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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AO VENCEDOR / Isaac Asimov
AO VENCEDOR / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AO VENCEDOR

 

Não é sempre que me encontro com meu amigo George, mas quando isso acontece, sempre pergunto como vai o pequeno demônio que ele diz ser capaz de conjurar.

- Um escritor de ficção científica velho e careca afirmou certa vez que os feitos de uma tecnologia muito mais avançada que a nossa poderiam facilmente ser confundidos com magia – disse-me ele. – Acontece, porém, que meu pequeno amigo Azazel não é um ser extraterrestre, mas um demônio autêntico. Ele pode ter apenas dois centímetros de altura, mas é capaz de fazer coisas espantosas… Espere aí. Como é que você sabe que ele existe?

- Você mesmo me contou.

George franziu a testa em sinal de reprovação e declarou, muito sério:

- Jamais menciono Azazel.

- A não ser quando está falando – disse eu. – O que ele tem feito ultimamente?

George foi buscar um suspiro na região dos dedos dos pés e descarregou-o, carregado de cerveja, na atmosfera inocente.

- Pronto – disse -, agora você me deixou triste. Meu jovem amigo Theophilus sofreu por nossa causa, minha e de Azazel, embora tivéssemos a melhor das intenções. – Levantou a caneca de cerveja e prosseguiu.

Meu amigo Theophilus [disse George], que você não conhece, porque circula em meios bem mais sofisticados que os que você freqüenta habitualmente, é um rapaz de fino trato que não podia resistir a um rabo-de-saia (algo a que felizmente sou imune), mas enfrentava grandes dificuldades para se relacionar com o sexo oposto. Um dia, ele me disse:

- Não consigo entender, George. Minha inteligência é normal; tenho um papo agradável; não sou nenhum monstro…

- É verdade – respondi. – Você tem os olhos, o nariz, o queixo e a boca nos lugares certos e na quantidade cor-reta. Isso eu tenho de admitir.

- …e sei tudo a respeito das teorias do amor, embora não tenha tido muitas oportunidades para praticar. Mesmo assim, sinto-me incapaz de atrair a atenção dessas adoráveis criaturas. Observe que estamos praticamente cercados por elas, e no entanto nenhuma até agora se aproximou de mim tentando puxar conversa, embora eu esteja aqui sentado com uma expressão muito receptiva no rosto.

Suas palavras me deixaram penalizado. Eu o conhecia desde a infância, quando, lembro-me muito bem, cheguei a segurá-lo no colo, a pedido da mãe, que o estava amamentando, enquanto ela ajeitava o vestido. Essas coisas marcam a gente.

- Você ficaria muito feliz, meu caro amigo, se as mulheres se sentissem atraídas por você?

- Para mim seria o paraíso – disse, simplesmente.

Como eu podia negar-lhe o paraíso? Expliquei o problema a Azazel, que, como sempre, reagiu de forma negativa.

- Por que não me pede um diamante? Posso fabricar para você uma pedra sem jaca, de meio quilate, simplesmente mudando o arranjo dos átomos em um pedaço de carvão… mas tornar o seu amigo irresistível às mulheres? Como vou fazer isso?

- Você não pode mudar o arranjo dos átomos do meu amigo? Quero fazer alguma coisa por ele, quando mais não seja para prestar uma
homenagem ao fabuloso equipamento alimentício da mãe dele.

- Hum, deixe-me pensar. Os seres humanos secretam feromônios. Naturalmente, com essa mania de tomar banho toda hora e usar desodorantes, vocês nem se lembram mais disso. Entretanto, talvez eu possa estimular as glândulas do seu amigo a produzirem quantidades significativas de um feromônio particularmente eficaz no momento em que a desagradável imagem de uma fêmea da sua repulsiva espécie se formar na sua retina.

- Ele não vai cheirar mal?

- Não, não. Será um odor quase imperceptível, mas exercerá um poderoso efeito sobre a fêmea da espécie, na forma de um desejo atávico e inconsciente de aproximar-se e sorrir. O resto ficará por conta do seu amigo.

- Não se preocupe. Theophilus tem muitas qualidades. Tenho certeza de que, uma vez rompida a barreira inicial, ele dará conta do recado.

Na vez seguinte em que esbarrei em Theophilus, pude constatar a eficácia do tratamento de Azazel. Foi em um café de beira de calçada.

Custei um pouco para vê-lo, porque o que me atraiu a atenção inicialmente foi um grupo de mulheres distribuídas em círculo. Sou, afortunadamente, imune a mulheres jovens, pois cheguei à idade da discrição, mas era verão e elas estavam todas vestidas com uma insuficiência calculada de tecido que eu (como homem discreto que sou) comecei a estudar discretamente.

Foi apenas depois de alguns minutos durante os quais, lembro-me bem, analisei o esforço a que estava submetido um botão que mantinha fechada uma certa blusa, e imaginei que aconteceria se… mas isso é outra história. Foi apenas depois de alguns minutos que notei que ninguém outro senão Teophilus estava no centro do círculo e parecia ser o alvo das atenções daquelas jovens estivais. O calor da tarde indubitavelmente acentuara os efeitos do feromônio.

Abri caminho naquele anel de feminilidade e, com sorrisos e piscadelas paternais e um ocasional tapinha avuncular no ombro, sentei-me em uma cadeira ao lado de Theophilus, que uma atraente rapariga desocupara para mim com um beicinho petulante.

- Theophilus, meu jovem amigo! Que visão agradável!

Foi então que notei que o rosto do meu amigo estava contraído em uma expressão de tristeza. Perguntei, preocupado:

- O que há com você?

Ele respondeu quase sem mexer os lábios, falando tão baixo que mal consegui ouvi-lo.

- Pelo amor de Deus, tire-me daqui.

Como você sabe, tenho uma presença de espírito invejável. Levei apenas alguns segundos para levantar-me e dizer:

- Queridas, meu amigo aqui, por uma razão biológica inadiável, tem necessidade de visitar o banheiro dos homens.

Permaneçam sentadas, que ele logo estará de volta.

Entramos no pequeno restaurante e saímos pela porta dos fundos. Uma das jovens, cujos bíceps avantajados não tinham nada de femininos, e cujo olhar de desconfiança me chamara a atenção, tinha dado a volta e estava à nossa espera na calçada, mas nós a vimos a tempo e conseguimos pegar um táxi. Ela nos seguiu a pé por dois quarteirões antes de desistir.

Na segurança do quarto de Theophilus, perguntei a ele:

- Meu amigo, é óbvio que você descobriu o segredo de como atrair as mulheres. Não está satisfeito com isso? Não é o paraíso que estava procurando?

- Não – disse Theophilus, enquanto se acalmava aos poucos no ar condicionado. – Elas me procuram todas ao mesmo tempo. Não sei como aconteceu, mas de repente descobri, faz algum tempo, que mulheres estranhas eram capazes de se aproximar de mim e me perguntar se não nos conhecíamos de Atlantic City. Nunca, em toda a minha vida, estive em Atlantic City! – acrescentou, com indignação.

“No momento em que neguei o fato, outra mulher se aproximou e afirmou que eu tinha deixado cair meu lenço e que gostaria de devolvê-lo, enquanto uma terceira me perguntava: “Que acha de trabalhar num filme, garoto?”

- Tudo que você precisava fazer era escolher uma delas. Eu ficaria com a que lhe ofereceu um emprego no cinema. É uma vida mansa, e você estaria cercado de jovens atrizes.

- Mas  eu não posso escolher nenhuma! Elas se vigiam como feras. No momento em que dou mais atenção a uma delas, as outras começam a puxar-lhe o cabelo e a expulsam da roda. Continuo sem mulher como antes, e antigamente pelo menos não tinha de ficar olhando para elas enquanto balançavam os seios na minha frente.

Suspirei e disse:

- Por que não organiza um torneio eliminatório? Quando estiver cercado de mulheres, como estava há alguns instantes, diga a elas: “Meus anjos, sinto-me profundamente atraído por todas e cada uma de vocês. Assim sendo, peço a gentileza de se colocarem em fila, em ordem alfabética, para que possa beijá-las sem tumulto. A que tiver o melhor desempenho será convidada a passar a noite comigo”. Que tal?

- Humm… – fez Theophilus. – Por que não? Ao vencedor cabem os despojos, e eu adoraria ser o despojo da vencedora. – Lambeu os lábios e começou a praticar, jogando beijos no ar. – Acho que agüento. Será que devo sugerir que elas me beijem com as mãos atrás das costas, para tomar a coisa menos cansativa?

                – Não acho que seja uma boa idéia, meu amigo. Um pouco de exercício não faz mal a ninguém. Se eu fosse você, deixaria que elas agissem como lhes aprouvesse.

- Talvez você tenha razão – disse Theophilus, reconhecendo que, nesse assunto, minha experiência me confere uma Certa autoridade.

Pouco depois que tivemos esta conversa, tive de sair da cidade para tratar de negócios. Quando tornei a ver Teophillus, um mês se passara. Encontrei-o por acaso, em um supermercado. Estava empurrando um carrinho. Sua expressão me deixou surpreso. Parecia um animal acuado. Olhava assustado em todas as direções.

Quando me aproximei, ele deu um grito e se abaixou. Depois, reconheceu-me e exclamou:

- Graças a Deus! Pensei que fosse uma mulher.

Sacudi a cabeça.

- O problema continua? Você desistiu do torneio eliminatório?

- Não. Bem que tentei, mas não deu certo.

- Que aconteceu?

- Bem… – Ele olhou para um lado e para o outro e depois esticou o pescoço para examinar o corredor. Vendo que a costa estava limpa, dirigiu-se a mim num tom discreto e apressado, como quem sabe que é preciso manter sigilo e não há tempo a perder.

Fiquei esperando que ele continuasse.

- Organizei tudo – continuou. – Fiz com que elas preenchessem um formulário onde constavam a idade, a marca de pasta de dentes, três referências… o de praxe. Depois, marquei a data. A competição seria realizada no salão de baile do Waldorf-Astoria, com um suprimento abundante de manteiga de cacau, os serviços de uma massagista profissional e um tanque de oxigênio para me manter em forma. Na véspera do dia marcado, porém, um homem foi me visitar em meu apartamento.

“Eu disse um homem, mas aos meus olhos atônitos ele parecia mais uma pilha de tijolos em movimento. Tinha mais de dois metros de altura e mais de um metro e cinqüenta de largura, com punhos do tamanho de martelos. Ele sorriu, mostrando os dentes afiados, e disse:

“”Moço, minha irmã vai participar do torneio amanhã.”

“”Que bom!”, exclamei, ansioso para manter a conversa em um tom amigável.

“”Minha irmãzinha prosseguiu. “A única flor delicada de nossa família. Eu e meus três irmãos temos por ela um profundo carinho e detestaríamos que ficasse desapontada.”

“”Os seus irmãos são parecidos com você?”, perguntei.

“Não, não”, respondeu, com um suspiro. “Fui muito doente na infância, e em conseqüência meu crescimento ficou prejudicado. Meus irmãos, porém, são rapazes fortes e saudáveis, mais ou menos desta altura.” Levantou a mão para um ponto que ficava no mínimo dois metros e trinta acima do solo.

“”Estou certo de que a sua encantadora irmã tem uma boa chance de ganhar”, apressei-me a dizer.

“”Fico muito satisfeito em saber disso. Na verdade, a natureza, talvez para me compensar pela debilidade física, me concedeu o dom da clarividência, e posso ver diante dos meus olhos que minha irmã vai ganhar a competição. Por alguma estranha razão, minha irmãzinha se sente atraída por você, e eu e meus irmãos nos sentiríamos humilhados se ela fosse preterida por outra. E quando nos sentimos humilhados…”

“Ele sorriu, e seus dentes pareciam ainda mais pontudos do que antes. Depois, estalou devagar as juntas da mão direita, uma por uma, fazendo um barulho como o de um fêmur se partindo. Eu nunca tinha ouvido o barulho de um fêmur se partindo, mas podia imaginar como era.

“Disse para ele: “Tenho um pressentimento de que a sua visão vai se concretizar. Por acaso não tem no bolso uma fotografia da sua irmã?”

“”Para dizer a verdade, tenho sim”, disse ele. Mostrou-me a foto, e devo admitir que por um momento me senti penalizado. Não me parecia que a jovem tivesse a menor possibilidade de vencer a competição.

“Entretanto, o rapaz devia ter mesmo poderes parapsicológicos, porque, apesar de tudo, a irmã dele ganhou por larga margem. Houve um verdadeiro tumulto quando a decisão foi anunciada, mas a própria vencedora se encarregou de expulsar da sala as outras concorrentes e desde aquele dia, infelizmente (ou melhor:  felizmente), nunca mais nos separamos. Na verdade, lá está ela, perto do balcão das carnes. Ela adora carne… embora nem sempre se dê o trabalho de cozinhá-la.

Quando olhei na direção para onde ele estava apontando, reconheci imediatamente a jovem; era a mesma que havia perseguido nosso táxi por dois quarteirões. Era indubitavelmente uma menina decidida. Admirei-lhe os bíceps avantajados, as panturrilhas bem desenvolvidas e as sobrancelhas cerradas.

Disse para ele:

- Sabe de uma coisa, Theophilus? Pode ser possível diminuir a atração que você exerce sobre as mulheres ao nível insignificante de antes.

Theophilus suspirou.

- Seria muito arriscado. Minha noiva e os irmãos dela poderiam interpretar de forma errônea sua falta de interesse.

Além disso, existem certas compensações. Posso, por exemplo, andar em qualquer rua da cidade a qualquer hora da noite e me sentir perfeitamente seguro; basta que ela esteja a meu lado. Quando um guarda de trânsito se mete a engraçadinho comigo, minha noiva faz uma careta para ele e tudo se acerta. Além disso, ela é muito exuberante e criativa em suas demonstrações de afeto. Não, George, já aceitei o meu destino.

Dia 15 do mês que vem, vamos nos casar e ela entrará comigo nos braços no apartamento que os irmãos compraram para nós. Eles ganharam uma fortuna no negócio de ferro-velho, porque não precisam de máquinas compactadoras; usam os punhos. Só que às vezes penso como seria se…

Os olhos do meu amigo tinham se desviado, involuntariamente, para a silhueta graciosa de uma jovem loura que caminhava pelo corredor em sua direção. A moça também estava olhando fixamente para ele, e um tremor parecia percorrer-lhe o corpo.

- Desculpe – disse, timidamente, com uma voz musical -, mas não nos encontramos recentemente em um banho turco?

Nesse exato momento, ouvimos o som de passos pesados e uma voz de barítono se intrometeu na conversa.

- Teophilus, meu bem, essa… essa sirigaita está incomodando você?

A noiva de Theophilus olhou de cara feia para a mocinha, que se encolheu, aterrorizada.

Coloquei-me rapidamente entre as duas mulheres. estava correndo um sério risco, é claro, mas todos sabem que sou corajoso como um leão. Disse para a noiva do meu amigo:

- A senhora está cometendo um terrível engano. Esta doce criança é minha sobrinha. Quando me viu a distância, dirigiu-se ao meu encontro para me cumprimentar com um casto beijo na testa. O fato de o seu namorado estar perto de mim foi mera coincidência.

O mesmo olhar de suspeita que eu havia observado na noiva de Theophilus na primeira vez em que nos encontramos apareceu de novo no seu rosto.

- Ah, é? – disse, em um tom que, ao contrário do que eu gostaria, era totalmente desprovido de humor. – Nesse caso, quero que dêem o fora. Vocês dois. Já.

Depois de pesar os prós e os contras, cheguei à conclusão de que era mesmo a melhor coisa a fazer. Ofereci o braço à jovem e nos afastamos, deixando Theophilus entregue ao seu destino.

- Muito obrigada – disse a mocinha. – O senhor pensou depressa e foi muito corajoso. Se não tivesse me socorrido, eu certamente não teria escapado sem muitos arranhões e contusões.

- O que seria uma pena, pois um corpo como o seu não merece sofrer arranhões. Nem contusões – acrescentei, com um sorriso galante. – Você estava falando em banho turco.

A mim parece um ótimo programa. Acontece que, por acaso, tenho um no meu apartamento. Bem, não é exatamente um banho turco, mas é um banho americano. Praticamente a mesma coisa…

Afinal de contas, ao vencedor…

 

                                                                                              Isaac Asimov

 

Carlos Cunha Arte & Produção Visual