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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ARRANHAR DA FERA / Sá Flores
ARRANHAR DA FERA / Sá Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

ARRANHAR DA FERA

 

Eduardo acabava de escrever o quarto livro.

O mundo, para si bem madrasto... finalmente sorria-lhe! Tão grande era o prazer de ver um fruto mais na preciosa árvore do seu alimento.

O facto de se dizer: que tudo tem uma explicação, não era razão suficiente para ele justificar a sua estada no mundo da escrita uma vez que não se considerava um letrado e na família não conhecia ninguém que enveredasse por essa arte.

A verdade é que a pena funcionava nas suas mãos como um regato fluente onde a água cristalina corria suavemente, sem esforço. Nem a cegueira o impedia de navegar a seu belo prazer por esse mundo maravilhoso onde o encanto e a magia apareciam de forma surpreendentes.

Essa era outra das suas grandes admirações!

Quando a cegueira o escolhera para abrigo, revoltara-se tanto, tratara-a tão mal E, agora era a ela a quem aparentemente atribuía os melhores, os mais prazerosos e criativos momentos da sua vida.

-"Mas porquê! Sim, porque é que eu... Oh, Deus, Deus!

Era a voz da consciência a implorar-lhe a devida remissão. É certo que fora tudo causado pela guerra! Por esse monstro medonho e paralisante que o mutilara, obrigara a trilhar outros caminhos onde perdido, solitário, martirizado pelas cicatrizes, pensou que o estudar, o trabalhar, o viajar sozinho, o casar, etc., eram matérias que tinham morrido, que não mais fariam parte da sua vida.

Foi por tudo isso, por julgar para sempre perdidos esses instrumentos fundamentais à realização de qualquer ser humano, que a revolta e a desilusão o levaram a cometer atitudes incríveis: duvidar de tudo e de todos, tentar pôr fim à vida, acabar com o namoro, não permitir sequer que se aproximasse, que contactasse de modo algum consigo a mulher que namorava há mais de sete anos e com quem tinha promessa de casamento.

- Não faças isso, não me abandones! O que te aconteceu, meu querido não altera em nada o meu sentimento por ti.

- Isso dizes tu.

- Acredita, é o que sinto. Eduardo, mas, como foi possível mudares tanto, pensar assim a meu respeito?!

- Cala-te, cala-te. Não vês que... que estou cego!

- Eu sei, sim eu sei. Mas, por favor escuta-me, tu...

- Já disse, nem escuta nem meio escuta. Eu não te vejo, não sei quem és.

- Mas, como podes falar assim, se sempre nos conhecemos e namoramos vai para sete anos!

- Já disse, chega, chega, já disse, chega.

Nunca mais iria desculpar-se desse horroroso procedimento, de tudo o que, em virtude do desconhecimento, fizera de mal nesse tempo. Tratara tão mal a cegueira! Em contrapartida, ela como quem não ouvira, como que ignorando tudo, compensara-o, estava a compensá-lo com uma das melhores maravilhas do mundo, com a arte de escrever.

Que constrangido se sentia...

A lição apresentava-se-lhe com tal clarividência e moral que apetecia-lhe correr, ir por tudo quanto era mundo pedir perdão, pedir aos Deuses, a todos os Deuses milhões e milhões de desculpas pelas incorrecções, por tudo o que de mal havia feito e pensado a seu respeito. Era a ela a quem devia as maravilhosas estradas por onde surpreendentemente estava a ser conduzido. Sim, porque antes, durante os vinte e dois anos que tivera a vista nunca escrevera um só poema, uma só quadra, uma só linha devidamente elaborada. Agora, depois de estar cego já ia no quarto livro!

Eram na verdade feitos e virtudes que por tudo quanto para si representavam, mesmo obstante todas as imodéstias não podia ignorar, deixar de salientar efusivamente.

A escrita era agora, na verdade, o seu maior encanto, o seu maior tesouro, o paraíso que jamais pensava ao seu alcance.

 

Conforme ia buscando as palavras, compondo as frases, dando forma e vida literária aos seus pensamentos parecia envolvido por plumas, mergulhado em águas tépidas, absorvido por toda uma vida paradisíaca onde o sonho tinha asas de ouro e a imaginação imagens de beleza e cor que jamais havia conhecido.

Era por tudo isso, por todas as vivências que contrariavam atrozmente o que então pensara acerca da cegueira que conscientemente assumia que a pessoa cega, desde que reabilitada e integrada, não era de maneira alguma inferior a quem quer que fosse. Tinha até uma magia e sedução diferentes que enobreciam de certo modo a razão de ser, a própria vida.

Era esta nova mensagem que o Eduardo não podia calar dentro de si. Não para mistificar nada, não porque quisesse ser profeta do que quer que fosse, apenas para que acabassem socialmente determinados guetos e atitudes lesivas para muitas dessas pessoas portadoras de deficiência, neste caso específico da visual.

Tinha a experiência das duas faces, do antes e do depois de ser cego, situação que lhe dava alguma convicção e ajudava à intervenção que fazia pelo país todo, onde às vezes aconteciam bonitas surpresas:

-Meu caro Eduardo deixa-me antes de mais abraçar-te! É maravilhoso reencontrar-te, ver-te assim! Mas, que voltas deste para domares esse monstro?

Acabava de intervir como conferencista num seminário sobre a deficiência, quando fora reconhecido por um ex-colega do hospital militar:

- Obrigado Rodrigues, muito obrigado!

- Mas, como foi possível operares essa mudança?!

- Só "os burros não mudam", meu Caro Rodrigues! Tudo, se deve ao ter encontrado as pessoas habilitadas... possuir alguma capacidade e ter um enorme desejo de viver.

- Mas, ia lá ao hospital um padre falar contigo!

- Pois ia, pois ia, porém, naquela altura a minha carência não era de "pai-nossos", era sim de quem me tirasse das terríveis encruzilhadas que me confundiam... me preparasse e ensinasse a trilhar os novos caminhos. Sabes que para tudo se quer a pessoa certa.

- Estou a ver, estou a ver. É caso para dizer: quem te viu e quem te vê!

- Confesso-te que não foi fácil, acredita que eu próprio me admiro. Creio que foi tudo uma questão de coragem, de gosto e valorização da vida.

Eduardo estava na verdade diferente. Existiam nele outras componentes, outras maneiras de ver e sentir as coisas: O mundo preenchido pelas formas e cores quando via, e o mesmo mundo preenchido pelo odor e musicalidade quando cego, fundiam-se em imagens múltiplas que enriqueciam a vida das palavras e das coisas.

Não era, contrariamente ao que possa pensar-se uma simbiose difícil, em absoluto contraste. Era sim uma fórmula que precisava de ser apreendida para conjugar e explorar as suas reais componentes. E, que pena o Eduardo chegava a sentir ao pensar que estaria ainda muito longe de as retratar, de as descrever, de forma a transmitir todo o encanto e beleza que possuem.

Tinha consciência de que havia percorrido somente uns escassos quilómetros da infinita via, que não lhe faltavam forças e vontade para continuar até adquirir o ritmo para que a sua escrita comportasse a mensagem adequada ao desaparecimento dessa terrível barreira provocada, essencialmente, pelo desconhecimento.

Bernardo Santareno, ilustre escritor que muito admirava e a quem devia algumas descobertas da sua personalidade, dissera-lhe:

- Primeiramente é fundamental que gostes de ti. Depois nunca se deve escrever o que não se sinta, o que não se goste.

Eduardo seguia fielmente esse princípio, não tão somente pelo respeito que lhe merecia o autor, mas, pela inoperabilidade e insatisfação que o inverso lhe provocava.

Tal como de uma maneira geral acontece com os artistas, ao Eduardo também se deparavam uns dias melhores do que outros para o desenrolar do seu trabalho. Nesses momentos, e tantos eram eles em que à imensidade de rascunhos se seguia o inutilizar de texto após texto, o enrolar da linguagem e o atingir rapidamente a saturação, sabia parar, ir em busca dos mundos onde pudesse encontrar o apetecido repouso, os aliciantes necessários para se reencontrar com as suas "musas", afim de que elas, calma e serenamente nele deixassem o pólen, o reconduzissem a essa preciosa vida do seu encanto.

Todavia, se é certo que a escrita era sem quaisquer dúvidas um comboio muito precioso que o levava a passear pelos lugares mais recônditos e aprazíveis, a verdade é que nele havia simultaneamente um vazio, uma grande insatisfação provocada pelo abandono a que era deitado pelas editoras e distribuidoras.

Os três livros que antes escrevera, embora editados por organizações particulares, tinham-se esgotado rapidamente, um deles já com uma tiragem de cinco mil exemplares. Por isso, não só não

conseguia compreender esse comportamento, como o facto de quer umas quer outras não se abrirem, demonstrarem interesse na publicação e distribuição dos seus trabalhos.

Também a imprensa, salvo raríssimas excepções, não acompanhava, não fazia qualquer referência à sua vida literária. Segundo pensava, a água quando existe deve ser para todos e não devia haver quem a discriminasse ao ponto de poder conduzir à "morte" quem dela careça.

- Isso é tudo influência dos "media". Quem não lhes cair em graça, vai-se, fica no esquecimento.

A conversa desenrolou-se entre ele e um responsável duma livraria:

- Mas o senhor acha isso justo?

- Ó, meu caro, isso é como tudo na vida, quem tem unhas é que toca viola.

- Mas onde é que quer chegar? Será que o senhor não concorda que quem tem valor deve ser apoiado, independentemente de ser pobre ou rico, ter muitos ou poucos conhecimentos?

- Não se trata de concordar ou não, é a realidade que temos, ou não será? O senhor tem dúvidas de que se tiver em local influente um amigo, ou apenas um conhecido a quem "unte" as mãos, que tem tudo quanto quiser dele?

- São precisamente esses que estragam isto tudo.

- Pois é, pois é...

- Como sabe, isso é até proibido por lei.

- Pois é, pois é. Mas que quer o senhor fazer?

- Que se acabe com eles, pois como é?!

- Nem matando-os, nem matando-os, meu amigo.

- Matá-los, não. Sou contra a morte , contra qualquer género de morte provocada. Para mim a solução passa por as pessoas se juntarem e criarem estruturas bem organizadas que mereçam consideração e influenciem a opinião pública.

- Cooperativas, é isso que está a pensar?

- Por exemplo, porque não? Será que alguém consegue com um só milho fazer um pão?

- Claro que não. Mas, para atingir os resultados que pretende, muitos milheirais têm de ser semeados ainda...

- E, então a cultura, sim a cultura, fica eternamente adiada?

- Ó meu caro, isso são outros rosários. Outros rosários bastante complicados. E como o senhor sabe eu vendo os livros, não os faço.

- Se os fizesse, gostava de ficar com eles na gaveta?

- Olhe, sabe o que lhe digo para acabarmos com esta nossa conversa? Há escritores bons e escritores maus. Aos bons não falta quem os procure, quanto aos maus têm que se desenrascar.

- Mas quem é que faz essa classificação? Sim, diga-me, por favor diga-me lá quem é?

- Como já disse são questões que me ultrapassam, e fico-me por aqui. Olhe meu caro escritor, apareça sempre, adeusinho, até à próxima.

O Eduardo não sabia se era ou não um grande escritor, antes mesmo, se era um escritor. Sabia que gostava de escrever, que o fazia para passar uma mensagem e gozar superiormente desse prazer.

Todavia recusava-se a ser classificado sem que os leitores tivessem a palavra.

Era essa falta de princípios, esse absurdo que o entristecia, causava preocupações que não sabia como ultrapassar. Quantas vezes dava consigo a pensar que o tempo que ocupava a escrever cartas, a fazer telefonemas, a subir e a descer escadas das editoras, lhe fazia falta, muita falta para se entregar sem outras preocupações ao que mais gostava de fazer, à escrita.

Isto, não significa comodismo, esperar que o mundo lhe viesse cair nas mãos. Nada disso. Sabia muito bem o que era coabitar com as vicissitudes. Praticamente desde os primeiros anos da sua vida que elas lhe vinham impondo a sua companhia.

Por força das circunstâncias, fundamentalmente no início, algumas vezes se precipitou ao deixar-se enveredar pela revolta, arranjando assim armas cujos disparos, contrariamente ao que era sua intenção, incidiam sobre si mesmo. Mas lá diz o povo: "Homem prevenido vale por dois".

Não quer com isso dizer, nem levar a pensar que não voltaria a cometer os mesmos erros, longe disso. Lá diz o ditado: "Quem anda à chuva molha-se".

Porém, o que é necessário, nessas alturas é ter sempre em mente o resultado dessas vivências, para com a experiência e frieza necessárias enfrentar as situações e resolver os problemas sem precipitar os acontecimentos.

 

 

Um homem sozinho, segundo Eduardo pensava, dificilmente conseguia ter a força conjugada de muitos ao mesmo tempo. Por ser esse o seu entendimento, seguiu o pronuncio da lenda dos vimes: tentou juntar-se a outras vítimas para engrossar o cordão e ultrapassarem a barreira que lhes era imposta.

Também por aí os caminhos não se abriram. Enquanto eles apanhavam desamparadamente a chuva, os outros, os privilegiados riam com todos os abrigos à sua mercê...

Mesmo assim, não deixava os seus créditos por mãos alheias. Sempre que tinha oportunidade lá estava, sozinho ou acompanhado a falar do caso nas livrarias, nas colectividades, nos congressos, enfim, em todos os locais onde "pudesse arranhar a fera".

A sua intenção não era de modo algum que acabassem as editoras ou as distribuidoras, nada disso. Era sim pela melhoria e defesa da cultura, que elas recebessem mais livros, analisassem e decidissem indiscriminadamente sobre todos os trabalhos que lhes chegassem.

Há quem pense que a defesa de determinados princípios em que se acredita pode fazer-se de fora... Eduardo orientava-se de modo diferente. Continuava a manter o contacto com elas: Tinha perfeita consciência que não podia descorá-las, tinha de estar lá.

Quando se luta tem-se esperança, o Eduardo não desistia de persegui-la:

Mal entrava no escritório lá estava ele de volta da cabine telefónica; assim que entrava à porta do prédio corria para a caixa do correio, e se nela não havia nada corria para casa, sempre na esperança duma resposta...

Os dois anos decorridos após lhes ter enviado o seu livro para análise e, não tendo tido nenhum pronuncio, seria para muitas pessoas a desilusão total, quem sabe até talvez a desistência. Para o Eduardo, e por incrível que pareça, pois nada tinha de masoquista, era um incentivo, um grande incentivo para a sua luta, para cada vez mais ver na escrita um sonho, um sonho maravilhoso cuja realização de forma nenhuma abandonaria.

De tal maneira assim era que, mesmo com esse ambiente desfavorável ia escrevendo, escrevendo sempre, fazendo da pena o refúgio das suas vivências, uma arma de contestação. Não iria parar nunca.

 

Toda a escrita tem as suas regras... as de uma simples carta são de que deve ter sempre uma resposta. Foi fiel a esse principio que continuou.

Como é conhecido, ou pelo menos do que possa deduzir-se do que até agora foi escrito, o Eduardo não era, nunca fora, pessoa de bajulamentos, de deixar cair as coisas no esquecimento.

Por sentir nisso uma forma de pressão, ao ver o silêncio permanecer, aumentou os contactos com as editoras que tinham o seu trabalho, deixando nas suas conversas, ainda que de maneira subtil alguma admiração pela deselegância do tempo decorrido e falta de resposta.

Mas, mais uma vez seria caso para pensar que o livro teria caído em algum poço sem fundo...

Vendo que nada se alterava, e, porque isso era importante para não perder o ritmo, voltou a repetir os telefonemas.

Desta vez estava ainda mais decidido, não lhes iria dar tréguas. Dois anos e meio para responder a uma carta, para além de infringir tudo o que é democrático, de boa educação, colocavam ainda mais a razão do seu lado.

Claro que como tudo na vida, também as suas atitudes e comportamentos podiam ser discutíveis... mas tal como dizia António Aleixo: "a razão mesmo vencida não deixa de ser razão".

Talvez por ser assim, porque "Não há mal que sempre dure", o esforço acabou por funcionar.

Pai, pai, chegaram muitas cartas! Duas delas vêm de onde tu esperas. Queres que as abra, queres que as leia?

A filha do Eduardo tinha oito anos. Entre pai e filha havia uma relação aberta construída na base do amor, da compreensão. Eduardo não ocultava praticamente nada à sua Patrícia. Por ser esse o seu sentido de responsabilidade acompanhava-a de perto, dedicava-lhe algumas horas por dia, falava-lhe com verdade e respondia às suas perguntas em linguagem e palavras simples, excepção para as histórias, onde usava de algumas artimanhas para as tornar mais acessíveis e atraentes.

Poderá pensar-se que oito anos não dão para saber muito. No caso da Patrícia não era assim. Desde o ler ao escrever, do estado físico do Eduardo ao muito do preenchimento do seu dia-a-dia, ela sabia praticamente de tudo.

A falta de resposta das editoras era matéria faladíssima lá por casa. Daí a alegria e a ansiedade com que a Patrícia queria abrir e ler as cartas ao pai.

- Mas que duas cartas, filha? Eu estou à espera de tanta coisa!

- Oh, é daquilo dos livros, das editoras ou lá que é! Queres que abra ou não?

- Ah , sim filha, quero, quero, mas com muito cuidado para não rasgares, está bem?

- Ó, pai, com franqueza, até parece que nunca abri uma carta!

- Pronto, pronto filha, desculpa, abre-a lá então.

- Já está, já está, ora escuta:

 

Exmo. Sr.

Após a leitura do trabalho que nos apresentou para apreciação, somos em informá-lo que o nosso plano de publicações para este ano se encontra encerrado. Dado ainda que as verbas destinadas à colecção onde poderíamos inserir o seu livro se encontrarem esgotadas, não nos é possível dar-lhe nenhuma garantia de publicação nos próximos quatro ou cinco anos.

Informamos que o seu livro está disponível nos nossos serviços, pelo que, e caso seja esse o seu desejo poderá mandar levantá-lo quando entender.

Com os nossos melhores cumprimentos, etc. etc. etc..

 

- Oh, o costume, daqui a quatro ou cinco anos, daqui a São Nunca.

- Como pai, como? Não era isto que tu esperavas, pois não?

- Não minha filha, na verdade não era.

- Pode ser que esteja nesta outra, ora escuta:

 

Exmo. Sr.

Somos a informá-lo...

- Oh, mas esta é a mesma coisa pai! Até parece que copiaram!

- Continua filha, continua.

- Oh, para quê, para tu ficares ainda mais aborrecido?

- Pode ser que não, continua, continua lá.

Ora, onde é que eu ia, onde é que eu ia, té, té, té té, ah, já achei! Era aqui:

 

Somos a informá-lo que gostaríamos de conversar com o ilustre escritor acerca do seu livro, pelo que aguardamos que nos contacte afim de acertarmos a data para uma pequena entrevista.

Sem outro assunto, etc. etc. etc.

 

Eduardo deu um salto da cadeira:

- Viva, Deuses, até que enfim! Até que enfim!

- Até que enfim, o quê pai?

Eduardo agarrou-se à filha, pegou nela ao colo:

- Viva minha filha, viva, estamos no bom caminho!

- No bom caminho de quê, pai, vá diz lá, diz lá!

- Está bem minha filha, eu digo, eu digo. Sabes, aquela entrevista a que eles se referem na carta é para publicarem o livro que o pai escreveu.

- Mas eu não li isso, na carta não está isso!

- Pois não, pois não, mas é como se lá estivesse.

- Ah, isso é que não, desculpa mas isso é que não. Faz favor explica-me lá isso melhor.

- Está bem, eu explico: normalmente os processos de resposta que eles usam são: quando não gostam ou não se interessam pelo livro em questão, devolvem-no pura e simplesmente. Quando gostam mas não conhecem a pessoa que o escreveu e têm muitos livros , dizem que não há orçamento, que já terminaram o plano, etc.

- Como foi o caso da primeira carta que eu li?

- Exactamente. E quando se interessam marcam uma entrevista.

- Ah, como está nesta!

- Sim, sim, exactamente.

- Vês, fui eu que te dei sorte. Já sabes, agora sou eu que te leio todas as cartas.

- Está bem, está bem, fica combinado. Agora deixa-me ir telefonar, tratar do resto, sim filha?

- Assim com tanta pressa, nem penses!

- Ah, tens razão, falta o beijinho.

- Um não, dois. Que eu saiba eram duas cartas!

- Hum, que rica coisinha de amor do pai!

O contentamento do Eduardo era inegável. Todavia a sua luta não se esvaziava na publicação do seu livro. Tudo tem de ter um princípio e, se esse passasse por aí, então sim, não só a cultura estaria mais rica, como o próprio país.

Tinha de dar a novidade aos colegas:

- Eduardo, excelente, parabéns!

Chegado o dia da entrevista, não sabia como estar, nem o que fazer. Cada minuto que faltava parecia um ano.

Para descontrair um pouco a ansiedade e o nervosismo, ia dando os últimos retoques no semblante... Normalmente gostava de se apresentar bem. Porém, naquele dia tinha-se esmerado.

O ser alto, magro e bem entroncado já era meio caminho para a elegância, o fato azul, a camisa branca, o cabelo bem arranjado, os sapatos pretos bem engraxados e o lenço de seda grená que habitualmente usava ao pescoço, completava uma figura recheada de condimentos propícios a uma excelente presença.

Tal como se tinha habituado e era seu apanágio, ia sozinho. Dirigiu-se a uma praça de táxis sua conhecida:

- Por favor, para a rua...

- Concerteza meu senhor. Tem algum caminho a indicar?

- Deixo isso para o meu amigo.

- Vou fazer o melhor que sei, oxalá o trânsito nos deixe.

- Assim espero.

- Desculpe, não foi de nascença pois não?

- Não, não.

- Algum acidente?

- Sim, foi na guerra.

- No Ultramar?

- Sim, sim, em Moçambique.

- Não sei para quê, senhor, não sei para quê. Tanta desgraça para entregarmos aquilo de mão-beijada!

- Não quiseram que fosse de outra forma.

- Eu também por lá andei, mas felizmente não me aconteceu nada. Tive sorte. Do meu batalhão só de uma vez ficaram lá quatro.

- Pois é, são os tais momentos...

Chegámos, o número é mesmo aqui.

 

- Depois de pagar e dar a respectiva gorjeta, Eduardo, como nada conhecia por ali, pediu ao taxista se lhe indicava a porta.

- Ora essa, ora essa. Cuidado que tem uma escada.

Ultrapassados os obstáculos, o Eduardo a passo lento e com alguma tranquilidade entrou na editora:

- Que deseja?

- Venho por causa de uma entrevista.

- Faz favor de aguardar um bocadinho, está bem?

- Sim, sim, ora essa.

Para não estar ali especado, apeteceu-lhe dar uns passos. Como não conhecia o espaço à sua volta, decidiu continuar na mesma posição, descontraído o máximo possível.

A espera já ia longa:

- A senhora desculpe...

- Vá, diga, diga lá, o que é?

- Marcaram-me uma entrevista para as quinze horas e como já são quinze e cinquenta, pretendia saber qual o motivo de ainda não ter sido recebido.

- Mas era uma entrevista sobre quê?

- Sobre um livro.

- Ah, sim, sim, é só um momento.

Desta vez não se retirou de junto da secretária da recepcionista, apercebendo-se perfeitamente da sua ausência e regresso.

- Mas que livro é?

- Trata-se de um livro de...

- É só mais um momento.

Novamente ele ouviu os passos da senhora conforme se ia afastando, para passada nova parcela de tempo:

- O senhor Eduardo é você?

- Sim, sim, sou eu mesmo.

- Quer o senhor dizer-me que a entrevista é consigo e que o livro é do senhor?

- Sim, sim, isso mesmo.

De novo os passos, mais uma espera, até que:

- Mas, foi o senhor mesmo quem escreveu este livro?

- Sim, como já disse fui eu mesmo.

- Pois é, a senhora doutora pede muita desculpa mas neste momento não o pode receber. Ela manda-lhe aqui o livro e que depois contacta consigo.

Foi como se um balde de água gelada tivesse caído por cima do Eduardo. As pernas tremiam-lhe e o sangue paralisara-lhe nas veias. Era a decepção, o fim de uma esperança que se lhe deparava tão risonha. Pensando bem, analisando friamente as perguntas, tantas perguntas, a maneira como tudo tinha decorrido, ele só via uma causa, o ser cego, a cegueira.

Ideias do passado quiseram assaltar-lhe, tolher-lhe o espírito. Não queria voltar atrás, por isso repeliu bruscamente esses pensamentos para continuar em busca da sua pretensão. Não era insensível, nada disso, sentia bem cravarem-se-lhe os espinhos. Era uma questão de orgulho, de pugnar, agora não pela cultura mas, por justiça, neste caso social.

 

- Eduardo sei que és forte, que estás numa de antes quebrar que torcer... contudo, receio que venhas por aí abaixo e deites tudo a perder. Desculpa falar-te assim, mas não és tu o primeiro, estás a ouvir-me, não és tu o primeiro!

- Sim, e depois?

- E depois, tenho uma sugestão, porque não fazes uma edição de autor?

- Não, isso Não.

- Mas não porquê, Eduardo?

- Tenho ouvido dizer que não leva a lado nenhum.

- Depende da forma como tudo seja feito. Se quiseres levo-te a falar com alguns bons escritores que começaram precisamente por aí.

- Isso dá muito trabalho... É preciso muito dinheiro, ter muitos conhecimentos!

- Claro que é necessário algum, mas sabes muito bem que há hipóteses de condições de pagamento. E basta venderes alguns livros para ires solucionando o problema. Quanto ao trabalho e ao resto, os amigos ainda não te abandonaram, pois não?

-De facto não. Mas, não sei pá, não sei. Realmente estou a sentir-me em baixo, tenho mesmo necessidade de fazer qualquer coisa, mas não sei...

- É isso mesmo Eduardo, vamos nessa, vais ver que resulta.

A edição de autor já lhe tinha sido sugerida aquando da publicação dos seus livros anteriores. No entanto, como apareceu quem se interessasse pela edição, não enveredou por esse caminho.

A verdade é que as possibilidades editoriais anteriores estavam arredadas: umas tinham falido, outras já não se dedicavam a isso, enfim, não podia contar com elas.

Entretanto já tinha outro livro praticamente pronto, o que agravava terrivelmente a situação. Ter dois livros escritos na gaveta podia tornar-se fatal para a sua maneira de ser.

Só os santos não perdem a paciência, ele, para além de não ser nada disso, tinha receio, tal como dizia o Fernando, de num momento para o outro deitar tudo por água abaixo. Antes que fosse tarde e por falta de alternativas, decidiu pôr mãos à obra e seguir a sugestão do amigo.

- Óptimo Eduardo, óptimo, vais ver que resulta.

O Fernando era um grande amigo, com particularidade muito especial. Conhecera-o com vista, convivera com ele antes de cegar.

- Eduardo, uma vez que avançaste para isso, é bom que comecemos já a pensar noutras coisas.

- Devagar Fernando, devagar. Bem, mas já agora, diz lá, em que coisas?

- Por exemplo, num lançamento.

- Num lançamento?!

- Sim, sim, num grande lançamento. Olha que não sou só eu a pensar assim. Uma das lacunas que muito contribui para o estado de coisas de que és vítima é a falta de divulgação da tua obra em sessões públicas.

O Fernando tinha razão. Mais uma vez parecia estar a ler o que lhe ia na alma. Era inegável que sentia uma necessidade faminta de contactar com o público, de ouvir falar de livros, de cultura, de lhe serem espevitadas determinadas reacções fundamentais para incentivar o seu trabalho.

- Sim, lá isso é verdade!

- Claro que é, claro que é. Como é que tu queres que te conheçam, que comprem os teus livros, se tu não te apresentares? Não te esqueças que vais ser tu o editor, que não tens ninguém a comandar as coisas.

- Sim, tudo bem. E o que é que vai ser preciso? Eu tenho algumas ideias, mas não sei se estarão certas, se chegarão.

O Fernando estava a navegar em águas bem suas conhecidas. Era pintor, e para além de exercer como professor, fazia exposições, muitas exposições individuais e colectivas. Estava portanto em excelentes condições de o tranquilizar e apoiar:

- Pois muito bem, essencialmente é necessário: arranjar uma sala digna, mandar imprimir um convite, enviar para a imprensa um comunicado com o local da sessão, nome dos intervenientes e alguns dados biográficos, encontrar a disponibilidade de uma pessoa posicionada no campo das artes, particularmente da literatura, para referenciar algumas passagens do livro, falar do escritor, etc.

- Tanta coisa, Fernando!

- Parece, mas não é. Quando meteres mãos à obra, vais ver que a montanha pariu um rato.

Na verdade assim foi. Contrariamente ao que pensara tudo se compôs rapidamente e a seu gosto. A capa foi feita pelo Fernando, e a tipografia para compor o livro foi também da sua escolha. Quanto ao átrio não podia ter encontrado melhor do que o Salão Nobre da Sociedade da Língua Portuguesa, um espaço dignamente trabalhado, preenchido com os requisitos exigidos para tais eventos. Quanto ao analítico da sua obra, também estava muito bem servido, tratava-se dum ilustre linguista e escritor.

Que bem que se sentia ao ver as coisas desenrolarem-se a bom ritmo e dentro do planeado!

- Não calculas como gosto de te ver assim satisfeito, Eduardo!

- Graças a ti Fernando, graças a ti. Tu que me conheces bem sabes que custo a arrancar, mas depois de me meter nelas nunca mais paro.

Na verdade assim era. O Eduardo não regateava esforços, queria tudo bem, para que resultasse em pleno.

O salão era na realidade magnífico por natureza. Todavia, para aquele dia foram-lhe acrescidos alguns adornos que o tornaram ainda mais completo, mais bonito.

 

Por ser da “prache”, e tal como havia sido combinado, fora o primeiro a chegar e situara-se junto à entrada para cumprimentar os convidados.

- Ei lá, Eduardo! Deixa-me cá olhar bem para ti: fatinho, lacinho, barba aparada, não há dúvida, tu esmeraste-te!

- É verdade Fernando, ele está uma bomba, uma alta bomba, excede tudo o que é parada!

A Catarina fora-lhe apresentada pelo Fernando e participara na revisão das provas do livro.

- Então, que tal achas isto?

- Excelente Fernando, excelente. O meu muito obrigado a vocês todos.

Estava tudo pronto, tudo como idealizara para a sessão.

Só que, contrariando todos os objectivos, chegada a hora marcada as cadeiras foram demais para instalar as pessoas. Havia lugares vazios por praticamente tudo quanto era sítio. No lugar reservado aos jornalistas, presença que era fundamental, ninguém, absolutamente ninguém!

Era o imprevisto, o carregar das nuvens negras, o atirar das setas à sua sensibilidade que contrariamente ao que havia idealizado, vivia mais um momento decepcionante na sua vida.

Só compareceram alguns amigos, aqueles eternos sacrificados que estão sempre disponíveis e servem de abrigo ao mais nobre tesouro que dá pelo nome de Amizade, e são por isso vulneráveis ao ponto de sentirem os efeitos das reacções provocadas pelos infortúnios.

O linguista, parecendo fazê-lo propositadamente, referiu-se à obra de tal maneira que toda a pele do Eduardo fervilhava. Era tão belo o que ouvia que houve mesmo momentos em que, influenciado pela desolação, chegou a duvidar que fosse da sua autoria e se relacionasse consigo.

Momento decepcionante foi também a sessão de autógrafos.

Normalmente era o mais ansiado. Porém naquele dia foi o mais angustiante. Os livros, aqueles pedaços de si, espalhados por cima da mesa pareciam envolvidos por uma fria mágoa a brotar línguas de pranto que desaguavam no rio mais triste dos seus sonhos. O sentimento interior era tal que frequentemente se perdia na pequena mensagem que queria dedicar ao seu leitor. O escarlate tolhia-o de tal forma que era praticamente impossível esconder a decepção que o envolvia.

Aquele nobre e tão solene acto de onde esperava momentos de inolvidável prazer estava a ser um pântano onde se sentia lentamente desaparecer, conduzido por hienas que lhe corroíam a sensibilidade e o enchiam de intranquilidade e angústia.

Estava sem qualquer capacidade de reacção. Valeram-lhe os amigos. Ao verem desnudada a árvore que servira de palco às personagens, logo se organizaram para terminar o pesadelo, transformar o Inverno escaldante que ali se vivia num Outono calmo que retemperasse vagarosamente todo o ambiente.

- Um momento, só um momento por favor. Vamos organizar isto.

O Fernando era o que ,aparentemente parecia mais calmo. Tinha sido conjuntamente com o Eduardo o último a abandonar as instalações da Sociedade da Língua Portuguesa. Ao chegar à rua e ver cada um para seu lado, quis pôr alguma ordem no grupo:

- Ei Pessoal! Atenção por favor. Há aqui quem esteja só. Por isso é importante dividir-mo-nos pelos carros.

- Onde é a paragem, onde é que vamos jantar?

- Calma, calma, já lá ia. Estivemos aqui a falar e achamos que a esta hora o melhor será a Trindade.

Não houve mais palavras. Em sinal de concordância puseram os carros em movimento pelo caminho que cada um entendeu melhor.

A Trindade era uma das maiores e mais credenciadas cervejarias de Lisboa. Situava-se no Chiado, numa das zonas mais históricas da cidade, e possuía uma galeria de exposições que em conjunto com um serviço esmerado contribuía para que uma grande parte da clientela estivesse de algum modo ligada às artes.

- Façam favor, em que posso servi-los?

O empregado era homem para um pouco mais de meia idade. Tinha cabelos grisalhos, trajava de casaca creme com botões vermelhos e calça preta.

- Queremos uma mesa para doze pessoas.

- Queiram fazer o favor de aguardar um bocadinho.

Como normalmente acontecia, a casa estava superlotada, ouvindo-se por ali um barulho ensurdecedor originado não só pelas pessoas, como também pelo eco, em virtude das instalações serem demasiado espaçosas e de pé muito alto.

- Façam favor, podem ir sentar-se naquela lá ao fundo que acaba de vagar.

- Hei, como é, há lugares escolhidos, ou fica tudo a molho?

- Cá por mim...

- Eu só não admito que as mulheres fiquem juntas.

- Qual é a tua, ó...

- Pronto, pronto, acabou a rebaldaria. Vamos ao menu. Eduardo O que preferes? Tens: Marisco... carne ... peixe...

- Eu sei lá.

- Disso não há cá. E toda a gente tem de comer.

- Pode ser... arroz de tamboril.

- "Vinte pontos para o País de Gales!" Acertaste, é também o que escolhi. Para entrada tens: melão e meloa com presunto, queijos vários, manteigas, crepes, salada de polvo...

- Pode ser meloa com presunto.

Derivado ao estado de espírito, o jantar foi monologante, o que não agradou ao Fernando, que pretendia atenuar, sobretudo ao Eduardo os efeitos melancólicos resultantes do lançamento.

Não, não podia ficar por ali, não podia terminar assim. Olhou de soslaio para o rosto de todos onde pareceu ver a mesma necessidade.

- Hei, escutem lá! Eu comi que nem um abade. Isto está quase a fechar e se a malta fosse beber um copo a qualquer lado?

- Boa ideia, este barulho está a dar-me cabo da cabeça.

Foram para o Ritz-Clube, situado na Praça da Alegria com ambiente para todos os gostos: salas onde se podia tomar uma bebida e falar calmamente, bar e pista de dança.

A intenção era conversar.

- Ora digam, se fazem favor.

- O que é que vamos beber? Eduardo para começar diz lá tu.

- Para mim pode ser um whisky com gelo.

- Ora sendo assim o senhor vai trazer uma garrafa de whisky, gelo e copos para todos.

- Para todos, não. Eu quero um Porto.

- Ó, Catarina quando é que deixas de ser do contra!

- Precisamente quando tu deixares de ser ditador.

- Ah, ah, ah! Então, sendo assim são copos, um porto e uma garrafa de whisky.

- Não costumamos servir garrafas inteiras, no entanto vou ver o que posso fazer.

- Ah, aqui sim, isto já é outra coisa, já é possível falarmos do livro! A propósito, como é que viram o lançamento?

- Eu já estive a trocar opiniões acerca disso, mas já agora gostava também de vos ouvir.

- Olha, Fernando, eu digo-vos muito sinceramente que na minha maneira de ver, e tendo em conta que um lançamento é fundamentalmente um encontro de amigos com o escritor, acho que não foi tão mau assim.

- Foi pena estar pouca gente, mas...

- Cá para mim, o pior foi a falta da imprensa, nem uma entrevista, um simples apontamento que fosse!

- Para mim a honra do convento foi salva pelo linguista.

- Ó, sim, sim, concordo absolutamente.

- E tu Eduardo, não dizes nada?

- Tenho a agradecer a vocês todos...

- Deixa-te disso, pá. Referia-me ao que estamos a falar.

Olhem, quanto a isso, confesso-vos que... que não sei nada... que estou a zero.

 

As intervenções em geral não tinham tido muito fervor, não estavam, mais uma vez, a dar o resultado pretendido pelo Fernando, tudo se agravando com o Eduardo, que com a sua voz trémula, e constrangida tinha silenciado tudo.

Havia mais uma vez que mudar as agulhas, dar rapidamente a volta às coisas:

- Depois disto... se a malta fosse a uma batida?

- Boa ideia, boa ideia.

- Eu já lá fui dar um pezinho e o ambiente está agradável.

Num ápice, parecendo impulsionados por uma mola, quase tudo desapareceu.

- Eduardo, só ficámos aqui nós!

- O quê, Catarina, foram-se todos embora?

- Todinhos, todinhos.

As ondas de silêncio agravavam a já de si cinzenta angústia do Eduardo.

O mar embora calmo era formado por marés de perplexidade e de alguma confusão... não havendo cais definido onde atracassem os barcos, todos os barcos que um pouco à deriva lhe navegavam no cérebro.

- Foi pena não me ter despedido...

- Porquê, porquê Eduardo?

- Ora porquê, porque me vou embora.

A mão de Catarina pousou suavemente sobre a dele, fazendo-o estremecer, não por ter a pele húmida, estar gelado, mas porque não esperava o gesto.

- Nem pensar nisso, o Fernando não gostaria mesmo nada! E se fossemos dançar?

Sentiu um arrepio indesejado. Noutra altura saltaria da cadeira, seria o primeiro a aplaudir a proposta do Fernando, seria o primeiro a convidar a dama que estivesse mais perto de si.

Porém, naquele dia, naquele momento tudo chocava com a sua sensibilidade. Sentia desejo de fugir. Não o fazia, claro que não o fazia. Estava aborrecido, mas nenhuma pessoa do grupo tinha contribuído minimamente para isso.

- Dançar! Só se for por si. Por mim, confesso que me apetece mais tomar outra bebida.

Catarina fixou o olhar em Eduardo: tinha ar espectante, os olhos fundos, tristes, aureolados por um escuro círculo que lhe amarelecia o rosto. Não o conhecia muito bem, praticamente era a primeira vez que estavam tão próximos, o que obstou que o acariciasse.

- É por mim sim, a bebida fica para depois.

Levantando-se, agarrou-lhe na mão, e conduziu-o até à pista de dança. Rodou a mão, envolveu-o com o outro braço pela cintura, encostou-se ao peito dele e começou a movimentar-se ao som da música.

O Eduardo gostava de dançar. Atribuíam-lhe mesmo um bom pé de dança. Noutras circunstâncias não lhe seria difícil conjugar os passos, ligar-se ao movimento da Catarina e navegarem nas ondas da música e do ritmo, porém, naquele dia, naquele momento nada ouvia, nada sentia, os pés colavam-se ao chão como chumbo.

A falta de assunto, o não falar, eram os sentimentos que naquele momento mais vida tinham em si.

Catarina sabia, tinha compreendido isso pelo comportamento dele ao longo da noite. Também ela era de poucas falas, e como gostaria de o ver diferente...

A série estava a ser preenchida com slows, tangos, blues, enfim, música calma. Eduardo continuava com a mão fria, o corpo mórbido, limitando-se a segui-la, nada mais.

Catarina não gostava. O que nele via não era aquilo!

Não era propriamente uma ingénua. A vida tinha-lhe dado alguma experiência, havia que usá-la com todas as artimanhas para desmoronar alguns castelos e fazer brilhar naquela noite algum sol em Eduardo. Para isso, e perante tudo o que se tinha apercebido, só havia o amor. O amor falso, o amor de oportunidade, o amor sexo, enfim, o amor...

A pista estava repleta. Os encontrões sucediam-se imperativamente. Soltou a mão da dele, e colocou-a por debaixo do seu ombro, em contacto com o peito do lado oposto onde já se encontrava a outra, levando-o a enlaçar a sua cintura com ambas as mãos. Os corpos encostados começaram simultaneamente a emitir algum calor, a provocar alguma transpiração, mais visível nas frontes onde se fixavam algumas gotas.

E, que aroma de after-shave vinha das bem cuidadas e ligeiramente grisalhas barbas dele! Odor esse tão do agrado de Catarina que, de vez em quando, de forma sub-reptícia aproximava a boca da face dele e respirava fundo, sentindo eclodir vulcões no seio das suas entranhas.

Contrariamente ao que acontecia, as mãos dele já a seguravam, reflexos seguidos pelo corpo que ganhara expressão.

- Então Eduardo, a sua bebida?

- É verdade, nunca mais me lembrou!

A série tinha terminado. Estavam parados, muito juntos e de braços cruzados pela cintura.

- Se fossemos aqui ao bar?

- Está uma bicha que nem calcula, Eduardo. Além disso já é muito tarde, estou a sentir-me cansada, tenho de ir-me embora.

Era a última resposta que pensaria ouvir.

           Ela que impedira que antes se ausentasse, e, entretanto incendiara nele uma chama renovadora, abandonava-o de um momento para o outro!

- Diga lá Eduardo, quer que o deixe ali e vá ver de alguém que lhe venha fazer companhia, ou quer aproveitar a minha boleia para casa?

O filme daquela noite passou num ápice pela sua lembrança. Todas as imagens eram importantes. No entanto as últimas, ainda que interrompidas inesperadamente, sobrepunham-se, tinham sabor diferente que queria manter ao de cima.

- É muita maçada para si, Catarina. Eu moro bastante longe daqui.

- Fá-lo-ei com muito gosto, Eduardo, acredite.

A cabeça de Catarina tocou-lhe o ombro ao deleve provocando-lhe uma sensação algo atraente.

- Sendo assim aproveito, temos é que nos despedir do Fernando.

A noite estava agradável. Havia alguma neblina e as estrelas, ora brilhantes, ora encobertas por nuvens cinzentas, decoravam suigeneramente o céu azul, onde a lua cheia e branca se expunha como apaixonada noiva.

- O Eduardo confia em mim, ou é daqueles homens que tem medo de andar num carro conduzido por uma mulher?

- Confesso que andar de carro, independentemente por quem seja conduzido, não é aquilo que mais me satisfaz. Mas não sei porque diz isso, tem uma condução segura, bastante agradável!

- Acha que sim?

- Não tenho dúvidas.

- Não calcula como é bom ouvir isso a esta hora da noite.

Catarina continuava a pugnar por um ambiente agradável, por isso sorria, fazia perguntas após perguntas para tornar o seu companheiro de viagem participante e interveniente.

- O Eduardo gosta de música?

- Digamos que de uma maneira geral, gosto.

Catarina levantou o volume do rádio enchendo o interior do carro com o lindo Bolero de Ravel:

- Qual o género com que mais se identifica?

- Com o clássico. Sem dúvida que é com o clássico.

As ondas iam serenando. Os barcos, que antes navegavam um pouco à deriva, estavam agora perfilados à entrada do cais à espera do bom tempo para atracarem...

- Gosta de Ravel?

- Gosto imenso. Este seu Bolero é uma das músicas que muitas vezes ouço em fundo quando estou só, a escrever ou tão somente a planificar a escrita.

Era a frase mais comprida que Catarina lhe ouvira naquela noite.

Contrariamente ao que possa pensar-se, estava tão ou mais intranquila do que ele.

Como iria interpretar o seu plano?

O peso na consciência tendia a fixar-se, conduzi-la a uma interiorização absoluta, precisamente o caminho que não queria. Sabia que se encontrava em terrenos pantanosos... pelo que calar-se, deixar de fazer perguntas geraria o silêncio por ali e logicamente condições para uma meditação que poderia levar a dúvidas ou ao desvendar da estratégia.

Para evitar que tal acontecesse, uma vez que também não navegava em assuntos, a solução era trautear a musica, escolher o caminho mais curto e dar um pouco mais de velocidade ao carro.

A cidade encontrava-se praticamente deserta, o que decerto modo favorecia a sua pretensão. Desceu a Avenida da Liberdade onde a luz, sobretudo a bonita luz cintilante e multicor das montras e dos cartazes luminosos, contrastava com a escuridão das camas de cartão que serviam de abrigo a vítimas do infortúnio que, embrulhadas em pedaços de roupas velhas ou jornais, nelas dormiam e sonhavam com lençóis brancos, com bifes, com aquilo que nunca tiveram ou entretanto perderam!

A paragem obrigatória por via do sinal de trânsito levou o olhar de Catarina a fixar-se numa senhora negra, que deixava os enormes e enrugados seios nus expostos ao relento para, de joelhos no chão embrulhar uma criança branca no pedaço de pano florido que entretanto despira.

A imagem e o gesto prenderam-na de tal forma, que só o estacionamento proibido por ali e o objectivo que a conduzia impediram que tomasse outra atitude que não fosse ir rapidamente ao porta-bagagens tirar a manta dos piqueniques e atirá-la para junto da mulher:

- Agarre, agarre-a senhora, é para si, gritou, ao mesmo tempo que entrava no carro e o punha de novo em andamento.

A travagem brusca para respeitar o sinal vermelho que nos Restauradores a surpreendeu levou a que a conversa sobre o tema em questão ficasse por ali.

Novo arranque para, em continuação do trajecto, seguir: pelo Rossio onde a fonte luminosa, a praça e a presença de alguns espectantes lhe faziam lembrar algumas aguarelas; pelo Terreiro do Paço onde as gaivotas perfiladas, vigiadas pelo D. José e seu cavalo imponente, pareciam sentinelas briosas a guardar o Tejo; por Santa Apolónia, onde os táxis se aglomeravam à espera dos passageiros do último comboio que acabava de chegar; e, por fim por uma travessa estreita, onde ia cada vez mais afrouxando a marcha em busca de um lugar para arrumar:

- Chegámos!.

- Como?

Catarina, não respondeu. Saiu do carro e foi abrir-lhe a porta.

- Cuidado, não bata com a cabeça, o carro é muito baixo.

Já do lado de fora, ao endireitar-se, respirar, cheirar o ar e definir o silêncio à sua volta, Eduardo teve naturalmente a noção que não estava nos terrenos circundantes à sua casa.

- Vamos.

Catarina estava junto dele agarrada ao seu braço. Conhecera-a praticamente naquela noite.

Não era de maneira alguma um ingénuo. Mas mesmo que o fosse, a atenção, toda a gentileza que ela tivera para com ele, era de modo a incutir-lhe confiança.

           - Um momento para eu abrir a porta.

Eduardo sabia que estava em terrenos desconhecidos, mas caso não tivesse essa certeza, tinha nestas palavras e gesto de Catarina essa confirmação.

Não lhe tinha pedido a chave, não poderia assim estar a abrir a porta da sua casa!

- Não pergunta nada, Eduardo?

- Perguntar o quê, Catarina?

Encontravam-se então junto um do outro, num pequeno hall. Estavam praticamente às escuras, apenas se reflectia por ali uma claridade ligeira vinda do exterior através da vidraça das janelas da sala.

Catarina agarrou-lhe nas mãos:

- Eduardo, não me diga que... que não... que não está...

- As mãos dela apresentavam-se bastante quentes, flácidas, húmidas e tremiam, tremiam muito.

Através delas, ele sentia o fortíssimo e agitado latejar das suas veias. Estava agora mais embaraçado que nunca! Não sabia bem o que fazer, se responder ou não ao que ela pretendia.

Como não o fizera logo, aquando da sua observação, e como se sentia bem assim junto dela, decidiu continuar a disfarçar, a alimentar o mistério.

- Que não estou o quê, Catarina?

- Eduardo, que não está a... a dar por... por nada!

As mãos dela tremiam, tremiam mais, e agora também o corpo e a voz. Eduardo sentia bem ela passar do nervosismo ao incómodo. Apesar de tudo, conseguia estar absolutamente calmo. E mais uma vez temendo decepcioná-la, acabar com aqueles momentos de uma forma abrupta, reflectiu, decidiu agarrar-lhe os braços, puxá-la para si, ir calma e docemente ao seu encontro:

- Catarina, eu, sei, que...

- Sabe que o quê? Vá, diga, diga lá?

- Não é difícil saber, Catarina!

- Mas, saber o quê, vá diga, diga lá?

Para além de intranquila, Catarina apresentava-se agora também demasiadamente ansiosa, situação que ele de forma alguma podia deixar continuar.

- Sei que... que não... que não estou na minha casa.

Num gesto rápido enlaçou-o pela cintura, encostou-lhe a cabeça ao peito e suspirou, suspirou profundamente:

- Tu és mau, Eduardo!

A temperatura ambiente alterou-se. O calor e o estado de Catarina começaram a contagiá-lo.

Estava uma carícia, uma carícia atraente.

Era a primeira vez que o tratava por tu. Puxou-a ainda mais para si, deu-lhe um terno beijo na fronte e pousou a cabeça sobre os seus encaracolados e bem cuidados cabelos.

- Mau porquê, Catarina?

- Porque sim, porque és, pronto.

Quase tremeu ao pensar que se tratava de uma recusa, de um forte amuo. Claro que não era nada disso, apenas um simulacro que ela corrigiu de imediato ao sorrir ligeiramente, olhá-lo com carinho, dar-lhe igualmente um pequeno beijo na face. Depois, para afastar o fogo, foi premir um interruptor, acender uma luz que apenas deu um certo ar avermelhado à penumbra.

- Pois é, Eduardo, esta é a casa onde habito.

Catarina bocejou e suspendeu a voz. Encontravam-se agora sentados num sofá, de corpos ligeiramente afastados, enquanto ela, como se de uma desconhecida se tratasse, mirava os vários móveis e cantos da casa.

Mais uma vez a perplexidade a apoderar-se dele, e, mais uma vez ele a decidir-se pelo silêncio, por pensar ser inoportuno fazer qualquer pergunta relacionada com a casa ou foro íntimo. Obrigando-a assim, sem que ela o desejasse muito, a ter que continuar:

- Trata-se de um modesto apartamento sem nada de especial. Tem para além das obrigatórias cozinha e casa de banho, duas divisões, esta onde estamos, o quarto e uma pequena varanda virada para a rua.

- Esse será certamente um bom local para apanhar fresco e ter alguns vasos de flores?

- Sim, sim, dão-se ali muitíssimo bem, como numa perfeita estufa. Hoje não, mas um dia destes vamos vê-las.

- Concerteza, terei muito gosto.

- Muito gosto vou ter eu agora em lhe servir uma bebida!

- Não, Catarina, deixe-se estar, já chega de maçada!

- Qual maçada, qual quê. É de uma bebida que se trata. Ou não será que anda há mais de duas horas à espera dela?

Catarina sorria, usando agora um certo arzinho de gozo, ao mesmo tempo que se ia aproximando até tocar levemente com a cabeça no ombro dele.

- Já não me lembrava disso. Quando as coisas são ultrapassadas por outras mais agradáveis, facilmente se esquecem.

- Como? Não percebi!...

Sabia bem que Catarina tinha percebido tudo, e que o pedido de repetição, para além de o fazer falar, exercia a função de lhe arrancar palavras descritivas daquela vivência.

Ele não queria jogar com Catarina ao rato e ao gato. No entanto, como era o que estavam, o que tinham vindo a fazer, e, tendo em conta as circunstâncias, havia que continuar...

- Dizia eu que quando as coisas são ultrapassadas por outras mais agradáveis, facilmente se esquecem.

Claro que não era bem aquilo que Catarina pretendia. E na falta da carícia ou do seu envolvimento, teve que também ela disfarçar:

- Está bem, seja, o que não quer dizer que umas e outras não sejam necessárias?

- Pois de acordo...

- Então, é só um momento enquanto eu vou escolher a bebidazinha.

Levantou-se lentamente, passou pela frente do Eduardo e foi à cozinha, de onde apareceu com um balde com gelo e uma garrafa dentro, tudo arrumadinho num tabuleiro que colocou em cima duma pequena mesa de centro que entretanto arrastou para junto do sofá. Depois foi a um bonito móvel estilo D. Maria, de onde tirou duas lindíssimas taças de cristal que colocou igualmente no tabuleiro.

- Gosta de champanhe?

- Champanhe?!

- Champanhe sim, porque não?

Eduardo ficou boquiaberto, comovido e feliz ao mesmo tempo.

- Oh, Catarina, mas isso é genial!

Nada disso. Apenas uma bebida que fez o favor de me deixar escolher para bebermos os dois. Ela, que entretanto arrefecera as taças com umas pedrinhas de gelo, abriu a garrafa e encheu-as com o néctar, pelos vistos, bem do gosto dos dois:

- Então à tua saúde, Eduardo.

- À tua Catarina, à tua.

- Eduardo, eu trouxe-te para minha casa, porque quero comemorar contigo o fim desta noite. Acredita que para mim ela é inesquecível. Sabes porquê Eduardo, sabes porquê?

- Bem...

- Porque tive a oportunidade de te conhecer. Já tinha ouvido falar de ti, já tinha lido um dos teus livros, mas hoje estou aqui contigo. Quero que me desculpes o desvio, mas...

- Ó Catarina, se há desvios que devem agradecer-se, este é um deles! Por isso, se há alguém que tenha que pedir desculpa, agradecer, sou eu, não só por estes bons momentos, como por me teres segurado e levado a dançar. Não calculas quanto isso me fez bem!

- Não, não, desculpa mas não foi assim! Tu é que me levaste a dançar. Lembras-te que me disseste que só ias dançar por mim!

- Sim lembro, mas ainda bem que assim foi. E nunca mais vou esquecer que foi a dança que nos aproximou.

- A dança não, Eduardo. Foi o lançamento do teu livro.

Catarina suspendeu propositadamente a voz e fixou o olhar em Eduardo. O semblante dele não se alterou, não se transformou quando ela falou no livro, no lançamento, como vinha acontecendo antes. Então, agarrou-lhe a mão, aconchegou-se ao corpo dele e disse:

- Eduardo, à nossa, mais uma vez à nossa, porque, ou eu me engano, ou este teu livro ainda vai dar muito que falar!...

 

- Pai, pai, como correu a tua festa? Pai, não me ouves, vá diz lá como correu a tua festa?

Eduardo parecia ter acabado de deitar-se. Embora o tivesse feito há já algumas horas, estivera muito tempo sem dormir.

- Minha filha, então é assim que se acorda o pai?!

- Porquê, são três horas! Faz favor diz lá como correu a tua festa! Não vês que quero saber, não vês?

A filha estava ao lado da cama, com o corpo pendido para cima do peito dele e as mãozitas a emoldurar-lhe a cara. Eduardo puxou-a para si e beijou-a com muita ternura.

- Vejo sim filhinha, filhinha do coração do pai.

- Mas, vá, diz lá se a tua festa correu bem?

- Olha filha não tão bem como o pai queria.

- Porquê!?

- Porque...

- Espera um pouquinho, um pouquinho só, pai, enquanto eu vou atender o telefone.

O casamento do Eduardo não tinha sido muito bem sucedido. Para ele a única recompensa era a Patrícia...

Tal como havia planeado, conhecera a mulher dentro da sua actual situação física. Durante o namoro fora tudo muito bonito, as vicissitudes vieram depois. A mulher possuía um curso, o que, de acordo com a sua forma de pensar, lhe deu à partida alguma confiança, fundamentalmente no campo que lhe era mais sensível, o da compreensão e aceitação da sua cegueira.

Porém isso não aconteceu. Contrariando todas essas pretensões, a mulher começou por querer ser senhora de tudo, fazer dele um "inválido", precisamente aquilo que ele não queria nem esperava.

Conhecera-a já como deficiente. Aliás tinha assumido, quando acabou com compromissos anteriores que só se casaria com uma pessoa que o conhecesse após ter perdido a vista. Pensava assim livrar-se de determinados preconceitos sociais e pensamentos que bailavam na sua mente e que infelizmente eram prática normal na sociedade de então. Mas nem por castigo. Aconteceu precisamente aquilo que ele não imaginava: conta bancária só a queria em nome dela, chegadas a casa e horas para refeições só existiam para ele; ordenado contadinho e completo na mão dela no fim do mês; satisfações só ele é que as tinha que dar; telefonemas em casa, só podia recebê-los se fossem de homens; enfim um martírio, um degredo.

Inicialmente, ainda que tolhido por essas atitudes, com alguma compreensão tentou com grande humildade e peso de responsabilidade encaminhar as coisas noutro sentido.

Tinha contraído um acto que, para além da forma, contava para ele como comunhão, como responsabilização de princípios assumidos. Só que nada, nem assim resultou.

Quanto mais humilde era, mais a mulher exigia dele. O que inadmissível, insuportável para um ser possuidor de defeitos e virtudes, ávido de aprender, potencial defensor do hino orientador de caminhos: "a liberdade de um, termina onde acaba a liberdade do outro", o levou a mudar de atitude:

- Olha que isto assim não pode ser, mulher.

- Não pode ser o quê, o que é que não pode ser?!

- Já viste, tu é que és senhora de tudo!

- Ora essa, ainda por cima. Quem me dera que tu fosses capaz de participar mais. Olha que, no fim de tudo o que eu faço, é muito duro ouvir isso!

- Mas, eu sou capaz de participar e quero participar. E era muito bom que nos entendêssemos nisso.

- Entender, ainda por cima. Eu não faço outra coisa senão tentar entender-te.

- Muito bem. Então, sendo assim, estarás de acordo que no nosso procedimento tenhamos direitos iguais.

- Direitos iguais, que direitos?

- Por exemplo, pôr as contas bancárias em nome dos dois.

- Parece impossível, só sabes dizer isso, muito me hei-de eu de rir quando fores enganado lá no banco ou a passar um cheque. Mas, isso só vai acontecer com o teu dinheiro, com o meu nunca.

Esta falta de entendimento e de compreensão esteve por algumas vezes à beira de os levar ao divórcio, o que só não se concretizou por via da Patrícia, por ela ser uma paixão para o Eduardo e ele não querer separá-la do amor e da presença da mãe.

Todavia, nada era definitivo. Tudo estava dependente da saturação de dois seres que, embora debaixo do mesmo tecto, viviam como dois desconhecidos.

 

- Pai é uma senhora que quer falar contigo. Atendes ou não?

- Atendo sim, filha.

Patrícia deu o telefone ao pai, e retirou-se, fechando a porta do quarto.

- Olá Eduardo, então que tal, dormiste bem?

- Olá Catarina. Dormir, eu era lá capaz disso!

- Não me digas que continuas a pensar na "morte da bezerra"!

- Não, mas...

- Eduardo, diz-me lá, o que é que tu ganhas com isso? As coisas não correram muito bem é certo, mas não está nada perdido, para isso é importante que ganhes coragem.

- Por acaso não me arranjas por aí meio quilito dela?

- Arranjo, para ti, arranjo até uma arroba. Ai Eduardo, Eduardo...!

- Dizes bem Catarina, dizes bem. Se não fosses tu, não sei, confesso-te que não sei...

-Eduardo...

- A propósito, quero agradecer-te toda a coragem que me transmitiste...

- Ó Eduardo deixa-te disso. Já te disse que os amigos são para as ocasiões. É importante que saibas que também tu me proporcionaste uma noite inesquecível.

- Está bem, aceito. Mas, se não fosses tu e o Fernando, muito especialmente tu, eu não sei, eu não sei ...

- Olha lá Eduardo, tu vais continuar a dormir, não é verdade?

- Não Catarina, a minha filha já me tinha acordado. Queria saber como decorrera a minha festa.

- Olha que querida, que queridinha que ela é!

A voz de Catarina era melancólica por natureza, mas a expressão carinhosa com que envolvera as suas últimas palavras tocou-lhe tão profundamente na sensibilidade que quase o deixou sem voz.

- Eduardo sabes o que entretanto pensei?

- Coisa boa por certo.

- Muito obrigado pela gentileza! Que dizes se fôssemos dar uma volta pelas livrarias, ver se o teu livro está exposto?

- Ó Catarina, Catarina, só tu!

- Nada disso, Eduardo. O Fernando também é da opinião que devíamos fazer essa pesquisa.

- Está bem, eu concordo convosco.

- Então marca lá.

- Podemos talvez combinar para amanhã, se te for possível.

- É possível concerteza.

- Então podemos encontrar-nos na Brasileira às dez horas.

- Certíssimo. Então até amanhã, Eduardo.

- Mais uma vez obrigado Catarina.

Após pousar o telefone, Eduardo caiu em meditação: a solidariedade tinha na verdade um encanto e beleza inigualáveis! Ele próprio, especialmente depois da sua reabilitação, tinha feito uso dela para transmitir aos outros a sua mensagem. É certo que por esse gesto desprendido tinha recebido recompensas em palavras e atitudes. Porém, como a sua intenção era apenas ser solidário, transmitir a sua experiência e conhecimentos adquiridos no sentido de limar arestas e ultrapassar barreiras, não sentiu nem viveu a profundidade contida nos agradecimentos transmitidos.

Agora sim, tudo era diferente. A solidariedade era-lhe dirigida num momento difícil, precisamente quando a decepção se tinha alojado no seu espírito. E que força lhe transmitia! Que alavanca era para desalojar as dúvidas, dar alento e força para vencer barreiras e abrir caminhos.

 

- Com que então o cigarrinho logo pela manhã!

- É verdade Catarina, em determinadas alturas, por mais que se queira, o vício torna-se irresistível.

- Só o vício?

- Bem, o vício e muitas mais coisas!

- Quais, por exemplo?

- Ó Catarina, o homem é um ser indomável, sujeito por isso às consequências dos seus próprios actos.

- Que bem, senhor filósofo...

- Todos nós o somos um pouco. Não é por acaso que a filosofia é a ciência mais real e mais liberal. Com tudo isto, no meio de toda esta conversa até me esqueci de te oferecer um café, ou qualquer outra coisa que queiras tomar, desculpa-me Catarina, desculpa-me por isso por favor!

Estava deslumbrada! Aquele Eduardo nada tinha de comum com o da noite anterior.

- Por favor Eduardo continua a servir-me esse cálice maravilhoso repleto dessas palavras e ideias magníficas!

- Não brinques Catarina, não brinques. Vai um café pingado, não é verdade?

- Não obrigada, já tomei um e se bebo outro fico comparada à mulher eléctrica.

- Eu é que não tenho desses problemas, então pela manhã só funciono com cafés duplos.

- E cigarros se faz favor.

Era uma conversa algo descontraída, desenrolada na Brasileira, no Chiado onde tinham combinado encontrarem-se.

- Catarina, uma vez que não tomas nada, por favor chamas-me o empregado?

- Concerteza. Olha Eduardo, mas enquanto ele não chega, vou dizer-te que saí de casa um pouco mais cedo e vim olhando as montras de algumas livrarias.

- Então?

- Não vi o teu livro em nenhuma. Mas, como te disse só olhei as montras, não entrei.

- Mas, viste muitas?

- Não, duas ou três, as que ficavam no percurso.

Eduardo fechou os olhos, passou as mãos pela face, ficou pensativo.

- Ó Eduardo, e se nós fôssemos dar a combinada volta pelas livrarias?

- Sim, vamos já Catarina.

- Os senhores chamaram, desejam mais alguma coisa?

- Quero a conta, se faz favor.

Juntos abandonaram a Brasileira e dirigiram-se para as livrarias.

- Aqui na montra não estou a vê-lo, Eduardo. Vamos entrar, pode ser que esteja lá por dentro.

Depois de percorridas as principais livrarias, e, da afirmação ser sempre a mesma:

- Já chega Catarina, já chega. Um mal nunca vem só.

- Não te precipites Eduardo. Há ainda muitas livrarias por aí, vamos continuar, vamos vê-las.

- Catarina, não vale a pena...

- Olha, está aqui uma mesmo na nossa direcção, vamos entrar.

Encontravam-se na rua da Madalena. Desde o Chiado até ali tinham visto praticamente as principais livrarias da Capital, e, embora o contacto fosse decepcionante , não queria contrariar Catarina, antes pelo contrário, escutava-a com a máxima atenção, pois ela estava a ser a grande impulsionadora daquela difícil viagem.

- Desculpe, os senhores têm o livro...

- Não, não temos. Já há pouco, há uns minutos atrás, aqui esteve um senhor à procura dele.

- Mas porque é que os senhores não o têm?

- Ora, certamente porque não nos foi feita a prospecção, ou porque não trabalhamos com o editor, por acaso os senhores sabem quem é?

- O distribuidor é...

- É estranho, nós trabalhamos com eles! O livro ou não tem condições para venda, ou então é como já vos disse, não vieram cá com ele.

- Eu tenho aqui um exemplar que consegui no lançamento. Já agora diga-me lá o que acha.

O funcionário examinou a capa e a contra capa, o papel e a mancha, o interior do livro.

- Não, não, concerteza que não nos foi apresentado. É certo que se trata de um autor pouco conhecido, mas dada a apresentação gráfica do livro, estou em querer que pelo menos dois ou três exemplares ficariam sempre. Nós vamos contactar com a distribuidora e dentro de um ou dois dias teremos o livro.

- Passaremos por cá então.

- Eduardo vês que resultou!

- Catarina, que seria de mim sem a tua ajuda!

Esta expressão deveu-se pura e simplesmente à simpatia de Catarina. Porque o que lhe ia no pensamento era bem diferente...

- Que fazem os meus ilustres poetas por aqui!

- Ó Fernando deixa-te de brincadeiras.

- Ó Eduardo, a Catarina ainda não te disse que tem poemas maravilhosos?

- Eduardo, não ligues, não ligues, ele é louco.

- Bem, bem, adiante, adiante. Mas vamos lá a saber, o que é que fazem os meus amigos por aqui?

- Ó Fernando, mas que surpresa! Olha, ando com a Catarina a visitar algumas livrarias a fim de verificarmos se têm o meu livro.

- E então?

- Isto é incrível, Fernando, é pura e simplesmente incrível! Vê tu que a distribuidora não colocou o livro no mercado!

- É isso que tens que ir saber, Eduardo. Eu também dei uma volta e pelo que me informaram eles não fizeram qualquer prospecção.

- Eduardo, o Fernando tem razão. Vamos imediatamente à distribuidora.

- Catarina, mas...

- Eduardo, aqui não há mais nada a fazer. Tu tens o contrato que assinaste com eles, não tens?

- Tenho, isso tenho, por acaso, tenho-o mesmo aqui.

Então só há um caminho, ir falar com eles. Podes deixar isso comigo!

 

No atelier do Fernando e enquanto por ele esperavam, Catarina descrevia ao Eduardo alguns dos quadros dele. Estava como peixe na água, tão grande o seu gosto pela pintura.

Para o Eduardo era, agora, um mundo desconhecido. Em outros tempos, vira quadros, concerteza que vira, mas de uma maneira desprendida, sem qualquer motivo de interesse. Olhava-os, como um rio, como uma paisagem que obrigatoriamente se deparava na sua frente, sem deixarem em si aquela atracção das coisas, que por gosto procurava.

Catarina primeiramente colocava-se diante da pintura, a alguma distância. Olhava, olhava, fazia a sua leitura:

- Eduardo, este é um quadro que nos apresenta uma pintura geométrica, envolvida em formas diversas que tanto nos dá uma imagem clara, como abstracta. Posso dizer-te que me apercebo ligeiramente da figura muito disfarçada de uma mulher, cuja cabeça é uma circunferência, o corpo um losango e os membros semi-circunferências. Aqui está um outro de características totalmente diferentes. É um quadro paisagístico, tem para aí noventa por setenta de dimensão, fundo branco muito sujo, uns montes volteados por um rio, vestidos com algumas plantas nuas onde se reflecte um pôr do sol, tudo em cores diversas, meio mortas.

Estava estupefacto. As palavras, a descrição da Catarina davam-lhe uma ideia real do quadro, parecia estar a vê-lo com os seus próprios olhos. A sensação provocada era de tal forma que a sua pele fervilhava ao interiorizar as imagens transmitidas.

- É espantoso Catarina! Através de ti eu estou a conseguir gostar daquilo que não gostei enquanto vi!

- Então que se passa para aqui, será que posso ouvir?

- Sim, sim, Fernando ouve, ouve, vê como é bonito! Eduardo podes continuar...

- Dizia eu que, através da descrição da Catarina, consigo gostar daquilo que não gostei quando via.

- Penso que tudo isso é devido à interiorização que damos às coisas. Sabes que ver só não chega. Às vezes, quando vamos entregues a determinados pensamentos, passamos por uma criança e quase não a vemos, é preciso ela chorar.

- Enquanto vos ouvia, pensei se não haverá uma maneira de pintar de forma a um deficiente visual poder ver, isto é, reconhecer o quadro?

- Sim, se for em relevo, para nós vermos com as mãos, como fazemos com o Braille.

- Fernando, que nos dizes a este respeito?

- O que é que digo, eu já te respondo, espera só um pouco. Mas já agora Eduardo vou dizer-te o resultado da ida à distribuidora. Segundo o xerife daquilo, o livro ainda não foi colocado no mercado na totalidade porque se meteram outros livros que eles julgaram mais prioritários.

- Mais prioritários, ora essa, e o acordo, os prazos subscritos?!

- Tudo isso eu lhes disse, mas sabes como é... De qualquer modo eles disseram-me que pelo menos a nível da grande Lisboa vão fazer a distribuição do teu livro.

- Mas nós acordámos que a distribuição era feita a nível nacional, está escrito, Fernando!

- Olha Eduardo, vamos aguardar, se eles não cumprirem, entregamos o trabalho a outros.

- Também digo Eduardo, também digo!

- Mas Catarina, que mundo é este onde nem já os acordos escritos se cumprem. Será que a Constituição não conta? Que os princípios do 25 de Abril já morreram? Afinal em que mundo vivemos, que anarquia é esta?!

O Fernando afastou-se, e Catarina ao segui-lo com o olhar teve a verdadeira dimensão do atelier: era grande. Só agora presenciava isso... E que desorganização ia por ali! A desarrumação era tal que tinha receio que Eduardo tropeçasse ou escorregasse. Só cavaletes eram quatro; pincéis de todos os tamanhos e feitios eram dezenas deles; papel e tintas pelo chão eram de tal forma que dificilmente se dava um passo; telas, panos, rolos de papel, máquinas, madeiras, alumínios; quadros emoldurados, sem moldura, com vidro, sem vidro, enfim, espaço livre mais ou menos apresentável só praticamente aquele onde se encontrava.

- Eduardo tens as mãos limpas?

- Bem, eu penso que sim...

- Olha Fernando, se queres que te diga para mim é muito difícil ter-se limpo o que quer que seja no meio desta desarrumação toda!

- E o espírito da super arrumação e da super higiene que não viesse à baila.

- Agora chama-lhe nomes. Até parece que isso não salta aos olhos.

- Aos olhos de quem não tem mais nada para ver talvez, mas...

- Tretas, tretas, senhor pintor.

Era um diálogo mais humorístico do que crítico, provocado fundamentalmente pela Catarina, uma vez que o Fernando parecia entregue a outras preocupações. Mirambulava de um lado para o outro, ora com o corpo, ora com o olhar, em busca de qualquer coisa.

- Pronto, Pode ser mesmo aqui em cima disto. Eduardo anda cá.

Enquanto Eduardo se ia aproximando, Fernando arrastava um caixote que cobriu com um pano verde, sobre o qual colocou um quadro.

- Mais para aqui Eduardo. Isso mesmo. Agora com as tuas mãos, vê se sabes o que é isto.

Catarina não parava, ora andava, ora especava, sempre com o olhar fixo no quadro. Estava estupefacta! A certa altura esbugalhou os olhos, uniu as mãos, apertou-as por debaixo do maxilar, junto ao pescoço e bocejou:

- Oh!

Depois, sem desviar o olhar do quadro e agora também das mãos, mais propriamente dos dedos do Eduardo, aproximou-se do Fernando e agarrou-se ao braço dele.

- Isto ... aqui... é um círculo. Aqui... ao lado... devem ser nuvens. Depois aqui... para baixo ... é mais complicado... mas...

- Eduardo tenta seguir a linha, a mesma linha.

- Ora... deixa-me ver... pela configuração... parece-me um corpo de pessoa..

- Aí nessa direcção, contorna ligeiramente mais para o meio.

- Ah! Pois é, é uma mulher!

- Bravo, bravo Eduardo, exclamou Catarina!

- Então Eduardo conta coisas. Que achas a isso?

- Fernando, eu não tenho palavras. A sensação é agradabilíssima, sentimo-nos presos conforme vamos definindo o traço, e simultaneamente a figura.

- É maravilhoso Fernando, é maravilhoso! Mas que ideia genial!

- Tens razão Catarina, é isso mesmo, uma ideia genial!

- A ideia foi inspirada por ti Eduardo. Quando estavas a autografar os teus livros, e perguntavas de que lado estava a capa, surgiu-me a ideia de fazer algo que tu pudesses identificar.

- Que matérias é que tu usaste para fazer esta maravilha?

- Tinta de vitral e pasta de chumbo, essencialmente isso.

- Eduardo é que isto é de tal maneira admirável que tanto se vê com os olhos, como tu com os dedos!

- Ah, sim?!

- Sim Eduardo, o objectivo é mesmo esse. Primeiro faço o boneco normalmente, com as tintas e as cores pretendidas. Depois introduzo a pasta de chumbo líquida, numa seringa apropriada, e faço em relevo o contorno das figuras.

- Eu já tinha por ti uma admiração muito grande. Mas, depois disto, só posso dizer-te: que bom, que belo é encontrar quem se preocupe com os outros.

O contraste das ideias e dos procedimentos assaltou-lhe de novo o pensamento. Não pretendia de forma alguma ser mais “papista que o papa”, compreendia o espírito existente entre quem compra e quem vende, o que o indignava era o jogo, a artimanha, a “raposisse” encapada que se usava para tramar o outro, fosse quem fosse !

- Para mim Fernando, tu continuas a ser uma surpresa permanente. Estava longe, muito longe de receber de ti mais esta gratidão. Na verdade nunca nos conhecemos...

- Conhecermo-nos Catarina?! Não sei se alguma vez será possível. Pelo menos nos anos mais próximos, enquanto o homem der prioridade à descoberta do que está para além dele, e se contentar com o conhecimento de apenas um terço da sua verdadeira capacidade, isso não será possível.

- O pior disso tudo são as consequências advindas do esgotamento do nosso conhecimento.

- É verdade, muito verdade, Eduardo. Para mim, aflige-me a saturação do mercado e a falta de alternativas.

- Muito bem, muito bem. Mas chega de dissertações. Vou tirar daqui o quadro, ofertá-lo ao Eduardo que vai fazer o favor de tomar conta dele. E agora com a mesa posta vamos comemorar.

- Fernando, comemorar aqui, no meio deste horroroso cheiro a tintas...

- Menina Catarina, já viu algum filho cheirar mal à sua mãe?

- Ora pudera, porque ela o lava, porque ela o cuida.

- Cuida sim, dizes muito bem. É isso que vamos fazer à nossa mente. Eduardo segura no teu copo, Catarina, idem aspas, aspas.

Vai acima, vai abaixo, vai acima, vai abaixo, vai ao centro e deita abaixo!

 

- Catarina, hoje quero uma bebida sem gás que sirva de digestivo e que simultaneamente impulsione a minha imaginação.

- Ah, com que então senhor Eduardo, hoje não me deixa escolher! Pronto, pronto, já sei que da outra vez não gostou.

Catarina estava ali ao seu lado, novamente na casa dela, sentados no mesmo sofá. Tinham jantado os três para comemorar a criação do quadro, depois o Fernando deixara-os e ela convidou Eduardo para ir até ali.

O jantar tinha decorrido em ambiente muito diversificado: tanto de riso, como de sério, como de brincalhão. Bem comido, bem bebido e dialogado como era hábito.

A voz de Catarina era afável por natureza. Envolvida por aquele "mimoseado", tornava-se mesmo atraente. Com tais condimentos, onde se poderiam juntar ainda prenúncios de ideias encobertas, quão fácil seria abraçá-la, beijá-la, tactear o seu corpo, enfim, alimentar toda uma febre que se sentia fervilhar na voz, nos olhos e na pele.

Porém, apesar do instinto o pedir, Eduardo não queria para já ir por aí. Manifestações sexuais sem responsabilidade tê-las-ia facilmente.

Catarina era um mundo, um botão a desabrochar, cujas pétalas ele queria ir medindo.

Confusão, confusão minha senhora. Sabe, se há alguém em quem acredito é em si. Porém as coisas não são assim. Não tenho dúvida de que me traria a bebida melhor que tenha. Mas, essa pode não ser a ideal.

Conforme Eduardo ia falando, no pensamento de Catarina acendiam-se lâmpadas, lâmpadas de todas as cores de luz fixa e luxuriante. Ouvia-o ao longe, despercebidamente, enquanto se ia levantando embriagada pelo maravilhoso panorama.

- No entanto se não tiver outra... O que está em questão é a bebida que eu idealizei, apenas isso. Mas, se ainda me permite, repare que não exigi que me servisse esta ou aquela bebida..

- Como, como?

Tinha-se desligado um pouco do sonho, do festival multicor. Apanhara no ar somente a última palavra dele.

- Dizia eu que não exigi esta ou aquela bebida, apenas manifestei o género que me apetece neste momento, percebe, petalazinha, petalazinha aveludada?

Preparava-se para abrir o bar de madeira de carvalho. Ao ouvir Eduardo, ao sentir a reacção que a sua expressão provocara no mundo que evoluía no seu cérebro, não conseguiu conter o ímpeto. Correu para ele, aninhou-se nas suas pernas, lançou-lhe os braços ao pescoço e colou os lábios aos dele.

Por ali, por entre o silêncio, ouviram-se acordes de uma melodia que enchia o ambiente e tendia a fazer esquecer tudo.

Inicialmente, levado pelo gesto e pelo calor proveniente, Eduardo ficou deveras embaraçado, tão agradável que era a tentação.

Não era de ferro, logicamente que não. Apenas, por razões óbvias, Estava decidido a manter a sua predisposição.

Sentia-se muito só. O efeito provocado pelo desmoronamento de determinadas paredes da sua vida estava ainda muito fresco... Porém, os cânticos por ali eram demasiadamente belos! E quanto mais Eduardo queria alhear-se deles, mais eles irrompiam pela sua alma. Por não lhe restar outra hipótese, respirou fundo, concentrou-se ainda mais e ouviu-os, ouviu-os bem.

Primeiramente que maravilha, que encanto! Depois através da sofisticada, da suigéneres acústica que os emitia, foram-se definindo: a harpa, o fagote, o violoncelo, enfim, todo um mundo instrumental maravilhosamente conjugado, superiormente interpretado e dirigido por um maestro chamado tentação.

Só que a certa altura, resultante do seu estado de espírito, sentiu-se aturdido por alguma tristeza. Os sons e as melodias pareceram-lhe demasiadamente conhecidos... o que provocou uma sensação desagradável, como se de um momento para o outro a água tivesse sido envenenada, deixando dezenas de pinguins desmaiados, abandonados pela praia.

 

- Nós não sabemos nada, praticamente nada um do outro, Catarina...

- E o que tem isso Eduardo, o que tem isso?!

Estava totalmente metida por ele, transpirava, irradiava um calor efervescente, terrivelmente apetecível.

Eduardo puxou-a ainda mais para si, e, virando o rosto para ela, como que a fitá-la nos olhos, disse-lhe:

- Tem. o sol por ser demasiadamente belo, não deve apanhar-se irracionalmente, de qualquer maneira...

O corpo dela estremeceu! A voz dele era pausada, mas fria. Como que invadida por um nevão, Catarina arrefeceu, transformou-se totalmente. Deixou cair os braços sobre as pernas, e com a respiração a alterar-se continuamente derramou algumas lágrimas.

Para um psicólogo, ou para Eduardo se estivesse exclusivamente preso a isso, teria certamente, naquele prenúncio, argumentos para equacionar um sem número de perguntas e respostas concernentes ao premeditado objectivo. Porém, nas intenções de Eduardo não passava querer saber pormenores da vida íntima dela, nada disso, apenas o fundamental para retemperar o entusiasmo e conduzir aquela relação de forma a alimentá-la e nunca a destruí-la.

- Eduardo, eu amei um homem que morreu. Nunca mais gostei de ninguém. E agora... agora, gostei, gosto...

As lágrimas aumentaram, derramavam-se-lhe agora pelo rosto, pelo peito e até pelas mãos dele enlaçadas no colo dela.

A sua atitude e palavras inquietaram, fizeram estremecer Eduardo. Não estavam de modo algum nas suas intenções. A revelação que fizera era de grande responsabilidade. É certo que, ao que lhe dizia directamente respeito, vinha-se apercebendo, certificando-se até de que alguma coisa existia. Nunca esperando porém, que fosse tão profundo. Quanto ao outro homem, embora fizesse parte do passado, quanto lhe teria custado! Eduardo agarrou-a, puxou-a para si e beijou-a carinhosamente nos olhos húmidos:

- Catarina, minha querida...

- Eduardo, meu amor!

O silêncio testemunhou momentos de ternas carícias e também de interrogações.

Ao Eduardo deparavam-se agora dois caminhos. Tinha de decidir-se: continuar a trilhar o que tinha planeado, ou então optar por aquele que Catarina abrira ao revelar-lhe que o amava.

Aparentemente estava calmo, mantinha friamente as rédeas da situação. Contudo, para evitar irreflecções que baralhassem a sua sensatez, respirou fundo várias vezes, e apelou à sua consciência que o aconselhasse:

- Se consultares a tua memória, se leres no livro das tuas recordações, verás que é mil vezes preferível manteres uma boa amizade, do que precipitares um amor prematuro.

Eduardo não era propriamente um desconhecedor de si próprio. Sabia-se uma bonita figura, o que, acompanhado de uma voz bem sonorizada e um discurso razoável, era meio caminho andado para o mundo das paixões.

Num reflexo rápido, tanto quanto o tempo permitia, lembrou-se: de Maria dos Anjos, uma jovem empregada dum familiar que morrera derivado a um coice de uma mula; da mulatinha virgem que tivera em África, que comprara aos "pais" por quinhentos escudos, um pedaço de terreno (machamba) e uma palhota, tudo concretizado na presença dos Rágulos, preenchido com os rituais daquela terra; ainda das namoradas, as várias namoradas que tivera, e com quem vivera experiências bem diferentes, com realce para a que namorara sete anos, cuja história se comparava à daquele homem que viu uma cautela no chão e lhe deu um pontapé. Cautela essa que foi apanhada por outro homem que vinha atrás e lhe deu a sorte grande.

A fogueira continuava com vida, embora aqui e ali existissem já algumas brasas semi- apagadas.

Continuar o tempo, aquele tempo de reflexão poderia ser fatal.

- Catarina, eu não quis forçar coisa nenhuma, muito menos que tu...

- Eduardo, mas que queres tu saber, que queres tu então que eu te diga?

A corda que ela lhe lançava era importante para saltar a corrente, havia que aproveitá-la.

- Catarina, não tremas, não tenhas medo.

Eduardo fez uma pausa. Era preciso ter imaginação. Agarrou-lhe nas mãos, beijou-as, colocou-lhe o braço sobre os ombros e apertou-a levemente contra si:

- O que quero eu que tu digas! Pois bem, eu vou dizer-te. Mas tens de fechar os olhos, prometes?

- Prometo.

Catarina, se não pensares em coisa nenhuma, verás na tua frente uma bonita ilha, com um prado verde, salpicado de papoilas vermelhas e girassóis, e que tem ao meio uma linda casinha branca. Essa ilha, cercada por um pequeno rio de água cristalina, está por enquanto inacessível! É preciso construir uma ponte. Uma ponte que vai levar algum tempo, e sobre qual passadeira vermelha irá passar o casal, os dois felizes habitantes dessa casa...

- Oh, isso é um poema, um bonito poema! Mas que nada tem a ver com ...

- Quem te disse Catarina, quem te disse?

Ela quase deu um salto. No seu peito ardia uma fogueira ávida de calor. Apetecia meter-se por ele, sentir as suas entranhas massajadas com o seu amor. É certo que gostava muito de poesia, mas isso ficaria para outra altura:

- Eduardo, por favor explica-te.

Era a confirmação. Eduardo, por toda uma reacção, mas essencialmente pela forma como ela levantou a cabeça e aliviou as mãos, pressentiu que não estava a conjugar a sua interpretação.

- Pois, Catarina, do que quero que me fales é de poesia, mais precisamente da tua poesia.

Catarina olhou-o estupefacta. Não esperava nada, por todas as razões e mais uma, ouvir aquilo.

- Eduardo por favor, a que propósito?!

- A que propósito, pois bem. É que ao estar assim, com uma poetisa, é normal que, como admirador, queira saber qual é o género que ela cultiva.

- Não brinques, Eduardo, não brinques! Eu não tenho, não faço nada disso.

- Vês, estás a mentir-me, ou então...

- Ou então o quê, Eduardo?

As gaivotas estavam a voltar lentamente ao cais, sinal de que a tempestade ia amainando. Havia que aproveitar as abertas, fechar vagarosamente o chapéu e aconchegar a roupa.

Ou então o quê? Pensas que me esqueço...

- Deixa-te de enigmas Eduardo, por favor, deixa-te de enigmas.

- Está bem, está bem. A propósito, sinto-me com uma falta de imaginação que tu nem fazes ideia, e se me servisses a tal, a tal famigerada bebida?

- Bebida, agora! Ó Eduardo, tu pões-me louca!

- Louca! Longe disso. Se existe aqui alguém que devesse estar louco seria eu! Por acaso a menina tem ideia de há quanto tempo estou à espera dessa bebidinha!

- A culpa foi toda tua, seu mauzão.

- Pronto, está bem. Mas como a menina não é vingativa, vai fazer a vontade a esse tal...

- Olha, não me apetece muito. Mas está bem, está bem, desde que prometas voltarmos a este assunto.

- Porque não?!

Catarina afastou-se, para voltar de imediato, tão rapidamente, que ele mal tivera tempo de se ajeitar no sofá. Tirou uma jarra com hortenses e camélias de cima da mesinha de vidro e bambu, arrastou-a para junto do sofá e colocou sobre ela a garrafa e os copos que tirara da cristaleira.

- Pronto, cá estou eu de novo.

Sentou-se ao mesmo tempo que lhe agarrou nas mãos:

- Faz favor, aqui tem o seu copo.

- E o seu onde é que está?

- Está aqui na minha mão.

- Tchim, tchim, Catarina.

- Tu és mesmo maluquinho!

- Hum, conhaque, conhaque velho!

- Gostas?

É uma delícia, uma perfeita delícia.

Ia a lançar-lhe o braço para a abraçar... Só que a maré tinha baixado, as andorinhas voavam agora à superfície, com mais tranquilidade e segurança.

- Não, não, menino Eduardo, eu não me esqueci, faça favor...

- Ah, concerteza, concerteza, Vossa Alteza, deseja então...

- Oh, és tolo, um verdadeiro tolo. Mas faz favor de me dizer...

- Da sua poesia, da sua poesia não é verdade?

- Da minha poesia não. Dessa história...

- Mas, existe aí um lapso. Quem tem de falar-me disso és tu...

- Eduardo...!

- Calma, calma Catarina, eu vou ser mais concreto. Lembras-te de quando estávamos na livraria o Fernando ter dito...

- Ter dito, ter dito o quê!

- Ter dito que tu eras uma poetisa.

- Ah, sim, sim, e o menino acreditou, não se esqueceu!

- De maneira nenhuma. A poesia é sintoma de uma sensibilidade e riqueza de sentimentos, para serem lembrados permanentemente, ouvidos e segredados em ambiente propício.

- E depois?

- Depois, é que ainda não tínhamos falado nisso...

- Pronto Eduardo, ele exagerou. Eu não sou poetisa coisa nenhuma. Faço apenas uns versinhos, alguns dos quais ele conhece.

- Será que eu posso ouvi-los, ou não confia em mim?

- Não, claro que não é nada disso Eduardo. Quem me dera até que...

- Que o quê, Catarina?

Ela encostou a cabeça no ombro dele e, de forma pensativa, simulava que escrevia com a sua delicadíssima e bem pintada unha nas costas das mãos dele, fazendo-lhe arrepiar o corpo e os cabelos.

- Senhora poetisa estou à espera!

- Oh!

- Não estou a compreender nada Catarina. Mostras a tua poesia ao Fernando e a mim...

Catarina colocou-lhe a mão na boca para que não continuasse.

- Eduardo, eu quero mostrar-te os meus escritos, claro que quero. Só que... Só que não o queria fazer aqui...

Eduardo pressentiu algum nevoeiro envolver a montanha.

- Queres tu dizer que aqui o ambiente...

- Eduardo, é certo que aqui estamos sós. Mas repara, eu estou cá sempre. Há alturas que, quando entro àquela porta, me sinto engolida por este vazio. Estar aqui contigo para conversarmos, bebermos um copo, etc., é uma coisa, é mesmo bom. Não é por acaso que eu te convido para cá. Mas ler-te aqui os meus escritos é repetir o que já fiz milhares de vezes, sempre emoldurada por estas paredes repletas de figuras demasiadamente revistas... Isto cansa, percebes Eduardo, isto cansa, tira a imaginação!

- Percebo Catarina, percebo.

- Eduardo acredita, eu não quero esconder-te nada. Terei muito gosto em ler-te os meus escritos, fora daqui, num lugar desconhecido, onde possamos estar calma e tranquilamente os dois...

As lavas estavam espectantes. A cratera , como se fosse uma forja, ora se abria, ora se fechava, ávida da erupção. Eduardo lembrou-se da história da criança que gostava muito do brinquedo: tantas vezes lho tiraram que acabou por não mais o pedir, por não mais o querer...

- Catarina, eu concordo, vamos combinar isso.

As mini-férias que Eduardo tirara para cuidar do lançamento do livro tinham terminado.

De regresso ao emprego, os colegas atropelavam-no, quase não o deixavam entrar no escritório, tão grande era o desejo de lhe fazerem chegar as suas manifestações:

- Ora viva, muitos parabéns!

- Ah foi tão bonito, eu gostei tanto!

- Aquele senhor falou tão bem! Ah, mas que bem que ele falou!

Todos queriam pronunciar-se em relação ao lançamento do livro.

- Eu não pude, não me foi possível estar presente, mas quero o livro.

- Eu também o quero, mas tem de ser autografado.

Tinha decorrido uma semana. Teoricamente não seria muito tempo, mas, na prática, conforme tudo aconteceu, fora obrigatoriamente tempo para amadurecer o pomar e cuidar um pouco dos frutos...

Aquelas exaltações estavam a ter em Eduardo uma receptividade diferente. É certo que vinham dos seus colegas de trabalho, daqueles que conhecia minimamente e com quem já convivia diariamente há mais de uma década. No entanto, era importante realçar os efeitos dessas intervenções, uma vez que nele deixavam uma agradável sensação que pela primeira vez lhe chegava ao sangue e fazia fervilhar a pele.

A separação das águas estava assim a dar-se naturalmente. Ainda bem que assim era. O acto de escrever não podia ser prejudicado pela má comercialização do livro.

Infelizmente a precaridade da situação atirara Eduardo para essa confusão. Havia agora que deixar estagnar o tempo... Sim, porque tudo na vida tem o lado bom e o lado mau, e os resultados são precisamente influenciados pelo lado que mais valorizarmos.

Era essa madrugada que, embora ainda nublada, começava a despontar no mundo do Eduardo. Os amigos e o tempo estavam a incutir-lhe certa maturidade pelo que não podia, essencialmente nesta altura, abandoná-los, muito menos deixar de ouvi-los ou decepcioná-los.

- Então, e eu não posso dar os parabéns?

- Ó chefe, claro que pode!

Então muitas felicidades e um bom êxito.

Eduardo era o único homem entre as treze pessoas da secção. Como elas o mimoseavam... Tratavam-no de igual para igual, sem discriminação, o que, perante o que se passava lá por fora, isto é, o comportamento da própria sociedade, fazia a diferença.

Quando entrara pela primeira vez naquele seu campo de trabalho, foram elas que lhe quebraram o embaraço. Situaram-se em redor da secretária, primeiramente todas ao mesmo tempo, depois uma de cada vez, ora a mudar-lhe a água da esponjeira, ora a verificar se a máquina estava a escrever bem, se o papel não enrolara, se a fita rodava bem, se o numerador tinha tinta, ensinar-lhe onde era a casa de banho, enfim, tudo sem imposição, ofensa ou desautorização.

Chegavam ao ponto, isto passados alguns anos e como resultado da confiança adquirida, de lhe fazerem o seu trabalho, para irem conversar com ele, inclusive queixarem-se-lhe dos maridos, revelarem-lhe pormenores da sua vida íntima, enfim, confiavam e viam nele um poço sem fundo...

Quanto à "chefe" era uma das treze que apenas tinha funções diferentes, e queria, além de tudo, que cada um cumprisse.

- Pronto meninas deixem lá o rapaz, já chega de manifestações. Eduardo venha comigo.

- Ó chefe, só mais um bocadinho. Estamos a combinar com ele uma coisa.

- Combinem logo, agora não pode ser. Eduardo venha lá, o nosso patrão quer falar consigo.

- Comigo!

- Sim consigo. Não ouviu agora mesmo tocar o telefone?

A admiração foi geral, todas dirigiram o olhar na direcção da chefe.

- Vá, vamos lá. Eu também vou consigo.

A chefe deu-lhe o braço, e, foram apanhar o elevador, com destino ao gabinete do patrão.

 

- Olá meu rapaz, mais um livro, não é verdade?

- Sim senhor doutor é verdade. Se me permite eu queria oferecer-lho.

- Ora essa. A capa está bonita mas não conheço o autor.

- Trata-se de um amigo meu.

- Muito bem, já agora quero-o autografado. Senta-te, senta-te, tens uma cadeira ao teu lado direito.

Tratava-se de um homem de cerca de sessenta anos, duro, amigo dos seus interesses e com uma forte psicologia religiosa.

- Faz favor, senhor doutor.

- Muito obrigado, meu rapaz. Irei lê-lo com muita atenção. Homens como tu é que nós precisamos. Quantos por aí há que deviam seguir o teu exemplo. Mas, só querem aumentos e roubar, trabalhar nada. Estamos a atravessar um período muito mau, muito mau mesmo. Se Deus não nos ajuda, se não houver quem ponha mão nisto, não sei aonde vamos parar. Chamei-te para dizer que quando necessitares de tratar de qualquer coisa da tua vida, podes faltar. Sei como é isso. E tu és dos que não têm abusado. Contam-se bem pelos dedos duma mão os dias que faltaste ao serviço durante os muitos anos que já tens de casa. Quero dizer-te também que vou tirar-te do escritório e colocar-te na chefia do serviço da fiscalização. Vais ter um gabinete, o material que precisares e uma empregada que funcionará como tua secretária. Ultimamente os roubos têm aumentado, é preciso pôr cobro nisto.

A fiscalização era um serviço que tinha a função de controlar alguns desvios...

O ramo da empresa era do comércio.

Como havia na empresa quem, talvez um pouco inconscientemente se apoderasse do que não devia, foi criado esse serviço onde todos os dias eram sorteados vinte trabalhadores entre os mais de duzentos da empresa. Esses seleccionados só tomavam conhecimento disso à saída, quando estavam a entregar a sua chapa de identificação.

O responsável que tinha secretamente os números em seu poder, agarrava-o e conduzia-o ao local onde estava o homem que revistava os cavalheiros, isto é: que lhes metia as mãos nos bolsos e os apalpava desde os pés até ao cabelo; e uma mulher que tinha atitude idêntica para com as senhoras.

As exigências eram tais que nem o interior das meias, nem os pensos higiénicos escapavam à revista. Quando os "apalpadeiros" encontravam em poder do colega alguma peça, sem registo de compra, conduziam-no ao responsável que lhe movia o processo e o suspendia para averiguações.

Era um sistema que voltava trabalhadores contra trabalhadores.

- Ó senhor doutor, isso...

- Sim, sei que poderá ser um serviço pouco do teu gosto, mas que no entanto está absolutamente dentro da tua capacidade. É por isso que vais ser compensado com um aumento no ordenado.

- Mas, senhor doutor, eu...

- Ah, e ficas à vontade para ires tratar das tuas coisas. Desde que faças o sorteio, organizes o pessoal a teu cargo e estejas cá há hora da saída, é quanto basta. Estamos entendidos, não é verdade? Amanhã vens aí para eu te apresentar ao pessoal do respectivo gabinete, e depois de amanhã começas as tuas novas funções.

"Já me lixaram", pensava Eduardo de si para si, enquanto voltava com a chefe para o escritório.

Aumento de ordenado e todo o tempo livre. Em contrapartida, ser carrasco. Que patife!

- Então, está contente?

- Ó chefe, claro que não.

- Vai ver que vai correr tudo bem.

- Oh, mas correr tudo bem, como! A chefe está a ver-me a mandar colegas para a rua!

- Estou em querer que isso não vai acontecer. Todos confiamos em si.

- A chefe sabe que eu não sou de virar as costas à luta. Mas que já me lixaram, bem lixado, é uma verdade.

 

Para além do emprego e da escrita, o Eduardo estava também ligado como dirigente às Instituições Particulares de Solidariedade Social, Organizações não Governamentais de e para pessoas com deficiência. Nesse âmbito era Conselheiro no órgão oficial que superintendia no que a nível estatal se relacionava com essas pessoas, onde defendia insistentemente os seus direitos.

A sua maior experiência era na área da deficiência visual, especificamente dum maior conhecimento de direitos e deveres dos deficientes das Forças Armadas, em virtude de ser essa a sua origem e ter feito por aí o início do seu percurso. Situação que em relação ao deficiente civil, mormente ao congénito, apresentava antagonismos, vantagens e desvantagens: O congénito aceitava melhor a sua deficiência e as contrariedades e vicissitudes inerentes; enquanto o outro, aquele que adquiria a deficiência bastante mais tarde, e tinha mais de oitenta por cento de incapacidade, como era o caso do Eduardo, nos primeiros tempos tinha maior dificuldade de adaptação e aceitação. E só depois, normalmente a partir da reabilitação, quando era devidamente dada, apreendida e praticada, e quando não existiam recalcamentos crónicos, apresentavam algumas diferenças positivas retiradas das vivências anteriores que lhe davam um melhor conhecimento das coisas e dos objectos, isto é, do mundo real.

Porém, como para além do dever, a pretensão do Eduardo era intervir a nível geral, sobre todas as deficiências, andou pelas várias instituições de e para deficientes a tomar conhecimento dos seus problemas e especificidades.

Que mundo que ele conheceu, Deus meu, E, que mundo! Pessoas que não falavam, não viam, não ouviam; pessoas com os membros totalmente paralizados; pessoas que têm de ser quase diariamente ligadas a uma máquina para filtrar o sangue; pessoas que a pouco e pouco sentem os ossos e músculos a decompôrem-se; pessoas que não têm a mais pequena noção do mundo real; enfim, pessoas que apesar de tudo, e independentemente do seu estado físico, sorriem, querem estudar, trabalhar, casar, constituir família. (Um bom bálsamo para quem se sente infeliz por sofrer de uma dor de dentes, ou pensa que vai morrer aquando duma intervenção cirúrgica ao apêndice.)

A obrigatoriedade de referenciar as intervenções levou Eduardo    a ter de ler e reler a Constituição da República Portuguesa e as Leis Específicas Internacionais fundamentalmente as emanadas das Nações Unidas.

Normalmente, e, por ser essa uma das suas características, o Eduardo intervinha com voz calma e pausada, excepto quando estavam em discussão o Racismo, a Xenofobia, os Direitos Humanos e o contrariavam na sua justeza em defesa da igualdade de princípios.

Nesses momentos o sangue fervia-lhe nas veias de tal forma que o obrigava a revoltar-se com aqueles que iam por outro caminho, que contestavam e votavam contra as propostas que iam no sentido de exigir direitos iguais para todos, independentemente do sexo, cor, religião, estado civil e físico de cada um.

Estava-se no inicio da década de oitenta. Meia dúzia de anos após a linda madrugada de Abril. O Estado Novo, durante os seus mais de quarenta anos de ditadura, tinha deixado tudo por fazer... E, no caso específico da pessoa com deficiência, o caos era total: próteses, ortóteses e outros objectos indispensáveis à mobilidade eram da responsabilidade do próprio deficiente, que por sua vez, por não ter acesso ao emprego nem receber praticamente pensão, permanecia pelas camas, longe dos olhares da sociedade. A eliminação das barreiras arquitectónicas, físicas e culturais, o direito à habitação, a uma vida independente eram igualmente uma miragem, onde a reabilitação, integração e inserção social eram substituídas pela caridade e internamento em albergues.

No Conselho, o Eduardo tinha dum lado as entidades patronais, que se apresentavam praticamente fechadas a tudo; do outro lado o governo, que, embora aberto à renovação, obstruía ainda muito; e ainda, um pouco isolados, contando somente aqui ou ali com um ou outro apoio das entidades sindicais, os deficientes. Era a eles que cabia o papel de reivindicar, lutar, esclarecer e apelar para uma maior consciencialização e organização na criação e defesa dos seus direitos. E, com que garra e fulgor o Eduardo o fazia. As burocracias eram imensas. Mas para ele não havia etiqueta, protocolo que não furasse, em busca da informação e do esclarecimento.

- Desculpe lá, não se importa...

Estava-se no intervalo duma reunião do Conselho. O Eduardo deslocara-se ao sector de relações públicas onde ouviu falar numa candidatura relacionada com arte.

- Diga lá senhor conselheiro.

- Por favor, podia informar-me que candidatura é essa?

- Bem, não sei se vale a pena, o prazo acaba hoje, ou mais precisamente amanhã.

- Amanhã?!

Exactamente, amanhã.

- Mas isso não pode ser, isto não nos foi distribuído!

- Isso já não é comigo.

- Bem, mas já agora pode ao menos explicar-me do que se trata?

- Trata-se duma candidatura que vai escolher um artista deficiente de cada país da Comunidade Económica Europeia.

- Eu posso levar isso?

- Penso que sim. Só que...

O prazo acaba amanhã, sim, sim, já sei.

 

O elevador estava ocupado. Eduardo desceu apressadamente as escadas, dirigiu-se para a recepção, onde pediu para lhe chamarem um táxi.

- É o duzentos e vinte e cinco, mas está um bocadinho longe, vai demorar um pouco.

- Por favor, entretanto é possível ligar-me para o número...?

- Estou com muitas chamadas, com muito serviço, se quiser tentar da cabine, há uma ao fundo do corredor.

O nervosismo começava a apoderar-se dele, O cigarro tremia-lhe nos dedos e o suor envadia-o por tudo quanto era corpo.

- Está lá, Catarina? Preciso muito de falar contigo.

- Eduardo pareces-me nervoso, eu vou buscar-te, espera aí, eu vou buscar-te.

- Catarina, não, não é necessário, já chamei um táxi, dentro de momentos estarei aí, até já.

- Por favor, para a rua...

- Concerteza. Tem algum caminho a indicar?

- Deixo ao seu critério, desejo chegar o mais depressa possível.

- Não vai ser muito fácil, estamos na hora de ponta, no entanto vamos ver.

Lisboa era sempre um caos. No entanto, quando chegava ao fim da tarde, tudo se agravava, andava-se a passo de caracol.

- Olhem para isto. Vê lá se não cabes, " ó urso".

- Tu, "ó tromba de porco", se queres passa por cima.

Buzinadela atrás de buzinadela, discussão atrás de discussão, fruto de uma cidade atrofiada, matriz duma determinada profissão, do stress, da formação dum estrato social.

- Quando chegarmos, é o número...

- Ora, quanto à rua, entrámos precisamente nela. Agora o número, ora deixe-me cá ver, trinta e um, quarenta e nove, estamos mesmo a chegar, pronto, é aqui.

- Que se passa Eduardo! Porque não quiseste que te fosse buscar?

- Não era necessário Catarina, como vês já estou aqui.

- Pois bem, folgo muito, e então?

- Venho fulo Catarina, fulo, percebes?!

- Não, não percebo muito bem, mas...

- Vivemos num país de atrasados, de super atrasados mentais!

- Ó lá lá, como ele vem...! Espera lá, espera lá, eu vou arranjar-te uma bebidinha.

- Eu sei lá, eu sei lá. Há alturas em que não há bebida que resolva o que quer que seja. O que eu queria era ter asas, uma marreta em cada mão!

- Pronto Eduardo, aqui está o prometido, num copo muito ao teu gosto. Agora, faz favor de relaxar um pouco, e depois quero saber tudo, tudinho, está bem? Deu-lhe um beijo e acariciou-lhe as faces.

Eduardo bebeu um gole de whisky, pousou o copo em cima da mesinha habitual, abriu a pasta.

- Catarina, por favor lê-me isto.

- Ó menino, só que... não sei se sabes que está em inglês?

- Como, ainda por cima! Inconscientes, cambada de inconscientes.

- Calma, calma Eduardo. Eu leio devagar, mas vou ler. Só que, deixa-me ver, uma, duas, oito, nove, dez, doze, são treze páginas Eduardo.

Uf, pior, pior ainda.

- Eduardo, como em tudo na vida, o que é preciso é começar. Por isso vamos lá: regulamento da EUCREIA- Very Special Arts Internacional. Espera lá! Eduardo, Mas isto é uma candidatura...

- É verdade, Catarina. é uma candidatura para premiar um artista: escritor, pintor, artesão, etc, de cada país da Comunidade Europeia.

- Ah, e tu queres concorrer, não é verdade?

- Claro que quero, Catarina. No entanto,   se reparares, há-de estar por aí em qualquer lado, o prazo, o prazo que termina amanhã.

- Amanhã! Ah sim, sim, é verdade, está aqui. Ó Eduardo, mas, pelo que estou a ver, é preciso tanta coisa!

- Cambada de cães. Andam por lá a roçar o traseiro pelas paredes e não tiveram tempo de traduzir e enviar isso atempadamente para as instituições, ou pelo menos entregá-lo aos conselheiros. Eu sei o que é. Querem que concorram só os meninos delas.

Eduardo andava de lado para lado, não parava. Os olhos, apesar de cegos, pareciam balas, tão esbugalhados que estavam.

Catarina olhava-o, observava-o minuciosamente. E, que diferença que havia naquele comportamento. Um vulcãozinho, uma onda encapelada onde, contudo, apetecia mergulhar... Estava parada na frente dele. repartia o olhar entre o seu rosto e o papel e meditava em busca de uma solução.

- Eduardo, espera, ocorreu-me uma ideia.

Catarina deu uma corridinha até ao telefone, apressando-se a marcar um número:

- Está, está lá, és tu Fernando? O Eduardo precisa muito de falar contigo, podemos aparecer por aí?

- Podem, claro que podem. Mas o que é que se passa?

- Quando chegarmos explicamos. Pronto Eduardo. Vamos para o atelier do Fernando.

- Tu és fantástica Catarina, vê tu que nem me tinha lembrado dele!

 

Era Maio. De um momento para o outro o céu apinhara-se de nuvens escuras, e a trovoada fez a sua aparição.

- Uf, Eduardo, que horror! Está tudo cerrado. Por enquanto temos uma chuva miúda, mas vem por aí uma "bátega" que eu nem quero ver. O pior é que o carro está longe. Espera aqui um pouco, enquanto vou prevenir-me, buscar um chapéu.

Eduardo era lá capaz de estar parado! O "imbróglio" era de tal modo que nem dava pela chuva. Como habitualmente começou a andar de lado para lado, para descontrair:

- Pronto Eduardo, já cá estou, podemos ir. Tinha-se mudado num ápice: Trazia sapatos pretos abotinados e uma capa verde garrafa transparente, muito justa, com o cinto muito apertado a vincar-lhe as ancas.

Normalmente, quando se deslocavam juntos, era ela que lhe agarrava no braço. E, com que perícia o fazia: mão colocada a meio do antebraço dele, com o dela por debaixo a fazerem o mesmo ângulo recto.

Eduardo está uma chuva e um vento horríveis. Tenho de segurar o chapéu com as duas mãos!

Eduardo não se apercebeu da intenção de Catarina. Porém, ao colocar-lhe o braço sobre os ombros, para se resguardar da chuva e do forte vento, foi precisamente ao encontro do pensamento dela. Para aproveitar o mais possível o pequeno chapéu, tinha de encostar-se a Catarina. Por sua vez ela dava passos miudinhos e ainda puxava o resguardo propositadamente para o seu lado. O roçar das coxas foi trazendo lentamente um calor agradável aos corpos, que ele, ainda que não muito desperto, alimentou com um terno beijo nas faces dela.

- Pronto, já cá estamos.

Alguma ginástica para entrar no carro, metê-lo na estrada e pô-lo em movimento.

- Está horrível, Eduardo!

- Sim, sim, nota-se. Qualquer dia, em Lisboa, são mais os carros que as pessoas!

- Qualquer dia... olha que eu não sei mesmo se já não acontece! Mas hoje, o pior de tudo é a chuva, a muita chuva que cai.

- Catarina sabes que adoro ir dentro de um carro quando está a chover muito?

- Sarcástico! Que sarcástico que tu és! Vai uma pessoa aqui com o coração nas mãos, quase a não ver um palmo à frente dos olhos, e ele a dizer que vai cheio de gozo!

- Sim, não deixas de ter razão. Mas repara bem na conjugação melodiosa da chuva a bater no capô, o chiar do pára-brisas, o trabalhar do motor e o assobiar do vento.

- Ó Eduardo, pelo amor de Deus, eu não ouço coisa nenhuma. Só vejo chuva e carros, carros e mais carros na minha frente.

Pois é Catarina, cá está mais uma das vivências alternativas resultantes da cegueira.

- Só me faltava sair-me mais esta na rifa. Ó sua condutora de meia tigela, vê lá se te chegas mais para lá, ou será que queres a estrada só para ti?

- Não respondas Catarina, não respondas.

- Eu, não me faltava mais nada, isso era o que ele queria...

- Não ouviste, ó cara de bolacha, vê lá se não cabes! Deves ter tirado a carta por correspondência.

Haviam automobilistas que não podiam ver uma mulher a conduzir. Então, com o seu ar de machões, faziam tudo para a atrapalhar e, se por acaso isso acontecia, que gozo que lhes dava, sorriam, batiam as palmas e não paravam com os piropos.

- Bem, se ele não se cala...

- Não vale a pena Eduardo, estamos a chegar. Agora é só arranjar um lugar para estacionar.

- Vivam meus meninos, que grande passeio!

- Passeio, Fernando?

- Sim, passeio. Sabes há quanto tempo estou à vossa espera?

- Tens razão Fernando, mas...

- Qual razão, qual quê. Eduardo ele está é a gozar. Ele sabe muito bem o que custa andar em Lisboa a esta hora e ainda por cima com este temporal.

- Eduardo diz-me lá, não bateram, não?

- Coitadinho, também tu, vê lá...

- Ó Fernando, tu nem queiras saber...

- Bateram Eduardo, mas bateram mesmo?

- Não Fernando. A Catarina até conduz bem. Apanhámos foi cá com um "fogareiro" que não parava de se meter com ela.

Bem, bem meus meninos acabou o recreio, vamos lá ao que interessa.

- Parece impossível Fernando. Estás aí há meia hora a provocar, a engenhar os teus artefactozinhos, e agora vens com essa!

- Eu, minha menina, estou à espera, não tenho feito outra coisa!

Catarina olhou-o, esboçou um sorriso brincalhão em sinal da confiança existente entre eles.

- Eduardo, bem, para não fazermos esperar mais o menino, vamos lá, falas tu ou falo eu?

- Penso que devo ser eu. Fernando, como é costume, não venho trazer-te nada de bom. Venho sim pedir-te...

- Deixa-te lá disso, vamos ao assunto.

Eduardo narrou-lhe os factos, disse-lhe o que pretendia.

- Onde está esse célebre regulamento?

- Está aqui Fernando, está aqui. Eu já traduzi algumas linhas, mas foram ainda muito poucas.

Fernando começou a passar folha a folha, a fazer uma leitura vertical:

- Bem, não há tempo a perder...

- Achas que consegues traduzir isso tudo, Fernando?

- Isto não vale a pena traduzir, basta ler, saber o que é necessário. E, pelo que vejo aqui, é precisa uma série de papeladas.

- Isso já tinha dito ao Eduardo.

- Pois muito bem.

Fernando continuava com os olhos fixos no regulamento, onde ia sublinhando algumas frases e páginas.

- É preciso muita coisa, muita coisa mesmo. Mas, o maior buraco é o prazo. Segundo o que leio aqui, a candidatura tem de dar lá entrada, pelo correio, até amanhã inclusive, o que me parece francamente impossível!

Até aí já nós tínhamos chegado...

- Cambada de incompetentes, de ignorantes, filhos de...

- É isso mesmo Eduardo, chega-lhes. Só que agora não adianta irmos por aí , seria perdermos tempo.

- Pois, temos de arranjar uma saída!

- Sim senhor, Catarina, tens toda a razão, só que...

- Fernando, eu tenho uma ideia.

- Óptimo Eduardo, venha ela.

Enquanto o Fernando continuava algo despreocupado, a ler e sublinhar o regulamento, a Catarina virou-se repentinamente, fixou o seu olhar no Eduardo parecendo ver-lhe no rosto um ar menos abatido e nos olhos um brilhozinho de esperança.

- O que é Eduardo, o que é?

- Primeiramente é necessário saber se temos tempo de arranjar toda a papelada que eles exigem.

- Certo, e depois, não te esqueças que o prazo acaba amanhã!

- Aí, mandamos as coisas por fax.

- Bravo, bravíssimo Eduardo, é isso mesmo.

Catarina sentiu o sol expulsar a neblina, a angústia por ali existente, não conseguindo conter-se sem abraçar efusivamente o Eduardo e saltitar de alegria em seu redor.

- Catarina, não entres em parafuso. As coisas não são assim tão lineares. Na verdade não temos outra hipótese, mas essa não é cem por cento segura. Eles pedem aqui entre outras coisas o livro, e, já viste o que é mandar duzentas e tal páginas por fax?

- Pois, não é nada fácil.

Fernando pousou as folhas, esfregou a fronte, olhou para os amigos:

Bem, então é assim. Vamos enviar a inscrição por fax, juntamente com a informação de que o restante processo seguiu pelo correio.

- Achas que assim resulta?

- Catarina, sei que é a única hipótese, o resto é aguardar. Agora mãos à obra.

- Mãos à obra como, Fernando?

- Então é assim. Esta noite vou preencher os papéis e tu e o Eduardo amanhã vão tratar de todo o resto.

Era a “inteligência” acreditada, a trazer a tranquilidade, a varrer todos os vestígios de penumbra...

- Cá por mim tudo bem. Eu estou totalmente disponível, só não vou já porque está tudo fechado!

- Obrigados, mais uma vez...

- Eduardo cala-te. Aos amigos não se agradece, dá azar. Neste caso, em vez de agradeceres, podes dizer merda, para dar sorte.

 

A manhã despertou com um lindo dia Primaveril, tão bonito e dourado era o sol que irrompia por entre as colinas da cidade. Os chapéus, as gabardinas assim como outros grossos resguardos, empestados de cheiro horroroso a naftalina, usados no dia anterior, tinham sido substituídos pelas mini-saias, manguinhas curtas, decotes, por todo um cenário diferente que simultaneamente trazia outra calma à capital e às pessoas.

Embora a hora de entrada no emprego do Eduardo fosse às nove, às sete e meia já ele estava à porta da gerência à espera do patrão.

- Sim senhor meu rapaz, vens cedo para prepararmos as coisas, óptimo, óptimo, já vamos a isso.

Senhor doutor, não é bem isso. Surgiu-me uma contingência que tenho de resolver urgentemente.

- Pronto, pronto, vamos já adiantar serviço. Os outros devem estar por aí a chegar, e depois de vermos com eles, já podes ir à tua vida.

Era o engenho de sempre: intervir, interromper, calar para vencer.

Não, desta vez não ia permitir... conhecia bem o argumento e ia combatê-lo até ao fim.

- Senhor doutor desculpe, mas não pode ser!

- Então?

- Então, tenho assuntos pessoais inadiáveis e vinha solicitar a minha dispensa para hoje, prometendo amanhã sem falta iniciar as minhas novas responsabilidades.

Bem meu rapaz, mas eu tinha tudo preparado para isso acontecer hoje!

- Senhor doutor, como disse trata-se de algo urgente...

- Pois é, pois é... realmente foi pena que isso tivesse surgido logo hoje... mas, como vejo em ti a serenidade da missa, e sinto por aqui o envolvimento do Senhor, para que vejas na verdade em mim um amigo, vai lá, com a condição de que amanhã a esta mesma hora estás aqui para começarmos.

Concerteza senhor doutor, concerteza.

 

Pelo caminho, enquanto Eduardo com o passo apressado ia ao encontro da Catarina, relembrava as reticências do patrão. Primeiro tudo facilidades, depois, na hora das questões franzia a fronte, torcia o nariz, encenava ardilosamente as dificuldades, tentava a todo o custo dar a volta ao texto.

Contudo, a sua experiência não era assim tão pouca, que não compreendesse que tudo aquilo era para fazer render o peixe, para o ter na mão, para cobrar a factura na primeira oportunidade. Desta vez, e ainda bem, a cobrança da factura tinha-lhe pertencido.

- Olá, já estou aqui!

Eduardo estremeceu:

Catarina já chegaste! Mas falta ainda uma boa meia hora!

Meu Menino, compromissos são compromissos.

- Mas, é ainda muito cedo!

- Pensei que seria bom falarmos um pouco antes de irmos ao trabalho.

- Na verdade...

Entraram numa pastelaria, onde tomaram o pequeno almoço e, organizaram as idas aos locais. E, quantos eram, Deus meu!

- Eduardo, como é, vamos a pé?

O trânsito em Lisboa durante o dia era permanentemente um caos. Mas àquela hora da entrada nos empregos era demais, os carros ocupavam não só os espaços à beira das estradas, como os passeios.

Se calhar, será melhor apanharmos o eléctrico.

- Sim, a esta hora é o único transporte terrestre que chega dentro do horário ao destino.

Enquanto o guarda-freio ia tocando com os seus enormes sapatos, o badalo do eléctrico para desobstruir a linha, Catarina, sentada nos bancos de palhinha, ia admirando a paisagem através da enorme janela aberta: Largo do Chiado, onde os intelectuais enchiam a esplanada da Brasileira, onde à conversa, ou a escrevinharem, superlotavam as mesas; Largo Camões, onde os pombos de asas abertas e em bandos se passeavam, formavam mesmo, em certas alturas, uma bonita, tremulante nuvem cinzenta sobre a estátua do Ilustre Poeta; Largo do Calhariz; Calçada do Poço dos Negros, onde ainda se viam varinas de canastra à cabeça a encher o espaço com os seus característicos pregões:

- Pronto Eduardo, vamos sair, a rua das Francezinhas é aqui.

A Delegação de Saúde estava praticamente vazia, o que à partida lhes deu grande tranquilidade.

- Faz favor, pretendíamos uma declaração.

- Já cá tem ficha?

- Não, não, é a primeira vez.

- Então, só na terça-feira.

- Mas, por favor, é muito urgente!

- Pois que seja. Antes dessa data não há qualquer hipótese.

Primeira cavadela, sem minhoca... A partir dali, o mau augúrio repetiu-se: Uns só davam o certificado na parte da tarde, outros só passados oito dias, outros que era necessário um requerimento e aguardar o seu deferimento, enfim, burocracias e mais burocracias que complicavam tudo.

- Oh! Catarina é melhor desistirmos.

- Nem penses nisso, Eduardo!

Não penso nisso. Já andamos há não sei quantas horas, e praticamente ainda não conseguimos nada.

- Não é bem assim. As coisas são complicadas na verdade. Mas a minha opinião é que desistir nunca. Há que ir até ao fim.

Eduardo estava estupefacto. Conhecia algumas atitudes de Catarina... Só que naquele momento, nos últimos dias, o entusiasmo que apresentava, o ar fresco, solto, desprendido, a voz mentalizadora que permanentemente emitia eram qualquer coisa surpreendente que o deixava boquiaberto. E, quanto ele precisava de tudo isso!

- Tu és extraordinária, És mesmo um amor!

- Como, como, repete lá?

- Oh!

- Eduardo acredita que, só por ouvir isso, já dá para correr mais, muito mais...

- Acredita Catarina, se soubesse que era assim, não me tinha metido nisto. Mesmo assim, és tu, apenas tu que me vai movendo...

Estava na verdade desiludido. O seu entusiasmo ia-se esvaindo à medida que o tempo passava e não conseguia o que pretendia.

- Olha Eduardo, agora fizeste-me lembrar uma história que a minha avó me contava acerca de um senhor que tinha entrado num túnel em busca de um tesouro. Andou, andou e, ao ver que cada vez tinha mais para andar, pensou em desistir. Porém, se o fizesse sujeitava-se a morrer, uma vez que se encontrava sozinho, perdido, sem força, e sem quaisquer meios de subsistência. Então decidiu continuar. E, qual não foi o seu espanto quando logo ali, a uns escassíssimos metros mais à frente, encontrou o tão desejado tesouro.

- É bonito Catarina, muito bonito. Só que...

- Bonito e real, se faz favor.

Aí já não estou tão de acordo.

- Sim Eduardo, tens razão. As histórias não passam disso mesmo. Embora todas elas tenham o seu quê de moral.

- Sim, sim, é verdade. Catarina, agora mudando de assunto, e se fôssemos comer alguma coisa?

- Eduardo, vamos só à Sociedade Portuguesa de Autores, está bem?

- Está fechada Catarina, já passa da uma hora.

- Que diabo, porque é que nestas alturas as repartições hão-de fechar!

Se não te conhecesse, dizia que eras mesmo tola.

 

Para dar cumprimento à sugestão do Eduardo, entraram num pequeno restaurante. Encontravam-se na zona do Conde Redondo. Como acontecera praticamente por toda a cidade, a peste também tinha chegado ali. Os bons e espaçosos restaurantes e cafés, onde se comia e bebia a bica tranquilamente, sem estar em cima do vizinho do lado, estavam, ou iam-se transformando em delegações bancárias, pizzarias e hamburguerias, onde se comia de pé, ou se levava para casa.

- Catarina, por favor, aqui não!

Sabia que ele detestava comer de pé, estar onde não pudesse movimentar-se, levar o garfo à boca e, por arrastamento, a manga do casaco do parceiro do lado.

- Tem de ser Eduardo, não temos tempo!

Não, não, Catarina, desculpa, isso é que não. Sinto-me cansado, quero pelo menos saborear...

- A tua bebidinha, não é verdade?

Eduardo sorriu e juntos foram ao encontro doutro local.

- Catarina, espera, cheira, cheira-me...

- Ah! Pois claro, está aqui um. Só que é chinês?

- Não interessa. Garanto-te que temos de certeza lugar para nos sentarmos.

Embora os chineses fossem normalmente de pequena estatura, os seus restaurantes que, estavam a implantar-se em Lisboa, contrastavam, nos espaços, em absoluto com eles.

- Desejam almoçar?

- Sim, sim.

- Façam favor.

Pretendemos aquela mesa ali ao cantinho, pode ser?

-Chim, chim.

- Posso sugerir?

- Sim, sim, Catarina, ora essa.

- Pode ser: porco frito, galinha com tomate, gambas trituradas, cabrito no forno e, penso que chega. Ah, e arroz chau-chau!

- E para bibida?

- Catarina, um branquinho, não é verdade?

- Fresquinho, muito fresquinho.

- Então, Um João Pires se faz favor.

- E nom queirim um crepe?

- Sim, sim, pode trazer.

Estava tudo pronto, pareciam mesmo à espera deles, tão depressa foram servidos. Aliás, essa era mesmo uma característica dos chineses, pareciam eléctricos. Como sobremesa comeram licitas, fechando, como era do agrado do Eduardo, com o café cheio e a aguardente de rosas.

Depois, foi uma correria para os locais onde tinham coisas pendentes, e logo de seguida, para o atelier.

- Então meus amigos, contem coisas.

- Infelizmente, não há muito para contar.

- É verdade Fernando. Se para morrer fossem precisas tantas burocracias éramos, sem qualquer sombra de dúvida, o país mais populacional do mundo.

Aquela afirmação do Eduardo deixara-os boquiabertos. Tratava-se na verdade de uma dispensável realidade, da qual só tomávamos conhecimento quando necessitávamos de recorrer às repartições públicas, onde só existia uma coisa que era fácil e espontânea, receber dinheiro.

Bem, perante isto, o que é que vamos fazer. Enviamos ou não enviamos a papelada?

- Ó Fernando, perante as tantas coisas que faltam, eu acho que não.

Mais uma vez a estupefacção a tomar conta do ambiente, fundamentalmente do Eduardo.

- A chatice toda é amanhã ser sábado e, no fim- de- semana estar tudo fechado.

- Olhem, sabem o que eu penso? É que devemos mandar. Faltam algumas coisas é certo, mas creio que temos o principal. Além disso, ninguém nos diz que eles não nos peçam, nos dêem um prazo para enviarmos o que falta.

- Sim, sim, Catarina. Aqui nas observações eu faço referência ao pouco tempo que, por negligência dos serviços oficiais, tivemos para tratarmos de tudo.

- Então, pronto...

- Sim, eu também estou de acordo que enviemos.

- Pronto, está visto. Depois logo se vê. Se não pegar, não pegou.

- Eduardo, o que é que tu dizes?

- Bem, na verdade, como chegámos até aqui. Olhem, façam como vocês entenderem.

- Então está decidido, vamos à inscrição.

O Eduardo e o Fernando foram emitir o fax. Enquanto a Catarina foi ao aeroporto enviar a papelada que tinham conseguido para formalizar a candidatura.

- A esperança é a última coisa a morrer, pensava ela ao mesmo tempo que fechava os olhos, apertava o envelope contra o peito e o metia na caixa do correio.

 

- Hum, deixem-me, não me chateiem!

- Pai sou eu!

O facto de ter, ainda que aparentemente, resolvido o processo da candidatura e a conversa moralizadora que tivera com os dois amigos, dera, finalmente ao Eduardo algum sossego. Daí que mal caíra na cama fora como um anjinho... e, só isso, ou seja, o profundo sono em que se encontrava, fizera com que a voz meiga e carinhosa da filha lhe chegasse irreconhecível aos tímpanos.

- Pai sou eu, não me ouves, sou eu!

Qual quê. Estava ferrado e bem ferrado. Eduardo não gostava muito de dormir. Normalmente tinha pesadelos horríveis, e acordava ao mínimo ruído. Porém, naquela noite, perante as circunstâncias, dormiria, pelos vistos, até sabe-se lá quando. Só que a filha queria mesmo falar-lhe:

- Ó pai, tás a fingir, ou quê!

Não era caso para pensar de outra maneira. Por isso a persistência, usando desta vez também os abanões:

- Que vem a ser isto afinal!

- Sou eu, pai.

- Mas, que queres tu, filha!?

- Se visses o que eu tenho aqui na minha mão, não perguntavas isso, não falavas assim.

A voz da filha era condoída, e parecendo ver nela uma expressão de dor, sentiu, para além de um despertar forçado e inquieto, enormes agulhadas pelo corpo que o fizeram dar um salto da cama. Recentemente, mais propriamente há cerca de duas semanas que nem a presença, nem tão somente uma palavra para com a filha. A verdade é que por incrível que pareça, quase não teve consciência dessa atitude. No entanto, depois destas tomadas de posição da filha, não houve azáfama nem stress, não houve mesmo coisa nenhuma que lhe justificasse esse alheamento, impedisse que tudo de mal lhe viesse à cabeça:

- O quê, minha filhinha, não me digas que te aconteceu alguma coisa, que te magoaste! Mostra lá filha, mostra lá!

Não foi nada disso, pai. Vê, as minhas mãos, não têm nenhum golpe, não têm nada...

Ao sentir as mãos da filha passarem-lhe pelo peito e pelas faces, Eduardo respirou fundo, muito fundo, e como quem se tivesse libertado de um enorme fardo, estendeu os braços, beijou-a e abraçou-a profundamente.

- Pai, o que eu tenho na mão é isto, vê!

- Ah são cartas.

- Cartas, jornais e revistas, se faz favor!

- E, saudades do pai, não há nenhumas?

Patrícia, ao ver finalmente a expressão de calma e de carinho que tanto ansiava no pai, aproximou-se ainda mais dele e agarrou-se-lhe ao pescoço:

- Pensas que não?

- Penso que sim, coisinha rica.

- Ó pai, mas já pensaste que nestas cartas pode estar alguma coisa de muito importante!

Os braços do Eduardo foram então, mais uma vez, pequenos, muito pequenos para afagar aquele pedacinho de amor. No momento, e dado o sentimento com que abraçou a filha, o constrangimento provocado pelos acontecimentos dos últimos dias pareceu voar, desaparecer num ápice do peito dele. Não se sentia isento de consciência, de maneira alguma. Contudo o pesadelo sobre a filha estava a voltar tranquilidade.

- Pai, e então, que faço a todo este correio?

- Então, estou à espera que a minha secreta riazinha mo leia!

- Pois é, mas isso vai demorar, já viste que é correio de há mais de uma semana!

Mais uma vez o Eduardo a sentir o ferrete através das interrogações indirectas da filha. E, quanto elas o despertavam! É certo que tudo acontecia porque também ele era uma vítima... De qualquer maneira reconhecia que nada nem ninguém justificava aquele procedimento, aquela ausência de carinho para a única pessoa que amava na vida:

- Já sim minha filha, já vi...

- Isso o que quer dizer?

- Quer dizer que eu já há dias que não falo com a menina mais bonita do mundo.

- Pois, e há pouquinho respondeste-me assim daquela maneira, não foi?

- Desculpa, tens toda a razão. Os últimos dias têm sido difíceis para o pai, e como estava a dormir muito, não fiquei bem disposto ao ser acordado. Mas, já estou desculpado, não é verdade?

- Não sei, ainda não sei bem... por agora vamos à leitura das cartas, ora toma atenção. Oh, esta está mesmo difícil de abrir! Espera só um pouquinho enquanto vou à tua secretária buscar o corta-papel.

Porque a moleza assim convidasse, Eduardo aconchegou-se de novo entre os lençóis. Só que o despertador não consentiu o gozo que pretendia. Tinha-se esquecido totalmente dele...

Pai pára lá isso, pára lá esse barulho horrível!

Era na verdade assim. Ele não tinha o sono muito preso. A guerra encarregara-se de lhe impor mais essa relíquia... Porém, quando havia compromissos, o peso da responsabilidade levava-o a ligar o despertador mais barulhento que havia em casa.

- Pronto pai vou então ler...

- Tem de ficar para logo, minha filha.

- Ó pai, mas porquê?

- Porque o pai hoje tem de estar mais cedo no emprego.

Como era habitual, foram muitas as perguntas que a filha lhe dirigiu, no entanto, desta vez, apertado pelos compromissos e falta de tempo, ele, depois de se ter arrumado, limitou-se a agarrá-la ao colo, a beijá-la, a despedir-se dela e correr para apanhar o transporte.

 

- Olá senhor Eduardo venha comigo, eu vou levá-lo ao gabinete da gerência.

- Muito obrigado.

- Não tem que agradecer, foi o nosso patrão que disse.

O gabinete ficava no quarto andar, foi para lá que o porteiro e o Eduardo se encaminharam.

- Dá licença, senhor doutor?

- Ah, deixa-o ficar, vai lá para a porta.

Enquanto o porteiro se afastava, o Eduardo enrolava a bengala e reconhecia timidamente o território onde se encontrava, para de seguida dar alguns passos em descontracção. Não gostava de estar parado, muito menos quando esperava por alguém.

- Bom-dia meu rapaz, anda cá, senta-te aqui.

O gesto e o puxão do patrão foram tão repentinos que nem deram para o Eduardo desenrolar a bengala.

- Já viste, apesar de tanto lhes ter recomendado para virem cedo, ainda não apareceu ninguém! Isto tem de levar tudo uma grande volta, ou eu não me chame...

- Bom-dia senhor doutor.

- Adeus rapariga. Vai levando o senhor Eduardo para o vosso gabinete que eu já lá vou ter.

- Vamos, senhor Eduardo?

- Ah, é a Maria Estrela, uma rapariga nova na casa e que vai ser a tua secretária.

- Como está a senhora, passou bem?

- Muito bem, e o senhor Eduardo?

Vai-lhe entretanto dizendo onde estão os ficheiros e a secretária que eu já lá vou.

A Estrela colocou a mão direita na cintura do Eduardo, a mão esquerda no seu ombro, e totalmente encostada a ele, encaminhou-o para o gabinete.

Era uma posição que não agradava ao Eduardo. Ele não gostava mesmo nada de se sentir amarrado, empurrado como um fardo de palha. Contudo, não teve coragem para corrigir a posição. Tudo funcionara muito rapidamente, e, os seios dela, duros como pequenos sinos, praticamente espetados nas suas costas, quase lhe tiravam a respiração.

- Pronto senhor Eduardo chegámos, já cá estamos no gabinete.

Antes dela lhe fazer as descrições, ele concentrou-se e começou a virar a cabeça para um lado e para o outro, a fim de sentir, ter noção da dimensão do espaço e do recheio.

- Parece-me bastante espaçoso?

- Sim, eu não sou muito perita em medidas, mas é na verdade bem grandinho.

- Está é muito vazio, segundo me parece.

- Sim, tem umas coisitas.

Enquanto a Estrela tentava contar as peças do recheio, o Eduardo começou a deslocar-se pelo espaço.

- Cuidado, cuidado!

A Estrela estava mesmo atenta. Teria batido com a cabeça na esquina saliente duma das paredes, se ela não corresse a agarrá-lo:

- Podia ter-se magoado, senhor Eduardo! Se desejar eu digo-lhe onde as coisas estão!

- Sim, já agora agradeço.

- Aí, junto de si está a minha secretária, a sua fica deste lado.

Depois, começou a conduzi-lo, como que se um carro de supermercado se tratasse. As mãos dela estavam semi-húmidas. Eram macias, rijas, espalmadas e compridas. A sensualidade que causavam quase levaram Eduardo a acariciá-las, a apreciá-las minuciosamente. Não, desta vez não. Decidiu Eduardo para combater o instinto e começar a preparar o terreno profissional.

- Desculpe, não é preciso esforçar-se tanto. Basta a senhora agarrar-me pelo braço e colocar-me a mão em contacto com o que quer mostrar-me.

Teve o cuidado de falar calmamente e com um sorriso entre os lábios. Mesmo assim, sentiu a rapidez com que ela lhe largou as mãos, se afastou e se pôs algo boquiaberta diante dele.

- Quer ver como é? Deixe ver o seu braço e a sua mão.

Estava de manga muito curta e a sua pele parecia seda. Ao sentir o braço dela em contacto com o seu, Eduardo agarrou-o delicadamente, e tentando mais uma vez não ficar preso à forma bonita, à volúpia, a todo um estremecimento que aquele primeiro contacto com a carne nua lhe causou, exemplificou-lhe o procedimento, isto é: primeiro percorrer toda a dimensão do objecto em observação, depois, sendo caso disso, localizar a distância da parede, do precipício, ou de qualquer outro corpo.

- A senhora percebeu, é muito simples, não acha?

Sim, sim, percebi muito bem. Mas por favor, não me trate por senhora, faz-me velha, sabe?

- Então meu rapaz tens aqui um bom gabinete?

O patrão aparecera como um furacão, deixando Eduardo meio surpreendido, uma vez que ainda se encontrava agarrado ao braço e à mão da Estrela.

Sim, senhor doutor, não é mau. Mas se me permite, eu queria dizer-lhe que continuo a pensar que não estou à altura deste lugar, do desempenho destas funções.

- Qual quê, Estás à altura sim senhor, há que ir para a frente, há que ir para a frente. Tens aqui um belíssimo gabinete, uma excelente secretária e eu cá estou.

- Está certo, senhor doutor. Mas eu... sentia-me melhor no escritório, já estava habituado!

- Qual quê, tu és um homem para orientar, de fácil ambientação. Esta casa tem de ir para a frente. Já viste, se ela morre, as pessoas que vão para o desemprego, que ficam sem trabalho? Vamos lá, rapaz, vamos lá. Isto é simples. Eu já expliquei à Estrela o que há a fazer. Quanto a ti, para além do responsável, vais meter esta gente na ordem.

- Meter na ordem, como senhor doutor, como?

- Isso é a prática que te vai dizer. Mas eu não acredito que ao tempo que andamos a falar nisto tu não tenhas planeado nada.

- Bem, senhor doutor. Claro que tenho ideias...

- Ora vês, vamos pô-las cá para fora, diz lá quais são.

- Falar com os trabalhadores, fazer uma sensibilização...

- Como, como, repete lá?

- Certamente que o senhor não quer que nesta casa se continue a roubar?

- Pois não, claro que não.

- Por isso é importante falarmos com o pessoal desta casa, chamá-los à atenção. Se não lhes dissermos quais as consequências desses actos, alguns deles, aqueles que tenham essa tendência, vão infelizmente continuar a ter o mesmo comportamento. Como o senhor muito bem sabe, os vícios enquanto tais e quando já entranhados, acabam por gerar uma certa fraqueza, ter alguma preponderância sobre a pessoa.

- Vão para a rua, quem rouba vai para a rua.

Olhe senhor doutor, quanto a mim, dentro dos meus princípios, quero ser justo, não quero ser um carrasco.

- Claro, meu rapaz, claro. Mas, para isso basta fazeres uma carta e entregares a cada um à saída. Tu até escreves muito bem.

- Não, não senhor doutor. Eu não escrevo cartas aos meus colegas. Além disso uma carta pode ler-se ou não. Eu quero falar-lhes olhos nos olhos, dar-lhes a palavra, ouvir as suas reacções. Sabe senhor doutor, não basta dizer a uma pessoa que não deve beber vinho, é preciso dizer-lhe o porquê, os malefícios, as consequências.

- Bem, meu rapaz, depois falamos sobre isso. Agora vamos ao trabalho. Lá mais para o meio da tarde vou trazer aqui o resto do pessoal do gabinete, para amanhã as fichas estarem seleccionadas, as "apalpadoras" cientes da sua função, tudo em ordem para o eficaz exercício do vosso trabalho.

- Ó senhor doutor, amanhã ainda não, é muito cedo, eu não tenho tempo para...

- Meu rapaz, eu disse que o início é amanhã, e o que está dito, está dito.

Por estar a ver que o Eduardo não se calava, que estava a ter assuntos para rebater, dar e vender, afastou-se sem mais conversa.

O Eduardo estava de pé, e assim continuou, junto da secretária da Estrela.

- Senhor Eduardo vamos prosseguir?

- Ah, sim, sim. Já agora, diga-me por favor onde está o telefone.

- Ora, senhor Eduardo, o telefone, ora o telefone, ora deixe-me ver, sinceramente, não o vejo, não o vejo por aqui em lado nenhum!

- Tem a certeza?

Pode acreditar, à vista não está.

O corpo de Eduardo estremeceu. Foi com certo esforço que dominou a vontade de agarrar na bengala e ir ao encontro do patrão, perguntar-lhe se era possível haver um bom gabinete de trabalho sem telefone. Contudo decidiu-se por outra estratégia:

- Por favor, Estrela comece a tomar nota numa folha das faltas que vamos encontrando.

- Sim, senhor Eduardo. Mas esta de não termos aqui um telefone, não dá para entender!

- Tem razão. Tem toda a razão. E diz ele que temos aqui um bom gabinete!

A Estrela olhou-o, viu-o pensativo, de aspecto triste. Aproximou-se dele e passando-lhe com a mão suavemente pelo braço, disse-lhe:

- Olhe senhor Eduardo, deixe lá. Eu sei onde está a cabine, quando você quiser telefonar eu levo-o lá, está bem?

Quase não se ia contendo, foi mesmo com grande esforço que Eduardo susteve a vontade de lhe perguntar se ela estava a brincar, como é que ele comunicava com as secções, se ia passar o dia a descer e a subir escadas, para que é que servia o PBX? Enfim, uma série de coisas a contestar aquela sua santa ingenuidade.

Contudo, porque a tinha de preparar, porque ia concerteza precisar dela no futuro, sorriu-lhe, tocou com a sua mão na dela, e disse-lhe com ar sorridente:

- Obrigado Estrela, muito obrigado. Eu não espero de si outra coisa.

As palavras eram bonitas, ela estremeceu com elas. Porém, o aspecto dele continuava pálido, os nervos, embora disfarçados, tornavam-se visíveis no franzir das sobrancelhas, no tremular do lábio inferior, enfim, nos tiques:

- Ó senhor Eduardo, e se nós fôssemos lá acima ao bar beber um café?

Novamente a vontade de bruscamente lhe dizer:

- Café, então e a organização do gabinete, a selecção das fichas, dos nomes para irem amanhã à revista, quando é que se preparam? Mas nada, ou antes, continuação da mesma estratégia:

- Café, a Estrela também gosta de café?

- Adoro, adoro, senhor Eduardo.

- Então, não é tarde, nem é cedo. É para já.

Fecharam a porta, e quando ela lhe colocou a mão no ombro para certamente o voltar a levar como um fardo:

- Desculpe lá, pode dar-me o braço naturalmente.

- Como!

- Dizia eu que pode colocar-se ao meu lado e dar-me o braço naturalmente.

- Assim? Perguntou sorridente, ao mesmo tempo que com alguma malícia enfiava o braço por entre o dele e o apertava contra o seu peito.

- Assim, é assim que pretende?

Eduardo estava parado, e assim continuou por alguns instantes. O seio dela estava esmagado, totalmente enterrado no seu braço. E que seio, que volume!

- Sim, sim, assim mesmo.

- Sabe que eu não tenho experiência, o senhor Eduardo é que me tem de ensinar!

O jeito que ela deu ao corpo deixou Eduardo ainda mais embevecido. Quase se enterrou nas suas pernas!

 

- Que faz o senhor por aqui, por acaso aceita uma boleia?

Eduardo descia lentamente a Rua Nova do Almada, com o pensamento algo em demanda... Ao ouvir parar um carro e simultaneamente a voz da Catarina, quase deu um salto. Tinham combinado encontrar-se, mas não ali nem àquela hora.

- Aceito sim senhor, vem mesmo a calhar senhora D. Catarina!

- Eduardo, que horror, dona não!

- Para mim é assim: amor com amor se paga.

Reinava a boa disposição. Foi ainda com esse espírito, e como era costume, que o Eduardo localizou o carro e se encaminhou para o lugar da frente. Só que:

- Por aí não Eduardo tem de ser pela porta de trás...

- Então!

- Como sou teu amigo, hoje vou eu no lugar do morto.

Eduardo ficou surpreendido, nunca aquilo havia acontecido!

- Credo Fernando, cruzes!

- Quando se é conduzido por uma mulher tudo pode acontecer.

- Estúpido, estúpidos três vezes!

Eduardo continuava boquiaberto. Não esperava mesmo nada. O que ali se estava a passar punha-o nervoso.

- Eu bem sei o que é que tu queres, só que hoje não estou para aí virado.

- Coitado, até parece!

Eduardo encontrava-se ainda, e, de certo modo esquecido, do lado de fora do carro.

Então Eduardo, não entras?!

Estava hesitante, apetecia-lhe mesmo dar meia volta, ir-se embora. Se Catarina não viesse ao seu encontro, tê-lo-ia feito.

- Já viste este monstro, Eduardo? Qualquer dia rifo-o.

- Está bem está, para comprares as rifas todas...

- Convencido...

Já arrumado no banco de trás do carro, o Eduardo estava mesmo estupefacto. Aquela conversa, não lhe agradava mesmo nada. Para além de o surpreender, enervava-o, enervava-o muito. E, o facto de ver o amigo a ocupar o seu lugar habitual, ainda lhe agradava muitíssimo menos. Sentia o corpo gelar, e uma enorme vontade de lhe chamar nomes.

- Eduardo ias por acaso com algum destino especial?

- Não, por acaso não. Disse ele com alguma excitação.

- Ainda bem. Sabes que eu e a Catarina decidimos cobrar-te hoje um jantar?

- Deves estar a brincar, murmurou interiormente.

- Eduardo estou a falar contigo!

- Ah sim!

- Não sei porquê, mas o Eduardo não me parece com muita vontade!

Catarina tinha razão. Só que a má disposição acontecera depois de ter chegado junto deles.

Apesar de tudo, o dia tinha-lhe corrido razoavelmente, podendo até Ter acabado em beleza com a Estrela... O que sentia, nascera depois de deparar com aquelas cenas, de ouvir toda aquela conversa, de ter sido arremessado para o banco de trás. Pareceu-lhe confiança demais. E que reacções estranhas sentia: o corpo estremecer, as fontes a latejar e o coração a bater tão aceleradamente que quase saltava fora da caixa.

É verdade o que ela está a dizer?

Ficou ainda mais embaraçado ao ser questionado, chamado a pronunciar-se sobre algo indefinido que o embaraçava terrivelmente. O emaranhado de ideias, as reacções físicas, o ambiente gelado que por ali existia deixavam-no perplexo, quase incapaz de reagir. De momento sentiu as facas do silêncio a golpearem-lhe os músculos, a deixá-lo, com inércia, enterrado pelo assento.

A fraqueza é normal, pensou. Porém, deixá-la dominar-nos a ponto de impedir o controle das nossas emoções é que nunca deve permitir-se, para não mostrarmos, sem querermos, o que nos vai na alma.

- Então Eduardo, é preciso um saca-rolhas?

Inicialmente não se apercebeu tão nitidamente. Mas agora, conforme ia ouvindo o Fernando, e analisando os sintomas e as reacções em si provocados pelas suas palavras e comportamento, era-lhe fácil concluir que tudo era originado pelo ciúme. E que confusas e difíceis de suportar eram as garras desse amigo e simultaneamente inimigo do amor! Tinha de ser forte. E, dentro do que as circunstâncias permitiam, passou, como era seu hábito, com a mão pela barba, apelando à sua imaginação, uma resposta, uma saída:

- A Catarina tem sempre razão. Mas não é nada de especial. Talvez os efeitos das remodelações que hoje houve no meu serviço e duma pequena discussão que tive com o patrão...

Ora cá está, não é só a Catarina que adivinha. Eu cá tinha as minhas razões para irmos jantar. Então é assim Eduardo. Para que não te falte nada, nem te canses, uma vez que estás esgotado do trabalho, eu e a Catarina, como que antevendo esse teu cansaço, escolhemos um local de que concerteza vais gostar.

Apeteceu-lhe mandá-lo à merda. Dizer-lhe que bastava de hipocrisia. Mas não o fez. Apesar de tudo, e isso não podia esquecer, a expressão daquela amizade era grande.

- Claro, claro que vou gostar.

Quem não ia no engano era a Catarina, notava bem o constrangimento, o disfarce dele. Não o conhecia há muito tempo. Porém, a profundidade dos acontecimentos vividos em comum levara a que o olhasse muito, que tivesse já bem gravados na sua mente os pormenores do seu semblante, não lhe passando por isso despercebidas quaisquer alterações, assim como a leitura das mesmas. E, que infeliz se sentia. A surpresa tão bem preparada para dar alegria ao Eduardo estava a resultar precisamente no contrário. Também ela sentia o corpo tremular e o sangue gelar-se-lhe nas veias.

- Fernando, como há um trânsito horrível, e como conheces o caminho melhor do que eu, por favor leva o carro, está bem?

Queria estar liberta para olhar o Eduardo, compreender através dos seus olhos e da sua tez aquele ar de Novembro que reflectia.

- O quê? Queres trocar para o lugar do morto?!

As respostas de Catarina, e agora mais do que nunca, não saíam como antes, o que continuava a não ser impedimento para o Fernando exibir o seu bom humor, o seu ar brincalhão. Apercebia-se, concerteza que se apercebia da diferença no Eduardo e na Catarina, entendendo, e porque nada o acusava nem movia em contrário, dever continuar a falar, a responder e a inventar, a dar, ainda que de forma não muito consciente, o seu contributo para quebrar a monotonia.

Assustaste-te Eduardo! Desculpa lá mas tive de chegar o banco para trás, nem de joelhos, quanto mais sentado cabia neste cubículo!

A expressão era insinuosa, igual à por ele pronunciada anteriormente. Só que ela não estava com o mesmo espírito:

- Então, Catarina, 'tás por cá, ou foste dar uma volta!

- Desculpa Fernando, prendi-me ali com uma coisa.

O arranque foi de tal força que o Eduardo quase ficava com a cabeça agarrada ao tecto do carro. Era interessante e curioso o estado entre aqueles três amigos. Tinham-se conhecido recentemente, numa entreajuda ao Eduardo. A Catarina era o vértice daquela amizade, cujo preenchimento dos ângulos era bem diferente: desprendida e liberal no respeitante ao Fernando, amorosa com algum agravamento doentio no respeitante ao Eduardo.

Fernando chegou o carro para a mão, subiu a rua Nova do Almada, voltou para a rua Garrett:

- Alguém quer ir redimir-se ali à Igreja dos Mártires?

- Se fosse ali à Brasileira ainda era capaz de aceitar.

- O que é que achas Eduardo, vai um café?

- Não me apetece assim muito, mas é convosco.

Não houve respostas verbais, apenas na aceleração do carro. O sinal estava aberto, daí que atravessar a rua do Alecrim, entrar na rua do Loreto, passar pelo Largo Camões até ao Calhariz foi um ápice.

Para maior segurança, o Eduardo agarrou-se à parte de trás do banco do Fernando. Gesto oportunamente aproveitado pela Catarina para colocar a sua mão sobre a dele. Estava fria, tremulava. Perante isso, ela apertou-a intencionalmente para o despertar , para lhe transmitir:

- Que se passa contigo, não te quero ver assim, fala, fala comigo.

Alto lá, temos bronca!

- O quê?! Ah, é verdade, está todo o trânsito parado, que se passará por aqui?

- Estamos para aí no Poço dos Negros, não é verdade?

- Sim Eduardo passámos mesmo agora o cruzamento.

- Será acidente?

- Pelo ambiente e pelo local encaminho-me mais para manifestação.

- Ah sim, sim Eduardo, és capaz de ter razão.

Estavam a dois passos da Assembleia da República. As manifestações por ali eram praticamente diárias.

O 25 de Abril não tinha ocorrido há muito. A herança tinha sido paupérrima, praticamente despida de direitos e regalias sociais, fundamentalmente para os sectores mais baixos da sociedade. Daí, que os desprotegidos, impulsionados na maior parte das vezes pelas suas organizações representativas, recentemente criadas, não parassem de reivindicar uma vida melhor.

- Quem será desta vez?

- Não sei, não li nem ouvi anunciar nada.

O carro estava praticamente parado. Catarina abriu o vidro da janela:

- Parece que estou a ouvir qualquer coisa.

- É verdade Eduardo, também me parece.

- Eia pá, olhem para trás!

O barulho das buzinas era ensurdecedor e a fila dos eléctricos e dos carros não tinha fim!

- E agora Fernando?

- Agora não sei, menina. Estamos praticamente em cima da hora e não tenho nenhuma hipótese de sair daqui.

- Então, mas o restaurante fecha assim tão cedo?!

Fernando e Catarina olharam-se, acabavam, embalados pelo fio da conversa, de "meter a pata na poça"...

- Não, Eduardo. O restaurante não fecha, o que fecha é a surpresa que nós te queremos fazer.

- Ah sim, mas como é isso?

- Viva, parece que vai arrancar Fernando !

- Para mais azar, aquele chouriço ali da frente não está dentro do carro. Isto é mesmo à portuguesa, têm que tocar com os dedos nas coisas. Ó chefe, pelo amor de Deus e das suas alminhas vamos lá a despachar, estou cheio de pressa.

- Mas, é mesmo muita gente! Olhem para ali tanta pessoa idosa!

O carro voltava a afrouxar, a entrar no pára-arranca.

- Eia como eles gritam! Força, força meu povo.

- Pronto, o Eduardo finalmente acordou, está nas suas sete quintas.

Na verdade assim era. A transformação era simbólica. Não tinha esquecido, claro que não. A ferida continuava, dificilmente ia fechar... Tudo se devia à febre revolucionária que o movia. Ele não parava: mexia-se, punha a mão fechada fora do carro, gritava, acompanhava as palavras de ordem.

- Mas digam lá, isto não é mesmo belo!

- É, claro que é, ó Eduardo e se tu visses a moldura humana e as dezenas e dezenas de cartazes e panos expostos com as palavras de ordem ainda achavas mais bonito.

- Tenho setenta anos, trabalhei toda a vida e não tenho reforma nem assistência médica.

- Estão a ouvir, estão a ver como é! Por favor deixem-me ir abraçar, gritar ao lado daquela senhora...

- Nem penses nisso Eduardo, nem penses nisso. Acredita que se não fossem os nossos compromissos até eu lá ia.

O barulho, as vozes da multidão foram desaparecendo, deixando praticamente de ouvir-se de um momento para o outro, tal foi a fuga que o Fernando arranjou e a velocidade que imprimiu ao carro.

- E agora arranjar onde estacionar!

Fernando, se assim achares, eu posso ir andando com o Eduardo.

- Sim Catarina parece-me prudente a ideia. Eu já vos apanho.

Ao abandonar o carro e respirar fundo Eduardo captou um ar primaveril, contrastando com o Outonal sentido quando entrou no carro. Por ali ouvia-se o grasnar de gaivotas, o cheiro e múrmurio de águas vivas.

- Eduardo dá-me o braço se fazes favor.

Estavam em Belém, junto ao Padrão dos Descobrimentos: um nobre e celestial edifício em forma de Vela Latina, começado a construir em 1958 em memória do Infante D. Henrique. Um dos lugares mais bonitos e históricos de Portugal. Dali, um pouco ao longe, avistavam-se: O Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Museu do Artesanato, o Jardim Museu Agrícola Tropical, a famosa Fábrica de Pastéis de Belém fundada em 1837, o Museu da Marinha e Planetário ligados nos seus objectivos às descobertas marítimas e espaciais. Pelo chão podiam ver-se desenhos alusivos e na fronte do edifício esculpidas as trinta e uma figuras mais envolvidas nos Descobrimentos. A dois passos, a água azul do Tejo onde o sol se reflectia entre imensas escamas multicores e os navios, parados, um pouco mais ao largo sobre as orientações dos pilotos de barra se movimentavam lentamente, ansiosos por atingirem na Capital ou nos arredores o destinado cais.

Catarina, mas...

Eduardo desculpa, já te explico. Cuidado, tens três degraus a subir. Agora um hall e mais uns quantos degraus novamente a subir.

Desde que entrara no edifício que Eduardo se apercebera, pelo cheiro, vácuo e tamanho, que se tratava de instalações rústicas, muito antigas.

- Tenham a bondade.

- Somos convidados.

- Ah sim, façam favor.

Catarina imprimia tal ritmo ao andamento e às perguntas que não permitia ao Eduardo questionar o que quer que fosse. Desta vez não se atrevia a adivinhar onde estava, o que também não era importante. Preocupar-se-ia com isso se estivesse com mais tempo ou com pessoas desconhecidas, o que não era o caso... De uma coisa porém ele tinha a certeza, não estava num restaurante. Por ali o barulho era de vozes, não de talheres, e o cheiro era de história e não de comida.

- Façam o favor de se sentarem.

Era-lhes oferecido, na primeira fila um cadeirão "real", amplo, rijo, espaldado, bem trabalhado.

- Como vai a minha ilustre amiga?

- Muito bem, obrigada. Tenho o prazer de lhe apresentar um escritor meu amigo.

- Ah, viva, muito gosto em tê-lo por cá!

Totalmente estupefacto, Eduardo Ia para falar com Catarina, só que, mais uma vez teve de reter a palavra...

 

- Minhas senhoras e meus senhores sejam bem vindos a este magnífico auditório do Padrão dos Descobrimentos. O meu obrigado por terem vindo, e vamos finalmente dar início ao nosso encontro de poesia. Quero pedir-vos desculpa pelo atraso e agradecer muito a vossa presença. Por aqui iremos ter pessoas que nos vão falar das suas aventuras, das suas paixões, do bem e do mal das suas vidas poéticas.

Finalmente, Eduardo   descobria onde estava. Não conhecia o edifício mas, sabia um pouco da sua história.

Por mais esforço, não conseguia compreender muito bem o sigilo nem a amplitude da surpresa. Gostava de ouvir poesia, claro que gostava, mas, daí até à forma como fora conduzido até ali ia um grande separar de águas.

No palco praticamente nu, situado ali mesmo na sua frente, começaram, a convite do apresentador a desfilar vozes trabalhadas que faziam da palavra um canto e do eco uma orquestra de coros e salvas, que com as cores do arco-íris coloriam os sons e enchiam da mais nobre fantasia todo o espaço.

Eduardo apesar de tudo estava totalmente entregue ao que se passava em seu redor. A sua envolvência era tal que as vozes dos poetas e das poetisas, para além de embriagarem e colherem os aplausos, aniquilavam-lhe totalmente a alma: De olhos fechados, de mãos amarradas sobre o colo, as pétalas e os raios de luzes multicores irradiados pelos cantos vindos do palco penetravam tão fortemente no seu ego que o levavam a viajar por jardins, campos, mares, luares e sóis, por todo um mundo diferente onde as coisas e as gentes transbordavam de justiça, liberdade e de amor.

A surpresa, o tal mistério da Catarina e do Fernando, foi-lhe finalmente desvendada quando o apresentador disse:

Agora, minhas senhoras e meus senhores, vamos ter aqui um poeta, um poeta talvez pouco conhecido de V. Exas., um senhor, um herói que trilhou caminhos dos nossos descobridores perdendo a vista na guerra colonial, mas que na cegueira encontrou a aurora, o sete estrelo que o conduziu à poesia. Senhores e senhoras, convosco, Eduardo Oliveira.

As mãos dela amarraram as dele, enquanto o Fernando, do outro lado, lhe dava o braço, o descolava do cadeirão.

Novamente a não saber onde estava... a ficar ainda mais perdido. Sentia o corpo de chumbo e parecia não haver chão debaixo dos seus pés.

- Eduardo, vá!

-Isto não se faz! Apetecia-me fugir. Eu não me lembro de nenhum poema!

Calma, calma Eduardo, diz aquele da guerra colonial ou aquele sobre Lisboa, de que eu gosto tanto.

 

O corpo tremulava, as pernas pareciam varas verdes, todo ele era escarlate quando, por uma

porta lateral, entre aplausos, entrou no palco. Quase não sentia o microfone nas mãos. Tremia e transpirava, transpirava muito. De olhos fechados viu passar na sua frente um filme colorido onde sobre o mar e as naus se erguia um gigante sorridente e destemido.

"Calma Eduardo diz aquele sobre Lisboa, que eu gosto tanto." O pensamento foi um relâmpago, porém o suficiente para a acção:

 

Aqui,

no horror desta cidade

para onde me trouxe a desventura

eu sinto:

a cada sopro, a cada passo

cavar-se a minha negra sepultura.

Nestes becos

há lama,

não há vida,

ninguém se conhece...

neste mundo,

há ódio,

há cobiça,

há rancor,

o amor,

é interesseiro e desabundo.

Amo a maresia

o orvalho,

o sol que doura todo o espaço.

Os grilos,

as cigarras,

as papoilas,

a vida e a verdura do sargaço.

O campo

é o plasma que em mim corre

liberto,

sadio,

soberano.

é a vida que tive

e nunca troco,

chamem-me ou não

Provinciano.

 

Aproximava-se a hora de saída dos trabalhadores. Eduardo encontrava-se apreensivo. Não conseguia estar sentado à secretária um só minuto.

Não era bem o receio de dirigir que o assustava. A responsabilidade como meio fundamental a esse exercício estava permanentemente nas suas preocupações. A apreensão era pela função. Por mais voltas que desse, não conseguia ligá-la a um acto de justiça, muito menos pedagógico.

- Senhor Eduardo, estão aqui o senhor Amilcar e a senhora Elvira que vão fazer a revista.

A palavra adaptava-se perfeitamente ao que naquele momento ia na alma do Eduardo. E como reflexo vieram-lhe à mente dois acontecimentos com isso relacionados: a revista às prostitutas e a revista aos soldados.

Viu-se em meados dos anos sessenta, no Bairro Alto quando ocasionalmente passava junto duma das muitas casas de prostituição que nessa altura abundavam por Lisboa, a ouvir:

- Anda cá desgraçada, não fujas, não te vale a pena fugir, eu arrebento-te, enganaste-me mas eu rebento-te com os ossos.

- Larga-me não fui eu, não te enganei nada, eu não te conheço.

Disseste-me que vinhas da revista e esquentaste-me, puta, esquentaste-me!

Aproximou-se o "chulo" dela, aos murros seguiu-se o sangue, os corpos pelo chão, tripas à mostra e o tardio envolvimento da polícia.

No quartel a ver durante uma revista um cabo mal disposto impedir o Manuel de sair por ter o cabelo comprido quando ele o tinha praticamente rapado. O que o levou a saltar o muro e a apanhar por isso cinco dias de prisão, que o impediram de, como era seu sonho, integrar as fileiras da polícia quando deixasse a vida militar."

- Como está a senhora Elvira, e o senhor Amílcar passou bem?

- Sim, passámos.

- Eu queria falar um bocadinho convosco acerca do nosso trabalho...

- Ah, não é preciso, pode ficar descansado, pela minha parte não vai passar nada, eu vou mandar-lhes tirar nem que seja a camisa.

- É como eu, vou revistá-las nem que seja dentro das orelhas.

- Não, meus senhores...

- Como, como, não? Há, isso desculpe lá, o doutor já nos disse, no nosso trabalho mandamos nós, e não queremos ser despedidos.

Pareciam "seres" domesticados!

Não era aquela a altura para os contrariar, para lhes dizer o que quer que fosse. O patrão tinha-se adiantado! Viu bem a dureza de que enfermavam e o que se propunham fazer.

Iria, em altura própria, reunir com eles a sós, e se não resultasse tentaria engenhosamente substituí-los por outros com formação diferente. Por agora, ia dar-lhes plena tranquilidade:

Claro, claro, pela minha parte fiquem descansados, não pretendo despedir ninguém. A partir de hoje vamos trabalhar juntos. Qualquer coisa que necessitem falem comigo ou aqui com a D. Estrela.

- Nós falamos com o patrão, é com ele que temos falado sempre.

A mostarda chegou ao nariz do Eduardo:

- Desculpem, podem falar com o patrão as vezes que quiserem, mas, a partir de hoje quem está à frente deste sector sou eu...

- Ah, está a falar com a rapaziada?

- Sim senhor doutor estávamos a fazer uma pequena apresentação.

- Já lhes deste ordens?

Ordens, que ordens se ele já os tinha embriagado...

- Bem... Já falámos alguma coisa, amanhã continuaremos.

- Pronto, nós vamos andando, que está quase na hora.

- Já sabem, olho bem aberto e muito cuidado com os larápios.

- Fique descansado, fique descansado senhor doutor, o senhor já sabe como é, se for preciso a gente até lhes rasga a pele...

Eduardo voltou a interrogar-se. Seria que perante aquela mentalidade ia ser capaz de se aguentar?

- Então o telefone funciona?

- Funciona sim senhor doutor.

- Como vês foi apenas um esquecimento, nada mais. Espero que seja um bom instrumento para o desenvolvimento do teu trabalho.

- Vai ser concerteza. Como o senhor sabe sem comunicação não há desenvolvimento.

- Claro, claro. Embora tenham sempre que existir regras! Está a ficar bonito o teu gabinete: o papel é todo florido, está muito bem colado, dá um aspecto excelente às paredes, parece-me que não falta nada aqui!

O visual, a fantasia, sempre ela a predominar, a ser usada como metáfora. Só que por ali a cola, era lassa:

- Falta, falta senhor doutor.

Falta o quê, Estrela? Vocês vejam lá, não sejam muito exigentes.

- É só um armário para pormos os casacos.

Pronto, está aqui o primeiro, apanhámo-lo com dois pares de meias debaixo da cova dos braços.

- Fiquem descansados, eu vou ver isso do armário. E não se perdoa a ninguém, não queremos cá ladrões, quem rouba vai para a rua.

O rosto do doutor ficou escarlate, transformando-se mesmo vermelhão conforme ia abandonando o gabinete com o olhar fixo no larápio do par de meias, um trabalhador que até àquela altura gozava da sua consideração.

- Senhor Eduardo, esta levava estes brincos de fantasia dentro do penso, não tem vergonha nenhuma, estava mais porco que as coisas porcas, javarda.

- Esta foi apanhada com uma combinação nova, já confessou que atirou a velha para o lixo.

- Este foi apanhado com uns botões de punho, a camisa não tinha casa, mas ele, como se pode ver fê-las com a navalha.

- Este foi apanhado com este carro de corda entre pernas, por dentro das calças.

- Esta levava esta colcha de algodão enrolada à barriga, por debaixo da cinta.

Não tinham fim os casos!...

Pelo valor e os objectos em questão era fácil verificar que não se tratava de furtos para negócio. Independentemente de algum vício porventura já entranhado, tratava-se da necessidade de encobrir a miséria com que viviam muitos daqueles trabalhadores.

- Ai, Senhor Eduardo, tenha pena de mim e dos meus filhos, isto foi o diabo que me atentou a alma!

- Senhor Eduardo, eu não tirei nada, eu não era capaz de tirar nada. Alguém me meteu isto no bolso.

- Por amor da sua filha, senhor Eduardo, eu sou viúva, não tenho ninguém.

- Senhor Eduardo, pelo amor de Deus, perdoe-me, eu não posso ser despedido, eu mato-me!

Não havia coração de ferro que resistisse...

Eduardo estava estupefacto, deveras constrangido. Sentia-se incapaz de dizer o que quer que fosse. Julgava-se um autêntico fosso onde estavam afundados todos aqueles pedaços de farrapos humanos.

O sol que através da vidraça chegava às suas costas era quente, contrastando com a sombra fria e húmida que lhe ia na alma. Quanto desejava ser capaz de transpor o sol para ali, tornar quente e saudável o ar gelado e cortante que entre aquelas quatro paredes se vivia. Os gestos, a dor e o pranto que a ele chegavam eram insuportáveis, estavam a mexer de tal forma com a sua sensibilidade que tinha que tomar uma atitude para, pelo menos, não chorar como eles:

- D. Estrela leve estas pessoas ali para o lado de fora do gabinete enquanto eu vou falar com o nosso patrão.

- Ai senhor Eduardo salve-me. Eu nunca mais faço outra, eu juro, eu juro!

- Senhor Eduardo, eu dou-lhe tudo, tudo o que o senhor quiser, por favor livre-me desta.

Os apelos envolvidos em tristeza e pranto conforme ia passando, eram dignos de clemência.

Normalmente quem quer fazer justiça não tem poder, e quem tem poder nem sempre faz justiça.

Eduardo sabia que em tudo tem que haver regras, e, que não nascera para conviver com determinadas situações. Já não era a primeira vez que saía prejudicado por se pôr ao lado de quem prevaricava. Mas, mesmo sofrendo essas consequências, não mudava, não ia mudar nunca. Para ele, o erro era humano, e, quem erra deve ter sempre uma segunda hipótese.

 

A reunião do Conselho Nacional desta vez, e por via da necessidade da descentralização, realizava-se no Hotel História em Coimbra. Era a pior altura para o Eduardo participar. A ordem de trabalhos não lhe trazia dificuldades de intervenção, tratava fundamentalmente de Barreiras Arquitectónicas, matéria que ele dominava na ponta da língua, o pior era o facto de ter o seu início à sexta-feira e se realizar numa altura em que o seu cérebro estava a ser pequeno, mesmo muito pequeno para abarcar as inúmeras e pesadas incumbências à sua responsabilidade. A falta ao trabalho, havia sido aparentemente ultrapassada graças à boa vontade, à compreensão e espírito de sacrifício da Maria Estrela, o resto é que enchia o fosso...

- Senhor Eduardo tem aqui o micro, é a sua vez de intervir.

Nem dera por ter sido chamado! O seu pensamento andava por longe, estava totalmente fora dali, envolvido num turbilhão de dúvidas de mel e vinagre sobre a Catarina; na situação do seu casamento, agora em divórcio; na sua função na empresa, mais propriamente, nos quinze colegas, nos larápios, como lhes chamava o seu patrão, enfim, nos pensamentos e pensamentos que rodavam como dobadoura atascada de negro linho que em cada volta havia o pranto, a dor, toda a tristeza de palavras e de gestos.

Terminada a intervenção, que se baseara essencialmente na enumeração das barreiras e, na forma como resolver a falta de acesso dos deficientes aos edifícios relacionados com o ensino, cultura, emprego, desporto, aos tempos livres, à sociedade, enfim, a uma vida normal, o Eduardo, por via da saturação, saíra da sala e fora até ao bar:

- Venha cá senhor Eduardo, tem aqui uma mesa.

- É mesmo isso, muito obrigado.

O bar era pequeno. Tinha alguns vasos de flores artificiais, uma música de fundo algo abstracta e uma espessa nuvem de fumo que lhe sufocava a já difícil respiração. Também ele naquele dia já havia fumado mais de três maços de cigarros.

- Faça favor de dizer:

- Um gim tónico com muito gelo.

- Enquanto o empregado, homem de meia idade engravatado, de calça preta e camisa branca se afastava para voltar com a bebida, Eduardo agravava a nuvem de fumo com mais um cigarro. Devia ter uma cara horrível. Sentia o movimento dos olhos preso e um latejo e peso nas fontes que quase lhe adormecia a cabeça. Quanto mais queria esquecer, mais as preocupações lhe invadiam o cérebro.

- Com licença, aqui está a sua bebida. Deseja palhinha?

- Não, não, prefiro beber pelo copo.

No relógio da torre da Sé Velha soaram badaladas. Eduardo abriu a tampa do relógio Braille e confirmou as sete horas, precisamente a hora de saída dos trabalhadores. Quantos "ladrões" iriam ser descobertos naquele dia?! Seria que os chefes de secção teriam falado com eles como lhes pedira? Seria que os trabalhadores iriam comparecer na reunião por ele marcada para a Segunda feira próxima!

Dúvidas, muitas dúvidas e preocupações que lhe roíam no cérebro permanentemente. Parecia estar já a ouvir o patrão:

- Reuniões nesta casa? Nunca! E tu rapaz, como responsável podes seguir o mesmo caminho daqueles que roubam.

Precisava muito de trabalhar. Aqueles que sabiam da dificuldade de um deficiente conseguir um emprego em Portugal iriam certamente criticá-lo por ter ido contra as ideias do patrão ao fazer a reunião, mas isso e tudo o mais relacionado que lhe pudesse suceder, nada era comparado à tranquilidade e ao descanso da sua consciência.

 

- Mas que bem, cigarro, bebida!

Catarina estava a um passo, todavia ele não lhe respondeu. Ouviu o timbre, apercebeu-se que era uma voz feminina, mas não a reconheceu totalmente. O ar dele era medonho, e o facto de não a ter reconhecido, nem pela voz nem pelo perfume, inibiu-a de tomar outra atitude, de ser mais espontânea:

- Está assim tão embrenhado?

- Como?

Continuava a não reconhecer a voz. No entanto mudou de postura, abriu os olhos, levantou a cabeça à espera que quem quer que fosse voltasse a falar.

- Perguntei se está assim tão embrenhado.

- Por aqui, Catarina?!

Desta vez tinha-a reconhecido, a voz chegara bem dentro de si.

A reacção fora moderada, não sentia estímulo para mais.

Quem sentiu bem essa falta de vida, fora ela. Estava muito bonita. Tinha cuidado o aspecto e trazia o mesmo vestido que levara ao lançamento do livro dele, esperava concerteza outra reacção, daí, alguma decepção.

Um silêncio envolvido em nuvens de penumbra pairou por ali, sem contudo conseguir alterar a predisposição dela. - Sim, por aqui.

- Como vieste, quem te disse?

Eduardo virou a cabeça para um lado e para o outro em busca de descobrir qualquer sintoma da presença do Fernando que certamente teria vindo com ela.

- Vim de carro , e, quem me disse foi o senhor, ou já se esqueceu?

- Possivelmente Catarina. Mas não me admiro, sinto-me bastante exausto, um pouco propenso ao esquecimento.

A cabeça dele não parava. Algo lhe dizia que Fernando estava por ali, esperando de um momento para o outro ouvir a sua inesperada e sarcástica gargalhada e sentir a respectiva palmadinha nas costas, como ultimamente era costume...

- E, estás aqui no meio desta horrorosa nuvem de fumo e deste barulho todo!

- Cheguei agora, aguardo apenas que a reunião termine.

- Está um terraço aqui mesmo ao lado, anda, vamos até lá.

Sem deixar de disfarçada e simbolicamente olhar para um lado e para o outro, Eduardo, levantou-se muito lentamente, aceitou o seu braço ao mesmo tempo que ela lhe agarrava na pasta.

Estava a cair a noite. As luzes começavam a fazer sentir a sua presença através do ar multicor já visível pelas ruas, pelas montras, pelo sinais luminosos e por de cima dos telhados, fazendo concorrência à lua que, cheia e linda, sucumbia nas sujas e quase inexistentes águas correntes do Mondego.

- Então, tem decorrido bem a reunião?

- Sim, muito bem.

Sentiu um peso no peito. A resposta verdadeira não era aquela, sabia-o bem. Outras palavras antagónicas, mais condizentes e reais afloraram-se-lhe à garganta. Porém, que interessava, também ele tinha o direito de mentir...

A penumbra e uma ligeira e fresca brisa faziam-lhes companhia enquanto, praticamente em silêncio passeavam lado a lado pelo terraço.

Catarina sentia-o muito distante. O braço e o corpo dele, contrariamente ao que era costume, desprendiam-se, não emitiam calor.

- Tens quarto marcado neste hotel?

Mastigou sarcasticamente a resposta. Há uns tempos atrás seria ele a antecipar-se, a convidá-la rapidamente a subir, a visitar o seu quarto. Mas, desde que empreendera que ela era artigo de "segunda mão"... não sentia esse interesse. No entanto, como entendia ser deselegante não dar uma resposta, lá disse:

- Sssim.

- O sol já desapareceu, está a ficar frio, e se fossemos até lá?

Eduardo não respondeu. Continuou a enrolar as palavras, a interpretar aquele convite não como testemunho da amizade, do amor e do sentimento que ele nutria por ela, mas sim como um gesto do ritual das suas vivências com o Fernando, com o outro que morreu e sabe-se lá mais com quem.

Catarina gostava dele. Conhecia os seus altos e baixos, a forma como facilmente, nos momentos difíceis se deixava abater.

- Se fossemos até lá?

A exclamação mordaz quedou-se, sem voz, no interior do peito dele.

A todo este alheamento e frieza, Catarina respondia com a verdadeira expressão do amor que sentia por ele.

- Trago aqui as minhas poesias, podíamos lê-las lá. O que é que achas?

Pelo corpo e pelo cérebro passaram-lhe sintomas de um choque eléctrico. Á memória vieram-lhe algumas das imagens felizes que tinham emoldurado a promessa. Mas como esses foram outros tempos, aquela proposta, vista por ele naquele momento, só poderia ser um engenhoso enredo para irem até ao quarto. A verdade é que, mesmo tendo em conta tudo isso, pelo cansaço, vergonha ou falta de coragem para combater o argumento, deixou-se conduzir pelo arrastamento.

- Qual é o andar e o número do quarto?

- Trezentos e vinte, terceiro.

A escada era estreitíssima. Noutra altura, com outra disposição nele, Catarina teria aproveitado para iniciar, logo ali, o roçar das coxas, gozar um pouco daquele apetecível fogo. Porém, derivado à frieza e lentidão dele decidiu seguir sozinha na frente.

- Então ainda vens aí, eu já cá estou!

Sentia-se ansiosa, uma fresca e levantada onda capaz de tornar em turbilhão aquele mar moribundo.

- Abres, ou queres dar-me a chave?

Mais uma vez ele a não responder, a desviar-se inclusive dela enquanto abria a porta. Catarina acendeu a luz, olhou em redor: uma cómoda com um espelho enorme e uma televisão ao lado, dois sofás, porta para a casa de banho, um roupeiro, cama, duas mesas de cabeceira com candeeiros e telefone e uma janela coberta com um cortinado grená com muitas pregas.

- É grande o quarto?

- Não sei, quando cá vim mal tive tempo de pousar a mala.

Catarina não tirava o olhar de cima dele. Analisava minuciosamente os seus gestos e movimentos, esperançada de o ver aproximar e envolvê-la, como fizera naquela noite em sua casa. No entanto, ele nem o casaco tirara! Andava lento e cabisbaixo de lado para lado em busca de uma cadeira.

Sabia-o algo indeciso mas, começou a sentir-se cansada... Como leoa faminta e apaixonada delineou o cerco...

Não tinha medo de ser substituída, conhecia bem a situação civil do Eduardo, e isso, se alguma vez a assustara, não era agora que se sentia furiosa e faminta por estar a ser   rejeitada.

De pé junto da cama, e, quando ele passava pela décima vez diante de si, sem lhe ligar, ignorando a sua presença, atirou-se-lhe ao corpo e, impelida essencialmente pelo constrangimento tombou-o, caíram em cima da cama. Mil reacções foram esperadas. Só que ele ficou inerte, apenas suspirou fundo.

- Está cansado, muito cansado o meu menino!

Tirou-lhe os óculos e pousou-os em cima da mezinha de cabeceira. Depois tirou-lhe o casaco e a gravata e pôs-se a admirá-lo: viu-lhe os olhos fundos, negros e não resistiu aos lábios carnudos e sensuais.

Como pombo perseguido por outro pombo, Eduardo sentiu-se espicaçado. O beijo actuara como uma sonda que lhe percorria todas as veias, enrijava os músculos e resfriava o coração. No pensamento rasgou-se-lhe um relâmpado seguido de um enorme trovão... Quantos beijos daqueles não teriam já bafejado o Fernando e os outros, sim, todos os outros e quantos teriam sido eles!

Enraivecido, esquecendo por momentos que podia ser mais um, e querendo ser mais eloquente que todos eles, fardou-se de elegante cavaleiro, mandou abrir as portas do castelo vermelho, e partiu a galope armado no mais nobre e valente conquistador.

Com mãos de cetim, desnudou a árvore folha por folha. Muito suavemente torneou o tronco com carícias de vento e introduziu-se nele como o sol pela aurora matinal.

 

Lá fora um galo com voz timbrada anunciava o romper da madrugada. Nos aposentos do lado ouvia-se o barulho do autoclismo e a água a correr para uma banheira, enquanto por ali, pelo quarto, se ouviam as mais lindas melodias entoadas por violinos e fagotes numa angélica conjugação orquestral. Eduardo esquecera-se da continuação da reunião naquele novo dia. Não conseguira pregar olho. A noite fora passada de vigília, de plena adoração a Catarina. Não sabia o que fazer-lhe, como lidar com ela. Via-a coberta, totalmente coberta de botões de rosa, de dálias, de crisântemos, de flores de todas as cores e um denso véu feito de céu azul claro, brisa e flor de laranjeira. Tinha medo de a acordar, receava que ela adivinhasse os pensamentos, o tudo quanto de mal dela pensara injustamente!

Como é que o amor, quando simples e verdadeiro é o mais belo e lindo ramo! E, quando paixão, é doença sem remédio capaz das maiores tropelias, inclusive conduzir à morte?

Como era possível alguém apaixonado ver turva a água cristalina e desdenhar do sol e da lua por simplesmente se entreajudarem?

Estava de corpo colado ao de Catarina e nem se mexia para não a acordar. A respiração dela emitia um odor a maçã, e lembrava-lhe um ribeirinho lento e suave cheio de pombas brancas a beber.

Um desses aveludados gestos levou Catarina a abrir os olhos.

Todo o quarto estava envolto numa penumbra, com excepção de um pequeno espaço junto do cortinado, onde havia uma auréola prestes a ser tocada pelo sol. Eduardo estava desse lado da janela. Inclinou-se para a contemplar... O seu braço estava por debaixo do dorso dela, puxou-a para si e beijou-a.

- Amo-te Catarina, amo-te muito.

- Isso é verdade Eduardo?

- Verdade, mil vezes verdade.

- Juras?

- Nunca tive tanta certeza.

- Como é possível falares assim, se ultimamente...

- Catarina, meu amor, um dia conto-te tudo. Até lá, e espero que decorram trezentos anos, quero ser um regato deleitado no teu rio, sempre ávido de em ti saciar esta sede imortal.

- Louco, és mesmo louco!

- Louco por ti, sim, sou, e nunca mais quero perder esta loucura. Às vezes, por sermos ingratos, morremos de sede por duvidarmos da água cristalina que junto de nós brota do interior da terra pura...

- Duvidar, mas duvidar de quê Eduardo?

O corpo estremeceu-lhe. Estava, sem querer, a seguir por caminhos inóspitos que não queria trilhar. Se em alguém via agora vida de lodo, esse alguém só podia ser ele. Quantas mil vezes, depois de ter feito amor com Catarina, rodou a cabeça em vénias sucessivas, em pedidos de perdão por tão mal ter pensado dela. Até o sol se escondia de vergonha!

- Duvidar que tu não me quisesses.

O rosto dela pendeu suavemente sobre o dele cobrindo-lhe os ombros e escondendo-o no meio dos seus negros e longos cabelos.

As tocas são bonitas, mas só devem esconder-se, guardar-se nelas somente as pedras, nunca o amor.

Ele ia para abraçá-la ainda mais, envolvê-la com todas as suas forças em agradecimento àquele bonito hino que retratava muita da verdade que naquele momento ia evoluindo no seu cérebro.

Apercebendo-se disso, vendo o fogo a aproximar-se, Catarina levantou-se.

A casa de banho ficava mesmo ali ao seu lado, mas levou uma eternidade para lá chegar. Os passos eram de formiga e o pisar de louva-a-deus. Ao mirar-se ao espelho quase teve medo de si: olheiras negras e profundas, face esbranquiçada e os lábios violáceos, cor de chumbo. Sentia um fortíssimo ardor nas entranhas e uma ligeira mas incomodativa dor de cabeça.

Eduardo, ao ouvir a água a correr e os movimentos dela no interior da casa de banho, foi esconder-se por detrás da parede, ao lado da porta. Quando ela saía da casa de banho, ele, num gesto inesperado, tomou-a nos braços e ergueu-a de forma a beijar-lhe os seios escondidos por debaixo da fina e rendada camisa de dormir. Quando ela se viu no ar, se sentiu beijada e encostada ao peito dele, agarrou-se-lhe ao pescoço:

- Devagar, muito devagar meu querido. Por favor não me deixes cair!

- Pareces mesmo uma pluma! Neste momento sinto força para te levar assim, até ao fim do mundo!

- Que bom Eduardo, não calculas como me sinto feliz ao ouvir isso.

Com a maior das levezas, pousou-a em cima da cama como se de um bebé recém-nascido se tratasse:

- É assim que a menina deseja?

É sim meu menino.

Eduardo abraçou-a, beijou-a, iniciava-se para percorrer o caminho de novo envolvimento amoroso:

- Não, isso não querido. Sinto-me demasiadamente debilitada. Agora a única coisa que me apetece é um café.

Ele deu um salto:

- Oh, tens toda a razão, nunca mais me lembrei do pequeno almoço. Vou já tratar disso. Vou mandar vir café, leite, chá, torradas e bolos.

- Para mim só café com leite, mais nada.

- Isso é que era bom, quem manda sou eu. No mínimo café com leite e um bolo.

Quando ele se deslocava para o telefone, Catarina arrojou-se pela cama, enlaçou-o pela cintura e com a cabeça encostada ao peito dele disse-lhe:

- Querido, e se fossemos lá fora?

- Como, mas não estás debilitada, não te sentes...

- Como deves compreender, já não sou nenhuma criança... o que não quer dizer que esteja a morrer. Neste caso, morrer só por ti.

- Nem por mim, nem por ti, nem por coisa nenhuma. A vida Catarina vai-nos ser muito precisa, tanto é, o que ainda temos para realizar. Mas então, tu ...

- Eduardo apetece-me ir beber o café lá fora, respirar por lá um pouco de ar.

Eduardo abriu a tampa do relógio e viu as horas, eram onze e meia. A reunião devia estar no intervalo. Os colegas andavam de certo por ali e iriam vê-lo.

- Então queridinho, vamos?

- Estava a pensar que a reunião deve encontrar-se no intervalo e que o pessoal anda por ali...

E não queres que te vejam comigo, não é?

A voz dela era triste, sendo também visível alguma desolação reflectida no baixar dos braços e na forma como afastou a cabeça do peito dele.

Eduardo sentiu uma sombra fria a percorrer-lhe o corpo:

- Não é nada disso, Catarina, disse-lhe apertando-a contra o peito, trata-se apenas de não ter comparecido à reunião...

Ela levantou a cabeça, afiou o nariz, e, num gesto rápido desamarrou-se do peito dele:

- Mas se queres...

- Eduardo agarrou-a, acariciou-lhe os cabelos e voltou a abraçá-la:

- Não é nada disso tolinha, a partir de hoje vou contigo para todo o lado e se preciso for num carro descapotável para que toda a gente nos veja. Apenas não quero dar pedras para depois me atirarem, percebes?

- Ora Eduardo. Eu sei que é necessário, senão obrigatório lutar, fazermos alguma coisa pelos outros, mas nunca esquecendo-nos de nós. Isso tornará a luta estéril e transformar-nos-á em farrapo.

- Pronto, pronto, é lá fora que a minha princesa quer ir tomar o café, não é verdade? Então vamos embora, já.

- Vamos sim Eduardo. Mas já agora queria dizer-te que foi assim, sozinho que ontem te vi sentado à mesa do bar.

- É verdade, tens toda a razão. Um dia conto-te tudo. Agora e porque já não é nada cedo, vamos à rua, vamos tomar o nosso pequeno almoço.

Entraram numa pastelaria perto do hotel onde ela bebeu um galão, comeu uma torrada e ele bebeu uma água mineral, um café e comeu um pastel de Tentúgal, seguindo depois, de mão dada para o carro que ela no dia anterior tinha deixado estacionado um pouco longe do hotel.

Coimbra é uma cidade feita de ruas estreitas e pequenas, daí que o trânsito seja permanentemente um caos, atirando repetidamente os forasteiros para sentidos proibidos. Catarina, assim que se desenvencilhou dessas artérias e entrou na rua da ponte, quase que desaparecia.

- Muito bem, muito bem minha senhora, parece uma andorinha, não vejo onde esteja o apregoado cansaço!

- Eu não disse que estava cansada, não seja mentiroso!

- Hei, não se enerve, estava apenas a brincar!

Catarina virou o carro à esquerda, por uma rua calcetada, estacionando uma centena de metros à frente.

- Onde estamos? És capaz de adivinhar?

Coimbra e Tomar eram as cidades de Província que ele melhor conhecia. Ergueu a cabeça, friccionou a barba, amparou com a mão semi-fechada o queixo e idealizou mentalmente o percurso feito:

- Ora deixa-me cá ver, Catarina, deixa-me cá ver... estamos, no Portugal Os Pequeninos.

- Pertinho, muito pertinho. Estamos na Quinta das Lágrimas.

Eduardo abriu os olhos, virou a cabeça na direcção de Catarina e esfregou as mãos. Num ápice rodou-se-lhe no pensamento um filme com personagens imperiais vestidas de negro onde a terra ferida era o amor.

- Conheces?

- Sim, conheço a Quinta e a história. Mas nunca é demais percorrê-la outra vez?

Depois de comprarem a senha de entrada e terem passado o tosco portão, Catarina e Eduardo começaram a percorrer de mão dada alguns dos locais referenciais da Quinta: andaram à volta do palácio onde D. Pedro vivera com D. Inês, na esperança de poderem entrar e contactar com o quarto, com a sala, com a cozinha, enfim com os departamentos da privacidade deles. Tudo estava fechado, e perante essa impossibilidade quedaram-se junto da porta principal onde uma linda e bem urdida teia de aranha, em sinal de luto, parecia impedir a entrada. Depois, e após descerem pequenas escadas e passarem pelo meio de longas e desfolhadas árvores, pararam junto da célebre fonte onde D. Pedro colocava, enrolados em cortiça, os bilhetes que a água levava até ao tanque do Convento de Santa Clara onde Inês se encontrava retida, parecendo ouvir ali uma melodia de eterna saudade formada pelos goles conforme iam entrando no pequeno túnel; depois foram até ao lago onde dizem ser dela o sangue vermelho que se vê rasgado nas pedras e por último do relvado e da lápide que assinala o local do assassinato dela, da D. Inês, onde Catarina leu o poema de Camões feito em homenagem à injustiça da sua morte.

Apesar de toda a beleza, estavam comovidos. Aquela triste história tinha lábios que se reflectiam na vida amorosa de amantes como eles...

- Felizmente que o tempo hoje é outro. Já nos libertámos da ditadura, já se pode viver e amar sem asas cortadas!

- Achas Eduardo? Perguntou ela com voz triste, de corpo colado e de braço traçado nas costas dele.

- Sim, acho. Com esses sistemas rígidos e doentios não seria possível sequer nós estarmos aqui a viver estes momentos inesquecíveis!

- Estás feliz?

- Felicíssimo, Catarina.

Ergueu-se e deu-lhe um terno e denso beijo nas faces. Eduardo puxou-a para si e abraçou-a carinhosamente.

O silêncio quis morar por ali, o que Catarina como sempre não consentiu, aproveitando para lhe fazer uma pergunta que vinha bailando no seu cérebro:

- Depois desta candura e ao ver este poema aqui na minha frente, estou a lembrar-me do teu livro. Nunca mais soubeste nada da candidatura?

- Não, ou antes, ainda ontem perguntei à responsável pelo trabalho internacional do Conselho...

- E então?

- Disse-me que não sabe bem mas que tem ideia que o júri já escolheu e os prémios já foram atribuídos.

- Assim, sem te comunicarem nada!

- Pelos vistos.

- Hum, parece-me uma história muito mal contada!

Olha Catarina, seja ou não, a verdade é que já deixei de pensar nisso, já se foram todas as esperanças.

 

Conforme Eduardo subia a rua do Carmo, se ia aproximando da empresa, as pernas, contrariamente ao que vinha sucedendo nos últimos dias, pareciam penas, tão grande era a ansiedade de chegar ao local do trabalho, de se certificar de como teriam decorrido as coisas durante a sua ausência.

O sol estava tímido, não conseguia irromper por entre as nuvens pardacentas que tisnavam o céu e arrefeciam o tempo. Eduardo, apesar de tudo, sentia bem a ligeira e fria brisa a passar-lhe pelo corpo e a querer gelar-lhe os ossos. Só que dentro de si havia sol, muito sol dourado deixado pela Catarina. Não conseguia esquecer, alhear-se dos momentos prazerosos e felizes que com ela vivera em Coimbra.

Nem queria sequer pensar na sua ausência, que ia estar na França durante um mês! Como o mundo era pequeno, como facilmente tinha virado cento e oitenta graus! Ontem flor inundada de lama, hoje a jóia mais desejada, a pétala mais pura e perfumada que jamais viu no mais nobre e belo jardim.

- Olá amigo Eduardo, esta aqui o elevador, quer ir para cima?

Era estranho, contrariamente ao habitual, chegara até ali sem que o porteiro, sem que ninguém lhe falasse.

- Sim, já agora aproveito a boleia.

Não menos estranho era o facto do elevador ir praticamente superlotado e não se ouvir por ali uma fala, e, os colegas se esforçarem por não lhe tocar, nem sequer nas abas do casaco, o que estava em absoluto contraste com o habitual, com a sua avidez de ouvir e de saber.

Nos diversos e rápidos pensamentos que lhe passaram pelo cérebro, optou por aquele que lhe sugeria a calma e a prática das suas ideias. Quanto ao silêncio, e considerando a forma como se apresentava, quis compreendê-lo sintoma de respeito em vez de rejeição ou desprezo. De qualquer maneira, por aquela situação ser totalmente contrária aos seus princípios, esteve para "quebrar o protocolo" e trocar conversa, pelo menos com a pessoa que o havia convidado para tomar o elevador, só que nem sequer tinha fixado quem era.

- Senhor Eduardo estou aqui à sua espera!

As portas do ascensor mal tinham começado a abrir-se e como havia ela...

Olá D. Estrela, muito obrigado, como soube que eu vinha aqui?

- Foi o senhor Costa que me telefonou.

Também esta atitude envolvia duas faces: uma de quebrar o gelo que Eduardo vinha sentindo desde que entrara na empresa, outra o manifesto de uma preocupação que o porteiro nunca tivera. Eduardo ainda tentou fazer a análise desses factos, só que a Estrela interrompeu-o:

- Então como se deu lá por Coimbra?

- Mal Estrela, mal. Muita gente chata, recluso no hotel sem sequer ter tempo para visitar a Sé Velha, nem para comer, somente que fosse um pastelinho de Santa Clara.

- Oh, mas isso é demais, senhor Eduardo.

A voz e a expressão da Estrela, independentemente do sentimento, eram reveladoras de boa disposição, o que agradava e aumentava a sua ansiedade.

- Não deixa de ter alguma razão, Estrela, mas enfim... E por cá como decorreram as coisas?

- Bem e mal. O doutor anda fulo, nem queira saber como ele anda!

Eduardo ia para se aproximar a fim de a ouvir melhor, viver mais de perto as novidades, só que o facto dela de repente se ter calado e dado dois suspiros "falantes" revelou-lhe que alguém indesejado à conversa se aproximava:

- Então rapaz, bom-dia, deste-te bem lá por Coimbra? Sabes que conheço aquela cidade como as minhas mãos?

Abelhudo, balbuciou Eduardo para consigo. Vens com falinhas mansas mas com os bolsos repletos de metralhadoras, e não me deste tempo sequer para me munir... Só que um dos principais deveres do bom guerrilheiro é estar sempre preparado para fazer frente às milhentas estratégias do adversário.

Não, não sabia, doutor !

- Foi lá que tirei o meu curso, e todos os dias fazia cinco quilómetros a pé para poupar o dinheirinho para os livros. Outros tempos, outros tempos! Bem, mas correram bem as coisas não é verdade?

- Nem por isso, senhor doutor...

- Olha, mas ninguém diria, vens com um óptimo aspecto.

desta vez Eduardo não respondeu, ficou espectante, esperando que lhe falasse no trabalho, só que ele, tal como chegara, abandonou inesperadamente o gabinete.

- Como ele saíu, e enquanto não volta, vou continuando senhor Eduardo: por cá as coisas não correram assim tão mal como isso.

Eduardo encontrava-se no meio do gabinete defronte da porta. Por estrategicamente não ser o melhor sitio... foi sentar-se à secretária.

- Folgo muito com isso, mas conte, conte-me lá.

- Olhe, o mais difícil foi aturar os "apalpadores"...

- Então?

- Na sexta-feira só apanharam dois empregados. Não queira saber, eles quase que esfolavam, quase que viravam as pessoas de pernas para o ar à procura das coisas, só que não encontravam nada.

Estava boquiaberto, e para se certificar melhor do que ela ia dizendo, Eduardo pousou os cotovelos sobre a secretária e apoiou a cabeça nas mãos semi-fechadas.

- Não me diga, Estrela!

- Mas mesmo esses dois que foram apanhados afirmam que não roubaram nada, que foram eles que lhe meteram no bolso.

- Bem, pelos vistos...

Não queira saber, isto foi de partir o coco.

O quadro começava a definir-se, e enquanto ela sorria, dava mesmo gargalhadas, ele continuava sentado, mas agora muito concentrado e pensativo. Analisando bem, as atitudes dos "apalpadores" não o preocupavam muito, agora a alteração do comportamento dos trabalhadores, essa sim, tinha de ser bem, mesmo muito bem analisada. Seria que era consciente, ou meramente estratégica!

 

- Então amigo Eduardo, amanhã lá estamos?

- Acha que sim?

O senhor Victor deu um salto e empertigou-se como um perú.

- Como, não estou a perceber! Então o senhor pede-nos para avisarmos os trabalhadores para a reunião, e agora...

- Calma meu amigo, é precisa muita calma.

Aquele chefe de secção, um dos quais a quem o Eduardo havia solicitado apoio, estava a ficar vermelho e com cara de poucos amigos. Eduardo apercebeu-se disso. Então levantou-se calmamente e com ar de satisfação foi ao encontro dele, apertar-lhe a mão.

- Ó Eduardo, não me venha agora com coisas!

- Ó senhor Victor vamos lá com calma. Como vê, acabo de chegar...

- Desculpe lá, mas não é bem assim. O patrão ainda agora daqui saiu, espero bem que...

- Senhor Victor, senhor Victor! Disse Eduardo esboçando uma pequena gargalhada, ele entrou, mas saiu logo! Neste momento estava precisamente a perguntar à D. Estrela como haviam corrido as coisas...

- E ela, e ela o que é que lhe disse?

- Nada, ainda não teve tempo de me dizer nada!

Então é assim. Os trabalhadores estão a portar-se bem, estão a cumprir o que nós e os chefes lhes pedimos, e está tudo mobilizado para a reunião, onde pensamos também falar da futura comissão. Só que... - O senhor Victor virou a cabeça, olhou para o lado de fora do gabinete - só que o Xerife parece que não quer a reunião...

- Não quer, vamos lá ver se quer se não quer!

- Isso mesmo amigo Eduardo, os chefes todos estão consigo, e os trabalhadores também.

- Então que é isto aqui?

O patrão nem dera tempo para nada, surgira como um relâmpago. Havia que ser engenhoso, mudar o rumo à conversa.

- Foi aqui o senhor Eduardo que me pediu para eu lhe escolher dois pares de calças e duas camisas e vim precisamente perguntar-lhe qual é a cor e o tamanho.

- E já trataram disso?

- Já, já senhor doutor. Então até logo senhor Eduardo.

- Até logo e muito obrigado senhor Victor.

- Há pouco tive de sair à pressa, lembrei-me que tinha um assunto urgente para tratar. Olha lá rapaz, que história é essa da reunião para amanhã!

A pergunta fora feita praticamente de chofre. Porém, se fosse antes teria deixado Eduardo mais embaraçado, mas depois da conversa com a Estrela e com o senhor Victor, a surpresa não foi nenhuma, antes pelo contrário.

- Ia mesmo agora dirigir-me ao seu gabinete para falar disso ao senhor doutor.

- Adiante, adiante, que coisa de reunião é essa?

- Então, é a reunião que eu falei ao senhor doutor quando vim aqui para este gabinete. Como disse, há necessidade de falar com o pessoal...

- Mas isso já está ultrapassado. Não sei se já tens conhecimento que eles já estão a modificar-se. Na sexta-feira já só houve dois roubos e no sábado parece que só houve um.

O doutor andava de lado para lado, enquanto o Eduardo se mantinha de pé, parado junto da secretária.

- Parece que sim.

- Então pronto, já não é preciso reunião nenhuma. Sei que falaste com os chefes, o que acho que foi um bom trabalho e agora é só uma questão de tempo.

- Então doutor, sendo assim posso ir para o escritório.

- Como, que dizes?!

- Se o doutor diz que já está tudo bem...

A Estrela teve de pôr a mão na boca e baixar-se para disfarçar uma gargalhada, enquanto o doutor mais parecia um camaleão, tal era a rapidez com que mudava a cor da tez.

- Não disse nada disso. Por favor não inventes!

- Então doutor vamos lá a ver. As coisas sofreram alteração não foi por milagre, foi um trabalho que iniciei...

- Sim, falaste com os chefes e agora vamos dar tempo ao tempo.

- Não pode ser assim, doutor. Eu de facto falei com os chefes, eles falaram com os trabalhadores e existe um compromisso para a reunião amanhã.

- Compromisso, que compromisso é esse!?

- De falarmos todos.

- Quer dizer, isto já é tudo vosso!

- Não se trata disso doutor. A casa é do senhor. Mas a vergonha é de nós todos.

- Repete lá isso, repete lá isso!

- A vergonha é daqueles que roubam. Mas também é minha ao fazê-los ir para a rua, ao fazê-los perder o emprego por causa de um botão, somente de um simples botão, doutor!

- Pois que os leve o diabo, quem suja as mãos por um tostão, também as suja por um milhão.

É verdade doutor, isso é verdade. Só que uma coisa é dizer-lhes olhos nos olhos que quem tirar esse botão vai mesmo para a rua, e não venham depois chorar, pedir-me desculpa, outra coisa é não falar com eles em conjunto e eles pensarem que não são apanhados. E, para além de tudo, quero ter a minha consciência livre. E quero que a casa cresça, que aumente a sua credibilidade no mercado.

- Mas eles já estão a emendar-se.

- Não pense nisso doutor. Eles estão a experimentar-nos, a ver se não fazemos nada, para depois continuarem.

- Pronto, és capaz de ter razão. Só que para mim eles já te deram a volta à cabeça!

- Não se trata disso doutor, mas apenas de querer exercer as funções de que o senhor me incumbiu o melhor que posso e sei. Os frutos já estão na verdade a aparecer, mas muito ligeiramente, de forma muito fugaz. Vai ser preciso falar-lhes, dizer-lhes as verdades sem pejo.

- E já agora, podes dizer-me onde pensas fazer a reunião!

- Esse era outro dos assuntos que queria colocar ao senhor doutor...

- Mas já deves ter alguma ideia.

- Sim, tenho.

- Espero que não seja no armazém, nem pelos corredores!

- O doutor, ainda assim, tão depressa me elogia como me deita por terra!

- Bem, bem adiante, adiante.

- Como os trabalhadores não devem andar por aí, pelas secções depois da hora, pensei fazê-la lá em cima no terraço, onde é só entrar e sair do elevador.

O doutor continuava a andar de lado para lado, só parava para ouvir e dar resposta ao Eduardo.

- Bem, eu vou amadurecer o assunto e amanhã voltamos a falar. De qualquer maneira, não penso cortar-te as asas, mas também não quero ser um pássaro morto.

Eduardo ia para continuar, porém o doutor saiu do gabinete, deixando-o pensativo na mesma posição. Analisando bem toda a conversa, não se tinha portado mal, antes pelo contrário, tinha gostado muito de si. Afinal ainda haviam sobrado armas ao guerrilheiro...

- Senhor Eduardo desculpe lá, eu fui ali...

Vinha meio ofegante e com um certo ar de comprometida.

- Estrelinha, Estrelinha, que anda a menina a fazer, deve ser coisa boa concerteza!

O telefone tocou:

- Atendo eu ou o senhor?

- Posso atender eu. Estou?

- Amigo Eduardo...

- Ora viva senhor Victor! Vem dizer-me que já escolheu as camisas e as calças!

- Cale-se lá, cale-se lá.

- Foi admirável, amigo Victor, foi mesmo admirável a forma como nos desenrascou.

- Não, nada disso, admirável foi o meu amigo agora aí com ele.

- O quê, não esteja armado em bruxo!

- Não é nada disso, não se esqueça que as paredes têm ouvidos.

Têm sim senhor, mas não são de "pedra"!...

 

- Ai senhor Eduardo que alívio, nunca mais nos apanhávamos cá fora!

A Estrela parecia um vulcãozinho ávido de soltar as lavas. Ia de tal forma agarrada ao braço do Eduardo que quase impedia que ele desse um passo. A maneira como metia as coxas por ele dentro, parecia mais querer encostá-lo à parede do que deixá-lo seguir o caminho.

- Então porquê?

Estrela afastou-se um pouco para olhar para trás, certificar-se da distância a que se encontravam da empresa e se vinha alguém conhecido por perto.

- Ai senhor Eduardo, não calcula o quanto eu gostei de ouvi-lo! Acredite que só não o fui abraçar muito profundamente porque ele estava lá.

Eduardo sabia bem a quem ela se queria referir, porém fez-se de novas.

- Mas ele quem?

- Ora quem é que há-de ser, o doutor. O senhor cantou-lhas ali, trocou-lhe as voltas que foi um regalo! Nem queira saber, ele não parava um minuto, e olhava para si cá duma maneira que mais parecia querer comê-lo do que outra coisa! E, quando o senhor lhe disse que voltava para o escritório! Os olhos dele pareciam relâmpagos de Maio com trovoada e tudo!

Quem não a conhecesse podia retrair-se, pensar que era pessoa de levar e trazer. Eduardo já a tinha estudado bem, sabia que ela estava do seu lado. Aliás se não tivesse a certeza bastava a sua expressão, a ansiedade com que falava e a transpiração do corpo, sobretudo das mãos, para o confirmar.

Era uma hastezinha ainda a desflorar, havia que usar a seiva no tempo e com o tempero adequado:

- A Estrela está a ser extremamente gentil para comigo, não sabe como lhe agradeço essa simpatia.

- Então, é verdade. Como tal não posso dizer outra coisa.

Toda ela irradiava calor, e o gingar do corpo manifestava tal satisfação que tinha de dizer tudo.

- Olhe, quer saber o que é que ele fez?

Estavam ao fundo da rua do Carmo, ela puxou Eduardo para a Primeiro de Dezembro, uma rua mais sossegada e menos frequentada, encostou-o à parede, pôs-se na sua frente, totalmente colada e com as mãos um pouco perdidas pelo corpo dele.

- Chamou-me ao gabinete dele e disse-me que queria saber tudo o que se passava lá onde nós estamos!

- Não me diga!...

- É verdade, acredite que é verdade. E também me perguntou se eu sabia a conversa que você havia tido com os chefes.

Não lhe estava a dizer nada de novo a respeito do patrão, no entanto tudo aquilo era prova de confiança, e ao cabo e ao resto pormenores que lhe interessava saber, só que o tempo...

- É um traste, esse cavalheiro, temos que estar a pau!

Eduardo tentava andar, desamarrar-se um pouco. A Catarina esperava-o. Só que ela não desistia:

- Ah, sim, sim. Mas sabe, senhor Eduardo os chefes estão do nosso lado.

- Sim, o senhor Victor...

- Oh, esse é dos bons, mas há mais.

- Sim, sim, concordo consigo.

E, a conversa nunca mais tinha fim. A seguir ia dizer-lhe por certo que, quando ele estava a falar com o patrão, tinha ido informar os chefes da conversa, etc. etc. Só que a Catarina...

- Estrela, eu vou pedir-lhe muita desculpa, mas temos de continuar amanhã. A minha filha espera-me. Estivemos separados durante estes dias que passei em Coimbra e combinei com ela para resolvermos umas coisas da escola.

- Ah, pois é, pois é!

Ficara mesmo desiludida... mas tinha que ser assim. Porém, havia que compôr o ramalhete, continuar a segurar a presa... agarrou-lhe os ombros, aproximou a cabeça da dela, e muito delicadamente, para além de lhe dar um terno beijo, disse-lhe com voz suave:

- Estrela desculpe-me, sim? Muito obrigado por tudo. E prometo-lhe, amanhã vamos beber um café e continuamos.

Amanhã temos a reunião, não se esqueça!

 

Àquela hora, as nuvens punham as suas faixas avermelhadas para se despedir do astro rei, enquanto as luzes se iam timidamente colorindo para dar as boas-vindas ao já bem visível crepúsculo da noite.

O trânsito como era habitual estava um pandemónio. Situação ainda agravada pela calma exagerada do taxista, que era daqueles que parava antes da ordem dos sinais e aguardava tranquilamente que os carros descarregassem fora de mão e que os peões quase apanhassem moscas fora das passadeiras.

Eduardo não parava: consultava frequentemente o relógio, mexia-se no banco, esfregava a barba, enfim, sintomas de certo nervosismo.

- Vou extremamente atrasado, o senhor por favor não podia acelerar um pouco?

- Isso também eu queria, mas só se passar por cima deles.

Foram as únicas palavras que o taxista dissera, e, ainda por cima aos berros, pelo que não adiantava dizer-lhe mais nada.

Já era noite dentro quando chegaram junto da casa da Catarina. Eduardo mal tinha recebido a factura e fechado a porta quando ela se aproximou:

- Já me dói o pescoço e as pernas de tanto olhar através da janela!

- Desculpa amor, estive a tratar de coisas lá do serviço.

Não tem importância Eduardo, estava apenas a brincar. Vamos?

- Mas não era para irmos ao restaurante?

Era, mas não vamos...

- Então, porquê!

- Porque ficamos aqui na minha casa, ou não quer!

Tinham já ultrapassado as portas, encontravam-se junto do sofá. Catarina largou-o e ia para escapar-se-lhe. Só que Eduardo atirou com a pasta, agarrou-a fortemente pela cintura, puxou-a para si e balbuciou-lhe ao ouvido:

- Então não quero. Haverá coisa mais apetecível do que estar a sós com a flor mais bonita do mundo!

A cabeça dela pousou-lhe docemente sobre o peito, e enquanto os braços lhe enlaçavam o pescoço, ele puxou-a ainda mais para si e beijou-a. Eduardo queria dar lugar a mais carícias, emoldurar aquele gesto com a presença de mais calor, só que ela, naquele momento, estava com outras preocupações:

Espera um pouco Eduardo. Se quiseres podes sentar-te. Eu vou só à cozinha e venho já ter contigo.

A sala estava toda ela linda, com grande destaque para a música de fundo e para a mesa oval situada ao meio, coberta com uma toalha creme muito rendada, por um centro magnificamente trabalhado e por dois castiçais dourados com velas azuis e cor de rosa.

- Ouviste Eduardo, porque não te sentas?

O aroma que existia por ali era bastante e suficiente para o deixar boquiaberto, para se esquecer de ocupar o lugar no sofá situado ali mesmo ao seu lado, só que havia ainda outra razão essencial para não o fazer:

- Porque o sofá é para duas pessoas!

Catarina andava de lado para lado. E quase que dando um salto:

- Pronto, já cá estou.

Eduardo, antes de, agora sim tomar lugar ao seu lado, abriu a pasta e tirou-lhe de dentro um pequeno embrulho.

O ambiente era agradabilíssimo, porém, ele para o tornar ainda mais propício idealizou os bailarinos para a bela adormecida que por ali se ouvia interpretada por orquestra, violinos e piano. E, quando a coreografia e os acordes o começaram a tolher, sentou-se e pousou delicadamente no colo de Catarina o embrulho. As mãos dela pareciam ter íman , tão grande foi a rapidez com que começaram a rasgar o papel e a acariciar a caixa de vidro transparente e a orquídea que tinha dentro.

O silêncio pairou momentaneamente por ali. Catarina queria saborear em plena interiorização todo o céu azul que envolvia aquela primeira dádiva material.

- É linda, meu querido! Disse-lhe com voz pausada e ofegante, ao mesmo tempo que o abraçava comovidamente.

- Gostas?

- Muito, muito, vou levá-la comigo para França.

- Tem assim tanto valor essa simples orquídea!

- Eduardo há coisas e momentos que nos dão tal prazer que o nosso desejo é que não terminem nunca. O sol que deixam dentro de nós é de tal maneira vivo e quente que nos faz sentir envoltos em banhos de bálsamo, sorrisos de papoilas e nuvens de prata onde a vida nos mobiliza e mostra o verdadeiro ninho da solidariedade e do amor.

- Mas é uma simples flor!

- Um maravilhoso tesouro que consegue transformar tudo, encher-nos de beleza e expulsar as dúvidas e inseguranças que malevolamente se arrastam dentro de nós.

- Depende dos momentos, não?

Dos momentos e das pessoas. Sabes bem que tudo é subjectivo, e que a grandeza nem sempre é medida pelo tamanho nem pelo valor.

Quantas vezes pensam que nos dão o melhor que há no mundo, e para nós não tem nenhum significado, enquanto outras vezes pensam que nos dão algo sem importância e nos enchem o coração.

Ia para agradecer-lhe com beijos. Só que no ar começou a surgir um ligeiro cheiro a queimado que obrigou Catarina a correr para a cozinha.

Ele, que já vinha notando a transformação do odor e, só não alertara por o ter identificado e estar deliciado a ouvi-la e, querer coroar com carícias aquele momento, não teve outra alternativa senão segui-la de imediato e quedar-se de pé entre a porta.

- Precisas de alguma ajuda?

- Ai Eduardo, que tristeza, não temos jantar!

- O comer não tem importância Catarina, o pior foi esse maldito lume nos ter interrompido!

Ela não parava: andava apressadamente de lado para lado, abria e fechava a torneira da água, dava voltas e mais voltas a um pequeno recipiente que tinha em cima do fogão, enfim, até que se aproximou dele, o envolveu pela cintura e disse:

- Com que então, seu maroto, não tem importância o meu comerzinho!

- Não é isso...

Eu sei, eu sei, não se estragou nada de importante, apenas um docezito que estava a fazer.

Eduardo pousou-lhe o braço sobre os ombros e seguiram agarrados novamente para o sofá, onde ele queria continuar a conversa e emoldurá-la com carícias. Só que ela:

- Agora, vou servir um aperitivozinho, e o meu menino vai ficar aqui sossegadinho um pedacito a saboreá-lo para eu poder tratar ali dumas coisitas, está bem?

Enquanto Eduardo beberricava gole após gole o seu moscatel preferido, Catarina ia compondo a mesa: dois conjuntos de três pratos, talheres para peixe e carne, copos de cristal para água, vinho branco e tinto e um guardanapo de linho, frente a frente ao lado do "sui generis" e bem trabalhado centro de mesa e ao meio dos castiçais.

Depois, trouxe e colocou dentro do primeiro prato duas magníficas taças de vidro altas e bojudas cheias de saboroso e requintado cocktail de lagosta; trouxe um balde com gelo onde meteu uma garrafa reserva de vinho branco alentejano; acendeu as velas, apagou a luz e foi buscar Eduardo.

- Olha querido, tens de desculpar-me, eu não sou grande cozinheira!

- Sim, sim, eu sei bem como é.

Após ter-se sentado e aconchegado na cadeira, Eduardo concentrou-se: o ligeiríssimo aroma a cera queimada, a sexta sinfonia de Choupin que ouvia em fundo e o requinte de toda a mesa, transportara-o a uma magnífica ilha batida pelo mar calmo, por ondas de espuma onde lindos golfinhos saltavam e sorriam de contentamento.

Depois, agarrou no talher e saboreou uma rodela do precioso marisco envolvida por mostarda, manteiga, pimenta e fiozinhos de cenoura ralada. Pousou o talher, as mãos semiabertas ao lado do prato em cima da toalha, e murmurou:

- Está delicioso Catarina, abençoado o momento em que decidiste que ficássemos aqui. Não há ninguém que fizesse tudo isto melhor do que está.

Simpatia tua, Eduardo.

Nada disso Catarina. Quando há pouco disse que o comer não era importante, estava longe, mesmo muito, muito longe de gozar o prazer desta profunda vivência. Sinto estrelas pousarem sobre a minha cabeça e vias lácteas abrirem-se aqui na nossa frente, a largarem doces pajens para te agradecer tanta virtude e gentileza.

- Faço-o com gosto, com imenso gosto porque te amo muito!

Ia para falar, para lhe dizer como foi possível viver tantos anos, uma eternidade sem a ter conhecido! Porém, ela manifestou outras preocupações:

- Eduardo, mas agora come. Estás tão pensativo e ainda nem sequer provaste o vinho!

- Pois é Catarina, ainda não partiste e as saudades...

- Eduardo, amanhã temos tempo de falar nisso. Nunca ouviste dizer que pensar em duas coisas ao mesmo tempo tira o sabor e a profundidade do resultado final a ambas?

- Sim!

- Sim senhora. Por isso é que quero que comas. Daqui a pouco o que tenho lá dentro está frio, sem graça nenhuma!

- Mais comida do que esta Catarina!

- Sim, sim...

- Quer dizer que não saio daqui hoje!

- Exactamente, meu querido. Depois de Coimbra, esta passou a ser a nossa casa.

 

A partida de Catarina para França era às treze horas. Depois de a ter acompanhado, Eduardo despediu-se dela na sala de embarque e foi aguardar na varanda situada no exterior que o avião levantasse.

Nunca o tempo foi tão madrasto! A varanda estava repleta de pessoas de todas as idades. As manifestações por ali eram praticamente tão diversas como as roupas que envergavam: a ansiedade, sorrisos e boa disposição provinham logicamente daqueles que aguardavam o regresso de entes queridos, enquanto a tristeza e o choro eram mais daqueles que aguardavam desses a partida. E, ainda havia aqueles, como era o caso do Eduardo, que exteriormente pareciam uma estátua e interiormente um rio gelado. Nunca se sentira tão sozinho! Aquela ausência acontecia na pior altura, no melhor da sua Primavera. Nem a despedida da ida para África o fizera sofrer tanto! Por mais voltas que desse, por mais exercícios mentais que fizesse não conseguia sequer antecipar a chegada, para assim minimizar a comoção da partida.

Quando a meio da tarde, Eduardo chegou à empresa, foi como um regato de água num milheiral ressequido. Toda a gente ansiava a sua chegada:

- Ó amigo Eduardo seja benvindo! Até que enfim!

- Tive de tratar de uns assuntos urgentes.

Vá lá, venha, venha depressa, eu levo-o. A Estrela coitada está sem saber o que há-de fazer à vida!

O senhor Costa quase o levava de arrojo! Quase não permitia que os colegas o cumprimentassem.

O ambiente por ali estava na verdade diferente. Desta vez Eduardo definia-o bem: adulterado onde se sentia ansiedade e alguma perplexidade; enfraquecido nas gotas de desespero, onde ainda assim não existia o perigo de combustão...

- Pronto menina, aqui tem o senhor.

Desta vez o porteiro tinha feito questão em levá-lo até ao seu gabinete.

- Ai, senhor Eduardo!...

- Diga lá Estrela, passou-se alguma coisa de anormal?

- Conforme se levantara da cadeira ali ficara especada junto da secretária, apenas o semblante se alterara. Estava mais vermelha do que um beribéri.

- Não, não senhor Eduardo, estava apenas preocupada, não lhe tivesse acontecido alguma coisa de grave!

- Felizmente não. Demorei-me mais do que pensava na escola da minha filha.

- Ah, pois! Quem tem perguntado por si é o senhor Victor.

- E, o patrão, não?

- Não, esse não. Parece que ainda hoje não saiu da toca...

- Sim senhor fez ele muito bem.

- Quem telefonou para si foi aquela doutora do Conselho Nacional de Reabilitação.

Disse Ter urgência em falar consigo e, deixou o número do telefone directo.

- Está bem, logo falo-lhe. Não me está a apetecer nada ir à cabine.

- Experimente pedir a chamada à telefonista.

Não Estrela, se ela não está autorizada a fazer chamadas para os trabalhadores, não devemos forçar.

Ó, deixe isso comigo.

- Ora viva mister Eduardo!

- Como está o senhor Victor, passou bem?

- Não muito bem. O senhor não queira saber, o pessoal está para aí todo em pulgas!

- Sim, então porquê!

- Então porquê! Afinal como é? Olhe que está tudo mobilizado!

- É verdade é, senhor Eduardo. Olhe que até os "apalpadores" lá vão estar!

- Não me diga, Estrela!

- Sim, sim, dizem que estão com medo de perder o emprego.

- Coitados.

Eduardo ficara perplexo e pensativo. O mar tinha galgado as rochas, encontrando-se agora desencapelado, com o caminho livre à sua frente. Havia que ser prudente para que não galgasse a margem, para que não provocasse estragos.

- Mas, ó amigo Eduardo, afinal em que é que ficamos?!

- Em que é que ficamos! Pela minha parte tudo bem. Quero vê-los a todos lá em cima.

- Não tenha dúvidas amigo, às sete lá estaremos.

Eduardo sentou-se à secretária, com a intenção de resolver alguns assuntos. Só que o cérebro trocou-lhe as voltas. No pensamento apareceram-lhe as imagens do aeroporto, da varanda, das pessoas, do trabalhar do avião. Onde estaria Catarina àquela hora! Lembrou-se do jantar, da noite, da despedida... e que saudades sentia! O corpo dele assemelhava-se a uma cascata onde cristalinos deslizavam os beijos, os afagos, todas as carícias de Catarina. Parecia estar a ouvi-la: "Depois de Coimbra, esta passou a ser a nossa casa." Nem a preocupação da reunião a fazia esquecer. Uma sombra esculpia-a ali ao seu lado...

- Senhor Eduardo é para si.

- Como?

- O telefone, é para si, é a chamada para o Conselho..

Tal era a concentração, que nem o tinha ouvido!

- O quê? Conseguiu?

- Só não consigo a sorte grande...

- Também não vale a pena forçar, olhe que quem tem sorte ao jogo... Estou, ligue-me por favor à Doutora Filomena.

- A Doutora já saiu. Foi para uma reunião. Agora só amanhã.

- Muito obrigado, passarei por aí então amanhã.

- Como já falta pouco tempo. O senhor Eduardo por acaso não quer ir lá acima ver como está o terraço?

Não parava, não podia estar quieta. A Estrela chegava a dar saltos, com visões do patrão a entrar por ali adentro a ameaçá-los.

- Penso que não é necessário. A Estrela já lá foi, não é verdade?

- Sim, sim, já o arrumei o melhor que pude.

- Eu sabia. Você é uma jóia, é precisamente por confiar em si que não vale a pena lá ir.

- Nem ao menos quer ir beber um café!

- Também não, Estrela.

Não queria mesmo sair dali. Contrariamente, desejava mesmo receber ali o patrão, caso ele aparecesse.

A Estrela não tirava o olhar de cima dele. Estava espantadíssima com a sua calma.

- O senhor Eduardo não está nervoso, pois não?

- Nervoso porquê, Estrela?

Ai, eu então, parece que tudo me treme cá por dentro!

Compreendo-a, comprendo-a muito bem. A menina foi metida nesta alhada toda, enquanto eu o estou a fazer porque quero, por convicção. Por isso não admira que os nossos estados sejam diferentes. Mas esteja calma que tudo vai correr bem.

- Ai, eu só tinha medo que o senhor não viesse! Acredite que se isso acontecesse eu desaparecia, fugia daqui para sempre.

- Nunca faria isso Estrela. Não tenho razões de queixa de ninguém, mas, caso as tivesse, nunca a abandonaria. A sua dedicação e entrega a esta causa merece-me o maior respeito e consideração.

- Então como é, o pessoal já está a juntar-se lá em cima!

- Ó, senhor Victor, confesso que nem ouvi a campainha. Mas é só vestir o casaco e fechar a porta.

Eduardo ia acompanhado pela Estrela, ela fazia questão de não o largar. Depois de sair do elevador e enquanto subia as escadas de acesso ao terraço, o barulho por lá era intenso. Parecia uma feira sem música e sem altifalantes. Mas quando se aproximou da porta tudo se calou.

Eduardo não gostava do silêncio. Lembrava-lhe a morte, talvez a única coisa que desprezava. Por isso até a escrever o expulsava com a sua música clássica preferida.

Ao chegar à mesa, Eduardo ouviu uma calorosa salva de palmas que o fizeram estremecer. Apeteceu-lhe levantar os braços, dizer-lhes que não lhe batessem palmas. Contudo, elas tinham o mérito de quebrar o silêncio que já o estava a arrepiar, e, de lhe dar a ideia da grande moldura humana que ali se encontrava.

Primeiramente, agradeceu a presença de todos e disse a razão e o porquê de estarem ali, frisando que não era uma reunião para acusar ninguém, inclusive o patrão. Depois chamou a atenção de cada um para a responsabilidade dos seus actos e que a partir daquele momento não viessem chorar, nem diluirem-se em pedidos de desculpa, solicitando-lhes encarecidamente, entre outras coisas, que defendessem com honra o seu campo de trabalho e não o obrigassem a ser carrasco. Enfim, expôs as suas ideias, fez apelos, sendo bastantes vezes aplaudido. Por último, e, para manter vivo o espírito e cumprir um dos objectivos daquela reunião, elegeu, com a votação de todos, a comissão representativa que a partir dali ia ter à sua responsabilidade a defesa dos trabalhadores.

 

A manhã estava algo cinzenta e húmida. O sol, ao mesmo tempo que com grande esforço decepava o nevoeiro, ia descarregando das folhas das árvores as gotas de água fazendo disparar sobre o solo enormes pingos que mais pareciam pedaços de chumbo, tal a forma como penetravam na terra solta e ressequida. Para descontrair e se libertar da tensão que em si tinham deixado os acontecimentos dos últimos dias, Eduardo, ao sair de casa, decidiu caminhar um pouco:

Ao entrar no passeio quase ia pisando um gato preto que pachorrentamente saboreava uma réstia de sol; um pouco mais adiante, um melro, parecendo saudá-lo, exibia maravilhosos acordes de flauta audíveis a considerável distância, parecendo porém pouco receptivo a algumas centenas de pardais que num cipreste se envolviam em grande e aparentemente complicado delírio. Com a febre com que admirava a natureza, e depois daquela riqueza de contrastes, pouco mais, para não dizer nada mais seria necessário para se sentir aliviado e elogiar a decisão de ir a pé.

Ao passar junto do café onde normalmente aos fins-de-semana ia tomar o pequeno almoço, entrou:

- Muito bom-dia. É o costume, não é verdade senhor Eduardo?

- É sim, se faz favor.

De imediato uma senhora de meia idade que trajava uma bata castanha e calçava uma espécie de socas de sola e madeira, pousou sobre a mesa uma garrafa de água sem gás, uma torta de pão-de-ló e uma bica cheia.

- Aquilo é que foi um show, han ?!

- Eduardo quase não queria acreditar, o senhor Victor puxava uma cadeira e sentava-se ao seu lado.

- Ó, mas que grande surpresa, meu caro!

- Não sei porquê, já moro aqui no bairro há mais de quinze anos.

- Como nunca nos encontrámos por aqui!

- Não calhou, não calhou. Então, acha que o homem vai aceitar a comissão?

- Que remédio tem ele, é da lei...

Vamos lá a ver, vamos lá a ver. O pessoal gostou muito de o ouvir, olhe que houve até quem chorasse.

- azar o deles. Por mim, não fiz mais que a minha obrigação. Agora só espero que o senhor e os seus colegas eleitos façam bom trabalho.

- Sabe amigo Eduardo, foi uma pena, foi mesmo uma grande pena o senhor não ter aceite ficar na comissão!

Era impossível amigo Victor, eu não tenho tempo nem para me coçar...

- Pois, compreendo. Mas o pessoal tem um grande respeito por si, e a sua experiência é uma grande arma.

Ninguém nasce ensinado, amigo Victor. E, tal como disse, dentro das minhas possibilidades, contem com o que estiver ao meu alcance.

Colocou o dinheiro da despesa em cima da mesa e levantou-se:

- Bem senhor Victor...

- Espere aí só um segundo, eu vou também.

- Obrigado amiga, mas não vou já para a empresa.

O táxi que Eduardo apanhou na praça arrancou com grande velocidade, só que alguns metros antes do aeroporto, e derivado aos engarrafamentos provocados pela falta de escoamento do trânsito na rotunda do relógio, entrou no pára-arranca, voltando de novo à velocidade, livres que estavam as Avenidas Gago Coutinho, Estados Unidos, República e rua Marquês de Tomar:

- O senhor desculpe, disse-me que queria ir para a Visconde de Valmor, não é verdade?

- Não, não. Disse Conde Valbom.

Era uma confusão bastante comum entre os taxistas. Tratavam-se de duas ruas quase contíguas, cujos nomes, embora diferentes, tinham tendência a confundirem-se.

- Pronto, já cá estamos.

O taxista conduziu Eduardo até à porta.

- Faça favor de dizer.

- Pretendo falar com a Dra. Filomena.

- Quem devo anunciar?

- Eduardo Oliveira.

Ah, sim, sim, faça favor senhor conselheiro. A Doutora espera-o no terceiro andar.

Enquanto o elevador não chegava, Eduardo ia engenhando uma justificação para a sua ausência da reunião em Coimbra. Decerto que era para isso que o chamavam, aproveitando, porventura, para lhe entregarem a acta e alguma outra documentação.

- Olá senhor Conselheiro, então como vai?

A voz era alegre, cheia de espontaniedade e de vida, nada adequada a raspanetes. Todavia, pelo sim pelo não, a precaução nunca fizera mal a ninguém:

- Um pouco adoentado senhora doutora, um pouco adoentado!

- Adoentado, isso é que é mau, assim não poderá ir à Dinamarca!

- À Dinamarca!? - Exclamou Eduardo pensando que se tratava de uma brincadeira.

- Sim, sim, receber o seu prémio.

Eduardo não entendera bem, no entanto o corpo estremecera-lhe.

- Como, não percebi?

- O senhor não concorreu ao prémio da EUCREA Very Special Arts International?

Tinha ficado à entrada do gabinete da doutora, e ali permanecia. Uma sombra quente começou a percorrer-lhe o corpo inflamando-lhe as faces e a fronte de onde saltavam flocos de rubra chama que pareciam isolá-lo numa cápsula.

- Sim, concorri. - Respondeu tímida e atabalhoadamente.

- Pois é, temos aqui uma comunicação a informar que o senhor é o premiado por Portugal, e, que nesse sentido é convidado para estar no dia doze na Dinamarca, mais propriamente na cidade de Vejle, para receber o seu prémio.

Parecia não estar em si. Sentia-se pregado ao chão e sem palavras. Premiado por Portugal! Não, não era possível!

Devia tratar-se de um sonho, de um profundo sonho...! Não era coisa que caísse do céu, nem lotaria que lhe saísse sem jogar. Tratava-se de um prémio literário, e por essas ondas já iam em quatro os livros por ele escritos. Só que, como tudo decorreu, a surpresa era demasiadamente grande para ser verdade...

- Como faltam só três dias, nós vamos já tratar da viagem. O Eduardo vai sozinho?

- A fogueira continuava ardente dentro de si. Estava a ser tudo tão rápido, tão explosivo que respondia mais por obrigação do que por consciência:

- Em princípio irei acompanhado.

- Então iremos tratar de duas viagens, está bem?

A confirmação actuou como uma sonda que não só o virou do avesso, como o espevitou:

- Bem doutora estou de tal maneira... que não sei que diga!

- Pois, compreendo, coisas destas não acontecem todos os dias: a verdade é que não há tempo a perder. O senhor já tem ideia de quem vai consigo? Precisamos do nome dessa pessoa para marcar a viagem!

- Tenho de pensar. Isto está a ser tudo muito rápido, e por mais sedutor que seja, também se torna paralisante.

Admito perfeitamente. Estamos aqui para o ajudar. Tem aqui uma cópia da carta da EUCREA, e ficamos a aguardar que nos diga rapidamente o nome dessa pessoa, uma vez que temos de reservar os lugares no avião.

 

Eduardo deixou o gabinete da doutora com as pernas e o corpo a tremerem como varas verdes. Não acreditava em milagres, porém, parecia estar perante um. A vida era na verdade uma surpresa permanente! Quantas vezes, após a entrega da candidatura, desejou receber aquela notícia!     Porém, o facto de ter retardado, de só agora a receber, não diminuía a sua expressão, antes pelo contrário, aumentava-a. Só que, como surpresa, e dentro das latitudes que essas provocam, estava a causar-lhe um certo embaraço. Salvo algumas excepções, não era pessoa de lirismos exacerbados, fundamentalmente quando ligados a matérias consigo directamente relacionadas. No entanto aquela notícia fervilhava dentro de si como um vulcão. Ele só não saltava e não subia pelas paredes porque as instalações do Conselho não o inspiravam. Se Catarina estivesse por ali, ou na sua casa, não haveria qualquer espécie de apoplexia, antes um furacão para o levar até ela e comungarem em verdadeira loucura aquele acontecimento. Infelizmente nem o paradeiro dela conhecia, sabia que estava em França, nada mais! Mas tinha que ir comemorar. Não sabia onde nem com quem mas tinha de ir... apesar de tudo, a sua satisfação quase raiava a felicidade..

Já na rua, a pequena brisa que lhe humedecia as faces, provocava a até ali semi-adormecida ansiedade e, espevitava-lhe as ideias:

O Fernando, sim o Fernando, lembrara-se dele. Será que estaria no atelier?

O táxi desta vez fora quase directo e deixára-o mesmo à porta.

- Olá Eduardo, então que te trás por cá?

Vê se adivinhas, ganhas um jantar.

- Foste nomeado administrador da empresa.

- Sempre o mesmo, sempre com o humor inflamado na ponta da língua. Se calhar vou mas é para a rua...

- É verdade, como é que correu aquilo ontem?

Após a dissipação daquelas dúvidas inventadas pela ciumeira do Eduardo, a amizade entre eles não só se mantinha, como estava mais fortalecida. Continuavam a juntar-se e a dialogar.

- Menos mal, fizeram-se os alertas, as mentalizações e elegeu-se a comissão de trabalhadores. Mas, não foi para isso que cá vim.

- Estou à espera.

Eduardo desabotoou o casaco e tirou dum dos bolsos a carta que lhe entregou:

- O que é isto? É para te ler?

- Não, é para tu leres.

O Fernando abriu o envelope e tirou a folha.

- Espera lá, mas isto é da... da EUCREA! O que é que eles querem, deixa lá ver... Eia, parabéns, finalmente!

Quase lhe ia partindo as costelas, tal foi o abraço!

- Obrigado Fernando, este prémio é também um pedaço de ti, se não fosses tu e a Catarina...

- Deixa-te disso, se tu não o tivesses escrito, achas que eles iam premiar o livro em branco? Agora temos é que comemorar.

Afastou-se para voltar logo de seguida com uma garrafa e dois copos:

- Olha, não há champanhe, vai mesmo com vinho tinto. Tchim, tchim, à nossa!

- À nossa, Fernando.

-A Catarina, já te deu notícias?

- Não Fernando, ainda não!

- Mas estás muito tenso, quero-te ver a saltar, a subir pelas paredes! Tu ganhaste um prémio, ouviste Eduardo, tu ganhaste um prémio foste o único premiado por Portugal!

- E isso é para essas atitudes todas?

- Então não é, afinal estavas ou não à espera disso?

- Olha Fernando, sinceramente já não estava. Com isto, não quero dizer-te que estou insensível ao prémio, de modo algum. Porém, daí até subir pelas paredes louco de contentamento, vai uma grande distância...

- Mas é o reconhecimento da tua obra, não compreendes isso?

- Sim Fernando, de certo modo compreendo, claro que compreendo. Só que esse reconhecimento foi no estrangeiro, e felizmente ou infelizmente eu vivo em Portugal.

Precisamente por isso. A partir de hoje, também aqui, neste país, se vai ficar a saber que a cegueira não é impeditiva de se ganharem prémios, neste caso literários.

 

O deserto e a floresta, bem pode dizer-se, têm grandes semelhanças com a nossa vida: tão depressa vivemos repletos de satisfação, como caímos em grande monotonia; tão depressa nos sentimos plenos de energia, mergulhados em profunda actividade, como caímos no vazio, sem nada para fazer...

É claro que tudo tem a sua magia e lugar próprio. A natureza por esse lado é mesmo fértil e completa. Com quanto espanto e beleza observamos uma árvore ou uma planta florida nascida no alto de um penedo, onde aparentemente não há terra nem estrume!

Eduardo não queria de modo algum voltar ao tempo em que calcorreava escadas em busca duma ocupação minimamente rentável. Também, longe de querer insinuar que agora, depois de ser chefe de secção, de ter contribuído para dinamizar e organizar os trabalhadores da empresa e de ter sido premiado, via-se a nadar em águas quentes perfumadas por bálsamos e estrelas... longe disso. A satisfação provinha-lhe apenas de ter encontrado o caminho, de estar a colher alguns frutos do que gostava sinceramente de fazer.

Primeiro prémio para ele e para Portugal, com direito a ir à Dinamarca recebê-lo! Deus meu! Reflectia em busca da tranquilidade que lhe deixasse conscientemente saborear aquela vivência.

Os agrestes carreiros da sua aldeia vieram-lhe então à memória. Percorrera-os a pé, muitas vezes descalço e angustiado sobre o voar bonançoso dos milhafres e ao som da melodia triste dos corvos e das corujas!

Pode parecer pitoresco, mas a verdade é que pensava na sua bicicleta a pedais quando viajava no avião. Há comparações que vale a pena fazerem-se para saborearmos melhor a diferença e compreendermos a evolução. Não podia adivinhar o futuro. Como tal, queria viver aquele acontecimento como único da sua vida, para tirar dele frutos que alimentassem todo o tempo da sua existência.

Em Copenhaga e, pelo que poderia observar por si próprio, só a expressão linguística, os cheiros e o ar mais fresco o levariam a pensar que estaria fora de Lisboa ou de outra cidade qualquer de Portugal: a mesma azáfama, os mesmos ruídos, gritos e multidões.

Depois de entrar no comboio que o levaria a Vejle, e perante o que apercebia e compreendia nas descrições da filha que o acompanhava, aí sim, havia diferença: que asseadas e bem pintadas que estavam as carruagens! Que comodidade proporcionavam as cadeiras! Nem caixas de cartão, nem malas, nem sacos de batatas, nem ovos partidos pelos corredores...! E, quando o comboio a certa altura entrou num batelão, conjuntamente com três irmãos com dez carruagens cada, e nele atravessaram o oceano?!

Eduardo pensou estar a passar pelas brasas, a sonhar, a ouvir histórias da carochinha contadas pela bisavó! Era na verdade demais. A realidade ligou-se então à sua curiosidade e começou a idealizar tudo aquilo. O batelão não era engenhoca por ele desconhecida. tinha até várias recordações, belas vivências quando nele atravessava o Zambeze. Estava nessa altura em Moçambique a cumprir comissão militar. Não havia ponte. Os reconhecimentos sobre a responsabilidade da sua companhia eram as localidades situadas do outro lado do rio. E que peripécias aconteciam nesse pequeno batelão: um dia que havia "porrada" em Caborabassa carregaram-no de mais, levando a que a água o submergisse em algumas partes. Foi então que um crocodilo, dos muitos que infestavam o rio, deitou a boca à perna de um dos negros que o empurravam com uma vara. O rapaz bem gritava, mas ninguém se atreveu a fazer o que quer que fosse para o tirar dos dentes daquele enorme bicharoco, que o matou com o rabo e se banqueteou com ele no fundo do rio. Mas se esse batelão era pequeno, de pouca carga, empurrado por braços e paus, aquele, onde agora se encontrava que servia de caminho a comboios e atravessava o oceano, como seria?

- Pai é um monstro, eu nunca vi nada assim! Daqui não se vislumbra o fim, lá para cima tem três andares. Anda, vamos vê-lo!

Do comboio desceram para um patamar de onde, através de um túnel formado pelo intervalo das carruagens, avistavam o mar, e o local onde estavam as máquinas, cujo barulho ensurdecedor chegava até eles; atravessaram uma linha de onde partia uma escada de ferro que ia dar ao primeiro andar: logo ali um restaurante que os cumprimentava com um cheiro nauseabundo. O apetite não era muito, porém, mesmo que a fome apertasse, nem com o nariz tapado o levavam lá. Contíguo, e já com aspecto bem diferente, uma cervejaria e um enorme corredor que desembocava numa escada de caracol que os conduziu ao piso de cima: um andar de luxo destinado à acalmia e ao bem estar: paredes de ferro pintadas de castanho sujo, muitas lâmpadas florescentes e janelas, muitas janelas de vidro de onde se via a imensidão do oceano com navios e muita espuma branca pelo caminho; uma biblioteca, uma discoteca, um parque infantil com empregados para cuidar das crianças enquanto os familiares passeavam por ali, uma cabine telefónica internacional onde, mais uma vez em vão tentou saber alguma coisa de Catarina; e, uma sala-de-estar onde havia alguns borrachinhos arrolhados e meninas preparadas para o engate. Por ali o silêncio era quase absoluto, adequadíssimo ao romantismo e à imaginação. Propício ainda, a que, numa das varandas onde se refrescava com uma bebida e se embriagava com a pura e aromatizada maresia, Eduardo recebesse a visita das suas musas:

 

Suspenso

sobre a espuma branca

azul do mar

rasgando as ondas

como ternas plumas

todo envolto em bruma

em doce magia

vais ligando o mundo

sem pontes

sem maré vazia.

 

Vais fazendo o sonho:

em fogueiras brandas,

em canções dolentes

p'lo monstro cantadas.

Levas:

louras fadas

Príncipes

bem coroados

papinhos de rola

bem acastanhados.

 

Como é bom ver-te

ter-te conhecido.

Quebrares as amarras

ao desconhecido!

 

Quando chegou a Vejle, Eduardo deparou com um tempo de ora chuva ora sol, sempre com frio de rachar. Logo nas camionetas que o aguardavam na estação, tomou conhecimento com os premiados espanhol e italiano. A relação foi de tal maneira bem "baptizada" que não mais se separaram, inclusive na noite.

A filha do Eduardo, conjuntamente com as senhoras espanhola e italiana, ficou no hotel, enquanto os três companheiros foram conhecer um pouco de Vejle: uma pequena cidade de casas baixas com características específicas, como fossem os telhados íngremes e as paredes toscas por causa do escoamento da neve, e que ali serviam essencialmente a habitação e o comércio em geral, com grande preponderância para as casas de "namoro" e bebida.

Embora debaixo de um regime monárquico, na Dinamarca praticava-se o amor livre, pelo que em todos os pubs haviam mulheres, muitas mulheres de todas as idades que tinham como bebida preferida o vinho branco e, de algum modo confundiam o amor livre com a prostituição. Depois de terem entrado em várias casas para observarem o ambiente, quedaram-se naquela que mais os sensibilizou, quer pelo asseio, quer pela ornamentação: Quadros paisagísticos nas paredes, iluminação multicolor com grande preponderância para o cristalino, muitas mesas com bancos corridos onde se encontravam mulheres sentadas e um balcão com bancos característicos ocupados maioritariamente por homens.

Mal tinham acabado de entrar e, ainda antes de se sentarem, os três companheiros receberam de imediato a visita de outras tantas jovens louras de pele muito rosada que, com grande engenho e arte se sentaram junto deles e, começaram a meter conversa.

- Do you speak English?

E, depois de terem a confirmação, veio em continuação, qual o país de origem, como se chamavam etc, aumentando gradualmente os gestos tendenciosos e as carícias castigadoras...

Eduardo não era apologista da prostituição. Respeitava mas não praticava. Enquanto os seus companheiros eram precisamente de ideias contrarias, muito especialmente o espanhol. Desde que uma das meninas se sentara nas suas pernas que não mais deixara de a beijar e tactear o corpo, acabando por ir com ela para um quarto contíguo, o mesmo sucedendo um pouco mais tarde com o italiano, tendo porém a preocupação de nunca deixarem o Eduardo sozinho, isto é, sem a presença de um deles, porque companhias havia por ali muitas, com todos os vícios, gostos e feitios.

- Come on, portuguese, it's your turn! - "Então português é a tua vez!"

Eduardo, para além do respeito que tinha por aquelas mulheres, e de não ser capaz de as considerar instrumento, nem servir-se delas, muito menos imediatamente a seguir a outros o terem feito, e ainda por como cego não ir com pessoas desconhecidas, e naquele caso prostitutas, para um lado qualquer, disse sorridente:

- Não dá, já estou borracho.

À gargalhada explosiva resultante de algum álcool e do humor com que Eduardo a envolvera, seguiu-se um certo silêncio, interrompido atrozmente por um estranho e alarmante ruído vindo do lado dos quartos. Inicialmente não houve grande preocupação. Mas, a certa altura, com o aumento da agitação, o Eduardo mostrou-se preocupado, pondo-se imediatamente de pé:

- Calma, calma, não há problema, são lésbicas, tranquilizou o espanhol.

Só que, mal estas palavras eram ditas, a peleja estendeu-se de tal forma que veio até eles: à agitação e aos gritos juntaram-se os murros, as garrafas partidas, as cadeiras pelo ar, uma luta, uma terrível e sangrenta luta a que Eduardo assistia pela primeira vez depois de estar cego.

Os colegas nunca o abandonaram, ajudando-o até a pôr ao alto uma mesa que o resguardava dos vidros, cinzeiros e outros objectos que serviam de arma naquela luta.

- Uf, que alívio! - Exclamou Eduardo quando, trazido pelos colegas e no meio de alguns encontrões, chegou à rua.

Well, very well, faz parte da vida! - Gargalharam os colegas, ao mesmo tempo que esfregavam as mãos e se iam afastando do local.

No outro dia, para não dizer passadas escassas horas, quando aqueles três amigos e as famílias se reencontraram no restaurante para tomarem o pequeno-almoço, a conversa, por estratégia e necessidade, desenrolou-se somente em redor da comida.

A Patrícia era a que mais alimentava esse disfarce. Não sabia por onde começar, tanta era a variedade e a fartura: ovos cozidos, estrelados, mexidos, escalfados; bifes, carne assada, salsichas, chouriço, fiambre, presunto; fruta, queijos de várias qualidades e paladares; pão, sumos, café, etc..

- Pai que é que queres comer? Tens muito, mesmo muito por onde escolher.

Sabia que era assim. Mas, quer fosse por efeitos do serão, quer por força do hábito, Eduardo não fugiu praticamente do habitual, isto é: da água e do café, trocando apenas o bolo pelo pão, queijo e fruta.

A filha é que não foi em cantigas, provou de tudo um pouco até que pôde, até se fartar.

A sessão da entrega dos prémios realizou-se num centro desportivo situado junto de um pequeno rio. Tratavam-se de instalações um pouco antigas mas muito completas com: excelentes condições para as variadíssimas práticas desportivas e diversos restaurantes e salões para conferências.

Para além da proximidade do rio e de outros ribeiros, tão abundante era a água por ali, o centro estava situado entre montanhas muito verdes salpicadas de árvores baixas e ramalhudas, onde as aves, sobretudo os melros e os corvos se apinhavam sossegadamente.

Quem não perdia pitada desse suigéneris e magnífico panorama era a Patrícia. Espreitava por todas as janelas e portas que encontrava pelo caminho:

- Ó pai, já viste, os melros parecem os pombos lá em Lisboa. Andam em bandos, à vontade pelas árvores e pelo chão. Quase se metem debaixo dos pés das pessoas!

Tudo se quer no seu país, no seu habitat. Estas aves, por exemplo lá em Portugal, são clandestinas. Daí a perseguição e morte de que são vítimas.

 

Às dez horas locais, a sala, muito bem ornamentada com vasos de flores, colchas de seda, tapetes e as doze bandeiras nacionais dos países europeus, começou a encher com a presença dos premiados, seus acompanhantes, individualidades particulares e oficiais, destacando-se a presença de Miss Smith dos Estados-Unidos e de Sua Alteza a Rainha da Dinamarca.

Conforme tudo se ia compondo, assim Eduardo estremecia de ansiedade e constrangimento.

Primeiro premiado por Portugal, e estar na Dinamarca para receber o prémio! Era realmente um sonho, um profundo sonho que, agora sim, começava a ramificar, a criar raízes dentro de si. A felicidade que sentia era tal, que apetecia-lhe agora, cada vez mais, agradecer a si próprio a enorme felicidade de ter conseguido escrever aquele livro. Nunca o seu corpo tremulara tanto de frio e calor ao mesmo tempo.

Não era bem o prémio que lhe provocava todas aquelas novas e estranhas sensações, era sim, o repôr da razão...

Não estavam ali aqueles que não reconheceram, ou simplesmente ignoraram o seu livro. E, essa era na verdade uma das suas grandes penas. Não lhes queria sorrir na cara, nem olha-los com desdém, apenas queria, se tal fosse possível, vê-los meditar, reconhecer que erraram e porventura o travão que estavam a colocar à literatura portuguesa. Quantos escritores, por via de injustiças idênticas teriam ficado pelo caminho?! Ele próprio estivera para desistir. Ah, mas agora, depois daquele magnífico incentivo, não haveria Invernos, nevões, cisnes, tempestades, vulcões, não haveria, enfim, o que quer que fosse que o impedisse de trilhar o caminho da escrita.

Sentia que havia pedreiras por descobrir, oxigénios por purificar, milhões de flores murchas ou a murchar... e, essa era e iria ser a terra para germinação da sua palavra.

O som ambiente era forte, enchia a sala.

Quando anunciaram Portugal, chamaram o seu nome, e tocaram o Hino, Eduardo, agarrado à filha, não sabia se ia pelo ar, se pelo chão, tão grande era a sensação provocada! As veias quase que rebentavam, sentia o coração latejar por tudo quanto era corpo.

Quando pisou a passadeira vermelha, subiu as escadas, se aproximou de Sua Alteza a Rainha e recebeu das suas mãos o ramo de flores que ofereceu de imediato à filha, o envelope com os quinhentos ECU e o Diploma referente ao acontecimento, a satisfação transbordou em pranto, em tímidas e verdadeiras pétalas cristalinas, que deslizando pelo rosto e pela barba, iam sepultar-se na camisa branca e no fato azul escuro que envergava. Não era decifrável o que sentia. Mas, que era diferente, que lhe provocava uma sensação inolvidável e o enchia de felicidade, disso não tinha quaisquer dúvidas.

De regresso à primeira fila onde estava sentado, e como pensava não ter ninguém por ali à sua espera, Eduardo ia aproveitando para, a pouco e pouco, descontrair, abandonar a comoção e viver calma e realisticamente aquele acontecimento.

A certa altura, pareceu-lhe, teve mesmo a sensação de que alguém caminhava ao seu encontro. Só que não ligou, e se algum fugaz pensamento teve a esse respeito, foi que porventura seria alguma das senhoras dos colegas da noite.

Porém, eis que num ápice, como foco reluzente, alguém correndo, se agarra ao seu pescoço, o beija, abraça profundamente e lhe diz com emoção:

- Que este momento seja o sol que não mais deixe de brilhar intensamente na tua vida!

Eduardo não queria acreditar! Ao mesmo tempo que com grande loucura correspondia ao cumprimento, sentiu o mundo transformar-se numa concha, caírem sobre si milhares de estrelas que perfumavam, coloriam e iluminavam tudo à sua volta. Catarina, sim, Catarina saudava-o, estava ali!     A sensação era tal que, para além do calor, do doce odor de milhões de rosas, nada mais havia do que as palavras, os afagos, o prazer da presença dela.

- Obrigado Catarina. Agora sim, sinto brotar em mim a febre da felicidade, sinto-me o homem mais feliz do mundo. Este momento, Catarina, vai ser eternamente comemorado na tua companhia.

- Obrigada Eduardo. Não calculas como estou feliz e orgulhosa de ti!

- Ó senhora Catarina, quando houver uma vagazinha...

- Fernando, o quê! Tu também vieste! Oh, meu grande amigo Dá cá um abraço!

- Um só não, dois.

- Mas que agradabilíssima ideia que vocês tiveram! A vossa presença foi o que de melhor podia acontecer-me neste dia, agora sim inesquecível!

Ó, Eduardo, nem que fosse preciso furar o mundo! Nós não podíamos faltar a este inolvidável momento da coroação da tua insessante luta em defesa da escrita, da Liberdade e fundamentalmente da nossa cultura.

 

                                                                                Sá Flores  

 

                      

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