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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR DE UMA NOITE / Tori Carrington
AMOR DE UMA NOITE / Tori Carrington

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AMOR DE UMA NOITE

 

Está atrasado. David McCoy sentou-se no banco ao lado do irmão Connor e tirou o casaco de pele de carneiro. O frio era intenso demais até mesmo para uma noite de dezembro, mas o interior do bar era quente e agradável com sua decoração de Natal. Joe, o garçom, aproximou-se para receber o pedido, uma cerveja que ele serviu em seguida.

— O tenente Kowalsky quis conversar comigo depois do expediente. Parece que terei um novo parceiro a partir de amanhã.

— E mesmo? — Connor esvaziou o copo. — Interessante. É o terceiro, não?

David fez uma careta. Connor sabia quantos parceiros tivera. Podia recitar seus nomes e determinar quanto tempo levara para afugentar cada um deles. Havia sido sempre ele quem apontara seus erros, quem lembrara o dever de casa e preenchera os formulários para que pudessem participar dos passeios da escola. Na maior parte do tempo, sua diligência era útil e bem recebida. Mas havia momentos em que desejava que Connor fosse cuidar da vida, de preferência a dele.

Tinha a sensação de que aquele seria um desses momentos.

No caso da última parceira, Lupe Ramirez, ninguém poderia dizer que a afugentara. Na verdade, ela quase fora morta durante um assalto a uma loja de conveniência. Lupe ainda estava afastada, reaprendendo a andar sobre o joelho reconstruído. A bala havia atingido a rótula.

— Bem, ao menos sei que não me farão trabalhar com outra mulher.

Connor riu.

— Tem certeza?

— Oh, sim. Kowalsky não é meu melhor amigo, mas ele não faria isso de novo. De jeito nenhum.

— Não é da minha conta. Estou apenas apontando as possibilidades,

— E eu estou dizendo que a possibilidade é tão mínima e remota, que podemos chamá-la de impossibilidade.

O sorriso de Connor tornou-se mais amplo.

— O que foi? Ele balançou a cabeça.

— Eu disse alguma coisa?

— Não. E nem precisava. Essa sua risada estúpida diz tudo. — David ajeitou a jaqueta e respirou fundo. — Bem, pelo menos sei que meu novo parceiro não está saindo da academia. Ele vem transferido de outro distrito. E apesar do que diz, será ele. Já cumpri meu dever assegurando a igualdade entre os sexos. Acha que desejar um parceiro é pedir demais?

Connor parecia mais interessado nas garrafas alinhadas nas prateleiras atrás do balcão.

— Afinal, o que há com você? — David disparou. — Por que quis encontrar-me aqui, no bar onde se reúnem os policiais? Espere, deixe-me adivinhar! Também vai se casar, não é?

— Casar? De onde tirou essa idéia?

— Bem, parece que todos estão pensando na mesma coisa recentemente. Por que você seria diferente? — Sabia que a maneira mais rápida de irritar Connor era mencionar seu nome e a palavra casamento na mesma frase.

Ainda lembrava como o irmão estivera incomodado durante o jantar de Ação de Graças há três semanas, quando os outros irmãos haviam levado suas esposas, noivas e namoradas. Connor passara a noite resmungando sobre todas aquelas mulheres ocupando a cozinha. — Se não vai se casar, por que me chamou aqui?

— Precisa haver um motivo?

— Com você? Certamente. Vamos lá, Connor, desembuche de uma vez! Você nunca foi adepto de noitadas em bares. Pelo contrário, sempre fez questão de dizer a cada um de nós quando era hora de pararmos de beber. O que aconteceu?

— Ah, eu não sei... Essa história com papai... Acha que agi corretamente quando disse a ele que não aprovava seu relacionamento com a mãe de Melanie?

David lembrou o incidente no cemitério.

— Não aprovava? Você praticamente ameaçou deserdá-lo, se ele não desistisse de Wilhemenia. E sei que não trocaram uma única palavra civilizada depois disso. — Dois meses, várias reuniões familiares, e o pai e o irmão continuavam distantes. — De todos nós, você sempre foi o mais próximo de papai. Sempre houve amizade, compreensão e respeito entre vocês.

— Eu sei, mas essa história com Wilhemenia me perturbou muito. O mundo está cheio de mulheres, mas ele tinha de se envolver justamente com aquele arremedo de ser humano!

— Não sei o que espera de mim, Connor, mas se veio em busca de apoio, está procurando no lugar errado. Não vejo nenhum mal em papai ter alguém com quem possa divertir-se um pouco.

— Só quero saber o que pensa sobre a possibilidade de Wilhemenia passar a fazer parte da família.

David encarou o irmão como se ele houvesse perdido o juízo.

— Está insinuando... que eles podem se casar? Connor sorriu.

— Vejo que a idéia também o desagrada.

— Bem, eu não diria isso exatamente.

— E o que diria... exatamente?

— Não sei. Acha mesmo que o relacionamento é sério?

— Francamente? Não sei. Acho que não, pelo menos por enquanto. E depois da conversa que tivemos, papai não tem mais encontrado aquela mulher. Mas é natural supor que ele tenha se envolvido realmente, porque papai nunca namorou antes e...

— Ei, espere um minuto! Se eles romperam, por que está tão preocupado?

Connor olhou para a garrafa de cerveja como se esperasse encontrar respostas dentro dela.

— Não sei. Papai parece tão...

— Infeliz? Tem razão.

— Sim, eu sei. Mas ele vai superar.

— Se essa é sua opinião, por que estamos discutindo esse assunto?

Connor fitou-o como se a questão o surpreendesse.

— Não sei.

Um lampejo cor-de-rosa distraiu David. Ele se virou para apreciar as costas de uma mulher que caminhava para a mesa de bilhar. O top rosa-choque aderia aos ombros delicados e à cintura fina antes de desaparecer sob o cinto da calça preta e justa criada para enlouquecer os homens. Ela cumprimentou outra mulher, depois pegou um taco de bilhar e jogou os cabelos louros e longos para trás dos ombros. David pôde ver o rosto da desconhecida. Olhos verdes e grandes, boca rosada em forma de coração... Tudo nela sugeria delicadeza, feminilidade e inocência. Tudo muito diferente das mulheres com quem costumava relacionar-se.

Os olhos prosseguiram no exame minucioso. Não havia nada de inocente na maneira como o top colava ao corpo. O tecido aderente envolvia os seios perfeitos e revelava detalhes interessantes, sugerindo que ela sentia frio ou estava excitada com a análise atrevida e persistente.

David conteve um gemido rouco. Aquela era uma mulher capaz de enlouquecer os homens, pensou, notando que ela correspondia ao olhar ousado. Um sorriso distendeu os lábios úmidos e cintilantes, e ele quase deixou escapar um assobio. Apesar de estarem em um bar de policiais, sabia que ela não fazia parte.da equipe. Também estava certo de que ela não era uma daquelas garotas que freqüentavam o bar fingindo desinteresse, quando, na verdade, sonhavam encontrar uma aliança de casamento.

Não. Aquela era uma mulher diferente. Devia fazer alguma coisa tipicamente feminina, como vender vestidos de noiva, objetos de decoração ou perfumes. Não devia saber empunhar uma arma, muito menos dispará-la. A idéia era animadora, porque nunca mais pretendia dormir com alguém da força.

David olhou para o irmão.

— Acho que encontrei a mulher com quem vou me casar — disse, levantando-se com ar determinado.

— Mas quem está... — Connor virou-se no banco e a viu. — Ei, não vim aqui para ver você bancar o conquistador!

— Pode ficar com a amiga.

— Não, obrigado.

— Já terminamos nossa conversa. Na verdade, até agora não chegamos a nenhuma conclusão digna de mérito. Por que não tentamos encontrar um pouco de ação?

— Não jogo bilhar.

David não ouviu a resposta. Estava hipnotizado pela mulher que se debruçava sobre a mesa para uma nova jogada. Os olhos verdes encontraram os dele. O taco encontrou o pano verde e passou longe da bola. Ela não sabia muito sobre o jogo, mas ficaria deliciosa deitada sobre aquela mesa.....nua.

A fantasia foi como uma mola propulsora empurrando-o para a frente.

— Se o diabo usasse jeans, sua imagem seria aquela. Kelli Hatfield riu do comentário da amiga e tentou ajeitar o top cor-de-rosa. O material aderente era uma novidade em seu guarda-roupa. O rapaz louro e charmoso que até então estivera sentado junto do balcão caminhava na direção delas. Com os olhos fixos em seu corpo e um sorriso sexy e atrevido nos lábios, ele parecia saber o que queria. Kelli engoliu em seco, ergueu os ombros e conteve o impulso de puxar a blusa mais uma vez. Sabia que Bronte, sua amiga, não aprovava o que estava fazendo, mas preferia ignorar seus avisos persistentes. Afinal, ignorara o ar crítico de Bronte antes, quando sugerira que fossem ao bar de policiais para um drinque e uma partida de bilhar, e mais tarde, quando ela dissera que estava procurando encrenca debruçada sobre a mesa daquela maneira.

Um arrepio percorreu seu corpo.

Bronte baixou o tom de voz.

— Nem pense nisso, Kelli. O homem é um mulherengo, um conquistador voraz que devora a presa e depois abandona a carcaça aos abutres.

Kelli sorriu das palavras dramáticas. Quando havia sido a última vez em que se sentira tão eletrizada? Tão sexy? Pronta para mergulhar no mundo? Bem, talvez não no mundo, mas naquele maravilhoso exemplar do sexo masculino que caminhava em sua direção... O que era pior? Não lembrar a última vez, ou suspeitar de que ela nunca existira?

Sim, sabia que encorajar as investidas de um desconhecido em um bar de policiais não era uma atitude muito sensata, considerando suas circunstâncias. Mas era a primeira noite que passava em Washington depois de três longos anos, e era bom estar novamente em casa, na cidade onde fora criada e onde pretendia passar o resto de sua vida. Era agradável pensar no novo emprego e no apartamento confortável em Columbia Heights, um imóvel cujo aluguel jamais teria conseguido pagar em Nova York. Sentia-se bem. E no instante em que encontrara os olhos azuis do homem que se aproximava, sentira um impulso irresistível de soltar as amarras e entregar-se à vida.

— Talvez eu esteja mesmo procurando um conquistador voraz — disse, divertindo-se com a expressão chocada da amiga.

Habituada a chocar com seu comportamento livre e sensual, Bronte O'Brien não entendia a súbita mudança na atitude da amiga, sempre tão sensata e recatada.

— Sabe de uma coisa, Kelli? Retiro tudo o que disse até hoje sobre ter de relaxar e acumular experiências. Não era isso que eu tinha em mente. Se não quer ouvir os conselhos de uma amiga, ouça ao menos sua advogada. Conheço o tipo... e conheço o sujeito que está com ele. Ele é um agente federal. E mesmo que não fosse, um homem como aquele só pode causar problemas. Ele devia ter um aviso colado à testa: Alérgico a Compromissos. Uso Limitado a Uma Noite.

— Você não é minha advogada, Bronte. É advogada do governo americano. E não estou interessada no amigo dele. Estou interessada nele. Quanto a usá-lo por uma única noite... Bem, a idéia me agrada muito.

— Isso é o que diz agora. Quero ver o que vai dizer amanhã, quando a fantasia terminar.

— Ah, Bron, relaxe! Está agindo como se eu quisesse cometer um crime! Tente entender... Só tive uma experiência com o sexo oposto. Uma Bronte! — Uma experiência que não queria lembrar, muito menos repetir. — E era tão imatura que nem sabia o que esperava daquilo.

— Pois ouça o que vou lhe dizer. Jed era um amador. Esse sujeito é um profissional.

— Ouça você o que vou dizer, Bron. Estou farta de ser a boa menina. Não suporto mais fazer sempre o que é certo, seja no trabalho ou na vida pessoal. A colega perfeita que desiste do último de férias para substituir alguém que vai à festa da escola do filho. A amiga que está sempre em casa por não ter aonde ir. A vizinha que não se incomoda por alimentar seu animal de estimação enquanto você passa uma semana em uma ilha tropical, bebendo drinques exóticos e vivendo romances apimentados. Chega. Quero sair da redoma e viver um pouco, nem que seja apenas por uma noite.

Kelli engoliu em seco. Até aquele momento, não conseguira entender a origem de sua inquietação. Os sinais começaram a surgir meses antes, como quando comprara os lençóis de cetim por uma pequena fortuna, simplesmente porque eram sensuais. O recente interesse por comidas exóticas, o súbito e insaciável apetite por romances, livros que viciavam e que já formavam uma coleção grande o bastante para ocupar cinco caixas na mudança. A verdade era simples: não queria mais esfregar as pernas no lençol... sozinha. Não queria passar horas preparando uma refeição perfeita que comeria sozinha, ou na companhia de Kojak, seu fiel cão. Queria viver a vida das heroínas dos romances que lia, não só acompanhá-las.

— Quanto à possibilidade de sofrer, acho que tenho o direito de correr alguns riscos, não? — ela concluiu. — Depois de todas as crises que a vi enfrentar... Nunca disse nada em nenhuma das vezes em que a vi caminhando cegamente para um daqueles garanhões sedutores.

— Ei, o que está fazendo? Vai fazer um inventário de todos os meus romances para poder dizer que me avisou? E não me venha com esse ar inocente! Onde acha que aprendi a fazer o que estou fazendo agora? Cada palavra que disse há pouco, você repetiu dezenas de vezes ao longo dos anos.

Kelli desistiu de argumentar. Em vez disso, debruçou-se sobre a mesa e preparou a jogada seguinte. Mas, antes de efetuá-la, levantou os olhos e encontrou os do desconhecido fascinante. O erro foi tão grosseiro que ela quase abriu um buraco no feltro verde da mesa.

O rapaz sorriu e despediu-se dos amigos com quem estivera conversando em uma mesa, retomando a aproximação.

— Depois não diga que eu não avisei — Bronte concluiu em voz baixa.

Kelli não ouviu as palavras da amiga, concentrada no calor que brotava de seu ventre e enrijecia os mamilos sob a blusa justa. Naquela noite queria ser a devoradora e a devorada. Queria ser mulher e saborear cada porção do homem que caminhava em sua direção.

Ousada, apreciou abertamente o físico másculo. Oh, sim, ele era um policial. Não havia como negar. Tudo nele sugeria autoridade e arrogância, uma atitude endurecida que era fruto da rotina diária e de traços inerentes a sua personalidade. E ele ainda era jovem o bastante para considerar-se imortal.

Sim, aquele desconhecido era justamente o que a menina boa necessitava para tornar-se muito, muito má.

O demônio de olhos azuis e calça jeans jogou algumas moedas sobre a mesa.

— Estou interessado em apostar alto — brincou. — Meu nome é David McCoy.

Kelli apertou a mão estendida e sentiu o calor do contato envolvendo seu corpo.

— Kelli Hatfield. Aceito sua aposta.

Duas horas mais tarde, David apoderou-se mais uma vez da boca suculenta e empurrou-a para a cama simples no canto do quarto. A resposta inflamada, embora inexperiente, o excitava como nenhuma outra mulher jamais conseguira fazer. Por mais sexy que fosse, ela possuía uma inocência que aderia a sua pele como um perfume irresistível, despertando nele o desejo de devorá-la, de mergulhar em seu corpo e desvendar seus segredos mais íntimos.

E era exatamente isso que pretendia fazer, assim que conseguisse concentrar-se para ir além do beijo.

A força de sua reação era espantosa. Tinha de admitir que ficara surpreso com a rapidez dos fatos. Em pouco tempo haviam ido para a casa dela, onde arrancaram as roupas e trocaram beijos capazes de incendiar um oásis no deserto. Seria capaz de apostar que a mulher que abria o zíper de sua calça nunca pronunciara as palavras "sexo casual", muito menos o experimentara. E mesmo assim, não tivera de usar nenhuma de suas frases ensaiadas no bar. Havia sido sempre complicado levar uma mulher para a cama e mantê-la longe do território dos compromissos. Mas, depois da partida de bilhar que mais parecera uma cena de um filme erótico, só tivera de sugerir que saíssem do bar, e ela aceitara a proposta. Connor e Bronte, sua amiga, haviam se despedido como se considerassem a conclusão inevitável.

Pensar na rápida e surpreendente cadeia de eventos o inflamava, e temia explodir se não pudesse possuí-la imediatamente.

Chegara a supor que ela havia bebido demais, mas não encontrara nenhum dos sinais, nem sentira o aroma do álcool em seu hálito. Em lugar dele, experimentara algo quente e doce em sua língua. E na pele...

Pêssegos!

Ele tinha o sabor de pêssegos.

Depois de livrá-la da blusa cor-de-rosa e do sutiã transparente, David tocou seus seios e gemeu ao sentir o peso das mãos. Arredondados, firmes, macios... Perfeitos!

— Espere... eu...

Ele sugou um mamilo, e Kelli desistiu do que pretendia dizer.

Com mais força do que parecia ter, ela inverteu as posições e jogou-o sobre a cama. Depois despiu a calça e ajudou-o a tirar o jeans. Antes que pudesse compreender o que acontecia, David a segurava pelos cabelos enquanto ela se sentava sobre seu membro ereto. Havia uma beleza, uma gravidade em seu rosto que o inebriava. Experimentara algumas noites de sexo casual no passado, mas aquilo era diferente. Ou melhor, Kelli Hatfield era diferente. Nunca se sentira tão sintonizado com outra mulher, tão envolvido ou fascinado. E apesar de mal se conhecerem, tinha a impressão de conhecê-la em um nível que transcendia os detalhes triviais normalmente abordados durante um primeiro encontro tradicional. Não sabia que faculdade ela freqüentara em Nova York, de onde dissera ter vindo, mas tinha tanta certeza de seu desejo quanto do dele. E isso era o bastante.

Com os olhos fixos nos dele, Kelli começou a mover os quadris lentamente, acariciando-o de forma íntima e sensual. David capturou a boca entreaberta e fechou os olhos, tomado por uma súbita e inexplicável paz interior que não concordava com o ritmo crescente dos movimentos ou com a respiração arfante. Quando explodiram juntos num clímax violento momentos mais tarde, ele experimentou um estranho sentimento de satisfação que ia muito além da esfera física. Era como estar completo, pleno, uma emoção desconhecida, assustadora, eletrizante e poderosa.

— Uau... — Kelli murmurou.

— Sim... uau... — ele repetiu.

Aos poucos as funções vitais foram retomando o ritmo normal, e o mundo voltou a girar em torno de seu eixo. David olhou em volta. Havia caixas em todas as partes do quarto, e a cama nem fora coberta por lençóis. Não tinha importância. Supunha que ela se houvesse mudado recentemente, mas não tinha energia para perguntar. Pela primeira vez desde que podia lembrar, não tinha palavras para expressar-se.

Kelli levantou-se e vestiu um robe que recolheu do chão.

— Estou com sede. Quer beber alguma coisa? — ela ofereceu, ajeitando os cabelos com os dedos.

David notou a maneira como ela evitava encará-lo, mantendo os olhos fixos em algum lugar acima de seu ombro direito. Reconhecia bem o comportamento, porque era sempre ele quem o adotava depois do sexo. Sim, aquela era uma experiência inusitada!

— Eu... sim, gostaria de um copo de água gelada. Um tanque cheio de cubos de gelo.

Depois de amarrar o cinto do robe, ela recolheu a embalagem vazia do preservativo deixada sobre o criado-mudo e saiu.

David ficou quieto por um momento, pensando. Então era isso? Vivera o sexo mais satisfatório e explosivo que um homem podia experimentar, e agora era hora de ir embora?

Não queria ir. Não sabia o que havia acontecido ali, mas precisava repetir a dose. Muitas vezes...

Algo úmido e gelado tocou seu pé, e ele se assustou. Com a rapidez e a agilidade de um policial experiente, rolou na cama e pegou a bota no chão para usá-la como arma, caso fosse necessário. Depois sentou-se e encarou o atacante.

Atacante?

O objeto gelado e úmido era o focinho de um boxer muito dócil que o observava sentado no chão ao lado da cama.

— Ei... Quem é você? — David perguntou sorrindo, oferecendo a mão para que o animal pudesse cheirá-la.

Ainda estava afagando a cabeça peluda quando a luz invadiu o quarto. Piscando para ajustar-se à súbita claridade, olhou para a porta e viu Kelli parada com uma expressão surpresa e divertida.

Devia ser mesmo hilário. Lá estava ele, nu, segurando uma bota em uma das mãos enquanto usava a outra para afagar a cabeça de um cachorro. O que poderia ser mais ridículo?

— Nós... Seu cachorro e eu estávamos nos apresentando — disse.

Cachorro? Céus, o cachorro!

— Kojak! — Fechara a porta do quarto quando chegaram, mas o animal devia ter entrado enquanto ela estava na cozinha pegando a água gelada. — Ah, aí está você.

— Ele quase me matou de susto — David contou enquanto vestia o jeans de costas para ela.

A tentação de tocar o traseiro perfeito era imensa. Kelli desviou os olhos e sentiu o rosto queimando, o que era ridículo, considerando que momentos antes havia tocado, acariciado e saboreado cada centímetro daquele corpo.

— Desculpe — murmurou. — Kojak é inofensivo, mas o tamanho assusta. Aqui está sua água.

Vestindo apenas a calça, ele se aproximou e aceitou o copo. Enquanto bebia, exibia o corpo bem definido e bronzeado que a enchera de prazer momentos antes. Uma nova onda de desejo a invadiu, surpreendendo-a com sua intensidade. Kelli engoliu em seco. O homem era perfeito em muitos sentidos. O abdome plano, os braços musculosos, o quadril estreito oculto pela calça... tudo sugeria prazer, sexo e pecado. Gostaria de tocá-lo novamente.

— Era só isso? — ele perguntou ao devolver o copo. Kelli olhou para o recipiente vazio.

— Quer mais?

— Depende do que está oferecendo.

Sabia que tinha o rosto vermelho, podia senti-lo queimando. O homem não se referia à bebida, mas ao fato de não ter sequer dado a oportunidade de repetirem a experiência. Depois de... do sexo, fugira do quarto como se houvesse um incêndio.

O cachorro sentou-se a seus pés e latiu uma vez, chamando sua atenção.

— Agora não... Kojak.

O sorriso de David quase a derrubou.

— Foi bom ter esclarecido com quem estava falando, porque já estava pensando em vestir a camisa.

Bronte ficaria feliz por saber que uma de suas afirmações sobre David McCoy havia sido absolutamente correta. Ele era um profissional. E agora que sua mente funcionava outra vez, começava a temer que sua inexperiência fosse ainda maior do que havia imaginado. Temia descobrir que não havia nascido para o sexo casual, porque o futuro insistia em invadir a fantasia, criando dúvidas estúpidas como, por exemplo, se ele telefonaria no dia seguinte, ou se gostava de comida chinesa.

Os olhos percorreram o peito musculoso e sua respiração tornou-se ofegante. Inexperiente ou não, ainda queria aquele homem com todas as fibras de seu ser. Queria ser tocada, acariciada e possuída. Notou o volume sob o zíper da calça jeans e sentiu-se úmida e quente.

Levantou o rosto para encará-lo e reconheceu nos olhos azuis o reflexo de seu desejo. A prostituta faminta e obcecada podia tê-la abandonado, mas acabava de descobrir que a boa moça queria tudo que ela experimentara. E mais.

Um gemido rouco brotou de sua garganta. Oh, para o inferno com o futuro e as conseqüências, com os avisos de Bronte e a certeza de que ela ainda os repetiria centenas de vezes como um profeta do apocalipse. A verdade era que a noite ainda não havia terminado, e queria passar cada segundo dela com David McCoy aninhado entre suas pernas.

Esquecendo o cachorro, ela se atirou nos braços de David e beijou-o, expressando suas intenções com clareza indecente. Ele deslizou as mãos por seu corpo, soltou o cinto do robe e desnudou-a. Depois tomou-a nos braços e praticamente jogou-a em cima da cama.

 

Está atrasado, oficial McCoy. Outra vez.

David acenou para O'Leary, o sargento e secretário, e continuou correndo para a sala de reuniões. Ficara preso em um congestionamento monstruoso perto de Dupont Circle, e por isso estacionara o carro na vaga do comandante, mais próxima da entrada do edifício, para ganhar tempo. A camisa do uniforme estava amarrotada porque se sentara em cima dela ao entrar no automóvel, certo de que a deixara no banco do passageiro, e não tivera tempo para limpar e verificar a arma, como fazia todas as manhãs.

E apesar de tudo, estava assobiando.

O tenente Kowalsky ficaria furioso com mais esse atraso. No entanto, enfrentar a ira do supervisor carrancudo não o incomodava como de costume. O bom humor devia ter alguma relação com a noite de sexo e prazer que vivera ao lado de Kelli Hatfield.

Kelli Hatfield.

Se era verdade o que diziam sobre a rivalidade entre os Hatfield e os McCoy, ele e Kelli haviam contribuído para encerrar antigos mal entendidos.

— Não há ninguém aí.

As palavras de O'Leary o atingiram no instante em que ele abriu a porta e encontrou a sala de reuniões vazia. Não era tão tarde assim! Não podia ter perdido a distribuição de tarefas.

— O que está acontecendo? — perguntou, voltando para perto da entrada e do sargento.

— Não ligou o rádio quando vinha para cá, garotão? Todos estão no centro da cidade. Um maluco fez a filha de refém e jurou que não soltará a criança enquanto não puder falar com a ex-esposa. A imprensa está enlouquecida.

David sentiu a adrenalina invadindo suas veias. Uma situação com reféns! Que maneira suculenta de começar o dia. Animado, correu para a porta enquanto ia vestindo o casaco.

— McCoy!

O grito de Kowalsky o fez parar.

— Sim, tenente?

— Vai a algum lugar?

— Sim, senhor, vou ao centro da cidade para oferecer minha ajuda aos colegas que...

— Não está esquecendo nada?

— O que pode ser, senhor?

— Você tem companhia.

David conteve o ímpeto de fechar os olhos e gemer. Era tudo de que precisava. Um novo colega para conhecer a caminho do centro.

— Desculpe, senhor. Como estou atrasado, pensei que ele poderia ter ido sem mim.

Ao contrário do que podia sugerir o nome, Kowalsky era um afro-americano de um metro e oitenta e cinco de altura com a postura de um sargento sádico e um sorriso monstruoso utilizado sempre em seu proveito. O fato do. homem estar rindo encheu David de pavor.

— É claro que não, McCoy. Sua nova companhia está bem aqui. — Ele se virou e encontrou a porta vazia. O sorriso desapareceu de seu rosto. — Hatfield!

Hatfield? Quais eram as chances de conhecer duas pessoas com o mesmo sobrenome em menos de vinte e quatro horas? Pequenas. Minúsculas. Improváveis.

Não. Devia estar impressionado com o nome. Por isso o ouvia em todos os lugares.

Mas não era apenas uma impressão. Em pânico, David viu a mulher doce, sexy e insaciável com quem passara a noite surgindo na porta, o rosto expressando um choque tão grande quanto o dele.

Era como se o chão se abrisse sob seus pés.

Kelli Hatfield era sua nova parceira? Mas... na noite anterior pensara estar fazendo amor com uma vendedora de perfumes ou vestidos de noiva! Descobrir que ela era uma policial era quase como entrar em um filme de terror.

Kelli recuperou a capacidade de ação antes dele.

— Oficial McCoy — disse, estendendo a mão para um cumprimento formal.

David aceitou o cumprimento, mas ainda estava chocado, sem fala.

— Já se conhecem? — Kowalsky indagou desconfiado.

— Sim, senhor — ela respondeu. — Fomos apresentados ontem à noite no Pour House. Foi minha primeira noite na cidade.

— Que bom. Bem, agora que já se conhecem, não deviam estar em algum lugar longe daqui?

— Estamos a caminho, senhor.

Aturdido, David a viu sair e correu atrás do traseiro perfeito. Assim que passaram pela porta do edifício, parou esperando que ela dissesse alguma coisa, que oferecesse uma explicação, mas tudo que Kelli disse foi:

— Você vem ou não, McCoy?

— Não pode ser... Quero dizer, eu não sabia... Não acredito... Pelo amor de Deus! Você não pode ser uma policial!

— Qual é a viatura?

— O quê?

— O carro, oficial!

David apontou para o automóvel na vaga do comandante e ela seguiu em frente. Ao vê-la abrindo a porta do motorista, ele decidiu que era hora de agir.

— Eu dirijo! — disse, alcançando-a com alguns passos largos.

Erguendo os olhos como se estivesse aborrecida, Kelli foi sentar-se no banco do passageiro.

Sim, estava sentada no banco do passageiro, olhando para o painel como se estivesse em estado de choque. As palavras de Bronte ecoavam em sua mente.

— Não diga que eu não avisei...

Aquilo só podia acontecer com ela. Sua primeira noite de volta em Washington, a única noite em que jogara a cautela pela janela e decidira viver a vida, e acabara na cama com o novo parceiro.

Respirando fundo, murmurou meia dúzia de palavrões que teriam deixado o pai orgulhoso. Isto é, se fosse o menino que ele sempre quisera ter. Mas era uma mulher, e ele jamais a deixava esquecer esse pequeno detalhe. Nem quando jogara beisebol na liga infantil, nem quando ingressara na Academia aos vinte anos, nem quando se formara e fora rejeitada pela Polícia Metropolitana de Washington. Ficara furiosa ao descobrir que o pai a conseguira convencer um oficial a colocá-la em uma lista de espera onde era a centésima da fila. Aparentemente, ele acreditara que perderia o interesse ainda na Academia. Sempre fora super-protetor. E dissera, com todas as palavras, que sua garotinha não arriscaria a vida enfrentando bandidos armados enquanto ele tivesse algum poder no departamento. E como Chefe Regional do Leste, ele tivera mais que o suficiente para detê-la... pelo menos em Washington. Em Nova York, no entanto, seu poder era nulo.

A porta do motorista se abriu e Kelli quase pulou pela janela. David sentou-se atrás do volante.

Afinal, por que o culpava? Ele era tão vítima da situação quanto ela! Mas, por alguma razão, a incredulidade que vira em seu rosto quando foram apresentados a irritara. Havia esperado choque, mas... incredulidade?

Agitada, disse a. si mesma que devia dar ao sujeito o benefício da dúvida. Afinal, havia uma boa chance de ele não ser como oitenta por cento dos homens com quem trabalhara, indivíduos que a julgavam incapaz de fazer seu trabalho de oficial de polícia. Tudo, talvez a chance não fosse tão grande, mas ela existia, e depois da noite anterior, tinha o dever moral de demonstrar pelo menos um mínimo de consideração.

Ele se moveu. Kelli fez um esforço para encará-lo.

— Escute, também não esperava que isso acontecesse, David... McCoy. — Era melhor agarrar-se à formalidade. Usando o sobrenome, talvez pudesse impor a distância de que tanto precisava.

— Na verdade, Hatfield, não está sendo completamente honesta. Ontem à noite você sabia que viria trabalhar no distrito e que teria um parceiro. Portanto, sabia muito mais do que eu.

Ela suspirou e olhou para o teto do carro. Tudo bem, tinha de reconhecer que o homem estava certo. Mesmo assim...

— Por favor, David! Eu o conheci em um bar freqüentado por policiais. Devia saber que eu estava ligada à força de alguma maneira.

— É claro. Sim, eu sabia. Pensei que fosse filha de um capitão, irmã de um sargento, ou... Enfim, não esperava que fosse uma policial.

Ela olhou pela janela e viu que alguns indivíduos usando uniformes da força passavam pela calçada e olhavam para o automóvel, curiosos sobre o motivo que detinha a viatura com os dois oficiais.

— Não acha que devemos começar a trabalhar?

— O quê? — Ele olhou na direção apontada por Kelli e suspirou, um som prolongado e exausto que anunciava o fim de um transe.

— Escute, David, quando vim para cá esta manhã, a última coisa que esperava era viver esta situação. — Odiava notar que o azul de seus olhos era ainda mais vibrante à luz do dia. — Tenho uma sugestão. Vamos cuidar do nosso trabalho e fingir que a noite passada nunca aconteceu.

— Ficou maluca? Tive o melhor sexo de toda minha vida, e você quer que eu esqueça o que aconteceu? Que eu aja como se nada houvesse acontecido? — David ligou o motor e engatou a marcha. — Nunca, Kelli. Não existe a menor possibilidade de me convencer a esquecer o que vivemos ontem à noite. E farei tudo que puder para não deixá-la esquecer,

Quando chegaram ao local da ocorrência, a rua estava tomada por policiais. David identificou o comandante da ação e aproximou-se dele acompanhado por Kelli. A brisa gelada de dezembro levava o perfume feminino até suas narinas. Era um aroma delicioso, algo como... pêssegos maduros e suculentos recém-colhidos da árvore.

Ele sorriu. Sim, a mulher era um pêssego. Um pêssego armado!

— E um prazer constatar que conseguiu juntar-se a nós, McCoy — Sutherland apontou com ironia e impaciência.

Um oficial que David havia cumprimentado no bar na noite anterior cutucou o parceiro.

— Olhe só para aquilo! O Garanhão tem uma nova parceira.

— Vá para o inferno, Jennings — ele respondeu.

O rosto de Kellie estava vermelho como um tomate, mas não saberia dizer se o efeito era resultado do frio ou dos comentários que já circulavam pelo grupo. Os cabelos louros e longos estavam presos em uma trança, e a pele suave parecia brilhar na manhã cinzenta.

Ela o encarou. David olhou para o comandante.

— Por que não me informa... nos informa sobre o que está acontecendo?

Sutherland falou, repetindo basicamente as mesmas informações que O'Leary já havia oferecido no distrito.

Os detalhes eram mais específicos. O seqüestrador estava no terceiro andar, a porta estava aberta, mas não havia um ângulo seguro para tiros. A ex-esposa do homem tremia e chorava perto de uma viatura policial. Sutherland apontou para uma escada de incêndio na lateral do edifício e para o telhado do prédio vizinho, onde atiradores de elite estavam prontos para entrar em ação.

— O canalha exige conversar com a ex-esposa antes de libertar a filha, uma menina de três anos de idade.

— O canalha é pai da criança.

— Ele deixou de ser pai no instante em que fez a própria filha de refém, McCoy.

David recuou até poder ver melhor a escada de incêndio.

— O que foi? — Kelli perguntou curiosa.

Ele a encarou. Droga! Olhar para ela era o bastante para sentir o estômago contraído e a mente confusa.

— Estava pensando... Esse sujeito não podia ter escolhido um momento pior para cometer uma loucura. Os policiais do plantão noturno estão cansados e cheios de cafeína, e os do plantão diurno sempre ficam nervosos quando não conseguem terminar o café com rosquinhas na sala de reuniões.

— Ah... Tem alguma idéia de como pôr um ponto final nessa situação?

— Bem, o que acabei de dizer faz muito sentido.

— É claro. Vamos chamar a SWAT.

— De jeito nenhum. Falei sobre rosquinhas... Se o pai da menina trabalha à noite e estava voltando para casa, como disse o comandante, então ele ainda não tomou café. Um homem pode ficar faminto depois de trabalhar a noite toda.

— Está dizendo que devemos alimentar o contraventor?

— O pai, Hatfield. O homem é pai daquela criança. Sim, acho que devemos alimentá-lo. Que mal pode haver nisso? — Havia uma padaria do outro lado da rua, e ele colocou uma nota de cinco dólares na mão dela. — Aqui está. Traga meia dúzia de rosquinhas e dois cafés.

— Mas...

— Faça o que estou dizendo, Hatfield.

Ela se dirigiu à padaria, mas não fez questão de esconder a contrariedade.

No instante em que se viu sozinho, David pegou um colete à prova de balas do carro de suprimentos e seguiu para a escada de incêndio. Não foi difícil chegar ao terceiro andar e olhar pela janela. O homem estava sentado em um sofá fora do ângulo de visão da porta da frente e dos atiradores posicionados sobre o telhado vizinho. Ele segurava a filha com uma das mãos e empunhava uma automática doze milímetros com a outra. A criança parecia tranqüila e brincava com os botões do uniforme de trabalho do pai.

David recuou e respirou fundo. Era fácil imaginar a situação. O homem saíra do trabalho em uma fábrica próxima e havia parado para ver a filha. A ex-esposa o impedira de ver a criança, e ele improvisara uma solução para o problema. O que começara como uma simples briga familiar alcançara proporções inusitadas.

— Estou vendo o bandido — disse uma voz metálica no rádio preso à cintura de David. Era um atirador de elite.

— Prepare-se para atirar — respondeu o comandante. David balançou a cabeça e estendeu a mão para a janela. Aberta. Torcendo para que a sorte não o abandonasse, entrou antes que o homem lá dentro e os policiais do lado de fora tivessem tempo para reagir.

— Ei, ei, caubói — disse, levantando as mãos para mostrar que não empunhava nenhuma arma. — Meu nome é McCoy e estou aqui para impedir que alguém se machuque.

Oficiais ocupavam todos os espaços do pequeno apartamento. Em meio ao caos, Kelli terminou de ler os direitos do preso e fechou as algemas. David estava perto da porta segurando a menina nos braços, murmurando alguma coisa em seu ouvido. As palavras provocaram um sorriso. Ele não só conseguira evitar que a criança testemunhasse a prisão do pai, como também a fizera rir. Kelli não pôde deixar de notar como ele parecia perfeito com a criatura angelical nos braços.

Testando as algemas, forçou todos os pensamentos inoportunos para o fundo da mente e concentrou-se apenas no próprio aborrecimento. David a mandara à padaria enquanto bancava o herói! Pensar nisso era suficiente para fazer o sangue ferver em suas veias.

— Por aqui — disse, segurando o braço do detento e levando-o para fora do apartamento.

Ele hesitou.

— Não planejei nada disso. Só queria ser o primeiro a cumprimentá-la esta manhã — disse. — É aniversário dela, sabe? Tudo que queria eram cinco minutos para abraçá-la e entregar o presente que comprei para ela. Nunca faria mal à minha menininha.

— Diga isso ao juiz — Kelli respondeu com firmeza. David entregou a criança à mãe, e Kelli entregou o homem ao primeiro oficial do distrito,

— Sua atitude foi estúpida, David — ela resmungou quando saíram juntos.

— E daí? O que importa é que ninguém se feriu. Não sabia que estava tão preocupada comigo.

— Sou sua parceira. E meu dever pensar em garantir sua segurança. Mas não é sobre isso que estou falando. Não gostei da tática, David. Conhece o significado da palavra parceiro, ou...

— McCoy! — Sutherland gritou do outro lado da rua.

— Vou ver o que ele quer.

Kelli abriu a boca para falar, mas já era tarde. Além do mais, tinha a impressão de que nada do que dissesse faria diferença. Seria divertido ver o comandante censurando a falta de cautela com que McCoy entrara em ação.

Mas, enquanto Sutherland não começava a gritar, ela aproveitou para apreciar o traseiro perfeito coberto pelo tecido grosseiro da calça do uniforme. Um tremor sacudiu seu corpo.

Por que tinha a sensação de que toda sua vida havia sido virada de pernas para o ar? E por que suspeitava de que o único culpado por isso era um certo Casanova cujo verdadeiro nome era David McCoy?

 

Na manhã seguinte, Kelli descobriu-se sonhando acordada na frente da torradeira. Estivera pensando em David de uma maneira que não tinha nenhuma relação com o jeito como ele a tratara no dia anterior, com seus planos de conquistar um posto de detetive, mas que tinha tudo a ver com corpos quentes e lençóis macios.

Irritada, afastou do rosto os cabelos úmidos pelo suor da corrida e mordeu o sanduíche de pão de cebola com geléia. Ignorando a pilha de louças sujas na pia e a embalagem vazia de suco de laranja sobre a mesa, pegou a xícara de café e saiu da cozinha. Dispunha de quarenta e cinco minutos antes de apresentar-se para o trabalho. Tempo suficiente para tomar um banho e chegar ao distrito com alguns minutos de antecedência. Queria ter aquela conversa que ela e David não puderam ter no dia anterior.

A tensão que tentara eliminar durante a corrida de seis quilômetros ainda pesava sobre seus ombros.

Depois da ocorrência no centro da cidade, a imprensa fizera um verdadeiro banquete com os sorrisos fáceis de David e suas declarações de falsa modéstia. Quando finalmente entraram na viatura, já havia pelo menos uma dúzia de outros chamados exigindo atenção imediata. E no entanto, por mais que trabalhassem, o laço invisível entre eles nunca deixara de existir. Era uma ligação que nem mesmo a resposta mais ríspida pudera romper.

Bem, naquele dia pretendia levar um machado para o trabalho. Conteria os próprios hormônios, nem que para isso tivesse de correr trinta quilômetros.

Kelli olhou para a confusão que reinava no apartamento. Havia caixas em todos os cantos, um saco de ração para cachorro no meio da sala de estar e malas com roupas atrás do sofá. Resignada, deixou a xícara de café sobre a mesa da sala de jantar e sentou-se diante de uma pasta contendo papéis. Notando um lembrete escrito em papel cor-de-rosa, deu mais uma mordida no sanduíche e inclinou-se para ler a data. Vinte e cinco de março de 1982. O dia em que sua mãe fora assassinada. O dia em que decidira ser uma detetive da Homicídios.

Um latido forte a assustou...

— Kojak! Quer que eu tenha um infarto? — Olhando para a mistura que fazia as vezes de café da manhã, ela estendeu a mão para oferecer o pão ao animal. Kojak cheirou o sanduíche, deu uma lambida na geléia e recuou. Kelli olhou para a baguete que não poderia mais comer. — Muito obrigada. — Jogou-a numa sacola que esperava estar vazia, depois ligou a televisão com o controle remoto. O locutor do jornal matinal explicava os detalhes de uma notícia enquanto uma cena chocante ocupava toda a tela.

— Nossos repórteres estão no subúrbio de Georgetown, onde uma mulher foi encontrada morta em seu apartamento no início desta manhã. Testemunhas afirmam que o assassino da pacata professora primária deixou todos os sinais correspondentes às ações do homem apelidado de Degenerado da Capital. Se o crime foi realmente cometido pelo Degenerado, então ele acaba de subir mais um degrau na escada da violência e do crime. Deixou de ser um simples pervertido sexual que usa vítimas inocentes para realizar suas fantasias doentes e tornou-se, um assassino cruel e sanguinário.

Kelli desligou o aparelho, perturbada com o caso. Quantos detetives tinham conhecimento sobre o criminoso? Seriam capazes de pegá-lo, ou ele também permaneceria em liberdade, como o assassino de sua mãe?

Há algum tempo não revia o conteúdo da pasta aberta sobre a mesa. Três anos. Desde que a transferência para Nova York a impedira de continuar investigando o caso. Mas agora estava novamente em casa...

O telefone tocou.

— Olá.

— Kelli! É assim que costuma atender ao telefone? — O pai dela perguntou irritado.

— Eu sabia que era você. Está ligando para mim a cada cinco minutos desde que voltei para a cidade.

— Bem, eu não teria de telefonar se estivesse morando aqui comigo.

— É verdade.

— Sabe que tenho espaço de sobra. Não vejo sentido em alugar um apartamento e viver sozinha.

— Eu sei, papai — ela respondeu enquanto examinava os papéis.

— Tem visto os jornais? Hoje em dia as mulheres correm perigo nesta cidade.

— Sim, eu sei.

— E esse seu cachorro não vai garantir sua segurança. Ele não passa de um gato super-desenvolvido.

— Um gato...

— Kelli Marie, está prestando atenção ao que digo?

— É claro que sim, pai. E mesmo que não estivesse, já conheço o discurso. Ligou por alguma razão específica, ou só queria saber se estou bem?

Silêncio.

O Sr. Hatfield suspirou do outro lado.

— Um pai não pode mais conversar com a filha? Kelli sabia que devia ter antecipado o movimento, mas caíra na armadilha como se ela fosse uma novidade.

— É evidente que pode, papai. — Em alguns momentos tinha a sensação de que o relacionamento havia sido sempre assim. Os dois contra o mundo. Haviam sido essas as palavras de seu pai quando ele a encontrara chorando no guarda-roupa da mãe depois do funeral. Palavras que ele repetira centenas de vezes enquanto ela se esforçava para provar que era tão competente quanto qualquer homem. Os dois contra o mundo. — Papai... sei que não gosta de falar sobre o assunto... e tenho evitado abordá-lo... mas preciso saber. Não se incomoda por saber que o assassino de mamãe nunca foi preso?

— Não gosto de, lembrar o passado, Kelli.

— Eu sei, mas...

— Nada pode mudar o que aconteceu. Eu posso.

— Não acredita que a justiça possa alterar o rumo dos fatos? Não quer...

— Não.

Era inútil. Sabia que as perguntas só o aborreceriam, e então o pai se fecharia ainda mais.

— Muito bem. Não precisamos falar sobre esse assunto. — Precisava amenizar a tensão que se instalara entre eles, ou passaria dias sem ter notícias do pai. — E então, grande chefe de polícia... O que comeu esta manhã? Biscoitos de baunilha com café?

Durante os dez minutos seguintes os dois falaram sobre questões triviais, evitando tópicos familiares ou qualquer discussão sobre sua escolha profissional. Tudo era mais fácil quando esqueciam que Kelli era uma policial. Ou melhor, era mais fácil quando o pai dela esquecia o que a levara a escolher uma carreira tão difícil. Não sabia o que ele havia dito aos conhecidos sobre o período que Kelli passara em Nova York, mas se conhecia Garth Hatfield, e o conhecia bem, devia ter sido alguma coisa relacionada a um curso de Artes.

Agora que estava de volta, certamente a explicação, cairia por terra.

— Bem, agora tenho de desligar, papai.

— Sim, é claro.

Kelli fechou a pasta que não poderia mais examinar. Não naquela manhã.

— Conversaremos mais tarde, está bem?

— Mais tarde.

— Até logo.

— Espere um segundo, Kelli. Há algo que gostaria de perguntar. Como foi ontem?

O tom de voz neutro sugeria que ele se esforçava para tratar a situação com naturalidade.

— Foi tudo bem. Muito bem. — Mentirosa!

— Já conheceu seu novo parceiro?

— Sim.

— Estão se dando bem?

— Sim.

O suspiro de Garth foi claro do outro lado da linha.

— Ah, vamos lá, não estou conduzindo um interrogatório oficial. Pode dizer mais do que sim ou não. Gostou do sujeito? Quer que eu tente transferi-la para outro distrito?

— Como Arlington, por exemplo, onde o crime mais sério é o de vadiagem? Não, obrigada. — Ela massageou a testa. — O nome de meu parceiro é McCoy. O homem é um machista teimoso que precisa de uma redução de ego, mas sei lidar com ele. — Pelo menos esperava saber.

Houve uma pausa tão longa, que Kelli pensou que a ligação houvesse sido interrompida.

— McCoy? — O pai finalmente perguntou.

— Isso mesmo. Você o conhece?

— Conheço o pai dele.

— Que bom! Talvez possam marcar um encontro e planejar como vão afugentar seus filhos da força policial enquanto bebem uma cerveja. Escute, preciso mesmo...

— Se algum dia Sean McCoy e eu estivermos juntos em algum lugar onde haja cerveja, é bem provável que um de nós quebre uma garrafa na cabeça do outro.

Kelli parou. Nunca ouvira Garth Hatfield dizer algo agressivo contra outro ser humano.

— Puxa, eu... não sei o que dizer. Estou chocada.

— Não estaria, se conhecesse o sujeito. É difícil encontrar alguém mais arrogante e convencido do que Sean McCoy.

Ele dizia aquilo porque ainda não conhecera David.

— Quando foi a última vez que conversou com esse... Sean?

— Foi há... vinte anos.

— Vinte anos? Pensei que a rivalidade fosse mais recente!

— E é. Não falo com o patife há vinte anos, mas sou obrigado a vê-lo diariamente no trabalho.

— Por quê? Ah, já sei! Ele também é policial. Qual é o posto? Chefe Regional do Oeste, ou coisa parecida?

— Chefe? Kelli, não ouviu nada do que eu disse? O homem é só um tira! Sempre foi e sempre será!

— Papai, talvez eu seja mesmo um pouco distraída, mas não estou entendendo nada. O que é isso, afinal? Uma versão moderna para a velha história entre Hatfield e McCoy? — Ela olhou para o relógio e se assustou. — Escute, tenho de desligar. Falaremos sobre isso mais tarde, certo?

O pai ainda estava resmungando quando ela desligou o telefone. Sem dúvida teria de ouvir algumas palavras mais ríspidas por sua atitude, mas não tinha outra alternativa. Precisava correr, ou chegaria atrasada para o trabalho.

David consultou o relógio pela terceira vez e constatou que menos de um minuto havia se passado desde a última vez. A sala de reuniões estava lotada, e todos os oficiais teciam seus comentários enquanto esperavam pelo início do expediente. Uma coleção de roupas civis na frente da sala provocava a curiosidade de todos.

Onde ela estaria?

— O que pode estar acontecendo? — Jones perguntou a seu lado.

— Não faço a menor idéia.

— Harris acredita que é o caso do Degenerado.

— Toda essa atenção para um pervertido sexual? Que exagero! — David exclamou sorrindo.

— Não lê os jornais? O homem deixou de ser apenas um pervertido. Ele cometeu seu primeiro assassinato. O corpo foi encontrado esta manhã. Parece que o assassinato ocorreu há alguns dias.

David lembrou-se do caso..,

— Droga. Jones riu.

— Parece que agora entendeu o que eu digo.

— Perdi alguma coisa?

Kelli se sentava na cadeira que mantivera vazia para ela. Parecia tão bem-disposta e alerta àquela hora da manhã, tão atraente e sedutora, que sentia vontade de pular sobre ela e beijá-la.

— Está atrasada — disse. Ela sorriu.

— Eu sei. E então? Perdi alguma coisa? Sentia-se tentado a ignorá-la. Passara boa parte da noite na casa do pai, ouvindo o velho resmungar e proferir impropérios, e não gostara da experiência.

— É sobre o caso do Degenerado.

Os olhos dela ganharam um novo brilho.

— Quer dizer o caso do assassino, não?

— Como sabe?

— McCoy, não costuma assistir aos jornais? Queria responder que não, que a dose diária de vida real era mais do que suficiente para alguém com sua profissão, mas sabia que o comentário não faria nenhum bem a sua reputação. Por isso ficou calado. Sugerir que assistia aos noticiários, mas que deixara de vê-los dessa vez, seria como revelar uma mudança em sua rotina. O próximo passo seria deixá-la acreditar que ela era a causa dessa mudança. E não permitiria tal coisa. Nunca. Por mais correta que fosse a idéia.

— Eu... tive outras coisas para fazer ontem à noite. A luz extinguiu-se.

— A notícia foi divulgada no boletim desta manhã.

— Não faz diferença.

— Por favor, poupe-me dos detalhes.

— É claro. No entanto... — David inclinou-se para aproximar a boca de seu ouvido. — O que acha de assistirmos ao jornal juntos? Esta noite, talvez? Depois do jantar?

O golpe o atingiu no braço com força surpreendente.

— Ai!

— Mais uma gracinha dessa durante o expediente, e juro que vai sentir dores bem piores. E pare de gemer, McCoy. A reunião vai começar.

David ouviu distraído, as informações sobre uma força tarefa especial, comandada pelo Setor de Homicídios em conjunto com a Unidade de Crimes Sexuais. Alguns homens e mulheres teriam de agir disfarçados, e os voluntários podiam erguer as mãos. A Unidade de Crimes Sexuais já conseguira plantar três detetives em três diferentes sex shops da cidade que podiam ter sido freqüentadas pelas vítimas do maníaco. Ainda precisavam de um quarto detetive.

David permaneceu calado. Todos os testes que fizera na academia haviam detectado sua inabilidade para interagir com outras pessoas. Por isso tivera três parceiros em menos de sete anos. Se tivesse algum interesse em participar da força-tarefa, o que não acontecia, provavelmente seria dispensado na primeira entrevista.

Além do mais, estava mais interessado na mulher sentada ao seu lado. Por que ela se esquivara de todas as tentativas de aproximação na noite anterior? Num minuto a vira conversando com os colegas na sala de café, no outro ela havia desaparecido.

Pensara em ir procurá-la em casa com algumas latas de cerveja, e teria ido, se ela fosse outra pessoa. Mas, por alguma razão, a possibilidade de levar com a porta no nariz o impelira a procurar pelo pai.

Haviam vivido uma noite incrível de sexo. A melhor que já experimentara. Então, por que ela se comportava como se preferisse estar em qualquer outro lugar, menos sentada ao seu lado?

A menos...

Não. Sabia que ela também havia apreciado a experiência. David McCoy nunca deixava uma mulher insatisfeita. Nunca havia acontecido. Podia recitar uma dúzia de nomes com os quais conseguiria um encontro a qualquer momento. Insatisfeita? De jeito nenhum!

Ou estaria enganado?

— Bem, é isso. Se alguém tiver dúvidas ou perguntas a fazer, os detetives estarão aqui para ajudá-los. Nossa intenção é enviar o retrato falado do suspeito a todas as unidades antes do final do primeiro turno. Não vou enganar ninguém. Não sabemos com quem estamos lidando, de que esse bandido é capaz e até onde pretende ir. A policial que aceitar a missão estará diante de uma situação de alto risco. Queremos que levem em consideração todos os fatores envolvidos antes de se candidatarem.

David praticamente pulou da cadeira.

— Felizmente acabou. Podemos ir? Kelli balançou a cabeça.

— Tenho... algo a fazer antes de sair. Pode esperar na viatura?

Ele encolheu os ombros.

— É claro. Mulheres!

Ela certamente passaria pelo banheiro para retocar o batom. Deus a livrasse de não estar impecável no momento de prender um batedor de carteiras!

Kelli respirou fundo e saiu da sala de reuniões. Sabia que as chances de ser aceita na força-tarefa eram mínimas. Afinal, assumira o trabalho em Chicago há dois dias, e ninguém levaria em consideração os três anos de experiência que reunira em Nova York. Também não levariam em conta as duas missões que cumprira como agente disfarçada. Vestida de prostituta, percorrera ruas perigosas e conseguira identificar e prender gigolôs violentos e perigosos.

Mesmo assim, submeteria seu nome à apreciação dos supervisores. Prender bandidos que tiravam proveito de mulheres era o que sempre quisera fazer. Se não conseguira esclarecer o assassinato da mãe e levar aquele assassino para trás das grades, pelo menos tomaria providências para que nenhuma outra tivesse de enfrentar a tortura a que ela fora submetida. Seguiria vivendo confortada pela certeza da justiça no mundo.

Era uma necessidade. Qualquer que fosse o caminho, tinha de chegar ao fim planejado e tão almejado.

Ao abrir a porta para a rua, ela decidiu que as chances podiam ser melhores do que imaginava, afinal. Fora uma surpresa descobrir que a força-tarefa já possuía seus dados, incluindo o questionário onde confessara seu objetivo profissional: tornar-se detetive da homicídios antes de completar trinta anos. Kelli suspirou aborrecida. Sim, esse era seu objetivo. Mas onde estivera com a cabeça ao colocá-lo no papel? Era como ouvir um garoto de dez anos dizendo que queria ser o presidente dos Estados Unidos.

— Que bobagem, Hatfield ,— disse a si mesma enquanto abotoava o casaco.

David parecia zangado no interior da viatura. Ele mostrava o relógio criticando seu atraso, e Kelli sentou-se em silêncio no banco do passageiro. Pensou em dizer a ele que não precisava de outro pai, mas continuou calada. Preferia não revelar quem era seu pai, o que certamente aconteceria se abordasse o assunto. Ainda não estava preparada para lidar com essa questão delicada.

— Você demorou muito — ele apontou enquanto retirava o carro da vaga no estacionamento. — Qual é o problema? Comeu comida estragada ontem à noite?

Kelli encarou-o confusa. Oh, sim! Ele acreditava que estivera no banheiro durante todo aquele tempo! Não ficaria surpresa se ele a acusasse de ter perdido tempo retocando o batom. Surpresa maior seria receber o apoio de um superior que conhecesse seu objetivo imediato: ingressar na força tarefa. Sendo assim, não perderia tempo relatando o que estivera fazendo. Assim, não teria de vê-lo rindo quando fosse recusada.

— Sim, foi mais ou menos isso — mentiu. Depois acionou o rádio e aproximou o microfone da boca. — Central, aqui fala a cinqüenta e dois. Estamos saindo. — Ela devolveu o rádio ao suporte e acomodou-se melhor no banco. — Escute, David, acho que precisamos ter aquela conversa que tentei começar ontem.

— Sobre o quê?

— Sobre a trapaça que utilizou ontem de manhã.

— Trapaça?

— Você me mandou à padaria enquanto ia, sozinho, salvar o mundo e ocupar seu posto no pedestal dos heróis.

— Oh, é isso... — ele sorriu. — Eu não salvei o mundo, Kelli. Apenas impedi um sujeito deprimido e cansado de arruinar a própria vida.

— Não pensou em consultar-me? Devíamos ter traçado um plano e submetido as idéias à aprovação de Sutherland.

— Bem, eu... nunca pensei nisso.

— Essa é a razão pela qual precisamos conversar. O que pensou que estava fazendo quando subiu por aquela escada de incêndio sem ninguém protegendo sua retaguarda? Sem ninguém ter sido informado sobre suas intenções? E entrar pela janela como... como um super-tira disposto a ganhar os noticiários!

— Super-tira?

Kelli mordeu a língua. Ouvira o termo em um dos jornais da tevê na noite anterior.

— Escute, Hatfield, podemos discutir esse assunto o dia todo... e à noite também — ele acrescentou com um

brilho sugestivo nos olhos —, mas nós dois sabemos que não havia tempo para traçarmos planos complexos. A SWAT mantinha os atiradores de elite no telhado, e Sutherland estava prestes a dar a ordem decisiva. Tinha de ser rápido. Tudo bem, admito que mandá-la comprar rosquinhas foi um truque sujo...

— Uma tática desonesta.

— Eu sei. Mas ainda estava chocado com a descoberta de que você era minha nova parceira, e precisava de algum tempo para ajustar-me antes de sair por aí brincando de Butch Cassidy e Sundance Kid.

A explicação deixou-a mais agitada, porque fazia sentido de um modo estranho, confuso. Quando poderia entender o funcionamento da mente de homens como David?

Pior ainda, por que os olhos insistiam em apreciar as coxas bem definidas sob o tecido da calça de seu uniforme?

— Nunca mais faça isso, McCoy, ou não terá de preocupar-se com Sutherland e sua eterna intenção de arrancar um pedaço de seu traseiro. Eu mesma terei essa honra.

David sorriu.

— Ei, agora está dizendo coisas mais interessantes. Kelli resmungou meia dúzia de adjetivos nada lisonjeiros.

— Foi só uma piada. Escute, na próxima missão que tivermos, você assumirá o comando, está bem? Sente-se melhor assim? Qualquer que seja a ocorrência... assalto a banco, roubo de carro, furto em loja... Ficarei afastado esperando por suas decisões. Você terá o domínio total e irrestrito.

Imagens indecentes que não tinham nenhuma relação com o trabalho de policial passaram por sua mente. Finalmente ela conseguiu dizer:

— Não quero ser a líder, McCoy. Só quero ser sua parceira. Mas aceito sua proposta.

A voz do oficial de plantão no distrito soou alta e clara pelo rádio da viatura. Ele mencionou uma localização e um código.

— Todas as viaturas na vizinhança, por favor, respondam.

Kelli respirou fundo. Uma briga doméstica. Fazia sentido. A única missão que teria chance de chefiar seria apenas uma discussão sobre quem deixara aberto o tubo de creme dental.

— Não vai responder, Hatfield? Estamos a dois quarteirões da ocorrência.

David ria tanto que teve de reduzir a velocidade do carro. Kelli encarou-o furiosa.

— Estava pensando em deixar outra dupla cuidar disso. — Mas ela pegou o microfone. — Cinqüenta e dois respondendo. Estamos a caminho do local da ocorrência. Tempo estimado para chegada, cinco minutos.

 

Estavam parados na calçada diante de um edifício modesto de quatro andares. Nada chamava a atenção. As janelas eram mantidas fechadas por conta do frio de dezembro, e um homem descia a escada de cimento carregando uma bicicleta.

— E então? — David perguntou. —Você está no comando. Ela entrou em ação. Aproveitando que o ciclista deixara a porta aberta, entrou no edifício sem elevadores e usou o rádio portátil para informar o distrito sobre sua localização. Rápida, subiu ao terceiro andar e seguiu para a porta no fim do corredor à esquerda, onde bateu com os dedos flexionados.

Passos apressados precederam a resposta.

— Quem é?

— Polícia. Recebemos um chamado por perturbação da ordem.

— Mas... eu não chamei ninguém.

David afastou-se da porta para usar o rádio.

— Oficial, o morador afirma que não chamou a polícia.

— Houve um chamado do apartamento em questão. Não quer confirmar, McCoy?

— Espere um instante.

Intrigado, ele voltou para perto da porta. Kelli assentiu, indicando que ouvira a conversa.

— Alguém chamou a polícia, senhora — insistiu, erguendo as sobrancelhas por não conseguir identificar se a voz do outro lado era feminina ou masculina. David encolheu os ombros. — Pode abrir a porta, por favor?

— Não estou vestida.

— Terá alguns minutos para vestir alguma coisa, senhora, mas não sairemos daqui enquanto não abrir a porta.

— Está bem — a voz respondeu conformada. — Só um minuto.

O som de outra voz foi ouvida no corredor. Depois um baque surdo. O que estava acontecendo ali?

A porta se abriu bruscamente. Kelli permaneceu onde estava, mas David recuou um passo. De onde estava podia ver claramente o tamanho da mulher no interior do apartamento. E ela era enorme. E supunha que fosse uma mulher, ou não estaria usando um vestido estampado e colorido. A moradora ocupava todo o espaço da porta. Pensando bem, talvez tivesse de virar-se de lado para passar por ela. Kelli olhou por cima de um ombro num gesto nervoso. Era como assistir a uma encenação de David e Golias.

— Ninguém chamou a polícia aqui — a mulher persistiu. — E já abri a porta. Agora podem ir embora.

Kelli engoliu em seco.

— Afaste-se da porta, senhora — disse.

— Por quê? Não há mais ninguém aqui além de mim.

— Lamento, mas vai ter de afastar-se da porta.

— Trouxe uma ordem judicial? Um mandado de busca?

— O chamado é tudo que temos, senhora.

— Mas eu já disse...

— Socorro.

David deu um passo à frente ao ouvir a voz abafada no interior do apartamento.

— Já disse para calar a boca! — A mulher virou-se e eles puderam ver quem havia feito a súplica aflita.

David ouviu a exclamação contida de Kelli e teve de tampar a boca com a mão para conter uma gargalhada.

Ajoelhado no meio da sala, um homem com menos da metade do tamanho da mulher que os atendera vestia um robe de seda transparente e cor-de-rosa adornado por plumas da mesma cor.

— Por favor, ajudem-me!

— Se não há mais ninguém aí dentro, quem é esse homem? — Kelli perguntou, chutando a canela de David ao ouvi-lo rir baixinho.

— Aquele é Ethan, meu namorado.

— Será que pode explicar o que está acontecendo aqui?

— Ela pegou minhas roupas — o homem adiantou-se.

— Pegou... suas... roupas... — Kelli repetiu cautelosa. O homem aproximou-se da porta sem levantar-se, deixando ver os chinelos cor-de-rosa que cobriam seus pés.

David não conseguiu mais conter-se e deixou escapar uma gargalhada. Kelli censurou-o com os olhos, embora estivesse próxima de imitá-lo.

Ela se virou para a mulher.

— Senhora, importa-se de explicar por que pegou as roupas daquele cavalheiro?

— É claro que não. Aquele bastardo sujo e inútil roubou vinte dólares da minha carteira. Na última vez em que ele pegou alguma coisa minha, eu avisei que o faria pagar, caso ele se atrevesse a roubar-me novamente. Muito bem, ele pagou com as roupas.

— Ah... E o que ele está vestindo agora?

— Minhas, coisas.

— Entendo. — Kelli pôs o cassetete sob um braço e abriu o bloco de anotações para registrar a ocorrência. Primeiro os nomes dos envolvidos. — Os dois residem neste endereço juntos, Sra. Smith?

— Pelo amor de Deus, não! O verme não mora comigo. Ele tem sorte por ainda poder vir visitar-me.

— E o que fez com as roupas do sr. Watson?

— Eu as queimei. Kelli encarou-a.

— Queimou?   '

— Exatamente. Pus todo aquele lixo na banheira e joguei álcool sobre todas as peças. Depois risquei um palito de fósforo e... bum! Foi então que o sr. Verme decidiu usar minhas roupas.

— Entendo — Kelli repetiu. Depois de analisar rapidamente a situação, ela olhou para David e encolheu os ombros. — Quer abrir um processo, sr. Watson?

— Processo? Contra mim? E meus vinte dólares? — Betty Smith tirou as notas do bolso do vestido e balançou-as.

— Vejo que já recuperou sua propriedade, senhora. Quanto às coisas do sr. Watson... não creio que ainda possam ser resgatadas,

— Sem mencionar a dignidade do homem — David murmurou no ouvido de Kelli.

Ela sorriu e abaixou a cabeça. Depois retomou o discurso com ar sério.

— Sr. Watson?

Sentindo que tudo se encaminhava a seu favor, o homem levantou-se. O robe transparente confirmou a declaração de Betty Smith. Ela o desnudara completamente.

— Por favor, componha-se, sr. Watson.

— Oh. — Ele se cobriu como pôde. — Suponho que não queira abrir um processo, policial. Posso ir agora?

Kelli assentiu.

Ele correu para a porta tropeçando nos chinelos.

— Não vai a lugar nenhum usando minhas coisas. Kelli estendeu a mão com o cassetete, impedindo a Sra. Smith de agarrar o homem pelos cabelos.

— Ele não pode sair daqui sem roupas, senhora. Seria atentado ao pudor.

— Tem razão. Não há nenhuma decência nesse traseiro ridículo.

David riu outra vez. Kelli parecia tentada a agredi-lo com o instrumento de trabalho.

— Sr. Watson, vai ter de prometer que enviará as coisas da Sra. Smith.

— Prometo.

Ele passou pela porta como se mil demônios o perseguissem.

— E trate de manter esse robe bem fechado — Kelli gritou.

Estavam no restaurante comentando o caso quando Kelli finalmente cedeu à vontade de rir. Era um alívio poder extravasar a tensão acumulada ao longo da manhã de trabalho. Melhor ainda era poder livrar-se de outro tipo de tensão, uma energia que sempre se fazia presente entre ela e o parceiro. Havia notado que não havia nenhum outro policial no recinto, o que a surpreendera. Deixara a escolha do restaurante aos cuidados de David, e o lugar não era apenas limpo e agradável, fora do perímetro do distrito, como também era... aconchegante.

Depois de dar mais uma mordida no cachorro quente, ela o encarou.

— Essa ocorrência podia ter sido bem diferente.

— Eu sei. Podíamos ter visto parte da intimidade da Sra. Smith, o que teria sido chocante.

— Estou falando sério, David. Atendi a outra situação semelhante em meu primeiro dia de trabalho em Nova York. Quero dizer, em minha primeira noite, porque comecei no plantão noturno. Quando chegamos ao endereço da ocorrência, a esposa abriu a porta e disse que estava tudo bem. Ela e o marido haviam discutido porque ele chegara em casa embriagado, mas o homem finalmente dormira. Notei uma criança sentada no chão da sala, um homem deitado no sofá, e quase acreditei na versão daquela mulher. Mas algo me fez entrar no apartamento. Achei que devia acordar o sujeito e ouvir sua versão dos fatos. Quando tentei acordá-lo, notei que ele sangrava. O homem não estava dormindo. Estava morto. Fora atingido por um tiro na nuca. A mulher havia posto o próprio filho sentado sobre a arma carregada e destravada para escondê-la. Depois disso, passei uma semana tendo pesadelos.

- O primeiro cadáver é sempre muito difícil.

— É estranho... Não consigo pensar que você tenha passado por dificuldades parecidas.

— Está brincando? Vou ter pesadelos com a Sra. Smith por um bom tempo!

— Engraçadinho.

David deu mais uma mordida no sanduíche e comeu algumas batatas fritas.

— O que sua família pensa sobre sua escolha profissional?

— Somos apenas meu pai e eu. Ele... não ficou muito satisfeito quando eu decidi ser policial.

— Seu pai ainda vive em Nova York?

— Não. Cresci aqui — ela explicou, baixando os olhos para não revelar mais do que julgava conveniente. — E você? Como sua família reagiu quando decidiu ser tira?

— Bem, meus quatro irmãos não opinaram. Ou melhor, não se importaram, porque todos estão ou estiveram envolvidos com a lei de alguma maneira. Meu pai... duvido que o tenha visto mais orgulhoso do que no dia em que me formei na Academia. De todos os filhos, eu fui o único que segui seus passos.

Kelli lembrou o dia em que se formara. O pai ficara no fundo do auditório e havia ido embora sem sequer abraçá-la.

— Há quanto tempo seu pai está na polícia? — perguntou, tentando não demonstrar tristeza ou frustração.

Trinta e cinco anos. O mesmo tempo de serviço que seu pai. Haviam se conhecido no início da carreira?

David não mencionara a mãe. Por experiência própria, Kelli sabia que não devia fazer perguntas sobre familiares que hão eram mencionados. Recentemente passara a responder que a mãe morrera quando ela ainda era uma criança. Era melhor do que explicar que ela havia sido assassinada deixando uma filha de sete anos de idade, e que o assassino jamais fora preso.

— Há quanto tempo está na polícia? — perguntou, tentando retomar a conversa.

— Há sete anos. E você?

— Três.

— Ah... — Silêncio. David sabia que era inútil adiar o inevitável, e por isso foi direto ao assunto. — Ainda não falamos sobre o que aconteceu naquela noite.

Kelli quase engasgou com uma batata frita.

— Sim, já conversamos a respeito disso. Quando descobrimos que seríamos parceiros.

— Oh, sim, quando você sugeriu que agíssemos como se nada houvesse acontecido.

— Exatamente.

— Não pode estar falando sério. Quero dizer, não existe nenhuma lei proibindo dois policiais de... de se encontrarem.

— A menos que eles sejam parceiros. Nesse caso, o regulamento diz que o caso deve ser levado ao comandante para que a parceria seja desfeita. Além do mais, quem disse que quero ter um romance?

— Está dizendo que não está interessada?

— Não é nada pessoal, David. Não estou interessada em envolvimentos com ninguém. Não neste momento. É só isso. Não pense que o problema é com você. Eu... acabei de chegar na cidade, e não creio que seja hora de envolver-me com alguém. Aquela noite... Bem, aquela noite foi um evento isolado, e continuo acreditando que é melhor fingirmos que ela nunca aconteceu.

— Pare com isso, Kelli. Nós dois sabemos que não é esse tipo de garota.

— Que tipo?

— Você sabe.

— O tipo que dorme com um homem no primeiro encontro?

— Não tem graça, Hatfield.

— Acha que um homem pode ter uma noite de prazer sem compromisso, mas uma mulher não tem esse direito.

— Não estou generalizando conceitos. Acredito que algumas mulheres estejam preparadas para relacionamentos sexuais casuais e passageiros, mas você não é uma delas.

— Entendo. Você é um desses homens que fingem ser modernos e liberais, mas não passam de machistas pré-históricos. O pior tipo, se quer saber minha opinião. Confesse, McCoy. Não acredita que exista um lugar para as mulheres dentro da polícia.

O comentário o atingira em cheio por ser verdadeiro, mas não admitiria suas fraquezas.

— Minha parceira anterior era uma mulher, Hatfield. Uma policial muito competente.

— Realmente? E quando soube que teria um novo parceiro, teve certeza de que não poderia ser outra mulher, certo?

Como alguém podia adivinhar seus pensamentos com tanta facilidade?

David reclinou-se na cadeira e encarou-a intrigado, tentando decifrar alguns de seus segredos.

Kelli sorriu vitoriosa.

— Diga-me uma coisa, David. Por acaso estaríamos tendo essa discussão se eu fosse a parte interessada em repetirmos aquela... noite?

— Não entendi.

— Se eu houvesse pedido o número de seu telefone ou oferecido um jantar em minha casa, agora você estaria correndo em direção oposta. E correria tanto, que eu teria de ser uma maratonista para não perder de vista seu belo traseiro.

— Está interessada nele? Não podia se deixar intimidar.

— Isso nos coloca na mesma situação, não?

— Ei, esse foi um golpe baixo! Ela sorriu.

— O que está dizendo, Hatfield, é a experiência daquela noite foi só isso. Uma experiência única, um evento isolado.

— Exatamente.

— E como agora somos parceiros, devemos esquecer tudo que aconteceu.

— Sim.

— Não só considera a proposta viável, como não tem nenhuma dificuldade em passar horas seguidas comigo sem querer saltar em cima de mim.

Tinha de manter a cabeça erguida e esconder o que sentia.

— Correto. Ele riu.

— Errado.

Algo tocou seu pé sob a mesa e ela quase pulou da cadeira, especialmente quando se deu conta de que era o pé dele.

— Você.é boa nisso. Mas não o bastante.

— O que está dizendo?

— Nada... por enquanto. Kelli olhou para o relógio.

— Acho que...

— Já sei o que você pensa. Ou o que você quer que eu pense. Agora é minha vez, e tenho direito ao mesmo tempo. Quero fazer algumas perguntas, e espero que seja honesta em suas respostas. Em primeiro lugar, quero saber se aquela noite foi uma ocorrência comum para você. Pode afirmar que seu passado está cheio de pobres vítimas que usou como objetos por uma única noite?

Silêncio.

— E então? Aquela foi sua primeira noite, não é? A primeira vez em que foi para a cama com um desconhecido.

— Está bem, eu admito. Foi a primeira vez.

— Nesse caso, todo aquele discurso sobre a liberdade das mulheres modernas perde a validade. O que vivemos foi algo que escapou ao nosso controle, uma espécie de combustão espontânea...

— Um erro de julgamento?

— Chame do que quiser, mas não diminua a importância do que aconteceu. E agora que já provamos que seus argumentos não têm fundamento, vamos passar à razão pela qual não quer sair comigo outra vez. Acha que não devemos manter um relacionamento por sermos parceiros.

— Exatamente. E porque acredito que só está interessado por mim porque estou bancando a difícil.

— Bancando?

— Não seja ridículo! Só quis dizer...

— Já entendi o que quis dizer.

Kelli sentiu os dedos tocarem sua coxa sob a mesa. Era uma carícia suave, sutil, mas sugestiva, e não conseguia raciocinar com o corpo todo tomado por uma súbita onda de calor. Preocupada, olhou em volta, mas as poucas pessoas que ocupavam o salão do restaurante não pareciam interessadas nela ou no que acontecia embaixo da mesa. Ainda...

Tinha de encerrar aquela conversa depressa.

— Diga-me, David, por que quer sair comigo novamente?

— Porque aquela foi a melhor experiência sexual que jamais tive e quero repetir a dose.

— E o que mais?

— Porque... gosto de você.

David gostava dela. As palavras simples fizeram seu coração bater mais depressa e intensificaram o calor que ardia em seu ventre. Não esperava que ele fosse tão sincero. Estivera certa de que ele usaria todas as armas de seu arsenal de sedução, mas aquele era um ataque contra o qual não tinha proteção.

Por outro lado, também dispunha de algumas armas.

— Está dizendo que quer ir conversar com o Tenente Kowalsky?

— Não. Estou dizendo que devemos dar uma chance ao que sentimos. Vamos ver o que acontece.

— Duas noites de sexo — ela resumiu sorrindo.

— Talvez.

— Qual é o problema, David? Está incomodado por eu ter ido para a cama com você no primeiro encontro, ou por não estar interessada no segundo?

Os rádios portáteis soaram ao mesmo tempo, rompendo a rede de sensualidade que se formara em torno deles. Kelli foi a primeira a atender ao chamado. O oficial da central telefônica queria saber se haviam terminado de almoçar e podiam atender a uma ocorrência de arrombamento naquela vizinhança.

— Estamos a caminho.

A julgar pela expressão de David era de se supor que o magoara de verdade com seu último comentário. Por outro lado, era bom saber que conseguira diminuir um pouco o tamanho daquele ego monumental.

— Nossa conversa ainda não terminou, Hatfield — ele avisou em voz baixa.

Kelli encarou-o e viu a determinação em seus olhos. Por que tinha a sensação de que acabaria perdendo a disputa com o oficial David McCoy?

Kelli estava fechando o armário onde guardava sua arma. David notou que ela se dirigia à porta e chamou:

— Hatfield, espere!

Sabia que ela não ousaria correr, porque todos os outros policiais do plantão estavam na sala seguinte, comentando as ocorrências do dia.

— O que é, McCoy? — ela perguntou irritada.

— Para onde vai?

— Para casa. Sozinha.

Isso era o que ela pensava. Tinha um plano e, se tudo desse certo, também iria para a casa de Kelli.

— McCoy e Hatfield. Estava mesmo procurando por vocês. O tenente Kowalsky os esperava na sala seguinte ao corredor dos armários. O que ele poderia querer falar àquela hora da noite?

— Meus parabéns, Hatfield — ele disse. — Dois dias de trabalho, e já foi promovida. Temporariamente, é claro.

— O que disse, senhor? — ela indagou intrigada.

— A força-tarefa especial, Hatfield. Você foi aceita. Deve apresentar-se para a reunião amanhã cedo.

— Você se candidatou à força-tarefa? — David perguntou incrédulo.

Kelli encarou-o com um sorriso radiante.

— O que pensou que eu estivesse fazendo quando pedi que esperasse por mim esta manhã? Retocando o batom?

— Mas... Não pode...

Kelli notou que um silêncio ensurdecedor os cercava. Todos os policiais estavam atentos à conversa.

— Não posso o quê, McCoy?

Ele encolheu os ombros, tentando encontrar uma resposta que fizesse sentido. Era impossível. Sabia o que sentia, mas não conseguia expressar a apreensão e o medo através das palavras. Não gostava de pensar que ela estaria exposta ao perigo, e aquela força-tarefa tinha uma missão de alto risco.

— Não pode aceitar essa tarefa. Não vou permitir.

— Desculpe, mas desde quando passou a ter algum poder sobre minhas decisões?

— Desde que nos tornamos parceiros. Ela parecia estar prestes a rir.

— Você nem conhece o verdadeiro significado da palavra parceria, McCoy!

— Ela tem razão, oficial. — Kowalsky também se divertia com a conversa entre os dois. — Não vi seu nome na lista de candidatos à força-tarefa. Por quê?

— Porque gosto do meu uniforme.

— É bom saber disso. Bem, já que Hatfield não será mais sua parceira, tomei a liberdade de colocá-lo com outro oficial a partir do próximo plantão. Phillips optou pelo serviço burocrático, pelo menos até retornar da licença maternidade, o que significa que Johnson também está sem parceiro. Vocês dois formarão uma dupla perfeita. Se tudo der certo, e não tenho motivos para acreditar no contrário, vocês dois terão suas parceiras de volta na mesma época.

— Johnson? — David repetiu.

— Exatamente. Algum problema, oficial?

— Não... Não, senhor.

— Ótimo.

Kelli estendeu a mão e cumprimentou o tenente.

— Muito obrigada, senhor, por permitir que eu participe dessa missão especial. Não vai se arrepender.

— Eu sei que não, Hatfield. Só espero que o mesmo se aplique a você.

Kowalsky virou-se e voltou para sua sala.

David permaneceu onde estava como se tivesse os pés colados no chão. Radiante, Kelli acenou com os dedos, despediu-se de todos os colegas e partiu.

 

 

CAPÍTULO V

Kelli encontrou o terceiro bilhete preso na porta e jogou-o dentro da sacola. Conhecia a mensagem. "Precisamos conversar." E sábia de quem era o bilhete. Deixara David plantado no distrito na noite anterior, e aquela já era a terceira tentativa do homem.

— O que é isso? — Bronte perguntou.

— Nada. É só... um bilhete do proprietário informando a data de vencimento do aluguel.

— Espera que eu acredite nisso? — Bronte entrou atrás dela e fechou a porta.

Kelli jogou as sacolas de compras sobre o sofá e desmoronou ao lado delas.

— Por que é sempre tão desconfiada? — perguntou, cansada por ter passado quase três horas em uma loja de departamentos.

Bronte sentou-se na poltrona mais próxima e suspirou.

— Faz parte da minha natureza. Quando vai desfazer suas malas e guardar todas essas coisas?

— Está se oferecendo para ajudar?

— Deus me livre! Já tenho trabalho de sobra cuidando da minha casa. De quem era o bilhete? Não vai me dizer a verdade?

— Não.

— Bruxa malvada! — Ela abriu uma sacola e examinou uma minissaia. — Vai mesmo usar isto?

— Faz parte do meu trabalho. — Ela fez uma careta para o minúsculo pedaço de seda vermelha. Gastara uma fortuna do Departamento de Polícia comprando roupas como aquela. Saber que teria de usar um disfarce era uma coisa. Sentir-se confortável nele seria outra bem diferente.

Kojak entrou correndo na sala, mas, ao contrário do que se esperava, não saltou sobre Kelli. Em vez disso, ele se aproximou da porta e latiu, abaixando a cabeça como se quisesse ver alguma coisa pela fresta.

— Eu acho que...

— Shhh! Fique quieta um instante, Bronte.

— O que foi?

— Há alguém lá fora.

— O proprietário?

Kelli jogou uma almofada contra a amiga. Bronte sabia quem deixara o bilhete. Qualquer idiota chegaria à conclusão correta. Estava na cidade há cinco dias. Passara os dois primeiros cuidando da mudança. No terceiro vivera uma experiência sexual inesquecível com um homem atraente, sexy e insuportável chamado David McCoy. E a amiga estivera presente quando o conhecera no bar.

Kojak latiu e abanou a cauda. Um objeto roliço foi passado por baixo da porta, e o cachorro o agarrou entre os dentes.

— Não acredito! — Kelli exclamou furiosa. — Seu traidor! — Por isso o animal recusava a ração dietética! Alguém o estava alimentando com guloseimas!

— Kelli? — Alguém bateu na porta. — Sei que está aí. É melhor abrir de uma vez.

Ignorando o chamado, ela começou a esvaziar as sacolas sobre o sofá. Calcinhas pretas de um material semelhante ao couro. Blusas decotadas. Sutiãs de renda para serem usados sob blusas transparentes.

— Acha que este vestido combina comigo?

— Vai ficar idêntica a uma prostituta barata. É perfeito — Bronte opinou sorrindo.

— Kelli, não vou sair daqui enquanto não falar comigo!

Evitando o olhar curioso da amiga, ela examinou os sapatos de plataformas antes de colocá-los nos pés.

— Não sei se vou conseguir correr usando estas coisas.

— Kelli! Bronte riu.

— Vai deixar aquele coitado entrar, ou está planejando matar o pobrezinho de aflição?

— Cale a boca, Bronte. Ele vai desistir. É sempre assim.

— Sempre? Há quanto tempo isso está acontecendo?

— Desde ontem à noite. — Mais especificamente, três vezes durante a noite, duas vezes naquela manhã, antes mesmo de ter saído da cama.

— Ei, isto aqui é material de trabalho? — Bronte exibia uma camisola curta e transparente.

— É claro que não! E não vou cobrar essa peça do departamento. Foi uma escolha pessoal. Estou cansada de dormir usando camisetas velhas e rasgadas. Algum problema?

— O que você comprou, Kelli?

As duas mulheres trocaram um olhar surpreso e riram.

— Desde que esteja na cama sozinha, não vejo problema algum nesta inocente camisola. Tenho uma gaveta cheia delas... mas ainda prefiro as velhas camisetas.

— É o que estou dizendo, Bronte. Você está perdendo a capacidade de divertir-se. Sua vida amorosa, por exemplo. Nunca foi tão aborrecida.

— Eu teria de ter uma vida amorosa para chamá-la de aborrecida.

— O que está havendo? Desde que nos conhecemos, nunca passou tanto tempo sem um namorado.

— Não sei... Acho que quero viver fora dos limites sufocantes de um relacionamento. Preciso saber quem sou realmente, quem é Bronte quando não está fingindo ser outra pessoa para agradar um homem.

— Não me convenceu. Você sempre soube quem é e o que quer. Aconteceu alguma coisa?

— Talvez.

Kelli tentou lembrar todas as conversas que haviam mantido ao telefone enquanto ela vivera em Nova York. Seis meses. Esse era o tempo que Bronte passara sozinha até então. O que havia acontecido há seis?

Ela estivera envolvida com um homem misterioso sobre o qual se recusara a dar muitos detalhes. Lembrava-se de ter estranhado a novidade, porque a amiga sempre fora muito falante, mas não dera importância excessiva ao fato. Algum tempo mais tarde, Bronte contara que o relacionamento chegara ao fim.

— É aquele homem, não é? Aquele sobre quem se recusava a falar.

Bronte ficou vermelha, o que confirmou a suspeita de Kelli.

— De que homem estão falando?

A pergunta do outro lado da porta as fez lembrar que não estavam exatamente sozinhas.

— Sabe de uma coisa? Acho que devia ouvir o que ele tem a dizer. Se puser para fora o que tem no peito, talvez ele a deixe em paz, Kelli.

— Já sei o que ele tem no peito... e em outras partes do corpo.

— Ei, eu ouvi isso! As duas riram.

— O que está acontecendo, Kelli?

— É simples—ela respondeu enquanto devolvia as roupas às sacolas. — Ele não acreditava que eu fosse competente o bastante para integrar os quadros da polícia, e agora acha que sou maluca por participar dessa força-tarefa.

— Concordo com ele.

— Quer café?

— Eu quero — David respondeu do outro lado da porta.

— Vá sonhando!

Vinte minutos mais tarde, depois de terem tomado café e conversado sobre vários assuntos na cozinha, Kelli percebeu que David ainda não havia desistido.

— Desta vez ele está demorando mais. Deve ser por causa da audiência.

— Falando em audiência, hoje terei de comparecer à festa de Natal da Associação dos Advogados dos Estados Unidos. Preciso ir embora, ou não terei tempo para ficar linda e estonteante.

— Deixe-me ver se o caminho está livre. Não quero nem pensar no que pode acontecer se um certo alguém a encontrar do lado de fora.

— Está preocupada comigo?

— Estou preocupada com ele.

Kelli olhou pelo visor e viu o corredor vazio. Depois de abrir a porta, abraçou a amiga e ficou algum tempo afagando suas costas.

— Por que fez isso? — Bronte perguntou.

— Não sei. Tive a impressão de que estava precisando. — As lágrimas que brilharam em seus olhos confirmaram a impressão. — Telefone para mim quando chegar, está bem? Mesmo que seja mais tarde. Adoro ouvir suas histórias sobre as festas que freqüenta.

Bronte assentiu e partiu.

Kelli fechou a porta e suspirou. Sabia que havia algo mais sério por trás da decisão da amiga de permanecer sozinha, mas não sabia como convencê-la a revelar seu segredo. Um segredo... Isso nunca existira entre elas. Mais um motivo para acreditar que a situação era séria.

Uma hora mais tarde, quando esvaziava a sétima caixa e apreciava um retrato de família feito por um profissional quando ela tinha cinco anos de idade, Kelli assustou-se com as batidas firmes na porta do apartamento. Irritada, ela decidiu ir abrir e acabar com aquela tortura de uma vez por todas.

— Já suportei mais do que podia, McCoy! Meta na sua cabeça dura de uma vez por todas que eu não vou...

As palavras morreram em sua garganta quando, parada na soleira, ela se deparou com o rosto conhecido do pai. Surpreso com a recepção, Garth Hatfield ficou parado no corredor em seu uniforme elegante.

Ei, aquele não podia ser quem estava pensando... podia?

Encolhido no banco do velho Mustang, David viu a figura familiar deixando o edifício de Kelli. Sim, aquele era o Chefe Garth Hatfield, e ele parecia muito zangado. Quieto, esperou até que o homem entrasse em seu carro e partisse para só então respirar aliviado.

Que dia!

Devia ter imaginado que aquela Hatfield que ocupava seus pensamentos estava relacionada de alguma forma a Garth Hatfield, mas desde que a conhecera não conseguia raciocinar com clareza. O que fizera para merecer tamanho castigo?

— Meu pai vai ter um ataque — ele resmungou.

Conhecia a rivalidade entre Sean McCoy e Garth Hatfield. Era impossível fazer parte dos quadros da polícia sem conhecê-la. No entanto, jamais descobrira o motivo da desavença. O pai ficara tão zangado quando tentara abordar o assunto certa noite durante o jantar, que David temera vê-lo sufocar com o purê de batata. Desde então, durante todo o ano, ele deixara escapar alguns detalhes insignificantes. Os dois homens haviam sido grandes amigos quando ingressaram juntos na academia. Eram da mesma vizinhança ao norte de Washington e passaram a infância separada apenas por dois quarteirões entre suas casas. No presente, se tivessem de ocupar o mesmo espaço, era bem provável que partissem para a agressão física.

A revelação o divertira no início. Seu pai havia sido sempre tão equilibrado e tranqüilo, que a desavença com o antigo amigo transformara-se em uma espécie de piada familiar. Um trunfo que David utilizava sempre que queria encerrar uma conversa ou mudar de assunto.

Felizmente, tivera apenas um encontro com o adversário de Sean, e a situação não havia sido agradável. Era seu primeiro ano na polícia, e depois de prender três suspeitos de assalto a mão armada, ele havia entrado no distrito no mesmo instante em que Hatfield estivera saindo. O choque fora inevitável. Ainda não havia aprendido a distinguir estrelas e barras em um uniforme, e o homem nem estivera usando sua jaqueta. Vestindo apenas camisa de manga curta e a calça preta, ele se mostrara arrogante e antipático, e David não hesitara em censurá-lo por não olhar por onde andava. Havia sido seu parceiro da época que apontara o erro e reconhecera o superior com o respeito devido. Hatfield exigira que eles se identificassem, e ao ouvir o nome McCoy ele... Bem, ele ficara tão nervoso quanto seu pai na noite em que David mencionara o nome Hatfield.

Alguém bateu na janela do carro. Assustado, ele se virou e viu um policial apontando para a placa de estacionamento proibido. David mostrou sua credencial e o homem sorriu, fazendo um sinal de positivo com o polegar.

O oficial se afastou pela rua deserta e coberta de neve. Seria aquele um procedimento de rotina, ou papai havia providenciado proteção especial para o quarteirão da filhinha querida?

Quando uma viatura policial passou a seu lado em baixa velocidade, um dos ocupantes olhando atentamente em sua direção, David decidiu que a segunda alternativa era a verdadeira.

Não só estava envolvido com uma parceira, como a mulher em questão também era filha de um Chefe da Polícia Metropolitana de Washington.

Podia ser pior?

Imaginava que não.

Mas isso não significava que a situação não pudesse melhorar.

Sorrindo, olhou para a janela iluminada no terceiro andar, pegou o pacote com comida mexicana no banco do passageiro e abriu a porta do carro.

 

Kelli sentou-se no braço do sofá e olhou para a parede oposta. Há pouco pendurara seu certificado da Academia de Polícia e diversas fotos em preto e branco de Washington. Infelizmente, não podia apreciar a beleza do conjunto, porque só conseguia pensar na conversa que acabara de ter com o pai.

Desde os vinte anos, quando anunciara sua intenção de ser policial, a tensão crescera entre eles. Com o tempo, aprendera a equilibrar a necessidade de seguir sua carreira e o impulso super-protetor de Garth Hatfield. Afinal, era sua única filha.

Mas naquela noite...

Jamais poderia imaginar que o pai fosse capaz de uma explosão tão violenta. Ao descobrir que um certo David McCoy conhecia seu endereço e era um visitante esperado, ele havia estourado como uma bomba nuclear.

— É melhor começar a se explicar, mocinha! Talvez tenha de engolir sua decisão de ser uma policial e essa sua tolice mais recente de fazer parte de uma força-tarefa, mas isso... Está se encontrando com aquele sujeito? Exijo uma resposta!

O tom autoritário a inflamara.

— Sinto muito, papai, mas não vou dar nenhuma explicação. Minha vida pessoal não é de sua conta.

Droga! Se soubesse que ele estava nervoso antes de chegar ali, não o teria desafiado tão diretamente. Talvez um pouco de exercício físico pudesse ajudá-la a recuperar a calma.

— Quer ir caminhar um pouco, Kojak?

O cachorro correu para a porta abanando a cauda.

Kelli sorriu e levantou-se para segui-lo. Mas, quando abriu a porta, ela se deparou com David que já erguia a mão para bater.

Tinha de admitir que esperava por aquela visita, embora não soubesse quando. O que não esperava era a onda de prazer provocada pelo encontro.

— Eu ainda nem havia batido!

— Eu ia passear com Kojak.

— Oh... — Ele afagou a cabeça do animal e depois mostrou uma sacola branca. — Está com fome?

— Não, mas pode entrar. Duvido que seja pior do que meu último visitante.

Kelli virou-se e deixou-o sozinho para fechar a porta. Quando voltou da cozinha, ela carregava uma cerveja em cada mão. Depois de entregar uma garrafa a ele, levou a outra aos lábios e bebeu vários goles.

— Foi tão mau assim?

Os dois se sentaram, ela no sofá, ele, numa poltrona.

— Se pudesse imaginar...

— Acho que posso.

Por que o deixara entrar? Talvez fosse um gesto infantil de rebeldia contra a autoridade paterna. Talvez fosse culpa por tê-lo deixado do lado de fora por tanto tempo em suas visitas anteriores. Qualquer que fosse o motivo, devia manter em mente que ele ainda era o inimigo sexual.

Oh, mas como queria transformá-lo em amigo!

— Como assim? — perguntou.

— Não sei se devo admitir, porque sinto-me estúpido por não ter somado dois e dois antes.

— Refere-se ao meu pai?

— Sim.

— Por acaso o encontrou, ou coisa parecida? — Garth havia prometido surrar o garotão conquistador, caso ele se metesse com sua filhinha. Nervoso como estava, ele seria bem capaz de obter o endereço de David nos registros da polícia e ir procurá-lo em sua casa.

David examinava o interior de uma sacola de papel.

— Não, eu só o vi saindo daqui. Não se preocupe, porque ele não me viu. Sendo assim, não tem motivo algum para supor que ele sabe sobre... nós.

Kelli baixou a cabeça para esconder o rosto vermelho.

O ruído do papel cessou, e ela ergueu os olhos a tempo de vê-lo parado no meio de um movimento como uma cena congelada em um filme.

— Ei, suponho que nesse ponto você devia dizer que não existe um nós.

— Não existe mesmo.

Atento à conversa, ele deixou a sacola a seu lado e acomodou-se melhor na poltrona, sem se dar conta de que Kojak havia enfiado a cabeça na embalagem.

— Por favor, não me diga que contou a ele!

— Contei o quê? — ela arrancou a sacola do animal. — Não há nada para contar. — O aroma da comida mexicana invadiu suas narinas, provocando uma resposta imediata do estômago.

— Isto é para mim?

— Divirta-se. O que disse a ele?

— Nada. Eu apenas fiz uma alusão ao fato de talvez existir algo entre nós, só isso.

— Uma alusão?

— Tinha de fazer alguma coisa depois de abrir a porta e chamá-lo por seu nome!

David não conseguiu conter o riso.

— Você não fez isso! Céus, o que eu não daria para ter visto essa cena!

— Agradeça aos céus por não ter estado aqui, ou não teria mais nenhum dente na boca.

O sorriso desapareceu.

Kelli concentrou-se na comida e ele fez o mesmo. Por alguns minutos ficaram em silêncio, até que Kelli voltou a falar.

— Podia ter dito alguma coisa sobre essa estúpida rivalidade entre, meu pai e o seu.

— Eu não sabia que seu pai era seu pai. E é uma rixa.

— Que diferença faz? De qualquer maneira, também não sabia de nada até alguns dias atrás, quando meu pai descobriu que você era meu parceiro.

— Aposto que ele ficou feliz.

— Oh, sim! Ele mencionou alguma coisa sobre garrafas de cerveja... na cabeça!

— Está brincando?

— Não.

— Por acaso ele revelou o que deu origem a essa desavença?

— Quer dizer que não sabe?

— Não. Só sei que os sentimentos de seu pai pelo meu são correspondidos inteiramente... o que é estranho, porque o velho se dá bem com todo mundo.

— Meu pai também. Quero dizer, com a maioria das pessoas. Papai nunca se referiu a outro ser humano com o antagonismo que manifesta quando fala de seu pai.

Continuaram comendo em silêncio. Quando terminaram, Kelli foi à cozinha buscar mais cerveja e voltou sorrindo com ar satisfeito.

— Sabe de uma coisa? Depois disso, sou capaz de começar a acreditar que você é humano.

— O que quer dizer?

— Está aqui há mais de meia hora. Há uma cama em meu quarto, e você ainda não tentou me arrastar para lá.

— Ainda. Até mesmo um homem como eu sabe algumas coisas sobre as mulheres.

— Como, por exemplo, o fato de elas não gostarem de certas investidas sexuais?

— Uau! Não tem idéia do que sinto quando você menciona a palavra sexual...

Era impossível ignorar o calor que ia aos poucos tomando conta de seu corpo. O homem era perigoso. Precisava fazer alguma coisa, ou cairia vítima de seus encantos mais uma vez.

— Muito bem, McCoy, agora que tem minha atenção, comece a falar.

— Falar?

— Pelo amor de Deus! Passou a tarde toda acampado na frente da minha porta, deixou meia dúzia de bilhetes...

— Foram três.

— Tudo bem, três bilhetes, mas em todos eles você dizia que precisávamos conversar.

— Conversar?

Ela sorriu e assentiu, bebendo mais um gole de cerveja. O líquido dourado e refrescante começava a invadir suas veias, tornando-a mais ousada do que deveria ser.

David inclinou-se para a frente e fitou-a nos olhos.

— Pois bem, acho que deve esquecer essa história de participar da força-tarefa e voltar a ser minha parceira.

Kelli quase cuspiu toda a bebida que tinha na boca em seu rosto sério.

Droga! Poderiam estar no quarto, na cama, se não houvesse aberto sua boca estúpida. Agora Kelli estava zangada. Primeiro havia rido muito, depois ficara perplexa, quase confusa, e finalmente atingira o estágio da ira. O tratamento silencioso o incomodava muito.

— Não vai dizer nada?

Ela se levantou, deu alguns passos pela sala e se virou para encará-lo.

— Só quando disser alguma coisa digna de um comentário.

— Ah, vamos lá, deve saber que só estou pensando no seu bem. Ainda acho que não devia usar uniforme, mas quando está com ele, posso pelo menos ficar de olho no que faz.

Cometera mais um erro grave. Podia ver o reflexo de suas palavras estampado no rosto furioso.

— Está esquecendo que sobrevivi durante três anos em Nova York sem você, McCoy. Esqueça. Não vou desistir da força-tarefa. Tenho um objetivo, e o resultado desse trabalho pode ser o caminho mais curto para um distintivo de detetive.

Então era isso? Kelli queria ser detetive? Ela continuou falando.

— Desista dessa idéia de proteger-me, porque não vou permitir que um tira machista e conquistador pense que sou uma covarde, uma mulher frágil, incapaz de defender-se. Saiba que já passei por maus momentos.

— Por exemplo?

Ela levantou o suéter para mostrar uma cicatriz.

— Vê isto? Uma bala me atingiu de raspão. E aqui, nas costas... Levei uma facada de um bandido.

A visão o excitava além do que julgava ser possível. Impelido pelo desejo, tocou a segunda cicatriz e deslizou o dedo por ela.

Ao sentir que ela estremecia, David sorriu. Determinado, segurou-a pela cintura e puxou-a sobre os joelhos.

— Suas cicatrizes só servem para provar que precisa de alguém para cuidar do seu irresistível traseiro. E eu sou essa pessoa. — Ele tocou a área em questão.

Kelli ficou vermelha.  

David se preparou para um ataque furioso. Sabia que ela poderia usar uma dúzia de manobras para livrar-se de seus braços, mas não contava com um beijo na boca.

Era bom saber que ela também o desejava.

— Isso é loucura — Kelli murmurou ofegante enquanto abria sua camisa.

— Eu sei.

Loucura. Era isso. Estava louco de desejo por aquela mulher. Louco por ela.

Estavam tão inflamados que não conseguiram chegar ao quarto. Kelli trancou o cachorro na cozinha enquanto se despia, e pouco depois estavam nus sobre a mesa da sala, uma superfície que David limpara com um braço. Havia garrafas vazias no chão, sacolas de comida no tapete... Nada tinha importância. Tudo que importava era o prazer que sentiam juntos e o desejo que os movia.

Era estranho, mas, na medida em que executavam aquela dança primitiva e ancestral, David sentia que algo o preenchia, em vez do contrário. A sensação começava no peito. Era mais que a pressão crescente de um orgasmo, algo como uma onda que ia se espalhando a cada pulsação do coração. Calor, paz, segurança...

Então Kelli gritou, e aquela paz implodiu, alcançando o extremo oposto da escala das emoções em pequeninos fragmentos, pedaços que subiam em uma louca espiral até se perderem no céu escuro da noite.

— Uau... — ela murmurou momentos mais tarde, quando conseguiu recuperar o ritmo da respiração.

David ergueu a cabeça de onde a deixara repousando, aninhada em seu pescoço, e sorriu.

— Tem razão. Uau...

 

Na tarde seguinte, Kelli ainda se sentia abalada, como se, de alguma forma, o mundo não fizesse mais sentido, como se David houvesse puxado o tapete sobre o qual pisara durante vinte e cinco anos.

Considerando que estava prestes a iniciar sua missão como vendedora da Adult Indulgences, devia estar concentrada no trabalho, em vez de pensar em David. Mas o proprietário da loja, Jeremy Price, a deixara sozinha em seu escritório para ir resolver um problema qualquer, e a mente insistia em rever a noite anterior.

O sexo incrível que começara na mesa da sala continuara noite adentro no tapete, na cama e no chuveiro. Em todas as vezes tivera orgasmos explosivos e impressionantes, mas não se sentia preparada para admitir que a resposta incomum se devia ao homem em especial.

Durante anos se mantivera afastada do cenário das conquistas, e mesmo enquanto estivera com Jed perguntara a si mesma se sexo era só aquilo. Finalmente descobrira que não. E aí estava a explicação que buscava. Era uma mulher que havia passado tempo demais sem sexo satisfatório. Por isso experimentava sensações tão intensas com David.

Mas... e ele? Por que insistia em procurá-la? Por que passava horas na frente de seu apartamento, suplicando para vê-la? O homem não podia ter conquistado o apelido de Casanova do distrito com atitudes desse tipo.

Melhor não pensar nisso. Não nesse momento. Tinha emoções e apreensões suficientes para os próximos dois anos.

Como o pai, por exemplo. Pensara em telefonar para ele, mas sentia que o gesto seria como um pedido de desculpas, e não acreditava ter algo de que se desculpar.

Melhor também não pensar no pai. Tinha um trabalho importante a fazer, e precisava de toda sua concentração.

Kelli olhou em volta. Quem poderia imaginar que a variedade de brinquedos sexuais era tão grande? Era a segunda vez que entrava na loja, e ainda não se habituara com a visão de todos aqueles objetos. Eram centenas de fitas de vídeos com imagens chocantes, e os objetos de couro que cobriam as paredes pareciam cruéis até mesmo para um sex shop.

Uma imagem de David invadiu sua mente, e ela conteve um arrepio indecente.

— Eu os encontrei. — Jeremy Price, o proprietário, entrava no escritório com passos leves e graciosos. Sua orientação sexual era óbvia e a deixava mais confortável em sua presença. — Assine os formulários e estaremos prontos para começar.

Kelli sorriu. Tudo saía conforme o planejado. A funcionária da loja, Ginger Olsen, aceitara uma gratificação generosa e partira em um cruzeiro de duas semanas pela Jamaica, só para garantir que ela não se arrependeria e voltaria à loja procurando por seu emprego enquanto Kelli ainda ocupasse o posto. Disfarçada, Kelli se candidatara à vaga no dia anterior, usando a experiência conquistada na adolescência como um fator favorável. Havia trabalhado em diversas lojas de roupas enquanto ainda era uma estudante, dois anos antes de ingressar na Academia.

Sorrindo, ela assinou o documento e empurrou-o na direção do proprietário da loja.

— Pronto — ele sorriu. — Seja bem-vinda à Adult Indulgences.

— Obrigada. Não vai se arrepender.

Kelli levantou-se para acompanhá-lo e conteve o impulso de puxar a saia curta ou ajeitar o decote generoso. Era melhor equilibrar-se sobre os saltos altos e finos, ou acabaria caindo.

— José, venha até aqui — Jeremy chamou, olhando para um rapaz que arrumava revistas especializadas em uma prateleira. — Quero que conheça nossa mais nova contratada.

O latino aproximou-se ajeitando o bigode exuberante.

— Ola, chica — ele disse com um sorriso repugnante.

— Olá — ela respondeu, estendendo o braço coberto por pulseiras baratas. — Sou Kelli.

— Oh, não, meu bem — Jeremy lembrou. — Precisa de um nome específico para o trabalho, e a partir de agora eu a declaro Kitty Kat. E então, José? — ele perguntou ao funcionário latino. — Ela não é um escândalo?

— Sim... um escândalo — o rapaz respondeu com um olhar atrevido e um sorriso malicioso.

— Muito bem, venha conhecer a loja.

Meia hora mais tarde, Kelli temia que o queixo tocasse no chão. Além de ter sido apresentada a um lado da vida que nem sonhava existir, teria de decorar os nomes de todos aqueles objetos pornográficos e pervertidos! Sim, havia trabalhado disfarçada de prostituta em Nova York. Duas vezes. Mas a missão terminara no instante em que o cafetão estipulara sua porcentagem para deixá-la trabalhar em sua esquina. Então o algemara e encerrara o assunto. Mas dessa vez... Dessa vez teria de usar termos e palavras cujo significado nem conhecia, e teria de usá-las diariamente.

— Oitenta e três por cento da nossa clientela é de pessoas normais — Jeremy contava enquanto mostrava o sistema do caixa.

— E os outros dezessete?

Jeremy fechou a gaveta e apontou para uma prateleira no fundo do estabelecimento.

— Estão bem ali.

Kelli riu.

— Devo me ocupar da limpeza e da arrumação das prateleiras?

— De jeito nenhum! José faz esse trabalho. Não queremos que seja surpreendida lá atrás por um cliente mais... entusiasmado. Você deve ficar sempre aqui, na frente das prateleiras. Sua principal missão é convencer essas pessoas a comprarem, comprarem e comprarem.

David comparou o endereço anotado em seu bloco à placa na frente da loja. Adult Indulgences. Instalada em uma parte nobre da cidade, ela não destoava dos outros estabelecimentos comerciais que a cercavam. Pessoas entravam e saíam com naturalidade, como se freqüentar aquele tipo de lugar fosse comum. E talvez fosse. O fato de não ter o mesmo hábito daquela gente não transformava a opção em uma aberração.

David desceu do carro. Preferia estar em uma galeria esotérica estendendo a mão para uma cigana, ou comprando cristais magnéticos para afastar vampiros, mas a necessidade de cuidar da segurança de Kelli era maior que tudo. Havia sido difícil obter o endereço da loja. Havia uma aura de segredo e mistério em torno da missão, e fora forçado a aceitar o plantão de véspera de Natal para convencer um colega envolvido na força tarefa e fornecer a informação. Conseguira o nome da loja e o horário de trabalho da nova funcionária, mas havia sido só isso. Não sabia se Kelli tinha um microfone na roupa, se havia um sistema de vídeo instalado no lugar, se alguém a acompanhava de perto. E precisava saber. Por isso decidiu entrar.

Fechando a jaqueta de couro, única peça de roupa do armário que julgara conveniente para aquela visita, atravessou a rua e abriu a porta. Se um dos irmãos o visse ali, estaria perdido. Nunca mais teria paz.

E se Kelli estivesse sendo mantida sob vigilância, Kowalsky o mataria por isso.

— Posso ajudá-lo, senhor?

Reconheceria a voz dela em qualquer lugar. Usara a jaqueta e o capuz pensando em manter-se incógnito enquanto a observava, mas seria difícil sair sem ser identificado. Mesmo assim, fingiu estar interessado em uma prateleira de bonecas infláveis e baixou o tom de voz.

— Estou apenas olhando — disse.

— É claro. Se precisar de alguma coisa, estarei bem ali, no caixa.

David esperou ouvir os passos mais distantes para virar-se, e então sentiu todo o impacto provocado pela inesperada visão.

De jeito nenhum! Aquela não era sua parceira, Kelli Hatfield. Aquela saia... Era tão pequena que podia quase ver o fim da meia arrastão branca que envolvia suas. pernas. E as botas pretas de salto alto? Nunca vira nada parecido.

Não. Aquela não era sua parceira... mas podia reconhecer nela a mulher que conhecera entre os lençóis.

— Kelli... É você?

Ela se virou tão depressa, que quase caiu dos saltos.

— David!

O que ele estava fazendo ali?

Só havia um cliente perto de onde estava, um rapaz de vinte e poucos anos mais interessado no pôster central de uma revista masculina.

Passara as últimas três horas rebolando pela loja, impondo um tom rouco à voz e tentando não ficar vermelha diante dos objetos que os clientes levavam ao caixa, mas só precisava olhar para David para sentir-se impelida e trocar o disfarce por um moletom largo e sem forma.

— Que diabo está fazendo aqui, McCoy? — Agarrando seu braço, ela o empurrou para perto da porta. — E onde conseguiu esse chapéu ridículo? Desembuche!

— Você... você...

— Eu o quê?

— Você está... incrível.

Fora desejada e assediada por dezenas de homens desde que assumira seu novo posto, mas aquelas palavras simples provocavam um calor inesperado e incontrolável.

— Ainda não disse o que está fazendo aqui?

— Você não estava em casa...

— E daí?

Recuperado do choque inicial, ele decidiu assumir uma postura mais agressiva e pegou uma revista da prateleira mais próxima.

— É o destino, meu bem. Sou cliente desta loja — mentiu. Ao abrir a revista e deparar-se com a primeira foto, ele a fechou imediatamente. Kelli riu.

— Tem certeza de que é cliente desta loja, David? Se não estou enganada, você prefere as mulheres. — Ela apontou para o modelo nu na capa da revista.

— Você não está enganada.

— Ótimo. Agora... a verdade. O que faz aqui?

— Vim ver se você está bem.

— Sua visita é oficial? — ela perguntou, tentando controlar a ira "provocada pelo tratamento super-protetor.

— Bem... Não exatamente...

— Foi o que eu pensei. — Kelli tentou empurrá-lo para a porta.

— Hatfield, escute... Sei que fui imprudente e indiscreto, mas precisamos conversar. Prometa que vamos conversar, e eu irei embora.

— Você já disse o que tinha a dizer, McCoy. E vai sair daqui...

— Se prometer que vamos conversar, irei embora sem estragar seu disfarce. Caso contrário, serei forçada a agarrá-la e beijar sua orelha, ou...

— Você não faria isso! — ela protestou apavorada, tomada por um calor intenso e envolvente.

— Não?

— David McCoy, não se atreva e...

— Precisa de ajuda, Kitty Kat? — Jeremy perguntou em algum lugar atrás dela.

— Kitty Kat? — David repetiu com tom debochado.

— Não, Jeremy, obrigada. O cavalheiro estava apenas elogiando meu perfume e procurando um presente para sua... namorada.

— Certo. Bem, trate de convencê-lo a comprar alguma coisa antes de mandá-lo embora, ouviu?

Kelli riu e notou que David também ria. Jeremy fechou a porta do escritório, e ela respirou aliviada.

— Bem, pelo menos sei que não preciso me preocupar com seu chefe. Jamais haverá qualquer coisa entre vocês dois.

— Saia daqui, McCoy, antes que eu perca a cabeça e cometa uma loucura.

— Hmm... que idéia excitante! — Ele deslizou uma das mãos por sua coxa, e Kelli estremeceu.

— Vá embora, McCoy.

— Está apavorada. Se não consegue lidar comigo, como pretende proteger-se contra um assassino pervertido?

— Ora, seu...

— Tudo bem, já entendi — ele riu. — Agora volte ao trabalho. Não quero que tenha problemas com o chefe por minha causa. Mas lembre-se de que ainda não desisti daquela nossa conversa.

Kelli correu de volta ao caixa para atender uma cliente que já escolhera a mercadoria que pretendia comprar. Pequena, com cabelos escuros e cerca de trinta anos, ela era como todas as vítimas do maníaco que tentavam prender. Nenhuma daquelas mulheres estivera na Adult Indulgen-ces, mas os chefes da força-tarefa haviam decidido manter a loja sob vigilância constante mesmo assim. Kelli concretizou a venda. Depois, sem nada com que ocupar-se, olhou para David. Ele ainda não havia ido embora, sinal de que não confiava em sua capacidade de defender-se contra eventuais perigos. Pois mostraria a ele e a todos os outros que era uma policial competente e esforçada. Teria seu distintivo de detetive antes de completar trinta anos, e para isso precisava desempenhar bem aquela missão especial.

Um homem que estivera examinando as revistas masculinas aproximou-se do balcão.

— Ei, docinho, por que não encontrei uma foto sua naquelas páginas? — ele perguntou, deixando os olhos vagarem por seu corpo quase desnudo.

Sabia que David estava atento. Por maior que fosse o desconforto provocado pela atitude atrevida do sujeito, ela sorriu e se debruçou sobre o balcão.

— Acha mesmo que sirvo para aquelas páginas?

— Oh, sim, sem dúvida nenhuma. — Ele deixou alguns produtos sobre o balcão.

— Pena que eu não tenha nenhum material de trabalho para candidatar-me a modelo.

— Quer dizer que não tem fotos prontas? Docinho, seria um prazer ajudá-la tirando algumas fotografias que... — De repente alguém o agarrou pela gola do casaco, interrompendo a proposta.

— Se alguém vai fazer fotos dessa mulher, pode estar certo de que esse alguém serei eu — David anunciou em voz baixa.

— E quem é você?

Kelli sorriu. Não sabia como ela reagiria, mas estava satisfeita por ele ter reagido.

— Sou o homem com quem ela vai se casar.

— O quê?

O desconhecido ergueu as mãos.

— Ei, eu não pretendia pedi-la em casamento. Mas se a mulher já tem dono, então eu me retiro.

— Dono? — Kelli repetiu.

Era incrível. De mulher sedutora a propriedade particular em menos de um segundo. Apesar da rivalidade entre Hatfield e McCoy, sabia que David e seu pai poderiam se dar muito bem. Afinal, tinham a mesma opinião sobre sua competência, que colocavam em algum lugar entre zero e um numa escala de avaliação até dez.

O cliente saiu levando suas compras, e Kelli olhou para David com ar furioso.

— Parece que não está muito interessado naquela nossa conversa — disse. — Está causando tantos problemas, que serei demitida em meu primeiro dia de trabalho. E por sua culpa!

— Aquele homem estava...

— Eu sei o que ele estava fazendo, e sei que podia lidar com ele, obrigada! Está esquecendo que tivemos as mesmas aulas na Academia, McCoy.

— Sim, mas a teoria e a prática são bem diferentes.

— Casamento?

— Tem de admitir que foi uma solução rápida.

— Saia daqui, McCoy, antes que eu decida mostrar que sei unir teoria e prática com eficiência espantosa! Quer que eu demonstre o que aprendi na Academia?

— Academia? — repetiu uma voz masculina atrás dela. Oh, não! Jeremy ouvira seu discurso inflamado. E agora?

— Sim, academia. — Kelli se virou com um sorriso exagerado. — Conhece a Academia para Moças Sagrado Coração de Maria? Eu estudei lá.

Jeremy riu.

— É católica? Puxa, você é muito mais interessante do que eu imaginava, Kitty Kat. — Ainda sorrindo, ele olhou para David sem disfarçar o interesse. — Não vai nos apresentar?

— O quê? Oh, sim, este é David McCoy.

— Como vai, David? — O proprietário da loja estendeu a mão, e David hesitou antes de apertá-la. — Não é todo dia que homens do seu... calibre aparecem por aqui. Já pensou em posar para fotos artísticas? Você ficaria ótimo em uma daquelas peças de couro.

Kelli olhou para David, temendo sua reação, e surpreendeu-se ao vê-lo sorrindo.

— Se isso é um elogio, obrigado.

— Por nada, querido. Você é mesmo lindo. Eu só disse a verdade.

— E claro. Nesse caso, devo retribuir sua honestidade. Sou noivo de Kelli.

— Ex-noivo! — ela corrigiu apressada, contendo o ímpeto de pisar no pé dele com o salto fino da bota. O idiota não sabia que parte de seu disfarce era dizer que havia saído recentemente de um longo relacionamento?

— Por enquanto. Mas espero mudar esse estado de coisas em breve.

Jeremy suspirou e riu.

— Oh, por que as mulheres sempre ficam com os melhores homens? Foi um prazer conhecê-lo... sr. McCoy. Levando em conta sua ligação com nossa Kitty Kat, imagino que o veremos mais vezes por aqui.

O sorriso de David era como um refletor aceso.

— Pode contar com isso, Jeremy.

O proprietário da loja assentiu e voltou para o escritório. Kelli encarou-o furiosa.

— E então? Posso ir a sua casa mais tarde? — David perguntou.

— Não.

— Prefere minha casa?

— Nunca. Vamos esclarecer essa situação de uma vez por todas, McCoy. Não preciso de sua proteção. Não quero que pense que o fato de termos dormido juntos...

— Duas vezes.

— Que fossem dez. Cem. Isso não lhe dá o direito de ir e vir como quiser. E não preciso de você me atrapalhando nessa missão especial. E se insistir nessa ameaça idiota de destruir meu disfarce, irei procurar Kowalsky e os chefes da força-tarefa para relatar sua atitude, e você não terá tempo nem para identificar o que o atingiu. Aposto que eles serão menos pacientes que eu com sua interferência inoportuna. E não creio que seja necessário lembrar quem é meu pai, não é? — Odiava usar esse argumento, mas estavam em guerra.

— Eu...

— Esqueça, McCoy. Nada do que disser neste momento vai me convencer do contrário. Quero ver seu adorável traseiro passando por aquela porta imediatamente. Agora!

David suspirou.

— Teria mesmo coragem de fazer-me perder o emprego? Era horrível. Sentia-se a pior das criaturas, mas não podia fraquejar.

— Estou tão preocupada com sua segurança no emprego quanto você com a minha.

— Ah...

— Agora saia daqui.

 

David estava jogando basquete com os jovens que treinava no Clube dos adolescentes no centro da cidade. Não era noite de treino, mas havia preferido a companhia amistosa dos rapazes à solidão amarga do frio de dezembro lá fora. Pela primeira vez em muitos dias, não estava pensando apenas em Kelli Hatfield e no desejo que sentia por ela.

David parou, arremessou a bola... e errou a cesta.

Estaria mesmo concentrado no jogo? Seria possível tirar aquela mulher da cabeça? Há dois dias não conseguia vê-la, apesar de ter se esforçado, e a situação era ainda pior do que antes.

Sabia que sua presença na loja a irritara, mas por que ela estava tão furiosa e indignada? Só queria protegê-la. Nunca antes dera tanta atenção à outra mulher, e Kelli o acusava de estar sendo atencioso demais?

Não fazia sentido.

Odiava saber que ela estava naquela loja freqüentada por pervertidos de todos os tipos, mas odiava ainda mais a certeza de que não seria recebido, caso fosse procurá-la. Por isso havia decidido esperar que ela se acalmasse. Sim, esperaria alguns dias, e então iria à casa dela pedir perdão.

Se ao menos soubesse por que devia desculpar-se...

Chris Tucker, um dos garotos do time, aproximou-se dele.

— Aquela bola era sua, treinador! O que aconteceu?

— Não estava concentrado. Foi só isso.

— Ah...

— Agora volte ao jogo. Vou assistir dos bancos. Estou velho demais para tanta ação.

O rapaz de quinze anos não acreditou em uma palavra do que ouviu, mas não insistiu. Em vez disso, voltou para perto dos outros jovens na quadra, um conjunto eclético que incluía duas meninas, e retomou a partida.

Sentado no banco, David tentou prestar atenção ao jogo, mas era impossível. A mente insistia em lembrar um certo par de botas que povoava suas fantasias mais recentes, despertando em seu corpo uma voracidade que era ao mesmo tempo surpreendente e assustadora.

— E então, mano? Como tem passado?

A voz conhecida ao seu lado o fez perceber que estava dividindo o banco com outro homem.

— Tudo bem — respondeu, como fazia há dois dias, embora nada estivesse bem.

Marc McCoy sorriu e ergueu uma sobrancelha.

— Como soube que eu estava aqui?

— Foi só um palpite. Se não estava em casa nem no distrito...

— É claro. E o que faz aqui? Não devia estar ao lado de Melanie? O bebê vai nascer a qualquer momento.

Marc ficou sério.

Qual era o problema, afinal? O paraíso não era mais o local perfeito onde todos os sonhos se realizavam?

— Então não sabe? Ela está em casa. Com o patinho feio ainda em Penn Avenue, e o presidente eleito se preparando para assumir o cargo no mês que vem, todos nós estamos trabalhando em dobro.

— Ah, a vida no Serviço Secreto... Se sua mulher está se sentindo sozinha, por que não vai para casa? Mel não vai gostar nada de saber que está comigo à esta hora da noite.

— Se ela não souber, não ficará zangada. Além do mais, preciso relaxar um pouco antes de partir para Manchester. Não diga a ela que estivemos conversando, mas acho que ela sente ciúme. Mel gostaria de estar participando de tudo isso comigo. Estamos todos tensos com a chegada do bebê, e a situação não tem sido fácil para nós. David sorriu.

— Posso imaginar.

— E com você? Qual é o problema?

— Nenhum problema.

— Tem certeza?

— É claro que sim.

— Oh-oh...

— O que foi?

— Oh, nada...

Duas adolescentes entraram no ginásio vestindo roupas da moda e sacudindo a cabeça para se livrarem dos flocos de neve que cobriam seus cabelos. Marc ajeitou-se no banco.

— Ei, olhe só para aquilo! Elas não eram assim quando eu tinha quinze anos!

— Oh, sim, elas eram. O problema é que faz tanto tempo, que você já esqueceu. E trate de comportar-se como um homem adulto e casado. Não quero que Mel me acuse de ser cúmplice de uma traição.

— Eu só estava brincando. Você sabe que eu jamais trairia minha mulher.

— Normalmente, você nem teria notado aquelas duas.

— Um mês sem sexo pode provocar esse tipo de efeito. Mas, assim que o médico autorizar, Mel e eu deixaremos o bebê com Michelle e partiremos para um final de semana só nosso. Vamos recuperar o tempo perdido.

— Boa idéia.

— E você?

— Eu?

— Sim, você. O grande conquistador nem olhou para aquelas duas belezinhas? Nem pensou em seduzi-las?

— Sabe qual é seu problema, Marc? Você tem inveja do meu charme. Não se conforma por não ser como eu. Quanto às meninas, esta noite não estou interessado.

— Ei, eu sabia que algo sério estava acontecendo. Essa expressão de quem quer que o mundo acabe... Puxa, você não está bem. Quem é ela, e por que não estão juntos?

David encarou-o. Marc era o menos observador dos irmãos, e nunca se interessara muito por relacionamentos. Por outro lado, Marc fora o primeiro a se casar. Sim, fora necessário um bebê e um assassino para convencê-lo a dar o grande passo, mas ele havia sido o primeiro.

Pensou em mentir, em dizer ao irmão que não tinha nenhum problema com as mulheres, muito menos com uma em especial, mas sempre confiara no irmão.

— Kelli.

— Kelli?

— Kelli Hatfield, minha parceira. Quero dizer, ela era minha parceira, e só voltará a trabalhar comigo quando concluir aquela missão especial em que se envolveu como agente disfarçada.

— Hatfield... Hatfield... Céus! Como Garth Hatfield?

— Ela é a única filha de Garth.

— Papai já sabe?

— Não há nada para saber. Não está acontecendo nada.

— Mas já aconteceu.

David não sabia o que dizer. Não sabia o que fazer. Nunca se interessara por outra mulher como estava interessado em Kelli, e a falta de experiência era mais um ponto a favor do adversário.

— Nunca pensei que viveria para ver o dia em que uma mulher o pegaria de jeito, Casanova!

— Pare com isso, Marc! Sou só um homem comum. Por que acha que tudo tem de ser diferente comigo?

— Porque até agora, tudo foi diferente.

— Engraçadinho.

— Então, uma mulher conseguiu dominar o famoso David McCoy...

— Famoso?

— Ah, vamos lá! Você conhece a reputação que tem. As mulheres o admiram e temem, os homens o odeiam e invejam.

— Não exagere.

— Acha que estou exagerando? — Marc tirou um recorte do bolso do casaco. — Normalmente não leio estas porcarias, mas Mel ligou hoje de manhã gritando a novidade. Leia e chore, Casanova.

David olhou para a página da revista semanal e viu um retrato dele mesmo. Sorrindo, os braços cruzados sobre o peito, ele usava o uniforme e parecia orgulhoso. O retrato fora tirado durante a ocorrência em que o pai fizera a própria filha como refém. O texto sob a fotografia era simples e direto. "O Tira Casanova: Que Mulher de Washington Não Gostaria de Encontrá-lo Sob Sua Árvore de Natal?"

Sim, todas as mulheres o queriam, menos Kelli Hatfield. E passaria a odiá-lo depois de ler aquele artigo.

Droga! Lembrava-se do nome do repórter, mas não sabia que ela pretendia expô-lo como um animal sexual.

— Gostei mais desta parte — Marc comentou, apontando para um trecho da matéria. — A jornalista diz que você é garotão mau esperando pelo amor verdadeiro de uma boa mulher para regenerar-se.

David gemeu e jogou a revista sobre as pernas do irmão.

— Ei, pensei que adorasse ser o centro dessas matérias!

— Há uma semana, talvez tivesse gostado de ver meu nome e minha foto numa revista qualquer, mas esse artigo reduziu pela metade minhas chances com Kelli.

Marc riu e jogou a revista na mochila do irmão.

— Sei que estou me repetindo, mas nunca imaginei que viveria para ver este dia. David McCoy choramingando por uma mulher!

David enterrou a cabeça entre as mãos e fechou os olhos.

— Também não esperava por isso — confessou.

— Acalme-se, David. Você é um McCoy, e um McCoy sempre encontra a melhor solução. Se quiser, ainda tenho em casa todas aquelas revistas femininas cheias de conselhos sobre o que uma mulher quer encontrar em um homem.

— Cale a boca, Marc. Por favor, cale a boca.

Kelli examinava todos os recortes do mural de informações que montara na sala de jantar, ao lado da árvore de Natal. Tinha de haver algo ali, algo que não notara há três anos, na última vez em que examinara a pasta com uma cópia do arquivo morto do assassinato de sua mãe. Encontrando um espaço vazio para o papel que tinha na mão, ela o prendeu à cortiça entre uma foto profissional feita de sua mãe há dezoito anos e outra tirada por um jornal no momento em que o corpo fora retirado de casa. A imagem de Kelli correndo atrás do vulto coberto por um lençol fora cuidadosamente excluída.

Usando um dedo, ela empurrou o painel para girá-lo. Do outro lado estavam relacionados todos os crimes do Assassino de Washington.

— Deve haver alguma coisa...

Kelli sentou-se à mesa da sala de jantar e tocou o material espalhado sobre a superfície polida. Kojak deitou-se a seu lado e, distraída, ela afagou a cabeça do animal.

— Sabe de uma coisa, amigão? Queimar a vela dos dois lados nunca foi uma prática muito segura. Por isso não consigo chegar a nenhuma conclusão.

Os dois dias anteriores haviam sido estressantes. Começara cada um deles na sede da força-tarefa, revendo novas informações sobre o suspeito, analisando retratos falados e entregando as próprias anotações. Depois mudava de roupa e ia para a loja. Havia esquecido como o trabalho de vendedora era cansativo. A tensão de ter de manter-se atenta para eventuais suspeitos ou vítimas piorava o quadro, e tinha de manter todos os detalhes vivos na memória até chegar em casa e poder anotá-los.

Retomara os recortes de jornal e todos os dados reunidos ao longo dos anos há duas noites, desde que um certo rosto invadira sua mente e a impedira de dormir. Desde então, sempre que podia dedicava-se ao caso.

Kelli olhou para o relógio. Passava das dez da noite. Cansada como estava, a idéia de um bom banho quente e de uma cama macia devia ser tentadora. Mas não era. Sabia que entregar-se ao ócio por longos períodos de tempo só serviria para levá-la ao mesmo problema de antes: David McCoy. Ler um romance só serviria para exacerbar o desconforto que sentia sempre que pensava nele.

Podia conversar com Bronte, mas ela partira naquela manhã para passar o Natal em New Hampshire com os pais.

Natal. Faltavam apenas três dias...

Ainda não falara com o pai, embora houvesse telefonado para ele no dia anterior e deixado um recado com sua secretária. Garth Hatfield não retornara a ligação.

Por que sua vida era tão complicada?

— Já sei o que vamos fazer, amigão :— ela disse ao cachorro. — Vamos dar um passeio.

David McCby saiu do banheiro enrolado em uma toalha. O jogo de basquete cansara seu corpo, más a mente insistia em produzir imagens inquietantes de Kelli Hatfield. Irritado, ligou a tevê e acionou o controle remoto até encontrar uma reprise de Os Simpsons. Reconhecendo o episódio como um de seus favoritos, deixou o controle remoto sobre a mesa de café, tentando não pensar em outra mesa com a qual tornara-se íntimo recentemente. Desviando os olhos do móvel, foi à cozinha buscar uma cerveja.

Parado diante da geladeira, bebeu meia garrafa e pegou o sanduíche que comprara a caminho de casa. Coberto apenas pela toalha, voltou à sala e olhou para a televisão. Homer continuava dizendo bobagens e fazendo tolices. Kelli devia estar assistindo ao noticiário. A todos eles. Nenhuma informação podia ser ignorada quando se tentava solucionar um caso tão complexo.

Mastigando o sanduíche e olhando para a tela luminosa, ele se espantou ao ouvir batidas na porta. Aquela hora...?

— Jeff mora ao lado — gritou.

Em seus piores dias, chegara a pensar em processar o vizinho por perturbar a paz, mas nunca pusera o plano em prática. Jeff era um sujeito popular com muitos amigos que apareciam a qualquer hora do dia ou da noite. Estava acostumado com isso. Mas o hábito não o tornava menos invejoso.

As batidas se repetiram.

Suspirando, David foi abrir a porta.

— Já disse que Jeff... — A visão do outro lado da soleira deixou-o em silêncio. Não teria ficado tão chocado se fosse o próprio Homer Simpson batendo em sua porta.

Kojak latiu, mas foi contido pela coleira que Kelli segurava em uma das mãos. David olhou para o animal e voltou a fitá-la, certo de que estava tendo uma alucinação.

— Sei que é tarde, mas Kojak e eu estávamos passeando e... bem... — Era impossível raciocinar diante daquele corpo estupendo e seminu. — Meu Deus... — murmurou, sentindo o rosto queimar.

David olhou para a toalha frouxa em torno de seu quadril, para a garrafa de cerveja apoiada no braço dobrado e o resto do sanduíche em sua mão. Lembrando-se da mostarda que começara a escorrer por seu queixo, limpou-o com o dorso da mão, torcendo para ter alcançado o local exato.

— Olá... Não quer entrar?

— Não, eu... estou incomodando, não é? Acho melhor irmos embora e...

— Não! Acabei de sair do chuveiro e estava comendo alguma coisa. Por que não entra e espera enquanto eu visto alguma coisa?

Ele indicou o caminho e foi chutando algumas revistas esportivas na medida em que caminhava. Tentou ver o apartamento com os olhos dela e censurou-se. Depois sentiu vontade de esganá-la. Qual era o problema com aquela mulher? Havia telefonado, e ela se recusara a atendê-lo. E no instante em que desistia, ela aparecia em sua porta quando menos esperada. Quando não estava preparado.

— Comporte-se, Kojak — Kelli disse enquanto fechava a porta.

— Pode soltá-lo, se quiser. Fique à vontade. Vou vestir alguma coisa e volto num minuto.

David entrou no quarto. Estava quase fechando a porta quando percebeu que tinha companhia.

— Kojak, volte aqui!

— Não se preocupe, ele não vai incomodar.

Com a porta fechada, finalmente pôde murmurar todos os palavrões que havia aprendido em seus trinta anos de vida.

— Muito engraçadinho, não é? Espere só para ver se vai ganhar mais alguma guloseima.

Ao ouvir a palavra guloseima, o cão latiu. David encolheu-se. O edifício não permitia animais nos apartamentos. Tudo que faltava para completar uma noite como aquela era um chamado do síndico. O homem morava logo embaixo de seu apartamento, e certamente ouviria os latidos.

Disposto a silenciar o cachorro, vestiu-se apressado e só se deu conta de que esquecera a cueca quando já fechava o zíper do jeans. Bem, se a situação melhorasse, e esperava por uma melhora, não manteria aquela calça sobre o corpo por muito tempo.

Pouco depois ele retornava à sala. Ainda estava descalço, despenteado, mas apresentável. Kojak o seguia.

Kelli estava sentada na beirada de uma poltrona. Ela desviou os olhos, fitou-o e olhou novamente para a tela com ar debochado. David pegou o controle remoto e desligou o aparelho no meio de uma piada de Homer Simpson.

— Eu havia acabado de ligar — mentiu. — Não gosto disso.

Ela sorriu.

— Sei.

— Quer beber alguma coisa? Uma cerveja? Um refrigerante.

— Não, obrigada. É muito tarde para ingerir açúcar ou cafeína.

— Água?

— Água? Sim, está bem.

— Ótimo. Uma água e uma guloseima para o meu amigão aqui.

Na cozinha, David respirou fundo várias vezes e tentou controlar-se. Sabia que era capaz de lidar com a situação.

Não era sempre que recebia uma mulher em seu apartamento. Raramente fornecia seu endereço. Mas não pensara duas vezes quando deixara o endereço e o número de seu telefone grudados na porta da geladeira de Kelli alguns dias antes. Talvez por não acreditar que ela poderia usá-los. Talvez por esperar que os usasse.

Nunca questionara seu estilo de vida, mas de repente lamentava não ter o hábito de aspirar o carpete. Também estava arrependido por não ter lavado a louça empilhada na pia ou comprado um sofá novo.

— Que bela maneira de impressionar, McCoy — resmungou para si mesmo enquanto lavava um copo que encheria com gelo e água da torneira. Já estava saindo da cozinha quando se lembrou das guloseimas contidas em uma caixa sobre o balcão.

Kojak aproximou-se correndo e ele arremessou o petisco. Tudo de que precisava era ser atacado pelo mamute e derrubar a água.

— Aqui está —- disse, entregando o copo com água. Seria impressão, ou ela se assustara?

— Pode relaxar — disse, acomodando-se na ponta do sofá. — Não mordo.

— Não estou convencida disso.

— Alguma vez fiz alguma coisa que você não quisesse?

— Não. Mas este lugar... Bem, não era o que eu esperava para o Tira Casanova.

— Então já viu...

— Não que tenha importância. Esse é seu apelido, não? Os rapazes o chamam por ele sempre que estou no distrito. Quanto ao artigo... aposto que eles espalharam cópias por todo o edifício. Bela cor para as paredes.

David respirou fundo.

— Já eram pretas quando me mudei para cá. Combinam com as poltronas, por isso as deixei como estavam.

— Humm... Gostei da árvore.

Não queria nem olhar para a pequenina e deformada árvore de Natal prateada que pusera sobre a televisão. Havia apenas quatro lâmpadas, e duas estavam queimadas.

— O que tem a árvore? E... Natal.

Pensou em resgatar a garrafa de cerveja de cima da mesa, onde a deixara antes de ir para o quarto, mas mudou de idéia.   .

— Estava dizendo que você e Kojak saíram para um passeio?

— Sim... Não...

— Kelli, desembuche de uma vez. O que está acontecendo?

 

A pergunta era válida. Infelizmente, Kelli não tinha uma resposta pronta.

— Eu... estava sem guloseimas, e Kojak parecia infeliz...

— Caminhou três quilômetros numa noite de inverno para dar uma guloseima ao seu cachorro?

Ela sorriu.

— Exatamente. Algum problema?

— Nenhum. Se para você faz sentido...

David também sorriu e estendeu o braço sobre o encosto do sofá. Kelli notou o abdome rígido sob a camisa meio aberta e bebeu um pouco de água, contendo o ímpeto de atacar a garrafa de cerveja sobre a mesa.

— Como vão as coisas no distrito? — perguntou.

— Tudo bem. E na loja?

— Bem.

— Algum progresso?

— Nenhum. Os chefes da força-tarefa estão ficando impacientes. Eles querem pegar o assassino antes que ele possa atacar novamente.

— Não é uma atitude muito otimista?

— Concordo com você. A força-tarefa entrou em operação recentemente, e eles esperam que os policiais disfarçados agarrem em poucos dias um bandido que está agindo há três anos. Não temos nenhuma evidência, exceto alguns retratos falados que podem ser de qualquer um e um exame de DNA que se torna inútil sem um suspeito. — Kelli suspirou e deixou o copo sobre a mesa. — E acham que devíamos ter algemado o sujeito ontem!

— A pressa tem uma explicação lógica. A primeira vítima assassinada era prima distante de um senador.

— Como sabe disso?

— As notícias correm.

— Mas essa informação estava sendo mantida em sigilo.

— Sigilo é algo que não existe nesta cidade, Kelli. Existem pessoas, que sobrevivem do comércio de informações com a mídia local. — David tocou seu ombro com delicadeza, e ela pulou. — Está tensa demais.

— Vim aqui porque precisava de companhia, McCoy, não para... relaxar.

— Existem muitas maneiras de extravasar a tensão.

— Eu sei. Como um bom soco, por exemplo.

Ele riu, mas continuou tocando seu ombro com os dedos numa massagem sutil. Kelli tentou empurrá-lo.

— Tente relaxar.

— Não posso — ela disparou.

— Hatfield, isso não é uma tentativa de sedução, por mais atraente que seja a idéia. Só quero ajudar uma amiga.

Um amigo. Como queria isso agora. Alguém com quem pudesse desabafar e discutir suas preocupações. Kelli fechou os olhos e tentou imaginar o toque inocente de Bronte produzindo aquele mesmo efeito.

David dedicou-se à massagem com mais disposição, usando as duas mãos e tocando todos os músculos rígidos de suas costas.

— Muito bem, agora vamos conversar — ele murmurou. — O que a está aborrecendo de verdade?

— Não sei. Nunca viveu um momento em que tudo parece dar errado? Nunca pensou que pode sair correndo e gritando, caso aconteça mais alguma coisa de ruim?

— Talvez. O que mais a incomoda?

Você, gostaria de dizer. Mas não ousava ir tão longe, porque não estava preparada para revelar tanto.

— O que sabe sobre meu pai, McCoy?

— Não sei muito. Ele está na polícia há muito tempo e... Por quê?

Kelli ignorou a questão.

— Sabe alguma coisa sobre minha mãe?

Era a primeira vez que abordava o assunto com alguém. Nunca o discutira com Bronte, e o pai se recusara a comentar suas inúmeras tentativas anteriores. Era quase como se Loretta Jane Hatfield nunca houvesse existido.

— Eu deveria saber? — David perguntou depois de um instante de silêncio.

— Não. Como você disse, as notícias correm entre os policiais.

— Algumas notícias. Não quer falar sobre ela? Kelli fechou os olhos e pensou na foto presa ao painel de cortiça em sua casa. Lembrou as tardes de domingo na cozinha da casa em Georgetown, quando preparavam biscoitos e ela lambia a colher. Lembrava de noites frias como aquela, quando ia se deitar na cama dos pais e dormia nos braços da mãe. Há quanto tempo não pensava na mãe como alguém de verdade, um ser humano, em vez de um corpo sem vida sob um lençol? Era bom recordar a pessoa adorável com quem convivera nos primeiros anos de vida.

— Ela morreu quando eu tinha sete anos — começou a falar. — Foi assassinada. O assassino nunca foi preso.

— Isso deve ser duro.

— Pior é tentar seguir pistas deixadas há mais de dezoito anos.

David interrompeu a massagem.

— Não pode estar dizendo o que estou imaginando!

— O quê? Que estou trabalhando no caso há quatro anos? É isso mesmo.

Por que revelava tanto? Ninguém mais sabia sobre sua investigação particular, exceto o detetive que a ajudara a tirar uma cópia do caso, e ele só concordara por ser irmão mais velho de um colega de Academia. Tentara falar com o pai certa vez, mas percebera que ele não estava preparado para ouvir a informação e desistira.

E de repente contava toda a verdade a David, o que era estranho e inquietante.

— Agora entendo toda essa tensão — ele comentou, retomando a massagem com mais afinco.

Kelli sentiu um arrepio.

— Prometa que não vai contar a ninguém sobre o que ouviu aqui, McCoy.

— Sim, eu prometo, mas... Acha mesmo que devia estar participando da força-tarefa? Não está assumindo responsabilidades pesadas demais?

— É necessário. Durante os três anos que passei em Nova York, nem abri as pastas com os dados da investigação, porque não havia nada que eu pudesse fazer lá. Mas agora estou de volta.

Voltara a Chicago, fora admitida em uma força-tarefa, conhecera David...

David. Podia senti-lo perto, tocando suas costas e desfazendo a tensão. O hálito morno em sua nuca era como um bálsamo, e só precisava reclinar o corpo para apoiar-se em seu peito.

A idéia era tentadora.

David sentiu a mudança na atmosfera. Kelli estava quase encostada em seu corpo, e havia uma certa ansiedade em sua respiração. Era como se a confissão marcasse um momento de grande mudança no relacionamento. Depois de ouvi-la, ele também refletia sobre a ausência de uma figura materna em sua vida.

Raramente pensava na mãe, exceto quando ele, os irmãos e o pai visitavam o túmulo no aniversário de sua morte. Não se lembrava dela, porque tinha apenas dois anos quando a perdera. Não ter mãe era apenas um fato com o qual convivia, uma realidade indiscutível que jamais poderia mudar.

— Minha mãe morreu quando eu era pequeno — contou. - Ela tinha câncer. Meu pai vive contando que, aos seis anos de idade, eu fugi para o rancho vizinho para viver com uma família que tinha pai e mãe presentes.

Ela se virou e segurou seu pulso numa oferta silenciosa de conforto.

.— Não me lembro disso, mas eles contam que resisti muito quando tentaram me levar para casa. Talvez tenham inventado essa história só para provocar-me.

— Vocês são muito parecidos.

— Creio que sim. — E também eram muito próximos, unidos por laços invisíveis e eternos.

Kelli soltou seu braço e aproximou-se um pouco mais, tocando o corpo másculo com seu traseiro perfeito e macio. David estivera excitado desde que começara a massageá-la, mas de repente sentia-se pulsar como se pudesse explodir a qualquer momento.

— Eu... acho melhor você se afastar um pouco...

— Por quê? Gosto daqui... — O sorriso indicava que ela sabia o que estava fazendo.

— Estou tentando ter uma conversa séria, e você só pensa em sexo...

Kelli tentou afastar-se, a expressão revelando uma mistura de alarme e constrangimento, mas ele a reteve entre os braços.

— Ei, eu estava brincando... — murmurou. — Prometo que não vou reclamar se quiser tirar a roupa.

— Você é insuportável.

— E você é uma sedutora incorrigível.

— Não sou!

— Não? Então, por que está roçando o traseiro em uma parte tão específica de minha anatomia?

— Bem, porque...

— Eu sabia. Porque quer o mesmo que eu.

— Acho melhor ir para casa.

— Você acha? — David a prendeu entre as pernas e beijou sua nuca.

— Vou ter de acordar muito cedo amanhã.

— Precisa descansar para enfrentar mais um dia cheio.

Kojak dormia no chão da sala. O silêncio era confortável, como o abraço que a envolvia como um cobertor velho e macio.

— David?

— Sim?

— Eu só queria dizer...

— O quê?

— Obrigada.

Ele a apertou entre os braços e beijou seus cabelos. Não sabia por que ela estava agradecendo. Não sabia nem se queria descobrir. Tudo que queria era ficar ali com Kelli em seus braços.

— Por nada, Kell. Disponha.

 

Kelli fechou a gaveta do caixa e suspirou. Passara a noite na casa de David, dormindo em seus braços, e a experiência fora maravilhosa. Nunca antes havia dormido com um homem, e o fato de não terem feito amor tornava a ocorrência ainda mais especial. Ele deixara o café pronto e um bilhete sobre o travesseiro explicando que saíra para ir trabalhar, mas que ela poderia ficar por quanto tempo quisesse.

Kelli sorriu. Depois olhou em volta. A loja estava vazia, mas tinha de concentrar-se em sua missão. Se continuasse pensando em David, não pegaria nem um rato roubando comida, muito menos um assassino.

José fora limpar as prateleiras no fundo da loja. Jeremy saíra para resolver problemas na rua. Antes que tivesse tempo para questionar a decisão, ela foi ao escritório e deixou a porta aberta, caso um dos dois retornasse. Examinara a mesa do proprietário duas vezes, mas não encontrara nada além de documentos comerciais. E dessa vez não foi diferente.

Kelli saiu, fechou a porta e retomou seu posto no caixa. Usando o bloco que mantinha escondido no sutiã, ela anotou os dados sobre os dois últimos clientes, informações que descobrira ao manusear os cartões de crédito. — Fazendo a lista de compras?

Kelli parou. Jeremy havia voltado e sorria para ela da ponta do balcão. Ela conseguiu retribuir com um sorriso trêmulo.

— Exatamente. Sou uma dessas pessoas que deixam as compras de Natal para a última hora. — O bloco fechado voltou ao local de origem, dentro do sutiã. Jeremy olhou para seus seios por um momento além do esperando, e você? Já terminou suas compras?

— Infelizmente, não tenho muitas pessoas para quem comprar presentes.

— Entendo. Quero que saiba que sou grata por ter mudado meu horário para que eu possa sair mais cedo esta tarde. Normalmente não freqüento essas ocasiões familiares, mas acho que chegou a hora de ser mais tolerante.

O que esperava era poder conversar com o pai na festa de Natal da Corporação. Queria promover a reconciliação antes do jantar de Natal em casa de sua tia Beryl.

— Não precisa agradecer, docinho. O movimento é sempre menor nesta época do ano, como pode perceber. As pessoas ficam mais religiosas. Mas, assim que a grande data fica para trás, todos retornam dispostos a promoverem grandes festas de Reveillon.

Não sabia sé era a luz ou o jeito de olhar de Jeremy, mas de repente ele parecia mais velho que antes. Em vez de quarenta e poucos anos, ele parecia ter quase sessenta, os cabelos claros disfarçando as mechas grisalhas. Ou seria o desgaste natural da tintura? Jeremy passava boa parte de seu tempo no escritório, revendo catálogos ou mexendo em seu computador. Havia examinado todos os arquivos e não encontrara nada que pudesse incriminá-lo.

— Diga-me, Kitty Kat, por acaso é parente de Loretta Jane Hatfield?

A pergunta direta a pegou de surpresa e causou uma reação imediata. Era como se o estômago houvesse dado uma pirueta em seu ventre e agora repousasse em uma posição anormal.

— Ela era minha mãe. Você a conheceu?

— Não. Sempre me interessei pelas páginas policiais, e há alguns meses eu navegava pela Internet quando encontrei os artigos relacionados à morte de Loretta. Quanto tempo faz? Vinte anos?

— Dezoito. — Por que não encontrara pistas de seu interesse no escritório? — O que esteve fazendo? Investigando meu passado, Jeremy?

— É claro que não. Foi simples curiosidade. Você me parece familiar e... Bem, agora sei que é parecida com ela. As fotos que vi mostravam uma mulher muito bonita, e você também é linda.

— Obrigada. — Era difícil falar com a garganta oprimida.

— E bom tê-la em minha loja. Tudo se tornou mais interessante por aqui depois de sua chegada. Bem, agora vou deixá-la ir embora. Sabe que horas são?

Kelli olhou para o relógio.

— Quinze para as cinco! A festa começa às cinco. — Ela pegou o casaco sob o balcão. — Bem, até amanhã, Jeremy. Custo a acreditar que estamos a um dia da véspera de Natal.

— Até amanhã, Kitty Kat. Até amanhã...

David entrou no distrito onde a festa de Natal já começava a ficar animada. Depois de cumprimentar alguns colegas, dirigiu-se ao vestiário para trocar o uniforme por roupas casuais, e foi surpreendido pela presença do pai no aposento de ladrilhos claros,

— Ei! O que faz aqui?

Desde que descobrira quem era o pai de Kelli, ele evitara ir a Manchester e enfrentar a terrível conversa com o pai. Sabia que acabariam discutindo, e isso era tudo que não queria. Tarde demais, deduziu que Marc devia ter falado demais, como sempre.

Ele ainda usava o uniforme e parecia estar em grande forma, uma conseqüência do relacionamento com a mãe de Melanie, Wilhemenia.

— Como vai, David?

— Bem, mas... Aconteceu alguma coisa? Sei que não viria até aqui por nada.

— É verdade.

Contendo o nervosismo, David abriu o armário e começou a trocar de roupa. O momento de enfrentar a ira de Sean McCoy havia chegado.

Kelli bebia um copo de soda e olhava em volta, tentando encontrar o pai entre os inúmeros policiais que participavam da festa. Ainda estava procurando quando sentiu uma presença a seu lado e virou-se sorrindo, certa de que encontraria o rosto de David. Mas o homem parado atrás dela não era outro se não Garth Hatfield.

— Papai! É bom vê-lo aqui.

— Foi bom receber seu convite, mesmo que tenha sido através da secretária eletrônica.

— Bem, eu o teria convidado de outra maneira, mas você não retornou minhas ligações. Ainda está aborrecido por eu ter sido aceita na força-tarefa?

— Sim, Kelli Marie.

— E ainda quer ver David McCoy ser banido da face da terra?

— Ele e aquele homem insuportável de quem o sujeito é filho.

— Entendo seu ponto de vista e respeito sua opinião. Mas também espero respeito, papai. Até mesmo de você.

Garth suspirou e assentiu.

— Quanto ao outro assunto... Ele levantou a mão.

— Podemos deixar essa conversa para mais tarde? Não creio que este seja o local adequado, docinho.

Kelli sorriu e pendurou-se no braço do pai.

— É claro. Desde que concorde com essa conversa, podemos deixá-la para mais tarde. A propósito... tenho sentido falta de seus telefonemas.

No vestiário, David continuava sentado no banco tentando assimilar tudo que acabara de ouvir do pai. Vinte minutos de um monólogo denso que o deixara atordoado.

— Então é isso? Toda essa rivalidade entre você e Garth Hatfield... Ele saía com mamãe?

— Ele não saía com sua mãe. Não foi tão simples. Hatfield tentou roubá-la de mim.

— Enquanto ainda eram parceiros.

— Sim.

— E mesmo assim, você se casou com ela. Então, por que ainda alimenta todo esse ressentimento?

Porque Garth tentou...

— Sim, sim, eu entendi. Ele tentou roubá-la de você. Mas isso aconteceu há mais de trinta anos!

— Trinta e oito.

— Não faz sentido. E claro que não espero entender trinta e oito anos de mágoa e rivalidade em menos de meia hora, mas podemos continuar conversando. O que acha de sairmos e tomarmos uma cerveja? Estou precisando.

Sean sorriu pela primeira vez desde que David o encontrara no vestiário.

— Eu também — disse.

Kelli riu da piada que ela e o pai acabaram de ouvir. Estava feliz, relaxada e esperançosa. Ela e o pai não só voltavam a conversar, como ele aceitara o convite para ir à festa no distrito, um lugar onde jamais havia pisado antes. Garth sempre se esforçara para ignorar sua vida profissional, porque assim esperava manifestar o quanto a repudiava. Mas agora ele estava ali, rindo e conversando com seus colegas.

E havia David. Estavam... Bem, haviam retomado o relacionamento anterior, e mesmo sem saber como defini-lo, era bom saber que não teria mais de fingir que o ignorava.

— Feliz Natal, chefe Hatfield.

Kelli quase derrubou o copo de refrigerante ao ouvir a voz familiar. Num segundo, tudo parecia prestes a mudar. David estendia a mão para seu pai e sorria.

— Talvez não se lembre, mas já nos conhecemos. É um prazer revê-lo.

Kelli não sabia o que fazer. Não estava surpresa por constatar que o pai ignorava a mão estendida em sua direção, nem estranhava o silêncio que havia dominado a sala. O que mais a surpreendeu foi a calma com que Garth ergueu o punho fechado e atingiu o queixo de David.

Sean McCoy tentou vingar o filho atirando-se contra o rival, mas Kelli colocou-se na frente de Garth, e David levantou-se do chão a tempo de conter o pai. Aquela rivalidade já havia ido longe demais.

— Solte-me, David. Ninguém agride meu filho e sobrevive para contar a história!

— Seu filho vai ter de pagar por ter tocado em minha garotinha!

David notou que Kowalsky acompanhava a tudo com interesse. Mais um segredo que caía por terra.

— Está pedindo por isso há muito tempo, Hatfield!

— Eu? E você? Aposto que convenceu seu filho a aproximar-se de minha menina só para atormentar-me.

— Talvez. Deus sabe que você merece todas as punições do mundo, seu arremedo de chefe!

David decidiu que era hora de interferir.

— Agora chega, papai. Diga ao sr. Hatfield que não me convenceu a nada.

— Não vou dizer coisa nenhuma.

— Pai!

— Fique fora disso, garoto! — Hatfield gritou.

— Acho que é hora de encerrarmos o espetáculo — Kelli disse em voz alta. — Os que concordam comigo digam sim.

— Sim! — gritaram vários homens. Kelli suspirou aliviada.

— Acho melhor você ir embora, pai.

Garth Hatfield parecia disposto a agredir até mesmo a própria filha, mas depois de alguns instantes ele abaixou a cabeça. Seu rosto estava vermelho.

— Não sei por que devo ser o primeiro a partir.

— Porque eu o convidei para esta festa, e você acaba de envergonhar-me com seu comportamento intempestivo. Agora vá. — Ela se virou para David e Sean McCoy. — Se quiser registrar uma ocorrência, oficial McCoy, eu mesma cuidarei de anotar todos os dados e preencher os formulários.

— Ocorrência? — Garth gritou.

Sem encará-lo, Kelli apontou para a porta.

Sean McCoy viu o adversário de décadas deixar o distrito com passos furiosos. Depois respirou fundo, olhou para Kelli... e sorriu, embora com certa timidez.

-— Meu filho não vai registrar nenhuma ocorrência. Se não se importa, seu pai e eu precisamos resolver essa questão longe dos canais oficiais.

Kowalsky deu um passo à frente.

— Muito bem, pessoal, o espetáculo acabou, mas a festa continua. Feliz Natal para todos. McCoy, quero conversar com você e com a oficial Hatfield em minha sala. Agora!

Dois dias mais tarde, Kelli entrou no apartamento, fechou a porta e foi se livrando dos sapatos e das roupas a caminho do quarto. A cabeça doía, as costas ardiam, e gostaria que a data festiva terminasse de uma vez, pois assim não teria de sorrir quando sentia vontade de rosnar para o mundo.

Dois dias que haviam sido como duas semanas. Primeiro tivera de ouvir o sermão de Kowalsky sobre conduta apropriada e envolvimento entre parceiros. Dada sua participação na força-tarefa, ele decidira não levar a situação adiante, mas os prevenira sobre as terríveis conseqüências que teriam de suportar, caso não tivessem comportamento exemplar pelos próximos seis meses. Desde então, não voltara a ver David.

Quanto ao trabalho na força-tarefa, todos esperavam que o Assassino de Washington atacasse no Natal, e por isso a equipe atuava em regime de alerta máximo. No dia anterior, véspera de Natal, trabalhara das nove da manhã às sete da noite, quando Jeremy a mandara para

casa. Naquela manhã mal tivera tempo para tomar um banho e arrumar-se antes de sair para a casa da tia em Baltimore, e ainda não havia conversado com o pai ou com David desde o incidente na festa do distrito.

Batidas na porta a fizeram voltar à sala. Uma guloseima enfiada pela fresta identificou o visitante inesperado. Kojak atirou-se sobre o petisco, enquanto ela abria a porta e sorria.

— Espero que também tenha algo para mim — disse. David estendeu as mãos vazias.

— A única coisa que tenho sou eu mesmo.

Ela agarrou sua camisa e puxou-o para dentro do apartamento.

— Serve...

Rindo, ele a abraçou antes de exibir um pacote retangular que mantivera escondido às costas, sob a camisa.

— Oh, David! Por que fez isso? Eu nem pensei em comprar nada...

Um beijo rápido serviu para silenciá-la.

— Não se preocupe. O presente é para nós dois.

— Chocolate?

— Não, mas é algo igualmente delicioso. — Os olhos viajaram por seu corpo, lembrando que ela vestia apenas a combinação de seda preta.

— Eu... acabei de chegar em casa.

— Eu sei. Passei a última meia hora lá fora, esperando.

— No frio? Deve estar gelado! Quer beber alguma coisa?

— Uma cerveja, se tiver.

— Lamento, mas vai ter de contentar-se com chocolate quente.

— Perfeito. — Ele a seguiu até a cozinha.

— E então, como passou a noite de Natal?

— Patrulhando as ruas. Acredita que tive de prender um Papai Noel embriagado e desordeiro?

— Tudo é possível nesta cidade.

Kelli preparou a bebida quente e os dois voltaram para a sala, onde se sentaram lado a lado no sofá. No caminho, David havia erguido o braço para pegar um pote de cerejas na prateleira ao lado do refrigerador, mas ele não acrescentou a conserva ao chocolate com creme batido e canela. Assim que ele deixou o pote sobre a mesa de café, Kelli ergueu a xícara para um brinde.

— Ao fim do Natal — disse.

— Ao início da verdadeira comemoração — ele respondeu.

— Posso abrir meu presente agora?

— Não é exatamente um presente convencional. Não vai poder exibi-lo em sua sala de estar, por exemplo.

— Oh, então é algo que devo usar?

— Mais ou menos.

— Ou é, ou não é.

— Então não é. Comprei um presente para ser... experimentado.

— Céus! Considerando o lugar onde tenho passado meus dias, é melhor não deixar a resposta a cargo de minha imaginação.

— Nesse caso, vá tomar um banho.

— O quê?

— Você ouviu. Vá tomar um banho. Preciso de tempo para criar o cenário.

— Cenário?

— Preciso de quinze minutos.

Kelli levantou-se e começou a caminhar para o banheiro.

— Quinze?

— No mínimo.

— Devo lavar os cabelos?

— Não.

— Nesse caso, estarei pronta em cinco minutos. - Dez.

— Combinado.

Kelli estava terminando de enxugar-se quando ouviu as batidas na porta. David inseriu a mão pela fresta e disse:

— Ponha isto.

Ela pegou a peça de seda preta e examinou.-a.

— Duvido que consiga cobrir-me com isto.

— Espero que não. E uma venda.

— Oh, uma... David, não vou ficar de olhos vendados!

— Não discuta, Hatfield. Oh, e esqueça aquela combinação, sim?

Um arrepio percorreu seu corpo. O que ele tinha em mente?

— Já pôs a venda?

Kelli cobriu-se com a toalha antes de amarrar o tecido preto atrás da cabeça.

— Sim, estou pronta.

— Muito bem, venha comigo. David guiou-a até a sala.

— O que fez com Kojak?

— Ele está na cozinha, onde terá de ficar por algum tempo.

— Oh...

— Por aqui.

— Que cheiro é esse?

— Cheiro? — Ele puxou a ponta da toalha. Kelli conseguiu agarrá-la a tempo. — Logo vai descobrir. Agora quero que se sente aqui.

O que a almofada do sofá estava fazendo no chão? Ela se sentou, tentando manter a toalha sobre o corpo.

— Oh, não vai precisar disso. — Rápido, ele a desnudou com um único movimento.

De repente sentia-se vulnerável, exposta.

— O que está fazendo, David? Por que... — A boca úmida e quente silenciou-a.

— Fique quieta, sim? Acomode-se melhor. — Ele a empurrou sobre uma pilha de almofadas cobertas por um tecido macio. Seda, talvez.

Os lábios que pouco antes haviam beijado os dela agora estavam sobre um de seus seios, sugando e lambendo, despertando sensações incontroláveis. As mãos deslizaram por seus braços e os levaram acima da cabeça, expondo-a ainda mais.

Aquele cheiro novamente...

Algo frio e molhado entrou em contato com o outro seio. O mamilo tornou-se imediatamente rígido, e o contato se repetiu. E outro, outro...

O calor entre suas pernas compensava o frio da substância desconhecida. David repetiu os movimentos no outro seio, satisfeito por notar que ela se contorcia numa doce agonia. Os círculos foram se tornando mais amplos, até que todo o peito estivesse coberto pela substância gelada. Kelli temia enlouquecer de prazer.

Os movimentos foram se aproximando de seu umbigo, causando arrepios sucessivos.

— O que é isso...?

Algo molhado entrou em contato com sua parte mais íntima e ela deixou escapar um gemido. David murmurou em seu ouvido:

— Sem perguntas.

Os movimentos continuaram por todo seu corpo, partindo do ventre e alcançando as coxas, seguindo das pernas para a cintura. Mais um pouco, e o clímax seria inevitável. Mas confiava em David. Confiava nele e em sua capacidade de provocar apenas sensações boas, de fazer somente o bem.

A substância entrou em contato novamente com o botão entre suas pernas e ela gritou, explodindo num orgasmo violento.

David continuou tocando seu corpo, acariciando, beijando, usando a boca e as mãos para despertá-la novamente. Momentos depois ele a penetrava, conduzindo-a novamente para o mais elevado patamar do desejo físico.

Kelli explodiu pela segunda vez, e David a acompanhou na viagem pelo mundo de sensações. Minutos mais tarde, quando conseguiu recuperar o ritmo normal da respiração, ele a livrou da venda para revelar a sala iluminada pela luz de muitas velas. Seu corpo estava pintado de preto e vermelho, como se fosse uma árvore de Natal humana.

— Feliz Natal Kelli — ele sussurrou. — Logo começaremos o trabalho de decoração do outro lado.

— Céus... Tem idéia do que está fazendo comigo?

— Não pode ser diferente do que você faz comigo. Agora vire-se e deixe o artista trabalhar.

Sensual e insaciável, ela obedeceu e ergueu o quadril, desejando provocá-lo como era provocada.

O som estridente do telefone invadiu a atmosfera de erotismo. Era difícil imaginar que o mundo continuava existindo do outro lado da porta.

Não atenda — David ordenou, imobilizando-a sobre as almofadas.

Outro ruído complementou o som anterior. Kelli identificou o som do celular.

— Tem razão, vamos ignorá-los — disse.

Mas David já se havia levantado para ir buscar o pequeno aparelho no bolso do casaco que deixara no canto da sala.

— Desculpe, Kell, mas tenho de atender. Minha cunhada está prestes a dar à luz.

Kelli ajoelhou-se e cobriu-se com a toalha.

— Alô? Sim... Mel está indo para o hospital? Uau! Não podiam ter escolhido momento melhor.

Kelli foi atender ao telefone, que continuava tocando.

— Alô?

A voz de Garth Hatfield soou furiosa do outro lado.

— O que David McCoy está fazendo aí?

— Papai! Onde você está?

— No carro. Na frente do seu prédio.

David vestiu o jeans e calçou os sapatos. Depois aproximou-se e cobriu o bocal do aparelho.

— Vista-se. Você vem comigo.

— Papai? Vamos ter de deixar essa conversa para mais tarde. Estamos a caminho do hospital.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO XI

David fingiu não notar o espanto provocado por sua entrada na sala de espera do hospital. Connor, Jake e Mitch, seus irmãos, e Michelle e Liz, suas cunhadas, olhavam para Kelli boquiabertos. À pequena Lui, sua sobrinha de quatro anos, filha adotiva de Jake, corria para abraçá-lo.

— Lui, quero que conheça Kelli. Kelli, esta é Lui.

— Olá, Kelli. Tio David, devia ter visto tia Melanie! Ela disse um bocado de palavrões a caminho daqui! Papai disse que ela não devia ter falado aquelas coisas, mas que estava com muita dor porque meu primo queria sair e... Ah, você sabe! É como colocar uma melancia em um buraco de ratos.

Todos riram. Michelle, mãe de Lui, aproximou-se e estendeu a mão para Kelli.

— Como vai? —Depois de apresentar-se e cumprimentá-la, ela levou a filha para o outro lado da sala. — Venha, Lui, você ainda não terminou aquele desenho para tia Melanie.

Os outros membros da família se apresentaram, menos Sean McCoy, que se mantinha afastado, embora não aparentasse estar aborrecido com a presença inesperada de Kelli Hatfield.

— Onde está Marc? — David quis saber.

— Lá embaixo — respondeu Mitch. — Andando de um lado para o outro pelo jardim.

— Por que ele não está aqui? — Kelli estranhou.

— É uma longa história. Marc tem um certo problema com hospitais, e Melanie deve ter ficado um pouco nervosa.

— Nervosa? — riu Connor. — Depois de tudo que disse e das ameaças que fez, não ficaria surpreso se ela expulsasse o covarde de casa.

Kelli ouvia a tudo sem prestar muita atenção. Estava nervosa. Não devia estar ali, no meio daquela família numerosa que vivia um momento tão especial.

— Posso conversar com você, David? — ela murmurou. Os dois foram ao corredor, onde ninguém poderia ouvi-los.

— O que foi?

— Não acha melhor eu ir embora?

— Não. Quero você aqui do meu lado.

— Mas...

— Kelli Marie, exijo saber o que está acontecendo aqui! Não precisava virar-se para saber que o tom autoritário pertencia a seu pai. Garth devia tê-los seguido.

— E então? Estou esperando por uma resposta, mocinha! Ela respirou fundo.

— David, será que pode esperar por mim na sala?

— É claro. Se precisar de alguma coisa...

— O que pode ter para oferecer a ela, McCoy? Kelli plantou as mãos no peito de David.

— Agora vá. Eu cuido de tudo por aqui. — Assim que o viu entrar na sala, ela encarou o pai. — Como se atreve a seguir meus passos?

— O que esperava que eu fizesse? Minha filha diz que está indo para o hospital e desliga o telefone, e eu devia ficar esperando em casa? Pensei que estivesse com algum problema! Passei os últimos quinze minutos procurando por você no pronto-socorro. Depois lembrei que estava com aquele... com McCoy, e presumi que pudesse ser algo relacionado aos... aquela família. Foi como descobri que uma... uma delas estava tendo bebê.

— A cunhada de David está na sala de parto, papai, e a criança é o primeiro neto biológico de Sean.

— E daí?

— Papai... Oh, está bem. O que quer aqui?

— Eu já disse.

— Não. Você explicou porque me seguiu, mas não disse o que fazia na porta do meu prédio às dez horas da noite.

Vermelho, Garth resmungou alguma coisa sem encará-la.

Kelli cruzou os braços, mas mudou de posição ao ver que a manga do suéter subira pelo braço, revelando parte da pintura sobre sua pele.

— Estou esperando, papai.

— Eu... vim pedir desculpas. Não devia ter interferido em sua relação com aquele... McCoy.

— David — ela corrigiu.

— Sim, David. Tenho pensado muito em tudo que aconteceu entre nós, e compreendi que a rivalidade com Hatfield vai muito além do fato de termos namorado a mesma mulher, a mãe de David. Eu... Bem, eu... Droga! Sou responsável pela morte da mãe dele.

Kelli sentiu o sangue gelar nas veias.

— O quê?

— Não desferi o golpe que a privou da vida, mas foi como se eu o houvesse executado pessoalmente. Não sei como explicar, mas... A verdade é que depois de todos os anos que vivi com sua mãe, ainda acreditava amar Kathryn Connor, a mãe de David. E acho que sua mãe sabia disso. Ou suspeitava. Ela nunca disse nada, mas sei que foi isso que a empurrou para os braços de outro homem.

Kelli tentava processar a enorme quantidade de informações. Não podia ser verdade. Lembrava-se de uma mulher delicada, dedicada à família, carinhosa com a filha e leal ao marido.

— Mamãe estava envolvida com outro homem quando foi assassinada?

— Tudo é muito complexo, Kelli. Por isso preferi evitar o assunto. Sinto-me culpado, entende? Só depois de ela ter morrido eu... eu me dei conta de quanto a amava. Passei anos pensando em outra mulher, quando minha alma gêmea estava bem ali, em minha cama. E eu a afastei de mim.

Se a mãe tivera um amante, esse homem era um suspeito de sua morte! Tinha de encontrá-lo!

— Papai, você... sabe com quem ela estava envolvida?

— Não. E nunca disse nada a ninguém. Pelo contrário. Fiz tudo que pude para impedir que os rapazes do distrito e da homicídios descobrissem sobre o romance. Não fui capaz de proteger sua mãe enquanto ela era viva, mas fiz de tudo para protegê-la depois de morta. Era melhor que todos acreditassem que ela havia sido assassinada por um maníaco qualquer, não por um amante.

— Meu Deus...

Ficaram em silêncio por alguns instantes, até que Garth aproximou-se da porta da sala de espera ocupada pelos McCoy.

— O que vai fazer?

— O que já devia ter feito há muito tempo. Vou pedir desculpas ao melhor amigo que já tive. Espero que não seja tarde demais.

David não sabia o que havia acontecido no corredor, mas Garth Hatfield e Sean conversavam em voz baixa num canto da sala, e Kelli estava pálida e abatida.

— Tudo bem? — ele perguntou num sussurro.

— Acho... que vou me recuperar — Kelli respondeu com tom cansado.

David se preparava para fazer mais perguntas, quando um médico surgiu na porta da sala.

— Sr. McCoy?

Cinco homens responderam ao mesmo tempo..

— Nós... vamos levar a Sra. McCoy para a sala de parto. Ela estava na ala pré-natal esperando a dilatação alcançar o ponto máximo, e agora o bebê está prestes a nascer.

— Obrigado — Mitch respondeu. Depois tirou o celular do bolso do paletó e pressionou uma tecla de discagem rápida. David olhou pela janela e viu Marc atendendo o dele. — Chegou a hora, papai. Se quer estar aqui para presenciar o grande evento, e sugiro que esteja, trate de superar esse seu medo estúpido e subir.

— Ei, ele vem vindo! — David gritou espantado.

— Não se entusiasme muito — recomendou Connor.

— Ele se aproximou da porta do prédio dezenas de vezes na última meia hora, mas sempre desiste de entrar.

— Vamos esperar que desta vez seja diferente. Kelli, quer tomar um café?

Ela assentiu.

— Alguém quer alguma coisa da cantina? Levando o numeroso pedido na memória, David já estava saindo da sala quando quase foi atropelado por Marc.

— Onde ela está? — ele perguntou, lembrando um animal enjaulado.

Liz correu para levá-lo à sala de parto.

— É impressionante... — Sean McCoy murmurou.

Kelli bebeu um pouco do café, mas não encontrou conforto no líquido quente. Queria estar em casa, escondida sob as cobertas, esperando o mundo fazer sentido novamente.

— Sente-se aqui — David sugeriu, mostrando uma mesa vazia.

— E o pedido dos seus irmãos?

— Eles podem esperar. Quero conversar com você.

— Se vai perguntar o que aconteceu entre meu pai e o seu...

— Não. Neste momento, isso é a última coisa que me preocupa.

Ela se sentou.

— O que é, então?

— Queria lhe dar o presente em sua casa, depois de...

— Ele olhou para o relógio. — Não faz mal. São onze e meia da noite. Ainda é Natal. — David deixou uma pequena caixa sobre a mesa, entre eles.

Kelli sentia vontade de correr.

— Kelli Marie Hatfield, quer se casar comigo? Não podia ser. Devia estar sonhando. Apavorada, ela se levantou e correu para a porta. David alcançou-a no corredor.

— Você é louco, McCoy? Não posso me casar com você. Pelo amor de Deus, eu nem o conheço!

— Não é exatamente a resposta que eu esperava ouvir.

— Não posso tratar desse assunto agora, McCoy. Com tudo que está acontecendo, não sei se algum dia estarei bem o bastante para falar disso. Não tome como pessoal, está bem?

— É claro que vou interpretar sua resposta como pessoal! Você acabou de rejeitar-me na frente de uma dezena de pessoas! O que espera que eu faça?

— Eu... Isso tudo é muito inesperado, David. Você é um evento inesperado.

— Tudo bem, vamos marcar o casamento para o ano que vem. Ou daqui a dois anos. Não me importo.

— Já disse que não posso discutir isso agora! Por que não deixa tudo como está?

— Porque não posso. Porque amo você, Kelli, e sei que quero passar o resto da vida à seu lado.

Kelli encarou-o e lutou contra as lágrimas. Odiava-o por estar dizendo aquelas palavras, por fazer seu coração cantar de alegria em um momento tão impróprio.

— Esse é seu problema, David. Tem um ego tão grande que não consegue enxergar além dele. Já decidiu o que quer, e empunha essa decisão como uma bandeira de guerra, enfrentando tudo e todos para realizar sua vontade. Tem sempre de ser o melhor. O mais competente. Precisa aprender que o segundo lugar não é dos fracassados. Pelo contrário. Às vezes é preciso recuar para sair vitorioso. Ser um herói implica em ceder o posto mais visado para alguém que precise dele. A vida nem sempre nos reserva o lugar mais alto do pódio, David.

— Não entendi. Acha que estou errado por querer ser correspondido em meu amor? Em esperar que me ponha acima de tudo, acima de sua missão? Acima do departamento, da carreira?

— Sim, David. Você está errado — Kelli confirmou chorando. — Completamente errado. — E afastou-se sem olhar para trás.

 

Kelli entrou no apartamento e, exausta, encostou-se na porta trancada.

— Kojak?

A porta da cozinha estava aberta. E ele não havia ido recebê-la, como fazia sempre. O que estava acontecendo ali?

E não havia virado o painel com os recortes sobre o assassinato de sua mãe antes de receber David?

Ainda estava olhando para o painel quando alguém bateu na porta. Assustada, ela se virou e olhou pelo visor. Nada. Uma guloseima foi passada pela fresta e rolou até perto da árvore de Natal.

— Vá embora, David! Não vou deixar você entrar!

— Precisamos conversar, Kelli. Não podemos deixar as coisas como estão.

— Lamento, mas nada do que diga poderá mudar a situação.

— Por favor, deixe-me entrar. Só quero ter certeza de que está bem.

— Estou ótima. Satisfeito agora?

— Quero ver para ter certeza.

— Mandarei uma foto amanhã cedo.

— Eu... Marc e Mel tiveram um menino. Não queria saber.

— Parabéns.

— Seu pai e o meu vão almoçar juntos amanhã.

— Que bom.

— Kelli, abra a porta! Vamos conversar como adultos que somos.

— Vá embora. Preciso ficar sozinha.

— Está bem, eu vou... mas voltarei amanhã, e depois de amanhã, e todos os dias, até concordar em falar comigo. Tente dormir um pouco.

Era terrível saber que estava fazendo David sofrer, mas não podia agir de outra maneira. Não depois de ter descoberto toda a verdade sobre o casamento dos pais, sobre a morte de sua mãe.

Cansada, ela tirou o casaco e os sapatos e seguiu para a cozinha arrastando os pés.

— Devia ter deixado seu namorado entrar, Kitty Kat.

Kelli virou-se sobressaltada. Jeremy Price estava encostado no batente da porta de seu quarto, e havia um sorriso estranho em seus lábios.

— Como entrou aqui?

— Fiz uma cópia da chave que tirei de sua bolsa na loja. Problemas entre você e o Casanova do distrito? Que pena... Um casal tão encantador!

— Então... sabe quem sou?

De repente percebia que ele não falava com o tom afeminado de antes.

— Sim, eu sei, Kelli Marie Hatfield, ou oficial Hatfield. Foi trabalhar em minha loja porque está atuando como agente disfarçada em uma força tarefa-especial.

O homem não era homossexual. Apenas fingia ser para encobrir outras atividades. Como a do Assassino de Washington.

Kelli olhou em volta pensando em usar um móvel como arma, já que o revólver estava na gaveta do criado-mudo em seu quarto, e só então se deu conta de que o cenário armado por David ainda estava no mesmo lugar, entre o sofá e as duas poltronas. E ainda tinha o corpo pintado sob as roupas respeitáveis.

— Já deve ter percebido que corresponde ao perfil das vítimas, não é?

Aí estava. A confissão do assassino. A adrenalina corria por suas veias. Corria o risco de ser a próxima vítima do maníaco, mas lutaria até o fim para ser a responsável pelo fim de sua carreira.

— É muita sorte — Jeremy prosseguiu. — Quando a vi pela primeira vez, pensei estar diante dela. Mas Loretta jamais usaria aquelas roupas vulgares.

Kelli estremeceu.

— Cheguei a mencioná-la, mas você devia estar distraída com outra coisa.

David. Estivera pensando em David. David!

E se ele ainda estivesse no corredor? Se voltasse a procurá-la naquela noite?

— Se está pensando em gritar, não perca tempo. Vi pela janela do seu quarto quando o Casanova foi embora.

Precisava pensar num jeito de chegar ao quarto.

— Está dizendo que conheceu minha mãe, Jeremy?

— Se a conheci? Oh, sim, e de uma maneira muito... próxima, Kitty Kat. Sua doce e inocente mãezinha traiu os sagrados laços do casamento e se envolveu com um pervertido sexual.

Kelli respirou fundo para superar a náusea. Virou o rosto, e só então viu as patas de Kojak estendidas atrás da mesa da sala de jantar. Imóveis.

— Naquela época eu não era o que sou hoje, Kelli. Possuía uma livraria respeitável em Georgetown perto da casa de sua família, e foi assim que conheci sua mãe. Loretta ia comprar livros para você.

— Você a matou!

— Eu a amava! — ele gritou furioso.

— Você a matou, Jeremy! Aqui estão as evidências — ela apontou para o quadro onde mantinha os recortes. Descontrolada, bateu contra a cortiça e apontou para a foto onde o ferimento na cabeça de Loretta podia ser visto. — Você a espancou até a morte!

— Sim, eu a espanquei. O que podia ter feito? Sua mãe queria me abandonar. Dizia amar seu pai e querer ser a mãe de que toda filha se orgulharia.

— E por isso a matou? Por que ela não queria mais dormir com você?

— Era mais que sexo! Era amor. E eu não a matei. Foi um acidente. Estávamos brigando... — Ele andava de um lado para o outro como uma fera enjaulada. — Eu a agredi. Uma vez... duas... Ela correu para o banheiro, a única porta que possuía chave em sua casa. Eu a alcancei, e ela... ela... Ela escorreu em alguma coisa. Um brinquedo de borracha. Um pato! Sim, foi um pato. Não consegui segurá-la, e ela caiu e bateu a cabeça na banheira. Céus, todo aquele sangue...

Não queria ouvir mais nada, mas precisava saber toda a verdade.

— Tudo bem, Jeremy, eu acredito em você. Mesmo assim... como pôde passar de um simples acidente aos crimes horrendos que já cometeu? De atos sexuais depravados a estupro... e assassinato?

— Eu não queria. Nunca amei ninguém como amei sua mãe. Procurava mulheres parecidas com ela, mas nunca consegui repetir a mesma paixão. E precisava puni-la. Tinha de fazê-la pagar pelo que havia feito comigo.

— Aterrorizando as mulheres que eram parecidas com ela.

Jeremy caminhava de um lado para o outro e segurava a cabeça entre as mãos. Kelli olhou em volta, tentando encontrar alguma coisa que pudesse usar como arma.

Havia um abajur de ferro sobre o armário da sala, e ela o puxou com força para arrancá-lo da tomada. Era inútil. Mas o fio era comprido, e ela o levantou para acertar a cabeça do assassino. Com toda a força dos braços, desferiu o golpe e ouviu o ruído de ossos se partindo.

Levantou o abajur para um segundo golpe, mas Jeremy foi mais rápido. Um grito feroz ameaçou ensurdecê-la, e ele a lançou contra a parede com a força do próprio corpo. O abajur que arrancara da tomada provocara um curto-circuito, e chamas azuladas lambiam o tecido que David utilizara para compor o cenário erótico. — Meu Deus...

Jeremy estava dobrado para si mesmo, segurando a cabeça ensangüentada. Kelli não conseguia mover-se. O impacto contra a parede devia ter fraturado algumas costelas. Um gemido abafado alcançou seus ouvidos, e ela viu Kojak movendo-se com dificuldade na direção do quarto. Ferido, ele caminhava com dificuldade e gania de dor. Animada por ver o velho amigo vivo, embora em péssima forma, Kelli apoiou-se sobre as mãos e os joelhos e arrastou-se, a exemplo do cão. Jeremy tossia e gritava de dor. A fumaça ia dominando todo o apartamento, mas no quarto a situação era melhor. Estava quase alcançando o criado-mudo onde mantinha a arma, quando Jeremy a agarrou pelo braço e arremessou-a contra a porta, que se fechou com o impacto. Não sairia dali com vida.

De costas para a janela, ele apontou a arma para sua cabeça. Kelli compreendeu que todo o esforço havia sido inútil. Mesmo que houvesse alcançado o criado-mudo, não teria encontrado o revólver, porque ele estava em poder de Jeremy desde o início.

— Tinha a intenção de divertir-me com você, Kitty Kat. Queria saber se a filha era tão deliciosa quanto a mãe. Mas você estragou tudo.

— Foi você quem provocou o incêndio, seu idiota maluco! Vá em frente! Atire de uma vez! — A janela entreaberta deixava escapar colunas de fumaça escura para, o ar gelado da noite de inverno. — Qual é o problema? Quando tem uma mulher indefesa para estuprar e matar, é o machão do ano! Mas com uma arma na mão, não passa de um covarde impotente. Escolheu o disfarce perfeito, Jeremy! Você não passa de um homossexual que não tem coragem para assumir sua preferência. — Impotente? Ora, sua...

A janela se abriu. Algo se moveu atrás dele. Alguém. David!

Ele subira pela escada de incêndio. Deus abençoasse sua persistência!

Jeremy virou-se e atirou no mesmo instante em que David atingiu seu braço com um golpe violento. A bala perfurou a parede a poucos centímetros da cabeça de Kelli.

— Você ouviu o que ela disse. — David segurou-o pelos ombros e puxou-o contra o joelho erguido. — Impotente.

Com facilidade, desarmou o bandido e jogou o revólver para Kelli.

— Faça o que tem de fazer. Estou aqui para lhe dar cobertura.

Kelli apontou para a cabeça de Jeremy. Depois para o coração. No último instante, mudou de idéia e disparou contra o joelho do assassino, que caiu com um grito de dor.

Kelli tinha três costelas fraturadas, e uma delas ameaçava perfurar seu pulmão esquerdo. Mas a dor física não era nada comparada ao sofrimento emocional. Um dia inteiro havia se passado desde que David a carregara pela escada de incêndio para a calçada, onde aguardara por socorro. Kojak também fora salvo, graças à coragem de David McCoy. Jeremy Price estava preso e seria julgado em breve. O mais provável era que fosse condenado à prisão perpétua por todos os crimes que cometera.

Kelli olhou pela janela do quarto de hospital. Em nenhum relatório havia mencionado o envolvimento de Jeremy com sua mãe, e o incêndio queimara todas as evidências que havia acumulado ao longo dos anos. Não contara nem mesmo ao pai sobre Jeremy... ainda. Mas, eventualmente, teria de falar. Mais tarde... quando superasse a dor provocada pela ausência de David. — Oh, por que não aceitara sua proposta de casamento, se o amava tanto? E por que se deixara dominar pela ambição profissional? O progresso era importante, sem dúvida, mas já não se sentia inclinada a viver por ele.

Não. Queria viver por David. Para David. Com David. Mas era tarde demais. Depois de salvá-la do incêndio na noite anterior, ele simplesmente desaparecera.

A porta se abriu e uma enfermeira entrou no quarto.

— Como se sente?

— Bem... acho.

— Ótimo. Nesse caso, tenho uma visita para você. — Ela voltou à porta e puxou um carrinho coberto por uma manta azul.

— Enfermeira, deve estar cometendo algum engano. Eu não tive...

— Pode apostar que não há engano algum. Serei demitida se meu supervisor souber disso, mas quem pode resistir àquele sorriso?

A jovem levantou o cobertor, e Kojak apareceu do interior do carrinho.

— Meu amor! — Kelli exclamou emocionada, tentando mover-se, apesar dos quinze pontos na altura da cintura.

Kojak tinha curativos em todo o corpo, mas estava bem-disposto e feliz.

— Mas quem... Quero dizer, quem o trouxe?

A enfermeira saiu, e no lugar dela entrou David McCoy.

— Não queira nem saber quanto cobrou o veterinário. E é melhor não perguntar sobre o apartamento.

— Pelo menos estamos vivos — ela sorriu emocionada.

— Graças a Deus! Como se sente?

— Tenho a sensação de ter estado sob um trem em alta velocidade, mas vou sobreviver. E você... é o remédio que o médico receitou.

— Eu?

— Sim, você. Quero dizer que... Bem, quanto àquela sua proposta... A resposta é sim.

— Sim? Oh... sim. Sim, sim! — David sorria e pulava pelo quarto como uma criança que acabara de ganhar um presente.

— Oh, Kelli! Vamos nos casar na primavera! Sim, daqui a três meses, com as flores de cerejeira se abrirem e os pássaros cantando... Você me ama? De verdade?

— De verdade, David. Amo você como nunca pensei que poderia amar alguém.

As batidas na porta precederam a entrada dos cinco McCoy e duas das mulheres da família. Garth Hatfield também fazia parte do grupo.

— Vamos nos casar — David anunciou sem rodeios. Depois, sem nenhuma cerimônia, ele empurrou todos os visitantes para fora do quarto, fechou a porta e correu para a cama.

— Onde estávamos? — perguntou num sussurro, exibindo aquele sorriso indecente que sempre a inflamava.

— Espere só até eu me recuperar, McCoy. Só mais alguns dias, e prometo que vou lhe mostrar o local exato onde paramos.

 

                                                                                 Tori Carrington  

 

                      

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