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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR EM ALTO MAR / Heinz G. Konsalik
AMOR EM ALTO MAR / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AMOR EM ALTO MAR

 

O cego foi o primeiro a saltar do autocarro. A princípio viu-se somente sua bengala branca, a porta automática abriu-se devagar e ruidosamente, em seguida o bastão apalpou através da abertura, depois apareceu uma cabeça oblonga, com cabelos castanhos curtos e óculos de lentes grossas e de cor escura, que virou-se à esquerda e à direita, como que espreitando, para então desaparecer mais uma vez no interior do autocarro, antes que o sujeito saísse de vez do veículo.

Os outros passageiros esperaram pacientes no autocarro todo equipado com condicionadores de ar e que cheirava a limpeza, até que o cego saltasse conduzido por uma moça, tacteando com cuidado o desconhecido à sua frente. As pessoas acostumaram-se e conversaram o bastante sobre ele no longo voo de Frankfurt a São Francisco, com escala em Miami. Mesmo voando na primeira classe, na certa para não importunar ninguém, ele foi, nesse meio tempo, um deles. E iria conviver com eles durante semanas em um navio de duzentos metros de comprimento e vinte e oito de largura, com onze conveses e cerca de seiscentos passageiros. Um hotel de luxo flutuante atravessando o Pacífico de um lado para o outro.

- O que a gente se pergunta mesmo - um passageiro sussurrou para sua mulher durante o voo - é o que um homem assim aproveita dessa viagem. Gasta uma fortuna... e não vê coisa alguma.

 - A acompanhante, claro que uma enfermeira, explicará tudo para ele.

 A mulher bocejou. Já faziam seis horas que estavam no ar, haviam bebido champanhe, comido presunto de Praga com couve-de-bruxelas, degustado como sobremesa um delicioso creme e, a seguir, um café moca com conhaque ou licor e, nesse momento, estavam na fase da modorra após a comida.

 - Além disso - opinou a mulher - isso não nos diz respeito.

 - É bem verdade que ele poderá ouvir e cheirar tudo... mas gastar muitos milhares com isso?

- Ernest, feche os olhos e durma um pouco.

- Sim, e ele tem o sol, o calor, o ar fresco do mar... Mesmo assim não seria o meu caso. Que tipo de profissão pode ter um sujeito assim?

- Vá até lá e pergunte a ele! - A mulher reclinara bem para trás o recosto do assento e preparava-se para tirar um cochilo. - Em todo o caso ele tem bastante dinheiro.

Após a decolagem em Frankfurt, outros passageiros também falaram sobre o cego na parte da frente do Jumbo, até acostumarem-se com sua presença entre eles. Agora, em São Francisco, as pessoas apresentavam-se amáveis esperando que ele saltasse do autocarro. Mas depois acabou-se a amabilidade no amplo e alto saguão do píer 7. Os novos passageiros do NM Atlantis apressaram-se como se fossem tomar de assalto uma montanha, passando pelo cego com as bagagens de mão, estojos fotográficos e sacolas, a fim de, passando pela escada, ocupar o navio branco, orgulhosamente embandeirado.

 

Um pequeno batalhão de comissários esperava por eles no píer do convés. O comissário-chefe - ali chamado de director de hotel - viu rostos conhecidos e cumprimentou uns e outros; três oficiais de uniforme branco formavam um impressionante Comité de recepção; o comissário-chefe apertou mãos, até que a onda humana também passasse por ele.

Os passageiros dividiram-se velozmente em todas as direcções, nas partes de cima e debaixo do navio. Aqueles que já conheciam o NM Atlantis, os repetidores, os fiéis passageiros de várias viagens, apressaram-se em direcção aos seus lugares. Em contrapartida, os novos mostraram suas passagens, sendo cada um acompanhado por um comissário até a cabine que iria ser seu lar durante três, quatro ou cinco semanas.

O segundo autocarro parou diante do saguão do píer 7. Nesse dia subiriam a bordo até São Francisco trezentos e quarenta novos passageiros, cheios de expectativa para conhecer a vastidão infinita dos mares do sul.

O NM Atlantis tomaria uma rota até aqui não seguida por nenhum navio de cruzeiro, com ilhas cujos nomes seriam ouvidos pela primeira vez, a não ser que a pessoa fosse um geógrafo. Trezentas pessoas da Europa; sem contar os americanos que viajavam sozinhos. A relação de passageiros impressa na gráfica de bordo continha muitos nomes conhecidos e o comandante Teyendorf suspirara algumas vezes durante a leitura.

 - Meu Deus, ela está de novo a bordo? - gritara ele apontando para um nome. - Não se podia impedir isso, Sr. Riemke?

 Gehard Riemke, o "director de hotel", encolheu os ombros.

- Ela paga, portanto não podemos impedir, comandante. Que motivo daríamos para recusar-lhe a viagem?

 - Muito simples, está tudo ocupado! Tudo reservado!

- Ela sabe muito bem que não é este o caso. Sempre reservou a suíte 004, a Goethe, com um ano de antecedência! Então, não podemos fazer nada.

- Podia-se argumentar: a senhora põe em perigo a moral do navio.

- Senhor comandante! - Riemke torceu a boca com um ar sarcástico. - Se partíssemos desse ponto de vista, então deveríamos desembarcar vinte por cento dos passageiros durante a viagem... no mínimo! Além do que, agora essa dama está com setenta e seis anos!

- Vamos aguardar! - Teyendorf colocou a lista de passageiros em cima da escrivaninha e foi para a extremidade da ponte a estibordo. Dali ele podia abranger com a vista todo o lado do navio e vislumbrar o passadiço. Outros passageiros apressavam-se sob as gigantescas janelas do saguão do píer 7, investindo em direcção ao barco.

O cego do autocarro caminhou devagar, tacteando com a bengala branca o caminho à sua frente, embora a moça estivesse de braço dado com ele; parou diante de uma loja de flores e levantou o nariz farejando.

 - Está bem assim? - perguntou o cego em voz baixa.

Uma pergunta completamente incompreensível.

 - Muito bem, Sr. Dabrowski - respondeu a moça também em voz baixa.

 - Então, adiante!

Chegaram à escada e subiram os degraus tacteando. Na entrada do navio, várias mãos esticaram-se solícitas em direcção a eles.

 

- Obrigado - disse Dabrowski. - Obrigado. Cabina 136 para mim e 313 para a enfermeira Beate. Não creiam que eu seja uma pessoa completamente desamparada. Em três dias estarei conhecendo o barco tanto quanto os senhores. Aqui, nós estamos numa espécie de saguão. Posso ouvi-lo pelo som, pelo eco. Por favor, levem-nos às nossas cabines...

Tão logo Dabrowski ficou sozinho em sua cabine, ele tirou o casaco, atirou-o em cima da cama e pegou a mala de couro. O comissário encontrava-se com a enfermeira Beate a caminho do convés Atlantis, onde situava-se a 313.

- O Sr. Dabrowski é totalmente cego? - perguntou.

- Totalmente.

- Então a senhora precisa explicar para ele tudo que vê?

- Aliás é por isso que posso viajar junto. - As faces de Beate brilharam um pouco febris. - Minha primeira grande viagem marítima. Já estive duas vezes em Helgoland, mas aí aproveitei pouco. Deus, como fiquei enjoada! Vi tudo como que através de uma névoa.

- Eu também.

- O senhor? Um marinheiro? Fica enjoado?

 - Em Helgoland, sempre! Conheço muita gente que viaja por todos os mares... mas quando partem de Cuxhaven para Helgoland, ficam de rosto verde. A senhorita verá que tudo é diferente aqui no Pacífico. Nesta estação do ano o oceano Pacífico é realmente tranquilo. Com algumas excepções, é claro. Elas sempre existem.

 - E somos justamente nós que viveremos essas excepções, não é mesmo?

 - Olha, pode ser que haja algum balanço na viagem de Acapulco até o Panamá, mas nos daremos bem! A propósito, eu me chamo Nobert.

 - O senhor é o comissário da minha cabine?

 - Não. Em geral fico no bar Atlantis. Todos nós ajudamos somente no embarque. Não sei quem é o encarregado de seu corredor.

Pararam diante do número 313, a porta estava aberta, no interior da cabine as luzes ardiam. O ar-condicionado zumbia de modo quase imperceptível. Soava uma música baixa no rádio montado na mesinha-de-cabeceira.

- A bagagem estará a bordo em cerca de uma hora - disse o comissário Nobert. - Em seguida, nós as entregamos nas cabines - Desejo-lhe que se divirta a bordo... se é que cuidar de um cego pode ser chamado de diversão.

- Para mim é. - Ela sentou-se na cadeira atrás da mesa e esticou os braços. - O Sr. Dabrowski é um paciente agradável. Ele faz muitas coisas sozinho. Terei muito tempo livre.

 - Fico contente em ouvi-lo. - Ele fez uma pequena vénia e sorriu radiante. Uma moça nada má, pensou ele, um especialista. Um comissário que já participava de viagens de luxo havia cinco anos, tinha lá sua experiência. Não tremendamente linda, mas e daí? A maioria das mulheres bonitas é presunçosa, mas a média é grata por qualquer coisa.

Quando se pode optar entre uma mulher de classe, atrás da qual os homens correm como cães de caça, e uma moça de beleza mediana que muitas vezes não é notada... então escolhe-se a mediana. Mais tarde você sentirá a alegria dela nas marcas das costas.

- Até mais tarde - disse Beate respondendo com um sorriso contido.

- O bar Atlantis! Atrás do solário.

- Encontrarei.

 

Nobert fechou a porta e voltou apressado ao convés Pacífico, a fim de levar outros passageiros às suas cabines. Um caso de sorte essa pequena, pensou ele cheio de alegria antecipada enquanto levava a mala de uma velha senhora para a cabina do convés superior. Haverá poucas jovens a bordo. Essa vai ser outra vez uma viagem na qual a média de idade dos passageiros situa-se entre os sessenta e setenta anos... afinal de contas, quem pode bancar tal luxo? Haverá algumas filhas muito bem vigiadas, mas elas não são para nós, os comissários. Outros já estão prontos para elas. Os jovens oficiais, os engenheiros de bordo. Os gatos de serviço. Um comissário de bar está em má situação, à noite ele fica entre suas garrafas.

Beate esperara até que Nobert fechasse a porta, depois pegou o telefone e discou o número da cabina 136. Dabrowski atendeu.

- Tudo em ordem? - perguntou ela.

- Tudo. Nesse momento estou bebendo um bom uísque. Meu comissário de cabina chama-se Volker. É evidente que sou seu primeiro cego. Ele me perguntou se vai precisar vestir-me pelas manhãs. - Dabrowski deu uma risada seca. - Eu respondi que não, para isso estou acompanhado de uma simpática moça! Ele deve encarar-me como um milionário totalmente pirado. Será óptimo que isso se espalhe a bordo. Como foi a coisa para seu lado, Beate?

- Já fisguei o comissário do bar Atlantis.

- Genial! A propósito, nós nos sentamos à mesa C 8, bem defronte à mesa do comandante. Um lugar muito bom. Podem-se ver muitas coisas dali.

Parece gozado que um cego diga uma coisa dessas, mas Dabrowski divertia-se com isso. No fundo, ele era uma pessoa de humor.

Quando o comissário Volker levou a garrafa de uísque e o copo com gelo, Dabrowski disse bem despreocupado:

- Excelente. Um Chiavas de quinze anos! - e, ao supor que Volker encarava-o espantado, acrescentou: - Sinto o cheiro, meu caro. Se você fosse cego, também vivenciaria o mundo através do nariz e dos ouvidos, sobretudo dos ouvidos! A audição é o decisivo. Assim, por exemplo, você está usando sapatos novos, Volker. Posso ouvir, as solas novas ainda rangem ao andar. Ainda não são suficientemente flexíveis.

Volker saiu da cabina desconcertado. Depois, na despensa do convés, disse para seus colegas:

 - Mas que sujeito eu tenho na 136! Cego, mas ouve as pulgas tossirem. Reconhece o uísque pelo cheiro.

 - Idiotice. Isso não existe. - O comissário do corredor de estibordo, chamado de "Franz, a hélice" por causa do bigode longo e saliente, fez um sinal de negação como se fosse para uma piada de mau gosto.

- Da próxima vez apresente um uísque alemão para ele, aí você vai ver que só foi um acaso..

 - O que você está fazendo, Beate? - perguntou Dabrowski ao telefone. Ele estava sentado junto à enorme janela dividida em dois e, posto que a cabina situava-se a bombordo, podia-se ver o píer 8 e o resto do porto... desde que se pudesse enxergar. Dabrowski chegara a retirar os óculos escuros e olhava pela janela como se seus olhos estivessem plenamente em ordem.

 - Estou esperando a bagagem - respondeu Beate.

 - Isso ainda pode levar algum tempo. Vamos passear no tombadilho?

 - Se você quiser.

 

 - Óptimo. Vou indo em sua direcção no foyer. Até daqui a pouco, Beate. - Ele desligou, pegou um gravador e falou lenta e sublinhadamente:

- A bordo. Nenhum acontecimento especial. Horário: 16:22 h.

Continuou sendo segredo seu como ele foi capaz de dizer uma hora tão precisa assim. Cinco minutos depois, desceu o corredor de cabinas tacteando com a bengala branca em direcção à tolda, passando pelo salão de cabeleireiro e pela loja envidraçada de um joalheiro internacional. Aqui ele parou um instante, bateu no vidro como que compondo na cabeça um mapa de orientação e depois seguiu adiante com passos miúdos e cautelosos. Os passageiros que vinham em sua direcção abriam caminho pressionando-se contra a outra parede do corredor.

 - Bom dia - disse Dabrowski algumas vezes com a maior das amabilidades. - Bom dia. Muito obrigado!

 Os passageiros seguiam-no com a vista, em parte espantados, em parte compadecidos. Sim senhor, que audição têm os cegos! E que faro! Como o de um animal selvagem. Eles parecem farejar o mundo exterior. Mas mesmo assim, fazer uma viagem dessas... no fundo é uma idiotice. Mesmo que se lhe explique e descreva tudo, como poderá ele compreender a aparência da ilha de Páscoa ou de Bora Bora, as ilhas mais lindas do mundo.

Ou o delta do rio Guayas que se adentra para ir a Guaiaquil, cercado de manquejais flutuantes. Pode-se explicar tudo, mas jamais se substituir a experiência da visão.

 Os passageiros respondiam ao cumprimento. Um homem com sede de viver. Todo cautela. Mais tarde devíamos tomar umas e outras por ainda sermos tão razoavelmente saudáveis...

 Beate foi em sua direcção no foyer, deu-lhe o braço e juntos subiram a escada para o tombadilho. Quando ela abriu a porta de vidro, recebeu o ar quente qual nuvem densa. O gigantesco barco tinha um agradável ar-condicionado. Mais tarde isso se modificaria nos mares do Sul - os repetidores da viagem sabiam - quando nem mesmo o melhor ar-condicionado conseguia refrescar o navio e os chineses da lavanderia lá embaixo tinham dificuldade para impedir que as coisas de lã se enredassem por falta de água fria. Então, os gigantescos agregados de esfriamento não conseguiam. Além disso, não se podia responsabilizar mais o consumo de energia.

Mas isso ainda estava bem longe. Ali era apenas São Francisco, o início da viagem... o quarto autocarro trouxe do aeroporto outros passageiros que subiam a bordo de assalto.

 Dabrowski recostou-se na balaustrada e deixou que Beate contasse o que via. Nesse momento, entrou marchando no terraço do prédio uma orquestra, todos de uniforme vermelho e branco e capacetes adornados com penas. As câmaras de televisão foram postas em posição, para filmar a partida do NM Atlantis.

O comandante Horst Teyendorf saiu da ponte de comando na companhia do primeiro-oficial e, da extremidade da proa, olhou para a escada.

As roldanas das amarras foram averiguadas na parte anterior e posterior da tolda, o oficial de segurança informou por rádio à ponte estar tudo pronto para a partida. No terraço do terreno do píer, a orquestra começou a tocar uma marcha militar da marinha americana.

 - Pelo amor de Deus, lá está ela! - gritou Teyendorf de repente. - Hollywood em seus melhores dias!

 

 Ela já era vista através dos grossos vidros do saguão do píer: uma figura de estatura mediana, não tão exuberante, mas cheia de curvas, com um vestido de seda de flores enormes - papoulas que se assemelhavam a manchas de catchup - sapatos de verniz branco e de salto alto, nos quais ela andava dançando como se estivesse se movendo ao som de uma música caprichosa. Aliás, não se viu a cabeça na mesma hora. Estava oculta por um gigantesco chapéu branco revestido de renda, guarnecido com rosas vermelhas e lilases brancos de plástico. Enquanto caminhava com passinhos miúdos, balançava na mão direita uma sombrinha de renda branca; com a esquerda, acenava para todos os lados, como se a estivessem aplaudindo.

Nesse momento, quando ela levantou a cabeça para olhar a lateral branca do navio, pode-se ver também seu rosto: como uma máscara, sem nenhuma ruguinha, coberto com muito ruge, lábios vermelhos fogo, um nariz estreito como que sem osso, olhos que pareciam de gato depois de incontáveis liftings e sobrancelhas castanhas. Acima, saindo por baixo do chapéu, um emaranhado de cachos negros que, de um modo engraçado, enroscavam-se em cima das orelhas. Era seguida por um enorme empregado negro de libré branca empurrando um carrinho achatado cheio de bagagem.

Os funcionários da aduana atrás da mesa diante da escada e os três polícias de guarda arreganharam-lhe um sorriso. A mulher disse qualquer coisa para eles e uma risada alta retumbou pelo saguão.

- É assim que deve ser uma punição divina! - disse Teyendorf cheio de amargura na voz. - Isso supera tudo dela a que me acostumei até agora.

 - Gostaria de ter a aparência dela quando for velho! - Willi Kempen, o primeiro-condutor, levou o binóculo aos olhos e enfocou a velha senhora. Nesse momento, teve ampliados o rosto e a aba do chapéu. Era a primeira vez que via Anne White. Até então, sempre estivera de férias quando ela encontrava-se a bordo. E tanto mais as pessoas contavam-lhe sobre ela, sobre aquela lendária viva conhecida em todos os navios de cruzeiro, fossem de bandeira americana, inglesa, norueguesa, russa, italiana, grega ou alemã. Agora era a vez da alemã de novo. - Enorme! - disse Willi Kempen.

Teyendorf olhou de soslaio para seu primeiro condutor.

- Eu não sabia que você era perverso, Kempen - suspirou ele. - Mas em seu lugar, eu não faria nem por dez mil dólares...

 - Senhor comandante!

 - Você fica logo horrorizado quando faço uma piada.

 - Porque em geral esse não é seu estilo, senhor comandante.

 - Certíssimo. Mas quando vejo Anne White, fico fora de

mim! Estão todos a bordo?

- Vou averiguar.

De Riemke, o director de hotel, chegou a informação que ainda faltavam três americanos, um italiano e um francês, que viajavam em particular, e um dos astros da viagem, o cantor de câmara Franco Rieti. Rieti chegara dois dias antes e ainda dera uma apresentação na pedra de São Francisco. Como Canio em Bajazzo. Os jornais escreveram que a plateia aplaudiu durante exactos dezassete segundos. Depois disso, Rieti começou a tossir e andar de um lado para o outro com um cachecol de lã enrolado

no pescoço. As cordas vocais são especialmente a coisa mais sensível nos homens.

 

 - Partiremos na hora, Kempen - disse Teyendorf voltando para a casa do leme. - Todos tiveram tempo de sobra para chegar a bordo na hora.

 Ele tornou a olhar para o relógio, balançou a cabeça em silêncio e saiu da ponte. Kempen seguiu-o com a vista. O guarda, um segundo-oficial, desligou o aparelho de rádio pelo qual acabara de falar com o oficial de segurança da tolda dianteira; estava tudo pronto para a partida.

 - O velho tornou a roer unha hoje, não? - disse ele. - Há pouco me deu uma bronca porque o quebre estava enviesado. Qual é o problema?

 - Anne White chegou a bordo.

- Para a tripulação é uma grande alegria! Eles vão estar de bolsos cheios no desembarque. E o velho vai ficar de cabeça cheia. Na última vez houve duas brigas de faca no alojamento da tripulação, quase um assassinato. Claro que os passageiros não notaram coisa alguma e ninguém conseguiu provar uma ligação com a Sra. White... mas todos aqui sabem qual foi o motivo: quinhentos dólares!

- Essa Anne White deve ser maluca.

- Como queira. - O segundo-oficial arreganhou um sorriso largo e tornou a aproximar-se da gigantesca janela panorâmica da ponte. - Em todo o caso, ela tem um conteúdo hormonal digno de causar inveja a qualquer mulher de trinta anos.

 Nesse momento, o director de hotel Riemke recebia a milionária americana no saguão do convés Pacífico. A mulher enroscou-se no pescoço dele, beijou-o e gritou com voz ressonante:

 - Ah, como me alegro por estar aqui de novo! Não!, mas tantos comissários novos e elegantes! E Rudi está de novo a bordo. Abrace-me, Rudi!

 Seu alemão quase não tinha sotaque, sua falta de recato era arrebatadora. Rudi Pfannenstiel, o comissário-chefe, estava apartado, retraído, mas avançou obediente, abraçou Anne White e deixou-se beijar. Seus comissários sorriram encantados. Era raro ver-se Pfannenstiel, o ditador, perder a calma.

 Em segundo plano, ao lado de um dos oficiais, estava postado um homem baixo e quase delicado, de terno azul claro, observando a entrada da Sra. White com perplexidade evidente. Seu rosto ascético, emoldurado por cabelos castanhos com mechas grisalhas, pareceu agora de uma certa forma desconcertado.

 - Pronto para filmar - ele comentou a cena do beijo. - Quem é essa aí?

 - O senhor não conhece a Sra. White, padre? - o oficial olhou com desprezo o religioso católico de bordo, que embarcara somente havia uma hora. O padre jesuíta Heinrich Brause, destacado pela ordem para os cuidados espirituais do barco, um pastor de todos os mares, desapontou-o.

 - Isso é ela? - o padre Brause coçou a aba do nariz. - Já ouvi falar bastante dela. Mas nunca tive a alegria de viajar ao seu lado num barco.

- Alegria, padre? - o oficial ostentou um sorriso enviesado.

- Sim. Porei a Sra. White debaixo de minha asa.

- Isso demoraria pelo menos meio ano.

- Você não conhece a obstinação da Igreja. - O padre Brause respondeu com um sorriso. Era conhecido pelos provérbios marcantes e sarcásticos. - Além disso sou jesuíta. Até hoje quase ninguém conseguiu livrar-se de um jesuíta...

 

 Na suíte Goethe, a de número 004, esperavam pela Sra. White um gigantesco buque de flores e uma cuba de gelo com champanhe. Seu comissário de cabina, Josef Kraxler, um bávaro em quem o mar estava tão metido na medula que, durante as férias na cidade natal, deitava-se no pasto, encarava as encostas das montanhas e ficava sonhando com o Havaí e o Taiti, cumprimentou-a com um:

 - Ora, ora, cá está de novo... - e suportou com galhardia o beijo de saudação da mulher.

 - Você ficou mais gordo ainda! - disse Anne White contemplando-o com um olhar de desaprovação. - Sabe, não gosto de homens gordos. Roger White também era uma bola de gordura.

- Bem, sabe como é, eu preciso proteger-me de alguma maneira - disse Kraxler à vontade. - Como ouvi dizer que a senhora vinha, comi como um leão.

 - Seu vigarista! - Anne White tirou da cabeça o gigantesco chapéu de renda, sacudiu a peruca de cachos, desabou sobre uma poltrona funda e esticou bem as pernas. Suíte 004, um de seus muitos "lares".

- Abre a garrafa, Josef, estou ressecada.

 

Os últimos passageiros subiram a bordo, os americanos que faltavam, um italiano, proprietário de uma vinícola, chamado Artur Tatarani, o negociante de imóveis François de Angeli e, por último, o cantor de música de câmara Franco Rieti, agasalhado, apesar do dia quente, como se estivesse partindo para uma viagem à Gronelândia.

 O director de hotel Riemke suspirou satisfeito e comunicou à ponte:

 - Todos a bordo. Ninguém a menos nem a mais. Podemos partir!

 Na verdade, isso era um grande erro. Na cabina interior 213 encontravam-se dois passageiros, apesar de tratar-se de uma cabina individual: os gémeos univitelinos Herbert e Hans Fehringer. Eram um desses raros pares de gémeos que não se podem distinguir de maneira alguma. Mesmo entre os gémeos espantosamente semelhantes existem, em geral, minúsculas diferenças com as quais eles podem ser separados - uma nódoa no ombro, uma modificação no corte de cabelo, alguma cicatriz em algum lugar, um sorriso diferente, uma dessemelhança no andar; isso sem falar nas diferenças masculinas, desde que se tenha o privilégio de vê-los desnudos lado a lado... No caso de Herbert e Hans Fehringer não se podia constatar tal coisa. Os próprios médicos se desesperavam, a coisa já havia sido testada uma vez com alegria maldosa; os irmãos tinham a mesma pressão sanguínea e inclusive o mesmo pulso. Era-se obrigado a simplesmente acreditar, quando eles afirmavam, fosse falso ou correcto: "Eu sou Hans!" Mais tarde, até mesmo o pai fora levado a cometer engano e, tudo, jamais.

 Os gémeos Fehringer não haviam sido abençoados, pelo contrário. Eles negociavam em um carro com óculos acidentados, consertavam-nos e depois ofereciam-nos como garantia.

 Isso dava para viver, mas não dava para financiar uma viagem de longa distância dos dois.

 

 O truque nesses passeios pela vastidão do mundo era sempre o mesmo: um pagava a passagem, o outro simplesmente acompanhava. Haviam desenvolvido um método assombrosamente simples, que também funcionou da melhor maneira possível no NM Atlantis: voaram até São Francisco num avião da ABC, ali esperaram pelo desembarque dos passageiros do navio que vinha de Frankfurt e, de táxi, seguiram o segundo autocarro.

Em seguida, Herbert Fehringer misturou-se à multidão de passageiros, apresentou no saguão do convés Pacífico o bilhete correspondente para o trecho São Francisco-Sidney e foi acompanhado por um comissário até a cabine 213.

Ali chegando, preencheu o documento de bordo amarelo que se encontrava em cima da mesa, tornou a sair do navio com ele e entregou o bilhete ao irmão Hans que estava esperando junto a um quiosque no hall do píer. Este, por sua vez, entrou no NM Atlantis agitando a passagem. Coisa que não deu nas vistas no meio à massa humana que deambulava de um lado para o outro, uma vez que Hans disse:

 - Já fui checado, só dei mais um pulinho em terra.

 E, quando mais tarde Herbert tornou a entrar no navio com seu documento de bordo, bastou uma olhada no cartão amarelo.

 As dificuldades começaram somente após a partida, durante a viagem, quando se tratava de levar uma vida dupla como vida única. Mas mesmo nessa questão os gémeos Fehringer haviam desenvolvido uma habilidade francamente artística.

 A cabina 213, em geral vendida como individual, apresentava a vantagem de, em caso de necessidade, poder acolher também duas pessoas. Uma chamada cama Pullman, cama adicional, dobrável na parede e que depois ficava suspensa sobre a normal, permitia a recepção de um segundo passageiro. Claro que nesse momento ela não estava ocupada, permitindo que o segundo gémeo Fehringer se deitasse à noite de modo confortável. O colchão estava afivelado à cama, a cama normal possuía um travesseiro extra, uma coberta adicional fazia parte do equipamento padrão e, além disso, viajava-se por regiões tão quentes que, de qualquer modo, ninguém se cobria à noite.

Tão logo os dois Fehringers encontraram-se em sua cabina, fecharam a porta e experimentaram a cama Pullman. Esta, com alguns puxões, deixou-se soltar da parede sem maiores dificuldades. Não houve mais discussão alguma para se saber quem dormiria em cima e quem embaixo. Por meio de uma alternância equilibrada: três dias Hans em cima, três dias Herbert.

- Excelente! - disse Hans Fehringer sentando-se na cama e esfregando as mãos. - Que mesa temos? - ele pegou o mapa das mesas que estavam à disposição e acenou satisfeito. - Segundo horário de refeição, mesa B 6. O caminho dali até as cabinas é curto. Não podia ser melhor.

 

 Bateram na porta. O comissário de cabina. Hans Fehringer desapareceu no acto dentro do armário.

- A bagagem ainda vai demorar um pouco - disse o comissário. - Eu sou Louis. Bem-vindo a bordo. Deseja alguma coisa, Sr. Fehringer?

- Ah, sim. Uma garrafa de vodca.

- O senhor só vai poder comprar depois da partida. Determinação da aduana.

- E, por favor, todos os dias uma garrafa térmica com suco de laranja gelado, uma cuba de gelo e um cesto com frutas frescas.

Entregou a Louis uma nota de cinquenta marcos, que a fez desaparecer como se fosse um pedaço de papel para o lixo.

 

 Havia passageiros que logo se apresentavam a seu comissário de cabina com trezentos marcos.

 Deve-se saber disso: a coisa mais importante em um navio é um comissário de cabina benevolente. Aqueles que perdem as graças destes, no fim da viagem não passam de uma pilha de nervos. Nesse ponto, a surdez do comissário é o menor dos sofrimentos.

- O que é então que posso receber agora? - perguntou Herbert Fehringer. - Estou com a língua colada no céu da boca.

 - Eu poderia trazer-lhe cerveja. Uma pilsenurquell.

 - Você é um anjo! Quatro garrafas! Geladíssimas!

Os gémeos Fehringer começaram a aclimatar-se. Estavam tremendamente confortáveis no NM Atlantis. Aquela era a maior cabina na qual haviam viajado pelo mundo até então. Um navio de luxo, de verdade!

 No hospital do NM Atlantis, no convés A, já se encontrava um dos novos passageiros esperando pelo médico, arrastando a cadeira de um lado para o outro, impaciente. A enfermeira Erna telefonava para todos os lados esforçando-se para encontrar o Dr. Mario Paterna, o médico do navio, que deambulava por algum lugar. No final, ele havia sido visto no bar Olympia, depois do tombadilho onde acabara de conversar com o cego.

 Agora, no momento da mudança de passageiros, o hospital era o lugar mais tranquilo a bordo.

 - É tão urgente assim? - a enfermeira Erna virou-se do telefone na direcção do intranquilo passageiro.

 - Por acaso eu estaria aqui se não fosse? - de facto, sua voz soou um pouco desesperada.

 - Talvez eu possa ajudar-lhe, não? O senhor está com dores?

 - Não.

 - Com náuseas?

 - Isso sim.

 A enfermeira Erna lançou um olhar quase assustado para o passageiro.

 O navio ainda encontrava-se no píer e já havia um sujeito achando que estava doente? Não podia ser.

- Palpitações?

- Também.

- O senhor já teve antes esses problemas?

- Não. Somente depois... - o passageiro fez um sinal negativo. - Gostaria de falar com o médico. Agora! De que serve um hospital se não há nenhum médico à disposição?!

 Finalmente, a enfermeira Erna encontrou o Dr. Paterna no convés de esportes, descreveu pelo telefone os padecimentos do paciente e depois informou de modo tranquilizador:

 - O Dr. Paterna já está vindo.

 - Ele é italiano? - perguntou o passageiro com tom azedo.

 - Não. É de Dortmund. Talvez seu avó seja da Itália.

 - Uma vez eu estive hospitalizado na Itália, lá embaixo, na Calábria. Uma semana inteira. Você já esteve hospitalizada alguma vez na Calábria, enfermeira? Não? Esse tipo de coisa a gente não esquece jamais! Agora eu sei porque a maioria das óperas dramáticas foram compostas por italianos.

 O Dr. Mario Paterna era um homem alto e magro, que não podia desmentir sua origem do sul dos Alpes. As coisas mais atraentes nele eram os cabelos bem pretos de cachos encaracolados e os dentes de uma brancura deslumbrante, sobre os quais ele afirmava jamais tê-los escovado com os cremes dentais propagandeados a plenos pulmões, mas sim apenas com um simples giz.

 

 - E mastigar! - dizia ele sempre. - Mastigar com força! Os dentes precisam estar sempre mastigando. Pensem-nos hunzas, nos montanheses do Himalaia. Eles não sabem o que é cárie, mas também mastigam raízes dia e noite.

 Num certo sentido ele era uma excepção em termos de médico de navio: não se lhe podia imputar nenhum caso a bordo. Mesmo quando em todas as viagens as senhoras possuídas pelo demónio do sexo se hospitalizavam... ele as tratava com meios médicos e não deitando-se em suas camas. Algumas senhoras com desmedido desapontamento chegavam ao ponto de espalhar o boato de que ele devia ser bicha... um homem tão bonito como esse e sem nenhum interesse pelas mulheres, claro que isso é anormal! Contudo, contra essa afirmação havia o facto de ele ser divorciado e pai de uma menina de nove anos.

 - O que está acontecendo? - perguntou o Dr. Paterna após ter levado o passageiro doente para a sala de exame. O hospital possuía instalações modelares. Podiam-se inclusive realizar operações; tinha-se à disposição o mais moderno aparelho de anestesia. A enfermaria dispunha de vinte leitos. - Você está com palpitações?

 - Meu nome é Oliver Brandes. Sou oculista de Gelsenkirchen. - O passageiro ficou sentado na cadeira como que esgotado. - Estou com medo.

 - Como se o coração estivesse sendo apertado por um gancho?

 - Sim.

 - E falta de ar?

 - Por enquanto não. - Oliver Brandes encarou o Dr. Paterna, desconcertado. - Será que isso ainda vai acontecer? Pelo amor de Deus... estou com medo de que o navio naufrague.

- O que você está sentindo? - foi a resposta incrédula de Paterna.

- Medo de morrer afogado. Nalgum lugar lá fora no oceano Pacífico. Ou de ser estraçalhado pelos tubarões. Se o navio naufragar...

 - Ele não vai afundar. Pelas medidas humanas ele é insubmergível.

 - Pelas medidas humanas! - os olhos de Brandes começaram a tremer. - Disseram a mesma coisa do Titanic. E o que aconteceu? Mais de mil seres humanos afundaram junto com ele.

 - Não temos tantas pessoas assim a bordo - disse o Dr. Paterna em tom sarcástico. - Portanto, isso também não é possível.

 - Seu escárnio é inoportuno, doutor. - Nesse momento, todo o rosto de Brandes tremia. - Antes da viagem, eu sonhei seis vezes que o navio estava naufragando!

- Mas mesmo assim o senhor veio a bordo?

- Eu não queria ridicularizar-me perante o coral.

- O que é que o coral tem a ver com isso?

 

- Estamos todos a bordo. Vinte e dois homens! Até Valparaíso. Uma idéia completamente maluca e ainda por cima cara como o diabo. Mas nosso presidente disse: "O que fazemos com nosso dinheiro? Não dá para gastá-lo em banquetes, pois setenta por cento de nós têm diabetes. Tão-pouco podemos gastá-lo em porres, pois o fígado já não aguenta mais. Gastá-lo com as "putas"... Desculpe-me, doutor, mas foi isso que ele disse... "nos deixaria frustrados, pois quem é que ainda consegue dar uma? Mas ver o mundo, isso ainda podemos! Portanto, vamos fazer uma tentativa". - A voz de Brandes ficou chorosa. - O que é que eu podia fazer? Dar no pé? Cair no ridículo? Essa é a primeira vez que entro num navio, eu nunca quis entrar num, sempre tive medo de morrer afogado. Meu pai me enfiou isto na cabeça: fique sempre onde você possa voltar a pé para casa. E agora eu devo nadar no maior oceano do mundo. Você precisa me ajudar, doutor.

Paterna assentiu. As pessoas nunca aprendem, pensou ele. Eis aí um homem bem-sucedido, abastado, um oculista de Gelsenkirchen, e treme de medo em sua primeira viagem de navio. Mas ele vai fazê-la com medo de ser encarado como covarde por seus companheiros de coral. Vai ter de superar esse obstáculo.

 - Vou acompanhá-lo numa apresentação particular pelo navio. - Disse o Dr. Paterna procurando um tranquilizante no armário de medicamentos. - Vou mostrar-lhe quantos compartimentos estanques temos. Por maior que seja o rombo não nos encheremos de água.

- E se nós só quebrarmos?

- Isso é mais impossível ainda.

- Se racharmos ao meio?

- Bem improvável.

- Explodirmos?

- Olha, qualquer um pode afogar-se até na banheira! - o Dr. Paterna pegou um copo com água e entregou dois comprimidos a Brandes.

- Tome, por favor.

- Contra o quê?

- Os comprimidos deixam a pessoa indiferente. Se o navio afundar mais tarde, você vai tirar o terno para não molhá-lo.

Brandes engoliu os comprimidos, depois lançou um olhar de vida para o Dr. Paterna e disse:

- Você me acha um idiota total, não?

- De maneira nenhuma. Amanhã nós vamos andar pelo navio.

- Amanhã! Até lá se passará uma noite terrível.

 - Vá até nosso bar nocturno no Clube do Pescador e tome o maior porre. Isso ajuda.

 Oliver Brandes assentiu e, com as pernas bem inseguras, saiu do hospital. A enfermeira Erna pegou o copo e lavou-o.

- Esse aí nós vamos ver daqui a pouco - disse ela enquanto lavava.

- É o que eu também receio. - O Dr. Paterna deu uma risada baixa.

- O que você acredita que vai acontecer quando soar o alarme de exercício amanhã às dez da manhã? Preciso estar perto dele.

 

Existe uma lei irrevogável em todos os navios. Quando um barco zarpa ou ancora, o próprio comandante deve estar na ponte observando a manobra, isso quando ele mesmo não é obrigado a realizá-la.

 Horst Teyendorf era o tipo de comandante que assumia o controle pessoal na partida e na ancoragem, dirigindo o gigantesco corpo do navio. A coisa parecia tão simples: com uma pequena alavanca ele regulava os movimentos de mais de 33 mil toneladas.

 

 No terraço do prédio do píer, a orquestra americana tocou como despedida a marcha militar alemã "Velhos camaradas". A banda de bordo respondeu no tombadilho com Leve-me na viagem, comandante... e Adeus, adeus, não fique fora muito tempo... A bordo evitava-se de modo consciente fazer despedidas com marchas militares. Aquele era um navio civil, mesmo que os passageiros homens, noventa por cento deles na idade de ex-combatentes do fronte, desfrutassem da "Velhos camaradas" com os olhos brilhando, acompanhando o ritmo com batidas bizarras na balaustrada ou andando no tombadilho com o peito para fora e um insinuado passo de marcha. Alguns chegaram a ficar com olhos vermelhos de tanta emoção. "Good by, meus queridos amigos..."

 O NM Atlantis afastou-se lentamente do porto de São Francisco. Dois barcos-faróis tocaram as sirenes, o Atlantis respondeu com três trovões de sua sirene de neblina aguda e impetuosa. Centenas de braços acenaram, nesse momento a orquestra americana tocava melodias de musicais, a banda de bordo desceu do convés.

 - Bandinha preguiçosa essa - disse com desprezo um senhor de cabelos grisalhos e terno de seda. - Aposto como são todos sindicalizados.

 Ewald Dabrowski, o cego, encontrava-se também na balaustrada do tombadilho. Ao seu lado, Oliver Brandes abraçava-se ao corrimão de madeira respirando profunda e apressadamente. Agora não havia como voltar atrás. O oceano amplo iria abraçá-lo. Não se podia mais voltar a pé para Gelsenkirchen. Os comprimidos do Dr. Paterna que deviam deixar a pessoa indiferente não estavam fazendo nenhum efeito, embora ele mal pudesse supor que no fundo se tratassem apenas de inofensivos tabletes de cal.

 Brandes encarou o vizinho e soltou um suspiro fundo.

 - O senhor é cego? - perguntou ele.

 - Sim - foi a resposta lacónica de Dabrowski.

 - Sorte a sua. O senhor não vê o mar.

 - Mas até que podíamos trocar. Eu gostaria muito de ver o mar.

 - O senhor não tem medo?

 - De quê?

 - De afundarmos.

 - Bem, mais cedo ou mais tarde todos temos de encarar isso. E daí?

 - Minha Nossa Senhora, o senhor tem nervos de aço! Sabe como é terrível morrer afogado?

 - Não. No meu caso seria a primeira vez. O senhor já teve alguma experiência com isso?

 Brandes percebeu que dali não sairia nenhuma conversa sensata. Soltou-se da amurada e seguiu adiante. Talvez, pensou ele com seus botões, os cegos precisem viver com um certo fatalismo a fim de suportar o próprio sofrimento. No fundo, este sujeito é admirável. Coisa que ele já havia pensado no avião.

 Teyendorf saiu da ponte quando o Atlantis deixou o porto para trás por baixo da Golden Gate. Era sempre uma experiência nova passar por baixo daquela construção e ver a silhueta de São Francisco submergir lentamente. O entusiasmo dos passageiros não tinha limites.

Eles fotografavam a ilha-prisão de Alcatraz de todos os Ângulos; desde muito tempo que não havia nenhum prisioneiro naqueles prédios sombrios... Contudo, o mito permaneceu como último adeus da Golden Gate, que era tão esplêndida.

 

 E agora tinham à sua frente o Pacífico, o maior oceano do mundo. Começava uma aventura organizada em seus mínimos detalhes.

 Teyendorf encontrou o director de hotel Riemke e o comissário-chefe Pfannenstiel em seu camarote de comandante situado bem debaixo da ponte. Jogou o quepe sobre a escrivaninha, sentou-se no sofá de couro verde e cruzou as mãos. Willi Kempen, o primeiro-condutor, assumira a pilotagem do navio.

 - O que é? - perguntou Teyendorf.

 Pfannenstiel colocou uma folha de papel em cima da mesa.

 - A proposta para a mesa do comandante, senhor. O senhor não externou nenhum desejo.

 - Estou pouco ligando para quem vai sentar-se a ela. - Teyendorf deu uma rápida olhada na relação. Três casais e um solteiro. - No fundo, isso é uma tortura...

 - Temos três importantes repetidores a bordo. Além disso, First, o director-geral da Central Hidráulica Unida; o Dr. Simka, presidente do conselho fiscal da Indústria Química Hohenberger; o professor-cirurgião Dr. Lampertz, todos acompanhados das mulheres, depois os deputados federais...

 - Pare! - Teyendorf levou as mãos às orelhas com um talento de actor. - Essa vai ser de novo a viagem...

 - Em Sidney um cavalheiro da presidência da companhia de navegação virá a bordo - Comunicou Riemke. - Ainda não sabemos quem.

 - Ainda por cima isso! Isso aqui é a selecção de seiscentos passageiros? Não temos a bordo nenhum mestre-artesão, nenhum verdureiro, nenhum velho aposentado simpático e amigável...?

 - Não podemos tratar com rudeza toda a sociedade influente, senhor comandante. Sei o que o senhor pensa, mas os cavalheiros esperam pela mesa do comandante. - Riemke encolheu os ombros. - Uns correm atrás disso, outros fogem. Eu também fugiria.

 - Fora, Riemke!

 - Também posso colocar a Sra. White em sua mesa, senhor comandante - disse Pfannenstiel em tom suave.

 - Olha aqui, se eu não vir seus calcanhares fumegantes neste segundo, vai acontecer uma desgraça! - Teyendorf bateu com o punho na mesa.

- Cavalheiros, estou pouco ligando para quem vai ouvir minhas besteiras de sempre. Por sorte, até Valparaíso só temos doze dias de mar, nos quais devo sentar-me à mesa. Deixarei que me façam uma surpresa.

 Enquanto Riemke e Pfannenstiel ainda negociavam com o comandante Teyendorf por causa da lista de honra, as reclamações já abarrotavam os dois representantes do comissário-chefe. Alguns regateavam mesas junto às janelas. Outros, os viajantes experientes, queriam livrar-se de suas mesas junto às janelas, por saberem que, mais tarde, nos mares do Sul, mas também já na costa sul-americana, o sol queimaria tanto através dos vidros que, apesar das cortinas cerradas e do ar-condicionado ligado a todo o vapor, toda a refeição se tornaria um banho turco. Além disso, de que serve a mais bela das paisagens quando a janela está permanentemente fechada? Inclusive, quando a própria pessoa tem disposição, as mesas vizinhas reclamarão em voz alta: feche a cortina!

 Um casal de Oelde empreendeu uma luta heróica.

 

 - Senhor comissário-chefe! - disse o marido, com o rosto todo vermelho de excitação. - Acabei de saber que o casal Senkpiel vai sentar-se à mesa connosco. Não pode ser, é o que digo! Esses dois já se sentaram à nossa frente no Jumbo. O homem fuma cachimbo! Um depois do outro. Está levando uma bolsa inteira de cachimbos. E que tabaco ele fuma! Minha mulher passou mal, ficou sufocada, quase teve um ataque do coração. E agora essa gente vai passar quatro semanas à nossa mesa... não, não, isso precisa ser mudado agora mesmo!

 Com um gesto discreto, ele passou uma nota de cem marcos à mão do representante do comissário-chefe e recebeu a mesa B 16, para duas pessoas, bem distante do casal Senkpiel e de seus cachimbos periscópios.

 - Tudo acontece do jeito que você vê, minha querida - disse o marido de Oelde cheio de orgulho vitorioso para sua mulher. - Uma noitinha dessas...

 Aliás, ele não precisava gastar tanto, a mesa B 16 estava mesmo desocupada.

 Houve barulho em todas as cabinas até o jantar. A bagagem foi distribuída e agora as pessoas desfaziam as malas, penduravam os vestidos e ternos nos armários, espalhavam as roupas brancas pelas gavetas. Em pelo menos cem cabinas, as senhoras escandalizavam-se horrorizadas e soltavam gritos ao tirar os vestidos amarrotados das malas, depois procuravam no catálogo telefónico o número do costureiro de bordo... mas este estava permanentemente ocupado, não encontrando-se em seu pequeno e bolorento atelier. Houve um assalto imediato aos quartinhos com ferro de passar para o auto-serviço, existentes em todos os conveses. Ocorreram as primeiras batalhas femininas. Aquelas que entravam na fila nos quartos de passar roupa com mais de um vestido eram xingadas pela falta de consideração. Um linguista constataria encantado a inteligente capacidade de criação de palavras das damas da sociedade.

 O tempo voou. O primeiro horário de refeições - atrasado nesse dia por causa da partida - Começou às 19 horas. Poucos maridos não tiveram de suportar o mau humor de sua cara-metade. Os homens mesmo não tinham problema algum; calça, camisa, gravata e um paletó leve, isso sempre caía bem. Eles compensavam o alvoroço das mulheres com uma cerveja. É a melhor coisa que se pode fazer numa situação dessas.

 Na cabina 213, os gémeos Fehringer vestiram-se com todo cuidado. Não se diferenciavam em nada um do outro, inclusive os lenços de enfeite saíam do bolso do paletó com uma exactidão milimétrica. No espelho do armário que ia até o chão, os dois estavam completamente iguais. Ainda tinham tempo até o segundo horário de refeição, às 20 e 30 horas.

 - Quem vai primeiro? - perguntou Herbert.

 - Disputamos na provinha.

 Tiraram os fósforos e Herbert ganhou. No fundo, isso era supérfluo, mas sempre os divertia. No entanto, aquele que comesse em segundo lugar tinha sempre o papel mais difícil, posto que o comissário de mesa supunha que ele devia estar satisfeito. Era sempre uma pequena sensação quando, após a troca no banheiro, o segundo gémeo chegava à mesa e dizia:

 - Por favor, traga de novo o cardápio! - seguindo-se então toda uma infatigável série de pratos.

 

 O comissário de bebidas também ficava admirado com a sede e capacidade de resistência daquele freguês, o qual - enquanto um só homem pelo que parecia - liquidava oito cervejas no jantar e depois, de ânimo alegre e sobretudo erecto, saía do refeitório.

 O único perigo consistia no facto de alguém ver os gémeos por acaso, coisa que não havia acontecido em todas as viagens até então feitas. Tudo transcorria segundo um plano com exactidão de segundos, desde o desjejum até o namoro no bar nocturno. Claro que os dois também dividiam os passeios em terra, uma vez Herbert, noutra Hans, de acordo com o interesse de cada um pela oferta. Eles sabiam que só seriam obrigados a jogar bolinha no caso de Bora Bora; ambos queriam conhecer a ilha mais bela do mundo.

 No fundo, o segundo horário de refeição é sempre o mais exclusivo. Primeiro porque a pessoa não precisa apressar-se, posto que a mesa não será mais usada e também não precisará ser posta de novo. Depois porque o comandante também come no segundo horário de refeição. Em terceiro lugar, as pessoas encontram muitos conhecidos que já sabem de todas essas vantagens desde outras viagens. De uma certa maneira, os repetidores estão em seu meio. E acima de tudo é um imenso sacrifício comer às 18 horas, quando a pilsen ainda está saindo espumante da serpentina da cervejaria.

 Mas também existem certas desvantagens, quando, por exemplo, consta peixe frito no cardápio. Nesse caso, o primeiro horário de refeição é servido com o peixe frito no ponto, estalando. No segundo horário de refeição, após ficar crepitando por hora e meia, ele não passa de uma coisa pastosa, lodosa. Nem o melhor mestre-cuca consegue manter estalando seiscentas porções de peixe frito durante mais de duas horas. Acontece o mesmo no caso do macarrão e também do aspargo. Claro que se poderia fazer o que compete a um hotel de luxo, cozinhar tudo segundo os pedidos; contudo, nenhum dos trezentos comensais por horário de refeição iria esperar. Pedir agora e ser servido em dez minutos o mais tardar. De qualquer modo, esses cozinheiros dos navios de cruzeiro são mesmo mágicos. Só em se ler o cardápio que muda todos os dias já é um gozo culinário; mesmo existindo passageiros que proclamam sem a menor cerimónia: por mais de quinhentos marcos por dia eu posso exigir.

 O NM Atlantis rolava suave sobre as ondas em direcção ao México, deixando para trás a costa da Califórnia. Terminara o primeiro jantar. No salão de festas, que ali se chamava Salão dos Sete Mares, a banda de bordo tocava para a dança digestiva. Os três bares do navio já haviam sido sitiados. Alguns fanáticos do ar fresco encontravam-se no convés olhando a noite estrelada e a espuma produzida pela quilha do navio ao mergulhar nas ondas. O marulhar monótono era incrivelmente tranquilizador.

 Na cabina 213, Hans Fehringer estava deitado na cama Pullman observando o irmão vestir o blazer azul-marinho de botões dourados. O jantar transcorrera sem maiores dificuldades. O comissário de mesa não se admirara do comensal que devorava montanhas. Somente as pessoas da mesa vizinha mostraram-se um pouco perplexas e olharam em sua direcção.

 - Vou dar um pulinho no Clube do Pescador - disse Herbert Fehringer. - Durma bem, Hans.

 

 Fechou a porta da cabina. Havia terminado o serviço dos comissários de cabina, ninguém os incomodaria mais. Havia sido um bom dia, assim como oxalá seriam os muitos dias que tinham pela frente.

 

Após o jantar, Ewald Dabrowski deu folga a sua assistente pelo resto da noite. Ele mostrara à assistência curiosa como um cego come: a enfermeira Beate cortava tudo em seu prato em pequenos pedaços e, em seguida, ele comia com garfo e faca como qualquer pessoa. A única diferença talvez fosse que, de vez em quando, ele tacteava o prato com o garfo, tal como fazia ao andar com a bengala branca. Portanto, ele não precisava ser Alimentado, respiraram aliviadas as pessoas a sua volta nas outras mesas. Por maior que fosse o amor ao próximo, maior que fosse a tolerância e por todo

humanitarismo cristão... todos queriam desfrutar da comida com apetite e estética, afinal de contas haviam pago caro por isso. No entanto, um homem desamparado que precisasse ser Alimentado, não seria lá uma visão que tivesse um efeito estimulante sobre o apetite.

 - Pode ir - disse Dabrowski depois que Beate acompanhou-o até o ferver da tolda. Era o primeiro andar do Atlantis com biblioteca, estúdio de música, butique, joalheiro, salão de cabeleireiro e sofás e poltronas de couro fundos. Dali se ia também ao enorme e luxuoso salão de festas do navio, o Salão dos Sete Mares, onde no dia seguinte teria lugar o coquetel de saudação do comandante com posterior apresentação da direcção do barco. A refeição que se seguiria com o comandante era o primeiro ponto culminante social a bordo. Os homens de smoking, em sua maioria brancos, as mulheres com vestidos de noite longos. Era a hora ansiada na qual se podia mostrar o que se tinha em termos de jóias e gosto. Os maridos correspondentes brilhavam orgulhosos no reflexo das jóias. Tinham-se tão poucas oportunidades de se ostentar o sucesso.

 Dabrowski ficou parado um instante apoiado na bengala branca, deixando que os passageiros que se dirigiam às suas cabinas o ultrapassassem.

Alguns o cumprimentaram por terem a sensação de que deviam ser especialmente amáveis para com um doente. Ele respondeu aos cumprimentos e, em seguida, apalpou a joalheria. A porta de vidro estava aberta; ele entrou tacteando com a bengala à sua frente e parou quando esta chocou-se com o balcão. A bela vendedora com a designação oficial de Gerente da Firma Joalheira Heinrich Ried, Munique, Amsterdam, Monte Carlo, lançou ao cego um olhar mais ou menos desamparado. Se existe alguma coisa para a qual se precisa de olhos, essa coisa são as jóias. Elas não podem ser sentidas.

 - Boa noite, senhorita Erika Treibel - .disse Dabrowski comportado. - Ficou espantada, não?

 - Honestamente, sim! O senhor me conhece?

 - Meu nome é Dabrowski. - Deu uma batida com a bengala branca na cadeira que havia ao lado do balcão e sentou-se. As enormes lentes escuras dos óculos fitaram Erika Treibel. Uma sensação desagradável e angustiante constrangeu a jovem. Ela não sabia o que devia fazer e teria cumprimentado com o maior entusiasmo qualquer pessoa que entrasse na joalheria nesse momento. - Sou tido aqui a bordo como o industrial Dabrowski. Poderia fechar a porta?

 

 - Por quê? - Erika Treibel ficou tomada pelo medo. Sou tido... que significava isso? Ou ele é um industrial ou não é. Ela andou devagar atrás do balcão e postou-se ao lado do discreto botão do alarme. Um leve sorriso percorreu o rosto de Dabrowski.

 - Você está usando um lindo vestido de jérsei de seda, Erika - disse ele. - E o brinco e pingente de pescoço de água marinha lhe caem admirávelmente bem. Só que não devia usar um anel de rubi.

 - Meu Deus! - Erika Treibel respirou fundo, o coração batia com toda a força. - O senhor... o senhor... não é cego...?

 - Por favor, feche a porta. E pode ir tratando de engolir seu medo, ele é descabido. Ewald Dabrowski. Está certo. O resto não. - Levantou-se da cadeira, foi tacteando até a porta à maneira dos cegos, fechou-a e voltou ao balcão. Erika Treibel pousara a ponta do dedo sobre o botão de alarme. - Devo transmitir-lhe o afectuoso cumprimento de seu

chefe, o Sr. Ried. Nesse momento ele se encontra em Sidney para comprar opalas e virá a bordo também em Sidney.

 - Está... Certo... - balbuciou Erika desconcertada. - Então, quem é o senhor na verdade?

 - Você conhece Paolo Carducci? - perguntou Dabrowski apertando a bengala branca entre as pernas. Se alguém olhasse de fora através da vitrine, veria um cego apoiado em sua bengala.

 - Carducci? Não...

 - Bem, o que no início do nosso século era o elegante Manulescu, corresponde em nossa época ao não menos elegante Carducci: o mais refinado, frio, inteligente e especializado ladrão de jóias. Outrora Manulescu roubava as mulheres dos conselheiros e as condessas, as concubinas francesas e as grã-duquesas russas, em Nice, Monte Carlo, San Remo, Paris, Genebra, Londres e St. Moritz... Carducci atua junto às mulheres de industriais e esposas de dentistas, as amantes de directores e mulheres de conselheiros fiscais. Mudou a camada social das freguesas. Mas sobretudo Carducci jamais escalaria, como Manulescu fez em Nice, a fachada do hotel Negresco, para chegar até às jóias. Ele dá preferência a uma limpeza mais confortável: as cabinas de um navio.

 - E... e o que é que o senhor tem com isso?

 - Fui contratado por uma companhia internacional de seguros para descobrir Carducci. Em geral chamam esse tipo de coisa de detective.

 - Oh, Deus! Um 007 a bordo...

 - Nem tanto, Erika. Não subo pelas chaminés caçando ninguém, não atiro em ninguém e tão-pouco tenho nas calças uma maravilha da técnica que, ao apertar um botão, cuspa fogo de barragem por todos os buracos. Quando eu descobrir Carducci, vou pousar a mão em seu ombro e dizer da maneira mais simpática: Paolo, não faça nenhuma besteira!

Você se encontra num navio e não pode fugir. Mesmo estando nas proximidades da costa, não mergulhe pela amurada! Estamos cercados por tubarões, como você sabe.

 - E... esse Carducci está aqui no navio?

 - Temos motivos para supor isso. Na verdade, ninguém o conhece, que é um génio com centenas de rostos. Sabemos como é a aparência dele enquanto Carducci, existem lindos retratos na polícia de Nápoles. Mas são antigos. Têm mais de dez anos. Nessa época ele ainda era muito brutal e deselegante e arrombava as lojas. Agora é um cavalheiro. Mais tarde, recolhemos alguns de seus nomes das listas de passageiros;

 

 Rafael Solderna, Jim McHarris, barão von Saalfelden, Dr. Jens Petermann... O sujeito fala perfeitamente o inglês, o francês, o alemão, o espanhol e, claro, o italiano.

Se ainda existissem grão-duques russos em abundância, com toda certeza, ele também falaria russo. um génio mesmo!

 - E por que ele haveria de estar aqui a bordo? - a voz de Erika Treibel tremia descontroladamente. Não era uma pessoa medrosa, mas nesse momento estava com a pele toda arrepiada.

 - Como todos os larápios, Carducci também comete um erro: ele conserva um ritmo determinado. - Dabrowski jogou a cabeça um pouco para trás. Os cegos gostam de fazer isso quando fazem força para escutar.

- Decorei tudo como se fosse uma balada. De meados de março até início de abril, no Arconia de Southampton a Tânger. Despojos, 730 mil marcos. Fim de abril a meados de maio, com o NM Lucretia de Cádis, passando pelas Baleares e circundando a Sicília, até Génova. Despojos, 600 mil marcos. De Génova, quatro semanas no Mediterrâneo com o NM Hélios. Uma boa viagem; ele ficou com 1,2 milhão. Em julho ele precisou descansar, mas agosto foi temporada de novo. Com o NM Heljefjord até as ilhas gregas e a Terra Santa. As mulheres sacrificaram 570 mil marcos. De fim de agosto até meados de setembro a coisa foi mal. Uma viagem com o NM Krasnoênrsk Pireu, Istambul, Odessa, Sotschi e de volta a Alexandria, rendeu apenas 390 mil marcos. Afinal, as pessoas tinham muito medo dos russos e se contiveram nas coisas de valor. Mas depois! - Dabrowski acariciou a bengala branca. - De Alexandria pelo canal de Suez, passando pelo mar Vermelho e ao longo da África até Mombaça com o NM Silverness. Aí a renda foi de 1,4 milhão! Notou alguma coisa, Erika? Existe um sistema nisso. Carducci não sai viajando de um lado para o outro pelo mundo. Ele prefere as viagens em sequência! Faz baldeação de barco a barco. Nós vamos pegá-lo nesse erro. Ele esteve no Caribe por último e, com o NM Princesa Aicha, veio a São Francisco através do canal do Panamá. Ainda assim ele embolsou 870 mil marcos na viagem. É inconcebível a quantidade de jóias que as pessoas levam consigo nessas viagens.

 - E agora... agora ele está aqui...

 - O NM Atlantis é o único navio de luxo que nessa época está partindo de São Francisco para uma viagem mais longa. E Carducci estava em São Francisco. Se ele não romper a própria lógica, e por que haveria de romper?, hoje ele subiu a bordo. Aqui ele encontra a mesa posta com o que há de mais rico no ano. O que brilhará amanhã no refeitório nas orelhas, pescoços, braços e dedos, o deixará tão arrebatado a ponto de fazer uma oração de graças. Erika, em quanto você avalia seu estoque?

 - Não sei. - Ela encarou Dabrowski, espantada. - Mas com toda a certeza são dois milhões. - Erika tornou a respirar fundo. - O senhor acredita que ele tentará arrombar minha loja? Temos o melhor equipamento de alarme. Na época da montagem, o Sr. Ried testou todas as possibilidades. O equipamento funcionou na hora. E há sempre movimento no corredor, durante a noite inteira. Aqueles que saem do Clube do Pescador precisam passar por aqui. Além disso, as mulheres guardam as jóias nas gavetas do cofre.

 

 - Quando não precisam delas! Mas veja, amanhã à noite é o jantar do comandante, um grande desfile; cada mulher, uma árvore de Natal enfeitada. Depois do jantar, vão para os bares, para os salões, dançarão. Erika, quem é que ainda vai ao escritório do comissário para pedir sua gavetinha com segredo? As pessoas levam seus cacarecos para a cabina nas poucas horas que faltam para o amanhecer. E então Carducci esfrega as mãos.

 - E como é que o senhor vai querer impedir isso, Sr. Dabrowski?

 - Não posso impedir coisa alguma. - Dabrowski baixou um pouco a cabeça, endireitou os óculos escuros e levantou-se. Havia um casal parado diante de uma das vitrines admirando um anel de esmeralda. - Só posso ficar olhando e intervir. Como cego entro em qualquer lugar. Quem não enxerga é tido como inofensivo, não perigoso. As pessoas não precisam esconder-se de um cego. Claro que ele pode ouvir, mas de que lhe serve isso, se não pode averiguar quem está falando? O cego tem uma espécie de liberdade do louco... é o que pensam os que enxergam. Carducci pensará o mesmo. Como um cego poderia incomodá-lo? Esta é a minha grande chance.

 - E o senhor vai suportar isso? Durante várias semanas?

 - É o que espero, Erika. É o que espero. - Dabrowski foi apalpando até à porta. O casal entrou na loja, abriu caminho para o cego e seguiu-o com a vista.

 - Todas essas coisas lindas e ele não enxerga nada - sussurrou a mulher. - Senhorita, quanto custa o bracelete de brilhantes? Aquele na segunda janela, na parte debaixo à esquerda...

 Com passos indecisos, batendo com a bengala branca de vez em quando na parede do corredor, Dabrowski subiu a escadaria central, para ir tomar mais uma pilsen gelada e espumante no bar Atlantis. Tinha a esperança de travar algum conhecimento enquanto bebia.

Ludwig Moor jamais poderia dar-se ao luxo de fazer essa viagem, se não tivesse um tio a quem, com oitenta e nove anos, ocorresse a idéia maluca de viajar pelo oceano Pacífico. Contudo, a alegria antecipada parece que foi grande demais; onze dias antes do início da viagem, o coração do tio falhou e Ludwig Moor herdou, entre outras coisas, também essa viagem.

 Moor não devolveu o bilhete, senão que aproveitou a oportunidade única para realizar o sonho de milhões de pessoas: estar ao menos uma vez nos mares do Sul! O Taiti com suas lindíssimas moças... Claro que ele conhecia as pinturas de Gauguin. A ilha de Tonga com seu rei gordo que começava a chorar quando tocavam canções populares alemãs, Rabaul no arquipélago Bismarck, que outrora fora colónia alemã... ele tinha selos de lá em sua colecção.

 Não se podia devolver esse tipo de coisa! Tão-pouco isso passaria pela cabeça do tio Fritz.

 

 Ludwig Moor era funcionário público. Tribunal de comarca, departamento de cadastro. Uma função chatíssima. Registros de hipotecas e dívidas hipotecárias, bem como suas liquidações. O interessante disso era que poucas vezes o proprietário da casa era o dono real, ao contrário, quase sempre eram bancos ou companhias de seguro que se deixavam registrar emprestando o dinheiro. Coisa que sempre espantou Moor, havia vinte e dois anos. Com que então um sujeito parava diante de um prédio e dizia orgulhoso: "Esta é a minha casa!" e o que de facto lhe pertencia talvez fosse a metade do telhado e, quando muito, a chaminé. É possível que esse tipo de coisa tenha algo a ver com a política económica, com o fluxo de caixa, com os meios disponíveis ou com o sarcástico lema: "A melhor vida é a vida a crédito", mas Ludwig Moor nunca compreendeu isso.

 Mas agora ele tinha a oportunidade de contar aos seus colegas de repartição que havia bebido uma cerveja em Bora Bora num dos hotéis mais caros do mundo e que uma beldade dos mares do Sul lhe pendurara no pescoço uma corrente de frangipana. Com isso ele passaria inclusive o magistrado que só havia chegado à Grã-Canária.

 Após o primeiro jantar, Moor concedeu-se um passeio no Clube do Pescador, situado na parte bem inferior do navio, no convés C. Bebeu bravamente apenas dois coquetéis, achou a música de discoteca alta demais, enfureceu-se com uma dama de meia-idade que dançava rock com a saia puxada para cima qual uma adolescente e, pouco depois, pôs-se a caminho de volta ao lar, a cabina 382.

 Estava prestes a entrar no elevador, quando um grito de rachar madeira quase jogou-o de encontro à parede. Com um pulo, Moor tomou de assalto a cabina do elevador, mas ao fechar-se a porta ele tornou a ouvir o grito... alto, penetrando até a medula dos ossos, num tom intermediário ao de um trompete rachando ao meio.

 O elevador parou no convés A e um senhor de cabelos grisalhos entrou. Fitou o pálido Moor e apertou o botão do convés do solário.

 - Desculpe-me por dirigir-lhe a palavra - disse ele. - Mas o senhor não está passando bem?

 - Olha, houve um grito agora mesmo... um grito terrível... - balbuciou Moor.

 - Onde?

 - Lá embaixo. No convés C. Nunca tinha ouvido um grito desses. Tive a sensação de que o chão também tremia.

 - Dr. Schwarme.

 - Como disse?

 - Dr. Schwarme é o meu nome. Advogado. Por que não damos um outro pulo até lá embaixo? - O Dr. Schwarme causou uma impressão corajosa. Moor assentiu várias vezes e murmurou o próprio nome.

 - Encantado... Por um grito humano?

 - Não sei. Olha, quando um ser humano grita desse jeito é porque está vivendo alguma coisa muito terrível. Soou como se não fosse humano. Eu poderia imaginar... quando alguém está sendo torturado...

 O Dr. Schwarme empurrou o queixo para a frente, parou o elevador, apertou o botão do convés C e bateu com um punho no outro.

 - Vamos ver logo o que foi. Talvez tenha sido uma roldana enferrujada, elas produzem um som de rasgar o coração.

 - Aqui embaixo? De noite? Em alto-mar?

 - Tem razão.

 O elevador parou, a porta se abriu, Schwarme e Moor saíram na escadaria. Os dois olharam em volta. Tudo estava quieto e vazio. Apenas soava uma música suave através da porta bem isolada do bar nocturno.

- De onde veio o grito? - perguntou o Dr. Schwarme.

- Não sei. Estava em toda a parte, pairava no ar... duas vezes...

 

- Duas vezes?

 - Meu coração quase parou.

 - Agora está tudo quieto. - O Dr. Schwarme passou a mão pelo rosto. Ao fazê-lo, notou que estava suando. Suor frio. - Vamos aguardar mais alguns minutos... depois vamos até o bar e entornamos um conhaque duplo. Acho que o senhor precisa muito de um.

 Moor assentiu capitulando, prendeu a respiração e desejou jamais tornar a ouvir o grito.

 

O Clube do Pescador é sempre a última estação no decorrer dos dias que na verdade não são entediantes no NM Atlantis.

Quando todos os bares se fecham, ali encontram-se os incansáveis, os ávidos por experiências, os solitários e aqueles que jamais se esgotam. Muitas vezes acontecia que um passageiro com uma capacidade de resistência fenomenal saísse do Clube do Pescador directo para o bufé do desjejum no convés, comesse e, desperto como um peixe, fosse nadar na piscina, no momento em que os viajantes "normais" saíam das cabinas.

 O bar nocturno encontrava-se firme nas mãos de Jerry. Originalmente ele se chamava Lothar, mas achara que o nome parecia honesto demais para seu emprego. Jerry soava temerário, soava a aventura, a Chicago e sobre tudo podia ser sussurrado por alguma moça apaixonada. Num abraço íntimo, Jerry soava melhor do que um soprado Lothar. Além disso, Jerry era um mestre das misturas. Os coquetéis inventados por ele não podiam ser encontrados nem no Waldorf de Nova York nem no Hyatt de São Francisco. Quando um dia ele se aposentasse, iria escrever um livro sobre coquetéis.

 Quando Moor e o Dr. Schwarme entraram, havia tal aperto na pequena pista de dança que já não se podia mais falar em combinações de passos.

 O discotecário colocara um swing dos bons velhos tempos e os corpos rodavam, flutuando de um lado para o outro. Moor dirigiu-se para o balcão onde viu dois banquinhos livres e aboletou-se no assento. O Dr. Schwarme seguiu-o.

 - Ficou com mais sede? - perguntou Jerry com um sorriso amigável. Afinal, ele acabara de ver Moor ir embora poucos minutos antes. - Mais um Urquell?

 - Conhaque - disse Moor com voz sombria. - Mas, por favor! Nada de humedecer o copo!

 Ele havia lido isso numa piada de uma revista e achara engraçado.

 - Francês? - perguntou Jerry.

 - Que mais poderia ser? - Moor encarou o Dr. Schwarme. - O senhor também?

 - Não, para mim um uísque.

 - Uísque escocês?

 - Eu disse uísque e isso sempre é um bourbon.

 Jerry serviu com o rosto pétreo. Sacos de dinheiro, pensou ele. Sempre se comportam como se estivessem no sétimo céu, quando têm a oportunidade de ensinar um barman. Serviu um conhaque alemão para Moor e um uísque também alemão ao Dr. Schwarme e esperou até os dois tomarem o primeiro gole.

 - Satisfeitos?

 - Excelente. - O Dr. Schwarme virou-se e deu uma olhada pelo bar.

 

 Todos ainda eram apenas desconhecidos, recém-chegados a bordo, mas dentro de poucos dias se constatariam quais eram os que ali vinham todas as noites na qualidade de frequentadores habituais. Como em toda a parte onde os homens vivem em comunidade, grupinhos se formariam ali embaixo e as pessoas com sede de viver se sentiriam bem. O Dr. Schwarme também fazia parte desse grupo. A bem da verdade, ele estava acompanhado da mulher na viagem, mas esta já se encontrava na cama na cabina havia muito tempo, com o rosto emplastrado de um creme nutritivo esverdeado. Se ele dizia: "Vou tomar mais uma cervejinha rápido" e só voltava mais tarde, a mulher estava dormindo tão profundamente que não ouvia coisa alguma quando ele desabava na cama. Ele sabia disso, era um velho "navegador".

O ar marinho exercia sobre Erna o mesmo efeito que champanhe misturado com tranquilizantes; no início animava, sobretudo no jantar e nas festas nocturnas a bordo, mas então, depois do término da programação oficial, sentia-se como que paralisada. Tão logo entrava na cabina e tirava a roupa, dormia no acto. A posição horizontal era como uma alavanca que a pressionava para baixo: fim. Em contrapartida, Erna Schwarme era uma mulher bonita, no verdadeiro sentido da palavra: estatura um pouco acima da mediana, cabelos louros, quarenta e poucos anos, muito bem cuidada, com uma pele realmente delicada, quase sem rugas - o creme nutritivo esverdeado! - e um corpo que se poderia descrever como de formas perfeitas. Suas roupas denunciavam ateies caros e suas jóias mostravam a todos que o marido, o Dr. Peter Schwarme, era um advogado bem-sucedido. Mas dinheiro grosso mesmo ele ganhava como consultor pessoal. Poucos podem imaginar o que seja isso e na verdade é difícil imaginar, quando se lhes explica que o Dr. Schwarme vendia empresários, que ele qualificava homens - e, de acordo com a tendência correspondente, também um número crescente de mulheres - Colocando-os e tirando-os da indústria e do comércio, ocupando posições de direcção. De gerente de divisão para cima, ele conseguia tudo que as carreiras de sucesso prometiam. Isso apresentava a vantagem de, mais tarde, os senhores estabelecidos nomearem o Dr. Schwarme para os conselhos fiscais ou entregarem os processos à sua banca. Um efeito duplo... Erna Schwarme mostrava isso com a elegância e as jóias. No fundo, seu permanente cansaço no mar era a única coisa perturbadora nela.

 - Na barriga de um navio tudo soa diferente - disse o Dr. Schwarme tomando um segundo gole de seu "bourbon ". - Afinal, aqui estamos abaixo da superfície do mar. Quando pensamos nisso, facilmente ficamos com medo. Imagine só a pressão que está sendo exercida agora contra as paredes! Suponho que esse seu grito terrível tenha sido um cabo de aço que bateu na parede de ferro aqui embaixo, nalgum lugar. Como eu disse: aqui tudo soa diferente.

 Moor assentiu, bebeu o conhaque, ainda tendo nos ouvidos aquele grito de rachar madeira.

 - O que há mais aqui embaixo além do bar?

 - Os porões, toda a instalação das máquinas, os tanques de água, toda a parte técnica... eles não podem gritar. Foi algum outro barulho.

 - Não se pode chamar isso de barulho. - Moor pediu outro conhaque e dessa vez recebeu um francês de verdade. - Dê só uma olhada, doutor. O cego está sentado lá atrás, no canto. Perto da pista de dança.

 

 - Ele ouve a música, ouve os passos da dança, talvez também a respiração dos dançarinos e suas conversas... os cegos têm uma audição incrivelmente desenvolvida. - O Dr. Schwarme deu uma risada alta. - Talvez ele também cheire o perfume das mulheres, coisa que deve bastar-lhe para a felicidade. Eu não trocaria o meu lugar com ele nem por milhões. Assim que eu o vi no tombadilho quando da partida, pensei: devíamos falar com ele, mostrar-lhe como pode ser alegre a vida a bordo, trazê-lo para o nosso meio social, deixar que ele participe das nossas experiências de viagem. No fundo, ele parece ser um homem alegre. Eu observei. Quando os americanos tocaram Velhos camaradas, música que nos toca fundo na alma, ele também aplaudiu na amurada. Posso perguntar qual a sua idade?

 - Cinquenta e dois anos.

 - Não! - O Dr. Schwarme esfregou a mão espalmada em cima do balcão. - Então somos do mesmo ano. Que coisa! Garçom, mais uma rodada!

 A essa hora da noite, ainda se encontravam no bar o dono da vinícola Tatarani, de Angeli, que como sempre parecia saído de uma revista de moda, e dois senhores sentados bem lado a lado num sofá, que se encaravam como amantes, acariciando-se as mãos de vez em quando e bebendo champanhe. No canto oposto, três alegres senhores cochichavam e gargalhavam com suas mulheres; pareciam estar esperando que os dois se abraçassem e beijassem num impulso. Coisa que na verdade não fizeram, mas encostaram-se ombro a ombro espalhando uma sensação de imensa felicidade.

 O comissário-chefe Pfannenstiel, aboletado em seu banquinho de freguês costumeiro no canto extremo do bar - pois uma noite sem Pfannenstiel no Clube do Pescador, só se ele estivesse seriamente enfermo -, tão logo os dois cavalheiros subiram a bordo, mandou que averiguassem seus nomes na lista de passageiros. Sua atenção fora chamada pelo facto de os dois caminharem pela escada de braços dados, como um casal de namorados. O mais velho chamava-se Jens van Bonnerveen e era originário de Leiden, na Holanda; o mais novo era um alemão, chamava-se Eduard Grashorn e, de vez em quando, parecia realmente envergonhado. Sobretudo quando Jens pousava a mão frouxa no traseiro de Eduardo, então este estremecia e olhava para todos os lados com movimentos rápidos de doninha.

 Os casais investiam de um lado para o outro na pequena pista de dança redonda. As jóias das mulheres cintilavam. Notavam-se também as abotoaduras de brilhante dos homens. Contudo, o jantar dessa noite fora completamente normal. O grande desfile só ocorreria no dia seguinte, no coquetel de recepção e no jantar do comandante.

 

 Ewald Dabrowski observava por trás dos óculos escuros os dançarinos e os fregueses no bar e nas mesas. Nenhum daqueles que terminavam a noite no Clube do Pescador tinha a aparência de um ladrão de jóias. Contudo, meu caro Ewald, Dabrowski pensou com seus botões, qual a aparência de um ladrão de jóias? Poderia ser aquele senhor ali no bar, aquele que bebe o terceiro uísque num curto espaço de tempo - era o Dr. Schwarme -, ou o elegante meridional - Tatarani, o viticultor de Toscana - que era tão amável a ponto de dançar quatro vezes com as damas solitárias, inclusive com uma idosa que girava com todo cuidado, mas cujo rosto transmitia uma impressão de enorme êxtase. Os dois veados? Impossível! Sabia-se que o ladrão Carducci, ao personificar o barão von Saalfelden ou o Dr. Petermann, sempre capitulou diante dos encantos femininos, tendo dormido várias vezes com suas vítimas até o momento de roubá-las. Claro que então as suspeitas jamais recaíam sobre ele, o amante secreto e fogoso; pois mãos que sabiam acariciar desse modo tão estonteante jamais estariam em condições de arrombar caixas de jóias e gavetas com segredo.

 Mesmo assim, Dabrowski tinha a sensação de que Carducci encontrava-se ali no bar. Essa estranha sensação, ardente como a que se tem ao tocar um circuito eléctrico de baixa voltagem, já o havia ajudado ou advertido várias vezes. Era algo inexplicável em Dabrowski que às vezes o deixava assustado. Nesse momento, esse pressentimento aparecera de novo, relacionado com uma leve dificuldade respiratória.

 - Vamos? - perguntou o Dr. Schwarme no balcão. Ele deu uma olhada no relógio. - Três e meia da madrugada. Onde toma o desjejum, Sr. Moor?

 - No restaurante.

 - Jamais vou conseguir. Não consegui nos outros navios e vai ser a mesma coisa aqui no Atlantis. Estaremos sentados às dez horas atrás do bar Atlantis. O que tenciona fazer?

 - Nada. Ficar sem fazer nada na espreguiçadeira. Talvez ler... um Konsalik...

 - Pelo amor de Deus! - O Dr. Schwarme lançou a Moor um olhar francamente espantado. - O senhor lê Konsalik?

 - O senhor o conhece? Quantos livros dele já leu?

 - Nenhum.

 - Então, como é que o senhor quer discutir sobre isso? - Moor levantou-se do banquinho do bar. - Por volta das dez e meia estarei atravessando o convés do solário.

 Os dois assinaram a conta dando nomes e números das cabinas, incluindo a gorjeta - no final da viagem devia-se saldar a importância total das contas no escritório especial do comissário - e saíram do bar. Então ficaram esperando pelo elevador no pequeno foyer situado entre o fosso e a escada; o ascensor parecia estar vindo do convés superior de tanto que demorava.

 - Permite-me perguntar o que o senhor faz profissionalmente? - indagou o Dr. Schwarme.

 - Administro casas. - Moor não via nenhuma mentira nisso.

 Como funcionário do departamento de cadastro, ele conhecia todos os bens, dívidas, encargos, hipotecas judiciais e dívidas hipotecárias. - Uma grande quantidade.

 - Ah. O senhor é gerente administrativo de uma empresa de administração de imóveis?

 - É, pode-se chamar assim.

 - Interessante. Neste momento estou engalfinhado com um. processo tremendo contra uma sociedade de proprietários... Aí está o elevador!

 A porta deslizou abrindo-se, os dois entraram, a porta se fechou... e no momento de se fechar por completo, ressoou um grito que lhes penetrou até os ossos. Moor recostou-se na parede do elevador com o rosto amarelo, pálido.

 - Olha... - gaguejou ele. - Foi isso... O senhor escutou...?

 - Isso... esse tipo de coisa... até um surdo escuta. - O Dr. Schwarme passou a mão no rosto. Que som! Que grito extraordinário! E, no entanto, por mais que fosse irreconhecível, havia algo de humano naquele barulho.

 

Era um ser vivo em extrema dificuldade que gritava ali... O Dr. Schwarme recordou-se de um processo criminal de um assassino que gravara o último grito de sua vítima. Os dois tinham um som tão idêntico, mesmo não sendo tão penetrantes. E mesmo não sendo tão potentes a ponto de ressoar através de algumas paredes, de tal modo que se pudesse dizer que a pessoa que gritava estava bem ao lado.

 O Dr. Schwarme puxou o nó da gravata um pouco para baixo, abriu o colarinho da camisa e apertou o botão do elevador que indicava tolda.

 - Vamos... vamos mandar averiguar agora mesmo o que está acontecendo no convés C - disse ele hesitante. - Vamos tirar o director de hotel da cama e, se for preciso, o próprio comandante. Não viajo em navios onde ressoam gritos de morte.

 - O senhor quer dizer que foram... gritos de morte? - Ludwig Moor sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. - Mas isso não é possível. Existe um espaço de meia hora entre o primeiro e o segundo grito.

Ninguém demora tanto para morrer.

 - O senhor tem alguma idéia das coisas que nós, os juristas, vemos e ouvimos? Quando alguém se acidenta, é estrangulado, esmagado ou... Uma vez tive um processo gigantesco. Uma batida de carros em massa numa auto-estrada com neblina. Noventa e quatro carros metidos uns por cima e por dentro dos outros. Um dos meus constituintes foi retirado dos destroços pelos bombeiros somente depois de seis horas. Depois de seis horas! E ele ainda estava vivo. Ambas as pernas cortadas. E nessas seis horas ele gritou durante quatro.

 - Pare, estou passando mal. - Moor levou a mão direita à boca. - Por que esse maldito elevador anda tão devagar?

 Tudo estava vazio e quieto na tolda. Um homem idoso estava sentado atrás da recepção da comissária lendo um romance policial.

Estava vestido com um jaleco branco, era o guarda-noturno.

 O Dr. Schwarme precipitou-se para fora do elevador como quem fosse tomar a recepção de assalto, só faltou o "hurra! hurra!". Moor se lhe juntou, pálido como um cadáver e um pouco hesitante.

 O homem de jaleco branco, ansioso, levantou a vista do romance policial. Aqueles que voltavam lá de baixo a essa hora haviam dado uma parada no Clube do Pescador. Ele sabia disso por seus mais de quarenta anos de viagens em barcos de passageiros; era inconcebível as coisas que os fregueses levavam do bar nocturno lá para cima. Podia-se escrever um livro impróprio para menores sobre isso; a começar pela dama vestida só de calcinha trazendo o resto da roupa debaixo. do braço, até aquele senhor director que toda a vez que bebia champanhe tinha diarreia e saía correndo para a cabina com as calças cagadas. Os dois cavalheiros que nesse momento chegavam ali em cima, também estavam possuídos de uma pressa igualmente suspeita. Ele os encarou com afecto.

 - O director de hotel! - disse o Dr. Schwarme ofegante. - Precisamos falar agora mesmo com o senhor director de hotel.

 - Agora? São quatro da manhã.

 - Eu não lhe perguntei que horas são - uivou o Dr. Schwarme. - Trate de acordar o Sr. Riemke agora!

 - Isso é impossível. - O homem da vigilância nocturna continuou pacientemente sentado em sua cadeira. O teor alcoólico dos dois cavalheiros era razão mais que suficiente para perdoar-lhes muitas coisas.

 - De que se trata?... De um grito, de um grito medonho - gritou Moor.

 - De rachar madeira - assentiu o Dr. Schwarme. - Entenda, homem! Um grito!

 

 - Sim senhor, um grito. - O guarda-nocturno assentiu. Pelo menos uma novidade. Nenhum drama conjugal, nenhum bêbado, nenhuma senhora pelada, nenhum cônsul cagado... agora temos dois gozadores. - Onde?

 - No convés C.

 - Ah!

 - Que quer dizer com esse "ah!"? - berrou o Dr. Schwarme.

 - Quero dizer que os caras lá do bar voltaram a tocar um cool. Eles têm um disco no qual um canto faz "já!" com uma voz guinchante.

uma coisa maluca, mas as pessoas gostam! Está no hit parade.

Olha, os dias de hoje são um pouco pirados. Os críticos acham Heino, o bom cantor, uma porcaria, mas quando alguém peida no microfone, eles adoram; a nova bossa! Onde é que fomos parar...

 O Dr. Schwarme encarou pasmado o sujeito da guarda nocturna.

 - Você ficou maluco? - disse ofegante depois de algum tempo. - Está aí filosofando sobre música, enquanto nós comunicamos ter ouvido um grito de morte...

 - No convés C.

 - Sim! - berrou Moor, nesse momento já com os nervos à flor da pele. Em se tratando de um funcionário público do departamento de cadastro, isso significa alguma coisa. - Um grito de morte! É isso aí!

 - Duas vezes!

 O vigia nocturno assentiu atencioso.

 - Dois mortos no convés C. E por causa disso devo acordar o senhor director de hotel?

 Moor encarou horrorizado o sujeito atrás do balcão.

 - Meu Deus do céu, que tipo de navio é esse?! - balbuciou ele, recostando-se na parede de espelho e respirando com golfadas profundas como se o ar ali fosse rarefeito demais. - Dois mortos não são nada! Sr. Dr. Schwarme...

 - Isso não vai ficar assim não! - o Dr. Schwarme levantou o indicador num gesto de ameaça dos tempos primitivos. - Pode contar com isso. As consequências serão arrasadoras. Vou convocar todos os passageiros para o Salão dos Sete Mares e explicarei tudo a eles. Na Alemanha eu iria para a imprensa.

 - Chamarei a ronda - disse o homem da guarda nocturna de modo tranquilizador. - Eles vão verificar. Convés C. Gritos de morte. Dois. Os caras vão ficar contentes. Meus senhores, podem ir para a cama. Tudo vai entrar nos eixos. - Pegou o telefone, discou um número... era do laboratório fotográfico onde, naturalmente, não havia ninguém trabalhando nesse momento. E, sob os olhares críticos do Dr. Schwarme e de Ludwig Moor, disse: - Jan, será que dá para você levar sua tropa inteira para examinar todo o convés C? Alguém gritou por lá. Com um terror de morte. Estou com duas testemunhas aqui. Sim, pode deixar que anoto os nomes. - Ele fingiu estar ouvindo uma resposta e depois disse para o Dr. Schwarme: - O pessoal da ronda vai descer agora mesmo para inspeccionar. Seus nomes, por favor?

 - Dr. Schwarme, cabina 018.

 - Ludwig Moor, cabina 382.

 O homem atrás do balcão assentiu.

 - Suponho que o senhor comandante vai dar-lhes uma explicação pessoalmente. Boa noite!

 Satisfeitos, o Dr. Schwarme e Moor retornaram ao elevador.

 

 - Basta a gente ter a energia suficiente - disse o Dr. Schwarme cheio de vaidade. - Energia e segurança! As pessoas ficam impressionadas. Jamais devemos ceder diante desses sujeitos subalternos! Bem, estou ansioso para saber o que o comandante nos dirá amanhã de manhã. Não vai poder simplesmente subestimar ou pôr de lado um grito desses.

 O elevador sibilou e os dois satisfeitos cavalheiros deixaram-se levar aos seus conveses.

 

A tarefa de um comandante é comparável à de um prefeito. Natural que um navio viaje através do Pacífico de São Francisco até Hong-Kong. Para isso ele tem os melhores instrumentos náuticos a bordo e uma meia dúzia de oficiais, radar e cartas marítimas exactas. Ninguém fala sobre isso, o trabalho é dele. Mas a coisa não termina aí. O que acontece pelo navio é muito mais dramático do que, talvez, a entrada em ziguezague no porto de Nawiliwili. Fazer com que convivam seiscentos passageiros e trezentos homens da tripulação no decorrer de algumas semanas, num espaço apertado, com todo tipo de insuficiência e imponderabilidade da natureza humana; durante muitos e muitos dias comandar de maneira invisível e discreta uma pequena cidade flutuante; escutar e aplainar pequenas e grandes preocupações todos os dias; receber queixas justificadas e críticas obstinadas; controlar a disciplina da tripulação, isso sem falar das obrigações sociais nos coquetéis das festas de aniversário e até das recepções particulares de personalidades conhecidas... são apenas uma pequena parte dos deveres a cargo do prefeito, aqui chamado de comandante. Mas os conhecedores especialistas da matéria sabem que os piores aborrecimentos, que dilaceram e esfrangalham os nervos, vêm da companhia de navegação. É bem verdade que esta está situada bem distante, na Alemanha, mas sua presença é constante a bordo por rádio ou telefone. E a coisa fica bem incómoda quando alguém da presidência viaja como passageiro. Existem comandantes que encaram isso como uma refinada punição.

 Nessa manhã, Hors Teyendorf também encontrava-se com o estado de espírito para chamar sua companhia de navegação por rádio e dizer: "A partir de agora abdico de qualquer responsabilidade!"

 O causador do aborrecimento actual estava um pouco amarrotado na habitação do comandante, cercado pelo director de hotel Riemke, pelo director de cruzeiro Manni Flesch e pelo mestre-de-cerimónias Hanno Holletitz. O director de cruzeiro de um navio é o responsável pelo entretenimento a bordo.

Ele organiza as festas de bordo e apresentações dos artistas, ocupa-se da televisão de bordo, dá notícias vindas por rádio da Alemanha duas vezes por dia e patrocina competições de mergulho com senhores sérios e temidos na vida particular por suas posições superiores, que ali saltam alegres na piscina para ir buscar colheres de metal. Existem torneios de ténis de mesa e campeonatos de xadrez, bem como cursos de pintura e arte. Mas um director de cruzeiro existe sobretudo para servir de pára-choque para todo o mau humor que porventura os passageiros entediados arrastem consigo.

 

Pois, depois de cinco dias, no mais tardar, uma grande quantidade deles fica com vertigem de bordo; então, para eles nada mais está direito, mas nada mais mesmo. Um director de cruzeiro sem pele de couro não chega à idade madura.

 Em compensação, um homem como Hanno Holletitz, o Mestre-de-cerimónias, leva uma vida mais fácil. Ele é conferencista, locutor, formador do moral, contador de piadas. Sempre que ocorre uma apresentação - exceptuando-se, claro, um concerto de violoncelo ou uma noitada de piano; esse tipo de coisa é apresentado pessoalmente pelo director de cruzeiro - então um homem como Holletitz é o ponto culminante da noite.

Nas festas à fantasia, nas noitadas bávaras, nos torneios de dança, nas apresentações de folclore em que as moças do Taiti ou grupos de maoris sobem a bordo, nas sessões de magia ou de "Música... Música dos Anos Quarenta", Holletitz anima o espírito contando piadas que muitas vezes equilibram-se à beira do decoro. Quem melhor as aproveita são as mulheres - seria pelo teor de iodo do ar marinho? -, pois em geral sua risada clara abafa o sorriso entre os dentes dos homens. No mar muitas coisas ficam diferentes...

 Portanto, nessa manhã, o comandante Teyendorf, Riemke, Flesch e Holletitz cercavam um homem de cabelos negros do tipo típico das terras do sul, que estava com um evidente ar de contrição e tinha as mãos levantadas num gesto de defesa, como se estivesse com medo de ser jogado ao mar naquele exacto momento.

 - Eu estava adivinhando - disse o comandante. - Fui contra desde o início; ainda sou contra e sempre serei. Mas essa companhia de navegação! Todos sabiam muito bem. Permissão excepcional. É só de São Francisco até Acapulco! Só! Fui enérgico quando observei que isso é proibido pelo direito naval. Só dessa vez, uma excepção. E agora a merda está em nossas mãos!

 - Quem podia prever? - o envergado meridional levantou ainda mais as mãos no círculo de seus acusadores. - Afinal de contas, é a primeira vez que eles estão no mar. Quem podia saber? Só se sabe que eles são muito sensíveis.

 - Esses brutos... e ainda por cima sensíveis! - o director de cruzeiro Flesch e Riemke sacudiram a cabeça espantados.

 - Acontece com frequência - replicou o meridional versado nas coisas de circo. - Uma vez eu vi um lutador de boxe gigantesco chorando muito por ter atropelado um cão com seu carro.

 - Aqui se trata de coisa bem diferente de um lutador de boxe delicado! - a voz de Teyendorf ficou mais alta. - Como vai ser daqui por diante?

 -  Em acapulco acaba tudo.

 - Isso ainda leva três dias! E enquanto isso? Claude Ambert, este era o nome do sujeito envergado, encolheu os ombros. Antes da viagem por mar, ele escrevera à companhia de navegação: "Eu poderia subir a bordo em São Francisco e desembarcar em acapulco onde tenho um contrato para apresentação. Faço uma apresentação a bordo por um caché especial..." Não tinha nenhuma esperança de receber uma resposta. Mas esta veio bem rápido por telex: sua proposta fora aceite. Talvez a expressão "caché especial" tivesse tido um efeito mágico; no mundo dos negócios elas são as palavras mais usadas.

 

 Em todo caso, a permissão inesperada deixou-o louco de alegria, mas quando o NM Atlantis atracou no píer de São Francisco e ele apresentou-se ao comandante, viu como uma pessoa relativamente delicada e sobretudo educada era capaz de vociferar usando palavras bem ordinárias. Após uma hora, Ambert compreendera que sua presença a bordo correspondia a um crime, embora a companhia americana não somente suportasse, se não que estimulasse isso. As comunicações por rádio, voando de um lado para o outro, não eram nenhuma novidade. A companhia de navegação mantinha-se firme: Ambert sobe a bordo, faz uma apresentação e depois desembarca em acapulco. Quatro dias com ele, dá para suportar! Não se devia ter tão pouco humor assim, por favor. Essa apresentação entraria para a história do NM Atlantis como uma curiosidade incomparável. Além do que, essa era a vontade expressa do Dr. Humperday, membro da directoria, cujo amigo, o Dr. Kragges, já se encontrava a bordo. E o Dr. Kragges era um amante entusiasta...

 - Não faz sentido ficar gritando aqui - disse Riemke que, na qualidade de comissário-chefe bem como director de hotel, era tido como uma pessoa de raciocínio prático. - Alguma coisa deve acontecer. Estão aí as queixas dos passageiros, mas nós não vamos dizer-lhes a verdade até faltar um dia para Acapulco, até a entrada em cena. A propósito, depois disso não devem ocorrer mais esses gritos que as pessoas escutam a milhas de distância.

 - Afinal, são tão sensíveis... - disse o director de cruzeiro com um jeito sarcástico. - Na verdade, após três a gente devia buscar um psiquiatra, não?

 - Meus senhores, o que sabem sobre o psiquismo de um elefante?! - disse Ambert rígido. - A alma de um elefante é uma maravilha.

 Em São Francisco, quando os passageiros em fim de viagem já haviam saído de bordo e os novos ainda não tinham chegado, entraram no navio dois pacientes elefantes, com gigantescas orelhas ondulantes, batendo os pés um atrás do outro, o de trás segurando a cauda do da frente. Trotaram pela escotilha sem hesitar, como se uma viagem pelo mar fosse a coisa mais natural para eles, enquanto seu tratador Claude Ambert, de terno preto e turbante branco, irradiava de alegria. Ele não ouviu quando Teyendorf disse na ponte:

 - Isso vai dar cem por cento errado!

 - Mas isso é uma loucura completa, senhor comandante. - Willi Kempen, o condutor que se encontrava em contacto por rádio com o contramestre lá embaixo no píer, ouviu a comunicação vinda do porão. Os dois paquidermes cinzentos pareciam ser rapazes bem pacíficos - perdão, pareciam ser moças adoráveis, pois se tratava de elefantas -, olharam a sua volta no novo alojamento, ergueram as trombas e soltaram um satisfeito

guincho. Ambert deu-lhes como ração especial um pão branco inteiro, pesando cada um dois quilos. Num compartimento contíguo havia quatro enormes baldes de água para fazer os pães descerem.

 - Mesmo tendo uma grande quantidade de palha... esses brutos mijam e cagam um bocado. Até Acapulco isso aqui vai virar um chiqueiro, senhor comandante.

 - Diga isto aos cavalheiros da companhia de navegação; Kempen.

- Teyendorf fez um sinal negativo. - Não falarei mais nada sobre isto. Meus lábios já estão cansados. E qual o resultado? "Não seja tão pedante", esta foi a resposta; "imagine como os passageiros vão ficar contentes quando os elefantes dançarem rumba no convés superior".

 

 - Rumba? No convés superior? - o condutor ficou de olhos arregalados. - Mas como é que os bichos vão chegar ao convés superior?! Pela escada? De elevador? Puxados por guindaste? Senhor comandante, tudo isso é uma loucura!

 - Por mim a coisa está liquidada. - Teyendorf bateu com o punho cerrado sobre a amurada. - É Flesch quem terá de esquentar a cabeça com isso.

 Mas, claro, isso foi apenas uma maneira de falar. Naturalmente que um comandante tem a ver com tudo o que acontece em seu navio. Sem a palavra do comandante nada anda, nenhuma decisão é tomada, nenhum problema solucionado. A bordo, com toda a democracia e liberalismo, na verdade reina um princípio patriarcal.

 E, assim, agora também era o comandante quem devia decidir o que iria acontecer. Dois passageiros haviam comunicado espantados ao guarda-nocturno nas primeiras horas da manhã: dois gritos de morte tinham sido dados no convés C.

 - Gritos de morte! - disse Claude Ambert perplexo. - Minhas pequenas apenas trombetearam. Elas estão intranquilas, meus caros.

 - Olha, eu sei como soam os gritos dos elefantes... do circo, do jardim zoológico e por um passeio em Sri Lanka. - Nervoso, Teyendorf acendeu um cigarro. - Para um passageiro inocente e despreocupado, a coisa deve ser arrasadora no verdadeiro sentido da palavra! Pode provocar um ataque do coração, meus senhores. Afinal, quem iria supor que há elefantes a bordo? Então, a pessoa sai inofensivamente do bar e dá de caras com um grito espantoso. O coração deve quase parar! Senhor Ambert...

 - Os elefantes também são seres vivos com nervos. Inclusive com nervos delicados...

 - E o que significa isso?

 - Sissy e Beata estão enjoadas por causa do mar.

 - Era só o que faltava! - gritou o condutor Willi Kempen. - Elas também vomitam?

 - Por enquanto não.

 - Mas podem vomitar?

 - Bem, elas são mamíferos. Como eu e você.

 - Obrigado. - Agitado, Teyendorf tragou o cigarro. - Portanto, que fazer? Devem parar esses gritos de trombeta!

 - Não se pode dar um nó na tromba de um elefante, senhor comandante! - Ambert gritou horrorizado. - Se elas não estivessem enjoadas, estariam quietas.

 - Chame o Dr. Paterna aqui em cima, Kempen. - Teyendorf ficou andando de um lado para o outro em sua imensa sala de estar com elegante mobiliário e paredes revestidas de madeira. Holletitz tentou uma piada, afinal essa era sua profissão:

 - A formiguinha parou na frente de um elefante e disse: "Ei, e se a gente se amasse agora, então..."

 - Pare com isso, Holletitz! - Teyendorf interrompeu de modo cortante. - Não podemos subestimar essa coisa com piadinhas. As elefantas estão enjoadas... aliás, como é que pode, Sr. Ambert? Com esse mar tranquilo!

 - Elas são criaturas extremamente sensíveis. Todo mundo sabe que os elefantes têm almas bastante delicadas.

 

 - Quer dizer então que isso pode significar que elas vão ficar cada vez mais barulhentas e darão suas trombeteadas em espaços de tempo cada vez menores, sujando todo o seu ambiente e, vamos supor que o caso seja grave, ficarão furiosas e demolirão o porão. As paredes e portas foram construídas prevendo-se casos normais; mas quando dois elefantes desse calibre se enraivecem, eles derrubam portas e paredes como se fossem de papelão. Não podemos nem acorrentá-las! - Teyendorf esmagou o cigarro.

- Mais tarde enviarei um telex para a companhia de navegação. Do tipo que eles nunca leram antes!

 Bateram na porta. O Dr. Paterna, médico de bordo, entrou no camarote do comandante. Encarou admirado a reunião dos cavalheiros visivelmente agitados.

 - Aconteceu alguma coisa? - perguntou ele de imediato.

 - De quantos medicamentos precisa um elefante com enjoo do mar? - perguntou Teyendorf.

 O Dr. Paterna virou a cabeça e encarou Willi Kempen. Será que o velho está querendo gozar-me? Mas essas caretas estariam sérias demais para isso.

 - Na veterinária, pelo menos é o que eu acredito, calcula-se a quantidade segundo o peso do paciente. - O Dr. Paterna estava um tanto consternado. - De que se trata?

 - De dois elefantes com enjoo do mar - disse Riemke.

 - Não compreendo...

 - Temos lá embaixo no convés C dois elefantes enjoados para tratar. - Teyendorf esfregou as mãos. - Sim, o senhor arregala os olhos, doutor. Não existe nada que a nossa companhia de navegação não torne possível! Este aqui, o Sr. Claude Ambert, é o tratador. Ele acabou de me notificar que Sissy e Berta são criaturas tão sensíveis que até o mais leve marulho faz tremer seus corpos de toneladas de peso.

 - É verdade - disse o Dr. Paterna sério.

 - É verdade o quê? - balbuciou Riemke.

 - Os elefantes são criaturas delicadas. Mas o que é que eu posso fazer?

 - Você deve dar um remédio contra o enjoo do mar para Sissy e Berta.

 - É impossível, senhor comandante.

 - Por quê?

 - Para deixar dois elefantes em condições de navegar... bem, não tenho cinquenta quilos de medicamentos aqui. A farmácia do navio está montada para tratamento médico de seres humanos. Eu desisto.

 - Você ouviu, Sr. Ambert? - Teyendorf voltou a dar suas passadas de parede a parede. - Todos nós desistimos dos seus elefantes. O que se pode fazer? E o que pode acontecer se não fizermos nada?

 - Pelo amor de Deus! - espantado, Ambert cerrou os punhos.

- Alguma coisa precisa ser feita! Sissy e Berta podem ter um ataque do coração. Os elefantes têm o coração instável.

 - Seria uma solução - disse Riemke de modo seco. - Ainda não temos bife de elefante no cardápio.

 - Eu só ouço brincadeiras estúpidas em toda a parte. - Teyendorf lançou um olhar incisivo para o Dr. Paterna. - Doutor, trate de pensar nalguma coisa!

 - Bem, se eu der cinquenta comprimidos de dramamine num balde de água a cada paquiderme, deve fazer algum efeito. Mas não vai dar para aguentar muito tempo. São cem pastilhas por dia.

 - Só até Acapulco - disse Flesch, o director de cruzeiro encarando o rosto espantado de Ambert.

 

 - Isso... isso tem algum efeito colateral?

 - Sim. Os comprimidos deixam a criatura cansada.

 - E o que farei com elefantes cansados? - berrou Ambert: - Devo fazer uma apresentação aqui. Sissy e Berta devem dançar rumba.

 - Nesse caso, elas não vão dançar rumba nenhuma! - Teyendorf respondeu com outro grito, facto incomum em seu jeito em geral

tranquilo. - Elas não se apresentam e dormem até Acapulco.

 - O coração delicado delas...

 - Pare com isso! - Teyendorf fez o punho sibilar no ar. - Os elefantes vão receber o balde cheio de dramamine, é uma ordem do comandante, entendido?

 - Nesse caso, peço permissão para dormir junto com meus animais.

- Ambert tremia de agitação. - Devem montar uma cama de emergência ao lado deles.

 - Tudo o que quiser, Sr. Ambert... mas trate de manter seus bebés gigantes bem calmos! - Teyendorf olhou na direcção de Riemke, o director de hotel. - Qual explicação você vai dar aos dois cavalheiros a respeito dos gritos?

 - Trombetas... - objectou o acanhado Ambert.

 Mas o Sr. Riemke tinha uma outra solução:

 - Já andei pensando nisso. Explicarei que a trave de uma roldana afrouxou um pouco provocando um guincho do cabo de aço.

 - Mas isso é uma babaquice completa!

 - Para nós, claro. No entanto, esses dois cavalheiros vão acreditar. Sobretudo se deixarmos plausível para eles que um navio vive com centenas de barulhos que um leigo jamais saberia explicar.

 - Vamos tentar. - Teyendorf fez um aceno curto com a cabeça. - Obrigado, meus senhores.

 Na escadaria lá fora, o Dr. Paterna pousou a mão no ombro de Ambert.

 - Vamos até o hospital agora e depois até suas amadas. Prescreverei a menor dose possível.

 - O senhor vai envenená-las, doutor. Será que não bastam vinte e cinco comprimidos por elefante?

 -, podemos testar. Portanto, vamos começar então com vinte e cinco pastilhas.

 - Obrigado, doutor. - Ambert ficou com os olhos marejados de lágrimas. - Sissy e Berta são todo o capital que tenho, são minha vida. Levaram três anos para aprender todos os números e truques. As duas tornaram-se minhas filhas. Com elas posso conversar como converso com o senhor, doutor. E as duas me respondem. Compreendo cada som que fazem. Doutor, devemos tratá-las com todo cuidado.

 - Com luvas de veludo. - O Dr. Paterna deu um sorriso tranquilizador. - Afinal, são senhoritas, não é mesmo? E a minha especialidade é o tratamento compreensivo das damas.

 

O casal von Haller tinha uma noite tranquila atrás de si.

 

 Não era de se admirar: o Sr. von Haller embriagara-se antes no bar Atlantis com tudo a que tinha direito, já na primeira noite a bordo apalpara as nádegas de três comissárias, coisa que elas encararam de maneira educada, mas transmitiram a notícia com toda a rapidez, e depois foi arrastado para a cabina 156, pendurado no braço de sua esposa, uma mulher de medidas impecáveis e que sem dúvida nenhuma havia sido uma beldade cheia de paixão contida nos anos da juventude.

 Ele era um alegre senhor idoso, na casa dos setenta, um conversador charmoso e espirituoso, cuja esclerose cerebral fazia com que contasse tudo três vezes, sem - Coisa que deve ser elogiada - mudar coisa alguma. Tinha uma postura erecta - "sou um antigo membro da cavalaria, ficava sentado na sela como um dois de paus, a coluna bem esticada, o olhar para a frente, para o inimigo!" - e cabelos grisalhos ondulantes que lembravam o jeito de Einstein. E havia mais uma coisa que certamente ninguém sabia a bordo, à excepção do comandante: ele usava um nome falso.

 O Sr. von Haller era da nobreza, uma alteza, era o príncipe Friedrich Enno von Marxen, e sua espigada mulher chamava-se Juliane Herbitina, princesa von Marxen, nascida em Oyen e cujo nome de solteira era von Oyen. E com esse nome e também para não despertar outras coisas, as altezas viajavam como von Haller, metendo-se pura e simplesmente na aristocracia mais baixa.

 Portanto, a noite havia sido tranquila, o príncipe estava sentado na beirada da cama escutando a mulher cantarolar no banheiro ao lado. Depois ela bufou debaixo do chuveiro qual um hipopótamo emergente e gritou:

 - Pode vir agora, Friedi!

 O príncipe suspirou e continuou sentado na beirada da cama. Havia quarenta e cinco anos que ela o chamava de Friedi, desde o primeiro beijo no jardim do castelo Herrschenhain, e ele não conseguira dar um fim a esta palavra imbecil que soava como se fosse um som de linguagem de bebé. Do ponto de vista estritamente psicológico, este fora um dos estímulos que o transformaram no que ele era agora.

 A princesa Juliane Herbitina - em geral, a alta aristocracia adorna-se com nomes estranhos - saiu do banho desnuda. Nela tudo era gigantesco: os seios, os quadris, as coxas, as nádegas, resumindo: uma montanha de carne que não se podia abranger com um olhar. E mesmo assim não parecia gorda nem rechonchuda, pois tudo nela era bem proporcionado, combinando-se numa harmonia completa; só que rasgava qualquer

fita métrica.

 Ao contemplar essa visão, o príncipe suspirou mais fundo ainda e andou descalço pelo tapete do chão.

 - Que propõe para hoje, meu tesouro? - perguntou ele.

 - Vamos ficar com a combinação violeta, Friedi. - Ela passou por ele, o chão tremeu sob cada passo dado, e olhou pela janela o mar lá fora.

Antigamente, a parte traseira dela induzia a que ele saltasse de modo espontâneo e mostrasse a ela pela milésima vez como tudo acontecia lá fora, na natureza, mas esses tempos haviam passado. Nem mesmo a mais intensa lembrança produzia alguma excitação e as fotos das revistas pornográficas eram contempladas por ele como se fossem reproduções de quadros de Rubens. Ainda havia apenas uma coisa que ainda o estimulava um pouco em seus setenta e três anos, dando um leve indício de como devia ser antes nos dias nublados. E era sobre isso que estavam falando agora.

 - A violeta, minha querida? - perguntou o atencioso príncipe. - Como queira. Vamos começar.

 

 - Estou vendo peixes-voadores. Ah, como é bonito! - Ela coçou a nádega direita, dura como mármore, e depois deu um tapa com a mão espalmada. Pairava no ar o aroma de um perfume exótico. Os conhecedores diriam: trata-se de gengibre branco. - Tome o banho primeiro, Friedi.

- É para já, querida.

 Ele entrou no banheiro arrastando os pés, postou-se debaixo do chuveiro, esfregou-se com geléia de banho massageando-se um pouco. Com isso, conseguiu meia erecção, alegrando-se como uma criança que ganha um brinquedo e, todo encharcado como estava, correu de volta ao quarto.

- Dê só uma olhada nisso! - gritou com voz trémula. - Um Marxen jamais fica velho!

- É o ar marinho que faz isso, Friedi. - A princesa lançou apenas um olhar rápido naquele acontecimento, tornou a coçar a nádega direita e, com um sorriso sarcástico, ficou vendo o príncipe virar-se diante do espelho da parede, até que o motivo da enfática alegria começasse a murchar de novo.

 - Não seja infantil, Friedi - disse a mulher enquanto ele continuava a girar diante do espelho. - Vamos tomar o desjejum. Estou com fome. Vá enxugar-se.

 O príncipe assentiu, um pouco tristonho diante da rápida transitoriedade, voltou arrastando os pés para o banheiro e enxugou-se. Enquanto isso, a princesa retirou do armário as meias femininas violetas, uma liga violeta com tiras guarnecidas com pregas também violetas e um sutiã transparente da mesma cor. Colocou tudo lado a lado na cama do príncipe e, em seguida, tirou do armário um terno preto, uma camisa social, meias masculinas e tudo mais que um homem usa.

 Com gestos lentos, ela vestiu o traje masculino, completo com gravata e sapatos, e depois foi sentar-se no banquinho acolchoado junto à janela. Os peixes-voadores continuavam a cintilar diante da janela, com o sol reflectindo-se nas barbatanas transparentes. O Atlantis deslizava de modo quase imperceptível pelo mar de um azul quase incrível e de ondas suaves.

 O príncipe saiu do banheiro e começou a vestir-se, colocando primeiro o sutiã. Seguiram-se as ligas e, por último, ele rolou as meias pelas pernas. Ele ofegava enquanto se vestia, respirava pesado e, depois de vestir tudo, sentou-se na cama com postura empertigada, na pose lasciva e provocante de uma puta de luxo. Com as pernas cruzadas e também um pouco esticadas, o dorso um pouco jogado para a frente oferecendo a escassa pelugem grisalha. Mas seu rosto estava irradiante, sua cabeça parecia francamente bela. Dava para se imaginar que na juventude ele devia ter possuído uma figura imponente, acentuada, aristocrática.

 A princesa olhou para ele e bateu com o nó do dedo no tampo da mesa.

 Um calafrio percorreu o corpo do príncipe. Suas coxas abriram-se ainda mais.

 - Entre! - gritou ele. Sua voz soou um tanto afectada. - A porta está aberta, querido.

 A princesa vestida com trajes masculinos levantou-se do banquinho e andou até a cama. Por sua postura, maneira de caminhar e expressão, podia-se ver que ela interpretava o papel entediada, petrificada pela rotina e hábito, assim como quem escova os dentes e gargareja pela manhã.

 

 - Você está de novo encantadora, meu docinho - disse ela. - De prender a respiração. Você me deixa louco com esse seu corpinho. Eu podia virar um animal de rapina e parti-la ao meio!

 - Faz isso... faz isso... - balbuciou o príncipe caindo para trás, sobre os travesseiros, com as pernas bem escarranchadas. - Ele pertence a você... tudo lhe pertence, somente a você... você, homem alto e forte; você, Hércules; você, deus grego; você, centelha de fogo... Aniquile-me com seu amor! Liquide-me! Ohhhhh...

 Animado, o príncipe fechou os olhos, o canto da boca tremia. Com um ar de entediada, a princesa tirou a gravata, torceu-a transformando-a numa corda de seda e começou a bater no príncipe com ela. Este estertorava de prazer curvando-se sob os golpes, empinando-se; e, quando a princesa inclinou-se sobre ele, enrolou a gravata em torno de seu pescoço e estrangulou-o com todo cuidado, o príncipe soltou gritinhos

ofegantes que pareciam ser:

 - Ah, que prazer! Que prazer!

 De repente, ele relaxou, pressionou as pernas uma na outra e enterrou os dedos no lençol. A princesa tornou a empertigar-se, tirou a camisa pela cabe a e foi abrir o armário, para procurar um vestido de pregas, arejado e florido, para o desjejum. Em virtude de sua potente silhueta, ela possuía a coragem para usar algo assim, mas os condes von e zu Oyen sempre foram sujeitos corajosos.

 O príncipe tornou a sentar-se ainda respirando pesada e ofegantemente. Seu rosto reflectia o prazer.

 - Como estive, meu amor?

 - Muito bem. Mas a expressão centelha de fogo foi nova.

 - O ar marinho. Foi você quem disse, meu amor. O ar marinho me deixa excitado. - Ele livrou-se do sutiã violeta; abriu bem os braços como quem pratica a ginástica matinal, contraiu-os e tornou a abri-los, enquanto observava a mulher que se vestia. - Você tem uma bunda esplêndida, minha linda.

 - Trata de se vestir logo, estou com fome. - A princesa pós o vestido de pregas e contemplou-se com ar crítico no imenso espelho de parede.

- A propósito, vi uma comissária que é do tipo exacto que lhe agrada. Alta, com jeito de rapaz e magra, cabelos cortados à joãozinho. Vestida com roupas de homem... seria o seu ideal!

 - Fale com ela, meu tesouro. - O príncipe deu um salto da cama.

- Fale logo com ela! Ofereça-lhe um bom preço. - Ele foi até o banheiro, tirou as ligas e meias, enxugou-se e então voltou a ser o velho de pele descorada e enrugada, braços finos e sem músculos e penugem grisalha. - Mande-a vir assistir amanhã de manhã. Ah, você tem de mostrar-me quem é... Cabelo à joãozinho, um pajem delicado... que maravilha!

 Meia hora depois o Sr. e Sra. von Haller apareceram no restaurante, um casal elegante e distinto que o próprio representante do comissário-chefe conduziu a uma mesa ainda livre, onde ele puxou a cadeira para a veneranda senhora.

 O príncipe esfregou as mãos qual criança que recebe um presente, prendeu um monóculo no olho esquerdo e disse com o prazer de quem sabe gozar a vida:

 

 - Quatro ovos mexidos com champinhon e duas fatias de presunto de Praga. Além disso, chá, meio louro, e uma canequinha de rum. E torrada... sim, claro, torrada, bem douradinha, por favor. - Recostou-se na cadeira, lançou um olhar irradiante para a mulher e acrescentou: - Que lindo dia, meu amor. Uma viagem marítima como essa não pode ser substituída por coisa nenhuma.

 

Por volta das nove e meia da manhã, a voz do oficial de segurança ressoou pelos alto-falantes de todas as cabinas, de todos os corredores, salões, bares e conveses:

 - Pedimos sua atenção para um importante comunicado. As determinações internacionais de segurança prescrevem que se realize um exercício de emergência para o caso de necessidade, no início de cada viagem marítima. Pede-se a todos os passageiros que, ao soar o sinal de sirene prescrito, três vezes três ruídos longos, vistam as roupas de salvamento que se encontram nos armários, venham até o tombadilho e concentrem-se sob os respectivos botes salva-vidas. O número dos botes está escrito nas roupas de salvamento. Ali chegando, nossos oficiais lhes explicarão as medidas para os casos de emergência e lhes darão alguns conselhos. Repito: as determinações internacionais de segurança...

 Por um terrível acaso, justamente Oliver Brandes encontrava-se nesse minuto no banheiro de sua cabina. É bem verdade que ele ouviu a voz saindo do alto-falante da cabina através da porta fechada, mas não compreendeu as palavras. Ao correr com as calças ainda arriadas para o quarto, houve um estalido e a voz desapareceu.

 Oliver Brandes engoliu um dos comprimidos que o Dr. Paterna lhe dera, empurrou-o com suco de laranja e depois foi para o convés. Posto que todas as espreguiçadeiras em volta da piscina estivessem ocupadas, ele subiu a escada que dava ao convés olímpico e ocupou uma cadeira da última fila, bem encostada na parede, para não ser obrigado a ficar olhando o mar. Só o leve movimento das ondas, o suave mergulhar e ascender do navio que se manifestavam no horizonte, aparecendo e sumindo na amurada, bastavam plenamente para provocar-lhe uma sensação opressiva no estômago. Brandes deitou-se rapidamente na imensa toalha que o comissário de convés lhe dera, puxou para cima da testa o chapéu de linho branco e adormeceu. Ao seu lado, uma senhora esfregava-se com óleo de bronzear que exalava um forte cheiro de coco. Na fila de espreguiçadeiras à sua frente, um senhor gordo relatava seus padecimentos da próstata sem a menor cerimónia e trocava experiências com outros cavalheiros.

 

 "Nesse trecho ao longo das costas californiana e mexicana, com esse mar liso e céu azul e ensolarado, nenhum navio pode naufragar, pensou Oliver Brandes satisfeito. Aqui não existe nenhum iceberg, como ocorreu outrora com o Titanic, e os perigosos furacões só acontecem nos mares do Sul. Mas nós ainda chegaremos lá", e, ao pensar nisso, seu coração apertou-se de novo. Oliver Brandes havia visto alguns filmes sobre furacões e tormentas, nos quais casas inteiras eram atiradas para o ar, automóveis transformavam-se em bolas, ondas da altura de prédios varriam a costa e a terra submergia na água. Quando um navio entrava numa coisa assim, de nada adiantavam as orações. De qualquer modo, Brandes estava firmemente convencido disso. Neste contexto, ele propôs-se dar um pulo até o assistente espiritual evangélico de bordo, o pastor Günter Wangenheim, para conversar e perguntar se, em caso de naufrágio do navio, ele poderia ir até lá para rezar.

 A sirene soou às dez em ponto, três longos sons, três vezes, um atrás do outro. Oliver Brandes acordou sobressaltado na espreguiçadeira e, com um horror vazio, viu seus vizinhos saírem correndo e muitos passageiros, já com os salva-vidas amarelos no pescoço, apressarem-se pelas escadas e conveses.

 - Eu bem que adivinhei - Brandes balbuciou e continuou deitado rígido como um pedaço de pau. - Eu bem que sabia! Mas já agora? Oh, meu Deus, por que tinha de acontecer? É a minha primeira viagem de navio... e ele mergulha nas profundezas do Pacífico.

 O comissário de convés foi até ele e, na opinião de Brandes, dando uma impressão de serenidade.

 - O senhor deve pôr o salva-vidas agora mesmo e ir até o local de seu bote.

 - Será que isso faz sentido? - Oliver Brandes cruzou as mãos. Ele já havia lido muito a esse respeito. - Primeiro mulheres e crianças... eu sou solteiro, vou por último. Não faz sentido.

 O comissário não o entendeu direito e estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a levantar-se.

 - a prescrição, meu senhor. Por favor, vá agora mesmo à sua cabina, ponha o salva-vidas e dirija-se ao local de seu bote.

 - Mas ele tem lugar suficiente.? - balbuciou Brandes.

 - Nossos botes e pranchas de salvamento podem receber o dobro... mas isso o senhor ainda vai ouvir.

 Brandes levantou-se, desceu a escada que dava para o seu convés e cruzou com os passageiros usando os salva-vidas, que se dirigiam ao tombadilho. Dois oficiais também passaram por ele: usando limpos uniformes brancos e sem salva-vidas. Claro, pensou Brandes. A tripulação por último. E o comandante fica lá em cima na ponte, leva a mão ao quepe batendo continência e afunda com seu navio. Já havia visto isso duas vezes no cinema e ficara profundamente comovido. O comandante e seu navio... fiel até à morte.

 Na cabina, ele enfiou o salva-vidas pela cabeça, viu que este tinha o bote número 4 e subiu até o tombadilho. Ainda não estamos adernando, pensou ele confiante. Isso é bom, pois o pânico não se espalha tão rápido. Talvez eu até sobreviva.

 Todos os companheiros de infortúnio já se encontravam reunidos sob o bote 4. Brandes admirou-lhes a disciplina, o humor macabro. Eles riam e conversavam, alguns inclusive fumavam ou tiravam fotos uns dos outros. O fotógrafo de bordo também andava de um lado para o outro tirando fotografias de casais junto à amurada ou de grupos alegres. Brandes achou bem macabro o facto de se marcar daquela maneira um perigo de morte. Recostou-se na parede e fechou os olhos, desamparado.

 - Com que então você está aí! - ele ouviu uma voz conhecida. - Eu o estava procurando.

 - Doutor, que bom que está aqui! - Brandes começou a tremer. - Vai ficar perto de mim, não vai? Também está no bote 4? Graças a Deus! Quanto tempo isso ainda vai levar?

 - Talvez uns vinte minutos, não mais. - O Dr. Paterna endireitou o salva-vidas de Brandes e apertou o laço. - Depois estará livre.

 - Livre... - Oliver Brandes engoliu em seco com trejeitos espasmódicos. - Imagino que deve ser terrível morrer afogado.

 - Só os primeiros minutos é que são ruins. Assim que a água entra nos pulmões...

 

 - Estou passando mal. - Brandes revirou os olhos. - Acho que vou desmaiar... - O Dr. Paterna agarrou o braço de Brandes e arrastou-o até à porta da escadaria. O exercício acabava para ele nesse momento, mas não seria necessário levá-lo ao hospital. Esse tipo de histeria curava-se sozinha e, se Brandes tivesse um pouco de álcool na cabina, passaria rápido pela crise.

 Pálido, Brandes deitou-se na cama, enquanto o Dr. Paterna buscava uma garrafa de vodca na cuba de gelo. Encheu meio copo e levou-o aos lábios de Brandes. Este arregalou os olhos como alguém que está sufocando.

 - Beba!

 - Senhor doutor, vou vomitar...

 - Não vai coisa nenhuma! Eu já havia pensado nisso, foi por esse motivo que o procurei por toda a parte.

 - Só mais vinte minutos. O senhor não quer salvar-se, doutor? Não precisa ficar aqui embaixo ao meu lado.

 - Senhor Brandes, trata-se de um exercício. Só isso! Claro que o senhor ouviu o comunicado...

 - Não ouvi coisa nenhuma. A bem da verdade, claro que alguém falou no rádio de bordo, mas nesse momento eu me encontrava no banheiro.

 - Trata-se apenas de um exercício para o caso de necessidade. Para que tudo possa transcorrer rápido, sem dificuldades ou pânico.

 - Eu sei. - Brandes estava deitado de olhos fechados na cama, com respiração funda e apressada. O meio copo de vodca começou a fazer efeito, sua cabeça girava. Parecia que havia água entrando por um rombo. Um rombo... o navio afundava... - Só está querendo tranquilizar-me, doutor. Obrigado. Estou sereno no fim. Eu vi que ia acontecer.

 - Sou uma pessoa educada, Sr. Brandes - disse o Dr. Paterna de modo ríspido -, e não existe nenhum paciente que possa queixar-se de mim. Mas eu gostaria de lhe dar um soco na fuga, só como terapia. Você não passa de um frouxo histérico! Daqui a pouco virá o outro sinal: fim do exercício.

 - O senhor sabe o que a orquestra tocou no Titanic no momento do naufrágio? O coral Mais Perto do Senhor, meu Deus... Afundaram tocando isso. O que vão tocar aqui?

 - Leve-me na viagem, comandante... - disse o Dr. Paterna com um jeito sarcástico.

 - Muito engenhoso.

 - Acho que você ainda precisa tomar uma vodca quádrupla. Senhor Brandes, nunca antes vi um sujeito como você a bordo. Como é que vou tirar-lhe esse medo patológico?

 - Ficará tudo bem quando eu voltar a pôr os pés em terra: O mar é terrível.

 - Por que seus companheiros de coral não o seguraram pelo braço? Afinal, onde estavam eles no momento do alarme?

 - Se eles tiverem enchido a cara, nem vão notar que o navio está afundando. Ninguém vai conseguir afastá-los do copo.

 - Enchido a cara? Já às dez da manhã?

 - Mas que importância têm as horas? - Brandes ficou mais calmo, a respiração já não estava mais estertorante, a vodca circulava por seu cérebro. - O senhor ainda vai conhecer meus camaradas, doutor.

 

 - Nada disso! - o Dr. Paterna levantou-se da beirada da cama e olhou Brandes de cima. Muitos pés arrastavam-se no corredor, uma algazarra de vozes passava pela porta. O exercício de alarme acabara. Agora os novatos tomaram conhecimento através dos oficiais sobre a segurança do navio que era quase insubmergível. E se de facto ele naufragasse, haveria lugar para todos nos botes de salvamento. A segurança era a oferta máxima a bordo. - Acredita agora que tudo não passou de um exercício? - perguntou o Dr. Paterna.

 - Sim. - Brandes encarou-o, súplice. - Desculpe-me, doutor. Mas não posso fazer nada. Eu sou assim. Histérico, não?

- Bem, eu chamaria a coisa de síndrome doentia de medo.

- Vocês, os médicos, são sempre tão amáveis com suas expressões especiais. - Brandes levantou-se, mas tornou a deitar-se no mesmo instante. O quarto começou a girar, a vodca derrubara-o por completo. - Como é que posso ser ajudado?

 - Você está noivo, é casado?

 - Não. Tenho uma namorada, mas não é um relacionamento firme. Porquê, doutor?

 - Você devia travar conhecimento com alguma pessoa simpática aqui a bordo. Dentro de três dias haverá um encontro de solteiros no bar Olímpia no qual as pessoas poderão conhecer-se à vontade. Você vai ver, uma linda mulher ao seu lado fará milagres.

 - Se eu comparecer ao encontro de solteiros, o coral inteiro vai cair na minha pele. Eles vão aprontar e me deixar numa situação difícil.

- Você tem sorte com as mulheres, Brandes...

- Depois ficarei desmoralizado pelo resto da viagem.

 - Mas é claro que você está acima dessas criancices, seja soberano! Tem quatro esplêndidas semanas pela frente, deve desfrutar delas, mais nada! E se seus colegas de coral se tornarem renitentes, basta citar-lhes Goltz von Berlichingen.

 - Vou tentar, doutor. - Brandes estendeu a mão ao Dr. Paterna mas continuou deitado. Na verdade, estou meio bêbado, pensou ele. Meio copo de vodca às dez da manhã... Afinal, não sou nenhum musique russo...

- Eu lhe agradeço.

 O Dr. Paterna deu-lhe um aceno amigável e saiu da cabina. No corredor encontrou o segundo-engenheiro que estava descendo à sala de máquinas.

 - Algum caso grave? - perguntou ele.

 - De jeito nenhum. Falta-lhe apenas uma experiência bem-sucedida.

 - DÊ a ele o número da cabina da Sra. White!

 Os dois deram uma gargalhada e saíram em direcções diferentes.

 Oliver Brandes dormiu. Teve um sonho clássico: uma belíssima mulher nua saiu do mar espumante. Afrodite, a deusa nascida da espuma.

 Brandes mergulhou por completo nesse sonho, soltando grunhidos de prazer.

 

Os gémeos Fehringer preparavam-se para o almoço.

 

 Não haviam tido nenhuma dificuldade com o café da manhã. Herbert comeu no restaurante, Hans mandou que lhe servissem o desjejum na cabina. Posto que o comissário de convés que distribuía o café da manhã para os passageiros de sua copa não tinha a menor idéia do que acontecia ao mesmo tempo no restaurante, jamais daria nas vistas essa duplicidade matinal. Claro que também era possível se pedir para que o almoço e jantar fossem servidos na cabina, mas em geral isso só era feito para os doentes. Era muito raro que uma pessoa sozinha ou mesmo duas quisessem ter uma refeição íntima. Nesses casos, a cabina transformava-se numa chambre séparée e o comissário num silencioso confidente e cúmplice.

Quando alguém encomendava à noite uma garrafa de champanhe com duas taças, canapés, um cesto cheio de frutas frescas e pastéis torradinhos, qualquer comissário sabia que só poderia entrar nessa cabina se fosse chamado.

 Os gémeos Fehringer haviam dividido a viagem de tal maneira que na primeira semana ocorresse a "troca a jacto" no restaurante, na segunda semana um ficasse doente e comesse na cabina e na terceira semana tudo se repetiria com a mesma habilidade. O mais tardar nessa terceira semana. O comissário de mesa já não podia mais compreender como uma pessoa era capaz de almoçar e jantar duas vezes, sem ficar gordo como um porco.

 - Vamos verificar as horas - disse Herbert Fehringer como quem prepara um ataque. Ele era o gémeo "mais velho", havia visto a luz do mundo exactamente quarenta e sete minutos antes. Hans, chamado orele de "caçula", respeitava essa hegemonia. - São agora 12 horas e 53 minutos.

 - Certo.

 - às 13 horas,30 minutos eu me levanto da mesa, chego ao banheiro às 13 horas e 32 minutos e às 13 horas e 40 minutos você se senta à mesa.

 - Entendido.

 Os dois postaram-se mais uma vez diante do espelho para verificar a roupa e a aparência. O mesmo penteado, isso sem falar do rosto inteiro, da mesma camisa, mesma gravata, mesmo paletó de tricô, calças, meias, sapatos... não havia diferença alguma.

 Os dois acenaram-se satisfeitos no espelho abrindo um largo sorriso. Essa era a terceira viagem de navio desse tipo e nunca antes houvera qualquer complicação. Eles sempre tomaram os maiores navios de cruzeiro, pois nestes, claro, uma pessoa perdia-se entre os seiscentos passageiros ou mais, com dois horários de refeição e mais de dez conveses... Mesmo quando aparecia duas vezes. Já no primeiro dia os dois haviam percebido que o navio mais difícil seria o Atlantis, posto que quase a metade dos passageiros estava repetindo a viagem e se conhecia. E porque reinava uma agradável atmosfera íntima no barco, apesar de seu tamanho. Era impossível impedir que as pessoas se conhecessem o mais tardar após uma semana, se não pelo nome, pelo menos de vista. Os passageiros trocavam cumprimentos amáveis e até mesmo algumas palavras sem maiores compromissos nos bares... e era justamente aí que residia o perigo para os gémeos Fehringer. Era possível que alguém descobrisse a dupla apresentação na troca no banheiro.

O jogo só estava ganho nesse dia quando um deles voltava ao restaurante e o outro encontrava-se na cabina.

 

 Herbert Fehringer deu outra longa tragada no cigarro. Formou-se uma brasa grande e, quando Herbert virou-se para a mesa, a brasa caiu de repente indo aterrissar na manga do paletó de tricô. Isso provocou um cheiro repugnante e queimou um pedaço de tecido, por mais rápido que Herbert tenha sido ao bater a brasa. O paletó estava estragado. Para que ocorresse a troca no restaurante, Hans também precisava chamuscar a manga de seu paletó.

 - Mas que grande merda! - disse Herbert Fehringer. - Não vou trocar de roupa outra vez! Você vai lá e eu banco o doente hoje. Em compensação trocamos à noite e você fica na cabina. Ninguém consegue melhorar de uma doença com tanta rapidez. Então, amanhã fazemos o giro normal.

 O destino deve ter actuado ali de alguma forma, pois esse almoço tornou-se decisivo para os gémeos Fehringer.

Hans Fehringer conheceu uma mulher, Sylvia de Jongh, no meio da multidão de passageiros que esperava diante da porta ainda fechada do restaurante.

Foi como se ele tivesse sido atingido por um raio.

 

Aqueles que conheciam Sylvia de Jongh só podiam ficar fascinados.

 Era uma dessas raras mulheres que exercem um efeito narcotizante sobre os homens. A pessoa a via, ouvia sua voz, media seu corpo com os olhos, desfrutava do rebolar de seu andar e, assim, perdia o sentido da realidade. Era-se possuído por uma magia sedutora, enriquecida com os desejos mais loucos.

 Ao ver Sylvia parada ao lado do marido, com os longos cabelos negros presos à nuca com uma fita de veludo vermelho sangue, os seios aparecendo no decote fundo do vestido que apenas envolvia-lhe a silhueta com uma auréola de cor, Hans Fehringer respirou fundo e recostou-se na enorme vitrine da entrada do restaurante que, junto dos cardápios, continha também as fotos do mestre-cuca, do comissário-chefe e dos anfitriões. Hans viu que aquela magnífica mulher também o notara, pois um Fehringer não passava despercebido nem por sua altura e nem por seu magnetismo masculino e elegância, mesmo sendo esta oriunda do catálogo de uma loja de ponta de estoque. Sempre depende de quem e como se veste alguma coisa; existem paletós de tricô feitos de cashmere que custam mais de quinhentos marcos e outros de tecidos mesclados por noventa marcos... uns caem no corpo como um saco, enquanto outros modelam o portador. Os olhares de Sylvia e Hans Fehringer cruzaram-se rapidamente; Hans ostentou um sorriso mágico nos lábios e Sylvia virou a cabeça na mesma hora. O homem ao seu lado disse alguma coisa e olhou para o relógio... ainda faltava um minuto para que a porta do restaurante fosse aberta. Ele parecia estar criticando essa pedante manutenção do horário, estava morto de fome; era um homem alto e pesado, visivelmente mais velho do que a mulher, com mãos largas e dedos fortes.

 No fundo, ele não pode compreender quando Sylvia cedeu diante de seu insípido pedido de casamento cinco anos atrás aceitando ser sua mulher. Ainda hoje, ele se perguntava, de vez em quando, como tivera a sorte de possuir uma mulher tão linda assim. Naquela época, Sylvia fora à sua ferraria artística a pedido dos pais, a fim de encomendar uma combinação de portas de três abas de ferro batido. Ele fizera três projectos, cada qual mais bonito do que o outro e, quando os pais se decidiram, ele e três aprendizes puseram mãos à obra com verdadeiro entusiasmo.

 A coisa começara assim. O ferreiro artístico Knut de Jongh possuía um bom nome conhecido além-fronteiras; já nessa época ele dava ocupação para vinte e quatro pessoas - hoje em dia, para sessenta e nove - e havia três anos que Knut era vivo. Sua mulher morrera afogada durante as férias numa ilha dinamarquesa, de ataque do coração, pelo que os médicos disseram mais tarde; uma situação trágica para a qual não havia nenhuma saída.

 

 O casamento com Sylvia, ele constatou com muita rapidez, era um stress só. Não porque Knut não conseguisse mais dar o que uma mulher bela e jovem ansiava da vida, por causa da diferença de vinte anos entre as idades dos dois, mas porque sempre que aparecia com Sylvia em qualquer lugar, ele era obrigado a testemunhar a rapidez com que os outros homens se imbecilizavam. Na verdade, Knut não tinha a menor razão para sentir ciúmes, pois Sylvia parecia ser uma esposa fiel, mesmo gostando de flertar. A despeito disso, ele ficava profundamente incomodado com o facto de os outros homens devorarem sua mulher com os olhos.

 Para não deixar que surgissem tentações de qualquer tipo, Knut de Jongh tomava pílulas para aumentar a potência, engolia cápsulas de proteína e, duas vezes por semana, era massageado para estimular a circulação sanguínea... tudo isso só para poder carregar Sylvia nas mãos largas até à cama ou o sofá, a fim de demonstrar que a melhor idade de um homem era aos cinquenta e dois anos.

 Mas já não ia mais aos banhos de mar com Sylvia. Ali ele não tinha um minuto de tranquilidade quando Sylvia passeava na praia vestida com um minúsculo biquini. Assim como os ursos seguem uma trilha de mel, os homens também trotavam atrás dela. Ele pensou algumas vezes se não devia usar a força adquirida na bigorna e na mesa de ferreiro - nesse caso a praia ficaria atapetada de homens inconscientes -, mas depois tomou a decisão de afastar-se nas viagens de cruzeiro. Via-se muita coisa do mundo, podia-se vislumbrar o areal, a maior parte dos passageiros era mais velha do que ele e tinha Sylvia sempre sob controle. Quando Knut estava sentado ao lado dela, um tronco de homem vestido de smoking branco sob o qual podia-se divisar os músculos, lançando um olhar duro a cada sujeito que se aproximava da mesa, ninguém ousava convidar a bela jovem para uma dança.

 Para Knut de Jongh, um navio era o lugar ideal para se passarem as férias.

 Treze horas. As portas de vidro abriram-se e os passageiros invadiram o restaurante como quem acabasse de passar por uma dieta de cura.

 Hans Fehringer também juntou-se à multidão. Ele avançara um pouco e, no momento da abertura da porta, estava postado atrás da bela mulher.

No momento em que Hans Fehringer postara-se ao lado de Sylvia, Knut de Jongh acabava de dizer:

 - Ora, até que enfim! Treze horas em ponto. Obstinado como um tanque!

 A mulher arriscou um olhar sobre Hans pelo canto do olho. Jogando a cabeça para trás e esticando-se. Ao fazê-lo, os seios abaularam-se ainda mais sob o fino tecido do vestido. Ela não estava usando sutiã, os mamilos ressaltaram-se de modo evidente.

 

 Com imensa alegria, Fehringer viu que o casal tinha a mesa número 9, junto à janela, numa linha oblíqua à sua mesa B 6. Coisa que lhe permitiu olhar a mulher o tempo todo, contemplar admirado cada movimento dela e lançar-lhe sorrisos. Isso não oferecia nenhum perigo, posto que o marido estava sentado de costas para ele. Inclusive, ao receber o vinho branco seco, Hans ergueu o copo e brindou-a.

Ela não reagiu, senão que virou a cabeça, olhou o mar pela janela, mas seus pés esgaravataram o tapete... um pequeno indício de seu nervosismo. Mais tarde então, ela brincou com o saleiro, leu o cardápio algumas vezes e, por cima da borda, lançou um olhar na direcção de Fehringer.

 

Depois, rápido, como um estremecer de pálpebras, sua cabeça tornou a virar-se para o lado e Sylvia deu outra olhada no mar. Enquanto isso, Knut de Jongh comeu seis pratos do cardápio e deu-se por satisfeito. Um homem como ele precisava de uma boa base, como ele chamava, para vencer o dia. Depois da refeição, iriam andar no convés, deitariam sob a coberta do deque de desportos e tirariam uma saudável sesta na espreguiçadeira, embalados pelo quente vento mexicano. A propósito, três vezes por semana - propor-se com toda firmeza - ele se retiraria à cabina após a refeição, acompanhado por Sylvia, a fim de refutar o estúpido mexerico a respeito da grande diferença de idade.

 Sylvia de Jongh comeu desconcentrada e muito pouco, apenas uma entrada e o prato principal, um peixe tropical frito, de carne branca e sem nenhum sabor de peixe. Em compensação, bebeu com razoável rapidez três copos de Chablis, sempre virando a cabeça à esquerda em direcção à janela, pois ao sentar-se recta na mesa diante do prato, seu olhar caía forçosamente em Fehringer, sentado numa linha oblíqua na frente dela.

 Ela levantou-se logo após o café, que encerrava a refeição, e disse algo ao marido que acabara de acender um charuto estreito mas evidentemente caro. Via-se que ele estava querendo fumar com prazer e não tinha a menor vontade de ir embora nesse instante.

 Fehringer ouviu alguns trechos de palavras e acreditou ter compreendido "convés". A fascinante mulher desviou-se de seu olhar num gesto de evidente defesa e saiu do restaurante. Hans Fehringer seguiu-a alguns minutos depois e encontrou-a no elevador. Postou-se atrás dela, entrou na cabina depois dela e aguardou até que a porta se fechasse.

 - Que devo apertar? - perguntou ele enquanto ostentava um sorriso significativo.

 - Solário, por favor.

 Sylvia ficou olhando um ponto fixo à sua frente e Hans Fehringer tornou a admirar-lhe a cabeça e o início dos seios. O perfume que ela exalava era acre e cheirava a limões frescos.

 - O senhor é um descarado! - Sylvia disse de repente, sem nenhum rodeio. - Afinal, o que está imaginando?

 A resposta é simples.

 - Eu nunca vi uma mulher tão linda como você e Deus sabe o quanto já andei pelo mundo.

 - E por acaso isso é alguma razão para comportar-se desse jeito arrogante?

 - E de que outra maneira eu poderia expressar minha admiração?

 - Não devia.

 - Você está exigindo o impossível.

 - E o que o senhor espera?

 - Não daria para dizer dentro de um elevador e num prazo de dois minutos. - Hans Fehringer deu uma olhada no mostrador luminoso do aviso dos andares. - Solário. Chegamos. Tem alguma coisa contra que eu também procure uma espreguiçadeira no solário?

 - Como passageiro o senhor pode deitar-se onde bem entender. Só lhe peço que, por favor, não se sente ao meu lado. No lugar do meu marido.

 - Talvez eu tenha sorte e a cadeira do outro lado esteja vaga.

 

 - Eu achava que o senhor seria capaz de ter livres lado a lado, na segunda fila diante da piscina.

 - Segure-as - disse Fehringer. - Vou buscar as toalhas com o comissário.

 Ela encarou-o com o rosto um pouco virado de lado, assentiu e sentou-se na espreguiçadeira que lhe tocava, a do meio. Quando Fehringer voltou trazendo no braço as enormes toalhas vermelhas que serviam de base, Sylvia havia tirado a roupa e estava sentada na cadeira com um fantástico maiô bem decotado. Era negro, só que no meio, debaixo dos seios, havia uma gigantesca papoula. Era mais refinado e atraente do que o menor dos biquinis.

 - Você tem uma maneira de derrubar os homens que é quase criminosa - disse Hans Fehringer abrindo a toalha de banho sobre a espreguiçadeira de Sylvia.

 - Bem, se isso lhe deixa intranquilo...

 - Fico intranquilo mesmo...

 -... então é só trocar de lugar. Meu marido tem um ciúme doentio.

 - Com toda a razão. - Fehringer deslizou em sua espreguiçadeira. Por um instante, ele pensou no irmão que o aguardava na cabina, pois de acordo com o planeamento a tarde pertencia a este. Mas aquela era uma situação excepcional à qual não se podia renunciar por causa de um acordo. - Se eu fosse ele só andaria com um cassetete recheado de chumbo.

 - Ele não precisa disso. - Pela primeira vez surgiu um leve sorriso no rosto clássico e estreito de Sylvia. - Ele tem as mãos. Isso basta. É ferreiro profissional.

 - Que interessante!

 - Hoje em dia temos uma fábrica de artigos de forja artística com sessenta e nove empregados. A própria televisão já fez um documentário de meia hora sobre nós. Foi quando meu marido produziu as novas instalações do portão do castelo Bittelfeld, de acordo com documentos de 1643...

 - Prefiro o ano de 1984...

 - Por quê?

 - Porque este é o ano em que conheci a mulher mais linda do...

 - Pare com isso, por favor! Ou será que você acha isso muito original?

 - Olha, dizer a uma linda mulher o quanto ela é maravilhosa... será sempre justificado em qualquer lugar!

 - Qual a sua profissão?

 - Negociante de carros.

 - Ah! - Sylvia tornou a sorrir. - É or causa disso que tem essa conversa mole. - Ela recostou-se, cruzou os braços na nuca e, ao fazê-lo, esticou os seios mais ainda na direcção de Fehringer. - Que marcas de carros?

 - Carroças de luxo. - Era uma mentira, mas que soava bem. - Temos o tipo de clientela que prefere uma Maserati como segundo carro. - Fehringer espreguiçou-se na cadeira. - Epá. Seu marido está vindo pelo bar. Chegará aqui logo. Nós nos conhecemos?

 - Não. Não nos conhecemos. Por favor!

 

 Knut de Jongh avançou com ímpeto, desabou sobre a espreguiçadeira e tirou os sapatos com os próprios pés. Ainda estava cercado por uma auréola de fumaça de charuto. Deu uma olhada em Fehringer, mas este fechara os olhos como se estivesse dormindo.

 - Bem que você poderia ter esperado mais alguns minutos - resmungou Jongh entre os dentes. - O sol não vai sair correndo.

 - Não estou fazendo uma viagem de navio para ficar cercada por fumaça de charuto nenhum. - Sylvia sentou-se e começou a besuntar-se de creme de bronzear. - Por que devo estar presente enquanto você fuma? Eu gostaria de desfrutar de cada minuto do ar marinho.

 - Você tem tempo para isso até Sidney. - Knut de Jongh ainda grunhiu algumas palavras incompreensíveis para si mesmo, depois acenou para o comissário de convés que passava apressado e gritou sem a menor cerimónia: - Uma aguardente e uma cerveja, comissário!

 Fehringer levantou a cabeça de supetão como quem acorda assustado.

 - Que está havendo? - perguntou.

 - Desculpe-me. - Sylvia de Jongh parou de passar o creme de bronzear. - Meu marido pediu uma aguardente e uma cerveja.

 - E precisava acordar-me gritando?

 - Não gritei coisa nenhuma. - Knut de Jongh lançou um olhar aborrecido para Sylvia e depois para Fehringer.

 - Mas eu fui acordado por ele.

 - Talvez o senhor tenha o sono leve. Por que não toma Valium?

 - Obrigado pelo conselho. E o senhor devia usar um abafador de som... - Knut de Jongh contraiu as maças do rosto, a cólera ardeu em seu peito, mas ainda conseguiu controlar-se.

 - Não estou com a menor vontade de começar uma discussão com o senhor - disse de modo ríspido. - Estou neste navio para descansar e não para xingar as outras pessoas. - Knut fez um gesto amplo.

- O barco tem espreguiçadeiras de sobra.

 Foi bem claro. Hans Fehringer olhou para Sylvia. Os olhos dela suplicaram-lhe para não dizer mais nada e ir embora. Mas também disseram: nos veremos de novo. Foi uma promessa muda, mas patente.

 - O senhor tem toda a razão - disse Fehringer seco. - Tem lugares de sobra onde se pode sentar ao lado de pessoas agradáveis.

 Levantou-se, puxou a toalha de banho e foi embora. Knut de Jongh seguiu-o com a vista, com um ar sombrio.

 - Sujeitinho malcriado! - vociferou ele. - Imagine se todos a bordo fossem assim!

 - Mas você também não se comportou de maneira correcta. - Sylvia tornou a deitar-se toda besuntada de creme. - Você gritou mesmo!

 - E por acaso eu devia correr atrás do comissário para sussurrar-lhe o pedido? Meu Deus, como vocês são sensíveis!

 - O negócio é que nem todo o mundo lida com ferro.

- Meu martelo transformou-me em milionário e a você também!

- De Jongh deixou-se cair para trás. O revestimento da espreguiçadeira soltou um rangido suspeito. - Bom. Dei um grito um pouco alto. E daí? - ele estendeu a mão na direcção dela às apalpadelas e conseguiu segurar-lhe a coxa. - Você não acha que a gente devia ir correndo para a cabina, tesouro?

 - Hoje não, no primeiro dia... quero tomar sol:

 

 Ele suspirou, olhou para o céu sem nuvens e de um azul profundo e ficou esperando a aguardente e a cerveja. Enquanto isso, ficou tamborilando na coxa da mulher com a ponta dos dedos, isso também era um tipo de carinho à Jongh.

 Nesse momento, Hans Fehringer era recebido pelo irmão de um modo que não se poderia chamar de contente.

 - Onde é que você estava, seu bundão? - perguntou ele. - Está atrasado mais de meia hora!

 - Desculpe-me - Hans Fehringer não teve a coragem de contar o conhecimento que travara com Sylvia de Jongh. Ele conhecia de antemão a reacção do outro. - O café demorou tanto tempo...

 - Mais de meia hora? como você sabe a tarde me pertence!

 - Eu o invejo! - Hans pensava em Sylvia. De repente, sentiu o peito arder. Que aconteceria se o irmão a encontrasse e passasse por ela sem prestar atenção? Posto que ela não podia suspeitar da existência dos dois gémeos, ficaria completamente desconcertada. - Onde você pensa em meter-se?

 - Vou ver: Onde houver lugar.

 - Onde se tem mais conforto é no convés do Lido. Protegido do vento, a piscina fica bem diante do nariz e, além disso, um barzinho. O solário é muito barulhento... devemos chamar a menor atenção possível, Herbert.

 Herbert Fehringer, vestido apenas com um diminuto calção de banho, assentiu, vestiu o roupão de banho e pegou óleo de bronzear, óculos de sol e um lenço.

 - Não esqueça de fechar à chave, Hans - disse ele.

 - Por acaso sou algum idiota?

 - às vezes é.

 - Obrigado. A viagem está mesmo começando muito bem! Quando é que você volta?

 - Por volta das seis. Hoje é dia do coquetel do comandante e, em seguida, haverá o jantar de saudação. Traje de luxo. Smoking branco, quando vemos as jóias de novo.

 - E daí?

 - Essa parece ser a única diferença entre nós. - Herbert Fehringer também colocou o porta-moedas no bolso do roupão de banho. - Você está pouco ligando para as jóias, mas eu as amo. Eu posso parar diante de uma esmeralda como se estivesse vendo um quadro. - Ele abriu a porta, olhou no corredor. Não havia nenhum comissário à vista, podia sair sem ser observado. - Passe bem, irmãozinho!

 Hans Fehringer fechou a porta atrás de Herbert, jogou-se em cima da cama e fechou os olhos. Que mulher!, pensou. E que homem nojento! Eis aí a velha pergunta, que jamais pode ser respondida nem compreendida: por que as mulheres mais lindas têm sempre os maridos mais horríveis?

 Ele estremeceu. Bateram na porta da cabina. O comissário.

 - Está tudo bem! - gritou Fehringer. - Eu gostaria de dormir um pouco.

 O primeiro dia a bordo. E ainda tinham muitos dias pela frente. Até Sidney. O jogo de trocas durante semanas inteiras... essa era a viagem mais longa desse tipo que os dois haviam empreendido. Nos outros navios, os "exercícios" deles haviam durado no máximo três semanas; quando tivessem superado essa viagem, saberiam que se podia viajar pelo mundo inteiro lançando mão desse truque.

 

 Só não se podia fazer uma coisa: apaixonar-se. E era exactamente esse erro que Hans Fehringer estava cometendo agora. "A gente também vai passar por cima disso", pensou ele reagindo de maneira igual a todos os outros homens que, ao defrontarem-se com uma bela mulher, perdem uma parte essencial da razão.

 

O Dr. Schwarme encontrou Ludwig Moor no tombadilho.

 Moor agia como quem gozava de plenas condições de saúde: marchava de um lado para o outro do convés com passos bem medidos. Com postura de um certo modo erecta - Cabeça erguida e olhando para a frente, peito estofado, costas rectas, os braços pendurando de modo rítmico, o rosto cheio de uma profunda seriedade - ele desceu o tombadilho, fez uma acentuada e bizarra meia-volta na extremidade do convés e voltou marchando o mesmo trecho até a outra ponta. Ali, outra meia-volta e de novo caminhou pelo tombadilho até a próxima virada.

 O Dr. Schwarme ficou observando interessado aquela marcha que passou por ele duas vezes. Quando Moor passou por ele a terceira vez, o Dr. Schwarme dirigiu-lhe a palavra.

 - O que está fazendo?

 Moor seguiu marchando. Não restou outra alternativa ao Dr. Schwarme, a não ser andar ao seu lado. Sentiu-se um idiota completo.

 - Estou andando um quilómetro - disse Moor, sem modificar a postura.

 - Como disse?

 - Pelas manhãs ou depois do almoço para facilitar a digestão. O senhor não lê o planejamento do dia? Está escrito: "Corra um quilómetro com a nossa anfitriã Bárbara. Tombadilho, bombordo. Pelas manhãs às..." Mas eu não vou participar disso como se estivesse num batalhão. Prefiro andar esse quilómetro sozinho. Não sou nenhum herói.

 - E agora vai querer fazer isso todos os dias?

 - Mas claro que sim, desde que não haja nenhum passeio em terra! Ah, esse ar marinho! Ele insufla os pulmões, é o que lhe digo.

 - Alguém comunicou-se com o senhor por causa do grito da noite passada? - o Dr. Schwarme marchava ao lado de Moor esperando que sua panturrilha começasse a tremer. Nunca fora um bom corredor. Na realidade, gostava tanto de conforto que, inclusive para percorrer o menor dos trajectos até a charutaria situada a trezentos metros de sua casa, sentava-se no carro e ia dirigindo. Nesse momento, andar um quilómetro ali no navio seria um recorde total para ele. Afinal, aquele Moor não parava, ele devorava seu trajecto sem interrupção e com seriedade heróica.

 - Sim. Um oficial jovem.

 - Comigo foi o próprio director de hotel.

 - Por diplomacia, quando se tem uma cabina 018. No caso da 032, eles mandam subalternos. O que foi que ele lhe contou?

 - Na certa o mesmo que ao senhor: alguma coisa deslizou nalgum lugar da sala de máquinas. Metal com metal... isso solta um grito.

 - E o senhor acreditou nisso, Dr. Schwarme?

 - E o que eu podia fazer? Trata-se de uma explicação óbvia. Que outra coisa poderia ser? - o Dr. Schwarme andava um pouco contorcido ao lado de Moor. Já havia deixado a terceira volta para trás. - Quantas vezes mais terá de andar, Sr. Moor?

 - Mais nove vezes.

 

 - Então eu passo. - Schwarme parou e deixou Moor marchando sozinho. - Que tenciona fazer depois da maratona? - gritou para o outro.

 - às 15 horas a anfitriã vai ensinar-me shovelboard1 no convés de esportes. Sabe jogar shovelboard?

 - Disso eu participo. Sou um bom jogador.

 - Sua mulher também?

 - Ela está no cabeleireiro. Coquetel de saudação dado pelo comandante e banquete de boas-vindas. Hoje à noite as mulheres terão seu grande desfile. - O Dr. Schwarme acenou para o maratonista. - Até mais tarde no convés de desportos!

 Ele desceu a escada que levava ao solário, sentou-se no interior do bar Atlantis, pediu uma pilsen de barril e ficou observando os outros passageiros. Algumas mulheres se haviam reunido na varanda envidraçada de bombordo, para começar um curso de hobby de construção sob a supervisão de uma anfitriã. A estibordo, um clube de bridge começou seus encontros. Faziam-se os primeiros contactos para a longa viagem. Nisso, o olhar de Schwarme caiu sobre o cego Dabrowski que estava sentado sozinho a uma mesinha redonda na saída para o solário e sorvia um ponche Planter, os olhos voltados para a frente através dos óculos de lentes escuras.

 O que estará pensando e sentindo esse sujeito agora, pensou o Dr. Schwarme. Está sentado ali, cercado de total escuridão, apenas ouvindo barulhos e vozes, sem que ninguém se preocupe com ele, sua enfermeira deve estar nadando ou tomando banho de sol... uma vida desconsolada, mesmo quando se tem muito dinheiro.

 Ele pegou o copo de pilsen, foi até a mesinha e pigarreou. Dabrowski levantou o rosto à espreita.

 - Posso sentar-me ao seu lado? - perguntou Schwarme de modo um pouco hesitante. - O assento ainda está livre.

 - Mas tenha a bondade! - Dabrowski sorriu. Viu que

Schwarme, apesar de estar dirigindo a palavra a um cego, estava muito embaraçado e sentara-se com todo o cuidado, talvez com medo de provocar alguma comoção. - Está um dia lindo hoje.

 - Sim. Um céu azul e sem nuvens, sol, um mar mansinho... - Schwarme hesitou desconcertado. Que coisa mais imbecil! Seu idiota! Diz isso justamente a um cego!

 Dabrowski ostentou um sorriso suave.

 - Pode continuar falando tranquilo. O que o senhor vê, eu sinto, posso imaginar.

 - Claro. - Schwarme enxugou a testa. Mas isso não acontece mesmo, pensou ele. Como é que uma pessoa sendo cega pode compreender conceitos figurativos apenas por ouvir falar? Chega uma pessoa e diz: "Veja só que bela palmeira alta!" como pode ele, um cego, imaginar em seu íntimo o jeito de uma palmeira como essa? Para ele, claro que uma palmeira só pode ser uma palavra. - O senhor me permite fazer uma pergunta bem idiota e descarada?

 - Por favor!

 - E como pode ter uma idéia do que é o azul? Ou do que são nuvens? - Schwarme levantou as nádegas alguns centímetros do assento:

- Meu nome é Dr. Schwarme. Advogado.

- Dabrowski. Sua pergunta é justificada, só que não me diz respeito. Até à idade de vinte e seis anos, eu podia enxergar tão bem quanto o senhor.

 - Ah, é mesmo? Desculpe-me, Sr. Dabrowski.

 

 - Depois, de repente tive uma paralisia em ambos os nervos ópticos. Consultei os melhores médicos, de Turim a Tóquio, de Viena ao Rio. Estive inclusive em Moscovo! Todos ficaram fascinados com minha doença, nunca haviam visto algo assim... mas ninguém conseguiu ajudar-me. num ano fiquei completamente cego. E já faz treze anos. Para mim está claro que não existe mais nenhuma esperança. E os milagres também não acontecem. Mas se o senhor me disser agora: temos à nossa frente um mar liso de um azul bem escuro, então, puxando pela memória, eu consigo ver.

 - Isso é fantástico. - O Dr. Schwarme esvaziou o copo e deu uma olhada no relógio. Dali a pouco começaria o jogo de shovelboard no convés de esportes. - Se o senhor não se importar, podemos encontrar-nos com mais frequência para conversar.

 - Mas por favor, doutor. - Dabrowski acenou na direcção do Dr. Schwarme. - Eu ficaria muito contente.

 Ele viu o Dr. Schwarme sair no convés e passou em revista todos os que estavam sentados ou de pé no bar. Na tarde desse dia, às 17 horas e 45 minutos começava o coquetel de recepção do comandante Teyendorf para o primeiro horário de refeição. Depois haveria o banquete de gala.

Aconteceria o mesmo com o segundo horário a partir das 19 horas e 45 minutos. Finalmente, começaria o grande baile de boas-vindas no Salão dos Sete Mares, no qual o conferencista Hanno Holletitz apresentaria os artistas da viagem de cruzeiro. Para Paolo Carducci - ou seja lá que nome pudesse estar usando nesse momento a bordo - esta seria a primeira oportunidade para examinar as jóias mais de perto e escolher as mulheres que merecessem seu interesse. Podia-se calcular com toda a facilidade que, hoje à noite, cintilariam alguns milhões nas orelhas, pescoços, braços e dedos.

 Que aparência poderia ter Carducci, perguntou-se Dabrowski. Só tinham à disposição uma foto antiquíssima, um típico instantâneo de polícia que por seu turno mostrava um típico siciliano de cabelos pretos, barba por fazer, sorriso arreganhado... uma foto miserável de um vigarista impenetrável. Nos anos de ascensão de sua carreira como ladrão de jóias internacional, Carducci transformara-se por completo, trabalhara com perucas e maquilhagens, pintara os cabelos e chegara inclusive a ostentar uma careca numa viagem pela parte oriental do Mediterrâneo. Ele não recuava diante de nada. Qual seria a aparência dele hoje, ali, a bordo

do NM Atlantis?

 Seria o elegante jovem louro que tomava o segundo coquetel lá no balcão do bar? Nesse instante, Dabrowski estava olhando Herbert Fehringer.

Ou o sujeito com roupão de banho vermelho vinho com listras douradas, que tomava uma batida de leite de coco com rum branco?

Tratava-se de Tatarani, o proprietário da vinícola. Ou aquele playboy ali no canto do bar, que flertava com uma mulher de biquini colorido e que pedira uma garrafa de champanhe? Ele constava na relação dos passageiros como sendo François de Angeli, negociante de imóveis. Ou seria um dos senhores completamente discretos que se metiam em tudo logo no primeiro dia, tomando uma cerveja ou entrando numa conversa que girasse em torno de política?

 

Entre as pessoas que conversavam, reinava a unanimidade quanto à culpabilidade da parte dos sindicatos por tudo. Essa harmonia era uma boa base para a viagem comum que duraria semanas pelo oceano Pacífico.

 Dabrowski levantou-se, pegou a bengala branca e saiu para o convés às apalpadelas. As pessoas desviavam-se dele, abrindo o caminho e admirando seu sentido de tacto que inclusive levou-o até à escada que dava para o convés de esportes, sem a ajuda de ninguém. Ali, ele encontrou Beate, sua enfermeira; ela estava deitada ao sol, na fileira atrás de Knut e Sylvia de Jongh, e levantou-se na hora ao ouvir o tique-taque típico da bengala. Levou Dabrowski para a cadeira ao seu lado e ajudou-o a acomodar-se. A bombordo, o Dr. Schwarme, Ludwig Moor e outros dois senhores haviam começado o primeiro jogo de shovelboard; a anfitriã Bianca explicou-lhes o jogo mostrando-lhes algumas tacadas. Parecia muito fácil empurrar os discos de madeira sobre o convés liso, mas na realidade precisava-se de muita sensibilidade e inclusive de esforço muscular.

 - Você observou ou ficou sabendo de alguma coisa? - sussurrou Dabrowski virando a cabeça para Beate.

 - Não. Todos ainda se conhecem muito pouco para isso.

 - Certo. Mas vai ser diferente depois do baile de boas-vindas. Os que já se conhecem, os repetidores da viagem, são inofensivos. Carducci não se encontra entre eles.

 - Está vendo essa mulher de beleza exuberante à nossa frente? Ao lado do sujeito troncudo?

 - A que está com o maiô extravagante?

 - É. Está-se iniciando um flerte. Com um homem mais jovem, alto e magro. Cabelos louros, elegante, um pouco rústico, mas que faz bem o tipo das mulheres.

 - Acho que ele está no bar Atlantis. Flerte, como assim?

 - O velho dela já andou espantando o sujeito com uns grunhidos. Parece ser um tirano.

 - Mas com volumosa conta bancária. Quer apostar como hoje à noite a mulher vai estar brilhando mais do que árvore de Natal?

 Dabrowski virou-se ao sol, tirou a camisa e depois deitou-se de dorso desnudo na espreguiçadeira. Seu corpo era trabalhado, musculoso e sem gordura. Por isso mesmo, a bengala branca ao seu lado incomodava mais ainda.

 - Fique de olhos grudados nela, Beatinha. Ela é a vítima típica de Carducci.

 - O flerte dela é inofensivo, chefe.

 - Quando se tem tantas jóias assim, nada mais é inofensivo.

Agora Carducci também pode estar louro.

 - Mas deve ter uma aparência bem mais velha.

 - Ele não! Acredito que ele seja capaz de subir a bordo como um recém-nascido. Para que horas você marcou o cabeleireiro?

 - Para as quatro.

 - Fique de ouvidos abertos, minha pequena. Os cabeleireiros e os padres têm uma coisa em comum: são os confessores das mulheres solitárias. O que não se fica sabendo nos cabeleireiros, não se saberá mais em lugar nenhum. - Dabrowski sorriu, colocou na cabeça um lenço de bolso como protecção contra o sol e entregou-se ao calor e ao suave marulhar.

 

 

 - Devo usar o vestido de seda branco para a gala de hoje? - nesse momento, Sylvia de Jongh perguntou ao marido, sem se mexer quando este tornou a tocar-lhe a coxa.

 - Claro. Você fica irresistível com ele.

 - E todas as jóias de rubi?

 - Todas! A mulher de Knut de Jongh deve mostrar com toda a calma o quanto seu marido é um homem bem-sucedido. Para mim, a inveja das outras mulheres é bálsamo.

 - Só porque você também pode desfrutar do brilho.

 - Certo. Afinal de contas, fui eu quem pagou. E ganhando honestamente na ferraria. Ninguém deixou herança nenhuma para mim. Ganhei tudo com minhas próprias mãos.

 Sylvia suspirou. Ia começar de novo, ela já sabia. O hino ao homem esforçado, que antes ficava trabalhando na bigorna, malhando em ferro quente, e que agora dirigia uma empresa internacional. Uma carreira no milagre económico do pós-guerra. Um selímademan que sempre se alegrava de poder ter manteiga e presunto no pão.

 De facto, ela é uma mulher de beleza incomum, pensou Knut de Jongh. Uma espécie de criatura de contos de fada. E me pertence! Essa sorte é realmente incompreensível. Vou comprar-lhe uma peça bem valiosa na joalheria de bordo durante a viagem. Posso me dar a esse luxo com a gorda conta bancária na Suíça... Ele inclinou-se na direcção de Sylvia e beijou-a no ombro e no pescoço. O leve tremor da mulher foi encarado por ele como paixão.

Jamais teria imaginado que podia ser por defesa e aversão.

 

Claude Ambert instalara-se ao lado de seus elefantes.

 Haviam levado para baixo uma cama dobrável, uma mesa, duas cadeiras e um balde de roupas, feito de tecido, com marcos de metal e fecho de correr... e com isso tornou-se o luxo. O segundo-comissário resumiu a situação numa frase:

 - Isso aqui é um porão de depósito, não adequado a coisa nenhuma; só temos luz e uma conexão com o ar-condicionado.

 - E se eu precisar ir ao banheiro? - perguntou Ambert. Era evidente que Sissy e Berta estavam contentes. As duas elefantas brincavam com a palha e, de vez em quando, faziam festa em seu dono com a ponta da tromba.

 - Mas é claro que você não vai ficar aqui embaixo o dia inteiro, Sr. Ambert.

 - Mas durante a noite! - Ambert apontou para a porta. - Pode-se passar pelo hall da piscina ao lado e ir ao banheiro durante a noite?

 - Não. Ele fica fechado.

 - Nesse caso você deve deixar aberto.

 - Não dá, por motivo de segurança. Quando o hall da piscina está aberto, o salva-vidas deve estar presente. Ordens.

 - Mas ninguém nada à noite.

 - Você tem cada idéia. O bar é ao lado. Se os caras ficarem sabendo que a piscina está aberta, vai ser o diabo. Vão pular na água com farda e tudo. Você sabe muito bem como os bêbados se comportam. E quanto mais ricos, mais incríveis. Isso provocaria a mais pura orgia aquática. - O segundo-comissário fez um gesto negativo. - Não vai poder ser mesmo.

- Lançou um olhar para as duas elefantas. Pairava no ar um cheiro de merda. - Essas duas aí mijam em cima da palha.

 Mais tarde, na comissária, os funcionários compreenderam que um ser humano tinha direitos diferentes dos elefantes. Um comissário levou para Ambert um balde de zinco, substituído mais tarde por um vaso de urina do hospital, conhecido no jarrão técnico como compadre.

 O Dr. Paterna foi lá depois do almoço. Levava consigo sua maleta de médico como se estivesse visitando um paciente na cabina. As elefantas estavam paradas junto à parede, com as trombas para baixo e as orelhas arriadas, observando o ambiente com olhinhos opacos. Claude Ambert estava sentado numa cadeira entre as duas, tendo aos pés dois pães imensos. O mar ficara um pouco mais agitado; lá em cima, no convés, não se percebia nada, mas lá embaixo o movimento de balanço era mais forte.

 - E como vão nossas pacientes? - o Dr. Paterna perguntou alegre.

 - De um jeito miserável. Veja só, elas não comeram nada! Antes, quando viam um pão, era a maior guerra. Mas agora... Sissy já vomitou algumas vezes. Ainda vamos ter mar mais encapelado?

 - Mas isso ainda não é nada. Estamos com ventos de dois quilómetros por segundo! Quando chegarmos às águas mexicanas, mais ou menos perto de Mazatlan, podem soprar ventos de até cinco quilómetros por segundo.

 - Então elas vão morrer! - disse Ambert com voz contida. Ele olhou a maleta de médico. - O que foi que o senhor trouxe, doutor?

 

 - Tantos comprimidos quanto pude dispensar. Espero receber mais em acapulco. Calculei vinte e cinco para cada elefanta. Deve bastar, afinal só devemos amortecê-las um pouco.

 - E elas não vão se envenenar?

 - Bem, se os seres humanos conseguem suportar os comprimidos, claro que os elefantes também suportarão.

 - Não diga isso, doutor. Os elefantes são criaturas delicadas.

 O Dr. Paterna lançou um olhar para os dois gigantes cinzentos. Podia-se sentir fisicamente a tristeza das duas. Acorrentadas pelo pé direito traseiro, as elefantas estavam quase imóveis na palha. Só quando o navio fazia um leve movimento de balanço, é que saía das trombas um som parecido a um profundo suspiro.

 - Portanto, vamos começar. - O Dr. Paterna colocou a maleta em cima da mesa e abriu-a. - Vou dissolver os comprimidos em dois baldes com água. Elas estão bebendo, pelo menos?

 - Não com muita vontade. Quando não tocam no pão, é porque a coisa é mesmo muito séria.

 Ambert e o Dr. Paterna tentaram. Dissolveram em cada balde vinte e cinco comprimidos contra o enjoo do mar e, em seguida, empurraram os baldes na direcção das elefantas. Berta começou a beber na mesma hora sugando a água pela tromba; Sissy farejou, tomou um gole e depois desviou a tromba.

 - Ah! - disse Ambert. - Desculpe-me, Sissy. - Ele foi até uma enorme bolsa de papel, despejou quatro colheres de açúcar na água e depois voltou. - Sissy é uma doçura completa! - explicou para o perplexo Dr. Paterna. - Mesmo quando não se pode sentir o gosto de quatro colheres... pelo menos ela vê que a água está açucarada. Os elefantes são individualistas.

 Sissy ficou contente. Ela também sugou toda a água do balde, agradeceu a Ambert com uma palmadinha de tromba e balançou as orelhas.

 - Quando é que os comprimidos vão fazer efeito? - perguntou Ambert.

 - numa hora mais ou menos. E o efeito deve durar pelo menos doze horas. - O Dr. Paterna fechou a maleta de médico. - Você vem junto comigo para o ar puro? Seus pulmões precisam disso.

 Claude Ambert assentiu.

 - Volto já! - disse ele para as elefantas. - Não tenham medo, meus amores. Só faltam três dias, então estaremos em terra. Então vocês terão solo firme debaixo dos pés. Tenham coragem, minhas pequenas!

 Os dois subiram ao tombadilho e, lá chegando, sentaram-se num dos banquinhos brancos. Ludwig Moor estava fazendo uma de suas caminhadas de um quilómetro e, nesse momento, passou por eles. A porta que dava para a ala das suítes abriu-se e uma senhora de maquilhagem pesada e idade incerta, com a peruca de cachos luxuosos enfeitada com uma fita dourada, deu uma olhada no convés. O decote do vestido era tão exagerado que bastaria inclinar-se para a frente que tudo sairia.

 - Ah, meu Deus! - sussurrou o Dr. Paterna. - Queira desculpar-me. Preciso voltar ao hospital. Só lá tenho um pouco de segurança.

 - Mas o que está acontecendo, doutor?

 - Está vendo aquela senhora junto à porta?

 - Sim.

 

 - Trate de não se aproximar dela. Chama-se Anne White. Só o advogado dela é que sabe o montante de sua conta bancária. Você estará perdido se cair nas garras dela. A mulher devora os homens como uma aranha-fêmea.

 - Milionária? - perguntou Ambert interessado. Seu olhar desviou-se para a Sra. White, apalpou-a. Ele achou que a primeira impressão até que foi bem vantajosa. Uma mulher de meia-idade, madura e, por conseguinte, visivelmente amadurecida por toda a parte. - Viva?

 - Há cinquenta e dois anos.

 - E como disse?

 - Bem, a Sra. White deve ter agora uns bons setenta e seis anos... - o Dr. Paterna levantou-se, apertou a maleta de médico contra o corpo e não sentiu a menor vontade de continuar no convés. - Advirto-lhe mais uma vez, Sr. Ambert. Quando ela sobe a bordo, um suspiro percorre todo o navio. Só ainda não fofocaram por aí quem foi que dormiu com ela na primeira noite. Até à noite!

 O Dr. Paterna desapareceu rapidamente atrás da porta que dava para a escadaria. Claude Ambert sugou o lábio inferior entre os dentes, estalou os dedos e depois levantou-se do banco. Desceu pelo tombadilho vadiando de modo negligente, foi ultrapassado pela marcha de Moor e depois recostou-se na amurada como quem quer observar o mar tranquilo e os peixes-voadores. Sentiu o olhar da Sra. White na nuca. Milionária, pensou ele. Tem o maior tesão nos homens. Mas um crédito precisamos dar a ela: tem a aparência de uma mulher bem cuidada, no fim dos quarenta. Os cirurgiões plásticos fizeram uma obra-prima. Foram realmente artistas que fizeram o trabalho. E quando se pensa que ela dorme em cima de notas de dólar...

 - E como o mar está azul - disse de repente uma voz gorjeante ao seu lado. Ambert estremeceu. E essa agora... a mulher falava como uma adolescente na hora de dançar. Ele olhou para o lado. A Sra. White estava recostada na amurada ao seu lado, os seios - quantos esticamentos?, pensou Ambert - estavam quase desnudos. Sob a camada de maquilhagem, o rosto tinha um ar felino de cara de boneca. Puxa, como anda avançada a medicina de hoje!

 - Faz até a gente ficar romântico - disse Ambert em inglês.

 - Oh! - a voz de Anne White assumiu um tom de alegria. - Você fala inglês? De onde você é?

 - Da França, madame.

 - Que francês charmoso. Um belo amigo... estou certa?

 - Mais ou menos.

 - Qual a sua profissão?

 - Amestrador de elefante.

- Não! Que emocionante. - O olhar dela pousou sem a menor cerimónia nas calças de Ambert. - Um elefante! Você precisa-me explicar isso.

- Posso convidá-lo para uma taça de champanhe na minha cabina? Elefantes. uma novidade na minha vida. Vem!

 Com o coração aos saltos, Ambert seguiu a Sra. White até a cabina. Quando fechou a porta do corredor, Moor estava fazendo o último trecho e dava uma bizarra meia-volta junto à porta. "Milhões", pensou Ambert, "milhões... ela vai ter seus elefantes. Andar pelo mundo com dois elefantes é uma vidinha bem miserável".

 

Dabrowski tratou de ser o primeiro a chegar no Salão dos Sete Mares para o coquetel de saudação do comandante Teyendorf. Apoiado na bengala branca, já estava esperando havia vinte minutos ao lado de Beate, junto à porta envidraçada que dava para o salão de festas, mas mesmo assim não fora o primeiro. Havia um casal; o homem, de rosto avermelhado, smoking branco e camisa preta fofa e, para combinar, uma gravata-borboleta prateada, olhava imóvel para a frente; a mulher ao seu lado, delicada, intimidada, mas com um vestido da moda e enfeitada com uma jóia de esmeralda caríssima, estava recostada à parede. O longo tempo em que ficara postada sobre os sapatos de salto alto, parecia estar provocando-lhe dores.

 Então, chegou a hora e a porta abriu-se. O comandante Teyendorf estava a postos para o apertar de mãos, trajando um uniforme branco. Laura, sua anfitriã-chefe, usando um vestido de noite longo e ondulante, acenou.

Já estava versada na tarefa de chamar todos os passageiros pelo nome e depois apresentá-los ao comandante.

 Dabrowski bateu com a bengala. O casal à sua frente estremeceu um pouco, o homem encarou o cego, recuou e fez um gesto de "por favor, a preferência é sua". Beate tocou Dabrowski e conduziu-o adiante.

 - Ewald Dabrowski e Beate Schlichter - disse ela para a anfitriã Laura.

 - O Sr. Dabrowski e a Sra. Schlichter! - Laura transmitiu na direcção de Teyendorf.

 Teyendorf pegou e apertou a mão que Dabrowski estendeu no ar à sua frente sem direcção nenhuma.

 - Fico contente com sua presença a bordo - disse ele. - E desejo especialmente ao senhor que tenha uma bela viagem. Estou à sua disposição a qualquer hora para os desejos que tiver.

 - Obrigado - replicou Dabrowski. - Obrigado, Sr. Comandante.

- As lentes escuras dos óculos encararam Teyendorf. - Tenho certeza que será uma bela viagem de cruzeiro.

 Beate deu-lhe o braço e levou-o para a frente. Dabrowski sentou-se numa poltrona funda próxima à porta e recostou-se. Agora podia observar com a maior desenvoltura cada passageiro, avaliando-o e sobretudo observando as jóias das mulheres com toda atenção. No final da marcha de entrada das pessoas, ele quase poderia dizer sobre quem recairia o interesse de Paolo Carducci. Havia jóias que, ao olhá-las, até mesmo o

coração de um perito como Dabrowski batia com mais força.

 

 O comandante Teyendorf suportou com habilidade a marcha dos passageiros a quem cabia o primeiro horário de refeição. Apertou mãos, disse a todos algumas palavras e deixou que brilhassem as mulheres em cujos olhos cintilavam o orgulho e a excitação do momento por terem permissão de apertar a mão do comandante. Contudo, após a saudação do último passageiro desta sessão, ele ficou contente por ter cumprido outra vez este dever. Era um ritual enfadonho, mas fazia parte de toda a viagem de cruzeiro. O aperto de mão do comandante era algo equivalente à confirmação de que se fazia parte da comunidade do cruzeiro. Teyendorf sempre voltava a admirar-se do imenso valor que muitos passageiros davam ao facto de apertar-lhe a mão e ouvir as palavras lapidares: "Eu o cumprimento a bordo!" Ou: "Ah, está de novo a bordo, vai gostar da viagem mais uma vez:.." Nesses momentos, os olhos brilhavam. O comandante nos reconheceu! Fritz, ele ainda nos conhece! Que sujeito magnífico, esse comandante...

 Dabrowski virou-se para o palco do salão quando as portas de vidro foram fechadas.

 - E então?: perguntou Beate em voz baixa. - O que achou, chefe?

 - Pelos meus sentimentos, Carducci não se encontra aqui. Deve fazer parte do segundo horário de refeição. Mas por que ele deixaria escapar o espectáculo dessas jóias? Beate, estou com uma suspeita terrível: e se tratar-se de duas pessoas que trabalham de mãos dadas? Cada uma num horário de refeição? Ninguém ainda pensou nisso! - Dabrowski ficou visivelmente intranquilo. Já na leitura dos protocolos que descreviam todos os roubos de jóias praticados por Carducci, saltou-lhe à vista que este muitas vezes devia encontrar-se em duas cabinas ao mesmo tempo. A polícia e as companhias de seguro supuseram que essas indicações de horário, que afinal de contas nunca foram precisas em casos semelhantes, haviam sido influenciadas pela agitação da pessoa roubada. Além disso, coisa que era decisiva e sem saída, a maioria das pessoas em questão estava dormindo e só na manhã seguinte dava pela falta das jóias. Mas todas as portas das cabinas estavam fechadas. Por conseguinte, Carducci devia possuir uma chave mestra que se adequava a todas as fechaduras, como a que os comissários de cabina utilizam. Mas para todos os navios? Impossível! Esse sujeito é um génio, dissera o chefe da polícia de roubos e furtos de Pireu; no caso dele, nenhum navio tem porta...

 - Em virtude dos requisitos ideais aqui, ele deveria encontrar-se no salão agora - disse Dabrowski em voz baixa. - Ele ou seu cúmplice. Essa possibilidade de ele trabalhar em dupla joga por terra todo o meu plano.

. Nesse momento, a orquestra de bordo começou a tocar no palco. Os Happy Boys. Eram oito músicos que na verdade tocavam alto demais, mas sempre esforçando-se por manter o mesmo ritmo. Em contrapartida, tinham realmente uma boa aparência com seus ternos de fantasia brancos com bordados prateados.

 Depois, enquanto o comandante Teyendorf saudava os passageiros com um rápido discurso e apresentava a equipe de comando do - navio do primeiro-oficial condutor, passando pelo chefe e director de hotel, até o mestre-cuca e os padres das duas confissões - Dabrowski saiu do salão de braço com Beate e deixou-se levar à joalheria. Erika

Treibel estava sozinha, sentada num banquinho atrás do pequeno balcão, estudando um livro especializado em gemas e o jornal da associação. No dia seguinte, após o noticiário diário, ela apresentaria na televisão de bordo uma conferência sobre as diferentes pedras preciosas e convidaria os passageiros a darem uma passada na joalheria. A compra de jóias ali era no mínimo catorze por cento mais barata do que em terra, posto que no navio não se cobrava o imposto sobre circulação de mercadorias. Ainda se podia pechinchar e conseguir um abatimento extra de alguns pontos percentuais adicionais; a bem da verdade, isso já havia sido calculado de antemão, mas todos ficavam contentes em poder arrebanhar algumas centenas de marcos na compra de alguns milhares.

 

 Dabrowski sentou-se na cadeira de estofado vermelho e apoiou-se na bengala branca.

 - Agora eu suspeito que Carducci tenha um cúmplice - disse ele.

 - Oh, Deus! - Erika Treibel ficou pálida. - Com dois homens...

 - Não tenha medo! Você não será assaltada de maneira nenhuma.

 Carducci trabalha em silêncio, como um fantasma. A segunda pessoa podia ser inclusive uma mulher. Portanto, quando entrar aqui um casal, um homem ou uma mulher sozinha pedindo para ver as peças mais valiosas do cofre, tente descobrir o número da cabina deles. Trate de arrancar esse número com um truque. É muito simples. Diga-lhes que ainda tem algumas peças extraordinárias no depósito e que telefonará tão logo as tenha retirado. Se a pessoa não quiser revelar o número da cabina, bem, aí já estará configurado um ponto para suspeitarmos. - Dabrowski pigarreou. - Qual sua peça mais valiosa, que não é colocada na vitrine?

 - Um conjunto de esmeralda com brilhantes. Vale 450 mil marcos.

 - Pelo amor de Deus! As pessoas compram isso por aqui?

 - Desde que me encontro a bordo isso só aconteceu uma vez: Mas sempre devemos ter peças assim em estoque, digamos que com o objectivo de representação. Pode ocorrer ocasionalmente de uma pessoa interessada olhar uma jóia como essa, encomendá-la e pedir para que seja entregue em terra. Então, podemos proceder a mudanças, mandar trabalhar segundo as medidas...

 - Gostaria de pedir emprestado esse conjunto de esmeraldas para a noite - disse Dabrowski com toda a calma.

 - Impossível! - Erika encarou-o espantada.

 - Eu não sou Carducci.

 - Eu sei. Mesmo assim... sem a permissão do chefe... afinal, como posso entrar em contacto com o Sr. Ried agora?

 - Recebi plenos poderes do Sr. Ried.

 - Isso é o que o senhor diz! Claro que não posso emprestar-lhe meu conjunto mais precioso.

 - Beate precisa usá-lo hoje à noite para chamar a atenção de Carducci. No final do baile, eu levo a peça comigo e durmo em cima dela. Amanhã de manhã você a terá novamente no cofre. Nada poderá dar errado. Erika, eu preciso de uma isca que chame a atenção. Todos no salão pensarão: vejam só que velho safado. É cego como uma pedra, mas o resto continua funcionando direitinho. Obriga a sua enfermeira a acompanhá-lo por toda a parte, mas em compensação compra-lhe umas belas pedrinhas.

 - Só que o senhor não consegue pensar que isso pode ser bem desagradável para mim, não é mesmo, chefe? - perguntou Beate em tom amargurado.

 - Beatinha, não faça jogo de palavras com a moral!

 - Mas eu sou moralista. Vou envergonhar-me dos pés à cabeça com esse teatrinho.

 - Isso também passa. - Dabrowski deu uma risada baixa. - Metade da vida é uma questão de habituar-se com as coisas. Erika, abra o cofre e tire o conjunto de esmeralda.

 - Não sei...

 

 - Filhinha, estamos em alto-mar. O que pode acontecer então? Carducci também vai esperar; na maioria das vezes ele só ataca a um ou dois dias do fim da viagem. De preferência após o banquete de despedida. Nesse momento a pele maquilhada das mulheres volta a ostentar todos os milhões em jóias. Para ele, a ocasião de hoje à noite é uma espécie de ensaio geral.

 Dez minutos depois, Beate saiu da joalheria levando no bolso da saia 450 mil marcos em jóias.

 E só para adiantar: foi um duro desapontamento.

 No baile de boas-vindas após o banquete de gala, ninguém tirou a bela e radiante Beate para dançar. Todos respeitaram o desamparo do cego, cuja acompanhante ninguém queria seduzir, mesmo que fosse apenas por três danças. O próprio Paolo Carducci conteve-se; ele apreciou de longe as jóias no pescoço, braço, dedo e orelha de Beate, calculando seu valor com exactidão de especialista. Estava sentado na mesa ao lado dos dois homossexuais, van Bonnerveen e Grashorn, trajava um smoking branco, gravata-borboleta vermelho vinho e bebia um borgonha branco seco. Também examinou as jóias das outras mulheres e sentiu-se muitíssimo bem.

Quando desembarcasse em Sidney, teria ganho o bastante para umas longas férias. No mínimo seis meses... em seguida, entrava na agenda uma viagem de cruzeiro de Hong-Kong para o Japão e o Havai.

 Mais três anos, pensou ele, então estarei com a idade de quarenta e cinco. Uma boa idade para me aposentar e viver dos hobbys. Uma casa nas Bahamas... ali ninguém pergunta pela origem do dinheiro. Uma amante jovem e loura - sim, tem de ser loura, loura natural, não apenas na cabeça -, dois dálmatas alemães manchados no jardim, um trecho de praia particular sob a sombra de palmeiras, um mordomo negro... e depois gozar a vida. Afinal, só se vive uma vez, mesmo o pivete siciliano que se tornou milionário tomando alguma coisa de outros que, de qualquer maneira, tinham bastante. A bem da verdade, isso não era moral nem socialista nem cristã, mas aplacava sua consciência. Pois Carducci era um bom crente católico, que frequentava as igrejas onde quer que se encontrasse, que rezava diante do altar-mor, acendendo todas as vezes uma vela de bom tamanho. Só não se atrevia a ir à confissão, pois jamais mentiria para seu confessor. Portanto, preferia deixar isso de lado. Claro que nunca receberia a absolvição.

 Carducci estava sozinho. A teoria de Dabrowski de que ele trabalhava com um cúmplice era um erro de avaliação. Quando a pista de dança foi liberada, após o conferencista Hanno Holletitz ter contado algumas piadinhas escabrosas porém bem dosadas, Carducci também levantou-se e procurou uma parceira para a dança. A escolhida foi a Sra. Schwarme e, quando o elegante cavalheiro pediu-lhe a permissão, o Dr. Schwarme acenou de modo negligente. Ficou contente por poder tomar seu uísque em paz. Havia muito tempo que já não dançava mais com a mulher; ela sempre estava com a língua de tanto entusiasmo rítmico, coisa que o irritava.

 - Merda! - disse Dabrowski após meia hora, em voz baixa e inclinando-se na direcção de Beate. - Ninguém dança com você.

 - Ninguém quer aproximar-se de você, um pobre doente.

 - Que derrota! Carducci encontra-se no salão, eu sinto.

Minha pele está formigando. Ele já registou sua jóia. Que bosta! Acho que podemos ir para as nossas cabinas...

 

 Beate desfez-se das jóias na cabina 136, de Dabrowski. Este colocou-as em dois saquinhos de veludo negro, enfiou-os debaixo da parte da cabeça do colchão e, após Beate ter ido embora, trancou a porta à chave. Depois depositou sua câmara ao alcance da mão, em cima da mesinha-de-cabeceira.

 Essa câmara, com a aparência de uma máquina fotográfica reflexo bem normal, tinha seus truques. Quando se apertava o obturador, ela disparava um tiro e o projéctil saía pela objectiva, cuja lente se abria. Até então, nenhuma vistoria de segurança dos aeroportos havia reconhecido essa construção especial.

 

No geral, a primeira noite dançante foi um sucesso total. De manhã bem cedo, o grupo da limpeza entregou no escritório de achados e perdidos: duas calcinhas de mulher, um sutiã tamanho 44, uma lente de óculos, uma meia preta de homem e uma liga rasgada. Todos os objectos achados foram expostos para a entrega em cima de uma mesinha no escritório do comissário-chefe. Mas os proprietários jamais se apresentaram.

 Na ponte, o comandante Teyendorf recebeu as últimas notícias do navio. Três aniversários de passageiros - eles recebiam uma garrafa de vinho espumante, nada de champanhe -, o informe da sucursal da companhia de navegação de Acapulco e uma queixa em relação ao passageiro François de Angeli. Ele dançara à noite no Clube do Pescador de rosto colado com a esposa de um dentista, coisa que se chamava de dança de esfrega-esfrega, e o marido exigira do comissário-chefe presente, o Sr. Pfannenstiel, que interrompesse aquilo. Pfannenstiel observara que aquela não era tarefa dele. Houve então uma contenda, na qual monsieur de Angeli fora ameaçado com uma bofetada. E isso tudo já na primeira noite oficial.

 Além disso, a mulher de um industrial perdera o anel de brilhante. De quatro quilates, branco azulado, sem impurezas. Devia ter caído de seu dedo durante a dança. O industrial pedira que a perda fosse tratada de modo confidencial. Afinal, o anel teria de ser encontrado durante a limpeza.

 - É, a coisa está começando muito bem - disse Teyendorf em tom de sarcasmo. - Estou curioso para saber o que vai acontecer nessa viagem, quando as primeiras pessoas tiverem a vertigem do mar. Na última turné, alguém batera tanto na mulher a ponto de mandá-la para o hospital e nove casais desembarcaram prontos para o divórcio. Em contrapartida, tivemos três noivados e dois comissários pegaram gonorreia. Dessa vez a viagem vai demorar mais do que de costume. Vamos nos preparar para o que der e vier, meus senhores. As surpresas não vão demorar!

 

Claude Ambert dormira totalmente extenuado ao lado de suas elefantas.

 Aguentara até as seis da tarde na cabina da Sra. White, melhor dito: Ela não o deixou ir embora. Ambert saiu às apalpadelas da cabina, com a sensação de estar caminhando sobre pernas de borracha e com o crânio cheio de ar. Em contrapartida, Anne foi de uma vitalidade francamente demolidora, beijando-o, acariciando-o e encorajando-o repetidas vezes. Quando quis tirar-lhe o cinto outra vez, após Ambert ter conseguido vestir-se, defendeu-se e gritou desesperado:

 - Anne, minha querida! Deixe um restinho para os outros dias também!

 A querida compreendeu, sentou-se na cama toda coquete com sua beleza moldada pelos melhores cirurgiões plásticos e ficou contemplando Claude Ambert com os olhos brilhando. Graças às plásticas, seus seios eram firmes e redondos, a pele da barriga, cadeiras e coxas bem rígidas e sem nenhuma ruga. Até mesmo o triângulo de cabelos negros tinha uma aparência de tamanho e densidade fora do comum.

 - Você é maravilhoso! - disse Anne balançando as pernas. - Poucos homens têm a resistência que você tem. A causa disso é porque você lida com elefantes?

 - Não sei. - Ambert ansiava por uma cama macia, paz e um bom sono. Poder esticar-se, sem ser beijado da cabeça aos pés; poder deitar-se de costas, sem que um corpo quente e trémulo de tesão se jogasse sobre ele; simplesmente dormir... que pensamento esplêndido. Sua boca estava ressecada, Ambert sentia-se como se tivesse sido moldado em papelão húmido, como se não tivesse ossos. - Você... também foi maravilhosa... - disse ele cansado. Bem, pelo menos ela tem tantos milhões que perde de vista o panorama económico. E se um pequeno domador tem a possibilidade de sugar isso, primeiro deve oferecer-se como vítima.

 - Eu sempre sou maravilhosa. - A voz de Anne White gorjeou como uma pombinha diante de um monte de milho. - Vem dormir hoje à noite aqui comigo.

 - Olha, mal posso ter esperança disso. - Ele encarou-a com olhos embaciados, foi até à porta, levantou a mão e acenou: - Até mais tarde darling!

 Anne assentiu, esperou que Ambert saísse da cabina e depois tornou a deitar-se na cama.

 - Seu miserável caçador de dinheiro - disse ela com desprezo. - O preço quem diz sou eu. E você só vale a metade!

 Apesar disso, Anne foi procurá-lo no baile de boas-vindas no Salão dos Sete Mares e, mais tarde, nos bares. Com postura orgulhosa, parecida à de uma prima-dona famosa, ela andou de modo espalhafatoso pelo navio, cercada por uma nuvem de perfume, e depois retornou desapontada à cabina. Jogou num canto tudo que trazia no corpo, borrifou-se de perfume e deitou-se pelada na cama. Quando finalmente bateram na porta, ela pensou: seu idiota! A porta está aberta, aperte a maçaneta para baixo. Mas gritou:

 - Entre! - escancarando as pernas em forma de cumprimento.

 

 Contudo, quem entrou foi um desconhecido. Um homem baixote, atarracado, de cabeça redonda e uma barba negra que ia de orelha a orelha. Parou no meio da cabina um pouco inibido - podia-se ver que vestira o melhor terno.

 - Madame - disse ele com um inglês áspero. Seu olhar ficou parado nas coxas arreganhadas de Anne, enquanto ela não pensava em mudar de postura. - Eu me chamo Jim e sou mecânico de bordo. Eu queria...

 - Você precisa consertar alguma coisa aqui? - perguntou Anne virando-se nos quadris. Se o patife dos elefantes chegar agora, pensou, boto ele para correr. Minha Nossa Senhora, como as calças desses mecânicos ficam volumosas de repente. - Aproxime-se, meu jovem, venha aqui na cama. Você tinha alguma coisa em mente ao vir aqui.

 - Consertar? - Jim continuava olhando as coxas arreganhadas de Anne com um jeito de quem está encantado. - Madame, tenho a impressão de que precisamos desentupir alguma coisa...

 - E então?! Que está esperando? Você tem cara de quem é bom trabalhador.

 Jim começou a desatar o cinto. Lá embaixo, no alojamento da tripulação, dizia-se que um ano atrás aquela dama pagava quinhentos dólares. Faça-a chegar a setecentos dólares! Mostre-lhe do que é capaz. Setecentos dólares, senão você torna a esconder o bichano! Jim, você é o nosso campeão no melhor sentido da palavra. Se ela lhe der setecentos dólares, nós também vamos conseguir...

 Ele deixou as calças arriarem e, enquanto isso, observou Anne White com toda atenção. O olhar dela ficou um tanto ou quanto paralisado.

 - Madame... eu... eu gostaria de comprar um equipamento fotográfico novo em acapulco - disse ele hesitante. Droga, como é difícil da primeira vez. Nunca antes havia feito algo assim. - Mas o soldo de marinheiro...

 - Você vale mil dólares! - ela bateu com ambas as mãos no colchão e depois estendeu o braço direito na direcção de Jim. - Droga, pare de falar tanto assim! Mil dólares, Jim. Será possível? Mil! Feche os olhos e esqueça-se da idade dela. Mil dólares...

 Ele arrancou a roupa e jogou-se de um só impulso ao lado de Anne na cama de casal.

 Nessa hora, Claude Ambert estava com suas elefantas. Graças aos comprimidos do Dr. Paterna, os dois colossos cinzentos estavam deitados de lado em cima da palha, dormindo com a respiração ofegante. Ambert também sentia a mesma moleza; tirou o estetoscópio da maleta de primeiros socorros e auscultou o batimento dos corações de suas amadas. Os elefantes têm uma circulação sanguínea instável, muito delicada. Ambert sempre levava na maleta algumas ampolas de estimulantes de circulação, a fim de poder aplicar uma injecção na mesma hora, caso Sissy ou Berta perdessem o prumo.

 Isso não foi preciso nesse dia. A respiração delas estava boa, o batimento cardíaco um pouco baixo, porém, regular... as duas curavam o enjoo do mar dormindo.

 Lançando mão das últimas forças, Claude andou cambaleante até a cama e desabou sobre ela. Antes de mergulhar por completo no nada, ele ainda pensou: você precisa aguentar até Acapulco! Só mais dois dias e duas noites. Até lá você deve ter conseguido uma pequena fortuna fazendo amor.

 

 Esse parecia ser um desejo irrealizável, pois já nesse instante Claude Ambert estava tão extenuado que nem ao menos conseguiu sonhar.

 

Erika Treibel esperou com o coração galopando de medo que Dabrowski levasse de volta as jóias. Durante todo o baile de boas-vindas, ela ficara sempre à vista de Beate, sem tirar os olhos das jóias tiradas do esconderijo. Mas foi obrigada a deixar Dabrowski sozinho durante quinze minutos. Fora concluída a ligação telefónica que ela pedira com a Alemanha. Heinrich Ried, seu chefe, o joalheiro, estava muito preocupado, podia-se ouvir em sua voz vinda de milhares de quilómetros de distância.

 - Erika, que está acontecendo? Por que você ligou?

 - Só tenho uma pergunta a fazer, Sr. Ried. - Erika Treibel recostou-se na parede da cabine na ante-sala da estação telefónica. - O senhor conhece Ewald Dabrowski?

 Hesitante, ele respondeu com evidente reserva:

 - Sim. Por quê?

 - Ele está a bordo. .

 - Estou sabendo.

 - Disse que é detective de uma grande companhia de seguro.

 - É verdade. - Heinrich Ried pigarreou. Era boa a compreensão através da gigantesca distância, com a ligação interrompida apenas de vez em quando por rumores e estalidos atmosféricos. - Ele já a informou sobre sua missão?

 - Já. Nesse momento, a acompanhante dele está usando nossa melhor jóia para servir de isca ao ladrão. Eu... eu estou com um pouco de medo, Sr. Ried.

 - Não se preocupe, Erika. Faça tudo que Dabrowski pedir. Que foi que ele lhe contou sobre Carducci?

 - Ele está convencido de que essa pessoa encontra-se a bordo.

 Foi como se Ried tivesse soltado um suspiro.

 - Preste atenção, Erika! - disse ele depois. - Carducci conhece centenas de truques. Apresente somente duas peças de jóias para qualquer cliente, depois retire-as de imediato se outras pessoas quiserem ver. Nunca dê as costas aos clientes! Numa joalheria de Genebra, Carducci trocou com a velocidade do raio três anéis por duplicatas sem nenhum valor, no momento em que o vendedor foi até o cofre. Só notaram a diferença três dias depois, quando um outro freguês examinou os anéis. Que

vergonha! Portanto, Erika: fique sempre de olho no cliente...

 Por conseguinte, a conversa colaborou muito pouco para tranquilizar Erika. Quando Dabrowski apareceu na joalheria após o desjejum para devolver as jóias, a vendedora trancou-as na mesma hora no cofre.

 - O senhor notou alguma coisa? - perguntou ela.

 - Nada. Eu receava isso. Primeiro o sujeito dá uma olhada, avalia tudo que possa ter valor e elabora seu plano. Só se torna activo na última parte da viagem. - Dabrowski apoiava-se na bengala branca de cego e olhava o vazio. Havia três casais diante da vitrine admirando as peças de jóias.

 - De repente, toda a pessoa torna-se suspeita - disse Erika Treibel em voz baixa. - Que sensação mais pavorosa! Que fará o senhor quando as primeiras jóias começarem a desaparecer das cabinas?

 - Ainda não sei.

 - Isso não soa muito reconfortante.

 

 - Carducci só pode ser desmascarado em flagrante. - Dabrowski ergueu-se. - Deve ser atraído a uma armadilha, caso contrário jamais o agarraremos. Só que eu ainda não sei como essa armadilha deve ser montada.

 Dabrowski saiu da joalheria, subiu às apalpadelas a escada que levava ao tombadilho e, ali chegando, sentou-se num dos banquinhos junto à parede. Ludwig Moor estava percorrendo de novo seus mil metros com postura erecta, queixo para a frente, espinha recta, os braços perambulando ao ritmo dos passos, sem olhar à direita ou à esquerda. Para levar a cabo uma tarefa, é preciso que a pessoa consiga concentrar-se nela. Dez minutos depois, o Dr. Paterna apareceu no tombadilho, olhou em volta e sentou-se ao lado de Dabrowski. O cego virou o rosto com os óculos de lentes escuras na sua direcção.

 - Eu sou o médico do navio - disse Paterna. - Posso ajudá-lo nalguma coisa?

 - Eu soube logo que o senhor devia ser médico ou algo parecido. O senhor exala um leve odor de desinfectante.

 - Óptimo! - o Dr. Paterna arreganhou um sorriso largo. - Você disse com uma convicção espantosa. Tem um grande talento para o teatro.

 - Como devo entender isso? - perguntou Dabrowski rígido.

 - Você banca o cego de um modo primoroso.

 - Banca...?

 - Até agora já o encontrei três vezes a bordo. Da primeira vez também fui iludido. Contudo, já no segundo encontro teve uma coisa que me chamou a atenção. Bem, ele deve enxergar um pouco, pensei comigo. Mas desde ontem à noite, desde o baile, eu sei que você não é nem um pouco cego.

 - Você já falou com alguém sobre isso?

 - Não. Queria dizê-lo primeiro a você .

 - Doutor, que faço de errado? Pelo amor de Deus, eu treinei tanto!

- Dabrowski recostou-se na parede. Moor, o zeloso caminhante, passou por ele pela sexta vez, sem virar a cabeça um centímetro sequer. - Onde foi que me traí?

 - Só um médico consegue ver... digo para sua tranquilidade.

São pequenas coisas. Apesar de bater coro a bengala, você sobe e desce a escada com muita rapidez. No baile de boas-vindas, você seguiu uma mulher com os olhos... algum cego faz isso? - Paterna soltou um sorriso baixo. - Eu me recordo de uma experiência que meu pai contou muitas vezes.

Ele caiu numa prisão russa e, entre os prisioneiros alemães, também havia um ferido com uma venda nos olhos. Ele tentava deixar claro para os russos que era cego. Que havia ficado cego por uma explosão. Isso significava: hospital militar e nada de campo de prisioneiros. Mas havia uma médica bem refinada no campo de concentração. Ela mandou chamar o alemão cego, tirou a venda dos olhos dele e ordenou: "Dispa-se! Tire tudo!" E esperou que ficasse nu diante dela. Em seguida, também tirou toda a roupa e, posto que era realmente uma bela mulher, o pobre "cego" reagiu na mesma hora quando, depois do sutiã, a calcinha caiu no chão. "Mas que grande porco!", disse a médica satisfeita. Ela tornou a vestir-se e mandou o "cego" para a pior coluna de trabalho. - O Dr. Paterna deu um tapinha na coxa de Dabrowski. - No caso das mulheres bonitas, não dá para aguentar com a cegueira fingida.

 - Eu não estava interessado naquela dama, mas sim em suas jóias.

 

- Dabrowski riu da expressão de assombro do Dr. Paterna. - Os médicos e sacerdotes são obrigados ao silêncio. Portanto, você também. O que vou lhe contar não é nenhum romance de capa e espada, mas sim a pura verdade. E você vai me ajudar a virar um cego completo.

 

O último dia antes de Acapulco.

Constava no programa do dia do NM Atlantis: "às 21 horas e 45 minutos noite das surpresas no Salão dos Sete Mares. O mestre-de-cerimónias Hanno Holletitz os levará de uma surpresa a outra com muito humor e música."

 O ponto culminante do espectáculo devia ser a apresentação das elefantas de Claude Ambert. Contudo, até à tarde ninguém ainda sabia como os dois colossos cinzentos seriam levados do convés C até o salão de festas. De elevador seria impossível. Em primeiro lugar, era pequeno demais e, em segundo lugar, cada elefanta ultrapassava o peso permitido. De escada também parecia impossível. Eram catorze escadas até o salão, todas revestidas de tapete e calculadas para o tamanho do pé de um ser humano. A grosseira pata de um elefante devia escorregar o tempo todo.

 O comandante Teyendorf assumiu pessoalmente o problema. Mandou chamar Claude Ambert. O director de hotel Riemke já se encontrava na suíte do comandante bebendo um conhaque para acalmar-se. Holletitz tragava um cigarro, nervoso...

 - Suas elefantas, Sr. Ambert, morreram! - disse Teyendorf em tom abrupto.

 - Como assim? Acabo de deixá-las.

 - Elas não vão poder se apresentar.

 - Mas... Claro, fui contratado...

 - O senhor foi imposto a mim. E antes ninguém pensou, confesso que eu também não, no enorme tamanho das elefantas. É bem verdade que seus bichinhos puderam subir a bordo através da escotilha do porão, mas no interior do navio não existe nenhuma possibilidade de transportá-las do porão de depósito aos conveses. Portanto, tão-pouco podem ser transportadas ao salão. Não existe porta alguma que tenha altura e largura suficientes. As elefantas não passam em nenhuma escota. Além disso, são catorze escadas entre o convés C e o salão de festas.

 - E daí? - Claude Ambert desabou abalado sobre uma cadeira.

 - Vamos desembarcá-lo em acapulco. Pode dar-se por satisfeito por ter podido fazer essa viagem de graça.

 Ambert bebeu dois conhaques e, em seguida, saiu cabisbaixo da cabina do comandante Teyendorf. Que grande merda tudo isso! E também não conseguira pôr as mãos num dinheiro muito alto com Anne White. A bem da verdade, ela deixou que Ambert entrasse em sua suíte, mas depois disse em tom frio:

 - Vamos tomar mais um uísque juntos e depois você vai desaparecer.

 - Mas Anne, querida! - balbuciou ele desconcertado. - Afinal, que está acontecendo?

 Anne White contemplou-o com um imenso escárnio estampado nos lábios e depois fez um gesto negativo:

 - É bem verdade que você é um anão, mas eu não sou Branca de Neve. Vá embora antes que eu tenha um ataque de riso. - Mas depois parece que teve compaixão do contrito Claude Ambert e perguntou:

- Está precisando de dinheiro?

 

 - Estou. Quando se fica sem contrato com frequência, duas elefantas são capazes de levar qualquer um à miséria de tanto comer.

 - Quanto?

 - Não sei... - Ambert não se atreveu a encará-la. Sentia-se como um prostituto com o qual se regateia o preço. Por acaso lá sou alguma outra coisa?, pensou amargurado. Eu quis vender minha masculinidade, por que deu errado?

- Mil dólares?

- Seria... seria uma grande ajuda...

- Abra a gaveta da escrivaninha e retire as notas - disse a Sra. White de modo frio e indolente. - E depois suma! - Estava vestida com uma diáfana combinação de renda rosada e, sob a maquilhagem, tinha a aparência de florescente mulher aos quarenta anos.

 Ele foi até a escrivaninha, tirou dez notas de cem dólares do maço de dinheiro e enfiou-as no bolso. Todo esse macinho, foi o pensamento que teve, e eu estaria salvo. Amanhã atracaremos às sete da manhã em acapulco, as elefantas serão desembarcadas primeiro, haverá um carro de transporte esperando no píer. Até o comissário de cabina encontrar Anne White, podem ser onze horas. A essa hora, já estaremos no estábulo do circo. Além disso, por que a suspeita cairia sobre mim?

Justamente sobre mim, quando todo mundo sabe que estou sempre ao lado de minhas elefantas? Há mais de novecentas pessoas a bordo; como poderão descobrir quem apertou a garganta dessa senhora?

 Claude Ambert foi até a porta, parou e tornou a olhar para trás. Anne White estava no barzinho servindo-se de outra dose de uísque.

 - Adieu! - sua voz soou áspera. - Você me deu uma grande ajuda.

 Ela não respondeu, apenas estalou os dedos e esvaziou o copo.

 Quando Claude Ambert saiu da suíte, pensou furioso: hoje à noite! Vou ter o maior prazer em apertar-lhe a garganta.

 Agora, depois da notícia que não poderia apresentar-se no salão, sua raiva ficou mais impetuosa e seu álibi mais seguro ainda. Um mestre e dois comissários poderiam testemunhar que na última noite ele dormira de novo na cama dobrável ao lado das elefantas. Há no mínimo vinte mil dólares naquela gaveta, pensou ele já emocionado. E quem pode saber o quanto ela tem dentro do armário. Mas só esses vinte mil já seriam uma base só lida para uma nova vida. Até mais tarde, Anne, darling! Ele desceu a escada até o convés C, sentou-se diante das elefantas, deixou-se acariciar pelas delicadas trombas e disse:

 - Minhas queridas pequenas, a partir de amanhã o mundo vai ficar diferente para vocês também. Só não tenham um colapso cardíaco no último trecho!

 

 Sylvia de Jongh ficou um pouco desconcertada. O cavalheiro louro, impertinente, porém, simpático, que sabia chamar a atenção sobre si com muito charme, mudara por completo.

 

 Claro que seu marido comportara-se de modo impossível, mas seria isso razão para bancar o insultado na mesma hora e agir como se nunca tivessem se visto? Ela passou rebolando algumas vezes para ele, mas o cavalheiro não esboçara nenhuma reacção. Ficou recostado na amurada olhando o encarniçado jogo de shovelboard e só uma vez lançara um rápido olhar aos seus seios que o biquini quase não ocultava.

 Herbert Fehringer era o mais sóbrio dos dois, coisa que também ocorre com os gémeos. Era o pensador, o calculista, o planeador. Ele determinava a vida do irmão Hans e este aquiescia com tudo, desde que lhe dessem a alegria de gozar a vida. Assim, Herbert Fehringer também mostrou-se frio quando Sylvia pavoneou-se no convés provocando-o; nada de aventuras imbecis, havia repetido várias vezes ao irmão Hans, nada de chamar a atenção. Nós queremos ver o mundo e não uma cela cheia de grades! Não podemos sobressair no meio da multidão. Estamos presentes, mas somos quase invisíveis e silenciosos. As pessoas não devem reparar em nós, essa é a melhor protecção. A coisa fica perigosa tão logo alguém comece a falar sobre nós!

 Também não reagiu quando Sylvia postou-se ao seu lado na amurada e, como ele, ficou olhando a coroa de espuma formada no mar pela gigantesca hélice.

 - Quando se pensa que estamos sobre mais de mil e quinhentos metros de água... - disse Sylvia olhando Herbert Fehringer de soslaio. - A gente até fica tonta...

 - Nesse caso você não deve ir nunca a Guam. Ao sul de Guam o mar tem 12 mil metros de profundidade.

 - Não dá nem para imaginar.

 - A maior profundidade oceânica do mundo. - Fehringer esboçou uma leve vénia. - Meu nome é Fehringer...

 Sylvia de Jongh encarou-o com olhos arregalados e com uma expressão quase de horror.

 - Mas... mas que significa isso? Claro que sei como você se chama.

 - Ah! - nesse momento, Fehringer examinou-a com mais atenção. Uma mulher digna de uma aventura. Um flerte de férias bem quente... mas não para um Fehringer. Quem quiser viajar grátis de São Francisco a Hong-Kong, bem que pode renunciar às mulheres por um par de semanas. Depois, em Hong-Kong é só botar para dançar as bonecas até rachar as paredes. Lá existe uma série de salões, onde moças lindas como uma imagem irreal de sonho fazem qualquer homem esquecer que há um mundo impiedoso fora da cama de seda. - Nós nos conhecemos?

 - Sei que meu marido comportou-se de modo impossível em relação a você . Mas por acaso isso lá é motivo para fazer com que me sinta mal? Da última vez você foi tão simpático comigo. Por favor, trate de esquecer o estúpido incidente!

 Hans, foi o pensamento de Herbert Fehringer. Claro que tinha de ser meu irmão Hans de novo! Quando aparece uma saia, ele sai logo correndo atrás. Quantas vezes eu o avisei: tire as mãos das fêmeas quando estivermos viajando! Se alguma vez formos descobertos, a causa só poderá ser alguma mulher! E agora ele está caçando outra vez. Irmãozinho, nós ainda vamos conversar sobre isso e não vai ser com muita delicadeza não!

 - Já esqueci. - Fehringer abriu um sorriso largo, do jeito que Hans teria feito. - Vamos até o bar tomar um drinque?

 - Com prazer.

 - E onde está seu marido grosseiro?

 - Está lá embaixo, no centro de musculação, pedalando numa bicicleta de exercícios. Ele tem a ambição de completar cem anos.

 - Será que ele chega lá?

 

 - Se continuar bebendo... Jamais!

 Os dois foram ao interior do bar e sentaram-se num banquinho junto ao balcão espelhado. Muitos olhares seguiram-nos, sem sombra de dúvida Sylvia de Jongh era uma das mulheres mais bonitas a bordo.

 - O que vamos beber? - perguntou Herbert Fehringer.

 - O mesmo de ontem.

 Cuidado, pensou Fehringer na mesma hora. Uma perguntinha dessas pode provocar o maior aperto. É preciso reagir com muita habilidade.

 - Vamos experimentar algo diferente hoje. De acordo? Que tal um coquetel? Chama-se Lagoa Azul.

 - O nome é sedutor. - Sylvia soltou um sorriso gorjeante e inclinou-se para trás no banquinho. Seus seios cresceram na direcção dele. Hans, vou te matar mais tarde, pensou Fehringer, só que sorrindo para ela.

 - E ele é mesmo. Qualquer mulher perde a vontade após "três Lagoas Azuis".

 - Deve ser uma sensação incrível. Eu nunca perdi a vontade... assim, do jeito que você quis dizer.

 Fehringer pediu dois Lagoas Azuis e, em seguida, ficou procurando desesperado algum tema de conversa inofensivo, que o desviasse das insinuações inequívocas de Sylvia. Afinal, ele ainda não sabia seu nome.

 - O Lagoa Azul faz-me lembrar de uma aventura na África - disse ele. Sempre é produtivo e gostoso se falar de viagens.

Sobretudo quando se constata por acaso que o parceiro de conversa também já esteve no mesmo país e que depois poderá relatar sua própria aventura. No fundo, cada pessoa vê um lugar de modo diferente; pode-se descrever o fausto do Rio, a praia de Copacabana com suas moças mestiças de incrível beleza, o Copacabana Palace, a visão do Pão de Açúcar sobre a cidade e o mar, a estátua de Cristo que abençoa um mundo inteiro... mas pode-se ver também apenas as favelas que pululam nas montanhas qual cogumelos na cidade; as crianças que, por necessidade e para Alimentar as famílias, se transformaram em prostitutas e os assaltos e assassinatos diários em plena rua, contra os quais ninguém vem em socorro mesmo que se peça ajuda a plenos pulmões.

 - Você está falando sobre a coisa com os massai no Quénia? - Sylvia sorriu e sorveu o coquetel com os lábios pintados de vermelho vivo através de um canudinho. - Você já contou ontem.

 - Dessa vez eu me referia à visita a Lambarene, ao hospital na selva fundado pelo Dr. Schweitzer - disse Fehringer rapidamente.

 - Ah, por favor... não! - Sylvia pousou a cabeça em seu ombro.

- Nada de doenças nem doentes. Eu gostaria só ver e ouvir coisas bonitas... pelo menos enquanto encontrar-me neste navio. Onde foi que você já teve alguma experiência divertida?

 - No Amazonas. Tinha um crocodilo perseguindo um nadador numa praia pública fechada.

 - Meu Deus! E chama isso de divertido?!

 - Sim, pois logo constatou-se que o terrível crocodilo não passava de um bicho de borracha insuflável que dois garotos empurravam para provocar o pânico entre os banhistas.

 - Meu marido morreria de rir... aliás, só se se encontrasse na praia a uma distância segura. Você também riu?

 

 - Achei divertido - replicou Fehringer com todo cuidado.

 - Também estava na areia?

 - Não, dentro d'água. Mas logo reconheci que aquele não era um crocodilo de verdade. Todos gritaram para mim: "Saia nadando logo daí! Para a esquerda!" Foi para lá que os outros banhistas fugiram, pois à esquerda havia um barco balançando no mar. - Fehringer lançou um rápido olhar para Sylvia. Sentia a proximidade dela como uma irradiação de calor. - Seu marido não teria entrado logo na água para salvá-la?

 - Knut? Que idéia essa sua. Ele teria gritado: "Sylvia, ele não vai fazer nada com você, sua maquilhagem vai assustá-lo!" Ele é assim.

 Portanto, ela se chamava Sylvia. Uma mulherzinha à procura de aventuras. E meu irmão Hans, esse cabeça-de-bagre, caiu cego nos braços dela.

Fehringer pediu mais dois Lagoas Azuis e depois retomou a conversa:

 - Nas grandes viagens, poucas vezes podemos ter experiências divertidas. Na maioria das vezes nos aborrecemos com os companheiros de viagem. Com o jeito deles para com os povos estrangeiros, com seu comportamento como se fossem os deuses brancos, com a ignorância deles quanto à própria educação, da qual em geral são tão orgulhosos. Muitas vezes eu seria capaz de sair distribuindo bofetadas por todos os lados. Isso é divertido?

 - Vejo que hoje você está num péssimo dia. - Sylvia bebeu o segundo coquetel com extrema rapidez. Rápido demais, notou ela ao deslizar do banquinho do bar. - Ontem você estava confiado e alegre. Meu marido está pesando tanto assim em seu ombro?

 - Também. Eu preferiria que você estivesse sozinha a bordo. Mas esses desejos raramente se realizam.

 - Não devíamos nos desfazer dos sonhos com tanta rapidez. Existem fadas às quais devemos recorrer com frequência antes que elas realizem os famosos três pedidos. - Ela abriu um sorriso largo e provocante, deu um tapinha no ombro de Fehringer e, em seguida, voltou ao convés andando com passinhos miúdos.

 Fehringer continuou sentado no bar, sem fazer a Sylvia o favor de segui-la. Viu apenas a maneira como ela estremeceu de repente, quando um sujeito maciço e com cara de touro surgiu atrás dela. O marido, pensou Fehringer respirando fundo. Alguns minutos atrás e ele teria visto a mulher no bar, com a cabeça recostada no ombro do homem com o qual já teve uma altercação ontem. E Hans não contara coisa alguma. Eles chegariam a uma situação explosiva.

 Fehringer assinou rapidamente a conta e saiu do bar. Agora, irmãozinho, vou te pegar pelo colarinho, tenho tanta certeza disso quanto sou o mais velho de nós dois.

 - Knut! - disse Sylvia desnorteada. - De onde você saiu? Pensei que estivesse na bicicleta de exercícios.

. - Tudo merda! Eu me sento, regulo a coisa para a resistência máxima e começo a pedalar. Aí vem o salva-vidas, aquele sujeito meio pirado, e tem o desplante de me dizer: não vá quebrar a bicicleta. Você está pedalando como um touro... Aí eu perdi a vontade. Esses caras aqui a bordo parecem estar acostumados apenas com gente com atrofia muscular. - Knut respirou fundo, franziu o nariz e encarou-a com olhos furiosos. - Mas você andou enchendo a cara!

 

 - Encher a cara é privilégio seu.

 - Deus do céu, pare de falar com essa jactância!

 - Só bebi um coquetel. Tive vontade.

 - Sozinha?

 - Não. Havia sete cavalheiros sentados à minha volta e três comissários atrás do balcão. Pode ir lá bater neles todos. Knut, o ferreiro...

 - Seu escárnio me dá nojo! - Knut de Jongh olhou para o lado, descobriu suas espreguiçadeiras ainda livres e apontou para elas. - Lá. Vamos nos deitar lá até a hora do almoço. E cara senhora, permita-me que depois eu peça uma cerveja.

 - Por mim você pode beber um barril inteiro... - Sylvia andou com passos acentuadamente provocantes até a espreguiçadeira livre, enquanto Knut a seguia com olhos estreitados. Que mulher maldita, pensou ele. Maldita e linda! A gente é obrigado a repetir: isso me pertence! Dos pés à cabeça. Na cama ela é uma deusa e uma fria. Quando eu lhe acariciei a pele lisa, os seios, .as coxas, a barriga... Knut apertou um pouco mais o cinto do roupão de banho e ficou contente por ninguém poder ver sua excitação. Nós devíamos estar agora na cabina, pensou... a cama estalaria como a explosão de uma granada.

 Seguiu-a com passos lentos... não era nem um pouco fácil andar sem chamar a atenção com uma poderosa erecção, vestido com um apertado calção de banho e um roupão pequeno. Sentou-se na espreguiçadeira ao lado da mulher e não conseguiu impedir que o roupão se abrisse. Sylvia viu na hora o estado dele.

 - Você devia ter pedalado mais na bicicleta de exercício - sussurrou ela em voz baixa -, peça água gelada e jogue em cima.

 - Sylvia! - Knut de Jongh respirou pesado. - Não posso fazer nada. Eu a amo, apesar de tudo o que você me joga na cara durante o dia. Sempre que eu a olho com essa sua bunda tesuda e infernal... você é a maior patife que a natureza já criou.

 - Você sempre foi e continuará sendo ordinário, mesmo tornando-se um novo Krupp - disse ela. - Trate de deitar-se e fechar o roupão. Não fique pensando que esse tipo de visão deixa alguém excitado.

 - Antigamente você via isso como um sinal para pular na cama, era como se estivessem soando as trombetas de Jerico. - Knut deitou-se para trás, fechou o roupão de banho e ficou contente já que sua excitação estava cedendo. Bem, agora basta que eu não olhe para ela. Esse corpo celestial e quase pelado. Devo dizer para mim mesmo: eu a odeio! Eu a odeio! Só isso ajuda.

 Com a testa enrugada, Knut examinou os homens que passavam pelas espreguiçadeiras e, sem a menor cerimónia, olhavam o corpo quase desnudo de Sylvia. Também, ela estava deitada de modo tão provocante que não era milagre nenhum... as longas pernas um pouco dobradas e inclusive com a parte de cima do diminuto biquini um tanto puxada para baixo.

Um irrefreável chamado ao pecado.

 - Precisa isso? - vociferou ele para o lado.

 - O quê? - a voz de Sylvia ostentou um tom de defesa negligente.

 - Essa maneira como está deitada!

 - Fico tão confortável. Afinal, o que é que o está incomodando? Quer começar outra briga?

 

 Knut murmurou qualquer coisa, deitou-se e fechou os olhos. às vezes eu gostaria de bater nela, pensou, até ela não conseguir mais ficar de pé. Mas depois vêm as noites nas quais Sylvia me leva ao delírio. Estou à mercê dela, simplesmente à mercê, é isso. O forte Knut de Jongh é um macaquinho ao qual se dão torrões de açúcar!

 Suspirou fundo e depois sentiu-se entediado. Faltava-lhe o jornal diário com as notícias esportivas e as pequenas sensações do mundo inteiro. Ele já sabia de cor as revistas que levara a bordo. Disseram-lhe que em acapulco subiria a bordo uma revista alemã. A selecção de livros da loja não era de seu gosto, não tinha Jerry Cotton, bem como nenhum romance policial de Goldmann. Apenas três Konsaliks velhíssimos, que já havia lido há muito tempo atrás. Em compensação, havia alguma "literatura pesada" que ninguém iria querer ler numa viagem de cruzeiro tão repousante.

 Tudo está começando muito bem, pensou ele furioso. Sylvia deixa loucos esses sujeitos lascivos a bordo, não existe nada para ler fora as notícias matinais do rádio escritas à máquina e que são distribuídas junto com o programa do dia; eu apenas faço ridículo no shovelboard, no ténis de mesa e outros jogos de bordo, também falho no tiro ao alvo... sei disso, embora tenha tirado a licença para caçar graças aos dois bons amigos que tinha na comissão de prova. No jogo de xadrez eu só fico irritado porque os outros são muito burros para jogar. Portanto, o que nos resta a não ser encher a cara? E isso durante várias semanas! A longo prazo a idéia das viagens de barco não foi tão boa assim. Espreguiçou-se, descobriu que o baixo-ventre voltara ao normal e tirou o roupão de banho. O comissário de convés passou e deu uma parada.

 - Algum desejo, meu senhor?

 - Um barril de cerveja - sussurrou de Jongh.

 - Serve um copo grande? - o comissário sorriu. Já conhecia aquilo. Existem pessoas que ficam de cabeça virada, nos primeiros dias a bordo até encontrarem o ritmo certo. Depois vem outro momento crítico mais ou menos na segunda semana, os dias da vertigem do mar, mas depois todos se apaixonam tanto pelo navio que preferem permanecer nele e acham que o tempo voa rápido demais.

 - Para começar basta um copo. Mas rápido! Estou com uma coisa que preciso engolir.

 Ele olhou Sylvia de soslaio. Ela estava deitada na espreguiçadeira com as pernas dobradas, lendo um livro de bolso. Napoleão em Santa Helena era o título. Knut de Jongh voltou a fechar os olhos. Que teatro, pensou ele. Você não entende coisa alguma disso que está lendo, sua cabeça-de-vento. Bancar a intelectual... meu Deus, quando é que o comissário voltará com a cerveja?

 

Hans Fehringer estava deitado na cama ouvindo a música do rádio, quando seu irmão Herbert precipitou-se na cabina, .fechou a porta atrás de si, tirou a jaqueta leve e cerrou os punhos.

 - Levante-se para que eu possa dar-lhe um soco no focinho! - disse contido. - Você é um idiota completo! Seu cabeça-de-bagre!

 Hans Fehringer examinou o irmão gémeo com um ar inquisidor, preparado para defender-se. Deitado, tencionou os músculos.

 - Que está acontecendo?

 

 - Quem é Sylvia?

 - Nossa Senhora! - Hans Fehringer desligou o rádio. - Ela topou com você ?

 - Mais ou menos. Eu fui obrigado a interpretar seu papel sem ter a menor idéia de como. Por que você não me disse que havia ido à caça de novo?

 - Esqueci. Simplesmente esqueci, irmãozinho.

 - E ainda por cima ela é casada!

 - Com um sujeito nojento e primitivo. - Hans sentou-se. - Mas ela não é um avião? Que corpo! E excitante como... Como... bem, não existe comparação. Trinta e dois anos cheios de dinamite!

 - E você vai querer explodir isso?! - Herbert Fehringer foi até o banco junto à janela da cabina e sentou-se. - Você sabe o que pode acontecer se ela descobrir nosso truque?

 - Você já me recitou isso milhares de vezes.

 - E sempre deu certo. Está querendo fazer uma cagada agora? Hans, você sabe que eu confio muito no meu sexto sentido. Isto é um verdadeiro perigo. Quanto tempo essa Sylvia ficará a bordo?

 - Até Sidney.

 - E você vai querer carregá-la nas costas o tempo todo?

 - Se for possível... sim. - Hans Fehringer saiu da cama. - E na verdade, vai ser aqui! Aqui na cabina. Irmãozinho, não tem como dar errado.

Você fica lá em cima no convés, o marido lê e se tranquiliza. Enquanto isso, eu e Sylvia estamos nos roçando aqui no lençol.

 - E você acha mesmo que vou participar disso?

 - Por que não? Por amor fraternal.

 - Esqueça! - Herbert Fehringer pôs o punho cerrado sobre a mesa.

- Eu juro que essa vai ser a última viagem que fazemos juntos. Prefiro ficar deambulando quatorze dias no nosso quarteirão.

 - Por isso mesmo devo gozar ao máximo essa última viagem. - Hans Fehringer vestiu a mesma jaqueta que o irmão acabara de tirar.

 - Aonde você pensa que vai? - perguntou Herbert erguendo o tom de voz.

 - Ao convés. Tomar ar. Agora você vai ficar aqui para se acalmar. Será sua vez de novo após o almoço. E a minha à noite. Depois deixo para você o alegre baile de bordo. Pode ser que eu já precise da cabina.

 - Pois vai ser exactamente ao contrário, irmão!

 - Engano seu. - Hans já havia chegado à porta da cabina e a abria de novo. - Como vai me deter? Então vem junto comigo, vai ser uma sensação!

 - Você pirou por completo?! - gritou Herbert Fehringer.

 - Veja, irmãozinho; alguém deve ser o mais esperto e este sempre foi e será você . Reconheço esse facto e, por isso, permito-me certas burrices. Portanto... até a troca do almoço! Ligue o rádio na estação dois, estão apresentando uma ópera. Divirta-se!

 

 Saiu da cabina e desceu assobiando pelo corredor que levava ao foyer principal. Herbert ficou para trás possuído por uma fúria impotente. Ficou olhando o infinito oceano Pacífico pela janela, meditando como se poderia dar um fim a essa brincadeira perigosa. O jeito seria ele, no lugar de Hans, tratar essa Sylvia de um modo tão miserável que acabassem tendo uma briga séria. Mas podia-se pensar também numa outra versão: ele continuava fazendo o papel de Hans, indo para a cama com Sylvia. Esse seria o jogo do qual Hans teria de participar a fim de preservar o segredo.

 Esse pensamento não saiu mais da cabeça de Herbert Fehringer. Ele viu o corpo excitante de Sylvia à sua frente, tornou a sentir seu intenso magnetismo erótico que o envolvera qualquer manto de calor e, de repente, teve inveja de Hans pela posse exclusiva daquela mulher diabólica.

 Portanto, vai ser assim, pensou Herbert Fehringer satisfeito, porém, cheio de angústia. Vamos fazer como no almoço e no jantar, uma troca rápida na mesa e na cama. Assim, o problema dos gémeos entrará nos eixos de novo.

 Enquanto isso, Hans Fehringer deambulou pelos conveses até encontrar Sylvia e seu marido. Ela estava deitada numa pose excitante lendo um livro de bolso, Knut estava sentado na beirada da espreguiçadeira bebendo cerveja. Hans aproximou-se com passos negligentes.

 - Saúde! - disse ao ficar de frente para Knut de Jongh.

 Na mesma hora, Sylvia deixou cair o livro que estava realmente lendo. Para ela era novidade o facto de Napoleão ter sido assassinado; meu Deus, parecia um romance policial!

- Obrigado - vociferou de Jongh em resposta. - Tem um sabor melhor sem a sua presença.

 - Perdão - Sylvia sentou-se pousando o livro no colo de tal modo que o olhar dele foi desviado para a minúscula parte de baixo do biquini.

- Sou obrigada a pedir desculpas outra vez pelo meu marido. O ar marinho sempre o deixa agressivo. Você não está sentindo calor de jaqueta e calça?

 - Tive uma conversa sobre negócios no bar Olympia.

 - Que pena. Eu estava querendo ir nadar na piscina.

 - Mas isso não é problema, cara senhora. - Hans Fehringer ostentou um sorriso largo e desafiante. - Estou sempre de calção por baixo. Só uns minutinhos... e eu me livro rapidamente de meu traje.

 Hans correu até uma das cabinas do vestiário, despiu-se e colocou terno, sapatos e meias sobre uma espreguiçadeira desocupada ao lado dos passageiros que tomavam banho de sol.

 - Só uns minutinhos... - Knut de Jongh imitou-o quando Fehringer saiu correndo. - Eu me dispo rapidamente... Que macaco! E você se comporta...

 - Eu quero nadar, mais nada.

 - Você o encorajou!

 - Mas você não entra na água. E quando entra, fica grudado na borda da piscina! Por acaso até a minha natação o deixa irritado?

 

 - Idiotice! - ele olhou para Hans Fehringer que, com uma toalha vermelha jogada no ombro, vinha trotando pelo convés com seu corpo musculoso, desportivo, trabalhado. Esse sujeito tem uma óptima aparência, sobretudo dá para se avaliar que deve ser vinte anos mais jovem. Sylvia levantou-se e espreguiçou-se. Seu corpo erótico e insolente brilhou ao sol. Knut de Jongh depositou o copo de cerveja ao lado da espreguiçadeira e lançou um olhar sombrio para Fehringer que primeiro entrou debaixo da ducha, depois entrou na piscina e ficou esperando que Sylvia o seguisse. Em seguida, ficaram nadando juntos, lado a lado, em círculos. A água apresentava o mesmo movimento do navio quando este mergulhava no mar e depois se erguia. Era como estar nadando de facto nas ondas do oceano.

 - Por que você voltou? - perguntou Sylvia enquanto, por baixo d'água, tocava-lhe a coxa com uma das pernas.

 - Já não aguentava mais. Precisava vê-la. Sylvia, quando você me viu antes...

 - Que foi, Hans?

 - Tive vontade de beijá-la:.. mas graças a Deus não estávamos sozinhos.

 - Porquê graças a Deus?

 - Porque me conheço.

 - Eu também a mim. - Ela sorriu para ele, mergulhou, passou deslizando por Hans tocando-lhe o baixo-ventre com o corpo. Qual peixe prateado, tornou a emergir do outro lado.

- Seu marido está desconfiado, Sylvia - disse Hans com a voz um tanto abafada pela excitação.

 - Ele sempre está.

 - Fica nos observando como um caçador à espreita da caça.

 - E o que vê? Nada. Somos duas pessoas decentes, não é verdade, Hans?

 - Eu não. Nesse momento estou pensando em outra coisa...

 - Por favor, não diga.

 - Gostaria de estar sozinho com você durante o baile de hoje. É possível?

 - Não sei. Isso vai depender de como meu marido passar o dia. Se continuar bebendo, depois do almoço terá chegado a um ponto em que cairá na cama e dormirá como um urso. Mas pode ser que ocorra exactamente o contrário... Vamos esperar, Hans.

 - Estou tão contente que poderia gritar hurra...

 Sylvia tornou a sorrir, mergulhou, roçou de novo o baixo-ventre de Hans e emergiu ofegando. Com a ondulação não dava para ver o que acontecia debaixo d'água. Ela nadou até a escada, subiu, banhou-se no chuveiro para tirar a água salgada e depois vestiu o roupão de banho. Fehringer continuou na piscina nadando de um lado para o outro com elegantes movimentos de pernas e braços e pensando na noite que estava por vir. Vou levá-la à cabina... Mesmo que Herbert bata com a cabeça na parede! Nunca possuí uma mulher assim. Uma maravilha de corpo e tesão. Por ela sou capaz de brigar até mesmo com meu irmão. Aqui simplesmente acaba o mundo real. Aqui eu entro numa nova vida. Knut de Jongh pegou o copo de cerveja quando Sylvia saiu da piscina, mas nesse momento a bebida teve um gosto insípido. A mulher parou diante dele e encarou-o de cima com o lábio inferior esticado num jeito sarcástico.

 - E então? Satisfeito? Ou será que você viu algum coito submarino?

 - Você fala como uma puta - disse ele num tom abafado.

 - Talvez eu seja uma, não? Devem existir donas-de-casa honestas que ganham a vida como callgirls enquanto o marido está trabalhando.

 - Hoje você não vai me fazer perder a paciência! - de Jongh ergueu o tom de voz. - Comissário, mais uma cerveja! - berrou convés afora antes de o comissário parar à sua frente. - Vocês conversaram enquanto nadavam?

 - Ele me contou que é negociante de carros.

 - Que marca?

 - Isso ele não disse.

 

 - Um péssimo vendedor! O mais importante é sempre dizer a marca. E Mesmo quando se está mijando ao lado de um outro: "Já conhece o novo "Tubarão de..."

 Sylvia virou-se e foi até o vestiário trocar de biquini. Pouco depois, Fehringer saiu da piscina e foi tomar uma ducha. Quando ia passando por de Jongh, este dirigiu-lhe a palavra: - Você é representante de uma fábrica de automóveis?

 - De várias. Mas em geral fabricações especiais. Por exemplo, motor de BMW, chassi de Mercedes, carroceria de um lanterneiro italiano. Se se quiser, até mesmo um carro de sonhos. Realizamos qualquer desejo. Um cliente... não temos permissão para citar nomes, bem, um cliente encomendou um carro com uma jaula dourada montada no assento de trás para seu tigre de estimação.

 - Mas que piadinha mais boba! - disse de Jongh furioso.

 - Não é não. Fazemos qualquer coisa, desde que paguem. Você nem acreditaria o tipo de desejo que aparece. Está interessado numa fabricação especial, meu senhor?

 - Meu nome é de Jongh.

 - Sr. de Jongh. Se quiser...

 - Não preciso de nenhuma jaula dourada para tigre no meu carro. Só estava curioso em saber a marca que você representava, pois minha mulher disse que você vende carros. Onde é o seu negócio?

 - Com essas fabricações extravagantes, claro que nos EUA. Em Minnesota.

 - Claro. No nosso país você iria à falência.

 - Com toda a certeza. - Hans Fehringer arreganhou um sorriso largo e afastou-se no momento em que o comissário trouxe outra cerveja gelada. Knut de Jongh sorveu um longo gole e arrotou discretamente. Sujeito esperto, pensou ele. Faz das loucuras dos outros o seu negócio. Até mesmo a bordo, como ele insinuou antes.

 Seguiu Fehringer com a vista, até este desaparecer no vestiário, sem notar que Sylvia ainda não havia saído de lá. Recostou-se e ocupou-se deliciado com a cerveja gelada.

 Quando Fehringer entrou no vestiário, Sylvia estava nua atrás da porta. Ela caiu-lhe imediatamente no pescoço e beijou-o como louca, esfregando seu corpo contra o dele, ainda húmido. Sem dizer nenhuma palavra, Fehringer agarrou os seios de Sylvia, depois dobrou-a para trás e quis livrar-se do calção de banho... mas ela afastou-se de seus braços, vestiu a calcinha do biquini com a velocidade dum raio e enrolou-se no roupão de banho.

 - Sua malandra! - disse Hans Fehringer com a respiração ofegante.

 - Até hoje à noite - deu-lhe um sorriso claro e estreitou o roupão no corpo. - Um bom jantar começa com um aperitivo... tchau...

 Sylvia saiu da cabina, Fehringer passou o ferrolho atrás dela e sentou-se num banco dobrável montado na parede. Tinha plena consciência de que estava entregue a essa mulher, que a partir daquele minuto ela podia fazer com ele o que quisesse.

 E Fehringer ansiava tudo que pudesse vir dela...

 

 

O dia passou tranquilo. O almoço e o jantar deram certo para os gémeos Fehringer, como de modo habitual. Sylvia de Jongh foi ao cabeleireiro e depois descansou na cabina pensando na noite que viria.

 Para espanto de Hans, não houve nenhuma outra altercação entre os irmãos. Herbert concordou com a proposta e só colocou uma condição: que tudo transcorresse na base da troca como sempre.

 - Quer dizer - disse ele - que você pode ficar com a sua Sylvia noite sim, noite não. As outras noites me pertencem. E é problema meu o que eu fizer então. Talvez eu também consiga abocanhar alguma coisa...

 - Tem uma excitante cabeleireira a bordo - propôs Hans de bom humor, estalando com a língua. - Não no salão, mas como passageira! Cabelos louros longos... em geral fica na piscina...

 Herbert Fehringer arreganhou um sorriso largo.

 - Vamos ver se dá certo... - ao dizer isso, estava pensando em Sylvia, em seu papel como "Hans" Fehringer, e então esfregou as mãos.

- Alguma novidade da parte de Sylvia? - perguntou.

 - Sim. O marido dela falou comigo. Eu disse a ele que tínhamos um negócio de carros de fabricação especial em Minnesota.

 - Você ficou maluco? Que outra mentira disse?

 Hans contou a história do carro com a gaiola dourada do tigre. Então, os dois riram juntos.

 à tarde, enquanto nos conveses serviam-se café e bolinhos e a orquestra de bordo tocava músicas da jarrinha, tomava-se na cabina do comandante a decisão definitiva sobre a apresentação das elefantas. Manni Flesch, o director de cruzeiro, o director de hotel Gerhard Riemke e o comissário-chefe Rudi Pfannenstiel discutiram mais uma vez se e como as duas elefantas poderiam ser levadas até o Salão dos Sete Mares. Mas não havia solução. Riemke redigiu um protocolo, a fim de mais tarde poder comprovar a impossibilidade da apresentação perante a companhia de navegação. E o comandante Teyendorf assinou-o junto com Riemke e o tristonho Claude Ambert.

 - Bem, nós realmente tentamos de tudo, meu caro Claude - disse Teyendorf servindo-lhe uma dose de conhaque. - O que não tem solução, solucionado está. Você compreende, não? Estamos num navio e não num circo onde se pode abrir uma cortina para os elefantes entrarem marchando. Quando você subiu a bordo, apesar de meus escrúpulos e somente através do insistente pedido da companhia de navegação, nós pensamos em tudo... só não pensamos na maneira como você podia subir até o salão de festa com seus dois gigantes cinzentos. Mas no final das contas isso vai dar no mesmo... Você receberá seu "cache especial" como se tivesse feito a apresentação.

 - O dinheiro não é tudo, senhor comandante - disse Ambert erguendo o tom de voz. - Trata-se da incorruptível honra do artista...

 - Comunique isso à companhia de navegação. - O comandante Teyendorf deu uma tragada no cigarro. Quando o velho fuma com essa pressa, pensou Pfannenstiel em expectativa, é porque está fervendo por dentro. Já conhecemos isso. Nesses casos, ou ele fica irónico ou berra à boa e velha maneira dos marinheiros. - Minha honra de comandante também foi arranhada. Eu o aceitei a bordo contra as minhas convicções. Terei de superar isso, assim como você terá de superar a suspensão da apresentação de suas elefantas. Devia reflectir sobre isso.

 

 - Perdão, comandante. - Claude Ambert assentiu e bebeu o segundo conhaque. Ia precisar dele, não apenas por causa do desapontamento, mas sobretudo para tomar coragem de realizar seu plano de pôr as mãos no dinheiro da devoradora de homens Anne White, nessa última noite a bordo. Claro que era preciso coragem, mas Ambert jamais voltaria a ter outra oportunidade daquelas, que mudaria sua vida por completo. Depois entregaria seus amores gigantescos, Sissy e Berta, a mãos caridosas; Claude Ambert estava pensando no jardim zoológico de Puebla.

 Deixou que lhe servissem um terceiro conhaque, depois agradeceu ao comandante Teyendorf, despediu-se e saiu da ala dos oficiais acompanhado de Pfannenstiel.

 - Bem, isso já liquidamos - disse Teyendorf para o director de cruzeiro Flesch e para Riemke. - Holletitz tem algum número para substituir as elefantas?

 - Ele tencionava convencer o cantor da câmara Rieti e a cantora Reilingen a apresentar dois duetos.

 - E eles não quiseram?

 - Parece que não podem. Rieti ainda está sentindo-se rouco e só quer cantar quando puder pronunciar o "r" de modo correcto e a cantora de câmara está deitada na cabina com enjoo do mar.

 - Mas para que temos médicos a bordo? - Teyendorf acendeu outro cigarro. Acabara de esmagar o anterior no cinzeiro. - O que diz o Dr. Paterna?

 - Deu comprimidos para ela e jura que a mulher poderia cantar se quisesse. Mas ela continua deitada na cama revirando os olhos quando alguém chega na cabina. Holletitz já quase ajoelhou-se diante dela... a mulher simplesmente não pode.

 - Estamos fritos! - Teyendorf olhou pela janela em direcção ao bote salva-vidas pendurado nos cabos abaixo. - E fora isso?

 - O mágico poderia apresentar-se por mais dez minutos. Mas depois seu número fica longo demais e o público perde o interesse. Tão-pouco podemos cobrir o tempo das elefantas com as piadas de Holletitz. Temos um tremendo problema, senhor comandante.

 - Falarei pessoalmente com essa cantora sensível. - O comandante Teyendorf pós o quepe e esvaziou o copo de suco de laranja que bebia em lugar do conhaque. Nada de álcool até a noite... isso era algo evidente para ele, bem como para seus oficiais. O comandante e os oficiais estão sempre de serviço. Somente na hora do jantar é que todos, com a excepção dos que estavam de serviço, eram "liberados do fronte".

 No início, quando Teyendorf assumiu o comando do navio, houve acirradas discussões a esse respeito. A conversa girara em torno da intromissão na esfera privada, do pensamento do empregado, de ordens de garrote.

Afinal de contas, as pessoas não se encontravam na marinha de guerra, mas sim num alegre navio de cruzeiro. Mas Teyendorf continuou firme e, no princípio, bronqueava com todos os oficiais que cheiravam a álcool. Agora, após quatro anos sob seu comando, a coisa tornara-se natural.

 

 Mais tarde, Holletitz não saberia explicar como o comandante Teyendorf conseguira convencer a cantora de música de câmara Sra. Margarete Reilingen e o cantor de câmara Sr. Franco Rietti que não estavam nem com enjoo do mar nem roucos. Uma hora antes do início da alegre noitada que incluiria uma dança, os dois ensaiavam dois duetos, enquanto o pianista Prof. Helmut Dragger fazia o acompanhamento e, além disso, declarava-se disposto a tocar um potpourri de A Viúva Alegre. A noite estava salva.

 - O velho é impressionante! - Holletitz disse entusiasmado para o director de cruzeiro Manni Flesch. - Ele simplesmente vai e ressuscita os moribundos. Como é que ele consegue?

 - É preciso ser comandante, Hanno - riu Flesch. Ele também estava feliz, afinal cabia-lhe toda a direcção do entretenimento a bordo. - Quem consegue declinar alguma coisa a um comandante como Teyendorf?

 Enquanto isso, Claude Ambert montava um álibi. Na presença dos comissários Piet e Volker, ele conversava com suas elefantas como se estas fossem seres humanos, explicando o motivo pelo qual não poderiam se apresentar.

 - Vocês são grandes e gordas demais, minhas pequenas - disse acariciando delicadamente a extremidade das trombas de Sissy e Berta. - Mas podem esperar, vamos ser aplaudidos de novo em acapulco. Ficarei com vocês duas aqui embaixo de modo que não se sintam tão tristes.

 - Esse cara está gozando - disse o comissário Piet quando voltaram para cima. - Só está faltando cantar uma canção de ninar para as feras.

 - Talvez ele cante. - O comissário Volker cheirou a manga do terno branco que exalava um odor de transpiração de animal. - Merda, vamos precisar trocar de roupa. Está cheirando a mijo de elefante. No fundo, esse tal de Ambert tem um parafuso frouxo. Ontem eu vi quando ele saía escondido da suíte de Anne White.

 - Bem, ele está acostumado com elefantes.

 Os dois deram uma gargalhada estrondosa e depois foram de elevador para suas estações.

 Na hora do jantar - a vez era primeiro de Herbert Fehringer -, Sylvia de Jongh estava com uma aparência encantadora. O modelo de seu vestido de coquetel era tão refinado que nada se via, mas tudo se adivinhava. Nessas situações, Knut de Jongh banhava-se no brilho de sua mulher: vejam, caras, essa mulher me pertence! Só a mim! Podem arregalar os olhos com toda a calma; Sylvia é minha deusa e é assim que eu a trato.

 Ao entrar no restaurante, Herbert Fehringer fez um leve aceno da mesa 136 na direcção da mesa A 9. Sylvia respondeu com um aceno contido. O marido, que nesse instante examinava o fantástico cardápio, que em terra poucos hotéis cinco estrelas poderiam oferecer, não notou a troca de acenos. E mesmo mais tarde, quando Hans Fehringer se sentou no lugar de Herbert, que desaparecera, de Jongh não percebeu... nesse momento ele negociava uma deliciosa sobremesa com o comissário de mesa.

 Menos afortunado era o comissário a cujo serviço pertencia a mesa de Fehringer. Ele foi até o serviço contíguo e apontou furtivamente para Hans:

 - Aquele ali, o louro alto, deve ter um estômago de baleia. Agora está comendo um jantar completo pela segunda vez e derrubando sozinho a segunda garrafa de borgonha. Mas está firme como um dois de paus. Dá para compreender?

 - Tem gente que é assim. - O outro comissário arreganhou um sorriso encolhendo os ombros com desdém. - Vão até o alojamento, dão uma cagadinha e depois começam tudo de novo.

 - É verdade. Ele acabou de ir lá fora...

 

 - Aí está! Não fique aí de boca aberta, sirva! Afinal, não é você quem paga. Por quase quatrocentos marcos ao dia você podia comer até três vezes.

 Quando Hans Fehringer retornou à cabina, Herbert estava deitado na cama tendo ao seu lado uma garrafa de vodca, uma de soda limonada, bem como uma cuba de gelo. Na televisão passava um policial de Hitchcock transmitido por videocassete pelo estúdio de bordo. Nesse momento, acabava de ser achado um cadáver sem olhos.

 - E então, ela não é magnífica? - perguntou Hans tirando o paletó de seda para poder lavar a mão.

 - Quem, o cadáver? Não sei dizer...

 - Sylvia, seu bundão! Dá para compreender agora que se perca a cabeça com ela?

 - Pode ser. Só que nós ainda precisamos de nossa cabeça. Ou será que você está querendo ir parar numa prisão de alguma ilha dos mares do Sul? Comparada com elas a penitenciária de Stuttgart é um hotel de luxo. Esses buracos deviam ser mostrados a esses terroristas mimados.

 Nesse momento, o cadáver sem olhos do filme da televisão era levado embora. Hans lavou as mãos e depois voltou para a cama.

 - Quando é que você vai dar o fora da cabina, irmão?

 - Quando você quer vir? - Herbert bebeu um gole da vodca com limonada. - E quanto tempo vai ficar?

 - Digamos que até as quatro da manhã. Tudo bem? Enquanto isso você pode ficar no Clube do Pescador. Sua cama estará livre quando o cartaz "Favor não incomodar" não estiver mais pendurado na maçaneta. - Ele arreganhou um sorriso largo e tornou a vestir o paletó de seda. - Cruze os dedos para que o marido dela tome um porre.

 - Suma daqui!

 Hans Fehringer pegou o cartaz "Favor não incomodar", saiu da cabina e pendurou-o na maçaneta. A partir desse instante nenhum comissário iria incomodar. Ele subiu os dois lances de escada até o Salão dos Sete Mares onde já se encontravam os passageiros do primeiro horário de refeição ouvindo a orquestra de bordo tocar músicas que não saíam da moda.

Agora chegavam os passageiros do segundo horário e, entre os primeiros, estava o casal de Jongh. Hans Fehringer esperou até que os dois encontrassem uma mesa e depois procurou um lugar nas proximidades, onde ele e Sylvia pudessem trocar olhares e sinais. Knut de Jongh ainda dava uma impressão de vivacidade, mas que era enganosa. Quem o conhecesse tão bem quanto Sylvia, veria que a bebedeira já se apossara de seus olhos, mesmo que ainda reprimida por sua força de vontade. Faltavam apenas alguns copos para derrubá-lo definitivamente.

 - Champanhe - disse de Jongh quando a comissária Helmi passou por sua mesa. - Taitting seco. Só uma taça para minha mulher. Para mim um uísque duplo com gelo. O champanhe bem gelado!

 Deu um sorriso apaixonado para sua linda mulher, pegou um estojo de couro no bolso interno do paletó e tirou um charuto.

 - O Dr. Peters disse que você não devia fumar mais. Seu coração, meu querido... - os lábios de Sylvia pronunciaram essa frase com carinho especial.

 

 - Em primeiro lugar, o Dr. Peters não se encontra nas proximidades; em segundo lugar, estou aqui para descansar; em terceiro lugar, há muito tempo que gosto dos charutos e, em quarto lugar, por mim todos podiam... - de Jongh mordeu a ponta do charuto e acendeu-o. Depois recostou-se comodamente no assento. - Isso é que é prazer! - disse depois da primeira tragada. - Sylvia, hoje eu me sinto bem como um porco. - Soltou lufadas de fumaça no ar, coisa que Hans Fehringer aproveitou para esticar os lábios mandando beijos na direcção de Sylvia. Ela respondeu com um leve aceno de cabeça.

 O casal von Haller, na realidade príncipe e princesa von Marxen, estava sentado não muito longe dos de Jonghs. Haviam acabado de pedir um vinho branco à comissária Helmi.

 - Era ela a quem eu estava me referindo - disse a princesa em voz baixa, quando Helmi passou à mesa seguinte. - Que achou?

 - Uma moça robusta, Juliane Herbitina. - O príncipe contemplou por trás a figura exuberante de Helmi. - Será que ela participa?

 - Deixe isso por minha conta, meu querido. Por acaso eu sempre não tive sucesso até agora?

 - Você é quem manda, meu amor. - O príncipe olhou para o palco. Entrou em cena Hanno Holletitz, o mestre-de-cerimónias e conferencista, vestido com um paletó de quadrados grandes e calças pretas. A orquestra deu um toque de clarins. Começava a grande e alegre noitada.

 

Claude Ambert esperou ao lado de suas elefantas até mais ou menos duas horas da madrugada. Então, disse a si mesmo que havia chegado a hora de começar uma nova vida.

 - Dentro de dez minutos - disse para as elefantas adormecidas - estaremos ricos! Aí não vamos precisar mais nos apresentar para esses babacas estúpidos.

 Saiu do porão de depósito, andou em silêncio até a escada e subiu-a cauteloso como um animal de rapina. Depois foi de elevador para o solário e deslizou na pontinha dos pés até a suíte 004 com o nome de Goethe.

 Baixou a maçaneta bem devagar, a porta cedeu. Como sempre, não estava fechada. Silencioso como um gato penetrou na ante-sala da cabina.

 

Claude Ambert ficou à espreita durante alguns segundos junto à porta da cabina, para ver se alguma coisa se mexia no quarto de dormir separado da imensa sala de estar. Seu coração batia com tanta força e o sangue pulsava com tanto barulho nas veias de sua cabeça, que a princípio ele não ouviu coisa alguma. Somente quando conseguiu controlar a respiração foi que percebeu suaves barulhos de roncos, longos e regulares. Eram mais profundos do que se poderia supor no caso das mulheres.

 Ambert ficou perplexo e lutou consigo mesmo. As pernas queriam dar uma meia-volta e sair correndo, mas o cérebro ordenava: fique, procure, pegue o dinheiro! Tudo que um homem faz tem seus riscos. Neste caso vale a pena ter coragem e dominar-se.

 Claude Ambert seguiu deslizando para dentro da cabina, tornou a parar à espreita diante da parede divisória do quarto de dormir, já acostumado com a pálida luz da lua que entrava na enorme cabina através das janelas abertas. Conseguia distinguir cada objecto e via sobretudo a escrivaninha em cuja gaveta encontrava-se a fortuna. Anne White explicara ao director de hotel Riemke o motivo pelo qual não depositava essa soma gigantesca no cofre do navio, bem como suas jóias valiosas que ela simplesmente guardava na gaveta fechada à chave da mesinha-de-cabeceira, que um profissional arrombaria sem a menor dificuldade.

 - Não tenho filhos. Meus filhos são o dinheiro e as jóias. E, como qualquer mãe, quero ter meus filhos ao meu lado, dia e noite.

Por acaso isso é alguma extravagância?

 Ao qual Riemke respondera do modo mais amável:

 - Mas de maneira nenhuma, Sra. White - embora estivesse pensando: quanto mais rico, mais pirado! Se alguma coisa fosse roubada, ela teria uma bela dor de cabeça com sua companhia de seguro...

 Nesse momento, Claude Ambert deu a volta na parede divisória e olhou para a cama. Quase jogou-se para trás e fugiu, mas o terror deixou-o paralisado. Um homem estava deitado na cama. Um homem de barba negra, musculoso, robusto. Podia-se ver, pois ele só estava coberto até o umbigo. Deitado de costas, em sono profundo, era ele quem produzia os roncos.

Somente depois de uma segunda olhada foi que Ambert reconheceu Anne White ao lado dele, virada para a direita e coberta até o queixo. Também dormia respirando fundo, mas quase sem fazer barulho.

 

 Ambert ficou parado durante alguns momentos como que enraizado no chão, depois recuperou o raciocínio frio. O destino jogava a seu favor. Dava-lhe não apenas uma fortuna, mas também o suspeito ideal do assassinato... aquele homem ao lado da vítima na cama. Vai ser muito difícil provar sua inocência, já que era a última pessoa que estivera com Anne White. E assim, Ambert não suspeitou em nenhum momento que a pessoa que ali dormia completamente extenuada pelo apetite sexual inesgotável de Anne fosse um membro da tripulação do Atlantis, justamente o maquinista Jim, que possuía a força de um urso. No dia seguinte, após a descoberta do crime, quando fosse interrogado pelo comandante Teyendorf, a coisa seria ainda mais terrível para ele, posto que não poderia provar coisa alguma.

 Ambert olhou mais uma vez em volta, descobriu no divã da sala de estar um enorme travesseiro com uma fronha colorida que mostrava o pôr-do-sol junto a uma ilha dos mares do Sul, foi até à sala na pontinha dos pés, pressionou o travesseiro contra o peito e voltou ao quarto. Inclinou-se sobre Anne White e viu que seria impossível sufocá-la com o travesseiro na posição em que o corpo da mulher estava deitado. Anne White precisava ficar de barriga para cima, com o rosto desimpedido, somente assim Ambert poderia sufocá-la com o travesseiro.

 Ele pousou o travesseiro no tapete do chão, virou Anne White com todo cuidado e bem devagar pondo-a de barriga para cima e, então, esperou um pouco para ver se ela acordava. Mas a Sra. White também estava tão esgotada pela capacidade de resistência de Jim, que simplesmente continuou dormindo. Estava sorrindo no sono como se estivesse sonhando com algo maravilhoso e, sob a camada de maquilhagem um pouco lambuzada, seu rosto apresentava uma aparência francamente jovial.

 Claude Ambert hesitou mais uma vez. Não sou um assassino sanguinário, pensou. E tão-pouco sou louco; mas lá dentro, numa simples gaveta, está minha vida nova. Então o que sou? Um zero à esquerda com duas elefantas que querem sua comida todos os dias. Sou obrigado a suplicar cada contrato, afinal o público está farto de sensações. Isso não pode continuar assim... preciso fazer... Nem sequer lhe ocorreu que se todos agissem dessa maneira só haveria assassinos no mundo... que ele não passava de um criminoso ordinário.

 Ambert abaixou-se, pegou o travesseiro no tapete e pressionou-o com toda a força no rosto sorridente de Anne White. Constatou espantado que a mulher quase não esboçou resistência, que não se debateu, que apenas estremeceu dando algumas pernadas... depois ficou quieta e ele apertou-lhe o travesseiro no rosto com mais força pondo o peso de seu dorso em cima, enquanto olhava para o homem barbudo que roncava ao lado.

 Aconteceu com muita rapidez; mais rápido do que ele esperava. O corpo de Anne distendeu-se, Ambert retirou o travesseiro de seu rosto e constatou que nesse momento estava desfigurado. Ela não respirava mais.

Ele pousou o ouvido no peito da mulher e não ouviu nenhum batimento cardíaco. Anne White estava morta.

 Ele foi à escrivaninha com passos rápidos, abriu a gaveta e viu o grosso maço de notas. Apressado, enfiou tudo nos bolsos, tornou a fechar a escrivaninha e deslizou em direcção à porta.

 No corredor reinava a mais pura calma. àquela hora, ninguém mais deambulava pelo navio, à excepção da guarda dos bombeiros. Só havia movimentos ainda na boate, que Claude Ambert ouviu ao sair do elevador e desaparecer rapidamente atrás da porta de ferro na qual estava escrito de maneira bem clara: "Entrada Proibida - Alta Tensão!" Mas tratava-se de um engano consciente para iludir os passageiros, para reprimir-lhes a curiosidade; atrás da porta havia um longo corredor que, passando pelo porão de depósito, levava à escada que ia dar no ponto mais fundo do navio, no imenso porão onde as elefantas dormiam nesse instante.

 

 Respirando aliviado, Claude Ambert jogou-se na palha ao lado de suas queridas de coloração acinzentada e fechou os olhos. Estaremos em acapulco amanhã de manhã bem cedo. Quando encontrarem o cadáver da Sra. White, com toda certeza ninguém pensará no domador de elefantes. E também por que haveriam de pensar? O que ele tinha a ver com a Sra. White?

 Claude Ambert guardou o maço de notas sem contar no baú de roupa, na parte mais funda, embaixo do toucado de elefante com o qual as duas se apresentavam no picadeiro. Ele sabia que ali nem mesmo os funcionários da alfândega mexicana iriam procurar. Pelo contrário!

Quando suas elefantas passassem de tromba erguida e soltando gritinhos pelos empregados da aduana, estes iriam rir e acenar: está tudo em ordem, camarada! Sorte com seus ratinhos cinzentos! As pessoas ainda tinham bom humor no México. E ele seria um homem rico do outro lado da fronteira e da barreira...

 Ficou acordado ao lado das elefantas até ouvir as máquinas do navio operarem com meia força e depois de um modo quase imperceptível. Haviam chegado na entrada do porto de Acapulco.

 Ambert saiu do subterrâneo e subiu ao convés principal. Ali encontrou Rainer Steger, o segundo quartel-mestre. O dia anunciava-se belo, o sol nascia com uma cor vermelho sangue, o céu estava banhado de dourado.

 - Serei o primeiro a desembarcar? - perguntou Ambert.

 - Claro. Está tudo certo com você ?

 - Tudo.

 - Então fique preparado!

 Ambert foi de elevador até o solário, chegou ao tombadilho e olhou para a ponte. O comandante Teyendorf e o primeiro-oficial Willi Kempen comandavam a manobra de atracação. O colosso branco deslizava aproximando-se do cais centímetro por centímetro, conduzido, como sempre, pelo próprio Teyendorf com a ajuda do moderno raio de orientação de proa.

 Ambert deslocou-se outra vez para o porão indo encontrar ali dois marinheiros e o segundo-barqueiro que já estava à sua espera. As elefantas perceberam que a viagem chegara ao fim; levantaram-se na palha, fizeram barulho com as correntes e ficaram balançando as enormes cabeças de um lado para o outro. Sua incrível e refinada sensibilidade reagia a cada barulho.

 - Logo estará tudo acabado, monsieur Ambert - disse o segundo-barqueiro. - Assim que atracarmos, a grande escotilha do depósito será logo aberta para você.

 - Graças a Deus essa viagem chegou ao fim! - Claude Ambert postou-se entre as duas elefantas. - Foi tudo à toa! De trem eu já teria chegado há muito tempo a Acapulco, sem que minhas pequenas tivessem padecido de enjoo do mar. Essa foi a nossa primeira e última viagem por mar, eu juro.

 Claude Ambert e as elefantas desembarcaram do Atlantis às seis horas e vinte e dois minutos. Com mudo espanto, os passageiros que se encontravam na amurada para fotografar e filmar a manobra de tracção viram que o navio levava elefantes a bordo. Os gigantes cinzentos chegaram em terra andando com dificuldade por uma rampa de madeira improvisada. Os dois marinheiros levaram a bagagem e os baús de roupas ao cais. Já havia uma empilhadeira esperando ali para colocar as coisas numa plataforma de transporte.

 

 Assim que as elefantas chegaram em terra, Claude Ambert virou-se e acenou para Teyendorf. O comandante bateu continência e chegou a mandar um aceno em resposta. Em seguida desapareceu para estar pronto para as autoridades portuárias que subiriam a bordo dentro de alguns minutos. Os controladores de passaporte da repartição de imigração também estavam esperando, pois qualquer passeio que os passageiros fizessem em terra era uma espécie de imigração. Por conseguinte, cada passaporte teria de ser carimbado e, além disso, cada um desses documentos pessoais permaneceria a bordo sob a guarda da comissária. Portanto, ninguém poderia desaparecer de bordo e entrar na clandestinidade em território mexicano.

 Bem à vontade, Claude Ambert seguiu a empilhadeira acompanhado das duas elefantas, indo em direcção à alfândega e à saída do porto. E como era de se esperar, as elefantas trombetearam com um som ensurdecedor. O passaporte e os documentos de artista de Ambert estavam em ordem, o atestado de vacina estava certo. O certificado de apresentação em acapulco, a permissão do Ministério do Interior, tudo estava de acordo com o regulamento. Sorte, camarada! Esses seus bichinhos cinzentos são mesmo belos exemplares...

 Respirando aliviado, Ambert ultrapassou o portão do México acompanhado de suas elefantas. Não tornou a olhar para trás em direcção ao navio, mas pensou no homem barbudo que com toda a certeza estaria acordando agora para ver que havia dormido ao lado de uma morta. Que iria fazer então? Esquivar-se às escondidas? Impossível! Nesse momento havia movimento em todos os corredores, coisa que fechava os caminhos de fuga.

 

E como Hans Fehringer havia passado a noite anterior? Pouco se interessou pelas atracções do colorido programa no palco do Salão dos Sete Mares. Quando Sylvia de Jongh levantou-se da mesa deixando seu marido sozinho para dar uma rápida saída da sala, ela passou pela mesa de Fehringer e sussurrou:

 - Dentro de meia hora no máximo!

 Fehringer fez um leve aceno. Nesse momento, um mágico apresentava-se no palco tirando uma bola de golfe do nariz de uma passageira que sorria encabulada. Os membros de um clube de golfe que se encontravam a bordo na qualidade de passageiros aplaudiram freneticamente.

 Hans Fehringer só se levantou quando Sylvia retornou e foi sentar-se ao lado do marido. Nesse instante, os cantores de câmara Rieti e Reilingen começavam o grande dueto de Madame Butterfty. Knut de Jongh deu um longo bocejo e entupiu-se de uísque. Dava para se prever quando Sylvia o rebocaria. Hans afastou-se sem fazer nenhum ruído, seguido por olhares irritados. Rieti e Reilingen cantavam realmente de um modo extraordinário. Ouvi-los era uma experiência inesquecível. Holletitz ficou contente; o número não realizado das elefantas não poderia ter sido melhor.

 Herbert Fehringer já estava sentado na cama da cabina esperando.

 - Onde é que você se meteu? - vociferou para o irmão. - Ela não estava com vontade?

 - Ela vai chegar dentro de meia hora. Some daqui, irmãozinho do coração. Mais tarde, você pode dar um pulo no Clube do Pescador até o salão, para que todos o vejam e ninguém sinta a minha falta. E trate de não ser visto aqui de manhã. Você só pode entrar realmente quando o cartaz "Favor não incomodar" não estiver mais pendurado na maçaneta.

 

 - Você já disse isso pela quarta vez. Divirta-se, irmãozinho.

 - Obrigado, meu irmão meia hora mais velho.

 Herbert Fehringer saiu da cabina e foi até o Clube do Pescador. Ali chegando, encontrou os dois homossexuais Jens van Bonnerveen e Eduard Grashorn, os quais, com os braços pousados um no ombro do outro, bebericavam exóticos coquetéis em copos compridos. Alguns casais dançavam na pequena pista de dança redonda. Num dos sofás de canto estavam sentados o advogado Dr. Schwarme e Arturo Tatarani, o italiano proprietário da vinícola.

Os dois conversavam sobre o vinho piemontês. A cabeleireira Bárbara Steinberg, uma beldade loura de vinte e oito anos, mantinha-se inacessível apesar dos olhares cobiçosos dos homens, embora, de sua mesa de dois lugares, estivesse flertando com o médico de bordo, o Dr. Paterna, que se encontrava sentado no bar ao lado do cego. É uma pena que o doutor não esteja sozinho, pensou ela.

 Herbert Fehringer olhou à sua volta, descobriu outra mesa desocupada e dirigiu-se até ela. Ao fazê-lo, passou por Bárbara Steinberg e cumprimentou-a à maneira como se cumprimentam os conhecidos de convés. Ela ignorou o cumprimento e continuou de olhos fixos no Dr. Paterna. Vaca maldita, pensou Fehringer irritado. É sempre a mesma coisa: por fora, é bela como uma Vénus, mas no cérebro apenas o vazio. Por que são justamente as mulheres bonitas as mais burras? aí está uma questão com a qual os antropólogos deviam ocupar-se um dia.

 Ewald Dabrowski inclinou-se em direcção ao Dr. Paterna. Agora ele podia falar de modo bastante aberto, pois a música estava bem alta, abafando a conversa.

 - Doutor, acho que como cego vejo melhor do que você. Lá atrás está sentada uma linda donzela loura que só tem olhos para você.

 - A cabeleireira Steinberg, de Bochum.

 - Ah! Já lançou o laço para pegar?

 - Ainda como. - O Dr. Paterna ostentou um sorriso largo.

- A enfermeira Erna deixou escrito um bilhete. A senhorita Steinberg pegou alguns comprimidos para enxaqueca na farmácia do hospital. E perguntou por você.

 - Todas fazem isso. Afinal, eu sou o médico.

 - E quanto tempo você ficará a bordo?

 - Durante toda a viagem. Em seguida entrarei de férias. Quero aguentar o emprego por mais três anos.

 - E depois?

 - Penso em montar um consultório nalgum lugar na Baviera. Junto a algum lago. Com uma pequena clínica incutida, na qual se praticará tudo que está em voga hoje em dia, terapia de oxigénio puro, injecções de átrio e xenério, cura pelo Aslan H3, troca de oxigénio do sangue, treinamento autageno, diferentes formas de dieta, infusões de quilato, jejuns recuperadores, aplicações de camada de óxido, bioregeneração, terapia celular...

 - Digamos, tudo que da muito dinheiro.

 - É isso aí.

 - Você quer ser um médico moderno. Um médico que esteja sempre por dentro. Do jet-set. Um médico que paparica tudo que é chique.

 

 - Bem, se você quer chamar assim... quase que não tenho o que replicar. só que eu gostaria de insistir que trato todo o paciente segundo meus melhores conhecimentos médicos e consciência. - O Dr. Paterna sacudiu a cabeça. - Por que estou lhe contando tudo isso? como cheguei a esse ponto? Faz apenas algumas horas que lhe conheço.

 - Porque sentimos simpatia à primeira vista. Você descobriu logo o meu truque de cego.

 - Como já lhe expliquei, isso foi muito simples para um médico. Um cego comporta-se de modo diferente.

 - E eu disse que a partir de Amanhã você me daria um belo treinamento! Continua de pé?

 - Será um prazer para mim. - O Dr. Paterna pediu mais duas pilsens de barril. - A hora mais adequada será quando os passageiros estiverem dando seu passeio. Então, noventa por cento dos viajantes se encontrarão a bordo e ninguém nos incomodará. Poderei ensinar-lhe inclusive a subir escada. Caso alguém nos veja... bem,

então vai pensar que o bom Dr. Paterna está dando uma aula extra para o pobre cego.

 - Você se tornará a bordo a imagem de um homem meio santo!

 - Coisa que qualquer médico de navio é desde o início, pelo menos para as mulheres. A gente precisa acostumar-se com isso e encarar a coisa com coragem. - O Dr. Paterna deu um sorriso jovial. - Agora, em viagens tão longas como esta, até que não é muito ruim. Mas quando estamos navegando durante o verão de um lado para o outro no Mediterrâneo, sempre em viagens de dez ou catorze dias, portanto com uma rápida troca de passageiros... então, posso assegurar-lhe que há uma grande confusão.

Ambas mulheres acham que reservaram também o médico de bordo. Catorze dias de fuga do quotidiano e depois a volta à brava vida de dona-de-casa ou de honrada solteirona...

 - E isso o espanta?

 - Como. Devemos gozar a vida antes de criar mofo, coisa que infelizmente acontece com incrível rapidez! como é que acontece com você?

 - Como devo entender a pergunta?

 - Você é casado?

 - Bem, dizendo com toda a franqueza e honestidade... ainda não tive tempo. Além disso, minha vida é agitada demais.

 - Você está acompanhado por uma "enfermeira" encantadora, Sr. Dabrowski.

 - Beate? Sim, é uma linda moça. Tem vinte e três anos e honesta. Coisa que raramente encontramos. Vem de uma boa família; o pai promotor público, promotor-chefe.

 - E ela ainda aceita esse tipo de trabalho?

 - Foi o próprio pai que a colocou em minhas mãos. Foi dela essa idéia do cego, para que finalmente a companhia de seguros possa agarrar Paolo Carducci, o invisível com vários nomes.

 - E esse mestre dos ladrões encontra-se a bordo?

 - Sim.

 - Tem certeza disso?

 - Como. Apenas sinto.

 - Portanto, trata-se de facto de um cego que sai às apalpadelas. - Paterna deu outra risada e lançou um olhar na direcção de Barbara Steinberg. A mulher respondeu no ato com um sorriso irradiante. Tinha uma aparência esplêndida. Seus cabelos louros brilhavam como ouro polido.

 

Barbara recostou-se no assento estofado mostrando ao Dr. Paterna os seios de desenho notável, que apareceram de modo indistinto no vestido apertado. No convés, vestida de traje de banho, ela era tida como concorrente loura da morena Sylvia de Jongh. A vantagem que apresentava era que, ao contrário de Sylvia, Barbara não tinha marido ao lado.

 Os olhos de Dabrowski seguiram aparentemente por acaso o olhar de Paterna. Para qualquer estranho foi como se o cego estivesse olhando no vazio.

 - Pode ir lá agora, doutor - disse ele em voz baixa.

- Eu lhe concedo férias. Daqui a pouco essa beldade vai ficar com cobras de tanta ânsia. Posso subir sozinho às apalpadelas.

- Você acha que eu teria alguma chance com sua Beate?

 Essa pergunta directa e repentina deixou Dabrowski mudo de espanto por alguns segundos.

 - Você... e Beate? - perguntou depois, hesitante.

 - Ela me agrada.

 - É melhor você ir logo tirando isso da cabeça.

Beate não é do tipo de moça que sai por aí agradando.

 - Com ciúmes?

 - Sou dezassete anos mais velho do que Beate.

 - E por acaso isso lá é algum obstáculo? Muitas garotas apaixonam-se por homens mais velhos.

 - Que idade tem, doutor?

 - Tenho a idade exacta para ela: trinta e cinco anos.

- O Dr. Paterna ficou sério. - Falando sério, Sr. Dabrowski. Gostaria de pedir-lhe para apresentar-me a Beate.

 - Eu sou detective e não casamenteiro.

 - Pense no seu treinamento de cego...

 - Isso é chantagem, doutor!

 - Você quer desmascarar um ladrão de mulheres e eu vou ajudá-lo. Afinal de contas, eu bem que poderia agir de outra maneira e simplesmente apresentar-me a Beate como médico. Em vez disso, estou quase pedindo sua permissão. Se isso não for prova do quão distante estou de uma aventura fugaz!

 - Por hoje você vai ficar com sua doce cabeleireira, doutor. E se continuar assim pelo resto da viagem, sinto muito por Beate. Você acabou de dizer algo a respeito de mais três anos de viagens marítimas. Será que Beate deve esperar três anos ou você passará três anos na companhia de outras mulheres? Você não está falando sério! Claro que não pode exigir isso de mim! O pai de Beate confiou-me sua filha e, por isso mesmo, ninguém vai me passar a perna. Nem mesmo você, doutor, com toda a nossa amizade repentina. - Dabrowski deslizou para fora do banquinho do bar e o Dr. Paterna fingiu que o ajudava. - Agora tactearei meu caminho para a cama.

 Pode ficar e apagar o incêndio da cabeleireira. Ela é muito mais bonita do que Beate, é provável que seja a mulher mais linda a bordo.

 - Amanhã conversaremos mais a esse respeito. - O Dr. Paterna conduziu Dabrowski, o cego, até a porta do Clube do Pescador e então retornou, após esperar que Dabrowski entrasse no elevador. E, como se fosse a coisa mais natural, foi sentar-se diante de Barbara Steinberg à mesinha redonda. Ela encarou-o com olhos imensos, redondos e azuis e um ar francamente medroso. A surpresa fez sua respiração oscilar... de repente tornava-se realidade aquilo que ela desejara em seu íntimo.

 

 - Posso? - perguntou o Dr. Paterna com um modo descuidado embora jovial, ostentando um sorriso encantador.

 - Você... você já está sentado, doutor - balbuciou Barbara.

 - Eu estava pensando: essa linda criatura está sozinha e isso é uma vergonha! Pela experiência que tenho, dá para compreender como é difícil para uma mulher que viaja sozinha encontrar a companhia certa. Não daria para ser com nenhum casal, pois a mulher explodiria de ciúme... e, no seu caso, com toda a razão! Não existe nenhum homem nesse navio que você não impressione. Claro que com a excepção do nosso pobre cego...

 - Você me deixa embaraçada, doutor. - Barbara Steinberg conseguia corar e ficar desconcertada de um modo encantador.

 O Dr. Paterna foi pegado de surpresa. Teria se equivocado? Seria verdadeiro aquele embaraço? Seria aquela mágica linda talvez apenas um pequeno passarinho que se atrevia a entrar excepcionalmente e por uma única vez numa gaiola dourada, após um longo tempo de privações e economias?

 Ele acenou para o comissário, pediu uma garrafa de champanhe e colocou os cigarros sobre a mesa.

 - Posso fumar?

 - Mas claro... eu lhe pego, não precisa perguntar.

 - Quer um também?

 - Obrigada. Eu não fumo.

 Paterna tornou a encará-la admirado. Apesar de sua experiência várias vezes comprovada com as mulheres, dessa vez ele se sentia inseguro e reflectia. Essa mulher fica aí, sentada como uma vampira; está com um vestido que deixa ver tudo, sua própria entrada em cena é uma só provocação ao sexo masculino, uma sedução aberta... mas em compensação ela cora e fica encabulada como uma escolar. Que devo achar disso? Refinamento em sua forma mais completa? Ou o sonho de um dia tornar-se a grande dama admirada por todo mundo?

 - Você tem um salão de cabeleireiro em Bochum? - perguntou Paterna.

 Barbara olhou o comissário que colocara uma garrafa de champanhe e uma cuba de gelo sobre a mesa e depois, como num passe de mágica, fizera aparecer duas taças finas na forma clássica de tulipa.

 - Você já sabia?

 - Através de um recado da enfermeira Erna. Você foi pegar comprimidos.

 - Essa... essa é minha primeira viagem marítima - Barbara sorriu encabulada.

 - Ah! E eu que acreditava que você fosse uma viajante experimentada.

 - Oh, não! Economizei durante três anos para fazer essa viagem. O México, a América do Sul pela costa do oceano Pacífico, os mares do Sul com suas ilhas de contos de fada... sempre tive esse anseio. Eu pensava com meus botões, o dia em que você for dona de um salão, então trate de economizar e economizar até poder fazer uma viagem como essa. Há três anos eu pude assumir o controle de um salão de cabeleireiro que estava indo à falência. O banco me emprestou o dinheiro. E consegui fazer com que o negócio passasse a andar de um modo magnífico. Nesse momento eu emprego quatro cabeleireiros e três aprendizes.

 

 - Muito bem! Meus parabéns! - o Dr. Paterna quase sentiu vergonha por ter suposto que fosse uma dessas jovens que saem viajando pelo mundo inteiro atrás de aventuras amorosas, usando a designação profissional de dona de salão apenas como disfarce.

 Nesse meio tempo, o comissário tirara a rolha do champanhe. Encheu as taças com cuidado e disse dando uma olhada significativa para o Dr. Paterna:

 - Aproveite!

 Paterna ergueu a taça e brindou a Barbara.

 - A que devemos brindar, Sra. Steinberg?

 - Ao meu primeiro champanhe... De facto, ele é o meu primeiro...

 - Então está bem! - o médico acenou a ela. - à sua primeira taça de Taitting seco!

 Os dois bateram as taças e beberam. Barbara Steinberg sorveu o primeiro gole e, ao fazê-lo, encarou o Dr. Paterna por cima da beira da taça.

 Os olhos inquisidores do médico deixaram-na intranquila.

 - Essa viagem está me custando 28.290 marcos, fora os custos adicionais. E nem ao menos tenho uma cabina externa. Tenho uma interna, sem janela, só com ar-condicionado e ar puro. Mas ao menos uma vez eu queria entrar nesse navio!

 - Uma vez na vida. Alguma vez você já economizou cerca de 35 mil marcos?

 - Já...

 - Verdade?

 - Quero montar mais tarde uma clínica particular e para isso é preciso algum capital inicial. Sem uma certa segurança, nenhum banco dá sem mais nem menos crédito a um médico. - O Dr. Paterna levantou-se. - Quer dançar?

- Com todo prazer. Tenho uma verdadeira paixão pela dança. Mas raramente eu consigo. à noite, quando fecho meu salão, quase desmaio de cansaço. Muitas vezes eu adormeço diante da televisão. - Ela riu, acompanhou Paterna até à pista de dança redonda e disse jovial, enquanto ele passava o braço em sua cintura: - Vamos parar de falar sobre isso! Amanhã verei Acapulco, a praia dos milionários. Torna-se realidade um pedacinho do sonho e, a cada dia, um pedacinho mais... Como me arrependo do dinheiro gasto!

 Nessa noite, o Dr. Paterna desistiu de ir cedo para a cama... sozinho ou acompanhado. Mesmo quando outras solteiras entraram no bar, Paterna como reparou nos olhares das mulheres, por mais que quisessem atrasá-lo e, ao mesmo tempo, matar Barbara em pensamento... essa sirigaita loura, como ela era chamada em segredo.

 Herbert Fehringer aguentou até quase às cinco horas da manhã; depois, cansado e bem alcoolizado, subiu ao convés principal. O cartaz "Favor não incomodar" havia desaparecido da maçaneta, portanto a cabina encontrava-se desocupada. Ele entrou, foi recebido por uma nuvem de perfume adocicado e viu o irmão Hans dormindo bem aventurado na cama Pullman arriada.

 Herbert Fehringer aumentou para todo volume o ar-condicionado, tirou a roupa e, ao deitar-se, deu um pontapé na cama de cima. Hans acordou.

 - Seu bundão! - disse sonolento. - O que foi?

 - E você consegue dormir com esse fedor, hem?

 - Consigo. Deixe-me em paz.

 - Foi gostoso?

 

 - Amanhã lhe escreverei um relatório a esse respeito. Meu Deus, quer fazer o favor de me deixar dormir agora?

 Mas como conseguiu dormir tão rápido assim. Foi obrigado a pensar em Sylvia de Jongh. Sylvia retornara após ter rebocado o marido para a cabina e lhe ter despejado mais três vodcas goela abaixo. Já no primeiro beijo Hans abrira o fecho do decotado vestido de noite, sob o qual ela estava nua. Os dois caíram na cama beijando-se num abraço ofegante e assim começaram algumas horas que Hans Fehringer nunca antes tivera. Sylvia mordeu e arranhou-o em êxtase e Hans cobriu-lhe o corpo sedutor com manchas de beijos chupando-a com firmeza. E, por volta das quatro horas da manhã, antes de deixá-lo, Sylvia retornou cinco vezes da porta para beijar o corpo desnudo de Hans. Era como se ela precisasse arrancar-se dele; foi uma despedida frenética, desenfreada, arrebatadora. Que mulher!

 Hans Fehringer levantou um pouco a cabeça. Alguma coisa estava diferente; depois de algum tempo ele registou: as máquinas do Atlantis estavam caladas; de repente, o gigantesco navio branco apenas deslizava silenciosamente pelo mar. Os ponteiros luminosos do relógio digital montado na cómoda indicavam cinco e meia da manhã. Acapulco, pensou Fehringer. Estamos entrando no porto de Acapulco. Não verei Sylvia durante o dia inteiro, pois seu marido fez a reserva para um passeio de bote a Roqueta, uma pequena ilha situada fora da imensa baía. Ali ela tomara banho de mar e almoçara no elegante restaurante Palão. E Knut de Jongh tornara a encharcar-se de drinques, de tequila. Que vida! Mas que mais lhe poderia oferecer um Hans Fehringer? só amor? Nada mais além do amor.

O único capital que posso apresentar é o elegante guarda-roupa... as roupas profissionais minhas. Que vidinha de merda a nossa!

 Ele tornou a adormecer, despertando por alguns segundos ao ser arriada a âncora do Atlantis. Ah, Sylvia, pensou ele, que noite!

Herbert vai me achar um maluco completo, mas eu te amo. Eu te amo mesmo, com tudo a que tenho direito... que... que podemos fazer.

 Tornou a adormecer e dessa vez caiu num sono profundo.

Herbert saiu da número 213 e desceu o corredor em direcção ao restaurante, ao bufé do desjejum.

 Esse dia lhe pertencia, pertencia a Herbert Fehringer e ele queria gozá-lo da maneira mais completa.

 Jim, o mecânico, colocara o relógio para as quatro da manhã, a fim de poder sair da suíte 004, a Goethe, de Anne White, antes da chegada a Acapulco.

 Despertou quando o relógio começou a soar, bocejou com força, coçou o peito peludo, desligou o despertador e lançou um olhar para o lado.

 Anne White ainda dormia profundamente sem perturbar-se com o barulho do despertador, a coberta puxada até quase ao pescoço. Jim saiu da cama em silêncio, apalpou o abajur acendendo-o na luz do alvorecer, foi até suas roupas e vestiu-se apressado sentindo uma sede mortal. Antes de sair da cabina, tornou a lançar um olhar para Anne White.

 

 Do jeito que estava deitada, ela se parece com uma moça, pensou ele. Não tem ruga nenhuma no rosto, os cílios são longos e curvos, a boca não apresentava a traiçoeira pele puxada para o lado. Claro que isso vem das muitas plásticas; um bom cirurgião plástico é capaz de, num passe de mágica, dar a um rosto velho o semblante de uma rainha da beleza. Tudo não passa de uma questão de dinheiro e paciência. E quando se pensa nalgumas horas atrás... ela é realmente uma mulher magnífica.

 Ele voltou à cama, para dar-lhe um beijo de despedida nos olhos.

 Inclinou-se com todo cuidado sobre ela e, sem querer, ficou aterrorizado.

 Alguma coisa na expressão de Anne White não o agradou; Jim não saberia dizer o que o incomodara. Nesse momento, o rosto ostentava uma acentuada palidez, como se não estivesse sendo bombeado de sangue. Anne também parecia não estar respirando; ou sua respiração estava tão fraca que não se via movimento algum.

 Jim puxou a coberta um pouco para baixo, tocou o braço de Anne White com a ponta dos dedos, depois rogou seu rosto. A frieza e rigidez sob seus dedos fizeram-no estremecer.

Horrorizado, deu dois passos para traz com movimentos tão rápidos como se estivesse fugindo de Anne e, em seguida, foi possuído por uma paralisia. "Não pode ser", pensou ele sentindo o coração começar a martelar. "É claro que isso não é possível!" Ela aninhou-se em mim, deu-me um beijo no peito e disse: "Agora vamos dormir como dois príncipes. Oh, querido, que homem você é!"

 E depois ela adormeceu bem rápido. Por que agora esta água fria? Que aconteceu? Será que a noite foi demais para ela? Será que mais tarde seu coração falhou, simplesmente parou de bater? Será que a matei com minha força?

 Ele tornou a cobri-la, apagou a lâmpada e caminhou quase cambaleando até à porta. Demorou a encontrar a maçaneta por causa da agitação e penumbra e depois saiu. No corredor, precisou primeiro recostar-se na parede, bombeou-se de ar fresco, sentiu brisas de vento e então, com pernas inseguras, correu até a escada de emergência que somente a tripulação tinha permissão para usar. só quando chegou ao convés B e viu seu rosto espantado no espelho da cabina, foi que teve clareza que ninguém aceitaria sua história. Para os outros, ele teria matado Anne White.

 O comissário de cabina Josef deu o alarme às onze horas. Posto que Anne White não pedira o desjejum como de costume, ele batera na porta 004, depois entrara admirando-se de a porta estar aberta e encontrara a vizinha milionária morta em cima da cama.

 Gerhard Riemke, o director de hotel, primeira pessoa a ser informada, apareceu na suíte Goethe indo pelo caminho mais rápido. Bastou-lhe uma rápida olhada... telefonou de imediato para o hospital e mandou chamar o Dr. Paterna, médico de bordo, no consultório.

 - Mas isso não é possível!- o Dr. Paterna, que nesse momento preparava-se para desembarcar, gritou ao telefone. Ele vestira roupas à paisana, um terno de seda crua sobre uma camisa de listras amarelas aberta no peito. Estava com a aparência exacta do homem que se imagina que as mulheres corram atrás. - Anne White morta? Ataque do coração?

 - Bem, isso quem deve verificar é o senhor, doutor. Vem cá imediatamente. Mandei avisar o comandante também. Em todo o caso, ela está deitada como se estivesse dormindo.

 

 Paterna, com a maleta de médico na mão, chegou à porta da suíte 004 quase ao mesmo tempo que o comandante Teyendorf. O primeiro-oficial Willi Kempen apareceu logo depois.

 - Era só o que nos faltava! - disse Teyendorf. - Primeiro o teatro com os elefantes, agora essa pessoa proeminente morta na cama. Vai ser uma falação danada quando o caixão for retirado de bordo... isso sem falar da papelada. Alguém sabe onde ela pode ser enterrada? O melhor é deixar que o consulado americano de Acapulco se ocupe disso. Claro que ela deve ter deixado um testamento com seu advogado...

 Estranhamente, o Dr. Paterna contemplou a morta durante um longo tempo, sem tocá-la. O director de hotel Riemke tragava nervoso seu cigarro; fumar ali já não incomodava mais ninguém.

 - há alguma coisa? - perguntou Teyendorf preocupado. - Ela está deitada como se estivesse dormindo. O coração simplesmente parou de bater... não é de se admirar, com essa idade e a vida que levava!

 - Peça a Deus para que seja verdade.

 - Que significa isso, doutor?

 - Quer estar presente quando do exame, senhor comandante?

 - Foi para isso que eu vim aqui. O delegado de saúde mexicano já foi informado por causa do atestado de súbito oficial.

 O Dr. Paterna retirou a coberta. Anne White estava deitada nua. Suas mãos fechavam-se em punho e pressionavam o tórax. Tudo tinha a aparência de ela ter sido surpreendida por um infracto durante o sono e, ao sofrer a morte instantânea, ter pressionado os punhos contra o peito num movimento de reflexo inconsciente.

 O Dr. Paterna curvou-se sobre ela, levantou as pálpebras sobre os olhos embaçados e depois apalpou o rosto petrificado. Em seguida, endireitou-se soltando um longo suspiro.

 - Não dá para lhe poupar, senhor comandante - disse ele com voz estudada. - Chame a polícia e o médico-legal.

 - O que... o que significa isso? - balbuciou Riemke espantado. Teyendorf e Kempen também não compreenderam de imediato. Somente Josef, o comissário, compreendeu.

 - Mas que grande merda! - disse ele em voz alta. - Agora nunca mais vamos sair daqui.

 O comandante Teyendorf encarou o Dr. Paterna com um ar desconcertado.

 - Assassinato...? - disse ele depois de algum tempo. Ninguém se havia atrevido a pronunciar a palavra antes dele. - Doutor, diga que pode estar enganado...

 - Bem, qualquer ser humano pode se enganar. Mas dê uma olhada no rosto de Anne. Lábios azulados. Claras marcas de pressão em ambos os lados do nariz. Os punhos pressionando o peito na premência de respirar... Ela precisa ser autopsiada. Em todo o caso, como posso diagnosticar paragem cardíaca. Ela sufocou... foi sufocada.

 - Neste caso... neste caso temos um assassino a bordo? - perguntou Willi Kempen em voz baixa.

 - Pelo amor de Deus! Isso não deve chegar ao conhecimento público de maneira nenhuma! - Teyendorf encarou a morta como se a tivesse surpreendido no momento em que queria afundar seu navio. - Sabe o que significa isso, doutor? Vamos ficar presos aqui até a polícia mexicana ter interrogado todos os passageiros. Consegue imaginar isso? Seiscentos passageiros e trezentos membros da tripulação! Vamos ficar acorrentados o tempo que os mexicanos quiserem. Toda a viagem foi por água abaixo!

 - Mas há um assassino a bordo! - o Dr. Paterna sentou-se na beira da cama ao lado da morta. - E o assassino dormiu com ela; afinal de contas, a segunda cama foi utilizada. A polícia verá isso de caras e partirá em busca de pistas. O criminoso deixou alguma coisa por aí, os próprios cabelos, manchas de esperma...

 - Pare com isso, doutor! - Teyendorf enxugou o suor do rosto. - Chamarei a companhia de navegação pelo rádio e perguntarei que medidas tomar. Está fora de cogitação a viagem terminar em acapulco! Isso custaria milhões. .

 - O que propõe, senhor comandante? - perguntou o Dr. Paterna com toda a calma:

 - Será o delegado de saúde e não a polícia que virá a bordo. Ele constatará a morte da Sra. White e, se não notar coisa alguma, Nós passaremos o cadáver às autoridades mexicanas e informaremos o consulado americano. Afinal você só tem suspeitas...

 - E o assassino fica livre, andando por aí?!

 - Ninguém sairá do navio em acapulco. Se tivermos um assassino a bordo, ele permanecerá no navio. A próxima troca de passageiros só ocorrerá em Valparaíso. Dentro de dezasseis dias! Portanto, temos dezasseis dias de prazo para encontrar o sujeito a bordo: Caso seu diagnóstico esteja certo, doutor; pois está faltando uma coisa: o motivo!

 - Nós ainda vamos descobrir. - Paterna ostentou um sorriso fraco.

- Temos um especialista no navio. Um detective.

- Como pode ser! - o director de hotel Riemke sacudiu a cabeça. - Não há ninguém na lista de passageiros com essa profissão.

 - Claro que não. Ele está a serviço.

 - Pelo amor de Deus! - Kempen, o primeiro-oficial, ergueu os braços. - Quer dizer então que aconteceu mais alguma coisa a bordo?

 - E por que não fiquei sabendo disso? - a voz de Teyendorf soou furiosa. - Doutor, você sabe bem que como médico de bordo está subordinado a mim. E está escondendo um tremendo segredo.

 - Mas como médico que sou também tenho o dever do silêncio. O sujeito veio a mim na qualidade de paciente.

 - Mas que grande merda é isso tudo! - Teyendorf desviou o olhar na direcção do comissário Kraxler que, sem o menor sentido, esfregava a escrivaninha com um pano de pó. - Josef, vá chamar o padre...

 - Quem, senhor comandante?

 - O assistente espiritual católico de bordo, cara! O padre Brause!

 - Na cabina 410 - disse o director de hotel Riemke. - Ele deve trazer tudo que seja necessário para os últimos sacramentos.

 

 - Meus senhores, suponho que, num caso assim, o detective que até agora manteve-se desconhecido, saia de seu anonimato e nos ajude a descobrir o assassino a bordo. Dezasseis dias é um longo tempo e ninguém poderá sair do navio. Devemos conseguir até Valparaíso... - o Dr. Paterna foi até a cama e tornou a cobrir a morta, Anne White. Puxou a coberta também por cima da cabeça do cadáver. - Senhor comandante, estamos numa situação maldita.

 - Quer dizer que vai ficar calado, doutor?

 - Vou... Caso o delegado de saúde mexicano não note coisa alguma.

 - Obrigado. Com isso, assim salva as fúrias dos passageiros, os milhões da companhia de navegação e os meus nervos. - Teyendorf respirou fundo. - Creiam-me - disse com voz estudada - que eu próprio condeno a decisão que estou tomando. Nunca antes estive metido numa situação assim. E se fosse de facto um infracto cardíaco?

 - Uma autópsia da medicina legal poderia prová-lo com toda a exactidão.

 - Doutor, passe o cadáver para a delegacia de saúde mexicana e, com isso, estava liberado do resto. Tudo ficara por conta das autoridades mexicanas...

 - Vou esforçar-me para ver a coisa dessa maneira, senhor comandante.

 - Mas sobretudo preste atenção: silêncio total sobre este caso! - ao dizê-lo, Teyendorf olhou para o comissário Kraxler. - Você também, Josef... você é conhecido por ter a língua comprida.

 - Eu não vi nem ouvi nada, senhor comandante! - gritou Kraxler ficando em posição de sentido. Seu corpo redondo como um globo, me tido em calças pretas e paletó branco, tremia. - Eu só digo: encontrei a mulher. Afinal, como posso negar...

 - Pode acender uma vela a Deus se vazar alguma coisa.

 - Sim, senhor comandante!

 Uma hora depois - um verdadeiro recorde - o delegado de saúde apareceu no NM Atlantis. O Dr. Paterna e o primeiro-oficial Kempen levaram-no à suíte 004. Teyendorf estava postado na ponte, nervoso e impaciente, olhando a Acapulco que reluzia ao sol e a barra com o balneário mais lindo do mundo. Os especialistas colocam-no acima da famosa Copacabana de Rio de Janeiro.

 O médico da delegacia de saúde mexicana trabalhou de modo rápido e rotineiro. Deu uma olhada na Sra. White, colocou o estetoscópio em seu coração, não ouviu coisa alguma e levantou-lhe as pálpebras.

 - Qual a idade dela, senhor colega?

 - Setenta e sete... - o Dr. Paterna continuou bem calmo. - O que o senhor diagnostica?

 - Paragem cardíaca. Infracto. Claro... - o médico tornou a cobrir a morta. - Onde posso lavrar o atestado de súbito?

 - Ali na escrivaninha.

 - Devemos notificar o consulado americano. - O médico da delegacia de saúde de Acapulco pegou um formulário em sua pasta e preencheu-o. Depois deu sua assinatura enfática embaixo. - Sempre que um estrangeiro morre, ocorre uma tremenda maratona

burocrática. O papel de um lado para o outro. As pessoas deviam fazer força para só morrerem no próprio lar...

 Apenas alguns passageiros notaram a saída de um caixão do Atlantis.

 

 A maioria partira para passeios em terra, os outros encontravam-se no restaurante. Jim, o mecânico, fazia parte daqueles que viram o caixão e soube com exactidão quem estava sendo transportado. Os passageiros que perguntaram aos oficiais ou ao director de hotel Riemke foram informados de que um trabalhador mexicano tivera morte repentina por infracto na região do porto e que, a pedido das autoridades portuárias, eles haviam colocado o caixão à disposição.

 O comandante Teyendorf respirou aliviado ao ver a partida do carro com o caixão, sem que o tivessem chamado. Portanto, tudo dera certo. Enquanto isso, Willi Kempen, o primeiro-oficial, conduzia o médico mexicano pelo navio e o convidava para comer na cantina dos oficiais. Permaneceram na suíte 004 apenas o Dr. Paterna e o padre Brause, o assistente espiritual de bordo. Ele dera a última bênção à Sra. White, antes de ser colocada no caixão.

 - Não vai comer, doutor? - perguntou o padre Brause.

 - Não. Não conseguiria engolir coisa alguma.

 - Puxa, um médico? Os mortos sempre lhe afectam tanto assim o estado de espírito?

 - Essa morta... sim. - O Dr. Paterna inclinou-se para a frente. Os dois estavam sentados frente a frente nas fundas poltronas do salão da suíte. - Eu lhe pedi para ficar aqui, padre, pois gostaria de me confessar.

 - Confessar? - o padre Brause levantou as sobrancelhas. - O senhor?

 - Olha, mesmo não parecendo, eu sou um bom cristão.

 - E está mesmo querendo confessar-se? Aqui? Doutor, o tempo é limitado num lugar desses.

 - Trata-se apenas de uma aflição da qual quero livrar-me. Estamos sozinhos aqui nesse momento, ninguém nos incomodará. Posso falar?

 - Mas é claro, doutor. - O padre Brause assumiu um ar bem sério.

De repente, entendeu que o Dr. Paterna estava sofrendo com um problema evidentemente grave.

 - Eu... - a voz de Paterna baixou ao nível quase de um sussurro. - ... bem, para salvar o navio e a viagem, eu encobri um assassinato.

 - Oh, meu Deus! - o padre Brause cruzou as mãos. - Doutor, diga ao Senhor tudo que lhe está afligindo...

 

Enquanto as pessoas que haviam permanecido a bordo ainda encontravam-se na mesa do almoço e os oficiais enchiam de uísque o médico da delegacia de saúde mexicana - o comandante Teyendorf permitiu excepcionalmente o álcool nesse dia - o "cego" Ewald Dabrowski estava na suíte Goethe contemplando a cama desarrumada. O Dr. Paterna e o padre Brause estavam atrás dele.

 - As coisas que a gente vê por aí - disse o padre quando Dabrowski começou seu trabalho. - Primeiro uma morte secreta e agora até os cegos enxergam. há mais alguma surpresa a bordo?

 - Ha. Um ladrão de jóias internacional, cuja pista estou seguindo - respondeu Dabrowski. - Ele está aqui, só que ainda não conheço sua máscara.

 - há alguma possibilidade de ele ter participado do assassinato? - o Dr. Paterna ficou intranquilo. - Anne White tinha tantas jóias como nunca antes vi em parte alguma. Isso seria um motivo.

 - A maneira de Carducci operar não é sair matando a fim de poder pôr as mãos nas jóias. Além do que, claro que elas estão no cofre. E as jóias que a Sra. White usou durante o dia ainda estão ali em cima da cómoda.

 

 Tem uns belos exemplares no meio. Nenhum ladrão de jóias iria esquecer esse tipo de coisa.

 Paterna telefonou para a comissária. Dali Informaram-no que Anne White não havia alugado nenhum cofre. As jóias e o dinheiro deviam estar ali na suíte.

 - Na mesinha-de-cabeceira, na gaveta fechada à chave - disse Riemke ao telefone. - Quer que eu vá até aí?

 Paterna transmitiu a pergunta a Dabrowski. Este sacudiu a cabeça.

 - Não será necessário, Gerhard - o médico respondeu.

- Além disso, o padre Brause está aqui como testemunha...

 Após rápida revista, eles encontraram a chave da gaveta na bolsa de noite adornada com fios de ouro da Sra. White e abriram a divisão da mesinha-de-cabeceira. O que viram, deixou-os mudos por alguns instantes. O próprio Dabrowski precisou de alguns segundos antes de dizer:

 - Incrível. E isso aí ela simplesmente trancava na gaveta! Deve haver aí uns bons dois milhões. - Ele retirou um colar de brilhantes, levou-o contra a luz e observou-o através de uma lupa que levara consigo. - Como se trata de uma imitação... é tão verdadeiro quanto a sede que estou sentindo! - Dabrowski fechou a gaveta, foi até o armário-bar,

pegou uma garrafinha de vodca e uma de soda limonada, misturou as duas bebidas e esvaziou o copo num gole só. - Ah, como isso faz bem!

 - Portanto, está descartada a hipótese de assassinato por roubo - disse o padre Brause de modo insípido. - Agora a coisa fica difícil.

 - O sujeito que esteve com Anne por último pode tê-la sufocado numa vertigem sexual. - O Dr. Paterna também dirigiu-se ao armário-bar e serviu-se de um conhaque. O Padre Brause declinou quando Paterna ergueu uma garrafinha. - não há dúvida nenhuma de que um homem passou a noite com ela. A segunda cama desarrumada...

 - Vamos descobrir isso logo. - Dabrowski ajoelhou-se

diante da segunda cama e revistou o lençol centímetro por centímetro com a lupa. Sacudiu a cabeça um par de vezes, depois deu a volta na cama e com a mesma exactidão examinou a cama onde Anne White estivera deitada. Ali, ele também deu várias sacudidelas de cabeça. O Dr. Paterna teve alguns tremores espasmódicos.

 - Ewald, esse seu balançar de cabeça mudo ainda vai acabar me matando! - disse Paterna com voz roufenha. - Trate de ir falando logo! Você tem alguma pista?

 - O homem que esteve com Anne White tem cabelos pretos.

 - Bem, já é alguma coisa. - O padre Brause pegou o copo de conhaque do Dr. Paterna e então tomou um gole. - Mas dê só uma contadela nas pessoas que têm cabelos pretos a bordo! Quem dentre elas deixou-se pescar pela Sra. White? Eu quase seria capaz de afirmar: nenhum dos passageiros. Fiquei sabendo por intermédio dos oficiais que Anne White comprava seus amantes entre os membros da tripulação... a cada ano alguns dólares a mais para o equilíbrio do orçamento.

 

 - Mas padre! Uma coisa dessas dita por uma boca sagrada?! - Dabrowski abriu um sorriso largo. Em seguida, tornou a ficar sério com a mesma rapidez. - Mas o pensamento está certo, padre Brause. Também sou de opinião que neste caso o amante secreto de Anne de maneira nenhuma seria um dos passageiros. aí a rede já fica um pouco mais apertada! Quem da tripulação tem cabelos e barba negros?

 - Barba, como assim? - perguntou o Dr. Paterna desconcertado.

 - Tem dois tipos diferentes de cabelos nas duas camas. Uns mais longos da cabeça, outros curtos de uma barba. Além disso... perdoe-me, padre, alguns pequenos pentelhos encrespados... Sabe, esse tipo de coisa as pessoas sempre perdem no ímpeto do amor! Muitos crimes sexuais já foram comprovados através disso!

 - Quer dizer então que se trata de assassinato por vertigem sexual?! - gritou o Dr. Paterna. - Como eu estava supondo!

 - Não seja tão apressado, doutor. - Dabrowski deu uma olhada pela suíte. - Onde está o monte de dinheiro?

 - Que dinheiro?

 - O Sr. Riemke acabou de dizer que Anne White não tinha coisa alguma no cofre; portanto, nem seu dinheiro vivo. Por conseguinte, ele deve estar aqui na cabina. E na verdade não deve ser pouca coisa. Já que ela comprava seus amantes...

 - Qual era o montante do cache pago ultimamente? - perguntou ninguém mais que o padre Brause.

 O Dr. Paterna arreganhou um sorriso largo.

 - Essa Igreja moderna! Bem, no ano passado eram quinhentos dólares.

 - Por... por uma vez? - perguntou Dabrowski quase horrorizado.

 - É.

 - E ela estava querendo permanecer a bordo até...

 - Até voltar a São Francisco. Portanto, América do Sul, os mares do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Nova Guiné, Filipinas, China, Japão, Havai... no caso dela o dinheiro não queria dizer coisa alguma.

 - Neste caso, ela devia guardar aqui uma fortuna em dólares.

- Dabrowski ficou um pouco mais intranquilo. - Precisamos achá-la.

 Os três fizeram uma revista na suíte inteira, empurraram as camas para o lado, levantaram os colchões... a coisa não durou muito tempo, pois a suíte de um navio é um ambiente desimpedido e quase não oferece possibilidades de esconderijo.

 - Nada! - disse o padre Brause. Sua voz tornara-se mais sombria. - Aí temos o motivo.

 - É isso aí - Dabrowski retirou as gavetas da mesinha-de-cabeceira e virou-as de ponta-cabeça. Caíram duas notas de cem dólares no tapete.

- Elas estavam bem embaixo. O assassino não deu por elas ao recolher o dinheiro na gaveta. Uma gaveta não trancada à chave... Não dá para acreditar que seja possível!

 - Mas típico da Sra. White. - O Dr. Paterna levantou as notas.

- Anne dava preferência a três navios, os quais via como uma espécie de lar, como sua segunda casa. o NM Atlantis estava entre eles. Aqui ela se sentia segura; portanto, por que fechar as gavetas? só por causa do dinheiro? Ela achava isso simplesmente ridículo.

 - Monstruoso! - Dabrowski sentou-se na beira da cama da Sra. White. - Ter tanto dinheiro assim... ora bolas, bastam dez por cento!

 - E depois ser assassinada! - o padre Brause sacudiu a cabeça. - Não era à toa que Cristo pregava a modéstia.

 

 - E que aconteceu a ele? Também foi assassinado! - Dabrowski levantou-se e foi ao telefone. - Vou chamar o comandante agora. Quero ver todos os membros da tripulação que tenham barba preta.

 Teyendorf ficou como que petrificado quando Dabrowski comunicou-lhe o resultado de suas investigações.

 - Você é o detective? - perguntou ele. - Qual seu nome?

 - Ewald Dabrowski, senhor comandante. Cabina 136.

 - Pelo amor de Deus! é a cabina do cego! - sussurrou o director de hotel Riemke, que se encontrava ao lado de Teyendorf ouvindo a conversa.

Teyendorf encarou-o como se ele acabasse de dizer: senhor comandante, estamos naufragando!

 - Irei imediatamente à suíte 004! - Teyendorf acenou para Riemke.

- Você também. Faz vinte e seis anos que navego pelos mares e nunca antes vivenciei uma coisa assim. E, creia-me, já vi muita coisa por aí. Um detective cego... que Loucura!

 Mais tarde então, Ewald Dabrowski esclareceu na suíte Goethe o segredo de sua cegueira. O comandante Teyendorf ostentou uma expressão visivelmente insultada e ficou mudo.

 - Um ladrão de jóias internacional a bordo e o comandante não fica sabendo de nada! Investiga-se por conta própria. Como num filme de Hollywood de segunda classe! Se a Sra. White não fosse assassinada, eu tão-pouco ficaria sabendo que você não é cego, mas sim, pelo contrário, tem uma visão bem aguçada.

 - É isso aí, senhor comandante.

 - Acho isso inaudito.

 - Eu não queria sobrecarregá-lo com esse problema.

 - Sobrecarregar! Este navio é meu, eu sou responsável por tudo... e não apenas por navegar na rota certa. Um navio tão grande como este é uma pequena cidade flutuante e, quando ela está no mar, eu sou o legislativo e o executivo numa só pessoa! Se houver criminosos a bordo...

 - Bem, a princípio trata-se apenas de uma suposição, senhor comandante. - Dabrowski estava longe de ver a ira de. Teyendorf e rogou um insulto. - Espero que ele esteja a bordo.

 - Você espera? Eu gostaria de ter esse seu estado de espírito!

- Parece-me bem pior que um assassino esteja deambulando nessa sua pequena cidade. De cabelos e barba pretos.

 - A tripulação se apresentará numa hora. Isso se já não estiverem de folga em terra. Mas isso não será um obstáculo; os outros sabem quem está em terra e quem usa barba. - Teyendorf bateu nos bolsos, mas não encontrou o que procurava. Riemke ajudou-o estendendo-lhe a cigarreira.

- E como você pensa descobrir o criminoso... Caso haja dois, três ou mesmo cinco homens de barba preta?

 

 - Com um blefe. Direi que o Dr. Paterna está examinando os cabelos no laboratório do hospital; em seguida, tirarei de cada um fios de barba e cabelo para prova. O Dr. Paterna se ocupará da falsa análise de cabelo. Caso alguém se oponha à realização do teste, ele já será o suspeito. Claro que vocês não têm a menor possibilidade de analisar realmente as provas de cabelo no laboratório e nem de compará-las com os cabelos encontrados na cama de um modo que possa servir de índice... mas quem sabe disso? Confio que a média das pessoas julgue um laboratório médico capaz de tudo. O assassino, intranquilizado pelo anúncio desses exames, cometerá algum erro que o trairá. Um ser humano pode ser um assassino frio, mas o medo está à espreita em seu íntimo mais profundo. Além disso, ele precisa esconder uma fortuna em notas de dólar e estar sempre controlando esse esconderijo por pura preocupação de que alguém possa roubar seu tesouro. Tudo isso lhe corroerá os nervos.

 - Supondo que se trate dum membro da tripulação. Essa é a sua teoria, Sr. Dabrowski... aliás, uma teoria bem vaga! - Teyendorf fumava apressado. - E se for um passageiro?

 - Olha, não consigo imaginar que um passageiro que possa dar-se ao luxo de fazer uma viagem como essa, vá para a cama com uma Sra. White.

 - Por no mínimo quinhentos dólares por noite e com uma soma incalculável na escrivaninha? - o director de hotel Riemke encolheu os ombros. - só podemos conhecer uma pessoa pelo rosto. Pense em seu ladrão de jóias. E como devemos reconhecê-lo?

 - Ah, existe uma série de tipos a bordo que poderia ser ele. Carducci, seja lá a máscara que estiver usando, é um homem muito elegante. Um cavalheiro! O tipo das mulheres. E, nesta viagem, temos a bordo uma grande quantidade de homens que se encaixam nessa descrição. - Dabrowski sacudiu a cabeça. - Senhor comandante, vamos tratar de investigar a tripulação primeiro. Se eu estiver enganado, pode me chamar de cabeça-de-bagre em público.

 - Com todo prazer! - Teyendorf ostentou um sorriso enviesado. Um assassino entre sua tripulação, pensou enquanto sorria. Conheço cada um dos rapazes. Parte deles já viaja comigo pelos mares há vários anos. Contudo, claro que pode haver um entre eles, cuja cabeça fique virada ao ver uma pilha de notas de dólar. - Farei com que a tripulação se apresente agora mesmo. Na cabina dos homens. Mandarei que cada um deles passe marchando à sua frente, Sr. Dabrowski. só que uma coisa deve ficar clara: para você: terminou sua brincadeira de cego para a tripulação! E como posso afirmar com segurança que esse seu "disfarce", chamemo-lo assim, não seja espalhado a bordo. Então, o seu ladrão de jóias vai mijar-se de tanto rir.

 - Esse é meu ponto vulnerável. Tem razão, senhor comandante. Por isso mesmo, proponho que oficialmente a investigação seja levada a cabo pelo Sr. Kempen, pelo Dr. Paterna e pelo Sr. Riemke... e pelo senhor também, comandante, claro... na qualidade de executivo. - Dabrowski arreganhou um sorriso largo, coisa que Teyendorf encarou como um tanto insolente e arrogante. - Ficarei em segundo plano examinando cada homem. Afinal, vocês têm uma câmara portátil no estúdio de tevê; os rapazes devem passar diante dela e, enquanto isso, estarei vendo-os na tela do quarto contíguo. Uma câmara é algo incorruptível, ela vê mais coisas do que nossos olhos preguiçosos. só preciso de que haja uma tomada em close da cabeça de cada um. Então, o menor tremor ou vibração será visível.

 - Vivendo e aprendendo. - Teyendorf esmagou o cigarro num pires, pois não encontrara nenhum cinzeiro. - Eu jamais acreditaria que um dia iria fazer parte de um filme policial...

 - De um assassinato de verdade!

 

 Dabrowski passou os minutos seguintes recolhendo com uma pinça os cabelos nos lençóis e colchas das camas e depositando-os numa taça de vidro redonda com tampa, que o Dr. Paterna mandara pegar com a enfermeira Erna no hospital. Teyendorf e Riemke encararam-no mudos. Quando Dabrowski terminou a busca e levantou-se, Riemke torceu os lábios de leve para fazer a pergunta sarcástica:

 - E isso é tudo? Esses cabelinhos aí? É com eles que você vai querer pegar um assassino?

 - Esses cabelinhos valem ouro. Por acaso você sabia que se descobrem criminosos através de manchas de cuspe e de esperma deixadas para trás? Em compensação, a comparação de cabelos é uma coisa bem simples. Nos laboratórios da delegacia de homicídios...

 - Sr. Dabrowski, Nós nos encontramos num navio! - Teyendorf interrompeu-o.

 - É por isso mesmo que seremos obrigados a blefar! Estamos lidando com um caso em que não foi nenhum profissional que operou, mas sim um homem que de repente ficou de cabeça virada ao ver a pilha de dinheiro. E um amador assim pensa logo no pior ao ouvir a palavra "laboratório".

- Dabrowski equilibrou na palma da mão a tacinha de vidro contendo os cabelos. - Vamos nos desejar muita sorte para os próximos dias, meus senhores!

 

O Dr. Peter Schwarme estava sentado no balcão do bar Atlantis tomando um daiquiri. Não porque essa bebida feita de rum, suco de limão e açúcar e servida sobre gelo picado, tivesse sido consumida literalmente por Hemingway, mas sim por de repente estar defrontado com um problema com o qual jamais contara.

 Sua mulher, a sempre elegante e distante, fora à terra e ele observara da amurada quando o bem-apessoado François de Angeli não apenas entrara no mesmo autocarro que ela, mas também pousara o braço em seu ombro de uma maneira confiada. Em geral, ela não suportaria esse tipo de coisa; mas a mulher reagira com um sorriso irradiante, depois inclinou a cabeça na direcção do francos e encarou-o com uma expressão de felicidade. Não que o Dr. Schwarme fosse ciumento! Não existia razão para isso, posto que ele era bem íntimo de sua segunda secretária, tendo apenas contactos conjugais muito esporádicos com sua mulher. O que mais o incomodou foi o facto de ela flertar em público e ostentar uma jovialidade artificial.

 Tenha mais respeito, Erna!, pensou ele mexendo no daiquiri, coisa que Hemingway teria punido com uma bofetada. Não sou eu apenas que estou vendo, os outros também estão. E devem estar pensando: agora essa aí vai botar uns chifres no Schwarme, enquanto o babaquara fica a bordo jogando shovelboard. E justamente com esse sujeitinho pilantra, que já na primeira noite deixou dois maridos encolerizados com seu comportamento descarado.

 Depois o autocarro partiu. Schwarme viu através do imenso vidro que sua mulher e de Angeli estavam sentados lado a lado rindo. De facto, Erna estava com uma jovial aparência de moça; era quase inconcebível que dentro de três meses ela fosse comemorar seu quinquagésimo aniversário.

 

 - Mais um! - o Dr. Schwarme disse ao comissário de bar e deu uma olhada no ambiente quase vazio. Arturo Tatarani, o dono da vinícola, estava sentado sozinho numa das mesas redondas bebendo um negroni - uma infernal mistura de bebidas, feita de campari, vodca, vermute doce, soda e cubos de gelo. Um verdadeiro consolo para os solitários.

 O Dr. Schwarme pegou o outro copo de daiquiri e foi equilibrando-o na direcção do signore Tatarani.

 - Posso fazer-lhe companhia? - perguntou ele. - Nós, "dois abandonados"..

 - Por que não foi à terra, doutor? - Tatarani não pareceu ter ficado contente com a presença do Dr. Schwarme. - Acapulco fantástico! Um pouco fora da barra, sobre um rochedo, está situada a gigantesca manção de Johnny Weissmiller, o famoso nadador e Tarzam. Quando eu era jovem, assistia seus filmes de Tarzam com o rosto corado de entusiasmo. Quando ele dava aquele grito selvagem... inesquecível, não é verdade? Agora ele está morto. No final, apesar de sua fama ele era uma pessoa solitária.

 - No fundo, todos Nós somos. - O Dr. Schwarme fez um gesto de negação com um ar tristonho. Erna levou seu biquini, pensou. Nunca gostei dessa coisa minúscula nela, embora Erna ainda tenha um bom corpo. Mas provocante demais para a Sra. Schwarme! Agora ela vai usar aquele pedacinho de pano na frente do maldito de Angeli e ele vai elogiá-la e ficará ciscando em volta dela como um galo. - Você conhece muito

o mundo, não é verdade?

 - Quase tudo. Mas existem regiões que a gente sempre quer rever. Bora Bora, por exemplo, ou Ladainha em Maui, uma das ilhas havaianas. Fiji também é magnífica e Samoa mais ainda. - Tatarani examinou o Dr. Schwarme com olhos compadecidos. - Você também devia ir à terra agora, doutore. em acapulco, nos morros circunvizinhos existem moças nativas de beleza inacreditável. Por um par de dólares você conhecerá o fogo mexicano...

 - E como despedida a gente pega uma gonorreia bem picante, ou então uma sífilis tropical incurável.

 Tatarani riu; contudo, dava para se ver que ele queria livrar-se do Dr. Schwarme. Mas como este continuou sentado, Tatarani levantou-se, esvaziou o copo de negroni de pé e acenou para o Dr. Schwarme.

 - Preciso escrever algumas cartas antes que venham recolher o correio de bordo. Queira desculpar-me, doutore.

 - Mas é claro!

 

 O Dr. Schwarme lançou um olhar mal-humorado para seu daiquiri. No fundo ele tem razão, pensou. Erna está se divertindo com aquele sujeito, enquanto eu fico sentado aqui, sem saber o que fazer. Eu devia mesmo ter tomado parte do passeio, mas aí Erna teria me irritado de novo com esse seu jeito de querer ficar em primeiro plano. Ela quer ser admirada sempre e em todo o lugar... e especialmente agora que essa esplêndida mulher, Sylvia de Jongh, está participando do passeio. As viagens marítimas feitas até aqui sempre transcorreram da mesma maneira; ele podia dizer com exactidão o que ocorreria em seguida; Erna divertia-se como cabia a uma mulher na metade da casa dos quarenta, como ela fazia questão de parecer, ficava de olhos arregalados e ridícula depois de alguns copinhos e, no final, se alegrava em poder ir para a cama e besuntar seu rosto com aquele fedorento creme nutritivo esverdeado. Grande parte da culpa por sua vida conjugal tornar-se cada vez mais insípida cabia a esse creme verde. O galante de Angeli também se desapontaria quando, bem de repente, Erna ficasse sonolenta na volta do passeio. Esse pensamento deixou o Dr. Schwarme reconciliado com a vida. E então ele pensou na proposta de Tatarani.

 Moças nativas. Nos morros de Acapulco. Fogo mexicano no corpo! Esse tipo de coisa deixa qualquer um excitado. Com cinquenta e dois anos de idade, ainda se pode fazer coisas sem cair no ridículo. Vamos tentar, Peter?

 O Dr. Schwarme tomou mais coragem enchendo o tanque com um pacman - vodca com conhaque de damasco, suco de limão e soda limonada com gelo - e então, ao pensar nas moças dos morros de Acapulco, sentiu um formigamento nas veias. Qualquer motorista de taxi saberia aonde levá-lo, quando ele dissesse com um piscar de olhos: "Para as cabanas, senhor."

 

  O Dr. Schwarme saiu do bar, foi até o tombadilho e depois, atravessando uma das portas de vidro, chegou à sua cabina 018, uma das mais caras do NM Atlantis. Nela, tinha-se como paisagem o tombadilho, a amurada e o mar. Podia-se ver muitas coisas, sem ser visto.

 O Dr. Schwarme abriu a porta da cabina, foi até o armário e procurou uma camisa alegre e colorida que pudesse ser usada por fora das calças. Ao fazê-lo, seu olhar pousou na mesinha-de-cabeceira de Erna. A gaveta estava entreaberta... Coisa que não era costume de Erna! Sobretudo quando ela havia guardado ali as jóias usadas na noite anterior.

 O Dr. Schwarme puxou toda a gaveta para fora e olhou no vazio. Nenhuma jóia mais... nem o colar com as safiras, a pulseira com os brincos que combinavam e o broche. Estranho, pensou ele fechando a gaveta de novo. Não vi se ela estava usando as jóias. Afinal, quem é que vai fazer um passeio na praia ostentando essas bugigangas? Erna tão-pouco, por mais excêntrica que seja. Mas a gaveta está vazia; portanto, claro que ela ainda deve estar com as jóias. Na bolsa de praia... que idiotice! Vai banhar-se no mar de Acapulco e sai toda pendurada de brilhantes e safiras, só para impressionar essa tal de Sylvia de Jongh. Ela pirou de vez agora... O Dr. Schwarme estava enganado.

 Carducci havia atacado. Erna Schwarme retornou à tarde de seu passeio a Palão, na ilha de Roqueta.

 Estava cheia de experiências e, por alguns instantes, ficou desapontada por seu marido não encontrar-se na cabina.

 Quantas coisas havia visto! As magníficas enseadas de Acapulco. Os hotéis de luxo e as grandiosas mansões sobre os rochedos. Os mergulhadores da morte, rapazes morenos e musculosos que se atiravam ao mar de ponta-cabeça abaixo saltando dos altos recifes. Um bote com fundo de vidro, debaixo do qual se podia ver os cardumes de peixe passarem. Mas sobretudo ela tivera uma experiência com um homem que cobriu-a de carícias amorosas, beijou-a apaixonadamente atrás de uma parede de flores de malvas silvestres, enquanto alisava-lhe os seios. Havia muitos anos que Peter,

 

 o marido que se acomodara de modo criminoso, não a beijava daquela maneira. Antes sim, antes ele ainda era o homem corajoso que ela conhecera e sobre o qual amigos preocupados a preveniram. Ela gostara disso. Ficara incrivelmente excitada por saber que as outras garotas sentiam inveja por causa do Dr. Schwarme e que estas teriam ido com o maior prazer com ele para a cama. Mas depois, sua paixão diminuiu lentamente como uma calcificação interna. Após vinte anos de casamento, ela podia contar nos dedos as noites nas quais ele se dava conta que havia uma mulher atraente deitada ao seu lado na cama. Isso sem se falar do comum das noites; havia alguns beijos, um cumprimento de obrigação, um rápido eco com conversas banais e, em seguida, ele se virava de lado e adormecia.

 Depois aconteceu mais uma vez nas bodas de prata; ele foi para a cama levando uma garrafa de champanhe, tirou por conta própria a camisola da mulher e comportou-se como se tivesse se economizado um longo tempo para aquela noite. Erna ficou feliz até a medula dos ossos, fez amor com toda a ânsia que sua idade permitia e transportou-se para a frenética noite de seu casamento. Mas pelos vistos o Dr. Schwarme gastou seus últimos cartuchos nessa noite. Após essa noitada das bodas de prata, ele comportou-se como se lhe tivessem apagado a luz.

 Erna reagira com espanto e desamparo. Correra à esteticista e submetera-se a cataplasmas, drenagens fantásticas, massagens e peelings. Frequentara uma estância de embelezamento durante três semanas, tendo ali se submetido inclusive a um tratamento à base de células frescas. Ela chegou até mesmo a ter uma conversa particular com seu ginecologista a esse respeito. Este foi de opinião que se devia ter uma conversa franca com o Dr. Schwarme, coisa que Erna declinou como sendo impossível.

Resumindo: nada deu certo! era bem verdade que ela podia comprar as roupas mais caras e mais modernas, vivia pendurada de jóias - afinal de contas, ele ganhava muito bem com suas muitas actividades jurídicas -, os dois faziam viagens, viam meio mundo e bancavam o casal feliz... mas tudo não passava de um jogo ou, como Erna chamara um dia ao gritar-lhe numa explosão de raiva, um teatro barato.

 E agora esse François! Um homem para ser mordido! Um homem que a apertava logo no primeiro beijo. Ela podia sentir a excitação dele de modo bem claro; estava usando apenas um minúsculo biquini e uma pequena bermuda de praia. E quando ele acariciou-lhe os seios, Erna precisou de toda a sua força interior para sacudir a cabeça e poder afastar-lhe as mãos.

 - Agora você não pode dizer não - François sussurrou-lhe ao ouvido com seu alemão de lindo sotaque francês. - é como se o destino nos tivesse juntado.

 Mas ela dissera não, escapara de seus braços e correra para junto dos outros passageiros que se encontravam no terraço coberto do restaurante Palão construído ao estilo polinésio, servindo-se do fantástico bufé. Apesar do blecaute matrimonial de Schwarme, até ali Erna ainda não havia saído do casamento, nunca tivera um amante e de algum modo preservara o casamento como algo sagrado. Até que a morte os separe... mas Peter ainda estava vivo! No entanto, agora ela percebia uma coisa: que ainda podia ser uma mulher desejada e que um homem como François representava um tremendo perigo para ela.

 

 Ela trouxera outro triunfo adicional da ilha Roqueta: Sylvia de Jongh, em geral tão excitante, agiu nesse dia como um "camundongo cinzento"; isolou-se dos outros, deitou-se na pequena enseada sob uma barraca afastada feita de folhas de palmeiras trançadas e que pertencia ao restaurante e dormiu até ser chamada para a partida. Enquanto isso, seu marido nadava na enseada ostentando os músculos, xingava no restaurante o garçom mexicano que não encherá todo o copo com uma bebida exótica e importunava os companheiros de passeio com piadas velhas, das quais apenas ele ria com vontade.

 Nesse dia, Erna Schwarme foi a mais bela de todas. Coisa Que lhe fez bem; sobretudo porque poderia contar a Peter: Mesmo que você esteja cego... eu ainda tenho um bocado de chances! Existem homens de sobra que me admiram e desejam; só preciso estalar os dedos.

 O Dr. Schwarme só voltou de seu passeio sexual secreto por volta do anoitecer, com a cara um pouco derrubada e amarrotada. Quando já se passou dos cinquenta anos, um pulinho às cabanas dos morros de Acapulco torna-se uma aventura espinhosa. Uma coisa que ele não teria acreditado, mas que agora ele sabia: o corpo mais belo, liso e apaixonante de uma excitante mestiça de pele morena exauria sua masculinidade com mais rapidez do que ele achava possível. Sua vontade estava presente, mas seu corpo não acompanhava mais. Essa foi uma constatação amarga que Schwarme teve de engolir nesse dia. Por cinquenta dólares, a beldade de olhos dos Korta esforçara-se de facto mexendo-se debaixo dele e fazendo com que Schwarme sentisse sua perícia, mas depois do primeiro orgasmo sentiu-se completamente exaurido, bebeu uma cerveja um tanto choca e depois rum com coca-cola e encarou como um eunuco os últimos esforços da linda e delicada moça.

 Desse modo, espantado consigo próprio, ele retornou ao navio, entrou na cabina às apalpadelas e encontrou sua mulher Erna, nua, de banho recém-tomado, antes mesmo de sentir o perfume do sal de banho aromático que pairava em todo o ambiente. Ela estava deitada com o corpo borrifado com um novo perfume, as mãos cruzadas atrás da cabeça, as coxas um pouco abertas... uma verdadeira atmosfera de porteiro, como ele resmungou em pensamento. E isso depois de uma experiência tão ridícula!

 - Ah, finalmente você chegou Peterzinho - Erna Schwarme tentou seduzi-lo com voz anelante. Ela esticou o corpo desnudo e bateu com a palma da mão na cama ao seu lado. - Vem cá!

 - É, sou eu mesmo. - Schwarme tirou o paletó de linho fino. - Quem mais podia ser?

 - Você foi até à terra?

 - Fui. Ao Museu Asteca. Muitíssimo interessante! Puxa que cultura que esses caras já tinham naquela época! Mas também cruel, é o que lhe digo, faziam sacrifícios humanos para os deuses! é bem verdade que a gente aprende isso no ginásio, mas como dá para se ter uma idéia exacta. Agora eu vi com meus próprios olhos... Como foi seu dia?

 - Maravilhoso! - ela tornou a se esticar. - Vem cá, Peterzinho.

 - Aonde?

 - Para a cama. até mim...

 - Escuta aqui, você está gozando, não? - ele tirou a camisa a fim de também refrescar-se e encarou-a perplexo. - Que significa isso? Você está deitada aí como... Como...

 - E então, como o quê?

 - Você já sabe como!

 - É isso mesmo que quero. Estou explodindo de tesão. Vem logo!

 - Você já devia ter em mente o que fazer no passeio.

 

- A lembrança da cabana no morro com aquele esplêndido corpinho moreno deixou-o exaltado. - Deixa de idiotice, Erna! Vista-se! Dentro de meia hora começa o coquetel no bar Atlantis e depois vem o jantar. Vou tomar um rápido banho de chuveiro.

 - Vem cá! Agora!

 - Droga! O dia foi bem quente e ficar andando dentro de um museu hora após hora deixa qualquer um cansado. Claro que você entende! - ele foi até o banheiro, tirou as calças e a cueca e jogou por cima o roupão de banho branco que pertencia ao navio. Estava com a sensação de que o doce aroma da mestiça ainda estava grudado nele. Esse perfume do corpo moreno e cheio de curvas que teria feito qualquer outro homem perder a cabeça. Menos ele. O Dr. Peter Schwarme, o eunuco. O impotente. Aquele que afrouxava depois de dar uma. De repente, pôde compreender que havia homens que se enforcavam ou metiam uma bala na cabeça porque a vida chegara ao fim abaixo do umbigo.

 Erna lançou-lhe um olhar cintilante quando ele retornou do banheiro. Ela dobrara e recostara as pernas, uma posição que antes o teria deixado animado por sua frivolidade.

 - Qualquer outro homem ficaria feliz se estivesse diante de mim agora - disse Erna com tom agressivo. - Qualquer outro homem!

 - Principalmente o cego que temos a bordo.

 - Você é ordinário, um cínico, um cínico beberrão, não passa disso! Se você visse quantas chances eu ainda tenho...

 - Sobretudo com o marquês comprometido.

 - Isso mesmo! Com François! Ele está ardendo de paixão. está louco por mim.

 - É verdade. O cara precisa Mesmo estar doido para ser atraído pelo seu canto de sereia.

 - Seu nojento! Seu nojento repugnante! Seu egoísta presunçoso! - Erna esticou as pernas e pousou as mãos sobre o triângulo de cabelos louros. - Vá logo para a banheira! Não fique aí me olhando! Quando você me encara, sinto-me como se estivesse coberta de esterco. E depois vá beber sozinho seu coquetel! Ficarei aqui e telefonarei para a cabina de François. Sim, ele virá! Deixarei que ele me coma... está ouvindo, compreende... me coma... me coma... me coma!

 Ela saiu da cama possuída pela fúria, jogou-lhe os travesseiros no rosto e teria lhe dado uma surra se Schwarme não fugisse para o banheiro trancando a porta com o ferrolho atrás de si.

 A que ponto chegamos, pensou ele cheio de amargura. Bem-sucedido na profissão, invejado por muitas pessoas, com boas contas bancárias na Suíça e em Liechtenstein, com investimentos nos EUA, Canadá e Japão, com uma mansão na Alemanha e uma casa de veraneio em Ischia, no momento num navio de luxo para ver meio mundo... e agora a derrota no ventre caído de uma mestiça de Acapulco e uma mulher com quem estou casado há mais de vinte e cinco anos e que agora quer dar uma trepada com um playboy. E é assim que essa vida vai seguir adiante, com recepções, noitadas de espera, matinés no clube, viagens e homenagens sociais, ganhando e gastando dinheiro, com uma felicidade conjugal fingida e uma importância incurável, até que um dia, num momento qualquer, a coisa termine com um infracto ou um câncer. E então farão discursos junto ao túmulo e escreverão necrológios, mas ninguém dirá com toda honestidade: tudo foi uma confusão, foi simplesmente uma merda, pura e simplesmente uma grande merda!

 

 O Dr. Schwarme entrou no banheiro, regulou a temperatura da água para 40 graus e deixou a ducha jorrar. O jacto quente lhe fez bem, Schwarme sentiu-se feliz. Sim, sob o tamborilar do jacto d'água ele chegou a ter uma meia erecção... apenas meia erecção, mas de qualquer modo... ainda não estava completamente morto na parte de baixo e isso deixou-o tranquilo e eufórico. O Dr. Schwarme cantou debaixo da ducha.

 Depois de secar-se e esfregar-se um perfume masculino de aroma acre - retornou à cabina metido no roupão de banho e viu que Erna se vestia. Nesse momento, ela estava colocando um vestido de noite vermelho por cima do sutiã e calcinha.

 - Como é, o senhor marquês não podia hoje? - perguntou dando vazão ao seu escárnio. - Também estava de pernas bambas por causa do passeio? Os passarinhos cantam, mesmo quando caem do galho...

 - Ainda ficaremos a bordo algumas semanas, elas bastarão para os mais de vinte anos perdidos. Como precisa cantar vitória antes do tempo!

 Os dois entraram pontualmente no bar Atlantis às 19 horas e 45 minutos, para a pequena hora do coquetel antes do jantar. Uma banda tocava ritmos sul-americanos decentes. Entraram no bar de braços dados; um belo casal cuja felicidade era evidente. Deviam sentir inveja deles... ainda tão apaixonados após tantos anos de casamento.

 Tomaram assento nos banquinhos do bar e o Dr. Schwarme, alegre como um adolescente, pediu um Red Dragon para si e outro para Erna.

 Trata-se de um coquetel infernal com alta percentagem de álcool, feito com um rum escuro da Jamaica, rum claro de Barbados, conhaque de pêssego, suco de limão e de abacaxi. E claro que com cubos de gelo. Aquele que continuar de pé após tomar três copos de estômago vazio granjeia a admiração de todos.

 - Oh, meu Deus! - disse Erna num rompante levando a mão ao pescoço. - Você me deixou tão nervosa... que acabei não colocando as jóias. Preciso voltar à cabina.

 - Por que você levou as jóias para ir nadar? Uma loucura!

 - O que foi que eu fiz? - Erna encarou-o como se ele estivesse delirando. - As jóias estão na mesinha-de-cabeceira.

 - Engano seu. A gaveta estava aberta e não havia nada dentro.

 - Impossível. Eu sei muito bem...

 - E eu também sei! Dei uma olhada dentro da gaveta e depois tornei a fechá-la.

 - Peter... - seus olhos arregalaram-se de espanto. - Peter, é verdade? A gaveta estava aberta e vazia?

 - Mas claro que sim! Levar jóias como essas para nadar! Você está ficando cada vez mais histórica.

 - Eu não as levei, Peter. - A voz de Erna ficou um pouco estridente.

 - Peter, será que você não compreende? As... as jóias desapareceram. Alguém pegou as jóias...

 Quase que como obedecendo a uma voz de comando, os dois deslizaram para fora do banquinho, abandonaram os copos e saíram correndo do bar Atlantis. Chocaram-se com o primeiro-oficial Willi Kempen na porta dupla do vidro. Este queria tomar uma pilsen espumante o mais rápido possível, após a agitação provocada pela morte da Sra. White.

- O bar está pegando fogo? - perguntou ele piscando os olhos.

 

- O bar não, a nossa cabina. A 018! Meu nome é Dr. Schwarme. - Ele parou enquanto Erna continuava correndo. - Pelo que parece, alguém invadiu a nossa cabina. As jóias da minha mulher desapareceram.

 

Um leigo em viagens marítimas tem a tendência de invejar o comandante de um navio de cruzeiro, um vapor musical como as pessoas chamam sem o menor respeito. Ele vê o mundo inteiro, vive cercado de lindas mulheres, usa um belo uniforme branco com galões dourados nas mangas e folhas douradas de carvalho na aba do quepe, é um reizinho em seu navio, recebe uma bela pilha de dinheiro como salário e acima de tudo: ser comandante é uma bela coisa.

 Ninguém fala, posto que ninguém vê, sobre a montanha de preocupações quotidianas, sobre a responsabilidade de se conduzir com segurança novecentas pessoas através dos mares, sobre os pequenos e grandes enguiços a bordo. Nenhuma permissão para se ver! Essa é a lei básica a bordo.

Os passageiros pagaram muito dinheiro para ficarem felizes e alegres durante um par de semanas, para vivenciarem o mundo lindo sem nenhuma preocupação, a fim de poderem retornar à vida quotidiana com a alegria duradoura de ter esse navio e sua tripulação guardados no coração. Ali, o até a vista não é mais uma imagem de retórica, as pessoas o dizem com sinceridade. Voltarão no ano seguinte ou mais tarde para fazer uma outra magnífica viagem. As pessoas o querem de facto, posto que tudo deu tão certo, tudo foi organizado de maneira primorosa, deixando-as completamente satisfeitas. Muitíssimo obrigado ao comandante e à sua tripulação! É assim que deve ser e uma das missões mais fatigantes e extenuantes do comandante é lutar para que assim seja. Proteger os passageiros... Mesmo quando a bordo ocorreu um assassinato e um ladrão de jóias levou a cabo seu trabalho e continuará roubando. Willi Kempen telefonou imediatamente para Teyendorf ao constatar de facto que as jóias de brilhante e safira da Sra. Schwarme haviam sido roubadas da cabina 018. As outras jóias encontravam-se, graças a Deus, no cofre do navio.

 Quando o comandante Teyendorf entrou na cabina, Erna Schwarme estava chorando sentada na cama. A gaveta vazia estava aberta, o Dr. Schwarme fumava um cigarro e segurava um copo de conhaque que o comissário levara para ele. Por causa da outra coisa, o assassinato de Anne White, terminara havia pouco mais de meia hora o desfile da tripulação diante da câmara de televisão na cantina dos marujos, sem que os oficiais tivessem dito o motivo daquele teatro. Na manhã seguinte seria a vez dos camaradas que estivessem passeando em terra, de folga até o amanhecer. Isso significava: às seis horas todos se encontrariam a bordo.

 - Portanto, a senhora tem plena certeza de ter colocado as jóias na gaveta? - perguntou Teyendorf. Sua voz tremeu de leve por causa da agitação.

 - Plena certeza. Em que outro lugar teria colocado?

 - Por que a senhora não tornou a depositá-las no cofre?

 - Por quê? Por quê? Não se trata disso aqui. - O Dr. Schwarme assumiu o tom de advogado de defesa. - Nós fomos roubados! Fomos roubados no seu navio! Esses são os factos inequívocos.

 

 - Já era tarde demais ontem à noite - explicou Erna chorando, enquanto olhava para a gaveta vazia. - A gente sempre pensa: Amanhã de manhã dá tempo, afinal estarei deitada bem ao lado durante a noite. Mas quando a manhã chega, a gente já esqueceu. Toma-se o café e depois parte-se para o passeio, tudo na maior azáfama. Além do que, a gente pensa: está trancada, é uma gaveta de segurança, não pode acontecer nada durante o dia. E o comissário vai prestar atenção, agora ele já conhece os passageiros e sabe quais são suas cabinas. Qualquer estranho chama a atenção. Mas mesmo assim...

 Ela soltou um soluço de romper o coração e recostou-se na barriga do marido. Nesse instante, o Dr. Schwarme era pura e simplesmente um jurista.

 - O que o senhor propõe, comandante? Informar a polícia...

 - Eu lhe pego! Nada de escândalos a bordo!

 - Foram roubadas jóias no valor de mais de cem mil dólares, isso é um escândalo! O senhor vai querer jogar essa sujeira para debaixo do tapete? Sua companhia de navegação será...

 - Ela não será coisa nenhuma, Dr. Schwarme. Nós nos responsabilizamos apenas quando alguma coisa desaparece do cofre. Temos seguro contra isso. Mas quando alguma coisa é roubada nas cabinas, sobretudo jóias que ficam jogadas por aí...

 - Elas não estavam jogadas por aí - vociferou o Dr. Schwarme. - Estavam trancadas!

 - Na cabina! Isso é o decisivo! - Teyendorf deu uma olhadela na gaveta, sem tocá-la. Por fora não dava para se ver que havia sido aberta com violência. A fechadura não fora arrombada, a madeira não sofrera danos.

- Por acaso a chave da gaveta não ficou jogada por aí nalgum lugar?

 - Aqui nada fica jogado por aí, senhor comandante, eu já lhe disse! - a voz do Dr. Schwarme ergueu-se num tom funesto.

- Faça o favor de não tentar nos fazer culpados! E então, o que vai acontecer agora?

 - Os senhores irão para a mesa e Nós examinaremos a cabina.

 - Eu gostaria de estar presente, senhor comandante.

 - Por favor, compreenda que devemos fazer isso sozinhos.

 - Como compreendo coisa nenhuma!

 - Não vou conseguir engolir nada - disse Erna nesse momento. Como chorava mais, em compensação Seu corpo estremecia em soluços silenciosos. - Estou enjoada.

 - O senhor está vendo e ouvindo, comandante! - Schwarme tremia de ódio. - Minha mulher vai ter um colapso nervoso. Eu gostaria de ter essa sua calma!

 - O senhor queria que eu também vociferasse? A quem serviria isso? - o comandante Teyendorf amparou Erna Schwarme quando esta levantou-se da cama. Ela foi até o banheiro para recompor a maquilhagem.

- Mas talvez avançássemos se agora o senhor nos deixasse fazer a investigação em paz. Como jurista que é, o senhor sabe muito bem que as pessoas podem borrar provas por pura desatenção. Impressões digitais, por exemplo.

 - Ninguém precisa me dizer isso. - O Dr. Schwarme sentiu-se muito insultado. Quando a mulher retornou do banheiro, ele deu o braço a ela e os dois saíram da cabina. Teyendorf respirou aliviado e olhou à procura de Willi Kempen.

 - Traga-me o Sr. Dabrowski aqui. Ele deve estar na cabina. Com toda a certeza deve estar trocando de roupa para o jantar. Este é o caso dele. Seu misterioso Carducci encontra-se de facto a bordo. Ora, então saúde!

 

Essa será uma viagem cheia de aventuras! já nos primeiros dias um assassinato, um roubo de jóias... que mais pode acontecer, Kempen?

 - Bem, aí só falta o nosso navio naufragar, comandante.

 - Pelo amor de Deus, não me venha com essas conversas sobre catástrofes. Traga-me esse Dabrowski

 Teyendorf sentou-se à mesa, olhou pela janela o mar que quase não se mexia e sentiu-se feliz por poder ficar alguns minutos sozinho. Seria conveniente, perguntou-se ele, informar os passageiros que entre eles encontrava-se um perigoso e refinado ladrão? Será que isso não levaria a uma grande intranquilidade e desconfiança mútua? Um navio onde não se podia ficar em segurança, mesmo que a causa fosse apenas um ladrão de jóias, já não era mais um lugar para se passarem férias. A serenidade interior que se ansiava nessa viagem seria destruída no acto. Dabrowski chegou rapidamente, vestido pela metade num roupão. De facto, quando Willi Kempen foi buscá-lo, ele estava trocando de roupa.

 - Tão rápido assim? - disse ele dando uma olhada na cabina.

 Teyendorf deu um sorriso zangado.

 - Que significa esse "tão rápido"?

 - Eu achava que Carducci era mais esperto. Estava achando que ele daria o primeiro golpe no máximo pouco antes de Valparaíso, quando mais de trezentos passageiros partirão e outros subirão a bordo. É perigoso ficar andando por aí agora com jóias roubadas.

 - Você quer dizer que esse seu maldito Carducci sairá do navio em Valparaíso? Puxa, seria uma bênção para todos nós.

 - Ledo engano! O Atlantis permanecerá três dias em Valparaíso. Então Carducci levará confortavelmente seu roubo para a terra e o depositará no cofre de um banco. Nós supomos que ele disponha de cofres em bancos situados em todos os lugares onde os grandes navios de cruzeiro passem mais de dois dias. Valparaíso, Rio, Cairo, Hong-Kong, Singapura, São Francisco, Pireu, Génova, aí pode estar sua central!, Veneza, Bremerhaven, Líbeck, Oslo...

- Inconcebível!

- E mais tarde ele vende as jóias roubadas directamente do cofre do banco para seus receptadores. Ele deve gozar de toda a confiança desses sujeitos, pois nunca enganou nenhum deles. Os caras confiam plenamente em sua palavra e aceitam o roubo sem fazer nenhum controle anterior. Um ladrão de jóias é um zero à esquerda quando não possui um bom receptador. Afinal de contas, ele não sai roubando por aí, para chocar as jóias.

 - Muito engraçado - Teyendorf apontou para a gaveta. - Nada foi arrombado... mas mesmo assim desapareceu.

 - Uma fechadurinha como essa é brincadeira para um profissional.

Eu abro em dez segundos.

 - Que tranquilizador! Mas não fique falando isso em voz alta.

 - Alguém tocou na gaveta?

 - Claro que com toda certeza a Sra. e o Sr. Schwarme.

 

 - Carducci não deixa impressões digitais, ele opera de luvas. Luvas de pelica; aristocrático como seria de se esperar dele. Uma vez ele foi obrigado a fugir no Stella Pacific e deixou uma luva para trás. Apesar do trabalho de laboratório mais refinado possível e dos exames em microscópio, não se achou nenhuma pista traiçoeira no interior da luva. Coisa que levou à suposição de que Carducci toma duplo cuidado: por baixo das luvas de pelica, ele ainda usa luvas de borracha, dessas que os cirurgiões utilizam. - Dabrowski arreganhou um sorriso largo. - Digamos que ele opera com esterilização total.

 Sentou-se na beira da cama, abriu a gaveta tirando-a do suporte interno e examinou-a centímetro por centímetro com sua lupa que, ao que parecia, sempre levava consigo. Teyendorf e Kempen observaram-no em silêncio.

 - Naturalmente, nada. - Tornou a colocar a gaveta no entalhe de correr e fechou-a. - Ele abriu essa ridícula fechadura e, bem à vontade, retirou as jóias. O único problema foi entrar e depois sair da cabina sem ser notado. Mas aqui na 018 isso não representa problema algum. Basta virar à direita na curva e a pessoa terá ido embora. A cabina tem uma posição bem favorável ao lado da volta.

 - E que podemos fazer?

 - Nada.

 - Puxa, quanta coisa! - Teyendorf levantou-se. - Devo dizer isso ao Dr. Schwarme? Ele teria um acesso de fúria. Nada! Claro que devemos fazer alguma coisa!

 - O quê, senhor comandante?

 - Espero uma proposta sua. Se eu mandar uma circular a todos os passageiros avisando-os para só guardar suas jóias nos cofres por causa do perigo de roubo e se o Dr. Schwarme sair por aí contando o arrombamento, o que você acha... vai haver a maior intranquilidade entre nossos hóspedes. Todo mundo suspeitará de todo mundo, cada pessoa desconfiará da outra. E assim se formará uma atmosfera bem explosiva.

 Dabrowski sacudiu a cabeça.

 - O Dr. Schwarme deve guardar o mais absoluto segredo sobre o roubo. Precisamos arrancar-lhe essa promessa. Carducci não deve ser prevenido. só teremos uma chance para desmascará-lo, caso ele se sinta seguro e ataque outra vez. Mas tem uma coisa que me deixa perplexo: Carducci é um profissional experiente e deve estar contando com que reine agora uma tremenda confusão a bordo impossibilitando um segundo roubo. Por outro lado, ele não deve dar-se por satisfeito com uma única presa tendo tantas jóias a bordo. Essa conduta não é típica dele.

 - Um... um outro roubo? - perguntou Willi Kempen hesitante.

 - era só o que nos faltava! - Teyendorf pôs o quepe de comandante e foi até à porta. - Vamos tentar, Sr. Dabrowski. O Dr. Schwarme e sua mulher não saem por aí batendo com a língua nos dentes para as pessoas e o senhor terá tempo, como no caso da Sra. White, até Valparaíso para encontrar o ou os criminosos. Enquanto você fazia a tripulação desfilar diante da câmara de televisão, eu telefonei ao nosso representante em acapulco para a companhia de navegação. Os caras ficaram fora de si e deixaram as providências por nossa conta. Bem simples. Mas repetiram uma coisa várias vezes: nada de cena, nada de escândalo, proteja a reputação do NN Atlantis. - Nesse momento a voz de Teyendorf soou mais amarga:

- Agora o senhor está metido com um assassinato e com um ladrão de jóias internacional! Garanto-lhe uma coisa: quando eu ainda navegava num navio de transporte de containers, vivia com mais tranquilidade e sem preocupações. era uma verdadeira brincadeira comparada com a missão de ser comandante de um vapor musical!

 

 Pela primeira vez Teyendorf usou essa expressão para seu lindo navio... uma prova de quanto o haviam abalado os acontecimentos dos últimos dias.

 

Essa noite pertencia a Herbert Fehringer, havia sido combinado assim.

 Depois do jantar com a conhecida troca a jacto no banheiro, Hans permaneceu na cabina assistindo à programação da televisão de bordo, um filme velho, e depois foi para a cama ler um romance policial. De vez em quando ele pensava em Sylvia e sentia tremendas saudades dela, tanto que teve vontade de se levantar, vestir-se e sair à sua procura... mas isso teria posto tudo a perder, trairia o "jogo dos gémeos" e, muito provavelmente, os levaria à cadeia.

 - Até depois de amanhã - dissera ele na despedida. - não devemos chamar a atenção...

 Nesse momento, como havia prometido, Herbert estaria sentado no elegante bar Olympia, ouvindo o show-man ao piano branco, bebendo uma garrafa de vinho seco e evitando tudo que pudesse ocasionar um encontro com Sylvia. E sobretudo, tomaria todo o cuidado para manter-se longe da noite dançante que estava anunciada para essa noite no Salão dos Sete Mares, tendo como convidado um grupo folclórico de Acapulco; pois era de se supor com segurança que Sylvia comparecesse. Desde muito tempo havia uma lei não escrita: os gémeos jamais se enfrentaram como rivais por causa de uma mulher.

 Contudo, nesse dia Herbert Fehringer, dessa vez o segundo no jantar, fez exactamente o contrário. Através de pequenos sinais secretos, deu a entender a Sylvia que se veriam mais tarde no salão. Ela compreendeu-o no acto, assentiu de modo imperceptível e imediatamente ficou mais animada e contente. O marido, Knut de Jongh, ocupava-se nesse momento com um excelente bordeux.

 - De repente você ficou tão contente, querida - disse ele.

 - Estou feliz por causa da noite dançante. Adoro ver essas danças exóticas. E nos intervalos e mais tarde vamos para a pista, não vamos?

 - Se você quiser. - De Jongh assentiu. Ele não gostava de sacudir o esqueleto, como ele dizia. era um péssimo dançarino, na juventude não frequentara nenhuma escola de dança. "Tive de manejar o martelo de ferreiro", dizia ele quando se falava sobre isso, "e depois limpar a oficina".

Aprender a dançar! Meu pai me daria um soco no focinho se eu aparecesse com essa moda. O trabalho, isso era importante. E dá para se ver: consegui alguma coisa! Agora possuo uma ferraria artística considerada uma das maiores e melhores da República Federal da Alemanha. Agora posso falhar tranquilamente ao dançar um tango..."

 Quando os de Jongh saíram do restaurante, Herbert Fehringer também levantou-se e subiu a escadaria que dava para o Salão dos Sete Mares. Ali chegando, ficou parado junto à porta alguns momentos, viu onde Sylvia e o marido se sentaram é escolheu um assento ao lado de uma coluna atrás da qual podia observar Sylvia, inclinando-se um pouco.

 

 No primeiro intervalo da apresentação do grupo folclórico, Herbert Fehringer ficou sentado e deixou que Sylvia dançasse com o marido. Este saiu dando patadas como um urso pela pista de dança, chocando-se com todo mundo - Claro que sem pedir desculpas - Com uma cara de quem estivesse sendo prensado num torno. Mas suportou a situação com bravura e depois conduziu a suada Sylvia de volta à mesa. Ali, ele afundou no assento estofado, enxugou o suor com um lenço branco e, na mesma hora, recompensou a perda de líquido com o vinho. Sylvia lançou um olhar furtivo na direcção de Herbert, que acenou para ela e depois tirou as mãos. O sinal significava: no próximo intervalo; nós dançaremos juntos. Ela fez uns olhos de espanto e sacudiu a cabeça.

 De facto, no segundo intervalo, Herbert Fehringer levantou-se e foi à mesa dos de Jongh. Fez uma vénia diante de Sylvia, que encarou com olhos arregaçados de espanto, e depois diante de Knut de Jongh.

 - O senhor me permite que eu tire sua mulher para dançar? - perguntou Herbert.

 De Jongh encarou-o de cima a baixo com um ar de zangado. Sujeito repugnante, pensou ele. Mas agora ele está chegando na hora certa. Mais uma vez na pista de danças... negas! Além disso estou de olho em Sylvia. Se ela gosta tanto assim de dançar, que dance! Mas tinha de ser justo com esse patife presunçoso?

 Sylvia hesitou, lançou um olhar indeciso ao marido, mas Knut de Jongh assentiu, mesmo que um pouco mordido.

 - Tenha a bondade! - disse ele com voz rangente. - Agora vêm as danças ondulantes das quais não gosto mesmo.

 Sylvia levantou-se e caminhou à frente até a pista de dança. Herbert seguiu-a bem-educado, à distância. Somente quando estavam no meio dos outros pares, foi que ele envolveu-a com o braço puxando-a um pouco contra seu corpo.

 - Você é maluco - sussurrou Sylvia com a respiração ofegante.

 - Tudo foi feito de maneira oficial. Pedi a permissão de seu marido com toda a educação.

 - Você disse que não viria hoje.

 - Eu simplesmente tive de vir. não estava em condições de ficar muito tempo sem a sua presença. Eu te amo, Sylvia...

 - não me aperte tanto! Devemos dançar de um modo sensato. Ele está nos observando com toda a atenção. Estão tocando um boogie, podemos dançar separados. Você sabe dançar boogie?

 - E você ainda pergunta? ! - Herbert Fehringer deu uma risada, deixou as pernas soltas como borracha e meteu-se a dançar um boogie digno de ser visto. Knut de Jongh observava-o com a testa anuviada e achou a coisa toda uma macaquice, parecendo saltos de selvagens. Aquele torce e torce, como ele mesmo chamou, deixou-o mais desconcertado. Bem, vinte anos de diferença na idade são uma grande quantidade, pensou ele.

 como Sylvia parece jovem agora! não é elástica! Knut de Jongh recordou-se de tantas noites na cama com ela e bufou pelo nariz. Hoje à noite vai ser sua vez de novo, meu docinho, alegrou-se e lambeu os lábios. Há quatro dias que o óleo não é trocado, é tempo demais para você! Fica aí mexendo com essa bunda de um jeito que qualquer um fica abafado. Vá se esquentando com esse vigarista louro, mais tarde sou eu que darei umas bombadas na cabina.

 - Quando nos vemos? - perguntou Herbert Fehringer ao voltar a dançar um fox lento agarrado em Sylvia.

 - Hoje, não dá mesmo, Hans...

 - Claro que dá! Estou explodindo de saudade. Você tem de escapulir de alguma maneira. Mesmo que seja apenas por meia hora... por uma vez, Sylvia. Preciso senti-la ainda hoje!

 

 - Você enlouqueceu por completo, Hans.

 - Por todos os deuses do amor... enlouqueci mesmo. Estou incuravelmente louco por você. Você precisa inventar alguma coisa para vir até mim.

 - Hoje. Knut não desgrudará os olhos de mim, sobretudo agora que você está dançando comigo. Eu lhe suplico, querido, espere até amanhã!

 Herbert Fehringer sacudiu a cabeça. Amanhã o sortudo será Hans de novo, pensou ele. E a coisa vai continuar assim. A cada dois dias eu deverei fazer a pausa. não pode ser mesmo, meu irmãozinho!

 - Mais tarde estarei no bar Atlantis - disse ele. - Telefone para lá se você puder ir. Então nos encontraremos lá fora, no solário.

 - Impossível, querido! Impossível! não vai ficar esperando. - Sylvia distanciou-se um pouco dele ao ver como o marido os observava com as sobrancelhas fechadas. - Afinal, eu não posso matá-lo.

 - Essa, por exemplo, seria uma solução definitiva para todos os problemas. - Fehringer riu dessa piada que não era nem um pouco divertida.

 - Mas talvez exista outra possibilidade menos dramática.

 - não conheço nenhuma. - Depois do fox, os dois ficaram aplaudindo como os outros pares. Bis. Bis. A orquestra do navio, que se chamava Happy Boys, tocou mais uma valsa lenta. Aí estava uma dança na qual as pessoas tinham de abraçar-se de um modo bem sentimental. Herbert puxou Sylvia contra seu corpo.

 - Meu marido... você enlouqueceu mesmo... - sussurrou ela.

 Herbert sentiu seu tremor e arreganhou um sorriso largo.

 - Ele tão-pouco poderá mudar a cara de uma valsa lenta. Pelo amor de Deus, não tenha tanto medo assim, meu anjo. Daqui a pouco teremos uma idéia de como poderemos ficar juntos hoje. Preciso possuí-la de qualquer maneira!

 Depois dessa última dança, Herbert levou Sylvia de volta à mesa e tornou a fazer uma vénia para Knut de Jongh.

 - Agradeço, meu senhor - disse ele em tom educado.

 De Jongh assentiu sem dizer nenhuma palavra e esperou até que Herbert Fehringer fosse embora. Em seguida, lançou um olhar inquisidor para Sylvia.

 - E então, foi divertido?

 - não dança tão bem assim. No entanto você deve compreender que ele dança melhor do que você.

 - No boogie ele estava parecendo um macaco mordido por uma abelha. não sou tão imbecil para esse tipo de coisa. Isso já não é mais dança.

 No final, a valsa lenta, isso sim é que é dança! Aí vocês formaram um bom par. - Ele tragou o grosso charuto e jogou a fumaça para o teto por cima da cabeça de Sylvia. - Quando vamos para a cama?

 - O que íamos fazer? - a voz dela ficou um pouco estridente. Isso não, pensou Sylvia como que entrando numa espécie de pânico. Isso não, não hoje à noite.

- Ora, voltar para a cabina. - Knut de Jongh esticou as pernas gordas. - O show já acabou, agora só tem sacudidela de esqueleto, para mim não é nenhuma diversão mais.

- Podíamos dar um pulinho lá embaixo no Clube do Pescador.

 

- Lá também tem sacudidela de esqueleto. Música de discoteca, uma nojeira!

- Então no bar Olympia. Bebemos mais uma garrafa de champanhe juntos ouvindo o sujeito ao piano branco.

 - Uma bela porcaria de piano. De qualquer maneira, sempre é melhor do que a música de tumulto. Tudo bem então, vamos até o piano branco. Você vai ter o seu champanhe. O porre sempre a deixa bastante divertida. Talvez eu precise disso hoje à noite.

 Knut de Jongh piscou o olho para ela e acenou à comissária para trazer a conta. Sylvia sentiu ânsias de vómito ao pensar no que ele faria com ela. Viu Fehringer sair do salão e, de repente, sentiu-se abandonada a um destino terrível. Pensou nas mãos largas e duras de Knut, em seu corpo húmido e forte e em sua masculinidade extraordinária que antes a deixava com a respiração paralisada, mas da qual agora sentia quase medo e nojo.

 Tem de acontecer alguma coisa, pensou ela com a respiração mais apressada. não posso dormir com ele, não hoje à noite. Eu iria vomitar se ele começasse a dançar em cima de mim soltando esses seus ofegos e bufadas.

 Knut de Jongh assinou a conta, dando nome e número da cabina e levantou-se.

 Ao chegar ao elegante e bem comportado bar Olympia, uma peça de luxo do navio apreciada sobretudo pelos passageiros mais velhos, posto que ali, à excepção da música baixa e inimista do piano, reinava um silêncio agradável, Knut de Jongh procurou uma mesa junto à curva panorâmica, que agora à noite estava com as cortinas cerradas. O homem estava tocando ao piano branco músicas de My Fair Lady.

 - Isso sim é que é música - disse de Jongh satisfeito. - Tem melodia. Mas esse berreiro aí de fora... não compreendo como é que você gosta dele!

 Sylvia manteve um silêncio encarniçado. Que devo fazer, pensou. Tenho na bolsinha um tubinho de Celibran, um forte comprimido para dormir. Trago sempre comigo, pois também serve para enxaqueca. Será que Knut vai notar alguma coisa se eu dissolver no champanhe? Ela estremeceu em seu íntimo, quando Knut pediu champanhe e um uísque triplo on the rocks. Aí estava a solução! Ele não sente gosto de nada no uísque.

 - não vai me acompanhar no champanhe? - perguntou Sylvia com evidente inocência.

 - Você sabe muito bem que só bebo essa agua espumante em caso de necessidade! Um uísque de verdade é insubstituível. é o que compete a uma verdadeira garganta masculina.

 Knut de Jongh aguardou a chegada das bebidas, fez um brinde à mulher e depois levantou-se.

 - Pardon, madame - disse ele amável, bancando um homem galante. - só alguns minutinhos. Preciso ir dar uma mijada...

 Sylvia seguiu-o com a vista até ele desaparecer pela porta de vidro, abriu rapidamente a bolsa e despejou cinco comprimidos de Celibran do tubinho directamente no uísque. Misturou tudo com o palito de plástico, os comprimidos dissolveram-se bem rápido, sem ao menos apresentar nenhuma turvação na bebida. O ideal, pensou ela. Uma idéia brilhante. Cinco comprimidos... dá para derrubar até mesmo ele. Sobretudo porque o álcool acentua o efeito, está escrito na bula. Agora, se ele beber mais um ou dois uísques, dentro de uma hora estará dormindo como um anestesiado. Hans, meu querido, podemos nos encontrar!

 

 Knut de Jongh permaneceu afastado um tempo bem longo, mas ao retornar estava bem-humorado. Virou o copo de uísque como se fosse água e depois arrotou atrás da mão aberta em concha.

 - O primeiro é sempre o melhor - disse ele. - Com ele vem o apetite. Igual ao caso de vocês, mulheres. - Ele acenou para o comissário no bar. - Mais um, Johnny.

 Onde quer que ele estivesse, tinha sempre por princípio chamar todos os barman de Johnny. Ninguém saberia dizer como ele chegara a isso. Ele próprio não contava que havia lido isso num romance, cujo herói o entusiasmara a ponto de desde então ele passar a copiá-lo. Além disso, até então nenhum barman se queixara, eles pareciam estar acostumados com esses nomes.

 Enquanto Sylvia bebia seu champanhe com todo cuidado, de Jongh virou mais dois uísques super grandes. Ela contemplou-o com atenção, viu que suas pálpebras começaram a bater e que em pouco tempo ele teria trabalho para manter o globo ocular erguido. De Jongh também perdeu o controle da linguagem.

 - Ah, droga - disse com a língua pesada. - não estou cansado! A causa é esse ar marinho, meu tesouro. Vamos para a cama. Ainda consigo dar uma com você. há quatro dias que nós não... Para a caminha!

 Knut de Jongh já não pôde assinar a conta. Sylvia rubricou por ele, deu-lhe o braço e levou-o embora do bar Olympia. De olhos fechados, ele andou às apalpadelas ao lado dela, desceu de elevador até a tolda e, ao chegar na cabina, desabou na cama quase que em posição de sentido.

 Sylvia tirou-lhe os sapatos, empurrou-o do jeito que estava para o meio da cama e cobriu-o. De Jongh dormia como se de facto estivesse narcotizado. Ela sacudiu-o para testá-lo, gritou seu nome no ouvido, esmurrou-o e socou-o com os punhos... ele não esboçou a menor reacção. Ficou dormindo de boca aberta e começou a soltar roncos horripilantes.

 Sylvia foi tranquila ao telefone e chamou o bar Atlantis. Fehringer chegou ao aparelho após alguns segundos. Parecia estar esperando ao lado do telefone.

 - Tudo em ordem, querido - disse ela sentindo-se como que engolfada por uma onda de calor. - Ele está dormindo como se estivesse anestesiado. Aliás, está mesmo. Eu misturei cinco Celibran no uísque dele.

 - Genial! Estou indo...

 - Eu vou à sua cabina!

 - Vamos fazer ao contrário. Meu docinho, dispa-se já; chegarei aí dentro de alguns minutos. Cabina 147, não é mesmo?

 - Sim. Mas Hans, não pode ser, seria uma loucura completa... aqui, na cabina... e Knut está deitado por perto... Claro que nós não podemos fazer aqui...

- Nós podemos qualquer coisa, querida. Vou voando!

 

 Sylvia despiu-se com dedos trémulos e cobriu-se com o roupão de banho. Em seguida, abriu o ferrolho da porta... na hora exacta, pois Herbert Fehringer já se encontrava lá. Ele meteu-se na cabina, puxou imediatamente Sylvia contra seu corpo, arrancou o roupão de banho de seu corpo, beijou-a como um louco, tocou-lhe com os lábios o rosto, seios e dorso, levou-a para a cama, virou-a, pressionou-lhe o dorso para a frente e possuiu-a por trás com um único impulso quase brutal. Sylvia soltou um gritinho baixo, cravou os dedos na colcha e então começou a choramingar de prazer à medida que ele mexia cada vez mais rápido, sem dizer uma palavra sequer.

 - Oh, Deus... - balbuciou Sylvia. - Ohhhhh... você está tão diferente, Hans, mas tão diferente, querido... melhor, muitíssimo melhor do que ontem... Oh, deus... você está tão gostoso... tão gostoso...

 Mas é que eu sou o mais velho, pensou Herbert Fehringer com ar triunfante, gozando aquele corpo trémulo.

 Os dois caíram na cama soltando um grito baixo e simultâneo, sempre enganchados, e então olharam para Knut de Jongh que nesse momento roncava com a cabeça bem na frente deles. Cobertos de suor, Herbert e Sylvia separaram-se.

 - Nós somos dois malucos totais - disse Sylvia. Sua respiração estertorava de excitação. - Hans, querido... ninguém pode nos salvar mais...

 - Ninguém! - ele estava deitado de costas e estremeceu quando Sylvia pousou a mão delicadamente no seu baixo-ventre.

 - E quanto a Knut?

 - Falarei com ele.

 - Com dois socos ele o derrubará no chão como se você fosse um pedaço de pau. Você nem imagina como ele é forte. Já brandiu o martelo de ferreiro mais pesado como se fosse de papel. Falar com ele... fora de cogitação! Ele não vai correr atrás, pois é muito orgulhoso para isso. Mas se alguém quiser tomar-lhe a mulher na cara dele, aí então ele sai batendo. Sim, eu vou fugir. Tenho dinheiro suficiente para ir atrás de você na América. Tenho minha própria conta bancária, muitas jóias... não vai ser problema!

 O problema vai ser o irmãozinho Hans, pensou Herbert Fehringer. Um problema insolúvel. Sylvia, vamos passar juntos um par de semanas maravilhosas e depois vocês voltam de avião de Sidney para a Alemanha e nunca mais nos veremos. Oxalá Hans pense o mesmo. Aí está o grande perigo para todos nós! E eu nem ao menos posso levá-lo a mal, pois Sylvia é o tipo de mulher na qual os homens ficam pendurados, para se falar de um modo bem profano. Uma mulher que suga qualquer homem. Os dois ainda se juntaram, mais uma vez de um modo frenético e desenfreado. Depois então, tomaram um banho de chuveiro juntos, Herbert Fehringer tornou a vestir-se e saiu da cabina. O corredor estava vazio. Fehringer só viu os primeiros passageiros ao chegar à escadaria. Subiu a escada, entrou no bar Atlantis, pediu uma cerveja, virou-a quase que de um só gole e disse ofegante ao comissário do bar:

 - Bah, como isso faz bem! Eu estava ressecado.

 - O ar marinho, meu senhor.

 - É isso aí! Mais uma cerveja e um Doppelkorn para completar...

 Pela manhã, Knut de Jongh acordou com a cabeça cheia de chumbo e os membros pesando toneladas. A mulher dormia ao seu lado; parecia um anjinho com sua camisola de renda. Knut deu-lhe um beijo acanhado nos olhos e depois deixou-se cair para trás.

 - O que é? - perguntou Sylvia sonolenta virando a cabeça para ele.

 - É o que eu gostaria de saber. Afinal, o que aconteceu ontem à noite. De repente, eu tive um branco...

 

 - São esses seus uísques duplos e triplos! - ela virou-se de costas e ficou de olhos fixos no teto. - Você está de novo nessa sua maldita turma de porre. está mal. Fico tão envergonhada.

 Ele calou-se sentindo-se culpado e propôs-se comprar alguma coisa muito bela e valiosa na joalheria de bordo para presenteá-la... Como um pedido de desculpa e como indemnização.

 

Depois do jantar, no qual o casal Schwarme ficou remexendo os pratos sem nenhum apetite, os dois não ficaram muito tempo no restaurante. Tão-pouco mostraram interesse pelo grupo folclórico e pela noite dançante no Salão dos Sete Mares, embora Erna Schwarme tivesse marcado um encontro com François de Angeli e ansiasse por seu abraço na dança. Os dois só pensavam nas jóias roubadas.

 Riemke, o director de hotel, foi de encontro a eles no caminho para a cabina.

 - Que bom tê-los encontrado aqui - disse ele. - O comandante quer informá-los sobre a situação.

 - Pegaram o ladrão?

 - Ainda não.

 - O que significa esse "ainda"? Será que ele vai ser descoberto?

 - É sobre isso que o comandante quer conversar com os senhores.

 - Estou ansioso.

 Teyendorf aguardava o casal Schwarme na sua cabina. Ele preparara um bom vinho branco de Lorena e duas bandejas de pastéis misturados, coisa que pareceu suspeita ao Dr. Schwarme. Em geral, era assim que ele era recebido na qualidade de advogado na casa dos clientes que se achavam culpados, mas que queriam que ele os apresentasse como inocentes perante o tribunal.

 - O Sr. Riemke já me disse: nada! - o Dr. Schwarme aceitou a luta.

 - Bem, eu não diria isso de modo tão crasso...

 - Minhas belas jóias - sussurrou Erna pressionando um lenço nos olhos e sentando-se no banquinho estofado do canto.

 - De qualquer modo, agora sabemos que se tratou de um profissional, um gatuno com muita experiência.

 - Tranquilizador! - o Dr. Schwarme ostentou um sorriso irónico. - Já vale alguma coisa.

 - A fechadura da gaveta foi aberta com perícia. Mas não vamos conversar agora sobre a responsabilidade da companhia de navegação; falaremos sobre a presença de um criminoso a bordo. Todos ficamos espantados, creiam-me. Pelo que se verificou posteriormente, ele esteve em actividade já no baile de saudação. Depois de uma dança, a mulher de um passageiro deu pela falta de um valioso anel de brilhante de vários quilates. Acreditávamos até aqui que ela havia perdido durante a dança, mas o anel não foi encontrado. A propósito, a companhia de navegação também não se responsabiliza pelos danos nesse caso. Tememos que o ladrão de jóias prossiga com sua actividade.

 - Que emocionante! Neste navio esquisito, as pessoas recebem o romance policial fornecido à própria custa! é o que podemos chamar realmente, não está escrito no prospecto, de plenitude em termos de entretenimento.

 

 O Dr. Schwarme, irónico, estava possuído por completo pela arte do escárnio mordaz. Em muitos processos, ele tirara os adversários da reserva e atraíra-os para o campo dos perdedores com essa técnica.

 - Posso compreender sua amargura, Dr. Schwarme. - O comandante Teyendorf encheu os copos. - Apesar disso, agora devemos conversar sem emoção.

 - O senhor consegue?

 - Eu devo. No interesse dos passageiros e do navio. O que estou falando e propondo ao senhor, já discuti em detalhes.

 - Com quem?

 - Com os oficiais e o Sr. Dabrowski.

 - Dabrowski? O cego? Com ele, como assim?

 O comandante hesitou por um segundo.

 - Vou confiar-lhe uma coisa que deve ficar entre nós - disse depois de algum tempo. - Apelo para a sua discrição... O Sr. Dabrowski é detective e sua cegueira, apenas um disfarce. E também precisa continuar incógnito perante os passageiros daqui por diante.

 - Ora, mas por quê? Estamos falando de uma jóia muito valiosa.

 - Eu sei disso. E é justamente por isso. O roubo também não deve ser tornado público. não devemos de maneira alguma prevenir o ladrão antes do tempo, isso é o mais importante. Portanto, silêncio total, nenhuma palavra aos outros passageiros! A mínima insinuação poderá pôr tudo a perder. Devemos comportar-nos como se nada tivesse ocorrido. Vocês simplesmente não deram pela falta de nada...

 - É realmente uma impertinência aceitar isso, senhor comandante.

 - Será para o seu bem. Nenhum passageiro sairá de bordo até Valparaíso. Esperamos ter descoberto o ladrão até lá. Mas na opinião do detective, isso só será possível se o senhor e sua honrada esposa ignorarem por completo o roubo. Talvez isso faça com que ele fique descuidado.

 - E se não ficar? Como você disse, ele é um profissional. Um profissional não fica nervoso... ora, não me venha com essa conversa, comandante! já defendi muitos profissionais cujos nervos muitas vezes eram melhores do que os meus.

 - O silêncio é a melhor armadilha, creiam-me. O ladrão será obrigado a conviver com uma tremenda desvantagem: ele não poderá sair do navio. não antes de Valparaíso. Dr. Schwarme, minha cara e honrada senhora... Contamos com sua colaboração.

 Eles beberam o vinho de Lorena e, durante algum tempo, encararam-se sem dizer palavra nenhuma. No final, o Dr. Schwarme recomeçou a conversa.

 - Devo reconhecer que quase não existe uma possibilidade. - Ele olhou para Erna, sua mulher. esta renunciara a ficar passando o lenço pelos olhos e lábios. - O que você diz disso, querida?

 - Sou de sua opinião, Peter - sussurrou ela. Enquanto criatura desamparada, Erna parecia ainda mais jovem e bela; as pessoas sentiam um impulso constante de acariciá-la. - não direi uma palavra.

 - Minha velha pergunta ainda está valendo: o que acontecerá quando ocorrer a troca de passageiros em Valparaíso, sem que tenhamos encontrado o ladrão?

 - Neste caso estaremos numa situação na qual ainda não ouso pensar. Mas isso só acontecerá quando estivermos a um dia da chegada a Valparaíso. - O comandante Teyendorf brindou ao casal Schwarme: - Bebamos ao nosso sucesso!

 

 Bateram os copos, um pouco aflitos, mas Já não mais tão desesperançados. Pelo contrário: nesse momento, Erna Schwarme meditava com toda a atenção sobre de quem seria a vez, caso o ladrão atacasse outra vez. Seria, em primeira linha, a Sra. White. Depois as jóias de Sylvia de Jongh, a arrogante. No mínimo setenta mulheres haviam levado as fortunas de seus maridos para passear a bordo... um verdadeiro paraíso para um ladrão de jóias!

 O comandante Teyendorf ficou satisfeito com esse acordo do silêncio. Agora o detective podia continuar bancando o cego. Então, alguns minutos depois, Dabrowski telefonou chamando o comandante com urgência.

 Teyendorf fingiu que necessitavam de sua

presença na ponte. Despediu-se do casal Schwarme, esperou mais alguns minutos até estar seguro de que ambos estavam fora do campo de visão e então desceu ao cinema de bordo.

 Dabrowski, Riemke, Willi Kempen e o comissário-chefe Pfannenstiel estavam sentados diante de um projector de tevê a cores, cuja tela era espantosamente grande. Levantaram-se quando Teyendorf entrou no cinema.

 - não sejamos tão formais, cavalheiros! - disse o comandante. Foi apenas uma exortação retórica, pois a disciplina, a ordem e a boa conduta faziam parte das regras básicas de sua vida. Jamais alguém se atreveria, por exemplo, a chamá-lo apenas de "com"... essa pessoa seria enquadrada no acto. Em toda parte e em qualquer momento

chamavam-no apenas de "senhor comandante". Qualquer negligência era, aos olhos de

Teyendorf, o começo do caos.

 Ele sentou-se junto aos outros e Riemke gritou para o operador de filme de tevê:

 - Pode rodar, Raffael!

 Raffael, o operador de cinema e técnico de tevê de Catânia, que não se abalava diante de nenhum problema relacionado com a electricidade, apagou parte da iluminação da sala por intermédio do regulador de luz. Em seguida, apareceu na gigantesca tela de tevê uma tomada total da cabina da tripulação. A câmara fez uma evolução e enfocou o primeiro marinheiro que se dirigiu à porta. Com um movimento bem rápido, ela aproximou-se da cabeça, de tal modo que a partir desse instante só se viam rostos em close.

Os marinheiros, em tamanho gigante, lançavam sorrisos para a câmara.

 - Eu nunca vi os rapazes com tanta exactidão - disse Willi

Kempen.

 Após seis tomadas, Dabrowski disse entre as imagens:

 Agora vem o primeiro barbudo. Mas sua barba é louro

avermelhado. Ele sempre foi assim? Ou será que pintou rapidamente?

 - Esse aí é Franz Stickerich. - O comissário-chefe Pfannenstiel deu uma gargalhada, pois Stickerich olhou para a câmara como um pateta. - Eu só o conheço de barba vermelha.

 

 O desfile dos rostos durou quase duas horas. Foram, no total, cento e setenta homens. Os outros estavam de licença em terra e seriam filmados de manhã cedo. Havia quatorze homens de barba escura no primeiro desfile, mas de cada um deles dizia ou Pfannenstiel ou Riemke: "Tenho cem por cento de certeza que este é inocente!" Entre eles tão-pouco havia alguém que antes usasse barba e que, de repente, a tivesse cortado.

 - Ninguém é inocente - disse entretanto Dabrowski. - Eu não gostaria de saber quantos deles têm a consciência pesada. Mas trata-se de um assassinato... ou de alguém que tenha algo a ver com a morte.

 - Quem dentre os passageiros usa barba escura? - perguntou o comandante Teyendorf.

 O director de hotel Riemke pegou numa lista no bolso do paletó.

 - Nove senhores. Anotei os nomes e suas profissões. Nenhum deles precisaria dos dólares da Sra. White.

 - Mas é oportuno que tenhamos uma saudável suspeita em qualquer situação. - Dabrowski continuou de olhos fixos no desfile de rostos que enchiam toda a tela de linho. - Uma vez eu tive um caso no qual estava implicado um multimilionário. não era um milionário em termos de propriedades, mas sim de conta bancária. Coisa que de facto é importante! Existe uma grande quantidade de milionários em propriedades; mas milionários em conta corrente, que podem ter imediatamente seus milhões em notas quando bem entenderem... são pouquíssimos. E esse distinto cavalheiro, ele tinha um nome fulgurante, havia assaltado,, de máscara de meia, nove joalharias em toda a Europa, no total. Ele roubava milhões nesses assaltos; contudo, no máximo dentro de três dias ele sempre mandava as jóias apreendidas de volta para o joalheiro. até que nós o agarramos em flagrante. Quando tinha quatorze anos, um dia esse sujeito viu um filme sobre ladrões de jóias, coisa que provocou um contacto frouxo em seu ciclo. Ele ficava possuído por uma compulsão, de um modo bem irregular. Você tem de roubar uma loja! O sujeito foi para tratamento psiquiátrico, não houve nenhum processo judicial. Hoje em dia ele está curado numa gigantesca mansão junto ao lago de Genebra e não consegue compreender sua vida anterior. - Dabrowski pigarreou. - Com isso só estou querendo dizer que devemos incluir no rol dos suspeitos esses nove honrados passageiros que usam barba. Claro que com a maior discrição e reserva.

 As duas horas de apresentação não renderam nada de essencial: nenhum daqueles que desfilou diante da câmara mostrou o menor sinal de medo no rosto. Somente curiosidade, espanto e inclusive humor. Para muitos, aquela aparição na tevê foi uma verdadeira diversão.

 - Portanto, para começar um fracasso! - o comandante Teyendorf resumiu o resultado do primeiro controle de rostos. - E se for assim também com a outra parte da tripulação?

 - Então colocarei os nove passageiros debaixo de minha lupa. Mas não creio que seja necessário. Tenho a sensação de que o acharemos entre a tripulação. Temos muito tempo até Valparaíso.

 - É o que você diz! - Teyendorf levantou-se. - Estamos numa situação bem desagradável, meus senhores, para não dizer directamente: numa situação de merda!

 Foi a primeira vez que os oficiais ouviram seu comandante falar dessa maneira.

 

 

Barbara Steinberg, a bela cabeleireira de Bochum, estava radiante; sua grande paixão, o Dr. Paterna, o médico de bordo, a convidara para a noite folclórica e dançante no Salão dos Sete Mares. Ela apareceu num vestido branco e simples, mas com um decote tão refinado que o Dr. Paterna perguntou-se de novo: não é possível? Como ela é na verdade? Será que só está bancando a ingénua que economizou anos para fazer essa viagem... ou o é de facto?

 Ele fez um pequeno teste. Na dança, apertou-a contra seu corpo, mas sentiu na mesma hora o enriquecimento de seus músculos; uma contracção que fez com que o corpo de Barbara ficasse rígido. Uma vigarista que sai em busca de aventuras teria reagido de outra maneira.

 - está bem quente aqui, apesar do ar-condicionado - disse ele após o fim da rodada de dança. - Vamos dar um pulo ao convés? No tombadilho? Lá fora está uma noite magnífica. Um céu estrelado que parece de sonho. E, em compensação, um vento quente soprado das montanhas. E depois o mar de luzes de Acapulco... Você não devia perder. Vamos? Ela assentiu, ainda um pouco rígida, e seguiu o Dr. Paterna até o elevador. Quando saíram no tombadilho e viram à sua frente a iluminada Acapulco e acima o céu amplo, estrelado e cintilante, deram mais alguns passos e encostaram-se na amurada.

 - Parece uma magia - disse Barbara em voz baixa, após um longo tempo de silêncio entre os dois. - não é linda a nossa terra...

 - Você ainda vai ver muitas coisas que a deixarão com o coração latejando. O canal do Panamá. A ilha de San Blas com os índios cunas. Guaiaquil, a cidade construída na selva, com um esplêndido cemitério de mármore, o mais bonito do mundo. Cuzão, a antiga capital dos incas. Machu Pichu, a cidade perdida dos incas no meio de um macio de rochedos cobertos pela selva. E muitas, muitas coisas mais. - Ele pousou o braço no ombro de Barbara e tornou a sentir o endurecimento. - Sempre que for possível, vou acompanhá-la a todas as partes... Caso você queira. Mas com certeza a Cuzão e Machu Pichu; como médico, preciso acompanhá-los no voo, por causa da altitude extrema: 3.500 metros de altura. Todas as vezes, alguns passageiros sentem vertigens, pois o ar é muito rarefeito.

 - Será que eu também vou sentir?

 - Nunca se sabe de antemão.

 - Sou muito saudável.

 Ela tornou a olhar para o céu estrelado e estremeceu ao ouvir passos no convés atrás. Um outro casal passou por eles e depois foi sentar-se num dos banquinhos de plástico branco instalados ao longo da parede do convés entre as janelas das cabinas do solário. O jovem de calças brancas e blazer azul pareceu muito encabulado e, de repente, levantou-se.

 Vejam só, pensou o Dr. Paterna, quem poderia imaginar: O parceiro bicha de Jens van Bonnerveen está rompendo. Está-se iniciando outra tragédia clandestina.

 O jovem foi até o Dr. Paterna e pigarreou:

 - Posso falar com o senhor um minuto a sós, doutor? - perguntou ele. Sua voz traía uma grande tensão íntima. Paterna assentiu.

 - Queira desculpar-me, Barbara - disse ele. - Volto daqui a pouquinho.

 Ele afastou-se um pouco com o jovem encabulado chegando junto à parede e, assim, os dois ficaram fora do alcance.

 - está sentindo alguma coisa?

 

 - Meu nome é Grashorn. Eduard Grashorn. - O jovem hesitou outra vez. - Antes de continuar falando, doutor... preciso confessar-lhe uma coisa...

 - Eu sei. Você subiu a bordo com um amigo e agora tem uma jovem dama ao seu lado.

 - O senhor... o senhor sabe o que está acontecendo connosco?

 - Olha, quase não daria para se deixar de notar, Sr. Grashorn. Seu parceiro não faz o menor esforço para esconder suas inclinações. Parece que você é o grande amor dele.

 - É isso. - Grashorn soluçou algumas vezes. - Eu... eu gostaria de pedir-lhe que o senhor não dissesse a ninguém que me viu hoje aqui.

 - Mas isso é claro.

 Ele viu Eduard Grashorn respirar aliviado. O rapaz tinha vinte e três anos de idade, era pedreiro desempregado. Por acaso, há algum tempo atrás ele chegara a um bar frequentado por homossexuais. Foi visto por Jens van Bonnerveen, um rico arquitecto, que se apaixonou por ele à primeira vista. Grashorn era o que se podia chamar de belo adolescente: de estatura mediana e magro, gracioso como uma moça e com imensos olhos azuis. Antes de entrar naquele bar, jamais lhe passara pela cabeça afeiçoar-se por um homem. Ele não teria a menor inclinação para isso. Mas quando van Bonnerveen convidou-o para um champanhe e caviar e levou-o para sua mansão, quando ele viu toda a riqueza e pensou em sua própria situação, então foi possuído por uma espécie de indiferença para com seu destino. Seu pai bebera até morrer quando Grashorn tinha nove anos, ganhava honestamente seu dinheiro como passadeira numa lavanderia e ele tornara-se servente da construção civil, sendo mais tarde nomeado pedreiro, posto que dissera a si próprio: as construções estão sempre em ordem e do que mais precisa um ser humano para viver Além de comida, bebida, amor e um teto sobre a cabeça? Depois veio a conjuntura de depressão, a firma construtora abriu falência e ele não encontrou outro emprego em lugar nenhum, pois todas as empresas de construção queixavam-se da falta de obras.

 Agora ele estava na mansão do arquitecto, cercado de quadros e tapetes, mármore e vidro, bebendo champanhe e tolerando que van Bonnerveen o acariciasse e inclusive o beijasse e o apalpasse de mãos trémulas.

 Aqui está o dinheiro, pensara ele. Aqui, o dinheiro jorra na fonte. Se você colaborar, não vai ter mais preocupações. O sujeito está louco por você... Colabore, Eduard!

 Nessa noite, ele dormiu com van Bonnerveen. Foi duas vezes ao banheiro para vomitar; mas quando teve nas mãos sua primeira nota de mil dólares, ficou sabendo como seria seu futuro. Nesse meio tempo, já estavam juntos havia quase um ano e van Bonnerveen continuava tão apaixonado como no primeiro dia. O corpo gracioso e curvilíneo de Grashorn o deixava maluco. não havia nenhum desejo que van Bonnerveen não realizasse. Assim também fora com essa viagem por meio mundo. E agora Eduard Grashorn vira uma jovem no navio e sentira que ela não estava inclinada só para uma aventura de viagem.

 - Eu Agradeço, doutor - disse ele nesse momento.

 - O que será se seu parceiro notar? - perguntou o Dr. Paterna.

 - Ainda não sei. Pode acontecer um tremendo dramalhão. Mas espero que ele não note.

 - Onde está ele nesse momento?

 

 - No Clube do Pescador. Provoquei uma briga e saí furioso. Para ir ao encontro de Annemarie...

 - E não tem medo que ele venha atrás procurá-lo?

 - não. Jens sabe ser cabeçudo como um touro... Mais uma vez: muito obrigado, doutor.

 Grashorn voltou ao banco e sentou-se ao lado da jovem. No mesmo instante, ela pousou a cabeça em seu ombro e pareceu sussurrar-lhe alguma coisa. O Dr. Paterna voltou pensativo à amurada.

 - Eu gostaria de lhe dar um beijo agora - disse ele súbita e directamente para Barbara Steinberg.

 - Oh! Por quê? - os olhos de Barbara ficaram arregalados. - E o senhor sempre pede...

 - não. Nunca! Mas com você é diferente.

 Ele puxou-a, envolveu-a com os braços e beijou-a. De repente, estava pouco ligando se era visto ou não.

 E ele foi visto!

 

O Atlantis partiu do píer de Acapulco às 14 horas em ponto e, acompanhado por dois rebocadores, saiu lentamente da ampla e magnífica baía retornando ao Pacífico. como sempre, o comandante Teyendorf permaneceu na ponte dirigindo com segurança o gigantesco navio branco através do porto.

 Embora tudo ainda continuasse escuro, ele respirou aliviado à medida que Acapulco foi ficando cada vez mais longe, até que, no final, desapareceu no sol brilhante.

 Haviam escapado de uma baldeação mais longa graças à constatação do médico da delegacia de saúde mexicana, segundo o qual a Sra. White teria morrido de paragem cardíaca. Como antes, Teyendorf achava correcto ter-se calado sobre a suspeita de assassinato em interesse dos passageiros. Afinal de contas, nada havia sido provado e o próprio médico de bordo, o Dr. Paterna, confessara que podia estar enganado. Mas por que sumira todo o dinheiro da Sra. White?

 Willi Kempen, o primeiro-oficial, recostou-se na balaustrada ao lado de Teyendorf e, como este, ficou olhando para a magnífica cidade. De longe ela parecia mais encantadora ainda, posto que não se via a sujeira que, lenta porém constantemente, descia das encostas, onde os nativos viviam, em direcção à cidade. Mas era assim por toda a parte. Seja em Caracas ou no Rio, em Lima ou Cartagena: a partir das favelas, a miséria espraiava-se cada vez mais nos centros urbanos. Ela crescia como uma colina de cogumelos.

 - Graças a Deus, senhor comandante! - disse Willi Kempen.

Com isso, ele expressou o que Teyendorf estava pensando.

 - Acabou-se.

 - Por enquanto, meu caro.

 - Que mais pode acontecer?

 - Uma baita duma acusação por encobrimento de um assassinato.

 - E quem faria? Quem pode saber Além de nós... um punhado de pessoas?

 

 - Quando Dabrowski descobrir o criminoso, este terá de ser entregue à polícia. E então vai ser o diabo! - Teyendorf suspirou. - Mas não vamos pensar hoje no que poderá acontecer em Valparaíso. - Nesse momento, eles haviam chegado à larga saída da baía e despediram-se de Acapulco com três potentes tocões de sirene. Os dois rebocadores responderam com suas sirenes claras. - Dabrowski está avaliando o videocassete da manhã. Se tão-pouco ele descobrir alguma coisa suspeita na segunda parte da tripulação, então será a vez dos passageiros. A coisa ainda pode ficar mais pesada!

 Na parte de fora da extremidade da ponte, onde havia uma plataforma de vista para os passageiros, Ludwig Moor, o homem que andava um quilómetro pela manhã, estava olhando de binóculos a cidade que se desvanecia. Ele a achara muito interessante, embora muitas vezes o caos das ruas o deixasse perturbado. Na verdade, não gostaria de passar suas férias ali, mesmo que possuísse o dinheiro necessário para hospedar-se num dos hotéis-pálacio protegidos contra tudo, um gueto dos ricos. Sentia-se melhor em Norderney, onde as pessoas ainda podiam unir-se à natureza e ao mar. em acapulco era-se apenas parte integrante de um barulho organizado, uma formiga entre formigas. No Rio a coisa não seria diferente; ele já havia visto muitas fotos de Copacabana com o formigueiro humano diante da estação do Pão de Açúcar. Moor preferia as coisas mais tranquilas da vida, assim como se acostumara ao seu trabalho no tribunal da comarca: a repartição de cadastro era um oásis de tranquilidade.

 - A Sra. White ficou em terra? - perguntou ele a Teyendorf.

 O comandante virou o rosto para Moor e encarou-o com um ar inquisidor.

 - Hoje de manhã eu vi quando limpavam a suíte dela. Então eu fui dar uma espiada... sabe, as pessoas são curiosas e eu nunca tinha visto uma suíte de luxo. Tudo parecia tão abandonado.

 - Sim, a Sra. White ficou em terra: Ela esteve no consulado americano e quer viajar por todo o México. Mudou de idéia. Aliás, nós já conhecíamos as excentricidades dessa dama, não foi nenhuma novidade para nós...

 Ludwig Moor assentiu e saiu da plataforma da ponte. Teyendorf seguiu-o com a vista, pensativo.

 - Por que é que ele pergunta tanto? - disse ele a Willi Kempen. - Viu alguma coisa?

 - Talvez o desembarque do caixão...

 - Mas alguns outros passageiros também viram e Nós tínhamos uma explicação para o facto.

 - Podemos supor também que ele saiba de mais coisas. Devíamos informar o Sr. Dabrowski sobre essa rápida conversa.

 Enquanto o Atlantis desaparecia no brilho do sol da entrada da baía, Claude Ambert estava na janela de seu hotel um tanto ou quanto vagabundo, situado na metade da encosta de Acapulco, no lugar onde já começam as favelas. Ele acenava para o navio branco. A despedida de três tocões da sirene ecoou até ele e, igual ao comandante Teyendorf, Claude Ambert também respirou aliviado.

 Consegui. Acabou. Esse continuará sendo o assassinato perfeito. não havia a menor suspeita sobre o domador de elefantes. Todos a bordo sabiam que ele sempre ficara ao lado de seus queridos animais, aqueles gigantes com enjoo do mar. Nesse momento, eles encontravam-se no estábulo do circo México Glória, que era um meio-termo entre variedades, circo e cabaré, onde tanto apresentavam-se cantores cheios de esperanças, quanto panteras negras, ou inclusive elefantes.

 

 Claude Ambert fez a caixa em seu quarto de hotel, cuja única beleza era um balcão de onde se tinha uma vista da cidade - uma verdadeira cena de cartão-postal. Empilhou as notas de dólar sobre a mesa à sua frente e contou-as; uma sensação arrebatadora para um homem que, em geral, beijava agradecido qualquer nota de cem dólares que possuía. O dinheiro deslizou nota após nota entre seus dedos com um tremor cada vez mais potente e, quando terminou de contar as pilhas da esquerda para a direita, ficou sabendo que encontrara exactamente 63.450 marcos na gaveta de Anne White. Ele cruzou as mãos no peito, recostou-se para trás e cravou os olhos no tecto de gesso de coloração marrom de tanta fumaça de cigarro: 63.450 marcos! já se podia fazer algo com isso. Aos trinta e seis anos ainda não se é velho para começar alguma coisa nova. Vivendo-se de modo sensato e caso não ocorra nenhuma desgraça, ainda se têm uns bons quarenta anos de vida pela frente. Quarenta anos sem preocupações, desde que o dinheiro seja aplicado de maneira correcta e passe a se multiplicar.

 Para começar, ele se separaria das elefantas. Partia-lhe o coração abandonar Sissy e Berta, mas não seria possível começar uma nova vida com duas elefantas ao lado. Terminara sua existência de domador. Claro que ele cumpriria seu contrato com o circo apresentando-se com Sissy e Berta durante duas semanas; mas depois teria o caminho livre para uma nova vida.

 Nessa tarde, ele deu consecutivos telefonemas para os zoológicos da cidade do México, de Guadalajara, Puebla e Cidade Juarez, oferecendo suas elefantas à venda. Descreveu com palavras emocionadas suas habilidades, fidelidade, mansidão, força e saúde. Infelizmente, encontrou pouca correspondência no amor dos directores dos zoológicos.

 Já tinham elefantes de sobra nos jardins zoológicos e o facto de os animais de Ambert dominarem uma série de pequenas habilidades não induziu os directores a comprar Sissy e Berta. Mesmo quando Ambert ofereceu, com imensa dor íntima, suas queridas de presente, os directores declinaram. Dois elefantes crescidos e mimados custavam milhares de pesos por semana. Já estavam lotados com os exemplares exibidos nos zoológicos.

 - Mas eu não posso matá-las! - Ambert gritou ao telefone, quando o director da Cidade Juarez recusou as duas com toda a amabilidade. - Elas são carne de minha carne!

 - Bem, se é assim - respondeu o director com um certo escárnio - o senhor só precisa continuar carregando esse fardo...

 Depois dessas conversas, Claude Ambert foi sentar-se muito deprimido no balcão do quarto de hotel e ficou olhando a cidade que dali oferecia uma vista magnífica. Rejeitou no acto a idéia de simplesmente abandonar Sissy e Berta no estábulo do circo e pôr o pé na estrada, justamente porque seu coração estava preso aos dois gigantes cinzentos. Elas o haviam servido com fidelidade, o haviam sustentado com suas artes. Bastara para que os três tivessem comida e bebida. Seria uma crueldade infame simplesmente abandonar agora as elefantas a um destino inseguro. Parecia uma loucura, mas era assim: Claude Ambert, o assassino frio de Anne White, ficava com os olhos marejados de lágrimas ao imaginar como Sissy e Berta trombeteariam de saudades dele e passariam a não comer mais nada de puro desgosto.

 

 Ele ficou sentado no balcão o dia inteiro até o crepúsculo, sem encontrar nenhuma saída. só sabia de uma coisa: a velha vida teria de ficar para trás de uma vez por todas; e as elefantas faziam parte dela. Quando o céu tingiu-se de dourado, Ambert retornou ao quarto, trocou de roupa e desceu a encosta do morro indo em direcção ao circo na cidade. No minúsculo camarim, vestiu seu traje, o hábito de um marajá hindu, cobriu os cabelos com o turbante e depois entrou no estábulo. Sissy e Berta cumprimentaram-no com o matraquear de correntes e gritos ensurdecedores.

 - Meus docinhos! - disse Ambert comovido acariciando as trombas que o tocaram. - Que farei de vocês? Ninguém quer ficar com vocês. Os seres humanos não têm coração, é o que lhes digo. Eu também sou um egoísta, quero livrar-me de vocês para começar vida nova. Mas antes disso tratarei de que vocês passem bem até o fim da vida, mesmo que ainda não saiba de que maneira.

 

Após o jantar do segundo horário de refeição, ao qual Ewald Dabrowski não compareceu - sua "enfermeira" Beate sentou-se sozinha à mesa C 8 - o comandante Teyendorf recebeu por telefone a notícia de que devia fazer o favor de comparecer à sala de cinema; era provável que o assassino de Anne White tivesse sido encontrado.

 Depois desse comunicado, Teyendorf bebeu rápido um copo de conhaque, pôs o quepe e desceu de elevador ao convés principal. Dabrowski, o director de Hotel Riemke e o Dr. Paterna já se encontravam sentados diante do projector de tevê, fumando nervosos, embora fosse expressamente proibido fumar ali.

 - Mas é claro que isso não pode ser verdade! - Teyendorf foi logo gritando ao entrar.

 O Dr. Paterna levantou as mãos num gesto de defesa.

- Quando assistir ao quadro, o senhor também vai fumar, comandante.

- não sou da mesma opinião. Fico maluco ao pensar que haja um assassino na minha tripulação. Quem é ele, então?

 Dabrowski apontou para o assento livre ao seu lado. Lá na frente, a tela fosca já estava brilhando. Eles tornaram a ver rostos curiosos, espantados, divertidos, risos e piscar de olhos... e então apareceu uma cabeça com barba negra e densa, cabelos pretos encaracolados e olhos ainda turvos da noite anterior. O sujeito lançou um olhar um tanto tímido para a câmara, o canto dos olhos tremeu, sua boca manteve-se firmemente fechada, nos olhos pairava uma espécie de sorriso. Quanto mais a câmara retardava-se nele, mais evidente tornava-se o tremor contido de seu rosto.

 O próximo. Outra vez um rosto alegre, bem diferente do homem barbudo. Dabrowski mandou parar o filme, voltar atrás e parar no momento em que o conhecido barbudo olhava para a câmara. Essa imagem fixa traía ainda mais: uma contorção do rosto que, como era evidente, o sujeito não conseguia controlar mais.

 - O que lhe ocorre, senhor comandante? - perguntou Dabrowski com toda a calma.

 - Esse cara passou a noite inteira bebendo e trepando em acapulco. - Teyendorf olhou a imagem fixamente. - Uma grande quantidade de meus homens fez o mesmo. Os marinheiros em terra são como touros soltos num curral de vacas.

 - Esse homem está com medo, senhor comandante!

 - Quem é ele?

 

 - Ele se chama Jim Hendriksen e é mecânico da casa de máquinas do navio. Já me informei com o chefe; ele o acha um de seus melhores homens.

 - Que o chefe venha até aqui!

 num navio, o chefe é sempre o engenheiro-chefe, a quem está sempre subordinada toda a maquinaria dessa cidade flutuante. Sem ele simplesmente nada anda. De que serve o melhor comandante ou o melhor oficial-navegador se as máquinas não funcionarem? Devem ser dominados e cuidados mais de 28 mil cavalos-vapor, os goniómetros e estabilizadores, os geradores e toda a instalação técnica. Quando ocorre

alguma falha técnica no bojo do navio... o chefe é sempre chamado.

 O chefe do Atlantis chamava-se Ludwig Wurzer, era originário da Floresta Negra, havia vinte e quatro anos que estava no mar e, no próximo ano, comemoraria seu jubileu de prata não engenheiro-chefe. O dia já estava marcado: a festa seria no mar, na viagem de Mogadiscio a Aden. era de se esperar uma grande bebedeira, pois Ludwig Wurzer era uma pessoa alegre, sempre muito querido entre as passageiras, um verdadeiro dançarino deslumbrante e infatigável e homem charmoso. Sobre ele corria a lenda de que quanto mais lubrificadas funcionassem suas máquinas, mais atencioso e activo ele era na cama. não se dava lá muito bem com Teyendorf, que para ele era austero demais e por demais furioso com a disciplina, como ele mesmo dizia, Além de ser inatingível enquanto pessoa. Tinha um contacto melhor com o outro comandante do Atlantis, o mais jovem e enérgico Erik Holter, embora este também desse prosseguimento à tradição: um comandante em viagem tem de ser uma pessoa de autoridade!

 O chefe Ludwig Wurzer levou uns dez minutos para chegar à sala de cinema. Parou na porta. No ambiente de iluminação exígua e contra o pálido brilho da tela da tevê, conseguiu reconhecer Teyendorf e Riemke, depois o Dr. Paterna também. não conhecia o sujeito do meio, mas supôs tratar-se do detective sobre quem Riemke lhe contara sob o juramento de silêncio.

 - Quem é esse aí na tela, chefe? - perguntou Teyendorf com um tom de voz oficial.

 - O mecânico Jim, senhor comandante. Um de meus melhores homens. há três anos que viaja com o Atlantis... mas é claro que o senhor o conhece, comandante.

 - Naturalmente. - Teyendorf olhou fixo para o rosto de Jim.

- Você acha que Jim seria capaz de cometer um assassinato?

 - Um... o quê? Nunca, jamais! - a voz de Wurzer elevou-se um pouco. - O cara que pensar isso, deve estar com um parafuso frouxo na cabeça. não conhece Jim. Desculpe-me, senhor comandante... mas fiquei com raiva. Quem, quando e onde Jim matou?

 - Quem? A Sra. White. Quando? Anteontem à noite. E onde? Aqui a bordo.

 - Impossível! Jim esteve na casa de máquinas de manhã bem cedo e depois teve folga em terra até hoje de manhã.

 - E na noite anterior?

 - Ficou na cama, é o que eu suponho.

 - Você supõe, chefe! é disso que estamos tratando: ele ficou deitado na sua cama ou na da Sra. White? E depois assassinou-a? E por quê?

 

 - Porque uma grande quantidade de dólares cujo montante não sabemos, atrai qualquer pessoa. Mas segundo a nossa opinião deve tratar-se de uma fortuna. não foram roubadas jóias, estas ainda se encontravam na suíte. só estava faltando o dinheiro vivo. Mas não faria o menor sentido procurá-lo agora com Jim. Em primeiro lugar, ele não poderia escondê-lo em sua cabina, pois não vive sozinho. Em segundo lugar, justamente para ele que conhece cada cantinho do navio, existem outros esconderijos mais seguros. E em terceiro lugar, não temos nada nas mãos, trata-se apenas de uma suspeita. - Teyendorf apontou para a imagem na televisão. - Dê só uma olhada no rosto dele, chefe.

 - Bem, Jim teve uma noite intranquila. Além disso, ele tem de facto uma bela barba...

 - Esses fios de barba negros foram encontrados na cama da morta Anne White - replicou Dabrowski tranquilo. - Claro que isso não é nenhuma prova contra Jim, mas ele foi o único que olhou para a câmara com medo durante o desfile da tripulação. Seu rosto está dizendo que ele tem alguma coisa a esconder.

 - Bem, se se trata de uma barba... eu também uso uma! - disse o chefe Wurzer em tom agressivo.

 Dabrowski não desistiu:

 - é verdade. Você também está na fila, Sr. Wurzer.

 - Mas isso é uma insolência! - o chefe Wurzer olhou insultado para Teyendorf. - Senhor comandante, afinal quem é esse sujeito? Na qualidade de oficial do Atlantis sinto-me agredido sem nenhuma justificação.

 - Tomarei nota disso, chefe. - A voz do comandante estava estranhamente serena. - Mas não saia por aí batendo com a língua nos dentes. Os outros passageiros barbudos também são suspeitos. Trata-se de um assassinato; num caso como esse, todos Nós, inclusive eu, devemos agir com bravura e não fazer barulho. - Teyendorf levantou-se. Os outros seguiram-no. - E agora, Sr. Dabrowski?

 - Vamos interrogar Jim, senhor comandante.

 - Sem provas?

 - Agiremos como se tivéssemos alguma. Olha, e eu chego ao ponto de afirmar que existem provas. Aqui no navio estão algumas centenas de olhos. Deve existir uma testemunha ocular. Aposto!

 - Uma testemunha do assassinato?

 - Mas claro que não! Algum que tenha visto Jim entrando ou saindo da cabina, caso tenha sido ele realmente quem esteve deitado na cama da Sra. White. num navio nada fica em segredo; de qualquer modo, ,nunca soube que ficasse.

 

O interrogatório de Jim foi feito na cantina. O chefe Wurzer ficou mascando a ponta do cachimbo, quando o mecânico entrou, devagar, olhando em volta qual animal acossado, com um tremor no canto dos olhos. O olhar de seu comandante parecia perturbá-lo ao extremo. Tomou assento numa cadeira que o chefe lhe apontou e enganchou as mãos entre os joelhos. Seu olhar deambulou de homem a homem, seus lábios estavam cerrados. Dabrowski andou em volta dele bem devagar, coisa que evidentemente deixou Jim intranquilo.

 

 - Eu sou Ewald Dabrowski - disse ao encontrar-se de novo frente a frente com Jim. - Detective profissional. E você é Jim Hendriksen, mecânico de bordo do Atlantis. O chefe deu as melhores recomendações sobre você, Jim. Mesmo assim tem um ponto obscuro em sua vida. Quer falar sobre isso?

 - Eu... eu não sei o que você quer dizer, Sr...

 -... Dabrowski. Pense direito! não muito atrás no passado, mais para o presente. Para sermos precisos: anteontem à noite. O que houve então?

 - Aí eu estava com a bunda metida no beliche...

 - Mário, seu companheiro de quarto, pode confirmar isso?

 - não. Afinal, ele estava de serviço no bufé da meia-noite e depois no bar. Deve ter chegado à nossa cabina, quando eu já estava de novo na sala das máquinas.

 - Portanto, você não tem testemunhas?

 - Disso... não.

 - O que você diria se Nós lhe confessássemos: temos uma testemunha que informou tê-lo visto saindo furtivamente da suíte da Sra. White?

 - Eu digo: idiotice! Quem é a Sra. White? Que suíte? - sua voz saiu abespinhada, mas o canto de sua boca tremeu. E também os dedos que ele enganchara entre os joelhos, começaram a ficar intranquilos. - Afinal ao que imputa, o que é que está vendo-me? Eu gostaria de ser confrontado com essa Sra. White.

 - Você sabe muito bem que isso não é mais possível, Jim. E agora trate de prestar atenção: daqui a pouco Nós vamos cortar-lhe alguns pêlos da barba, da cabeça e da pélvis e o Dr. Paterna examinará esses cabelos no laboratório, para compará-los com os cabelos que foram encontrados na cama da Sra. White. Esse teste trará à luz sua culpa ou inocência. - Dabrowski aguardou o efeito de suas palavras, mas Jim era um osso duro de roer.

 - E se eu me recusar a deixar que alguém corte os cabelos do meu saco? Ninguém tem esse direito, ninguém!

 - Se você não tiver nada a ocultar, então por que iria recusar-se a deixar?

 - E não foi que você chegou justamente a mim? Muitos usam barba. Até o chefe. Também vai cortar os cabelos do saco dele?

 - Se for preciso, sim!

 - É verdade, chefe?

 Wurzer hesitou durante alguns minutos. Depois respondeu:

 - É, Jim. Trata-se duma coisa séria pra diabo.

 Jim Hendriksen cravou os olhos no chão à sua frente, tamborilou com a ponta dos dedos na parte interna dos joelhos, com expressão de quem estava travando uma luta mortal consigo mesmo. Teyendorf encarava-o com a respiração presa; Riemke também mordia o lábio inferior. Reinava um silêncio total no ambiente... Qualquer palavra supérfula nesse momento teria posto tudo a perder. era uma difícil decisão que Jim devia tomar.

 - Eu... eu sei, chefe, disse ele no final, hesitante, deixando a cabeça pender enquanto falava. - A Sra. White está morta.

 Teyendorf respirou aliviado e acendeu um cigarro. Riemke ficou arrancando os cabelos., o Dr. Paterna recostou-se serenamente.

Apenas Wurzer disse em voz alta:

 - Jim, seu arrombado! Por causa de um punhado de dólares... um assassinato...

 

 - Assassinato?! - a cabeça de Jim levantou-se de supetão. - Assassinato, como assim?! Ela teve um ataque do coração. Estava morta como quem dorme, quando acordei pela manhã e me levantei da cama. Só notei que ela estava morta quando a toquei. Já estava fria como gelo. Aí eu saí da cabina e dei no pé. A velha não aguentou mais, foi o que pensei... você trepou com ela até matá-la; cara, isso vai dar o maior alvoroço!

- Jim desviou o olhar de um para o outro balançando a cabeça. - Portanto, que assassinato? Eu também fui surpreendido. não notei nada.

 - Porque estava bêbado e cansado, seu bobão - disse o chefe de modo rude. - Ir para a cama com a velha!

 - Ela ainda tinha um corpo fenomenal e pimenta na bunda. Realmente, chefe. E Além disso eu ganhava mil dólares por cada vez.

 - Por cada vez?! - a voz de Teyendorf elevou-se. - Com que frequência você esteve com a Sra. White?

 - Foi a segunda vez, senhor comandante. - Jim piscou os olhos.

- Ela me chamava de "meu tourinho forte".

 - Quer dizer então que ela já estava morta quando você acordou? - perguntou Dabrowski sem entrar nos detalhes eróticos.

- Foi o que eu disse. Fria e morta! Ataque do coração.

- Assassinato! - Dabrowski lançou um olhar duro sobre Jim.

- Assassinato por causa de um monte de dólares que se encontrava na escrivaninha. Onde você guardou o dinheiro, Jim?

 - não fui eu.. - Jim levantou-se e esticou os braços na direcção de Wurzer num gesto súplice. - Chefe, me ajude! Você me conhece muito bem... acha que sou capaz de matar alguém? Acha que sou capaz disso?!

 - O negócio está muito triste, Jim. - O chefe Wurzer enxugou o suor da testa. não foi ele, pensou. não pode ser ele, senão existe um gigantesco buraco no meu conhecimento do ser humano. - Você foi a última pessoa que a viu com vida e depois o primeiro a dar pela morte dela. Nenhuma pista, nenhum ruído, nada sobre um assassino... você nem ao menos acordou quando uma mulher era morta ao seu lado. Quem pode acreditar nisso?

 - Eu desabei como um saco de batatas e dormi profundamente. Vá trepar cinco horas sem parar com uma mulher como Anne. Você também desmaiaria, chefe...

 - Por favor, modere-se, Jim! - disse Teyendorf de modo cortante.

 - Mas a verdade é essa, senhor comandante! - Jim ergueu ambas as mãos. - Por que ninguém acredita em mim? Eu dormi e uma outra pessoa deve tê-la assassinado. Afinal de contas, como é que ela foi morta?

 - Ela foi sufocada.

 - Sufocada?

 

 - Talvez com um travesseiro. não podemos provar... mas tudo indica que tenha sido assim. - Dabrowski tornou a andar em volta de Jim. Hendriksen afundou a enorme cabeça entre os ombros. - Estou Quase inclinado a acreditar em você, Jim... mas só quase! Já esclarecemos o motivo pelo qual seus cabelos estavam na cama da senhora. E no que tange aos dois mil marcos, bem, a minha opinião é de que nossa tarefa não é fazer julgamentos morais. Mas mesmo assim resta a pergunta: quem, além de você, pode ser apresentado como assassino? Uma coisa é incontestável: o crime ocorreu apenas pelo dinheiro. E você viu muito bem onde estava a grana, quando a Sra. White pagou seus... seus serviços com o pacote de notas de marcos da gaveta. A ganância pelo dinheiro que estava diante de seus olhos de um modo tão aberto e sedutor... se isso não for um tremendo motivo para o assassinato!

 - Eu juro, não fui eu! Eu juro pela vida da minha mãe!

 Jim levou as mãos ao rosto e, de repente, começou a chorar.

Era uma cena estranha ouvir o choro daquele homem forte e taurino e ver o tremor de seu corpo. O chefe Wurzer fez alguns sinais com a mão e sacudiu a cabeça. não havia sido ele, esse era o significado desses sinais.

 - Pela vida de minha mãe... é o juramento mais forte dele. Ele adora a mãe como se fosse uma santa. Já me contou muitas coisas sobre ela. A mãe o educou sem a presença do pai. Este parece que era um caixeiro-viajante de artigos têxteis e coisas do género; viajava pelo país indo até os camponeses pobres que viviam à margem das grandes cidades e impingiu uma blusa à camponesa Else e cobrou com uma trepadinha no celeiro. Jim nasceu disso.

 - está bem, Jim. Você pode ir embora! - disse Dabrowski recostando-se no balcão da cantina. - Você está mesmo ao nosso alcance... a não ser que pule na água.

 - Jogar-me aos tubarões? - Jim levantou-se da cadeira e deu um sorriso fraco. - não sou maluco.

 Teyendorf esperou até que a porta se fechasse atrás de Hendriksen. Nesse momento, ele já havia fumado três cigarros consecutivos.

 - Foi ele ou não foi? - perguntou rompendo o silêncio. - E eu digo: não! não foi ele!

 - Então quem foi? - Dabrowski pegou uma garrafa de gim na prateleira e encheu um copo pela metade.

 - Portanto, a coisa dos cabelos está esclarecida. - O Dr. Paterna tomou o copo de Dabrowski e bebeu um longo gole. - Não se pode deduzir uma prova de assassinato a partir daí. Uma terceira pessoa pode ter entrado na suíte e ter morto Anne sem fazer nenhum barulho, enquanto esta e Jim dormiam lado a lado. Sr. Dabrowski, quando pensamos que mais de novecentas pessoas encontram-se a bordo, não é que você pensa em descobrir a famosa agulha no palheiro?

 - Com sorte. Eu confio em minha sorte.

 - não é muita coisa. - Assim, o chefe Wurzer expressou o que todos estavam pensando. E prosseguiu: - Jim está limpo como uma camisa nova. Eu seria capaz de jurar! Que droga... então quem matou a Sra. White? Que sensação mais esquisita, temos um assassino desconhecido a bordo!

 Até o anoitecer, aqueles que sabiam do segredo tiveram realmente a sensação de estar impotentes nas mãos de um criminoso frio. Somente pouco antes do jantar do primeiro horário de refeição, foi que o comissário de cabina Piet, que havia sido informado nesse meio tempo, apresentou-se a Pfannenstiel. Após escutá-lo, o comissário-chefe gritou-lhe dizendo que ele era o maior arrombado que havia no mundo e depois arrastou-o até Dabrowski.

 Dabrowski, que agora voltara a bancar o cego de modo consequente, estava sentado no sofá junto à janela e encarou Piet com seus óculos de lentes escuras.

 - Quem está aí? - perguntou assustado, como se tivesse escutado alguém sem poder enxergar.

 Pfannenstiel fez um gesto de negação.

 

 - Pode deixar a máscara cair. Esse aqui é Piet, o comissário de cabina do solário. Ele viu uma coisa tremendamente importante. O comandante e Riemke já estão vindo para cá.

 como se fosse uma deixa de teatro, bateram na porta e Teyendorf entrou na cabina. Foi seguido pelo director de hotel, o rosto avermelhado de agitação.

 - Piet! - gritou ele na mesma hora. - Que foi que o senhor viu?

 O facto de Riemke tê-lo chamado de senhor e não de você, não era de hábito, fez com que Piet reconhecesse a gravidade da situação. Seu olhar vagou entre o comandante e o director de hotel e, em seguida, ele relatou hesitante:

 - Foi assim: o Jim, que é meu chapa, chegou no escritório do meu andar com uma cara de quem estava na maior fossa e se jogou numa cadeira. "Mas que merda", ele disse. "Estão querendo botar um assassinato no meu prontuário. Imagine só, mataram a velha, a Sra. White. E eu fui o último que esteve com ela. Dei uma transada com ela por mil marcos... você também teria transado. Mil marcos! Dinheiro ganho fácil só com uma trepada..."

 - Vá directamente ao assunto, Piet! - Teyendorf interrompeu-o furioso.

- Será que vocês são caras que só têm mulheres na cabeça? E o que mais?

 - "Então, eu adormeci", disse Jim, "e quando acordei a mulher estava morta ao meu lado. Mas eu dei no pé como se não tivesse acontecido nada!" - Piet olhou na direcção de Dabrowski. - "Só que tem um detective secreto a bordo", disse Jim, "e o cara descobriu uns cabelos na cama e com isso me deixou na maior encrenca..." Mas Jim é um sujeito boa gente. E eu disse a ele: "Cara, tem uma coisa aí que não está certa. Quando foi que você trepou com a velha?" "Anteontem à noite", disse Jim. "E quando foi que você dormiu?", eu perguntei. "Sei lá", disse Jim, "lá pela madrugada." E aí temos a solução, comandante. Quando saí do Clube do Pescador, parado no escuro na porta aberta do quarto de passar roupa, vi por acaso quando alguém saiu correndo rápido como um raio da suíte da Sra. White. Dabrowski tirou os óculos. Teyendorf e Riemke encararam Piet como se este fosse um fantasma.

 - Você o reconheceu, Piet? - perguntou Teyendorf após o curto silêncio.

 - Reconheci. Com toda a clareza. era aquele domador de elefantes esquisito...

 - Claude Ambert! - Dabrowski enxugou o suor do rosto com ambas as mãos. - Foi o único passageiro a abandonar o navio em acapulco. Claro! Pelo amor de Deus, o que seria se não o tivéssemos como testemunha ocular, Piet! Você seria capaz de jurar isso?

 - Tudo! - Piet lançou um olhar um pouco medroso para seu comandante. Ele sabia muito bem o que viria a seguir. à noite, a tripulação que não está de serviço não tem nada a fazer nos ambientes dos passageiros, coisa que também compreende os bares, o salão, a piscina e os conveses de banho de sol. Muito menos vestidos à paisana. Ele, no entanto, estivera à paisana e de noite no Clube do Pescador!

 - Sim, senhor comandante - disse ele rápido, antes que Teyendorf o interpelasse - estive à paisana no bar.

 

 - Bem, pelo menos dessa vez deu nalguma coisa. - Teyendorf preferiu não admoestar Piet. Caso se acumulassem as admoestações, a referida pessoa seria transferida para os navios de transporte de containers ou, em casos especiais de quebra grave da disciplina, seria inclusive despedida. Assim, só no ano anterior cinco comissários de bar haviam sido despedidos sem aviso prévio por terem não apenas tirado notas falsas na caixa, mas também por terem misturado uísque, conhaque, vodca e outras bebidas: dois quintos de bebida de qualidade e três quintos de mercadoria barata. As bebidas baptizadas foram vendidas no bar, mas como se fossem mercadorias de boa qualidade. Como os barmen compravam as garrafas no depósito do Atlantis, eles guardavam uma diferença considerável no próprio bolso. Sobretudo quando anotavam as contas com cifras falsas ou nem sequer anotavam.

 - Claude Ambert! - Dabrowski repetiu o nome mais uma vez. - Ele está confiando que o assassinato jamais seja esclarecido. Precisamos informar a polícia de Acapulco.

 - Mas será que não vamos ter problemas com as autoridades mexicanas, problemas esses que queríamos evitar?

 O comandante sacudiu a cabeça.

 - Como já saímos do México e tanto o assassino como sua vítima não se encontram mais no navio, mas sim ao alcance da polícia mexicana, a minha opinião é que não teremos nenhuma dificuldade... sobretudo se Ambert confessar o crime.

 Dez minutos mais tarde foi enviado o cabograma para Acapulco: Claude Ambert, domador, passageiro do NN Atlantis até o dia 14 deste mês, viajando com dois elefantes, é o suspeito do assassino da Sra. White passageira do NN Atlantis. Solicito investigação policial e outras providências. Teyendorf, comandante.

 O cabograma foi lido em acapulco com perplexidade. Três polícias quiseram ir de qualquer maneira no circo México Glória, que teria lugar nessa noite.

 - Somente depois da apresentação! - disse com ar satisfeito o chefe do departamento de homicídios. - Antes nós ainda vamos ver do que são capazes os elefantes. Esse tal de Claude Ambert não vai fugir de nossas mãos.

 E assim foi que, nessa noite, dez polícias foram ao circo México Glória, parte deles com bigodes falsos, pois o director do circo, o senhor Adelfança, era bem conhecido nos meios policiais e, por conseguinte, também conhecia a maioria dos polícias.

 A apresentação começou às 21 horas... a última de Claude Ambert, Sissy e Berta.

 

A estreia foi um sucesso total. só que não foram as duas elefantas que levaram o público ao delírio e a um coro de aplausos, mas sim a dançarina desnuda Saida Jorges que executou uma dança tão erótica no picadeiro que até mesmo os homens mais pândegos e experientes sentiram um pulsar de vida no baixo-ventre. Saida foi obrigada a fazer três repetições; a terceira, a mais extraordinária, foi um coito transformado em dança.

 O público entrou em delírio.

 

 Em compensação, o número das elefantas transcorreu como sempre no picadeiro, alguns aplausos e chega. Mas Ambert ficou satisfeito. Seus queridos gigantes cinzentos haviam suportado a viagem de navio com bravura e era evidente que se sentiam bem em solo firme. Os comprimidos do Dr. Paterna também não provocaram efeitos secundários. Somente o senhor Adelfança ficou um tanto insatisfeito.

 - Isso é tudo que seus elefantes sabem fazer? - perguntou ele atrás dos bastidores após a apresentação. - Você Mesmo viu, o número não tira ninguém das cadeiras.

 - Quem pode ser bem recebido depois de Saida Jorges? - Ambert ostentou um sorriso amargurado. - Eu nunca vi um número em que elefantes fodessem no picadeiro. Além disso, as duas aí são fêmeas; está querendo que eu ensine a elas umas brincadeirinhas lésbicas?

 Adelfança simplesmente deixou Ambert plantado e voltou à Sala de espectáculos. Isso também vai passar, pensou ele. só esse mês. Depois escrevo uma carta de apresentação entusiasmada para ele. Os colegas das outras cidades que caiam na mesma esparrela em que caí. Quem foi que me recomendou esse cara? Juan Hernandez, de São Francisco. Esse cretino!

 Ambert ainda fez mais uma visita às suas queridas cinzentas, antes de subir a montanha em direcção ao hotel. Ao entrar no estábulo de paredes de concreto armado, quatro senhores já se encontravam lá observando as elefantas a uma distância respeitosa. Sissy e Berta estavam em cima da palha, quietas e acorrentadas, apenas balançando as trombas de um lado para o outro qual pêndulo de relógio.

 - É proibida a entrada de estranhos no estábulo! - disse Ambert com cara de poucos amigos. - como foi que vocês conseguiram entrar?

 - Nós conseguimos entrar em toda a parte. - O chefe da delegacia de homicídios de Acapulco estava numa noite alegre. Também fora esquentado por Saida Jorges. Tirou a credencial e levou-a aos olhos de Ambert.

- Delegacia de homicídios. Então, estamos querendo...

 - O quê? - a voz de Ambert estava firme, mas um tanto ou quanto empestada. - O que estão querendo?

 - Ter uma conversinha. Vamos até o distrito, quer dizer, nós vamos levá-lo.

 - Sou um cidadão francês.

 - E daí?

 - não pode levar-me assim sem mais nem menos!

 - Olha aqui, Nós podemos qualquer coisa!

 - não sem dizer as razões. Além disso, exijo que meu consulado seja informado.

 - Você terá direito a tudo. Mas uma coisa depois da outra. E mesmo assim vai depender de nossa vontade! - o chefe da delegacia de homicídios estava de facto com seu melhor humor. Ele discutia, coisa que em geral não era seu forte. Aqueles que eram levados à sua frente, primeiro recebiam um "tratamento preliminar" e confessavam tudo. A taxa de sucesso da delegacia de homicídios era incrivelmente alta em comparação com a de outras cidades do México. - Uma razão? Ora, por favor: Nós somos da delegacia de homicídios!

 Ninguém viu como Ambert petrificou-se por dentro. Não é possível, foi o pensamento que lhe percorreu a cabeça. não pode ser! Claro que eles acharam o cadáver e esse interrogatório é apenas uma questão de rotina.

 Afinal de contas, sou a única pessoa que não se encontra mais no navio.

 

 Vamos esclarecer e superar isso bem rápido. Nada de pânico, Claude. Fique sempre tranquilo e amável. A polícia mexicana é muito sensível.

 - Homicídio? Mas claro que isso é uma piada, não?! Mas por favor, se os senhores querem. Vamos. O senhor vai ter de se desculpar no máximo dentro de uma hora, comissário.

 - Com certeza. - Os quatro colocaram-no no meio, levaram-no até um enorme carro americano que estava aguardando na saída dos fundos do circo e partiram em direcção à delegacia policial. Não se falou nenhuma palavra durante a viagem. Coisa que deixou Ambert inseguro; e este era o objectivo do silêncio.

Reinava um opressivo ar abafado e quente no gabinete do comissário. Eles ligaram os ventiladores de pés, abriram os correctos Nós das gravatas, desabotoaram o colarinho e tiraram o paletó. Todos os quatro polícias usavam coldres de ombro com pistolas. Ambert respirou fundo algumas vezes. Sentiu o perigo como uma coisa quase física.

 - cá estamos Nós - disse o chefe bem à vontade. Sentou-se atrás da escrivaninha e cruzou as mãos sobre o tampo da mesa. - Portanto, você confessa...

 - O quê?

 - O assassinato da cidadã americana Anne White.

 - não conheço nenhuma Sra. White...

 Um violento pontapé dado por trás em seu traseiro atirou-o contra o canto da escrivaninha, deixando-lhe claro que, sob certas condições, um interrogatório mexicano podia ser bem efectivo.

 - Você foi passageiro do NM Atlantis junto com seus elefantes. Nós recebemos um cabograma do navio afirmando que você matou a Sra. White. Confiscamos o cadáver da Sra. White que, originalmente, devia ser transportado Amanhã para sua cidade natal, Nova Orleans, e, com o consentimento da embaixada americana, vamos autopsiá-lo. Você vai nos poupar muito trabalho se confessar...

 - Mas isso é uma loucura! - a voz de Ambert cresceu contra sua vontade; o medo que havia nele procurava um escape. - Eu vivi no porão junto com minhas elefantas, não conheci nenhuma Sra. White... eu...

 Ele não pôde prosseguir. Dois polícias agarraram-no, pressionaram-lhe o dorso contra o tampo da escrivaninha, arriaram suas calças e cuecas deixando o traseiro à mostra. Tudo aconteceu com tanta rapidez e destreza que Ambert só protestou quando suas nádegas desnudas já estavam sendo levantadas. Ao mesmo tempo, algo sibilou no ar e chocou-se contra seu traseiro e Ambert sentiu como se lhe estivessem dilacerando os músculos. As finas varas de marmelo - só os atingidos conheciam sua existência, mas mantinham-se calados - eram mal-afamadas.

 Ambert soltou um grito estridente quando o primeiro golpe cortou-lhe a carne. Tentou sair de sobre a mesa, quis retroceder, mas quatro mãos fortes pressionaram-no contra o tampo qual pinças de aço.

 - Mas que bunda mais linda ele tem! - disse um dos polícias.

- Um verdadeiro cú de tambor! Isso é quase um prazer.

 Ambert foi atingido por outro golpe, uivou e fechou os olhos. Ouviu a voz do comissário como que vinda de uma longa distância.

 

- Vamos, conte como você a matou. não faça cerimónia, meu chapinha, Nós vamos arrancar a história de qualquer jeito. Já na autópsia: Mas será mais fácil se você confessar.

 - não posso confessar uma coisa que não fiz! - gritou Ambert desesperado. - Quero falar com meu cônsul. Sou um cidadão francês!

 - Uma coisa depois da outra. - O comissário assentiu com um ar sereno. - Na sua França os assassinatos também são punidos. E já há algum tempo inclusive com pena de morte! E na América você pode escolher, depende de em qual Estado você será executado: cadeira eléctrica, injecção de veneno ou câmara de gás. Aqui no nosso país você só recebe pena de prisão perpétua. Nós somos muito humanos.

 Ele acenou e outra vez seu traseiro foi cortado por golpes. Agora, quatro vezes... quatro vezes cortado como que por uma faca. era uma dor que ultrapassava a fronteira do suportável, que quase arrebentava os nervos. Ambert uivava a plenos pulmões... os polícias deixavam-no gritar. Depois, quando ficou um pouco mais calmo, o comissário inclinou-se um pouco em direcção a ele.

 - não faz sentido, meu chapa - disse em tom amigável. - Vê se entende. - O telefone ao seu lado tocou, ele atendeu, escutou a voz e tornou a pôr o auscultador no gancho. - era Júlio. Esteve com Álvaro fazendo uma revista no seu quarto de hotel. Escute só o que ele encontrou ali: 63 mil marcos! Com toda a certeza o dinheiro caiu do céu directamente em seu quartinho. Que milagre! A gente devia comunicar ao bispo... talvez você seja canonizado, não?

 Um aceno... outra vez as varas de marmelo estalaram no traseiro de Ambert. A pele estava toda cortada; Ambert sentia o sangue escorrer quente por suas coxas e pernas. Sua cabeça estava explodindo de dor.

 - Sim! - gritou ele de repente. - Sim. Fui eu. Eu sufoquei-a com uma almofada! Sim! Sim! Sim! Eu conto tudo... tudo... - ele fechou os olhos, arriou o rosto no tampo da mesa e começou a uivar como um filhote de lobo.

 Satisfeito, o comissário pegou o telefone e piscou para seus colaboradores. Outro caso solucionado! só é preciso despertar os obstinados, esse é todo o segredo do sucesso.

 - Por favor, dois telefonemas - disse ele para a central telefónica. - Um para o consulado francês, outro para o americano. Sim, a essa hora mesmo, senhorita! E depois um telegrama para o NM Atlantis em alto-mar.

 Monsieur Claude Ambert confessou o assassinato da Sra. White. Foi asfixiada com uma almofada. Foi recuperado o produto do roubo no montante de cerca de 63 mil dólares. Sem mais, boa viagem. Comissário I, policia de Acapulco.

 O comissário desviou o olhar para Ambert que jazia em cima da escrivaninha, quase inconsciente. Seu traseiro estava coberto de vergões ensanguentados.

 - Eu lhe Agradeço, senhor - disse ele em tom amigável. - Foi um prazer conhecê-lo... Levem-no!

 Na manhã seguinte, Berta e Sissy foram levadas para o jardim zoológico de Acapulco. De nada adiantou que o director protestasse e se lamentasse. Tratava-se de um internamento público, quer dizer, oficial... nada se podia fazer. não apenas em nosso país, no México o indivíduo também é quase impotente perante as autoridades.

 

O caso da Sra. White, como se diz por aí, podia ser arquivado. O comandante Teyendorf e o director de hotel Riemke deram os parabéns a Dabrowski pelo sucesso.

 - Só falta esse seu misterioso ladrão de jóias, Paolo Carducci - disse Teyendorf tomando um copo de vinho em sua cabina. - Será que você terá a mesma sorte com ele? Uma testemunha ocular casual? Quando seu ladrão de jóias desembarcar em Valparaíso, poderemos esquecê-lo.

 - Um Carducci não desembarca sem antes embolsar uma bolada. - Dabrowski seguiu com a vista o anel de fumaça de um grosso charuto Havana. - O que roubou até aqui é igual a um zero para ele. Nunca, jamais, ele se daria por satisfeito com isso. O grande golpe ainda está por vir. Nós sabemos disso. E se ele não atacar até Valparaíso, seguirá viagem até Sidney. Então, ele terá mais alguns dias para recolher seus carneirinhos. Suponho que as jóias realmente da pesada só subam a bordo em Valparaíso.

- É verdade. Somente os bem-sucedidos na vida podem dar-se ao luxo de fazer uma viagem como essa. Paga-se de 14.950 a 37.500 marcos por uma suíte, Por pessoa! - Riemke deu uma tragada no charuto. Ele era um fumante de cigarros que não gostava de charutos. só para agradar o comandante é que estava tragando essa haste em brasas.

- Tem um bocado de milionários com suas esposas cintilantes a bordo! Mas que significa prolongar a viagem? Se esse seu Carducci prolongar ainda mais a viagem, vai acabar sendo notado. Pelo menos fará parte de um pequeno círculo que poderemos abranger.

 - Mas ele pode ter feito a reserva desde o início até Sidney.

 - Neste caso não poderá escapulir em Valparaíso... isso chamaria ainda mais a atenção. Além disso ele também precisa do lugar no avião especial. Portanto, terá de apresentar-se a tempo à direcção da viagem. E aí nós o pegávamos!

- É verdade. - Dabrowski encarou Riemke, pensativo. - Suas conclusões são muito esclarecedoras. Portanto, vamos partir do princípio de que Carducci é nosso hóspede até Sidney.

 - Por conseguinte, mais vinte e seis dias! - Teyendorf ergueu seu copo. - Nunca antes esperei tão ansioso quanto agora pelo fim de uma viagem de cruzeiro.

 A noitada no Salão dos Sete Mares pertencia ao Conferencista. Hanno Holletitz e à cantora de rock Evi Stein. "Ritmos da América do Sul" era o nome da apresentação. Em cada pessoa que entrava colocavam um sombreio feito de papelão prensado - Claro que também nas senhoras, cujos chapéus de aba larga da moda actual eram imediatamente retorcidos.

Parecia estar programado um estado de espírito bombástico. Oliver Brandes, o oculista tímido e medroso, já se havia acostumado ao navio e ao facto de este não poder naufragar ou virar com tanta rapidez.

 

Suportara muitíssimo bem o mar encapelado entre São Francisco e Acapulco, claro que com a ajuda do assistente espiritual evangélico Günter Wangenheim. O pastor Wangenheim, um velho marinheiro, afundara duas vezes com um submarino na Segunda Guerra Mundial e nas duas vezes fora salvo - Coisa que foi o motivo para, mais tarde, ele estudar teologia; Günter quis agradecer a Deus pelo resto da vida. No Atlantis, ele tirou todo o medo de Brandes demonstrando com base em dados que uma viagem numa auto-estrada era uma verdadeira tentativa de suicídio em comparação com um cruzeiro marítimo pelo mundo. Quando naufragara o último navio de passageiros? Ora... nem dava para se lembrar. Mas todos os dias e todas as noites havia desastres com mortes nas estradas. Uma viagem num navio como o Atlantis é a coisa mais segura do mundo.

 Oliver Brandes compreendeu isso, perdeu o medo, presenteou o pastor com uma garrafa de Chablis e, na noite do grupo folclórico, dançou pela primeira vez no Salão dos Sete Mares. Ao fazê-lo, conheceu a comissária Marianne, uma alegre moça de Colónia, com vinte e dois anos de idade e cabelos ruivos e encaracolados. Ela estava servindo sua mesa, ele piscou para ela e, posto que Oliver Brandes era um homem de boa aparência, Marianne respondeu com um piscar de olhos. Um flerte sem maiores compromissos... mas que atingiu o coração de Brandes. Seu problema era só saber não poderia conhecer Marianne mais intimamente. Quando terminava seu serviço no restaurante, ela desaparecia em sua cabina no convés B, ao qual nenhum passageiro tinha acesso. "Somente para a tripulação" estava escrito na porta do corredor que dava na ala proibida. De vez em quando, Marianne ainda ia servir num dos bares após o jantar, ou então no Salão dos Sete Mares. Em suma, ela não dispunha de tempo. Muitas vezes, tomava banho de sol no convés da tripulação, entre o almoço e o jantar, usando um biquini diminuto. Podia-se vê-la da tolda a uma distância quase palpável, mas como se podia chegar até ela. não existia nenhuma escada da tolda para o convés da tripulação. Muitos homens mais idosos que tomavam banho de sol na amurada e olhavam o belo corpo da moça lá embaixo eram obrigados a capitular, mesmo sentindo-se terrivelmente rejuvenescidos. Marianne de Colónia continuava sendo um sonho.

 Nessa noite de ritmos sul-americanos, François de Angeli sentiu-se em seu habitat. Riu por obrigação das piadas de Holletitz, mostrando a todos sua deslumbrante dentadura - um viva para safe dentista! - e quando foi aberto o baile para os passageiros, investiu sobre as mulheres mais belas do salão. A maioria dos maridos ficava tão perplexa, que logo dava sua permissão com um acenar de cabeça.

 - Você é uma mulher magnífica - de Angeli sussurrava no ouvido de todas ao estreitá-las contra seu corpo na dança. - Por que esconde seu temdeamento ardente? Porque seu marido está vendo? Tem medo de que ele possa dizer alguma coisa? Por acaso seu marido sabe que se casou com uma jóia? Alguma vez ele compreendeu seu calor interno? - Não havia nenhuma mulher que duvidasse do próprio valor especial, isso enquanto de Angeli a mantinha abraçada. Mais tarde, ao voltar para a mesa do marido resmungão, elas ficavam lançando olhares ardentes para o lado de François. Sim, ele tem razão: esse cabeçudo ao seu lado, que há mais de duas décadas é seu marido, nunca teve o magnetismo que ela ânseia. Será que ela havia perdido alguma coisa da vida que pudesse recuperar ali?

 Erna Schwarme também foi tirada para dançar por François. E, no tumulto da pista de dança, de Angeli apertou-a contra seu corpo..

 - Quando nos veremos? - ele sussurrou-lhe. - A sós. Completamente a sós! Eu preciso finalmente senti-la! já não consigo mais dormir... só penso em você, em seu corpo, em seu calor...

 

 - Você ficou maluco?! - Erna Schwarme sibilou para ele e lançou um olhar ao marido. - Ele é bonachão, mas não é idiota! Se notar alguma coisa...

 - Eu preciso vê-la, Erna!

 - Ainda temos tantos dias pela frente.

 - Cada dia sem você é um dia perdido! - uma frase muito malhada e sentimental, mas que ainda causava efeito, por incrível que pareça. - Essa espera é cruel, Erna. Meu amor já virou loucura!

 - Meu Deus! Contenha-se, François! Meu marido está nos observando! - ela se afastou um pouco dos braços dele e começou a dançar em círculos rígidos. No entanto, essa postura só deixou mais evidente a ondulação de seus seios. De Angeli notou na hora.

 - Eu gostaria de dar uma mordida nos seus seios agora! - ele sussurrou-lhe com voz roufenha. - como um vampiro! Ah, que belo momento seria...

 Erna Schwarme sentiu seu corpo sendo possuído por ondas após ondas de calor. Nunca ninguém havia falado assim com ela, com tamanha desambição, destruindo qualquer resistência.

 - Se você continuar falando assim, deixo-o plantado aqui - ela sussurrou em resposta. Sua respiração estava ofegante, o sangue a inundava como ondas de calor. Peter nunca se comportara assim com ela, nunca, em todos esses anos... nem mesmo antes, quando ele ainda era jovem e não possuía um grande escritório que quase não lhe deixava tempo para a vida privada. E quando tão-pouco sofria de gota, que sempre o atacava se ele comesse aspargo, espinafre ou fígado frito. Hoje em dia, só com um prato de sopa de lentilha Peter ficava com o dedo do pé inchado e vítreo e trincava os dentes de dor. Não, Peter jamais deixara-se arrebatar por tamanha paixão. Em vez de champanhe, água mineral... para se dizer usando uma linguagem figurada. E agora aparecia de Angeli e injectava champanhe directo em seu sangue. - Vamos encontrar uma maneira - disse ela, já entregando-se a ele em pensamento. - Dentro em breve, François. Eu também te amo... só que não devemos provocar nenhum escândalo! Não devemos deixar Peter desconfiado, pois aí estaria tudo acabado...

 O Dr. Schwarme seguiu de Angeli com a vista, quando este levou Erna de volta à mesa. Enquanto isso; sacudiu a cabeça de um modo inquisidor.

 - Não sei o que vocês, as fêmeas, vêem nesse macaco engomado! Claro que ele só tem fachada para apresentar.

 - Talvez porque ele não nos trate como "fêmeas", como você disse, senão que nos respeita enquanto mulheres. Fêmeas... típico de você! De vocês todos! Afinal, o que é que nós somos para vocês? Um cabide no qual penduram a moda mais recente. Uma cabeça oca enfeitada com jóias. Na cama, a puta necessária porque vocês estão com comichão entre as pernas! Mas fora isso... um zero à esquerda. Apenas um zero! Nós somos mostradas para demonstrar: Vejam, posso me dar a esse luxo! Modelos de Lagerfeld e Saint Laurent, jóias de Cartier e Bulgari... e olhem só o corpinho dela... tudo isso me pertence! Aí vocês estofam o peito, coisa que, aliás, é a única coisa que ainda dá para vocês estofarem.

 

 - Eu gostaria realmente de saber onde você conseguiu essa sua linguagem ordinária. - O Dr. Schwarme olhou à sua volta. Graças a Deus ninguém ouvira as palavras de Erna, pois a cantora Evi Stein se esgoelava no microfone. Ela dobrava o corpo na frente da banda em cima do palco e tentava entoar ritmos sul-americanos. - Isso mesmo, você é ordinária!

 - Se minhas palavras o incomodam, desvie os ouvidos!

 - Sim, me incomodam muito.

 - Que transformação! há vinte anos você dizia: você fala como uma puta e isso me deixa maluco. E agora?!

 - Pelo amor de Deus! Agora nós somos mais velhos! há vinte anos...

 - Naquela época você ainda conseguia todas as noites. Duas e até três vezes...

Mas será que você não tem outras preocupações?! - disse o Dr. Schwarme ferido.

 - Talvez... talvez não. Afinal de contas, o que é que você entende das mulheres?

 - Mas esse macaco engomado entende, não?

 - Pode ser. - Ela ficou cautelosa. - Preciso perguntar a ele.

 - Como! Monsieur, o senhor ainda dá duas por noite? - como sempre, o sarcasmo do Dr. Schwarme foi mordaz. - não vá deixá-lo com medo, Erna!

 Ele deu uma estrondosa gargalhada, esvaziou o copo de uísque e sentiu-se vitorioso de novo, pois Erna manteve-se calada. Seu nojento porco, pensou ela achando bom que ele não suspeitasse de nada. Sim, vou traí-lo com François, agora com toda a razão. Vamos trepar até as tripas saírem pela garganta, enquanto você fica sentado aí com esse ar autocrático bebendo uma pilsen. Agora nada mais vai me segurar. Oh, mas como você é babaca!

 Logo depois da apresentação, o casal Schwarme levantou-se e saiu do salão, embora o director de cruzeiro Manni Flesch tivesse anunciado uma longa noite dançante.

 - Vamos até o bar Atlantis? - perguntou o Dr. Schwarme na escada externa.

 - Não. Se quiser, pode ir sozinho. Vou deitar-me. Estou cansada.

 - Ao Clube do Pescador?

 - Também não. Quero ficar sozinha, portanto trate de deixar-me em paz. No momento, você me dá nojo.

 - Óptimo! - o Dr. Schwarme inclinou-se numa profunda vénia cheia de ironia. - Quando a veneranda senhora tiver digerido seu humor, traga-me de volta à memória. Eu me chamo Dr. Peter Schwarme... só para sua orientação...

 - Idiota! - ela deixou-o plantado e subiu a escada para o solário.

 O Dr. Schwarme seguiu-a com a vista. Realmente, ela ainda é uma bela mulher, pensou ele, mas a cada mês que passa fica mais rabugenta. às vezes

fica insuportável, como hoje. Deve ser a menopausa. Muitas mulheres piram nos anos de mudança e transformam-se por completo. esta natureza sabia que nos poupa aos homens de algo assim! Essa história da crise da meia-idade não passa de conversa fiada. São as mulheres que nos empurram para fora. só que ninguém fala isso com sinceridade, pois a gritaria seria mais insuportável ainda. Bem, e daí? Vamos beber uma cerveja, Peter Schwarme!

 

 Sylvia de Jongh também estava nervosa. Agora, depois da última noite de loucura de amor ao lado do adormecido Knut de Jongh, Hans Fehringer estava com um comportamento bem esquisito. Hans agia como se ela não passasse de um conhecimento de bordo sem maiores compromissos, dançava com outras mulheres, acenava-lhe com um ar amigável e depois parava de notá-la.

 Quando ele foi ao banheiro, Sylvia seguiu-o e esperou que ele saísse.

 - Que está acontecendo? - perguntou ela rapidamente. - O que há com você, Hans?

 - Nada.

 - Você está tão diferente... tão distante...

 - Pense naquilo que combinamos: nada de chamar a atenção. Seu marido está me observando com uns olhos de quem gostaria de me apunhalar. Ele notou alguma coisa?

 - Mas claro que não! - Sylvia pensou na noite anterior e suspirou fundo. - Eu gostaria de ficar com você para sempre.

 - Em terra tudo será diferente, querida! - a frase tinha duplo sentido, mas Sylvia entendeu como um acordo, assentiu com ar de felicidade e precisou fazer força para não jogar-se aos braços dele.

 - Quase não consigo esperar! Vamos nos encontrar hoje de novo?

 - Se você puder ir, telefone para mim...

 - Dessa vez vai ser de novo na sua cabina!

 Hans Fehringer não notou o "dessa vez"; afinal de contas, não sabia o que acontecera na noite anterior entre Sylvia e seu irmão Herbert.

 - Sim, na minha cabina. Quando?

 - Isso vai depender do que Knut fizer. Se eu não telefonar até à meia-noite é porque alguma coisa se meteu no meio.

 - Só por meia hora, querida!

 - Verei o que é possível fazer.

 Ela fez um biquinho com os lábios, jogou-lhe um beijo e voltou correndo para o salão. Hans Fehringer desceu rapidamente até sua cabina 213 e deu um susto em Herbert, que estava sentado diante da tevê.

 - Levanta, levanta! Some daqui, irmãozinho! Desapareça do campo de batalha, vem por aí um outro tremendo combate! - ele riu, desligou o aparelho de tevê e jogou o paletó branco para Herbert. - Passe outra vez pelo salão, dê um aceno para Knut de Jongh, depois desapareça na multidão e dê um pulo ao Clube do Pescador. Outra vez até às quatro da manhã. Pense no cartaz pendurado na cabina da porta! Vai, desgruda!

 Herbert vestiu-se e saiu da cabina sem dizer uma palavra. Seu coração estava apertado por um sentimento parecido ao ciúme. Ele ficara intranquilo ao pensar que, em duas horas, seu irmão iria possuir aquele corpo magnífico e experimentaria a paixão de Sylvia. era bem verdade que, como gémeos, os dois sempre haviam feito tudo juntos, mas devia existir uma fronteira. No caso de Sylvia, essa fronteira fora ultrapassada e não vinha ao caso saber quem a ultrapassara, pois aqui era ele, Herbert, quem se sentia culpado de maneira insofismável.

 Entrou no salão dos Sete Mares com a testa toda enrugada, passou pela mesa dos de Jongh, lançou um aceno frio e não olhou para Sylvia de propósito. Sylvia também passou os olhos por Herbert como se este não existisse.

 - Ui, ele não te tira para dançar de novo? - perguntou de Jongh espantado.

 - É como você vê. - Ela fez um beicinho. - Um pateta presunçoso!

 

 - Ele te importunou de alguma forma durante o dia de hoje? - Knut de Jongh pousou os punhos em cima da mesa. Punhos grossos e redondos de ferreiro. - Vamos, conte... meto-lhe um soco na fuga!

 - Não. Foi sempre assim. Ele não me nota.

 - Mas isso já é um insulto. Uma mulher como você tem de ser notada!

 - Acho que você só está procurando um motivo para começar uma briga com ele.

 - É isso mesmo, meu tesourinho. - Knut de Jongh arreganhou um sorriso largo e agressivo. -Gostaria de dar-lhe uma porrada tão potente que ele ficasse rodando como um pico.

 

Erna Schwarme trancou a porta da cabina 018, acendeu a luz... e petrificou-se: seu conjunto de brilhantes e safiras estava em cima da cama, exposto lado a lado como numa vitrine. Os brincos, a pulseira e o colar. Havia uma carta ao lado. O texto fora composto por letras coladas de um jornal e depois coladas nos lugares correspondentes. A maneira preferida embora infantil de se esconder, de permanecer anónimo.

 - Mas... mas isso não é possível... - balbuciou Erna: Ela parou junto ao armário embutido, sem ousar aproximar-se... como se estivesse com medo. não havia dúvida, eram suas jóias roubadas. Todo o seu orgulho e aplicação de capital de Peter, como ele sempre enfatizava.

 Finalmente, ela aproximou-se da cama com passos cautelosos, pegou a carta, correu ao assento do canto, acendeu a lâmpada da mesinha-de-cabeceira e desabou no banquinho estofado. No início, as letras recortadas apenas emaranharam-se diante de seus olhos de tão agitada que Erna estava, mas depois a escrita ficou clara. E Erna leu:

 Deixe-me realmente dizer que, durante um dia inteiro, você se sentiu roubada. Sim, foi um roubo, mas eu devolvo-lhe as jóias. As safiras são de péssima qualidade em cor e claridade e, junto com os brilhantes levemente amarelados, as inclusões claramente visíveis na lente de aumento diminuem seu brilho. Uma jóia assim é barata e ordinária demais para mim. Não poderia vendê-la em parte alguma. Mas você deve sentir-se consolada, pois elas ficam maravilhosas em seu pescoço, braço e orelhas aumentando ainda mais sua beleza. Pardon! - Um admirador ardoroso que infelizmente precisa continuar anónimo.

Erna Schwarme leu a carta três vezes, depois foi até o telefone com uma postura bem rígida, telefonou para o bar Atlantis e pediu ao comissário que dissesse ao seu marido para ir à cabina imediatamente.

- Agora mesmo! é urgente.

 O Dr. Schwarme chegou mais ou menos dez minutos depois. como se pode deixar de lado uma pilsen bem gelada, ela deve ser bebida. Sempre se podia dispor desse tempinho, nada era tão urgente assim!

 Ele também ficou parado na entrada da cabina como que plantado no chão. As jóias continuavam em cima da cama cintilando à luz. Erna estava sentada no banquinho segurando a carta com ambas as mãos.

 - Tuas jóias! - O Dr. Schwarme inclinou-se sobre elas, sem tocá-las.

- De facto, são as tuas jóias! Ora, que coisa!

 - Teu capital aplicado!

 

 O tom de voz de Erna deixou-o desconcertado. Ela não estava contente, o que havia?

 - Tinha também uma carta junto - disse Erna estendendo-lhe a folha. - Uma carta de gangster com letras recortadas Interessante o que está escrito... Tenha a bondade...

 Entregou-lhe a carta. O Dr. Schwarme leu e, sem querer, ficou com o rosto vermelho. Ela observou-o com atenção e fez ouvir um leve sorriso de triunfo.

 - Interessante, não é mesmo?

 - Você acabou de dizer, é uma carta de gangster. - Sua voz saiu um pouco contida. - Será que você não notou que ele está querendo gozá-la?

 - Mas claro que sim, meu querido. - A voz de Erna transbordava de ironia. - está querendo me gozar, tanto que devolveu as jóias! As valiosas, a sua aplicação de capital! As "peças únicas". E no final não passam de mercadoria ordinária. Rebotalho! não valem nada... porcaria com brilho!

 - Erna, ouça-me...

 - Olha aqui, falando com toda a clareza: você me enrolou! - ela arrancou-lhe a carta com um safanão e enfiou-a entre os seios por dentro do decote. - Durante seis anos eu acreditei possuir uma coisa única. Sim, é única: brilhantes levemente amarelados e com inclusões visíveis, safiras de péssima qualidade! não têm valor nem para serem roubadas... são tão insignificantes a ponto de um ladrão devolver. Ah, seu sujeitinho de merda...

 - Erna, controle-se! - o Dr. Schwarme apontou para a parede. - Pode ter alguém escutando aí do lado.

 - Mesmo que tenha! Todo mundo deve ficar sabendo o safado que você é. O trapaceiro. Andei por aí durante seis anos com esse traste pendurado no pescoço, esse... essa merda!

 - Mas como é que alguém consegue ser tão ordinário! - disse o Dr. Schwarme com visível desgosto. - Qualquer outra mulher ficaria feliz, se...

 - Qualquer outra mulher te cuspiria no rosto agora! - a voz de Erna ergueu-se histérica e estridente. Quando Schwarme foi na direcção dela, Erna levantou-se do banco, passou correndo por ele e foi para a porta, com tanta rapidez que ele não pôde detê-la. - Não me segure! Quanto custaram as jóias? Hem, provavelmente nada. Você mesmo teve uma cliente dona de joalheria? Conheço inclusive o nome dela. Hanna Stolzer. Não é verdade que você não pagou nada por elas? Foi o prémio por você ter dado uma trepada com ela. Uma coroa que de repente tem um robusto advogado entre as pernas! Já é uma coisa que vale um conjunto de jóias... Não muito caro, nem de primeira qualidade, aposto que você, pelo que conheço, também não foi lá de primeira qualidade na cama. Seu bosta, há seis anos que trago sua trepada nas orelhas, pescoço e braço e ainda por cima sentindo orgulho disso!

 - Você é uma lambisca bem ordinária, ingrata e vil! - disse o Dr. Schwarme com voz roufenha. - Se estivesse em casa agora, você podia ir tratando de fazer as malas...

 - Ah, quer dizer que também vai acontecer uma coisa dessas?! - ela pousara a mão na maçaneta. - Eu irei agora até François de Angeli... e como se atreva a deter-me. Isso mesmo, irei à cabina dele e treparei a noite inteira. Se você soubesse o quanto tenho a recuperar!

 

 - Erna! - o Dr. Schwarme respirava fundo. Seus dedos contorciam-se. - Meus nervos também têm limites. Se você for agora até esse macaco engomado, eu te mato! está entendendo? Eu te mato!

 - Você é covarde demais para isso! - ela deu uma risada histérica e pressionou a maçaneta para baixo. - Seu aplicador de capital! Você não vale nem o meu cuspe...

 Erna abriu a porta da cabina, saiu e bateu-a atrás de si. O Dr. Schwarme ficou parado como que petrificado. Ainda estava parado nessa posição quando Erna tornou a abrir a porta, jogou a carta aos seus pés e depois foi definitivamente embora. Após um longo tempo, Schwarme sacudiu-se como um cão que estivesse saindo da água, foi até o telefone com passos pesados e discou o número da cabina 136. Ewald Dabrowski atendeu no acto, como se estivesse sentado ao lado do aparelho.

 - Aqui fala Schwarme, cabine 018. Sr. Dabrowski, por favor dê um pulinho aqui. As jóias da minha mulher apareceram de novo.

 - Mas isso não é possível... - dava para se perceber o espanto de Dabrowski.

 - Claro que é! - o Dr. Schwarme sentou-se na cama. - As jóias reapareceram... mas eu perdi minha mulher... - e depois, com a voz mais baixa e um tanto lamuriosa: - Por favor, venha!

 

É necessário que se seja um sujeito muito escaldado para superar a impertinência de um Paolo Carducci sem se enfurecer. Apesar de toda sua experiência profissional, Ewald Dabrowski continuava sendo apenas um ser humano capaz de se alterar. Ao ver as jóias de Erna Schwarme tão bem arrumadas em cima da cama, ele cerrou os punhos e gritou alto:

 - Mas isso é o cúmulo!

 O director de hotel Riemke e o comissário-chefe Pfannenstiel, a quem Dabrowski já havia dado o alarme - ter sempre uma ou duas testemunhas ao lado -, olharam para as jóias como se estas fossem uma bomba-relógio. E, de facto, nesse momento eram algo no estilo.

 Sem dizer uma palavra, o Dr. Schwarme entregou a carta composta de letras recortadas para Dabrowski. Este leu-a rapidamente, passou-a para Riemke e inclinou-se sobre as jóias, sem tocá-las.

 - É verdade! - disse ele ao levantar-se de novo.

 - O que é que é verdade? - a voz do Dr. Schwarme saiu uma oitava acima do normal.

 - As jóias são de qualidade inferior. Se ele as conservasse, sua fama de ladrão de jóias internacional ficaria manchada.

 - Mas isso é inaudito! - o Dr. Schwarme sentou-se no banquinho junto à janela. - não pode constatar isso a olho nu?

 - não preciso de nenhuma lupa para isso. Suponho que, na pressa, Carducci não tenha reconhecido o que estava pegando. Somente mais tarde foi que ele, como se diz por aí, mordeu a língua.

 - Mas a coisa não pode ser tão ruim assim. Afinal de contas, as jóias são verdadeiras!

 - Claro que são. Mas... - Dabrowski fez um gesto de desdém. - Vamos parar com essa conversa de especialista. Você pode comprar vinho a três marcos e cinquenta centavos a garrafa, mas também por quatrocentos e cinquenta. Ambos são vinhos verdadeiros e, no entanto, existe um universo de diferença entre os dois. Tanto maior é a diferença no caso dos brilhantes e das pedras preciosas! Onde você conseguiu as jóias?

 O Dr. Schwarme hesitou durante algum tempo, mas finalmente disse:

 - Foi uma oferta de acaso. De um homem que era meu cliente.

 - Cara?

 - É, devemos ver a coisa relativamente assim.

 - Típica resposta de jurista! Seja como for, você foi ludibriado, Dr. Schwarme. - Dabrowski tornou a pegar a carta que Pfannenstiel lhe estendeu. - E agora a casa está pegando fogo, não é mesmo? Sua mulher está indignada! aliás, onde está ela nesse momento?

 

 - Não sei. - O Dr. Schwarme sentiu vergonha de dizer que Erna encontrava-se com de Angeli e que talvez estivesse na cama com ele. Para sua grande surpresa, isso lhe doía bastante, ele o sentia com toda a clareza, o ciúme o atormentava. Afinal, ela continua sendo minha mulher, pensou ele, e é claro que me importo com quem ela Esteja trepando nesse momento! Na próxima oportunidade que tiver, darei um soco no focinho desse almofadinha do François. Isso mesmo, darei um soco. No convés, na frente de todos os passageiros! Já faz trinta anos, mas na época de estudante fui durante um longo tempo o campeão universitário de boxe de peso-leve. Ainda sei como se dá um gancho no estômago e como se acerta a ponta do queixo. De Angeli vai cair como um saco de batatas. Esse pensamento deixou-o com o estado de espírito um pouco mais ameno. O Dr. Schwarme chegou a sorrir.

 - Suponho que ela esteja sentada num banquinho de bar bebendo champanhe. Isso a tranquiliza - disse ele. - E depois, quando estiver farta, ela vai voltar aqui e aprontar o maior drama. Aí, a única coisa que ajuda é dar uma resfolegada na cama e depois dormir. - Schwarme estava mentindo para si mesmo, mas foi gostoso proteger-se com essa mentira como se fosse um tanque.

 Dabrowski ficou andando de um lado para o outro na cabina, seguido dos olhares de Riemke e Pfannenstiel. O Dr. Schwarme olhava fixo para o abajur.

 - Essa devolução é um indício - disse Dabrowski com ar pensativo.

- Ele não está zombando de nós, mas sim assinalando que tenciona dar golpes maiores. Ah, como esse cara deve estar sentindo-se seguro! - Dabrowski parou na frente de Riemke e sacudiu a cabeça várias vezes. - Uma coisa você deve acreditar agora, caro director: Carducci vai continuar ao nosso alcance! não tem a intenção de ir à terra em Valparaíso e desaparecer do navio. Quantos passageiros fizeram a reserva até Sidney?

 - Bem, eu precisaria dar uma olhada. Mas calculo que sejam umas duzentas e trinta pessoas.

 - Necessito de uma lista desses passageiros. Com os dados exactos: nome, nacionalidade, local de nascimento, endereço, idade, profissão.

 - Só tenho permissão para fazer isso se o senhor comandante me autorizar.

 - Então vamos perguntar agora mesmo. - Dabrowski apontou para as jóias de Erna Schwarme que continuavam intocadas na cama. - Não vou engolir essa insolência, Dr. Schwarme!

 - Estou ouvindo.

 - Essa surpreendente devolução das jóias pelo ladrão não o desobriga do silêncio que combinamos.

 - Mas é claro que não. Como antes, eu continuo muito interessado em conhecer esse vagabundo! Ele está tentando destruir minha honra. E não poderei explicar à minha mulher que comprei esse traste?

 - A melhor maneira é com uma abnegação total.

 - não assim?

 - Você confessa ser um leigo completo em questão de jóias.

 - Mas isso eu sou mesmo.

 - E confessa também, embora a coisa não tenha ocorrido dessa maneira, ter sido violentamente ludibriado. Que pagou um prego que o fez crer que as jóias eram uma verdadeira fortuna aplicada só pelo aumento do valor das pedras preciosas de ano para ano. Você só precisa bancar a pessoa que foi ludibriada no dobro; qualquer pessoa acreditaria nisso, inclusive sua mulher. A compra de jóias sempre é uma questão de confiança. Se você soubesse quantas coisas já presenciei em relação a isso!

 Dabrowski juntou as jóias e colocou-as sobre a mesinha-de-cabeceira. O Dr. Schwarme encarou-o espantado.

 - Mas você está sujando todas as pistas! - gritou ele.

 

 - Pistas? Carducci usa luvas de pelica, não deixa nenhuma impressão digital. Ele opera como um fantasma, em silêncio, invisível, sem deixar vestígios. é um mestre em sua especialidade.

 - Parece até que você admira esse sujeito! - disse o Dr. Schwarme em tom irónico.

 - Adivinhou! - Dabrowski tirou um cigarro do bolso do paletó e acendeu-o. - Tenho respeito por cada virtuoso, mesmo que ele seja um gangster. E é esse reconhecimento que me granjeou grande parte de meu sucesso. Eu me ponho na situação de meu adversário em termos de sentimentos e me pergunto: o que você faria no lugar dele agora? E veja, muitas vezes eu consegui prever suas ações e reacções.

 - Só no caso desse Carducci é que não - intrometeu-se Riemke.

- Já faz três anos que você o persegue.

 - Ele é um sujeito esperto com uma enorme imaginação e uma tremenda energia para o crime. Dabrowski apontou para a pilha de jóias. - Mas dessa vez ele exagerou. Isso vai lhe custar a cabeça.

 O Dr. Schwarme só contorceu a boca num esgar zombeteiro, mas manteve-se calado. Ficou contente quando Dabrowski, Riemke e Pfannenstiel saíram da cabina deixando-o só de novo. Ele pensava em Erna que, nesse momento, estava com de Angeli, recordava-se de seu belo corpo com os seios pontudos e a boca entreaberta soltando gritos claros, agudos. às vezes, ela gritava palavras e frases de total grosseria, para excitar o parceiro às raias do êxtase. Depois do orgasmo, ela desabava como um castelo de cartas derrubado com um sopro. Minha Nossa Senhora, quanto tempo fazia que ele não experimentava isso com Erna! Em compensação, ele conhecerá outras mulheres e cada uma tinha sua maneira peculiar de vivência do gozo. Mas apesar disso, era monstruoso que, nesse momento, Erna estivesse resfolegando-se na cama com esse tal de François, botando uns belos chifres nele, seu marido.

 Sua mulher retornou por volta das duas da manhã. Mal-humorada, bêbada, visivelmente desapontada. Schwarme continuava sentado no banquinho junto à janela. Erna jogou os sapatos de salto alto no meio do quarto e tirou o vestido pela cabeça. Sem dizer uma palavra, ela desabotoou o sutiã e tirou a calcinha. De Angeli dera-lhe um desgosto. não havia esperado por ela, senão que dirigira-se a uma outra mulher que, na dança no Clube do Pescador, caíra em seus braços de olhos revirados. Erna a conhecia de vista no convés; ela também era casada, tinha um marido de pernas compridas e bem seco, que passava a maior parte do tempo cochilando nas espreguiçadeiras, lendo romances de ficção científica ou jogando xadrez na varanda envidraçada. Claro que comparado com de Angeli, ele não passava de um zero à esquerda; era compreensível que a mulher fizesse olhos de vaca nos braços de Angeli - como Erna dizia - e jogasse com todos os seus encantos. Portanto, nada acontecerá com de Angeli nesse dia.

 De péssimo humor, Erna embebedara-se no bar e agora, carregada de irritação, retornara à cabina. Nesse momento, ela lançou um olhar para o marido, como se este fosse uma lata de lixo.

 - E então? - disse o Dr. Schwarme malicioso. - Saciada como uma gata depois de uma panela cheia de leite?

 

 - Seu idiota! - sibilou Erna em resposta, desvencilhando-se dos brincos. - Vai tomar no cú!

 - É você quem vai! - o Dr. Schwarme levantou-se.

 Nessa noite, o Dr. Schwarme estuprou a própria mulher.

 às dez da manhã, o Dr. Schwarme foi o primeiro a chegar à sala de espera do hospital para o horário oficial de consulta do médico de bordo. Depois dele chegaram quatro mulheres, como de hábito, posto que o hospital e o Dr. Paterna eram mais procurados pelas passageiras. Quando a enfermeira Erna encontrava-se sozinha no consultório, apenas as pessoas realmente enfermas ficavam na sala de espera.

 O Dr. Paterna, conhecido por sua pontualidade prussiana, deixou o Dr. Schwarme entrar às dez em ponto no consultório.

 - Você? - perguntou esticando-se ao recebê-lo. - Sim, qual o seu problema? aliás, você está com uma aparência esplêndida!

 - Trata-se... trata-se... - o Dr. Schwarme sentou-se numa poltrona com estofamento de plástico e pousou as palmas das mãos nos joelhos. - Estou vindo aqui de homem para homem, quer dizer de homem para médico também...

 - não devo entender isso, Sr. Schwarme? - o Dr. Paterna sentou-se num banquinho de frente para o outro.

 - Bem, trata-se de um assunto delicado. Mas entre homens...

 - Solte logo a língua.

 - Bem, eu fui dar um passeiozinho em acapulco. Seguindo um conselho... lá em cima nos morros. Bem, você compreende...

 - Ah! Quer dizer que você fez uma visita a um puteiro de moças nativas...

 - É... podemos chamar assim. Umas moças lindíssimas, é o que lhe digo. Mas só que...

- Agora você está com medo de ter pegado uma gonorreia. - O Dr. Paterna arreganhou um sorriso largo. - Os gonococos estão sentados espiando a passagem da urina...

 - Por favor, doutor, pare com essas piadinhas de estudante.

Eu gostaria de saber se fui contaminado.

 - Você sente arder ao urinar?

 - não.

 - Tem alguma secreção aquosa ou com cor de pus?

 - não...

 - E por que está pensando que pegou uma gonorreia?

 - Bem, eu gostaria de ter certeza. Ontem à noite tive relações conjugais com minha esposa.

 - Se estava com medo, devia ter vindo aqui antes.

 - não. Quer dizer, sim. Mas eu gostaria de saber agora. Depois, quero saber se infectei minha mulher. Doutor, se você constatar alguma gonorreia em mim e que eu infectei minha mulher, dou-lhe um beijo agora!

 - Você já andou bebendo a essa hora, Dr. Schwarme? - o Dr. Paterna sentiu o cheiro do outro. Nenhum fedor de álcool. - O que você disse é um despropósito.

 - Para você. Mas não para mim. Minha mulher me trai, doutor, e se eu a infectei, ela também vai contaminar o amante. É o que eu desejo, a vingança dos indefesos! Dá para você constatar uma infecção?

 - Posso fazer-lhe um teste de gono-reação de Neisser, mas faria mais sentido aplicar-lhe uma injecção profilática.

 - Não. Eu quero saber!

 - Bem, a maneira mais rápida é provocar com uma radiação de ondas curtas. O estímulo fará com que as bactérias fluam, se...

 

 - Então, vamos directamente para essas ondas curtas!

 - E se der negativo?

 - Nesse caso, serei o perdedor de novo! - o Dr. Schwarme encolheu os ombros. - Aí só me restará uma coisa a fazer, dar uma porrada na fuga daquele macaco engomado. Eu preferiria o método mais silencioso de uma blenorragia.

 -. Sr. Schwarme, na verdade eu deveria expulsá-lo daqui agora! - disse o Dr. Paterna com ar bem sério.

 - Mas você é médico e tem um paciente à sua frente, o qual gostaria muito de saber se está infeccionado. Um paciente que depois também gostaria de ser tratado... e que precisaria! Portanto, doutor, você deve exercer seu ofício.

 - Sim, eu devo. - O Dr. Paterna levantou-se e saiu.

 Foi até uma caixa cromada e esterilizada e retirou algumas borrachas. Satisfeito, o Dr. Schwarme deitou para o exame e tirou a roupa.

 

Três dias e noites no mar. Ao redor apenas água, num céu sem nuvens e de um profundo azul e, em toda a parte, o marulhar das ondas e da espuma branca quando a quilha do navio mergulhava e cortava o oceano. Navegavam ao longo da costa não conseguindo ver a terra a bombordo, mas sendo esta anunciada por alguns albatrozes que seguiam o navio, cercando o Atlantis com seu voo elegante. Peixes-voadores, em cujas barbatanas voadoras o sol se reflectia, eram avidamente fotografados pelos passageiros, embora mais tarde apenas se pudesse ver uma espécie de sombra nas fotos. De qualquer modo, quantas pessoas podem servir o círculo de conhecidos com peixes-voadores fotografados de próprio punho? Sim senhor, eles eram capazes de deslizar quase duzentos metros pelo ar como se fossem asas deltas. Aqueles que podem mostrar fotos assim, asseguram-se da inveja de seus semelhantes. só isso já vale o dinheiro pago!

 Três dias ininterruptos de vida a bordo podem ser magníficos, entediantes, enervantes, perigosos ou desmascaradores. De qualquer modo, os seres humanos aparecem como são. Dabrowski utilizou sua máscara de cego para observar cada pessoa com toda atenção. Receberá das mãos do director de hotel a relação dos duzentos e trinta passageiros que não desembarcariam em Valparaíso, mas que seguiriam até Sidney. Havia entre eles nomes que Dabrowski já conhecia. O casal de Jongh estava na lista, assim como o casal Schwarme, o casal von Haller, o príncipe e a princesa von Marxen, o milionário dono da vinícola Tatarani, a mulher do joalheiro Sassenholtz, Ludwig Moor que todas as manhãs fazia sua caminhada de mil metros no tombadilho, os dois homossexuais van Bonnerveen e Grashorn, o negociante de imóveis François de Angeli, o oculista Brandes, o vendedor de carros Herbert Fehringer, a dona do salão de cabeleireiro Barbara Steinberg e muitos outros, os quais todos tinham em comum uma característica: eram totalmente insuspeitos. Mas Paolo Carducci devia encontrar-se entre eles, sob a máscara de inofensivo homem de bem.

 

 O próximo porto que alcançariam e do qual se poderiam fazer passeios magníficos era Balboa, na extremidade pacífica do canal do Panamá. Desde ali, se podia sobrevoar com aviões pequenos toda a zona do canal indo até o lado do Caribe para visitar o arquipélago de San Blas composto de mais de 360 ilhas, onde ainda hoje os índios cunas viviam em choupanas de bambu, os últimos índios insulares da América Central, cujas mulheres adornavam-se com cavilhas de orelha douradas e brincos de nariz. Seu artesanato típico, chamado de molas, feito de gravuras de tecido colorido, faz parte das lembranças mais procuradas. Mas até lá ainda faltavam três dias e noites no mar, três dias de vida a bordo extremamente despreocupada, mas que muitas vezes desmascaram as fraquezas humanas. O comandante Teyendorf se referira sobre a situação com Dabrowski da seguinte maneira:

 - Enquanto as pessoas fazem escala num porto podendo fazer passeios em terra, então o mundo está em ordem... mas três dias só em alto-mar, tendo à volta apenas água e sendo forçado a suportar os outros, bem, para muitos passageiros isso é muito duro. é nesses momentos que a pessoa passa a conhecer seu vizinho! O mais difícil é de Tóquio a Honolulu; durante seis dias apenas o oceano, tendo abaixo profundidades de até quatro mil metros e, no cruzamento de 165 leste com 30 norte, num dos pontos mais solitários do planeta, com apenas água num perímetro de três dias e noites... ali já vi muita gente ter a cólera do mar. Para sermos mais exactos, todo ser humano fica estérico. O que você espera, Dabrowski?

 - Nada.

 - Mas isso é assustador.

 - Carducci tem tempo. Todos os escaravelhos de ouro ficarão a bordo até Sidney e, pelo que o Sr. Riemke me disse, em Valparaíso virão mais alguns bem gorduchos. Portanto, até Sidney ele tem um enorme campo no qual fazer a colheita. Vale a pena. A viagem até Valparaíso é, para ele, mais um descanso e um reconhecimento de suas vítimas. Ele dá tempo ao tempo. Afinal, já sabe muito bem que dessa vez trata-se de milhões. Na verdade, a maior pescaria de sua vida. Essa viagem de sonho que você está comandando agora, é tão única que atrai todos aqueles que cobrem suas mulheres de jóias. Aliás, não é à toa que a joalheria de Heinrich Ried de bordo está abarrotada com as melhores criações. E a coisa já vai começar. Eu soube por Erika Treibel que ontem à noite Knut de Jongh foi sozinho e às escondidas dar uma olhada num anel de três quilates com as mais finas esmeraldas. Um carocinho no valor de cerca de cem mil marcos. Livre de imposto sobre circulação de mercadorias, não .tudo mais a bordo! Só o pensamento de privar o imposto de renda desses catorze por cento, já deixa muitos maridos de água na boca.

 - A velha cantilena. - Teyendorf deu uma risada curta. - Aqueles que conseguem engrupir o imposto de renda viram heróis nacionais. Dá para eu compreender. Você acha que esse seu Carducci também tem a butique de jóias de bordo na alga da mira? Apesar da ronda da guarda e do equipamento de alarme?

 - Acho pouco provável. O risco seria grande demais para ele. Mas Carducci vai observar com toda atenção qualquer pessoa que comprar alguma coisa na joalheria Ried. Se de Jongh sair rebocando esse anel de cem mil marcos para sua mulher, aí já estará correndo um sério perigo. - Dabrowski sacudiu a cabeça como se obstasse alguma coisa de Teyendorf.

- Não, senhor comandante. Não devemos prevenir de Jongh. Sei que deve ser uma tortura para você deixar que os passageiros sejam usados como isca. Mas aí reside a nossa única chance. Sem isca, jamais chegaremos a Carducci. Jamais! Devemos fazer todo o jogo dele.

 - Não terei culpa alguma. - Teyendorf coçou o rosto e encarou Dabrowski com um ar muito pensativo. - A propósito, vai haver um tremendo barulho se de facto Carducci afanar alguma coisa aqui e depois escapar. Como você vai responder por isso? Uma advertência aos passageiros impediria muitas coisas.

 - Talvez. - Dabrowski encolheu os ombros com desdém. - Mas se isso tranquiliza sua consciência, não terei nenhuma obsessão se você mandar imprimir uma clara referência nas costas do programa do dia: "Pedimos que devolvam suas jóias ao cofre da Comissária após cada apresentação. Os senhores sabem que o escritório presta atendimento dia e noite e sabem também que a companhia de navegação somente indemnizará as perdas do cofre!" Isso basta.

 - E é assim que será feito. - Teyendorf respirou aliviado.

- Sr. Dabrowski, muito obrigado. Isso o tranquiliza e à minha consciência. Aqueles que apesar disso guardarem as jóias na cabina, serão culpados se acontecer algo.

 Três dias de água, três dias de sol escaldante, três dias em comum no convés e três noites de ânsias platónicas e paixões realizadas.

 Os cantores de câmara Franco Rieti e Margarete Reilingen deram um concerto com várias horas de espera, cuja apresentação foi magnífica e coberta de aplausos, mesmo com Rieti tendo desafinado duas vezes num dó agudo - quer dizer, ele não cantou as notas, senão que, no momento em que precisava subir, ele cantou mais baixo ainda. Deu para ser bem ouvido, só que aqueles que conheciam as esperas sentiram a falta da brilhante finalização das várias e ficaram um pouco irritados. Mas as pessoas concordaram, claro que em comentários à boca pequena, que a voz de Rieti soava melhor na tevê ou mesmo nos discos do que ao vivo. A propósito, o navio não dispunha de nenhuma aparelhagem técnica refinada, com a qual se pudesse transformar uma vozinha qualquer na de um tenor dramático na mesa de mixagem, embora Rieti não visse a necessidade disso. De qualquer modo, poderiam ter-lhe aumentado a voz um pouco. Em contrapartida, Reilingen soltou-se com uma eufonia e uma respiração capaz de fazer com que as pessoas prendessem a própria. Pelo menos Sylvia de Jongh sentiu assim; ela estava sentada numa poltrona funda amassando o lencinho de tanta emoção. Knut de Jongh aboletou-se no assento estofado com as pernas escarranchadas, bocejando de vez em quando como um rinoceronte, e ficou muito contente quando finalmente o programa foi encerrado com o último dueto da A iria. E também achou o bis uma coisa de uma superfluidade total.

 - não sei o que as pessoas acham de tão bonito nisso - disse ele tão logo pôde levantar-se sem passar por inculto. A entusiástica plateia continuava aplaudindo. Knut olhou para a mulher e notou que seus olhos estavam avermelhados. Sylvia ostentava inclusive algumas lágrimas nos cantos dos olhos. - E ainda por cima uivam só para abrirem a boca e as pessoas poderem ver que o dentista fez um bom trabalho.

 - Você é e continuará sendo um bárbaro! - disse Sylvia de modo ríspido.

 - Mas tenho o dinheiro suficiente para comprar uma espera inteira por uma noite e fazer esse sujeitinho cantar só para mim, quando eu bem entender.

 - E sente orgulho disso, não é mesmo?

 

 - Isso me tranquiliza. Afinal, eu consegui alguma coisa com o martelo de ferreiro.

 - Nesse caso, Siegfried deve ser sua espera predilecta. A canção do brilho e da forja...

 - Lá vem você com mais idiotice! Se você estivesse diante da bigorna segurando um pedaço de ferro em brasa, aí você não cantaria, mas trincaria os dentes e pensaria: só mais uma porretada! E então não empregaria toda a sua força na garganta, mas sim nos músculos do braço e malharia. Isso é que é vida! E quando se solta o martelo direito, com toda a força de cima para baixo, com a pressão dos músculos da barriga, aí a pessoa fica contente só em conseguir peidar. Você já ouviu esse Siegfried peidar alguma vez no palco? E ele quer ser um ferreiro? Pura babaquice!

Após o concerto, Knut de Jongh dirigiu-se ávido ao bar Atlantis, subiu num banquinho e, ao fazê-lo, gritou por cima do balcão.

 - Garçom! Uma pilsen gelada! E meia garrafa de champanhe para minha mulher. O que foi mesmo que o cantor disse com sua voz esganiçada durante o bis? Amigos, vale a pena viver a vida. Foi a única frase inteligente a noite inteira.

 - Você devia envergonhar-se! - disse Sylvia em voz baixa. Ela aboletou-se no banquinho ao lado de Knut e estava olhando para o outro lado do balcão redondo. Herbert Fehringer já se encontrava lá - era a sua noite - esperando por ela. Fehringer fez um sinal dissimulado, mas Sylvia balançou a cabeça. - Comporte-se!

 - Paguei e pagarei - disse de Jongh em voz alta -, eles estão pouco ligando para o resto. - Deu uma olhada em volta, reconheceu Fehringer e fez uma careta. - O sujeito de olhos azuis da cor do mar também está aí.

 - E por que não haveria de estar? Ele é tão passageiro quanto você.

 - Ele está atrás de você, não está?

 - Você está gozando de novo, Knut.

 - O cara está sempre nas proximidades, onde quer que estejamos. No restaurante, no convés, no salão, nos bares... está sempre presente paquerando e paquerando, de olhos arregalados. Com toda certeza deve estar sentindo falta de uma porrada nos olhos! Mas isso ele pode ter...

 - Se você não parar com isso, volto agora mesmo para a cabina - Sylvia sibilou entre os dentes. - Está todo mundo olhando para nós.

 - Estou cagando e andando. Aliás, estou morrendo de vontade de fazer um barulho. - De Jongh ergueu as mãos e girou-as no ar. Deu a impressão de que iria esbofetear a mulher; alguns homens sentados mais longe empurraram as cadeiras para trás. Mesmo sendo directores-gerais, ainda sentiam-se protectores das mulheres. - Mas não! Não! Não tenha medo, minha querida, estou bem pacífico. Mas primeiro preciso engolir essa gritaria de antes... E tudo em italiano! Para quê isso? Esse navio aqui é alemão.

 - Mas as esperas eram de Verdi, Puccini, Leoncavallo, Mascagni e Bonito.

 - E por acaso não existem esperas alegas? Gostaria de ter beijado as mulheres...

 

 - Isso é uma ópera de Lehar e se chama Paganini. - Sylvia deu uma risada de escárnio. - Lehar era húngaro e Paganini um dos maiores violinistas... um italiano.

 - Foi o que eu disse: só tem merda no palco. - Knut recebeu sua pilsen, esvaziou o copo quase que de um só gole e abafou um poderoso arroto. - Esse é o nosso mal: Nós sofremos a invasão estrangeira. Isso mesmo! - virou-se e deu um tapinha no ombro do cavalheiro sentado à sua esquerda. - Meu caro vizinho, o senhor é industrial?

 - Sim... - respondeu o passageiro numa postura rígida e antipática.

 - E qual a percentagem de trabalhadores estrangeiros na sua fábrica?

 - Mais ou menos trinta por cento.

 - E isso é normal, hem?

 - Bem, todos são homens e mulheres muito diferentes - disse o homem com atitude de reserva. - Eu não gostaria de perdê-los. Se na sua empresa for diferente, talvez o problema esteja na administração.

 - Aí o cachorro morde a própria cauda! - Knut de Jongh inclinou-se para a frente. - Escute aqui, meu caro senhor, a administração sou eu. Eu sozinho. está querendo dizer com isso que administro mal a minha empresa?

 - Vou embora agora! - disse Sylvia em tom mordaz. - Afinal, você não precisa mais de mim.

 Deslizou para fora do banquinho, lançou um olhar para Herbert Fehringer e saiu para o convés.

 Na acirrada discussão sobre trabalhadores estrangeiros que se ampliou, na qual outros passageiros se intrometeram, sobretudo um turrão chamado Afim Uxikill, que havia trabalhado como mestre de oficina numa grande fábrica de automóveis de Munique, que economizara duro para fazer aquela viagem até Valparaíso e que agora precisava ouvir Knut de Jongh dizer que nem três turrões podiam substituir um alemão; nessa irritada troca de palavras, de Jongh não percebeu que Fehringer também se afastou do bar após algum tempo indo para o solário. Knut de Jongh estava a pleno vapor e sentia-se bem assim. Uma verdadeira bagunça de homens sempre o animava.

 Sylvia estava esperando na amurada ao lado da escada que levava para o convés de descanso, em cima. Como em toda a parte das vastidões do sul, ali as noites também eram muito mais frias do que os dias; por isso mesmo, Sylvia jogara sobre os ombros uma estola larga de seda, com bordados de penas de ave-do-paraíso, uma pega de valor inestimável que Knut comprara em Paris, só porque ela parara diante da vitrine com um ar arrebatado e dissera: "Que sonho!"

 Fehringer recostou-se ao seu lado na amurada e ficou olhando para a espuma branca abaixo, provocada pela gigantesca hélice do navio.

 - Eu te amo - disse ele em voz bem baixa, posto que alguns metros adiante um outro casal também desfrutava da noite clara.

 - Você deixa isso nítido demais, Hans. - O sussurro de Sylvia também saiu quase inaudível.

 Herbert Fehringer encolheu os ombros.

 - Eu só vivo com você. Não vejo outras pessoas, não vejo a terra, não vejo o mar, nem o barão... nada existe à minha volta a não ser você... É terrível... terrível de bonito... Quanto tempo você tem?

 

 - Só alguns minutos, Hans. Preciso voltar ao bar antes que Knut comece uma pancadaria. Com ele é sempre assim; depois de alguns dias em alto-mar, ele fica com uma espécie de cólera, mas esta cede após uma semana. Já sei como é. - Sylvia encarou-o em cheio com os enormes olhos cintilantes. - Devemos ter cuidado, querido.

 Herbert Fehringer olhou em volta, descobriu a porta da cabina do vestiário e respirou fundo.

 - Vá ao vestiário - disse em voz baixa - irei logo depois.

 - Você ficou maluco, Hans!

 - Ninguém verá você. A porta está situada num ângulo morto. Eu lhe suplico: vá lá dentro. Caso contrário, perderei as estribeiras e lhe dou um beijo aqui no convés!

 Sylvia engoliu em seco algumas vezes, depois virou-se, passou pela piscina andando como quem não quer nada, chegou à cabina do vestiário e desapareceu na sombra. Fehringer ouviu a dobadeira da porta soltar um leve rangido no momento em que Sylvia entrou. O casal ao seu lado voltou de braço dado para o bar Atlantis. Herbert Fehringer ficou sozinho no convés.

 Com passos rápidos, ele deu a volta na escada que levava ao convés principal, aproximou-se da cabina pelo outro lado e entrou. Quando quis levar a mão ao interruptor de luz, Sylvia segurou-lhe a mão.

 - Não! - disse ela. Sua voz vibrava. - A luz sai por baixo da porta e se um comissário a vir...

 Fehringer respirou fundo, excitado. Agarrou-a, puxou-a contra seu corpo, levantou-lhe o vestido, arriou a calcinha e pressionou-a contra a parede da cabina. O ventre quente e as coxas de Sylvia sob o toque de suas mãos deixaram-no ofegante e ávido ao mesmo tempo. Ela cedia a ele, todo o seu corpo exalava um perfume doce e erótico; na escuridão total, Fehringer anteviu a proximidade de seus seios, abaixou-se um pouco e tocou-lhe os mamilos com os lábios. Foi cercado por suspiros e gemidos e então possuiu-a como um sedento, sempre pressionando-a contra a parede da cabina, mexendo-se para a frente e para trás, para a frente e para trás, num ritmo cada vez mais rápido., sem pensar que aquilo podia ressoar lá fora com um barulho de batidas abafadas.

 O orgasmo foi como uma explosão conjunta. Os dois abraçaram-se, morderam-se os ombros e depois ficaram parados durante um longo tempo, como que soldados, em silêncio. Até que finalmente separaram-se e encararam-se. A escuridão completa não deixava que nada fosse visto, mas os dois sabiam que estavam encarando-se.

 - Eu... agora eu preciso ir... - Sylvia disse em voz baixa, como se os dois ainda estivessem na amurada. - Amanhã devemos agir como se fossemos estranhos. Não faz sentido nenhum deixar que Knut fique desconfiado. Caso contrário, ele não me perderia de vista. Vamos parar por alguns dias... Mesmo que nos seja muito difícil.

 - Por um dia. Amanhã. - Esse é o dia de Hans, pensou Herbert Fehringer satisfeito. Se mantivermos essa sequência, nunca mais meu querido irmão vai aproximar-se dela. No início, ele ficará espantado, depois perplexo e, no final, recalcitrante. Afinal, conheço meu irmãozinho gémeo.

 

Nesse ponto somos completamente diferentes; ele desiste com facilidade, mas eu me torno mais activo quanto maiores forem as dificuldades. Por maior que seja nossa semelhança externa, mais diferentes e separadas com as nossas naturezas interiores. Terei Sylvia só para mim!

 - Óptimo. Amanhã não nos vemos. - Sylvia deu-lhe um beijo após apalpar à procura de seu rosto e puxá-lo contra si.

 - E ficamos assim. - Herbert Fehringer estreitou-a contra seu corpo, abraçou-a. - Nós nos veremos a cada dois dias nalgum lugar. Um navio como este tem muitos cantos onde podemos ficar a sós.

 Sylvia assentiu, libertou-se de seus braços e abriu a porta. O brilho da iluminação do convés entrou na cabina, Sylvia saiu ao ar livre e tornou a fechar a porta. Fehringer esperou algum tempo sentado no banquinho da parede dos fundos. Depois também saiu no convés. Três homens que estavam sentados na piscina, não notaram Fehringer quando este passou deslizando por eles e voltou ao bar Atlantis. Ao chegar ali, ainda viu Sylvia empurrando o irritado Knut de Jongh pela porta envidraçada, enquanto ouvia um passageiro dizer em voz alta:

 - É incrível que a gente seja obrigado a passar o tempo junto com um malcriado como esse! Um cara como esse devia ser desembarcado... Ah, se eu fosse o comandante!

 Fehringer sentou-se num banquinhho do bar, pediu um Pear Plum Rickey - trata-se de um forte drinque feito de licor de pêra, licor de abrunho, aguardente de ameixa e suco de limão, completado com soda e guarnecido com pedacinhos de pêra - e gozou as reminiscências dos minutos de amor.

 Já havia tomado a metade do copo, quando o advogado Dr. Schwarme juntou-se a ele subindo no banquinho ao seu lado. Schwarme estava com cara de poucos amigos, com uma expressão francamente rabugenta, e era assim que se sentia. O Dr. Paterna acabara de comunicar-lhe que não daria para ser feita a vingança silenciosa contra Erna. não havia nada que indicasse uma contaminação, não tivera consequências o passeio ao puteiro nos morros de Acapulco. O Dr. Schwarme estava muito desapontado... mais uma vez o perdedor era ele.

 - É, agora é assim - dissera o Dr. Paterna em tom sarcástico. - Nada é mais como antes. até alguns anos atrás, todos os marinheiros que iam em terra precisavam desfilar diante do médico ou do enfermeiro para tomar uma injecção contra gonorreia. Até mesmo os chatos morriam devagar. Sinto muito, Dr. Schwarme, mas saiu saudável do puteiro.

 - Uísque! - o advogado gritou para o barman. - Um triplo, sem gelo, puro. - Ele acenou na direcção de Fehringer; afinal, eram conhecidos do jogo de shovelboard e da natação e, Além disso, Fehringer - aliás, havia sido Hans - uma vez tirara Erna para dançar na pista. - O que é que você está bebendo aí?

 - Pear Plum Rickey...

 - Parece forte.

 - E é! como uma pequena cacetada no cérebro. é disso que estou precisando agora - o Dr. Schwarme estalou os dedos. - Garçom, depois do uísque, uma cacetada como essa que meu vizinho está bebendo.

 - Eu me chamo Fehringer. - Herbert fez uma pequena vénia.

 - Dr. Schwarme. Encantado. Você viaja sozinho?

 - Sim. Para relaxar de verdade. Fugindo de tudo que se chama quotidiano. Sonhar um pouco... nada mais indicado do que os mares do Sul!

 

 - Eu o invejo. - O Dr. Schwarme virou o uísque triplo como se fosse água. É bem verdade que tossiu um pouco depois, mas fora isso pareceu estar acostumado a esse tipo de gole. Fehringer encarou-o quase que com respeito. - Estou com minha mulher pendurada no pescoço.

 - Uma mulher encantadora, se me permite dizer.

 - Por fora. A fachada está sempre bem limpinha. - O Dr. Schwarme esperou o drinque forte e fisgou um cigarro no bolso do casaco. - Você deixou sua mulher em casa, Sr. Fehringer?

 - Sou solteiro.

 - Seu felizardo! Então é por isso que tem essa fraqueza pela Sra. De Jongh.

 - Droga! - Herbert Fehringer sentiu uma pontada no peito. - Dá para se notar?

 - Mas quem menos nota é o marido. - O Dr. Schwarme arreganhou um sorriso enviesado, olhou para o copo de Pear Plum Rickey que o garçom empurrou na sua direcção e depois mexeu-o com a colher de cabo comprido. - Antes eu era procurado como advogado de divórcio, antes de montar o esquema de aconselhamento e alocução de pessoal. Somente força de trabalho para a direcção! Mas vivenciei muitas coisas como advogado das mulheres ou maridos traídos, posso assegurar-lhe. é por causa disso que me permito uma palavrinha honesta de homem para homem: a Sra. de Jongh é uma verdadeira beldade, confesso... mas aquele que se meter com ela, é um idiota.

 - Obrigado, doutor.

 - Conheço bem esse tipo de mulher. São como as aranhas que devoram os machos depois do coito. só que Nós, os machos humanos, não percebemos. Continuamos vivendo como sombras dessas mulheres. E isso é o fatal: Nós somos felizes com a nossa burrice.

 - Parece que hoje o senhor está vivendo um momento de horror, doutor. - Fehringer deu uma risada um pouco áspera. - Alguma briga com a esposa?

 - Uma briga permanente. - O Dr. Schwarme sorveu um longo gole através do canudinho de palha. - Ah! Que coisa infernal... mas boa! A gente sente até na pontinha do dedo do pé. Minha mulher realmente é uma beldade como você observou correctamente há poucos momentos. Eu mimeia muito, até onde minhas possibilidades financeiras permitiram. E olhe que não são poucas. Mas quanto mais eu me afeiçoava a ela, mais a mulher me chutava o traseiro. Eu fui o aranha-macho devorado. - O Dr. Schwarme fez um gesto de desdém. - Vamos deixar isso para lá, Sr. Fehringer! Afinal, o que você tem com isso, não é mesmo? Por que é que estou conversando sobre isso? Sinto simpatia por você, é isso. Você é um ser humano e um ser humano é sempre melhor do que o espelho a quem contamos tudo.

- Tornou a sugar no canudinho piscando com olhos que, pouco a pouco, ficavam viciados pelo álcool. - Eu também não tenho porcaria nenhuma a ver com essa sua fraqueza pela Sra. de Jongh, eu sei. Um flerte das férias... tudo bem. A coisa só ficará ruim se você se apaixonar. Olha só para mim! Eu conheci minha mulher num passeio de esqui em Voralberg, nessa época ela era uma linda esquiadora... meu cérebro parou de funcionar por completo... - Schwarme fez um gesto de desdém, bebeu o resto do drinque, deslizou para fora do banquinho e balançou a cabeça perigosamente.

- O que você tem a ver com isso, não? Esqueça essa nossa conversa, meu jovem. Boa noite!

 O Dr. Schwarme saiu do bar Atlantis com passos bem tropeços. O garçom seguiu-o com a vista.

 

- Quem era ele? - perguntou. - O sujeito não assinou a nota.

- Ponha na minha conta. Cabina 213. Fehringer. - Herbert olhou para o balcão de vidro e, de repente, começou a sentir-se mal. As pessoas podem ver que amo Sylvia; dá para se ver, só precisa ter olhos. era justamente isso que não devia acontecer. Não sei como Hans reagiria se alguém falasse assim com ele. Sylvia tem razão, devemos ter mais cuidado ainda. E não seria se um dia Sylvia descobrisse que havia amado dois homens ao mesmo tempo, gémeos?

 

Fehringer pensou nas palavras do Dr. Schwarme; nas aranhas que devoram os machos. E então encolheu os ombros sentindo incómodo. Nem mesmo um segundo copo de Pear Plum Rickey pode dissipar essa sensação.

 No dia seguinte, na manhã irradiante, dois marinheiros montaram a instalação de tiro ao alvo na tolda, às onze horas, quando todos tomavam banho de sol, à excepção do caminhante Ludwig Moor, que hoje dormira até mais tarde e que nesse momento marchava em posição de sentido seus mil metros no tombadilho.

 O tiro ao alvo era um dos tipos de desporto mais exclusivos a bordo, não por ser muito caro - afinal, todos tinham dinheiro de sobra -, mas sim porque centenas de olhos assistiam e a pessoa podia ridicularizar-se caso acertasse duas vezes em dez tiros. Até mesmo carregadores experientes, que dispunham de um sítio de caça próprio na terra natal e que viviam orgulhosos entre trofeus empalhados, ficavam com um ar bem estúpido quando os discos lançados ao alto eram mais rápidos do que suas reacções. Assim, só apareciam pequenos grupos de atiradores corajosos o bastante para demonstrarem sua perícia ou fracasso aos olhos dos outros passageiros.

 Knut de Jongh fazia parte desse grupo de valentes. Ele era ímpar no tiro ao alvo; ele próprio Não sabia como nem por quê. Quatro anos atrás, numa pequena viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo Oriental, provara só por diversão e ganhara logo de cara; nove acertos em dez tiros! Depois disso, ele sempre voltou a experimentar e, para seu próprio espanto, sempre ganhou. Quando ele gritava "solta!" e os discos eram atirados ao céu pela máquina de lançamento, Knut levantava o fuzil e dava o tiro no momento exacto em que o disco encontrava-se no ponto culminante. Pai... e o disco se espatifava. A maioria dos atiradores apertava o gatilho um momento antes, enquanto o disco ainda estava voando; ou então um momento depois, quando ele começava a descer. Knut de Jongh tinha um sentido infernal para saber quando o disco encontrava-se no ângulo certo para ele. era o tipo de coisa que Como se aprendia, era puro talento. Knut de Jongh constatara isso orgulhoso, após ter sido derrotado apenas uma vez em dezanove competições. Numa caçada a coisa era completamente diferente, por mais estranho e incompreensível que pareça: em geral ele errava o tiro em cabras com renas, faisões e patos, a tal ponto que ele ainda convidava os amigos para caçar, mas quase Não participava mais.

 - Isso é por causa dos porres e trepadas! - berravam seis amigos.

- Quem acerta numa mulher como Sylvia, não acerta mais em veado nenhum!

 Nessa manhã, o tiro ao alvo era uma espécie de exercício preliminar no Atlantis. O grande concurso de tiro devia ter lugar entre África e Valparaíso, nos dois últimos dias de mar antes da partida de cerca de trezentos passageiros que, do Chile, retornariam para Frankfurt. Até lá ainda se tinha muito tempo para os exercícios, para conhecer as armas e para corrigir a mira. O especialista sabe que cada arma tem vida própria e "característica de tiro" individual.

 

 Portanto, era mais que natural que Knut de Jongh se apresentasse para o tiro ao alvo. Com enorme suspense, ele esperou para ver que passageiros julgavam-se capazes de arrebentar os discos lançados no céu azul.

Com calças e camisa brancas deixando aparecer seus enormes músculos, um quepe de aba larga contra a claridade, de Jongh recostou-se na amurada, depois segurou cada um dos quatro rifles, deu uma olhada no cano, pesou-os nas mãos e olhou o céu de horizonte a horizonte. Desconcertado, Knut depositou o último rifle em cima de uma mesa dobrável quando os outros participantes desceram a escada.

 Na ponta ia o príncipe que se dizia chamar Sr. von Haller; de camisa branca, calças azuis, sapatos brancos e um boné em cuja parte da frente estava bordado um brasão. Apesar de seus setenta e três anos e uma certa imbecilidade expressa em seu andar cambaleante, o príncipe tinha necessidade de demonstrar sua pontaria. Além disso, Helmi, a Comissária, sua eleita secreta que nesse dia estava de serviço no convés, assistia do solário e ele devia mostrar que seus olhos ainda eram bons e que suas mãos não tremiam. Enquanto isso, Juliane Herbitina, a princesa, participava na varanda envidraçada de um curso de hobby para pintores, ministrado pela anfitriã Bianca. A aquarela iniciada mostrava um enorme talento da princesa na direcção de Franz Marc. Ela utilizava muitas tonalidades do azul.

 Ao príncipe seguiram-se o oculista Brandes, o vinicultor Tatarani, dois outros senhores que de Jongh só havia visto uma vez, pois ambos sempre mantinham-se à parte, os dois amigos homossexuais e, claro, também François de Angeli. Caso ele ganhasse, podia estar certo de receber os aplausos de algumas damas, mas também aumentaria o ódio dos maridos. Hans Fehringer foi o último a descer a escada. Knut de Jongh estreitou os olhos e foi até ele.

 - Tem certeza de que não se enganou? - disse ele contido. - Os discos são disparados um lance de escada abaixo. Você deve estar querendo ser fuzilado, não é mesmo?

 - Muito engraçado! - Hans Fehringer arreganhou um sorriso largo.

- Se você tiver cinco acertos, eu pago uma rodada.

 - E se eu acertar dez, posso dar-lhe um pontapé na bunda?!

 - Apostado! E o que me oferece se eu vencer?

 De Jongh hesitou por alguns momentos, depois tornou a Piscar os olhos.

 - O que propõe? Não importa, seja o que for... eu concordo.

 - Se você soubesse no que estou pensando agora, retiraria imediatamente sua oferta. - Hans lançou um olhar para o solário, mas Sylvia não estava à vista. Ela entrara na piscina quando Hans passara ao seu lado e lhe sussurrara: "Agora eu vou esmigalhar seu marido! Ninguém me passa para trás no tiro ao alvo" . Sylvia ficara com medo... agora o duelo dos homens já se tornara público. A situação agravara-se. Na noite anterior, ela recusara-se pela primeira vez, quando Knut tentou acariciar-lhe. Chegara ao ponto de repeli-lo usando as mãos. "Deixe-me em paz!", dissera Sylvia. "Não me toque! Eu grito chamando todo mundo. Hoje estou com nojo de você. Deixe-me em paz, seu..." Ainda estava excitada com a paixão de Fehringer e não podia suportar ter de enfrentar o desejo do marido.

 

 De facto, de Jongh capitulara, mas antes de adormecer ainda dissera: "Se eu pegá-la com essa belezinha loura, você vai ter. E se ele tirá-la outra vez para dançar, sairei dando porrada nele pelo salão! Estamos entendidos?"

 Sylvia assentira sem dizer uma palavra; nessa situação, não fazia o menor sentido conversar com ele.

 - No que está pensando? - grunhiu de Jongh examinando Hans Fehringer como se este fosse um disco pronto para ser lançado.

- Vamos, desembuche! O que está procurando lá em cima na amurada?

 - Deixa para lá! - Fehringer fez um gesto de desdém e, passando por de Jongh, foi na direcção dos rifles e dos outros rivais no tiro ao alvo. Os homens cumprimentaram-se com batidas de mão como se fossem pugilistas entrando no ringue. Knut de Jongh respirou fundo e seguiu atrás dele. Deve ter sido ele quem causou tamanha transformação em Sylvia, pensou Knut com um ar sombrio. Quem mais poderia ser? Mas que provas tenho contra ele? Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Eu apenas sinto que ele é o perigo. Sou como um animal que fareja o adversário. E é ele, aposto minha cabeça como é ele!

 O tiro ao alvo durou mais de uma hora.

 Foram saindo um após o outro; primeiro os dois amigos, em seguida os dois senhores reservados, Tatarani seguiu-os, depois Brandes e François de Angeli, que de qualquer modo foi muito bem-sucedido com sete acertos. Ele subiu a escada com pose de toureiro, enquanto algumas mulheres aplaudiam. Foi uma cena quase dolorosa, posto que cada uma das damas lançava um olhar hostil para as outras. Restaram para a revanche o príncipe, de Jongh e Hans Fehringer, cada qual com oito acertos.

 Nesse momento, as pessoas chegaram-se à amurada dos diferentes conveses e ficaram olhando para baixo. Havia corrido à boca pequena que ali travava-se um duelo muito interessante. Queriam vê-lo, era uma distracção excitante.

 Knut de Jongh recostou-se na amurada, enquanto o príncipe era o primeiro a escolher sua arma. era o mais velho e tinha a preferência. Fehringer estava postado junto à mesa dobrável de olhos fixos no solário. Sylvia também chegara. Estava parada na amurada, impossível de não ser vista, um sonho de mulher de roupão de banho vermelho bordado com imensas orquídeas. O mesmo pensou de Jongh, mordendo o lábio inferior, quando Fehringer retrocedeu e recostou-se ao seu lado.

 - Se eu vencer, dou-lhe um pontapé na bunda aqui, na frente de todo mundo! - disse de Jongh contido.

 - Claro. A aposta foi essa. Infelizmente não poderei fazer em público o que gostaria, caso eu vença...

 - Seu babaca! - de Jongh grunhiu entre os dentes. - Sei muito bem no que está pensando.

 - Você não sabe coisa alguma, de Jongh! E é por isso que está explodindo. Devia dar uma passada no Dr. Paterna para ele medir-lhe a pressão sanguínea. Ele podia também fazer-lhe um elétro. O hospital tem as melhores instalações.

 - Inclusive para operações de emergência! - de Jongh respirou fundo.

 O príncipe cantou "lança" e o primeiro disco foi atirado ao céu azul e desanuviado. Passou. Nas folhagens, como dizem os atiradores. Outros três tiros passaram ao largo. Enervado, o príncipe depôs o rifle e fez um gesto de desdém. Estava de fora. Não tinha mais chance.

 

 - Agora você! - disse Fehringer fazendo uma pequena vénia. - Tenha um bom tiro, caro colega...

 - Pode mostrar-me o caminho! - de Jongh foi à mesa, escolheu um rifle e chegou-se à amurada. Sem esperar muito tempo, ele gritou "lança!", ergueu a arma e atirou. No alvo. O disco espatifou-se. Soaram as primeiras palmas.

 - Lança!

 No alvo.

 - Lança!

 No alvo.

 No último acerto aumentaram as palmas. De Jongh olhou de soslaio para cima. Sylvia também aplaudia; facto inóspito, mas que deixou de Jongh muito contente. Espere só, minha querida, para ver o que virá agora! Tenho na mão os últimos três cartuchos. Vai ser golpe atrás de golpe... o marinheiro nunca carregou a máquina com tanta rapidez... Oito. No alvo. Nove. No alvo. Nesse momento, alguns passageiros já estavam gritando "bravo". Knut de Jongh enfiou o último cartucho no rifle. Mas então hesitou, apenas um segundo, mas hesitou. Dar a volta e meter o último cartucho na cabeça desse macaco louro, pensou ele. Vai ficar com uma cara que Ninguém o reconhecerá depois. Uma única massa ensanguentada de carne, ossos e cérebro. Ah, com que prazer eu faria isso!

 Ele virou-se, ergueu o rifle e gritou a plenos pulmões:

 - Lança!

 O disco rebolou no céu; de facto, não voou, rebolou como se estivesse bêbado e saiu do alcance do senso de tiro de Knut de Jongh. Então, ele pensou rápido como um raio: depor a arma e exigir um tiro extra, era seu direito; ou atirar mesmo assim?

 Knut de Jongh apertou o gatilho. Nunca em sua vida tivera Medo de assumir um risco e sempre ganhara. E agora também ele ganhou... o disco espatifou-se ao terminar seu voo caindo directamente na direcção do tiro.

 O aplauso dos passageiros tornou a ecoar pelo navio. De Jongh respirou aliviado, recuou, depositou o rifle na mesa dobrável e foi para a amurada. Hans Fehringer avançou. Havia visto como Sylvia aplaudira o marido em cada acerto no alvo, por obrigação, supôs ele. E agora estava curioso em saber se ela também aplaudiria seus acertos. Um pouco mais à esquerda, o Dr. Schwarme estava recostado na amurada ao lado da mulher e, quando Fehringer olhou nessa direcção, ele ergueu os dois polegares. Hans fez um aceno de cabeça, pegou o rifle e chegou-se à amurada.

 - Lança!

 Nove tiros e nove acertos no alvo. O silêncio espalhou-se pelo navio. Sylvia, ele notara ao carregar a arma, não aplaudira. Fehringer estava pouco ligando para os gritos de bravo que lhe vinham de três conveses. Agora ele só poderia perder. Seria impossível vencer; só havia dez tiros. A aposta terminaria empatada. Não dava tempo para o tiro de definição... em pouco tempo começaria o primeiro horário de almoço.

 Hans Fehringer gritou "lança!" e prendeu a respiração . O disco saiu exemplar do lançador, alçou-se sibilando e brilhando ao sol.

 Tiro! O espatifar-se do disco, o júbilo dos passageiros, os gritos de bravo e os aplausos unindo-se num grito de redenção.

 

 Respirando aliviado como antes de Jongh fizera, Hans Fehringer depôs o rifle sobre a mesa. Ergueu os olhos para o convés do solário. Sylvia comportava-se como uma louca, aplaudindo e dando pulos seguidos, parecia uma dança. E ela gritava com sua voz clara:

 - Vitória! Vitória! Vitória!

 Knut de Jongh aproximou-se de Fehringer.

 - Revanche? - perguntou em tom duro.

 - Quando quiser.

 - Tem uma burra gritando ali: vitória! Você não venceu, a competição terminou empatada. está tudo empatado. Estamos entendidos?

 - Em tudo, Sr. de Jongh.

 - Mas vamos ter uma decisão.

 - É o que espero.

 - E aí você será derrotado!

 - Vamos esperar para ver! - Hans Fehringer acenou para todos os lados qual matador glorioso. Nesse momento, os passageiros do primeiro horário de refeição saíram correndo, a fim de chegarem a tempo aos seus lugares. - O negócio foi que hoje tivemos sorte. Mas nem sempre é assim.

 - Que bom que você perceba isso. Você devia mandar aparafusar essa frase na sua cabeça.

 De Jongh empurrou o quepe para trás, subiu a escada para o convés do solário e foi na direcção de Sylvia. Ela ainda estava ofegante de tanta excitação .

 - Você devia beber champanhe agora - disse Knut com uma expressão sombria. - Quem grita vitória, deve comemorá-la.

 

E então Balboa também ficou para trás, a cidade portuária na extremidade do canal do Panamá na costa do Pacífico, a porta para a capital Panamá com seu suntuoso palácio presidencial e a imponente catedral, assim como a Velha Panamá, agora só ruínas, fundada em 1519 por Pedrarias Devitla e destruída em 1671 pelo pirata Morgan. Portentosos muros de cantaria, colunas e uma resistente torre construída como que para a eternidade desafiando as forças da natureza e a moderna poluição do ar.

 Parte dos passageiros fora visitar as imensas represas, uma outra parte voara para a San Blas dos índios cunas e todos voltaram cheios de entusiasmo, carregados de lembranças e impressões, com fotos, filmes e cartões-postais. Afinal, qual o ser humano normal que chega aos últimos índios insulares do Panamá?

 O único que ficara irritado foi Ludwig Moor. Nada mudara em sua mente de funcionário público alemão, mesmo após ter herdado a viagem e uma gorda conta bancária do tio.

 Ele se expressara assim:

 

 - É uma insolência insólita que esses índios passem logo a gritar tão logo alguém levante a máquina fotográfica: "Um dólar, por favor! Um dólar!',' E quando não se paga esse dólar, eles chegam a ameaçar com os punhos. Sim, a que ponto chegamos. Essa comercialização dos povos primitivos! E os pregos dos bolas, os lenços de remendos coloridos! Uma coisinha assim, de 40 por 50 centímetros, custa doze dólares! Doze dólares! É uma usura! I uma exploração aos visitantes! Mas a gente já conhece isso da Europa: lá um mendigo fica o dia inteiro numa esquina e à noite, após fechar a loja, ele vai ao estacionamento e entra em seu Mercedes. Em toda a parte a mesma coisa! Não, comigo não, violão.

 Na manhã seguinte, ele tornou a fazer sua encarniçada caminhada no tombadilho às oito horas.

 Até mesmo Ewald Dabrowski saíra para passear no Panamá. Conduzido pela enfermeira Beate, com a bengala branca sempre um pouco avançada, às apalpadelas e inseguro em solo desconhecido, ele andou lento acompanhando o grupo do autocarro, enquanto Beate explicava o que estavam vendo. Ninguém saberia dizer que imagem ele fazia dessas impressões, mas todos os passageiros do autocarro acharam notável a intensidade com que um cego participava da vida quotidiana.

 Dabrowski mais do que os outros. Ninguém precisa esconder-se de um cego. Foi o que pensaram Erna Schwarme e François de Angeli, que se separaram do grupo, desapareceram nas ruínas da Velha Panamá, sentaram-se em duas enormes pedras de cantaria e; cobertos por arbustos, beijaram-se com toda a paixão. O Dr. Schwarme permanecera a bordo; Não se dava bem com o ar quente e húmido do Panamá. Preferiu ficar sentado à sombra no convés do solário, segurando um drinque bem gelado e observando as mulheres que também ficaram a bordo e que patinhavam na piscina. Tatarani, o italiano dono da vinícola, lhe fazia companhia. Já conhecia o Panamá e estava contando quantos milhares de trabalhadores haviam morrido naquele inferno de febre durante a construção do canal. Havia um monumento em sua memória.

 Dabrowski também assistiu aos dois homossexuais brigando aparentemente às raias da loucura. Jens van Bonnerveen levantou o punho algumas vezes num gesto ameaçador, enquanto Eduard Grashorn gritava com a cara desfigurada. Estavam um pouco afastados no muro do cais e davam a impressão de que iriam investir um sobre o outro a qualquer momento.

Van Bonnerveen tomara conhecimento de alguma maneira que o seu amante o "traía" com a assistente do fotógrafo de bordo e não era tanto a traição em si que o deixara tão irritado, mas sim o facto repugnante de isso acontecer com uma moça.

 Um grupo de médicos de Hamburgo, que participavam da viagem de cruzeiro acompanhados de suas mulheres, formou um clube à parte. Estavam sempre um pouco separados da "gente comum", encaravam-se como se fossem uma equipa absoluta, ministravam ensinamentos a cada pessoa no convés ou nos passeios, reclamavam uma atenção reverente, reivindicavam direitos especiais e irritavam-se com soberba académica, mas com as vozes elevadas, quando os outros passageiros Não compartilhavam de suas opiniões. Ludwig Moor, o funcionário público correcto e de olhar incorruptível, já no segundo dia baptizara o grupo com o nome de "a máfia dos médicos de Hamburgo"; na verdade, isso era um tanto duro e exagerado, mas agora, no passeio pelo Panamá, ficara demonstrado o quanto ele estava certo. Os médicos voaram a San Blas, tendo reservado um aviso particular na agência de viagem de bordo; eles reivindicaram um barão especial para a ilha principal dos índios cunas e nas fotos postaram-se atrás dos passageiros que haviam pago "Um dólar, por favor". Ao serem exorados a pagar esse dólar, eles respondiam a impertinência com um franzir de sobrancelhas e ríspidos olhares de médico-chefe.

 Coberto de suor e sedento, Dabrowski sentou-se à sombra do parque no qual haviam transformado as ruínas da Velha Panamá e estremeceu sem querer quando uma voz disse às suas costas:

 

 - Como é que um cego imagina a paisagem que explicam para ele?

 - Dr. Paterna! - Dabrowski virou a cabeça. O médico de bordo, vestido com um terno tropical branco, elegante como um manequim de revista de moda, arreganhou-lhe um sorriso largo. - Não o vi desembarcar.

 - Saí mais tarde, depois da partida do autocarro, e segui atrás de taxi. - Ele olhou para Beate que, a alguns metros de distância do banco, fotografava um arbusto de buganvília em flor. - Agora você poderá demonstrar sua gratidão por eu ter protegido seu disfarce, Sr. Dabrowski. Apresente-me à jovem.

 - A Beate?

 - Sim, por favor.

 - Doutor! - Dabrowski tirou os óculos de lentes escuras, não havia ninguém nas proximidades, à excepção do casal François e Erna Schwarme que tirava um sarro escondido atrás dos arbustos. - já lhe deixei claro uma vez que ela Não está à disposição para um flerte de férias.

 - Não quero flertar, só quero ser apresentado. Além do que, ela já deve ser maior de idade.

 - Sou responsável por ela, doutor. Ah, vocês, os malditos médicos de navio! Não é à toa que têm fama de garanhões! - Dabrowski tornou a deslizar os óculos no nariz e apoiou-se na bengala branca. - Beate! Podia vir aqui um instantinho? - e, quando Beate aproximou-se, disse: - Este é o Dr. Paterna, o homem mais perigoso a bordo! Beate Schlichter...

 - Ele está exagerando muito. - O Dr. Paterna apertou a mão de Beate fazendo uma leve vénia.

 Beate deu um sorriso contido, sem se impressionar.

 - Quem Não o conhece a bordo? - disse ela. - Então, que está achando do Panamá?

 - Já passou há muito tempo o primeiro encanto. Essa é a nona vez que venho aqui. Todas as vezes eu descubro algumas mudanças e nem sempre para melhor... Posso convidá-la e ao Sr. Dabrowski para tomar um drinque refrescante? Conheço um bar aqui onde os estrangeiros não são enganados. Chama-se Na Casa de Pedro, fica na cidade velha e, do terraço, tem-se uma linda vista para a baía. Bela Vista com suas praias está situada bem nas proximidades.

 Foi um lindo dia. O Dr. Paterna desfez a reserva de Dabrowski e Beate Schlichter com a guia do passeio que tomava conta do autocarro, chamou outro táxi e os três deram uma volta pela esplêndida costa. não seria de se esperar, Paterna era uma pessoa de conversa cativante. Contou sobre sua vida e os planos para o futuro, nos quais a clínica para as pessoas que ganhavam acima de dez mil desempenhava um papel importante, segundo o lema: as pessoas que têm muito dinheiro, podem dar-se ao luxo de ter uma doença cara, porém, inofensiva.

 Quando viajaram de volta ao porto, Beate parecia outra pessoa dando sorrisos de pérola e com gestos mais coquetes do que nunca. Dabrowski chamou-a com ar sério à sua cabina.

 

 - Minha filha, você vai me fazer o favor de não se apaixonar pelo Dr. Paterna - disse ele em paternal advertência. - Ele é um doidivanas. Tenho observado que pelo menos cinco mulheres a bordo reviram Os olhos quando ele aparece. Sobretudo essa encantadora cabeleireira, Barbara Steinberg. O número de suas admiradoras vai aumentar continuamente até Sidney; isso Não vai deixar de acontecer, especialmente após a troca de passageiros em Valparaíso. Filhinha, tenha juízo!

 Beate concordou, deu um beijo na testa de Dabrowski e saiu dançando. Ele seguiu-a com a vista de mãos cruzadas.

 - É, a coisa pode esquentar! - disse ele para si mesmo. - E na qualidade de cego eu nem posso enxergar nada...

 Portanto, agora haviam deixado para trás essas vinte e quatro horas de Balboa e Panamá, assim como o baile folclórico que tivera lugar à noite no Salão dos Sete Mares, animada por Hanno Holletitz e cuja concepção artística fora do director de cruzeiro Manni Flesch, que depois apresentou gigantescos buques de flores, desses que se podem comprar em qualquer esquina. O Atlantis zarpou às oito da noite, a orquestra de bordo tocou a infalível Comandante, leve-nos junto na viagem... e ali à vista, até à vista; coisa que pouco interessou às pessoas do porto, pois todos os dias os navios brancos de cruzeiro de todas as nações chegavam a Balboa e despejavam passageiros loucos para tirarem fotos, Os mais impressionantes eram os viajantes japoneses... o consumo de filme deles era francamente ilimitado.

 O comandante Teyendorf seguiu com a vista a costa do Panamá que desaparecia no brilho do sol. Como de hábito, estava postado na ponte com seu uniforme de comandante, branco com galões dourados, e ficou contente por deixar aquele porto para trás. Ele não gostava de Balboa, desde há três anos atrás quando dois de seus oficiais foram espancados, coisa que quase provocou uma guerrinha diplomática, pois os atacantes pertenciam a uma organização da esquerda radical e gritavam "Fora com os estrangeiros!". Em contrapartida, o Panamá vive das taxas do canal e do tráfego de estrangeiros. Contudo, o pior porto, que seria alcançado dentro de seis dias, era Callão, no Peru, o porto da capital Lima com suas gigantescas favelas e seus assaltos à luz do dia; e quando se gritava por socorro. Ninguém dava importância, as pessoas simplesmente preferiam desviar o olhar. Ali, até a própria polícia uniformizada assaltava os estrangeiros ultrapassando os taxis que transportavam passageiros de navios, detendo-os e exigindo dez dólares por cabeça sob a ameaça de levá-los para a prisão. Posto que a libertação podia demorar semanas, os assustados estrangeiros preferiam pagar.

 

 Nesse momento, dois novos acontecimentos abalaram a direcção do navio, sem que os passageiros dele tomassem conhecimento: lady Evelyn Cumberiand, mulher sempre tranquila, distinta e que viajava sozinha, que ocupava uma mesa de uma só pessoa bem no fundo junto à parede, a mesa G1, comunicou com comoção contida ao chocado director de hotel Riemke - sempre conservando seu temdeamento britânico frio - o roubo de sua pulseira de brilhantes. Valor: 70 mil dólares; comprado de Bulgari, no hotel St. Pierre, em Nova York.

 Riemke deu o alarme na mesma hora informando o comandante Teyendorf e Ewald Dabrowski. Agora ficava claro que o invisível Paolo Carducci começara a roubar as melhores pegas. Não havia dúvida alguma que a jóia de lady Cumberiand fazia parte dos modelos mais exclusivos. O nome Bulgari atestava este facto.

 

 - Nada de pânico - disse Dabrowski após ter conversado com lady Evelyn. - A senhora receberá a pulseira de volta. só lhe peço que tenha um pouco mais de paciência. Vamos averiguar primeiro quais as pessoas que não saíram para passear em terra. Carducci encontra-se entre aqueles que permaneceram a bordo, pois ele Não pode ter deambulado pelo Panamá ao mesmo tempo em que roubava a bordo.

 - Sempre que se parta da suposição que esse seu mestre dos ladrões trabalha sozinho. - Teyendorf viu espantado quando lady Evelyn, para tranquilizar-se, levou aos lábios um copo cheio de uísque e esvaziou-o até a metade com um potente gole digno de homem. - Afinal; ele também poderia ter deixado um "assistente" a bordo...

 - Também já tive esse pensamento, mas logo depois o rejeitei. Carducci é um solitário fanático.

 - Bem, seja lá como for. - Teyendorf tornou a admirar-se quando lady Evelyn esvaziou o copo de uísque com um segundo gole. Um copo desse de se beber água, cheio de uísque puro, esvaziado com dois goles!

- Começamos a contagem regressiva.

 A segunda péssima notícia chegou pelo rádio transmitida de terra: o departamento de imigração da polícia do Panamá comunicou que uma passageira do NM Atlantis não chegara na hora de tomar o navio, senão que entrou no cais quando este já se encontrava em alto-mar. Havia participado de uma festa na casa de conhecidos em Cristobal e simplesmente acordara atrasada para a partida.

 Seu nome era Thea Sassenholtz. Tinha sessenta anos, era casada com um joalheiro de Munique. A polícia panamenha perguntava o que se podia fazer. Do ponto de vista jurídico, aquilo era encarado como imigração ilegal.

 - Chame de volta, Mehrkatz - disse Teyendorf ao primeiro-oficial da estação de rádio, que levara por escrito a conversa tida através do rádio. - Diga que a Sra. Sassenholtz deve dirigir-se ao consulado alemão para pedir ajuda. Nosso próximo porto é Guaiaquil, no Equador. Ela pode viajar para lá com toda a calma. só chegaremos a esse porto daqui a três dias. O consulado sabe todo o resto, refiro-me aos documentos e coisas assim.

 - Sim, senhor comandante - o oficial de radio Mehrkatz encarou Teyendorf com uma expressão pensativa. Ele já estava no mar e na cabina de rádio o tempo suficiente para saber que um passageiro perdido sempre representava um problema. - Comunicar ao consulado alemão... Ninguém podia imaginar o que se causava com isso.

 

Agora o barão navegava desaparecendo com imersível rapidez no brilho do sol e no mar cheio de reflexos. Havia passado a andar a pleno vapor e seria impossível alguém alcançá-lo de bote. Thea Sassenholtz ficou parada no cais, sem ter nada consigo, à excepção de uma bolsinha de mão e um saco de plástico com lembranças do canal do Panamá, compradas no dia anterior. Seus amigos de Cristobal não a acompanharam, pois deviam seguir para seu trabalho. Haviam-se despedido de Thea com muitos beijinhos e a promessa de voltar um dia e agora, pelos vistos, parecia que isso iria acontecer mais rápido do que esperavam.

 

 O motorista de taxi que a levara ao porto parecia estar acostumado com esse tipo de situação . Enquanto Thea Sassenholtz andava agitada de um lado para o outro no píer, sem saber o que estaria por vir, ele primeiro fumou um cigarro com toda indolência e depois disse bem-humorado:

 - Não perca a cabeça, madame. Este é o nono caso em minha vida, em que alguém perde o navio.

 - E o que os outros fizeram? - perguntou Thea desesperada.

 - Três ficaram aqui para sempre.

 - Pelo amor de Deus, mas que proposta! - ela gritou horrorizada.

 - Quatro voaram atrás do navio até o porto seguinte.

 - Isso seria em Guaiaquil, no Equador.

 - É, um trajetinho bem pesado. Bem, dois morreram.

 Thea olhou fixo para o motorista de taxi e engoliu várias vezes em seco.

 - Morreram? Aqui? Como assim?

 - Um bebeu até morrer, quer dizer, serviram-lhe álcool impuro, que tinha metal na fórmula, não teve salvação ao chegar à clínica. E o outro recebeu uma facada entre as costelas quando tentou passar o tempo com uma moça daqui. - O chofer de taxi jogou fora a guimba do cigarro, amassou-a com a ponta da bota e apontou para seu carro:

- Vamos até o aeroporto, madame, e a senhora toma um aviso para Guaiaquil. Lá terá bastante tempo até seu navio chegar. Poderá inclusive voar até Quito para fazer uma visita ao monumento do Equador. - Ele deu uma risada jovial mostrando os dentes reluzentes, um mestiço com sangue de índios, espanhóis e ingleses. Seu inglês era fluente, mas com um certo sotaque do idioma gutural dos índios. - Não é uma boa idéia, madame?

- Primorosa. - Thea Sassenholtz deu uma batidinha em sua bolsa de mão. - Isso é tudo que tenho comigo.

 - Pode-se comprar qualquer coisa no Panamá.

- Dispondo-se de dinheiro. Ainda sou proprietária de cerca de trinta dólares.

 O motorista de taxi, que já havia recebido seu pagamento, fez uma careta e forçou um bico com o lábio inferior.

 - É, a senhora Não vai chegar muito longe com isso.

 - é isso mesmo. Estou completamente lisa aqui.

 - Não tem cartão de crédito?

 - Ficou a bordo.

 - Talão de cheque?

 - Também a bordo.

 - É realmente descuidada, madame; vir passear em terra assim, sem nada.

 - Afinal, quem iria pensar que perderia o navio? - disse Thea Sassenholtz em tom de queixa.

 - Vamos primeiro até a polícia.

 - E por quê? Como a polícia poderia ajudar?

 - A senhora está com seu passaporte?

 Thea Sassenholtz baixou a cabeça.

 - . A bordo. Com a comissária.. Todos viemos à terra com um documento especial. Válido por um dia.

 - era isso que eu estava imaginando. Sem passaporte a senhora é uma imigrante clandestina e primeiro devemos ir à polícia para esclarecer a situação . O que acha que lhe acontecerá se cair num controle e nada tiver além desses trinta dólares? Nenhum documento! Vai na mesma hora para a prisão.

 - Nesse caso, vamos... Qual o seu nome, chofer?

 

 - Manuel Jacky. Manuel foi o nome que meu pai me deu e Jacky minha mãe americana. - Ele abriu a porta do carro, esperou que Thea Sassenholtz entrasse e depois meteu-se atrás do volante. - Mostre-me esse seu documento do navio.

 Thea revirou a bolsa de mão, sacudiu a sacola de plástico despejando as lembranças no assento e procurou: Seus dedos começaram a tremer.

 - Nada... - balbuciou ela encarando Manuel Jacky com uns olhos de criança arregalados. - Devo ter esquecido o cartãozinho em Cristobal. Afinal, era só um cartãozinho estreito. Ou então devo tê-lo tirado da bolsa e perdido no momento de pagar.

 - era só o que faltava!

 - Mas podem passar um rádio para o navio. Ali eles confirmarão que sou passageira do Atlantis. E meus conhecidos de Cristobal também podem confirmar que eu...

 - E não é que a senhora quer chegar a Cristobal com trinta dólares no bolso? Dê um telefonema para que lhe enviem dinheiro.

 - Meus conhecidos Não têm telefone.

 - Parece que a senhora é uma pessoa que tem tudo a zero! É, existe esse tipo de coisa. - O chofer ligou o motor. - Portanto, vamos embora, para a polícia.

 

 A polícia do Panamá está acostumada com o possível e o impossível. Havia muito tempo que o país era o Eldorado dos aventureiros, não somente desde a construção do canal do Panamá, mas já desde antes e, sobretudo, depois. Se antes havia a luta contra o inferno verde, contra os pântanos e miríades de mosquitos venenosos e aranhas, na carga ao ouro com o qual os índios se adornavam, hoje em dia especulava-se tentando a sorte no comércio no estreito país do Caribe ao Pacífico - aliás, comércio era a expressão educada para o contrabando. Assim, a criminalidade no Panamá representava um enorme problema; sobretudo a luta contra as drogas e a prostituição.

 Por isso mesmo, Thea Sassenholtz foi uma mudança quase

agradável

no escritório central da imigração . Fizeram um protocolo do interrogatório, tiraram-lhe as impressões digitais, anotaram o endereço de seus conhecidos em Cristobal, asseguraram à dama que estava a ponto de chorar que, claro, acreditavam em tudo, fizeram a ligação por rádio com o NM Atlantis e informaram por rádio o consulado alemão.

 - está tudo em ordem, madame - disse o chefe do departamento da repartição de imigração escrevendo no documento apresentado um novo prazo de permanência. - A senhora deve tomar o navio em Guaiaquil.

 - E não chegarei lá sem dinheiro? E também precisarei de um passaporte de emergência para entrar no Equador.

 - O consulado alemão vai cuidar de tudo - disse o amável funcionário num tom de voz amigável. - Não se preocupe, dentro de três dias a senhora estará navegando de novo pelo Pacífico.

 Mas a coisa não foi tão fácil assim como viam os funcionários panamenhos. Haviam esquecido que o consulado-geral alemão era ocupado por funcionários alemães. Assim, um empregado público alemão não acha que seja a coisa mais natural do mundo que alguém perca seu navio. Antes de mais nada, a primeira coisa que se deve fazer com essa pessoa - segundo a velha e boa maneira alemã - é dar-lhe uma lição e adverti-la.

 

 Thea Sassenholtz caiu nas mãos de um funcionário do consulado que ouviu sua história com um rosto rabugento e amarelado como consequência de uma doença hepática e que depois passou os olhos com todo cuidado no protocolo do departamento de imigração, assim como nos apontamentos sobre a conversa por rádio com o comandante Teyendorf do NM Atlantis.

 - Mas não pôde acontecer isso? - ele perguntou com cara de poucos amigos.

 - Eu simplesmente dormi Além da hora. - Thea Sassenholtz esboçou um sorriso estimulante. - Só cheguei quinze minutos atrasada.

 - Só quinze minutos? Que quer dizer com só? A senhora chegou tarde demais, o navio tinha ido embora e agora estamos com esse lodaçal aqui.

 - Que quer dizer com lodaçal?

 - Se a senhora me permite: permissão de saída do Panamá, permissão para entrada no Equador, pagamento da passagem aérea, a senhora ainda quer dinheiro e nós devemos emitir um passaporte de emergência... será que isso Não é nenhum lodaçal?

 - Mas é para esse tipo de coisas que o senhor está aqui - opinou Thea Sassenholtz.

 Não devia ter dito tal coisa. Nunca se deve dizer a um funcionário público o motivo pelo qual ele se encontra ali! Só ele sabe disso. Atirar-lhe isso na cara significa sujar um santuário. Nada é pior na repartição de uma autoridade do que fazê-la reconhecer que se tem direito a alguma prestação de serviço.

 O funcionário consular de rosto amarelado empurrou seus óculos um pouco para a ponta do nariz, contemplou Thea Sassenholtz por cima da armação como se esta fosse um insecto zumbidor e depois recostou-se na cadeira.

 - Não seja insolente! - ele disse em tom cortante. - Primeiro a senhora dorme e perde o navio... deve ter bebido um bocado em Cristobal, não é mesmo?. . depois esquece a bordo tudo que se deve levar para um país estrangeiro, perde seu documento de bordo, não traz dinheiro nos bolsos... um pouquinho demais, não?! E agora começa também a cuspir no nosso prato, gente que só lhe quer ajudar! Minha cara, sabemos muito melhor do que a senhora para que estamos aqui! - ele assumiu uma postura bem formal e funcional e procurou um formulário na gaveta. - A senhora dispõe dos meios necessários para nos pagar na Alemanha o dinheiro que lhe emprestaremos?

 - Se me permite! - Thea Sassenholtz encarou atónita o sujeito rabugento. - Sou mulher de um conhecido joalheiro de Munique.

 - Não perguntei quem a senhora é nem com quem é casada; perguntei por sua situação financeira. Por favor, dê uma resposta precisa!

 - Eu disponho de uma fortuna, minhas finanças estão excelentes - disse Thea já um pouco nervosa nesse instante.

 - E por que seu marido Não está viajando junto?

 - E o que o senhor tem a ver com isso?

 - Temos a ver com tudo se for para ajudá-la! - a voz do sujeito de rosto amarelado ergueu-se. - Não seja mais insolente...

 - O senhor já disse isso.

 

 Erro após erro! Thea Sassenholtz, que nesse momento fora recalcitrante, não compreendeu porque devia ser interrogada ali sobre sua vida privada. Sentia-se com todo direito, mas quem é que tem algum direito diante de um funcionário público alemão? Quando um cidadão tem alguma coisa a dar a uma autoridade, é exortado de maneira amável mas decisiva a fazê-lo com a maior rapidez... no caso inverso, aí temos tempo de sobra.

 - Vou dizer-lhe uma coisa - o doente da vesícula biliar, ou seria do estômago? - inclinou-se por cima da escrivaninha. - Nós temos tempo de sobra. Não estamos correndo atrás de nenhum navio. Poderíamos primeiro perguntar à Alemanha se é mesmo verdade isso que a senhora declarou no protocolo. Isso pode durar uma, duas semanas...

 - Aí o navio já estará a caminho da ilha de Páscoa. Então, não chegarei lá? - disse Thea horrorizada.

 - Fomos nós que perdemos o navio? Portanto, seria muito bom para a senhora se respondesse a todas as perguntas de modo correcto. A senhora poderia, por exemplo, ter fugido de seu marido... aí não seria sua situação financeira?

 - Mas isso é incrível! - Thea Sassenholtz soltou um grito. - Vou queixar-me ao Ministério do Exterior na Alemanha.

 Não existe nada pior para um funcionário público do que ser ameaçado de queixa numa instância superior à dele. Não que ele tenha medo disso - a autoridade superior agirá sempre em favor do denunciado -, mas sim porque ele encara essa ameaça como um ataque. Por isso mesmo, os funcionários públicos ameaçados tornam-se mais perigosos do que um tigre ferido.

 Então, o sujeito de rosto amarelado bateu com a palma da mão no tampo da escrivaninha, respirou fundo, mas não seguiu-se nenhuma explosão e sim apenas a frase:

 - Podemos fazer a coisa de outra maneira, minha senhora! - então, ele pegou o telefone, ligou para o departamento de imigração e disse em inglês: - Vocês nos enviaram uma certa Sra. Sassenholtz. Sim, essa, essa que supostamente teria perdido o navio...

 - Eu perdi! - Thea intrometeu-se com um grito. - Eu perdi!

 - Quieta! - a mão tornou a bater no tampo da mesa. - Sim, surgiram algumas dificuldades. Vocês receberão notícias nossas. Obrigado. - pôs o auscultador no gancho e tornou a recostar-se. - Com que então, a senhora quer queixar-se ao Ministério do Exterior, Sra. Sassenholtz. Faça isso! A propósito, em Bonn eles têm coisas mais importantes a fazer do que estar dando ouvidos a reclamações estúpidas. Não somos nós que queremos alguma coisa da senhora, mas sim a senhora é que quer de nós! Portanto, deve concordar que busquemos informações. é a nossa obrigação!

 Thea Sassenholtz percebeu que Não fazia sentido continuar brigando com aquele homem. Ela assentiu sem dizer uma palavra, pegou o formulário que lhe foi empurrado e preencheu-o.

 - Quando poderei voar para Guaiaquil? - perguntou no fim.

 - Isso somos nós que decidimos.

 - Claro. Afinal, são os senhores que pagarão o voo.

 - Justamente! - o impiedoso homem puxou de novo o formulário e correu os olhos por ele. - Quando alguma coisa não vem ao caso, não se deve simplesmente fazer um traço, mas sim escrever: Não vem ao caso.

 - Eu Não sabia, perdão - disse Thea com um ar atencioso. - Em geral é o meu marido quem lida com as autoridades.

 

 era evidente que o sujeito rabugento ficou ponderando se a resposta era outro insulto, ou apenas uma inofensiva informação, mas depois de algum tempo enfiou o formulário numa pasta. Thea Sassenholtz respirou aliviada.

 - E agora? - perguntou ela.

 - Volte à tarde. Seus trinta dólares bastam. Afinal, a senhora não precisa comer num hotel de luxo. Teremos mais informações por volta das 15 horas. Tenha um bom dia!

 Resumindo: Thea Sassenholtz recebeu uma passagem de avião para Guaiaquil, um passaporte de emergência, a permissão de entrada no Equador e um cheque de viagem de quinhentos dólares americanos. Foi obrigada a declarar o número de sua conta bancária na Alemanha e a assinar um pedido de remessa, a fim de que o dinheiro emprestado fosse devolvido o mais rápido possível. Além disso, foi aberta - era preciso manter-se a ordem - uma ficha com seus dados.

 à noite, Thea foi a um pequeno hotel em Balboa e alugou um quarto com varanda dando para o mar, muito limpo, barato para as condições do Panamá (cinquenta dólares por noite) e com um serviço bem amável. Seu avião decolaria no dia seguinte às oito da manhã. E ali; no pequeno restaurante do hotel, sob as pás de um ventilador, Thea conheceu Juan de Garcia, um fazendeiro de café da Costa Rica, de cinquenta e cinco anos de idade e maneiras educadas.

 

No NM Atlantis havia um lugar que apenas uns poucos corajosos visitavam: o convés CFL, escondido de todos os olhos, situado atrás da chaminé e tendo apenas um rótulo numa porta com a indicação clara de sua função de convés para fanáticos absolutos do sol. Nele as pessoas deitavam-se desnudas lado a lado nas espreguiçadeiras, bronzeavam-se sem marcas e em pouco tempo formavam uma comunidade, uma espécie de tropa de conspiradores.

 Os voyeurs não eram permitidos, essa era uma lei férrea.

Quem atravessava a porta com o cartaz "Atenção, convés CFL", logo depois dessa porta tirava o traje ou calção de banho; e reconhecia-se o profissional, que em geral tomava banho de sol sem nenhuma roupa, pela maneira como o fazia. Os novatos a princípio sempre hesitavam um pouco, olhando em volta e depois fazendo uma cara como se estivessem pensando: em todo caso sou mais bonito do que aquele ou aquela lá. Portanto, nada de inibição, garoto, estamos entrando no paraíso, trate de comportar-se de acordo!

 Na segunda vez a pessoa ficava mais despreocupada e não gaguejava quando uma exuberante mulher pelada deitava-se ao seu lado e batia um papo sobre suas experiências num clube de nudismo do Quénia.

 Sylvia de Jongh também descobrira esse convés especial. Quando apareceu pela primeira vez, tirou o biquini junto à porta e saiu rebolando sua nudez francamente provocante pelas pranchas em busca de uma espreguiçadeira desocupada, algumas senhoras mais velhas acharam que aquilo poderia perturbar a paz da comunidade. Mas Sylvia de Jongh foi um agradável desapontamento. Ocupou uma espreguiçadeira bem afastada, comportou-se com toda a tranquilidade e, enquanto entregava-se ao calor, ao vento e ao barulho do mar, leu um romance de Harold Robbins. era um romance erótico, coisa que combinava com ela.

 

 Em compensação, Hans Fehringer estava um pouco perturbado. Como não sabia o que Herbert combinara com Sylvia - ou seja o encontro apenas a cada dois dias -, Hans achava o comportamento de Sylvia totalmente incompreensível. No convés, ela passava por ele como se não o conhecesse, não esboçava nenhuma reacção aos seus sussurros quando ele se aproximava, olhava-o sem vê-lo, procurava seu marido rabugento e se afastava de tudo que pudesse levar a uma troca de palavras.

 Fehringer andava de um lado para o outro no navio como um louco e, no final, foi queixar sua magoa com o irmão gémeo Herbert.

 - Não consigo explicar o porquê disso! - balbuciou ele, enquanto ambos vestiam-se para o jantar: os mesmos smokings azul-ferrete, as mesmas camisas, as mesmas gravatas, as mesmas meias e sapatos. Inclusive as cuecas, que de facto ninguém podia ver, eram "gémeas". nulí, sua cidade natal, os dois também saíam juntos para as compras e, em toda a parte, os vendedores tinham o maior prazer quando os dois fregueses chegavam diante do espelho vestidos com ternos iguais e se comparavam. Até mesmo o nó da gravata eles davam da mesma maneira. só podiam ser diferenciados em seu negócio, o comércio de carros usados com um ano de garantia: Hans, o mecânico de automóveis, de macacão e todo sujo de óleo, ficava debaixo dos carros ou no buraco de montagem - o dinheiro nunca sobrou para um mecânico hidráulico; em contrapartida, Herbert era o vendedor sempre elegante e com um talento extraordinário para as conversas de venda; era bem o tipo do empresário que parecia destinado a missões mais elevadas do que a venda, com um sorriso radiante de carros sucateados e depois reparados.

 - Que está acontecendo? - perguntou Herbert nesse momento com ar inofensivo.

 - Sylvia está tão esquisita...

 - Ah, não. não assim?

 - Ela age como se fôssemos dois estranhos.

 - O velho dela deve estar vigiando-a com olhos de lince.

 - Não pode ser só isso. Deve ter outra coisa metida no meio.

 Herbert Fehringer ficou satisfeito. Sylvia iria pertencer somente a ele, pelo menos durante os próximos dias. Não queria pensar agora no momento da verdade - era possível que esse fosse o fim da fraternidade dos gémeos. Ele tinha a intenção de desaparecer com Sylvia em Sidney e recomeçar a vida nalgum lugar do vasto mundo. Não pensou que uma mulher como Sylvia de Jongh em pouco tempo sentiria a falta do luxo com que se habituara e que então se transformaria numa tortura permanente, não pensou que não se pode viver apenas de um amor tempestuoso e que a cama não é nenhuma base para a vida. Mas quem é que pensa nessas coisas, quando cada poro de seu corpo arde de febre, por outra pessoa?

 - Bem, talvez existam outros homens a bordo dos quais ela goste mais, não? - observou Herbert de passagem.

 Hans Fehringer, que nesse momento estava dando o nó da gravata, deu um salto para o lado.

 - Impossível! - gritou ele.

 

 - Como assim? Posso apontar-lhe uma dúzia de homens por aqui, com os quais quase não podemos competir. Aí está esse tal de Tatarani, tão rico que nem consegue contar seu dinheiro. Depois vem de Angeli, o playboy que deixa todas as mulheres de olhos marejados. O médico de bordo, o Dr. Paterna, um galã do tipo cinematográfico. O primeiro-oficial Willi Kempen. O chefe Ludwig Wurzer, o lutador baixo. Sem esquecer Pfannenstiel, capaz de devorar uma mulher como outros devoram um bolo. E assim por diante, Hans. - Agora Herbert também estava dando o nó na gravata. Os dois pararam lado a lado diante do espelho e cada qual olhou para o outro. era incrível como se assemelhavam. - Uma mulher como Sylvia é como uma borboleta. Qualquer flor colorida atrai. Ela provou o seu néctar... e agora vai embora batendo asas.

 - Eu simplesmente Não acredito nisso. Ela me disse que ama só a mim.

 - No abraço se dizem muitas coisas que depois do afrouxamento parecem diferentes.

 - Essas suas malditas lições irritam-me. - Hans vestiu o smoking de seda. Os gémeos davam muita importância às roupas, gastavam quase todo o dinheiro em ternos novos que, Além disso, faziam parte do "traje de trabalho". Quem cruza o mundo em dupla, mas só paga por um, precisa pelo menos ter uma aparência que inspire confiança. "A roupa faz o homem" Não é um ditado antiquado, pelo contrário, especialmente em nosso mundo moderno a pessoa bem vestida é vista como digna de crédito. Em compensação, são justamente os maiores gangsters que usam as melhores roupas feitas sob medida. - Você nem ao menos sabe como Sylvia pode ser.

 - E tão-pouco estou interessado em saber. - Herbert Fehringer recuou do espelho. Passou mais uma vez um pano macio sobre o brilho dos sapatos pretos. - Mas faça-me o favor, Hans: Não vá correr atrás dela como um cachorrinho! Mostre que tem orgulho.

 - E se isso for o fim?

 - Então, a coisa terá acabado mesmo.

 - Seria insuportável para mim. Herbert, eu a amo com todas as fibras do meu coração .

 - O coração Não tem fibra nenhuma, é um músculo compacto.

 - Ora, vai tomar no cú! - Hans Fehringer, a quem tocava jantar por primeiro, saiu da cabina. Herbert fechou logo depois de ter pendurado o cartaz de "Favor Não incomodar" na maçaneta.

 Isso ocorrera no dia anterior. Agora, nesse magnífico Domingo de vento quente que soprava agradável sobre os corpos, mas com o navio navegando num acentuado movimento deslizante, Sylvia de Jongh foi deitar-se pela primeira vez no convés CFL, uma Vénus de cabelos pretos a qual só poderia ser observada por olhos invejosos, desde que o fosse por uma outra mulher. Três cavalheiros, todos em idade avançada, esforçavam-se para não olhar em sua direcção. De repente, sentiram-se miseráveis na condição de sua nudez enrugada. Voltar a ter trinta anos outra vez, pensaram... ah, cara, quantas coisas iríamos fazer! Eles viraram a cabeça, olharam para as respectivas mulheres deitadas ao seu lado também desnudas e soltaram suspiros secretos. Como a vida é curta e quantas coisas são perdidas!

 Hans Fehringer, que procurava Sylvia em todos os conveses, ficou perplexo ao vê-la subir a escada, dirigindo-se bem para cima, onde em geral não haveria nenhuma possibilidade de se deitar em espreguiçadeiras. Ele observou-a até perdê-la de vista e depois deteve um comissário de convés que ia passando.

 - Pode-se deitar lá em cima também? - perguntou.

 - Não, meu senhor.

 - Mas uma senhora acabou de subir para lá.

 O comissário olhou ao longo da lateral do navio e, com um gesto enviesado, apontou para cima.

 

 - O senhor quer dizer, lá em cima?

 - Sim, foi o que eu disse.

 - Por lá se vai ao convés CFL, meu senhor.

 - Ao CFL... obrigado!

 Hans Fehringer esperou até que o comissário desaparecesse entre as espreguiçadeiras do convés do solário e então andou com passos lentos até à primeira escada. Sylvia deslocava-se para lá? Estaria aí a solução para explicar sua mudança? Será que ela se encontrava com outro homem lá em cima, deitada pelada ao seu lado, flertava com ele? Hans foi possuída por uma sensação indómita. Prendeu a respiração; o ciúme ameaçava rachá-lo ao meio.

 Seu primeiro impulso foi: Herbert tem razão, ela não vale nada. Uma magnífica puta, mais nada. Você não poderá segurá-la por longo tempo. Ela vai traí-lo com o mesmo descaramento como trai o marido agora. Esqueça-a, passe por ela como ela faz com você . Claro que isso vai doer, mas essa dor também pode ser superada. Só não corra atrás dela! Não faça isso, cara!

 Contudo, em geral existe um imenso abismo entre o querer e o poder. Hans Fehringer subiu a escada que levava ao convés CFL. Ali chegando, deteve-se por alguns momentos e tomou consciência de que deveria tirar o calção de banho atrás da porta. Até então, ele só havia tomado banho desnudo junto com seu irmão em enseadas isoladas da Jugoslávia e do sul da França. Não sabia como seria sua reacção no meio a tanta nudez feminina, mas logo convenceu-se de que já havia visto Sylvia em situações bem diferentes e que um aglomerado de pessoas desnudas era qualquer coisa menos algo erótico.

 Hans abriu a pesada porta de ferro, entrou no convés CFL, tirou o calção de banho, mas por precaução jogou o roupão no ombro para, em caso de emergência, podê-lo fechar com o cinto.

 As duas primeiras pessoas peladas, duas senhoras mais idosas, desiludiram-no. Estavam deitadas qual dois leões-marinhos largados em terra, com grossos tampões de algodão em cima dos olhos, reluzentes de óleo de bronzear; uma cena que fazia com que qualquer um desviasse os olhos rapidamente. Mas depois, Hans viu bem lá atrás e isolado por completo o fantástico corpo de Sylvia e seu coração começou a bater com toda a força. Sozinha! E não com um outro homem! Afastada de todos os outros. Herbert, seu idiota, claro que ela é uma mulher fantástica. Meu Deus, como eu a amo!

 Aproximou-se sem fazer barulho, deitou-se na espreguiçadeira ao lado de Sylvia e viu que ela adormecera lendo o livro. O romance de Robbins estava caído sobre seus joelhos, os dedos finos continuavam segurando a capa do livro. Com todo o cuidado, Hans inclinou-se para a frente e deu-lhe um beijo na ponta do nariz.

 - Meu amor - disse ele em voz baixa. - Se estivéssemos sozinhos agora, com toda certeza você não estaria dormindo.

 Sylvia assustou-se, encarou-o perplexa e, sem querer, por reflexo empurrou o livro para cima da vulva.

 - Mas você pirou por completo? - sussurrou horrorizada.

 - Você já sabe... Claro que sim!

 - Quem foi que lhe disse que eu estava aqui?

 - Meu instinto. O seu magnetismo que sempre me atrai para perto de você.

 - Se Knut nos vê aqui!

 

 - Você acha que seu marido iria perder-se por aqui? Querida, eu nem cheguei a pensar nisso. Claro que o convés CFL é o nosso ponto de encontro mais seguro! simplesmente fantástico! - ele pousou a mão sobre o seio direito de Sylvia, acariciou a firme ondulação e depois deitou-se bem à vontade. Sem dizer uma palavra, Sylvia pegou a mão e afastou-a.

 - Não estamos sozinhos, Hans.

 - Que pena. Sinto-me como um sedento que se encontra diante de uma fonte e não tem permissão para beber. - Hans Fehringer tomou o livro do colo de Sylvia, folheou-o e sorriu. - A verdadeira leitura para a sensualidade reprimida. Com que frequência eles transam no livro?

 - Pare com isso! - ela arrancou-lhe o romance das mãos e jogou-o nas pranchas do outro lado. - Saia deste convés agora mesmo!

 - Ora, por quê? Estou começando a me sentir bem. Esse calor no corpo, essa carícia do vento... podiam ser suas mãos. Quando penso nisso, sou obrigado a fechar o roupão.

 Sylvia levantou-se, olhou para o ventre de Hans e depois para os outros veneradores do sol.

 - Não me venha fazer um escândalo aqui! - sussurrou ela. - Comporte-se!

 - Se você me prometer que hoje à noite... - ele hesitou, pois a noite pertenceria a Herbert, depois corrigiu-se. - Não, amanhã à noite... ou hoje mesmo. Nos encontraremos aqui.

 - A porta é fechada após o pôr-do-sol.

 - Subornarei o comissário encarregado para deixá-la aberta hoje. Puxa, por que não pensei nisso antes?! Não existe esconderijo melhor, claro que ninguém vem aqui à noite! Para nós, querida, o lugar mais seguro de todo o navio. - Ele espreguiçou-se com uma sensação de bem-estar, seu corpo musculoso valia um longo olhar, Sylvia também pensou o mesmo e jogou-se de volta à espreguiçadeira para escapar àquela visão.

 - Acho que não será possível, Hans.

 - Por quê?

 - O tiro ao alvo de vocês. O empate deixou-o terrivelmente irritado. Ele não tira mais os olhos de mim.

 - E agora? Você está aqui... onde se encontra ele?

 - Eu disse que viria ao convés CFL.

 - E ele não veio junto?

 - Não. Por mais estranho que possa parecer, ele sente vergonha.

 - Mas isso é fantástico! Quer dizer então que vamos poder nos encontrar sempre aqui?! - Hans acariciou-lhe a coxa com a ponta dos dedos. - Para mim já é uma glória poder ficar deitado aqui com você vendo esse seu corpo maravilhoso. E então sonhar que poderei tê-la em meus braços à noite. Que sensação mais maluca!

 Enquanto isso, Knut de Jongh deambulava pelos conveses. Assistiu aos jogadores de ténis de mesa, viu os entusiastas do shovelboard, a competição de mergulho na piscina, dirigida pela anfitriã Bárbara - ela atirou doze colheres na água e aquele que recolhesse mais, ganharia uma garrafa de champanhe - e depois seguiu até os "artesãos", que era como os passageiros chamavam àqueles que pintavam na varanda,

faziam gravações em vidros, faziam bonecas ou modelavam estatuetas de massa. Não existia tédio a bordo, oferecia-se alguma coisa a cada pessoa.

 

Até mesmo os mais preguiçosos não de Jongh tinham seu quinhão: abriu-se um barril de cerveja para eles no bar externo do convés do solário.

Como acompanhamento, a orquestra de bordo tocava músicas sobre a filosofia do beber, algo como O melhor lugar é sempre no balcão... Assim, todos sentiam-se muito à vontade em toda a parte.

 A única excepção era o Dr. Schwarme. O advogado brigava com Seu destino. Sua mulher Erna frequentara um curso de dança dado no Atlantis pelo casal de professores Raimondi.

 - Quero finalmente aprender a dançar direito! - dissera Erna com um jeito impertinente. - As danças modernas! Afinal de contas, você só sabe sair batendo os pés como um urso. Não pertenço ao ferro-velho. Só tenho quarenta e sete anos. Ainda dá para sacudir num boogie.

 Mas claro que o factor decisivo foi François de Angeli ter participado do curso. Para ele, essa era a melhor oportunidade para conhecer as senhoras mais elásticas e alegres, mesmo que ali elas dançassem honestamente com seus maridos. Os contactos visuais resultariam mais tarde em encontros secretos. O facto de ele frequentar o curso com Erna Schwarme só fez aumentar o interesse das mulheres exortando-as à competição.

 Os Raimondis dançavam de um jeito maravilhoso; eram professores bem-humorados e cuidadosos. Corria o boato de que os dois teriam ganho uma grande quantidade de prémios internacionais de dança e que seriam originários da Sicília. Na realidade, ambos vinham de Witoen, na região do Ruhr, chamavam-se Ramynovsky e dirigiam uma escola de dança em Essensteele. Mas claro que Sicília soava melhor, assim como Raimondi: uma aura de máfia os cercava.

 O Dr. Schwarme assistira à primeira aula, examinara de Angeli com um olhar sombrio e achara tudo muito idiota. Os Raimondis dançaram um passo doble, seguiram-se os aplausos estrondosos, depois os alunos tentaram os primeiros passos, no que já se constatou quem era dotado ou não de senso de ritmo. Erna Schwarme tinha ritmo, todo seu belo corpo acompanhou a dança. O Dr. Schwarme saiu furioso do Salão dos Sete Mares e foi procurar um companheiro de conversa. não o comandante Ludwig Moor também estava participando da dança - sua parceira era uma dama seca e um tanto agitada que de vez em quando caía numa risada sem o menor motivo - e o Dr. Paterna encontrava-se no consultório do hospital, Schwarme encontrou Knut de Jongh que, carregando uma caneca de vidro cheio de cerveja, procurava um lugar numa das mesas do solário.

 - Ah, isso é a única coisa certa! - disse o Dr. Schwarme. - Construíram monumentos para tanta gente, só não construíram para o inventor da cerveja. - Ele foi no barril buscar um copo e depois voltou à mesa de Knut de Jongh. - Posso?

 - Por favor, a cadeira está desocupada.

 O Dr. Schwarme sentou-se, mergulhou num longo gole e depois respirou aliviado.

 - Sua mulher também o deixou sozinho?

 De Jongh lançou um olhar desconfiado para o Dr. Schwarme.

 - Por quê?

 - A minha está na aula de dança pulando como uma dançarina Lulu. Ah, como essas viagens marítimas transforma as mulheres! A gente passa a conhecer novas facetas delas. como um poeta já disse: "Então as mulheres tornam-se hienas e fazem gracejos com o horror..." E então, onde está a sua mulher?

 

 - No convés CFL.

 - E você fica sentado aqui bebendo cerveja com essa tranquilidade?

 - E por que não? - De Jongh sentiu que o canto do olho começava a tremer. Que significaria essa maldita conversa fiada? Será que o Dr. Schwarme sabia de alguma coisa a mais sobre Sylvia? Será que ela não se encontrava no convés bloqueado?

 - Se fosse a minha mulher, eu não ficaria tão tranquilo assim. Sua esposa é uma verdadeira beldade. Eu não a deixaria sozinha entre aqueles pelados. Suponho que o convés CFL está à disposição de qualquer um.

 - Claro.

 - Portanto, também para os homens charmosos. - O Dr. Schwarme deu uma risada um tanto irónica. - Não se faz mais nada junto quando já se é um velho aleijão casado. Mas em cada ser humano esconde-se a curiosidade e o impulso à descoberta. A terra nova sempre excita. Knut de Jongh ficou calado, perplexo. Somente agora ocorreu-lhe não ter visto o macaco louro, aquele tal de Fehringer, em parte alguma. Ele tão-pouco estava nos bares. De Jongh bebeu a cerveja e levantou-se. O Dr. Schwarme olhou para ele.

 - Tenha um bom-dia! - disse Knut de Jongh.

 - Aonde você vai agora? - perguntou o Dr. Schwarme com ar inocente.

 - Você não tem merda nenhuma a ver com isso!

 - Obrigado.

 - Não tem de quê.

 Com o queixo esticado para a frente qual pugilista que avança para o adversário, Knut de Jongh foi até à escada e subiu. Também parou e hesitou diante da porta de ferro do dividido convés Nelson. Sentiu uma sensação desagradável ao pensar que dentro em pouco teria de passar desnudo diante dos muitos olhares curiosos. Não que ele tivesse um corpo que devesse ser escondido, ah, não, mas era justamente isso que o fazia hesitar.

Havia uma coisa que degradava os homens ao nível de crianças, tão logo era feita a comparação. era um grande sacrifício andar com essa coisa à solta.

 De Jongh bufou pelo nariz, superou a inibição e entrou no convés CFL. Tirou o calção de banho atrás da porta, colocou-o debaixo do braço, e em seguida, deu de caras com as duas rechonchudas senhoras. Elas levantaram a cabeça tão logo de Jongh entrou e um espanto visível cobriu-lhes os rostos que reluziam a óleo. Justo na velhice que se viva de certas recordações.

 De Jongh seguiu encarniçado em frente... e então viu Sylvia deitada bem lá atrás com sua nudez exuberante, tranquila e bem comportada, o belo corpo exposto ao sol e ao vento quente. Teria sido uma cena agradável, caso o repugnante macaco louro não estivesse deitado ao seu lado também desnudo.

 Knut de Jongh pediu perdão em pensamento ao Dr. Schwarme por sua grosseria, segurou o calção com a mão direita e atravessou o convés. Parou e ficou calado diante de Sylvia e Hans Fehringer. Os dois haviam fechado os olhos e entregavam-se por completo ao calor.

 

 De Jongh contemplou os dois corpos sem dizer uma palavra. Formavam um par ideal e Knut imaginou como se uniriam com a selvajaria da qual Sylvia era capaz. Com os dentes trincados e as maçãs do rosto contraídas, de Jongh reprimiu o impulso de enrolar o calção na mão e de dar umas bofetadas em Hans Fehringer e Sylvia. Seria melhor ainda arrancá-lo da espreguiçadeira, jogá-lo contra a parede e aniquilá-lo com alguns socos. Destro, dá-los-ia como um pedaço do ferro sob o martelo do ferreiro! Pouco se importaria se Sylvia gritasse e grunhisse. Ela também merecia uma bofetada que a atirasse para o outro lado desse maldito convés CFL.

Ah, mas que grande puta!

 Mas na realidade, de Jongh retornou à porta da mesma maneira silenciosa como entrara, tornou a vestir o calção e saiu do convés Nelson. Mais uma vez, deu ensejo a que as damas rechonchudas junto à porta o admirassem e ficou contente quando desceu a escada. O Dr. Schwarme continuava sentado na mesa do convés do solário. De Jongh sentou-se ao seu lado.

 - E então? - perguntou Schwarme. - Encontrou?

 - Sim. Pode enfiar no rabo essas suas observações estúpidas. Se Sylvia não estivesse deitada lá, aquilo seria uma grelha para mamais.

 - Puxa, que magnífica comparação! - o Dr. Schwarme aplaudiu. - Está com uma imaginação aguada, Sr. de Jongh!

 - E vou aguçá-la ainda mais! - disse de Jongh em tom de ameaça sombria. - Ficarei contente quando chegarmos a Sidney e voarmos de volta para casa.

 - Até lá faltam exactamente catorze dias.

 - Mas que droga, claro! Vão ser os catorze dias mais longos da minha vida.

 Ele devia ter razão, mas nesse momento ninguém supunha isso.

 Sylvia apareceu no bar Atlantis usando um vestido largo de flores imensas, para tirar Knut de Jongh do banquinho e levá-lo ao segundo horário de refeição.

 - Mas é claro que você não vai comer assim, não - perguntou ela. - De calção de banho!

 - Comerei aqui, no bufé do convés!

 - E porquê isso? Dei uma lida no cardápio; é genial tudo que há para se comer hoje. Um assado dourado ao álcool, sorvete de rum com frutas frescas de sobremesas...

 - Então, tudo bem!

 De Jongh deslizou do banquinho, foi até à cabina, vestiu calças e camisa e subiu até o convés principal. Sylvia o estava esperando diante da porta de vidro do restaurante, com uma pose de esposa bem honesta. Ah, sua vagabunda, pensou de Jongh. Sua mulherzinha maldita! Se você soubesse como me sinto por dentro! Sairia correndo e se esconderia. Mas veja, estou sorrindo para você do jeito que só os malditos e estúpidos maridos traídos são capazes de sorrir quando não têm a menor idéia do que se passa. Agora vou dar-lhe inclusive um beijo na testa, embora você mereça que eu parta sua cabeça. Você jamais notará o que estou pensando.

 Bom apetite, minha putinha enfeitada!

 Deu-lhe um beijo, deu o braço à espantada Sylvia e entrou no restaurante. Claro que o repugnante cabeça loura já estava sentado à mesa.

 Mas dessa vez era Herbert Fehringer.

 

A tarde, finalmente, Bárbara Steinberg conseguiu pegar o Dr. Paterna. Os dois se encontraram no corredor do convés Pacífico. Paterna estava voltando de uma paciente acamada, que sofria de enxaqueca e que acabara de tomar uma injecção. O médico de bordo depositou a pequena maleta no chão do corredor e piscou o olho para Bárbara.

 - Mas você quase não aparece - disse ele com ar jovial. era a melhor maneira de superar o grande embaraço.

 - Eu mais do que ninguém poderia dizer isso de você. - Bárbara Steinberg fez um biquinho com a boca um tanto maquilhada demais e fingiu estar muito ofendida. Fica bem nela, pensou Paterna. - Pensei que você fosse mostrar-me o Panamá. Está lembrado do que disse? "Voaremos juntos até San Blas, a ilha dos cunas." Fiz a reserva no voo, mas quem não estava no grupo? Você !

 . - Tive plantão no grupo da cidade do Panamá. A enfermeira Erna ficou com o seu grupo.

 Paterna mentiu de modo brilhante e incrível.

 - Se eu soubesse, podia ter cancelado a reserva - disse Bárbara, agora fazendo-se de apenas um pouco insultada. - Mas Mário não foi encontrado em parte alguma. Eu não quis ir ao hospital... justamente por causa da enfermeira Erna. Acho que ela vê, escuta e prevê tudo que acontece no navio.

 - Isso mesmo. Todos os canais de informações passam por ela. É fenomenal a maneira como ela, fica por dentro de tudo... melhor do que as cabeleireiras! - Paterna deu uma risada jovial. - Ah, mas a quem estou dizendo isso! Você já sabe disso pelo seu salão. Pintar os cabelos e fofocar são o mesmo ritual. Vocês ficam sabendo mais das mulheres do que um padre.

 - É verdade. - Bárbara Steinberg respirou fundo. - Você não esteve no grupo da cidade do Panamá, mas partiu de táxi sozinho.

 - Os tambores da selva estão certos! - Paterna bancou o engraçado.

- Que mais disseram os tambores?

 - Que você encontrou o cego e flertou com a enfermeira dele.

 - Absurdo! Flertou! A tarefa dela é acompanhar o cego Dabrowski por toda a parte e, quando me dirijo a ele, é claro que não posso mandá-la embora!

 - Ela é muito bonita, não é verdade? Chama-se Beate. Enfermeira e médico, até que combina bem.

 - Pare com isso agora! - disse Paterna num tom um tanto irado.

 - Em todo o caso, é melhor do que médico e cabeleireira.

 - A conversa vai continuar nesse tom?

 - Você disse que me amava.

 - E estava falando sério.

 - Você me beijou no convés...

 - E beijaria de novo.

 - Mesmo na presença de Beate?

 - Mas é claro que não vai ser necessário isso.

 - Tem medo de que ela ficasse chocada? Para mim isso não tem a menor importância.

 - Minha Nossa Senhora, há três dias que nos conhecemos e estamos conversando como um casal velhíssimo! Que significa esse absurdo, Bárbara?

 

 - Só estou querendo dizer que não sou o tipo de moça com quem se possa brincar. - Bárbara Steinberg recostou-se na parede. Calou-se porque dois passageiros passaram por eles em direcção às suas cabinas e esperou até que as portas fossem fechadas. - Tem uma coisa que você não sabe, eu já fui noiva. De um dono de salsicharia. A especialidade dele eram bufés frios para festas particulares. Só que eu não sabia de uma coisa. Ele mantinha relacionamentos com a maioria das empregadas das casas finas. Elas iam inclusive ao meu salão e eu era obrigada a servi-las. Sem saber de nada, como era o meu caso. Até que uma contou tudo, por ciúme. Então, dei um pontapé no meu noivo. Nunca mais outro homem, foi o que jurei para mim mesma nessa época. Trate de passar a vida bem sozinha. Nunca mais acredite num sujeito quando ele sussurrar coisas lindas e lisonjeiras que a gente gosta de escutar. Seja desconfiada, eles não prestam. - Ela encarou o Dr. Paterna com um ar pensativo. Ele esquivou-se de seu olhar inquisidor inclinando-se para a frente e tirando a maleta de médico do chão. - Foi com esse tipo de cabeça que eu o conheci. Você não sussurrou nenhuma lisonja, não flertou, apenas me ouviu e simplesmente me beijou. Assim, como se fosse a coisa mais natural. E eu joguei todos os meus preconceitos por terra... Fui precipitada demais? Teria sido um outro erro?

 - Precisamos conversar isso aqui no corredor? - disse o Dr. Paterna com um ar meigo. Nesse momento, a meiguice era a única coisa que poderia deter uma explosão.

 - E em que outro lugar? Afinal, desde o Panamá que eu não consigo chegar a você .

 - Vamos nos encontrar hoje à noite no bar Olympia, depois do baile do Equador: De acordo?

 - Sim. - Bárbara balançou a cabeça várias vezes. De repente, seu rosto tornou a iluminar-se. - Beije-me! - disse em voz baixa.

- Beije-me, agora!

 - Aqui no corredor? Se alguém chegar...

 - Bem rápido! No momento não tem ninguém aqui.

 Paterna beijou-a nos olhos e na boca, sentindo-se tremendamente miserável e perverso, pois ao fazê-lo pensou em Beate Schlichter.

 - Satisfeita? - perguntou.

 - Por enquanto sim.

 - A grande reconciliação?

 - Ainda está por vir. - Bárbara sorriu para ele.

 Paterna achou-a de uma beleza maravilhosa e sentiu-se bem mesquinho. Mas qual o homem que, numa situação como essa, consegue dizer: minha querida, sejamos sinceros, existe mesmo uma outra moça...

 Ao chegar lá embaixo, no hospital, o Dr. Paterna teve então tempo de sobra para reflectir sobre tudo, era paz. Esquivou-se da enfermeira Erna com a desculpa de que precisava escrever um relatório e deixou por conta dela o atendimento dos doentes da tripulação: três ataduras por causa de ferimentos, dois banhos de infravermelho, duas inalações.

 

 Portanto, após o baile do Equador ele se encontraria com Bárbara mas no próprio baile ele dançaria com Beate, havia prometido a ela. Um empreendimento arriscado e impossível que só podia terminar com uma briga dos dois lados. Por conseguinte, não restava outra alternativa a não ser manter-se afastado dos prazeres do baile. Um médico sempre tem uma boa desculpa à mão: um paciente está precisando de sua ajuda. A verificação disso era impossível; nenhum estranho tinha permissão para entrar num quarto de doente. E estão sempre ocorrendo casos agudos, inclusive num navio. Um colapso circulatório não é algo raro na repentina mudança climática entre Frankfurt e o Panamá.

 Assim, o Dr. Paterna decidiu - foi uma típica decisão de homem - arranjar a desculpa de um atendimento de emergência no hospital e afastar-se do caso. Esperou até o jantar para fazer essa comunicação. Pouco antes das 20 horas e 15 minutos, ele telefonou para Beate e informou que um passageiro idoso fora levado para o hospital com um ataque do coração.

 - Receio que será impossível cumprir minha promessa de ir ao baile do Equador. Serei obrigado a passar a noite com o enfermo.

 - Claro que isso é uma desculpa... - Ele ouviu a fulgurante risada de Beate e, em pensamento, viu-a à sua frente jogando a cabeça para trás. - Os pacientes têm sempre prioridade. Quem melhor do que eu para ter mais compreensão quanto a isso? Afinal, eu também tenho um "cego" para cuidar o tempo todo.

 - Você é maravilhosa, Beate. Mas depois nós descontamos isso. Palavra de honra.

 - Aceito sua palavra de honra e anoto-a no coração.

 - Será que esse lindo caderno de anotações pode registrar mais coisas?

 - Todas as páginas estão em branco.

 - Então, Beate, anote e sublinhe em vermelho: Mário está louco de alegria.

 - Por quê?

 - Por tê-la conhecido. E por todos os dias que ainda estão por vir. Anotou?

 - Está anotado. - Outra vez sua risada clara. - A quem devemos rezar para que o hospital não fique lotado de enfermos malogrando todos os planos?

 - Ao deus do amor - respondeu ele rápido.

 - Acho que ele só tem competência para os amantes, não?

 - E para os doentes de amor, claro! Além disso, pelo que dizem por aí, o amor remove montanhas. Do ponto de vista puramente teórico, ele também poderia afastar os doentes.

 - Neste caso pedirei ao deus do amor...

 - Faça isso, Beate. Por favor. E quando falar com ele, cite sempre meu nome para que ele não esqueça, Mário...

 Ele pôs o auscultador no gancho e recostou-se no sofá. Não vai poder continuar assim, pensou ele ao pegar o maço de cigarro. Tenho de encontrar uma solução. Preciso ter clareza: Bárbara ou Beate? Mas sobretudo: que será depois de Sidney? Virá então a grande despedida ou a coisa continuará? Vamos trocar acenos e nos esquecer? Ou será que o mundo mudou para mim e eu comecei um novo capítulo da vida?

 Já era bem estranho que um homem como o Dr. Paterna, idolatrado pelas mulheres e muito poucas vezes decidido a dar um não, não soubesse nesse momento o que fazer. Com a típica naturalidade masculina, disse a si próprio: amo as duas. era de se prever que elas não compreendessem ou mesmo aceitassem isso.

 

 Vamos aguardar, pensou o Dr. Paterna. Ainda faltam catorze dias até Sidney, muitas coisas podem acontecer! Em geral, as situações enredadas resolvem-se por si só, sem a intervenção de ninguém, só precisamos esperar.

 - Por favor, meu jantar no hospital - ele telefonou para a cozinha. - Não vou sair daqui.

 

O baile do Equador foi um sucesso total. O cantor de câmara Rieti condescendeu em cantar uma canção veneziana. A cantora Reilingen trauteou a Valsa da Primavera de Strauss. O show-man Hanno Holletitz interpretou algumas coplas. O mágico tirou pequenos Neptunos da cartola. E a cantora pop Zizzi sonhou com praias dos mares do Sul. Enquanto isso dançou-se, o tridente de Neptuno foi leiloado - foi ganho por Knut de Jongh pela quantia de 3.200 marcos - e fez-se o que é chamado de vida social. Todos os oficiais, tendo à frente o comandante Teyendorf, encontravam-se no salão, trajados com calças pretas e paletós brancos, dando ao baile um quê especialmente festivo. Só faltou o Dr. Paterna, em geral o mais elegante de todos. Teyendorf puxou seu primeiro-oficial a um canto.

 - Onde está o nosso curandeiro, Kempen?

 - Desde a tarde que não o vejo. A última vez que o vi, ele estava deambulando pelos corredores com sua maletinha de médico.

 - Temos casos graves a bordo?

 - Não tenho a menor idéia.

 Tão-pouco o director de hotel Riemke, que em geral estava sempre orientando sobre tudo e de quem nada escapava do que ocorresse a bordo - afinal, essa era sua tarefa -, sabia de alguma coisa. Caso grave no hospital? Nenhuma idéia. Paterna não dissera nada.

 - Vou dar um telefonema - disse ele.

 O Dr. Paterna atendeu no acto.

 - Estão sentindo a sua falta, doutor - disse Riemke. - Há pelo menos uma dúzia de lindas mulheres melancólicas por aqui, todas chorando por sua causa. Você não pode fazer isso com essas beldades! Onde é que você está? Está acontecendo alguma coisa aí no seu subterrâneo?

 - Nada. Todas as camas vazias...

 - Ah, mas isso é raro em se tratando de você! - Riemke deu uma risada insinuante.

 Paterna riu em resposta.

 - Eu simplesmente não estou com vontade... talvez por causa dessa dúzia...

 - Mas esse é o destino dos homens bonitos. Também só estou telefonando porque o comandante perguntou por você . Sabe como é, um baile como este faz parte do serviço oficial e todos os portadores de galões dourados devem estar presentes.

 - Por favor, peça minhas desculpas a ele. Talvez eu ainda apareça por aí, quando terminar o grande tumulto...

 

 Por volta da uma da madrugada, Paterna subiu até o bar Olympia. Estava quase vazio, havia apenas alguns passageiros mais velhos sentados nas poltronas fundas acompanhados de suas mulheres, bebendo champanhe e trocando recordações da vida. Os dois comissários de bar estavam recostados atrás do gigantesco balcão redondo, uma Comissária loura aboletara-se numa cadeira ao fundo e bocejava de cansaço. Para cumprir o contracto, o pianista tocava ao piano branco, situado no meio do lindo e imenso bar com sua janela panorâmica, melodias de todas as operetas. Quando fazia uma pausa, era recompensado por palmas apagadas. Então, ele fazia uma vénia rígida e dava um sorriso atormentado. Ao contrário do bar Atlantis ou mesmo do Clube do Pescador, o Olympia era o refúgio educado dos fregueses em busca de paz e reflexão. Ali ocorriam também os encontros bem aristocráticos no decorrer da viagem: membros do Rotary ou do Lions Club reuniam-se num isolamento feudal. Queriam estar entre conhecidos. Ali já tivera lugar inclusive um congresso de médicos numa viagem pelo oceano Índico; congresso este que terminou com a formação de três grupos de médicos que tiveram discussões acaloradas e, no fim da viagem, nutrindo um ódio figadal pelos outros, foram embora sem cumprimentar-se. Quando o Dr. Paterna contava esse facto, chegava a chorar de tanto rir.

 Nesse momento, os comissários do bar acenaram para ele, a comissária levantou-se para ir anotar o pedido. Já ao entrar pela larga porta giratória de vidro, Paterna vira Bárbara Steinberg sentada sozinha numa das mesas diante da janela panorâmica. à noite, as imensas vidraças eram cobertas por cortinas; só não eram fechadas nos portos, quando o Atlantis ficava parado no cais com o topo todo embandeirado.

 Paterna estava prestes a dirigir-se até Bárbara com passos vigorosos, quando petrificou-se por dentro. Cinco metros adiante estavam sentados Edward Dabrowski e Beate Schlichter, numa posição que não podia ser vista da entrada, posto que o espaço redondo era encoberto em parte pelo balcão. era evidente que o cego estava desfrutando da paz e de uma boa garrafa de bordeux, enquanto Beate decidira-se por um coquetel de champanhe.

 Meia-volta! Paterna pensou com seus botões. Virar agora mesmo e dar o fora daqui! Mas já era tarde demais para isso. Bárbara Steinberg, que o esperava havia mais de uma hora, sempre de olhos grudados na porta, já o vira e acenara para ele. Isso também despertou a curiosidade de Beate, ela virou a cabeça um pouco e seu rosto petrificou-se. O pianista arreganhou um sorriso e, com pérfida alegria, tocou e beijou a mulher com gosto.

O Dr. Paterna lançou-lhe um olhar aniquilador.

 - Até que enfim! - disse Bárbara estendendo-lhe a mão. - Eu já estava pensando: ele vai dar o bolo.

 - E por que eu haveria de dar? - Paterna sentou-se e esperou que a comissária anotasse seu pedido: uma garrafa de vinho francês do interior. - Como foi o baile?

 - Com certeza bonito para todos os outros.

 - E para você?

 - Só pensei em você ... - ela deu uma risada clara e inclinou-se sobre a mesa. - Veja só quem está sentada lá atrás! Que coincidência!

 - Ora, quem está sentada lá? - Paterna fingiu nada ter visto.

 - O seu flerte do Panamá. A enfermeira do cego. Não quer cumprimentá-la?

 - Por quê? - como todos os homens, Paterna também era de uma covardia ingénua. Já que não se pode sair correndo, o melhor é fazer-se de bobo. Isso sempre funciona por um curto período de tempo. - Não estou de plantão.

 - Mas ele está olhando fixo para cá, como se quisesse te dar uma punhalada com o olhar.

 - Não seja ridícula, Bárbara. - O Dr. Paterna ficou contente por estar sentado de costas para Beate, sem poder vê-la.

 

 - Suas costas devem estar pegando fogo de tanto que ela o queima com os olhos.

 - Se essa for a nossa conversa, eu me levanto agora mesmo e vou embora.

 - Também sou a favor. Vamos nos levantar e ir para o tombadilho. Eu gostaria de dar-lhe um beijo; aqui não pode ser. Você está de uniforme, eu sei, já li isso: um oficial uniformizado não pode beijar em público, deve manter sempre a dignidade. Mas estaremos a sós no tombadilho, ou então entre outras pessoas que se amam. - Ela encarou-o com os imensos olhos redondos. - Você me ama mesmo...

 - Será que terei de repetir isso sempre? - esquivou-se ele.

 - Sempre, a cada hora, a cada duas frases: "O céu estrelado não está encantador? Eu te amo! Olha como o luar dança sobre as ondas. Eu te amo!" É tão gostoso escutar.

 Minha situação é francamente miserável, pensou o Dr. Paterna, enquanto, nesse momento, a comissária lhe servia o vinho. Diante de mim, Bárbara, uma moça lindíssima; e atrás de mim, Beate, não menos desejável... e eu amo as duas! uma coisa maluca, como terminará isso? Nenhuma mulher compreende quando lhe explicam que o homem é polígamo por natureza.

 - Hoje foi um dia agitado no hospital - disse ele. - Iremos daqui a pouco para o convés, só gostaria de recuperar-me um pouco com o vinho.

 O pianista tocava agora ao piano branco a música. Sejam louras ou morenas, eu beijo todas as mulheres... e, enquanto tocava, sentia-se muito, muito engraçado. De repente, o bar Olympia encheu-se de tumulto; os médicos de Hamburgo entraram formando uma tropa animada e ocuparam os banquinhos. Alguns passageiros mais velhos pagaram e levantaram-se; acabara-se a paz.

 - Vamos dar o fora também - disse Paterna assinando a conta. Estendeu a mão para Bárbara, puxou-a da poltrona funda e não pôde impedir que ela se enganchasse em seu braço na mesma hora. O médico não ousou dar nenhuma olhada para o lado onde Beate estava sentada. Que outro homem teria se comportado de modo diferente?

 Os dois passaram pelo bar sendo logo incomodados pelos médicos.

 - Senhor colega! - gritou o porta-voz do grupo, um sujeito taurino de mãos enormes como pratos, em quem não se via um ginecologista. - Um traquino à corporação! Venha até nós. Ficaremos com essa linda beldade.

 - Amanhã, meus senhores. - O Dr. Paterna fez um gesto de recusa. - Já estou de partida e ainda preciso ir ver um paciente.

 - Agora! A essa hora?

 - Vocês não conhecem isso? Que felizardos!

 - Doentes nocturnos! - um dos médicos agitou as mãos no ar. - Comigo nunca mais, Colega! Eduquei meus pacientes para esperarem até o dia seguinte. Você também devia deixar isso claro para as pessoas: estamos aqui num navio para ver o mundo alegre e não num hospital militar! É preciso que os pacientes sejam os primeiros da fila.

 O Dr. Paterna preferiu não meter-se nessa discussão superficial e saiu rapidamente do bar Olympia ao lado de Bárbara. Lá fora, na escadaria, ela deu-lhe um beijo na face.

 

 - Acho os bêbados nojentos! - disse ela. - Mas as bêbadas são um horror! E você, você bebe muito?

 - Pouco. - O Dr. Paterna sentia-se miserável. Bárbara o beijava e ele pensava em Beate. Que situação! - Não acha que agora está um pouquinho frio aqui no tombadilho?

 - E aonde você quer ir, Bárbara?

 - Uma proposta: à sua cabina.

 - à minha cabina? - Paterna sentiu-a enrijecer-se de novo em seu braço, exactamente como no primeiro beijo. - Impossível...

 - Na certa ninguém nos verá. Mas se você está com medo... vamos à minha cabina...

 - No hospital? A enfermeira Erna...

 - Minha cabina tem uma segunda porta, pelo laboratório.

 - Não, Mário. - Ela sacudiu a cabeça e recostou-se nele. - Eu já lhe disse como é a coisa comigo. Não sou do tipo de moça que vai logo topando.

 - Não foi o que eu quis dizer, Bárbara! - disse Paterna desconcertado. - Claro que não.

 - Mas deu no mesmo. Não existe defesa contra isso e é disso que tenho medo. Por enquanto... - ela lançou-lhe um olhar inseguro.

- Vamos andar no tombadilho, por favor! Para mim não está tão frio assim.

 No bar Olympia, Beate pediu um coquetel forte. Ela examinara a lista de bebidas e escolhera o que lhe pareceu mais forte: Blade Runner, um coquetel de vodca, rum carta branca, cointreau, suco de limão e laranja amarga. Ewald Dabrowski coçou o queixo.

 - Até mesmo um cego de verdade farejaria isso; esse negócio não é para mocinhas.

 - Não sou mais uma mocinha! - Beate soou teimosa e frenética, de um modo que Dabrowski não conhecia. - E se depois eu desmaiar...

 - Mas é claro que um cego não poderá levá-la para a cama, garota.

 - Logo aparecerá alguém que me reboque.

 - Até eu tossiria com um Blade Runner. Beate, não leve a coisa tão a sério.

 - O quê? - perguntou ela com um jeito de criança mal-educada. - O que é que não deve ser sério?

 - Esse seu Dr. Paterna é um homem livre.

 - Ele não é o meu Dr. Paterna!

 - Bem, e então? Porquê esse alvoroço?

 - Não tenho nenhuma inveja dessa burra pintada por causa dele. Você viu como ela se comportou? Com que olhos arregalados ela...

 - Minha criança, eu sou cego. - Dabrowski deu uma risadinha. - como é que poderia ver esse tipo de coisa?

 O Blade Runner chegou, Beate tomou um pequeno gole cauteloso e depois ficou ofegante.

 - Nossa... mas é gostoso! Justamente o certo. Pode divertir-se à minha custa. Você é o chefe. A dança do pessoal está incluída no salário.

 - Beate, você ama o Dr. Paterna?

 - Talvez...

 - Mas você nem o conhece. As poucas horas no Panamá... e ainda por cima eu estava junto.

 - Por acaso nos quarenta anos de sua vida, você nunca teve a sensação: agora eu sou terrivelmente feliz?

 

 - Claro. Uma vez. Aos cinco anos. Foi quando ganhei meu primeiro comboiozinho eléctrico e quebrei-o numa hora. Ah, que experiência!

 - Chefe, por que você não consegue falar sério pelo menos agora? Bem, goste você ou não de escutar: sim, eu me apaixonei pelo Dr. Paterna. Ninguém pode mudar isso.

 - Eu prometi aos seus pais que tomaria conta de você - de repente Dabrowski ficou bem sério. Beate percebeu que nesse momento ele a estaria encarando com um ar admoestador através dos óculos de lentes escuras. - Pode confiar que eu impedirei que você seja vítima de um playboy como o Dr. Paterna.

 - Vítima? Que significa isso?

 - Exactamente o que pode acontecer com uma moça inocente como você.

 Ela encarou-o com olhos arregalados, depois recostou-se, cruzou as pernas e, consciente, bebeu devagar um gole do coquetel-bomba. Ao repor o copo em cima da mesa, disse de modo bem insípido:

 - Não sou mais uma moça inocente. Para a sua informação, Sr. Dabrowski. Já aconteceu, quando eu tinha dezassete anos.

 - Pombas, cacete, seus pais não sabem disso!

 - E o que é que os pais têm a ver com isso? O rapaz era estudante. No segundo semestre de teologia.

 - Ainda por cima isso!

 - Hoje ele é sacerdote em Oldenburg e já tem dois filhos.

 - Ora elabora! Essa de novo! - Dabrowski sacudiu a cabeça. - Tome seu drinque, garota, e me reboque para a cabina. A noite acabou para mim. E para você também. Busque-me amanhã às nove para o desjejum no convés.

 Dabrowski, conduzido pela "enfermeira" Beate, passou pela ruidosa máfia de médicos de Hamburgo e saiu do bar Olympia tacteando o caminho com a bengala branca. Os médicos calaram-se por alguns instantes, enquanto o seguiam com a vista. Quando a porta de vidro tornou a fechar-se, o ginecologista disse:

 - Se esse cara enxergasse essa coisinha que o conduz, viraria um corredor de primeira.

 - Thea, não se esqueça do tacto dos cegos! - gritou alguém do fundo.

 Outras observações sucumbiram nas estrondosas gargalhadas.

 Beate levou Dabrowski para a cabina e prometeu que também iria para a cama. De facto, ela dirigiu-se à sua cabina; contudo lá permaneceu apenas uns cinco minutos e depois saiu para a escadaria dos fundos. Desceu a escada pulando de dois em dois degraus, até parar diante da porta que dava para o tombadilho. Abriu a pesada porta de vidro com um empurrão e saiu ao luar realmente prateado. Um céu estrelado como ela nunca vira antes, servia de abóbada para um mar quase liso.

 Avançou até a amurada, olhou para os dois lados e viu Bárbara, também parada junto à amurada, debaixo do primeiro bote salva-vidas. Estava sozinha olhando imóvel para a água tingida de prata.

 Beate respirou fundo, tirou o cabelo da testa e dirigiu-se a Bárbara dando passos largos. Não viu Ewald Dabrowski aparecer pela mesma porta que ela chegara ao tombadilho e esconder-se nas sombras.

 

 Então, Bárbara e Beate estavam lado a lado, com os olhos fixos na água e caladas durante um bom tempo. No final, Beate rompeu o encarniçado silêncio.

 - Por que você não diz nada? - perguntou ela. - Afinal, as duas sabemos porque estamos aqui. Você esperava por mim.

 Foi como se Bárbara Steinberg não tivesse escutado som algum. Seguiu de olhos fixos no mar que reflectia o luar, sem virar a cabeça para Beate. Mas depois, de repente, ela disse com voz hesitante:

 - O que você quer de mim?

 - E você ainda me pergunta? - Beate Schlichter inclinou-se um pouco em sua direcção. Nesse momento, viu com toda a clareza o rosto de Bárbara, seus olhos, a boca e emudeceu na hora. Meu Deus, ela está com medo! De facto, está aí quase desamparada, como que abandonada e diante de algum perigo, sem saber o que fazer. O silêncio dela não é uma provocação, mas sim a expressão de seu pavor: Ela não está aqui para lutar, mas sim - digamos que de um modo um pouco exagerado - para sacrificar-se.

 Sim, ela simplesmente está com medo.

 - Não sei o que você quer de mim... - a postura de Bárbara tinha uma certa rigidez.

 - Você ama o Dr. Paterna?

 Que pergunta! Tão directa como um soco... e, pelo que Beate viu, o soco acertou em cheio. Bárbara estremeceu.

 - Sim - respondeu e depois tornou a hesitar. Ela virou-se um pouco para Beate e examinou-a, não de um modo hostil, nem depreciativo e, de maneira nenhuma, com desprezo; havia um quê de humildade naquele olhar. - Sei o que você quer dizer - prosseguiu ela então e, de palavra a palavra, sua fala foi ficando mais rápida - sei muito bem, pois meu pai diria o mesmo: afinal você só o conhece há alguns dias, você está num navio, numa viagem de muito sol e alegria... aí o mundo fica bem diferente do quotidiano cinzento. Dentro de um par de semanas você voltará e então não haverá mais palmeiras, nem praias brancas ou areias de coral, nenhum mar azul-claro e nenhum céu infinito cheio de sol. Você voltará ao seu salão de cabeleireiro, trabalhará das nove da manhã às sete da noite ou mais tarde ainda e, então, suas pernas estarão doendo, incharão e você ficará contente em poder deitar-se no divã com os pés para cima. A fúria do dia foi boa, mas você está liquidada, totalmente quebrada. Quão longe estará então o Pacífico. Que distância infinita até os mares do Sul! Isso será uma recordação capaz de arrancar suspiros, mas apenas uma recordação para a qual se economizou durante anos a fio, marco após marco, a fim de se viver uma vez na vida algo parecido à aventura da grande distância. Quem era Mário? Ah, sim, o Dr.: Paterna, o médico de bordo. Algumas semanas de felicidade - o que se chama de felicidade -, depois um aperto de mão, talvez um abraço também, um aceno... e o autocarro vai embora para o aeroporto. Acabado, tudo acabado, pois nunca, jamais devemos aferrar-nos ao que é dito na despedida: voltaremos a nos ver... irei visitá-la... não a esquecerei... se você puder esperar, tudo será diferente... esperar! Tão logo o autocarro parte, você já sabe que aquele aceno será a última coisa que verá dele. Assim é a vida, nada diferente disso. - Ela passou a mão pelos cabelos louros penteados para o alto tirando uma mecha da testa. - Talvez você tenha razão em tudo, mas não quero acreditar nisso. Só sei duma coisa: eu o amo.

 - E você acha que dará certo?

 

 - Você pensou nisso também. - Um dolorido sorriso percorreu o rosto de Bárbara. - Por acaso você também não está flutuando sobre uma onda de esperança? Sei que Mário passou com você o dia no Panamá, as fofocas dos passageiros pularam, as pessoas procuram sensações e temas de conversa no navio depois que cada grupo passou a saber tudo dos outros. E ainda temos algumas semanas pela frente... Eu sei inclusive o que você comeu e bebeu.

- E eu sei que Mário te beijou uma noite no convés.

 Bárbara ergueu a cabeça de supetão.

 - Já estão falando disso?

 - Não. Eu vi, por acaso. Eu também quis vir ao convés. Parei junto à porta lá do outro lado e depois retornei à minha cabina. Não senti nenhuma inveja, não, absolutamente nada. Nessa época o Dr. Paterna me era indiferente. Eu apenas não quis incomodar. Mas depois veio o Panamá e desde então tudo ficou bem diferente.

 - Ainda mais recente do que o meu caso? E você ainda se admira? - Bárbara Steinberg sacudiu a cabeça. Uma resposta muda à própria pergunta. - Você quer que eu dê a liberdade a Mário?

 - Você ainda não é a dona dele.

 - E você menos ainda! Por acaso devemos duelar por causa dele? Não me venha com esses chamados argumentos sensatos de que um médico não tem nada a ver com uma cabeleireira, de que uma enfermeira combina muito melhor com ele do que uma cabeleireira... Você conhece os planos de Mário?

 - Não muito - disse Beate hesitante.

 - Mas eu sim. Ele vai navegar mais dois anos pelos mares e depois uma clínica particular exclusiva nalgum lugar do sul da Alemanha. Com todas as terapias modernas que custam muito dinheiro e não fazem mal a ninguém. Uma clínica da moda, como se diz por aí. Eu posso ajudá-lo nisso...

 - Com um salão de cabeleireiro na clínica? Nada mal! - a frase devia soar com sarcasmo, mas saiu com um certo espanto concomitante.

 - Não só isso! como dona de salão, eu aprendi a fazer a contabilidade, registros nos livros, impostos, cálculos. Portanto, posso ajudá-lo com uma base mais ampla. Posso ajudá-lo em toda a administração; ele só precisará estar presente para seus pacientes.

 - Vocês já conversaram a esse respeito? - de repente, Beate disse "vocês" como se tivesse reconhecido que Mário e Bárbara fossem companheiros.

 - Não. Mas eu o farei.

 - E se ele esquivar-se, se ele, como todos os homens, usar o futuro como desculpa: não podemos saber o que será daqui a dois anos? Vamos aguardar, minha querida. Ainda é cedo demais para já fazermos planos... E se ele reagir assim?

 - Então ficarei sabendo melhor. - Bárbara Steinberg tornou a tirar a mecha de cabelo da testa. Da terra firme soprava um vento quente bem leve que era sentido como uma carícia. Além disso o infinito céu estrelado e o mar coberto pelo luar de prata - se alguém pintasse esse quadro, ficaria terrivelmente cafona. Nada é mais cintilante e multiforme do que a vida verdadeira; nada é tão múltiplo como a natureza, do nascer ao pôr-do-sol e pela noite adentro. - Isso também passará, Beate. Posso chamá-la assim?

 

 - Não tenho nada contra, Bárbara.

 As duas deram-se as mãos, de um modo hesitante, sem apertar, depois retiraram-nas num movimento rápido, como se aquele aperto de mão pudesse infeccioná-las. De qualquer modo, fora armada uma ponte forte o bastante para que nela se caminhasse.

 - E então, o que será? - perguntou Bárbara. - Não é uma situação bem maluca? Você ama Mário, eu amo Mário, uma de nós duas está sobrando. Você quer que eu vá para o inferno, eu desejaria que você nunca tivesse nascido. No entanto, vamos ser obrigadas a conviver no mesmo navio durante semanas, nesse espaço apertado que não tem saída. Vamos nos ver todos os dias, vamos nos vigiar e odiar; tentaremos suplantar a outra; pelas noites morderemos o travesseiro de tanto ciúme só de pensar: agora ele está com aquela sirigaita! E uma de nós será repelida e voltará dessa viagem triste, humilhada. Não é uma espécie de loucura?

 - Uma proposta: por que não deixamos a decisão por conta de Mário?

 - era isso mesmo que eu queria dizer. Ele precisa ter certeza sobre qual de nós duas ele ama mais.

 era exactamente essa decisão que o Dr. Paterna mais receava. Quando se despedira de Bárbara hà alguns momentos atrás, ele ficara muito contente com o facto de ela querer continuar um pouco mais no convés, pois o ar estava tão magnífico e o céu estrelado tão inesquecível. Na mesma hora, ele desceu de elevador até o bar Olympia, mas Beate e Dabrowski já haviam ido embora. Somente a máfia dos médicos de Hamburgo continuava a bagunça por lá, após ter "limpado" o bar dos outros passageiros; agora estavam à vontade contando piadas de medicina. As pessoas que conhecem essas piadas compreendem porque a cada minuto o ambiente se enche de gargalhadas estrondosas.

 O Dr. Paterna lançou um rápido olhar pelo bar, acenou uma recusa agradecida ao convite para ir participar do círculo de colegas e depois foi percorrer todos os lugares nos quais Beate pudesse encontrar-se. Mas não encontrou-a nem no bar Atlantis nem no Clube do Pescador e tão-pouco nos vários conveses.

 Bem deprimido, desceu ao seu "subterrâneo", o hospital, e deitou-se na cama com pensamentos sombrios. Sucumbira a um estado no qual como se conhecia e no qual, com sua experiência quase infinita com as mulheres, não deveria entrar: apaixonara-se. Aquilo já não era mais um flerte como as centenas de outros dos últimos anos, mas sim um amor que o corroía até a medula. Só que esse amor estava voltado para duas moças; isso era o fatal.

 No tombadilho, Beate hesitou após ter recuado dois passos da amurada.

 - Você não vem junto? - ela perguntou a Bárbara Steinberg.

 - Aonde? - Bárbara encarou-a espantada.

 - Pensei que você também quisesse ir dormir.

 - Não. Estou agitada demais por dentro. Gostaria de ficar olhando o mar mais algum tempo para acalmar-me. Essa também é a sua primeira viagem marítima, Beate?

 - É a minha terceira.

 - No meu caso é a primeira... e também, por longo tempo, a última. Mas estou começando a gostar do mar.

 

 Dabrowski estava esperando na escadaria quando Beate retornou da amurada. Ela parou assustada e com a respiração agitada.

 - Você ... você me seguiu? - sua voz tremeu um pouco.

 - Essa expressão está errada, Beate. Eu tinha tanta certeza como minha orelha esquerda está no lado esquerdo da cabeça que você sairia da cabina depois de um rápido momento de espera, a fim de ir observar Paterna e Bárbara Steinberg. Mas não sabia como você se comportaria, por isso eu a segui.

 - E como me comportei?

 - De um modo estupendo. Simplesmente estupendo, Beate.

 - Obrigada, Sr. Dabrowski.

 - Seria mais estupendo ainda se você percebesse que o melhor a fazer é parar de venerar o Dr. Paterna.

 - Precisamos conversar sobre isso às duas da madrugada numa escadaria?

 - A gente deve malhar o ferro enquanto ele ainda está quente. Depois fica muito mais difícil. Você vai querer meter-se entre Bárbara e Paterna?

 - Meter-me, eu?! Só estou reagindo à acção dele.

 - É, pode-se dizer assim. Trate de cortar essa sua reacção. Ficou bem claro para você o que Paterna significa para Bárbara. Ele é o destino dela.

 - E quem foi que perguntou isso? - disse ela de modo duro, com o rosto inflexível. - Por acaso eu não tenho destino?

 - Ora, não fique plantada aí como se fosse uma antiga tragédia grega! Paterna e você ... os dois não combinam. No seu caso trata-se de uma paixão fulgurante, no caso dele apenas um flerte ardente e vai acontecer exactamente o que Bárbara disse com tanta sapiência: despedida em Sidney, uma piedosa promessa de reencontro, juras de amor... e depois o silêncio! Depois de seis meses, tudo não passará de uma lembrança borrada.

 - Você ficou escutando no tombadilho?

 - Eu estava na sombra da porta e escutei tudo. Cada palavra.

 - Puxa!

 - Assumo isso. Escutar sem ser visto tem um certo valor. Agora eu sei mais e você também! - Dabrowski aproximou-se dela e envolveu-lhe a cintura com o braço. Nesse momento, sentiu um tremor interno percorrer-lhe o corpo. - Venha! - disse em tom paternal. - Vá deitar-se, tente dormir. A coisa é tão ruim assim?

 - É muito pior.

 - Isso passa. Dê uma sacudidela no coração e trate de colocá-lo de volta ao lugar certo.

 - Vou tentar, Sr. Dabrowski.

 De repente, Beate começou a chorar como uma criança pequena que dá um tombo. E Dabrowski levou-a até à cabina, deu-lhe um beijo na testa e disse ao sair:

 - Chore até lavar a alma. Amanhã tudo será mais fácil e o mundo parecerá como deve ser: ensolarado, cheio de aventuras, cheio de novas descobertas... simplesmente lindo.

 Ela concordou, jogou-se na cama e continuou chorando...

 

 Guaiaquil.

 

 Não é apenas uma cidade portuária sul-americana, não somente o maior porto do Equador, ou um memorial sempre vivo dos conquistadores espanhóis sob o comando do capitão de Pizarro, Sebastian de Belalcázar, que, em 1533/1534, conquistou o país do rei inca Huascar, um filho do famoso soberano inca Atahualpa, e entregou-o à coroa espanhola... Guaiaquil é a porta para um dos países mais fascinantes do norte da América do Sul.

 Já a entrada pelo Pacífico na foz do rio Guayas, em cuja margem do delta está situada a cidade de três quartos de milhão de pessoas, tem algo de sensacional. De repente, fica-se cercado de ilhas de mangues flutuantes que deslizam indolentes pelo rio largo e de coloração amarela parda indo em direcção ao mar, pois em toda a volta do navio estende-se uma paisagem de selva. A selva impenetrável alterna-se com imensos pântanos de mansões. Nos terrenos baixos dos afluentes abrem-se gigantescas plantações de bananas, campos de café e cacau, arroz, cana-de-açúcar e algodão. Exploram-se as madeiras nobres e as corantes das florestas tropicais que em grande parte ainda não foram transformadas em cidades. Ali guincham os macacos do Novo Mundo, as preguiças penduram-se nos galhos das árvores, matraqueiam os papagaios e voam em bandos os colibris, pelicanos e alcatrazes... um paraíso quente e húmido, no qual a temperatura do dia nunca vai abaixo dos 31 graus. Nos rios afluentes do Guayas, revolvem-se as capivaras no solo pantanoso, os crocodilos espreitam suas presas e as águas estão apinhadas das temíveis e vorazes piranhas, que em poucos minutos são capazes de roer até o esqueleto de qualquer porão que caia na água. Ao longo da margem, cipós e orquídeas enroscam-se nas árvores, florescem as bromélias e a humidade evaporada sobe qual névoa dos exuberantes pântanos dos manguezais.

 Viaja-se por entre esse magnífico, porém, perigoso mundo de encanto em direcção à cidade de Guaiaquil. Da costa com seus amplos e férteis aluviões que transformaram o Equador no maior produtor de banana do mercado mundial, pode-se, com bom tempo, ver a outra terra: a cordilheira dos Andes, a sierra, que corta todo o país numa extensão de 650 quilómetros, coroada com os brancos picos glaciais do Chimborazo, de 6.267 metros de altura e do vulcão Cotopaxi, ainda em actividade, com 5.897 metros, o mais alto vulcão activo do mundo. à sua volta, uma cadeia de vulcões extintos, cobertos de gelo e da neve eterna, projectando-se num céu incrivelmente azul. Bosques montanhosos e nebulosos cobrem os flancos dos morros e ali, no leste, onde a cordilheira afunda na planície do Amazonas, começa a selva tropical, habitada apenas por poucos índios selvagens que, qual nómadas, vivem mudando de um lugar para o outro.

 Somente no meio das terras altas, onde medram o milho, o trigo, a batata, as verduras e frutas, onde se criam porcos e vacas é que os índios tornaram-se sedentários: a tribo dos índios quíchuas, descendentes directos dos lendários incas.

 Guaiaquil.

 Guaiaquil significa também: a sede do episcopado com a maravilhosa catedral, a famosa igreja de São Domingo na cidade velha de Las Penas, avenidas largas e parques, o monumento aos heróis da libertação da América do Sul, José de San Martin e Simon Bolívar. Mas sobretudo uma pequena maravilha de beleza imponente: o cemitério de mármore. Ali fica-se mudo de admiração diante de centenas de pequenos mausoléus e anjos de mármore branco, dos monumentos esculpidos cheios de expressão alegórica e de milhares de câmaras sepulcrais encravadas em paredes de mármore branco, com três, quatro andares uns sobre os outros... uma cidade de luxo singular para os mortos.

 

 Sul-americanos ricos de todos os países, mas também Norte-americanos e europeus, comovidos com esse cemitério de mármore, expressaram em seus testamentos o desejo de encontrar ali a paz derradeira, sob um monumento esculpido em mármore só para si. E, assim, caminha-se por entre os esplêndidos monumentos sepulcrais lendo-se nomes do mundo inteiro, para-se diante do gigantesco Cristo do lado frontal do cemitério, cujas mãos, em gesto de bênção, tudo abrangem, e então se compreende de repente que aquele lugar é um símbolo da crença, da humildade e da esperança, um monumento de mármore à imortalidade.

 Diante do comprido muro do cemitério, na ampla calçada da rua, ficam sentados os índios e mestiços oferecendo flores aos visitantes. Imensas coroas e grinaldas de todas. as cores, adornadas com enormes fitas e laços, arranjos artísticos e buques de cores vivas... e tudo isso artesanato doméstico feito de flores de papel e caules de plástico, ou fornecido pelas fábricas de flores de papel.

 Guaiaquil.

 Mais do que um porto; é um monumento aos séculos inolvidáveis.

 Foi mais ou menos assim que Juan de Garcia explicou a cidade para Thea Sassenholtz, ao aterrissar no aeroporto de Guaiaquil vindo do Panamá. Haviam sobrevoado as selvas e o Alto Amazonas com um tempo tão claro que as pessoas acharam que podiam tocar as copas das gigantescas árvores da selva. Sobrevoaram algumas vezes acampamentos solitários de índios rechaçados para dentro da infinita floresta tropical, espaços vitais desbravados, em sua maior parte situados junto ao leito de rios que asseguravam a vida dos nativos: peixes, animais selvagens abatidos com as setas envenenadas das zarabatanas, quando aproximavam-se do rio para beber, e milho selvagem.

 - Lá embaixo existem tribos indígenas nunca vistas por nenhum branco, que nunca toparam com um branco - disse Juan de Garcia. - Ninguém consegue penetrar na selva até esse ponto. Os índios matariam na hora, cortariam a cabeça e depois reduziriam seu tamanho para pendurá-la na cabana como troféu de vitória.

 - E o que eles pensam quando um avião como esse passa trovejando? - Thea Sassenholtz ergueu os ombros arrepiada e olhou para a selva virgem lá embaixo.

 - Não sei. No princípio devem ter ficado com muito medo do Deus gritante, mas nesse meio tempo já se acostumaram. - E, quando atravessaram as primeiras colónias e plantações de banana antes de Guaiaquil, ele disse: - Que pena...

 - Pena de quê?

 - Que o voo já esteja no fim. Aterrissaremos dentro de vinte minutos, um aperto de mão... e nunca mais nos veremos. É realmente uma pena.

 - Você me ajudou muito quando eu estava em pânico, senhor Garcia. Primeiro perdi o navio, depois aquele sujeito da embaixada e mais tarde sozinha naquele mundo estranho... que sorte o nosso encontro no hotel.

 - Que sorte! Eu que o diga! A propósito, não vou deixar para lá o tratamento que lhe deram seus compatriotas. Ele vai ter consequências. Podem intimidá-la, mas não a mim! Sou costa-riquenho, não nasci com essa mentalidade alemã submissa.

 

 - Deixa para lá, por favor. - Thea Sassenholtz sacudiu a cabeça.

- O que resultaria daí? Uma anotação em documento que ficaria pegando poeira em Bonn. Eles dirão: puxa, mais outro enchendo o saco. E ainda por cima meio-índio! era só o que faltava! - ela encarou-o chocada. - Oh, desculpe-me. Isso do meio-índio não foi um insulto.

 - Mesmo que eu fosse, não seria um insulto para mim. Meu orgulho de índio seria mais forte do que o ar aristocrático dos brancos. às vezes fico admirado ao pensar na docilidade e paciência com que os nativos se deixam fotografar de todos os lados como se fossem animais raros. As pessoas entram em seus templos e locais de culto, sem perguntar pelos ritos, insultam os deuses... é incompreensível. - Garcia recostou-se no assento. - O que diriam os brancos se os índios ou negros entrassem em seu país, fotografassem os brancos, as mães dando de mamar, invadissem aos bandos as igrejas percorrendo os altares e as figuras de Cristo, enquanto conversavam em voz alta em seu idioma, sem tirar o chapéu ou boné, iluminando as missas com os flashes das máquinas; fotografando as orações com centenas de câmaras, sentando-se nos bancos da igreja e fazendo um delicioso piquenique... você consegue imaginar isso? Vi tal coisa no Japão, na Índia e no Cairo, na China e recentemente em Hadramaut. Lá os turistas entraram nos prédios de barro sem perguntar a ninguém e fotografaram a vida em comunidade dos homens e animais, como se isso já estivesse incluído no preço. Você consegue sonhar que um índio entre numa residência alemã sem falar com ninguém e fotografe tudo? Você vai dizer: impossível. Haveria o maior barulho! Mas as pessoas exigem dos "selvagens" que fiquem quietos. Por acaso eles não são seres humanos com orgulho e direito à vida privada? E ai deles se se mostrarem reservados! Aí, os brancos têm uma explosão de soberba, demonstram quem é a "raça superior", e então o negócio é: esses percevejos deviam ser esmigalhados! - Garcia respirou fundo. - Uma vez eu chamei a atenção de um alemão que entrou numa mesquita da Jordânia e fotografou o sepulcro de um santo. O cara estava de Bermudas, um quepe de linho na cabeça e sapatos. Sabe o que ele gritou para mim? "Vá se mijar, seu comedor de macarrão!" Assim é a vida.

 - Sim, assim é a vida. - Thea Sassenholtz concordou perplexa. - E por isso não faz o menor sentido queixar-se do funcionário da embaixada. Você é um "comedor de macarrão". Eu já lhe disse: sua queixa vai parar na mesma hora na lata do lixo. Portanto, para quê tanto trabalho? - ela olhou pela janela.

 Sob eles corriam os afluentes do rio Guayas, as colónias, os aluviões cultivados e urbanizados, os manguezais, os campos de cacau e também algumas torres de perfuração de petróleo. Procurava-se ali a nova riqueza do Equador. Petróleo... a palavra mágica para milhões.

 - Agora falta pouco para chegarmos em Guaiaquil - disse ela.

 - Em poucos minutos veremos o mar de casas junto ao rio. - Garcia apertou o cinto de segurança. A aeromoça grasnou o primeiro aviso pelos alto-falantes. Chegada a Guaiaquil. - Quando o seu Atlantis chega aqui?

 - Dentro de dois dias.

 - Seria uma insolência pedir-lhe que me conceda esses dois dias?

 

 - Era isso que eu estava esperando. - De repente, Thea riu como uma garota e aninhou-se no cinto de segurança para apertá-lo.

- Uma tolice, não é mesmo? Esses pensamentos com quase sessenta anos de idade.

 - O que significa quase?

 - Em três meses. - Ela encarou-o com um ar inquisidor. - Desapontado, não?

 - Por que estaria? Eu também já tenho cinquenta e cinco.

 - No caso dos homens isso é diferente. As têmporas grisalhas deixam os homens terrivelmente interessantes. Em compensação, uma mulher de cabelos grisalhos torna-se avó no acto. E isso é verdade. Tenho um neto de doze anos.

 - Acho isso extraordinário. - Garcia pousou a mão no joelho de Thea.

 Sou uma maluca, foi o pensamento de Thea Sassenholtz. O toque dele me deixa nervosa. Esse tipo de coisa na minha idade. Se eu ainda tivesse quarenta anos... e depois esse homem! Componha-se, Thea... por acaso esses são pensamentos de uma avó?!

 - Sou viúvo. Sem filhos. Cafeicultor na Costa Rica. Quando nalgum lugar da Alemanha você compra ou toma uma xícara de café, com toda certeza um grão da minha fazenda está no meio. Grande parte de minha exportação vai para seu país. Minha mulher morreu com quarenta anos; era uma mulher alta, esguia e bonita, com cabelos pretos caindo nos ombros. Uma aristocrata. - Ele olhou pela janela. Nesse momento, Guaiaquil estava debaixo deles. O avião fez uma larga curva sobre a cidade,

dirigindo-se ao aeroporto. A catedral, os parques, as amplas avenidas, o rio indolente com as centenas de pequenas ilhas de mansões soltos que flutuavam em direcção ao delta e que ali enredavam-se de novo.

 - Quarenta anos não é velhice - disse Thea Sassenholtz com cuidado. - Ela estava muito doente?

 - era saudável como poucos. Foi assassinada.

 - Assas... - a palavra parou em sua garganta. Ela encarou Garcia, horrorizada. - Mas isso é terrível.

 - A política...

 - A política, como assim?

 

 - Bem, foi formado um grupo no país. Ele baptizou-se com o nome orgulhoso de Frente de Libertação Nacional. Sua consigna principal: expropriação. Todo poder para o povo. Na verdade, eram terroristas que formavam grupos guerrilheiros e assaltavam os fazendeiros. Uma guerra de guerrilhas pelas costas. Minha fazenda também foi atacada. No início éramos cinco homens e uma mulher... minha esposa. Durante três dias, conseguimos defender-nos e rechaçar o ataque. Depois... depois uma bala atingiu minha mulher. Eu quis desistir, nessa hora estava pouco ligando para tudo, eles podiam empalar-me vivo numa estaca de bambu, coisa que já haviam feito com outras pessoas, ou picar-me com machetes. Mas então, meus trabalhadores índios desceram das terras altas, onde estão situados os meus campos. Eles desceram silenciosa e impiedosamente. O grupo de terroristas não teve sobreviventes,. meus índios acabaram com todos. Nunca mais alguém tentou assaltar-me, essas coisas são faladas por toda a parte. Mas minha mulher, Joana de Garcia, estava morta. Os índios prepararam um enterro como se ela fosse uma rainha Maia. Nunca se viu algo igual. - Ele passou ambas as mãos no rosto. - Desde então, os índios são os únicos seres humanos que eu amo. Com meus semelhantes, com os brancos, eu só lido comercialmente. - Ele olhou com ar cândido para Thea Sassenholtz. - E também confesso: de vez em quando tenho uma amante índia. Isso lhe espanta?

 - De jeito nenhum. Por quê? Você é um homem saudável... - ela mordeu o lábio como se já tivesse falado demais. - E principalmente é um homem livre.

 - E você, senhora?

 - Meu marido é cangalheiro, tem cinco anos a mais do que eu, é gordo e por isso tem pressão alta, adora bolinho de batata e assado. - Ela deu uma risada alta. - um sujeito bem simpático e alegre que, após trinta e cinco anos de casamento, ainda me chama de "florzinha".

 - Florzinha?

 - Quando me viu pela primeira vez, eu tinha vinte e um anos, ele disse: "Você parece uma florzinha." Nessa época fiquei perplexa, até que mais tarde percebi que ele não sabia fazer galanteios. Para ele, florzinha era o mais elevado.

 - Quer dizer, então, que você tem um casamento feliz?

 - Tenho.

 - Mesmo assim, eu lhe peço dois dias em Guaiaquil... Vamos dar uma olhada no belo vulcão extinto de Chimborazo, que agora está coberto por uma geleira. Ele foi escalado por seu compatriota Alexander von Humboldt. Nas férteis depressões dos vales vivem os índios quíchuas que ainda hoje falam o velho idioma inca.

 O aparelho preparou-se para a aterrissagem, desceu suavemente e rolou pela pista. De repente, Juan de Garcia sacudiu a cabeça.

 - O que foi? - perguntou Thea Sassenholtz. - O que lhe desagrada? Por que balançou a cabeça?

 Juan de Garcia riu.

 - É estranho - observou ele. - Posso possuir as mais belas índias. Os pais das mais educadas moças da sociedade costa-riquenha me apertariam contra seus peitos peitudos, se eu ficasse com uma delas. E o que me acontece agora? Nós nos conhecemos apenas há um dia e, contudo, eu estaria já disposto a chamá-la de "florzinha", assim como seu marido. - Soou o último sinal, a permissão para que se soltasse o cinto de segurança. Garcia soltou o seu na mesma hora e levantou-se do assento. - Mas, por favor, senhora, esqueça isso.

 Ela concordou, sentiu o coração bater apressado e advertiu-se: seja sensata! Não perca a linha. Contenha-se, vovozinha...

 

Juliane Herbitina princesa von Marxen, aliás Juliane von Haller, finalmente conseguira fazer com que a bela comissária Marianne a visitasse na cabina 56. O príncipe Friedrich Enno, enrolado num robe caseiro com brocados bordados, estava sentado no banquinho estofado junto à janela, parecia febril, tinha o rosto avermelhado, uma garrafa de borgonha à sua frente e um charuto entre os dedos levemente trémulos.

 

 A cabina cheirava a um perfume adocicado, como se aquilo fosse o boudoir de uma mulher que tivesse borrifado o corpo da cabeça aos pés para uma aventura nocturna. O ar-condicionado zumbia de leve. O rádio tocava baixo uma música clássica, um concerto para piano de Lis. A estação de bordo tinha dois canais, um com música de dança e entretenimento e o outro com selectas peças clássicas. Nesse momento, o pianista soviético Swlatoslaw Richter, o melhor do mundo, estava tocando.

 - Mas ela vem mesmo? - perguntou o príncipe. Em sua voz tremeu a expectativa. - O que você lhe disse?

 - Já lhe expliquei isso cinco vezes. - A princesa, num vestido longo de noite, de chiffon, de cor azul-marinho e com ramos de orquídeas bordados em branco e rosa, deu uma tragada na longa piteira dourada e soprou a fumaça contra a grade do condicionador de ar em cima da porta do corredor. - Ela virá!

 - Tem certeza

 - Se cumprir sua promessa..

 - Se...! - o príncipe soltou um suspiro pesado. O copo de vinho tremeu em sua mão. - Será que você não foi explícita demais?

 - Eu disse que ela podia ganhar quinhentos marcos da maneira mais fácil... ou mesmo cinco mil até a chegada a Sidney. Ela desembarcará somente na Austrália e então voará para a Alemanha em férias. Tem um namorado, um estudante; ela quer ir esquiar com ele nas montanhas. Deve ser mesmo um tesão ir reviver-se na neve depois de tanto sol

tropical.

 - Não fale desse modo vulgar, Juliane Herbitina. - O príncipe fez uma careta de tortura com seu rosto enrugado. - Essa espera!

 - Aumenta a tensão. Depois você ficará totalmente satisfeito, Friedrich Enno.

 Finalmente bateram à porta. A princesa foi abrir com um ar majestoso, o príncipe bebeu um rápido gole de vinho e lambeu os lábios.

 Essa Marianne, da cidade de Colónia, era uma moça simpática. No início, a princesa observara Helmi, uma mulher um pouco mais rechonchuda, mas já a primeira conversa mostrou que ela não era adequada. A pequena tinha princípios e um deles era: nenhum contato privado com os passageiros. Em serviço, cortês... fora do serviço, também cortês... fora isso, mais nada. O objectivo dela era um dia tornar-se anfitriã como Laura, a anfitriã-chefe que, num longo vestido de noite, postava-se ao lado de Teyendorf junto à porta envidraçada do Salão dos Sete Mares e apresentava-lhe os convidados. Além disso, ela administrava a biblioteca de bordo, preparava torneios de xadrez e bridge, acompanhava os encontros dos aristocráticos membros do Rotary e do Lions Club e era quem sabia de tudo a bordo. Portanto, não deu para ser com Helmi.

 Marianne de Colónia, ruiva e animada, com olhos Verde-acinzentados e boca sensual, pernas longas e seios pontudos, também encarara a Sra. von Haller de um modo bem reservado no início, ao receber a proposta; mas por trás daquela bela testa, parecia que uma máquina de calcular entrara em funcionamento. Cinco mil marcos a mais... não podiam escapar assim, sem mais nem menos. Mas o que seria essa companhia privada? Não podia ser tão ruim assim. O Sr. von Haller era um homem idoso e grisalho, talvez estivesse precisando de uma espécie de enfermeira particular. Vamos esperar para ver! Ela concordara e ficara de aparecer na cabina após o jantar... agora estava lá.

 A princesa cumprimentou-a com uma carícia em seus cabelos ruivos, coisa que Marianne achou estranha.

 

- Você cumpriu a palavra, minha filha - disse Juliane Herbitina com um ar solene. - Agora vou deixá-la a sós com meu marido. Tem quinhentos marcos na mesinha-de-cabeceira da esquerda. Muito obrigada.

 A porta fechou-se, Marianne ficou sozinha com o príncipe. Um silêncio tenso surgiu entre os dois. O velho encarou a moça e engoliu em seco várias vezes, como se tivesse um bolo na garganta. Marianne ficou parada no meio do quarto, indecisa.

 Depois, teve sua atenção chamada para o forte perfume. Em seguida, notou espantada que aquele robe com brocados que o cavalheiro usava, na verdade era um robe de mulher e, quando seu olhar percorreu-lhe o corpo para baixo, Marianne viu com incrível espanto que Haller estava usando meias de mulher e sapatos de salto médio.

 Mas isso não pode ser possível, pensou ela. Esse tipo de coisa a bordo? Uma vez, quando passava férias em Colónia, Marianne assistira a uma peça de Miltowitsch representada por um grupo de travestis berlinenses. Ela quase morrera de tanto rir daqueles homens que se apresentavam com roupas de mulheres. Os senhores-damas... era assim que eles se chamavam e, entre eles, havia algumas "mulheres" que poderiam ganhar qualquer concurso de beleza. Isso se fossem mesmo mulheres, claro.

 Com que então, o Sr. von Haller era um desses? Impossível!

 O príncipe notou seu olhar espantado e começou a tremer com o corpo todo. Ele levantou-se, o robe de bordado cambaleou em seu corpo magro e,- quando deu alguns passos pela cabina em cima dos sapatos de salto médio, von Haller rebolou realmente como uma mulher. Marianne não conseguiu se conter, foi obrigada a sorrir.

 O príncipe apontou com a cabeça para um dos armários de parede.

 - Abra-o! - disse ele e, quando Marianne abriu-o, concluiu: - O que está vendo?

 - Ternos...

 - De três tamanhos diferentes. Um número deve dar em você . Vista o menor.

 - Eu? Por quê?

 - Vamos interpretar uma pecinha teatral

 - Não sei fazer isso...

 - Sabe sim. Qualquer um sabe. Você veste o terno e vira um homem. Vou chamá-la de Jacob. Eu sou uma mulher e meu nome é Helmione.

 - Que nome esquisito.

 - De Shakespeare. Da peça Sonhos de uma Noite de Verão. -

O príncipe sentou-se com pose afectada em cima da cama e

suspirou. - Uma peça bem simples, Jacob. Você entra no quarto, me vê deitado dormindo na cama e aproveita a oportunidade. Você se joga em cima de mim e me estupra.

 - O que é que eu faço? - Marianne recuou até a porta do banheiro.

- Você ficou maluco...

 

 - De que você tem medo? Você é Jacob, um homem. Não vai acontecer-lhe coisa alguma; é comigo que deve acontecer algo! Você me estupra. Quando mais brutal for, melhor. Você pode fazer o que bem entender, bater em mim, me torturar, cuspir em mim... tem um chicote de couro na prateleira em cima dos ternos. Tem também algemas de aço e uma escova com fios de aço. Você pode fazer tudo. Você é o senhor, eu sou apenas sua escrava, sua súbdita. Pune-me!

 Um calafrio percorreu as costas de Marianne. Fuja, pensou ela, fuja o mais rápido que puder! Isso já não é nem mais loucura, não existe nenhuma palavra para descrever. um monstro perverso... sim, é isso que ele é. Um monstro!

 Seu olhar deambulou e, no final, parou nas cinco notas de cem marcos. Até Sidney cinco mil marcos. Quer dizer, suportar dez vezes esse teatro perverso. Ser dez vezes o impiedoso Jacob, que tortura Helmione até arrancar-lhe sangue. Espancar dez vezes com o chicote esse velho e pobre ser humano, algemá-lo e torturá-lo ao máximo até que, esfolado, ele tenha seu orgasmo. Mas que maldita sacanagem!

 Mas, não recompensa, quinhentos marcos... sem que ele te agarre, sem que te aconteça alguma coisa... só para espancares o velho, esse doente digno de compaixão, que só reage quando sente o chicote... por isso, receberás cinco mil marcos.

 Marianne respirou fundo. Enfiou a mão dentro do armário de roupa, tirou o terno menor e abriu a porta do banheiro. Não se olhe no espelho, Marianne, pensou ela, não pense em nada. Pense apenas que vai interpretar uma peça teatral. E se sentir ânsias de vómito, bata com toda a força, libere-se de toda a pressão. Se papai e mamãe soubessem disso... e Micha. Ah, Micha, meu pobre namorado, que bom emprego você pode dar a esses quinhentos marcos... Marianne trocou de roupa, abotoou o terno que de facto lhe caiu bem e voltou à cabina.

 O príncipe estava deitado na cama fingindo dormir, o robe de brocado fora aberto e suas pernas estavam um pouco escarranchadas. Usava calcinha de renda fina e um sutiã de renda também transparente.

 Marianne aproximou-se na ponta dos pés, agarrou as algemas em cima da prateleira e jogou-se sobre o príncipe. Friedrich Enno soltou um grito estridente igual ao de uma mulher atacada, mas não se defendeu quando Marianne algemou-o meio sem jeito.

 Ele só gemeu quando Marianne deu-lhe bofetadas à direita e à esquerda e, quando ela, entrando em súbito desespero, socou-o com ambos os punhos, seu corpo começou a tremer e a esticar-se como se o príncipe estivesse deitado ao sol bem à vontade.

 Uma hora depois, a princesa retornou à cabina. Marianne deixara o príncipe, fugindo em debandada após ter visto que ele se satisfizera, acompanhado por frenéticos gemidos. Pegara os quinhentos marcos, jogara o terno no chão do banheiro e saíra em desabalada carreira.

 O príncipe estava na cama com olhos sonhadores, o robe de bordado fechado de novo. Juliane Herbitina foi até o assento junto à janela e enfiou outro cigarro na piteira de ouro.

 - Satisfeito? - perguntou ela sem nenhuma entonação especial. - Como foi?

 - Maravilhoso. Fantástico... Jacob é tão talentoso...

 - Foi o que pensei. Tenho um olho clínico para isso. Pode deixar por minha conta, querido.

 - Você também é insubstituível. - O príncipe cruzou os braços na nuca. - Acho que hoje fui muito bem. Essa tonificante brisa marinha, o conteúdo de ozónio puro do ar, o sol animador, a inalação do sal iodado do mar na espuma... sinto-me vários anos mais jovem! Há pelo menos vinte anos que não tenho uma experiência tão magnífica como a de hoje.

 

 - Que bom que você tenha se dado bem, Friedrich Enno. Vai sair bem recuperado dessa viagem. Quando Marianne... perdão, Jacob ficou de voltar?

 - No próximo sábado, meu amor. - O príncipe viu o olhar de atrevimento da mulher e balançou a cabeça. - Não. Não é cedo demais. Sinto-me com uma imensa força. E você ? Também teve sucesso?

 - Ele vai aparecer. Uma mulher não tem tanta felicidade para atacar. O escolhido é um industrial de Líbeck... não, não de maçapão; pelo contrário, peixes em conserva. Marcamos um encontro para amanhã à noite. Para tomarmos uma garrafa de champanhe na cabina dele. Tem uma conversa muito charmosa.

 - Que maravilhoso para você, meu amor; quer dizer então que também ficará satisfeita. - O príncipe espreguiçou-se bem à vontade, sentou-se e começou a tirar as meias de mulher. - Essa viagem de cruzeiro vai ser um sucesso total. Uma verdadeira fonte de saúde para nós dois.

Nessa mesma hora, na cabina 262, o arquitecto Jens van Bonnerveen batia em seu amado Eduard Grashorn.

 - Sua puta! - gritou com voz estridente. - Seu merda! Seu... seu... - ele respirou ofegante, deu tapinhas nos braços de Grashorn erguidos em defesa, ao mesmo tempo em que o cuspia. - Eu devia matá-lo. Sim, matá-lo! Ir foder com uma mulherzinha no quarto de passar roupa! Seu porão miserável, seu! Vou partir sua cabeça!

 O casal da cabina contígua 264 estava sentado na cama ouvindo essa briga de ciúme com toda clareza através da parede. Quando van Bonnerveen gritou "seu merda", a mulher estremeceu consternada e encarou o marido. Este encolhera as pernas e ostentava um sorriso largo no rosto.

 - Você ouviu? Ele quer matar o outro! - disse a mulher.

 - Mas não vai fazer isso...

 - como você sabe?!

 - Se tem um capaz de matar alguém, não é Bonnerveen a esse veadinho, mas sim o veadinho ao grande Bonnerveen.

 - Você deve estar muito por dentro dos usos e costumes das bichas, não? - disse a mulher em tom mordaz. - Seu conhecimento sobre mim já não é tão grande assim.

 Nesse momento, na cabina ao lado, Bonnerveen gritava palavras que revelavam uma espantosa imaginação sexual. A mulher ouviu com a boca entreaberta estremecendo a cada vez que os estalos dos golpes interrompiam as palavras.

 - Ele... ele vai mesmo matar o outro às pancadas! Você devia telefonar para a ronda da noite, Erich. Caso contrário, seremos cúmplices por não impedirmos um feito criminoso. Coitadinho!

 - Bem, em todo o caso, pelo menos uma vez ele fodeu direito.

 - Seu imundo!

 - O facto de Bonnerveen tê-lo flagrado enquanto trepava demonstra a falta de prática dele. Elfriede, trate de deitar-se e dormir!

 - Com esse barulho aí? Com essas palavras? Escute só... Que significa isso?

 - Seu piroca de javali...

 - Horrível! E esse tipo de gente está no navio! O comandante devia ser informado.

 - Ele tão-pouco poderia fazer alguma coisa. Os caras pagaram a passagem e se se espancam em sua cabina, é diversão privada deles. Somente se causarem algum escândalo público...

 

 - Estou chocada!

 - Dá para se ver. - O homem, que se chamava Erich, deitou-se e arreganhou um sorriso à mulher que ele chamara de Elfriede. - O que você gostaria mesmo era de fazer um buraco na parede. Ah, isso sim é que são expressões! Trate de conservá-las.

 - Você é um nojento! - a mulher bufou, mas continuou sentada na cama, fazendo for a para escutar as tiradas de ódio de van Bonnerveen. Ficou visivelmente desapontada quando diminuiu o barulho na cabina contígua, até que se fez silêncio total. - Agora ele matou o outro - disse ela em voz baixa - e nós não impedimos... Nós podíamos tê-lo salvo, Erich.

 - Besteira. Deite-se e durma... só faltava essa! - ele levantou a cabeça. Elfriede também tornou a erguer-se e, com a respiração presa, ficou à espreita.

 Um homem chorava ao lado.

 - o assassino está chorando... - gaguejou a mulher. Seus olhos estavam arregalados de espanto. - como é que você consegue ficar aí tão calmo?

 - Estou vivo e, para mim, isso é o principal. - O marido, Erich, virou-se de lado.

 - Puxa, como você mudou com os anos - disse a mulher Elfriede.

- Os outros deviam ver esse seu comportamento para comigo...

 

Nessa noite, a enfermeira Erna foi tirar o Dr. Paterna da cama no hospital.

 Eduard Grashorn estava sentado num banquinho da pequena sala de operações. Sangrava num ferimento na testa, a face esquerda estava toda arranhada, a cabeça apresentava três galos visíveis.

 O Dr. Paterna vestiu o jaleco de médico e esfregou as mãos.

 - Foi atingido? - perguntou.

 - Sim. - Grashorn concordou extenuado.

 - Mas também é uma tremenda bobeira ficar beijando no tombadilho. Existem outros lugares melhores a bordo.

 - Pois foi num desses que eu estava. No quartinho de passar roupa. Mas ela gemeu tão alto... que não pude fazer nada contra. De repente, a porta foi aberta e Jens invadiu o quarto. Aí foi a maior confusão. - Grashorn encarou o Dr. Paterna com um ar súplice. - Doutor escreve que estou doente. Mantenha-me aqui no hospital. Só por alguns dias... por favor! Você deve dizer a Jens que fui seriamente ferido. Que preciso de repouso absoluto. Nada de visitas! Por favor, doutor, faz isso. Estou com medo de Jens.

 - Primeiro vou dar uma olhada para verificar até que ponto ele o machucou. Depois nós continuamos essa conversa.

 Meia hora depois estava tudo acertado. Eduard Grashorn foi para o quarto 4 do hospital e deu-se por satisfeito. O Dr. Paterna prometera-lhe deixá-lo ali por quatro dias e dizer a van Bonnerveen que aos ferimentos dos golpes seguira-se um choque. Repouso absoluto!

 - Você é fantástico, doutor - disse Grashorn sentindo-se feliz. - Devia haver mais gente como você.

 

 Guaiaquil.

 

 Quase todos os passageiros foram para os conveses quando o Atlantis entrou na embocadura do delta do rio Guayas e as primeiras ilhas de mansões flutuantes chocaram-se contra o casco do navio. Enormes gaivotas e albatrozes passaram a acompanhar o navio e, de uma faixa pantanosa da margem, uma colónia inteira de pelicanos bateu asas subindo ao céu escaldante. Oliver Brandes, o oculista com o medo constante de que o barco pudesse soçobrar, também encontrava-se junto à, amurada. Nesse dia ele separara-se de seus amigos do coral, não somente porque estes divertiam-se com seu medo e recebiam-no com frases do tipo "No fundo do mar, no fundo do mar, as bundas das ninfas são redondas e gordinhas", mas também repugnava-lhe o facto de ver os amigos bêbados todas as noites nos bares, ou então saindo para paquerar as passageiras que viajavam sozinhas.

 Assim, ele se afastara e passara a ser chamado de covarde e desmancha prazeres por seus companheiros de canto. Mas o factor decisivo foi uma observação cafajeste que lhe foi feita quando, ao dançar com uma senhora realmente séria, um de seus amigos intrometeu-se e disse com toda a clareza:

 - Oliver, não esqueça de abrir a braguilha...

 Foi natural que a mulher não tivesse dançado uma segunda vez com Oliver Brandes.

 O Dr. Paterna, que caminhava pelo convés para ver a entrada no rio Guayas, parou ao ver Brandes e postou-se ao seu lado.

 - E então, tudo em ordem? Já se adaptou? - perguntou ele.

 Brandes assentiu.

 - Obrigado, doutor. Como é que a gente consegue ser tão idiota aos trinta e três anos?

 - Existe muita gente que ainda o é aos oitenta. Vai querer participar do passeio em Quito?

 - Não sei, doutor. - Oliver Brandes balançou a cabeça. - Eu... li que Quito é uma das capitais mais altas do mundo: 2.850 metros de altitude nos Andes. Será que aguento? O ar rarefeito dali... nunca estive num lugar tão alto assim. E se eu tiver problemas de altitude?

 - Acompanharei o grupo como médico de plantão. Além disso, até três mil metros o ser humano tem reacções normais, mesmo quando vem de terras baixas. Fora isso, levarei comigo alguns frascos de oxigénio puro e máscaras para respirar. Como precaução, posso dar-lhe uns comprimidos. Portanto, nada de medo.

 - Mas que esforço! Será que o passeio vale isso?

 - Quando você poderá voltar a Quito outra vez?

 - Nunca mais nesta vida.

 - Então, você não deve perder. A propósito, os índios de lá fazem uma bebida de extractos de raízes para oferecer aos brancos com problemas de altitude e cujo efeito é extraordinário. Não dizem do que é feita. Tem um gosto de erva-mate e também a mesma cor. - O Dr. Paterna baixou o olhar para as pequenas ilhas flutuantes e três botes de nativos parados na margem da selva. Inclusive um pequeno grupo subirá no Chimborazo, até o acampamento de Humboldt. Lá em cima, até eu fico com a vista escurecida.

 - E então por que não proíbem isso?

 - Por causa da ostentação individual. Cada um precisa saber pessoal mente do que é capaz de suportar. - O Dr. Paterna sorriu. - O membro mais velho do grupo está com setenta e oito anos.

 - Minha Nossa Senhora!

 

 - Engano seu. Esses são os mais resistentes! De acordo com minha experiência de muitas viagens de cruzeiro, quando os passageiros de "melhor idade" afrouxam os velhos continuam firmes. Sobretudo as mulheres. Já vi muitas iluminadas velhinhas que, na parte mais alta atrás do Cuzão ou no deserto de Hadramaut, correram na frente dos outros e não demonstraram a menor compreensão pela respiração ofegante de todos.

 - Quais são as pessoas que participarão do passeio? Pode-se saber?

 - Não é segredo nenhum. Lá estarão o Dr. Schwarme com a mulher, os cavalheiros de Angeli, Fehringer, Moor, Lindenthaler, Wrangel e mais quatro pessoas, o casal de Jongh, a Sra. Steinberg...

 - Espere um instante, doutor! - Brandes fez um gesto de recusa.

 - Você disse o casal de Jongh?

 - Disse.

 - E o Sr. Fehringer?

 - Também.

 - Pode dar encrenca.

 - Como assim? - O Dr. Paterna encarou Brandes com um ar inocente. - Afinal, qual é o problema?

 - Tem um bocado de problemas. Fehringer está dando em cima de Sylvia de Jongh e o marido já percebeu. Eu mesmo já andei observando os dois trocando beijos num canto da varanda. Depois teve aquele duelo no tiro ao alvo.

 - Duelo?

 - Bem, as pessoas que já conheciam a história, perceberam com toda a clareza: como se tratava lá de um tiro ao alvo, era uma briga mascarada. Terminou empatada. Portanto, ainda está por acontecer a continuação. O Sr. de Jongh não é o tipo de homem que desista da revanche. Está acostumado com a vitória. - Oliver Brandes olhou para o rosto bem sério do Dr. Paterna. Imaginou o que o médico estava pensando nesse momento. - Doutor não é verdade que uma pessoa que esteja sofrendo de vertigem de altura não pode ser responsabilizada por quaisquer ações loucas?

 - É, quase não pode. Sua consciência pode estar limitada e extremamente perturbada.

 - Portanto, essa pessoa pode fazer coisas que jamais faria em condições normais, não?

 - Nos casos extremos, sim.

 Brandes respirou fundo.

 - Doutor, vamos elaborar uma tese. O Sr. de Jongh sabe disso, aproveita a altura, banca o pirado e provoca um acidente no qual o Sr. Fehringer perde a vida. Ninguém pode responsabilizá-lo, mas com isso está solucionado o conflito de honra de "de Jongh". Um assassinato perfeito. Mesmo quando se percebe que o crime foi premeditado... a vertigem de altura tira toda a responsabilidade do Sr. de Jongh. Que, oportunidade maravilhosa e única!

 - Sr. Brandes, com toda certeza você anda lendo muito romance policial.

 - No momento estou lendo Konsalik.

 - Isso também basta! - o Dr. Paterna balançou a cabeça, mas o gesto foi de defesa, sem efeito. - Claro que se trata apenas de um flerte de férias! Se por causa disso qualquer um saísse matando os outros...

 

 - De Jongh não é "qualquer um". Uma vez eu fiquei bebendo com ele no bar Atlantis. Ele me perguntou: "Você é casado?" Eu respondi que não. "Você é que é feliz, seu esperto", disse ele. "Uma mulher bonita é um castigo de Deus, sobretudo quando se é muito mais velho do que ela.

No meu caso a diferença é de vinte anos. E quando a gente nota que não passa de um velho pateta, já bateram as doze horas." Depois ele encheu a cara e eu o reboquei de volta à cabina. Quando estava voltando para o bar, vi sua mulher trocando beijos com o Sr. Fehringer. - Oliver Brandes recuou da amurada para fotografar o barão de pesca junto ao manguezal.

- Esse passeio ao Chimborazo pode tornar-se uma tragédia.

 - Se é você quem o diz, Oliver, é porque a coisa é realmente alarmante.

- O Dr. Paterna esperou que Brandes fotografasse o barão junto à selva. - Já andou conversando com outros passageiros a respeito das suas observações?

 - E por acaso sou algum dedo-duro, doutor? Claro que não. Só estou falando agora com você e só porque me contou sobre esse passeio nas montanhas e citou o nome dos participantes.

 - Por favor, continue calado como até agora. E se acontecer alguma coisa entre o Sr. Fehringer e Knut de Jongh, telefone-me na mesma hora para o hospital.

 Paterna deixou o tombadilho e subiu de elevador até o convés da ponte. O comandante Teyendorf encontrava-se fumando com o piloto na ponte de bombordo. O ar quente e húmido também o fazia suar. - Ah, aí está o nosso distribuidor de pílulas! - gritou ele alegre ao ver o Dr. Paterna chegar à ponte. - Tenha a postos um galão de spray contra mosquitos. Quando os bichinhos saírem da margem do pântano e vierem para cá...

 - Posso lhe falar durante alguns momentos, senhor comandante? - a voz séria e a expressão do rosto de Paterna fizeram desaparecer o sorriso de Teyendorf.

 Ele assentiu, entrou na sala de navegação e recostou-se na mesa dos mapas.

 - Alguma má notícia, doutor? Bonnerveen quebrou mesmo a .cabeça do namorado?

 - Isso ainda seria curável, senhor comandante. - O Dr. Paterna tirou o quepe. Ali na ponte, onde nenhum passageiro tinha permissão para frequentar, Teyendorf era um pouco mais brando com suas exigências quanto ao uniforme. - Está começando a se desenvolver um drama a bordo. Partindo de uma coisa à toa.

 - Que significa drama e que significa uma coisa à toa?

 - Bem, pelo que parece, um flerte pode acabar transformando-se em tragédia.

 - Doutor, sei muito bem que para você um flerte é uma coisa à toa.

- Teyendorf arreganhou um sorriso um tanto insinuante. - E então, o que aconteceu?

 - Um certo Sr. Fehringer está sobremaneira interessado na Sra. de Jongh. O marido já percebeu...

 - Olha aqui, se eu precisar acalmar todos os maridos

 

furiosos, a próxima viagem não farei como comandante, mas sim como psicólogo de bordo. Aliás, eis aí uma nova profissão muito útil. De facto, ela devia ser introduzida. Psicólogo de bordo... eis uma bela idéia! Meu Deus, quantas almas descarriladas já vi nas minhas viagens. Quantas maluquices! Quanto acúmulo de histeria! Doutor, esse negócio deve ser resolvido entre Fehringer e de Jongh. O que é que eu poderia fazer?

 - O que justamente temo, comandante, é que eles resolvam a coisa entre si. Ambos encontram-se no grupo que vai escalar parte do Chimborazo. Até a altitude de 4.800 metros.

 - Isso bastará para que esfriem a cabeça.

 - Pelo contrário, comandante; bastará para que percam a cabeça sem terem nenhuma culpa.

 - Não o compreendo. - Teyendorf encarou o Dr. Paterna com um ar desamparado. - O que está querendo dizer?

 - Se de Jongh bancar o sujeito que está pirado por causa da vertigem de altura... Jamais se poderia demonstrar que na verdade ele não enlouquecera... e, por exemplo, jogara o Sr. Fehringer num abismo.:.

 - Pelo amor de Deus, no que está pensando, doutor?! Mas é claro que isso é um absurdo.

 Teyendorf empurrou o quepe para a nuca. Ele não o tirava mesmo ali, na sala de navegação apesar do calor abafado. Na verdade, o ar-condicionado estava funcionando a pleno vapor em todo o navio - os salões, em comparação com a temperatura externa, estavam quase frios e, por isso mesmo, o Dr. Paterna previra uma grande quantidade de resfriados -, mas isso de pouco adiantava ali, posto que estavam abertas as portas que davam para as extremidades da ponte. Teyendorf, sempre um modelo exemplar, ignorava o calor.

 - Andei reflectindo muito sobre a coisa, comandante, antes de trazê-la ao senhor - disse Paterna. - Mas quanto mais penso na situação, mais dramática ela me parece. Não devemos subestimar o perigo.  Não existiria um assassino mais inocente do que de Jongh! Qualquer perícia médica atestaria que ele já não era mais senhor de si numa altitude de quase cinco mil metros, à qual quase foi catapultado a partir de zero. Num caso como esse, pode-se plagiar Schiller: "A oportunidade é adequada..."

 - E não podemos impedir, doutor?

 - Andei pensando que se o senhor fosse conversar com Fehringer, comandante...

 - Eu? - Teyendorf balançou a cabeça com toda a energia. - E porquê não você ?

 - O senhor é o comandante.

 - Mas não juiz de boxe.

 - Pode ser um caso de vida ou morte.

 - Nesse caso, os assistentes espirituais de bordo seriam os mediadores mais adequados. - Evidente que Teyendorf ficou feliz por ter tido essa idéia. - isso mesmo, doutor! Vamos averiguar nos documentos a que religião pertencem esses dois galos de briga e depois enviaremos os sagrados sacerdotes.

 - Melhor seria dizer, para consagrá-los.

 - Não me venha com jogo de palavras! Você nem imagina as coisas que um padre ouve! Existem certas confissões para as quais se precisa de muita capacidade de resistência... Você não crê em nada, não é mesmo?

 - Meu Deus é diferente desse do púlpito.

 - Muito diplomático de sua parte, doutor. Vá falar com os assistentes espirituais.

 - E se não conseguirem?

 - O que devem conseguir?

 

 - Um deles precisa abrir mão do passeio. Ou Fehringer ou de Jongh. Podia-se chamar a atenção de Fehringer para o grande perigo e desaconselhar de Jongh por causa da altitude. Podemos sugerir-lhe que, como hipertónico, ele corre perigo de vida e que não nos responsabilizamos. Acho que nem de Jongh assumiria um risco como esse. Afinal de contas, ele deve querer continuar vivendo com sua bela Sylvia, senão nada mais teria sentido.

 - E se os dois continuarem obstinados?

 - Nesse caso, tanto o sacerdote quanto o médico chamarão o comandante.

 - Mas que droga! - Teyendorf afastou-se do canto da mesa de mapas. - Quando vim para a vida no mar, sonhava em navegar pelos mares do mundo com um imenso navio de passageiros. Tornei-me comandante de um navio assim, mas se soubesse que outras utilidades teria, me defenderia com unhas e dentes para não assumir o batelão. Teria me acorrentado a meu belo barão de transporte de containers para que ninguém me arrancasse dele! Muito bem, mãos à obra, doutor. Atracaremos em menos de duas horas. Quando começa o passeio?

 - Amanhã às sete, com o voo para Quito.

 - Então, sorte, doutor.

 - Obrigado, senhor comandante.

 O Dr. Paterna saiu da ponte e, da sala do primeiro-oficial, telefonou para o director de hotel Riemke. Cinco minutos depois, ficou sabendo: Fehringer era protestante; de Jongh, católico. Por conseguinte, os dois sacerdotes precisavam entrar em acção.

 Günter Wangenheim, o pastor evangélico, encontrou o Dr. Paterna no convés de esportes num jogo de shovelboard. O médico era um jogador extraordinário e quase sempre vencia.

 - O que tem no coração, doutor? - perguntou o pastor quando Paterna puxou-o a um lado. - Tomou a decisão de pôr um fim a essa existência de porão?

 - Preciso da sua ajuda, pastor. Vamos até a varanda. Lá poderei explicar-lhe com toda a calma...

 O padre Heinrich Brause, o alegre jesuíta, encontrou o Dr. Paterna meia hora depois na parte superior, na piscina do Olympia. Ele nadou algumas voltas na água morna, cercado de algumas mulheres, como se fosse o chefe de um cardume de peixes.

 - Você me tirou de minha ocupação preferida, doutor! - deu uma risada quando, todo ensopado, acompanhou Paterna até o pequeno bar externo. - Um papa no meio de belas mulheres seminuas... vigiado pelos olhos de Deus... - os dois sentaram-se nas cadeiras de plástico branco, pediram vodca com suco de laranja e lançaram um olhar para a luxuosa piscina toda cercada de vidro. - Aonde devo ir? Quem está precisando da força da oração?

 

 era uma grande vantagem o padre Brause ter tanto senso de humor. Ele tinha o talento dos grandes comediantes e isso, dissera o padre um dia, era a base para um sacerdote bem-sucedido. Na catequização de Papua-Nova Guiné, os missionários tiveram sucesso junto aos homens da Idade da Pedra não com a palavra de Deus, mas sim com conhecidos truques de mágica. O padre Brause contava como uma tribo inteira entrou em júbilo quando foram tirados ovos de galinha do nariz de um papua. E quando um padre, num passe de mágica, tirou uma bola de ténis da nuca de um cacique e fê-la rolar pelo chão, todos soltaram terríveis gritos de guerra e atiraram as lanças na bola que saltitava de uma maneira incrível. Nessa época, isso foi a base. Depois então surgiu a possibilidade de se falar de modo convincente do Deus maior, que a todos os outros dominava.

 - Você precisa de ter uma conversa com o Sr. de Jongh, padre - disse o Dr. Paterna.

 - Com aquele cabeça de vaca? Por quê?

 - Ele está querendo participar do passeio de amanhã a Chimborazo.

 - Esplêndido. Ele também vai dar uma amolecida naquela altitude de ventos fortes.

 - Talvez a amole demais, padre. Gostaria de explicar-lhe...

 O Dr. Paterna jamais ficou sabendo que conversa os sacerdotes tiveram com Fehringer e de Jongh. O voto de silêncio os proibia de informar sobre os detalhes. Mas os efeitos fizeram-se sentir: na hora do jantar, Fehringer passou pela mesa de Knut de Jongh sem cumprimentar e este ficou com os olhos fixos num ponto à sua frente, como se seu espírito estivesse noutra parte.

 - O que você tem? - perguntou-lhe Sylvia.

 Os dois haviam retornado de um passeio pela cidade de Guaiaquil e, mesmo então, Knut já apresentara um comportamento estranho. Ficara mudo no magnífico cemitério de mármore, contemplara as compridas paredes de sepulturas com seus caixões embutidos e selados com tampas de mármore e se mantivera calado às abalizadas perguntas de Sylvia, que em geral tanto o comoviam. Em compensação, nesse momento ele estava pensando muito mais.

 Suponhamos por exemplo, pensou ele, que a coisa aconteça mesmo como o padre Brause insinuou; eu banco o sujeito que ficou enlouquecido pela altura e atiro esse louro nojento Fehringer no abismo... aí então seria um grande gesto demonstrar um arrependimento contrito após o regresso ao nível do mar e comprar um túmulo para ele aqui no cemitério de mármore. Não uma dessas gavetas das paredes, mas sim um belo

túmulo com um monumento de mármore branco em cima. Pode custar quanto quiser... seria uma prova de meu espanto para comigo mesmo. Esse tipo de coisa sempre pega bem.

 Knut de Jongh ocupou-se ainda mais com as suspeitas humanas do padre. Que deu nele para ter essas idéias?, pensou Knut várias vezes. Será que me comportei de modo a chamar tanto a atenção dos outros, que qualquer pessoa pôde notar meu ódio por Fehringer? Ou trata-se apenas do famoso olho clínico dos padres que penetra fundo nas almas? Bem, seja como for... estava estragada a dramática surpresa em Chimborazo.

 Num determinado momento dessa noite, o Dr. Paterna encontrou os dois sacerdotes. Ambos tinham boas notícias.

 - Fehringer desistiu - informou o pastor Wangenheim. - Ficou pálido quando insinuei a possibilidade de uma luta de vida e morte. Ele prefere não chegar a essa prova de força. Pouco depois, o padre Brause disse satisfeito:

 - De Jongh desistiu do passeio. "Bem, de qualquer modo, se esse "macaco" vai, não tenho a menor vontade, vociferou ele. Doutor, parece que colocamos as coisas nos trilhos!

 O Dr. Paterna voltou ao hospital tranquilizado, fez a maleta de médico para o dia seguinte e preparou uma bolsa especial com três garrafas de oxigénio e máscaras respiratórias.

 

 O despertador tocou às seis horas, às seis e meia o Dr. Paterna chegou à escada que levava ao cais. Lá embaixo já se encontrava o autocarro encomendado para o aeroporto de Guaiaquil. A Comissária Bárbara, que viajaria junto com o grupo, já havia começado a recolher os bilhetes. O grupo que iria ao Chimborazo já estava esperando completo para entrar no autocarro.

 O Dr. Paterna deteve-se na escada e fechou os olhos por alguns momentos. Agora só Deus nos ajuda, pensou ele, inclusive Esse no qual eu acredito. E devem existir mesmo os deuses incas... eu os convoco também!

 Separados um do outro, cada qual numa ponta da fila de espera, estavam o casal de Jongh e Hans Fehringer.

 Nada mais havia a fazer, a não ser esperar e rezar.

 

 O primeiro dia em Guaiaquil passou rápido demais para Thea Sassenholtz.

 Após as visitas de hábito à catedral, ao cemitério de mármore e à igreja de São Domingo, ao bairro do governo e ao monumento la Rotunda, ela sentou-se com Juan de Garcia no jardim de um café à margem do rio Guayas. Os dois ficaram olhando para o largo rio com suas pequenas ilhas de mansões arrancados das margens e levados pelas águas. Manchas verdes numa água cinzento amarelada. Beberam café e depois um licor forte e adocicado, que tão-pouco Garcia conhecia. O almoço num pequeno restaurante, também na margem do rio, foi típico: llapinçachos - ou seja, puré de batata com queijo gratinado - e cubique de corvina - um peixe ao escabeche em suco de limão. Tudo muito condimentado e simples. Como acompanhamento, eles beberam vinho chileno, um aromático vinho branco que lembrava o Chardonnay Traube da França.

 - Amanhã voaremos para Quito - disse de Garcia de repente. - Ainda temos um dia inteiro pela frente.

 - E os seus negócios? - Thea Sassenholtz esforçava-se para não pensar na hora da despedida. Sou uma boa e fiel esposa, ela repetira para si mesma sempre que Juan de Garcia a enchia de um desassossego de moça. Você nunca traiu seu marido nesses trinta e sete anos de casamento e também não fará isso agora com Juan de Garcia. Você tem sessenta anos, Thea, é avó e, apesar da aparência ainda boa, uma mulher na qual ficariam ridículos os arrebatamentos de moça. Dê só uma olhada em Juan: um homem realmente bonito, um cavalheiro de grandeza espanhola; um sujeito que qualquer mulher pode querer e que não está destinado a uma avó em viagem... Mas mesmo assim, dói lá no fundo do coração, num lugar bem escondido, quando se pensa: amanhã estará tudo acabado. Um aceno da amurada, um sorriso, mesmo que seja doloroso, coisa que ninguém notará, e tudo se transformará em recordação, tudo será enterrado num cantinho da alma, restando apenas como um sopro de vida. A inesquecível Guaiaquil...

 - Não tenho negócio nenhum no Equador.

 - Você não tem... - ela encarou-o perplexa. - Mas então por que veio até aqui?

 - Para não deixá-la sozinha num mundo estranho e muitas vezes hostil. - Garcia arreganhou um sorriso largo. Seu rosto simétrico assumiu um ar jovial. - Originalmente meu objectivo era Cartagena, na Colómbia. Eu tinha uma entrevista lá. - Ele fez um gesto de desdém. - Um telefonema... liquidado. E postergado por três dias. Qualquer ser humano pode se dar esse tempo, caso contrário a existência seria uma tortura sem sentido. Os homens têm muito pouco tempo para si e seus semelhantes. O tempo só não tem importância quando eles entram em guerra.

 - Sinto-me terrivelmente miserável, Juan - disse Thea Sassenholtz. - Sinto-me muito mal.

 - Não lhe caiu bem o cubique de corvina? - de Garcia inclinou-se preocupado para junto de Thea. - Os peixes daqui são sempre frescos.

 - Você mudou todos os planos para perder dois dias indo comigo a um país, ao qual não queria ir. Isso me deixa triste.

 - Mas eu fico feliz.

 

 - Estou roubando seu tempo.

 De Garcia balançou a cabeça.

 - Não devia pensar assim, "florzinha".

 - Que bom. - Thea Sassenholtz bebericou o licor doce e depois sorveu um gole de café. A mistura era magnífica.

 - O que foi bom?

 - Que você me tenha chamado de "florzinha". Trouxe-me de volta à realidade. Assim que eu voltar a bordo, vou telefonar para Peter.

 - Peter é o seu marido?

 - É.

 - Deve ser um homem feliz. Eu pelo menos seria com uma mulher...

 - Vou dizer a ele: "Oi, estou aqui no Equador. E você deve saber através desses milhares de quilómetros de distância: eu te amo." - Thea lançou um rápido olhar a Juan de Garcia, mas este olhava imóvel para o rio. - Sua mulher também não diria a mesma coisa?

 - Todos os dias! A cada hora! Quando ela foi fuzilada pelos rebeldes, meus trabalhadores precisaram amarrar-me, pois eu queria sair correndo da casa para me deixar matar também.

 - Posso compreender isso - disse ela em voz baixa. - Não sei se Peter teria agido da mesma maneira, mas sei que sua vida estaria destroçada se ele me perdesse... num acontecimento como esse... ou de alguma outra forma... Quantas pessoas se perdem sem morte?

 Foi como se com isso estivesse liquidado o assunto entre eles. No curto crepúsculo, os dois ainda foram passear pelo rio num pequeno barão a motor, depois retornaram a Guaiaquil na penumbra e foram comer num hotel de luxo da cidade. Garcia também reservara os quartos no mesmo hotel.

Quando ele e Thea foram inspeccioná-los, Garcia desculpou-se na mesma hora, embora ela nada tivesse dito.

 - Eu não tinha a menor idéia de que eles ficavam lado a lado com uma porta de ligação aberta. Mandarei trocar agora mesmo. - Ele ostentou um sorriso acanhado. - Parece que aqui eles pensam mais além quando um homem e uma mulher reservam dois quartos, mas estão viajando juntos.

 - Mas muitas vezes eles acertam no alvo - ela também sorriu. - Não se preocupe, Juan. Basta fechar a porta de ligação e a chave ficar do meu lado.

 - Mas você não está pensando que eu...

 - Mas claro que não! Você é um cavalheiro. - Nesse momento ela deu uma risada, viu o mensageiro índio, com um visível espanto estampado no rosto, levar a mala de Garcia para o outro quarto e então deu-lhe o braço.

- Acredite você ou não, estou morta de fome. Quero um bife gigantesco. Sabe o que uma vez Peter disse com um alegre estado de espírito provocado pelo álcool? "Esse negócio de se comer sem carne é uma coisa quase pervertida!" E olha que isso foi num convite para um congresso de vegetarianos. Quase caí no chão de tanta vergonha... Mas sabe o que fizeram os homens e mulheres que odiavam carne? Morreram de rir! Depois, como vegetarianos conscientes, passaram aos cereais. Sabe o que é isso?

 - Não.

 

 - Um milho... uma pilsen. No final do congresso, Peter balbuciou: "A gente não conhece os vegetarianos." Será que este hotel tem um filé gigantesco, ou o restaurante é aristocrático demais para tal coisa?

 - Pedirei a metade de um boi assado.

 - Você tem cara de quem é mesmo capaz.

 Satisfeitos, os dois desceram até o restaurante, onde já estava reservada uma mesa, discreta, num canto, encoberta por um gigantesco ramo de buganvília num vaso de mármore branco. Thea Sassenholtz ficou parada.

 - Isso também foi encomendado?

 - Um atencioso serviço de hóspede. - Garcia conduziu-a em volta do ramo. - Sem saber, o esperto gerente de hotel fez a coisa certa: um mar de flores para uma "florzinha".

 Mais tarde, quando os dois se despediam diante da porta do quarto de Thea, Garcia disse:

 - Quer dizer então que amanhã de manhã Quito! Pense nisso: o aparelho levanta voo às sete da manhã.

 Ele beijou a mão de Thea, esperou que a porta se fechasse e a chave fosse girada e depois foi para seu quarto. Ali chegando, sentou-se numa poltrona e acendeu um cigarro.

 Enquanto isso, Thea Sassenholtz contemplava o arranjo montado em cima de uma mesa redonda: um buquet de rosas claras, um imenso cesto de palha com frutas tropicais e uma garrafa de champanhe dentro de uma cuba de gelo... Com duas taças.

 Serviço de hóspede.

 Thea olhou para a porta de ligação e sentou-se numa poltrona ao lado da mesinha. Agora, só preciso girar essa chave, pensou. É bem simples. Mas mesmo assim muito difícil. No fundo, eu não devia ter esses pensamentos, mas não sou nenhuma velha. Pareço bem mais jovem do que sou. não dizem, me conservei bem e ainda não passei para o outro lado do muro das paixões e desejos. O que foi mesmo que me disse Monika, minha filha mais velha, numa festa dada no jardim? "Mamãe, você está usando uma saia de adolescente. Assim não dá. Pense na sua idade..." E eu respondi: "Seu pai gosta dela, foi ele quem escolheu; outras pessoas também gostam, mas o importante é que eu gosto. Além do que, sei muito bem a minha idade e me sinto trinta anos mais jovem! Em compensação, você parece mais velha do que eu..." Que cara estúpida Monika fez! E nunca mais zombou das minhas roupas. Ser jovem, poder voltar a ser jovem outra vez... seria bonito, não ser uma jovem tagarela, mas voltar a ter quarenta anos.

 Thea deu outra olhada na garrafa de champanhe, nas flores, nas frutas e depois na porta de ligação. A chave brilhou na luz.

 Ter quarenta anos... não é terrível? Para uma sexagenária, quarenta anos ainda é juventude; e como os outros vinte anos passaram rápido! Ou ter trinta, a metade de hoje... meu Deus, como trinta anos é pouco tempo! Claro que parecem infinitos quando se os têm pela frente. E como voaram quando já foram vividos. Mas agora a gente já sabe: cada hora é importante, é valiosa, irrecuperável, muitas vezes é desperdiçada sem nenhum sentido, quase sem ser notada e então a gente começa a ser levada com as horas... tarde demais. E sabemos de mais uma coisa: não se pode recuperar nada. Não faz sentido acumularem-se anos esquecidos.

 

 Thea Sassenholtz levantou-se, foi devagar até à porta de ligação, encostou o ouvido na madeira e ficou escutando. No quarto ao lado reinava um silêncio completo. Nenhum passo, nenhum sussurro, nenhum pigarro. Será que Juan de Garcia já saiu do quarto e está lá embaixo sentado no bar?

 Thea deu uma batidinha tímida na porta e prendeu a respiração. Ele ainda estava lá, Thea ouviu uma poltrona ser empurrada.

 - Sim? - perguntou ele. Devia estar bem ao lado da porta. - Florzinha?

 - Só uma pergunta: você também tem champanhe no seu quarto?

 - Não. Só um cesto de frutas.

 - Bem, aqui eu tenho frutas, um buquet de rosas e uma cuba de gelo com champanhe. E dois copos...

 - Chamarei a atenção do gerente do hotel.

 - Mas o que faço com a garrafa de champanhe?

 - Beba! Mas não toque nas frutas. Nunca se sabe, nem nos hotéis de luxo, se elas estão livres de bactérias. Mesmo quando são lavadas. Não confio na água. Até os dentes eu lavo com água mineral em garrafa. Que champanhe é?

 - Louis Roederer...

 - Excelente! Saúde, florzinha!

 Ela pousara a mão na chave e hesitava. Mas nesse momento retirou a mão com um solavanco como se a chave estivesse em brasa.

 - Obrigada! - sua voz mudara, estava mais áspera e sombria. Seria sua primeira traição, pensou Thea chocada. Duas noites... pouco tempo demais para ultrapassar trinta e sete anos. Trinta e sete anos com Peter Sassenholtz, o gordo alegre. Ele não pode ser trocado por duas noites.

 - Beberei à sua saúde, Juan, e ao dia de amanhã. Boa noite.

 - Boa noite, florzinha...

 Não me chame assim, ela quis gritar. Chame-me por milhares de outros nomes, só não de florzinha! Será que você não compreende que isso é uma parede intransponível entre nós? Quando você diz florzinha, Peter fica entre nós dois... Mesmo que nada aconteça, não deixe que eu seja florzinha durante dois dias! Sonhar dois dias... eu gostaria de viver isso mais uma vez!

 Thea retornou à mesa, tirou a rolha da garrafa e encheu a taça. Em seguida, ergueu-a em direcção à porta de ligação, mas continuou muda e esvaziou a taça de um só gole.

 Meia hora depois, Thea estava dormindo como que anestesiada. Nunca em toda a sua vida havia bebido sozinha uma garrafa inteira de champanhe.

 Na manhã seguinte, às sete horas, os dois se encontravam no avião para Quito.

 - Quando chega seu barco? - perguntou ele.

 - Acho que hoje à noite.

 - E quando zarpa?

 - Depois de amanhã, bem cedo.

 - Quer dizer que você só precisará subir a bordo amanhã durante o dia. Aliás, a qualquer hora... Mesmo noite alta.

 - Pelo amor de Deus, Juan! - ela deu uma risada alta. - Imagine só se perdermos o navio aqui também. Você seria obrigado a me levar para o Peru, a Callão.

 - E isso seria alguma desgraça? Nós telefonaríamos para o comandante e explicaríamos tudo.

 - Impossível! - Thea olhou pela janela. As turbinas trovejavam, a escada foi retirada. - Preciso telefonar para Peter.

 

 Peter... o escudo protector! O muro. Ajude-me, Peter. Fique ao meu lado!

 Garcia assentiu.

 - Ah, sim... Peter. O que você dirá a meu respeito?

 - Devo dizer algo sobre você?

 - Peter é muito ciumento?

 - Não sei. - Ela encarou Juan com toda a atenção. Seus olhos pesquisaram-lhe o rosto. - Ele nunca teve oportunidade para se mostrar. A confiança dele é ilimitada. .

 - Eu já disse, ele é um homem feliz: Eu sou terrivelmente ciumento, florzinha. Seria capaz de espancar qualquer pessoa que a fitasse por mais de dois segundos. Você não faz idéia da eternidade que dois segundos podem ser para um homem ciumento. Acho que se uma mulher me traísse, eu poderia tornar-me um assassino. Dá para notar isso em mim?

 - Dá - concordou ela. Nesse momento, o avião começou a rolar tomando velocidade cada vez maior, até erguer-se no céu azul.

Thea Sassenholtz respirou aliviada. Tinha medo da decolagem e de cada aterrissagem.

 São os minutos críticos do voo. Quando se está no ar, então a segurança é maior do que em terra - Sim. dá para se notar que você é capaz de amar uma mulher até as raias da loucura.

 como um dia passa rápido!

 Não dá nem para se ver todos os monumentos de Quito. Sobra apenas uma hora para o interior, para além da cordilheira. Os índios quíchuas, ainda hoje em dia de raça pura, deixam nas aldeias seus rebanhos, carneiros, porões e chamas, enquanto pastam nas sempre húmidas campinas de grama ou erva dos páramos desérticos, ou cultivam batatas e grãos nos palmos das terras montanhosas protegidas contra o vento. Thea e Juan também foram ao Monumento da lá línea, o obelisco construído exactamente sobre o Equador, 24 quilómetros ao norte de Quito, e que tem em cima um globo terrestre.

 Juan de Garcia preparara uma surpresa para esse momento. Retirou uma garrafa de sidra chilena de uma pequena caixa de isopor, desarrolhou-a e realizou o baptizado do Equador de Thea Sassenholtz despejando um pouco da bebida na concha da mão. Ela devia mergulhar o rosto na bebida. Em seguida, de Garcia enxugou-lhe o rosto com o lenço e Thea estendeu-lhe a boca numa esperança febril de que ele pudesse beijá-la. Mas de Garcia apenas enxugou sua face e nariz. Em seguida, os dois sentaram-se diante do monumento ao Equador e beberam a sidra pelo gargalo.

 Mais tarde, ao cair da noite, os dois voltaram a Quito e foram para o morro Panecillo com sua ampla e magnífica visão para a cidade e para os picos das montanhas dos Andes.

 - Nosso primeiro avião parte às oito da manhã - disse de Garcia de repente. Thea estremeceu como se ele a tivesse golpeado. - O último às 19 horas. Qual deles devemos tomar?

 - O primeiro, Juan.

 - Você vai ficar contente quando acabar esse tempo de espera.

 - Vou...

 - Fui uma companhia tão ruim assim?

 

 - Pelo contrário, Juan. Não é isso! - ela recostou-se no ombro de Juan com pose de moça apaixonada. Já não havia nela mais nenhuma timidez, nenhuma defesa, tão-pouco arrependimento. Do que haveria de se arrepender? Passaram-se dois dias encantadores, cheios de encantamento, dois dias nunca antes vividos... e mesmo assim foram dois dias no cativeiro de sua consciência. Nada havia do que ela pudesse recriminar-se. Os outros pensamentos? Permaneceriam como desejos secretos e não eram motivo de arrependimento. - Não queremos uma despedida longa. Adeus... e depois ir embora. Quase não há possibilidade de um novo encontro.

 - Por que não?

 - Quando é que eu voltarei outra vez à América do Sul?

 - Mas eu posso ir à Alemanha. Eu já lhe disse que a Alemanha é minha maior importadora. Visitarei meus amigos de negócios em Hamburgo e Bremen e depois dou um pulinho rápido em Munique. - Juan de Garcia hesitou, mas depois disse: - Gostaria de conhecer Peter também, esse sujeito mais feliz do mundo. Quero dar-lhe os parabéns pela mulher que tem.

 A última noite, a última madrugada.

 Sentaram-se juntos no bar do hotel, dançaram ao som de uma banda de três homens e esforçaram-se para ficar felizes. Garcia comprou a uma vendedora de flores que ia de mesa em mesa um gigantesco buquet de paniculas de orquídea, colhidas na infinita selva situada a leste e só habitada pelos índios nómadas e que ainda hoje é um trecho não pesquisado da floresta do Amazonas. Juan de Garcia disse ao entregar o buquet para Thea:

 - Enquanto você estiver no navio, elas permanecerão frescas. Depois, quando voar de volta à Alemanha, jogue as flores ao mar, em Sidney. Os polinésios dizem: quem joga flores ao mar, volta sempre... Talvez essa magia também funcione no seu caso.

 Ela concordou sem dizer uma palavra, depositou no colo o buquet de orquídeas e ostentou um sorriso espasmódico.

 - Primeiro você deve ir a Munique, Juan.

 - Com toda certeza.

 Os dois brindaram sabendo que estavam mentindo; que seus caminhos nunca mais se cruzariam; que aquela noite significava realmente o fim. Dois dias de conto de fadas na vida de uma sexagenária.

 Na manhã seguinte, os dois andaram de braço dado no saguão do aeroporto de Quito. O primeiro aparelho vindo de Guaiaquil já aterrissara.

Os passageiros aglomeravam-se na parte reservada.

 - Minha Nossa Senhora! - gritou Thea Sassenholtz ao ver primeiro o Dr. Paterna e depois o enxame das outras pessoas. - Mas eles são do meu navio! Claro que esse é o passeio especial nos Andes!

 Ela acenou com a mão direita, enquanto a esquerda continuava enganchada em Garcia, alegrando-se com o espanto dos companheiros de viagem cuja maioria não dera pela sua falta nos últimos dias. Somente o Dr. Paterna sabia de sua desgraça no Panamá. Ele respondeu com um aceno alegre, mas não tinha tempo para aproximar-se dela. O autocarro estava esperando lá fora e cada minuto era importante.

 O Dr. Schwarme parou segurando sua mulher Erna.

 - Dois dias desaparecida e já com um amante debaixo do braço! - disse cheio de amargura. - Aí está de novo. Vocês, as malditas fêmeas, são todas iguais!

 

 Ninguém do grupo teve vontade de escalar o Chimborazo começando de baixo, como fez o compatriota Alexander von Humboldt em 1802.

 

Os primeiros indícios de vertigem de altura apareceram na rápida visita através de Quito; o Dr. Paterna foi obrigado a distribuir comprimidos a alguns passageiros, levá-los para a sombra de um arpão de portão e auscultar seus corações, justamente diante da residência arcebispal, o Palácio Arzobispal.

 - Os caras que já estão cagando nas calças a 2.800 metros deviam voltar! - anunciou Knut De Jongh suficientemente alto para que todos ouvissem. - Nós antes já sabíamos o que nos esperava. E também sabemos o que ainda está por vir. Serão mais de quatro mil metros. Os frouxos deviam ficar no hotel!

 Hans Fehringer esforçara-se em manter sempre uma grande distância de Sylvia. Quando ela se encontrava à frente do grupo, Hans formava a retaguarda; quando ela retardava-se nas visitas, ele avançava para a ponta. Knut De Jongh estava pouco ligando para isso. Estava sempre onde os outros não estavam; fotografava com flash em locais onde ele era proibido, sobretudo nas igrejas; e, numas exéquias na qual chegaram por acaso, postou-se entre os parentes do falecido e fotografou os pranteadores com as velas nas mãos.

 - Bah, um motivo genial! - disse também em voz alta e depois enfiou o dedo indicador na pia de água benta para, em seguida, lambê-lo, pois estava querendo verificar se, de facto, a água benta era mesclada com óleo aromático. - Pura mentira! - disse então, desapontado. - Água morna, mais nada.

 Somente de vez em quando é que De Jongh dava uma olhada no círculo, via a mulher, Sylvia, em atitude decorosa perto do guia turístico que falava um péssimo inglês e se dava por plenamente satisfeito.

 Mais tarde, o autocarro levou-os para os Andes, aos pés do Chimborazo, subiu o maciço vulcânico através de uma estrada sinuosa e, depois, parou num pátio que havia sido transformado em estacionamento. Um cartaz anunciava: 3.562 metros.

 Oliver Brandes permaneceu sentado no autocarro com a respiração ofegante. Seus olhos bruxuleavam, a boca tremia. O Dr. Paterna foi até ele e sentou-se ao seu lado.

 - Você foi pegado!

 - Sim. Eu lhe disse. Você vai ter mais problemas comigo. Está tudo girando diante de meus olhos, o sangue martela em minhas têmporas, cada vez que respiro é como se estivesse engolindo chumbo.

 - É exactamente o contrário que acontece: o ar é rarefeito. - Paterna retirou a pequena garrafa de oxigénio da maleta, deu a máscara respiratória e o tubo a Brandes. - Fique no autocarro e de vez em quando respire o oxigénio. Quando você aperta essa alavanca aqui, a máscara enche-se de oxigénio.

 Knut De Jongh estava aguardando diante do autocarro, como sempre falando em voz alta.

 - E aí! - gritou ele. - Ainda vamos subir mais quinhentos metros a pé. Aí o ar é tão rarefeito que um peido torna-se tão visível quanto uma nuvem... - ninguém riu, coisa que De Jongh encarou como terrivelmente estúpida. As pessoas sem humor deixavam-no frenético.

 

Contudo, ele não compreendia que seu tipo de humor existia à custa de seus semelhantes. - Portanto, quem achar que pode revirar os olhinhos durante o trajecto, é melhor ir fazer companhia ao Sr. Brandes! - Como ninguém reagiu de novo, ele encolheu os ombros e foi em direcção a Sylvia. - não está a coisa para o seu lado?

 - Eu consigo! - foi a lacónica resposta dela. - Se você não desmaiar... Você nunca esteve numa altitude como essa.

 - Nada derruba um Knut De Jongh! - ele olhou de soslaio para Hans Fehringer. O patife louro, como ele o chamava, havia chegado à borda do pátio e estava fotografando o vale. Agora, um empurrão, pensou De Jongh... e quando ele chegar lá embaixo, ninguém o reconhecerá. Virou rapidamente a cabeça, abalado com o pensamento que somente lhe ocorrera motivado pelo assistente espiritual quando de sua campanha de convencimento para que De Jongh permanecesse no navio. Ele nunca pensara em tal coisa. Uma boa surra sim, isso era possível, um nariz ensanguentado, lábios rachados, olhos arroxeados, o queixo inchado... mas matar um ser humano? Puxa, as coisas que os sacerdotes esperavam de uma pessoa...

 O Dr. Paterna saiu do autocarro e acenou chamando o grupo.

 - Quem achar que o ar é rarefeito demais, deve ficar aqui com o Sr. Brandes. Por favor, nada de prova de força e coragem! Afinal, não é vergonha nenhuma confessar: tenho dúvida se vou conseguir. Por favor, aqueles que estiverem sentindo dor de cabeça, sensação de vertigem, dificuldade respiratória, quem estiver vendo imagens duplas, permaneçam no autocarro.

- Fez uma pausa. Ninguém apresentou-se, menos ainda as três senhoras idosas, das quais a mais nova tinha mais de setenta anos. Elas apoiaram-se em suas bengalas e, firmes e serenas, encararam o Dr. Paterna. O Dr. Schwarme lançou um olhar à mulher Erna. esta balançou a cabeça, muda. Ora, então vamos, pensou ele satisfeito.

 O guia turístico deu uma olhada provocadora no relógio de pulso. Havia sido contratado para nove horas; se fossem dez, ninguém lhe pagaria, nem a agência que o empregava e muito menos os estrangeiros. Nove ou dez horas... de qualquer modo a gorjeta não seria aumentada.

 

 - Muito bem, então vamos! - disse o Dr. Paterna acenando para a segunda acompanhante, a Comissária Bárbara. Ela foi na frente. Paterna queria subir por último para recolher os que ficassem para trás. Já sabia como era: num grupo de quarenta e dois participantes, pelo menos um afrouxava. Paterna apostava em De Angeli, o playboy que então já era odiado por todos os maridos. O elegante francês estava um tanto quieto no grupo, aliás quieto demais, esforçando-se por ostentar um sorriso estúpido para todos. De vez em quando, dava uma piscada de olho furtiva para Erna Schwarme. Começou a escalada feita através de um estreito atalho, entre rochedos escalvados e trechos de musgo, coníferas rasteiras e liquens que desafiavam o tempo. Para o guia nativo, aquilo era um passeio; quatro mil metros nada significavam para as pessoas nascidas no lugar. Ele não compreendia aqueles europeus que vinham atrás ofegando; eles subiam a montanha arrastando-se, enfrentavam as fainas às quais não estavam habituados, tossiam e estertoravam e, depois, chegavam ao mirante de joelhos bambos e olhos saltados para fora... e tudo isso só para tirar algumas fotos dos verdes vales lá embaixo, ao lado das outras montanhas dos Andes, e do pico do Chimborazo azul ao sol, com a cúpula sempre coberta de neve. Coisa que se podia comprar em Quito na forma de cartão-postal, de um modo mais confortável e barato. Bem, esses estrangeiros devem ter um parafuso a menos, pensou ele, sem reflectir na incrível sensação de triunfo, quando eles voltassem à Alemanha e mostrassem as fotos para parentes, conhecidos e amigos. Aqui, estive no Chimborazo, foi genial, o ar era rarefeito... E, então, a inveja nos olhos dos outros seria o bálsamo que amenizaria todos os esforços.

 O Dr. Schwarme parou após cerca de duzentos e setenta metros, deu o braço à mulher Erna e deixou que o grupo passasse ofegante. Quando François De Angeli parou ao lado deles e perguntou se podia ajudar, o Dr. Schwarme respondeu com voz grosseira:

 - Não!

 O Dr. Paterna, chegando por último na curva atrás da qual o grupo desaparecera, examinou o casal Schwarme com um olhar rápido e clínico. Não estavam com aparência de terem sido acometidos da doença das alturas. Com Knut De Jongh a coisa era diferente. O ar rarefeito teve um efeito de champanhe em seu sangue. De repente, ele ficou eufórico, começou a cantar em voz alta e passou a saltitar em vez de andar.

 - No Chimborazo cresce uma velha tamareira... tubidaiá.. tubidaiá... - cantava ele.

 Claro que o texto estava errado, inclusive o poeta no qual se inspirara, pois não existiam tamareiras no Equador; mas quem se importava? Sylvia foi a única pessoa a envergonhar-se. Ela puxou a camisa de Knut e sussurrou-lhe:

 - Cale a boca!

 Mas isso de nada adiantou. Pelo contrário, De Jongh reagiu e berrou:

 - Cale a boca, minha amada criança, pois quando estamos juntos, avançamos e corremos, primeiro a trote, depois a galope...

 O guia nativo encarou-o perplexo. Nunca antes havia visto esse tipo de vertigem de altura. Em geral, a maioria dos estrangeiros recostava-se nos rochedos, ficava com o olhar petrificado e começava a andar trôpega como bêbado.

 As três senhoras idosas com suas bengalas postaram-se à frente. Seus olhos brilhavam com o prazer da aventura. Nenhum sinal de cansaço ou dificuldade respiratória. Seguia-lhes Ludwig Moor, ali também, como em sua caminhada de mil metros no tombadilho, de postura erecta, o queixo esticado para a frente, o rosto impassível. Um funcionário público prussiano suporta qualquer coisa.

 O Dr. Paterna puxou a maleta de médico para a frente.

 - Posso ajudar? - perguntou ao Dr. Schwarme. - Está com falta de ar?

 - Claro que não. Ainda consigo. - Schwarme ostentou um sorriso desfigurado. - Não se detenha, doutor. Talvez mais tarde os outros precisem de você. Ficaremos aqui até à sua volta. Estamos satisfeitos com a vista daqui.

 - Tem certeza de que não precisa de oxigénio?

 - Não, obrigado, doutor.

 - E você, Sra. Schwarme?

 - Estou muito bem. Poderia continuar subindo, mas meu marido não quer. Portanto, obediente que sou, fico ao lado dele.

 O Dr. Paterna riu e pôs-se a andar de novo.

 - Até mais tarde! - ainda gritou antes de desaparecer na curva.

 Ele não teria rido se pudesse ler os pensamentos do Dr. Schwarme.

 

 - Outra de suas observações idiotas! - disse Schwarme, irritado, à mulher. - Você me apresenta como um moleirão.

 - E você não é? - foi a resposta zombeteira dela. - Agora vou ficar por aqui...

 - Claro que você teria preferido ficar do lado do seu querido François, não?

 - Ele está aguentando! Ele sempre aguenta! - disse Erna em tom malicioso. - um homem robusto.

 - Um macaco engomado é o que ele é.

 - Então você é uma preguiça! Ah, não, não pode ser. Afinal, as preguiças ficam penduradas pelo rabo... como você se penduraria?

 Ela atravessou os três passos que formavam a largura do atalho e olhou para baixo pela encosta rochosa, vendo os precipícios selvagens que, um dia, foram formados pela lava ao se resfriar.

 O Dr. Schwarme fitou as costas da mulher e cerrou os punhos. Agora, pensou ele enquanto um calafrio percorria-lhe o corpo. Vai ser agora. Apenas um leve empurrão... seu grito se perderia no vazio, ninguém o ouviria e depois eu poderia seguir correndo e gritando pelo caminho: Parem! Parem! Minha mulher... minha mulher... socorro! Socorro! E todos acreditariam que ela se aproximou do abismo e, de repente, perdeu o equilíbrio. Um acesso de vertigem a quatro mil metros. O Dr. Paterna poderia testemunhar esse estado... e finalmente eu teria paz, paz dessa mulher, paz de seu escárnio mordaz, paz de sua zombaria mortal, uma paz bem-aventurada até o fim da vida. Apenas um empurrão de leve... agora, agora mesmo, quando ela está parada pertinho do abismo. Quem iria suspeitar, somos tidos a bordo como um casal feliz e eu representarei o viúvo completo, jamais um marido procedeu de modo tão alquebrado, jamais tão sem estribeiras. Serei capaz inclusive de chorar... pois uma coisa é verdade: um dia eu a amei com todas as minhas forças. Éramos tão felizes juntos. Já não consigo mais recordar quando tudo ficou diferente, quando o casamento tornou-se horror e a vida em comum uma tortura, quando passamos a nos gritar cheios de ódio e a humilhar o outro. Não existem dados a esse respeito. Simplesmente aconteceu de repente. E agora tudo isso vai ter um fim, após três passos e um leve empurrão nas costas...

 Ele fechou os dedos, depois abriu as mãos e esticou-as. Mãos de assassino, pensou ele. Ou mãos de libertador? como devem ser chamadas?! Lá em Quito, nós visitamos a catedral com o luxuoso sepulcro de António José de Sucre, o libertador do Equador do domínio espanhol. A libertação custou milhares de vidas e, por isso, construíram monumentos para ele em todo o país. Só preciso libertar-me de um ser humano, será que minha consciência vai sufocar-me por causa disso? Faça-o, Peter, faça-o agora! Ela está parada junto do abismo de um modo tão conveniente, tão atraente, tão certo da morte. Faça-o finalmente!

 Mas Schwarme continuava afastado, recostado na parede do rochedo e respirou aliviado quando Erna se virou e recuou do abismo. Ela examinou-o e fez um biquinho, coisa que outrora Schwarme achava encantador. Hoje em dia, ele só via nisso uma espécie de escárnio reprimido.

 - E então, está se sentindo melhor? - perguntou Erna.

 

 - Estou. - Schwarme respirou fundo e afastou-se do rochedo. - Se você quiser, podemos continuar. Ainda podemos conseguir os últimos metros.

 - Então vamos! - Erna virou-se e fez a volta do atalho na frente dele.

 O Dr. Schwarme ainda continuou parado alguns instantes para enxugar o suor denso do rosto.

 Ela tem razão, pensou cheio de amargura. Eu não passo de um covarde, de um moleirão, um zero à esquerda vestido de terno. Isso não basta para alguém tornar-se assassino. Preciso continuar vivendo com o que sou: um advogado conhecido em minha cidade e nos tribunais e, em casa, um pateta que quer encontrar sua paz, mas que sentiria a falta da tortura do casamento se Erna o abandonasse. Isso deve ser uma espécie muito singular de perversão, um tipo de masoquismo, de auto-flagelação.

 Schwarme estremeceu ao ouvir a voz de Erna:

 - Onde você está !

 - Estou indo. Foi só o cadarço do meu sapato que desamarrou. Já estou indo.

 Ainda lançou um olhar para o lugar onde Erna estivera junto ao abismo, respirou fundo e depois seguiu subindo pelo atalho. O canto de Knut De Jongh chegou até ele soprado de longe. Foi bom que eu não tenha feito, pensou Schwarme ao ver de novo as costas de Erna. Afinal, a vida é tão maluca; sem ela, eu ficaria realmente solitário. A pequena Billie, minha secretária, não é nenhuma substituta para ela.

 

A paragem no mirante foi bem curta; o suficiente para se tirarem algumas fotos e se examinar a cadeia de montanhas com os binóculos que haviam sido levados. Uma impressionante visão panorâmica, mas poucos aproveitaram-na. A subida os deixara de joelhos bambos, as cabeças estavam possuídas por um zumbido, a paisagem bruxuleava diante dos olhos. Knut De Jongh ficou parado como uma coluna e berrou:

 - Por que o Reno é tão lindo...

 Todos acharam inadequado imaginar aquilo no Chimborazo, mas aceitaram a coisa. A própria Sylvia desistira de tranquilizar o marido; estava fazendo um pouco de pose, pois notara que Hans Fehringer a estava fotografando, tendo os Andes como pano de fundo. Sylvia ostentou seu sorriso sedutor. E o estado de espírito de euforia tornou-se entusiasmo, quando um condor passou voando, majestoso e silencioso, deslizando no vento ascendente com as asas bem abertas, um rei das montanhas.

 - Incrível! - disse Ludwig Moor filmando o condor. - Mas isso é fenomenal!

 Por essa explosão, todos notaram que a loucura das alturas tão-pouco o poupara.

 O guia turístico tornou a olhar para o relógio com um ar acusador.

A Comissária Bárbara bateu palmas:

 - Precisamos ir para casa, meus senhores!

 - Pare com essas malditas palmas! - gritou Ludwig Moor. - Você está espantando meu condor. Ali, está vendo?, ele vai fazer a volta! Será que eu paguei 1.700 marcos por esse passeio só para ser acossado?!

 Todos ficaram espantados; ninguém reconhecia Ludwig Moor. Aquele ar rarefeito que transformava o sangue em champanhe... Como os seres humanos eram capazes de mudar!

 

 - Mas nós temos um limite de tempo. - A comissária Bárbara deu um sorriso bem afectuoso para Moor. A paciência fazia parte da profissão de comissária. - Queremos voltar a bordo ainda hoje à noite. numa questão de minutos; o avião para Guaiaquil não vai ficar esperando por causa dos senhores. Sinto muito, mas devemos partir.

 As três senhoras idosas com suas bengalas formaram novamente a vanguarda. Estavam muito bem-dispostas, haviam tirado fotos mútuas e depois fizeram pose para a foto do grupo tirada pelo Dr. Paterna.

 - Ah, se os nossos maridos pudessem ver isso - disse uma delas -, nós, no Chimborazo!

 como muitas viúvas elas não pensaram que nesse caso não estariam ali e que somente sua viuvez é que lhes permitia fazer uma viagem como essa. Eram viúvas ricas; não iriam dissipar o que os maridos lhes deixaram após tanto trabalho duro. Portanto, eles mereciam uma lembrança elogiosa no Chimborazo.

 E então aconteceu durante a descida: Bárbara Steinberg, que até então evitara o contacto com o Dr. Paterna, tropeçou numa pedra e torceu o pé. Com o rosto contorcido de dor, ela apoiou-se na parede da rocha e levantou a perna esquerda. Paterna aproximou-se dela na mesma hora.

 - O que você tem?

 - Eu... eu torci o pé. O tornozelo... que coisa mais estúpida.

 Bárbara levantou o pé. O Dr. Paterna ajoelhou-se diante dela e examinou o tornozelo que já começava a inchar. A região em volta do malévolo estava vítrea. O Dr. Paterna abriu a maleta de primeiros socorros.

 - Está mal? - perguntou Bárbara trincando os dentes.

 - Bem, de qualquer modo está torcido mesmo. Só poderemos saber se está quebrado depois de tirarmos uma radiografia.

 - Dói terrivelmente, Mário. - Bárbara apoiou-se em seu ombro. - Sinto muito. Agora serei um fardo para vocês.

 - Não diga besteira, Bárbara. Farei uma atadura protectora e então veremos como levá-la ao avião. Depois tudo será mais simples no hospital de bordo.

 Paterna olhou para o grupo que parara mais embaixo e olhava para cima. A comissária Bárbara adiantou-se.

 - Que aconteceu? - gritou ela.

 - A senhorita Steinberg torceu o pé. - O Dr. Paterna abriu o pacote de ataduras. - Preciso de um homem forte. Vamos ter de levar a ferida até o autocarro.

 Knut De Jongh e Ludwig Moor adiantaram-se sem hesitar.

 - Você? - perguntou De Jongh examinando Moor. - Por acaso um funcionário público lá tem músculos? - ele dobrou os braços e fez saltar os músculos de ferreiro. - Dê só uma olhada. São verdadeiros históricos!

 - Bem, alguns têm cabeça, outros bíceps! - disse Moor de modo ousado. O ar das alturas deixara-o corajoso para qualquer coisa.

 - Vocês se revezam, cavalheiros! - o Dr. Paterna tornou a ajoelhar-se e, com todo cuidado, colocou a perna esquerda de Bárbara sobre sua coxa. - Haverá muito o que carregar até Guaiaquil...

 

 O resto da descida demorou mais ou menos a metade do tempo da subida. De Jongh colocara Bárbara Steinberg nas costas; ela abraçara-se a ele, as pernas para a frente, os braços em volta de seu pescoço; uma mochila viva que, inclusive, deu alegria a Knut. Nesse momento, Sylvia estava marchando na vanguarda. era uma oportunidade para trocar algumas palavras com Hans Fehringer, bem rápido, ao ultrapassá-lo, fazendo com que a frase saísse pelo canto da boca.

 - Hoje à noite - sibilou ela. - Na piscina do convés C...

 Hans Fehringer balançou a cabeça. Pelo rodízio, a noite pertencia a Herbert. Originalmente, aquele seria seu dia, mas Herbert não quisera participar do passeio, pois não sabia se conseguiria aguentar a altitude. Mas com toda certeza não abriria mão da noite e havia poucas possibilidades de que renunciasse à apresentação anunciada de um grupo folclórico indígena.

 - Amanhã! - sibilou ele em resposta.

 Ela encolheu os ombros, lançou-lhe um rápido e espantoso olhar e foi fazer companhia às três velhas senhoras que, firmes e ligeiras, caminhavam na frente.

 Knut De Jongh continuava bem-humorado. Abraçou as pernas de Bárbara e começou a trotar como um cavalo, enquanto berrava:

 - Pequeno, pequeno cavaleiro... - sem ouvir o grito de Bárbara que o agarrara firme.

 - Não vá cair também! - gritou Bárbara. - Não chegue tão perto do abismo.

 - Knut De Jongh nunca deixou ninguém cair, nem mesmo moças agradáveis. Ah!

 Finalmente, eles chegaram ao autocarro que os aguardava. Oliver Brandes, já todo recuperado pela inalação do oxigénio, tomou o fardo de Knut De Jongh na mesma hora e levou Bárbara para seu assento dentro do autocarro.

 - Está doendo? - perguntou ele.

 - Por enquanto dá para aguentar. Só quando ponho os pés no chão... - ela levantou a vista para o Dr. Paterna que se aproximara de seu assento.

- Será que o tornozelo quebrou?

 - Espero que não.

 - E se...? Nesse caso, toda essa linda viagem terá acabado para mim. Todo o dinheiro terá sido economizado em vão. Ficarei hospitalizada e depois serei obrigada a andar com o pé engessado. Nenhum passeio mais... e eu que ainda queria percorrer a ilha de Páscoa, o Taiti, Bora Bora, Tonça, a Nova Zelândia...

 - Você verá tudo isso, Bárbara - o Dr. Paterna encarou-a com um piscar de olhos. - Se for preciso, eu mesmo a carregarei de lugar em lugar. Vou amarrá-la às minhas costas, como as índias fazem com seus bebés. De acordo?

 - De acordo! - Bárbara riu com um ar irresistível.

 O Dr. Paterna adiantou-se de novo em direcção ao motorista. Agora eu sei com certeza. A decisão foi tomada. Ele sairia da vida de Beate ou, quando não pudesse evitar um encontro, se comportaria diante dela como um amável médico de navio e manteria conversas sem compromisso. A única questão era saber se esse propósito seria mantido quando se encontrasse diante dela.

 

 O grupo chegou ao avião para Guaiaquil no último momento, por assim dizer. Um autocarro especial levou-os ao aparelho. Tão logo entraram, a porta foi fechada e as turbinas entraram em funcionamento. Knut De Jongh ficara mais calmo. Nesse momento, dentro do avião, na cabina pressurizada e regulada para dois mil metros, livrara-se por completo da loucura das alturas. Voltou ao normal, compreendeu sua mulher com a testa enrugada. E De Jongh reagiu indignado quando Sylvia lhe disse em voz baixa:

 - E então, de volta da idiotice?

 - Que quer dizer com isso, hem?!

 - Você teve um comportamento bem infantil.

 - Um se comporta de modo infantil, a outra fica deitada nua ao sol com o amante. O que é pior?

 - Comporte-se! - Sylvia, envergonhada olhou para todos os lados. - Não tenho amante nenhum! Você Mesmo sabe muito bem disso. Quando, onde e como isso aconteceu? num navio, com centenas de olhos observando... Claro que você está brincando!

 - Você se pôs nua ou não?

 - No convés CFL oficial.

 - Não quero que outros homens Vejam a minha mulher pelada. Seja de modo oficial ou não... não gosto disso.

 De Jongh esticou bem as pernas. Nesse momento, o avião estava fazendo uma curva sobre a linda cidade de Quito. Os viajantes lançaram um último olhar aos picos cobertos de gelo da cordilheira. De Jongh não estava com ânimo algum para isso; sentia-se torturado pela sede e morria de vontade de tomar uma cerveja.

 - Vamos despedir-nos do Equador! - disse o Dr. Paterna ao microfone. - Um país encantador quando, daqui de cima, não podemos ver que se trata do país com mais golpes de Estado da América do Sul. De 1830 até hoje, o governo foi mudado quarenta e oito vezes e a constituição dezoito vezes. Comparado com isso, nós, os alemães, não passamos de crianças modelo.

 Os alemães sorriram e os equatorianos os acompanharam nesse riso, mesmo não tendo compreendido. Afinal, eram pessoas alegres e de temdeamento cordato. Que são quarenta e oito governos? Cada qual é pior do que o outro e lucra ao governar. Somente os índios permanecem pobres, enquanto os descendentes dos espanhóis ficam cada vez mais ricos. E os estrangeiros; sobretudo agora que se encontrou petróleo. Amigos da Alemanha, assim é a vida. Que se há de fazer? Nada muda. Nem mesmo com dezoito constituições diferentes...

 Moor e Brandes levaram a um tanto pálida Bárbara Steinberg para o autocarro que faria o trajecto do aeroporto de Guaiaquil ao porto e colocaram-na no assento de trás.

 - Só mais meia-horinha e você vai deitar-se numa caminha bem macia! - disse Brandes para consolá-la. - Você vai ver que nem tudo está tão mal. De qualquer modo, vai poder contar em casa: eu escorreguei no Chimborazo! Os outros não resistirão.

 A chegada ao porto foi acompanhada de altos aplausos. Já de longe se podia ver o lindo navio branco como a neve, uma visão tão entusiasmante que todos aplaudiram. O retorno ao lar... todos sentiram a coisa dessa maneira. As cabinas, os conveses, os corredores, os bares, o restaurante, o salão de festas, aqueles que por lá ficaram, os novos amigos... tudo isso tornara-se de facto uma espécie de lar. O mundo é imenso e belo e um passeio ao estrangeiro é sempre uma boa experiência... mas mais belo ainda é o retorno ao aconchego da própria cabina.

 

 - Daqui a pouco vocês ouvirão um cicio e um barulho de vapor! - gritou Knut De Jongh dentro do autocarro. - A primeira cerveja nem chega a descer. Quem vai nessa?

 - Eu! - gritou o Dr. Schwarme ostentando um sorriso cheio.

- Suponho que todos os homens do autocarro.

 Pela primeira vez não houve opiniões contraditórias. Inclusive Ludwig Moor assentiu sua concordância.

 Quando o autocarro parou no cais, havia uma grande quantidade de passageiros na amurada. O "grupo Chimborazo" era o último dos grupos de passeio.

 Beate Schlichter também encontrava-se na amurada e viu quando o Dr. Paterna saltou do autocarro e recebeu Bárbara Steinberg nos braços. Junto com Oliver Brandes, ele levou-a à escada. Um marinheiro de uniforme tropical branco apressou-se saindo do navio para ajudar. Bárbara pousara o braço em volta do pescoço de Paterna e recostara a cabeça em seu ombro. As dores aguilhoavam-lhe todo o corpo, mas ela tentava ostentar um sorriso espasmódico.

 Lá em cima na amurada, Beate cerrou os lábios. Dabrowski, que se encontrava ao seu lado, olhou-a de soslaio através dos óculos escuros de cego e bateu com a bengala branca na barra da amurada.

 - Um acidente. Logo com ela...

 - Ela bem que merecia. - Beate recuou com um solavanco. - Vou para a minha cabina. Que sirigaita refinada!

 

 às 24 horas em ponto, o NM Atlantis despediu-se do mar de luzes de Guaiaquil com uivos altos de sua sirene de navio. A especialidade de Teyendorf era atracar e zarpar com uma pontualidade de minuto, como se os mares do mundo possuíssem trilhos nos quais um navio corresse de acordo com o horário. Nesse momento, ele também se encontrava na ponte dirigindo a partida do píer com a ajuda de telégrafos e remos de irradiação. O piloto estava recostado ao seu lado, em uniforme de campanha, fumando um cigarro.

 Sua tarefa começava após a saída do porto... na viagem nocturna através do rio Guayas em direcção ao Pacífico.

 Apenas poucos passageiros encontravam-se na amurada; depois dos passeios e da noitada folclórica dos índios, a maioria deles estava cansada e foi deitar-se. Knut De Jongh também dormia como que anestesiado, após ter "virado" cervejas e mais cervejas, todas lustradas com algumas aguardentes, às quais seguiram-se mais duas garrafinhas de champanhe no Salão dos Sete Mares.

 Sylvia aguardou até que ele começasse a soltar roncos compridos, depois chamou-o, sacudiu-o, mas Knut reagiu apenas por reflexo com grunhidos. Satisfeita, ela foi ao banheiro, lavou-se, pôs uma blusinha leve com um vestido tubinho, abriu mão da calcinha e saiu da cabina na pontinha dos pés.

 Eles se encontraram no tombadilho, no canto escondido dos fundos, na profunda sombra do bote salva-vidas pendurado acima. Abraçaram-se em silêncio e pressionaram-se contra a parede.

 Também fizeram amor dessa maneira, de pé, o vestido tubinho puxado para cima, o rosto pressionado contra o peito do outro para sufocar os gemidos; mas quando chegaram ao clímax, ao mesmo tempo, Sylvia gritou contra o peito do outro:

 - Oh, Hans... Hans... meu querido... segure-me bem firme.

 

 Contudo, era Herbert Fehringer quem a abraçava com os dois braços e continuava dentro dela. A noite era sua e, enquanto ele a beijava, acariciava e, sem nenhuma pausa, fazia amor pela segunda vez, Herbert pensou que no dia seguinte Hans faria a mesma coisa em seu lugar.

 Foi um pensamento que lhe causou dor e demonstrou a maneira inescusável com que estava à mercê daquela mulher.

 

 Outra vez dois dias em alto-mar, ao longo da costa da América do Sul, sem vê-la. O objectivo era Callão, a enorme cidade portuária do Peru, uma gigantesca região de favelas que cresciam qual cogumelos venenosos até Lima, a capital.

 Knut De Jongh conseguira junto ao director de cruzeiro Manni Flesch que a revanche do tiro ao alvo tivesse lugar na tarde seguinte. O comandante Teyendorf, a quem Flesch apresentara esse desejo, concordou.

 - Vai ser uma coisa séria, senhor comandante - disse Manni Flesch em tom de advertência. - Para o Sr. De Jongh, trata-se mais do que um par de tiros ao alvo.

 - Ora, o que mais poderia ser? Não fique aí hesitando em falar, Manni. O que está fervilhando no pano de fundo?

 - Sempre a mesma coisa, cherchez lá femime.

 - Sylvia De Jongh? - nesse meio tempo, Teyendorf tivera oportunidade de observá-la várias vezes; Sylvia tão-pouco era uma mulher que passasse despercebida. - Eu estava receando esse tipo de coisas, Manni. A mulher é uma bomba-relógio em funcionamento.

 - Eu não disse coisa alguma, senhor comandante. - Flesch ergueu ambas as mãos num gesto de defesa. - O senhor conhece e sabe muito bem como é; as fofocas e boatos a bordo estão sempre em alta. Em todo o caso, vai ser um tiro ao alvo bem tenso.

 - É o que estou achando. Se eu me colocar entre os dois galos de briga, eles vão se controlar. Talvez eu participe do tiro ao alvo na qualidade de terceiro atirador neutro.

 A expressão de vida no rosto de Manni Flesch e mais ainda o "ora" deixaram Teyendorf alterado. Ele perguntou de modo brusco:

 - Que significa esse "ora"? Você não me acha capaz disso?

 - Claro que o senhor sempre foi corajoso, comandante.

 - Não se precisa de nenhuma coragem!

 - Eu acho que sim. É muito natural que os passageiros esperem que seu comandante vença. Cada derrota é uma pequena situação ridícula que causa danos à imagem.

 

 - Há uma certa verdade nisso, Manni. - Teyendorf calculou rapidamente as chances que teria. Ele sempre fora um bom atirador e sempre vencera nas competições de tiro ao alvo dos grandes navios de transporte de containers, onde esse tipo de torneio fazia parte das poucas distracções durante as longas viagens. Sempre que assumia o comando de um navio de transporte, sua primeira pergunta era sempre: "Existe a bordo algum aparelho lançador de disco?" Quando não existia, levavam-se imediatamente quatro rifles, munição, discos e uma catapulta para o navio. As pessoas já se haviam acostumado com isso; fazia parte de Teyendorf assim como seu senso de dever e uma certa inacessibilidade e rigor. Apesar disso, ou justamente por isso, os membros da tripulação o adoravam - desde os lavadeiros chineses lá embaixo, na lavanderia da barriga do navio e nos abafados enxugadores a quente, até os marinheiros novatos, obrigados a lubrificar as correntes das Âncoras ou, durante as permanências mais longas nos portos, a reparar os danos na pintura usando tinta branca, pendurados em tábuas sustentadas por duas cordas. Todos tratavam Teyendorf de "o velho" na intimidade, como sempre foram chamados os comandantes desde os tempos primitivos da marinha. Somente não podiam dizê-lo em voz alta. Coisas das quais Teyendorf não gostava nem um pouco eram esse "o velho" e o descuidado "comande". Ninguém do Atlantis esquecera-se do confronto ocorrido entre ele e um comissário novato, de nome Archibald, que o chamara de "comande".

 - Eu me chamo comandante! - berrara Teyendorf. - Afinal de contas, eu tão-pouco o chamo de olho do cú!

 A coisa tornou-se um provérbio a bordo.

 - Vocês vão ficar admirados! - disse Teyendorf dando um tapinha no ombro de Manni Flesch. - Sei muito mais coisas do que apenas dirigir essa jangada pelos mares.

 A revanche entre Knut De Jongh e Hans Fehringer começou às 15 horas. Todos os conveses estavam repletos de curiosos, como se fosse ter lugar um baptizado do Equador. O embate correra o navio como fogo de morro; vai haver um duelo de um tipo especial, disseram. Tanto mais atónito ficou De Jongh quando, de repente, o comandante Teyendorf desceu a escada que dava para o convés principal. Elegante, de calça branca e camisa de manga curta da mesma cor, com o quepe de comandante, branco com galões dourados, na cabeça. O marinheiro-cabo do aparelho de lançamento arreganhou um sorriso; só faltou que ele se colocasse em posição de sentido.

 - Isso é mesmo bom! - disse Knut De Jongh certo da vitória. - O comandante como árbitro. Agora nada mais pode dar errado.

 - Ledo engano! - Teyendorf foi até a mesa na qual se encontravam os rifles, pegou cada um deles, pesou-os e testou se ficavam bem em sua mão. Os especialistas chamam de espingarda de vertedouro esse tipo de rifle, cujo cano tem uma perfuração especial. - Eu participo. Fico com esse aqui - ergueu uma espingarda. - Claro que vocês também podem atirar com ele, cavalheiros.

 - O senhor quer participar? - perguntou De Jongh sem um mínimo de entusiasmo.

 - Por que não? - Teyendorf fez um movimento circular com a cabeça. - Dê uma olhada à sua volta; o navio inteiro está à espreita. Vamos combinar a prova para quantos tiros?

 - Para doze! - De Jongh arreganhou um sorriso. - Temos doze apóstolos e doze meses, doze pode ser dividido por quatro e três vezes quatro é um número mágico. Nada pode dar errado.

 - Concorda com isso? - virando-se para o lado, Teyendorf perguntou a Hans Fehringer.

 - Concordo. - Hans Fehringer recostou-se indolente na amurada; havia descoberto Sylvia no convés do solário. Ele olhou para ela sem a menor cerimónia. O rosto de Sylvia estava encoberto por gigantescos óculos de sol e um lenço de seda ocultava seus cabelos. Mesmo assim, as outras mulheres lançaram olhares hostis em sua direcção; seu biquini era tão diminuto que, no fundo, ela não precisaria daquele pequeno pedaço de pano - a não ser que quisesse mostrar seu corpo desnudo de um modo mais provocante; as estreitas riscas coloridas de tecido do biquini deixavam seu corpo ainda mais erótico.

 - Quem começa?

 

 - Claro que o senhor, comandante, na qualidade de dono da casa! - gritou De Jongh.

 - Os convidados têm sempre a preferência. - Teyendorf deu um passo para trás. - Por favor, meus senhores!

 Combinou-se então a sequência: De Jongh, Fehringer, Teyendorf. E também combinaram um novo procedimento: cada um não atiraria a série de doze tiros, senão que todos dariam um tiro por turno. Isso aumentaria o suspense fazendo com que os nervos vibrassem... Coisa que seria bem perigosa, pois no tiro ao alvo a calma interior e a concentração já são metade da vitória.

 O primeiro tiro. Os três acertaram no alvo.

 O segundo tiro. O comandante Teyendorf errou o alvo.

 O terceiro tiro. De Jongh cometeu um erro. Ele apertou o gatilho no momento em que o disco já estava caindo. Raramente se acerta nesses casos.

 No outro tiro, todos os três voltaram a ficar na ponta. Cada qual errara um alvo. Nos conveses reinava um silêncio absoluto. A orquestra de bordo posicionou-se junto à piscina para, após o duelo, primeiro dar um toque de clarins e depois tocar marchas alegres. Os dois assistentes espirituais também encostaram-se na amurada e ficaram olhando para o stand de tiro.

 - Só eu estou faltando lá! - disse o padre Brause. - Eu liquidaria esses caras.

 - Você? - o pastor evangélico, espantado, olhou para seu colega de ofício. - Onde aprendeu a atirar?

 - É muito simples. - O padre Brause deu uma maliciosa piscada de olhos. - Eu rezo antes de cada tiro: Jesus, não nos deixe cair no ridículo... e aí asseguro-me do acerto no alvo.

 Os dois riram, pipocou o décimo tiro... e os três erraram o alvo. Knut De Jongh estava com o rosto todo enrugado. Mais dois cartuchos e a coisa terminaria empatada. Que bela merda! Será que dá para se ganhar com dois tiros? Afinal, os outros também não eram idiotas. Ele parou junto à amurada com as pernas bem abertas, o rifle pronto para atirar, e respirou fundo. Calma, Knut, calma total. Não pense em mais nada.

 - Lance!

 O disco foi estourado quando ainda se afastava zumbindo.

De Jongh sentiu o rosto começar a tremer. Se esse macaco louro acertar também, pensou ele, não chegará ao último tiro. Dou-lhe um pontapé na bunda. O comandante não conseguirá saltar no meio com tanta rapidez. E estou cagando e andando para o que os outros pensem de mim. Ele recuou libertando o espaço para Fehringer e, mal-humorado, ficou olhando para a espuma branca do mar provocada pela hélice do navio. Hans Fehringer lançou um olhar para cima, para o convés do solário, Sylvia cruzara as mãos e deixara-as pender na amurada. Ele compreendeu. Por favor, erre o tiro, significava aquele sinal. Perca uma vez, meu querido. Por minha causa. Eu já sei que você é o melhor... sempre, não apenas no tiro ao alvo. Deixe que ele tenha essa pequena vitória... ele fica com os discos de tiro ao alvo, mas você me possui. Que mais você quer? Deixe que ele ganhe.

 - Lance!

 O disco ergueu-se no céu de um profundo azul e sem nuvens. Fehringer levantou a espingarda. O tiro foi acompanhado de um "ohhh!" generalizado.

 

 Alvo errado. Knut De Jongh mordeu o lábio inferior. Como atiraria Teyendorf?

 Ficaram sabendo um minuto depois. Também errara o alvo.

 O último, o decisivo décimo segundo tiro. Knut De Jongh foi até a mesa dos rifles, com passos pesados. Ao fazê-lo, passou por Fehringer e deteve-se durante um curto lapso de tempo.

 - Estou pouco ligando para quem vença agora - disse De Jongh com ar sério. - O que importa é quem vai dar o último tiro. E esse sou eu.

 Rifle em posição de tiro - lance - levantar e atirar...

 De Jongh baixou a cabeça. O disco caiu incólume no mar. Acabado.

 Hans Fehringer avançou. Tranquilo, pegou sua espingarda, carregou-a e ajustou o gatilho pensando em Sylvia. Se acertasse agora, tudo terminaria empatado de novo e, se Teyendorf não errasse, o empate seria triplo... e restaria o torturante sentimento de vingança de Knut De Jongh. E no que resultaria isso?

 - Lance!

 Fehringer levantou o rifle tarde demais, mirou muito mal. Teyendorf, que se encontrava ao seu lado, viu muito bem que Fehringer não se concentrara direito, mas que apenas disparou o tiro na direcção do disco, de um certo modo sem mirar. Fehringer recuou com um encolher de ombros, depositou a espingarda sobre a mesa e encarou De Jongh.

 - Satisfeito? Não preciso de nenhum presente seu! - berrou De Jongh irritado.- Seu último tiro foi uma patifaria!

 - Puxa, para você as pessoas nunca fazem nada direito! - disse Fehringer cheio de sarcasmo.

 O último tiro do comandante Teyendorf acertou em cheio. Centenas de passageiros irromperam em júbilo e aplausos. A orquestra de bordo deu um triplo toque de clarins.

 - Meus parabéns, senhor comandante - disse De Jongh estendendo a mão para Teyendorf. Ao fazê-lo, ostentou um sorriso amargo. - É uma honra perder para o senhor.

 Virou-se e afastou-se batendo os pés. Ao subir a escada que levava ao convés do solário, teve a sensação de que todos o odiavam. Postou-se na amurada ao lado de Sylvia e cutucou-a com o dedo indicador.

 - Venha comigo! - disse ele com voz roufenha.

 - Aonde?

 - Na cabina.

 - O que você está querendo lá?

 - Você! - ele ostentou um sorriso irritado. - como prémio de consolação.

 Sylvia nada respondeu, apertou os óculos para mais perto dos olhos e seguiu-o... Cabisbaixa.

 

 Ver Callão e abalar-se, ambas as coisas são próximas.

 

 O maior porto do Peru é um tal amontoado de lixo e sucata que as pessoas perguntam-se espantadas: como é possível que os barcos sejam carregados e descarregados da maneira mais normal aqui e não sejam simplesmente roubados por quadrilhas organizadas. Uma auto-estrada larga leva da bloqueada zona do porto, protegida pelos militares, para a capital Lima, a 14 quilómetros de distância, enquanto à esquerda e à direita dela estendem-se os bairros miseráveis - favelas como poucas no mundo, cabanas de folhas de zinco, de latas de gasolina cortadas, sarrafos de madeira, lona, sacos e tudo que seja adequado como material de construção. Nada de canalização, nada de água encanada. Apenas aqui e ali, à beira da larga estrada, algumas bicas de água nas quais pacientes, os carregadores de água postam-se com seus baldes, em sua maioria mulheres e crianças, esperam a chegada de sua vez. Os homens, desempregados, sem esperança, em grande parte nem registrados oficialmente, deambulam pela região portuária bloqueada, vadiam por Lima à procura de alguns soles, este é o nome da moeda peruana, proporcionados pelo trabalho de ocasião: arrastar sacos, limpar escamas de peixes, transportar cestos de peixe. Mas os estrangeiros são saudados da maneira mais alegre possível. Nunca um barco partiu de Callão sem ter a bordo alguns feridos. Pessoas assaltadas, roubadas, espancadas, retalhadas à faca. Não faz nenhum sentido dar queixa à polícia. Aqueles estrangeiros que se movem fora do porto bloqueado são culpados quando alguma coisa acontece.

 A bordo do Atlantis os passageiros foram entretidos pela aventura de um homem muito viajado que agora visitava Callão pela quarta vez, não de livre e espontânea vontade, mas sim porque todos os navios que desciam a América do Sul ancoravam em Callão, o único porto de onde se podia chegar comodamente a Lima. E a Cuzão, a antiga capital inca. E à misteriosa e esquecida cidade de Machu Pichu nas montanhas. às potentes ruínas de pedra de cantaria das fortificações de Sacsayhuaman. E à fonte sagrada do reino inca.

 O fascínio do antigo reino inca permanece intacto e, assim, centenas de milhares de pessoas peregrinam todos os anos às terras montanhosas de Cuzão, suportam com coragem o ar rarefeito e, com imenso respeito, compreendem a grandeza da cultura inca, que o conquistador espanhol Francisco Pizarro quis quebrantar na loucura do ouro e em honra a Deus. Ele está enterrado num caixão de vidro, numa capela lateral da catedral de Lima, junto à Plaza de Armas. E mesmo que já não exista mais um reino inca, suas ruínas sobreviverão aos tempos; construções gigantescas diante das quais ficamos intrigados com o facto de, naquela época, os homens poderem erguer algo assim, algo que não poderia ser construído em nossa época com as máquinas mais modernas.

 E os descendentes dos antigos e orgulhosos incas param hoje em dia diante dos hotéis e albergues de Cuzão pedindo esmolas, vendendo ponchos artesanais, cobertores de alpaca, gorros de lã de Ihama e redondos e comprimidos chapéus de feltro.

 O passageiro informou também que, em sua última viagem a Lima, ele pegou um táxi no porto e mandou seguir até Lima. São 14 quilómetros de estrada, pensou ele, não pode acontecer muita coisa. Contudo, aconteceu uma coisa sim: um carro-patrulha da polícia ultrapassou o táxi, acenou para que se detivesse à beira da estrada e fê-lo parar. Enquanto o motorista acendia um cigarro e olhava pela janela, os polícias abriram a porta do passageiro, examinaram o alemão com um olhar clínico de avaliação e depois disseram num inglês horripilante:

 - 25 dólares...

 - Por quê? - perguntou Josef Hohmann, assim se chamava o sujeito. - Não era eu quem estava dirigindo rápido demais, se é que o problema foi esse.

 

 O polícia estende a mão num gesto de intimidação e disse de modo rude:

 - 25 dólares, caso contrário te prendemos. Sabe quanto tempo pode demorar até ser solto? Com toda a certeza alguns dias... aí o seu navio já terá ido embora!

 - Mas por que eu seria preso?! - gritou Hohmann. - O que foi que eu fiz?

 - Não nos pagou 25 dólares - disse o outro policial com voz mansa.

- É isso aí. Depois de entregar os 25 dólares, você poderá seguir viagem para visitar o nosso lindo país.

 - Senhor, seja esperto - intrometeu-se o chofer do táxi mantendo toda a calma. - Esses caras vão mesmo prendê-lo por alguns dias. Se o senhor for obrigado a seguir o navio de avião, vai ser muito mais caro do que esses 25 dólares. Pague e nós poderemos seguir viagem.

 Hohmann pagou os 25 dólares grunhindo de raiva. Os polícias cumprimentaram-no com toda amabilidade, desejaram uma interessante estada no Peru e foram embora.

 - Mas isso não foi tudo - Josef Hohmann, agora a bordo, contou para os espantados ouvintes. - Ao chegar em Lima, fui na mesma hora para a delegacia de polícia e dei queixa do assalto. Sabem o que aconteceu? "O quê?", o comissário gritou para mim. "Está pondo a culpa do assalto e roubo em nossa polícia?! Você se atreve a externar esse tipo de coisa?! Isso é um insulto a todo o Estado peruano! Olha aqui, se eu anotar essa sua denúncia em protocolo, mando prendê-lo na mesma hora!" Então eu desisti, tomei o avião para Cuzão, sentei-me nas ruínas incas e fiquei brincando com as crianças índias. Depois que lhes presenteei com dez soles, elas ficaram dançando à minha volta e cantaram velhas canções dos índios. Um país fascinante, que será sempre misterioso, esse Peru... só que não se deve fazer nada sozinho quando se é estrangeiro e se quer sair dele gozando de boa saúde. Só se está seguro quando se anda na companhia de outros, em grupo. Portanto, meus senhores, nunca se afastem do grupo, mesmo quando virem belos motivos para fotos um pouco afastados. E não faz o menor sentido gritar por socorro; ninguém virá em sua ajuda.

 Os passageiros do NM Atlantis tiveram um pequeno tira-gosto proporcionado pelo impresso Informações para aqueles que vão à terra, encontrado em cada cabina do navio. Nele estava escrito: não usar nenhuma jóia, nenhum brinco de ouro, nenhum anel, nenhum relógio de pulso e, em hipótese alguma, colar de ouro com pendente e também não levar bolsa de mão. Segurar sempre o equipamento de fotografia com firmeza, não sair com o dinheiro além do necessário, não mostrar dinheiro em parte alguma, nos passeios permanecer sempre junto dos outros. Em caso de assalto procurar a embaixada alemã em Lima e não a polícia.

 - Ah, vamos ver se é isso mesmo! - gritou De Jongh em tom ameaçador, quando os grupos aguardavam a libertação da escada para o píer, na saída do convés Pacífico. - Se alguém me segurar, depois vai poder fazer uma classificação dos próprios ossos. Quem vem comigo até Cuzão? Levante a mão! Fiquem sempre perto de mim, meus senhores. Esses macacos vão saber o que é uma verdadeira porrada de ferreiro! - e, para Sylvia, ele disse irradiante: - Ah, não estou bem-disposto! Esse tipo de coisa é bem o meu estilo. Até que enfim vai poder acontecer alguma coisa!

 

 às 8 horas, o primeiro grupo desembarcou para o voo à cidade de Iquitos, situada na selva, e ao Amazonas. Ewald Dabrowski também desembarcou com esse grupo, conduzido por Beate. A enfermeira estava furiosa com Dabrowski, pois este não fizera a reserva para o voo a Cuzão. A propósito, era de novo o Dr. Paterna quem acompanharia o grupo a Cuzão, por causa da altitude. E Bárbara Steinberg não poderia ir junto; precisava permanecer no hospital, a perna esquerda enfaixada e mantida em posição elevada. O malévolo não quebrara, mas o pé torcera com gravidade e o tornozelo estava cercado por sangue pisado. Na primeira semana não seria possível sequer andar apoiada em muletas.

 Mas Dabrowski tão-pouco voou para Iquitos. Preferiu ser conduzido ao ponto de táxi, negociou o preço num espanhol fluente e entrou num dos carros.

 - Aonde estamos indo? - perguntou Beate espantada.

 - A um lugar onde os outros não irão. Deixe a surpresa chegar, moça.

 O cantor de câmara Rieti também saiu do navio e alugou um táxi. Ele detestava essas turnês em massa, era alérgico às viagens de autocarro e, sempre e em toda a parte, sentia-se importunado pelas pessoas. Eu, no palco; vocês, na plateia; isso basta. Não temos nenhuma necessidade de nos encontrar depois.

 - Para onde, senhor? - perguntou o chofer.

 - Dê uma boa volta por aí. - Rieti recostou-se no assento.

- Mostre-me o país. Eu sou o cantor Rieti.

 - Puxa, é mesmo?! - disse o motorista sem demonstrar nenhuma impressão.

 - Você não me conhece? Eu já cantei na ópera de Lima. Até foi um tremendo sucesso.

 - Não temos dinheiro para ir à ópera. - O chefer deu a partida no carro.

 às nove horas o navio estava quase vazio. O comandante Teyendorf recolhera-se ao bar Atlantis que estava às moscas e ali encontrou-se com o director de hotel Riemke, o comissário-chefe Pfannenstiel, o primeiro-oficial Kempen e o chefe Wurzer. Beberam um uísque bem gelado.

 - Agora parecemos órfãos, gente! - disse Teyendorf com ar pensativo. - Durante dois dias. Mas depois...! Quem quer apostar comigo quantos assaltados voltarão a bordo?

 

 Nunca antes o cantor Rieti havia visto algo assim e Deus sabe o quanto viajara pelo mundo. Contudo, seu trajecto diário em todos os países entre o hotel e a ópera nunca o levava aos lugares onde viviam pessoas que, em verdade, não sabiam o que seria uma ópera. Estava sempre cercado apenas pelo brilho do palco e das festas, da glória e do sucesso. Isso levou a que Rieti passasse a achar-se um dos maiores terrores deste mundo e que não poderia haver ninguém que não conhecesse seu nome. Ali em Callão, ele teve a experiência de sentir na própria pele, como se diz, o que era ser não apenas pobre, mas também marginalizado.

 Estava sentado de olhos arregalados ao lado do motorista do táxi, olhando pela janela a miséria inconcebível à sua volta, sem ao menos poder compreender como era possível que seres humanos pudessem levar uma vida normal, em certo sentido, sob tais condições.

 Via as primeiras favelas de sua vida. A princípio o chofer hesitou e parou o carro, após atravessarem o bloqueio militar do porto e chegarem à larga estrada para Lima, onde à esquerda e à direita deles começava a extensa e plana favela com suas cabanas construídas de lixo.

 - Você quer mesmo entrar aí? - perguntou ele incrédulo.

 - Por que não? - foi a resposta de Rieti.

 - Eles não gostam de ver senhores bem vestidos e muito menos curiosos. A região da fome não é um lugar de passeio, senhor.

 - Essas aí são ruas públicas? - Rieti lançou um olhar soberbo para os becos da favela. Ele detestava as lições.

 - Claro.

 - Então vamos passar por elas! Nunca em minha vida vi esse tipo de povoação, só ouvi falar. Quase não dá para acreditar.

 - A responsabilidade é sua, senhor. - O motorista soltou o freio e engatou a primeira. - A mim não vai acontecer nada. Sou mestiço como eles. Mais uma vez: quer mesmo entrar nas barricadas?

 - Ali, nas favelas.

 - Aqui, elas são chamadas de barricadas. Vamos!

 Devagar, com todo cuidado, como se estivesse abrindo caminho através de uma região selvagem e desconhecida, o táxi entrou nos bairros miseráveis. As crianças com suas roupas esfarrapadas olharam espantadas para o táxi e seu aristocrático passageiro e, posto que o carro andava em velocidade de passo, elas correram ao lado deste gritando, gesticulando, acenando e esticando as mãos em gesto de pedido de esmola, seguidas por cães de pêlo desbotado e cabras mortas de fome. O chofer parou o carro numa espécie de praça do mercado. O táxi foi cercado na mesma hora por crianças e adolescentes. Os adultos, em sua maioria mulheres com roupas rasgadas, anciãos e velhas, ficaram parados ou sentados diante de suas choupanas. A caravana dos carregadores de água movia-se até a bomba da rua e retornava com os baldes cheios. Uma circulação diária, que jamais acabava.

 - Por que paramos? - perguntou Rieti. O que ele via era assustador e comovente.

 - Aqui é o melhor lugar para se ver como vive a metade do nosso povo. Sim, é isso aí, senhor.

 - A metade? Você está exagerando.

 

 - A metade do nosso povo é desempregada. Alimenta-se com a ajuda de Deus, como os animais. Você me perguntou há pouco: você como esteve na ópera? - o motorista apontou para a miséria à sua volta. - Como é que esses aí podem ir a uma ópera, quando sua cama é apenas uma coberta em cima do chão? Ópera, isso é coisa de rico! Nossa música é o barulho do estômago e os gritos das crianças. Quem tem um rádio de pilhas já é um pequeno rei.

 Rieti ficou calado, meditando. Depois, de repente, abaixou a maçaneta e abriu a porta do táxi. O motorista estremeceu como que mordido por uma aranha venenosa, virou-se e segurou Rieti pelo paletó.

 - Você ficou maluco?! - gritou ele. - Pelo amor de Deus, fique dentro do carro. Feche a porta! Feche a porta!

 Mas já era tarde demais. Com um solavanco, Rieti saiu do automóvel e deu dois passos à frente em direcção ao radiador.

 - Agora ouçam todos vocês! - ele disse às crianças em seu espanhol perfeito e, virando-se aos barracos em volta, prosseguiu: - E vocês também! Sou Franco Rieti, um cantor famoso. Quem quiser me escutar precisa pagar muito dinheiro na ópera. Vocês jamais poderiam ir a uma ópera, mas a música existe para todos. E Deus me deu uma voz que todos devem ouvir, não apenas os ricos. Agora vou cantar para vocês pela primeira vez na minha vida. A ópera chama-se A Bebida do Amor e cantarei para vocês: acharia una furtiva lágrima. - Rieti abriu o botão do paletó de seda, desabotoou a camisa até a metade do peito e respirou fundo.

 Logo após as primeiras notas, Rieti suspeitou que, nesse dia, nas favelas de Callão, estava cantando o melhor Nemorino de sua carreira de cantor. Sua voz fluía como se, de facto, estivesse encharcada de mel e, nas notas altas, brilhava como poucas vezes na vida. Estou em forma de novo, pensou ele cheio de felicidade. Após a debâcle em São Francisco, onde num si maior a voz ficara espantosamente fina e não conseguira chegar ao dó, aquilo ali era como uma verdadeira libertação.

 Rieti manteve a nota final com plena respiração e, depois, deixou os braços caírem e inspirou fundo. As pessoas aplaudiram entusiasmadas à sua volta. Somente o motorista continuou sentado atrás do volante do carro, numa atitude como que de espreita.

 E de facto: o aplauso esmoreceu de supetão, com se tivesse sido cortado. A grande quantidade de crianças e adolescentes que cercava Rieti pôs-se em movimento. Caíram em cima dele como uma onda, deram-lhe uma rasteira, jogaram-no no lixo da rua e, de um certo modo, sufocaram-no com seus corpos.

 - Mas o que é isso? - Rieti ainda conseguiu berrar. - Eu cantei para vocês. Socorro! Socorro! Socorro!

 Mas ninguém foi ajudá-lo. Os adultos em volta da praça ficaram assistindo impassíveis, o motorista do táxi acendeu um cigarro com dedos trémulos e os gritos de Rieti silenciaram-se após alguns segundos.

 

 A coisa toda demorou pouco menos de dez minutos; em seguida, a multidão de crianças e adolescentes dispersou-se. Eles correram afastando-se em todas as direcções e, como ratos, desapareceram nas vielas de barracos e montes de lixo. Rieti ficou deitado no chão, esfolado, machucado, arranhado e ensanguentado, despojado até à última peça de roupa, completamente pelado. E continuou deitado dessa maneira, como se lhe tivessem quebrado todos os ossos do corpo e lhe cortado todos os músculos e nervos. Apenas seus olhos ostentavam um ar incrédulo e reflectiam sua perplexidade. Somente quando o motorista saltou do táxi e segurou-o pelas pernas, foi que Rieti pareceu compreender que estava desnudo, que havia sido roubado.

 Rieti deixou-se cair no carro com um empurrão e depois fechou a porta. Apalpou com ambas as mãos o corpo dolorido e, depois, pousou-as em concha sobre o sexo. O chofer entrou impassível, ligou o motor e retornou à rua principal.

 - Você só ficou assistindo! - gritou Rieti enquanto eles ainda atravessavam as vielas de barracos. - Você não foi me socorrer. Deixou que me assaltassem.

 - O que eu podia fazer, senhor? - o motorista balançou a cabeça.

 - Ajudar-me. Ir em meu socorro. Meter-se no meio!

 - E por acaso tenho cara de quem já se cansou da vida? Está querendo que eu deixe viúva e órfãos? Eu o adverti, senhor.

 - Mas esses caras já não são mais seres humanos, são animais selvagens!

 - São pessoas famintas, sem nenhuma esperança, senhor. Querem trabalhar, querem receber soles de uma maneira boa e honesta, mas não existe nenhum trabalho para eles. Mas eles existem, têm fome e sede, estão aí. Nada mais querem a não ser ficar um pouco saciados... mas até isso não passa de um enorme desejo de cada dia. E aí aparece você, elegante como um príncipe. Seu terno e roupas de baixo proporcionarão alimento durante uma semana para algumas famílias...

 - Mas o Peru é um país civilizado! - gritou Rieti.

 - Civilização! Esse é um conceito dos ricos. Quem fica revirando os montes de lixo que Lima despeja aqui todos os dias, em busca de algo que comer, está cagando e andando para o que é esse troço chamado de civilização. Essa pessoa só deseja uma coisa: sobreviver! Assim, também amamos os felizardos que vivem nas cidades, pois sem eles não haveria lixo. E ao mesmo tempo, os odiamos, pois eles são mais felizes do que nós. Senhor, eu o preveni.

 Com um sorriso irónico nos lábios, a patrulha do bloqueio do porto deixou-os passar, após uma rápida olhada dentro do táxi. O motorista parou no píer ao lado do navio, enquanto Rieti escorregava para o fundo do assento: O mestiço foi até a escada e falou com o marujo de guarda em uniforme tropical branco, o qual desapareceu na mesma hora porta adentro e retornou acompanhado de um comissário de cabina. O comissário trazia no braço um enorme cobertor e um roupão de banho.

 - Ora, que coisa! - disse ele ao abrir a porta do carro. - Todo pelado! Nunca vimos algo assim.

 - Passe isso para cá! - vociferou Rieti puxando o roupão de banho. Depois, meteu-se dentro do robe e saltou do carro. - Denunciarei todos vocês! - gritou para o chofer. Em seguida, subiu correndo a escada e desapareceu no navio.

 Os dois oficiais de polícia de patente mais alta, que haviam subido a bordo como convidados do director de hotel Riemke e que se encontravam no quase vazio bar Atlantis, fizeram um gesto de desdém e riram quando Pfannenstiel levou a denúncia do cantor de música de câmara.

 

 - Esqueça! - disseram erguendo os copos. - Quem entra nas barreadas deve estar preparado para o que der e vier. Não dá para se andar de barriga cheia em meio aos famintos.

 Ewald Dabrowski também parecia estar se comportando da maneira mais ingénua possível, quando saltou do táxi em Lima e quis andar a pé pela cidade. Ali já não se via a miséria estampada nos exteriores. Construções de luxo ladeavam praças e avenidas largas, palácios e igrejas, universidades e monumentos. Na volta da Plaza de Armas, o ponto central de Lima, fluía o tráfego e aglomeravam-se as pessoas. As lojas estavam abarrotadas de mercadorias, como no dourado Ocidente. As fachadas dos bancos não pareciam menos suntuosas do que na Europa ou na América. Quem vê o centro de Lima é obrigado a acreditar que o Peru é um país rico.

 Batendo com a bengala branca à frente, Dabrowski andou pelas ruas com todo cuidado, levando a mal-humorada Beate ao lado. Ela ainda o recriminava por não tê-la levado a Cuzão e Machu Pichu. Dois dias e duas noites sozinha com o Dr. Paterna... isso poderia mudar muitas coisas.

 - Afinal, para onde estamos indo? - perguntou ela num tom de voz um tanto impertinente.

 - Ao museu Largo Herrera.

 - E o que é que se pode ver nele?

 - Maravilhosos trabalhos em ouro e prata dos incas.

 - Eu teria preferido Cuzão.

 - Acredito. Aliás, não Cuzão, mas sim o belo Mário. Beatinha, é disso que estou querendo protegê-la. Um dia você ainda vai me agradecer.

 A coisa aconteceu então na Via Santa Anna. De repente, dois jovens pararam diante deles, bloquearam o caminho e, sem dizer nenhuma palavra, atacaram. Um deles pôs "cego" provou-o e enfiou a mão no bolso do casaco; o outro jogou-se sobre Beate, rasgou-lhe a blusa e, com um solavanco, arrancou-lhe a correntinha de ouro do pescoço.

 - Socorro! - gritou Beate a plenos pulmões. - Socorro! - contudo, ninguém se aproximou, embora a Via Santa Anna estivesse apinhada de pedestres. As pessoas olhavam para o lado e tentavam se afastar o mais rápido possível.

 O que aconteceu então demorou apenas segundos; com um golpe rápido e bem dado de judo, Dabrowski agarrou o assaltante. Uma virada rápida como um raio e o homem voou em curva pelo ar indo chocar-se com o asfalto. É bem verdade que ele tornou a levantar-se com um grito de dor mas viu com ar de perplexidade quando seu companheiro saiu voando pelo ar até espatifar-se na parede de uma casa. A bengala branca do "cego" e os óculos de lentes escuras haviam saído na rua e, nesse momento, Dabrowski, esfregando as mãos de contentamento, levantou o segundo assaltante da parede da casa, estourou o punho fechado contra seu queixo e depois soltou-o.

 O outro assaltante segurou o companheiro cambaleante, deu mais uma olhada incrédula no "cego" e, em seguida, fugiu com seu cúmplice entrando numa viela transversal das proximidades. Beate recostou-se chorando numa porta e pôs a mão no pescoço. O modo brutal como a correntinha fora arrancada deixara um vergão ensanguentado na pele. Mesmo assim, ela perguntou entre as lágrimas:

 - Você sabe lutar judo...?

 

 - E como! - Dabrowski abotoou-lhe os botões que sobraram da blusa. - Cheguei a disputar a faixa-preta. E uma vez o karaté me salvou a vida, em Nova York. Uma noite, um negro também tentou roubar-me por lá, só que o sujeito estava com uma faca na mão e queria fazer a coisa completa. Depois de dois golpes, ele estava madurinho para o hospital.

 - Você também sabe karaté? - ela enxugou as lágrimas do rosto e apoiou-se no ombro de Dabrowski. - E o que mais?

 - Bem, tudo que me pode defender. Quero ficar velho, bem velho.

- Dabrowski inclinou-se, pegou os óculos e a bengala branca e, de novo transfigurou-se em cego. - Agora vamos dar um pulinho num café para fortalecer nossos nervos, Beate.

 - Assim, com a blusa rasgada?

 - E quem presta atenção nisso por aqui? - ele riu e deu o braço a Beate. - Você acabou de ver que está segura ao meu lado.

 Knut De Jongh atravessou o programa de visitação a Cuzão e Machu Pichu, de todos os outros modos, menos seguro. Enquanto dessa vez Sylvia sentiu os efeitos da altitude e foi obrigada a repousar no hotel, a fim de acostumar-se às condições atmosféricas a 3500 metros, De Jongh, sem impressionar-se com a altura e robusto como um tigre, empreendeu um passeio no particular à vela pelo Cuzão, essa vez não se repetiu a fria das alturas de Chimborazo.

 - Esse tipo de coisa só acontece uma vez com um De Jongh! - disse orgulhoso. - Na segunda vez, todos vocês podem chutar minha bunda, até eu voltar ao normal.

 - Aí está uma proposta que eu seguiria com todo prazer! - responderá Ludwig Moor. - Não perderei você de vista.

 Contudo, Knut De Jongh saiu sozinho nessa noite. Pendurou a máquina fotográfica e flash no pescoço e tomou a decisão de conhecer Cuzão à sua maneira. A visita a Machu Pichu do dia seguinte só daria como resultado fotos parecidas com cartões-postais.

 Ele não viu Machu Pichu.

 Dois índios arrastaram-no até a entrada do hotel, deixaram-no cair ali e fugiram desaparecendo na noite. Não faria o menor sentido sair correndo atrás deles. Knut De Jongh arrastou-se com mãos e joelhos e uma incrível força de vontade até o saguão e, somente quando ali chegou, sucumbiu e perdeu a consciência, para o espanto dos hóspedes sentados na recepção.

 O Dr. Paterna, já deitado na cama, foi chamado. Knut De Jongh estava caído num sofá do quarto dos fundos da recepção, pálido, com a respiração ofegante, mas já consciente de novo. Ao ver o Dr. Paterna invadir o quarto, De Jongh chegou a ostentar um sorriso retorcido.

 - Um assalto - disse o gerente com um ar bem indiferente.

- Facadas... dois índios trouxeram-no para a porta. Mas também qual o estrangeiro que sai sozinho à noite para andar em Cuzão! De que servem todas as advertências?!

 Paterna cortou a camisa e a camiseta ensanguentadas de Knut De Jongh e tirou-lhe o paletó com todo cuidado.

 - Seu idiota! - disse ao fazê-lo. - O que queria fazer em Cuzão de noite? Os incas não têm ponteiros para brancos. Um índio quíchua é um ser humano orgulhoso. Mesmo quando mendiga... ele continua sendo orgulhoso! Onde você se meteu?

 

 - Em toda a parte. - De Jongh ofegava ao respirar. - Queria tirar fotos que nunca ninguém tirou. - Encarou o Dr. Paterna e tossiu duas vezes. A dor contorceu-lhe o rosto. - De repente, saindo das sombras profundas, eles caíram sobre mim e tentaram arrancar minha máquina. Quadrilha de covardes! Eu saí dando socos e pontapés à minha volta e os caras voaram pelo ar e caíram no chão, foi uma cena magnífica. Mas depois chegaram mais dois com facas na mão. Aí acabou-se o que era doce. Ainda cheguei a sentir uma punhalada, mas depois apaguei. Só voltei a acordar por alguns momentos aqui na porta do hotel. - Knut levantou a cabeça, mas o Dr. Paterna pressionou-a com a palma da mão. - Está ruim a coisa, doutor?

 - Você é um arrombado! - disse Paterna de modo grosseiro.

 De Jongh piscou o olho para ele.

 - Hoje você pode dizer isso, doutor. Como é, vou sobreviver?

 - Ainda não sei.

 - Puxa, muito consolador. Onde foi que os caras me pegaram?

 - Seis facadas. No peito e nas costas. Existe o perigo de hemorragias internas. Agora não posso fazer mais nada a não ser colocar-lhe umas ataduras. Seria melhor mandá-lo ao hospital.

 - Aqui, em Cuzão? De jeito nenhum!

 - Em Lima.

 - E vocês seguem viagem para os mares do Sul? Ah, doutor, você conhece mal esse De Jongh. Amanhã, quando vocês forem a Machu Pichu, ficarei de cama e, depois de manhã, volto no mesmo avião de vocês para o navio. Recuso-me terminantemente a ir para um hospital.

 - como queira.

- O Dr. Paterna levantou-se. - A responsabilidade é sua! Mas assim, do jeito que está, não vai conseguir entrar em avião nenhum. Precisa bancar o cara que está bem de saúde. Será que você consegue?!

 - Vamos aguardar e peidar até ficar bom! - De Jongh arreganhou outro sorriso irónico. Nesse momento, as dores ficaram mais fortes exercendo um efeito paralisador sobre o corpo todo. Ele soltou um gemido abafado, quando Paterna colocou-lhe a primeira atadura. - Ai, seu quebrador de ossos! - balbuciou. - Droga, também não sou feito de ferro.

 - Você já vai tomar uma injecção contra a dor. E quando acordar amanhã cedo... que Deus tenha piedade de sua alma se quiser bancar o herói! A coisa só tende a piorar e não a melhorar. Se houver qualquer complicação, mandarei que o levem para o hospital na mesma hora!

 Knut De Jongh adormeceu poucos minutos depois da injecção. Não chegou a sentir a colocação da última atadura. Quatro mensageiros do hotel levaram-no para o quarto. Sylvia ficou sentada como que petrificada olhando para o marido.

 - Ele... ele vai ficar curado? - gaguejou.

 O Dr. Paterna assentiu.

 - Não é tão ruim quanto parece. Mas se ele começar a tossir e cuspir sangue, telefone imediatamente para mim. Quarto 29.

 Sylvia esperou até que a porta fosse fechada e depois inclinou-se sobre De Jongh.

 - Vamos! - disse em voz baixa. - Tussa e cuspa sangue... Cuspa fora a sua vida, seu monstro! Não me faça esperar muito tempo... por que você não tosse...?!

 Durante essa noite e o dia seguinte, Knut De Jongh ficou tão fraco que mal conseguia levantar a cabeça para olhar o Dr. Paterna ou Sylvia. Após o regresso de Machu Pichu, todo o grupo da viagem desfilou diante de sua cama. De Jongh achou isso comovedor, até que Ludwig Moor lhe disse:

 

 - Foi um lindo dia sem você! Não havia ninguém berrando o tempo todo. Assim, fomos uma verdadeira comunidade. Estimo as melhoras!

 Knut De Jongh não deu resposta alguma e engoliu as frases... uma outra prova do quão mal ele se sentia.

 A viagem ao aeroporto de Cuzão foi uma trabalheira danada. Moor e outro passageiro da Suábia seguraram De Jongh no meio e arrastaram-no até o avião como um bêbado.

 - É isso aí - disse o suábio arreganhando um sorriso maroto para o comissário na escada. - O garotão devia aguentar mais.

 - Muitas tragadas... - o comissário não entendeu uma palavra do alemão, mas compreendeu a linguagem de gestos de Moor significando bebida. Riu e inclusive ajudou a alojar De Jongh, quase morto de dor, num assento da primeira fila. Sylvia sentou-se de rosto impassível ao lado do marido. Qualquer pessoa que a visse, seria capaz de pensar: uma senhora tristonha. Mas se soubesse o que ela de facto pensava, teria falado em Satanás.

 Por que ele ainda está vivo, Sylvia se perguntava. Puxa, mas que natureza de touro! Fiquei sentada ao seu lado na cama a noite inteira, esperando que tudo acabasse depois de uma golfada. Mas não, ele continua vivo! Ele tinha de ser morto à pancada mesmo, para ficarmos livres dele.

 Mais tarde, em Callão, o Dr. Paterna, Ludwig Moor e o suábio levaram De Jongh para o navio, dois comissários apareceram e levaram-no até o hospital. Na mesma hora, o segundo-oficial de serviço no convés transmitiu a informação por telefone ao comandante.

 - O quê? - disse Teyendorf chocado. - Facadas? O Sr. De Jongh. Irei mais tarde ao hospital.

 O chefe Wurzer, que se encontrava ao seu lado na ponte, coçou o queixo.

 - ... valeu a pena de novo - disse com sarcasmo. - Um cantor de câmara pelado, uma briga no meio da rua, um esfaqueado... eu gostaria de saber: será que foi tudo?

 - Vamos aguardar - Teyendorf deu uma olhada no relógio. Ainda faltava uma hora para zarpar. Nem um minuto a mais. O Atlantis era mais pontual do que um combóio. - Até agora temos nove denúncias. Até o pianista do nosso bar foi assaltado. O babaca levou seu relógio de ouro apesar de todas as advertências. Só teve descanso porque deu um chute no baixo-ventre de um dos bandidos, depois pode sair correndo. Aliás, havia um polícia na esquina, mas ele virou o rosto. Tudo isso já não me deixa mais alterado; afinal, não faria o menor sentido.

 No hospital, finalmente, o Dr. Paterna pudera fazer um exame correcto em De Jongh. Tiraram-lhe radiografias, após algumas injecções contra dor e febre, para activar a circulação e contra o tétano. Como se constataram hemorragias internas. O médico desinfectou os ferimentos de faca e depois tornou a cobri-los com ataduras. Por enquanto, como se podia fazer mais nada.

 Sylvia, que se encontrava sentada na sala de espera, levantou-se quando o Dr. Paterna saiu da ala de tratamento. A mulher estava interpretando de maneira primorosa seu papel de pânico preocupado.

 - Doutor, o que é? Por favor, me diga a verdade, por favor. Posso suportá-la, sou mais corajosa do que pareço.

 O Dr. Paterna pousou a mão no ombro de Sylvia.

 

 - Ele vai conseguir. Tem uma natureza de urso. Caso não apareçam complicações inesperadas, dentro de catorze dias ele poderá voltar a tomar banho de sol no convés, com algumas atraentes cicatrizes no peito e nas costas.

 - Posso... posso vê-lo?

 - Claro. Agora ele está dormindo. Você pode vir ao hospital quando quiser.

 Sylvia entrou no quarto na pontinha dos pés e parou diante da cama branca de metal. O rosto de Knut De Jongh estava emagrecido e ostentava uma coloração pálido-amarelada, mas sua respiração era tranquila e regular. Sylvia inclinou-se sobre ele e encarou-o cheia de ódio.

 - Morra! - disse em voz baixa. - Morra logo... Já não consigo mais suportá-lo...

 Ela estremeceu, pois a porta atrás dela foi aberta. O comandante Teyendorf entrou, apertou a mão de Sylvia num gesto de simpatia e ela conseguiu chorar com um ar de total abandono.

 

 Por um dia, o assalto a Knut De Jongh foi o grande tema da conversa a bordo. O cantor Rieti permaneceu em sua cabina, sentindo-se profundamente insultado, como se a própria direcção do navio o tivesse despido. Desmarcou o concerto de ópera para dali a dois dias, aceitou os comprimidos tranquilizantes do Dr. Paterna e quando sua colega, a cantora Reilingen, o visitou, fez pose de quem estava arrasado.

 - Foi um choque... - balbuciou ele de modo dramático. - Foi isso mesmo, querida Margarete. Um choque que quase me paralisou. Será que poderei voltar a cantar um dia? Será que minha voz foi danificada? Não consigo produzir nenhuma nota. Está tudo estrangulado, sufocado, imóvel. Ouça só isso! - Rieti entoou então algumas horripilantes notas e interrompeu-se aterrorizado. - Parece cacarejo de galinha, não é verdade? Estou liquidado!

 Ele fechou os olhos, cruzou as mãos sobre o peito e ficou deitado como um morto.

 Margarete Reilingen, como contaminada pela conhecida histeria de seu colega, deixou-o com as seguintes palavras:

 - Descanse, Franco. Cuide-se. Darei esse concerto sozinha.

 Essas últimas palavras surtiram mais efeito do que todos os medicamentos. Tão logo Margarete Reilingen saiu da cabina, Rieti saltou da cama, investiu contra o banheiro, fez um gargarejo com seu líquido mágico e depois foi exercitar sua bela voz no vibrante piano. Não estava disposto a deixar o triunfo só para a Reilingen.

 Na cabina do Dr. Schwarme voltaram a ocorrer as excitadas discussões internas. Erna sentia-se traída; seu grande flerte, François De Angeli, pouco se interessava por ela e vivia perseguindo as outras lindas mulheres a bordo, saracoteava à volta delas como um pavão, o que levava alguns maridos a pararem de contemplar suas mulheres exclusivamente como um anúncio luminoso de seu sucesso e voltarem a reconhecer-lhes as qualidades femininas. às vezes, ocorriam situações grotescas quando, por exemplo, um marido até então sereno acariciava os seios da mulher na cama da cabina noite alta, ao mesmo tempo em que esboçava a justificada, porém, inibidora pergunta:

 - Puxa, que está acontecendo com você?

 

 Claro que Erna Schwarme estendeu ao marido o desapontamento que estava tendo com De Angeli, como é típico das mulheres casadas há muito tempo. Ela tirou o jornal de bordo que Schwarme estava lendo e disse em tom mordaz:

 - Lá está o pobre Sr. De Jongh no hospital, sem poder viver nem morrer! A coisa sempre acerta a pessoa errada!

 - Você preferiria que fosse eu que estivesse acamado lá, não é mesmo? - o Dr. Schwarme lançou um olhar cheio de ódio à mulher. Pombas, por que não fiz o negócio naquele dia, pensou ele. Tão cedo não aparecerá uma oportunidade como aquela de Chimborazo. - Talvez mais tarde, minha querida. Muita coisa ainda pode acontecer até Sidney!

 Erna não percebeu o duplo sentido da frase e balançou a cabeça várias vezes.

 - Quando chegarmos em casa, vou pedir o divórcio. Ainda quero ter um pouco da vida, ainda sou bem jovem e nem um pouco feia.

 O Dr. Schwarme fez um gesto de desdém.

 - O que você quer dizer com esse "ter um pouco da vida"? Trepar até desmaiar com sujeitos como esse François De Angeli?

 - Por exemplo. - Ela esticou o lábio inferior num gesto provocante.

- Talvez esteja me faltando isso. Um homem na cama é melhor do que dez milionários impotentes de fraque. Você consegue fazer qualquer coisa com seu dinheiro, só não consegue endurecer esse negócio direito.

 O Dr. Schwarme foi lembrado de sua malfadada aventura em acapulco, de seu fracasso diante do corpo de moça mais bela que já havia visto e que agora estava profundamente enraizado em seu coração.

Schwarme tornou a agarrar o jornal de bordo, enterrou-se atrás dele e disse de modo bem rude:

 - Você devia ser simplesmente atirada ao mar.

 - Você jamais conseguirá. É covarde demais para isso. A propósito vou inscrever-me para a eleição de "Miss Atlantis".

 - Nossa Senhora!

 - François vai me propor e depois vou dormir com ele!

 - Bom passeio!

 - Você é o maior nojento vivo! - Erna gritou com voz reprimida. - Se os outros soubessem como você é de verdade!

 Saiu correndo da cabina e bateu a porta com força. O Dr. Schwarme suspirou, desvencilhou-se do jornal de bordo e cravou os olhos no mar nocturno lá fora. O Atlantis estava a caminho do Chile. O navio atracaria em África, a primeira e elegantíssima cidade portuária chilena, dentro do horário programado. Um verdadeiro descanso depois do pesadelo de Callão e toda a sua sujeira.

 Um divórcio na Alemanha, pensou o Dr. Schwarme, com tudo o que ela sabe? Seria uma catástrofe se ela soltasse a língua no tribunal. Meu naufrágio total. Isso não pode acontecer. Precisa surgir outra situação igual à de Chimborazo nalgum lugar e aí eu não vou hesitar. O que foi que aconteceu connosco?!

 Knut De Jongh passou bem, na medida do possível, o resto do dia e também a noite. O Dr. Paterna e a enfermeira Erna revezaram-se em sua vigília; mas não sua mulher Sylvia.

 

 - Não posso, doutor! - dissera ela ao telefone com a voz empestada em tom de zombaria. - Sempre tive medo de doentes. Uma besteira, não? Não consigo ver um doente sem adoecer também.

 Em compensação, após o jantar jogou-se, ao mesmo tempo bem-aventurada e frenética, nos braços de Hans Fehringer e foi uma amante tão apaixonada que Fehringer chegou ao limite de sua capacidade de desempenho.

 - O médico disse que Knut deverá ficar hospitalizado catorze dias - suspirou ela enroscada no peito ofegante do amante.

- Catorze dias e noites sem medo, sem brincar de esconder. Não é maravilhoso? Todas as noites em seus braços, todas as noites sentindo seu corpo, todas as noites explodindo de felicidade... nunca mais vai acontecer de novo, querido. Temos catorze dias só para nós...

 - Sete dias! - disse Hans Fehringer, cansado e esvaziado. Estava pensando em Herbert e no acordo sobre o revezamento dos dias e noites.

 Só que agora essa divisão ficara mais difícil. Desaparecia o argumento para a divisão dos dias. "Não devemos despertar suspeitas em seu marido", pois De Jongh estava hospitalizado e a cama de Sylvia permanentemente desocupada. Estava fora de cogitação que Herbert abrisse mão de suas noites durante catorze dias. Nem era preciso ir conversar com ele. Só que como explicar a Sylvia o salto respectivo de uma noite?

 Nessa noite, Sylvia não fez nenhuma pergunta nesse sentido. Estava saciada. Acariciou o corpo de Fehringer com os lábios, deu a volta e cobriu-o com seu corpo magnífico.

 Hans Fehringer não precisou de explicações... Nas noites seguintes e também durante o dia, quando Sylvia sentia calor entre suas coxas e lhe fazia um sinal para descer ao convés, Fehringer sempre estava em condições admiráveis e fazia amor com ela a todo vapor. Só que eram Hans e Herbert alternadamente e quando no dia seguinte Hans, com a maior inocência, contava ao irmão o quão sensacional Sylvia estivera no amor, Herbert mantinha-se calado e alegrava-se com a aproximação de seu dia e noite.

 Mas de vez em quando ele pensava: como será em Sidney? Que acontecerá no momento em que, fogosamente, esse jogo de gémeos for desmascarado, o mais tardar quando Sylvia quiser ficar com Hans Fehringer?

 Seria possível que gémeos de ligações tão estreita não eles brigassem querendo matar-se? Um pensamento horripilante e uma situação sem saída.

 Nenhum dos dois renunciaria a Sylvia de livre e espontânea vontade.

 Knut De Jongh ultrapassara a fase crítica três dias após a visita à limpa África, na viagem em direcção a Valparaíso. Restava apenas uma febre baixa e duas das facadas nas costas apresentavam pus.

 - Bem, quando temos o prazer de ser esfaqueados, não devemos esperar que os caras antes limpem e esterilizem a faca - disse o Dr. Paterna sarcástico a De Jongh, que estava deitado de barriga para baixo trincando os dentes durante o tratamento das feridas inflamadas. - Além do que os fabricantes de antibióticos também precisam viver. Aliás, pelo visto você tem passado muito bem. Há poucos momentos, você deu uma bronca na enfermeira Erna porque ela não queria trazer-lhe uma cerveja. Coisa que você não terá enquanto eu o estiver tratando, estamos entendidos?

 

 - Estamos! - De Jongh virou a cabeça de lado e; grunhindo, encarou o Dr. Paterna. - Quanto tempo mais precisarei permanecer nessa prisão de doentes?

 - Até eu lhe dizer: saia e vá encher o saco dos outros. Pode ser que dentro de catorze dias.

 - E não sobreviverei? Sem cerveja, sem aguardente, sem mulher...

 - Mas sua mulher vem todos os dias sentar-se em sua cama.

 - É isso aí, ela senta na cama. Eu preferiria que se deitasse ao meu lado.

 - O corpo cheio de facadas e com esses desejos! Diga-me uma coisa, o que está faltando para lhe derrubar?

 - Tentem bolar algo. - De Jongh arreganhou um sorriso irónico e tornou a virar a cabeça. - Derrubar um De Jongh é realmente um belo trabalho. Argh! Seu estúpido! O que está fazendo?

 - Limpando seus ferimentos. Fique quieto, que droga! Se quer ser um osso duro de roer não aborre a quando estiverem fazendo cócegas em suas costas.

 Quando Sylvia visitava o marido acamado, ela contava tudo que estava acontecendo no convés. E contou também como era África; a igreja construída por Eiffel, o genial construtor da torre de Paris, a imensa praia branca e como fora o almoço com o casal Schwarme num restaurante especializado em peixe, situado numa enseada, onde eles foram observados por centenas de pelicanos.

 - Todos sentimos muito sua falta. - Sylvia chegou a dizer. - Sem você tudo fica tão chato. Não existe ninguém que saiba agitar o pessoal.

 Depois, ela se despedia todas as vezes, com um beijo, subia de elevador ao convés e ia correndo para a sua cabina. Ali, na maioria das vezes, Fehringer já estava deitado na cama, despido, enrolado num roupão de banho. E Sylvia arrancava-lhe o roupão, atirava suas roupas ao chão e, com um grito de alegria, atirava-se sobre ele.

 Não queria perder nenhum dia, nenhuma hora... Quando voltaria a ter um outro êxtase como aquele?

 - Irmão do coração! - disse Hans no quarto dia após a desgraça de Knut De Jongh. - Preciso pedir-lhe um favor: agora você deve preocupar-se um pouco mais com Sylvia.

 - O que você está querendo dizer? - perguntou Herbert em atitude de espreita.

 - Você deve encontrar uma forma de explicar-lhe por que não vai a ela nos dias e noites que lhe tocam. Afinal de contas, ela acredita que você seja eu! Entende? Você precisa explicar-lhe por que ela fica sozinha nessas noites.

 - Tem uma certa lógica aí. - Herbert Fehringer ficou assistindo ao irmão fazer a barba. - Claro que ela ficará admirada e imaginará que a sua potência não é lá essas coisas.

 - Seu arrombado!

 - Mas imagina só uma coisa, imagina se eu também me apaixonar por uma mulher aqui a bordo. Nesse caso, aos olhos de Sylvia seu amado Hans estará com uma outra e ela terá recebido um chute.

 - Impossível! - Hans Fehringer virou-se. - Herbert, você não pode fazer isso comigo.

 - Quer dizer então que, por sua causa, devo bancar o monge? Até Sidney? Olha, nenhum amor fraternal chega a esse ponto.

 - Vai haver o maior drama se você fizer isso. Você... você já tem alguém na alça de mira?

 

 - Várias.

 - Que catástrofe! Herbert, eu lhe suplico: continue fazendo o jogo! Você nem imagina o que Sylvia significa para mim. Eu a amo mesmo. Ela ficará comigo.

 - Connosco! Aliás, essa é a questão central, irmãozinho. Como é que você vai esclarecer para ela que existem dois Fehringers e, sendo assim, quem é o verdadeiro?

 - Mas é claro que só eu dormi com ela!

 - Você pode provar isso? Ela vai olhar para nós, soltará um grito e sairá correndo. Aposto como Sylvia não suportará gémeos tão idênticos como nós... Andei pensando muito tempo a esse respeito.

 - E... e qual foi a solução que você encontrou?

 - Ainda não encontrei nenhuma, irmãozinho. A não ser que nos separemos por toda eternidade... por causa de uma mulher. Será que uma mulher vale isso?

 - Puxa, agora você me deu um chute no saco. - Hans Fehringer enxugou a espuma de barbear do rosto. Estava desconcertado. - Herbert precisamos encontrar uma solução com toda urgência. Mas primeiro uma coisa: jamais desistirei de Sylvia! Deve haver uma saída...

 O detective Ewald Dabrowski também procurava uma saída do beco em que se encontrava.

 O comandante Teyendorf chamara-o à sua cabina renunciando à respectiva hospitalidade. Nada de vinho, nada de uísque ou cigarro, nada de pasteizinhos. Em compensação, um ambiente sombrio. O director de hotel Riemke, sentado no sofá como terceiro homem, parecia perplexo no meio deles.

 - Amanhã chegamos a Valparaíso - disse Teyendorf sem maiores delongas. - Depois de amanhã, trezentos e dezanove passageiros deixam o navio e voam de volta a Frankfurt. à tarde, sobem a bordo trezentos e trinta e sete novos passageiros vindos de Frankfurt. A grande mudança para o trecho mares do Sul Nova Zelândia - Austrália. E, Sr. Dabrowski, onde está esse seu ladrão de jóias Carducci?!

 - A bordo, senhor comandante.

 - E a partir de Valparaíso?

 - Também a bordo.

 - Como pode estar tão seguro?

 - Respondo com uma pergunta: o que Carducci roubou até agora? Não muito. Ele devolveu as jóias da Sra. Schwarme por falta de qualidade. Restam a pulseira de brilhante de lady Cumberiand e um anel miserável. Assim, até aqui a viagem não valeu a pena. Mas um Carducci não desaparece sem levar uma grande presa. Se ele não atacar nos últimos dois dias, ficará a bordo até Sidney. Novos passageiros, novas jóias. E, posto que o trecho dos mares do Sul é o mais caro, também subirá a bordo gente com mais dinheiro. É sobre isso que Carducci está especulando.

 - E se de facto ele atacar nos últimos dois dias? - Teyendorf pigarreou. - Quem o impedirá, na situação atual, de desembarcar em Valparaíso sem ser incomodado?

 - Ninguém. Nesse caso, eu jogo a toalha, senhor comandante. Então poderá chamar-me de idiota.

 - Eu terei recebido muito pouco... mas meus passageiros terão sido roubados e Carducci terá as jóias!

 - Tem alguma proposta construtiva a fazer, senhor comandante?

 

 - Eu? O detective sou eu ou você? Eu não teria medo de fazer uma revista na bagagem e no corpo de todos os trezentos e dezanove passageiros que desembarcarão. Mas não posso. Seria um escândalo. Portanto, só me resta dizer: aqueles que, apesar das advertências, deixaram suas jóias jogadas por aí, serão culpados caso elas sejam roubadas. Com isso, as pessoas roubadas ficam com o prejuízo e Carducci termina como vencedor risonho. É justamente isso que está atravessado na minha garganta!

 - Não acredito que Carducci vá desembarcar em Valparaíso sem suas presas. Não é mesmo do seu estilo. Pense numa coisa: Carducci tem seu orgulho. Ele jamais desistiria de ser bem-sucedido. Devemos ver a coisa do ponto de vista psicológico...

 - Só faltava essa! - Teyendorf cerrou os punhos. - Já estou com cinquenta e quatro anos e ainda preciso aprender a psicologia dos larápios! Fora isso, não tem mais nada a dizer, Sr. Dabrowski?

 - Não, senhor comandante.

 - É espantosamente pouco. - Teyendorf levantou-se da poltrona de couro; o sinal de que a dolorosa conversa chegara ao fim. - Portanto, vamos tratar o caso com a psicologia mais profunda - disse com evidente escárnio. - Vivendo e aprendendo!

 Nesse dia, mais uma vez um impresso da gráfica de bordo aconselhou os passageiros a depositar suas jóias nos cofres da comissária. Contudo, era questionável se o conselho fazia algum sentido. Haveria a noite de despedida, o jantar à luz de velas e a grande surpresa da sobremesa com o desfile dos comissários de mesa e o crepitar dos círios. Pela última vez, as pessoas usariam o guarda-roupa de gala e as melhores jóias... quem iria se preocupar em ir aos cofres da comissária em plena madrugada? Afinal de contas, as melhores jóias não ficariam descuidadas, seriam colocadas na cama ao lado, a porta da cabina seria fechada... Não podia haver maior segurança. E no dia seguinte sairiam do navio. Que mais poderia acontecer?

 Paolo Carducci pensava da mesma maneira. Estava contente pela aproximação de Valparaíso.

 

O Atlantis entrou às sete horas da manhã no enorme porto de Valparaíso, saudado pelos uivos de sirene de dois rebocadores. como sempre, Teyendorf estava postado na ponte dirigindo a atracação do "hotel branco do mar" no píer. Os passageiros aglomeraram-se no tombadilho, olhando o porto, recostados na amurada. era sempre uma experiência inesquecível ver um navio tão gigantesco como aquele aproximar-se centímetro por centímetro do paredão do cais e, depois, ficar parado ao largo, sem chocar-se. E também o orgulho de Teyendorf era poder retornar de uma viagem de volta ao mundo com a comunicação: o navio está intacto.

 

 era bom o estado de espírito entre os oficiais e todos aqueles que sabiam do segredo. Carducci não atacara, a noite de gala de despedida transcorrera sem nenhuma complicação, isso se não se leva em conta o que aconteceu depois do jantar, durante o baile de despedida no Salão dos Sete Mares, no qual a cantora Margarete Reilingen deu sua contribuição com árias de operetas. De repente, sem que ninguém estivesse esperando, Franco Rieti apareceu no palco, bem elegante em seu fraque, mas com esparadrapos no rosto, um olho arroxeado e arranhões pelo pescoço. Margarete Reilingen encarou-o como se Rieti fosse um fantasma.

 Quando Franco Rieti terminou a ópera "Ninguém dormia de Turandot", foi aplaudido com verdadeiro júbilo. Inclinou-se num gesto majestoso e sussurrou para Reilingen que estava ao seu lado:

 - O cumprimento do dever remove montanhas.

 Reilingen achara extremamente estúpido esse provérbio saído da boca de um Franco Rieti.

 - Portanto - disse Dabrowski para o aliviado Riemke - podemos de facto partir da premissa que Carducci não desaparecerá em Valparaíso, se não que continuará ao nosso alcance. Isso é tão certo como uma macieira mão dá pêras. Para nós, isso significa o aumento do estado de alarme. De Valparaíso até Sidney ele tem um grande campo pela frente. Eu gostaria de propor que saudássemos logo os novos passageiros com a advertência para que depositem as jóias nos cofres.

 - Você tem mesmo nervos de aço! - Riemke ostentou um sorriso amargo. - Como é que vamos ficar se dissermos: atenção! Tem um ladrão de jóias a bordo, só que não sabemos quem é. Esse tipo de coisa espalha-se com rapidez. Mesmo que não tenhamos culpa nenhuma, a conversa será sempre: você vai viajar no Atlantis? Segure firme sua carteira, esses caras vão roubar-lhe até o último níquel! Mesmo que seja uma

besteira... seria o fim da boa reputação.

 - E o que os passageiros irão dizer, quando Carducci começar a fazer a limpeza em regra?

 - Mas isso é você quem tem de impedir. É para isso que está a bordo!

 - Agora sou eu quem devo dizer: você tem mesmo nervos de aço! - Dabrowski tornou a colocar os óculos escuros e pegou a bengala branca de cego. - Agora irei a terra, serei levado a Vina del Mar, o balneário mais elegante do Chile, e nadarei nas águas quentes. Pois, com toda certeza, estaremos descansados de Carducci nos próximos dois dias.

 Quando a escada foi liberada para as pessoas que iriam à terra e os primeiros grupos desembarcaram em direcção ao autocarro para os passeios a Santiago do Chile, Vina del Mar e Valparaíso, houve uma pequena altercação no píer.

 Um casal de Hamburgo pertencente à "máfia dos médicos", que até então só havia chamado a atenção por sua soberba, correu cheio de energia em direcção a um táxi como se fosse para tomar de assalto uma fortificação. Contudo, sua pressa foi refreada pelo motorista que, num fluente alemão, disse:

 - Sinto muito, o carro está reservado.

 - Ah! Você fala alemão? - o médico de Hamburgo examinou o chofer. - Instituto Goethe, não é verdade? Aprendeu bem.

 - Não. Sou de origem alemã. Meu pai nasceu em Colónia.

 - Vejam só, um verdadeiro alemão estrangeiro! - o hamburguês meteu a mão na maçaneta. - Leve-nos a Santiago e depois a qualquer lugar onde os outros não vão. Odeio esses passeios em massa; nos quais a gente é despejado na frente das lojas que passam porcentagem para os guias de turistas.

 - Sinto muito, o táxi está reservado - repetiu o motorista de modo amável.

 - Que significa esse "reservado"?! Reservado, como assim?

 - Através do rádio do navio.

 - Ah, quer dizer que pode isso? - o médico de Hamburgo enrugou a testa. - Por quem?

 

 - Pelo comissário-chefe, um tal de Pfannenstiel.

 - Mas isso é o cúmulo! - o hamburguês abriu a porta do carro. - Quer dizer que o pessoal do navio banca o espertinho e os passageiros têm de dar o maior duro?! Nada disso, você vai fazer a viagem para nós! Somos nós que pagamos, o pessoal pode muito bem esperar.

 - Mas se...

 - Entre, Leonore! - gritou o médico empurrando a mulher para o assento e depois encarando o motorista, em parte com ar de triunfo, em parte irritado. - Claro que você não vai ter o descaramento de tirar minha mulher do seu táxi, não? Muito bem! Segundo as determinações das autoridades, você é obrigado...

 - Olha aqui, nós estamos no Chile e não na Alemanha coalhada de leis e parágrafos.

 - Ah! - o hamburguês jogou-se no assento ao lado da mulher e esticou as pernas. Cá estou, foi o significado desse gesto. E cá ficarei. Tente arrancar-me daqui. - Eu pensava que finalmente o seu chefe de Estado, o general Pinochet, tivesse posto disciplina nessa bagunça! Em vez disso constato que ele tem muito que fazer. Como é, podemos ou não podemos partir?

 O motorista nada disse. Deu a volta no carro, sentou-se atrás do volante e ligou o carro. Havia uma certa tristeza em seus olhos. Por que eles, os alemães, são assim?, perguntou-se. Por que fazem tudo que podem para ser odiados no estrangeiro? Onde quer que apare aí, estão sempre fazendo demonstrações da raça superior. Mas porquê isso? Eu também sou alemão e me envergonho por eles. Tiveram uma derrota na última guerra como nunca antes um povo teve, mas aparecem como se fossem os vencedores, sempre com o terrível ditado no fundo da cabeça: o mundo deve proceder à maneira alemã.

 - Para onde? - perguntou lacónico.

 - Onde seja interessante. - O médico de Hamburgo recostou-se no assento com pose de marechal vitorioso. - Mas antes de mais nada quero convencer-me de que a nossa imprensa, esses vermelhos disfarçados, espalha mentiras sobre o Chile.

 Parado na escada o comissário-chefe Pfannenstiel viu quando o táxi que encomendara, partia com o casal de Hamburgo. O primeiro-contramestre, encarregado da guarda da escada, arreganhou um sorriso largo.

 - É espantoso, não? Nossos passageiros bem-educados com suas criancices. Para eles somos apenas merda.

 - Sempre existem excepções. - Pfannenstiel deu um tapinha no ombro do primeiro-contramestre. - O negócio é fingir que não se viu e pensar numa bela mulher. Afinal, o Chile está cheio de táxis. Deixemos que eles se divirtam bancando os mais fortes com suas carteiras recheadas. Eles também dobram os joelhos para cagar.

 No entanto, Pfannenstiel foi obrigado a esperar mais de uma hora até que outros táxis voltassem da cidade para a região portuária.

Os dez carros foram tomados de assalto pelos passageiros e nos dois últimos houve uma discussão que quase chegou às vias de facto entre dois casais que bateram boca sobre a prioridade da conquista. Os perdedores ficaram profundamente indignados e xingaram os vencedores de vagabundos. A grande despedida teve lugar na manhã seguinte.

 

 Marinheiros e portuários chilenos saíram arrastando as malas e bolsas deixadas nas portas das cabinas e embarcaram-nas em camiões. Uma coluna de autocarros entrou no píer. Nos foyers e bares do navio bebia-se o último drinque em comum e trocavam-se promessas mútuas de como se perder o bom contato, de se visitar na Alemanha, embora a maioria soubesse que isso não passava de conversa vazia. Se houvesse algum reencontro, isso se daria no máximo numa outra viagem no ano seguinte e mesmo assim, por acaso. Em geral, uma amizade de bordo dura apenas o tempo em que se partilha o convés.

 Trezentos e dezanove passageiros deixaram o Atlantis. O comandante Teyendorf foi de autocarro em autocarro cumprimentando as pessoas que partiam. Depois, a caravana de autocarros pôs-se em movimento e, em baixa velocidade, saiu do porto de Valparaíso. Só mais uma olhada para trás, para o magnífico navio branco que se tornara uma espécie de lar para aqueles que seguiriam viagem e que acenavam acompanhados do som da orquestra de bordo no tombadilho: Até à vista, até à vista, não fique fora muito tempo... Claro que foram surpreendidos por um pouco de melancolia e, agradecidas, as pessoas confessavam-se que a viagem transcorrera de uma maneira maravilhosa. Voltaremos outra vez, NM Atlantis! Antes ninguém acreditaria, mas a verdade é que as viagens marítimas criam o vício das viagens marítimas.

 à tarde, desembarcaram os novos passageiros no aeroporto de Santiago do Chile, trezentos e trinta e sete homens cheios de expectativas, uma parte deles já bem alcoolizada... afinal de contas, de Frankfurt a Santiago, haviam voado mais de vinte horas.

 - Aí vem o sustento de Carducci! - disse Dabrowski em tom de amargura. Estava recostado na ponte ao lado do comandante Teyendorf, observando a chegada. - Andei dando uma passada de olhos na lista dos novos passageiros... Minha Nossa Senhora, os caras estão cheios de penduricalhos! A propósito, meus pêsames, senhor comandante.

 - Por quê? - Teyendorf lançou um olhar desconfiado a Dabrowski.

 - Por sua futura mesa de comandante. Dois membros da direcção de sua companhia de navegação sobem a bordo com as respectivas mulheres. Vai ser uma mesa de comandante bem seca!

 - Ah, nem me lembre disso. - Teyendorf fez uma careta de amargura. - Ainda tenho dois lugares vazios. Que tal se fossem você e sua atraente Beate?

 - Por Deus, não! - Dabrowski ergueu ambas as mãos. - Claro que seria uma honra, mas eu estou aqui na qualidade de cego. Isso já é bem difícil... e ainda por cima mais dois caras da direcção? Por favor, não! Gostaria de aproveitar para descansar um pouco.

 Pela primeira vez, Dabrowski viu Teyendorf dar uma estrondosa gargalhada a plenos pulmões. Ele é um bom rapaz e não apenas um esquisito, pensou Dabrowski. Mas talvez seja necessária toda essa soberania para se poder comandar um navio como este. Dê uma olhada no comandante e você saberá como é o navio.

 

 A partida na tarde seguinte foi não apenas uma despedida da América do Sul, mas também um adeus ao solo firme do continente. O que viria dali por diante, seria a inimaginável vastidão do Pacífico, os mares do Sul com suas ilhas e o muito louvado encanto de uma paisagem maravilhosa e de pessoas bonitas com seus sonhos tornados realidade, com suas ilusões palpáveis. Seriam atravessados milhares de quilómetros de água, sobre profundidades marítimas cujas dimensões... parecem incríveis. Iriam ver recifes de coral, ilhas de filigranas com tranquilas lagunas de coloração verde-azulada e bosques de palmeiras balançando ao vento, guisas dos polinésios e pequenas e misteriosas cidades insulares, em sua maior parte dominadas pelo único comerciante, o proprietário do "armazém" - todos, quase que sem excepção, chineses. O ar se encheria com o forte aroma adocicado dos jasmins e o canto das lindas nativas e sua dança, o tamuree, tornariam inesquecíveis as noites mornas. Moorea, Bora Bora, Niué aloja, Ahu Tahai, Ranu Raraku, Hakupu, Pançai Motu... só os nomes já eram como uma música delicada, embriagadora.

 Quem nunca empreendeu uma viagem marítima, não sabe que este é o tipo mais fascinante de viagem. Não pode ser comparado com nada. Só a experiência do vasto oceano em cujo horizonte, uma vez por outra, surge uma ilha com praias de coral branco e palmeiras majestosas, fica gravada para sempre no coração. Pode-se abraçar um paraíso; aliás, paraíso só na aparência e cheio de perigos. Um apêndice supurado pode

significar morte certa; pois em geral é tarde demais até que o alarme seja dado à próxima ilha maior que disponha de médico e hospital e que um helicóptero, chamado por rádio, vá buscar o paciente. E quando de um imenso e seguro navio olhamos para o sonho de nossa juventude, o encanto dos mares do Sul, com seu sol, água azul, lagunas, alcatrazes e bancos de coral, cardumes de peixes coloridos e praias tranquilas de areia de coral branco... ninguém pensa nos tufões arrasadores que, com seu poder aniquilador, caem todos os anos sobre esse paraíso!

 Conquistar um mundo novo no mar, isso é bem mais do que uma simples viagem!

 Enquanto o Atlantis saía de Valparaíso pegando o curso da ilha de Páscoa, passando pela ilha de Juan Fernandes - na qual supõe-se ter vivido Robinson, o marujo inglês Alexander Selkirk -, Sylvia voltou a sentar-se na beira da cama de seu marido, para fazer o papel da esposa preocupada.

 O estado de Knut De Jongh continuava melhorando sempre; embora a febre não tivesse sido vencida por completo e ele ainda sentisse uma estranha fraqueza. Passava a maior parte do tempo dormindo; contudo, tão logo acordava, passava a atormentar a enfermeira Erna exigindo uma cerveja gelada sob a ameaça de que, caso contrário, escaparia daquela prisão e esvaziaria um barril inteiro no bar. Coisa a que a enfermeira costumava responder do modo mais impassível:

 - É bom eu saber disso. Agora vou passar a amarrá-lo na cama todas as noites. Comigo o senhor não vai ter esses faniquitos não!

 - Você está pálida - disse De Jongh nesse momento, segurando a mão de Sylvia. - Não se sente bem?

 

 - E como poderia me sentir bem se você acabou de estar bem perto da morte? - a frase soou cuidadosa e afectuosa, mas também era verdade que o cansaço estava oprimindo Sylvia. Agora, para ela, a noite existia não mais para o sono, mas sim apenas para fazer amor; nos braços de Fehringer, ela se esquecia do tempo e se perdia no espaço, passava a ser apenas sentimento e paixão, entrega e fluir. As poucas horas que Sylvia cochilava na espreguiçadeira do convés não substituíam o sono perdido. Em contrapartida, parecia-lhe incompreensível o frescor de Fehringer no qual, pelos vistos, as frenéticas noites não deixavam sequelas. Admirava-o cada vez mais e, uma vez, suspirou exausta:

 - Nunca mais nascerá um homem como você... - qual o homem que não gosta de ouvir isso?!

 - Você conheceu Santiago? - perguntou De Jongh. O amor de sua mulher nãovia-o. Ela era a única pessoa capaz de penetrar em sua casca dura e, então, contemplar um De Jongh completamente diferente. era uma alma que Sylvia podia amassar como bola de mascar.

 - Não - foi a lacónica resposta de Sylvia.

 - E por que não? Quando sou obrigado a vegetar aqui, você bem que poderia ter tirado algumas belas fotos para nós.

 Por quê, por quê?, pensou Sylvia lançando um olhar dissimulado a De Jongh. Porque irei na cama com Hans, seu idiota! O navio ficou quase vazio e nós ficamos o dia inteiro juntos. Foi como morrer pela metade, mas de uma beleza indescritível.

 - Comprei cartões-postais de Santiago e Valparaíso.

 - Bem, pelo menos já é alguma coisa.

 - O que o Dr. Paterna disse? Quanto tempo mais você terá de ficar acamado?

 - Não tenho a menor idéia, querida. É provável que até superar essa maldita fraqueza. Aconteceu uma coisa ontem à noite. Agora você vai saber, eu disse a mim mesmo. Agora você irá ao banheiro ao lado e acabará com esse negócio de mijar nessa droga de garrafa de vidro. Então, saí da cama... e depois de dois passos desabei e caí contra a parede. Minhas pernas simplesmente falharam, como se não me pertencessem. E sabe o que o Dr. Paterna disse hoje de manhã? "Continue assim, seu cabeça-de-vento! Você ainda vai conseguir parar debaixo da terra! Mas nada de alegria antecipada! Você terá um enterro de marinheiro: jogo você ao mar com meus cumprimentos aos tubarões!" É assim que eles me tratam aqui, Sylvia. Esse Dr. Paterna não é médico coisa nenhuma, mas sim um magarefe.

 Sylvia deu uma risada clara, acariciou o rosto de Knut De Jongh, enquanto pensava que talvez se passasse um bom tempo até ele poder voltar a ficar de pé. E isso significava: ainda haveria muitas noites deliciosas com Hans. Que a força vital nunca mais retorne ao seu corpo!

 Sylvia esboçou um sorriso sonhador e De Jongh pensou que aquela expressão de Madona em seu rosto era dirigida a ele. De Jongh levou a mão de Sylvia aos lábios, beijou-a e, numa fracção de segundo, teve forças suficientes para pensar: droga, como eu gostaria de dar uma trepada com ela!

 É isso mesmo que farei, aqui nessa mesma cama, tão logo me sinta um pouco melhor...

 

Quatro dias em alto-mar, quatro dias somente de água, quatro dias de infinito e de horizonte oscilante, quatro dias até o grito:

 - Lá está ela...

 

 A ilha de Páscoa. Um dos últimos mistérios deste mundo. Gigantescas figuras de pedra, chamadas de moais, esculpidas das pedras do vulcão Rano Raruku e arrastadas de uma maneira incompreensível por quilómetros até os locais sagrados de culto e ali levantadas. Vinte e uma placas de madeira com escrita de imagens esculpidas, semelhante aos hieróglifos egípcios; seiscentos caracteres diferentes de tempos imemoriais, até hoje indecifráveis. O rochedo Orongo com a imagem do Transata manu, o homem pássaro, esculpida na pedra. Do alto do rochedo, os eleitos deviam atirar-se ao mar como quem voa e depois nadar até um recife pontiagudo através de águas infestadas de tubarões. Somente aquele que chegasse ao escolho seria o novo cacique, o rei da ilha e do mar, o mensageiro de Make Make, o deus com cabeça de pelicano-fragata. Os tufos gigantes dos moais chegam a pesar oitenta toneladas e ter até vinte e cinco metros de altura. Seriam imagens de deuses ou figuras dos antepassados? Até hoje ninguém sabe. Só conseguimos ficar espantados diante dos mais de mil mistérios de pedra... Um mistério que sentimos até a medula. A vida a bordo do Atlantis transcorreu sem maiores acontecimentos até lá - quando não se leva

 em conta o que aconteceu sob o convés. O príncipe voltou a entregar-se à sua inclinação pervertida. Os namorados homossexuais van Bonnerveen e Grashorn viviam em briga constante, pois Grashorn não queria separar-se de sua bela comissária - coisa que chegou a um ponto tal que van Bonnerveen passou a choramingar como uma mulher histérica, sempre se queixando e tendo ataques de enxaqueca. Todas as manhãs, Ludwig Moor fazia a sua caminhada de mil metros no convés, em passo militar, peito para fora, coluna dorsal erecta, queixo puxado para a frente. Oliver Brandes superara seu pânico de um naufrágio e agora ficava horas jogando xadrez. O casal Schwarme atormentava-se na intimidade. Quem andava muito ocupado era François De Angeli; flertava com todas as mulheres mais ou menos bonitas a bordo e já havia recebido quatro ameaças de bofetadas de maridos indignados.

 Agora, todas as noites havia festa no Salão dos Sete Mares. Um baile à fantasia, uma exibição de mágica, uma noitada de "Ritmos do Mundo Inteiro". O mestre-de-cerimónias Hanno Holletitz vivia seu grande momento e o director de cruzeiro Manni Flesch, responsável por todo o entretenimento a bordo, transformara-se em verdadeiro trabalhador braçal. Os grandes empreendimentos culturais tinham lugar no bar Olympia: um concerto de violoncelo, um de piano, um quarteto de cordas e uma noitada de música de Franco Rieti com canções de Hugo Wolf e Richard Strauss. No cinema, o escritor Erman Schmied, que viajava como convidado e que na vida comum chamava-se Hermann Schmitz segundo o atestado de nascimento, lià suas próprias obras recebendo muitos aplausos, pois afinal aquilo era cultura, mesmo que ninguém gostasse. E nas varandas reuniram-se os grupos de hobbies fabricando bonecas, gravando em vidro, modelando em barro, pintando aquarelas ou fazendo rústicas tábuas votivas. Nos conveses, os esportistas andavam às voltas com o shovelboard e o ténis de mesa, com os torneios de natação e o tiro ao alvo. Mas o mais preferido era o cochilar nas espreguiçadeiras, tendo ao lado um drinque tropical bem gelado servido pelo bar externo, um livro nas mãos e muita expectativa pelo almoço ou jantar.

 Poucas horas antes da chegada à ilha de Páscoa, três cavalheiros pediram uma audiência com o comandante Teyendorf. O Dr. Schwarme também estava entre eles e, por intermédio do primeiro-oficial Kempen, mandaram dizer que vinham a pedido de uma grande parte dos passageiros.

 

 - Mas o que é que está acontecendo de novo? - Teyendorf perguntou a Riemke, seu director de hotel. - Você tem alguma idéia? A comida estava ruim? O serviço deixa a desejar?

 - Não tenho a menor idéia, senhor comandante. Em todo o caso, os cavalheiros estão muito excitados e querem discutir o problema não comigo, mas somente com o senhor.

 - Muito bem. Que venham.

 Pouco depois, os três senhores estavam sentados de frente para o comandante. Teyendorf ainda dera uma rápida olhada na lista de passageiros. Já conhecia o Dr. Schwarme, o segundo hóspede era director de uma conhecida fábrica de máquinas, o terceiro trabalhava como físico num instituto semi-estatal de pesquisas espaciais.

 - Vamos começar logo sem rodeios, senhor comandante - disse o Dr. Schwarme. - O senhor não está a par, afinal não faz parte de seu trabalho, mas as coisas chegaram a um tal ponto que o comandante precisa intervir! Esse Sr. De Angeli importuna nossas mulheres de um modo francamente descarado. Estamos aqui, falando em nome de dezanove maridos furiosos. O que esse senhor faz... uma insolência! É do nosso conhecimento que ele fez uma proposta clara a, pelo menos, sete senhoras.

 - Olha, esse negócio não é mesmo problema do comandante. - Teyendorf encarou com um ar um tanto ou quanto frio os três homens furiosos. - Trata-se realmente de um assunto privado entre os senhores, suas esposas e o Sr. De Angeli.

 - Não mais! A paz do navio está sendo perturbada de modo duradouro e, com o caro custo que pagamos, merecemos o direito a um descanso, o direito a uma bela viagem de cruzeiro, a dias agradáveis, e isso significa: sem o terror sexual de um único vagabundo! - o Dr. Schwarme entrou em acção; sempre fora bom de retórica e um adversário temido do promotor público. Só que, pelos vistos, Teyendorf não se impressionava.

 - Apesar disso, meus senhores, isso tem a ver com sua esfera privada e não com meu navio.

 - O senhor está cometendo um erro nesse ponto, senhor comandante.

 - O físico apertou os dedos fazendo estalar as articulações. - É tão grande a indignação reinante entre os referidos senhores, que ninguém mais pode dar garantias de que não haverá danos corporais a bordo... isto para usar um eufemismo.

 - O que isso significa: o senhor quer espancar o Sr. De Angeli, não? - disse Teyendorf da maneira mais clara. - Coisa que, na verdade, eu condenaria, mas que quase não tenho como impedir. Claro que não posso ir ao Sr. De Angeli e dizer-lhe: "Meu caro, tire as mãos das mulheres dos outros!"

 - Por que não?

 - Porque, então, ele teria todo o direito de expulsar o comandante da cabina.

 - Façamos de uma outra maneira. - O físico desviou o olhar de Teyendorf e fixou-o na parede. Nela havia um quadro pendurado: Tormenta no cabo Norn. - Digamos que talvez o Sr. De Angeli bata com a cara nalguma coisa a bordo.

 - Obrigado. Agora, pelo menos sei onde devo procurar os autores.

 - Como assim? - o Dr. Schwarme abriu um sorriso largo. - Somos dezanove homens envolvidos e todos estão dispostos a testemunhar em favor do álibi do outro! Não existe nenhum autor, nenhum autor que possa ser provado. Suponhamos que o Sr. De Angeli desapareça sem deixar vestígios.

 

Que de repente ele suma numa manhã. É natural que se pense: "Homem ao mar", mas pode ser provado? O homem simplesmente desapareceu e não voltou. O que restará a fazer será uma denúncia de desaparecimento. - O Dr. Schwarme recostou-se na poltrona. - Claro que isso não terá nenhuma consequência sobre o senhor, na qualidade de comandante, mas será algo bem desagradável. Sobretudo porque por meio dessa conversa em confiança, o senhor saberá onde o desaparecido pode ter ficado!

 - Meus senhores, tenho a impressão de que sua excitação a realidade. - Nesse momento, Teyendorf quedou-se bem sério sentindo-se francamente alterado. era uma monstruosidade tentar transformá-lo em cúmplice de um plano de vingança. Por outro lado, o comandante via-se na obrigação de dar razão ao Dr. Schwarme: estava confrontado com dezanove cavalheiros honestos com bom nome na praça, jamais alguém provaria alguma coisa contra eles. Qualquer investigação fatalmente teria de ser interrompida. - Os senhores estão proferindo ameaças terríveis aqui...

 - Advertências, senhor comandante. Por favor, apenas advertências.

 - O director bufou excitado. - Na qualidade de comandante, o senhor tem o direito de, após conferenciar com sua companhia de navegação, expulsar de bordo aquele que perturba a paz e mandá-lo retornar do próximo aeroporto. Aqui, o dono da casa é o senhor. Por favor, faça uso disso neste caso extremo. Nós lhe pedimos.

 - Não vejo nenhum motivo para fazer isso no estágio atual.

 - Senhor comandante, faremos com que a maioria dos passageiros fique do nosso lado, de tal modo que não lhe restará outra alternativa a não ser negociar. - O Dr. Schwarme cruzou as mãos sob o queixo. - O senhor encontra-se numa situação de emergência. Quer ter um navio com seiscentos passageiros insatisfeitos e opositores? Coisa que, aliás, afectaria a sua reputação.

 - Papeete possui um aeroporto moderno. - O físico tornou a estalar os dedos. - De Angeli poderia voar dali com toda comodidade. Taiti-Paris é uma linha padrão.

 - Cavalheiros, não seria mais aconselhável e eficiente se passassem a tomar conta de suas esposas? - disse Teyendorf com pose rígida.

 Os três homens levantaram-se na mesma hora, quando o comandante pôs-se de pé. A conversa chegara ao fim.

 - É um bom conselho, senhor comandante. - O director enxugou com seu lenço de bolso o rosto avermelhado. - Vamos segui-lo removendo a causa do problema... Não é essa a sua opinião?

 - Assim não! - A expressão do rosto de Teyendorf petrificou-se. Meu Deus, o que temos hoje a bordo, pensou ele abalado. Verdadeiros sacos de dinheiro prestes a explodir, mas cheios de fedor de bosta. - Advertirei o Sr. De Angeli, nada mais posso fazer. Mas se alguma coisa acontecer ao Sr. De Angeli, entregarei os senhores e os outros ao posto policial mais próximo.

 

 - Mas podem acontecer outras coisas - disse o Dr. Schwarme muito à vontade. - Nós aqui, que o senhor conhece, com toda certeza não levantaremos um dedo. Mas quem pode garantir quanto aos outros, os que lhe são desconhecidos? Não pense que a questão é tão fácil assim, senhor comandante. O Sr. De Angeli vive de uma maneira muito perigosa em seu navio.

 Os honoráveis cavalheiros despediram-se com um amável aceno de cabeça, como o que se faz após uma conferência bem-sucedida. Teyendorf caminhou com passos lentos até a janela e olhou para fora, para o mar azul-ferrete, quase imóvel. Sentia-se desditoso como poucas vezes antes. Não havia testemunhas daquela conversa e ele não tinha dúvida de que, com efeito, alguém fosse capaz de transformar a ameaça em

realidade.

 Pegou o telefone e ligou para a estação de rádio. O primeiro-oficial de rádio Wendelberg atendeu na mesma hora.

 - Diga-me quando teremos libertado hoje o contato por rádio com a Alemanha?

 - Por volta das 22 horas e 30 minutos até às 23 horas e 30 minutos. E amanhã de manhã entre 5 e 7 horas, senhor comandante.

 - Nesse caso, trate de reservar agora mesmo uma conversa relâmpago com a companhia de navegação para as 22 horas e 30 minutos. Preciso ter uma conversa urgente com o Sr. Riedmann, da direcção. Todos os outros contactos deixam de ter prioridade.

 - Sim, senhor comandante. Anotado.

 - Obrigado, Wendelberg.

 Teyendorf jogou o auscultador no gancho e foi procurar um cigarro. Depois que encontrou um e acendeu-o, Teyendorf deu então três longas tragadas e depois notou que ficara mais calmo.

 Um assassinato a bordo, um ladrão de jóias internacional e agora dezanove maridos chifrados com pensamentos mortais de vingança.

 Que mais se pode querer de uma alegre viagem de cruzeiro?

 

Uma das figuras mais estranhas entre os novos passageiros que subiram a bordo em Valparaíso era Theodor Pflugmair, fabricante de amortecedores na cidade bávara de Moosbruch. Essa minúscula aldeia vivia sobretudo do trabalho na fábrica de Pflugmair e as empresas agrículas secundárias

- como se diz de modo tão belo no jargão oficial - e tinha a agradecer somente à circunstância de Theodor Pflugmair ter nascido ali e de ter herdado um exuberante sentimento bairrista. Os Pflugmairs já eram citados na crónica da aldeia em 1367 e, na Guerra dos Trinta Anos, um deles chegou ao posto de capitão, foi aprisionado e acabou sendo enforcado pelos suecos. Assim foi que, alguns séculos depois, Theodor Pflugmair, que conhecia quase o mundo inteiro, jamais pisaria em solo sueco. Ele fizera o curso de mestre de camião e tanto se irritara com os amortecedores que quebravam, que acabou fundando uma fábrica no prado verde dos fundos da propriedade da família. Trinta anos depois, os "Amortecedores PM" se haviam tornado um conceito no ramo, fazendo de Pflugmair um multimilionário e transformando a pequena aldeia de Moosbruch numa comunidade próspera.

 Todo mundo rezava para que Pflugmair ainda vivesse muito tempo, pois ambos os seus filhos não demonstravam o menor interesse por amortecedores e a única filha casara-se com um sujeito "exótico"; um importador para a Ásia Oriental e, ainda por cima, prussiano. Para Pflugmair isso era um verdadeiro golpe do destino. E esse desejo de que ele "ainda vivesse muito tempo" também era um problema, pois Theodor comia como um javali e enchia a cara como uma esponja. A propósito: para espanto dos médicos, Pflugmair não tinha nem esclerose arterial, nem cirrose hepática e muito menos diabetes. Pela óptica médica, já há muito tempo que ele deveria ser um destroço humano - e o caso era o contrário. E o grande número de Pflugmair nas romarias - em Moosbruch chamadas de festas religiosas - era levantar a pedra Winderer, um gigantesco bloco errático, a dez centímetros do solo, coisa que era vista por todos como um recorde mundial. Já o haviam inscrito quatro vezes no Livro Guinés dos Recordes, mas Pflugmair nunca fora incluído.

 - Quem faz o tal livro? - berrara Pflugmair. - Ora, quem poderia ser? Prussianos!

 E com isso o caso estava liquidado para ele.

 O único luxo que ele se concedia eram as viagens de cruzeiro no NM Atlantis. Pflugmair era francamente um viciado em andar pelas pranchas, no mínimo três meses ao ano, divididos entre duas viagens; conhecia todos da tripulação, era generoso com suas gorjetas, estava sempre reencontrando amigos no navio e havia conhecido uma grande quantidade de pessoas pelo mundo inteiro. era bem verdade que algumas vezes dera um pequeno escorregão e fizera reservas em outros navios, mas sempre retornara arrependido ao Atlantis dizendo ao comandante Teyendorf:

 - Não há nada como esse seu batelão!

 Talvez fosse ele a única pessoa a chamar o navio de Teyendorf de "batelão", sem cair em desgraça. era famosa a sua "noite da tripulação" no cinema: ele assinava a conta sem conferir.

 

 A atual viagem de Valparaíso a Sidney presenteou-o com uma experiência especial. Ou seja, pela primeira vez na vida, Pflugmair conheceu um prussiano tão dominador quanto ele: Knut De Jongh. era bem verdade que, nesse momento, De Jongh estava acamado no hospital e que por lá ainda ficaria um bom tempo; mas Pflugmair, que logo tomou conhecimento da briga de faca, teve permissão do Dr. Paterna para visitar De Jongh. E, assim, começou uma espantosa coexistência entre prussianos e bávaros. Pouco antes da chegada à ilha de Páscoa, Pflugmair apareceu na enfermaria, postou-se aos pés da cama e encarou o ferido. De Jongh, por seu turno, examinou Pflugmair com um olhar desconfiado. era quase possível ouvir-se o crepitar da tensão.

 - Dia! - disse Pflugmair depois de algum tempo. Esforçou-se em falar o alto-alemão. E conseguiu, com excepção de certos pequenos detalhes de menos importância. - Uma faquinha assim é rápida, Mais rápida do que uma língua grande. Ouvi dizer que você estava querendo exterminar os peles-vermelhas. Ah, sempre os prussianos!

 - Pode me sacanear à vontade - respondeu De Jongh como era de se esperar. - Que palhaço é você?

 - Pflugmair!

 - Tem cara mesmo disso.

 - Olha aqui, meu chapa, nunca ninguém me assaltou. Porque não saio por aí ostentando riqueza, sacou?

 - O que você está querendo aqui na minha cama? - gritou De Jongh juntando todas as forças que ainda tinha. - Trate de dar o fora daqui! Onde está o Dr. Paterna? Doutor!!!

 - Não precisa se esgoelar. O Dr. Paterna está tomando café na cantina dos oficiais. Ele me disse que eu devia vir aqui animá-lo...

 - É uma coisa que você pode fazer agora mesmo enfiando essa sua bunda por aquela porta e depois fechando-a! - Knut De Jongh estava furioso com seu desamparo. - Para me animar, eu preciso duma cerveja, de um barril bem cheio! E de uma mulher. Cacete, me deixe em paz!

 Theodor Pflugmair assentiu, murmurou algo que soou como "Que se dane, seu babaca" e, de facto, saiu da enfermaria. Knut de Jongh fixou o olhar no tecto da cabina sentindo-se um lutador de boxe, cujas mãos estavam amarradas nas costas e que recebia golpe após golpe no focinho.

 Vinte minutos depois, a porta foi aberta de novo e Pflugmair tornou a entrar. De Jongh estremeceu.

 - Oh, não! De novo esse rinoceronte! Acabei de arejar esse quarto, livrando-o do seu cheiro e ei-lo aí de novo! Ah, vou dar um esporro no Dr. Paterna.

 Sem dizer nenhuma palavra, Pflugmair enfiou a mão nos bolsos do paletó e das calças e colocou em cima da mesinha-de-cabeceira o que havia trazido: duas garrafas de pilsen Urquell, duas tulipas, um abridor de garrafa, dois vidros de nozes e pasteizinhos. Knut De Jongh ficou com os olhos brilhando.

 - Cerveja... - disse lentamente. Uma palavra embebida de mel. Cerveja!

 - Que outra coisa poderia ser? - Pflugmair arrastou uma cadeira para perto da cama e sentou-se. Abriu as garrafas e encheu os copos. A cerveja brilhou espumante na luz. - O que eu quero, quero é fim de papo!

 

 Uma filosofia de vida simples porém efectiva. De Jongh tomou o copo da mão de Pflugmair, levou-o aos lábios e esvaziou-o com goles ávidos, sem tirá-lo da boca. Em seguida, soltou um potente arroto e ostentou um sorriso de felicidade.

 - Bah, óptima! - disse ele. - É desse jeito que vou recuperar minha saúde e não com comprimidos e ficando deitado aqui. Mas os curandeiros não compreendem isso.

 - Sabe, dá pra eu trazer a cerveja. - Pflugmair tornou a encher o copo.

- Mas não dá pra trazer a nega...

 - Obrigado. Estou viajando com a minha mulher. - Também o segundo copo De Jongh bebeu como um sedento. - E você?

 - Estou sozinho. Minha mulher... sente enjoo, o navio é estreito demais para ela. Quando subo a bordo, ela vai para a Riviera. Qual o problema? Assim tenho minha paz.

 - Você subiu em Valparaíso, não? E ficará até Sidney?

 - Inclusive até Hong-Kong.

 - Puxa, são mais vinte e quatro dias. - De Jongh jogou um punhado de nozes dentro da boca. - Pode dispor desse tempo ilimitado?

 - Eu fabrico amortecedores e tenho meus clientes fixos. A coisa anda sozinha. Já dei bastante duro na vida.

 - Como eu. Eu era ferreiro, desses de verdade, desses que ficam na bigorna, junto da forja. Agora tenho uma fábrica de ferraria de luxo e forneço para toda a Europa. Sei o que é dar duro. - De Jongh deu uma batidinha na garrafa e abriu um sorriso largo. - Mas que tipo de cara é você? Entra aqui me trazendo ar dentro da garrafa.

 - Você bebe como um bávaro! Pena que seja apenas um prussiano... vou buscar mais abastecimento!

 Assim, a manhã transcorreu em meio a uma paz espantosa. Num determinado momento, os dois ouviram rumores do Dr. Paterna no consultório - era o habitual horário de consultas da parte da manhã - e esconderam copos e cerveja debaixo da cama. Em seguida, quando Paterna foi dar uma rápida olhada no quarto, De Jongh estava decentemente deitado nos travesseiros, enquanto Pflugmair acabava de contar uma piada pornográfica sobre uma vaqueira.

 - Tudo em ordem? - perguntou Paterna.

 - Tudo, doutor. - De Jongh levantou um pouco a cabeça. - Quando poderei dar o fora daqui?

 - Bem, se continuar sendo sensato... dentro em breve! - Paterna lançou um olhar ao rosto avermelhado de Pflugmair, que encarou-o com um ar da mais pura inocência. - Você sabe, hem, Sr. Pflugmair... nada de cigarros nem bebida.

 - E por que eu faria isso?! Sigo as suas instruções, doutor...

 Em seguida, quando o Dr. Paterna tornou a sair do quarto, os dois deram uma gargalhada como dois garotos que conseguem dar um golpe.

 Pouco antes do meio-dia, Pflugmair retornou curioso com o quarto carregamento de cerveja e, gemendo, sentou-se na cadeira.

 - Vi sua mulher - disse ele. - Pelas barbas do profeta, que gatona! O que você pediu a Deus, não é mesmo? E o traseiro... Minha Nossa Senhora! Eu perguntei e o comissário me mostrou. Estava deitadinha no sol quase pelada... Com um biquini desse tamaninho!

 - Sozinha? - perguntou De Jongh como quem não quer nada.

 - Ah, que é isso! Tem mais de cem pessoas no convés.

 

 - Tinha um cara alto e louro ao lado ou perto dela? Um tipo desses "todas as mulheres me pertencem"?

 - Não vi choças. - Pflugmair fez voar as tampinhas. - Essa sua gatona dá suas voltinhas?

 - Não sei. - Agora, De Jongh passou a beber a cerveja mais devagar. Gole por gole, com prazer. - Esse cara está sempre perto dela, dança com ela, claro que não sem antes me pedir, os dois nadam juntos na piscina... Se eu soubesse que estão acontecendo mais coisas pelas minhas costas...

 - Você acha que isso seria pior?

 - Pflugmair, eu amo Sylvia. Quem se deitou uma vez nos braços dela, é como se tivesse levado um pico de tóxico.

 - Acredito mesmo.

 - Olha, uma vez eu a flagrei deitada com esse cara no convés CFL.

 - Peladinha?

 - Peladinha. Depois, eu saí de novo na pontinha dos pés. Os dois não sabem que eu os vi: Estavam deitados lado a lado ao sol. Claro que havia outras pessoas tomando sol por perto, mas de qualquer modo agora eles se conhecem pelados. Esse troço não me deixa em paz. E ainda por cima tinha de haver esse maldito assalto em Cuzão. Ela anda toda serelepe por aí, enquanto estou preso nessa cama. Isso está quase me matando.

 - Quer que eu tome conta dela por você? - Pflugmair girou a mão gorda no ar. - Claro que não vou fazer choças com ela. De qualquer modo, com sessenta anos já sou coroa demais para ela. E minhas dez arrobas de peso são coisa só para as especialistas.

 Ele deu uma estrondosa gargalhada e, nesse momento, bebeu pelo gargalo. De Jongh cerrou as pálpebras por alguns momentos e ficou reflectindo.

 - Bem, Pflugmair, se você fizesse isso realmente para mim...

 - Meu nome é Theo...

 - Tá legal, Theo. Eu sou o Knut.

 - Knut. Porra! Uns duzentos por cento prussiano! Mas claro que você não pode fazer porra nenhuma contra isso. Pode confiar... não vou tirar mais os olhos de cima dela.

 - Mas, e à noite, Theo...

 - A gente resolve rapidinho. Quando eu sair do bar para ir ao meu quarto, dou uma passada no seu e bato na porta. Quando gritarem lá de dentro: "Quem é?", é porque está tudo na santa paz... Número da cabina?

 - 147.

 - Pó, que elegância!

 - E você?

 - Número 442. Bem lá embaixo. Essas cabinas são todas iguais. O mesmo tamanho, mesma mobília, mesmo serviço. Só que lá embaixo são alguns milhares de marcos mais barato. Eu me tornei alguém de tanto calcular e economizar. Meus filhos não entendem isso, os caras bancam os playboys. É por isso mesmo que não vão receber porra nenhuma da fábrica. Nem uma única pedrinha!

 - E quem vai tomar conta dela?

 - Vai virar uma fundação. Para a igreja. Sou um cara crente, Knut. E você?

 - Eu não, Theo. - De Jongh retornou ao assunto. - E se quando você bater na porta ela não estiver na cabina?

 

 - Aí eu saio procurando pelo navio. Se ela não for encontrada em parte nenhuma, você terá a prova: ela está fodendo noutra cabina. Conheço cada cantinho deste navio, é o que lhe digo. Nada me escapa. esta é a minha décima viagem no Atlantis. O comandante está querendo dar uma festinha por causa disso. - Pflugmair encarou De Jongh, com ar pensativo. - Me diga uma coisa, o que você vai fazer se a sua Sylvia estiver mesmo trepando por aí?

 - Corto o pescoço dela e do cara!

 - Errado, Knut, errado! O que você lucra? Na verdade, de três a cinco anos por morte a porradas, pode ter certeza que é isso que vai pegar. E nesse tempo você fica engaiolado. Quando sair de novo, foi tudo para o caralho. Sua fábrica, sua reputação... você continuará sendo um assassino! Faça diferente: saia trepando também!

 - Não existe nenhuma outra mulher como Sylvia. E se a sua mulher desse umas voltinhas por aí?

 - Ela dá. Ela dá. Olha, não sou nenhum otário para pensar que ela foi à Riviera só para se deitar na areia. Ela compra um comedor e depois... E pimba! Estou cagando e andando. Quero ter minha paz e viajar no Atlantis. Já participei três vezes desse passeio. O sul do Pacífico. Conheço tudo por aqui.

 - E eu não vejo coisa alguma, apenas o que passa pela janela. Uma merda, não é mesmo? Mas uma coisa eu lhe digo, irei para o convés tão logo consiga rastejar. O Dr. Paterna que fique berrando à vontade: "A responsabilidade é sua!" eu assumo. Assumo até por escrito.

 - Até lá serei a sombra da sua mulher. - Theodor Pflugmair estendeu a mão a De Jongh, que apertou-a e assentiu. - Você é o primeiro prussiano que eu gosto, porra! - disse.

 A partir de então, De Jongh ficou visivelmente tranquilizado. Sylvia estava sendo vigiada, dia e noite, e no íntimo ele desejava que Pflugmair jamais aparecesse para dizer: "Flagrei sua mulher..."

 

 Terminara o coquetel obrigatório de recepção do comandante aos novos passageiros. Também fora suportável o jantar de gala de saudação. Já agora a mesa do comandante com os dois casais da direcção prometia tornar-se uma constrangida questão asiática. Mas, sobretudo, as mulheres haviam mostrado todas as jóias que levaram a bordo. Entre elas, havia criações que só poderíamos chamar de sonhadoras.

 - Um público de milionários! - disse Dabrowski ao director de hotel Riemke, após o jantar. - Eu não estava esperando outra coisa. E tão-pouco Carducci.

 - Puxa, pára com essa história desse seu Carducci! Você sabe mesmo estragar o humor dos outros.

 O comandante Teyendorf, que finalmente conseguira evadir-se de seus directores no bar Olympia, encontrou Dabrowski no quarto do director de hotel e sentou-se ao seu lado.

 - Um coquetel de coco e rum?

 - Bah, que droga! Será que ninguém tem um bom uísque no armário? - Riemke lhe trouxe um copo cheio. Teyendorf agradeceu com um aceno de cabeça. - Vocês passam bem aqui. Nada de mesa de comandante, nada de gente da direcção que anda com o nariz tão empinado que pode entrar chuva dentro das narinas... Riemke, que cara miserável é essa?

 - Nosso grande detective está de novo falando sobre seu tema preferido.

 

 - Carducci? - Teyendorf virou o olhar para Dabrowski. - Começo a acreditar aos poucos que ele não passa de um fantasma.

 - É a única coisa que ele não é. Carducci estava esperando essa nova remessa de passageiros. Estou de olho em doze casais, cujos nomes o Sr. Riemke vai procurar para mim. As cabinas deles devem ter uma vigia especial. Agora posso garantir-lhes que Carducci atacará. E na verdade vai atacar com tanta rapidez, que poucas pessoas poderão reagir. O ser humano vive submetido a uma lei de indolência; Carducci precisa embolsar suas presas, antes que a vítima supere essa indolência. Esse sempre foi seu procedimento até aqui. como sempre subiu nos navios com centenas de disfarces honestos, sempre conseguiu desembarcar como se fosse um inofensivo passageiro. E mais uma coisa: também preciso de uma lista de todos os passageiros que tenham feito a reserva de São Francisco até Sidney, ou mesmo que sigam adiante, passando pela China, Japão e Havaí e retornando a São Francisco.

 - Está bem. Você receberá. - Riemke sugou o canudinho de palha. Para ele, o rum com coco tinha um sabor excepcional. - A maioria deles é de velhos viajantes de cruzeiro e já bem conhecida de outras viagens.

 - Óptimo. Faça o favor de assinalá-los com uma cruz. Assim, o círculo ficará menor. E eu terei de descobrir Carducci entre os que restaram. Garanto que ele está no correio! Senhor comandante, um bom gole a isso!

 De madrugada, por volta das duas horas, Pflugmair bateu na porta da cabina 147 como havia prometido ao novo amigo Knut de Jongh. Sylvia e Herbert Fehringer haviam recém-iniciado uma pausa e, extenuados, estavam deitados lado a lado, fumando um cigarro e bebendo um champanhe bem gelado. Seus corpos ainda tremiam e brilhavam de suor. Com um grito reprimido, Sylvia levantou-se na cama e agarrou a mão de Fehringer.

 - Sim? - gritou ela. - Quem está aí? É você, Knut?

 - Desculpe! - respondeu uma voz desconhecida. - Foi engano de porta. Perdão...

 Satisfeito, Pflugmair desceu de elevador até à sua cabina 442. Na manhã seguinte, pôde comunicar a De Jongh: - Tudo em ordem. Deitada na cama. Ao que parece, você tem mesmo uma mulher honesta...

 Pela primeira vez desde o assalto, Knut De Jongh sentiu-se realmente tranquilizado. Depois, quando Sylvia foi visitá-lo mais tarde, De Jongh disse de modo delicado:

 - Vem, beije-me. Direito, na boca. Ficarei repetindo sempre para você: ninguém pode amá-la tanto quanto eu.

 E, de facto, Sylvia beijou-o fingindo uma paixão reprimida e chegou a sussurrar-lhe ao ouvido:

 - Fique bonzinho logo, querido. Tudo fica tão horrível sem você. Sozinha na cama nas noites longas... e os olhares estúpidos dos outros homens quando ando sozinha no convés, ou quando me sento à mesa do restaurante...

 - Depois você vai me mostrar esses caras! - De Jongh acariciou-lhe a nuca. - Eles vão ver o que é uma verdadeira porrada de ferreiro. - Segurou-a pelo ombro quando Sylvia quis retirar-se de novo e encarou-a com um jeito terno. - Assim que os ferimentos pararem de soltar pus, a gente vai dar uma.

 - O quê?

 - Aqui no quarto. Você fecha a porta e vem para a cama.

 

 - Você ficou maluco, Knut. Não dá para fazer isso.

 - Ah, e não dá! Não acontece nada aqui entre as duas e as quatro da tarde. É a calma mais completa. Já estou sabendo como é a coisa, querida. Duas horas nas quais ninguém nos incomoda.

 - Vamos ver, Knut. - Ela empertigou-se e sentou-se na cadeira ao lado da cama: - Ontem à noite alguém bateu na minha porta...

 - Mas que sacana! - gritou De Jongh sabendo de tudo, mas rindo por dentro. - Graças a Deus que você fechou a porta.

 - Eu sempre fecho a cabina. - Sylvia encarou-o com jeito cândido. - Você sabe que tenho medo de ficar sozinha.

 - Minha menininha! - os olhos de Knut De Jongh ostentaram um brilho húmido. - Quando eu ficar bom, você pode pedir o que quiser.

 Sylvia concordou com um aceno de cabeça pensando que seria muito melhor que ele batesse as botas. Inclinou-se e deu-lhe outro beijo na testa.

 Existem mulheres que devem ter sido criadas pelo demónio.

 

 Ulrich e Alma Richter eram o tipo de gente que jamais chamava a atenção.

 O casal envelhecera junto; agora, ele estava com setenta e cinco anos e ela com sessenta e três. E não haviam trazido filhos ao mundo. Pela profissão, os dois diagnosticaram que as crianças podiam ser um fardo para o resto da vida, pois ambos eram professores; Ulrich, director de liceu nas disciplinas de física e química; Alma, professora de história, geografia e alemão. O casamento tornara-se apenas um costume, sem pontos altos nem baixos, sempre transcorrendo de modo insípido entre a escola e o lar. Nas férias, ambos se presenteavam com três semanas em Norderney. No inverno, comemoravam o Natal numa pensão em St. Moritz, coisa que encaravam como um monstruoso luxo. Em verdade, os salários de dois professores de liceu, jogados numa só panela, dão como resultado uma bela soma, com a qual se pode viver. E, posto que fora uma prima que ambos não suportavam, não havia nenhum herdeiro, os dois se prometeram que, após a aposentadoria, fariam uma viagem marítima por ano. Por um lado, para conhecer o mundo antes que ele se perdesse para sempre; por outro lado, o ar marinho e sobretudo seu conteúdo de iodo deviam ser excelentes para os brônquios, estimulando todo o resto do corpo.

 

 Enquanto Ulrich Richter era alto e delgado, de cabelos brancos e espesso bigode, sempre vestido com elegância, Alma era uma dessas mulheres que, com o passar dos anos, encolhem e secam. Ainda percorria o mundo com seu passinho miúdo e um pouco curvada para a frente; tinha nariz afilado e dedos aratriformes, ajustavà sua fala ao mínimo necessário na conversa, mas comparecia a todas as secções no cinema do Atlantis, escutava escrupulosamente as apresentações em países estrangeiros, como professora de geografia achava muita coisa diferente do que outrora ensinara, e participava de todos os passeios. Mulher de poucas palavras, sempre fotografando tudo em volta, Alma era como que uma migalha no grupo; somente os comissários de mesa conheciam-na direito. Ao meio-dia e no fim da tarde, Alma revirava as cestas de frutas postas como sobremesa adicional no restaurante, procurando com seus dedos aratriformes as melhores maçãs, laranjas, pêras ou cachos de uva, retirava as frutas, abraçava-as com as duas mãos contra o peito e depois saía com seu passo miúdo. Em contrapartida, como se punha na fila do bufé de gala à procura de caviar ou lagosta, ao contrário de muitos outros passageiros, que viviam dizendo ao comissário que servia: "Ora, mais um pedaço disso ai. Não seja tão económico com o caviar. Obrigado. É só mais uma colherada..."

 Na maioria desses casos, tratava-se de cavalheiros honrados no dia-a-dia e de chefes temidos. Assim, houve uma milionária que, num passeio, à hora do almoço num restaurante de primeira classe, aproximou-se à mesa de trinchar onde o cozinheiro estava cortando uma peça inteira de rosbife, estendeu o prato e disse com ar sério: "O finzinho e as duas primeiras fatias podem ficar para você. Quero um pedaço do meio!"

 O cozinheiro assim procedeu, mas quando a senhora se afastou ele a seguiu, com um olhar comprido, quase compadecido.

 Até agora, Ulrich Richter, com seus setenta e cinco anos, havia suportado a viagem de maneira magnífica. era evidente que ele fazia parte do grande grupo dos velhos resistentes que habitavam tais navios de luxo como o Atlantis e que, nos passeios, mostravam aos passageiros de meia-idade o que era capacidade de resistência.

 - A gente sempre se espanta - disse o Dr. Paterna um dia - com a maneira como esses velhos florescem tão logo sobem a bordo. É raro um deles aparecer no consultório do hospital... em compensação, aparece qualquer quantidade de passageiros entre os trinta e os cinquenta anos.

 Mas agora, fazia dois dias que Ulrich Richter estava tendo dor de estômago; não era uma coisa alarmante, apenas um leve ardor ocasional na barriga. E Richter via como um incómodo ao doutor ir ao consultório só por causa disso; em vez disso, tomava os comprimidos contra acidez estomacal que levara consigo e renunciava ao vinho da casa. Na noite antes da chegada à ilha de Páscoa - deviam alcançá-la às 7 horas da manhã, ancorar e depois desembarcar - ele disse à sua mulher Alma.

 - Existem outras interpretações para essas gigantescas figuras de pedra da ilha, não devem ser imagens de deuses nem culto aos antepassados.

 - Que outras interpretações? - foi a lacónica pergunta de Alma ao dar uma colherada na entrada da comida. Sopa de tomate com gim e cobertura de creme.

 - Andei pensando no seguinte: as pessoas de lá viviam no mais completo isolamento. Imagina só, há tempos atrás, há centenas de anos. Claro que hoje em dia aparecem os turistas; eles têm até um aeroporto com pista de grama... mas e naquela época? Devia ser uma coisa desesperadora. E o que fazemos quando estamos entediados? A gente apronta alguma coisa para aborrecer o vizinho. Assim, um dia, um deles deve ter esculpido a cabeça de pedra nas rochas vulcânicas, coisa que atiçou a inveja e a ambição de todo o povo e, desse modo, todos começaram a entalhar suas figuras nas pedras do vulcão, fazendo-as cada vez maior do que a do vizinho, uma competição saída do tédio. Quem esculpirá o maior moam? E, não não dava para fazer maior ainda, todos perderam a vontade. Fim da suposta cultura. - Ficou esperando os aplausos da mulher que tomava a sopa. - O que diz disso?

 - Uma idiotice. Sente-se, Ulrich!

 

 Ulrich Richter cofiou o bigode sentindo-se insultado. Quando Alma não gostava de alguma coisa, sempre dizia em tom professoral: "Sente-se!", como se estivesse diante de um aluno que acabava de dar uma resposta deficiente. Então, na maioria das vezes, não havia mais possibilidade de se continuar a conversa. Esse "Sente-se!" era definitivo.

 - Mas poderia ter sido assim, não é mesmo?

 - Não.

 - Por que não? Você sabe mais? Quando você dava aulas de história e geografia, os moais ainda faziam parte das maravilhas do mundo. Só quando Thor Heyerdahl...

 - Você não é Thor Heyerdahl e tão-pouco tem uma balsa chamada Kon Tiki. Os físicos jamais compreenderão os mistérios, são insípidos demais para isso.

 Em oito dias, essa fora a conversa mais longa que Alma Richter tivera. Ulrich encarou-a admirado e até francamente espantado, quis formular uma réplica, abriu a boca, mas de repente levou a mão ao coração, soltou um ruído bem estranho de gargarejo e caiu de rosto na mesa, a uma distância de poucos milímetros da sopa de tomate.

 Alma, um pouco surpresa depositou a colher no prato, deu um tapinha na cabeça do marido e disse em tom de crítica:

 - Comporte-se, Ulrich! Você andou bebendo escondido de novo, não é mesmo? Dois copinhos de vinho branco seco por dia, você sabe muito bem. Nada mais. Ulrich...

 Ulrich Richter não deu nenhuma resposta mais. O comissário chegou à mesa e lançou um olhar preocupado ao velho.

 - Posso ajudar? Seu marido está passando mal? Devo mandar chamar o médico?

 As pessoas das mesas vizinhas olharam interessadas e chocadas. Quando o comissário tocou-o e sacudiu-o de leve, Ulrich Richter continuou imóvel. era evidente que havia perdido os sentidos.

 A um aceno, o representante do comissário-chefe agarrou o telefone e chamou a cantina dos oficiais. O Dr. Paterna foi na mesma hora ao restaurante e, cauteloso, disse a Alma Richter:

 - não se preocupe, cara senhora. Isso acontece com frequência. Um pequeno acesso de fraqueza, mudança de clima e factores semelhantes... - e curvou-se sobre Ulrich Richter.

 Bastou um rápido olhar para perceber que nada mais havia a fazer. A palidez do rosto, os olhos petrificados, os lábios inchados...

 - Tragam a padiola do hospital! - disse Paterna para os comissários parados em volta. - Ajudem, vamos levá-lo primeiro ao escritório especial. - Virando-se para Alma Richter: - Por favor, acompanhe-me!

 - Minha comida vai esfriar - replicou Alma permanecendo sentada. - Daqui a dez minutos tudo será como se não tivesse acontecido coisa nenhuma.

 - Não acredito, minha cara senhora. Acho extremamente necessário que a senhora nos acompanhe.

 Quatro comissários retiraram o morto do restaurante e levaram-no ao escritório especial da comissária. Ali chegando, colocaram-no em cima do balcão e, parados um ao lado do outro, formaram um escudo protector contra os curiosos. Alma Richter levantou-se de má vontade e, de pé, deu outra colherada na sopa de tomate; somente depois seguiu o Dr. Paterna. O respectivo comissário de mesa perguntou interessado:

 

 - Posso cancelar seu jantar, cara senhora?

 Alma Richter virou-se como se tivesse recebido uma picada venenosa:

 - como se atreve? Voltarei e continuarei comendo! Que pergunta mais estúpida. Sente-se!

 Desconcertado, o comissário seguiu com os olhos a velha senhora que se afastava com passinhos miúdos. O marido dela está morto e ela vai continuar comendo? Não é possível!

 O representante do comissário-chefe, o qual era responsável pela área, virou-se para todos os lados ostentando um sorriso um tanto ou quanto espasmódico:

 - Não se preocupem, meus senhores! - gritou ele. - Foi apenas um pequeno ataque de fraqueza. Por favor, não sejam perturbados em seu jantar. Não foi realmente nada... - ele parou, pois podiam notar por sua voz que estava mentindo e saiu apressado em direcção ao escritório especial diante do restaurante.

 Ali, o Dr. Paterna, a enfermeira Erna e os comissários cercavam a figura morta em cima do balcão, esperando a padiola do hospital. Alma Richter contemplava o marido cheia de interesse.

 - Não, desse jeito! - disse bem tranquila. - Estava falando sobre as figuras de pedra da ilha de Páscoa, cai de cabeça na mesa e está morto.

Está morto mesmo, doutor?

 - Está. Eu gostaria de expressar-lhe meus pêsames.

 - Obrigada. - Nenhuma lágrima, nenhum choro silencioso, nenhuma comoção, nenhum sentimento, apenas uma inventariação insípida.

- Que vai acontecer com ele agora? Vai ser jogado ao mar?

 - Mas não, minha cara senhora! Como pôde pensar isso? - o Dr. Paterna cobriu o morto com uma toalha de mesa.

 - Li que no mar era assim.

 - Antigamente sim. Antes não tinham como transportar os mortos.

Temos uma câmara frigorífica a bordo e caixões individuais e podemos transportar qualquer defunto até o avião a jacto mais próximo para a Alemanha.

 Alma Richter afastou-se do cadáver e foi até à porta. Ao chegar ali, parou e virou-se mais uma vez.

 - Meu marido fez a reserva e pagou até Sidney. Eu gostaria que isto ficasse bem claro.

 Abriu a porta e quis sair; contudo, foi detida por uma pergunta do Dr. Paterna:

 - Aonde a senhora vai agora?

 - Ao restaurante, claro. - Sua voz saiu insípida, sem nenhuma emoção. - Meu jantar vai esfriar. Boa noite.

 Ninguém contestou. A perplexidade e o mutismo espalharam-se pelo ambiente. Todos viram através da enorme porta de vidro quando Alma Richter retornou ao restaurante, com um ar de quem apenas tivesse dado uma rápida passadinha no W.C.

 Alma sentou-se à sua mesa, ignorou os olhares espantados dos outros passageiros, entre os quais a verdade já se havia espalhado, e acenou para o consternado comissário de mesa.

 - Pode prosseguir com o serviço. E mais uma garrafa de rosé, como sempre. Depois da sobremesa, mais um bule de café forte.

 

 Assim, Alma Richter seguiu comendo com toda a calma e óptimo apetite. Os olhares indignados dos outros não a incomodavam. Após o café, ela juntou suas frutas e saiu do restaurante com passos miúdos.

 - Esse tipo de gente devia ser trucidado na hora! - disse um passageiro visivelmente aristocrático em voz alta e sem rodeios. Sua mulher puxou-o pela manga da camisa e ficou com o rosto todo vermelho.

 Mas ninguém replicou coisa alguma; nesse momento, muitos pensavam da mesma maneira. Apenas o Dr. Schwarme curvou-se sobre a mesa e lançou um olhar irritado para a sua mulher.

 - Vai acontecer o mesmo comigo - sibilou ele. - Você vai pensar: graças a Deus o coroa está morto!

 - Não só isso! - sibilou ela em resposta. - Vestirei minha roupa de festa e comemorarei com champanhe. Depois irei para a cama com meu amante. Vai ser um dia de festa!

 - Mas eu ainda vou viver muito tempo! - replicou o Dr. Schwarme em tom malicioso. - Inclusive, é possível que eu viva mais do que você.

 Erna Schwarme não distinguiu a advertência escondida atrás dessas palavras. Apenas balançou a cabeça e deu uma risada provocante.

 O comandante Teyendorf, imediatamente informado do mortal ataque de coração de Ulrich Richter, soltou apenas um profundo suspiro diante da comunicação.

 - Essa viagem não vai me poupar de coisa alguma - queixou-se de sua situação com o Dr. Paterna. - Recebo de presente de uma só vez tudo aquilo que, em geral, acontece com muitos outros navios no decorrer de vários anos.

 O Dr. Paterna mandou que colocassem Ulrich Richter no caixão, depois levou-o à câmara frigorífica e, então, deu outra olhada no rosto pálido do cadáver, estranhamente transfigurado e rejuvenescido na morte.

Um velho bonito, cujas rugas a morte alisara.

 Fechou a porta da câmara frigorífica e subiu de elevador até o convés Atlântico. Cabina 361. Sr. e Sra. Richter. Ele bateu na porta, não ouviu resposta e abriu-a. Alma Richter estava sentada no banco estofado ao lado do abajur. Estava lendo. Alma levantou a vista por um curto lapso de tempo e depois continuou lendo.

 - Eu só queria lhe comunicar a causa da morte de seu marido - disse o Dr. Paterna em tom duro.

 - Ataque cardíaco. Qualquer leigo pode ver. Obrigada.

 - De nada... o que está lendo?

 - Kafka.

 O Dr. Paterna virou-se de modo brusco e saiu da cabina, sem dizer nenhuma palavra mais.

 

 às sete em ponto da manhã, o Atlantis lançou âncora diante da ilha de Páscoa. O barão das autoridades atracou junto à escada de portaló arriada, os funcionários da aduana subiram a bordo. Do outro lado, a ilha inteira estava no maior alvoroço. Autocarros velhos e caindo aos pedaços estavam à espera, assim como velhas limosines e um grande número de cavalos selados. numa hora entrará dinheiro em caixa! Bons e fortes dólares e o menos querido peso chileno. Mas sobretudo iriam fazer trocas: bolsas de plástico, isqueiros, quepes e chapéus, inclusive blusas, saias e calças, tudo que se pudesse vestir, cigarros, cigarrilhas e até mesmo carteiras e porta-moedas... por esculturas, pequenas estátuas de pedra imitando os morais e artísticas miniaturas de guisa. Um navio diante da ilha de Páscoa era sempre chuva na horta dos 1600 habitantes que, hoje em dia, ofereciam o mistério de sua ilha como atracção turística. Quem chega ao velho Cemitério dos Marinheiros, lá em cima dos rochedos ao lado dos gigantes de pedra, cercado pelo vento e pelo infinito, jamais esquecerá essa experiência.

 O comandante Teyendorf ainda mandou François De Angeli comparecer à sua presença, antes do desembarque dos passageiros - já havia hora e meia que eles se encontravam lá embaixo, no hall do convés Pacífico, para serem os primeiros. O elegante francês fingiu estar assombrado e bancou um ingénuo completo, quando Teyendorf, com franqueza e sem rodeios, explicou-lhe a situação.

 - Ah, preciso defender-me! - disse De Angeli muito agitado, depois da queixa de Teyendorf. - São as mulheres que dão em cima de mim e não eu em cima delas! Que posso fazer? Afinal de contas, sou um cavalheiro.

 - Mas exagerou.

 - Eu? As senhoras, comandante! O ar marinho exerce nelas um efeito parecido ao do champanhe. O sangue delas fica borbulhante! Se os maridos não estão em condições de...

 - ... A sua obrigação de ser humano é intervir. Você tem feito um belo trabalho.

 - ... podemos ver a coisa dessa maneira, senhor comandante.

 - Mas eu e os outros senhores não vemos assim. - Teyendorf não tinha a menor intenção de encarar essa troca de palavras como uma conversa alegre e trivial - Para nós, o seu comportamento é um tremendo incómodo para os meus hóspedes, incómodo este que perturba a paz a bordo. Portanto, no interesse de todos os passageiros, devo dizer-lhe que você pode ser expulso de bordo em Papeete. Nesse caso, você seria obrigado a retornar dali para Frankfurt de avião.

 - Eu pedi permissão à minha companhia de navegação. Posso?

 - Não creio que o senhor tenha autoridade para tal coisa, comandante - replicou De Angeli em tom frio. - Eu paguei a passagem, sou um homem livre, não tenho nenhuma enfermidade contagiosa, não exalo fedor, comporto-me de maneira correcta e não mijo no convés. O senhor não pode me expulsar de bordo. Sim! - Isso vai custar muito dinheiro e trabalho à companhia de navegação. Pode estar seguro da reacção da imprensa francesa. Continua existindo o pontapé das botas do exército alemão.

 Teyendorf cruzou as mãos atrás das costas e assumiu um ar bem formal.

 - Pelo que vejo, não adianta pedir a você, Sr. De Angeli. Não está disposto a tomar conhecimento do aviso. Suas ameaças não me assustam, quem me conhece sabe que as ameaças só me tornam mais activo ainda.

Ainda faltam seis dias até Papeete. Se eu receber mais queixas nesses seis dias, você será obrigado a fazer as malas antes de Taiti.

 - E se eu me recusar, se me defender? - gritou De Angeli. era sincera a sua indignação. - O senhor vai usar de força? Vai mandar que me arranquem do navio? Farei o maior escândalo...

 - Pedirei a ajuda oficial da polícia de Papeete.

 - Eles são franceses, assim como eu, vão rir de sua cara. Isso mesmo, vão rir!

 

 - Vamos ver. - Teyendorf deu por encerrada a conversa. - Vamos começar o desembarque, Sr. De Angeli. Divirta-se na ilha de Páscoa.

 - Está me mandando embora?!

 - Da minha cabina? Sim!

 - Sale boch! - De Angeli sussurrou entre dentes o palavrão, depois virou-se com perfeita soberba e saiu da cabina.

 Teyendorf trincou os lábios e bateu a porta atrás dele. Estava claro para ele que De Angeli sairia do navio em Papeete, mesmo com um escândalo, se preciso fosse., à noite, quando todos os passageiros voltaram De viagem pelos mares do Sul, no curso Pitcairn e Pio Atlantis e os citados senhores traziam comunicados de catástrofe.

- Tudo será esclarecido, meus senhores e senhoras - disse Riemke pálido e abatido. - Por favor, não se aflijam...

 - Você deve ter nervos de aço! - gritaram atropeladamente os homens alterados; a frase transformou-se numa mistura de vozes que ninguém mais entendeu.

 Riemke pegou o telefone e chamou Teyendorf.

 - Aconteceu, senhor comandante - disse ele com voz débil. - Ao meu lado estão seis casais. Está ouvindo o barulho? As cabinas deles foram arrombadas durante o passeio em terra e todas as jóias foram roubadas. Em seis cabinas, senhor comandante. Foi-se tudo!

 - Onde está Dabrowski? - berrou Teyendorf em resposta. - Irei imediatamente aí, Riemke. Mas nada de pânico! Dabrowski precisa ser chamado! Esse Sherlock Holmes de araque!

 Jogou o auscultador no gancho, vestiu o paletó branco, enfiou o quepe na cabeça, acenou para que o primeiro-oficial Willi Kempen o acompanhasse e desceu a escada em desabalada carreira, como se tivessem dado alarme de rombo no casco. Dabrowski, que nesse momento estava em sua cabina colocando em latas protectoras os filmes tirados na ilha de Páscoa, foi assustado pelo comissário de cabina.

 - O senhor deve ir agora mesmo ao Sr. Riemke. O mais rápido possível. Tem alguma coisa acontecendo por lá.

 Dabrowski levantou-se de um salto, vestiu o paletó e, em dois minutos, chegou à cabina do director de hotel. Não precisou perguntar coisa alguma, os casais contaram tudo atropelando-se aos berros. Quando pouco depois dele, Teyendorf e Kempen chegaram ao escritório, dissipou-se a conversa agitada. Nesse momento, Riemke conseguiu impor-se.

 - Senhor comandante... - gaguejou ele. - Incontestável. Seis cabinas foram limpadas.

 - Um escândalo! - gritou um dos homens. - num navio tão famoso como esse.

 - Justamente porque é famoso. Esse tipo de coisa não acontece num navio carvoeiro. - Teyendorf viu os olhares irritados na sua direcção e estremeceu, quando Dabrowski disse em tom quase que de felicidade:

 - Paolo Carducci. Finalmente!

 - A minha boa educação impede-me de lhe dar o que você merece. Quer dizer que você ficou contente?

 - isso aí, senhor comandante. Agora sabemos que ele está a bordo! Isso foi a assinatura dele. E não vai nos escapar.

 - Quem? - gritou um dos homens em soprano.

 - O ladrão. Um certo Carducci. Um dos maiores conhecedores de jóias do mundo. Se ele considerou que valia a pena roubar as jóias de suas mulheres, podem ter certeza de que seu dinheiro foi bem aplicado.

 

 - Um maluco! - soluçou uma das mulheres sentando-se pesadamente. - era só o que faltava! Um cego maluco. O que ele quer aqui?

 - Sim! O que quer aqui, Sr. Dabrowski? - Teyendorf percebeu rápido. O cego devia continuar cego para poder descobrir Carducci. - Por favor, retire-se para a cabina ao lado.

 - como queira, senhor comandante.

 Dabrowski foi apalpando o caminho para o quarto contíguo, mas deixou a porta aberta para poder ouvir a conversa. era uma história simples que se repetiu seis vezes: apesar da fechadura de segurança, quatro portas de cabina haviam sido arrombadas, sendo que duas nem ao menos estavam fechadas. Os hóspedes dessas duas cabinas eram os que mais alto gritavam. Suspeitavam que seus direitos à reparação eram iguais a zero. Eram cabinas do convés superior e do tombadilho. E ninguém havia visto coisa alguma. Os comissários também tinham o dia livre em terra e foram cavalgar pela ilha.

 Com muito alvoroço, preparou-se uma relação das jóias roubadas com a avaliação de seu valor de venda. Assim, veio à luz que, nesse dia, Carducci pusera as mãos num valor de 1,3 milhão.

 - Eu já disse, com Carducci a coisa tem de valer a pena - disse Dabrowski mais tarde, quando encontrava-se a sós no escritório com Riemke.

 Teyendorf e Kempen. Os seis casais haviam ido embora queixando-se, para depois, nas cabinas, berrarem acusando-se mutuamente pelo facto de as jóias não estarem no cofre. Eles foram o que menos a sério levaram a circular do primeiro dia, que advertiu e exortou os passageiros a guardarem todos os objectos de valor. Apenas uma informação de hábito, mais nada. Devia ser como o exercício com o salva-vidas. Agora a mulher berrava para o marido:

 - Foi você que teve preguiça de ir levar a jóia à comissária em plena madrugada!

 E ele gritava em resposta:

 - Eu?! Ah, sempre eu! Quem foi que disse: fique aqui, não vamos dormir mesmo ao lado? Ninguém rouba num navio como esse. Quem foi que disse isso? Quem?! Mas agora finge que não sabe de nada... é típico, é o que eu digo! Típico!

 No jantar faltaram seis casais. A comida teria ficado entalada na garganta deles. Em compensação, Alma Richter, a viúva, comeu com enorme apetite e contou ao comissário de mesa sobre as belas fotos que tirara na ilha de Páscoa. Ela também levara a bordo uma pesada figura de pedra de tufo, quase da metade do tamanho dela, um moam com chapéu cilíndrico, como cabeça, uma obra completa.

 Dabrowski ouviu durante um longo tempo as recriminações que Teyendorf e Riemke despejaram em cima dele, depois, com um impetuoso movimento de mão, cortou a torrente de palavras.

 - Vocês conhecem Wilhelm Busch? - perguntou, causando assim um espanto mudo.

 - Mas que conversa fiada é essa? - finalmente, Teyendorf foi o primeiro a reagir.

 - É dele, de Max e Moritz, o belo verso: este foi o primeiro golpe e o segundo já está a galope... Carducci procederá da mesma maneira: ele está preparando o segundo golpe.

 - Bom proveito! - disse Riemke.

 - E você diz isso com essa calma? - vociferou Teyendorf.

 

 - O segundo golpe vai quebrar o pescoço dele. Não precisaremos esperar até o sétimo golpe como em Max e Moritz. Ele cometerá um erro.

 - É o que você espera.

 - É. Os seis arrombamentos no mesmo dia comprovam o quão seguro ele se sente. Aliás, seguro demais! Vou pegá-lo agora! Podem consolar os casais roubados; eles receberão as jóias de volta.

 Dabrowski procedeu como sempre em seu horário de refeição. Beate cortou os pedacinhos de carne, ele tacteou o prato com o garfo e faca e, como todos à volta já estavam acostumados àquela cena, ninguém mais olhou em sua direcção.

 Após a refeição, teria lugar o obrigatório baile à fantasia com a eleição da miss Atlantis no Salão dos Sete Mares. Já havia algumas mulheres sentadas em volta do salão, impacientes; quem receberia uma rosa para poder participar do concurso? Quais seriam as oito felizardas? Os maridos estavam desligados.

 - Eu também vou querer ver o idiota - disse o Dr. Schwarme cheio de veneno - que acha a sua mulher uma rainha da beleza. Até o nosso cego Dabrowski poderia participar.

 Ele deu uma risada da própria piada e não ouviu quando Erna respondeu em tom malicioso:

 - Nem todos os maridos são tão impotentes quanto você...

 - O que você fará agora? - perguntou Beate inclinando-se na mesa para perto de Dabrowski. - Tem algum plano?

 - Ficarei ouvindo por aí aqueles que não foram à ilha, que permaneceram a bordo. Então, teremos uma relação distinta, pois como foram muitos os que ficaram a bordo. Mesmo aqueles que só conseguiam rastejar, foram visitar a ilha de Páscoa. Tão cedo não se terá ocasião de viver algo igual. Portanto, o número dos que ficaram a bordo deve ser pequeno. É aí que vejo a minha primeira esperança.

 - E a segunda?

 - Você vai usar de novo a jóia da joalheria de Heinrich Ried e não a devolverá a Erika Treibel, mas a guardará na cabina durante a madrugada. Ficarei sentado na sua caminha montando guarda. - Dabrowski encarou-a inquisidoramente através dos óculos escuros de cego. - Ou será que o Dr. Paterna vai dar alguma passadinha por lá?

 - É pouco provável. Eu disse a ele ontem que estou noiva.

 - E ele acreditou nisso?

 - Acreditou. Acho inclusive que ele ficou bem contente.

 Pareceu aliviado por dentro.

 - E você?

 - Chorei a noite inteira. Foi difícil à beça passar por isso. Mas agora ele acabou. A coisa está feita e acabada.

 - Boa menina.

 - à força, tio Ewald.

 - Não torne a repetir isso! - Dabrowski abriu um sorriso largo. - Se eu não fosse vinte anos mais velho do que você e se tivesse menos escrúpulos, tentaria ser o substituto.

 - Sonharei com isso. - A frase soou impertinente, mas os olhos de Beate brilharam. - A única coisa que ainda me mortifica é que eu não sinto inveja dessa pintada Bárbara pelo amor de Mário.

 Dabrowski balançou a cabeça.

 

 - Na realidade, ela não passa de um coelhinho que quer participar e tomar sol uma vez na vida. A grande aventura que durará até o fim da vida. E aí ela dá de caras com o Dr. Paterna que se apaixona por ela. Se isso não for um conto de fadas...

 - Você acha que tudo acaba em Sidney.

 - Eu receio, Beate. Paterna em terra, na condição de marido honesto... dá para imaginar isso?

 - É difícil.

 - Está vendo? Você se poupou disso.

 - Mas dói.

 - A renúncia a uma bela idiotice sempre dói. - Dabrowski levou a xícara com café quente aos lábios, o encerramento do jantar. - Hoje à noite não lamento estar bancando o cego.

 - Por quê?

 - Ora Vejam só! Como cego não poderei entregar-lhe uma rosa para a mesa, a eleição de miss Atlantis! Depois eu teria de dançar uma valsa com você.

 - Você me daria uma rosa, Sr. Dabrowski?

 - E a quem mais daria? Quem não vê a sua beleza deve ser cego. - Dabrowski deu uma gargalhada da própria piada em relação ao seu papel e depois deixou que Beate o levasse para fora do restaurante. Foram logo até a tolda do elevador e entraram na joalheria. A vendedora Erika Treibel estava sentada sozinha atrás do balcão de vidro, lendo um livro sobre mineralogia. No dia seguinte, ela daria uma conferência sobre pedras preciosas na televisão de bordo e já nesse momento estava excitada.

 - Moça, abraço cofre! - disse Dabrowski em tom alegre. - Hoje nós precisamos de novo da sua jóia. Você ouviu dizer que Carducci atacou.

 - E estou com medo. Sr. Dabrowski. Se ele me atacar...

 - Nesse caso, só será para roubar-lhe a virgindade. - Dabrowski estava de óptimo humor. - Ele jamais virá à loja. O risco é grande demais, minha garota. Carducci tem vítimas mais simples a bordo. E agora pegue sua chave e sacrifique a jóia. Só se pesca um tubarão com uma isca sangrenta.

 O baile à fantasia com a eleição de miss Atlantis foi um sucesso total.

 O mestre-de-cerimónias Hanno Holletitz esteve brilhante com suas piadas e charme, os Happy Boys deram provas de ser verdadeiros mágicos do ritmo e, por outro lado, acompanharam a cantora Reilingen com delicados sons de flautas em sua esplêndida apresentação da Valsa da Primavera de Strauss. Foi uma delícia escutar seus trinados. Cabia a Teyendorf, como comandante, dar os parabéns à miss eleita, entregar-lhe o gigantesco buquet e dançar com ela a valsa de honra.

 A eleição da miss! Sem dúvida nenhuma, essa foi a mais difícil que já haviam tido no Atlantis. Só o desfile das oito escolhidas já foi um deleite para os olhos... e tanto mais difícil ficou sendo a decisão sobre quem era a mais bonita.

 Portanto, lá ficaram elas lado a lado, rivais desde o início da viagem, mas agora desafiando a decisão: Bárbara Steinberg, Beate Schlichter, Erna Schwarme, quatro mulheres do círculo da máfia de médicos de Hamburgo, que crucificaram suas esposas mandando-as para a competição, a fim de mais tarde eximirem-se das recriminações, e também Sylvia de Jongh, claro, a quem Hans Fehringer entregou sua rosa.

 

 - Vai dar nas vistas, querido! - sussurrara ela, quando Fehringer chegou à mesa e, antes de entregá-la, levou a rosa aos lábios. - Não pode ser.

 - Você não vai poder dar-me um fora na frente de toda essa gente. Chamaria mais a atenção ainda.

 Fehringer ofereceu-lhe o braço e levou-a à pista de dança. Sylvia recebeu o número seis.

 Holletitz realizou as entrevistas relâmpago com humor e rotina. Cada candidata foi obrigada a, de improviso, recitar um poema de duas linhas e a dar respostas humoradas para perguntas maliciosas. Sylvia viu nisso uma oportunidade para não ser a escolhida. Respondeu de modo rabugento, mas recebeu aplausos grandiosos e risos através de algo dito sem querer. à pergunta de Holletitz:

 - Quem foi madame de Pompadoa?

 Sylvia respondeu num tom quase insultado:

 - O colchão de Luís XIV.

 Somente quando todo o salão caiu na gargalhada e aplaudiu entusiasmado foi que ela reconheceu o erro e gritou:

 - Eu quis dizer a amante!

 Mas a correcção desapareceu no júbilo.

 A contagem dos votos deu como resultado - Não se levando em conta que as mulheres dos médicos situaram-se nos últimos lugares, sofrendo uma contundente derrota - o terceiro lugar para Beate, Bárbara em segundo e como vencedora do concurso, de maneira bem apertada com três votos de vantagem, Sylvia De Jongh. Erna Schwarme, a quarta colocada, mostrou claramente seu enorme desapontamento. Não fizera nenhum efeito o vestido de noite com o decote acintoso, sobre o qual o Dr. Schwarme disse:

 - Não se curve para a frente, senão a peitaria pula para fora!

 Tão-pouco o rebolado surtiu algum efeito. De Angeli, a pessoa que lhe levara a rosa, sussurrou-lhe no ouvido quando os dois dançavam a grande valsa da miss.

 - Para mim, você é a mais bela, chérie. Vamos depois à minha cabina beber uma tacinha de champanhe?

 - Talvez.

 - Você sempre diz talvez. As outras mulheres... - Um calafrio percorreu o corpo de Erna. Bem, agora está tudo no fim, pensou ela, enquanto De Angeli, dançando, a beijava no pescoço. Em Sidney estará tudo acabado... e daí? Peter vai divorciar-se e, como advogado, - ele sabe o que isso lhe custará. Já não existe mais o princípio de culpa, quem for economicamente mais fraco deve ser alimentado de acordo com os padrões. De acordo com os padrões, Sr. Dr. Schwarme! São alguns milhares de marcos por mês: sei muito bem quanto você ganha. Mas estarei livre de você, poderei levar minha vida com liberdade, poderei amar quem quiser. E você terá de pagar. Foram vocês mesmos, os homens, que bolaram essa linda nova lei sobre o divórcio. Seus idiotas!

 - Sim - disse ela em voz baixa olhando radiante para De Angeli. - Eu irei.

 - Chérie! - De Angeli apertou-a contra seu corpo. - Não existe nenhum homem mais feliz do que eu.

 

 Logo depois da valsa, Theodor Pflugmair saiu correndo para o hospital. Knut De Jongh estava deitado na cama, com o corpo erguido por uma montanha de travesseiros, lendo um livro de bolso. Ele levantou a cabeça contente, quando as dez arrobas retumbaram no quarto.

 - Cara, Theo! Você vem me visitar quando lá em cima as mais lindas fêmeas estão dando sopa.

 Pflugmair puxou um banquinho para perto da cama e sentou-se. As pernas do banco rangeram sob seu peso, mas aguentaram firme.

 - O que você está lendo?

 - Um policial. - De Jongh fechou o livro e jogou-o para o lado.

 - Bom?

 - Existem melhores. Mas Sylvia os devora. Ela trouxe cinco policiais na mala.

 - A boa Sylvia. A bela Sylvia. - Pflugmair arreganhou um sorriso e esfregou as mãos gordas. - Agora, Knut, adivinhe o que aconteceu lá em cima, no salão.

 - Ora, desembuche logo.

 - Sua mulher foi eleita miss Atlantis.

 - Foi mesmo? - De Jongh estreitou os olhos. - Quem foi que levou a rosa para ela?

 - O babaquara louro. Fehringer.

 - Ora Vejam só! Quer dizer então...

 - Não quer dizer coisa nenhuma. O louro está sentado longe dela, numa mesa de seis e sua mulher está acompanhada de dois casais. era quase natural que alguém escolhesse Sylvia, o louro ou qualquer outro cavalheiro e Cara, que mulher você tem! Ela é realmente a mais bonita. De virar a cabeça, é o que eu lhe digo. E falou algo sem querer... que o salão inteiro veio abaixo. - Pflugmair relatou a piada sobre madame de Pompadoura, mas De Jongh não riu. Ficou com os olhos fixos num ponto do infinito, corroído pelo ciúme. Sylvia como miss Atlantis... e ele acamado no hospital, sempre com aquela febre baixa que resistia aos antibióticos. "Você não irá embora, enquanto não se livrar por completo da febre!", dissera o Dr. Paterna. "Mesmo que eu seja obrigado a amarrá-lo na cama." A enfermeira Erna também ameaçara com a mesma coisa. Ser entregue aos médicos é uma punição, pensou De Jongh amargurado.

 - Você trouxe cerveja, Theo?

 - O que você acha?! - Pflugmair esvaziou os bolsos. Pilsen, um copo. Theodor preferia beber pelo gargalo, como antes, quando ficava na cova de lubrificação trocando os reparos dos freios. - Não estou a fim de deixar meu prusso morrer de sede.

 Depois de seu passeio pelo bem cuidado alto-alemão, Pflugmair voltou ao idioma materno.

 - Hoje à noite vou dar várias controladas - prometeu Pflugmair ao se despedir de Knut De Jongh. - Só para você ficar de cabeça fria... Juro por Deus!

 Por volta da uma da madrugada, Sylvia foi à enfermaria. Estava levemente bêbada, deu um beijo estalado no marido mudo e, dançando, deu vários giros diante da cama. De Jongh tornou a sentir o ciúme cáustico.

 - Você se divertiu à vontade, não?

 - Foi esplêndido. Imagina só, eu fui eleita miss Atlantis.

 - Meus parabéns. Por que não está na cama com o seu cavalheiro?

 

 - Puxa, mas você é ordinário, Knut. - Sylvia sentou-se no banquinho e fez beicinho com pose de insultada. - Dou um pulinho extra aqui em plena madrugada, para contar tudo e o que é que você faz? Você é um nojento.

 - Desculpe. - De Jongh recompôs-se. Sou um burro, pensou. Claro que ela tem razão: está aqui para me fazer partilhar de sua grande alegria e eu cuspo no seu prato. Knut De Jongh encheu-se de uma espécie de comoção. - Fique deitada aqui passiva para ver. Por toda a parte festa e bagunça e o sujeito só pode ler... quem aguenta?! A gente acaba cagado. Desculpe-me, querida.

 - Já está desculpado! - Sylvia tagarelou mais um pouco com ele, depois despediu-se com outro beijo e saiu dançando do quarto.

 De Jongh seguiu-a com a vista, o coração galopando de desejo.

 Sem nenhuma demora, Sylvia subiu de elevador, foi apressada para a sua cabina, abriu a porta e voou para os braços bem abertos de Hans Fehringer.

 Na manhã seguinte, Pflugmair apareceu no hospital e encarou pesaroso Knut De Jongh.

 - ... agora você vai ficar agitado! - disse. - Não dá para esconder, eu lhe devo esse troço: ontem à noite ela não estava na cabina.

 - Não me agito coisa nenhuma, Theo. - De Jongh sorriu satisfeito.

- A que horas foi isso?

 - Assim por volta da uma da madrugada.

 - Está certo. Sylvia estava comigo.

 - Com você? - Pflugmair deu uma piscada de olhos cúmplice, esfregou as mãos e correu à porta. Ao abri-la, virou-se mais uma vez e disse contente: - Ora, ora, ora... esse troço baixou a febre?!

 

 Ainda faltavam cinco dias até Papeete, no Taiti.

 A ilha Pitcairn, uma minúscula mancha no oceano, tornada conhecida pelo Bounty, cuja tripulação e seu líder amotinado Fletcher Christian, encontraram ali um esconderijo seguro e, com as lindas nativas do Taiti, criaram um pequeno paraíso nesta escarpada ilha vulcânica, só podia ser alcançada com muita dificuldade. Cercada por recifes de coral, a costa de rochedos não possuía uma baía protectora onde se pudesse ancorar. Uma única e minúscula enseada pouco profunda, onde só botes pequenos podiam entrar, formavam o acesso a essa ilha singular. A enseada foi chamada de baía Bounty, pois os amotinados nela ancoraram e incendiaram seu orgulhoso navio. Assim, tornara-se definitiva a separação de todos os homens. Podia-se começar a vida no paraíso, junto com as doze taitianas. Desse modo, num plató bem no alto dos rochedos, nasceram a minúscula cidade de Adaístown e a igreja, que ainda hoje conserva a Bíblia do Bounty.

 

 O Atlantis ancorou fora dos recifes. Um bote chato de alumínio saiu de Pitcairn para buscar o comandante Teyendorf, uma equipe de fotógrafos, o Dr. Paterna e sete passageiros escolhidos por sorteio e levou ao navio quase a metade da população - no total eram sessenta e cinco habitantes. Eles montaram suas maletas, caixas e cestos no foyer principal e no convés do solário e venderam belas esculturas - tubarões, albatrozes, gaivotas, tartarugas -, imagens artísticas feitas de folhas ressecadas e pintadas, bengalas com punhos esculpidos e, sobretudo, os belos selos impressos na Nova Zelândia. Uma carta com o selo de Pitcairn é algo realmente raro, especialmente quando cada envelope traz a imagem do Bounty. O comandante Teyendorf retribuiu a hospitalidade dando uma serra a motor para a derrubada de árvores, junto com uma serra sobressalente. Na despedida, os insulares cantaram alguns corais no convés do solário. O chefe da administração da ilha, o presidente Ivan Christian, dirigiu o coral de próprio punho; ele é um descendente directo do tenente Fletcher Christian.

 O Atlantis lançou ao mar todos os barcos escolta e Salva-vidas; neles, os passageiros deram a volta na ilha, admirados com a beleza dessa manchinha de terra, mas mais admirados ainda com os seres humanos que ali, em isolamento total num grãozinho no oceano gigantesco, viviam uma vida feliz.

 - Eu ficaria pirado aqui! - disse Pflugmair na amurada, olhando para o minúsculo paraíso. - Onde não tem cerveja, não tem vida...

 Ainda dois dias até Papeete.

 A preguiça ao sol, desporto nos conveses, concertos no Salão dos Sete Mares e no bar Olympia, filmes no cinema e uma conferência sobre o Taiti, hobby e trabalhos nas varandas e cercão aos balcões dos bares - e para completar, o ar aveludado dos mares do Sul, o vento acariciante, peixes-voadores acompanhando o navio, o infinito a toda a volta - é permitido sonhar. Só não se via uma coisa: tubarões, apesar de as pessoas ficarem na amurada observando o mar de binóculo. Um alarme acabou sendo

falso: o tubarão desmascarou-se na forma de papelão. No reino das ilhas de contos de fadas, um desencantador indício de civilização.

 Não houve mais perguntas entre o Dr. Paterna e Bárbara Steinberg. Eles se amavam e, mesmo que Bárbara suspeitasse de que talvez Sidney fosse o fim daquela felicidade emprestada, ela não se arrependia em nenhum minuto. Sempre que era possível, Paterna era visto ao lado de Bárbara Steinberg. Até Teyendorf notou.

 - Escuta aqui, seu quebrador de ossos - disse de modo amigável ao médico de bordo, durante um almoço na cantina dos oficiais.

 - Se é assim, então abridor de barrigas, senhor comandante. Eu sou cirurgião.

 - Sei que é um assunto privado seu, doutor... mas esse namorico com Bárbara Steinberg está dando um pouco nas vistas. Sei que não faz sentido ficar dando lições de moral, sobretudo num navio de cruzeiro; mas tenho a impressão que a Steinberg te ama mesmo.

 - Nós vamos casar, senhor comandante - disse Paterna sorrindo. - Satisfeito?

 - Vocês vão o quê? - Teyendorf pousou garfo e faca no prato. - Você? Coitada da Steinberg! É minha obrigação preveni-la. Ela seria traída várias vezes a cada viagem.

 - Voltarei à terra e montarei uma clínica particular na Bavária. - O Dr. Paterna sorriu para um Teyendorf perplexo. - Os anos passam, a gente se torna sólido. E Bárbara é uma mulher maravilhosa. Clínica particular e sítio de embelezamento, uma combinação ideal. Eu desembarco em São Francisco, para sempre.

 - Vou sentir sua falta, Dr. Paterna.

 

 - E eu a sua também, senhor comandante. O Atlantis foi uma espécie de lar para mim. Mas lhe prometo uma coisa, eu voltarei. Mas aí, como passageiro, com minha mulher. Talvez seja até na viagem de lua-de-mel.

 O estado de espírito do Dr. Schwarme estava um pouco pior. Ele corria de marido em marido do clube dos dezanove advogando a causa de forçar Teyendorf a desembarcar De Angeli em Papeete.

 - Depois da eleição da miss, minha mulher passou a noite inteira com ele - queixou-se Schwarme. - Ontem, Sr. Hohmann, ele ficou desaparecido três horas com a sua mulher. Se a coisa continuar desse jeito, até Sidney ele será amante da metade do navio: alguma coisa tem que acontecer.

 Todos concordaram em dar um ultimato formal ao comandante, um dia antes da chegada a Papeete. Todos os homens se dispuseram a intervir perante Teyendorf.

 Um dia após Pitcairn, Pflugmair voltou a visitar De Jongh no hospital. A situação do doente estava animadoramente melhor: os ferimentos cicatrizavam, a febre mantinha-se no limite, o paciente deixara para trás os primeiros passos dados com pernas bambas até o W.C., tudo melhorava. Pflugmair ofegou, deu um tapinha no ombro de Knut De Jongh, que estava sentado na cama, e disse com voz sepulcral:

 - Agora aconteceu, meu pobre garoto. Ela trepou.

 - Com quem e onde? - a voz de Knut De Jongh saiu muito tranquila e insípida.

 - Com o louro. Você estava com razão. E onde? Na sua cabina. Que vigarice, digo eu! Saca, fui dar uma controlada de madrugada, colei a orelha na porta e sabe o que ouvi? Um puto barulho de luta! Jesus Cristo, a mulher ficou gemendo e choramingando. O cara que não conhecesse isso, teria arrombado a porta para ir em socorro. Tem alguém aí fechando o paletó de outro... Essa sua mulher diabólica estava mesmo com o maior fogo no cú.

 - Obrigado. - De Jongh continuou com toda a calma e essa estranha calma não era fingida.

 E Knut De Jongh ainda estava calmo quando, uma hora mais tarde, Sylvia visitou-o, alegre como sempre, exalando um cheiro de creme de bronzear, bem queimada e soltando juventude pelos poros. Ela ficou contando sobre os peixes-voadores e De Jongh ouviu aparentemente com toda a atenção.

 - Você vai ao concerto de opereta de hoje à noite? - ele perguntou quando Sylvia se despediu. Knut suportou inclusive o beijo dela.

 - Vou, já estou contente desde agora. Estão querendo transmiti-lo pelo rádio de bordo. Se for assim, você também poderá ouvir. Não acha óptimo?

 - Sim, óptimo. Ficarei pensando em você enquanto isso...

 De Jongh esperou até que Sylvia fosse embora, depois arrastou-se para fora da cama e começou a correr pelo quarto até que, banhado em suor, tornou a desabar na cama. Havia dois dias que treinava escondido, ficando cada vez melhor. Knut sentia o aumento da força nos braços e pernas, mas ainda estava longe de ser o De Jongh de outras épocas. Agora, fazia treze dias que ele estava hospitalizado e de saco cheio.

 

 Sylvia e o louro, pensou ele. Tinha de acontecer isso. Mas não vou sair correndo atrás dela, enquanto ainda tiver forças para mexer um dedo. Sylvia é minha propriedade, mesmo que todas as fêmeas emancipadas gritem o contrário. E vai continuar sendo minha propriedade.

 Sentado na cama, Knut De Jongh ouviu o concerto de ópera transmitido do Salão dos Sete Mares pelo rádio. Estava todo vestido e, apesar da estrita proibição, fumou meio maço de cigarros enquanto aguardava. à meia-noite em ponto, De Jongh saiu do hospital, subiu de elevador até o convés principal e, ali chegando, andou até à sua cabina número 147. Enfiou a segunda chave no buraco da fechadura e sentiu que a porta estava fechada por dentro. Mas ele girou a chave, a porta abriu-se sem nenhum ruído, a luz veio na direcção dele, o brilho do abajur da mesinha-de-cabeceira e os suspiros fervorosos de Sylvia.

 Knut De Jongh entrou na cabina com a maior tranquilidade, depois fechou a porta nas suas costas e deu três passos para a frente, até poder enxergar a cama.

 Sylvia e Hans Fehringer estavam fazendo amor num abraço bem apertado e esquecidos do mundo, entregues ao êxtase de sua paixão. Os dois não viram nem ouviram coisa alguma, nem mesmo a entrada de Knut De Jongh. Havia apenas a sua união corporal.

 Com a cabeça baixa, Knut De Jongh aproximou-se dos pés da cama e ficou assistindo, sem dizer nenhuma palavra.

 

A cena de um casal fazendo amor pode ser excitante e muitíssimo interessante para um estranho, mas o é provavelmente pouco para um marido, cuja mulher é o objecto da paixão. O que esfrangalha os nervos do observador não é apenas o facto da infidelidade, mas, muito mais, o comportamento diferente ao extremo de sua mulher nos

braços do desconhecido.

 Assim, Knut De Jongh também não tinha guardado na memória um momento em que tivesse tido nos braços uma Sylvia tão absorta do mundo, em tamanho êxtase. era bem verdade que ele não tivera jamais do que se queixar; Sylvia tinha sido uma mulher e amante maravilhosa, que sempre soube como deixá-lo excitado com seu corpo diabolicamente lindo - mas nunca, nunca ela atiçara nele esse fogo selvagem que nesse momento Knut via no outro sujeito. Isso deixou-o mais despedaçado e destruído do que a descarada traição.

 De Jongh voltou às sombras e foi até à porta na pontinha dos pés.

 como da outra vez no convés CFL, saiu da cabina sem ser visto e, em silêncio, tornou a fechar a porta atrás de si. Teria sido mais simples liquidá-los naquele momento, pensou De Jongh ao subir a escada devagar até chegar no tombadilho. Nesse momento, à meia-noite, o local estava vazio, à excepção de um casalzinho sentado no banco dos fundos trocando beijos.

 De Jongh reconheceu Eduard Grashorn e uma das comissárias de mesa e contentou um sorriso melancólico. Ainda por cima aquilo ali - Grashorn traía seu amante van Bonnerveen com uma moça. O mundo estava virado de ponta-cabeça.

 Knut De Jongh sentou-se num banco pintado de branco na outra extremidade do tombadilho e ficou olhando para o mar tranquilo, iluminado pela lua. Somente o cicio das espumantes ondas provocadas pela hélice do navio interrompia a tranquilidade. O céu estrelado, como sempre, era de uma beleza grandiosa, pontos reluzentes no infinito.

 Sim, eu poderia tê-los matado na mesma hora. Seria simples. Um golpe com o canto da mão na nuca de Fehringer... ele não sobreviveria. Seu pescoço se espatifaria como vidro. E Sylvia? De Jongh contemplou suas mãos maciças. Quando elas se fechassem apertando seu belo pescoço branco e delgado, então você não inspiraria mais nenhuma gota de ar. Também teria sido uma coisa de segundos, com a laringe sendo esmagada já no primeiro aperto.

 Por que não fiz? Por que fiquei assistindo aos dois e depois saí sem fazer barulho? Por covardia? Não! Porque, apesar de tudo, continuo amando Sylvia? Talvez... Mas será que algum dia poderei esquecer o êxtase daquele coito? Pode-se apagar da memória essa terrível imagem? Será que essa imagem não vai voltar aos meus olhos, sempre, sim, sempre que eu a tiver em meus braços mais tarde? Será que não pensarei e sentirei: agora ela está fazendo a comparação. Agora você é ele... é ele que Sylvia está sentindo dentro de si; você é apenas uma substituição, com a qual ela pode sonhar com o passado? E então você voltará a sentir o impulso: mate-a, mate-a agora, essa puta sem-vergonha. Sufoque-a...

 

 Ele apertou as mãos entre os joelhos, fitou o mar e teve consciência de que sua vida nunca mais seria como antes. A partir daquele segundo, esmigalhava-se seu pequeno mundo construído com esforço, suor e trabalho; o ferreiro que se tornara industrial, cujo trabalho das próprias mãos tornou milionário, mergulhava num abismo. De Jongh cerrou os olhos e recostou-se na parede. Nunca acreditara que uma mulher pudesse quebrar um homem. Quando alguém de seu círculo de conhecidos contava sobre tais destinos, ele sempre ria e berrava a plenos pulmões: "Ora, pare com isso! Esses homens são uns moleirões, uns farrapos. Foi muito bem feito que tenha acontecido com eles. O que é que a gente deve fazer com uma mulher que sai por aí dando suas voltinhas? A gente bota a mulher debaixo da gente e mostra o que é um ferreiro de verdade! Isso sempre ajuda. Sucumbir por causa de uma mulher... que grande babaquice!" Agora a coisa era bem diferente; era como se ele estivesse sangrando por dentro e ficasse contente por ter chegado ao fim.

 Knut De Jongh ficou sentado no banco mais de uma hora, meditando e sendo corroído por sua tristeza. Quando levantou-se e desceu de elevador até o hospital, havia-se tornado um velho.

 O Dr. Paterna estava sentado esperando na ante-sala do hospital. Seguindo um instinto, ele fora dar uma olhada em De Jongh e encontrara a cama vazia. Achara que seria muita estupidez procurá-lo pelo navio. Em compensação, mal De Jongh abriu a porta, foi logo bronqueando:

 - Ficou maluco?!

 - Fiquei.

 - Onde esteve?

 - Respirando ar puro. No tombadilho.

 - Mas que droga, você ainda está acamado.

 - Até amanhã de manhã, doutor. Nem um dia a mais!

 - E quem é que determina isso? Você ou eu?

 - Eu. Trata-se do meu corpo, da minha saúde, da minha vida. Sou grato a você por ter-me posto de pé de maneira tão boa e com tanta rapidez, mas agora eu gostaria de ir embora. As pernas sem movimento são inúteis e eu odeio a inutilidade... Aliás, o que você está fazendo aqui no hospital à uma da madrugada?

 - Ao pensar em você tive uma sensação esquisita.

 - Sua sensação estava certa. - De Jongh entrou em seu quarto da enfermaria, tirou a roupa e deitou-se na cama. Paterna ficou olhando, sem nada dizer. - O que mais, doutor? Estou cansado.

 - Estou lhe achando estranho. Não sei dizer o que me incomoda, mas você está diferente de antes.

 - Talvez nunca mais eu seja como antes. Facadas no peito e nas costas podem mudar a gente.

 - Não é isso.

 - E o que haveria de ser? - De Jongh ficou olhando o Dr. Paterna à espreita.

 - É justamente o que não sei. Antes, numa situação como essa você teria berrado para mim: "Pode me crucificar..." Mas hoje você está conversando comigo...

 - Doutor, acho que você é a única pessoa que sente falta disso. - De Jongh tentou esboçar um sorriso, mas que acabou saindo espasmódico.

 

 - Aqui, nessa sua prisão esterilizada, tive muito tempo para reflectir. Nunca antes tive tanto tempo assim para mim. E, nessas reflexões, cheguei à conclusão de que sou um nojento.

 - Genial! Já é alguma coisa! Durma bem, Sr. De Jongh. Voltaremos a nos ver amanhã de manhã.

 De Jongh apagou o abajur da mesinha-de-cabeceira, quando Paterna foi embora. Mas não conseguiu adormecer. Ficou deitado na cama como que paralisado, os olhos fixos no teto escuro da cabina, pelo qual, de vez em quando, corria uma listra prateada - reflexos do mar iluminado pela lua - e respirando pesado sob as dores sufocantes de sua alma.

 Agora vão pegar-me para bode expiatório, pensou ele sentindo o peito e os olhos quentes. Sylvia estava com as pernas abraçando as dele e estertorava como alguém que estivesse sendo sufocado. Oh, meu Deus!

 De Jongh virou a cabeça para o lado, enterrou o rosto no travesseiro.

 Estava chorando...

 

 O último dia de mar antes de Papeete.

 A grande expectativa diante do encanto do Taiti, a essência dos contos de fadas dos mares do Sul - isso enquanto não se conhece o Taiti. A bem da verdade, a beleza é exuberante, mas por trás desse cenário há um fervilhar de vulcão em actividade. O tumulto de grevistas num hotel de luxo, que foram pura e simplesmente golpeados e devastados de uma maneira que nenhum tufão seria capaz de fazer, foi um sinal. A nova época, a "redistribuição", também fermentava no Taiti. A propósito, o visitante embevecido pelos mares do Sul não vê tal coisa. Ele anda nos camiões - os exóticos autocarros abertos e coloridos - pela cidade de Papeete, vai às praias, vê o mercado central que é em si uma bela experiência, visita o Museu Gauguin e a Vila Ventura, na qual Gauguin viveu com sua jovem mulher taitiana... a essência da liberdade absoluta. Quem um dia esteve numa tranquila enseada da ilha Moorea, velejou de trimaran pela laguna de Bora Bora, andou de barão com fundo de vidro pelos jardins de coral ou deitou-se debaixo de uma palmeira gigantesca, sibilante, curvada pelo vento, numa praia branca de coral... sabe que não deve haver nada tão belo nos quatro cantos do mundo como essa ilha. Espalhado no imenso oceano, um pequeno paraíso na terra, quando se ousa sonhar.

 às dez da manhã, os comissários serviam consome ou café nos conveses, para cobrir o tempo entre o desjejum e o almoço. Além do mais, um bom e salgado consome é o melhor meio, no calor tropical, contra a perda de sal do corpo, mineral necessário expelido pelo suor em grande quantidade. Dez horas é também o momento da grande preguiça a bordo.

 

As espreguiçadeiras ficam todas ocupadas, as pessoas descansam do café da manhã sentindo-se plenamente felizes. Ludwig Moor já havia marchado seus mil metros no tombadilho. Pflugmair virava a terceira cerveja, Oliver Brandes jogava xadrez, os dois namorados e o Dr. Schwarme jogavam shovelboard, o príncipe e a princesa von Marxen estavam deitados à sombra lendo, ela um romance feminino americano, ele um livro de capa falsa e inofensiva, pois na verdade tratava-se de uma grandiosa sacanagem, uma edição particular de pornografia com fotos incríveis. E François De Angeli passeava toda a sua beleza de convés em convés, mostrando às mulheres que lançavam olhares furtivos tudo o que um calção de banho era capaz de esconder e deixar antever. Inclusive Arturo Tatarani, o tranquilo vinicultor do Piemonte, estava deitado na piscina examinando o cardápio do almoço.

 Sylvia, deitada ao sol um pouco apartada, separada conscientemente de Fehringer, como se ele fosse apenas mais um dos muitos passageiros, abriu os olhos e levantou a cabeça quando, de repente, o sol escureceu-se à sua frente.

 Seu terror foi tão grande que, durante alguns segundos, ela ficou como que paralisada.

 - Você? - disse ela depois de algum tempo. Sua voz saiu bem baixinho.

 - É como você vê. - De Jongh assentiu com um sorriso insosso. - De corpo inteiro.

 - De onde você saiu?

 - Ressuscitei dos mortos. Pombas, cada pergunta que você faz! Onde é que eu estava?

 - O Dr. Paterna permitiu isso?

 - Mais ou menos. Eu disse a ele que estava de saco cheio! Perguntei se ele queria esperar até crescerem flores em minhas cicatrizes. Declarei me curado e voltei ao convívio da humanidade. O que lhe restou fazer a não ser deixar que eu fosse embora? - De Jongh sentou-se na beira da espreguiçadeira de Sylvia e começou a brincar com os dedos pintados dela e a acariciar-lhe a perna. - Durante todo esse tempo você se queimou. Uma pele que parece veludo moreno. Aí é que a gente vê o que a tranquilidade é capaz de fazer. Você descansou à vontade, não?

 - Sim, certo - disse ela esquivando-se. - Que bom que você voltou.

 - Ainda quero banhar-me um pouco no seu brilho, miss Atlantis.

 - Isso já foi esquecido. - Ela fez um descuidado gesto de desdém.

- Glória de um dia, brincadeira. Ninguém mais fala nisso.

 - De qualquer modo, você é a mulher mais linda e erótica a bordo e, ainda por cima, é a minha esposa! Claro que devo sentir orgulho.

 - Então, sinta orgulho e passeie por todos os conveses de peito inchado. - Sylvia encolheu a perna, deixou que ele continuasse acariciando sua panturrilha e tentou dominar sua intranquilidade.

Precisava prevenir Hans Fehringer que, como sempre, a estaria esperando na cabina dela depois do almoço, para juntos saborearem a frenética sobremesa, como ele chamava seus encontros. Se ele não visse De Jongh no convés, haveria uma catástrofe. - O que você vai fazer agora? Uma cerveja no bar?

 - Não. Vou buscar uma espreguiçadeira e ficarei ao seu lado. O comissário pode muito bem trazer a cerveja. Tudo bem que eu me deite ao seu lado?

 - Que pergunta mais idiota. - Sylvia fechou os olhos, para não ver mais o rosto de Knut e para reflectir sobre a forma como poderia prevenir Fehringer. - Se você for ao bar, peça um coquetel para mim. Coco com rum. Rum carta branca.

 - Será pedido, querida. - De Jongh levantou-se. - Você terá tudo que precisar.

 

 Foi até às espreguiçadeiras empilhadas, pegou uma e mais duas toalhas de banho de uma caixa de auto-serviço, abriu a cadeira ao lado de Sylvia e depois caminhou até o bar. Ao fazê-lo, seu olhar virou-se para todos os lados, mas ele não descobriu Fehringer.

 Por volta das onze horas, apareceram na cabina do comandante Teyendorf os honrados senhores, conduzidos pelo Dr. Schwarme que, por falta de concentração, perdera o jogo de shovelboard para os dois namorados. Suspirando, Teyendorf levou os cavalheiros ao bar Olympia que a essa hora estava completamente vazio.

 - O senhor já esteve hoje no convés, comandante? - perguntou Schwarme sem maiores delongas.

 - Não. - Teyendorf encarou os homens, espantado. - Por quê?

 - O senhor devia ir lá. O Sr: De Angeli está se pavoneando de convés em convés, de cadeira em cadeira, com o menor calçãozinho que existe para homens mostrando a rola para todas as mulheres.

 - É realmente uma coisa tremenda, meus senhores. - Teyendorf foi obrigado a reprimir um sorriso irónico. - Os senhores também têm liberdade para expor o que possuem... Claro que com calção de banho.

 - As mulheres e nós nos sentimos provocados. Exigimos que o senhor expulse De Angeli amanhã, em Papeete.

 - Exigem? - a voz de Teyendorf ergueu-se um pouco. - Exigir significa que eu tenho de fazer alguma coisa! Mas ter é uma palavra que me causa uma alergia no mais alto nível. Eu não tenho coisa nenhuma; só não tenho influência sobre a morte. E também suponho que os senhores sejam homens o bastante para impedir que suas esposas façam besteira. Repito: os senhores desconhecem por completo a tarefa de um comandante.

 - Pode ser. - O Dr. Schwarme, o porta-voz do grupo, sentiu-se o defensor num processo criminal. - Mas o senhor acha que seja boa publicidade para seu navio, quando for tornado público que, numa viagem, seis cabinas foram roubadas, passageiros voltaram esfaqueados a bordo, um hóspede caiu morto da cadeira durante um jantar e um playboy foi espancado a ponto de ser hospitalizado?

 - Qualquer pessoa pode ter um ataque cardíaco - disse Teyendorf rígido. Pelo menos, eles não sabem nada de Anne White, pensou ao mesmo tempo. Que sorte termos ajeitado a coisa sem sermos notados. - O que os senhores tencionam fazer é crime de lesão corporal grave.

 - Dependendo das circunstâncias, levando à morte. - O Dr. Schwarme não viu razão para não ser directo. - Ninguém se controla quando age sob forte emoção.

 - Creio que é inútil continuarmos conversando, meus senhores! - Teyendorf pôs o quepe de comandante. - Anotarei essa ameaça e me prepararei para ela. Suas ameaças não me assustam. Bom dia, meus senhores.

 Ele saiu do bar Olympia e dirigiu-se ao convés situado atrás. Com os olhos apertados, viu De Angeli passar saltitante pelas espreguiçadeiras da piscina, seguido dos olhares das mulheres. era inegável que o efeito era provocante.

 Teyendorf ficou parado, até que De Angeli deparou-se com ele em sua volta. Ele ostentou um sorriso charmoso e não parecia nem um pouco embaraçado.

 - Que dia lindo, senhor comandante! - disse ele. - Os mares do Sul, não devem ser. Estou contente com o Taiti.

 

 - E deve mesmo. - Teyendorf estreitou as sobrancelhas. - Pode olhar o Taiti e desfrutar do encanto dos mares do Sul o quanto quiser. Amanhã cedo você desembarca.

 - Não.

 - Claro que sim. Com a ajuda das autoridades francesas.

 - Pode ser que o senhor se imponha com seus passageiros alemães, esses ditos de qualquer uniforme, que ficam logo em posição de sentido quando vêem um par de galões dourados. Mas com um francês o senhor cai no vazio.

 - Estou em contacto desde ontem com a prefeitura de Papeete. Você será esperado no porto, Sr. De Angeli. E se não desembarcar, seus compatriotas virão buscá-lo. E não fique esperando que vá haver algum escândalo; pelo contrário, os passageiros vão aplaudir.

 - Um navio cheio de alemães... nunca mais em minha vida entrarei numa caserna flutuante como essa. - De Angeli ergueu o queixo. Fez um gesto bem másculo, mas também ridículo em certo sentido. - Mobilizarei a imprensa da França.

 - Você tem liberdade para isso. - Teyendorf continuou com sua frieza inacessível. - Atracaremos às sete da manhã, o navio será libertado às oito. Nesse momento, você estará sendo esperado na escada por um funcionário da prefeitura à paisana, para que a coisa transcorra de modo discreto. Afinal, você não gosta de uniforme.

 - Agora consigo entender o nosso grande Clémenceaz! - disse De Angeli cheio de veneno. - Ele disse um dia: "Existem vinte milhões de alemães sobrando no mundo!" Sou obrigado a corrigi-lo: só um alemão já é demais.

 De Angeli jogou no ombro o robe de banho que até então carregara no braço e, rapidamente, saiu do convés.

 No seu retorno do bar Atlantis, Knut De Jongh descobriu enfim o amante da mulher. era Herbert Fehringer e não Hans, que ele surpreendera na noite passada.

 Esse dia pertencia a ele, Hans descansava de suas fainas amorosas.

 - Ah, aí está você! - disse De Jongh abafado.

 Herbert Fehringer levantou a cabeça; estava sonhando acordado e não ouvira a aproximação de 'Knut De Jongh.

 - Sim, cá estou!

- respondeu ele.

 - Sente-se bem?

 - E como! Obrigado pelo interesse. E você? Já está remendado?

 Houve um tremendo alvoroço a bordo quando você foi arrastado quase morto para o navio.

 - Infelizmente eu não morri.

 - Infelizmente? Se sua mulher ouvisse isso.:.

 - Ela já ouviu outras coisas - disse De Jongh com duplo sentido.

 - A propósito, eu lhe agradeço.

 - Por quê?

 - Ajudou minha mulher a tirar o título de miss Atlantis, com a rosa que lhe deu.

 - Mas isso era mais do que natural. - Herbert Fehringer deu uma risada jovial - A quem mais devia ser entregue o título a não ser à sua mulher? Afinal, todos nós sabemos que ela é a mais bonita a bordo. - Fehringer encarou de Jongh com um ar despreocupado. - De homem para homem, Sr. De Jongh, se eu tivesse uma mulher assim, não tiraria os olhos de cima dela nem um minuto sequer. O mundo está cheio de aves de rapina.

 

 E eu vou abater uma delas, pensou De Jongh de modo sombrio. Seu sacana infame! Fode com minha mulher até ela perder os sentidos e ainda tem a impertinência de me advertir. Eu seria capaz de te estourar os miolos com meus próprios punhos e faria isso se estivéssemos sozinhos agora. Mas temos tempo. Sidney ainda está longe. Cuide-se, seu fodedorzinho de meia-tigela...

 De Jongh seguiu adiante ao ver que o comissário de mesa estava servindo o pedido a Sylvia. O Dr. Paterna, sentado aos pés de Sylvia, lançou-lhe um olhar irado. De Jongh empurrou o queixo para a frente numa atitude belicosa.

 - O doutor veio aqui chorar com você? - disse De Jongh com sarcasmo. - Não vai adiantar de nada, doutor. Estou curado! Quer uma prova? Vou sentar-me na bicicleta de exercícios e pedalarei de tal maneira que qualquer ciclista da Tour de France vai ficar roxo de inveja. Nenhuma faquinha de inca pode derrubar um Knut De Jongh.

 - Você teve uma sorte incrível, isso é tudo. - O Dr. Paterna tomou o coquetel das mãos do comissário e entregou-o a Sylvia. - E, agora posso dizer. Em Cuzão eu tinha poucas esperanças quanto a você. E no voo de volta a Lima fiquei pensando: agora ele vai ter o último estertor. Você tem a natureza de um búfalo.

 - Assim seja! - De Jongh desabou sobre sua espreguiçadeira. Tomou um longo gole da cerveja e depois colocou o copo entre os pés sobre as pranchas. - Não está me gozando, doutor?

 - E por quê? Você achou mesmo que eu não tinha notado que o Sr. Pflugmair estava contrabandeando cerveja para o hospital? A cerveja tem a linda qualidade de traí-lo pela respiração e, sempre que eu ia até à sua cama, você estava com fedor de cerveja.

 - Você é um cara diabólico, doutor. - De Jongh deu uma gargalhada. - Talvez eu precisasse de um médico de família não você.

 - Dentro de dois anos pode aparecer na minha clínica. Ficarei muito contente.

 - Você vai mesmo desembarcar?

 - Sim. Vou casar e montar minha clínica.

 - Casar?! - De Jongh cerrou os punhos. - Doutor, por que vai arranjar esse problema? Assim que se juntar com uma mulher bonita, vai ter o inferno dentro de casa.

 - Eu me caso com Bárbara Steinberg.

 - A exuberante cabeleireira? Doutor, creia-me, elas passam a maior parte do tempo defendendo os amantes que cercam sua mulher como um enxame de abelhas.

 - Levarei seu conselho em consideração. - O Dr. Paterna levantou-se da espreguiçadeira de Sylvia e sorriu. - Tratarei de levar sempre comigo um insecticida.

 - Você é impossível - disse Sylvia furiosa, quando os dois voltaram a ficar deitados sozinhos. - Podia guardar para si esses seus conselhos estúpidos.

 - E o melhor conselho eu guardo mesmo comigo. - De Jongh tomou outro gole de cerveja. Ao fazê-lo, olhou para o ventre de Sylvia e teve ânsias de vómito. - Só se deve casar com uma mulher bonita, quando se possui um revólver.

 - Por sorte você não tem nenhum.

 - Não aqui... mas em casa.

 

Mas Sylvia conseguiu mesmo prevenir Herbert Fehringer.

 Viu quando ele foi ao banheiro, levantou-se e correu para os WCs. Fora do alcance de vista de Knut De Jongh, Sylvia correu como uma louca pelo hall do convés e pegou Fehringer quando este retornava do banheiro dos homens.

 - Ele voltou! - disse ela apressada.

 - Eu sei. Acabei de falar com ele.

 - Não vai ser possível você ir à cabina depois do almoço!

 - Isso está claro para mim. - Fehringer acariciou-lhe o rosto com um gesto delicado - Encontraremos outras maneiras. Só não tenha medo, minha gatinha. Confie em minha imaginação.

 Sylvia assentiu, apressou-se de volta pelo hall e chegou ao convés no momento em que Theodor Pflugmair e De Jongh se cumprimentavam. Ela conhecia Pflugmair, aquele colosso de homem, apenas de vista e ficou espantada ao ver que Knut o tratava como a um velho amigo.

 - Este é Theo! - gritou De Jongh quando Sylvia chegou ao seu lado.

- E esta é a minha mulher, Theo.

 - A miss Atlantis! Você arrasou! Meus respeitos, minha cara senhora...

 Pflugmair fez uma leve vénia, mas que não dissipou a impressão que, de repente, Sylvia tivera dele. Ele me parece tão esquisito, pensou ela. Tão inquisidor. Tão desafiante. De uma intimidade tão grosseira. Um homem repugnante.

 - Theo é um chapa do peito! - disse De Jongh alegre. - Quando eu estava no hospital, ele me fornecia cerveja às escondidas.

 - Ah, então era o senhor? - Sylvia tornou a deitar-se na espreguiçadeira. - E ainda sente orgulho disso?

 - E como! A cerveja é um remédio insubstituível. E já é alguma coisa ela curar um prussiano...

 Pflugmair ficou pouco tempo. Precisavam de um terceiro homem para o jogo de cartas no bar Atlantis.

 - Esse aí é o seu novo amigo? - perguntou Sylvia quando o colosso afastou-se com passos trovejantes.

 - Um amigo insubstituível. Sou grato a ele por muitas coisas.

 - Cerveja...

 - Também. Ele me ajudou bastante e me pôs de pé mais rápido do que eu esperava. No início trocamos xingamentos, "Seu prussiano sacana!", "Seu bávaro de bosta!" Mas depois nos entendemos às mil maravilhas. Ele também deu duro para subir na vida, assim como eu. Ficava deitado debaixo de carros, eu na bigorna. Só tem uma coisa na qual não sou igual: ele viaja sozinho pelo mundo e sabe que a mulher o trai, quando está viajando. E o cara aceita a coisa com a maior tranquilidade. Quando servem um copo de cerveja abaixo da marca, ele fica furioso como um touro, mas deixa que a mulher saia fodendo pelo mundo.

 - Será que você não conhece outras palavras a não ser essas expressões vulgares?

 - Ora, por favor: a Sra. Pflugmair copula com outros cavalheiros... Mesmo assim, continua sendo uma trepada! Eu não ficaria tão tranquilo como ele.

 - O que você faria? - perguntou Sylvia como quem como quer nada, mas com o coração batendo mais rápido.

 

 - Se você saísse fodendo por aí? Não sei; afinal, ainda não passei por essa experiência. - Knut De Jongh disse a frase de um modo tão liberto de segundas intenções, que Sylvia respirou aliviada em seu íntimo. - Mas posso imaginar que ficasse pirado. O mínimo que faria seria torcer o pescoço seu e do seu amante.

 - E o que lucraria com isso ?

 - A certeza de que ninguém mais iria para a cama com você! - De Jongh desviou o olhar para o oceano e os alcatrazes, que haviam vindo do Taiti para acompanhar o Atlantis. Levados pelas correntes ascendentes, eles cercavam o navio com sua dança elegante. - Eu faria qualquer coisa.

 Sylvia levantou os ombros, fechou os olhos e parou de fazer perguntas. Assim, ficou deitada quase imóvel, entregue ao calor e ao vento acariciante, até que De Jongh pousou a mão gorda em sua coxa e disse:

 - Hora do almoço. Vamos até o restaurante ou ficamos aqui e pegamos qualquer coisa no bufé?

 - como você quiser.

 - Nesse caso ficamos no convés. Está com muita fome?

 - Não.

 - Eu também não. A cozinha da tripulação vai servir hoje almôndegas para todo mundo, almôndegas com molho ferrugem e pepinos salgados. Almôndegas! Depois de toda essa comida aristocrática, finalmente uma comidinha caseira. Você também gosta de almôndegas, querida?

 A palavra saiu de seus lábios sem nenhum esforço. Sylvia assentiu e continuou de olhos fechados. Somente quando De Jongh saiu batendo os pés em direcção ao bufé, foi que ela o seguiu com a vista e notou que Fehringer também deixou o convés dirigindo-se ao restaurante.

Respirou aliviada, sentou-se e não perdeu mais tempo pensando nas ameaças veladas de Knut De Jongh.

Dabrowski estava desapontado.

 A noite anterior, na qual Beate usara as jóias caras da loja de Heinrich Ried, do ponto de vista de sua espera fora um fracasso. Carducci não caíra na armadilha. Entre os cavalheiros que convidaram Beate a dançar, não havia ninguém que pudesse ser Carducci. Não era o caso do Dr. Schwarme nem do amável e tranquilo vinicultor Tatarani, isso sem falar dos três oficiais que, mais tarde, ficaram se revezando em requisitar Beate, sem deixar nenhuma chance aos outros senhores. Dabrowski sentara-se à mesa na cabina de Beate a noite inteira, enquanto ela dormia profundamente, cansada da dança e do vinho. A jóia ficara às claras em cima da mesinha-de-cabeceira, e se Carducci entrasse sem fazer barulho, igual a uma sombra, como era a sua especialidade, só precisaria agarrar e meter 450 mil marcos no bolso.

 O facto de ele não ter aparecido deixou Dabrowski mal-humorado. Se sua jóia não o atrai, o que tenciona ele, meditava Dabrowski. Estaria esperando que chegassem a Papeete, quando a maioria dos passageiros tornaria a fazer passeios em terra, para então fazer a limpeza nas cabinas?

 Durante a noite, Dabrowski levantou-se algumas vezes, foi até a cama e cobriu Beate com a colcha. O ar-condicionado zumbia de leve soprando ar frio para dentro da cabina. era justamente essa débil mas constante lufada de ar que provocava a maioria dos resfriados. Uma constipação nos mares do Sul é, na verdade, um absurdo, mas trata-se de algo corriqueiro com os turistas europeus que não gostam de suar à noite e que, por isso, dormem com o ar-condicionado da cabina ligado.

 

 Beate descobriu-se algumas vezes puxando a camisola para cima e deixando pernas e dorso livres. Dabrowski esforçou-se por encarar aquilo sem maiores alvoroços tornando a cobri-la. Beate era jovem demais para ele, que conhecia muito bem seus pais e que prometera tomar conta dela. Ele seria um patife miserável se abusasse da confiança, mesmo supondo que era isso que Beate esperava.

 Quando ela acordou pela manhã, Dabrowski acenou-lhe alegre da janela e fechou a cortina.

 - Bem, cá estamos de volta - disse ele. - Seja bem-vinda a este belo dia.

 - Você ficou sentado aí até agora? - perguntou Beate admirada.

 - Fiquei.

 - Por que não se deitou ao meu lado? A cama é bastante larga.

 - Não podemos surpreender Carducci se estivermos dormindo.

 - Mas ele acabou não vindo.

 - E como eu iria saber disso antes?

 - Eu... eu ronquei?

 - Nenhum barulho. Apenas piou algumas vezes em sonho, como um camundongo. Foi algum sonho bonito?

 - Não sei mais. Jamais consigo lembrar-me dos sonhos. Há pessoas que conseguem e depois contam com toda exactidão. - Ela deslizou para fora da cama e, vestida com sua camisola fina e transparente, arrastou os pés até o banheiro. Deixou correr a água da banheira e depois voltou. Estava com os cabelos presos por uma fita elástica. - Como está o tempo?

 - Segundo a tevê de bordo às sete da manhã: o ar a 25 graus, a água a 24 graus, ventos moderados a dois quilómetros por segundo.

Um tempo esplêndido. - Dabrowski pigarreou. Beate parou sob os raios do sol que entravam pela janela e lhe penetravam pela camisola. - Beate, você sabia que agora, à luz do sol, está quase nua? Dá para se ver tudo.

 - É ruim? - Beate não fez nenhuma menção de afastar-se do sol ou de pegar o roupão de banho que estava em cima da cama. - Você disse que eu poderia ser sua filha. Acha que eu devia sentir vergonha?

 - Não tenho a mínima idéia de como as filhas reagem. - Dabrowski olhou pela janela para os alcatrazes que deslizavam ao vento. Haviam passado a noite no mar tranquilo e, quando raiou o dia, tornaram a alcançar o navio. Algumas pessoas que acordaram mais cedo, lançaram migalhas de pão para eles; em voo rasante os alcatrazes abocanhavam os pedacinhos e depois tornavam a alçar-se ao céu. - Esperarei que você tome banho, depois vou embora.

 - Pode tomar banho aqui também. Recebi dois roupões do comissário.

 Ah, sua doce pilantrinha refinada, pensou Dabrowski. Afinal, o que está querendo comigo? Tenta seduzir um homem de meia-idade e o que virá depois? A grande choradeira. Não logo, mas com toda certeza mais tarde. E então o velho pateta estará tão enamorado de você que, quando você fugir com um jovem mais adequado, ele ficará no maior luto, triste e enrugado. Devíamos ser velhos o bastante para vivermos de maneira sensata.

 - É. Trate logo de ir dar seu mergulho na banheira, para que eu possa ir embora fazer a barba!

 

 Beate deu uma risada clara, desapareceu no banheiro e depois colocou a cabeça para fora da porta. Pelos ombros, Dabrowski viu que Beate estava nua.

 - Você virá aqui se eu gritar: "Pode fazer o favor de me ensaboar as costas?"

 - Não.

 - Puxa, é muito difícil ensaboar as próprias costas.

 - Eu sei disso. Mas existe um pequeno truque: uma escova de banho de cabo longo.

 - Aqui não tem nenhuma escova desse tipo.

 - Compraremos uma em Papeete. Lembre-me disso, está bem?

 Ele ouviu Beate patinhando na água, depois ela assobiou e cantarolou uma música.

 - O que você faria agora se eu gritasse por socorro? - gritou ela.

 - E por que você haveria de gritar?

 - Por exemplo, se uma aranha se arrastasse no teto. Tenho muito nojo de aranhas e grito logo.

 - Beate, não tem nenhuma aranha por aqui. Pare de ficar falando tanto e trate de se lavar!

 - Sim senhor, papai... - ela deu uma gargalhada e tornou a patinhar como uma menina pequena. Ela realmente devia levar umas palmadas no traseiro, pensou Dabrowski. Naquele traseirinho bonito. Ele engoliu em seco algumas vezes repelindo o pensamento.

 - Aliás, ele é mesmo um sujeito simpático - gritou Beate por cima do barulho da ducha.

 Dabrowski levantou as sobrancelhas.

 - Quem?

 - Arturo Tatarani.

 - O vendedor de vinho? - Dabrowski deu uma risada. - Também é velho demais para você. Garotinha, você tem alguma inclinação por homens mais velhos?

 - Talvez. Adoro a experiência. E além disso, só tem quarenta e dois anos, é dez anos mais novo do que você.

 - Mas Tatarani parece ter mais do que quarenta e dois anos. Os cabelos grisalhos, a pele curtida... Afinal, como foi que você ficou sabendo a idade dele?

 - Perguntei quando estávamos dançando. Eu disse: "Puxa, mas o senhor dança bem para a sua idade!" E ele respondeu: "Só tenho quarenta e dois anos, minha cara." E mesmo que isso não lhe agrade, eu gosto dele, é um perfeito cavalheiro.

 Dabrowski ouviu-a saindo da banheira; em seguida, ela retornou ao quarto, enrolada na enorme toalha de banho, pingando água e com os cabelos grudados, com uma aparência tão infantil que Dabrowski disse de modo espontâneo:

 - Se esse Arturo se aproximar muito de você, vai ter que se haver comigo!

 - Como assim? Você não tem nada a ver com a minha vida.

 - Há poucos momentos, você ofereceu-me a sua vida, de um modo discreto, embrulhada num pacote inofensivo.

 - E você recusou. Portanto, esqueça! - Beate sentou-se na cama, esfregou-se com a toalha e depois recostou-se no travesseiro. - A propósito, você sabia que o comandante vai deixar o belo François De Angeli em Papeete?

 - Não. - Dabrowski levantou a cabeça. - Quem disse?

 

 - Um dos oficiais. Em confiança. Vai ter que desembarcar porque dezanove maridos foram fazer queixa dele. - Beate deu uma risada e ficou brincando com os dedos dos pés no ar. - Tem um bocado de cornudos. Mas isso acabou fazendo com que eu tivesse um pensamento: e se De Angeli tivesse provocado tudo isso de maneira consciente, para terminar a viagem em Papeete? Ele será atirado para fora do navio... era isso mesmo que ele estava querendo. Assim, ele consegue ser a única pessoa a desembarcar legalmente. Sem despertar suspeitas, mas com as jóias de seis cabinas... O que acha disso, chefe?

 - Meu Deus! Sua idéia foi mesmo muito boa! - Dabrowski levantou-se. Pode ser isso mesmo, pensou. De Angeli que na realidade é Carducci! O Carducci das mil máscaras, por que não haveria de ser como um playboy? Ele encenou com refinamento essa expulsão de bordo. Poderá tirar de bordo o produto do roubo sem ser molestado, depois voará com o roubo para Paris. Será que o atravessador se encontra em Paris? - Beate, eu gostaria de abraçá-la.

 - Ninguém vai impedi-lo.

 - Claro que sim. A minha consciência. - Dabrowski viu Beate espreguiçar-se bem à vontade na cama, bastando apenas um agarrão para despojá-la da toalha e possuí-la. - Vista-se! Você precisa levar "o cego" agora mesmo ao comandante.

 - Ah, claro. Eu me esqueci por completo. Você é cego, Sr. Dabrowski.

 Sem a menor cerimónia, Beate deixou a toalha cair, foi desnuda até o armário, escolheu bem devagar a roupa de baixo e o vestido, deixando tempo de sobra a Dabrowski para contemplar seu belo corpo.

 - A propósito, você não sabe contar, minha garota - disse ele enquanto Beate colocava um diáfano sutiã. - Não sou dez anos mais velho do que Tatarani, mas apenas três.

 - Mas se comporta como se estivesse prestes a completar cem. Por favor, me ajude a fechar o gancho do sutiã. Não tem perigo. A calcinha eu consigo vestir sozinha.

 - Você devia levar umas palmadas.

 Dabrowski postou-se atrás dela, fechou o gancho do sutiã, respirou o frescor de sua pele e o aroma de limão da espuma de banho que lhe penetrara na pele e, logo depois, fugiu para seu lugar junto à janela. Somente quando Beate estava toda vestida, foi que ele deixou o assento. Ela encarou-o com um longo olhar, balançou a cabeça e apontou para a porta.

 - Vamos, Sr. Dabrowski. Onde estão sua bengala branca e os óculos escuros... assim está bem. Vai andar tacteando o caminho sozinho ou me dará o braço? Como é mesmo que canta o coro na ópera Lohengrin? Fielmente conduzido...

 - Se continuar assim, dou-lhe um tapa!

 - Não se esqueça que há cinco anos sou maior de idade, papai...

 

 O comandante Teyendorf estava sentado com o chefe Ludwig Wurzer discutindo a quantidade de diesel que deviam carregar em Papeete. Além disso, o governador da Políesia francesa anunciara a visita ao Atlantis e, claro, iria querer dar uma olhada na supermoderna sala de máquinas. Para o chefe Wurzer, isso não representava problema algum; a sala de máquinas estava sempre brilhando de tanta limpeza. Bem lubrificado, tudo reluzia como se aquele colosso de cerca de 28 mil cavalos-vapor tivesse sido construído no dia anterior. Todas as funções das máquinas podiam ser vistoriadas através de um enorme painel de comando da ante-sala e dali também se podia pilotar o navio. Quando o cego entrou, Wurzer despediu-se rapidamente.

 - Você veio aqui para me entregar Carducci? - perguntou Teyendorf em tom de sarcasmo amigável. Esperou até que Dabrowski se sentasse de modo cerimonioso como convém a um cego. O Dr. Paterna o treinara nisso dizendo: "Nenhum cego se senta com esse seu desembaraço. Ele sempre toma cuidado, apalpa, desconfia e senta-se somente quando sabe com toda segurança que aquilo é um assento"

 - Senhor comandante, talvez você estivesse dando a liberdade a Carducci. - Dabrowski apoiou-se na bengala branca. Ao fazê-lo, ocorreu-lhe que Teyendorf já sabia não ser ele um cego e que seu comportamento estava sendo ridículo. Colocou os óculos escuros no bolso do paletó e piscou diante da claridade repentina.

 - Eu? Isso é alguma piada de mau gosto, Sr. Dabrowski?

 - O senhor expulsará o Sr. De Angeli do navio, amanhã às oito da manhã.

 - Puxa, é espantoso como funcionam bem os tambores da selva neste navio. Quem lhe contou?

 - Senhor comandante! - Dabrowski deu um sorriso meigo. - Não pode estar esperando que eu lhe diga nomes, não? Suponhamos que De Angeli fosse Carducci... então, teria uma saída magnífica e não precisaria esperar até Sidney. Levaria as jóias para a terra com um truque tão simples como esse. Por favor, é apenas uma suposição. Mas poderia ser a verdade.

 - Você está esquecendo que o Sr. De Angeli estava participando de um passeio em terra, quando as cabinas foram roubadas. Ele não pode dividir-se em dois.

 - Quando ele esteve na ilha de Páscoa?

 - Eu mesmo o vi entrar num autocarro pela manhã.

 - E à tarde?

 - Ainda devia encontrar-se na ilha.

 - Ninguém pode testemunhar tal coisa. E a quem devíamos perguntar? Mas os botes do Atlantis ficaram indo de um lado para o outro, fazendo desembarques o dia inteiro; portanto, teria sido bem fácil para De Angeli retornar ao navio por volta do meio-dia e, em seguida, limpar as cabinas com toda a calma. Os arrombamentos só seriam percebidos à noite, no retorno dos grupos grandes.

 - Seria monstruoso. - Teyendorf ofereceu cigarros e, fumou apressado.

- Mas como você conseguirá provar a culpa do Sr. De Angeli?

 - Não posso fazê-lo a bordo. Mas a polícia de Papeete pode. Eles poderiam realizar uma revista no corpo de François De Angeli e dar uma olhada em sua bagagem. Se ele for Carducci, as jóias estarão com ele.

 - Tentarei fazer com que a prefeitura de Taiti entre nessa. Farei o contato por rádio agora mesmo. Mas e se não for ele?

 - Então seremos obrigados a continuar esperando. Em todo o caso teremos cumprido com nosso dever e uma tal revista não poderá causar nenhum dano a De Angeli. Afinal, ninguém vai ver.

 - E se for ele?

 - Nesse caso, eu também desembarcarei e o acompanharei no voo de volta a Paris. Depois a Interpol assume o comando. Carducci é procurado em sete países. No fundo, devíamos ter um enorme respeito por Carducci; ele é um génio em seu ramo.

 

Herbert Fehringer deu três batidas na porta da cabina, em cuja maçaneta estava pendurado o cartaz "Favor não incomodar". Lá dentro ecoou uma voz de sono:

 - Quem é?

 - Seu irmão mais velho, Hansinho.

 A maçaneta rangeu. Hans Fehringer, de pijama, piscou os olhos para Herbert.

 - Já lhe disse que quero dormir! O que é, hem?

 - Dê uma olhada no relógio, seu dorminhoco. Dentro de meia hora será a segunda rodada de refeição e você vai querer dar seu pulinho à cabina de Sylvia...

 - Meu Deus do céu! - Hans Fehringer ficou completamente desperto. - Vá sozinho ao restaurante, mandarei trazerem algo para mim aqui na cabina.

 - E também não poderá ir até a cabina de Sylvia.

 - Por que não?

 - O marido voltou fresco e alegre ao convés e Sylvia acabou de sussurrar-me bem rápido: "Meu querido, você não poderá ir à tarde." Lógico, o velho estará com ela na cama para tirar a forra de duas semanas.

 - E você é um patife por me dizer isso. Quando penso nisso, nem consigo respirar.

 - Hans, quero falar a sério com você. - Herbert Fehringer trocou a suada camisa pólo por uma havaiana colorida. - Tire as mãos desse negócio!

 - Não posso mais viver sem Sylvia.

 - Idiotice. Quer ficar com Sylvia?

 - Quero.

 - Então ela ficará sabendo os vigaristas que somos comerciantes que vendem carros desmanchados em desastres como se fossem "de primeira mão, sempre guardados em garagem". Está achando que ela ficaria um dia a mais ao seu lado? Você não pode ser tão espectacular assim na cama a ponto de Sylvia estar disposta a renunciar à vida de luxo. Afinal, ela acha que você é um jovem que vaza dinheiro pelo ladrão.

 - Tudo se ajeitará, Herbert. - Hans Fehringer deitara-se de novo e cruzara os braços na nuca. - Você não tem idéia do que as mulheres são capazes de fazer por amor.

 - Mesmo assim... eu não gosto de Sylvia, muito menos como cunhada.

 A última parte da frase foi sincera; ainda estava por vir a grande briga por Sylvia. E a decisão dela: Hans ou Herbert. Quando Herbert Fehringer pensava nisso, a pele de suas costas ficava toda arrepiada.

 Após certificar-se de que não havia nenhum comissário nas proximidades, Herbert desceu o corredor de cabinas em direcção ao restaurante, entrou e respirou aliviado por não ver De Jongh e Sylvia sentados em sua mesa.

Para explicar a aparente pouca vontade de comer por causa do não comparecimento posterior de Hans, ele disse ao comissário de mesa:

 - Não estou passando bem hoje. O estômago. O coquetel de lagosta de ontem à noite... eu simplesmente não suporto, mas mesmo assim estou sempre comendo.

 De qualquer modo, com o estômago estragado, Herbert comeu cinco pratos, mas para os comissários acostumados com o dobro, isso foi mesmo um sinal de mal-estar.

 

 De Jongh não tirou os olhos de cima de Sylvia. A caminho do bufé do almoço, ele constatou que o amante da mulher havia ido embora e, por isso, ao voltar para a espreguiçadeira, fez um desvio passando diante das mesas do bar Atlantis, onde Pflugmair encontrava-se lutando contra uma montanha de almôndegas e batatas. Havia ao lado um copo de meio litro de cerveja que era trocado por um outro a cada meia hora. ,Pflugmair entornava a cerveja da mesma maneira como antigamente as pessoas apagavam incêndios no interior com um balde de água.

 - Você o viu? - perguntou Pflugmair.

 De Jongh, com ambas as mãos segurando pratos, assentiu.

 - E falei com ele, Theo.

 - Plantou-lhe uns pescoções?

 - De jeito nenhum. Ele deve sentir-se bem seguro. Atuarei quando ele não estiver esperando. Que tal se comêssemos juntos hoje à tarde e depois fossemos ao "Festival de Música"?

 - Eu, na sua mesa? Bah, a garota pode ficar de cabeça quente.

 - Não vai coisa nenhuma. Estou vendo na cara dela. Está com medo, com um medo terrível por causa do bode louro dela. E para desviar a atenção de cima dele, é capaz até de engolir à sua presença. No momento, ela anda macia como goma de mascar... só de medo, é o que lhe digo. Essa nunca mais vai dar suas voltinhas.

 De Jongh retornou a Sylvia que o esperava, deu-lhe um dos pratos e sentou-se em sua espreguiçadeira. Começou a comer as almôndegas fazendo barulho.

 - Onde mais você esteve? - perguntou Sylvia. - Você desapareceu de repente.

 - Pflugmair estava sentado numa das mesas do bar Atlantis.

 - Aquele elefante gigante?

 - Eu o convidei para hoje à noite. - De Jongh olhou-a de soslaio.

- Tem algo contra?

 - De jeito nenhum.

 - Mas você não gosta dele.

 - Muitas vezes a gente é obrigada a aturar pessoas que preferíamos mandar para o inferno.

 Tem toda a razão, sua satã, pensou De Jongh amargurado. Entendi a insinuação. Mas antes de eu ir para o inferno, você irá na minha frente. Ninguém se livra de um Knut De Jongh como se ele fosse uma gota de chuva.

 Passaram a tarde inteira no convés, nadaram juntos na piscina, jogaram uma rodada de shovelboard, comeram bolos e beberam café e, depois, foram até o hall do convés principal. Ali se encontravam as butiques de moda e a joalheria. Nas paredes, em enormes vitrinas iluminadas, estavam penduradas as fotos tiradas pelo fotógrafo de bordo nos passeios em terra e nas solenidades no Salão dos Sete Mares. Essas fotos podiam ser encomendadas como lembrança. O negócio ia bem. Nada é mais excitante do que ser fotografado a cores, em roupa de festa ou diante de uma figura de pedra da ilha de Páscoa, dançando a polonesa do baile à fantasia ou apertando a mão do comandante Teyendorf. Homens muito alegres - este é o mel que vicia numa viagem de cruzeiro.

 

 De Jongh parou diante das vitrinas cheias de jóias da joalheria, contemplando as reluzentes peças expostas. Entre elas, havia algumas jóias que faziam o coração bater mais depressa. E tudo livre de ICM; em alto-mar não existem nem aduana nem imposto sobre circulação de mercadorias. Mesmo com os preços um tanto ou quanto elevados, quando se comprava ali, sempre se fazia um bom negócio.

 - Procure algo para você - disse De Jongh de repente.

 - O que quer que eu faça? - perguntou Sylvia perplexa.

 - Você terá tudo que lhe agradar. Está interessada em quê?

 - Em nada.

 - Seria a primeira vez. Você está doente?

 - Não quero mais nenhuma jóia. - Ela encarou-o de frente. - Quanto quer gastar?

 - Isso não é pergunta que se faça. O que você quiser.

 - Posso receber em dinheiro?

 De Jongh ficou calado. Com que então, agora você passou a juntar moedinhas, para não fugir de mim na maior miséria, pensou ele. Um pequeno dote para esse seu bode louro? Será que ele não tem outra coisa a oferecer a não ser sua piroca? Nenhum centavo, minha querida. E as jóias irão para o cofre, você também não poderá servir-se lá.

 - O dinheiro vivo é uma coisa que tem uma aparência detestável, sobretudo quando as notas são amarrotadas. - De Jongh deu uma risada espasmódica e bateu com a ponta do dedo indicador no vidro da vitrina.

- Aqui, esse brinco. Esmeralda e brilhantes. Não são mesmo uma graça? Ficariam uma loucura em suas orelhas: 62 mil marcos. Imagine só sessenta e duas notas de mil marcos... uma pilha bem mesquinha. Mas esse moscão nas suas orelhas... isso é que é luxo. Eu gosto.

 - E por que quer comprá-lo?

 - Por quê? Por nada... porque te amo.

 Sylvia afastou-se da vitrina e seguiu em direcção à butique. De Jongh seguiu-a com os olhos apertados. Ela não demonstrou nenhuma agitação, pensou ele amargurado. Qualquer outra mulher teria ficado radiante. Mas ela segue adiante e me deixa plantado.

 Estava tão desequilibrado que até respirar doía: Respondeu de maneira quase descortês ao cumprimento de um casal que passava e viu Sylvia desaparecer no salão de cabeleireiro, para logo depois tornar a sair.

 - Posso entrar agora mesmo - disse ela apressada. - Só lavar e ir para o secador. Meia hora.... onde nos encontramos de novo?

 - Na cabina. Se eu não estiver por lá, então no bar Atlantis.

 . De Jongh ficou parado na entrada e observou que Sylvia sentara-se de facto e a cabeleireira a envolvera com uma enorme toalha. Agora ela não poderá ir embora, pensou ele satisfeito. Ficarei parado essa meia hora na butique e darei uma olhada nas prateleiras de livros. Ou comprarei cartões-postais; têm alguns do Taiti nos stands giratórios. Poderia também procurar fotos nas vitrinas. Vamos dar um jeito nessa meia hora, sua putinha.

 Você não conseguirá escapar.

 Sylvia esperou que lhe lavassem os cabelos. Depois, pôde observar a entrada da loja através do espelho e ficou aliviada.

 - Podiam conseguir-me um telefone? - perguntou.

 - Mas claro, cara senhora.

 

 O aparelho foi levado até ela e Sylvia discou o número da cabina 213.

 Atendeu a voz de Hans Fehringer.

 - Hans, meu querido - sussurrou Sylvia apressada.

 - Sylvia, meu anjo!

 - Está tudo bem?

 - Tudo. E com você?

 - Vamos ter que passar alguns dias sem nos vermos. E também, onde seria?

 - Não demorarei a ter alguma idéia. O amor dá asas à imaginação.

 - Oh, sinto-me tão mal. - Ela soprou um beijo ao telefone. - Eu te amo loucamente...

 - Não existem palavras para descrever meu amor.

 Sylvia colocou rapidamente o auscultador no gancho, mandou que o aparelho fosse levado embora e fechou os olhos, enquanto o jorro quente do secador agitava seus cabelos negros e sedosos. Quando voltarmos à Alemanha, eu simplesmente fugirei de Knut, pensou. O mundo é bastante grande para encontrarmos um lugar para mim e Hans. E quando eu for embora, Knut não sairá a minha procura, é orgulhoso e indolente demais para isso. Além do que, ele vai economizar dinheiro; não aceitarei nem um centavo mais dele. Afinal, ele não sabe quanto eu guardei, em cinco contas. Não preciso mais de Knut para o resto feliz da minha vida.

 Sylvia ficou pronta em menos de meia hora e tornou a sair no corredor. Recostado numa das vitrinas, De Jongh acenou para ela.

 - Acabei de chegar - gritou ele. - Calculei que você já devia estar pronta. E veja só, acertei. - De Jongh deu uma olhada no enorme relógio de ouro. - Já é hora de trocar de roupa para o jantar e o festival de música. O que acha?

 Sylvia assentiu calada, andou na frente dele, abriu a porta da cabina e jogou a bolsa de banho em cima da cama. Quando Knut quis desatar a parte de cima do biquini, ela se virou como uma cobra e sibilou:

 - Pode deixar!

 - Por favor, por favor... - De Jongh foi sentar-se no banquinho estofado. Suas mãos estavam fechadas em punhos. - Claro que um marido deve ter permissão para ver a própria mulher trocar de par.

 Mas até isso lhe estava vedado. Sylvia trancou-se, tirou o óleo de bronzear do corpo debaixo do chuveiro e quando estava vestida, apareceu de novo. Um vestido de noite coberto de lantejoulas. Sylvia estava irresistível.

 De Jongh também vestiu-se sem dizer uma palavra. Ficou observando-a pelo enorme espelho de parede, enquanto ela retocava a maquilhagem. Estava sentada na cama e, novamente, De Jongh teve a cena diante dos olhos: dois corpos brilhando de suor que, em sua união, nada mais conseguiam ouvir nem ver, absortos do mundo em sua paixão.

 De Jongh trincou os dentes, reprimiu o impulso de arrebentar a cama, foi ao banheiro e fez a barba com o aparelho eléctrico. Encarou-se no espelho, inclinou-se para a frente e disse à sua imagem:

 - Seu perfeito idiota. Por que não a mata? E ao outro também!

 - Que foi que você disse? - gritou Sylvia da cama. - Não entendi nada.

 

 - Eu disse: estou com cara de quem pegou uma insolação! - gritou ele em resposta. - Pelo menos é uma novidade.

 Depois, quando ambos apareceram no restaurante, Sylvia foi seguida pelos olhares de admiração dos homens e de soberba das mulheres. Que sorte tem esse sujeito, pensaram os homens. Esse cara ainda vai passar o diabo nas mãos dessa mulher, pensaram as damas.

 De Jongh empurrou o queixo para a frente. Hans Fehringer já estava sentado em seu lugar, mas não olhou na direcção deles. Erna Schwarme fora desacompanhada; o Dr. Schwarme tivera uma súbita diarreia, tomara alguns comprimidos de carvão e ficara na cabina. Pflugmair avançou com muito esforço pelo outro lado, dirigindo-se à mesa dos Jongh.

 - Ele também vai comer connosco? - perguntou Sylvia cheia de veneno.

 - Eu o convidei. Se ele contar piadas, você vai morrer de rir.

 Foi uma noite bem tranquila. Pflugmair fez força para conversar num espasmódico alto-alemão e para mostrar charme contando piadas dos camponeses de sua terra natal, sendo que na maioria das vezes era ele mesmo quem ria. Mais ou menos a meio do jantar, Hans Fehringer levantou-se e saiu. Iria ocorrer a "troca". como sempre, o irmão Herbert estava esperando no toalete em frente.

 - Queira desculpar-me, preciso dar uma saidinha - disse De Jongh levantando-se com um movimento rápido. - Comporte-se, hem, Theo. Vou deixá-lo sozinho com a minha mulher alguns minutos.

 Deu uma risada e correu para o toalete do lado de fora da porta de vidro, no corredor em frente ao restaurante.

 Hans Fehringer acabara de bater na porta do cubículo e dissera:

 - Recomendo hoje o assado à cigana...

 Nesse momento, De Jongh entrou. Fehringer segurou-a maçaneta da porta e ficou tamborilando com os dedos na madeira. Herbert compreendeu e ficou quieto.

 - Sr. Fehringer - disse De Jongh com toda a calma. - Posso falar-lhe um momentinho?

 - Claro. Mas aqui no mijadouro? Vamos ali para o lado...

 - Vamos sair ao tombadilho. Ninguém nos incomodará a essa hora.

 - Por favor. como queira. - Hans Fehringer afastou-se da porta.

 A situação era crítica. Se alguém o visse acompanhado de Knut De Jongh na escadaria, enquanto ao mesmo tempo Herbert ia jantar no restaurante, a viagem chegaria ao fim para eles. - Mas aguarde só dez minutinhos... tenho um encontro.

 era para Herbert. A frase significava: você pode sair dentro de dez minutos. Aí o perigo já terá passado.

 Os dois saíram do toalete, foram de elevador até o tombadilho e entraram na ante-sala de bombordo. era uma noite esplêndida, suave, iluminada pela lua; o mar parecia banhado em prata, emitindo um brilho de dentro.

 De Jongh olhou à sua volta. Estavam realmente a sós. As pessoas do primeiro horário de refeição já se encontravam no salão à espera do festival de música; o segundo horário ainda estava comendo. Hans Fehringer olhou De Jongh examinando-o.

 - Que posso fazer por você? - perguntou.

 - Tirar suas patas imundas de cima da minha mulher!

 

 - Pensei que você fosse capaz de fazer piadas melhores.

 De Jongh encolheu os ombros. Embora tivesse emagrecido quase cinco quilos durante sua hospitalização, ele ainda parecia largo e taurino diante do magro Fehringer.

 - Não me venha com conversa fiada! Ontem à noite você e minha mulher estavam tão ocupados que nem sequer notaram quando entrei na cabina. Fiquei parado junto à cama um ou dois minutos assistindo à trepada fulgurante de vocês.

 - Isso não é verdade! - Hans Fehringer sentiu o sangue fugir de sua cabeça. - Isso é totalmente impossível!

 - Precisarei repetir-lhe tudo que Sylvia murmurou? "Oh, meu tesouro", até "Vou perder os sentidos. Segure-me, segure-me... estou morrendo..." - De Jongh aproximou-se ainda mais de Fehringer. - Seu maldito filho da puta!

 - Eu amo sua mulher. Nós nos amamos! - Fehringer respirou fundo. - Agora eu posso dizer: Sylvia vai separar-se de você e virá comigo. Só que até agora não teve coragem de lhe dizer.

 - Mas você é corajoso, não é mesmo, seu herói da piroca?! Sylvia irá junto... ela irá para o inferno!

 De Jongh apertou os lábios. De repente, sem nenhum aviso prévio, seu punho foi lançado à frente, aquele punho de ferreiro acostumado aos martelos pesados, e chocou-se com o queixo de Fehringer. Ele recuou cambaleando de braços abertos, bateu na amurada, tentou agarrar-se, mas sentia-se terrivelmente mal, quis vomitar, curvou-se sobre o corrimão e perdeu o equilíbrio.

 Muito espantado, De Jongh viu o corpo de Fehringer virar-se sobre a amurada e mergulhar nas profundezas.

 - Fique aqui! - foi o berro sem nenhum sentido de Knut De Jongh.

- O que você está fazendo?

 Correu até a amurada, curvou-se e olhou para o mar de brilho prateado. Viu quando a cabeça de Fehringer emergiu entre as ondas, viu seus braços esticados no ar, pensou ter ouvido seus gritos... até ser empurrado pelas ondas espumantes provocadas pela hélice, entrar na arrebentação e ser pressionado para debaixo d'água.

 Horrorizado, De Jongh pousou a testa no peitoril da amurada e fechou os olhos. Eu não queria isso, foi o grito de seu íntimo. Isso não! Não, realmente não. Mas quem irá acreditar em mim? Não tenho testemunhas. Ninguém viu o que aconteceu. E Sylvia declarará: "Sim, meu marido é violento, acho que seria capaz de cometer esse assassinato!" É o fim. Meu Deus, que devo fazer?

 De Jongh levantou a cabeça, tornou a olhar para o mar, mas já não se via mais nada de Fehringer. Um calafrio percorreu seu corpo, seus nervos vibraram, De Jongh respirou fundo e depois andou cambaleando até um dos bancos. Eu não queria isso, era o pensamento que lhe voltava repetidas vezes. Não, eu não queria isso. Esse maldito punho de ferreiro. Foi um acidente, creiam-me. Não o atirei ao mar, nem cheguei a tocá-lo. Apenas meu punho, apenas um directo no queixo... quem poderia adivinhar que ele fosse cair por cima da amurada?! Eu não queria matá-lo, não, juro. A gente vive falando: eu te mato... mas daí a matar? Eu não seria capaz. Nunca! Jamais!

 

 No toalete, Herbert Fehringer deu uma olhada no relógio. Passaram-se dez minutos... dar o fora e ir sentar à mesa... assado à cigana... espero que seja bem condimentado e com muitos pedacinhos de pimentão.

 Herbert saiu do cubículo do W.C., deu uma outra olhada no espelho e depois saiu do restaurante. Sem olhar para o lado, passou pela mesa dos De Jongh, sentou-se e acenou para o comissário. Este, como sempre, apenas balançou a cabeça. Pelos vistos, passara rapidamente a indisposição gástrica. O jantar inteiro, outra vez. Esse sujeito era um verdadeiro fenómeno em termos de apetite.

 - Sujeito chique - disse Pflugmair espiando.

 - Quem? - disse Sylvia de modo bem discreto.

 - O louro lá.

 - Você acha?

 - Se eu fosse mulher... Ah, já vem o Knut!

 Com os olhos fundos, pálido e passos pesados, Knut De Jongh entrou no restaurante. Parou e fitou Sylvia ao chegar à mesa, mas foi como se estivesse olhando através dela.

 - O que você tem? - perguntou ela. - Não está passando bem?

 - Gostaria de voltar à cabina. - De Jongh passou a mão pelo rosto. - Quero ficar sozinho

 De Jongh virou-se e seu olhar caiu em Fehringer. Este estava sentado dando prazerosas colheradas na sopa de creme de cogumelos.

 De Jongh soltou um grito desarticulado, agonizante, como que desumano. Jogou os braços para cima, recostou-se na balaustrada e tremeu como que num espasmo febril.

 - Não! - gritou depois. - Não! Ele está morto! Claro que está morto! Eu mesmo vi... eu mesmo vi...

O Dr. Paterna, sentado não muito longe deles na mesa de Bárbara, correu em sua direcção. Segurou-o, detendo De Jongh que queria Investir contra a mesa de Fehringer. Com o rosto contorcido pela tensão, Herbert Fehringer depositou a colher no prato e enrijeceu os músculos.

 Ah, irmão, o que você andou aprontando no tombadilho?! O que irei dizer quando me perguntarem?

 O Dr. Paterna, o comissário-chefe Pfannenstiel e dois comissários tiveram trabalho para segurar De Jongh. Ele estava furioso, saía espuma de sua boca, seus gritos transformaram-se em sons indefiníveis e diversos. Os passageiros correram para todos os lados. O comandante Teyendorf também se aproximou, ao passo que os dois cavalheiros da direcção permaneciam na mesa da comandância com suas chocadas mulheres, em disciplina hanseática.

 - Doutor, leve-o embora! - disse Teyendorf consternado. - Essa cena não é tão bonita assim, sobretudo durante o jantar!

 Finalmente, quatro homens conseguiram retirar De Jongh do restaurante, usando de grosseira violência. Pflugmair ficou sentado à mesa impassível e enxugou o suor da testa com um guardanapo.

 - Ele tem esses ataques com frequência? - balbuciou ele.

 - Não. - Nem mesmo a maquilhagem conseguia dissimular a palidez de Sylvia. era como se jamais tivesse tomado banho de sol. - Foi a primeira vez.

 - Afinal, o que foi que ele teve?

 - Não sei. - Ela se levantou e saiu correndo do restaurante. O comandante Teyendorf estava parado diante do elevador, com o qual de Jongh fora levado ao hospital e, nesse momento, foi até Sylvia que ficara parada na frente do segundo elevador.

 

 - Sei como tudo isso é doloroso - disse ele com ar simpático. - A senhora tem alguma explicação para isso?

 - Não.

 - Parece que foi um colapso nervoso total.

 - Não sei. Não tenho nenhuma explicação. O elevador chegou, a porta se abriu. - Talvez o Dr. Paterna possa explicar.

 Sylvia ficou contente quando a porta do elevador tornou a se fechar e a cabina começou a descer.

 Nesse momento, o Dr. Schwarme descia espavorido pela enorme escadaria. Estava ofegante, trazia o roupão de banho por cima do pijama e dava a impressão de estar totalmente transtornado.

 - Senhor comandante! - gritou ao ver Teyendorf. - Senhor comandante. - Segurou-se no corrimão e respirou ofegante. - Estou na cabina 018! Com janela para o tombadilho. E estava sentado junto à janela olhando para o mar... horrível, horrível. Eu presenciei um assassinato... O Sr. De Jongh matou o Sr. Fehringer. Ele atirou-o ao mar! Eu fui testemunha...

 - Deve ser alguma coisa que há no mar! - disse Teyendorf em voz alta. - De repente, todo mundo ficou histérico.

 - Ele deu-lhe um soco jogando-o ao mar!

 Teyendorf avançou, abriu a porta de vidro do restaurante e apontou para a mesa onde Fehringer terminava de tomar a sopa de creme de cogumelos. O Dr. Schwarme arregalou os olhos, viu-se obrigado a apoiar-se em Teyendorf por causa de um súbito acesso de fraqueza e reprimiu as ânsias de vómito.

 - E quem está sentado lá? - perguntou Teyendorf.

 - Fehringer... - o Dr. Schwarme respirou aos estertores. - Mas eu vi com meus próprios olhos... ele passou por cima da amurada e caiu no mar... Com meus próprios olhos...

 - Mas ele está sentado ali bebendo vinho tinto.

 - Isso é impossível!

 - Vá até lá e toque-o.

 - Senhor comandante! - o Dr. Schwarme deu outra olhada em Herbert Fehringer e depois virou-se. - Claro que não estou maluco, não?

 - Não me atrevo a decidir sobre isso. Acabamos de levar o Sr. De Jongh para o hospital; ele ficou totalmente pirado.

 - Mas foi o que eu disse: ele jogou Fehringer ao mar!

 - Mas o Sr. Fehringer está sentado lá na mesa e acaba de ser servido com assado à cigana.

 O Dr. Schwarme balançou a cabeça várias vezes e estreitou o roupão de banho como se estivesse com frio.

 - Não tenho nenhuma explicação para isso - disse cansado. - isso é incompreensível para mim. Eu mesmo vi, com meus próprios olhos... Estava sentado junto à janela e vi tudo... Esse tipo de coisa não existe! Jogado ao mar e, cinco minutos depois, está bem seco divertindo-se à mesa. Será que estou tendo alucinações?

 - Você devia conversar sobre isso com o Dr. Paterna, Sr. Schwarme. - Teyendorf estava saturado de lidar com homens histéricos. - Queira desculpar-me. Meus convidados estão à minha espera.

 O Dr. Schwarme assentiu, recostou-se na parede e sentiu-se terrivelmente miserável. Não pode ter sido provocado pela diarreia, pensou ele. Tão-pouco pelos comprimidos que tomei. Eram inofensivos comprimidos de carvão.

 

 Balançou a cabeça, levantou-se apoiado no corrimão e retornou à cabina. Ao chegar ali, sentou-se junto à janela na escuridão e ficou de olhos fixos no lugar onde Fehringer deslizara por cima da amurada caindo ao mar.

 No hospital, haviam conseguido dar duas injecções de tranquilizante em De Jongh. Pfannenstiel e os dois comissários foram obrigados a segurar o furioso paciente. Nesse momento, ele estava deitado apático na cama, o olhar fixo, as pupilas dilatadas, sem reagir a nenhum estímulo. O Dr. Paterna puxou Sylvia de lado e disse com ar bem sério:

 - Seu marido perdeu a razão - disse com toda franqueza. - Deve ter sido algum choque que provocou o colapso. Eu o tranquilizei, mas ninguém sabe prever como será amanhã. Sabe se hoje seu marido teve alguma carga emocional especialmente séria?

 - Não. Não saberia dizer. - Sylvia olhou na direcção do inerte De Jongh. - Pelo contrário, ele estava muito divertido hoje. Estava até querendo comprar uns brincos para mim. Será que isso não pode ter relação com as facadas?

 - Não. - O Dr. Paterna recordou-se da noite anterior. "Você está muito diferente hoje", ele dissera a De Jongh. Foi por volta da uma da madrugada. Chamara-lhe a atenção uma espécie de rigidez interior, um vazio transmitido por seu olhar. Teria sido isso o início da loucura? E que significaria aquele grito: claro que ele está morto!... Quem estava morto? O que se quebrara no íntimo de Knut De Jongh? - Quer ficar aqui ao lado de seu marido? - perguntou o Dr. Paterna.

 - Não, por favor, não. - Sua voz tornara-se miúda e infantil. - Tenho medo.

 - Compreendo seus sentimentos. Quer um comprimido para dormir?

 - Não, obrigada. De qualquer modo eu não conseguiria dormir.

 Sylvia foi ao convés superior e abriu a porta da cabina. O abajur da mesinha-de-cabeceira estava aceso... Herbert Fehringer já estava à sua espera.

 

As sete em ponto da manhã, o Atlantis aproximou-se lentamente do píer de Papeete. O sol já ostentava toda a sua força, nas montanhas o orvalho da noite secava e no céu a ondulante neblina diáfana dissolvia-se no calor.

 Autocarros e táxis aguardavam no cais. Vendedores montavam suas barracas: correntes de conchas, caixas de madrepérola, tecidos de padrões coloridos, esculturas, camisas e calças em todas as cores, adornos de coral, imitações de lanças, clavas de guerra e tambores. Os souvernirs valiosos estavam na fileira de lojas das ruas: jóias de ouro, pérolas e, sobretudo, as famosas pérolas negras do Taiti, tremendamente caras. Negras iluminadas por um mágico brilho cinzento. Como de hábito, o próprio Teyendorf pilotava seu barco na aproximação do cais. Com uma exactidão de centímetros, ele lançava o navio para perto do muro. Parecia fácil a maneira como ele, com uma pequena alavanca, operava o remo lateral até que, de repente, as máquinas se calavam quando o corpo gigantesco tocava a defessa.

 Os encarregados da aduana já se encontravam aguardando diante de dois carros escuros pela libertação do navio, assim como também, outros senhores que de longe pareciam funcionários públicos. Dera certo a ligação por rádio. François De Angeli ia ser levado.

 Teyendorf respirou aliviado. Correu para a trincheira da ponte e olhou para a cidade já movimentada. O comandante adorava Papeete - não por ter-se tornado a essência dos encantos dos mares do Sul, o savoir vive mais completo, mas sim por causa de uma praia solitária e perdida; sabia que estaria sozinho ali e que poderia nadar no oceano quente, sem que ninguém gritasse: "Venham cá! Nosso comandante está pelado!" Nas proximidades da praia, ele sempre visitava um restaurante de peixe dos nativos, que fritavam a pesca fresca no espeto de madeira em fogo aberto, como há séculos.

 O oficial da guarda dera seu relatório por volta das seis horas: nenhum acontecimento especial a bordo. A maioria dos passageiros fora cedo para a cama, a fim de estar acordada para o Taiti.

 - Ora, finalmente! - dissera Teyendorf após receber a comunicação. - Até que enfim uma noite na qual ninguém fica pirado...

 Meia hora depois, contudo, Teyendorf iria ficar sabendo que teria de abrir mão de seu passeio à pequena praia na enseada.

 

 Eram cerca de duas da madrugada, quando Paolo Carducci deu início ao seu grande ataque. De pijama azul-marinho e ténis azul-marinho, que o faziam andar sem ser ouvido, nas mãos as luvas de pelica, levando na esquerda um pequeno objecto alongado com aparência de minipulverizador, ele saiu de sua cabina, aguardou à espreita no marco da porta qual animal intimidado e, em seguida, deu dois passos longos para o lado. Exactamente dois passos. Sem nenhuma pressa, retirou uma chave do bolso do pijama, abriu a porta da cabina 170 sem fazer nenhum barulho, desapareceu na penumbra, parou diante da cama, ergueu o pulverizador e, com quatro pequenos, porém, potentes jorros, borrifou o rosto da mulher que dormia. Com a mesma rapidez, tornou a deslizar para perto da porta e começou a contar em silêncio. Ao chegar a vinte, retornou à cabina e acendeu a lâmpada da mesinha-de-cabeceira. Erika Treibel estava deitada de costas na cama, respirando com regularidade. Ninguém poderia ver que ela acabara de receber um jorro de gás narcotizante e que não despertaria na próxima hora. Depois, quando saísse da cama no dia seguinte, claro que

sentiria uma leve dor de cabeça, mas fora isso não apresentaria nenhum efeito colateral. Carducci descobrira esse "Gás Ko" na América e chamara-o de invenção divina, uma das maiores descobertas depois da fissão atómica. O gás facilitava enormemente sua actividade, reduzindo os riscos ao nível quase zero.

 Carducci sabia muito bem o que queria. Erika Treibel sempre levava a chave da joalheria numa fina correntinha de ouro no pescoço. Assim, a tal chave ficava entre seus seios, de um modo seguro e - de passagem - dava um efeito muito decorativo. "Aqui ninguém poderá roubar-me", dissera Erika um dia para seu chefe Heinrich Ried. "Ninguém pode botar a mão aqui sem ser notado."

 Carducci, espantado ao descobrir esse "cofre", comportou-se também nessa situação como um verdadeiro cavalheiro. Descobriu Erika Treibel, abriu um pouco o decote de sua camisola e puxou a correntinha. A chave deslizou saindo dos seios e indo parar no pescoço. Com todo cuidado, Carducci pôs a mão na nuca de Erika, levantou-lhe a cabeça um pouco e puxou a correntinha por cima da cabeça. Cauteloso, tornou a cobri-la, apagou a lâmpada e esgueirou-se para fora da cabina.

 Mais uma vez, Carducci olhou à espreita para todos os lados e, em seguida, percorreu os poucos passos até a loja de jóias situada em frente. A ronda nocturna, encarregada de acertar um relógio de controle em cada corredor, havia passado quinze minutos antes; portanto, havia poucas possibilidades de que alguém incomodasse àquela hora.

 Sem nenhuma pressa, Carducci abriu a joalheria, retirou de sob o paletó do pijama uma bolsa de plástico com o logotipo de um negócio de couro de Lima e começou a esvaziar as vitrinas. Bastava-lhe a luz mortiça da iluminação nocturna; inclusive, no início, ele achara-a clara demais. Mas agora, quando devia lidar com as diferentes gavetas usando sua ferramenta especial, uma espécie de combinação de chave-de-parafuso-gazua-espátula, até que a iluminação lhe era útil. Carducci ajoelhou-se e desapareceu dos olhares de eventuais retardatários que aparecessem a caminho de suas cabinas.

 Não tocou no cofre. Os cofres não eram seu estilo; havia especialistas que com um estetoscópio auscultavam a porta de um cofre como se fosse um tórax, conseguindo reproduzir o leve estalido da série de números. Carducci não perdia tempo com isso; ele simplesmente fazia a limpeza. Afinal, os milhões estavam mesmo por lá, só se precisava saber o momento certo de agir. Também esvaziou as gavetas na bolsa de plástico; acto contínuo, fechou a porta atrás de si e, com poucos passos, tornou a entrar na cabina de Erika Treibel. Descobriu-a mais uma vez, colocou-lhe a correntinha em volta do pescoço, endireitou-a e enfiou a chave entre seus seios.

 

 O retorno à sua cabina não apresentou maiores problemas; dois passos à esquerda. Respirando aliviado, Carducci trancou sua porta, sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Como de costume, somente então seus nervos fizeram-se notar, quando tudo estava acabado. Mas foram apenas por alguns momentos, até acalmar-se e ir colocar a bolsa de plástico na prateleira superior do armário de roupa, debaixo de um pulóver branco de gola rulé e de uma bermuda amarela-clara.

 Deitou-se como se tivesse levantado para dar um pulinho no banheiro, virou para o lado esquerdo, fechou os olhos e logo adormeceu. Os seres humanos satisfeitos têm sono saudável. E Carducci podia sentir-se satisfeito consigo mesmo; não é todo mundo que consegue ganhar uma fortuna de milhões em exactos dezanove minutos.

 às sete e meia da manhã, Erika Treibel saiu de sua cabina, um pouco mal-humorada por estar sentindo dores nas têmporas e por suas pernas estarem um tanto pesadas. Havia tomado três coquetéis desconhecidos na noite anterior, como convidada de Theo Pflugmair que tentara sufocar com álcool a terrível experiência que tivera com seu amigo Knut de Jongh. O barman do Clube do Pescador ainda dissera: "Garota, esse negócio tem veneno!" E Erika atribuía seu mal-estar a essa bebida.

 Após dar dois passos na direcção da joalheria, Erika Treibel parou como que paralisada e abriu a boca sem que nenhum som saísse dela. Mas em seguida, desprendeu-se todo seu horror, ela correu como louca até à sua loja, viu as vitrinas vazias, virou-se e desceu o corredor a toda velocidade. Bateu com ambos os punhos na porta da cabina 136. Dabrowski abriu e Erika Treibel quase que caiu em seus braços. Somente então recuperou a fala; ela abraçou o detective e gritou:

 - Sumiu tudo! Tudo! A loja inteira está vazia...

 Dabrowski precisou de alguns segundos para compreender Erika. Depois empurrou a chorosa Erika em direcção à sua cama. Ela cobriu o rosto com as mãos e deu outro uivo alto.

 - Vá dar uma olhada... não tem mais nada nas vitrinas! Vazias, está tudo vazio...

 Dabrowski saiu correndo da cabina e, já à distância, viu as vitrinas peladas, tirou um lenço do bolso para tocar na maçaneta, mas a porta estava fechada. Nenhum indício de arrombamento, nenhum dano, mas as jóias haviam desaparecido e, pela porta de vidro, Dabrowski viu que as gavetas estavam abertas e que haviam sido esvaziadas.

 O comandante Teyendorf encontrava-se na cabina da ponte, quando o telefone tocou ao seu lado. Ele atendeu de má vontade; os funcionários franceses já haviam subido a bordo e se distribuído: para o director de hotel Riemke, na comissária, e para Kempen, o primeiro-oficial que os acompanhava na inspecção do navio.

 - Você, Dabrowski? - disse Teyendorf. - Antes que você pergunte: sim deu certo. Os funcionários da prefeitura estão esperando o Sr. De Angeli. Ele e a bagagem serão revistados. Satisfeito?... Qual é o problema?... A loja da joalheria? Hoje à noite?... Agora você só poderá pedir socorro a Deus!

 Pouco antes das oito, as pessoas que iriam a terra já se aglomeravam como turba maciça e barulhenta diante da saída do convés Pacífico. Alguns passageiros haviam tomado o desjejum às seis horas, a fim de poder conquistar a porta a tempo, postando-se o mais próximo dela possível.

 Podia-se denominar isso de uma espécie de variedade de ímpeto desportista.

 

 Teyendorf, Dabrowski, o director de cruzeiro Manni Flesch, a uivante Erika Treibel e Beate Schlichter ficaram parados diante da porta fechada da butique de jóias olhando para as vitrinas vazias e as gavetas abertas. Teyendorf deu um solavanco na porta de vidro.

 - Fechada!

 - Eu já havia dito. - De repente, Dabrowski pareceu um tanto ou quanto compungido. - Fechada. Em nenhuma parte foi usada violência.

 - Mas mesmo assim...

 - Como o senhor vê, comandante.

 - Genial! - o escárnio de Teyendorf era cáustico. - Você tem razão, seu Carducci é um génio. Foi um trabalho de mestre.

 Dabrowski baixou a cabeça.

 - Erika, abra a porta - disse com voz roufenha.

 Erika Treibel pegou a chave da correntinha de ouro e abriu a porta.

 Dabrowski e Teyendorf viram espantados onde era o esconderijo da chave.

 - Você sempre leva a chave no pescoço? - perguntou Dabrowski desconcertado.

 - Sim. Dia e noite. Ninguém bota as mãos nela.

 - E não existe uma segunda chave?

 - Existe sim. No cofre do Sr. Riemke.

 - Não precisamos inspeccionar-lá, o cofre é à prova de bomba. - Teyendorf entrou na loja. Gavetas vazias, vitrinas vazias, um balcão de vidro vazio e as prateleiras vazias, nas quais estavam expostas as valiosas correntes de coral. - Ele deve ter usado uma gazua.

 - Impossível. Essa é uma fechadura de segurança, da qual não se pode fazer molde com cera. Só pode ser aberta com a chave original e esta repousa nos seios de Erika. - Dabrowski curvou-se sobre as gavetas. - Um leve apoio, clique... Carducci faz isso com uma velocidade de segundos. Não adianta esperar encontrar impressões digitais; ele usa luvas de pelica. - O detective levantou-se e virou-se para Erika Treibel, sentada chorando num banquinho de veludo vermelho. - Onde você esteve ontem à noite?

 - Primeiro com o Sr. Pflugmair no Clube do Pescador, depois fui para a cama.

 - Sozinha?

 Erika soluçou alto.

 - Claro! O que você acha que sou?

 - E depois?

 - Fui às sete e meia para a loja. Devo estar presente quando a aduana francesa lacra a porta.

 - Não vai ser preciso mais. - O sarcasmo de Teyendorf era mortal.

- Não tem mais nada para vender.

 Trata-se de uma prescrição internacional. Nos portos, as lojas de bordo devem permanecer fechadas, sobretudo as joalherias. A porta era lacrada por uma autoridade e depois liberada pouco antes de o navio zarpar.

 - E você não notou coisa alguma durante a noite?

 - Absolutamente nada. Dormi um sono profundo. - Erika Treibel pressionou ambas as mãos contra as têmporas. Seu corpo ainda era sacudido por soluços aumentando a dor de cabeça. - Estou com uma tremenda ressaca. Bobby fez três coquetéis para mim, que acabaram me fazendo mal.

 Dabrowski encarou-a como que electrizado.

 

 - Quem estava com você? - gritou ele.

 - O Sr. Pflugmair, eu já disse.

 - Mais ninguém fora ele?

 - Não.

 - Pflugmair? - Teyendorf balançou a cabeça. - Idiotice! Não tente morder Pflugmair, Sr. Dabrowski. O cara fede a dinheiro e é honesto como um monge trapista. Eu ponho a mão no fogo por ele.

 - Eu me sentiria melhor se soubesse como Carducci entrou por essa porta, sem gazua, sem arrombar - disse Dabrowski resignado.

 - Talvez o cara seja tão génio que consiga transformar-se em gás, como o génio da lâmpada mágica de Aladim. Aí então ele passaria pelo buraco da fechadura.

 - Gás! - Dabrowski encarou com olhos arregalados o comandante Teyendorf. As abas de seu nariz alargaram-se. O sarcasmo de Teyendorf atingira-o como um raio. - Gás! isso! Senhor comandante... o senhor é um génio!

 - Não estou entendendo uma palavra! - Teyendorf respondeu ao olhar de Dabrowski, que brilhava de alegria. - Afinal, Carducci não é nenhum génio da lâmpada...

 - Não, mas leva nas mãos o frasco de gás!

 - Você pirou?

 Dabrowski recostou-se no balcão de vidro vazio e acariciou os cabelos de Erika Treibel. Lá fora, os passageiros passavam apressados pelo corredor dirigindo-se à enorme escadaria. Dentro de alguns minutos, a escada seria liberada, o encanto do Taiti seria conquistado. Dabrowski não via mais razão para bancar o cego. Agora, sem óculos escuros nem bengala branca, ele seria uma pequena sensação a bordo, mas os passageiros que passavam apressados não tinham tempo para olhar. Assim, pela manhã, muitas pessoas haviam passado pela joalheria, viram as vitrinas vazias, mas só conseguiram pensar que estavam mudando a decoração. E que outra coisa poderiam ter pensado?

 - A ressaca de Erika Treibel não foi provocada pelos coquetéis, mas sim por um gás que foi borrifado nela - disse Dabrowski. - Um gás de nervos que anestesia por um certo tempo, exercendo um efeito paralisante.

 - Agora, finalmente temos um romance policial americano. - Teyendorf balançou a cabeça com toda energia. - Só que é uma chanchada, Sr. Dabrowski?

 - Mas é a pura verdade. E o senhor tem razão, o gás vem da América. Foi usado pela primeira vez, em grande quantidade, por ladrões de combóios italianos. Nos trechos de Milão-Roma e Roma-Nápoles, os passageiros foram narcotizados com o spray nas cabinas e depois roubados. Acho que vocês leram isso nos jornais. - Dabrowski respirou fundo. - E Carducci é italiano! Só existe uma explicação para o nosso caso:

ele entrou de madrugada na cabina de Erika, borrifou-a com o gás, tirou-lhe a correntinha com a chave e, então, foi roubar a loja com toda a calma, levou a corrente de volta e tornou a pendurá-la no pescoço da Senhorita Treibel. Um passeio que rendeu milhões.

 - Nesse caso... nesse caso ele pôs a mão nos meus seios... - gaguejou Erika Treibel.

 - Um sinal de que Carducci é um cavalheiro. - Dabrowski ostentou um rápido sorriso. - Ele não se aproveitou de sua situação, apenas pegou as jóias. Uma conduta assim é rara.

 

 - Olha, se você cantar uma hosana para ele, eu enlouqueço! - Teyendorf saiu da loja furioso. Ao chegar lá fora, tornou a virar-se para Dabrowski: - Se as suas suspeitas forem verdadeiras, agora o Sr. De Angeli terá todas as jóias consigo.

 - E deve ter mesmo, senhor comandante.

 - E se não tiver?

 - Então não será ele Paolo Carducci.

 - Poucas vezes na vida escutei uma resposta tão imbecil. Nos filmes americanos, a coisa é diferente.

 - Neles, os personagens atiram, correm pelos telhados, correm de carro pela cidade e usam metralhadoras. Senhor comandante, consegue imaginar Carducci escalando sua chaminé? E então? A realidade é muito mais tranquila e elegante. Primeiro, eu vou ter uma conversa com o Sr. Pflugmair.

 Pflugmair estava no restaurante, sentado diante de um prato de ovos estrelados com toucinho, tomando o desjejum. Levantou a vista quando Dabrowski e Teyendorf aproximaram-se de sua mesa e fez um movimento de mão convidativo. .

 - Muito simpático os senhores me fazerem companhia. - Engoliu meio ovo estrelado quase sem mastigar. - Hoje de manhã estou sem fome nenhuma. Já dei um pulinho no hospital. Não mudou coisa nenhuma. É como uma boneca de cera.

 Teyendorf e Dabrowski sentaram-se e esperaram até que Pflugmair devorasse outro imenso pedaço. Foi somente então que ele notou que Dabrowski não estava usando óculos e que chegara sem o auxílio da bengala de cego.

 - Você esqueceu seus óculos - disse ele. Seu olhar percorreu o rosto de Dabrowski. - Sabe, não dá para ver que você é cego...

 - Agora preste atenção, Sr. Pflugmair - Dabrowski recostou-se na cadeira. - Você está usando uma calça azul-clara, uma camisa colorida, com uma palmeira inclinada impressa nas costas. Está comendo ovo estrelado com toucinho e foi no bufé pegar presunto de Parma, chouriço de fígado à moda do interior e quatro fatias de queijo holandês.

Como acompanhamento, três pãezinhos.

 - Assim você me derruba da cadeira! - Pflugmair desviou o olhar para Teyendorf. - Existe isso, senhor comandante? Um cego visionário?

 - E que visão o Sr. Dabrowski tem! Ele não é cego coisa nenhuma.

 - Não é cego? Vai ter que atestar... - Pflugmair esqueceu-se por completo da comida, coisa que demonstrou o alto grau de seu espanto.

 - Explicarei tudo mais tarde. Agora só quero fazer algumas perguntas. Você esteve ontem à noite no bar com a Senhorita Treibel?

 - Estive. Tinha que virar umas canas pra sufocar meu desgosto. Uma desgraça daquelas... meu amigo Knut ficou pirado! O único prusso de quem eu gostava... - Pflugmair deu um soco na mesa. - E quem é a culpada? Aquela mulher, uma puta, a maldita. Estava fodendo por aí com Fehringer... o cara continua vivinho, mas o meu chapa do peito, meu bom Knut, ficou piradão... Aí eu tive que encher a cara!

 - Quem mais estava no bar? - perguntou Dabrowski. Nesse momento, a tragédia conjugal de Knut De Jongh era coisa de segunda ordem.

 

 - Estava cheio. Mas depois eu fui o último.

 - Quando foi isso?

 - Aí por volta da uma hora, acho. Então, subi até o convés superior para dar outra espiada na porta dela.

 - Na porta de quem?

 - Daquela puta, eu já disse... - Pflugmair limpou a gordura da boca com o guardanapo. - Tinha também um bêbado. O cara estava andando por aí com um pijama azul. Parou na frente da joalheria e ficou embasbacado. - Uma da madrugada!

 A cabeça de Dabrowski voou na direcção de Teyendorf. Este também compreendeu na mesma hora e respirou fundo. Dois segundos de silêncio e de tensão angustiante.

 - O outro bêbado também viu o senhor? - perguntou Teyendorf antes de Dabrowski.

 - Necas. Afinal, eu estava na porta da marafona. Aí eu subi e quando saí de novo, o cara já tinha voltado para a sua cabina.

 - E como era esse cavalheiro bêbado?

 - Saca, ficar olhando brilhantes à uma da madrugada! - Pflugmair bateu com a ponta do indicador na têmpora. - De pijama! Só podia ser um bêbado...

 - Em que cabina ele desapareceu?

 - Bem ao lado. Uma dessas individuais...

 - É onde vive Erika Treibel - disse Dabrowski tenso. - Número 170. E ao lado é a cabina individual número 168. A 166 já é uma cabina dupla. Quem habita a cabina 168?

 Ficaram sabendo cinco minutos depois. Pasmo, Dabrowski fitou o bilhete que o comissário lhe trouxera. Teyendorf também fez cara de desconcertado. Pflugmair deu uma mordida no pãozinho com presunto de parma.

 - Tem certeza disso, Sr. Pflugmair? - perguntou Dabrowski pondo o bilhete no bolso. - Tem certeza de que era a cabina individual ao lado da joalheria?

 - Olha aqui, mesmo quando estou de porre, tenho bons olhos... Tem algum problema?

 - Nada especial. - Teyendorf e Dabrowski levantaram-se. - No mais, tenha um bom apetite e um óptimo dia. O senhor também irá a terra?

 - Ainda não sei. Já estive quatro vezes em Papeete e duas dando uma sacada nos borrões do Gauguin... Uma vez, no jardim zoológico, quase que um coco rachou minha cuca. Caiu a cinco centímetros de mim como uma bomba... - ele apontou para a mesa abarrotada. - Como querem comer, meus senhores?

 - Obrigado. - Dabrowski deu um tapinha jovial no ombro largo de Pflugmair. - Divirta-se... e tome cuidado com os cocos!

 Lá fora, no hall, Dabrowski tornou a balançar a cabeça. Retirou o bilhete do bolso e deu outra olhada no número da cabina.

 - Dá para acreditar, senhor comandante? - perguntou ele.

 - Não. Trate de ser cuidadoso e discreto quando chamar esse cavalheiro. - Teyendorf e Dabrowski subiram a escada para o convés superior. Pararam diante da joalheria vazia e olharam para a porta da cabina 168.

 - Não poderia ficar mais próximo e confortável - disse Dabrowski. A chave, ao lado, na cabina de Erika Treibel, a presa bem em frente... só a alguns passos de um lado para o outro. incrível.

 

 Teyendorf encolheu os ombros, foi ao corredor e acenou chamando o comissário de cabina, que arrumava o primeiro quarto de seu sector, procedendo à mudança da roupa de cama.

 - Sim, senhor comandante? - disse em posição de sentido ao parar diante de Teyendorf.

 - Onde está o cavalheiro da 168?

 O comissário apontou para o cartaz ao lado da porta, que qualquer passageiro podia virar. O cartaz anunciava: "Em terra."

 - Ele desembarcou, senhor comandante.

 - Você o viu?

 - Não, senhor comandante.

 Teyendorf aproximou-se, bateu na porta e pressionou a maçaneta para baixo.

 A porta estava fechada.

 - Trancada! - disse Teyendorf em tom duro.

 O comissário enfiou sua chave geral na fechadura e, então, abriu a porta. A cabina estava vazia. Pairava no ar o cheiro de um perfume de homens, caro, de aroma acre.

 - É verdade. Em terra, senhor comandante.

 - Obrigado. Não preciso mais de você. E se alguém perguntar, não quero ser incomodado na próxima meia hora.

 - Sim, senhor comandante.

 Teyendorf e Dabrowski entraram na cabina e fecharam a porta. O homem que a habitava estava acostumado ao luxo. Robe de seda; num cabide, um terno tropical branco de seda natural; nos armários que Dabrowski abria nesse momento, somente selectos ternos feitos sob medida, pulóveres de cashmere, camisas cortadas sob medida, as gravatas mais caras, sapatos da última moda.

 - Aqui, nós estamos no lugar errado - disse Teyendorf compungido.

 - Espere só! - Dabrowski revirou os armários e, então, deparou com uma bolsa de plástico na prateleira superior, tirou-a debaixo do pulóver, balançou-a na mão e, em seguida, despejou seu conteúdo em cima da cama desarrumada.

 Saiu um pequeno monte de correntes, anéis, pingentes, broches, brincos, relógios de ouro, brilhantes e pedras preciosas soltos, pulseiras e colares, tudo cintilando em todas as cores.

 - É essa a aparência que mais de três milhões têm, senhor comandante! - disse Dabrowski. - Ou mesmo quatro. Erika ainda está fazendo o balanço.

 - Quem poderia imaginar que ele fosse capaz disso?! - Teyendorf pegou um anel e levou-o à luz do sol. O brilho era como que de fogo frio.

 - Três quilates - disse Dabrowski. - Sem impurezas. Lapidação do melhor corte...

 - Quanto custa uma coisa assim?

 - Por volta de 120 mil.

 - Metade do preço de uma casa!

 - Bem, os caras que compram essas coisas já possuem suas mansões.

- Dabrowski tornou a enfiar as jóias na bolsa de plástico e escondeu-a debaixo do pulóver, da mesma maneira como encontrara antes.

 - E agora? - perguntou Teyendorf.

 

 - Vamos ficar tranquilos e aguardar até que ele volte do passeio. Ele se sente seguro que viajará até Sidney. A partir de agora, será apenas mais um passageiro louco por experiências. Não poderá mais escapar de nós.

 - Meus parabéns, Sr. Dabrowski. - Teyendorf estendeu a mão para o detective. - Confesso. Você teve uma sorte incrível.

 - Todo detective tem que contar com ela, senhor comandante.

 - Se não fosse por Pflugmair..

 - Mas ele estava lá. E isso é que é sorte.

 - E o que você vai explicar a ele?

 - Nada. Ele já esqueceu nossa conversa há muito tempo. Está mais ocupado com seu amigo De Jongh. - Dabrowski fechou a porta da cabina 168 e, acompanhado de Teyendorf, avançou em direcção ao hall. - A coisa está mesmo ruim com De Jongh? Ficou louco?

 - Parece que sim. Ele imagina ter atirado o Sr. Fehringer ao mar. Jura de pés juntos. Mas, em contrapartida, todos nós vimos Fehringer sentado à mesa no restaurante.

 - Pobre sujeito. Fica maluco porque sua mulher sai dando voltinhas por aí! - Dabrowski abriu um sorriso largo. - ...eu tenho mesmo razão, quando digo a mim mesmo em certas situações: Ewald, tome cuidado. Não se case. Nem ao menos toque nesse assunto! A partir de agora passarei a dizê-lo com mais razão ainda.

 - Mas sua doce enfermeirinha não vai gostar de ouvir isso. A propósito, ela é mesmo enfermeira?

 - Não. É secretária da companhia de seguros para a qual trabalho. É boa, não é mesmo?

 - Uma moça corajosa. - Teyendorf deu um soco de leve no peito de Dabrowski. - E você é um burro velho.

 - Eu sei, senhor comandante. O importante na frase é a palavra "velho".

 - Mas é claro que você não é um velhote!

 - Eu poderia ser o pai dela.

 - Mas não é! Você tem medo de casamento, não é isso?

 - É isso. O caso de Knut De Jongh é uma tremenda advertência. - Dabrowski deu uma olhada no relógio. - Senhor comandante, gostaria de pedir-lhe para telefonar agora mesmo à prefeitura de Papeete suspendendo a revista no Sr. De Angeli, posto que afinal ficou constatado não ser ele o ladrão de jóias.

 - Pelo amor de Deus! Claro! Nós nos enganamos por completo. Oxalá não seja tarde demais.

Não era tarde demais. De Angeli, admirado com o facto de seus compatriotas o terem trancado no quarto, embora tivesse se queixado sobre o comportamento dos alemães para com um francês, admirou-se ainda mais quando o comissário-chefe abriu a porta e disse bem rígido:

 - Pode ir embora, monsieur. A agência da companhia de navegação do Atlantis entregou seu bilhete do voo de volta a Paris. Pode ir buscá-lo. Bon voyage, monsieur.

 Mais tarde, De Angeli parou amargurado na rua junto ao porto, olhou para o magnífico navio branco no cais e, em seu íntimo, acusou os alemães de não terem humor.

 Partiu num dos táxis coloridos para o Hotel de Soleil, reservou um quarto para a noite e, em seguida, apareceu de calção e roupão de banho na gigantesca piscina e no jardim do bar. O lugar estava apinhado de mulheres bonitas e De Angeli recebeu alguns olhares derretedores.

 O mundo é uma coisa fantástica, pensou ele. Só é preciso que os alemães sejam tirados do caminho.

 

O cavalheiro da cabina 168 voltou a bordo por volta das sete da noite, a fim de se preparar para o segundo horário de refeição. Um banho de chuveiro, uma camisa limpa, um terno fresco, um discreto perfume de noite. Estava com vontade de, após o jantar, voltar a terra para viver uma noite taitiana dos mares do Sul, com a música de tambores e encantadoras bailarinas de saias coloridas e flores nos cabelos negros e brilhantes.

 Acabara de trocar de roupa, quando bateram à porta. Ele gritou "Entre!" e, espantado, viu o cego entrar na cabina tacteando o caminho com a bengala branca.

 - Mas você enganou-se por completo, Sr. Dabrowski - disse em tom amigável. - Aqui é bombordo. Sua enfermeira vive no estibordo. No outro corredor. Quer que eu o leve lá?

 - Obrigado. Sua solicitude me deixa comovido. Mas eu não me equivoquei.

 - Está equivocado sim. O senhor se encontra em minha cabina. Arturo Tatarani...

 - O vinicultor do Piemonte. Eu sei.

 Dabrowski passou arrastando os pés pelo desconcertado Tatarani e, de repente, virou-se junto à mesa, jogou fora a bengala branca e arrancou os óculos escuros do nariz.

 - Você é mesmo uma pessoa insólita, Paolo Carducci! - disse ele.

 Tatarani-Carducci ficou plantado no chão, rígido, como que colado diante de Dabrowski. Não fez nenhuma menção de fugir, ou de sacar uma arma. Apenas encarou Dabrowski durante um longo tempo e, em seguida, acariciou os longos cabelos negros num gesto elegante.

 - Quer dizer, então, que você não é cego?

 - Tenho olhos de águia.

 - Quem é você?

 - Um detective sem importância que, por encomenda de uma companhia de seguros, está atrás de você. Agora eu o peguei!

 - Eu não o estou entendendo mesmo! - um pouco nervoso, Carducci endireitou a gravata. - Eu sou Arturo Tatarani. Se meu passaporte não se encontrasse na comissária; eu poderia apresentá-lo.

 - Meu caro amigo! - Dabrowski sentou-se e sorriu um sorriso amigável. - Nós dois sabemos muito bem como é que as pessoas obtêm esses passaportes, não é mesmo? Posso conseguir-lhe qualquer passaporte em vinte minutos em Nápoles ou Génova, Palermo ou Messina. Olha, para simplificar a nossa conversa: meta a mão na prateleira

superior do primeiro guarda-roupa, debaixo do pulóver... E então, o que está aí?

 - Meus parabéns, Dabrowski - Carducci sentou-se na cama. - Como foi que me descobriu? Estou muito interessado em sabê-lo.

 - Com uma sorte incrível. Seu disfarce é primoroso, de mestre. Eu jamais teria chegado até você. Caso não tivesse roubado mais nada até Sidney...

 - Eu não tencionava fazê-lo. Queria descansar a partir de hoje.

 

 - Está vendo?! Eu teria apalpado no escuro. Por outro lado, a minha suposição era de que, como cego, eu poderia desmascará-lo com toda segurança. Um cego é o ser humano mais inofensivo que existe. As pessoas não precisam dissimular diante de um cego, afinal ele nada vê. Mesmo quando está nas proximidades, pode-se arrombar a porta de uma cabina. Eu tinha esperança nisso e noutros descuidos.

 - Confesso que, num determinado momento, eu seria apanhado pelo cego. Sorte sua... desgraça minha. Assim é a vida.

 - Esse seu spray para os nervos é um truque maldito!

 - Mas efectivo e que não oferece perigo. Nenhum efeito colateral perigoso, apenas uma dorzinha de cabeça um dia inteiro. O gás foi muito melhorado no ano passado.

 - Carducci, por que você não tenta fugir agora?

 - Dabrowski, com toda certeza há polícias franceses aí do lado de fora da porta...

 - Você poderia pegar-me como refém e exigir caminho livre.

 - Para onde? O Taiti é uma ilha nos mares do Sul. Como é que eu iria embora daqui? E onde quer que eu chegasse, a polícia estaria à minha espera em todos os lugares. - Carducci levantou-se da cama e ajeitou o paletó do terno de seda. - Sempre devemos saber quando chegou o fim. Dou-lhe meus parabéns mais uma vez, Dabrowski. Você é melhor do que a Interpol.

 - Não. como eu disse, só tive sorte. Um bêbado que deambulava por aí, para ficar ouvindo nas portas... foi ele quem o viu. - Dabrowski sorriu aliviado. - Isso é tudo, Carducci. A vida escreve as peças mais incríveis. - Dabrowski levantou-se. - Vamos?

 - Pode ser de maneira discreta?

 - Ninguém vai observar coisa nenhuma.

 - Nenhuma algema?

 - Nenhuma.

 - Eu lhe agradeço, Dabrowski. - Carducci deu outra olhada por sua cabina. Despediu-se do elegante Arturo Tatarani, o negociante de vinho de Piemonte.

 Em seguida, abriu a porta e foi recebido por dois homens da polícia de Papeete.

 

 Herbert Fehringer pôde supor a maneira horrível como morrera seu irmão Hans. A princípio, quedara-se ignorante e desconcertado diante do colapso nervoso e do acesso de fúria de Knut De Jongh. Ouvira de longe os gritos desarticulados e as poucas palavras compreensíveis neles contidas, a uma distância que não lhe permitira compreender as frases: "Ele está morto! É claro que ele está morto!" Concluíra tudo, durante o jantar, de um modo um tanto ou quanto nervoso, sempre pensando no que escutara no toalete - ou seja, que De Jongh queria encontrar-se com Hans no tombadilho, por um tempo não superior a dez minutos. A explosão posterior de Knut De Jongh foi um mistério para ele.

 Hans não se encontrava na cabina, para onde ele correu após a refeição. E tão-pouco parecia que ele lá tivesse estado e depois ido embora outra vez. Hans nunca antes se havia permitido tal ruptura dos acordos, que poderia causar terríveis dificuldades.

 Herbert sentou-se junto à janela e ficou à espera de Hans, cada vez mais intranquilo. Após meia hora, tomou a decisão de ir até a cabina de Sylvia. era quase certo que Knut De Jongh tivesse sido mantido no hospital. Caso o tivessem levado de volta à cabina, Fehringer sempre poderia dizer que havia ido lá interessado em saber como estava seu estado de saúde...

 

 Contudo, a cabina 147 estava vazia. Aumentou ainda mais a intranquilidade de Herbert Fehringer. Ali tão-pouco havia qualquer indício de seu irmão. De repente, a porta foi aberta e Sylvia precipitou-se para dentro. Herbert abriu os braços recebendo-a.

 - Oh, querido! Querido! - gritou Sylvia e logo começou a chorar. - É tão horrível, meu marido perdeu a razão. Ele gritou várias vezes: "É claro que eu o joguei ao mar! Ele está morto! Morreu afogado!" E com isso ele se referia a você. Depois, ele o viu no restaurante e ficou louco. Acho que ele queria matá-lo...

 Herbert Fehringer pousou o rosto no ombro de Sylvia, fechou os olhos e sentiu todas as forças fugirem de seu corpo. Fez força para pôr-se de pé e apertou Sylvia contra seu corpo. Ela encarou o gesto como sendo de carinho, acariciou-lhe a nuca e beijou seu pescoço. Knut De Jongh jogou Hans ao mar, pensou ele. Ficou claro para ele. Não existia mais nenhum Hans Fehringer e não há ninguém que dê por sua falta. Somente eu sei o que aconteceu na verdade. Afogado no Pacífico. Lançado ao mar por um marido raivoso, que agora ficou louco, pois ao voltar ao restaurante viu o morto sentado à mesa. E eu devo ficar calado, devo suportar isso e enterrar em meu íntimo, posto que oficialmente existe apenas um Fehringer a bordo e, a partir de agora, sou o único Fehringer até o resto de minha vida. Herbert desvencilhou-se dos braços de Sylvia, andou cambaleando até o banquinho estofado e desabou nele. Ela sentou-se na cama de frente para ele e ficou com os olhos fixos no tapete do chão. Um soluço subiu pela garganta de Fehringer, mas ele trincou os dentes e reprimiu-o com muito esforço.

 - O Dr. Paterna acha que Knut pode continuar louco - disse Sylvia em voz baixa. - Se ele não melhorar até Auckland, eles o deixarão numa clínica dali. Depois... depois tudo será diferente, Hans. Muito mais fácil. Poderemos ficar juntos...

 Herbert Fehringer estremeceu ao ouvir a palavra Hans, sentindo de novo a dor no peito. era como se ele mesmo tivesse morrido e não Hans.

 como se ele tivesse sido apagado, como se nunca tivesse nascido, jamais existido. Para Sylvia, ele precisaria continuar sendo Hans por toda a eternidade; não havia nenhum Herbert, essa era a maldição dessa brincadeira.

 - Não é óptimo? - Sylvia ainda disse. - Você ficou feliz?

 - Muito feliz, Sylvia... - a comida começou a fazer-lhe mal e Herbert pensou: daqui a pouco eu vomito. Ou então uivarei como um lobo.

 Pôs-se de pé e engoliu em seco várias vezes. Sylvia encarou-o, sua boca também tremia.

 - Você quer ir embora? - perguntou ela com voz plangente.

 - Quero!

 - Agora? Mas, Hans, claro que você não pode deixar-me sozinha agora...

 Esse "Hans" cortou-lhe os nervos, Herbert sentiu a dor no corpo inteiro. Foi um momento no qual ele seria capaz de matar Sylvia.

 - Preciso ir embora! - disse ele com voz roufenha. - Quero ficar sozinho.

 - Você? Mas porquê você?

 - Olha, não sou de ferro! Fiz um ser humano perder a razão...

 

 - Hans, você não precisa recriminar-se. Estava sentado bem tranquilo em sua mesa e, de repente, Knut enlouqueceu. Não dá para ninguém compreender isso. Como é que alguém fica maluco de repente? Nenhum médico consegue explicar tal coisa. Talvez tenha arrebentado alguma artéria de seu cérebro, talvez ele já carregasse isso há muito tempo e, então, a mudança de clima provocou a explosão. Jamais encontraremos uma resposta... - Sylvia tentou esboçar um sorriso fraco, mas pareceu nesse momento comovedoramente infantil e frágil. - Nós só temos certeza de uma coisa: agora poderemos viver juntos.

 O vómito tornou a subir pela garganta de Herbert Fehringer. Ele assentiu, foi até a porta com as pernas bambas e saiu da cabina.

 Ainda ouviu Sylvia gritar:

 - Hans, fique aqui. Eu lhe peço... fique...

 Então, fechou a porta com um empurrão e só respirou aliviado quando o elevador desceu até seu convés.

 Uma hora depois foi até o lugar do tombadilho, de onde Hans deve ter sido jogado no oceano. Na verdade, foi exactamente na outra extremidade do tombadilho, mas o oceano era o mesmo, eram as mesmas ondas, a mesma espuma em redemoinho, na qual o irmão afundara. Com ambas as mãos, Herbert Fehringer espalhou o passaporte de Hans rasgado em pedacinhos nas vastidões infinitas das águas do Pacífico, enquanto seguia com a vista os pedaços de papel esvoaçantes. E assim Herbert enterrou seu irmão. Ao longe, os contornos de minúsculas ilhas deslizavam na noite iluminada pela lua. No horizonte, uma pálida listra alçava-se do mar, as primeiras luzes da manhã. O Atlantis aproximava-se do Taiti..: a famosa ilha de tantos sonhos ainda não passava de um borrão negro à distância.

 Fehringer recuou da amurada e saiu andando pelo navio. Ao abrir a porta de sua cabina, Sylvia estava sentada soluçando em sua cama.

 - Mas o que é que você está fazendo aqui? - perguntou Herbert de um modo bem rude.

 - Eu... eu não posso ficar sozinha agora... - balbuciou ela. - Sua porta estava aberta... eu continuo ouvindo os gritos dele... Deixe-me ficar aqui, Hans... Se você me deixar sozinha agora, não conseguirei nem respirar. Agora você é a única coisa que tenho.

 Herbert assentiu mudo, sentou-se ao seu lado na cama, pousou o braço no ombro de Sylvia e acariciou-a.

 O dia levantava-se diante da janela. como sempre acontece nos trópicos, logo ficou claro; um sol ainda pálido que fazia o mar parecer leitoso. Então, de repente, o azul brilhou e as pequenas ilhas dispersas reluziram numa tonalidade esverdeada. O fascínio dos mares do Sul... e; nalgum lugar lá fora, Hans Fehringer estava sendo arrastado... ou há muito que os tubarões o estraçalharam.

 - Em que está pensando, Hans? - disse ela em voz baixa.

 - Em nada.

 - Eu também. - Sylvia ajeitou-se aninhando-se em seus braços. - Só sinto você.

 

Depois da inglória partida de François De Angeli em Papeete, Erna Schwarme pareceu ter recobrado o juízo. Foi como se ela tivesse estado enfeitiçada e, de repente, se dissipasse o encanto. O Dr. Schwarme estava pouco ligando para isso; tivera seu triunfo, demonstrara sua força, vencera... não queria mais nada. Sua mulher dormira com De Angeli, isso ficara provado; agora a ruptura era completa. De volta à Alemanha, daria início ao processo de separação. Nada de divórcio! Como advogado que era, Schwarme sabia muito bem o quanto isso lhe custaria segundo a nova legislação sobre o divórcio. Não existia mais o princípio da culpa, nem mesmo quando as mulheres deitavam-se com um pelotão de soldados, ou quando os maridos montavam exuberantes casas luxuosas para as amantes, onde desfrutavam as "horas extras no escritório". O que estivesse socialmente melhor posicionado devia sempre pagar para o mais fraco. Schwarme podia muito bem calcular que um divórcio com Erna o deixaria arruinado. Por isso mesmo, continuava sendo corroído por seu horror diante do fracasso sexual em acapulco. Se aquela doce garota de pele morena e lisa não conseguira estimulá-lo em sua masculinidade erótica, então nenhuma outra mulher conseguiria. Agora, não se excitava nem mesmo ao pensar na tão solícita secretária. Aos cinquenta e dois anos e já com a mangueira vazia, era algo que ocorria um pouco cedo demais. E, devemos compreender, tanto mais veemente foi sua reacção diante da actividade ininterrupta de sua mulher.

 - Não seria mais certo se você usasse agora o vestido preto? - perguntou Schwarme em tom hostil, quando os dois trocavam de roupa para o jantar.

 - E por que haveria de usá-lo?

 - Teu garanhão te abandonou. Não usas luto?

 - Os episódios a gente liquida e esquece. Pelo amor de Deus, se tivéssemos de chorar por cada experiência na cama, andaria todo mundo com os olhos debulhados em lágrimas. E você já seria cego há muito tempo!

 - Você não pode provar coisa nenhuma contra mim. Nem uma única infidelidade. Enquanto isso, aqui eu fiquei sabendo muito bem: agora ela está trepando com o francês. E depois você voltava cantarolando e dizia arrebatada: "Que homem! Daria três do teu tipo!" era uma confissão!

 - Ah, o senhor advogado! - Erna retirou-se da frente do enorme espelho de parede e endireitou os seios dentro do decote fundo. Desde que subira a bordo, Erna Schwarme deixara de usar sutiã. - O que está defendendo agora? Um divórcio, uma separação? De acordo! Com seus rendimentos, tenho direito a dez mil marcos por mês. Contratarei o Dr. Behrendsen como meu advogado.

 Só faltava essa, pensou Schwarme. Behrendsen! Como adversário nos tribunais, o osso mais duro de roer. Um duelo de oratória entre o Dr. Schwarme e o Dr. Behrendsen era sempre um rasgo de esperança no em geral taciturno quotidiano jurídico. Então, os juizes e promotores ficavam escutando como se estivessem num teatro.

- Uma outra proposta - disse Erna com ferocidade senhorial.

- Você me paga de uma vez. Uma importância única de 1,5 milhão... então, pode escapar muito bem.

 - Agora posso compreender porque certos maridos são capazes de retalhar suas mulheres!

 - Nem isso você conseguiria! - Erna deu uma risada de escárnio, enquanto fechava o trinco da pulseira de brilhantes. - Você é uma nulidade em trabalhos manuais. Com todas as nulidades que você juntou, no fundo é o homem mais rico do mundo.

 

 - Sempre é melhor do que ser uma puta!

 Ela deu uma risada um tanto histérica, deu outro rodopio diante do espelho e depois arriou os braços.

 - Já é hora, Sr. Dr. Schwarme. Devemos ir jantar e bancar o casal perfeito. Ou você ainda está com diarreia?

 - Tomei alguns comprimidos. Está tudo bem.

 - Só não vá ver gente sendo atirada ao mar! - ironizou ela antes de pegar a bolsa bordada em cima da cama. - Você já viu com que rapidez se pode pirar. Fica-se maluco de repente. Por enquanto não lhe concedo essa dádiva... primeiro você terá de me pagar! Depois que a coisa for ajeitada, aí, por mim você pode pirar à vontade...

 O Dr. Schwarme levantou-se e, em silêncio, seguiu a mulher até o restaurante. Para ele era tão inexplicável o facto de ter visto com toda a nitidez quando Fehringer caiu no mar, após De Jongh ter-lhe dado um soco no queixo, sendo que, dez minutos depois, encontrou-o vivinho da silva na mesa do restaurante, que a coisa não conseguia sair de sua cabeça. Não tive alucinação nenhuma, disse para si mesmo. Não fiquei lá na janela sonhando isso tudo! E depois o terrível colapso nervoso de Knut De Jongh." É claro que ele está morto!", gritara De Jongh... exactamente o que eu vi! Afinal não existe ninguém melhor do que ele para saber, foi ele mesmo quem o atirou por cima da amurada com um soco. Mas Fehringer estava sentado à mesa, tomando uma sopa de creme de cogumelos e comendo um assado à cigana! Será que esse navio é mal-assombrado?

Nesse momento, Fehringer também estava sentado à sua mesa fazendo o pedido, quando Schwarme entrou com a mulher no restaurante. Para o advogado o problema ainda não estava solucionado. Se esse Fehringer não foi a vítima, então devia haver um outro homem a bordo, pensou Schwarme enquanto puxava a cadeira para Erna e dava uma outra olhada na direcção da mesa. O estranho era que não faltava ninguém; bem, pelo menos ainda não se espalhara o boato sobre algum passageiro que estivesse faltando no momento em que o Atlantis ancorara em Papeete.

 A mesa de Knut De Jongh estava vazia. Sylvia permanecera na cabina e pedira que a servissem ali. De Jongh passara o dia calado no hospital, deitado de costas, quase imóvel. Tão-pouco esboçara qualquer reacção quando Sylvia lhe fizera uma rápida visita, acompanhada pelo Dr. Paterna. Seu olhar pareceu trespassá-la: De Jongh estava novamente sob os efeitos de fortes sedativos e também ficou mudo quando Pflugmair, após violenta discussão com a enfermeira Erna, teve permissão para visitar seu leito. Por cinco minutos, nem um segundo a mais.

 - Estou preocupado contigo - disse Pflugmair comovido. - Nunca mais te deixo sozinho. Se tiveres que descer em auckland, te acompanho... Está me ouvindo?

 

 De Jongh continuou impassível. Ninguém poderia dizer se ele conseguia reconhecer as pessoas. Pflugmair já havia esquecido a conversa que tivera com Teyendorf e Dabrowski. E nenhum dos passageiros percebera que o elegante negociante de vinhos Tatarani fora escoltado não por amigos de negócios e sim pela polícia judiciária. Em contrapartida, todos ocuparam-se em excesso com a expulsão de monsieur De Angeli. As senhoras acharam a coisa escandalosa, os homens expressaram uma profunda satisfação. Após o jantar, os maridos em questão deram uma recepção regada a champanhe para o Dr. Schwarme no bar Olympia; enquanto as mulheres, mal-humoradas, foram ouvir o cantor pop Hugh Dark no Salão dos Sete Mares. A festinha dos homens acabou degenerando, como era de se esperar, numa bebedeira em massa. Agora podiam dar-se ao luxo, o perigo para as mulheres havia sido eliminado.

 As amarras foram soltas às seis horas. O comandante Teyendorf afastou seu magnífico navio, aquele hotel branco flutuante, do muro do cais, usando os remos de radiação laterais. E o NM Atlantis despediu-se de Papeete e do Taiti, com três tocões da imensa sirene. A partir de agora, podia-se dar seguimento ao sonho com os encantos dos mares do Sul: Moorea, Bora Bora, Niué, Tonça e depois em direcção à incrível beleza da Nova Zelândia, com seus sessenta milhões de ovelhas, os borbulhantes géiseres quentes e a fascinante cultura dos mares.

 Teyendorf retirou-se da cabina da ponte com suas colunas de instrumentos e passou o comando da viagem ao timoneiro e ao segundo-oficial da ponte. Willi Kempen, o primeiro-oficial, vestido com o uniforme de trabalho, recostou-se diante dele.

 - Já deixamos o possível e o impossível para trás, senhor comandante - disse ele em tom sarcástico. - Que mais pode acontecer?

 - O navio afundar...

 - Bem, isso aí é a única coisa que não parece possível. Andei conversando com o Dr. Paterna. Ele é de opinião que, se desembarcarmos o caixão com o Sr. Richter em auckland para ser transportado para a Alemanha, o Sr. De Jongh também poderia ser levado para o hospital. O senhor acha que por causa disso devemos falar com Auckland depois de Tonça?

 - Se o Dr. Paterna acha que isso é o correcto, por mim está tudo certo. Terei de conversar com a viúva por causa do morto Richter.

 - Peter Brause já fez isso.

 - Você diz isso com tanta amargura, Kempen.

 - A Sra. Richter não está disposta a interromper a viagem.

 - Isso nós ainda vamos ver! - Teyendorf foi até à sala de navegação. - Eu é que determino onde o caixão será desembarcado.

 Alma Richter estava sentada à sombra do convés do solário, quando Teyendorf chegou-se a ela por volta das dez horas. Ela tomava um bouillon com todo prazer e mastigava um biscoitinho salgado. O biscoito estalava entre seus dentes. Alma levantou a vista para Teyendorf, colocou a taça de bouillon de volta na mesa e sorriu. Com isso, seu rosto de musaranho não ficou mais encantador.

 - Papeete é lindíssima - disse ela. - Gastei três filmes. Cento e oitenta fotos só do Taiti, uma bela presa. Como o mundo é maravilhoso, senhor comandante.

 - Mas temos um probleminha, Sra. Richter. - Teyendorf sentou-se diante dela. Irritava-o a alegria da vida. O pobre coitado está lá congelado no meio do gelo e a mulher sente orgulho por ter tirado três filmes. Ela deve ser uma atleta do bom humor. - Como comandante que sou, tenho a obrigação de desembarcar qualquer passageiro morto a bordo no mais próximo grande porto que disponha das necessárias possibilidades de transporte. E esse porto é Auckland. Mandaremos seu marido de avião de Auckland para a Alemanha.

 - Não!

 

 Uma pequena e insípida palavra. Alma Richter triturou o resto do biscoito salgado e agarrou o bouillon.

 - Por que não?

 - Nós fizemos a reserva até Sidney e pagamos. E é até Sidney que nós vamos viajar. Não tem nenhuma importância se meu marido morreu ou não. Ele é um passageiro como os outros. Esteja ele no convés ou no frigorífico... isso não muda nada.

 - Mas ele está morto, Sra. Richter!

 - Ele pagou a viagem inteira e tem o direito de fazê-la. Vivo ou morto. - Alma encarou Teyendorf, irritada. - Ou o senhor está achando que vou abrir mão da Nova Zelândia e da Austrália? Não deixarei que essa experiência me escape por causa do meu marido!

 - A companhia de navegação lhe reembolsará o resto da viagem.

 - não quero dinheiro nenhum. Só quero meus direitos! E isso significa: pago até Sidney, a bordo até Sidney. Eu poderia até exigir que, a partir de agora, todos os serviços do navio me fossem prestados em dobro, pois afinal de contas pagamos para duas pessoas. Se meu marido não pode ter suas refeições, então posso exigir que, pelo menos, ele continue sendo hospedado. Pois no frigorífico ele não está tomando o lugar de ninguém! - Alma Richter terminou de tomar seu bouillon e devolveu a taça à mesinha com um estalido. - Sou estritamente contra que o senhor desembarque meu marido em auckland, senhor comandante. Protesto contra essa arbitrariedade!

 Teyendorf desistiu de continuar discutindo com Alma Richter. Levantou-se, despediu-se e saiu do convés do solário.

 Na hora do almoço, Alma Richter fez um aceno enérgico chamando o comissário-chefe Pfannenstiel à sua mesa e, depois, limpou os dedinhos de aranha no guardanapo.

 - Eu gostaria que os seus comissários se reunissem em minha mesa depois da refeição - disse ela com rígido tom professoral.

 - como queira. Mas por quê?

 - Depois você ficará sabendo, Sr. Pfannenstiel.

 Pfannenstiel fez um aceno amável e, em seguida, começou sua ronda através do restaurante. Disse a cada um dos comissários:

 - Depois da comida, todos na mesa da bruxa má. E não fique com esses olhos arregalados de imbecil. Eu também não sei qual o motivo.

 às duas e meia, os últimos passageiros saíram do restaurante. Os comissários avançaram e postaram-se diante da mesa de Alma Richter. Pfannenstiel fez a comunicação:

 - Todos os comissários aqui, cara senhora!

 Com olhos críticos, Alma Richter examinou homem por homem. Em seguida, ergueu o ossudo dedo indicador e apontou para quatro comissários: - Você... e você, você também e você! Os outros podem ir embora.

 - Obrigada!

 Alma esperou até que os comissários recusados se retirassem com um argo sorriso irónico, depois levantou-se, andou em volta dos quatro eleitos, abriu as mãos e, pelas costas, tomou as medidas do colarinho até à cintura e então retornou ao seu assento.

 

 - Pode dar - disse ela satisfeita. - Vocês têm quase o mesmo tamanho de Ulrich. A mesma medida. Venham a minha cabina; vou presentear-lhes com as camisas, cuecas e ternos de meu marido. Afinal, não faz nenhum sentido levá-los de volta à Alemanha. São bons ternos. Vocês vão ficar contentes...

 Ao anoitecer, o navio inteiro estava sabendo que Alma Richter havia dado os ternos do marido para os comissários. Contava-se também que, na cabina, enquanto distribuía as roupas, ela teria dito: "Por favor, descontem isso das gorjetas. Ternos tão bons assim superam qualquer importância que vocês poderiam receber por seus serviços."

 Verdade ou não... de qualquer modo acharam que Alma Richter seria capaz disso. Foi uma história que, mais tarde, contaram quase todos aqueles que viajaram no Atlantis. Mas ninguém ficou sabendo se algum dos comissários presenteados chegou a usar um terno do falecido Ulrich Richter. Quando Teyendorf tomou conhecimento da distribuição do espólio, ele disse resignado a Willi Kempen:

 - Acho que vou levar mesmo o pobre Ulrich a Sidney.

 

 às cinco horas da manhã, dezassete dias depois do conto de fadas da ilha mais linda do mundo, Bora Bora, depois da ilha de Niué com seus habitantes alegres e amigáveis, após Tonça com seu restaurante construído no alto dos rochedos da costa e o palácio de madeira branca do rei gordo, após a Nova Zelândia com seus campos de apeires e salgueiros infinitos, geleiras e cidades que assemelham-se às ilustrações da velha Inglaterra, após as danças de guerra dos mares e a aterrissagem na geleira da Tasmânia no maciço montanhoso de Cook em pequenos aviões... após todas essas experiências, emergiu a Austrália saindo do oceano com as amplas e magníficas baías de Sidney, a península com o famoso telhado de conchas da pêra, a imponente construção em aço da Harbour Bridge, as casas com terraços de The Rocks e o píer de Cove Harbour com seus pavilhões de lojas. O mais lindo porto natural do mundo saudou o Atlantis com uma parada de esguichos dos rebocadores.

 As malas feitas estavam nos corredores dos conveses, prontas para serem transportadas. Quinhentos e dez passageiros deixariam o navio, para voltar ao frio lar alemão. No frigorífico, foi lacrado o caixão revestido de zinco com o cadáver de Ulrich Richter. Enquanto isso, Alma Richter estava no convés fotografando, entusiasmada, a casa da pedra e o panorama da cidade. Que linda viagem fora essa! Uma pena que Ulrich tivesse deixado esse mundo interessante justamente nela. à noite, acabou-se todo o encanto... nesse momento estavam sentados nos apertados aviões numa viagem de vinte e cinco horas até Frankfurt. Restavam os sonhos e as fotos, as reminiscências da felicidade por se ter vivido tal coisa... e a triste consciência de que nunca mais se veria aquilo.

 Knut De Jongh fora desembarcado em auckland e levado ao hospital. Seu estado não mudara; continuou apático, mudo, pálido e visivelmente distante desta existência.

 O Dr. Paterna procurara Sylvia um dia antes:

 - Seu marido irá amanhã para uma clínica. Existem médicos excepcionais na Nova Zelândia. Não podemos continuar com ele.

 - Eu sei, doutor. - Sylvia olhou Paterna de passagem, sabendo o que viria em seguida. Havia três noites que ela chorava nos braços de Fehringer, sem encontrar nenhuma solução. - Eu também devo desembarcar...

 - A senhora não deve. Mas suponho que queira ficar junto com seu marido e, mais tarde, voltar com ele para a Alemanha.

 

 - Sim... - sua voz saiu quase inaudível. - Tem algum sentido isso?

 - Enquanto ele viver, tudo terá sentido.

 - É muito difícil para mim.

 - Eu sei. Mas existem certos deveres dos quais não podemos nos abster. Mais tarde, a vida seguirá seu caminho... talvez em outros trilhos, se essa for a sua vontade.

 Na última noite antes de Auckland, Sylvia abraçou Fehringer, quase entrando por dentro dele, grudando-se nele e balbuciando várias vezes:

 - Não se esqueça de mim, Hans... não se esqueça de mim... Eu te amo, nós nos pertencemos, você não pode simplesmente desaparecer, está ouvindo, ficarei à sua espera, dentro de uma semana estarei em casa, você virá, não é mesmo... você virá...

 E Fehringer disse:

 - Irei sim, minha querida. Você é tudo que tenho. Estou tão sozinho agora, preciso de você... Não chore, Sylvia, tudo demorará uma semana apenas...

 Enxugaram-se as lágrimas com beijos no rosto e fizeram amor, não mais embriagados como antes, mas com um desespero frenético, como se os dois quisessem destruir-se mutuamente.

 Pela manhã, quando De Jongh foi retirado do navio e Sylvia caminhou atrás da padiola, quando ele foi empurrado para dentro da ambulância, então ela deu outra olhada para cima do casco branco do navio. Fehringer não se encontrava no tombadilho; estava na janela de sua cabina, despedindo-se dela, semi-oculto pelo cortinado.

 Agora ali, em Sidney, o caixão do falecido Ulrich Richter foi retirado de bordo e colocado num carro fúnebre com pinturas de folhas de palmeira douradas nas portas. Alma Richter não acompanhou o caixão. Ela se informara sobre a maneira como faziam a coisa e ficou sabendo que ele voaria no mesmo avião para Frankfurt, no espaço da bagagem. Isso bastava.

 

 Até à hora da partida à tarde, ainda podia fazer um passeio de barco pelas enseadas de Sidney; motivos fotográficos que Alma Richter não queria perder de jeito nenhum.

 As malas foram buscadas e levadas de camião até o aeroporto. Os turistas desembarcaram, parte dos passageiros bebeu pela última vez nos bares, trocando endereços, prometendo escrever cartas. O velho jogo: em nenhuma outra parte se mente tanto nem existem tantas ilusões como num navio, na hora da despedida, depois de uma longa viagem de cruzeiro.

 O Dr. Paterna e Bárbara Steinberg também despediram-se na última noite... mas não da maneira como o fizeram Sylvia e Fehringer; entre eles não havia nenhum desespero, apenas a certeza sobre o futuro.

 - Darei baixa em São Francisco - disse Paterna. - Desembarcarei para sempre, baby. Quando eu chegar a Frankfurt, mandarei um telegrama para você na mesma hora. E então você poderá receber um desabrigado. Não tenho nenhuma casa, nenhum apartamento, nenhum quarto na Alemanha.

 - Mas terei uma cama para você em Bochum! - disse Bárbara cheia de alegria. - Com a roupa recém-trocada. O que você prefere: um ou dois travesseiros?

 - Dois. Quer dizer, a inteligência dorme de cabeça baixa. Segundo isso, devo ser muito burro.

 

 - E tem que ser mesmo para querer casar comigo. - Ela se levantou e bateu com a ponta do indicador no peito desnudo de Paterna. - Quanto tempo até São Francisco?

 - Cinquenta e nove dias!

 - Com mais duas trocas de passageiros?

 - Sim...

 - Isso significa que subirão a bordo no mínimo duzentas lindas mulheres, que assediarão o médico do navio, o Dr. Paterna. Você... sou terrivelmente ciumenta!

 - Durante cinquenta e nove dias só pensarei em você.

 - Se o navio afundasse com uma mentira, naufragaria agora mesmo.

- Bárbara deitou-se de novo no dorso de Paterna e abraçou-lhe a cintura. O calor de seu corpo era fascinante. - Jamais vou querer saber alguma coisa disso... quando você estiver em Bochum, finalmente pertencerá a mim... só a mim... isso é a única coisa que tem importância.

 Começara o grande êxodo. O príncipe Friedrich Enno von Marxen entregou à sua companheira Marianne um envelope com dois mil marcos como agradecimento adicional por serviços amorosos prestados e, em seguida, desembarcou com passos orgulhosos. Ludwig Moor cumpriu pela última vez sua caminhada de mil metros no tombadilho, antes de despedir-se para todos os lados. Pflugmair que, contrà sua intenção original não desembarcara em auckland junto com seu amigo Knut, pois Sylvia fora com este, ficou até o último minuto no bar Atlantis bebendo suas cervejinhas. Jens van Bonnerveen e Eduard Grashorn desceram como inimigos, deixando para trás uma chorosa comissária. Oliver Brandes abraçou o pastor Wangenheim e, então, proclamou que agora sabia o quão seguro eram os navios e que passaria a navegar com maior frequência. O casal Schwarme interpretou de novo a concórdia feliz desembarcando de braço dado. Thea Sassenholtz ainda enviou uma carta para Juan de Garcia, na Costa Rica, com apenas umas poucas frases: "Agradeço-lhe, Juan, pelos dias inesquecíveis. Você me rejuvenesceu. Que Deus o proteja!"

 Humedeceu os selos com os lábios e, ao fazê-lo, pensou: isso é um beijo para você... mesmo aos sessenta anos podemos ser meninas.

 Dabrowski e Beate Schlichter despediram-se do comandante Teyendorf.

 - O que eu poderia desejar-lhe, senhor comandante? - perguntou Dabrowski.

 - Você... a mim? Sim, eu desejaria uma coisa. Eu desejaria nunca mais vê-lo aqui a bordo, pois quando você aparece é porque temos um ladrão de jóias no navio.

 - E se for uma viagem de núpcias?

 Teyendorf olhou de soslaio para Beate Schlichter, que examinava seu chefe sem nada entender.

 - Viagem de núpcias? Ele? É mais fácil o Atlantis virar uma nave espacial.

 - Quem sabe? Um Dabrowski é sempre bom nas surpresas.

 - Então, desejo-lhe sorte.

 - Obrigado... Comandante!

 Teyendorf ficou perplexo durante alguns momentos, depois riu, apontou para a porta e berrou:

 - Fora daqui!

 - Sim, senhor comandante...

 Dabrowski colocou a mão na cintura de Beate, puxou-a para fora da cabina e, no corredor, deu-lhe um beijo.

 

 - Você ficou maluco! - balbuciou ela. - O que foi isso?

 - Nada do que você precise fugir. Os homens têm esses impulsos com frequência.

 

 Bárbara Steinberg partiu no último autocarro. O Dr. Paterna ficou no tombadilho acenando para ela. Um sol dourado banhava Sidney, o famoso telhado de conchas da pedra brilhava como prata polida. O motorista do autocarro buzinou várias vezes.

 - Entre... a senhora é a última. O tempo não pára.

 - Eu te amo! - gritou Bárbara para o tombadilho.

 E Paterna gritou em resposta:

 - Eu também!

 Então, ela entrou, acenou mais uma vez, as portas automáticas fecharam-se e o autocarro saiu do píer.

 - Um doce escaravelho - disse nesse momento uma voz ao seu lado.

 O Dr. Paterna virou-se. Ao seu lado estava Pfannenstiel com um sorriso largo.

 - Esse doce escaravelho é a minha futura mulher, seu macaco.

 - E você diz isso sem que o tombadilho desabe? Vamos esperar até os novos passageiros subirem a bordo. Quatrocentos e noventa e três com milhares de esperanças. Entre eles, a miss Baviera. Seu jacaré velho!

 - Dê o fora, seu fedorento! Sabe o que estou sentindo por dentro?

 Então de repente, reinou o silêncio no navio. Nas cabinas vazias trabalhavam os comissários, no restaurante trocavam-se as toalhas de mesa, carros com frutas frescas, legumes frescos, peixe e carne entraram e foram descarregados. Foram ligadas as mangueiras para a água potável. Um navio tanque deslizava de lado vindo da direcção do mar.

 A vida seguia seu curso. Amanhã para Brisbane, depois de amanhã a Cairns e os maiores recifes de coral do mundo, a Grande Barreira de Recifes, uma maravilha da natureza.

 O Dr. Paterna ficou andando sozinho de um lado para o outro no tombadilho, depois parou de repente junto à amurada e olhou o porto, a cidade, as enseadas de curvas largas, as praias verdes e brancas e o horizonte que se perdia no oceano...

A vida é mesmo linda, pensou ele respirando fundo. Tão linda... tão malditamente linda.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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