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ANTES DO AMANHECER / Somerset Maugham
ANTES DO AMANHECER / Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ANTES DO AMANHECER

 

SEGUINDO pelo largo caminho de relva, orlado de belos cedros, ela transpôs o portão de varões de ferro, ladeado por um muro de tijolos que o tempo havia polido, e penetrou no jardim de aspecto convencional. Em toda a extensão dos fundos da majestosa residência havia um terraço alto, ao qual se chegava por uma escadaria, em cujo topo, de um lado e de outro, se erguiam sobre pedestais duas estátuas italianas batidas pelas intempéries. O jardim, que as flores do fim de Agosto alegravam, ia desde o terraço até um gradil baixo de ferro, que o separava do grande parque e impedia a entrada do gado que ali pastava. Ela era uma mulher alta, jovem e esbelta, de cabelo castanho-claro e olhos castanho-escuros. Tinha aquele olhar virginal que muitas mulheres inglesas estranhamente conservam depois de anos de casadas. O nariz era recto, de narinas delicadas, a testa lisa e a boca bem modelada; o vermelho dos lábios pintados acentuava ainda mais a alvura da pele clara. Com o seu jeito calmo, quase grave, era muito bonita. mas, como não havia no seu aspecto nada que chamasse a atenção - vestia-se com extrema simplicidade -, só depois de se falar com ela é que isso se notava. Sendo acanhada, dava a muitos a impressão de fria ou displicente, mas as viúvas ricas mais exigentes do condado reconheciam, com o seu ar circunspecto e antiquado, que ela não deixava de ser uma dama, embora um tanto improvisada. Sentiam-se um pouco ofendidas pelo facto de a jovem não ligar importância à opinião que formavam a seu respeito. De posição social insignificante, filha de um oficial de marinha, e sendo pobre, ela possuía a despretensiosa distinção da mulher bem nascida, sem arrogância, consciente do seu lugar na sociedade e incapaz de se atribuir outra condição além da própria.

Pela vincada seriedade do seu rosto, percebia-se que, naquele momento, graves pensamentos a preocupavam. Mas, ao avistar a sogra, Mrs. Henderson, sentada no terraço, um leve sorriso veio suavizar-lhe a expressão dos olhos castanhos. A mesa estava posta para o chá. Um mordomo e dois lacaios traziam do interior da casa o bule, bandejas com pão e manteiga, bolos e doces. Mrs. Henderson lia um romance, mas pô-lo de parte quando a nora se aproximou.

- Não estavas a jogar, May? - perguntou.

- Não. Estou com preguiça. Eles estão a acabar uma série e já vêm aí.

Do terraço ouviam-se as vozes dos jogadores, quando gritavam a contagem, e o bater da bola contra as cordas retesadas da raqueta.

-Estás bastante pálida, minha querida. Não achas que o calor é demasiado para ti? - perguntou Mrs. Henderson.

May corou ligeiramente sob o olhar bondoso, mas arguto, de Mrs. Henderson.

- Oh! Não. Depois do chá, vou jogar.

-Roger bem gostaria de jogar úma partida.

Roger era o filho mais velho de Mrs. Henderson, casado com May. Viera do estrangeiro na noite anterior e telefonara de Londres naquela manhã, para dizer que chegaria durante o dia. Mrs. Henderson fazia cinquenta e três anos, e, segundo a tradição, toda a familia se reunia no dia do aniversário. Lá estavam também os dois filhos mais novos: Jim, ainda em Oxford, e Tommy, que tinha só treze anos e estava em férias; e havia a outra filha, Jane, e o marido, Ian Foster. E havia naturalmente também o marido, o general. As vezes, Mrs. Henderson suspeitava que eles não achavam muito cómodo vir passar em casa o aniversário dela, estivessem onde estivessem, especialmente porque era no último dia de Agosto - quando os frutos silvestres abundavam nas charnecas de Yorkshire-, mas gostava de tê-los ali naquele único dia do ano. E embora só viessem para lhe agradar, porque prefeririam estar noutro sítio qualquer, ela sabia que faziam o sacrifício de boa vontade. Aceitava esse sacrifício como prova de amor filial. Era o seu único egoismo. Roger era militar, estava nos serviços secretos do Exército, e durante os três ou quatro últimos anos vivera a maior parte do tempo fora da Inglaterra. Estivera no japão e nos Estados U nidos, e, durante os últimos doze meses, depois de Munique, fora à Espanha e aos Balcãs, várias vezes à França, e agora acabava de voltar da Polónia. Mrs. Henderson renunciara à esperança de que ele pudesse passar o aniversário com ela, e foi com alegre surpresa que lhe ouviu a voz pelo telefone naquela manhã. A chegada do filho completaria a sua felicidade. Ficava contente também por May, que quase não o vira ùltimamente. Era uma pena que não tivessem filhos.

- Aí está Jane - disse Mrs. Henderson com o seu pronto sorriso.

Jane Foster atravessou o portão, subiu a escada para o terraço e afundou-se numa poltrona. Era estranho que Mrs. Henderson tivesse uma filha assim. Mrs. Henderson era uma senhora alta, bonita, de cabelos grisalhos, com traços definidos, que lhe davam um ar algo severo, mas com um olhar suave e bondoso. Vestia de preto. Jane vestia um pijama de um verde berrante e uma jaqueta verde e amarela de padrão geométrico e audacioso. Calçava sapatos amarelos com solas de cortiça enormemente grossas. Da ponta de cada um deles emergia uma unha escarlate. Era a filha mais velha de Mrs. Henderson: trinta e quatro anos, alta, bastante ossuda, bastante masculina, bastante avantajada. O seu cabelo, naturalmente preto, era pintado, e usava uma maquilhagem abundante, como uma actriz que fosse enfrentar as luzes da ribalta. O desejo de parecer atraente, que era evidente nessa mulher de braços grosseiros, seria patético se não houvesse no seu aspecto grotesco qualquer coisa que desarmava. Ela própria era uma piada, e via- se que o percebia e também achava graça. Ainda por cima, para acentuar bem o fantástico do seu todo, usava no olho esquerdo um monóculo sem aro e sem cordão. As viúvas ricas há pouco mencionadas concordavam em afirmar que, se não soubessem da vida dela, haviam de achá-la terrivelmente vulgar. Pouca coisa escapava ao olho vivo por trás do monóculo, e, perfeitamente cônscia disto, ela tomava o cuidado de dar a essas senhoras amplos motivos para tais observações.

- É engraçado - diziam com ar de queixa - que os homens pareçam gostar dela.

E era mesmo muito aborrecido que, depois de um jantar, quando os homens, tendo acabado o seu Porto, passavam para a sala de visitas, fossem reunir-se todos em torno de Jane e estoirassem em gargalhadas grosseiras, enquanto ela expendia as suas opiniões sobre as coisas em geral, com uma liberdade de linguagem rara na sociedade do campo. No entanto, o pai e a mãe eram pessoas tão distintas!

Mrs. Henderson, quando notou os pormenores da indumentária de Jane, franziu a testa.

-Minha pobre Jane! eu tinha vontade de saber porque é que te julgas na obrigação de te pintares tanto, numa tarde de Verão, para ficares metida aqui neste buraco.

- Não me sinto à vontade quando não me pinto - respondeu Jane, tirando o baton e esfregando-o nos lábios, que já estavam fortemente pintados.

-Pois não parecerias tão esquisita se não te pintasses.

Jane soltou uma enorme risada gutural.

-É muito amável comigo, mamã, mas eu gosto de si mesmo assim.

Mrs. Henderson, que não era desprovida de sentido de humor, replicou:

- És tão vulgar que os vizinhos hão-de pensar que houve qualquer disparate entre a tua mãe e um dos guardas-florestais. Isso não me recomenda muito, tanto mais que eu tinha dezanove anos quando nasceste.

- E sempre houve algum disparate, mamã?

Mrs. Henderson e May desataram a rir.

- Jane, tu és uma idiota.

Mrs. Henderson pôs algumas colheres de chá no bule e deitou-lhe água quente.

- Eles não vão demorar-se, pois não? Quem está a jogar?

-O papá e Tommy contra Dick Murray e Dora.

- Porque não veio então Jim tomar chá?

-Ora. porquê! Então achas que ele conseguiria arrancar-se de lá enquanto Dora estiver no campo do jogo?

- Não digas tolices, Jane - retorquiu Mrs. Henderson com certa rispidez.

Jane firmou mais o monóculo na órbita.

-A mamã percebe tudo. Eu sei que, por mim, nunca poderei esconder-lhe nada. Não sei se Dora está apaixonada por Jim, mas sei que Jim está tão apaixonado por ela que não pode mais. E a mamã sábe disso também.

Mrs. Henderson meteu as folhas de chá, enquanto a filha e a nora a fitavam com curiosidade. Afinal, encolheu ligeiramente os ombros.

- Ele tem só vinte e um anos, coitadinho. Há-de esquecê-la quando voltar para Oxford.

- Decerto não gostaria muito que ele fosse casar com uma estrangeira, pois não?

-As estrangeiras também são humanas, minha querida

- respondeu Mrs. Henderson, num tom que lhe parecia de considerável acrimónia. - já notei que nós, ingleses, às vezes, esquecemo-nos disso.

Jane inclinou-se para a frente na cadeira.

- Quer dizer que não se importa?

Por um momento, Mrs. Henderson permaneceu calada. E quando falou, mais parecia falar consigo própria do que responder a Jane.

-Ela é bonita e inteligente. Tenho muita pena dela. É sòzinha no mundo. Não tem lar nem pátria. E esse pesadelo de o pai ter sido morto num campo de concentração!

-Mas não deixa de ser alemã. Se rebentar a guerra, não podemos ficar com ela aqui.

-Teu pai diz que não vai havér nada. Ele considera absolutamente certo que, quando a guerra estiver próxima, Hitler cairá.

- O papá não gostaria que Jim se casasse com Dora.

Mrs. Henderson pousou alternadamente em Jane e em May os seus olhos suaves.

-Não sei. May está casada há oito anos e não tem nenhum filho. Nem tu, Jane.

-Que sugere como remédio? Arranjar outro motorista? - perguntou Jane.

Mrs. Henderson, embebida nos seus pensamentos, não prestou atenção à inconveniência.

-Temos isto aqui há duzentos anos. É o orgulho de teu pai. Não creio que ele faça muita questão de quem seja a mulher de Jim, desde que haja filhos para continuar.

Lançou um olhar à nobre fachada da grande casa. Depois os seus olhos percorreram o jardim externo, com a sua fonte italiana, as suas estátuas, os seus caminhos relvados e as suas flores multicolores, até se pousarem no parque. Havia ali árvores tão velhas como a casa. À sombra de um imenso carvalho estavam as vácas deitadas. Até onde a vista alcançava, aquilo era terra dos Henderson. Custava-lhes muito manter aquela vasta casa e aquela grande propriedade. Mas tanto ela como o marido amavam o seu lar, e quase não havia rendeiro cujo pai, avô e bisavô não tivessem cultivado as mesmas terras antes dele. Estavam dispostos a sacrificar-se para transmitir intactas aos seus sucessores a casa e as terras de que eram depositários em confiança.

Jane ia falar, quando avistou o general, que transpunha o portão de ferro.

- Lá vêm eles - disse.

O general Henderson era um homem alto, magro e hirto, com um rosto marcado de vincos, bronzeado, e tinha os cabelos brancos. Via-se que não podia deixar de ser um soldado. Mesmo em trajo de ténis, conseguia parecer bem-posto, e logo se notava que tinha uma minuciosa preocupação com a roupa. As suas maneiras eram enérgicas e autoritárias, mas não se podia conviver com ele por muito tempo sem descobrir que aquilo constituía, por assim dizer, uma deformação profissional; que no fundo era um homem bondoso e de trato fácil. Embora bravo e honesto, possuía a estreiteza própria da sua casta e carreira. Não era propriamente inteligente, mas tinha bom senso. Mais fàcilmente perdoaria uma injúria do que uma infracção das normas sociais. Podia-se confiar nele até à morte, mas nem sempre se podia contar com ele para proceder com acerto. Vinha a subir, agora, para o terraço, em companhia de seus dois filhos, e um instante depois apareceram Ian Foster, o marido de Jane, e Dick Murray, o administrador do general. Entre os dois vinha a rapariga de que Mrs. Henderson e sua filha acabavam de falar.

Dora Friedberg tinha vinte anos. Possuía cabelos muito loiros, uns grandes olhos azuis e inteligentes, a pele cor de mel. Era delgada, mas tinha o busto cheio, e a cabecinha airosa erguia- se altivamente sobre um pescoço adorável. Apesar da irradiação loira e saudável da sua juventude, havia na firmeza do queixo, na decisão da boca e no singular descanso dos olhos quando ela não falava, alguma coisa que sugeria uma vontade forte. Jane, que lhe dedicava uma instintiva antipatia, dissera ao marido:

- Não confio nada nessa pequena. Seria um demónio, se pudesse deitar as unhas de fora.

        Mas Jane não tinha razão ao afirmar que Dora era alemã.

ela era austríaca. Os Henderson haviam-na encontrado em Kitzbuehl, no Tirol austríaco, durante o Inverno que precedera o Anschluss. Estava hospedada com a mãe no mesmo hotel que eles. Frau Friedberg era uma senhora de aparência distinta, e Mrs. Henderson, que não deixava de ligar importância a essas coisas, não se surpreendeu ao saber que ela era de boa família. Falava pouco do marido, um advogado, que Mrs. Henderson desconfiava ser de classe inferior à dela.

        Era muito provável que depois da ruína da Áustria ela se houvesse disposto a casar com qualquer homem que lhe oferecesse segurança. Os dois rapazes, Jim e Tommy, gostaram da rapariga, viva e bonita. Jim fez longas excursões com ela.

        Dora era uma esquiadora maravilhosa. Um ano depois, escreveu a Mrs. Henderson para dizer que seu pai morrera num campo de concentração e que ela estava com vontade de ir para a Inglaterra, a ver se conseguia trabalho. Pedia a Mrs. Henderson que a ajudasse a procurar. Mrs. Henderson, cheia de pena, depois de consultar o general, escreveu dizendo a Dora que viesse para junto deles enquanto se tratava de arranjar-lhe alguma coisa. Mas não era fácil naquela ocasião encontrar emprego para uma refugiada austríaca. Dora sabia cozinhar e estava pronta a fazer serviços domésticos, mas a ideia não agradou a Mrs. Henderson. Além disso, todos concordaram em que, bonita como era, naquela situação ficaria inevitàvelmente exposta a coisas desagradáveis. Pediram-lhe que esperasse até se conseguir emprego adequado à sua educação e cultura. E, enquanto esperava, ia-se tornando útil. O general era juiz de paz e presidente do conselho do condado local, e Mrs. Henderson, muito ócupada com obras de caridade, fazia parte de inúmeras comissões. Acharam ambos que seria muito conveniente disporem de uma secretária activa e inteligente. Com jim em Oxford e Tommy no colégio, ficavam às vezes sozinhos durante meses, e a presença da encantadora rapariga trazia vida à grande e magnífica residência. Foi o general quem sugeriu que ela ficasse com eles indefinidamente. Dora aceitou, com uma gratidão que os comoveu. Os Henderson haviam-na acolhido com a bondade que lhes era característica, mas não tardaram a olhá-la com verdadeiro afecto. A rapariga passou a fazer parte da família. No coração de Mrs. Henderson ela tomou o lugar das duas filhas que tinham nascido entre Roger e Jim, e cuja morte, quando ainda crianças, continuava a ser para ela motivo de tristeza.

Mrs. Henderson começou a servir o chá.

- Como foi que jogaste hoje, Tommy? - perguntou, sorrindo, ao rapazinho desalinhado e desgrenhado, o filho mais novo, quando ele se sentou á mesa do chá.

- Estive ao fundo - respondeu ele com a sua voz aguda.

- Custou-nos a ganhar.

- Se estivesses em forma, então, não chegaría mos a fazer nem um ponto, acho eu - disse Dick Murray com um sorriso.

- Isso mesmo. Pode troçar à vontade.

Estendeu o braço fino e agarrou num grande pedaço de bolo.

- Pão com manteiga primeiro, meu filho - disse a mãe.

- Que vida! - queixou-se. - Pensei que nas férias pudesse ter um bocadinho de felicidade.

Examinou cuidadosamente a bandeja e pegou no menor pedaço que pôde descobrir.

- Levas uma vida amargurada, hem, rapaz? - gracejou o general.

Mrs. Henderson lançou ao filho um olhar de divertida ternura. Era o mais novo, muitos anos mais novo que os demais, e ela adorava-o. Havia nos seus membros magros, naquele corpo esguio e naquele rostinho liso e engraçado, alguma coisa que lhe tocava o mais fundo do coração. Precisava conter-se constantemente para não o encher de mimo. Mas o menino crescia tão depressa, parecia tão frágil, era tão desassossegado, vivia tão ocupado de manhã à noite com uma coisa ou outra, que ela ás vezes assustava-se. Não imaginava o que faria se algo lhe acontecesse.

Chegando ao terraço com os outros, Dick Murray lançou um rápido olhar em volta e adiantou-se, como para se sentar na cadeira vaga ao lado de May. mas ela olhou para ele de modo claramente significativo, porque Dick mudou de ideias e foi sentar-se junto de Mrs. Henderson. Jane, soprando baforadas de fumo, notou a cena. Contemplou Dick pensativamente: Um tipo de aparência nada desagradável. Era jovem, quatro ou cinco anos mais novo que ela, mas os seus cabelos, abundantes e ondeados, estavam prematuramente grisalhos; e isto, em contraste com a sua pele lisa e queimada, era particularmente atraente, tornava-lhe ainda mais azuis os belos olhos e mais escuros os cílios. As feições não eram muito regulares, tinham mesmo certa aspereza, mas ao sorrir ele mostrava uma fileira de dentes muito brancos e iguais. Era de corpulência mediana, com ombros largos e altura não acima da média. Os olhos tinham um brilho simpático e o seu rosto irradiava um grande bom humor. Todos gostavam dele. A sua vitalidade era tão grande que fazia bem estar ao seu lado. E se havia nele alguma coisa agressivamente animal, em compensação aquilo era tão saudável, tinha tanta simpatia e tanta simplicidade natural que não chegava a ofender, era apenas estimulante.

Deve ser um amante maravilhoso, reflectiu jane.

Com um sorriso sarcástico nos lábios pintados, ela voltou a olhar para o marido. Ian Foster afundara o seu imenso volume numa cadeira de vime, que estalava sob as suas duzentas libras. Era um homem corpulento e corado, com um vozeirão ruidoso. A sua gordura era uma ignomínia. Passou o lenço pela testa.

- Não sei porque sentes calor - disse-lhe Jane àsperamente. - Não estiveste a jogar.

- Eles correm de um lado para o outro com tanto entusiasmo que só de vê-los sinto calor. Fiquei com tanta sede que morro se não tomar um whisky com soda.

- Tu vais tomar é chá, Ian - replicou a esposa com firmeza. - Se te mexesses um pouco mais, talvez te livrasses dessa horrivel gordura.

-Que foi que Salomão disse a respeito das mulheres importunas?

-Nada. Ele disse que uma esposa virtuosa vale mais do que rubis.

-Considerando que me tens sido flagrantemente infiel durante anos a fio, não vejo em que isto se aplica a ti, Jane.

-Que é que esperavas quando te casaste com um tipo de beleza?

- Idiotas! - exclamou Mrs. Henderson, envolvendo-os a ambos num sorriso afectuoso.

Estavam acostumados a ouvir Jane e Ian dizerem desaforos. Os dois brigavam o dia inteiro, e se um fazia baixar a cabeça ao outro, isso era motivo de grandes risadas. I ninguém melhor que Mrs. Henderson sabia como Jane amava aquele homem corpulento, pesadão e loquaz, e quanto ele era dedicado àquela criatura feia e desairosa, que, por um estranho capricho da Natureza, era sua filha. Embora ele estivesse constantemente á encolerizar-se com ela e se pusesse a descompô-la numa linguagem de incrível violência, o facto é que dependia inteiramente dela e sem a mulher estaria perdido. Eram ambos figuras cómicas e o seu casamento era um casamento perfeito. Para ele, Jane era a maior, a mais divertida, a mais inteligente e a mais verdadeira mulher do mundo.

O general olhou o relógio:

-Onde andará esse diabo de Roger? - perguntou. - Já devia estar aqui.

- Ele não deve demorar-se - respondeu Mrs. Henderson.

- O secretário telefonou do Ministério da Guerra há duas horas, dízendo que ele acabara de sair.

- Deves estar a esperá-lo, não, May? - disse Jane.

May corou um pouco e sorriu.

- Naturalmente, Depois de cinco meses!

- Ele trará, com certeza, as últimas notícias - Disse Dora.

Era a primeira vez que falava. Tinha uma voz agradável, com um sotaque alemão muito leve. O general voltou-se para ela com um sorriso bondoso no rosto magro e curtido.

-Acredita-me, Dora, não há motivo para te alarmares.

Não haverá guerra. Chamberlain livrar-nos-á dela, como já nos livrou no ano passado.

- Será um sarilho para ti se houver guerra, hem, Jim?perguntou Jane.

Jim olhou-a com frieza.

- Sem dúvida.

- Ainda continuas pacifista, não?

O general baixou o olhar, franzindo ligeiramente a testa, e Mrs. Henderson fitou a filha com um ar de contrariedade. As opiniões de Jim eram um assunto que ela preferia manter fora da conversa. Jim e o pai já haviam tido várias discussões acerca disso, dizendo um ao outro coisas que seria melhor ficarem por dizer. Porque não compreendiam que ele era apenas um rapaz de vinte e um anos e que naquela idade era natural ter pontos de vista extravagantes? Mudaria quando fosse mais velho e aprendesse alguma coisa da vida. Era pacifista como era comunista. As duas atitudes não passavam de uma expressão do natural idealismo da juventude. Bastava olhar para ele. Era tão alto como o pai, de ombros largos e bem feito de corpo, com um rosto bonito e sensível, mais sensível que o de Roger, e entretanto com a mesma semelhança familiar. Não havia nele nada de repulsivo ou anormal; era, com efeito, um jovem impetuoso e viril. Excelente atleta, fizera parte da equipa de remo do seu colégio, representara a sua universidade em torneios e era, não obstante, um trabalhador incansável. Dos seus filhos, sempre fora o único que procurara os livros sem ser por obrigação. Roger também era um grande leitor, mas só lia o que interessava imediatamente á sua profissão; era um espírito unilateral. Jim, ao contrário, tinha preocupações muito amplas. mesmo dando o devido desconto à sua parcialidade de mãe, Mrs. Henderson achava-se com direito a alimentar altas esperanças no futuro dele. Fizera um bom curso no colégio e estava bem classificado em Oxford. Era um bom orador, e ia formar-se em Direito. A que alto posto seria possível chegar? Mas decerto era preciso que fosse sensato. Mrs. Henderson teve curiosidade em ouvir a resposta que o filho daria à pergunta provocadora de Jane. Jim voltou-se para ela gravemente e falou sem violência, mas com uma firmeza impressionante. Olhou a irmã nos olhos.

-Sim, ainda sou pacifista. A guerra não resolve nada. mais que iníqua, é estúpida. Há muitos como eu em Oxford, e, se houver guerra, recusamo-nos a lutar.

- Dizes isso agora, meu velho - interrompeu Ian com um riso tolerante no seu rosto gordo e vermelho-, mas, se a guerra rebentar, mudas logo de opinião. Deus sabe que eu não quero a guerra, mas se ela vier entro nela.

- Não sejas louco, Ian - exclamou Jane. - Tu és gordo e velho de mais para combater.

- Queres fazer-me o obséquio de calar essa boca? - replicou-lhe.

O olhar de Mrs. Henderson passou por sobre o jardin, perdendo-se pelo parque além. O sol-poente banhava-o de uma beleza doirada. As árvores, os carvalhos nodosos, com a sua folhagem escura, o verde viçoso da relva, o brilho do lago, aquilo era admírável! Nem um sopro de vento fazia estremecer as folhas. Dava uma impressão de tão perfeita paz celestial e tranquilidade que parecia estar destinado a durar para sempre. Tinha-se o estranho sentimento de que aquele instante não passaria; as vacas deitadas em baixo das árvores nunca se ergueriam, a noite jamais viria. O tempo parava, como que cansado da sua incessante peregrinação. Mrs. Henderson soltou um leve suspiro.

-Quando eu fui à aldeia hoje de manhã, achei toda a gente tão feliz, tão bem disposta e contente! E agora, quando vejo esta calma, com todos vocês aqui, não posso acreditar que haja qualquer possibilidade de guerra.

Mas Jim continuava a olhar Jane com seriedade.

- Há mais alguma pergunta que queiras fazer?

- Não, não há - disse Mrs. Henderson bruscamente - Deixem passar pelo menos o dia de hoje sem discutir.

Dick Murray, com o seu bom humor e o seu tacto, lançou uma observação displicente no meio daquela conversa que já ameaçava perder a amenidade.

-Roger teve sorte em conseguir vir até cá, Mrs. Henderson. Seria uma decepção para a senhora se ele não voltasse a tempo.

-Seria mesmo. Posso ser imensamente sentimental e antiquada, mas tenho de reconhecer que representa muita coisa para mim ver toda a família à ninha volta no meu aniversário.

- Oxalá Roger não venha tão misterioso como de costume - disse Ian.

- Ele é um agente secreto, não é? - intrometeu-se Tommy. - Quando se é da espionagem, faz-se muito bem em ser misterioso.

- Eu gostaria de entrar para os serviços secretos - continuou Ian. - é exactamente o género de ocupação que me convém.

- Pelo amor de Deus, que é que te leva a pensar assim? - exclamou Jane, fixando-o com o monóculo. - Eles precisam de cérebros para isso, rapaz, cérebros, ouviste?

Ian soltou uma grande gargalhada. Jane dava-lhe uma oportunidade, e ele aproveitou-a.

-Achas que, se eu tivesse um bocadinho de inteligência, nunca me casaria contigo. E não sei se não terás carradas de razão.

Mas, antes que Jane pudesse imaginar uma resposta esmagadora, Mrs. Henderson soltou um grito.

- Roger!

Ele estava de pé diante de uma das portas que davam para o grande hall da casa, fronteiro ao terraço. Viera sem ruído, como de costume, e olhava-os com um sorriso divertido. Aproximou-se e, abraçando-a, beijou afectuosamente a mãe. Tommy levantou-se de um pulo e passou-lhe os braços em redor do pescoço.

-Ainda não estás velho de mais para seres beijado, pois não, rapaz? - disse Roger, abraçando-o com força.

Depois voltou-se para a esposa. Esta erguera-se ao vê-lo, levando a mão ao coração como para conter as pulsações. O rosto pálido ficou ainda mais descorado. Quando Roger a beijou, ela desviou ligeiramente a boca, de modo que os lábios de Roger só lhe afloraram a face.

-Olá, May! Estás com um aspecto magnífico.

- Fizeste boa viagem, Roger? - perguntou ela.

-Mais ou menos. Um pouco cansativa.

Cumprimentou os outros todos, até que os seus olhos encontraram uma estranha.

- É Dora Friedberg - disse Mrs. Henderson. - Esqueci-me de que não tinhas vindo cá desde que ela está connosco. Tem-nos valido de muito.

-May escreveu-me contando que havia uma amiga a morar aqui com vocês.

-O general e Mrs. Henderson têm sido muito bons para mim - disse Dora com um breve sorriso.

- Qual nada, minha querida - disse o general. - Não sei o que teríamos feito sem ti neste casarão, se só morássemos aqui minha mulher e eu.

Roger voltou-se para a mãe e tirou do bolso uma caixinha.

-Trouxe-lhe este presente de Varsóvia, mamã. Que a data se repita muitas vezes.

i Beijou-a novamente. O presente era um broche antigo. i Mrs. Henderson, corada de prazer, colocou-o no peito. Roger

era o seu filho mais velho, e o predilecto. Viria a herdar a propriedade. Ela contemplava-o agora enquanto ele sorvia o chá e comia bolo, falando com desembaraço, e pensava com orgulho que o filho era uma bela figura de homem. Também Roger era alto, de ombros largos e bem lançado, mas o seu rosto era mais enérgico que o do pai ou o de Jim. Havia decisão, severidade mesmo, nos seus traços bem marcados, e os seus olhos eram argutos e observadores. Frequentemente pousavam um instante em Dora. Mrs. Henderson sabia que o filho estava a estudá-la. Quando ele acabou de comer, perguntou-lhe se não queria entrar para vestir qualquer coisa mais fresca. Roger trazia um fato de casimira azul.

-Tu e May estão nos quartos do costume.

-Se quiseres que eu te dê uma lição de t nis depois de mudares de roupa, estou às ordens - disse Tommy, rindo.

- É múita bondade, meu velho - sorriu Roger. – Receio não poder ficar, mamã. Preciso de voltar para a cidade depois do jantar.

- Oh, Roger!

- Eu não queria faltar ao seu aniversário, mas estou cheio de trabalho no Ministério da Guerra.

O general empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé.

- Vem á biblioteca comigo, Roger - disse ele. - Quero conversar um pouco contigo.

- Oh, George, ele quer falar com May! - interveio Mrs. Henderson. - Não a vê há tanto tempo!

-Deixa-o comigo uma meia hora, May. Depois disso, disporás dele á vontade.

- Pois não - respondeu ela.

Quando o general e Roger se afastaram, Dick Murray levantou-se e disse que Precisava de se ir embora.

- Não quer jogar mais ténis? - perguntou Tommy.

-Acho que não posso. Tenho que fazer na aldeia.

- Podia trazer-me uma encomenda - disse May. - Vou buscar o apontamento e levo-lho ao carro.

Foi para dentro de casa. Dick estava ao volante quando ela saiu pela porta da frente com um sobrescrito na mão.

- Estás assustadoramente pálida, querida - disse ele em voz baixa, quando May lhe entregou o sobrescrito.

-Estou nervosa, é mais que natural.

-Queria poder ficar contigo.

-Tenho de resolver sòzinha.

No seu rosto simpático e queimado do sol passou uma sombra de inquietação; os ulhos, de pestanas negras, tinham uma expressão atormentada. Sorriu.

- Não fiques tão preocupado. Cá me arranjarei. É melhor que te vás embora.

Ao pôr o motor a trabalhar, Dick olhou para a carta que ela lhe dera. Viu o próprio nome escrito. Ao transpor os portões do parque, parou o carro e abriu a carta. Era uma folha de bloco de notas, com uma palavra sómente, escrita a lápis: Amo-te.

 

May foi para o quarto. Queria concentrar-se. Precisava de ter a certeza de que diria exactamente o que tencionava dizer. Um calafrio percorreu-lhe a espinha e o coração pareceu deixar de bater um momento quando pensou na provação que ia enfrentar. Mas estava decidída a arrostá-la.

Finalmente, ouviu Roger entrar no quarto contíguo.

- May - chamou ele.

- Estòu aqui.

Roger entrou.

-Andava à tua procura.

-Queres sentar-te um pouco? Preciso de ter uma conversa contigo.

- Isso agrada-me! - respondeu ele alegremente. - Como é bom voltar para casa! A mamã está óptima, não achas? E Tommy está espigado. Quando acabar de crescer, vai ficar da altura de Jim.

Ela olhou firmemente, embora o coração lhe começasse a bater mais depressa. Tinha a garganta seca. Era horrível ficar tão assustada. O único remédio era fechar os olhos e saltar. Conhecia Roger o bastante para saber que de nada servia tentar rodear o obstáculo.

- Roger, quero que me concedas o divórcio.

- May! - exclamou ele, olhando para ela com pasmo e horror.

- Por favor, não fales. Quero que me ouças. Foste sempre bom para mim. Não tenho nada a censurar-te. O que há sòmente é que não posso viver assim. Sinto-me terrivelmente só.

Os olhos dele reflectiram súbita consternação.

- Minha querida.

-Não te censuro por isso. Sei que não tens culpa nenhuma.

- Reconheço que tenho estado afastado muito tempo. Eu levava- te comigo, se pudesse. Mas não posso. A minha profissão é de um género muito especial, tenho de contar só comigo.      

- Compreendo isso.

- Deves saber que te amo, May.

Ela teve um sorriso ligeiramente desdenhoso. O pior havia passado, e agora já dominava os nervos.

- Acredito que me ames, a teu modo. Porém, esse modo não me traz muita felicidade. Amas-me como amas um fato velho, porque te sentes á vontade nesse amor. Gostas de me imaginar sentada no apartamento, à tua espera, pronta para receber-te quando regressas de uma das tuas missões secretas. Ele remexeu-se na cadeira, desassossegado:

- Apresentas-me como uma criatura horrivelmente egoísta.

Ela sacudiu a cabeça.

- Deus sabe que não és. Reconheço que o teu trabalho é importante e que o desempenhas muito bem. Apenas, é falta de sorte minha, não haver outro papel para mim na tua vida senão o de ficar sentada à espera. É isto que tenho feito durante anos: esperar. Estou cansada.

Ele fez um movimento insólito com as mãos e depois bateu-as uma de encontro à outra. Era como se estivesse aflito mas não quisesse trair- se. May notou-o e pensou com melancolia que aquele gesto instintivamente reprimido bem revelava a sua vida de casados. Olhou tristemente.

- Já reparaste que depois de oito anos de casada eu ainda tenho um pouco de medo de ti?

- Oh! May! Que coisas terríveis dizes! - exclamòu ele.

- É verdade. Não achas que é de fazer pena? Eu não te conheço, bem o sabes. Só conheço o lado que resolveste mostrar-me. Desconfio que há um outro lado que é duro e cruel.

Ele desviou o olhar rápidamente, como se tivesse na alma alguma coisa que não desejava mostrar à esposa.

-Não sabes o que é abandonares-te. És incapaz de uma intimidade.

Roger tornou a olhar para ela, desta vez com um sorriso bem- humorado.

-Não achas que estás a ser um pouco melodramática, minha querida? Eu sempre me considerei como um indivíduo muito simples. Procuro o meu dever, trato de fazer o meu trabalho o melhor que posso.

- E o teu trabalho é o que há de mais importante na vida, não é? Muito mais importante do que eu.

- Será preciso responder a isso? - disse a rir.

-Gostaria que o fizesses.

- Eu não faria bom juizo de um homem que deixasse o amor pela esposa misturar-se ao cumprimento do seu dever. Querias-me diferente?

Ela suspirou.

- Imaginava que fosses tão feliz como eu - continuou ele.

-Se não vivesses tão absorvido pelo teu trabalho, terias notado, há muito tempo, que alguma coisa se passava.

- Não queres que deixe de trabalhar.

- Naturalmente.

- Então que pretendes que eu faça?

-Não há nada que possas fazer. Eu quero viver. Quero ser feliz. Tenho vinte e oito anos, Roger. Se não romper agora, depois será muito tarde.

Era evidente que ele estava profundamente amargurado, e, a May, custava-lhe fazê-lo sofrer. Mas ao mesmo tempo sentia que ele a achava absurda. Roger não compreendia; lançou-lhe um olhar penetrante, e ela ficou vermelha.

- Amas alguém?

- Amo.

Ele hesitou um momento. Os seus olhos pareciam querer penetrá-la até o mais profundo da alma.

-Podes dizer-me quem é?

- Dick Murray.

- Dick?

No seu rosto e no tom em que falara era evidente a surpresa. Sem dúvida era Dick a última pessoa no mundo de quem ele poderia imaginá-la enamorada.

- E ele gosta de ti?

- Gosta.

Ficou em silêncio por um instante. May sabia que ele detestava cenas, e como era capaz de se dominar. Ficaria envergonhado se demonstrasse emoção. Tirou um cigarro e acendeu-o vagarosamente.

-Há pessoas com sorte-disse afinal. -Ele não tem nada no mundo a não ser o dom de se tornar agradável.

A cerimónia do tom fê-la enrubescer e quase a impeliu a dar uma resposta violenta. Mas conteve-se; estava decidida a não se exaltar. Seria horrível se começassem a dizer um ao outro coisas cruéis e amargas. Forçou um breve sorriso.

-Ele é o melhor administrador que teu pai já teve. o único que conseguiu fazer render a propriedade.

- É um óptimo administrador, não há dúvida. Foi por isso que lhe dei o emprego.

Foi a vez de ela o fixar penetrantemente.

- Ele não é meu amante, quero que saibas.

-Nem me passou pela cabeça que fosse. Posso não te conhecer muito bem, May, mas sei pelo menos que és incapaz de fazer qualquer coisa às escondidas.

-E Dick tão pouco. A culpa não é nossa, Roger. Não quisemos apaixonar-nos, mas não pudemos evitá-lo. Ele deve-te tudo. Tem a consciência de que foi ingrato.

-É um bom rapaz e muito simpático. Vocês ficaram juntos muito tempo, não é de admirar que viesses a interessar-te por ele.

-Sei que ele não é tão inteligente como tu. Tens diante de ti um belo futuro. Mas sinto-me tão à vontade com ele, Roger! Eu não estou realmente á tua altura. Com Dick é diferente: eu e ele falamos a mesma linguagem.

-Como pensas que irias viver se te casasses com ele? Dick mal se sustenta aqui como administrador de meu pai.

- Podia arranjar outra colocação.

-Não fazes ideia de como é dificil agora arranjar um emprego.

- Isso é connosco. Queremos casar logo que eu esteja livre.

Ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro no quarto. Reflectia profundamente. Parou diante da cadeira de May.

- Será um golpe terrível para meus pais. Não posso imaginar nada que os ferisse mais.

-Eles sempre foram muito bons para mim, mas eu seria uma idiota se não percebesse que fui uma desilusão para eles. Teu pai queria por força que eu tivesse um filho. Depois de passado o choque não se hão-de incomodar muito. Pensarão que te casarás novamente e que então terás mais sorte.

-Vocês já combinaram tudo, não?

-Não pensei noutra coisa, durante semanas.

- E suponhamos que eu chegue à conclusão de que isso não passa de um entusiasmo passageiro e me recuse a conceder o divórcio?

- Irei viver com Dick e forçar-te- ei a divorciares-te.

Ela viu-o franzir o cenho e quase sorriu, pois sabia muito bem no que ele estava a pensar. A simples ideia do escândalo que tal facto provocaria lhe causava arrepios. Mas quando ele falou, foi para ela sofrer um abalo como nunca esperara.

- Acho que convém saberes que os alemães vão invadir a Polónia amanhã e que dentro de vinte e quatro horas estaremos em guerra.

May soltou um grito de horror. Ele prosseguiu.

-Não quis falar nisso. Pareceu- me que vocês viriam a saber. e preferível deixar minha mãe festejar o aniversário. Dick está na guarda territorial. Será chamado imediatamente. A guerra vai ser longa e cruel. Ninguém sabe o que pode acontecer a qualquer de nós.

-Oh! que coisa horrível!

- Dick pode ser morto, ou eu. Não é altura de ninguém pensar em si próprio. Os Franceses não estão preparados, nem nós. Os Alemães darão tudo para conseguir uma vitória rápida. Todos nós participaremos na guerra, todos os homens e todas as mulheres do país.

May tentou dominar-se, mas não pôde. Começou a chorar. Ele pôs-lhe, suavemente, a mão no ombro.

- É possível que eu não tenha sido um marido muito bom. Pobre May! Quero que sejas feliz. Mas não achas que neste momento devemos esquecer os nossos interesses particulares? Peço-te por amor de ti própria, por amor de todos nós, que esperes até depois da guerra. Se então ainda estiveres com a mesma ideia, prometo que te darei a liberdade o mais cedo possível.

Ela suspirou profundamente. Estava aniquilada.

-Pois bem, Roger. Esperarei.

-Como todos os outros, tens de fazer o teu sacrifício, minha querida.

-Terei gosto em ser leál.

- Podes guardar isto no fundo da memória: que te amo muito, que te amarei sempre e que não desejo no mundo nada mais que a tua felicidade.

- Excepto ganhar a guerra? - disse ela com um sorriso irónico.

- Excepto isso - respondeu ele gravemente.

E com essa resposta, May viu que ele já não estava a a pensar nela. Continuaram sentados, em silêncio.

- Não é melhor que vás ver a tua mãe? - disse ela, afinal. - Se vais partir, hoje, depois do jogo, não há outra oportunidade de conversar com ela.

-Tens razão, acho melhor.

Desprendeu-se com má vontade das suas reflexões e levantou-se. Olhou para May um instante; mas os seus olhoS estavam frios e os seus lábios apertados. Ela sabia no que ele pensava: estava aborrecído pelo facto de ela lhe ter metido na vida, justamente naquele instante, uma complicação que podia distraí-lo dos assuntos prementes que tinha a tratar. Não era culpa sua. Se ele lhe tivesse dito antes que iria haver guerra, não falaria. Teria pelo menos aguardado os acontecimentos. Suspirou. Achava insensato esperar que numa crise tão terrível a sua felicidade pudesse merecer dele qualquer consideração especial. E, naturalmente, não podia merecer, a não ser dela própria - e de Dick.

Roger encaminhou-se para a porta, mas antes de abri-la voltou-se para ela. Teve um risinho, e quando falou, fê-lo no tom habitual de animação e alegria. Naquele momento, aquilo espantou-a positivamente.

- Ah! ia-me esquecendo. Trouxe um presente de Varsóvia para ti, também. Logo que o ví achei que era exactamente a coisa de que havias de gostar.

Tirou do bolso um pequeno embrulho de papel de seda, e desfazendo-o, entregou-lhe uma gargantílha de ouro curiosamente trabalhada.

- A menos que me enganassem, é coisa antíga.

- É uma maravílha - disse May ao tomá-la nas mãos.

E era. Devia ser russa ou polaca. May ficou encantada com a sua delicada beleza, comovida com o facto de Roger se ter preocupado em procurar alguma coisa que fosse tanto do gosto dela. Mas ao mesmo tempo via-se sèriamente embaraçada. Parecia-lhe chocante aceitar um presente dele logo depois do que se passara.

- Não posso aceitar, Roger - exclamou ela lamentosamente.

- Ora, porque não? Com certeza que vais aceitar. É boa de mais para Jane, e eu, pràticamente, tirei-a das mãos da mulher do embaixador francês, que ficou louca por ela. Não séjas tola, May.

Falou com tanto bom humor, com tal jovialidade amiga que ela ficou sem saber que dizer, e corou fortemente.

- Muito obrigada, Roger. É muitíssima bondade tua.

- Isso! Assim é que eu gosto de ver.

Tinha um brilho irónico nos olhos quando a cumprimentou com a cabeça e se retirou. May olhou para a porta que ele fechara ao sair, como se pudesse vê-lo caminhar pelo corredor até o quarto da mãe. Sabia que o modo de Roger, bastante animado até aquele momento, se transformaria quando fora do alcance do seu olhar, e que no rosto tinha de novo o ar duro e vigilante de que se revestia quando julgava que não havia ninguém a vê-lo. Mas se estava a pensar nela ou na guerra iminente, era coisa que não saberia dizer; o que sabia era que ao entrar na sala de visitas de sua mãe, ele não deixaria transparecer nenhum vestígio de ansiedade ou preocupação, e que ela o acharia como sempre, meigo, simpático e ternamente afectuoso.

May suspirou. Afundou-se numa cadeira e deixou o olhar vago fugir pela janela aberta. Nunca o entendera verdadeiramente. Era um homem estranho e subtil. Seria falso? - Não, não havia motivo para o considerar assim: não era fingida aquela agradável simpatia com que lhe dera o presente que ainda tinha nas mãos. sempre gostara de lhe dar lembranças, e realmente sentia tudo o que aparentava sentir; era-lhe natural aquele ar brincalhão, irónico e leve, um ar que i nspirava confiança justamente porque era sincero. E, no entanto, não passava de uma capa que encobria a activa e calculada prudência interior. Vivia absorvido pelo trabalho, e quando encontrava qualquer pessoa, julgava-a de acordo com a utilidade que pudesse apresentar nesse sentido. Mesmo quando parecia alegremente entregue aos prazeres sociais, ela sabia que no fundo da imaginação ele estava a revolver os sinuosos planos que vivia a urdir. Às vezes achava que a única delícia pura jamais experimentada pelo marido era a sensação de triunfo ao frustrar os projectos de algum dos possíveis inimigos da Inglaterra ou ao descobrir alguma trama engenhosa que talvez resultasse em prejuízo ào país. Naturalmente, os seus motivos eram patrióticos; ninguém amava com mais fervor a Inglatérra do que ele, mas May suspeitava de que havia no seu temperamento, implacável e úm tanto assustador, alguma coisa que o fazia sen tir úm prazer especial no seu trabalho secreto. Sendo puro o móbil da sua acção, deleitava-se com os processos que empregava para combater os ardis dos seus adversários, opondo a sua argúcia contra a deles. Nesse jogo em que se arriscava, as paradas eram a segurança e a liberdade da Inglaterra; e tão absorvente o achava que não podia detér se para considerar os sentimentos alheios. Era verdade aquilo que ela dissera: não havia na vida de Roger lugar para ela.

May sorriu com amargura ao pensar que um dia imaginara amá-lo. Agora que sabia o que era o amor, percebia claramente, demasiado claramente, que não se casara por amor. Aquilo acontecera tão naturalmente que ela não podia censurar-se. O pai morrera-lhe na guerra anterior e a mãe ficara com pouco mais que uma pensão para sustentá-la. Fora companheira de escola de Mrs. Henderson; e quando enviuvou, os Henderson ofereceram-lhe um dos cottages na aldeia. Ficàva apenas a uma milha de Graveney Holt, e as duas familias passaram a ver-se constantemente. Desde muito cedo May compreendeu que sua mãe e a de Roger haviam resolvido casá-la Com ele: Ambas atribuíam grande importância à questão de família, e os pais de May, embora pobres, eram o que se chama bem relacionados. Mrs. Henderson, por seu turno, era excessivamente desinteressada para que desse importância ao facto de a futura nora não ter dinheiro. Roger tornara-se um rapaz alto e bonito, e quando vinha passar as férias a casa, primeiro as férias do colégio e depois as de Sandhurst - ela tornava-se um amor juvenil para ele. Juntos, eram como irmão e irmã. O estranho é que naquela época existia entre os dois maior familiaridade do que depois de casados. Ela adorava-o, tal como a mãe dele, mas agora sabia que aquele sentimento nada tinha a ver com o amor. Era um entusiasmo de menina de colégio por um rapaz cinco anos mais velho.

Mrs. Henderson sempre gostara dela, e ficava contente com aquela admiração pelo filho de quem era tão orgulhosa. Tratava-a como se visse nela a futura dona da casa. Esforçou-se por transmitir a May o seu próprio sentimento de amor nobre pela mansão. Fê-la amar as belèzas da casa. Ensinou-a a admirar as preciosas peças de mobiliário e contou-lhe a história dos antepassados cujos retratos pendiam das paredes. Comunicou-lhe o seu próprio sofrimento quando dificuldades económicas forçaram o general a vender o Filippino Lippi e o Goya. Era inconcebível que uma rapariga deixasse de ficar deslumbrada com o esplendor ligeiramente falseado que a envolvia ao entrar na grande casa, vinda do modesto cottage na aldeia. Aquilo parecia-lhe o seu verdadeiro lar, e não podia deixar de planear o que faria quando se tornasse dona. Nem podia ser insensível à certeza (geral no condado) de que já desde há muito tempo estava resolvido o seu casamento com Roger. Havia nas vizinhanças várias mães cujas filhas se inclinavam a pensar que Roger tinha coisa melhor a fazer do que casar-se com uma rapariga pobre, filha de um oficial de marinha já falecido; mas como a situação parecia assente, decidiram considerá-la de um ponto de vista romântico. Às vezes May ficava imaginando o que pensaria Roger de tudo aquilo. Ele era comunicativo e amistoso, fazia-a procurar e levar coisas para ele quando era menino, jogava t nis e golf com ela quando se tornou rapaz, dançava com ela, dirigia-lhe gracejos alegres - mas nunca demonstrara que estivesse ao par dos planos maternos a respeito do futuro de ambos.

Depois morreu a mãe de May. Foi para ela um golpe terrível. Não sabia se o teria suportado se não fosse a extremosa bond áde de Mrs. Henderson para com ela. May não tinha mais nada al m da sua pensão como filha de oficial de marinha. Estava com dezanove anos e queria trabalhar para ganhar a vida. Era bonita, e a primeira coisa que lhe ocorreu foi que poderia tornar-se manequim. Mas Mrs. Henderson não quis ouvir falar no assunto. Jane casou por aquela altura, e Mrs. Henderson insistiu com May para que ficásse com eles até se casar também, e pela primeira vez lhe revelou o plano de cuja existência ela vagamente suspeitava. Disse a May que a amava como se fosse sua filha, e que o seu maior sonho e o de sua mãe era que ela desposasse Roger. May era demasiado franca para fingir uma surpresa que não sentia.

- Eu seria completamente tola se não soubesse que a senhora e minha mãe combinaram isso quando eu tinha quatro anos e Roger nove.

-Gostas de Roger?

- Decerto que sim. Desde que me conheço.

-Então que é que te impede de casares com ele o mais cedo possível?

        - Sòmente Roger. É preciso que ele seja ouvido também.

- Oh! Mas Roger é louco por ti.

- Se é, nunca mo disse.

- Com certeza pensava Que tu sabias. Os homens costumam fiar-se tanto nas coisas!

- Há limites.

- Tu casarias com ele se te pedisse?

- Naturalmente que sim. - May ficou vermelha. – Mas a senhora vai fazer-me o favor de prometer que não lhe insinuará isso. Não posso suportar a ideia de que ele casaria comigo só para lhe ser agradável.

Mrs. Henderson sorriu.

- Minha querida, nunca te passou pela cabeça que és excepcionalmente bonita?

- Prometa-me o que lhe pedi.

- Compreendo. É muito natural. Prometo que nunca direi uma palavra a Roger. considero-o bastante inteligente para perceber que se não tomár conta de ti, outro qualquer tomará. - Olhou para May com ternura: - Prefiro confiar-te a meu filho do que a Qualquer outra pessoa no mundo. Sei como és boa, sei que não és nenhuma tola. Tens bom génio e és uma lady - e eu, por mim, sou bastante antiquada para dar importância a isso. Mais tarde ou mais cedo Roger será dono da propriedade, e se eu ainda estiver viva será um conforto para mim a ideia de que posso passar com segurança esta casa às suas mãos.

- É melhor não contár com os passarinhos a voar.

-Tenho tido uma vida infeliz, e só quero agora um neto para embalar no meu colo. Tu deves ter filhos bonitos, minha beleza.

May, apesar de nova, nessa altura, avaliava entretanto o fervor com que o general e Mrs. Henderson desejavam ver assegurada a sucessão da propriedade. A fortuna da família começara de modo não muito glorioso, durante a Restauração com um pároco esperto e mundano que desposara uma parenta pobre do grande lorde junto do qual exercia as funções de capelão doméstico. O lord achou-o útil e ajudou-o. Daí a tempos chegava a bispo, e, morrendo-lhe a esposa, fez um casamento muito interesseiro com a herdeira de um rico lojista da City. Quando o filho nascido dessas núpcias chegou à idade própria, casou-o com outra herdeira rica. E foi esse filho que no reinado da rainha Ana construiu a casa em que os Henderson passaram a viver desde aquela época. Serviu no exército de Marlborough, e a um lado da chaminé, no grande hall, contrabalançando com o retrato do astucioso bispo em solenes hábitos canónicos, pendia o seu retrato, em uniforme de corpo inteiro. Desde essa época, os Henderson foram sempre militares e gentis homens rurais; e embora nenhum deles se houvesse distinguido especialmente em nenhuma parte, viveram com a dignidade de pessoas decentes Que cumpriram os seus deveres para com o país, Sem dúvida nunca lhes passando pela mente que Deus os tivesse feito para outra coisa além de cuidar da propriedade como bons senhores de terras, sentarem-se no tribunal e condenarem os caçadores furtivos às penas estabelecidas pela lei, matar raposas e faisões, ajudar os necessitados, casarem-se de acordo com a sua posição social e legar aos herdeiros uma fortuna não desfalcada. E se bem que com a desvalorização dos produtos agrícolas, a sua renda estivesse agora tristemente diminuída, tais eram ainda os sentimentos do general Henderson e da esposa. May, com dezanove anos, não tinha motivo para crer que eles viessem a mudar de opinião: Foi pequena a sua surpresa quando, afinal, Roger a pediu em casamento. ele obtivera alguns dias de licença para caçar, e numa tarde muito chuvosa deixou-se ficar sentado, sòzinho, na biblioteca. May estava com os Henderson havia alguns meses. Entrou por acaso na bíblioteca para pôr no lugar um livro que tinha levado para o seu quarto, e começou a procurar outro.

- Posso ajudar? - perguntou Roger.

-Não, não te incomodes.

Ela achou o lIvro e ia sair da sala quando ele a deteve com outra pergunta.

- Que livro vais ler?

- Hajji Babó.

-Porque é que te lembraste de ler esse livro?

- Falaste nele outro dia.

- Tinha-me esquecido. Vais gostar. É muito divertido.

Tirou a cigarreira.

- Queres fumàr?

- Não, estás a trabalhar.

- Trabalhei uma porção de tempo. Acho que mereço um descanso.

Ela aceitou o cigarro, e depois de o acender, sentou-se no braço de uma poltrona, como para indicar que ficaria apenas um momento. Ele fitou-a com aquele brilho zombeteiro no olhar que, então, já a desconcertava um pouco.

-Sabes, May, que és muito bonita?

- é muita bondáde tua dizeres isso - sorriu ela.

-Eras muito feia quando tinhas treze où catorze anos.

- Sei que era Horrível.

- é engraçado como as raparigas mudam, quase da noite para o dia.

Ela não atinou com coisa alguma para dizer. Tentou então fazer úm anel de fumo. Ele observava-a.

- Não acende.

- Fracassei.

-Não achas que já é tempo de nos casarmos?

O coração deu-lhe uma pancada fortíssima, porém, éla continuou tentando fazer a néis de fumo.

- Ainda não tinha pensado nisso.

- E agora?

Ele levantou-se de junto da mesa e postou-se diante dela, num ligeiro nervosismo que a comoveu.

- Não posso imaginar quem te meteu essa ideia na cabeça.

- mentira. Sabes que desde os dez anos só penso em casar contigo.

- Mesmo quando eu tinha treze anos e era medonha?

-Reconheço que naquele tempo eu não estava muito interessado. - Riu-se mas ficou logo sério de novo. - May, acho que és a criatura mais adorávél que conheci em toda a minha vida. Prefiro casar contigo do que com qualquer outra rapariga do mundo.

Havia uma coisa que não dissera, e que ela esperava. O cigarro estava no fim. Ele tirou-lho de entre os dedos, e desviou-se para o coloCar no cinzeiro.

-Estou perdidamente apaixonado por ti.

-Podias ter dito isso antes.

-Pensei que soubesses. Envergonha-me dizer-to assim, com tantas palávras.

Sem que ela pudesse evitar, vieram-lhe lágrimas aos olhos. Sentiù-se também envergonhada: Aquilo parecia vagamente patético. Ele viu as lágrimas e veio sentar-se ao lado dela no braço da poltrona. Tomou-lhe á mão.

- O que é que dizes?

Como se sentia um pouco nervosa, ela riu.

- Decerto que casarei contigo, Roger. Não sei se já notaste, mas és um grande partido.

Rindo, ele inclinou-se e beijou-a. Desde menino, uma vez ou outra, quando ia para o colégio ou quando voltava, beijava-a no rosto, do mesmo modo superficial e displicente com que beijava Jane. Até então nunca a havia beijado na boca. Foi uma sensação curiosa: Ela corou, a intimidade do beijo era levemente perturbadora.

- Vem - disse ele, fazendo-a levantar-se. - vamos falar com a mamã. Vai ficar louca de alegria.

Uma sombra de contrariedade passou pelo rosto de May, ao vê-lo tão ansioso por fazer aquilo. Preferia ficar ali alguns minutos, Mas reprimiu-se. Era natural aquele sentimento. Sendo muito afeiçoado à mãe, era natural que ele quisesse dar-lhe imediatamente o grande prazer de ouvir a notícia do casamento.

Casaram-se na igreja da aldeia e foram passár a lua-de-mel em Paris. May, que nunca tinha ido ao estrangeiro, divertiu-se muito. Roger conhecia bem Paris, e falava um francês fluente. Foram a Montparnasse e a Montmartre. Comeram em restaurantes famosos: Era tão agradável andar com alguém como ele, que naturalmente sabia de tudo. Tinham tantas recordações em comum, que nunca lhes faltava assunto.

Sempre haviam sido bons amigos. A única diferença era que dormiam no mesmo quarto. May, apesar de criada no campo, era uma grande devoradora de livros e não ignorava os factos da vida. Roger era um amante afectivo e carinhoso e May sentia uma grande termura por ele quando, deitado ao seu lado, a apertava nos braços. Quanto ao resto, ficava contente, orgulhosa e era muito feliz. Achava engraçado que só então ele tivesse descoberto que o corpo dela éra lindo. Tinha a certeza de que a amava.

Oito anos depois, via que o que sentira por ele era admiração, confiança, carinho - tudo, menos amor.

Roger já estava no Ministério da Guerra: Alugaram um

apartamento pequenino em Chelsea. Foi um encantador passatempo mobilá-lo com os móveis supérfluos de Graveney Holt, e que eles fóram buscar às águas furtadas. Instalaram-se para a vida de casados. Roger saía para o Ministério da Guerra todos os dias e às seis da tarde, depois do serviço, ia ao clube jogar bridge durante uma hora, mais ou menos, antes de voltar para casa. Às vézes jantavam fora ou recebiam os amigos militàres de Roger, com as esposas, para jantar; ou às vezes iam ao cinema ou ao teatro. mas quase sempre ficavam em casa e May lia ou fazia paciências enquanto Roger trabalhava. Depois dos primeiros poucos meses, em que o apartamento novo, os novos amigos e o prazer de viver em Londres constituíam distracção suficiente, May começou a achar que o tempo custava demasiado a passar. Iniciou uma exploração sistemática da cidade; foi às exposições e aos museus; visitou igrejas: Não estava entediada; apenas se sentia realmente só. Contara com uma vida diferente, Mas era uma rapariga sensáta e pensou consigo mesma que tudo mudaria se lhe nascesse um filho. Teria então muito que fazer, e nunca mais se acharia abandonada. Mas infelizmente não vinha sinal de filho. Ela sabia quanto Roger ambicionava um garoto, e com que ansiedade os pais dele esperavam a notícia de que estava grávida. Como se passasse um ano sem que nada acontecesse, discutiu o assunto com a sogra. Mrs. Henderson aconselhou-a a não se incomodar: era muito jovem ainda, não lhe faria mal esperar mais uns dois anos. Mas sabia que May estava contrariada, e para a tranquilizar mandou-a a um especialista. O médico garantiu que nada a impedia de ter filhos, e exortou-a a ter paciência. Mas quando se passou um segundo ano, e depois um terceiro, ela ficou mais aborrecida e voltou à consulta. O especialista sugeriu que Roger viesse também, depois de o examinar declarou que não havia nele nada a que se pudesse atribuir a esterilidade de May. Aconselhou-lhes um certo repouso. Seguiram-no sem resultado, e enquanto os anos corriám foram perdendo a esperança. Eram criaturas normais e saudáveis, mas por alguma razão inconcebível, o destino teria resolvido que a sua união seria infrutífera. Isto tornava May infeliz, não por si própria, mas porque, embora Roger não aludisse à esterilidade dela a não ser com gracejos e continuasse bom, terno e afectuoso como sempre, tinha a certeza de que ele estava amargamente decepcionado. E, com os nervos tensos, ela chegava a pensar que o general às vezes a olhava com uma espécie de enfado. Imaginava-o falando sobre o assunto com a mulher.

- Receio que tenhamos sido logrados, minha querida , ouvia-o dizer.

E a resposta da esposa:

- Afinal, George, ela parecia cheia de saúde. Por isso eu encorajei o casamento. Pensei que fosse ter um filho por ano.

Naturalmente May era injusta. Sa bia disso: Eles amavam-na por ela mesma, e nunca, pela menor palavra, haviam insinuado que os desiludira. Mas seria esperar de mais da natureza humana pretender que não sofressem.

Nos primeiros tempos da vida de casada tentou interessar-se pelo trabalho de Roger, mas ele não a animou.

- É uma rotina fastidiosa, nada mais - disse Roger, quando ela lhe pediu que falasse a esse respeito. - Só iria aborrecer-te.

-Não posso julgar por mim mesma?

Ele pousou nela o seu olhar amigo e jovial.

-A falar verdade, a única qualidade que eu tenho no Ministério da Guerra é saber calar a boca. Palavra, a maneira por que os graúdos de lá dão com a língua nos dentes é bastante para se ficar com os cabelos em pé. Além disso, sabes, depois de estar sobrecarregado de trabalho das dez às seis, não quero outra coisa senão deixar que o espírito descanse o resto do dia. Assim que fecho a porta do escritório não penso mais nele.

Ela sabia que não era verdade. Sabia que quando ele se sentava, meditando, ao lado do fogo e olhava para as chamas lampejantes, revolvia na cabeça os problemas que o tinham ocupado durante o dia. Mas não insistiu. Com o decorrer do tempo, descobriu a respeito dele coisas de que nunca suspeitara. Certa ocasíão, encontraram, num jantar, o embaixador de uma potência estrangeira e a esposa. Roger ficou ao lado dela, e, com alguma surpresa, May notou que ele caprichava por se mostrar o mais encantador possível. Ela nunca o vira dar a qualquer mulher mais atenção do que aquela que a civilidade exigia. Depois do jantar ele sentou-se novamente junto da beldade um tanto maciça e pusera-se aberta mente em flirt com ela. No táxi, de volta para casa, May disse, um tanto ríspida:

-Pareceu-me que te interessou muito a mulher do embaixador.

Ele riu, e mesmo no escuro, May viu-lhe os olhos a brilhar.

-Achas que fiz o meu papel?

- Optimamente.

-A idiota pensa que é irresistível. Enganei-a fàcilmente.

-Não percebo bem porquê.

-Querida, é claro como o nariz no teu lindo rosto. O marido dísse-lhe que me sondasse, e eu deixei que ela o fizesse. Engoliú tudo o que lhe contei. Aposto que os fios telegráficos vão funcionar muito, hoje à noite.

May ficou em silêncio um momento.

- Estavas muitíssimo convincente.

- Eu também acho que estava a representar muito bem.

Às vezes, quando Roger era incumbido de tarefas mais importantes, recebiam para jantar os adidos militares de várias embaixadas. Ele mostrava-se tão franco, que ninguém podia atribuir um motivo oculto a qualquer coisa que dissesse. E se numa daquelas pequenas reuniões alegres, animadas pelo vinho e seladas pelo seu bom humor, Roger deixava escapar uma alusão quase indiscreta, só May podia suspeitar que o fazia por cálculo. Ela não sabia nesses momentos se admirar-lhe a astucia ou se ficar desconcertada com a sua duplicidade.

Certa manhã, abrindo o jornal, May leu que um oficial inglês fora preso sob a acusação de exercer espionagem a favor da Itália. Ficou singularmente abalada, porque Roger convidara esse oficial para jantar no apartamento, uma vez, e ela achára-o muito agradável. Durante quatro dias não se falou noutra coisa. Era matéria de primeira página. Mas May não fazia nenhuma ideia de que o marido tivesse qualquer relação com o caso, até que, encontrando-se com o seu chefe, certo dia à hora do lanche, recebeu felicitações pelo esplêndido trabalho que Roger fizera.

- Talvez não tivéssemos apanhado o canalha se não fosse Roger. Ele foi incansável durante meses, mas terminou com um resultado perfeito. Foi um belo trabalho.

Naquela noite contou ao marido o que o chefe lhe dissera.

-Acho que não andei muito mal. Não foi fácil apanhar o sujeito, que era manhoso como uma raposa. Tive de ser cauteloso. Um engano, e ele saltaria.

- Eu achei-o simpático - disse May.

-Podia ser muito divertido. Dei-me bastante com ele.

Não fazia ideia de que suspeitávamos dele. Devias ter visto a cara com que ficou quando foi preso.

Roger teve um riso desagradável.

-Que lhe farão?

-Provàvelmente condenam-no a dez anos de prisão. Por mim, enforcava-o.

Disse isto tão ferozmente que May olhou-o com um sobressalto. Os olhos de Roger eram implacáveis. Ela estremeceu, compreendendo que em caso de necessidade, e quando se considerasse justificado, Roger não hesitaria diante de coisa alguma.

Gradualmente, May resignou-se à monotonia da vida de casada. Pensou consigo mesma que tinha esperado de mais. Era estúpido lamentar-se porque não haviam sido satisfeitos os seus sonhos de menina. Às vezes pensava neles com uma suave melancolia. Não havia verdadeira razão para se queixar da sorte. Tinha um marido que lhe era dedicado e se orgulhava dela; todos lhe diziam que ele era brilhante, e tudo indicava que havia de fazer uma carreira excelente, era atencioso e discreto, sempre lhe fora fiel. Era também muito criterioso; sobre todos os assuntos, excepto o seu tra balho, lhe falava como de homem para homem, e dava importância às opiniões dela. Tinha um apartamento agradável e bonito, e embora estivessem longe de ser ricos, ela nunca precisara de fazer contas e economizar para equilibrar o orçamento. No fu turo, havia Graveney Holt, aquela casa admirável com todos os tesouros que continha, os belos jardins e o amplo parque, e as numerosas actividades que implicaria a posse da herdade.

Depois de quatro anos de casados, Roger foi ao Japão como membro de uma missão, e esteve ausente três meses. Era a primeira vez que se separavam, e sentindo-se mais só do que nunca, depois de algumas semanas, ela foi para Graveney. Adaptou-se muito bem à vida que levara antes do casamento. No ano seguinte Roger tornou a viajar, dessa vez para o Irão; depois foi à Austrália, ao Egipto, à Turquia. Ao regressar de cada viagem mostrava-se absolutamente encantado ao vê-la, mas, depois de um dia ou dois, tornava ao seu hábito de considerá-la como coisa garantida. May tinha um sentimento exasperado de que ele gostava de voltar para ela num estado de espírito semelhante ao de quando voltava para a sua poltrona favorita ou para a comodidade do seu velho paletó de wolf. Vivia mais absorvido do que nunca pelo trabalho. Ela não podia deixar de notar que ele era capaz de sacrificar, sem qualquer escrúpulo de consciência, os sentimentos, o conforto, o bem- estar da esposa. Frequentemente ficava no Ministério até às onze da noite, telefonando pouco antes da hora de jantar para a avisar que não comia em casa, e ela passava o serão sozinha. Aos sábados, quando ele podia ausentar-se, iam até Graveney Holt, mas, aí ele ocupava-se com a família, por quem tinha uma afeição sólida e profunda, e com a propriedade, cuja administração acompanhava com grande interesse. May sentia-se, nessas ocasiões, tão desnecessária como em Londres. Refugiou-se em si mesma. Não gostava de fazer cenas, e era bastante sensata para perceber que só conseguiria irritar Roger. Que motivo de queixa tinha? Não havia remédio.Continuou graciosa, agradável, um pouco calada, e nunca, por nenhuma palavra, revelou que trazia no coração um vácuo doloroso.

Quando morreu o administrador do general, Roger recomendou insistentemente ao pai que contratasse um velho amigo seu, chamado Richard Murray. Haviam sido condiscípulos e cursado um ano juntos em Sandhurst; mas como a mãe de Dick, viúva, tivesse sofrido contratempos financeiros, ele renunciara à ideia de entrar para o exército e dedicara-se à administração de propriedades. May nunca o tinha visto quando o encontrou instalado na aldeia. Simpatizou com ele, e quando Roger voltou de viagem do estrangeiro, contou-lhe a boa impressão que tivera do novo administrador.

- É um sujeito esplêndido - disse Roger. - Tem um dom surpreendente para fazer amizades. É muito honesto, e o que não sabe da profissão é porque não vale a pena sabê-lo. Penso que o papá teve muita sorte em ficar com ele.

May encontrava-se muito com Dick quando ia a Graveney. Com Jim em Oxford e Tommy no colégio, a casa andava muito sossegada, e Dick trouxe-lhe uma alegria abençoada: Era solteiro, Vinha sempre almoçar aos domingos, mas Mrs. Henderson convidava o também para jantar uma ou duas vezes por semana. Raramente se passava um dia sem que ele viesse Falar com o general a respeito de negócios da propriedade, e se detivesse alguns minutos para trocar algumas palavras com as senhoras: As vezes, May encontrava-o na aldeia; paravam então para conversar um instante. Durante as férias de Verão ele vinha frequent mente completar uma dupla no ténis. May tinha prazer em vê-lo. Era alegre, despretensioso e de conversa fácil. Ela descobriu que era capaz de dizer-lhe uma porção de coisas que nunca pensara em dizer a qualquer outra pessoa, Permitia-se conversar sobre banalidades com ele, o que não podia fazer com Roger. Sentia-se lisonjeada porque Díck a achava divertida, e embora dissesse a si mesma que ele ria dos pequenos gracejos dela porque tinha facilidade de rir a propósito de tudo, era agradável ver-se apreciada. Naturalmente ele tinha encanto, um enorme encanto, não havia dúvida; não era pois de admirar que todos gostassem dele. May perguntava a si própria porquê. Era decerto o contraste entre o cabelo grisalho, abundante e ondeado, e o rosto bronzeado e liso; as vastas pestanas dos olhos azuis, e aquele sorriso quente e cordial que fazia pensar que seu coração vinha para as pessoas, porque ele sentia um amor inato pelo próximo. Ela já o conhecia há um ano quando, encontrando-se em Londres por algum tempo, e como de costume sòzinha, recebeu dele um bilhete no qual anunciava que ficaria na cidade naquela noite e propunha jantarem juntos e irem dançar depois a um sítio qualquer. May achou muito generoso da parte dele compadecerse da sua solidão, e aceitou com prazer. Passaram horas deliciosas. Ele revelou-se inesperadamente um óptimo dançarino. Havia meses que ela não dançava. Quando a deixou em casa e sugeriu que repetissem a experiência na próxíma vez que viesse a Londres, ela concordou sem hesitação. Havia muito tempo que não se divertia tanto. Mas quando fechou a porta, em vez de ir logo para a cama, dirigiu-se à sala de visitas, vazia, e sentou-se. Estava alvoroçada. Quando ele lhe apertara a mão na despedida tivera um olhar tão terno, tão meigo, tão estranhamente compreensivo que lhe penetrara fundo no coração. Ela percebeu num relance que Dick compreendera quanto era vazia a sua vida, e que se sentia solidário, intensamente solidário com ela. E com a mesma rapidez percebeu tambem que o amava e que até então não soubera o que era amor. Estava aterrada como nunca. Aquilo era o que faltava! Descontent com a vida, estava Resignada e disposta a suportá-la do melhor modo possível. agora, era o inferno. Que se oferecesse vinagre a quem tinha sede, já era bastante mau; mas ter a água ao seu alcance e não poder estender o braço para obtê-la, era intolerável. O seu poderoso bom senso veio socorrê-la. Não valia a pena dramatizar. O que havia no encanto de Dick. Encanto?

Todos diziam que essa palavra não significava nada. Roger sempre lhe afirmara que era preciso desconfiar das pessoas mais encantadoras. Dick era encantador com toda a gente, porque não podia deixar de ser assim. provàvelmente nunca lhe ocorrera que tivesse um efeito tão devastador, e não havia o menor motivo para supor que lhe ligasse a menor importância. Era naturalmente bondoso, e quisera distraí-la.

Mas o que o fizera sentir que ela era infeliz e sòzinha? Tinha a certeza de que nunca, por qualquer palavra ou gesto, traíra os seus sentimentos, e estava convencida de que nem Roger, nem Jane, nem ninguém, tinham a menor suspeita a esse respeito. Dick percebera tudo ou era apenas imaginação dela?

Veria no azul dos olhos dele um sentimento que não existia?

Encolheu os ombros.

-Com certeza é porque estou a morrer de cansaço - murmurou. - Amanhã acordarei com outras ideias.

Foi para a cama e daí a pouco dormia profundamente.

No dia seguinte, como esperava, pôde examinar a questão com calma. Não era prudente fechar os olhos ao facto: estava apaixonada. Mas nunca lhe ocorreu outra solução a não ser a de recalcar no mais fundo do coração aquele novo sentimento, assim como por tanto tempo recalcara as suas frustradas esperanças. Era impossível deixar de ver Dick, mas assentou consigo mesma não ir tão frequentemente a Graveney Holt como era seu hábito durante as ausências de Roger, e recusar firmemente se aquele a convidasse de novo para dançar.

Precisava esforçar-se por não pensar nele. Com o mundo tão perturbado, a guerra podia estar iminente; Roger já dissera que ela viria mais tarde ou mais cedo. Para distrair o espírito,

seria boa ideia arranjar uma ocupação qualquer que a tornasse útil no caso de rebentar a guerra. Nessa mesma manhã informou-se sobre o curso de enfermagen, e dois dias depois matriculou-se. Isso tinha, além do mais, a vantagem de lhe oferecer um pretexto para não ir a Graveney, excepto para um ou outro fim-de-semana. Pareceu-lhe que ter qualquer coisa que fazer era um apoio, e dedicou-se sèriamente. Um mês se passou sem sinal de Dick, e ela ria consigo mesma, contrafeita, quando pensava nas corajosas resoluções que tomara de dizer não da próxima vez que ele viesse a Londres e a convidasse para sair. Tivera razão: o que julgara profundo sentimento da parte dele não passava de uma manifestação de natural simpatia. Dick ficaria pesaroso se soubesse da impressão que lhe causara. Mas estava furiosa, porque não podia deixar de sentir-se um tanto decepcionada.

Uma noite, afinal, quando acabava de chegar do hospital, cansada e deprimida, o telefone tocou. Ela atendeu, e o sangue afluiu-lhe ao coração quando ouviu a voz de Dick.

-Vim a Londres só por um dia; vou regressar hoje à noite. Não sei se seria abuso pedir-lhe que me convidasse para jantar.

Era tão diferente do que esperava que ela perdeu a cabeça e não deu a desculpa corriqueira de um outro compromisso.

-Não há muita coisa. Eu ia justamente comer um ovo - disse ela.

-Oh, óptimo. Levarei um pâté ou coisa parecida.

Impossível dizer que não viesse. Ela queria tanto vê-lo! A sua voz pelo telefone, aquela voz quente e cariciosa, tirou-lhe toda a força.

-Não é preciso. Eu arranjo qualquer coisa.

- Estarei aí ás sete e meia.

Mandou a criada comprar um linguado e algumas costeletas, tomou um banho e envergou um vestido muito simples. Raramente usava rouge, mas o rosto estava tão pálido que se viu na necessidade de pôr um pouco. Depois, vigiando o relógio, começou a ler um vespertino. Os minutos passaram com desesperante lentidão. Ao soar a campainha, sentiu um violento sobressalto; mas quando ele entrou e lhe apertou a mão cordialmente não havia nada que indicasse não estar naturalmente tranquilo e amável. Dick explicou que um negócio repentino o trouxera inesperadamente a Londres, senão teria escrito de véspera convidando-a para lhe reservar a noite. May serviu-lhe um cálice de sherry. Jantaram. Ele mostrava a conversa fluente e agradável do costume contando as notícias da propriedade. Pediu-lhe conselhos sobre um assunto que o preocupava, e quando ela lhos deu afirmou que os considerava excelentes e trataria de segui-los. Ela não pôde deixar de sentir-se contente e lisonjeada. Discutiram os planos dele no sentido de introduzir modernos métodos de agricultura. Estava de pleno acordo com ela sobre a necessidade de melhorar as condições de alojamento para os trabalhadores. Qualquer pessoa poderia escutar a conversa sem lhe descobrir nada que não fosse perfeitamente natural. e no entanto, ela tinha a incómoda sensação de que não era bem assim. Procurava convencer-se de que não passava de falsa impressão achar que ele falava apenas para evitar um silêncio pejádo de perigos, e que não havia no tom da sua voz nada de estranho. O seu olhar era ansioso e não correspondia ao sentido das palavras: Loucura. Ela via nesse olhar alguma coisa que era sómente fruto da sua imaginação.

Acabaram de jantar e foram para a sala de visitas. Tomaram ali o café e May acendeu um cigarro. Dick pediu licença para fumar o seu cachimbo. Enquanto ele o acendia ela ficou calada e então o silêncio, como uma emanação que se erguesse das trevas, negro e terrível, uma coisa dotada de sinistra vida própria, apoderou-se de ambos, esgueirando- se entre os dois e aproximando-os como se corressem um perigo comum. Embora May estivesse a olhar para o soalho, sabia que os olhos de Dick estavam fixos nela. Sentiu que tremia. Era absurdo que não conseguisse falar. O silêncio era insuportável. Afinal ela levantou os olhos, que encontraram os dele. Aquilo pareceu romper o feitiço.   

- Sabe, aconteceu uma coisa muito estúpida - disse Dick com a mesma voz estranha. - Apaixonei-me irremediávelmente por você.

Ela não disse nada. Olhou-o, e as lágrimas encheram-lhe os olhos, escorrendo pelas fáces.

- Ama-me? - perguntou ele.

Ela ainda não podia falar, limitou-se a assentir com um movimento de cabeça.

-Que maçada, hem?

May riu através das lágrimas. Era tão característico dele falar assim.

- Acha que devo ir-me embora?

Ela suspirou. O rosto, súbitamente, alterou-se-lhe de angústia.

- Não - exclamou violentamente.

Mas fez um grande esforço para se dominar.

- Os Henderson não quereriam pensar nisso. O general considera- o indispensável.

De facto, Dick pusera em ordem a propriedade, que o último administrador, velho e incompetente, deixara em situação precária, e pela primeira vez em muitos anos ela dera lucro. Naquele ritmo seria possível começar a liquidar as hipotecas.

- muito a sério, May - continuou ele. - Não é um entusiasmo passageiro que eu possa vencer. Estou preso de corpo e alma.

-Para onde iria?

- Não sei. Podia arranjar um emprego de administrador noutro sítio, ou então ir para o estrangeiro. É o que geralmente se faz quando não se tem outra saída.

Houve mais um longo silêncio, e foi May Quem o rompeu.

- Não podemos fazer como se não houvesse nada? - Dick não deu resposta, e ela prosseguiu. - Porque havia você de deixar um bom emprego, um emprego que lhe convém? Ninguém precisa de saber nada. Não vamos fazer mal a ninguém. Não precisamos falar a respeito disto. Fíca entre nós apenas.

- Não entendo o Que quer dizer.

-Não amo Roger, você sabe-o, mas nunca faria qualquer coisa Que. Oh! Dick, compreenda o que eu Quero dizer. Creio que a única coisa a fazer é continuar como antes. Afinal ambos somos pessoas decentes, não somos?

-Roger é o meu melhor amigo e foi quem me arranjou este emprego. Naturalmente não posso ser-lhe infiel.

- E daí?

Com os cotovelos nos joelhos, e o rosto apoiado nos punhos fechados, ele caiu numa meditação profunda. May observava-o ansiosamente. De vez em quando ele dirigia-lhe um olhar perturbado.

- É uma situação infernal - disse por fim.

- Quer ir-se embora?

- Meu Deus, não! Isso partia- me o coração - exclamou.

-Então vamos enfrentar as coisas. Não há dúvida de que temos a força necessária.

-Você não entende. Pensa que poderemos dominar-nos. Mas eu não quero dominar-me.

-Nem eu. Não tenho nenhum outro motivo de viver.

Ficaram nisto. Ele concordou em deixar correr as coisas até ver onde iriam parar. May sabia que ele pretendia apoiar-se na força dela, e exultava ao pensamento de que ele se sentisse alegre por fazê-lo. Aquilo desvanecia-a e estimulava-a.

- Agora é melhor ir - disse.

- Creio que sim - respondeu ele, levantando-se. - Posso beijá-la?

Ela não falou. Dick tomou-a nos braços e apertou os lábios de encontro aos dela. May nunca pensara que um beijo pudesse significar tanto. Lançou- lhe os braços em torno do pescoço, murmurando:

-Meu querido, meu querido, amo-te.

- Meu amor.

O beijo deixou-a aniquilada. Quando ele saiu, May ficou no mesmo lugar, com as mãos nos seios, compreendendo que a vida tinha um sentido. Estava tão feliz que achava não ter mais nada a desejar.

Era uma mulher muito inocente. Convencera-se de que podiam ver-se os dois ocasionalmente e, partilhando o segredo, continuar agindo como se fossem os amigos despreocupados e descuidosos que eram antes. Nunca lhe passou pela cabeça que a natureza pudesse intervir na história. O sexo não fora assunto importante na vida de May e as suas relações com o esposo haviam sido superficiais. Mas agora processava-se dentro dela uma revolução. A imaginação não a deixava descansar, sonhhos escaldantes e maravilhosos perturbavam-lhe as noites. O contacto da mão de Dick fazia o sangue afluir-lhe ao coração. O som da voz dele ao telefone era bastante para que os seus joelhos vacilassem. Ela desejava-o tanto quanto sabia ser desejada por ele. Às vezes, quando ele a olhava, a paixão dos seus olhos possuía-a com toda a violência da posse carnal. Ela sabia agora o que desde o princípio a atraíra: era a sua poderosa virilidade. Sentia-se puxada por uma força terrível, e exultava. E por saber que tinha energia bastante para não ceder ao desejo, nem sequer tentava dominá-lo. Orgulhava-se do desejo, sentia-se mais desperta do que nunca. Tinha uma impressão de triunfo porque estava sentindo alguma coisa que jamais pensara sentir. Nada mais a envergonhava agora. Ficava no quarto inteiramente núa, olhava-se no espelho e demorava-se a contemplar a beleza do corpo esguio, dos seios pequenos e virginais. pensando no corpo quente de Dick contra o dela, nos seus braços a apertarem-na. E ria-se porque todos a consideravam fria. Mas não era sòmente desejo sexual o seu amor por Dick; ela sentia-se tão à vontade com ele, tão confiantemente à vontade! O simples facto de estar na mesma sala que ele, era um bálsamo para a sua alma. Ele era a única pessoa no mundo junto de quem não se sentia meio intimidada.

Assim seguiram as coisas. May tinha a consciência em paz porque depois do dia em que lhe declarara amor, Dick nunca mais tornou a beijá-la. Embora não o houvessem combinado, como que por um acordo tácito ficara estabelecido não falarem um ao outro dos seus sentimentos; e nunca disseram nada que não pudesse ser ouvido por outras pessoas quaisquer. Sem dúvida, o que facilitava tudo era o trabalho de May no hospital, que a prendia muito em Londres: Quando se encontravam em Graveney, era quase sempre em companhia de outros. Podia contar pelos dedos as ocasiões em que tinham estado sózinhos durante esse período. De uma coisa May estava inteiramente certa: não havia ninguém em Graveney Holt, nem Jane com a sua língua afiada e os seus olhos agudos, nem a pequena austríaca que os Henderson tinham acolhido, que tivesse a mais remota suspeita de que Dick fosse para ela alguma coisa além de administrador do general.

Mas quando Roger telegrafou que em breve estaria de volta a casa, eles perceberam que a situação a enfrentar era insustentável. Revoltava May recebê-lo como se fosse ainda

sua esposa amantíssima. Sabia que depois de uma abstinência sexual de tão longa duração ele havia de querer uma compensação normal; era um homem jovem e forte, de apetites saudáveis, e, embora o sexo nunca o absorvesse, tinha o seu quinhão natural de desejo e necessitava satisfazê-lo, do mesmo modo que satisfazia a fome à hora do jantar. May nunca chegara a vencer completamente o embaraço diante do acto sexual, e agora sentia que não seria capaz de submeter-se.

A ideia repugnava-lhe, e realizá-lo com ele parecia-lhe grosseiramente imoral. Com Dick teria sido natural, inevitávél, sagrado. Ela desconfiava de que Dick estava a pensar nisso. Havia nos olhos dele um sinal de aborrecimento e, de habitualmente franco e aberto, caíra num silêncio estranho, como se estivesse meditando sobre um assunto que não se animava a discutir. Um dia ou dois antes da chegada de Roger, ela foi ao encontro de Dick, quando este saía do escritório do general, e deteve-o.

- Preciso de ir a tua casa hoje à tarde. Creio que devíamos conversar.

- Por mim está muito bem - respondeu ele.

Ela estivera lá duas ou três vezes com Mrs. Henderson para ver se a empregada trazia a casa limpa e arrumada, mas nunca fora sòzinha, e últimamente deixara de ir por completo. Era uma casa agradável com um jardim murado, as cercanias da aldeia; mas era grande de mais para uma pessoa só, e Dick utilizava apenas dois quartos. Comia na sala de visitas, confortável, cheia de livros técnicos da sua profissão e de histórias policiais, um rádio, cachimbos, tabaco. discos de grafonola, jornais, revistas e toda a mixórdía de um sòlteirão desleixado. Dava uma agradável impressão de aconchego, de acolhìmento.

- Sabes de que te quero falar? - disse ela ao sentar-se numa das cadeiras grandes e gastas.

- Adivinho.

Sorriu, mas um sorriso frouxo.

-Parece-me que não poderei suportar. Parecia possível, quando Roger estava longe e demoraria muito tempo o seu regresso. Mas agora vejo que não posso.

-Deus sabe que eu não quero isso: Eu amo-te tanto, May!

-Bem sei, Eu também te amo. Não posso fingir, nem acredito que Roger o quisesse. Não seria melhor dizer-lhe a verdade?

- Eu sou todo a favor da verdade.

        -Deus é testemunha de que eu tentei.

-Ele ama-te muito?

Falavam sinteticamente, saltando as observações intermediárias, pois compreendiam-se tão perfeitamente que se diria serem capazes de ler os pensamentos um do outro sem necessidade de falar.

- Creio que ele nunca o perguntou a si mesmo. Considera fora de dúvida que o marido ama a mulher e a mulher ama o marido.

- Devo-lhe muito. É um esplêndido camarada. Seria abominável traí-lo.

- Também acho. Ele é um homem razoável. Compreenderá que não tínhamos outra solução.

-Sabes que não conto com um vintém de rendimento além do que ganho aqui? Tenho no banco umas duzentas libras.

-E isso importa?

-Não, pelo que me diz respeito.

- Não vejo nada que tenhamos de nos censurar.

- Deves saber ao que renuncias. Este lugar e tudo o que ele representa.

        - É uma prisão. Vivo sofocada.

Ele percebia o que May estava a pensar, embora ela não tivesse feito nenhuma alusão.

- Crês que Roger te deixará partir?

-Não pode prender-me contra a minha vontade. Nem creio que queira; é contra a sua índole.

- Parece que teria sido melhor para ti eu nunca ter vindo para cá.

-Oh! Não digas isso. Não é verdade.

Ele reflectiu um instante.

- Creio que deves saber o que te espera. A pobreza.

-Já fui pobre.

-Será uma linda história, a nora fugindo com o administrador do sogro.

- Importas-te?

- Nem um pouco - riu ele.

- Nem eu - replicou ela, rindo também.

- Vem senttar-te no meu colo. Que diabo, precisamos de ter alguma coisa para nos censurar.

Ela aproximou-se e passou os braços em torno do pescoço dele. Pela segunda vez, ele beijou-a.

- Sinto-me tão intoleràvelmente feliz! - murmurou ela.

Conferenciaram e resolveram que ela pediria o divórcio a Roger. Se ele negasse, forçariam a situação fugindo juntos.

E agora ela cumprira o combinado - só para receber o golpe esmagador da notícia de que decorridas poucas horas o país estaria em guerra. Que havia a fazer agora senão cumprir o que dissera ao marido? Esperar. Sorriu pensando no engano de Roger quando imaginava que ela pudesse mudar. Era engraçado que um homem inteligente pudesse ser tão estú pido. Soou a sineta para o jantar, e May arrancou-se aos seus pensamentos. A criada aprontara-lhe o banho. Ela despiu-se e entrou na água, aspirando o cheiro delicioso dos sais.

-Não vou ter luxos como este quando me casar com Dick - pensou, rindo consigo mesma.

- voltou para Londres depois do jantar.

 

No dia seguinte, de madrugada, os Alemães invadiram a Polónia. Quarenta e oito horas mais tarde, no dia 3 de Setembro, a Grã-Bretanha estava em guerra. Era domingo: Não havía ainda nenhum sinal do Outono no ar, e o sol brilhava radíoso num céu sem nuvens. A quem estivesse no terraço contemplando a paisagem tranquila, tão fresca, tão verde, tão suave, seria quase impossível imaginar que desde há horas os tanques estivessem irrompendo através da fronteira polaca e os bombardeiros despejando a sua mortífera carga sobre a indefesa capital. Com o seu repique , os sinos da igrejinha da aldeia, a igreja onde jaziam tantas gerações dos Henderson, chamavam os paroquianos para o serviço dominical. Tinham um som amigo e acolhedor que confortava, como nunca, um coração angustiado. Só Mr. Henderson e May foram à missa, Rezaram pela paz. Dick, como de costume, veio almoçar, e durante a tarde May , achou maneira de lhe contar a conversa com Roger. Ele ouviu-a tristemente.

- Vejo onde ele quer chegar - dísse, depoís que ela terminou. - Eu posso esperar, querIda.

- Eu também.

- Pode ser que se leve um ano para derrotá-los, nem pode levar tanto tempo. Temos toda a vida diante de nós.

- Estou contente por ter falado com ele. Felizmente tudo agora está claro.

Dick tomou-lhe a mão, apertando-a levemente. Sentiam-se felizes assim juntos. Nem precisavam falar muito; tinham tanta confiança um no outro que não havia ocasião para os transportes habituais dos apaixonados, e a sua intimidade era tanta que encontravam refrigério no silêncio.

Mas era um dia triste. Ninguém tinha ânimo para jogar ténis. Não podiam falar noutra coisa a não ser na guerra. Ligaram o rádio e comentavam ansiosamente cada fragmento de notícia que ouviam. Captaram Paris e tentaram captar Varsóvia. Às seis horas reuniram- se para ouvir o discurso do rei. O Big Ben deu as horas, enchendo o grande hall de Graveney Holt com a sua ressonância. O discurso começou por estas palavras:

- Nesta hora grave, talvez a mais fatídica da nossa história, envio a cada lar dos meus povos, aqui como no ultramar, esta mensagem, animada da mesma profundeza de sentimento que eu teria por cada um de vós se pudesse transpor o limiar da vossa casa e falar-vos em pessoa.

May e Mrs. Henderson começaram a chorar. Jane pintou nervosamente os lábios escarlates.

- A tarefa será difícil. É possível que venham dias negros, e a guerra já não possa ser limitada aos campos de batalha. Mas só nos resta defender. o direito, tal como o entendemos, e reverentemente entregamos a nossa causa a Deus. Se cada um de nós se mantiver resolutamente fiel a ela, pronto a todo o serviço ou sacrifício que seja exigido, então, com o auxílio divino, havemos de vencer. Possa Ele abençoar-nos e preservar-nos a todos.

Seguiu-se, por um momento, um silêncio respeitoso.

- Deus salve o rei - disse o general.

- Não me sinto bem, preciso tomar um gole depois disto - xclamou Ian, com um acento rouco no seu vozeirão estrondoso. - Se eu não fosse o tipo clássico do inglês rijo e calado, acho que era momento para uma boa choradeira.

Desfez-se a tensão.

-Ninguém sabe o que é ser casada com um idiota como tu - grítou Jane. - Mas uma vez por ano acontece ele ter uma boa ideia. Pelo amor de Deus dê-me whisky e soda, e trate de não pôr soda de mais, senão enforco-o.

O general e Ian queriam oferecer os seus serviços imediatamemte, e partiram para Londres no dia seguinte muito cedo.

antes do casamento, estiveram nos Granadeiros e propunham-se voltar ao seu velho regimento. Mrs. Henderson, Jane e May seguiram um pouco mais tarde. Mrs. Henderson tinha planos em mente, e achou que podia precisar do conselho de Roger; telefonou-lhe marcando um encontro entre as cinco e as seis, em casa de Jane. Mais ou menos uma hora depois de elas terem saído, Dora pediu a Jim que a levasse de automóvel até à cidade. Estava aborrecida com a sua situação de estrangeira hostil e queria ir ao Ministério do Interior para saber por si mesma a quantas andava.

- Oh, não há-de acontecer nada - disse o rapaz. O papá providencíará.

- O seu pai tem coisas mais importantes com que se preocopar - insístiu ela. - Por favor.

Jim contara passar o dia na companhia dela.

- É falta de delicadeza deixar Tommy aqui sòzinho.

- Ora, ele ficará muito bem. Há-de arranjar maneira de se distrair - respondeu ela, com ligeira displicência.

Graveney Holt ficava a dez milhas, apenas, do mar.

- Achava melhor que fôssemos tomar um banho. Londres com este calor deve estar horrível.

- Eu preciso ir. É importante. Se não quiseres levar-me, irei de comboio.

- Pois muito bem - disse Jim, sorrindo. - Nesse caso levo-te.

Ela passou o braço pelo dele. Tinha conseguido o que queria.

- Não podíamos jantar juntos e voltar depois?

Jim deu um suspiro de prazer. O seu rosto iluminou-se.

-Vem então. Vamo-nos divertir.

Quando chegaram a Londres ela disse-lhe que desejava ir tratar do seu caso sòzinha. Provavelmente teria de esperar durante horas. Não lhe deu atenção quando ele respondeu que teria a maior satisfação em esperar por ela. Manteve-se inabalável.

- Isso iria fazer-me mal aos nervos. Ficaria nervosa á ideia de estar abusando da tua paciência.

O rapaz sugeriu-lhe que depois de liquidado o assunto fosse a casa de Jane, onde ele estaria à espera.

-Preciso de dizer á mamã que viemos á cidade e só voltaremos tarde.

-Creio que não vou a casa de tua irmã. Ela não gosta de mim.

-Oh, que tolice. Decerto que gosta.

Dora sacudiu com decisão a sua linda cabecinha.

- É o que tu pensas - disse ela bruscamente.

- Eu sei.

Combinaram encontrar-se às seis horas em Queen Anné s Gate, no St. James Park, para irem a uma sessão de actualidades cinematográficas antes do jantar. Ela despediu-se com um sorriso, acenando graciosamente com a mão. Jim viu-a seguir caminho entre a multidão em Parliament Street, até perdê-la de vista. Gostava do seu modo airoso e da energia com que ela andava. Como não tinha nada que fazer foi à National Gallery, mas lá verificou que os quadros haviam sido retirados; encaminhou-se então para o clube no qual fora recentemente admitido. Não encontrou nenhum conhecido. Leu as primeiras edições dos vespertinos e em seguida as notícias do teletipo. Almoçou. Depois de uma xícara de café na sala de fumo, entregou-se às suas reflexões. Não eram nada agradáveis. Jim odiava a guerra, achava-a insensata e criminosa. Há muito tempo declarara que não tomaria parte nela; e agora chegara o momento de mostrar que falava a sério. Sabia que outros rapazes eram da mesma opinião, que como ele, haviam sido também violentos ao denunciar o crime da guerra, se deixariam arrastar pela onda de patriotismo que varria o país e, traindo miserávelmente os seus princípios, teriam pressa em se alistar. Se seguisse o exemplo deles, tornar-se-ia desprezível aos seus próprios olhos. Talvez lhe chamassem covarde. não era verdade. Se soubessem ao menos quanta mais coragem era necessária para ficar sózinho e sem amigos contra a opinião pública do que para se colocar ao lado dos companheiros e deixar-se matar! Diriam que era frouxo e que temia a privação, o desconforto, o frio. a humidade, o tédio intolerável da vida das trincheiras; era mentira também. Não havia nada de agradávél em ver-se apontado a dedo por escárnio, mas muito pior era perder a alma estando vivo. Agora chegava a ocasião de mostrar a sua fibra; ficaria envergonhado de ceder precisamente naquele momento. Estava em causa o respeito que tinha por si próprio, e fossem quais fossem as consequências, cumpria- lhe seguir os ditames da sua consciência. Amava o pai e a mãe, e sabia que essa decisão lhes causaria um amargo desgosto. Jane zombaria dele e Tommy ficaria horrorizado. Não imaginava ainda como Roger acolheria a notícia. Ah, sim, imaginava: com glacial desacordo. Pois bem, não havia remédio. Precisava preparar-se para o que desse e viesse. A coisa seria dura. Graças a Deus tinha força para suportar. Firmara a sua opinião, e nada do que qualquer outra pessoa pudesse dizer o faria afastar-se do caminho claro do dever. Ninguém julgaria aquele rosto jovem e simpático capaz de assumir um ar de tão severa resolução.

-Mais tarde ou mais cedo teremos de pôr as cartas na mesa - disse consigo mesmo. - E quanto mais cedo melhor.

Decidiu que na primeira oportunidade comunicaria a todos a sua resolução. Para arejar os pensamentos sentou-se a uma secretária e escreveu-lhes o mais sucintamente que pôde.

-        Ao terminar olhou para o relógio. Sua mãe devia estar agora em casa de Jane. Ele podia ir até lá e esperar até à hora do encontro com Dora. Os seus olhos suavizaram-se ao pensar nela, e o ar carrancudo tornou-se mais terno. Nada importava realmente, contanto que não a perdesse. Amava-a com todo o coração. Se ela consentisse, casar-se-iam no dia seguinte. Era linda. Era mais que isso: boa, inteligente, corajosa. Não sentia por ela sómente amor, mas um respeito profundo. Embora fosse apenas um ano mais nova, sabia que tinha muito a aprender com ela. Sentia-se muito humilde na súa presença.

Saiu do clube, meteu-se no automóvel e, descendo St. James Street, atravessou o parque. jane tínha uma pequena casa de estilo georgiano em Westminster, perto da Abadia. com a sua habitual falta de sentido de equilíbrio, mobilara-a num estilo agressivamente moderno, de modo que a sala de visitas, com a sua baixela cromada, quadros cubistas e cortinas fantásticas, mais parecia a sala de espera de um instituto de beleza do que uma sala destinada a fazer um ser humano sentir-se à vontade. Ela vestia-se de acordo com a decoração, e com os seus cabelos ondulados e tintos, o rosto pintado e o monóculo, teria feito um caricaturista torcer as mãos de desespero. Nenhuma malicia de desenhador a tornaria mais absurda do que ela própria se apresentava. Era a única pessoa ali que não parecia afectada pelos acontecimentos dos últimos três dias. Mrs. Henderson e May estavam sucumbidas. Tinham ido à Abadia de Westminster, e ainda se encontravam sob a impressão da cena, trágíca e entretanto confortadora, da multidão rezando em silêncio. O general e Ian, que acabavam de chegar, estavam a tomar um drink. Jim contou à mãe como viera ter a Londres, acrescentando que ia sair com Dora para jantar.

- Fico muito contente - disse ela, olhando-o com ternura.

- Às vezes receio que ela se aborreça muito em Graveney. Será bom que mude de ares e que veja um pouco de vida.

-Como se passam as coisas contigo no Ministério da Guerra? - perguntou Jim a Ian.

- Será preciso perguntar? - atalhou Jane antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. - Já viste alguém mais parecido com um urso decrépito?

- Não é espantoso? - explodiu ele. - Fui lá e disse-lhes que queria alistar-me no meu velho regimento. Uma bestinha qualquer respondeu-me que eu estava velho de mais. Eu! Velho de mais aos quarenta! Estou na Primavera da vida.

- Procurei ver Hore-Belisha - disse o general - mas ele estava muito ocupado. Fui recebido pelo seu secretário particular. Disse-lhe que queria fazer qualquer coisa, fosse o que fosse. Não o achei muito encorajador. Respondeu que esta guerra ia ser uma guerra de jovens.

- Mas que diabo, eu sou jovem! - gritou Ian. - É o que lhes digo, vou entrar nisto de qualquer forma. Roger pode conseguir-me alguma coisa.

Mrs. Henderson voltou-se para o marido.

- Gec, meu caro, May e eu estivemos a combinar umas coisas, e se deres permissão eu pretendo ficar com algumas crianças evacuadas. Se transformarmos em dormitórios a sala de jantar grande e a sala de baile, acho que podemos acomodar umas cinquenta ou sessenta.

- Naturalmente será um transtorno - disse ele - mas, nestes tempos, não devemos pensar nisso. Assim terás alguma coisa que fazer, querida, e o que é mais, coisa muito importante.

- May e eu podemos cuidar delas, e estou certa de que Dóra ficará contente por nos ajudar. Sabes como ela é competente.

- Sempre achei.

Mrs. Henderson continuou a explicar os pormenores do que ela e May haviam assentado, e ainda os discutiam quando entrou Roger. Ian lançou-se logo a ele.

-Escuta, Roger, quero conversar contigo.

- Dá-me um gole primeiro, meu velho. Sei exactamente o que vais dizer. Queres voltar para a farda e o papá também, não é isso? Pois precísam de ter paciência. Antes de nos vermos livres disto, haverá necessidade de todos os homens e mulheres do país. Não se iludam, vai ser uma história longa e terrível.

Estava muito marcial no seu uniforme, uma bela e desempenada figura. Havia nas suas maneiras uma alegre dignidade inspirava confiança. Cumprimentou May amígavelmente. ela correspondeu-lhe com um pálido sorriso. Sentou-se ao lado da mãe, que maIs se certificou da sua atenção, e lhe contou o plano. Ele fez uma ou duas sugestões e prometeu verificar o que ela precisaria para pôlo em prática. May sabia que ele tinha assuntos importantes a estudar e muito que fazer, e não pôde deixar de admirar a bondosa pacíência com que escutava as fastidiosas explicações da mãe. Era um bom filho i um bom amigo - o tipo de homem em quem se podia confiar, mas que não se podia amar. May aderira pressurosamente ao plano de Mrs. Henderson, não só porque estava aflíta para fazer fosse o que fosse naquela emergência, como também porque este lhe proporcionava a fuga de uma situação que a amargurava. O seu apartamento era pequeno: sala de visitas, sala de jantar, dois quartos, além da cozinha, para a cozinheira e a arrumadeira, um quarto de dormir com dùas camas para ela e Roger, e um outro menor que se destinara ao filho esperado. Tinham alugado o apartamento com a ideia de que serviria por uns dois ou três anos. quando viessem outros miúdos precisariam de mais e por isso mudarse-iam para outro maior. Mas não veio filho nenhum, e Roger transformou o quarto extra em gabinete, onde tinha os seus livros e papéis, e onde recebia as visitas que seria imprudente avistarem-se com ele no Foreign Office. Sem dúvída, aquele quarto podia ser transformado em dormitório, mas era possível que Roger viesse a necessitar dele mais do que nunca. Além disso, ela experimentava certo embaraço em sugerir que deixassem de dormir no mesmo quarto. Era coisa difícil de fazer, e Jane, que gostava de tomar conta dela quando não tínha ocupação melhor, acabaria por dar pela história. Toda a família saberia então que se dera uma mudança nas relações de ambos. A sua combinação com Roger implicava tácitamente que ficasse em segredo entre os dois a decísão a que tinham chegado. O projecto de Mrs. Henderson resolvia as dificuldades. May íria viver em Graveney enquanto durasse a guerra, e Roger ficaria sozinho no apartamento.

- Ah!, sim, há outra coisa, Roger - disse Mrs. Henderson, depois de liquidar o assunto das crianças. - Quero falar-te a respeito de Dora. Ela receia ser internada, mas não há perigo, ou há, realmente?

-Vão prender todos os alemães, mas julgo que não se preocuparão com as mulheres.

-Ela não é alemã, é austríaca. O teu pai e eu estamos prontos a responder por ela.

- A dificuldade é que vocês moram a cinco milhas de dístância... - hesitou um instante - de um objectivo militar.

- Não precisas fazer tanto mistério acerca disso, Roger - disse Jim, com certa acidez. - Toda a gente de lá sabe que expropriaste umas terras para a construção de um aeródromo secreto.

Roger encolheu os ombros.

-Pois seja. Mas precisamos de tomar todos os cuidados para que os Alemães não saibam, e eu não creio que as autoridades queiram estrangeiros a morar na vizinhança imediata.

- Voltou-se outra vez para a mãe. - Que sabe a respeito dessa rapariga?

Mrs. Henderson contou a comovente história de Dora.

- Com todas essas crianças dentro de casa ela será preciosa. Bem sabes que Jane não se presta muito para essas coisas.

- Absolutamente! - exclamou Jane.

-May e eu não poderíamos fazer tudo sózinhas.

- Que pensas dessa jovem, May - perguntou ele.

- Dora é muito trabalhadora, sempre disposta a qualquer serviço. É impossível alguém detestar mais os Alemães.

- Não há ninguém mais antinazista do que ela - continuou Mrs. Henderson. - Os casos que ela conta sobre o tratamento que os Alemães deram a esses pobres Austríacos quando tomaram conta do país são de fazer ferver o sangue.

-Como é o nome dela?

- Dora Friedberg.

-Vou tomar apontamento, para caso de necessidade.

- No vosso lugar, não me preocuparia agora. Quando saírem os regulamentos sobre estrangeiros, o papá pode discutir o assunto com o chefe da polícia. Acho que tudo correrá bem se ele se responsabilizàr por ela.

- Irás para França, Roger? - perguntou o general.

- Estou a procurar conseguir isso. O que não quero é passar a guerra sentado num escritório em Whitehall.

- Que pensas que vai acontecer na Polónia?

-Os Polacos estavam muito confiantes quando saí de lá. Mas a minha impressão é que eles não podem resistir mais de três meses.

- Só isso?

- Já será bastante. Pelo menos dar-nos-á tempo para olharmos em redor e prepararmo-nos um pouco mais do que estamos agora.

Voltou-se para Jim com o olhar afectuoso que sempre tinha quando falava com qualquer membro da família, e perguntou-lhe, gracejando:

-Então, meu velho, que tal a perspectiva de formar em fila de quatro na parada de um quartel?

Jim deixou passar um momento sem responder. Chegara a oportunidade. Sentiu os pés e as mãos repentinamente gelados. Fez-se muito pálido. Percorreu com um olhar a sala, e, como estava nervoso, os seus olhos tinham um brilho hostil quando encontraram os de Roger.

- Não me agrada nada - disse ele, pausadamente. - Não vou fazer nada disso.

Mrs. Henderson susteve uma exclamação e olhou ansiosamente para o marido. O general fixava Jim como se não pu desse crer no que acabara de ouvir. Jane, com os lábios apertados em sinal de reprovação, tirou o bâton e pôs-se a pintá- los. Roger não sabia nada a respeito das opiniões pacifistas de Jim; passara muito tempo sem v -lo, e, por este ou aquele motivo, ninguém achara conveniente contar-lhe. Lançou ao irmão um olhar rápido, preocupado, e, após um instante de pausa, riu.

-Terás de o fazer, meu velho. Serás convocado, e é muito melhor ir por vontade própria. Dá melhor impressão.

Jim não se mexeu. Havia no seu rosto alguma coisa parecida com desprezo quando falou. Agora estava seguro de si mesmo.

- Acho que a guerra é horrível e insensata. Que adiantou a última guerra? Milhões de homens morreram, outros milhões ficaram cegos ou mutilados. E para quê tudo isso? Para começar outra vez depois de vinte anos de miséria e intranquilidade. Se vocês são idiotas a ponto de quererem lutar, façam-no. Eu recuso-me.

Ficaram todos calados por um momento. Roger olhou pensativamente para o irmão.

- Não sabia que eras pacifista, Jim - disse com um ar tão indiferente como se estivesse a dizer que não sabia que o irmão era vegetariano.

- Pois sabes agora.

Roger virou-se para o general.

- Estava ao par disto, papá? - perguntou, com uma indulgência meio zombeteira.

O general esboçou um gesto de surpresa e desalento.

-Eu sabia que Jim vivia a proclamar-se pacifista. Mas nunca o levei muito a sério; pensei que fosse uma dessas garotices de estudante, que esqueceria quando viesse a guerra.

Jim começou a enfurecer-se. As maneiras do irmão e as palavras do pai, que o faziam parecer uma criança desobediente e travessa, feriram- no profundamente. Mas conteve-se.

- Está enganado, papá - disse, levantando-se e falando com toda a seriedade de que era capaz. - Acho que a guerra é uma monstruosidade. Assinei em Oxford uma solene declaração na qual me comprometi a não pegar em armas se houvesse guerra. O senhor despreza-me porque não vou faltar à minha palavra. Eu desprezar-me-ia a mim mesmo se faltasse.

- Ninguém te despreza, meu velho - disse Roger. - Apenas estamos a procurar compreender.

A voz era conciliatória, quase cariciosa, e havia nos seus olhos afeição e ternura. May, que o observava, reconheceu os seus olhos nesse olhar. Os membros daquela família estavam ligados uns aos outros por um amor fora do comum, e quem se casasse com um deles ficava estranhamente à margem, embora nunca deixassem de ser amáveis e indulgentes. Não se sentiam completamemte à vontade a não ser na companhia uns dos outros. Jim franziu as sobrancelhas. Ter-lhe-ia sido mais fácil se o irmão o vituperasse, responderia com palavras violentas. Mas aquele tom de brandura, a extrema afeição naqueles olhos tão parecidos com os seus, quase o fizeram render- se. Cerrou os punhos, mas, quando falou, mal reconheceu a própria voz.

- Creio em Deus. Creio na paz e na boa vontade entre todos os homens. Creio que para a humanidade progredir, precisamos extirpar o ódio dos nossos corações e substituí-lo pelo amor. Este momento não é para hesitações. agora é que devemos afirmar a nossa posição e dar testemunho da nossa fé, nós que odiamos a guerra.

Roger respondeu com uma gravidade tão profunda quanto a dele.

-Todos nós odiamos a guerra, meu velho. Mas achamos que a nossa honra está em jogo.

- A Polónia! - exclamou Jim desdenhosamente. - O Afeganistão?

Da outra vez foi a Bélgica. Que será da próxima? O Equador? Bolas!

- Achamos que a nossa liberdade também está em jogo. Estamos a lutar por tudo aquilo que torna a vida digna de ser vivida.

Jim interrompeu-o com ardor.

-Vamos defender a democracia do mundo, mais uma vez. Francamente, Roger, pensei que fosses mais inteligente.

Entretanto Ian, com o rosto mais vermelho do que nunca, estivera a soprar ofegante. Naquela altura não pôde mais.

- Escuta uma coisa, Jim. Se os alemães começarem a invadir este país, pretendes dizer que não farás nada para resistir?

Jim voltou-se para ele, encolerizado.

- Meu Deus, Ian, não me venhas mais uma vez com argumentos surrados. Já estamos fartos disso. Não, não vou fazer coisa alguma. E se eles vierem à minha casa e se apoderarem de tudo, deixarei que o façam. E se eles quiserem violar minha irmã...

Antes que pudesse terminar, Jane soltou uma gargalhada.

-Não há perigo, Jim. Não te preocupes, eu sei muito bem como me livrar.

Ele corou. Dirigiu a Jane um olhar magoado, e a sua voz não tinha a mesma firmeza quando prosseguiu.

-Pensam que fico contente nesta posição? Acham que fico contente por os decepcionar e enraivecer? Seria muito mais fácil para mim conformar-me e guardar os princípios no bolso. Mas não posso. Garanto-lhes que é impossível. Eles podem espancar-me e prender-me, podem encostar-me num muro e fuzilar-me. mas não hei-de servir no Exército, não hei-de matar, não hei-de fazer nada que ajude os outros a matar.

-Ninguém te vai encostar a um muro nem fuzilar-te, meu velho - disse Roger complacentemente. - Terás de comparecer diante de um tribunal e explicar os motivos por que te recusas a prestar serviço no Exército. Se eles forem aceitos, serás destacado para qualquer trabalho que não tenha que ver com a guerra.

- Isso concordo em fazer.

        Roger contemplou o irmão e nos seus olhos fatigados havia agora uma funda compaixão.

- Creio que vão passar um mau bocado, Jim.

-Não tenho outro remédio. Vou cumprir o meu dever como eu o compreendo.

-Todos nós vamos.

Roger tirou um cigarro e Bateu-o contra a cigarreira de prata. Parecia perdido nos seus pensamentos.

- Há mais alguma coisa que queiras dizer-me? perguntou jim agressívamente.      

- Mais nada.

- Então vou andando. Tenho de me encontrar com Dora.

Boa noite, mamã. Boa noite, papá.

Olhou para o pai, e fixando-o mais, parou, como que petrificado. Ficara tão surpreendído como se alguém o tivesse golpeado repentinamente, sem motivo. Lágrimas, lágrimas escaldantes, rolavam por aquela face envelhecída e enrugada.

Era tão impressionante que Jim susteve a respiração. Depois, com um grito rouco de angústia, precipitou-se para fora da sala. Durante algum tempo ficaram todos em silêncio.

- Receio que isto seja um golpe sério para o papá - disse Roger, afinal.

Mrs. Henderson levantou-se e foi sentar-se ao lado do marido. Tirou o lenço do bolso dele, pondo o entre as suas mãos. O general enxugou os olhos. Tentou rir.

- Desculpem-me fazer uma cena destas.

- Não o leves tão a sério, querido - dísse ela.

- Sinto tanta vergonha! Não sei o que fiz de errado. o rapaz não podia ter saido assim sem que eu tivesse alguma culpa. - Suspirou. - Este mundo de hoje é de mais para mim. Vivi muito; já é tempo de te ceder o lugar, Roger, meu filho.

Houve outro silêncio, interrompido por Mrs. Henderson.

-O rapaz tem direito a possuir opiniões próprias. Afinal de contas, essa é uma das coisas por que nós estamos a lutar. Não deve ter sido fácil para ele dizer o que disse há pouco. Acho que se sente tremendamente infeliz. Está a fazer o que considera justo. Peço-lhes, a todos, que não tornem a situação ainda mais difícil.

-Então devemos tratá-lo como se fosse um homem irrepreensível? - perguntou Jane com irritação.

Ninguém diria que o rosto de Mrs. Henderson pudesse trair uma expressão de tal severidade. Jane baixou os olhos ante o olhar imperioso da mãe.

-Vocês devem tratá-lo como a um filho meu, muito querido. As leis inglesas dão-lhe o direito de fazer o que ele declarou - disse ela. - Ninguém na minha família o há-de renegar. Não permitirei que nenhum de vocês diga ou faça nada que possa ofendê-lo.

 

JIM seguiu pélas sossegadas ruas de Westminster, atravessou a Victoria Street e encostou o carro junto da entrada de St. James Park. Entroú. Era cedo e Dora ainda não devia lá estar. Mas não fazia mal, porque se sentia aniquilado e precisava de algum tempo para se recompor. Estava ansioso. Nunca lhe sentira tanto a falta como agora. Tinha a certeza de que agia bem, mas estava desolado e ela confortá-lo-ia. Era sensata e boa. Fora uma grande felicidade para Jim descobrir que a jovem estava de pleno acordo com as suas opiniões.

Dora, com efeito, era uma pacifista tão ardorosa como ele. Embora, como ele, só conhecesse o verdadeiro horror da guerra por ouvir dizer, tinha a amarga experiência das suas repercussões. Vira o desespero dos desditosos trabalhadores que não conseguiam trabalho e tinham de contemplar, sentados, os filhos a morrerem de fome; vira os rostos cinzentos dos miseráveis e dos famélicos; vira a amargura que confrangia as almas daqueles para quem o dia de amanhã seria tão inútil quanto o de hoje; vira os bravos transformarem-se em covárdes, os generosos em mesquinhos e os honestos em falsos; vira crescer, nos corações dos que nada tinham, o ódio por aqueles que tinham alguma coisa; vira uma classe atacando furt mente

outra classe; vira a virtude sucumbir, e còm ela tudo o que

dava graça à vida; vira os tolos e os canalhas zombarem dos valores que emprestam ao homem dignidade, honra, verdade, lealdade, rectidão. E qual fòra a causa disso? Uma guerra estúpida, insensata, uma guerra desencadeada por canalhas cúpidos, ambiciosos, sem escrúpulos. A miséria de meio continente era o peso da derrota.

E qual fora o resultado da vitória? Os açambarcadores ganharam fortunas. Os cabarés ganharam dinheiro a rodos. Os restaurantes fizeram excelente negócio. Os fabricantes de automóveis venderam milhares de carros. O desemprego atingiu proporções alarmantes. Os mineiros foram reduzidos à miséria. O auxílio aos desempregados destruiu a independência e o brio dos que encontravam nele um mísero meio de subsistência. Parecia que a única coisa sensata era divertir-se.

Táctica absurda, indagar do preço. SEr -se honesto e sóbrio, e decente - meu Deus, que santarrão idiota! Tomar a sério as coisas sérias -oh! que sensaboria! Virtude e valor, que grande maçada!

Vencedores e vencidos haviam sido igualmente derrotados.

E agora esses canalhas e idiotas queriam a guerra outra vez. Pouco importava o que pensassem dele, pouco importavam a dor e a angústia, a vergonha e a humilhação: ele jurava que por sua parte seria fiel à sua convicção. Caminhava, naquele momento, perto do lago, e súbitamente impressionado pela beleza local parou para admirá-lo. Um sorriso de simpatia aflorou-lhe aos lábios quando o seu olhar pousou nos dois pelicanos que espaireciam na relva com um ar muito importante. Marrecos de brilhante plumagem nadavam; um deles mergulhava de vez em quando, e então via-se-lhe o rabo agitar-se alegremente na superfície. Mães cujos filhos brincavam ao redor delas, estavam sentadas nos bancos públicos. Aqui e ali, em cadeiras, lendo um livro, havia mulheres de aparência cansada. Jim continuou andando ao acaso.

Viu num banco um homem de idade lendo um jornal. Cruzou-se com dois soldados e com um outro de cavalaria canadiana qe lhe perguntou o caminho para Parliament Street.

As árvores ainda conservavam toda a sua folhagem, inatingidas pelo Outono próximo, e as dálias davam uma nota festiva aos canteiros. Havia um encanto singular naquele parquezinho do centro da cidade; era muito gracioso, rural e ao mesmo tempo urbano; e para um rapaz instruído como Jim, um agradável sabor de Cultura. Ali, Tom Jones passeara com Lady BeIlás ton e Lady Tearle ouvira as lisonjas de Joseph Surface. Viveram ali os seus próprios antepassados, de cabeleiras postiças e casacos bordados, com as suas mulheres, de anquinhas e cabelo empoado; tinham-se misturado ao grande mundo elegante nas periódicas visitas a Londres. O coração de Jim confrangeu-se ao pensamento de que a destruição atingiria inevitàvelmente aquele delicioso parque. Diziam que só quem tivesse conhecido Londres antes da primeira guerra é que podia avaliar o encanto da vida. Que diriam os que fossem bastante desgraçados para sobreviver a esta outra? Procurou, com um olhar compreensivo, fixar na retina o que estava vendo, para que aquilo se tornasse uma posse permanente que nada pudesse apagar da sua sensibilidade. Tanta beleza era repousante.

Mas consultou o relógio. Era cedo ainda, e continuou a passear. O ar estava delicioso nesse cálido anoitecer de Verão, e havia algo estimulante no vago e monótono rumor da cidade ao norte e ao sul do parque. Esse rumor era tão excitante, a seu modo, como as coisas importantes que acontecem por detrás de uma porta fechada enquanto a gente espéra do lado de fora uma solução que não sabe qual será. De repente, avistou Dora. Estava sentada num banco, conversando com uma mulher. Ficou surpreendido, porque nunca lhe constara que Dora conhecesse alguém em Londres. A mulher falava ràpidamente, com animação, e Dora, com o olhar fixo nèla, concòrdàva de vez em quando com um movímento de cabeça, como para indicar que acompanhava e compreendia o que a outra lhe dizia. Estava tão absorvida que não o viu senão quando ele se aproximou bastante para percebér que a desconhecída falava alemão. Foi a mulher quem prinìeiro deu por ele e cessou bruscamente de falar. Dora teve um sobressalto e o sangue subiu-lhe ao rosto.

-Oh! Jim, não te esperava já. Nem te vi aparecer. Até me assustei.

A mulher olhou para ele um instante e impressionou-o a estranha frieza daquele olhar. Ela levantou-se, cumprimentou Dóra secamente e em passos vivos retirou-se.

- Quem era - perguntou Jim, sentando-se ao lado dela.

-Não sei. Estava sentada no banco quando eu cheguei. - Viu que eu era estrangeira e começou a conversar comigo. É uma refugiada. Contou-me a sua história. É uma coisa triste, e o pior é que nada se pode fazer para a ajudar. Fiquei com tanta pena!

-Ela parece uma mulher muito decidida. Espero que há-de sair-se bem.

-Queres dar-me um cigarro? Que foi que fizeste o dia inteiro?

-Nada de importante.

O tom de jim era tão desanimado que ela olhou para ele.

Estava pálido e abatido.

-Há alguma coisa? Pareces cansadíssimo.

-Resolvi tudo. Falei com eles. Participei que não me alistava. Estavam todos lá. Foi muito penoso. Meu pai chorou.

- Porquê? - perguntou ela com acrimónia.

- Acha que é uma calamidade! Está envergonhado. Não compreendeu nada do meu ponto de vista.

Ela ficou calada por um momento e o rosto tornou-se-lhe sombrio. Ele continuou.

- Não deves fazer mau juízo dele. É um velho e há anos que nós somos do exército. Ele ach a que um soldado pode ser limpa-chaminés ou coisa parecida. E áinda mais: quando há guerra não concebe que alguém deixe de mover céus e terra para tomar parte nela.

- Teu irmão ficou zangado?

- Zangado pròpriamente não. Foi bondoso; com aquela bondade tolerante com que se trata alguém que agiu como um imbecil. - Jim teve um riso melancólico. - Acho que a vida em casa não será muito agradável.

Dora sacudiu os ombros de um modo que podia significar qualquer coisa.

- A tua mãe conversou com o teu irmão a meu respeito? - perguntou.

Um sorriso aflorou aos lábios de Jim. Gostava de falar em Dora.

-Sim. Ele tomou nota do teu nome. Díz que não vai haver nada e eu acredito. Seria monstruoso internarem-te. Afinal não és alemã, és austríaca, e o mau pedaço por que passaste faz-te merecer alguma consideração.   

- Ofacto é que sou uma estrangeira inimiga.

- Não precisavas ser, sabes isso - sorriu ele.                 

Era claro o que queria dizer. Dora fez um ligeiro gesto, cujo significado ele não percebeu. Tomou-lhe a mão que a jovem lhe abandonou sem dizer palavra. Um transeunte observou-os com curiosidade e sorriu seguindo o seu caminho. Jim esperou até que o homem não pudesse ouvir o que diziam.                   

-Querida, queres casar comigo?

Ela retirou a mão e baixou os olhos. Havia neles uma sombra de preocupação.             

- Se fosses minha mulher, serias súbdita britânica e então as autoridades não teriam nada a dizer.     

Ela pareceu hesitar um momento, Sorriu-lhe ligeiramente com os lábios, mas os seus olhos estavam graves.       

- ès muito bom, Jim. Não, não posso casar-me contigo.                

-Porque não? Amo-te. Sabes que te amo apaixonadamente. Pensei que gostasses um pouco de mim.  

-Seria deslealdade para com teu pai e tua mãe. Eles têm sido tão generosos para mim. Não posso retribuir-lhes assim. Haviam de ficar profundamente desgostosos comigo.

        - Não creio. Eles querem que me case.

        - Talvez. Mas não com uma estrangeira da classe média e sem fortuna. Mesmo que eu tivesse uma dúzia de filhos, eles guardariam ressentimento.

        Jim suspirou. Não esperava que Dora, tão inteligente, não tivesse percebido que seu pai, agora que Roger lhe falhara, confiava no segundo filho para lhe dar o herdeiro por quem o seu coração ansiava. Compreendia que uma jovem altiva e idealista como Dora não se deixasse tentar pela perspectiva de ser tratada como animal reprodutor.

-Eu preciso tanto de ti, querida! Vou enfrentar uma situação horrível, podes estar certa disso. Sou capaz de suportar tudo. Mas preciso de ti.

- Será ainda mais horrível se tiveres uma mulher austríaca.

-Não faz mal. Assim, eles não poderão levar-te. Oh!

Dora, diz que sim! Prometo que nunca te arrependerás.

        Ela fitou-o com os olhos belos e límpidos, e inclinando-se um pouco, beijou-o no rosto.

-Não resolvamos já. Pensemos primeiro. Não quero que eles me levem, disso podes estar certo. Não me conviria nada. Se houver algum perigo por esse lado, então sim, casaremos.

Ela falou com tanta suavidade, com tal encanto que o coração de Jim se alvoroçou.

-Já estou quase resolvido a denunciar-te como espia nazi só para forçar o casamento - disse ele alegremente.

Dora rIu.

- Não seria muito gentil da tua parte.

-Podias áo menos dizer que não desgostas de mim.

-Pareces ser mais civilizado do que qualquer        outra pessoa que encontrei neste país. Não me espantaria se descobrisse que estou loucamente apaixonada por ti.

- Meu anjo!

Ergueu as mãos para se opor ao apaixonado abraço que ele pretendia dar-lhe.

- Aqui não. É um lugar público. Não disseste que ias levar-me a um cinema?

Levantaram-se e saíram do parque. Ao transporem o portão, um vendedor de jornais passava com a última edição da tarde, gritando:

- Última edição! O transatl ntico Athenia foi afundado!

Última edição!

 

Mrs. Henderson pôs-se a trabalhar sem perda de tempo, porque era urgente aprontar a casa, no menor prazo possível, para receber as crianças de que devia tomar conta. Todos esperavam que Londres fosse intensamente bombardeada, e os hospitais tinham instruções no sentido de se prepararem para acomodar vários milhares de feridos. Os doentes em condições de viajar deviam ser enviados para o campo, e os que pudessem ser dispensados sem perigo voltariam para suas casas. Houve um alarme antiaéreo no primeiro dia de guerra, e uma multidão de gente, uns por brincadeira, outros por medo, a maioria porque achava que se esperava deles aquilo mesmo, correram aos abrigos ainda inadequados. As autoridades insistiam na necessidade de se evacuarem as crianças, e os comboios, repletos, partíam da cidade. Era difícil, em tão curto prazo, encontrar acomodações convenientes para aquele fluxo diário.

Mrs. Henderson retirou a mobília da sala de baile e colocou camas pneumáticas, mandadas vir à pressa de Londres, em duas fíleiras ao longo das paredes, esvaziou a grande sala de visitas e transformou-a em sala de brincar; e na ampla sala de jantar, só utilizada nas grandes festas, instalou o refeitório. Assim, ficava para uso da família o hall, decorado por William Kent - um dos locais máis notáveis da casa, além de uma sala de visitas e uma de jantar menores, e a biblioteca, com trabalhos de Grinling Gibbons. A conselho de Roger, ela decidira começar com trinta crianças, que vieram em dois grupos, um de doze e outro de dezoito. Procediam de Stepney, e tínham de quatro a doze anos; algumas, eram educadínhas, fílhas de trabalhadores respeitáveis, mas outras deixavam transparecer lamentàvelmente a aviltante pobreza dos pais. Vinham esfarrapadas e piolhentas. Tinham de ser lavadas, esfregadas e vestidas. As mais novas eram bastante fáceis de tratar, mas algumas das mais velhas, especialmente os meninos, eram duras de dominar. Tinham hábitos anti-higiénicos; diziam palavrões e revelavam instintos de destruição. Duas ou três, a príncípio, pareceram absolutamente ingovernáveis. Quebravam tudo o que podiam, e com os pèzinhos travessos pisavam maldosamente os canteiros, de modo que nem uma flor ficou de pé. Algumas nunca se haviam sentado antes à mesa durante as refeições: comiam sentadas no chão, e quando as obrigavam a ir para a mesa, numa raiva desesperada, punham-se a atirar ao chão tudo que encontravam ao seu alcance. Mas talvez as mais difíceis de tratar fossem as que tinham saudades da família. Sentiam-se assustadas e sozinhas na grande casa perdida no campo, e cheias de nostalgia das ruas barulhentas e imundas dos bairros pobres de Londres. Havia também as mães, que vinham durante o dia para visitar os filhos. Muitas ficavam contentes de sabê-los a salvo, e embora sentissem a falta deles não podiam deixar de ver que lhes fazía bem viverem aquela vida saudável do campo. Sentiam instintivamente que podiam confiá-los à bondosa senhora que falava com tanta amabilidade. Mas outras eram mais difíceis. Achavam ruim a comida simples e sadia que Mrs. Henderson dava ás crianças, e queixavam-se de que elas estavam a passar fome. Outro motivo de reclamações era que ela fornecia leite fresco em vez de condensado. Mesquinha! diziam. Estavam convencidas de que Mrs. Henderson recebia dinheiro do governo para sustentar as crianças, e não procuravam esclarecer a crença de que ela estava a fazer um bom negócio. Protestavam contra as roupas novas que ela lhes comprara; achavam aquilo um acinte à própría capacidade de vestirem os filhos decentemente; e como todos estavam vestidos da mesma maneira, qualquer um podia pensar que eles eram uns enjeitados. Também não concordavam com os banhos a toda a hora, que Mrs. Hendérson insistia em dar ás crianças.

- O que vai acontecer é que eles morrem de frio, os pobrezinhos , protestávám.

Muitas chegaram a insistir para levár os filhos. Esses foram substituídos por outros, e antes deles chegarem ninguém poderia dizer se seriam bonzinhos e bem comportados, ou pequeninos bandidos causadores de desordens.

Em poucas semanas, porém, combinando firmeza e brandura, Mrs. Henderson conseguiu criar autoridade mesmo sobre os mais turbulentos. Com o seu Coração bondoso, ela alegrava-se ao ver que a boa comida e o ar puro os fazia engordar e ficar corados. As mães mais azédas eram obrigadas a reconhecer que os filhos davam a impressão de estar fisicamente muito bem, e admitiam, completamente vexadas, que a velha afinal não era das piores. Foi um triunfo para Mrs. Henderson quando uma múlher ríspida de traços duros, mãe de seis filhos, lhe disse:

-A senhora é mesmo uma dama, não tem que ver. E isto digo-o eu para quem quiser ouvir.

Mas era um trabalho duro. Os empregados, já só tinham o mordomo para guiar um camião e os dois lacaios para um campo de treinamento. Só ficaram as criadas. Quando acabavam de pôr os meninos nas suas caminhas, à noite, Mrs. Henderson, May e Dora estavam exaustas. Os mais velhos frequentavam a escola da aldeia, e assim estavam impedidos de fazer travessuras a maior parte do dia. May e Dora revezavam-se para tomar conta dos outros.

Dora, como Mrs. Henderson previra, era preciosa. Mostrava-se mais severa do que Mrs. Henderson e May conseguiam ser. Uma vez ou duas, Mrs. Henderson teve de lembrar-lhe que eram apenas crianças, crianças que nunca tinham tido possibilidade de aprender e das quais, portanto, não se ia esperar muita coisa; mas não havia dúvida de que ela sabia manter a ordem. Não gostavam dela tanto quanto de Mrs. Henderson ou de May, mas respeitavam-na. Cedo aprenderam que quando ela lhes dizia que fizessem alguma coisa, deviam obedecer.

Deu-se um incidente curioso logo depois de rebentar a guerra. Jim estava a ler um jornal ilustrado e viu uma fotografia do pessoal da embaixada alemã que ia deixar Londres. Mostrou-a a Dora:

-Olha. Não é a mulher com quem estavas a conversar em St. James Park, quando fomos á cidade?

Era uma mulher alta e morena, de traços marcados. Dora olhou para a fotografia.

- Não parece - disse despreocupadamente. - Aquela mulher afirmou que era uma refugiada.

- É o mesmo chapéu. E ela tem o mesmo olhar duro.

Quem sabe se será, de facto, refugiada?

- De qualquer modo, se estava a procurar saber alguma coisa, não conseguiu - respondeu Dora, com o seu sorriso franco.

Jim não pensou mais no assunto. Mas quando o pai veio passar o fim-de-semana, ele lembrou-se de mostrar-lhe a fotografia, como simples motivo de curiosidade. Não encontrou o jornal. Ficou a pensar onde teria ido parar.

O general, desesperando de conseguir ocupação melhor, estàva a trabalhar na secção central da Cruz Vermelha e só vinha à propriedade passar os fins-de-semana. Tratava Jim como de costume, mas evitava ficar sòzinho com ele; e Jím, com os nervos exasperados, sentia que, de quando em quando, os olhos do pai o fixavám com magoada perpléxidade. Mas quando o encarava deliberadamente, o general desviava os olhos; May e Mrs. Henderson dirigiam-lhe a palavra com invariável cordialidade, mas sobre assuntos indiferentes, e nunca mencionavam a questão que os separava. Certa vez tentou abordá-la com a mãe.

- Oh! Jim, não falemos nisso - disse ela. - Já firmaste a tua opinião e nada do que eu possa dizer a vai mudar.

- Causo-lhe muito desgosto?

- Sim.

- Sinto muito.

No domingo de manhã, à hora do breakfast, encontroú uma carta no seu prato. Abriu-a, e tirando o conteúdo mostruu aos outros.

A primeira pena branca.

O general e Mrs. Henderson olharam horrorizados. May, embaraçada, baixou os olhos, e Dora fixou Jím com uma expressão singular nos olhos azuis. examinou o carimbo.

- Não é de longe daqui - observou. - Gostaria de saber qual dos nossos bons amigos teve a ideia.

Com um sorriso, colocou a pena na lapela. O general levantou-se e saiu da sala. Os outros acabaram de comer em silêncio.

Em devido tempo ele recebeu a intimação do tribunal que fora instituído para tomar conhecimento das declarações dos que tivessem sido convocados e pedissem isenção do serviço militar. Era corajoso, e foi sem receio da provocação - enfrentar o que o esperava. na manhã indicada, seguiu de áutomóvel para a vizinha cidade de Lewes. Ficou um pouco desconcertado com o aspecto dos outros pacifistas convictos que estavam reunidos no hall à espera dos membros do tribunal para entrarem. Eram sete. Com excepção de um trabalhador de rosto honesto e franco, eram criaturas miseráveis, fracas, raquíticas - companhia bem pouco agradável. Jim, alto e robusto, sentiu-se constrangido ao examiná-los. de qualquer forma, nunca seriam muito úteis ao Exército; formavam um grupo lamentável, davam às suas convicções uma sensação de falsidade que momentâneamente o abalou. Um deles, o primeiro a ser ouvido, fazia evidentemente um alto juízo de si mesmo; e quando interrogado sobre como é que justificava o seu pedido de isenção, fez um discurso longo e retórico, alardeando as suas crenças comunistas. Era lojista de profissão. Recusava-se, não sómente a servir no Exército, como também a fazer qualquer coisa que mesmo remotamente se relacionasse com a guerra capitalista. Desafiou o tribunal a mandá-lo para uma prisão. O lavrador, cujo caso foi decidido a seguir, era de uma categoria diferente. Pertencia a uma pequena e obscura seita chamada os doze Apóstolos. Nesse mundo estranho e desalmado, os seus aderentes procuravam realizar ao pé da letra os preceitos de Jesus Cristo. Era comovente ouvir aquele homem simples e inculto proclamar em palavras tartamudeadas a sua convicção profunda. Não podia haver dúvida sobre a sua sinceridade. Surpreendeu muito os que o deviam julgar e os que iam ser ouvidos; e tinha-se a impressão de estar a lidar com um discípulo de Cristo. Na sala o júri ficou profundamente comovido. O idealismo daquele homem era um raio de sol que inundava de luz o seu coração. E quando chegou a sua vez, enfrentou os juízes com viril confiança. Conhecia pessoalnente os membros do tribunal, cujo residente era íntimo amigo de seu pai; mas se algum deles achou singular o facto de ele comparecer ali, não deu nenhuma demonstração disso. Jim leu a breve declaração que preparara e respondeu ás perguntas que lhe foram feitas.

- Está preparado para trabalhar na terra? - perguntouo presidente.

- Sim, senhor. Fá-lo-ei com muito prazer.

- Muito bem.

Foi-lhe concedida a isenção.

Havia diversas granjas na propriedade de Graveney, mas o tribunal estipulou que ele não devia trabalhar com nenhum dos rendeiros do pai. Assim, no dia seguinte procurou trabalho junto de um agricultor que cultivasse a sua própria terra.

- Confia, hem? - perguntou-lh o homem.

- Sim.

- Você é um rapaz forte e saudável. Alguma vez na sua vida trabalhou um dia inteiro?

-Não, da maneira a que o senhor se refere.

O homem olhou-o de alto a baixo, como se ele fosse um animal estranho.

- Bem, vou dar-lhe uma oportunidade. Fiquei sem trabalhadores. Todos os meus rapazes estão no exército e eu tive de me arranjar com qualquer rebotalho que aparecer.

Jim encontrou um quarto num lugar vizinho, pertencente a um casal, cujo filho se alistara. Ficava satisfeito por sair de casa. Era muito sensível, e o facto de os outros - o pai, a mãe, May - evitarem qualquer referência á sua posição inglória exasperava-lhe os nervos mais do que se o condenassem abertamente. Estava na situação de um homem que volta para a família depois de cumprir uma sentença e sabe que todos estão sempre vigilantes para não deixar escapar afirmações que o firam. Só com Dora se sentia à vontade, mas desde a vinda das crianças, ela só lhe podia dedicar muito pouco tempo. Era obrigado a contentar-se com um ou outro passeio no parque ou com uma conversa de poucos minutos, quando conseguia encontrá-la sozinha. Às vezes protestava contra o facto de se verem tão pouco, mas Dora respondia que achava prudente não darem a impressão de ser muito íntimos.

-Não quero que ninguém suspeite de que há alguma coisa entre nós, enquanto não resolvermos definitivamente.

-Eu já me resolvi.

- Eu não.

A resposta dela tê-lo-ia tornado furioso e infeliz, se não fosse acompanhada de um sorriso radioso.

A granja onde Jim se empregou ficava a seis milhas apenas de distância: Estabeleceu-se que todos os domingos ele viria passar o dia a casa. Mas assim teria pouca probabilidade de ver Dora sozinha; exigiu-lhe então a promessa de que uma véz ou outra, quando ela pudesse ausentar-se, iria encontrá- lo ao anoitecer num pequeno cottage no cume de uma colina baixa perto da estrada principal, mas bem defronte de um dos púrtões do parque. De Graveney ia-se até lá, de bicicleta, num instante. Tinha um telhado de palha, e, embora apertado, era habitável. Com efeito, um tio, meio desequilibrado, do general, morara ali durante anos, e em memória dele os Henderson ainda o chamávam cottage do tio Algy. Mas nos arredores denominávam-no Badger's. Jim sempre esperara que Roger, quando herdasse a propriedáde, lho deixásse. Gostava de ir lá com Dora e imaginar as modificações que faria.

- Seria o ideal para nós dois - disse, olhando-a com ternura.

- Não há dúvida de que a vista é linda - respondeu ela, sorrindo.

Situado, como estava, no alto, via-se das janelas uma grande extensão do campo em redor.

- Todo o Sussex aí está diante de ti - disse ele com orgulho. - maravilhoso.

- Não vejo porque não havemos de nos casar imediatament e vir morar aqui. - Então deves ser muito tolo. já te disse por várias vezes.

Ele suspirou. Sabia agora que quando ela resolvia uma coisa, não havia nada que a demovesse. Chegara á conclusão que casar com Jim seria uma falsidade inominável para os pais dele, que a haviam tratado tão bem. E embora achasse infundada a ideia, não podia deixar de admirar a delicadeza do escrúpulo.

-Seja como for, eu só queria que não fosses assim tão determinada - disse ele.

 

O Outono estava adorável. Em fins de Setembro, Tommy voltou para o colégio. Por essa ocasião, o Exército russo penetrou na Polónia pelo leste, e com essa invasão a resistência polaca entrou em colapso. Varsóvia capitulou. Os vencedores dìvidiram os despojos. Encerrava-se o primeiro e breve capítulo da guerra. As tropas inglesas foram râpidamente transportadas através do Canal da Mancha, e Roger entrou para o Estado-Maior do comandante-chefe. Começou o Inverno. Dick Murray estava com o seu regimento nos ermos de Norfolk. Embora o visse partir com pesar, May sentia-se descansada pelo facto de ele não poder vir vê-la em momentos impróprios. Consíderava-se obrigada a obedecer não somente ao espírito como também à letra da sua combinação com Roger, o que se tornava mais difícil quando via Dick constantemente. Tal como Roger, ele estava a servir a sua pátria, e isso era um motivo de alegria para ela. Pouco se correspondiam; quando ele escrevia, entretanto, não eram cartas de amor, mas simples relatos do que estava fazendo, entremeados de queixas sobre o tédio daquela vida. Era quanto bastava para encher o dia de May. Ela podia ouvirlhe a voz quente e cariciosa nas suas frases positivas, e em cada palavra escrita ao acaso via que ele a amava, Era uma sorte ter tanto que fazer. O trabalho mantinha-a tão ocupada que lhe sobrava pouco tempo para outras ideias, e embora cada dia fosse exactamente igual ao da véspera, as semanas passavam num tropel. só percebeu que o Natal estava à porta, quando, certa manhã, Mrs. Henderson anunciou que ia a Londres comprar presentes para as crianças. Arranjou-se uma árvore, que ficou num quarto particular, e, nos seus momentos de lazer, May e Dora dedicaram-se a enfeitá-la. Tommy veio passar as férias a casa. Tinha crescido, mas era ainda um menino, magro e desajeitado, com mãos e pés grandes de mais, e um topete e cabelos castanhos que a mãe debalde procurava manter em ordem. Os seus oIhos pretos eram agudos e inteligentes. A sua vitalidade era tão exuberante que a não ser quando estava a dormir, dir-se-ia uma tortura para ele ficar sentado, como se em vez de sangue lhe corresse mercúrio nas veias. Os seus movi mentos tinham a tosca e encantadora gaucherien de um potro rcém-nascido. Mrs. Henderson, vendo-o crescer tão depressa, não podia deixar de reflectir com tristeza que, em breve, o som da sua voz se transformaria, e daí a pouco ele seria um latagão como os irmãos, perdendo ela no homem adulto o menino que lhe era tão caro. Dava graças a Deus que ele fosse jovem de mais para combater. Nenhuma desgraça lhe aconteceria.

Chegou o Natal. O general, vindo de Londres por quarenta e oito horas, trouxe uma bicicleta nova para Tommy. As crianças evacuadas entusiasmaram-se com os presentes, e a árvore de Natal - como nunca tinham visto parecida - encheu-as de extasiada admiração. Comeram peru e pudim de ameixas, beberam, brincaram, divertiram-se muito. Um menino declarou que a guérra podia durar quanto quisesse.

Foi pouco antes do Ano Novo, uma noite, quando as crianças estavam a jantar, que Tommy entrou no refeitório, anunciando:

- May, estão a chamar-te ao telefone.

-Quem ? Não posso ir agora. Estou ocupada.

- Dick Murray. Diz que só quer falar contigo um instantinho. Eu sirvo á mesa no teú lugar.

May segurava um prato, cheio de macarrão, e pousou-o devagar na mesa, pois as suas mãos tremiam. Sabia porque Dick lhe telefonava. Na última carta anunciara ser muito provável que o seu regimento fosse enviado à França, e fazia votos para que isso acontecesse, porque estáva cansado de estar sentado sem fazer coisa nenhuma. Se houvesse uma possibilidade de vê-lo antes da partida, ela não a perderia; não podia deixá-lo ir sem o ver ao menos uma vez. Passou pelo hall e foi até à biblioteca, de modo a poder falar sem ser ouvida. Segurou o telefone, mas os joelhos tremiam-lhe tanto, que teve de sentar-se.

- Álô.

-May, nós vamos partir.

A voz dele éra alegre e ansiosa. Ela crispou as mãos.

- Oh!, é óptimo - disse num tom de falsa despreocupação. - Quando?

- Hoje. Vamos embarcar de madrugada.

-Já? Oh! Dick!

Ela não esperava por aquilo, e teve de morder os lábios para não chorar.

- Não é preciso assustares-te. O perigo é o mesmo que se estivéssemos em Norfolk. Não acontecerá nada antes dos Alemães atacarem na Primavera e então havemos de esmagá-los.      

Ela fez um esforço.

- Espero que não seja muito aborrecido.

-Daria tudo no mundo para me despedir de ti pessoalmente: Naturalmente, esperava conseguir um dia ou dois de licença, e estou aborrecidíssimo por não ter sido possível.         

May não pôde falar por um momento. Dick pensou que tivessem cortado a ligação. Afinal, ela conseguiu firmar a voz.       

- Talvez seja melhor assim. Não sei se suportaria.        

-Oh!, minha querida.

A voz dele tremeu.

-Adeus, querido. Deus te acompanhe.

- Amo-te muito.

- Adeus.   

Ela desligou. Tudo se passára em menos de três minutos.  

Pouco, oh!, muito pouco. Os lábios tremiam-lhe, mas ela não podia chorar, e cerrou os dentes. Ficou onde estava, junto do telefone, para se refazer. Não podia deixar que alguém percebesse que recebera notícias que a haviam comovido mais do que era lícito. Como era odioso ter de fingir assim! Quando voltou ao refeitório, só a palidez do rosto revelava o que lhe ia no coração.       

- Que é que ele queria? - perguntou Mrs. Henderson.

-Telefonou para se despedir. Vai para a França amanhã.     

-Oh!, que bom. Ele deve estar satisfeitíssimo.      

-Parece muito animado.

Ian também foi enviado para França. Depois de recorrer a todas as pessoas influentes que conhecia, realizara o seu desejo e mais uma vez vestia a fárda. Como falava bem francês, fizeram-no oficial de segurança - um posto que lhe convinha perfeitamente. Jane discordou. A seu ver, aquilo exigia tacto, critério e bom senso, e ninguém melhor que ela sabia que Ian

era absolutamente desprovido de qualquer dessas qualidades.

Ele ouviu as ásperas observações da mulher sem pestanejar.

Quando foi a sua vez de partir - ficara combinado que Jane não iria à estação - os dois tomaram juntos um último drink na sala de visitas do pequeno apartamento de Westminster. Ian devia embarcar em Southampton para Cherburgo.

-Oxalá tenhamos uma travessia calma. Não sabes que péssimo marinheiro eu sou - disse ele.

- Ficas com uma cara horrível quando enjoas.

-Isso não importa, O que eu sinto também é horrível.

Em geral tinham muita coisa a dizer um ao outro, mas naquele momento, não sabiam bem porquê, não lhes ocorria nada. Jane fumava numa boquilha enorme; e de repente, como se estivesse furiosa com o cigarro, tirou-o e esmagou-o violentamente no cinzeiro. Ian consultou o relógio e bebeu o último gole do seu whisky com soda.

-Bem, acho que é tempo de ir andando.

- Será ?

Ela tirou o bâton e passou-o pelos lábios. Olhando-se no espelhinho da bolsa enquanto se pintava, perguntou com indiferença:

- Não queres que eu vá levar-te à estação?

-Nunca. Não quero uma mulher histérica a chorar em cima do meu uniforme novinho.

- Qual histérica, qual nada! O que eu não posso compreender é o que eles esperam mandando um velho gordo como tu para França.

-Velho, uma história! Estou na flor da idade. E gordo, uma história também. Perdi dez quilos desde que voltei para o exército.

Ela lançou-lhe um olhar de mofa.

- Pois ninguém diria. - Fixou-o severamente através do monóculo. - Olha, Ian, se vires um alemão a avançar na tua direcção, trata de correr como uma lebre.

Ele riu.

- Bem sabes que fico completamente sem fôlego quando corro.   

-Pois ficas avisado: se fores morto por um alemão, nunca mais falo contigo.

- Isso é uma ameaça ou uma promessa?    

Jane ergueu as mãos num desespero.        

-Meu Deus, porque me casei com este homem?

- Lá isso sei eu - disse ele com um riso gutural. - Porque só eu faria a loucura de pedir-te em casamento.

jane deu uma risadinha.     

- Isso mesmo. Mas como é que soubeste?  !

Ele ergueu o corpanzil da cadeira e, segurando a mão de jane, fê-la levantar-se.  

- Dá um beijo ao velho antes de ele se ir embora.

Jane engoliu em seco.

-Oh, meu Deus, parece-me que vou chorar.         

- Não sejas idiota, Jane - disse ele com rudeza.

- Meu Deus, não me deixes chorar. Nunca mais serei capaz de lidár com este homem, se chorar agora.        

- Pensa nos teus olhos, querida, e não em mim.

Ela fitou-o com um olho só, por um motivo de que apenas suspeitava: o monóculo estava húmido e não podia enxergar através dele.

- Além de gordo e velho, és estúpido - disse enfúrecida.

Depois continuou com a sua voz engraçada e rouca do costume:

-Mas és tudo o que eu tenho no mundo, e eu não quero perder-te.

-Cala a boca, Jane, ou dou-te um soco no queixo. Se continuas assim, acabo por chorar também.

- Não estou a chorar, meu tolo. Não vou chorar. - Fez uma cara terrível: - Oh, Ian, eu amo-te tanto.

-Há muitos anos que, mais ou menos, desconfio disso, querida - disse ele, tomando-a nos braços gordos.

Jane passou os seus em torno do pescoço do marido, e com uma careta horrorosa perguntou lamentavelmente:

- Gostas de mim um bocadinho, não gostas?

- És uma peste, Jane, mas, palavra de honra, amo-te.

Os lábios de ambos encontraram-se, e puseram naquele longo beijo todo o amor e toda a dedicação que tinham um pelo outro. Jane desprendeu-se primeiro:

- Vai-te embora de uma vez. Não posso suportar por mais tempo um momento como este.

Em silêncio, ele precipitou-se para fora do quarto, batendo com a porta, como se tivessem travado uma luta fantástica.

Jane, com os olhos na porta por onde Ian saíra, mordeu os lábios para se dominar. O seu rosto cómico e feio mexia-se em estranhas contorções. Afinal, desistiu de lutar.

-Que vão para o diabo os olhos!

Caiu de joelhos e juntou as mãos.

-Oh!, meu Deus, protegei esse vélho idiota!

As lágrimas correram-lhe pelas faces, fazendo um estrago tremendo na pintura.

Através de toda a Inglaterra, durante o longo e cruel.

Inverno, muitas mulheres se despediram de seus maridos, embora em situações diferentes. Despediram-se deles nos quintais das distantes casas e nas cabanas de pescadores da Cornualha batida pelos ventos, nas habitações miseráveis das grandes cidades, nas feias vivendas dos subúrbios, nas residências bem arranjadas dos remediados e nas mansões dos ricos.

Quando era possível, iam até á estação para vê-los pela ultima    véz no embarque. Nas carruagens, os homens muito animados rabiscavam a giz zombarias e piadas. Vamos pendurar a nossa roupa lavada na Linha Siegfried. Cantavam alegremente quando o comboio partia. Iam para a França: Iam para Gibraltar, para Malta, para o Egipto ou para o Oriente. Talvez nenhum deles chegasse salvo ao seu destino. As mul ieres, muitas delas ainda chorando, saíam em grupos da estação e iam às suas ocupações.       

Jane continuou na vida de sempre. ia frequentemente jantar fora e almoçava no Ritz, onde se encontravam todos os   conhecidos. Organizava reuniões agradáveis no seu pequeno apartamento. Como morava num bom, os amigos de Roger, do Ministério da Guerra, homens do Foreign Office e membros da Câmara dos Comuns sentiam prazer em subir um pouco, à noite, para um cocktail e uma pequena conversa: Ela geralmente tinha uma história engraçada para contar sobre tal ou qual general, ou um caso meio escandaloso sobre um ministro de Gabinete. estava-se sempre certo de soltar duas ou três boas risadas quando se ia a casa dela. O seu aspecto extraordinário aumentava a gráça das suas pilhérias. Sem dúvida a guerra era um aborrecimento dos diabos, mas nada se ganhava em ficar com uma cara de réu: ela não compreendia porque não se havia de tirar da situação o máximo do divertimento possível, E certamente havia amplo terreno para a sua veia sardónica.

Sentia a falta de Ian, ele era providencial; e quando a conversa começava a desanimar, sempre podia contar com o marido para reavivá-la: bastava dirigir-lhe uma observação cáustica, como se fosse uma isca e ele a truta nédia com que realmente se parecia. Representavam um com o outro como uma dupla de velhos comediantes.

Mas quando lhe perguntavam se sentia saudades dele, Jane dava de ombros displicentemente:

-De certo modo, creio que sim. Às vezes quando Ian está aqui, tenho vontade de o matar; mas não há dúvida de que com a ausência o coração se enternece um pouco.

Sentia-se feliz por ele não estar em perigo. Algumas das pessoas que vinham visitá-la eram importantes, e confortava-a ouvi-las dizer que tudo seguia de acordo com os planos. O bloqueio mostrava-se eficiente e, segundo as informações que se obtinham da Alemanha, já havia considerável escassez de matérias-primas. Os alemães ainda não conheciam a penúria, embora tivessem de apertar os cintos; mas estavam a sofrer com o frio porque, devido a falta de transportes, não podiam obter carvão em quantidade suficiente. Isso havia de ter um efeito deprimente sobre a população, que, em todo u caso, aceitara a guerra mais com resignação do que com entusiasmo. Se não fosse por outro motivo qualquer, pelo menos para manter o moral, Hitler teria de atacar na próxima Primavera. A Linha Maginot era inexpugnável. Toda a gente sabia que embora os generais, pertencentes ao velho exército, não fossem de desprezar, os alemães sofriam de uma séria falta de comandantes de companhia, e quando tivessem de enfrentar as tropas francesas, bem preparadas e bem comandadas, veriam que enorme desvantagem isso representava. Depois de eles fracassarem no ataque à Linha Maginot, os aliados avançariam. Os alemães teriam de se entrincheirar, isto no caso de não estoirar uma revolução, pondo logo termo à história toda e deixando aos aliados apenas o trabalho de se firmarem para que o bloqueio fizesse o resto. Os amigos de Jane no Foreign Office díziam-lhe terem confiança em que a Itália não entraria na guerra; Bastianini, o embaixador, declarava a quem quisesse ouvi-lo que o seu país nunca lutaria contra a velha aliada Inglaterra. Era tranquiliza dor escutar o que diziam aqueles homens do Foreign Office: Mostravam-se tão calmos, aparentemente tão despreocupados, que não se podia deixar de sentir que não havia motivo para aborrecimento. A guerra era como uma partida  que eles jogavam - uma partida de acordo com as regras, entre cavalheiros, e na Qual a derrota (aliás mera hipótese mas sempre possível), deveria ser aceita com espírito desportivo. Uma noite, Jane recebeu para jantar três ministros da Coroa. Conversou-se sobre literatura, e ela ficou impressionada com o perfeito conhecimento que revelavam dos poetas modernos. Nunca imaginara que fossem tão cultos.

Passaram os meses de Janeiro, Fevereiro e Março.

 

Esta história relaciona-se com a guerra exclusivamente na medida em que afecta os destinos de um pequeno grupo de pessoas, membros de uma única família inglesa, portanto nada é preciso dizer aqui dos acontecimentos que se seguiram em rápida e espantosa sucessão: as invasões da Dinamarca e da Noruega, da Bélgica e da Holanda. Depois, as linhas francesas foram rompidas ao sul de Sedan; poucos dias nais tarde os alemães capturavam Arras e Amiens, e alcançavam as costas do Canal da Mancha. Daí a uma semana o rei Leopoldo capituláva com o exÉrcito belga. O comunicado alemão anunciou que a sorte das forças aliadas estava decidida.

Jane ficou aniquilada. Que significava então tudo que tinham ditu durant os últimos três meses aquelas criaturas optimistas que vinham tomar Scotch whisky a sua casa? Nem sequer haviam vislumbrado a poSsibilidade de um desastre. o próprio Chamberlain, quando os alemães invadiram a Noruega, não declarara na Câmara dos Comuns que Hitler tinha perdido a face? Ainda não havia um mês que um dos figurões, com o peito cheio de fitinhas, lhe tinha dito que o Exército francês estava em magnífica forma, e que apostaria a cabeça em como o mundo receberia ali a maior surpresa da sua vida. Ian estava em França. Talvez morresse, e o melhor que se podia desejar era que fosse feito prisioneiro. Roger também estáva lá. Mas Roger sabia cuidar de si. Ian era tão tolo! Jane sentia-se tomada de terror. Corria Ceca e Meca, à procura de noticias, apelava para amigos influentes. Um ministro disse-lhe pelo telefone que as forças expedicionárias britânicas estavam encurraladas e seria um milagre se mais de trinta ou quarenta mil homens conseguissem escapar.         

- Nada animador, hem? - disse ela.     

- Péssimo - respondera-lhe.        

Jane teve um breve riso gutural.          

- Creio que Ian vai ficar prisioneiro. Há anos que lhe     digo que faça um tratamento para emagrecer. É o que vai        fazer agora, quer queira, quer não.    

- Não perca a coragem, minha amiga - disse o ministro.        

- Havemos de nos sair desta.     

- Naturalmente.

 

Desligou, Levou a mão ao coração, pois a dor que sentia era intolerável. Com o rosto cómico vincado de angústia, ficou a morder os lábios e a fitar a parede branca diante de si. Via-se de súbito terrivelmente só. Amigos? De que serviam os amigos?Ela sofria. Não podia suportar a ideia do jantar a que devia comparecer naquela noite no Savoy. Tamb m não podia suportar a ideia da solidão. Mesmo sem estar ali, a presença de Ian fazia-se sentir pela casa toda. As roupas, os velhos cachimbos, as espingardas, os apetrechos de pesca, os tacos de golfe - ela não podia entrar num quarto qualquer sem sentir a presença dele. Agora o apartamento estava vazio e hostil.

- Não posso mais! - exclamou em voz alta. - Quero ir para casa.

Sua mãe era a única pessoa a saber realmente o que Ian - aquele brutamontes, com seu vozeirão estrondoso, representava para ela. Tinha de recorrer á mãe, como no tempo em que, menina magra e muito feia, dava um trambolhão e se magoava. Era uma partida inqualificável a que a natureza lhe pregara ao dar-lhe um rosto e um coração tão díspares. Fez as malas, tomou o primeiro comboio e três horas mais tarde, afectando um ar desenvolto, entrou no hall de Graveney Holt. Mrs. Henderson e May estavam sózinhas. May tinha os olhos vermelhos e inchados:

- Bom dia, mamã! Ocorreu-me vir até cá para ver como vocês estão de saúde. Foi uma espiga isto que aqueles idiotas de Whitehall nos arranjaram.

- Precisamos esperar pelo melhor, querida – disse Mrs. Henderson gravemente. - Não deves perder o ânimo.

Jane sentou-se e descalçou as luvas, Depois tirou um espelho da bolsa e contemplou-se.

-Meu Deus, que cara! Não estou nada preocupada por causa de Ian, se é isso que está a pensar. Antes de ele partir, obriguei-o a prometer que se visse um alemão havia de correr como uma lebre, e ele sabe que vai ver o diabo comigo se não fizer o que eu mandei. - Encaixou mais firmemente o monóculo na órbita. - Londres está horrivelmente aborrecida, agora, por isso resolvi dar um pulo até aqui. Gostaria de ficar uns dias, se está de acordo.

Mrs. Henderson lançou à filha um olhar calmo e compreensivo. Alguma coisa mais forte que uma suspeita advertia de que a mãe percebera a situação.

- Decerto.

-Trouxe umas coisas na mala. E o meu rosto também, claro.

O que jane chamava meu rosto, era uma caixa de metal em prata e rectangular, com um bonito forro de veludo. Dentro havia grande número de frasquinhos, rouge, pó-de-arroz, bâton, rimel, e tudo o mais de que se pudesse necessitar para compor aquela fantástica contrafacção de rosto humano que ela apresentava ao mundo.

- Eu já contava com a tua vinda - disse Mrs. Henderson.

-Podes ser útil ás crianças. Procuramos esconder delas as notícias piores. Mas as mais velhas são ladinas como raposas. Quando me perguntam pelos pais, fico sem saber que responder.

-E de Roger, há notícias?

-Que notícias podia haver? Estamos aflitas, aflitíssimas.

-Bem, ele está no Estado-Maior. Os generais morrem na cama.

Jane irritava-se por ver o rosto pálido e os olhos inchados de May. Roger sairia de lá com Lorde Gort e os outros, mas quem iria preocupar-se com o velho e gordo Ian? Lançou à cunhada um olhar agudo. Talvez não fosse por Roger que ela estivesse tão abalada. Durante o Verão parecera-lhe que ela e Dick estavam de muito boas relações.

May levantou-se.

-Vou ver as crianças. Não posso deixar Dora muito tempo sozinha com elas.

Saiu. Não lhe passara despercebido o olhar de Jane. Sentira-se invadida por um medo pânico da outra desconfiar que os seus olhos não estavam vermelhos de chorar por Roger.

Preocupava-se com ele, naturalmente, não queria que lhe acontecesse nenhum mal, mas tinha a certeza de que se sairia muito bem e conseguiria escapar. O único perigo real que corria era o de alguma bomba extraviada; mas Dick. Era inútil tentar, ela não podia pensar em ninguém a não ser nele. Era um sofrimento agudo, torturante, que não lhe dava um momento de folga em todo o longo dia, e lhe roubava hora após hora de sono durante a noite interminável. Não tivera notícias dele desde que as tropas inglesas haviam tomado posição na Bélgica. Durante uma semana, Dick estivera no mais aceso da luta. Talvez estivesse ferido; talvez morto; e não havia ninguém a quem ela pudesse recorrer na sua dor.

Mrs. Henderson, atribuindo o abatimento de May à ansiedade pela sorte de Roger, tratava-a com mais carinho do que nunca.

Embora fosse por temperamento avessa a expansões, procurava agora maneiras de demonstrar a May como era profunda e sincera a afeição que lhe tinha. Sufocando os seus próprios receios, tentava, para consolá-la, diminuir os perigos que corria Roger. A sua ternura era um fardo difícil de suportar. May maldizia-se pela dissimulação a que era forçada, pelo alívio que tinha de fingir quando Mrs. Henderson lhe assegurava estar convencida de que Roger voltaria são e salvo, e lhe dizia que procurasse ser corajosa naquele período de provação. Pois era em Dick que ela pensava, em Dick que talvez nesse momento estivesse estendido, morto, no campo de batalha; em Dick cuja morte, se ocorresse, ela deveria chorar em segredo. Mas que podia fazer? Na sua angústia quase se sentia levada a contar toda a verdade a Mrs. Henderson, mas continha-se.

Não podia causar à pobre senhora uma dor ainda maior. Seria desumano dizer-lhe, justamente naquele momento, que deixara de amar Roger, se é que algum dia o amara. Seria pior que espancar uma criança. Não havia remédio, tinha de sofrer sozinha.

- Deus sabe que eu não quis amar Dick - dizia de si para si. - Não há outro remédio. Ele é tudo no mundo para mim.

Pensando nele, pensando incessantemente nele, rezando por ele, chegou a acreditar que se prometesse a Deus renun ciar, Deus o pouparia. Sòmente o seu vigoroso bom senso é que a impediu de ceder à tentação. Deus não era cruel, e para salvar alguém não exigia das suas criaturas a propiciação de uma vida frustrada e de um coração despedaçado. Esse era O Deus de Moisés, o que reclamava olho por oIho e dente por dente, não o Deus de amor. Caiu de joelhos e orou pela salvação de Dick, mas orou também por todos os que se achavam naquele momento em perigo de morte.

os cinco dias seguintes, durante os quais se realizou a evacuação de Dunquerque, foram dias de medo para as mulheres em Graveney Holt. Com a angústia no coração, os rostos tensos, elas escutavam a rádio cheias de silencioso pavor. Os bombardeiros alemães atacavam incessantemente as tropas em retirada e os navios de salvamento. Os homens, esgotados depois de quinze dias de rude combate, esperavam, nas praias desprotegidas, a sua vez de seguirem nas pequenas embarcações que vinham buscar os sobreviventes para os navios que os aguardavam ao largo. Os alemães, ao entrarem em Dunquerque, verificaram que a presa lhes escapara. Depois de recearem o pior, era quase com júbilo, como se a derrota se transformasse súbitamente em vitória, que aquelas mulheres ouviam as notícias segundo as quais, embora tudo o mais se houvesse perdido - canhões, tanques e equipamento -mais de trezentos mil homens estavam salvos. E se bem que nada soubessem do que acontecera àqueles cujo destino as preocupava, mais uma vez ousavam ter esperança. Durante todo esse período sombrio, Mrs. Henderson entregou-se à dura tarefa de cuidar das trinta crianças, com um ar grave e decidido. Mantinha as outras a trabalhar, também, com uma espécie de ferocidade, como se esperasse, obrigando-as a um máximo de esforço, afastar-lhes do espírito o angustioso temor de que estavam possuídas.

Jim vinha, como habitualmente, passar os domingos. Mas era um almoço triste e atormentado aquele, quando à uma hora se sentavam à mesa. O general ficava na cidade durante os fins-de-semana. May permanecia em silêncio, porque tinha o coração pesado, e Jane não havia meio de falar com Jim. evitava olhar para ele, e, quando o irmão lhe dirigia a palavra, respondia com um monossílabo. Os oito meses no campo Mantiveram-no robustecido; o duro trabalho manual dera-lhe aos músculos uma rigidez de aço; o sol bronzeara-o. Todo ele irradiava saúde. Mas as suas condições físicas eram uma afronta para Jane, que só com receio de Mrs. Henderson se privava de lhe dirigir os piores sarcasmos, que trazia na ponta da língua. Mrs. Henderson contemplava-o pesarosamente. O rosto dele estava tenso, como em consequência de um conflito espiritual, mas aquilo dava-lhe à aparência uma distinção nova. E agora, forte e tão encorpado, era realmente um belo rapaz. As mãos dele entristeciam-na, pois estavam ásperas, estragadas, calosas, mas, ainda assim, finas e bem feitas. Era com um orgulho contido que Mrs. Henderson dizia consigo mesma que aquelas mãos traíam a educação que ele recebera. Só um gentleman podia ter mãos assim. Os olhos de May também se pousaram nelas, por acaso, e impressionou-a a sua força nervosa. Eram como as de Roger, porém, maiores, e, ela não sabia bem porquê, tinham mais personalidade. Havia nelas alguma coisa estranha, quase sinistra, que não decorria inteiramente do rude mister que as calejara. Contrastavam singularmente com o olhar dolorido, obstinado, patético, dos seus olhos castanhos. Mrs. Henderson observou Dora, que tinha os olhos baixos, aparentemente absorvida no rosbife e no soufflé que comia com saudável apetite. Com o seu cabelo cor de trigo e o seu adorável pescoço, era sem dúvida uma jovem encantadora.

        Naturalmente Mrs. Henderson sabia que Jim lhe tinha amor, porém, estava certa também de que esse amor não era retribuído por Dora. Fora digno da parte dela não ter aceitado o oferecimento que seguramente ele lhe fizera. Mostrava que era desinteressada, pois como Roger não tinha filhos, Jim acabaria por ser o herdeiro da propriedade e era um bom partido para uma refugiada sem fortuna. Mrs. Henderson sentia ternura pela jovem. Era verdade o que Jane dissera há muito tempo:

o general não gostaria que Jim casasse com uma estrangeira. Mas isso era, certamente, preconceito; ela também não havia de gostar muito, porque queria que Jim desposasse uma boa rapariga inglesa, de família respeitável, a espécie de jovens com que os Henderson sempre casavam; mas uma vez que Dora o amasse e ele tivesse a certeza de ser feliz, ela seria a última pessoa a pôr obstáculos. E não podia haver dúvida, bastava olhar para ela para se ver que não deixaria ás moscas as nurseries de Graveney. Mrs. Henderson imaginava em que estaria Dora a pensar. Parecia estar alheia ao que se dizia, e não procurava participar na conversa que Mrs. Henderson tentava com esforço manter. A atmosfera era tão tensa que, tendo esgotado todos os outros assuntos possíveis, se voltou para Jim e começou a interrogá-lo sobre o trabalho na granja. Ele respondeu ás perguntas, mas era-lhe difícil ser natural quando sabia que a mãe só o interrogava para evitar qualquer referência ao desastre que pesava tão fortemente nos seus corações. Era como se ela estivesse a conversar com um estranho a quem a catástrofe fosse indiferente. A falar verdade, Jim sentia-se feliz no seu trabalho. Dava-lhe especial satisfação ver o trigo crescer nos campos que ele mesmo tinha ceifado, e as tarefas da rotina diária, na sua variedade, eram parte de constante interesse. Estava orgulhoso por não ter perdido um só cordeiro na época do parto das ovelhas. Passava a noite inteira de vela quando uma vaca estava em vésperas de parir, não porque o patrão mandasse, mas porque ele próprio ficava aflito: Ordenhava as vacas, banhava os cavalos e dava-lhes a ração, preparava a lavagem para os porcos. Trabalhar assin próximo da Natureza dava-lhe uma sensação reconfortante de paz.

Isso tornava-o capaz de suportar com indiferença meio divertida a hostilidade do patrão. Mr. Jenkins era um homem baixo e magricela, com parcos cabelos grisalhos, rosto enrugado e ossudo, olhos avermelhados. Decidira fazer Jim trabalhar. O maior elogio que Jim arrancara dele fora um grunhido desdenhoso; se se enganava, o que era frequente no princípio, quando ainda não conhecia o serviço, Jenkins cumulava-o de injúrias e palavrões. Jim desconfiava que ele sentia um prazer malicioso em mimosear o filho do general Henderson com o seu pior vocabulário. Chamava-lhe mandrião, mesmo na sua presença, e não deixava que a mulher e o filho tivessem com ele outro contacto além do estritamente necessário. Às vezes excedia-se, para que Jim perdesse a paciência e ele pudesse ir à polícia queixar-se.

- Britar pedra, era o que você devia fazer- rosnava.

Jim procurava ser tão cortês e respeitoso com Jenkins quanto, invertidas as situações, esperaria que ele fosse. Mas decidiu que quando viesse a paz e se visse novamente livre, aplicaria ao bruto uma surra de mestre. Valia a pena ser preso por isso.

Na noite anterior, entretanto, acontecera alguma coisa de que não podia deixar de falar a sua mãe. Sabia que seria um tento para Jane, e talvez fosse melhor que ela o soubesse imediatamente; mas justamente por causa dessa sensação, Jim esforçou-se por tocar no assunto ali mesmo, e naquele mo mento.

- Mamã - disse - crê que o papá se incomodaria se eu passasse a dormir no cottage do Tio Algy?

Era a casa situada em frente da porta norte do parque, e que os aldeões chamavam Badger s.

- Oh! Meu filho, lá não terias conforto de espécie alguma!

- É que os Carr, as pessoas com quem estou a morar, querem que eu saia de lá.

- Porquê?

- uma história comprida. Quando paguei o meu aluguer da semana, a noite passada, vi que Mrs. Carr tinha alguma coisa em mente. mr. Carr passeava do lado de fora, e eu percebi que estava a escutar. Perguntei se havia alguma coisa e ela respondeu: Bem, é que nós precisamos do seu quarto, e por isso tenho de lhe pedir que procure outro. De princípio não compreendia. Eu lá, pagando casa e comida, era um presente dos deuses para eles, depois que o filho se fora embora e não contavam com o salário do rapaz no orçamento. Perguntei-lhe porque queriam que eu saísse, e ela, então, declarou que lhe dava muito trabalho. Mentira, porque eu pouco incomodava. Por fim, a mulher disse-me o motivo daquela resolução.

Jim olliou fixamente para Jame, com um sorriso cáustico nos lábios. Repetindo as palavras de Mrs. Carr, ele imitava tão bem o seu largo sotaque do Sussex que seria de causar riso se não vissem todos como aquilo o fazia sofrer.

-Ela disse: Bem, meu senhor, a verdade precisa ser dita. O caso é este. Carr acha que com o nosso Bert no exército, no mais aceso do combate, como se diz, talvez ele nunca mais veja o pobre rapaz - e nessas condições nós não queremos que o senhor aqui esteja. Parece um insulto ao nosso Bert, se o senhor entende o que eu digo.

-Já estou a compreender aonde ela queria chegar.

- Cala-te, Jane - disse Mrs. Henderson rispidamente. Sim, decerto o teu pai gostará que mores no Tio Algy. E quanto às refeições?

- Posso comer na taverna de Cornford. - Cornford era o nome dá aldeia perto da propriedade de Jenkins. Jim sorriu secamente. - A lei não permite que eles se recusem a servir-me.

Acabaram o almoço num silêncio opressivo. Dora não pronunciara úma palavra durante todo o tempo.

Foi um alívio para Jim sair com ela a passear durante a tarde. Estava um dia quente, cheio de sol, e grandes nuvens em flocos brancos, como monstros primitivos que se aquecessem na superfície do abismo, boiavam tranquilamente no céu azul. Depois de dois dias de chuva, o verde dos carvalhos era acetinado e brilhante. Dora era o que os franceses chamam jaurriolière; havia dias em que parecia quase feia. e outros em que era bela. Estava num dos seus dias bons. Os seus olhos tomavam a cor do céu, e havia um esplendor quente nas suas faces. Pisava a terra com uma adorável impe tuosidade, como se a desprezasse. Se quisesse, iria pelos ares como uma feiticeira num cabo de vassoura. Jim nunca aamara com mais fervor. Tomou-lhe a mão. De repente, para sua completa surpresa, ela deu uma risada sonora.

- De que dìabo te ris? - indagou ele.

Ela parou subitamente e dirigiu-lhe um olhar rápido e inquiridor. Os olhos brilhantes velaram-se por um segundo.

-Nada, desculpa. É apenas nervoso. Todos aqueles rostos fúnebres em redor da mesa.

Ele corou, momentâneamente vexado. Aquilo parecia-lhe falta de tacto.

-Não havias de querer que estivessem alegres. Estão terrivelmente ansiosos.

- Sei. Perdoa-me. Não tive intenção. Foi estúpido. Creio que isto é o fim.

-Que queres dizer?

Estava ainda um pouco ofendido, mas Dora dedicou-lhe um sorriso encantador, quase terno.

- Meu caro, pensa um pouco. A França está derrotada.

A Inglaterra não pode continuar sózinha.

- Continuará.

- Não pode. De que vale prolongar uma luta sem esperança? Não queres a paz?

Ele olhou-a angustiado.

-Não quero que a Inglaterra seja vencida.

- Então porque não vais combater?-disse ela calmamente.

- Dora! - exclamou ele com horror. - Também estás contra mim?

-Decerto que não. Só mão compreendo a tua atitude. Não me parece lógica.

- Acredito que não seja - disse ele com um sorriso triste -, mas eu nada posso fazer. Odeio a guerra. Continuo a achar que ela é criminosa e insensata. Mas não quero que a Inglaterra seja derrotada.

- A Inglaterra já está derrotada. Para quê fechar os olhos diante da evidência dos factos? A única coisa que ela pode fazer agora é concluir a paz com os Alemães nas melhores condições possíveis. Depois, teremos paz por cem anos.

- Que espécie de paz?

Ela deu de ombros. Parecia a ponto de falar, mas aparentemente mudou de ideias, e caminharam, um pouco, em silên cio. Uma ou duas vezes a jovem dirigiu-lhe um olhar de esguelha por sob os cílios.

- Estás hoje muito sossegado - disse, afinal.

- Estou infeliz.

- Não vejo porquê - sorriu ela.

- Deixaria de estar se casasses comigo.

Ela fez um rápido gesto de recuo.

- Não, não, não. Já disse que é impossível.

-Oh! Dora, não fales assim. Partes-me o coração.

- Não sejas tolo. Por ora não, é o que quero dizer: Sabes isso. Não há pressa.

Ele suspirou.

- Às vezes fico a pensar se gostas um bocadinho de mim.

Ela fez um sorriso de pirraça.

-Nunca te viste ao espelho? Hoje ao almoço eu estive a observar-te. És muito bonito.

Era tão raro um elogio daqueles, que jim ficou vermelho.

- Ariano puro, de qualquer modo - riu ele.

Ela tomou-lhe a mão.

- És muito bonzinho. Mas não deves procurar forçar-me. É preciso paciência.

 

Um ou dois dias depois, receberam boas novas. Não eram as que Mrs. Henderson mais gostaria de receber, mas em todo o caso reforçavam a esperança de melhores notícias para o futuro. Dick Murray telefonara dizendo que estava de volta à Inglaterra, são e salvo.

- Fico tão contente! - respondeu ela. - Você está bem?

-Não tenho um arranhão. Um pouco cansado, como é natural, mas em plena forma.

- Tem alguma notícia de Roger e Ian?

- Por coincidência passei perto de Ian na praia, em Dunquerque, uma noite. Reconheci o vozeirão dele e encontrei-o no meio da confusão. Não se apoquente, ele há-de sair-se bem.

- E Roger?

- Não sei.

- Oh! Dick.

Mrs. Henderson não pôde ocultar a angústia da sua voz.

- Não se assuste, Mrs. Henderson. Por enquanto está tudo atrapalhado. Espero que se tenha salvo. Há uma infinidade de motivos para que ele ainda não possa ter-lhe dado notícias: Talvez até nem lhe tenha ocorrido que a senhora esteja aflita.

Era verdade até certo ponto. Se Roger tivesse escapado com Lord Gort, havia de estar cheiíssimo de ocupações e, possivelmente, nunca lhe viria à cabeça comunicar-lhes que se salvara. Quando Mrs. Henderson voltou para contar aos outros o que soubera, foi só por milagre que May prendeu nos lábios um grande grito de desafogo. Teve de fazer um esforço imenso para não se mostrar mais do que decentemente interessada.

- Ainda bem que ele está salvo - disse ela muito descansadamente. - Parecia satisfeito?

- Muito.

Imaginava quanto tempo teria de ficar ali, agindo como se aquilo não significasse nada mais do que seria natural nas circunstâncias dadas, até que lhe fosse possível fugir para o quarto e dar graças a Deus, de todo o coração, pela sua grande mercê. Mas Jane irrompeu numa indignação furiosa.

-Se aquele idiota voltou sem me avisar, hei-de fazer tantas quando nos encontrarmos que ele há-de lamentar não ter sido preso pelos Alemães.

-Lembra-te de que May e eu também estamos aflitas por causa de Roger - disse Mrs. Henderson com brandura.

Jane olhou para May de esguelha.

- Porque havia de ser Dick o único a voltar? Não acho que ele interesse a qualquer de nós.

Viu que May corava.

- Como podes ser tão egoísta? - replicou Mrs. Henderson. - Num tempo como este todos os soldádos nos devem ser igualmente caros.

Apesar de Jane protestar que não servia para essas coisas, Mrs. Henderson insistiu para que ajudasse a cuidar das crianças. Ela recusava-se a fazer qualquer trabalho doméstico, alegando simplesmente que nunca soubera fazer uma cama ou varrer um quarto; e quanto a lavar roupa, declarava que por nenhuma criança do mundo se arriscaria a quebrar as unhas. Mas por fim resolveu-se a distraí-las. Em vinte e quatro horas tinha dominado completamente a pequenada. Imprecava contra elas com a sua voz profunda e rouca, ameaçava tirar-lhes a pele à pancada se não se portassem bem; as crianças consideravam-na o melhor palhaço que já tinham visto e reuniam-se em torno dela rindo dos seus absurdos. Ela contava-lhes histórias altamente imorais, em que o menino mau levava vantagem sobre o bom, e a menina bem comportáda nunca obtinha recompensa. Eles gostavam, e faziam-na repetir incessantemente as histórias. Os mais pequenos lutavam por um lugar no seu colo, e ela segurava-os chamando-lhes animaizinhos. Os outros juntavam-se à sua volta suplicando-lhe a atenção e berrando de contentamento quando, o monóculo fixo na órbita, mas com um olhar que poucos tinham visto alguma vez, ela se fazia ridícula para que eles se divertissem.

- Porque é que a senhora não tem filhos seus? - perguntou-lhe um dia um garoto.

-Então pensas que eu quero ter junto de mim uma porção de porquinhos como vocês? A verdade é que eu tive doze, mas afoguei-os sempre, antes de abrirem os olhos, como se faz aos cachorrinhos.

- Onde é que a senhora os afoga?

- Na água onde lavo a roupa da semana - respondeu ela prontamente. - Assim sei que pelo menos uma vez na vida eles estiveram limpos.

Um belo dia chegou um telegrama de Ian, enviado da casa de Jane em Londres, informando que estava num hospital em Iorque.

- Ambos vamos bem - acrescentava ele. - A criança pesa quarenta e duas libras. Sexo incerto.

- Cretino! - gritou Jane, furiosa. - Está ferido. Talvez esteja à morte.

- Achas que ele teria mandado esse telegrama brincalhão se estivesse màl? - riu Mrs. Henderson.

- Oh, meu Deus, porque me casei com um imbecil?

Jane expediu-lhe um telegrama frenético para dizer que seguia no primeiro comboio. Houve grande choradeira entre as crianças quando ela saiu para a estação. Teve de prometer-lhes solenemente que voltaria em breve. Estava inclinada a fazer melhor juízo de si mesma pelo facto de os ter conquistado.

- Até parece que sou boa para as crianças - disse. Creio que é porque sabem que eu sou exactamente tão falta de escrúpulos e imoral como elas.

Mrs. Henderson dirigiu-lhe um sorrisinho carinhoso, onde havia uma ponta de mofa.

- Não consegues enganar as crianças. Elas sabem por instinto quando se gosta verdadeiramente delas ou quando se finge.

-E gostam de Dora?

- Ela sabe muito bem impor disciplina - respondeu Mrs. Henderson.

- Então devem ser loucas por ela - tornou Jane com azedume.

Dois dias depois escreveu à mãe.

 

Querida mamã: durante toda a viagem até Iorque fui pensando nas minhas toilettes de luto. Nunca usei preto mas com a minha pintura creio que não me ficaria mal e estive a imaginar al uns vestidos que seriam positivamente surpreendentes. O que eu iria vestir no enterro não é da conta de ninguém, Ian pularia para fora do caixão e sairia, aos berros, da igreja. Mas no fim de contas não vou ficar viúva e tive essa trabalheira toda para nada. Esse gordo idiota com quem me obrigou a casar já está bom de todo. Saiu de Dunquerque sem novidade e depois foi tão burro que embarcou num navio que ia ser torp deado. O pateta ficou com o rosto escalavrado e perdeu todos os dentes da frente. Não me incomodo com isso porque sempre teve dentes ruins e há anos que me esforço para Ele os arrancar, mas o facto é que ficou com o rosto bastante danificado. Dá a impressão que teve hidropisia cachumba e elefantise (como é que se escreve esta maldita palavra?) e está com os olhos como se tivesse levado um valente soco em cima de cada um. Não pode falar, só gesticula, mas até é bom porque quando tenta dizer alguma coisa é só para blasfemar e praguejar coisas horríveis; realmente nunca pensei que houvesse tantas palavras de quatro letras na nossa lingua. Disse-lhe exactamente o que pensava a respeito dele e como não pode responder, afinal chegou a minha desforra. Vou tirá-lo do hospital o mais cedo possível para que eu própria possa tratá-lo. Sinto o sangue ferver quando vejo essas enfermeiras a acotovelarem-se em cima dele como se se tratasse de um grande herói, E as perguntas indecentes que lhe fazem a respeito dos testículos, a ele, um homem casado! Eu é que até fico envergonhada. Um bando de virgens ressecadas é o que elas são!

Sua filha

Jane

  1. S. - Ele pareceu contente quando me viu. Hoje de manhã chamou-me cadela piolhosa. Às vezes é muito carinhoso, embora naturalmente seja o bruto mais egoísta que já existiu.
  2. p. S. -A história dele ter um filho era mentira, mas às vezes quando olho para ele imagino se não está mesmo à espera de um.

 

Os homens que haviam sido evacuados de Dunquerque estavam já a salvo na Inglaterra. Roger não aparecia. O general ia diariamente ao Foreign Office para ver se havia notícias dele. À força de insistir, descobriu que, durante a retirada para Dunquerque, Roger fora enviado numa missão qualquer a certa área onde uma bateria continha o avanço dos alemães. Sabia-se que chegara lá e que, quando a bateria, por falta de muniÇões, fora obrigada a retirar-se, voltara no mesmo autotanque para o quartel-general, aonde ele não chegara. Não restava dúvida: ou tinha sido morto ou feito prisioneiro. O general telegrafou para a Cruz Vermelha, em Genebra, pedindo que ligassem. Até vir a resposta era possível esperar por uma coisa que não fosse o pior.

Mrs. Henderson dedicava-se às tarefas do costume, mas o seu silêncio e a sua expressão severa demonstravam triste mente a tortura da sua dolorosa ansiedade. O coração de May confrangia-se de piedade. Ela exprobrava-se amargamente a si própria o não poder compartilhar, por mais que fizesse, da muda desgraça que transparecia no olhar angustiado de Mrs. Henderson. Dick estava são e salvo. Isso era tudo. Ficava fria de terror ao pensar que em vez de estar vivo, agora, ele podia ter morrido; mas sentia-se horrorizada quando, por assim dizer num mesmo instante, lhe ocorria que a morte de Roger eliminaria os obstáculos à sua felicidade. Oh, vergonha! Ela não podia dever essa felicidade à morte do marido. Seria horrível. Ela não queria que ele morresse. Se qualquer palavra, qualquer acto seu pudesse trazê-lo de volta são e salvo, não hesitaria em pronunciá-la ou em praticá-lo. De todo o coração desejava que ele se salvasse. Era jovem, teria diante de si muitos anos proveitosos de vida e tinha o direito de gozá-los. Não, não, mesmo que a morte dele resolvesse todas as dificuldades, ela não a desejava, não a desejaria nunca. Mas era difícil afastar do espírito a possibilidade que a sua fantasia desenfreada lhe apresentava: quisesse ou não, Todos tinham direito à felicidade; ela e Dick podiam ser tão felizes se. - não, não, não, era terrível pensar nisso. E Roger talvez ainda quente, numa praia estrangeira. Ela e Dick haviam sido feitos um para o outro; compreendia-o como nunca compreendera Roger; tinham tudo em comum. A vida com ele como seria agradável! Não era preciso estar com medo de lhe dizer uma graça: ele não a acharia disparatada, apenas riria, dizendo que ela era muito engraçada. Um forte pressentimento lhe dizia que com ele havia de ter filhos. Meu Deus! Era muito mais do que amor o que sentia por ele; era ùm estranho e poderoso anseio, como se ela fosse apenas uma metade e encontrasse nele o complemento para a a deficiência. Ah! Era tão difícil exprimir aquilo em palavras, Dir-se-ia que durante a vida inteira ela fora uma exilada, saudosa do lar, e afinal encontrara nele o lar que sempre soubera estar á sua espera.

Decorreu uma semana; uma semana de frágil esperança; depois outra, de terríveis presságios. A Cruz Vermelha telegrafou de Genebra comunicando que não tinham identificado Roger entre os prisioneiros. Mrs. Henderson nunca falou nisso a May, mas uma noite, quando passeavam no jardim, depois de as crianças terem ido para a cama, ela passou o braço pelo da nora.

-May, minha filha, achei melhor que nós não conversássemos a respeito de Roger. Eu sei que tens sentido o mesmo que eu, e sendo assim, tocar no assunto só serviria para nos afligir ainda mais. Tens sido de uma coragem maravilhosa.

May não respondeu. Estava envergonhada.

-Mas agora acho que devemos falar. Receio que deves preparar-te para o pior.

- Crê que não há mais nenhuma esperança? - perguntou May em voz baixa.

-Gostaria de poder responder que sim. Mas não, creio que há muito pouca. Quero que tenhas coragem. Quero que penses sempre que ele morreu valorosamente ao serviço da pátria, e que nos devemos orgulhar dele. - A voz sumiu-se-lhe por um instante. - Precisamos encontrar nos nossos corações força bastante para considerar a morte dele como um sacrifício que fazemos de boa vontade pela terra que amamos e por todos aqueles que nos são caros nesta Inglaterra à qual devemos tudo o que somos.

May desejaria poder chorar, mas era impossível. Não tinha a certeza, plena certeza, de que Roger estivesse morto. Veio-lhe ao espírito a ideia singular de que Mrs. Henderson estava a antecipar o pior com a estranha superstição de poder assim evitá-lo. Pobre senhora! May tinha imensa pena dela. E como era chocante que, precisamente naquele momento, ela sentisse no coração um ímpeto de alegria por saber Dick são e salvo!

Não o vira depois da sua chegada à Inglaterra, mas ele escrevera-lhe para dizer que logo que conseguisse licença viria a Graveney. Pedia-lhe que fosse a casa dele para poderem passar uma ou duas horas juntos, a sós. Normalmente ela hesitaria em consentir nisso, porque seria deslealdade para com Roger, mas agora, depois de todos os horrores que Dick suportara, era impossível resistir ao desejo de estar sozinha com ele. Escreveu-lhe dizendo que iria com prazer. Não teve nenhuma surpresa, pois, mas, pelo contrário, ficou contentíssima quando uma criada a chamou ao telefone e ouviu a voz de Dick perguntar-lhe se poderia sair imediatamente.

- Sim, é fácil - respondeu ela. - Vou na minha bicicleta; dentro de dez minutos estarei aí.

Evidentemente, Dick ficara a espreitar a sua chegada, porque logo que ela desceu diante da casa ele abriu a porta e conduziu-a para a sala de visitas. O rosto ansioso de May transformou-se ao ver a expressão dele. Era profundamente séria.

Dick não a beijou. Nem mesmo a mandou sentar.

- Não vim para ficar. Tenho de voltar já para a cidade.

O general pediu-me que viesse até cá. Telefonou-me do Ministério da Guerra.

- Oh! Dick! - exclamou ela.

Parecia que o coração lhe deixara de bater e ficou mortalmente pálida. Sabia o que ele ia dizer.

-May, Roger morreu.

Ela fitou-o com um olhar de horror. Ficou como fulminada. Por um momento, nenhum dos dois pôde falar. Olhavam-     se aterrados. Dick, apertando os punhos, forçou-se a prosseguir.

- Foi dado como desaparecido, presumivelmente morto. O general não virá aqui. Disse que não pode ausentar-se por Que tem muito trabalho na Cruz Vermelha. Creio que lhe seria intolerável ser ele próprio o portador da notícia, e não teve ânimo para a dar pelo telefone. Está arrasado, o pobre velho. Pediu-me que te contasse e te pedisse que transmitisses a Mrs. Henderson.

-Oh! Dick, que horror! Que coisa terrível me pedem que faça!

- Compreendo.

Olharam um para o outro, aniquilados.

- Sabem algum pormenor? - perguntou ela, afinal.

-Um refugiado belga chegou ao Havre num carro do nosso Estado-Maior. Detiveram-no para perguntar como conseguira o automóvel. Ele contou que o encontrara numa vala e o tirara dali para fugir. Fez entrar no carro todos os que nele couberam e acabou por chegar ao Havre. O carro estava perfurado de balas de metralhadora e o assento da frente todo manchado de sangue. Era o mesmo que Roger tomara quando partira naquela manhã. Toda a zona estava cheia de quintas colunas e páraquedistas. Parece que Roger e o motorista caíram numa emboscada e foram mortos.

May suspirou.

- Pobre Roger! Deus sabe que não desejei a sua morte.

        Ambos sabiam os pensamentos, importunos mas insistentes, que os perturbavam; era bastante suportá-los, seria doloroso se os tivessem de formular. Ficáram em silêncio.

- Não tens mau aspecto, Dick, depois do que acabas de

passar - disse ela afinal.

        -Oh! Estou muito bem.

Falavam como se nada houvesse entre eles. May suspirou outra vez.

-Acho melhor voltar. Mrs. Henderson está preparada para a notícia. Coitada, tenho tanta pena dela.

Encaminhou-se para a porta, que ele abriu, sem sequer lhe apertar a mão. Dick viu-a sumir-se na bicicleta e depois

entrou novamente em casa.

Quando May chegou, dirigiu-se para a sala de visitas, que dava para o terraço, onde no Verão a família costumava reunir-se, de preferência a fazê-lo no grande hall. Julgava necessário fazer uma pequena pausa para recobrar forças. A casa estava sinistramente silenciosa, como se aquelas velhas paredes suspendessem a respiração à espera do perigo iminente.

Mrs. Henderson e Dora encontravam-se com as crianças, que naquele momento deviam estar a tomar chá. Só Tommy estava lá. Os bombardeiros alemães tinham atacado a cidade do litoral em cujas cercanias ficava a escola de Tommy, e julgara-se prudente mandar os rapazes para casa. May via-o no jardim, entretido em complicadas evoluções pelos estreitos caminhos entre os canteiros, na bicicleta que o pai lhe dera como presente de Natal. Com as sobrancelhas franzidas, ela meditava sobre a melhor maneira de dar a trágica notícia. Parecia-lhe brutal contar o sucedido sem nenhuma espécie de preparação, mas com Mrs. Henderson no estado em que estava, bastaria uma palavra para a fazer compreender tudo. Pobre Roger! A morte dele fazia-a sofrer muito, e no entanto, no fundo do seu espírito, caiu uma perversa cintilação de luz dentro do vazio.

escondia-se a noção de que aquilo vinha afastar todos os empecilhos ao seu casamento com Dick. Detestou-se então, porque até àquele instante não lhe ocorrera tal pensamento. Com um suspiro, ergueu-se e, resolutamente, foi procurar Mrs. Henderson.

Não vale a pena protelar pensou. Quanto mais eu esperar, pior será.

Foi para o refeitório.

-Ah! May, já estava a pensar no que seria feito de ti.

Mas quando as palavras lhe saíam dos lábios, e ao notar o rosto de May, parou, petrificada.

- Posso falar consigo um momento?

Sem uma palavra, com um andar curioso, rápido, como o de um tigre caminhando na jaula, ela atravessou toda a sala e saiu com May, fechando a porta.

- Ele morreu?

May acenou com a cabeça que sim.

- Vem.

Segurou May pelo pulso e puxou-a para o hall. Havia nela alguma coisa de terrível naquele instante. Muito pálida, com uma ruga na testa, ficou de pé diante da nora como se esta fosse um ladrão apanhado em flagrante e que ela ia castigar. Gaguejando, May contou que tinha estado com Dick e repetiu o que este lhe contara. Mrs. Henderson, ouvindo, fixava os olhos nos de May, como se á viva força quisesse extrair tudo o que ela sabia. Mas quando não havia mais nada a dizer, baixou a cabeça e lágrimas vagarosas correram-lhe pelo rrosto.

- Oh!, querida, querida! - exclamou May, fazendo menção de abraçá-la.

Mrs. Henderson esquivou-se.

-Não, não me toques.

        As duas mulheres ficaram assim, uma diante da outra, May com o coração opresso. Chorava agora também; chorava

de pena da infeliz mulher que tanto estimava. Gostaria de poder articular algumas palavras de consolo, mas não lhe ocorria nada que servisse de lenitivo. Tinha a impressão de que Mrs. Henderson preferia que ela não falasse. Seria mais fácil se a pobre, ao menos, lhe permitisse compartilhar da sua dor:

Mas Mrs. Henderson concentrara-se, e May sentia que seria penoso compartilhar o seu desgosto com outra pessoa.

De repente ouviram a voz de Tommy, chamando:

- Mamã, mamã.

Mrs. Henderson apurou o ouvido e olhou na direcção de onde vinha o som.

-Não lhe direi já.

- Oh!, não, é preciso. Ele tem de saber.

-Talvez mais tarde, agora não. Tommy adora Roger.

Além do mais, não é inteiramente verdadeira a notícia. Ele pode estar num hospital, sem meios de comunicação. Pode ter perdido a memória. Porque fazer Tommy infeliz antes que seja absolutamente necessário? Teremos tempo bastante para lhe conttar quando já tivermos perdido a esperança.

May estava desolada. Era verdade que Tommy adorava Roger, via nele um herói, e a sua carreira, com o mistério de que era envolvida, excitava-lhe a imaginação. Sempre gostara mais dele do que de Jim. Adorava-o como um menino adora um irmão mais velho no qual vê personificados o romance e a aventura. Achava-o perfeito. Mas afinal de contas Tommy não era uma criança; tinha treze anos, era vivo, cheio de inteligência. A morte de Roger não poderia ser ocultada por muito tempo, e certamente seria pior se soubesse por um estranho do que por um deles. E como podia Mrs. Henderson supor que ainda houvesse dúvida sobre o facto? Todas as indagações haviam sido improfícuas. O refugiado, o carro manchado de sangue. E como imaginar que o general mandasse Dick trazer-lhes a horrível notícia, se ele próprio não estivesse convencido? May suspirou.

- Como a senhora quiser.

Mrs. Henderson pareceu não ouvir. Voltou-se e saiu da sala.

Parece-me que tenho de voltar para o trabalho - disse May consigo mesma.

Tornou ao refeitório para saber se lá precisavam dela. As crianças tinham acabado o chá e Dora estava a levantar a mesa.

Quando as crianças foram postas na cama e os de casa comeram o seu frugal jantar, Dora saiu para um passeio, como fazia de vez em quando. Ainda estava claro. Mrs. Henderson, May e Tommy sentaram-se na sala de visitas. As duas mulheres faziam tricot, e Tommy, quieto como raramente ficava, estava às voltas com uns livros. Ninguém falava. O relógio bateu e Mrs. Henderson ergueu os olhos.

-Nove e meia, Tommy. São horas de ires para a cama.

-Um momentinho. Estou a ver se descubro uma coisa.

- Estás? - disse Mrs. Henderson, com um sorriso pálido e indulgente. Que é?

Ele correu a mão pelos cabelos desalinhados e encarou- a com uma ruga de preocupação no rosto jovem e liso.

- Estive a pensar durante algum tempo e cheguei à con clusão de que Roger está prisioneiro na Alemanha. Mas, ou eu não o conheço, ou ele há-de fugir. Muita gente fugiu na guerra passada. Gostava de ver como é que ele há-de chegár á Suíça. Na Holanda nem se fala, pois não?

Estava tão imensamente sério que, se aquilo não fosse de um intolerável patético, seria para se achar graça.

-Bem, amanhã se resolve. Vem dar-me as boas-noites.

Ele levantou-se para beijar a mãe. Ela abraçou-o, e, apertando-o contra o coração, beijou-o nos lábios. Um pouco sur preendido pelo calor do abraço, Tommy dirigiu-lhe um olhar de curiosidade, mas não disse nada. Quando sózinhas, Mrs. Henderson sentiu o olhar triste de May fixo no seu, mas não o enfrentou. Continuou a fazer tricot. Ficaram sentadas em silêncio.

 

Na tarde seguinte, May, livre do serviço por algum tempo, foi à sala de visitas para meditar sobre os acontecimentos. Sabia que àquela hora não encontraria ali ninguém. Durante o almoço, Tommy, ainda cheio da sua ideia de que Roger estava prisioneiro, tinha feito a Dora uma série de perguntas sobre a Alemanha. Andara a estudar nuns livros, na biblioteca, e já conhecia com perfeição passos de montanhas e estradas de pouco trânsito. Aprendera onde ficavam os principais campos de prisioneiros da última guerra. Insistia em contar aos outros o plano de fuga que traçara para Roger, achando que não podia falhar. Era doloroso ouvi-lo. May achava falsa bondade ocultar-lhe a verdade. Talvez a história viesse a público. Dick, não sabendo que era segredo, podia muito bem tê-lo contado a alguém na aldeia antes de ir para Londres, e seria cruel deixar que Tommy se inteirasse casualmente da notícia, por um guarda florestal ou um dos comerciantes. Embora a contragosto, pois Mrs. Henderson ás vezes era obstinada, May resolveu que era preciso tentar convencê-la. Com certeza, depois de ter reflectido vinte e quatro horas, ela veria que não servia de nada esperar o impossível.

Instintivamente, levantou-se para a procurar. Estava à porta quando Tommy entrou pela sala dentro, gritando:

-May, May, há dois homens esquisitos no parque. Não serão pára-quedistas?

Ela voltou-se, encaminhando-se para o terraço.

- Onde?

-Não é bom ir buscar o revólver do papá? Podemos capturá-los.

Apesar de toda a sua tristeza, ela não pôde deixar de sorrir daquela excitação. Tão criança! Naturalmente seria horrível para sua mãe contar-lhe tudo. Ele não estava convenien temente preparado. Olhou para os dois homens que vinham vagarosamente na sua direcção. Um deles coxeava bastante.

-São dois vagabundos.

- ou estrangeiros. Veja como estão vestidos. Tenho a certeza de que são pára-quedistas.

-Tolice. Devem ser refugiados belgas ou coisa parecida. Provàvelmente vieram da aldeia e perderam-se no caminho.

-É melhor, nesse caso, ir buscar o revólver.

-Não sejas tonto, Tommy. Eles não parecem nada perigosos. Com certeza estão com fome e querem comida.

Os dois homens galgaram a cerca baixa, de ferro, que separava o parque do jardim e vinham agora pelo largo caminho de relva que conduzia aos degraus do terraço. Um estava metido num macacão sujo e amarrotado, com uma boina na cabeça, e o outro, o que coxeava, trazia um lenço em redor do pescoço, um estranho paletó e um chapéu, cómico, de copa alta. Tinham ambos a barba crescida e emaranhada. Estavam maltrapilhos e sujos. May olhou-os com repugnância. Foi até o topo da escada e ali ficou, com Tommy ao lado. À proporção que eles se aproximavam, tornava-se mais claro que eram estrangeiros.

- Bonjour, monsieur, madame - disse o coxo, que era o mais alto dos dois.

May respondeu em francês.

-Que desejam? Façam o favor de ir à porta do lado.

De repente, com um grito agudo, Tommy precipitou-se pela escada abaixo e atirou-se para os braços do homem alto e barbado, o que coxeava.

- Roger!

May já estava pálida, mas agora a sua palidez era de cinza. Teve de apoiar-se à balaustrada para não cair. Olhava estarrecida. Por um momento pensou que fosse desmaiar. Tommy, agarrado a Roger, caiu em pranto.

- Eu sabia que não estavas morto - soluçava ele histèricamente. - Todos pensavam isso, mas eu sabia que não.

- Claro que não estou morto, meu velho.

A voz! Sim, aquela voz era a dele, ela reconhecia o seu timbre, levemente zombeteiro.

-Eu aguentei bem enquanto não se sabia de ti, mas agora. agora. não posso conter-me.

- Não te incomodes, meu velho. Podes chorar, se tens vontade.

- Não estou a chorar - soluçou Tommy. - É só água que está a correr dos meus olhos.

Roger beijou-o e afagou-o como se fosse uma criancinha. May, tão imóvel como a estátua a seu lado, contemplava a cena do alto da escada. Assaltavam-na emoções contraditórias. Estava contente por vê-lo vivo, grata por vê-lo vivo e são, e entretanto o seu coração confrangia-se. Era o fim daqueles sonhos que ela tentara afastar, mas que, apesar de todas as tentativas, lhe atormentavam a consciência como forasteiros desesperados batendo a uma porta hostil.

- Onde está a mamã? - perguntou Roger.

Tommy desprendeu-se dos braços do irmão.

- Vou dizer-lhe. Vai ficar tão contente!

Subiu os degraus numa corrida, gritando ao mesmo tempo pela mãe. Roger subiu até onde estava May.

-É melhor eu não chegar muito perto de ti, querida. Não tomo banho há várias semanas, cheiro mal.

- Oh! Roger!

Ela lançou-lhe os braços em torno do pescoço e Roger beijou-a em ambas as faces.

-Sinto me tão contente por estares salvo, Roger! Estivemos numa aflição horrível.

- É por isso que estás tão pálida, querida? - disse ele, com um sorriso singular, ligeiramente sarcástico, nos lábios.

-Porque é que coxeias? Estás ferido?

-Nada de importante. Que tal a minha barba?

A barba transformava-lhe totalmente o rosto. Os olhos pareciam maiores e as têmporas estavam encovadas. Olhou por cima do ombro de May e viu a mãe que saía da sala para o terraço. Avançou para ela, que lhe estendia os braços.

- Oh! Meu filho, meu filho querido!

Beijaram-se nos lábios, como amantes.

- Eu fui o primeiro a reconhecê-lo - disse Tommy pulando de um pé para o outro, de tão excitado que estava.

-May não sabia quem era.

Mrs. Henderson recuou um pouco, e, com as mãos nos seus ombros, fitou-o, o rosto transfigurado, os olhos fulgurantes.

- Meu pobre filho, estás um perfeito espantalho. Não é de admirar que não te reconhecessem. Queres tomar um banho?

- Se quero. Mas primeiro um drink e depois o banho.

-A May e o Tommy ficam contigo. Vou telefonar ao teu pai. Quero ser eu a dar-lhe a novidade. Anda num estado lamentável por tua causa. Tenho a certeza de que virá logo.

- Não posso demorar-me, mamã. Só demos um pulo até cá porque vocês podiam estar ansiosos. Conseguimos uma boleia até à aldeia e vim por um atalho do parque. Logo que tome um banho, tenho de ir a Londres para os informar. Lá estarei com o papá.

Durante esse tempo, o homem que viera com Roger não saíra do sítio onde este o tinha deixado. Observava o que se estava a passar no terraço com um riso constrangido, mas amistoso. Era um sujeito baixo, atarracado, com uma expressão inteligente nos olhinhos brilhantes. Tinha um cigarro pendente dos lábios, e com a sua barba de quinze dias, os seus trapos sujos e a sua atitude esquisita, parecia tão suspeito que quem o encontrasse numa noite escura trataria de passar de largo. Roger dirigiu-lhe um breve sorriso.

- Vem, Nobby.

O homem tirou o cigarro dos lábios, esmagou-lhe a ponta e, pondo-o atrás da orelha, subiu a escada.

-Este é o meu amigo Nobby Clark, mamã. Foi o diabo para voltarmos, hem, Nobby?

-Foi sim, sir.

Nobby falava com um carregadíssimo sotaque cockney. Sujo e maltrapilho como estava, o brilho alegre dos seus olhos, a impudente jovialidade do seu riso, tornavam-lhe especialmente simpático o pequeno rosto feio e vulgar. Mrs. Henderson estendeu a mão. Ele olhou a sua, concluiu que estava imunda e esfregou-a nos farrapos sujos, tornando-a ainda mais imunda, e depois apertou a de Mrs. Henderson. Roger apresentou-o a May e em seguida virou-se para Tommy.

- Este é o meu amigo, o cabo Clark, Tommy. Não sei se eu estaria aqui se ele não fosse um óptimo mecânico. Leva-o para cima e arranja-lhe um banho. Ele está a precisar bastante.

-É verdade, sir.

- Vamos, cabo - disse Tommy.

Tommy era escuteiro e estava muito lépido nas suas cal cinhas de caqui e a camisa aberta no pescoço fino. Encantado de tomar conta de um soldado que fugira da França, decidiu fazer a coisa em grande estilo. Levou-o à casa de banho e esvaziou meia garrafa de sais na água quente. Nobby despiu as roupas asquerosas e entrou na banheira.

-Caramba, que bom cheiro, hem? - Ensaboou-se e e depois disse: - Quer esfregar-me as costas, meu filho?

-Muito bem, cabo.

- Acabe com isso. Não me chame cabo. Chame-me Nobby, como toda a gente.

Tommy esfregou-o vigorosamente.

-Você está simplesmente nojento-disse, maravilhado. Nunca vi ninguém tão sujo.

-Eu mesmo fiquei espantado quando vi os meus pés. Há um mês que não tiro a roupa.

- A água está preta. É melhor mudá-la.

-Não faça isso, menino. É assim que eu gosto. Quero mesmo ver como estava sujo. - Estirou-se voluptuosamente.

- Isto é que é vida, não tem que ver. E esses sais de banho que vocês botam. Palavra de honra, eu era capaz de ficar aqui uma semana!       

- Já sei do que você precisa agora - disse Tommy. - Espere um instante.

Saiu e voltou pouco depois com uma caneca de cerveja.     

- Que é isso? Cerveja?

Concentrou nessa palavra uma força tal, como se fosse um elogio à sua amada. Virou a caneca de uma só vez.   

Roger subiu e tomou banho tambem. Barbeou-se e vestiu-se.

Sentia nojo só de olhar para as roupas que despia. Estava sentado em frente do toucador, em mangas de camisa, penteando o cabelo, quando May entrou para ver se ele precisava de alguma coisa. Embora mantivesse o seu ar vivo de antigamente, May reparou como ele estava magro e pálido. As suas faces estavam chupadas e no rosto, ao lado dos olhos, apareciam várias rugas que mostravam o seu aspecto cansado. Viu o olhar de consternação de May no espelho defronte e sorriu.

- Não me olhes como se eu fosse um fantasma.

- Já te vi com melhor aspecto - disse ela, forçando um sorriso.      

-Estive em maus lençóis. Ficarei bem com algum descanso.

-E porque coxeias?

-Oh! Não é nada. Levei um tiro numa perna. Durante algum tempo doeu-me bastante, mas está a sarar depressa.

- Quero dizer-te mais uma vez como fiquei contentíssima com a tua volta. Estou tão envergonhada de não te ter reconhecido logo!

Ele voltou-se no tamborete onde estava sentado e sorriu bondosamente.

-Oh! Não te incomodes, querida. Eu estava com um aspecto medonho, não estava? Se eu me encontrasse na rua, nem me cumprimentaria a mim mesmo.

-Não esperava por ti. E ainda mais assim, com outro homem. Não sei se sabes que foste dado como desaparecido, presumivelmente morto.

- Fui? Porquê?

- O carro em Que viajavas foi parar ao Havre. Tinha levado uns tiros e havia nele manchas de sangue.

-Não era meu, era do chauffeur, Morreu; coitado. Eu saí com alguns arranhões.

- Foi tão bom que não tivésseemos falado com Tommy! Só soubemos ontem: Não contámos a ninguém.

-E como foi Que souberam?

-Teu pai foi informado no ministério da Guerra. Pediu a Dick que viesse cá avisar-nos.

- Díck? Não lhe aconteceu nada, pois não?

- Nada.

- Ainda bem para ele. - Lançou-lhe um olhar ligeiramente irónico. - Espero que não seja uma decepção muito grande para ti, May.

Ela corou fortemente.

-Oh! Roger, como é que podes dizer uma coisa dessas? Pensei que me conhecesses melhor.

- Desculpa, May.

Ele acendeu com gestos demorados um cigarro, e depois, num tom propositadamente despreocupado, indagou:

-Ainda amas Dick?

- Receio que sim - respondeu ela gravemente.

- Ah! bem. - Teve um sorrisinho amistoso. - Vamos descer e tomar alguma coisa? Tenho de sair em seguida.

- É preciso ir tão depressa?

-Infelizmente, sim. Não poderia ter vindo até cá se não fosse ter de ir para a cidade. Mas com certeza conseguirei uma pequena licença, e então voltarei.

Foi um alívio a conversação voltar ao terreno das banalidades.

- Não te esqueças de que estamos mortos por saber como fugiste. Tommy ficará simplesmente encantado de ouvir a história.

-Conto-lhes logo que seja possível.

Meia hora depois Roger saiu pela porta da frente. Os Henderson ainda tinham o seu chauffer , um homem de certa idade, e o Rolls estava á espera. Nobby aguardava Roger, ao lado. Tinham-lhe dado umas calças de flanela cinzenta e um sweater.

- O quê? Nobby, você parece outro homem! - disse Roger, sorrindo.

- O senhor também - respondeu ele, arreganhando os dentes. E depois, com certa apreensão: Master Tommy deu-me uma camisa e cuecas; tudo de seda, e um par de meias: Não sei de quem são.

-As roupas dele estavam imundas, Roger. Até cheiravam mal.

- Fizeste muito bem, Tommy. Isso mesmo. Devem ser do papá, e ele ficará satisfeito por as teres oferecido.

-A minha patroa é que vai rir um bocado quando me vir de cuecas de seda hoje à noite.

 

Roger foi informar o Ministério da Guerra; encontrou-se com o pai e depois recolheu ao hospital para extrair a bala que ainda tinha encravada na perna. Passaram-se quase três semanas antes que pudesse voltar a Graveney. A sua aparência era muito melhor, mas ainda tinha um ar cansado, e estava magro como um palito. Tommy apressou-se em lembrar que ele prometera contar as peripécias da fuga, mas Roger riu e disse que não havia nada a contar. Passara um mau pedaço, e conseguira safar-se mais por sorte do que por habilidade. Mas isso estava longe de satisfazer a curiosidade do menino, que à força de perguntas, e apesar das advertências da mãe, conseguiu, afinal, arrancar a história a Roger. Ele não se sentou para a contar do princípio ao fim, passo a passo; mas foi reconstituindo um episódio aqui e outro além, à medida que lhe ocorriam, de modo que May teve de aplicar a imaginação para formar com as suas desarticuladas reminiscências uma narrativa ordenada.

Tanto quanto ela podia discernir, a coisa começara com uma ordem que Roger recebera para transmitir. Havia uma cidadezinha perto de Cassel que fora resolvido defender para atrasar o inimigo, e, como não se dispunha de infantaria, a incumbência foi confiada a uma bateria de artilharia a cavalo. Na noite em que lá chegou, era tão tarde que Roger decidiu ficar, mas pela madrugada começou um ataque, e os tanques alemães, apoiados por destacamentos de infantaria, penetraram nos limites da localidade. A luta foi furiosa. À tarde, as munições começaram a esgotar-se e os canhões só podiam fazer fogo de cinco em cinco minutos; era evidente que a pequena guarnição não estava em condições de resistir. Ordenou-se a retirada. Roger não se conformara a partir num momento em que cada homem era necessário, e tomara o comando de um pequeno destacamento da Guarda que lá aparecera. Mas agora, que já não podia ser útil, decidiu voltar ao quartel-general. Apertou a mão do comandante.

- O senhor cometeu uma grande proeza - disse este.

- Bem, eu tinha de agir de qualquer modo - respondeu Roger.

Todos os canhões, com excepção de dois, haviam sido postos fora de acção. Eles e os feridos deviam ser mandados adiante, seguindo depois a força por um caminho diferente.

O ponto de encontro era uma aldeia distante três ou quatro milhas.

-Porque acha o senhor que ela não está em poder dos alemães? - perguntou Roger.

-Se estiver será uma calamidade para nós. Mas antes havemos de matar alguns deles.

- Desejo-lhe boa sorte, nesse caso.

-Sorte é o que você precisa para se sair desta. Os gafanhotos enxameiam por toda a parte.

-Darei um jeito. Vou desviar-me da estrada principal lógo que puder. Demorará um pouco mais, mas acho que vale a pena.

O fogo diminuiu, e Roger partiu com o chauffeur. Percorreram uma pequena distância ao longo do rio, e depois, numa encruzilhada, viram um carro que avançava na sua direcção na estrada por onde pretendiam entrar. Dentro dele vinham dois oficiais britânicos. Roger fê-los parar.

- Não há nada aí por essa estrada? - gritou.

- Absolutamente nada. Nem sinal de alemães.

- Obrigado.

Seguiu. Observando o mapa, verificou que havia uma ponte a algumas milhas dali e pouco adiante uma estrada lateral, que, segundo julgava, o levaria por um desvio até ao seu destino. A região agora era plana e eles não poupavam a gasolina, mas como havia uma fila desordenada de fugitivos na estrada, de vez em quando era preciso parar. Atravessaram um bosque e estavam justamente a chegar à ponte quando, de súbito, irrompeu fogo de metralhadora e o automóvel guinou violentamente. O chauffeur tombou sobre a direcção. O carro caiu numa vala e estacou, com um tremendo baque, mas por felicidade não capotou. Roger pulou para fora. No meio de uma saraivada de balas correu até à ponte, e sal tando o parapeito, atirou-se à água. Nesse momento foi atingido numa perna. Nadou o mais depressa que pôde. Os alemães correram para a ponte e dispararam sobre o rio, mas este era neio encoberto pelos ramos das árvores, e eles só podiam atirar ao acaso. Roger não foi ferido desta vez. Mas daí a pouco ouviu outro tiroteio, muito mais intenso, que, no entanto, não era dirigido contra ele. Parou por um instante para tomar fôlego, e ouviu o ronco de um avião. Imaginou imediatamente o que acontecera. Um aparelho britânico estava a metralhar os homens que se haviam emboscado, e estes haviam ido procurar apressadamente abrigo no bosque. Olhou em redor; estava numa situação bastante precária, e parecia-lhe que não havia nada melhor a fazer do que subir ao barranco e esconder-se entre os espessos arbustos. Estendeu-se ali por algum tempo, de ouvido alerta: o fogo cessara; os alemães tinham feito meia volta ou achavam que não valia a pena persegui-lo. Levantou-se e, com movimentos vagarosos, começou a caminhar: Mas doía-lhe a perna, cambaleou e caiu. O ferimento não lhe parecia que fosse coisa grave. Semtia, além disso, a impressão de ter um golpe no rosto e um ferimento superficial no ombro direito. Avançou de rastos e, sentando-se, encostou-se ao tronco de uma árvore, dizendo consigo mesmo:

- Que complicação!

- Porque foi que disseste isso? - perguntou Tommy.

- Porque não me ocorreu outra coisa.

- Se fosse eu praguejava ou dizia blasfémias.

- Eu sei que a mamã não gostaria - riu Roger.

-Oh, meu caro, depois de ter sido casada com teu pai trinta e cinco anos, posso garantir que não há uma palavra da língua inglesa que me faça medo - disse a mãe, sorrindo.

- Continua - disse Tommy, impacientemente.

-Procurei descobrir o que seria melhor fazer depois. Vi que a primeira coisa era descansar um pouco, e em seguida, quando escurecesse, voltar para a estrada e ver se conseguia descobrir alguma casa onde repousar durante a noite. Era preciso esforçar-me por voltar ao quartel-general de qualquer maneira. Felizmente eu levava comigo alguns mil francos.

- E não te sentias mal?

- Horrivelmente. Estava todo molhado. Quanto ao rosto e ao ombro não havia nada a fazer, mas achei que devia examinar a perna. Não era muita coisa, mas sangrava bastante. A bala tinha entrado logo acima do joelho, e, tanto quanto eu podia saber, ferira um tendão. Por isso é que fiquei com esta dificuldade de caminhar. Desejava um cigarro mais do que tudo no mundo. Os meus estavam naquela cigarreira que me deste, May, e completamente secos; mas o isqueiro é que não acendia, de modo que fiquei sem fumar. Instalei-me então o mais confortavelmente que pude e fiquei ali deitado, creio que durante uma hora. De repente ouvi os passos de alguém que vinha pelo mato.

- Não te assustaste? - inquiriu Tommy.

- Apanhei um susto dos diabos. Tirei o revólver e apontei na direeção do ruído. Se fosse um alemão, era uma vez.

Para minha surpresa, foi uma mulher que apareceu. Quando me viu, ergueu as mãos.

- Amiga, amiga - disse ela. - Estava à sua procura.

- Pois então, encontrou-me - respondi. - Que pretende fazer agora ?

Era uma mulher jovem e troncuda, com um rosto chato e as bochechas muito vermelhas. Parecia uma camponesa. Roger julgou que se tratasse de uma refugiada. Tinha os olhos muito pequenos e muito negros, como botões, e esses olhos eram duros e astutos.

- Está ferido? - perguntou ela.

-Nada de sério.

- Vi como aconteceu. Eles eram pára-quedistas. Foi uma sorte para o senhor que tivesse aparecido aquele avião. Cinco deles foram mortos.

-E o meu chauffer?

- Está morto.

-Há alemães por aí?

- Motociclistas. Por enquanto não chegaram tanques.

- Como poderei sair daqui?

Roger não sabia, pela expressão daquele rosto chato, se ela era estúpida ou hostil.

-O senhor é oficial, não?

- Sou.

Ela pareceu reflectir.

- Olhe - disse, por fim - por ora o senhor está salvo. Espere até escurecer e eu levo-o para a granja.

- Que granja?

-A de meu sogro. Fica no fim do bosque. O senhor poderá andar até lá, ajudando-o?

- Oh, Decerto.

- Não saia daí. Eu assobiarei quando voltar.

Desapareceu entre os galhos. Ele ficou só mais uma vez. Sentia dores, e não estava absolutamente certo de que ela fosse cumprir o que dissera. Podia ser que tivesse ido para o denunciar, e voltasse acompanhada de um pelotão de alemães para o prender. Tinha a intenção de se arrastar de onde estava para um lugar mais seguro, mas parecia-lhe inútil. Ela sabia que ele não estava em condições de ir longe, e não tardariam em encontrá-lo. Só havia uma coisa a fazer: ficar sentado e correr o risco. Começava a não se incomodar com o que acontecesse. Veio a noite, e ele tremia na sua roupa molhada. Afinal, ouviu alguém aproximar-se e depois um cauteloso assobio. Esperou um momento, todo ouvidos, para ter a certeza de que a jovem estava sòzinha, e depois respondeu assobiando também. Ela

veio até onde ele estava deitado. Já podia estar um pouco de pé, agora, mas a jovem passou um braço forte em torno dele e fizeram juntos o caminho através do bosque. Roger já imaginava a possibilidade de estar uma meia dúzia de boches à espera dele à saída, e suspirou de alívio quando deram em campo aberto e não encontraram vivalma. A granja ficava um pouco recuada da estrada.

- Falei com minha sogra - disse a mulher. - O senhor pode passar aqui a noite. Meu sogro está na aldeia desde a hora do jantar. Ainda não voltou.

A porta foi-lhes aberta por uma mulher de meia-idade, gorda e alta.

- Aqui está ele - disse a rapariga.

A mulher, sem dizer palavra, afastou-se para os deixar entrar, e Roger derreou-se numa cadeira. Estava com uma sede terrível, pediu um copo de água. Enquanto bebia, houve um ruído de passos do lado de fora. A jovem disse:

-Foi o meu sogro que chegou.

Abriu a porta e entrou um homem magro e murcho, com uma cara insignificante. Parou quando viu Roger. Lançou um olhar furioso ás duas mulheres.

- Que história é esta? Quem o trouxe aqui?

- É um oficial inglês. Fugiu quando os pára-quedistas atacaram o seu automóvel.

Ele fechou o punho e avançou para Roger.

- Saia! Saia!

- Ele está ferido - disse a jovem.

-Não faz mal. Os Alemães estão aqui. Se o encontrarem queimarão a granja. Estive na guerra passada e sei isso.

- Só quero passar a noite - disse Roger. - Pagarei bem.

-Não, não. Saia.

- Ele não pode ir, mal consegue andar! - exclamou a jovem. - Vai morrer.

-Que morra! Isso é com ele.

Roger levantou-se da cadeira.

- Irei.

- Não, eu não deixo - gritou ela.

Virou-se para o rendeiro, e, com os olhos fuzilando de raiva, exclamou:

- E meu marido? Já se esqueceu dele? É seu filho, não é? O senhor não sabe se ele também não estará ferido e precisando de auxílio.

- Sim, ele é teu filho - disse a esposa.

-Não conheces os Alemães. São capazes de nos encostar á parede e fuzilarem-nos todos três.

- Deixa-o ficar por esta noite, Michel.

Nesse instante aguçaram o ouvido. Houve um ranger de freios e depois o som de pesadas botas.

- Alemães!

A mulher do rendeiro precipitou-se na direcção de uma porta e abriu-a.

-Entre. Esconda-se debaixo da cama.

A jovem pôs as mãos debaixo dos braços de Roger, aju dou-o a levantar-se e meteu-o no quarto contíguo. Ele ficou em pé de encontro à porta fechada, de revólver em punho, ouviu-a dizer ao sogro:

-Se o senhor o entregar, eu mato-o com as minhas próprias mãos.

Bateram com força.

- Abram! Abram!

        A porta foi aberta e entraram dois motociclistas.

- Não se assustem. Não lhes vamos fazer mal. Perdemo-nos no caminho e vimos luz aqui. Queremos ir para Andrecy.

- De onde vêm? - perguntou o dono da casa.

- Da Alemanha. De onde pensou que fosse?

-Continuem por essa estrada mais quatro quilómetros, e depois sigam à esquerda.

- Estamos com uma sede infernal. Há vinho?

A jovem pôs duas garrafas diante deles. Agarraram nas garrafas e preparavam-se para sair, mas o rendeiro colocou-se entre eles e a porta.

-Custa quatro francos.

- O general vem aí amanhã. Apresente-lhe a conta.

O homem que falara empurrou para o lado o francês transido, com um repelão do braço, e os dois saíram. O rendeiro mostrou-lhes o punho.

- Porcos!

Roger voltou, a coxear, para a cozínha e de novo caiu numa cadeira. Fincou os cotovelos na mesa e mergulhou o rosto nas mãos.

- O senhor vê que ele não pode consigo - disse a rapariga. - Será uma barbaridade fazê-lo sair, agora, de noite.

O rendeiro olhou-o, aborrecido. Tàlvez a cólera por lhe terem levado, sem pagamento, duas garrafas de vinho tivesse mais efeito nele do que a compaixão por um homem ferido. Encolheu os ombros.

-Pois que fique. Mas não o quero aqui dentro. Pode ir para a casa do feno. Se os Alemães o encontrarem lá, posso dizer que não sabia de nada.

A jovem lançou-lhe um olhar de suspeita, e aproximou-se tanto que o seu rosto quase tocou o dele. Os seus olhinhos negros estavam resolutos e ferozes.

- Os bochesn não o encontrarão a não ser que o senhor diga onde ele está. Jure que não o vai denunciar. Jure pela cabeça do seu filho.

O rendeiro, como se não pudesse enfrentar aqueles olhos ameaçadores, desviou dissimuladamente os seus.

- Jura, Michel.

O homem disse um palavrão. Depois, mal-humorado:

- Juro. pela cabeça do meu filho.

Foi uma trabalheira para as duas mulheres levarem Roger, por uma escada de mão, até ao celeiro. Deitaram-no sobre um monte de feno.

- Oh, meu pobre filho - disse Mrs. Henderson, quando Roger lhes contou essa parte da história.

- Fiquei contentíssimo de me encostar ao feno - disse Roger, sorrindo. - É espantoso como a gente se sente bem quando sE acostuma. De qualquer modo, era um ambiente muito melhor do que um campo de concentração. Eu estava encantado, como vocês podem calcular.

Passou dez dias naquele celeiro; pois na manhã seguinte estava tão doente que não se podia pensar em mandá-lo embora. Jeannette - era o nome da jovem - trouxe o sogro para o ver. O homem olhou-o com raiva, e depois, sem u ma palavra, tornou a descer a escada. A jovem seguiu-o. Roger ímaginou que estivessem a discutir, mas sentia-se muito mal para ficar preocupado. Só podia confiar na influência daquelas duas mulheres, cheias de vontade, sobre o homem amedrontado e fraco. Uma hora depois, Jeannette voltou dizendo que o sogro concordava em deixá-lo ficar até que ele tivesse forças para caminhar. Trouxe-lhe leite, que ele bebeu àvidamente. e comida, na qual nem sequer tocou. A perna não o incomodava muito, nem o arranhão no rosto, mas o ombro latejava dolorosamente. Estava febril. Sentia-se cada vez pior à medida que o dia passava, e à noite estava a delirar. Não melhorou no dia seguinte. Não sabia bem se fora na terceira ou na quarta noite que ouviu na escada passos que não eram de Jeannette. É o fim, pensou. ou é um gendarme ou um homem da Gestapo. Estou demasiadamente fraco para resistir.

Mas era o doutor da aldeia que Jeannette, assustada com o seu estado, persuadíra a vir examiná-lo, sob promessa de segredo. Era um tipo rude e grosseirão, que mais parecia acostumado a tratar animais do que criaturas humanas; mostrava-se, evidentemente, nervoso com o que estava a fazer, mas não era incompetente: Limpou e pensou os ferimentos de Roger e deu-lhe uma aspirina. Depois disso, passou a vir todas as noites. Roger começou a melhorar. Era um homem novo, forte, cheio de saúde; sentinndo-se melhor dia a dia, passava as longas horas de solidão a fazer planos para a fuga. Estava a estudar os seus mapas quando os pára-quedistas o haviam atacado. Perdera-os quando, ao saltar do carro, correra para a ponte. assim, para decidir que caminho tomar, tinha de se fiar apenas no conhecimento incompleto que tinha da região e no que pudesse saber por Jeannette. Ela vivera sempre nos arredores, de modo que as informações que lhe desse sobre o que ficava para além eram certas. O seu projecto era alcançar o mar e lá conseguir um pescador que o conduzisse através do canal. Felizmente tinha dinheiro bastante para que um homem achasse compensador o risco. As notícias que Jeannette lhe trazia eram más: o Exército inglês na Flandres, - dizia ela - tinha-se rendido e os franceses estavam a bater em retirada. Weygand agora era o comandante. Ordenara o recuo das tropas, com a ideia de lançar uma contra-ofensiva no momento indicado e fazer retirar os boches até às suas fronteiras. Roger não sabia em que acreditar. Não podia conceber que fosse verdadeira a notícia da rendição dos Ingleses, mas sabia em que situação perigosa eles haviam ficado com a capitulação do rei da Bélgica, e era mais por instinto do que pelo raciocínio que se recusava a crer.

Segundo Jeannette, a zona estava cheia de Alemães. Parecia que a única possibilidade de escapar era disfarçar-se. Roger perguntou-lhe se podia arranjar roupas com que passasse despercebido. Ela sugeriu um fato do marido, dizendo:

- Ele é mais ou menos da sua altura.

Trouxe a roupa uma noite, num grande embrulho, e Roger experimentou-a. As mangas do paletó estavam curtas para ele, assim como as calças, mas servia. Ficaria ridículo, mas vestido daquele modo ninguém o tomaria por um oficial inglês. Para exercitar os membros andou de um lado para outro, no quarto, durante meia hora de cada vez. Já podia caminhar sem muitas dores. Duas noites mais tarde, depois de o pessoal da granja já estar recolhido, desceu e andou um pouco pela estrada. Sentia a cabeça entontecida. Estava fatigado ao regressar. Uma manhã, quando lhe veio trazer comida - o que fazia logo depois do romper do Sol, e em seguida ao anoitecer - Jeannette disse-lhe:

- Estive a pensar numa coisa. Como vai arranjar-se com os seus papéis? Um gendarme pode detê-lo para lhe perguntar por eles.

- Já pensei nisso. Acho que posso passar por refugiado belga. Direi que me roubaram no caminho.

- É perigoso. Vou dar-lhe os papéis de meu marido.

- Boa rapariga.

Ela era mesmo uma pérola, com Aquele rosto feio e chato, a ca os olhos negros e astutos não davam nenhuma mostra do seu carácter. Roger enganara-se a respeito dela. Com A sua figura, grosseira e rústica, ela era de uma bondade maravilhosa. O seu comportamento provava a sua coragem, tenacidade e compaixão. Quando Roger tentou dizer-lhe quanto estava grato pelo que ela fizera, a jovem limitou-se a um gesto de impaciência.

-Não tem importância. Faria o mesmo por qualquer outra pessoa. - Pela primeira vez ele viu algo semelhante a um sorriso no seu rosto. - O senhor é um homem simpático. Seria uma vergonha deixar que os Alemães o apanhassem.

Certa manhã ela veio mais tarde do que de costume. O Sol nascera havia uma hora.

- Bom dia, Jeannette - disse Roger jovialmente. - Pensei que me tivesse esquecido.

-Tive de esperar até que o velho se fosse embora.

-Porquê? Já está a implicar outra vez? Há alguma coisa para comer? Estou a morrer de fome.

-Escute, nós escondemo-lo aqui, o mais que pudemos. Há alemães na aldeia e o velho anda alarmado. Eles dizem que fuzilam qualquer pessoa que tenha abrigado um inglês.

- Gente encantadora! - Ele meneou a cabeça alegremente. - Muito bem. Sairei hoje à noite. Já estou bastante forte.

- O velho foi à aldeia, não sabemos fazer o quê. O senhor deve ir agora. Vista as roupas do meu marido. Já aprontei os papéis dele, e uma xícara de café está à sua espera.

Era evidente que Jeannette pensava que o sogro fora à aldeia para o denunciar. Não havia tempo a perder.

Vestiu-se apressadamente, desceu a escada desconjuntada e encaminhou-se para casa.

Entrou na Cozinha. Não vira a mulher do rendeiro desde a noite em que Jeannette o trouxera, encharcado e frio. Cumprimentou-a afectuosamente. Ela, porém, interrompeu-o. Estava num nervosismo terrível.

- Tome o seu café depressa! Não há tempo para discursos bonitos.

O café estava em cima da mesa, numa tigela. Ele sentou-se e, molhando os pedaços de pão, começou a comer. Jeannette deu-lhe uma caderneta.

- Aqui estão os papéis!

Roger mirou a fotografia de um homem de aspecto rude, mais ou menos da sua idade.

- Não posso dizer que se pareça muito comigo - observou, rindo. - A diferença é a barba, mas eu podia tê-la deixado crescer. Meu Deus! Esqueci-me de que não faço a barba desde que estou aqui!

- Veja o senhor mesmo.

Jeannette deu-lhe um espelho e ele viu-se pela primeira vez desde que chegara à granja.

- Depressa, depressa! - disse a mulher do rendeiro. Tome um sanduíche de carne. Isto lhe basta até hoje à noite.

Roger aceitou e levantou-se.

- Nunca hei-de esquecer-me da sua bondade para comigo. Gostaria de lhe dar alguma coisa para compensar todo este transtorno.

- Não queremos o seu dinheiro - disse Jeannette. - O que nós fizemos, fizémo-lo pela França.

- Vá agora, pelo amor de Deus - disse a outra.

Roger beijou-as, fechou a porta e esgueirou-se para a estrada, rumo à liberdade.

 

O Sol brilhava e o ar da manhã tinha um doce perfume. Roger sentia-se animado. Era bom estar a caminho, e o risco que corria excitava-o agradàvelmente. Caminhava, descansava, tornava a caminhar. Durante a noite encontrou Nobby Clark.

Contou o incidente com tanta vivacidade que Tommy ficou transportado de júbilo.

- Tinha andado o dia inteiro, e achei que já era tempo de descobrir um lugar para descansar. justamente quando escurecia, passei por uma casa isolada e pequena, de dois pavimentos. Estava toda fechada e parecia deserta. Era uma des casinhas que se vêem por toda a parte na França, e onde comerciantes aposentados vão procurar refúgio nos seus últimos anos. Tinha na frente um jardinzinho com estatuetas de gordos anões e duas grandes esferas prateadas. Vocês podem fazer ideia do que era. Típico. Bem, eu estava cansadíssimo, a perna doía-me como o diabo. Não sabia a que distância ficava a aldeia seguinte, e, como era muito improvável que lá conseguisse uma cama, resolvi fazer-me arrombador e passar a noite naquela casa vazia. Experimentei a porta, mas estava aferrolhada. Fui até às traseiras. Havia ali uma porta de vidro, mas fechada também. Olhei em redor, à procura de alguma coisa para arrombá-la. Havia perto um barracão de madeira. Talvez fosse possível achar lá alguma coisa. Achei, e era justamente o que eu queria. Uma machadinha.

Roger parou um momento, com um sorriso no rosto, e olhou em torno para a sua pequena audiência.

-Vocês sabem, não creio que chegue nunca a dar em ladrão de categoria. Estava nervoso como um gato quando quebrei a maçaneta e entrei no que era evidentemente a sala de visitas.

- Sala de quem? - perguntou Tommy.

- Das pessoas que moravam lá, seu tolo. Com certeza tinham fugido ao saber da aproximação dos boches. A mobília da casa estava toda empoeirada. Não sei porquê, mas havia naquilo alguma coisa de terrivelmente assustador.

- Aposto em como não te assustaste - disse Tommy.

- Pois perdias se apostasses, meu caro. Eu estava a tremer como uma vara verde. É o que há de pior em sermos pessoas respeitadoras das leis. Fica-se com os nervos em trapos quando se faz alguma coisa ilegal. Passei pela porta para o corredor. Ali havia uma escada que conduzia ao primeiro andar. subia-a quandn me aconteceu olhar para um espelho pendurado na parede. Tive o maior choque da minha vida: Vi um homem agachado no topo da escada, tendo na mão algo que se parecia muito com um pé-de-cabra. As suas intenções eram evidentes, e não se podia dizer que fossem amistosas. O coração pôs-se-me aos saltos. ATirei-me como um raio, e vi então que ele éra um soldado inglês.

-E era o cabo?

- Era - disse Roger.

O homem quase pulou quando Roger lhe dirigiu a palavra.

- Que diabo está você a fazer aqui?

- Inglês, caramba! - explodiu ele, e riu-se. - Ainda bem que você falou, eu já ia dar uma bordoada na cabeça. - Desceu a escada. - Você não tem cara de inglês.

- Isso mesmo.

-Tem um cigarrinho?

- Tome - disse Roger, estendendo-lhe um cigarro. Venha para o pé de mim.

Dirigiram-se à sala de visitas.

- Como foi que você veio aqui parar?

- Fui aprisionado. Puseram-nos, primeiro, num campo de concentração, depois mandaram-nos, a pé, para outro sítio, Lille ou coisa parecida. Eu caí quando atravessávamos um bosque. Deram-me dois ou três tiros, mas não me atingiram. Desde então tenho andado por aí. Só ando de noite por causa do meu uniforme.

-Você dá muito nas vistas com ele, de facto.

O outro olhou-o com uma súbita suspeita.

- Escute, você não é um oficial, pois não? Você tem cara mas é de vagabundo.

- É verdade, meu velho. Não se incomode comigo, E você, para onde vai?

-Quem me dera saber! Quero voltar para o meu regimento.

-É muito pouco provável que consiga.

-E o senhor, para onde é que vai?

-Para a Inglaterra. Quer vir também?

- Ora se quero!

- Pois muito bem. Não sei o caminho, é claro, mas tenho uma bússola de bolso. Vamos alcançar a costa, e depois se vê.

- Com certeza o senhor não tem nada para comer. Eu não comi o dia inteiro.

- Consegui alguma coisa na última aldeia por onde passei.

Roger tirou do bolso um pedaço de pão com carne e estendeu-o ao soldado.

- O senhor passa sem ele?

-Passo. Tudo o que preciso é dormir. Andei desde manhã e sinto-me morto de cansaço.

- Há uma cama lá em cima - disse o soldado, enquanto começava a comer com avidez - Eu já lá dormi.

-Acorde-me daqui a duas ou três horas. Então iremos. Só devemos perder o tempo absolutamente necessário.

- Muito bem, sir.

- Não é preciso chamar-me sir. E a propósito como é o seu nome?

- Clark.

Evitou acrescentar o sir. Roger sorriu.

- E com certeza tratam-no por Nobby.

- Isso mesmo.

Enquanto Roger contava esta parte da história, Tommy dava sinais de viva impaciência. Por fim não pôde conter-se:

-Escuta, Roger, a bússola era a que eu te dei quando foste para França?

- Essa mesma, meu velho. E foi-me muito útil.

- Eu sabia. Está a ver que eu tinha razão, mamã? Nessa época disse-me que não podia imaginar para que serviria uma bússola.

Roger e o companheiro caminharam durante o resto da noite. De madrugada encontraram-se num bosque bastante afastado da estrada. Pareceu-lhes que seria um bom sítio para passarem o dia. Roger foi até á uma aldeia que tinham avistado aos primeiros alvores da manhã, e trouxe pão, salsichas e duas garrafas de vinho. Pelo sotaque, Roger já percebera que Nobby era um cocknéy; depois soube por ele a história da sua vida em Londres. Era um mecânico que em tempo de paz trabalhava numa garagem na Horseferry Road, em Westminster, atrás da Victoria Street. Dava a impressão de ser um homenzínho vivo e inteligente, que poderia tornar-se útil numa emergência, e a maneira por que fugira provava que tinha coragem. Aúnica coisa que preocupava Roger era o uniforme, pois aumentava o risco de serem capturados. Urgia de qualquer maneira arranjar-lhe outra roupa. Não era fácil, visto que viajavam de noite e evitavam mesmo as cidades pequenas onde poderiam ser abordados com perguntas inconvenientes. Quanto mais perto estivessem da costa, maior seria o perigo.

 

Quando Roger, ao deixar o hospital, veio para Graveney, Dora afastou-se com desconfiança do círculo familiar. Continuou a desempenhar conscienciosamente as suas funções, mas passava os momentos que tinha de lazer passeando no parque, e à noite, logo depois do jantar, subia para o quarto. Mrs. Henderson não podia deixar de apreciar o tacto que ela demonstrava, pois por mais que gostassem dela era natural que naquelas circunstâncias desejassem ficar sòzinhos com Roger. Um estranho, por mais íntimo que fosse, ficaria deslocado. Compreendendo-o, Dora mostrava ser inteligente. Raramente se aproximava a não ser às refeições e, então, apesar de Roger procurar polidamente interessá-la na conversa, ela parecia resolvida a não tomar parte. Só falava quando lhe dirigiam a palavra. Mrs. Henderson alegrava-se pelo facto de Roger parecer gostar dela, e não deixou de dizer ao filho a alta conta em que todos a tinham ali.

- Menos Jane - sorriu ele.

-Oh! Sabes como é a Jane. Julga ser tolerante. mas de facto é a mulher mais fechada e mais cheia de preconceitos que eu conheço.

-Daí se pode concluir que está inteiramente resignada a ver Jim casar-se com Dora, mamã.

-Jane já te disse alguma coisa?

- Como podia deixar de dizer?

Mrs. Henderson deteve-se a reflectir um instante.

- Tenho grande admiração por Dora. Estou certa de que ela é uma rapariga cheia de qualidades, e não há dúvida de que é muito bonita. Suponho que também tenho os meus preconceitos, nem vou negar que ela não é a esposa que eu escolheria para Jim. Mas o essencial é que o faça feliz. E, seguramente, ele gosta muito dela.

Jim veio no domingo. Os dois irmãos não se viam desde aquela tarde em que se encontraram na casa de Jane, quando Jim, com espanto geral, declarara que pretendia seguir o que a sua consciência lhe ordenava. Mas tinham uma afeição verdadeira um pelo outro, e Jim sentira-se tão cruelmente ansioso quanto os demais quando May esperava, diàriamente, noticias de Roger e estas não chegavam. Foi com imenso contentamento que tornoú a vê-lo e Gracejaram como nos velhos tempos.

-Então, meu velho, só assim saíste dos teus latifúndios. Com certeza andas a contar as tuas galinhas como um louco.

- E tu não farias o mesmo? A verdade é que comprei uma máquina de somar- O que eu considero um golpe ilícito é teres-te dado por morto para depois fazeres um aparecimento teatral.

- Foi uma desconsideração da minha parte, não foi? Agora terás de esperar mais quarenta anos para seres dono da propriedade.

-Sei isso. provávelmente ela estará toda hipotecada quando me vier às mãos.

- Calem-se, meninos - disse Mrs. Henderson. - Não acho graça nenhuma.

- Como a rainha Vitória - replicaram eles em coro.

Mrs. Henderson estava encantada por ver que apesar de tudo os filhos continuavam bons amigos. Jim estava de um bom humor extraordinário. Roger conversou com ele sobre o seu trabalho como se fosse a coisa mais natural do mundo, justamente naquele período da história, Jim ter-se feito trabalhador agrícola. O general viera passar o fim-de-semana. Pegou na deixa de Roger, e foi mais cordial com Jim do que em qualquer outra ocasião desde o princípio da guerra. Foi mesmo a ponto de insinuar maliciosamente que ele se divertia à grande com as trabalhadoras que o patrão havia contratado últimamente. Começava na verdade a aceitar a aberração do filho como uma idiossincrasia, dessas que se encontram frequentemente nas famílias antigas. Entre os Stuarth, por exemplo, havia sempre uma tia solteirona que passava vinte anos metida num hospício; e entre os Hollington pelo menos um membro da familia era ébrio inveterado. Mas ele estava tão ansioso quanto Tommy por saber os pormenores da fuga de

roger. Naquela noite, ao jantar, fê-lo repetir uma parte do que já contara.

- Como é possível que nunca tenhas encontrado nenhum alemão? - perguntou a certa altura.

- Oh; mas encontrei - respondeu Roger. Com o seu riso alegre voltou-se para Dora. - Houve uma vez em que escapei por um triz de ser apanhado pelos seus amigos nazis.

- Não são meus amigos - atalhou ela friamente. Ele riu.

- Bem sei que não são. Estava apenas a brincar.

-Desculpe. Às vezes não compreendo o humor inglês.

-Isso tem todo o aspecto de um gracejo de mau gosto - replicou humoradamente.

- Continua, Roger - disse Tommy. - Conta-nos como foi.

Eis a história que ele lhes narrou.

Estavam a caminho havia duas noites, errando pela escuridão e só se detendo quando a dor na perna de Roger se tornava intolerável. Na madrugada do terceiro dia chegaram a um vilarejo. Tinham andado à procura de um bosque onde pudessem estender-se durante o dia, mas a região era árida e não havia outro remédio senão prosseguir. Estavam cansados, tinham fome e sede. Caminharam através da uma rua da localidade, e, defronte da igreja, viram uma modesta estalágem onde os homens da aldeia vinham matar o bicho e jogar as cartas. Uma mulher varria o soalho. Cheirava a café torrado. O aróma era convidativo.

- Vamos entrar - disse Roger. E entrou, seguido de Nobby.

A mulher ficou boquiaberta ao ver um uniforme britânico. Roger disse-lhe no seu francês fluente que eram ingleses fugitivos e que estavam com fome. perguntou-lhe se podiam passar o dia ali. O rosto dela indicava que, embora assustada, tinha boa disposição; e Roger não se surpreendeu quando, franzindo um pouco a testa, ela declarou que lhes daria caFé e alguma coisa para comer, mas que não podiam ficar. Fê-los entrar para a cozinha, atrás do bar, serviu-lhes duas tigelas de café bem quente e deu-lhes pão. Ao terminar, Roger perguntou-lhe qual o caminho menos perigoso que deviam tomar para chegarem à costa. Mas antes que ela pudesse responder, um menino entrou precipitadamente, gritando:

- Mamã, os alemães!

Mal acabava de pronunciar estas palavras, vários moto ciclistas pararam á porta e apearam-se.

- Meu Deus, eles vão entrar - disse a mulher. - Escondam-se.

- Tenha calma - disse Roger.

Talvez o tivessem visto, pensou. e se não o encontrassem ali poderiam desconfiar. Passou ràpidamente para trás do balcão e começou a esfregá-lo com um pano molhado. Os alemães entraram. Eram seis. Um deles dirigiu-se a Roger num francês trôpego.

- Duas garrafas de champanhe - ordenou.

pálida, mas aparentemente calma, a mulher adiantou- se.

- Pois não, meus senhores.

Indicou dúas garràfas numa prateleira atrás de Roger e deu-lhe um alicate para cortar o arame. Ele abriu as garrafas e encheu seis taças.

- Pròsit! Prosit! - disseram os alemães, tocando as taças, antes de beberem ávidamente.

- Porque é que você não está no exército? - perguntou o primeiro que falara, que era certamente o único que sabia francês.

- Porque sofro dos rins.

Eles pareceram um tanto desconfiados, mas depressa voltaram às suas comemorações e, alguns minutos mais tarde, saíram.

Roger e Clark respiraram de alívio.

A dona da casa reuniu-se-lhes. Estava com os nervos abalados e pediu a Roger que saísse. Ele perguntou-lhe ónde estava o marido. Estava no Exército. Disse-lhe então que sairiam logo se ela pudesse arranjar alguma roupa de paisano para Nubby. Perguntou-lhe se não queria vender alguma do marido. Ela não quis: ele havia de precisar quando voltasse. E embora Roger oferecesse pagar o dobro do que valia, a mulher não se deixou persuadir. Afinal conseguiu que lhe cedesse um macacão, pelo qual, para surpresa sua, não acéitou dinheiro.

- Não é que não queira ajudá-los - explicou ela. - Mas cada um tem de pensar em si.

Num instante, Nobby despiu o uniforme e meteu-se no macacão. Meia hora depois caminhavam confiadamente pela estrada; ninguém suspeitaria que aqueles dois vagabundos empoeirados fossem ingleses, respectivamente, um cabo e um oficial do Serviço Secreto Militar. Andaram assim mais três dias. Afastaram-se das cidades, comprando comida nas aldeias. e dormindo ao pé das sebes, pois não se atreviam a passar a noite numa estalagem, com medo de que lhes pedissem os papéís de identidade. Roger tinha os do marido de Jeannette, mas não estava absolutamente cérto de poder convencer um alemão curioso de que eles realmente lhe diziam respeito. E Nobby não tinha papel nenhum. Uma manhã, depois de subirem a custo até ao alto de um monte escarpado, avistaram o már. Roger não se animou a falar. Apenas apontou a imensidão brilhante diante deles e Nuby inquiriu:

- O senhor está a pensar em atravessar isto a nado?

Não seja tolo, Nobby - disse Roger, rindo.

-Vamo-nos sentár um pouco. Um cigarrinho agora vem muito a propósito.

- Até aqui tudo correu sem contratempos - disse Roger. -Creio que o pior passou.

- Acha? Quem me dera pensar da mesma maneira!

- Você não deve desanimar agora, Nobby. Eu levo-o até lá sem novidade.

- Dizem que querer é poder.

Não podiam desviar os olhos daquela grande faixa de costa. O coração de Roger fremia de júbilo. Além, era a Inglatérra. Aspirou o fumo do seu forte cigarro francês com volúptuóso prazer.

Nobby riu com o seu riso feio, mas atraente.

- Minha mulher é que vai ficar bastante contente de me ver. Prometi trazer para o meu Ernie um capacete alemão. Ainda não lhe faléi no Ernie, ou já? Uma beleza de garoto! Vai fazer nove anos para o mês que vem.

- Escute, vamos andando. Você pode falar no seu Ernie quando estivermos no mar.

Puseram-se em marcha outra vez, e daí a pouco viram, abaixo deles, uma cidade com barcos ancorados num lindo portinho.

- Um barco daqueles servia-nos muito bem disse Roger.

- Cômo é que o senhor o vai arranjar?

-Pedindo, comprando, ou então roubando.

-O senhor é tão humano que às vezes me esqueço de que é um gentleman. - Sabe manobrar um barco à vela?

-Já manobrei alguns - respondeu Roger, prudentemente.

Continuaram a andar e, pouco depois, no declive, chegaram a uma filéira de barcos de fremte para o mar. Sentaram-se um instante, para reflectirmno que havia de melhor a fazer. Viram Uma mulher de idade - que estava a trabalhar no jardim, e Roger teve a ideia de pedir alguma coisa de comer, para que não precisassem de ir à cidade antes de cair a noite. Preferia não levar Nobby consigo, mas, ao mesmo tempo, achava complicado deixá-lo sòzinho. A mulher tinha um aspecto simpático, acolhedor. Enquanto fazia estas considerações, um ancião de ar respeitável aproximou-se, pela estrada, evident mente vindo da cidade, e, abrindo o portão, entrou no jardim.

- Alguma novidade? - perguntou-lhe a velha.

-Só más notícias.

- Pobre França!-suspirou ela.

O velho estava tão abstracto que não notara os dois pobres diabos sentados à beira da estrada.

-Dizem que os ingleses continuam a lutar.

- Isso não é má notícia.

- Mas como é possível? Perderam tudo, os canhões, o equipamento, tudo.

Roger não ouviu mais, porque eles seguiram juntos pelo caminho do jardim e entraram em casa.

- São boa gente - disse. - Hão-de ajudar-nos se puderem. Venha.

Seguido de Nobby, foi até à porta da frente e tocou a campainha. A senhora abriu-a.

- Quem é?

- Posso falar com o dono da casa? - disse Roger.

-Está ocupado. Não temos nada para lhes dar, meus pobres amigos.

Quis fechar a porta, mas ele impediu-a com o pé.

-Por favor, ouça-me.

-Não, não, não. Sinto muito, mas não podemos fazer nada pelos senhores.

O velho apareceu no corredor.

-Que é, Adele?

- Mais refugiados. - E, voltando-se de novo para Roger: -Estou a dizer-lhe que não podemos ajudá-los. Todos os dias vem gente.

-Sou um oficial inglês, madame. O meu companheiro é cabo.

A mulher pareceu perder a respiração. Ficou branca, e afastou-se para os deixar passar.

- Entrem.

Fechou a porta e conduziu-os a uma sala cujas paredes estavam cobertas com estantes de livros. O ancião apresentou-se.

-Sou o Professor Dubois, da Universidade de Rouen.

Roger deu o seu nome e posto.

- Há cinco dias que caminhamos. Queremos voltar para

Inglaterra.

- Mas há alemães por toda a parte - interrompeu a mulher do professor. - A cidade está ocupada. Porque veio procurar-nos? O senhor faz-nos correr um grande perigo!

O professor dirigiu a Roger um olhar inquiridor. Era um homem de pequena estatura, com espessos cabelos grisalhos, e uma barba também grisalha e desalinhada. Mas tinha um olhar ao mesmo tempo bondoso e inteligente.

-Que deseja de nós?

-Preciso de um bote. Tenho dinheiro.

-Dínheiro? Não se trata disso.

O professor repuxou a barba. Continuou a fitar Roger com ar pensativo, preocupado. A esposa, parecendo descobrír núm relance o que ele estava a meditar, téve um sobressalto de terror, e exclamou:

- André, que pensas fazer? Não é justo fazeres-me correr um perigo desses.

Roger não percebia o que ela queria dizer, mas adivinhou que o professor estava a procurar algum meio de ajudá-los. Voltou-se para ela.

- Madame, nunca teríamos chegado tão longe se não houvesse na França mulheres que não hesitaram em correr perigo para nos ajudar. Fui ferido e uma camponesa escondeu-me durante dez dias num celeiro.

- Estamos velhos, meu marido e eu. Tenho medo.

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, que rolaram pelas faces ressequidas.

- É nosso dever auxiliá-los - disse o marido.

Ela deu um suspiro comovedor.

- Eu sei. - A voz fraquejou-lhe. - Faz o que entenderes, meu caro.

Foi com o rosto triste e severo que o professor se virou para Roger.

-O senhor sabe manobrar um barco?

- Certamente - disse Roger, com uma confiança que estava longe de possuir.

- Eu ténho úm cutter, mas é muito pequeno. O baró metro está a cair, e eu não aconselharia ninguém a atravessar o Canal, a não ser que fosse marinheiro experimentado.

- É melhor correr o risco do que cair nas mãos dos alemães.

- Muito bem. Quando escurecer eu lhe mostrarei onde está. Pode ficar com ele. Mas aviso-o de que terei de notificar o desaparecimento ámanhã de manhã. O senhor só terá doze oras de vantagem.

-É quanto basta.

-O barco tem um motor auxiliar de seis cavalos, mas receio que não esteja a funcionar muito bem.

-O cabo Nobby é mecânico na vida civil. Vangloria-se de que não há no mundo motor tão ruim que ele não possa consertar com uma combinação adequada de palavras amáveis e de persistência.

O professor olhou com um pálido sorriso para Nobby, que ali ficara todo o tempo sem saber sobre o que eles estavam a falar.

- Já comeram hoje, meus pobres amigos? - perguntou madame Dubois.

- Ainda não.

- É melhor irem para a cozinha. Estarão mais seguros lá - disse o professor. - Qualquer pessoa os tomaria por refugiados.

- Mas há Marie - disse a senhora. - Não sei se podemos confiar nela. Verá logo que não são franceses nem belgas.

- Então precisamos preveni-la. - O professor foi até à porta é chamou: -Marie!

A criada, uma mulher robusta, de meia-idade, entrou. e ao ver os dois pobres diabos teve um grunhido.

-Mais refugiados. Oh, não, já aturei muitos aqui. Não tenho nada na cozinha.

- Marie - disse o professor -, estes são dois soldados ingleses. Vieram aqui procurar abrigo, até à noite, de modo que possam fugir para a Inglaterra e depois voltar para expulsar os alemães do nosso país. Se você não quiser ajudár-nos, tenho de mandá-los embora.

Marie olhou para o professor, depois para os dois homens e em seguida, novamente para ele. Atirou a cabeça para trás.

- Vive la France , - exclamou.

-Sabe que se eles forem encontrados aqui, nós iremos todos para a prisão.

- Vive la France , - repetiu ela.

Madame Dubois começou a chorar.

- Eles estão com fome, Marie - disse com voz trémula.

- Leve-os à cozinha e dê-lhes comida.

O largo rosto da criada assumiu um ar de enérgica determinação.

-Venham, rapazes. Vou dar-lhes de comer até rebèntarem.

Roger estava radiante de alegria. Aquela sorte, aquela maravilhosa sorte mantivera-se, e agora, providencialmente, punha-lhes nas mãos o meio de fuga.

- Estaremos na Inglaterra amanhã, meu velho - disse ele a Nobby, com os olhos cintilantes.

Quando a noite caiu, o professor levou-os até ao porto. Estava nervoso, mas decidido; e Roger sentia no coração uma dolorosa ternura por aquele velho de passos trémulos, mas resolvido a fazer o que lhe parecia justo, embora isso significasse a prisão ou mesmo a morte. Caminhava á frente deles, e como a noite estava escura tinham de estar alerta para não o perder de vista. Não havia ninguém ali perto. Por fim o velho parou.

- Aqui está o barco - ciciou. - Esse pequeno, pintado de preto. A canoa está amarrada na popa. É preciso nadar até ao largo. São poucos metros sòmente. Aqui está uma tocha. Tenho que deixá-los. Não me atrevo a ficar mais tempo. Adeus e boa viagem.

Sem se deter para ouvir os agradecimentos de Roger, afastou-se depressa e sem ruído. Num instante perderam-no de vista.

- Temos de nadar até lá, Nobby - sussurrou Roger.

- Não sei nadar.

-Oh, diabo. Mas não faz mal, eu vou e trago a canoa.

        Tirou os sapatos e o paletó e esgueirou-se na água. Trouxe a canoa e remou novamente, levando Nobby. Subiram para o cutter, e enquanto Roger suspendia a âncora, Nobby comeÇou a mexer no motor.

- Dou conta dele num momento - garantiu.

-É melhor sairmos do porto primeiro. Você sabe remar?

- Já remei no lago da Hyde-Park.

-Tome essa corda e salte para a canoa. Firme-se bem e depois reme para fora do porto.

Nobby saltou e começou a rebocar o cutter, enquanto Roger segurava o leme. Em intervalos regulares, um projector iluminava o céu. Quando sairam para o mar, Nobby tornou a subir a bordo. Deixaram a canoa ao sabor das ondas. Nobby pôs-se a trabalhar no motor, e pouco depois conseguiu fazê-lo funcionar.

- Isto é Uma porcaria de motor - disse. - Não sei se ele aguenta.

-Você é ou não um mecânico? O seu dever é obrigá-lo a aguentar-se.

O motor parecia fazer um barulho tremendo no silêncio da noite. Roger lançou um olhar ansioso para o projector.

Sabia que estavam à procura de aviões, mas alguma inteligência brilhante podia ter a ideia de fazer incidir o foco sobre o mar. Seria um azar terrível se fossem apanhados justamente quando tinham a possibilidade de escapar. De repente, Nobby apurou os ouvidos.

- Não estou a gostar do ruído deste motor. É melhor dár uma espreitadela. - Agachou-se. - Creio que há água na gasolina. Tenho de tirar o carburador para fazer uma limpeza.

- Muito bem, faça isso já. Quanto tempo leva?

-Sete ou oito minutos. Depois tenho de repetir a coisa de vez em quando.

Roger sentiú um aperto no coração.

-Dessa maneira só vamos chegar a Inglaterra no meio da semana que vem.

Estavam agora ao largo e o mar começava a agitar-se.

- Começa a dançar, hem? - dísse Nobby, inquieto.

- Vamos ter úm aguaceiro, graças a Deus. Vão ter dificuldade em nos encontrar se vìerem à nossa procura.

- Voú enjoar - disse Nobby.

- Pois enjoe, vá para o diabo - diss Roger brutalmente: Não lhe agradava soltar a vela naquela escuridão de breu, Pois tinha pouca experiência de manobrar um barco, e achou que era melhor confiarem no motor. Mas este só funcionava por poucos minutos de cada vez. Nobby, quase desfalecido, limpava o carburador de quarto em quarto de hora, e, enquanto o limpava, balouçavam desamparadamente no mar agitado.

- Acha que vai dar resultado? - perguntou Nobby, pers crutando as trevas.

-Mais vale morrer afogado do que ás mãos desses boches imundos - respondeu Roger rispidamente.

Nobby sumiu-se outra vez.

A noite parecia interminável, e quando rompeu a madrugada cimzenta sentiam-se ambos cansadíssimos. O cu estava semeado de nuvens ameaçadòras. e o mar sujo. Roger não tinha noçÕes da distância percorrida. Parecia-lhe que não poderiam estar a mais de algumas milhas do litoral da França.

O maior perigo era o de serem vistos por uma lancha a motor alemã. e neste caso estariam perdídos. Depois de um rasgo de coragem, Nuby conseguiu içar a vela, e prosseguiram com maior rapidez. Madame Dubais enchera-lhes os bolsos de comida e havia água no tanque, mas Roger só deixava Nobby comer aos bocadinhos. Não sabia quanto tempo teriam de fazer durar as suas provisões.

Continuaram durante aquele dia todo e a noite seguinte. De poucos em poucos minutos, Nobby tinha de tirar o carburador e limpá-lo; dormitava nos intervalos, mas Roger achava que não se podia permitir fechar os olhos. Quando o motor começava a falhar, sacudia Nobby para o despertar. Estavam molhados, sentiam frio e Nobby enjoava muito. Às vezes ficavam horas sem falar. A reserva de alimentos ia minguando; e parecia que breve teriam de passar fome. Felizmente havia água em abundância. Mas a terra, onde estava? Onde, essa maldita terra?

Custava a passar o tempo. o velho dissera que o croger não estava a funcionar nas melhores condições. O barómetro descia. Se viesse uma tempestade, marinheiro inexperiente como era, não confiava muito em vencê-la.

- Estaremos fritos - murmurou.

O dia parecia não ter fim. Roger olhava para o relógio, pensando que já se haviam passado horas, e descobria que nem sequer uma hora transcorrera. O tempo tardava como um menino de recados preguiçoso. Era como se désse dois passos para a frente e um para trás. Não avistavam qualquer terra. Podia ser que estivessem a navegar num mar desconhecido que ninguém singrara antes. Depois de muito tempo, afinal, anunciou-se o dia. O Sol começou a despontar de trás de um bloco de nuvens, e a treva amortalhava-os numa terrível solidão. Quando veio a manhã, uma manhã sombria e lúgubre com o Sol subindo para o alto, Roger pensou, amarguradamente, se a algum deles seria possível ver a noite seguinte. Os seus olhos cansados perscrutavam incessantemente o hori zonte. De repente o coração deu-lhe um salto. Por momentos, sentiu-se tão mal como o seu desgraçado companheiro.

-Eh! Nobby, olhe para ali.

Nobby, deitado na casa do leme, gemia miseràvelmente; ergueu uma cabeça lamentável e dolorida.

- Que é?

-Não vê qualquer coisa ali em frente?

Aborrecido, Nobby pós-se de pé, e, apoiando-se na amurada, espreitou na direcção que Roger apontava.

- Aquilo? - Da garganta saiu-lhe um som engraçado, que podia ser um soluço. - Aquilo é terra, não é?

- Isso mesmo, meu velho. Terra!

-Palavra que se eu não me sentisse tão mal ia fumar o meu último cigarro.

- Inglaterra!

Havia na voz de Roger qualquer coisa que fez Nobby dirigir-lhe um rápido olhar.

- Até dá vontade de chorar, não é verdade?

- Cale essa boca, com os diabos - disse Roger com raiva.

Nobby, em cujo rosto pequeno e ossudo o riso ainda não aparecera, esboçou uma saudação militar.

- Tem razão, sir.

Foi um sacrifício para o major fingir que não estava a sentir o mesmo que eu, mas a verdade é que estava. Quando pensou que eu não o observava, assoou-se com tanta força que pensei que saía nariz e tudo. -Contava Nobby, mais tarde, a Tommy.

Era o fim. Duas horas depois desembarcavam na costa do Sussex.

 

Apenas houve uma parte do seu caso que Roger não contou. No celeiro em que passou dez dias terríveis, havia pouca luz e, mesmo que houvesse sufíciente para ler, ele não tinha leitura nenhuma. Era quente e abafado. Ele virava-se de um lado para outro sobre o feno, tentando uma posição mais confortável, e quando conciliava o sono era apenas para despertar, depois de alguns mínutos, com as dores no ombro. Não havia outra coisa a fazer senão pensar. A febre que o atacava confundia completamente os seus pensamentos, que, mesmo quando estava acordado, tinham a incoerência de um sonho louco. Provocavam verdadeiros conflitos dentro da sua cabeça dolorida, como uma multidão tomada de pânico que corresse de um lado para outro, sem saber para onde ir. A guerra, o dia que passara com a bateria, o choque repentino quando o seu chauffeur caíra sobre o volante e o carro derrapara na vala, a cena na fazenda, Graveney Holt, sua mãe, Tommy, May, a sua ignorância do que acontecera às forças em retirada - tudo se confundia como as peças de um medonho quebra-cabeças em que cada peça fosse uma dor.

Ele sempre reconhecera o valor da lucidez do seu cérebro e foi um alívio quando, depois de ter os ferimentos pensados e a febre dominada, se sentiu capaz de raciocinar com clareza. Os seus pensamentos eram sombrios. Estava ansioso quanto ao destino da força britânica; fora uma demonstração muito má, mas apesar das melancólicas notícias que Jeannette lhe trouxera, tinha uma forte confiança de que aquilo não se transformasse num desastre irreparável. A Inglaterra já estivera em situação mais difícil antes, e, no fim, conseguia a vitória. Ele próprio estava numa situação difícil. Pela primeira vez dèsde que fora ferido, riu consigo mesmo; se não voltasse de qualquer maneira para a Inglaterra - bem, mas sobre isso nem havia dúvida. Sentiu-se mais animado quando considerou os meios de que dispunha. Teria de ser prudente - bem, prudente era ele; precisaria de um pouco de coragem- e essa tinha-a; teria de manter as suas faculdades alerta - e não era inteiramente desprovido delas.

Pensou em May. Se tivesse sido morto em lugar do seu chauffeur, ela poderia casar-se com Dick Murray. Pobre May! Ficou a pensar no que seria que ela achara em Dick. Certamente ele era um bom camarada, um cavalheiro e tudo o mais, além de ter um certo encanto. E que mais? Era consciencioso, ùm bom administrador e tão-pouco era mau negociante; era alegre e simpático, excelente atirador e montava bem a cavalo. Mas era tudo. Ninguém o poderia considerar um intelectual. Se já lera alguma coisa, além do jornal da manhã, do Tutler e do Field, fora algum romance policial. May, por outro lado, era uma leitora infatigável. Fora assim desde menina, quando percorria toda a biblioteca de Graveney Holt; e Roger muitas vezes se divertira procurando descobrir o que ela sabia. Não foram muitas as vezes em que teve ocasião de pedir-lhe conselho, mas quando o fez, foi com prazer que verifícou como ela raciocinava bem e como as suas opiniões eram acertadas. Tinha paixão pelas coisas bonitas. Nem mesmo sua mãe apreciava com mais finura o belo mobiliário de Graveney Holt. May possuía um bom gosto encantador para a decoração. Com alguns objectos que se achavam depositados no sótão, conseguiu fazer do seu apartamento em Chelsea uma maravilha. Era um fundo admirável para a sua beleza de flor:

Que significaria tudo isso para Dick Murray? E que lhe aproveitariam os dotes sociais de May? Quando Roger recebia, para jantar, no apartamento, adidos militares de nações estrangeiras ou membros de alguma missão, a facilidade espontânea de suas maneiras estava acima de qualquer elogio. Tão natural, tão simples, ela fazia com que todos se sentissem à vontade, e a agradável impressão que causava, em mais cue uma oportunidade, ajudara-o a entrar em proveitosas relações com estrangeiros. Sentia-se orgulhoso dela; sofrera um verdadeiro abalo quando, abruptamente, ela lhe pedira consentimento para o divórcio. Não podia lembrar-se de uma zanga sequer entre eles. Nunca haviam tido um desentendimento. Recordava-se de que, no princípio, ela se mostrara um pouco ressentida por ele rodear de certo mistério a sua actividade profissional. Mas era essa a sua obrigação. Já se falava demasiado acerca de assuntos que lhe competiam particularmente - e muitas vezes, por desgraça, quem conversáva assim era gente altamente colocada, que devia ter mais tento. Certa ocasião, May mostrara-se um tanto ofendida porque soubera de algo que ele julgara conveniente não lhe contar. Bem, não era culpa sua se os superiores cometiam indiscrições. Mas tudo isso pertencia ao passado. Havia muitos anos que May compreendera que era essencial ao trabalho dele manter-se calado, e deixara de interessar-se pelos seus assuntos.

Não conseguia descobrir porque é que May tinha razão de queixa dele. Era verdade que passava muito tempo fora, mas também isso era essencial ao seu trabalho, e não lhe era possível levá-la consigo. Os chefes das missões, algumas vezes, levavam as esposas e isto significava complicações sociais de toda a espécie, o que, com certeza, não facilitava muito o trabalho da missão. Era verdade que quando ausente não pensava muito nela; em geral estava muito ocupado para se lembrar da esposa; mas quando pensava nela, fazia-o com ternura. E quando chegava o momento de regressar á Inglaterra, o seu primeiro pensamento era para o prazer que experimentaria em estar ao seu lado outra vez. Nunca lhe ocorreu que May se sentisse isolada. Tinha amigos em Londres, e a qualquer momento podia dar um pulo até Graveney. O que lhe causava pena era não terem filhos. Casados há oito anos, já podiam ter três crianças, e então, ela nunca pensaria em deixá-lo, pois tendo mais que fazer, não sentiria tanto a sua falta. Nunca deixara que ela percebesse que a sua esterilidade era motivo de desagrado para ele, e, quando em certa ocasião ela se lamentou, fez o possível por convencê-la de que não se importava. Até onde os seus meios permitiam, dava-lhe tudo que ela queria. May nunca revelara um desejo sem que ele demonstrasse grande prazer em satisfazer-lho. Não tinha motivos para supor que não se sentisse tão feliz como ele com o casamento.

Era impossível alguém admirá-la mais. Sentia que ninguém se deliciava como ele com a sua beleza um tanto frágil. Gostava do seu delicado nariz, daqueles olhos encimados por largas sobrancelhas e da rara beleza da sua pele. Apreciava a sua esmerada educação, a natural confiança em si mesma, o seu tacto e a sua elegância. Talvez depois da guerra se operassem muitas transformações e múitas coisas que antes pareciam importantes deixassem de o ser, mas naquelas circunstâncias não se podia negar que ela se ajustava ao seu lugar na vida com suprema distinção.

May não se sentia feliz. Cortava o coração de Roger reconhecê-lo, e o que mais o atormentava era não saber que fazer para remediar o caso. Por um instante ficara irritado pelo facto de justamente na ocasião da crise ela lançar essa inesperada complicação na sua vida. Era como se alguém fosse a correr para apanhar um comboio e outra pessoa o detivesse para fazer uma pergunta estúpida. Mas, havia nisto uma injustiça; decerto, ela não sabia que a guerra estava iminente. Agora, na sua cama de feno, Roger via que lá em Graveney, naquele cenário pacífico, não se podia conceber que o mundo já estivesse marchando a passos largos para a destruição. De qualquer maneira, ele tinha de enfrentar os factos.

May estava apaixonada por Dick, e por amor dele dispunha-se a prescindir de tudo que o marido lhe oferecia. Era uma pena que ela nada tivesse de snob e que a sua atitude fosse completamente desinteressada:

Decepcionara-a em alguma coisa. Que poderia Dick dar a May que ele não pudesse dar também? Começou a analisar mentalmente o amigo. Cabelo grisalho, encaracolado, os belos

olhos azuis, pestanas negras, o corpo forte, de sincero bom humor e um sorriso sempre pronto e amistoso - sim, Dick devia possuir uma atracção sexual que podia influir em certas mulheres. Porém, May era a última mulher que Roger achava capaz de se interessar por isso. Nunca a julgara sensual, seria idiota se acreditasse que ela estava ansiosa por satisfação sexual. Não se importara muito com aquilo. Não o esperara. Era um homem que trabalhava muito, e tinha de pensar em muitas coisas que lhe pareciam de urgente importância. E, afinal de contas, estavam casados havia oito anos.

Crescera com a ideia de que um dia se casariam. Embora nem seu pai nem sua mãe tivessem feito qualquer pressão, estava certo de que ambos assim desejavam. Antes do casamento tivera as aventuras normais dos rapazes, mas nunca encontrara uma mulher de quem gostasse metade do que gostava de May. Nunca conhecera outra tão perfeitamente. Tálvez estivesse aí uma parte da complicação. Tinham sido íntimos como irmão e irmã, e quando embarcaram em lua-de-mel, fizeram-no sem qualquer sentimento de estranheza ou mesmo de grande excitação. para ele foi como se partisse numa excursão com a sua irmã Jane. Sem dúvida, a lua-de-mel fora divertida; distraíram-se muito em Paris. Era bom dornir na mesma cama com May, e, ao mesmo tempo um tanto engraçado e ligeiramente indecoroso. Era alguma coisa semelhante à prática de um incesto com a bênção da Igreja. E o que tornava tudo ainda mais delicioso era que não havia embaraços enttre eles. beijavam-se, riam, amavam-se, e tudo era tão natural como ir jantar em Montmartre antes de irem para a cama ou beberem o seu café com leite antes de saírem pela manhã. Era perfeito.

Desde então nunca procurara outra mulher. Durante as suas longas ausências, muitas vezes tivera oportunidade de se divertir com outras, mas nunca o fez. Não podia dizer que resistira à tentação; nunca fora, sequer, tentado. May lá estaria e não havia no mundo mulhér que se lhe comparasse. May era um encanto. E agora a sua vida conjugal estava arruinada. Ela queria divorciar-se e ele prometera concordar se ela ainda continuasse com a mesma ideia depois da guerra. Desejaria não ter tomado nenhum compromisso, porque não queria perder May. Não era apenas a beleza que amava nela; amava o seu carácter suave, mas firme, caprichoso e contudo sereno; era uma mulher rara. E já se habituara a ela. Talvez nisto é que tivesse errado; acostumara-se tanto à esposa que já a tinha como coisa garantida. Isto era o que a própria May pensava. Dizia que, para ele, nada mais era do que a cadeira onde habitualmente se sentava ou o velho paletó que vestia, quando vinha para casa, depois do trabalho. Tinha sido um idiota. Mas, porque não considerar as mulheres como coisa garantida? Com tanto trabalho para fazer e com o mundo numa atrapalhação infernal, como poderiam esperar que alguém se ocupasse o dia inteiro com elas? Um homem tem o seu trabalho, não tem? De qualquer maneira era tarde de mais agora, mesmo que tivesse tempo ou oportnnidade, para ser um marido assíduo, que passasse o tempo procurando adivinhar os pensamentos da esposa. E al m disso, Roger não pertencia a essa espécie de homens. As mulheres eram engraçadas; ele sempre pensara que May fosse muito sensata. Detestava a ideia de divórcio: Mesmo agora que a lei sofrera modificações, era odioso ir a Brighton com uma prostituta, que nunca se viu antes, registar-se no hotel como marido e mulher, e ter a certeza de que se foi visto pela criada do hotel, no mesmo quarto, na manhã seguinte. Era horrível e vulgar, e a ideia de todo o palavrório que se seguiria chegou a causar-lhe um arrepio. Roger partilhava do horror que a sua família tinha á publicidade. Parecia-lhes anormal que quando realizavam uma reunião em Graveney saíssem fotos no Tatler ou no Bystunder, ou se iam a Londres passar algumas semanas, que esse facto, tão natural, fosse anunciado no Mornin Post. Sentiam uma irritação quase mórbida ao ver os seus nomes impressos. além disso, havia muito tempo que Roger pretendia entrar para o Parlamento como candidato independente; tinha ideias sobre o Exército que, parecia-lhe, deviam ser apresentadas à nação, e a Câmara dos Comuns era o melhor lugar para expô-las; mas, no respeitável distrito onde ficava Graveney, o facto de ele ter sido parte num caso de divórcio e sua esposa se casar em seguida com o administrador do seu pai eliminaria as possibilidades da sua candidatura.

Entretanto, dera a sua palavra e estava pronto a cumpri-la. Era terrível pensar que May podia ser infeliz - e o que seria da vida do casal se ela estivesse constantemente a pensar noutro homem? Tinha tanto direito a ser feliz como qualquer outra pessoa. Era um erro que ela estava a cometer, pelo menos do ponto de vista das conveniências sociais, mas estava decidida. Ele nunca a considerara uma mulher fraca, fácilmente influenciável; portanto, que podia fazer? Por sua própria culpa é que ela deixara de o amar, embora essa culpa não fosse intencional; era pena que ele o percebesse tarde de mais, e não adiantava muito dizer que era um soldado e que tinha de obedecer a ordens. A mocidade dura pouco; May tinha razão quando dizia que passava a sua á espera, sempre á espera. Egoismo da parte dele? Sim, devia ser, porém, o pior de tudo era que se ele pudesse voltar atrás, procederia exactamente do mesmo modo. O seu trabalho e a forma pe culiar porque o encarava davam-lhe a grande alegria da sua vida. Mas a guerra seria longa. Acreditava, antes, que duraria trés anos, mas agora, com o desastre da Flandres, estava convencido de que duraria cinco. Muita coisa podia acontecer em cinco anos. May só poderia ver Dick, se o visse, em raros intervalos; ele mudaria e ela também. não seria possivel que ao encontrarem-se de novo achassem tudo diferente? Tinham-se apaixonado porque estavam em contacto diário. não podia acontecer que, com a cessação do contacto, deixassem de se amar? Talvez então May resolvesse voltar para ele. Sabia muito bem o que ela diria em última hipótese:

- Roger, querido, tenho a impressão de que evitaste que eu fizesse um triste papel.

- Evitei, meu amor? - responderia ele.

Podería ver nos olhos dela uma amostra de gracejo, por se sentir ligeiramente embaraçada, e entretanto saber exactamente o que dízia.

- Sabes, não creio que Dick seja, realmente, o meu ideal.

- Nunca achei que o fosse.

- Cheguei á conclusão de que, afinal de contas, gosto mais de tí.

- Há anos que te digo que sou um homem realmente adorável.

- Bem, em suma, o resultado de tudo isto é que mesmo se eu te surpreendesse na cama com uma criada e que me desses um soco, jamais consentiria no nosso divórcio.

- Queres dizer que tenho de te aturar o resto da vida?

- Infelizmente, parece que sim.

- Não sei que remédio poderei dar a isto - responderia ele, tomando-a nos braços e beijando-a ternamente nos lábios.

Por um instante esqueceu-se de que estava deitado sobre o feno, numa adega escura, e viu-se de volta a Graveney Holt, no quarto que sempre fora ocupado por May. Era um belo quarto. As cortinas estavam um pouco desbotadas, mas a mesa de toilette, a mesinha-de-cabeceira e a cama eram Chippen, e das amplas janelas viam-se os canteiros verdes do parque e os grandes carvalhos.

 

Embora fosse em resposta ao impetuoso interrogatório de Tommy e para satisfazer a curiosidade do pai que Roger resolvera descrever aqueles trechos da sua aventura, May sentia que ele estava particularmente interessado no efeito que essa narrativa teria sobre ela. Os seus olhos pousavam nos dela e avia neles uma expressão que parecia dizer:

- Sábes, é preciso levar estas coisas muito a sério. na verdade a vida não passa de uma brincadeira.

Ela suspeitava de que por sua causa ele recapitulara com prazer os riscos que correra e gracejara sobre os embaraços em que se encontrara. Falou daquela aventura como se fosse alguma coisa que podia ter acontecido a qualquer pessoa, e que na verdade não tinha importância alguma. Era preciso ler nas entrelinhas, por assim dizer, para reconhecer o terrível perigo que ele realmente passara, como estivera próximo da morte, e que presença de espírito, que arrojo e resistência demonstrara. May, que continuava sentada em silêncio, ouvindo-o atentamente, sentiu-se estranha ante essa atitude. Ele parecia empenhado em lhe tirar do espírito qualquer ideia de que havia algo de notável nas suas peripécias, como se não fosse bonito excitar-lhe a admiração ou apelar para a sua simpatia. Tinha-se a impressão de que Roger sentia uma satisfação irónica ao mostrar-se por um prisma ridículo quando estava em perigo iminente. Era uma injúria tanto para o coração como para a inteligência de May. via muito bem como ele diminuíra a possibilidade de fugir rpelo facto de ter grudado a si um homem de uniforme que não sabia falar uma palavra de francês. Ela estava certa de que nunca lhe ocorrera que seria mais prudente deixar que o outro se arranjasse por si mesmo. Conhecia Roger muito bem para ter a certeza de que nunca, mesmo no mais negro dos momentos, ele cederia ao desânimo. Era sempre nas circunstâncias que mais exigiam uma decisão da sua parte que revelava as suas melhores qualidades: era bravo e digno de confiança, tinha a decisão pronta e nunca se deixava vencer pelos obstáculos.

À noite, deitada na cama sem poder dormir, no quarto contíguo ao de Roger, apenas com uma porta a separá-los, revolvendo no espírito alguns episódios que ele contara, os olhos de May enchiam-se de lágrimas. Era de cortar o coração pensar que ele estivera deitado no chão, ferido e só. era terrível pensar naqueles dias intermináveis no celeiro, sobre o feno, quando ficara estendido horas a fio, ardendo em febre e cheio de dores. Pôs-se a imaginar se Roger tinha pensado nela naqueles instantes. Talvez não; talvez pensasse apenas nas dificuldades em que o desastre da Flandres lançara o país e na reduzida possibilidade que tinha de escapar; mas, se pensasse, tê-lo-ia feito apenas com mágoa, porque ela o abandonara. Roger ainda trazia em si os sinais da sua provação. Tinha as maçãs do rosto salientes, as têmporas cavadas, o rosto pálidn e nos olhos um brilho duro e anormal. De certo modo estava melhor do que já estivera; a sua enfermidade e as agruras a que fora submetido, o seu resoluto desprezo pela dor que sentia na perna quando se cansava andando milha após milha, tudo isso o gastara, e havia na sua aparência alguma coisa de romântico mesmo, que ele nunca tìvera antes. May estava contentíssima por Roger ter voltado; enchia-se de vergonha ao lembrar Que desejara - não, isso nunca -, que havia admitido a possibilidade da sua morte. Ficou a pensar se ele saberia disso; se soubesse não a culparia, apenas acharia a coisa um tanto cómica.

- Uma decepção para a pobre rapariga - era o que dizia. Havia de rir. Aquela mulher que fez os sogros darem-lhe refúgio, que levou um médico para o observar, que velou para que ele voltasse a salvo para a pátria - não o amava; ele nada significava para ela e o que ela fez foi levada pela caridade humana, talvez por patriotismo. Era engraçado pensar que Rogér devia a sua fuga exclusivamente a mulheres; muIheres o esconderam, mulheres o vestiram de modo que pudesse passar sem ser descoberto, mulheres lhe deram de comer, mulheres arriscaram a própria liberdade para lhe prestar socorro.

Estranhos! Ela era sua esposa. Com certeza ele esperaria dela algo mais que os estranhos não podiam dar-lhe. e, no entanto, foram estranhos que tudo fizeram por ele, enquanto ela - que tinha feito? Nada de belo ou de generoso. Não sabia bem porque a preocupava tanto, mais do que outra qualquer coisa até então a preocupara, o facto de não o ter conhecido quando ele viera, coxeando pelo caminho com aquelas roupas esquisitas que vestia. Se ela o amasse, se ao menos o amasse como Tommy o amava, tê-lo-ia reconhecido imediatamente. Como tal não acontecera, sentia-se terrivelmente abatida: aquilo devia ter desgost ado bastante Roger, Pois naturalmente ele amava-a. era inútil querer duvidar disso; não era o amor que ela desejava, mas que podia Roger fazer se não estava no seu carácter dar-lhe essa espécie de amor? Era uma questão de temperamento. May estava atormentada. Doía-lhe a consciência. Na escuridão, estendeu os braços e pediu a Dick que a auxiliasse. Desejava-o, desejava-o ardentemente, mas se ele estivesse ali tê-lo-ia afastado com horror. Oh! era Desgraça Amar com todo o coração e sentir - sentir o quê? Sentir qi se cedermos ao amor que nos consome nunca mais teremos um momento de paz ou felicidade para o resto da vida.

Um pensamento, não, não chegava a ser um pensamento-um sentímento parecia misturar-se ao seu profundo desagrado de si mesma. angustiada, tentou afastá-lo, mas foi em vão; ele amedrontava-a como um homem enfurecido com u pé na porta sem que ela a pudesse fechar e, por fim, em desespero, abriu a porta de par em par e enfrentou-o. Sempre confiara que a Inglaterra venceria a guerra; era inconcebível Que tal não acontecesse, que fosse derrotada; mas, agora era preciso considerar essa possibilidade. A ideia encheu-a de horror. Todavia, era possivel; as Forças Expedicionárias Britânicas tinham escapado da França, mas perdendo todo o seu equipamento. seria preciso conseguir tanques, canhões e mumições antes que elas pudessem voltar ao campo de batalha. A França caíra; podia ser que, apesar de todas as suas promessas, os franceses entregassem a esquadra aos alemães. os nazis estavam animados pelos triunfos: a qualquer momento talvez tentassem a invasão, e quem poderia afirmar, então, depois do desastre da Flandres, que os imgleses teriam força suficiente para os repelir? Hitler prometera que assinaria a paz em Flandres no dia 5 de Agosto, e até ali sempre havia cumprido suas promessas. O perigo era tremendo. De nada servia fechar os olhos diante dele. A vergonha da derrota. A ignomínia de viver sob o tacão de um conquistador brutal. Perder tudo que se ama; submeter-se a uma gente que se despreza; ser reduzido à escravidão. Não mais haveria riso, nem franqueza; todos teriam de estar permanentemente em guarda. May conhecera no Tirol um príncipe bávaro que lhe havia contado como, na sua terra, todos na família tinham de medir cada palavra, pois sabiam que os criados eram espiões nazis. A derrota significava que o que havia de bom seria banido do mundo e o unico sentido do direito era a força. Significava o fim da honra e da decência, da lealdade, da rectidão e da bondade. Significava É que já não valia a pena viver a vida.

Teria sido isso que Roger quisera dizer ao contar-lhe que os alemães estavam para invadir a Polónia? Não é este o momento para qualquer de nós pensar nos seus interesses particulares , ou coisa parecida. Se aquele não era o momento, menos, muito menos, seria agora, pois todos estavam em causa, todos deviam fazer o máximo, ou tudo estaria perdido. A felicidade pessoal não interessava; a única coisa que interessava era a Inglaterra. Era desprezível pensar em si próprio. Todos deviam estar dispostos a sacrificar tudo, mesmo as coisas mais estremecidas. May abafou o grito que lhe irrompeu dos lábios quando, como o cadáver de um homem que assassina o que surge à superfície da água, como uma acção vergonhosa que importuna a memória, como um simples tinido que irrita um cérebro em febre, lhe veio a noção do sacrifício que lhe era exigido. Era absurdo. Não podia fazê-lo. Era tão tolo e infantil, como quando Dick se encontrava na retirada de Dunquerque e ela estivera tentada a prometer a Deus que o esqueceria se ele escapasse com vida. Era tão estúpido e perigoso como quando, na mesma ocasião, enquanto fazia paciências, à noite, chegara quase a dizer consigo que, se acertasse, Dick seria salvo. Que bem poderia acontecer a alguém se ela fizesse o sacrifício? Não havia razão para aquilo. Porque iria perder a sua única oportunidade de ser feliz? Era uma louca. Entretanto, constrangia-a algum impulso interno mais forte do que a vontade, a razão , o instinto. Para que dizer que era uma coisa sem sentido, se sabia que faria o sacrifício? Não havia remédio.

Assim, uma noite, depois de Roger já estar há alguns dias em Graveney, May convidou-o para darem um passeio. Foram andando por baixo dos velhos cedros do que antigamente se chamava jardim inglês, e estava separado do jardim comum por um velho muro de tijolos coberto de hera espessa. Era muito agradável passear por ali nas horas frescas do dia. Embora apenas dois velhos e um rapazola tivessem ficado para cuidar do jardim, a relva estava bem aparada e os canteiros cheios de flores. Naquela altura estavam na plenitude da sua beleza. Roger falava como sempre fazia quando estava com ela, amávelmente, mas sobre coisas acidentais, sobre as crianças evacuadas, Jim e o seu trabalho na granja, o governo, etc. Não se referiu uma só vez às relações pessoais de ambos. May estava um tanto nervosa.

- Queres dar-me um cigarro? - pediu.

Ele parou para acender-lhe o cigarro e, quando recomeçaram o passeio, May passou o braço por baixo do de Roger. Não o encarava, mas olhava fixamente para a frente.

-Roger, lembras-te do que te pedi quando voltaste da Polónia ?

- Lembro.

-Não quero que faças o que te pedi.

- Muito bem.

Ele não pareceu surpreendido; muito ao contrário, encarou o facto como uma coisa comum. May teria gostado que ele se mostrasse mais entusiasmado, talvez um pouco expansivo. Não teria sido extraordinário se a tomasse nos braços e a beijasse?

Roger não falou durante um minuto ou dois.

- No dia em que voltei da França - disse por fim - perguntei-te se ainda estavas apaixonada por Dick e disseste-me que estavas.

- EScrevi a Dick e avisei-o de que já não queria divorciar-me. - Olhou-o vivamente. - Tu não queres também, pois não?

-Naturalmente que não. Nunca o desejei. Eu amo-te muito, bem sabes.

-Não queres beijar-me?

Ele sorriu, um tanto acanhado, e beijou-a de leve nos lábios.

-Desejo tanto a tua felicidade, Roger, que farei tudo o que puder para ser uma boa esposa.

-Sei que o farás, querida.   

Parecia que nada mais havia a dizer. May sentiu um alívio ao ver o sogro dirigir-se para eles. Olhou para o relógio quando o general chegou perto e disse:

-Vou deixar os dois juntos. Tenho de ir ver umas coisas.

De volta para casa sentiu um desafogo mental que não experimentava havia muitos dias. Agora que tomara aquela decisão estava convencida de que tinha agido bem; sentiu-se

quase com o coração leve; não era a única pessoa no mundo que não podia dizer o que queria. Pressentia agora que, com o tempo, o seu doloroso anseio por Dick se tornaria menos

violento; talvez, um dia, não passasse de uma suave saudade.

Talvez, então, ela mesma se sentisse satisfeita por ter deitado fora a sua esperança de felicidade. A carta que escrevera a Dick fizera-a sofrer muitíssimo e exigira-lhe muita força de vontade; ao recebê-la, Dick deveria ter sentido um golpe cruel mas esperava que ele compreendesse que não havia outra alternativa. Pelo menos não podia nunca duvidar que era dele todo o seu amor.

Estava satisfeita porque Roger não lhe pedira explicações sobre aquela mudança de ideias. Embora no primeiro momento ficasse um pouco surpreendida por ele ter recebido o caso tão naturalmente, via agora que tinha sido muito bom o procedimento do marido. Mas, com o passar dos dias, May ficou um tanto confusa, porque a sua conversa com Roger não parecia haver produzido grande diferença nas suas relações. Roger mostrava-se agradável, amigo e atencioso, afectuoso mesmo, mas sempre fora assim. May perguntava, a si própria, se era possível ele não haver entendido tudo o que ela lhe quisera dizer. A licença terminara e quando ele se fosse embora talvez não o visse outra vez durante semanas. Roger tinha uma cama no seu gabinete e dormia lá todas as noites, de modo que, mesmo que o trabalho dela não se tornasse necessário em Graveney, exigindo a sua permanência ali, de nada servia montarem casa juntos, outra vez, em Londres. Não queria fazer as coisas pela metade. Se não se explicara claramente, como pretendia, era preciso fazê-lo; mas não era fácil. Aínda se sentia um pouco acanhada junto de Roger. Não era que realmente o receasse, mas nunca se sentia inteiramente á vontade junto do marido; embora o conhecesse desde menina, nunca tivera com ele a intimidade completa que, sem dúvida, iria ter com Dick; talvez fossem as suas relações conjugais que a fizessem acanhada com Roger, e, de qualquer maneira, referir-se ao sexo era coisa que a deixava contrafeita. Muitas vezes corara ao ouvir Jane falar sobre o assunto tão grosseiramente. Na vés pera da partida de Roger, depois de dar a alimentação às crianças e cumprido a sua parte na lavagem dos pratos, foi à procura dele. Encontrou-o na biblioteca, mergulhado numa enorme poltrona, com um livro nas mãos. Ele ergueu os olhos, com um sorriso, quando ela entrou.

- Queria qualquer coisa para ler - disse May.

- Aqui há muito por onde escolher - respondeu Roger passando os olhos pelas estantes cheias.

Com fingida naturalidade, ela sentou-se no braço da poltrona, cingiu-lhe o pescoço e perguntou:

- Que estás a ler?

Ele mostrou o livro. Ela não se moveu. Tínha o rosto afogueado e a sua voz não era firme quando falou.

- Roger, quando conversámos outro dia sobre certas coisas e eu disse que queria ser uma boa esposa para ti, pesei cada uma das minhas palavras. Queria dizer aquilo mesmo, com todas as suas consequências. Não pretendo fazer restrições.

-És um amor, minha querida. Jamais desejarei que faças alguma coisa que não tenhas vontade de fazer.

Ela bateu de leve no rosto de Roger.

-Não achas que seria muito bom se tivéssemos um filho? O facto de ainda não termos nenhum não é motivo para deixarmos de o querer agora.

Ele fechou o livro, voltou um pouco a cabeça, meio grave, meio sorridente, e olhou para dentro dos olhos dela.

-Querida, penso que sei porque disseste aquilo no outro dia. Foi muita bondade da tua parte. Mas creio não me enganar quando penso que isso se deu devido a uma mudança de ideias mais do que a uma mudança de sentimentos. E, nestes assuntos, é o coração que domina. Não dou muito valor à noção vitoriana dos direitos conjugais. Não creio que as relações pexuais possam ser muito satisfatórias se não nascerem de um desejo mútuo; se não for assim, haverá alguma coisa de humilhante para ambas as partes, não achas? Existem certas coisas que ninguém pode forçar-se a querer. Tenho receio de que não seja suficiente para mim haver desejo apenas da minha parte. O desejo é uma coisa engraçada, ninguém pode prová-lo espontâneamente; talvez um dia o desejo seja mútuo; eu saberei e tu saberás também; não terás necessidade de me avisar.

Ela baixou os olhos sem responder; as lágrimas rolaram-lhe vagarosamente pelas faces. Ele segurou a mão de May e beijou-a.

-Não chores, querida. Para que lastimar coisas que escapam ao nosso domínio?

-Eu queria tanto fazer-te feliz!

-Tu fazes-me feliz, querida, muito feliz. O meu coração está cheio de um grande e terno amor por ti.

Ela soluçou. Parecia-lhe duro que ele houvesse dado tudo e que ela nada desse em troca. E o mais cruel, o que a deixava miseràvelmente convicta de que fracassara no que desejava fazer, de modo que o seu sacrifício fora inútil, era que bem no âmago do seu coração havia uma sensação de alívio pelo facto de Roger se contentar em deixar as suas relações com ela no ponto em que estavam. May estremeceu como se alguém caminhasse sobre a sua sepultura.

 

Roger voltou a Londres e reiniciou o trabalho. Tinha boas razões para saber que Nobby era um camarada de con fiança, digno e inteligente. Mandou procurá-lo e ofereceu-lhe um emprego como mensageiro, no seu serviço. Nobby, prontamente, aceitou a oferta que alem de outras vantagens tinha a de poder dormir em casa, pois como ele próprio dizia: cSou um homem chegado à familia, lá isso sou, e achava terrivelmente cruel estar separado da esposa e dos filhos.

- Sinto-me inteiramente perdido sem a patroa - dissera a Roger numa das suas longas conversas durante a travessia.

-e é uma coisa realmente ridícula quando o penso, porque eu não queria casar. Ela é que não me deu um instante de paz enquanto não resolvi fazê-lo. Não lhe disse uma vez, disse-lhe umas cinquenta que não era homem para casar.

- Suponho que ela sabia o que lhe convinha a vocêdisse Roger, sorrindo.

-O senhor nunca disse coisa mais certa em toda a sua vida. É úma verdade.

Um dia, no Departamento da Guerra, Roger notou que Nobby tinha alguma coisa para lhe dizer mas que estava acanhado. Perguntou-lhe o que era.

-Bem, sir, vou dizer-lhe. É o seguinte: contei á minha velha tudo o que o senhor tem feito por mim e ela queria saber se podia agradecer-lhe pessoalmente.

-Não sei se fiz mais por você do que voCê por mim, Nobby.

- Eu disse-lhe que o senhor estava ocupado de mais para se incomodar com ela, mas sabe como são as mulheres, sir, quando metem uma ideia na cabeça falam na mesma coisa constantemente. Agora pergunta-me, todos os dias, se o senhor não podia ir tomar uma xícara de chá connosco, quando houvesse uma folga. Seria uma festança para os garotos.

- É só isso? Pois bem, vou. Diga à sua esposa que terei muito prazer.

Marcaram logo a data. alguns dias depois, Roger foi com Nobby até á pobre casa, num quarteirão proletário de Westminster, cujo andar térreo era ocupado pelos Clark. A esposa de Nobby era uma mulher pequena, desarrumada, viva, com um cabelo ruivo e não muito abundante, e com falta de um dente da frente. As duas crianças, uma garota de dez anos e um menino de nove, eram magrinhas mas de rostos vivos; ficaram um pouco admiradas com a presença de um oficial fardado e olhavam-no com muda admiração. Mas Mrs. Clark era tão faladora e desembaraçada quanto o marido. Tinha o mesmo pronto humor cockney de Nobby, e Roger riu sinceramente com as suas piadas. Ficou comovido ao ver a afeição que existia entre os membros daquela família animada e contente. Sentiu-se também chocado ao notar o orgulho que os Clark tinham da sua sórdida moradia. Não havia quarto de banho e a única privada existente era compartilhada com as outras pessoas do cortiço; as crianças dormiam num cubículo e a sala de visitas, que ao mesmo tempo servia de cozinha, era pequena e tão cheia de móveis e bugigangas que os movimentos se tornavam difíceis. mas era o seu lar e eles amavam tudo aquilo. Roger sugeriu que as críanças ficariam mellhor se fossem para o campo; afirmou que sua mãe as receberia com satisfação, mas nem Nobby nem a mulher quiseram ouvir falar na possibilidade da separação.

-Haja o que houver, não nos separaremos das crianças, porque isso só servíria para nos matar de cuidados - disse Nobby com o seu sorriso amigo.

-Meus filhos não sairão de Londres enquanto eu estiver m Londres - disse Mrs. Clark com decisão. - E eu não deixarei Londres antes de Nobby deixar Londres.

- E agora eu falo por mim: não deixarei Londres enquanto o major estiver em Londres.

-E eu suponho que não deixarei Londres em nenhuma circunstância - disse Roger, rindo.

-Então estamos todos de acordo-acrescentou Mrs. Clark - E tu, Ernie, se não paras de mexer no nariz, mando-te já para o quarto. Que ia ficar o major a pensar a teu respeito?

- Aqui está o meu lenço -- disse Nobby, exibindo um pano mais ou menos sujo. - Se te queres assoar, trata de o fazer, e se não quiseres, deixa o nariz em paz.

Roger dificilmente poderia dizer porque estava de tão bom humor quando voltou ao Ministério da Guerra.

 

Dick Murray foi para o Egipto e dentro de poucas semanas, Ian, já bom dos ferimentos recebidos e com uma bela dentadura postiça, seguiu também. Jane ficou, mais uma vez, só na sua pequena casa. Como era perto do Departamento da Guerra, sempre que estava livre e que Roger podia dar um jeito, este ia até lá e jantava com a irmã. Enquanto isto, a vida em Graveney Holt prosseguia como de costume. Devido a uma reorganização, o general perdera o seu posto na Cruz Vermelha e, não tendo nada que fazer em Londres, voltou definitivamente para Graveney. A inutilidade deixou-o impertinente, e, embora fosse habitualmente um homem calmo, agora começava a tornar-se irascível. Sentia o peso da idade. Desde que Dick não estava lá para olhar por tudo, passou a administrar a propriedade; mas, era indolente e intratável de mais para conseguir êxito na nova tarefa. A escola preparatória de Tommy foi transferida para o Canadá, e os pais, não sabendo bem que fazer, resolveram mantê-lo em casa até que vissem que rumo tomavam as coisas. Jim continuava a trabalhar na granja. Mrs. Henderson acreditava que, assim, o filho estaria mais em paz consigo mesmo. Imaginava que a paixão por Dora era já menos intensa: para alívio dela, os dois encontravam-se, agora, apenas aos domingos, e nada havia na conduta de ambos que denotasse, sequer, um entendimento mútuo. Era verdade que á tarde saíam para um passeio, mas não havia nisto nenhum mal. Confiava suficientemente nos bons princípios de Dora para ter a certeza de que ela não consentiria em intimidades indevidas. Demais, ela não amava o rapaz. Disso estava Mrs. Henderson também absolutamente segura.

Assim se passou o Verão. Em toda a Inglaterra se trabalhava febrilmente para enfrentar a invasão que parecia iminente. Os entendidos estudavam as marés e concluíam em que dia exacto ela ocorreria. Corria o boato de que um grupo de sabotadores desembarcara na costa Sul e que fora exterminado. Dizia-se, também, que uma frota de barcaças fora interceptada e afundada ao largo da Cornualha; que os hospitais em Paris estavam cheios de soldados alemães vítimas de terríveis queimaduras. A Luftwaffe iniciou com fúria os ataques à Inglaterra e, diàriamente, eram bombardeadas cidades. O povo aprendeu a distinguir, pelo ruído dos motores, os aviões alemães e os ingleses. Houve lutas furiosas nos ares, e centenas de aviões inimigos foram abatidos. No fim de Setembro, os Alemães atacaram Londres. As docas foram bombardeadas, ruas inteiras de casas pobres no East End foram reduzidas a uma massa de escombros fumegantes; o Buckingham Palace foi atingido; Regent Street, Bond Street, Piccadilly; viam-se em Mayfair grandes buracos onde fora outrora uma velha mansão georgiana. Uma fábrica em Croydon foi bombardeada e morreram duas centenas de jovens. De vez em quando, uma bomba atingia um abrigo e poucos dos que ali se achavam conseguiam escapar. Os raids começavam ao escurecer e o sinal de perigo passado não soavam antes dos alvores da madrugada. O povo de Londres passou noites terríveis, mas continuou a trabalhar e manteve a calma.

O país vivia preocupado com os rumores correntes de que os quinta-colunistas andavam activos; era notório que tais actividades muito haviam ajudado o inimigo nas invasões da Polónia, Bélgica, Holanda e Noruega, e não era de crer que os Alemães deixassem de empregar na Inglaterra os métodos que haviam dado tão bom resultado em toda a parte. Corriam boatos terríveis e era geral a queixa contra o governo, por não estar suficientemente cônscio do perigo. Por consequência,

os estrangeiros foram vigiados e muitos deles mandados para campos-prisões. Correu então o boato de que haviam sido detidos sem critério, tanto os que eram suspeitos como os que estavam acima de qualquer suspeita; os jornais da esquerda mostravam-se violentos contra a falta de discriminação do governo. Mas isto também fixava o assunto no interesse do público. Os Henderson viviam ansiosos. Não se podia negar que Dora, embora sendo uma austríaca que sofrera a perseguição dos nazis, era, de acordo com a letra da lei, uma estrangeira inimiga, e o risco de ela ser internada ou, pelo menos, removida para outra parte do país aumentava pelo facto de Graveney Holt ficar a cinco milhas de um aeródromo secreto. Todos na vizinhança sabiam da existência do campo, mas era de supor que estivesse camuflado com bastante habilidade para se tornar invisível do ar na altura em que os aparelhos inimigos, receosos dos canhões antiaéreos, eram forçados a voar. Havia, contudo, o perigo de um quinta-colunista encontrar meios de transmitir exactamente a localização do campo. O general Henderson procurou o comissário-chefe do condado e o comandante da Força Aérea no aeródromo e deu a sua garantia pessoal quanto à integridade de Dora. Insistiu em frisar o excelente trabalho de assistência que ela prestara desde o princípio da guerra. Com tantas crianças para cuidar era impossível prescindir do seu concurso. Seria um monstruoso abuso de autoridade insistir na partida de Dora. O general era homem acostumado a impor a sua vontade e ficou extremamente aborrecido ao verificar que o máximo que podia conseguir das autoridades era uma permissão para que Dora continuasse lá até que o seu caso fosse devidamente estudado. Escreveu uma carta muito rispida a Roger e ficou ainda mais aborrecido quando, em resposta, o filho mandou dizer que o assunto não era da sua competênxia e que duvidava, portanto, do efeito de qualquer coisa que pudesse dizer. Roger não ficou surpreendido quando, dois ou três dias depois, recebeu uma chamada do comissário-chefe em Lewes. Eram mais ou menos nove horas da noite e estava a concluir o seu trabalho no gabinete. O comissário era um velho amigo da família. Disse a Roger que haviam resolvido a remoção de Dora para algum sítio distante de quaisquer objectivos militares, que seria indicado dentro de poucos dias pela autoridade competente.

- Receio que seu pai possa causar alguma complicação - concluiu. - Ele fica muito exaltado quando o contrariam.

- Bem sei - disse Roger, sorrindo.

-Ouvi dizer que você, na próxima semana, aparece por aqui.

- É verdade.

-Gostaria que antecipasse essa viagem. Não podia vir amanhã?

- Acho que sim, mas não vejo a razão do pedido.

- Bem, espero que possa levar seu pai a compreender os motivos da precaução que vamos tomar. Temos suportado uma boa dose de censuras. Será ùm aborrecimento se seu pai levar o caso á Câmara dos Comuns ou se escrever uma carta ao Times.

- São essas as únicas coisas de que vocês têm medo? - disse Roger, rindo. - Está bem, irei amanhã. Não se esqueça, porém, de que estou certo de que Miss Friedberg merece confiança. A minha família conhece-a há alguns anos, o pai dela foi morto pelos nazis. Mas, concordo consigo, o seguro morreu de velho.

Desligou o telefone e começou a reflectir. Tinha tido a impressão de que Dora era uma jovem recta e honesta, e era inconcebível que ela pudesse estar metida em espionagem. Se os boches descobrissem a trilha do campo de aviação secreto, dificilmente seria por seu intermédio; ela não tinha oportunidade, nem de obter, nem de transmitir informações. Mas, naturalmente, se as autoridades queriam transferi-la de residência, estavam no seu direito. Sorriu de novo quando pensou nos cuidados do comissário para não irritar o velho. O general era um homem teimoso. Tinha tido várias posições honoríficas no condado, e, como grande proprietário e magistrado, não se conformava em pensar que a sua palavra não fosse lei; como militar sempre fora muito rígido, e, quando zangado, era capaz de tomar atitudes apaixonadas. Roger sabia também que sua mãe não gostava de ver os seus desejos contrariados; delicada e bem-humorada como era, também se habituara a dispor das coisas de acordo com a sua vontade.

Roger tocou a campainha e Nobby entrou. Um momento depois ouviu-se uma rajada de fogo antiaéreo.

- Os jerries a ndam activos esta noite, sir - disse Nobby.

-Estão a fazer muito barulho. Eu vou justamente para a casa de Mrs. Foster. Em noites assim ela costuma ficar muito nervosa, de modo que eu talvez passe a noite lá.

- Muito bem, sir.

Roger pôs o chapéu, e Nobby ajudou-o a vestir o capote.

- Agora pode ir, Nobby.

-Logo que o senhor sair. Se não se incomoda, irei ver a minha velha e os meninos.

- Naturalmente que pode ir. Estão todos bem?

- Sim, sir, a última vez que tive notícias iam todos bem.

Caiu uma bomba na nossa rua a noite passada e todas as janelas ficaram com os vidros partidos.

-Está a arrefecer, não está? Acha que é seguro deixá-los lá?

- Bem, sir, eles vão sempre para o abrigo de Horseferry Road à noite. Ficam lá bem e têm conforto.

-Você faz uma loucura em não mandar a sua família para Graveney.

- Já cheguei a pensar que o senhor tem razão. Mas a minha velha nem quer ouvir falar nisso. Separar-me dos filhos? , pergunta ela. E não se fala mais no assunto. Gostaria que conversasse com ela, sir. Desde que o senhor me empregou ela tem em grande conta a sua opinião.

-Dentro de um ou dois dias irei até lá. Tentarei convencê-la.

Roger dirigiu-se a casa de Jane e abriu a porta com a sua chave. Ela estava a tocar piano.

-Sabes que os aviões alemães nos estão a atacar violentamente? - disse ele sorrindo, ao entrar na sala de visitas.

Estas palavras foram acompanhadas por outros disparos dos canhões antiaéreos. Roger teve a impressão de que os aviões estavam mesmo sobre a casa naquele momento.

- Desconfiei disso, confesso - respondeu ela, continuando a valsa de Chopin que tocava.

Roger tomou um whisky com soda. Jane estava a tocar melhor do que se poderia esperar e ele ouvia-a com prazer.

- Erraste uma nota aí, querida.

- Fiz de propósito.

De repente ela parou e voltou-se no banquinho. Roger viu que o seu rosto, mesmo com a maquilhagem, estava desfigurado e tinha os olhos arregalados.

-Não pude continuar a fazer tricot, errava todos os pontos. Não quero negar, Roger, estou louca de medo.

- Mas, por que diabo não sais de Londres? Nada te prende aqui, agora que Ian já foi. Vai para casa. Lá estarás em segurança.

Ela dirigiu-lhe um olhar indignado.

- Eu, sair de Londres? Porquê? Não quero perder o espectáculo pur coisa alguma no mundo.

Houve um estrondo surdo e a casa tremeu um pouco, como acontece com um navio quando uma grande onda o atinge.

Uma bomba caíra não muito longe.

- Malditos! - vociferou Jane, furiosa.

-Pareces-me muito cansada, Jane.

- Nas últimas noites não tenho dormido bem – respondeu ela com um sorriso humilde. - Para dizer a verdade verdadeira, tenho andado com muito medo.

-Mas, pelo amor de Deus, porque não vais dormir num abrigo?

Ela fez um trejeito.

- Não vou consentir que o idiota do Hitler me expulse de casa. Não lhe darei esse prazer.

-Penso que ele não terá ocasião de o saber.

Justamente naquele momento houve outra explosão ensurdecedora e todos os vidros das janelas se espatifaram. Jane soltou um grito agudo e Roger instintivamente deu um pulo para junto dela e enlaçou-a com o braço.

        - Está tudo bem, querida. Não houve muito estrago. Caiu ao lado.

- Oh!, estou com medo, estou com medo! - choramingou ela.

-Vamos para a cave. Vamos descer. Onde estão as criadas?

- Mandei-as para um abrigo. Foram antes do raid começar.

Ouviu-se um terrível barulho dos canhões e outra vez a explosão de uma bomba. A casa balançou e estremeceu como uma xícara de chá num pires seguro por mão trémula, e com

estrondo, cobrindo-os de poeira e destroços, parte do tecto desabou. Pularam para se esquivar. As luzes apagaram-se.        

- Vamos - disse Roger, segurando-a pelo pulso -, é melhor sairmos daqui. Esta casa cairá sobre nós daqui a pouco.  

Desceram aos tropeções pela escada. jane agarrou numa luz e correram para a rua. Focos de chamas apareciam nos pontos onde as bombas incendiárias tinham caído. A casa vizinha estava a arder. Homens passavam apressados, guardas do serviço de raids aéreos, polícias, gritavam ordens. Não se viam os aviões, mas uma centena de holofotes varriam o céu.

Os canhões antiaéreos atiravam furiosamente.   

- Precisamos de correr - disse Roger.

-Não posso correr com estes saltos.

- Que se quebrem os saltos!

Agarrou no braço de Jane e arrastou-a consigo. O abrigo mais próximo era o de Horseferry Road onde estavam a esposa e os filhos de Nobby. Para lá é que ele queria ir, mas no black-out não era fácil encontrar o caminho. Passaram por vagas e misteriosas figuras, gente apressada como eles, todos andando ligeiros e, na escuridão, eram como fantasmas nocturnos, sem forma e fugidios. De repente ouviram o silvo sinistro e aterrador de uma bomba que caía na frente deles.

- Atira-te para o chão, com o rosto para baixo - gritou Roger.

Para se certificar melhor do cumprimento da ordem, deu uma pancada nas costas de Jane e deitaram-se os dois ao comprido. A bomba caiu e o estrondo foi ensurdecedor. Por um instante jane pensou que ia sufocar.

- Tudo bem, levanta-te - disse Roger.

-Não quero levantar-me, estou muito bem assim.

- Levanta-te, tola.

Ele próprio tratou de a pôr de pé. Jane encostou-se ao irmão. Roger compreendeu que ela estava terrivelmente abalada. A sua voz não parecia a mesma, quando falou.

- Pensei que estivéssemos perdidos, Roger.

- Um mau momento, não foi? - disse ele rindo. - Cães!

-Não sei como não tive um ataque do coração. Nunca senti tanto medo na minha vida.

-Vamos. Acho que temos de dar uma volta. A rua está impedida diante de nós.

De repente, Jane deu um grito agudo.

- Que aconteceu?

- Espera um minuto. Esqueci-me de qualquer coisa.

Antes que ele pudesse detê-la, Jane descalçou-se, levantou um pouco a saia e voltou, a correr, para a casa que acabavam de abandonar. Não podia imaginar o que ela queria. Tacteou em redor para apanhar os sapatos de Jane. Por um instante ficou sem saber que fazer; temia ir atrás dela e perdê-la no black-aut; era melhor esperar ali mesmo. Estava encolerizado. Passaram-se alguns minutos e cada vez ficava mais ansioso. Já estava para ir procurá-la, quando ela voltou a correr. Vinha ofegante. Roger viu que ela trazia qualquer coisa consigo.

- Tinha-me esquecido da mínha cara - disse arquejante.

- Cheguei na hora exacta, a casa está a arder.

-Tens a coragem de dizer que voltaste só para ir buscar esse maldito make-up? - gritou Roger. - Podias ter morrido!

-Não posso ficar sem a minha cara.

Ele estava tão irritado que quase lhe bateu. Não o fez, porém. O absurdo daquela situação impressionou-o de tal modo que acabou por dar uma gargalhada.

- Não fiques a rir como um louco - gritou ela, com raiva. - Vamos para o diabo do abrigo. Estou com medo.

- Não acredito. És corajosa como um leão.

-Não posso ficar sem a minha cara, idiota, com bombas ou sem bombas. Estraguei um par de meias de seda, novas, e agora não posso conseguir outras. Que vida!

Ela encostou-se a Roger enquanto este lhe calçava os sapatos.

-Agora que tens o make-up, talvez queiras pintar os lábios.

-Não sejas idiota. Como é possível nesta escuridão de breu ?

- Se já estás pronta, vamo-nos embora, e o mais depressa possível.

-Se quiseres correr, corre, meu caro. Eu saberei encontrar o caminho.

- Se continuas a refilar, dou-te um soco nos queixos que ficarás algumas semanas sem falar.

- Exprimes-te como um perfeito gentleman.

Parecia ter havido uma trégua e os dois andavam pelas ruas escuras e fantásticas. Os holofotes varriam incessantemente o céu.

- Acabou o ataque? - perguntou ela.

-Os aviões passaram. Durante alguns minutos não teremos outra vaga.

Deram umas duas voltas erradas, mas acabaram por chegar ao refúgio. Dois ou três guardas estavam do lado de fora e abriram a porta. O abrigo era grande, com várias divisões e estava abarrotado de gente. Algumas pessoas tentavam dormir, estendidas sobre colchões ou cobertores, ou no chão duro; outras estavam sentadas em cadeiras e bancos de campanha. Outras, ainda, bebiam e comiam. Quatro homens, sentados no chão, jogavam cartas. Alguns, calmamente, liam jornais. As mulheres conversavam a meia voz e muitas faziam tricot. Algumas tinham crianças ao colo. O ambiente estava sufocante e cheirava mal. Jane parou por um instante quando aquele bafo fétido de seres humanos lhe chegou às narinas.

- Que mau cheiro! - disse ela. - Não posso ficar aqui.

-Tolice. Acostumas-te num minuto.

Ele entrou, pois queria encontrar Mrs. Clark e deixar Jane aos cuidados dela para que pudesse voltar ao Ministério da Guerra. Roger receava que houvesse acontecido alguma coisa lá, também. Foi procurando, e na segunda sala deparou-se-lhe Nobby acompanhado da esposa e dos filhos. Tinham-se instalado a um canto e as duas crianças estavam deitadas juntas sobre dois cobertores.

- Olha quem está aqui. - exclamou Nobby quando Roger e Jane se lhes dirigiram.

Levantou-se e fez continência.

-Esta é minha irmã. A casa dela acaba de ser bombardeada, de modo que resolvi trazê-la para cá.

- Minha amiga, perdi tudo - disse Jane alegremente ao apertar a mão de Mrs. Clark. - Só pude salvar a roupa do corpo, e, graças a Deus, o meu rosto.

As crianças ficaram sentadas nos cobertores a olharem espantadas para aquela mulher pintada, e com umas roupas extravagantes.

- Quem é esta, mamã? - perguntou o menino.

- Ernie, trata de dormir - disse a mãe rispidamente.

- Não quero dormir.

- Fecha os olhos, meu amor, faz de conta que estás com sono e acabarás por adormecer em pouco tempo.

Jane olhou para ele com um ar impassível e piscou o olho. O garoto, boquiaberto, ficou a observá-la com espanto. Fez-se espaço para que Jane pudesse sentar-se e Mrs. Clark ofereceu-lhe uma xícara de chá.

- Tenho um termo - disse ela - mas não trouxe xícara, de modo que a senhora terá de beber pela tampa da garrafa.

-Não tem importância. Gosto muito de chá.

Houve outra rajada de tiros.

-Lá vêm eles outra vez.

- Como esperam que as crianças possam descansar à noite com todo este bombardeio, é que eu não sei - exclamou Mrs. Clark.

-Ficas bem aqui, Jane, por esta noite, não ficas? Preciso de voltar para o ministério - diss Roger.

-Com certeza que ficarei; trouxe o meu rosto comigo.

-Mrs. Clark tomará conta de ti. Vou para Graveney amanhã de manhã. Acho melhor ires comigo.

- Penso que sim. Detesto deixar Londres, mas tenho de ter um telhado por cima da cabeça, embora digam que as vagabundas estão a fazer agora bom negócio.

- Podes meter-te num táxí logo que derem o sinal de perigo passado. Então, a melhor coisa a fazer é ir a Dorchester tomar um banho e arranjares-te. Depois do café irei buscar-te.

- Muito bem. Homem dominador, este meu irmão - acrescentou ela para Mrs. Clark. - Não sei o que dirão de mim quando eu aparecer em Dorchester com um casaco de peles e o meu fato de arlequim, mas, não é da conta de ninguém. Provávelmente tomar-me-ão pelo arcebispo de Canterbury.

Roger e Nobby começavam a abrir caminho no meio do povo, quando houve uma explosão tão próxima, tão ruidosa, tão abaladora que, por um instante, se teve a impressão de que o abrigo fora atingido. As mulheres gritaram, e todos, homens e mulheres, se puseram de pé. Os guardas berravam.

- Está tudo bem. nãohouve danos. Tenham calma.

Muitas crianças começaram a chorar e então houve uma vozearia confusa e alta de conversas excitadas. Evidentemente haviam escapado por pouco. Roger, seguido por Nobby, ia abrindo caminho para a porta da entrada e quando passou pelos homens que jogavam às cartas notou que eles não haviam interrompido a partida. Quase riu. Uma mulher gritou:

- Vamos, rapazes, agora o Barril de chope.

e um grupo começou a cantar. Os canhões troavam. Um rapaz de cara achatada chegou á porta do quarto em que os Clark tinham arranjado um canto e transmitiu, á pressa, um recado.

- Mrs. Clark, é aquela mulher que mora na sua casa. A senhora pode vir? Ela está mal e a enfermeira está ocupada. Mandou pedir que chamassem a senhora.

- Oh, coitada! Sim, irei imediatamente. - Dirigiu a Jane um olhar hesitante. - Minha senhora, poderia olhar pelos garotos? Não me demorarei muito.

-Não tenha pressa. Olharei por eles.

As crianças estavam pálidas e chorosas. Jane tentou fazê-las adormecer outra vez, mas estavam bem acordadas.

- Não deixe que me maltratem, Miss - choramingou a garotinha.

-Naturalmente. Não vou deixar que alguém lhes faça mal - respondeu Jane com a sua voz áspera e profunda; depois começou a rir. - Não podes ter mais medo que eu, querida, e quando tenho medo trato logo de arranjar o rosto.

Apanhou a caixa forrada de veludo e, abrindo-a, exibiu uma colecção de frascos, tubos, pequenos vasos de porcelana, etc. , em quantidade que bastaria para montar um salão de beleza. As duas crianças olharam-na boquiabertas e de olhos arregalados quando ela iniciou o complicado processo de compor uma figura ainda mais grotesca do que aquela que a Natureza lhe dera. Algumas pessoas acomodaram-se outra vez na esperança de pegar no sono, mas ainda havia aqui e ali certa confusão e muita gente a falar nervosamente. As duas crianças, entretanto, fascinadas pelos gestos de Jane, esqueceram o medo. Ela dirigiu à menina um sorriso, aquele seu sorriso estranho - comunicativo, tão atraente que não se podia deixar de gostar dela.

- Queres que te faça isto?

- Oh, sim - gritou a menina.

- Então anda cá.

Jane esfregou creme no rosto da criança, empoou-a, pôs-lhe rouge, depois bâton nos lábios e pintou-lhe as sobrancelhas.

- A tua mãe não te reconhecerá quando eu terminar o que estou a fazer - disse, rindo.

Neste momento uma súbita série de tiros desviou-lhe a atenção. Estava no meio da tarefa de pintar na garota um par de sobrancelhas arqueadas.

- Isto agora fez um estrago na tua sobrancelha; terei de fazer tudo de novo. Cospe no teu lencinho, minha filha.

- Eu também quero - gritou Ernie, muito excitado.

- Tu és menino. Não podes andar de rouge. Pinto- te um bigode.

Com o lápis das sobrancelhas pintou-lhe um bigode preto no lábio superior e depois, com um risinho, esfregou-lhe o bâton vermelho na ponta do nariz, que ficou vermelho e brilhante. Jane estava contemplando o seu trabalho, muito satisfeita, quando Mrs. Clark voltou.

- Olhe, mãezinha - gritaram as duas crianças.

- Que é que vocês dois andaram a fazer?

- Foi ela.

-Agora terão de lavar a cara.

- Não quero lavar a cara - disse Ernie, fazendo-se amuado.

- Que é que tinha a tal mulher? - perguntou Jane.

-Oh, vai bem. Está para dar à luz. Posso deixar as crianças com a senhora? Creio que tenho de voltar. Pode acontecer de um momento para o outro.

        - Pois vá. Eles ficarão sossegados comigo.

- Não precisamos de lavar a cara, Miss? - perguntou Ernie logo que Mrs. Clark voltou as costas.

- Não, enquanto eu também não lavar a minha - disse Jane. - E só farei isso depois de darem o sinal de perigo passado.

Exactamente nesse momento Roger voltou e contou-lhe o que acontecera. Uma bomba caíra na rua, exactamente à entrada do abrigo; dois guardas haviam morrido e um homem que ia a passar ficara sèriamente ferido. Mas, de qualquer maneira eles deviam congratular-se, pois se a bomba caísse um pouco mais para a direita atingiria o abrigo em cheio e a carnificina teria sido terrível. Roger saiu e Jane ajeitou-se nos cobertores com uma criança de cada lado. Os meninos adormeceram logo. Ela ficou recostada, suspirando por um cigarro e olhando para o tecto.

- A vida é bem extravagante - murmurou. Depois, pensando na mulher que estava em trabalhos de parto: - E, meu Deus, que sítio e que momento para nascer um filho.

 

Jane levantou-se cedo na manhã seguinte, pois, quando era preciso, ela fazia frente à emergência tão bem como qualquer pessoa. Encontrou em Dorchester uma amiga que lhe emprestou um vestido para sair, e uma apressada visita às lojas de Regent Street foi o suficiente para comprar aquilo de que necessitava de momento. Assim, quando Roger foi de automóvel buscá-la, pôde apresentar-se com um aspecto não muito exótico. Como ficava quase no caminho, foram dar uma vista de olhos à casa. Não restava coisa alguma além de uma parede nua contra a qual uma banheira se achava precàriamente encostada. As casas vizinhas tinham-se incendiado e já havia homens a trabalhar na remoção dos escombros. O caminho estava cheio de vidros quebrados. Jane nada pôde dizer no primeiro momento. Correram-lhe grossas lágrimas pelo rosto pintado.

- Não te importes, querida - disse Roger.

- Vai para o diabo! Importo-me e muito.

Seguiram viagem. Os de casa tinham acabado de almoçar quando chegaram a Graveney. Com excepção de Tommy, que havia saido na sua bicicleta, encontravam-se todos na sala de estar, tomando café e, apesar de ser um dia de semana, Jim tamb m se achava presente. Tivera de ir ao dentista e aproveitara para almoçar em casa. Mrs. Henderson e May estavam a fazer tricot e Dora ouvia o general, que explicava como conduziria a guerra se fosse primeiro-ministro. Ela já ouvira a mesma história outras vezes, mas apesar disso parecia escutá-la com interesse. O aparecimento de Jane e Roger foi uma surpresa, pois ele não telefonara anunciando a vinda. Jane, sem lhes dar tempo sequer para se refazerem da surpresa, iniciou uma narrativa pitoresca das suas aventuras na noite anterior. Já contara o caso várias vezes em Dorchester, de modo que a história adquirira um colorido especial. Transformara-se numa pantomina barata, tão espalhafatosa e absurda que os ouvintes, no meio das gargalhadas, perdiam a noção de que ela e Roger haviam escapado da morte por um triz. Quando terminou, Roger levantou-se e foi sentar-se ao lado de Dora.

- Miss Friedberg, trago-lhe más notícias. Receio que tenha de sair daqui. Estão tomando medidas mais severas contra os estrangeiros e as autoridades acham inconveniente a sua permanência aqui em Grav ney.

Antes que ela pudesse falar, o general teve uma explosão de raiva.

- Nunca ouvi um contra-senso igual a este! - gritou. Vou ver outra vez o comissário. Quem diabo pensa ele que é? Dei-lhe a minha garantia pessoal de que Dora era pessoa de confiança.

- Não podemos passar sem ela - acrescentou Mrs. Henderson. - É muito útil e trabalha maravilhosamente bem.

- Sinto muitíssimo, mamã, mas creio que não há remédio para o caso. Eu sabia que isto viria abalá-los muito. foi por isso que me pareceu melhor vir avisá-los. Fosse como fosse, eu tinha, também, um pequeno trabalho para fazer aqui.

Dora parecia menos agitada que os demais; chegou mesmo a sorrir, quando se dírigiu a Roger. Ele chegou a suspeitar de que havia alguma coisa de irónico nesse sorriso.

- Suponho que seja por causa do aeródromo - disse ela. - Nunca estive perto dele. Na verdade nem sei exactamente onde fica.

- É de enlouquecer, toda essa burocracia - explodiu o general. - Porquê tudo isto se ela é como se fosse nossa filha? Nem é alemã, é austríaca e é uma antinazi, como todos nós.

- Tudo isso está perfeitamente certo - respondeu Roger.

-É inevitável que num tempo como o actual os indivíduos passem certos sofrimentos. Não se trata do internamento de Dora. Apenas terá de sair daqui, para viver num lugar indicado pelas autoridades. É uma estrangeira e tem de se submeter aos regulamentos.

- Mas Dora não é estrangeira - disse Jim tranquila mente. - Ela é uma súbdita inglesa. minha esposa.

Houve um murmúrio de espanto geral.

- É verdade, Dora? - perguntou Mrs. Henderson.

O rosto de Dora ganhava às vezes uma expressão sombria. Agora estava assim.

- Casámo-nos em Agosto - respondeu.

-Porque guardaram segredo? Eu não merecia isto de tí, Dora.

Nos olhos de Mrs. Henderson apareceu uma frieza que não era habitual.

-Sinto muito, Mrs. Henderson. Penso que a culpa toda foi minha. Como poderia eu esperar que a senhora sentisse satisfação em ver o seu filho casado com uma refugiada pobre e da qual nada se sabe?

Mrs. Henderson franziu a testa.

-Então é assim que nos julgas, depois de viver connosco todos estes meses?

- Ela não queria casar comigo, mamã - disse Jim com uma tocante preocupação de que ela não julgasse Dora mal. -Pedi-lhe muitas e muitas vezes e ela recusou. Queria que esperasse até a guerra acabar.

Roger ergueu a vista repentinamente.

- Que lhe fez mudar de ideias? - perguntou a Dora.

Ela hesitou um instante.

- Jim sentia-se infeliz. Ninguém aqui lhe dedicava carinho.

- Isso não é verdade, Dora - disse Mrs. Henderson rispidamente. - Não podíamos aplaudi-lo, mas respeitávamos as suas convicções.

- Não era respeito o que ele queria, era amor.

Mrs. Henderson olhou da nora para o filho.

- Sou filha de soldado, esposa de soldado e mãe de soldado. Foi com imensa tristeza que vi um filho meu recusarse a lutar pela pátria, mas aceitei a sua decisão. Procurei entendê-lo e mostrar-me simpática. Tinha a certeza de que ele não teria feito isso se a sua consciência não lhe afirmasse que estava no caminho do dever.

O general olhava para Dora. Era tão bonita, tão jovem! Ele tinha no coração um fraco por ela. Seria uma pena se sua esposa dissesse alguma coisa ofensiva para Dora.

- Agora não tem remédio, minha querida - disse ele. O que está feito está feito. Ela agora é esposa de Jim.

- Isto altera as coisas, Roger? - perguntou Jim.

-Penso que sim.

Compreendeu então a significação daquele sorriso irónico que vira no rosto de Dora. Olhou para May. Não estava a fazer tricot, mas sentada, olhando para o chão, com as sobrancelhas franzidas. Jane pintava os lábios, emprestando ao acto o máximo possível de desaprovação.

Dora levantou-se e foi até junto de Mrs. Henderson.

- Espero que me perdoe, Mrs. Henderson.

-Quero que meu filho seja feliz.

-Procurarei fazê-lo feliz.

Mrs. Henderson suspirou e depois, puxando Dora, beijou-a.

- Se fizeres isso não terei nada que perdoar-te.

- Dora pode ir viver comigo em Badger's - disse Jim.

Ele dormia lá desde que fora repelido pelas pessoas que o haviam hospedado a princípio. O cottage era parcialmente mobilado e, no sótão de Graveney, havia ainda uma grande quantidade de móveis antigos para o tornar belo e confortável. A pé, pelo atalho através do parque, ficava apenas a uma milha da casa, e pela estrada pouco mais. Dora podia muito bem continuar a ajudar a tratar das crianças evacuadas. A observação de Jim veio aliviar a tensão, e com o desafogo surgiu uma discussão sobre lençóis e cobertores, panelas e potes, pratos e xícaras, facas e garfos, que seriam necessários ao jovem casal para montar casa.

Roger deixou-os e seguiu de automóvel para Lewes, onde marcara encontro com o comissário-chefe. Encontrou-o no seu gabinete de trabalho. Era um coronel reformado, grisalho, ligeiramente trapalhão e não muito inteligente. Em sua companhia estavam um oficial da R. A. F., vindo do aeródromo próximo, e um inspector de polícia.

-Então, tudo resolvido? - perguntou o comissário quando Roger se sentou.

Roger franziu a testa.

- Inflizmente não. Há uma complicação. Ela é súbdita inglesa, agora. Casou-se com meu irmão.

- O quê? Está louco! - O comissário conteve-se. - Desculpe, meu caro.

- Ora, não tem importância. Estão casados desde Agosto. Por motivos que só eles sabem, guardaram segredo.

-É um contratempo.

- Não sei bem o que podemos fazer - disse Roger.

-Do que não resta a menor dúvida é que os alemães sabem que temos um campo de aviação na vizinhança - disse o oficial da R. A. F.

-E a camuflagem?

- Está bem feita. Só poderá reconhecê-lo quem souber que ele existe ali. Um avião alemão andou a rondar por lá outro dia. Sem dúvida alguma veio examinar o local. Quando mandámos um aparelho no seú encalço, desapareceu. Alguém deu a indicação. isso ninguém me tira da cabeça.

Roger ficara tão surpreendido quanto os outros ao saber que Jim e Dora estavam casados, e não gostou da ideia de Jim desposar uma jovem que, afinal de contas, era súbdita inimiga. Mas pensava, como o pai, que não havia outro remédio senão aceitar o facto consumado, e agora que ela fazia parte da família o seu dever era defendê-la.

- No que diz respeito a essa jovem - disse ele - estou absolutamente convencido de que o senhor está a seguir úma pista errada. Ela é austríaca, em primeiro lugar, e os meus conhecem-na desde há muito tempo antes da guerra.

O comissário voltou-se para o detective.

-Soube de mais alguma coisa para nos dizer, inspector?

-Não senhor. Parece que ela não tem amigos estranhos. É trabalhadora e todos falam bem dela.

-E quanto à correspondência?

- Nunca recebeu uma só carta desde que a vigiamos.

- Isso não é de estranhar - disse Roger. - O único parente que tem é a mãe, que vive na Áustria.

-Naturalmente sabíamos que ela andava na companhia de Mr. James Henderson, mas isso não era da nossa conta.

-Onde se encontravam?

- No parque de Graveney, e algumas vezes ela ia vê-lo no cottage onde ele mora.

- Como se casaram é natural que estejam juntos algumas vezes - disse Roger.

- Não estou a dizer o contrário, sir - retrucou o inspector. - Naturalmente não sabíamos que eles eram casados.

- Por isso penso que imaginou a pior hipótese.

- Deixemos isto de lado, Roger - disse o comissário-chefe. - Eles são jovens e ela é uma pequena muito bonita. Que dedução poderia esperar que o inspector tirasse?

-Bem, sir, se deseja saber a verdade, o facto é que, um dos meus homens viu uma luz no quarto de dormir quando ela estava lá.

- E tirou a conclusão mais natural - continuou o comissário-chefe. - Não se entristeça tanto com isto. Se estavam ocupados como o inspector pensa que estavam, é pouco provável que ela se achasse lá com alguma missão suspeita. Tudo me parece perfeitamente normal e penso que podemos, nesse caso, dar-lhe um bom atestado.

- Onde fica o cottage de que estão a falar? - indagou o aviador.

Havia um mapa aberto sobre a mesa em torno da qual estavam sentados, e o inspector indicou a localização exacta da casa. O aviador ergueu as sobrancelhas.

- Curioso - disse ele. - Olhe, Henderson, aQui está Graveney Holt e aqui o cottage. Da sua casa, passando por ele, pode-se tirar uma linha recta sobre o nosso aeródromo.

-Lembre-se de que é uma casinha com quatro divisões apenas, com telhado de colmo. Não podia ser vista do ar.

-Também acho que não. A menos que alguém acenda uma luz. Parece estar numa elevação.

-Muito fraca. Um simples cómoro.

-Tem inteira confiança no seu irmão? Ele não é um conchie?

Roger achou a pergunta um tanto ofensiva, mas respondeu de maneira bastante delicada:

- Tenho absoluta confiança nele. Sempre foi leviano, mas tornou-se um pacifista ardente desde que foi para Oxford. É incapaz de uma indignidade.

- Incapaz - confirmou o comissário-chefe, que conhecia Jim desde criança.

- Como vai habitar no cottage? - perguntou o aviador. Seria interessante recomendar-lhe que tenha muita cautela e nunca acenda a luz.

-Não cometeria tal loucura. Mas farei a recomendação. Pedirei a minha mãe que insista em que eles tomem todas as precauções.

- Eles? Quem é o outro?

-Naturalmente, a esposa que vai morar com ele.

O aviador pareceu mal-humorado.

-Não gosto disto, seria fingimento dizer que gosto. Alguém revelou o segredo e quase apostaria em como uma noite destas teremos bombardeiros por aqui.

- Que diabo, você não pode impedir que um homem viva com a sua esposa - disse Roger.

Estava irritado com a obstinação do homem. Podia ser um bom aviador, mas era cabeçudo, cheio de preconceitos e de mentalidade estreita. Era irritante que naquela altura dos acontecimentos ainda se tivesse de lidar com gente que suspeitava de todos os que não tivessem tido a sorte de nascer ingleses. O próprio Roger, no entanto, estava preocupado. Embora o aviador o houvesse irritado, não convinha desprezar as suas sugestões. E consigo mesmo Roger não se sentia muito à vontade. Não podia descobrir porque Dora insistira tanto em fazer segredo do seu casamento com Jim. A razão que dera era fútil. A sua conduta impressionava-o; achava-a desagradàvelmente suspeita. Levantou-se para sair, pois tinha um assunto urgente a tratar noutra parte.

- Não preciso recomendar-lhes, companheiros, que fiquem de olhos bem abertos - disse ele com o seu modo expansivo.

Era um conselho geral e se o aplicassem a um caso particular, ele nada tinha com isso.

 

Jim e Dora começaram a arrumar a casa. Foram ao sótão de Graveney procurar os móveis de que necessitavam. Jim levou os seus livros e as gravuras que tinha no quarto de dormir, e assim deram um ar doméstico à pequenina sala. Mrs. Henderson forneceu as roupas de cama. O general foi de automóvel até Lewes e no regresso trouxe os utensílios de cozinha, segundo a lista organizada por Dora. Já refeito do primeiro choque, estava contente com a sua nova nora e descreveu á esposa, com admiração, a maneira metódica e actíva com que ela soubera colocar cada coisa no devido lugar.

- Seria preciso procurar muito para encontrar uma esposa melhor - disse-lhe ele.

Jim estava satisfeito porque tudo, agora, se tornara claro e público. Tinha aversão à fraude que fora forçado a praticar. parecia-lhe cruel para com os pais. Só concordara em fazê-lo porque de outra maneira Dora se recusava a ser sua esposa. Era uma felicidade sentar-se diante dela na mesinha e comer o que ela mesma cozinhava para ele. Era uma felicidade sentar-se numa poltrona defronte da lareira, com os pés metidos nos seus chinelos, fumando cachimbo, enquanto ela, noutra cadeira, fazia tricot, preparando coisas de lã para as crianças. Era uma felicidade falar, era uma felicidade estar calado. Era uma felicidade pensar que daí a pouco iriam para a cama juntos. Agora tudo ia bem. As coisas, a princípio, não decorreram como ele esperara, e, até então, o casamento não fora tão satisfatório como esperara que fosse. Estava loucamente apaixonado pela esposa e sentia-se perplexo e ofendido com o facto de a sua paixão não ser correspondida com igual ardor por parte dela. Dora procurara evitar a realização física do casamento até que chegasse o momento de estar preparada para reconhecê-lo, e só cedera quando ele a ameaçou, meio brincalhão e meio zangado, de apresentar imediatamente o certificado de casamento a sua família. Mas Jim era sensível de mais para não perceber que ela se submetia com frieza às suas carícias.

Era jovem e inexperiente, e mesmo que quisesse pedir um conselho, apesar de Dora o ter feito jurar segredo, não havia uma só pessoa a quem pudesse falar no assunto. Sentiria vergonha de falar nisso com a mãe, e Jane limitar-se-ia a rir dele; May tinha um ar virginal que lhe tornava impossível pensar, sequer, em falar-lhe no caso. Nunca lhe passou pela cabeça consultar Roger. Foi assim obrigado a tranquilizar-se com as pequenas coisas que ouvira aquí e ali sobre mulheres, dizendo com os seus botões que não eram como os homens e que nelas o desejo despertava mais vagarosamente. Entretanto, pelo seu aspecto tão fresco, tão sadio e tão jovial, ninguém seria capaz de suspeitar que Dora fosse uma mulher fria. Era muito moderna e bastante instruída; o que se chamava místérios do sexo não constituía mistério algum para ela. buscando uma explicação plausível para aquela atitude que parecia tão contrária à natureza da jovem, perguntava a si mesmo se era possivel que ela houvesse atribuído algum valor místico à própria castidade, e não pudesse ainda ajustar-se ás exigências normais do macho. Desde o início, Dora dera-lhe a entender que não desejava ter filhos, e, embora sem vontade, ele concordara que seria muito melhor esperar até que pudessem anunciar o casamento. Agora que isto já estava feito e que já viviam juntos, não via razão para hesitar. Para sua decepção porém, Dora nem quis ouvir falar no assunto.

- Não, não, não - disse ela. - Isto não é tempo de se pôr mais uma criança no mundo.

Tentou convencê-la. Sabia quanto os seus pais gostariam que ela tivesse um filho; dissipar-se-ia qualquer sentimento de desaprovação que ainda pudesse existir pelo facto de eles terem casado às escondidas. O desejo mais caro ao coração de seu pai era ver nascer um menino que viesse a herdar a terra que os seus antepassados possuíam havia tanto tempo. Dora ouviu-o num silêncio mal-humorado. Jim nunca acreditara que o rosto dela fosse capaz de assumir a expressão de exasperada obstinação que lhe via agora.

-Se gostasses de mim, querias ter um filhinho meu - disse ele.

O olhar que ela lhe dirigiu fê-lo sentir frio na espinha. Foi um olhar de ódio. Ficou tão aturdido que nada mais disse.

Mas, naturalmente, ela trabalhava sem descanso havia muito tempo, e podia ser que estivesse a passar por uma crise de nervos. Estava preocupada com a mãe, que se achava na Áustria e de quem nunca mais tivera notícias desde o princípio da guerra. Devia ceder. Devia ser muito bom para ela e esperar que, com o tempo, mudasse de ideias. No final de contas, não podia afirmar que ele mesmo já conhecesse bem as funções de marido; e porque havia então de esperar que Dora conhecesse as de esposa? Ambos tinham bastante que aprender. Precisavam acostumar-se um ao outro, descobrír por si próprios todas as coisas que só a intimidade da vida comum no casamento pode revelar. Com o passar do tempo, apercebeu-se de uma ou duas coisas que bastante o surpreenderam. Dora tínha um génio violento. Nunca a vira, antes, a não ser muito calma e bem-humorada; mesmo em Graveney viviam todos maravilhados porque nada a fazia perder a serenidade. mas, agora, de vez em quando, parecia tomada de uma irritação incontrolável, dizia coisas cruéis e ofensivas. Até parecia que o casamento transformara a sua disposição de ânimo. Agora, nessas ocasiões, o seu rosto tornava-se rubro e no olhar transparecia-lhe uma expressão de dureza. Recompunha-se com muita rapidez, dizia que estava triste e mostrava então para com ele uma ternura forçada. Mas Jim detestava vê-la assim, e, embora sem intenção definida, fazia tudo para evitar que ela se aborrecesse.

Outra coisa que muito o afligia era a atitude de Dora para com os seus parentes. Jim era muito amigo da familia e doía-lhe vê-la inclinada a referir-se-lhe com azedume. Considerando a bondade que todos lhe haviam manifestado sempre, o seu procedimento parecia-lhe ingrato. Ela tomava precauções para nunca falar sobre Mrs. Henderson, mas não foi difícil para Jim ver que ela considerava o general um velho idiota. Ele supunha que Dora se deixaria tocar pela franca afeição do velho. Talvez fosse natural ela não gostar de Jane ou Roger. Não podia compreender que os modos estouvados de Jane eram apenas uma maneira de ser e que apesar de toda a sua rudeza era uma excelente pessoa. Embora fosse rebelde quando pensava que a estavam a querer enganar, quando via alguém em apuros fazia o que estava ao seu alcance para eliminar as díficuldades. E se transformava a sua pessoa num espectáculo, que importava? Isso divertia-a e não prejudicava ninguém. Era verdade que Roger tentara afastar Dora de Graveney, mas fizera-o apenas em cumprimento do dever; não parecia justo querer-lhe mal por causa disso. Dora assegurava que Roger não gustava dela e quando Jim lhe disse que devia dar tempo ao tempo, encolheu os ombros e respondeu:

- Para falar a verdade não me importo que goste ou não goste. Ele é ridículo.

- Porque o julgas assim? - perguntou Jim com um sorriso divertido, pois era a última coisa que esperava ouvir sobre seu irmão.

- Não sabes que May tem uma história com Dick Murray?

- Que diabo estás a dizer? - exclamou ele com espanto. Depois riu. - Minha pobre Dora, May é incapaz de praticar uma acção má ou indigna.

- Pois fica sabendo que ela o ama desde que ele veio para aqui. Ela não liga a mínima importância a Roger.

- Tolíce! Dão-se maravilhosamente. Implicaste com Roger e estás pronta a acreditar em qualquer coisa que deponha contra ele.

-Pergunta a Jane. Ela sabe de tudo.

Jim ficou vexado, não por achar que houvesse uma palavra de verdade em tudo o que Dora dissera, mas por ela ser capaz de fazer tais afirmações com tamanha calma; não queria, porém, abrir uma discussão que podia tornar-se ríspida.

- Creio que ainda não conheces bem o povo inglês, querida - disse ele com brandura.

-Jane não tem as desvantagens de uma estrangeira. Porque não lhe perguntas?

-Vamos falar de outra coisa?

Dora encolheu os ombros desdenhosamente. O que ela havia dito era ofensivo, mas Jim pensou de si para si que seria um louco se a levasse a sério; as mulheres, sabia, estavam sempre prontas para dizer coisas injuriosas sobre as outras, e, na metade das vezes, não tinham essa intenção. Afinal de contas, não era coisa fora do comum a pessoa não gostar dos parentes afins. As mulheres, então, eram engraçadas: sempre sensíveis a toda a espécie de ninharias que os homens achavam não merecer atenção. Podia ser que Dora, na situação um tanto dependente que tinha em Graveney, houvesse sofrido desconsiderações que ele nunca percebera e que, embora não sendo intencionais, a susceptibilizassem. Agora, porém, que já possuíam a sua casa, isto nunca mais se repetiria; ele estava absolutamente certo de que logo que ela conhecesse melhor a sua gente, e talvez de maneira diversa, já como membro da família, descobriria que, na realidade, não eram tão maus como ela supunha. E, mesmo que o casamento não lhe houvesse dado tudo quanto esperava, pelo menos até então, não podia queixar-se. Quisera casar-se com Dora desde a primeira vez que a vira em Kitzbuhl, e assim sucedera. Ela punha-o admirávelmente à vontade naquela querida casinha. Fazia todo o trabalho doméstico e conservava tudo como novo. Era um banquete, depois de um longo dia no campo, voltar para a linda saleta e comer os saborosos pratos austríacos que ela lhe preparava. Achava que era trabalho de mais para ela, porque depoís de fazer a cama e lavar a loiça da primeira refeição, ia de manhã a Graveney para cuidar das crianças e não voltava senão à hora do jantar. Trabalháva sete dias por semana. Mas quando Jim sugeriu que deviam admitir uma criada da aldeia para ajudá-la, Dora recusou prontamente.

- Para ti, gosto de fazer tudo eu mesma - respondeu.

Sabia ser muito terna quando queria; ao ouvir-lhe coisas como esta, ele era capaz de morrer por ela. Talvez não o amasse como ele a amava, mas na verdade dificilmente podia esperar tanto; talvez ele não fosse muito digno de amor, mas com certeza, amando-a bastante, podia fazer com que ela o amasse como desejava. Havia muito tempo, tinham diante de si a vida inteira.

 

Tinha razão o aviador quando dissera a Roger que os Alemães já conheciam a existência do aeródromo secreto. Os bombardeiros apareceram duas vezes, mas deram a impressão de que ainda não sabiam exactamente a localização, pois não descarregaram as suas bombas. Sòmente um mês mais tarde é que se realizou o ataque. Naquela noite, Dora, alegando cansaço, foi cedo para a cama. Jim estava a ler e, querendo terminar um capítùlo, ainda ficou acordado um pouco mais; mas, logo que a jovem saiu, Jim sentiu-se inquieto e dentro de alguns minutos fechou o livro e subiu para o quarto. Ficou surpreendido ao verificar que Dora ainda não começara a mudar de roupa. O quarto estava escuro, e ela, sentada junto da janela aberta, apesar de ser uma fria noite de Dezembro, acabava de acender um cigarro. Tinha o fósforo ainda aceso na mão e a sua luz era surpreendentemente clara.

- Dora, que estás a fazer? - gritou.

- A acender o cigarro - respondeu ela sem se perturbar.

-Apaga o fósforo. Não deve aparecer nenhuma luz aqui.

-Ora, não sejas tolo. Estamos a tantas milhas de qualquer sítio.

- Apaga, já te disse. Bem sabes que devemos ter absoluto cuidado.

Tirou-lhe o fósforo e atirou-o fora. Fechou a janela, puxou as cortinas e acendeu duas velas.

- Estava quente de mais lá em baixo naquela saleta escura e tive vontade de respirar um pouco de ar puro.

Os seus olhos deram por acaso com o fósforo que ela utilizara. Apanhou-o. Era um fusee. Tratava-se de um fósforo especial com a cabeça muito grande e um fio interno que sustenta a chama por um espaço considerável de tempo. Algumas pessoas na Inglaterra ainda os usam porque não se apagam fàcilmente, mesmo com vento forte, e servem para acender o cachimbo ao ar livre.

- Mas, porque acendeste o cigarro com esse fósforo?

- Nem reparei. Às escuras, agarrei na primeira caixa que encontrei.

- Mas, como possuías uma caixa destes fósforos?

- Ora, há quanto tempo. Pensei que podiam ser úteis.

- Uma luz assim pode ser vista a muitas milhas de distância.

Ela estendeu os lábios para que ele a beijasse.

-Oh! Jim, porque hás-de ser tão embirrante? Que mal pode fazer isto, aqui, neste ermo?

Jim cingiu-a com o bráço e ela descansou a cabeça no ombro do marido.

- Querida, essa gente da R. A. F. não gosta muito que mores aqui porque és austríaca. Sei que é uma idiotice, mas eles pensam assim. Se alguém avistou aquela luz estamos perdidos.

-Foi uma estupidez minha. Nem pensei nisso. Não voltarei a fazê-lo.

-Dá-me esses fósforos.

- És desconfiado, não és? - sorriu ela.

Mas entregou-lhe a caixa e ele guardou-a no bolso. Jim dormiu tão profundamente que não ouviu o barulho dos aviões, nem os tiros, e só na manhã seguinte, quando foi trabalhar, é que soube que o campo de aviação fora bombardeado. Não houve prejuízos, nem mesmo indício positivo de que os Alemães conhecessem a localização exacta do campo; podia ser que conhecendo vagamente a posição, lançassem bombas que, por acaso, tivessem caído sobre o aeródromo, Mas Jim estava preocupado; os aviões, segundo soube, tinham víndo às nove, e deviam ser cerca de oito e meia quando Dora acendera o cigarro defronte da janela aberta. Naturalmente não passava de uma coincidência, a luz do fósforo não devia ter durado um minuto e era absurdo pensar que, mesmo que a luz tivesse sido vista do ar, um avião de reconhecimento pudesse tê-la avistado e orientasse uma esquadrilha na direcção certa. Foi um alívio para ele quando, alguns dias depois, houve um outro raid que de modo algum podia ter ligação com o descuido de Dora, pois foi realizado numa noite em que ambos estavam em Graveney. Havia muita intranquilidade nos arredores e muita gente estava convencida de que existiam quinta-colunistas a trabalhar na zona. Não era difícil imaginar os mais citados. Ele porque era um conchie, e Dora porque era estrangeira, estavam sob suspeita, e Jim apercebia-se de uma velada hostilidade nas pessoas que encontrava. Isto aborrecia-o muito, mas sabia que nada podia fazer. Como não queria contrariar Dora, esforçava-se por não deixar escapar qualquer indício do sentimento que existia contra ambos. Felizmente, como ela nunca ia a parte alguma, a não ser a Graveney para cuidar das crianças, não havia possibilidade de ela o notar.

Aproximava-se o Natal. O general Henderson estava atacado de gota. Sentado numa cadeira de braços, no salão de Graveney Holt, com o pé estirado, lia o Times. Tommy, no uniforme de escuteiro que lhe dava uma extraordinária satisfação, enrodilhado noutra cadeira, lia um livro. Eram sete horas e o general levantou os olhos quando o relógio bateu.

- Tommy, já praticaste hoje uma boa acção? - perguntou.

-Não tive oportunidade, papá.

- Pois podes praticar uma, agora. Dá uma volta em torno da casa e ve se avistas alguma luz por aí. Põe um casaco.

- Muito bem.

O garoto saiu a correr. Alguns minutos depois de ele ter saído entrou jim.

- Alô, papá. Dei cá uma saltada para ver como estão e levar Dora comigo.

- Ainda não posso andar, mas estou melhor. Dora já foi. Saiu daqui há meia hora.

- Não pode ser. Vim de casa e não a encontrei na estrada.

-Talvez tenha ido pelo parque.

-Não faria isso. Está muito escuro.

-Sei que ela foi. Veio despedir-se de mim.

- Não sei por onde andará, então.

A porta abriu-se com violência e Tommy entrou a correr.

-Papá, há um incêndio!

- Um incêndio?

- E é para os lados da tua casa, Jim.

- Diabo!

Saiu a correr e Tommy acompanhou-o. Podiam ver as chamas distantes. Montaram nas bicicletas e seguiram para lá. Estava muito vento na estrada e perderam de vista o incêndio. mas quando dobraram uma curva viram-no em toda a sua intensidade.

- Não é no cottage - gritou Jim. - Meu Deus, parece um monte de feno a arder.

Pedalaram com toda a força e ao aproximarem-se viram que era mesmo um monte de feno a arder violentamente num terreno que ficava apenas a algumas centenas de jardas do cottage.

-Como teria começado? - indagou Tommy. - Não achas que isto seja um sinal?

- Também me parece. - Jim olhou ansiosamente para o céu. - Saberemos daqui a pouco.

Quando chegaram ao local, dois ou três homens munidos de ancinhos começaram a puxar o feno, tentando dominar o fogo, mas o calor era intenso e tiveram de abandonar o trabalho. Todo o monte de feno estava a arder.

- Volta para casa, Tommy, e avisa o posto da polícia - disse Jim. - Vou ver onde está Dora.

Deu graças a Deus por ela ter tido a ideia de se afastar. Ficou a pensar no que não diriam aqueles homens se chegassem lá e a encontrassem. Voltou para o cottage. Dora estava sentada no escuro, com a janela da sua pequenina sala de visitas aberta, observando o fogo.

-Onde estiveste, Dora?

-Aqui. À espera que voltasses.

- Eu estive aqui à meia hora e não te vi.

- Pois eu estava cá. Não te ouvi chegar. Tive uma dor de cabeça e subi para me deitar um pouco.

-Mas a tua bicicleta não estava no lugar do costume. Por isso fui até a casa para voltarmos juntos.

- Pois olha, eu mesma a coloquei lá.

Engraçado. Ele era capaz de jurar que a bicicleta dela não estava no lugar do costume.

-Não há nada a fazer com aquele monte de feno. Tem de arder até ao fim.

-Gosto de ver incêndios. É excitante.

Jim viu que ela não tinha a menor ideia de que aquilo podia ser um sinal. Pensou que era melhor não dizer nada.

- Tinha vontade de saber como começou o fogo.

Por um instante ficaram lado a lado observando as chamas que se elevavam.

- Não vais lavar o rosto? O jantar está pronto - disse ela.

-Muito bem. Estarei pronto num minuto.

Quando chegou ao quarto de dormir notou que a cama não apresentava qualquer sinal de alguém ter estado deitado, mas Dora era uma mulher muito cuidadosa e podia muito bem ter alisado a colcha e desamassado o travesseiro se o desarrumasse. Mal começavam a comer quando ouviram o barulho dos aviões. Ele pôs-se de pé impulsivamente.

-Meu Deus! Aquilo era um sinal?

-Aquilo o quê?

-O monte de feno.

-Oh! Jim, não sejas criança. Queres dizer que alguém lançou o fogo de propósito?

-Agora está mais do que claro.

- É muito mais provável que um vagabundo tenha provocado o incêndio sem querer.

-O que estaria um vagabundo a fazer no fundo deste campo e a esta hora?

- Podia muito bem ter ido dormir lá. Por favor, senta-te para jantar. Não estás com medo, por certo?

- Não, querida - disse rindo.

Sentou-se e continuou a comer. Então ouviram, à distância, o canhoneio.

- Isto quer dizer que estão por cima do aeródromo.

Ela apurou os ouvidos, mas não disse nada. Acabaram a refeição em silêncio.

Tommy chegou a casa e começou logo a contar tumultuosamente ao pai o incêndio do monte de feno. Ouviram também o barulho dos aviões e isto aumentou a excitação do menino até à febre. Quis subir ao andar superior para ver se podia avistar alguma coisa da janela de cima.

- Não, diabinho, vais ficar aqui - disse o general. - Não permito que saias da minha vista.

- Não vou para o terraço, papá. Prometo-lhe.

- Faz o que te mando. Pega num livro.

-Não quero ler agora.

- Então entretém-te a contar os dedos.

Mrs. Henderson entrou.

-George, vêem-se aviões às dezenas.

-Não sou surdo, querida. Parece que estão a fazer um ataque em massa contra o aeródromo. Espero que os nossos venham persegui-los.

-Deixei May e Jane para acalmar as crianças. Querem todas sair para ver o que se passa.

-Não as censuro por isso. Se não fosse este maldito pé, também eu estaria lá.

Tommy olhou para ele com os olhos arregalados, mas era muito matreiro para dizer alguma coisa. Mais uma vez o seu coração sofreu com a prova flagrante da injustiça dos adultos.

-Estou preocupada com as crianças que foram á aldeia para o exercício de canto - disse Mrs. Henderson.

- Mas para que são esses exercícios?

-Os cantos de Natal. Estavam tão aflitas para ir que não quis decepcioná-las. Há entre elas cinco que têm boas vozes e o dirigente do coro pediu que fossem.

- Estarão bem - disse o general calmamente. - Os hunos não vão desperdiçar bombas com elas.

-Bem sei, mas quando os aviões voltarem passam aqui, tu bem sabes que quando atacarem ninguém pode dizer onde as bombas vão cair. Eu estaria muito mais tranquila se as crianças ficassem onde estão até o raid terminar.

-Pois então telefona.

- Não vale a pena. Estão a cantar na sacristia.

Tommy descobriu a sua oportunidade e manifestou- se.

- Mamã, posso ir até lá na minha bicicleta dar o recado? São só cinco minutos.

-Não, Tommy, não quero que saias.

-Oh!, mamã, por favor, deixe-me ir. Talvez veja cair um avião alemão.

Mrs. Henderson sentia uma grande responsabilidade em relação às crianças que estavam sob os seus cuidados, e jamais se perdoaría se alguma coisa lhes acontecesse. Não sabia que fazer.

- Papá, diga-lhe que não há perigo - implorou Tommy.

O general sorriu. Gostava da ímpetuosidade do filho e orgulhava-se de o menino não ser medroso. Um rebento de boa árvore.

- Francamente, minha querida, não vejo o menor risco. Se estás realmente preocupada com as criancinhas porque não deixas que Tommy vá à aldeia?

Mrs. Henderson hesitou. No entanto, alguém devia ir; ela, havia vinte anos que não montava numa bicicleta; havia ainda May e Jane; mas o perigo para Tommy era o mesmo que para elas. Com um suspiro, cedeu.

- está bem, meu filho, podes ir. Mas fica só até acabar o ataque e diz ao dirigente do coro que ponha todas as crianças na cripta.

-Descanse, mamã. Prometo que farei tudo que deseja.

Precipitou-se para fora. Mas, logo que ele saiu Mrs. Hen derson arrependeu-se. Andava inquietantemente de um lado para o outro no enorme salão. Depois de alguns momentos, o general olhou para o relógio.

- Não estejas enervada. Decerto ele já lá chegou. Passaram dez minutos desde que saiu.

Mrs. Henderson soltou um longo suspiro de alívio. Apagaram todas as luzes e abriram as janelas para ouvir o canhoneio distante. Olharam para o céu, mas não enxergavam coisa alguma. A noite estava completamente escura. Depois, perceberam uma vez mais o ruído dos aviões, mas ninguém podia dizer se era uma outra vaga que vinha ou se eram os atacantes que se retiravam. Súbitamente ouviram um estrondo surdo.

- Que foi? - gritou Mrs. Henderson.

- Uma bomba. Algum patife que a largou.

- Parece muito próximo.

- É difícil saber.

- Quer dizer que se vão embora?

- Sim, suponho que acharam difícil de mais.

-Antes Tommy não tivesse ido.

-Oh, minha querida, não sejas tola. Ele está bem lá na igreja. O dirigente do coro é um homem muito sensato e não deixaria que nenhum deles saísse antes do sinàl de perigo passado.

Ela tentou sorrir.

- É assim realmente. Não se importem comigo, estou nervosa por causa do cansaço.

- Bem, desta vez a coisa passou. Senta-te e descansa. May e Jane cuidam das crianças.

Os canhões antiaéreos cessaram o fogo, e o silêncio, tão suavemente como a neve a cair, tomou conta da noite.

Depois de fechar as janelas, de puxar as cortinas e acender a luz, Mrs. Henderson, que estava exausta, deitou-se no sofá. O general pôs os óculos e recomeçou a leitura do jornal. Daí a poucos minutos ela dormia. Acordou com a entrada de Jim e Dora.

-Vimos saber se todos estão bem. Ouvímos o estrondo de uma bomba e pareceu-nos muito perto daqui.

- Nós também ouvimos - disse o general. - Penso que deve ter caído num ponto qualquer do parque.

- Julga que terão atingido o campo de aviação? - perguntou Dora.

- Amanhã saberemos. Houve muito canhoneio para aqueles lados. Creio que os atacantes foram perseguidos pelos nossos aviões. Gostava de saber se derrubámos alguns.

Continuavam a falar do raid quando Jane entrou.

- Deitámos as crianças, mamã - disse. - Elas esperam por si para a reza.

- Os meninos que foram para o coro ainda não chegaram?

-Sim, já chegaram. Agora mesmo. Estão a mudar de roupa.

-E onde está Tommy?

-Tommy? Não está aqui.

Mrs. Henderson teve um sobressalto de pavor.

- Não fiques nesse estado, querida - disse o general, franzindo a testa. - Ele está bem. Provàvelmente demorou-se por causa de alguma travessura. Bem sabes como ele é irrequieto.

Ela, porém, estava aterrorizada e nada do que lhe diziam podia confortá-la. Jim propôs que saíssem à procura de Tommy, mas isso não pareceu prático. O remédio era esperar. Esforçavam-se para descobrir a possível razão da demora.

- Ele deve saber como estou aflita - disse Mrs. Henderson.

-Tenho a certeza de que está a demorar-se com a ideia de ver alguma coisa emocionante - disse o general.

- Mas está tudo terminado! - exclamou Mrs. Henderson.

-Se não fosse a minha gota, dava-lhe uma boa sova ao chegar.

Mas, quando ouviram uma pancada atroadora na argola de bronze da porta da frente, sentiram todos um receio mortal de que alguma coisa terrível tivesse acontecido. Jim foi abrir a porta.

- Quem é, jim? - perguntou Mrs. Henderson com desesperada ansiedade.

Um polícia entrou.

- Houve um desastre. Seu filhinho, minha senhora.

Mrs. Henderson pôs a mão no coração e fitou o homem horrorizada. O general levantou-se, mesmo com as dores que sentia, e aproximou-se coxeando.

-Onde está ele?

- Dois rapazes do Home Guard trouxeram-no.

Fez um sinal aos homens que esperavam à porta, e eles trouxeram o cadáver de Tommy. Houve um silêncio de indescritível horror. Ficaram aturdidos. Depois Jim sentou-se numa cadeira e cobrindo o rosto com as mãos começou a chorar. Mrs. Henderson olhava para o corpo do filho com uma expressão petrificada. Era de cortar o coração.

-Levem-no para cima. Ponham-no na cama dele.

Jim pensou que ela estivesse a dirigir-se-lhe. Levantou-se e encaminhou-se para os dois homens da Home Guard, mas a mãe deteve-o.

- Não lhe toques - exclamou. - Não tens vergonha de chorar como uma mulher pela criança que não quiseste defender como homem?

jim estremeceu ao ouvir essas palavras. Baixou o rosto, mortalmente pálido. Jane adiantou-se e tocou no braço de um dos guardas.

- Vou ensinar-lhes o caminho. - Depois, voltando-se para a mãe, disse: - Vamos, mamã.

-Vou, sim. As crianças estão à espera para rezar.

Com o rosto abatido, o olhar trágico, saiu da sala vagarosamente.

Os que ficaram, Dora, Jím e o general, permaneceram em silêncio. O general estava enterrado na sua poltrona e Jim, fitando-o, viu o esforço que o velho fazia para se dominar. Tinha os olhos vagos, mas a boca estava contraída. Sentiu o olhar compadecido de Jim.

- É preciso que vá alguém avisar May - disse ele.

- Vou eu. - Jim voltou-se para a mulher. - Não fazes nada aqui, é melhor ires para casa. Passarei cá a noite.

-Depois do que tua mãe te disse?

-Minha mãe tem o direito de me dizer o que bem entenda.

Falou-lhe num tom tão estranho que ela dirigiu-lhe um breve olhar de apreensão. Os olhos de ambos encontraram-se num desafio.

- Como quiseres - disse ela por fim, com um rápido e desdenhoso encolher de ombros.

Dora saiu sem dizer màis nada.

 

Jim, pelo telefone, comunicou o terrível acontecimento a Roger. Este não podia afastar-se do serviço naquela noite,

mas respondeu que iria logo que pudesse, na manhã seguinte. Depois Jim sentou-se junto do pai. Não disseram nada um ao outro e assim, passada uma hora, Jim levantou-se e foi

para o quarto onde dormia quando menino. Parecia vazio sem os seus livros e quadros. Um quarto estranho, um quarto que parecia ressentir-se com a sua presença. Tentou ler, mas pensamentos tenebrosos distraíam a sua atenção e as palavras no papel não tinham sentido. Leu as mesmas linhas duas ou trés vezes, porém na sua memória não se gravava coisa alguma.

Sentia o sangue a latejar no cérebro incessantemente. De vez em quando sentia uma dor de cabeça, lancinante, como se lhe cravassem uma agulha em brasa. Uma agonia; mas não tão grande como a dos pensamentos aterradores, que o faziam sentir-se gelado até os ossos e lhe causavam arrepios. Acendeu a lareira. Aqueceu as mãos e os pés enregelados, mas para o frio que sentia no coração não havia remédio. Horror! Horror. Um soluço angustiado irrompeu-lhe da garganta e na sua ânsia enterrou selváticamente as unhas nas palmas das mãos; sentia que estava prestes a chorar; não era ocasião para se lastimar a si próprio. Desejou nunca ter nascido; desejou ser ele o morto.

Sentia tudo isto, enquanto fantasmas, cada vez mais numerosos e ameaçadores, o cercavam por todos os lados, sem que pudesse libertar-se.

A maçaneta da porta do quarto moveu-se de leve e sua mãe entrou.

-Pensei que estivesses a dormir. Não queria acordar-te.       

O rosto dela trazia ainda a expressão de angústia que ele vira quando haviam trazido o cadáver de Tommy. Mas estava calma.

- Jim, meu querido, peço-te desculpa de te haver falado daquela maneira. Não sabia o que estava a dizer. Fui muito má. Perdoas-me?

Os olhos de Jim encheram-se de lágrimas.

-Não tenho nada que perdoar, mamã.         

-Sempre te quis bem e avalio como a vida tem sido dura para ti todus estes meses. E agora desejo o teu afecto mais do que nunca. - Beijou-o com ternura, e depois disse:

- Quero que venhas ver Tommy.

O menino estava deitado na cama. Não se via o ferimento que o matara, Mrs. Henderson contemplou-o tristemente.         

-Não sei se devemos sentir pena dos que morrem em épocas como esta. Talvez sejam mais felizes do que aqueles que sobrevivem.    

Permaneceram de pé, por uns instantes, em silêncio. Depois ela olhou para Jim com um ar lastimável.

- Crês em Deus, meu filho?

- Creio.

- Eu tento. Importas-te de rezar comigo?

Ajoelharam-se ao lado da cama e escondéram os rostos nas mãos. Daí a um instante, Mrs. Henderson levantou-se.

- Preciso de ver o teu pai. Tu deves ir deitar-te. Não remedeias nada em ficar extenuado. Boa noite, meu filho.

-Boa noite, mamã.

Mas, embora mudasse a roupa e fosse para a cama, Jim não pôde conciliar o sono. Virava-se de um lado para o outro, com o espírito angustiado. Tentou encontrar razões para afastar a suspeita que lhe martelava a consciência, toque-toque-toque, como o malhar de uma barra de ferro contra um muro de granito. Era tão monstruosa que bastava encará-la de modo claro e resoluto para verificar que não tinha qualquer base.

Era contra a natureza: tão incrível como a água subir pelos montes. Uma dezena de pequenos incidentes que no momento não lhe haviam causado impressão, voltavam agora à sua memória. Lembrava-se daquela mulher que vira com Dora no Parque St. James e cuja semelhança com uma funcionária da embaixada alemã lhe chamara a atenção; Dora havia dito que se tratava de uma refugiada com quem falara por acaso; seria verdade ou era uma agente alemã com a qual Dora tinha ligação? Seria possível que Dora tivesse provocado o convite para ficar em Graveney porque a espionagem nazi sabia que Roger pertencia ao Serviço Secreto do Exércíto e achara conveniente ter em casa dele uma pessoa que pudesse conseguir certas informações úteis? Não era a primeira vez que Jim perguntava, desprezivelmente, a si próprio se Dora casara com ele apenas porque de outra forma as autoridades insistiriam para que saísse. Teria sido ela quem revelara o segredo, tão bem guardado, do campo de aviação? E naquela noite, duas semanas antes, em que a encontrou acendendo um cigarro com um fusee, quando um fósforo comum era evidentemente mais apropriado, teria sido por mera coincidência que surgiram logo a seguir os aviões alemães? Fora ela quem lançara fogo ao feno? Jim mergulhou o rosto no travesseiro tentando afastar o terrível pavor que o assaltava. Amava Dora, amava-a com toda a força da sua alma e com todo o vigor do seu corpo. Era inconcebível que ela tivesse representado uma comédia durante tanto tempo; era inconcebível que alguém pudesse ser tão insensível aos sentimentos naturais da gratidão por toda a bondade que seus pais lhe haviam demonstrado; era inconcebível que houvesse alguém tão falso. Sentia ódio a si próprio pelas dúvidas que o assaltavam. Devia haver explicação para tudo, mas, oh! Deus, qual era a explicação? Dora não podia ser uma espia, ele amava-a tanto! devia haver uma explicação.

Quase pela manhã, conseguiu dormir, mas teve um sono muito agitado, e, embora fosse madrugador, não se levantou antes das nove horas. Ficou irritado consigo mesmo, pois havia planeado ir até ao local do monte de feno logo que o dia clareasse para ver se encontrava alguma pista que o levasse a descobrir como tinha começado o fogo. Sabia o que devia procurar. Não pretendia ir á granja naquele dia; queria estar com seus pais, e era preciso tratar de uma série de coisas desagradáveis, para as quais nenhum dos dois estava em estado de espírito propício. Vestiu-se apressadamente e saiu. Não levou a bicicleta. seguiu a pé pelo atalho mais curto através do parque; passou por sua casa, mas não viu sinal de vida e concluiu que Dora ainda devia estar a dormir. Não entrou. Atravessou a porta do parque e seguiu pela estrada. Viam-se, ali, dois carros parados e quando chegou á cancela notou que alguns homens estavam a remexer o que restava do monte de feno. Subiu e atravessou o caminho até onde eles se achavam.

Entre os homens estava o agente de polícia da aldeia e o inspector local. Cumprimentou-os. Era fácil imaginar que eles tinham vindo com a mesma intenção: revolver as cinzas.

- Vocês começam a trabalhar cedo - disse da maneira mais cordial que pôde.

- Estamos aqui desde que o dia clareou o suficiente para se enxergar - disse o inspector. - Quando chegámos ainda estava muito frio.

- Que pretendem fazer? - perguntou Jim.

-Tentamos descobrir como o fogo começou. Estamos a remexer as cinzas com um pente fino.

        -Que esperam encontrar?

-Só poderemos saber quando descobrirmos.

-É um bocado dífícil, penso eu.

Eles não sabiam bem o que procuravam e Jim sabia.

Se saíssem dali teria uma possibilidáde.

-Até agora não fomos muito infelizes.

Jim estremeceu.

-Acharam alguma coisa?

- Sim.

O inspector apontou para um lenço que estava no chão.

Jim aproximou-se e olhou para o lenço. Lá estavam quatro ou cinco fragmentos carbonizados, pequenos pedaços de fíos que tinham resistido ao calor, e num deles, havia ainda um pedaço de fibra. Jim não saberia o que aquilo significava se não soubesse o que esperava encontrar.

- Tem alguma ideia do que isto seja? - perguntou o inspector.

Jim abanou a cabeça.

-Não tenho a certeza, notem bem, mas parecem-me fusees. Se não estou enganado, talvez possamos descobrir a quem pertenciam, e assim saberemos quem foi o miserável que lançou fogo ao monte.

Na cabeça de Jim reinava a confusão. Queria tempo para pensar.

-Não acha que foi acidental? Um vagabundo que acendesse um cachimbo.

-Alguma vez óuviu dizer que um vagabundo andasse com uma caixa destes fósforos no bolso?

Jim ficou calado. Um dos homens que ainda trabalhavam nas cinzas gritou repentinamente:

-Olhem! Que é isto?

O inspector correu ao seu encontro.

- Não toque nisso, seu idiota! - exclamou, quando o homem estava para apanhar o que encontrara.

O inspector agarrou numa pá e levantou o objecto, com as cinzas que o cercavam. Pôs tudo a um lado. Eram bocados de folhas de jornal carbonizadas, reunidos pelo arame que fora utilizado para os amarrar. Um pedaço, talvez de duas polegadas de largura, resistira ás chamas, e, nele podia-se distinguir o início de linhas impressas.

-Parece um folheto ou coisa semelhante. Cuidado com isto agora. Pode ser importante. Parece que se serviram disto como tocha - disse o inspector, examinando o que encontrara.

- Que me enforquem se posso decifrar as palavras.

Jim também não conseguiu, mas reconheceu o tipo. O preto da tinta de impressão estava ligeiramente brilhante, visível contra o acastanhado do papel queimado. Sabia que aquele pedaço carbonizado era do New Stateman. Ficou aterrado. Desconfiou que o inspector o observava com curiosidade e tratou de controlar-se enquanto dizia:

-Bem, amigos, vou deixá-los com isto. Ainda não comi nada hoje, e estou com muita fome.

Sabia agora o que queria saber; sabia agora o que tinha medo de saber. Da chaminé do cottage saía fumo. Dora estava acordada e acendera o lume.

Voltou para Graveney. Miseràvelmente, com o coração constrangido de dor, com o cérebro confuso pela terrível certeza da culpa de Dora, foi tratar dos assuntos cuja solução era inadiável. Dora não apareceu, e assim Mrs. Henderson, Jane e May cuidaram das crianças sem a sua ajuda activa e eficiente. Não falaram nela e Jim compreendeu que todas estavam satisfeitas por ela não ter aparecido. O general coxeava pela casa, estonteado. Não conseguia achar que fazer e, com o pé gotoso ainda a fazê-lo sofrer, sentava-se numa cadeira, tristemente absorto, de olhos no vácuo. Ninguém sabia como se dera a morte de Tommy. fora encontrado na estrada, a cinquenta jardas de onde a bomba explodira, atingido por um estilhaço. Só se podia supor que, em lugar de ficar com os outros rapazes na cripta, tivesse saído para assistir ao bombardeamento. Logo depois do almoço chegou Roger. Foi um triste encontro. Todos tiveram dificuldade em achar alguma coisa para dizer; depois de um acontecimento tão trágico as palavras eram fúteis, e as frases que trocavam eram incompletas, sem sentido. De que serviria dizerem que tinham o coração despedaçado? Ou falar de tristeza? Roger passava pelo aeródromo quando viera e contou-lhes o que havia acontecido lá. Depois, Jim disse que ia ao cottage para saber por que razão Dora ainda não aparecera.

-Suponho que ela está muito transtornada. Dá-lhe um beijo e diz-lhe que não venha antes de se sentir bem - disse Mrs. Henderson, com brandura.

Roger foi até à porta com Jim.

-Jim, meu velho, tenho de te dìzer uma coisa que talvez já saibas.

Jim olhou para ele, com o rosto cada vez mais pálido, e esperou. Roger hesitou um momento.

- Descobrimos que a mãe de Dora não é austríaca, mas alemã. O marido dela, pai de Dora, é que era austríaco. Era socialista e antinazi. A mulher traiu-o e entregou-o aos alemães, que o mandaram para um campo de concentração. Morreu lá.

Roger viu o rosto do irmão anuviar-se.

- Isto não quer dizer que Dora partilhasse das ideias da mãe ou tivesse qualquer ligação com o acto que custou a vida do pai.

jim não respondeu. Pegou na bicicleta e saiu. Tinha o coração apertado. Também ele estava satisfeito por Dora não ter aparecido aquela manhã; dava tratos à imaginação para saber o que devia fazer, e sentia dores de cabeça. Era como se dentro do crânio um fogo lhe estivesse a consumir o cérebro. Pensava com horror na perspectiva de ver Dora. Desejava, desejava desesperadamente que ela tivesse uma explicação para aqueles factos condenatórios. Mesmo agora, apesar das provas serem esmagadoras, tinha uma leve e trémula esperança de que ela pudesse de algum modo justificar-se. Que satisfação teria se todas aquelas dúvidas, que o atormentavam tão cruelmente, pudessem ser eliminadas! Apertá-la-ia nos braços e pedir-lhe-ia perdão por ter tido a deslealdade de suspeitar dela. Então, alguma coisa lhe ocorreu. Parou e retrocedeu; passou outra vez pela porta de Graveney e seguiu para a aldeia. Foi ao único armazém geral ali existente, uma pequena casa comercial, que vendia todas as bugígangas de que se precisava no lugar, e pediu uma caixa de fusees.

- Deus o abençoe, Master Jim - di se a velha que o atendeu. - Há anos que não temos disso aqui.

Montou na bicicleta e voltou para o cottage. Encontrou Dora deitada na cama, lendo um romance.

- Olá, de onde vens? - perguntou ela friamente.

- De casa. Porque não foste lá hoje?

- Creio que não precisam de mim.

-As crianças precisam, como sempre, de ser tratadas.

Dora encolheu os ombros.

-Estava aborrecida com o que te disse tua mãe. Foi muito cruel.

- Tolice.

- Não tenho o teu temperamento. não ofereço a outra face.

- Roger chegou.

- A tua mãe deve estar contente. Ele sempre foi o filho favorito.

- Alguns infelizes foram mortos a noit passada, mas, felizmente, os danos no aeródromo foram insignificantes.

- Oh!

- Não estás satisfeita? - perguntou olhando para ela.

-Porque houve mortos?

-Não, por terem sido pequenos os danos no campo de aviação.

Ela balançou ligeiramente os ombros mas nada disse. Levantou-se e acendeu um cigarro.

-Dora, a polícia fez uma busca nas cinzas do monte de feno.

- Sim?

- Encontraram fragmentos carbonizados de fusees.

Esperou um instante, observando-lhe cuidadosamente o rosto para ver o efeito causado pela revelação. Permanecia impassível.

- Lançaste fogo ao monte de feno.

Ela recuou ligeiramente, mas apenas ligeiramente. Fez um gesto de desdém com a cabeça.

-Não sejas estúpido, Jim.

- Como explicar a presença daqueles fósforos?

- Não acho que seja necessária qualquer explicação. Sabes que não eram meus. Ficaste com os que eu tinha.

- Fiquei com uma caixa. Podias ter outra.

-Não tinha. Qualquer pessoa pode ter desses fósforos. Um dos trabalhadores da fazenda, por exemplo.

-Não são muito usados agora, bem o sabes. Acabo de estar no armazém da aldeia. Há anos que não os vendem. Como conseguiste os teus?

- Não sei. Achei-os. Pensei que eram teus.

- Onde estiveste a noite passada quando vieste para casa?

- já te disse. Aqui no quarto.

- Como explicas que a tua bicicleta não estivesse no lugar do costume quando vim pela primeira vez, e lá se encon trasse quando voltei?

Ela sorriu ligeiramente.

- Estive a pensar nisso. Lembrei-me de que tinha deixado a bicicleta do lado de fora. então saí e pu-la no seu lugar.

-Por que razão te preocupou o assunto? Porque achaste que podia ser necessária uma explicação?

Ela franziu a testa.

- Estou cansada de responder às tuas perguntas, jim. Quero ler. Por favor, deixa-me só.

- Estiveste fora de casa o tempo necessário para dar uma volta pelo campo e lançar fogo ao monte de feno. - mentira.

- Não posso provar, mas sei de tudo.

-Está bem, pensa o que entenderes. Agora, por favor, deixa-me.

- Dora, as autoridades não têm dúvidas de que o incêndio foi provocado com o fim de orientar os bombardeiros alemães. Estão a fazer um inquérito. Pensas que poderão satisfazer-se com as respostas que me deste?

-Porque iriam eles interrogar-me? A única coisa que há contra mim é o facto de ser estrangeira. A não ser isto ninguém pensaria em suspeitar de mim.

-Devo dizer-te que a polícia não encontrou apenas os fósforos. Encontrou também fragmentos do New Statesmun.

Ela teve um gesto brusco, e pela primeira vez os seus olhos revelaram medo.

-Foi apenas um fragmento carbonizado e a gente daqui não sabe do que se trata. Mas em Londres logo descobrirão tudo. visto que, nestas redondezas, apenas eu sou assinante do New Statesmun.

Entreolharam-se por um instante.

- Alguém podia ter entrado aqui durante o dia. Qualquer pessoa podia apanhar um jornal lançado no lixo - disse Dora.

Ele não lhe deu resposta e os dois continuaram a encarar-se.

- Que vais fazer? - perguntou ela afinal.

-Não posso ajudar-te. Se for inquirido terei de dìzer a verdade.

- E dizes que me amas!

Ele ficou vermelho.

- Deus sabe que sim. Amei-te. Tu não me amas, não é verdade? Casaste comigo para ser cidadã britânica.

Dora olhou-o vivamente. Jim sabia o que ela estava a pensar.

- E se o tivesse feito? Não é crime, Dezenas de outras refugiadas fizeram o mesmo. Faz-me a justiça de reconhecer que nunca te disse que te amava. Afinal de contas, May casou-se com Roger porque ele era um bom partido; fui para ti uma esposa melhor do que ela é para ele. Recusei-me a ter um filho. Disse-te a razão: não é tempo de se pôr mais uma criança no mundo. Não podes, realmente, acreditar que lancei fogo ao monte de feno. Qual seria o meu objectivo? Sabes tão bem como eu que se os alemães chegassem aqui eu também sofreria.

- Há pouco Roger contou-me que tua mãe, que é alemã, entregou teu pai aos nazis. eles mandaram-no para o campo de concentração onde morreu.

-Isso não é verdade. É apenas mais uma das mentiras inglesas.

- Mentiras inglesas? É curioso que digas isso.

Observou que a respiração dela se alterara. Dir-se-ia que, tomada de surpresa, Dora cometera um erro e que se apercebera dele. Com o rosto vermelho, os olhos sombrios e maus, ela fitou-o pensativamente. Acendeu outro cigarro.

-Acreditas, realmente, que fui eu quem lançou fogo àquele monte de feno?

-Tenho a certeza.

Ela engoliu o fumo e ficou a olhar enquanto o expelia pelo nariz.

-E se o fiz, que tens tu com isso? A guerra não te interessa. És um pacifista.

- Pensas que não amo o meu país?

Ela recuperara o domínio de si própria e falava com calma. Não havia qualquer hostilidade no tom da sua voz, que era agora estranhamente conciliadora.

-Sei que amas a tua pátria. Mas, porque não és razoá vel? A Inglaterra está derrotada. Merecia ser derrotada. Nada é eterno neste mundo e vocês ingleses já tiveram poder durante muito tempo; agora é a nossa vez. Não supões, com certeza, que os alemães são os monstros desumanos que a vossa propaganda descreve. Numa revolução a severidade é necessária, e naturalmente há excessos, mas na realidade somos um povo gemutlich, idealista e de coração generoso. Sempre admirámos os ingleses. Estaríamos prontos a ser amigos, se vocês fossem bastante sensatos para aceitar o inevitável. Os ingleses foram governados durante quatrocentos anos pelos romanos, que os transformaram de selvagens seminus em gente civilizada. Estamos dispostos a transmitir-lhes a nossa ciência e a nossa cultura, a nossa arte e a nossa organização; a ensinar-lhes a nossa indústria e a nossa disciplina. Os franceses são um povo lógico e aceitaram a Nova Ordem. Não vês que é uma simples questão de bom senso olhar os factos como eles se apresentam e cessar esta inútil carnificina? Tu és pacifista: nós oferecemos-te a paz. És inteligente, Jim, és bem educado. os alemães precisam de ingleses que possam ocupar posições de autoridade. O teu nome significa alguma coisa no condado e o partido receberá bem a tua colaboração. Sabes, os nazis não são idiotas. ficarão satisfeitos de ver mulheres alemãs casadas com homens ingleses, tendo filhos de meio sangue alemão. O partido sempre recompensou os que o servem bem e já me devem alguma coisa. Não gostarias de ser o dono de Graveney? Essa propriedade é o que mais amas no mundo. Poderíamos ser muito felizes lá, Jim. Prometo-te que nunca te arrependerás de teres casado comigo.

Ele ouvira-a sem tentar dizer uma palavra, mas enquanto ela falava tornara-se pálido, cada vez mais pálido.

- E que me dizes sobre meu pai, minha mãe e Roger? - perguntou então.

-Temos velhas contas a ajustar com Roger. Ele terá o que merece. Teu pai e tua mãe são velhos, podem ser mandados embora.

- Cadela!

Com a mão aberta deu-lhe uma bofetada, tão forte que ela cambaleou. Dora levou a mão ao rosto e fícou nessa posição. Não estava com medo, mas louca de raiva. Os olhos faiscavam-lhe.

- Porco! - gritou ela. - Porco! Já não tenho paciência para te aturar. És tão estúpido como o resto dos ingleses. Pois bem, vais ouvir toda a verdade. Sim, casei-me contigo apenas porque queria ser súbdita britânica. Sim, fiz o sinal com um fósforo aceso diante da janela aberta, e os fósforos foram-me entregues para esse fim. Fui eu quem lançou fogo ao monte de feno para orientar os nossos aviões. E agora que sabes tudo, que vais fazer? Chhamar a polícia? Esqueces que pela lei inglesa um marido não pode depor còntra a esposa? Esta foi a segunda razão por que me casei contigo. A terceira foi saber que és um idiota. Vá, chama a polícia. Negarei tudo. Que podes provar? Sou alemã, é verdade, mas tu és um conchie e a tua palavra não vale mais do que a minha. Não te parece que aqueles fósforos especiais podiam ter sido teus, da mesma maneira que o New Statesman era o teu New Smtesmun? Pensas que tenho medo da prisão? Os alemães estarão aqui dentro de três meses e libertar-me-ão. Jurarei que fiz tudo isso porque me forçaste, jurarei que lançaste fogo ao monte de feno porque achavas que uma vitória alemã era o único meio de trazer a paz. Se eu for para a prisão, tu também vais para lá.

Era como se, de súbito, se desfizesse de toda a reserva que soubera guardar desde que fora para Graveney Holt, do cuidado incessante que sabia colocar em cada palavra, em cada acto; parecia embriagada por uma súbita libertação: Os seus olhos estavam sombrios de ódio, parecia uma louca.

- Dizes que amas o teu país. Dás-me vontade de rir. Se amasses a tua pátria devias estar preparado para morrer por ela. Consideras-te um homem? Desprezo-te do fundo do meu coração. pensas que teria casado contigo se tivesse outro meio de realizar a missão que me trouxe aqui? Eu sentiria vergonha de ter um filho teu. Odeio-te como odeio todos os ingleses, com toda a minha alma. Como podias esperar compreender-me, tu, uma criatura com um espírito incapaz? Sabia o risco que corria quando vim para aqui. Aceitei-o satisfeita. Fiz o que tinha a fazer. Eles agora saberão onde fica o vosso campo de aviação, e antes de tomarem qualquer providdência, reduzirão tudo em frangalhos. Fui eu que o consegui, eu!

Deu uma gargalhada áspera e aguda. O seu lindo rosto transformara-se em máscara de maldade. jim continuava de pé, cambaleando um pouco, como que levemente embriagado. os lábios contorciam-se-lhe como se quisesse dizer álguma coisa e não pudesse articular as palavras. O rosto estava lívido e a testa húmida. A expressão do olhar de Jim fez com que ela de repente sentisse medo. Parou de rir, abruptamente, e o silêncio entre os dois foi tão assustador como o estrondo de um trovão. Dora afastou-se, dando um passo atrás, e olhou vivamente para a porta. Jim avançou, e ela pressentiu o que ia acontecer. quis fugir, mas ele agarrou-a pelo braço e puxou-a bruscamente para trás.

- Jim! Jim! - gritou ela.

Antes que pudesse dizer outra palavra, ele tapou-lhe a boca com a mão, e, com um gesto violento, atirou-a para cima da cama; depois apertou-lhe o pescoço com as suas mãos vin gadoras. Jim era muito forte e foi em vão que ela lutou desesperadamente. Ele manteve-a deitada, prendendo-a com o joelho. Era como se estivesse tomado de uma muda e sinistra loucura. As suas mãos, enrijecidas pelo trabalho rude, apertavam o pescoço de Dora. O rosto dela ficou entumecido, depois azul, e os olhos arregalaram-se-lhe horrivelmente; a boca escancarava-se quando se esforçava por respirar. Jim tinha os dentes cerrados. todo ele estava possuído de fúria cega, e as suas mãos impiedosas premiam cada vez mais a garganta de Dora. Quando a soltou estava morta. Arquejava como um homem que tivesse acabado de disputar uma corrida. Contemplou o quadro horrível da mulher estendida na cama, e um grande estremecimento o percorreu. Atirou-se para uma cadeira; sentia-se muito cansado. Não podia pensar. Tinha a cabeça vazia. O silêncio no quarto era fantástico. Era um silêncio vivo.

Não pôde calcular quanto tempo se passou até que ouviu o ruído de um carro que parava e o som de uma buzina. Não se moveu. Bateram à porta. Olhou pela janela e reconheceu o carro de Roger. Desceu e abriu a porta.

- jim, Dora está?

- Está.

- Posso vê-la?

- Para quê?

Roger entrou e sentou-se na ponta da mesa.

-Bem, meu velho, deves preparar-te para um pequeno aborrecimento. Devo dizer-te que Dora está sendo vigiada há algum tempo. Porém, nada se descobriu contra ela, a não ser o que te contei há pouco sobre sua mãe. Dora não disse a verdade sobre esse assunto. Declarou-nos categòricamente que a mãe era austríaca e antinazi. Acredito que seja verdade, mas querem saber o que ela fez durante a noite passada. O comissário está lá em casa. Acho melhor ires até lá, também, para confirmar as declarações. Onde está ela?

-lá em cima.

- Chama-a , por favor, meu velho. Quero que vocês sigam comigo no carro.

- Está morta - disse Jim calmamente.

Roger olhou-o espantado. Era incrível.

-Morta? Que queres dizer?

- Matei-a.

- Santo Deus!

Subiu. Num minuto estava de volta. Fitou Jim em silêncio.

- Ela lançou fogo ao monte de feno. Foi com uma luz que, há quinze dias, deu aos Alemães a pista do aeródromo. Era uma espia.

-Mas, Meu Deus, porque a mataste?

-Matei-a porque tinha de a matar. Matei-a porque queria vê-la morta.

Roger suspirou profundamente. Durante bastante tempo nenhum deles falou. Mas era preciso fazer alguma coisa, não podiam ficar eternamente olhando um para o outro.

- Receio que tenhas complicado terrivelmente as coisas - disse Roger quase num sussurro.

- Uma complicação infernal. Eu só tinha no coração amor e desejo de paz para todos os homens: Tudo se foi. Tive de me bater pelas minhas convicções. Não é engraçado que eu, que arrostei com toda esta humilhação para não atentar contra a vida humana, tenha morto a pessoa a quem amava mais no mundo?

Roger estava aniquilado. Pobre Jim! Só podia sentir piedade e uma profunda afeição por ele. E que fazer?

- Infelizmente terás de passar um mau bocado - disse ele numa voz rouca.

- Serei enforcado?

- Não, com certeza não serás enforcado, mas terás de ser julgado. Sabes o que é a justiça britânica; não podemos fazer justiça por nossas próprias mãos. Um bom advogado talvez consiga defender-te bem. Estou certo de que qualquer júri reconheceria as circunstâncias atenuantes.

-Queres dizer que me safarei com alguns anos de prisão?

-Não posso afirmar. É possível que não te condenem em mais de um ou dois anos.

-Que devo fazer, Roger?

-Não há conselhos que se possam dar, em casos como este, meu amigo.

- Que farias em meu lugar?

Roger, baixando os olhos, hesitou. Era horrível dizer o que estava a pensar. Lembrou-se da mãe e do pai. Que terrível golpe para eles, que tristeza e que humilhação! E além disso havia outra coisa que não tinha coragem de dizer. O facto de Jim ser contrário à guerra, por questões de consciência, não o auxiliava; O júri acharia estranho que um homem que não queria lutar pela pátria matasse a própria mulher. Seria qualificado como homicida e depois condenado à morte. a sentença seria comutada para prisão perpétua. Quinze anos. Esforçava-se para responder à pergunta do irmão mas não podia encará-lo, e mantinha os olhos fixos no chão.

-Penso que se tivesse a infelicidade de matar alguém não quereria enfrentar as torturas de um julgamento. Qualquer outra solução seria melhor.

- És um bom amigo, Roger - respondeu Jim com um sorriso. - Esperava que dissesses isso.

-Sei que tens coragem, meu velho.

O rosto de Roger estava cor de cinza. Olhou furtivamente para o irmão. Queria fazer-lhe uma pergunta, mas não conseguia falar. Jim notou o olhar e compreendeu.

- Tenho o meu revólver - disse.

Roger fechou os olhos. Sentiu medo de chorar.

-Acho que quando se tem uma coisa desagradável a fazer, o melhor é fazê-la quanto antes - disse Jim.

- Tens razão.

Jim apertou-lhe a mão.

-Adeus, Roger. A tua vinda foi providencial para mim.

-Adeus, meu velho.

Os olhos de Roger estavam toldados de lágrimas, e foi a custo que chegou à porta. Entrou no carro e esperou. Daí a alguns minutos ouviu, de dentro do cottage, o estampido de um tiro de revólver. Dobrou-se sobre o volante, escondendo o rosto nas mãos. Depois, dominou-se e voltou para Graveney Holt.

 

Era inútil descrever a consternação e o horror das pessoas envolvídas nesta história, quando Roger lhes revelou as terríveis notícias. Ficaram esmagadas pelo novo e inesperado golpe. Seria odioso insistir na angústia que a todos invadiu. Devido a certas circunstâncias ligadas à defesa nacional, foi possível evitar a grande publicidade que de outra maneira teria cercado tão sensacional ocorrência; mas os factos foram discretamente comentados na vizinhança. O general e a esposa, tão envergonhados quanto infelizes, ficaram emocionados com as expressões de simpatia recebidas, mesmo de pessoas estranhas, e com a grande bondade demonstrada por todos na imensa desgraça que os atingira. Embora nada pudesse consolá-los, o facto de verem como eram benquistos e respeitados serviu, talvez, para lhes tornar a mágoa mais suportável. Mrs. Henderson ainda tentou remediar a sua avassaladora tristeza trabalhando mais dedicadamente do que nunca pelo banco de crianças sob os seus cuidados. Durante um certo período, agora que não contava com o eficiente auxílio de Dora, as outras tiveram muito que fazer, havendo pouco tempo para se entregarem a um inútil pesar; mas, pouco depois, Roger convenceu Mrs. Clark a vir com os dois filhos e ela mostrou-se uma ajudante capaz e dedicada. A sua viva actividade e o seu pronto bom humor diminuíram a tensão naquela casa triste. Roger era o mais feliz, porque o seu trabalho absorvia-o completamente. Fazia questão de vir a Graveney Holt todas as vezes que podia, mesmo que fosse apenas por algumas horas. Era o único filho que restava aos pais e sabia quanto significava para os velhos. As relações entre Roger e May permaneciam cordiais, íntimas até, mas eram relações de dois grandes amigos e não relações de marido e mulher. Somente a ela Roger contou toda a história da sua última e terrível visita ao cottage. May ouviu-o com piedade e horror. Sabia que o marido, no lugar do irmão, teria agido da mesma forma, mas considerava uma crueldade dizer ao pobre Jim que se matasse, pois era, em suma, o que ele fizera; deixava-a desolada e também um pouco receosa o facto de Roger ter sido capaz de tal. E entretanto, qual seria a alternativa? Enfrentar o escândalo; enfrentar o julgamento, talvez seguido de morte vergonhosa ou, na melhor das hipóteses, do horror da prisão, e, depois de libertado, uma vida sem honra nem utilidade. Pobre Jim! Não tinha ainda vinte e dois anos. Tão novo! Arrepiava pensar que Roger tivesse podido forçar-se a fazer uma tão terrível coisa. As suas maneiras para com o pai e a mãe eram tão ternas, tão encantadora a sua solicitude, que ela não podia duvidar, por um momento sequer, que o que se passara não tivesse nascido de um sentimento sincero e profundo. Mas como podia ser-se, ao mesmo tempo, tão impiedoso e tão gentil, tão ríspido e tão bondoso? Suspirou de infelicidade; era inútil tentar, jamais poderia sentir-se à vontade com um homem assim. havia alguma coisa nele que lhe causava repugnância. Entretanto, Roger era tudo que possuía agora, pois deixara de se corresponder com Dick. Tomara aquela decisão por motivos que lhe pareceram bons, e estava disposta á mantê-la.

Era cruel que o seu sacrifício não lhe houvesse trazido nenhum contentamento; não podia sequer convencer-se de que tivesse qualquer utilidade. Com cexto humor, pensou consigo mesma que tal situação era como guardar um pêssego para alguém, e vê-lo apodrecer porque ninguém o queria.

A guerra prosseguiu. A Grécia resistiu com inesperada tenacidade ao ataque italiano; a força aérea alemã bombardeava as cidades da Inglaterra, matando os seus habitantes; os Ingleses castigavam a Renânia e os portos da Mancha e tomaram a inquebrantável decisão de repelír a esperada invasão; e, de súbito, o exército britânico lançou-se sobre as tropas ítalianas e expulsou-as do Egipto. Os Ingleses forçaram os Italianos a recuar para a Líbía, tomaram reduto após reduto e fizeram dezenas de milhares de prisioneiros. O triunfo foi espectacular, e o entusiasmo público, depois de tantos desastres, era enorme. Mas, a alegria de jane, como a de muitas outras mulheres, cujos parentes estavam nas forças armadas, misturava-se á apreensão. Ian estava no Egipto e havia semanas que não dava notícias. Dick Murray estava também no Egipto. Certa manhã, May, que fora em passeio até à aldeia, falou com um dos rendeiros de Graveney, que lhe disse:

-Fiquei triste com o que soube a respeito do capitão Murray, Mrs. Roger.

O coração de May quase parou de bater.

- Ele está... está ferido?

-Mrs. Murray, sua mãe, escreveu à encarregada da casa, que recebeu a carta a noite passada. Sim, ele foi ferido.

- Gravemente?

-Não disse. Espero que não; sentimos a falta dele aqui, minha senhora. Os rendeiros estimavam-no muito, Seria uma boa coisa para todos nós se ele fosse ferido e voltasse.

Quando chegou a casa e contou o que soubera, May conteve-se para falar com calma, mas estava presa de uma ansie dade lamentável. naturalmente o general Henderson e a esposa ficaram tristes, porque Dick era um administrador competente e gostavam dele, mas contentaram-se em dizer que esperavam que não fosse nada de grave. Jane, com alívio de May, perguntou se não se podiam fazer umas indagações, e o general respondeu Que mandaria um bilhete a Roger pedindo-lhe que procurasse saber, se possivel, o que havia com Dick. Roger contava ter alguns dias de licença e viria para Graveney. talvez até lá obtivesse alguma informação. Com o coração a bater descompassadamente, May achou estranho que examinassem o assunto com tanta naturalidade.

- Acho que foram surpreendentemente poucas as baixas - disse o general. - Bom homem, Wavell. Conheci-o como chefe do Estado-Maior de Allenby.

Mas, quando Roger veio, May não se sentiu com coragem de lhe perguntar se trazia alguma notícia. Embora morta de aflição, dominou-se, procurando mostrar interesse enquanto ele falava dos recentes raids sobre Londres e da gravidade dos ataques alemães contra os comboios no Atlântico. Ela fora capaz, embora não esquecesse Dick, de, pelo menos, deixar de pensar nele, enquanto sabia Que estava são e salvo. procurara convencer-se que a dor da separação, que seria para sempre, se tornaria, a pouco e pouco, mais tolerável. Mas agora que estava ferido, talvez gravemente, o seu amor, como um fogo a extinguir-se que uma brisa repentina reacendesse com chamas enormes, era mais ardente do que nunca. Sabia agora que nada podia sufocá-lo. Quando o general começava a discutir a campanha na Líbia, Jane fez a pergunta que May, embora com os lábios trÉmulos, evitara resolutamente fazer.

- Roger, tiveste algumas notícias de Dick? Recebeste a carta do papá?

Roger olhou de lado para May.

-Sim. Telegrafei. Ele está a caminho de casa.

-Foi ferido gravemente?

May teve a impressão de vê-lo hesitar por um rápido instante, e suspendeu a respiração.

-Não sei com certeza. Mas não corre perigo de vida.

A resposta era estranha. May suspeitou de que, embora falasse com Jane, fora a ela que Roger dirigiu a últìma frase.

- Quando chegará?- perguntou Jane.

-Qualquer dia destes.

Três dias depois, nas primeiras horas da tarde, Mrs. Hen derson, o general e Jane estavam sentados no terraço, pois era um daqueles dias quentes e cheios de sol, que algumas vezes temos na Inglaterra pelos fins de Março. As duas senhoras faziam tricot e o general Iia o Times.

- Onde está Roger? - perguntou o general.

- Não sei aonde foi - respondeu a esposa. - Está aí Clark, talvez ele saiba.

Roger trouxera Nobby para ver a mulher e os filhos, e os Henderson tinham gostado muito daquela jovial criatura. Encaminhava-se para eles, ao longo da alameda central do jardim. O general chamou-o ao terraço.

- Então, Clark, dá o seu passeio pelo parque? - perguntou ele.

- Sim, sir, São as primeiras férias que tenho desde que começou a guerra. Isto para mim é uma festa.

-Onde está o major? Minha mulher disse-me que ele saiu hoje de manhã cedo.

-Saiu, sim senhor, mas não disse aonde ia.

- Eu gostaria que Roger não fosse tão misterioso nos seus movimentos - observou o general depois de despedir-se dele. - Porque não diria aonde foi?

O general sofrera muito com a perda dos filhos. Envelhecera bastante nos últimos três meses, e estava sempre pronto, mais do que antes, a enfurecer-se sem motivo e pelas menores coisas. Impôs-se um silêncio obstinado a respeito da catástrofe que o atingira. não podia falar em Tommy nem em jim, mas a tensão abatera-o muitissimo e os seus nervos viviam num estado de absurda irritação. Mrs. Henderson dizia que a sua rabugice era apenas aparente; no íntimo era o mesmo homem dedicado, altruísta e bem intencionado de sempre.

- Não está um dia encantador? - disse ela para o distrair.

- Algumas roseiras já têm botões.

O general, tirando os óculos de leitura, contemplou a linda vista que conhecia desde quando podia lembrar-se. As árvores estavam sem folhas, mas a imponência dos seus galhos nus emprestava à paisagem, numa estação tão amena, uma austeridade mais solene. Os contornos, no ar límpido e claro, tinham uma suave e preciosa delicadeza. Era, sem dúvida alguma, um belo panorama. Olhou para tudo com uma singular intensidade. Dir-se-ia estar a pensar que não tornaria a ver aquilo, e fixava cada particularidade na sua memória para que pudesse guardar uma imperecível recordação. Suspirou.

-Quisera que não estivesse um tempo tão encantador. É em dias como o de hoje que sinto pena de ter de separar-me disto.

- Oh, papá, não fale assim! - disse Jane alegremente.

- Minha querida, para quê termos ilusões. Não poderemos viver aqui depois da guerra. Estaremos pobres como ratos de igreja. A vida que conhecemos e amamos já se foi para nùnca mais voltar.

-Nada neste mundo pode durar eternamente, George. Tivemos muitas coisas boas - acrescentou Mrs. Henderson.

Ele sorriù para ela com tristeza.

- Não me queixo, querida. Seria desumano não ter saudades do passado, mas espero ser capaz de enfrentar o futuro como um homem. Jim e Tommy já se foram e atrás de mim resta apenas Roger.

- Oh, George. - começou Mrs. Henderson, compadecida.

Mas ele interrompeu-a.

-Não, querida, deixa-me falar. Tenho estado a remoer isto há muito tempo e agora preciso desabafar. Nem sempre fomos inteligentes, nós proprietários de terras; posso dizer que fomos orgulhosos, mas sem deixar, no conjunto, de ser dignos e honestos e de fazer o melhor pela nossa pátria. Talvez tenhamos aceitado as boas coisas que nos couberam por sorte, como se tudo nos fosse devido, mas de acordo com o nosso saber tentámos ser os melhores, e penso que posso dizer, a maior parte de nós - cumprir o nosso dever. Mas tens razão, querida; tivemos os nossos bons momentos. Que dizia quando Falava em aquecer ambas as mãos diante do fogo da vida? Vai-se apagando e está pronto para pertencer aos soldados, marinheiros e todos quantos participam da guerra. Tenhamos esperança de que é mais feliz e melhor para todas as pessoas.

Não era com muita frequência que o viam aceder a tais sentimentos. Mrs. Henderson apertou-lhe a mão com amorosa simpatia. Ela também não tinha outra coisa senão tristeza por aquela terra. O silêncio desceu sobre eles. Foi interrompido pela entrada de Nobby, que entregou um maço de cartas ao general. Este dirigiu-se a Jane:

-Aqui está uma carta para ti, querida.

- É de Ian! - gritou ela, excitada.

Abriu o sobrescrito imediatamente e começou a ler a carta com avidez.

- De onde é? - perguntou o general.

-Não diz. Está bem e feliz. Sempre alegre. Queixa-se do calor. Oh!, ouçam. -Começou a ler alto. - Já estiveste com Dick Murray? Quando receberes esta já ele deve ter regressado. Que má sorte a sua! Mas, de qualquer maneira está fora da guerra, pobre rapaz. Que quererá lan dizer?

- Receio que isto signifique que Dick está muito ferido - disse Mrs. Henderson.

- Não o mandariam embora se não fosse coisa muito séria - acrescentou o general.

- Oh!, pobre Dick!

Neste mesmo instante Roger saiu de dentro de casa.

- Roger - gritou Jane. - Acabo de receber uma carta de Ian. Parece que Dick está sèriamente ferido.

- Acabo de vê-lo no hospital.

-Como soubeste que estava lá?

- Tratei de o procurar - respondeu secamente. - Onde está May?

Jane olhou-o inquisitivamente. Roger parecia triste.

-Não está à morte?

-Não, não vai morrer.

-May está com as crianças.

- Vai e fica no lugar dela, porque preciso falar-lhe.

A sua atitude foi tão peremptória que Jane, sempre disposta a responder com dureza, compreendeu instintivamente que o momento não era indicado para discussões.

- Está bem.

Entrou em casa e Roger seguiu-a. May encontrou-o a andar de um lado para o outro na biblioteca. Era o compartimento de que ele mais gostava na casa. Ela parou, ainda no limiar, quando viu o rosto de Roger. Vacilou, com o pressentimento de que ia anunciar-lhe a morte de Dick. Os joelhos tremeram-lhe.

- Entra, May.

Ela deu um passo á frente. Pôs a mão no espaldar de uma cadeira para segurar-se.

-Acabo de ver Dick. Está num hospital militar a cerca de trinta milhas daqui.

- Está à morte! - exclamou ela.

- Não, não está a morrer, Está cego.

May deu um grito e as lágrimas rolaram pelo seu rosto pálido. Roger observava-a em silêncio. Com um esforço desesperado ela dominou-se e levantou os olhos para encontrar os de Roger.

- Devo ir, Roger.

- Bem sei.

Ela sentiu uma dor repentina no coração, como se o atravessassem com um estilete, porque, embora ele falasse calmamente, a sua voz era de completo desalento. Tentou convencer-se de que há muito tempo Roger não lhe ligava importância, mas foi em vão; não podia ser desonesta a ponto de querer acreditar; Roger amava-a sinceramente.

- Não penses que sou muito má, Roger.

- Minha querida, sei que és incapaz de ser má.

- Se não houvesse acontecido isto, garanto-te que ficaria. Com o tempo tudo se recomporia. Mas agora é diferente. Compreendes?

- Sim, compreendo muito bem. - Um som estranho escapou-se-lhe da garganta; alguma coisa semelhante a um riso triste e também a um suspiro. - A sorte foi contra mim.

-Posso ir agora?

-Sim. Nobby leva-te de automóvel.

- Então, adeus e muito obrigado.

- Adeus, May.

Ela estendeu-lhe a mão. Roger segúrou-a por um instante, com um amargo sorriso; depois, ela voltou-se e saiu ràpidamente da sala. Ele hesitou um momento, como se não soubesse bem que fazer, depois pegou num jornal ilustrado, sentou-se num sofá e começou a olhar para ele. O tempo passava. Ouviu a porta abrir-se, mas não levantou os olhos. Era Jane. Entrou, sentou-se ao lado dele e passou-lhe carinhosamente o braço em torno dos ombros.

- Porque não estás a cuidar das crianças?

- Não fales, meu tolo.

Ele continuou a olhar para o jornal, e ela pôs-se também a contemplar as gravuras.

- Penso que já sabias - disse ele.

-Sim, há muito tempo.

- Eu amava-a, Jane, amava-a a meu modo.

- Eu sabia, meu caro. Mas talvez não fosse o modo apropriado. As mulheres são bichos curiosos.

-Na realidade, nunca gostaste muito dela.

- Oh, sim, gostava. Acho que ela era um amor: Um pouco sem sal, mas muito boazinha.

- Maldosa!

Voltou a página e olhou para outra gravura.

Não sabia quanto tempo levou a ver a mesma fotografia.

- Ele está cego. Assim que o soube, compreendi que não havia remédio. Convenci-me de que se May tivesse de escolher entre um homem perfeito e sadio e um cego, não hesitaria. Vi logo que eu ficava com uma desvantagem tremenda.

- Que patifaria. Achas que ele fez isso de propósito?

-És louca, Jane.

Viraram outra página e com certo interesse olharam para a fotografia de um grupo de mulheres jovens com grandes chapéus e pouca roupa, cada uma delas levantando mais alto que a cabeça a perna direita, calçada com uma meia preta.

-De qualquer maneira resta o meu trabalho. É o que interessa. - E para reforçar a frase:- Haverá sempre uma Inglaterra.

Sorriu e, pela primeira vez, olhou para Jane.

- Não é má frase, mas acho que já a ouvi antes.

- Não é possível. Acabo de a inventar neste momento.

Apertou a mão da irmã e disse-lhe:

- És uma boa menina, Jane.

- Não, meu caro - retorquiu ela. - Não sou boa. Sou bonita.

 

                                                                                Somerset Maugham  

 

                      

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