes dizerem que es­tá noiva.

—- Nesse caso, pode compreender como me sinto humilhada.

— Será possível que Ele ainda não tenha proposto a você? Quer dizer que nunca lhe falou a respeito?

— Não me disse palavra. Nem sequer sei por­que passeia tanto comigo. Cora, tenho ganas de man­dá-lo plantar batatas, e, todavia, falta-me coragem. Quando o desfeiteei a primeira vez Ele nada significa­va para mim, não lhe tinha sequer simpatia. Hoje, tudo mudou. Estou apaixonada, perdidamente apai­xonada. Minha vontade se dobrou ante o meu gran­de amor. Falta-me moral para continuar lutando. Chego a ter medo de mim mesma. Sempre imaginei que fosse eu quem dominasse os homens, e acontece exatamente o contrário.

— Seria maravilhoso se fossemos correspondidas na nossa paixão.

— Sim, seria maravilhoso. Eu só estou certa do meu carinho por ele. Pedro não tem coração.

Cora acercou-se mais da amiga.

— Nunca a julguei capaz de amar a alguém. Ve­jo que o milagre se operou. Por que não faz um esforço e se afasta dele?

— Não posso. Prometo a mim mesma nunca mais revê-lo e quando Ele aparece lá se vão minhas ânsias de liberdade. É uma coisa extraordinária. Sabe como me enlouquecer. Me beija como sempre quis ser beijada e não consigo fugir ao circulo de fer­ro que me aprisiona.

— Yousi, receio que Olaizola está vingando a humilhação que lhe impusesse cinco anos atrás.

—    Falas a verdade; Ele pode se orgulhar do êxito.

Incrível como a orgulhosa moça mudara, a ponto

de confessar sua paixão. Inacreditável! Cora conhecia bem o coração duro da amiga. Inconcebível! Olhou com piedade para Yousi porque achava que a bela nunca seria feliz com um homem tão enigmático quan­to Pedro Olaizola.

Gostava, realmente, de Yousi e tinha medo pela amiga. Esta esboçou um sorriso esquivo.

— Querida Cora, a verdade é que se não me caso com Olaizola, não serei feliz com nenhum outro homem. Entreguei-lhe, sem sentir, todo meu ser. Re­cuperar a mim mesma é quase impossível. Olhou pa­ra a porta e observou entre os dentes:

—    Acaba de chegar, Cora. Encaminha-se para cá.

— Olá, senhoritas — e foi se sentando ao lado de Yousi. — Parece zangada — apertou a mão feminina. Depois encarou Cora. — Que foi que lhe fizeste, Cora? —- e sem aguardar resposta, avisou: — É bom não esperar por Carlos, ficou de plantão no sanatório.

Cora retrucou aborrecida:

— Por que deduz que estou a espera dele? Não me interessa.

— Se tivesse falado com menos ímpeto, eu teria podido acreditar.

— Não sei como você pode tolerar um indivíduo tão antipático.

— Yousi me aceita como sou. Vou contar a Miranda que você está no clube. Não vai ficar satis­feito.

Cora saiu da mesa e foi reunir-se a um bando alegre em outro local da sala.

Os dois ficaram sós.

—    Estou muito atrasado.

—    Um pouco, aonde esteve?

— Na casa de minha irmã. Amanhã levo-a até lá. Quero que fique conhecendo Berta.

—    Conheço Berta e também a Rafael.

—    E Eles a você?

—    Quem não me conhece na cidade?

—    Começo a ter ciúmes, Yousi.

— Você ciumento? É difícil, primeiro precisa aprender a amar.

Pedro fitou-a com firmeza e uma ironia quase imperceptível invadiu-lhe o olhar. Yousi se sentiu desconcertada.

—    Não gosto que me olhe assim.

— Nunca a vi tão bela — e depois baixando a voz, continuou. — Não sabe do que sou capaz para obter um carinho. Saímos a passear?

— Mas apenas acaba de chegar — murmurou, nervosa.

A proximidade dele a deixava desarvorada. Aque­las pupilas penetravam o seu ser. Nenhum pensamen­to, nenhum estremecimento passavam desapercebidos ao olhar inquisitivo, por vezes cruel, e que parecia go­zar o martírio que ela padecia.

— Não importa. Tenho ciúmes. Não posso to­lerar que outros a fitem, que exista um sorriso seu que não seja meu. Sou muito exclusivista.

— Do meu carinho? — e não pôde esconder a angústia que a pergunta continha.

— De tudo o que é seu. Vamos dar um passeio. Quero tê-la a meu lado, só para mim.

Automàticamente, pôs-se de pé. Sempre termina­va por fazer o que Ele queria. Antigamente não era assim; seu coração era livre e seus menores desejos eram ordens. Tudo mudara. Estava vencida e tudo tão natural que não compreendia como não fora sem­pre assim.

Ele segurou-lhe um dos braços, e, juntos, atraves­saram o salão. Eram um belo par; ambos altos e ele­gantes. A elegânsia e distinção de Pedro eram inigua­láveis. Vestia um terno cinzento de corte admirável. A cabeça altiva de cabelos negros, mesclados de fios prateados tornavam a figura mais viril, mais atraente. Ela, fina, com cintura de vespa, rosto exótico, aclarado pelo luminoso dos olhos verdes. Uma estatueta rara.

Os olhares seguiam o par. O incidente de cinco anos atrás ficara esquecido. Tanta coisa acontecera e o tempo tudo apaga.

Só Cora se lembrava. Através o cristal transpa­rente do cálice de licor revia o rosto transtornado de Olaizola. Viu os lábios se mexerem e ouviu: "Eu não valho nada".

 

Era noite de lua. Os raios pálidos iluminavam a estrada. Yousi estava recostada na velha grade de ferro. A seu lado, Pedro.

Passearam a tarde toda. Dirigiram-se a pé para o palacete dos Sardá. Ficaram quietos, bem juntinhos, encostados ao gradil. Foi quando Pedro perguntou:

— Por que me olha desta maneira? O que vê em mim?

—    Não sei, é esta minha tortura.

—    Porque tortura?

—    Por que sinto medo.

—    Medo a meu lado? Não seja infantil, Yousi.

Ela se movimentou inquieta. Aspirou forte e de um ímpeto, há muito sopitado, segurou com mãos trêmulas o rosto varonil.

— Por que agiu assim comigo? Porque voltou a me procurar? Por que me enlouqueceu? Eu vivia tran­qüila, imune ao amor. Nada mais é como antiga­mente.

E a voz se estrangulou na garganta. As mãos se fizeram mais meigas, mais febris. Curioso, Olaizola não estremeceu sequer ante aquela mulher formosa que lhe oferecia seu carinho. Desinteressara-se dos olhos verdes, da boca sensual, das mãos que apertavam seu rosto e lhe transmitiam calor.

— Afinal, aprendeu o que é o amor — foi a frase de Pedro.

De novo, Yousi aspirou forte. Não tinha mais forças para prosseguir. A impassibilidade do homem, os olhos cinzas, os lábios crispados lhe causavam um mal-estar profundo.

— Esqueça-me — suplicou Yousi. — Apague mi­nha existência de sua mente. Quero viver em paz. A seu lado, respiro em sobressalto. Nunca adivinharei como pensa e o que quer. Nunca poderei compre­endê-lo, porque me recusa sua ajuda. Desapareça, su­ma — estava fora de si, e Pedro pensou que nunca a vira tão bela como aquela noite, excitada pelo amor, banhada pelo luar. — Ainda que me peça em casa­mento, não aceito, porque, porque...

Pedro sorriu e cingiu-a pela cintura. Apertou-a contra o peito e viu os olhos verdes coalhados de lá­grimas. Teve um sensação desagradável. Vê-la chorar, nunca. Queria tê-la a seu lado desafiadora e soberba: humilde, nunca. Yousi chorava silenciosa­mente.

Pedro apertou-a mais forte, chegou a machucá-la. Depois largou-a de súbito e com raiva, disse:

— Vai para a casa e descanse. Está muito ner­vosa.

Sem mais, afastou-se e perdeu-se na escuridão da noite. Yousi tampou a boca para sufocar o grito de impotência que lhe vinha da alma para os lábios.

Quis correr atrás dele. Queria saber o porquê da frase contundente. Precisava saber o que Pedro pensava, com que paixão a queria. Porém, seus pés se negaram a carregá-la. Ficou quieta, rígida, as mãos presas à grade de ferro.

 

Estava no pequeno salão, afundada numa poltro­na. Tinha os braços caídos ao longo do corpo; era a imagem do desespero.

Seis pais a olhavam aflitos, sem saber o que dizer. Foi a mãe quem primeiro falou. Segurou a mão da filha.

— Queridinha, está com frio. O melhor é ir para a cama.

— Que aconteceu, filhinha? — perguntou o pai. — Brigou com Olaizola? Ainda esta tarde me felicita­ram pelo seu enlace próximo. Estava no Ateneu.

Yousi sacudiu a cabeça e soltou uma gargalhada histérica.

— Não sei porque não desmentiu, papai. Eu própria nada sei sobre casamento com Pedro.

— O que está dizendo, filha? Todo mundo só fala nisso.

— Pedro nunca me disse uma palavra a Esse res­peito. Quanto à minha saúde, não precisam se preo­cupar. Uma enxaqueca passageira.

Levantou-se com esforço. As pernas lhe tremiam. Não queria assustar os progenitores. Disfarçou.

— Não se fala mais no assunto. Afinal o casa­mento é o estado de vida mais natural para uma mu­lher. Talvez me case.

— Mas se Ele não lhe disse nada — ponderou a mãe.

— Hoje, é diferente. Quem sabe Pedro quer me apanhar de surpresa.

—    Filhinha...

— Por favor, papai, preciso dormir e descansar. Pedro me achou muito nervosa. Pede à criada de quarto que me leve um copo de leite. Estou sem apetite, só quero repousar.

E subiu para seus aposentos. A mãe não cabia em si de espanto. Sacudia a cabeça e repetia:

—    Não estou entendendo nada, querido,

— Nem eu. Yousi mudou muito estes últimos tempos.

—    É que está apaixonada de verdade.

—    Acha possível?

— Basta olhar para nossa filha e ler nos seus olhos que está amando.

— Nesse caso, o melhor é não aborrecê-la. Estou contente por saber que Yousi está apaixonada, e se o objeto de seu amor é Olaizola, podemos nos consi­derar felizes.

—    É aguardar.

A mãe não estava tranqüila. Sua filha fora sem­pre tão volúvel e caprichosa. Enfim... talvez Olai­zola a tivesse domado. O melhor era entregar a Deus a felicidade da filha e esperar pelo desenrolar dos acontecimentos.

 

                                                 CAPÍTULO IV

Durante três dias, Yousi não saiu de casa. Ficava horas e horas atrás da vidraça da janela, olhando para o jardim. Depois voltava para o leito e ficava estirada a fio comprido, pensamento nele e coração sangrando constantemente.

A continuar por muito tempo assim, acabaria por enlouquecer. Ela que sempre se julgara invulnerável; ela que se rira da felicidade caseira das amigas; ela que caçoara de Paulina, quando esta lhe confessara a paixão pelo médico; ela estava apaixonada, e só então compreendeu o que sentiam as amigas pelos noivos e maridos; compreendeu o sentimento de Cora por Car­los Miranda.

Yousi não queria amar; recusava o amor. Por que sofrer, desesperar-se para não chegar a alguma con­clusão?

Aquela manhã não se levantou da cama. Disse que estava doente, com muita dor de cabeça e o dia todo não saiu de seus aposentos. Esperava uma cha­mada telefônica, uma carta, alguma demonstração de que Olaizola se interessava por ela. Nada.

Apesar de tudo não podia deixar de amá-lo. Não era mais carinho o que sentia por Ele; era adoração, idolatria.

Os jornais noticiaram na coluna social que a Srta. Sardá estava acamada.

Yousi leu a notícia e aguardou em vão um cha­mado telefônico. Silêncio da parte dele. As amigas desfilaram em visita. Recebeu flores dos admiradores, cartões de visita dos amigos; de Pedro, nenhuma pa­lavra. Quanto mais esperava, mais se mortificava pe­lo desprezo de Olaizola.

Várias amigas estavam com ela, naquela tarde. Um ramo de flores frescas decorava o quarto. Mimo de um amigo, acompanhado por carinhoso cartão de visitas.

Paulina admirou as flores e depois perguntou:

—    Presente de seu noivo, Yousi?

A doente sentiu um mal estar profundo. Odiou Paulina, mas porfiou por esconder sua decepção e mostrar-se amável.

— Sim — mentiu com desfaçatez. Era uma ver­gonha que Pedro tivesse se esquecido dela, sobretudo sabendo-a doente. — São bonitas e raras, não acha?

—    Dignas do belo par que formam.

Yousi, se pudesse, teria fulminado a amiga com o olhar. Esta, na sua ingenuidade, não escondia o en­tusiasmo que tinha pelo grande médico e homem atraente.

Paulina não se demorou. As outras amigas foram se retirando aos poucos, e, por fim, Cora e Yousi fi­caram a sós. Esta última pronunciou com raiva!

—    Paulina é odiosa.

— Vê-se logo que tem um "quêzinho" por Olai­zola.

—    Você também observou?

— Paulina é uma ingênua e qualquer um nota suas preferências. Porém, mesmo que surgisse uma oportunidade para lhe suplantar na afeição do médico, não desceria a tal baixeza.

— Sim, eu sei. É inconsciente, mas muito boa pessoa.

— Não foi Ele quem lhe mandou a flores: con­fessa,

Yousi suspirou muito angustiada.

— Não — falou com voz sumida, — nem siquer se lembrou de minha existência. Será que não lê os jornais?

—    Deve ler como todo mundo.

Seguiu um silêncio. Yousi fechou os olhos.

— Não sei como isto tudo vai acabar, Cora — murmurou sem ânimo.

—    Em casamento, não tenho dúvida.

— Não, Cora. Acho que nunca me casarei com Ele. É tão incompreensível! Eu sofro tanto! Não sei sequer se me ama ou me detesta. As vezes, penso que me adora; outras, como da última vez em que estive­mos juntos, tenho a impressão de que me odeia com todas as fibras de seu ser.

— Pura imaginação sua! Quando um homem não gosta de uma mulher, não anda com ela a todas as horas do dia. Olaizola é um homem um pouco enig­mático, e assim são os homens que despertam as gran­des paixões. Você não é mulher de apaixonar-se por um homem sem complicações psicológicas. Precisa de uma criatura mais complexa e terminou por encon­trá-la. O melhor é não ficar pensando. Procure dar um passeio amanhã. Faça um esforço. Afinal, Pe­dro pode ignorar se você está morta ou viva.

— Vê, se Ele de fato me amasse, teria agido de outro modo. Você mesmo reconhece a estranheza do procedimento.

— Não reconheço nada. Pode ter acontecido que esteja assoberbado de trabalho no sanatório. Quem sabe não abandonou seu posto nestes últimos três dias.

— Ora, para um telefonema sempre sobram al­guns minutos.

— Agora o melhor que tem a fazer é descansar e não pensar. Amanhã nós nos vemos no clube.

E levantou-se para ir embora.

Yousi ficou só. Não pensar! Como se isso fosse possível. Não parava de pensar, e a incerteza a dei­xava como louca Quem sabe se ela telefonasse? Por que não? Não havia mal nenhum. Queria ardente­mente ouvir a voz amada, ainda que fosse para rece­ber um insulto. E a sua dignidade de mulher? E seu orgulho?

Instintivamente, pousou a mão no telefone. De­via ter coragem para discar o número.

Não, não podia. Recolheu a mão e cerrou os punhos. Esperaria até o dia seguinte. Certamente, ela o encontraria no clube, e Ele perguntaria por onde andara já que não a vira aqueles dias. Talvez não fosse leitor da coluna social. Sim, o melhor era espe­rar até o dia seguinte.

Escondeu a cabeça no travesseiro e fechou os olhos. Queria sonhar com Ele. Pensar em Pedro era uma magia encantadora.

— Ainda não nos deu notícias da saúde de Yousi, que está doente — falou Berta.

Pedro estava, negligentemente, sentado no braço de uma ampla poltrona. Arqueou as sobrancelhas e sorriu. Berta o encarou.

—    Será que não sabia que ela está doente?

— Claro que sabia, minha irmã. Tenho o jornal no bolso de meu paletó. Fiquei sabendo no mesmo dia em que deixou de sair de casa.

—    E não foi visitá-la?

Pedro acendeu um cigarro e fumou compassadamente. Depois preparou-se para se despedir. Espe­rava que o assunto Yousi não seria repisado. Enga­nou-se. Berta só tinha a senhorita Sardá no pensa­mento. Pedro não teve outro remédio senão respon­der.

— Não julguei de bom alvitre. Se já tivesse pe­dido sua mão, seria diferente.

—    Quando pensa fazê-lo, Pedro?

—    Breve.

Berta remexeu-se inquieta no divã. Era nervo­sa por natureza. A impassibilidade do irmão a des­concertava.

— Os passeios constantes de ambos estão susci­tando comentários na sociedade, Pedro.

O médico se levantou.

— Querida amiga, o mundo é muito curioso e im­pertinente. Envolver-se em assuntos tão pessoais!

—    Acha que o caso é tão exclusivo assim?

— Claro, Tenho que ir embora Berta. Volto breve e falaremos sobre Yousi com mais vagar.

— Vai Pedro, mas fique sabendo que não estou nada satisfeita com você.

Pedro poderia ter respondido que Ele também não estava satisfeito. Preferiu não dizer nada. Acariciou o queixo da irmã e saiu.

Berta ficou com os olhos cheios d'água. Pedro era tão especial, tão estranho! Nunca se podia adivi­nhar-lhe o pensamento ou a próxima frase.

 

                                             CAPÍTULO V

Dois dias depois, Yousi decidiu-se a sair de casa. Guiava seu conversível e pisava o acelerador com for­ça. O pequeno veículo sumiu-se na poeira da estrada.

Era uma manhã sombria. Uma neblina toldava o ambiente. Não fazia frio. Yousi trajava blusão preto, fechado no pescoço; saia escocesa que lhe marcava a cintura esbelta. O cabelo se escondia sob um gorro de lã escura. Estava atenta à estrada que se desen­rolava como uma serpente. Olhou para o casacão beige que repousava no assento ao lado. Teria que utilizá-lo para descer do automóvel no sanatório.

Yousi tomara a firme decisão de visitar Pedro no seu quartel general. Precisava falar com Ele. Era algo mais forte do que sua vontade. Acordara-se com o firme propósito de avistar-se com Ele. A única maneira segura era procurá-lo no sanatório.

O automóvel estacionou em frente ao edifício al­to, de muros brancos e desprovidos de decoração. Um calafrio de angústia percorreu-lhe a espinha. Pela primeira vez na sua vida, viu como era covarde.

Mordeu os lábios. Olhou em volta e sentiu uma pontada profunda. A dor que lhe ia n'alma subiu-lhe até a boca e converteu-se num soluço abafado. O edifício branco, com grandes terraços e luxuriantes jardins lhe trazia à mente Pedro. Pensou divisar a figura arrogante e altiva do médico de nomeada. "Igualzinho a Ele", pensou "desafiador e enigmático como Ele".

Sabia que sua vontade estava à mercê da de Pe­dro. Apesar de seu desejo intenso, uma voz interior lhe recomendava que devia retroceder. "Vai encon­trar um olhar frio e dominador. O rosto impenetrável não sorrirá e verá na sua boca uma expressão de de­sagrado. Volta, Yousi. Volta para sua casa, vai para o clube onde estão seus amigos, Pedro Olaizola está neste edifício em seu ambiente, um ambiente que não é o seu. Foge agora mesmo antes que a tentação pre­valeça. Domine seu carinho. Ainda é tempo; depois será tarde. "

— Meu Deus — e escondeu o rosto entre as mãos, — sou uma imbecil, file não merecia minha dedica­ção; é um ingrato.

Na realidade, não era assina que pensava. In­conscientemente, entregara-se a Ele de corpo e alma; não podia retroceder. Impossível afugentar- de seu coração o amor que a consumia.

Foi mais forte do que ela. Pisou o acelerador e manobrou em direção à cidade.

Fugir dele, fugir o mais rápido possível. Não bastava fugir, tinha que flertar com outro e esquece- lo para todo o sempre. Apagar aquele fogo que con­sumia seu coração.

Chegou ao clube e foi logo rodeada de admira­dores e amigos. A sensação foi de repugnânsia. Nin­guém, ninguém o suplantava. Não havia um que pos­suísse olhos tão límpidos como os dele. Nenhum prescrutava-lhe a alma como Pedro. A boca varonil, o corpo forte e belo, o poder que emanava de Olaizo­la não lhe saiam da mente. Os outros, comparados com Olaizola, eram fantoches; Ele era o único. E Yousi sentiu uma melancolia infinita.

Era a hora do castigo que soava. Brincara com todos os homens para depois ridicularizá-los, inclusive Pedro. Chegara a sua vez de perder o uso da razão.

Não levou a cabo sua intenção de divertir-se. Sentiu-se insignificante, esquecida. Não era a mesma Yousi que com um sorriso enlouquecia os homens. Perdera o sorriso e a audácia. Parecia-lhe que o mundo ia afundar-se a seus pés e sua fraqueza a enrai­vecia.

Durante três dias, freqüentou o clube com a es­perança de avistá-lo. Não o viu. Parecia que a terra tragara a Olaizola. Não ousava indagar por Ele, o orgulho não lhe permitia perguntar. Era um orgulho minguado, comparado com sua arrogânsia habitual. Mesmo assim ainda conservava forças para manter-se digna.

Seus pais a olhavam apreensivos. Não ignoravam que a filha se apaixonara por Olaizola e temiam que Este estivesse vingando a afronta recebida anos atrás. Todavia, não abriam a boca para interrogá-la. Ela transformara-se num autômato. Seu gênio folgazão modificava-se dia a dia. Nunca mais tornaria a rever Pedro.

Mais uma tarde...

 

Estava sozinha sentada num tamborete do bar. Tinha o olhar fixo no cristal do cálice. Estava quieta e silenciosa.

No salão ao lado, as amigas se distraiam. Yousi pensou que caçoavam dela. O abandono em que Pe­dro a deixara era patente e tinha certeza que não es­capava às ironias do bando alegre e despreocupado.

A música que chegava até seus ouvidos a enfadava. Há tantos dias que não sabia o que era dançar.

— Por que tão sozinha, Yousi? Que milagre é

Este?

A voz profunda congelou-lhe o corpo. Virou a cabeça altiva e bela; encontrou o olhar brincalhão dele.

—    Não sei porque eu tenho preferido a solidão.

Pedro vestia terno azul-marinho. Assentava-lhe

com perfeição. O corpo rijo e musculoso parecia mais arrogante naquele terno escuro. Nunca o vira tão altaneiro. Odiou a si mesma. Queria vê-lo amesquinhado ante seus amigos. Isto nunca seria possível.

Ri sonho, ocupou um tamborete alto ao lado da bela Yousi. Aproximou o rosto do dela e nossa he­roína aguardou a pergunta que iria inquirir sobre sua saúde, sobre o motivo de sua ausência tão prolongada. Viu-se frustrada.

-— Está muito bonita, querida. Seus olhos trazem um brilho estranho. Não obstante desdenhar a com­panhia de seus semelhantes, sei que a minha não a estorva.

— Como é vaidoso! — retrucou, dissimulando seu desapontamento.

— Vaidoso? Bem sabe que não fala a verdade. É defeito que não possuo.

— Pode ser que você se julgue assim. Porém, a realidade é muito outra.

A resposta foi um risozinho concentrado. O de­sespero dominou Yousi; não podia mais se conter. Estava alucinada, vendo-o tão indiferente a seu lado, e ela tão loucamente apaixonada.

Nem uma pergunta, nem sequer uma queixa. Nada. Falava com naturalidade. Parecia não sentir a ausência de uma semana. Esquecera a despedida abrupta da última vez que estiveram juntos.

—    Vamos dançar, querida?

—    Não, jurei nunca mais dançar.

—    Por que Esse juramento?

Levantou-se. Pedro fez o mesmo. Yousi deixou o clube e foi para a rua. Olaizola acompanhou-a. Yousi estacou e fitou-o bem nas pupilas.

— É um cínico, Pedro, e peço-lhe o especial fa­vor de nunca mais voltar a me procurar. Está me importunando.

— Desculpe. Nunca desconfiei que minha com­panhia a aborrecesse.

— Pois andou muito enganado. Não quero mais nada com você.

Olaizola encolheu os ombros e deu meia volta.

— Até outro dia, Yousi — e voltou para o in­terior do clube.

A Srta. Sardá ficou só e desesperada. Nunca fora tão humilhada. Bem verdade, Ele não fizera outra coisa senão rebaixá-la. Tomou seu automóvel e per­deu-se na estrada. Seus olhos estavam coalhados de lágrimas e continha-se para não soluçar. Não seguiu o caminho de casa. Horas e horas conduziu a esmo pela estrada.

Não concebia que em tão pouco tempo tivesse mudado tanto.

 

                                               CAPÍTULO VI

Deixou o carro estacionado em frente ao palacete e desceu.

A figura de um elegante automóvel parado um pouco adiante, prendeu-lhe a atenção. De quem podia ser? Quem estava visitando seus pais? Não que­ria ver ninguém e embrenhou-se no parque, penetran­do no palacete pela entrada de serviço.

Uma empregada veio ao seu encontro.

—    Seus pais a esperam no salão.

Fez uma careta de contrariedade. Desagradava- lhe ter que enfrentar os pais, naquelas circunstânsias. A quem queriam apresentá-la?

Ora, devia ser a alguma solteirona que certamen­te iria indagar quando seria seu próximo casamento. Não, não ia. Não podia suportar as cacetíssimas ami­gas de sua mãe.

—    Diz que ainda não cheguei, Rosa.

—    Os amos a viram descer do automóvel.

Com um gesto de amuo, acedeu.

— Bem, vou. Só por uns instantes. Depois você aparece e diz que me chamam ao telefone.

—    Combinado, senhorita.

Mais calma, foi para o salão de visitas. O hóspe­de devia ser importante, porque acolhido com todas as marcas de consideração.

Sorriu irônica. Se algum dia se casasse, aboliria toda a cerimônia no seu lar. Antes gostava de pavonear-se, hoje, tudo que não fosse natural e espontâneo a cansava.

Atravessou o amplo vestíbulo. Olhou-se no espelho. Estava bonita, porém discreta no seu traje. Não escandalizaria as amigas da mãe. Ia cruzar a porta do salão, quando estacou, rígida como uma es­tátua.

Estava enxergando bem? O que via não seria fru­to de sua imaginação exaltada?

Abriu e fechou os olhos. Voltou a abri-los. Sim, estava enxergando certo. Eram figuras de carne e osso. Aspirou o ar exauriu forte e avançou com pas­so de princesa.

Lá estavam Pedro Olaizola, sua irmã Berta e o cunhado Rafael. A que vinham? Por que a expres­são feliz do pai? Por que a mãe olhava Pedro com ternura, como se contemplasse a um filho? Não en­tendia nada, e, se a situação perdurasse, encheria o ambiente com um grito de angústia.

Colocou-se de pé ao lado da mãe. Muda, calada. Não soube sequer pronunciar um "Boa noite". Tudo tão estranho, tão fora do comum.

O pai levantou-se e pousou-lhe a mão no ombro,

— Querida Yousi, os senhores Salaverria acabam de pedir sua mão para Pedro Olaizola. Estamos muito satisfeitos e lhes auguramos um mundo de fe­licidade.

Ouvira bem? Quando voltaria a realidade? Não conseguiu pronunciar palavra. Todos a beijavam: Berta, Olaizola, o marido Rafael, seu pai, sua mãe.

Só via uns olhos cinza de aço, de expressão indefinível. Como sempre não soube ler no olhar. Frio e inescrutável como de hábito. Sorriu vagamente e só pensou em vingar seu orgulho domado.

"Sim, devia recusar o pedido. Devia desprezá-lo diante da irmã e do cunhado, diante de seus pais. Fal­ta-me coragem. Estou apaixonada e derrotada".

Era uma mulher indefesa ante o avassalamento da paixão que lhe transbordava do coração e da alma. Depois sentiu uns lábios que lhe roçavam a face. A voz que a seduzia, murmurou:

—    Disse-lhe que viria.

Cínico, pensou. E novamente, faltou-lhe a ga­lhardia para desafiá-lo.

— Sim, compreendo — ninguém reconheceria ne­la a orgulhosa Yousi Sardá.

Só sabia recordar a cena. jantaram todos juntos na luxuosa sala de jantar. Conversaram, e ouvia Pedro Olaizola, seu noivo, descrever o lar que habitariam. Disse que morariam no seu apartamento de solteiro e que iria redecorá-lo a gosto da noiva. De­pois seus pais e Berta falaram sobre a viagem de núpcias. Fariam a volta ao mundo e ficariam ausentes doze meses. "Maravilhoso" ouviu Berta exclamar. Neste instante, procurou o olhar de Pedro e viu o sorriso de mofa. O sangue lhe esquentou nas veias.

"Por que aceitava a idéia do casamento, se não tinha a certeza de ser feliz. É um castigo do céu. Meu Deus, por que tanto sofrimento? Por que.

Sem saber como, terminou a refeição e encontrou- se no terraço com Pedro a seu lado.

— Por que fez um papel desses, Pedro? Você não me ama, nunca me amou.

—    Nunca?

Os lindos olhos verdes o fitaram com tristeza.

—    Vou me casar com você. Não sei, na verdade, o que pensa, o que sente.

— Ora, e que adianta saber? Eu mesmo, muitas vezes, chego a duvidar da minha própria maneira de ser.

     — E, não obstante, vai se casar comigo. — Por que a desejo.

Falou bruscamente, como quem não queria ouvir réplica. Yousi colocou nos ombros varonis as mãos finas, nacaradas.

— Olhe-me bem dentro dos olhos, Pedro. Sabe que me caso com você loucamente apaixonada. É uma vergonha confessar tão claramente meu amor. Quero que você venha a mim com o mesmo frêmito de paixão. Se tal não acontecer, juro que renuncio ao matrimônio. Afinal, vivi...

A voz dele cortou brusca.

—    ... flertando e namorando.

—    Pedro!

— Perdoa, amor. Estou nervoso esta noite. Não está nos meus hábitos jurar; mas garanto que me caso com você, porque lhe quero bem, porque vai ser uma grande senhora Olaizola, porque trago sua imagem dentro do meu ser. Se quer, chama ao meu sentimen­to de amor. Não lhe dê outro nome.

— É muito frio! Fala de amor como se fosse um negócio, como se nosso casamento atendesse às suas conveniências. O amor para mim, Pedro, é algo de grandioso, algo de que não se fala. Nunca pensei assim, mas agora que o sofrimento me forjou, sei que é.

—    Quer dizer que me ama de verdade. Isto é uma grande satisfação.

Yousi deixou cair os braços ao longo do corpo e suspirou.

— É um homem incompreensível, Pedro.

— Apesar de ser essa sua opinião, vamos nos rasar.

— Por que vai se casar comigo? Por que vai se amarrar a mim? Você não me ama; é incapaz de amar. É... é...

Pedro inclinou-se até o rosto feminino e segurou-o entre as mãos. Ergueu-o até Ele e falou com entona­ção profunda:

— Sou seu futuro esposo e isso é para mim a maior ventura.

Yousi não entendeu a entonação da voz, só com­preendeu o significado das palavras. Ela o amava e tudo o mais lhe era indiferente.

Apertou-se de encontro ao peito másculo e ergueu os braços. Os rostos ficaram muito unidos. Os belos olhos pareciam braseiros. Pedro pensou que aquela luz ia incendiá-lo. Tal não aconteceu, seu coração estava envolto numa couraça.

Num murmúrio, Yousi recordou:

— Depois de sua longa ausência, quando me re­viu, afirmou que nunca me esquecera.

— Disse a verdade. Uma mulher como você é inesquecível para um homem como eu.

E os olhos de aço brilharam estranhamente. Se Yousi tivesse percebido o brilho, teria tremido de pa­vor. Não percebera.

— Pedro, quero que me ame muito, me mime ar­dentemente.

Um beijo apaixonado e quente foi a resposta. Yousi correspondeu do mais profundo do seu ser. De­pois sentiu a dor da embriagues. Sentiu-se só e aban­donada. Aquela fusão de sensações causou-lhe uma vertigem. Parecia que estava caindo e que nunca mais se ergueria.

Recolhida ao seu quarto, pensou nele e teve a impressão de que o coração lhe saltava pela boca. Como doía! Por que a angústia, o sofrimento, se den­tro de três semanas estaria casada com o homem a quem amava por sobre todas as coisas?

Recusou-se a pensar e dormiu um sono sobres­saltado.

Os dias que mediavam para o casamento foram passados num torvelinho. Modistas, vestidos elegantes e custosos, visitas ao joalheiro. Não podia parar para meditar. Pedro vinha todas as noites e as horas passa­vam voando. Já não inquiria porque o olhar do noi­vo era cada dia mais impenetrável. Ele era tão esqui­sito, mas ela o amava tanto e tanto.

No dia seguinte era a cerimônia do casamento, às seis horas da tarde. Seria seguida de recepção e banquete no palacete dos Sardá.

 

                                                   CAPÍTULO VII

O que a cidade tinha de mais seleto estava presente ao enlace da bela Sardá e do famoso médico. Poucos foram os que acreditaram no casamento pró­ximo. Agora era fato consumado e a opinião unâni­me era esta: "Não se podia esperar outra coisa, ambos jovens, belos, de famílias tradicionais. Formam um casal maravilhoso".

O parque do palacete Sardá estava entupido de automóveis. Seus donos, na capela da propriedade, aguardavam a entrada da noiva. Muitos convidados estavam espalhados pelo parque, e os mais íntimos no terraço.

Flores e mais flores ornamentavam o palacete. Um régio tapête guarnecia o caminho para a capela, indicando por onde Yousi ia passar. Poucos casamen­tos seriam tão aparatosos como aquele. Era natural: a beleza do par se unia; a projeção do noivo; a tradi­ção de ambas as famílias. A emoção começava a in­vadir os corações.

Aproximava-se o momento solene. Pedro, pelo braço da irmã, entrou na capela. Estava mais belo e varonil do que nunca. Vestia com apurada elegânsia e naturalidade o traje de grande cerimônia.

Depois, numa nuvem de tulle e gaze, a noiva avançou pelo tapête vermelho, conduzida pelo braço do pai. Yousi estava divina, deslumbrante como nunca aparecera. Era a bela dentre as mais belas.

Um murmúrio de admiração acolheu sua aparição. Os olhos de Olaizola se fixaram no rosto pálido de sua futura esposa e ela tremeu. Nunca compreenderia a rigidez do rosto do marido; estranhou a boca que não expressava coisa alguma; o olhar baço e frio. Enigmá­tico e impenetrável!

Com o coração aos saltos, as mãos trêmulas, Yousi se ajoelhou frente ao altar. A marcha nupcial gemera seus últimos acordes. O sacerdote deu início à cerimô­nia do casamento religioso.

Yousi, mãos postas, rezava com fervor. Colocava toda sua alma na prece. Tinha a impressão de que não era a cerimônia do seu casamento com o homem que amava. Tinha a impressão de que estava ajoe­lhada sobre uma grade de ferro incandescente e que começava seu martírio de dor e desespero. Não sabia o porquê daquele pensamento. Terrível, ainda podia retroceder, romper a barreira da ilusão. O sa­cerdote perguntava se ela aceitava Pedro Olaizola por marido. Respondeu um "sim" tremido.

Depois tudo se apagou; a função religiosa terminara e Eles eram marido e mulher. O som da marcha nupcial feriu seus ouvidos. Mais tarde encontrou-se no jardim, e os olhos cinza aço estavam cravados nos seus. Fixavam-na de tal maneira que lhe trespassa­vam o ser. Pedro beijou-lhe suavemente os lábios. Yousi tremeu. O beijo era de gelo e seu sangue se congelou nas veias. Que impressões absurdas! Nunca pensara que acontecimento tão solene lhe trouxesse sensações tão estranhas e descabidas às circunstânsias. Queria ser feliz e afugentar os pensamentos trágicos de desdita.

Suas amigas desfilaram, beijavam-na e desejavam- lhe felicidade. Apertou mãos. Beijou a Berta e Ra­fael e, numa ânsia incontida, abraçou aos pais. Não queria se desprender dos braços carinhosos e amigos. Ao lado dos progenitores, sempre fora ditosa e afastar- se deles era por fim a um mundo que sempre lhe quisera bem.

Mais tarde, mudou de roupa. Dançou, riu. Carlos Miranda lhe recomendou que tivesse cuidado; Olaizola era um ogro. Viu, numa nuvem, Pedro que

conversava com um luminar da ciência médica e mais dois senhores. De longe, Ele lhe sorriu convencional­mente e engolfou-se na conversa. Por que não acorria a seu lado? Ela ansiava por Ele. Estava nervosa e ex­citada.

O banquete foi no jardim. O baile teria lugar nos amplos salões do palacete.

"Oh, Yousi, como lhe invejo a felicidade! Sua viagem ao redor do mundo vai ser única. Não esquece de me trazer uma lembrança exótica. Está me ouvin­do, Yousi?"

Assim se expressavam as amigas. Uma solteirona, conhecida da família, recomendou-lhe que incluísse Florença no seu roteiro. Outra sugeriu Berlim, capi­tal maravilhosa e muito em moda.

Ela limitava-se a sorrir. Todos falavam de sua viagem de núpcias. Ela ignorava tudo. Pedro nada lhe dissera a respeito. Ouvia os comentários da mãe e de Berta. Mencionavam cidades, prazos de permanên­cia, e ela percebia a fixidez do rosto de Pedro. Não dizia nada. Sorria enigmático. Quando a sós, ela falava sobre a viagem, Ele sorria e mudava de assunto de maneira tão sutil que Yousi não via como rebelar-se e insistir.

Cada reflexão de suas amigas sobre a viagem de núpcias era um espinho no seu coração. Sua inquie­tude aumentava. Incrível que a jovem orgulhosa e dominadora passasse por aquele transe que a humi­lhava e a enchia de ridículo aos olhos de todos.

Os convidados se retiraram bem antes da meia- noite. Pedro aproximou-se dela e segurando-lhe o braço, disse:

—    Querida, nós também devemos nos retirar.

Seu coração deu um salto. Pensou em tudo, viu o marido íntegro e belo com as pupilas em chama.

— Partimos de viagem? — perguntou com a voz cheia de esperança. — Quero me afastar disto tudo.

— Logo a seguir. Primeiro, despeçasse de sua fa­mília.

O palacete permanecia iluminado, mas solitário. Fora-se o bulicio dos convidados. Viu os pais e o ca­sal Salaverria conversando amigavelmente no amplo vestíbulo.

— Estamos de partida — falou Yousi no patamar da majestosa escadaria.

Berta encarou o irmão e sorriu feliz. Nunca acre­ditara que o namoro de Pedro iria terminar em casa­mento. Era tão incompreensível! Agora, sim, agira como um homem igual aos outros. Apagara-se a re­cordação daquela manhã em que Pedro fora proibido pelo pai de caçar com os amigos... Tantos anos se passaram desde aquela data. Talvez tivesse modifica­do sua tempera. Não podia imaginar que aquela noi­te marcava o princípio da vingança de Pedro. Como podia calcular? Eram irmãos e era natural que Pe­dro tivesse herdado sua natureza meiga e afetiva, in­capaz de guardar rancor, e desejar mal aos outros. A verdade é que os temperamentos não eram afins. Só existia a semelhança física. Tudo o mais fazia com que um diferisse do outro.

— Embarcam hoje? — perguntou Berta ao irmão, enquanto o Sra. Sardá conversava com a filha, um pouco afastada, e a ajudava a arrumar a bagagem.

—    Para onde, Berta?

—    Para a viagem ao redor do mundo.

— Hum, receio que não possa sair nem hoje nem amanhã nem dentro de três semanas. Estou asso­berbado de trabalho.

Berta apertou os lábios e olhou em volta. Ninguém podia ouvi-los. Rafael e o Sr. Sardá olhavam o jardim, encostados ao peitoril da janela. Conversa­vam sobre as dimensões e valor da propriedade. Ra­fael estava interessado na aquisição de uma casa de campo.

Berta, nervosa, encarou o irmão.

— Quer dizer que não sabe quando vai fazer sua viagem de núpcias?

—    Por enquanto, nada sei, querida.

— Pedro, se vai fazer uma coisa dessas é um ca­nalha. Toda a cidade sabe sobre a projetada viagem de ambos ao redor do mundo. Se não a realizam, Yousi cairá no ridículo.

Pedro enfiou as mãos nos bolsos das calças e tranqüilamente balançou-se sobre as pernas.

— Querida irmã, não fui eu quem propalei sobre a viagem. Se a anunciaram antecipadamente, a culpa não é minha.

        Pedro, estou envergonhada de você.

— Oh, Berta, não veja tempestade em um copo d água. Sabe como me desagradam cenas. Pronto, temos a formosa Yousi de volta.

Elegantemente trajada, a Sra. Olaizola assomou no topo da escada. Vinha acompanhada por sua cria­da de quarto que carregava duas maletas de viagem.

Estava radiante. Os olhos brilhavam e a boca lhe tremia de emoção. Berta achegou-se mais ao irmão, respirou forte e murmurou:

— Se você a faz infeliz, Deus vai castigá-lo. Eu nunca lhe darei perdão.

Pedro não respondeu, estava olhando para Yousi. Quase sem mexer os lábios, lamentou para a irmã:

— É uma pena que não tenha um filho de minha idade. Ele seria extremamente feliz, se tivesse herdado seu temperamento.

— Você é um malvado, Pedro!

O irmão nem sequer a olhou; caminhava em direção a Yousi e tomando-lhe um dos braços, saíram para o jardim.

 

                                                   CAPITULO VIII

Berta os seguiu com o olhar.

Pedro sentou-se ao volante e Yousi no assento da frente, a seu lado. O carro arrancou em marcha mo­derada.

— Já tem as passagens, Pedro? Quando embar­camos e para onde?

— Não precisamos cie passagens, querida. Não vamos viajar.

Yousi soergueu o busto, espantada.

—    Está falando sério, Pedro?

— Sim, estou falando muito sério. Afinal, é a primeira vez que me caso.

—    Quer dizer...

—    Que não vamos viajar.

Yousi descambou a cabeça sobre o almofadão e ocultou o rosto. Pedro a olhou com ironia.

—    Isso a contraria tanto?

— Pessoalmente, não. Estando a seu lado, não me importa que seja aqui ou lá. Minhas amigas é que vão se divertir. Pode imaginar os comentários que vão encher a cidade, quando souberem que fica­mos por aqui mesmo.

O automóvel parou. Pedro desceu e ajudou a descarregar as maletas. Subiram a escadaria branca.

— A verdade, é que nunca conversei com você sobre planos de viagem — falou quando já estavam no elevador.

— Realmente, calava; mas quem cala, consente.

— Sou homem de poucas palavras, querida. A estas alturas deve estar ciente que não gosto que estra­nhos participem de meus planos íntimos — e arqueou uma sobrancelha com expressão de altivez. — Não posso viajar tão cêdo, talvez nem dentro de seis meses.

Assuntos de minha profissão me prendem nesta cida­de. Empatei quase todo meu capital no Sanatório e preciso zelar por Ele.

Yousi fechou os olhos e encostou o corpo na ma­deira que revestia o ascensor. Tinha frio. Frio no coração e na alma. Nunca pensou que sua lua de mel começasse de maneira tão prosaica. Nas suas noites de loucura, pensara no dia venturoso em que se uniria ao homem que amava. Tal data chegara e sua noite de núpcias se iniciava com uma conversa trivial que, em absoluto não atendia aos anseios de seu co­ração.

O elevador parou no andar pedido. Pedro ti­rou uma chave do bolso e entraram no andar em que se situava o apartamento. Yousi já sabia como era. Estivera lá inúmeras vezes com Berta, atenta à decora­ção. Teve a impressão que entrava num cárcere, o cárcere de suas ilusões.

— Este o nosso lar, querida — pronunciou em tom indiferente. — Que seja feliz como o deseja, são os meus votos.

Yousi pensou que talvez pudesse ser feliz, se Ele lhe desvendasse o que lhe ia n'alma.

— Só dispomos de dois criados — continuou Pedro. — Sei que não é como seu palacete. Acredito que são o suficiente. O apartamento não é grande.

—    Isso não tem importânsia — respondeu com

voz rouca.

— Quer beber algo? Vou pedir a Damião que nos prepare um refresco.

—    Obrigada, não quero nada.

— Quer que chame Catarina para ajudá-la a desempacotar a roupa?

—    Não é preciso.

Depois destas palavras, que foram ditas quase em soluço, entrou no quarto de vestir. Olhou, ausente, em derredor. Tinha o coração pequenininho. Nunca imaginara sofrer naquele momento o que nunca sofre­ra em toda sua existência. Perguntava-se porque uni­ra sua vida àquele homem frio que imóvel olhava pa­ra ela, não como se ela fosse uma mulher bela e atraen­te — sua esposa — e, sim, como se ela fosse uma qual­quer. Para Ele, ela era ninguém, uma figura femini­na que se divisa na rua e que não atrai a atenção.

Sentiu o sopro de um vento frio que lhe penetrou os ossos. Por que o olhar inexpressivo do marido? Por que não a tomava nos braços e não a cobria de beijos até sufocá-la? Yousi preferiu a morte à humilhação que Pedro lhe infligia. Sua dignidade de mu­lher, seu orgulho feminino de criatura requestada e admirada, não podiam aceitar tanta indiferença.

Com que ânsia se teria aninhado nos braços dele! Como se entregaria de corpo e alma ao homem que amava, suplicando-lhe que lhe desse carinho e paixão! Nada disso aconteceu. Os olhos de aço se cravavam no rosto exótico e matavam qualquer manifestação de afeição. Deixavam-na inerte, desfalecida, decepcio­nada.

Olhou o aposento que lhe era destinado como dormitório. Era amplo, bonito. Duas grandes ja­nelas davam para a imensidão do espaço. Estava or­namentado com flores. Depois fixou a porta de co­municação com o quarto dele e sorriu com amargura. Nunca desejara habitações separadas. Suas amigas mais íntimas, casadas de pouco, lhe haviam explicado muitas coisas e sempre fizeram menção de quarto de dormir em comum. Para eles dois, tudo diferente. Ficavam separados por paredes grossas e uma porta. Casamento moderno, de conveniência; não uma união fruto do amor.

A voz sonora tirou-a de suas reflexões tristes.

— Vou dizer a Catarina para que suba. Você não pode, sozinha, arrumar seus vestidos e objetos de toucador.

Yousi virou-se nervosa. Pouco faltava para ex­plodir cheia de cólera acumulada.

— Não preciso de ninguém; e você mesmo, desa­pareça. Que está fazendo plantado no meio do quar­to? Por que não me ajuda? Não sei porque ainda o amo, devia desprezá-lo com toda a minha alma.

Calou súbito. Seus olhos refletiam uma angustia indescritível. Passou a mão pela fronte e sacudiu a cabeça.

Pedro dominou-se. Crispou as mãos no interior dos bolsos. Ela era terrivelmente bela e desejável. O que o mantinha quieto, impassível, era sua vontade de ferro. Graças a ela continha os apetites naturais num homem. Quem estava em situação de inferioridade era Yousi que não conseguia ler nas pupilas impene­tráveis os mil e um desejos que cruzavam a mente mas­culina.

— Falou em alma, Yousi. Nunca a teve, minha querida.

Yousi deu um salto. Ficou bem junto a Ele. O rosto traduzia a fúria que lhe ia no âmago. Ergue as mãos e cerrou os punhos próximos ao rosto dele.

— Nunca mais me chame de querida. Não me ama e essa expressão na sua boca carece de sentido. Afinal de contas, porque se casou comigo?

—    Por que é bonita?

—    Sou bela, mas você me odeia.

— Ódio e amor se confundem — sussurrou. — Complexo, não? Eu sou uma criatura complicada.

Pedro apertou os lábios. Yousi estava diante de si, bela, desafiadora, provocante, uma rainha. Era sua, lograra sua maior conquista. Ele a desejava com todas as fibras do seu ser; olhou àvaramente para os olhos verdes luminosos; viu a boca que embriagava, o corpo tentador, a pele macia, o cabelo negro e lustroso.

Yousi recuou até o mais recôndito do quarto. Os olhos de aço lhe transmitiam a mensagem tão ansiada e que agora queria adiar a todo custo.

—    Não — gritou, — assim não.

Pedro reagiu. Sua vontade triunfou. Deu-lhe as costas com um seco boa-noite. Uma porta bateu e só restou o silêncio.

Yousi apertou o peito com as mãos. Queria se­gurar seu coração a ponto de saltar. Atirou-se no leito. Era a criatura mais humilhada e escarnecida do mundo. Mordia as mãos porque não podia chorar. Só ouvia as palavras: "ódio e amor se confundem".

Lembrou, como no passado, maltratava aos ho­mens; lembrou a desfeita que fizera a Pedro, em pú­blico, diante de todos os amigos. Seria uma vingança? Se fosse, era vil e mesquinha, indigna de um homem de honra e cavalheiro.

Levantou-se e fitou a porta fechada. Qualquer outro que não fosse Pedro teria se comovido diante dela. Penso alto: "Para uma primeira noite de núpcias é o cúmulo da felicidade! Ah, se meus amigos sou­bessem, como não iriam me glosar. "

Encheu-se de ódio, um ódio sem fim. Ela tam­bém era uma criatura complexa. Quanto mais o odiava, mais crescia seu amor pelo marido. Seu casti­go e seu prêmio. Duas coisas contraditórias. Castigo porque estava pagando pelo sofrimento que impusera aos outros; prêmio, porque na dor estava descobrin­do seu verdadeiro eu.

Remexeu-se no leito. Ficou quieta, de bruços. A dor não passava, se continuasse por muito tempo, acabaria enlouquecendo.

Por fim, adormeceu. Quanto tempo? Horas, mi­nutos, segundos? Não soube dizer. Acordou sobressaltada. Estava vestida. Precisava de ar, sair daquele quarto, dar um passeio. Abriu a porta do corredor.

Eram duas horas da madrugada.

 

Andava agitado de um lado para o outro. Pro­funda ruga lhe marcava a fronte e a boca era um tra­ço reto. Um mundo de sensações o torturavam. Fumava um cigarro atrás do outro. Pela primeiro vez perdera a serenidade que lhe era habitual. Estende­ra-se no leito, convencido de que ia conciliar o sono. Impossível.

Depois levantou-se e foi para a saleta de estar. Mergulhou no assento fôfo de uma poltrona e se deixou ficar, olhar no assoalho e pensamento nela. Re­pentinamente, seus ouvidos pareceram distinguir pas­sos femininos. Seria Catarina? A horas tão tardias de­via estar dormindo. Além de que era muito comodista para se levantar noite a dentro.

Ficou de pé com raiva. Quem ousava incomo­dá-lo? Antes que lhe ocorresse resposta a porta se abriu e apareceu a silhueta de Yousi. Ficou quieto. Esfor­çou-se, inútlmente, para ocultar a expressão de en­cantamento que sentiu ante a aparição de sua imagem.

Trazia as mesmas roupas com que deixara a casa paterna. O verde dos olhos lhe dava uma aparência etérea. Os cabelos estavam em ligeira desordem e a

boca denotava toda a angústia que lhe ia no íntimo. As ilusões juvenis da mulher tinham sido assassinadas aquela noite e sua alma se evolava do corpo.

Reparou na presença de Pedro e um sorriso irô­nico aflorou-lhe aos lábios.

— É consolador ver que você também não conse­gue dormir.

Pedro se balançava tranqüilamente de um lado para o outro. Recobrara sua calma e o aprumo que feria tão profundamente a sensibilidade da moça.

— Só durmo quatro horas por dia. São o sufi­ciente para mim. Conservo sempre o otimismo nesse regime — retrucou.

—    E, por acaso, precisa ser otimista?

—    Sempre fui.

— Pois olha, quem não acredita sou eu. Sempre foi um recalcado e por causa disso precisa amargurar a existência de seus semelhantes.

Pedro riu baixinho, aquele riso que a exasperava. Yousi pensou que não resistiria à tentação de dar-lhe uma bofetada. Nunca se sentira tão ínfima como aquela noite.

—    Minha querida...

— Não volte a repetir o epíteto. Proibiu-o há uma hora atrás, e volto a reiterar meu pedido. Eu não sou sua querida, você é incapaz de querer bem a alguém. Só ama ao seu próprio ego. É um egoísta, um malvado, um canalha. Tenho-lhe ódio. Maldita hora em que me casei com você! Por que insiste em pisar meu orgulho de mulher? Forque não me dei­xou viver minha vida? Talvez tenha sido uma jovem frívola. Era um direito que me assistia. Não tinha deveres nem prejudicava a terceiros. Conquistava os homens para depois desprezá-los. Reconheço que agi mal. Nada disso me tira o direito de ansiar por encontrar no casamento o amor de um homem que me compreenda. Nunca pensei em viver solitária. Meu coração, ainda que não acredite, palpita e clama por felicidade. Você riu de mim, e agora...

Não pôde terminar a frase. Um brilho cruel atra­vessou os olhos metálicos. Achegou-se até ela e sacudindo-lhe os ombros, vociferou:

— Ri de você... fico satisfeito que você mesma o reconheça. De que não se lembra é de que certa vez coloquei meu coração a serviço de uma jovem que pensei ser a única no mundo: doce, meiga, boa e sin­cera. Um homem como eu não esquece nunca a des­feita que lhe infligiu uma mocinha. Fui até você com a alma. Declarei meu amor e meu desejo de fazê-la feliz. Sua resposta, até hoje a tenho gravada na mente, foi a de que eu não era ninguém — e riu estupidamente. Virou-lhe as costas e só então Yousi compreendeu. Passou a mão pela fronte para afugen­tar o passado.

Pedro prosseguiu:

— Sou o mesmo de anos atrás. Minto, meu cora­ção mudou. Abriga a vingança. Era sincero e ex­pressava meus sentimentos sem rodeios. Hoje, sou um corpo sem alma. Consegui lograr minha vingança: obtive seu amor e posso fazer de sua pessoa o que quiser. Está em meu poder e vencida. Julguei-a dife­rente e vejo que é igualzinha às outras. Lidei com inúmeras mulheres, e de todas me ri. Algumas me juraram amor eterno e garantiram que nunca ama­riam a outro. Não acreditei, não podia acreditar porque trazia na retina o brilho de seus olhos que me pareciam francos e não eram.

Pedro parou de falar e Yousi, torcendo as mãos, tentou se justificar.

— Apesar de tudo que ouvi, não atino com o porquê de nosso casamento. Quando o humilhei na­quela noite, ignorava tudo dos homens. Não sabia di­ferençar um do outro porque me faltava o sentimento que dá rumo a vida. Pensei em ser uma mulher fa­tal. Preparava as asas para alçar vôo e você reapa­receu em minha vida. Você me chamou e eu vim. Hoje, estou perdida e nunca mais serei o que fui.

— Diz que não conhecia aos homens... Sempre se riu deles; namorou a quantos pôde beijou a todos aqueles que lhe apeteciam, e ainda...

— Chega. Sabe muito bem que só senti amor por você — falava com exaltação, com o propósito de desafiá-lo, — Meus lábios só foram poluídos por você, porque seus beijos eram um insulto que me impunha. Agora, sei que seu coração está cheio de rancor. Eu também vou transformar o amor em ódio. Não se es­queça nunca que nisso sou superior a você. Sufocarei na minha alma os sentimentos nobres e dignos; con­tinuarei minha vida de sempre. Dançarei com os ami­gos que me aprouver; irei a reuniões e festas. Você continuará vivendo amargurado, porque eu lhe des­trocei a vida e a alegria. Se pensa que vai conseguir o mesmo comigo, está muito enganado. Vou voltar a deixá-lo em situação de ridículo muito maior do que naquela noite em que ambos éramos seres livres. Vou voltar a humilhá-lo diante dos conhecidos.

Não pôde terminar a frase. Dois braços de ferro a cingiram. Apertou-a com força selvagem e juntou seu rosto ao seu. Com um fio de voz murmurou:

— Ainda não nasceu a mulher capaz de me ridi­cularizar. Sua vida, Yousi, será a minha. Não se es­queça disso. Naquela ocasião contive meu ímpeto porque não nos unia nenhum vínculo sagrado. Hoje, é diferente. Você irá aonde eu fôr, e ai do dia em que chegar em casa e não encontrá-la! Ridicularizar- me, humilhar-me! Yousi é melhor que o saiba agora do que mais tarde. Tiro-lhe as ilusões desde já.

Apertou-lhe o busto formoso com tanta brutalidade que a jovem gritou. Pedro riu cruel. Ria dela. As palavras não bastaram para contundi-la. Passara a ação.

— Largue-me — gritava. — É um canalha e no meu coração mora o ódio.

Os olhos de aço mergulharam no fogo do inferno verde e teve a sensação de queimadura. Não podia descrever o prazer que sentia, vendo-a dominada, vencida. Naquele momento, era o homem mais cruel do mundo. Queria que ela chorasse e Ele se deliciaria com suas lágrimas. E riria até vê-la morta de humilhação e vergonha. Nunca pensou que pudesse dese­já-la daquela maneira, agora que a tinha entre os braços. E como a odiava! Era uma mescla de pai­xões fortes e contraditórias. Queria a mulher para atormentá-la, como ela o atormentara anos a fio.

Yousi se retorcia e forcejava por libertar-se dos braços de ferro. Queria se desvencilhar e não conse­guia. O círculo de ferro se fazia menor. Machucava seu coração e sua alma, arrebentava-lhe o corpo.

— Eu não a quero Yousi. A sua proximidade me enlouquece porque é bela e seu corpo de sereia me atrai. Mas não a quero com a alma, e, sim, com os sentidos. Sou um condenado. Minha alma morreu. Eu a vejo bela e provocante, mas não vou ceder ao desejo. Não quero nada de você, não a quero para mulher, porque meu ódio é mais forte que tudo.

Yousi lutava, feroz, para libertar-se. Sentiu os lábios masculinos na sua boca. Quis esquivar-se, não pôde. A forca poderosa do homem a subjugava. De­pois viu que o mundo lhe fugia e que tudo terminara para ela.

 

Encolhida, ficou perdida na ampla poltrona. Teve a impressão de que séculos haviam decorrido desde o instante de seu casamento. Tudo, fora ques­tão de horas.

Ergueu a vista; estava doída. Fundas olheiras lhe ensombreciam o rosto. Seu olhar verde perdera a limpidez, estava envenenado por Ele.

Consultou o relógio. Eram cinco da manhã. To­mara um resolução: ia, imediatamente, para a casa dos pais e diria que Pedro Olaizola, o rapaz íntegro que julgavam, ia matá-la porque seu ódio era mais forte do que o amor.

Levantou-se. Tremia como vara verde. Como um autômato dirigiu-se para o corredor. Esfregou a fronte, numa tentativa de aclarar as idéias. Não con­seguiu. Sua mente estava enegrecida. Carregava a dor no coração e o próprio na alma.

Atravessou o corredor e segurou a maçaneta da porta de saída. Não foi além. Uma voz a deteve.

— Acha sensato o que vai fazer?

Ficou fria, rígida. Teve a impressão que o mundo desabara sobre sua cabeça. A voz de Pedro, impessoal, prosseguiu:

— É um absurdo cometer semelhante disparate. Seus pais não vão acreditar em você e, se pensa que eu vou buscá-la de volta, está muito enganada. Vai incidir em erro lamentável. Uma mulher que aban­dona o marido na noite do casamento é objeto de cha­cota até o fim de seus dias.

Ela se virou para ele. Achou-o mais alto do que nunca. Estava de pé no umbral da porta, metido no seu roupão de quarto, de cor sombria. O sorriso era cínico. Nunca lhe pareceu tão canalha como naquele momento. Percebia sua dor, sua amargura, seu tremendo desespero e não se comovia. Era de ferro. Estava empedernido.

Fechou os olhos e voltou para seus aposentos às cegas. Ele tinha razão. Se no dia seguinte ao do seu casamento reaparecesse em casa, quando todos a acreditavam feliz, viajando, converte-se-ia em objeto de mofa para aqueles que havia desdenhado com sua altivez. Exceto Cora, podia-se dizer que Yousi não go­zava de simpatias no seu círculo de relações.

— Ainda vai pagar caro pelo mal que está me fazendo — expressou-se, indignada, a esposa ultrajada.

Ele não se deu ao trabalho de responder. Ouviu a porta do quarto que batia e, por sua vez, encerrou-se no seu aposento.

Yousi atirou-se na cama, mergulhou o rosto no travesseiro. Pediu a Deus que a levasse para junto dele, antes que ela visse o amanhecer do dia. Não queria sentir a presença do malvado que, deliberadamente, pacientemente, a conduzira à desgraça e in­felicidade.

 

                                             CAPITULO IX

Deus, que escreve direito por linhas tortas, não quis ouvir os rogos de Yousi. A jovem que sempre fora uma doidivanas, estava começando a aprender a dura lição. Cada dia acumulava uma experiência e cada dia despertava um sentimento nobre e justo. A dor e o sofrimento são os melhores mestres. Ambos não faltavam a senhora Olaizola. Eram seus compa­nheiros diários. Só assim ficaria conhecendo realmen­te ao marido, e depois estudaria a si mesma até ter­minar sendo uma mulher completa e realizada.

No dia seguinte, acordou às onze horas. Fora um sono inquieto e tinha os olhos doloridos e pesados. Ainda usava o mesmo vestido da véspera. Em catadupas, os acontecimentos da noite voltaram-lhe ao pensamento. Seu primeiro sentimento foi de ódio. Não era a primeira vez que Ele a humilhava, nem seria a última.

Encaminhou-se para o banheiro. Despiu-se e tomou um chuveiro frio. A sensação da água gelada aquietou-lhe os nervos. Nunca se imaginou uma cria­tura com tanta coragem e galhardia. Vestiu-se elegan­temente e passou para a sala de café, Estava exótica; nos seus lábios bailava um sorriso indefinível e melan­cólico. No conjunto, era o que de mais diáfano pu­desse existir.

Pedro, impecàvelmente vestido num terno cinzen­to, já estava de pé junto à janela da saleta. Damião, o fiel empregado, dispunha a mesa do café. Catarina, descaradamente, espiou pela porta de comunicação no momento exato em que a senhora Olaizola entrava.

—    Bom dia — cumprimentou a serviçal.

— Bom dia — foi a resposta quase uníssona do casal.

O rosto impenetrável de Pedro fitou Yousi.

— Olá — e chamou os dois criados, apresentan­do a esposa.

Os dois serviçais a contemplaram com carinho, e Catarina, com sua simplicidade de camponesa, falou:

— Até que enfim, senhora. Pensei que Esse sol­teirão não se casasse nunca. Estava fazendo falta uma mulher nesta casa. Deus a abençoe.

Damião censurou a esposa com o olhar. Era tão tagarela. Quem sabe a menina era uma daquelas que nunca dirigem a palavra aos cridos. Podia ser uma criatura estúpida, cheia de preconceitos falsos. Graças a Deus, não era. Yousi estendeu a mão e apertou os dedos grossos e curtos de Catarina. Um sorriso afável acompanhou o gesto. Damião respirou tranqüilo e continuou a arrumar a mesa.

O casal sentou-se e iniciou a refeição matinal. O jornal estava colocado ao lado de Pedro. Este nem se­quer olhou o matutino. Tinha os olhos fincados no prato e comia com prazer.

Parecia mais distante do que nunca da esposa. Yousi sentiu o frio estranho que lhe gelava o sangue. Será possível que vai ser assim todo o resto de minha vida? Até quando Pedro iria prolongar o castigo pela desfeita que ela lhe fizera anos atrás? Só um ser sem entranhas podia agir daquela maneira. Olaizola era um monstro: não tinha coração, não tinha alma.

A refeição decorreu em silêncio. Yousi só tomou uma xícara de café. Não tinha apetite. Apanhou o jornal e leu alguns anúncios. As notícias não lhe in­teressavam. Seus olhos caíram na coluna social. Em letras grandes estava anunciada sua viagem. Que iro­nia! Os dois ali estavam. Era desolador, e ela não podia fazer nada para romper a monotonia.

A mão crispou-se sobre o papel e levantou-se da mesa. Ele ficou só. Ela não podia suportar por mais tempo a indiferença daquela fisionomia impassível.

Quando ela desapareceu pela porta do corredor, Pedro levantou a cabeça. Apanhou o jornal que abandonara na cadeira e correu rápido os olhos. Lá estava o motivo da cólera da esposa.

Sorriu de uma maneira vaga. As linhas de seu rosto permaneciam impenetráveis. O rictus de sua boca era estranho. Levantou-se e foi para a saleta de estar. Viu-a afundada numa poltrona com a cabeça entre as mãos. Ao ligeiro ruído, ela modificou a ati­tude.

— Está satisfeito? Conseguiu o que queria. Você mesmo mandou a nota para a redação.

—    Quem sabe.

Na realidade, não fora Ele. Mas se ela pensava assim, porque desmentir. Coisa tão secundária, dentre os problemas transcendentes que o remoiam!

—    Envergonho-me de ser sua esposa.

— Não acredito no que diz. Está orgulhosa por ter logrado o fim. Viver em luta armada não é de todo desagradável para um temperamento como o seu.

— Diga isso em relação a você. É uma natureza vil e brigona.

Ele encolheu os ombros. Aproximou-se dela e segurou-lhe a mão.

—    Larga-me — gritou excitada. — Sinto asco.

— Vou para o sanatório. Na volta, espero en­contrá-la em casa.

— Certamente que vai me encontrar. Pensa que sou tão leviana a ponto de aparecer em público depois de tudo o que me aconteceu?

Pedro não respondeu. Fez menção de beijá-la.

— Não se aproxime. Não quero os beijos de um homem que vilipendia a esposa.

— Muito inteligente. Não lhe tenho carinho, mas sobra o desejo.

—    Devia se envergonhar de sua gula.

— Yousi, seja um pouco menos rebelde. Apesar de tudo, preciso de seu carinho. Quem sabe aprenda algo com Ele!

Yousi revoltou-se. Não o compreendia. Leu no olhar do homem um expressão de doçura nunca vista. Quais eram as intenções dele?

— Nunca serei carinhosa com você, Pedro. Isto será sempre uma afronta, mesmo para um homem que despreza a esposa. Juro que nunca penetrará na mi­nha alma.

—    Vislumbrei-a ontem a noite. É divina.

— Chega! Insolente! Pensa que vou viver toda a vida ao sabor de seus caprichos? Está muito enganado. Também a mim não me interessa se me ama ou não.

Pedro não fez caso das palavras. Aproximou-se da esposa, tinha o olhar mais doce do que nunca. Yousi teve ganas de matar Não podia suportar a compaixão que o marido lhe dispensava. Feria fundo seu orgulho.

— É maravilhosa, Yousi. Cheguei a um tal ex­tremo que não sei se a amo ou odeio. É alucinante saber que tenho por companheira uma mulher tão bela e atraente. Não raro, regresso do trabalho desa­nimado, esgotado. Agora, será diferente; tenho você em casa, à minha espera.

— Você não é do rol dos homens que saibam apreciar uma mulher boa e dedicada. É um egoísta, vive exclusivamente para si. Mais tarde, quando enve­lhecer, vai precisar da mão amiga que lhe minore o cansaço. Vai pedi-la e não vai encontrá-la. Vai re­colher o que agora semeia. Amei-o com todas as forcas de minha alma. Aprenderei a não mais lhe querer.

— Não vai nunca deixar de me amar, Yousi. Sa­be muito bem disso.

A gargalhada feminina soou histérica. Pouco lhe faltava para cair em pranto convulsivo.

Pedro se aproximou mais, aprisionando-lhe os ombros.

— Agora, riu. Não ria, porque vai chorar.

E beijou-lhe os lábios. Yousi ficou imóvel. To­mara a resolução de suportar tudo. As ironias, as ex­pressões carinhosas, os modos bruscos, o olhar estranho, o conflito de sensações que repercutiam nas palavras de Pedro.

— Tenho que ir para o sanatório. Só volto à noitinha. Lamento deixá-la só, mas não pode ser de outra maneira.

Lamentava. No dia seguinte ao casamento era deixada só pelo marido. Não sabia o que era preferí­vel: rir ou chorar. Preferiu o riso e Pedro foi para o trabalho.

 

                                                         CAPITULO X

—    Sente-se feliz, Yousi?

—    Claro que sim, Berta.

— Como me sinto satisfeita. Confesso que es­tava com um pouco de medo.

—    Medo?

—    Pedro é algo de muito especial.

Yousi deu uma risadinha irônica. Fora visitar Berta, gostava de conversar com aquela criatura boa e doce. Ambas se compreendiam muito bem.

Um mês transcorrera desde o dia do casamento. As relações do casal continuavam tão tensas como no primeiro dia. Os comentários dos amigos haviam cessado, mas a amargura de Yousi aumentava. Entretanto, tinha que salvaguardar as aparências. Para os pais apresentava uma fisionomia cheia de felicidade. Ria alegremente com os conhecidos, ocultando a der­rocada de sua vida.

Pedro ia cedinho para o sanatório e só regressava ao anoitecer. Isto era coisa que qualquer um podia observar e tirar deduções pouco favoráveis. Não fal­tava quem o fizesse.

Yousi não suportava a solidão do apartamento. Tinha a impressão que as paredes grossas iam desabar sobre ela. Mal o marido saia, ela dirigia-se para a casa dos pais ou para o lar acolhedor de Berta.

Naquela tarde, a cunhada a fitava com fixidez como se quisesse ler no seu íntimo. As pupilas verdes fugiam ao escrutínio. Não obstante, não podia es­conder a melancolia que lhe velava o olhar.

Era uma tarde luminosa e clara. Soavam as se­te horas. O grande janelão da sala de estar estava aberto de par em par. A luz do crepúsculo invadia o ambiente. Yousi, com Bertinha nos braços, afogava seu olhar na pele, tostada do sol, da criança. Berta bordava.

— Precisa encomendar um nenê, Yousi. Pedro adora crianças.

— Ainda é muito cedo. Estamos casados há apenas um mês.

— Bertinha tinha exatamente dois meses, quando eu e Rafael completamos um ano de casados. E é uma delicia um lar com filhos!

Yousi desviou o olhar. Não queria que Berta les­se seu segredo. Retrucou:

— Quem sabe, talvez Deus nos abençoe com um filho.

Reinou o silêncio. Uns passos ecoaram. Era Ele, conhecia o pisar firme. Sabia que ela estava em visita à cunhada e viera para buscá-la. Por que voltava tão cedo?

Era Pedro. Sua silhueta recortou-se no umbral da porta. Olhou embevecido a cena. Berta cosendo na poltrona. Sua esposa apertando, bem junto ao coração, a sobrinha.

Logo mudou a expressão e falou com indiferença.

— Se algum dia tiver um filho, Yousi, vai ser bela como uma mãe de cinema — e numa transição brusca acrescentou: — Tenho que viajar hoje mesmo. É assunto que não pode ser adiado.

Yousi assustou-se. Pôs a criança no chão.

—    Mas...

— Minha ausência será de três meses, Yousi. O Governo me destacou para um missão especial, em Roma.

Berta interrompeu:

—    Vai para tão longe, podem ir os dois.

— Impossível. Não tem idéia do que está di­zendo.

E para Yousi:

— Vim buscá-la, Yousi. Dentro de duas horas te­nho de me apresentar no Ministério. De lá não volto mais para a casa.

Yousi não hesitou, recolheu seus pertences. Bei­jou a cunhada e a sobrinha. Nunca se abrira em seu coração tamanho vazio.

— Quando volta, tia? Quero que me traga caramelos.

—    Venho todos o dias, queridinha.

Pedro beijou Berta. Pediu-lhe que apresentasse suas despedidas a Rafael. De braços dados, o casal saiu.

 

O automóvel deslizava suave. Yousi, sentada ao lado do marido, conservava-se em silêncio. Não que­ria demonstrar a angústia que lhe roía as entranhas.

—    Sinto muito ter de viajar e deixá-la só, Yousi.

—    Posso imaginar.

—    Não me acredita?

— Por que iria duvidar? Se você o diz, é o sufici­ente.

— Yousi, antes de embarcar quero lhe dizer algo, algo que decorreu de nossa mútua convivência de um mês de casados. Ficamos conhecendo melhor um ao outro e quero que saiba sobre a minha verdadeira maneira de sentir. Vai ouvir algo que nunca con­cebeu sobre mim.

— Está enganado, todas as concepções são admis­síveis em se tratando de você.

—    Todas as concepções más e mesquinhas, não é?

— Em se tratando de Pedro Olaizola não sei o que pensar. Mostrou-se para mim sob todos os ma­tizes; cruel, perverso, carinhoso, confiante e... vin­gativo. Que posso deduzir de tantas facetas? Nada de airoso para o dr. Olaizola.

Pedro mordeu os lábios.

— Não percamos o tempo com ironias. Pode pensar como quiser. Mesmo que não se acredite, confesso que lhe amo muito.

—    Consoladora confissão!

— Eu lhe amo — gritou excitado pela primeira vez diante dela. — De bom grado teria sacrificado metade de minha vida e de minha fortuna para infer­ná-la. Você me causou muito mal, nunca poderá compreender quanto. Apesar de tudo, meu coração lhe pertence; meus pensamentos e meu ser são seus. Quis inferná-la e não o consegui.

— Sua confissão chegou tarde; perdi meu amor por você. Assim como perdeu a faculdade de me in­fernar, eu perdi a capacidade de lhe amar.

—    Está mentindo.

Não, Yousi não mentia. Só lhe restava um an­seio, uma angústia. Concentrara em si própria sua felicidade, seu amor e também a amargura. À custa de tanto sofrimento deixara de amá-lo.

O rosto de Pedro estava bem perto do dela. Ele aprisionou-lhe a mão e ela não estremeceu. Talvez o amor dela ainda sobrevivesse. Estava, entretanto, encoberto por sucessivas camadas de ódio e seriam pre­cisos muitos dias, muitas noites para que voltasse à tona.

— Yousi — suplicou, — olhe-me bem nas pupilas. Assim, não desvie o olhar do meu. É muito bela, porem, não foi só de sua beleza que nasceu minha pai­xão. Tentei fazer com que acreditasse que só o apetite físico me fizera casar com você. Queria fazê-la in­feliz. Tinha uma gana louca de vê-la sofrer por mi­nha causa. Não sei se logrei o intento ou não. Só agora reencontro a mim mesmo. Sei o que quero, o que desejo. Vou ficar longe de você, pelo menos três meses, talvez quatro.

O carro parou. Yousi sentiu-se satisfeita, a distancia era tão curta! Não podia acreditar nas pala­vras que ouvia. Ele sempre fora tão cruel! Duvidava da sinceridade dele. Nem Ele próprio se compreen­dia. Era um ser tão complexo!

O motorista abriu a portinhola e ambos desce­ram. Tomaram a direção do edifício em silêncio. Pedro emudecera; o olhar da esposa lhe retirou a ca­pacidade de expressão.

 

A bagagem estava pronta. Damião e Catarina iam de um lado para o outro, ativos. O médico di­tava as ordens. Yousi estava sentada numa poltrona. Parecia ausente de tudo que a rodeava.

Pedro fumava com evidente nervosismo. Mal conseguia tirar os olhos de cima da esposa.

— Já está tudo arrumado, senhor — falou Damião com voz trêmula.

Pedro estremeceu como que tocado por uma des­carga elétrica. Caminhou até Yousi. Ela não fez menção de erguer-se. Sentia-se tão ferida e doída que não encontrava forças suficientes para enfrentar o mo­mento da despedida. — Até a volta, Yousi.        

—    Adeus, Pedro. Faço votos de feliz viagem.

O médico deu meia volta e saiu precipitado, desa­parecendo. Na calçada ainda olhou para a janela do edifício, na vã esperança de avistar o rosto querido através a vidraça. Yousi não se movera da poltrona onde estava sentada.

Passaram-se horas. Yousi foi para a cama. Não dormiu. Ficou com os olhos muito abertos, fitando a escuridão.

Era meia noite e só reinava o silêncio. Súbito, a porta se abriu e a sombra de Pedro se recortou no umbral. Caminhou devagar.

—    Adiei a viagem para amanhã de madrugada.

Yousi não se moveu. A voz gutural prosseguiu:

— Yousi quero que me ame, ainda que apenas por um fugaz minuto.

Yousi suspirou. Julgou-se vítima de um pesadelo; depois compreendeu que estava vivendo a realidade. O orgulho de Pedro desaparecera por completo. Sua vontade, seu desejo de vingança acabaram subjugados pelo amor. Pensara que seria Ele o dominador. Enganara-se. E Yousi, aquela noite, pôde compreender tanta coisa que ignorava.

Às seis da manhã, Pedro saiu para viajar. Da calçada olhou para cima. Viu um rosto de mulher que lhe sorria com doçura.

 

                                                CAPITULO XI

Dois meses se passaram desde aquela noite. A Sra. Olaizola recebia amiúde postais do marido com palavras carinhosas.

Yousi sorria com ternura e guardava a correspon­dência no escaninho secreto de sua escrivaninha. Vi­via uma vida tranqüila e regular. Continuava no seu apartamento de casada. Recusara o convite dos pais para que passasse os meses de ausência do marido em companhia deles. Seu lugar era no lar, não obstante a solidão que muito lhe pesava. Este era seu dever de esposa. Yousi amava Pedro com todas as fibras de seu corpo e alma. Nunca deixara de amá-lo, apesar de ter forjado uma ilusão em contrário. Não lhe saia da mente a recordação da última noite que passaram juntos. Fora tão maravilhosa! Ele se despira da cou­raça que lhe encobriam os verdadeiros sentimentos. Mostrara-se franco, leal e extraordinariamente cari­nhoso. Era a grande recordação de Yousi.

Damião bateu na porta e entrou na sala de estar. Apresentou a bandeja com a correspondência que acabara de chegar. Yousi estava sentada na poltrona cora o pensamento alheio ao que a rodeava. Ergueu os olhos para o criado.

A sobrecarta que lhe apresentavam fez com que desabrochasse um sorriso de alegria no seu belo rosto. O coração lhe pulava no peito e só fazia repetir o nome adorado: "Pedro, Pedro. "

— A correspondência, senhora.

Os dois criados lhe queriam muito bem. Era educada, doce, e muito apaixonada pelo marido.

Yousi apanhou a carta com mão nervosa. Tremia como criança. Era a primeira missiva que recebia. Até então só lhe chegavam postais e diziam tão pouco.

Quando se viu sozinha apertou contra o coração a carta. Ficou assim alguns minutos. Depois rasgou a sobrecarta e seus olhos verdes percorreram as linhas manuscritas.

"Minha adorada criança, Para falar a verdade, não sei o que me levou a depositar no papel tudo o que me vai no cota­ção. Talvez quem me guiou foi o amor. Pode ser também que o afastamento de você tenha ajudada a me reencontrar a mim mesmo. É com a maior sinceridade que me dirijo a você. Yousi, estou em Roma, em meio aos templos magníficos, cheios de recordações e belezas do pas­sado. Admiro os monumentos da cidade e visito os lugares elegantes. Todavia, só meu corpo está aqui; meu pensamento está com você.

Ocupa-me a mente e lembrança dos meus vinte e cinco anos, quando caminhava pela vida, ausente, porque meu coração fora despedaçado por uma ingrata. Era um tímido, você mesma o disse. Não sabia conquistar uma mulher. E, entretanto, tinha a pretensão de tornar minha a mais bela, a mais elegante e altiva das mulhe­res. Sua imaginação nunca alcançara a doçura que aquele amor tinha para mim. Entregara a você tudo que possuía: minha carreira que se iniciava brilhantemente, meu coração puro, li­vre de paixões baixas, minha mente sadia, todas os meus anseios eram seus. Era orgulhoso e tinha uma vontade férrea. Sempre pensei que a minha vontade me guiaria por um caminho de rosas, porque Esse era meu anelo. O que en­contrei não foram flores e, sim, espinhos que di­laceraram meu coração. Você foi cruel; riu-se de mim e espezinhou minha dignidade. Fui para o estrangeiro, convencido de que voltaria para vingar a afronta sofrida. Que fiz durante meu exílio voluntário? Não importa... Estudei com afinco, e, para que negá-lo, lidei com mui­tas mulheres. Aos poucos, minha timidez foi de­saparecendo. Tornei-me um homem igual aos demais. Adquiri a palavra fácil, as reações ade­quadas e uma capa de cinismo envolveu-me o

coração. Um dia voltei. Foi com deslumbra­mento que a revi. Se antes era bonita, transfor­mara-se, em cinco anos, numa beleza estontean­te. Retornava com o propósito de despertar sua paixão e torná-la infeliz. Não conseguira esque­cer. Nunca pude alijá-la de meu coração. Era minha, sua vida me pertencia. Meu melhor alia­do seria minha vontade de ferro. Enganei-me. Contava com ela para que me ajudasse a tolerar sua presença constante sem que meu coração se incendiasse de paixão. A verdade é que você era bela demais e meu coração muito sensível. Talvez não me acredite, Yousi. Sou obrigado a dizer que nunca me sentia tão ínfimo como quando eu a tinha a meu lado confiante e atra­ente. Casei-me com você para levar a cabo a mais cruel das vinganças. Não pude. Lembro- me dos três dias que ficou em casa, de cama, adoentada. Foram de tortura para mim; mes­mo assim, prevaleceu minha vontade, não lhe telefonei siquer; não lhe mandei um único car­tão de visitas. Vivi noites em claro, dias de fa­diga, horas que pareciam séculos. Cada tic-tac do relógio era espinho que me trespassava o coração. Mesmo assim, resisti a todas as tenta­ções de correr para seu lado. Estava seguro de que você não se desvencilharia da minha pessoa. Era minha e eu podia terminar a vingança pro­jetada.

Yousi interrompeu a leitura. Olhou pela janela e baixinho murmurou: "ó Pedro, não precisava ex­plicar. Eu adivinhei tudo na última noite em que estivemos juntos".

Depois prosseguiu na leitura. "Não me foi possível, Yousi. Nunca pensei que o amor invadisse de tal modo as fibras mais re­cônditas de meu ser. Sabia que meu amor era correspondido. Lia-o, nos seus olhos, nas suas palavras veladas. Os insultos com que me co­bria nos momento de cólera eram mais uma pro­va de quanto me queria. Sempre recuava dian­te de seus rompantes. Não queria perder terre­no e minha vontade continuava imperando sobre meus sentimentos.

Casei-me com você. Era o princípio da vingan­ça. Queria-a terrível. Minha imaginação pla­nejava torturas morais as mais cruéis. Comecei a fraquejar. Quando a via no nosso lar tão do­ce, tão meiga, recuava nos meus propósitos. Nunca a humilhei, amada minha. Nunca foste manchada pela minha vingança. Se tal tivesse acontecido, outra teria sido minha atitude. Seu marido sempre a idolatrou. A seu lado, eu era um ser fraco, débil. Um homem apaixonado. Quis rir de mim mesmo, sabia que perdera toda a vontade. Para que continuar? Você conheceu rainha luta e viu que tombei presa do amor.

Hoje sou feliz. Sei que tenho seu amor e que dedico a você a paixão mais intensa. Nós nos amamos. Yousi, você é uma grande mulher e uma esposa modelo. Confesso minha derrota Sempre perdi para você. Continuo tão vencido como no dia em que me cobriu de ridículo na festa. A diferença é que a derrota de hoje re­presenta a vitória de nosso amor e a do passado foi terrivelmente dolorosa. "

A carta terminava. Yousi beijou o papel e re­leu as linhas sublimes. Leu e releu até a saciedade. Pareceu-lhe ouvir bem junto ao ouvido a voz gutural que lhe murmurava as frases.

 

Naquela mesma noite encontrou-se com Berta. Apressou-se em contar-lhe a novidade.

—    Vou ter um filho, querida cunhada.

—    Tem certeza, Yousi?

— Já estive no médico.

—    Oh, Yousi, Pedro já sabe?

—    Não, estou esperando seu regresso.

— Que felicidade, querida! Como Pedro vai fi­car contente quando souber!

E Berta ria. Contemplava Yousi com carinho extremado. A Sra. Sardá já sabia da grata notícia; a filha passara a tarde com ela.

Yousi voltou para seu apartamento. Ficou horas devaneando. Pensava no filho e nele; no homem que amava por sobre todas as coisas.

O tempo corria lento. Nunca que chegava a data da volta do marido. Ansiava por tê-lo a seu lado. Queria ver os olhos cinza aço e ver-se retratada nas pupilas profundas.

Trazia a carta bem junto ao coração. Não a abandonava para dormir sequer. Tinha a impressão que era Ele próprio quem se continha todo naquelas linhas.

 

Três dias mais tarde, Cora veio visitá-la. Con­tou que estava noiva de Carlos Miranda e que Paulina Montoya ia se casar breve com um rapaz francês que conhecera em casa de uma amiga.

— Como estou satisfeita com a notícia de seu noivado. Não imagina como o casamento é bom.

—    Há tempos atrás não dizia a mesma coisa.

— Era diferente. Estou perdidamente apaixona­da pelo meu marido e louca de amor e felicidade.

— Não precisa dizer, Yousi. Leio nos seus olhos. Pedro quando volta?

— Não sei ainda. Espero que chegue de um mo­mento para outro. Sinto tanta falta dele!

Cora tinha que ir embora. A visita fora longa e o noivo devia estar à sua espera no clube. Levan­tou-se para a despedida.

— Quero vê-la casada o mais breve possível. A vida a dois é um poema.

— Quando existe amor, o casamento é belo; mais quando marido e mulher não se compreendem é um inferno.

—    O seu conceito é velho como a vida.

As duas se abraçaram rindo.

Yousi ficou de novo só. Apanhou um livro. Es­tava enfarada. As horas se eternizavam. Queria vi­rar o calendário para que chegasse o dia ansiado. Não sabia qual Seria a data, mas tinha que ser uma não muito distante.

Estava mais perto do que imaginava. Juntou sozinha; estava triste. Sua beleza recrudescera com a maternidade. Seu rosto expressava uma doçura e serenidade de Madona.

Às onze horas da noite, estava na sala de estar ou­vindo rádio, imersa nos seus pensamentos. A porta abriu-se de mansinho e a figura elegante de Pedro Olaizola surgiu.

Yousi não percebeu a presença adorada. O ma­rido caminhou lentamente até ela.

— Que lugar ocupo nos seus pensamentos? — perguntou num sussurro.

Ergueu-se de um salto e exclamou:

—    Pedro!

O marido arrebatou-a pela cintura e apertou-a nos braços.

— Sim, Yousi, sou eu quem estou a seu lado para nunca mais nos separarmos. Pensei que Este momento não chegasse nunca. Ansiava pelo seu carinho como nunca dantes, porque sei que até que enfim nos com­preendemos.

— Só tenho pensado em você. Todos os momen­tos do dia e da noite são dedicados à sua imagem. Nunca pensei que o quisesse tanto e tanto.

O homem selou-lhe os lábios com um beijo ar­dente. Todo um mundo de doçura e e paixão os uniu.

Depois segurou entre as mãos o rostinho confian­te acariciou as feições belas.

— Nunca pensei que a ausência pudesse ser tão cruel. Agora estamos juntos para nunca mais nos separar, querida Yousi.

Os olhos cinzas não eram mais estranhos e enig­máticos. Sorriam com uma doçura nunca antes sus­peitada. Abriam-se desmesuradamente e mostravam à amada sentimentos ternos e serenos. Yousi pensou em morrer de tanta felicidade. Os olhos do marido não lhe escondiam nada.

— Minha adorada — e apertava-a mais forte, — minha adorada! Posso chamá-la assim. Lembra-se, antes não gosta.

Ela, impulsiva, ergueu os braços e, sem pejo, en­laçou a cintura viril. Buscou a boca dele e os lábios

se uniram. Pedro embriagado a apertava cada vez mais. Permaneceram assim muito tempo.

— Sou sua e pode me chamar como quiser — fi­nalizou Yousi.

 

Uma lua grande e redonda iluminava metade da abóbada celeste. Estava cercada de pontos lumino­sos: as estréias. O mar batia de encontro ao casco do luxuoso transatlântico.

Yousi estava apoiada na balaustrada. Trazia os olhos na imensidão e sorria com êxtase. Pedro Olai­zola, a seu lado, a contemplava com ardente paixão.

Iniciaram a viagem de lua de mel na manhã seguinte. Mal acordaram, adquiriram as passagens e saíram de viagem sem avisar a ninguém. Damião fi­cou encarregado de levar um bilhete aos Sardá e ou­tro para Berta e Rafael.

O navio navegava em alto mar. Era tarde da noite e os passageiros, aos poucos, iam se retirando para as cabinas. Só os dois continuavam a gozar a beleza e solidão da noite, absorvidos um no outro.

Lentamente, com infinita doçura, Yousi falou:

— Tenho algo para lhe contar, Pedro. Só vou lhe dizer agora porque não queria que cancelasse nossa viagem de núpcias.

— Que tem para me dizer, querida Yousi? Sabe, nossa viagem vai durar um ano.

— Um ano? Não é possível. Não vai querer que nosso filho venha ao mundo em terras estrangeiras.

Pedro agarrou-a violentamente.

— Um filho, Yousi? Disse um filho? Um filho de nós dois? Tem certeza? Fala, Yousi.

Yousi sentiu uma lágrima que lhe escorria pela face. Pedro viu a lágrima e soube que a esposa não mentia. Sem uma hesitação, enlaçou-a para depois tomá-la no colo e conduzi-la até o camarote.

— Vai me repetir o que disse. Quero ouvir no­vamente a feliz notícia. Quero ler em seus olhos, quero me inundar da felicidade que suas pupilas re­fletem. Yousi, acho que vou ficar louco. Um filho de nós dois!

— É uma verdade maravilhosa, Pedro. Uma verdade de nós dois.

Transpuseram o umbral da porta de entrada da cabina e quem observasse de fora veria uma única sombra. 

 

                                                                  Corin Tellado

 

 

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