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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


APELO DAS ESTRELAS - P.2 / Sue Harrison
APELO DAS ESTRELAS - P.2 / Sue Harrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

APELO DAS ESTRELAS

Segunda Parte

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         6435 a. C.

 

                   História de Filha

K’os estendeu os braços e agarrou as mãos de Uutuk. Agacharam-se no topo do ulax do chefe dos caçadores, sozinhas, tendo apenas o vento por companheiro.

- Um dos motivos por que te trouxemos nesta viagem foi para te arranjar um marido - disse K’os.

Largou Uutuk e levantou-se. Pôs as mãos ao fundo das costas, inclinou-se na direção do vento e flexionou os ombros. Riu e acrescentou:

- Estou velha demais para passar tanto tempo apanhando ouriços-do-mar.

Uutuk levantou-se, pousou as mãos fortes nos ombros da mãe e massageou-lhe os músculos. K’os fechou os olhos.

- Aã, Uutuk, és uma boa filha - disse ela, sem abrir os olhos. - O que achas do homem do Povo Rio, Ghaden?

As mãos de Uutuk imobilizaram-se, mas em seguida recomeçaram a massageá-la com ainda mais força, até que K’os se afastou.

- Uutuk, estás dando-me cabo dos ombros! Olhando para a aldeia, Uutuk pediu desculpa em voz baixa, mas, como estava virada para o vento, quando chegaram aos ouvidos de K’os as suas palavras estavam deturpadas e emaranhadas como as ervas da praia. K’os obrigou a moça a virar-se para ela.

- Não te ouvi.

- Ele é um bom comerciante, e ouvi dizer que a sorte o favorece na caça, mas é do Povo Rio.

Uutuk estendeu as mãos com a palma virada para cima, como se perguntasse ao céu o que pensava.

- Eu também sou - disse K’os. - O que quer dizer que tu também és.

- Achas que se ele arranjasse uma mulher dos Primeiros Homens estaria disposto a ir viver na ilha dela? perguntou Uutuk.

Voltou a agachar-se e puxou o sax até os pés. K’os também se agachou e protegeu a boca com a mão para que o vento não lhe levasse as palavras.

- Não - respondeu ela. - Ele não iria. Ele não é comerciante. É caçador. Não podes esperar que um homem adulto volte a ser rapaz e aprenda a caçar animais marinhos quando já sabe apanhar caribus, alces e ursos. Mas, pelo menos, como o pai é comerciante, ensinou-o a servir-se de um iqyax. Se ele arranjasse uma boa esposa dos Primeiros Homens, talvez, antes de ela envelhecer, ele a levasse de novo à sua ilha, para ela visitar o seu povo.

- Tu queres que eu case com um homem do Povo Rio.

- Só se ele for um bom marido para ti e um bom pai para os teus filhos.

- Salmão Branco teria sido um bom marido e um bom pai.

Havia uma rispidez na voz de Uutuk que surpreendeu K’os. A moça quase não se lamentara quando Foca recusara aquilo que Salmão Branco queria dar por ela.

- Ele ofereceu pouco por ti - disse K’os. - Como é que um homem pode apreciar uma mulher se a conseguir com tanta facilidade? Nem sempre concordo com o teu pai, mas dessa vez ele teve razão. Se Salmão Branco te quisesse verdadeiramente, estaria disposto a caçar durante mais um Verão para te pagar.

- Eu não sabia que ele tinha oferecido tão pouco, disse Uutuk. Falou de novo na língua dos Primeiros Homens, com uma voz débil, como a de uma criança. - Ele disse-me que iria oferecer dez odres de óleo, dez peles de lontra, cinco grossas peles de foca e muitos sacos de peixe seco. Disse que, se isto não fosse suficiente, a mãe dele tinha um sax de pele de pássaro e três pares de botas de barbatanas de foca que estaria disposta a ceder, mas que eu teria de costurar para ela durante o primeiro Inverno depois de me casar.

- Ele mentiu - disse K’os.

Uutuk cruzou os braços sobre os joelhos.

- Porque ele mentiria? - perguntou ela, com a voz embargada pelas lágrimas.

- Sei lá! Talvez ele pensasse que tu serias uma esposa melhor se acreditasses que ele tinha oferecido tanto por ti respondeu K’os.

- O que ele ofereceu?

- Não precisas saber. Mais do que muitos jovens dariam, mas não o suficiente para ti.

K’os recuou até ficar sentada atrás de Uutuk. Depois, devagarinho, tirou os cabelos de Uutuk do decote do sax e começou a penteá-los com os dedos, lutando contra o vento quando ele tentava roubar-lhe as madeixas das mãos.

- Salmão Branco não era hábil na caça. Até o iqyax e as armas dele são malfeitos. Achas que um animal marinho se sente respeitado ao ver um iqyax com as juntas fracas ou a cobertura esburacada? Achas que um arpão com a ponta torta consegue atingir o que deve? Talvez ele tenha dito que ofereceu tanto por ti para esconder os seus fracos dotes de caçador.

K’os inclinou-se por cima do ombro de Uutuk para lhe ver o rosto.

- Lembras-te de quando eras pequenina e eu te fazia tranças iguais às das mulheres do Povo Rio?

Uutuk sorriu.

- Lembro.

- Deixa-me te fazer tranças.

- Faz o que quiseres - respondeu Uutuk.

- Aqui em cima está muito ventoso.

K’os levantou o queixo e apontou para o local em que o ulax as protegia do vento.

Uutuk deixou-se escorregar pela grama do telhado e estendeu os braços para ajudar a mãe. Em seguida, cruzou as pernas como uma mulher do Povo Rio e deixou que K’os lhe fizesse as tranças.

- O que queres em troca da parka? - perguntou Ghaden a Cen.

- Tens alguém que a queira?

- Há duas mulheres interessadas.

- Ainda bem! - exclamou Cen. - Põe-nas uma contra a outra. Recebe o mais que puderes.

- Elas ofereceram óleo e um sax.

- Vê se consegues também um par de botas de barbatana de foca e um chigdax. Vendem-se bem ao Povo Rio. As mulheres deles também não sabem fazê-los.

- Na minha aldeia, todas as mulheres do Povo Rio sabem fazer um chigdax.

- Hayh! - exclamou Cen, fazendo estalar os dedos no ar. - A tua irmã é mais generosa do que deve - acrescentou ele, sem malícia.

- Duas mãos-cheias de odres de foca? - perguntou Ghaden.

Cen fez um sinal afirmativo e disse:

- Mais o sax e um chigdax. Talvez as botas. Quero levar à minha mulher uma boa compensação por esta parka. Ela dá muita sorte. Não te esqueças de explicar o significado dos bicos de pica-pau.

- Já expliquei.

- Muito bem. - Cen perscrutou o céu e viu o Sol esconder-se por trás de um castelo de nuvens altas. - Lá vai metade do dia. Tens fome?

- Já comi alguma coisa - respondeu Ghaden.

- Qung deve ter algo na panela.

Ghaden foi embora e virou-se para trás para observar Cen, que levantou a voz para atrair alguns caçadores ao local onde expusera as suas mercadorias. Nesse dia, tinham chegado dois grupos de homens dos Morsas. Os Morsas estavam sempre ansiosos por armas, e Cen dispunha de um bom fornecimento de cabos de lança de madeira de bétula. Contava fazer alguns bons negócios.

Ghaden não foi logo ao ulax de Qung; preferiu ir à despensa onde Cen e ele guardavam os alimentos e alguns objetos para vender. Prometera uma das parkas de Aqamdax a um caçador dos Primeiros Homens em troca de seis odres de óleo. Levou a parka, umas peles de lobo, um pacote de dentes de urso e vários colares feitos de unhas de animais. Talvez o homem quisesse trocar mais uns odres de óleo por uma unha de urso ou uma pele de lobo.

Ghaden esfregou a cicatriz que tinha no pescoço. Às vezes, dava-lhe comichão, como se o espírito do urso pensasse nele de vez em quando. Para os Primeiros Homens, uma unha de urso podia render muito, ou absolutamente nada. Como Cen lhe dizia tantas vezes, o valor de uma coisa variava de homem para homem.

 

- Aquele, o rapaz do Povo Rio - disse K’os, apontando para Ghaden, que conversava com vários caçadores dos Primeiros Homens.

Ghaden empunhava uma pele de lobo e tinha alguma coisa pendurada na mão esquerda, mas K’os estava longe demais para ver do que se tratava.

- Para marido de Uutuk? - perguntou Foca.

- É um assunto para pensar - respondeu ela. - Conheço a família dele. A irmã é casada com o chefe dos velhos das aldeias do Povo Rio, e a mãe era dos Primeiros Homens. Por isso é que ele fala a nossa língua.

- Talvez fosse melhor para nós que ela se casasse com um caçador - disse Foca. - Como eu sou comerciante e posso arranjar tudo aquilo de que precisamos...

- Mais do que precisamos - interpôs K’os. - Não há muitos comerciantes tão dotados como tu.

Foca fez uma careta, e K’os sentiu a gabarolice nas suas palavras quando ele disse:

- Então, de que serve ela casar com um comerciante?

- Ele é caçador - explicou K’os. - O pai é que é comerciante e às vezes Ghaden acompanha-o nas viagens.

- É um bom caçador? - perguntou Foca.

- Qung contou-me que ele matou um urso-pardo que o atacou.

Foca inclinou a cabeça e fez um ruído com a garganta. Seria riso ou desdém? K’os não tinha a certeza.

- Digo a Uutuk que se afaste dele? - perguntou ela. Foca respirou fundo, expelindo o ar que tinha no peito.

- Vê o que ele oferece por ela. Vê se ele quer vir conosco para ficar na nossa ilha e caçar lá.

K’os ia explicar-lhe que Ghaden não entendia muito de animais marinhos, mas dobrou a língua. Foca que acreditasse no que quisesse. Depois de Uutuk ser mulher de Ghaden, seria tarde demais para Foca alterar a situação só porque o homem caçava caribus e não leões-marinhos.

K’os fez um sinal de assentimento e depois perguntou:

- Posso arranjar-te algo para comer?

- A primeira esposa do chefe deu-me comida - respondeu ele. - Mas há muito tempo que não te tenho na minha cama.

K’os esboçou um sorriso e deixou que o seu olhar se detivesse por instantes no sexo de Foca.

- Quando acabares o teu negócio, vem se encontrar comigo, disse ela, afastando-se rebolando.

Quando percebeu que Foca já não podia ouvi-la, olhou para o Sol, que se escondia atrás de um espesso manto de nuvens, e disse:

- Olhem! O que vejo eu? Ao dar, tira. Ao tirar, vive. Uma adivinha para ti, minha irmã no céu.

 

Ghaden disse algo entre dentes e examinou o sax de pele de foca. Era bonito e mais prático para um homem do Povo Rio do que um sax de pele de pássaro. Além disso, era mais quente e não se rompia com facilidade, mas as mulheres do Povo Rio não costuravam peles de pássaro com penas e por conseguinte um sax destes teria mais valor.

- Dois dentes e uma unha, e por uma pele de lobo dou-te estas botas de barbatana de foca - disse o homem.

As botas estavam velhas, mas pareciam ter sido pouco usadas.

- Eu as oleei sempre - explicou o homem. Ghaden trocou os dentes e a unha pelo sax de pele de foca, deu-lhe para escolher as peles em troca das botas e depois perguntou-lhe se sabia de alguém que tivesse botas de barbatana de foca para vender.

- Às vezes, as velhas fazem uns pares a mais e querem trocá-las por comida. Tens carne de caribu?

- Alguma - respondeu Ghaden, já pensando em Qung. Ele e o pai dariam à velha uma boa quantidade de carne seca por ficarem no seu ulax, mas talvez ela tivesse botas para trocar, ou soubesse de alguém que as tivesse.

Ghaden foi falar com ela depois de ter concluído os seus negócios com o caçador dos Primeiros Homens. Qung deu-lhe os nomes de três mulheres, e todas tinham alguma coisa útil para trocar - um par de botas, belos colares de conchas, um sax de pele de papagaio-do-mar, cestos de ervas tão bem feitos que Ghaden mal podia acreditar que tivessem sido dedos de mulher que os fizeram.

Ficou com tudo e guardou as mercadorias na sua despensa. Em seguida, foi falar com Cen e ofereceu-se para ficar em seu lugar junto das esteiras onde se encontravam expostos os produtos para venda.

Cen ausentou-se durante uma boa parte da tarde, e entretanto Ghaden foi à despensa buscar os odres de óleo de foca, o sax de pele de papagaio-do-mar, as botas de barbatana de foca e os cestos de ervas, duas peles de caribu que eram dele e uma mão-cheia de colares de conchas. Empilhou estas coisas junto das mercadorias de Cen e levou a parka de pele de caribu.

Ghaden tencionava falar a Cen do negócio, mas, assim que o pai regressou, um grupo de homens dos Morsas juntou-se à sua volta, começou a fazer ofertas para cabos e pontas de lanças, e Ghaden deixou que o pai se encarregasse das transações e voltou ao ulax de Qung. Precisava lhe fazer umas perguntas sobre os hábitos e dos preços das noivas dos Primeiros Homens.

Ainda estava junto de Qung quando Cen entrou. Ghaden levantou a cabeça, admirado ao ver que o pai abandonara as suas mercadorias. Um homem não tinha grandes preocupações naquela aldeia, desde que ninguém tirasse o que não lhe pertencia, mas porque ele deixaria o negócio no meio do dia, quando quase sempre se faziam as melhores trocas?

- A parka desapareceu - disse Cen, interrompendo a conversa sem meias-medidas e sem cumprimentar Qung.

- Ainda bem que vieste ao meu ulax - disse Qung, levantando-se.

A velha estava tão curvada devido à corcunda que parecia um pato andando de pernas abertas, pensou Ghaden. Coxeando, aproximou-se de um gancho onde tinha um odre de água e ofereceu-o a Cen.

Cen corou. Aceitou a água, agradeceu em surdina e depois bebeu.

- Senta-te - disse Qung, como se desse uma ordem a uma criança. - Tens fome?

- Não - respondeu Cen a custo.

- E agora, tens alguma coisa a dizer a Ghaden? - perguntou ela, erguendo as sobrancelhas e aumentando as rugas na testa.

- Sim, tenho uma coisa a dizer a Ghaden. A parka de pele branca de caribu desapareceu.

- Vendi-a - disse Ghaden.

Cen inspirou uma golfada de ar e em seguida expeliu-a através dos dentes.

- Devias ter me avisado - disse ele em voz baixa.

- Foi um bom negócio.

- O que conseguiste?

- Um sax de pele de papagaio-do-mar e outro de pele de foca, dois pares de botas de barbatana de foca, colares, cestos e oito odres de óleo. Expus o sax de pele de foca, o óleo, as botas e uns colares, mas o sax de pele de papagaio-do-mar e os cestos estão na minha despensa.

Cen ainda estava irritado, mas Ghaden percebeu que ele ficara satisfeito com os negócios, e a sua irritação foi-se desvanecendo. Todavia, espetou um dedo e agitou-o junto da cara de Ghaden, como se fosse uma velha.

- Devias ter me avisado e, apesar de ter sido um bom negócio, devias ter me consultado antes de o fazeres. A parka pertence à minha mulher.

- Os cestos e um sax de pele de pássaro não a satisfazem? - perguntou Qung.

Cen piscou e olhou para a velha, como se tivesse esquecido a sua presença.

- Ela não é difícil de contentar - respondeu ele. - Ficaria satisfeita só com os cestos, mas eu quero que ela saiba...

Cen calou-se, como se não tivesse a certeza de dizer o que queria, e Qung concluiu o seu pensamento:

- Queres que ela saiba que sentiste a sua falta e que a consideras uma boa esposa.

Cen limitou-se a resmungar alguma coisa e, ao encaminhar-se para o poste, bateu com os pés no chão, como se precisasse afirmar a sua própria importância. Quando chegou ao topo do ulax, olhou para baixo e disse a Qung:

- Vê lá se consegues ensinar-lhe a ter juízo, tia. Depois de Cen sair, Qung cobriu a boca com as mãos e desatou a rir, mas quando Ghaden a seguiu, ela agachou-se e disse:

- O teu pai tem razão, bem sabes. Não devias ter feito esse negócio sozinho. E se tivesses recebido menos?

- Não havia problema - respondeu Ghaden.

Ela inclinou a cabeça, fazendo uma pergunta sem falar.

- Eu tenho a parka de pele de caribu - explicou ele. Comprei-a para mim. Se o meu pai não ficasse satisfeito com o negócio, eu daria mais.

- Essa mulher do Povo Barco, Uutuk, filha de K’os... Tencionas oferecer a ela? - perguntou Qung.

- Como é que adivinhaste?

- Sou velha, mas vejo bem. - Qung apontou com o queixo para uma viga do ulax. - Me dá aquele odre. Preciso de óleo para a lanterna.

Ghaden levantou-se, pegou o odre, tirou a rolha e despejou o óleo na parte lateral da lanterna de pedra, muito longe do monte de musgo que ela usava como pavio.

- Tem cuidado, ou ainda tens que apagar o fogo - disse ela.

Quando o recipiente da lanterna já estava cheio, ela fez um gesto com a mão e disse:

- Pendura-o outra vez.

Ghaden voltou a pendurar o odre no gancho, e Qung apontou para o chão, fazendo beicinho.

- Acho que é melhor te sentares.

Ele virou-se para ela, mas continuou em pé.

- Senta-te!

Ele sentou-se.

- Estás preparando o que vais oferecer por essa moça, mas mal a conheces - lembrou ela. - O pai dela não é grande coisa, e já ouviste falar na mãe. Qual o homem do Povo Rio que não ouviu?

- Sim, eu conheço a mãe dela e sei o que ela fez à minha irmã - disse Ghaden.

- As filhas são como as mães. Já tens idade para saber isso.

- Uutuk não é como K’os.

Qung começou a abanar a cabeça, mantendo uma cadência como se estivesse ouvindo o rufar de um tambor. Por fim, disse:

- E se estiveres enganado? Queres arriscar-te a levar outra K’os para a tua aldeia?

- Já te disse. Ela não é como K’os.

- Viste-a costurando?

- É muito boa.

- Ela tem a sua própria bolsa de remédios, de pele de lontra. Sabias?

- Não.

- Sabes que K’os é curandeira?

- Sei.

- E também usa os seus conhecimentos sobre as plantas para matar.

- Há quem diga isso.

- Sabias que ela costura muito bem?

- Já vi algumas parkas feitas por ela.

- Então como é que podes dizer que Uutuk não é como a mãe?

- Nessas coisas, nas coisas boas, talvez ela seja parecida com K’os.

- Só nas coisas boas?

- Uutuk não é como K’os. Não há ódio nela.

Qung recomeçou a abanar a cabeça e por fim fechou os olhos. Ghaden julgou que ela tinha adormecido e ia a levantar-se quando ela disse:

- Uutuk parece ser boa pessoa, o que quer dizer que ou ela é mesmo boa, ou que é muito boa sendo má.

Ghaden pensou nas palavras de Qung e depois disse:

- Ela é boa pessoa. Eu sei.

- Então, se tens a certeza e resolveste fazer dela tua mulher, há coisas que devias saber sobre os hábitos dos Primeiros Homens.

Ghaden ficou à espera, mas Qung não disse mais nada. Por fim, ele perguntou:

- Conheces alguém que me fale desses hábitos?

- Achas que há alguém que saiba mais do que eu? Ghaden sorriu.

- Não, mas não sei se queres me contar o que sabes.

- É preferível ser eu a falar contigo do que outra pessoa que te dê maus conselhos. Mas não és a única pessoa neste ulax que negocia.

- Tenho óleo e carne de caribu - disse ele. Qung agitou a mão no ar.

- Tenho mais do que o suficiente para me manter no próximo Inverno e, além disso, ainda não estou tão velha que não possa pescar uns peixes e apanhar uns ouriços-do-mar.

- Cestos? Colares? Uma parka. Tenho uma parka feita pela minha irmã Yaa. Não é tão bonita como outras, mas a pele de caribu está bem raspada e as costuras estão direitas e são fortes.

Qung torceu o nariz enquanto pensava na oferta. Depois, por impulso, Ghaden levantou uma das unhas de urso que trazia pendurada no pescoço num fio de tendão. Desatou o fio e mostrou-lhe a unha, uma longa garra castanha e curva, bem polida com gordura de caribu. Qung piscou, pegou-a e embalou-a no colo, mas perguntou:

- O que faria uma velha com uma unha de urso?

- Poder é poder - respondeu Ghaden.

Qung deu uma gargalhada, fechou os dedos em volta da unha e manteve-a na mão enquanto falava a Ghaden dos hábitos dos Primeiros Homens quando arranjavam uma mulher.

 

- Ela vale mais do que uns odres de óleo de foca e seis colares - disse Foca a Ghaden.

Estavam sentados junto do ulax do chefe dos caçadores, ao abrigo do vento. Caminhante, irmão de uma das esposas do chefe, estava sentado ao lado deles. Era magro e alto, com o nariz grande e o rosto estreito, parecia deslocado junto dos Primeiros Homens. Tal como Foca, usava uma franja na testa e grandes batoques redondos trespassavam-lhe a pele nos cantos da boca.

- Arranja carne de caribu - disse Caminhante a Foca, com os batoques tilintando nos dentes.

- Os negócios são melhores quando se fazem entre dois homens - disse Foca. - Cala-te e deixa-me pensar.

Caminhante inclinou-se e disse algo ao ouvido de Foca, mas este empurrou-o e dirigiu-se a Ghaden:

- Ela costura bem. Queres ver uma das parkas que ela fez?

Ghaden concordou, embora soubesse que Foca estava apenas dificultando a negociação.

Foca subiu no teto do ulax, entrou e voltou com um grande fardo quadrado de comerciante. Abriu-o e tirou um sax de pele de pássaro com penas pretas, desenrolou-o e exibiu-o. Ghaden aprovou-o entre dentes e depois reparou nuns pontos de tendão vermelho à beira do decote.

- A tua mulher viveu na minha aldeia. A minha irmã mais velha foi escrava dela. Eu conheço a marca de K’os disse Ghaden, passando a mão pelos pontos vermelhos. Isto não é obra de Uutuk. Talvez te envergonhes do que ela costura...

Caminhante deu uma cotovelada em Foca e abanou a cabeça.

- Não me tomes por tolo - disse Foca a Caminhante. Não reparei que este trabalho era da minha mulher. Espera.

Foca procurou no interior do fardo e tirou outro sax, e depois mais dois, verificando o decote de todos eles. Por fim, resmungou e atirou um a Ghaden, que o desenrolou. Ghaden percebia pouco de corte e costura, mas vira Cen virar uma peça de vestuário do avesso, passar os dedos pelas costuras e cheirar as peles, e fez o mesmo. Reparou que os pontos eram pequenos e regulares, o que lhe pareceu bom. As peles de pássaro tinham um cheiro diferente das peles de caribu e portanto ele não podia se pronunciar sobre ele, mas não cheiravam a bolor.

Empinando o queixo como se soubesse do que estava falando, Ghaden disse:

- Bem-feito.

- Ela costura depressa. Consegue fazer um sax de peles de papagaio-do-mar em poucos dias.

Caminhante esfregou o nariz e comentou:

- O que entende ele de peles de papagaio-do-mar? Ele é do Povo Rio.

-As peles do papagaio-do-mar são mais pequenas que as do corvo-marinho - explicou Foca a Ghaden. - Uma mulher leva mais tempo fazendo um sax de pele de papagaio-do-mar.

Ghaden não respondeu. Caminhante ofendera-o, revelando a sua ignorância sobre papagaios-do-mar e corvos-marinhos, mas Foca não reparou no seu silêncio. Continuou falando das habilidades da filha.

- A mãe ensinou-a a lidar com as plantas. É útil ter uma mulher que entende alguma coisa de curas.

- Ela estaria disposta a viver com o Povo Rio? - perguntou Ghaden.

- Ela quer um marido que cace para a família. Como podes fazer tal coisa se fores viver numa aldeia do Povo Rio?

A princípio, Ghaden não respondeu. Com certeza que Foca era suficientemente esperto para perceber que um homem que passara a sua vida aprendendo a caçar caribus não teria grande préstimo caçando animais marinhos. Mas para quê levantar o assunto?

- Eu podia garantir que o meu pai traria sempre um bom fornecimento de carne de caribu seca à Praia dos Comerciantes, todos os Verões - disse Ghaden. - Podias vir aqui buscá-la. Como sabes caçar, com certeza não precisas de mais carne de foca nem de leão-marinho e, sendo comerciante, podias fazer bons negócios com a carne de caribu que eu te arranjasse.

Caminhante voltou a dizer algo ao ouvido de Foca. Dessa vez, Ghaden ouviu. Era um insulto, mas Ghaden conteve-se e esperou que Foca falasse.

- Como posso ter certeza de que farás tal coisa? perguntou Foca. - Não venho a esta praia todos os anos. A viagem é muito longa.

- Dou-te a minha palavra. Pergunta a alguém que me conheça, e te dirão que eu não minto. Mandarei a carne, quer tu venhas, quer não. Se não vieres, o chefe dos caçadores pode consumi-la e depois compensar-te com óleo de foca por aquilo que ele e o seu povo comeram. Bem sabes que podes confiar nos homens desta aldeia. Muitas vezes, fazem coisas como estas pelos comerciantes. Porque julgas que os comerciantes continuam a vir a esta praia?

Foca fez um trejeito com a boca.

- Ano que vem não virei aqui, por isso talvez seja melhor me entregares agora o que eu viria buscar.

- E se ela não for uma boa esposa? - contrapôs Ghaden. - Não podes esperar que um homem pague por uma mulher que não lhe agrada.

Foca olhou para Caminhante, mas este encolheu os ombros.

- Uma pele de caribu de carne seca - disse Foca. Dou-te em troca de duas peles de lobo, o óleo, os colares e uma pele de caribu de carne seca. Ela é tua assim que me trouxeres o óleo e a carne. Não te esqueças dos colares, mas oferece o mais bonito à minha filha. Diz-lhe que sou eu que lhe dou. Diz-lhe que, em troca, espero que ela me dê netos.

Caminhante inclinou-se mais uma vez. Foca ouviu o que ele disse e sorriu.

- Uma última coisa - disse ele, apontando com o queixo para o peito de Ghaden. - Uma unha de urso.

Ghaden serviu-se da faca que trazia na manga para cortar o tendão que prendia a unha e fazia as vezes de colar.

- Combinado - disse ele.

- Querias perguntar-me alguma coisa? - disse Cen a Ghaden.

O tom ríspido denunciava impaciência, e Cen olhou para a baía, onde dois comerciantes dos Morsas o aguardavam nos seus iqyax. Tinham-no convidado a acompanhá-los numa viagem de negócios a várias aldeias dos Primeiros Homens das redondezas.

Ghaden respirou fundo e soltou uma gargalhada breve.

- Nada - respondeu ele.

- Se quiseres, podes vir.

Cen ergueu as sobrancelhas ao filho, mas Ghaden abanou a cabeça. A viagem não seria longa, conforme as marés e o tempo - dois ou três dias, uma ou duas noites na aldeia, e depois o regresso à Praia dos Comerciantes.

Era pena que Ghaden não quisesse ir, pensou Cen. Seria uma boa maneira de o afastar da aldeia. Mas porque ele se preocuparia? Ghaden mudara muito desde que K’os o vira pela última vez. Ela nem sequer sabia que ele estava ali. Se ela soubesse, ele teria ouvido falar nisso, pensou Cen para se tranqüilizar. Ela não era mulher para guardar as pequenas vitórias para si própria.

- Tens certeza? Talvez façamos alguns bons negócios.

- Uma vez falaste-me dessa aldeia - disse Ghaden. Lembras-te? Parece que as mulheres não são muito simpáticas.

- Aa, sempre as mulheres! - exclamou Cen, rindo, mas depois ficou muito sério. - Não te esqueças do que eu te disse sobre K’os e a filha.

Ghaden desviou o olhar e observou a enseada onde os comerciantes continuavam à espera.

- Não esquecerei.

Cen empurrou o seu iqyax para a água e subiu; depois, afastou-se da costa com a ajuda do remo. Era um remo de madeira de cedro, só com uma pá e marcado com as cores de Cen. Fora o próprio Ghaden que o fizera, seguindo as instruções de Chakliux, e que o oferecera ao pai.

Cen levantou o remo para dizer adeus e depois virou o iqyax para o nevoeiro que pairava sobre a baía.

Ghaden pensou que se sentiria mais livre depois da partida do pai, uma alegria por ser de novo homem, e não o rapazinho que Cen parecia ver sempre nele.

Acariciou as unhas de urso que trazia ao pescoço. Por muitos elogios que recebesse pelo seu êxito na caça, por muito astuto que fosse nos negócios, para Cen ele era sempre uma criança.

Os pensamentos de Ghaden avançaram até ao dia em que Cen voltasse e descobrisse que, na sua ausência, o filho aceitara Uutuk como esposa.

Um homem toma as suas próprias decisões, recordou Ghaden. Com exceção da primeira mulher, agora morta, nenhuma mulher o atraíra nem povoara os seus sonhos como Uutuk. Como podia ele regressar ao seu povo sem ela? Quando regressasse à aldeia de Chakliux, arranjaria uma velha viúva como segunda esposa e acalmaria Chakliux e Cen mantendo-a bem alimentada.

E K’os? Voltaria com o marido para junto do povo dele e para aquela ilha distante em que viviam. O que havia de mais simples?

K’os levantou a voz e gritou:

- Prometeste-a a um caçador do Povo Rio! Quem? Ela sabia de quem se tratava, evidentemente, e estava satisfeita, mas com Foca era mais prudente simular desacordo, e qualquer hesitação do marido se perderia na necessidade de se defender a si próprio.

- O filho do comerciante, aquele que tu própria sugeriste - disse Foca, com irritação. - Julguei que era isso que querias.

- Foi apenas uma idéia, uma coisa para pensar. Disseste que ias ver o que ele oferecia por ela, e não que aceitarias a sua oferta.

- Olha. - Foca exibiu a unha de urso. - Isto tem poder suficiente para me fazer chegar à velhice.

- Ela é minha filha. Devias ter me consultado primeiro.

- Qual a mulher que espera ter uma palavra a dizer quando se trata de oferecer ou de aceitar uma esposa? contrapôs Foca, dando um pontapé na urze que forrava o chão do ulax do chefe dos caçadores.

Folha Malhada, a terceira esposa do chefe, estava presente e, assim que Foca e K’os começaram a discutir, virou-lhes as costas como se não estivesse dando-lhes atenção. Quando um dos filhos pequenos começou a descer o poste para o espaço principal do ulax, ela estalou os dedos sobre a cabeça, fazendo-lhe sinal para que fosse embora. O rapaz obedecera, mas não sem antes ficar ouvindo a altercação, com um sorriso rasgado.

- Recebi oito odres de óleo, duas peles de lobo, uma pele de caribu de carne seca e uns colares. Além disso, ele prometeu caçar para nós.

- Esperas que um homem treinado para caçar caribus venha à nossa ilha para apanhar animais marinhos num iqyax? É como se ele fosse uma criança, ou pior ainda, porque teremos de o alimentar e ele come como um homem.

Foca arregalou os olhos, e K’os percebeu que ele nem pensara que Ghaden não seria capaz de caçar animais marinhos. Mas depois sorriu e fitou-a, como se ela fosse uma criança.

- Julgas que eu não sei isso?

K’os sentiu a esperança nascer-lhe no peito. Talvez Ghaden, consciente de que não sabia caçar animais marinhos - pelo menos sem vários Verões de dura aprendizagem - já tivesse convencido Foca a ir passar o Inverno com ele, a ir visitar o Povo Rio para fazer os seus negócios.

K’os inclinou a cabeça numa súbita atitude de submissão.

- Quando partimos?

Foca olhou para ela, admirado.

- Quando eu acabar as minhas vendas - respondeu ele. - Mas primeiro tenciono tirar uns dias para ir a uma aldeia dos Primeiros Homens aqui perto com outros comerciantes. Tu e Uutuk podem ficar aqui, se quiserem. - Foca fez uma pausa. - Se bem que, nessa altura, ela já se tenha ido embora com o marido. É uma boa filha. vou sentir a falta dela.

K’os sentiu que os braços começavam a ficar dormentes. Fez um esforço para falar, mas a raiva que a estupidez do marido lhe despertara entupiu-lhe a garganta. Como é que ele pudera pensar que Ghaden caçaria para eles? Tencionava Foca fazer aquela longa viagem todos os anos, até à Praia dos Comerciantes? Seria possível que ele fosse tão estúpido?

- Podes vir comigo, se quiseres - disse Foca, com um ar confuso, como se ela tivesse acabado de o confrontar com uma das suas adivinhas. - Sei que vais sentir-te só sem Uutuk.

- Nós vamos com ela, nae? - perguntou K’os, tão angustiada que nem se apercebera de que falara na língua do Povo Rio.

Foca fez um ruído indelicado e insultou-a com um estalar de dedos - o símbolo da gaivota, uma ave tão preguiçosa que roubava comida.

K’os ignorou o insulto e repetiu as palavras na língua dos Primeiros Homens.

- Como poderemos ir com ela? - perguntou Foca. Temos que regressar à nossa aldeia. O nosso chefe dos caçadores e o meu tio entregaram-me odres, peles de foca e óleo para vender. Se eu não voltar, eles julgam que eu os enganei.

- Ou julgam que nós morremos, engolidos pelo mar, disse K’os. - Quem ficaria zangado por isso? Depois, quando nós voltarmos, eles ficarão satisfeitos. Uma vez, disseste-me que esperavas fazer negócio com o Povo Rio. Porque perder esta oportunidade? Agora tens um filho por casamento que pode ajudar-te a fazer esses negócios.

- Chega-me a inteligência que tenho para fazer os meus Próprios negócios.

- Com certeza - disse K’os, encolhendo os ombros. - Tens razão. Não precisas dele, mas eu não quero que a minha filha vá embora sozinha com um marido do Povo Rio. E se as pessoas da aldeia dele a detestarem? Ela é uma mulher dos Primeiros Homens e também pertence ao Povo Barco. Mas que esperança pode ela ter de ser aceita por eles?

- Tu disseste-me que Ghaden também é em parte dos Primeiros Homens. Vive com eles sem problemas. Quem se arriscaria a irritar um jovem que é capaz de matar um urso-pardo?

Foca acariciou a unha que trazia ao pescoço e olhou para o teto do ulax, como se encontrasse respostas certas no meio das vigas e nas esteiras de erva.

Por fim, disse:

- Ensinaste Uutuk a fazer remédios com as plantas. Todas as pessoas gostam de ter uma curandeira por perto.

- Ela sabe fazer remédios à maneira dos Primeiros Homens.

- Pode aprender a fazê-los à maneira do Povo Rio.

- Se encontrar alguém que a ensine. Foca semicerrou os olhos.

- Tu queres ir com ela para a poderes ensinar.

- Ninguém sabe mais de remédios à base de plantas do que eu - disse K’os. - Num ano, de um Verão a outro, posso ensinar-lhe aquilo que ela levaria a vida inteira a aprender sem ajuda.

Foca levantou-se e pegou num odre de água. Bebeu e passou-o a K’os. Ela não tinha sede, mas era sempre aconselhável aceitar as ofertas de Foca, nem que fosse um gole de água. Pegou o odre, bebeu e agradeceu-lhe.

Ele voltou a pendurar o odre no gancho e perguntou:

- Então achas que eu poderia fazer bons negócios? Ela sorriu.

- Tu fazes sempre bons negócios. Acho que terias oportunidade de conseguir coisas que nem aqui podemos arranjar, talvez algo do Povo da Tundra do Norte ou dos Caçadores de Caribus que vivem mais para leste.

- Talvez não seja assim tão mau passar um ano com o Povo Rio - disse Foca. - vou falar nisso a Ghaden.

K’os inclinou a cabeça e umedeceu os lábios com a língua, fazendo promessas sem palavras.

- Eu estava enganada. Tomaste uma boa decisão ao entregares Uutuk a Ghaden - disse ela.

Foca encolheu os ombros.

- Não se espera que as mulheres tenham muito jeito para escolher os maridos das filhas. Mas se formos com Ghaden e Uutuk, pensa nisto, vou precisar de uma boa parka.

Foca aproximou-se da filha quando ela andava apanhando raiz-amarga no prado do lado montanhoso da aldeia. Trazia um cesto de rede que estava quase cheio.

- Raiz-amarga - disse ela, levantando o cesto para ele ver.

Raiz-amarga, depois de fervida e misturada com óleo de foca, era um dos pratos favoritos de Foca.

- Ainda é cedo para apanhar raiz-amarga - disse ele.

- Aqui o Verão é mais quente e todas as plantas nascem mais cedo.

Ao falar, Uutuk mexia os olhos com nervosismo, e Foca percebeu que ela pensava por onde fugir se ele tentasse tocar-lhe. O pensamento irritou-o. Nunca lhe tocara senão como qualquer pai tocava numa filha. Havia tabus. É claro que ela não era filha de sangue, e deitar-se como uma mulher como Uutuk valeria uma pequena maldição. Foca levou a mão à unha de urso, sentiu o poder nos dedos e lembrou-se de que, pelo menos por enquanto, Uutuk lhe seria mais útil como filha do que como companheira de cama.

- Preciso falar contigo - disse ele.

Uutuk servia-se de um pedaço de madeira flutuante para desenterrar as raízes e ergueu-o no ar para ele ver que ela lhe afiara a ponta. Levantou o queixo na direção da praia.

- Os cavaletes dos iqyax cortam o vento - disse ela.

- Há muita gente na praia - disse ele.

Uutuk fechou a boca com determinação, agachou-se e pousou o pau nos joelhos.

- Fala - disse ela.

- Vendi-te como esposa.

Ela fez uma careta mas não disse nada, e o seu silêncio aumentou a ira de Foca.

- Já tens idade para casar, até já a ultrapassaste - disse ele. - Já devias ter bebês. De outro modo, tenho que te sustentar.

- Quem é? - perguntou Uutuk, ignorando o insulto. Do Povo Rio ou dos Primeiros Homens?

- Do Povo Rio - respondeu Foca, num tom agreste. Agarrou a unha que trazia ao pescoço e viu que ela compreendera. - Alegra-te. Eu podia ter recebido mais por ti de um velho que não conseguisse encher-te a barriga de filhos.

Foca não ficou à espera para ouvir os protestos de Uutuk. Afastou-se e, ao regressar à aldeia, passou por duas velhas com umas redes na mão. Elas cumprimentaram-no mas ele correspondeu com um ronco, batendo com os pés no chão para que ninguém duvidasse de que ele era um homem que compreendia os poderes da terra e os utilizava bem.

 

Qung estava dormitando como fazia tantas vezes no meio do dia. Quando é que uma contadora de histórias dormiria? Quase todas as pessoas queriam ouvir histórias durante as noites longas e claras de Verão. Filha sentou-se junto da lanterna de óleo da velha, dobrando solas de botas de barbatana de foca com os dentes e pensando como se sentiria a mulher de um homem do Povo Rio. Quando os seus receios se adensaram demais, pensou no rosto de Ghaden, no seu sorriso, e a dor de barriga abrandou.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz de alguém que chamava do topo do ulax. Era K’os. Filha pousou a sola da bota, subiu até ao meio do poste e, em voz baixa, disse à mãe que Qung estava dormindo.

- Fiz chá de erva-de-fogo. Queres? - perguntou Filha. K’os fez um gesto de recusa e disse:

- Tenho uma coisa para te dizer.

Apesar de estar longe do seu povo há muitos anos, K’os seguia muito mais os costumes do Povo Rio do que os dos Primeiros Homens, pelo que era direta na sua maneira de dizer as coisas, sem a alegria silenciosa da partilha do chá ou da comida.

K’os entrou no ulax, e Filha pôs de lado a sola da bota, agachou-se junto da lanterna de óleo e esperou que a mãe despisse a parka e se sentasse.

- O teu pai vendeu-te como esposa - disse K’os, aparentemente sem se preocupar com o que Filha pudesse pensar ou sentir. - O homem é Ghaden, e é caçador.

- Já sei - disse Filha, deixando à mãe a tarefa de adivinhar se ela se referia ao fato de Ghaden ser caçador ou à escolha de Foca. - vou sentir a tua falta.

- Julgas que eu te deixava ir viver sozinha com um homem que eu nem sequer conheço? - perguntou K’os. Não sou assim uma mãe tão má.

O alívio de Filha foi tal que ela teve que fechar os olhos para reprimir as lágrimas.

- E Foca? O que diz? - perguntou ela.

- Ele é um bom pai - respondeu K’os, desviando o olhar, como se o comentário a embaraçasse. - Ele prometeu que iremos passar um ano contigo. Assim, terá oportunidade de negociar com o Povo Rio e talvez com o Povo Caribu. Entretanto, eu ensino-te a medicina do Povo Rio, para que não sejas apenas esposa mas também curandeira do Povo Rio.

Na mente de Filha surgiram várias perguntas, mas era tal a sua gratidão que teve de beber uns goles de chá de erva-de-fogo para conseguir falar.

- E depois voltam para a nossa ilha? - perguntou ela.

- É o mais provável, mas um ano é muito tempo, e logo veremos o que acontece - respondeu K’os.

Filha teve vontade de perguntar se podia voltar com eles, mas porque exigir da mãe uma promessa que talvez ela não pudesse cumprir? Optou por pensar em todas as coisas boas que aconteciam a uma mulher depois do casamento - ter o seu próprio ulax, filhos e um homem para partilhar a sua cama. Pensou no sorriso de Ghaden e na ternura que brilhava no seu rosto. Depois, para conter as lágrimas, fixou o olhar na chama que dançava na lanterna de pedra, enquanto K’os lhe explicava como contentar o marido nessa primeira noite que passariam juntos na cama dela.

Nessa noite, no ulax do chefe dos caçadores, K’os ajudou Filha a lavar o cabelo, primeiro com urina para tirar o óleo velho, e depois com três odres de água doce para tirar a urina. Secaram o cabelo com peles de lêmingue e depois K’os, com um pente de marfim - um presente de casamento das esposas do chefe dos caçadores - desembaraçou-o.

O cabelo de Filha chegava-lhe à cintura, e era tão escuro que às vezes tinha um brilho azulado à luz do Sol. K’os penteou as madeixas com óleo de foca novo e oleou também a face e os seios de Filha. Depois, recuou e sorriu, mas, quando Filha retribuiu o sorriso, o seu rosto alterou-se, uma rápida crispação do queixo que a levou a cerrar os dentes, uma expressão fugaz demais que Filha não soube interpretar.

- Estás muito bonita, e talvez seja melhor não usares as tatuagens dos Primeiros Homens visto que vais pertencer ao Povo Rio.

- Há muitas mulheres na Praia dos Comerciantes que não pintam a cara - disse Filha, que reparara nisso assim que chegara à aldeia.

K’os fez um sinal afirmativo, piscou e inclinou a cabeça para examinar o cabelo de Filha.

- Talvez fosse aconselhável fazer uma trança, Uutuk, já que vais casar com um homem do Povo Rio - disse ela por fim. - Para que o teu marido saiba que respeitas o seu povo.

Filha fez uma careta. Agradava-lhe que as noivas dos Primeiros Homens fossem para os maridos com os cabelos soltos, e depois, no dia seguinte, fizessem um coque na nuca para mostrarem, com orgulho, que tinham sido aceitas como esposas.

- Uma trança pequena - acrescentou K’os. Ajoelhou-se junto de Filha e, com os dedos, afastou uma parte do cabelo para o lado esquerdo do rosto de Filha.

Quando acabou, atou a trança com um pedaço de fio de tendão, pegou a mão de Filha e aproximou-a da trança.

- Está aqui, percebes?

Filha sorriu. A trança não era mais grossa do que o seu dedo mindinho, mas, como afirmara K’os, seria um sinal de respeito pelos costumes de Ghaden, apesar de ela continuar a usar a maior parte do cabelo solto, por cima dos ombros, como devia ser.

- Estás muito bonita - disse K’os outra vez. - E se te lembrares de tudo o que te ensinei sobre o modo como uma esposa pode agradar...

Foi interrompida por uma voz alegre que gritava do topo do ulax. Era um dos filhos pequenos do chefe dos caçadores.

Saltou para o chão quando chegou ao meio do poste e trazia na mão um embrulho quase tão grande como ele.

- Toma, é para ti. Foi aquele homem do Povo Rio que mandou. Aquele que não é comerciante.

O embrulho era quadrado e feito de pele de caribu endurecida, atado com tiras de babiche em todas as costuras, muito parecido com um fardo que K’os usara quando Filha era pequena, até que a atmosfera úmida e nebulosa da ilha o apodrecera. Filha desatou a aba e meteu a mão lá dentro. Ao ver que era a parka de pele de caribu, ficou sem fôlego.

- É para ti! É para ti! - gritou o filho do chefe, agitando os braços e dançando em círculo, revolvendo a erva e a urze no chão de terra batida. - E também tens aqui umas perneiras. Olha lá para dentro.

Filha tirou as perneiras. Eram feitas de pequenas peles de cor avermelhada. Levantou-se e pegou a parka e as perneiras para a mãe ver.

- A parka é de caribu, e as perneiras? - perguntou ela.

- São de esquilo-vermelho - respondeu a mãe. - São quentes, leves e duram mais do que um Inverno.

A terceira esposa do chefe, uma mulher muito dada a colares e a roupas fantasiosas, saiu do local onde dormia e, ao ver a parka, ficou roída de inveja. Começou a acariciar o tufo de pele e a contar os bicos de pica-pau. Radiante, Filha deu uma gargalhada.

- Tu és dos Primeiros Homens e estás habituada ao teu sax, mas tens que usar o que ele te ofereceu - disse K’os a Uutuk.

Filha passou a mão pelo seu sax de pele de papagaio-do-mar. Tinha-o remendado e limpo para essa noite, e era uma recordação da sua ilha, mas ela sabia que K’os tinha razão. Tinha que aprender os costumes do Povo Rio.

Não usava perneiras desde criança. A mulher e o filho do chefe desataram a rir ao vê-la tentar manter o equilíbrio, apoiada só numa perna e tentando enfiar a outra nas perneiras. K’os ajudou-a a vestir a parka. Em seguida, tirou um colar que trazia no pescoço e enfiou-o na cabeça de Filha.

- O teu pai quer que uses isto - disse ela.

Filha agradeceu a K’os, mas o colar parecia escuro e velho em contraste com o branco da parka, como se as mãos do pai se tivessem aproximado em demasia, mais uma vez.

Os dentes de Qung estavam tão gastos pela idade que, quando ela sorria, a sua boca parecia uma grande caverna vazia. O riso vinha-lhe do fundo da garganta e a alegria acentuava-lhe as rugas da face.

- Uma esposa! - exclamou ela, dirigindo-se a Ghaden. - Sabes o que fazer com ela?

Desfiou uma série de piadas brejeiras, tão estranhas de ouvir na boca da velha que Ghaden não pôde deixar de rir.

- Tenho comida que chegue para todos - disse Qung. Ou vais passar a noite no ulax do chefe dos caçadores? Tu e a tua noiva são bem-vindos aqui, bem sabes.

Ghaden viu a esperança no olhar da velha e gracejou, dizendo:

- Naquele ulax, há mais pessoas do que camas. Julgas que a minha nova esposa gostaria de partilhar a nossa primeira cama com o chefe dos caçadores?

Qung riu. Engatinhando, aproximou-se da despensa onde guardava os sacos de carne e peixe seco. Começou a puxá-los para fora, um por um, apalpando-os e empilhando peixe e carne de caribu nas esteiras, junto da lanterna.

- Podias ir ver se alguém tem ouriços-do-mar para vender - disse ela, enquanto dispunha caules descascados de iitikaalux fresco ao lado da carne.

Ghaden preferia ter ficado no ulax à espera que Foca fosse levar Uutuk, mas fez o que a velha lhe pediu. Pensar que iria para a cama com Uutuk fizera-lhe esquecer a fome, mas tinha certeza de que Foca teria vontade de comer.

Pelo menos, não estavam numa aldeia do Povo Rio. Aí, o casamento seria festejado com um banquete e uma longa noite de danças, canções e adivinhas. Os Primeiros Homens eram mais discretos quanto ao casamento e limitavam-se a festejar a compra da noiva.

Ghaden não levou muito tempo para encontrar alguém que tivesse ouriços-do-mar. Era uma moça disposta a trocar por um colar todos os ouriços que apanhara de manhã. Quando Ghaden regressou ao ulax, Foca e Uutuk já lá estavam.

Uutuk vestia a parka de pele de caribu e as perneiras, e o seu cabelo era um rio escuro e reluzente que contrastava com o branco da parka.

Ghaden teve vontade de lhe elogiar a beleza, mas um marido não dizia tais coisas à mulher, a menos que parecesse elogiar-se a si próprio. Por isso, limitou-se a pegar o saco dos ouriços e disse:

- Ovas do mar para a nossa festa.

Foca agachou-se junto das esteiras da comida e aceitou o peixe e a carne que Qung lhe ofereceu, assim como uma tigela de óleo de foca para os embeber. Uutuk tirou sopa da panela de pele de caribu que estava pendurada por cima da lanterna. Ofereceu a primeira tigela a Foca. Ele levou-a à boca e sorveu-a ruidosamente, para mostrar o seu apreço.

Uutuk encheu outra tigela e deu-a a Ghaden, que tentou cruzar o seu olhar com o dela, mas a moça manteve-se cabisbaixa. Era o comportamento habitual das noivas dos Primeiros Homens, mas ele ficou desapontado. Esperava que ela se mostrasse contente por ser mulher dele, ou pelo menos agradecida pela parka.

Foca inclinou-se para a filha e passou uma mão pelos bicos de pica-pau, parando por instantes no volume dos seios. A fúria encheu a boca de Ghaden, que foi obrigado a calar-se e a engoli-la, aceitando o gesto de Foca como um cumprimento.

Comeram, quase sempre em silêncio, e Uutuk continuou a servi-los, como se já fosse mulher de Ghaden há muito tempo. Quando os dois homens acabaram de comer, Qung serviu-se da comida que restava.

- Onde está o teu pai? - perguntou ela a Ghaden, com a boca cheia de peixe seco.

- Eu não te disse? - perguntou Ghaden. - Ele e mais dois comerciantes resolveram ir até às aldeias que ficam a oeste da Praia dos Comerciantes.

Qung levou uma tigela de caldo à boca e olhou para ele por cima da borda.

- Ele devia estar aqui - disse ela.

- Eles tencionam andar por lá durante cinco ou seis dias. Resolvi não esperar por ele.

- Uma boa decisão - disse Foca, quase no mesmo tom de voz, por delicadeza.

- Ele devia estar aqui - repetiu Qung.

- Mas não está - disse Ghaden com firmeza. Deveria um caçador permitir que uma velha se intrometesse nas suas decisões?

Então, Uutuk ajoelhou-se ao lado de Foca e perguntou:

- Agora vais buscar a minha mãe? Ela não devia estar ausente da festa.

- Ela sente-se bem no ulax do chefe dos caçadores respondeu Foca. - Não precisa de estar aqui.

- Eu quero que ela esteja aqui - insistiu Uutuk.

- Eu vou buscá-la - disse Ghaden, grato por ter um motivo para sair do ulax, para se afastar das perguntas e das exigências de Qung.

Filha fez-lhe olhinhos, e ele sentiu-se corar, como se fosse um rapazinho que pensasse pela primeira vez em ir para a cama com uma mulher.

Assim que Ghaden saiu, Filha tratou de reordenar a comida nas esteiras, enquanto Qung continuava comendo, e, quando ouviu vozes lá fora e viu uns grãos de terra caindo das vigas do ulax, levantou-se e endireitou a parka. Por causa da mãe, pensou ela, mas Ghaden foi o primeiro a descer o poste, e ela foi obrigada a baixar a cabeça ao ver o desejo no rosto dele.

Virou-se e pôs-se na ponta dos pés para pegar um odre de água. Então, sentiu as mãos de Ghaden nas suas e o corpo dele encostado às suas costas. Ele tirou-lhe o odre e ficou com ele na mão até ela o encarar. O sorriso dele provocou-lhe um aperto na barriga e tirou-lhe o fôlego.

K’os quebrou o silêncio com cumprimentos sobre a comida e elogios à parka de Filha. Fez algumas perguntas a Ghaden sobre a caça, e Ghaden agachou-se ao lado dela e respondeu-lhe respeitosamente, como se ela fosse a sua mãe.

Filha, porém, que os observava enquanto comia, viu a cautela nos olhos de Ghaden e ouviu a prudência nas suas respostas, e reparou que K’os também se mostrava cautelosa, tensa e decorosa, como raramente acontecia na presença de um homem.

Quando as mulheres acabaram de comer, e Qung e Filha estavam arrumando a comida, a realidade voltou à mente de Filha e picou-a, como uma pedra dentro de uma bota de barbatana de foca.

Ghaden e a mãe não gostavam um do outro. Então, por que motivo se mostrara K’os tão desejosa de que Filha se tornasse mulher dele?

K’os virou as costas a Ghaden e balbuciou uma bênção que Filha nunca lhe ouvira, algo na língua do Povo Rio sobre mulheres, maridos e filhos.

- É uma bênção de casamento - explicou K’os, e traduziu-a para Foca.

Ele aprovou, com um gesto de cabeça, acrescentou uma bênção dos Primeiros Homens e depois gracejou sobre as camas e os segredos que as mulheres guardavam entre as pernas.

Ghaden riu, assim como Qung, mas K’os não os acompanhou. Fez um sorriso, e Filha reconheceu nele um sorriso de comerciante, uma satisfação discreta e sem palavras para que o negócio continuasse a ser bom.

Quando Qung, com a sua voz de velha, entoou uma canção sobre ter filhos, K’os e Foca levantaram-se, agarraram os braços de Filha e empurraram-na para uma cama. Depois, a cortina de erva entrelaçada fechou-se atrás dela, e por alguns momentos a moça ficou só.

Na escuridão, continuou a ver o sorriso da mãe e perguntou a si própria que grande tesouro é que K’os teria em mira para o trocar pela vida da filha.

 

Há dois Verões, Filha entregara-se a Salmão Branco. Tantas eram as jovens da sua aldeia que, um ano depois do seu primeiro período lunar, já tinham sido escolhidas como esposas que Filha começou a ficar preocupada por ser a única mulher sem marido, salvo algumas viúvas de uma certa idade.

Quando Salmão Branco demonstrara um certo interesse por ela, Filha recebera-o na sua cama. Afinal, K’os fora diligente ensinando-a a satisfazer um homem.

Agora que estava à espera de Ghaden, Filha desejava ter-se guardado para o marido. Ele fora criado como um homem do Povo Rio. Quantas vezes lhe dissera K’os que os homens do Povo Rio não gostavam de partilhar as suas mulheres exceto com os seus companheiros de caça? Quando ele descobrisse que ela conhecera outro homem, a mandaria embora? Mesmo no calor da cama forrada de peles, Filha sentiu-se enregelada de repente.

Ouviu-se uma gargalhada no ulax e a cortina abriu-se. Ghaden foi empurrado para ela. Foca gritou uma piada grosseira, mas, à luz filtrada pela erva entrelaçada da cortina, Filha viu que Ghaden não ria. Tinha um olhar terno. Ergueu as mãos, pousou-as de cada lado do pescoço dela, levantou-lhe os cabelos e acariciou-lhe a nuca.

- Há muito tempo que queria tocar nos teus cabelos - disse ele. - São macios como as penas do pato-bravo.

Ghaden falou na língua dos Primeiros Homens, e ela sentiu-se ainda mais honrada com isso do que com o cumprimento.

Ele despira a parka, o que muito provavelmente provocara o riso, e Filha reparou que ele oleara a pele. Pôs-lhe as mãos no peito. O calor do corpo dele tirou-lhe o frio dos dedos e um certo medo do coração. Ele olhou para ela como se a visse pela primeira vez. Ela tocou-lhe o nariz e ele desatou a rir.

- Os Primeiros Homens não comunicam muito através do nariz - disse ele, encostando a sua face à dela.

Filha estremeceu e passou-lhe os braços pelos ombros. Eram largos, com músculos tesos e duros por baixo da pele.

Depois lembrou-se de Salmão Branco, como se o jovem tivesse se atravessado no caminho de ambos. Filha não queria pensar nele, nos seus dedos acariciando-a, no seu corpo dentro do dela. Ghaden cobriu-lhe os seios com as mãos e Filha perdeu o fôlego. Mas, no calor da cama, Salmão Branco surgiu de novo entre eles, como um fantasma.

- Meu marido, há uma coisa que tens que saber - disse Filha em voz baixa.

Ghaden pôs-lhe os dedos nos lábios, encostou-a ao seu peito e depois pegou-lhe no colo como se ela fosse uma criança. A boca dele estava tão perto dela que as suas palavras eram como que uma brisa no ouvido de Filha.

- Minha mulherzinha - disse ele. - Tenho a certeza de que Qung te disse que a minha mãe era dos Primeiros Homens. Apesar de ter sido criado pelo Povo Rio, compreendo os hábitos dos Primeiros Homens. Tiveste outros homens na tua cama.

Não era uma pergunta, e Filha sabia que não tinha que lhe responder, mas disse:

- Só um, e julguei que ele seria meu marido, mas Foca não aceitou o que ele ofereceu por mim.

Ghaden levantou a cabeça, e ela levou a mão aos olhos e comprimiu as pálpebras para conter as lágrimas. O que diria K’os, o que faria Foca, se Ghaden a rejeitasse ainda antes de a noite acabar?

- Gostarias de estar com ele? - perguntou Ghaden.

- Não!

Ele fez um som com a garganta, e Filha ficou admirada quando percebeu que ele se estava rindo.

- Fala baixinho, mulher. Se não, eles julgam que me recusaste.

Ela virou-se para ele e pôs as pernas em volta da sua cintura.

- Vou sentir falta da minha ilha. - Eram palavras que ela nunca pensara em dizer-lhe mas, apesar de mal o conhecer, já começara a perceber que Ghaden era um homem a quem se podiam confiar segredos. - Não vou sentir a falta dele.

- Tens certeza? - perguntou ele. Ela acariciou-lhe a face.

- Serei sempre uma boa esposa para ti - disse ela. Ele inclinou-se para a frente, deitou-a nas peles da cama e cobriu-a com o seu corpo. Então, ela deixou de ver o rosto de Salmão Branco e esqueceu mesmo as feições dele. Só Ghaden existia.

Quando acabaram de fazer amor, Ghaden adormeceu, com uma perna por cima dela e uma mão pousada no seu peito. Durante algum tempo, Filha ficou acordada, sentindo o sêmen do marido escorrer-lhe pelo corpo.

Apesar de todos os conselhos que K’os dera a Filha sobre ir para a cama com um homem, nunca lhe dissera que uma mulher também podia ter prazer. Talvez fosse uma coisa tão rara que a própria K’os nunca a sentira.

No meio da sua alegria, Filha deu consigo pensando no avô. Ele se sentiria feliz por ela. Filha não duvidava e sabia o que ele diria: ”Não questiones a tua alegria, mas tem cuidado com o que dizes a K’os. Ela não é uma mulher que se congratule com a felicidade dos outros.”

”Sempre inteligente”, pensou Filha, ao adormecer. O avô sempre fora dotado de mais inteligência que os outros homens. Ainda bem que a morte não arrebatara de Filha essa inteligência.

Filha dormiu profundamente, sem sonhos, e só acordou quando sentiu os braços de Ghaden envolvendo-a. Sorriu, pensando que ele a desejava de novo, mas quando ia a acariciá-lo, ele agarrou-lhe na mão e disse:

- Escuta.

Mesmo através das paredes grossas do ulax, Filha ouviu o gemido do vento, que arrancava a grama.

- Uma tempestade - disse ela, aninhando-se em Ghaden.

Ele afastou-se e sentou-se. A desilusão pesou-lhe no peito, e Filha não pôde deixar de se lembrar de Salmão Branco, que se desinteressava sempre dela depois de fazerem amor. A ternura de Ghaden levara-a a acalentar a esperança de que ele fosse diferente.

- O meu pai - disse ele.

Então, Filha envergonhou-se do seu egoísmo. Uma esposa devia pensar sempre no marido em primeiro lugar.

- Quando é que ele partiu?

- Ontem de manhã cedo.

- Eles foram negociar em outra aldeia dos Primeiros Homens? Quantos dias levam eles para chegar nessa aldeia? perguntou Filha.

- Dois.

- E não tencionavam pernoitar numa praia?

- Não - respondeu Ghaden em voz baixa. - Ouvi outros comerciantes falarem da viagem. Se não pararem depois de meio dia de viagem, não há praias boas entre esta aldeia e essa. Durante a noite, eles atam os iqyax uns aos outros com os remos para que cada homem possa dormir um pouco enquanto os outros ficam de vigia.

Filha sentiu o medo na voz de Ghaden. Agarrou o seu amuleto e encostou-o com força ao peito do marido.

Apesar da areia da praia do Povo Barco que ainda conservava, era apenas um amuleto de mulher, quando muito, bom para a ajudar a encontrar alguns ouriços-do-mar, a manter vivos os tufos de erva com que ela fazia os cestos durante o Inverno, para que a nova erva nascesse. Mas não tinha força suficiente para salvar a vida de um homem.

Contudo, Ghaden fechou a mão sobre a dela e agarrou também o amuleto, e Filha começou a ter esperança de que as preces de ambos, em conjunto, fossem mais fortes do que as de cada um.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a, C.

 

Assim que as últimas palavras lhe saíram da boca, Qumalix levantou-se e afastou-se de Chega-ao-Céu. Antes que ele se lamentasse, ela ergueu a mão e disse:

- Vês aquelas nuvens? Estão cheias de chuva. Nem sequer tens aqui uma mulher que trate do teu sax se ele se molhar.

- Não estou assim tão desamparado - disse ele, fazendo beicinho. - Sei cuidar de um sax molhado.

Mas Chega-ao-Céu levantou-se e, quando Qumalix começou a andar em direção à aldeia, ele foi atrás dela.

- Quero saber o que aconteceu a Cen - gritou-lhe ele. - Morreu na tempestade?

- Isso é algo que só saberás quando chegar a minha vez no ulax dos contadores de histórias.

Chega-ao-Céu aproximou-se dela e empurrou-a para o lado, para junto da vegetação mais alta, ocupando o meio do caminho.

- De qualquer modo, podias contar-me a história. Podemos arranjar um local onde estejamos a sós. Tenho um barco de comerciante. Podíamos sentar-nos debaixo dele e não nos molhávamos.

Qumalix cobriu a boca com a mão, tossiu, pigarreou e cuspiu para a erva.

- Já contei histórias que chegassem por um dia. A minha voz precisa de descanso - retorquiu ela. Deixou-se ficar para trás no caminho e sentiu a chuva bater-lhe no rosto. - Te apressa - acrescentou ela, embora não estivesse muito preocupada com a chance de apanhar uma molha. As peles de papagaio-do-mar do seu sax não deixavam entrar a água.

Chega-ao-Céu apertou o passo e ela fez o mesmo. A chuva rompeu as nuvens e era intensa e gelada. Chega-ao-Céu desatou a correr, mas Qumalix continuou a andar devagar e agradeceu aos céus.

Yikaas saiu da cama engatinhando e abanou a cabeça, troçando dos risinhos tolos das duas irmãs. Encontrara alívio nos seus corpos, mas não se sentia bem - doíam-lhe as entranhas como se tivesse ido além das suas necessidades e envergonhou-se da sua avidez. Como podia ele pensar que estava à altura de ser um contador de histórias se recebia mais do que o seu quinhão, mesmo em relação às mulheres?

Pior, como conseguiria ele ver-se livre das duas irmãs? Todas as noites durante a sua visita, sempre que ele fosse à sua aldeia, elas reclamariam a sua presença. E se Qumalix descobrisse?

Vestiu a parka e ajustou as perneiras de caribu. ”Estás preocupado com Qumalix?” perguntou ele a si próprio. ”Porquê? Ela é uma contadora de histórias, mais nada. Além disso, ela optou por passar o dia com Chega-ao-Céu.” Quem sabia se, quando ele tentava entrar no chisum naga da irmã gorda, Chega-ao-Céu não estaria fazendo o mesmo em relação a Qumalix?

O pensamento espetou um dardo de raiva no peito de Yikaas.

- Tu não tens direitos sobre ela - disse ele.

Yikaas só se percebeu que falara em voz alta quando a irmã magra lhe pousou a mão nas costas e se inclinou para a frente para lhe olhar para o rosto. Fez-lhe uma pergunta qualquer na língua dos Primeiros Homens. Yikaas encolheu os ombros e abanou a cabeça para lhe mostrar que não a entendera. Em geral, era mais delicado para com as mulheres que o recebiam na sua cama, mas o que podia ele dizer a uma moça que não compreendia a língua do Povo Rio?

Tirou dois colares de um embrulho que trazia à cintura. Não eram nada de especial, apenas contas de osso de pássaro alongadas, e viu uma rápida sombra de desilusão no olhar da moça, mas ofereceu-lhe os colares e levantou a mão na direção do poste, disposto a subir. Tentou sorrir, mas sentiu o rosto rígido. Subiu o poste às pressas e gemeu ao ver que estava chovendo.

A erva que crescia em cima do ulax estava escorregadia, e, quando ele se aproximou da beira, perdeu o equilíbrio, escorregou e ficou sentado no solo. Ouviu gargalhadas, virou a cabeça e deparou com Qumalix. A água escorria-lhe das penas do sax.

- Estás ensopada - disse ele, e ela ergueu as sobrancelhas.

- Tenho estado aqui fora contando histórias.

Qumalix olhou para as irmãs, que espreitavam pela borda do ulax. Usavam apenas aventais de erva entrançada. A magra disse alguma coisa, empinando o peito franzino como se se orgulhasse de si própria.

Qumalix traduziu as palavras dela para Yikaas:

- Ela diz que é uma pena que não sejas tão bom com os pés como és na cama.

Yikaas levantou-se e limpou a mão na parte da frente da parka.

- Tu estiveste com Chega-ao-Céu - disse ele, arrependendo-se imediatamente de ter pronunciado estas palavras.

- O que queres dizer com isso? Que se eu tivesse ficado aqui, teria tido a sorte de partilhar a tua cama?

Qumalix virou-lhes as costas, a ele e às irmãs, e encaminhou-se para o ulax dos contadores de histórias. As irmãs chamaram-no, mas ele ignorou-as.

- Qumalix! - gritou ele. - Qumalix, espera!

Ela não abrandou o passo, e limitou-se a pôr as mãos sobre a cabeça, como se os dedos pudessem protegê-la da chuva.

Yikaas sentiu alguém atrás de si e virou-se, pronto a repelir as irmãs, mas deu de cara com Chega-ao-Céu.

- Ela não é digna da tua preocupação - disse ele na língua do Povo Rio, num tom afetado. - Aquela só pensa em histórias.

Yikaas reagiu com um gesto de cabeça e um ar inflexível mas, assim que o outro se afastou, não pôde deixar de esboçar o sorriso reprimido até ali.

A chuva intensa e fria expulsou os comerciantes da praia, que cheirava a parkas molhadas e a lama. Os pés dos homens tinham revolvido o solo endurecido, que se transformara numa papa espessa.

- Sentem-se! - gritou Qumalix, levantando a voz. Estava desiludida com Yikaas e irritada consigo própria por isso. Que melhor maneira de disfarçar uma parte dessa irritação do que tentar pôr ordem no caos que reinava no ulax dos contadores de histórias?

- Sentem-se! - gritou ela outra vez. - Alguém quer água?

Tão depressa como ela começou a passar odres de água, outras pessoas meteram as mãos em fardos e sacos, servindo-se de peixe defumado e de frutos secos. Pouco depois, a umidade e a terra perderam-se no riso daqueles que tinham resolvido transformar numa festa aquela situação desagradável. Qumalix levantou o braço na direção de Yikaas, que acabara de entrar no ulax.

- Tens que contar uma história - disse ela, pôndo-se na ponta dos pés para dar uma olhada pela multidão. - Se não quiseres, Kuy’aa também está aqui.

- Eu vou contar uma história - disse Yikaas.

- Sobre ir para a cama com mulheres dos Primeiros Homens, sem dúvida - disparou Qumalix.

- Aqui temos essencialmente comerciantes - disse Yikaas, ignorando a farpa. - Talvez eles gostassem de ouvir uma história sobre eles próprios. Conheço uma das boas.

Qumalix levantou os dedos e os fez estalar na direção de Yikaas, quase de uma forma insultuosa.

- Conta a tua história. Sou toda ouvidos.

Mas o clamor no ulax aumentara outra vez. Yikaas cerrou as pontas dos dentes da frente e produziu um assobio curto e agudo.

O assobio instaurou o silêncio, e Yikaas disse:

- A jovem ao meu lado pede-me uma história sobre comerciantes.

Como se falassem a uma só voz, os homens que se encontravam no ulax soltaram um grito de assentimento.

Nesse momento, Chega-ao-Céu começou a descer o poste. O sax estava ensopado e as perneiras salpicadas de lama. Os homens que se encontravam sentados junto do poste protestaram quando ele sacudiu a água do sax.

Chega-ao-Céu fez de conta que não os ouviu.

- A história de Yikaas fala de comerciantes do Povo Rio. Quantos de vocês é que são do Povo Rio? - Ele levantou-se, de queixo espetado e os batoques brilhando como se fossem presas. - Vocês querem uma história. Eu vou contar uma história sobre comerciantes dos Primeiros Homens.

Um alarido surdo percorreu a assistência. Os comerciantes do Povo Rio e dos Primeiros Homens discutiam uns com os outros. Qumalix sentiu um aperto no peito. Como é que uma mulher podia controlar uma discussão entre homens?

- Primeiro, Yikaas! - gritou ela. - Ele foi o primeiro a pedir!

Mas a voz de Qumalix foi abafada pela discussão. De repente, enfureceu-se. Abriu caminho através dos comerciantes até chegar ao poste, agarrou um dos tornozelos sujos de Chega-ao-Céu e jogou-o ao chão. A distância era curta e ele caiu facilmente de pé. Antes que ele pudesse reagir, ela subiu o poste até ficar uma cabeça acima de qualquer dos homens que se encontravam no ulax. Fez uma concha com as mãos à volta da boca e gritou, mas mesmo assim ninguém a ouviu.

De repente, o assobio cortante de Yikaas ouviu-se outra vez no meio do vozerio e, no momento de silêncio que se seguiu, Qumalix disse:

- Vocês, comerciantes, vieram ouvir uma história, mas do que se esquecem é que estamos neste ulax graças à hospitalidade de outras pessoas. Bebemos da sua água, sujamos de lama o seu chão e deixamos o cheiro das nossas parkas nestas paredes.

Apesar de se ter ouvido uma gargalhada grosseira quando ela começou a falar, nesse momento os homens calaram-se, e uma das poucas mulheres dos comerciantes do grupo bateu no marido com as costas da mão e perguntou em voz alta para que todos ouvissem:

- Gostarias de ver toda esta confusão na tua cabana? Os homens começaram a desculpar-se, mas Qumalix prosseguiu:

- Ninguém vos pediu que se desculpassem, apenas que fossem educados. Yikaas foi convidado a contar a primeira história. Depois dele, será a vez de Chega-ao-Céu. As nuvens são muito grossas e esta chuva não nos deixará tão depressa. Teremos muito tempo para as histórias. - Qumalix fez sinal a Yikaas e disse: - Estamos prontos.

Yikaas viu o cansaço no rosto dela e perguntou a si próprio há quanto tempo é que ela não dormia. ”Não tenhas pena, estúpido, que ela foi com Chega-ao-Céu”, pensou ele. Desviou os seus pensamentos de Qumalix e tentou concentrar-se nos mares encapelados, nos ventos cortantes. Fechou os olhos, e esperou até ver a tempestade, ouvi-la, senti-la. E quando a história começou, Yikaas transformara-se em Cen.

 

         Mar de Bering

         6435 a. C.

 

                   História de Cen

Formaram uma espécie de jangada com os três iqyax. Patas-de-Cão com o seu iqyax maior ao meio, Cen e Mostra-o-Caminho com os seus atados um de cada lado. Se as únicas praias que havia eram mais traiçoeiras que o mar, como é que os comerciantes garantiriam a sua segurança durante a noite?

A deles era uma dádiva dos céus, e não havia indícios que os fizessem recear uma tempestade, nem nuvens de chuva que se aproximassem, nem estreitas linhas brancas nos limites do mar que sugerissem um vento distante fustigando a crista das ondas. Até o cheiro que se sentia no ar era de peixe e de animais marinhos e não de florestas ou de terras estranhas, trazido por ventos desconhecidos.

Os homens decidiram que Mostra-o-Caminho ficava de vigia enquanto Cen e Patas-de-Cão dormiam. De madrugada, Cen ouviu-o acordar Patas-de-Cão para o segundo período. De qualquer modo, Cen espiou o mar e viu que estava escuro. Esfregou os olhos e observou o céu. Não havia estrelas, mas isso não era de admirar. Muitas vezes, o que as nuvens não escondiam, escondia o nevoeiro. Começara a soprar uma brisa que ele julgou vir de poente - sem estrelas nem uma visão clara das correntes, era difícil dizer - mas o mar estava mais ou menos calmo, subia e descia num ritmo suave que voltou a adormecê-lo.

Mais tarde, quando ouviu a voz de Patas-de-Cão, Cen julgou que chegara a sua vez de ficar de vigia e mostrou-se admirado ao ver que o céu ainda estava escuro e que o Sol ainda nem começara a nascer. Patas-de-Cão não devia ter completado o seu turno. Cen não conhecia bem o homem, mas não devia ser grande coisa se tinha enganado os companheiros de viagem. Mesmo assim, pensou Cen, era preferível ter dormido pouco do que não ter dormido nada. Já fizera aquela mesma viagem sozinho e só conseguira dormir um pouco de vez em quando, durante a longa noite sem praias entre a Aldeia dos Comerciantes e o núcleo de aldeias dos Primeiros Homens que ficavam a dois dias para oeste.

- É a minha vez? - perguntou ele, tentando afastar o descontentamento da sua voz.

- Não - respondeu Patas-de-Cão.

No meio da escuridão, Cen ouviu o remo gotejar quando o homem retirou a pá da água.

- O que achas daquilo? - perguntou ele.

Cen endireitou-se no seu iqyax. Não via nada a não ser escuridão.

- O quê? - perguntou ele, e dessa vez nem tentou disfarçar a sua irritação.

Patas-de-Cão era jovem e talvez dado a toda a espécie de medos. Devia ter ouvido muitas histórias sobre pessoas azuis como o gelo e de monstros marinhos.

- Escuta.

A princípio, Cen não ouviu nada exceto as ondas batendo nos iqyax, mas depois, sobrepondo-se às vozes em surdina, ouviu-se um uivo, saído de muitas gargantas.

- Lobos - disse ele. - Devemos estar perto de terra.

- Não, escuta!

A voz do jovem estava tensa de preocupação. Mostra-o-Caminho gritou do seu iqyax:

- O que se passa? Calem-se, vocês os dois. Preciso dormir.

- Escuta, não são lobos - disse Patas-de-Cão. E apontou para uma mancha esbranquiçada que vinha ao encontro deles através da água. - Estás vendo?

Cen sentiu um nó na garganta, que lhe tirou o fôlego. Se eles estivessem no mar que ficava a sul das ilhas dos Primeiros Homens, teria pensado que era uma onda de maré, mas não havia ondas dessas ali no mar do Norte, apesar de os tremores de terra poderem içar a água a alturas tais que a maior parte dos barcos era engolida.

Mostra-o-Caminho gritou:

- O vento! Olhem! Está empurrando o mar para nós! Cen começou a desamarrar os remos que prendiam o seu iqyax aos outros, mas Patas-de-Cão protestou.

- Teremos mais chances de lutar contra isto se nos mantivermos juntos.

O ruído do vento era tal que Cen mal ouviu o que Patas-de-Cão disse.

- Numa tempestade, sim, mas com uma onda destas, é preferível que os nossos iqyax a atravessem do que tentar passar por cima dela - gritou Cen.

- És louco! - exclamou Patas-de-Cão, e, com o barulho da água e das ondas, a sua voz parecia vir de muito longe.

- Faz o que quiseres, mas eu vou enfrentar isto sozinho - disse Cen.

No escuro, era difícil avaliar a distância a que se encontrava a onda - mais perto do que Cen julgara a princípio, ou então rolava muito mais depressa do que era habitual. Cen cortou a última amarra, recuperou o seu remo e atirou-o para a água. Afastou-se de Patas-de-Cão e de Mostra-o-Caminho. Sabia que nunca conseguiria escapar da onda, mas remou com energia.

A água agitava-se por baixo dele, encrespava-se, como se o próprio mar estivesse assustado. Cen olhou para trás e viu que o céu se abrira, que as nuvens escuras se afastavam umas das outras. Avistou algumas estrelas, as últimas luzes tênues antes do amanhecer. Elas indicaram-lhe a posição em que se encontrava, e ele percebeu que estava dirigindo-se para terra. O que não era bom. A onda o atiraria para os baixios ou contra um rochedo. Virou o barco na direção do mar. A onda vinha do norte e ele virou o barco para oeste.

O mar agitado deu lugar a ondas alterosas. Cen passou-lhes por cima, tendo o cuidado de manter a proa reta para que o barco não se virasse. Tinha que se manter na vertical até que a onda o apanhasse. Olhou para trás por cima do ombro, na esperança de ver que Patas-de-Cão e Mostra-o-Caminho tinham resolvido separar os seus iqyax. Uma onda içou-os, e Cen percebeu que eles estavam mais longe do que ele julgava. Eram tão pequenos à vista que, se ele levantasse a mão, conseguiria tapá-los com ela.

- Separem-se! Separem-se! - gritou-lhes Cen, mas ele sabia que o seu aviso não conseguiria sobrepor-se ao vento e que, mesmo que os homens o ouvissem, não lhe obedeceriam.

Virou-se para a frente. A onda estava tão perto que parecia um monte nascendo do mar. Uma vez, numa das suas viagens, uma baleia dera um salto junto do seu iqyax. Cen era jovem, e o medo entorpecera-o, mas ele vira a baleia aproximando-se, empurrando um monte de água à sua frente. Por fim, o animal mudara de direção, com um batimento da longa cauda que parecia chegar ao céu. O seu rasto atingiu Cen e fez saltar o seu iqyax na água como se este fosse um seixo achatado.

Esta onda era maior do que a vaga provocada pela baleia, mas parecia que havia uma força debaixo dela que a obrigava a avançar.

- Estou com pouca profundidade - disse Cen entre dentes, e continuou a remar para mares mais profundos.

Se a onda fosse apenas uma elevação de água, talvez ele conseguisse galgá-la, mas se, ao ganhar volume e velocidade, ela atingisse tal altura que as suas raízes tocassem no fundo do mar, era certo que se enrolaria e rebentaria. Então a única chance de Cen seria virar o iqyax ao contrário e deixar que o fundo do barco suportasse o embate.

Amarrados como estavam, Patas-de-Cão e Mostra-o-Caminho não teriam oportunidade de fazer tal coisa, e mesmo que os seus iqyax se virassem sozinhos, os homens nunca conseguiriam endireitar-se e morreriam afogados.

As ondas aumentaram, e Cen olhou pela última vez para Patas-de-Cão e Mostra-o-Caminho. O que viu fê-lo gritar de frustração. Eles estavam remando para a costa!

- Imprudentes! Deixem-se ficar nas águas fundas! É a vossa única oportunidade! Separem-se, separem-se, separem-se!

De repente, o movimento das ondas cessou, e Cen desviou o olhar dos homens e, horrorizado, observou o mar. Estava calmo, como se uma mão gigantesca o tivesse esticado, e Cen percebeu que a água estava sendo sugada para a onda, como se esta estivesse comendo-a, enchendo a barriga. Sentiu o iqyax ser empurrado com a água e compreendeu que ia ser engolido.

Verificou as amarras que prendiam o remo sobressalente ao rebordo. Se ele sobrevivesse, não conseguiria virar o barco sem o auxílio de um remo, e com certeza aquele que ele tinha nas mãos lhe seria arrebatado.

Apesar do medo, percebeu que estava prendendo a respiração e forçou-se a olhar para o céu, a ir buscar força na atmosfera até encher por completo os pulmões.

Depois, por instantes, foi como se todo o mundo tivesse parado. Cen viu a mulher, Gheli, e as filhas. Viu os pais, e receou que eles o chamassem do mundo dos mortos. Viu K’os, como ela era quando ambos eram jovens, e Daes, a mulher que ele amara mais do que todas as outras, também ela morta. Mas concentrou-se em Ghaden, como se o filho, com toda a energia da juventude e o poder que alcançara por ter matado o urso-pardo, pudesse lhe dar sorte.

Verificou o nó que lhe atava o capuz do chigdax em volta da cara e esticou bem as pernas no interior do iqyax. Mais uma vez encheu o peito de ar, mais uma vez encheu os olhos com a vista do céu, e quando a onda se ergueu sobre ele, quando a espuma branca caiu em espiral pelo verde transparente dos seus lados, Cen impeliu o iqyax para a frente e dirigiu a proa para a sua boca.

 

           Baía de Herendeen, península do Alasca

           602 a. C.

 

Yikaas calou-se. Chega-ao-Céu resolvera sentar-se na frente dele, e quanto mais Yikaas falava, mais barulho ele fazia. Primeiro, espevitou os dentes com a língua, depois começou a bater com a lâmina da faca que trazia na manga nas unhas. E nesse momento, roncava, tossia e pigarreava.

Yikaas tentara concentrar-se na história, mas as pequenas provocações de Chega-ao-Céu começaram a interferir com as suas palavras.

”É uma boa hora de parar”, pensou Yikaas. Já vira outros contadores de histórias fazerem o mesmo. Com um gesto de cabeça, repetiu o final tradicional: ”E foi assim que isto aconteceu, segundo dizem.” Em seguida, agradeceu a Qumalix por ter traduzido o que ele dissera.

- Acabaste? A história acabou? - perguntou ela.

- Não podes parar aí - gritou um homem do Povo Rio.

Vários outros protestaram, uns na língua do Povo Rio, outros gritando palavras dos Primeiros Homens.

Chega-ao-Céu levantou-se e encaminhou-se para o círculo dos contadores de histórias cambaleando.

- Vou contar uma história melhor do que essa - disse ele.

Qumalix traduziu as suas palavras para a língua do Povo Rio, e lançou um olhar especial a Yikaas, como que pedindo-lhe que fizesse qualquer coisa para calar o homem. Depois, inclinou-se para Yikaas e disse:

- Termina a tua história.

Mas as suas palavras foram mais uma exigência do que um pedido, e ele respondeu:

- Está terminada.

O comerciante que se encontrava mais perto levantou-se, pôs as mãos no peito de Chega-ao-Céu e começou a empurrá-lo.

- Senta-te, volta para o teu lugar e senta-te - disse o comerciante. Em seguida, empinou o queixo para Yikaas e pediu delicadamente: - Contas-nos o resto da história?

- A história está contada - respondeu Yikaas e, ao olhar para Qumalix, viu que tinha o rosto crispado e a boca fechada.

Então, Qumalix sorriu-lhe, um sorriso forçado que mostrou uns dentes brancos como penas de gaivota.

- Talvez haja uma história a seguir a essa, mas se não tens mais histórias sobre Cen, creio que chegou o momento de ouvirmos Chega-ao-Céu.

Vários Primeiros Homens falaram, e Qumalix disse a Yikaas:

- Eles dizem que preferiam ouvir a tua história.

- Pergunta quantos querem ouvir a minha história e quantos preferem ouvir Chega-ao-Céu.

Qumalix fez a pergunta, e todos os homens que estavam no ulax escolheram Yikaas. Chega-ao-Céu resfolegou e proferiu um insulto. Em seguida, dirigiu-se para o poste e saiu do ulax.

- É uma criança no corpo de um homem - disse Qumalix a Yikaas. - Ainda bem que tu és mais sensato do que ele.

- Umas vezes sou sensato - disse Yikaas. - Outras sou tão tolo como qualquer criança.

- As mulheres também sabem ser tolas - disse Qumalix, e, apesar de nenhum dos dois ter se desculpado, Yikaas sentiu-se mais alentado.

- Então, meu amigo, terminas a história? - perguntou Qumalix.

- Explica-lhes que, segundo a tradição do Povo Rio, às vezes esta história é interrompida neste ponto para que quem a ouça possa dar idéias a quem a conte.

Quando ela traduziu as palavras de Yikaas, ouviu-se um murmúrio de admiração entre os comerciantes. Depois, um dos Primeiros Homens, um caçador chamado Peixe, exclamou na língua do Povo Rio:

- Cen morto. Nenhuma chance.

Vários Primeiros Homens começaram a discutir. Qumalix riu e disse a Yikaas:

- Eles estão dizendo que Peixe vai amaldiçoar a chance que Cen tem de sobreviver.

Um comerciante do Povo Rio ouviu a tradução dela e também começou a discutir, arrastando outros homens do Povo Rio. Dois caçadores trocavam impressões sobre a melhor maneira de enrolar um iqyax, e vários homens falaram das suas experiências com rebentação forte. A discussão recomeçou, e por fim Qumalix levantou as mãos, rindo. Beliscou o nariz como que a mostrar que lhe doía a cabeça.

- Basta! - exclamou ela na língua do Povo Rio. - As discussões são muito difíceis de traduzir. Conta a tua história, Yikaas. Por favor!

Yikaas retomou o seu lugar no círculo dos contadores de histórias e abriu os braços, com a palma das mãos para cima.

- Talvez as preces de todos aqueles que viveram depois de Cen tenham feito frente a essa onda, talvez essas preces tenham recuado no tempo e o tenham ajudado.

Ouviu-se um clamor de aprovação vindo dos homens que pensavam que Cen sobrevivera, mas Yikaas continuou:

- É claro que também é possível que essas preces não lhe tenham dado qualquer ajuda.

Então os outros comerciantes desataram a rir, e Yikaas levantou a voz para concluir a história de Cen.

 

         Mar de Bering

         6435 a. C.

 

                   História de Cen

Cen já estivera dentro das ondas, com o iqyax virado ao contrário, de tal modo que fora o fundo da embarcação, mais do que a cabeça dele, que suportou o embate da rebentação. Ficou à espera que o seu corpo enregelasse de repente. Não se preocupou quando o ruído do vento foi substituído pelo da água e pela voz surda do seu coração empurrando o sangue.

Mas Cen estava à espera de encontrar escuridão dentro daquela onda. Qual a luz que conseguia sobreviver nas entranhas do mar? Para sua surpresa, apesar de ainda mal terem surgido no céu os primeiros raios de sol, a onda apropriara-se dessa claridade e a água cintilava.

Cen tentou endireitar-se, arqueou a espinha para trás sobre o rebordo de madeira dura do iqyax e empurrou a parte superior do corpo e o remo para a frente com força suficiente para se deslocar rapidamente na água. O mar arrebatou Cen e a sua pá e abrandou o seu ímpeto. Cen arqueou e empurrou uma, duas vezes. À terceira vez, o iqyax endireitou-se, mas, no meio do desespero e do torpor, Cen percebeu que ainda estava encurralado na montanha de água.

Calculara mal o ar de que dispunha e deixou que o fôlego armazenado nos pulmões se escapasse por entre os dentes quando o iqyax finalmente se virou. Agora, os pulmões pediam-lhe ar renovado.

Havia correntes no interior da onda. Elas apanharam Cen e tentaram derrubá-lo, e ao seu iqyax, partir-lhes os ossos.

Ignorando os pulmões, Cen fez-lhes frente com o seu remo e conseguiu manter-se quase sempre na vertical. No preciso momento em que ele pensava que a água estava clareando - como se o céu tivesse descido até ele para lhe mostrar que a viagem não duraria muito mais - a onda açoitou o fundo do iqyax e levantou a extremidade da proa tão depressa que Cen não conseguiu reagir.

Obrigou-o a dar uma cambalhota e atirou-o para o fundo do mar. Cen perdeu o remo e agarrou-se ao rebordo, empurrou os joelhos para cima até eles tocarem na parte inferior da coberta do iqyax, e deste modo conseguiu manter-se dentro do barco.

A dor apunhalava-lhe os ouvidos, e Cen viu o sangue jorrar aos borbotões em volta do rosto. A onda voltou a atirá-los ao ar e a pressão abrandou. As mãos, transformadas em punhos cerrados, estavam feridas devido à força da água, mas essa dor não era nada comparada com a dos pulmões. Estes doíam-lhe tanto que parecia que alguém lhe entrara dentro do peito e os rasgara.

O rosto de Ghaden surgiu na sua mente, e Cen voltou a ver Daes, ouviu a sua voz como se ela estivesse recebendo-o no mundo dos mortos.

- Daes - disse ele em surdina, e libertou a sua última bolha de ar. Esta passou-lhe pelos olhos, foi juntar-se à espuma da onda e perdeu-se nela.

Cen engoliu uma golfada de água, teve um momento de alívio e depois engasgou-se. A água entrou-lhe nos pulmões, no estômago, e ele tossiu e respirou até todo o seu corpo ser sacudido por espasmos.

De súbito, tudo acalmou. Os pulmões, como se estivessem satisfeitos com a água que os inundava, não tentaram absorver mais, e o iqyax estabilizou no interior da onda. Até os ouvidos deixaram de latejar, apesar de uns fiozinhos de sangue se encaracolarem diante dos olhos, vermelhos como flores da erva-de-fogo.

A beleza da água fascinou-o, e Cen sentiu-se grato por ver o mar por dentro, como se lhe tivessem sido concedidos os olhos de uma lontra em compensação pela sua morte. E porque não? O seu amigo Chakliux, aquele homem com um pé e inteligência de lontra, é que construíra o iqyax de Cen.

Então, como se o próprio iqyax se reconhecesse como lontra, estremeceu e atirou a proa para cima, de nariz virado para o Sol. Subiu na água e por fim voltou a ver a luz do dia, descendo de lado pela parte de trás da onda, como uma lontra-do-rio escorregando no gelo. Aterrou de lado, depois endireitou-se e ficou balançando no rastro da onda.

Cen viu tudo como se estivesse observando outro homem apanhado no mar. Mas depois a água que ele engolira saiu-lhe dos pulmões e do estômago, subiu-lhe à garganta e jorrou do nariz e da boca, ardente como sal em carne viva.

Nauseado, Cen engasgou-se e vomitou, sempre agarrado ao rebordo do barco, com os dedos tão frios e rígidos que pareciam os dedos de um morto.

Vomitou o que tinha no estômago, peixe, bílis e mais água do mar, e por fim conseguiu respirar. Compreendeu que, ainda mais do que o frio e a água, fora o medo que se apoderara dele, e no momento em que ele lhe saiu do corpo, os dedos distenderam-se e Cen começou a tremer.

Durante muito tempo, não conseguiu fazer mais nada a não ser ficar sentado, combater o terror e tentar libertar-se das dores. Foi rocha, animal e finalmente homem, capaz de controlar os seus pensamentos, torcê-los como quem fazia uma corda com muitos fios, e ao fazê-la ganhava forças.

 

                   Praia dos Comerciantes

Dois dias depois da tempestade, os caçadores trouxeram destroços de iqyax para a Praia dos Comerciantes e foi enviado um jovem à aldeia dos Morsas para avisar as famílias que Patas-de-Cão e Mostra-o-Camínho tinham morrido numa tempestade. O mar engolira os corpos, como tantas vezes acontecia, e, apesar de terem pouca esperança de encontrar os despojos, o irmão de Patas-de-Cão e vários caçadores mais velhos da Aldeia dos Comerciantes partiram para fazer uma busca no litoral e nas enseadas.

Embora Filha tivesse suplicado a Ghaden que ficasse na aldeia e lembrado que nenhum dos destroços parecia pertencer ao iqyax de Cen, Ghaden foi com os caçadores. Durante a sua ausência, o céu esteve límpido e o mar calmo, como se toda a fúria do Verão se tivesse esgotado numa única tempestade.

Quando os quatro dias de luto terminaram na aldeia, a vida retomou o seu ritmo habitual, com comerciantes chegando e partindo, mulheres pescando, apanhando raízes e costurando, e homens caçando e consertando os seus iqyax.

A tempestade demonstrara uma certa generosidade com a baía, e as crianças ajudaram os velhos a apanhar bolbos que as mulheres recheavam de carne e assavam, ou secavam e trituravam para fazer remédios para os ossos. As meninas apanharam restos de madeira para alimentar as lareiras e fazer chapéus para os caçadores, carcaças de iqyax e vigas para os ulax.

Filha fazia mais do que lhe competia. Começava o dia muito cedo e ficava acordada até de madrugada. Andava pelas praias, com um molho de madeira às costas, à espera de Ghaden, com um misto de expectativa e de medo, receosa do que ele pudesse encontrar, mas com necessidade de que ele voltasse para junto dela.

K’os parecia observar a sua estranha forma de luto. A princípio cantou por Cen como se fosse mulher dele, insultando Foca com as suas lágrimas e até retalhando os braços como uma esposa devia fazer. Mas, no quarto dia, levantou-se da cama com os olhos límpidos e uma nova força, e, quando Filha se aproximou dela, sentiu o zumbido de uma energia qualquer que agitava o ar como o bater rápido das asas de um pato.

Nesse dia, K’os foi se encontrar com Filha na praia, ajudou-a a apanhar madeira e kelp, mas não tirou os olhos da baía, parando sempre que avistava um iqyax.

A princípio, Filha julgou que ela tivera um sonho e soubera que Cen ainda estava vivo. Embora Filha esperasse sobretudo por Ghaden, deu consigo tentando ver se algum iqyax que chegava tinha as marcas brilhantes de Cen.

Por fim, Filha perguntou a K’os se ela estava convencida de que Cen ainda estava vivo. K’os deu uma gargalhada e respondeu, com um ar gozador:

- Como é que um homem conseguiria sobreviver a uma tempestade daquelas? Ela surgiu de repente. Não ouviste aquilo que um comerciante disse da aldeia que fica perto do local em que eles encontraram os destroços dos iqyax, quantos ulax ficaram danificados?

- E se os homens estivessem em terra e só os iqyax tivessem sido empurrados para o mar?

Era uma esperança que Filha ouvira exprimir a algumas das mulheres mais jovens. K’os abanou a cabeça.

- Mesmo que eles tivessem tempo de chegar à costa, ouvi dizer do chefe dos caçadores que no local em que a tempestade foi mais forte, as mulheres encontraram destroços de madeira no sopé dos montes. Talvez eles tenham sobrevivido, mas é pouco provável. Quando Ghaden voltar, deixaremos este local e iremos com ele para as aldeias do Povo Rio. A família dele tem que saber o que aconteceu. Talvez eles se sintam reconfortados quando souberem que Ghaden te aceitou como esposa. Talvez a mulher de Cen fique satisfeita por ter mais uma filha.

Os pensamentos de uma viagem à aldeia de Cen pareciam afastar K’os do seu luto, e Filha nem lhe confiou as suas dúvidas quanto ao modo como seriam recebidos. Era preferível que K’os encontrasse consolo como pudesse. Mas Ghaden dissera a Uutuk que a mulher de Cen, Gheli, não o conhecia e parecia não ter vontade de considerá-lo seu filho. Então, porque ela quereria Uutuk? O melhor era que Filha se concentrasse no regresso de Ghaden, são e salvo, à Praia dos Comerciantes.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

Uma voz interrompeu as palavras de Yikaas, que começou a lamentar que o seu público fosse essencialmente masculino. As mulheres eram ouvintes mais corteses, e os homens mantinham-se mais silenciosos quando estavam acompanhados pelas mulheres e pelas mães.

- Então, Cen sobreviveu! - gritou um dos comerciantes do Povo Rio a Yikaas.

- Sobreviveu - respondeu Yikaas.

Vários homens começaram a entoar um cântico de caçadores, uma canção de vitória habitual nas festas do Povo Rio, mas foram interrompidos por um grito rude vindo do topo do poste. Yikaas reconheceu a voz de Chega-ao-Céu, mas como este falou na língua dos Primeiros Homens, ele teve que esperar que Qumalix traduzisse as suas palavras.

- Ele tem perguntas a fazer - explicou Qumalix. ”Se Cen está vivo, porque temos que ouvir falar nas mulheres? Fala-nos dele. Onde está? Porque não regressou ainda à Praia dos Comerciantes?” - Qumalix sorriu em jeito de desculpa e acrescentou: - As palavras são de Chega-ao-Céu, não minhas.

Yikaas aproximou-se do poste e protegeu os olhos da luz acinzentada que entrava pelo orifício no telhado do ulax.

- Pois então tens estado escutando? - perguntou ele.

Chega-ao-Céu respondeu num tom belicoso, e Qumalix inclinou-se para Yikaas e disse:

- Ele diz que parou de chover e que tem mais a fazer do que ouvir histórias sobre mulheres.

Yikaas voltou para o seu lugar, disposto a continuar a sua história como se não tivesse sido interrompido. Qumalix olhou para ele e disse:

- Ele é malcriado, mas tem razão. Estes homens não querem ouvir falar de K’os nem de Filha. Querem saber o que aconteceu a Cen. Conta-lhes essa história.

Os homens que estavam sentados junto de Qumalix concordaram, e Yikaas levantou a voz para perguntar às outras pessoas que se encontravam no ulax o que queriam ouvir.

- Abrevia a parte de Filha - gritou um homem.

- Conta-nos o que Ghaden descobriu - alvitrou outro.

- Onde está Cen?

Yikaas encolheu os ombros e levantou as mãos.

- O que pode um contador de histórias fazer senão agradar a quem o ouve? - disse ele, rindo.

Os homens riram. Até Chega-ao-Céu se acomodou num dos entalhes do poste, empoleirado, de mãos sobre os joelhos, pronto a ouvir.

- Então, quanto a Filha e a K’os, basta-vos saber que K’os está ansiosa por iniciar a viagem de regresso ao Povo Rio que deixou há tantos anos, e que Filha é uma boa esposa, preocupada com o regresso do marido. Mas antes de eu vos falar de Cen, deixem-me falar um pouco de Ghaden.

Ouviu-se um murmúrio de aprovação, apesar de Chega-ao-Céu deixar escapar algumas lamúrias. Qumalix repreendeu-o, e começaram os dois a discutir. Por uma vez, Yikaas congratulou-se por não entender muito da língua dos Primeiros Homens e não ser obrigado a conhecer as opiniões de Chega-ao-Céu sobre as suas histórias.

Deixou-se ficar calado, pensando por onde começar. Por fim, levantou a voz acima das críticas de Chega-ao-Céu e disse:

- Embora Ghaden gostasse muito do pai, também se sentia magoado por Cen nunca o ter levado à aldeia dos Quatro Rios e às vezes passar alguns anos sem o ver. Mas quando andava à procura dele, esqueceu a sua mágoa e recordou apenas as coisas boas...

 

         Mar de Bering

         6435 a. C.

 

                   História de Ghaden

A névoa era tão úmida e espessa que abrandava um pouco os movimentos das mãos de Ghaden no remo e toldava-lhe a vista, como se os seus olhos estivessem gastos pela idade. Os homens mantinham os iqyax perto da linha da costa, e por duas vezes deixaram que o mar remexesse os montes de madeira flutuante que a tempestade atirara para as praias, mas não encontraram nada. Os pensamentos de Ghaden eram tão lentos como os movimentos das suas mãos, ele via constantemente o rosto do pai nas ondas, no céu, e até nas ervas que ondulavam ao vento.

A sua primeira recordação viva da infância era a de Cen sorrindo-lhe durante uma discussão sobre um brinquedo partido. Uma lança, sim, era isso, feita de um pau que Cen afiara e endurecera ao fogo da lareira. Ghaden levara a lança lá para fora. com a inocência que leva uma criança a pensar que é capaz de fazer o mesmo que o pai, ele convencera-se de que conseguiria apanhar uma lebre. Mas a sua primeira tentativa de lançamento terminara com a lança espetada a fundo num tufo de vegetação da tundra. Horrorizado, ao tentar puxar a lança, tropeçara, caíra sobre a sua pequena arma e partira o cabo.

Já adulto, Ghaden ainda se lembrava do desgosto que a perda dessa lança lhe provocara. Quando a levara a Cen, à espera que o repreendessem, o pai limitara-se a resmungar e fizera-lhe outra. Fora com essa lança que Ghaden matara o seu primeiro animal, embora nessa época Cen já tivesse saído da aldeia.

Uns meses mais tarde, Cen voltara e raptara Ghaden e a sua irmã mais velha, Aqamdax. Levara-os para a aldeia de Rio Primo, que pouco depois fora destruída durante uma luta entre o povo de Rio Primo e o de Rio Próximo.

Em algum momento durante essa luta, Cen desgraçara-se. Ghaden ouvira contar que o pai fugira ainda antes de os confrontos começarem. Ghaden sempre quisera falar com ele sobre isso, mas como é que um filho se referiria à covardia do pai? Ghaden pretendia um desmentido, ou pelo menos um motivo honroso que justificasse a decisão de Cen, e se este não tivesse outro motivo além do seu próprio medo?

Quando Daes, a mãe de Ghaden, fora assassinada, e Ghaden fora esfaqueado e dado como morto, Cen fora acusado. Nessa época, pouco faltou para que as pessoas da aldeia tirassem a vida a Cen, por vingança, mas ele enfrentara-os a todos, perguntara se o seu filho Ghaden ainda vivia e, agarrando na faca de um dos homens que o manietava, cortara um dedo da mão, oferecendo-o como sacrifício em troca do restabelecimento de Ghaden. Como podia um homem que tivera a coragem de fazer tal coisa ter medo da luta?

Cen não era covarde, e teria enfrentado a tempestade com todas as suas forças. Se alguém tivesse conseguido sobreviver, seria o pai, pensou Ghaden para se tranqüilizar.

Um grito de um dos outros homens arrancou Ghaden dos seus pensamentos. O caçador apontou para a praia com um remo, e Ghaden viu mais um monte de ripas de madeira. A maré estava baixa, mas havia poucas rochas e as ondas rebentavam suavemente na costa, um local onde era improvável que alguém fosse arrastado para o mar, embora durante uma tempestade qualquer praia pudesse ser traiçoeira.

Um dos homens era o irmão mais velho de Patas-de-Cão, um comerciante dos Morsas talvez com oito mãos-cheias de anos. Dos outros - três - Ghaden sabia apenas que eram caçadores dos Primeiros Homens, e nem sequer lhe conhecia os nomes, mas eram todos tão hábeis manejando os iqyax que, ao vê-los, Ghaden esmerara-se.

O irmão de Patas-de-Cão já virara o seu iqyax para terra e Ghaden foi atrás dele. Quando já tinha pé, Ghaden desapertou a saia que formava um compartimento estanque à volta do rebordo do barco e saltou do iqyax antes de este bater no fundo.

A água fria enregelou-lhe os pés e os tornozelos nus, mas caiu bem levantar-se depois de tanto tempo remando. Olhou para o céu, tentou determinar a posição do Sol, mas o nevoeiro estava muito cerrado. A tonalidade da luz que os envolvia levou Ghaden a concluir que o dia estava chegando ao fim, e que seria aconselhável pensarem em pernoitar na praia.

Um dos caçadores, já em águas baixas, mostrou-lhes uma fiada de peixes e de kelp, que ele devia ter pescado nesse dia, mas Ghaden não se lembrava de o ter visto com uma linha de pesca.

- Estou com fome. Querem comer comigo? - gritou o homem.

Todos os outros mostraram alguma coisa, uma bolsa de peixe seco, uma rede de ouriços-do-mar. O filho de Patas-de-Cão, empoleirado numa colina que sobressaía dos baixios pedregosos, gritou, apontando para várias plantas altas e de caule grosso que se elevavam acima das ervas:

- Aqui há iitikaalux.

Uutuk dera a Ghaden um odre de peixe defumado e outro de óleo de foca, e a mãe dela acrescentara um pacote de folhas secas de erva-de-fogo para fazer chá. Ghaden tirou os fardos do seu iqyax, e o irmão de Patas-de-Cão, descendo a colina com um molho de iitikaalux na mão, declarou-se pronto para comer. Mas de repente o homem perdeu a voz e emitiu um som como se estivesse sufocando. Desatou a correr em direção ao monte de madeira flutuante e começou a vasculhá-lo e a chorar ao mesmo tempo.

Os outros, que ainda estavam no mar, lutando com a ressaca e as poucas rochas que salpicavam a água pouco profunda, não se perceberam a reação do homem, mas Ghaden ouviu o desespero na sua voz e sentiu-se desfalecer. Largou os fardos e correu ao encontro do irmão de Patas-de-Cão.

Quando Ghaden viu o braço, soltou também um gemido de aflição e começou a afastar os restos de madeira. Os vários dias passados no mar tinham inchado o corpo, cuja pele estava branca como a parte de baixo da barriga de um peixe. Ao ver a mão esquerda do corpo, em que faltava o dedo mindinho, Ghaden teve a certeza de que aquele era o seu pai. Mas depois percebeu que o dedo e uma grande parte da mão tinham sido comidos. Olhou para o chigdax, quase intacto, e concluiu que o homem não era Cen. O irmão de Patas-de-Cão virou-se, nauseado, e, quando estava vomitando apenas a sua tristeza, conseguiu balbuciar:

- É o meu irmão. Reconheço-o pelo chigdax.

Ghaden agachou-se ao lado dele, passou-lhe o braço pelos ombros e ajudou-o a levantar-se. Depois, levou-o para um local onde o vento não deixava chegar o cheiro fétido do cadáver.

Quando os outros içaram os iqyax para a praia, juntaram as suas vozes e entoaram os cânticos fúnebres o melhor que sabiam, sem o ulular das mulheres, que se elevava acima do vento e do céu até chegar às luzes dançantes em que Patas-de-Cão o poderia ouvir e saber que estavam a homenageando-o. Fizeram uma sepultura de pedras. O irmão de Patas-de-Cão depôs um dos seus arpões sobre o corpo, para que Patas-de-Cão tivesse armas no mundo dos espíritos. Ghaden ofereceu uma faca; um dos outros caçadores, uma linha de pesca, e outro, uma lanterna de caça.

- Ele vai ficar satisfeito com os vossos presentes disse o irmão, a custo, com um nó na garganta.

Depois, Ghaden vasculhou o monte de madeira à beira da água, mas não encontrou nada que pertencesse a Cen e, apesar de ter chorado Patas-de-Cão, ficou aliviado por ainda poder acalentar alguma esperança.

Acamparam longe da sepultura para não verem o monte de pedras e para que nenhum espírito, chamado à praia pela morte de Patas-de-Cão, o avistasse com facilidade. Prepararam a comida, mas comeram pouco e falaram ainda menos antes de se enrolarem nas peles para passar a noite.

Ghaden acordou várias vezes, atormentado por sonhos de morte e de afogamento. Na manhã seguinte, o irmão de Patas-de-Cão trocara a tristeza pela raiva, e a sua perda afiara-lhe a língua.

- O teu pai também está morto, assim como Mostra-o-Caminho - disse ele a Ghaden. - Não havia ninguém que manejasse tão bem um iqyax quanto o meu irmão. Se ele está morto, então estão todos mortos.

Ghaden, ainda amarrado aos seus sonhos, deixou-se convencer pelas palavras do homem. E nesse dia, no mar, Ghaden entoou cânticos fúnebres e, em pensamento, dispôs pedras, uma por uma, sobre o cadáver de Cen, como tinham feito ao de Patas de Cão. Três dias depois, quando encontraram dois remos à deriva, Ghaden não ficou admirado ao verificar que eles pertenciam a Cen.

Nessa noite, enterrou um na praia e cantou, esperando que o remo fosse ao encontro de Cen no mundo dos espíritos, e enterrou também uma faca e um arpão, um sax e um par de botas de barbatana de foca que trouxera a pensando que iria encontrar o pai - roupas novas para afastar a má sorte das antigas.

Não encontraram nada que pertencesse a Mostra-o-Caminho, mas como podia o comerciante ter sobrevivido se os outros estavam mortos? Por isso, na manhã seguinte, choraram-no e simularam o seu sepultamento, oferecendo mais armas e um odre de óleo. Depois, regressaram à Praia dos Comerciantes e, à sua chegada, as pessoas da aldeia voltaram a chorar os três homens perdidos, fizeram oferendas de comida, roupas e armas, para que Cen, Patas-de-Cão e Mostra-o-Caminho tivessem tudo aquilo de que precisavam para conservar as forças nesse outro mundo em que agora viviam.

 

                     História de Cen

O mar roubara-lhe tudo aquilo de que ele precisava para sobreviver: os dois remos e todos os arpões. Até lhe arrancara o capuz do chigdax e a faca da bainha que ele trazia na manga. Cen tinha as costelas partidas, tanto as suas, quanto as do seu iqyax. Cada vez que respirava, ouvia um chocalhar no peito, como se o vento brincasse com os seus ossos, imitando os jogos das crianças da aldeia.

Mas o pior era que o mar lhe levara o ouvido. Um dia depois da passagem da onda, o sangue continuava pingando da crosta que lhe bloqueava os ouvidos. Cen lembrou-se dos velhos cujo ouvido interno secara com a idade. Queixavam-se de que não ouviam nada, mas os ouvidos de Cen estavam cheios do fragor daquela onda, como se ela tivesse arrebatado todos os sons da terra e os houvesse substituído pela sua própria voz.

O mar açoitara-lhe de tal modo a cabeça que Cen tinha os olhos fechados de tão inchados e o nariz partido. Perdera dois dentes, um canino e outro atrás. Esse dente não desaparecera por completo, mas o que restava dele doía-lhe mais do que o nariz. Há muito tempo, quando o Povo de Rio Próximo acusara Cen de ter matado Daes, tinham-no espancado e rachado o osso do nariz. Com o tempo, o nariz formara uma bossa. Agora, estava de novo liso, mas há muito que Cen se habituara a respirar pela boca.

Com a dor ele podia viver. Qual o comerciante que não aprendia a aceitar um ferimento como companheiro? Mas quando um homem não tinha remos, quando o seu iqyax só não se desconjuntava graças à cobertura de pele de foca e o seu chigdax já não o protegia da água do mar, o que ele podia fazer? Ficar escutando e, quando ouvisse os pássaros, os kittiwake e as gaivotas, encaminhar o seu iqyax com os movimentos das pernas, remando com as mãos, até - se tivesse sorte - ser apanhado por uma corrente que o empurrasse para a costa. Se tivesse azar, seria atirado contra as rochas pelas ondas, embora ainda tivesse alguma chance de se salvar.

Porém, sem ouvir, como é que ele sabia para onde dirigir o seu iqyax? Através da observação. Quando visse aquelas gaivotas, iria atrás delas. Mas o que podia fazer um homem que não via nem ouvia?

Cen fez esta pergunta a si próprio muitas vezes, e a resposta foi a seguinte: um homem tem duas possibilidades. Pode desistir e esperar pela morte, ou pode cantar. Porque a verdade é que havia sempre a chance de um caçador ou um comerciante ouvir a sua voz e ir ao seu encontro. Mesmo que isto não acontecesse, talvez as canções agradassem aos espíritos e estes guiassem o seu iqyax. E, evidentemente, se ele vivesse o suficiente, talvez os olhos voltassem a abrir-se, porque quando ele espreitava através das pálpebras, via luz, e tinha esperança que a ferida sarasse.

A onda levara muito, mas também lhe deixara alguma coisa. Cen ainda conservava peixe seco e dois odres de água. Tinha as mãos machucadas, mas os dedos não estavam partidos e mantinha a força nos braços e nas pernas. A saia de proteção do rebordo continuava a não deixar entrar a água, e ele puxara-a até as axilas.

Começou a cantar, mas, como não ouvia, não sabia se estava cantando alto ou baixinho, porque os pulmões gritavam de aflição quando ele respirava e a garganta estava inflamada devido à água do mar que engolira. Mesmo assim, continuou a cantar, louvando sobretudo a terra e o mar e Aquele que os criara, porque Cen não sabia ao certo quais os espíritos que andavam por ali - se é que andavam alguns - mas nenhum deles deveria sentir-se insultado por cânticos dirigidos ao Criador, à terra ou mesmo ao mar. Por isso, cantou e ficou à espera, arrastando as mãos na água para se perceber qualquer mudança de direção do iqyax. E, enquanto cantava, rezava para que uma corrente favorável o empurrasse para uma praia segura onde ele pudesse ficar à espera que os seus olhos voltassem a ver.

 

                   Praia dos Comerciantes

                   História de Filha

Durante a ausência de Ghaden, Filha arranjou muitos pretextos para trabalhar perto das praias. Tinha que vigiar as mercadorias do marido e do sogro. Tinha que apanhar ouriços-do-mar e pescar à linha na costa ou entrar na água para apanhar lapas nas rochas na maré baixa e procurar mexilhões. No entanto, mesmo quando estava trabalhando, os seus olhos estavam sempre na baía, sempre à procura no horizonte, esperando ver o marido e o pai dele nos seus iqyax.

No dia em que Ghaden voltou, o nevoeiro era tão denso que, apesar de estar na praia, Filha não o viu senão quando ele já tinha saído do iqyax e o puxava para terra. Examinou a expressão do marido e percebeu que Cen morrera. Só quando várias mulheres começaram a entoar um cântico fúnebre é que ela conseguiu ir ao encontro de Ghaden.

No caminho, deu consigo pensando na dor que sentia. Era esposa há pouco tempo, mas era como se já estivesse ligada ao marido por laços fortes, como se a sua aflição fosse um reflexo da aflição de Ghaden. Que outro motivo poderia levá-la a chorar um comerciante que ela mal conhecia?

Quando Ghaden a viu, abriu caminho entre as mulheres que choravam, os homens que faziam perguntas em voz alta, e as crianças que dançavam e cantavam, porque só compreendiam o alvoroço e não aquilo que o provocava. Os maridos dos Primeiros Homens, quando estavam com outros, não demonstravam com freqüência o seu afeto pelas esposas, nem tocando-lhes nem abraçando-as, mas Filha concluiu que o Povo Rio devia ser diferente, porque Ghaden agarrou-a e envolveu-a num longo abraço. Ainda não despira o chigdax, que estava molhado, e esfriou Filha, apesar das penas do seu sax.

- Encontraste alguma coisa? - perguntou Filha. Ghaden tentou falar, mas a voz embargou-se e falhou. Ele tossiu e respondeu:

- Só o corpo de Patas-de-Cão. Não o de Mostra-o-Caminho, mas encontramos restos do seu iqyax e os remos do meu pai.

Filha sentiu-o estremecer, e os seus braços tremiam quando ele a abraçou.

- Ghaden, meu marido, lamento muito - disse Filha em voz baixa.

Ghaden apertou-a tanto que ela mal conseguia respirar.

- Durante todo este dia de viagem, um espírito atormentou-me com a idéia de que eu te perdera também, de que eu não te encontraria quando voltasse a esta praia.

Filha afastou-se dele, olhou-o nos olhos e viu cansaço e sofrimento. Com um nó na garganta, respondeu:

- Julgas que eu seria capaz de te deixar com essa facilidade? Prometi ser tua esposa. Julgas que eu me esqueceria dessa promessa? - Filha fez um sorriso forçado. - Lembro-me de que, quando o meu avô morreu, eu tinha medo de perder outras pessoas, as minhas amigas e a minha mãe.

Filha sentiu alguém acariciando-lhe a cabeça, e a princípio julgou que era Ghaden, mas depois percebeu que a mão pertencia a K’os, uma mão de dedos rígidos e nodosos. Ainda nos braços do marido, virou-se para trás e viu que a mãe estava atrás dela.

- Venham comigo - disse ela a Ghaden e Filha. Foca toma conta do teu iqyax.

Os seus olhos duros estavam secos, e ela não fez perguntas, como se já soubesse que Cen estava morto muito antes de os homens voltarem.

Ghaden seguiu-a a custo pela praia, com um braço por cima dos ombros de Filha. Apoiava-se de tal maneira nela que Filha receou que a viagem e o desgosto lhe tivessem roubado as forças, mas, assim que chegaram ao ulax de Qung, ele foi o primeiro a subir e ajudar as mulheres, puxando Filha com tanta facilidade que os seus pés mal tocaram no solo.

- Tens fome, marido? - perguntou ela.

Antes que Ghaden pudesse responder, K’os adiantou-se.

- É claro que tem fome. Vai lá embaixo no ulax e ajuda Qung a preparar a comida. Foca está chegando e talvez venha acompanhado.

Filha tinha vontade de ficar junto de Ghaden, mas ele disse:

- Tenho fome, mulher. Não como desde de manhã. Filha ia descendo o poste, mas, quando Qung começou a fazer perguntas, ela deixou-se ficar por baixo do orifício do telhado durante algum tempo, ouvindo o que K’os estava dizendo. Perguntou por Cen, e Ghaden respondeu o que já dissera a Filha sobre os remos, do corpo de Patas-de-Cão e dos destroços dos iqyax.

Qung aproximou-se do fundo do poste e começou a fazer perguntas, aos gritos, como se Filha não tivesse respondido por não ter ouvido. Filha agarrou no braço de Qung, levou-a para junto da lanterna de óleo e contou-lhe o que Ghaden dissera.

- Bem me parecia que tinha ouvido choros.

Qung torceu as mãos de tal maneira que Filha ouviu as articulações gemendo e saltando.

- Ghaden está lá fora e precisa comer.

A expressão de Qung desanuviou-se, e a velha fez um gesto rápido de cabeça.

- Então, porque estamos aqui sem fazer nada? - perguntou ela, e apontou para uma das despensas com um dedo deformado. - Traz-me óleo e peixe. Depressa!

Filha correu para a despensa, afastou a tampa de madeira e ajoelhou-se para meter as mãos lá dentro.

- Foca também vem? - perguntou Qung.

- Foca e talvez mais uns homens. Qung deu um estalo com a língua.

- É pena que não deixem Ghaden em paz com o seu desgosto. Mas não, todos têm perguntas a fazer. Todos querem saber o que aconteceu. E depois todos querem dizer-lhe como eram amigos do morto. - Qung levantou as mãos num gesto de impotência. - As pessoas são todas iguais. Nunca mudam. Não vale a pena ter esperança. Ele vai ter que ouvi-las e fingir que o que elas dizem é importante.

- Talvez seja - disse Filha. - Quando o meu avô morreu, uma das velhas da aldeia dirigiu-me as palavras certas.

Qung encolheu os ombros.

- Há pessoas que têm esse dom. Outras só dizem disparates.

Qung suspirou e apontou com o queixo para as despensas da comida, e Filha foi buscar odres de óleo e de peixe e um pacote de carne de caribu seca.

Qung aproximou-se de Filha, coxeando. O seu velho rosto engelhou-se, e ela disse com uma voz entrecortada:

- Foi ele quem me ofereceu essa carne de caribu. Não era obrigado a isso. Eu tinha prazer em oferecer a minha hospitalidade. Quem podia adivinhar que eu iria dá-la para comer àqueles que o choram?

Ainda de joelhos, Filha abraçou a velha e deu-lhe uma palmadinha nos ossos duros e deformados das costas.

- Aa, não temos tempo para isto! - exclamou Qung, esfregando os olhos com tal frenesi que fez vergões na face. - Não chores e vai preparar a comida. Julgas que ajudas o teu marido com as tuas lágrimas?

Filha tocou nos olhos com as pontas dos dedos e descobriu que estivera chorando, que tinha o rosto molhado de lágrimas.

Quando K’os e Ghaden entraram no ulax, Filha desviou o olhar da comida que estava servindo em esteiras e pratos de madeira. Ghaden tinha a face crispada e sombria, o que fazia sobressair ainda mais o cansaço. Teria K’os dito alguma coisa que agravasse o seu desgosto? Ou fora a alegria inicial de Filha ao vê-lo que não a deixara reparar nas marcas de dor do marido?

Ghaden aproximou-se dela, como que procurando forças. Ela passou-lhe um braço em volta da cintura e ignorou o ar escandalizado de K’os. O que importava, se só K’os e Qung estavam vendo-os? Se as suas carícias pudessem ajudá-lo, ela estaria disposta a esquecer as normas da boa educação. Com um dedo, ele acariciou-lhe a trança estreita que ela enfiara no rabo-de-cavalo, e Filha arrependeu-se de não ter entrançado o cabelo como as mulheres do Povo Rio. Era um pormenor insignificante mas que teria agradado ao marido.

Nesse momento, ouviram vozes, umas altas e outras entoando cânticos fúnebres. Ghaden agachou-se e K’os foi ajudar a servir a comida, pegando odres de água e assobiando quando reparava que alguns precisavam ser de novo cheios. Entregou os odres vazios e fez-lhe sinal com o olhar para o telhado do ulax.

Como esposa de um homem que perdera o pai, não competia a Filha ir encher os odres de água. Era K’os que estava fazendo o papel de esposa. Quando o chefe dos caçadores e os velhos entraram, K’os apresentou-os a Ghaden e aceitou as suas condolências, chegando ao ponto de chorar quando as outras mulheres a abraçaram.

Filha olhou de relance para Qung e reparou na expressão crispada e furiosa da velha, mas limitou-se a fechar os olhos, envergonhada, esperando que K’os não desrespeitasse Ghaden com as suas atitudes. Já estava habituada à necessidade que K’os tinha de se transformar no centro das atenções.

Filha inclinou-se sobre Ghaden e disse-lhe ao ouvido que tinha que ir buscar água. Ele levantou-se, tirou-lhe alguns odres das mãos e foi com ela. Filha reparou no olhar admirado das pessoas que estavam no ulax, na surpresa dos homens e das mulheres que ainda se encontravam no telhado.

- Precisamos de água - explicou Ghaden, mostrando os odres espalmados que tinha nas mãos.

Algumas mulheres avançaram e pegaram os odres. Ghaden voltou a entrar no ulax, ficou à espera de Filha no fundo do poste e conduziu-a ao lugar em que estava sentado.

- Senta-te ao meu lado - disse ele em voz baixa e terna.

- Qung precisa de ajuda, marido - disse Filha.

- Estão aqui outras mulheres. Não lhe faltará ajuda. Em seguida, chamou K’os. Ela aproximou-se, franziu a testa a Uutuk e perguntou:

- A água?

- Algumas mulheres da aldeia foram buscar água, respondeu Filha.

Ghaden apertou a mão de Uutuk para ela perceber que era seu desejo que ela não falasse.

- Preciso da minha mulher junto de mim - disse ele com uma voz firme. - Mas Qung está velha e precisa de ajuda.

K’os mostrou as mãos, como que lembrando a Ghaden que tinha os dedos aleijados, mas ele não tirou os olhos do rosto dela.

- A esposa não és tu.

Filha susteve o fôlego. K’os inclinou a cabeça e sorriu, de dentes cerrados.

- Tens razão. A tua mulher deve ficar aqui contigo. Eu vou ajudar Qung.

Ghaden apertou as mãos de Filha e depois virou-se para aceitar a compaixão das pessoas que tinham entrado no ulax. Mas Filha teve dificuldade em recuperar o fôlego, como se alguém lhe estivesse apertando o peito. Sim, K’os ajudaria Qung, e não se pouparia esforços, mas Ghaden viveria para assistir à sua fúria, e K’os atacaria quando Filha e Ghaden menos esperassem. Era assim que ela atuava.

”Já suportaste as suas vinganças”, recordou Filha. ”Preocupa-te com o teu marido. Não há nada mais importante do que isso.”

Filha cerrou os dentes e recordou os tempos distantes em que ela e o avô tinham andado à deriva no mar. Ele estava doente demais para ajudá-la, e, apesar de ser uma criança, fora ela quem indicara ao barco o rumo a seguir. Apontara para a montanha que assinalava a ilha dos Primeiros Homens. A força viera dela.

 

                   História de Filha

A cobertura de pele de foca do iqyax estava perto demais do rosto de Filha, que levava um fardo por cima dos pés, mas se K’os ia deitada no iqyax de Foca sem se queixar, podia Filha fazer menos do que ela? Além disso, fora ela quem pedira para ir no iqyax do marido e não no do pai, e, como Ghaden também concordara, Foca trocara o seu barco maior por um iqyax.

Os desejos de Uutuk sempre tinham sido ignorados, e qual a mulher que esperava que assim não fosse? Afinal, ela era apenas uma filha, e não um filho que mais tarde seria caçador. Por isso, agora, se um desejo tão discretamente manifestado provocara tantas alterações, ela preferia morrer a lamentar-se.

Passaram a primeira noite numa praia larga e de areia cinzenta, que se prolongava até às montanhas e formava uma espécie de enseada, um belo local com muitas aves e madeira em abundância trazida pelo mar.

- Porque não vive ninguém aqui? - perguntara K’os.

- Fica muito longe da água doce - respondeu Ghaden, apontando para os montes. - É meio dia de caminho. Mas é um bom local para passar a primeira noite quando um homem ainda tem os odres cheios de água da Aldeia dos Comerciantes. Às vezes, com sorte, ainda se vêem uns caribus Por aqui.

Filha começou a apanhar lenha para manter uma boa fogueira durante a noite porque, se havia caribus, também devia haver lobos, pelo menos acreditando nas histórias que K’os lhe contara. Sempre gostara mais de ser dos Primeiros Homens do que do Povo Rio; o Povo Rio tinha muitos animais que lhes davam cuidado. Lobos e carcajus, linces e raposas, alces e caribus, todos eles capazes de fazer qualquer tipo de mal, muito ou pouco. E agora, ela era mulher de um homem do Povo Rio e ia com ele para a sua aldeia.

Depois de Ghaden ter regressado à Aldeia dos Comerciantes, tinham se demorado mais uns dias para fazerem o segundo luto. Ghaden pensara em prolongar o período de luto até os quarenta dias, como era hábito dos Primeiros Homens, mas K’os convencera-o de que seria preferível irem para a aldeia dos Quatro Rios, onde vivia a mulher de Cen, participar-lhe o que acontecera e passar esses quarenta dias com ela.

- Até lá, chora por ele no teu coração, como todos nós - dissera K’os.

Como podia Ghaden discordar de um conselho sábio como este?

Filha esperava passar os quarenta dias na Praia dos Comerciantes. Aprendera a gostar da velha Qung e queria ouvir mais histórias suas e beneficiar dos seus conhecimentos. Mas K’os tinha razão. Dentro em pouco chegaria o Outono, e o mar se tornaria menos previsível. Se uma tempestade de Verão conseguira matar um homem como Cen, que viajava há tantos anos, que poderiam esperar Ghaden e Foca, amaldiçoados pela presença das mulheres nos seus iqyax! Filha deixou cair o braçado de madeira junto da fogueira que Foca acendera. O homem tinha um ar carrancudo e observava Ghaden e K’os. De repente, Filha percebeu que desde que tinham puxado os iqyax para a praia, haviam falado na língua do Povo Rio, que Foca não entendia.

- Ele está explicando por que motivo é que não há nenhuma aldeia nesta enseada - disse Filha a Foca. - Ele fala na língua do Povo Rio porque é mais fácil para ele do que falar na dos Primeiros Homens. Além disso, ele sabe que tu, que és caçador e comerciante, não precisas desta explicação, porque qualquer pessoa vê porque é que não há aqui nenhuma aldeia, apesar de a praia ser boa, a madeira ser abundante e até as árvores no topo dos montes serem retas e altas.

Foca resfolegou.

- Sim, qualquer homem veria isso - disse ele, rindo. - Mas achas que aquelas árvores são altas? Espera até chegarmos à terra do Povo Rio. Então verás árvores tão altas que nem nos deixam ver o céu. Não é verdade, Ghaden?

Ghaden acocorou-se junto de Foca e disse, falando na língua dos Primeiros Homens:

- É verdade, mulher. Aquelas árvores são tão altas que as suas sombras cobrem a terra. Debaixo dos seus ramos, parece que é de noite, mesmo num dia de sol.

Filha balançou a cabeça, incrédula.

- Eu sei que o que dizes é verdade, mas me é difícil imaginar tal coisa.

K’os ajoelhara-se junto de um dos iqyax e tentava tirar um fardo de peixe seco da popa. Quando conseguiu puxá-lo, virou-se e disse:

- Há muitos tesouros naquelas florestas. Uma curandeira pode encontrar muitas coisas para ajudar os outros. Te ensinarei, Uutuk, e depois o Povo Rio ficará satisfeito por Ghaden ter te levado, apesar de seres dos Primeiros Homens.

Filha sabia que aquelas palavras se destinavam a encorajá-la, mas sentiu um calafrio na espinha, e até as mãos e os pés começaram a doer-lhe, com o medo. Mais tarde, depois de terem comido e de a escuridão da noite se ter abatido sobre a praia, Filha e Ghaden enroscaram-se um no outro debaixo dos cobertores, e as carícias dele apaziguaram-na. Filha dormiu bem, com bons sonhos e sem medo.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

- Basta dessas histórias sobre mulheres!

Yikaas levantou a cabeça e olhou para o poste. Não ficou admirado com o protesto de Chega-ao-Céu. Quem mais é que havia de causar tantos problemas?

- Já te dissemos que não queremos ouvir tanta coisa sobre Filha. Aqui, quase todos são comerciantes ou caçadores. Conta-nos a história de um homem. Já todos fizemos a viagem desta aldeia para o continente.

- Pois, e se tu fosses uma mulher, estivesses deitado num iqyax e não conseguisses ver o céu? Pensa nisso - respondeu Yikaas, e Qumalix traduziu as suas palavras.

Muitos homens concordaram. Um deles gritou:

- Não admira que as mulheres não gostem de viajar. Seria difícil não terem medo.

- Ha! - exclamou outro. - Se elas tiverem confiança nos maridos, bem podem dar-se por muito felizes por passarem o dia deitadas, sem fazerem nada, nem sequer remar.

Chega-ao-Céu desceu o poste e instalou-se numa das cavilhas que lhe permitiam ficar acima dos outros homens que se encontravam no ulax.

- Até parece que gostarias de ser mulher - disse ele ao caçador.

Vários homens riram.

- Quem é que tem pênis no teu ulax? A tua mulher? gritou um comerciante dos Primeiros Homens.

Qumalix aproximou-se para explicar a Yikaas o que o comerciante dissera. Furioso, Yikaas, respondeu:

- Homem ou mulher, é bom ver a vida com os olhos de outra pessoa.

Alguns homens mostraram a sua concordância, mas outros começaram a proferir mais insultos e até a admitir a chance de maldições quando um homem tentava compreender como é que uma mulher sentia, como é que ela via o mundo.

- É melhor deixar essas coisas para os contadores de histórias - disse-lhes por fim o chefe dos caçadores. E tu tens que descer e vir sentar-te junto de nós - acrescentou ele, dirigindo-se a Chega-ao-Céu.

Como Chega-ao-Céu ficou onde estava, o chefe dos caçadores levantou-se e esticou um dedo, como um pai repreendendo um filho.

- Já!

Chega-ao-Céu desceu do poste e sentou-se nos fundos do ulax, mas fez um ar carrancudo e lamentou-se em voz baixa.

Yikaas anunciou:

- A história de Cen.

Então os homens soltaram gritos de aprovação, exceto Chega-ao-Céu, que cruzou os braços e fechou os olhos como se tencionasse dormir em vez de ouvir.

 

         Mar de Bering

         6435 a. C.

 

                   História de Cen

Durante três dias, o mar controlou o iqyax de Cen. Houve momentos em que o ruído nos seus ouvidos parecia diminuir, e ele começou a ter esperanças de recuperar um pouco. Mas, embora tivesse o cuidado de ficar escutando sempre que a voz do mar se calava, não ouvia outros sons.

Os seus olhos distinguiam a noite do dia, exceto quando as nuvens estavam muito baixas no céu. Nesses períodos sombrios, Cen quase se convencia de que estava morto e se dirigia para o mundo dos espíritos, porque, afinal, o que sabia qualquer homem dessa viagem? Havia xamãs que afirmavam ter estado nesse mundo dos espíritos, mas não descreviam as suas viagens. Além disso, Cen era uma pessoa que aprendera a não confiar demais naquilo que os outros diziam, sobretudo se o que eles diziam lhes era favorável.

Tentou recordar os dias passados, contá-los na sua cabeça, mas, sem olhos nem ouvidos que definissem limites à sua mente, os seus pensamentos pareciam desviar-se e enveredar por estranhos caminhos. Bebia a sua água com conta, peso e medida, limitando-se a três goles só depois de um longo período de escuridão, no fim da noite. Adotando esta medida, parecia que se tinham passado quatro ou cinco dias, visto que ele estava quase acabando um odre de água.

A princípio, o estômago não conseguiu conservar nada do que ele comia, mas aceitara o último peixe seco. Cen ainda tinha peixe para muitos dias, embora o fardo tivesse deixado entrar água. Apesar de o peixe ter amolecido um pouco com a umidade, Cen receava que ele criasse bolor.

Continuou cantando ao Criador, ao vento e ao mar, pedindo ao mar que o levasse para uma boa praia, mas ainda tinha a garganta inflamada e as palavras arranhavam-lhe a língua como uma enxada. Se a dor de garganta era um indício, as suas canções não deviam ser agradáveis de ouvir, e Cen perguntou a si próprio se não seria preferível ficar calado em vez de ofender com a sua pobre voz. Mas por fim concluiu que todas as coisas sabiam o que ele passara, e que o mar, ao ouvi-lo, talvez lhe admirasse a coragem e consentisse em guiá-lo.

Durante o que ele julgou ser a quinta noite, foi acordado de repente por algo que chocou com a parte lateral do iqyax. O seu primeiro impulso foi enrolar-se o mais possível, fazer-se pequeno, dando ao que quer que aquilo era a menor hipótese de o agarrar com dentes ou unhas.

A tempestade não lhe levara a faca comprida que ele usava presa ao tornozelo. Desembainhou-a, agarrou-a com a mão direita, cerrou o punho esquerdo e, lentamente, pô-lo borda fora, sobre a água. Susteve a respiração, com o coração batendo de tal maneira que sentia o sangue a pulsar nas veias. Não aconteceu nada. Cen respirou fundo e enfiou a mão na água do mar.

- É de noite, e tu estás tentando enganar-me, levando-me a pensar que não estás aí. Julgas que eu não te vejo no escuro. Enganas-te. Eu sei onde estás. Estás vendo a minha faca?

Cen levantou a mão direita e dobrou o pulso, para que o luar - se houvesse luar - incidisse na lâmina de obsidiana.

- A minha faca está sedenta de sangue.

Repetiu estas palavras, mas mesmo assim nada aconteceu, e, como Cen não ouvia a sua própria voz, admitiu que estivesse falando em surdina. Encheu os pulmões de ar e gritou.

Nada.

Voltou a enfiar a mão esquerda dentro de água e ficou à espera da dor, mas sentiu apenas o frio do mar.

- Quem és tu? - perguntou ele. - Um peixe? Uma lontra? Uma foca?

Algo lhe tocou no dedo mindinho, e Cen retirou a mão.

Algo bateu no iqyax. Através da pele fina da cobertura, Cen sentiu mexer, mas não como se mexia um animal. Sentiu o coração alvoroçar-se de esperança. Seriam algas? Isso significaria que ele estava perto da costa.

Não, pensou. Era sólido demais para ser algas. Talvez fosse madeira flutuante, levada pela mesma corrente que reclamara o seu barco.

Enchendo-se de coragem, Cen enfiou de novo a mão na água, desta vez com os dedos afastados, prontos a agarrarem o que encontrassem.

E aquilo foi ao encontro da sua mão, molhado, duro e viscoso. O ramo de uma árvore. Cen tentou içá-lo para o iqyax, mas o ramo era pesado e por pouco não o arrastou para o mar. Voltou a embainhar a faca, serviu-se das duas mãos e puxou o ramo reto. Por fim, conseguiu içá-lo para dentro do iqyax, apoiou-o na borda e deslocou-o até lhe parecer que estava centrado. Estendeu a mão esquerda o mais que pôde e não sentiu a extremidade do ramo. Fez o mesmo com a mão direita. Era mais comprido do que um homem alto, mas não tinha mais de dois punhos de largura, e cheirava a cedro, a melhor madeira para fazer remos, leve e resistente.

Um ramo daqueles podia ser uma boa coisa para um homem se uma onda o atirasse contra as rochas, mas era muito comprido. Cen tinha que cortá-lo. Talvez pudesse usá-lo como se fosse um remo, não um remo bom, mas era melhor do que nada.

É claro que, sem ver nem ouvir, como poderia ele saber para onde dirigir o iqyax? Cen afastou este pensamento da sua mente. O mar dera-lhe um presente. Porque ele o menosprezaria?

Sempre fizera os seus remos do tamanho dos seus braços esticados, além da pá. Inclinou-se para a frente, esticou-se o mais que pôde e fixou o local em que as pontas dos dedos da mão direita tocavam. Com a unha do polegar, fez uma marca na madeira amolecida pelo mar. Na ponta, o ramo dividia-se em pequenos galhos que pareciam os ossos de uma mão, e subitamente, na sua mente, Cen viu um novo tipo de remo... Se esticasse a pele onde guardava o peixe seco sobre aqueles galhos em forma de dedos e a atasse, poderia fazer uma pá.

Uma pá como essa não agüentaria o embate nas rochas nem correntes fortes, mas podia ser útil com o mar calmo... Se ele soubesse em que direção remar.

Cen apalpou a outra ponta. O ramo tinha o dobro da largura do seu punho no local em que se soltara da árvore, e ainda conservava as lascas. Era um bom sinal. Talvez andasse no mar há pouco tempo e ainda não tivesse apodrecido. O que Cen deveria fazer? Cortar a extremidade grossa onde estava a força ou os galhos que poderiam servir-lhe de pá? Cen pensou nas duas hipóteses e resolveu cortá-lo ao meio. A parte da pá seria curta, mas ele podia debruçar-se para o mar e ainda ficaria com o comprimento suficiente do outro lado para se afastar das rochas e dos baixios.

Mediu duas vezes o ramo, aos palmos, e depois serviu-se da faca para o cortar ao meio. O mar levara a casca, e a madeira parecia esponja em contacto com a lâmina, mas depois de ele fazer um corte profundo, chegou ao cerne, que ainda estava seco e forte e resistia aos golpes da faca.

- Está bem, és um guerreiro - disse Cen ao ramo. - Isso me faz bem. Podemos ser pequenos em comparação com este mar sem fim, mas temos ambos o coração forte. Cen virou o ramo e continuou a cortá-lo até o cerne. Depois, partiu-o ao meio. Aparou as pontas das duas partes e deixou-as escorregar para o interior do iqyax. Estava cansado e precisava dormir. Quando acordasse, revestiria a extremidade do ramo com o estômago de foca do seu fardo de peixe. Então, teria um remo.

Durante o sono, Cen sonhou como se pudesse ver, e quando o Sol o despertou, obrigando-o a abrir o olho direito com a sua luz forte, ele não estranhou ao ver aquela claridade, ao proteger a vista dela. Depois lembrou-se do local onde estava e do que lhe acontecera. Abriu o olho o mais que pôde, soltou um grito com a dor provocada pela luz, e exultou ao perceber que conseguia ver a pele castanha e amarela do seu iqyax.

Esqueceu-se das cautelas que qualquer homem devia ter quando recuperava dos seus ferimentos e abriu a pálpebra para ver o mar. O nevoeiro levantara e dera origem a nuvens brancas tão altas como as montanhas por cima das ondas, de tal maneira que Cen teve a sensação de que o seu iqyax encontrara um vale cavado no meio do mar, com vertentes montanhosas esbranquiçadas.

O olho ainda estava tão inchado que não se mantinha aberto por si, e Cen segurou a pálpebra com o polegar e, com a mão e os movimentos do corpo, virou o iqyax em círculo, mas só viu o mar e as nuvens.

Resolveu acabar o remo e depois seguir o seu curso, assim que o nevoeiro levantasse. Tinha certeza de que conseguiria descortinar alguma nesga de terra mas, se não conseguisse, pelo menos as estrelas o orientariam, as poucas cuja luz fosse suficientemente intensa para atravessar as nuvens do céu noturno.

Quando puxou a pele de peixe seco da proa do iqyax, a luz atravessou-lhe o olho e o cérebro, provocando-lhe dores de cabeça tão fortes que Cen não conseguiu fazer mais nada a não ser ficar sentado, imóvel, e deixar que o barco voltasse a escolher o seu próprio rumo.

Adormeceu e, quando acordou, anoitecera. A dor de cabeça abrandara e dera lugar a um latejar na base do crânio e por cima dos ouvidos que qualquer homem podia perfeitamente ignorar. Voltou a abrir o olho e observou a atmosfera noturna. O nevoeiro era tão úmido e cerrado que nem se via o mar. Cen olhou para o céu e viu um sulco nas nuvens, uma clareira cheia de estrelas. Desesperado, percebeu que estava longe de terra, que andara à deriva para norte e oeste e não para sul e leste.

- Sendo assim, acabo o meu remo amanhã e depois começo a rumar para terra - disse ele, falando alto para o mar saber que ele não desistira. - A chuva não deve tardar, e nessa hora paro e encho a minha tigela. Tenho peixe suficiente para viver durante muito tempo.

Cen deixou-se adormecer outra vez e escondeu tão bem o medo que este não coloriu os seus sonhos.

 

                   História de Ghaden

Ghaden, Foca, K’os e Filha levaram mais de uma lua para chegar à aldeia de Chakliux. Tinham parado para negociar com os Caçadores de Morsas, apesar de K’os recear que eles pudessem fazê-la de novo escrava. Mas os Morsas não a reconheceram, e Ghaden viu o alívio e a raiva que se debatiam no seu íntimo quando ela percebeu isso. Mesmo assim, mostrara-se cautelosa, não fora apanhar plantas para as suas mezinhas, caso andassem algumas mulheres dos Morsas ali perto, e teve o cuidado de esconder as mãos deformadas e que pouco se tinham transformado desde o tempo em que ela era escrava.

Durante as negociações, K’os não falou nem na língua dos Morsas nem na do Povo Rio, apenas na língua dos Primeiros Homens, e, apesar de ter mantido as tranças no cabelo depois de partirem da Praia dos Comerciantes, voltou ao rabo-de-cavalo usado pelas mulheres casadas dos Primeiros Homens.

O mesmo não iria acontecer na aldeia de Chakliux. Ghaden não tinha dúvidas de que eles a reconheceriam. Afinal, sempre a tinham conhecido, e ela fora tanto esposa como escrava. Além disso, Ghaden tinha que dizer a Chakliux que Uutuk era filha de K’os e, por conseguinte, irmã dele. Excetuando a relação entre mãe e filho, quem era mais importante para um tio do que o filho de uma irmã? Se ele e Uutuk tivessem filhos, Chakliux pretenderia ajudar Ghaden a ensinar os rapazes a caçar e a pescar.

As recordações que Ghaden guardava de K’os dos tempos da sua infância, quando a sua irmã Aqamdax era escrava dela, eram as de uma mulher má que seria capaz de atraiçoar qualquer pessoa desde que dali lhe adviesse benefício. Mas como podia ele conciliar essas recordações com o que sabia dela agora? Era muito boa mãe para Uutuk, carinhosa e interessada. Às vezes, Ghaden via nela aquele egoísmo que era comum à maior parte das mães, mas era freqüente ela dar a Uutuk a melhor comida, e tratava o marido, Foca, com respeito, apesar de ele ser um homem fraco e nem sempre merecedor da deferência da mulher. Estariam as suas recordações iniciais viciadas pela raiva e pelo medo que sentira durante esse período de luta? Talvez. Qual a criança que compreendia tudo o que se passava à sua volta?

Pelo menos ele devia respeito a K’os. Ela era a mãe de Uutuk e ensinara-a bem. Embora Uutuk fosse uma esposa recente, o seu jeito para manejar a agulha e o furador, para contar histórias e para fazer a comida rivalizava com o das mulheres mais velhas. Ela entregava-se avidamente quando eles estavam na cama e, tal como uma mulher dos Primeiros Homens, tinha o cuidado de seguir os tabus que lhe haviam ensinado. Apesar de ainda ter muito a aprender sobre os costumes do Povo Rio, Ghaden não duvidava de que ela seria uma boa esposa, mesmo que eles resolvessem ir viver com o Povo Rio.

Mas Ghaden também não duvidava de que, ao aceitar Uutuk, não se sentiria verdadeiramente bem-vindo na aldeia de Chakliux.

Suspirou, aliviando por momentos o peso da tristeza que o invadira depois da morte do pai. Como gostaria de pedir conselho a Cen! Queria viver na sua aldeia com Aqamdax, Yaa e as famílias de ambas, mas fizera a sua opção e não iria desistir de Uutuk, nem sequer pelas irmãs. Talvez quando K’os e Foca voltassem aos Primeiros Homens Chakliux permitisse que Ghaden e Uutuk ficassem na sua aldeia, mas, se tal não acontecesse, havia outras aldeias. Talvez a mulher de Cen, Gheli, gostasse que Ghaden lhes fornecesse carne, a ela e às filhas, agora que estava viúva.

Ghaden levantou a cabeça. Uutuk observava-o. Não se preocuparia tanto se soubesse como o encorajava. Ghaden sorriu-lhe, e ela retribuiu-lhe o sorriso.

Seriam felizes onde quer que vivessem, mas com certeza Chakliux veria que K’os não passava agora de uma velha inofensiva, preocupada apenas em garantir uma boa vida à filha.

 

Subiram o rio nos iqyax em direção à aldeia de Chakliux e pararam para passar a noite a menos de meio dia de viagem. Ghaden queria continuar, mas sabia que K’os tinha razão ao aconselhá-los a parar. Era um bom local para acampar, uma clareira que Ghaden e K’os conheciam, apesar de K’os afirmar que ela estava muito mais pequena. Durante os anos em que estivera ausente, os abetos e as bétulas tinham invadido aquele espaço.

Construíram um abrigo de ramos de abeto, retiraram as coberturas dos iqyax e penduraram as carcaças de madeira no topo das árvores para impedir que os ursos e os carcajus roessem os tendões que atavam as juntas ou a pasta de sangue que colava as placas de marfim nas junções da madeira.

Haveria estragos, explicara Ghaden a Foca. Ao contrário do que acontecia nas ilhas dos Primeiros Homens, havia muitos animais na região do Povo Rio, e os mais pequenos, se tivessem fome, facilmente subiriam às árvores. Foca resmungou, mas Ghaden ignorou-o. O homem já fizera negócio com o Povo Rio. Talvez não tivesse avançado tanto para o interior do continente, mas entendia de árvores e de animais.

- Eles dão tanto como tiram, senão mais - comentara Ghaden.

Em seguida, avistou Uutuk e foram os dois para a floresta. Sentaram-se observando o que os rodeava e Ghaden teve oportunidade de lhe mostrar várias aves e outros animais e de lhe explicar os poderes espirituais que eles tinham.

Pouco depois, K’os foi à procura deles e levou Uutuk para irem apanhar plantas medicinais. Durante algum tempo, Ghaden acompanhou-as, mas K’os apanhou tantas plantas diferentes e falou tanto sobre cada uma delas que ele misturou tudo na sua mente. Perguntou a si próprio se Uutuk se recordaria do que K’os lhe dizia ou se a sua atenção era apenas uma delicadeza. Mas, mais tarde, quando estavam sentados assando duas lebres que ele caçara com um pau de arremesso, ouvira a mulher fazer perguntas e repetir as informações recebidas para que K’os a corrigisse. Ghaden estava satisfeito, orgulhoso dela. Em geral, uma mulher de raciocínio rápido dava uma boa mãe, e, se Uutuk conseguisse aprender a ser curandeira, talvez só isso fosse suficiente para lhes garantir um lugar na aldeia de Chakliux.

Ao pôr do Sol, K’os disse a Uutuk que fosse apanhar mais lenha para a noite.

- Está calor. Porque fazer uma fogueira? disse Ghaden.

- Para afastar os ursos - respondeu ela.

Ghaden encolheu os ombros. Os ursos eram sempre um motivo de inquietação, mas quase todos os que viviam tão perto da aldeia de Chakliux eram ursos-pretos e não era provável que se aproximassem demais se lhes cheirasse a fumaça de uma fogueira, ainda que ela se apagasse durante a noite. Na opinião de Ghaden, K’os estava mais receosa destes animais depois de viver tantos anos numa ilha dos Primeiros Homens.

- Além disso, preciso falar contigo sem Uutuk ouvir - acrescentou ela.

- O que eu sei, a minha mulher saberá - disse ele. K’os ergueu a sobrancelha e sorriu, como se fosse uma mãe carinhosa olhando para um filho tonto.

- Como queiras.

Ghaden teve vontade de se afastar dela, mas pensou que era mais forte do que os insultos de K’os. Então, como se ela não lhe tivesse faltado ao respeito, como a mãe de uma mulher casada devia fazer, ele agachou-se, cruzou os braços sobre os joelhos e, com um sinal de cabeça, mostrou-lhe que era todo ouvidos.

- Não vou ser bem recebida na aldeia do meu filho - disse ela. - Acho que devo esperar por ti e por Foca aqui neste acampamento. Quando estiveres pronto para partir para a aldeia dos Quatro Rios, vem buscar-nos, a mim e a Uutuk.

- A Uutuk? - respondeu Ghaden. - Eu levo-a comigo para a minha aldeia. Chakliux pode ter te expulsado, mas não tem nada contra a minha mulher.

- Ela é minha filha. Isso basta. Eles vão aceitar Foca, que é comerciante e um homem capaz de cuidar de si próprio. Além disso, qual o comerciante dos Primeiros Homens que não é bem aceito na aldeia de Chakliux, se Chakliux é casado com uma mulher dos Primeiros Homens? Mas Uutuk é nova, e eu temo por ela. Deixa-a aqui comigo.

- Achas que eu não sei tomar conta da minha mulher?

- Acho que seria mais prudente ires primeiro sozinho. Durante muito tempo, Ghaden ficou pensando nas palavras de K’os e, antes de ele responder, ela acrescentou:

- Quando eu era nova, fui uma tonta. Tive bons maridos, mas não os apreciei. Tive uma escrava e não a tratei bem. Tive um filho que via as coisas de uma maneira diferente da minha. Umas vezes ele tinha razão, outras tinha eu, mas só porque não víamos a vida da mesma maneira isso não era motivo para eu odiá-lo.

”Uma das vantagens do envelhecimento é que ele nos dá tempo para ganharmos experiência. Quando eu encontrei Uutuk e o avô na praia da ilha do meu marido, pensei apenas em mim, que eles podiam ajudar-me a ser mais respeitada pelas pessoas dessa aldeia. Mas o avô de Uutuk era um homem muito inteligente. Ensinou-me muita coisa, e pela primeira vez eu percebi como era egoísta e como fazia pouco pelos outros. Mudei desde que o meu filho me viu pela última vez. Não espero que ele acredite nisto, mas conto contigo.

À luz do crepúsculo, o fogo parecia mais intenso, e Ghaden viu as labaredas, vermelhas e amarelas, nos olhos de K’os.

- Sei que tens sido uma boa mãe para a minha mulher - disse ele. - Vejo que tratas o teu marido com respeito. Se estás convencida de que é melhor para Uutuk que ela fique aqui contigo, então eu deixo-a, mas me sentiria melhor se Foca também ficasse para proteger vocês.

- Ficaremos em segurança - assegurou K’os. - Mas tem cuidado quando falares com Chakliux. Se lhe disseres que arranjaste uma mulher, acho que é preferível omitires que eu sou a mãe dela. Há pessoas que vivem nessa aldeia e que eu gostaria de ver, como a tua irmã Yaa e o rapaz, Chora-Alto. - K’os soltou uma gargalhada e abanou a cabeça como se revivesse velhas recordações. - Ele já deve estar um homem. Se vires que podes confiar nele, traga-o aqui para eu vê-lo. Se Chakliux ficar satisfeito por teres arranjado uma mulher dos Primeiros Homens, e tu resolveres levar Uutuk à aldeia para ela conhecer as tuas irmãs, traz Chora-Alto quando vieres buscá-la. Ele sofreu muito ao perder a mãe como perdeu, e eu sempre admirei a força que ele demonstrou nessa época.

- Ele é um caçador robusto e trata bem da minha irmã Yaa - disse Ghaden.

K’os deu outra gargalhada.

- Yaa é mulher dele?

- Já há muitos anos.

- Tenho certeza de que ele a encheu de filhos - disse K’os, semicerrando os olhos ao ver que Ghaden não respondera.

Ghaden virou a cabeça para o lado e avistou Uutuk com um molho de lenha, um bom pretexto para ele pôr fim à conversa com K’os. Ela não precisava saber que Yaa e Chora-Alto não tinham filhos, que todos os bebês que Yaa gerava nasciam antes do tempo e morriam pouco depois do nascimento. Se ele tivesse mais confiança em K’os, lhe perguntaria se ela tinha alguma mezinha que ajudasse Yaa, mas, se ela tivesse mentido ao afirmar que se modificara, não precisava saber mais do que o indispensável sobre Yaa ou Chora-Alto. Afinal, Chora-Alto fora um dos jovens que a levara aos Caçadores de Morsas para ser vendida como escrava. Talvez K’os continuasse a odiá-lo por isso. Chakliux sempre dissera que ela era uma mulher que vivia para se vingar. E se ele tivesse razão? E se ela soubesse maldições que anulassem qualquer chance de Yaa vir a gerar um filho saudável?

Ghaden aproximou-se a passos largos da mulher e pegou o braçado de lenha que ela trazia. Uutuk agradeceu-lhe em voz baixa e piscou-lhe o olho. Ele sentiu um calor nas virilhas e lembrou-se dos dedos da mulher, das suas carícias suaves e hábeis.

- Filha, tens trabalhado muito - disse K’os. Levantou-se do tronco em que estava sentada e ofereceu o lugar a Uutuk. Em seguida, pôs-se atrás dela e começou a pentear-lhe as tranças.

Ghaden observava K’os à luz da fogueira, a desfazer as tranças, viu a mulher fechar os olhos e descontrair-se e ouviu o ressonar surdo de Foca que dormia no abrigo.

Havia homens melhores do que Foca, e mulheres mais dignas de confiança do que K’os, mas nada do que Chakliux dissesse conseguiria convencê-lo de que ele não fizera uma boa escolha ao aceitar Uutuk como esposa.

A primeira a ver Ghaden quando ele e Foca entraram na aldeia no dia seguinte foi Yaa. Levava dois cestos cheios de oxicocos maduros e suculentos pendurados aos ombros por tiras largas de pele de caribu, mas deu um grito, largou os cestos e nem sequer se virou para ver se os frutos tinham se espalhado quando os cestos caíram no chão.

Caiu nos braços de Ghaden que, divertido, ouviu Foca perguntar:

- Tens outra mulher nesta aldeia?

Foca falou na língua dos Primeiros Homens. Perdido de riso, Ghaden respondeu que não, apresentou a irmã e começou a traduzir as palavras de Foca, mas Yaa já conhecia suficientemente a língua para ter uma idéia do que ele dissera. Ficaram ali rindo, os três, enquanto as pessoas da aldeia se reuniam à sua volta.

Chakliux abriu caminho entre as pessoas, deu um forte abraço em Ghaden e depois virou-se para Foca. Reparou no sax, nos batoques e no pino do nariz, sorriu e deu-lhe as boas-vindas na língua dos Primeiros Homens, mas Ghaden percebeu o seu olhar interrogador e o assomo de preocupação.

Chakliux recuou e deu uma palmada no ombro de Ghaden.

- Onde está Cen? - perguntou ele. Envergonhado, Ghaden sentiu os olhos marejados de lágrimas.

Chakliux respirou fundo várias vezes, começou a abanar a cabeça e por fim disse:

- Não, diz-me que Cen está bem.

Estas palavras tiveram o efeito de uma bênção, e, pela primeira vez desde que Ghaden encontrara os remos do pai boiando no mar do Norte, um pouco de esperança aliviou-lhe o sofrimento, mas a realidade levou a melhor, e ele respondeu a Chakliux:

- O iqyax do meu pai foi apanhado por uma tempestade. Ele e os dois comerciantes que o acompanhavam morreram afogados.

As suas palavras fizeram com que a realidade da morte do pai voltasse a atingi-lo, e Ghaden sentiu um nó na garganta. Depois, embora ele não a tivesse visto aproximar-se, reparou em Aqamdax, com a filha mais nova às costas, uma menina nascida na Primavera, pouco antes da sua partida. Aqamdax puxou-o para si e abraçou-o, rindo, satisfeita, mas depois recuou e reparou na expressão dele.

- O que aconteceu? - perguntou ela. As suas palavras eram uma ordem, como se ela fosse uma mãe perguntando a um filho qual a causa das suas lágrimas.

- Foi Cen - respondeu Chakliux em voz baixa, e Ghaden sentiu-se agradecido, porque a sua tristeza pela morte do pai e a alegria de rever a irmã tinham-lhe roubado as palavras.

Yaa aproximou-se, agarrou a mão de Aqamdax e levou-a dali, repetindo a explicação de Ghaden. Como se visse as pessoas da sua aldeia pela primeira vez, Ghaden reparou que todos os homens e todas as mulheres tinham envelhecido um pouco. Chakliux tinha umas madeixas de cabelo grisalho por cima das orelhas, e em Aqamdax as rugas de preocupação entre os olhos tinham-se acentuado um pouco mais.

Sok apareceu atrás dele, pousou-lhe a mão enorme no ombro, mas até ele parecia mais pequeno - ainda era corpulento, mas não tanto como fora em outros tempos.

- Lamento - disse ele. - Dii e eu vamos chorá-lo, mesmo que já tenhas cumprido o teu luto.

- Prestamos homenagem aos três homens durante os quatro dias que um espírito demora a sair da terra, mas uma evocação nesta aldeia seria uma boa idéia - respondeu Ghaden. - Depois, irei dar a notícia à mulher dele e às minhas irmãs na aldeia dos Quatro Rios.

Ghaden pronunciou as últimas palavras em surdina, falando mais para si próprio do que para os outros, e ficou admirado ao ouvir alguém levantar a voz, um homem oferecendo-se para o acompanhar. Virou-se e deu de caras com Chora-Alto.

Yaa meteu-se entre os dois.

- Talvez pudesses me levar também - disse ela.

- Acho que há coisas que uma mulher deve fazer aqui enquanto o marido está ausente - disse-lhe Chora-Alto.

Magoada, Yaa fez um ar carrancudo, e Ghaden percebeu que, apesar de eles viverem juntos há muito tempo, os anos não os tinham aproximado. Haviam aprendido a discutir, a ferir.

- Eu levo a minha mulher - disse Ghaden, falando sem pensar e preocupando-se apenas com a melhor maneira de aliviar a tensão entre os dois. Nunca gostara de ver a irmã infeliz.

- Resolveste arranjar uma mulher? Já? - perguntou Chakliux.

Ghaden arrependeu-se de ter falado e teve vontade de engolir as palavras antes que mais alguém as ouvisse.

Pensara em conversar primeiro com Aqamdax e depois com Chakliux, falar-lhes de Uutuk, em vez de alardear o que fizera na presença de todas as pessoas da aldeia. Havia mães que acalentavam a esperança de que ele escolhesse uma das filhas.

Por qualquer motivo estranho, há muitos anos, e sobretudo desde as lutas entre as duas aldeias, nasciam mais meninas do que rapazes e, mesmo entre as pessoas da sua idade, havia mulheres demais para o número de homens. Por isso, Ghaden tinha muitas jovens à sua escolha.

- Agora que estou de luto pelo meu pai, não aceitarei outra mulher pelo menos durante este ano - respondeu Ghaden. - No entanto, se houver alguma que precise de comida, lhe darei.

Ghaden viu a compreensão no olhar de Chakliux.

- Onde está ela? Onde está ela? - perguntou ele. Ghaden pôs-se na ponta dos pés e descobriu Foca perto do grupo. Virara-se para trás para examinar a aldeia. Tinham se aproximado dele vários rapazes, que observavam o seu sax e falavam do arpão que ele trazia pendurado no ombro. A arma não fazia muito sentido nas florestas do Povo Rio, e Ghaden nem percebia o que levara Foca a trazê-la. Talvez fosse para tentar algum caçador e levá-lo a comprá-la.

- É uma mulher dos Primeiros Homens - anunciou Ghaden, e começou imediatamente a ouvir cochichar, reparando nos olhares furiosos que alguns dos presentes deitavam a Foca.

- É filha dele? - perguntou Sok, sacudindo a cabeça na direção do pai de Uutuk.

- É - respondeu Ghaden tranqüilamente. - Ela é uma mulher sensata, uma curandeira que conhece muitas plantas.

- Para que serve uma curandeira dos Primeiros Homens nesta aldeia? - perguntou Sok. E antes que Ghaden pudesse responder, acrescentou: - Espero que lhe tenhas dito que tencionas escolher também uma mulher da tua aldeia.

Uma das mulheres perguntou:

- Qual o homem que faria tal coisa a uma esposa recente?

Ghaden virou a cabeça para o local de onde vinha a voz e viu que era Dii. Aborrecida, deu um encontrão no marido, e vários caçadores do grupo levaram a mão à boca para disfarçar um sorriso. Dii tinha metade do tamanho de Sok, mas não temia ninguém, apesar de nenhum homem da aldeia, exceto Chakliux, se atrever a discordar dele.

- Uma curandeira é uma curandeira - disse ela. Precisamos de uma nesta aldeia, nae? Se ela aprendeu a conhecer as plantas úteis que nascem perto das aldeias dos Primeiros Homens, também aprenderá a conhecer as nossas plantas. Bico-de-Gaivota a ajudará.

Dii afastou-se do marido e, levantando a voz, gritou uma pergunta ao ouvido de Bico-de-Gaivota. A velha abriu a boca num sorriso.

- Aa, há muito tempo tive uma escrava que me ensinou muita coisa - disse ela, muito alto. - De que servem os meus conhecimentos se eu morrer sem os transmitir? Mas há muitas coisas que eu não sei.

- Será um começo para ela - disse Dii a Ghaden. Mas tens que ajudar a tua mulher a aprender a nossa língua, e depressa.

- Ela fala-a.

- Como?

Ghaden calou-se. Não queria referir-se a K’os, nem sequer ao fato de a mãe de Uutuk ser do Povo Rio. Lhe fariam muitas perguntas. Ghaden sorriu e virou-se também para Chakliux:

- Ela é contadora de histórias e às vezes traduz para os homens do Povo Rio e para os Primeiros Homens que estão na Praia dos Comerciantes para eles se entenderem uns aos outros.

Ghaden percebeu o alívio no olhar de Aqamdax, que levantou a sobrancelha ao marido, como se o desafiasse a questionar o que Ghaden dissera.

- Minha irmã, ela te traz uma mensagem de Qung, disse Ghaden.

Embora calculasse que as suas palavras iriam alegrar Aqamdax, Ghaden não estava preparado para as lágrimas súbitas, para a voz embargada da irmã, que perguntou:

- Qung ainda vive? E está bem?

- Está bem, e ensinou à minha mulher umas histórias novas para ela te contar.

Então Aqamdax, como se nunca tivesse abandonado os Primeiros Homens, cobriu o rosto com as mãos, esquecendo que era uma esposa do Povo Rio e que devia conter as lágrimas até ficar sozinha na sua tenda.

Embora Sok continuasse a fulminar Ghaden com o olhar por cima da cabeça de Dii, Chakliux disse:

- A tua mulher é bem-vinda. Deixaste-a sozinha em algum lugar? Olha que as mulheres dos Primeiros Homens assustam-se com as nossas florestas.

- Ela ficou com a mãe - respondeu Ghaden. - Amanhã vou buscá-la e trago-a para a aldeia.

Chakliux apontou para Foca com o queixo.

- Deixa-o ficar, se ele quiser. Ele é caçador ou comerciante?

- Comerciante.

- Diz-lhe que, já que a filha fica aqui, cumpriremos um dia de luto em memória do teu pai, mas depois poderemos fazer negócio. Ele e a mulher passam o Inverno conosco?

- Aqui ou na aldeia dos Quatro Rios - respondeu Ghaden. - Ele tenciona voltar para junto do seu povo na Primavera.

- Então tem muito tempo para negociar. Ele que venha comer conosco na nossa tenda. Acho que se sentirá mais satisfeito com pessoas que falam a sua língua.

Chakliux virou-se e disse algo a Aqamdax, que se afastou às pressas. Os outros também foram embora, exceto algumas velhas que ficaram cochichando, sem dúvida sobre a mulher que Ghaden escolhera. A maioria dos velhos não seria amável para Uutuk. Ghaden lembrou-se do modo como ele, Yaa e Aqamdax tinham sido tratados quando haviam chegado da aldeia de Rio Próximo para irem viver com o Povo Primo. Mas, pouco a pouco, as velhas habituaram-se a vê-los, a ouvi-los, e por fim aceitaram-nos. Aconteceria o mesmo com Uutuk, se ele conseguisse continuar a ocultar a identidade de K’os.

Ao pensar em K’os, lembrou-se do que ela lhe pedira e resfolegou, apreensivo. A situação não melhorara entre Yaa e Chora-Alto.

Ghaden e Chora-Alto tinham caçado juntos muitas vezes, mas não como parceiros. Ghaden não confiava suficientemente nele para isso. Chora-Alto era estranho. Era freqüente desaparecer na floresta, durante muitos dias e noites, caçando, segundo dizia, embora às vezes voltasse de mãos vazias, mesmo no Outono, quando as florestas e as tundras eram abençoadas com os animais que o Verão se encarregara de engordar.

Yaa, que sabia fazer tudo o que uma mulher devia saber exceto ter filhos, nem sempre conseguia arrancar Chora-Alto da sua melancolia. Era verdade que o fato de todos os bebês que o marido lhe dava acabarem por morrer não ajudava. O último morrera pouco antes de Ghaden ter partido da Praia dos Comerciantes.

Era difícil conhecer um homem que raramente se juntava aos outros nas anedotas e nas risadas que os caçadores e os guerreiros partilhavam e que pouco falava das suas idéias ou dos seus pensamentos. Ghaden preferia que K’os tivesse perguntado por outra pessoa qualquer, mas talvez ela compreendesse Chora-Alto, porque a verdade é que, na sua opinião, K’os também era dada à melancolia. Talvez por isso ela acreditava que Chora-Alto não a trairia perante uma aldeia cujos habitantes se alegrariam mais com a sua morte do que com a sua vida.

- Vens daí?

A pergunta arrancou Ghaden aos seus pensamentos. Ghaden olhou para Chakliux, viu a doçura no seu olhar e percebeu que também ele lamentava a morte de Cen.

- Perdi o meu pai quando era um pouco mais novo do que tu - disse ele. - A dor vai aliviar, mas devagarinho. A melhor maneira de chorar uma pessoa é levar uma vida boa.

Ghaden chamou Foca e, todos juntos, encaminharam-se para a tenda de Chakliux, onde Aqamdax os esperava. Aqamdax tinha três filhos robustos e três filhas. A mais pequena estava dormindo numa prancha pendurada num dos postes da tenda; o filho mais velho, Angax, um rapaz muito parecido com Chakliux, trabalhava no cabo de uma lança apoiado nas pernas cruzadas.

A tenda estava impregnada do cheiro de carne cozida. Pouco depois, Aqamdax e Chakliux pediram a Foca que lhes contasse histórias da sua vida de comerciante junto dos Primeiros Homens.

Ghaden sentou-se com uma das sobrinhas no colo e começou a falar de caça com Angax. No dia seguinte, iria buscar Uutuk para aquela aldeia acolhedora. Não imaginava felicidade maior, exceto se o pai estivesse vivo e os acompanhasse nesse momento.

Chora-Alto empinou o maxilar inferior e disse:

- O teu irmão nunca foi elogiado pela sua inteligência. Yaa baixou a cabeça e não respondeu, embora Chora-Alto soubesse que ela tinha a língua bem afiada. A única vantagem era que raramente ela a utilizava contra o marido, e essa vez não foi exceção. Afinal, o que poderia ela dizer?

A inconsciência de Ghaden era bem conhecida na aldeia.

Pouco faltara para se deixar matar por um urso-pardo; tivera um cão dentro da sua cabana como se ele fosse uma criança. Ainda antes de atingir a idade da razão, atraíra o mal sobre si próprio e a mãe.

- Porque ele trazer mais uma mulher para uma aldeia que já tem mulheres demais? - perguntou Chora-Alto. - Podia ter uma boa mulher do Povo Rio, e nem sequer precisava pagar muito por isso. Espero que os pais dos Primeiros Homens fiquem ganhando nos negócios que fazem com as filhas.

Yaa levantou as mãos em sinal de rendição, e de súbito Chora-Alto sentiu-se envergonhado. Para que ele acusar Yaa? Uma irmã não tinha poder para alterar as escolhas feitas pelo irmão. Mas as palavras de troça continuavam a saltar da boca de Chora-Alto, como se tivesse na garganta um espírito qualquer que falasse por ele.

- Ele é um idiota. Fala em ir à aldeia dos Quatro Rios, talvez para passar o Inverno. Devia ficar aqui, ele e a nova mulher. Pelo menos podia ajudar a alimentar a nossa gente.

Yaa virou-lhe as costas, atarefada com os fardos de carne de caribu. Pelos movimentos rígidos e desajeitados da mulher, Chora-Alto sabia que ela estava aborrecida, e ficou à espera que ela dissesse qualquer coisa. Sentia um peso no peito que só abrandava quando ele andava caçando, ou quando se irritava ao ponto de o coração bater como um louco. Estava próximo desse nível de irritação, mas precisava que Yaa discutisse com ele, caso contrário a sua raiva se transformaria em tédio.

Yaa não disse nada.

Chora-Alto observou-a durante algum tempo e depois perguntou:

- O que estás fazendo?

- Tens fome? - perguntou ela.

- Acabei de comer. Bem sabes.

Chora-Alto aproximou-se e parou atrás dela. Quando eram pequenos, Yaa e ele eram mais ou menos da mesma altura. Agora, Chora-Alto tinha prazer em olhar para ela de cima, ver como ela era pequena em comparação com ele. De repente, o pescoço dela pareceu-lhe tão frágil, uma nesga de pele clara no meio das tranças escuras. Chora-Alto passou-lhe um dedo pela nuca. Ela afastou-se, subitamente calma e alerta, como um animal assustado e cauteloso.

A reação dela exasperou-o. Nunca a machucara, nunca lhe levantara a mão, nem mesmo quando discutiam.

- O que estás fazendo? - perguntou ele outra vez.

- Contando - respondeu ela. - Fizeste eu me enganar.

- Contando?

- Vamos ter uma cerimônia fúnebre em memória do pai de Ghaden. Ouviste o que Chakliux disse, nae? Quero contribuir para o banquete que se segue.

Chora-Alto resmungou qualquer coisa. Havia melhores maneiras de consumirem a carne, mas como podia ele recusar-se a dar carne para um banquete que decerto seria Chakliux a oferecer?

- Vai falar com Dii para saberes o que ela tenciona oferecer. Não dês mais. Não quero envergonhar o meu próprio pai.

Chora-Alto viu o rosto de Yaa a mudar de cor. Ofendera-a. Todas as mulheres casadas sabiam que não deviam dar mais do que o pai do marido, a menos que ele fosse velho demais para ir à caça, e nesse caso a oferta do filho incluiria também a do pai.

Yaa pousou o fardo e saiu da tenda, sem olhar para trás nem dizer uma palavra por delicadeza. Por instantes, Chora-Alto pensou em ir atrás dela e obrigá-la a voltar para trás até que ela se comportasse como era dever de uma esposa respeitadora, mas depois suspirou e sentou-se. Ela não merecia o trabalho que dava.

Chora-Alto tirou vários cabos de setas de um saco. Atara-os para que não empenassem depois de secos. Desatou-os e examinou cada um deles, colocando-os na horizontal. Estavam todos retos, e Chora-Alto procurou um pedaço de argila para os limar.

Ouviu alguém no túnel de entrada, pôs o trabalho de lado e levantou-se, julgando que era Yaa. Mas era a mulher do pai, Dii. Como todos os túneis das tendas de Inverno, o dele descia e depois subia, formando uma pequena depressão. Desse modo, o ar frio alojava-se na parte mais baixa e não entrava na tenda aquecida. Alguns túneis eram tão altos que davam para um homem entrar de cócoras, mas Yaa e ele eram novos e não se importavam de rastejar. Por isso, quando Dii entrou na tenda, ainda ia de quatro.

Levantou-se rapidamente, esfregou as mãos na boca e fez um trejeito. Tinha bons dentes, pequenos e regulares, e pouco gastos por mastigar peles, como todas as mulheres. Com um queixo afilado e uns olhos muito grandes, parecia uma raposa pronta a atacar, e pouco faltou para que Chora-Alto deitasse a mão à faca embainhada que trazia ao pescoço.

- Não és muito simpático para a tua mulher - disse ela.

- Ela foi lamentar-se? - perguntou ele. Chora-Alto gostava de Dii, apesar de ela parecer mais uma irmã do que uma madrasta. Quando ela fora viver com eles depois de enviuvar de Raposa-Que-Ladra, Chora-Alto percebera logo a sua força, que só aumentara desde que ela casara com o pai. Não devia ter sido fácil ser mulher de um covarde como Raposa-Que-Ladra, mas Dii sempre se apresentara com os seus próprios méritos. Era boa esposa para Sok, embora não tão hábil com a agulha e o furador como a mãe de Chora-Alto. Mas qual o marido que se podia queixar disso se a mulher tinha o dom de sonhar com caribus? Que ele soubesse, Dii nunca se enganara quando dizia aos caçadores onde haviam de encontrar caribus.

No entanto, também era uma mulher que tomava quase sempre o partido de Yaa numa discussão. Chora-Alto preferia que ela fosse mais parecida com Aqamdax, que virava a cabeça para o lado quando ouvia palavras duras, como se elas não tivessem sido pronunciadas. Chora-Alto pensou na nova esposa de Ghaden. Era dos Primeiros Homens como Aqamdax, e por isso talvez fosse mais calma. Como podia ele acusar o homem de querer uma mulher assim? Trocaria Yaa de boa vontade por uma mulher de falas mansas, e até admitira a hipótese de a rejeitar e de aceitar várias velhas da aldeia como esposas, esperando que, por gratidão, elas vivessem sem se lamentar. Mas como ele teria filhos? As velhas não geravam filhos. É claro que, apesar de estarem casados há vários anos, Yaa não tivera a sorte de gerar bebês saudáveis. Tinham perdido três filhos e uma filha. Ela devia estar amaldiçoada.

- Bem sabes que a tua mulher não se lamenta - respondeu Dii.

Chora-Alto foi obrigado a pensar para se lembrar do que lhe dissera para merecer tal resposta.

- E depois?

- Ela está triste. Só isso, e preocupada com o que oferecer para o banquete que se seguirá à cerimônia fúnebre.

- Eu disse-lhe que tratasse de saber o que tu darias. A gargalhada de Dii foi agreste como o ladrar de um cão.

- Ofendeste-a. Ela sabe o que fazer num banquete fúnebre. Porque tratas Yaa dessa maneira? Ela faz o possível por ser uma boa esposa.

- Ela parece mais uma mãe do que uma esposa.

Dii sugou o lábio inferior, e Chora-Alto percebeu que ela não discordava dele.

Sem dizer mais nada, ficou à espera que o seu silêncio levasse Dii a ir-se embora. Dii olhou-o de frente.

- Comportas-te como uma criança mimada - disse ela. - Talvez seja por isso que Yaa tem dificuldade em ser esposa e parece uma mãe.

Dizendo isto, Dii virou-lhe as costas e saiu, mas as suas palavras tiveram o efeito de uma bofetada na face de Chora-Alto.

 

Chora-Alto tirou várias lanças do local onde guardava as suas armas, pendurou um pacote de peixe seco no cinto e saiu da cabana. Não queria estar lá quando Yaa voltasse, com a boca cheia de conselhos e de advertências. Atravessou a aldeia de cabeça baixa, ignorando os cumprimentos das outras pessoas. Por instantes, lembrou-se de alguém que morrera há muito tempo, um caçador chamado Homem Noturno.

Homem Noturno fora marido de Aqamdax antes de ela pertencer a Chakliux. Havia nele uma certa bondade. Afinal, ele comprara Aqamdax de K’os e fizera dela sua esposa e não sua escrava. Mas sofrera muito com uma ferida no ombro, e o veneno acabara por lhe afetar a mente. Chegara a matar o próprio filho, afogara o bebê pouco depois de ele nascer, apesar de Aqamdax afirmar que ele era forte e perfeito.

Chora-Alto lembrava-se de Homem Noturno atravessando a aldeia, distribuindo insultos em troca de palavras alegres. Estaria ele ficando como Homem Noturno? O pensamento levou-o a cumprimentar uma velha que se encontrava na saída da aldeia. Estava de quatro, raspando uma pele que esticara num terreno alto e arenoso. A velha olhou para ele, admirada, e tartamudeou uma bênção destinada aos caçadores. As palavras dela animaram-no, e ele admitiu que o seu único problema era Yaa.

De repente, virou-se para trás e gritou à velha:

- Avó, dizes à minha mulher que eu fui caçar e que talvez só volte amanhã?

- Não te esqueças da cerimônia fúnebre - disse ela.

- Estarei aqui - respondeu Chora-Alto, abanando a cabeça, perplexo.

As mulheres só sabiam ser mães?

 

O ambiente familiar da tenda, o cheiro agradável dos cozidos da irmã e a voz de Chakliux, tudo apaziguou Ghaden. Apesar de tentar preparar-se para um dia de luto, uma parte da sua tristeza dissipou-se como fumaça. Os seus braços apertaram-se em volta da filha de Chakliux, e a menina aconchegou-se no seu colo.

- Amanhã vou buscar Uutuk e trago-a para cá - disse ele a Chakliux. - O pai dela também vai e fica com a mulher, até ela ganhar coragem para nos vir visitar a aldeia.

- Diz à mulher que eu sou dos Primeiros Homens. Diz-lhe que eu acho o Povo Rio bom e generoso - proferiu Aqamdax sorrindo para o marido.

- Que nome é que a tua mulher escolheu? - perguntou Chakliux a Foca.

Chakliux mediu as suas palavras, por delicadeza, para que Foca percebesse que ele não esperava saber o nome verdadeiro e sagrado da mulher - um nome que amaldiçoaria facilmente a pessoa a quem pertencia.

- Uyqiix - respondeu Foca, indicando um nome que na língua dos Primeiros Homens significava ”velha”.

- Diz a Uyqiix que ela é bem-vinda na nossa tenda.

Foca sorriu, e abriu tanto a boca que mostrou um buraco, outrora ocupado por um canino que ele perdera quando o seu iqyax batera numa rocha. Uutuk contara a história a Ghaden, acrescentando-lhe uma certa ironia, e o pensamento provocou uma dor no peito do jovem. Ghaden sentia a falta da mulher.

A filha de Chakliux olhou para ele e apertou-lhe a parte de cima do nariz com o dedinho, como se tentasse desfazer uma ruga.

- Sorri - disse ela.

Era muito parecida com Aqamdax, de face arredondada e lábios cheios, mas tinha os olhos do pai e o mais surpreendente é que nascera com um pé de lontra. Era a única dos filhos de Chakliux que possuía essa marca sagrada. com dois Verões, conseguia manter-se de pé se alguém a levantasse, mas dava uns passos e caía logo.

Como sempre, Aqamdax parecia adivinhar os pensamentos de Ghaden. Agachou-se junto dele e agarrou no pezinho curvo da filha.

- Ela vai ter algumas dificuldades na vida, mas esse é o preço de todos os dons. Se os dons fossem fáceis, não teríamos tanto trabalho a descobrir a melhor maneira de os usarmos.

Ghaden concordou com um gesto de cabeça e fez sua a sabedoria da irmã, pensando que as palavras dela também se aplicavam a Uutuk. A apreciaria ele tanto se os pais dela não lhe dessem tantos motivos de preocupação?

A aba da porta afastou-se e Yaa entrou na cabana. Pegou uma panela que estava pendurada num poste e inclinou a cabeça em jeito de saudação. Ghaden fechou os olhos ao sentir o cheiro agradável de carne de caribu e em seguida cumprimentou-a pela comida que trouxera, mas o sorriso com que ela lhe retribuiu o cumprimento foi forçado e tenso.

- O meu marido é um bom caçador - disse ela. Depois, com uma crispação na boca, acrescentou, envergonhada:

- Ele resolveu passar a noite caçando. Tenho certeza de que volta amanhã - A sua voz tinha o timbre da voz de uma criança. - Detesto que ele vá sozinho.

Yaa olhou para Ghaden, que viu o pânico no seu olhar.

- Eu podia ir... - disse ele, mas Chakliux interrompeu-o.

- Como o encontrarias? - perguntou Chakliux. E mesmo que o encontrasses, o que lhe dirias? Que depois de um Verão longe da tua aldeia, no dia do regresso, tinhas resolvido de repente deixar de novo a tua família para ires caçar? Ele perceberia que fora Yaa que mandou-te.

Chakliux levantou a cabeça e deixou que o seu olhar se demorasse um pouco no rosto de Yaa, acrescentando:

- Às vezes, os jovens encaram as mulheres como cordas que os amarram. Uma mulher inteligente deve ter o cuidado de evitar dar nós nessa corda.

Yaa virou-lhes as costas e fingiu-se ocupada com a carne que trouxera, mas Ghaden percebeu pela rigidez das suas costas que ela estava furiosa.

- Aa, regresso à minha aldeia como caçador e, passado meio dia, não passo de um nó - disse ele.

Até as crianças riram, e Yaa deixou descair os ombros, como se a sua fúria se tivesse dissipado tão depressa que nada mais a mantinha direita.

- Estou preocupada, só isso - disse ela, tão baixinho que Ghaden mal ouviu as suas palavras.

- Compreendo a tua preocupação, irmã - disse Ghaden, pondo no chão a filha de Chakliux e levantando-se. Mas, como caçador, posso dizer-te que, embora um homem se sinta lisonjeado por uma certa preocupação, mostra-se ofendido com o excesso. Se a mulher não acreditar que ele sabe tomar conta de si próprio quando vai caçar, é porque também pensa que ele não é um bom caçador.

Yaa deu meia volta, com um pau de mexer a comida na mão e a gordura da carne pingando nas esteiras do chão.

- Bem sabes que as minhas canções de louvor se ouvem tão bem como as de qualquer mulher quando o meu marido traz carne para a nossa aldeia.

- Como uma mãe elogia um filho - disse Ghaden. Yaa fez ranger os dentes, e Ghaden agarrou-lhe no pulso, obrigando-a a pôr de novo o pau dentro da panela.

- Comporta-te como uma esposa. Só como uma esposa - disse ele.

Chora-Alto caminhou até o anoitecer, sem receio, sem se preocupar muito com o caminho que escolhera. Recordou as feições de todas as mulheres solteiras que conhecia e pensou naquela que daria uma segunda esposa que lhe conviesse. Não podia rejeitar Yaa sem despertar a ira de Chakliux e de Aqamdax, mas, se aceitasse uma segunda esposa e arranjasse outra tenda, podia viver lá com essa mulher. Quem poderia protestar?

Desta vez teria cuidado escolhendo, e não se deixaria seduzir pelo rosto nem pelo corpo de uma mulher. Queria uma esposa que considerasse que a sua força e inteligência eram superiores às dela.

Como os povos de Rio Primo e Rio Próximo viviam agora como um só, era raro Chora-Alto pensar em inimigos, e por isso continuou andando sem cuidado, partindo os ramos que encontrava no caminho, e sem fazer qualquer esforço para abafar o ruído dos seus passos. Nem sequer sentiu o cheiro da fumaça de uma fogueira senão ao parar para construir um abrigo onde pudesse pernoitar. De repente, percebeu a sua imprudência. Lambeu os dedos, umedeceu o interior das narinas e fungou até ter a certeza de que a fogueira era pequena e ficava precisamente a oeste do local onde ele acampara.

Então, cauteloso, continuou a andar, agachado como se perseguisse um animal, com a sua faca de caça na mão. Ouviu as vozes antes de ver a luz das labaredas na floresta sombria. Eram vozes de mulheres. O que era sempre um bom sinal. Em geral, os homens que tencionavam atacar as aldeias nunca traziam as mulheres.

Chora-Alto deitou-se no chão de barriga para baixo e aproximou-se, rastejando, até ver que o acampamento se resumia a um pequeno abrigo e que havia apenas duas mulheres e nenhum homem. De súbito, percebeu que eram as mulheres de Ghaden, a mulher e a mãe dela. Falavam a língua dos Primeiros Homens, palavras que ele não entendia mas que lhe eram familiares.

Lembravam-lhe a fala de Aqamdax. O sotaque que ela continuava a dar à língua do Povo Rio, a profundidade da sua voz, a música no ritmo das suas palavras.

Não, era mais do que isso. Uma das mulheres, a mais velha, não só falava num tom familiar como era parecida com alguém que ele conhecia. A postura dos ombros, o modo como mexia as mãos... Então, Chora-Alto lembrou-se. Era K’os! A mãe dela era K’os!

Surpreendido, levantou-se, e as mulheres assustaram-se. Cada uma pegou uma faca, e a mulher de Ghaden inclinou-se e apanhou uma pedra do tamanho de um punho, das que delimitavam o círculo da fogueira.

- Sou Chora-Alto, irmão por casamento de Ghaden do Povo Rio.

K’os suspirou de alívio e enfiou a faca numa bainha que usava na manga. Aproximou-se da mulher mais nova e disse-lhe alguma coisa que Chora-Alto não ouviu. A mulher deixou cair a pedra, mas não largou a faca.

- Tigangiyaanen! - exclamou K’os. - Bem-vindo. Vens sozinho? Foi Ghaden quem te mandou?

- Venho sozinho, caçar. Ghaden está bem. Tenciona vir buscar a mulher amanhã.

Chora-Alto ficou à espera que K’os traduzisse as suas palavras à mulher. Afinal, Ghaden dissera que a mulher era dos Primeiros Homens, e parecia que o pai dela, Foca, não entendia a língua do Povo Rio, apesar de se apresentar como comerciante. Mas a jovem também lhe gritou alguma coisa e falou na língua do Povo Rio.

Chora-Alto saiu do meio dos arbustos, e a jovem perguntou algo a K’os na língua dos Primeiros Homens. Tanto quanto ele se lembrava, K’os não falava essa língua. E onde teria ela arranjado aquela filha? Saíra da aldeia há muitos anos, os suficientes para ter tido uma filha. Mas Chora-Alto sabia que ela era estéril, que não tinha filhos, exceto Chakliux, que ela encontrara abandonado.

Nas suas idas à aldeia dos Caçadores de Morsas para negociar, reparara que K’os já não vivia com eles, mas admitira que a tivessem trocado por outra pessoa qualquer ou que ela tivesse morrido. A vida de uma escrava não era fácil e, num Inverno duro, as escravas eram as primeiras a morrer por falta de alimento. A verdade é que, fosse por troca ou por fuga, ela conseguira chegar à terra dos Primeiros Homens.

- Não entendes como é que eu consegui voltar - disse K’os. - Não fiques tão admirado. A tua cara sempre te denunciou os pensamentos. - A mulher apontou para a jovem com o queixo. - A minha filha Uutuk, mulher de Ghaden. Vejo que ele não te disse que eu sou a mãe dela.

- Não, não disse, e vejo que não tiveste pressa em aparecer na nossa aldeia - respondeu Chora-Alto.

- Uutuk vai, mas eu fico aqui. Tenho passado muitas noites sozinha na floresta. Não tenho medo. Como ficaste admirado ao ver-me, calculo que Ghaden não te tenha dado o meu recado.

- Não, não deu.

- Eu disse-lhe que queria falar contigo.

- Comigo? Porquê?

Chora-Alto cruzou os braços e, naturalmente, pousou a mão direita na bainha da faca que usava na manga. Quem podia adivinhar o que uma mulher como K’os tinha na cabeça? Afinal, ele fora um dos homens que a vendera aos Caçadores de Morsas.

K’os fez uma careta, apontando para a faca.

- Não precisas fazer isso. Mudei muito desde que saí desta aldeia, e a verdade é que tenho mais motivos para te agradecer do que para te odiar, mas não sou burra ao ponto de pensar que Chakliux acredita nisso. Espero que, quando ele conhecer a minha filha, veja como ela é bondosa e compreenda que eu me modifiquei.

- Então, o que vais fazer? - perguntou Chora-Alto. Ficas aqui até que Chakliux decida que és bem-vinda? Uma mulher só, ou mesmo com o marido, terá dificuldade em passar o Inverno longe de uma aldeia. Além disso, o teu marido é um caçador dos Primeiros Homens. Onde irá ele arranjar carne suficiente para te alimentar? Nesta terra não há focas, exceto as poucas que sobem o rio no Verão, mas não mais do que essas.

Uutuk estava de cócoras junto da fogueira, que alimentava pacientemente com gravetos. Levantou a cabeça e disse a Chora-Alto:

- Ghaden tenciona ir passar o Inverno numa aldeia chamada dos Quatro Rios.

Ao contrário da maior parte das esposas recentes, Uutuk falou com coragem e sem baixar os olhos, e examinou-lhe as feições, como se quisesse retê-las na memória. Levantou-se e limpou as mãos nas mangas. Embora K’os viesse vestida à maneira do Povo Rio - uma parka leve de pele de esquilo e umas perneiras de pele de caribu -, Uutuk trazia um sax de penas. Chora-Alto viu-lhe os tornozelos quando ela se levantou e percebeu que ela não usava perneiras, apesar de trazer tiras de pele enroladas nos pés e presas nos tornozelos e no peito do pé com atilhos de babiche.

- É um bom local para ficar - respondeu Chora-Alto. K’os virou-se para a filha e sorriu.

- Eu ensinei a Uutuk a nossa língua e também os nossos costumes. Ela não terá dificuldade em viver numa aldeia do Povo Rio, e não duvido que Ghaden é um caçador à altura de nos sustentar a todos.

K’os apontou para a fogueira e convidou Chora-Alto a juntar-se a elas.

- Já comemos, mas ainda há comida para ti, se não te importares de comer peixe seco embebido em óleo de foca.

Aqamdax tinha sempre um odre de óleo de foca na sua tenda, e Chora-Alto aprendera a apreciar o seu paladar. Agachou-se junto da fogueira, imitando K’os, em vez de se sentar de pernas cruzadas como a maioria dos homens do Povo Rio. Levantou o queixo para ela e disse:

- Vejo que agora és dos Primeiros Homens.

- De muitas maneiras - respondeu ela.

- Como é que arranjaste esta filha?

K’os empinou o queixo como se a tivessem insultado e respondeu:

- Como é que alguém arranja uma filha? Chora-Alto guardou as suas outras perguntas debaixo da língua. Para que desafiar a ira de uma mulher como K’os, se Ghaden lhe dissera o que ele queria saber? Observou Uutuk quando ela lhe ofereceu uma tigela de madeira de óleo de foca, uma mão-cheia de peixe e um odre de água. Era uma bela mulher, de rosto arredondado e pouco ossudo e olhos ainda mais estreitos que os de Aqamdax. O cabelo preto e grosso era o seu único traço comum com K’os.

Chora-Alto pensou em Foca, e concluiu que a moça era filha dele e que K’os conseguira tornar-se sua esposa. O mais provável era que a verdadeira mãe da moça tivesse morrido. Perguntou a si próprio se K’os não a teria matado.

- Então, porque é que querias me ver? - perguntou ele depois de começar a comer. O peixe era bom, seco e fumado, delicioso, depois de embebido no óleo de foca.

- Pensei que talvez quisesses ir conosco à aldeia dos Quatro Rios. Ghaden quer ir participar à mulher do pai que ela enviuvou.

Subitamente, Chora-Alto ficou imóvel. Era suficientemente esperto para saber que K’os tinha tanto de lobo como de mulher, e que tanto lhe agradava a perseguição como a morte. Concentrou-se na comida, bebeu demoradamente do odre e depois fez algumas perguntas a Uutuk sobre a viagem.

Por fim, K’os interrompeu-o e disse:

- Pensei que talvez quisesses vir conosco e ver se a tua mãe ainda vive nessa aldeia. Ou talvez já tenhas ido visitá-la desde que eu fui embora.

- Fui uma vez, no Verão, mas as pessoas estavam todas espalhadas pelos acampamentos de pesca e não cheguei a encontrá-la - respondeu Chora-Alto.

Chora-Alto não dissera ao Povo Quatro Rios que era irmão dela. Porque havia de criar à irmã problemas de que ela não precisava? Decerto surgiriam perguntas sobre a mãe de ambos, apesar de ela já ter morrido. Ele próprio pensava muitas vezes em Folha Vermelha, e Yaa nunca se cansava de lhe lembrar. Como preferia ir caçar sozinho, ela acusava-o de andar à procura da mãe. Yaa estava enganada, evidentemente. Qual o homem que perderia o seu tempo à procura de alguém que já não andava pela terra? Mas, mesmo assim, havia qualquer coisa que o atraía na floresta. Talvez fosse o espírito dela.

Talvez Folha Vermelha tivesse matado outras pessoas, mas Chora-Alto nunca duvidara do seu amor por ele. Não tinha medo dela, nem sequer do seu espírito. Nesse caso, porque evitar a aldeia dos Quatro Rios? Não queria ele conhecer a irmã ou assumir a responsabilidade pelos filhos dela?

Esses filhos deviam ser pequenos - uma boa hora para ir visitá-los, para que eles aprendessem a reconhecê-lo e, nos anos seguintes, quando ele voltasse, se recordassem do tio. E Yaa? Cada ano que passava, cada bebê que ela perdia, a agarravam mais a ele. Uma irmã com filhos seria um motivo de mágoa ou uma ajuda?

Chora-Alto abanou a cabeça. Quem podia dizer? Yaa não era uma mulher fácil de compreender. Ao levantar a cabeça, reparou que K’os o observava.

- Então, não queres ir? - perguntou ela. Chora-Alto olhou para ela, confuso, e depois percebeu que ela não entendera por que motivo é que ele abanava a cabeça.

- Ainda não resolvi - respondeu ele, satisfeito por ela não saber que ele já dissera a Ghaden que queria ir com eles.

Para fugir às perguntas de K’os, virou-se para Uutuk e disse:

- Tenho pena de não poder falar contigo na tua língua.

- Isso não é problema porque eu falo a tua. A minha mãe ensinou-me bem.

- Ora aí está uma coisa inteligente, sobretudo agora que és casada com um homem do Povo Rio. É claro que ela não podia adivinhar que isso iria acontecer.

Chora-Alto percebeu o súbito olhar turvo de K’os, quando ela se inclinou e atirou uns gravetos para a fogueira.

Aa, mas ela adivinhara, ou pelo menos fora essa a sua esperança, pensou Chora-Alto. De repente, teve frio e aproximou-se mais das chamas. Porque acreditar que K’os se modificara só porque tinha uma boa filha?

- Devias ir conosco à aldeia dos Quatro Rios - disse K’os.

Uutuk acrescentou:

- O meu marido tem sentido muito a falta de todas as pessoas da sua aldeia. Ficará satisfeito se tu vieres conosco.

- Eu estava pensando na minha mulher - respondeu Chora-Alto. - Ela acabou de chorar a morte de mais um bebê, e eu acho que seria bom para ela sair da aldeia por uns tempos. Até parece que o fantasma da criança anda por aí.

- Sim, traga-a - disse Uutuk. - Ela pode falar-me da aldeia e ensinar-me a ser uma boa esposa para um homem do Povo Rio.

Um sorriso iluminou-lhe a face, e Uutuk bateu as palmas como uma criança, mas a voz de K’os atravessou a escuridão e sobrepôs-se ao crepitar do fogo.

- Uutuk, eu devia ter te dito que este homem é casado com a irmã do teu marido, Yaa.

- Eu sei - respondeu Uutuk. - Ghaden falou-me de todas as pessoas da família dele.

- Vês como a minha filha aprende depressa, tigangiyaanen? - disse K’os, gabando-se como qualquer mãe.

Quanto a Chakliux, o orgulho dela fora eclipsado por uma certa penumbra. Ciúme e também algo mais. Medo?

O mais provável era que ela não quisesse que Yaa os acompanhasse. Yaa poderia dizer a Uutuk mais do que K’os queria que ela soubesse. Ao contrário de Ghaden, Yaa, que era mais velha, talvez se lembrasse do mal que K’os fizera quando vivia na aldeia e Aqamdax era sua escrava.

- Talvez queiras que a tua mulher vá contigo, ou talvez não - disse K’os tranqüilamente.

Uutuk começou a protestar, e Chora-Alto ficou admirado. Talvez K’os estivesse mais dócil e houvesse criado a filha de um modo diferente de Chakliux.

- Cala-te, Uutuk! - ordenou K’os com rispidez, levantando uma mão, como que a pôr termo às palavras da filha. Há coisas aqui que tu não compreendes nem precisas saber. Vai apanhar lenha. O lume está consumindo mais do que é costume, e a noite indica que o Inverno não vem longe.

Uutuk fez um ar amuado, mas afastou-se. Chora-Alto sentiu que o seu coração ia com ela, entrava na sombra das árvores. Uma mulher dos Primeiros Homens devia ter medo da floresta, mas K’os parecia ignorar esse terror.

- Não devias mandá-la para lá sozinha. Ela vai ter medo - disse Chora-Alto.

- A minha filha sabe dominar o medo - respondeu K’os. - Além disso, o que eu tenho para dizer não leva muito tempo, e depois podes ir com ela se quiseres. - K’os olhou para a fogueira. - Primeiro, uma pergunta. Disseste que Yaa perdeu um filho. Quantos têm vocês?

- Quatro no mundo dos espíritos, e agora ela passa a maior parte do tempo tratando-me como se eu fosse uma criança.

As palavras saíram-lhe da boca antes que ele conseguisse evitá-las. Era a lamentação mais desagradável e lamurienta que ele podia ter feito. Fechou os olhos, arrependido. Como fora estúpido ao dar a K’os uma arma contra ele e contra Yaa!

- Receio ter feito o mesmo aos meus maridos, na ânsia de ter um filho. É uma coisa que os homens têm dificuldade em compreender, mas não as mulheres. Tens outra mulher?

Chora-Alto já esperava a pergunta. Quem soubesse que Yaa não tinha filhos admirava-se que ele não tivesse arranjado outra mulher. Chora-Alto respondeu-lhe o mesmo que respondera às outras pessoas:

- Quando Yaa terminar o seu luto, tenciono arranjar uma segunda esposa.

Não lhe disse que Yaa nunca terminava o luto, que, de cada vez que a um nascimento se seguia uma morte, ela se entregava ainda mais ao seu desgosto.

- Talvez encontres alguém na aldeia dos Quatro Rios.

- Ainda há muitas moças na nossa aldeia para qualquer caçador - respondeu Chora-Alto.

K’os levantou as sobrancelhas, em sinal de concordância.

- As guerras são um disparate - disse ela, abanando a cabeça como se não tivesse participado no ódio que levara as aldeias de Rio Primo e de Rio Próximo a lutar entre si. Tens que ir conosco à aldeia dos Quatro Rios. Sem Yaa. Não pela tua irmã, mas por ti próprio.

Chora-Alto começou a expor as suas razões para que Yaa fosse com eles - desculpas - mas K’os interrompeu-o.

- Ouve o que eu tenho a dizer-te e depois toma a tua decisão, em relação a ti próprio e à tua mulher.

Cen morreu numa tempestade. Creio que Ghaden já te disse.

- Eles vão fazer uma cerimônia em memória dele amanhã à noite - disse Chora-Alto, envergonhado com a solenidade da sua voz. A mulher, com os seus modos condescendentes, tornara-o muito amargo, e agora parecia-lhe que começava a agir como uma criança.

Todavia, K’os continuou a falar como se não o tivesse ouvido.

- Antes de ele partir da Praia dos Comerciantes, tive ocasião de conversar com ele sobre a sua vida na aldeia dos Quatro Rios. Uma vez, há anos, Cen esteve para ser meu marido. Não esquecemos essa amizade.

- Não sabia - disse Chora-Alto.

- Eras muito pequeno - respondeu K’os. - Além disso, eu vivia na aldeia de Rio Primo e tu estavas com os teus pais na aldeia de Rio Próximo. Mas isso não interessa. Lembras-te quando Chakliux me obrigou a partir do acampamento de caça?

- Lembro.

- Fui viver para a aldeia dos Quatro Rios.

- Já me disseste isso. Há muito tempo, disseste-me isso.

- Pois, quando tu me vendeste aos Caçadores de Morsas.

- Disseste que a minha mãe tinha sobrevivido mesmo depois de deixar o meu pai, mas que morrera de doença.

- Isso era o que eu achava.

Chora-Alto semicerrou os olhos. À luz das chamas, o rosto de K’os tornara-se sombrio, como se ela usasse uma máscara de dança. A sua boca mexia-se, mas não emitia qualquer som, como se estivesse falando outra pessoa qualquer, alguém que estivesse atrás dela, escondido pela máscara do seu rosto. Parecia que falara verdade, mas quem podia confiar nela?

- Estás me dizendo que ela está viva? - perguntou ele.

- Estou a dizendo que ela conseguiu sobreviver a essa terrível doença e que, quando Cen saiu da aldeia dos Quatro Rios no princípio do Verão, ela ainda estava viva.

- Já não estava doente?

- Com forças suficientes, porque acabara de lhe dar mais uma filha saudável.

Chora-Alto tinha muitas perguntas a fazer, mas não conseguiu formulá-las. Acumulavam-se na garganta e pareciam sufocá-lo, até que ele começou a tossir e por fim conseguiu respirar.

Ouviu o risinho surdo de K’os, e enfureceu-se. Ela não lhe dissera aquilo para o alegrar, mas para ver o que ele faria, para o observar como se ele fosse um bailarino, para o ouvir como se ele fosse um contador de histórias.

- Decide então se queres ir conosco e se queres que a tua mulher saiba da existência de Folha Vermelha.

K’os calou-se por instantes, levantou a voz para chamar Uutuk e depois inclinou-se e disse:

- Creio que o teu pai, Sok, ainda está vivo. Não deves querer que ele saiba nada da tua mãe.

- Que importância tem isso? Ghaden também vai e ainda tem no corpo as cicatrizes da faca da minha mãe. Julgas que ele a deixa viver?

- Ghaden era uma criança quando Folha Vermelha tentou matá-lo. Achas que ele a reconhecerá? - K’os abanou a cabeça. - Evidentemente que não. Ela agora chama-se Gheli... Já te disse, nae? Ghaden não se vai lembrar dela, e eu não vou dizer nada. A decisão é tua. Vens?

- Sabes quando partem?

Ela encolheu os ombros.

- Muito provavelmente depois da cerimônia fúnebre. Digo ao meu marido que vens conosco?

Uutuk surgiu à luz da fogueira e pousou um braçado de lenha junto do abrigo. K’os atirou os ramos para cima das brasas e espevitou o fogo até fazer saltar as labaredas, que obrigaram Chora-Alto a afastar-se do calor.

- Não, não vou contigo - respondeu ele. K’os sorriu.

- Não, evidentemente que não. Se Ghaden vier buscar Uutuk para a cerimônia, o que lhe digo?

- Diz-lhe que eu fui caçar. Diz-lhe que choro o pai dele à minha maneira e que trago o seu desgosto no meu coração.

- Digo-lhe que levas o seu desgosto para a aldeia dos Quatro Rios? - perguntou K’os.

Chora-Alto não respondeu.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

Chega-ao-Céu falou na língua do Povo Rio, e a sua voz parecia uma faca enterrando-se na história. Os homens abanaram a cabeça, para regressarem de novo à época em que viviam.

- Ele diz que a tua história perdeu o sentido, Yikaas traduziu Qumalix. - Ele pergunta porque é que Chora-Alto confiou em K’os. com certeza, ao longo dos anos, os contadores de histórias foram lembrando às pessoas a inimizade que surgiu entre as duas aldeias e a responsabilidade que K’os teve nisso.

- Chega-ao-Céu está enganado - disse um dos comerciantes dos Primeiros Homens. - Chora-Alto é infeliz com a mulher e está atraído por essa nova mulher, Uutuk. Ela é uma beldade, não é? Ele está pensando nela. Não em K’os. Conheço mais de um homem que se meteu em confusão por causa disso.

O caçador que estava ao lado dele desatou a rir.

- Só porque tu és burro, não julgues que nós também somos - disse ele.

O comerciante torceu os dedos e agitou-os na direção do caçador, para o insultar, e a atenção dos homens desviou-se de Yikaas e de Chega-ao-Céu para se concentrar nos dois Primeiros Homens, que tinham se levantado como se estivessem prontos a lutar.

- Ah! os homens! Não passam de crianças, todos vocês! Porque discutem agora?

Era Kuy’aa. Em algum momento durante a sessão de histórias, ela esgueirara-se para um espaço protegido por uma cortina e agora deitava a cabeça para fora para os repreender. Falara na língua dos Primeiros Homens, mas Yikaas apanhara palavras suficientes para compreender o que ela queria dizer.

- Eles estão discutindo por causa da minha história, tia, explicou-lhe Yikaas.

- E que história lhes contaste para provocar tal barafunda?

- Uma boa história. Sobre Chora-Alto e sua decisão de ir à aldeia dos Quatro Rios. Lembras-te?

A velha abanou a cabeça, e ele viu o assomo de um sorriso na sua boca.

- É uma boa história, mas não vale a pena discutirem por causa dela - disse Kuy’aa. - Aposto que esses dois têm mais alguma coisa que os aborrece.

Coxeando, Kuy’aa aproximou-se do círculo dos contadores de histórias e parou junto de Yikaas e de Qumalix. Levantou a voz, gritou várias palavras dos Primeiros Homens que Yikaas não entendeu e de repente calou-se.

- Vocês, os homens, levem a discussão para outro lugar qualquer - disse ela, alternando entre as línguas do Povo Rio e dos Primeiros Homens. - E os outros, fiquem calados! Há muito tempo que se servem deste ulax para ouvir histórias. Agora é a vez das mulheres.

Ouviram-se gemidos e protestos, bem-intencionados na sua maioria. Alguns homens saíram, passaram por Kuy’aa e deram palmadas nos ombros de Yikaas, exprimindo opiniões sobre as suas histórias. Kuy’aa cochichou qualquer coisa a Qumalix, que também saiu. Pouco depois, as mulheres começaram a entrar, e Yikaas ficou admirado ao sentir-se desapontado por Qumalix não estar entre elas.

Como se ele tivesse perguntado por ela, Kuy’aa disse:

- Ela está com fome. Espero que esteja chegando. Entretanto, continua a tua história. Farei o possível por traduzi-la.

- A história acabou. Chora-Alto resolveu ir à aldeia dos Quatro Rios. Quer encontrar a mãe e está cansado de ouvir a mulher, Yaa, sempre lamentando-se.

- Yaa, pobrezinha! - exclamou Kuy’aa, como se Yaa fosse alguma sobrinha ou neta que ela tivesse conhecido toda a vida. - Ela tem muito poucas razões de queixa do marido. As queixas dela são de si própria e da sua vida.

Yikaas fez um sinal afirmativo como se, ele também, conhecesse Yaa. Depois, levou a mão ao pescoço, esfregou-o e disse:

- Tia, estou farto de contar histórias. Me dói a garganta de tanto falar. Conta-nos uma das tuas?

Ouviu-se um murmúrio de aprovação das pessoas que estavam mais perto, e Kuy’aa fez um sorriso tão rasgado que Yikaas ficou satisfeito por lhe ter feito o pedido. Era a melhor contadora de histórias de todos eles, mas parecia que, às vezes, até os melhores precisavam saber que os outros apreciavam as suas histórias.

- Sim, tia, por favor! - pediu Yikaas baixinho, como se fosse de novo o rapazinho que a ouvia na cabana dela.

- Uma história um pouco diferente, então - disse ela. A história de Daes, uma mulher estranha.

E era uma história difícil de contar, pensou Yikaas. Fixou o olhar em Kuy’aa e viu a ruga de concentração no seu rosto. Em geral, era uma história que ela contava apenas a outros contadores de histórias, porque podia confundir quem a ouvisse. Então, porque contá-la àquele grupo, em que metade eram homens rudes que gostavam de histórias cheias de mortes e de caçadas, ou de lutas e de ódio? Alguns ainda estavam à espera e outros já tinham começado a resmungar.

Kuy’aa levantou a cabeça e deitou-lhes um olhar duro. Depois disse:

- Há coisas que vocês precisam saber antes de eu começar esta história.

Por delicadeza, Kuy’aa falou na língua dos Primeiros Homens e depois na língua do Povo Rio.

- Alguns de vocês já conhecem as nossas histórias de Chakliux e de Aqamdax, esses contadores de histórias, marido e mulher, que uniram os nossos povos.

Houve muitos acenos de cabeça e ouviu-se um murmúrio de concordância.

- Alguns de vocês ouviram falar de Sok, o irmão mais velho de Chakliux, o chefe dos caçadores da aldeia de Chakliux. Quando ele era novo, antes de ser o chefe dos caçadores, tinha uma mulher chamada Folha Vermelha. Essa mulher queria que concedessem ao marido esse cargo e essa honra. Ela julgava que o avô dele, o velho Tsaani, é que era o obstáculo. Então, vestiu-se de homem, e uma noite entrou na cabana de Tsaani e matou-o. Infelizmente, foi vista por outra mulher, Daes, que tinha um marido velho e um amante, o comerciante Cen.

Folha Vermelha matou Daes e também tentou matar o filhinho dela, Ghaden. - Kuy’aa fechara os olhos, como que para evitar que os seus pensamentos fugissem para o que ela via no ulax, mas nesse momento abriu-os e fitou as pessoas que a rodeavam. - Todos vocês ouviram falar de Ghaden, o irmão de Aqamdax e de Yaa.

Mais uma vez, os presentes confirmaram as suas palavras em surdina.

- Ghaden sobreviveu, evidentemente. A princípio, as pessoas não sabiam quem é que tinha matado Tsaani e Daes, mas pouco depois descobriram que fora Folha Vermelha. O marido dela, Sok, resolveu matá-la, mas como ela estava grávida ele esperou que o bebê nascesse. Era uma menina e, depois do parto, Chora-Alto, o filho de Sok e de Folha Vermelha, ajudou a mãe a fugir. Ela fugiu para o deserto com o bebê e foi apanhada pela primeira tempestade de neve do Inverno. Todos julgaram que ela tinha morrido, mas a mulher conseguiu chegar à aldeia dos Quatro Rios, onde vivia o comerciante Cen. Mudou o nome para Gheli e pouco depois era mulher de Cen.

Cen, que não sabia que Gheli e Folha Vermelha eram uma e a mesma pessoa, adotou a menina como se fosse dele e deu-lhe o nome de Daes, em memória da mulher que ele amara, a mãe do seu filho Ghaden. Passaram-se muitos anos e a segunda Daes cresceu.

- Há tanta gente para recordar! - queixou-se uma das mulheres.

- Tens razão - admitiu Kuy’aa, encolhendo os ombros. - Mas esta é a história que eu resolvi contar. Vai embora, se quiseres. Nem todas as histórias são para todos.

A mulher levantou-se e abriu caminho entre os presentes, em direção ao poste.

- Os outros também podem sair, se quiserem - disse Kuy’aa aos que ficaram. - É uma história difícil de compreender, e algumas pessoas já estão aqui quase há uma noite inteira.

Kuy’aa esperou em silêncio, pegou um odre de água e bebeu uns goles. Outras mulheres saíram da cabana. Quando ficaram apenas algumas, Yikaas julgou que ela ia retomar a história, mas Kuy’aa continuou à espera, cantarolando baixinho. Depois de sair mais um homem e uma velha, Kuy’aa levantou a voz e começou a cantar em voz alta.

- Segundo os contadores de histórias, Daes cantava isto muitas vezes.

Kuy’aa cantou-a duas vezes, nas duas línguas. Era uma canção infantil sobre umas árvores que viviam no Verão e passavam o Inverno dormindo. Yikaas estava quase perdendo a paciência, de tanto esperar pela história. Por fim, ouviu alguém no topo do ulax e viu os pés de uma mulher descendo o poste. Era Qumalix. Yikaas virou a cabeça para o lado, fingindo que não a vira, mas ficou radiante, e quando ela se sentou ele não pôde deixar de olhar para ela.

- Vou começar a contar a história de Daes - disse Kuy’aa a Qumalix, que reagiu com um gesto de cabeça, como se tivesse vindo de propósito para ouvir aquela história.

- Eu estava à espera que tu contasses a história dela disse Qumalix, com uma voz suave e amável.

- E eu estava à espera de ter oportunidade de te contar respondeu Kuy’aa.

Yikaas percebeu que a velha estivera à espera de Qumalix. Dali a longa explicação, a canção e a água.

Então, ouviram-se as palavras de Kuy’aa, segundo a tradição do Povo Rio:

- Uma vez, há muito, muito tempo, havia uma mulher chamada Daes que vivia numa aldeia do Povo Rio com a mãe, o pai e uma irmã pequenina. Era uma mulher grande, larga de ombros e alta como um homem, e também forte como um homem, capaz de se servir de um arco para matar animais e também habilidosa com a agulha e o furador.

Foi assim que Kuy’aa começou.

 

         Acampamento de pesca, Yellow Creek

         6435 a. C.

 

                   História de Daes

Daes atirou uma cabeça de peixe num saco de pele de caribu que estava ao fogo. Com a faca, abriu a barriga do peixe no sentido do comprimento, desde a cauda até as guelras, e atirou as ovas para outro saco, para secarem. Guardou as tripas num recipiente de cortiça, para os cães, retirou a espinha e em seguida atirou o peixe à mãe. As duas metades carnudas estavam unidas apenas pela cauda, e Gheli as pôs, com a pele virada para baixo, em cima da tábua que usava para cortar. Cortou a carne rosada em fatias diagonais, tendo o cuidado de não separar a pele. Em seguida, as pôs de lado para serem penduradas nos tabuleiros de seca.

Daes estava zangada com a mãe, e, à medida que cortava, a sua fúria aumentava. O Verão terminara. Tinham que sair do acampamento de pesca e regressar à aldeia de Inverno. Havia tão poucos peixes desovando que quase nem valia a pena ficarem, e além disso ela e a mãe tinham secado e defumado peixe suficiente para se alimentarem durante dois Invernos.

Daes pensou nas pessoas que estavam então na aldeia de Inverno, consertando os danos que o Verão causara às tendas, antes de partirem para a caça ao caribu, no Outono. Daes gostava muito das caçadas - dos longos dias de caminho, da esperança de avistarem as manadas quando chegavam ao topo de um monte, do frio penetrante no ar, do cheiro das ervas cansadas do Verão e das corolas das flores repletas de sementes. Era uma das mulheres mais fortes da aldeia, e a sua força era mais necessária quando as pessoas construíam sebes de arbustos para encaminhar os caribus para os caçadores. E todos os anos ela vivia na esperança de que o pai a deixasse juntar-se aos homens com o seu arco e apanhar caribus.

As mulheres raramente caçavam. Em geral, ficavam com os filhos junto das sebes, agitando peles de caribu pintadas de vermelho para assustar os animais e os dirigir para a cerca onde os homens os aguardavam com lanças e arcos. Mas os contadores de histórias falavam de mulheres que tinham jeito para manejar armas. Essas mulheres haviam caçado caribus. O pai de Daes parecia tão orgulhoso do seu jeito para a caça como se ela fosse um rapaz. Talvez um dia ele a deixasse caçar caribus, também.

Se ela e a mãe ficassem no acampamento de pesca durante muito tempo, perderiam as caçadas, evidentemente. E havia sempre a possibilidade de as pessoas se convencerem de que elas tinham resolvido ir passar o Inverno em outro local, se tardassem em chegar à aldeia. Então, alguém poderia exigir o círculo de grama e de pedras em que assentava a sua tenda. O pai abrira um buraco no solo, quase com a altura de um braço, e revestira a parede de terra com pedras. Como uma cabana dos Primeiros Homens, explicara ele. Era melhor usar a terra como se fosse um cobertor para os proteger do vento e do frio.

A aldeia ficava num local alto, numa elevação de areia e de pedras. Por isso, podiam escavar o solo sem receio de serem inundados na Primavera, quando a tundra perdesse a crosta dura do Inverno e se transformasse num charco, no Verão. Mesmo assim, mais ninguém na aldeia construíra uma tenda igual à de Cen, mas Daes não duvidava de que uma ou outra família gostaria de viver ali, quente e protegida do inverno.

Daes olhou para as prateleiras do peixe e sentiu-se inundada por um desespero frio como a água do rio. Seriam necessários pelo menos três ou quatro dias para aquele peixe secar, muito provavelmente mais. E se a mãe ainda por cima resolvesse defumá-lo? Pior, tinham uma represa montada no rio e continuavam apanhando peixe.

Julgaria Gheli que eles podiam passar o Inverno só comendo peixe, sem a gordura da carne de caribu? Julgaria ela que Cen não ficaria preocupado quando voltasse da sua viagem de negócios e visse que elas ainda não tinham regressado à aldeia?

É claro que não seria a primeira vez que isso acontecia. Sempre que Cen partia para ir fazer os seus negócios, a mãe de Daes modificava-se, como se o marido lhe levasse todo o bom senso que ela tinha. Quase sempre, elas saíam da aldeia, encontravam um novo local para acampar, longe dos outros acampamentos e a muitos dias de caminho da aldeia dos Quatro Rios. Quase sempre Gheli subia o rio, onde a pesca não era tão boa, porque a maior parte dos salmões não chegava até lá ou era apanhada nas represas construídas mais perto da foz.

Um choro súbito indicou-lhes que o novo bebê acordara. Já não eram os vagidos de aflição de um recém-nascido, mas a menina era ainda muito pequena. Pelo menos, já tinha idade suficiente para sorrir e por conseguinte parecia-se um pouco mais com um ser humano. Daes ficara contente quando ela nascera, mas sentira igualmente uma certa tristeza ao ver a felicidade do pai, apesar de o bebê ser uma menina. Tinha Ghaden, aquele irmão que Daes nem sequer conhecia, e agora esta nova filha a quem a mãe chamava Patinha.

Além disso, havia Daes, mas ela sabia que tinha outro pai, um homem de que a mãe não falava. Um homem indolente, inútil, segundo Daes ouvira dizer das velhas da aldeia, que cobriam a boca com a mão como se tivessem vergonha até de lhe pronunciar o nome.

Pelo menos, Patinha era uma menina. Que chances teria Daes de ocupar um lugar no coração de Cen se o bebê fosse um menino?

- Eu acabo de arranjar o peixe, mãe. Vai dar-lhe de comer - disse Daes.

Gheli concordou, aproximou-se do bebê e tirou a cadeirinha do ramo em que ela estava pendurada. Daes viu a mãe encostar-se à árvore, desatar o bebê da cadeirinha e enfiá-lo debaixo da parka macia de Verão para lhe dar de mamar.

Gheli fechou os olhos e passou os braços em volta da criança, que não era mais do que uma saliência por cima do estômago da mãe. Daes sentiu mais uma vez um sobressalto, um súbito acesso de raiva em relação ao bebê.

Era uma criança bonita, e o mais provável era que viesse a ser uma daquelas mulheres frágeis que aparentemente todos os homens distinguiam. Para que lhes servia uma mulher assim? Nem seria capaz de caçar e talvez nem tivesse força suficiente para sobreviver ao nascimento dos filhos. Bastava lembrarem-se do que acontecera à mulher de Mão-de-Pássaro. É claro que ele é que não devia ter escolhido uma mulher pequena, corpulento como era. Quem duvidava que ele iria meter um bebê grande dentro dela, um bebê que ela nunca conseguiria dar à luz? Passara quatro dias tentando expulsar aquela criança, e depois tinham morrido os dois.

Mão-de-Pássaro e Daes sempre haviam sido bons amigos, tinham ido caçar e passado várias noites juntos num abrigo. No ano seguinte ao primeiro sangue lunar de Daes, ele declarara-se a ela, como um homem se declara a uma mulher, e Daes convencera-se de que ele a escolheria como esposa, mas quem ele se ofereceu para comprar foi a bela Mulher-do-Lago.

Daes tentara esquecer esse dia, mas as imagens não a abandonavam e batiam-lhe na cabeça como uma enxada numa árvore: Mão-de-Pássaro atravessando a aldeia, o molho de peles de caribu que ele levava, as peles de esquilo nos braços do irmão, que ia atrás dele. Daes lembrava-se do momento em que os dois se aproximaram da tenda do pai, e do seu coração que parecia rebentar-lhe no peito de tanto inchar. Depois, o peso terrível da desilusão, quando Mão-de-Pássaro lhe dirigiu um cumprimento bem-humorado, mas continuou o seu caminho.

Daes estava sentada do lado de fora da tenda, costurando uma parka que tencionava oferecer-lhe. Ficara observando-o, sem conseguir mexer-se, tão atordoada que estava certa de que cairia se se levantasse. Ouvia a alegria na voz dele quando falasse ao pai de Mulher-do-Lago e imaginava a sua delicadeza quando ele apresentasse a primeira parte do que oferecia em troca dela. Nesse dia, os dois irmãos tinham passado três vezes pela tenda do pai de Daes, e sempre carregados de presentes. De cada vez, Daes sentira a tristeza aumentar dentro dela, até ser tão grande que lhe empurrara o coração para a boca, ao ponto de ela nem conseguir falar e mal poder respirar.

E o que tinha ele para mostrar agora, apesar de todos aqueles presentes? Uma mulher morta e um filho morto, tirado da barriga de Mulher-do-Lago e estendido a seu lado na morte.

Daes não gostava de entregar-se à esperança que ganhara raízes durante o longo Verão que ela e a mãe haviam passado sozinhas naquele acampamento, mas, agora que se aproximava a caça ao caribu, sabia que Mão-de-Pássaro devia estar pensando em arranjar outra mulher. Qual o homem que não queria que uma mulher o acompanhasse nas caçadas, para esquartejar os animais que ele matava? É claro que a mãe dele e a irmã mais velha, que era quase uma mulher, iriam também, e talvez ele estivesse ainda entregue ao seu desgosto e não levasse nenhuma esposa para a sua cama. Mas poucos jovens eram assim, e Mão-de-Pássaro talvez se resolvesse a arranjar uma mulher grande e forte, que pudesse não só esquartejar os animais como ajudá-lo também a caçar.

Mas como podia Daes ser sua mulher se ele nem sabia onde ela estava?

A frustração levou a sua faca a trabalhar mais depressa, e Daes arranjou o monte de peixes reluzentes com tal rapidez que a mãe lhe pediu que tivesse cuidado. Que limpasse bem os peixes, caso contrário, poderiam apodrecer quando os armazenassem.

- Passei o Verão inteiro fazendo isto, mãe - respondeu Daes. - Acha que eu me esqueci de repente?

Era raro ela enfurecer-se com a mãe, e, quando isso acontecia, Daes baixava a cabeça e os olhos. Mas dessa vez tinha tanto medo da perda que olhou de frente para Gheli, apesar de saber que essa atitude era mais ofensiva do que as suas palavras.

Encarou a mãe com altivez, e Gheli mordeu o lábio inferior sem saber o que dizer. Por fim, começou a brincar com o bebê e não deu resposta.

Daes sentiu-se um pouco envergonhada, mas estava sobretudo furiosa. Começou a trabalhar ainda mais depressa, de tal maneira que a lâmina de pedra curva lhe parecia quase uma mancha.

Quando acabou de dividir os peixes, viu que a mãe adormecera onde estava, e enfureceu-se ainda mais. Pensou em arrumar as suas coisas e partir sozinha, mas aproximou-se do local em que a mãe estivera trabalhando e começou a cortar os peixes até a pele. Parou quando já tinha um monte deles e foi pendurá-los nas armações de seca.

Depois de acabar o trabalho, lavou a faca à beira do rio e ficou ali, em silêncio, olhando para as pontas das estacas de salgueiro. Ela e a mãe tinham construído uma represa que ia de um lado ao outro do rio. Os peixes eram encaminhados para a margem, onde seriam facilmente apanhados com um cesto de rede.

Por instantes, Daes pensou em ir apanhar os poucos que tinham se refugiado nos baixios desde manhã, quando ela e a mãe haviam recolhido a pescaria da noite. Mas depois voltou a olhar para o abrigo, para os montes de fardos de pele de caribu já cheios, e concluiu que tinham tanto peixe que ela e a mãe, mesmo com os três cães, teriam dificuldade em regressar à aldeia.

Daes respirou fundo, fixou o rosto de Mão-de-Pássaro na sua mente, despiu as perneiras de pele de caribu e atou a parka à cintura. Entrou na água do rio e atravessou-o, lutando com a corrente. Quando chegou ao outro lado, começou a arrancar as estacas de salgueiro do fundo do rio, deixando que a corrente as levasse e aos ramos entrelaçados que formavam uma rede entre as estacas.

A água fria fez-lhe doer os ossos, como se fossem facas arrancando-lhe a pele, mas a raiva ainda era tão forte que lhe mantinha os dedos quentes. Já arrancara quase todas as estacas quando ouviu a mãe gritar:

- Daes! O que estás a fazer?

- Já temos peixe que chegue, mãe - respondeu Daes, arrancando mais uma estaca.

- Partiremos quando eu disser - berrou Gheli, mas Daes fez de conta que não a ouviu.

A mãe afastou-se da margem, e Daes sorriu ao ver que Gheli ainda tinha o bebê no colo e só poderia ir atrás dela depois de largar a criança num lugar seguro.

Quando Gheli acabou de atar Patinha à cadeirinha, só restavam três estacas a Daes, as que estavam mais perto da margem. Daes subiu para a margem, arrancou várias mãos-cheias de erva e esfregou as pernas para recuperar a sensibilidade. A parka estava encharcada até os ombros e a água escorria-lhe das mangas.

- Faz outra represa - ordenou Gheli, com uma voz calma mas forte.

- Porquê? - Daes apontou para as árvores. - Olha, as folhas viraram-se. O Verão está no fim.

- Precisamos de mais peixe.

- Já temos mais do que podemos levar - respondeu Daes. - Tencionas ir duas vezes à aldeia e perder as caçadas ao caribu?

- O teu pai trará carne que chegue para o Inverno. Não precisamos participar nas caçadas.

- E se acontecer alguma coisa e ele não puder trazer carne?

Gheli susteve o fôlego e levantou a mão como se quisesse bater na filha.

- Julgas que as minhas palavras são suficientes para amaldiçoá-lo? - perguntou Daes. - Ele é mais forte do que nós as duas juntas. As minhas palavras são um mosquito para ele.

- Burra! Não passas de uma criança. Julgas que compreendes os caminhos do mal? Julgas que sabes o que tem poder e o que não tem? Cala a boca!

Gheli curvou-se para apanhar uma estaca de salgueiro que escapara da corrente do rio e atirou-a para a margem. Entregou-a a Daes.

- Toma. É menos uma que tens que cortar.

- Eu não faço outra represa - disse Daes. - Não fico aqui mais do que os dias que forem precisos para secar aquele peixe. Fica tu, se quiseres, mas eu volto.

- Então vai, mas não esperes que eu te ceda nenhum dos cães - disse Gheli. - Terás que ser tu a desvencilhar-te. Achas que consegues?

- Eu consigo - respondeu Daes, embora a dúvida começasse a pairar na sua mente assim que pronunciou estas palavras.

Estava habituada a seguir os passos de quem a acompanhava, e muitas vezes nem reparava por onde ia. Mas sabia que o regato do acampamento de pesca desembocava no rio que corria perto da aldeia. Caminharia em direção à foz, até chegar a um local que conhecesse. Não precisava do cão.

Virou as costas à mãe, voltou para o abrigo e começou a arrumar as suas coisas. Se a mãe não a acompanhava, porque ela esperaria que o peixe secasse? Olhou para o céu. Era meio-dia e, sem Gheli nem o bebê, podia andar depressa, mesmo com um fardo às costas. Talvez conseguisse chegar à aldeia de Inverno ao fim de duas noites de caminho.

Enrolou as esteiras da cama e juntou os seus objetos pessoais - um pauzinho de salgueiro para limpar os dentes, várias facas de mulher, folhas secas de erva-de-fogo para fazer chá quando parasse para descansar, um segundo par de perneiras, outro de botas, e um pacote de erva de junco para absorver o sangue durante o seu período lunar ou para ajudar a acender uma fogueira.

Descobriu uma tigela de madeira que podia pendurar no cinto. Iria enchê-la com um pouco de musgo umedecido e uma brasa da fogueira. Além disso, tinha um arco de fazer fogo, mas depois de um longo dia de caminho era sempre bom ter fogo de reserva em vez de ser obrigada a acendê-lo.

Encheu vários odres com água do rio, atou-os para os levar aos ombros e escolheu os fardos de peixe seco que iria transportar. Tentou escolher o mais pesado, para poupar a mãe, mas, quando Gheli viu o que a filha estava fazendo, começou a insultá-la.

- Podes levá-los se quiseres, mãe, mas eu sou forte e posso transportar uma boa carga - disse Daes.

Gheli calou-se e ficou olhando para os fardos. Por fim, disse:

- Deixas-me aqui com Patinha? E se os lobos aparecem? Como é que eu a protejo?

Gheli apontou para o local onde o bebê se encontrava, e Daes fitou demoradamente a irmãzinha.

- Faltam quatro dias para aqueles peixes secarem? perguntou Daes.

A mãe levantou a cabeça e apontou para o céu, como que a mostrar a Daes que ele não ameaçava chuva.

- Fico até lá - disse Daes. - Mas se não quiseres vir nessa hora, irei eu sozinha.

 

                   Nos arredores da aldeia dos Quatro Rios

Daes mudou a posição dos fardos que levava às costas para aliviar a pressão do fio de linho na testa. O cão, a seu lado, começou a ganir. Era o mais velho dos três que a mãe levara para o acampamento de pesca e era filho de Batedor, o cão preferido do pai, que morrera há muito tempo. Fora-lhe oferecido por Cen, e Daes chamava-lhe Saltador.

- Estamos chegando - disse ela, tanto para si própria como para o cão.

Tirou um peixe seco de um saco que trazia à cintura, deu metade a Saltador e comeu a outra metade.

Desde manhã que se sentia mais tranqüila ao reconhecer as árvores e os marcos. Passara por uma armadilha de Inverno, não muito longe do local em que se encontravam. Mas também começara a ficar nervosa ao perceber que, quando chegasse à aldeia, todos iriam perguntar-lhe pela mãe e pelo bebê. Como é que Daes podia admitir que as abandonara?

Recordou que o seu ato se justificara, que a mãe a convencera duas vezes a ficar, mesmo depois de os peixes estarem todos secos. Daes não lhes podia dizer, evidentemente, que Gheli preferia ficar sozinha num abrigo do que viver na tenda quente de Inverno, do marido. Quem é que entenderia tal coisa?

Pouco depois, as velhas começariam a murmurar: Gheli não é totalmente humana. Não lhes aparecera ela no meio de uma tempestade? Não a desenterrara Cen da neve, como se fosse uma ptármiga no Inverno? Talvez ela estivesse farta do seu marido e quisesse voltar a ser pássaro.

Daes já ouvira contar histórias dessas em surdina, e não conseguia arranjar uma resposta melhor para o comportamento estranho da mãe, mas sabia que Gheli não era um pássaro. Caso contrário, uma filha teria visto certas coisas ao longo do tempo, como penas na sopa, um resto de unha ou de bico. Mas Daes não vira nada, e se Gheli queria livrar-se do marido, porque se sentia tão feliz quando ele estava na aldeia?

Quando Cen estava em casa, Gheli fartava-se de cantar, estava sempre a sorrir e até gracejava, mas quando ele estava ausente, sobretudo em viagem, ela tornava-se taciturna, com a boca mirrada, como se estivesse murchando por dentro.

Daes continuou a andar, a produzir sons tranqüilizadores para que Saltador não se afastasse dela. O animal começava a parar por isto ou por aquilo - um esquilo, um ramo atravessado no caminho, e até o ruído de um pássaro. Daes resolveu aliviar o fardo, acrescentando um rolo de esteiras à sua carga, mas por fim avistou a aldeia, as tendas alinhadas ao longo do rio e outro grupo que formava um V com o primeiro, como se as tendas fossem gansos prontos a voar para o Sul a fim de passar o Inverno. Daes susteve o fôlego, perguntando a si própria se alguém teria reclamado a tenda da família, mas lá estava ela, com a abertura virada para o rio. Ao lado, uma despensa assente em estacas altas. No Verão, a mãe guardava a cobertura da tenda na despensa, longe da voracidade dos animais e para evitar que ela apodrecesse com a chuva. Até a maior parte dos postes que sustentavam o telhado abaulado da tenda estava no seu lugar, exceto um que se partira e que precisava de conserto.

Saltador desatou a correr à frente dela, com a cauda abanando. Ignorou as provocações dos outros cães presos junto de outras tendas e entrou no círculo de pedras que correspondia à base da tenda da família de Cen. Apesar de Daes lhe ordenar que saísse dali, ele sentou-se, como se pertencesse àquele local. Qual o cão que estava autorizado a entrar numa tenda, mesmo que esta não tivesse a sua cobertura? Por fim, exasperada, Daes foi atrás dele, desatou os fardos que trazia às costas e os que vinham no dorso de Saltador, e arrastou-o para fora do círculo. Assim que o prendeu, o animal começou a ganir como se entoasse um cântico de celebração, levando os outros cães a segui-lo.

As crianças foram as primeiras a aparecer, com as mãos nos ouvidos devido ao barulho dos cães, e perguntaram logo por Gheli.

- Resolveu ficar um pouco mais pescando, mas eu não queria que o meu pai se preocupasse conosco. Se ela não voltar dentro de alguns dias, eu própria irei buscá-la - explicou Daes.

Daes não planejara o que iria responder quando lhe perguntassem pela mãe e ficou satisfeita com a sua resposta. Como é que a mãe poderia objetar? Quereria ela que toda a gente da aldeia ficasse sabendo que elas tinham discutido?

- O meu pai já voltou da viagem? - perguntou Daes a um dos rapazes mais crescidos.

- Ainda não - respondeu ele. - Talvez passe o Inverno fora.

- Talvez - admitiu Daes, mas não lhe agradou pensar nessa hipótese. Ela e a mãe não teriam o suficiente para comer, a menos que Daes se casasse, e então o Inverno não seria muito mau, nem mesmo para Gheli.

Daes observou a aldeia e reparou que o ambiente parecia calmo.

- Os homens já partiram para a caça? - perguntou ela, e, ansiosa como estava, as palavras saíram-lhe da boca depressa demais.

- O quê? O que disseste? - gritaram as crianças. O rapaz que estava mais perto respondeu:

- Alguns foram à caça do urso.

Daes suspirou de alívio. As mulheres não acompanhavam os homens na caça ao urso. A chance de os amaldiçoarem era muito forte. Daes teve vontade de perguntar por Mão-de-Pássaro, mas pensou que não o devia fazer. Era melhor calar-se e ouvir o que se dizia junto das lareiras da aldeia. As mulheres não tardariam a contar-lhe tudo, de uma maneira ou de outra.

A tenda deles era alta, e, apesar de a cobertura precisar de conserto, Daes passou o resto do dia montando-a nos postes. Uma ou duas vezes, alguns dos rapazes mais velhos interromperam a brincadeira para a ajudar, mas, se a mãe lá estivesse, ambas teriam conseguido fazer o trabalho em metade do tempo.

Quando Daes acabou de montar a cobertura, ainda havia claridade suficiente para ir apanhar lenha, uns ramos caídos na floresta das redondezas. Daes trouxe o suficiente para a noite, ajustou as abas que protegiam a chaminé e acendeu o fogo. Quando a lenha estava queimando bem, pegou todos os odres de água, os que trouxera do acampamento de pesca e os outros que encontrou na despensa, e foi enchê-los no rio.

Aquela hora da tarde, as árvores e as tendas eram já manchas escuras, mas ainda havia alguma claridade no céu. Daes estava agachada, na ponta dos pés, à beira da água, numa língua de areia que descia num declive suave até ao rio, quando ouviu duas vozes, de um homem e de uma mulher, brincando.

Daes sabia que estava bem escondida na penumbra e encheu os odres sem fazer barulho, sorrindo. Os dois riam baixinho e cochichavam, mas Daes não conseguia ouvir o suficiente para perceber de quem se tratava. Não eram com certeza marido e mulher.

De repente, calaram-se, e Daes admitiu que eles se tivessem afastado mais da aldeia, na direção da foz do rio. Encheu mais um odre e depois ouviu uma série de gargalhadas. E reconheceu aquele riso. Era Garça, uma moça alta e desajeitada, com as pernas e os braços muito compridos. Até o pescoço esticado lembrava o de uma garça. Era uma boa lição para todas as mães ao escolherem o nome dos filhos. Daes lembrou-se da irmãzinha e, com um certo bom humor, imaginou a menina a crescer baixa e atarracada, andando e grasnando como um pato.

Aa, era bom que uma mulher como Garça arranjasse um homem, nem que fosse por uma noite. Talvez isso lhe enchesse o coração para o resto da vida, ou até lhe desse um filho. Então, o mais provável era que alguém a aceitasse como esposa. Afinal, Garça tinha bom senso e não era uma incapaz no manejo da agulha.

O homem desatou a rir, um riso profundo que levou Daes a suster o fôlego, divertida. Era o pai de Mão-de-Pássaro, ela tinha certeza. O chefe dos caçadores da aldeia e já com três esposas! Decerto não queria mais nenhuma... Seria Garça tão burra que julgasse que ele a aceitaria? Estaria tão desesperada que se contentasse com o fato de um homem se servir dela e depois fingir que nada se passara entre ambos? E a segunda esposa do chefe dos caçadores? Era uma mulher ciumenta, incapaz de lidar com a primeira esposa, e contente por a terceira ser irmã dela. E se o chefe dos caçadores levasse Garça para a cabana delas? O pensamento deu vontade de rir a Daes.

Nesse momento, Garça e o chefe dos caçadores estavam muito calados, sem dúvida entretidos acasalando. Daes só voltaria a ouvi-los quando eles acabassem o que estavam fazendo. Além disso, soprava um vento frio ao longo do rio, e ela tinha a barriga vazia e não podia ficar ali mais tempo. Encheu o seu último odre de água, juntou os odres em dois grupos, atou-os com uma pequena tira de babiche e pendurou-os no ombro esquerdo. Sorriu, na escuridão. Já tinha muito em que pensar durante a noite. Podia regressar à cabana.

De manhã, iria às lareiras da aldeia e ouviria o que as mulheres diziam da caça ao caribu. Se os homens tencionassem partir dali a pouco tempo, ela iria também, e a mãe que tratasse de regressar à aldeia de Inverno, mas, se eles ainda demorassem, ela iria buscar a mãe e a ajudaria a trazer os outros fardos de peixe seco para a aldeia.

Satisfeita com os seus planos, Daes seguiu pela beira do rio, atravessou um tufo de salgueiros e uma zona de mato e chegou a uma pequena clareira. Como sempre, quando enchia os odres de água, a sua própria bexiga parecia encher-se também. No escuro, deitou abaixo as perneiras de pele de caribu, puxou as pontas da parka para cima e começou a urinar. Estava de cócoras quando voltou a ouvir a voz de Garça. Daes fez uma careta. Não queria que eles tropeçassem nela. Garça era o tipo de mulher que faria uma anedota da situação e a contaria a todo mundo da aldeia.

Os dois pararam a pouca distância do local onde ela estava. Daes conseguiu puxar as perneiras para cima e compor a parka sem que eles dessem pela sua presença.

O chefe dos caçadores dizia algo a Garça, palavras de ternura, suficientemente alto para Daes ouvir. A moça tapou a boca com as mãos para não a ouvirem respirar.

- Aa, dois belos filhotes, e que gordos que eles são disse ele, e Daes percebeu que ele apalpava os seios de Garça. - E aqui está a mãe.

Estas palavras deixaram Daes sem forças. Sim, evidentemente, as mãos dele apalparam os seios de Garça, e depois o ventre, mas como é que Daes sabia? O pai fazia amor usando exatamente as mesmas palavras do filho? A voz não era do chefe dos caçadores, mas sim de Mão-de-Pássaro, alterada pelo prazer.

Daes soltou um gemido e só percebeu que fizera barulho quando ouviu Mão-de-Pássaro dizer:

- Escuta! Ouvi alguma coisa.

Daes susteve a respiração, e até o piscar dos seus olhos parecia ouvir-se, mas por fim Garça disse:

- Não me parece que seja nada. É apenas o rio. Daes sentiu-os afastar-se, agachou-se de novo, pôs os dedos ao canto dos olhos e fez força até conseguir empurrar as lágrimas para a garganta e depois para os pulmões.

Daes não dormiu bem nessa noite. Os seus sonhos foram atormentados por imagens de Garça e de Mão-de-Pássaro, que a tinham encontrado junto ao rio. Por qualquer motivo, ela despira-se e viu-se à frente deles, nua, enquanto os dois riam às gargalhadas. De manhã, quando acordou, estava exausta e não conseguia deixar de pensar no que acontecera. Por fim, convenceu-se de que Mão-de-Pássaro se servira de Garça só para ter uma noite de prazer e que não queria fazer dela sua mulher.

Se o pai de Garça fosse uma pessoa importante, isso seria diferente, mas não era. Coxeava de uma perna que partira há uns anos e era raro ir à caça, mas contava com os outros para o sustentarem. O irmão de Garça ainda era pequeno, e a irmã, uma beleza de se ver, ao contrário de Garça, ainda não tivera o seu primeiro período lunar. Talvez Mão-de-Pássaro pensasse que valia a pena usar Garça só para ter a oportunidade de se candidatar à irmã quando ela fosse uma mulher, mas ainda faltava muito tempo para isso.

Não, não tinha motivos para se preocupar, pensou Daes. No entanto, nessa manhã, teve um cuidado especial penteando-se, fazendo as tranças e retirando o pó e a gordura da parka e das perneiras de Verão. Quando se dirigiu às lareiras, não foi de mãos vazias, como a maioria das moças; levou um pacote de vacínios secos e, na presença de todos, ofereceu-o a Asa, a terceira esposa do chefe dos caçadores e mãe de Mão-de-Pássaro, para ela colocar na panela que estava mexendo.

Asa ficou admirada com o presente e hesitou em recebê-lo. Em geral, os vacínios eram reservados para as festas.

- Dão mais sabor ao guisado - disse Daes.

A mulher fez um gesto de cabeça, como se não soubesse o que dizer, e colocou os vacínios no caldo. Daes afastou-se correndo, foi buscar vários braçados de lenha e empilhou-a junto das fogueiras.

- Onde está a tua mãe? - perguntou Asa, agitando a mão em frente ao rosto quando uma lufada de vento mudou a direção da fumaça e obrigou várias mulheres a tossir.

- Ainda está no acampamento de pesca - respondeu Daes.

- Voltaste sozinha?

- Com um dos nossos cães.

- Deixaste a tua mãe com o bebê e com o peixe todo? - perguntou outra mulher.

Era a mãe de Garça. Daes perguntou a si própria se ela saberia onde é que Garça estivera na noite anterior e se ficaria aborrecida por ela tirar Mão-de-Pássaro da filha. Era natural que ficasse, pensou Daes.

- Eu trouxe a maior parte do peixe comigo - disse ela. - A minha mãe estava preocupada que alguém reclamasse a nossa tenda se o meu pai ainda não tivesse voltado da viagem. - Daes abriu os braços, com as palmas das mãos para cima, e acrescentou: - Como vêem, ela tinha razão. Ele ainda não voltou.

- Há dias esteve aqui um comerciante - disse uma das mulheres. - Ele ouviu dizer que Cen estava na aldeia de Chakliux.

Era uma boa notícia. Daes não queria enfrentar um Inverno sem o pai na tenda. Lembrou-se de um ano em que ele estivera ausente. Nesse Inverno de fome, a mãe dormira de noite e de dia, e Daes fizera o trabalho todo, como se vivesse sozinha, como uma velha.

- Quantos dias leva um homem andando da aldeia de Chakliux até à nossa? - perguntou ela.

- Um homem forte como o teu pai, subindo o rio? perguntou a primeira esposa do chefe dos caçadores, uma mulher mais velha, mas que conservava ainda uma certa beleza da juventude. - Quatro dias, com o transporte do barco por terra, talvez cinco. Não chegam para ires buscar a tua mãe?

A pergunta embaraçou Daes.

- Talvez, mas quem sabe quando é que o meu pai partiu? - disse ela por fim. - Não seria agradável para ele chegar amanhã e não me encontrar. Quem é que o receberia? Dentro de dois ou três dias posso estar junto da minha mãe, mas, com o bebê, levaremos mais tempo a voltar.

Várias mulheres concordaram, mas a mãe de Mão-de-Pássaro disse:

- Uma boa filha iria agora. Nós trataremos do teu pai. Já montaste a tenda e trouxeste o peixe, nae? Ele tem comida e pode ir buscar mais nas lareiras.

Daes virou a cabeça como se olhasse para a sua tenda, para o trabalho que fizera - montar a cobertura, empilhar a lenha -, mas o que ela não queria era que Asa visse o seu ar enraivecido. Que direito tinha ela de dizer a Daes o que devia fazer? Sabia onde estivera o filho na noite anterior? E se Garça engravidasse, gostaria Asa de ter uma filha como Garça?

Mas Daes afastou a sua raiva e, quando falou, foi com um ar terno.

- Acho que vou aproveitar o dia de hoje para ir apanhar lenha e, de manhã, se a minha mãe ainda não tiver voltado, irei buscá-la. Apesar de ter sido ela que disse-me que viesse, talvez fique satisfeita com a minha ajuda. E já sinto a falta delas, da minha mãe e da minha irmã.

Então as mulheres disseram-lhe que comesse, e bem, porque a viagem que tinha pela frente era dura, e a de volta ainda mais, com os fardos de peixe às costas.

Nesse dia, Daes foi apanhar lenha e fez umas grandes pilhas ao lado da tenda. Mas parava muitas vezes e olhava para o rio, para cima e para baixo, na esperança de ver chegar a mãe, para não ser obrigada a ir buscá-la, e de ver o pai, com o seu iqyax carregado de tesouros dos Primeiros Homens e dos Caçadores de Morsas, presentes para uma boa filha.

O dia amanheceu frio e escuro. O céu tinha a barriga tão cheia que Daes percebeu que ia chover. Pensou em ficar mais um dia na aldeia, mas depois imaginou-se a voltando com a mãe, carregada com a maior parte do peixe. Qual o homem que não desejaria uma mulher assim, capaz de fazer tanto por uma mãe que cometera a loucura de se demorar no acampamento de pesca para além do necessário? Porque ela ficaria retida por uma chuva sem importância?

No meio da manhã estava pronta e convenceu-se de que o dia iria aquecer quando o Sol subisse no céu, mas, ao aproximar-se das últimas tendas da aldeia, a chuva era intensa e transformara-se em gelo, dançando-lhe em volta dos pés.

Saltador ia a seu lado, satisfeito com a promessa de aventura e a leveza do fardo. Daes segurou-o e abrandou o passo, na esperança de ver Mão-de-Pássaro antes de partir e de ter a oportunidade de lhe dizer o que ia fazer. Mas estavam todos dentro de casa, exceto uma ou outra mulher que fora dar comida aos cães ou apanhar lenha. Daes saudou-as e disse-lhes onde ia. Talvez chegasse aos ouvidos de Mão-de-Pássaro um eco da sua generosidade.

Em seguida, saiu da aldeia, passando por baixo dos ramos dos abetos para seguir um caminho que atravessava a floresta. Muitas mulheres nem pensariam em fazer tal viagem sozinhas. E embora Daes se lembrasse de que fizera aquela mesma viagem há poucos dias, em segurança, só pensava em lobos e em carcajus.

tranqüilizou, tentando convencer-se de que a mãe já saíra do acampamento e que se encontrariam no caminho, ainda nesse dia ou no seguinte. Esperava vê-la em cada curva, no topo de um monte, numa clareira da tundra. Mas, no fim do dia, Daes não vira nada exceto o seu cão e algumas lebres, uma já salpicada de branco, preparando-se para o Inverno.

Doíam-lhe os pés, os ombros e até os olhos, de tanto observar. Começou a enfurecer-se, batendo com as solas das botas de pele de caribu nas agulhas alaranjadas que cobriam o caminho. Jurou a si própria que no ano seguinte seria mulher de Mão-de-Pássaro. Talvez até trouxesse um filho dele na barriga. Então, os caprichos da mãe não teriam qualquer importância, e ela poderia sair do acampamento de pesca quando quisesse.

Trouxera peixe seco e, no primeiro dia de caminho, não se dera ao trabalho de caçar, mas, quando parou para passar a noite e acender uma fogueira, quis uma lebre fresca. Encheu a barriga de peixe e depois foi apanhar erva para fazer uma cama. Estendeu uma pele de caribu para dormir, mas o solo estava molhado, e o estômago de Daes, às voltas, ansiava por um naco de carne grelhada. Saltador deitou-se ao lado dela, e o cheiro do pelo úmido encheu-lhe o nariz. Daes sonhou com cães, que estava amamentando cachorrinhos, como as mulheres faziam às vezes para salvar um ou dois cães nos últimos meses do Inverno, quando a comida escasseava. Acordou com fome e, no dia seguinte, no caminho, procurou lebres. Por fim, matou uma, dando-lhe uma boa pancada na cabeça com o seu cajado. Era um belo macho, de orelhas compridas e ainda com a pelagem castanha do Verão.

Nessa noite, Daes e Saltador banquetearam-se, e ela dormiu sem sonhar.

 

No meio do terceiro dia, quando Daes chegou ao acampamento de pesca da mãe, encontrou tudo na mesma. O peixe ainda estava pendurado secando, o abrigo continuava no mesmo local e a mãe encontrava-se sentada debaixo de uma árvore, com Patinha ao colo. O bebê arrulhou e estendeu a mão ao ver Daes, mas ela ficou olhando. Por fim, arrancou o fardo das costas e chamou à mãe todos os nomes feios que lhe vieram à cabeça. Depois de dar largas à sua fúria, inclinou-se, ofegante, e tentou tirar os fardos do dorso de Saltador. Mas o animal afastou-se e ela, frustrada, bateu com o pé.

Gheli levantou-se, tendo o cuidado de segurar bem Patinha, e disse:

- Resolvi ficar mais algum tempo.

Daes fechou a boca e os olhos para não ver a mãe nem o acampamento.

- Calculei que precisasses de ajuda para levar o resto do peixe - disse ela devagar, como se estivesse falando com uma criança que ainda não tivesse atingido a idade do entendimento. - Temos que partir depressa. Não quero viajar com neve.

- O teu pai já voltou? - perguntou Gheli.

- Dizem que ele está na aldeia de Chakliux. Ou estava, há uns dias. Agora talvez já esteja em casa.

- Ele foi sozinho?

Daes arregalou os olhos, atirou a cabeça para trás e cerrou os punhos, irritada com a estupidez da pergunta da mãe.

- Como é que eu posso saber?

- Julguei... bem, calculei que eles...

Daes suspirou. A brandura da resposta da mãe a fez sentir-se envergonhada. Pegou uma das mãos de Gheli e acariciou-lhe a pele áspera dos dedos. Sentiu um pequeno nó na garganta. As mãos da mãe estavam secas e enrugadas como as de uma velha.

- Partimos amanhã de manhã - disse Daes. - Ajuda-me a arrumar tudo.

Nessa tarde, trabalharam juntas. Daes tirou os últimos peixes das armações de seca, guardou-os em fardos de pele de caribu e empilhou tudo - uma pilha para cada um dos três cães, uma para ela e outra para a mãe. De manhã, desmontaria o abrigo e juntaria as peles de caribu ao seu fardo. Ficariam apenas as armações de pesca para assinalar o local onde tinham passado o Verão.

Mas no dia seguinte, um dia luminoso e cheio de sol, ao amanhecer, Gheli estava de novo sentada junto do abrigo, com Patinha ao colo.

- Acho que preciso ficar mais um dia - disse ela. Como Daes se envergonhara das pragas que rogara à mãe na véspera, resolveu esperar.

Seguiu a trilha dos animais que ia dar na floresta, matou três lebres com o pau de arremesso, levou-as para o acampamento e assou-as no espeto. De tarde, foi à procura de tocas de ratos, os pequenos túneis escavados na tundra onde os ratos armazenavam sementes e bolbos para o Inverno. Abriu várias tocas pequenas e uma grande e encheu um saco com o que encontrou. Assou as sementes numa pedra achatada aquecida ao fogo, comeu mais do que era costume nessa noite e pouco falou com a mãe.

Não dormiu bem, como se pressentisse em sonhos que a mãe faria o mesmo no dia seguinte. Por isso, quando foi encontrar Gheli sentada lá fora outra vez, limitou-se a fazer beicinho e passou mais uma manhã caçando. Voltou sem nada e nessa tarde deitou-se na cama do abrigo. Adormeceu profundamente e, quando acordou, comeu uma refeição de peixe fresco que a mãe preparara.

Nessa noite, quando Gheli adormeceu, Daes esgueirou-se da tenda, levou os cães para a orla da floresta e atou-lhes os fardos ao dorso. Em seguida, voltou ao abrigo onde Patinha dormia na sua prancha de embalar. Atou a prancha à barriga, pôs o fardo às costas e saiu sem fazer barulho. Prendeu os cães uns aos outros, mas os animais levavam uma carga tão pesada que não lhe deram problemas. Até pareciam satisfeitos por terem saído do acampamento, e, quando um deles se sentou e se virou para trás como se estivesse à espera de Gheli, Daes disse:

- Ela já vem. Julgas que ela me deixaria levar esta menina, sabendo que eu não tenho leite para lhe dar?

Daes caminhou devagar durante todo esse dia, certa de que a mãe iria ao seu encontro, mas à noite continuavam sozinhos, o bebê chorava com fome e os cães, sobrecarregados, ganiam.

Daes pensou em voltar ao acampamento. Quanto tempo conseguiria viver uma criança sem o leite da mãe? Mas Patinha sorveu água dos dedos de Daes e mais tarde conseguiu beber caldo de uma tigela de madeira. Deitou-o pelo nariz, engasgou-se, mas engoliu pelo menos metade do que Daes lhe deu.

Então, Daes resolveu seguir viagem e apertar o passo. Era melhor voltarem para a aldeia antes de começar o mau tempo, antes de os homens partirem para a caça ao caribu no Outono, antes de a menina enfraquecer devido à falta de leite.

Ao fim de mais dois dias e meio de viagem, Daes chegou à aldeia dos Quatro Rios. Descarregou os seus fardos e os dos cães, deixou tudo na entrada da tenda e foi levar a irmã a uma mulher que também tinha um bebê. Enquanto Patinha mamava, várias mulheres, entre as quais Asa, a mãe de Mão-de-Pássaro, reuniram-se na tenda.

Daes, com o esforço da caminhada, nem pensara no que iria dizer. Deveria dizer-lhes que Gheli se recusara estupidamente a sair do acampamento de pesca? Isso seria suficiente para justificar que ela tivesse trazido Patinha? Qualquer mulher veria que o bebê tinha os olhos encovados e a barriguinha inchada da fome.

- Morreu alguém? - perguntou uma das velhas. Daes percebeu que ela tinha receio de pronunciar o nome de Gheli, caso isso atraísse fantasmas.

Daes fechou os olhos com tanta força que as lágrimas se lhe acumularam aos cantos. Depois, olhou para a velha e respondeu com delicadeza:

- Avó, ninguém sabe o que aconteceu, mas eu esperei o mais que pude, fui à procura dela, chamei por ela e só encontrei a minha irmã, os nossos cães e os fardos, e por fim resolvi trazer tudo o que foi possível. Espero que o meu pai tenha voltado e que possamos ir os dois à procura dela.

Então, todas baixaram os olhos, e Daes sentiu um medo súbito. Respirou fundo e disse:

- Aconteceu alguma coisa.

- Vão buscá-lo - disseram várias mulheres. Duas saíram e a mãe de Mão-de-Pássaro aproximou-se de Daes. Com a voz embargada pelas lágrimas, disse-lhe em voz baixa:

- Tivemos que interromper a nossa festa...

- Talvez ela não saiba da festa - disse uma das outras.

- Aa! - concordou a mãe de Mão-de-Pássaro.

A mulher afastou uma madeixa de cabelo que se soltara das tranças e disse:

- O casamento do meu filho com Garça. Sabias disso, nae?

Por instantes, Daes não disse nada. Depois, percebeu que ficara de boca aberta como uma velha que tivesse gasto todas as suas palavras antes de chegar ao fim da vida.

- Eu sabia - disse ela, fechando a boca com um estalido.

- Estão vendo? - disse a mãe de Mão-de-Pássaro. A mulher franziu o sobrolho e disse a Daes:

- Veio aqui um homem da aldeia de Chakliux. Disse-nos que vinha à procura da tua mãe. Disse que o marido dela tinha morrido numa tempestade em algum lugar.

- Aaaaiii! Aaaaiii!

Daes soltou um gemido, que era também uma negação.

Como era possível que o pai tivesse morrido? Era um homem forte. Atravessara o mar do Norte quase até à ponta gelada do mundo. Uma vez, subira as montanhas e chegara até o mar do Sul. Daes olhou para Asa e de repente lembrou-se que Mão-de-Pássaro fizera de Garça a sua mulher. A raiva misturou-se com a tristeza, e as palavras que lhe saíram da boca eram afiadas como dardos.

- Vocês estão enganadas - disse ela. - O meu pai está vivo.

Asa nem tentou convencê-la.

- Se ele morreu, o que direi à minha mãe? perguntou Daes baixinho.

A mulher mais velha do grupo aproximou-se dela.

- Disseste que não tinhas conseguido encontrá-la disse ela, fitando-a com uns olhos remelosos e piscos.

- Eu não disse que ela não voltava - retorquiu Daes.

- Talvez não tenhas procurado bem - disse a velha. Daes susteve o fôlego e ficou à espera das perguntas das outras, mas elas, apesar de a olharem de soslaio, não disseram nada e, quando as mulheres voltaram com o homem da aldeia de Chakliux, saíram todas, exceto Asa e as mais velhas. A velha fechou os olhos e começou a entoar um cântico para proteger a aldeia.

Por delicadeza, Daes manteve-se cabisbaixa quando o jovem falou.

- Chamo-me Chora-Alto.

Falou baixo, como se estivesse desolado.

- Vieste dizer-me que o meu pai morreu afogado numa tempestade - disse Daes, e encarou-o, como se o seu atrevimento fosse suficientemente forte para o obrigar a negar a morte.

Ele levantou a mão e passou-a pela face com nervosismo, e Daes deu consigo a olhar para ele e reparou que Asa também o fitava. O que havia naquele homem que parecia tão familiar?

- Sim - respondeu ele. - Preciso encontrar a tua mãe para lhe dar a notícia.

Asa enfiou a cabeça entre Daes e Chora-Alto e disse:

- Ela também morreu.

A avó interrompeu o seu canto e soprou-lhe.

- Não sabemos! - exclamou ela, agarrando num amuleto escurecido pela idade, para se proteger das palavras de Asa.

- Tu disseste...

- Eu disse que não consegui encontrá-la - gritou Daes. - Só isso. Não disse que ela morreu!

Chora-Alto levantou uma mão para tentar acalmar as mulheres, e Daes ficou imóvel. Abanou a cabeça e reparou que Asa fazia o mesmo.

Olhou para Chora-Alto e disse:

- Tenho lenha para acender o fogo e comida na minha tenda. Vem falar-me do meu pai e da tempestade que o matou.

Deixaram para trás a avó e Asa, e o cântico fúnebre que a velha entoara, e Daes percebeu sem ver que Chora-Alto a seguia. Só quando chegou à tenda é que olhou para trás e só então é que abriu a aba da porta para ele entrar.

 

                   História de Chora-Alto

Chora-Alto foi atrás da irmã até chegarem a uma tenda grande e bem construída. Pelo menos parecia que Cen tinha tratado bem a sua mãe, que ao fazer dela sua esposa lhe proporcionara uma vida boa. E esta irmã era forte e saudável, uma mulher grande, larga de ancas, boa para fazer bebês. Ele fora cuidadoso nas perguntas desde que chegara à aldeia, perguntara com cautela - apenas como mensageiro pela mãe e tratara-a sempre por Gheli. Não dissera uma palavra sobre as irmãs, e só quase um dia depois é que alguém falou em Daes. Mesmo assim, Chora-Alto percebeu uma certa hesitação, como se houvesse um problema qualquer com ela. Ficou aliviado ao ver que ela tinha um aspecto normal e que parecia fazer tudo como qualquer outra mulher, rápida acendendo o lume, oferecendo-lhe água e arrastando os fardos que se encontravam no túnel de entrada.

- Dizem que acabaste de chegar do acampamento de pesca - disse Chora-Alto. - É tarde para isso.

Daes encolheu os ombros.

- A minha mãe queria ficar. Não gosta de voltar à aldeia muito cedo. Diz que perdemos muito peixe se o fizermos.

Ele fez um sinal de concordância e perguntou:

- Onde está a tua irmã?

- Falaram-te na minha irmã?

- Há três dias que estou à espera de vocês, de ti e da tua mãe. Um homem aprende muita coisa em três dias.

Daes pendurou uma panela num dos postes da tenda, colocou lá para dentro vários odres de água e juntou peixe seco.

- Viste o bebê que estava naquela tenda? - perguntou Daes. - É a minha irmã. Trouxe-a do acampamento. Não consegui encontrar a minha mãe. Ela já tinha saído há muito tempo. Foi apanhar frutos ou plantas.

Daes calou-se e passou a mão pela face. Havia algo que não batia certo no que ela estava dizendo. Frutos? Plantas?

- Foste à procura dela? - perguntou Chora-Alto.

- Passei um dia inteiro à procura dela, com a minha irmã chorando de fome - respondeu Daes. Começou a mexer o peixe que estava na panela e depois, sem qualquer motivo, correu para o túnel de entrada.

Chora-Alto ficou ali sentado, convencido de que ela saíra da tenda e sem saber se deveria ir embora ou esperar.

Daes voltou com uma mão-cheia de ligústica e atirou-a, como se fosse uma coisa importante.

- Ela andava à procura de ligústica. A secamos para dar sabor à comida no Inverno.

Daes partiu as folhas, atirou-as na panela e mexeu outra vez.

- Nesse caso, ela foi apanhar ligústica, e não frutos.

- Talvez - respondeu Daes. - Mas se encontrasse frutos também os traria. Os oxicocos são bons nesta época do ano, depois das primeiras geadas.

As palavras dela faziam sentido, pensou Chora-Alto. Então, porque lhe parecia que ela estava mentindo? E porque ela não perguntara por Cen?

Durante os dias de caminho para a aldeia, pensara como participar a morte de Cen à mãe e à irmã. Nem sequer lhe passara pela cabeça que elas não estivessem na aldeia. Quem é que ficava nos acampamentos de pesca quando a caça ao caribu estava prestes a começar?

A tua mãe, disse uma vozinha no seu íntimo, trará Ghaden à aldeia quando estiver preocupada com o marido. Ghaden, que talvez a reconheça como sendo Folha Vermelha.

Chora-Alto observou a irmã e perguntou a si próprio como se sentiria ela com o nome da falecida Daes. Teria o fantasma acompanhado o nome e estaria assolando esta nova Daes? E a mãe dele, Folha Vermelha, Gheli, não estaria assustada com o poder desse nome? Com certeza ela vivia aterrada, caso aparecesse alguém na aldeia que a reconhecesse. Havia sempre homens - caçadores, comerciantes que andavam de um lado para o outro, de aldeia em aldeia. Não seria preferível ela esconder-se do que passar o Verão num acampamento de pesca distante?

Também devia ter aprendido a costurar de modo diferente porque, segundo Yaa, uma mulher sabia reconhecer o trabalho de outra, sobretudo um trabalho de costura tão aprimorado como era o de Folha Vermelha. E Cen decerto queria fazer negócio com as belas parkas da mulher. Teria ela modificado os pontos que dava para que eles não a denunciassem?

De súbito, Chora-Alto reparou que Daes lhe estendia uma tigela de comida. Pegou-a, inalou o vapor e apreciou o cheiro de fumaça que o peixe exalava. Aquele cheiro afastou-o da tenda, da irmã que ele não via desde criança. Por instantes, deixou-se ficar nesse lugar seguro, e depois abriu os olhos e voltou.

- Obrigado - disse ele.

Levou a tigela à boca, empurrando um pedacinho de carne com os dedos. Mastigou-o, engoliu-o, e depois colocou a tigela no colo e fez sinal a Daes para que se sentasse junto dele.

- Queres que eu te conte o que sei?

Ela agachou-se, como se se preparasse para lhe voltar a encher a tigela.

- Senta-te, a menos que queiras ir buscar algo para comer - disse ele.

- Não.

- O teu pai era bom homem - disse ele.

Como era estranho estar falando de Cen a esta irmã, estar dizendo-lhe que o pai morrera, quando ela sempre pertencera a Sok, um pai que estava vivo e são.

Daes ouviu tudo sem chorar, e quando ele acabou, ela levantou-se, esfregou as mãos e despiu a parka macia de pele de esquilo que usava dentro da tenda. Chora-Alto esperava que ela começasse a entoar um cântico fúnebre, mas Daes limitou-se a ir mexer a panela. Por fim, tranqüilamente, pegou uma faca de mulher que estava em cima de uma pedra da lareira e enterrou a lâmina no braço esquerdo, uma, duas vezes. Levantou a mão e inclinou-se para o fogo, para que o sangue escorresse pelo braço e caísse sobre as brasas.

Não deu sinais de dor, como se tivesse aberto um peixe para pôr a secar, mas disse-lhe:

- Obrigada por nos teres vindo dar a notícia.

Chora-Alto ficou à espera que ela acrescentasse alguma coisa sobre a mãe, pelo menos que dissesse como se ia para o acampamento de pesca. Se Folha Vermelha ainda estivesse viva, teria que saber o que acontecera a Cen e também que K’os ia a caminho, com a filha, Uutuk, e Ghaden. Mas quando Daes falou, disse:

- Esse tal Ghaden, tu o conheces?

- Conheço. Ele vive na minha aldeia.

Chora-Alto ia acrescentar que era casado com Yaa, a irmã de Ghaden, mas por qualquer motivo não o fez.

- Não vem mais ninguém da tua aldeia, nae? - perguntou ela.

- Há uma mulher da nossa aldeia que conhecia a tua mãe. Talvez reconheças o nome dela. K’os.

- Não - respondeu Daes.

- Ela vem acompanhar a tua mãe no luto, e tenciona vir com o marido, Foca, um comerciante dos Primeiros Homens, e com uma filha e o marido da filha, Ghaden.

Por um momento - tão breve que Chora-Alto quase nem deu por isso - Daes esbugalhou os olhos, mas depois aproximou-se de um dos fardos, enfiou a mão lá dentro e tirou uma tira de pele de caribu.

- Deixa-me ajudar-te - disse ele.

Daes estendeu o braço. Chora-Alto enrolou a tira com força, debruçou-se sobre Daes para a encarar e agarrou-lhe o queixo quando ela tentou desviar o olhar.

- Tu conheces Ghaden - disse ele.

- As vezes a minha mãe fala nele.

- E em mim? - perguntou ele. - Ela fala em mim? Daes fitou-o, confusa.

- Não - respondeu ela, devagar. - Porque falaria?

Daes baixou o olhar quando Chora-Alto enfiou a ponta da tira de pele junto do cotovelo. Por instantes, ele julgou que ela estava examinando a atadura, mas depois Daes levantou a mão e pousou-a na dele. A mão de Chora-Alto era maior, mas de resto era igual, até mesmo na configuração das veias.

Daes levantou a cabeça, fitou-o e perguntou:

- Quem és tu?

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

Ouviram-se murmúrios de protesto quando Kuy’aa interrompeu a sua história. Uma das mulheres mais atrevidas disse:

- Queremos saber o que ele lhe respondeu. Queremos saber se ele pensa que pode confiar nela.

- Acham que pode? - perguntou Kuy’aa.

- Não! - responderam quase todos os homens.

- Evidentemente - disse uma das esposas do chefe dos caçadores. - Quando ela souber que é irmã dele, não lhe fará mal nenhum.

Outra mulher disse:

- Não se pode confiar nela. Reparem que ela está constantemente mentindo, e além disso trouxe a irmã mas abandonou a mãe.

- Essa mulher merecia ser abandonada. Quem é que podia passar o Inverno num acampamento de pesca? O bebê morreria!

A discussão continuou e o tom das vozes aumentava. Yikaas olhou para Kuy’aa e viu que ela estava sorrindo. Qumalix foi sentar-se ao lado dela e Chega-ao-Céu fez o mesmo.

- Deve ser difícil contar essa história, porque é difícil ouvi-la - disse Qumalix. - Vocês não sabem se Daes é boa ou má. Não sabem o que sentir por ela.

- Há muitas maneiras de contar esta história - explicou Kuy’aa.

A velha lambeu os lábios, e Yikaas reparou que eles estavam secos e enrugados. Perguntou se alguém tinha um odre de água, e atiraram-lhe um. Ele deu-o a Kuy’aa, esperou que ela bebesse e depois perguntou:

- Então, porque a contaste dessa maneira, tia?

- Para não demorar muito tempo - respondeu ela. Há muita gente neste ulax, e as pessoas distraem-se umas às outras. Se eu a contasse só a ti, também te teria dito o que pensava Gheli e talvez até como se sentia o bebê. Desse modo, pensarias também nos outros e não ficarias tão frustrado com Daes.

- Tu queres que ela seja boa - interpôs Qumalix. E pouco a pouco vais percebendo que ela não é tão boa como devia.

- Mas não é tão má como K’os - respondeu Yikaas. Ela pensa nos outros. Preocupou-se com a irmã.

Yikaas reparou que Chega-ao-Céu estava tentando ouvir, e, com o olhar, pediu a Qumalix que traduzisse para a língua dos Primeiros Homens o que ele estava dizendo.

Então, Chega-ao-Céu disse:

- Mas não tanto que a fosse levar a Gheli depois do primeiro dia de caminho.

- Bem, pensa nisto - disse Yikaas. - Daes mostrou que era melhor do que seria de esperar. Repara como a mãe dela, Gheli, é egoísta. Não volta para a aldeia de Inverno porque admite que Ghaden possa estar lá. Põe em risco a vida das próprias filhas...

- Ora! Isso é um disparate - exclamou Chega-ao-Céu. É preferível passares frio na tenda de um acampamento de pesca do que morreres porque alguém se lembra que tu lhe mataste a mãe.

Qumalix interrompeu-os em voz baixa:

- E o nome dela? Em que pensam vocês quando eu pronuncio o nome Daes?

- É uma palavra do Povo Rio. O que significa? - perguntou Chega-ao-Céu.

- Uma poça de água pouco profunda, sem grande préstimo para alguém.

- O nome ideal para ela - disse Yikaas.

- Mas que oportunidade é que ele lhe dá? - perguntou Chega-ao-Céu. - O nome já de si é uma maldição, e lembraria sempre a Gheli o que ela fez a essa primeira Daes.

- Se vocês se lembram das histórias da primeira Daes, sabem que ela era uma mulher egoísta - disse Yikaas. Não era má, mas era egoísta. Deixou a filha, Aqamdax, e fugiu com Cen. Casou com um velho de quem não gostava só para que ele aceitasse o filho dela, Ghaden. Só quando estava morrendo, com a faca de Folha Vermelha tirando-lhe a vida, é que pensou nos outros.

- Em quem? - perguntou Chega-ao-Céu.

- Lembrem-se de que ela se deitou por cima de Ghaden para ele não morrer de frio.

- Mas Ghaden era pequeno. Qualquer outra mãe faria o mesmo.

Qumalix traduziu o que Chega-ao-Céu dissera e depois apertou a cabeça com as duas mãos.

- Vocês os dois têm que aprender a língua um do outro, disse ela a Chega-ao-Céu e a Yikaas. - Dói-me a cabeça de levar as vossas palavras de um lado para o outro.

Chega-ao-Céu deu uma gargalhada e apontou para o topo do ulax. Disse algo e começou a subir o poste, mas Qumalix olhou para ele e abanou a cabeça. Yikaas percebeu que ficara suspenso, à espera da resposta dela e com receio que ela fizesse o que Chega-ao-Céu lhe pedia. Mas Qumalix olhou para Yikaas e esboçou um sorriso.

- Ele queixa-se de que não dorme - explicou Qumalix, evitando o olhar de Yikaas.

Chega-ao-Céu disse mais alguma coisa, aos gritos, do topo do ulax, e depois saiu. Qumalix corou e, para disfarçar o seu embaraço, Yikaas perguntou:

- Então achas que o nome Daes condizia com o egoísmo dessa primeira Daes?

Qumalix abanou a cabeça.

- Como saberíamos? - respondeu ela. Kuy’aa estava de cócoras. Yikaas agachou-se também e fez-lhe a mesma pergunta. Ela olhou para ele e disse:

- Talvez sim. Talvez não. O que importa é lembrar que ela era egoísta e que mentiu sem vergonha.

Yikaas reparou que a velha levantava cada vez mais a voz para se fazer ouvir por aqueles que discutiam à sua volta. Por fim, desatou a rir e disse:

- Yikaas, de todos nós tu és o que fala mais alto. Diz-lhes que se calem. Acho que eles precisam de outra história.

Yikaas assobiou e bateu as palmas, até que todas as pessoas que estavam no ulax deixaram de discutir.

- A minha tia está pronta a continuar a sua história disse ele.

Kuy’aa bateu-lhe na mão e abanou a cabeça. Levou os dedos ao pescoço e disse:

- Agora é a tua vez.

- Eu não sei a história de Daes.

- Eles já sabem o suficiente sobre Daes. Fala-lhes de K’os e de Filha. Fala-lhes de Ghaden. Um contador de histórias tem que perceber que os seus ouvintes não querem ouvir falar numa pessoa como Daes durante muito tempo. Muitas vezes somos como ela, nem bons nem maus. Fala-nos de K’os. Ela é tão má que nos sentimos bem conosco próprios. Ou fala-nos de Ghaden e de Filha. Queremos ser como eles, e portanto é mais fácil aceitar a sua história.

- Mas eles querem saber o que Chora-Alto diz a Daes.

- Não podes arranjar uma maneira de incluir isso numa história sobre K’os e Ghaden?

Yikaas sorriu, deliciado com a inteligência da tia, e começou a falar.

 

         Arredores da aldeia dos Quatro Rios

         6435 a. C.

 

                   História de K’os

Sorrindo, K’os despertou dos seus sonhos. Estavam a menos de um dia da aldeia dos Quatro Rios. Os seus pés já conheciam aquele caminho. Ainda era nova quando vivia ali, quando era mulher do jovem Dança-no-Gelo. K’os riu baixinho. Custara-lhe caro, esse. O palerma! Quem diria que ele roubaria das despensas do pai aquilo com que iria comprá-la? E, pior ainda, que o pai dele faria de K’os sua escrava depois da morte de Dança-no-Gelo?

K’os devia essa morte a Cen. Quem mais podia ter matado o rapaz a não ser ele, embora ela nunca tivesse entendido porquê. Talvez só para que ela ficasse com a culpa e as pessoas da aldeia dos Quatro Rios a expulsassem.

Cen morrera, mas com certeza o seu espírito saberia o que ela fizera a Ghaden, que o filho seria vítima da vingança que ela destinava ao pai. E o povo da aldeia dos Quatro Rios também ficaria sabendo como era a sua vingança. Não faltava muito. K’os descobrira um belo veneno na sua ilha dos Primeiros Homens, uma planta que também crescia ali, na região do Povo Rio, mas que era quase desconhecida e difícil de encontrar.

Os Primeiros Homens aplicavam-na na ponta dos seus arpões para a caça à baleia, um segredo que K’os aprendera quando dormira com um caçador. Levara algum tempo para aprender a usar a planta e a secá-la, para aumentar a sua força. Experimentara-a em pássaros - crias de gaivotas que ela conservara como animais de estimação - e vira, maravilhada, como os animais perdiam o equilíbrio, ofegavam e morriam no espaço de um dia. O veneno era tão forte que nenhum escapava.

K’os enterrara sempre os pássaros depois de o veneno lhes fazer parar o coração. Afinal, o que faria uma mãe se o filho lhe levasse um pássaro morto? Não o depenava e atirava para a panela? E se alguém, por generosidade, lhe oferecesse uma tigela dessa sopa?

A idade modificara muito K’os, mas ela não duvidava de que seria reconhecida por algumas pessoas do Povo Quatro Rios. Teria que representar bem o papel de uma esposa dos Primeiros Homens e satisfazê-los, para que não cometessem o erro de expulsá-la. Era estranho que, tendo ela matado tanta gente, o único que não morrera às suas mãos Dança-no-Gelo - tivesse sido o responsável pela sua condição de escrava. Gheli, Folha Vermelha, seria uma inimiga, mas como Chora-Alto fora na frente para avisar a mãe da chegada de Ghaden, talvez os outros nem reparassem nela.

- Estamos perto? - perguntou Uutuk.

- Eu montei armadilhas perto deste caminho - respondeu K’os. - Daqui a menos de um dia chegamos à aldeia. Achas que é melhor viajar como os Primeiros Homens, com iqyax e remos?

Filha rolou os olhos nas órbitas.

- Muito melhor - respondeu ela.

- Vais gostar da aldeia. Não é tão grande como a de Chakliux. Pelo menos não era quando eu lá vivi, mas as pessoas são boas e generosas. Passei uns tempos com um velho e uma mulher. Já devem ter morrido. Mas foram como uma mãe e um pai para mim, e até me ajudaram a festejar o meu casamento com um presente. Foi uma boa época, mas, quando o meu marido morreu, algumas das pessoas da aldeia julgaram que a culpa fora minha. Obrigaram-me a partir, mas eu não lhes guardo rancor.

K’os nunca falara a Uutuk da morte de Dança-no-Gelo, e a moça fitou-a com um ar assustado.

- Eles acusaram-te?

- Ele foi morto enquanto dormia, muito provavelmente por um jovem caçador que tinha qualquer coisa contra ele, mas eu era uma esposa recente e não pertencia àquela aldeia. Era mais fácil acusarem-me do que pensarem que fora um deles.

- Como é possível que não guardes rancor?

- Penso que, se eu tivesse ficado lá, não teria encontrado vocês, nem a ti nem ao teu avô - respondeu K’os.

K’os apressou-se a desviar o olhar quando viu lágrimas na face de Uutuk. O caminho estreitou e Uutuk foi obrigada a seguir atrás dela. Quando voltaram a caminhar lado a lado, as lágrimas da moça tinham desaparecido, mas K’os deu um estalido de satisfação com a língua ao ver a inquietação no olhar de Uutuk.

- Achas que eles ainda te acusam, mãe? - perguntou Uutuk.

- Não. Há muito tempo que isso aconteceu, e o jovem não era da aldeia deles. A maioria já se deve ter esquecido. E aqueles que ainda se lembram verão que não posso ser eu a culpada. Se eu tivesse matado o meu marido, o espírito dele nunca teria deixado que eu sobrevivesse nesses dias em que andei vagueando sozinha, pela floresta e pela tundra.

- Sim, mãe - disse Uutuk, sorrindo, mas com rugas de preocupação na testa.

”Ainda bem”, pensou K’os. ”Preocupa-te, Uutuk, e não te afeiçoes a nenhum deles.”

Ghaden começou a cantar uma canção de comerciante assim que avistou a fumaça das lareiras da aldeia, que formava uma fina camada de névoa por cima das árvores. Ainda antes de chegarem à aldeia, um caçador veio ao encontro deles no caminho, acompanhado por dois filhos adultos. Ghaden olhou para K’os, que o saudou:

- Lança Azul! Viemos negociar.

O homem olhou para ela, piscando, mas depois desistiu. Não a reconheceu, mas ela era apenas uma velha. Porque preocupar-se? Que mal podia ela fazer?

- Pela tua canção, vejo que és comerciante - disse Lança Azul, cujas palavras eram já uma interrogação.

- Foca, o pai da minha mulher, é que é comerciante, esclareceu Ghaden. - Ele é dos Primeiros Homens e não fala a língua do Povo Rio, por isso eu canto por ele.

Ghaden não tencionava apresentar K’os. Que homem o faria? Mas Lança Azul recomeçara a observá-la, mesmo depois de dizer a Ghaden que era o chefe dos caçadores da aldeia e de apresentar os filhos, Mata-Luas e Mão-de-Pássaro. Lança Azul explicou que os homens de Quatro Rios estavam preparando-se para ir atrás dos caribus, mas que os comerciantes eram bem-vindos e poderiam ficar com eles.

- Será bom que os jovens da aldeia tenham alguma coisa em que pensar além da caça - explicou ele a Ghaden, com o riso na voz. - Temos muitas brigas, muitas vozes alteradas.

Acontecia o mesmo em todas as aldeias, pensou Ghaden. Os caçadores mais velhos tinham aprendido a reprimir o seu entusiasmo, a gastar a sua energia fazendo e consertando armas e depois rezando para que a força e a pureza lhes permitissem fazer uma boa caçada. Os jovens pareciam cães que estavam presos há muito tempo, latindo e mordendo-se uns aos outros, as mulheres e até os filhos. Sim, os comerciantes seriam um bom divertimento.

- Aceitamos a vossa hospitalidade e a agradecemos disse Ghaden.

Em seguida, voltando-se para Foca, explicou o que Lança Azul dissera.

O rosto sombrio de Foca abriu-se num sorriso.

- Tal como os nossos jovens, ansiosos por ir caçar. Ghaden traduziu, e Lança Azul desatou a rir e deu uma palmada no ombro de Foca, o que era um bom sinal para qualquer comerciante. Depois, Lança Azul levantou o queixo na direção de K’os e perguntou:

- Ela é esposa? Mãe?

- Talvez te lembres dela - respondeu Ghaden. - Há muito tempo, ela viveu na tua aldeia. Agora é mulher de Foca e mãe da minha mulher.

Ghaden olhou para Uutuk, que ficara atrás do grupo.

- Aa! É uma pena que ela já seja casada. Podias fazer um bom negócio com ela.

- É uma boa esposa - acrescentou Ghaden com cautela, para não ofender. - Não quero fazer negócio com ela.

O chefe dos caçadores ignorou o que ele disse, e Ghaden percebeu que o homem observava de novo K’os.

- Sim - disse ele em voz baixa. - Lembro-me dela. Chama-se K’os - acrescentou ele, fazendo uma careta. O marido dela era um rapaz da aldeia de Rio Próximo. Quando ele morreu, houve quem pensasse que ela...

O homem calou-se.

Ghaden discutira o problema com K’os na noite anterior e teve resposta pronta:

- K’os disse-me que, na sua opinião, o povo desta aldeia fez o que estava certo. Como podiam eles saber quem matou o homem? Mas, como podem ver, não foi ela. Caso contrário, com certeza o espírito dele se vingaria quando ela saísse da aldeia. Mas ele guiou-a e levou-a aos Primeiros Homens, onde ela se tornou esposa de Foca.

Lança Azul era um homem baixo, mas de ombros e braços robustos. Ao contrário da maioria dos caçadores do Povo Rio, usava o cabelo solto, sem tranças nem ornamentos. Uma cicatriz larga e esbranquiçada atravessava-lhe a parte de cima do nariz e, em alguma época na sua vida, ele tatuara a pele dos dois lados. Usava colares, muito diferentes, mas a sua parka era simples, embora bem-feita. Os filhos eram muito parecidos com ele, mas mais altos e não de sorriso tão pronto.

Lança Azul acompanhou Ghaden, Foca e as mulheres até a aldeia. Os filhos, carrancudos, foram correndo à frente para avisar os outros de que os comerciantes estavam chegando. Era uma aldeia pequena, mais pequena do que Ghaden esperava, a avaliar pelos elogios de K’os. Ghaden virou-se para ver se havia surpresa ou desilusão no rosto dela, mas K’os sorria, e ele ouviu-a dizer a Uutuk:

- Pouca coisa mudou desde que eu estive aqui. Aa, mas repara! Há três tendas novas na beira do rio!

Ghaden seguiu o olhar de K’os e, pelo tamanho da vegetação que crescia em volta das tendas, concluiu que não eram novas e deviam estar naquele local há algum tempo. Mas K’os devia estar referindo-se à época em que vivera na aldeia, e isso fora quando? Há dez anos? Talvez mais.

As crianças juntaram-se em volta deles, fazendo perguntas, aos saltos, discutindo como todas as crianças. As mulheres perguntaram isto e aquilo, fazendo ofertas ainda antes de os produtos serem expostos. Mas depois aproximaram-se várias avós, cada uma com uma taça de guisado. Ofereceram-nas a Foca e a Ghaden e depois a K’os e a Uutuk.

Ghaden aceitou a comida de bom grado e comeu ali mesmo, sorvendo a carne quente da tigela. A comida aqueceu-lhe o estômago e descontraiu-o um pouco, mas ele não se esquecera do principal motivo que os levava ali e, enquanto comia, espreitou as várias mulheres por cima da borda da tigela e tentou adivinhar qual delas seria a viúva do pai.

Uma das avós aproximou-se, examinou-lhe a face e disse:

- Ele é parecido com aquele que morreu. Ouviu-se um súbito murmúrio de admiração, e depois de concordância, e até Lança Azul se aproximou, olhou para ele, a pestanejar, e disse:

- Sim, é verdade.

Depois, em jeito de explicação, acrescentou:

- Esse homem também era comerciante.

Ghaden pousou a tigela. Como é que eles haviam sabido da morte de Cen? Fechou a boca e lambeu a gordura que tinha nos lábios.

- Eu sou o filho dele, Ghaden - disse ele.

Ouviram-se murmúrios de admiração, e depois uma das avós falou.

- Ele falou-nos de ti. Disse que um dia virias à nossa aldeia. Espero que possas ficar aqui até a tua irmã Daes regressar. Ela teve que voltar ao acampamento de pesca da mãe para lhe contar o que aconteceu.

- A mulher do meu pai ainda está no acampamento de pesca? - perguntou Ghaden.

- Está, mas a tua outra irmã, o bebê, está aqui na aldeia. Não te preocupes com Daes. Ela não foi sozinha. Alguém da aldeia de Chakliux veio dar-nos a notícia e foi com ela. Deves conhecer esse homem. Chama-se Chora-Alto.

- Chora-Alto? - repetiu Ghaden. - Julguei que ele tinha ido caçar. Pelo menos, K’os...

Ghaden percebeu que estava a pensar em voz alta e calou-se, corado.

Então K’os avançou e disse:

- Eu não passo de uma velha, mas talvez alguns de vocês se lembrem de mim.

Lança Azul levantou a mão e fez-lhe sinal para que se calasse.

- Deixa-me contar-lhes - disse ele, e explicou quem ela era e o que lhe acontecera.

Algumas pessoas viraram-lhe as costas, fazendo sinais para se protegerem dos espíritos, mas umas velhas avançaram, uma para pedir desculpa do que acontecera a K’os há uns anos, e as outras só para a observarem.

- Viemos acompanhar-vos no vosso luto - disse K’os. Ouviu-se então um cochichar no meio da multidão, um movimento de mãos das mulheres, e Ghaden ouviu um bebê chorando. Uma jovem deu um passo em frente e Lança Azul disse:

- Esta é a mulher de Lobo Comprido. O bebê é a tua irmã. Chamam-lhe Patinha.

A mulher atirou Patinha para os braços de Ghaden, tão depressa que ele nem teve tempo de protestar. O bebê era pesado, rechonchudo e gordo, e Ghaden não pôde deixar de reparar que a criança era muito parecida com Chora-Alto, mas como seria isso possível? Chora-Alto não era parente de Cen.

Patinha fez-lhe um sorriso e espetou-lhe um dedinho na face. De repente, Ghaden lamentou a sorte daquela menina que nunca viria a conhecer o pai. Engoliu a custo e depois reparou que Uutuk estava a seu lado.

- Posso pegar-lhe no colo? - perguntou ela. Ghaden, equilibrando a criança nas palmas das mãos, entregou-a de boa vontade. Uutuk olhou para o rosto da criança, começou a cantarolar e disse:

- É parecida com o irmão.

- Com o irmão? - perguntou Ghaden, ainda pensando em Chora-Alto.

- Contigo, o irmão dela - explicou Uutuk, e Ghaden viu o brilho das lágrimas nos olhos da mulher. - Talvez um dia ela tenha filhos que tu possas ensinar.

Uutuk devolveu o bebê à mulher de Lobo Comprido. Patinha encostou a cabeça ao peito da mulher e começou a gritar. A mulher enfiou-a debaixo da parka e a criança calou-se de repente.

- Ela estava com fome - explicou a mulher de Lobo Comprido aos presentes, como se estes não soubessem.

Então, Lança Azul levantou as mãos e as pessoas dispersaram, permitindo que Ghaden e ele passassem. Ghaden virou-se para trás para fazer sinal a Uutuk, mas a multidão já tinha se fechado em volta dela, e ele reparou que tanto a mulher quanto K’os e Foca tiravam os objetos dos fardos para expô-los. Talvez não fosse uma idéia sensata, visto que as pessoas continuavam chorando Cen, mas Ghaden teria que falar com eles mais tarde sobre isso.

A tenda de Lança Azul tinha a mesma configuração das tendas da aldeia de Chakliux, com um túnel de entrada inclinado para bloquear o ar frio e várias zonas de armazenagem escavadas dos dois lados do túnel. Lá dentro, a cobertura de pele de caribu dava a tudo um tom dourado.

Na parte de trás da tenda estavam duas mulheres a quem Lança Azul gritou algo e que correram a buscar água. Agradecido, Ghaden bebeu. Caminhar dava-lhe sempre sede, mas quando lhe ofereceram comida ele verificou que o seu estômago estava debilitado, e não quis comer.

- Estou de luto - disse ele, para amenizar a recusa. Então, a face de Lança Azul enrugou-se. O homem fechou os olhos e durante muito tempo não se mexeu.

Por fim, disse:

- O teu pai era o meu companheiro de caça quando não andava em negócios. - Lança Azul abriu os olhos, mas cobriu o rosto com as mãos. - Temos que fazer uma cerimônia fúnebre e trazer a mulher e a filha dele de volta à aldeia.

Subitamente, levantou-se como se fosse ele quem tinha que fazer todas essas coisas. Começou a andar de um lado para o outro, e as esposas entreolharam-se, com um ar preocupado. Eram irmãs, sem dúvida, pois tinham feições quase iguais.

- Achas que esse tal Chora-Alto também vai querer participar na cerimônia fúnebre?

- Talvez. Não sei se não deveríamos ir atrás deles. Talvez a minha irmã se sentisse confortada ao saber que eu estou aqui.

Lança Azul abanou a cabeça.

- Não é preciso - disse ele. - Tenho certeza de que Chora-Alto voltará com elas nos próximos dias. Mas talvez fosse melhor dizeres a Foca que espere pelo fim da cerimônia para trocar os seus produtos. E se o fantasma do teu pai vem visitar-nos e descobre que, em vez de o chorarmos, festejamos a sua morte com negócios?

Ghaden fez um esforço para não sorrir. - Não creio que ele ficasse ofendido - disse ele.

K’os observava as pessoas, com os olhos semicerrados. Não era difícil perceber que elas estimavam Cen. Por qualquer motivo, o pensamento irritou-a, e mais uma vez ela desejou que lhe tivesse sido permitido tirar-lhe a vida, e não o mar. Mas, pelo menos, o espírito de Cen não se vingaria dela.

Apesar de o chefe dos caçadores ter pedido a Ghaden que ele e a família ficassem na sua tenda, Foca amuou. Nesse momento, estavam reunidos com os velhos na tenda de Lança-Azul, e Foca lamentava-se das pessoas que obrigavam um homem a esperar pelo fim de um período de luto para fazer o seu negócio. Ordenou a K’os que traduzisse as suas palavras mas, quando todos ocuparam os seus lugares perto do fogo, ela distribuiu cumprimentos e omitiu os insultos do marido. Ao perceber o que ela estava fazendo, Foca calou-se e recusou-se a falar.

Então, ela disse apenas:

- Também o meu marido chora o pai de Ghaden, e os Primeiros Homens mostram o seu respeito através do silêncio.

Em seguida, as pessoas começaram a fazer-lhe perguntas, a cochichar e a abanar a cabeça, observando Foca pelo canto dos olhos.

- O que lhes disseste? - perguntou por fim Foca.

- Que tu estás de luto como todos nós - respondeu K’os.

Ele resmungou e ela acrescentou:

- Conquistaste o respeito deles. Não percebes?

Então Foca levantou a cabeça e começou a entoar um cântico fúnebre em surdina, e K’os viu-o empertigar-se de orgulho sempre que reparava que um dos velhos estava a observando-o.

K’os levantou-se e, apesar dos protestos das mulheres, começou a ajudar a servir os homens. Poucos comeram, mas ela continuava ocupada, dispondo peixe nas esteiras e distribuindo odres de água, até que conseguiu esgueirar-se e ir buscar um braçado de lenha para o fogo. Por fim, apanhou uma das esposas a sós e perguntou-lhe baixinho:

- Há quanto tempo é que esse tal Chora-Alto esteve aqui? Quando é que ele partiu à procura da mulher do morto?

- Ontem... Não, anteontem - respondeu a mulher.

- E onde fica o acampamento de pesca dela? A mulher encolheu os ombros.

- Nunca estive lá, mas parece-me que a filha dele, Daes, disse que ficava a três ou quatro dias de caminho. Mas isso era com cargas pesadas, cães e um bebê.

K’os abanou a cabeça e recolheu um punhado de odres.

- Deixa-me ir enchê-los - disse ela. - Eu vivi nesta aldeia, sabes? Nessa época tu eras pequena, mas acho que te lembras de mim. Nesse tempo chamavam-te Asa.

A mulher olhou para K’os com cautela, e K’os percebeu que tinha razão ao pensar que Asa se lembrava dela.

- Eu sei onde ir enchê-los. É naquele local em que o rio alaga a margem.

Mas Asa abanou a cabeça.

- Não - respondeu ela. - O rio mudou. Essa parte da margem foi arrastada durante o degelo da Primavera, há uns anos. Vai sentar-te junto do teu marido. Eu digo a uma das crianças que vá buscar água.

K’os sentou-se atrás de Foca, fechou os olhos e pensou em Chora-Alto. Com certeza o receio pela vida de Folha Vermelha o levara a apertar o passo. Talvez no dia seguinte ele a encontrasse e a avisasse que Ghaden ia a caminho da aldeia. Então, seguiriam para norte ou para leste, onde ninguém conseguisse encontrá-los. K’os reprimiu um sorriso. ”Tanto melhor”, pensou ela. Não queria que Folha Vermelha estivesse na aldeia quando o veneno começasse a atuar. A mulher sabia demais sobre os predicados de K’os e podia descobrir o que estava acontecendo e acusá-la.

”Chora-Alto, seja um bom filho para a tua mãe”, pensou K’os. ”Leva-a para longe desta aldeia e não a tragas antes de eu me vingar. Então, se quiseres, podes trazê-la. Já que ela foi tão esperta e se salvou do meu veneno, gostaria de ver se ela também consegue salvar-se de Ghaden. Se conseguir, talvez ela queira trabalhar comigo e vingar-se da aldeia de Chakliux, de Sok, desse marido que tentou matá-la, e de Chakliux que nada fez para salvá-la.”

Então, os pensamentos de K’os abrandaram, como se ela tivesse a boca cheia do sabor delicioso da gordura nova.

 

                   História de Chora-Alto

Chora-Alto tentou retardar o passo, cedendo às súplicas da irmã.

- Andas muito depressa, irmão - disse ela, ofegante. Olha que está anoitecendo. Temos de acampar.

- Quanto falta? - perguntou ele, parando e esperando pela resposta.

- Muito - respondeu Daes, sem olhar para ele, o que o levou a concluir que ela estava mentindo.

Chora-Alto conhecia-a apenas há três dias, mas já a entendia muito bem. Era forte para uma mulher e sabia fazer um bom acampamento rapidamente, mas mentia por tudo e por nada. A princípio, ele julgou que ela fazia aquilo só para se proteger. Quando ela trazia um pequeno braçado de lenha, dizia que havia poucos ramos caídos no chão, e, quando a carne se queimava, justificava-se dizendo que um espírito qualquer a distraíra. Chora-Alto já ouvira muitas mulheres fazerem a mesma coisa.

Mas outras vezes, Daes contava uma história que ele sabia não ser verdadeira, uma grande proeza que ela cometera salvara a vida de Cen quando o seu iqyax se virara no rio, fizera uma mezinha que curara num dia um golpe no braço do chefe dos caçadores. Eram histórias disparatadas, mas o mais estranho era que Daes parecia acreditar nelas. A princípio, Chora-Alto divertira-se, mas depois, ao ver que algumas histórias eram sobre pessoas que já tinham morrido, começou a ter medo dos seus fantasmas e disse-lhe que o desgosto provocado pela morte do pai lhe subira do coração aos ouvidos e que ele não podia escutá-la.

Então, Daes calou-se, e, depois de ela se enrolar na sua roupa de dormir, Chora-Alto entoou cânticos de proteção em voz baixa, agitou um amuleto na direção da fumaça e até queimou uns pedaços de carne seca de caribu, na esperança de se proteger dos espíritos que ela pudesse ter enfurecido.

Agora, quase não lhe restavam dúvidas de que ela estava mentindo outra vez, de que o acampamento ficava ali perto. Também estava cansado, mas seria preferível chegar ao acampamento da mãe nessa noite, falarem dos seus planos antes de adormecerem e, de manhã, estarem prontos para partir. Chora-Alto não fazia idéia para onde a levaria, e estava convencido de que Daes iria com eles. Além disso, sabia que teria que dizer à mãe que Cen morrera. Perguntou a si próprio se a mãe o amara verdadeiramente ou se se tornara sua esposa apenas para contar com a proteção dele. Decerto podia ter encontrado um marido melhor. Cen era bom homem, mas Folha Vermelha vivia no terror de que ele descobrisse que fora ela quem matara a primeira Daes.

Porque ela não aceitaria um marido que fosse apenas caçador, que nunca saísse da aldeia dos Quatro Rios para negociar e que não tivesse que se vingar da morte de uma mulher ou das facadas no filho?

Mas Folha Vermelha nunca revelara bom senso na orientação da sua vida.

- Estás mentindo - disse ele a Daes, e as suas palavras foram duras e bem audíveis.

Daes recuou um passo e depois outro.

- Não - disse ela, com a voz embargada pelas lágrimas. - Eu não minto. Ainda falta muito, e eu estou cansada do meu luto. Preciso parar, dormir e cantar para o espírito do meu pai.

- Pára, se quiseres, mas eu continuarei a andar enquanto tiver luz suficiente para ver.

Daes agachou-se no caminho, com o fardo às costas, quase tão grande quanto ela. Chora-Alto dissera-lhe que levasse mais roupa e comida do que era habitual, e, ao contrário da maioria dos homens que viajavam com mulheres, também levava um fardo. Daes pedira-lhe que trouxesse um cão, mas ele não queria preocupar-se com a alimentação do animal nem obrigá-lo a calar-se quando era preciso. Fez estalar os dedos para mostrar a sua irritação e afastou-se a passos largos.

Estava arrependido de a ter trazido. Se soubesse que, assim que estivessem a pouco mais de meio dia de caminho da aldeia, bastava seguir ao longo do rio até chegar ao acampamento, tinha-a mandado para trás. Mas ele não sabia, nem sequer se lembrara de perguntar, e ela não lhe dissera nada. Sentiu um novo jato de fúria inundar-lhe o peito e depois percebeu que ela vinha atrás dele. Ia virando-se para lhe dizer que ficasse, que voltasse para a aldeia sozinha. Mas, sempre que ela fizera aquela mesma viagem, tinha um cão para protegê-la. E se os lobos a atacassem? Chora-Alto não queria aumentar o desgosto da mãe com a perda de uma filha. Já bastava que eles tivessem deixado Patinha para trás. Por isso, Chora-Alto limitou-se a andar mais depressa, como se ela não o seguisse, e nem sequer olhou para trás para ver se ela conseguia acompanhar o ritmo da sua caminhada. Nesse dia, no meio da tarde, o vento esfriou e começou a soprar do Norte, e quando o Sol se enfiou nas árvores escuras do horizonte a neve começou a cair. Não era uma neve para ficar. Estava misturada com chuva, e até aquela que se acumulou nos tufos de erva e na base dos ramos dos salgueiros depressa desapareceu, mas enregelou os ossos de Chora-Alto, que começou a admitir que Daes tivesse falado verdade sobre o acampamento de pesca.

Chora-Alto reparou que o rio se bifurcava e parou para procurar um local alto onde pudesse acampar. Mas Daes apareceu a seu lado e disse:

- Segue pela esquerda. Estamos quase chegando. Agora já falta pouco.

Chora-Alto arqueou os ombros para agüentar o peso do fardo e ouviu os ossos estalando debaixo das alças. Lembrou-se de que a carga da irmã era mais pesada do que a sua. Então, recomeçou a andar, de cabeça baixa, contra o vento.

 

Gheli expulsou o leite do peito intumescido e sentiu-se aliviada. O pequeno esguicho jorrou na direção da fogueira. Todos os dias pensava que tinha que regressar à aldeia e recuperar o seu bebê, mas, na sua mente, via o pequeno Ghaden, pensava nele como um homem, adulto e poderoso, que a ameaçava. Mas o pior era que via Cen ao lado dele, gritando de fúria, ao perceber que protegera a mulher que assassinara Daes, aquela que continuava a povoar os seus sonhos.

Já anoitecera quando ela ouviu vozes. Refugiou-se na tenda, mas manteve-se à entrada e até deixou de respirar para ficar à escuta. Era Daes e pelo menos um homem. Seria Cen? O coração de Gheli alvoroçou-se de esperança, e os pensamentos surgiram em cascata - que motivos daria ela para explicar porque ficara no acampamento de pesca e porque deixara que Daes levasse Patinha para a aldeia sem ela?

Subitamente, a preocupação deu lugar à fúria. Ela não autorizara Daes a fazer aquela viagem sem ela. Daes levara o bebê sem permissão, partira apesar de Gheli lhe ter dito que ficasse.

À medida que as vozes se aproximavam, Gheli percebeu que não se tratava de Cen. Era outra pessoa qualquer; nem sequer era uma voz que ela reconhecesse. Muniu-se das poucas armas que estavam encostadas à parede da tenda, agarrou numa mão cheia de peixe seco e saiu de rastros, na escuridão. E se Daes tivesse trazido Ghaden?

Gheli esgueirou-se para a mata cerrada de amieiros que ficava atrás do abrigo e esperou ali, imóvel e silenciosa, que Daes entrasse na clareira. A moça levantou a voz e gritou, olhou para trás e disse ao companheiro qualquer coisa que Gheli não conseguiu ouvir. O jovem avançou para o acampamento e, ao ver-lhe o rosto à luz das chamas, Gheli sentiu-se aliviada. Não era Ghaden, era Chora-Alto! De repente, os olhos encheram-se de lágrimas. Ele era muito parecido com Sok, alto e de nariz adunco. Mas a face era quadrada como a dela, e os olhos eram os mesmos. O seu filho. O seu filho!

Gheli respirou fundo e saiu da mata.

- Daes! - exclamou ela, estendendo os braços como se estivesse satisfeita por voltar a ver aquela filha que lhe causara tantos problemas.

Ergueu lentamente o olhar para Chora-Alto e piscou, como se tentasse compreender uma adivinha. Depois, como se só então o tivesse reconhecido, perguntou em voz baixa:

- Chora-Alto?

Ele parou, olhando para ela, e a princípio Gheli julgou que se enganara. Abanou a cabeça para ver melhor e aproximou-se, sem tirar os olhos dele.

- Meu filho - disse ela, sem dúvidas.

Era um homem, mas não mudara tanto que ela não o reconhecesse. Teria aprendido a odiá-la durante aquela longa separação? Teriam Sok e os outros da aldeia de Chakliux contado a história do que ela fizera tantas vezes que ele resolvera não a considerar sua mãe?

Mas Chora-Alto abriu os braços, e ela aproximou-se e pousou a cabeça no seu ombro. Ele abraçou-a com força. Gheli chorava e não conseguia parar. Sentiu os espasmos no peito do filho e percebeu que também ele chorava.

- Julguei que vocês tinham morrido, tu e esta irmã, disse por fim Chora-Alto.

Gheli afastou-se, mas agarrou-se com força ao pulso de Chora-Alto, para que ele desaparecesse de repente como um espírito travesso. Ele sorriu, um meio sorriso tão parecido com o de Sok que Gheli sentiu um nó na garganta e mal conseguia respirar. Olhou para a filha, pensando que ela partilhava da sua alegria, mas notou-lhe uma crispação na boca.

- Já percebeste que ele é teu irmão? - perguntou Gheli, estendendo-lhe os braços.

Daes esquivou-se e respondeu tranqüilamente:

- Percebi muito bem. Ele contou-me tudo.

No olhar de Daes havia medo e acusação. O momento não era adequado para que ela ficasse sabendo tudo o que Gheli fizera. Daes não estava satisfeita consigo própria ao ver, com melancolia, que os homens escolhiam outras mulheres para suas esposas. Gheli compreendia esse sofrimento e lembrava-se muitas vezes dos seus primeiros tempos de mulher, quando nenhum homem da aldeia parecia interessado nela. Depois aparecera Sok, e tudo se modificara.

A sua vida enchera-se de alegria e de luz. Já não importava que o seu rosto fosse vulgar, que o seu andar fosse pesado e mais parecesse o de um homem. Gheli trabalhara com a agulha e o furador até ficar com os dedos em sangue, aprendera a fazer belas parkas e acabara por conquistar o coração de Sok. Pelo menos, até Neve-no-Cabelo ameaçar tirar-lhe.

Eu compreendo, filha, pensou Gheli, mas também sabia que Daes recusaria a sua compaixão. Então, sorriu e disse:

- Agora percebes porque é que eu tive de ficar à espera neste acampamento. Agora sabes que o teu pai tenciona trazer Ghaden.

- E tu preparavas-te para nos deixar aqui, a mim e à minha irmã, para passarmos o Inverno neste local, sem uma boa tenda nem comida suficiente!

Daes pronunciou estas palavras aos gritos, e Chora-Alto pôs-lhe as mãos nos ombros para acalmá-la. Ela repeliu-o e aproximou-se de Gheli, gritando na cara da mãe:

- Ias deixar-nos morrer por uma coisa que tu fizeste. Tu é que mereces morrer, e não nós!

- Porque julgas que eu não fui atrás de vocês? - perguntou Gheli.

- Porque tinhas medo que Ghaden já estivesse na aldeia!

- Eu estava a preparando-me para partir, para irmos todas para outra aldeia. Conheço uma que fica a poucos dias de caminho daqui.

- Estás mentindo! Tu não tinhas plano nenhum!

Gheli empinou o queixo, em ar de desafio.

- Julgas que eu receio apenas pela minha vida? - perguntou ela. - E se Cen, no meio da sua fúria, resolver não me matar só a mim e matar também a minha filha? Lembra-te que és irmã de Chora-Alto e que não és filha de Cen, como eu sempre te disse.

Gheli calculou que Chora-Alto já tivesse dito isto a Daes, mas, pela surpresa que viu no rosto da filha, percebeu que ele não o fizera, que Daes julgava ser meia-irmã de Chora-Alto e ter apenas a mãe em comum com ele.

- Ele não faria tal coisa - disse ela, ofegante. O meu pai... Cen nunca me faria mal.

- Não creio que fizesse, mas foi a chance de que a raiva o levasse a cometer um ato terrível que me reteve aqui - respondeu Gheli sinceramente. - A tua vida é mais preciosa para mim do que a minha.

Então os olhos de Daes encheram-se de lágrimas, e ela deixou-se cair de cócoras e ficou ali, agarrada aos joelhos.

- Preciso compreender - disse ela baixinho. - Eu e o meu irmão fizemos uma longa caminhada e estamos cansados. Depois de comermos, podes explicar-me porque fizeste o que fizeste. Nós também temos uma coisa para te dizer.

O coração de Gheli alvoroçou-se.

- Patinha? - perguntou ela, com a respiração alterada.

- Patinha está com boa saúde, vive na tenda de Lobo Comprido e está sendo amamentada pela mulher dele.

- Então o que é?

Daes olhou para Chora-Alto e cobriu o rosto com as mãos. Gheli levou a mão à boca e virou as costas à filha e a Chora-Alto.

- Cen! - exclamou ela, e começou a chorar.

 

                   História de K’os

O povo da aldeia dos Quatro Rios esperou nove dias pelo regresso de Gheli. Por fim, o xamã resolveu que as cerimônias se realizariam sem ela. Talvez o luto que os Primeiros Homens tinham feito por Cen fosse suficiente para o encaminhar para o mundo dos espíritos, mas, se não fosse, com certeza ele conseguiria regressar à aldeia, e não era nada bom deixar que um espírito pairasse por aquelas bandas. Até o espírito de um homem bom podia ter inveja daqueles que continuavam vivendo com os seus filhos, dormindo com as suas mulheres e comendo bem. Além disso, faltava pouco para os homens partirem para a caça ao caribu. Talvez a espera já fosse excessiva.

E as cerimônias fúnebres começaram. Foram quatro dias de tambores rufando, de cânticos e de preces. Depois, Ghaden foi ao encontro de K’os e disse-lhe que queria levar Uutuk para a aldeia de Chakliux.

K’os estava sentada junto da lareira, na tenda do chefe dos caçadores. Estava sentada à vontade, sem nada nas mãos, nem cestos, nem trabalhos de costura. Sorriu, mas Ghaden não retribuiu o sorriso. A sua pose, com os ombros atirados para trás e o queixo levantado, fizeram-lhe lembrar o tempo em que ele era pequeno e em que a irmã dele, Aqamdax, lhe pertencia.

K’os não ficou surpreendida por ele querer partir. Observara-o durante as cerimônias fúnebres e percebera a extensão do seu desgosto. A aldeia dos Quatro Rios se lembraria sempre dele por causa da morte de Cen. Mas K’os sabia servir-se das perguntas para conseguir o que queria.

- Serias capaz de nos deixar? - perguntou ela, com uma vozinha suave como a de uma criança. - Agora que o luto terminou, o meu marido começou a fazer o seu negócio. Como pode ele fazê-lo sem a tua ajuda? Bem sabes que ele não fala a língua do Povo Rio. Como nós passaremos o Inverno se ele não conseguir arranjar carne suficiente? Bem sabes que ele nunca caçou caribus.

- És hábil nas palavras, K’os - disse Ghaden, erguendo uma das sobrancelhas como se estivesse divertido com o que ouvira. - Ficarei uns dias para ajudar Foca no seu negócio, na tradução, mas depois partirei com a minha mulher. Assim, posso voltar a tempo de ir à caça do caribu com Chakliux. Se tu e Foca resolverem ficar nesta aldeia, virei entregar-vos metade da carne.

Furiosa, K’os respondeu, com uma voz estridente:

- Se resolvermos ficar nesta aldeia? Que alternativa temos? Eu sei que não posso voltar à aldeia de Chakliux. Na melhor das hipóteses, ele obrigava-me a passar o Inverno na floresta, sozinha. Na pior, matava-me. Julgas que Uutuk ficará com um homem que se preocupa tão pouco com a família dela?

- Aqui estás em segurança - disse Ghaden. - As pessoas não te deixarão morrer de fome. Na Primavera, eu e a minha mulher voltaremos e iremos com vocês para o acampamento de pesca, antes que tu e o teu marido voltem para as ilhas dos Primeiros Homens. Se Foca quiser ficar mais um ano e ir visitar outras aldeias do Povo Rio no Verão, eu irei com ele para falar por ele.

Os pensamentos de K’os misturaram-se, e ela não sabia o que dizer. Ghaden tinha razão. As pessoas de Quatro Rios não os deixariam morrer de fome, e se Ghaden lhes levasse carne como é que ela e Foca poderiam acusá-lo de não tomar conta deles? K’os passou a mão pela testa como se tentasse ordenar os seus pensamentos. Quanto mais envelhecia, mais lenta era nas idéias, como se a sua mente, tal como as suas mãos, estivesse ficando rígida e deformada. Era uma velha, e a impotência enfurecia-a.

Procurou desesperadamente uma idéia nos recantos da sua mente. Por fim, ela surgiu, completa e brilhante.

- Não disseste que querias esperar por Gheli? Disseste-me que tencionavas oferecer-lhe ajuda, agora que ela tem que criar as filhas sozinha.

Estas palavras apanharam Ghaden de surpresa. K’os sabia que ele passara muito tempo na tenda de Lobo Comprido com a irmã mais pequena. Seria um bom pai para os filhos de Uutuk, e K’os ficara admirada por se sentir satisfeita com isso. Agora, apesar de Uutuk ter um marido, K’os raramente pensava nos netos, mas os bebês transformavam-se em crianças úteis e em adultos ainda mais úteis. Um dia, talvez os netos tomassem conta dela e ela se congratulasse por eles terem um pai que os ensinava a levar uma vida respeitável.

- Tens razão - disse Ghaden. - Eu quero encontrar Gheli, mas não posso esperar tanto tempo. Tenho que regressar à aldeia de Chakliux a tempo de levar Uutuk a uma caçada ao caribu.

- Vai com o Povo Quatro Rios - sugeriu K’os. Ele abanou a cabeça.

- Aqui, a minha parte seria mais pequena, e eu preciso de carne que dê para todos nós, e talvez até para Gheli e Daes.

K’os sabia que ele tinha razão. Ghaden tinha que ir caçar com Chakliux. Ela própria passaria melhor o Inverno se ele trouxesse uma boa quantidade de carne de caribu. É claro que, com as suas mezinhas, ela conseguiria manter-se, e a Foca, ao longo do ano. As pessoas estavam sempre desejosas de negociar em troca de qualquer coisa que lhes aliviasse as dores ou curasse as doenças.

- Então, deixa-me ajudar o meu marido nos negócios disse ela. - Tu tens que encontrar Gheli. Depois, podes ir para a aldeia de Chakliux e ver se ele te inclui na sua caçada.

K’os levantou-se e fingiu que não conseguia mexer os joelhos. Estendeu os braços para se equilibrar e apoiou-se nas costas de Ghaden. Sabia onde o apertar para o obrigar a mudar de idéia. A faca de Folha Vermelha deixara uma cicatriz que continuava doendo. K’os apertou-o e ele reagiu.

Com um ar preocupado, K’os perguntou entre dentes:

- É a ferida da faca?

- É - respondeu ele, com uma voz tensa. - Como muito bem sabes, K’os.

Ela retirou a mão e agarrou-se à manga dele.

- O que recordas desse tempo? - perguntou ela. Nunca entendi.

K’os esperava que ele não respondesse, mas o seu objetivo era avivar a recordação do ataque de Folha Vermelha, por muito tênue que ela fosse.

Para sua surpresa, ele virou-se para ela, fitou-a e disse:

- Lembro-me de tudo, e bem. A minha mãe deitada em cima de mim, a dor na ferida, os chocalhos de casco de caribu nas botas do assassino.

- Lembras-te de Folha Vermelha? - perguntou K’os, desviando o olhar quando Ghaden fez um sinal para se proteger da referência àquele nome.

- Lembro - respondeu ele.

Ghaden encolheu o ombro, e parecia estar olhando para qualquer coisa que havia muito para além das paredes da tenda. Saiu sem dizer mais nada. Uma lufada de ar fresco entrou no túnel quando ele fechou a aba interior.

- Ainda bem - disse K’os em voz baixa. - Não te esqueças, Ghaden. Não te esqueças.

Nesse mesmo dia, mais tarde, Uutuk foi falar com K’os, com os olhos cheios de lágrimas.

- O meu marido vai embora com um dos filhos do chefe dos caçadores. Vão dizer à mulher de Cen que o marido morreu. Também vão à procura de Chora-Alto. Ghaden receia que lhe tenha acontecido alguma coisa.

K’os falou em voz baixa, como se tentasse consolar a filha.

- Por que essas lágrimas? - perguntou ela.

Uutuk ajoelhou-se, cobriu o rosto com as mãos e desatou a soluçar.

- Chora-Alto partiu e não voltou. E se acontece o mesmo ao meu marido?

- Conheço os dois desde pequenos - respondeu K’os. Ghaden é forte e sensato, mas Chora-Alto está sempre lamentando-se. Até a tarefa mais insignificante é um fardo para ele. Não vai acontecer nada a Ghaden. Nem, talvez, a Chora-Alto. O mais provável é que ele tenha ficado a acompanhando Gheli no seu luto. Lembras-te do que Ghaden disse da irmã, de Yaa? Ainda não deu filhos a Chora-Alto. Talvez ele goste da filha de Gheli e queira passar algum tempo com ela, ou mesmo pedir-lhe que seja segunda esposa. Talvez consiga ficar com ela por um preço mais baixo, agora que o pai dela morreu.

Enquanto falava, K’os fingiu-se ocupada com a agulha e a pele de caribu que tinha nas mãos, mas de vez em quando olhava para Uutuk, e, quando a moça deixou de chorar, K’os disse:

- Se eu estivesse no teu lugar, não queria ir com ele. Um marido que leva a mulher numa viagem como esta só quer alguém que lhe leve os fardos e lhe faça a comida.

Na manhã seguinte, K’os e Uutuk acompanharam Ghaden e Mão-de-Pássaro, o filho do chefe, até a saída da aldeia. Ficaram olhando até os dois homens desaparecerem no meio do mato que ladeava o caminho. Em seguida, voltaram para junto de Foca, para o ajudar no seu negócio. Mas, à medida que as pessoas se aproximavam, K’os ia fazendo os seus planos e, no fim do dia, já tinha escolhido o homem que iria provar o seu veneno em primeiro lugar.

Chamava-se Ptármiga e era velho, com uma tosse que lhe vinha dos pulmões quando ele respirava. K’os já ouvira duas mulheres da aldeia queixarem-se por terem que alimentá-lo.

- Porque desperdiçar o que temos? - dissera uma delas. - Ele já não pode pescar. A tosse dele afasta tudo e todos. Com certeza não passa do próximo Inverno, e toda a carne que ele comeu este ano bem podia ter sido atirada ao rio.

- Ele nem sequer é inteligente nem serve para contar histórias - atalhara outra. - Se servisse, merecia o que come.

- O chefe dos caçadores devia tê-lo entregue ao vento no Inverno passado. Há gente caridosa demais nesta aldeia.

K’os sorrira ao ouvir estas palavras. Duas mulheres que pensavam como ela e um homem cuja falta ninguém sentiria.

De tarde, Foca resolveu ir dormir uma sesta para descansar um pouco. K’os foi levar-lhe água e comida e, quando ele se deitou, esfregou-lhe a cabeça até ele começar a ressonar. Em seguida, foi buscar a bolsa de pele de lontra onde guardava os remédios e pegou o saquinho vermelho, cheio do veneno usado pelos caçadores de baleias, que raramente afetava o estômago ou os intestinos mas que impedia a respiração e fazia parar o coração. Com um pau, tirou o pó suficiente para encher uma pequena tigela de madeira. Despejou o conteúdo da tigela num odre cheio de água e depois pendurou o odre por baixo da parka, junto da bolsa dos remédios.

Ptármiga vivia com uma filha, que era uma mulher linguaruda e metida e passava a maior parte do dia enfiada nas tendas das outras pessoas. Não foi preciso K’os esperar muito para vê-la sair da tenda de Ptármiga. K’os fez-se ao caminho sem dificuldade, esfregando os olhos como se tivesse saído da tenda só para fugir da fumaça da lareira. Deu a volta na aldeia, sempre de olhos postos na tenda de Ptármiga. Passou duas vezes por ela, mas na terceira estendeu o braço e arranhou a cobertura. Como ninguém respondeu, ela entrou. Fechou a bolsa dos remédios na mão. Tinha moído erva-de-fogo para fazer chá, caso outra pessoa qualquer estivesse lá em vez de Ptármiga, mas estava com sorte. O velho encontrava-se sozinho, a balançando-se e tossindo, de costas para a porta e com as mãos estendidas para aproveitar o calor das brasas da lareira.

Só a ouviu quando ela estava quase a seu lado, embora K’os o tivesse chamado ao entrar. Ao vê-la, o homem sobressaltou-se mas depois riu da sua burrice. No entanto, o riso provocou-lhe um acesso de tosse e dificuldade em respirar. K’os ajoelhou-se junto dele e virou-o de costas para a lareira, para que a fumaça não lhe entrasse tão facilmente na boca e no nariz.

Quando ele deixou de tossir, ela tirou um odre de um poste da tenda e segurou-o enquanto o velho bebia, para que ele não entornasse a água com a tremura das mãos.

- Eu sou K’os - disse ela.

Ele fez um sinal afirmativo e, quando conseguiu falar, disse:

- Eu lembro-me de ti e do teu jovem marido.

Levou a mão ao pescoço, e K’os percebeu que ele também se lembrava da facada que tirara a vida a Dança-no-Gelo.

- Não fui eu que o matei - disse ela.

- Bem burra serias se o tivesses matado - disse Ptármiga, com um novo ataque de tosse.

K’os esfregou-lhe as costas até o sentir mais descontraído. A tosse parou.

- A tua filha pediu-me que te trouxesse um remédio, disse ela, disfarçando um sorriso ao ver a surpresa e a alegria nos olhos do velho.

- A minha filha?

K’os levantou uma mão para o impedir de falar.

- Sim - disse ela, puxando do seu odre. - Preciso de uma tigela.

O velho apontou para um amontoado de tigelas e de paus que estavam junto da lareira. K’os agitou o odre, pegou uma tigela e encheu-a. Ele tirou-a das mãos com uma avidez patética, mas ela não cedeu. O velho entornaria o líquido antes de o levar à boca.

- Isto vai deixar-te cansado - disse ela. - Bebe, que eu depois ajudo a deitar-te.

O velho virou a cabeça para uma pilha de esteiras que estavam estendidas no chão. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas K’os pôs-lhe um dedo nos lábios e encostou-lhe a tigela aos dentes. Ele bebeu.

- Há mais? - perguntou ele quando acabou de beber, embora, pela careta que fez, K’os concluísse que a bebida era amarga.

- Talvez amanhã eu te traga mais - respondeu ela. Primeiro, temos que ver se isto te alivia.

K’os ajudou-o a levantar-se, e ele apoiou-se nela até chegar à cama. Sentou-se nas esteiras e tossiu durante muito tempo, mas por fim calou-se. K’os ajudou-o a deitar-se e tapou-o. O velho fechou os olhos. Então, ela afastou-se, recuando, examinando o local onde estivera sentada, por onde andara, para se certificar de que não deixava nada lá. Embora quisesse ficar ali vigiando-o, vendo se lhe dera veneno suficiente para matá-lo, rastejou até o túnel de entrada. Abriu a aba exterior e espiou lá para fora. Esperou que ninguém fosse passando e saiu.

Aproximou-se de uma moita que havia ali perto e cortou uns ramos de salgueiro, embora, no Outono, a casca ainda fosse tão fina que não servia para nada. Foca ainda estava dormindo quando ela entrou na tenda do chefe dos caçadores, com o ramo cinzento amarelado na mão direita e a bolsa do veneno na esquerda. Escondeu o odre debaixo da pilha dos seus pertences e depois saiu e foi sentar-se ao sol, gozar a atmosfera fresca do Outono. Aconchegou o capuz da parka e começou a cortar o salgueiro inútil e a guardá-lo ostensivamente em pequenas bolsas de pele de foca. Aqueles que passavam olhavam e sorriam, e K’os viu a satisfação no seu rosto. Era sempre bom ter alguém na aldeia que entendia de plantas medicinais. Até os cânticos do xamã davam mais resultado.

 

                   História de Gheli

Gheli fez um luto prolongado, oito dias ao todo, duas vezes mais do que devia, embora como esposa o seu luto privado durasse pelo menos mais uma lua. Não podia pedir mais. Uma delas, ela própria ou Daes, teria que arranjar um marido, ou as duas, se possível. Gheli não queria que Chora-Alto se preocupasse com elas. Ele tinha que voltar para junto da mulher.

É claro que as lágrimas de Gheli não eram apenas por Cen mas também por Patinha, que Daes caíra na asneira de levar para a aldeia, pensando que a mãe iria atrás dela. Agora Daes compreendia que Gheli não poderia fazer tal coisa, o que amainou um pouco a sua ira.

”Há muito tempo que devias ter explicado tudo”, pensou Gheli. ”Daes percebeu que tu escondias alguma coisa. Porque achas que ela aprendeu a mentir tão bem, mesmo nas coisas pequenas e sem importância?”

Gheli suspirou e ajudou Daes a dar os nós em outro fardo de pele de caribu. Como não tinham cães, Chora-Alto estava construindo um grande trenó que ela e Daes podiam puxar revezando. Em tempos, Cen dissera-lhe que a aldeia mais próxima ficava a doze dias de caminho da aldeia dos Quatro Rios. Gheli não conhecia ninguém, mas Cen já estivera lá e dizia que as pessoas eram boas, generosas e risonhas. Viviam tão longe das outras aldeias que não ensinavam os jovens a lutar, mas apenas a caçar. Devia ser um bom local para viver e, segundo o que Cen lhe dissera, era possível chegar lá seguindo sempre ao longo dos rios.

Durante o seu luto, todas as noites Gheli prometera a si própria que no dia seguinte pediria a Chora-Alto para regressar à aldeia e dizer às pessoas que ela e Daes tinham morrido, devoradas pelos lobos. Ela lhe daria umas roupas rasgadas e ensangüentadas. Mas quais eram as chances de ela voltar a vê-lo, depois de ele partir?

Gheli não percebera a falta que ele lhe fazia. Por muitos motivos, ele lembrava-lhe Sok, e também um pouco o pai dela, que morrera há muitos anos, mas Chora-Alto era mais calado do que qualquer deles. Sentava-se sem falar, com um pedaço de madeira na mão, e aparava-o sem qualquer finalidade.

Raramente falava em Yaa. Quem poderia ter adivinhado que Yaa, tão boa para as crianças mesmo quando era pequena, não conseguiria ter bebês? Yaa fora obrigada a crescer depressa demais, a trabalhar arduamente para a esposa-irmã da mãe, uma mulher que vivia com o ódio enrolado na língua. Pelo menos, Yaa conseguira arranjar um bom marido, mas Gheli não sabia se ela teria inteligência suficiente para conservá-lo. Quando Chora-Alto falava dela, era com tristeza, como se nunca fosse capaz de lhe agradar. Gheli deu mais um nó em outra tira de babiche. Além do peixe, pouco mais tinham para levar. Como ela gostaria de voltar à aldeia dos Quatro Rios às escondidas para ir buscar na tenda e na despensa aquilo de que precisava!

Estava ajoelhada do lado de fora do abrigo quando percebeu que o filho estava atrás dela. Chora-Alto agachou-se a seu lado, com os joelhos afastados, e inclinou-se para a olhar de frente.

- Tenho estado pensando numa coisa - disse ele. Gheli sentiu-se desfalecer e balbuciou:

- Talvez um dia, antes de eu morrer, tu vás visitar esta nova aldeia. Nessa altura, a tua irmã já deve ter um marido e os filhos gostarão de conhecer o tio. Talvez Patinha queira vir contigo. Já terá idade para te ajudar, para te fazer a comida e te levar os fardos.

Gheli viu a compaixão nos olhos de Chora-Alto, a tristeza. Ele sorriu.

- Sim, espera por mim. Um dia, lá irei e talvez leve Patinha. Se eu não voltar depressa à aldeia dos Quatro Rios, Ghaden pode vir à minha procura, sabes? Hoje é um bom dia para viajar.

As lágrimas de Gheli surpreenderam-na. Há muito tempo que se separara daquele filho, convencida de que nunca mais voltaria a vê-lo. Uma vez, Cen falara nele, e contara uma história de uma boa caçada que ele, Chora-Alto e Ghaden tinham feito, quando Cen ainda estava na aldeia. Depois de ouvir a história, Gheli saíra da tenda, com o pretexto de ir buscar lenha, mas a verdade é que precisara apenas esconder as suas lágrimas. Pelo menos, soubera que Chora-Alto sobrevivera e se fizera um homem. Agora, ia perdê-lo de novo; como conhecia a extensão dessa tristeza, a perda seria mais difícil da segunda vez.

Sentiu um nó na garganta e não conseguiu falar, mas Chora-Alto percebeu. Pegou-lhe na mão e disse:

- Acho que devemos dizer às pessoas que tu morreste. Podemos perguntar a Daes se ela quer voltar ou se prefere ir contigo para essa nova aldeia.

Gheli concordou, com um gesto de cabeça, e por fim recuperou a voz.

- Podes dizer que foi um lobo que nos matou. Podemos rasgar algumas das nossas roupas. As mulheres da aldeia reconhecerão o meu trabalho e verão que levas uma das minhas parkas.

Chora-Alto levantou-se.

- Vou te fazer a comida - disse Gheli, com a voz embargada.

- Mãe, porque choras? - perguntou ele. Ajudou-a a levantar-se e limpou-lhe as lágrimas com a ponta do dedo. Quanto tempo se leva para chegar à aldeia dos Quatro Rios? Dois dias, mais nada. Fico lá um dia e depois volto. Daqui a cinco dias, estou de volta.

- Tu?...

Ele riu da admiração dela.

- Julgas que eu te deixo ir sozinha para essa outra aldeia? Yaa pode esperar um pouco mais por mim, e o meu pai que partilhe a sua carne de caribu. vou pedir a Ghaden que lhes diga que eu resolvi ir caçar sozinho e que regresso antes do Inverno. Vai falar com Daes e pergunta-lhe o que ela quer fazer.

- Ela vai comigo - respondeu Gheli.

- Ela é uma mulher. Fará o que quiser.

- Eu vou com ela - disse Daes. Gheli olhou para trás e viu que a filha estava ali. - E a minha irmãzinha?

- Não podes levá-la - respondeu Chora-Alto. - Como eu posso convencer as pessoas de que tu morreste se eu trouxer a tua filha?

- A mulher de Lobo Comprido que fique com ela disse Gheli. - É uma boa mãe para os filhos. Precisa de uma ilha que a ajude a fazer todo o trabalho que os filhos dão a uma mulher.

Gheli falou com firmeza, mas tinha os olhos marejados de lágrimas. Estava desistindo dos filhos para sempre, tudo por causa de um marido que a rejeitara há muito tempo. Que tola fora quando era nova, matando para conseguir o que queria! Perdera quase tudo. E o que podia esperar quando envelhecesse e fosse a caminho do mundo dos espíritos? com certeza Tsaani e a primeira Daes estariam à sua espera, e Dança-no-Gelo, também. Um dia, até Sok, Ghaden e K’os iriam parar nesse mundo dos mortos, e todos eles procurariam vingar-se. Até Cen.

Gheli suspirou, esperando sentir-se mais aliviada. ”De que serve eu preocupar-me com os mortos?” perguntou ela a si própria. Não podia alterar o que fizera. Viveria o melhor que pudesse e tentaria encontrar alegria nas pequenas coisas. Qual era a alternativa?

 

                   História de Ghaden

Ghaden parou e aliviou as alças do seu fardo para curvar os ombros. Há dois dias e meio que se esfalfava andando, atrás de Mão-de-Pássaro. Aparentemente o homem sabia para onde ia, mas tinham voltado para trás duas vezes. Por fim, chegaram ao local em que o rio se bifurcava.

Mão-de-Pássaro apontou para a esquerda, deu meia volta e recomeçou a andar em direção à aldeia dos Quatro Rios, Ghaden ficou olhando para ele, incrédulo e boquiaberto.

- A tua irmã Daes odeia-me - gritou Mão-de-Pássaro por cima do ombro. Não disse mais nada, como se estas palavras explicassem tudo. - Estás quase chegando. Talvez mais meio dia. Talvez um dia.

Em seguida, Mão-de-Pássaro desapareceu, engolido pelos salgueiros que eram mais cerrados à beira do rio.

Ghaden pensou em ir correndo atrás dele, mas depois viu o rosto de Yaa na sua mente. O que diria ele à irmã? Que se cansara de andar e desistira de ir à procura do marido?

Continuou andando, abrindo caminho através do mato que cobria a trilha feita pelos animais e amaldiçoando Mão-de-Pássaro, Chora-Alto e todos os pequenos ramos que lhe arranhavam o fardo e a parka. Doíam-lhe os pés e as costas. Prometeu a si próprio que, quando chegasse à clareira seguinte e encontrasse um local alto, acamparia para passar a noite.

Os salgueiros começaram a rarear e a dar lugar a bétulas ralas, e os tufos de ervas formavam um tapete que facilitava um pouco a caminhada. O rio dividia-se em volta de uma ilhota pantanosa e, logo a seguir, Ghaden avistou uma clareira ampla e plana. Desatou a alça que lhe prendia o fardo ao peito, tirou-o das costas e pendurou-o ao ombro. Nunca se sabia o que poderia acontecer. Os animais podiam ter ido beber no rio e aparecer de repente numa clareira como aquela. Ghaden tinha que estar preparado para largar o fardo e puxar uma faca ou uma lança.

Cheirou-lhe a fumaça e parou para se certificar. Pôs-se à escuta e ouviu vozes. Era Chora-Alto!

Ghaden saudou-o em voz alta, rindo-se, e avançou para a clareira. Chora-Alto estava precisamente a pondo um fardo às costas, como se se preparasse para partir.

- Irmão! - gritou Ghaden.

Mas Chora-Alto não lhe respondeu. Limitou-se a pousar o fardo no chão e a ficar onde estava. Foi então que Ghaden viu as mulheres. Uma era nova, a sua irmã Daes, sem dúvida.

Ghaden imaginara-a uma pessoa diferente, pequena e encantadora, mas ela era uma mulher grande, larga de ombros e de ancas, e com um rosto duro. Fez um ar carrancudo e, por instantes, Ghaden sentiu-se confuso. O rosto dela não lhe era estranho, como se ele já a tivesse visto. Olhou para Chora-Alto. Eram os dois tão parecidos que podiam ser irmão e irmã. Os olhos, o nariz e a boca eram quase iguais.

Uma mulher mais velha, sem dúvida a mulher de seu pai, estava atrás de Chora-Alto, como se tentasse esconder-se.

Sem saber o que fazer, à espera que Chora-Alto falasse, Ghaden perguntou finalmente:

- Vais embora?

Chora-Alto olhou para o fardo como se ficasse admirado ao vê-lo a seu lado. Depois esboçou um sorriso forçado e apontou para a moça com a mão aberta.

- A tua irmã Daes - disse ele a Ghaden. - Tenho certeza de que o teu pai te falou nela.

- Sim - respondeu Ghaden.

A moça tinha os olhos vermelhos e ele percebeu que ela estivera chorando.

- Partilhas o meu desgosto - disse ele.

Ela cobriu o rosto com a mão, como se não quisesse vê-lo.

- Trouxe presentes para ti e para a tua mãe - disse Ghaden.

A mulher que estava atrás de Chora-Alto levantou a cabeça e, pela primeira vez, Ghaden viu-lhe o rosto. O ar saiu-lhe dos pulmões como se alguém lhe tivesse dado um murro no peito. Sem fôlego, levou a mão à faca.

- O meu pai aceitou essa mulher como esposa? - gritou ele. Foi como se estas palavras lhe rasgassem a garganta e lhe tirassem a força do corpo. - E esta filha é o bebê que Folha Vermelha levou com ela? A filha de Sok?

- É - respondeu Chora-Alto em voz baixa. - E também é minha irmã.

- Mas como é que o meu pai pôde... - A voz de Ghaden falhou. - Como pôde ele dar-lhe o nome da minha mãe?

- Ele não sabia - respondeu Chora-Alto. Falou devagar, como se se dirigisse a uma pessoa muito nova ou muito velha. - A minha mãe mudou de nome quando foi para a aldeia dos Quatro Rios. Como é que um comerciante se lembraria de uma mulher depois de ter visitado tantas aldeias? Ele não sabia que ela era Folha Vermelha, aquela que matou Daes. Só K’os é que sabia, e só mo disse depois de o teu pai morrer.

- K’os sabia... - repetiu Ghaden com amargura.

- Durante algum tempo, K’os viveu na aldeia dos Quatro Rios. Isso foi depois de Chakliux a ter expulsado do nosso acampamento de caça. Lembras-te?

- Sim, lembro.

- Foi então que ela tentou matar-me - acrescentou Folha Vermelha.

A voz dela surpreendeu Ghaden. Era suave, e ela estava com medo, tremendo. Depois, as palavras saíram-lhe da boca como se ela as tivesse guardado para Ghaden durante todo aquele tempo em que vivera com Cen.

- K’os tentou envenenar-me. Queria Cen para ela, e ele não a queria, nem mesmo como segunda esposa. Ela disse que, se eu não bebesse o seu veneno, ela contaria a verdade a Cen. Depois, ele matava-nos, a mim e à minha filhinha.

- O meu pai não era esse tipo de homem - disse Ghaden. - E K’os sabia. Não digo que ele te tivesse poupado, mas nunca mataria uma criança.

As palavras de Ghaden deram coragem a Folha Vermelha, que saiu de trás de Chora-Alto.

- E tu és como o teu pai? - perguntou ela. - Deves vingança pela morte da tua mãe, mas a tua vingança inclui as minhas filhas?

Chora-Alto desembainhou a faca que trazia ao pescoço. Daes ajoelhou-se e soltou um longo grito fúnebre.

- As tuas filhas não correm perigo - respondeu Ghaden, aos gritos, para se fazer ouvir. Apontou para Daes com a ponta da sua faca. - Esta tem o nome da minha mãe e, por conseguinte, uma parte do seu espírito. Como poderia eu matá-la? A menina é minha irmã de sangue. Eu não insultaria o meu pai fazendo-lhe mal.

- Se matares a minha mãe, o que me impede de procurar vingar-me da morte dela? - perguntou Chora-Alto. E Yaa? Se tu morreres, ela se vingará em mim, o seu marido? Se eu morrer, ela se vingará em ti?

- Lembra-te disto. Eu tenho que vingar-me de K’os pelo que ela fez à minha mãe - prosseguiu Chora-Alto, fitando Ghaden. - Talvez pela tua mulher, resolvas deixar as coisas como estão. Sem mortes.

- Guarda a faca, e nós partiremos imediatamente, a minha mãe, Daes e eu. Eu levo-as para outra aldeia e tu podes dizer a K’os que elas morreram, devoradas pelos lobos. Quando eu voltar, direi a mesma coisa. Combinado?

- Não faço isto por Folha Vermelha - disse Ghaden, fez uma pausa e depois acrescentou em voz baixa. - Faço-o por Uutuk. E pelas minhas irmãs Daes, Patinha e Yaa

Ghaden pousou o fardo e depois, acompanhando os movimentos de Chora-Alto, embainhou a faca.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

Yikaas falava muitas vezes de olhos fechados, mas desta vez observava as pessoas, e reparou que elas examinavam tudo, suspiravam e se mexiam para esticar os braços e as pernas.

A sessão de histórias prolongara-se muito. Chegara o momento de fazer outras coisas. Yikaas terminou a sua história e esperou que Qumalix fizesse a tradução final.

Ouviu-se um murmúrio das pessoas, um agradecimento cortês em surdina, que denunciava cansaço. Saíram todos, primeiro os homens, depois as mulheres e as crianças, mas Yikaas deixou-se ficar. Ajudou Kuy’aa a levantar-se. Ela deu-lhe o braço e ele encaminhou-a para a cama que reclamava como sua.

- Uma velha não pode contar tantas histórias como contava sem gastar a língua - disse ela, franzindo o nariz como se fosse uma criança que não gostasse do que estava comendo.

- E alguns contadores de histórias têm sorte. Nunca, nunca envelhecem, por muitos anos que vivam - disse ele.

Ela riu e deu-lhe uma palmadinha no braço, como se ele tivesse dito uma piada. Yikaas afastou a cortina de erva, ajudou-a a deitar-se e, desenrolando uma pele de foca, tapou-a. Kuy’aa fechou os olhos e pouco depois respirava como se já tivesse adormecido. Yikaas deixou cair a cortina e ouviu-a dizer:

- Prepara-te para a noite de amanhã. Quero que contes a história de Cen.

- Assim farei, tia - respondeu ele.

Ao virar-se, encontrou Qumalix à sua espera.

- Ela está dormindo? - perguntou Qumalix.

- Quase.

- Estás muito cansado?

- Quase dormindo.

- Tens tempo para conversarmos um pouco? Queria perguntar-te uma coisa.

- Pergunta - disse ele.

Ela abanou a cabeça e apontou para o poste.

- Lá fora, onde possamos ver o céu.

- Está chovendo.

- Não.

Yikaas saiu atrás dela e ficou admirado ao ver que Qumalix tinha razão. A chuva parara e as estrelas tinham começado a abrir caminho entre as nuvens. Qumalix agachou-se no topo do ulax e ele fez o mesmo, tentando sentar-se à maneira dos Primeiros Homens para não molhar o traseiro, mas, de ter apoiado as coxas nos calcanhares, sentiu o frio úmido do telhado de grama entranhar-se nas perneiras de pele de caribu.

- Pergunta - disse ele outra vez.

O cansaço tornara-o irritável. Os Primeiros Homens não entendiam muito de conforto, pensou ele, sem perceber como conseguiam eles manter-se apoiados nos calcanhares durante tanto tempo. Já lhe doíam os tornozelos.

Ao falar, Qumalix não olhou para ele. Foi como se dirigisse as suas palavras a toda a aldeia, e falou tão baixinho que ele foi obrigado a debruçar-se para a ouvir.

- Chega-ao-Céu diz que tu tens uma mulher na tua aldeia. Uma mulher do Povo Rio. E também diz que pediste em casamento aquelas duas irmãs...

- Não! - exclamou ele, tão alto que a sobressaltou. Yikaas pôs-lhe a mão no braço e repetiu:

- Não, não tenho mulher nenhuma nem quero as irmãs.

Yikaas julgou que ela ia dizer mais alguma coisa, mas Qumalix não o fez.

Por fim, ele acrescentou:

- Às vezes, nós os homens somos tolos. Ficamos com o que não queremos porque julgamos que não podemos ter o que queremos.

Qumalix manteve o silêncio e quando falou foi num murmúrio:

- Deve ser difícil ter um homem assim como marido.

As palavras dela envergonharam-no e irritaram-no.

- Um homem assim daria um bom marido. Ele já tem cometido os seus erros.

Qumalix levantou-se e ele seguiu-a, cambaleando um pouco porque tinha a barriga das pernas dormente.

- Como consegues sentar-te assim? - perguntou ele. Ela riu mas não deu resposta e perguntou:

- Então o que aconteceu a Cen enquanto Ghaden e Chora-Alto resolviam os seus problemas?

- Não sabes?

- Toda mundo conta a história de modo diferente. Gostaria de ouvir a tua versão. Vais contar mais histórias amanhã?

- Foi o que Kuy’aa disse.

- Sobre Cen?

- Se quiseres.

- Eu quero - disse ela.

Qumalix entrou no ulax, mas Yikaas ficou no telhado durante algum tempo. Ajoelhou-se na grama molhada e examinou o céu, que começava a desanuviar-se. Perguntou a si próprio o que queria ela dizer exatamente quando falara de maridos e da escolha das esposas. Aa! O homem que casasse com aquela mulher teria as mãos cheias. Yikaas riu e tentou imaginar Chega-ao-Céu e Qumalix como marido e mulher - a voz de Qumalix forte, alta e estridente, e ela gritando com ele por tudo e por nada. Mas por qualquer motivo, ao pensar nisto, Yikaas irritou-se e optou por começar a contar a história de Cen às estrelas, em voz baixa, uma boa maneira de praticar o que iria dizer quando toda a aldeia se juntasse para ouvi-lo.

Enquanto falava, parecia-lhe que as estrelas aumentavam de tamanho, que se aproximavam, como se também elas quisessem ouvir a história. As palavras familiares tornaram-no atrevido. Virou a cara para o céu e levantou a voz. E nem reparou que Qumalix se agachou no topo do poste, com o queixo apoiado numa mão, e os olhos também virados para as estrelas, enquanto ouvia a história de Cen.

 

         Mar de Bering

         6435 a. C.

 

                   História de Cen

Todos os dias, o inchaço em volta dos olhos de Cen diminuía e ele conseguia ver um pouco melhor. Por fim, até o ruído nos ouvidos começou a dissipar-se, e ele já ouvia os seus próprios gritos. Uma vez, julgou ouvir gaivotas guinchando.

A princípio, assustara-se. Cada onda que agitava o seu barco, cada vaga que o levantava, dificultava-lhe a respiração e provocava-lhe náuseas. Que mais tinha ele que o mar pudesse desejar? O seu iqyax, o seu sax, os seus odres de água? O seu peixe quase podre? Talvez ele cobiçasse aquelas amarras que antes seguravam remos e arpões. Ainda havia um pequeno aglomerado de mercadorias na proa, encharcadas e disputando o espaço com as suas pernas. Se o mar queria aquelas coisas, ele as ofereceria de boa vontade. Se preferisse arrancá-lo do iqyax, Cen só pedia que ele fosse rápido, que deixasse de brincadeiras. Já ouvira muitos contadores de histórias falarem de caçadores que passavam vários dias no frio dos abismos, sem vento para respirarem nem sax que os aquecesse.

A sua prece era agora a de um velho:

- Que ela venha depressa! Que ela venha depressa! Todavia, quando recuperou a vista, voltou-lhe também a coragem. O seu olho direito viu luz e depois formas. Cen ouvira alguns velhos dizerem que viam assim, como se o nevoeiro lhes dificultasse a visão. E parecia-lhe que até o Sol tinha envelhecido, coberto por um véu esbranquiçado como o olho de um velho. Mas todos os dias a sua vista se tornava mais nítida e, por fim, até o olho esquerdo começou a ver, embora através de uma fina camada de luz vermelho-acastanhada, qualquer coisa que se encolhia e se espraiava, como um estranho mar dentro do próprio olho.

Doíam-lhe as órbitas; a dor atravessava-lhe a cabeça, da testa até o pescoço. Mas que importância tinha a dor, se todos os dias ele via cada vez melhor? Tentou não pensar que cada dia que passava significava também que ele tinha menos água, menos comida.

Conseguia remar mas pouco depois era obrigado a parar devido à sua desesperada necessidade de respirar. Os seus impulsos eram fracos e o seu remo feito de um ramo de cedro era incômodo. O seu desamparo irritava-o.

Às vezes, entoava cânticos fúnebres em honra da sua vida, mas num tom de desafio, como um guerreiro que se preparava para a luta. O mar estava quase sempre calmo, e por isso Cen só podia lutar consigo próprio. E como é que um homem podia combater tal inimigo? Apontava a faca à sua própria carne?

Pensava muitas vezes em Gheli, nas filhas e no filho, Ghaden. Então, lembrava-se de que era comerciante, e quem melhor do que um comerciante conhecia o mar? Não era uma tigela de água chocalhando, mas uma série de rios e de lagos todos juntos, correntes agindo e reagindo. com certeza, de tanto remar, encontraria um rio no mar que o levasse para terra, uma corrente que o empurrasse para uma costa onde ele pudesse encontrar água doce.

A princípio, começara a contar os dias, mas depois, à medida que ia ficando sem água, desistiu. Era muito desanimador saber que dentro em pouco não teria nada para beber. Onde estava a chuva? Nunca vira um céu que passasse tanto tempo sem chorar. Rejubilaria ele, de olhos secos, com a sua agonia?

Na tarde em que bebeu a última gota de água, caiu num sono leve. Sonhou com um banquete, e que a mulher tinha um odre de água na mão ao qual ele não conseguia chegar. Irritou-se. Porque não se aproximava ela?

Nesse momento o iqyax balançou, e ele despertou. Viu que anoitecera e que as estrelas estavam cobertas por uma camada de nuvens. A princípio não percebeu o que o roubara aos seus sonhos, mas depois sentiu de novo um movimento súbito, como se alguém empurrasse o seu iqyax por trás, fazendo-o deslizar na água.

Mergulhou a mão no mar, e até perdeu o fôlego. Sim, era uma corrente, que o levava numa outra direção. Iria a corrente para terra ou deveria ele remar para se livrar dela? O iqyax mudara de rumo enquanto ele estava dormindo? Como lhe faziam falta as estrelas!

Era melhor ficar com a corrente, concluiu ele. Seria mais difícil voltar a encontrá-la do que afastar-se dela. Passou a noite sentado, de vigília, esperando com impaciência que a escuridão desaparecesse.

O dia nasceu cinzento, com nevoeiro e umas nuvens tão cerradas que Cen não via nada além da proa do iqyax. Soltou um gemido de frustração e rogou pragas, com a garganta inflamada e palavras de raiva.

Apesar do seu desrespeito, por volta do meio-dia, as nuvens começaram a levantar. Então, Cen reparou que via muito melhor do olho esquerdo e que a névoa castanho-avermelhada lhe afetava apenas metade da visão, como se alguém tivesse afastado uma cortina do canto interior do seu olho.

Para onde quer que olhasse, só via mar, mas, pela posição do Sol, sabia que a corrente seguia para norte e para leste. Apesar de ter a garganta seca devido à falta de água e a língua tão inchada que nem conseguia cantar, a esperança mitigava-lhe a sede.

À noite, julgou ver uma mancha escura a leste, algo mais do que a linha do horizonte que separava o mar do céu. Dormiu um sono agitado e acordou com freqüência, ansioso pela chegada da manhã. Ao amanhecer, as nuvens cobriam de novo o mar, mas o Sol aproximara-se mais da terra, e o seu calor afastou a névoa até que Cen conseguiu ver o céu limpo, quente como no forte do Verão, azul de um lado ao outro.

Piscou, protegeu os olhos e perscrutou o horizonte até perceber que estava avistando terra. Ao dar um grito de alegria, rasgou a pele ressequida da garganta e provou o seu próprio sangue.

O rio do mar tornara-se preguiçoso, e Cen passou o dia inteiro remando, para além das suas forças. À noite, só podia dizer que estava mais perto de terra pelos pequenos golpes que fizera no polegar, ao espetá-lo para medir a altura daquela nesga de terra que se via ao fundo do céu.

Continuou a remar, mesmo durante a noite, mas o esforço deixou-o atordoado. Por fim, resolveu comer, mesmo que fosse pouco. Ainda tinha alguns peixes secos, mas estavam moles devido à umidade do mar e começavam a cheirar mal. Comeu um a custo, saboreando a sua carne macia, viscosa e rançosa. Ficou com dores de estômago, mas melhorou da cabeça. Recomeçou a remar e sentiu as entranhas às voltas.

Atou o remo à coberta e encostou-se à borda do barco, mas sentia-se cada vez pior do estômago, até que acabou por vomitar tudo o que tinha comido e um jato de bílis amarela. Quando os espasmos acabaram, Cen deixou-se escorregar como pôde para dentro do iqyax e ficou muito quieto. A água embalou-o, e ele conseguiu adormecer.

Quando acordou, ainda era de noite. A leste, o céu estava escuro, e a água, negra. Voltara a sonhar que fora apanhado pela onda. Esta atirara-o contra a borda do iqyax, partira-lhe as costelas e rasgara-lhe o estômago. O sonho era tão real que Cen teve que expulsá-lo da sua cabeça, mas a dor de estômago não amainara. Pelo contrário, os espasmos sacudiam-lhe as entranhas.

Gemeu. O peixe envenenara-o. Despiu a saia impermeável e levantou o sax e o chigdax até à cintura. Ficou nu das ancas até às botas. Desatou um dos odres de água vazios, cortou-lhe a parte de cima, levantou-se e pôs-se de cócoras. Abriu o odre e o pôs debaixo das nádegas. Em seguida, aliviou as entranhas. A dor apertou-o desde a cintura até o ânus, retorceu-o, puxou-o, como se uma matilha de cães lutasse pelos pobres restos das suas tripas. Já de manhã, o seu corpo continuou a esvair-se, até Cen se sentir oco, exceto o ar que respirava. Mas a dor tornara-se mais suportável.

Quando se certificou de que os espasmos tinham cessado, lavou-se com água do mar, jogou o odre fora e compôs as suas roupas. A sede já não lhe afetava apenas a boca e a garganta. Estendera-se até as pontas dos dedos das mãos e dos pés. Cen sentia-se fraco e vulnerável, como se um toque bastasse para desintegrá-lo. Por fim, conseguiu adormecer. Sonhou com lagos de água doce e regatos límpidos e borbulhantes.

 

Cen acordou com uma chuva fria e constante. Virou a boca para o céu, abriu-a e deixou que a água lhe ensopasse a língua e lhe enchesse a garganta. Em seguida, despiu o chigdax, atou as mangas nos punhos e deixou-as abertas para que a chuva entrasse. Quando as mangas estavam um quarto cheias, a chuva transformou-se em chuvisco. Cen agarrou uma das mangas por cima, desfez o nó e enfiou o punho no gargalo estreito do odre. Levantou o chigdax e a água escorreu para dentro do odre. Em seguida, fez o mesmo com a outra manga.

Tapou o odre, torceu os cabelos, deixou escorrer a água para as mãos e bebeu o que pôde. Sorveu a umidade que se acumulara nas penas do sax. Tirou uma mão-cheia de água do fundo do barco e bebeu. Mas tinha gosto de sal, de peixe estragado e dos seus próprios dejetos. Com receio de voltar a adoecer, jogou-a fora.

Ainda se sentia fraco dos vômitos e da diarréia, mas a inteligência que demonstrara ao aproveitar a água da chuva deixou-o satisfeito consigo próprio. O sax estava molhado, o vento estava frio, e ele começou a tiritar e depois a tremer. De repente, assustou-se outra vez. O frio podia matá-lo mais depressa do que a sede. Vestiu o chigdax por cima do sax e sentiu um certo alívio por ele o proteger do vento e permitir que o pouco calor do seu corpo aquecesse o sax, que estava molhado. Desenfiou os braços das mangas e cruzou-os, assustado com a dor nas costas. Olhou para o céu, esperando ver uma aberta nas nuvens, e entoou um cântico para pedir calor ao Sol.

A chuva deslocara-se para norte e as nuvens deixavam entrever um céu azul a sul e a oeste, mas estava anoitecendo, e Cen percebeu que a aberta não lhe traria o calor do Sol, mas sim o frio das estrelas. Espreitou para leste e verificou que estava vendo mais do que a escuridão própria do fim do dia. Apesar do estado dos seus olhos, avistou os cumes escarpados das montanhas a uma certa distância da costa. Atirou uma tira de babiche ao mar e viu-a afastar-se atrás dele. A corrente estava muito mais rápida, era muito mais do que um rio no meio do mar, mas agora era também a força das ondas que os arrastava para terra.

Foi acometido de outro espasmo e ficou hirto. Depois percebeu que era apenas o nervosismo próprio de um homem que avistava uma costa desconhecida sem ter um remo forte, que estava ferido e que via mal. Que chances tinha ele de que as ondas o empurrassem para uma enseada amena? Descobrira um rio, mas este aproximava-se de terra com a mesma força de outro rio qualquer. O mais provável era desembarcar de noite. com maré baixa ou alta?

Com um remo mais forte, poderia navegar ao longo da costa até o amanhecer, mas com aquele que tinha, e sem forças, sabia que não conseguiria fugir. Soltou um gemido e ouviu uma voz na sua cabeça, uma voz de há muito, muito tempo.

- Pois então estás lamentando-te outra vez? Seria a voz do pai? Não, era mais forte.

- Preciso de um bom remo - respondeu Cen em voz alta.

- Estás preocupado com o teu remo?

- Evidentemente. Olha para ele. É apenas um ramo, um pedaço de madeira flutuante.

- A preocupação é outra forma de lamentação. Olha para as coisas boas que tens. Precisavas de água, e choveu. Precisavas ver, e os teus olhos desanuviaram-se.

- Mas os meus ouvidos...

- Precisavas ouvir, e consegues ouvir-me.

Cen irritou-se e começou a gritar.

- Estás falando com o meu espírito. Isso não é ouvir! Se eu pudesse ouvir, saberia qual a direção das correntes em relação à praia, como é que as ondas quebram.

Gritou até ficar com a garganta tão inflamada que as suas palavras ficaram reduzidas ao movimento dos lábios. Depois, deixou de ouvir a sua voz. O céu noturno encheu-se de nuvens a leste, que escureceram a terra e o mar. Cen sentou-se, de olhos e ouvidos alerta, pronto a qualquer momento para o embate provocado pela rebentação.

Quando a manhã tingiu o céu de cinzento, Cen percebeu que a corrente abrandara. Viu as aves marinhas às voltas, mas ainda se encontrava a uma certa distância da costa.

Ergueu uma prece de ação de graças que aprendera na infância. Embora a singeleza das palavras não fosse própria de um homem, ele não se lembrou de mais nada.

O mar começou a ficar agitado e o iqyax balançava na água. Cen soltou o remo e serviu-se dele para manter a proa virada para as ondas. Ao aproximar-se da costa, ficou flutuando sobre uma camada de kelp e descobriu que podia orientar-se agarrando-se sucessivamente às hastes das plantas. Deste modo, passou por um rochedo que a água cobria por completo.

Começou a sentir as mãos e os dedos dormentes e mal conseguia agarrar-se ao kelp e deixar-se ir quando era preciso pegar a haste seguinte. Já vira homens afogarem-se tão perto de terra como ele. Quando era pequeno, fora caçar focas no porto com um grupo de homens. Uma corrente empurrara-os para as rochas, que rasgaram as coberturas de vários iqyax. Um dos homens conseguiu arrastar-se para a proa do iqyax do seu companheiro, mas os outros agarraram-se aos seus barcos, que se tinham inundado quando a água encheu os cascos. O mar estava tão frio que pouco depois começou a provocar-lhes cãibras. A crispação nos braços e nas pernas era tal que eles não conseguiram manter-se à superfície.

Ao tentar salvar o homem que estava mais perto dele, Cen empurrara também o seu iqyax para as rochas e rasgara a cobertura, mas a parte pior do rasgão ficara acima da linha de água. Cen não conseguiu aproximar-se do homem antes de este se afogar. Quando conseguiu chegar à costa, o seu iqyax estava cheio de água, de tal modo que a mais pequena onda rebentava por cima da coberta.

Agora, Cen fazia um esforço para agarrar o cabo do seu remo improvisado. A dor atravessava-lhe os dedos e enviava mensagens agudas para os braços.

- Dá graças - disse a voz.

Furioso, Cen cerrou os dentes.

Levantou os braços torturados, mergulhou o remo no mar e desejou que a pá larga e desajeitada ignorasse o kelp, mas este enrolou-se nela e prendeu-a.

Cen puxou, mas as ondas revolveram o kelp e desviaram o iqyax para umas rochas. Cen puxou com mais força, e pareceu-lhe que as costelas se soltavam da espinha. Deu um grito, levantou o remo, torceu-o e ouviu a madeira estalar, não com os ouvidos mas com os ossos das mãos. Depois, o kelp engoliu a pá e metade do cabo.

- Dá graças - sussurrou a voz.

O grito de Cen não precisou de palavras, e ele começou a enfiar o pau no mar. Mergulhou e voltou a mergulhar a ponta partida na água, gritando até que uma camada de pele se lhe soltou da garganta e ele não conseguiu respirar por ter a boca cheia de sangue.

Então imobilizou-se, exausto, embalando os restos do remo nos braços, cuspindo sangue, chorando.

Por fim, quando a garganta deixou de sangrar, Cen conseguiu respirar outra vez e disse em voz baixa:

- Dou graças.

Atou o que restava do remo à coberta. Com as mãos tremendo e os dedos empedernidos, conseguiu puxar a extremidade mais grossa do ramo de cedro do local em que a guardara, dentro do iqyax. Atou-a à coberta com uma linha de arpão. Assim, se as ondas lha arrancassem da mão, ele conseguiria recuperá-la.

Em seguida, levantou as mãos ao céu e gritou:

- Dou graças!

Sem o pau, nunca teria conseguido levar o iqyax para terra em segurança. As rochas escondiam-se debaixo de água, e Cen só as via quando estava quase em cima delas. Então, servia-se dele e afastava-se, evitando que a rocha rasgasse a cobertura do iqyax. Uma vez, fez um rombo no casco ao bater na ponta de um recife, mas o iqyax estava bem construído e, apesar de o casco ter cedido por instantes, voltou à sua forma inicial quando Cen se afastou. Cen seguiu a orla do recife até este se abrir. A abertura era estreita, mal dava para o iqyax passar, e a corrente era forte, um autêntico rio que corria entre as duas margens pedregosas do recife, mas Cen conseguiu encaminhar bem o barco e a corrente ajudou-o a passar. Depois, encontrou-se numa zona profunda de águas calmas. Pousou o pau na proa e examinou a costa.

Já estava tão perto que o perigo era reduzido. Mesmo que destruísse o iqyax nas rochas, o mais provável era conseguir escapar. Os rochedos tinham dado lugar a uma praia batida pelas ondas, com grandes dunas de areia cinzenta e dourada, estriadas, como se uns dedos tivessem puxado e misturado as cores. Mas a terra irrompia abruptamente do mar, numa elevação que tinha a altura de um homem - não era um local fácil para um iqyax entrar, sobretudo para uma pessoa tão abatida e fraca como Cen.

Cen conduziu o barco ao longo da praia até chegar a um ponto em que a faixa de areia era mais larga, as dunas recuavam e o terreno era plano. Nem percebera o susto que apanhara senão quando o medo se afastou, deixando-o vazio, cansado. Talvez o medo fosse a única coisa que o obrigava a lutar. Agora só queria dormir. Mas fez um esforço para examinar a costa, para se concentrar nos problemas que iria enfrentar, nos perigos diferentes dos que o mar lhe criara.

Tinha poucas armas - as facas que a tempestade lhe deixara, e o seu pau grosso de cedro, mas pouco mais. De que lhe serviriam, se ele tivesse de enfrentar lobos ou um urso? Não lhe restava nada que pudesse trocar, exceto um monte de colares de conchas e o seu iqyax. A embarcação precisava de uma cobertura nova, mas a carcaça parecia não ter sido afetada.

Cen olhou para a praia ao passar, avistou a foz de um ribeiro e fez uma careta. O mais provável era que o fluxo do rio tivesse cavado um fosso no meio do recife, e ele não queria ser apanhado numa corrente que podia empurrá-lo de novo para o mar. Chegara o momento de pôr o seu iqyax em terra.

O medo apoderou-se dele, enfiou-se na garganta e apertou-lhe o coração.

”Palerma”, pensou ele. “Não desejavas senão isto desde que a onda te apanhou. Aqui estás tu numa boa praia, num local onde será fácil desembarcar, e de repente tens medo!”

Mudou a posição das pernas, enfiou o pau do lado oposto ao da costa e virou o iqyax para a praia. As ondas apanharam-no e levaram-no para a costa a toda a velocidade. Cen lamentou não ter um remo para ir mais devagar.

- Isto não é nada - disse ele em voz alta ao iqyax, esperando dar-lhe coragem.

Cen não se enganara. A terra subia gradualmente debaixo de água, e quando as ondas o fizeram chegar à costa, ele sentiu apenas um pequeno solavanco, provocado pelo casco que roçara nas pedras do fundo.

Cen soltou um grito de ação de graças.

- Obrigado! - gritou ele. - Obrigado!

Atirou o pau para baixo das amarras da pá que atravessavam o iqyax de um lado ao outro e depois agarrou-se ao rebordo, dos dois lados. Em geral, saltava de pernas abertas, uma de cada lado do iqyax, mas dessa vez, ao cair, as pernas não o agüentaram e ele viu-se sentado no rebordo, com uma perna para cada lado. Desatou a rir, rebolou e deixou-se cair na areia molhada. Veio uma onda que o atingiu no peito e na boca. com a força dos braços, Cen tentou levantar-se de novo, mas tinha as pernas fracas e só conseguiu rastejar. Agarrou as amarras do remo com uma mão e conseguiu arrastar o iqyax, subindo o declive da praia e colocando-o fora do alcance das ondas. Depois, desfaleceu. Ficou ali deitado, respirando com dificuldade, e sentiu o solo a balançando, como se ainda estivesse em posse do mar.

 

Cen bebeu água do rio até se fartar e conseguiu apanhar alguns peixes construindo uma represa improvisada com madeira flutuante e ramos de salgueiro. Não sabia ao certo onde o mar o deixara, mas durante a maré baixa a areia e os depósitos aluviais que se prolongavam para além da praia fizeram-lhe lembrar os arredores da aldeia dos Caçadores de Morsas.

Descansou durante três dias. Consertou as suas armas e roupas o melhor que pôde com aquilo que o mar lhe deixara. Depois, concluiu que já tinha forças suficientes e que melhorara do ouvido e da vista, e partiu para a aldeia dos Caçadores de Morsas. Seguiu ao longo da costa, acompanhando as marcas deixadas pela maré alta, com o iqyax às costas e a proa revirada sobre a cabeça. Pensara em desfazer-se da cobertura do barco, que estava podre e perfurada, mas depois lembrou-se de que talvez ela lhe servisse para se abrigar do vento e da chuva durante a noite. Agüentou o peso suplementar, descansando mais vezes e parando mais cedo.

Ao fim de dois dias de caminho, chegou a um grande rio e riu ao vê-lo. Estava a menos de um dia da aldeia dos Morsas. Ao pensar em tendas aquecidas, carne fresca, fogos acesos e peles para dormir, sentiu-se quente, apesar da névoa acinzentada.

No terceiro dia, chegou à aldeia, ouviu os cães latindo e avistou a fumaça clara das lareiras que se elevava no céu sombrio.

- Dou graças - disse ele em surdina, assentando os pés no chão com mais força e agarrando-se melhor ao iqyax.

Pensou que as crianças fossem esperá-lo. Ao contrário do Povo Rio, os Morsas não caçavam caribus, mas nessa altura do ano deviam estar nas suas aldeias de Inverno. Se os caribus fossem ao encontro deles, percorrendo as praias como se procurassem atravessar o mar do Norte, os Morsas caçavam-nos, mas recorrendo a métodos disparatados empurrando os animais para o mar e apanhando-os com arpões, como se os caribus fossem focas ou leões-marinhos.

Como as crianças não apareceram, apesar do latir dos cães, Cen começou a gritar para anunciar a sua presença. Ao aproximar-se da primeira tenda, pousou o iqyax, bem longe dos cães presos, e raspou na aba da porta de pele.

As cabanas dos Morsas pareciam ser um misto dos ulax dos Primeiros Homens e das tendas do Povo Rio. Os homens escavavam-nas parcialmente na terra e depois erguiam paredes de pedra e de terra e raízes. As mulheres cobriam os postes do telhado com pele de morsa ou de leão-marinho e, tal como o Povo Rio, construíam túneis forrados de pele à entrada. Mas lá dentro, à parte a luz que entrava pelo telhado de pele, as cabanas pareciam-se mais com as tendas dos Primeiros Homens. Os Morsas usavam lanternas de pedra cheias de óleo para cozinharem e para se aquecerem e forravam as paredes e o chão de esteiras de erva entrelaçada.

Por fim, uma mulher abriu a aba da porta. Depois de observar os movimentos da sua boca e de fazer um esforço para ouvir o que ela dizia, apesar do ruído nos ouvidos, Cen percebeu que ela estava ralhando com ele. Perguntava-lhe porque ele ficara à espera que aparecesse alguém e não entrara. Não sabia que todo mundo era bem-vindo na cabana dela? Porque a obrigara a sair do calor do seu lugar junto da lanterna de óleo?

No entanto, quando a mulher lhe viu o rosto, cobriu a boca com a mão e soltou um lamento agudo. Depois, apareceu outra mulher no túnel de entrada. Fez sinais de proteção e agitou as mãos como se quisesse afastá-lo.

- Sou Cen - disse ele, e o lamento da mulher aumentou de tom.

De repente, Cen percebeu. Alguém, talvez o próprio Ghaden, ou um visitante da aldeia de Chakliux, dissera aos Morsas que ele tinha morrido afogado. Agora, estava ali, com as roupas apodrecendo no corpo e o rosto marcado pelo sofrimento. Pior, o iqyax danificado estava a seu lado, no chão.

- Não! - disse ele, falando na língua dos Morsas. Eu não morri. Disseram-vos que eu estava morto, mas não estou.

As duas mulheres começaram a cantar qualquer coisa para apaziguar os espíritos, e Cen abanou a cabeça, irritado com a sua estupidez. As mulheres deixaram cair a aba e agarraram-na quando Cen tentou tirá-la das mãos. Cen desistiu e recuou, frustrado. Estava esfomeado e sentiu o cheiro da carne cozida, carne de foca, saborosa e gorda.

Por instantes, a cabeça pareceu-lhe tão leve que se sentiu atordoado, mas fechou os olhos para manter o equilíbrio. Em seguida, pegou o iqyax e encaminhou-se para a tenda de Yehl, que ficava no centro da aldeia.

Conhecia Yehl há muito tempo, desde que o pai do homem era o xamã da aldeia. Yehl não era tão dotado nem tão inteligente como o pai, mas sabia como amedrontar as pessoas com os seus poderes e os seus cânticos, e era o chefe da aldeia. Pouco a pouco, alguns dos Caçadores de Morsas tinham partido - duas famílias num ano, uma noutro, todos os anos - até que a aldeia ficara com metade do tamanho que tinha quando o pai de Yehl era vivo, mas as pessoas que ficaram eram boas, generosas com o que tinham. Era um bom local para fazer negócio.

Cen pôs o seu iqyax à porta de Yehl, mas dessa vez não arranhou a parede da tenda. Entrou descaradamente no túnel e só então arranhou a aba interior.

- Vim fazer negócio e partilhar o calor da tua tenda, disse ele.

Em seguida, afastou a aba para o lado e viu o rosto estupefato de Yehl.

Yehl vestia apenas umas calças de pele de foca e no peito nu, bem untado de óleo, viam-se vários colares. A mulher, nova e muito jovem, usava o cabelo caído sobre os ombros e com um risco ao meio pintado de vermelho para mostrar a aprovação do marido. Também ela vestia apenas umas calças de pele de foca e tinha uns seios tão pequenos que mais parecia um rapaz do que uma mulher, mas o seu rosto era belo, redondo e macio e enfeitado com linhas e círculos tatuados a carvão.

- Bem-vindo! - exclamou a moça, sorrindo e mostrando uns dentes fortes e brancos. Apontou para uma esteira ao lado do marido. - Temos comida.

Mas Yehl continuou olhando para Cen, boquiaberto. Por fim, vasculhou nas esteiras do chão até encontrar uma faca de lâmina fina, daquelas que as mulheres usavam no trabalho delicado de raspar as peles junto dos orifícios dos olhos.

Tinha um ar apalermado, com a faca na mão, mas Cen evitou sorrir e disse:

- Talvez tenhas ouvido dizer que eu morri afogado durante uma tempestade no mar do Norte. Como podes ver, estou vivo.

Cen estendeu as mãos para provar que não era um espírito.

A mulher escondeu-se atrás de Yehl e encostou a face às costas do marido.

Cen suspirou.

- Eu não sou um espírito. Estou vivo - disse ele, acentuando as palavras. - O meu iqyax conseguiu resistir à força da tempestade e da onda que me apanhou, mas eu perdi os remos e os arpões e, durante algum tempo, a vista e o ouvido. Ainda tenho dificuldade em entender o que dizes, porque a voz do mar ficou-me nos ouvidos.

Yehl começou a entoar um cântico para afastar os espíritos, largou a faca e tocou nos amuletos que trazia ao pescoço, à cintura e em fitas atadas aos braços.

- Eu não sou um espírito! - gritou Cen, e só percebeu que estava falando muito alto quando Yehl e a mulher taparam os ouvidos com as mãos.

- Olha! - disse Cen.

Cen puxou da faca que trazia na manga, levantou a mão e fez um corte na palma.

Yehl olhou para ele, embasbacado. Inclinou-se para a frente e passou a ponta do dedo pelo sangue que escorria do golpe. Esfregou o dedo no polegar e depois levou-os à boca.

Nesse momento, dois jovens irromperam pela tenda, com as mãos cheias de amuletos. Cen levantou-se logo, mas Yehl ficou onde estava.

Os jovens pararam, ambos a arfando como se tivessem vindo correndo.

-Quantos são vocês? - perguntou Yehl.

- Muitos - respondeu um deles. - Toda a aldeia. Os guerreiros todos, nós e os velhos.

- Está bem - disse Yehl, apontando com o dedo ensangüentado. - Já viram algum espírito sangrar?

Os jovens não deram resposta, e Yehl sorriu a Cen. Foi um sorriso dissimulado, como se ambos fossem conspiradores.

- Perguntem aos velhos. Vejam o que eles pensam, disse Yehl.

Os homens fizeram a pergunta aos que se encontravam atrás, e pouco depois chegou a resposta:

- Os espíritos não sangram.

- Então, chegou o momento de saudarmos o meu amigo Cen, que voltou para junto de nós - disse Yehl. - Vão dizer às mulheres que amanhã faremos uma festa. Durante todo o dia. Passaremos a noite comendo, dançando e a nos divertindo.

Cen embainhou a faca no punho e cerrou o pulso para estancar a hemorragia. Suspirou. Preferia que não houvesse festa, mas como ele podia recusar aquela hospitalidade? Conhecia Yehl há muitos anos, conhecia-o bem. Durante a festa, Yehl ofereceria a Cen novas roupas, amuletos, armas, tudo aquilo de que ele precisava, e como podia alguém aceitar esses presentes sem dar nada em troca? Cen só tinha o seu iqyax, o seu chigdax roto, colares, algumas armas e alguns odres.

Aa, teria de desistir do seu iqyax? O pensamento era um peso no seu peito, mas Cen guardou a tristeza para si e sorriu. Ouviu com atenção os planos de Yehl para a festa e fingiu-se satisfeito.

Os festejos duraram três dias e, quando terminaram, Yehl tinha o iqyax de Cen e Cen recebera roupas novas, armas novas e comida suficiente até chegar à aldeia de Chakliux. Partiu na manhã seguinte, fez uma breve parada para acariciar o iqyax e agradeceu-lhe a resistência que ele demonstrara. Enquanto caminhava pela praia, foi apanhando pedaços de madeira flutuante seca e atou-os às costas, já pensando em quilhas e em carcaças de iqyax. Tinha o Inverno todo para construir outro barco e, embora muito provavelmente ele não tivesse o mesmo espírito do iqyax construído por Chakliux, seria como um irmão e Cen o trataria bem, esperando os seus favores quando ele fosse caçar ou negociar.

Embora Cen ainda não tivesse recuperado totalmente as suas forças, manteve um bom ritmo de caminhada e chegou à aldeia de Chakliux seis dias depois de partir da aldeia dos Morsas.

As crianças correram ao seu encontro, reconheceram-no e soltaram gritos de alegria, embora algumas lhe tivessem perguntado pelos fardos, com o desapontamento na voz.

Talvez as pessoas da aldeia de Chakliux não tivessem ouvido dizer que ele tinha morrido. Cen não sabia o que pensar, até que apareceram duas mulheres que chamaram as crianças e levaram amuletos aos olhos, recuando até aos túneis de entrada das suas tendas de pele de caribu.

- Vocês ouviram dizer que eu tinha morrido - gritou-lhes Cen, atravessando a aldeia em direção à tenda de Chakliux. - Mas não morri. A tempestade levou-me para longe, para o mar do Norte, mas consegui sobreviver e voltei.

Cen repetiu estas palavras várias vezes, como se estivesse cantando, mas as mulheres mantinham as crianças afastadas, como se ele fosse portador de uma maldição. Quando Cen chegou à tenda de Chakliux, não entrou e gritou:

- Chakliux, meu amigo, vem cá. Fiz uma longa caminhada para estar contigo e com a tua mulher.

Ficou à espera, mas não houve resposta, e as vozes das mulheres que se encontravam atrás dele ergueram-se num ulular de medo. Talvez ele tivesse que fazer mais um golpe na mão. Detestava pensar nisso. O golpe estava cicatrizando bem, graças à jovem esposa de Yehl e à mezinha que ela lhe dera. Ganhara crosta e fazia um comichão terrível, sobretudo de noite. Cen não tinha vontade de se cortar outra vez, mas preferia fazê-lo a morrer nas mãos dos homens que julgavam que ele era um espírito vindo para os amaldiçoar. Os espíritos podiam cometer abusos que estavam vedados aos homens.

- Chakliux! - gritou ele outra vez. - Aqamdax!

- Cen?

A voz era tão calma que ele mal a ouviu e, ao voltar-se para trás, Cen deparou com Aqamdax.

- Cen? - repetiu ela. - És espírito ou homem?

- Homem - respondeu ele.

Depois, levantando o queixo em direção às mulheres que estavam à entrada das tendas, acrescentou:

- Mas, se lhes desse ouvidos, não saberias.

- Elas estão com medo, e eu também. Ghaden disse-nos que tinhas morrido. Ele esteve aqui há poucos dias, ele, a mulher e o pai dela, a caminho da aldeia dos Quatro Rios, para ir dizer...

Aqamdax calou-se e tapou a boca com a mão.

- Para ir dizer à minha mulher e às minhas filhas que eu tinha morrido - concluiu Cen.

- E tu não morreste.

Cen riu.

- Não, não morri.

Aqamdax vestia uma parka de pele de caribu, e o capuz empurrado para trás mostrava a cabeça escura de um bebê às suas costas. Também trazia uma menina empoleirada na anca. Cen sorriu à criança.

- Elas estão muito crescidas - disse ele.

- Sobretudo esta - respondeu Aqamdax, pousando a filha no chão.

A menina enfiou um dedo na boca e escondeu-se atrás da mãe, agarrando-se à ponta felpuda da parka de Aqamdax.

Cen reparou que ela tinha um pé de lontra como o pai e que andava com pouca firmeza. Agachou-se, tirou do interior da parka um colar de contas de osso de peixe e estendeu-o à menina nas pontas dos dedos.

- E o mais velho, o teu filho Angax?

- Está com o pai. Foram caçar pássaros e não devem demorar.

- Pequenina, isto é para ti - disse Cen à filha de Aqamdax, fazendo balançar o colar na mão.

A menina saiu de trás da mãe e deu um passo, com medo.

- Lembras-te de Cen? - perguntou Aqamdax à filha. É o pai de Ghaden.

- Tio? - perguntou a menina, com a sua vozinha de criança.

Aqamdax inclinou a cabeça para Cen.

- Sim, tio - respondeu ele.

Ao ouvir a confirmação, a criança deu uma corrida, agarrou o colar e refugiou-se atrás da mãe.

Aqamdax e Cen desataram a rir, e pouco depois as mulheres da aldeia os seguiram, saindo das tendas e juntando-se à volta de Cen, enquanto ele contava a história da sua sobrevivência.

Quando Chakliux e Angax chegaram a casa, o rapaz exibiu orgulhosamente um casal de ptármigas. Cen estava sentado junto da lareira, encostado a um espaldar de madeira de salgueiro, com a barriga cheia e os pés quentes.

Chakliux entrou de rompante na tenda, rindo.

- Queríamos fazer-te uma surpresa - disse Aqamdax, quando se levantou na ponta dos pés para mexer a sopa na panela que estava pendurada por cima do fogo.

- Ainda antes de chegarmos à aldeia, as crianças foram avisar-nos - disse Chakliux.

Chakliux tinha oito, ou talvez nove mãos-cheias de Verões, mas parecia um jovem, com poucos cabelos brancos e a barriga firme e lisa. Aqamdax também tinha um aspecto muito jovem, embora com os seios mais cheios e as ancas mais largas, como era natural numa mulher que já dera à luz e amamentara vários filhos. Eram os dois felizes um com o outro, e a sua alegria fez com que Cen sentisse a falta de Gheli.

Enquanto Aqamdax depenava e amanhava os pássaros de Angax, Cen voltou a contar a sua história. Chakliux escutou-o atentamente e às vezes fazia perguntas, coisas que um contador de histórias gostava de saber, e Cen percebeu que ele queria acrescentar essa história ao seu rol.

Quando a história acabou, Chakliux fez a pergunta que Cen esperava.

- É uma boa história, daquelas que as pessoas deviam ouvir muitas vezes. Achas que um dia a podes oferecer a um contador de histórias para que ela não seja esquecida?

Cen sorriu.

- Ofereço-a hoje mesmo - respondeu Cen. - É a minha história e voltarei a contá-la, mas vocês os dois também podem contá-la quando quiserem. Sei que a contarão bem.

- Só posso ficar aqui esta noite - acrescentou ele, para evitar qualquer comemoração. - O meu filho julga que eu morri, assim como a minha mulher e as minhas filhas, muito provavelmente. Tenho que ir falar com eles.

Chakliux esfregou as mãos e aproximou-as do fogo.

- Eu vou contigo - disse ele. - Não deves querer que o Povo Quatro Rios pense que és um espírito e tente enviar-te para o mundo deles.

Chakliux desatou a rir, mas Cen abriu a mão, mostrou-lhe a ferida e explicou como convencera os Caçadores de Morsas de que estava vivo.

Depois, acrescentou:

- Disseste-me que o meu filho esteve aqui com a mulher e o pai dela.

- Os três - confirmou Chakliux.

- Os quatro - emendou Aqamdax. Ajoelhou-se ao lado do marido e entregou-lhe o bebê, que começara a choramingar. - Pega-lhe enquanto eu meto os pássaros na panela. A mãe da mulher também veio, mas não ficou na aldeia. É dos Primeiros Homens e teve medo de nós.

Cen resfolegou, acometido de uma raiva súbita.

- Quando eu parti para esta viagem, o meu filho não tinha mulher. Essa mulher chama-se Uutuk?

- Sim, Uutuk - confirmou Chakliux.

- É boa pessoa, e uma boa esposa para o teu filho. Vais ficar satisfeito de a teres como filha.

- Não. Eles mentiram-vos. Até Ghaden mentiu - disse Cen com amargura. - À mulher dele, eu posso perdoar. Sei que ela não percebe o que fez ao trazer a família com ela, mas Ghaden sabe.

- Cen, estás cansado - disse Chakliux. - Estás preocupando-te com coisas sem importância. O pai dela, Foca, é um gabarola, mas tratou bem Ghaden e Uutuk.

- A mãe dela é K’os.

As palavras de Cen foram como facas, e pareciam ter rasgado as paredes de pele de caribu da tenda e dado entrada a um vento agreste. O lume agitou-se e crepitou, e o bebê desatou a chorar convulsivamente.

Cen viu as perguntas no olhar de Chakliux, a desilusão, e preparou-se para a sua fúria, mas quando Chakliux falou, foi para dizer:

- Ainda bem que eu resolvi ir contigo à aldeia dos Quatro Rios.

 

                  História de Chakliux

Chakliux e Cen levaram sete dias para chegar à aldeia dos Quatro Rios. No caminho, Chakliux tentou não pensar nas caçadas ao caribu de que não iria participar. Os homens tencionavam partir numa manhã em que o céu prometesse vários dias sem chuva. É claro que Sok supriria a sua falta, mas ele preferia alimentar a sua própria família. Se não, como podia partilhar com os velhos e doentes? Como podia confraternizar verdadeiramente nas festas que se seguiam às caçadas? Quando o remorso se tornou insuportável, Chakliux lembrou-se de que o fato de perder as caçadas não era nada comparado com aquilo que Cen sofrera.

Os olhos de Cen continuavam a incomodá-lo. Às vezes, lacrimejavam tanto que ele nem via o suficiente para continuar a andar. Se Chakliux ia à frente e dizia qualquer coisa, Cen nem se percebia que ele falara, e, se ia atrás, era obrigado a voltar-se para lhe ler os lábios.

O mar roubara muita coisa do homem, e Ghaden, com a sua insensatez, só piorara a vida de Cen, e não só a dele como a de todo o Povo Rio. K’os tinha muitos motivos para se vingar.

Com Uutuk como esposa, Ghaden nunca se veria livre de K’os, e qual a aldeia do Povo Rio que os receberia de boa vontade? Ghaden teria que viver com a família da mulher, pelo menos até que K’os morresse, e ela era uma mulher que parecia não envelhecer, como se a maldade impedisse que o tempo a marcasse.

À medida que avançavam, a raiva de Chakliux em relação a Ghaden aumentava e, ao fim do dia, com o pé de lontra doendo, mal conseguia conter as palavras desagradáveis, apesar de Cen não ter feito nada que o ofendesse.

Por fim, no último dia, Chakliux começou a encher a cabeça de histórias, pensando quase sempre na história da sobrevivência de Cen. Repetia-a em surdina enquanto caminhava, e dava ao mar o que lhe era devido, mas louvava a ingenuidade de Cen na sua luta pela vida.

Aparentemente, a história dissipou a ira de Chakliux. Quando ambos pararam para comer e pernoitar, Chakliux conseguiu sorrir sem receio de proferir palavras amargas nem de se lamentar sem motivo.

- Se partirmos cedo, chegaremos à aldeia dos Quatro Rios no meio da manhã - disse Cen.

Dobrou em quatro um pedaço de pele de caribu e amaciou-a com a ponta da faca. Em seguida, encostou-a ao olho direito.

- A luz do Sol incomoda-me muito - explicou ele a Chakliux.

- A minha mulher faz lavagens nos olhos com álsina disse Chakliux em voz baixa. - Talvez alguma mulher da aldeia dos Quatro Rios tenha essa planta.

Cen retirou a pala do olho direito e passou-a para o esquerdo. Nenhum deles proferiu o nome de K’os, mas Chakliux sabia que estavam ambos pensando nela. Era uma mulher que entendia de mezinhas, mas em quem não se podia confiar.

- Há uma avó velha chamada Peixe Patudo que entende alguma coisa de plantas medicinais - disse Cen. - Mesmo que não tenha álsina, talvez nos possa indicar onde há.

Chakliux estava fazendo uma fogueira e concordou, dizendo qualquer coisa entre dentes. Quando os gravetos atearam e as labaredas começaram a lamber os ramos maiores, ele tirou carne seca do seu fardo e pôs um cesto de gordura e de frutos secos no meio de ambos. Comeu o suficiente para afastar o cansaço e depois cortou uns ramos de abeto para construir um abrigo e para fazer uma esteira para dormir. Em seguida, foi apanhar lenha para alimentar a fogueira durante a noite.

Adormeceram. Chakliux acordava de vez em quando para manter a fogueira acesa. De manhã, comeram outra vez e depois puseram-se a caminho. Chakliux pensava no que iria dizer a Ghaden, mas este já não era uma criança a quem se pudesse ralhar pelas suas decisões disparatadas ou por esconder a verdade da família. Por isso, quando Chakliux reconsiderou nas palavras, estas pareceram-lhe fúteis.

Podia ele alterar o que Ghaden fizera? E mesmo que pudesse, seria para o melhor, agora que K’os estava entre eles? Talvez Ghaden tivesse ficado com a mulher e a família dela só para garantir que K’os não faria muito mal a ninguém. O melhor seria apenas lembrar a Ghaden que tipo de mulher era K’os. Saberia Ghaden que K’os matara a primeira mulher e o bebê de Chakliux? Era muito provável que não. E se ele não soubesse, a decisão de casar com a filha de K’os era em parte culpa de Chakliux. Mas qual o homem que queria falar de coisas tão dolorosas ou de toldar a felicidade da sua nova família com essa recordação?

Cen ia à frente, mas, quando o caminho alargou, Chakliux apertou o passo e pôs-se ao lado dele.

Cen sorriu, tenso, e disse:

- Estamos quase chegando.

Durante algum tempo, Chakliux não disse nada, mas por fim perguntou:

- O que contaste a Ghaden sobre K’os? Já viveste na tenda dela, nae? Ela foi tua mulher?

Cen suspirou.

- Nesse tempo, no meu coração, ela era minha mulher, mas eu não paguei nada por ela e um dia fui encontrá-la com outro caçador. Então, percebi que ela nunca se contentaria com um só marido.

- Contaste isso a Ghaden?

Cen encolheu os ombros.

- Acho que sim. Pelo menos avisei-o, quando estávamos na Praia dos Comerciantes e eu percebi que ele estava interessado em Uutuk.

- Alguma vez lhe disseste que K’os ajudou a desencadear a luta entre as aldeias de Rio Próximo e Rio Primo?

- Não, mas ele assistiu a essa fase. Deve lembrar-se. Ele sabia que Aqamdax foi escrava de K’os e viu como ela a tratava.

- Mas era uma criança. Quem sabe o que as crianças compreendem?

Então Cen apontou para o céu, e Chakliux avistou colunas de fumaça cinzenta por cima das árvores. Além disso, ouviu qualquer coisa, um lamento débil.

- Escuta - disse ele a Cen.

Cen inclinou a cabeça e, com uma expressão amarga, proferiu:

- Não ouvi nada.

- Talvez sejam só os cães - disse Chakliux, inclinando-se mais e falando mais alto para Cen ouvir. - Estão ganindo como se tivessem fome.

O caminho tornou-se mais largo e as árvores menos frondosas. As mulheres tinham arrancado os ramos mais baixos para alimentar as lareiras. O lamento aumentou de intensidade, assim como o mal-estar de Chakliux. Não, não eram cães. Não eram cães. Os lamentos vinham das tendas, e ele não precisava que lhe dissessem que eram gritos fúnebres. Por fim, até Cen os ouviu.

Olhou para Chakliux e abanou a cabeça.

- Não são cães - disse ele, desatando a correr, agarrado ao flanco, como se os solavancos lhe causassem dores. Chakliux seguiu-o o mais depressa que pôde, mancando, em desvantagem devido ao seu pé de lontra. Cen só parou quando se aproximou de uma grande tenda do lado do rio. Afastou a aba exterior e entrou. Chakliux foi atrás dele. K’os estava de cócoras na parte de trás da tenda, junto de um corpo coberto por uma pele de caribu e atado em posição fetal.

- O que estás fazendo aqui? Onde está a minha mulher? - perguntou Cen apontando para o corpo. - Quem é? Onde estão as minhas filhas? - perguntou ele com uma voz terrível.

Chakliux reconheceu a mãe com facilidade, embora ela tivesse cortado grandes madeixas de cabelo e arranhado a face até sangrar. Estava velha, o que o surpreendeu. O cabelo estava a embranquecendo e o rosto mostrava-se engelhado. Além disso, perdera vários dentes. Curiosamente, continuava bela, com os ossos da face bem definidos e os olhos grandes e brilhantes.

K’os olhou para Cen e depois soltou um longo gemido, cruzando os braços. Por fim, gritou:

- Tu morreste!

- Onde estão os meus filhos? Onde está o meu filho? perguntou Cen.

Chakliux percebeu que não teriam respostas enquanto ele não garantisse a K’os que Cen não era um espírito à procura de vingança.

- Cen não morreu - disse Chakliux.

K’os olhou para ele, a princípio surpreendida, e Chakliux viu o ódio no seu olhar.

- Tu! - exclamou ela.

- Ele não morreu - repetiu Chakliux. - Quem é este cuja morte choras?

K’os desviou o olhar de Cen e fitou o cadáver enfaixado.

- Foca, o meu marido - respondeu ela com um ar de desafio, mas olhou de novo para Cen. - Como conseguiste sobreviver?

- Conto-te mais tarde. Onde está a minha mulher? Onde está Ghaden? Onde estão as minhas filhas?

K’os afastou o cabelo da face e levantou-se.

- Como vês, todos nós estamos de luto - respondeu ela. - Há uma doença qualquer que atacou esta aldeia como uma maldição. As pessoas dizem que fomos nós que a trouxemos mas, se assim fosse, porque teria morrido o meu marido?

Chakliux sentiu um calafrio na nuca e ao virar-se viu que Uutuk entrara na tenda. Uutuk passou por ele, de olhos postos na mãe e com as mãos cheias de odres abarrotando de água. Mas, ao ver Cen, ajoelhou-se, de boca aberta.

Chakliux julgou que ela ia começar a chorar, mas Uutuk ficou olhando e por fim disse a Cen:

- O meu marido tem de saber que estás vivo.

- Onde está ele? - perguntou Cen.

- Foi à procura da tua mulher e da tua filha Daes. Cen suspirou.

- Elas estão vivas?

- Acho que sim, mas quem pode ter certeza se todo mundo da aldeia está morrendo? - respondeu ela. - Gheli e Daes ainda estavam no acampamento de pesca e Ghaden foi à procura delas. A tua outra filha, a pequenina, está com a mulher de Lobo Comprido. Estão bem. Vim agora da tenda delas.

- O bebê não está com Gheli? - perguntou Cen. Porquê?

- Daes trouxe-a para a aldeia. Não sei porquê.

- Entregaste à mulher de Lobo Comprido a minha mezinha para ela se proteger? - perguntou K’os.

As palavras dela deixaram Chakliux gelado, mas, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Cen avançou para K’os, agarrou-a pelo ombro com uma mão e puxou-lhe os cabelos com a outra.

- Afasta-te desta tenda. Caso contrário, morrerás disse ele.

Cen largou-a tão de repente que K’os tropeçou e caiu de joelhos. Uutuk correu para ela e Cen, com uma careta de raiva, agarrou no punho de Uutuk e disse:

- Não tenho nada contra ti, exceto o fato de seres filha de quem és, mas, o que eu lhe disse a ela digo-te a ti. Deixa a minha filhinha em paz. Não te quero na cabana de Lobo Comprido.

Cen dirigiu-se para o túnel de entrada, parou e disse a Chakliux:

- Mantêm-nas debaixo do olho!

Chakliux tirou o fardo que trazia às costas e deixou-o cair nas esteiras do chão. Doía-lhe o pé e precisava de descansar.

- A tua água não oferece perigo, Uutuk? - perguntou ele com uma voz terna.

- Não - respondeu ela.

Chakliux estendeu a mão e Uutuk deu-lhe um odre, mas depois agarrou-lhe o pulso, tirou a rolha e bebeu.

- Não oferece perigo - repetiu ela.

Chakliux bebeu também, e ela embrenhou-se nas tarefas das mulheres. Pendurou os odres, atirou lenha para o fogo e pôs uma mão-cheia de carne seca na panela. K’os fitou Chakliux e soltou um grito fúnebre.

Chakliux ignorou-a e perguntou a Uutuk:

- Ela disse-te que eu sou mais do que teu irmão por casamento?

Uutuk franziu a testa, afastou-se da panela, limpou as mãos nas perneiras e agachou-se junto dele.

- Foi K’os quem te deu à luz? - perguntou Chakliux.

- Ghaden não te contou? Eu queria que ele te contasse. Eu não sou... - Uutuk calou-se, como se escolhesse as palavras. - Antes de eu ser dos Primeiros Homens, pertencia a outro local e a outra gente. Eu e o meu avô metemo-nos num barco para fugir aos guerreiros do Povo do Deus-Urso. O mar levou-nos para os Primeiros Homens, e foi assim que K’os se tornou minha mãe.

Chakliux ficou pensando no que acabara de ouvir. Era um dzuuggi, um contador de histórias, e conhecia toda a sabedoria do seu povo. Nunca ouvira falar dos guerreiros do Povo do Deus-Urso e com certeza que, se eles existissem, ele saberia. Sabia histórias dos ferozes guerreiros que tinham vindo há muito tempo para matar os Primeiros Homens. Talvez eles fossem do Povo do Deus-Urso e os Primeiros Homens lhes dessem um nome diferente do povo de Uutuk.

- Qual é o teu povo? - perguntou ele.

- Somos o Povo Barco - respondeu ela na língua dos Primeiros Homens.

Depois, acrescentou alguma coisa numa língua estranha que Chakliux nunca ouvira. Foi sobretudo isso que o convenceu de que ela estava dizendo a verdade.

- Eu também fui encontrado, como tu - disse ele. K’os interrompera os lamentos fúnebres e aproximara-se um pouco mais.

- Ele está mentindo, Uutuk - disse ela. - Eu é que sei.

- Pois, tu é que sabes, já que és a minha mãe - disse Chakliux.

Uutuk perdeu o fôlego e começou a tossir, como se o que acabasse de saber a sufocasse.

- Ghaden não me falou nisso - disse ela.

- Não acuses Ghaden - interpôs K’os. - A minha vida começou com os Primeiros Homens, e eu já não chamo este homem de meu filho. Ele traiu-me muitas vezes. Até me expulsou como escrava da sua aldeia. Eu contei-te essa história.

Uutuk tapou a boca com as mãos.

- Foste tu? - perguntou ela.

- Estás vendo porque é que eu não te contei? - disse K’os. - Era preferível que pensasses em Chakliux como irmão, porque, apesar de ele ter me tratado mal, tem sido muito bom para Ghaden.

As palavras de K’os pareciam braços fortes apertando o peito de Chakliux, que respirou fundo para se libertar.

- Também lhe contaste o que fizeste à minha mulher, a Gguzaakk?

K’os semicerrou os olhos e disparou:

- Não acredites nele, Uutuk. Ele está mentindo.

- Deixa que seja ela a tirar as suas conclusões - disse Chakliux.

Em seguida, contou a Uutuk como é que Gguzaakk e o filho tinham sido envenenados.

Quando Cen regressou à tenda, Uutuk estava chorando, e K’os debruçava-se sobre o marido morto, de costas para a filha.

Cen começou a falar ainda antes de atravessar a aba da porta.

- Amigo - disse ele a Chakliux. - Preciso que fiques tomando conta da minha filhinha. A mulher que a amamenta está grávida e o seu leite está ficando fraco, mas Patinha já tem idade para comer alimentos moles, caldos e coisas do gênero. Tens certeza de que a comida dela é segura? Cen apontou para K’os com o queixo. - Foi assim que esta mulher envenenou a maioria das pessoas na aldeia.

- Eu não fiz nada a essa gente! - exclamou K’os, com uma voz de choro. - Achas que eu ia matar o meu próprio marido?

Mas Chakliux disse a Uutuk:

- Ela maneja bem o veneno. Tem cuidado.

Uutuk começou a tremer e cruzou os braços como se tivesse frio.

- Muita gente pensa que foi ela quem matou os maridos todos - disse Chakliux. - Eu sei o que ela fez à minha primeira mulher e ao nosso filhinho. Não confies nela.

Depois, olhou para Cen, que andava de um lado para o outro.

- Não podes partir já - disse Chakliux. - Primeiro, come e descansa.

Uutuk levantou-se, mergulhou uma concha na panela e levou-a aos lábios de K’os, até ela comer. Em seguida, encheu duas tigelas para os homens.

 

                   História de Cen

Cen partiu na manhã seguinte. Aparentemente, o dia de descanso na sua tenda, embora sombreado pela presença de K’os, revigorara-o. Andava depressa, seguindo o caminho que uma das mulheres da aldeia lhe indicara. Havia duas mãos-cheias de mortos e outras tantas de doentes, três ou quatro moribundos e outros que talvez conseguissem recuperar. Cada morte era uma ferida no seu coração. Vivia naquela aldeia há muitos anos e, apesar de não ter laços de sangue com ninguém, exceto com a sua filhinha, aquela gente era a sua família. Se K’os pretendia vingar-se dele, escolhera bem.

Ao terceiro dia de caminho, Cen sentiu-se de novo exausto. As suas noites eram atormentadas por sonhos com o mar; os seus dias eram preenchidos com a raiva que ele sentia em relação a K’os, Ghaden e até Uutuk, a nova mulher dele.

Não sabia ao certo se estava dirigindo-se para o acampamento de pesca, não via fumaça, não lhe cheirava a peixe secando, nem ouvia cães latindo. Saiu do mato que crescia dos dois lados do caminho e desembocou numa clareira onde encontrou um abrigo feito de ramos de abeto e as cinzas de uma fogueira. A princípio, julgou que o local estava abandonado e não percebeu porque não se cruzara com Gheli, Daes e Ghaden no caminho. Era verdade que muitas vezes as pessoas construíam os acampamentos de pesca perto uns dos outros. Talvez Gheli não estivesse ali, mas depois Cen ouviu latir ao longe e, de repente, uma mão forte atirou um fardo para fora do abrigo, e Ghaden saiu de rastos.

- Ghaden! - gritou Cen.

A raiva que se fora acumulando na mente de Cen levou-o a esquecer que o filho o julgava morto.

O jovem levantou-se rapidamente e começou a afastar-se, cantando e agarrado a um amuleto que trazia pendurado à cintura.

- Eu não estou morto - disse Cen, e suspirou de frustração por ser obrigado a provar mais uma vez que o mar não o levara. - Não estou - disse ele. - Olha! - Enfiou a ponta da faca na parte mais carnuda da palma da mão e apertou até o sangue pingar para o chão. - O mar não me levou, embora me tenha roubado uma parte do ouvido e da vista.

Ghaden aproximou-se devagar. Cen estendeu a mão, Ghaden fez o mesmo, e caiu-lhe uma gota de sangue nos dedos. Depois, de repente desatou a chorar convulsivamente e agarrou-se a Cen, abraçando-o e dando-lhe palmadas nas costas. Cen afastou-se, rindo, e a sua raiva dissipou-se nesse mesmo instante.

- Temos que ir falar com Gheli - disse Ghaden. Depois parou e calou-se, como se preferisse não ter dito absolutamente nada.

- Ela está bem? - perguntou Cen.

- Está.

Cen examinou o rosto do filho e desagradou-lhe o que viu.

- E Daes? - perguntou ele, desconfiado.

- Estão ambas bem. Estão com Chora-Alto. Lembras-te dele? É da aldeia de Chakliux, o filho de Sok...

- Lembro - respondeu Cen. - Porque ele está com elas? Para onde vão? Porque não regressaram à aldeia?

Ghaden inclinou a cabeça e olhou para o céu. Por fim, disse: . - Há coisas que tens que saber.

- Não consigo ouvir-te, a menos que fales virado para mim - disse Cen.

Ghaden fez uma careta.

- Lamento o que o mar te fez.

Cen encolheu os ombros.

- Não me tirou a vida. Repete o que me disseste.

- Disse: ”Estás com fome? Vamos sentar-nos para comer. Tenho que te contar umas coisas.”

 

                   Aldeia dos Quatro Rios

                   História de Uutuk

- Ela não o matou, isso eu sei - disse Peixe Patudo a Uutuk.

Peixe Patudo era tão velha que mal tinha forças para se sentar. A neta ajoelhou-se atrás dela para que Peixe Patudo pudesse encostar-se às suas pernas. A velha levantou um dedo ossudo e apontou para o rosto de Uutuk, uma indelicadeza que levou a neta a agarrar-lhe o pulso e a obrigá-la a deixar cair o braço.

- Nesta aldeia de Inverno, a maioria das pessoas é tão nova que ainda era pequena quando ela vivia conosco. A minha neta diz que Cen voltou. Ele conhece K’os. Foi ele que a obrigou a partir.

A velha tinha uma voz áspera e falava muito baixinho. Virou-se para a neta e acrescentou:

- No Inverno passado, disse-lhes que me deixassem morrer. Mas esta tem bom coração e um marido que é bom caçador.

Peixe Patudo acariciou a face da jovem.

- Lembras-te quando K’os vivia conosco? - perguntou ela à neta.

- Lembro - respondeu ela. - Há muitas pessoas que se lembram, e algumas querem que ela parta outra vez, mas outras dizem que ela não fez mal a ninguém. Só estão assustadas porque o marido dela teve uma morte horrível e também as preocupa a doença que há nesta aldeia. Ainda bem que os meus filhos e o meu marido já partiram para a caça ao caribu. Passo muito do meu tempo com a minha avó, e por isso não como das lareiras da aldeia. Os que comeram das panelas das lareiras é que adoeceram.

A neta usava um coque apertado no alto da cabeça e enfiara finas tiras de osso em orifícios abertos nos lóbulos das orelhas. A sua tenda estava bem construída, era quase tão grande como a de Cen e parecia invulgarmente vazia sem as armas nem as esteiras de dormir dos homens.

- K’os perdeu um marido nesta aldeia? - perguntou Uutuk.

- Um jovem - respondeu Peixe Patudo. - Muito jovem, quase um menino. K’os podia ser mãe dele. - A velha riu. - Mas ele não se comportava como um filho.

Envergonhada, a neta fez de novo um ar carrancudo e brincou com o cabelo branco e ralo da avó. Afastou-o da face da velha, que lhe deu uma palmada nas mãos.

- É verdade. Ele andava sempre tocando nela - disse Peixe Patudo. - Recordo-me de que eles deram uma festa em meados do Inverno e que ofereceram presentes a todos. Ainda tenho o pente de concha que ela me deu e um colar de contas de osso de peixe. Ainda tenho os dois.

Peixe Patudo já perdera a maior parte dos dentes e, quando se calava, mexia o queixo como se estivesse a mastigar. A saliva acumulava-se aos cantos da boca e manchava-lhe os lábios de branco.

- Ela também me ajudou. Ensinou-me coisas sobre mezinhas. Porque julgam que eu tenho vivido tanto? Ela ensinou-me a fazer chás para curar doenças. Também te ensinou?

- Sim, ensinou - respondeu Uutuk. - Mas há muita coisa que eu não sei, sobretudo sobre as plantas que crescem aqui. É tudo tão diferente da ilha em que eu vivia.

- Viveste numa ilha? Bem me parecia pelo teu nome. Uutuk. É um nome do Povo Rio, nae?

- Dos Primeiros Homens.

E antes que Peixe Patudo pudesse fazer mais alguma pergunta, Uutuk pediu:

- Conta-me o que aconteceu a esse marido.

Peixe Patudo fez beicinho, abanou a cabeça e disse:

- Foi terrível, nem se deve falar nisso, mas como ela é tua mãe, tens que saber. Ele foi esfaqueado.

- Não foi envenenado?

- Não, e é por isso que eu sei que não foi a tua mãe quem o matou - respondeu Peixe Patudo. - Ela entendia muito de plantas. Quem quisesse matar um marido jovem como Dança-no-Gelo e entendesse de plantas teria mais facilidade em envenená-lo.

- Basta! - gritou a neta. - Basta, avó! Vais atrair maldições sobre nós. Fica calada.

A jovem olhou para Uutuk por cima da cabeça da avó e apontou para a porta da tenda com o queixo.

- Agora vá embora. com certeza a tua mãe te conta o que precisares saber.

Uutuk agradeceu às duas mulheres e inclinou-se para depositar uma pena de papagaio-do-mar, laranja-vivo, na mão da velha.

- É para te proteger, avó - disse ela, e saiu da tenda.

Quando se dirigia para a tenda de Cen, Uutuk ainda ouviu Peixe Patudo rindo. Dança-no-Gelo. Sim, K’os falara-lhe nele. E havia um velho que fora o primeiro marido dela, e Uutuk ouvira-a falar de Foca nos belos presentes que ele costumava oferecer-lhe. Depois, houvera aquele chefe dos caçadores que morrera num incêndio. K’os sobrevivera a todos eles.

Uutuk voltou para a tenda de Cen. Chakliux estava trabalhando nas lâminas finas que os homens do Povo Rio utilizavam como pontas das pequenas lanças de fogo que atiravam com os seus arcos. Uutuk vira essas armas pela primeira vez na Praia dos Comerciantes, mas não tinham grande valor. Nenhum dos Primeiros Homens as quisera.

K’os continuava sentada junto do marido morto, gemendo e balançando-se. O funeral cerimonial de Foca realizava-se nessa noite. Seria bom que o corpo saísse da tenda, porque começara a cheirar mal.

O Povo Rio depositava os seus mortos em armações, como Ghaden lhe explicara uma vez, ou incinerava-os se houvesse alguma maldição. O mais provável era Foca ser incinerado. Uutuk estava preocupada com o seu espírito, que ele conseguisse sobreviver às chamas, e rezou pela sua passagem em segurança para o reino dos mortos.

Uutuk aproximou-se de K’os, pôs-lhe a mão no ombro, inclinou-se e disse em voz baixa:

- Mãe, fala-me outra vez desse teu marido jovem de Quatro Rios.

K’os olhou para ela e, apesar de ter estado chorando, não tinha os olhos inchados nem vermelhos.

- Porquê, Uutuk? Alguém da aldeia te falou nele?

- A velha Peixe Patudo - respondeu Uutuk tranqüilamente.

- Aa, bem, como eu te disse, ele morreu. Alguém desta aldeia o esfaqueou. Acho que foi Cen, mas a acusada fui eu.

Uutuk começou a tremer e cerrou os dentes para impedir que eles batessem.

- Porque Cen faria uma coisa dessas? - perguntou ela. K’os sorriu.

- Ele queria-me para ele, mas as pessoas desta aldeia pensaram que, como o meu marido teve uma morte horrível, eu poderia amaldiçoá-las. Obrigaram-me a partir. No meio do Inverno, obrigaram-me a partir.

O olhar de K’os tornou-se sombrio.

- Julgavam que eu morreria, mas não morri - acrescentou ela em surdina.

Uutuk pôs uma pele de foca nos ombros e sentou-se, com a parte de cima de uma bota quase pronta nas mãos. Tentou costurar, mas os dedos tremiam-lhe tanto que ela só conseguiu rezar pelo morto.

 

         Na região inóspita noroeste do acampamento de pesca

 

                   História de Gheli

Os dois homens não levaram muito tempo a encontrar Gheli, Daes e Chora-Alto.

Gheli deu um grito quando viu Cen, e Daes caiu como se tivesse sido atingida por uma lança, mas Chora-Alto deixou-se ficar onde estava e perguntou:

- Ele está vivo ou estamos todos no mundo dos espíritos?

- Está vivo - respondeu Ghaden.

Então, Gheli afastou as lágrimas, correu para Cen e caiu-lhe nos braços. Ele não fez menção de lhe tocar e, por fim, ela recuou, olhou para ele e disse:

- Ghaden te contou. Gheli afastou-se.

- Morrerei pelo que fiz à tua mulher e ao teu filho. Mereço isso, mas por favor não te vingues nas minhas filhas.

Daes meteu-se entre os dois. A moça era alta como a mãe e quase da mesma largura. Levava um grande fardo às costas, e a alça atravessada na testa empurrava-lhe a cabeça para trás. Arreganhou os dentes e falou com palavras duras e bem audíveis.

- Então tu não sabias quem ela era.

- Não - confirmou Cen.

- Vais matar-me por aquilo que ela fez?

- Que culpa tens tu? Nenhuma.

- Continuas a considerar-me tua filha?

Cen estremeceu.

- Serás sempre minha filha.

- Uma mulher pode rejeitar um marido e um marido pode rejeitar uma mulher. Uma filha pode rejeitar uma mãe?

- Mas então quem seria a tua mãe?

- Talvez essa primeira Daes, que tanto se agita dentro de mim e que tem o mesmo nome que eu.

- Talvez essa - respondeu Cen com calma.

- Vou regressar contigo à nossa aldeia.

Gheli começou a chorar baixinho, e as lágrimas caíam-lhe do queixo para o pelo da parka.

- Espera - disse Cen a Daes.

- Não me levas contigo?

- Tens que saber uma coisa. Todos vocês precisam saber uma coisa. - Cen olhou para Ghaden. - Ghaden casou com uma mulher dos Primeiros Homens. Ela e a família foram com ele para a aldeia dos Quatro Rios. Ela chama-se Uutuk. O pai, Foca, era comerciante, mas morreu. Ghaden tem que regressar à aldeia por causa do luto.

- Eles sabem tudo, exceto que Foca morreu - disse Ghaden. - E sabem que a mãe de Uutuk é K’os.

Gheli deixou escapar um som estrangulado.

- Não confies nela - disse ela a Cen. - Da última vez que ela esteve na nossa aldeia, queria-te para marido.

A dureza no olhar de Cen desvaneceu-se. Cen franziu a testa e examinou o rosto de Gheli.

- Eu lembro-me disso - disse ele.

- Ela ameaçou ir dizer-te quem eu era. - Gheli abriu as mãos como se suplicasse compreensão. - Eu tive medo pela minha filha. Pensei que, se tu soubesses quem eu era, poderias matar Daes por vingança.

- Conheces-me e sabes que eu não seria capaz disso, disse Cen, com a tristeza na voz.

- Eu sabia como tu amavas essa mulher que eu matei. Eu sabia como estavas preocupado com o teu filho Ghaden. K’os disse que matava a nossa Daes se eu não te convencesse a aceitá-la como esposa e, como eu não consegui, ela disse que eu tinha que escolher entre a minha própria vida e a de Daes. Ela deu-me o veneno e eu fingi que o tomei. Fingi que estava doente.

- Mas nessa época o marido de K’os era Dança-no-Gelo.

- E qual é o problema para uma mulher que mata com tanta facilidade como K’os? Se ela conseguisse ficar contigo, Dança-no-Gelo morreria. Caso contrário, como ele era novo e bom caçador, serviria para alimentá-la durante o Inverno.

- Mas ela matou-o.

Gheli abanou a cabeça.

- Eu tinha que tirar K’os da aldeia. Para salvar a vida da minha filha.

Gheli olhou para Daes, e a moça fechou os olhos e encostou os ombros ao fardo.

- Também o mataste? - perguntou Cen.

- Eu sabia que iriam acusar K’os. Quem iria pensar que fora eu? Eu estava doente, quase morrendo.

- Eu fiquei contigo nessa noite - disse Cen, como se falasse sozinho. - Eu estava acordado...

- Dormiste. O suficiente.

Daes começou a gemer e soltou um grito prolongado, como se estivesse com dores. Cen tirou-lhe a alça da testa, desatou-lhe o fardo e o pôs no chão. Ela recuou e sentou-se nele, e Cen pôs-lhe um braço em volta dos ombros e levantou-lhe o queixo com a mão.

- Apesar de a tua mãe ter feito o que fez, amou muita gente, incluindo tu. Incluindo eu. K’os nunca gostou de ninguém, a não ser de si própria. Ouve-me, Daes. Estão acontecendo coisas terríveis na nossa aldeia. Foca não foi o único que morreu. Ouviste o que a tua mãe disse. Uma vez, K’os tentou envenená-la. Porque ela não ela envenenar quem a acusa de um crime que ela não cometeu?

- E Mão-de-Pássaro? - perguntou Daes. Falou devagar, como se tivesse medo de fazer a pergunta.

- Está vivo, mas a nova mulher dele morreu.

Daes esfregou a testa com as costas da mão. Em seguida, levantou-se e pôs o fardo às costas.

- Tenho de ir para junto dele - disse ela.

- E ela? - perguntou Daes, apontando para Gheli. Durante muito tempo, Cen não disse nada e, quando levantou a cabeça, olhou para Ghaden.

- Ela foi uma boa esposa e deu-me duas filhas para compensar uma mulher que eu perdi, mas eu não posso impedir-te se a quiseres matar. A tua mãe morreu e tu ficarás sempre com as cicatrizes da faca de Folha Vermelha.

- Passei cinco dias com ela, com Chora-Alto e com Daes - respondeu Ghaden. - Falamos da nossa raiva e do nosso desgosto. Como posso eu matar uma mulher que é mãe das minhas irmãs e mulher do meu pai? Mas acho que ela não deve voltar para a aldeia dos Quatro Rios. K’os falará nela às outras pessoas. - Ghaden olhou Cen nos olhos. Chora-Alto tencionava levá-la e a Daes para a aldeia mais próxima. Ele pode fazer isso.

- Sim, leva-a - disse Cen a Chora-Alto. - Talvez lá ela fique em segurança.

Radiante, Gheli abriu a boca e balbuciou qualquer coisa para demonstrar a sua gratidão. Cen levantou a mão.

- Custaste-nos muito mais do que poderias pagar. Tens mantimentos e um filho que está disposto a levar-te para outra aldeia. Rejeito-te. Arranja outro marido. A minha filha Daes fica comigo.

Gheli desatou a chorar, mas em silêncio, de olhos abertos e com a boca firme. Ficou olhando enquanto Daes e Cen se afastavam e depois virou-se para Chora-Alto.

 

                   História de Gheli

Nessa noite, Gheli e Chora-Alto dormiram no caminho. Falaram os dois do passado, dos bons tempos, das caçadas ao caribu, dos banquetes e das festas. Gheli perguntou por Sok, pela sua nova esposa e pelos seus filhos, e também pela mulher de Chora-Alto.

Chora-Alto tentou dizer à mãe coisas agradáveis sobre Yaa, mas só se lembrou que ela trabalhava muito e que mantinha sempre as roupas limpas e costuradas.

- Precisas de outra mulher - disse Folha Vermelha. É bom que um homem seja leal à sua primeira mulher, mas precisas de filhos e de filhas que tomem conta de ti quando fores velho. O que seria de mim se eu não tivesse ninguém? - perguntou ela, atrevendo-se a pousar a mão no braço dele.

- Tenciono arranjar outra mulher. Em breve - respondeu ele.

Chora-Alto nem tentou explicar que, sempre que escolhia uma mulher, levava tanto tempo para pedi-la que acabava por ser ultrapassado por outro homem. Estava convencido de que isto acontecia porque ele não precisava de outra mulher que fosse maternal, que lhe dissesse o que fazer. Que planejasse a sua vida. Não lhe falou nas noites em que ficava acordado, ainda abraçado a Yaa depois de fazerem amor, com o coração tão cheio dela que duvidava ter espaço para mais uma mulher. Nem que, depois de voltar de uma caçada, só queria ver Yaa, falar com ela, levá-la para a cama. Como podia ele explicar estas coisas à mãe se nem se compreendia a si próprio?

- Sim - disse ele por fim. - Desta vez, quando voltar para a aldeia de Chakliux, vou arranjar uma mulher jovem para ser minha esposa. Tens razão. Preciso de um filho ou de uma filha que cuidem de mim quando eu for velho.

Depois, apesar de ainda haver uma nesga de luz no céu, embrulhou-se nas suas peles e refugiou-se no sono.

Todos os dias, no caminho, Folha Vermelha falava da infância de Chora-Alto e de todas as alegrias que guardava desse tempo. Todas as noites, quando se sentavam junto da pequena fogueira, ela examinava o rosto do filho como se isso a ajudasse a lembrar-se dele.

A viagem demorou mais tempo do que eles julgavam, quase três mãos-cheias de dias, mas finalmente avistaram a fumaça da aldeia por cima dos amieiros que ladeavam o caminho.

Então, Folha Vermelha disse-lhe:

- Esta noite sonhei que devia aparecer sozinha na aldeia, porque uma mulher será recebida com menos desconfiança do que um homem e uma mulher juntos.

Ele começou a protestar, mas ela tapou-lhe a boca com a mão.

- É assim que eu quero.

A teimosia da mãe fez-lhe lembrar Yaa, e Chora-Alto percebeu que era pouco provável que ela mudasse de idéia.

- Pelo menos deixa-me ficar aqui durante o dia - disse ele. - Se eles não te aceitarem, podes voltar para junto de mim, e iremos para outro local qualquer, para outra aldeia, até encontrarmos um lugar para ti.

Folha Vermelha pensou no que ele disse e por fim concordou.

- Está bem. Faz isso. Se eu não aparecer amanhã de manhã, volta sem mim para a aldeia dos Quatro Rios e certifica-te de que Cen disse às pessoas que eu morri.

Folha Vermelha cerrou os punhos.

- Eles vão fazer luto por ti e eu me juntarei a eles disse Chora-Alto, virando a cabeça para o lado quando os olhos da mãe se encheram de lágrimas.

- Um dia, vem fazer-me uma visita com Patinha e Daes. Chora-Alto pensou nos muitos dias de caminho, na grande parte do Verão que se perdia na viagem, mas disse:

- Prometo. Pensa em nós.

Folha Vermelha sorriu, olhou para ele pela última vez e foi-se embora.

 

                   História de Uutuk

Quando Cen, Ghaden e Daes chegaram à aldeia, tinham morrido mais três pessoas, mas não adoecera mais ninguém. As outras tinham-se restabelecido e estavam fracas, mas parecia que iam viver. Ghaden foi encontrar a mulher na tenda de Peixe Patudo, triturando raiz de eupatório-roxo para fazer uma mezinha.

- Encontraste a mulher de Cen? - perguntou ela.

- Não encontramos nada de bom - respondeu Ghaden. Depois, reparando que Peixe Patudo estava ouvindo a conversa, acrescentou:

- A mulher de Cen morreu.

- De doença? - perguntou Uutuk.

- Não. Foram os lobos - disse Ghaden.

A velha começou a cantarolar qualquer coisa que Ghaden calculou ser um cântico fúnebre. Ajudou Uutuk a levantar-se, desculpou-se perante Peixe Patudo e saiu da tenda com a mulher.

- Sabes as cicatrizes que eu tenho no pescoço - disse ele, tão baixinho que quem passasse por ali nem ouvia o que ele dizia.

- Sei.

Uutuk passou-lhe os dedos pelo ombro, e o calor da mão dela fê-lo perceber quanto ele sentira a sua falta. Mas primeiro, queria contar-lhe o que acontecera. Tinham descoberto um local à beira do rio, junto de umas árvores que os abrigavam do vento. Foi aí que lhe falou de Folha Vermelha. Enquanto ele falava, Uutuk levava as mãos à boca e soltava gritinhos de tristeza.

- Uutuk, Chakliux ficou aqui porque está convencido de que foi a tua mãe quem provocou esta desgraça na aldeia. Folha Vermelha também nos disse que K’os tentou envenená-la.

- Acreditas que a minha mãe faria uma coisa dessas?

- Ela falou-te na comida desta aldeia?

Uutuk abriu muito os olhos.

- Ela disse-me que os tabus da aldeia dos Quatro Rios eram muito diferentes. Que as mulheres daqui comiam coisas que podiam deixar os meus filhos doentes ou amaldiçoados. Só comemos da nossa panela desde que chegamos.

Ghaden ajoelhou-se diante dela.

- Não percebes, Uutuk?

Então, Uutuk agarrou-se ao pescoço dele e chorou.

- Tenho uma pergunta a fazer-te, irmão - disse Uutuk.

Ela e Chakliux estavam junto da tenda de Cen. K’os estava lá dentro, de onde não saía desde que Chakliux chegara à aldeia. Ele nem sequer a deixava ir à latrina das mulheres para fazer as suas necessidades. K’os servia-se de um cesto de pele de salmão impermeável e queixava-se da loucura de Chakliux.

- Faz - disse Chakliux.

- Porque é que ela ainda está viva? Se fez tudo aquilo que dizes, ou até uma parte, porque não a mataste?

- Devo-lhe a vida - respondeu ele.

- Pagaste-a quando ela matou o teu filho.

Uutuk falou em voz alta, mas na língua dos Primeiros Homens, que ambos entendiam, ao contrário do povo da aldeia dos Quatro Rios.

Ele abanou a cabeça.

- Sempre que eu decidia que ela devia morrer, acontecia qualquer coisa que alterava a minha decisão.

- Tu tens medo dela - disse Uutuk. - K’os amaldiçoa todo mundo que conhece. Se ela tem todo este poder em vida, imagina do que será capaz na morte, sobretudo em relação à família de quem a matar. Mas nós podíamos cortar-lhe os ossos, como os homens fazem quando apanham um animal poderoso. Isso evitará que ela nos persiga.

As palavras de Uutuk chocaram Chakliux, que não encontrou resposta.

- O Povo Rio também acredita que cortar as articulações protege quem matou?

- Às vezes, o fazemos, mas a melhor proteção vem das orações, dos cânticos e dos amuletos.

- Então o faremos ambos.

- Odeia-a tanto assim?

Os olhos de Uutuk ficaram marejados de lágrimas, e ela virou-lhe as costas.

- Ela sempre me tratou bem - respondeu ela com uma voz débil. - Mas se tanta gente me fala do que ela fez, como posso esperar que ela não faça mal ao meu marido ou aos filhos que venhamos a ter?

- Uutuk, não temos poderes espirituais, e o xamã da aldeia está velho e fraco. Mesmo com os nossos cânticos e orações e o esquartejamento do corpo, como podemos estar certos de que ela não traz de novo o ódio a nós e às nossas famílias? Ghaden disse-te como ela odeia a minha mulher, Aqamdax.

- Vou correr o risco, irmão - disse Uutuk. - E agora é o momento adequado para o fazermos, agora que a tua mulher não está na aldeia. Se o espírito de K’os tiver um momento entre a morte e o esquartejamento, pelo menos ela não conseguirá atingir Aqamdax nem os teus filhos.

Chakliux agachou-se, de costas para a tenda.

- Temos que esperar que terminem os quarenta dias de luto dela - disse ele. - Mesmo que ela não lamente verdadeiramente a morte de Foca, não quero que a maldição dos tabus de uma viúva caia sobre nós.

- Nós somos mais fortes do que julgas, meu irmão, disse ela.

Uutuk sentou-se no chão, cruzou as pernas à maneira do Povo Rio e desatou as botas de pele de caribu.

- Ouvi contar várias histórias sobre o teu pé de lontra e o poder que ele tem - disse ela, sorrindo. - Ninguém te falou dos meus pés?

- Também tens pés de lontra? - perguntou ele, com uma expressão de dúvida.

- Não são de lontra. Olha - disse ela.

Uutuk descalçou as botas e sacudiu as ervas que tinham se colado aos pés. Depois, apontou para o local dos dedos mais pequenos.

- O que aconteceu?

- Este dedo, fui eu que o cortei quando o meu avô morreu - explicou ela, levantando o pé direito. - O outro, foi o meu avô quem o cortou quando eu era pequenina. Dizem que uma criança não se lembra das coisas que lhe aconteceram aos três anos, mas eu me lembro.

- Ainda bem que esse homem morreu - disse Chakliux.

- Oh, não, Chakliux! Deixa-me contar-te o que se passou. Eu contei-te que eu e o meu avô nos metemos no barco, saímos da nossa ilha e fomos para as ilhas dos Primeiros Homens.

- Contaste.

- Não foi uma viagem fácil, e não a fizemos voluntariamente, mas uma tempestade levou o nosso remo e não conseguimos voltar para junto do nosso povo. Fomos apanhados por uma corrente que nos empurrou para o Norte. Entretanto, esgotamos toda a nossa comida. O meu avô cortou os seus próprios dedos dos pés para servirem de isca aos peixes, mas não conseguiu pescar nada. Como estávamos quase morrendo de fome, eu pedi-lhe que cortasse o meu dedo do pé, e ele acabou por ceder. - Uutuk sorriu a Chakliux, mostrando uns dentes brancos e regulares. - Então, ele apanhou muitos peixes, e tivemos comida até K’os nos encontrar.

- Então, esse dedo do pé salvou a tua vida e a do teu avô.

- Salvou.

- Mas que estranha família nós temos, tu e eu, que até temos poder nos pés! - Riram ambos, e depois Chakliux acrescentou: - Não serve de muito, esse tipo de poder.

- Até agora tem chegado, nae? - disse ela na língua do Povo Rio.

Depois mudou para a dos Primeiros Homens. Calçou as botas, endireitou-se e disse:

- Contei-te a minha história para perceberes que, quando eu era pequena, estava disposta a dar tudo para proteger o meu avô. E ainda estou pronta a dar mais para proteger o meu marido e os filhos que venhamos a ter.

Uutuk pôs a mão na barriga, e Chakliux, que já vira Aqamdax fazer o mesmo, perguntou:

- Já?

A resposta de Uutuk foi tímida.

- Acho que sim, embora o meu marido ainda não saiba. Por favor, não lhe digas nada senão depois de resolvermos o que faremos com K’os.

- Não lhe concederemos mais nada a não ser o luto disse Chakliux. - Não podemos permitir que ela ceife mais vidas.

 

         Na região inóspita a noroeste do acampamento de pesca

                   História de Chora-Alto

Chora-Alto passou o dia caçando e trouxe duas lebres gordas e um braçado de ptármigas para o acampamento. Arranjou-as e assou-as no espeto, comeu o que quis e embrulhou o resto na erva para o dia seguinte.

Ao anoitecer, ouviu alguém aproximar. Levantou-se de um salto e viu-se com a faca e a lança nas mãos quase sem dar por isso, mas depois percebeu que era a mãe chamando-o e correu ao encontro dela.

Gheli estava sorrindo. Antes que ele pudesse fazer-lhe qualquer pergunta, ela disse:

- Eu não podia deixar-te partir sem te ver mais uma vez.

Embora ela estivesse sorrindo, Chora-Alto reparou que a mãe tinha os olhos marejados de lágrimas.

- Eles não têm lugar para ti? - perguntou ele.

- Têm. Eles conhecem Cen e ouviram dizer que ele morreu. Eu não lhes disse nada em contrário. Há um velho que quer aceitar-me como esposa.

- Se ele é velho, como pode te sustentar?

- Ele não é muito velho para ir caçar e tem três filhos que vivem na aldeia. Não morreremos de fome, e quando nós soubermos a verdade sobre Cen, eu digo-lhe que, embora Cen esteja vivo, eu quero ficar com ele porque estou farta de ser mulher de um comerciante. Nessa altura, as minhas parkas e as minhas armadilhas vão fazê-lo feliz, e talvez eu consiga até dar-lhe um filho ou uma filha.

Chora-Alto apontou para o fogo e convidou-a a comer.

- Só um pouquinho - respondeu ela. - Tenho que voltar e não quero perder-me no escuro. Só queria que tu soubesses...

- Ainda bem que encontraste uma casa, mãe.

- Talvez um dia possas vir visitar-me, tu, as tuas mulheres e os filhos que tiveres - disse ela.

Gheli comia depressa, como se não tivesse ingerido nada durante todo o dia, mas Chora-Alto percebeu que ela não tinha muita fome; queria apenas ir embora e voltar para junto do velho.

Comeu uma ptármiga, limpou as mãos nas calças e depois levantou-se. Por instantes, Chora-Alto regressou à infância e aninhou-se nos braços dela. Gheli foi a primeira a afastar-se, virou-se rapidamente e disse, com a voz embargada pelas lágrimas:

- Olha pelas minhas filhas. Depois, foi-se embora.

Chora-Alto fez uma pilha de ramos na fogueira até as labaredas saltarem, e o clarão preencheu uma parte daquele vazio.

 

                     Aldeia dos Quatro Rios

                     História de K’os

K’os encostou-se à parede da tenda e tentou ouvir o que as crianças estavam dizendo, mas a camada dupla de pele de caribu, as pedras e a terra com raízes que revestiam as paredes engoliam as palavras. Chakliux conseguira virar Uutuk contra ela, e tudo isso acontecera por causa de Folha Vermelha. Se Cen e Ghaden não tivessem ido à procura dela, Chakliux não teria ficado sozinho durante tanto tempo e não teria oportunidade de convencer Uutuk a odiá-la.

Mesmo assim, a moça devia ter sido mais prudente! Não fora K’os uma boa mãe para ela? Aa! Porque é que os filhos se tornavam tão egoístas? Chakliux mantinha-a fechada naquela tenda e nem sequer a deixava ver a luz do Sol. Como podia ela armazenar calor nos ossos para se defender do Inverno que estava chegando?

”Não deixes que a raiva coma a tua própria carne. Como poderás lutar se estiveres fraca?” disse para si mesma.

Concentrou-se nas pessoas da aldeia dos Quatro Rios. Quantas tinham morrido? Três dezenas, pelas suas contas. Seis mãos-cheias! Sim, mas muitos caçadores já tinham partido para a caça ao caribu, e portanto aqueles que ela tinha matado eram sobretudo crianças e velhos e algumas das mulheres que tinham ficado. Depois, os jovens fortes também tinham adoecido com o veneno dela, mas não tinham morrido. K’os não só usara a planta de flores cor de púrpura dos Primeiros Homens, como também bagas de erva-de-são-cristóvão. O veneno dos Primeiros Homens era melhor. Quando ela o usara nos primeiros que tinham morrido - todos eles velhos - o acontecimento não causara grande alarme. Até parecia que haviam morrido dormindo, embora um deles tivesse saído, cambaleando, da tenda da filha, agarrado ao pescoço e com dificuldade em respirar.

Depois, K’os resolvera matar muitos ao mesmo tempo, envenenando as panelas que se encontravam nas lareiras da aldeia. Mas Foca, guloso como era, além da comida feita por ela, servira-se também dessas panelas. Estúpido! K’os enchera-o de comida na tenda de Cen.

Ninguém desconfiara que ela estava usando veneno. Porque quereria matar o próprio marido? Mas depois aparecera Chakliux, e Cen com ele. Quem podia adivinhar que Cen estava vivo? Quem podia adivinhar que Chakliux apareceria naquela aldeia e a acusaria de estar matando as pessoas? E agora voltara Uutuk contra ela. K’os seria obrigada a ter muito mais cuidado nos seus planos, agora que não tinha Foca nem Uutuk para ajudá-la.

Ouviu vozes no túnel de entrada. Sim, era Uutuk, e talvez Chakliux. K’os encostou a unha do polegar ao globo ocular e virou-se para eles com lágrimas na face.

A expressão dura de Uutuk desvaneceu-se. A moça estendeu-lhe a mão, mas apressou-se a retirá-la. K’os não disse nada, mas reparou no olhar furtivo que Uutuk lançou a Chakliux. Este tinha um ar inflexível e frio. Inclinou-se e disse qualquer coisa a Uutuk em voz baixa. Uutuk franziu a testa e, embora respondesse também em surdina, parecia estar discutindo com ele. Por fim, ele encolheu os ombros e disse a K’os:

- A minha irmã acha que deves ter autorização para assistir às cerimônias fúnebres.

Todos os dias as pessoas realizavam mais cerimônias, tentando apaziguar os mortos. K’os já nem sabia há quantas noites o rufar dos tambores não a deixava dormir.

Limpou o nariz na manga da parka e disse:

- E se as pessoas da aldeia me matam? Com certeza, vocês já lhes devem ter dito que fui eu que causei essas mortes. Com certeza, vocês já me acusaram de ser a causadora desta maldição, apesar de o meu marido também ter morrido.

Uutuk começou a abanar a cabeça, e K’os foi obrigada a disfarçar um sorriso. Chakliux não conseguira afastar tanto Uutuk da mãe como ela receava.

- Julgas que somos burros? - perguntou Chakliux. Se eles julgarem que foste tu a causadora desta desgraça, como poderemos estar seguros, eu, a tua filha e o marido dela?

K’os nem piscou e conseguiu verter mais umas lágrimas.

- O que farei eu sem um marido, agora que estou velha? - perguntou ela.

Uutuk aproximou-se de K’os e abraçou-a. K’os olhou para Chakliux através das pestanas e aventurou-se a fazer um sorrisinho.

- Uutuk... - disse Chakliux, mas depois abanou a cabeça e virou-lhe as costas.

Antes de sair da tenda, disse:

- Irmã, não deixes que ela te engane com essas lágrimas. Virei buscar as duas para as cerimônias. Não a deixes sair - acrescentou ele, apontando para K’os.

Chakliux desapareceu no túnel, e K’os agarrou-se a Uutuk.

- Oh, minha filha, que estúpida fui ao deixar que o teu marido nos trouxesse para esta aldeia! Eu tinha aqui muitos amigos, mas agora morreram quase todos com esta doença, e as minhas recordações estão manchadas pelo ódio de Chakliux. - K’os respirou fundo e deixou sair o ar, estremecendo. - O que irá acontecer ao meu pobre marido se os seus ossos ficarem aqui, junto de um povo que ele não conhecia? Era muito melhor ser sepultado na nossa ilha, com o espírito sábio do teu avô olhando por ele.

K’os continuou a falar do avô de Uutuk até sentir que a moça estava tremendo e chorando. Então disse:

- És uma boa filha, Uutuk. Melhor do que eu mereço. Tu és tudo o que eu sempre desejei num filho. Apesar de eu ter sido amaldiçoada com Chakliux, fui abençoada contigo.

K’os ficou à espera de ouvir algumas palavras amáveis de Uutuk, mas a moça não disse nada e, por fim, afastou-se e foi buscar um odre de água. Colocou alguma num pedaço de pele de caribu, lavou a cara e ofereceu a pele a K’os.

- Eu sou viúva - disse K’os. - Deixa que vejam o meu desgosto.

 

                   História de Gheli

Depois de sair do acampamento de Chora-Alto, Gheli esperou que escurecesse por completo. Então, tomou o caminho da aldeia dos Quatro Rios, ao luar. Andava depressa, para que Chora-Alto não a apanhasse no dia seguinte.

Nas noites seguintes, pouco dormiu. Quando chegou à aldeia dos Quatro Rios, entrou pela parte menos freqüentada, junto das armações fúnebres. O cheiro nauseante fez-lhe perder o fôlego, mas não conseguiu conter as lágrimas ao ver o número de cadáveres recentes, pequenos e grandes, que ali se encontravam.

Gheli ficou aterrada ao pensar nas filhas. Elas também teriam morrido? Com certeza Daes, pelo menos, teria o cuidado de não confiar no que K’os lhe desse. Ao ver que as lareiras da aldeia estavam apagadas, respirou de alívio. As mulheres deviam ter percebido que quem tinha comido daquelas panelas adoecera. Ou então, eram tão poucas as mulheres que restavam na aldeia que não havia ninguém para vigiar as fogueiras.

Era o mais provável, pensou Gheli ao baixar-se para examinar as cinzas. Não tinham sido abafadas, o que era um disparate. Gheli remexeu-as com o cajado para ter a certeza de que não havia fogo oculto que pudesse atear-se e propagar-se às coberturas das tendas. Mas nem sequer havia vestígios de calor.

Tinha que verificar se K’os ainda estava viva ou se Cen ou Chakliux a tinham matado. Se K’os tivesse morrido, Gheli partiria tão silenciosamente como chegara. Porque não voltar para aquela aldeia que ficava para além do seu acampamento de pesca? Era sempre possível que um dos homens a aceitasse como esposa. Além disso, talvez um dia Chora-Alto levasse Daes e Patinha a visitá-la.

Havia bons motivos para pensar que K’os ainda estava viva, evidentemente. O luto pelo seu marido dos Primeiros Homens ainda não terminara. Para quê atrair maldições desnecessárias e matar K’os antes de o espírito do marido se instalar completamente na terra dos mortos?

Se K’os estivesse viva, onde ficaria Gheli? Ghaden e a mulher deviam estar vivendo na tenda de Cen. O que queria dizer que K’os, a mãe de Uutuk, também devia estar lá. Mas permitiria Cen que K’os vivesse dentro das mesmas paredes em que viviam as filhas? Gheli ouviu uma voz vinda da tenda de Cen. Agachou-se tão depressa que uns cães que se encontravam ali perto começaram a latir.

Saiu alguém. Era Chakliux. O seu coxear não a enganava. Gheli julgou ouvir um cântico em surdina, aos espíritos, mas não teve certeza. Chakliux levantou a cabeça e olhou para o céu. Estava rezando.

Gheli teve um assomo de esperança. Talvez ele já tivesse matado K’os, e assim ela poderia desaparecer na noite. Ninguém saberia que ela estivera ali.

Passado muito tempo, Chakliux voltou para dentro, e Gheli, engatinhando, aproximou-se da parte de trás da tenda de Cen. Encostou-se o mais possível à pele de caribu da cobertura, mas não ouviu nada. Nem sequer vozes, o que era bom. Nem choros. Nem cânticos para atrair a cura de alguém. Talvez K’os ainda estivesse viva e Chakliux rezasse apenas para saber o que fazer.

”Ah, Chakliux, dorme. Amanhã, não terás mais preocupações. O que representa mais uma morte? Apenas mais uma cerimônia fúnebre.”

Gheli apertou a bolsa que trazia pendurada no pulso esquerdo, soltou o atilho e acariciou a longa lâmina da faca que tirara do depósito de armas de Cen antes de partir para o acampamento de pesca. Era de obsidiana e, segundo Cen, pertencera a um homem que vivera há tanto tempo que até os contadores de histórias já o tinham esquecido.

A Lua já não estava cheia, como se lhe tivessem arrancado um pedaço e o luar fosse o seu sangue. Gheli ficou à espera, agarrada à bolsa, que a Lua desaparecesse e a escuridão se instalasse. Até os cães, reunidos em círculos fechados junto das tendas, tinham enfiado o focinho debaixo da cauda. Gheli aproximou-se do túnel de entrada e pousou a mão na aba da porta de pele de caribu. Era dura e áspera. Gheli sentiu um aperto no estômago e teve vontade de vomitar, mas conseguiu superar o medo. Agarrou o cabo da faca para lhe dar coragem e acariciou a bolsa para sentir o pó bem moído que escondera lá dentro.

Esperou no túnel que o ar estabilizasse e aquecesse um pouco. Afastou uma ponta da aba e inclinou-se. Os seus olhos tinham-se adaptado à escuridão, e as poucas brasas que restavam davam luz suficiente para ela ver. Examinou a tenda. Havia três pessoas... Não, quatro, do lado dos homens. Gheli reconheceu Chakliux e Ghaden. O vulto que estava colado a Ghaden era pequeno demais para ser o de um homem. Devia ser a filha de K’os, a mulher de Ghaden.

O outro era Cen. Gheli enterneceu-se. Sabia muito bem como ele dormia - deitado de lado, com as pernas encolhidas e um braço sobre a coberta de pele de raposa. Ressonava e falava ao mesmo tempo, e Gheli deixou-se ficar muito quieta até ele se calar. Do lado das mulheres, estava apenas Daes. E K’os. Mais uma vez, Gheli teve vontade de vomitar. Levou a mão à boca até lhe passar a náusea.

Daes dormia o mais afastada possível da mulher, com as costas coladas às esteiras que revestiam as pedras e a mistura de terra e raízes da parede mais baixa.

O mais provável era que o tempo tivesse alterado as feições de K’os e ela estivesse muito diferente, mas a mão pousada na camisa de noite denunciava-a. Gheli examinou K’os, com uma careta. A coisa não seria tão fácil como ela esperava. A mulher estava bem enrolada na roupa de pele. A lâmina de obsidiana seria capaz de atravessá-la? Gheli podia atacar K’os no pescoço... E se falhasse e a atingisse no queixo ou na omoplata?

Gheli rezou para que os espíritos, fossem eles quais fossem, a ajudassem e em seguida aproximou-se do monte de roupas de cama que se encontrava do lado das mulheres.

Pôs uma peça por cima do seu próprio corpo e deitou-se entre Daes e K’os. Daes soltou um gemido e encostou-se ainda mais à parede, mas K’os nem se mexeu. Por isso, ao ouvir a voz, Gheli assustou-se e pôs-se de pé.

- Voltaste. - As palavras foram pronunciadas em surdina, e saíram da boca de K’os. - Cen disse-nos que tinhas sido devorada pelos lobos. Pareces ser boa enganando a morte. Talvez eu precise saber o teu segredo.

K’os sentou-se e puxou a camisa de noite para baixo, até a cintura. Modificara-se muito e estava finalmente uma velha.

- Vieste matar-me - disse ela.

- Sim, para que Cen e Chakliux não tenham que fazê-lo.

- O meu luto ainda não acabou. Arriscas-te a ser amaldiçoada?

- Sim, para proteger as minhas filhas.

Pelo canto do olho, Gheli viu que Daes fugia para junto da lareira. A moça começou a assobiar e gritou pelo pai. Por fim, Cen acordou, Ghaden e Uutuk também, e depois Chakliux. Ghaden empurrou a mulher para trás dele e começou a procurar as armas que deixara junto das suas esteiras.

Pegou uma lança curta e Gheli gritou-lhe:

- Deixa-me matá-la. O que significa mais uma maldição para alguém como eu, que já tenho tantas?

Ghaden olhou para Cen e disse:

- Espera!

- Eles só me deixaram ficar com esta faquinha torta disse K’os, ajoelhando-se e afastando a camisa de dormir. Pegou a faca. A lâmina não era mais comprida que a última falange de um dedo e fora inserida na parte lateral de uma costela de caribu. A curva da costela era útil para uma mulher que se servisse da faca nos seus trabalhos de costura.

”Podia vazar um olho”, pensou Gheli, ”ou fazer um golpe na carne”, mas ela vestia uma parka e a pequena lâmina não conseguiria atravessar a pele com facilidade. Bastava ter cuidado com o rosto e as mãos. Mais nada.

K’os emagrecera com a velhice e parecia muito mais pequena. Talvez estivesse também mais fraca. Gheli tinha esperança de sobreviver ao ataque.

- Cen, se eu a matar, deixas-me partir? - perguntou ela.

- Vais sair da aldeia? - perguntou ele.

Gheli abriu a boca para responder, mas Daes começou a chorar, soltando um lamento agudo.

- Cala-te! - gritou Cen à moça.

Daes cobriu o rosto com as mãos e abafou os soluços.

- Eu vou embora - prometeu Gheli.

- Vais morrer - disse K’os. Depois, gritou à filha: Uutuk, deixas que ela me faça isto? Não pedes ao teu marido que me ajude?

A voz de K’os tornou-se de repente suave e suplicante.

Uutuk chorava, mas virou a cara para o lado.

K’os olhou para Chakliux, com um sorriso malévolo.

- Porque me passou pela cabeça criar filhos?

Havia ódio nas suas palavras, raiva e também algum medo, concluiu Gheli.

- Tenha cuidado, mãe - disse Daes em voz baixa. Gheli virou-se para Daes e, nesse momento, K’os atirou-se a Gheli e rasgou-lhe a face com a lâmina da faca.

Gheli puxou da sua faca. K’os vestia apenas uma camisa solta de pele de caribu. A faca de Gheli enterrou-se com facilidade na barriga de K’os. A mulher deu um grito e atacou de novo com a faca torta. Dessa vez, atingiu Gheli na testa e depois no topo da cabeça. Gheli ignorou a dor, e também Cen e Chakliux. Admitiu que eles a afastassem, mas os homens não o fizeram. E ela empurrou ainda mais o cabo da faca e enterrou-o com todas as suas forças, provocando uma ferida enorme no abdômen de K’os. O cheiro das entranhas retalhadas encheu a tenda. Uutuk escondeu a cabeça no ombro do marido e soltou um grito angustiado.

K’os gritava, com as mãos na ferida aberta. Gheli atirou a faca, que foi cair nas brasas da lareira. A pele crua que ligava a lâmina ao cabo começou a chiar e a fumegar. Ela abriu a bolsa e despejou o conteúdo no rosto e na barriga de K’os.

- Tu querias envenenar as pessoas desta aldeia. Pois bem, agora chegou a tua vez de seres envenenada - gritou-lhe Gheli. - Agora estás morta. Diz ao teu espírito que me faça o que quiser. Eu já fui amaldiçoada por muitos, por isso terás que lutar pela tua vez.

Gheli virou-se para Ghaden e estendeu as mãos.

- Não tenho mais armas. Pergunta à tua mulher se quer me ver morta. Não oferecerei resistência.

Então, com uma voz horrível, K’os exclamou:

- Ghaden, não precisas fazê-lo. Ela já está morta. Seguiu-se um chorrilho de maldições, contra Gheli, contra Cen, contra os filhos.

Uutuk tapou os ouvidos, e Ghaden, com o braço à volta dela, levou-a para o túnel. Saíram da tenda, e Daes foi atrás deles.

- E tu - gritou K’os a Chakliux. Estava deitada de costas no chão, e as dores roubavam-lhe a voz. - Tu... Tu ficas... aí vendo-me... morrer?

Chakliux não respondeu, mas pegou num odre de água e levou-lhe. Levantou-lhe a cabeça para ela beber. K’os bebeu um gole mas cuspiu-lhe na cara. Ele largou-a e foi para junto de Cen.

- Lamento que isto tenha acontecido na tua tenda, disse Chakliux.

- Eu vou queimá-la - respondeu Cen. Gheli, ainda de joelhos, olhou para ele.

- Bem sabes que eu já estou amaldiçoada - disse ela. Deixa-me levar o que me faz falta. O que importa, se vais deitar-lhe fogo?

- Leva o que quiseres - disse-lhe Cen.

Os gemidos de K’os transformaram-se em gargalhadas.

- Tu não tens falta de nada. Só precisas te preparar para o mundo dos espíritos. - K’os levantou um dedo deformado e apontou para os golpes na face de Gheli. - Estás morta, já te disse - repetiu ela.

- Já passei por muito pior - respondeu Gheli. - Que importância têm umas gotas de sangue?

Mas Chakliux deu um passo em direção à mãe e perguntou:

- O que fizeste?

- Veneno - respondeu ela, respirando com dificuldade. Pegou a bolsa dos amuletos que trazia ao pescoço, abriu-a e despejou o pó na ferida que tinha na barriga. Agora, também ele me vai levar. Mais depressa que o veneno de Folha Vermelha. Aprendi... com os Primeiros Homens.

Ele impede... a respiração. Quando chega ao sangue... atua depressa.

As últimas palavras saíram-lhe da garganta como um assobio. K’os olhou para Gheli e viu a expressão horrorizada da mulher.

- A lâmina da faca? - perguntou Gheli, num murmúrio.

K’os respirou pela última vez e começou a sufocar. Aos ouvidos de Gheli, o seu último suspiro parecia uma gargalhada.

 

                   História de Patinha

Queimaram a tenda de Cen e tudo o que estava lá dentro, armas, comida, roupas, esteiras do chão, panelas, cestos, raízes e casca de abeto. Não só arderam todas estas coisas como também os corpos de K’os e de Gheli. Quando restavam apenas cinzas e ossos, o xamã da aldeia entoou cânticos para proteger os habitantes das maldições dessas duas mulheres. Em seguida, levou os ossos e fez uma longa viagem para ir depositar o embrulho dos despojos calcinados bem longe de qualquer aldeia do Povo Rio.

Chora-Alto regressou no dia seguinte ao das mortes, e acompanhou a irmã e Cen no luto por Gheli. Mas ninguém chorou K’os. Quando Chakliux, Chora-Alto, Ghaden e Uutuk saíram da aldeia dos Quatro Rios e regressaram à aldeia de Chakliux, Cen e Daes também foram e levaram Patinha.

Na noite anterior à chegada à aldeia de Chakliux, Cen aproximou-se de Chora-Alto e agachou-se a seu lado. Cen levava a filhinha ao colo e empoleirou-a no joelho.

- Resolvi ir com Ghaden e a mulher para a Praia dos Comerciantes quando este Inverno passar - disse ele. Talvez eu vá mesmo até a ilha de Uutuk. Resta-me tão pouco que tenho que recomeçar a minha vida como comerciante, como se fosse um jovem. E que melhor maneira de começar do que ir visitar aqueles que ainda caçam baleias? A minha filha Daes quer ir comigo, e talvez Chakliux vá até a Praia dos Comerciantes. Mas eu tenho esta boa filha que precisa de um pai e de uma mãe, ou talvez de um irmão, que a crie. - Cen olhou fixamente para Chora-Alto. - Vai ser forte como a mãe e talvez, com a família certa, ela venha também a ser inteligente.

No último dia de viagem, Chora-Alto recusou-se a levar Patinha às costas, como era habitual. Optou por levar a prancha de embalar nos braços e falava com a menina sobre tudo o que viam, deliciado quando a criança lhe respondia com o seu balbuciar.

Quando chegaram à aldeia de Chakliux, Chora-Alto não parou para ir falar aos velhos, que tinham a boca cheia de perguntas. Levou Patinha para o túnel de entrada da sua tenda, pousou-a com todo o cuidado e ficou à espera para ver se ela chorava. Patinha não chorou. Estava bem embrulhada num cobertor macio de pele de lebre, e ele percebeu que ela não tinha frio. Deixou-a ali e entrou de rastos na tenda. Yaa olhou para ele e levantou-se logo, com a alegria no olhar.

Chora-Alto contou-lhe resumidamente o que se passara com K’os e com a mãe, e Yaa ficou boquiaberta, como se tentasse decidir se havia ou não de entoar um cântico fúnebre. Ele levantou um dedo pedindo silêncio e disse:

- Tenho uma coisa a dizer-te.

O medo e depois a tristeza passaram pelo rosto de Yaa, que fez um gesto de cabeça, como se já soubesse o que ele ia dizer.

- Trouxe uma pessoa comigo.

Yaa respirou fundo, e ele acrescentou:

- Para te ajudar nas tuas tarefas.

- Isso é bom - disse ela, com uma vozinha débil. Ela é bem-vinda, meu marido. Aqui nesta tenda... - Faltou-lhe a voz. Yaa pigarreou e depois continuou: - Até conseguires construir uma tenda para ela.

- Não - disse Chora-Alto.

- Serei uma boa esposa-irmã para ela - disse Yaa, começando a falar de tudo aquilo que as duas esposas fariam em conjunto.

- Não - repetiu Chora-Alto, mas sabia que só havia uma maneira de calar Yaa, depois de ela ter começado a falar para esconder a sua dor.

Voltou ao túnel e pegou em Patinha. A menina adormecera, mas abriu os olhos nesse momento e, ao vê-lo, sorriu. Ele encostou a face à testa da criança e entrou na tenda. Esperava que Yaa fizesse qualquer exclamação, mas ela não disse nada. Ele levantou-se e viu que ela estava de olhos fechados, com uma expressão tensa.

- Yaa? - disse ele.

Yaa abriu os olhos e fez um sorriso rasgado de boas-vindas. Ao ver o bebê, levou as mãos ao peito e ficou de boca aberta, como se não soubesse falar.

- Não queres a tua filha? - perguntou ele.

- A minha filha?

- Sim.

Yaa pegou na menina e deu uma gargalhada. Subitamente, perguntou:

- Ela pertence à tua nova mulher?

- Tu és a minha única mulher, Yaa - respondeu ele. Ela pertence a ti e a mim.

Então, Yaa desatou a chorar em silêncio, mas tão convulsivamente que teve de entregar a menina a Chora-Alto. Ele ficou ali, abraçado às duas, à mulher e à filha, e lembrou-se de que os caçadores não choravam de felicidade nem por coisas tão insignificantes como os bebês. Mas depois admitiu que talvez não fosse bem assim.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         602 a. C.

 

Na tarde seguinte, depois de um grupo de homens ter regressado de seis ou sete dias de caça aos leões-marinhos e de as mulheres terem resolvido fazer um intervalo na pesca para descansarem, Yikaas voltou a contar a sua história sobre a morte de K’os. Qumalix estava presente para traduzir o que ele dizia, e outros contadores de histórias, como Kuy’aa e Chega-ao-Céu, também o escutavam.

Quando Yikaas terminou a sua história, Chega-ao-Céu exclamou:

- Espera. Tu dizes que foi assim que K’os morreu?

- É o que dizem - respondeu Yikaas, usando as palavras que eram familiares a todos os contadores de histórias.

- Eu ouvi contar uma história diferente. Chega-ao-Céu falou com um ar belicoso, e Yikaas viu perfeitamente o que ele era - uma criança num corpo de homem, cuja mente não se desenvolvera.

- Conta-a - disse Yikaas com benevolência, recuando para lhe ceder o lugar.

Qumalix lançou-lhe um olhar frio, e Yikaas percebeu que ela não gostava de traduzir para o homem, mas Chega-ao-Céu fez um sorriso de orelha a orelha e começou a falar, esquecendo mesmo as palavras de cortesia que quase todos os contadores de histórias dirigiam aos seus ouvintes para que estes soubessem que se tratava de uma nova história.

- K’os era uma mulher má e queria matar o Povo de Quatro Rios por eles a terem expulsado da sua aldeia há muitos anos. Além disso, queria matar Chakliux.

Chega-ao-Céu fez uma pausa, como se pensasse no que dizer sobre Chakliux, e por fim acrescentou:

- Ela odiava Chakliux por muitas razões, mas sobretudo por ele ser tão inteligente e bom.

As pessoas que estavam no ulax começaram a murmurar, e algumas lançaram sugestões para justificar que K’os quisesse matar o próprio filho, mas Chega-ao-Céu ignorou-as e continuou a contar a sua história, que não prestava para nada. Yikaas começou a ficar impaciente. Chega-ao-Céu falou excessivamente das conversas entre Cen e Ghaden e do acordo que ambos tinham feito para matar K’os.

Os dois homens tinham posto em prática o seu plano, e K’os morrera durante a noite, com as facas de ambos espetadas no peito. Mas, até na descrição da morte da mulher, as palavras de Chega-ao-Céu foram sensacionalistas, e Yikaas fez o possível para não se regozijar com as lamentações dos ouvintes.

Quando Chega-ao-Céu acabou de falar, quase todos os presentes se mostraram delicados, mas um homem, um caçador dos Primeiros Homens, disse:

- Deixa a história tal como Yikaas a contou.

Chega-ao-Céu desatou a insultar o homem, mas Qumalix pôs-lhe a mão no braço e disse:

- Eu também ouvi contar a morte de K’os de outra maneira. Talvez queiram ouvir essa versão.

Chega-ao-Céu fez beicinho, mas voltou a sentar-se, disposto a ouvi-la.

O começo da história de Qumalix era muito semelhante ao de Yikaas, mas quando Gheli se separou de Chora-Alto, ficou vivendo naquela aldeia do Povo Rio distante com um velho. Yikaas ouviu com paciência, convencido de que encontraria defeitos na história dela, tal como encontrara na de Chega-ao-Céu. No entanto, como acontecia sempre que Qumalix falava, ficou embevecido com as palavras dela e, de certo modo, sentiu-se de novo criança, como se estivesse aprendendo histórias que um dia seria ele a contar.

 

                   História da Morte de K’os Contada por Qumalix

Chakliux estava sentado, sozinho, olhando para as brasas da lareira. Encontrava-se instalado numa tenda ao lado da de Cen. O dono da tenda perdera a mulher e os filhos e, depois do luto, resolveu ir caçar caribus. A tenda vazia parecia cheia dos fantasmas dos mortos. Eles tinham assombrado os sonhos de Chakliux, que tomara a decisão de matar K’os. De outro modo, quem a faria parar?

Chakliux apagou o fogo e vestiu a parka. Atravessou a aldeia. Apesar de estar um dia de sol, eram poucas as pessoas que estavam lá fora. Muitas ainda estavam doentes e outras continuavam a fazer velórios nas suas tendas.

Chakliux avistou uma velha que se dirigia apressadamente para o rio. Levava na mão vários odres vazios e, quando ele a apanhou, ofereceu-se para os encher. Ao vê-lo, a velha ficou admirada e por instantes encostou os odres ao peito, como se estivesse assustada, mas depois sorriu, mostrando uma boca desdentada, com os lábios caídos sobre as gengivas. Mas tinha uns olhos vivos, que o espreitavam através das rugas da face.

A velha ficou à espera no topo da margem, e ele desceu o declive que ia dar no tanque onde as mulheres iam buscar água. Encheu os odres, atou-os e os pôs ao ombro. Quando voltou a subir, ela estendeu-lhe a mão, como se tivesse força suficiente para o ajudar.

- Tu és o pé-de-lontra - disse ela, com uma voz surpreendentemente clara e bem audível, a voz de uma moça saindo da boca de uma velha.

- Sou - respondeu ele. - E tu, tia, como te chamas?

Ela fitou-o com uma expressão cautelosa, como se não soubesse se devia confiar nele. Por fim, respondeu:

- Tia está bem.

Chakliux disfarçou um sorriso. Quem podia censurá-la? Depois de tudo o que acontecera naquela aldeia, porque havia ela de confiar em alguém?

- Perdeste alguém, tia? Estás de luto?

- Um neto - respondeu ela baixinho, com os olhos marejados de lágrimas.

- Espero que seja possível afastar a maldição que se abateu sobre a nossa aldeia.

A velha olhou para o pé de Chakliux.

- Uns dizem que tu tens poder, e outros que foste tu que trouxeste a maldição.

- E tu o que achas? - perguntou Chakliux.

- Eu acho que foi a mulher, mas quem me dá ouvidos? Sou uma velha. Mas eles esquecem-se de que ela já esteve aqui.

- Lembras-te de K’os quando ela esteve aqui?

A velha assobiou e bateu na boca com os dedos da mão.

- Não pronuncies o nome dela. Isso pode dar-lhe poder para sair da tenda.

- Cen está junto dela. Não a deixa sair.

- Ela é capaz de tudo. É como um xamã. Pode estar lá sentada ao lado de Cen, enquanto o espírito dela anda aqui fora fazendo mal. Ela é assim. Eu percebi logo isso, assim que ela chegou aqui da primeira vez. Ela vivia com a minha amiga e o marido. Eles eram velhos e morreram há muito tempo, mas não perceberam o que ela era. Devíamos tê-la mandado embora assim que ela chegou.

A velha abanou a cabeça e começou a falar baixinho como se discutisse consigo própria. Por fim, disse:

- É claro que ela podia ter voltado. É daquelas que não esquece nada. - A velha lançou-lhe um olhar astuto e arqueou as sobrancelhas ralas. - Dizem que és filho dela e que a rapariga, a jovem Uutuk, é filha. Isso é verdade?

- Ela criou-nos. Noutros tempos, eu chamava-lhe mãe.

- Então, talvez vocês a tenham ajudado nas maldições disse a velha.

- Não, não ajudamos.

Ela riu.

- O que tu dirias? Que a ajudaste? Ainda temos homens suficientes nesta aldeia para matarem os dois.

As palavras da velha eram uma bravata e também uma forma de ela se consolar, reconheceu Chakliux.

- Ainda bem que tens Cen - disse ela. - Ele é a única pessoa que está entre ti e a morte. E vê o que lhe aconteceu. A maldição da tua mãe até lhe levou a mulher.

Eu sei o que é o luto, mas esta maldição é das mais terríveis que tenho visto. Passei dois dias ao lado do meu neto, vendo-o morrer. - Os olhos encheram-se de novo de lágrimas, mas a velha não se incomodou em enxugá-las, deixando que elas se acumulassem nas bolsas por cima dos malares. - Tudo o que ele tinha comido... saiu - disse ela apontando para a boca. - E as entranhas dele... Eu queria aliviar-lhe as dores. Porque aconteceu isto a ele, que era novo, e fiquei eu, que sou velha e não presto para nada? A velha estendeu as mãos para Chakliux ver que estavam tremendo. - Devia ter sido eu a morrer. Devia ter sido eu.

- Tia, a tua sabedoria é sempre necessária - disse Chakliux afetuosamente, entregando-lhe os odres cheios de água.

Antes de entrar na cabana, a velha disse:

- Às vezes, chamam-me Rato Próximo.

Ele sabia qual era o veneno. Era das bagas da erva-de-são-cristóvão. Há anos, K’os enganara Dii e convencera-a a envenenar o marido com elas. A perda não fora grande. Raposa-Que-Ladra era um homem que causava problemas a todos, mas fora chefe de uma aldeia, e Dii tivera a sorte de não ser castigada com a morte. Chakliux lembrava-se dela falando daquilo que o veneno fizera a Raposa-Que-Ladra e explicando como escondera o corpo.

A morte do homem fora uma bênção para a família de Chakliux. O seu irmão Sok aceitara Dii como esposa, e o casamento de ambos corria bem. Ela dera filhos saudáveis ao marido e, além disso, tinha o dom de sonhar com caribus. Não havia fome na aldeia desde que Dii lá chegara, porque ela sabia dizer quase sempre aos caçadores para onde se dirigiam as manadas. Que idiota fora Raposa-Que-Ladra ao pensar que o dom dela constituía uma ameaça ao seu poder!

Chakliux suspirou. A morte de K’os iria custar-lhe caro. Talvez a própria vida. Uutuk oferecera-se para o ajudar, mas como podia ele deixar que ela se envolvesse? Era jovem demais e, quanto mais não fosse, continuava gostando de K’os como de uma mãe.

Chakliux não era um homem vingativo e, apesar de Cen desejar que K’os tivesse uma morte lenta e dolorosa, ele não queria vê-la sofrer. Além disso, uma morte prolongada lhe daria tempo para ela amaldiçoar aqueles que a tinham causado. Chakliux voltou para a tenda e escolheu duas lanças, cada uma com uma longa ponta de pedra. Em seguida, encaminhou-se para as lareiras da aldeia. As quatro fogueiras estavam de novo acesas, mas não se via nenhuma mulher junto das panelas. O lume estava aceso só para que alguma mulher descuidada que deixasse apagar a sua lareira pudesse ir ali buscar brasas.

Chakliux agachou-se junto de uma das fogueiras e deixou que a fumaça envolvesse as suas lanças. Durante muito tempo, rezou para ter força, inteligência e segurança. Desembainhou a sua faca de caça e voltou a rezar. Quando sentiu que tinha energia suficiente, abandonou as lareiras e dirigiu-se à cabana de Cen.

K’os estava à espera dele. Levantou-se devagar, com o fogo nos olhos.

- Vais matar-me na presença da minha filha? - perguntou ela, estendendo a mão a Uutuk.

- Sai, Uutuk! - respondeu Chakliux. - Não és obrigada a ficar aqui. Porque assistir a isto? Lembra-te das coisas boas que esta mãe fez por ti e não penses em mais nada.

Uutuk levantou-se cambaleando. Estava chorando.

- Onde está o teu marido? - perguntou Chakliux, mas a moça não tirava os olhos de K’os.

- Foi caçar ptármigas com Cen.

- E Daes?

- Não quer ficar comigo nesta tenda além do que é indispensável - respondeu K’os.

Chakliux não pôde deixar de ficar fascinado com a calma da sua voz. K’os tinha apenas umas calças de pele de caribu e alguns colares em cima do corpo. Usava o peito nu, à maneira dos Primeiros Homens. Se ele não lhe visse as mãos nem o rosto, julgaria que se tratava de uma jovem. Os ombros continuavam direitos e os seios ainda eram cheios, ao contrário da maioria das velhas. Também o olhar era vivo, embora duro e frio como sempre fora. K’os tinha na mão a parte de cima de uma bota de pele de caribu, com pelo, pronta a aplicar numa sola de pele de foca que estava no chão, aos seus pés. Uutuk tinha uma bota igual na mão, já com uma parte da sola costurada no local do calcanhar, que parecia uma boca aberta.

- Julgas que consegues matar-me? - perguntou K’os. Por que agora, se nunca foste capaz de fazê-lo?

- Sai, Uutuk! - ordenou Chakliux, mas Uutuk hesitou, olhando primeiro para ele e depois para a mãe. - Já, Uutuk!

- Te apressa! - disse-lhe Uutuk.

De repente, a moça vomitou. Ficou sem fôlego, endireitou-se e levou a mão à barriga. K’os esbugalhou os olhos.

- Não! - disse Uutuk, agarrando-se ao estômago. K’os atirou a cabeça para trás e desatou a rir.

- Não admira que vocês os dois estejam tão ansiosos por me matar. Até tu, Uutuk! Julgas que eu vou amaldiçoar esse bebê que trazes na barriga?

K’os largou a bota que tinha na mão e abriu os braços. Avançou para Uutuk, e de repente Chakliux percebeu que ela tinha uma faca na mão, uma faquinha de lâmina curva. Daquelas que as mulheres usavam na costura. Pousou a mão no ombro de Uutuk, e a moça encolheu-se, mas K’os não a largou e encostou-lhe a faca ao pescoço.

- É uma faca muito pequena. Que mal poderia fazer? - disse K’os, rindo-se. - Talvez haja um veneno que tu não conheces, Chakliux.

- Foste estúpido, Chakliux, por não a teres tirado daqui de qualquer maneira, antes de teres entrado com as tuas lanças. Mas ainda bem para mim que não o fizeste. Porque agora eu sei que tenho um neto. Acho que gostaria de o levar comigo para o mundo dos espíritos. A viagem é longa, e é melhor fazê-la acompanhada, nae? Pensa no favor que eu fiz a toda esta gente de Quatro Rios que em tempos tentou matar-me. Deixei-os ir todos juntos. Agora, eles vão formar uma aldeia, lá onde estão. E tu julgas que eu não tenho compaixão! Lembra-te de que eles me obrigaram a partir sozinha, no Inverno. - K’os mexeu na faca. - Aa, eu estava falando-te no veneno. É o que os caçadores de baleias usam na ponta dos arpões. Impede a respiração e pára o coração. Uutuk, um pequeno arranhão pode permitir que tu vivas e levar apenas o bebê, mas não tenho certeza. Tenho muito que aprender sobre este veneno. Talvez ele também te leve. Nesse caso, vamos os três juntos, tu, eu e o nosso bebê.

Foi então que, de repente, alguém chamou Chakliux do túnel de entrada. A velha Rato Próximo entrou com um saco que cheirava a carne cozida. Parou à porta. Ficou boquiaberta e soltou um grito. Nesse momento, Uutuk caiu ao chão e K’os largou o ombro da moça. Então, Chakliux atirou uma lança, que atingiu K’os em cheio no peito, e depois a outra, que a apanhou na garganta. O peso das lanças e o seu impacto fizeram K’os cair de costas no chão.

Formou-se uma poça de sangue em volta da cabeça e do pescoço de K’os, e, quando ela já não se mexia, Chakliux aproximou-se e, à cautela, com um pontapé, tirou-lhe a faca da mão. Uutuk agarrou-se a ele e abraçou-o. Ele julgou que ela estava chorando, mas, quando ela se afastou, Chakliux viu que Uutuk tinha os olhos secos.

- Não consigo chorá-la - disse ela em voz baixa.

- Agora, sai - disse Chakliux, e pediu a Rato Próximo que a levasse para a sua tenda.

Quando as duas mulheres saíram, Chakliux ajoelhou-se junto do corpo de K’os e teve o cuidado de lhe cortar as articulações.

 

           602 a. C.

 

- A tua história é melhor - disse um dos homens do Povo Rio a Qumalix.

- Não - disse outro. - A história de Yikaas é que é verdadeira.

Uma velha disse:

- Ouvi dizer que Ghaden a matou, para proteger a mulher, e que, quando K’os morreu, parecia que um lobo lhe tinha aberto a garganta, e todos ficaram sabendo que Mordedor, o cão, voltara para proteger Ghaden.

Várias outras pessoas confessaram em voz baixa que tinham ouvido a mesma história. Outra disse que Uutuk é que tinha matado K’os, e ainda outra que fora Cen que tirou-lhe a vida. Um velho disse que ouvira contar que Chora-Alto matara K’os para proteger a mãe.

- Em qual acreditaremos? - perguntou um rapazinho. - Como sabemos qual é a verdadeira?

Então Kuy’aa levantou-se e disse:

- Talvez K’os tenha morrido de muitas maneiras. E não era o que ela merecia?

Yikaas e Qumalix estavam sentados no ulax da contadora de histórias. Depois de todo mundo ter saído e de a velha Kuy’aa estar ressonando num dos cubículos protegidos por cortinas, o próprio Yikaas estava quase dormindo. Mas naquele momento, em que ele e Qumalix estavam sozinhos, a sua mente despertou de repente. Nem sequer a fumaça da lanterna de óleo de foca lhe fazia arder os olhos.

- A tua história sobre a morte de K’os foi boa, disse Yikaas, virando-se para observar melhor o rosto de Qumalix enquanto falava. De repente, as paredes do seu coração pareceram-lhe finas demais, porque tremiam com o pulsar do sangue, mas ele manteve a voz firme e falou com um atrevimento que não sentia. - Continuo pensando que a minha história é que está certa, o que não quer dizer que a tua não seja boa.

Ficou à espera de uma resposta torta. Qumalix disse:

- Porque dizes isso?

- Porque é mesmo boa - respondeu ele.

- Não, não me refiro à minha história, mas à tua. Porque dizes que a tua é que está certa?

- Os contadores de histórias da minha aldeia têm contado a história verdadeira desde que tudo aconteceu.

- E os meus, não?

Ele encolheu os ombros, e começou a olhar para a lanterna de óleo de foca. Sentia falta dos bons fogos das lareiras do seu povo. A pobre lanterna dava uma chama tão fraca e trêmula! Como um homem se sentiria fortalecido nos pensamentos com aquilo?

- Olha - disse ele finalmente, descalçando a bota de pele de caribu e mostrando o pé direito.

Esperava que Qumalix ficasse surpreendida, e ela ficou. Tão surpreendida que falou na sua própria língua e depois pediu desculpa.

- Pé de lontra - disse ela na língua do Povo Rio.

- Eu entendi o que disseste. - Yikaas passara a maior parte do Verão numa aldeia dos Primeiros Homens e aprendera algumas palavras. - É por isso que a minha história está certa e a tua está errada. O meu pé prova que o espírito de Chakliux, uma pequena parte, vive em mim.

Yikaas pegou o pé com a mão e separou os dedos. Estavam unidos por uma membrana.

- Estás vendo?

Yikaas atreveu-se a esboçar um sorrisinho, mas não disse mais nada e ficou à espera que ela concordasse com ele. Que outra coisa podia ela fazer?

- Eu já venho - disse ela.

Entrou num dos cubículos de dormir e voltou a sair com duas pequenas bolsas de pele de foca.

- E eu tenho isto - disse ela. - Conheces as histórias de Chagak e de Kiin?

- Conheço.

- Lembras-te da peça esculpida que Angak tinha, aquela que representava um homem, uma mulher e uma criança?

- Olha - disse ela.

Yikaas pegou o marfim e virou-o na mão. Talvez representasse três pessoas, mas estava tão velho e rachado, tão gasto pelo manuseamento que os rostos já mal se distinguiam e os corpos eram apenas sombras do que tinham sido.

- O que prova isto? - perguntou ele. - Podia ser uma coisa qualquer trazida pelo mar.

Qumalix aproximou-se mais dele e virou a peça de marfim ao contrário.

- Como podes ver, havia aqui um buraquinho onde o entalhador Shuganan escondia a lâmina de uma faca.

Havia de fato um buraco, mas Yikaas encolheu os ombros e abanou a cabeça. Qumalix resfolegou, irritada, e abriu a outra bolsa de pele de foca.

- Não podes negar que isto é um dente de baleia trabalhado em forma de concha.

Yikaas pegou-o.

- Sim, mas porque acreditaria que se trata da concha de dente de baleia que Kiin fez? Qualquer pessoa podia ter feito isto.

Qumalix tirou-lhe da mão e voltou a guardá-lo na bolsa.

- Mas não foi qualquer pessoa.

Yikaas sorriu.

- Mesmo que ele tenha pertencido a Kiin, o que prova isso? Ela não era contadora de histórias.

- Mas um dos filhos dela era.

Yikaas encolheu os ombros e abriu a boca num sorriso.

- O que tu não queres admitir é que a minha história é verdadeira, e que o pé de lontra é a melhor prova.

Qumalix inclinou a cabeça e, por instantes, ele sentiu nela um assomo de tristeza.

- Eu disse que a tua história era boa - disse ele. Ela fez um sinal afirmativo.

Então, devagar, desatou a bota esquerda, sentou-se e descalçou-a. Estendeu a perna até o pé ficar no colo dele. Afastou os dedos unidos por uma membrana e desatou a rir.

 

         Baía de Herendeen, península do Alasca

         590 a. C.

 

Ansiosa, a criança mexeu-se e olhou para o rosto da mãe. Nunca se cansava de histórias, apesar de as ouvir contar com freqüência. A mãe inclinou-se e esfregou-lhe o pé. Doía-lhe um pouco, depois de um dia inteiro brincando com os seus novos amigos. Era a primeira vez que os pais o levavam à Praia dos Comerciantes. Quando iam visitar os Primeiros Homens, em geral deixavam-no com uma tia velha na aldeia do Povo Rio, do pai. Mas ele conhecia a língua dos Primeiros Homens porque a mãe a falava.

- Uma última história - dizia o pai, e as pessoas lamentaram que a sessão desse dia estivesse quase acabando. É a história da alegria de uma velha. Lembram-se de Qung, a contadora de histórias que viveu há muito tempo precisamente nesta aldeia?

Ouviu-se um murmúrio de confirmação.

- Ela acabou por ficar tão velha e curvada que passava o dia inteiro no ulax e tinha que esperar que fossem os outros a ir ao seu encontro. Ouvia mal e vivia essencialmente através das histórias que conservava na memória. Mas um dia, até os seus velhos ouvidos perceberam o entusiasmo das vozes junto do seu ulax...

 

         6427 a. C.

 

                   História de Qung

O coração de Qung alvoroçou-se. A velha lembrava-se de histórias sobre aldeias atacadas, mulheres violadas e homens assassinados. O seu povo vivera em paz durante muito tempo mas, mesmo assim, quem podia garantir que estranhos guerreiros não resolveriam atacá-los? Levantou-se, equilibrando-se nas pernas magras e deformadas, e dirigiu-se a custo para a cama. Atrás daquele pequeno nicho, debaixo das esteiras de erva que forravam as paredes, começava um túnel escondido que lhe permitia sair do ulax.

O túnel subia gradualmente, e Qung percorreu-o de quatro, com os ossos roçando no solo nu e agarrando-se ao que encontrava para vencer o aclive. Quando chegou ao fundo do túnel, pôs a cabeça e a parte superior do corpo de fora, certa de que as ervas altas que cresciam naquele local a escondiam dos seus inimigos.

O dia estava quente, mesmo para o Verão, e havia uma névoa no céu que escurecia o Sol e esbatia a linha do horizonte. Apesar da sua idade, Qung via bem e não avistou nem homens nem mulheres no meio dos ulax.

Ninguém parecia estar assustado. Nem zangado. Qung içou-se com os seus braços resistentes e sentou-se à saída do túnel. Levantou a cabeça o mais que pôde para espreitar entre a vegetação que se agitava ao vento.

Aã, sim, lá estava Vagabundo - o velho louco - e a sua nova e jovem esposa. Mas... quem estava junto deles? Quem quer que fosse vestia um chigdax, e Qung percebeu que o homem acabara de sair do seu iqyax. A seu lado estava um rapaz, quase tão alto como ele. E mais crianças. E uma mulher.

Qung ficou sem fôlego e, ignorando as dores nas articulações, levantou-se, endireitou-se o mais que pôde e começou a chamar, gritando para que a sua voz se sobrepusesse às vozes das ervas.

A mulher levantou a cabeça, gritou também e subiu a colina correndo. Pegou Qung no colo, como se a velha fosse uma criança.

- Eu te disse que esperava - respondeu Qung, com uma voz lamurienta. - Julgavas que eu tinha morrido? Ora!

Depois, a bravata de Qung perdeu-se num mar de lágrimas.

Com uma mão cheia de veias salientes, afastou uma madeixa de cabelo que se soltara das tranças que Aqamdax usava dos lados da cabeça. Deu um estalido com a língua.

- Tens que aprender a tratar do teu cabelo - disse ela, ajeitando-lhe uma das tranças. - Até podem pensar que és uma mulher do Povo Rio.

- Tia, consegue andar para ir conhecer a minha família? - perguntou Aqamdax. - Eu e Chakliux trouxemos todos, o nosso filho e a mulher, mais dois filhos, três filhas que ainda não casaram e o nosso filho mais novo.

Qung apoiou-se em Aqamdax e virou a cabeça para examinar a face da mulher, quando se dirigiam para a praia. Ao canto dos olhos de Aqamdax viam-se pequenas rugas, como se ela se risse com freqüência. Uma madeixa de cabelos brancos e brilhantes que sobressaía da negrura dos restantes nascia-lhe no topo da cabeça e estava presa a uma das tranças. Tinha as mãos manchadas e vermelhas, muito provavelmente dos dias de viagem passados no iqyax. Até a pele do rosto das crianças estava caindo devido ao sol e à água do mar.

Chakliux foi ao encontro de Qung, abraçou-a e apertou-a tanto que os ossos da velha até rangeram.

- Basta! - exclamou ela, batendo-lhe.

Chakliux apresentou os filhos, bonitos e fortes. Tinham o olhar do pai, mas o nariz e o rosto arredondado eram da mãe.

- Angax veio caçar e a mulher dele quer aprender a fazer roupas de pele de pássaro, mas esta nossa filha... Chakliux empurrou a menina para a frente. - Queremos que lhe ensines as tuas histórias.

Admirada, Qung olhou para a menina. Parecia ter oito ou nove Verões, e era tímida. Encarou Qung por instantes, fez um sorrisinho e baixou a cabeça, equilibrando-se num só pé.

- Quanto tempo ficam? - perguntou Qung. Apesar de a pergunta parecer indelicada, ela tinha que saber. Se dispusesse apenas de uns dias, ou de uma lua, ensinaria a menina de uma maneira; se tivesse um Inverno inteiro, a ensinaria de outra.

- Ficaremos enquanto tiveres histórias para contar, respondeu Chakliux.

- Enquanto eu tiver histórias para contar? - disse Qung.

A sua admiração levou-a a pronunciar estas palavras como se fossem uma pergunta. Pigarreou e repetiu:

- Enquanto eu tiver histórias... - disse ela com uma voz firme. - Enquanto eu tiver histórias...

De repente, levantou a cabeça e deu uma gargalhada.

- Enquanto eu tiver histórias! - gritou ela. - Que maravilha! Vocês ficam aqui para sempre!

 

                                                                                Sue Harrison  

 

 

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