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AS ÁGUIAS CEGAS / Alistair Maclen
AS ÁGUIAS CEGAS / Alistair Maclen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS ÁGUIAS CEGAS

 

- Se você fosse mesmo coronel do exército - disse Pilgrim - em vez de uma das fraudes mais espúrias e inconvincentes que eu já vi, você ganharia três estrelas por isto. Muito bem exe­cutado, meu caro Fawcett, muito bem executado.

Pilgrim era bisneto de um par do reino inglês e isso logo se notava. Tanto na maneira de se vestir como na de falar, era um pouco afetado e claramente eduardiano: quase que subconscientemente procurava-se o monóculo que faltava, a velha gra­vata de Eton. Seus ternos, muitíssimo bem cortados, vinham de Savile Row, as camisas de Turnbull and Asser e o jogo de es­pingardas, que ao preço de 4.000 dólares ele considerara barato, vinha, inevitavelmente, de Purdeys, de West End. Os sapatos, infelizmente, eram feitos a mão, em Roma. Submetê-lo a um tes­te para fazer o papel de Sherlock Holmes no cinema teria sido supérfluo.

Fawcett não era sensível a críticas, a elogios ou a qualquer insinuante produto da magnificência da alfaiataria. Seus músculos faciais raramente reagiam a qualquer coisa - o que poderia ser devido ao fato de seu rosto liso ser tão gordo, quase do formato de uma lua cheia. Sua expressão bucólica beirava à imbecilidade: muitas pessoas que definhavam atrás das grades de prisões federais diziam, com freqüência e com compreensível amargura, que a impressão que Fawcett lhes causara era a tal ponto enga­nadora que raiava à franca imoralidade.

Os olhos semicerrados de Fawcett, bem fundos no rosto gor­do, percorreram as lombadas dos livros com encadernações de couro enfileirados nas estantes e foram-se fixar no fogo faiscante das toras de pinho na lareira. Com a voz melancólica, disse:

- Seria de desejar que as promoções na CIA também fos­sem tão rápidas e espetaculares.

- Legados, meu rapaz. - Pilgrim era pelo menos cinco anos mais moço que Fawcett. - Legados. - Ele examinou por um instante o próprio pé com o sapato romano, com certa satis­fação, depois transferiu a atenção para a esplêndida coleção de condecorações no peito de Fawcett. - Vejo que se concedeu a Medalha de Honra do Congresso.

- Achei que ficava mais de acordo com o meu personagem.

- Certamente. E esse modelo de perfeição que você desencavou, Bruno. Como foi que o descobriu?

- Não fui eu quem o descobriu. Foi o Smithers quando eu estava na Europa. Smithers é um grande apreciador de circos.

- Certamente. - Pilgrim parecia gostar daquela palavra. - Bruno. É de se presumir que ele tenha outro nome.

- Wilderman. Mas nunca o usa, nem profissionalmente nem na vida particular.

- Por quê?

- Não sei. Nunca o vi. Provavelmente Smithers também nunca lhe perguntou. Você perguntaria a Pelé, a Callas ou a Liberace quais são seus outros nomes?

- Então você coloca o nome dele à altura desses?

- Pelo que sei, o mundo do circo hesitaria em colocar esses nomes à altura do dele.

Pilgrim apanhou algumas folhas de papel.

- Fala o idioma como se tivesse nascido lá.

- Ele nasceu lá.

- É anunciado como o maior trapezista do mundo. - Pil­grim era um homem duro para abandonar uma discussão. - "Audacioso jovem no trapézio voador"? Esse tipo de coisa?

- Isso também. Mas ele é principalmente um especialista em funambulismo.

- O melhor do mundo?

- Seus colegas de profissão não têm nenhuma dúvida a esse respeito.

- Se a nossa informação sobre Crau for correta é melhor que seja. Ele também diz ser perito em caratê e judô.

- Ele nunca disse nada disso. Eu falo por ele, ou melhor Smithers fala e, como sabe, Smithers é realmente um entendido nesses assuntos. Ele assistiu a uma demonstração de Bruno hoje de manhã no Clube Samurai. O instrutor de lá é faixa preta - eles não têm nada acima disso em judô. Quando Bruno deu por encerrado o treino com ele... bem, pelo que eu soube o ins­trutor desapareceu dando todos os sinais evidentes de um homem decidido a pedir demissão na mesma hora. Smithers disse que não tinha visto Bruno fazer gente em pedacinhos com golpes de ca­ratê, ele diz que acha que também não gostaria de ver.

- E este relatório diz que ele é médium. - Pilgrim juntou os dedos bem à moda de Holmes. - Bem, melhor para Bruno. Que diabo é um médium?

- É um cara que faz coisas mediúnicas.

Pilgrim conteve-se com grande esforço.

- É preciso ser um intelectual para ser trapezista?

- Não sei nem se a pessoa tem de ser intelectual ou mesmo inteligente para ser trapezista. Não vem ao caso. Praticamente todo artista de circo desempenha outros papéis e executa uma, às vezes até duas atividades além da sua verdadeira especialidade na própria arena. Alguns trabalham como operários - eles têm montanhas de equipamento para movimentar. Alguns são ilusio­nistas. Bruno tem como segunda atividade o ilusionismo. Do lado de fora do circo propriamente dito eles têm uma espécie de local de espetáculos de variedades, uma espécie de feira, chame como quiser, que é usado para tirar o dinheiro de sobra dos fregueses quando chegam. Bruno se apresenta num pequeno teatro, apenas uma armação desmontável de madeira compensada. Lê pensa­mentos, diz o nome de batismo do seu bisavô, os números de série das notas no seu bolso, o que está escrito ou guardado dentro de qualquer envelope lacrado. Coisas deste tipo.

- Isto tem sido feito. São falsos espectadores e os truques usados são os mesmos de qualquer mágico profissional habilidoso.

- Possivelmente, embora o que corre por aí é que ele é capaz de fazer coisas para as quais não há explicação racional e que mágicos profissionais não conseguiram reproduzir. Mas o que nos interessa é que ele tem uma memória totalmente fotográfica. Dê-lhe um exemplar de duas páginas impressas da, digamos, re­vista Time. Ele olhará para elas durante uns dois segundos, as devolverá a você e se oferecerá para dizer qual é a palavra em qualquer lugar que você indicar. Você diz a ele que gostaria de saber qual é a terceira palavra que está na terceira linha, na terceira coluna, na página da direita, e se ele diz que é, por exemplo, "Congresso", e você pode apostar a vida que a palavra é "Congresso". E ele faz isso em qualquer idioma, não precisa compreender o que está escrito.

- Isso eu tenho que ver. À propósito, se o homem é um tal gênio por que não se dedica exclusivamente ao trabalho de tea­tro? Certamente poderia fazer fortuna com isso, muito mais do que arriscando a vida dando cambalhotas lá em cima, não é?

- Talvez. Não sei. De acordo com Smithers, ele não é exatamente pago com tostões. É o grande astro do maior circo da Terra. Mas este não seria o seu verdadeiro motivo. Ele é o mem­bro principal de um trio de trapezistas chamado “As Águias Cegas” e sem ele os outros estariam perdidos. Creio que eles não são médiuns.

- Tenho minhas dúvidas. Não podemos nos dar ao luxo de ter sentimentalismo e lealdade excessivos no nosso negócio.

- Sentimentalismo, não. Lealdade, a nós, sim. Aos outros também, se eles são seus dois irmãos mais moços.

- Um trio familiar?

- Pensei que soubesse.

Pilgrim balançou a cabeça.

- Você os chamou "As Águias Cegas"?

- Não é uma hipérbole indevida, pelo que Smithers me diz. Não depois que tiver visto o número deles. Podem não estar bem lá em cima, no azul do céu, ou pairando no ar, como você su­geriu, nas nuvens baixas, mas também não são exatamente limi­tados ao chão. No impulso do trapézio, ficam a vários metros de terra firme. Se você cair de dez metros ou de vinte, as chan­ces de partir o pescoço - para não falar nos duzentos e tantos ossos do corpo - são aproximadamente as mesmas, especialmente se estiver de olhos vendados e não for capaz de distinguir o alto do baixo, enquanto o seu corpo não lhe pode dizer exatamente onde está o alto e com toda a certeza não pode localizar o baixo.

- Você está querendo dizer...

- Eles usam luvas pretas quando saltam de um trapézio para outro. As pessoas pensam que deve haver algum dispositivo eletrônico nas luvas, como pólos negativos atraindo pólos posi­tivos, mas não há. É só para dar melhor aderência, é tudo. Não têm nenhum tipo de sistema de direção mesmo. Os capuzes são inteiramente opacos, mas eles nunca se enganam - bem, obvia­mente nunca se enganaram ou a esta altura já haveria uma Águia Cega a menos. É alguma forma de percepção extra-senso­rial, creio, o que quer que isto possa querer dizer. Só Bruno a tem, e é por isso que ele é o apanhador.

- Isso eu tenho que ver. E o grande médium em ação.

- Não há problema. Vamos indo. - Fawcett consultou o relógio. - Podíamos sair agora. O Sr. Wrinfield está esperando por nós? - Pilgrim concordou em silêncio. Um canto da boca de Fawcett contraiu-se, poderia ter estado sorrindo. Ele disse: - Ora, vamos, John, todos os freqüentadores de circos são crian­ças felizes no fundo de seus corações. Você não me parece muito feliz.

- Não estou. Há pessoas de vinte e cinco nacionalidades diferentes trabalhando nesse circo, pelo menos oito delas centro-européias ou da Europa Oriental. Como saber que alguém lá pode não gostar de mim, que pode estar carregando um retrato meu no bolso de trás? Ou que pode haver meia dúzia deles com retratos meus?

- É o preço da fama. Quer tentar se disfarçar? - Fawcett examinou seu uniforme de coronel com ar complacente. - Tal­vez de tenente-coronel?

Foram para o centro de Washington num carro oficial, mas não identificável, Pilgrim e Fawcett no banco de trás, o moto­rista e um quarto homem no da frente. O quarto homem era um tipo grisalho, meio calvo, absolutamente anônimo numa capa de chuva, com um rosto comum, totalmente inexpressivo. Pilgrim falou com ele.

- Agora não esqueça, Masters, é melhor ter certeza de ser o primeiro homem a subir naquele palco.

- Serei o primeiro, senhor.

- Pegou a palavra?

- Sim, senhor. "Canadá".

A noite já tinha caído e adiante, através de uma leve garoa, surgia aos poucos uma construção oval, de teto abobadado, en­feitada com centenas de lâmpadas coloridas, que tinham sido pro­gramadas para acender e apagar em intervalos regulares. Fawcett falou com o motorista, o carro parou, e, sem dizer uma palavra e carregando uma revista dobrada na mão, Masters saltou e como que desapareceu no meio da multidão que se reunia. Ele nascera para desaparecer em multidões. O carro prosseguiu e só parou de novo quando havia chegado o mais perto possível da entrada do prédio. Pilgrim e Fawcett saltaram e entraram.

O largo corredor levava diretamente à entrada principal para a platéia da grande cúpula - denominação incorreta, uma vez que os dias das grandes estruturas de lona, pelo menos no que diz respeito aos grandes circos, já haviam acabado. Em lugar disso, contavam exclusivamente com pavilhões para exibições e auditórios, poucos dos quais eram capazes de acomodar menos de dez mil pessoas sentadas, muitos comportando consideravel­mente mais: um circo nestas condições tinha que ter pelo menos sete mil espectadores para não dar prejuízo.

À direita do corredor podiam-se ver lampejos dos verdadeiros bastidores do circo: os grandes felinos rugindo nas jaulas, os in­quietos elefantes, os cavalos, os pôneis e os chimpanzés, diversos prestidigitadores ocupados em ensaiar seus números - um presti­digitador dos melhores precisa de tanta prática e com tanta cons­tância quanto um concertista de piano - e, acima de tudo, o inconfundível e inesquecível cheiro. Em oposição a estes, no­ canto mais afastado e diretamente curvado, de forma a mini­mizar a visão do público do que acontecia nos bastidores, estava a grande entrada para o picadeiro.

Da esquerda do corredor vinha o som de música, e não era a Filarmônica de Nova York que estava tocando. A música - se é que podia ser chamada como tal - era rouca, metálica, es­tridente, atonal e, em quaisquer outras circunstâncias, seria des­crita como uma agressão aos tímpanos; mas naquele ambiente feérico, qualquer outro tipo de música, fosse por causa do hábito ou porque combinasse tão inevitavelmente com a atmosfera do lugar, teria sido inconcebível. Pilgrim e Fawcett passaram por uma das diversas portas que levavam à grande sala que abrigava o espetáculo de variedade. Ocupava apenas uma área modesta, mas o que lhe faltava em tamanho era claramente compensado em volume de negócios. Diferia muito pouco de outros locais de espetáculos de variedades, a não ser pela presença de uma estru­tura espalhafatosamente pintada e obviamente feita de madeira compensada, que ficava a um canto. Foi naquela direção, igno­rando todas as outras atrações, que Pilgrim e Fawcett se enca­minharam.

Acima da porta de entrada estava a misteriosa legenda: "O Grande Médium". Os dois homens pagaram seus ingressos de um dólar e entraram, tomando posição discretamente de pé no fundo da sala. Mesmo não levando em conta a discrição, não havia mais lugares para sentar - a fama do Grande Médium evidente­mente o precedera.

Bruno Wilderman estava no pequeno palco. De um pouco mais da altura média, e com um pouco mais da largura média nos ombros, ele não parecia ter um físico particularmente im­pressionante, o que poderia ser devido ao fato de que estava en­volto, do pescoço aos calcanhares, numa volumosa veste de man­darim chinês, de cores vivas, com enormes mangas bem largas. Seu rosto aquilino, levemente amorenado, coroado pelo cabelo preto comprido, parecia ser bastante inteligente, mas era um rosto mais agradável que notável: se passasse por alguém na rua, não faria com que se virasse para olhá-lo.

Pilgrim disse, sotto voce:

- Olhe para aquelas mangas. Dá para se esconder uma gaiola de coelhos lá dentro.

Mas Bruno não estava executando nenhum número de ilu­sionismo. Estava-se limitando estritamente ao seu papel já anun­ciado de médium. Tinha uma voz grave e ressonante, sem ser alta, com um leve sotaque estrangeiro, tão leve que tornava im­possível descobrir sua procedência.

Pediu a uma mulher na platéia para pensar em algum ob­jeto e dizê-lo baixinho ao seu vizinho. Sem hesitação, anunciou qual era o objeto, e que foi confirmado.

- Falsos espectadores - disse Pilgrim.

Bruno chamou três voluntários ao palco. Depois de alguma hesitação, três mulheres subiram. Bruno acomodou as três sen­tadas a uma mesa, forneceu-lhes pedaços de papel e envelopes do mesmo tamanho e pediu-lhes que escrevessem ou desenhassem qualquer coisa simples e pusessem dentro dos envelopes. Elas as­sim fizeram, enquanto Bruno se mantinha de frente para a pla­téia, dando as costas para as mulheres. Quando acabaram, ele se virou e examinou os três envelopes sobre a mesa, com as mãos cruzadas nas costas. Depois de apenas alguns segundos, disse:

- O primeiro tem uma suástica, o segundo um ponto de interrogação, o terceiro um quadrado com duas diagonais. Que­rem, por favor, mostrá-los à platéia?

As três mulheres tiraram os cartões e os ergueram. Eram indiscutivelmente uma suástica, um ponto de interrogação e um quadrado com duas diagonais.

Fawcett inclinou-se na direção de Pilgrim.

- Três falsas espectadoras.

Bruno disse:

- Alguns dos presentes podem ter pensado que tenho aju­dantes na platéia. Bem, todos vocês não podem ser meus aju­dantes, porque então não se dariam ao trabalho de vir aqui, mes­mo que eu pudesse pagar a todos, o que não posso. Mas isto deve acabar com todas as dúvidas. - Apanhou um avião de pa­pel e disse: - Vou atirá-lo entre vocês e, conquanto possa fazer muitas coisas, não posso controlar o vôo de um avião de papel. Ninguém pode, nunca. Talvez a pessoa em quem ele bater queira fazer a gentileza de vir ao palco.

Ele atirou o avião de papel sobre a platéia. O aviãozinho planou para um lado e para outro, à maneira imprevisível de todos os aviões de papel, terminou seu breve vôo num desele­gante mergulho de nariz, batendo no ombro de um rapaz bas­tante jovem. Um pouco desconfiado, ele deixou o assento e su­biu ao palco. Bruno lhe deu um sorriso encorajador e um pedaço de papel e um envelope, iguais aos que havia dado às mulheres.

- O que quero que faça é simples. Escreva apenas três números e ponha o papel no envelope. - O rapaz o fez enquanto Bruno se mantinha de costas para ele. Quando o papel estava dentro do envelope, Bruno virou-se, mas nem olhou para o en­velope, quanto mais tocá-lo.

- Some os três números e me diga qual é o total.

- Vinte.

- Os números que escreveu são sete, sete e seis.

O rapaz tirou o papel do envelope e o ergueu para a platéia. Eram sete, sete e seis.

Fawcett olhou para Pilgrim, que agora havia adotado uma expressão realmente muito pensativa: evidentemente, se Bruno não fosse genuíno, então devia ser ou um mágico consumado ou um personagem extraordinariamente engenhoso.

Nesse momento Bruno anunciou a mais difícil proeza - a de demonstrar que tinha uma memória fotográfica, podendo iden­tificar, dada a localização, qualquer palavra em duas páginas de qualquer revista, não importando qual fosse o idioma. Masters não deu oportunidade à sorte ou à impetuosidade de qualquer espectador ansioso, que pudesse tentar precedê-lo, pois estava no palco antes mesmo que Bruno tivesse acabado sua explicação. Bruno, erguendo levemente as sobrancelhas numa expressão di­vertida, pegou a revista aberta da mão dele, passou-lhe os olhos rapidamente, devolveu-a e olhou com ar interrogativo para Masters.

Masters disse:

- Página da esquerda, segunda coluna, deixe-me ver agora, sete linhas para baixo, a palavra do meio.

Ele olhou para Bruno com um sorriso de expectativa triun­fante.

- Canadá - disse Bruno.

O sorriso desapareceu. As feições inexpressivas de Masters pareceram cair em pedaços, então ele encolheu os ombros com verdadeiro descrédito, virou-se e saiu.

Lá fora Fawcett disse:

- É muito pouco provável que Bruno tenha cúmplices na CIA. Está convencido?

- Certamente. Quando é que começa a função?

- Dentro de meia hora.

- Então vamos vê-lo no trapézio ou o que quer que seja. Se lá for a metade do que foi aqui, bem, então é o nosso homem.

O circo de três picadeiros estava completamente lotado. A atmosfera estava animada, com a música dessa vez mais do que apenas suportável de uma orquestra competente, uma atmosfera carregada de tensão, excitação e expectativa, com milhares de crianças cheias de encantamento por estarem numa terra de con­tos de fadas, quase mesmo tanto quanto seus avós. Tudo brilhava, mas não era o brilho barato de ouropel, e sim um cenário que parecia ser o que havia de mais completo e inevitável de tudo o que um circo devia ser. Além da areia castanho-acinzentada dos três picadeiros, um arco-íris estonteante de cores atraía o olhar ainda mais do que a música. Circundando o picadeiro, ha­via moças muito bem vestidas, montadas em elefantes incrivel­mente equipados com roupagens riquíssimas e se havia alguma cor no espectro solar que o figurinista omitira, ela não era vi­sível a olho nu. Dentro dos picadeiros, palhaços e pierrôs dispu­tavam entre si a comicidade de suas caretas e trejeitos e o ridículo de suas fantasias, enquanto ambos competiam com os acrobatas e o majestoso desfile de saltimbancos. A platéia a tudo observava fascinada, se bem que já com uma ponta de impa­ciência, pois aquele espetáculo, por magnífico que fosse, era ape­nas o preparativo, o prelúdio para a ação que estava por vir. Não existe atmosfera no mundo que seja igual a de um grande picadeiro pouco antes do espetáculo começar.

Fawcett e Pilgrim sentaram-se juntos, em lugares com uma visão excelente, quase que defronte do centro do picadeiro prin­cipal.

- Qual é o Wrinfield? - perguntou Fawcett.

Sem demonstrar fazê-lo, Pilgrim indicou um homem sentado a apenas duas cadeiras de distância, na mesma fila. Imaculada­mente vestido num terno azul-marinho, com a gravata combi­nando e uma camisa branca, tinha um rosto tranqüilo, pensativo, quase que o de um estudioso, com o cabelo grisalho muito bem repartido. Usava óculos.

- Aquele é o Wrinfield? - Pilgrim fez que sim. - Parece mais um professor universitário.

- Creio que já foi. De Economia. Mas dirigir um circo mo­derno não é mais trabalho para gente de teatro. É um negócio grande e complicado, e dirigi-lo requer uma inteligência à altura. Tesco Wrinfield é um homem muitíssimo inteligente.

- Talvez inteligente demais. Com um nome desses e com um trabalho como esse vai ser...

- Ele já vem da quinta geração americana.

O último dos elefantes deixou a arena e então, com o acom­panhamento de um clangor de clarins e os efeitos repentinamente ampliados da orquestra, uma carruagem dourada, puxada por dois garanhões negros, magnificamente paramentados, irrompeu pela arena adentro em pleno galope, seguida por uma dúzia de cava­leiros. De vez em quando esses cavaleiros tinham algum tipo de contato com seus cavalos, mas durante a maior parte do tempo eles executaram uma série de acrobacias tão espetaculares como claramente suicidas. A multidão gritava, dava vivas e aplaudia. O circo tinha começado.

A atração seguinte confirmou mais ainda a afirmativa do circo de que não havia outro igual no mundo. Era magnifica­mente elaborada e magnificamente apresentada e, como era de se esperar, tinha entre seus participantes alguns dos melhores do mundo: Heinrich Neubauer, um domador absolutamente incom­parável, com um poder fantástico sobre uma dúzia de leões núbios muito desagradáveis; seu único rival, Malthius, que tratava um mesmo número de tigres-de-bengala ainda mais desagradáveis como se fossem gatinhos; Carraciola, que não tinha nenhuma dificuldade em fazer seus chimpanzés parecerem ser muito mais inteligentes do que ele; Kan Dahn, anunciado como o homem mais forte do mundo, coisa que ele bem poderia ser, levando-se em conta suas extraordinárias proezas, executadas como uma só mão no fio de aço e no trapézio, enquanto demonstrava total indiferença à presença de diversas moças atraentes, que se agar­ravam nele com tocante devoção; Lennie Loran, um comediante trapezista que teria feito qualquer agente de seguros do mundo sair correndo; Ron Roebuck, que executava com um laço proe­zas que nenhum vaqueiro ousaria sonhar; Manuelo, o atirador de facas, que apagava um cigarro aceso a cinco metros de dis­tância, de olhos vendados; os Duryans, uma equipe búlgara de malabaristas em gangorra que fazia as pessoas sacudirem a ca­beça de espanto; e uma dúzia de outras atrações, que iam de bailarinos voadores a um grupo que subia escadas bem altas e se equilibrava lá em cima sem nenhum apoio de qualquer espécie enquanto atiravam maças de madeira uns para os outros.

Depois de mais ou menos uma hora disso, Pilgrim disse gen­tilmente:

- Nada mal. Nada mal mesmo. E agora, creio, é a vez do nosso astro.

As luzes diminuíram, a orquestra atacou convenientemente uma música dramática, um pouco fúnebre, e então as luzes se acenderam outra vez. Lá na plataforma do trapézio, com meia dúzia de refletores coloridos focalizados sobre eles, estavam três homens vestidos com malhas cintilantes de lantejoulas. No meio estava Bruno. Sem o traje de mandarim, tinha agora uma apa­rência estranhamente impressionante, os ombros largos, os mús­culos fortes e pesados, e em cada centímetro o atleta fenomenal que tinha fama de ser. Os outros dois homens eram um pouco mais esguios que ele. Todos tinham os olhos vendados. A mú­sica cessou e os espectadores fizeram um silêncio cheio de temor enquanto os três homens puxavam os capuzes sobre as vendas.

- Pensando bem, acho que prefiro estar aqui embaixo - disse Pilgrim.

- Então somos dois. Não quero nem olhar.

Mas olharam, enquanto as Águias Cegas executavam sua ob­viamente impossível rotina aérea - impossível porque, a não ser por um ocasional e solitário rufar de tambores da orquestra, não tinham nenhum meio de saber onde cada um dos outros estava, de sincronizar seus movimentos invisíveis. Mas nem uma só vez um par de mãos deixou de agarrar com segurança e fir­meza um outro par que esperava, nem uma só vez um par de mãos estendidas pareceu, nem mesmo remotamente, capaz de não alcançar um trapézio silencioso que se balançava. O número du­rou ao todo uns intermináveis quatro minutos e no fim houve outro silêncio cheio de tensão, as luzes se apagaram novamente e quase que toda platéia ficou de pé, aplaudindo, gritando e assobiando.

- Sabe de alguma coisa a respeito dos dois irmãos dele? - indagou Pilgrim.

- Creio que se chamam Vladimir e Yoffe. Não sei de nada. Pensei que fosse ser trabalho para um só homem.

- E é. E Bruno tem alguma motivação? Algum incentivo?

- Mais do que qualquer outro. Fiz algumas investigações na penúltima vez em que estive na Europa Oriental. Nosso agente lá não me adiantou muita coisa, mas acho que é o bastante. Eram sete membros da família atuando no circo - o pai e a mãe mais ou menos aposentados - mas só estes três conseguiram alcançar a fronteira quando a polícia secreta resolveu apanhá-los. Não sei nem por que resolveram apanhá-los. Isso foi há seis, talvez sete anos atrás. A mulher de Bruno está morta, quanto a isto não há dúvida, há testemunhas que garantem - ou melhor ga­rantiriam, se não vivessem na parte do mundo onde vivem. Ele estava casado há duas semanas. O que aconteceu com o irmão mais moço, seu pai, e sua mãe, ninguém sabe. Eles simplesmente desapareceram.

- Junto com um milhão de outros. Ele é o nosso homem, sem sombra de dúvida. O Sr. Wrinfield está disposto a fazer o nosso jogo. Será que Bruno também está?

- Ele fará. - Fawcett estava confiante, depois pareceu fi­car pensativo. - É melhor que faça, depois de todas essas se­manas de trabalho que você teve.

As luzes ficaram mais fortes. Agora As Águias Cegas esta­vam numa plataforma a uns seis metros do chão, o arame esti­cado até outra plataforma na extremidade do picadeiro do centro. Os outros dois picadeiros estavam vazios e não havia nenhum outro artista à vista exceto um - e ele estava no chão. Não havia música e entre os espectadores o silêncio era absoluto.

Bruno montou numa bicicleta. Amarrado em seus ombros estava um balancim de madeira, enquanto um de seus irmãos segurava uma vara de aço de três metros. Bruno empurrou a bici­cleta para a frente, até que a roda dianteira estivesse completa­mente fora da plataforma, e esperou que seu irmão tivesse posto a vara em buracos atravessando o balancim. Ficava absoluta­mente solto. Quando Bruno tomou impulso, colocando os dois pés nos pedais, os irmãos agarraram as extremidades da vara, inclinaram-se para a frente em perfeita sintonia e balançaram para fora da plataforma até que, de novo em perfeita sintonia, ergueram-se em todo o comprimento de seus braços. O fio de arame se arqueou visivelmente, mas Bruno não. Lenta e regu­larmente ele continuou pedalando.

Nos minutos seguintes, equilibrado em parte por si mesmo, mas principalmente pelo perfeito sentido de tempo de Vladimir e Yoffe, Bruno pedalou para trás e para a frente sobre o arame enquanto os irmãos executavam uma série de acrobacias, contro­ladas, mas complicadas. Numa ocasião, enquanto Bruno perma­neceu absolutamente imóvel durante segundos, os irmãos, movendo-se com exatidão na mesma imaculada sincronização, gra­dualmente aumentaram a velocidade de suas voltas até alcan­çarem o ponto de estarem apenas se apoiando na vara. O mesmo silêncio extraordinário contagiava a platéia, um tributo que não era apenas inteiramente devido ao espetáculo a que assistiam: diretamente abaixo deles enquanto executavam seu número es­tavam Neubauer e seus doze leões núbios, a cabeça de cada um virada para cima com ansiedade.

Ao fim da apresentação o silêncio do público foi substituído por um longo e nada silencioso suspiro de alívio coletivo, então, mais uma vez veio a mesma ovação com toda a platéia de pé, tão sincera e prolongada como a que a precedera.

- Para mim chega, e, além disso, meus nervos não agüen­tam mais nada - disse Pilgrim. - Wrinfield me seguirá. Se ele esbarrar em você ao voltar para sua cadeira quer dizer que Bruno está disposto a conversar e que você deverá segui-lo a uma dis­tância discreta no fim do espetáculo. Quero dizer, seguir o Wrin­field.

Sem fazer nenhum sinal ou olhar para nenhuma direção es­pecífica, Pilgrim se levantou e saiu. Quase que imediatamente Wrinfield fez o mesmo.

Poucos minutos depois os dois homens estavam trancados num dos escritórios de Wrinfield, o sonho de uma secretária, soberbamente bem equipado, embora um pouco compacto. Wrin­field tinha outro escritório bem maior, se bem que em vias de desmoronar-se, onde normalmente a maior parte de seu trabalho era executada, a pouca distância do picadeiro; mas aquele não tinha um bar como este tinha. De acordo com a regra, segundo a qual ele proibia qualquer pessoa de tomar bebidas alcoólicas nas instalações do circo, Wrinfield também negava a si mesmo aquele privilégio.

O escritório era apenas uma pequena parte de um complexo lindamente organizado, que constituía a casa móvel do circo. Todas as pessoas do circo, de Wrinfield aos mais humildes su­balternos, dormiam naquele trem, exceto por alguns durões in­dependentes que insistiam em arrastar seus trailers através das vastas superfícies dos Estados Unidos e do Canadá. Durante as excursões o trem também abrigava todos os animais que se apre­sentavam no circo: na extremidade, pouco antes do vagão de freio, havia quatro enormes vagões de carga que acomodavam todo o equipamento pesado, que iam de tratores a caixotes, e que eram essenciais para o funcionamento perfeito do circo. No todo, era um pequeno milagre de simplicidade, planejamento meticulo­so e máxima utilização do espaço aproveitável. O trem completo era um monstro, tinha mais de meio quilômetro de comprimento.

Pilgrim aceitou o drinque e disse:

- Bruno é o homem que eu quero. Acha que ele aceitará? Se pensa que não, seria melhor cancelarmos a viagem à Europa.

- Ele irá, e por três razões. - A maneira de Wrinfield falar era como ele mesmo elegante, precisa e com as palavras escolhidas cuidadosamente. - Como viu, é um homem que não conhece o medo. Como todos os americanos naturalizados - certo, certo, já está naturalizado há mais de cinco anos, mas isto é como se fosse ontem - seu sentimento de patriotismo pelo país de adoção faz o seu e o meu parecerem um pouco pobres. E em terceiro lugar, tem enorme conta a acertar com o seu país natal.

- Agora?

- Agora. E quando é que falamos com o senhor?

- Eu sou a última pessoa com quem devem falar. Tanto pela minha segurança como pela de vocês, devem preferir serem vistos comigo tão pouco quanto possível. E não se aproximem do meu escritório, temos todo um batalhão de agentes estrangei­ros que não fazem nada senão sentar-se ao sol e vigiar a nossa porta da frente o tempo todo. O Coronel Fawcett - é o homem uniformizado que estava sentado ao meu lado e é o chefe de nossas Operações de Comando da Europa Oriental - sabe muito mais a respeito do assunto do que eu.

- Eu não sabia que o senhor tinha pessoal uniformizado em sua organização, Sr. Pilgrim.

- Não temos. Este é o disfarce dele. Usa-o com tanta freqüência que é mais rapidamente reconhecido quando de uniforme de que quando em trajes civis, e é por isso que quase todo mundo o chama de "Coronel". Mas nunca o subestime.

 

Fawcett esperou até o fim do espetáculo, aplaudiu como era seu dever, virou-se e saiu sem lançar nem um olhar para Wrinfield, que já lhe havia dado o sinal. Fawcett deixou o circo e encaminhou-se através da escuridão e da chuva cada vez mais forte, movendo-se com lentidão de forma que Wrinfield não o perdesse de vista. Finalmente alcançou a grande limusine escura na qual ele e Pilgrim tinham chegado e subiu para o banco de trás. Um vulto escuro estava recostado no outro canto, o rosto tão envolto na sombra quanto possível.

Fawcett disse:

- Alô. Meu nome é Fawcett. Espero que ninguém o tenha visto chegar.

O motorista respondeu:

- Ninguém, senhor. Eu estava vigiando bem alerta. - Ele olhou para fora através das janelas salpicadas pela chuva. - Não é uma noite muito apropriada para alguém estar se pre­ocupando com a vida dos outros.

- Não, não é. - Fawcett virou-se para o vulto na sombra. - É um prazer conhecê-lo. - Suspirou. - Tenho que me des­culpar por todo esse negócio tipo capa-espada, mas creio que já seja tarde demais agora. É um negócio que entra no sangue da gente, sabe. Só estamos esperando por um amigo seu. Ah, aí vem ele agora.

Abriu a porta e Wrinfield entrou, sentando-se ao lado deles. O pouco que podia ser visto do seu rosto não demonstrava nada no gênero de muito arrebatamento despreocupado.

- Rua Poyton, Barker - disse Fawcett.

Barker assentiu com um gesto da cabeça e deu partida ao carro. Ninguém falou. Wrinfield, mais do que apenas um pouco infeliz, remexia-se com impaciência no assento, e, finalmente disse:

- Acho que estamos sendo seguidos.

- É melhor que estejamos - retrucou Fawcett. - Senão amanhã o motorista daquele carro estaria sem emprego. Aquele carro está nos seguindo para garantir que nenhum outro carro nos siga. Isto é, se é que me compreendem.

- Compreendo. - Pelo tom de voz era de se duvidar se Wrinfield compreendia mesmo. Ele foi ficando cada vez mais infeliz à medida que o carro penetrava no que era quase uma zona de cortiços e mais infeliz ainda quando o carro entrou numa rua mal iluminada, parando do lado de um prédio de aparta­mentos sem elevador e de aparência pobre. Disse em tom de reclamação: - Esta não é uma zona muito agradável da cidade. E isto... tem o aspecto de uma casa de má fama.

- E é uma casa de má fama. É nossa. São lugares muito úteis, esses bordéis. Quem, por exemplo, poderia jamais imagi­nar que Tesco Wrinfield entraria num lugar desses? Venha, vamos entrar.

 

Para um lugar tão insalubre, numa região tão insalubre, a sala era surpreendentemente confortável, embora a pessoa que comprara a mobília parecesse ter uma fixação pela cor avelã, pois o sofá, as poltronas, o tapete, e as pesadas e discretas cor­tinas eram todos da mesma cor ou muito próximos dela. O fogo, numa lareira acesa com carvão que não soltava fumaça - pois aquela era uma região onde não havia fumaça - fazia o melhor que podia para arder alegremente. Wrinfield e Bruno ocuparam uma poltrona cada um; Fawcett ocupava uma posição de desta­que num bar do tipo portátil.

Bruno disse com cuidado:

- Fale-me de novo, por favor. A respeito dessa antimatéria ou o que quer que a chamem.

Fawcett suspirou.

- Eu temia que me perguntasse isso. Sei que expliquei di­reito da primeira vez, porque tinha decorando o que teria de fazer e apenas repeti tudo como um papagaio. Precisei fazê-lo porque eu mesmo, na verdade, não sei do que se trata. - Faw­cett serviu a rodada de bebidas, uma soda para Bruno, e esfregou o queixo. - Vou tentar simplificar desta vez. Talvez assim eu seja capaz de conseguir alcançar algumas partículas de com­preensão.

- A matéria, como sabemos, é composta de átomos. Há montes de coisas que vão compor estes átomos. Parece que os cientistas estão ficando cada vez mais desorientados com a sem­pre crescente complexidade do átomo, mas tudo o que interessa às nossas mentes simples são os dois componentes básicos do átomo, os eléctrons e os prótons. Na Terra, e no universo inteiro no que concerne a isso, os eléctrons são invariavelmente de carga negativa e os prótons de carga positiva. Infelizmente, a vida está se tornando cada vez mais difícil para os nossos cientistas e astrônomos - por exemplo, foi descoberto este ano que há par­tículas, feitas sabe Deus de que, que se deslocam a muitas vezes a velocidade da luz, o que é um conceito muito perturbador e desagradável para os membros da comunidade científica, dos quais cem por cento acreditam que nada poderia se deslocar a uma ve­locidade mais rápida do que a da luz. Entretanto, isso é apenas um parêntesis.

- Há algum tempo atrás dois astrônomos, chamados Dick e Anderson, fizeram a inconveniente descoberta, baseada em cál­culos teóricos, de que devem existir eléctrons de carga positiva. A existência deles, agora, é universalmente aceita, e, hoje em dia, são chamados de pósitrons. Então, para complicar ainda mais as coisas, a existência de antiprótons foi descoberta. Isto aconteceu em Berkeley, e eles também são eletricamente opostos aos nos­sos prótons. Uma combinação de posítrons com antiprótons daria origem ao que atualmente é chamado de "antimatéria". Nenhum cientista contesta que a antimatéria exista realmente.

- Tampouco eles contestam que se um eléctron ou um posítron, ou um próton e um antipróton colidirem ou quaisquer dos outros colidirem os resultados seriam catastróficos. Eles se aniquilariam uns aos outros, liberando raios gama mortais e criando, no processo, uma considerável explosão, e um desloca­mento de calor de tal intensidade que toda a vida dentro de uma área de dezenas, ou talvez centenas de quilômetros quadrados seria instantaneamente eliminada. Nisto os cientistas estão de acordo. Estima-se que se apenas dois gramas de antimatéria co­lidissem no nosso planeta do lado que não estivesse exposto ao Sol, o resultado seria de fazer com que a Terra, com toda a vida imediatamente extinta, fosse girar na órbita gravitacional do Sol. Isto se, é claro, ela não se desintegrasse imediatamente quando se desse o contato.

- Uma perspectiva agradabilíssima - disse Wrinfield. Ele não tinha o ar de alguém muito convencido. - Não estou querendo ofender, mas isto me soa como a mais absurda especulação de ficção científica.

- A mim também. Mas tenho que aceitar o que me dizem. De qualquer maneira, estou começando a acreditar.

- Olhe, nós não temos nem um pouquinho desse negócio de antimatéria na Terra?

- Por causa da desagradável propensão da antimatéria de aniquilar toda a matéria com a qual entra em contato, deveria ser bastante óbvio que não.

- Então de onde é que o negócio vem?

- Droga, como é que vou saber? - Fawcett não tinha a intenção de ficar irritado, ele apenas não gostava de ficar nave­gando nas águas turvas do que desconhecia. - Pensamos que o nosso universo é o único que existe. Como é que sabemos? Talvez haja outro universo além do nosso, talvez muitos. Parece, de acordo com as últimas teorias científicas, que se tais universos existem, não há nenhuma razão pela qual um deles, ou mais, não possa ser feito de antimatéria. - Fawcett fez uma pausa com a expressão acabrunhada. - Acho que se existirem quais­quer seres dotados de inteligência eles considerariam o nosso uni­verso como sendo composto de antimatéria. É claro, poderia ter sido algum material inferior jogado para fora no momento da criação do nosso próprio universo. Quem podia saber?

- Então o assunto todo é pura especulação. É apenas uma hipótese. Cálculos teóricos, é tudo. Não há prova, Coronel Faw­cett - disse Bruno.

- Nós acreditamos que haja. - Ele sorriu. - Perdoe-me pelo "nós". O que poderia ter sido, em termos de vidas humanas, um desastre de primeira magnitude ocorreu, felizmente, numa área despovoada ao Norte da Sibéria em 1908. Quando os cien­tistas russos chegaram para investigar, quase vinte anos depois, descobriram uma área de mais de cem quilômetros quadrados onde árvores haviam sido destruídas pelo calor: não pelo fogo, mas por incineração instantânea que, em muitos casos, leva à petrificação das árvores em posição vertical. Se este fenômeno extraordinário tivesse ocorrido em, digamos, Nova York ou Lon­dres, elas teriam se tornado cidades enegrecidas dos mortos.

- Provas - disse Bruno. - Estávamos falando de provas, coronel.

- Provas. Todos os outros danos conhecidos causados à Terra pelo impacto de corpos do espaço exterior foram, sem ex­ceção, causados por meteoros. Não havia nenhum vestígio do meteoro que poderia ter causado este holocausto siberiano e ne­nhum sinal de nenhuma marca no chão onde o meteoro poderia ter caído. Quando meteoros caíram no Arizona e na África do Sul deixaram enormes crateras no chão. A conclusão atualmente aceita, e de fato inevitável, é que a Sibéria foi atingida por uma partícula de antimatéria, com uma massa de algo da ordem de um centésimo de milionésimo de um grama.

Houve um silêncio prolongado, depois Wrinfield disse:

- Bem, nós já vimos isso. Dessa segunda vez está um pouco mais claro, mas não muito. E daí?

- Há uns doze anos, houve alguma especulação científica a respeito do fato de se os russos haviam descoberto o segredo da antimatéria, mas isso foi logo abandonado como sendo im­possível porque... bem, por causa da propensão desagradável da antimatéria de aniquilar toda a matéria com a qual entra em contato, a criação, o controle, e a armazenagem dela era im­possível.

- Era impossível. E se fosse possível ou estivesse a ponto de tornar-se possível? A nação que tivesse esse segredo poderia ter o mundo a seus pés. Comparativamente, as armas nucleares são brinquedos inofensivos para a diversão de criancinhas ainda engatinhando.

Durante um longo minuto ninguém falou, então Wrinfield disse:

- O senhor não falaria dessa maneira a menos que tivesse razão para crer que tal arma existe ou poderia existir.

- Tenho razão para crer que sim. Esta possibilidade tem sido a obsessão de todos os serviços secretos de todo o mundo moderno já há alguns anos.

- Obviamente, este segredo não está em nossas mãos, ou não estaria nos contando tudo isso.

- Obviamente.

- E não estaria nas mãos de um país assim como a Grã-Bretanha?

- Tal fato não nos daria razão para ansiedade.

- Porque quando os dados fossem lançados eles seriam alia­dos com mãos responsáveis.

- Eu mesmo não o poderia ter exposto melhor.

- Então este segredo se encontra - se é que se encontra em algum lugar - nas mãos de um país que, quando os dados fossem lançados, não seria nem amigável nem responsável?

- Precisamente. - Pilgrim, refletiu Fawcett, o advertira contra subestimar a inteligência de Wrinfield.

Wrinfield disse devagar:

- Pilgrim e eu já fizemos alguns preparativos experimen­tais, já chegamos a alguns acordos preliminares. Deve saber disso. Mas ele nunca me disse nada.

- O momento não era apropriado.

- E agora é?

- Agora ou nunca.

- É claro que querem este segredo ou fórmula ou o que quer que seja, não é?

Fawcett começou a rever sua opinião sobre a inteligência de Wrinfield.

- Que é que acha?

- Que é que o faz pensar que as nossas mãos são mais responsáveis que aquelas de um punhado de outras nações?

- Sou um funcionário pago pelo Governo dos Estados Uni­dos. Não cabe a mim perguntar "por quê".

- Não lhe deve ter escapado que esta foi exatamente a for­ma de raciocínio adotada pela Gestapo e pela SS na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ou pela KGB da Rússia desde então?

- Não me escapou. Mas não creio que a analogia seja muito apropriada. Na realidade, os Estados Unidos não querem mais poder, isto é, poder armado. Não preciso lhe dizer que já temos capacidade mortal excessiva. Pode imaginar o que aconteceria se este segredo caísse em mãos de, digamos, determinados líderes meio loucos das novas repúblicas da África Central? Nós apenas achamos que temos mãos mais responsáveis do que a maioria.

- Precisamos ter esperança de que tenhamos.

Fawcett tentou ocultar seu longo e lento suspiro de alívio.

- Isto quer dizer que você está disposto a colaborar?

- Estou. Há poucos minutos o senhor disse que agora era o momento apropriado para me contar. Por quê?

- Espero que eu tenha estado certo em dizer que tinha razão.

Bruno se mexeu.

- Que é que quer de mim, coronel?

Havia ocasiões, Fawcett sabia, em que não se ganhava nada com evasivas. Ele disse:

- Consiga-o para nós.

Bruno levantou-se e serviu-se de mais uma soda. Bebeu o copo todo.

- Quer dizer, roubá-lo?

- Consiga-o. Chamaria tomar uma arma de um maníaco de roubo?

- Mas por que eu?

- Porque tem dons excepcionais. Não posso discutir que tipo de uso nos proporíamos fazer desses dons enquanto não tiver uma resposta. Tudo que sei é que estamos bastante seguros de que só existe uma única fórmula, só um único homem tem a fórmula, e é capaz de reproduzi-la. Sabemos onde ambos, o homem e a fórmula, estão.

- Onde?

Fawcett não hesitou.

- Crau.

Bruno não reagiu de forma alguma como Fawcett esperara. Sua voz, quando falou, estava tão desprovida de expressão quanto o seu rosto. Monotonamente, repetiu a palavra:

- Crau.

- Crau. Seu velho país de origem e sua cidade natal.

Bruno não respondeu de imediato. Voltou para a cadeira, ficou sentado durante todo um minuto, depois disse:

- Se eu concordar, como chegarei até lá? Cruzamento ilegal de fronteiras? Pára-quedas?

Fawcett fez um heróico e bem sucedido esforço para es­conder seu sentimento de exultação. Wrinfield e Bruno - ele convencera a ambos em questão de minutos. Ele disse de modo trivial:

- Nada tão dramático. Você apenas vai junto com o circo.

Dessa vez Bruno pareceu ter ficado incapaz de falar, assim Wrinfield falou:

- É verdade, Bruno. Nós... isto é, eu concordei em coo­perar com o governo nesse assunto. Não que tivesse conheci­mento, até o presente momento, de que assunto específico se tratava. Vamos fazer uma pequena excursão pela Europa, prin­cipalmente pela Europa Oriental. As negociações já estão bem adiantadas. É bastante natural. Eles mandam circos, bailarinos e cantores para nós; estamos apenas retribuindo.

- O circo inteiro?

- Não, é claro que não. Seria impossível. Só a nata da nata, por assim dizer. - Wrinfield sorriu de leve. - É de se imaginar que isto inclua você.

- E se eu recusar?

- Nós simplesmente cancelaremos a excursão.

Bruno olhou para Fawcett.

- O Sr. Wrinfield perderia lucros. Isto custaria ao seu go­verno um milhão de dólares.

- Ao nosso governo. Pagaríamos um bilhão para conseguir o segredo.

Bruno olhou de Fawcett para Wrinfield e depois de volta para Fawcett. Disse de maneira abrupta:

- Eu irei.

- Esplêndido. Meus agradecimentos. Os agradecimentos do seu país. Os detalhes...

- Eu não preciso dos agradecimentos do meu país. - As palavras eram enigmáticas, mas não tinham tom ofensivo.

Fawcett, apanhado um pouco de surpresa, buscou o signifi­cado por trás das palavras, depois decidiu que era melhor não buscar.

- Como quiser. Os detalhes, como eu ia dizendo, podem esperar até mais tarde. Sr. Wrinfield, por acaso o Sr. Pilgrim lhe disse que ficaríamos muito gratos se levasse mais duas pes­soas quando for para o exterior?

- Ele não disse. - Wrinfield parecia estar um pouco zan­gado. - Parece que havia um número considerável de coisas que o Sr. Pilgrim não me disse.

- O Sr. Pilgrim sabe o que está fazendo. - Agora que tinha apanhado os dois, Fawcett tirou as luvas de veludo, mas ainda continuou cortês e polido. - Não havia sentido nenhum em sobrecarregá-lo com detalhes desnecessários até que tivésse­mos garantida a cooperação de ambos, cavalheiros. As duas pes­soas em questão são o Dr. Harper e uma amazona, Maria. Gente nossa. Muito importantes para o nosso objetivo. Isso também ex­plicarei mais tarde. Há algumas coisas que primeiro eu preciso discutir urgentemente com o Sr. Pilgrim. Diga-me, Bruno, por que concordou em ir? Devo adverti-lo de que pode ser extrema­mente perigoso para você e se for apanhado não teremos opção senão negar que o conhecemos. Por quê?

Bruno encolheu os ombros.

- Quem poderia explicar? Pode haver inúmeras razões que um homem não seria capaz de explicar nem para si próprio. Poderia ser gratidão... a América me recebeu quando o meu país me expulsou. Há pessoas lá para as quais eu gostaria de causar tantos prejuízos quantos elas me causaram. Sei que há homens perigosos e irresponsáveis no meu país natal, que não hesitariam em empregar esta arma, se ela existir. E depois, o senhor diz que sou a única pessoa excepcionalmente equipada para executar esta tarefa. De que maneira não sei, mas se é este o caso, como poderia deixar outro ir em meu lugar? Não só ele poderia falhar em conseguir obter o que querem, mas também poderia muito bem acabar sendo morto no curso da tentativa. Eu não gostaria de ter qualquer dessas duas coisas na minha consciência. - Ele sorriu de leve. - Apenas diga que é um desafio e tanto.

- E a sua verdadeira razão?

Bruno disse com simplicidade:

- Porque eu odeio a guerra.

- Hummm. Não é a resposta que eu esperava, mas é bas­tante justa. - Levantou-se. - Obrigado, senhores, pelo seu tem­po, sua paciência e, acima de tudo, pela sua cooperação. Direi para os carros os levarem de volta.

Wrinfield disse:

- E o senhor? Como é que vai para o escritório do Sr. Pilgrim?

- A senhora dona daqui e eu temos uma espécie de en­tendimento. Tenho certeza de que ela me arranjará algum tipo de transporte.

 

Fawcett tinha as chaves na mão quando se aproximou do apartamento de Pilgrim. - Pilgrim dormia e trabalhava no mes­mo local - mas as guardou. Pilgrim, de maneira totalmente con­trária aos seus hábitos, não tinha trancado a porta, ele nem mesmo a fechara direito. Fawcett empurrou a porta e entrou. O primeiro pensamento parcialmente irracional que lhe ocorreu foi o de que poderia ter sido um pouco exagerado quando assegurara a Wrin­field que Pilgrim sabia o que estava fazendo.

Pilgrim estava estendido no tapete. Quem quer que o tivesse deixado estendido ali tinha, claramente, picadores de gelo de sobra em casa, pois nem mesmo se dera ao trabalho de remover o que deixara enterrado até o cabo na nuca de Pilgrim. A morte devia ter sido instantânea, pois não havia nem uma gota de sangue para manchar a sua camisa de Turnbull and Asser. Faw­cett ajoelhou-se e examinou o rosto. Estava tão calmo e inex­pressivo como habitualmente sempre estivera em vida. Pilgrim não apenas não soubera o que o havia atingido, como nem mesmo soubera que fora atingido.

Fawcett levantou-se, caminhou até o telefone e o tirou do gancho.

- O Dr. Harper, por favor. Peça a ele para vir aqui imediatamente.

O Dr. Harper não era exatamente uma caricatura ou um protótipo conceptível do médico gentil, mas teria sido difícil vi­sualizá-lo em qualquer outro papel. Havia uma certa inevitabi­lidade médica nele. Era alto, magro, de aparência distinta, o ca­belo tornando-se grisalho nas têmporas e usava óculos com ar­mação de osso que davam ao seu olhar uma certa aparência de ser penetrante, que poderia ser ilusória, intencional, ou apenas habitual. Óculos de grau com armação de osso são de grande utilidade para os médicos; o paciente nunca sabe dizer se está gozando de ótima saúde ou se tem apenas semanas de vida. Suas roupas eram tão imaculadas como as do morto que ele exami­nava pensativamente. Tinha a maleta preta de médico consigo, mas não se preocupava em usá-la.

- Então, isto é tudo o que sabe a respeito desta noite? - disse ele.

- É tudo.

- Wrinfield? Afinal, era o único que sabia. Antes desta noite, quero dizer.

- Ele não conhecia nenhum dos detalhes antes desta noite. De nenhuma maneira. E não teve nenhuma oportunidade. Ele estava comigo.

- Existem coisas tais como um cúmplice, sabe?

- De jeito nenhum. Espere até vê-lo. O dossiê dele é impecável, pode acreditar. Pilgrim passou dias verificando tudo. O patriotismo dele é inquestionável. Não me surpreenderia se tiver uma etiqueta com "Deus Abençoe a América" costurada na ca­miseta. Além disso, acha que perderia tempo e se daria ao tra­balho de levar todo o seu maldito circo - bem, a maior parte dele - para a Europa se pretendesse fazer isso? Sei que existem coisas como construir uma fachada, preparar uma cortina de fu­maça, fazer manobras diversionistas, sei lá, chame como quiser, mas bem, eu lhe pergunto...

- Não é provável.

- Mas acho que devíamos trazê-lo até aqui junto com o Bruno. Só para deixá-los ver contra o que estão lutando. E te­remos de avisar o Almirante imediatamente. Fará isto enquanto eu apanho o Barker e o Masters?

- Aquilo é o aparelho de mixagem?

- É.

O Dr. Harper ainda estava ao telefone quando Barker e Mas­ters chegaram; Barker, o motorista, e Masters, o homem grisalho que confrontara Bruno no palco.

- Tragam Wrinfield e Bruno até aqui. Digam a eles que é desesperadamente urgente, mas não falem nada a respeito disso. Façam-nos entrar pelo túnel dos fundos. Sejam rápidos - or­denou Fawcett.

Fawcett fechou, mas não trancou a porta atrás deles enquan­to o Dr. Harper desligava.

- Devemos abafar o caso - disse Harper. - De acordo com o Almirante, que é o único homem que poderia saber, ele não tinha parentes próximos. Para todos os efeitos, morreu de um ataque de coração. Eu e o meu juramento de Hipócrates. Ele estará aqui logo.

Fawcett estava tristonho.

- Achei mesmo que ele viria. Vai ficar muito contente com isso. Pilgrim era a menina dos olhos dele, e não é segredo que era o primeiro na lista para ser promovido a Almirante. Bem, vamos chamar os rapazes das latinhas de pó e deixemos que dêem uma olhadela. Não é provável que encontrem alguma coisa.

- Tem tanta certeza?

- Tenho certeza. Qualquer sujeito frio o suficiente para ir embora deixando a arma do crime in situ, como estava, tem um bocado de confiança em si mesmo. E reparou na maneira como ele está caído, os pés na direção da porta, a cabeça na direção oposta?

- E daí?

- O fato de estar tão perto da porta é uma prova quase indiscutível de que foi o próprio Pilgrim quem a abriu. Acha que ele viraria as costas para um assassino? Quem quer que tenha sido o assassino era um homem que Pilgrim não só conhecia, mas em quem confiava.

Fawcett estava certo. Os dois peritos que vieram com suas caixinhas de engenhos não haviam encontrado nada. Os únicos lugares onde impressões digitais poderiam provavelmente ter es­tado, no picador de gelo e na maçaneta da porta, estavam lim­pos, como era de se prever. Eles já iam saindo quando um ho­mem entrou sem pedir licença ou bater na porta.

O Almirante era a imagem do tio predileto de todo mundo, de um fazendeiro bem sucedido ou, o que de fato ele era, um Almirante de Esquadra, ainda que da reserva. Corpulento, rosto corado, com cabelos grisalhos e irradiando uma autoridade es­tranhamente gentil, parecia ser uns dez anos mais moço do que os seus reconhecidos, se bem que freqüentemente questionados, cinqüenta e cinco anos. Olhou para o morto estendido no chão e o aspecto mais gentil do seu caráter desapareceu. Virou-se para o Dr. Harper.

- Já fez o atestado de óbito? Coronárias, é claro. - O Dr. Harper sacudiu a cabeça. - Então faça logo e mande remover Pilgrim para o nosso necrotério particular.

- Se pudéssemos adiar isto por um momento, senhor - disse Fawcett. - Isto do necrotério, quero dizer. Há duas pes­soas que estarão aqui dentro em pouco, a meu pedido: o dono do circo e o nosso último... ah... recruta. Estou convencido de que nenhum dos dois teve nada a ver com isso, mas seria interessante observar suas reações. E, também, descobrir se ainda querem ir adiante com o negócio.

- Que garantia você pode oferecer de que não sairão daqui e não se dirigirão para o telefone mais próximo? Não há um único jornal no país que não daria o seu editor-assistente para ter esta história.

- O senhor crê que isto já não me ocorreu? - Uma nota um pouco menos cordial imiscuíra-se no tom da voz de Fawcett. - Não há nenhuma garantia. Há apenas o meu julgamento.

- É, há isto - disse o Almirante num tom pacífico. Era o mais próximo que ele jamais poderia chegar de um pedido de desculpas. - Muito bem. - Fez uma pausa para recuperar sua posição e disse: - Eles não vão, espero, bater e entrar pela porta da frente, vão?

- Barker e Masters estão vindo com eles. Pelo túnel dos fundos.

Como se esperando a deixa, Barker e Masters apareceram na porta, então afastaram-se para deixar entrar Bruno e Wrin­field. Fawcett sabia que o Almirante e o Dr. Harper observavam seus rostos tão atentamente quanto ele. De maneira muito com­preensível nem Wrinfield nem Bruno os observavam: quando se encontra um homem assassinado estendido no chão aos seus pés sua atenção ocular não tende a se desviar. Como era de se pre­ver, as reações de Bruno foram mínimas, o estreitamento dos olhos e o enrijecimento da boca poderiam ter sido tanto imagi­nários quanto reais, mas as reações de Wrinfield foram tudo o que qualquer um poderia ter desejado: a cor sumiu-lhe do rosto, deixando-o de um cinzento-sujo, ele estendeu uma mão trêmula para a verga da porta para se apoiar, e por um momento deu a impressão de que poderia até cair.

Três minutos depois, três minutos durante os quais Fawcett lhes havia dito o pouco que sabia, Wrinfield, sentado com um copo de conhaque na mão, ainda estava tremendo. Bruno de­clinara o oferecimento de um drinque. O Almirante tomara a palavra.

- Tem algum inimigo no circo? - perguntou a Wrinfield.

- Inimigo? No circo? - Wrinfield estava visivelmente surpreendido. - Meu Deus, não. Sei que isto deve soar ridículo para o senhor, mas nós realmente somos uma grande família feliz.

- Algum inimigo em outro lugar?

- Todo homem bem sucedido os tem. Isto é, de outra es­pécie. Bem, há rivalidades, competição, inveja. Mas inimigos? - Ele olhou quase que apavorado para Pilgrim e estremeceu. - Não deste tipo. - Ficou em silêncio por um momento depois olhou para o Almirante com uma expressão muito próxima de ressentimento, e, quando falou de novo, o tremor havia deixado a sua voz. - E por que me faz estas perguntas? Eles não me mataram. Mataram o Sr. Pilgrim.

- Há uma ligação. Fawcett?

- Sim, há uma ligação. Posso falar francamente, senhor?

- Como disse?

- Bem, há telefones públicos e assistentes de editores sacrificáveis...

- Não seja idiota. Já me desculpei por isso.

- Sim, senhor. - Fawcett rapidamente rebuscou sua me­mória e não encontrou nenhum pedido de desculpas. Parecia não haver sentido em mencioná-lo. - Como disse, senhor, há uma ligação. Também transpiraram informações confidenciais e só pode ter vindo de dentro de nossa própria organização. Como eu disse, e como já expliquei a estes cavalheiros, é claro que Pil­grim foi morto por alguém que ele conhecia muito bem. Não pode ter transpirado nenhuma informação específica - só o se­nhor, Pilgrim, o Dr. Harper e eu sabíamos quais eram os obje­tivos. Mas, qualquer um entre mais de uma dúzia de pessoas - pesquisadores, telefonistas, motoristas - membros da organi­zação, sabia que tínhamos mantido contatos regulares com o Sr. Wrinfield. Seria difícil, para não dizer impossível, encontrar qualquer serviço secreto ou de contra-espionagem no mundo cujas fileiras não tenham sido infiltradas por um agente inimigo, um que eventualmente se encontra tão seguramente estabelecido a ponto de ficar acima de suspeitas. Seria ingênuo de nossa parte pretender que sejamos a única exceção.

- Dificilmente se poderia considerar supersecreto o fato de que o Sr. Wrinfield estava nos estágios preparatórios do planeja­mento de uma excursão pela Europa - uma excursão primor­dialmente pela Europa Oriental - e teria sido bem simples des­cobrir que Crau estava na lista das cidades a serem visitadas. No que diz respeito aos cavalheiros de Crau envolvidos - mais precisamente, os cavalheiros responsáveis pela pesquisa que se realiza em Crau - poderia ter havido uma coincidência, mas a ligação óbvia com a CIA seria aquele bocadinho que é um pouco demais.

- Então por que matar Pilgrim? Como uma advertência?

- De certa maneira, sim.

- Quer ser mais específico, Sr. Fawcett?

- Sim, senhor. Não há dúvida de que foi uma advertência. Mas para tornar a morte de Pilgrim tanto compreensível quanto justificável do ponto de vista deles, pois temos que recordar que embora estejamos lidando com homens insensatos também esta­mos lidando com homens racionais, tinha que ser algo mais do que uma simples advertência. A morte dele é também uma mis­tura de convite e provocação. É uma advertência que eles dese­jam seja ignorada. Se acreditam que a próxima excursão do Sr. Wrinfield é patrocinada por nós, e se, a despeito da morte de Pilgrim, a qual nem por um momento duvidarão que este­jamos convencidos de ter sido causada por eles, ainda continuar­mos e levar o tour adiante então devemos ter necessidades extra­ordinariamente urgentes para realizá-la. Eles esperariam encon­trar as provas concretas em Crau.

- E seríamos desmoralizados internacionalmente. Imaginem, se puderem, o impacto sensacional da notícia da prisão de um circo inteiro. Imaginem que arma de barganha tremendamente poderosa isto daria ao Leste em quaisquer negociações futuras. Nós nos tornaríamos alvo de risotas internacionais, toda a credi­bilidade que temos de todo o mundo estaria perdida, seríamos um objeto de ridículo tanto no Leste como no Oeste. O episódio do avião U-2 de Gary Powers seria uma bagatela comparado com isso.

- De fato. Diga-me qual é a sua opinião das chances de localizar este joio no trigo da CIA?

- Agora neste momento?

- Nulas.

- Dr. Harper?

- Estou totalmente de acordo. Não há condição. Isto signi­ficaria destacar um vigia para cada um das nossas diversas cen­tenas de empregados neste prédio, senhor.

- E quem vigiará os vigias? É isto o que quer dizer?

- Com o devido respeito, o senhor sabe muito bem o que eu quero dizer.

- Ai de mim! - o Almirante enfiou a mão no bolso, tirou dois cartões e entregou um a Wrinfield e o outro a Bruno. - Se precisarem de mim, liguem para este número e peçam para falar com o Charles. Quaisquer idéias que possam ter a respeito da minha identidade - e devem ser quase tão burros quanto nós se não tiverem tido algumas - façam o favor de guardar para si próprios. - Suspirou. - Ai de mim, pois eu temo, Faw­cett, que a sua apreciação do caso tenha sido inteiramente cor­reta. Não há nenhuma explicação possível, nenhuma, pelo menos que seja remotamente viável. Não obstante, pôr nossas mãos nesse documento elimina todas as outras considerações. Podemos ter que pensar é em algum outro meio.

- Não há nenhum outro meio - disse Fawcett.

- Não há nenhum outro meio - repetiu Harper.

O Almirante concordou batendo com a cabeça.

- Não há nenhum outro meio. É Bruno ou nada?

Fawcett sacudiu a cabeça.

- Bruno e o circo ou nada.

- Parece que sim. - O Almirante olhou com ar pensativo para Wrinfield. - Diga-me, por acaso gosta da idéia de ser sacrificável?

Wrinfield esvaziou o copo. Sua mão estava firme de novo e ele recuperara o equilíbrio.

- Francamente, não gosto.

- Nem mesmo da de ser aprisionado?

- Não.

- Compreendo o seu ponto de vista. Poderia ser prejudi­cial aos negócios. Devo depreender daí que mudou de idéia?

- Não sei, simplesmente não sei. - Wrinfield desviou o olhar, ao mesmo tempo pensativo e perturbado. - Bruno?

- Eu vou. - A voz de Bruno estava seca e descolorida, absolutamente sem nenhum traço dramático ou teatral. - Se eu tenho que ir, irei sozinho. Ainda não sei como é que vou chegar lá e ainda não sei o que é que vou ter que fazer quando chegar. Mas irei.

Wrinfield suspirou.

- Então está resolvido. - Ele sorriu de leve. - Um ho­mem pode suportar as coisas até um certo ponto. Nenhuma pri­meira geração americana vai envergonhar uma quinta geração americana.

- Obrigado, Sr. Wrinfield. - O Almirante olhou para Bruno com o que poderia ter sido uma expressão tanto de curio­sidade como de apreciação no rosto. - E muito obrigado ao senhor também. Diga-me, que é que o faz estar tão decidido a ir?

- Já disse ao Sr. Fawcett. Eu odeio a guerra.

 

O Almirante tinha ido embora. O Dr. Harper tinha ido em­bora. Wrinfield e Bruno tinham ido embora e o corpo de Pilgrim fora removido. Dentro de três dias seria enterrado com toda a solenidade devida e a causa de sua morte nunca seria conhe­cida, uma circunstância nada incomum entre aqueles que exer­ciam funções de espionagem e contra-espionagem, e cujas car­reiras tinham chegado a um fim brusco e inesperado. Fawcett, a expressão tão fria e dura quanto a gordura de seu rosto permi­tiria, caminhava de um lado para o outro no apartamento do homem morto quando o telefone tocou. Fawcett atendeu imedia­tamente.

A voz no ascultador estava rouca e trêmula.

- Fawcett? Fawcett? É você, Fawcett?

- Sim, quem é?

- Não posso dizer pelo telefone. Você sabe muito bem quem é. Foi você quem me meteu nisso. - A voz tremia tanto que estava virtualmente irreconhecível. - Pelo amor de Deus, venha até aqui, uma coisa horrível aconteceu.

- O quê?

- Venha até aqui. - A voz implorava. - E pelo amor de Deus, venha sozinho. Estarei no meu escritório. No escritório do circo.

O telefone ficou mudo. Fawcett bateu repetidamente no gan­cho, mas o telefone continuou mudo. Desligou, saiu da sala, tran­cou a porta, desceu pelo elevador para a garagem subterrânea e dirigiu até o circo sob a escuridão e a chuva.

As luzes exteriores do circo estavam apagadas exceto por algumas lâmpadas fracas dispersas - já era suficientemente tar­de para todos os membros do circo terem-se recolhido às suas acomodações no trem. Fawcett saltou do carro e dirigiu-se apres­sadamente para o local onde ficavam os animais, onde Wrinfield tinha o seu modesto escritório portátil. Ali a iluminação era bas­tante boa. Não havia quaisquer sinais de vida humana, coisa que Fawcett, como primeira reação, achou bastante surpreendente, pois Wrinfield tinha uma fortuna de quatro patas ali; a segunda e quase que imediata reação foi de achar que não era nada sur­preendente, pois ninguém em sã consciência iria roubar um ele­fante indiano ou um leão núbio. Não só eram animais difíceis de controlar como a própria acomodação poderia ter represen­tado um problema. A maioria dos animais estava deitada, dor­mindo, mas os elefantes, dormindo ou não, acorrentados por uma pata dianteira, estavam de pé, oscilando de um lado para o outro constantemente; numa grande jaula doze tigres-de-bengala an­davam inquietos sem parar, rugindo ocasionalmente sem nenhuma razão aparente.

Fawcett dirigiu-se para o escritório de Wrinfield e parou in­trigado quando não viu nenhuma luz vindo da janela solitária. Avançou e experimentou a porta. Não estava trancada. Abriu, enfiou a cabeça para examinar o interior e então o mundo in­teiro escureceu para ele.

 

Wrinfield quase não dormiu naquela noite, coisa que, levan­do em consideração os últimos acontecimentos e as preocupações que eles haviam trazido consigo, dificilmente era de surpreender. Afinal, levantou-se por volta das cinco horas, tomou um banho de chuveiro, fez a barba e se vestiu, deixou suas acomodações luxuosas no trem e dirigiu-se para o local onde ficavam os ani­mais, um hábito instintivo quando estava muito preocupado, pois Wrinfield era apaixonado pelo seu circo e ali sentia-se mais à vontade do que em qualquer outro lugar do mundo. A profun­didade da relação que existia entre ele e seus animais certamente era muito maior do que a que existira entre ele e os relutantes estudantes de economia com os quais - conforme pensava agora - desperdiçara os melhores anos de sua vida dando aulas. Além disso, sempre podia fazer hora com Johnny, o vigia noturno, que, a despeito da enorme diferença de posição que havia entre eles, era um velho companheiro e confidente seu. Não que Wrinfield tivesse intenção de fazer confidências a quem quer que fosse naquela madrugada.

Mas Johnny não estava lá e Johnny não era homem de dor­mir em serviço, por mais simples que fosse - seu trabalho era de comunicar ao domador ou ao médico veterinário qualquer coisa que parecesse imprópria num dos animais. Não mais do que um pouco intrigado de início, depois com crescente ansie­dade, Wrinfield levou a cabo uma busca sistemática e finalmente o localizou num canto escuro. Johnny, já idoso, mirrado e alei­jado - ele levara uma queda a mais do arame baixo - estava firmemente amarrado e amordaçado, mas exceto por isso, vivo e aparentemente ileso e furiosamente zangado. Wrinfield soltou a mordaça, desamarrou as cordas e ajudou o velho a se levantar nas pernas trêmulas. Uma vida inteira passada no circo deixara Johnny com uma fluência extraordinária nas palavras impublicáveis, e ele não deixou de dizer nem um único dos palavrões que conhecia enquanto desabafava seus sentimentos com Wrin­field.

- Quem fez isso com você? - perguntou Wrinfield.

- Não sei, patrão. É um mistério para mim. Não vi nada, não ouvi nada. - Suavemente, Johnny esfregou a parte de trás do pescoço. - Parece que foi uma pancada com um saco de areia.

Wrinfield examinou o pescoço esquelético. Tinha uma con­tusão feia e de má cor, mas a pele estava intacta. Wrinfield pôs o braço em torno dos ombros frágeis.

- Foi mesmo uma pancada com um saco de areia que lhe deram. Vamos. Venha sentar um pouco no escritório, tenho uma coisinha lá que lhe fará bem. Depois chamaremos a polícia.

Estavam a meio caminho para o escritório quando os om­bros de Johnny se endureceram sob o braço que o amparava e numa voz estranhamente rouca e tensa ele disse:

- Acho que temos uma coisa um pouco mais importante do que um ataque com um saco de areia para comunicar aos tiras, patrão.

Wrinfield olhou para ele sem compreender, então seguiu a direção de seus olhos arregalados. Na jaula dos tigres-de-bengala jaziam os restos barbaramente estraçalhados do que antes fora um homem. Só pelos poucos farrapos de roupa deixados e as pa­teticamente heróicas fileiras de condecorações Wrinfield pôde descobrir que estava olhando para o que restava do Coronel Fawcett.

 

Wrinfield olhou com fascinação horrorizada para a cena ain­da escura de antes do amanhecer - trabalhadores do circo, ar­tistas, policiais uniformizados e detetives, todos andando em tor­no das jaulas dos animais, todos ocupados febrilmente em erra­dicar para sempre quaisquer supostas pistas que poderia ter ha­vido. Os homens da ambulância recolhiam os restos inidentificáveis de Fawcett e os colocavam numa maca. Num pequeno grupo afastado dos outros estavam Malthius, o domador dos ti­gres, Neubauer, o domador de leões, e Bruno, os três homens que tinham entrado na jaula e tirado Fawcett de lá. Wrinfield virou-se para o Almirante, a primeira pessoa para quem telefo­nara e que desde que chegara não havia se dado ao trabalho de explicar sua presença ou identidade a ninguém, e era evidente, de maneira marcante, que nenhum policial se aproximara dele para lhe pedir que justificasse sua presença ali: obviamente al­gum policial do escalão superior dissera: "Não se aproximem da­quele homem."

Wrinfield disse:

- Quem, em nome de Deus, pode ter feito essa coisa hor­rível, senhor?

- Eu sinto muitíssimo, Sr. Wrinfield. - Era completamente estranho à natureza do Almirante dizer que sentia muito a respeito do que quer que fosse. - Sinto muito por tudo. Sinto por Fawcett, um de meus colaboradores mais capazes e de maior confiança e um ser humano excepcional. Sinto pelo senhor, por envolvê-lo nesta terrível confusão. Isto é o tipo de publicidade que qualquer circo dispensaria muito bem.

- Ao diabo com a publicidade! Quem, senhor, quem?

- E creio que também sinto um pouco por mim mesmo. - O Almirante encolheu os ombros com cansaço. - Quem? Obviamente a mesma pessoa ou pessoas que mataram Pilgrim. Sua idéia de quem eles possam ser é tão boa quanto a minha. A única coisa certa é que eles - quem quer que eles sejam - sabiam que Fawcett vinha aqui, ou não teriam silenciado o vigia antes - ele deve se considerar um homem de sorte por não ter sido encontrado dentro daquela jaula com Fawcett. Houve quase que com certeza um telefonema. Logo saberemos. Já man­dei que verificassem isso.

- Verificar o quê?

- Todos os telefonemas para o nosso escritório, os recebi­dos e os feitos de lá, exceto, é claro, com aparelho de mixagem, são gravados. Com sorte, teremos a gravação dentro de minutos. Nesse ínterim gostaria de falar com aqueles três homens que tiraram Fawcett da jaula. Separadamente. Pelo que soube um dos três é o domador de tigres. Qual é o nome dele?

- Malthius. Mas... mas ele está acima de suspeitas.

- Não estou duvidando. - O Almirante tentava ser pa­ciente. - Acha que qualquer caso de assassinato misterioso po­deria jamais ser resolvido se interrogássemos apenas os suspeitos? Por favor, faça com que o tragam.

Malthius, um búlgaro de olhos escuros com um rosto franco, estava de maneira visível profundamente perturbado. O Almi­rante disse-lhe com delicadeza:

- Não precisa ficar tão desolado.

- Meus tigres fizeram isso, senhor.

- Eles provavelmente o fariam a qualquer pessoa no país exceto o senhor. Ou acha que não?

- Eu não sei, senhor. Se uma pessoa estivesse deitada sem se mover, realmente não acredito que fizessem. - Ele hesitou.

- Mas em certas circunstâncias poderiam. - O Almirante es­perou pacientemente e Malthius continuou. - Se fossem pro­vocados. Ou...

- Sim?

- Se sentissem cheiro de sangue.

- Tem certeza disso?

- É claro que ele tem certeza. - O Almirante, que des­conhecia por completo a profunda lealdade de Wrinfield para com os seus homens, ficou surpreendido com a aspereza do tom da voz. - Que é que acha, senhor? Nós os alimentamos com carne de cavalo ou de boi, e são cruas e têm cheiro de sangue. Os tigres ficam indóceis para pegar a carne e estraçalhá-la com os dentes e as garras. O senhor alguma vez já viu tigres na hora da comida?

O Almirante teve uma visão mental de como Fawcett devia ter morrido e estremeceu involuntariamente.

- Não, e não creio que vá querer tampouco. - Tornou a virar-se para Malthius. - Então ele poderia ter estado vivo, consciente ou não - o sangue não corre quando se está morto - ter sido esfaqueado e atirado para dentro da jaula?

- É possível, senhor. Mas não encontrará agora nenhum vestígio de um ferimento feito com faca.

- Percebo. Encontrou a porta trancada pelo lado de fora. É possível fazê-lo por dentro?

- Não. Pode-se passar um ferrolho por dentro. O ferrolho não estava fechado.

- Isso não é uma combinação bastante curiosa?

Malthius sorriu pela primeira vez, se bem que muito de leve.

- Não para um domador de tigres. Quando eu entro na jaula, viro a chave pelo lado de fora, destrancando-a, mas dei­xando-a na fechadura. Uma vez lá dentro passo o ferrolho na porta, não posso me arriscar a deixar a porta se abrir sozinha ou ser empurrada e aberta por um dos tigres e deixá-los soltos no meio do público. - Ele sorriu pela segunda vez, sem alegria.

- Também pode vir a ser útil para mim, se as coisas ficarem desagradáveis, apenas empurro o ferrolho, saio de lá, e tranco virando a chave pelo lado de fora.

- Obrigado. Poderia pedir àquele seu amigo...

- Heinrich Neubauer, o domador de leões.

- Eu gostaria de vê-lo.

Malthius afastou-se andando com um ar desolado e o Almi­rante comentou:

- Ele me parece muito infeliz.

- O senhor não estaria? - De novo a inesperada aspereza na voz de Wrinfield. - Ele não só se sente pessoalmente res­ponsável, mas também seus tigres sentiram pela primeira vez o gosto da carne humana. Malthius é carne humana também o senhor sabe.

- Eu não havia pensado nisso.

O Almirante fez umas poucas perguntas desconexas e inconseqüentes a Neubauer, depois mandou chamar Bruno. Quando ele chegou o Almirante disse:

- Você é o único com quem eu realmente queria falar. Os outros dois foram apenas uma cobertura. Estamos sendo obser­vados tanto pelo pessoal do circo como pela polícia. A propó­sito, alguns policiais pensam que eu seja um policial de altíssimo escalão, outros, que eu seja do FBI, embora, por que eles devam pensar isso eu não tenha a menor idéia. Uma coisa horrível, Bruno, coisa realmente horrorosa. Bem, parece que o pobre Fawcett tinha razão, estamos sendo pressionados até onde é possível para que descubram quão desesperados estamos de fato para ir até Crau. Bem, eu já fui pressionado mais do que o suficiente. Quem sabe quem será o próximo? Não tenho nenhum direito, ninguém tem mais nenhum direito de pedir a vocês que conti­nuem envolvidos nesse negócio horroroso. Há um limite para o patriotismo, ser patriota não fez muito bem nem a Pilgrim nem a Fawcett, não é? A partir deste momento estão liberados de quaisquer obrigações, reais ou imaginárias, que possam ter tido.

- Fale por si mesmo. - O tom de Wrinfield não se modi­ficara. O que quer que tocasse o amado circo de Wrinfield to­cava seus sentimentos mais profundos: aquilo se tornara um as­sunto pessoal para ele. - Dois homens bons morreram. Quer que eles tenham morrido em vão? Eu vou para a Europa.

O Almirante piscou e se virou para Bruno.

- E você?

Bruno olhou para ele num silêncio que beirava o desdém.

- Bem. - O Almirante ficou momentaneamente confuso. - Vamos de novo, a caminho de novo. Se estão preparados para aceitar os riscos, estou preparado para aceitar seus sacrifícios. É totalmente egoísta, eu sei, mas queremos aqueles papéis de­sesperadamente. Não vou tentar lhes agradecer, honestamente eu não saberia como fazê-lo, mas o mínimo que posso fazer é pro­videnciar proteção. Vou designar cinco de meus melhores ho­mens para ficarem com vocês - como equipe de imprensa, di­gamos - depois, uma vez que estejam a bordo do navio...

Bruno interrompeu-o numa voz muito tranqüila:

- Se designar qualquer de seus homens para nos proteger, aí mesmo é que ninguém vai a lugar nenhum, e isso me inclui. E pelo que eu soube, embora não o compreenda ainda, se eu não for então não haverá nenhum sentido em mais ninguém ir. A exceção, é claro, é o Dr. Harper. Um homem morto respon­sabilizou-se por ele e o senhor não pode me conseguir nenhuma recomendação melhor do que ela. Quanto ao resto dos seus ho­mens - quem pensa que matou Pilgrim e Fawcett? Sem a pro­teção deles poderíamos ter uma chance.

Bruno virou-se de maneira brusca e afastou-se. O Almirante ficou olhando para ele com uma expressão um pouco magoada no rosto, por um momento, se bem que altamente fora de seu caráter, sem palavras, mas foi salvo da necessidade de fazer qual­quer comentário pela chegada de um sargento da polícia carre­gando uma pequena caixa preta. Aquele uniforme não era pro­priedade do homem que o envergava, Wrinfield tinha certeza. Quando era o caso de dar cor local, Charles - era a única ma­neira como Wrinfield conseguia pensar nele - não era homem de perder oportunidades.

O Almirante perguntou:

- É a gravação? - e quando o sargento concordou, disse: - Por favor, será que poderíamos usar o seu escritório, Sr. Wrin­field?

- É claro. - Wrinfield olhou em volta. - Aqui não, no trem. Há gente demais.

A porta do escritório fechou-se atrás deles, o sargento tirou o gravador do estojo, e Wrinfield disse:

- Que é que espera ouvir?

- A sua voz. - Wrinfield demonstrou seu espanto. - Ou uma imitação muito boa dela. Ou da de Bruno. As vozes de vocês eram as duas únicas de pessoas do circo que Fawcett co­nhecia, ele não teria vindo a chamado de mais ninguém.

Eles ouviram a gravação toda. Quando terminou, Wrinfield disse com calma:

- A intenção era de parecer que fosse eu. Será que po­deríamos ouvir de novo?

Ouviram tudo uma segunda vez, então Wrinfield disse num tom positivo:

- Não é a minha voz. O senhor sabe que não é.

- Meu caro Wrinfield, nunca imaginei que fosse. Eu sei que não é. Agora sei que não é. Mas tinha que ouvir uma se­gunda vez para ter certeza. Quando um homem fala desse jeito apressado e aflito, sua voz adquire entonações anormais. Um pedaço de seda esticado sobre o bocal é de grande ajuda. Não culpo o pobre Fawcett por ter sido enganado, especialmente por só ter tido uma coisa em mente no momento. Mas mesmo as­sim, é uma imitação um bocado boa. - O Almirante fez uma pausa, refletiu, depois olhou para Wrinfield com ar pensativo.

- Que eu saiba e que você saiba, você nunca falou com nenhum dos meus homens, certo? - Wrinfield assentiu. - Então veja bem, suponha que este telefonema foi dado por alguém que co­nhecia a sua voz intimamente e a estudou.

- Isto é absurdo. Se está sugerindo...

- É precisamente o que estou sugerindo, temo. Olhe, amigo, se a nossa organização pode estar infiltrada, não acha que a droga do seu circo também pode estar? Afinal, tem pessoas de vinte e cinco nacionalidades trabalhando para você, eu só tenho de uma.

- O senhor é da CIA. Todo mundo quereria se infiltrar na CIA. Quem quereria se infiltrar num circo inofensivo?

- Ninguém. Mas aos olhos dos infiéis, não é um circo inofensivo, é um filiado da CIA e portanto propício para ser infil­trado. Não deixe a lealdade cegar a sua inteligência. Vamos ou­vir a gravação de novo. Só que desta vez não procure reconhecer a sua voz, procure ouvir a voz de outra pessoa, imagino que conheça a voz de todos os homens que trabalham para você. E para reduzir o campo, lembre-se de que a maioria de seus homens fala com sotaques estrangeiros bastante fortes. Esta é uma voz anglo-saxônica, provavelmente americana, embora eu não possa ter certeza.

Tocaram a gravação inteira mais quatro vezes, e no fim Wrinfield sacudiu a cabeça.

- Não adianta. A distorção é grande demais.

- Obrigado, sargento, pode ir. - O sargento fechou o es­tojo e foi-se embora. Com passadas rápidas, o Almirante andou de uma extremidade à outra do escritório, três passos em cada direção, depois sacudiu a cabeça numa aceitação relutante do inevitável.

- Que pensamento agradável. Uma ligação entre o meu pessoal e o seu.

- O senhor está terrivelmente seguro.

- Estou terrivelmente seguro de uma coisa e é o seguinte: Não há um único homem do meu pessoal que não teria prefe­rido renunciar à sua pensão para não ter que abrir a porta de uma jaula de tigres.

Wrinfield concordou numa aceitação igualmente relutante.

- Acho que é a minha vez de dizer que eu devia ter pen­sado nisso.

- Isto não tem importância. O ponto é, que é que vamos fazer? Vocês estão sob vigilância hostil, aposto minha carreira nisto. - Ele parou num abatimento momentâneo. - O que quer que a minha carreira vá valer quando tudo estiver acabado.

- Pensei que já tivéssemos resolvido isso. - O tom áspero, agora já habitual, estava de volta à voz de Wrinfield. - O se­nhor ouviu o que eu disse lá no circo. Ouviu o que Bruno disse.. Nós vamos.

O Almirante o encarou pensativo.

- É uma mudança de atitude notável desde ontem à noite. Ou, para dizer melhor, um endurecimento notável na atitude.

- Não creio que compreenda bem, senhor - Wrinfield es­tava sendo paciente. - Isto é a minha vida, a minha vida in­teira. Quer mexer comigo, mexa com o meu circo. Ou vice-versa. No todo ainda temos uma grande cartada.

- Será que eu deixei passar?

- Bruno ainda está limpo.

- Eu não tinha deixado passar isso, e é porque eu quero que ele continue assim que gostaria que empregasse esta nossa moça. O nome dela é Maria Hopkins e, embora eu não a conheça assim tão bem, o Dr. Harper garante que é uma agente muito inteligente e que a lealdade dela está acima de dúvidas. Ela deve se apaixonar por Bruno e ele por ela. Nada mais natural. - O Almirante exibiu o seu sorriso triste. - Se eu fosse vinte anos mais moço, diria que não há nada mais fácil. Ela é realmente muito bonita. Desta maneira ela poderá ser o contato entre Bruno, você, o Dr. Harper - e, até a data da partida, comigo mesmo - sem despertar nenhum espanto. Talvez como uma amazona, que tal? Foi idéia de Fawcett.

- Não, assim não. Ela pode pensar que é boa, pode até ser boa de fato, mas não há lugar para amadores no circo. Além disso, não há um só homem ou mulher do meu quadro profis­sional que não vá descobrir imediatamente que ela não é uma amazona treinada de circo. Não poderia imaginar um meio mais seguro de chamar atenção sobre ela.

- Tem alguma sugestão?

- Sim. Fawcett mencionou esta possibilidade naquele bor­del horrível aonde ele nos levou e eu tenho pensado um pouco no assunto. Realmente não precisei pensar muito. A minha se­cretária vai-se casar dentro de algumas semanas com um sujeito muito estranho que não gosta de circo; assim, ela vai embora. Isto é do conhecimento de todos. Deixe Maria ser minha nova secretária. Terá todas as razões para estar em constante con­tato comigo, e através de mim com o seu médico e com Bruno sem que ninguém possa fazer perguntas.

- Não poderia ser melhor. Agora, gostaria que pusesse um anúncio bem grande nos jornais de amanhã pedindo um médico para acompanhar o circo à Europa. Sei que esta não é a ma­neira que se usa normalmente para recrutar um médico, mas não dispomos de tempo para usar os métodos mais profissionais. Isto deve ficar claro no anúncio. Além disso tornará perfeita­mente evidente que você está procurando um médico sem ter nin­guém em mente, e que a sua escolha será essencialmente feita ao acaso. Você pode receber um número razoável de respostas - seriam umas boas férias para quem tivesse apenas, digamos, acabado de cumprir o seu período como interno - mas você escolherá, é claro, o Dr. Harper.

- Ele não clinica há anos, embora eu acredite que des­cobriria umas aspirinas se lhe torcesse o braço. Isto é irrelevante. O que interessa é que é um agente secreto excepcional.

- Também o eram, segundo me informaram, o Pilgrim e o Fawcett.

O Almirante fez um gesto rápido de irritação.

- As coisas nem sempre acontecem três vezes. A sorte muda. Aqueles dois homens conheciam o risco. Harper também conhece. De qualquer maneira, ninguém suspeita dele. Não há conexão entre ele e o circo.

- Já lhe ocorreu que "eles" podem verificar os anteceden­tes dele?

- Já lhe ocorreu que eu posso ser um dono e diretor do circo melhor do que você?

- Touché. Essa eu pedi.

- Sim, pediu. Duas coisas. Não há nenhuma razão para que devam verificar os antecedentes dele do que de qualquer de suas centenas de empregados. Os antecedentes dele são impecá­veis: dá consultas no Belvedere e esta é a maneira de passar parte de suas férias anuais à custa dos outros. Tem qualifica­ções muito superiores e muito mais prática do que qualquer um dos outros candidatos que você terá. Será uma escolha natural. Tem sorte de tê-lo.

- Mas ele não clinica...

- Ele tem consultório no hospital. Um dos escritórios de nossa filial.

- Será que nada é sagrado para vocês?

- Poucas coisas. Quando estará pronto para partir?

- Partir?

- Para a Europa.

- Tenho uma série de alternativas em datas e locais de par­tida esquematizada. Isto não é problema. Mais três dias aqui, depois teremos mais três compromissos na costa leste.

- Cancele-os.

- Cancelá-los? Nós nunca cancelamos apresentações, quer dizer as combinações estão feitas, os teatros alugados, propa­ganda em massa, milhares de entradas já vendidas...

- A compensação, Sr. Wrinfield, será principesca. Pense numa quantia conveniente e amanhã ela estará depositada no seu banco.

Wrinfield não era muito dado a ficar torcendo as mãos, mas ele parecia estar com muita vontade de se permitir fazê-lo na­quele momento.

- Somos uma instituição anual nestes lugares. Temos um público fiel enorme.

- Dobre a quantia em que pensou. Cancele. Seu transporte marítimo estará pronto em Nova York dentro de uma semana. Quando contratar o Dr. Harper ele cuidará das vacinações ne­cessárias. Se tiver qualquer problema com os vistos nós daremos um jeito. Não que eu espere qualquer confusão de parte das em­baixadas ou consulados da Europa Oriental - os países deles estão loucos para ver vocês. Virei aqui esta noite para o espe­táculo. A deslumbrante Srta. Hopkins também virá, mas não comigo. Arranje alguém para mostrar-lhe tudo, mas não você.

- Tenho um sobrinho muito inteligente...

- Ótimo. Não lhe diga nada. Faça com que ele a acom­panhe como guia numa excursão completa, a nova secretária co­nhecendo as instalações de seu novo trabalho. Faça com que ela seja apresentada a alguns de seus grandes astros. Especialmente, é claro, a Bruno. Deixe que Bruno saiba antes qual é o jogo.

 

Henry Wrinfield parecia muito mais ser filho de Tesco Wrin­field do que qualquer sobrinho tem o direito de parecer, embora, indiscutivelmente, fosse seu sobrinho. Tinha os mesmos olhos es­curos, o mesmo rosto magro, a mesma inteligência rápida; e se não estava exatamente no mesmo nível mental de seu tio, era, como o tio dissera, um rapaz muito inteligente, ou pelo menos inteligente o bastante para não encontrar dificuldades na tarefa de acompanhar Maria Hopkins num passeio pelos bastidores do circo. Durante uma hora mais ou menos esqueceu-se por com­pleto da atleta universitária de quem era noivo e ficou um pouco surpreendido de que, quando se lembrou dela, cerca de uma hora depois - raramente passava dez minutos sem pensar nela - não experimentasse nenhuma dor na consciência.

Poucos homens teriam encontrado razão para queixas no de­sempenho de uma tarefa como a que fora entregue a Henry, e estes poucos seriam apenas misóginos num estado avançadíssimo e irrecuperável. Ela era de tipo mignon, embora evidentemente não sofresse de subnutrição, com longos cabelos escuros, esplêndidos olhos escuros muito brilhantes e um sorriso extraordina­riamente contagiante. De nenhum modo se assemelhava à con­cepção popular de uma agente do serviço secreto, coisa que po­deria ter sido uma das razões pelas quais o Dr. Harper a tinha em tão alto conceito.

Henry, sem nenhuma necessidade levando-a pelo braço, mos­trou-lhe os animais acorrentados e enjaulados e a apresentou a Malthius e Neubauer, que estavam fazendo os testes de último minuto com os grandes felinos. Malthius, simpático e gentil, desejando-lhe uma estada muito agradável; Neubauer, embora bas­tante gentil, não sabia como ser simpático, e não lhe desejou nada.

Depois Henry a conduziu através do clangor do local de es­petáculos de variedades. Kan Dahn estava lá brincando com um enorme haltere e parecendo impressionantemente mais forte que nunca. Ele segurou a mãozinha de Maria cuidadosamente na sua mão gigantesca, deu um sorriso largo, anunciou que ela era a melhor recruta chegada ao circo desde que ele mesmo viera anos atrás, e no todo deu-lhe umas boas-vindas de uma amabilidade tão grande que beirava o excesso. Kan Dahn estava sempre de ótimo humor, embora ninguém soubesse ao certo se era o resul­tado de um bom gênio inato ou se porque ele descobrira já há algum tempo que era desnecessário ser desagradável com quem quer que fosse. Manuelo, o gênio da faca mexicano, estava atrás do balcão de uma barraca, observando benevolamente o número considerável de jovens e não tão jovens atirando facas com pon­ta de borracha nos alvos móveis. De vez em quando ele vinha até a frente de sua barraca e, atirando com as duas mãos, der­rubava seis alvos na metade desse número em segundos, só para mostrar aos seus fregueses que realmente não era muito difícil. Ele recebeu Maria com uma boa dose de entusiasmo latino, co­locando-se ao seu inteiro dispor durante a sua presença no circo. Um pouco mais adiante Ron Roebuck, o especialista do laço, deu-lhe uma acolhida séria mas amistosa; quando ia se afastan­do dele, ficou surpreendida e depois deliciada ao ver um círculo de corda tremulante vir girando e cair sobre ela, mal tocar o chão, e depois sem nenhum esforço subir e desaparecer sem nem uma vez tocar as suas roupas. Virou-se e deu um sorriso largo para Roebuck e ele não parecia mais estar sério.

Bruno saiu do seu pequeno teatro no momento em que Henry e Maria se aproximavam. Vestia a mesma roupa de man­darim que antes, e também como antes parecia tudo, menos im­pressionante. Henry fez as apresentações e Bruno olhou para ela com uma espécie de avaliação inofensiva. Como de hábito, era quase impossível dizer o que ele estava pensando, e então sorriu, coisa rara em Bruno, mas que lhe transformava o rosto.

- Bem-vinda ao circo - disse ele. - Espero que sua per­manência seja longa e feliz.

- Obrigada. - Ela sorriu por sua vez. - Isto é uma honra. Você... você é o astro do circo?

Bruno apontou para o céu.

- Todos os astros estão lá em cima, Srta. Hopkins. Aqui embaixo só existem artistas. Fazemos tudo que podemos. Alguns têm mais sorte em ter números mais espetaculares que os outros, mas isto é tudo. Desculpe-me, tenho que me apressar.

Pensativa, Maria o observou ir. Henry disse, divertido:

- Não é exatamente o que você esperava?

- Bem, não.

- Está desapontada?

- Um pouco, acho.

- Não ficará mais tarde. Ninguém nunca fica, não quando assiste ao impossível.

- É verdade que ele e seus dois irmãos ficam de olhos completamente vendados lá em cima? Não podem ver nada mesmo?

- Não há truques. Ficam em completa escuridão. Mas você vai ver que é Bruno quem dirige a orquestra. Ele é o coordena­dor e o apanhador. Talvez os três irmãos partilhem algum dom telepático. Não sei. Ninguém mais parece saber também. E se Bruno e os irmãos sabem, eles não dizem.

- Talvez seja alguma outra coisa. - Ela indicou a legenda "O Grande Médium". - Dizem que tem uma memória fotográ­fica, que pode ler o pensamento das pessoas.

- Espero que não tenha lido os seus hoje à noite.

- Espero que não. E ele pode ler o conteúdo de envelopes fechados. Se vê através de papel, por que não poderá ver atra­vés de uma venda?

Ele olhou para ela com surpresa genuína, e disse:

- Srta. Hopkins, a senhora não tem apenas um rosto bo­nito. Sabe, eu nunca tinha pensado nisso. - Ele ponderou por um momento, depois desistiu. - Vamos ocupar os nossos luga­res para o espetáculo. Está gostando, até aqui?

- Muito.

- Alguma coisa em especial?

- Sim. Todo mundo é tão gentil e simpático.

Henry sorriu.

- Nem todos acabamos de descer das árvores.

Tomou-lhe o braço e a levou em direção ao picadeiro. Sua noiva atleta não era nem uma nuvem no seu horizonte cor-de-rosa.

 

Naquele momento havia alguém no circo que não estava sendo tão gentil e simpático, mas também o Almirante não fazia parte do circo e certamente não estava acostumado a ter a sua vontade contrariada. Para completar, tinha tido um dia longo, cansativo e muito frustrante, e sua amabilidade costumeira o abandonara.

- Não creio que tenha ouvido bem - disse o Almirante com um controle ameaçador.

- O senhor me ouviu, sim senhor. - Porque a entrada dos bastidores do circo estava mal iluminada, porque estava muito escuro e ainda chovendo do lado de fora, e porque seus olhos cansados já não enxergassem muito bem, Johnny, o vigia noturno, não reconhecera o Almirante. - A entrada para o pú­blico é ali mais adiante. Vá andando.

- Você está preso - disse o Almirante sem mais preâm­bulos. Virou-se para um vulto sombrio atrás de si. - Leve este sujeito para a delegacia mais próxima. Prenda-o por obstrução da justiça.

- Calma, o que é isso, calma. - O tom de Johnny tinha sofrido uma mudança notável. - Não é preciso... - Inclinou-se para a frente e ergueu os olhos para o Almirante. - O se­nhor não é o cavalheiro que estava aqui quando tivemos aquele probleminha, hoje de manhã?

- Se por probleminha quer dizer assassinato, sim. Leve-me ao Sr. Wrinfield.

- Desculpe-me, senhor. Estou de serviço aqui.

- Johnny, não é? Você ainda quer estar de serviço ama­nhã, Johnny?

Johnny levou o Almirante à presença do Sr. Wrinfield. O encontro do Almirante com Wrinfield foi breve.

- Vocês estão livres para ir para a Europa. Não haverá problema com os vistos.

- Vinte e cinco nacionalidades diferentes? Em um dia?

- Tenho uma equipe de quatrocentas pessoas entre as quais os que tiverem a vista apurada poderão detectar alguns laivos de inteligência. O Dr. Harper estará aqui às dez da manhã. Esteja aqui, por favor. Ele vai começar imediatamente. A nossa inves­tigação particular e as sindicâncias da polícia sobre os assassi­natos de Pilgrim e de Fawcett não apuraram nada. Não creio que venham a descobrir. Talvez os acontecimentos futuros possam.

- Que tipo de acontecimentos?

- Não sei. De natureza bastante drástica, imagino. Acabei de dar um susto no Johnny, o seu vigia noturno. Isto foi para me assegurar de sua cooperação. Ele é ranzinza e um pouco burro, mas acho que é de confiança.

- Eu confiaria a minha vida a ele.

- Todos nós damos valores diferentes às nossas vidas. Colo­quei seis homens para patrulhar os dormitórios do trem durante a noite. Eles não são da nossa organização, assim não precisa ter preocupações a respeito disso. Estarão aqui todas as noites até a partida de vocês, que, a propósito, será dentro de cinco dias.

- Por que a patrulha? Acho que não vou gostar disso.

- Francamente, não importa se gosta ou não. - O Almi­rante sorriu, se bem que de modo cansado, para tirar a aspereza das palavras. - A partir do momento em que aceitou esta mis­são está sob as ordens do governo. É por motivos de segurança. Quero que Johnny aja como cão de guia.

- Segurança de quem?

- De Bruno, de Maria, de Harper... e sua.

- Minha? Eu estou em perigo?

- Sinceramente, tenho certeza de que não está, por nenhu­ma outra razão senão que se alguma coisa acontecesse a você a viagem seria cancelada, coisa que não agradaria aos nossos ami­gos nem um pouco. Mas não quero correr nem sombra de risco.

- E acha que esta patrulha vai ajudar?

- Sim. Numa comunidade fechada como esta a presença deles será do conhecimento de todos em questão de horas. Diga que a polícia recebeu ameaças contra membros não identificados do seu pessoal. Se houver agentes inimigos entre o seu pessoal, esta notícia os fará andar com muito cuidado mesmo.

- Como o senhor disse, não quer correr riscos, não é?

O Almirante retrucou com secura:

- Acho que as sombras de Pilgrim e de Fawcett dariam toda aprovação. Bruno e Maria já se conheceram? - Wrinfield assentiu. - Reações?

- Bruno não teve nenhuma. Se as tem, nunca demonstra. Quanto a Maria, Henry disse que ela não ficou exatamente en­cantada.

- Indiferente, poder-se-ia dizer?

- Sim.

- Ela está assistindo ao espetáculo?

- Sim, com Henry.

- Duvido que continue indiferente.

- Ainda está desapontada? - perguntou Henry. Era evi­dente que ele não estava, mas também, nem conseguia tirar os olhos dela.

Maria não respondeu imediatamente. Estava olhando fixo, como se hipnotizada - como dez mil outras pessoas também - enquanto As Águias Cegas executavam seu número inacredi­tável e aparentemente suicida. No fim do número, soltou a res­piração num longo suspiro silencioso.

- Não acredito. - A voz era quase um murmúrio. - Sim­plesmente não acredito no que vi.

- Eu mesmo mal posso acreditar, e já vi isso uma centena de vezes. As primeiras impressões às vezes enganam, não é?

- E como.

Meia hora depois ela estava com Henry na porta dos cama­rins quando Bruno saiu, vestido com roupas comuns. Era de novo a mesma pessoa relativamente comum. Parou, sorriu para ela e disse:

- Eu vi você durante o espetáculo.

- De olhos vendados?

- No arame, na bicicleta.

Ela olhou para ele com espanto:

- Executando aquele número impossível? Tem tempo de olhar para a platéia?

- Eu preciso ter alguma coisa com que ocupar a minha atenção - disse ele numa bravata zombeteira. - Gostou de tudo? - Ela concordou e ele sorriu de novo. - Até das Águias Cegas? Só estou querendo elogios, é claro.

Maria olhou para ele sem sorrir, apontou para o alto e disse:

- Um astro caiu do céu.

Virou-se e foi embora. Pelo leve franzir de cenho de Bruno era impossível dizer se estava espantado ou divertido.

 

O Dr. Harper, parecendo ser em cada centímetro o clínico altamente capaz que ele não era, chegou exatamente às dez ho­ras da manhã seguinte, mas teve de esperar mais de meia hora enquanto Wrinfield cumpria sua tarefa de entrevistar diversos outros candidatos a médico do circo, que apareceram muito an­tes das dez horas.

Wrinfield estava sozinho no escritório quando Harper bateu à porta e entrou.

- Bom dia. Eu sou o Dr. Harper.

Wrinfield olhou para ele com espanto considerável e come­çou a abrir a boca para falar, sem dúvida para informar a Har­per que não era provável que o tivesse esquecido, visto que se haviam encontrado pela primeira vez junto ao corpo de Pilgrim, no dia de sua morte, quando Harper lhe estendeu uma mensa­gem escrita a mão. Dizia: "Este escritório pode ter microfones. Entreviste-me como teria feito com qualquer outro candidato."

- Bom dia. - Wrinfield nem piscara. Sou Wrinfield, o proprietário. - Ele continuou tranqüilamente com a entrevista. Harper, ao mesmo tempo em que ouvia e respondia, sentou-se e escreveu outra mensagem. Ele a estendeu. Esta dizia: "Encerre a entrevista e dê-me o emprego. Pergunte-me quais são os meus planos imediatos e depois convide-me para dar uma volta e co­nhecer o local".

Wrinfield disse:

- Bem, isto é tudo. Sou um homem ocupado demais para passar a vida perdendo tempo com decisões. O emprego é seu. Francamente, quando tenho que escolher entre um clínico ex­periente e os jovens internos que tenho entrevistado... bem, não tenho muita escolha. Não sou tão ingênuo a ponto de imaginar que está querendo fazer disso a carreira de sua vida. É seu pe­ríodo de férias anuais ou parte disso?

- Doze anos no Belvedere é muito tempo.

- Quando estará livre, doutor?

- Agora.

- Esplêndido. E quais são os seus planos imediatos?

- Dependem de quando o senhor pretende partir nessa via­gem para o exterior.

- Mais ou menos dentro de uns quatro ou cinco dias a par­tir de hoje.

- É bem pouco tempo. Primeiro, Sr. Wrinfield, eu gosta­ria de ter sua autorização para encomendar os medicamentos. Depois, que todos os passaportes fossem recolhidos para que eu possa ver o que será necessário em termos de vacinas e inocula­ções - pelo que sei o seu circo nunca excursionou pelo exterior antes. Creio que alguns de seus trapezistas terão que reduzir suas apresentações um bocado durante os próximos dias.

- Tudo isso eu posso providenciar imediatamente. Antes de tudo, doutor, sugiro que venha dar uma olhada. Quando vir o que terá que fazer talvez mude de idéia.

Os dois homens saíram do escritório e Wrinfield foi para o picadeiro do circo, um lugar que, no que diz respeito a possí­veis ouvintes ocultos, era provavelmente mais seguro do que qual­quer outro no raio de um quilômetro. Não obstante, Wrinfield esfregou a areia com a ponta do sapato e olhou em volta ca­sualmente antes de falar.

- E para que era tudo aquilo? - indagou.

- Desculpe-me por todo aquele negócio de capa e espada. Não costumamos adotá-lo com freqüência - prejudica a nossa imagem. A propósito, meus parabéns, o senhor é um recruta brilhante para nossa organização. De qualquer maneira, estive conversando com Charles pouco antes de vir para cá e nós dois tivemos a mesma suspeita muito desagradável ao mesmo tempo.

- De que o meu escritório tem aparelhos de escuta?

- Se for verdade poderia explicar muita coisa.

- Mas por que todas as mensagens escritas que deu? Por que simplesmente não me telefonou e me avisou? - Harper lhe deu um meio sorriso e Wrinfield deu um tapa na testa. - Isto não foi muito brilhante. O telefone também poderia ter apare­lhos de escuta.

- Pois é. Dentro de alguns minutos receberá outro candi­dato ao meu emprego. O nome dele é Dr. Morley e estará car­regando uma maleta preta de médico. Mas não é médico, é um técnico em eletrônica e a maleta dele está cheia de equipamentos, avançadíssimos para localizar aparelhos de escuta. Em dez mi­nutos sozinho no seu escritório ele descobrirá se está limpo ou não.

Quinze minutos depois, quando Wrinfield e Harper se apro­ximavam do escritório um homem alto, moreno com uma maleta preta descia a escada. Para satisfazer a quaisquer possíveis espectadores ou ouvintes Wrinfield os apresentou e sugeriu que tomassem um café na cantina. Sentaram-se numa mesa num canto afastado.

Morley disse:

- Dois aparelhos de escuta. Radiotransmissores miniaturizados. Um no lustre do teto e o outro no telefone.

- Então já posso respirar de novo - disse Wrinfield. Ne­nhum dos outros dois respondeu de imediato, assim ele continuou um pouco incerto: - Quero dizer, os aparelhos foram tirados ou desligados?

- É claro que não - disse Harper. - Eles ainda estão lá e vão continuar lá, provavelmente até que voltemos da Europa. Acha que queremos que os infiéis saibam que sabemos? Pense em toda a quantidade de informações falsas para confundi-los e enganá-los que podemos lhes fornecer. - Podia-se ver que, men­talmente, Harper estava positivamente esfregando as mãos. - De agora em diante só executará trabalho de rotina do circo na­quele escritório. - Ele sorriu de maneira quase sonhadora. - A menos, é claro, que eu lhe dê instruções em contrário.

 

Nos dias que se seguiram quatro assuntos foram dominando cada vez mais as conversas no circo.

O primeiro destes, inevitavelmente, emanava da crescente animação face à próxima viagem à Europa, um estado de euforia que não era, de modo compreensível, partilhado pelos menos afor­tunados que não fariam a excursão ao estrangeiro, mas voltariam às acomodações de inverno na Flórida por razões puramente lo­gísticas: só dois terços do pessoal poderiam fazer a viagem. Mas para os dois terços que iam à Europa, em especial levando em consideração que esta incluía uma viagem por mar de ida e volta, aquilo era nada mais nada menos que umas férias. Férias que prometiam ser extremamente árduas a partir do momento em que desembarcassem, mas mesmo assim, férias. Cerca da me­tade do pessoal era americano, dentre os quais poucos jamais ti­nham estado no estrangeiro, em parte por motivos de ordem fi­nanceira e em parte porque a temporada de apresentações do circo era tão longa que tinham apenas três semanas livres por ano, e isto, na época errada do ano - no rigor do inverno - para eles, a viagem podia ser uma experiência única em suas vidas. O resto era predominantemente de europeus, a maioria do outro lado da Cortina de Ferro, e a viagem era também, pos­sivelmente, uma experiência única em suas vidas - a de rever seus países natais e suas famílias.

O segundo assunto dizia respeito às atividades do Dr. Harper e às suas duas enfermeiras empregadas temporariamente. O grau de impopularidade deles era alto. Harper era rigoroso ao ponto de ser rude, e quando se tratava de vacinas e inoculações nin­guém passava por entre as malhas da ampla rede que ele havia estendido, e quando qualquer questão do tipo "ser-ou-não-ser" era levantada ele nunca dava a ninguém o benefício da dúvida. A gente do circo é sem dúvida mais dura e mais equilibrada do que a média da humanidade, mas quando se trata de uma pro­funda aversão a injeções, arranhões e os braços doídos resul­tantes, não é diferente de nenhum outro tipo de gente. Mas ninguém poderia de forma alguma duvidar que eles tinham um médico verdadeiro e dedicado.

O terceiro assunto dizia respeito a dois esquemas de atividades misteriosas. O primeiro era a patrulha que vigiava tão atentamente os dormitórios no trem durante a noite. Ninguém acreditava seriamente que vidas tivessem sido ameaçadas por pes­soas desconhecidas, mas nesse caso não sabiam em quem acre­ditar. Depois havia o incidente de dois pretensos eletricistas, que tinham vindo examinar as fiações do trem. Tinham quase ter­minado a tarefa quando a identidade deles fora questionada e a polícia chamada. Desconhecidos de todos no circo, exceto Har­per, tinham ficado detidos sob custódia durante precisamente cinco minutos, que foi todo o tempo necessário para que um deles telefonasse para o Almirante e lhe assegurasse de que ne­nhum dos quartos no trem tinha aparelho de escuta.

O último, mas indiscutivelmente o tópico mais interessante de todos, dizia respeito a Bruno e Maria. Para encabulamento de Henry, que estava engajado numa batalha com a sua cons­ciência, eles eram não apenas vistos cada vez com maior fre­qüência na companhia um do outro, como também eram vistos procurando ativamente, sem nenhuma tentativa de discrição, a companhia um do outro. As reações a este desenvolvimento es­pecífico eram, previsivelmente, controversas. Alguns achavam graça em ver as defesas, até então inexpugnáveis de Bruno, sen­do rompidas. Outros sentiam inveja - os homens porque Bruno tinha indubitavelmente, e aparentemente sem qualquer esforço, conquistado a afeição de uma moça que de maneira polida, mas resoluta, ignorava quaisquer outras aproximações que lhe fossem feitas; as mulheres porque Bruno, de longe o melhor partido do circo, polida mas resolutamente ignorava quaisquer aproximações feitas a ele. Muitos outros estavam satisfeitos por Bruno, e isto, a despeito do fato de que, com a exclusão de Kan Dahn, Manuelo e Roebuck, ele tinha outros amigos verdadeiros no circo, porque todos sabiam que desde a morte de sua esposa ele tinha sido um homem triste, solitário e fechado que nunca olhava para as mu­lheres. Mas a grande maioria achava que era apenas natural e inevitável que o grande astro do circo devesse se unir à moça que era, indiscutivelmente, a jovem mais atraente numa pletora de jovens atraentes.

Só depois da última apresentação na última noite que pas­sariam na cidade Bruno, bastante acanhado, a convidou para ir ver as suas acomodações no trem. Maria não mostrou acanha­mento nenhum em aceitar o convite. Ele guiou seus passos in­seguros pelo caminho acidentado e depois a ajudou a subir os degraus altos na extremidade de um dos carros.

Bruno tinha acomodações magníficas e completamente iso­ladas, consistindo de uma sala, uma cozinha com uma salinha de jantar, um banheiro com, entre todas as coisas, uma banheira de nível mais baixo que o chão, e um quarto. Maria parecia quase deslumbrada quando ele a levou de volta para a sala.

- Dizem que faço o que os americanos chamam de um Martini sofrível. A única ocasião em que eu bebo é depois de ter acabado uma série de apresentações numa cidade. Trapézio e álcool não combinam. Vai me acompanhar?

- Sim, por favor. Devo dizer que você realmente vive bem. Devia ter uma esposa para partilhar tudo isso.

Bruno apanhou o gelo.

- É uma proposta?

- Não, não é. Mas tudo isso... só para um homem.

- O Sr. Wrinfield é muito gentil comigo.

- Não creio que o Sr. Wrinfield esteja perdendo com o negócio. Mais alguém tem acomodações como essa?

- Não andei por aí examinando.

- Bruno!

- Não.

- Eu decerto que não tenho. Tenho um lugar que parece uma cabina telefônica na horizontal. Ah, bem, creio que há uma enorme diferença de status entre uma secretária e você.

- Não é isso.

- Vocês homens! Modéstia! Como se eu não soubesse!

- Venha comigo para o trapézio. De olhos vendados. Depois você saberá.

Ela estremeceu, não só por afetação.

- Não posso nem ficar em pé numa cadeira sem ter verti­gens. Você merece as suas acomodações. Bem, acho que sempre me resta o consolo de vir visitar o palácio.

Ele lhe entregou a bebida.

- Vou mandar estirar um tapete especial de boas-vindas para você.

- Obrigada. - Ela ergueu o copo. - À primeira vez que estamos a sós. Teoricamente estamos nos apaixonando. Tem al­guma idéia do que os outros pensam que estamos fazendo?

- Não posso falar pelos outros. Acho que estou me saindo muito bem. - Ele olhou para os lábios que se comprimiam e continuou depressa: - Acho que nós estamos nos saindo muito bem. Creio que com relação ao presente momento esta deve ser a opinião de todos. A esta altura pelo menos umas cem pessoas devem saber que você está comigo. Será que não devia corar ou coisa assim?

- Não.

- É uma arte morta. Bem, não creio que só tenha vindo pelos meus belos olhos. Tem alguma coisa para me dizer?

- Na realidade, não. Você me convidou, lembra? - Ela sorriu. - Por quê?

- Apenas para aperfeiçoar o nosso número. - Ela parou de sorrir e pousou o copo. Ele se aproximou depressa e tocou-lhe as costas da mão. - Não seja boba, Maria. - Olhou para ele de maneira insegura, sorriu com reconhecimento e tornou a pegar o copo. - Diga-me, que é que eu devo fazer quando chegarmos a Crau? E como é que deverei fazê-lo?

- Só o Dr. Harper sabe, e ele ainda não está disposto a falar. Imagino que vá lhe dizer, ou a nós, ou durante a viagem ou quando chegarmos à Europa. Mas ele me disse duas coisas hoje de manhã.

- Eu sabia que você tinha alguma coisa para me dizer.

- Sim. Só estava tentando ser implicante. Não funcionou, não é? Lembra-se daqueles dois pretensos eletricistas que a po­lícia levou até o trem? Eram gente nossa, peritos em eletrônica, procurando aparelhos de escuta. Eles se concentraram no seu apartamento.

- Aparelhos de escuta? No meu apartamento? Ora, vamos, Maria, isto é um pouco melodramático.

- É? A segunda novidade foi que há alguns dias eles encontraram dois no escritório do Sr. Wrinfield, um para o es­critório e um para o telefone. Acha isso melodramático também? - Quando Bruno não respondeu, ela continuou: - Não remo­veram os aparelhos de escuta. O Sr. Wrinfield, atendendo à su­gestão do Dr. Harper, fala ao telefone com Charles diversas ve­zes por dia, dando pistas vagas e fazendo sugestões veladas sobre certos membros do circo que poderiam ser de interesse para ele. Nada a respeito de nós, é claro. Na realidade fez tantas suges­tões que se eles - quem quer que "eles" possam ser - estiverem vigiando os suspeitos sugeridos, não terão tempo nem para olhar, quanto mais pensar em quaisquer outras pessoas. Coisa que, é claro, nos inclui.

- Acho que eles são loucos. - Disse Bruno com franqueza. - E por "eles", desta vez não quero dizer "eles", quero dizer Wrinfield e Harper. Fazendo brincadeirinhas de criança.

- E os assassinatos de Pilgrim e de Fawcett, foram brin­cadeiras?

- Poupe-me à lógica feminina. Não estava falando sobre eles.

- O Dr. Harper tem vinte anos de experiência nas costas.

- Ou a experiência de um ano repetida vinte vezes. O.K., então devo me deixar ficar nos braços seguros dos conhecedores. Nesse meio tempo suponho que não haja nada para o bezerro do sacrifício fazer, não é?

- Não. Bem, sim. Você pode me dizer como é que faço para me comunicar com você.

- Bata duas vezes e chame Bruno.

- Você tem uma suíte isolada aqui. Não poderei ver você quando o trem estiver em movimento.

- Bem, bem. - Bruno sorriu abertamente, coisa rara nele: era a primeira vez em que ela via seu sorriso tocar-lhe os olhos. - Eu faço progressos. Acha que vai querer me ver?

- Não seja tolo. Eu posso ter que ver você.

Bruno concordou com um movimento de cabeça.

- É ilegal isolar qualquer parte de um comboio em movi­mento. Há uma porta no canto do meu quarto que dá para o corredor logo abaixo. Mas só tem uma maçaneta e é do meu lado.

- Se eu bater tat-tat, tat-tat, você sabe que sou eu.

- Tat-tat, tat-tat - disse ele com ar solene. - Adoro estas brincadeiras de criança.

Ele a acompanhou de volta ao compartimento. Junto da escada, disse:

- Bem, boa noite. Obrigado pela visita. - Inclinou-se e a beijou de leve.

Ela não objetou, apenas disse com severidade:

- Isto não é levar o realismo um pouco longe demais?

- De jeito nenhum. Ordens são ordens. Nosso dever é criar uma determinada impressão, e a oportunidade era boa demais para se deixar escapar. Há pelo menos uma dúzia de pessoas nos observando.

Ela fez uma careta, virou-se e subiu as escadas.

 

A maior parte do dia seguinte foi empregada na desmon­tagem da espantosa variedade e assustadora quantidade de equi­pamento dentro da arena, dos bastidores e da feira de variedade e no carregamento do trem de meio quilômetro de comprimento. Transferir tudo aquilo, as jaulas dos animais, os escritórios pré-­fabricados, as barracas da feira e o teatro de Bruno, para não mencionar os animais e os membros do circo, para as cabinas e vagões de carga, era um empreendimento gigantesco que para o leigo teria parecido absolutamente impossível: o circo, com suas gerações de experiência nas costas, executou a tarefa com uma facilidade quase jocosa, uma eficiência tranqüila que redu­zia uma confusão aparentemente desesperadora a um quase mi­lagre de precisão e ordem. Até o carregamento de provisões para as centenas de animais e de homens teria parecido uma tarefa formidável: de fato, o último dos caminhões de provisões partiu menos de uma hora depois do primeiro ter chegado. A operação inteira poderia ter-se assemelhado a um exercício de logística mi­litar tendo como única diferença o fato de que qualquer obser­vador experiente e imparcial teria concordado que o circo tinha inquestionavelmente vantagem em termos de eficiência.

O trem do circo estava programado para partir às dez horas daquela noite. Às nove horas, o Dr. Harper ainda estava tran­cado com o Almirante estudando dois diagramas muito compli­cados.

O Almirante tinha o cachimbo numa das mãos, um copo de brandy na outra. Parecia descontraído, calmo e despreocupa­do. Era possível que pudesse muito bem estar descontraído e calmo, mas como único instigador da operação a se realizar, o homem que havia concebido e planejado tudo até o último e menor detalhe possível, era impossível que não estivesse preo­cupado.

- Já pegou tudo? Os guardas, a entrada, o plano da dispo­sição do interior, a saída e a rota de fuga para o Báltico?

- Sim, peguei tudo. Só espero que aquele maldito navio esteja lá para o encontro. - Harper dobrou os diagramas e os enfiou bem no fundo no bolso interior do paletó.

- Vocês entram numa terça-feira à noite. Eles estarão na­vegando ao largo da costa de sexta-feira até a sexta-feira da se­mana seguinte. Toda uma semana.

- Os alemães orientais, os poloneses ou os russos não fi­carão desconfiados, senhor?

- É inevitável. Você não ficaria?

- Será que não objetarão?

- Como poderiam? Desde quando o Báltico é lago parti­cular de alguém? É claro que vão ligar a presença do navio - ou navios - com a presença do circo em Crau. É inevitável, e não há nada que possamos fazer a respeito disso. O circo, o circo. - O Almirante suspirou. - É melhor você entregar a mercado­ria, Harper, ou eu estarei aposentado antes do fim do ano.

Harper sorriu.

- Eu não gostaria disso, senhor. E o senhor sabe melhor do que ninguém que a responsabilidade final pela entrega da mercadoria não está em minhas mãos.

- Eu sei. Já formou alguma opinião pessoal do nosso úl­timo recruta?

- Nada além do que é óbvio para qualquer outro, senhor. É inteligente, duro, forte, e parece ter nascido sem um sistema nervoso. É uma pessoa muito fechada. Maria Hopkins diz que é impossível se aproximar dele.

- Quê?! - O Almirante ergueu a sobrancelha espessa.

- Aquela criança adorável? Tenho certeza de que se ela realmente tentasse...

- Eu não quis dizer bem dessa maneira, senhor.

- Paz, Harper, paz. Não gosto nada de ser indecente. Há ocasiões que são mandadas para pôr à prova as almas dos ho­mens. Embora eu não tenha opção, não é fácil ter que confiar na análise final de um desconhecido. Além do fato de que se ele falhar... Bem, só há uma maneira em que ele pode falhar, e então estará pesando na minha consciência para o resto de meus dias. E faça o favor de não se somar a este peso.

- Como, senhor?

- Cuide das suas costas, é o que quero dizer. Estes papéis que você acabou de enfiar - em segurança, acredito - no bolso. Sabe o que acontecerá se for apanhado de posse destes papéis?

Harper suspirou.

- Sei. Cortarão a minha garganta e acabarei, devidamente chumbado, no fundo de algum canal ou rio. Sem dúvida, o se­nhor poderá sempre encontrar um substituto.

- Sem dúvida. Mas da maneira como as coisas vão indo estarei sem substitutos dentro de muito pouco tempo, por isso preferiria não ter que passar pelo problema. Tem certeza de que decorou totalmente as horas de transmissão e o código?

Harper disse de modo tristonho:

- O senhor não tem muita fé nos seus subordinados.

- Da maneira como as coisas têm corrido ultimamente não tenho fé em mim mesmo tampouco.

Harper tocou o fundo da sua maleta de médico.

- E este minúsculo radiotransmissor-receptor. Tem certeza de que poderão me captar?

- Estaremos usando o equipamento da NASA. Poderíamos captar você até na Lua.

- De alguma maneira eu gostaria de estar indo para lá.

 

Umas seis horas depois da partida o trem do circo penetrou num pátio de manobras. A não ser pela iluminação dos refle­tores a escuridão era total e a chuva muito forte. Ali, depois de um interminável período de marchas para frente e para trás, sacolejos, rodas rangendo e guinchando nos trilhos - combina­ção que conseguiu efetivamente acordar todo mundo no trem - um número considerável de carros foi separado, para posterior­mente seguir para os alojamentos de inverno na Flórida. A com­posição principal do trem prosseguiu a caminho de Nova York.

Até então nada acontecera durante a viagem. Bruno, que sempre preparava sua própria comida, não havia deixado seus aposentos nem uma vez. Fora visitado duas vezes por seus irmãos, uma vez por Wrinfield e uma vez por Harper, e por mais nin­guém: todos sabiam que ele era um solitário, invariavelmente era tratado como tal.

Só depois do trem ter chegado ao cais, junto do navio car­gueiro e de passageiros que deveria levá-los para Gênova - es­colhida nem tanto por sua posição geográfica estratégica, mas muito mais por ser um dos poucos portos no Mediterrâneo com equipamento para descarregar os carros e vagões - foi que Bruno saiu de seus aposentos. Ainda chovia. Uma das primeiras pes­soas que encontrou foi Maria, que vestia um conjunto de calça e blusa azul-marinho, uma volumosa capa de oleado amarelo, e parecia extremamente mal-humorada. Ela lhe fez a coisa mais parecida com uma carranca que jamais conseguiria, e foi direto ao ponto com o que ele já passara a considerar a sua franqueza costumeira.

- Você não é muito sociável, é?

- Sinto muito. Mas você sabia onde eu estava.

- Eu não tinha nada para lhe dizer. - Depois inconseqüentemente: - Você sabia onde eu estava.

- Acho as cabinas telefônicas muito apertadas.

- Você poderia ter-me convidado. Embora saiba que deve­mos estar desenvolvendo um relacionamento especial, não cos­tumo andar abertamente atrás de homens.

- E não precisa. - Ele sorriu para tirar a rudeza das pa­lavras seguintes. - Ou será que prefere fazê-lo discretamente?

- Muito divertido. Muito inteligente. Você não está com vergonha?

- De quê?

- Da sua negligência vergonhosa.

- Então leve-me para jantar fora hoje à noite.

- Telepatia, Maria. Pura telepatia.

Ela lhe lançou um olhar de incredulidade e saiu para trocar de roupa.

 

Trocaram de táxi três vezes a caminho do agradável res­taurante italiano que Maria havia escolhido. Quando já estavam sentados, Bruno perguntou:

- Aquilo tudo era necessário? Quero dizer, os táxis?

- Não sei. Só cumpro ordens.

- Por que estamos aqui? Está com tantas saudades de mim assim?

- Tenho instruções para você.

- Então não foi pelos meus lindos olhos? - Ela sorriu e balançou a cabeça. Ele suspirou. - Não se pode ganhar todas. Quais são as instruções?

- Acho que vai dizer que eu poderia muito bem ter-lhe dito baixinho tudo num canto escuro do cais, não é?

- É uma perspectiva não desprovida de atrativos. Mas não esta noite.

- Por quê?

- Está chovendo.

- Como é que é ter um coração romântico?

- E eu gosto daqui. É um restaurante muito agradável. - Ele olhou para ela com ar apreciador, o vestido de veludo azul, o casaco de pele que era de longe caro demais para uma secre­tária, o cintilar da chuva nos cabelos escuros brilhantes. - Além disso, no escuro eu não poderia ver você. Aqui posso. Você está realmente muito bonita. Quais são as instruções?

- Quê? - Ela ficou momentaneamente confusa, atrapa­lhada com a mudança repentina, depois comprimiu os lábios com um furor zombeteiro. - Partimos às onze horas amanhã. Por favor, esteja na sua cabina às seis horas da tarde. A essa hora o comissário de bordo aparecerá para discutir a organização dos lugares na mesa ou coisa assim com você. Ele é mesmo um co­missário de bordo, mas também é algo mais. Ele se assegurará de que não há aparelhos de escuta na sua cabina. - Bruno permaneceu em silêncio. - Estou notando que desta vez você não está falando de melodramas.

Bruno disse com algum cansaço:

- Porque dificilmente parece que valha a pena falar. Por que diabo alguém poria aparelhos de escuta na minha cabina? Não sou suspeito. Mas serei se você e Harper continuarem se comportando desta ridícula maneira tipo capa-e-espada. Por que puseram aparelhos de escuta no escritório de Wrinfield? Por que dois homens foram procurar microfones no meu apartamento no trem? Por que este tipo agora? Há gente demais assegurando de que ninguém está me espionando, gente demais sabendo que eu não posso de jeito nenhum ser o que eu digo que sou ou o que o circo diz que sou. Gente demais tendo a atenção voltada para mim. Não gosto disso nem um pouquinho.

- Por favor. Não há necessidade de ficar assim.

- Não? É a sua opinião. E não tente me consolar.

- Olhe, Bruno, eu sou apenas uma mensageira. Diretamente, não há nenhuma razão na face da Terra pela qual você deva estar sob suspeita. Mas estamos ou vamos estar lutando contra uma polícia secreta extremamente eficiente e desconfiada que, certa­mente, não deixará passar a menor possibilidade. Afinal, a in­formação que queremos está em Crau. Nós vamos a Crau. Você nasceu em Crau. E eles sabem que você tem a motivação mais forte possível - vingança. Eles mataram sua esposa.

- Cale a boca! - Maria recuou intimidada pela ferocidade na voz dele. - Ninguém me falou dela durante seis anos e meio. Mencione a minha falecida esposa e eu dou o fora, arrebento toda a operação e deixo você para explicar ao seu precioso chefe que foi a sua falta de tato, a sua falta de educação, a sua total falta de sentimentos e incrível insensibilidade que arruinaram tudo. Compreende?

- Compreendo. - Ela estava muito pálida, quase chocada; tentou compreender a enormidade de seu erro e não conseguiu. Passou a língua pelos lábios lentamente. - Sinto muito, muito mesmo. Foi um erro terrível. - Ela ainda não tinha certeza de que erro é que se tratava. - Mas nunca mais, eu prometo.

Ele não disse nada.

- O Dr. Harper pediu para fazer o favor de estar fora de sua cabina às 6:30 da tarde, sentado no chão, desculpe, convés, junto da escada de escotilha. Você teoricamente caiu e machucou o tornozelo. Você será encontrado e ajudado a voltar para sua cabina. O Dr. Harper lá estará, é claro, quase que imediata­mente. Ele quer lhe dar instruções completas sobre a natureza da operação.

- Ele já lhe disse? - Ainda havia uma estranha falta de calor na voz de Bruno.

- Ele não me disse nada. E se conheço o Dr. Harper, ele provavelmente lhe pedirá para não me dizer nada.

- Farei o que você pediu. Agora que acabou com a sua missão, podemos muito bem ir embora. Três táxis para você, é claro, regras são regras. Eu vou tomar um diretamente de volta para o navio. É mais rápido e mais barato, e para o inferno com a CIA.

Ela estendeu uma mão hesitante e tocou-lhe o braço.

- Eu já pedi desculpas. Sinceramente. Durante quanto tempo vou ter que continuar a fazer isso? - Vendo que Bruno não respondia, sorriu para ele e o sorriso era como a sua mão tinha sido, hesitante e inseguro. - A gente imagina que uma pessoa ganhando tanto dinheiro como você poderia se dar ao luxo de pagar um jantar para uma moça trabalhadora como eu. Ou façamos à moda holandesa. Por favor, não vá embora. Eu não quero voltar. Ainda não.

- Por quê?

- Não sei. É só um desses obscuros... Eu não sei. Só quero que fique tudo bem.

- Eu estava bem. Pela primeira vez. Você é uma boba. - Ele suspirou, apanhou o menu e o entregou a Maria. Lançou-lhe um olhar estranho. - Engraçado, pensei que seus olhos fos­sem pretos. Eles estão absolutamente castanhos. Castanhos es­curos com manchas, se quiser, mas castanhos. Como é que você faz? Tem um interruptor ou coisa assim?

Ela olhou para ele com ar solene.

- Nenhum interruptor.

- Então devem ser os meus olhos. Diga-me, por que o Dr. Harper não podia ter vindo e dito tudo isso ele mesmo.

- Teria criado uma impressão muito estranha se vocês fos­sem vistos saindo juntos pois nunca se falam. Que é que ele é para você ou você para ele?

- Ah!

- Conosco é diferente. Ou será que já esqueceu? A coisa mais natural do mundo. Estou apaixonada por você e você por mim.

 

- Ele ainda está apaixonado pela esposa morta. - A voz de Maria estava inexpressiva, neutra. Com os cotovelos na amu­rada, estava de pé no convés de passageiros do MC Carpentaria, aparentemente indiferente ao vento frio da noite, olhando com uma aparente fascinação, mas sem realmente ver o que olhava enquanto os gigantescos guindastes, com seus refletores ofuscan­tes, traziam os vagões para bordo.

Teve um sobressalto quando uma mão pousou sobre o seu braço e uma voz implicante disse:

- Então quem está apaixonado pela mulher de quem?

Ela virou-se e deu de cara com Henry Wrinfield. O rosto magro inteligente, branco como cera sob a luz dos refletores, estava sorridente.

- Você podia ter tossido ou coisa assim - disse ela em tom de reprovação. - Você me deu um susto, sabe?

- Desculpe. Mas eu poderia ter estado usando botas com tachas na sola e você não me teria ouvido por causa do barulho desses guindastes. Bem, ande logo, diga quem está apaixonado por quem?

- De que é que você está falando?

- De amor - disse Henry, pacientemente. - Você estava declamando alguma coisa a respeito de amor quando me apro­ximei.

- Estava? - A voz dela estava vaga. - Não me surpreen­deria. Minha irmã diz que falo sem parar quando estou dormindo. Talvez estivesse dormindo de pé. Ouviu mais algum outro des­lize freudiano ou coisa assim?

- Infelizmente não. Azar meu, tenho certeza. Que diabo está fazendo aqui fora? Está frio e começando a chover. - Ele tinha perdido o interesse no comentário que ouvira.

- Devia estar mesmo sonhando acordada. Está frio.

- Vamos entrar. Há um lindo bar à moda antiga a bordo. E é quente. Um brandy ainda esquentará você melhor.

- A cama é que me esquentaria melhor ainda. Já é hora de ir para lá.

- Recusa um drinque com o último dos Wrinfields?

- Nunca! - Ela riu e tomou o braço dele. - Mostre-me o caminho.

O salão - dificilmente poderia ser chamado de bar - tinha poltronas de couro verde confortáveis, mesas de cobre, um gar­çom muito gentil e um brandy excelente. Maria tomou um, Henry tomou três e no fim do terceiro, Henry, que obviamente não tinha cabeça para álcool, tinha desenvolvido uma evidente, se bem que cavalheiresca, expressão ardente no olhar. Ele to­mou uma de suas mãos e ficou mais ardente ainda. Maria olhou para a mão dele.

- É injusto - disse ela. - O costume impõe que uma moça use aliança de noivado quando está noiva, aliança de ca­samento quando é casada. Nenhuma dessas imposições é feita aos homens. Acho que está errado.

- Eu também. - Se ela tivesse dito que ele devia usar um sininho numa corrente em volta do pescoço ele também teria concordado.

- Então onde está a sua?

- Minha o quê?

- A sua aliança. Cecily usa uma. Sua noiva. Lembra? Aquela de olhos verdes em Bryn Mawr. É claro que você não pode ter-se esquecido, não é?

As emanações do álcool se evaporaram da cabeça de Henry.

- Você andou fazendo perguntas a meu respeito?

- Nunca fiz nenhuma e também não havia necessidade de fazer. Você se esquece que passo duas horas por dia com o seu tio. Ele não tem filhos, assim suas sobrinhas e sobrinhos se tor­naram seu motivo de orgulho e alegria. - Ela apanhou a bolsa e se levantou. - Obrigada pelo drinque. Boa noite e bons so­nhos. É bom ter certeza de sonhar com a pessoa certa.

Henry a observou ir embora com um olhar tristonho.

 

Maria estava na cama há pouco mais de cinco minutos quan­do bateram à porta da cabina. Ela gritou:

- Entre. Não está trancada.

Bruno entrou e fechou a porta.

- Devia estar trancada. Com sujeitos como eu e Henry an­dando por aí...

- Henry?

- Visto pela última vez pedindo um brandy duplo. Parece um Romeu que acabou de descobrir que estava fazendo serena­tas sob o balcão errado. Cabina agradável.

- Você veio discutir decoração a esta hora da noite?

- Você foi aquinhoada com este quarto?

- Pergunta engraçada. Para dizer a verdade, não. Havia sete ou oito cabinas para escolher e o camareiro, um velho muito simpático, deixou-me escolher. Eu preferi esta.

- Gostou da decoração, hein?

- Por que você veio, Bruno?

- Para dizer boa noite, acho. - Sentou-se junto dela, pas­sou o braço em torno de seus ombros e a abraçou. - E para pedir desculpas por ter sido estúpido com você no restaurante. Eu explicarei depois, quando estivermos voltando para casa. Levantou-se tão abruptamente quanto se sentara, abriu a porta, disse: - Droga! - e fechou a porta atrás de si. Maria ficou olhando para a porta com total estupefação.

 

O Carpentaria era grande - tinha perto de trinta mil to­neladas - e fora construído, inicialmente, como um navio para transporte de minério, capaz de ser convertido imediatamente em navio para containers. Também era capaz de levar cerca de du­zentos passageiros, embora dificilmente com o conforto de um transatlântico de carreira para passageiros. Seus dois porões de proa no momento estavam ocupados por vinte vagões do circo, vagões de animais e do pessoal do circo principalmente, enquanto que o conteúdo de uma dúzia de outros tinha sido descarregado no cais e cuidadosamente colocado nos porões. Os vagões-plataformas estavam bem presos na reforçada coberta de proa. Na Itália estava previsto que encontrassem um número suficiente de vagões vazios e uma locomotiva forte o bastante para puxá-los através das montanhas da Europa Central.

Às seis horas da tarde seguinte o Carpentaria, sob chuva forte e mar agitado - tinha os estabilizadores ligados para re­duzir o balanço ao mínimo - estava sete horas ao largo de Nova York.

Bruno estava recostado num sofá em sua cabina - um dos poucos camarotes bastante suntuosos existentes no navio - quando bateram à porta e um comissário de bordo uniformizado entrou. Para total ausência de surpresa de Bruno ele carregava uma maleta preta bastante avantajada.

- Boa noite, senhor - disse ele. - Estava esperando por mim?

- Estava esperando alguém. Acho que é você.

- Obrigado, senhor. Dá licença? - Trancou a porta, virou-se para Bruno e bateu na maleta. - A papelada de um comissário moderno - disse com ar triste - é interminável.

Ele abriu a maleta, tirou uma caixa de metal retangular achatada, coberta de botões e controles, puxou uma antena para fora, colocou um par de fones de ouvido e começou a percorrer lentamente, primeiro o camarote, depois o banheiro, mexendo nos controles o tempo todo enquanto o fazia. Ele parecia uma mistura de um detector de minérios e um descobridor de água. Depois de cerca de dez minutos tirou o equipamento e tornou a guardá-lo na maleta.

- Limpo - disse. - Não há garantia, veja bem, mas é quase certo.

Bruno indicou a maleta.

- Não sei nada a respeito dessas coisas, mas pensei que fossem infalíveis.

- E são. Em terra firme. Mas num navio há tanto ferro, o casco sendo usado como condutor, campos magnéticos de to­dos os fios de alta tensão. Bem, qualquer um pode ser enga­nado. Eu posso, e meu amigo eletrônico aqui também pode. - Ele colocou a mão na cabeceira da cama para equilibrar quando o Carpentaria, aparentemente esquecendo tudo sobre seus esta­bilizadores, jogou bruscamente. - Parece que vem aí uma noite ruim. Não ficarei surpreso se tivermos algumas torções e esco­riações esta noite. Primeira noite em mar aberto, sabe como é, as pessoas ainda não tiveram tempo de desenvolver o balanço de marinheiro. - Bruno perguntou-se se teria visto uma pisca­dela ou não, poderia ter sido imaginação, e ele não tinha meios de saber até que ponto Harper confiava no comissário. Ele fez um comentário indiferente para o homem, que lhe agradeceu com polidez, destrancou a porta e saiu.

Exatamente às seis e meia Bruno saiu para o corredor. Feliz­mente estava deserto, a escada da escotilha ficava a apenas dois metros. Meio sentado, meio deitado, acomodou-se o mais con­fortavelmente possível no convés, na posição aparentemente mais inconfortável, e esperou os acontecimentos. Passaram-se cinco minutos e ele estava começando a sentir uma violenta cãibra no joelho direito, quando um par de camareiros apareceu e o res­gatou de seu infortúnio. Com o acompanhamento de muita con­versa, eles o carregaram para o seu camarote e o colocaram com delicadeza no sofá.

- Espere só um minuto, chefe - disse um deles. Tinha um sotaque Cockney muito carregado. - Vou chamar o Dr. Berenson.

Não ocorrera a Bruno - da mesma forma que aparente­mente não ocorrera a Harper - que o Carpentaria teria o seu próprio médico, coisa que era um lapso elementar da parte de ambos: navios com capacidade de levar passageiros acima de um determinado número eram obrigados pela lei internacional a ter médico. Ele disse depressa:

- Será que poderia chamar o nosso médico, por favor, o médico do circo? O nome dele é Dr. Harper.

- Sei qual é a cabina dele. É no convés logo aqui embaixo. Só um minuto, senhor.

Harper devia estar esperando na cabina de maleta na mão, pois ele chegou à cabina de Bruno, estalando a língua e apa­rentando a devida preocupação, em menos de trinta segundos. Trancou a porta do camarote depois que os camareiros se reti­raram, e começou a fazer um curativo no tornozelo de Bruno com um unguento de cheiro muito forte e cerca de um metro de atadura elástica.

- O Sr. Cárter veio no horário? - perguntou.

- Se o Sr. Cárter é o comissário - ele não se apresentou - sim.

Harper fez uma pausa no seu trabalho e olhou em volta.

- Limpo?

- Esperava alguma outra coisa?

- Na realidade, não. - Harper inspecionou sua obra já concluída: tanto o aspecto visual como o odorífico estavam de­vidamente impressionantes.

Harper trouxe mais para perto uma mesinha baixa, enfiou a mão num bolso, tirou e abriu duas plantas detalhadas e colo­cou algumas fotografias ao lado delas. Ele bateu numa das plantas.

- Esta aqui primeiro. É a planta do Centro de Pesquisas Superiores de Lubylan. Conhece?

Bruno olhou para Harper sem entusiasmo.

- Espero que esta seja a última pergunta besta e desneces­sária que me faça esta noite. - Harper assumiu a expressão de um homem tentando não demonstrar que estava aborrecido. - Antes da CIA ter-me recrutado para esta operação...

- Como é que sabe que é a CIA?

Bruno virou os olhos para cima, depois de modo visível pre­feriu se controlar.

- Antes dos escoteiros me terem recrutado para esta ope­ração eles verificaram todos os passos que dei desde que saí do berço. Tenho certeza absoluta de que têm conhecimento e sabem muito bem que passei os primeiros vinte e quatro anos da minha vida em Crau. Como é que poderia não conhecer Lubylan?

- Sim. Bem. Por estranho que pareça eles realmente fazem pesquisas superiores em Lubylan, a maior parte, infelizmente, associada a material de guerra química, gases danosos para o sis­tema nervoso e coisas semelhantes.

- Infelizmente? Os Estados Unidos não fazem pesquisas semelhantes?

Harper pareceu ficar magoado.

- Isto não é da minha competência.

Bruno disse pacientemente:

- Olhe, doutor, se não pode confiar em mim, como espera que eu tenha uma confiança implícita no senhor? É da sua com­petência e sabe muito bem que é. Lembra-se do centro de men­sagens das Forças Armadas no Aeroporto de Orly? Todas as co­municações consideradas ultra-secretas entre o Pentágono e o Exército Americano na Europa eram feitas por lá. Lembra-se?

- Lembro.

- Lembra-se de um certo Sargento Johnson? Um sujeito extremamente patriota cujo primeiro nome era Robert Lee? O espião russo mais bem situado em toda uma geração, que passou todos os altos segredos militares entre os Estados Unidos e Eu­ropa para a KGB durante Deus sabe quanto tempo? Lembra-se?

Harper concordou com ar infeliz.

- Eu me lembro. - As instruções de Bruno não estavam saindo exatamente como planejara.

- Então não deve ter-se esquecido que os russos publicaram fotocópias de uma das diretivas ultra-secretas que Johnson tinha roubado. Era o último plano de emergência dos Estados Unidos para o caso da União Soviética invadir a Europa Ocidental. Suge­ria que neste caso os Estados Unidos pretendiam devastar o con­tinente por meio de armas bacteriológicas, químicas e nucleares: o fato de que toda a população civil seria virtualmente extermi­nada estava implícito. Na época isto causou um tremendo furor na Europa e custou aos americanos a simpatia dos civis europeus, cerca de duzentos milhões deles: duvido que tenha recebido qualquer menção mesmo na última página do Washington Post.

- Você está muito bem informado.

- O fato de não ser membro da CIA não significa ser anal­fabeto. Eu sei ler. O alemão é a minha segunda língua materna, minha mãe era berlinense. Duas revistas alemãs publicaram a história na mesma época.

Harper estava resignado.

- O Der Spiegel e o Stern, em setembro de 1969. Sente al­gum prazer especial em me colocar num anzol e me observar enquanto me debato?

- Não era esta a minha intenção. Só quero esclarecer duas coisas. Se não for franco comigo em todos os assuntos não es­pere nenhuma cooperação de minha parte. Depois quero que saiba por que realmente aceitei este trabalho. Não sei se os ame­ricanos realmente iriam adiante praticando este holocausto. Acre­dito que não, mas o que acredito não interessa; é o que o Leste acredita que interessa, e se eles acreditam que a América não he­sitaria em usar esta ameaça, então poderiam se sentir tremenda­mente tentados a executar um ataque preventivo. Do que com­preendi do que o Coronel Fawcett disse, um milionésimo de grama dessa antimatéria daria cabo da América de uma vez por todas. Não acho que ninguém deva ter esta arma, mas, para mim é o menor de dois males: sou europeu de nascimento mas americano por adoção. Ficarei com os meus pais adotivos. E agora, será que poderíamos ir em frente? Diga tudo com todos os detalhes. Vamos fazer de conta que nunca ouvi falar nem vi Crau em minha vida e continuar a partir daí.

Harper olhou para ele sem entusiasmo. Disse com amargura:

- Se era sua intenção introduzir uma mudança sutil no nosso relacionamento teve um êxito além de quaisquer expecta­tivas que poderia ter tido. Apenas, eu não diria que foi tão sutil. Bem. Lubylan. De maneira bastante conveniente está situado não muito longe do local onde o circo se apresentará; ambas as cons­truções, embora na cidade, ficam, como era de se esperar, bem afastadas do centro. Lubylan, como pode ver, dá frente para uma rua.

- Há dois prédios nesse diagrama.

- Estou chegando lá. A propósito, estes dois prédios estão ligados por dois muros altos que não aparecem na planta. - Harper rapidamente os delineou. - Nos fundos de Lubylan existe apenas um terreno baldio. O prédio mais próximo, nessa direção, é uma central geradora de energia elétrica. Neste prédio que dá para a rua principal, vamos chamá-lo de prédio oeste, é onde a verdadeira pesquisa é executada. No prédio leste, o que dá para o terreno baldio nos fundos, também se faz trabalho de pesquisa, mas pesquisa de um tipo muito dife­rente e quase que certamente muito pior do que a que é feita no prédio oeste. No prédio leste eles realizam uma série de expe­riências extremamente desagradáveis com seres humanos. Inteira­mente controlado pela polícia secreta, é para aí que são levados os inimigos do Estado, que podem ser desde possíveis assassinos do Premier até um poeta dissidente meio louco. A taxa de mor­talidade, pelo que soube, é bem mais alta que a normal.

- Acho que é minha vez de dizer que está muito bem in­formado.

- Não mandamos um homem entrar de olhos vendados e com as mãos amarradas nas costas. Isso aqui atravessando o pá­tio é um corredor elevado no quinto andar, que liga os dois pré­dios. Tem as paredes e o teto de vidro, e é mantido sob luzes fortes do escurecer à madrugada. É impossível para qualquer pessoa utilizá-lo sem ser vista. Todas as janelas em ambos os prédios têm grades fortes, de ferro. Mesmo assim todas têm alarmes contra ladrões. Só existem duas entradas, uma para cada prédio, ambas automatica­mente fechadas e muito bem guardadas. Os dois prédios têm nove andares e os muros de ligação têm a mesma altura. Todo o perí­metro superior dos muros é coberto por espigões curvos de metal bem próximos uns dos outros, e todos com uma corrente de dois volts ligada a eles. Há uma torre de vigia em cada canto. Os guardas têm metralhadoras, holofotes e alarmes. O pátio entre os dois prédios, da mesma forma que o corredor elevado de vidro, é muito bem iluminado durante a noite - não que isso tenha muita importância: cães ferozes andam soltos pelo local o tempo todo.

- Tem o dom de encorajar as pessoas - disse Bruno.

- Você preferiria não saber dessas coisas? Só existem duas maneiras de escapar desse lugar: a morte pela tortura ou o sui­cídio. Ninguém nunca escapou. - O Dr. Harper indicou o outro diagrama. - Isto é a planta baixa do nono andar do prédio oeste. Isto é a razão pela qual o governo está financiando uma operação de milhões de dólares para fazê-lo entrar lá. É onde Van Diemen trabalha, dorme e vive.

- Eu deveria conhecer o nome?

- Seria muito pouco provável. Ele é quase que totalmente desconhecido do público. No mundo ocidental os cientistas falam dele com respeito. É reconhecidamente um gênio - o único gênio inquestionável em pesquisa molecular. O descobridor da antimatéria, o único homem no mundo que tem o segredo da fabricação, armazenamento e controle dessa arma terrível.

- Ele é holandês?

- A despeito do nome, não. É um alemão ocidental rene­gado, um desertor. Só Deus sabe por que desertou. Aqui você vê seus laboratórios e seu escritório. Aqui fica a sala da guarda - o lugar, compreensivelmente, é guardado como Fort Knox vinte e quatro horas por dia. E isto aqui é onde ele mora, só um quartinho, um banheiro menor ainda e uma cozinha mi­núscula.

- Quer dizer que não tem casa? Tornaria as coisas bem mais fáceis se tivesse.

- Ele tem uma casa sim, uma esplêndida mansão com lago e floresta que lhe foi dada pelo governo. Mas nunca esteve lá. Vive apenas para o seu trabalho e nunca sai dali. Suspeita-se que o governo está muito satisfeito por ele continuar a fazê-lo: torna o problema de segurança bastante mais simples.

- Sim. E voltando a outro problema simples, você disse que ninguém nunca escapou de Lubylan. Como espera que eu entre lá?

- Bem, vejamos. - Harper pigarreou, ele estava dando o primeiro passo num terreno delicado. - Nós já tínhamos pen­sado bastante no assunto antes de nos aproximarmos de você. O que é a razão pela qual nos aproximamos de você, e só de você. O lugar, como eu disse, é cercado por um muro fortificado por uma barreira de aço com uma corrente de dois mil volts. A energia elétrica tem que vir de algum lugar: ela vem da central elétrica nos fundos do prédio leste. Como a maioria das correntes de alta tensão, vem através de cabos sobre a superfície. Vem através de um único cabo, que sai de uma torre na central elé­trica e vai até o teto do prédio leste.

- Você está ficando louco. Tem que estar! Se está tão ma­luco a ponto de sugerir...

Harper preparou-se para agir com diplomacia, persuasão e inteligência de uma só vez.

- Vamos encarar o assunto desta maneira. Pensemos nele como sendo apenas outro arame alto. Enquanto você estiver em contato com este cabo, seja com as mãos, seja com os pés, e não encostar em nada como o poste de apoio para um isolante da torre, então...

- Vamos pensar nele como sendo apenas outro arame alto - imitou Bruno. - Dois mil volts... É o que usam, ou costu­mavam usar, na cadeira elétrica, não é?

Harper concordou com ar infeliz.

- No circo a gente sai de uma plataforma para o arame e do arame para outra plataforma do outro lado. Se eu sair da torre para o cabo ou do cabo para o muro da prisão terei um pé no cabo e o outro na terra. Serei eletrocutado num segundo. E cem metros de comprimento... Você tem algum tipo de idéia da curvatura que isto apresenta? Pode imaginar quais seriam os efeitos dessa curvatura combinada com qualquer vento que possa estar soprando? Será que lhe ocorreu que nesta época do ano pode haver gelo e neve naquele cabo? Pelo amor de Deus, Dr. Harper, não sabe que nossas vidas dependem do coeficiente de fricção entre as solas dos pés e o arame, o cabo, neste caso? Acredite-me, doutor, pode saber muita coisa sobre contra-espio­nagem, mas não sabe droga nenhuma sobre o arame alto.

Harper parecia estar ainda mais infeliz.

- E se por acaso continuar vivo depois da travessia desse cabo, como é que vou continuar vivo quando tentar a travessia daquele pátio, aquele pátio iluminado, patrulhado por cães - ou a travessia daquele corredor aéreo transparente, isto é, su­pondo que eu consiga de alguma maneira entrar primeiro. E se conseguir chegar ao prédio oeste, como vou passar pelos guardas?

Harper agora estava extremamente infeliz.

- E se conseguir tudo isso - não sou jogador, mas aposto com você mil contra um como nunca conseguirei - como é que vou descobrir o lugar onde estes papéis são guardados? Quer di­zer, você não pensa que eles estejam jogados em cima de uma mesa qualquer. Devem estar trancados em algum lugar. Van Diemen pode até simplesmente dormir com eles debaixo do tra­vesseiro.

Harper evitou de maneira deliberada o olhar de Bruno. Ele estava compreensível e evidentemente constrangido.

- Arquivos ou cofres trancados não são problema; posso lhe dar chaves que abrem qualquer fechadura comercial.

- E se tiver segredo?

- Parece que você vai precisar ter um pouco de sorte o tempo todo.

Bruno olhou para a escotilha, pensou na enormidade implí­cita naquele comentário, afastou os papéis e caiu no mutismo. Depois de bastante tempo ele se mexeu, olhou para Harper e suspirou.

- Acho que vou precisar de uma arma. Uma arma com silenciador. Com muita munição.

Harper por sua vez caiu no mutismo, depois disse:

- Quer dizer que vai tentar? - Se estava sentindo qual­quer coisa como esperança ou alívio, não o demonstrou: havia apenas incredulidade em sua voz.

- Uma vez louco, sempre louco. Não uma arma de fogo. Uma arma de gás ou uma que atire dardos anestésicos. É pos­sível?

- É para isso que existem malas diplomáticas - disse Har­per, num tom quase distraído. - Olhe, não acho que eu tenha medido as dificuldades convenientemente. Se acha que é com­pletamente impossível...

- Você está maluco. Eu estou maluco. Todos nós estamos malucos. Mas agora tem a droga do circo inteiro a caminho - no que me diz respeito estamos a caminho em mais de uma ma­neira - e mesmo não sendo por nenhuma dessas razões, nós o devemos aos nossos colegas assassinados. A arma.

Harper, evidentemente, buscava palavras adequadas e não as encontrou.

- Você pode guardar estes diagramas e as fotografias num lugar absolutamente seguro? - perguntou.

- Sim. - Bruno levantou-se apanhou os papéis e as foto­grafias, picou em pedacinhos, os levou até o banheiro e os fez descer pela latrina. Voltou e disse: - Agora estão em segurança.

- Agora seria difícil alguém pôr as mãos neles. Um dom notável. Ficarei muito grato se você não cair das escadas - de verdade dessa vez - bater com a cabeça e ficar com amnésia. Tem alguma idéia de como é que vai fazer isso?

- Olhe, sou médium, não Merlin, o mago. Há quanto tem­po sabe de tudo isso?

- Não há muito tempo. Só há algumas semanas.

- Não há muito tempo. Só há algumas semanas. - Bruno fez com que soasse como há alguns anos. - E já conseguiu imaginar alguma solução?

- Não.

- E espera que eu o faça em alguns minutos?

Harper balançou a cabeça e se levantou.

- Acho que Wrinfield passará por aqui para falar com você daqui a pouco. Ele deverá saber do seu acidente a qualquer momento e ignora que foi planejado, embora você possa lhe di­zer. Que pretende contar a ele?

- Nada. Se eu contasse a ele esse esquema suicida que você planejou para mim, ele faria este navio voltar em menos tempo do que levaria para se livrar de você.

 

Os dias se passaram de maneira bastante tranqüila, se bem que um pouco desequilibrados: os estabilizadores do Carpentaria não pareciam compreender muito bem o que se esperava deles. Para o pessoal do circo havia bem poucas coisas a fazer exceto alimentar os animais e manter as jaulas limpas. Os artistas que podiam praticar suas artes esotéricas, as praticavam, os que não podiam se armaram de paciência até a alma.

Bruno passou tempo suficiente com Maria para dar crédito à crença, agora quase que universal entre o pessoal do circo, de que de fato ali um romance ia-se desenvolvendo com regulari­dade, o que ainda era mais intrigante, pois parecia haver uma boa possibilidade de que poderiam ser dois romances em desen­volvimento, pois quando Bruno não estava com ela Henry Wrin­field estava, solícita e generosamente, lhe dispensando atenções, e como Bruno passava a maior parte do seu tempo com Kan Dahn, Roebuck e Manuelo, Henry não tinha falta nem de tempo nem de oportunidade e aproveitava ambos ao máximo.

O bar do salão, um aposento amplo que acomodava bem mais de uma centena de pessoas sentadas, estava sempre muito con­corrido antes do jantar. Na terceira noite após a partida Henry sentou-se a uma mesa de canto afastada conversando animada­mente com Maria. Na outra extremidade da sala Bruno sentou-se para jogar cartas com três amigos. Antes do jogo, Roebuck e Manuelo passaram seus dez minutos habituais lamentando o fato de não terem tido oportunidade de praticar suas artes com o laço e as facas, respectivamente. Kan Dahn não estava nem um pouco preocupado consigo mesmo: evidentemente ele não acreditava que a sua tremenda força fosse desaparecer em ques­tão de dias, crença partilhada por todos.

O jogo deles era pôquer. Jogavam com apostas baixas e Bruno quase invariavelmente ganhava. Os outros alegavam que era porque ele podia ver através das cartas, afirmação que Bruno negava com firmeza, embora na noite anterior, de olhos venda­dos, tivesse ganho quatro rodadas seguidas, o que punha um ponto de interrogação na sua negativa. Não que jamais ficasse com alguma coisa no bolso ao fim do jogo: o ganhador pagava as bebidas e embora ele, Roebuck e Manuelo bebessem muito pouco, a capacidade de Kan Dahn para consumir cerveja era espantosa.

Kan Dahn esvaziou mais um dos incontáveis copos, deu uma olhada no salão e bateu de leve no braço de Bruno.

- É melhor cuidar das suas defesas, rapaz. A sua bem-amada está sob ataque cerrado.

Bruno olhou para o outro lado da sala e disse com tran­qüilidade:

- Ela não é a minha bem-amada. Mesmo que fosse não creio que Henry seja do tipo de agarrá-la e sair correndo. Não que possa correr para muito longe no meio do Atlântico.

- Longe o bastante - disse Roebuck muito sério.

- A queridinha loura dele está lá nos Estados Unidos - disse Manuelo com severidade. - A nossa Mariazinha está aqui. Isto faz diferença.

- Alguém - disse Roebuck - devia contar a ela a res­peito de Cecily.

- A nossa Mariazinha sabe de tudo a respeito de Cecily. Ela mesma me disse. Sabe até que tipo de aliança de noivado ela usa. - Bruno tornou a olhar o casal. Depois voltou para o seu jogo. - Não creio que estejam falando a respeito de as­suntos do coração.

Maria e Henry não estavam, de fato, falando sobre assuntos do coração. Henry estava sendo muito sincero, muito intenso e estava realmente muito preocupado. De repente calou-se, olhou para o bar, e depois tornou a olhar para Maria.

- Isto prova tudo! - A voz de Henry tinha uma mistura de triunfo e apreensão.

- Prova o que, Henry?

- O cara de quem eu lhe falei. O cara que tem seguido você. Aquele camareiro que acabou de entrar e foi para trás do bar. O sujeito com cara de doninha. Ele não tem o direito de estar aqui. Ele não trabalha aqui.

- Ora, vamos, Henry. Ele não tem cara de doninha, só é magro.

- É inglês - disse Henry inconseqüentemente.

- Conheci alguns ingleses que não eram criminosos. E será que se esqueceu que este navio é inglês?

Henry estava persistente:

– Eu já o vi seguindo você uma meia dúzia de vezes. Sei porque segui vocês dois. - Maria olhou para ele surpreendida, mas desta vez sem sorrir. - Ele também segue meu tio.

– Ah! - Ela ficou pensativa. - O nome dele é Wherry. É o camareiro que serve as cabinas.

- Eu lhe disse que ele não devia estar aqui. Está é man­tendo a vigilância sobre você, é isso. - Conteve-se. - Um ca­mareiro. Como é que você sabe? É camareiro do seu camarote?

- Do camarote do seu tio. Foi lá que eu o vi pela primeira vez, no camarote do seu tio. - A expressão pensativa de Maria acentuou-se. - Agora que você falou, lembro que o vejo sempre por aí. E duas ou três vezes quando estava dando uma volta, virei e dei de cara com ele bem atrás de mim.

- É claro que sim.

- E o que é que isso quer dizer, Henry?

- Não sei - admitiu ele. - Mas não estou enganado.

- Por que é que alguém haveria de me seguir? Acha que ele é um detetive disfarçado e que eu sou uma criminosa pro­curada pela polícia? Ou será que pareço uma agente de contra-espionagem, uma espiã, uma Mata-Hari, cinqüenta anos depois?

Henry refletiu.

- Não, você não parece nada disso. Além disso Mata-Hari era feia. Você é bonita. - Ajeitou os óculos para confirmar a opinião. - Realmente linda.

- Henry! Lembra-se de hoje de manhã? Tínhamos combi­nado limitar nossas conversas a assuntos intelectuais.

- Ao inferno os assuntos intelectuais. - Henry pensou e pesou as palavras com cuidado. - Acho mesmo que estou me apaixonando por você. - Pensou mais. - Estou apaixonado.

- Eu não acho que Cecily...

- Ela que vá para o inferno também, não, não quis dizer isso. Desculpe. Embora fosse sério o que eu disse a respeito de você. - Virou-se um pouco na cadeira. - Olhe, Wherry está indo embora.

Eles o observaram sair, um homem pequeno e magro com um bigodinho escuro fino. Quando chegou mais perto da mesa deles, lançou um olhar rápido para eles e depois, com a mesma rapidez, desviou o olhar. Henry recostou-se na cadeira e fez um olhar de "eu não disse?".

- Um criminoso. Está na cara. Você viu só?

- Sim. - Ela estava perturbada. - Mas por que Henry, por quê?

Ele encolheu os ombros.

- Você tem objetos de valor? Jóias?

- Não uso jóias.

Ele bateu com a cabeça em sinal de aprovação.

- Jóias são para mulheres que precisam delas. Mas quando uma pessoa é tão adorável como você...

- Henry, está ficando de um jeito que não posso mais falar com você. Hoje de manhã eu disse que estava um dia bonito e você fez a sua cara tristonha e fez comentários disparatados a respeito do dia. Quando peço o meu pêche melba, você diz que não é nem de longe tão doce quanto eu. E quando vimos as lindas cores do pôr-do-sol hoje à tarde...

- Eu tenho uma alma poética. Pergunte a Cecily. Não, pensando bem, não pergunte a Cecily. Pelo que vejo vou ter que vigiar você muito de perto mesmo.

- Eu diria que você já está fazendo um bom começo.

- Ah! - Um Henry nada arrependido, os olhos um pouco-vidrados mas não pelo álcool, não fez nenhuma tentativa para desviar seu olhar de adoração para campos menos verdejantes. Disse com ar sonhador: - Sabe, eu sempre quis ser o Sir Galahad de alguém.

- Se fosse você eu não o faria, Henry. Não existe lugar no mundo de hoje para Sir Galahad. O cavalheirismo está morto, Henry. As lanças e as espadas brilhantes dos dias dos combates cavalheirescos já se foram, esta é a era da faca nas costas.

Infelizmente para Henry todos os seus sentidos, exceto o da visão, estavam temporariamente inativos. As palavras dela caí­ram em ouvidos moucos.

 

Na quarta noite a bordo, o Dr. Harper juntou-se a Bruno no seu camarote. Estava acompanhado por Cárter, o comissário, que tinha andado tão ocupado com o equipamento de aparelho de escuta na primeira noite a bordo. Cárter lhe deu o costumeiro boa noite cortês e sem dizer uma palavra repetiu a busca, ba­lançou a cabeça e saiu.

Harper acenou com a cabeça para o bar portátil, serviu-se de um drinque, saboreou-o e disse com alguma satisfação:

- Apanharemos as suas armas em Viena.

- Armas?

- Isso mesmo.

- Esteve em contato com os Estados Unidos? O operador de rádio não ficou desconfiado?

Era a noite de Harper divertir-se um pouco. Ele sorriu.

- Eu sou o meu operador de rádio. Tenho um radiotransmissor de freqüência muito alta, do tamanho de um livro co­mum, que não pode de jeito nenhum interferir com as freqüên­cias normais do navio. Como diz o Charles, pode alcançar até a lua. De qualquer maneira transmito em código. Qualquer hora dessas vou lhe mostrar o negócio, de fato terei que lhe mostrar e explicar como funciona para o caso de você ter que utilizá-lo. Caso alguma coisa desagradável me aconteça.

- Que é que poderia lhe acontecer de desagradável?

- Que é que poderia ter acontecido de desagradável com Pilgrim e com Fawcett? Agora veja, vamos apanhar duas armas para você, não uma, e isto por uma razão: o revólver de dardos anestésicos - na realidade os projéteis se parecem mais com agulhas - é o mais eficiente, mas dizem que Van Diemen sofre do coração já há algum tempo. Assim, se tiver de acalmá-lo, eles acham que o uso de um revólver de dardos seria contra-indicado. Para ele a pistola de gás. Já imaginou alguma maneira de entrar?

- Um helicóptero movido a bateria seria esplêndido, só que não existem coisas assim. Não, ainda não imaginei uma maneira de entrar no maldito lugar.

- Vamos continuar de dedos cruzados. Sabe que está esca­lado para jantar na mesa do comandante esta noite?

- Não.

- Os passageiros são escalados num esquema rotativo para ter este privilégio. É uma cortesia normal. Vejo você mais tarde.

 

Eles tinham acabado de sentar à mesa quando um camareiro se aproximou, inclinou-se e murmurou alguma coisa discreta­mente no ouvido do comandante, que se levantou, desculpou-se e seguiu o camareiro, saindo da sala de jantar. Estava de volta em dois ou três minutos parecendo estar mais do que vagamente perturbado.

- Estranho - disse. - Muito estranho. Cárter, já o co­nhecem, é o comissário-chefe, diz que acaba de ser agredido por um ladrão. "Prensado", acho que é assim que vocês dizem na América. Sabem como é, apanhado por trás por um braço em volta do pescoço e quase estrangulado. Não está ferido, mas pa­rece um bocado aborrecido.

- Será que não foi um copo a mais que ele bebeu? - perguntou Harper.

- Se foi, então a carteira dele saiu andando do bolso so­zinha.

- Nesse caso, foi agredido e a carteira dele, sem o con­teúdo, é claro, agora provavelmente está no fundo do Atlântico. Quer que eu dê uma olhada nele?

- Seria conveniente. Berenson está acalmando uma velha histérica que acha que está tendo um ataque do coração. Vou chamar o camareiro para levá-lo.

Harper saiu. Bruno disse:

- Aquele homem simpático e educado. Quem assaltaria uma pessoa assim?

- Não creio que a personalidade de Cárter tenha contado. Deve ter sido alguém que estava duro e que achou que se havia alguém que provavelmente teria dinheiro consigo esta pessoa se­ria o comissário de bordo. Uma coisa desagradável de acontecer num navio, de fato nunca soube nem ouvi falar de coisa pare­cida com isso antes. Vou mandar o imediato e alguns homens investigarem.

Bruno sorriu.

- Espero que nós, gente do circo, não sejamos automatica­mente colocados sob suspeita. Entre alguns cidadãos, bastante razoáveis em outros assuntos, nossa reputação não é o que po­deria ser. Mas eu não conheço gente mais honesta.

- Eu não sei quem é o responsável, e a questão, creio, é apenas de importância acadêmica, de qualquer maneira. Não acredito que o imediato tenha qualquer esperança de descobri-lo.

Bruno inclinou-se sobre o balaústre da popa do Carpentaria, olhando com ar contemplativo para a leve fosforescência da es­teira do navio. Virou-se quando alguém se aproximou dele.

- Alguém nas vizinhanças? - perguntou.

- Ninguém - disse Manuelo.

- Nenhum contratempo?

- Não. - Os dentes incrivelmente brancos cintilaram na escuridão. - Você tinha razão. O pobre Sr. Cárter de fato dá regularmente um... como é que se chama isso?

- Um passeio higiênico.

- Certo. Faz o seu passeio higiênico todo dia naquela hora da noite pelo convés. O convés é cheio de sombras. Kan Dahn deu um apertãozinho nele, Roebuck tirou as chaves da cabina do comissário, trouxe-as para mim e ficou vigiando o corredor enquanto eu entrava. Não levou muito tempo. Havia uma en­genhoca elétrica engraçada dentro de uma maleta.

- Acho que sei a respeito disso. Parecia um radiozinho mas não tinha faixas de freqüência?

- Sim. O que é?

- É um dispositivo para descobrir aparelhos de escuta. A turma aqui deste navio é muito desconfiada.

- Conosco por aqui, você se surpreende?

- E o que mais?

- Havia quinze mil dólares, em notas de dez, no fundo de um malão.

- Eu não sabia a respeito disso. Usadas?

- Não, novas. E em seqüência.

- Que descuidado.

- Parece. - Entregou um pedaço de papel a Bruno. - Escrevi os números de série das primeiras e das últimas.

- Bom, bom. Você tem certeza de que as notas eram ver­dadeiras?

- Aposto quanto você quiser. Não estava assim com tanta pressa e mostrei uma a Roebuck, ele concorda.

- Isto é tudo?

- Havia algumas cartas endereçadas a ele. Sem nenhum endereço particular, para Caixas Postais em algumas cidades, a maioria para Londres e Nova York.

- Em que língua? Inglês?

- Não, não reconheci a língua. O carimbo do correio dizia Gdynia. Isto seria polonês, não?

- Com certeza. Depois tudo foi colocado como havia sido encontrado, a porta trancada, e as chaves devolvidas ao Sr. Cár­ter, que estava adormecido.

Manuelo concordou. Bruno lhe agradeceu e voltou para o seu camarote, olhou rapidamente para os números de série escri­tos no pedaço de papel que Manuelo lhe dera e depois o fez descer pela latrina.

Não surpreendendo a ninguém, o agressor de Cárter nunca foi descoberto.

 

Na noite anterior à chegada a Gênova, o Dr. Harper foi ao camarote de Bruno. Serviu-se de uísque do bar de Bruno, pra­ticamente intocado.

- Como vão indo as idéias a respeito do negócio de entrar? - perguntou ele. - As minhas infelizmente alcançaram um im­passe.

Bruno disse, acabrunhado:

- Talvez tivesse sido melhor, especialmente para a minha saúde, se as minhas também tivessem alcançado um impasse.

O Dr. Harper ergueu-se na cadeira e comprimiu os lábios.

- Você teve alguma idéia?

- Não sei. Um esboço talvez. Estava pensando, você tem mais alguma informação para mim? Nada mesmo? Sobre a dis­posição do interior do prédio leste e como ter acesso ao nono andar? Olhe, o teto por exemplo. Há algum acesso através de grades de ventilação, alçapões ou coisas assim?

- Sinceramente, não sei.

- Acho que podemos esquecer as grades de ventilação. Num lugar de segurança máxima como esse a circulação do ar pro­vavelmente é feita através das paredes laterais, e deve ter saídas impossivelmente estreitas. Alçapões eu creio que eles devem ter. De que outra maneira poderiam os guardas subir para suas tor­res ou os eletricistas cuidar da manutenção da cerca elétrica quando necessário? Não posso imaginá-los subindo por uma es­cada vertical de aço presa na parte de dentro da parede. Sabe se Lubylan utiliza elevadores?

- Isto eu sei. Há uma escada que vai do teto ao andar térreo em cada prédio, com dois elevadores de cada lado da es­cada.

- É de se presumir que sirvam ao nono andar como a todo o resto. Isto significa que a casa de máquinas do elevador - sabe o que é, onde têm o mecanismo da polia para os cabos - deve se erguer para fora acima do teto. Isto poderia fornecer uma maneira de entrar.

- Também forneceria uma excelente maneira de você ser esmagado se estivesse descendo pelo buraco quando o elevador subisse. Já aconteceu antes, sabe, e não muito raramente tam­bém, com técnicos trabalhando em cima de um elevador.

- Isto é um risco. Andar num cabo de dois mil volts com vento forte - temos que pensar no pior - também não é um risco? Que é que existe no oitavo andar? Mais laboratórios?

- Por estranho que pareça, não. Este pertence ao prédio leste - o centro de detenção. Os oficiais superiores e o pessoal burocrático da prisão dormem lá, e talvez não possam suportar os gritos, talvez não queiram estar por perto no centro se os inimigos do Estado conseguirem fugir - não sei. Todos os es­critórios e arquivos da prisão ficam lá. Exceto pelos dormitórios dos guardas e pelos refeitórios, todo o centro de detenção é ocupado por celas. Isto é, exceto por alguns lugares agradáveis no andar térreo que são eufemisticamente chamados de centro de interrogatórios.

Bruno olhou para ele com admiração.

- Será que seria contra a ética eu lhe perguntar onde ar­ranja informações tão detalhadas? Pensei que nenhum estranho jamais tivesse permissão de entrar e que nenhum guarda ousasse falar.

- De maneira nenhuma. Nós temos, como dizem, o nosso homem em Crau. Não é um americano, é um natural do lugar. Ele foi preso há uns quinze anos por um crime político sem importância, tornou-se o que chamaríamos um homem de con­fiança depois de alguns anos e teve acesso a todas as depen­dências do prédio. Sua posição privilegiada não afetou nem um pouco o total e absoluto ódio que ele tem pelo regime em geral, por Lubylan e por todos os que trabalham lá dentro em parti­cular. Ele caiu em nossas mãos como uma maçã madura demais de uma árvore. Ainda bebe com os guardas e carcereiros de Lubylan e, de uma maneira ou de outra, dá um jeito de nos manter razoavelmente bem informados sobre o que está aconte­cendo. Já faz mais de quatro anos que foi libertado, mas os guardas ainda o consideram de confiança e falam livremente, em especial quando ele os enche de vodca. Nós fornecemos o dinheiro para a vodca.

- É um negócio nojento.

- Toda a espionagem e contra-espionagem é. O nível de glamour é zero.

- O problema ainda não está resolvido. É bem possível que haja uma solução. Não sei. Já conversou com Maria a esse res­peito?

- Não. Há tempo de sobra. Quanto menos gente souber...

- Gostaria de falar com ela hoje à noite. Posso?

Harper sorriu.

- Será que três cabeças são melhores que duas? Isto não é nenhum elogio para mim.

- Se ao menos soubesse, veria que é. Não posso me dar ao luxo de deixar você se envolver muito com o que eu faça. Você é o coordenador, e a única pessoa que realmente sabe o que está acontecendo - ainda não acredito que me tenha dito tudo que eu deva saber, mas não parece mais tão importante. Além disso, eu cortejei a moça com muita assiduidade - em­bora cumprindo ordens não achei a tarefa muito desagradável - todos já estão acostumados a nos ver juntos.

Harper sorriu sem malícia.

- Também estão acostumados a ver o jovem Henry com ela.

- Vou desafiá-lo para um duelo quando chegarmos a um cenário convenientemente centro-europeu. A atmosfera tem que ser exata. Não preciso das idéias de Maria. Tudo que quero dela é cooperação. Não há sentido em discuti-la com você antes de obtê-la.

- Não há problema. Quando?

- Depois do jantar.

- Onde? Aqui?

- Aqui, não. É perfeitamente lógico que o meu médico venha me ver, tratando cuidadosamente de uma das melhores propriedades do circo. Mas, como diz, ou como sugere a partir das artimanhas de Cárter com seu detetor de microfones, é bem possível que alguém possa estar me vigiando. Não quero que também fiquem vigiando Maria.

- Então sugiro que seja na cabina dela.

Bruno refletiu.

- Está bem.

Antes do jantar Bruno foi ao salão do bar, descobriu Maria sentada sozinha numa mesinha de canto, sentou-se junto dela e pediu uma bebida.

- Isto é intolerável! - disse ele. - Incrível! Maria Hopkins sentada sozinha.

Ela perguntou com uma certa aspereza.

- E de quem é a culpa?

- Não é minha, é?

- Sou tratada como uma pária, uma proscrita. Aqui há montes de homens muito simpáticos que adorariam me pagar uma bebida e conversar comigo. Mas não, eu sou a peste. O grande Bruno poderia entrar a qualquer momento. - Ela ficou séria por algum tempo. - Ou Henry. É ruim do mesmo jeito. Não só ele é o queridinho do coração do tio, e seria conveniente lembrar que o tio dele é o grande chefe branco, como também está desenvolvendo uma linha de carrancas muito intimidantes. A única pessoa que pouco se importa é aquele seu amigo gran­dalhão. Sabe que me chama de sua bem-amada?

- E você é? Esta é a pergunta intrigante e misteriosa que costuma ser feita a nosso respeito.

Ela recebeu o comentário com um silencioso desdém.

- Ah, bem. E onde está o rival à mão da minha bem-amada esta noite? Agora mesmo estava falando a respeito disso com o Dr. Harper. Henry e eu vamos nos bater em duelo quando che­garmos aos Cárpatos. Você devia ir ver. Afinal é por você.

- Ah, cale a boca! - Olhou para ele por um longo mo­mento, deu um sorriso largo a contragosto e colocou a mão sobre a dele. - Qual é o equivalente masculino para "bem-amada"?

- Não existe nenhum, ou se existe não creio que gostaria de ouvi-lo. Onde está Henry?

- Ele está fazendo investigações. - Subconscientemente ela baixou a voz. - Acho que está vigiando alguém ou seguindo alguém. Henry tem passado muito tempo desses dois últimos dias seguindo alguém que ele jura que me está seguindo.

De maneira surpreendente Bruno não achou graça.

- Por que não me contou antes?

- Não pensei que fosse importante. Não tinha levado a coisa a sério.

- Não tinha? E agora?

- Não tenho muita certeza.

- Por que alguém estaria seguindo você?

- Se soubesse lhe diria, não diria?

- Diria?

- Por favor.

- Já contou ao Dr. Harper?

- Não. Esta é a questão. Não há nada para contar. Não gosto que zombem de mim. Acho que o Dr. Harper tem lá as suas reservas a meu respeito. Não quero que ele pense que sou mais tola do que provavelmente já deve achar que sou.

- E este seguidor misterioso, tem nome?

- Sim, Wherry. É um camareiro. Baixinho, de rosto fino, muito pálido, olhos estreitos, bigodinho preto.

- Eu já o vi. É o seu camareiro?

- Do Sr. Wrinfield.

Bruno ficou momentaneamente pensativo, depois pareceu perder o interesse. Ergueu o copo.

- Gostaria de ver você depois do jantar. Em sua cabina, por favor.

Ela ergueu o copo e sorriu.

- E à sua saúde, também.

Depois do jantar Bruno e Maria não fizeram segredo do fato de estarem saindo juntos. Agora já não era novidade, e não cau­sava mais espanto. Uns vinte segundos depois de saírem Henry se levantou e deixou o salão de jantar, saindo pela outra porta. Uma vez lá fora ele apressou o passo, e foi para o outro lado, moveu-se em direção à popa, desceu uma escada e alcançou as acomodações dos passageiros. Bruno e Maria estavam a uns vinte metros adiante dele. Henry encaminhou-se para trás da escada e ficou na sombra.

Quase que imediatamente um vulto emergiu, ou emergiu par­cialmente de um corredor lateral a cinco metros adiante, para a esquerda. Ele espiou o corredor principal, viu Bruno e Maria e recuou rapidamente para o esconderijo, mas não tão rapida­mente a ponto de impedir que Henry o reconhecesse. Era, indiscutivelmente, Wherry. Henry ficou consideravelmente satis­feito consigo mesmo.

Wherry arriscou mais uma olhada. Bruno e Maria estavam quase desaparecendo numa curva à esquerda deles. Wherry saiu do esconderijo e os seguiu. Henry esperou que ele também desa­parecesse de vista e prosseguiu numa caçada furtiva. Alcançou a curva da esquerda andando na ponta dos pés sem fazer ba­rulho, olhou em volta e imediatamente voltou para o esconderijo. Wherry estava a menos de seis passos adiante, olhando para um corredor à direita. Henry não precisava que lhe dissessem para onde Wherry estava olhando - a cabina de Maria era a quarta porta para baixo. Quando olhou de novo, Wherry tinha desapa­recido. Henry moveu-se, tomou a posição que há tão pouco tempo Wherry estava ocupado na indigna atitude de encostar a orelha direita contra a porta da cabina. A de Maria. Henry recuou de novo e esperou. Não estava com pressa.

Henry deixou se passarem trinta segundos e então arriscou outra olhada. O corredor estava vazio. Sem pressa, caminhou pelo corredor, passou pela cabina de Maria - podia ouvir o murmúrio suave de vozes - alcançou a extremidade e entrou em outro corredor. Não havia passado dois dias seguindo Wherry com tanto zelo - e, como imaginava, com tanta discrição - sem que descobrisse onde ficavam os alojamentos de Wherry. Não duvidou um momento sequer de que era para lá que Wherry tinha ido.

Estava certo. Wherry tinha de fato ido para a sua cabina e estava, aparentemente, tão confiante em si que até deixara a porta aberta. Não ocorreu a Henry que pudesse ter havido outra razão para aquele aparente descuido. Wherry estava sentado com as costas viradas quase que por completo para ele, com um par de fones de ouvido, cujo fio estava ligado num rádio, enfiado na cabeça. Não havia nada de estranho naquilo: Wherry, como todos os camareiros, partilhava a cabina com um dos compa­nheiros, e, como freqüentemente trabalhavam em turnos diferen­tes e dormiam em horas diferentes, os fones asseguravam que um poderia ouvir o rádio sem perturbar o sono do outro: era pro­cedimento padrão naquele e na maioria dos navios de passageiros.

 

Maria estava sentada na cama da cabina olhando para Bruno com incredulidade. O rosto estava sem cor, deixando os olhos exageradamente grandes. Ela falou numa voz que era pouco mais que um murmúrio.

- Isto é loucura! É um disparate! É suicida!

- É tudo isso e mais um bocado além. Mas você tem que reconhecer que o Dr. Harper está numa situação impossível. Como idéia até que foi bastante engenhosa, de uma engenhosidade desesperada, veja bem, mas não havia outras opções abertas para ele, pelo menos nenhuma que pudesse ver.

- Bruno! - Ela escorregara da cama e estava de joelhos junto à poltrona dele, a mão esquerda dele entre as suas: havia medo no rosto dela, e Bruno percebeu reconfortado que não era medo por si mesma. - Você será morto, você sabe que será morto. Não vá. Por favor, não vá, não vá! Não, Bruno. Nada vale a sua vida, nada! Ah, meu Deus, não há nenhuma chance.

Olhou para ela um pouco surpreendido.

- E o tempo todo pensei que você fosse uma jovem agente durona da CIA.

- Bem, não sou. Durona, quero dizer. - Havia um brilho de lágrimas em seus olhos.

De modo quase distraído ele lhe afagou os cabelos. O rosto dela tomou uma expressão ofendida.

- Pode haver outro jeito, Maria.

- Não pode haver outro jeito.

- Olhe. - Com a mão livre esboçou rapidamente um dia­grama. - Vamos esquecer a entrada pelo cabo de alta tensão. O fato de que estas janelas são gradeadas talvez ainda possa ser a nossa salvação - bem, a minha, pelo menos. Pretendo ir por este caminho até o lado sul do prédio de pesquisa. Levarei um rolo de corda com um gancho preso na extremidade. Atirando umas duas vezes devo apanhar uma das barras na janela do pri­meiro andar. Subo pela corda até o primeiro andar, tiro o gancho, repito a operação e alcanço o segundo andar. E continuo assim até chegar ao teto.

- Sim? - O ceticismo agora aparente no rosto dela não substituía o medo, apenas o redobrava. - E depois?

- Arranjarei um jeito de silenciar o guarda ou os guardas na torre do canto.

- O que é, Bruno? O que é que lhe dá toda essa determi­nação? Você é um homem determinado, sabe disso? Não tra­balha para a CIA e esta maldita antimatéria não pode significar o mundo inteiro para você. Entretanto, eu sei - não acho - eu sei que está disposto a morrer para entrar nesta maldita pri­são. Por que, Bruno, por quê?

- Não sei. - Ela não podia ver o rosto dele, mas por um momento ficou perturbado, quase cauteloso. - Talvez fosse me­lhor perguntar às sombras de Pilgrim e de Fawcett.

- Que são eles para você? Mal os conhecia. - Ele não respondeu. Ela continuou de maneira cansada. - Então você vai silenciar os guardas. Como descobrirá um jeito de silenciar dois mil volts de grade de aço?

- Descobrirei um jeito, não de colocá-la fora de funcionamento, isto seria impossível, mas de ultrapassá-la. Mas precisarei da sua cooperação e você pode acabar na prisão.

- Que tipo de cooperação? - A voz dela estava inexpres­siva. - E o que é a prisão se você estiver morto?

 

Henry ouviu aquelas palavras. Wherry tinha tirado os fones para apanhar os cigarros e a conversa na cabina de Maria, em­bora fraca, distorcida, era compreensível e inconfundível. Henry esticou a cabeça um pouco mais e viu que o rádio não era o único equipamento elétrico que havia na cabina. Havia um pe­queno gravador no chão, com ambos os rolos girando devagar.

Wherry encontrou os cigarros, acendeu um, retomou seu lu­gar, pegou os fones e estava tornando a colocá-los na cabeça quando Henry empurrou a porta toda e entrou. Wherry virou-se, os olhos arregalados.

- Gostaria que me desse esse gravador, se não se importa, Wherry.

- Sr. Wrinfield!

- Sim. Sr. Wrinfield. Surpreendido? O gravador, Wherry. - De maneira aparentemente involuntária Wherry desviou os olhos para um ponto acima do ombro esquerdo de Henry, e este riu. - Desculpe, Wherry, mas essa já é velha.

Henry ouviu o último som que jamais ouviria, um zumbido quase silencioso no ar atrás dele. Seus ouvidos o registraram durante uma rápida fração de segundo, mas seu corpo não teve tempo de reagir. Suas pernas se dobraram, e Wherry o apanhou quando ele bateu no chão.

 

- Não me ouviu? - A voz de Maria ainda estava sem expressão. - Que é a prisão, que é qualquer coisa se você es­tiver morto? Você não pensa em mim? Está bem, está bem, es­tou sendo egoísta, mas não pensa em mim?

- Pare com isso! Pare com isso! Pare com isso! - Ele ti­vera a intenção de que a voz soasse áspera ou pelo menos fria, mas não lhe soou nem áspera nem fria. - Chegamos a Crau numa quinta-feira e partimos na quarta-feira da semana seguinte. É o lugar onde ficaremos mais tempo na excursão. Temos espe­táculos na sexta, no sábado, na segunda e na terça. O domingo é livre. Assim, no domingo alugamos um carro e vamos dar um passeio pelo campo. Não sei até onde nos permitirão ir, acredito que as restrições tenham sido diminuídas, mas não importa. Sem­pre poderemos ficar andando em círculos cada vez menores. O que importa - e isto terá que ser depois de escurecer - é que quando estivermos voltando, façamos um reconhecimento do ter­reno para ver se eles têm guardas fazendo rondas do lado de fora. Se tiverem, precisarei da sua ajuda.

- Por favor, desista dessa idéia maluca, Bruno. Por favor!

- Quando eu estiver subindo pelo lado sul do prédio do Centro de Pesquisas você estará na esquina da alameda sul com a rua principal oeste. Isto, eu não havia mencionado, será de­pois do último espetáculo na terça-feira à noite. O carro alu­gado, que eu creio terá naturalmente um seguro, ficará estacio­nado a alguns metros de distância na rua. As janelas estarão abertas e você terá uma lata de gasolina no banco da frente.

Se um guarda se aproximar pegue a lata, derrame um pouco de gasolina, não muito, no estofamento da frente e da traseira, atire um fósforo aceso e salte para fora depressa. Isto não só atrairá todas as atenções como o clarão fará tamanha sombra na esquina que eu poderei subir em quase completa escuridão. Creio que você pode ser apanhada e interrogada, mas a combi­nação do Sr. Wrinfield com o Dr. Harper deve garantir a sua libertação. - Ele pensou no assunto por um momento. - Por outro lado, pode ser que não.

- Você está completamente louco. Completamente.

- É tarde demais para mudar de opinião. - Ele se levan­tou e ela também. - Agora tenho de falar com o Dr. Harper.

Ela estendeu os braços e cerrou os dedos em torno do pes­coço dele. Sua voz refletia o desespero em seu rosto.

- Por favor, por favor, Bruno. Só por mim. Por favor. Ele pôs as mãos nos braços dela mas não para afastar os dedos.

- Olhe, minha bem-amada, nós devemos apenas fingir que estamos nos apaixonando. - A voz dele estava suave. - Desta maneira há uma chance.

- De qualquer maneira você é um homem morto - disse ela numa voz sem cor.

 

A meio caminho para o seu camarote Bruno encontrou um telefone e ligou para o Dr. Harper, que afinal foi localizado no salão de jantar. Bruno disse:

- Meu tornozelo está incomodando de novo.

- Dentro de dez minutos estarei aí.

E dez minutos depois o Dr. Harper estava no camarote, con­forme havia prometido. Serviu-se do bar de Bruno, sentou-se confortavelmente numa poltrona e ouviu o relato de Bruno de sua conversa com Maria. No fim, e depois de pensar um pouco, ele disse:

- Eu diria que este plano lhe dá pelo menos uma chance de lutar. Melhor do que no meu, tenho que admitir. Quando pretende executá-lo?

- A decisão final é sua, claro. Eu tinha pensado em fazer o reconhecimento do terreno no domingo e tentar entrar na terça-feira. Bem tarde na noite de terça. Esse me parece o me­lhor plano, o melhor momento, pois estaremos de partida no dia seguinte e isto dará à polícia menos tempo para interrogatórios, se é que haverá algum interrogatório.

- Concordo.

- E se tivermos de fugir, tem planos de fuga?

- Temos. Mas ainda não estão concluídos. Eu lhe direi quando estiverem.

- Por meio do seu radinho transmissor-receptor? Lembre-se que prometeu me mostrar um dia desses.

- E mostrarei. Eu tenho que fazê-lo, como já lhe disse. Vou fazer três coisas ao mesmo tempo - mostrar-lhe o radio-transmissor-receptor, dar-lhe as armas e mostrar-lhe os planos de fuga. Direi a você quando. Que foi que Maria achou da sua idéia?

- Foi de uma falta de entusiasmo considerável. Mas ela tam­bém não está gostando nem um pouco da sua. Entretanto, ainda que contra a vontade, ela vai cooperar. - Bruno parou e olhou em volta com certo espanto.

- Alguma coisa errada? - perguntou Harper.

- Não errada necessariamente, mas o navio está parando. Não está ouvindo? As máquinas estão praticamente paradas. Por que um navio pararia ou melhor, reduziria a velocidade no meio do Mediterrâneo? Bem, creio que descobriremos no devido tempo.

Eles descobriram imediatamente. A porta foi aberta sem ce­rimônia, com uma força suficiente para fazê-la tremer nos gon­zos. Tesco Wrinfield quase correu para dentro do quarto.

O rosto dele estava pálido, acinzentado, a respiração pesada e ofegante ao mesmo tempo.

- Henry sumiu. Ele sumiu! Não conseguimos encontrá-lo em lugar nenhum.

- É por isso que o Carpentaria está reduzindo a marcha? - perguntou Bruno.

- Estivemos procurando em todos os cantos. - Ele engo­liu de uma só vez o copo de brandy que Harper lhe havia dado. - A tripulação já procurou, ainda está procurando em todos os lugares. Simplesmente não há sinal dele. Sumiu, simplesmente sumiu.

Harper tentou acalmá-lo. Olhou para o relógio.

- Ora, vamos, Sr. Wrinfield, isto não pode ter sido há mais de quinze minutos. E este é um navio muito grande.

- Com uma tripulação muito numerosa - disse Bruno. - Eles têm um procedimento padrão para este tipo de coisa, isto é, procurar passageiros desaparecidos. Dos barcos salva-vidas aos po­rões podem revistar todos os lugares imagináveis em menos tempo do que pensaria que fosse possível. - Virou-se para Wrinfield, que estava fora de si. - Sinto muito não poder lhe dar muito consolo, senhor, mas o capitão está reduzindo a marcha para não se afastar muito do local onde seu sobrinho pode ter caído ao mar?

- Creio que sim. - Wrinfield ficou ouvindo. - Estamos, acelerando, não estamos?

- E voltando - disse Bruno. - Creio que isto significa que o comandante está praticamente certo de que Henry não se acha a bordo. Ele vai virar o Carpentaria num ângulo de cento e oitenta graus e voltar por onde viemos. Se Henry estiver no mar pode muito bem estar nadando ou boiando. Este tipo de coisa já aconteceu antes: há sempre uma chance, Sr. Wrinfield.

Wrinfield olhou para ele com incredulidade perturbada no rosto, e Bruno não o culpou: ele também não acreditava.

Foram para o convés. O Carpentaria, voltando sobre a rota em que viera, ia numa velocidade de talvez uns dez nós, não mais que isso. Um barco salva-vidas com motor, já com a equipagem a bordo, foi lançado sobre a amurada. Dois holofotes muito for­tes brilhavam, um em cada lado da ponte, iluminando tudo. Na proa, dois marinheiros dirigiam os feixes de luz de suas lanternas; portáteis quase que verticalmente para baixo. Um pouco além, em direção à popa, dois marinheiros de cada lado esperavam com cintos salva-vidas presos com cordas. Ainda mais adiante deles, escadas de cordas, iluminadas pelas luzes das lanternas, pendiam sobre os lados da quilha.

Vinte minutos de tensão sempre crescente e de esperança cada vez menor se passaram. De maneira abrupta Wrinfield dei­xou seus dois companheiros e dirigiu-se para a ponte de comando. Encontrou o chefe da busca do lado de estibordo com os bi­nóculos nos olhos. Baixou-os quando Wrinfield se colocou a seu lado, sacudiu a cabeça e disse:

- Seu sobrinho não está no navio, Sr. Wrinfield. Não há dúvida quanto a isso - o comandante consultou o relógio. - Há trinta e oito minutos que ele foi visto pela última vez. Esta­mos no lugar exato onde estávamos há trinta e oito minutos. Se ele estiver vivo - sinto muito ter que ser tão rude - não pode estar além deste ponto.

- Não poderíamos não tê-lo visto?

- É muito pouco provável. O mar está calmo, é uma noite sem vento, não há correntezas por aqui que sejam dignas de menção e o Mediterrâneo, como sabe, virtualmente não tem marés. Ele teria estado na direção que percorremos. - Falou com um oficial a seu lado e o homem desapareceu no interior da ponte de comando.

- E agora?

- Vamos fazer o navio dar a volta num círculo apertado. Depois, em três, talvez quatro círculos concêntricos cada vez mais largos. Depois, se não encontrarmos nada, voltaremos na mesma velocidade para o local de onde voltamos.

- E será o fim.

- Sim, creio que será o fim.

- O senhor não tem muitas esperanças, comandante.

- Não tenho esperanças.

 

O Carpentaria levou quarenta minutos para completar o pro­cedimento padrão de busca e voltar para a posição onde fizera meia-volta. Maria, de pé com Bruno à sombra de um bote salva-vidas, estremeceu quando o pulsar das máquinas ficou mais forte e o Carpentaria começou a ganhar velocidade.

- Então está tudo acabado, não está? - disse ela.

- Os holofotes foram apagados.

- E foi minha culpa. Foi tudo por minha culpa. - A voz dela estava rouca.

- Não seja boba. - Ele a abraçou. - Não havia nenhuma maneira de ter impedido que isso acontecesse.

- Havia! Havia, sim! Eu não o levei a sério. Eu... bem, não cheguei a rir dele, mas também não lhe dei ouvidos. Eu de­via ter contado a você há dois dias atrás. - Agora ela chorava abertamente. - Ou ao Dr. Harper. Ele era tão gentil.

Bruno ouviu a palavra "era" e soube que finalmente ela aceitara o que ele mesmo já havia aceitado há uma hora. Disse com suavidade:

- Seria bom se você falasse com o Sr. Wrinfield.

- Sim. Sim, é claro. Mas... bem, eu não quero ver gente. Será que não podíamos... eu não gosto de pedir, mas se ele pudesse vir aqui... se você pudesse trazê-lo e...

- De jeito nenhum, Maria. Você não ficará aqui sozinha. Sentiu que ela o fitava na escuridão.

Ela sussurrou:

- Você acha que alguém?...

- Não sei o que pensar porque não sei nem como nem por que Henry morreu. Tudo que tenho certeza é de que não foi acidente: ele morreu porque descobriu que alguém estava inte­ressado demais em você, e porque deve ter cometido o erro de descobrir demais. Estive fazendo umas perguntas. Aparentemente, ele deixou o salão de jantar logo depois que saímos. Saiu por outra porta, mas creio que queria evitar parecer óbvio demais. Tenho certeza de que não estava nos seguindo diretamente - ele poderia ter chegado a uma opinião não muito favorável da minha relação com você, mas era franco, honesto e a última pessoa que se poderia imaginar agindo como um intrometido. Acho que estava agindo dentro do papel que se atribuíra de guardião. Creio que estava procurando saber se alguém nos se­guia ou vigiava. Henry tinha uma veia romântica e este tipo de coisa o teria atraído. A única conclusão a que posso chegar é que ele tenha, de fato, descoberto a tal pessoa, e que esta pessoa - ou uma outra, só Deus sabe quantos tipos desagradáveis po­dem existir no navio - encontrou Henry numa situação alta­mente comprometedora. Quero dizer, comprometedora para os vilões. Mas isto não altera o fato de que o primeiro alvo de atenção era você. Apenas tenha em mente que não se pode nadar muito se antes se recebeu uma pancada na base do crânio. - Ele puxou um lenço e fez uns reparos apressados no rosto mar­cado pelas lágrimas. - Você vem comigo.

Quando iam andando pelo convés passaram por Roebuck e o cumprimentaram. Bruno fez um gesto discreto para que ele os seguisse. Roebuck parou, fez meia-volta e os seguiu, andando a uns dez passos atrás.

Wrinfield foi finalmente localizado no escritório do rádio, tratando do envio de cabogramas para os pais e os parentes de Henry. Agora que o choque inicial passara, estava calmo e con­trolado, e afinal acabou passando muito mais tempo consolando Maria do que ela a ele. Eles o deixaram ali e encontraram Roe­buck esperando do lado de fora.

- Onde está Kan Dahn? - perguntou Bruno.

- No bar. Dá até para pensar que uma falta de cerveja de sete anos de duração está muito próxima.

- Será que poderia acompanhar esta moça até a cabina dela, por favor?

- Por quê? - Maria não estava aborrecida, apenas espan­tada. - Será que não sou capaz de...?

Roebuck segurou-lhe o braço com firmeza.

- Os indisciplinados vão para o trampolim, moça.

- E tranque a porta - disse Bruno. - Quanto tempo acha que vai levar para ir para a cama?

- Dez minutos.

- Dentro de quinze minutos eu passo lá.

 

Maria abriu a porta ao ouvir a voz de Bruno. Ele entrou seguido por Kan Dahn que carregava um par de cobertores de­baixo do braço. Kan Dahn lhe deu o seu sorriso bem-humorado, depois acomodou seu corpo gigantesco na poltrona e arranjou cuidadosamente os cobertores sobre os joelhos.

- Kan Dahn acha o alojamento dele um pouco apertado - disse Bruno. - Pensou em descansar um pouco por aqui.

Maria olhou para eles, primeiro querendo protestar, depois com espanto; sacudiu então a cabeça em sinal de impotência, sorriu e não disse nada. Bruno despediu-se e foi embora.

Kan Dahn estendeu a mão, virou para baixo o reostato no abajur flexível de cabeceira e ajeitou a luz fraca de forma que não iluminasse o rosto da moça e o deixasse no escuro. Ele to­mou a mão de Maria na sua manopla.

- Durma bem, minha pequenininha. Não quero ganhar nada com isso, mas Kan Dahn está aqui.

- Você não pode dormir nessa cadeira horrível, pode?

- Não, não posso. Nem vou. Dormirei amanhã.

- Você não trancou a porta.

- Não - disse ele alegremente. - Não tranquei, tranquei?

Ela adormeceu em poucos minutos e ninguém, muito afor­tunadamente para a continuidade do seu bom estado de saúde, veio visitá-la naquela noite.

 

A chegada, a descarga e o desembarque em Gênova foram tranqüilos e sem acontecimentos, realizando-se num espaço de tempo admiravelmente curto. Wrinfield estava calmo, eficiente, supervisionando tudo como sempre, e teria sido impossível para quem o observasse, enquanto tratava de seus negócios, adivinhar que na noite anterior seu sobrinho predileto, que era para ele mais como um filho, havia morrido. Wrinfield era um homem de teatro do princípio ao fim, em todos os sentidos: o ditado demasiado vulgar dizia que o espetáculo tinha que continuar, e enquanto Wrinfield estivesse ali, ele certamente continuaria.

O trem, com a ajuda de uma pequena locomotiva de ma­nobra foi reunido e puxado para um pátio secundário a cerca de um quilômetro de distância, onde alguns carros vazios e provi­sões para os animais e as pessoas já estavam esperando. No fim da tarde, os últimos preparativos estavam terminados, a pequena locomotiva diesel de manobra se separou e foi substituída pela gigantesca locomotiva italiana fretada, que deveria puxá-los pe­las diversas montanhas que havia no caminho acima. Ao en­tardecer já saíam de Milão.

 

A excursão pela Europa, que deveria incluir dez países - três na Europa Ocidental e sete na Europa Oriental - revelou-se algo mais que um estrondoso sucesso. Parecia uma marcha triun­fal, e à medida que a fama do circo chegava antes dele, a recepção, o entusiasmo e os elogios tornaram-se positivamente embaraçosos, até chegar ao ponto em que havia seis pedidos para cada assento disponível em qualquer apresentação - e algumas das casas de espetáculos eram enormes, algumas maiores do que qualquer outra nos Estados Unidos. Nos arredores esquálidos das grandes cidades eles eram recebidos e vistos por multidões maio­res do que aquelas que prestavam homenagens ao mais moderno e fabuloso conjunto de cantores - ou equipes ganhadoras de taças de futebol - nos aeroportos internacionais.

Tesco Wrinfield, com determinação e uma força de vontade consciente, deixara o passado para trás. Ali ele estava no seu elemento e regalava-se em solucionar as complexidades dos vas­tos problemas logísticos envolvidos. Conhecia a Europa, especial­mente a Europa Oriental onde havia recrutado a maioria de suas atrações, tão bem quanto qualquer europeu no trem, e certa­mente muito melhor que qualquer um de seus executivos, artis­tas e trabalhadores americanos. Sabia que aquelas platéias eram mais sofisticadas e sabiam apreciar melhor as artes de um circo do que as platéias americanas e canadenses, e, quando os jornais daquela gente, cada vez com mais freqüência, passaram a se re­ferir ao orgulho e à alegria de sua vida como sendo o maior circo de todos os tempos, aquilo foi um bálsamo incomparável para seu coração de empresário. Ainda mais embriagadoras, se isto era possível, eram as referências feitas a ele como sendo o maior showman da Terra. Também não lhe desagradou o lado pragmático de tudo: as casas lotadas e os lucros muito altos torna­vam o exame dos livros-razão um verdadeiro prazer: não se pode ser um grande homem de espetáculos sem ser também um grande homem de negócios. Chegou a um ponto em que ele começou a calcular que, mesmo sem o apoio do Governo dos Estados Uni­dos, ele ainda poderia, entre a saída e a volta à América, ter obtido um lucro considerável na excursão. Não, é claro, que o Governo dos Estados Unidos fosse ter conhecimento disso.

Pelo menos tão satisfeitos quanto ele estavam aqueles dentre os artistas - mais da metade deles - que eram originários da Europa Oriental. Para eles, especialmente para húngaros, búlga­ros e romenos, cujas escolas de treinamento circense eram as me­lhores da Europa e provavelmente do mundo, aquela era a tão prometida volta à pátria. Diante de seus compatriotas eles se su­peravam, atingindo níveis de desempenho profissional jamais al­cançados antes. O moral num grande circo é sempre alto: mesmo assim, Wrinfield nunca vira aquela gente tão feliz e tão satisfeita.

Eles percorreram o norte da Itália, a Iugoslávia, a Bulgária e a Hungria, depois tornaram a atravessar a Cortina de Ferro, indo para a Áustria. Foi depois do último espetáculo, no pri­meiro dia em Viena, cujo final fora saudado pela agora já corri­queira ovação entusiástica, que Harper - que reduzira os con­tatos deles no continente ao mínimo possível - se aproximou de Bruno.

- Venha ao meu alojamento quando estiver pronto - disse.

Quando Bruno chegou, Harper disse sem mais preâmbulos:

- Prometi a você que lhe mostraria três coisas numa só noite. Aqui estão elas. - Ele desprendeu o fundo da maleta de médico e tirou um recipiente de metal ainda menor que uma caixa de papel Yes.

- Uma belezinha transistorizada. Fones de ouvido e micro­fone. Este interruptor é para ligar. Este botão é para uma com­binação da emissão em onda selecionada e chamada; o receptor em Washington tem gente a postos vinte e quatro horas por dia. Esta alavanca de mola é para transmissão. É simples.

- Disse alguma coisa a respeito de um código.

- Não vou sobrecarregar você com isso. Eu sei que se o escrevesse, você poderia guardá-lo de memória em menos de um segundo, mas a CIA tem uma cisma com esse negócio de escre­ver os códigos no papel por menor que seja o tempo. De qual­quer maneira, se você tiver que usar este aparelho - o que significaria, infelizmente para mim, que eu não estaria mais no mundo dos vivos - não se preocupe com códigos. Apenas grite "Socorro" em bom inglês.

"Foi neste aparelho que hoje recebi a confirmação das ins­truções da nossa rota de fuga - esta noite, na realidade. Há umas manobras da OTAN que estarão se realizando no Báltico dentro de dez dias. Um navio não identificado - eles são um grupo muito desconfiado lá em Washington; eu suponho que o navio seja americano, mas não sei nem que tipo de embarcação será - estará ancorado ou navegando ao longo da costa a partir da noite de sexta-feira até a sexta-feira da semana seguinte. Tem um helicóptero anfíbio de salvamento. Ele pousará num lugar que eu lhe mostrarei quando chegarmos lá. Não considero seguro trazer mapas comigo, e, além disso, não posso localizá-lo direito antes de chegarmos lá. O navio está recebendo rádio na mesma freqüência que Washington. É só apertarmos este botão aqui no transmissor-receptor - é tão simples assim - e o helicóptero vem correndo.

- Tudo me parece perfeitamente claro. De fato, você parece estar mesmo com tudo organizado. Sabe, estou começando a achar que o Governo considera os papéis de Van Diemen realmente muito valiosos.

- Dá para se ter essa impressão. A propósito, estou curioso. Quanto tempo dura a sua memória?

- Tanto quanto eu quiser.

- Então você poderá memorizar o conteúdo daqueles pa­péis e reproduzi-lo, digamos, um ano depois?

- Creio que sim.

- Esperemos que seja assim que vá acontecer - que você tenha a oportunidade de reproduzi-lo, quero dizer. Vamos espe­rar que ninguém jamais descubra que você entrou lá, fez o seu truque de mentalista e saiu sem ser visto. Vamos esperar, em outras palavras, que não precise de usar isso. - Do bolso do paletó, Harper tirou um par de canetas, uma preta e uma ver­melha. Elas eram do tipo pesado de escritório, que se prende no bolso, com o botão de soltar a pena, na ponta de cima. - Hoje fui apanhar estas duas na cidade. Não preciso lhe dizer onde as apanhei.

Bruno olhou para as canetas e depois para Harper.

- Para que diabo eu quereria estes negócios?

- Quaisquer que sejam os defeitos do nosso departamento de ciência e pesquisa, não são certamente o de falta de imagi­nação. Eles realmente primam por imaginar estes brinquedinhos. Não acha que eu vou deixar você atravessar duas fronteiras orien­tais com um par de pistolas Peacemaker enfiado no cinto, acha? Estas são as armas. Sim, armas. A vermelha é a pior, a que tem agulhas com anestésico na ponta, não muito recomendáveis para os que sofrem do coração; a outra é a de gás.

- Tão pequenas assim?

- Com as técnicas de microminiaturização disponíveis hoje em dia, estas são até muito volumosas. A de agulhas com anes­tésico tem um alcance eficaz de dez metros; a de gás não tem mais de quatro. O funcionamento é um exemplo de simplicidade. Aperte o botão na ponta de cima e elas estarão armadas; aperte o grampo de prender no bolso e elas disparam. Coloque-as no bolso externo do seu paletó. Deixe que as pessoas se habituem a ver você com elas. Agora, ouça com atenção enquanto eu lhe explico os planos para Crau.

- Mas pensei que tivesse concordado com o meu plano.

- Concordei e concordo. Isto é apenas um aprimoramento da primeira parte daquele plano. Você pode ter-se perguntado por que a CIA decidiu mandar um médico com você. Quando eu tiver terminado você compreenderá.

 

A cerca de umas quatrocentas e cinqüenta milhas ao norte, três homens uniformizados estavam sentados numa sala muito bem iluminada, sem janelas e muito austera; a mobília consistia essencialmente de arquivos de metal, uma mesa de metal e al­gumas cadeiras com armação de metal. Os três estavam unifor­mizados. Pelas insígnias que usavam, um era coronel, o segundo, capitão e o terceiro, sargento. O primeiro era o Coronel Serge Sergius, um homem magro, com rosto de falcão, olhos aparente­mente sem pálpebras, e um talho onde deveria ter estado a boca: sua aparência combinava perfeitamente com sua ocupação, que era a de um funcionário graduado da polícia secreta. O segundo, Capitão Kodes, era o seu assistente, um homem de corpo atlético e bem proporcionado, com seus trinta e poucos anos, um rosto sorridente e frios olhos azuis. O terceiro, Sargento Ângelo, era notável por uma única razão, mas aquela única razão era sufi­cientemente notável. Com um metro e oitenta de altura, Ângelo era demasiadamente corpulento para a sua altura, um homem tremendamente musculoso que não poderia pesar menos de cem quilos. Tinha uma única função e vivia para ela: era o guarda-costas pessoal de Sergius. Ninguém poderia ter acusado Sergius de escolher sem o devido cuidado e atenção.

Na mesa, um gravador estava ligado. Uma voz disse "... e isto é tudo o que temos até o presente momento."

Kodes incli­nou-se e desligou o gravador.

- E é mais do que suficiente. Todas as informações que queremos. Presumo, meu caro Kodes, que se encontrasse os donos dessas quatro vozes poderia identificá-los imediatamente, não é?

- Sem sombra de dúvida, senhor.

- E você, Ângelo?

- Sem dúvida, senhor. - A voz grave e ressonante de Ân­gelo parecia se originar das solas de suas enormes botas.

- Então por favor prossiga, capitão, faça as reservas para os nossos quartos de costume na capital, nós três e o operador de câmera. Já o escolheu, Kodes?

- Pensei no jovem Nicolas. É extraordinariamente habili­doso.

- A escolha é sua. - A boca sem lábios do Coronel Ser­gius entreabriu-se, o que significava que ele estava sorrindo. - Não vou a circo há trinta anos - os circos deixaram de existir durante a guerra - mas devo dizer que estou cheio de um en­tusiasmo quase infantil para ver este. Especialmente um do qual falam tão bem. A propósito, Ângelo, há um artista neste circo que tenho certeza de que você estará muito interessado em ver, talvez até de conhecer.

- Não faço questão de ver nem de conhecer ninguém de um circo americano.

- Ora, vamos, Ângelo, não se deve ser tão chauvinista.

- Chauvinista, coronel?

Sergius pensou em explicar, depois decidiu que não valia o esforço. Ângelo tinha inúmeros atributos, mas uma inteligência afiada não estava entre eles.

- Não há nacionalidades num circo, Ângelo, só artistas e atletas: a platéia não se importa se o homem no trapézio vem da Rússia ou do Sudão. O homem a quem me refiro chama-se Kan Dahn, e dizem que ele ainda é maior do que você. É con­siderado o homem mais forte do mundo.

Ângelo não respondeu, apenas inflou seu peito enorme ao máximo que podia, e contentou-se em dar um sorriso de incre­dulidade feroz.

 

A permanência de três dias em Viena era agora o inevitável enorme sucesso. De lá, o circo dirigiu-se para o norte e, depois de uma parada para pernoite, chegou à cidade aonde Sergius e seus subordinados tinham-se dirigido para encontrá-lo.

No espetáculo da noite, aqueles quatro tinham tomado os melhores lugares, cerca de seis filas para trás, bem defronte ao centro do picadeiro central. Todos os quatro usavam trajes civis e todos os quatro eram inconfundivelmente soldados a paisana. Um deles, imediatamente após o início do espetáculo, pegou uma câmara fotográfica de aparência muito cara, e a exibição dela fez com que logo surgisse um policial uniformizado. Tirar fotografias era oficialmente desencorajado, enquanto que para os ocidentais a posse ilegal de uma câmara fotográfica não decla­rada, se descoberta, era uma certeza de prisão e processo: todas as câmaras do pessoal do circo tinham sido recolhidas, quando da entrada no país, e só seriam devolvidas quando a fronteira de saída tivesse sido atravessada.

- A câmara, por favor, e os seus documentos - disse o policial.

- Guarda. - O policial virou-se para Sergius e lhe con­cedeu um olhar frio e insolente de policial, um olhar que durou quase que todo um segundo, antes que ele engolisse o que pa­recia ser um travo doloroso na garganta. Ele se dirigiu para a frente de Sergius e falou baixinho.

- Desculpe-me, coronel. Não fui informado.

- Sua central foi informada. Encontre o incompetente e dê-lhe uma punição.

- Sim, senhor. Minhas desculpas por...

- Você está impedindo a minha visão.

E de fato a vista era algo que não devia ser impedido. Sem dúvida inspirados pelo fato de que estavam sendo admirados por connoisseurs e connoisseurs muitíssimo entusiasmados, os artis­tas, naquelas últimas semanas, tinham-se superado repetidamen­te, aperfeiçoando, trabalhando e elaborando seus números, con­tinuamente inventando proezas cada vez mais difíceis e auda­ciosas, até atingirem agora um nível quase que impossível de perfeição. Até Sergius, que normalmente tinha um cérebro de computador congelado, entregou-se por inteiro àquele país de contos de fadas que era o circo. Só Nicolas, o jovem fotógrafo muito bem apessoado, tinha a mente voltada para outras coisas, tirando séries quase ininterruptas de fotografias dos astros prin­cipais do circo. Mas até ele esqueceu a sua câmara e a sua missão, ao olhar, como seus companheiros, com total increduli­dade enquanto As Águias Cegas executavam sua perigosa rotina aérea.

Foi logo depois da apresentação deles que um indivíduo de aparência comum se aproximou de Sergius e murmurou:

- Duas fileiras para trás, dez cadeiras à sua direita.

Um rápido movimento de cabeça foi o único agradecimento de Sergius.

Bem no fim do espetáculo, Kan Dahn, que parecia ficar cada vez mais em forma com o passar dos dias, executou suas proezas. Kan Dahn desprezava o uso de aparelhos tais como barras de ferro e halteres: uma criança de cinco anos podia dar nós em barras de ferro e levantar um enorme haltere de 200 quilos, desde que eles fossem feitos do material certo, que podia ser qualquer coisa, menos ferro. Ele trabalhava invariavel­mente com seres humanos: criaturas que corriam, saltavam e viravam cambalhotas não podiam, evidentemente, ser feitas de plástico recoberto de ferro.

Para encerrar seu número, Kan Dahn desfilou em volta do picadeiro central com uma pesada estaca de madeira apoiada num balancim sobre os ombros. De cada lado do balancim es­tavam sentadas cinco moças do circo. Se Kan Dahn sentia a presença do peso delas não o demonstrava. De vez em quando, parava para coçar a parte de trás da barriga da perna esquerda com o dorso do pé direito. Sergius inclinou-se sobre Kodes e falou com Ângelo, que assistia ao espetáculo com um ar de reso­luta indiferença.

- Ele é grande, não é, Ângelo?

- É só exibição de músculos. É flácido. Uma vez vi um velho em Atenas, devia ter no mínimo uns setenta e cinco anos, e não pesava nem um quilo, eu juro, mais que cinqüenta, carre­gando um piano grande por toda a extensão de uma rua. Os ami­gos devem tê-lo colocado nas costas dele - ele nunca poderia ter esticado as pernas sob aquele peso - e se não as manti­vesse esticadas teria desmontado.

Ele ainda estava falando quando Kan Dahn começou a su­bir uma enorme escada no centro do picadeiro. A plataforma do centro tinha cerca de um metro quadrado. Kan Dahn a al­cançou sem nenhuma dificuldade aparente, pisou num disco em­butido, e dando impulso progressivamente com as pernas da gros­sura de troncos de árvore, fez com que o disco girasse em círculos, aumentando a velocidade lentamente, até que as moças sentadas nas pontas da estaca não fossem mais que borrões caleidoscópicos. Gradualmente, ele reduziu a velocidade, parou, desceu a escada, ajoelhou-se e então baixou os ombros até que os pés das moças do circo tocassem a serragem. Sergius inclinou-se de novo.

- O seu amigo de Atenas poderia ter feito isso com o piano? - Ângelo não respondeu. - Sabe que dizem que ele pode fazer isso com quatorze moças, mas que a direção não permite por achar que ninguém acreditaria? - Ângelo continuou em silêncio.

O número terminou com o aplauso entusiasmado, uma ova­ção com a platéia de pé que durou diversos minutos. Quando a assistência começou a sair, Sergius procurou e encontrou Wrinfield e, apressando o passo, deu um jeito para alcançá-lo junto da porta de saída.

- Sr. Wrinfield?

- Sim. Desculpe-me, mas eu o conheço?

- Ainda não nos havíamos encontrado. - Sergius apontou a fotografia na página da frente do programa que tinha na mão. A semelhança, há de convir, não deixa margem a dúvidas. Sou o Coronel Sergius. - Trocaram um aperto de mãos formal. - Estupendo, Sr. Wrinfield. Impossível. Se alguém tivesse me dito que um espetáculo como esse existia eu o teria chamado de mentiroso. - Wrinfield sorriu, radiante. A Nona Sinfonia de Beethoven o deixava indiferente, mas aquela era a música que lhe tocava o coração. - Sempre fui um apreciador de circo desde criança - Sergius era um mentiroso tão hábil como qual­quer outro e muito mais do que a maioria das pessoas - mas nunca tinha visto algo assim.

Wrinfield sorriu ainda mais radiante.

- Muito obrigado, coronel.

Sergius sacudiu a cabeça com tristeza.

- Gostaria de ter o dom da palavra, como o senhor tem com os seus maravilhosos artistas. Mas esta não é a única razão de me apresentar. Sua próxima apresentação, eu sei, é em Crau.

- Ele exibiu um cartão. - Sou o Chefe da Polícia de lá. - Sergius trazia consigo uma variedade grande de cartões. - Estou à sua disposição para o que eu puder fazer. Peça e eu farei, e considerarei um privilégio. Não que eu vá ficar muito longe do senhor. Tenho a intenção de assistir a todos os espetáculos, pois sei que nunca verei nada parecido outra vez. Durante todo o período da sua permanência em Crau o crime poderá reinar sem ser ameaçado.

- Novamente o senhor é muito gentil. Coronel Sergius, o senhor será, espero, meu convidado pessoal e permanente no circo. Eu ficaria honrado... - ele parou e olhou para os três homens que não demonstravam ter a intenção de se afastar. - Eles estão com o senhor, coronel?

- Que distração a minha. Creio que me deixei levar pelo entusiasmo. - Sergius fez as apresentações, enquanto Wrinfield apresentava Harper, que estivera sentado a seu lado.

Wrinfield continuou:

- Como ia dizendo, coronel, ficaria muito honrado se o senhor e os seus homens se juntarem a nós no meu escritório para um copo da sua bebida nacional. - Sergius disse que a honra seria deles. Foi tudo muito cordial.

No escritório, um copo tornou-se dois e depois três. Nicolas, dada a permissão, fez funcionar a câmara o tempo todo, não se esquecendo de tirar pelo menos uma dúzia de fotografias de Maria, a moça que estava sentada atrás de uma escrivaninha quando eles entraram.

- Coronel, gostaria de conhecer alguns de nossos artistas?

- O senhor adivinha os pensamentos, Sr. Wrinfield! Devo confessar que tinha exatamente essa idéia em mente, mas não ousei tomar a liberdade, isto é, já abusei de sua hospitalidade.

- Maria. - Wrinfield enumerou rapidamente uma lista de nomes. - Vá aos camarins e pergunte-lhes se poderiam fazer a gentileza de vir conhecer o nosso ilustre convidado. - Wrinfield naquelas últimas semanas caíra vítima de um certo floreado eu­ropeu na maneira de falar.

E assim vieram ver o ilustre convidado, Bruno e seus irmãos, Neubauer, Kan Dahn, Ron Roebuck, Manuelo e meia dúzia de outros. Exceto por uma certa reserva na atitude de Ângelo quan­do cumprimentou Kan Dahn, tudo foi realmente muito agradá­vel, exageradas congratulações oferecidas e recebidas com exa­gerada modéstia. Sergius não excedeu suas boas-vindas e partiu quase que imediatamente depois do último aperto de mão, ele e Wrinfield trocando expressões de mútua simpatia e cordial an­tecipação do próximo encontro.

Sergius tinha uma grande limusine negra esperando do lado de fora com um policial uniformizado como motorista e um ho­mem moreno de roupa escura sentado ao lado dele. Depois de cerca de meio quilômetro, Sergius mandou parar o carro e deu certas instruções ao homem em trajes civis, a quem chamou de Alex. Alex concordou e saltou do carro.

De volta à sua suíte no hotel, Sergius disse a Kodes e Ângelo:

- Não tiveram problema algum em identificar as vozes com as gravações? - Ambos sacudiram a cabeça. - Bom. Nicolas, quanto tempo levará para revelar estas fotografias?

- Para revelar? Menos de uma hora, senhor. Fazer as có­pias é que demora bastante.

- Tire cópias apenas do Sr. Wrinfield, do Dr. Harper, da moça, Maria, não é? E dos artistas principais do circo. - Nicolas saiu e Sergius disse: - Você também pode ir, Ângelo.

- Posso perguntar qual o objetivo deste exercício? - in­dagou Kodes.

- Sim, pode. Eu ia mesmo lhe dizer e foi por isso que pedi a Ângelo que saísse. É uma alma leal, mas não é necessário sobrecarregar-lhe a mente com complexidades.

 

Bruno e Maria, pela primeira vez andando de braços dados, foram seguindo pela rua mal iluminada, conversando com apa­rente animação. A cerca de trinta metros atrás deles Alex os seguia com a discreta naturalidade de alguém que tinha longa prática de acompanhar pessoas sem chamar atenção sobre si. Ele diminuiu o passo quando o casal adiante virou, entrando por uma porta com anúncio luminoso incompreensível no alto.

O café era mal iluminado e enfumaçado por uma lareira de carvão que cheirava mal - a temperatura exterior beirava o ponto de quase congelamento - mas era acolhedor e bastante confortável se se tivesse uma máscara de gás na mão. Estava quase cheio. Sentado a um balcão, na parede, estavam Manuelo e Kan Dahn, o primeiro com café e Kan Dahn com dois litros de cerveja. O lendário consumo de cerveja de Kan Dahn era justificado pelo próprio Kan Dahn - com base no fato de que precisava dela para manter a força: certamente nunca afetava o seu número. Bruno falou rapidamente com eles e desculpou-se por não se reunir ao grupo. Kan Dahn sorriu de modo malicioso e disse que por eles estava muito bem. Bruno levou Maria para uma mesa de canto. Apenas alguns segundos depois, Roebuck entrou, cumprimentou-os com um aceno de mão e sentou-se com os dois companheiros. Os três conversaram com naturalidade, de­pois começaram de início, casualmente, depois com crescente pre­ocupação a rebuscar os bolsos; de onde Bruno estava sentado parecia que um certo grau de azedume, para não dizer exata­mente de recriminação, tingira o tom da conversa. Afinal Roe­buck ficou zangado, fez um gesto pedindo licença, levantou-se e foi até a mesa de Bruno.

Disse com tristeza:

- Roebuck pedindo dinheiro. Nenhum de nós se deu ao trabalho de verificar se os outros tinham dinheiro. Como resul­tado, não temos um centavo. Ou melhor, temos centenas deles, mas duvidamos que aceitem dólares aqui, e Kan Dahn parece ser contra a idéia de lavar os pratos na cozinha. Agora, se eu tivesse companheiros passando dificuldades...

Bruno sorriu, tirou a carteira, entregou algumas notas a Roe­buck, que lhe agradeceu e se afastou. Bruno e Maria pediram uma omeleta cada um.

Alex, tremendo no frio na calçada, esperou até que a co­mida estivesse servida, atravessou a rua e entrou numa cabina telefônica. Colocou a moeda, discou um número e disse:

- Alex.

- Sim?

- Segui o homem e a moça até O Cisne Negro. Estão co­meçando a comer, assim, parece que ainda ficarão lá durante algum tempo. Eles falaram com outras pessoas numa mesa de­pois que chegaram, antes de ir para a deles.

- Tem certeza de que são as pessoas certas?

- Estou com as fotografias deles, coronel. Um terceiro in­divíduo entrou pouco depois do homem e da moça se sentarem à mesa. Ele se sentou com os outros dois homens durante algum tempo, depois foi falar com este homem, o Bruno. Parecia estar pedindo emprestado, pelo menos vi umas notas trocarem de mãos.

- Conhece algum desses três homens? - indagou Sergius.

- Não senhor. Mas um deles eu reconheceria ainda que não o visse outra vez senão daqui a vinte anos. É um gigante, é o maior homem que já vi na minha vida, ainda maior que Ângelo.

- Não ganharei nenhum prêmio por adivinhar quem é esse. Volte para cá. Não, espere. Fique fora da vista, para que nin­guém dentro do café possa vê-lo. Mandarei Vladmir e Josef até aí para substituírem você. Darei instruções a eles. Você só terá que lhes mostrar as pessoas. O carro estará aí dentro de poucos minutos.

Dentro do café, Maria perguntou:

- Que é que está errado, Bruno?

- Que é que deveria estar errado?

- Você parece preocupado.

- Estou preocupado. O dia D se aproxima com uma rapi­dez extraordinária. Agora falta apenas uma semana. Não estaria preocupada se tivesse de entrar naquela maldita Lubylan?

- Não é só isso. Você está distante de mim. Frio. Distante. Fiz alguma coisa de que não gostasse? Disse alguma coisa errada?

- Não seja tola. - Colocou a mão sobre o braço dele. - Isto é carinho? Ou alguma coisa mais? Ou alguma coisa dife­rente?

- Por que você me magoa assim?

- Não é intencional. - Na voz dele faltava o tom de con­vicção. - Você já foi atriz?

Ela retirou a mão. Havia perplexidade e dor no seu rosto.

- Não consigo imaginar o que foi que fiz de errado. Não consigo pensar no que foi que eu disse de errado, mas você quer mesmo me magoar. De repente quer me magoar. Então, por que não bate em mim? Aqui mesmo, em público? Assim poderá ferir a mim e ao meu orgulho. Não compreendo você, simplesmente não compreendo você. - Ela afastou a cadeira para trás. - Pode deixar que eu encontro o caminho.

Foi a vez de Bruno segurar-lhe a mão. Se era um gesto de carinho, um pedido ou apenas uma tentativa para impedi-la de ir era difícil dizer. Ele disse:

- Gostaria de poder.

- Poder o quê?

- Encontrar o caminho. - Olhou para ela de testa ligeira­mente franzida. - Há quanto tempo está na CIA?

- Quase quatro anos - o espanto estava de volta ao rosto dela.

- Quem designou você para este trabalho específico?

- O Dr. Harper. Por quê?

- Pensei que tivesse sido o tal homem chamado Charles.

- Ele me designou. O Dr. Harper fez a sugestão, insistiu muito em que eu fosse indicada para vir nesta viagem.

- Aposto que foi.

- Que é que isto quer dizer?

- Apenas congratulações. Para o Dr. Harper. Pelo gosto dele. Quem é Charles?

- Apenas Charles.

- Ele não é Charles. Deve ter outro nome.

- Por que não perguntou a ele?

- Porque não teria dito. Eu esperava que você dissesse.

- Você sabe que não podemos divulgar essas coisas.

- Bem, eu gosto disso. Vou arriscar a minha maldita vida pela CIA e eles não podem nem ao menos me confiar uma in­formação simples como esta. Pensei que pelo menos a esta altura eu pudesse confiar em você e você em mim. Parece que estava enganado, pelo menos com relação à segunda idéia. Você está disposta a aceitar que eu morra, mas não a me dizer isto. Con­fiança, fé e lealdade - estas são grandes coisas, não são? Ou costumavam ser. Não parece que exista muito delas por aí hoje em dia.

- O nome dele é Almirante George C. Jamieson.

Bruno olhou para ela por um longo momento, depois seu rosto se abriu num sorriso largo que transformou toda a sua ex­pressão. Ela puxou a mão com brusquidão e olhou para ele fu­riosa. Na outra mesa, Kan Dahn cutucou Roebuck e este por sua vez cutucou Manuelo: os três observaram a cena com in­teresse.

- Homem horroroso! Você, criatura fingida, calculista, de­sonesta, se é que posso chamá-lo de criatura! E teve a audácia de me perguntar se já fui atriz. Eu nunca fui, mas mesmo se tivesse sido jamais poderia ter chegado a seus pés como ator! Por que fez isso? Eu não mereço.

- Ela está ficando cada vez mais furiosa - disse Roebuck.

- Como você sabe pouco a respeito da natureza humana - disse Kan Dahn. - Ela estará pedindo Bruno em casamento dentro de trinta segundos.

- Peço perdão - disse Bruno. - Mas tive que fazer isso.

- Tinha que descobrir se eu confiaria em você?

- É terrivelmente importante para mim. Por favor, des­culpe-me. - Segurou a mão dela, que não resistiu, e examinou cuidadosamente sua condição de mão sem aliança. Disse: - Parece-me bastante nua.

- O quê?

- Sabe que devemos fingir que estamos apaixonados?

- Sim. - Foi a vez de Maria ficar em silêncio. - Ou acha que devemos parar de fingir? - A voz dela estava hesi­tante, insegura.

- Não acho. Eu tenho certeza. Você me ama, Maria?

A voz foi um sussurro, mas a resposta imediata.

- Sim. - Ela olhou para a mão esquerda. - Realmente; está um pouco nua, não está?

Kan Dahn recostou-se contra o balcão como quem relaxa.

- Que foi que o tio Kan Dahn disse a vocês? Alguém vai me pagar um drinque?

Bruno insistiu:

- Tem certeza?

- Até os homens mais inteligentes fazem as perguntas mais idiotas. Você não vê?

- Acho que sim. Pelo menos espero que sim.

- Estou apaixonada por você há semanas. - Agora ela havia parado de sorrir. - No princípio, eu ficava olhando para você naquele trapézio de olhos vendados. Então, depois de certo tempo, tinha que sair da platéia e ir para fora, porque ficava enjoada. Agora, nem ouso entrar e ainda fico enjoada. Uma fração de segundo cedo demais ou tarde demais... - Ela en­gasgou e seus olhos estavam cheios de lágrimas. - Mas ainda posso ouvir a música, a sua música e quando ela começa morro por dentro.

- Quer se casar comigo?

- É claro, seu idiota. - Agora ela chorava abertamente.

- Não há necessidade de usar essa linguagem. E gostaria de lhe avisar que Kan Dahn, Manuelo e Ron estão interessa­díssimos na nossa conversa. Tenho a impressão de que estão fa­zendo apostas a respeito de nós. Também tenho a impressão de que vou sofrer nas mãos deles quando me apanharem sozinho.

- Não posso vê-los. - Bruno lhe entregou o lenço e ela enxugou os olhos. - Sim, estão olhando um bocado para este lado, não estão? - Inconscientemente amarfanhando o lenço, ela tornou a voltar o olhar para Bruno. - Eu amo você, eu quero me casar com você - não é demodé? - eu me casaria com você amanhã, mas não posso amar e me casar com o maior trapezista do mundo. Sei que não posso e acho que você sabe que não posso. Quer que eu fique enjoada a vida inteira?

- Isto não seria agradável para nenhum de nós. Bem, é sempre vivendo e aprendendo. Pensei que a chantagem normal­mente começava depois que a pessoa se casava.

- Bruno, você vive num mundo estranho, se pensa que honestidade e chantagem são a mesma coisa.

Bruno pareceu ponderar.

- Você poderia sempre se casar com o maior ex-trapezista.

- Ex?

- Não há nenhum problema. - Bruno fez um gesto de jogar fora com a mão direita. - Queimarei meu trapézio ou sei lá qual é a expressão que se usa.

- Assim, simplesmente assim? Mas é a sua vida, Bruno.

- Tenho outros interesses.

- Quais?

- Quando o seu nome for Sra. Wilderman eu lhe direi.

- Neste ano, no ano que vem, sei lá quando, nunca. - O casamento, obviamente, estava mais próximo do seu coração do que as outras prováveis ocupações de um futuro marido.

- Poderia ser depois de amanhã.

Ela tornou a olhar fixo para ele.

- Aqui mesmo? Neste país?

- Deus me livre! Não. Nos Estados Unidos. Com licença especial. Poderíamos tomar o primeiro avião amanhã. Ninguém vai nos deter. Tenho dinheiro de sobra.

Ela levou algum tempo para assimilar aquilo, depois disse com convicção:

- Você não sabe o que está dizendo.

- Em muitas ocasiões isto é verdade, mas agora não. Sei o que estou dizendo, e não é nenhum exagero, porque sei que es­tamos em perigo mortal. Sei que eles estão atrás de mim. Tenho certeza quase absoluta de que estão atrás de você. Fomos segui­dos hoje à noite. Eu não quero...

- Seguidos? Como é que sabe?

- Eu sei. Mais tarde. Nesse meio tempo, não quero que você morra. - Por um momento Bruno coçou o queixo automatica­mente. - Pensando bem, eu particularmente não quero morrer.

- Você largaria seus irmãos? Você largaria o Sr. Wrinfield e o circo? Abandonaria esta missão inteira?

- Eu abandonaria qualquer coisa no mundo por você.

- Você está ficando com medo, Bruno?

- É possível. Vamos para a Embaixada Americana agora resolver este negócio. Dificilmente se pode dizer que são horas de trabalho, mas eles não deixariam na mão um casal de com­patriotas num momento de necessidade.

Ela olhou para ele com total incredulidade. Depois, a incre­dulidade foi substituída por algo próximo de desprezo. Depois aquele olhar desapareceu por sua vez, dando lugar a uma ex­pressão realmente muito pensativa. Um leve sorriso aflorou-lhe ao rosto, alargou-se e de repente ela começou a rir. Bruno olhou para ela com ar especulativo, e para os três homens na mesa vizinha com espanto.

- Você é impossível, Bruno. Não lhe bastou me testar uma vez, você teve que fazer tudo de novo.

Foi como se ela não tivesse falado.

- Você me ouviu? Eu abandonaria qualquer coisa no mun­do por você. Você não faria o mesmo por mim?

- Com todo prazer. O mundo inteiro. Mas não o mundo inteiro e Bruno. Se fôssemos à Embaixada, sabe o que aconte­ceria? Eu estaria naquele avião amanhã. Mas você não estaria. Ah, não, você ficaria aqui. Não negue. Está escrito em seu rosto. Você pensa que é o inescrutável Bruno Wilderman. Todo mundo pensa assim. Bem, quase todo mundo. Dentro de três meses você não terá mais nenhum segredo para mim.

- Tenho medo disso, Maria, O.K., O.K., então eu tentei e falhei. Nada de novo para mim. Por favor, não conte ao Dr. Har­per nada disso. Ele não só pensará que sou um idiota, como terá uma visão desfavorável da minha mistura de, digamos, negócios com prazer. - Colocou o dinheiro sobre a mesa. - Vamos embora. Quando chegarmos à porta, vou voltar por um pre­texto qualquer e dar uma palavra com Roebuck. Enquanto faço isso, dê uma olhada em volta, veja se há alguém que esteja inte­ressado ou esteja querendo se interessar por nós.

Na porta, Bruno como que se lembrando de alguma coisa, voltou. Aproximou-se de Roebuck e disse:

- Como é que ele era?

- De estatura mediana. Cabelo preto. Bigode preto. Casaco preto. Seguiu vocês durante todo o caminho desde o circo.

- Seus alojamentos podem ter aparelhos de escuta. Tenho minhas dúvidas, mas é melhor não correr riscos. Vejo você depois.

De braços dados, ele desceu a rua com Maria. Ela disse com curiosidade:

- Que é que aqueles três são para você?

- Velhos amigos. Nada mais. Não se põe a cabeça de ami­gos na mesa do carrasco. Um sujeito todo de preto, cabelo preto, casaco preto. Você o vê?

- Vi dois, mas nenhum com esta descrição. Um tinha aquele horrível cabelo louro ondulado com permanente, o outro era careca.

- O que significa que o Júnior voltou para entregar o seu relatório ao patrão.

- Que patrão?

- O Coronel Sergius.

- O chefe da polícia de Crau?

- Ele não é o chefe da polícia de Crau. É o chefe da po­lícia secreta do país.

Ela parou e olhou para ele.

- Como é que você sabe? Como é que pode saber?

- Eu sei. Eu o conheço, embora ele não me conheça. Você se esquece de que este é o meu país. Mas eu conheço Sergius e nunca me esquecerei dele. Você se esqueceria do homem que matou sua mulher?

- O homem que... oh, Bruno! - Ela fez uma pausa. - Mas agora ele deve saber.

- Ele sabe.

- Mas então deve saber por que você está aqui!

- Imagino que sim.

- Eu irei com você amanhã. Juro. - Havia uma nota de histeria na voz dela. - Aquele avião, Bruno, aquele avião. Não sabe que nunca deixará este país vivo?

- Eu tenho coisas a fazer. E, por favor, baixe o tom de voz. Há um sujeito com um cabelo louro ondulado com per­manente horrível bem aí atrás.

- Estou com medo. Estou com medo.

- Isso pega. Venha comigo que vou lhe dar um café de verdade.

- Onde?

- Naquele alojamento meu que você inveja tanto.

Eles caminharam um trecho em silêncio, depois ela disse:

- Você já pensou que se eles estão atrás de você podem ter colocado aparelhos de escuta lá?

- Quem disse que temos que discutir negócios de Estado?

 

Sergius estava profundamente ocupado discutindo negócios de Estado. Disse para Alex:

- Isto foi tudo que aconteceu? Bruno e a moça entraram nesse café, ele falou rapidamente com os dois homens já senta­dos, levou a moça para outra mesa e encomendou uma refeição. Então, um terceiro homem apareceu, juntou-se aos outros dois, foi até a mesa de Bruno, pediu dinheiro emprestado e voltou para a sua cadeira. - Alex assentiu. - E você diz que não sabe o nome de nenhum deles, nunca os viu antes, mas que um deles era um gigante, tão grande quanto o Ângelo aqui presente?

Alex olhou para Ângelo.

- Maior - disse, com alguma satisfação. Ângelo, infelizmente, não tinha o bom gênio de Kan Dahn e seus amigos eram muito poucos. Fez uma carranca furiosa, mas ninguém lhe deu atenção, possivelmente porque era difícil distinguir entre a sua carranca furiosa e a sua expressão normal.

- Bem, sabemos quem é esse. Reconheceria os três homens pelas fotografias? - perguntou Sergius.

- É claro. - Alex parecia magoado.

- Ângelo, peça a Nicolas para trazer as fotografias que estiverem prontas.

Ângelo voltou com Nicolas e cerca de vinte fotografias. Silenciosamente, Sergius as entregou a Alex que as examinou rapidamente. Ele colocou uma na mesa.

- Esta é a moça - anunciou.

- Nós sabemos que esta é a moça.

- Desculpe, coronel - Alex separou mais três. - Estas.

Sergius apanhou as fotos e as entregou a Kodes, que as exa­minou rapidamente e disse:

- Kan Dahn, Manuelo, o atirador de facas e Roebuck, o perito em laço de vaqueiro.

- Precisamente - Sergius deu o seu sorriso mordaz. - Providencie para que sejam seguidos o tempo todo.

Kodes demonstrou sua surpresa.

- A presença dos três homens pode ter sido simples coin­cidência. Afinal eles são os astros do circo e é natural que sejam amigos. Além disso, o Cisne Negro é de fato o café mais pró­ximo do circo.

Sergius suspirou.

- Infelizmente, tem sido sempre assim. Na hora sou dei­xado para lutar virtualmente sozinho. Todas as decisões têm que ser tomadas, todos os raciocínios têm que ser feitos por um ofi­cial superior, o que é sem dúvida a razão por que sou um oficial superior. - A falsa modéstia não era um dos pecados costumei­ros de Sergius. - O nosso Bruno Wilderman é esperto, também pode ser perigoso. Ele suspeitou, só ele sabe como, de que estava sendo vigiado e pôs suas suspeitas à prova. Colocou esse homem, Roebuck, à espreita, para seguir quem quer que pudesse segui-lo. Isto faria de Roebuck e, por associação, os outros dois, algo mais do que simples amigos. Roebuck seguiu Alex. Ele não foi pedir dinheiro emprestado, foi informar Bruno de que ele, Bruno, tinha sido seguido por um homem de casaco preto, bigode preto, muito burro. - Ele lançou um olhar de pena ao seguidor desa­pontado. - Não creio que, em nenhum momento lhe tenha ocor­rido, Alex, olhar por cima do ombro? Nem uma única vez?

- Sinto muito, coronel.

Sergius lançou-lhe um olhar mais freqüentemente associado a um crocodilo faminto, que acaba de descobrir o almoço.

 

O circo partiu para Crau na noite de quarta-feira. Antes da partida, Bruno visitara o compartimento de Harper. Para um homem com tantas preocupações, enfrentando o que era, sem dúvida, o momento crucial de sua carreira, Harper mostrava-se notavelmente calmo e relaxado. Não se podia dizer o mesmo em relação a Wrinfield, sentado com um copo na mão e uma ex­pressão muito desanimada no rosto. Wrinfield reunira toda a sua coragem, mas agora que o momento se aproximava, dava a im­pressão de um homem que suspeita que algo está prestes a sair errado. Crau era uma enorme nuvem negra em seu horizonte.

- Boa noite, Bruno. Sente-se. Que vai beber?

- Nada, obrigado. Só bebo uma vez por semana e estou reservando a oportunidade para mais tarde.

- Com a bela Srta. Hopkins, pode-se supor?

- Seria uma suposição correta.

- Por que não casa com a moça? - disse Wrinfield amar­gamente. - Ela está de um jeito tal que se tornou quase inútil para mim agora, ou se lamentando ou sonhando o dia inteiro.

- Eu vou. Talvez ela esteja preocupada e nervosa. Como o senhor, Sr. Wrinfield.

- Vai o quê? - perguntou Harper.

- Casar com ela.

- Santo Deus!

Bruno não se ofendeu.

- O casamento é um acontecimento bastante comum.

Wrinfield disse, de modo suspeito:

- Ela está sabendo disso? - Passara a gostar sinceramente da moça e viera a tratá-la como a filha que nunca tivera, sobre­tudo desde a morte de Henry.

- Sim. - Bruno sorriu. - E o senhor também saberia, se mantivesse os olhos abertos. Ela sentou-se a seu lado na mesa, hoje à noite.

Wrinfield deu um tapa na testa.

- Ela usava um anel esta noite! Nunca esteve de anel an­tes. Quarto dedo, mão direita. - Fez uma pausa e apareceu com uma triunfante solução: - Uma aliança de noivado!

- Tem andado com a cabeça muito ocupada, senhor. Tal como Maria. Comprei-o esta tarde.

- Meus parabéns. Quando partirmos, devemos antes fazer um brinde ao feliz casal - Bruno piscou um olho mas não disse nada. - Não é, Dr. Harper?

- É claro. Nada me daria maior prazer.

- Obrigado. No entanto, não vim para falar sobre o anel, mas sim sobre quem me acompanhava quando o comprei. Receio que alguém esteja atrás de mim. Há umas duas noites atrás, fui com Maria a um café. Aconteceu que Roebuck apareceu muito pouco tempo depois, dizendo que ficara intrigado com o comportamento de um personagem que emergira das sombras de um beco perto do circo, quando nós passamos por lá. Parece que ele nos seguiu até o café, parou quando nós paramos e então se instalou no outro lado da rua, de onde podia vigiar-nos. Pode ter sido coin­cidência, ou a fértil imaginação de Roebuck. Ontem à noite, tive a exata impressão de que Maria e eu estávamos sendo se­guidos de novo, mas não pude ter certeza. Hoje sim, porque foi de dia. Não uma sombra, mas duas, revezando-se no trabalho, um de cabelo louro ondulado artificialmente e o outro completa­mente careca. Nós caminhamos sem destino, como um casal de turistas, ao sabor do nosso capricho: eles nos acompanharam por toda parte.

- Não gosto disto - disse Harper.

- Obrigado por não duvidar da minha palavra. Também não gosto muito disto. Eu não compreendo. Não fiz nada, abso­lutamente nada, para atrair atenção sobre mim. Talvez seja ape­nas porque meu nome é Wilderman e Crau minha cidade natal. É apenas um palpite. Talvez outras pessoas do circo estejam também sob observação. Quem pode afirmar?

- É muito perturbador - disse Wrinfield. - Muito per­turbador. Que é que você vai fazer, Bruno?

- Que posso fazer? Apenas tocar para a frente, nada mais. Enfrentar o que aparecer. Uma coisa é certa, eles não estarão me espionando na noite.

- Que noite?

- O Dr. Harper não lhe contou?

- Ah, terça-feira. Gostaria de saber onde estaremos nós todos, então.

Com muito estrépito e sacolejo, o trem pôs-se lentamente a caminho.

- Sei onde eu estarei. Vejo vocês daqui a pouco. - Bruno virou-se para sair, detendo-se subitamente ao ver o transmissor e receptor miniatura sobre a mesa de Harper. - Digam-me, muitas vezes pensei nisso: como é que a Alfândega em diversos países chega quase a remover as obturações dos nossos dentes, enquanto você consegue atravessar com aquele aparelho de rádio?

- Aparelho de rádio? Que aparelho? - Harper firmou os fones na cabeça, encostou o microfone no peito de Bruno, ligou e virou a alavanca de transmissão para trás em vez de para a frente. A máquina zumbiu e uma tira estreita de papel emergiu de uma fenda lateral, praticamente invisível. Após cerca de dez segundos, Harper desligou, arrancou os poucos centímetros de papel que saíra e mostrou-os a Bruno. Havia uma longa linha ondulada riscando o meio da tira.

- Um eletrocardiógrafo, meu caro Bruno. Todo médico iti­nerante precisa de um. Você não imagina como me diverti, ti­rando cardiogramas de um funcionário da Alfândega depois do outro.

- Que será que vão inventar ainda... - Bruno saiu, ca­minhou ao longo dos corredores do trem, que agora oscilava, apanhou Maria na cabina dela, levou-a até a sua própria, des­trancou a porta sem maçaneta e a fez entrar apressadamente.

- Que tal um pouco de música? - disse Bruno. - Român­tica, para combinar com a ocasião? Depois um dos meus incom­paráveis Martinis secos, para comemorar, se é que esta é a pa­lavra, minha rendição à servidão humana. E - é apenas uma idéia - algumas doces banalidades murmuradas em seu ouvido.

Ela sorriu.

- Tudo isso parece muito agradável. Sobretudo as doces banalidades.

Ele ligou o toca-discos, mantendo o volume baixo, preparou os Martinis, colocou-os na mesa, sentou no sofá ao lado dela e colou o rosto à cabeleira escura, na região aproximada onde se poderia supor estivesse o ouvido. A julgar pelas expressões do rosto de Maria, primeiro de espanto, depois de absoluta incre­dulidade, era evidente que Bruno possuía um repertório de doces banalidades absolutamente inédito para ela.

 

Crau ficava a pouco menos de duzentos quilômetros de dis­tância, de modo que mesmo para um trem de carga obrigato­riamente lento, a viagem não passava de um breve percurso durante a noite, com duas paradas intermediárias. Partiram na escuridão, chegaram na escuridão e ainda era noite quando de­sembarcaram. Estava também extremamente frio. A primeira e esmagadora impressão dada por Crau era de uma triste falta de hospitalidade, mas de fato os desvios das estradas de ferro, sobre­tudo quando está frio e escuro, não são dos lugares mais aco­lhedores em parte alguma. O desvio onde acabavam de estacionar achava-se à inconveniente distância de um quilômetro do local do circo, mas o gênio organizador de Wrinfield e sua equipe executiva tinha funcionado com a calma eficiência de costume, de modo que já havia uma frota de caminhões, ônibus e carros particulares à espera, ao longo da ferrovia.

Bruno caminhou ao lado dos trilhos, em direção a um grupo de artistas e auxiliares, amontoados sob o áspero clarão da lâm­pada que pendia de um arco sobre suas cabeças. Após trocar os bons dias de rotina, olhou em volta à procura de seus dois ir­mãos, mas não conseguiu vê-los. Dirigiu-se ao homem mais pró­ximo, Malthius, o domador de tigres.

- Viu meus irmãos por aí? São uma dupla muito faminta, que nunca deixa de me encontrar para o café da manhã, mas hoje não tive esse prazer.

- Não. - Malthius falou em voz alta: - Alguém viu Vla­dimir e Yoffe esta manhã? - Quando se tornou aparente que ninguém os vira, Malthius se dirigiu a um de seus assistentes: - Vá dar uma sacudida neles, sim?

O homem partiu. O Dr. Harper e Wrinfield, ambos com chapéus de pele e colarinhos levantados contra a neve que caía suavemente, aproximaram-se e cumprimentaram. Wrinfield disse a Bruno:

- Gostaria de vir comigo e verificar que espécie de salão de exibições eles têm para nós aqui? Por alguma razão estranha chamam-no Palácio de Inverno, embora eu não veja nenhuma probabilidade de semelhança com o de Leningrado. - Ele estre­meceu violentamente. - Muito mais importante, porém, é o fato de que dizem que o aquecimento central é excelente.

- Gostaria de ir, se o senhor puder esperar só um minuto. Dois terços das Águias Cegas parecem ter dormido demais esta manhã. Ah, eis o Johann.

Com a voz cheia de ansiedade, o assistente de Malthius falou:

- Acho melhor você vir, Bruno. Depressa!

Bruno não disse nada, apenas saltou rapidamente para den­tro do trem. O Dr. Harper e Wrinfield, após trocarem um olhar intrigado, seguiram-no de perto.

Vladimir e Yoffe ocupavam uma cabina com cama de casal, bem diferente do luxuoso alojamento do irmão mais velho, mas mesmo assim bastante confortável. Haviam-se tornado conhecidos e vítimas de implicância pelo seu asseio quase compulsivo: sem dúvida ficariam aborrecidos se vissem o estado da cabina na­quele momento.

Estava uma confusão, dando a impressão de ter sido recen­temente varrida por um pequeno mas obstinado furacão. A roupa de cama jazia espalhada pelo chão, duas cadeiras estavam que­bradas, havia vidro quebrado, uma pequena bacia fora estilha­çada e até uma janela - de metal pesado - fora rachada e arranhada, sem contudo quebrar-se. O mais assustador de tudo eram as manchas de sangue nos lençóis rasgados e nas paredes cor de creme.

Bruno fez menção de entrar, mas Harper pôs-lhe a mão no ombro, detendo-o.

- Não. A polícia não gostaria.

A polícia, quando chegou, não gostou nem um pouco. Fica­ram chocados pelo fato de uma coisa tão monstruosa, o rapto de dois famosos artistas americanos - se sabiam que Vladimir e Yoffe haviam nascido perto dali, guardaram a informação para si - acontecer em sua terra. Procederiam imediatamente à mais urgente e rigorosa das investigações. Para começar, disse o ins­petor que viera chefiar o trabalho, a área teria de ser comple­tamente evacuada e cercada por seus homens, o que resultou muito menos impressionante do que parecera ao ser dito, pois o cerco se limitou à colocação de dois policiais no corredor. Os ocupantes do vagão em que os dois irmãos haviam dormido de­veriam manter-se disponíveis para interrogatório. Wrinfield su­geriu o refeitório - a temperatura lá fora estava abaixo do ponto de congelamento - e o inspetor concordou. No momento em que se deslocavam, entraram em cena detetives à paisana e peritos em impressões digitais. Wrinfield resolveu reunir-se a eles no carro-restaurante, após dar ordens a seus auxiliares ime­diatos para que continuassem a descarregar o trem e a erguer o circo e as jaulas no terreno adjacente, lá fora.

No vagão-refeitório, o ar estava quase insuportavelmente quente - a gigantesca locomotiva ainda estava engatada e as­sim permaneceria durante o dia para fornecer o aquecimento necessário aos animais, que lá ficariam até serem transportados para o circo, à noite.

Bruno ficara de lado, com Wrinfield e Harper. Em rápidas palavras, discutiram o que poderia ter acontecido aos irmãos e por que; mas como evidentemente não havia resposta para ne­nhuma destas perguntas, logo se calaram e assim permaneceram até o aparecimento de nem mais nem menos que o Coronel Sergius em pessoa. Seu rosto estava marcado por linhas duras e amargas, e ele dava a impressão de que mal controlava a ira.

- Covarde! - disse. - Inacreditável! Humilhante! Acon­tecer isso com hóspedes de meu país! Prometo-lhes que toda a força de investigação criminal de nossa polícia será posta a ser­viço desse caso. Que recepção e que dia negro para Crau!

Harper falou com brandura.

- Não se pode, realmente, culpar nenhum habitante de Crau. Eles haviam desaparecido quando chegamos aqui. Fizemos duas paradas intermediárias no caminho, deve ter acontecido du­rante uma delas.

- Certo, certo, Crau fica absolvida. Acha que isto torna a carga menos pesada para nós? O que fere nosso país, fere-nos a todos. - Fez uma pausa e sua voz assumiu um tom mais grave. - Pode perfeitamente não ter acontecido em nenhuma daquelas duas paradas. - Olhou para Bruno. - Lamento ter de sugerir isto, mas ele podem ter sido jogados do trem em marcha.

Bruno não demonstrou espanto, pois seus sentimentos e emo­ções viviam sob um controle forte demais para tal, mas chegou quase a fazê-lo.

- Por que alguém faria isso? Por que alguém haveria mes­mo de pôr as mãos neles? Conheço meus irmãos melhor do que ninguém no mundo: eles nunca fizeram mal a ninguém!

Sergius olhou-o compassivamente.

- Não sabe que são sempre os inocentes que sofrem? Se quiser praticar um furto, não irá cometê-lo na residência de um gangster famoso. - Virou-se para um auxiliar: - Traga aqui o radiotelefone e me ponha o Ministro dos Transportes na linha. Não, faça-o você mesmo. Se ele reclamar por ainda estar dei­tado, diga-lhe que irei falar-lhe pessoalmente. Diga-lhe que quero cada centímetro da estrada vasculhada em busca de duas pessoas desaparecidas. Diga-lhe que é urgente. Que podem estar grave­mente feridos e a temperatura está abaixo de zero. Diga-lhe que quero um relatório dentro de duas horas. Depois ligue para a Força Aérea. Diga-lhes o mesmo, acrescentando que usem heli­cópteros. Quero o relatório deles dentro de uma hora. - O au­xiliar se retirou.

Wrinfield disse:

- Acha que existe mesmo a possibilidade...?

- Não acho nada. O dever do policial é levar tudo em con­sideração. Saberemos em menos de uma hora. Não tenho fé na­quele velho boboca que é o Ministro dos Transportes, mas a Força Aérea é outra história. Pilotos voando à altura de dez metros, com um observador experiente de cada lado. - Olhou para Bruno com o que provavelmente pretendia ser uma expres­são de simpatia. - Lamento pelo senhor, Sr. Wilderman. Tam­bém pelo senhor, Sr. Wrinfield.

- Eu? De fato, foram-se dois de meus melhores artistas. Certamente, tinha o maior respeito por eles, mas todo mundo no circo também tinha.

- Os outros não terão de pagar resgate. Estou apenas le­vantando uma hipótese. Se tal possibilidade existisse, o senhor pagaria uma elevada soma para tê-los de volta, não é mesmo?

- De que está falando?

- Ai de mim, mesmo em nosso glorioso país existem crá­pulas. Temos até seqüestradores, e seu método preferido de agar­rar vítimas é em trens. São homens muito desesperados - se­qüestro em nosso país é crime capital. Isto é apenas uma supo­sição, mas uma suposição bem provável. - Olhou de novo para Bruno e a fenda que substituía a sua boca abriu-se em parte: Sergius estava sorrindo. - E lamento por nós também, parece que não veremos as Águias Cegas em Crau.

- Verão uma delas.

Sergius olhou para ele. Várias pessoas fizeram o mesmo. Maria passou lentamente a língua pelos lábios, e Sergius disse:

- Pelo que entendi...

- Eu costumava fazer um solo antes que meus irmãos ti­vessem idade bastante para se juntarem a mim. Com algumas horas de treino poderei fazê-lo de novo.

Sergius considerou-o por um momento.

- Todos sabemos que é um homem totalmente desprovido de nervos. Será que também é um homem sem sentimentos?

Bruno afastou-se sem responder.

Sergius contemplou-o pensativamente e depois também se afastou, dizendo:

- Todos os ocupantes daquele vagão estão aqui?

- Todos presentes, coronel - disse Wrinfield. - Mas o senhor exprimiu a opinião de que seriam seqüestradores...

- Poderiam ser. E o senhor ouviu o que eu disse. É dever do policial levar tudo em consideração. Alguém aqui ouviu qual­quer barulho, qualquer som estranho durante a noite? - A jul­gar pelo pesado silêncio, era evidente que ninguém ouvira nada.

- Muito bem. Os irmãos dormiam na última cabina do vagão. Quem ocupava a cabina ao lado?

Kan Dahn deslocou para a frente sua massa volumosa.

- Eu.

- Certamente ouviu alguma coisa.

- Não respondi à sua pergunta, o que significa não. Tenho o sono muito pesado.

Sergius assumiu um ar pensativo.

- Você é suficientemente grande para fazê-lo sozinho.

Kan Dahn replicou num tom suave:

- Está-me acusando?

- Estou fazendo uma observação.

- Vladimir e Yoffe eram bons amigos meus, muito bons amigos. Todo mundo sabe disso há anos. Por que haveria de esperar até agora para fazer uma loucura dessas? Além do mais, se fosse eu não haveria nenhum sinal de luta. Com um braço em torno de cada um eu só teria o trabalho de carregá-los.

- É mesmo? - falou Sergius com ceticismo.

- Talvez o coronel deseje uma demonstração.

- Seria interessante.

Kan Dahn indicou dois corpulentos policiais fardados, de pé, lado a lado, e disse:

- Eles são maiores, muito maiores e mais fortes que os dois irmãos?

- Imagino que sim.

Pois o gigante que era Kan Dahn se moveu com a rapidez de um gato e antes que os dois policiais tivessem tempo de assu­mir posição defensiva estava em cima deles, um braço de gorila em volta de cada um, dobrando-lhes os braços contra o corpo. Num momento os homens se viram no ar, debatendo-se furiosa­mente para se libertarem do que, a julgar pela expressão de seus rostos, não era um abraço nada agradável.

Kan Dahn, a voz ainda suave, falou:

- Parem de se debater, ou terei de apertar.

Certamente com a impressão de que Kan Dahn não poderia apertar ainda mais, os homens intensificaram seus esforços para escapar. Kan Dahn apertou um pouco mais. Um deles gritou, o outro gemeu, em duas expressões de agonia. Kan Dahn reforçou a inexorável pressão e os dois homens pararam de se debater. Cuidadosa e gentilmente, Kan Dahn os colocou sobre seus pró­prios pés, afastou-se e contemplou-os, consternado, enquanto eles desabavam no chão.

Sergius assistia à cena, pensativo.

- Ângelo devia estar aqui hoje. Você, Kan Dahn, está li­berado. - Seu tom de voz era completamente desprovido de humor. Voltou-se quando o Capitão Kodes entrou apressada­mente. - Bem?

- Tudo que temos são impressões digitais, coronel. Há muitos conjuntos de duas impressões distintas, que devem per­tencer aos irmãos. Mas encontramos também dois outros gru­pos em posições bastante estranhas: nas paredes, na janela, na face interna da porta, lugares onde é possível que alguém se tenha apoiado no transcurso de uma luta.

- Pois bem. - Sergius refletiu por um instante, observando distraidamente os dolorosos esforços dos policiais para se porem de pé. Era óbvio que o sofrimento deles o deixava completa­mente indiferente. Voltou-se para Wrinfield. - Cada homem neste circo terá suas impressões tiradas esta manhã. No salão de exibições onde o circo se apresentará.

- É preciso realmente...

Sergius afetou enfado.

- Tenho trabalho para fazer. E, pela terceira vez, é tra­balho do policial não deixar de considerar coisa alguma.

 

Embora Crau se situasse aproximadamente ao norte da ca­pital, a principal estação ferroviária não ficava ao sul da cidade, como seria de se esperar: graças ao solo desfavorável, a via fér­rea descrevia uma curva em torno da cidade e entrava pelo norte. Conseqüentemente, quando a limusine negra de safra incerta par­tiu para o Palácio de Inverno, tomou a direção do sul ao longo do que, no centro, vinha a ser a principal rua da cidade. Esta via, que corria de norte para sul, chamava-se Rua Oeste para aumentar a confusão.

Bruno estava recostado no assento, tendo o Dr. Harper ao lado. Wrinfield, cuja melancólica expressão indicava claramente que seus negros pressentimentos a respeito de Crau se achavam em vias de se confirmarem, sentava-se em silêncio ao lado do motorista. O tempo não se mostrava exatamente propício a ali­viar a tensão. Era pouco depois do amanhecer, um amanhecer tristonho e áspero, com a neve descendo em redemoinho das bai­xas nuvens escuras.

A uns cem metros da estrada de ferro, Harper, que ocupava o canto da direita, limpou o vapor do vidro da janela, espiou para fora e tocou o braço de Bruno:

- Nunca vi nada igual. Que vem a ser aquilo?

- Não consigo ver daqui.

- No alto daqueles edifícios. Arbustos, moitas. Céus, há até mesmo árvores lá em cima!

- Jardins suspensos. São muito comuns na Europa Central. Morar num apartamento não significa que não se possa ter um pedacinho de terra. Muita gente tem até gramados.

Bruno limpou sua janela. O edifício à esquerda era um dos mais austeros, melancólicos e desagradáveis que já vira. Ele con­tou os andares: nove. Reparou nas janelas, todas fortemente gra­deadas; notou os espigões de aço ameaçadoramente encurvados, que cercavam o telhado, as torres de observação nas extremida­des norte e sul: daquele ângulo era impossível divisar o que ha­veria no topo daquelas torres, mas Bruno sabia que existiam ho­lofotes e sirenes instalados lá em cima. Olhou para Harper e er­gueu uma das sobrancelhas: o motorista dera de ombros, sorrin­do, quando lhe falaram em inglês, mas havia muita probabilidade de ser ele um dos homens de Sergius e este não escolheria para o serviço alguém que não falasse inglês. Harper percebeu o olhar de Bruno e balançou a cabeça, embora a confirmação fosse real­mente desnecessária: a realidade Lubylan se encaixava desalentadoramente na descrição feita por Harper. A idéia de tentar pe­netrar na fortaleza era tão arrepiante quanto a manhã.

Mais ou menos meio quilômetro adiante passaram por uma fileira de carros negros estacionados ao longo da calçada, do lado direito. À frente, havia um carro funerário coberto de coroas; pela hora não era muito cedo, mas o dia escuro parecia nem ter começado, e o cortejo deveria ter um caminho longo a per­correr, pensou Bruno. Do outro lado da rua, em frente ao coche, havia um estabelecimento com cortinas de veludo drapeado nas janelas, que constituíam a moldura para o que o dono certa­mente considerava seu ponto alto em coroas, ramalhetes artifi­ciais sob redomas de vidro e pedras tumulares de mármore não gravadas, tudo em negro. A porta ao lado tinha a mesma cor alegre, aliviada apenas por uma cruz branca. Bruno viu, de re­lance, a porta abrir-se e a extremidade de um caixão, nos om­bros dos dois primeiros carregadores.

- Muito prático - murmurou ele.

O Dr. Harper deu a impressão de não ter ouvido.

 

O Palácio de Inverno era o orgulho de Crau e com razão. De estilo deliberadamente barroco, tanto dentro quanto fora, na realidade tinha apenas três anos. Era uma estrutura reforçada de aço e concreto, revestida por dentro e por fora por folhas de mármore de onde, presumivelmente, vinha o nome do edifício, que consistia num amplo átrio coberto, em forma de elipse, do qual se passava para o estádio, também elíptico e muito maior. O interior não podia ser mais contrastante, com as espiras, mi­naretes e gárgulas que engrinaldavam ricamente o exterior: den­tro, estava reunido o que havia de mais novo em apresentação de espetáculos; aqui tudo era moderno, quase que excessivamente funcional e sobretudo prático. As possibilidades de variar palco e platéia, sempre visando o melhor para os atores e a assistência, eram praticamente infinitas. Podia ser e era usado para ópera, teatro, cinema e show servia também para apresentação de es­petáculos esportivos, desde hóquei no gelo até tênis de salão; era nada menos que soberbo para a instalação de um picadeiro de circo. Quanto a esta última capacidade, os assentos rigorosa­mente enfileirados, cada um estofado e com seu próprio descanso para os braços, comportavam nada menos que dezoito mil espec­tadores. Segundo declarou Wrinfield, era o melhor auditório que já vira, cumprimento valioso, partindo de um homem que conhe­cia o que havia de melhor na América e na Europa, sobretudo ao se levar em consideração que a população de Crau não era tão grande assim.

 

A tomada de impressões digitais em massa, de todo o pes­soal do circo, ocorreu durante a manhã, em um dos muitos res­taurantes e bares - vazios àquela hora do dia - que margina­vam o lado interno do átrio. Havia grande ressentimento e in­dignação quanto ao que era considerado um procedimento des­necessário e arrogante, exigindo muito do considerável tato e dos poderes de persuasão de Wrinfield para assegurar a coope­ração. Sergius, supervisionando por controle remoto, a partir do relativo conforto do escritório pré-fabricado de Wrinfield e pro­tegido por sua conveniente couraça paquidérmica, permanecia totalmente indiferente ao mau humor do pessoal do circo, aos muitos olhares pouco amistosos lançados em sua direção. Por volta do fim da tomada de impressões, ele recebeu um recado-telefônico, mas como falou em seu próprio idioma, nem Wrin­field, nem Maria, que o acompanhavam, puderam compreender o assunto da conversa.

Sergius esvaziou seu copo de vodca - tinha para com a be­bida nacional a mesma afinidade-osmótica que a areia seca tem para com a água.

- Onde está Bruno Wilderman? - perguntou.

- Está no estádio. Por quê? Quer tirar as impressões dele? Seus próprios irmãos...

- Por favor. Pareço tão idiota assim? Venham. Interessa, a vocês também.

Quando os dois homens se aproximaram, Bruno afastou-se de onde estava supervisionando a instalação de um fio de arame baixo através do picadeiro central, olhou sem expressão alguma para Sergius e perguntou:

- Tem novidades, coronel?

- Sim. Tanto da estrada de ferro quanto da Força Aérea. Mas receio que ambos os relatórios sejam negativos. Não há ves­tígio de pessoa alguma ao longo dos trilhos.

- Então isto significa seqüestro?

- Leva a crer que não haja nenhuma outra solução evidente.

No fim daquela tarde, quando ensaiava seu solo no alto do trapézio recentemente montado, Bruno foi chamado ao escritó­rio de Wrinfield. Escorregou para o chão, vestiu sua túnica man­darim de mentalista e se dirigiu para o escritório que, como pa­recia inevitável, se situava a poucos metros da jaula dos tigres, ainda vazia. Wrinfield e Maria achavam-se cada um em sua es­crivaninha, Sergius e Kodes estavam de pé. A atmosfera parecia a meio caminho entre o tenso e o fúnebre.

Sergius pegou uma folha de papel que Wrinfield examinava e entregou-a a Bruno. Continha uma mensagem impressa, em in­glês, dizendo: "Os irmãos Wilderman serão entregues com vida mediante o recebimento de cinqüenta mil dólares, notas usadas. Qualquer valor. Instruções para a transação no domingo, entrega segunda-feira. A não entrega resultará no envio de dois dedos mínimos esquerdos no domingo. Os mesmos serão enviados tam­bém se as notas forem recebidas mas contiverem tratamento vi­sando identificação por infravermelho, ultravioleta ou raios X. Dois dedos na terça-feira. Na quinta, dois trapezistas manetas."

Bruno devolveu a mensagem a Sergius.

- Suas suspeitas estavam certas.

- Eu estava certo. Sem nervos. Sem sentimentos. Sim, tudo indica que sim.

- Eles parecem cruéis.

- E são.

- E profissionais.

- Sim.

- Costumam cumprir o que prometem?

Sergius deu um suspiro.

- Você é ingênuo a ponto de tentar me jogar numa arma­dilha? Está prestes a dizer que pareço saber um bocado a respeito deles. Se forem quem eu penso que são - e este possui todos os sinais de outros pedidos de resgate anteriores - então constituem uma quadrilha de seqüestradores extremamente há­beis e eficientes, que levou a cabo diversos raptos semelhantes nos últimos anos.

- Conhece os membros dessa quadrilha?

- Acreditamos conhecer um ou dois.

- Então por que ainda não os prenderam?

- Suspeita, meu caro Wilderman, não é prova. Não se pode pedir a pena de morte com base em suspeitas.

- Fiz uma pergunta anterior. Sobre as promessas deles. Vão cumprir as ameaças de mutilação? E se o resgate for pago, devolverão meus irmãos com vida?

- Não posso garantir nada. Contudo, a julgar pela expe­riência anterior, as chances são muitas. Como especialistas em operações de seqüestro, para eles é logicamente um bom negócio fazê-lo. Parece ridículo neste contexto, mas promove confiança e boa vontade. Se um seqüestrado é devolvido ileso, imediata­mente após o pagamento do resgate, então os pais e parentes da próxima vítima prontamente atenderão às exigências, sabendo que há forte possibilidade da vítima ser devolvida. Mas se os seqüestradores recebem o resgate e matam a vítima, nesse caso os parentes da próxima poderiam concluir que o pagamento de um resgate seria perda de tempo.

- Qual é a chance de localizá-los antes de segunda-feira?

- Em quatro dias? Muito poucas, receio.

- Então é melhor arranjarmos o dinheiro, não é? - Sergius assentiu e Bruno dirigiu-se a Wrinfield. - Eu levaria um ano para reembolsá-lo.

Wrinfield sorriu, um sorriso não muito feliz.

- Eu o faria pelos rapazes, sem pensar em pagamento. E - estou simplesmente sendo egoísta, é claro - não existe e nunca existirá um grupo igual às Águias Cegas.

 

Caminhando ao acaso, sem destino, dobraram à direita, des­cendo uma rua em frente à funerária, na Rua Oeste. O Dr. Har­per falou:

- Acha que estamos sendo seguidos?

- Observados, não sei. Seguidos não - respondeu Bruno. Duzentos ou trezentos metros adiante, a rua transformava-se num caminho sinuoso através do campo e pouco depois atingia uma sólida ponte de madeira sobre um rio lento e obviamente muito profundo, de uns dez metros de largura, com gelo já se formando em suas duas margens. Bruno examinou a ponte com algum cuidado, depois correu para alcançar um Harper impa­ciente, cujo aparelho circulatório claramente não se ajustava a uma temperatura abaixo de zero.

Logo depois da ponte, o caminho era engolido pelo que pa­recia uma floresta virgem de pinheiros. Menos de um quarto de quilômetro adiante, os dois homens chegaram a uma grande cla­reira semicircular, no lado esquerdo da estrada.

- O helicóptero descerá aqui - disse o Dr. Harper.

Caía a tarde quando Bruno, vestindo suas melhores roupas de passeio, voltou ao escritório de Wrinfield. Apenas este e Maria, estavam lá.

- Posso levar minha noiva para tomar um café, senhor? - perguntou.

Wrinfield sorriu, fez que sim com a cabeça e logo voltou a parecer aflito e preocupado outra vez. Bruno ajudou a moça a vestir o pesado casaco de astracã e saíram para a neve fina que caía.

Maria disse, aborrecida:

- Poderíamos ter tomado café na cantina ou em seus apo­sentos. Está muito frio e úmido aqui fora.

- Rabugenta e nem ao menos já está casada. São só cem metros. Você verá que Bruno Wilderman sempre tem suas razões.

- Tais como?

- Lembra-se dos nossos amigos da outra noite que nos se­guiram com tanta fidelidade?

- Sim. - Olhou para ele, espantada. - Você quer dizer que...

- Não. Estão descansando - a neve não faz bem nem aos cabelos pintados, nem às cabeças calvas. O garoto atrás de nós é alguns centímetros mais baixo que você, usa um boné de pano, um casaco rasgado, calças sem vinco e sapatos cambaios. Parece um pobre-diabo, mas não é.

Entraram num café que obviamente perdera as esperanças uma geração atrás. Num país onde os cafés pareciam especia­lizados em fumaça e um mínimo de iluminação, aquele real­mente atingira o auge da decadência. Os olhos de quem en­trava começavam imediatamente a arder; um par de velas gote­jantes forneceria o mesmo grau de iluminação. Bruno encami­nhou Maria para um assento de canto e ela olhou em volta com desagrado.

- É assim que vai ser a nossa vida depois de casados?

- Pode ser que você venha a recordar este dia como um dos mais felizes. - Ele se virou. A figura chapliniana havia caído pesadamente numa cadeira perto da porta, tirara de algum lugar um jornal esfarrapado e lá estava, com ar desanimado, o cotovelo na mesa e a cabeça encardida apoiada na mão. Bruno voltou-se para Maria:

- Além do mais, você há de convir que este lugar tem um certo encanto boêmio. - Pôs o dedo nos lábios, inclinou-se para a frente e ergueu a gola do casaco de astracã de Maria. Escon­dido no fundo da dobra da gola, havia um pequeno aparelho de metal brilhante, do tamanho de uma noz. Bruno mostrou-o a ela, que o fitava de olhos arregalados.

- Faça o pedido para nós, sim?

Ele se levantou, dirigiu-se para o lugar onde estava sentado o indivíduo que os seguira, agarrou-o sem cerimônia pelo pulso direito e girou fortemente, ação que motivou um súbito ganido de dor da parte do homem, mas nenhuma reação dos poucos fregueses restantes, que, era de presumir-se, estavam saturados desse tipo de diversão.

Na palma da mão do homem estava um minúsculo fone de ouvido de metal, preso a um fio, que Bruno acompanhou até uma caixinha metálica, pouco maior que um isqueiro comum, enfiada num dos bolsos internos do paletó. Bruno colocou esses objetos em seu próprio bolso e falou:

- Diga ao seu patrão que a próxima pessoa a me seguir ficará sem condição de voltar para dar seu relatório. Retire-se.

O homem saiu. Bruno retornou a sua mesa e exibiu os tro­féus, dizendo:

- Vamos experimentá-los.

Levou à orelha o minúsculo ovo de metal entrelaçado e Maria murmurou, com a boca em direção à gola do casaco:

- Amo você. De verdade. Sempre.

Bruno retirou o fone do ouvido.

- Funciona muito bem, embora pareça não saber o que está dizendo. - Afastou o aparelho: - Eles são persistentes. Mas tão, tão óbvios.

- Não para mim. Acho que você devia estar fazendo meu trabalho. Mas era preciso deixá-los saber que o descobrimos.

- Eles sabem, de qualquer maneira. Talvez agora parem de me seguir e deixem que eu me movimente em paz. Afinal, como é que eu podia conversar com você com aquele tipo inva­dindo a minha intimidade?

- Sobre que temos de conversar?

- Meus irmãos.

- Sinto muito. Não quis dizer... Por que os levaram, Bruno?

- Bem, por um lado isto permitiu àquele mentiroso hipó­crita, embromador, sádico...

- Sergius?

- Há por aí algum outro mentiroso hipócrita, embroma­dor, sádico? Ele teve a desculpa perfeita para tirar as impressões digitais de todos os homens do circo.

- Que ajuda isto lhe dará?

- Além de lhe dar um sentimento de poder e fazê-lo sen­tir-se muito esperto, não sei. Não importa. Eles são seus reféns perante o destino. Se eu der um passo em falso, algo acontecerá a eles.

- Você falou com o Dr. Harper sobre isso? Não pode ar­riscar a vida deles, Bruno. Você não pode. Oh, Bruno, se eu perder você e eles estiverem perdidos, todos da sua família já desaparecidos...

- Puxa, você é mesmo a maior chorona que já vi. Quem foi o louco que a escolheu para a CIA?

- Quer dizer que não acredita nessa história de seqüestro?

- Você me ama? - Ela assentiu. - Confia em mim? - Maria assentiu de novo. - Então não comente com nenhuma outra pessoa coisa alguma do que falei com você.

Ela assentiu pela terceira vez e perguntou:

- Inclusive o Dr. Harper?

- Inclusive o Dr. Harper. Ele tem uma inteligência bri­lhante, mas é ortodoxo e não possui a mentalidade do centro-europeu. Não sou brilhante, mas não sou ortodoxo e nasci aqui. Pode ser que não goste de certas improvisações que eu talvez faça.

- Que espécie de improvisações?

- Eis aí: a esposa perfeita. De onde veio aquela mancha vermelha no seu lenço? Como é que vou saber que improvisa­ções? Nem ao menos eu mesmo sei ainda?

- E o seqüestro?

- Bobagem. Ele precisava de uma explicação para o desaparecimento. Não o ouviu dizer que sabia quem eram alguns da quadrilha, mas que não podia provar nada? Se Sergius os conhecesse, estariam em Lubylan num piscar de olhos e eles lhes arrancariam toda a verdade cinco minutos antes de morrerem entre berros de agonia. Onde você pensa que está? Em casa, na Nova Inglaterra?

Ela estremeceu.

- Mas por que as ameaças? Por que dizer que decepariam dedos de seus irmãos? Por que pedir aquele dinheiro?

- Cor local. Além do mais, por mais bem recompensado que Sergius seja por suas nefandas atividades, cinqüenta mil pa­cotes no bolso deixam qualquer homem com uma confortável sensação de segurança.

Ele olhou com desagrado para seu café intacto, colocou al­gum dinheiro sobre a mesa e levantou-se.

- Que tal um café de verdade?

Voltaram ao salão de exibições à procura de transporte até o trem, o que foi conseguido sem demora. No momento em que tornaram a sair para a escuridão e o frio, encontraram Roebuck, que chegava aflito, azulado e trêmulo. Parou e disse:

- Oi. Vão voltar para o trem? - Bruno fez que sim. - Uma carona para seu cansado e sofredor amigo.

- De que está sofrendo? Andou nadando no Báltico?

- Com o inverno, todos os motoristas de táxi desta cidade entram em hibernação.

A caminho da estação, Bruno sentou-se na frente, em silên­cio. Quando saltaram no desvio, diante dos vagões de passagei­ros, ele sentiu tanto quanto percebeu quando enfiaram alguma coisa no bolso de seu paletó.

Depois do café, da música suave e das doces banalidades na sala de Bruno, Maria retirou-se e ele extraiu do bolso um minúsculo pedaço de papel, no qual Roebuck escrevera: "4.30. Entrada oeste. Sem perguntas. Minha vida depende disso." Bruno queimou o bilhete e desfez as cinzas na água da pia.

 

Foi durante a última apresentação da noite seguinte - ofi­cialmente anunciada como noite de estréia, embora na realidade já tivesse havido duas apresentações, uma matinê, gratuita, para escolares e uma versão um tanto abreviada do espetáculo, de tarde - que ocorreu o acidente. Era tão arrebatador o entu­siasmo da enorme platéia que tornou o efeito, ao se manifestar, ainda mais chocante.

Não havia sobrado um lugar vago no Palácio de Inverno e mais de dez mil pedidos de ingressos, feitos antecipadamente nas duas semanas anteriores, tiveram de ser lamentavelmente recusa­dos. No início, o ambiente estava alegre, festivo. As mulheres, que desmentiam a idéia ocidental de que as mulheres da Cortina de Ferro costumam se vestir com sacos de batatas providos de cintos, estavam arrumadas tão sofisticadamente como se o Bolshoi estivesse visitando a cidade - o que de fato acontecera, embora sem uma recepção tão tumultuosa - e os homens res­plandeciam em seus melhores ternos ou então em uniformes cheios de medalhas. Sergius, sentado ao lado de Wrinfield, es­tava positivamente cintilante. Atrás dos dois estavam Kodes e Ângelo, este último tendendo ligeiramente a anuviar o brilho da atmosfera. O Dr. Harper, como sempre, sentava-se na primeira fila, com a infalível maleta preta discretamente colocada debaixo do assento.

A platéia, convenientemente preparada pelas notícias louca­mente entusiásticas que haviam precedido o circo, estava à es­pera de esplendor, e naquela noite o conseguiu. Como se para compensar a ausência das Águias Cegas - um aviso pelo alto-falante, antes do início do espetáculo, lamentara que dois de seus membros estivessem adoentados, pois o que Sergius não que­ria nos jornais não saía nos jornais - os artistas atingiram al­turas que espantaram o próprio Wrinfield. A multidão - eram dezoito mil - ficou arrebatada, fascinada. Os números se suce­diam com a precisão suave e perfeita que fazia a justa fama do circo, e cada número parecia melhor que o anterior. Mas na­quela noite Bruno superou a todos. Naquela noite, ele não es­tava apenas de olhos vendados, mas também encapuzado e seu repertório no trapézio alto, ajudado somente por duas moças que das plataformas lhe entregavam os dois trapézios livres ao com­passo da rígida melodia metronômica da orquestra, tinha uma magia quase extraterrena, uma absoluta impossibilidade, que mes­mo os mais experientes artistas do circo olhavam num estado a meio caminho entre a admiração e a franca descrença. Ele cul­minou seu número com uma cambalhota dupla entre dois tra­pézios - e suas mãos estendidas não alcançaram o que se apro­ximava. O choque que percorreu a platéia foi uma coisa quase palpável - ao contrário do público em muitos esportes, desde corridas de automóvel até o boxe, as platéias de circo sempre se preocupam com a segurança dos artistas - e igualmente pal­pável foi o suspiro de alívio incrédulo quando Bruno segurou o trapézio com seus calcanhares arqueados. Apenas para mostrar que não acertara por acaso, ele repetiu tudo - duas vezes.

A multidão ficou histérica. Crianças e adolescentes berra­vam, homens gritavam e mulheres choravam de alívio, numa ca­cofonia de barulhos que nem Wrinfield jamais ouvira antes. O mestre de cerimônias precisou de três minutos inteiros e re­petidas chamadas pelo alto-falante para devolver à multidão uma aparência de ordem.

Sergius enxugou delicadamente a fronte com um lenço de seda.

- Não importa o quanto você paga ao nosso jovem amigo lá de cima, deve ser sempre apenas uma fração do que ele vale.

- Pago-lhe uma fortuna e concordo com você. Já viu coisa parecida antes?

- Nunca. E sei que jamais tornarei a ver.

- Por quê?

Sergius procurou uma resposta.

- Temos um velho ditado em nosso país: "Apenas uma vez na vida o homem tem permissão para sair de si mesmo e cami­nhar com os deuses." Tal foi esta noite.

- Pode ser que tenha razão, pode ser que tenha razão. - Wrinfield mal o ouvia, pois se virara para falar com um vizinho igualmente excitado, enquanto as luzes enfraqueciam. Uma aber­tura milimétrica surgiu entre a parte superior e a inferior da boca de Sergius - não se podia chamá-las de lábios. Sergius estava se dando ao luxo de mais um de seus raros sorrisos.

As luzes voltaram. Como de costume, na segunda parte de seu número Bruno usou o arame baixo - se é que seis metros podiam ser considerados uma altura baixa - estendido através da jaula aberta em cima, onde Neubauer, como ele próprio gos­tava de dizer, regia seu coro, isto é, punha à prova as qualidades de seus doze leões núbios, um bando indubitavelmente selvagem que não deixava ninguém se aproximar, com exceção de Neu­bauer.

Na primeira viagem de ida e volta sobre a jaula, de bici­cleta e com a vara de equilíbrio, sem a carga habitual do peso de seus dois irmãos, Bruno obviamente achou quase ridícula, de tão fácil, a execução das acrobacias de equilíbrio que, na rea­lidade, poucos artistas no mundo do circo podiam imitar. A pla­téia pareceu perceber essa facilidade e, se bem que apreciando a habilidade, a audácia e a técnica, esperava ansiosamente algo mais. Tiveram-no.

Em sua excursão seguinte através do picadeiro, Bruno usou um veículo diferente, com o assento a um metro e vinte de al­tura, pedais presos abaixo do assento e uma corrente vertical para dirigir, com um metro e vinte de comprimento. Novamente atravessou o picadeiro nas duas direções, executando suas acro­bacias, embora dessa vez com muito mais cuidado. Quando atra­vessou pela terceira vez, a platéia estava bastante preocupada, pois agora, o assento estava a nada menos de dois metros de altura e a corrente vertical tinha o mesmo comprimento. A pre­ocupação da platéia transformou-se em angustiante apreensão quando, ao atingir a curva central, tanto a bicicleta - se é que aquela estranha contrafação podia ser chamada assim - quanto o homem começaram a balançar de modo alarmante e Bruno teve de abandonar todas as acrobacias exceto as mais elementa­res, para manter o equilíbrio. Conseguiu-o com segurança e na volta também, mas não sem antes promover consideráveis alte­rações na taxa de adrenalina, no ritmo respiratório e na pulsação da maioria dos espectadores.

Para a quarta e última travessia, tanto o assento quanto a corrente passaram a uma altura de quatro metros, deixando Bruno com a cabeça a quase cinco metros acima do arame e dez metros acima do chão.

Sergius deu uma olhada em direção a Wrinfield que, de olhos fixos, esfregava nervosamente a boca com a mão, e disse:

- Esse seu Bruno! Ele é aliado aos farmacêuticos que ven­dem sedativos ou aos médicos especialistas em ataques cardíacos?

- Isso nunca foi feito antes, coronel. Nenhum artista ja­mais tentou.

Bruno começou a balançar e oscilar quase que imediata­mente após deixar a plataforma superior, mas seu estranho sen­tido de equilíbrio e suas incríveis reações compensaram a osci­lação, mantendo-a dentro de limites suportáveis. Desta vez, não houve tentativa de executar nada remotamente semelhante a acrobacias. Seus olhos, tendões, músculos e nervos concentravam-se numa única coisa - manter o equilíbrio.

Bem no meio do caminho, Bruno parou de pedalar. Até o espectador menos informado sabia que isto era uma coisa im­possível e suicida: quando o fator de equilíbrio atinge dimensões críticas - e aqui já parecia ter ultrapassado o limite crítico - apenas o movimento, para trás ou para a frente, é capaz de ajudar na recuperação do equilíbrio.

- Nunca mais - disse Wrinfield, e sua voz soou baixa, tensa. - Olhe para eles! Olhe só para eles!

Sergius lançou um olhar para a platéia, mas apenas por uma fração de segundo. Não era difícil compreender Wrinfield. No que concerne à participação do público, um certo grau de pe­rigo ocasional é tolerável e mesmo agradável, mas quando o grau de perigo se torna insuportável - e prolongado, como no caso - o prazer se transforma em medo, em corrosiva ansiedade. Os punhos cerrados, os dentes cerrados, muitas vezes os olhares desviados, as ondas de empatia percorrendo o salão de exibições - nada disso fora planejado para que as multidões afluíssem de novo ao circo.

A insuportável tensão durou dez segundos intermináveis, com as rodas da bicicleta que não avançavam nem recuavam ao me­nos uma polegada, enquanto seu ângulo de oscilação aumentava perceptivelmente. E aí Bruno impulsionou fortemente os pedais.

A corrente rebentou.

Depois, não houve duas pessoas que contassem exatamente da mesma maneira o que se seguiu. A bicicleta tombou ime­diatamente para a direita, lado que Bruno estivera pressionando. Ele se atirou para a frente - não havia volante para impedir seu deslocamento. Com as mãos estendidas para aparar a queda, ele aterrissou desajeitadamente, de lado, sobre o arame, que pa­receu apoiá-lo no lado interno da coxa e na garganta, pois sua cabeça virou para trás, formando um ângulo estranho. Então, o corpo de Bruno escorregou do arame, dando a impressão de estar suspenso apenas pela mão direita e o queixo, até que sua cabeça escorregou também, a pressão da mão direita afrouxou e ele caiu no picadeiro lá embaixo, os pés batendo primeiro na serragem e logo depois o corpo se dobrando todo, como o de uma boneca quebrada.

Neubauer, que naquele momento mantinha dez leões núbios agachados sobre um semicírculo de barricas, reagiu muito de­pressa. Tanto Bruno quanto a bicicleta haviam caído no centro do picadeiro, bem longe dos leões, mas estes são criaturas ner­vosas e sensíveis, que reagem mal a perturbações e interrupções inesperadas - e esta era, de fato, uma perturbação bastante ines­perada. Os três leões no meio do semicírculo já se haviam er­guido sobre as quatro patas quando Neubauer se inclinou e jo­gou-lhes um punhado de serragem nos focinhos. Eles não se sentaram, mas ficaram temporariamente cegos e permaneceram em seus lugares, dois deles esfregando os olhos com as patas ma­ciças. A porta da jaula se abriu, dando entrada a um treinador assistente e a um palhaço que, sem correr, ergueram Bruno, levaram-no para fora da jaula e fecharam a porta.

No mesmo instante o Dr. Harper apareceu ao lado dele. Inclinou-se, examinou-o rapidamente, ergueu-se e acenou com a mão, mas não era preciso, pois Kan Dahn já chegara com a maca.

Três minutos depois, o picadeiro central informava que a famosa Águia Cega sofrera apenas uma concussão e que tinha grandes possibilidade de voltar a se apresentar no dia seguinte. A multidão, imprevisível como todas as multidões, ergueu-se como um só homem e aplaudiu durante um minuto inteiro: antes uma Águia contundida do que morta. O espetáculo pros­seguiu.

 

No interior da sala de primeiros socorros, a atmosfera es­tava bem menos animada: estava fúnebre. Presentes estavam Harper, Wrinfield, dois de seus diretores associados, Sergius e um cavalheiro de uns setenta anos, com esplêndida cabeleira e bigodes brancos. Ele e Harper se achavam num extremo da sala onde Bruno, ainda na maca, jazia sobre uma cama de armar. Disse Harper:

- Dr. Hachid, se quiser fazer seu próprio exame...

- Creio que não será preciso - o Dr. Hachid sorriu triste­mente e olhou para um dos diretores associados, um homem chamado Armstrong. - Já viu a morte alguma vez? - Armstrong assentiu. - Toque a testa dele. - Armstrong hesitou, aproxi­mou-se, pôs a mão na testa de Bruno e retirou-a num movi­mento brusco.

- Está fria - estremeceu. - Já ficou completamente fria.

O Dr. Hachid cobriu a cabeça de Bruno com o lençol bran­co, recuou, puxou uma cortina, ocultando a maca e falou:

- Como se diz na América, um médico é um médico é um médico e eu jamais insultaria um colega. Mas a lei de nossa terra...

- A lei de todas as terras - disse Harper. - Um médico estrangeiro não pode assinar o atestado de óbito.

Com a caneta na mão, Hachid inclinou-se sobre um formu­lário impresso.

- Fratura da espinha. Segunda e terceira vértebras, foi o que disse? Seccionamento da medula espinhal. - Aprumou-se... Se quiser que eu tome as providências...

- Já arranjei ambulância. O necrotério do hospital. ..

- Não será preciso. Existe uma agência funerária a menos de cem metros daqui - explicou Sergius.

- Existe? Isso simplificaria muito as coisas. Mas a esta hora da noite...

- Dr. Harper.

- Minhas desculpas, coronel. Sr. Wrinfield, posso pedir em­prestado um de seus homens, um homem de confiança, que man­terá segredo?

- Johnny, o vigia noturno.

- Faça-o ir até o trem. Há uma valise preta sob meu be­liche. Por favor, diga-lhe que a traga aqui.

 

O salão nos fundos da casa funerária era cruamente ilumi­nado por luz fria, o que ressaltava a gélida e antisséptica higiene do local, das paredes azulejadas, do chão de mármore, das im­pecáveis pias de aço. Contra uma das paredes alinhavam-se cai­xões de pé, e no centro do aposento havia mais três caixões, sobre mesas de mármore com pés de aço. Dois destes estavam vazios e o Dr. Harper estendia um lençol sobre o terceiro. Ao lado dele, o agente funerário, um homem gorducho, com sapatos e careca reluzentes, praticamente pulava num pé e noutro, com sua consciência profissional visivelmente ultrajada.

- Mas o senhor não pode fazer isto. Quero dizer, direto dentro do caixão. Há coisas que devem ser feitas - dizia ele.

- Eu as farei. Mandei buscar meu equipamento.

- Mas ele tem que ser disposto...

- Ele era meu amigo, eu cuidarei disso.

- Mas a mortalha...

- Você será desculpado por não saber que um artista de circo é sempre enterrado com sua vestimenta do circo.

- Está tudo errado. Temos nossa ética, em nossa profissão.

- Coronel Sergius - falou Harper num tom cansado. - Sergius assentiu, pegou o agente funerário pelo braço, afastou-o um pouco e falou calmamente com ele. Em vinte segundos es­tava de volta, acompanhado por um agente funerário três vezes mais pálido e uma chave, que entregou a Harper.

- O salão é todo seu, Dr. Harper. - Voltou-se para o agente: - Pode sair. - O homem se retirou.

- Acho que nós também devemos sair - disse Wrinfield. - Tenho um vodca excelente em meu escritório.

 

Maria estava no escritório quando os homens entraram, a testa apoiada nos braços cruzados sobre a escrivaninha. Ergueu lentamente a cabeça, espiando pelas pálpebras semicerradas, como se não estivesse enxergando bem. De pé diante dela estavam o Dr. Harper, preocupado e confuso, Wrinfield, igualmente preo­cupado, e Sergius, impassível, ao lado dele. Na face de Sergius, os músculos que expressam simpatia haviam-se atrofiado com o correr dos anos. Os olhos de Maria estavam vermelhos, inchados e vidrados enquanto suas faces reluziam. Wrinfield contemplou a rosto abatido pela dor e desajeitadamente tocou-lhe o braço.

- Perdoe-me, Maria. Tinha esquecido... não sabia... Ire­mos imediatamente.

- Por favor. Está tudo bem. - Ela passou papel absor­vente no rosto. - Entrem, por favor.

Enquanto os outros três entravam relutantemente e Wrin­field apanhava sua garrafa de vodca, Harper disse a ela:

- Como soube? Lamento tanto, Maria. - Olhou para o anel de noivado e afastou a vista. - Mas, como soube?

- Não sei. Apenas soube. - Ela tornou a enxugar os olhos. - Sim, eu sei, ouvi a notícia sobre a queda. Estava certa de que se ele não estivesse gravemente ferido teria chamado por mim, ou o senhor teria mandado me chamar. Mas ninguém veio.

Num silêncio compreensivelmente carregado e com bastante pressa, os homens deram conta de suas vodcas e saíram em fila. Harper, o último a sair, disse a Maria:

- Tenho de cuidar de certo equipamento. Voltarei em dois minutos.

Fechou a porta atrás de si. Maria esperou alguns momentos, levantou-se, deu uma olhada pela janela, abriu a porta e espiou cuidadosamente para fora. Não havia ninguém nas proximidades. Ela fechou a porta, trancou-a, voltou para a escrivaninha, apa­nhou uma bisnaga na gaveta, destampou-a e esfregou mais um pouco de glicerina nos olhos e no rosto. Em seguida destrancou a porta.

 

O Dr. Harper voltou logo com uma valise. Serviu-se de ou­tra vodca, olhando para todos os lados menos para a moça, como se não soubesse ao certo como começar. Então pigarreou e disse, em tom de desculpa:

- Sei que você jamais me perdoará por isto, mas eu tinha de fazê-lo. Compreende, eu não sabia até que ponto você po­deria ser uma boa atriz. Não tão boa, receio. Seus sentimentos tendem a transparecer.

- Meus sentimentos tendem... o senhor sabe que Bruno e eu... - Ela se interrompeu e então disse, lentamente: - Que é que o senhor quer dizer com isso?

Ele deu um sorriso largo, embora algo apreensivo.

- Enxugue as lágrimas e venha ver.

Os primeiros sinais de compreensão surgiram no rosto dela.

- Quer dizer que...?

- Quero dizer, venha ver.

 

Bruno afastou os dois lençóis que o cobriam e sentou-se no caixão. Olhou para Harper sem muito entusiasmo e disse, em tom de censura:

- Você não tem muita pressa, hem? Que acha de ficar dei­tado num caixão imaginando quando chegará algum aprendiz entusiasta para pregar a tampa?

Maria livrou Harper da necessidade de responder. Quando Bruno finalmente se soltou, desceu rigidamente para o chão, me­teu a mão no interior do ataúde e levantou um saco de linho mole e gotejante, dizendo:

- E além de tudo estou encharcado!

- Que é isso? - perguntou Maria.

- Um ligeiro subterfúgio, minha cara. - Harper riu sarcasticamente. - Um saco de gelo. Era preciso que a testa de Bruno ficasse fria e úmida como a dos mortos. Infelizmente, gelo derrete. - Harper colocou a maleta sobre o caixão e er­gueu a tampa. - E enfim, agora temos que fazer Bruno sofrer mais um pouco: temos de transformá-lo numa coisa bela e numa eterna alegria.

A transformação levou vinte minutos. Certamente Harper não errara de profissão, mas era evidente que estaria perfeita­mente à vontade no departamento de maquilagem de qualquer estúdio cinematográfico. Trabalhou com rapidez e desembaraço, obviamente satisfeito com a criatividade de seu trabalho ma­nual. Quando terminou, Bruno mirou-se num espelho e estre­meceu. A peruca castanho-clara estava ligeiramente comprida e espalhada, o bigode da mesma cor apenas um pouco exube­rante demais; a nítida cicatriz em semicírculo que partia da testa, passava pelo canto do olho direito e chegava quase ao nariz, resultava evidentemente do encontro com uma garrafa quebrada. Quanto às roupas, ele usava camisa listrada de branco e azul, gravata vermelha, terno castanho-claro com listras verme­lhas verticais, meias mostarda, sapatos da mesma e surpreendente cor. Os anéis em seus dedos pareciam originários ou de uma barraca de feira ou de biscoitos de Natal. Ele comentou:

- Uma coisa bela, diz ele. Bem, poderia me empregar como espantalho. - Lançou um olhar desanimado em direção a Maria, cuja mão ocultando discretamente a boca não podia disfarçar o brilho dos olhos. Bruno voltou-se para Harper: - Isto me torna imperceptível?

- Está no ponto, exatamente. Torna-o tão perceptível que ninguém se dará ao trabalho de olhá-lo duas vezes. Com exceção daqueles que olharão de novo para se convencerem de que seus olhos não os enganaram da primeira vez. O homem anônimo, furtivo, cinzento, esgueirando-se pelos becos, é o que desperta suspeita. Você é Jon Neuhas, vendedor de máquinas-operatrizes da Alemanha Ocidental. O passaporte e os documentos estão no bolso de seu paletó.

Bruno extraiu o passaporte, documento de aparência vene­rável, que comprovava que suas obrigações de vendedor o ha­viam levado a praticamente todos os países da cortina de ferro, a alguns deles muitas vezes. Olhou para o retrato e depois nova­mente para o espelho. A semelhança era notável.

- Isto deve ter levado bastante tempo para preparar. Onde foi feito? - disse ele.

- Nos Estados Unidos.

- O senhor o guardou o tempo todo? - Harper assentiu. - Poderia ter-me mostrado antes, para dar tempo de me acos­tumar com a enormidade da coisa.

- Você provavelmente se recusaria a vir. - Harper con­sultou seu relógio. - O último trem de hoje chegará em quinze minutos. Há um carro à sua espera rua abaixo, a uns cem me­tros daqui, que o levará discretamente à estação, onde você per­mitirá que o vejam - você só tem que descer do trem. Esta ma­leta contém todas as roupas e apetrechos de que vai precisar. O mesmo carro o levará, em seguida, a um hotel no qual fez reserva duas semanas atrás.

- O senhor arranjou tudo isso?

- Sim. Ou melhor, foi um de nossos agentes. Nosso homem em Crau, digamos. Precioso. É capaz de arranjar tudo nesta cidade - lógico, é um dos grandes do conselho local. Quem vai dirigir o carro esta noite é um dos agentes dele.

Bruno olhou-o, pensativo.

- O senhor joga com as cartas bem junto ao peito, Dr. Harper.

- E sobrevivo. - Harper deu-se ao luxo de um suspiro paciente. - Depois de ter passado a maior parte de sua vida adulta numa ocupação como esta, você descobre que, num dado momento, quanto menos gente sabe alguma coisa, maior o fator segurança. Maria alugará um carro de manhã. Dois quarteirões a oeste daqui, há uma hospedaria chamada A Trompa do Caça­dor. Esteja lá ao entardecer. Maria chegará pouco depois, es­piará da porta e se afastará. Você deve segui-la. Como tem um dom especial para perceber quando está sendo seguido, não me preocupo quanto a essa parte. Qualquer alteração nos planos ou novas instruções lhe serão transmitidas por Maria.

- O senhor disse que seu homem em Crau podia arranjar qualquer coisa?

- Disse.

- Faça-o arranjar algumas bananas de dinamite. Qualquer explosivo serve, desde que tenha um pavio de dez segundos. Será que ele é capaz de arranjar?

Harper hesitou.

- Suponho que sim. Para que o quer?

- Conto-lhe dentro de uns dois dias, não porque esteja bancando o Dr. Harper e fazendo mistério. Eu mesmo não tenho certeza, mas estou cultivando a idéia de que tal coisa talvez me ajude a sair de Lubylan.

- Bruno. - A sombra da ansiedade voltara ao rosto da moça, mas Bruno não a olhou.

- Acho que tenho chance de entrar despercebido, mas não creio que haja a mínima chance de conseguir sair despercebido. É possível que eu tenha de sair muito depressa mesmo e, uma vez acionado o alarma, tenho certeza de que as saídas ficarão automaticamente fechadas. De modo que é bem provável que minha maneira de sair tenha de ser explosiva.

- Se bem me lembro, você disse que não desejava matar ninguém. Uma explosão de dinamite pode matar muita gente.

- Terei o máximo cuidado possível. Pode ser que chegue a ter que fazer a inevitável escolha - eles ou eu. Esperemos que não. Terei os explosivos ou não terei?

- Precisa me dar tempo para pensar no assunto.

- Olhe, Dr. Harper. Sei que é o senhor quem manda mas, aqui e agora, o senhor não é a pessoa mais importante. Eu sou. Eu é que vou arriscar a vida para entrar em Lubylan - e para sair. Não o senhor. O senhor fica são e salvo na base de ope­rações, pronto para negar qualquer participação em coisa alguma, caso eu seja agarrado. Agora já não estou pedindo, estou exi­gindo: quero aquele explosivo. - Lançou um olhar de desgosto para sua vestimenta. - Se não o conseguir, pode tratar de expe­rimentar este terno para ver se lhe serve.

- Repito que preciso de tempo.

- Eu posso esperar. - Bruno apoiou os cotovelos no cai­xão. - Posso esperar cinco segundos inteiros. Vou contá-los, de­pois tirarei este maldito terno e voltarei para o circo. Desejo-lhe sorte em sua invasão de Lubylan. Também lhe desejo sorte quan­do tiver de explicar à polícia como chegou a cometer o terrível engano de me dar por morto. Um. Dois. Três.

- Isto é chantagem.

- Que mais? Quatro.

- Está bem, está bem, você terá seus malditos fogos de artifício. - Harper refletiu e continuou a reclamar. - Devo confessar que não conhecia este aspecto da sua natureza.

- Eu nunca examinara aquela maldita Lubylan. Agora vi. Sei quais são as minhas chances. Por favor, faça com que Maria leve os explosivos no carro dela amanhã à noite. Wrinfield sabia que isso de hoje era uma farsa?

- Claro.

- O senhor se arriscou ao trazer Sergius até aqui.

- Além do fato de ter ele insistido, eu teria me arriscado muitíssimo mais se não o trouxesse. Teria sido sob medida para fazê-lo desconfiar.

- E por acaso ele não desconfiou?

- A última coisa que ocorreria ao Coronel Sergius é que alguém pudesse ser tão mal informado a ponto de escolher sua paróquia para o lugar onde cometer suicídio.

- Dinheiro?

- No outro bolso do seu paletó.

- Está frio lá fora.

- No carro há um quente e simpático sobretudo. - Har­per sorriu. - Você vai adorá-lo.

Bruno indicou o caixão aberto:

- E isso?

- Vamos colocar um peso nele e aparafusar a tampa du­rante a noite, de modo que você será enterrado na manhã de segunda-feira.

- Posso mandar uma coroa para mim?

- Não seria aconselhável. - Harper deu um ligeiro sor­riso. - É claro que sempre pode se misturar discretamente aos que irão lamentar sua morte.

 

Quarenta minutos mais tarde, Bruno encontrava-se em seu quarto no hotel, desfazendo a mala, lançando olhares de vez em quando para o quente e simpático sobretudo que Harper tivera a boa idéia de arranjar. Era feito de nylon espesso e escovado, com listras verticais onduladas, pretas e brancas, e parecia, por tudo no mundo, um chinchila de quatro mil guinéus. Não havia dúvida de que era o único no gênero em Crau e, provavelmente, em algumas centenas de quilômetros ao redor. Causara conside­rável alvoroço ao atravessar o vestíbulo, em direção ao balcão da recepção. E quando ao efeito do sobretudo somou-se o fato do mesmo se achar descuidadamente aberto, revelando o arco-íris das roupas que encobria, tornou-se compreensível que nin­guém se tivesse dado ao trabalho de olhar seu rosto nem uma, quanto mais duas vezes.

Bruno apagou a luz, abaixou as cortinas, abriu a janela e debruçou-se para fora. Seu quarto ficava nos fundos do hotel, dando para uma viela estreita ladeada de armazéns, que não se encontravam totalmente às escuras, mas também não ficava longe disso. A um metro de distância achavam-se os degraus de uma saída de incêndio, maneira fácil e, somada à viela escura, per­feita para sair do hotel. Fácil demais, perfeita demais.

Obedecendo à política de não ocultamento de Harper, Bruno desceu para jantar no salão do hotel, levando debaixo do braço um jornal de Berlim Oriental, com data do dia, que encontrara em sua valise. Para Harper, o detalhe mais insignificante podia ter importância. Onde conseguira o jornal, Bruno não tinha a menor idéia. Sua entrada não causou nenhuma sensação apre­ciável - os cidadãos de Crau ou os bombeiros visitantes eram demasiado bem educados para tal - mas as sobrancelhas ergui­das, os sorrisos, os cochichos, evidenciavam claramente que sua presença não passara despercebida. Bruno olhou ao redor, dis­traidamente. Não havia ninguém à vista que tivesse a mais re­mota semelhança com um agente policial secreto, embora isso não constituísse grande consolo: os melhores agentes nunca pa­recem agentes. Bruno pediu o jantar e em seguida se enterrou em seu jornal.

 

Às oito horas da manhã seguinte, Bruno encontrava-se no­vamente no salão de refeições, mais uma vez lendo jornal, só que agora era um jornal local. A primeira coisa que lhe atraiu a atenção foi uma notícia no centro da primeira página, cercada por uma tarja escura de meio centímetro de largura. Através dela, foi informado de que morrera durante a noite. Era grande a dor dos amantes de circo do mundo inteiro mas, naturalmente, muito mais aguda em Crau do que em qualquer outro lugar. Havia um bocado de sentimentalismo e lamentações filosóficas acerca das tramas do estranho destino que trouxera Bruno Wilderman para morrer em sua terra natal. Seria enterrado às onze horas de segunda-feira. Esperava-se que um grande número de cidadãos de Crau apareceria para prestar a última homenagem ao mais ilustre filho de sua cidade, o maior aramista de todos os tempos. Depois do café, Bruno levou o jornal para o quarto, pegou uma tesoura e recortou o artigo tarjado, que dobrou cui­dadosamente e guardou num bolso do paletó.

Bruno saiu para fazer compras no fim da tarde. O dia estava frio e ele deixara o casaco de pele no quarto, não por causa do tempo ou de alguma timidez inata, mas apenas porque era muito volumoso para ser carregado discretamente, mesmo se cuidado­samente dobrado.

Esta era a cidade que Bruno conhecia melhor do que ne­nhuma outra no mundo e poderia ter-se livrado de qualquer um que o seguisse, quase sem pensar: custou-lhe menos de cinco minutos para perceber que não estava sendo seguido. Tomou uma rua lateral, depois outra ainda mais sórdida, pouco mais que um beco e entrou num armarinho para o qual Saville Row devia se situar no outro extremo do paraíso: nem mesmo as melhores roupas que tinha para vender poderiam ser classificadas na ca­tegoria de "usadas". O dono, um velho encurvado cujos olhos lacrimejantes boiavam atrás das grossas lentes dos óculos, em­bora parecesse possibilidade extremamente remota a de que o velhote jamais fosse chamado para identificá-lo, Bruno não acre­ditava que ele pudesse reconhecer os membros de sua própria fa­mília, se é que tinha alguma - possuía um estilo original mas muito prático de expor as mercadorias que vendia. As peças de roupa estavam empilhadas em montes desmazelados no chão, uma pilha de paletós, outra de calças, outra de casacos, outra de ca­misas e assim por diante. As gravatas estavam ausentes.

Ao deixar a loja, Bruno levava um volumoso embrulho de papel pardo bastante sujo, toscamente amarrado com um pedaço de cordão desfiado. Encaminhou-se para o lavatório público mais próximo e, ao sair, sua transformação era total. Usava roupas antigas, remendadas, que lhe caíam mal e tinha péssima apa­rência: não era o tipo de pessoa de quem o cidadão típico se aproximaria e muito menos com quem se daria. O boné, sujo e amarrotado, era grande demais e lhe caía sobre as orelhas; a capa de chuva escura tinha manchas incuráveis, as calças eram incri­velmente largas, a camisa amassada, outrora da Marinha, não tinha gravata e os calcanhares dos sapatos estavam tão gastos atrás que lhe conferiam um estranho andar bamboleante. Para com­pletar a cena, Bruno estava cercado por uma poderosa aura que atingia as pessoas a vários metros de distância: para afastar pio­lhos, pulgas e outros animais selvagens, o dono da loja de roupas usadas era grande adepto de envolver cada peça de vestuário com um desinfetante tão fedorento quanto eficaz.

Segurando o pacote pardo embaixo do braço, Bruno atra­vessou tranqüilamente a cidade. Aproximava-se o crepúsculo e ele cortou caminho através de um grande parque, parte do qual fora transformada num dos cemitérios da cidade. Ao cruzar um portão de ferro aberto no muro alto que cercava o cemitério, ficou intrigado ao ver dois homens que cavavam ativamente à luz de um par de lanternas de tempestade. Curioso, aproximou-se do local e, ao fazê-lo, os dois homens, que estavam de pé na sepultura ainda rasa, endireitaram-se e esfregaram as costas evi­dentemente doloridas.

- Vocês trabalham até tarde, camaradas - disse Bruno com simpatia.

- Os mortos não esperam - respondeu o coveiro mais ve­lho numa voz sepulcral e, perscrutando melhor, acrescentou: - Alguns de nós têm que trabalhar para viver. Incomoda-se se ficar do outro lado da cova?

Bruno percebeu que a brisa leve estava levando os sinais de sua presença até o outro lado da sepultura. Deu a volta e per­guntou:

- E para quem é esse último lugar de repouso?

- Para um famoso americano que no entanto nasceu e cres­ceu aqui. Conheci bem o avô dele. É um Wilderman, ele. Era de um circo, o circo, que está no Palácio de Inverno. Morreu num acidente. Segunda-feira vai ser um grande dia aqui, com Johann e eu usando nossos melhores ternos.

- Acidente? - Bruno sacudiu a cabeça. - Aposto que foi um daqueles malditos ônibus. Muitas vezes...

- Não, seu velho bobo. Ele caiu do arame no circo e que­brou o pescoço - disse o mais jovem e enfiou a pá no chão arenoso. - Incomoda-se? Temos que trabalhar.

Bruno murmurou suas desculpas e afastou-se com seu andar bamboleante. Cinco minutos depois estava na Trompa do Caça­dor, onde, para ser servido de café, teve de mostrar seu dinheiro ao garçom, que torcia o nariz. Cerca de quinze minutos mais tarde, Maria apareceu à porta, olhou em volta, evidentemente não reconhecendo ninguém, hesitou e afastou-se. Bruno levan­tou-se preguiçosamente e bamboleou até a porta. Uma vez na rua, pôs-se a dar passos mais largos sem acelerar o andar e um minuto depois estava atrás dela.

- Onde está o carro? - perguntou.

Ela se virou.

- Onde é que... você não estava... sim, estava!

- Logo você se sentirá melhor. Onde está o carro?

- Depois da próxima esquina.

- Algum carro a seguiu?

- Não.

O carro era um Volkswagen preto em mau estado, de apa­rência igual à de centenas de outros na cidade. Estava estacio­nado junto a um poste de iluminação. Bruno sentou-se ao volante e Maria a seu lado, fungando penosamente.

- Que cheiro pavoroso é esse?

- Sou eu.

- Avalio. Mas...

- Apenas desinfetante. Muito forte, mas sempre um desinfetante. Você se acostumará. É bem estimulante, para falar a verdade.

- É horrível! Por que...

- Disfarce - disse Bruno, pacientemente. - Você não acha realmente que este é o meu estilo de roupa favorito, acha? Creio que o Dr. Harper subestima o Coronel Sergius. Eu posso ser John Neuhas, cidadão de boa posição, de um país satélite amigo, mas sempre um alemão oriental. Sou um forasteiro e pode apostar que Sergius manda vigiar todo forasteiro, desde que esteja a me­nos de vinte quilômetros de Crau. Se ele quiser, fica sabendo em menos de dez minutos quando qualquer estrangeiro se registra em qualquer hotel da cidade. Deve ter minha descrição completa. Não se preocupará comigo, pois tenho os documentos, mas co­meçará a se preocupar se o respeitável representante de vendas de uma firma importante for encontrado numa pobre baiúca como a Trompa do Caçador, ou parado algum tempo à sombra de Lubylan. Não concorda?

- Concordo. Nesse caso, só há uma coisa a fazer.

Ela abriu a bolsa, extraiu um pequeno aerosol de água de colônia, borrifou-se completamente e depois derramou o con­teúdo em cima de Bruno? Quando terminou, ele farejou.

- O desinfetante sai ganhando - avisou e, de fato, em vez de ter efeito neutralizante, a água-de-colônia somava-se ao de­sinfetante. Bruno abaixou os vidros e tocou para a frente, com os olhos no espelho retrovisor, tanto quanto na estrada. Deu voltas pelas ruas e passagens escuras, até que qualquer carro que por acaso os seguisse estivesse irremediavelmente perdido. En­quanto seguiam, ensaiaram por alto os planos para a entrada em Lubylan na noite de terça-feira. Bruno perguntou:

- Está com o negócio que eu pedi?

- No porta-mala. Não é o que você pediu. O contato do Dr. Harper não conseguiu. Ele disse que você precisa ter muito cuidado com esse negócio. Parece que basta olhar e a coisa ex­plode.

- Santo Deus! Não me diga que ele arranjou nitroglicerina?

- Não. Chama-se amatol.

- Então está tudo bem. Ele deve estar preocupado é com o detonador. É fulminato de mercúrio, não é?

- É, foi o que ele disse.

- Setenta e sete grãos. Negócio muito temperamental. Deve ter um pavio especial e um dispositivo químico de ignição.

- É, ele falou isso mesmo. - Ela o observou com curiosi­dade. - Como é que você pode ser perito em explosivos?

- Não sou. Li a respeito, há alguns anos, e de certa forma arquivei a informação.

- Você deve ter um arquivo e tanto. Lembra-se de tudo num segundo. Como é que consegue?

- Se eu soubesse, ficaria rico com isso em vez de arriscar a vida num trapézio. Agora, quero outra coisa. Primeiro, uma esteira de borracha ou de couro cru, grande, se possível de oito por oito.

Ela lhe pegou a mão e perguntou:

- Para que quer isso? - Seus olhos diziam que sabia.

- Que é que você acha? Para jogar por cima daquela mal­dita cerca eletrificada, é lógico. Um tapete de acrobata serviria perfeitamente. Também preciso de uma corda com um gancho forrado. Quero ver ambos o mais depressa possível. Peça ao Dr. Harper para arranjá-los e pô-los na mala do carro. Gostaria de almoçar comigo amanhã?

- Quê?

- Quero ver aquele negócio.

- Oh, eu adoraria. - Ela respirou fundo. - Não, não adoraria. Não com você usando essas roupas. Além do mais, nenhum restaurante medianamente decente deixaria você entrar.

- Mudarei de roupa.

- Mas se formos vistos juntos... quero dizer, de dia.

- Há uma encantadora hospedariazinha numa encantadora aldeiazinha a uns dez quilômetros daqui. Lá ninguém nos conhe­cerá. De qualquer maneira ninguém estará me procurando, pois eu morri. O que me lembra que há menos de uma hora con­versei com uma dupla de coveiros.

- Estamos fazendo humorismo outra vez, não é?

- Verdade. Muito interessante.

- Na Trompa do Caçador?

- No cemitério. Perguntei para quem era e disseram que era para mim. Bem, para o americano que caiu do arame. Não é qualquer um que tem a sorte de ver abrirem sua própria cova. Devo confessar que eles estavam caprichando bastante.

- Por favor... - Ela estremeceu. - Pode parar?

- Desculpe. Não teve graça. Achei que tinha, só isso. Bem, você irá até essa aldeia - chama-se Kolszuki - de carro e eu irei de trem. Encontramo-nos lá na estação. Seria bom irmos agora ver os horários de trem na estação de Crau. Você terá de obter permissão do Dr. Harper, é claro.

 

As bobinas de um gravador giravam sobre uma mesa de metal, muito espartana, num escritório muito espartano, quase todo metálico. De um lado da mesa sentava-se o Coronel Sergius e do outro o Capitão Kodes, ambos com fones nos ouvidos. Além do fone, Sergius tinha um cigarro, um vodca e a coisa mais pa­recida com um sorriso de beatitude que ele jamais lograria. Também o Capitão Kodes dava-se ao luxo de um largo sorriso. Ângelo, sentado discretamente num canto afastado, embora sem fones nem vodca, também sorria. Se o Coronel estava feliz, ele também estava.

 

Bruno voltou, após consultar os horários na estação de Crau e disse:

- Há um trem muito conveniente para o almoço. Encontre-me na estação de Kolszuki ao meio-dia. Não terá dificuldades para achá-la; não há mais de cinqüenta casas na aldeia. Sabe onde fica esse lugar?

- Há um mapa no porta-luvas. Eu o consultei. Estarei lá na hora combinada.

Bruno percorreu a rua principal e estacionou o Volkswagen bem defronte à viela contígua ao lado sul de Lubylan. A viela não estava deserta - havia dois caminhões e um carro estacio­nados, obviamente para passar a noite. Uma medida da con­fiança dos que estavam dentro de Lubylan em seus dispositivos de segurança era o fato de que não faziam objeção ao estaciona­mento de veículos assim tão perto. Bruno tomou nota mental­mente: não se proíbe o estacionamento de caminhões à noite, na viela do sul.

Bruno falou:

- Agora, não se esqueça de contar ao Dr. Harper tudo que conversamos esta noite. E não se esqueça que, para benefício dos inocentes passantes, somos apenas dois namorados, absorvidos nos olhos um do outro. Querida, querida Maria. Isto foi para praticar.

- Sim, Bruno - disse ela compenetradamente. - Casare­mos em breve, Bruno.

- Muito breve, meu amor.

Voltaram a ficar em silêncio, os olhos de Maria fixos na viela todo o tempo, os de Bruno quase todo o tempo.

 

No quartel-general da Polícia Secreta, o Coronel Sergius pro­duzia ásperos sons de grasnado na garganta. Não que estivesse engasgado com a vodca - o Coronel Sergius estava rindo. Fez um gesto para que Ângelo lhe servisse outra vodca e depois in­dicou-lhe que deveria tomar uma também. Ângelo fez um esforço para não esmigalhar a garrafa, tal foi a surpresa; deu um sorriso de lobo e obedeceu rapidamente antes que Sergius pudesse mu­dar de idéia: aquilo era sem precedentes, uma noite de marcar época.

 

Bruno virou-se de repente, abraçou Maria e beijou-a com paixão. Por um momento ela o encarou, os olhos escuros arrega­lados de surpresa e suspeita; deixou-se relaxar, apoiada nele, mas logo ficou tensa, ao ouvir o ra-ta-ta autoritário das batidas em sua janela. Libertou-se dos braços de Bruno e abaixou rapida­mente a janela. Dois policiais grandalhões, completos com as armas e os cassetetes habituais, espiavam inclinados para dentro do carro. Porém, fora os uniformes e as armas, não se encaixa­vam nem um pouco na concepção popular do policial da Cortina de Ferro. Tinham expressão amável, positivamente paternal. O maior deles farejou desconfiado:

- Um cheiro muito esquisito neste carro, devo dizer.

- É que acabei de quebrar um frasco de perfume - disse Maria. - Uma gota é agradável, mas o vidro inteiro, bem, devo admitir que é muito forte.

Bruno, gaguejando um pouco e numa voz profundamente embaraçada, falou:

- Que há, capitão? Esta é a minha noiva. - Levantou a mão esquerda de Maria, com o anel, de modo a não deixar dú­vidas a respeito. - Certamente não há nenhuma lei...

- Lógico que não. - O policial apoiou o cotovelo na borda da janela, com um ar confidencial. - Mas há uma lei contra estacionamento na rua principal.

- Oh, desculpe. Eu não tinha percebido...

- É o cheiro - disse o policial bondosamente. - Você deve estar com a cabeça completamente tonta.

- Sim, realmente - Bruno deu um breve sorriso. - Pode­mos estacionar atrás daqueles caminhões? - Apontou cheio de esperança os veículos na viela sul.

- Certamente. Não vá pegar um resfriado agora. Ei, ca­marada?

- Sim?

- Se a ama tanto, por que não compra um perfume decente para sua noiva? Não precisa ser caro, sabe. - O policial sorriu, satisfeito e afastou-se com o colega.

Maria, recordando sua momentânea rendição a Bruno, disse numa voz zangada:

- Bem, obrigada. Por um instante cheguei a pensar que você tinha me achado irresistível.

- Nunca deixe de usar seu espelho retrovisor. É tão im­portante quando se está parado quanto ao dirigir.

Maria fez uma careta para ele, enquanto Bruno conduzia o carro para o beco.

Os dois policiais os observaram enquanto estacionavam e se afastaram da linha de visão do carro. O mais magro puxou do bolso interno da farda um microfone de walkie-talkie, apertou um botão e falou:

- Estacionaram na viela do lado sul de Lubylan, coronel.

- Excelente. - Apesar da distorção metálica e do fato de que suas palavras eram entrecortadas por uma série de sons ofe­gantes - para ele o riso era um exercício pouco familiar - a voz de Sergius era inconfundível.

- Deixe estar os pombinhos.

Bruno e Maria levaram alguns minutos para compreender que havia, realmente, uma guarda ao nível do chão. Eram três e mantinham uma patrulha periférica contínua, cada um por sua vez fazendo o circuito completo de Lubylan. Não havia nenhum momento em que cada guarda ficasse ao alcance da vista dos outros dois. Como sentinelas, não chegavam a ser entusiastas: nada de olhar constantemente errante e alerta, do escrutínio pe­netrante de tudo que havia em seu campo visual - com a vista baixa e o andar arrastado, pareciam completamente miseráveis, encolhidos por causa do frio, vivendo apenas à espera do mo­mento da rendição. Há dez, talvez vinte anos que havia senti­nelas patrulhando Lubylan durante a noite e provavelmente nun­ca ocorrera qualquer incidente infeliz: não havia nenhuma razão concebível para que jamais viesse a ocorrer.

Das duas torres de observação que podiam enxergar - a sudoeste e a sudeste - brilhavam holofotes ocasionais e desor­denados, ao longo do topo dos muros circundantes. Não havia nenhuma seqüência determinada discernível para o ligar e des­ligar dos holofotes: parecia ser feito ao acaso, dependendo arbitrariamente do capricho do guarda.

Após vinte minutos, Bruno conduziu o carro até o lavatório público que freqüentara no início daquela noite. Saltou, despe­diu-se de Maria com um beijo, enquanto ela passava para o assento do motorista e desapareceu nas profundezas. Ao emergir com o embrulho sujo das velhas roupas e o amatol enfiado de­baixo do braço, vestia sua gloriosa fatiota habitual.

 

Exatamente ao meio-dia seguinte, Maria encontrou-se com Bruno na estação de Kolszuki. Fazia um dia de inverno mara­vilhoso, sem nuvens, cortante, claro e ensolarado, embora o vento que vinha das planícies fosse agudamente frio. Durante os vinte minutos de viagem, Bruno passara o tempo estudando seu pró­prio obituário no jornal dominical de Crau. Ficara espantado com a riqueza e a variedade de sua carreira, com o aplauso interna­cional que o acompanhava onde quer que fosse, com os feitos impossíveis que realizara perante Chefes de Estado do mundo in­teiro: ficou especialmente comovido ao descobrir como fora bon­doso para com as criancinhas. A matéria continha verdades su­ficientes para tornar óbvio que o repórter chegara mesmo a en­trevistar alguém do circo, alguém evidentemente dono de um simplório senso de humor. Bruno estava certo de que aquilo não era obra de Wrinfield: Kan Dahn aparecia como o mais pro­vável culpado, quando menos fosse pelo fato de ser ele a única pessoa mencionada no artigo, além de Bruno. Este concluiu que o artigo prometia sucesso para o dia seguinte: a aglomeração no cemitério, às onze horas, prometia ser notável. Recortou o ar­tigo cuidadosamente e guardou-o junto com o obituário emoldu­rado em negro do dia anterior.

A hospedaria que tinha em mente ficava apenas a dois qui­lômetros de distância. Um quilômetro antes ele parou, saltou, abriu a mala, examinou por alto o tapete de acrobata e o gancho forrado preso a uma corda, fechou a mala e voltou ao seu lugar,

- Tanto o tapete quanto a corda são exatamente como eu queria. Deixe-os aqui até a noite de terça-feira. O carro está alugado até então?

- Até nossa partida na quarta-feira.

Deixaram a estrada principal, seguiram durante algum tempo por uma estradinha estreita e pararam no pátio de paralelepípe­dos do que parecia ser uma hospedaria realmente muito antiga. O chefe dos garçons conduziu-os gentilmente até uma mesa de canto e anotou seus pedidos. Quando estava prestes a terminar, Bruno falou:

- Incomoda-se se passarmos para aquela mesa de canto? - Maria demonstrou surpresa. - Mas é claro, senhor.

Após sentarem, Maria disse:

- Daqui não se vê nenhum dia bonito, apenas os fundos de um celeiro em ruínas. Por que mudamos de mesa?

- Eu queria ficar de costas para a sala, de modo que nin­guém possa ver nossos rostos.

- Conhece alguém aqui?

- Não. Um Volkswagen verde nos seguiu desde a estação. Quando paramos naquele atalho, ele parou adiante, mas depois parou num retorno e esperou até passarmos. Agora está sentado bem de frente para nossa mesa anterior. Pode muito bem saber leitura labial.

Maria ficou sem graça.

- Parece que cuidar dessas coisas é trabalho meu.

- Talvez devêssemos trocar nossos trabalhos.

- Não achei muita graça - disse ela, mas sorriu apesar de tudo. - De certa forma, não me vejo como a jovem corajosa no trapézio voador. Nem mesmo posso ficar de pé numa va­randa de primeiro andar, nem subir numa cadeira sem que tenha vertigem. Sério. Está vendo o que foi arranjar? - Ele não res­pondeu. - Bem, pelo menos agradeço por não rir de mim. Por que estamos sendo seguidos, Bruno? Quem poderia saber que viemos aqui? E quem é que eles estão seguindo - você ou eu?

- Eu.

- Como pode ter tanta certeza?

- Alguém acompanhou você até aqui?

- Não. Segui suas lições sobre espelhos retrovisores. Agora, quando dirijo, passo mais tempo olhando para trás do que para a frente. Parei duas vezes e ninguém passou por mim.

- Então sou eu. E não há motivo para se preocupar. Pres­sinto a mão do Dr. Harper neste negócio. Acho que isso é que é a velha mentalidade da CIA. Jamais, jamais confiar em al­guém. Desconfio que metade dos membros dos serviços de es­pionagem e contra-espionagem passa boa parte de seu tempo vigiando a outra metade. E como é que ele pode saber se eu não vou virar patriota e reverter a minhas antigas convicções de Crau? Não o culpo. Esta é uma situação realmente muito di­fícil para o velho doutor. Aposto cem contra um como aquele cara atrás de nós é o que Harper gosta de chamar de seu homem em Crau. Faça-me apenas um favor - quando voltar ao trem do circo, procure o Dr. Harper e pergunte-lhe diretamente.

- Você acha isso mesmo? - perguntou ela em tom de dúvida.

- Tenho certeza.

Após o almoço, retornaram à estação de Kolszuki, com o Volks cinzento como fiel, embora distante, comitiva. Bruno pa­rou o carro diante da entrada principal e perguntou:

- Vejo você esta noite?

- Oh, sim, por favor - ela hesitou. - Não será arriscado?

- Claro que não. Caminhe até uns duzentos metros ao sul da Trompa do Caçador. Lá existe um café com uma placa luminosa com a cruz de Lorena, Deus sabe o motivo. Estarei lá às nove horas. - Ele a abraçou. - Não fique com esse ar tão triste, Maria.

- Não estou triste.

- Você não quer ir?

- Oh, sim, sim, sim! Quero passar cada minuto do dia com você.

- O Dr. Harper não aprovaria.

- Suponho que não. - Ela lhe tomou o rosto entre as mãos e o encarou profundamente nos olhos. - Mas você já chegou a pensar que agora pode ser todo o tempo que jamais teremos? - Estremeceu. - Sinto alguém passando sobre a minha sepul­tura.

- Ninguém sabe mais se comportar hoje em dia - disse Bruno. - Diga-lhe que saia daí.

Sem olhá-lo ou tornar a lhe falar, ela pressionou a embrea­gem do carro e se afastou: ele a observou até perdê-la de vista.

 

Bruno estava deitado na cama de seu quarto de hotel quan­do o telefone tocou. A telefonista perguntou se ele era o Sr. Neuhas e quando Bruno confirmou, colocou-o em contato com a pessoa ao telefone. Era Maria.

- Tânia? - disse ele. - Que surpresa agradável!

Houve uma pausa, enquanto ela aparentemente se adaptava ao novo nome.

- Você tinha toda a razão. Nosso amigo admite a responsabilidade pelo que ocorreu na hora do almoço - disse ela.

- John Neuhas, como sempre, acertou. Vejo você na hora combinada.

 

Às seis horas daquela tarde, a escuridão da noite já caíra por completo. A temperatura estava bem abaixo de zero, corria um vento suave e de vez em quando pedaços de nuvens desli­zando lentamente escureciam a lua. Quase todo o céu brilhava com cintilantes estrelas geladas.

O estacionamento de caminhões em frente à parada dos mo­toristas, três quilômetros ao sul da cidade, estava quase lotado. Do prédio do café, comprido e baixo, de um só andar, vinha uma brilhante luz amarela e o som de música da vitrola automática: o café estava muito freqüentado, com motoristas entrando ou saindo a intervalos regulares. Um deles, homem de meia-idade, enrolado em numerosos agasalhos, como é comum entre eles, saiu do café e subiu em seu veículo, um caminhão de mudança grande e vazio, com duas portas dobradiças na traseira e tábuas de sustentação ao longo de ambos os lados. Não havia divisória entre o motorista e o corpo do caminhão: apenas o assento único na frente. O motorista ligou a ignição, o grande diesel animou-se com um baque, mas antes que o homem tivesse tempo de tocar no freio, na embreagem ou na alavanca de mudança, caiu para diante, por cima do volante, inconsciente. Um par de mãos gi­gantescas segurou-o pelas axilas, tirou-o do banco como se fosse um marionete e depositou-o no chão do caminhão.

Manuelo grudou fita adesiva à boca do infeliz motorista e começou a lhe amarrar uma venda nos olhos, dizendo:

- Lamento que tenhamos que tratar desta maneira um ci­dadão inocente.

- De acordo, de acordo. - Kan Dahn balançou a cabeça tristemente e apertou o último nó no pulso da vítima. - Mas é para o bem da maioria. Além do mais - disse num tom espe­rançoso - pode ser que ele não seja um cidadão inocente.

Ron Roebuck, que estava prendendo os tornozelos do ho­mem a uma das tábuas de sustentação paralelas, não parecia achar que a situação demandasse qualquer comentário. Havia la­ços, cordas de roupa, barbante forte, um grande rolo de corda de nylon e o mais evidente de todos era, de longe, o mais pe­sado e espesso, com nós a intervalos de dezoito centímetros.

 

Às seis e quinze Bruno, magnificamente vestido com o que ele no íntimo considerava sua roupa de pierrô e o grandioso pseudochinchila, saiu do hotel. Caminhou com o andar medido e sem pressa daquele para quem o tempo não é assunto de pre­ocupação imediata: na realidade, não queria sacudir o fulminato de mercúrio dentro de seis dispositivos explosivos presos ao cinto. O volumoso casaco os escondia perfeitamente.

Como convém a um homem que dispõe de tempo, ele pe­rambulou aparentemente ao acaso, seguindo um caminho que, em caso diferente, seria considerado incerto e acidentado. Gastou um bocado de tempo parando e aparentemente examinando arti­gos nas vitrinas, sem esquecer as vitrinas laterais nas entradas das lojas. Finalmente, dobrou uma esquina, acelerou a marcha durante alguns passos e então afundou nas sombras do vão de uma porta. Um homem de capa de chuva escura dobrou a mes­ma esquina, hesitou, precipitou-se para a frente, passando por onde Bruno estava escondido e então dobrou os joelhos, subita­mente atordoado, quando a borda da mão direita de Bruno o atingiu abaixo da orelha direita. Com uma das mãos, Bruno o manteve de pé, enquanto lhe revistava os bolsos com a outra, encontrando uma automática de cano curto. Ouviu-se o estalido da lingüeta de segurança.

- Vá andando - falou Bruno.

 

O caminhão de mudança seqüestrado achava-se no meio da viela que ladeava a face sul de Lubylan e era o último dos cinco caminhões lá estacionados. Bruno deu com ele imediatamente, logo que parou na esquina da rua principal com a viela do lado sul, de braço dado, aparentando cordialidade, com o homem que o vinha seguindo. Ele achara conveniente parar porque havia um guarda que vinha pelo outro lado da ruela com a metralhadora pendurada no ombro. A julgar por sua aparência, a arma era o que menos o preocupava. Tal como os guardas da noite anterior, este não caminhava num vivo passo militar, mas apenas se ar­rastava, chafurdando nas profundezas insondáveis de suas próprias misérias geladas. Bruno apertou com mais força a pistola auto­mática contra o flanco de seu companheiro, logo acima da bacia.

- Grite e você é um homem morto.

Era evidente que a idéia não atraía o prisioneiro. A combi­nação de medo e frio dava a impressão de que ele se tornara uma pessoa congelada. Logo que o guarda dobrou a esquina em direção à rua principal - não parecia alguém prestes a lançar um olhar desconfiado para trás - Bruno fez seu prisioneiro marchar ao longo da fila de caminhões estacionados: uma vez em segurança à frente destes, não podiam ser vistos por ninguém do outro lado da rua.

Empurrando o homem à sua frente, Bruno passou com cui­dado entre o terceiro e o quarto caminhão estacionado e deu uma olhada para a direita. Acabara de surgir um segundo guarda na esquina a sudeste e ele começava a subir a viela. Bruno recuou para a calçada. Nada podia garantir que o prisioneiro não conseguisse reunir toda a sua coragem e, além do mais, como agora não podiam ser vistos, Bruno achou mais seguro ter nas mãos um homem inconsciente, de modo que repetiu o golpe an­terior, embora com muito mais força desta vez, e deixou o ho­mem escorregar até o chão. O guarda, sem nada perceber, passou pelo outro lado. Bruno içou o prisioneiro ao ombro e o carregou para a traseira do caminhão, no mesmo instante em que uma das portas se abriu: alguém estava vigiando atentamente através do pára-brisa. Num segundo Kan Dahn levou o homem para dentro e Bruno o seguiu.

- Roebuck está a caminho. - Kan Dahn pulou do cami­nhão, seguido por Manuelo, que se escondeu atrás da traseira. Kan Dahn deitou-se no meio do beco, extraiu do bolso uma garrafa de uísque, derramou uma boa quantidade pelo rosto e os ombros e ficou estirado, com a garrafa segura na mão e o braço cobrindo o rosto.

Um guarda surgiu na esquina sudeste e quase imediatamente deu com os olhos em Kan Dahn. Ficou imóvel por um mo­mento, olhou ao redor com cuidado, não viu qualquer perigo e então se pôs a correr em direção ao homem caído. Ao se apro­ximar, desprendeu sua pistola e passou a andar lenta e cautelosa­mente, com o cano apontado para o volumoso corpo. A uma dis­tância de quatro metros, era impossível errar o alvo. A sete me­tros, era igualmente impossível que Manuelo errasse. O cabo da faca acertou o guarda bem entre os olhos e Kan Dahn, que lhe amparou a queda gentilmente, em cinco segundos levou-o para dentro do caminhão.

Dez segundos mais e Manuelo recuperara sua faca, voltando ao esconderijo anterior, enquanto Kan Dahn reassumia sua ociosa posição. Bruno tinha tal confiança nos dois que nem se deu ao trabalho de observar essas dolorosas providências; ao contrário, concentrou-se no processo de imobilizar, amordaçar e vendar os prisioneiros. Em seis minutos, havia cinco homens atados ao flanco do caminhão de mudança, completamente indefesos e si­lenciosos, três deles já conscientes, mas nenhum em condições de fazer qualquer coisa a respeito da situação em que se acha­vam. O pessoal de circo é mestre na arte de dar nós: com muita freqüência suas vidas dependem precisamente dessa habilidade.

Os três homens saíram do caminhão. Kan Dahn levava no bolso um par de sapatos de lona e carregava um pé-de-cabra caprichosamente cinzelado, porém pesado. Bruno levava uma lanterna portátil, três tubos amarrados pendurados no ombro e um material plástico muito especial, embrulhado, no bolso; Manuelo, além de uma coleção de facas de atirar, carregava um par de alicates de aparência bastante assustadora, fortemente en­volvidos em fita isolante. No caminhão Bruno deixara os explo­sivos de amatol.

Caminharam pela rua na direção a leste. De vez em quando a lua brilhava, de modo que qualquer um provido de olhos po­deria vê-los ali, mas mesmo assim não tinham escolha senão pros­seguir tão discretamente quanto possível - embora fosse pouco provável que qualquer um, que olhasse de perto achasse discretos o pé-de-cabra, os alicates e as estacas. Quando atingiram a usina geradora, a duzentos metros do flanco da prisão de Lubylan, a lua tornara a se esconder atrás de alguma nuvem esfiapada. Não havia qualquer sinal de guardas e a única medida de proteção parecia ser uma pesada rede de aço presa em tubos ocos do mesmo material, com três metros de altura, com um trilho atravessado no topo e outro à altura de um metro e meio. O trilho superior estava ricamente decorado por um arame farpado bastante de­sagradável.

Bruno tomou o pé-de-cabra de Kan Dahn, firmou bem uma das extremidades ao solo e deixou a outra cair contra a rede, ao mesmo tempo recuando prudentemente dois passos. Não houve nenhuma demonstração pirotécnica, nenhum fulgor ofuscante de arcos, fagulhas ou clarões. A cerca não era eletrificada, nem Bruno pensara por um momento sequer que o fosse - só um louco poria dois mil volts numa cerca ao nível do solo, mas ele não podia ter certeza de que não estava lidando com loucos.

Manuelo começou a se esgueirar pela cerca. Bruno tirou sua caneta vermelha e apertou o último botão pensativamente. Kan Dahn olhou-o com curiosidade.

- Não esperou um pouco demais para preparar seu testa­mento?

- É um brinquedo que o Dr. Harper me deu. Dispara pro­jéteis anestésicos.

Um por um, curvaram-se e passaram pelo buraco aberto por Manuelo. Após cinco passos, descobriram que a falta de guardas humanos era compensada pela presença de guardas caninos, sob a forma de três Dobermann Pinschers que saíram da penumbra em direção a eles. A faca de Manuelo esvoaçou num arremesso ardiloso e o cão que saltava morreu em pleno ar, com a lâmina enterrada até o cabo em sua garganta. O que pulara na gar­ganta de Kan Dahn viu-se preso entre dois braços de ferro, um sob a mandíbula inferior e o outro atrás das orelhas com uma simples torção, as vértebras se romperam. O terceiro cachorro chegou a derrubar Bruno, mas não antes que o dardo de aço se alojasse em seu peito. O animal caiu pesadamente, rolou duas vezes e ficou imóvel.

Avançaram em direção à usina geradora propriamente dita, cuja porta metálica estava trancada. Bruno encostou o ouvido à porta e afastou-se bruscamente: as turbinas e geradores em alta velocidade produziam um som lamuriento que era um aten­tado aos tímpanos, mesmo do lado de fora. À esquerda da porta e a cerca de três metros de altura, havia uma janela com grade. Bruno olhou de relance para Kan Dahn e este se inclinou, se­gurou-o pelos tornozelos, erguendo-o sem esforço: era como su­bir de elevador.

Não havia ninguém na casa de força, com exceção de um homem sentado num compartimento de controle com paredes de vidro. Ele usava o que Bruno a princípio julgou ser um par de fones, mas que de fato era um protetor de ouvidos, contra o barulho. Bruno retornou à terra.

- A porta, por favor, Kan Dahn. Não, aí não. Do lado da maçaneta.

- Os projetistas sempre cometem o mesmo erro. As dobra­diças nunca são tão resistentes quanto as trancas de segurança.

Ele inseriu a extremidade aguda do pé-de-cabra entre a porta e a parede e em dez segundos aquela se desprendia das dobradiças. Kan Dahn, um pouco envergonhado, contemplou o pé-de-cabra torto e o endireitou como se fosse de massa.

Sem que tentassem esconder seus movimentos, não levaram mais de vinte segundos para atingir a porta do compartimento de controle. O engenheiro de serviço, de frente para fileiras de alavancas e medidores, achava-se a menos de três metros de dis­tância, mas totalmente ignorante da presença dos três. Bruno experimentou a porta, também estava trancada, e olhou para os companheiros, que assentiram com a cabeça. Com um golpe de foice de seu pé-de-cabra, Kan Dahn removeu quase todo o vidro da porta. Nem mesmo o engenheiro de ouvidos tapados poderia deixar de ouvir o barulho resultante, pois quando Kan Dahn destroçava uma superfície de vidro, fazia-o com brio. O engenheiro rodou em sua cadeira giratória e não teve mais que uma breve fração de segundo para registrar a impressão de três silhuetas imprecisas do lado de fora do compartimento, antes que o cabo da faca de Manuelo lhe atingisse a testa.

Bruno enfiou a mão pelo buraco e girou a chave. Entraram e, enquanto Kan Dahn e Manuelo imobilizavam o infeliz enge­nheiro, Bruno percorria com a vista os rótulos metálicos dos con­troles. Escolheu um deles e baixou a alavanca em noventa graus.

- Tem certeza? - perguntou Kan Dahn.

- Claro. Está marcado.

- E se estiver enganado?

- Virarei churrasco.

Bruno sentou-se na cadeira que o engenheiro desocupara, tirou os sapatos e os substituiu pelo calçado de lona que usava no arame alto. Entregou os sapatos a Kan Dahn, que perguntou:

- Você tem alguma máscara, um capuz?

Bruno olhou para seu terno vermelho e marrom e para as meias cor de mostarda.

- Se eu botar uma máscara não serei reconhecido?

- Você tem razão.

- Não me importa ser ou não ser reconhecido. Não pre­tendo ficar por aqui quando essa barra terminar. O que importa é não reconhecerem você, Manuelo e Roebuck.

- O espetáculo deve continuar?

Bruno balançou a cabeça e foi o primeiro a sair. Curioso para verificar a duração do efeito dos dardos anestésicos, incli­nou-se, examinou o Dobermann e depois se levantou lentamente. Ao que parecia, o sistema nervoso dos Dobermanns é diferente do dos homens; o cachorro estava absolutamente morto.

Dentro do complexo, havia vários pilares com cerca de vinte metros de altura cada um. Bruno dirigiu-se ao que ficava mais a oeste e pôs-se a escalá-lo, enquanto Kan Dahn e Manuelo saíam pelo buraco na cerca.

O pilar não constituiu problema. Por mais escura que esti­vesse a noite - pois a lua ainda se encontrava atrás das nuvens - Bruno escalou-o com a mesma facilidade com que uma pessoa qualquer sobe um lance de escadas à luz do dia. Atingindo a trave transversal no topo, tirou do ombro os tubos amarrados, desfez as ataduras, que guardou no bolso, e emendou solidamente as três peças: estava pronta sua vara de equilíbrio. Inclinou-se e esticou-se para tocar, logo depois do protetor isolante, o pesado fio de aço que partia em ângulo em direção à esquina sudeste de Lubylan. Hesitou por um momento, para concluir fatalisticamente que não havia propósito algum em hesitar, pois se tivesse desligado a chave errada, então pelo menos jamais ficaria sa­bendo coisa alguma a respeito. Abaixou-se e pegou o fio.

Desligara a alavanca certa. O fio estava frio como gelo mas, acima de tudo, não estava coberto de gelo. Ventava um pouco, porém um vento fraco e vacilante. O frio estava quase parali­sante, mas aquilo não era fator digno de consideração: quando tivesse atravessado aqueles intermináveis trezentos metros, ele sabia que estaria coberto de suor. Não esperou mais. Equilibran­do sua vara, passou oscilando pelo arame protetor isolante e pi­sou no fio elétrico.

 

Roebuck desceu alguns passos em direção aos trilhos, espi­chou o pescoço e espiou cautelosamente para um e outro lado; não vendo ninguém, desceu os degraus restantes e afastou-se do trem num andar contido. Não que não tivesse direito de sair do trem sempre que quisesse, nem mesmo que não pudesse ser visto com aquilo que estava carregando: duas sacolas de lona presas entre si pelas pontas e penduradas no ombro - pois estas eram a embalagem que costumava usar para transportar suas cordas e os grampos de metal que empregava como alvos em seu número. O que poderia ter despertado certo grau de curiosidade era o fato de que saíra do trem a quatro vagões de distância de seu alojamento.

Tomou o pequeno Skoda em que viera e o estacionou cem metros antes de Lubylan. Caminhou apressadamente, até atingir um pequeno beco, no qual entrou; atravessou o portão que ha­via numa cerca, deu um pulo, puxou para baixo a mola de uma saída de incêndio e subiu rapidamente, até se içar para o telhado. Atravessar até o outro lado do telhado era como abrir caminho através da selva amazônica. Em sua total ignorância dos assun­tos horticulturais da Europa Central, Roebuck presumiu que o paisagista em questão tivesse alguma distante ascendência in­glesa; o mesmo tivera o cuidado de plantar, em barricas ou tinas, arbustos, moitas, coníferas de seis metros de altura e, incrivel­mente, duas cercas vivas de alfena, em diagonal, imaculadamente aparadas, e uma lateral, ao longo da borda do telhado que dava para a rua principal. Mesmo nessa sociedade igualitária, não se negava a paixão pela privacidade. Era este, na verdade, o mesmo jardim suspenso que o Dr. Harper notara na primeira viagem que haviam feito entre a estação e o Palácio de Inverno.

Roebuck, o último dos moicanos dos tempos modernos, abriu um espaço na cerca lateral e espiou ao redor. Do outro lado da rua, a mais ou menos cinco metros da elevação onde ele se en­contrava, via-se a torre de observação do ângulo noroeste de Lubylan. Pelo tamanho e a forma, parecia-se muito com uma cabina telefônica, de metal ou madeira, até a altura de um metro e meio e de vidro daí para cima. Era evidente que apenas um homem a guarnecia, pois havia uma luz acesa no interior da torre, permitindo que Roebuck visse nitidamente o ocupante so­litário. De repente, um holofote de controle remoto, instalado no alto da torre, criou vida, lançando dardos de luz ao longo do perímetro oeste do telhado, mas em nível mais baixo, de modo a não ofuscar a vista do guarda na torre noroeste. A luz se apa­gou, depois tornou a brilhar, desta vez percorrendo o perímetro sul e tornou a se extinguir. O guarda não parecia estar com a menor pressa de apagar sua luz. Acendeu um cigarro e levou aos lábios o que parecia ser um cantil. Roebuck desejou que a luz continuasse acesa, pois enquanto isso a visão noturna do guar­da permaneceria praticamente inútil.

Os espigões encurvados da cerca eletrificada ficavam ao mes­mo nível da base da torre de observação. Levando-se em conta o aumento da altura na parte em ângulo, a distância era de uns quinze metros. Roebuck recuou, afastando-se da cerca, abençoan­do a pessoa cujo senso de privaticidade motivara tal expansão horticultural; tirou do ombro o rolo de corda e passou umas oito laçadas para a mão direita. A extremidade livre da corda já fora transformada em nó corrediço. A própria corda, mais fina que a comumente usada para pendurar roupa, parecia ótima para amarrar um embrulho, mas não mais do que isso. Na rea­lidade, era feita de uma mistura de nylon com aço, capaz de resistir até à tensão de mil e quatrocentas libras.

Ele afastou a cerca novamente e espiou para baixo. Na es­quina da rua principal com a viela sul, Kan Dahn e Manuelo, de pé, pareciam conversar despreocupadamente. Não havia sinal de vida na rua principal, exceto os carros que passavam e que não constituíam problema, pois nem um motorista entre mil ja­mais olha para cima à noite.

Roebuck pôs-se de pé no parapeito, girou a corda uma vez em torno da cabeça e no segundo movimento deixou-a ir. Como se tal coisa fosse infantilmente simples de tão inevitável, a corda meneou para fora e para cima e a laçada instalou-se precisamente nos dois espigões que ele escolhera. Roebuck não tentou apertar o nó corrediço: poderia facilmente fazer a corda escapar dos es­pigões, que se curvavam para fora. Reuniu tudo que restava da corda e a atirou para o outro lado da rua, de modo que caísse exatamente aos pés de Kan Dahn e Manuelo, que pegaram a corda e desapareceram pela rua sul: a corda retesou-se, acomodando-se na base dos espigões.

 

Bruno superou sem muita dificuldade a primeira metade do percurso pelo fio elétrico em direção a Lubylan. A segunda parte pôs à prova todos os seus poderes, sua habilidade inata, suas reações e seu soberbo sentido de equilíbrio. Não avaliara que o fio tivesse tal curvatura ou que fosse preciso enfrentar uma su­bida tão íngreme: nem levara em conta as lufadas de vento cada vez mais freqüentes. Para falar a verdade, o vento era bastante fraco, mas para um homem em situação tão precária, mesmo um aumento brusco de cinco milhas por hora na velocidade do vento poderia ter sido mortal. Mostrava-se suficientemente forte para fazer o fio oscilar da maneira mais desnorteante. Se houvesse a menor camada de gelo envolvendo o fio, Bruno jamais teria con­seguido. Mas conseguiu.

O fio estava preso por grampos a um gigantesco isolante se­guro por dois arames de suporte, por sua vez fixos à parede. Para além do isolante, o fio subia em laçadas até outro isolante, na base de uma pesada chave de controle, coberta por uma prote­ção de plástico. Desligar aquela alavanca anularia o perigo que poderia haver se alguém descobrisse a invasão da casa de força e ligasse o circuito que Bruno quebrara. Mas aquela chave du­plamente denteada, muito provavelmente mergulhada num banho de óleo, seria capaz de fazer barulho suficiente para alertar o guarda da torre de observação sudeste, a menos de três metros de distância. Bruno resolveu esquecer o assunto, por enquanto.

Desatarraxou a vara de equilíbrio, encaixou os pedaços en­tre si e pendurou num dos arames de sustentação, embora não fosse provável que tornasse a usá-la. Transpor a cerca daqueles espigões encurvados para fora não constituiria problema. Ficava apenas a um metro de sua cabeça e tudo que tinha a fazer era se içar até o topo da chave e quase que literalmente dar um passo. Mas, ao mesmo tempo, esse era o momento de maior pe­rigo - pela primeira vez estaria completamente exposto à vista.

Jogou uma corda sobre um dos espigões, ergueu-se até ficar de pé na chave, com a cabeça a pelo menos um metro e meio do alto da cerca de espigões. O grande muro, achatado em cima, tinha no mínimo quinze centímetros de largura. Qualquer criança de cinco anos, que não sofresse de vertigens, poderia perambular à vontade pelo perímetro superior - mas ao mesmo tempo esta­ria à mercê das repetidas e irregulares espiadelas dos holofotes da torre pelos muros circundantes e isso seria suicídio.

E exatamente no instante em que Bruno estava prestes a transpor os espigões encurvados da cerca de aço, um dos holo­fotes criou vida. Vinha da torre nordeste e o facho iluminou a extensão do muro circundante leste, no qual Bruno ia subindo. Seu ato reflexo foi instantâneo: encolheu-se abaixo do nível do muro, segurando a corda, a fim de não tombar para fora. Pare­cia muito pouco provável que o guarda notasse um objeto tão pequeno como a minúscula laçada da corda em torno do espigão que a sustentava, e foi o que de fato se verificou. O facho do holofote afastou-se noventa graus, percorreu rapidamente o muro norte e depois se apagou. Cinco segundos mais tarde, Bruno se encontrava no topo do muro.

Do lado oposto, dois metros abaixo, via-se o telhado do bloco de detenção. A entrada para a torre de observação tinha de ser por ali. Bruno desceu para o telhado e, acocorado, prosseguiu em direção à base da torre.

Um lance de oito degraus de madeira, em ângulo, conduzia à plataforma da torre. No momento em que Bruno dava uma olhada para cima, brilhou um fósforo no interior da torre e ele viu de relance uma figura de chapéu de pele e gola levantada acendendo um cigarro. Bruno desatarraxou a tampa da caneta de gás e subiu silenciosamente a escada, colocando a mão es­querda na porta. Esperou até que o guarda tragasse com força o cigarro, abriu a porta sem excessiva pressa, apontou a caneta para o clarão vermelho e pressionou o botão.

Cinco minutos mais tarde, chegava à torre de observação nordeste, via telhado do bloco de detenção. Sua permanência lá não durou mais que a breve estada na primeira torre. Deixando esse guarda tão imobilizado e silencioso quanto o primeiro, vol­tou ao longo do muro leste, desceu até a chave de controle e pressionou suavemente a alavanca. O traque abafado não po­deria ser ouvido a mais de uns poucos passos de distância, pois, como ele imaginara, a chave estava imersa em óleo. Bruno vol­tou à torre sudeste, espiou por cima do muro sul e acendeu sua lanterna três vezes em rápida sucessão, para depois deixá-la acesa. Da viela sul abaixo, veio o clarão de uma resposta.

Bruno apagou a lanterna, tirou de um amplo bolso uma con­siderável extensão de corda com um peso na ponta e baixou-a, sentiu a pressão na extremidade, seguida por um leve puxão e imediatamente se pôs a enrolar a corda. Dentro de muito pouco tempo mesmo, tinha entre as mãos a outra ponta da corda que Roebuck conseguira prender aos espigões da esquina sudoeste de Lubylan. Retesou-a, mas não excessivamente - o âmago de aço da corda de nylon garantia que esta cederia um mínimo - e a amarrou firmemente. Tinha agora uma corda ao longo de todo o lado externo do muro sul, a um ou dois metros abaixo da base dos espigões. Para um aramista, especialista em grandes alturas, estava tão bom quanto um viaduto público.

Até a torre sudoeste era uma viagem de trinta metros e ele a fez em noventa segundos. Com a corda para puxar e a base dos espigões encurvados como apoio, aquilo foi para Bruno uma travessia ridiculamente fácil. Uma vez, mas só por um segundo, teve de se abaixar quando o holofote da torre para a qual se encaminhava atravessou o muro sul, mas não correu o perigo de ser descoberto. E menos de um minuto após a chegada de Bruno a seu destino, um terceiro guarda veio a perder todo e qualquer interesse pelo futuro imediato.

Bruno apontou a lanterna para baixo e acendeu-a quatro ve­zes, para informar aos que esperavam embaixo que ele chegara, mas que eles deveriam esperar. Ainda havia o último guarda para ser despachado, o da torre noroeste. Podia perfeitamente ser o caso de que os guardas simplesmente giravam seus holofotes quando bem entendiam, ou poderia haver algum plano combi­nado, por mais irregular que fosse. De qualquer maneira, não podia se arriscar a despertar a menor suspeita.

Esperou até que o guarda restante desse algumas passadas negligentes com seu holofote e então deixou-se cair para o te­lhado do edifício de pesquisa - que, como a réplica a leste, ficava a um metro e meio abaixo do nível do muro - atravessando-o silenciosamente. Era evidente que o guarda não suspei­tara de nada. Bruno retornou à torre de observação do sudoeste, acendeu duas vezes a lanterna e tornou a abaixar sua corda com o peso na ponta. Um minuto mais tarde, amarrava uma corda cheia de nós à base dos espigões. Tornou a acender a lanterna uma vez, esperou alguns segundos e deu um puxão experimental na corda. Estava completamente retesada. O primeiro de seus companheiros estava subindo. Bruno espiou para baixo, tentando identificá-lo, mas a penumbra era profunda demais para permitir uma identificação positiva: pela corpulência da sombria figura parecia tratar-se de Kan Dahn.

Bruno dedicou-se a examinar o telhado com mais atenção.

Tinha de haver um alçapão de acesso para os guardas das torres, pois não havia nenhum meio de acesso vertical nas pró­prias torres ou suas vizinhanças. Quase imediatamente Bruno o localizou, devido ao clarão de uma luz saindo de uma escotilha parcialmente coberta, próxima da borda interna do telhado, a meio caminho entre os muros norte e sul. A tampa do alçapão, que abria de lado, fazia uma curva de noventa graus, quer para impedir que a luz fosse vista de cima, o que não parecia pro­vável, quer para proteger o alçapão contra chuva ou neve, o que era mais plausível. Bruno deu uma espiada cuidadosa por trás da tampa. A luz provinha de um quadrado de vidro forte, gra­deado, instalado numa porta-alçapão com dobradiças. Olhando para baixo, Bruno pôde ver apenas uma parte do triste aposento que lá havia, mas foi o bastante. Havia quatro guardas ali, com­pletamente vestidos, três deles deitados e aparentemente adorme­cidos em camas de armar de lona, enquanto o quarto, de costas para Bruno, e diante de uma porta aberta, distraía-se com um solitário jogo de cartas. Uma escada de aço, vertical, ia do chão do aposento até o lado do alçapão.

Cautelosamente, Bruno experimentou a escotilha, mas a mes­ma estava trancada, provavelmente aferrolhada por baixo. Talvez, como dissera Harper, o lugar não fosse tão guardado quanto Fort Knox, mas não restava dúvida de que eles tomavam todas as precauções contra as mais improváveis ocorrências. Bruno afas­tou-se e espiou para o pátio embaixo, por sobre um parapeito de pouca altura. Não havia sinais imediatos dos cães de guarda men­cionados por Harper, mas isso não excluía a possibilidade de es­tarem emboscados numa das várias arcadas que se podiam ver dali, embora não parecesse provável pois os Dobermanns são rondadores inveterados. E não havia movimento ou sinal de vida na passagem envidraçada elevada, que ligava os dois edifícios, ao nível do quinto andar.

Quando Bruno retornou à torre sudoeste, Kan Dahn já es­tava lá. A escalada de trinta metros nem chegara a alterar o ritmo de sua respiração.

- Como foi a travessia? - perguntou ele.

- O grande artista sempre se aposenta no auge. Jamais po­derei superar aquilo, de modo que já me aposentei.

- E ninguém viu. Enfim, a vida é feita de pequenas iro­nias. Quer dizer, se tivéssemos público, poderíamos ter conse­guido uns vinte mil esta noite. - Não parecia nem um pouco surpreendido com a decisão de Bruno. - E os guardas das torres?

- Adormecidos.

- Todos? - Bruno assentiu. - Quer dizer que não há pressa?

- Também não há tempo para desperdiçar. Não sei quando é a rendição da guarda.

- Não é provável que seja às sete da noite.

- Tem razão. Mas não chegamos até aqui para correr nem o mais remoto dos riscos.

Ele se virou quando Roebuck primeiro, e depois Manuelo, apareceram em rápida sucessão. Ao contrário de Kan Dahn, pa­reciam ter alguma dificuldade para respirar. Roebuck com a sacola de lona dupla ainda pendurada no ombro, falou:

- Graças a Deus teremos de descer e não subir aquela cor­da na hora de sair.

- Não sairemos por aí.

- Não? - Roebuck empalideceu por baixo do bronzeado. - Você quer dizer que existe outra saída? Não estou certo de que vou apreciá-la.

Bruno falou, em tom reconfortante:

- Um passeio dominical, nada mais. Agora, o acesso. Só há uma entrada pelo telhado, e está trancada.

- Uma porta? - perguntou Kan Dahn.

- Um alçapão.

Kan Dahn brandiu seu pé-de-cabra:

- Poff! Acabou-se o alçapão!

- Há guardas no aposento embaixo. Pelo menos um deles está bem acordado.

Ele indicou o caminho até a metade do muro de contorno oeste, ajoelhou-se, segurou num dos espigões encurvados e se inclinou em direção à rua principal. Os outros o imitaram.

- Conheço a geografia deste lugar. Aquela primeira janela embaixo... Quero entrar por ela.

- Aquela primeira janela embaixo - disse Roebuck - está protegida por grandes e grossas barras de ferro.

- Deixará de estar em poucos minutos - Bruno, ajoelhado, endireitou o corpo e tirou do bolso o pacote plástico, que desen­rolou deixando à mostra dois pequenos embrulhos de polietileno.

- O supremo persuasor de barras de ferro. Chega quase a trans­formá-las em massa.

- Que espécie de truque é esse?

- Não é nenhum truque. Pode pedir desculpas pela sua pre­guiça. Todo mágico profissional digno deste nome conhece isto. Pode-se amolecer e dobrar qualquer metal untando-o com este negócio. É estranho, mas tomando algum cuidado não afetará a pele. O plástico que está neste polietileno contém um ácido que penetra nos interstícios entre as moléculas do metal e o amolece. Há um mágico que diz que, com suficiente tempo e material, ele seria capaz de dobrar um tanque Sherman. Aqui nós só temos de dobrar duas barras.

- Quanto tempo demora para fazer efeito?

- Acho que cinco minutos serão o suficiente. Não tenho certeza.

- E os alarmas contra ladrões? - perguntou Manuelo.

- Posso dar um jeito neles.

Bruno atou um nó de laço duplo, enfiou nele as pernas até o alto das coxas, prendeu uma laçada na cintura e desceu por cima dos espigões encurvados. Baixou até onde permitiu o com­primento de seus braços, enquanto Kan Dahn enrolava a corda num espigão; depois, largou os espigões, agarrou a corda e Kan Dahn o baixou até o fim.

Com a corda em volta das coxas e da cintura, os pés no parapeito da janela e uma das mãos segurando uma barra de ferro, Bruno se achava tão seguro quanto um homem numa igreja. Havia quatro barras na janela, os dois pares afastados cerca de oito polegadas. Ele tirou do bolso os dois cilindros de mistura plástica, abriu-os até o meio e, cuidando para não tirar a cobertura do polietileno, enrolou o plástico no meio das duas barras centrais, apertando e alisando o polietileno em volta de cada uma por sua vez, de modo que a mistura ficou de novo com­pletamente envolvida. Depois, subiu pela corda até a cerca de metal: Kan Dahn se inclinou, segurou-o pelas axilas e o ergueu sem dificuldade por sobre os perigosos espigões.

- Cinco minutos - disse ele. - Manuelo, você vai descer com Kan Dahn e eu. Roebuck ficará aqui. E trate de vigiar aquela sua sacola de lona pois é a última coisa que podemos nos dar ao luxo de perder a esta altura dos acontecimentos. Pode-me dar o alicate, por favor, Manuelo?

Kan Dahn meteu-se num nó de laço duplo, prendeu uma laçada à cintura, amarrou a corda ao redor de três espigões, cer­tamente uma precaução inteligente da parte de um homem tão pesado, e fez-se baixar até a borda da janela. Agarrou cada uma das barras centrais com um de seus pulsos avantajados e se pôs a afastá-las. A disputa foi rápida e desequilibrada. As barras ver­garam como feitas de alguma massa de qualidade inferior, mas Kan Dahn não se contentou em fazer um rombo: empurrou um pouco mais as barras, até que ambas se soltaram dos engastes e ele as colocou em cima do telhado.

Bruno veio se juntar a Kan Dahn por meio de outra corda. Chegando à janela, usou a lanterna para espiar pelo vidro. Pare­cia tratar-se de um escritório perfeitamente inofensivo, modesta­mente mobiliado com arquivos, mesas e cadeiras estofadas, tudo metálico. Era evidente que não dava a menor impressão de perigo.

Enquanto Kan Dahn segurava a lanterna, Bruno pegou um rolo de papel pardo, desenrolou-o e pressionou um dos lados con­tra uma das vidraças. O papel aderiu ao vidro. Poucos segundos depois, Bruno deu um golpe firme com o punho no centro do painel de vidro, que se soltou e caiu dentro do aposento, quase sem nenhum barulho. Bruno tomou a lanterna de Kan Dahn e, segurando numa só mão a lanterna e o alicate, enfiou a cabeça e um braço pelo buraco que abrira. Localizou imediatamente os fios do alarma, que não estavam disfarçados, cortou-os, abriu o fecho da janela, que ficava mais acima e levantou a parte infe­rior da janela. Em dez segundos, tanto ele quanto Kan Dahn encontravam-se dentro do aposento e em mais dez segundos Ma­nuelo se reuniu a eles, trazendo o pé-de-cabra de Kan Dahn.

A porta do escritório estava destrancada e o corredor adian­te, deserto. Os três o percorreram até chegar a uma porta aberta à esquerda. Bruno fez sinal para que Manuelo se adiantasse e este obedeceu: segurando uma faca pela lâmina, enfiou caute­losamente a ponta do cabo no umbral da porta. Quase no mesmo instante, ouviram-se batidas discretas no vidro da tampa do alça­pão acima, o que bastou para alertar o soldado que jogava cartas, mas não afetou os três que dormiam. O guarda à mesa, levantou os olhos para o alto, intrigado e então tudo terminou. O cabo da faca de Manuelo atingiu-o no ouvido e Kan Dahn o aparou antes que tivesse tempo de chegar ao chão. Bruno apanhou uma das várias armas empilhadas numa rampa e apontou-a para os outros três. A última coisa que desejava ou pretendia era usá-la, mas os três não o adivinhariam e nenhum homem recém-despertado iria discutir com uma pistola automática Schmeisser. Mas eles continuaram dormindo profundamente, mesmo quando Kan Dahn destrancou a porta do alçapão para dar passagem a Roe­buck e sua sacola de lona. Bruno tirou a caneta de gás e se apro­ximou dos três guardas adormecidos. Roebuck o seguiu, armado de considerável quantidade de corda.

Deixaram lá os quatro guardas, firmemente amarrados e amordaçados, três deles ainda mais profundamente adormecidos do que poucos minutos antes. Aferrolharam a porta do alçapão, precaução provavelmente desnecessária, trancaram o aposento dos guardas após saírem e tiraram a chave. Bruno falou:

- Até agora, tudo bem - ergueu a pistola Schmeisser que tomara emprestada na sala dos guardas. - Vamos visitar Van Diemen.

Kan Dahn estacou no corredor, com ar espantado:

- Van Diemen? Por que temos de cuidar dele primeiro - e por que cuidar dele? Você sabe onde ficam os escritórios e laboratórios. Por que não vamos direto para lá, descobrimos os papéis que você quer... Tem mesmo certeza de que reconhe­cerá aqueles...

- Vou reconhecê-los.

- E então levantamos acampamento e sumimos na noite. Como os árabes, sabe. Um trabalho de classe, agradável, enge­nhoso e silencioso. É assim que eu gosto.

Bruno pareceu incrédulo:

- O que você gostaria mesmo era de rachar todos os crâ­nios de Lubylan. Posso lhe dar quatro razões para não fazermos a coisa a seu modo e não discuta. A mudança da guarda pode ocorrer a qualquer momento. O tempo não está do nosso lado.

- A mudança da guarda está dormindo lindamente lá na sala.

- Pode ser que não sejam aqueles. Pode ser que tenham de se apresentar em algum quartel-general na hora da mudança de guarda. Pode ser que algum oficial faça uma inspeção de rotina. Não sei. Primeira razão: pode ser que o que queremos esteja nos aposentos particulares de Van Diemen. Segunda razão: podemos conseguir persuadi-lo a nos dizer onde estão os papéis. Terceira razão: se os arquivos dele estiverem trancados - e seria de espantar que não estivessem - podemos fazer um barulhão ao abri-los e os aposentos dele ficam bem ao lado. Mas a quarta razão é a mais importante: você devia ter imaginado. Vou levá-lo comigo para os Estados Unidos.

- Levá-lo com você... - Roebuck ficou perplexo. - Isso tudo foi demais para você. É a sua mente.

- É? Que adianta afinal levar os papéis e deixá-lo aqui? Ele é o único homem que conhece aquelas malditas fórmulas ou lá o que sejam - e só precisaria sentar e escrevê-las de novo.

- Não passou pela cabeça de um bocado de gente também, parece. Muito estranho, não é? De qualquer maneira, estou certo de que o Tio Sam sempre poderá arranjar um emprego adequado e agradável para ele.

- Tal como supervisionar o desenvolvimento desta abomi­nável antimatéria?

- Pelo que sei sobre Van Diemen, ele preferiria morrer. É um renegado, você sabe. Deve ter havido razões políticas e ideológicas tremendamente poderosas para ele fugir da Alemanha Ocidental e vir para cá. Ele jamais cooperaria.

- Mas não se pode tratar um homem assim - disse Kan Dahn. - Seqüestro é crime em qualquer país.

- Verdade. Mas é melhor que a morte, acho eu. Que você quer que eu faça? Obrigá-lo a jurar sobre a Bíblia, ou sobre qual­quer compêndio marxista que tivermos à mão, que jamais tor­nará a reproduzir aquelas fórmulas? Você sabe muito bem que ele jamais concordaria com isso. Ou simplesmente deixá-lo em paz para escrever suas memórias contando tudo sobre a fabri­cação dessa arma infernal?

O silêncio foi bem eloqüente.

- Vocês não me deixaram muitas opções, não é mesmo? Então, que queriam que eu fizesse? Que o executasse em nome do santo patriotismo?

Não houve resposta imediata porque Bruno os deixara sem argumentos para responder. Finalmente, Kan Dahn falou:

- Você tem de levá-lo.

 

A porta de Van Diemen estava trancada, mas Kan Dahn se apoiou nela e logo deixou de estar. Esfacelou-se contra as dobradiças e Bruno foi o primeiro a entrar, com a Schmeisser erguida - ocorrera-lhe, felizmente, a tempo, que sem alguma arma ameaçadora reconhecível, estavam em nítida desvantagem. Qualquer guarda que passasse, vendo-os aparentemente desarma­dos, seria fortemente tentado a lançar mão de qualquer arma em sua posse.

O homem, atônito, apoiado num cotovelo e esfregando os olhos para afastar o sono, tinha um rosto fino e aristocrático, cabelos grisalhos, bigode e barba do mesmo tom: parecia o oposto da concepção popular do cientista louco. Seus olhos incrédulos passaram dos intrusos para uma campainha na mesa de cabeceira.

- Toque nisso e será um homem morto. - A voz de Bruno era extremamente convincente e Van Diemen se convenceu. Roe­buck adiantou-se para o cordão da campainha e cortou com o alicate o flexível material.

- Quem são vocês? Que querem? - a voz de Van Diemen estava firme, sem demonstrar medo: ele tinha a aparência de um homem que sofrera demais para ainda ter medo de alguma coisa.

- Queremos você. Queremos os planos de seu invento anti-gravidade.

- Compreendo. Podem-me ter a qualquer momento, vivo ou morto. Para obter os planos, terão de me matar primeiro. De qualquer maneira, eles não estão aqui.

- Você falou as duas últimas frases na ordem errada. Amordacem-no e amarrem-lhe as mãos atrás das costas. Depois procuraremos, papéis, chaves, talvez uma única chave.

 

A busca, que durou cerca de 10 minutos e deixou os apo­sentos de Van Diemen numa confusão terrível, não resultou em coisa alguma. Bruno ficou subitamente indeciso. Pelo que sabia, talvez o tempo estivesse se esvaindo muito depressa.

- Tentemos as roupas dele.

Experimentaram as roupas, novamente sem encontrar nada. Bruno se aproximou da figura amarrada e amordaçada sentada na cama, olhou-o por um momento e então se inclinou, erguen­do delicadamente a corrente de ouro que lhe pendia do pescoço. Nada de crucifixos para Van Diemen, nem Estrela de David, mas sim algo que provavelmente era mais precioso para ele do que aqueles símbolos poderiam ter sido para um católico ou um ju­deu: da ponta da corrente pendia uma chave de bronze, brilhante e complicadamente talhada.

 

Todas as paredes do escritório principal de Van Diemen es­tavam cobertas por arquivos de metal, quatorze ao todo, cada um com quatro gavetas corrediças. Cinqüenta e seis fechaduras. Roebuck estava, sem sucesso, experimentando a trigésima. Cada par de olhos presente no escritório achava-se fixo nele, menos os de Bruno, que não abandonava o rosto de Van Diemen, inex­pressivo durante o tempo todo. De repente, viu-se um tique no canto de sua boca.

- Aquela - disse Bruno.

E era aquela. A chave girou facilmente e Roebuck puxou a gaveta para fora. Van Diemen tentou se arremessar para frente, o que era uma reação compreensível, embora inútil, pois um dos maciços braços de Kan Dahn encontrava-se em torno dele. Bruno se aproximou da gaveta e começou a folhear rapidamente as pas­tas. Pegou um monte de papéis, conferiu as demais pastas, tornou a conferi-las e fechou a gaveta.

- Sim? - perguntou Roebuck.

- Sim. - Bruno enfiou os papéis no fundo do bolso do seu espalhafatoso terno.

- Parece meio anticlímax - falou Roebuck em tom quei­xoso.

- Eu não me preocuparia com isso - disse Bruno anima­doramente. - Pode ser que o clímax ainda esteja por vir.

Desceram para o oitavo andar. Van Diemen estava amor­daçado e tinha as mãos amarradas às costas, pois ali ficavam os aposentos do pessoal da prisão e era muito provável que ele qui­sesse atrair atenção para a presença dos invasores. Não havia guardas dormindo ou acordados, nem existia razão para tal: os guardas podiam ser dispensados, mas não os papéis de Van Die­men.

Bruno rumou diretamente para a porta ao pé da escada. Não estava trancada, assim como os arquivos lá dentro e também nesse caso não havia razão para tal. Bruno se pôs a abrir as ga­vetas dos arquivos em rápida sucessão, tirando pastas, folheando-as depressa e livrando-se delas uma a uma pelo simples processo de jogá-las no chão.

Roebuck o observava espantado, e comentou:

- Agora mesmo você estava com uma pressa louca de sair. Afinal, que lugar é este?

Bruno olhou-o de relance:

- Esqueceu o bilhete que você me passou?

- Ah!

- É, ali! "4.30. Entrada oeste. Sem perguntas. Minha vida depende disso". É aqui que são guardados os cadastros da prisão.

Bruno não forneceu nenhuma explicação a mais. De súbito, pareceu encontrar o que queria, um diagrama esquemático alta­mente detalhado, com filas de nomes impressos num dos lados. Ele o examinou rapidamente balançando a cabeça com aparente satisfação, jogou-o ao chão e se virou.

- Estamos dando uma de mentalista outra vez? - disse Roebuck.

- Mais ou menos.

Evitando o elevador, desceram a pé até o quinto andar e atravessaram para o bloco de detenção pela passagem envidra­çada. Tal coisa envolvia certa dose de risco, porém pequena: as únicas pessoas que se poderia esperar estivessem vigiando aquele corredor transparente como um aquário eram os guardas das torres, os quais se encontravam fora de condição para vigiar coisa alguma.

Bruno fez os outros pararem quando atingiram a porta fe­chada ao fim da passagem.

- Esperem. Sei onde fica a sala dos guardas, é à esquerda, logo na esquina. O que não sei é se os guardas estarão fazendo a ronda.

- E daí? - perguntou Roebuck.

- Só há um meio de descobrir.

- Vou com você.

- Não. Ninguém o reconheceu ainda e não quero que nin­guém o faça. Não esqueça que o verdadeiro artista Roebuck está se apresentando esta noite. E Kan Dahn, e Manuelo. Sem esque­cer, é claro, Vladimir e Yoffe.

Manuelo olhou-o com ar de quase estupefação.

- Seus irmãos?

- É claro. Eles estão aqui. Para onde acha que os teriam levado?

- Mas... mas, e os pedidos de resgate?

- Cortesia da Polícia Secreta. Para que meus irmãos pos­sam se apresentar sem sofrer qualquer punição. Ninguém tem nada contra eles. Como poderiam ter? Usaram-nos como garan­tia, reféns para assegurar meu bom comportamento. E você pensa que a polícia vai confessar que os raptou e enviou os pedidos de resgate? Isso é que causaria um alvoroço internacional.

- Você joga mesmo com as cartas bem junto ao peito - disse Manuelo em tom queixoso.

- É um dos melhores meios de sobreviver.

- E como é que vai continuar sobrevivendo?

- Saindo daqui.

- Claro. Sem problemas. Basta abanar os braços e voar para longe.

- Mais ou menos. Há um certo dispositivo naquela bolsa do Roebuck. Basta que eu o maneje para que uma ventoinha esteja aqui dentro de uns vinte minutos.

- Ventoinha? Helicóptero? De onde, Santo Deus?

- De uma embarcação da Marinha americana parada a pouca distância da praia.

Não houve nenhuma resposta imediata para isso, até que Roebuck falou:

- Muito, muito junto ao peito. Isso significa que você será o único a partir?

- Maria vai comigo. A polícia tem provas, gravadas em fita, de que ela está metida nisso até as orelhas.

Os outros o contemplaram sem compreender absolutamente nada.

- Acho que esqueci de mencionar que ela é agente da CIA.

- Muito, muito, muito perto. E como pretende pegá-la? - perguntou Roebuck em tom cansado.

- Vou buscá-la no circo.

Kan Dahn balançou tristemente a cabeça:

- Totalmente, totalmente louco.

- Se não fosse, estaria aqui? - Ele comprimiu o botão superior da caneta preta, tirou a tranca de segurança da pistola automática e cautelosamente foi abrindo a porta.

 

Aquela era uma prisão igual às outras, com filas de celas nos quatro lados do pavilhão, passagens com corrimões de metro e meio de altura margeando o profundo poço central, que tinha a altura do edifício. Bruno não viu ninguém fazendo a ronda, pelo menos não ali no quinto andar. Aproximou-se do corrimão, olhou para cima e depois para os quinze metros que o separa­vam do chão de concreto embaixo. Não era possível ter certeza, mas tudo indicava que não havia qualquer patrulha, nem se po­dia ouvir qualquer som - e os guardas de prisão, sobretudo os militares, não costumam pisar de leve.

 

Via-se luz saindo de uma porta envidraçada, à esquerda de onde Bruno se encontrava, de modo que ele se encaminhou para lá sem fazer ruído e espiou. Havia dois guardas, somente dois, sentados a uma mesinha. Era evidente que não esperavam ne­nhum membro superior da oficialidade por ali, em ronda de ins­peção, pois havia uma garrafa sobre a mesa e um copo para cada um. Como sempre, estavam jogando cartas.

Bruno escancarou a porta. Os dois homens viraram a ca­beça e encararam o ameaçador focinho da Schmeisser.

- Levantem-se.

Eles obedeceram vivamente.

- Mãos na nuca. Olhos bem fechados.

Também não perderam tempo em cumprir essas ordens. Bru­no puxou a caneta de gás, comprimiu-a duas vezes e depois as­sobiou baixinho, chamando os companheiros. Enquanto estes imobilizaram os dois guardas, Bruno inspecionava as fileiras de chaves numeradas na parede da sala dos guardas.

No sétimo andar, Bruno selecionou a chave de número 713 e abriu a porta da cela. Os dois irmãos, Vladimir e Yoffe, olha­ram-no em completa incredulidade, precipitando-se em seguida para fora da cela e abraçando-o sem dizer palavra. Sorrindo, Bruno os afastou, selecionou algumas outras chaves e abriu uma após outra as celas 714, 715 e 716. De pé diante da 715, Bruno sorriu sem alegria para os irmãos, os companheiros e Van Diemen, que se haviam reunido a ele.

- Um belo gesto, não acham, trancafiar juntos todos os Wildermans?

As três portas se abriram quase simultaneamente e três pes­soas saíram para o corredor, duas com passos muito inseguros. As duas que tinham dificuldade em caminhar eram velhas, en­curvadas e grisalhas, uma outrora fora um homem, a outra, uma mulher e em seus rostos com a palidez da prisão, havia as mar­cas de sofrimento, de dor e de privações. A terceira pessoa fora um jovem, mas já não era mais, exceto na idade.

A velha encarava Bruno com olhos cansados e sem brilho.

- Bruno - exclamou ela.

- Sim, mãe.

- Eu sabia que um dia você viria.

Ele passou o braço pelos frágeis ombros:

- Desculpe ter demorado tanto.

- Comovente - disse o Dr. Harper. - Muito comovente. Bruno retirou o braço e se virou sem pressa. O Dr. Harper, usando Maria Hopkins como escudo, segurava uma pistola com silenciador, tendo ao lado o Coronel Sergius, igualmente armado e ostentando um sinistro sorriso. Atrás deles estava Ângelo, o gigante, cuja arma favorita era um enorme e mortífero porrete do tamanho de um taco de basebol.

- Não estamos interrompendo, estamos? - prosseguiu Har­per. - Quero dizer, estavam pensando em ir embora?

- Era o que tínhamos em mente.

- Largue essa automática - ordenou Sergius.

Bruno se inclinou, colocou a arma no chão e, ao se erguer, agarrou Van Diemen com rapidez de um raio e o segurou diante de si como um escudo. Com a outra mão, tirou a caneta vermelha do bolso do paletó, apertou o pino e apontou-a, por cima do ombro de Van Diemen, para o rosto de Harper. Ao ver a caneta, o medo se estampou na face deste e seu dedo se retesou no ga­tilho da arma com o silenciador.

Sergius, já sem sorrir, falou maldosamente:

- Largue isso. Posso atingir você pelo flanco.

Era uma observação correta mas, para infelicidade de Ser­gius, sua atenção se transferira para Bruno enquanto falava, num intervalo de uns dois segundos, o que constituía um tempo enor­me para quem possuísse a velocidade e a precisão de uma cobra, como era o caso de Manuelo. Sergius morreu sem perceber, com a faca enterrada no pescoço até o cabo.

Dois segundos depois, tanto Van Diemen quanto Harper es­tavam por terra, o primeiro tendo no peito a bala endereçada a Bruno, o segundo com o dardo enfiado na face. Ângelo, com o rosto deformado pela fúria, deixou escapar do fundo da garganta um som animalesco e saltou para frente, girando o enorme por­rete. Kan Dahn, adiantando-se mais depressa ainda e com sur­preendente agilidade para um homem tão corpulento, esquivou-se do golpe que caía, arrancou o porrete de Ângelo e jogou-o desde­nhosamente para o lado. A luta que se seguiu foi tão titânica quanto rápida e o som do pescoço de Ângelo ao se partir pare­ceu o de um galho apodrecido ceifado pelo machado de um lenhador.

Bruno pôs um braço em torno de Maria, que tremia vio­lentamente e o outro em torno de sua mãe, estupefata, aterrada e que nada compreendia.

- Ótimo. Termine. Acabou tudo e agora todos estão a salvo. Acho que devemos sair daqui. Você não se incomodaria, não é mesmo, pai?

O velho contemplava os homens caídos e nada respondeu. Bruno prosseguiu, sem se dirigir a ninguém em especial.

- Lamento por Van Diemen. Mas talvez seja melhor assim. Ele não teria mesmo para onde ir.

- Não teria? - perguntou Kan Dahn.

- No mundo dele, sim. Não no meu. Foi completamente amoral - não imoral - da parte dele inventar uma arma tão diabólica. Era um homem absolutamente negligente e irrespon­sável. Sei que é muito cruel dizer isso, mas o mundo passará bem sem ele.

- Por que o Dr. Harper foi me buscar? - indagou Maria. - Ele estava falando algo sobre o transmissor e as fitas terem sumido da cabina dele no trem.

- Sim. Tinha que ser algo nesse gênero. Roebuck roubou-os. Não se pode confiar nesses americanos.

- Você não confia muito em mim. Não me conta quase nada - não havia censura na voz dela, apenas falta de com­preensão. - Mas talvez possa me dizer o que acontecerá quando o Dr. Harper recobrar os sentidos.

- Os mortos não recobram os sentidos. Pelo menos não neste planeta.

- Morto? - Ela já não tinha mais emoções para expressar.

- Aqueles dardos foram embebidos num veneno mortal, certo tipo de curare refinado, acho. Era para que eu matasse al­guns dos seus próprios homens mas felizmente tive de usá-los num dos cães de guarda, que agora é um cão de guarda bem morto.

- Matar seus próprios homens?

- Teria ficado muito mal para mim, e para a América, se eu matasse alguns guardas aqui e fosse apanhado em flagrante. Seus próprios homens. Gente como Harper e Sergius não têm coração, não têm alma; matariam os próprios pais se isso con­tribuísse para seus objetivos políticos pessoais. Aliás, a morte de vocês também estava determinada. Claro que me tinham aler­tado para não usar a pistola de dardos em Van Diemen, sob o pretexto de que ele tinha o coração fraco. Bem, Deus sabe que agora o coração dele está mesmo bem fraco. Harper atraves­sou-o com uma bala. - Olhou para Maria. - Você sabe dar sinal de chamada pelo transmissor? Está ali na sacola de Roe­buck. - Ela assentiu. - Certo, dê o sinal agora. - Virando-se para Kan Dahn, Roebuck e Manuelo. - Tragam meus pais para baixo devagar, sim? Eles não podem andar depressa. Esperarei embaixo.

- Onde você vai? - perguntou Kan Dahn, desconfiado.

- A entrada é trancada automaticamente, de modo que al­guém deve ter aberto para eles e fosse quem fosse ainda deve estar por lá. Todos vocês ainda não foram reconhecidos e quero que continuem assim. - pegou a Schmeisser. - Espero não ter de usá-la.

Quando os demais se reuniram a ele no térreo, uns cinco minutos mais tarde, Bruno já fizera o que tinha de fazer. Kan Dahn inspecionou com bastante satisfação os dois guardas amar­rados, amordaçados e temporariamente inconscientes.

- Pelas minhas contas, com esses são treze pessoas que amarramos esta noite. Foi mesmo um número azarado para al­guns. Então, agora, para cima e para longe.

- Certamente. - Bruno perguntou a Maria: - Fez o con­tato?

Ela consultou o relógio.

- Vem por aí. Encontro dentro de dezesseis minutos.

– Bom. - Ele olhou sorridente para Kan Dahn, Manuelo, Roebuck, Vladimir e Yoffe. - Nós vamos para o caminhão en­quanto vocês voltam discretamente para o Palácio de Inverno. Au revoir e muito obrigado. Vejo-os a todos na Flórida. Divir­tam-se no circo.

Bruno ajudou seus velhos pais e o irmão caçula a subirem na traseira do caminhão, entrou na frente com Maria e partiu ao encontro do helicóptero. Parou dez metros além da ponte de madeira que atravessava o rio estreito e rápido. Maria reparou no denso arvoredo em ambas as margens.

- É aqui o encontro?

- Depois da próxima curva, numa clareira. Mas antes te­nho uma pequena obrigação a cumprir.

- Tinha que ser - ela parecia conformada. - E pode-se perguntar em que consiste?

- Vou explodir a ponte.

- Sei. Você vai explodir a ponte - ela não demonstrou surpresa alguma, pois atingira o ponto em que nem mesmo er­gueria uma sobrancelha se ele anunciasse a intenção de destruir o Palácio de Inverno. - Por quê?

Bruno desceu do caminhão, carregando o punhado de ex­plosivos de amatol, Maria o acompanhou. Enquanto se encami­nhavam para a ponte, Bruno explicou:

- Não lhe ocorreu que quando eles ouvirem o motor do helicóptero, e um motor desses se escuta de muito longe mesmo, a polícia e o exército virão da cidade como um enxame de abe­lhas enfurecidas? Não quero ser apanhado.

- Parece que existe mesmo muita coisa que não me ocorre - falou Maria, desanimada.

Bruno pegou-lhe o braço sem responder. Caminharam jun­tos até o meio da ponte, onde Bruno se abaixou e arrumou as cargas explosivas entre dois esteios no lado da ponte. Endireitou-se, examinou-os pensativamente.

- Você é perito em tudo? - perguntou Maria.

- Não é preciso ser perito para explodir uma ponte de ma­deira. - Ele tirou do bolso um par de alicates. - Basta um des­tes para dobrar o estopim e, é claro, o bom senso de se afastar logo em seguida.

Como Bruno permanecesse pensativo, Maria perguntou:

- Bem, você vai ou não vai dobrar os estopins?

- Duas coisas. Só dobrarei um deles: as outras cargas ex­plodirão por contato. E se eu explodir a ponte agora, as abelhas furiosas aparecerão imediatamente, talvez com tempo suficiente para achar um meio de atravessar o rio ou encontrar uma ponte próxima. Esperaremos até ouvir o helicóptero, explodiremos a ponte, iremos para a clareira no bosque e usaremos os faróis do caminhão para iluminar o local da aterrissagem.

- Estou ouvindo o helicóptero agora - disse ela.

Ele assentiu, dobrou um dos pavios, pegou-a pela mão e os dois se afastaram correndo. A dez metros da ponte, viraram-se bem a tempo de ver a explosão. O barulho foi realmente muito satisfatório tal como o resultado: o meio da ponte, uma estru­tura bastante frágil, simplesmente se desintegrou e caiu no rio lá embaixo.

A transferência para o helicóptero e o vôo de volta ao navio transcorreram sem obstáculos, com o piloto voando baixo o tem­po todo para se manter fora das telas de radar. Na sala da tri­pulação, Bruno pedia desculpas a Maria, que estava bastante furiosa.

- Sei que enganei você e sinto muito. Mas, compreenda, eu não queria que você morresse. Soube desde o início que quase todas as nossas conversas estavam sendo gravadas e precisava fa­zer Harper acreditar que a invasão seria na terça-feira. Ele es­tava preparado para nos apanhar então, o que significa que apa­nharia você também.

- Mas Kan Dahn e Roebuck e Manuelo...

- Não havia risco. Sabiam desde o começo...

- Mas, seu misterioso, enganador... mas alguma coisa deve ter feito você desconfiar de Harper.

- Meu sangue eslavo. Nós os eslavos temos uma natureza perversamente desconfiada. Praticamente o único lugar que não tinha microfones era o escritório do circo lá nos Estados Unidos. O receptor eletrônico que Harper trouxe era seu cúmplice: des­tinava-se a levantar suspeitas em relação ao circo. Já que não havia nenhum contato interno no circo, então tinha de ser Har­per. Apenas quatro pessoas realmente sabiam o que se passara - seu chefe, Pilgrim, Fawcett e Harper. Seu chefe estava acima de suspeitas, Fawcett e Pilgrim morreram. Portanto, sobrava Har­per. Cárter, o comissário de bordo no navio, não estava lá para assegurar que não havia microfones em meu camarote - e sim para assegurar que havia. Assim como no seu.

- Você não tem prova disso.

- Não? Ele mantinha contato com Gdynia e havia mil e quinhentos dólares em seu camarote. Notas novas. Tenho os números das séries.

- Aquela noite em que ele se acidentou no tombadilho...

- O acidente foi Kan Dahn. Então Harper me disse que tinha as chaves dos escritórios de Van Diemen. Deve ter-me achado um simplório. Seria preciso uma centena de chaves mes­tras para abranger todas as fechaduras. Ele tinha as chaves por uma simples razão: tinha acesso às chaves de Van Diemen. E vi­via me perguntando acerca dos meus planos para entrar em Lubylan. Eu repetia que usaria improvisação. Até que acabei por lhe revelar todos os meus planos, falsos, é claro, ao contá-los a você, em seu camarote. Você deve estar lembrada de que Harper sugeriu seu camarote como ponto de encontro. E, evidentemente, eu também não confiava em você.

- O quê?

- Não é que desconfiasse de você. Apenas, não confiava em ninguém. Não sabia que você era legal até você afirmar que Harper pessoalmente a escolhera para esse serviço. Se fizesse parte da quadrilha, diria que seu chefe a escolhera.

- Nunca mais confiarei em você.

- E por que a Polícia Secreta nos seguia por toda parte? Alguém lhes dava as pistas. Quando percebi que não era você, não sobrou muita gente de quem pudesse suspeitar.

- E ainda espera que eu me case com você?

- Serei obrigado. Para o seu próprio bem. Quero dizer, de­pois que você pedir demissão. Pode ser que estejamos na era da libertação feminina, mas acho que esse negócio é um pouco li­berto demais para você. Sabe por que Harper a escolheu? Por­que percebeu que você era a pessoa com menos probabilidade de atrapalhá-lo. E tinha razão. Meu Deus, nem mesmo lhe ocor­reu como Harper conseguiu arrastar Fawcett para a jaula dos tigres sem ser destroçado.

- Bem, já que você é tão esperto...

- Ele anestesiou os tigres com uma pistola de dardos.

- É claro. Talvez depois dessa eu deva me aposentar. Você não comete muitos erros, não é mesmo?

- Cometo. Um erro muito importante que poderia vir a ser fatal para muita gente. Acreditei que a pistola de dardos vermelha fosse a mesma que ele usara contra os tigres. Não era. Era mortal. Se não fosse por aquele Dobermann Pinscher. Bem, de certa forma foi coerente o fato de ele morrer pelas próprias mãos. Caiu em sua própria armadilha ou quem vive pela espada morre pela espada, ou algo assim.

- Há uma coisa, ao que parece dentre muitas outras, que não compreendo. Essa história de você ter de fazer Van Diemen prisioneiro. É claro que a capacidade quase indubitável de Van Diemen reproduzir as fórmulas deve ter sido levada em conside­ração pela CIA em Washington.

- E foi. A intenção era de que eu o matasse com o caneta vermelha. Caso contrário, Harper - que provavelmente tinha um bolso cheio de canetas vermelhas - estava escalado para cuidar dele na noite de terça-feira, a suposta hora da invasão. Ele teria dado conta do recado - era tão esperto quanto bri­lhante - e não haveria ninguém para testemunhar contra ele. Eu estaria morto.

Ela o fitou e estremeceu. Bruno sorriu.

- Agora tudo acabou. Harper me falou acerca da condição cardíaca de Van Diemen e insistiu para que eu usasse contra ele a caneta preta de gás. Não houve necessidade de usar uma nem outra. Era intenção de Harper e, é claro, de seus chefes, que Van Diemen sobrevivesse. Como eu disse, Harper morreu pelas próprias mãos e Van Diemen pelas mãos de Harper, que é total­mente responsável pela morte de Van Diemen e pela sua própria.

- Mas por que, por que ele fez isso?

- Quem sabe? Quem jamais saberá? Seria por dedicação à causa antiamericana? Por um milhão de dólares de prêmio? A motivação - ou motivações - do agente duplo ficam acima da compreensão. Não que agora isso tenha importância. A pro­pósito, desculpe ter assustado você naquela noite em Nova York. Eu não tinha meios de saber se minha família estava viva ou morta. Você sabe, é claro, porque Harper nos mandou para o restaurante naquela noite. Foi para poder colocar microfones na minha suíte. O que me faz lembrar. Tenho de mandar um tele­grama avisando para prenderem Cárter. E Morley, o falso ele­tricista amigo de Harper que instalou os microfones na minha cabina do trem. Agora, tenho de lhe fazer uma pergunta delicada.

- Qual?

- Posso ir ao banheiro?

E assim ele foi ao banheiro, tirou do bolso do paletó os pa­péis que apanhara no arquivo de Van Diemen e, sem ao menos olhar para eles, rasgou-os em pedacinhos e puxou a descarga.

 

O Capitão Kodes bateu na porta do escritório do circo e entrou sem esperar convite. Wrinfield olhou-o, moderadamente surpreso.

- Estou procurando o Coronel Sergius, Sr. Wrinfield. O se­nhor o viu?

- Acabo de chegar do trem. Se ele estiver aqui, vai achá-lo em sua poltrona habitual.

Kodes assentiu e correu para o grande salão de exibições. O último espetáculo da noite estava no auge e, como sempre, a casa estava lotada. Kodes caminhou ao longo do grupo de pol­tronas oposto ao picadeiro central, mas não viu sinal de Sergius. Parou por alguns momentos, indeciso, e depois instintivamente, quase que mecanicamente, seus olhos seguiram o olhar de outros dez mil pares de olhos.

Por muito tempo Kodes permaneceu imóvel, como se petri­ficado, sua mente a princípio recusando-se terminantemente a aceitar o testemunho de seus olhos. Mas estes estavam certos. O que ele via era impossível, mas o impossível, sem dúvida, es­tava ali: duas Águias Cegas apresentariam seu arrepiante e cos­tumeiro número de trapézio.

Kodes se virou e correu. Ao passar pela saída, foi amavel­mente cumprimentado por Kan Dahn, mas talvez nem o tivesse visto. Invadiu o escritório de Wrinfield, desta vez sem o cuidado de bater na porta.

- As Águias Cegas! As Águias Cegas! De onde saíram, em nome de Deus?

Wrinfield olhou-o pacientemente:

- Seus seqüestradores os libertaram. Nós avisamos a Polí­cia. O senhor não sabia?

- Não, é claro que não sabia! - Kodes saiu correndo do escritório e pegou seu carro.

 

Embasbacado, com o rosto cor de cinza, Kodes parou no sétimo andar do bloco de detenção de Lubylan. Fora bastante arrasador o choque de encontrar homens amordaçados e amar­rados, tanto na entrada aberta lá embaixo, quanto na sala dos guardas, mas nada poderia tê-lo preparado para a visão dos três homens mortos que ali jaziam: Sergius, Van Diemen e Ângelo.

 

Foi por instinto que Kodes se dirigiu para a casa funerária. Nem mesmo se deu conta de que havia luzes acesas no escri­tório à frente, bem como no salão dos fundos. Ele se encaminhou para o caixão que por tão pouco tempo fora ocupado por Bruno e lentamente ergueu a tampa.

O Dr. Harper, com as mãos cruzadas sobre o peito, tinha uma estranha aparência de paz. Em suas mãos estava o grande recorte de jornal, emoldurado em negro, que anunciara a morte de Bruno.

 

O almirante se recostou na cadeira, em seu escritório de Washington, e contemplou incrédulo a entrada de Bruno e Maria.

- Deus! Que terno!

- Mendigos não podem se dar ao luxo de escolher. - Bruno examinou seu terno sem entusiasmo. - Um cara me deu em Crau.

- Deu? Seja como for, bem-vindo ao lar, Bruno. E a Srta. Hopkins.

- Sra. Wilderman - disse Bruno.

- Que quer dizer, com os diabos?

- O sagrado matrimônio. Existe uma licença especial para quem está com pressa. Nós estávamos.

O almirante controlou sua quase apoplexia.

- Sei em linhas gerais o que houve nos últimos dias. Quero os detalhes, por favor.

Bruno contou os detalhes e ao terminar o almirante falou:

- Magnífico. Bem, bem, levou muito tempo até podermos reunir tudo. Van Diemen e a sua família.

- Muito tempo.

Maria olhava espantada de um para o outro.

- E agora. As fórmulas - disse o almirante, bruscamente.

- Destruídas.

- É claro. Mas não na sua mente privilegiada.

- Minha mente privilegiada, senhor, entrou em estado de choque absoluto. Amnésia.

O almirante se inclinou para a frente, os olhos apertados, as mãos retesadas sobre a escrivaninha.

- Repita isso.

- Destruí-as sem olhar.

- Você as destruiu sem olhar. - Era uma afirmação, não uma pergunta. A voz estava muito calma. - Por quê?

- Que queria o senhor? Outro mútuo equilíbrio de terror no mundo?

- Por quê?

- Já lhe disse. Lembra-se? Odeio a guerra.

Por muito tempo o almirante contemplou-o sem entusiasmo; depois relaxou, recostou-se novamente e surpreendeu ambos ao começar a rir.

- Estou morrendo de vontade de despedi-lo - ele suspirou ainda sorrindo. - Mas no final das contas, você deve ter razão.

- Despedi-lo? - repetiu Maria sem expressão

- Você não sabia? Nos últimos cinco anos Bruno tem sido um de meus principais e certamente dos mais competentes agentes.

 

                                                                                Alistair Maclen  

 

                      

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