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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS ARANHAS DOURADAS / Rex Stout
AS ARANHAS DOURADAS / Rex Stout

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS ARANHAS DOURADAS

 

Se batem à porta quando Nero Wolfe e eu estamos a jantar, na velha casa de arenito escuro, na 35ª Rua Oeste, em geral é Fritz quem tem de a ir abrir. No entanto, naquela noite fi-lo eu mesmo por saber que Fritz não estava com disposição para atender um visitante, fosse ele quem fosse.

É preciso explicar o mau humor de Fritz. Todos os anos, por volta de meados de Maio e por acordo reestabelecido, um agricultor que vive perto de Brewster abate dezoito ou vinte estorninhos, mete-os num saco, enfia-se no carro e conduz até Nova Iorque. Está implícito que os estorninhos têm de ser entregues num prazo máximo de duas horas depois de serem abatidos. Fritz depena-os, salpica- os de sal e depois, no devido momento, pincela-os com manteiga derretida, envolve-os em folhas de salva, grelha-os e coloca-os num prato de polenta quente, que é uma espessa papa de milho amarelo moído numa farinha muito fina, com manteiga, queijo ralado, sal e pimenta.

É uma refeição dispendiosa e feliz, e Wolfe está sempre ansiosamente à sua espera, mas naquele dia resolveu dar espectá culo. Quando a bandeja fumegante surgiu e foi colocada na sua frente, cheirou o ar, baixou a cabeça, voltou a cheirar, e depois endireitou-se para olhar Fritz.

- A salva?

- Não, senhor.

- Que queres dizer com esse não, senhor?

- Pensei que gostaria, pelo menos uma vez, de os comer da maneira que lhe sugeri, com açafrão e estragão. Muito estragão fresco, apenas um ligeiro toque de açafrão, que é a maneira como.

- Leva-os daqui!

Fritz ficou rígido e contraiu os lábios.

- Não me consultaste - prosseguiu Wolfe com frieza.

- Descobrir que um dos meus pratos preferidos foi radicalmente alterado, sem qualquer espécie de aviso, é um choque desagradável. Talvez seja comestível, mas não estou com disposição para correr esse risco. Deita isso fora e traz-me quatro ovos cozidos em lume brando e uma fatia de pão torrado.

Fritz, que conhecia Wolfe tão bem como eu e tinha a consciência de que aquilo não passava de um ataque da mania da disciplina que magoava mais o próprio Wolfe do que a ele próprio, e de que não valia a pena tentar parlamentar, estendeu a mão para a travessa, mas eu resolvi intervir:

- Vou experimentar, se não te importas. Achas que o cheiro não te vai impedir de apreciar devidamente os ovos?

Wolfe lançou-me uma olhadela furiosa.

Foi assim que Fritz adquiriu o mau humor que tornava preferível ser eu a ir abrir a porta. Quando a campainha tocou, Wolfe já acabara de comer os ovos e estava a beber o café com um ar da máxima infelicidade, enquanto eu me aproximava do fim da segunda dose de estorninhos e polenta, indiscutivelmente comestíveis. Ao avançar pelo corredor até à porta da frente, não me dei ao trabalho de ligar o interruptor porque a luz do crepúsculo ainda existente era suficiente para ver, através do painel de vidro de um só sentido, que o cliente que se encontrava à nossa porta não nos iria enriquecer.

Abri a porta e disse-lhe com toda a delicadeza:

- Enganaste-te no número.

Sou educado por uma questão de política, a minha habitual política de promoção da ideia de paz na Terra com os garotos da vizinhança. Era útil para que a vida decorresse com suavidade naquela rua onde se viam sempre muitas bolas pelo ar e outras actividades.

- Não me enganei - disse-me num baixo e nervoso tom de contralto, não demasiado rude. - És o Archie Goodwin. Preciso de ver o Nero Wolfe.

- Como é que te chamas?

- Pete.

- E o resto do nome?

- Drossos. Pete Drossos.

- E porque é que queres ver Mr. Wolfe?

- Porque tenho um caso. Eu conto-lho.

Era um espécime pequeno e magro, de cabelos negros que precisavam de ser cortados, com os olhos pretos muito vivos, e cujo topo da cabeça ficava pela altura do nó da minha gravata. Já o vira por ali nas vizinhanças e a seu respeito não tinha nada, nem contra nem a favor. A coisa estava em pô-lo a andar sem iniciar hostilidade permanente, e em geral era assim que eu procedia, mas depois da infantil exibição de Wolfe para com Fritz pensei que talvez lhe fizesse bem ter outra criancinha com quem pudesse brincar. Era claro que iria rosnar e morder, mas se o Pete ficasse arranhado, ia sempre a tempo de o salvar. Portanto, convidei-o para entrar e escoltei-o até à casa de jantar.

Wolfe estava a encher outra vez a chávena do café. Lançou uma olhadela para Pete, que tenho de admitir que não estava devidamente vestido, pousou a cafeteira, olhou-me de frente e falou:

- Archie, não quero ser interrompido à hora das refeições. Fiz-lhe um aceno compreensivo.

- Eu sei, mas isso não era uma refeição. Como podes dizer que ovos são uma refeição? Este aqui é Mr. Pete Drossos. Quer consultar-te a respeito de um caso. Ia dizer-lhe que estás muito ocupado, mas depois lembrei-me que ficaste irritado com o Fritz por este não te ter consultado, e não quis que te irritasses também com o Pete. É nosso vizinho e... Sabes como é, ama o teu próximo como a ti mesmo.

Enraivecer Wolfe é sempre uma jogada arriscada. Por reflexo, uma explosão pode estrondear nos ares, mas se isso não acontecer, se nos olhar por uma segunda vez, então o mais provável é mostrar-se passivo. Desta vez demorou vários segundos, bebericando o café, para depois se dirigir ao nosso visitante com toda a cortesia.

- Sente-se, Mr. Drossos.

- Não sou mister, sou Pete.

- Muito bem, Pete, senta-te. Vira-te mais para mim, por favor. Obrigado. Querias consultar-me?

- Pois, tenho um caso.

- Todos os casos são bem-vindos, mas desta vez o momento foi muito mal escolhido, porque Mr. Goodwin ia sair esta noite para ver um jogo de bilhar e agora é claro que terá de ficar para tomar nota de tudo o que disseres e eu disser. Archie, vais buscar o livro de apontamentos, por favor?

Tal como eu disse... é sempre uma jogada arriscada. Dera-me cabo dos planos. Atravessei o corredor na direcção do gabinete para ir buscar um livro de apontamentos e um lápis, e quando voltei Fritz já lá se encontrava, com café para mim e uma garrafa de Coca e bolinhos para o Pete. Não abri a boca.

O lápis e o livro de apontamentos fariam o registo da conversa de um modo quase automático, necessitando apenas de um quinto do cérebro, enquanto o resto se dedicaria a descobrir uma maneira de me escapar.

Pete estava a falar:

- Creio que não faz mal que ele tome notas, mas tenho de ter cuidado. Isto é para ficar bem tapado.

- Sem dúvida, se estás a querer dizer que é confidencial.

- Então dou à língua. Sei que há detectives particulares com quem não nos podemos abrir, mas consigo é diferente. Aqui em volta sabemos tudo a seu respeito. Sabemos que não gosta dos chatos dos chuis, tal como nós. Por isso vou dizer tudo.

- Faz-me esse favor.

- Muito bem, que horas são?

Olhei para o pulso:

- Dez para as oito.

- Então a coisa aconteceu há uma hora. Sei que, por vezes, tudo depende do elemento tempo, e por isso logo a seguir fui ver as horas ao relógio da loja da esquina e era um quarto para as sete. Estava no golpe da limpeza à esquina da Trigésima Quinta e da Nona, quando parou um Caddy...

- Por favor... o que é o golpe da limpeza?

- Ora, o senhor sabe, um carro pára por causa das luzes e atiramo-nos a ele com um trapo e começamos a limpar a janela. Se for um homem e nos deixar ir até ao pára-brisas então apanhamos, pelo menos, dez cêntimos. Se for uma mulher e nos deixar continuar, talvez se apanhem, talvez não. Bom, quando este Caddy parou...

- O que é um Caddy?

Pela expressão que apareceu nos vivos olhos pretos, via-se que Pete começava a suspeitar que fora ter com o detective errado. Interrompi para demonstràr que nem todos éramos estúpidos, dizendo para Wolfe:

- Um automóvel Cadillac.

- Ah, sim. E ele parou?

- Pois, por causa da luz. Atirei-me à janela do motorista. Era uma mulher. Virou a cara para olhar a direito para mim e disse qualquer coisa. Não me parece que tenha feito algum som, ou se o fez não ouvi nada pela janela, porque estava fechada quase até acima, mas mexeu os lábios e percebi o que era. Ela disse: Socorro, chama um polícia. Olhe, foi assim...

Formou as palavras com os lábios, exagerando um pouco, sem produzir qualquer som. Wolfe fez um aceno apreciador. Virou-se para mim:

- Arcie, faz um desenho da boca de Pete durante aquela pantomima.

- Mais tarde - respondi, deferente - depois de terem ido para a cama.

- Mais claro não podia ter sido - prosseguiu Pete. - Socorro, chama um polícia. A coisa espantou-me. Tentei manter a cara impassível, sabia que era o que devia ser feito, mas acho que não consegui, porque o homem estava a olhar para mim e...

- Onde é que estava o homem?

- No banco, com ela. Só iam os dois no carro. Deve ter percebido, pela minha cara, que se passara qualquer coisa, porque lhe espetou a pistola com mais força e a mulher virou a cabeça...

- Viste a pistola?

- Não, mas não sou estúpido, pois não? Que mais poderia ser, para querer um polícia e virar a cabeça de repente, daquela maneira? Que queria que fosse, uma lapiseira?

- Prefiro a pistola. E depois?

- Recuei um pouco. Tudo o que tinha era um bocado de trapo... e ele com uma pistola. Agora, a parte seguinte... Não me interprete mal, não gosto de chuis. Sinto por eles o mesmo que o senhor... mas aconteceu tudo tão depressa que nem percebi o que estava a fazer e admito que olhei em volta à procura de um chui. Como não vi nenhum, saltei para o passeio para espreitar pela esquina, mas quando voltei a olhar em volta a luz mudara e o carro ia-se embora. Tentei chamar outro carro para o seguir, mas ninguém quis parar. Pensei que poderia apanhá-lo na Oitava Avenida e corri tão depressa quanto pude pela Trigésima Quinta mas eles apanharam uma luz verde e passaram quando ia apenas a meio caminho. Tenho o número da matrícula.

Meteu a mão no bolso das calças, puxou por um pedacinho de papel e leu:

- Connecticut, YY, nove, quatro, três, dois.

- Excelente. - Wolfe pousou a chávena vazia sobre o pires.

- Deste esse número à Polícia?

- Eu? - exclamou Pete com um ar de desprezo. - Aos chuis? Acha que sou maluco? Ir à esquadra e falar com um pé-chato? E mesmo que apanhasse um sargento e lhe contasse tudo... E depois? Primeiro, não ia acreditar em mim, depois vinha atrás de mim e eu ficava marcado. A si não lhe faz mal ficar marcado, porque é um detective privado com uma licença, e sabe muita coisa sobre um montão de inspectores.

- Ah, sei? O quê?

- Sei lá! Toda a gente sabe que o senhor conhece muita roupa suja de alguns tipos importantes, ou então já teriam corrido consigo. Um rapaz como eu não se pode arriscar a ficar marcado, mesmo que se porte sempre bem. Odeio os polícias, mas não é preciso ser ladrão para os odiar. Estou sempre a dizer à minha mãe que me porto bem, e é verdade, mas digo-lhe que é preciso ter muita coragem para o fazer. Que pensa deste meu caso?

Wolfe meditou por uns instantes.

- Parece-me... hum... um pouco enevoado.

- Pois, por isso vim ter consigo. Fui até um sítio para onde vou quando quero pensar e matutei em tudo isto. Percebi que seria um óptimo caso se o conseguisse resolver. O carro era um Caddy, um Caddy cinzento-escuro de cinquenta e dois. O homem tinha má cara, mas parecia cheio de massa, tinha aspecto de poder ter mais dois ou três Caddy iguais. A mulher também. Não era tão velha como a minha mãe, mas parece-me que por aí não vou lá, porque a minha mãe tem trabalhado muito e aposto que aquela mulher nunca o fez. Tinha um arranhão na face esquerda e a cara toda torcida quando me disse: Socorro, chama um polícia, mas ao pensar melhor concluí que era bonita. Os brincos eram umas grandes aranhas de ouro, aranhas com as pernas esticadas. Ouro puro.

Wolfe resmungou.

- Pronto, está bem - assentiu Pete -, pareciam de ouro. Não eram de latão. De qualquer modo, tudo aquilo cheirava a massa, e eu fiquei a pensar assim: Tenho um caso com malta de massa. Como é que vou tratar dele para ganhar algum? Se tratasse bem da coisa até poderia apanhar cimquenta dólares, se ele a matar e eu o puder identificar e tiver uma recompensa. Posso contar o que a mulher me disse e como o homem lhe espetou a pistola, e...

- Não viste nenhuma pistola.

- Isso é um pormenor. Se não a matou, se apenas a forçou a fazer qualquer coisa ou a dizer qualquer coisa, ou a entregar- lhe qualquer coisa... posso cair-lhe em cima. Ou me passas cinquenta dólares, ou talvez cem, ou estás tramado comigo...

- Isso seria chantagem.

- Pois é. - Pete sacudiu para cima da bandeja as migalhas de bolo que tinha agarradas aos dedos. - Depois de pensar bem, foi por isso que decidi que tinha de vir ter consigo. Vi que não era capaz de tratar do assunto sozinho e que teria de lhe dar uma parte, mas o senhor compreende: é o meu caso. Talvez pense que sou parvo por lhe ter dito o número da matrícula antes de fazermos um acordo, mas não sou. Se o conseguir apanhar e encurralar, e depois tentar trair-me e ficar com a massa toda, terei à mesma de o identificar e cabe-me a mim a decisão. Se não se pode fazer chantagem, poderá inventar uma maneira de não ser chantagem. E se dividíssemos ao meio?

- Olha, Pete... - disse Wolfe, empurrando a cadeira para trás e encaixando o corpanzil numa nova posição confortável.

- Se vamos trabalhar de mão dada no teu caso, acho que devo dizer-te algumas coisas a respeito da ciência e anexos das investigações. É claro que Mr. Goodwin tomará nota de tudo, e quando o passar à máquina fará uma cópia para ti. Mas primeiro irá fazer um telefonema. Archie, tens o número do carro. Telefona para os serviços de Mr. Cramer e comunica-lhes a matrícula. Diz que tens informações de que esse carro pode ter estado envolvido numa violação da lei nesta cidade nas últimas duas horas, e sugere uma verificação de rotina. Não sejas mais preciso do que isto. Diz que a nossa informação não está confirmada e que a investigação deverá ser discreta.

- Eh! - interveio Pete. - Quem é esse Mr. Cramer? Um chui?

- Um inspector da Polícia - explicou-lhe Wolfe. - Tu próprio sugeriste a possibilidade de assassínio. Se houve assassínio, há um cadáver. Se houver um cadáver, teremos de o encontrar. Até esse momento, e a não ser que o encontremos, que é feito do teu caso? Como não fazemos ideia de onde procurar, prego uma partida à Polícia para que ela o procure por nós. Sirvo-me muitas vezes deste truque. Archie, é evidente que não vais mencionar o nome de Pete, uma vez que ele não quer ficar marcado.

Quando me dirigi ao gabinete, para a minha secretária, e marquei o número dos Homicídios de Manhattan Ocidental, ia a pensar que entre todas as milhares de técnicas de Wolfe para se tornar odioso, a pior era quando pensava que estava a ser engraçado. Quando terminei a conversa com o sargento Purley Stebbins e desliguei, senti-me tentado a sair dali para fora e ir ver Mosconi e Watrous a lidarem com os tacos, mas é claro que não o faria porque seria admitir que Wolfe me tramara. A seguir livrava-se do Pete e instalava-se com um livro e um sorriso satisfeito.

Por isso voltei para a sala de jantar, instalei-me, peguei no lápis e declarei com um ar radiante:

- Muito bem, já estão avisados. Venha lá essa lição sobre investigações e não deixes nada de fora.

Wolfe inclinou-se para trás, pousou os cotovelos nos braços da cadeira e juntou as pontas dos dedos.

- Terás de compreender, Pete, que me vou limitar aos problemas e métodos do detective privado que trabalha nessa profissão para ganhar a vida.

- Pois - respondeu Pete, pegando numa nova garrafa de Coca. - É o que quero saber, como apanhar a massa.

- Já tinha reparado nessa tua tendência, mas não podes permitir que oculte as outras considerações. É desejável que tenhas os teus lucros, mas é essencial que sintas que os mereceste, e isso depende, em grande parte, do teu ego. Se o teu ego for saudável e resistente como o meu, raramente terás dificuldades com...

- O que é o meu ego?

- Há várias definições, filosóficas, metafísicas, psicológicas, e agora também psicanalíticas, mas no sentido em que utilizo o termo significa a capacidade de aproveitar tudo o que possa servir para melhorar a opinião que tens de ti mesmo, e pôr de parte tudo o que a faça piorar. Percebeste?

- Creio que sim. - Pete franzia a testa, concentrado.

- Quer dizer... se gostamos ou não de nós próprios...

- Não é bem isso... mas andas por perto. Com um ego robusto, os teus sentimentos...

- O que é um robusto? Wolfe fez uma careta.

- Vou tentar utilizar palavras que já conheças, mas se não o fizer, se uma delas te for desconhecida, não me interrompas. Se fores suficientemente esperto para seres um bom detective, então deve chegar para ficares com uma ideia aproximada do significado de uma nova palavra através do contexto... que quer dizer as outras palavras que usei juntamente com ela. Em geral, existem também outras pistas. Há instantes falei de um ego saudável e resistente, e depois, a seguir à tua interrupção, falei de um ego robusto com o mesmo sentido. Assim, é óbvio que robusto, quer dizer saudável e resistente, e se fosses feito da massa dos bons detectives, deverias ter compreendido. Quantos anos tens?

- Doze.

- Então eu deveria dar-te uns descontos, e é o que vou fazer. Continuemos: com um ego robusto, os teus sentimentos a respeito do dinheiro que ganhas podem ser deixados para a inteligência e para o bom senso. Nunca recebas ou aceites dinheiro que sintas que não o mereceste ganhar. Se o fizeres, a tua integridade vai-se abaixo e o ego fica cheio de minhocas. Com esta única excepção, agarra em todo o dinheiro que puderes. Como não deves aceitar o que sentes que não mereceste, então tens de aceitar o que sentes que mereceste. Nem sequer deves discutir um caso com um cliente em perspectiva antes de saberes se ele pode pagar, porque nesse caso...

- Então porque é que... - murmurou Pete, calando-se.

- O quê?

- Nada. Está a discutir um caso comigo, que sou apenas um garoto.

- Trata-se de um caso especial. Mr. Goodwin, que é o meu auxiliar de confiança e muito valioso, trouxe-te até mim e ficaria desapontado se eu não explorasse devidamente o teu caso e o deixasse tomar as devidas notas, que depois terá de passar à máquina. - Wolfe favoreceu-me com um olhar hipócrita e virou-se de novo para Pete. - Porque nesse caso, lá se vai o teu ego e o dinheiro. Quanto aos métodos, é claro que têm de ser apropriados ao teu campo de actividade. Vou saltar por cima de campos como a espionagem industrial e provas para divórcios, bem como outras bisbilhotices repugnantes, uma vez que o ego de qualquer homem que se meta nisso de certeza que já se encontra cheio de minhocas e, portanto, o assunto não te diz respeito. Consideremos antes o roubo. Digamos, por exemplo, que roubaram a caixa das jóias de uma mulher e que esta não quer ir à Polícia porque desconfia...

- O assassínio. Prefiro começar pelo assassínio.

- Como queiras. - Wolfe estava indulgente. - Estás a tomar nota disto, não estás, Archie?

- Sem dúvida... e de língua de fora!

- Belo. Como estamos a falar em termos gerais, não interessa se é roubo ou assassínio. Em primeiro lugar, tens de compreender perfeitamente que estás a praticar uma arte e não uma ciência. O apelo da ciência na detecção de crimes é valioso, honroso e eficiente, mas é uma parte muito pequena das actividades de um detective privado que aspire à eminência. Qualquer pessoa de capacidades moderadas pode ser adepta dessa ciência, servindo-se de um calibrador, uma máquina fotográfica, um microscópio, um espectrógrafo ou uma centrifugadora, mas esses são apenas os servos da investigação. Na investigação, a ciência pode ser distinta, ou até brilhante, mas nunca poderá substituir a marcha inexorável de um belo intelecto através de uma selva de mentiras e receios de ver a verdade esclarecida, nem o clarão de percepção ao longo de um nervo sensível, tocado pelo tom de uma voz ou pelo estremecimento de uns olhos.

- Desculpa - interrompi. - Era um tom de voz ou o tom de uma voz?

- Nem uma coisa nem outra! - mentiu Wolfe. - Era o tom de alguma voz, - Continuou a falar para Pete. - A arte da investigação tem muitos níveis e muitos rostos. Um exemplo: seguir um homem por toda a Nova Iorque sem o perder é uma tarefa muito difícil. Quando a Polícia o quer fazer a sério serve-se de três homens, e mesmo assim são frequentemente despistados. Há um homem que trabalha muitas vezes para mim, o Saul Panzer, que faz esse trabalho sozinho e é um génio. Já discutimos o assunto e cheguei à conclusão de que ele próprio não sabe qual o segredo dessa sua habilidade superativa. Não é um procedimento consciente e controlado pelo seu cérebro, apesar de este ser muito bom. Trata-se de qualquer coisa escondida algures no seu sistema nervoso, e é possível, claro, que seja no crânio. Afirma que lhe parece saber, sempre no último instante, o que o homem que está a seguir se prepara para fazer. Não o que fez ou faz no momento, mas o que irá fazer a seguir. É por isso que Mr. Panzer te pode ensinar tudo o que sabe, mas mesmo assim não conseguirias ser igual a ele. Isso não quer dizer que não devas aprender tudo o que possas, o saber nunca te fará mal. É apenas quando aplicas aquilo que aprendeste que descobres se és capaz de transformar essa sabedoria em resultados.

Wolfe apontou-me com um polegar.

- Tens aqui o exemplo de Mr. Goodwin. Ser-me-ia difícil trabalhar eficientemente sem ele. É insubstituível, mas, no entanto, as suas acções são grandemente dominadas por impulsos e caprichos, e isso seria o suficiente para o incapacitar para qualquer tarefa importante, se não se verificasse que tem escondido algures no seu interior, talvez no cérebro, mas duvido disso, algo que o governa de uma maneira poderosa mais subtil. Por exemplo, a visão de uma rapariga bonita provoca-lhe uma dominante reacção de aprovação e apreço e desperta de imediato o seu instinto de aquisição, mas nunca se casou. Porquê? Porque sabe que se tivesse uma mulher essa sua reacção às raparigas bonitas, que é pura agora, franca e livre, passaria a ser não apenas intoleravelmente adúltera, como estaria também sujeita a vigilância e restrições por parte das autoridades. É por isso que aquilo que o governo o leva a parar um pouco antes de se verificar um desastre, e, de vez em quando, não tenho dúvidas a esse respeito, mesmo à beira do abismo. Esse governante interno funciona da mesma maneira em relação aos seus outros impulsos e caprichos, mas de vez em quando não consegue intervir a tempo e faz asneiras, como aconteceu esta noite, quando tentou atrair-me com uma certa oportunidade, o que já lhe custou... Que horas são, Archie?

Olhei para o relógio.

- Dezoito minutos para as nove.

- Eh! - Pete deu um salto na cadeira. - Tenho de ir a correr! A minha mãe... Tenho de estar em casa a um quarto para as nove! Até amanhã!

Já ia a caminho. Quando me consegui levantar e chegar ao corredor já Pete atingira a porta da rua, a abrira e desaparecera. Parei à entrada da casa de jantar e disse para Wolfe:

- Que pena, esperava que ele pudesse ficar até à meia-noite, para poderes terminar a lição. Depois disso, um jogo de bilhar seria uma coisa aborrecida, mas assim acho que ainda lá posso ir. Foi o que fiz.

 

No dia seguinte, quarta-feira, andei muito ocupado. Um fabricante de ferramentas de Youngstown, no Ohio, fora a Nova Iorque tentar localizar um filho que cortara todas as linhas de comunicação e contratara Wolfe para o ajudar, pelo que tínhamos Saul Panzer, Fred Durkin e Orrie Cather a bisbilhotar por todo o lado. Isso manteve-me perto da secretária e do telefone, recebendo relatórios e transmitindo informações.

Um pouco depois das quatro da tarde, Pete Drossos apareceu e disse que queria falar com Wolfe. A sua atitude indicava que, apesar dee saber que eu também tinha uma licença de detective privado, e de não ter nada de grave contra mim, preferia lidar com o patrão. Expliquei-lhe que todos os dias Nero Wolfe passava quatro horas - das nove às onze da manhã e das quatro às seis da tarde - nas estufas instaladas no telhado com as suas dez mil orquídeas, dando ordens a Theodore Horstmann, em vez de a mim, e que durante essas horas não se encontrava acessível, Pete deu-me a entender que pensava que se tratava de uma maneira esquisita de um detective privado passar o seu tempo e não argumentei contra essa sua opinião. Quando, finalmente, consegui correr com ele da entrada e fechar a porta, estava pronto a admitir que talvez o meu governante interno estivesse a precisar de óleo. Pete iria ser um aborrecimento, não havia dúvidas a esse respeito. Devia ter abafado o meu impulso para o convidar para companheiro de brincadeiras de Wolfe. Sempre que me descubro a censurar-me a mim mesmo, o melhor que tenho a fazer é beber qualquer coisa, pelo que fui à cozinha à procura de um copo de leite. Quando voltei ao gabinete, o telefone estava a tocar. Era Orrie Cather para fazer um relatório. Nessa noite, à mesa de jantar, nem Wolfe nem Fritz deram sinais de que tinham tido problemas por causa dos estorninhos.

Quando Wolfe se serviu da segunda dose do prato principal, que eram panquecas de porco à dinamarquesa, armou distintamente:

- Muito satisfatórias.

Uma vez que na sua boca se tratava de um cumprimento de grande generosidade, Fritz aceitou-o pelo seu valor real, fez um aceno digno e murmurou:

- Sem dúvida, senhor.

Assim, não se viam faíscas pelo ar quando acabámos o café, e Wolfe estava tão agradável que disse que gostaria de me ver demonstrar a espectacular tacada de Mosconi de que lhe falara, se me desse ao incómodo de descer com ele até à cave.

No entanto, não cheguei a fazer a demonstração. Quando a campainha da porta tocou, no instante em que saíamos da casa de jantar, pensei, é claro, que se tratava de Pete, mas não era. A figura vlsível do outro lado do painel de vidro era duas vezes maior do que Pete e muito mais familiar: tratava-se do sargento Purley Stebbins do Departamento de Homicídios de Manhattan Ocidental. Wolfe encaminhou-se para o gabinete e eu dirigi-me para a frente da casa para abrir a porta.

- Fugiram por aquele lado! - disse, apontando.

- Parvo. Quero falar com o Wolfe... e contigo.

- Este sou eu. Fala.

- E com o Wolfe.

- Está a digerir o porco. Espera. - Segurei a porta com a corrente, para a manter aberta apenas uns cinco centímetros, entrei no gabinete, disse a Wolfe que Stebbins pretendia uma audiência, esperei pacientemente enquanto me fazia caretas, e recebi instruções para mandar entrar o visitante. Voltei para junto da porta e cumpri a ordem.

Ao longo dos anos estabelecera-se uma rotina quanto ao lugar em que o sargento Stebbins se sentava no nosso gabinete. Quando vinha com o Inspector Cramer, era este, claro, quem ocupava o grande cadeirão de couro vermelho junto da ponta da secretária de Wolfe, enquanto Purley se imstalava num dos amarelos, que eram mais pequenos. Quando vinha sozinho, tentava conduzi-lo para o cadeirão de couro vermelho, mas nunca o consegui. Desviava-se sempre e puxava por um dos amarelos. Isso não queria dizer, pelo menos para Purley, que este pensasse que um sargento não se podia sentar

onde vira um inspector sentar-se. Talvez não quisesse estar virado para uma janela ou não gostasse de cadeirões vermelhos. Um dia ainda lhe pergunto.

Naquele dia, e como de costume, descansou a carne e músculos, de que tinha uma grande dose, num dos cadeirões amarelos, mirou Wolfe por momentos e depois torceu o pescoço para me enfrentar.

- Ontem telefonaste-me por causa de um carro, um Cadilac de mil novecentos e cinquenta e dois, cinzento- escuro, com chapas do Connecticut, YY nove-quatro-três-dois. Porquê?

Levantei os ombros e voltei a descê-los.

- Expliquei-te porquê. Tínhamos informações não confirmadas de que o carro, ou o proprietário, poderiam, ou podem estar, envolvidos em qualquer coisa. Sugeri um inquérito de rotina.

- Sei que o fizeste. Qual era exactamente essa informação e onde a obtiveste?

Abanei a cabeça.

- Perguntaste-me isso ontem e neguei-me a responder. Continuo a negar-me. O nosso informador não quer ser incomodado.

- Pois vai ser. Quem foi e o que te contou?

- Nada a fazer - respondi com decisão. - Sabes muito bem que apanhaste esse mau hábito. Se te aconteceu alguma coisa que te leve a pensar que tenho de te dizer quem e o quê, diz-me o que foi e depois se verá se concordo contigo. Sabes que sou uma pessoa razoável.

- Pois é, então não sei? - Purley contraiu o queixo, mas depois afrouxou-o. - Às seis e quarenta desta tarde, há duas horas, um carro parou numa luz vermelha, à esquina da Trigésima Quinta Rua com a Nona Avenida. Um rapaz com um trapo atirou- se a ele e começou a limpar um dos vidros, mal acabou a janela daquele lado, dirigiu-se para a outra, mas quando ia a passar em frente do carro este arrancou de repente, atropelou-o e continuou a toda a velocidade, atravessou a avenida e seguiu pela Trigésima Quinta. O rapaz morreu pouco depois de a ambulância o levar para o hospital. O condutor era um homem e seguia sozinho no carro. No meio de uma excitação daquelas, as pessoas nunca vêem muita coisa, mas há duas, um homem e uma mulher, que estão de acordo quanto ao número da matrícula, YY nove-quatro-três-dois de Connecticut, e o homem diz que era um Cadillac cinzento-escuro. Então?

- Como se chamava o rapaz? O que foi morto.

- Que tem isso a ver com o assunto?

- Não sei, estou só a perguntar.

- Chamava-se Drossos. Pete Drossos.

Engoli em seco.

- Olha que bonito. O filho da puta!

- Quem, o rapaz?

- Não. - Virei-me para Wolfe. - Contas tu ou conto eu? Wolfe tinha os olhos fechados. Abriu-os para dizer: - Tu! - e voltou a fechá-los.

Não me pareceu ser necessário falar a Stebbins na crise doméstica que dera azo ao meu impulso de levar Pete até junto de Wolfe, mas falei- lhe de tudo o mais que era relevante, incluindo a segunda visita de Pete naquela tarde.

Apesar de, pelo menos uma vez na vida, estar satisfeito por conseguir algumas respostas directas naquele gabinete, fez uma quantidade de perguntas e no fim achou que devia contribuir com um comentário pouco amigável a respeito de se poder esperar, de cidadãos conscientes como Nero Wolfe e Archie Goodwin, um pouco mais de interesse por uma mulher com uma pistola espetada nas costelas e que queria um polícia.

Como também não me sentia muito lampeiro, fiquei sentido.

- Não foram espécimes como tu - retorqui - que deram grandeza a este país. O rapaz podia ter inventado toda a história. Admitiu que não viu a pistola. A mulher podia estar apenas a gozar com ele. Se ontem te tivesse dito quem me falara no assunto, dirias que eu era doido por ter gasto o dinheiro de uma chamada telefónica. Além disso, dei-te o número da matrícula. Verificaste-a?

- Sim. Era falsa, foi tirada de um Plymouth roubado em Hartford há dois meses.

- Nenhuns vestígios?

- Nenhum, de momento. Vou pedir a Connecticut que investigue. Não sei quantas matrículas falsas existem em Nova Iorque neste momento, mas são muitas.

- Tens uma boa descrição do condutor?

- Temos quatro e não há duas iguais. Três delas não valem um tostão, mas a outra talvez... Foi a de um homem que ia a sair da loja da esquina e, por acaso, reparou no rapaz a dirigir-se para o carro com o trapo. Diz que era um homem de cerca de quarenta anos, de fato castanho-escuro, pele clara, feições regulares, chapéu de feltro enfiado quase até às orelhas. Diz que talvez o consiga identificar. - Purley levantou-se. - Vou andando. Admito que estou desapontado. Esperava conseguir de vocês uma pista ou vê-los a proteger um cliente qualquer.

Wolfe abriu os olhos.

- Desejo-lhe sorte. Esse rapaz comeu ontem à minha mesa.

- Pois... - resmungou Purley - e isso torna o caso muito mais grave. As pessoas não têm nada que andar por aí a atropelar rapazes que comeram à sua mesa.

Foi-se embora depois daquele comentário sociável, e acompanhei-o pelo corredor. Quando pousei a mão no puxador da porta, tornou-se visível uma figura no exterior, subindo os degraus da entrada. Abri a porta e ali estava ela, uma mulher pequenina e magrizela, num vestido azul muito bem arranjado, sem casaco e sem chapéu, de olhos vermelhos e inchados e a boca apertada com tanta força que nem tinha lábios.

Stebbins vinha mesmo atrás de mim quando lhe perguntei:

- Deseja alguma coisa, minha senhora?

Esforçou-se por conseguir falar.

- O senhor Nero Wolfe vive aqui?

Disse-lhe que sim.

- Acha que poderei falar com ele? Não me demoro. Sou Mrs. Anthea Drossos.

Estivera a chorar e tinha ar de quem podia voltar a fazê-lo em qualquer momento, e uma mulher a chorar é algo que Wolfe nem sequer tenta escutar. Por isso, disse-lhe que ele es tava ocupado, que eu era o seu assistente confidencial, e que ela podia fazer o favor de me dizer o que queria.

Levantou a cabeça para me fitar nos olhos, de frente.

- O meu rapaz, o Pete, disse-me para vir ter com Mr. Nero Wolfe - declarou -, e ficarei aqui à espera até poder falar com ele.

Encostou-se ao corrimão dos degraus da entrada. Recuei e fechei a porta. Stebbins seguia agarrado aos meus calcanhares quando entrei no gabinete e falei com Wolfe.

- Mrs. Anthea Drossos quer falar contigo. Diz que foi Pete quem lho pediu. Não a quis deixar entrar, mas está disposta a acampar toda a noite à porta, se for necessário. Pode começar a chorar na tua presença. Que devo fazer? Levo-lhe um colchão?

Foi o suficiente para o fazer abrir os olhos.

- Maldição! Que posso eu fazer pela mulher?

- Nada, e eu tambem não, mas ela não quer ouvir essa resposta da minha boca.

- Então, porque diabo?... Bah! Manda-a entrar. Essa tua brincadeira de ontem... Manda-a entrar!

Saí e fui buscá-la. Quando a fiz entrar no gabinete, Purley estava de novo instalado no cadeirão. Segurando-a pelo cotovelo, porque não me parecia que tivesse os passos muito seguros, conduzi-a para o tal cadeirão de couro vermelho, onde poderiam caber três como ela. Sentou-se mesmo na beira, com os olhos negros - mais negros, suponho, por contraste com as pálpebras inflamadas - apontados para Wolfe.

A voz era baixa e um pouco oscilante, mas determinada.

- O senhor é Mr. Nero Wolfe?

Admitiu que sim. A mulher virou os olhos para mim, depois para Stebbins e voltou a pousá-los em Wolfe.

- E estes senhores?

- Mr. Goodwin, o meu assistente, e Mr. Stebbins, um polícia que está a investigar a morte do seu filho.

- Bem me parecia que tinha ar de polícia - disse a mulher com um aceno. - Pete, o meu rapaz, não gostaria que eu dissesse isto a um polícia.

Pelo tom e expressão parecia bem claro que não pretendia fazer fosse o que fosse que o seu Pete não tivesse querido que ela fizesse, e, portanto, tínhamos um problema. Com a profunda desconfiança de Purley de que Wolfe, para já não falar em mim, preferia ser apanhado morto do que não ter um trunfo na manga, sem dúvida que não quereria ir-se embora. No entanto, e sem qualquer hesitação, levantou-se e disse:

- Vou para a cozinha - e dirigiu-se para a porta. A minha surpresa durou apenas meio segundo, até me aperceber para onde ele ia. No quarto ao fundo do corredor, em frente da cozinha, havia um buraco na parede que o separava do gabinete. Do lado do gabinete, o buraco estava coberto com um quadro cheio de truques, e do lado do quarto, quando se fazia deslizar um painel, podiam-se ver e ouvir os movimentos e sons que tinham lugar no gabinete. Purley sabia de tudo aquilo.

Quando ele desapareceu, achei por bem avisar Wolfe.

- O quadro.

- Claro - retorquiu Wolfe, irritado. Virou-se para Mrs. Drossos. - Então, minha senhora?

A mulher não confiava logo à primeira. Levantou-se e foi direita à porta aberta, espreitou para os dois lados do corredor, fechou a porta e voltou para o seu lugar.

- Sabe que o Pete foi morto.

- Sim, sei.

- Disseram-me, corri pela rua abaixo e... lá estava ele. Estava inconsciente, mas não morto. Deixaram- me acompanhá-lo na ambulância. Foi nessa altura que me disse. Abriu os olhos e...

Calou-se. Receei que começasse a chorar, e ela também, mas depois de ficar sentada durante meio minuto sem mover um único músculo, conseguiu dominar-se e continuou.

- Abriu os olhos e viu-me, e eu baixei a cabeça para mais perto dele. Disse... e creio que lho posso transmitir com exactidão, isto: Diz ao Nero Wolfe que o homem me apanhou. Não o digas a mais ninguém, só ao Nero Wolfe. Dá-lhe o dinheiro da minha lata.

Parou e ficou outra vez rígida. Depois de um minuto, Wolfe incitou-a a continuar:

- Então, minha senhora?

Abriu a mala, de couro preto, que já vira uns bons anos de uso mas ainda aguentava muitos mais, remexeu no seu interior, de onde retirou um pequeno pacote embrulhado em papel, e a seguir levantou-se para o pousar na secretária de Wolfe.

- Estão aí quatro dólares e trinta cêntimos. - A mulher continuava de pé. - Foi ele quem os ganhou, é o dinheiro que guardava numa lata de tabaco. As suas últimas palavras foram para me pedir que lhe entregasse o dinheiro da lata; depois ficou de novo inconsciente e morreu antes de poderem fazer qualquer coisa por ele no hospital. Vim-me embora, fui a casa buscar o dinheiro e vim para lho entregar. Agora volto para o hospital. - Virou-se, deu dois passos e voltou-se para trás. - Compreendeu o que lhe disse?

- Sim, compreendi.

- Quer que faça alguma coisa?

- Não, creio que não. Archie?

Já me encontrava junto da mulher. Parecia um pouco mais firme do que quando entrara, mas, de qualquer modo, continuei a segurá-la pelo braço até à entrada e durante os sete degraus que davam para o passeio. Não me agradeceu, mas, como talvez até nem tivesse dado pela minha presença; não lho levei a mal.

Quando voltei a entrar em casa, Purley estava no corredor já de chapéu na cabeça. Perguntei-lhe:

- Fechaste o painel?

- Não me surpreenderia se vos visse a roubar o chupachupa a um garoto - afirmou, ofensivo. - Mas a um garoto morto! Meu Deus!

Ia-se embora, mas dei um passo para o lado, a fim de o impedir.

- Imbecil. Refiro-me a ti. Se insistíssemos em que o levasse de volta, ela...

Calei-me ao ver-lhe o sorriso de triunfo.

- Desta vez apanhei-te! - grasnou, empurrando-me para o lado e saindo.

Foi por causa daquilo que entrei no gabinete a roer uma unha. Não é habitual que o Purley Stebbins me consiga irritar com as suas provocações, mas daquela vez apanhara-me em desequilíbrio porque os meus sentimentos estavam envolvidos no caso. Como é natural, reagi e vinguei-me no Wolfe.

Fui direito à secretária, desfiz o embrulho de papel e dispus o conteúdo muito bem arrumado na sua frente: duas notas de dólar, quatro moedas de vinte e cinco cêntimos, nove moedas de dez cêntimos e oito de cinco cêntimos.

- Muito bem! - anunciei. - Os meus melhores parabéns. Quatro dólares e trinta cêntimos para despesas, ainda fica o suficiente para...

- Cala-te! - replicou. - Vais devolvê-los amanhã!

- Nunca! Nem amanhã nem em qualquer outro dia. Sabes muito bem que isso é impossível.

- Então dá-os à Cruz Vermelha.

- Dá-os tu. - Mantive-me firme. - A mulher pode nunca mais aparecer, mas se o fizer e perguntar o que fiz com o dinheiro do Pete, não me apetece dizer-lhe que o dei à Cruz Vermelha, e também não lhe quero mentir.

Afastou o dinheiro de junto dele, empurrando-o até à porta da secretária, na minha direcção.

- Foste tu quem o fez entrar nesta casa.

- É a tua casa e convidaste-o para comer bolinhos. A coisa ficou assim. Wolfe pegou no livro que andava a ler e se encontrava na outra ponta da secretária, abriu-o no sítio devido, girou a cadeira e manobrou o seu sétimo de tonelada de modo a conseguir uma posição confortável para começar a ler. Fui para a minha secretária e sentei-me, fingindo ler os relatórios do dia anterior de Saul, Fred e Orrie, enquanto analisava a situação. Um pouco depois puxei a máquina de escrever, meti-lhe uma folha de papel e martelei nas teclas. O primeiro rascunho tinha algumas falhas, que corrigi, e escrevi tudo outra vez numa folha nova. Dessa vez pensei que o texto servia. Virei-me para enfrentar Wolfe e anunciei:

- Tenho uma sugestão.

Acabou de ler o parágrafo - que devia ser muito comprido - antes de levantar os olhos para mim.

- Então?

- Ficámos com este dinheiro nas mãos e temos de fazer qualquer coisa com ele. Deves recordar-te que disseste ao Pete que a questão não está apenas em ganhar dinheiro mas também em sentirmos que o merecemos. Acho que ficarás a sentir que mereceste este se o gastares num anúncio num jornal, dizendo mais ou menos isto:

Mulher com brincos em forma de aranha e arranhão no rosto que na terça-feira, ao conduzir um carro, disse a um rapaz, à esquina da Trigésima Quinta Rua com a Nona Avenida, para chamar um polícia, por favor contacte com Nero Wolfe no endereço constante na lista telefónica.

Empurrei o papel sobre a secretária, na direcção de Wolfe.

- Para um anúncio no Times o dinheiro é capaz de não chegar, mas não me importo de contribuir com um oú dois dólares. Considero que é uma ideia brilhante. Gastas o dinheiro do Pete com o próprio Pete. Cramer e Stebbins vão ficar bravos, mas o Stebins merece-o. Uma vez que não há uma probabilidade num milhão de vires a ter resposta, não te arriscas a ter de trabalhar ou a um envolvimento no caso. Em último lugar, mas não menos importante, terás o teu nome impresso no jornal. Que me dizes?

Pegou na folha de papel e olhou-a com o nariz bem espetado no ar.

- Muito bem - concordou de mau humor. - Espero, graças aos céus, que isto te tenha servido de lição.

 

O filho do fabricante de ferramentas foi finalmente avistado e encurralado no dia seguinte, quinta-feira, à tarde. Uma vez que se tratou de uma operação sigilosa, por mais do que uma razão - para vos mostrar até que ponto era sigilosa, o cliente não era um fabricante de ferramentas, nem de Youngstown -, não posso fornecer mais pormenores. No entanto, posso fazer um comentário. Se Wolfe achou que mereceu o dinheiro que espremeu ao passarão, então nunca um ego teve de enfrentar um teste tão severo.

Assim, a quinta-feira foi um dia um pouco agitado, sem tempos livres para considerações sobre se, na hipótese de termos enfrentar o caso de Pete de um modo um pouco diferente, ele não se encontraria ainda a respirar. Na vida dos detectives há sempre muitas ocasiões para esse tipo de considerações, e apesar de não se ganharem dividendos pelo facto de nos irmos abaixo com essas coisas, ninguém fica prejudicado se, de vez em quando, gastarmos algum tempo em introspecções.

Na quarta-feira, a noite já ia demasiado avançada para que o anúncio saísse na quinta. Na sexta-feira tive de me rir de mim mesmo um par de vezes. Quando desci os dois lanços de escadas e entrei na cozinha, a primeira coisa que fiz, depois de dar os bons-dias a Fritz, foi procurar as páginas dos anúncios do Times para encontrar o nosso. Isso provocou-me um sorriso. Não tinha qualquer significado, quer profissional quer pessoal, porque a possibilidade de obter uma resposta era aimda menor do que a minha anterior estimativa de uma num milhão. O segundo sorriso surgiu mais tarde, quando lidava com pãezinhos de milho e salsichas. Fritz levara o tabuleiro do pequeno-almoço a Wolfe, de acordo com o horário estipulado -, com o Times na minha frente, e o telefone tocou de repente, quase me fazendo derrubar a cadeira quando me levantei para o atender. Não era alguém a responder ao anúncio, mas sim um tipo qualquer de Long Island que queria saber se lhe podíamos fornecer três exemplares, em cor, da Vanda caerulea. Disse-lhe que não vendíamos plantas e que, de qualquer modo, as Vandas não dão flores em Maio.

Porém, o caso de Pete foi-nos mais uma vez apresentado, ainda antes do meio-dia, mas não por intermédio do anúncio. Wolfe acabara de descer das estufas das plantas para o gabinete e instalara-se à secretária para dar uma vista de olhos pelo jornal da manhã, quando tocaram a campainha da porta. Dirigi-me para o corredor, mas ao ver, através do painel de vidro, quem era o visitante, nem sequer precisei de ir à porta para lhe perguntar o que queria. Era um cliente que sempre que aparecia era para falar com Wolfe e o facto de o fazer às onze em ponto tornava esse facto ainda mais certo.

Virei-me e disse para Wolfe:

- É o inspector Cramer.

- Que é que ele quer? - retorquiu com uma carranca. Estava de novo com humores infantis.

- Queres que lhe vá perguntar?

- Sim. Não. Muito bem.

Fui à porta e deixei-o entrar. Pelo modo como resmungou uma saudação, se é que se lhe podia chamar saudação, não fora ali para conceder uma medalha a Wolfe. A figura encorpada e o grande rosto avermelhado de Cramer nunca inspiram uma sensação de fraternal camaradagem, mas tem os seus altos e baixos e naquela manhã não estava num dos seus altos. Entrou à minha frente no gabinete, cumprimentou Wolfe com um grunhido gémeo daquele que emitira para mim, instalou-se no cadeirão de couro vermelho e atirou um olhar frio na direcção de Wolfe. Este devolveu-lho.

- Porque é que publicou aquele anúncio no jornal? - inquiriu Cramer, exigindo uma explicação.

Wolfe revirou a cara e remexeu no pequeno monte de papéis que estavam em cima da secretária, acabados de retirar dos sobrescritos.

- Archie - disse -, esta carta do Jordan é uma farsa. Sabe muito bem que não me sirvo de Brassavolas em cruzamentos envolvendo três géneros. Não merece uma resposta, mas vai tê-la. Pega no bloco de notas. Meu caro Mr. Jordan, estou consciente de que não conseguiu bons resultados com...

- Pronto, pronto... - interveio Cramer numa voz rouca.

Pôr um anúncio num jornal não é um crime, mas fiz uma pergunta bem educada.

- Não - declarou Wolfe com decisão. - Bem educada?

- Então ponha a coisa à sua maneira. Sabe muito bem o que pretendo saber. Como é que quer que faça a pergunta?

- Em primeiro lugar, teria de me dizer porque é que o quer saber.

- Porque penso que está a esconder alguma coisa, ou alguém, relacionados com um homicídio. Não seria a primeira vez que isso acontecia. Por aquilo que disse ontem ao Stebbins, não tem qualquer interesse na morte do rapaz, e não tem um cliente. Nesse caso, não iria gastar dez cêntimos no assunto, olha quem! e de certeza que não iniciaria um inquérito que o obrigasse a despender energias. Podia ter-lhe perguntado de caras quem é o seu cliente, mas não, limito-me ao simples facto de ter publicado um anúncio. Se isto não foi dito com boa educação, então corrija-o e responda-me.

Wolfe aspirou o ar durante muito tempo e depois deixou-o sair.

- Archie, conta-lhe, por favor.

Fiz-lhe a vontade. Não foi preciso muito tempo porque o inspector já tinha o relatório de Purley, pelo que me limitei a explicar como tínhamos decidido gastar o dinheiro de Pete, a que acrescentara um dólar e oitenta e cinco cêntimos do meu bolso. Entretanto, os olhos cinzentos de Cramer estavam apontados para mim. Já frequentemente enfrentara aqueles olhos e precisara de correr para um esconderijo ou de me desviar, pelo que já não me incomodavam quando lhe estava a contar a verdade.

Depois de me ter feito algumas perguntas simples e de ter recebido as respostas, desviou os olhos para Wolfe e fez uma pergunta abrupta:

- Já viu ou ouviu falar de um homem chamado Matthew Birch?

- Sim - respondeu Wolfe com concisão.

- Ah, já ouviu! - Por uma fracção de segundo, surgiu um brilho nos olhos cinzentos. Se não os conhecesse tão bem não o teria captado. - Pretendo que esta seja uma conversa bem educada. Importa-se de me dizer quando e onde?

- Não. No Gazette de antes de ontem, quarta-feira. Como sabe, nunca saio desta casa por questões de trabalho, e abandono-a o menos possível, seja pelo que for, pelo que dependo dos jornais e da rádio para me manter informado sobre as actividades dos outros seres da minha espécie. Tal como me comunicaram, na terça-feira à noite, ou antes, na quarta-feira, por volta das três da manhã, foi encontrado o corpo de um homem, chamado Matthew Birch, numa ruela empedrada junto de um cais da Rua Sul. Pensa-se que tenha sido atropelado por um carro.

- Pois. Vamos a ver se esclarecemos as coisas. Sem contar com os artigos dos jornais ou informações da rádio relacionados com essa morte, já alguma vez tinha visto esse homem ou ouvido falar dele?

- Não sob esse nome.

- Maldito seja! E sobre outro nome qualquer?

- Não que tenha conhecimento.

- Tem alguma razão para supor, ou suspeitar, que o homem encontrado morto na ruela era alguém que já tivesse visto ou de que tivesse ouvido falar em relação a qualquer assunto?

- Assim está melhor - declarou Wolfe, aprovador. - Assim ficamos esclarecidos. A resposta é não. Posso fazer uma pergunta? Tem alguma razão para supor, ou para suspeitar, que a resposta pudesse ser um sim?

Cramer não respondeu. Baixou a cabeça até o queixo tocar no nó da gravata, arredondou os lábios, olhou-me durante longos momentos e depois virou-se de novo para Wolfe, dizendo:

- Eis a razão por que vim aqui: com o recado que o rapaz lhe mandou entregar pela mãe, e o modo como o carro arrancou para o atropelar e fugir, a coisa já não tinha ar de acidente, e agora surgiram complicações. Quando se me deparam sarilhos complicados e o vejo envolvido neles, mesmo que ligeiramente, quero saber exactamente como e quando se meteu no caso... e quando o vai largar.

- Perguntei-lhe por motivos e não por estados de espírito.

- Não tenho nenhum. Aqui está a complicação: o carro que matou o rapaz foi encontrado ontem de manhã, ainda com a matrícula falsa do Connecticut, estacionado entre a Centésima e a Octogésima Sexta Rua. Os homens do laboratório trabalharam nele durante todo o dia. Concluíram que foi o carro que matou o rapaz, e não só. Por baixo, bem preso no sítio da ligação de um eixo, havia um pedaço de tecido do tamanho da mão de um homem. O pedaço de tecido era um bolso arrancado do casaco vestido por Matthew Birch, quando o encontrámos. O laboratório procura mais provas de que foi aquele o carro que o matou, mas não sou estúpido e não preciso de mais nenhuma. Serão precisas?

Wolfe era paciente.

- Se estivesse a trabalhar nesse caso, e como hipótese de trabalho, não precisava.

- É essa a questão. Está a trabalhar no caso. Publicou aquele anúncio.

Wolfe agitou lentamente a cabeça de um lado para o outro, para pôr em relevo as suas boas maneiras.

- Admito - concedeu - que sou capaz de fazer disparates e que de vez em quando já o tenho enganado, mas sabe em que fujo às mentiras grosseiras. Afirmo-lhe que os factos que transmitimos são sinceros e completos, que não tenho qualquer cliente relacionado com o assunto, que não estou a trabalhar nele e não pretendo vir a estar. Sem dúvida que concordo...

O toque do telefone fê-lo calar- se. Atendi-o na minha secretária.

- Gabinete de Nero Wolfe, fala Archie Goodwin.

- Posso falar com Mr. Wolfe; por favor?

A voz era baixa, nervosa e feminina.

- Vou ver se a pode atender. Qual é o seu nome?

- O nome não lhe diria nada, não o conhece. Quero vê-lo porque... É, a respeito do anúncio do Times desta manhã. Queria marcar um encontro com ele.

Mantive um ar normal.

- Sou eu quem lhe marca as entrevistas. Pode dar-me o seu nome, por favor?

- Preferia... quando aí for. Posso ir ao meio-dia?

- Só um momento, por favor. - Consultei a agenda de secretária, virando páginas da semana seguinte. - Sim, pode, está bem, se for pontual. Sabe a morada?

A mulher disse que sim. Desliguei e virei-me para Wolfe.

- Um fulano que deve querer ver as orquídeas. Tratarei dele como de costume.

Wolfe retomou a conversa com Cramer.

- Sem dúvida que concorda com o facto de as provas a favor da possibilidade de o rapaz e Matthew Birch terem sido mortos pelo mesmo carro constituem uma notável complicação, mas, na verdade, isso deve tornar-lhe as coisas mais simples. Mesmo apesar de a chapa de matrícula ser inútil, deve poder localizar o carro.

Cramer retomara o olhar gelado com que começara a conversa.

- Nunca tive a mínima noção - declarou - de que fosse um grosseiro mentiroso. Nunca o vi comportar-se de um modo grosseiro. - Levantou-se. Na presença de Wolfe, fazia questão em se levantar das cadeiras servindo-se apenas dos músculos das pernas, porque Wolfe precisava das pernas e dos braços. Não... - repetiu -... grosseiro, nunca. - Virou-se e saiu.

Dirigi-me ao corredor, a fim de ver a porta fechar-se-lhe nas costas, e depois regressei ao gabinete e à minha secretária.

- A carta para Mr. Jordan - ordenou-me Wolfe.

- Sim, senhor. - Peguei no livro de apontamentos. - No entanto, e em primeiro lugar, continuo a dizer que era uma hipótese num milhão, mas uma que desta vez se concretizou. Aquele telefonema era de uma mulher por causa do anúncio. Não deu o nome e não a pressionei em virtude da companhia que aqui tínhamos. Marcou uma entrevista para o meio-dia de hoje.

- Com quem?

- Contigo.

Apertou os lábios, mas depois abriu-os.

- Archie, isto é insuportável.

- Sei muito bem que sim, mas considerando que Cramer não estava a ser civilizado, pensei que seria satisfatório teres úma conversazinha com ela antes de lhe telefonares para a vir buscar - Olhei para o relógio da parede. - Vai cá estar dentro de vinte minutos... se vier.

- Meu caro Mr. Jordan... - resmungou Wolfe.

 

A mulher apareceu. Encaixada no cadeirão de couro vermelho, era muito mais ornamental do que o inspector Cramer e do que a maioria dos milhares de ocupantes que lá vira instalados, e não havia dúvidas de que estava nervosa. À porta, depois de lha ter aberto e convidado para entrar, pensei que iria virar-se e fugir - e creio que também ela o pensou -, mas por fim conseguiu que as pernas a levassem a ultrapassar a soleira e permitiu que a conduzisse ao gabinete.

O arranhão na face esquerda, inclinado para baixo, na direcção da boca, era fraco mas visível na pele clara e macia, e não me admirava que Pete, ao olhá-la de tão perto, tivesse notado os brincos em forma de aranha. Concordei com ele em como eram de ouro e tão visíveis como o arranhão. Apesar deste, dos brincos, e dos sobressaltos do nervoso, fazia com que o cadeirão vermelho tivesse um belo aspecto. Tinha mais ou menos a minha idade, que não era a ideal, mas nada tenho contra a maturidade se não for exagerada.

Quando Wolfe lhe perguntou, sem resmungar muito, em que a podia ajudar, a mulher abriu a mala e puxou por dois bocados de papel. Era uma mala de um couro verde e macio, igual ao do casaco que usava sobre um vestido de lã verde-escura, e ao da pequena panqueca que ostentava na cabeça, inclinada para um dos lados. Sem dúvida que era um belo conjunto.

- Isto - disse - é apenas um recorte do seu anúncio. - Voltou a metê-lo na mala. - Isto é um cheque no valor de quinhentos dólares.

- Posso vê-lo, por favor?

- Eu não... Ainda não. Tem o meu nome escrito.

- Calculo que sim.

- Quero perguntar-lhe... umas coisas, antes de lhe dizer o meu nome.

- Que coisas?

- Bom, eu... É a respeito do rapaz. O rapaz a quem pedi que chamasse um polícia. - A voz nem seria feia de todo, e de facto até poderia agradar- me, se não estivesse tão nervosa. Em vez de abrandar, o nervosismo ia aumentando. - Quero vê-lo. Arranjará maneira de eu o poder ver? Ou então... indique-me apenas o nome e a morada. Creio que os quinhentos dólares chegarão para isso: sei que se faz pagar caro. Ou então talvez eu queira... Mas antes dê-me essa imformação.

É normal que Wolfe mantenha os olhos - quando os tem abertos - directamente pousados na pessoa com quem está a falar, mas já notara que daquela vez sujeitava a visita a uma inspecção muito atenta. Virou-se para mim.

- Archie, por favor, inspecciona com cuidado esse arranhão na cara.

Levantei-me para obedecer. A mulher tinha alternativas: ficar sentada e deixar-me olhá-la, cobrir a cara com as mãos, ou levantar-se e sair, mas não lhe dei tempo a escolher uma delas e debrucei-me, ficando com os olhos a menos de trinta centímetros da sua cara.

Ia para falar, mas desistiu quando me levantei e comuniquei a Wolfe:

- Foi feito com qualquer coisa com uma ponta fina e aguçada. Pode ter sido uma agulha, mas o mais provável é ter sido com o bico de uma tesoura pequena.

- Quando?

- Diria que hoje, mas suponho que também pode ter sido ontem. Não é possível que fosse há três dias. - Continuei de pé ao lado dela.

- Isto é uma insolência! - exclamou levantando-se do cadeirão. - Ainda bem que não lhe disse o meu nome. - Não podia sair dali sem passar por mim.

- Tolice! - declarou Wolfe num tom breve. - Nunca me conseguiria enganar, mesmo sem esse arranhão como prova, a não ser que tivesse sido extremamente bem ensinada. Descreva-me o rapaz. Descreva os outros ocupantes do carro. A que horas foi? Que disse o rapaz? Que foi que ele fez? Podia fazer-lhe muitas mais pergntas. Quanto ao nome, já não o po derá manter oculto. Se for preciso, Mr. Goodwin tira-lhe essa mala das mãos, nem que seja à força, e examina o seu conteúdo. Se se queixar, seremos dois contra um. Sente-se, minha senhora.

- Isto é... desprezível!

- Não. É apenas uma justificada reacção à sua tentativa de nos enganar. Não estamos a pressioná-la, mas se sair daqui vai cá deixar ficar o nome. Sente-se e discutiremos o assunto, mas primeiro diga-nos o seu nome.

A mulher poderia ter sido demasiado o timista ao pensar que podia entrar no gabinete de Nero Wolfe e enganá-lo, mas não era estúpida. Analisou a situação, já sem qualquer sinal de nervosismo, chegou a uma conclusão, abriu a mala e tirou dela um objecto que estendeu a Wolfe.

- A minha carta de condução.

Wolfe pegou-lhe, deu-lhe uma olhadela e devolveu-a. A mulher sentou-se.

- Sou Laura Fromm - declarou. - Mrs. Damon Fromm. Sou viúva. A minha residência em Nova Iorque é o número setecentos e quarenta e três da Rua Sessenta e Oito Leste. Na terça-feira, ao conduzir um carro na Trigésima Quinta Rua, disse a um rapaz para ir chamar um polícia. A partir do seu anúncio concluí que me podia pôr em contacto com o rapaz, e pagarei por esse serviço.

- Portanto, não quer admitir que isto é uma impostura.

- De modo nenhum.

- A que horas falou com o rapaz?

- Isso não é importante.

- Que estava ele a fazer quando lhe falou?

- Isso também não.

- A que distância estava o rapaz quando falou com ele? Teve de gritar muito alto?

Abanou a cabeça.

- Não vou responder a nenhuma pergunta sobre esse assunto. Porque é que haveria de o fazer?

- No entanto, mantém a versão de que conduzia o carro e pediu ao rapaz para chamar um polícia?

- Sim.

- Então está metida num sarilho. A Polícia quer interrogá-la a respeito de um assassínio. Na quarta-feira, um carro atropelou o rapaz e matou-o. De propósito.

- Quê? - exclamou a mulher, espantada.

- Foi o mesmo carro. Aquele que a senhora conduzia quando o rapaz lhe falou.

A mulher abriu e fechou a boca, e só depois conseguiu pronunciar as palavras.

- Não acredito.

- Acabará por acreditar. A Polícia pode explicar-lhe como descobriram que foi o mesmo carro. Não há quaisquer dúvidas, Mrs. Fromm.

- Refiro-me a tudo isto... O senhor está a inventar essa história. É desprezível.

Wolfe moveu a cabeça.

- Archie, vai buscar o Times de ontem.

Fui buscá-lo à estante onde guardamos os jornais até já serem velhos de uma semana. Abri-o na página oito, dobrei-o e entreguei-o a Laura Fromm. A mão tremia-lhe um pouco quando lhe pegou, e para firmar o jornal enquanto o lia teve de se servir da ajuda da outra mão.

A leitura levou o seu tempo. Quando a mulher levantou os olhos, Wolfe declarou:

- Não há aí nada que indique que Pete Drossos foi o rapaz a quem se dirigiu na terça-feira, e nem sequer precisa de aceitar a minha palavra quanto a isso. A Polícia lho dirá.

Os olhos da mulher saltavam de um lado para o outro, de Wolfe para mim, e de novo para Wolfe, para acabarem por se pousar em mim.

- Queria... podem dar-me uma gota de gim?

Deixou cair o jornal no chão. Apanhei-o e perguntei-lhe:

- Puro?

- Pode ser. Ou um Gibson?

- Com cabala?

- Não. Não, obrigada. Pode ser duplo?

Fui à cozinha à procura dos ingredientes e do gelo. Enquanto os mexia pensava para comigo que se a mulher estava à espera de uma qualquer cooperação da parte de Wolfe então fizera mal em pedir gim, porque pelas suas normas todos os bebedores de gim são uns bárbaros. Era provavelmente por isso que, quando levei o tabuleiro e o coloquei na mesinha ao lado do cadeirão, Wolfe estava reclinado para trás e de olhos fechados. Servi-lhe o gim. Primeiro bebeu um trago, depois bebericou uns golinhos, e seguiu-se novo trago. Entretanto, mantivera os olhos baixos durante todo o tempo, talvez para me impedir de ver, através deles, como o seu cérebro estava a funcionar.

À segunda vez esvaziou o copo, pousou-o na bandeja e falou:

- Ia um homem a guiar o carro quando atropelaram o rapaz.

Wolfe abriu os olhos.

- A bandeja, Archie?

O cheiro a gim, em especial com o almoço a meia hora de distância, era evidentemente repulsivo. Levei aquele vil objecto para a cozinha e regressei ao gabinete.

Mas não é conclusivo - dizia Wolfe -, uma vez que se vestisse roupas de homem poderia passar por homem, desde que evitasse uma observação atenta, mas admito que é relevante. De qúalquer modo, não estou a partir do princípio de que matou o rapaz. Limito-me apenas a dizer que quando se viu atraída para aqui por aquele anúncio, e apareceu equipada com o falso arranhão e esses brincos, fez uma asneira das grandes. Se continuar a afirmar que ia a conduzir o carro na terça-feira, merecerá a classificação de burra deficiente mental.

- Não ia.

- Assim é melhor. Onde esteve na terça-feira, à tarde, entre as seis e meia e as sete?

Numa reunião da Comissão Executiva da Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas. Durou até depois das sete. Era uma das causas em que o meu marido estava interessado e com que prosseguirei.

- E onde estava na quarta-feira, à tarde, entre as seis e meia e as sete?

- Que tem isso com... Oh! O rapaz foi... Isso foi antes de ontem... - Fez uma pausa não muito longa. - Estava a tomar um cocktail com um amigo, no Churchill.

- Diz-me o nome do amigo, por favor?

- Isto é ridículo.

- Pois é. É quase tão ridículo como esse arranhão na cara.

- O amigo chama-se Dennis Horan. É advogado. Wolfe fez um aceno.

- Mesmo assim, irá ter de passar por algumas horas desagradáveis. Duvido que tenha estado conscientemente implicada no assassínio. Tenho alguma experiência na observação de caras e não me parece que o choque, ao saber da morte do rapaz, tivesse sido fingido... mas é melhor que se prepare. Vai ter problemas. Não de mim, não lhe pergunto porque é que tentou esta mascarada, porque a questão não me diz respeito, mas a Polícia irá ser muito insistente quanto a isso. Também não tentarei conservá-la aqui até à chegada da Polícia. Pode ir-se embora. Receberá notícias dela.

A mulher tinha os olhos mais brilhantes e o queixo mais no ar. O gim não leva muito tempo a fazer o seu efeito.

- Não tenho de aturar a Polícia - afirmou, num tom cheio de segurança. - Por que motivo?

- Porque vão querer saber o que foi que a trouxe aqui.

- O que eu queria dizer era isto: por que motivo tem de lhes contar a minha visita?

- Porque só guardo informações relacionadas com crimes quando os meus próprios interesses assim o aconselham.

- Não cometi qualquer crime.

- Isso é o que a Polícia quererá que a senhora prove, mas não chegará para lhes satisfazer a curiosidade.

A mulher olhou para mim e devolvi-lhe o olhar. Posso não ser um Nero Wolfe a ler expressões, mas também tenho alguma experiência e sou capaz de jurar que me estava a analisar, tentando decidir se haveria alguma maneira de me fazer alinhar pelo seu lado, se dissesse ao Wolfe para ir dar uma volta. Facilitei-lhe o trabalho assumindo um aspecto viril, forte e virtuoso, mas não hostil. Percebi no seu rosto qual o momento em que desistiu da ideia. Considerando-me como sem hipóteses, abriu a mala de couro verde, tirou dela uma carteira de cabedal e uma caneta, abriu a carteira sobre a mesinha pequena e debruçou-se para escrever. Feito isso, rasgou da carteira um pequeno rectângulo de papel azul e levantou- se do cadeirão para colocar o papel na secretária em frente de Wolfe.

- Isto é um cheque de dez mil dólares - disse-lhe.

- Estou a ver que sim.

- É um sinal.

- Para quê?

- Oh, não estou a tentar suborná-lo. - Fez um sorriso. Era a primeira vez que mostrava uma qualquer reacção parecida com um sorriso, o que fez conceder-lhe mais uns pontos. Segundo parece, vou precisar dos conselhos de um especialista, e talvez de uma ajuda especializada, e como o senhor já está a par do assunto, não quero... não pretendo consultar o meu advogado, pelo menos de momento.

- Ora, está a oferecer-me um pagamento para que não fale à Polícia da sua visita.

- Não, não estou. - Tinha os olhos a brilhar, mas não se tratava de um brilho suave. - Bom, está bem, estou, mas não sem razões. Sou Mrs. Damon Fromm. O meu marido deixou-me uma grande fortuna, incluindo muita coisa em imóveis em Nova Iorque. Tenho uma posição e responsabilidades. Se comunicar à Polícia a minha visita, tratarei de entrar em contacto com o comissário e não creio que me incomodem muito, mas preferia não ter de o fazer. Se for a minha casa amanhã, ao meio-dia, saberá porque...

- Não vou a casa das pessoas.

- Ah, sim, pois é. - Franziu a testa apenas por um instante.

- Nesse caso virei eu aqui.

- Ao meio-dia de amanhã?

- Não, se for aqui, é melhor às onze e meia, porque tenho um compromisso para a uma hora. Até esse momento não comunicará a minha visita. Quero... Preciso de falar com uma pessoa. Preciso de tentar descobrir uma coisa. Amanhã conto-lhe a história toda. Não, é melhor não o dizer assim. Direi antes isto: se não lhe contar tudo até amanhã, ao meio-dia, informará a Polícia, se achar que o deve fazer. Se lho contar, vou precisar dos seus conselhos e, provavelmente, de ajuda. Foi por isso que lhe dei um sinal.

Wolfe resmungou e virou a cabeça.

- Archie, achas que é mesmo Mrs. Damon Fromm?

- Diria que sim, mas não aposto.

Wolfe voltou a virar-se para a mulher.

- Minha senhora, já tentou uma impostura, que só abandonou sob pressão. Esta pode ser outra. Mr. Goodwin irá a um jornal, para ver fotografias de Mrs. Damon Fromm, e telefona-me de lá. Meia hora deve chegar. A senhora fica aqui comigo.

A mulher voltou a sorrir.

- Isto é ridículo.

- Sem dúvida, mas atendendo às circunstâncias não se pode dizer que seja despropositado. Recusa-se?

- Claro que não. Suponho que o mereço.

- Não põe objecções?

- Nenhuma.

- Então não é necessário. É mesmo Mrs. Fromm. Antes de sair, quero que concorde com uma coisa e responda a uma pergunta. Terá de concordar em que a minha decisão de aceitar ou não o seu sinal e trabalhar para si só será tomada amanhã. Neste momento, a senhora não é minha cliente. A pergunta é esta: sabe quem era a mulher que ia a conduzir o carro na terça-feira e falou com o rapaz?

Abanou a cabeça.

- Estou de acordo em que tome essa decisão amanhã... mas não relatará a minha visita antes dessa altura?

- Não, isso estava implícito. A pergunta?

- Não lhe vou responder agora, porque não posso. Na realidade, não tenho a certeza. Espero ter uma resposta amanhã.

- Mas pensa que talvez saiba quem era?

- Prefiro não responder.

Wolfe franziu a cara para ela.

- Mrs. Fromm, tenho de a avisar. Alguma vez viu ou ouviu falar de um homem chamado Matthew Birch?

A mulher também franziu a cara.

- Não. Birch? Não, porquê?

- Um homem com esse nome foi atropelado e morto por um carro na terça-feira à noite. Trata-se do carro que matou Peter Drossos na quarta. Uma vez que não podemos considerar o carro como impiedoso e maligno, estes nomes só poderão ser aplicados a alguém que está associado com ele. Estou a avisá-la para que não seja inconsciente ou até imprudente. Na prática, não me disse nada, pelo que não sei até que ponto possa estar a desafiar um perigo iminente ou mortal, mas digo-lhe: tenha cuidado!

- O mesmo carro? Matou um homem na terça-feira?

- Sim. Uma vez que não a conhece, o caso não lhe diz respeito, mas aconselho-a a ser discreta.

Sentou-se com uma careta.

- Sou discreta, Mr. Wolfe.

- Hoje não o foi, com aquela tola falsidade.

- Está enganado! Estava a ser discreta... ou pelo menos a tentar! - Pegou na carteira de cabedal e na caneta que estavam em cima da pequena mesa, meteu-as na mala e fechou-a. Levantou-se. - Obrigada pelo gim, mas quem me dera não o ter pedido. Não devia bebê-lo. - Estendeu a mão.

Em geral, Wolfe não se levanta quando uma mulher entra ou sai do seu gabinete. Desta vez fê-lo, mas não foi um tributo especial a Laura Fromm, nem sequer ao cheque que tinha em cima da secretária. Estava na hora do almoço e, de qualquer modo, teria de deslocar todo o seu volume dentro de um minuto. Por isso estava de pé quando lhe apertou a mão. Eu também, é claro, pronto para a acompanhar à porta, e pensei que foi muito gracioso da sua parte estender-me também a mão, depois de a ter repelido com o meu ar de incorruptível.

Quase esbarrei nela, que seguia à minha frente na direcção da porta, quando se virou de repente para dizer a Wolfe:

- Esqueci-me de perguntar. O rapaz, Pete Drossos, era uma pessoa deslocada?

Wolfe disse que não sabia.

- Pode informar-se e dizer-mo amanhã?

Respondeu que podia.

Não havia um carro à espera de Laura em frente da casa. Aparentemente, a dificuldade de estacionamento compelira Mrs. Damon Fromm a recorrer aos táxis. Quando regressei ao gabinete, Wolfe já lá não estava, e encontrei-o na cozinha a levantar a tampa de uma fumegante caçarola de costeletas de borrego com presunto fumado e tomate. Cheirava suficientemente bem para dar vontade de as comer.

- Há uma coisa que tenho de admitir - disse-lhe, generoso.

- Tens uns olhos muito bons... mas é claro que as faces das mulheres bonitas são tão irresistíveis que ficaste ressentido com o arranhão e focaste a atenção sobre ele.

Wolfe ignorou o comentário.

- Vais ao banco depois do almoço, para depositar o cheque de Mr. Corliss?

- Sabes bem que sim.

- Então passa também pelo banco de Mrs. Fromm e manda certificar o cheque. Servirá de confirmação da assinatura. Fritz, isto ainda está melhor do que da última vez. Muito satisfatório.

 

Antes do meio-dia do dia seguinte, sábado, já tinha bastantes informações sobre a nossa cliente em perspectiva. Para começar, cinco minutos passados na morgue do Gazette, por cortesia do meu amigo Lon Cohen, confirmaram que se tratava de Mrs. Damon Fromm. Valia qualquer coisa como entre cinco a vinte milhões de dólares, e, como era improvável que viéssemos a querer facturar-lhe mais de um ou dois milhões, não aprofundei mais essa questão. O marido, que tinha o dobro da idade, morrera dois anos antes de um ataque de coração e deixara-lhe a fortuna. Não havia filhas. Nascera Laura Atherton, de uma família de sólidos cidadãos de Filadélfia, e estava casada com Fromm havia sete anos quando ele morreu.

Fromm herdara um pequeno montinho de dinheiro e fizera-o crescer até ao tamanho de uma montanha, principalmente na indústria química. As suas contribuições para várias organizações tinham feito com que, ao saber da notícia da sua morte, uma grande variedade de presidentes, presidentas e secretárias administrativas demonstrassem um profundo mas decente interesse pelo testamento, mas, com a excepção de alguns modestos donativos, tudo o resto fora para a viúva. Contudo, esta prosseguira com as contribuições, e também fora muito generosa com o seu tempo e energias, dando uma atenção especial à Assadip, que era o código telegráfico da Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas, e também o modo como se lhe referiam os que gostavam de poupar o fôlego.

Se estou a dar a impressão de que passei muitas horas numa busca intensiva, então será melhor corrigi-la. Um quarto de hora com Lon Cohen, depois da consulta na morgue do Gazette, chegou para me informar de tudo o que disse acima, excepto um pormenor que consegui no nosso banco. Não havia o perigo de Lon começar a badalár por todo o lado que Nero Wolfe andava a tirar informações sobre Mrs. Damon Fromm, uma vez que lhe tínhamos dado, pelo menos, tantas oportunidades jornalísticas quantos os mexericos que ele nos transmitira.

Às quinze para o meio-dia da manhã de sábado, Wolfe estava à secretária, comigo a seu lado, verificando mais uma vez a conta das despesas da trabalho feito para o Corliss (que não se chama assim), o fabricante de ferramentas (que não trabalha nesse ramo). Wolfe pensava que tinha encontrado um erro de vinte dólares e cabia-me provar que estava enganado. Ficámos empatados. Os vinte dólares que debitei para o Orrie Cather deveriam ter sido debitados para o Saul Panzer, o que era um ponto contra mim, mas, no total, não havia qualquer diferença, pelo que ficávamos iguais. Quando reuni as folhas de papel e atravessei o gabinete na direcção do arquivo, olhei para o relógio de pulso. Um minuto para o meio-dia.

- Passam vinte e nove minutos das onze e meia - comentei. - Achas que lhe telefone?

Murmurou que não e dirigi-me ao cofre em busca do livro de cheques, enquanto Wolfe ligava o interruptor do rádio que tinha na secretária, para ouvir o noticiário do meio-dia. Sentei-me a preencher os talões dos cheques, enquanto os meus ouvidos ouviam, mas o cérebro não prestava grande atenção:

A próxima conferência nas Bermudas entre os líderes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, cuja realização era algo duvidosa depois da queda do primeiro-ministro Mayer, terá provavelmente lugar, tal como estava previsto. Pensa-se que o sucessor de Mayer virá a tomar posse a tempo de ocupar um dos três lugares à mesa.

Há especulações em Tóquio a respeito dos três dias de intervalo nas negociações de paz na Coreia, a pedido do comando das Nações Unidas, terem sido utilizados para mais consultas entre os representantes das potências das Nações Unidas, nos Estados Unidos, e no quartel-general, em Tóquio, do general Mark. Clark, comandante das forças da ONU.

O corpo de Mrs. Damon Fromm, rica filantropa e personagem da vida social de Nova Iorque, foi hoje encontrado numa passagem entre os pilares do viaduto da auto-estrada do East Side, agora em construção. De acordo com a Polícia, foi atropelada por um carro, mas não se pensa que tenha sido um acidente.

Calcula-se que cerca de um milhão e duzentos e cinquenta mil nova-iorquinos tenham assistido à impressionante demonstração do poderio das Forças Armadas americanas, quando...

Wolfe não desligou o rádio. Tanto quanto conseguia perceber pela sua expressão, até estava à escuta. Porém, há medida que os cinco minutos foram passando, começou a ostentar uma expressão carrancuda, e depois de desligar o interruptor deixou que o rosto mostrasse emoções não contidas.

- E pronto - disse-lhe.

Podia ter feito uma dúzia de comentários diferentes, mas nenhum teria qualquer utilidade. De certeza que Wolfe não precisava que lhe recordassem que a aconselhara a não ser inconsciente ou até imprudente, e; além disso, a expressão carrancuda não encorajava comentários. Passado um instante, pousou as palmas das mãos nos braços da cadeira e começou a esfregá-las devagar, para trás e para a frente, sobre o tecido áspero, que soltava um som silvante. Isso continuou durante um bocado, mas depois cruzou os braços e endireitou-se.

- Archie.

- Sim.

- De quanto tempo precisas para dactilografar o relato da nossa conversa com Mrs. Fromm? Não é preciso ser literal. Sei que com a tua memória superlativa conseguirias andar lá por perto, mas não é necessário. Apenas o resumo, escrito de um modo adequado, como se estivesses a fazer um relatório para mim.

- Podes ditar-mo.

- Não estou com disposição para ditados.

- Queres que conte tudo?

- Inclui apenas o que é significativo. Não incluas o facto de lhe ter dito que Pete Drossos e Matthew Birch foram mortos pelo mesmo carro, uma vez que isso não foi publicado.

- Vinte minutos.

- Escreve-o sob a forma de uma declaração, para ser assinada por ti e por mim. Com duas cópias. Data-a de hoje ao meio-dia. Levarás imediatamente o original aos serviços de Mr. Cramer.

- Meia hora. Para uma declaração assinada preciso de ter mais cuidado.

- Está muito bem.

Excedi a estimativa por menos de cinco minutos. A declaração ocupava três páginas, e Wolfe leu-as uma a uma, logo que ficaram prontas. Não fez correcções, nem sequer comentários, o que constituía uma indicação do seu estado de espírito ainda mais reveladora do que a recusa em ditar o texto. Assinámo-la e meti-a num sobrescrito.

- O Cramer não vai lá estar - disse-lhe -, nem o Stebbins, por causa de todo este trabalho.

Disse-me que a entregasse a uma pessoa qualquer e pus-me a caminho.

Não sou um desconhecido na 10 á Esquadra, na 20 á Rua Oeste, que inclui a sede do Departamento de Homicídios de Manhattan Ocidental, mas naquele dia não avistei caras familiares até subir ao 2. andar e me aproximar do polícia de serviço, com quem já falara muitas vezes. Tivera razão: Cramer e Stebbins não estavam. O responsável de momento era o tenente Rowcliff, e o homem dee serviço telefonou-lhe a informá-lo que eu queria falar com ele.

Se estivesse com um grupo de vinte pessoas esfomeadas, incluindo Rowcliif, abandonadas numa ilha deserta, e votássemos para escolher aquele que iríamos trinchar para fazer um churrasco, eu não votava nele porque não o conseguiria aguentar no estômago, e se fôssemos comparar a opinião que ele faz a meu respeito com a que eu tenho dele, a minha seria considerada como muito compreensiva. Por isso não fiquei surpreendido quando, em vez de me mandar entrar, surgiu com passos apressados, aproximou-se e rosnou:

- Que queres?

Tirei o sobrescrito da algibeira.

- Isto - respondi-lhe - não é um pedido de emprego na Polícia para poder servir sob as tuas ordens.

- Meu Deus, como seria bom que fosse! - Esta era a sua maneira de falar.

- Nem sequer é uma intimação...

Arrancou-me o sobrescrito das mãos, removeu o conteúdo, lançou- lhe uma olhadela às assinaturas.

- Uma declaração tua e do Wolfe. Uma obra-prima, sem dúvida. Queres um recibo?

- Não necessariamente. Posso ler-ta, se quiseres.

- Tudo o que desejo é ver-te de costas, a caminho da saída. Todavia, sem esperar por aquilo que tanto desejava, deu meia volta e foi-se embora. Dirigi-me ao polícia de serviço.

- Toma nota que entreguei um sobrescrito àquele babuíno quando era uma hora e seis minutos solares.

De regresso a casa, verifiquei que Wolfe começara a almoçar naquele momento, e juntei-me a ele, ajudando-o a fazer desaparecer uma omeleta de anchovas. Não permite que se fale de trabalho às refeições, e as interrupções estão fora de causa, pelo que tive mais uma prova do seu estado de espírito quando, na altura em que me atarefava com uma torta de figos e cerejas, o toque do telefone me levou ao gabinete, para depois voltar e dizer-lhe:

- Está em linha um homem chamado Dennis Horan. Talvez te record...

- Sim. Que quer ele?

- Falar contigo.

- Diz-lhe que volte a telefonar dentro de dez minutos.

- Tem outros sítios aonde ir e não vai estar disponível. Nem sequer ficou perturbado. Não se precipitou para o telefone, mas foi. Eu também, e já me encontrava instalado ao telefone da minha secretária antes de Wolfe atingir o dele. Sentou-se e levou-o ao ouvido.

- Fala Nero Wolfe.

- Sou Dennis Horan, Mr. Wolfe, um advogado. Houve uma terrível tragédia. Mrs. Damon Fromm morreu. Foi atropelada por um carro.

- Ah, sim? Quando?

- O corpo foi encontrado às cinco da manhã de hoje. - A voz tinha um tom agudo de tenor que parecia querer guinchar, mas talvez isso se devesse ao choque da tragédia. - Eu era amigo dela e tratava-lhe de alguns assuntos. Estou a telefonar-lhe por causa do cheque de dez mil dólares que ela lhe entregou ontem. Já foi depositado?

- Não.

- Isso é óptimo. Uma vez que ela está morta, o cheque não será coberto. Quer mandá-lo para casa da falecida ou prefere enviar-mo?

- Nem uma coisa nem outra. Vou depositá-lo.

- Mas não lho pagarão! Os cheques não levantados, assinados por uma pessoa falecida, não são...

- Eu sei. O cheque está certificado. Foi certificado no banco, ontem à tarde.

- Oh! - Seguiu-se uma longa pausa. - Porém, como a senhora morreu e já não pode utilizar os seus serviços, como o senhor não pode fazer nada por ela, não vejo como pode querer... Quero dizer, não seria mais decente e ético se devolvesse o cheque?

- O senhor não é o meu mentor em decência e ética, Mr. Horan.

- Não estou a dizer que o sou. Sem qualquer má vontade ou preconceito, pergunto-lhe: nestas circunstâncias, como vai justificar-se para ficar com o dinheiro?

- Trabalhando para o ganhar.

- Quer ganhar esse dinheiro?

- Exacto.

- Como?

- Isso é comigo. Se for o representante legal dos interesses de Mrs. Fromm, estou disposto a discutir o assunto consigo, mas não pelo telefone. Estarei disponível no meu gabinete desde este momento até às quatro horas, ou das seis às sete, ou então das nove até à meia-noite.

- Não sei... Não me parece que... Bom, vou ver. Desligou e nós também. De volta à casa de jantar, Wolfe acabou a tarte e o café, em silêncio. Esperei que regressássemos ao gabinete e se ajeitasse na cadeira para comentar:

- Ganhar aquele dinheiro seria óptimo, mas o principal é sentirmos que o merecemos. Não quero ser desmancha-prazeres, mas duvido que a entrega da declaração ao Rowcliff seja suficiente. O meu ego está com comichões.

- Deposita o cheque - murmurou.

- Sim, senhor.

- Precisamos de informações.

- Sim, senhor.

- Vai ter com Mr. Cohen e arranja-as.

- A respeito de quê?

- Tudo. Inclui Matthew Brich, desde que ele fique a saber que o seu conhecimento da ligação do caso de Birch com Mrs. Fromm não deve ser revelado, a não ser que a Polícia o faça ou que venha a ter conhecimento por outra fonte. Não lhe contes nada. Pode publicar que estou envolvido no caso, mas não qual é a fonte do meu interesse.

- Digo-lhe que Pete veio ter comigo?

- Não.

- Ficaria satisfeito. Seria uma história de interesse humano, em exclusivo para ele. Demonstraria também que a tua reputação...

Bateu com o punho na secretária, o que para ele era uma verdadeira convulsão.

- Não! - rugiu. - Reputação? Queres que me arrisque a ouvir dizer que quem vem pedir-me ajuda corre um risco mortal? Na terça-feira, o rapaz. Na sexta, a mulher. Estão os dois mortos. Não quero o meu gabinete transformado numa antecâmara da morgue.

- Pois, também já tinha pensado nisso.

- Fizeste mal em não o dizer em voz alta. A pessoa responsável teria feito melhor em não me meter neste assunto. Vamos precisar do Saul, da Fred e do Orrie, mas tratarei disso. Vai!

Assim fiz. Apanhei um táxi para a redacção do Gazette. A recepcionista do 3. andar, que não só me tinha recebido antes como estivera durante três ou quatro anos na lista de pessoas que eram brindadas duas vezes por ano com uma caixa de orquídeas das estufas de Wolfe, falou com Lon pelo intercomunicador e mandou-me entrar com um aceno.

Não sei bem qual é o papel de Lon Cohen no Gazette e duvido que ele o saiba. Parecia estar sempre a par de todos os temas locais ou telegráficos, diários ou domingueiros, estrangeiros, nacionais ou regionais, sem sequer ter de se esforçar por isso. Possui a única secretária numa sala com cerca de três por quatro metros, o que é óptimo, porque de outro modo não haveria espaço para os seus pés, que também devem ter três por quatro metros. Dos tornozelos para cima é muito normal.

Quando entrei estavam dois colegas com ele, mas despacharam-se depressa e foram-se embora. Quando trocámos um aperto de mão, Lon disse- me:

- Não vale a pena sentares-te. Posso conceder-te dois minutos.

- Estás louco. Conta pelo menos com uma hora.

- Hoje não. Estamos muito atarefados por causa do assassínio da Fromm. A única razão por que te deixei entrar é porque quero autorização para publicar que Nero Wolfe andou ontem a fazer perguntas a respeito de Mrs. Fromm.

- Não me parece... - Deixei a frase em suspenso enquanto puxava uma cadeira e me sentava. - Não, é melhor não. No entanto, podes dizer que ele está a trabalhar no caso.

- Está?

- Pois...

- Quem o contratou?

Abanei a cabeça.

- Foi um pombo-correio que trouxe o contrato e Wolfe não me quis dizer de onde.

- Descalça os sapatos e as meias enquanto acendo um cigarro. Umas ligeiras aplicações nas tuas tenras carnes devem bastar. Quero o nome do cliente.

- J. Edgar Hoover.

Soltou um ruído muito inconveniente.

- Nem sequer o queres dizer, num sussurro, só para mim?

- Não.

- Mas posso tornar público que Wolfe está a trabalhar no assassínio da Fromm?

- Sim. Mais nada.

- E o rapaz, Pete Drossos? E Matthew Birch? No deles também?

Lancei-lhe uma olhadela.

- Como é que?...

- Por amor de Deus! Pelo anúncio de Wolfe no Times, querendo falar com uma mulher, com brincos em forma de aranha, que lhe pedira para chamar um polícia, à esquina da Nona e da Trigésima Quinta. Mrs. Fromm usava brincos desses e ontem estiveste aqui a fazer perguntas a seu respeito. Quanto ao Birch... foi a coincidência de métodos. O corpo foi encontrado num lugar deserto, amachucado por um carro, tal como o de Mrs. Fromm. Repito a pergunta.

- E eu respondo. Nero Wolfe está a investigar o assassínio de Mrs. Fromm com o seu habitual vigor, capacidade e preguiça. Não descansará enquanto não apanhar o filho da mãe ou sejam horas de ir para a cama... conforme o que acontecer primeiro. Qualquer referência que faças aos outros crimes deve vir numa outra página do jornal.

- Não há ligações implícitas?

- Não da minha boca, nem da dele. Se eu te pedir informações sobre o Birch, foi porque tu o meteste no assunto.

- Está bem, espera aí. Quero apanhar a primeira edição. Lon saiu da sala. Sentei-me e discuti com Wolfe, tentando convencê-lo a deixar que Lon publicasse o interessante facto de ter sido encontrado um bocado do casaco de Matthew Birch no carro que matara Pete Drossos, mas não tive qualquer êxito porque Wolfe não se encontrava ali. Momentos depois, Lon regressava. Esperei que se sentasse à secretária e metesse os enormes pés debaixo dela, para lhe dizer:

- Ainda preciso de uma hora.

- Veremos. Não há muito alimento nessa migalha que me ofereceste.

Não foi precisa uma hora, mas apenas uma boa fatia desses sessenta minutos. Forneceu-me quase tudo o que eu desejava sem ter de consultar documentos, e com apenas um ou dois telefonemas a colegas de trabalho.

Mrs. Fromm almoçara no Churchill na sexta-feira, com Miss Angela Wright, secretária executiva da Assadip, a Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas. Possivelmente dirigira-se para o Churchill depois de sair do gabinete de Wolfe, mas não entrei nesses pormenores com Lon. Depois do almoço, cerca das duas e trinta, as duas mulheres tinham seguido juntas para os escritórios da Assadip, onde Mrs. Fromm assinara alguns papéis e fizera telefonemas. O Gazette não sabia por onde ela andara entre as três e quinze até perto das cinco, momento em que regressara à sua casa na 68. a Rua, onde estivera cerca de uma hora a trabalhar com a sua secretária pessoal, Miss Jean Estey. De acordo com Lon, Angela Wright fazia jus ao seu sexo, uma vez que conversava com os jornalistas, mas Jean Estey não o fazia, porque não queria falar.

Um pouco antes das sete horas, Mrs. Fromm saíra de casa sozinha, para ir jantar, conduzindo um dos carros, um Cadillac descapotável. O jantar fora no apartamento de Mr. e Mrs. Dennis Horan, no Parque Gramercy. Não se sabia onde estacionara o carro, mas à noite, naquelas vizinhanças, há sempre lugares vagos. O jantar reunira seis pessoas:

Dennis Horan, o dono da casa.

Claire Horan, a mulher.

Laura Fromm. Angela Wright.

Paul Kuffner, especialista em relações públicas. Vincent Lipscomb, editor de revistas.

O grupo desfizera-se um pouco depois das onze e os convidados tinham saído separados. Mrs. Fromm fora a última a sair. O Gazette tivera a informação de que Horan a acompanhara até ao carro, mas a Polícia não dizia nada e não conseguiam uma confirmação. Era tudo o que se sabia a respeito de Laura Fromm, até às cinco horas da madrugada, quando um homem que ia trabalhar para um mercado de peixe passara por entre os pilares em construção e descobrira o corpo.

Apenas alguns minutos antes de eu chegar à redacção do Gazette, o procurador do distrito anunciara que Mrs. Fromm fora atropelada pelo seu próprio carro. O descapotável fora encontrado estacionado na 16 á Rua, entre as 6 á e 7 á Avenidas, apenas a dez minutos de distância, a pé, da 10. a Esquadra, e revelara não apenas provas desse facto como uma pesada chave de rodas, encontrada no fundo do carro, que fora utili zada para bater na nuca de Mrs. Fromm. Quer o assassino estivesse escondido no carro, debaixo de um tapete, por detrás dos bancos da frente, quando Mrs. Fromm descera até ele, ou quer tivesse entrado para a acompanhar, era mais do que provável que escolhera o momento e o local para a atingir com a chave, substituíra-a ao volante, conduzira até um local apropriado, vazio e sem testemunhas àquela hora, atirara-a porta fora e passara-lhe por cima. Seria interessante e instrutivo poder ir até à Rua Central e observar os especialistas a trabalhar no carro, mas de certeza que não me deixariam aproximar a menos de um quilómetro e, além disso, eu estava ocupado com o Lon.

Tanto quanto o Gazette sabia, de momento as possibilidades eram limitadas e não existia nenhum candidato a suspeito que fosse favorecido pela Polícia ou por um qualquer talento externo. Claro que os que tinham estado presentes no jantar se encontravam sob os olhos de todos, mas poderia ter sido qualquer outra pessoa que soubesse por onde Mrs. Fromm andava, ou até alguém que não o soubesse. Lon não tinha su gestões para me dar, mas atirou- me o comentário de que uma das mulheres do Gazette estava muito curiosa a respeito da atitude de Mrs. Horan em relação ao progresso da amizade entre o seu marido e Mrs. Fromm.

Fiz uma objecção.

- Essa explicação não serve se quiseres que Pete Drossos e Matthew Birch se encaixem no caso, a não ser que tenhas alguma prova. Quem era Matthew Birch?

- Quando fores a caminho de casa compra o Gazette de quarta- feira - resmungou Lon.

- Tenho um em casa e já o li. São notícias velhas de três dias.

- Que não se modificaram. Era um agente especial dos Serviços de Emigração e Naturalização, era-o há vinte anos, tinha mulher e três filhos. Só possuía vinte e um dentes, parecia um estadista esgotado pelas preocupações, vestia-se acima das suas posses, não era nada popular nos seus círculos, e apostava nas corridas por intermédio do Danny Pincus.

- Disseste que tinhas ligado Birch ao caso do rapaz por causa do método utilizado. Há qualquer outra razão?

- Não.

- Só aqui para o teu velho amigo Goodwin, que merece toda a confiança: não tens mesmo nenhum outro motivo?

- Não.

- Então vou fazer-te um favor, esperando que o pagues com juros quando achares mais oportuno. É uma informação secreta. A Polícia descobriu que o carro que matou Pete Drossos foi o mesmo que matou Matthew Birch.

- Não! - exclamou, de olhos muito abertos.

- Sim.

- Descobriu como?

- Desculpa, esqueci-me, mas é absolutamente certo.

- Diabos me levem. - Lon esfregou as mãos. - Isto é uma beleza. Pete e Mrs. Fromm, os brincos. Pete e Birch, o carro. Isto liga Birch a Mrs. Fromm. Como deves compreender, o Gazette tem agora um palpite muito mais forte de que os três crimes estão ligados entre si, e procederá de acordo com isso.

- Está bem... desde que seja apenas um palpite.

- Bom. Quanto ao carro propriamente dito, como sabes a matrícula era falsa. O carro foi roubado em Baltimore há quatro meses, e depois disso já foi pintado duas vezes.

- Essa informação não foi publicada.

- Tornaram-na pública ao meio-dia. - Lon inclinou-se para mim. - Escuta, tenho uma ideia. Como podes ter a certeza absoluta de que sou de confiança se não me puseres à prova? Diz-me como é que eles sabem que Birch e o rapaz foram mortos pelo mesmo carro, que eu a seguir esqueço- me.

- Eu esqueci-me primeiro. - Levantei-me e sacudi as pernas das calças. - Meu Deus, és um guloso! Os cães só devem comer uma vez por dia e já tiveste a tua ração.

 

Quando regressei à 35 á Rua já passava das quatro e o gabinete estava vazio. Fui à cozinha perguntar a Fritz se tinham surgido alguns visitantes e respondeu-me que sim, que aparecera o inspector Cramer.

Levantei as sobrancelhas.

- Escorreu sangue?

Respondeu que não, mas que fora tudo muito barulhento. Bebi um grande copo de água, regressei ao gabinete e toquei para as estufas pelo telefone interno. Quando Wolfe atendeu, disse-lhe:

- Estou em casa. Cumprimentos do Lon Cohen. Escrevo um relatório à máquina?

- Não, vem cá acima e conta-me tudo.

Não era exactamente uma excepção a uma regra, como a interrupção ao almoço, mas era excepcional. Para mim estava bem, porque enquanto se sentisse magoado por pensar que alguém o fizera passar por burro, então era provável que mantivesse o cérebro a trabalhar. Subi os três lanços de escadas, passei a porta de alumínio para o vestíbulo e entrei na estufa quente onde as Miltonia roezi e as Phalaenopsis aphrodite se encontravam em plena floração, enquanto na sala seguinte, a média, só se viam flores nalguns dos melhores exemplares de Cattleyas e Laelias, o que eu achava muito bem; de qualquer modo, o maior de todos os exemplares, chamado Wolfe, também lá se encontrava, ajudando Theodore a ajustar os toldos de musselina. Quando apareci, seguiu à minha frente para as traseiras, através da estufaria e até a sala de envasamento, onde descarregou o seu peso na única cadeira existente e exigiu:

- Então?

Trepei para uma bancada e contei-lhe tudo. Sentou-se de olhos fechados, agitando de vez em quando o nariz à maneira de pontuação. Cada vez que lhe fazia um relatório, um dos meus objectivos era cobrir todos os temas tão bem que no fim ele não tivesse qualquer pergunta para me fazer, e dessa vez consegui-o. Quando terminei, manteve a pose durante um longo momento, depois abriu os olhos e informou-me:

- Mr. Cramer esteve aqui.

- O Fritz já mo disse - confirmei com um aceno. - Também me explicou que houve muito barulho.

- Sim. Foi invulgarmente ofensivo. Claro que está sob pressão, mas eu também. Afirmou-me que se ontem lhe tivesse falado da visita de Mrs. Fromm, esta não teria sido morta, o que é conversa fiada. Além disso, ameaçou-me: se obstruir de qualquer maneira a investigação da Polícia, serei intimado a tribunal. Bah! Ainda lá está em baixo?

- Só se estiver escondido na casa de banho. O Fritz disse-me que ele se foi embora.

- Deixei-o e vim cá para cima. Telefonei ao Saul, ao Fred e ao Orrie. Que horas são?

Ser-lhe-ia preciso virar a cabeça para ver o relógio, pelo que lhe respondi:

- Dez para as cinco.

- Vão cá estar às seis, ou pouco antes. Não recebi mais notícias de Mr. Horan. Que idade tem essa Jean Estey?

- Lon não o especificou, mas disse que era nova, pelo que deverá ter menos de trinta. Porquê?

- É bonita?

- Não sei.

- Tens o direito de o saber. De qualquer modo, é nova. Saul, ou Fred, ou Orrie poderiam descobrir-nos aí uma brecha, mas não quero andar de um lado para o outro nesta gaiola enquanto o tentam. Quero saber o que Mrs. Fromm fez das três e um quarto às cinco de ontem à tarde, e em quê, ou quem, estava a pensar durante a hora que passou com Miss Estey. Miss Estey poderá dizer-mo... pelo menos a segunda coisa, e muito provavelmente a primeira. Apanha-a e vê se a trazes aqui.

Não o interpretem mal. Wolfe sabia que seria fantástico. Não tinha a menor esperança de que, atendendo às circunstâncias, eu conseguisse aproximar-me da secretária pessoal de Mrs. Fromm para uma conversa particular, e muito menos que conseguisse levá-la até ao gabinete para a poder espremer à vontade. Mas se isso lhe ia custar a conta de um táxi, então, que diabo, porque não aproveitar a mínima oportunidade capaz de levantar alguma poeira?

Assim, limitei-me a comentar que ia dizer ao Fritz para pôr mais um prato para o jantar, não fosse dar-se o caso de a mulher ter fome, deixei-o, desci um lanço de escadas até ao meu quarto, parei junto da janela e analisei o problema. Em dez minutos imaginei e rejeitei quatro planos diferentes. O quinto pareceu- me mais provável, com, pelo menos, uma fraca hipótese de resultar, e votei por ele.

Para me vestir para o papel a desempenhar não havia nada de útil no meu guarda-roupa pessoal, por isso dirigi-me ao armário onde guardava uma grande variedade de artigos para emergências profissionais como aquela, e tirei de lá um fraque e um colete pretos, umas calças às riscas, uma camisa branca com colarinho engomado, um chapéu de coco preto e uma gravata preta. Os sapatos e meias apropriadas existiam no meu guarda-roupa pessoal. Depois de me barbear e enfiar nas roupas, examinei-me no espelho de corpo inteiro e fiquei impressionado. Agora, só me fazia falta uma noiva ou um carro fúnebre.

Lá em baixo, no gabinete, fui buscar uma pequena Marley 22 à colecção que tinha na gaveta da secretária e meti-a no bolso traseiro das calças. Era uin compromisso. Uma 32 numa sovaqueira dar-me-ia cabo dos contornos de um par de experiências desagradáveis, uma das quais fizera com que tivesse sido necessário tirarem-me uma bala do peito, prometera tanto a Wolfe como a mim mesmo que nunca mais iria desarmado quando tivesse de lidar com alguém envolvido num crime, mesmo que do modo mais remoto. Resolvido esse assunto, fui à cozinha pregar um susto ao Fritz.

- Fui nomeado - declarei-lhe - embaixador no Texas. Adieu.

Fritz pediu-me para desabotoar a camisa, a fim de lhe mostrar a cinta.

Eram cinco e trinta e oito quando paguei ao motorista do táxi em frente da casa, na 68 á Rua Leste. Do outro lado da rua havia um pequeno agrupamento de basbaques, mas deste lado um polícia fardado mantinha os cidadãos em movimento. A casa era em granito e recuada um par de metros, com grades de ferro, mais altas que a minha cabeça, protegendo a área em volta dos dois lados da entrada. Quando avancei para aí, o polícia deslocou-se ao meu encontro, mas não me bloqueou o caminho. Os polícias preferem não impedir a passagem às personagens vestidas como eu estava.

Parei, olhei para ele com um ar pesaroso e declarei:

- Preparativos para o funeral.

Teria dificultado as coisas se me acompanhasse à porta, mas três mulheres bisbilhoteiras deram-me uma ajuda ao convergirem para o gradeamento de ferro, e quando o polícia as persuadiu a seguirem o seu caminho já eu entrara no átrio e falava com o espécime de nariz aristocrático que me abrira a porta. O seu padrão de cores de vestuário era igual ao meu, mas eu ganhava-lhe em estilo.

- Verificou-se - disse-lhe, com tristeza mas firmemente - uma confusão no que respeita às flores, confusão que tem de ser esclarecida. Necessitarei de falar com Miss Estey.

Como não seria apropriado meter um pé na fresta da porta para não deixar que se fechasse, tive de conter esse impulso, mas assim que ele a abriu o suficiente para me dar espaço não perdi tempo a esgueirar-me para o interior. Quando o homem fechou a porta, comentei:

- Nestas alturas, a curiosidade mórbida do público é muito incomodativa. Poderá fazer o favor de dizer a Miss Estey que Mr. Goodwin quer falar com ela a respeito das flores?

- Por aqui, faça favor.

Fez-me andar cinco passos ao longo do átrio, na direcção de uma porta aberta, acenou-me para que entrasse e disse-me para esperar. A sala não era nada do que eu esperaria da residência citadina de Mrs. Damon Fromm. Era mais pequena do que o meu quarto de cama, e para além de duas secretárias, duas pequenas mesas de apoio com máquinas de escrever e uma profusão de cadeiras, estava cheia de armários de arquivo e de uma miscelânea de objectos. As paredes estavam cobertas de cartazes e fotografias, algumas emolduradas, outras não. Eram imensas. Depois de uma vista de olhos geral, prestei atenção a uma, e depois a outra, e inspeccionava a inscrição de outra, Conselho Americano da Saúde, 1947, quando ouvi passos. Endireitei-me e virei-me.

A mulher entrou, parou, e levantou para mim uns olhos de um castanho-esverdeado.

- Que se passa com as flores? - inquiriu.

Os seus olhos não tinham o aspecto de terem ficado muito irritados por uma inundação de lágrimas, mas de certeza que não se mostravam felizes. Em circunstâncias mais propícias, provavelmente, tê-la-ia classificado abaixo dos trinta anos, mas nunca se a visse com o aspecto que tinha agora. Sim, era bonita. Não usava brincos. Não tinha vestígios de um arranhão na face, mas já se haviam passado quatro dias desde que Pete o vira e não nos dera quaisquer especificações quanto ao formato ou profundidade do mesmo. Assim, não existiam grandes esperanças de virmos a notar vestígios do arranhão no rosto de Jean Estey ou no de outra pessoa qualquer.

- É Miss Jean Estey? - perguntei-lhe.

- Sim. Que há quanto às flores?

- É sobre isso           que venho falar-lhe. Já deve ter ouvido o nome de Nero Wolfe...

- O detective?

- Sim.

- Sem dúvida.

- Óptimo. Foi ele quem me enviou. Chamo-me Archie

Goodwin e trabalho para Wolfe. Ele quer enviar flores para o funeral de Mrs. Fromm e gostaria de saber se há alguma objecção a orquídeas, desde que sejam cachos de Miltonia roezli alba, que são de um branco puro e muito belas.

Olhou para mim um segundo e de repente explodiu em gargalhadas. Não era um som musical. Os ombros tremiam-lhe ao ritmo das gargalhadas, e meio andou meio cambaleou para uma cadeira; sentou-se, baixou a cabeça e apertou as têmporas entre as palmas das mãos. O mordomo apareceu junto da porta aberta para verificar o que se passava. Aproximei-me dele e disse-lhe, com um ar compreensivo, que tinha muita experiência a lidar com crises daquelas, o que não era mentira, e que talvez fosse melhor fechar a porta. O homem concordou e fechou-a. Depois, por momentos, pensei que precisaria de a esbofetear para acabar com aquilo, mas logo a seguir a mulher começou a acalmar-se. Sentei-me numa cadeira. Miss Estey endireitou-se e limpou os olhos com um lenço.

- O que me espantou - disse - foi a maneira como está vestido. É grotesco vestir-se assim para vir perguntar se pomos objecções às orquídéas! - Teve de parar um momento para pôr a respiração em ordem. - Não haverá flores. Agora, já pode sair.

- Estas roupas foram apenas para poder entrar.

- Compreendo. Serviu-se de um falso pretexto. Para quê?

- Para a ver. Escute, Miss Estey, lamento muito que o meu disfarce lhe tenha provocado esse pequeno ataque, mas agora deixe-se estar sentada uns minutos para acalmar os nervos, e, entretanto, porque é que não permite que me explique? Suponho que sabe que Mrs. Fromm visitou Mr. Wolfe ontem e lhe deu um cheque de dez mil dólares.

- Sim, sou eu que trato da sua conta pessoal.

- Disse-lhe para que era o cheque?

- Não. Escreveu no talão que se tratava de um sinal.

- Bom, não lhe posso dizer para que era o cheque, mas Mrs. Fromm ficou de visitar Mr. Wolfe hoje de manhã. O cheque foi certificado ontem e será depositado na segunda-feira. Mr. Wolfe sente uma certa responsabilidade para com Mrs. Fromm e considera que é obrigado a investigar a sua morte.

A mulher respirava melhor.

- A Polícia também está a investigar. Dois deles saíram daqui ainda não há meia hora.

- Claro. Se o resolverem, muito bem. Mas se não o conseguirem, Mr. Wolfe fá-lo-á. Ou não deseja que o faça?

- O que eu quero não tem grande importância, pois não?

- É importante para Mr. Wolfe. A Polícia pode dizer a qualquer pessoa envolvida: Responda a esta pergunta ou então... mas para ele isso não é possível. Quer conversar consigo e enviou-me para a levar ao seu gabinete, e só a posso convencer a fazê-lo por meio de um de três métodos: podia ameaçá-la se tivesse com quê, mas não tenho; podia suborná-la se soubesse o que usar como isco, mas não sei; só me resta dizer-lhe que Mrs. Fromm o foi visitar e lhe entregou aquele cheque, e que Mr. Wolfe tem motivos para pensar que a sua morte está relacionada com o assunto para o qual ela o contratou, e, portanto, sente-se obrigado a investigar, e quer começar com uma conversa consigo. A questão está em saber se a senhora quer ajudar. Como é natural, penso que sim, sem ameaças ou subornos, mesmo que eu tivesse alguma coisa dessas na manga. O nosso gabinete é na Trigésima Quinta Rua. O polícia que está à porta pode chamar-nos um táxi, e estaremos lá em quinze minutos.

- Quer dizer... ir agora?

- Claro.

Abanou a cabeça.

- Não posso. Tenho de... Não, não posso. - Estava de novo calma, sem qualquer vestígio do ataque anterior. - Diz que a questão está em saber se quero ou não ajudar, mas não, é saber como posso ajudar. - Hesitou, estudando-me. - Creio que lhe vou dizer uma coisa...

- Ficaria muito grato.

- Já lhe disse que dois polícias, dois detectives, saíram daqui há meia hora.

- Sim.

- Bom, enquanto aqui estiveram, não muito antes de se irem embora, houve um telefonema para um deles. Depois de desligar disse que eu poderia vir a ser contactada por Nero Wolfe, provavelmente através do seu assistente, Archie Goodwin, que talvez me pedisse para ir falar com Nero Wolfe. Se isso acontecesse, eu deveria cooperar transmitindo à Polícia tudo o que Nero Wolfe dissesse.

- É interessante. Concordou em cooperar?

- Não. Não me comprometi. - Levantou-se, dirigiu-se a uma secretária, tirou um maço de cigarros de uma gaveta, acendeu um e puxou duas grandes fumaças. Ficou a olhar para baixo, para mim. - A razão por que lhe disse isto é puramente egoísta. Acontece que penso que Nero Wolfe é mais esperto do que qualquer polícia, mas quer o seja quer não, Mrs. Fromm foi consultá-lo ontem e deu-lhe aquele cheque, que não sei para que foi. Como sou sua secretária, é claro que estou envolvida nisto. Não o posso impedir, mas não farei nada que me envolva ainda mais, como certamente aconteceria se fosse falar com Nero Wolfe. Se não contasse à Polícia o que Nero Wolfe me dissesse, nunca mais me largavam. E se dissesse... Bom, se ele me interrogasse a respeito de qualquer coisa que Mrs. Fromm lhe tivesse comunicado confidencialmente e não quisesse que chegasse aos ouvidos da Polícia?

Puxou outra fumaça do cigarro, dirigiu-se à mesa, amachucou-o num cinzeiro e regressou.

- Assim, preferi dizer-lhe tudo. Sou apenas uma doce e inocente rapariga de uma pequena cidade do Nebrasca. Não penso. Se dez anos sozinha em Nova Iorque não me ensinaram a evitar colisões no meio do trânsito intenso, nada o fará. Aqui estou, metida nesta confusão, mas não direi nem farei qualquer coisa que a torne ainda pior... para mim. Vou precisar de um novo emprego. Não devo nada a Mrs. Damon Fromm. Trabalhei para ela, pagou-me, mas nem sequer era um ordenado extravagante.

Tinha a cabeça inclinada para trás, para que eu olhasse para ela, e um rosto que, como se estivesse a obedecer a ordens, ostentava uma expressão franca e compreensiva. O colarinho engomado cravava-se-me no pescoço.

- Não argumentarei contra isso, Miss Estey. Também estou há mais de dez anos em Nova Iorque. Diz que a Polícia lhe pediu que comunicasse o que Nero Wolfe dissesse, mas falaram de Archie Goodwin? Pediram-lhe para comunicar o que eu disser?

- Não me parece. Não.

- Belo. É claro que nada tenho de especial para lhe dizer, mas se se sentar gostaria de lhe fazer algumas perguntas.

- Estive toda a tarde sentada a responder a perguntas.

- Aposto que sim. Perguntas como esta: onde esteve a noite passada, entre as dez e as duas da manhã?

- Está a perguntar-mo? - inquiriu, fitando-me.

- Não, estou apenas a dar-lhe um exemplo do tipo de perguntas a que esteve a responder toda a tarde.

- Pois olhe, aqui vai uma amostra do tipo de respostas que dei. Ontem, entre as cinco e as seis, Mrs. Fromm ditou-me cerca de uma dúzia de cartas. Um pouco depois das seis foi lá acima vestir-se, e eu iniciei alguns telefonemas que ela me pedira para fazer. Um pouco depois das sete, após a saída de Mrs. Fromm, jantei sozinha, e a seguir ao jantar dactilografei as cartas que me ditara e fui metê-las no marco do correio na esquina da rua. Deveriam ser cerca das dez horas. Regressei para aqui e disse a Peckham, o mordomo, que estava cansada e que ia para a cama. Subi ao meu quarto, liguei o rádio na estação WQXR para ouvir música e meti-me na cama.

- Muito bem. Quer dizer que vive aqui?

- Sim.

- Outro exemplo. Onde esteve na terça, à tarde, entre as seis e as sete?

Sentou-se e inclinou a cabeça na minha direcção.

- Tem razão, também me fizeram essa pergunta. Porquê? Encolhi os ombros e retorqui:

- Estou só a demonstrar-lhe que conheço o tipo de perguntas que os polícias fazem.

- Não acredito. Que história é essa da terça-feira à tarde?

- Primeiro diga-me como foi que res ondeu.

- Não fui capaz, até ter pensado um bocado. Foi o dia em que Mrs. Fromm esteve presente numa reunião da Comissão Executiva da Assadip, a Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas. Deixou-me levar um carro, o descapotável, e passei a tarde e a noite a percorrer toda a cidade, tentando localizar um par de refugiados que a Assadip pretendia auxiliar. Não os consegui descobrir e cheguei a casa depois da meia-noite. Tive grande dificuldade em justificar todos os minutos desta tarde e noite, e não vou tentar fazê-lo. Para quê? Que foi que aconteceu na terça-feira, entre as seis e as sete?

Enfrentei-lhe o olhar.

- Que tal uma troca? Diga-me onde esteve Mrs. Fromm entre as três e um quarto e as cinco de ontem, que cartas ditou das cinco às seis, que telefonemas fez, e eu digo-lhe o que aconteceu na terça-feira.

- Isso são mais exemplos das perguntas que a Polícia fez...

- Claro, mas estas agradam-me.

- Não fez telefonemas, mas disse- me para fazer alguns mais tarde, pedindo a pessoas para comprarem bilhetes para uma representação teatral em benefício da Escola Milestone. Havia vinte e três nomes na lista, que a Polícia tem em seu poder. As cartas ditadas foram uma miscelânea, apenas sobre assuntos de rotina. Tanto Mr. Kuffner como Mr. Horan disseram-me que podia dar as cópias à Polícia, e assim fiz. Se quer que tente recordar-me, penso que...

- Não vale a pena. Que fez ela entre o momento em que deixou a Assadip e a altura em que chegou a casa?

- Sei de duas das coisas que fez. Foi a uma loja na Madison Avenue e comprou luvas, trouxe- as consigo para casa, e telefonou para o escritório de Paul Kuffner. Não sei se fez mais alguma coisa. Que se passou na terça-feira?

- Um carro parou num semáforo, à esquina da Nona Avenida com a Trigésima Quinta Rua, e a mulher que o ia a guiar pediu a um rapaz para chamar um polícia.

- O quê? - exclamou, franzindo a testa.

- Já lho disse.

- Mas que tem isso a ver com?...

Sacudi a cabeça.

- Essa parte não estava incluída no acordo, só afirmei que lhe explicaria o que aconteceu. Este assunto é muito complicado, Miss Estey, e a senhora pode decidir contar à Polícia o que Archie Goodwin lhe disse. A Polícia não gostaria que eu andasse por aí a dizer aos suspeitos como as coisas aconteceram...

- Não sou uma suspeita!

- Peço perdão, pensei que era. De qualquer modo, não viu...

- Por que motivo haveria de o ser?

- Mesmo que não houvesse outros motivos, porque a senhora era íntima de Mrs. Fromm, sabia onde ela andava a noite passada e que o carro estaria estacionado lá perto. Todavia, mesmo que não fosse suspeita, não lho diria. Mr. Wolfe poderá pensar de um modo diferente. Se mudar de opinião e o for visitar esta noite, depois do jantar, ou amanhã de manhã... digamos por volta das onze horas, altura em que está disponível, pode ser que se decida a despejar o saco para si. Como é um génio, nunca se sabe. Se a senhora...

O barulho da porta interrompeu-me. Abriu-se e um homem entrou com passos rápidos. No momento em que apareceu começou a dizer qualquer coisa a Miss Estey, mas apercebeu-se de que esta tinha companhia, calou- se, parou de repente e começou a estudar-me.

Quando se tornou aparente que nem ela procederia às apresentações nem ele perguntaria o nome de um estranho, resolvi quebrar o gelo.

- Sou Archie Goodwin, trabalho para Nero Wolfe. - Vendo que continuava a observar-me, acrescentei: - Isto é um disfarce.

Aproximou-se de mão estendida. Levantei-me e apertei-lha.

- Sou Paul Kuffner.

Não fora beneficiado na altura, pois o alto da sua cabeça ficava mais ou menos ao nível da ponta do meu nariz. Com o fino bigode castanho aparado de tal modo que não ficava paralelo aos espessos lábios da grande boca, nunca o consideraria como apropriado para provocar o tipo de impressão desejável numa pessoa encarregada das relações públicas, mas admito que tenho preconceitos contra bigodes que tentam fazer-se passar por sobrancelhas depiladas.

Sorriu-se todo para mostrar que gostava de mim, que aprovava tudo o que eu jamais dissera ou fizera, e que compreendia perfeitamente todos os meus problemas.

- Peço desculpa - declarou - por os ter interrompido assim e afastar Miss Estey daqui, mas temos uns assuntos urgentes para tratar. Pode ir lá acima, Miss Estey?

Era um belo trabalho. Em vez daquelas frases, poderia ter dito: Põe- te a andar daqui para fora e dá-me a oportunidade de perguntar a Miss Estey que diabo andas aqui a tramar, que, no fundo, era o que queria dizer. Mas não, de modo nenhum, gostava demasiado de mim para poder dizer fosse o que fosse que me magoasse os sentimentos.

Quando Miss Estey se levantou e atravessou a sala na direcção da porta, passando para o outro lado, ele, que a seguira até à soleira, virou-se para me dizer:

- Foi um prazer conhecê-lo, Mr. Goodwin. Ouvi falar muito a seu respeito, e também de Mr. Nero Wolfe é claro! Que pena que o nosso encontro tivesse lugar numa ocasião tão difícil! - Desapareceu-me da vista, mas ainda lhe ouvi a voz: - Ah, Peckham! Mr. Goodwin vai-se embora. Vê se ele quer que lhe chames um táxi.

Um belo trabalho, rápido e bem feito. Aparentemente, aquele bigode também devia servir de disfarce.

 

Regressei a casa a tempo de ouvir os relatórios. Saul e Orrie já lá se encontravam sentados, à espera, mas Fred ainda não chegara. Depois de os cumprimentar, informei Wolfe, instalado à secretária.

- Vi-a e conversei com ela, mas...

- Porque é que estás vestido dessa maneira?

- Sou um gato-pingado.

- Que palavra abominável - retorquiu, fazendo uma careta. - Conta-me o que se passou.

Obedeci, fazendo um relato completo, mas daquela vez teve de fazer perguntas. Nenhuma delas obteve resposta, porque já lhe tinha dado todos os factos, e as minhas impressões sobre Jean Estey e Paul Kuffner não serviam de nada, nem sequer para mim, quanto mais para ele, e quando Saul foi atender a campainha da porta e fez entrar Fred, Wolfe largou-me imediatamente e fê-los colocar as cadeiras em linha, na frente da secretária.

Aquele trio não era uma delícia para os olhos. Saul Panzer, com um grande nariz a pairar por cima de um rosto estreito, um fato castanho que se calhar fora passado a ferro depois de ter apanhado chuva, poderia ser um pedreiro ou um varredor de ruas, mas não o èra. Era o mais esperto operacional da área metropolitana e o seu talento para seguir pessoas, que Wolfe tanto louvara junto de Pete Drossos, era apenas uma pequena parte das suas capacidades. Qualquer agência da cidade lhe pagaria o triplo do preço do mercado.

Em volume, mas não em habilidade, Fred Durkin fazia quase dois de Saul. Era capaz de perseguir uma pessoa, é claro, e podia-se contar com ele para qualquer trabalho normal, mas se lhe deparasse qualquer coisa fora do vulgar, o mais natural era despistar-se. No entanto, era de confiança para nos acompanhar numa viagem de ida e volta ao Inferno.

Quanto ao Orrie Cather, quando enfrentávamos os seus confiantes olhos castanhos e o sorriso satisfeito dos seus lábios arredondados, não tínhamos dúvidas de que a sua principal preocupação era a de saber se nos apercebíamos até que ponto era bonito. Claro que isto irritava qualquer cliente com quem lidasse, mas dava também a sensação de que não era preciso ter grandes cuidados com ele, o que podia vir a ser muito perigoso, pois a sua principal preocupação era, na realidade, a reputação que tinha como detective.

Wolfe recostou-se, pousou os antebraços nos braços da cadeira, aspirou uma lufada de ar e deixou-a sair de um modo audível.

- Cavalheiros - declarou -, estou metido num lodaçal até ao pescoço. Em geral, quando requisito os vossos serviços é suficiente definir-vos tarefas específicas, mas desta vez isso não servirá. Terão de ser informados da totalidade da situação e das suas complicações, mas primeiro que tudo uma palavra a respeito de dinheiro. Menos de doze horas depois de a minha cliente me entregar um cheque de dez mil dólares, foi assassinada. Uma vez que não está à vista nenhum sucessor como nosso cliente, esse é todo o dinheiro que receberei. Se for inevitável, estarei disposto, por motivos pessoais, a despender a maior parte desse dinheiro, ou até a sua totalidade, em despesas com a investigação, mas nunca mais do que isso. Não vos peço para serem avarentos com as vossas despesas, mas tenho de proibir todas as prodigalidades. Agora, o caso...

Começando pela minha introdução de Pete Drossos na casa de jantar, na terça-feira, e terminando no meu relato da conversa com Jean Estey, que Fred não escutara, descreveu tudo sem omitir o mínimo pormenor. Deixaram-se estar sentados a absorver tudo aquilo, cada um à sua maneira: Saul afundado na cadeira e descontraído, Fred rígido e direito, Orrie com as têmporas encostadas às pontas dos dedos, numa pose para um estudo fotográfico. Quanto a mim, fiquei a ver se Wolfe saltava por cima de um qualquer pormenor, para depois ter o prazer de o acrescentar quando terminasse, mas não tive sorte. Eu próprio não conseguiria ter feito um relatório melhor.

Depois olhou para o relógio e disse:

- São vinte para as sete e o jantar está pronto. Vamos ter galinha frita com natas e cogumelos. Não discutiremos o assunto à mesa, mas quero que continuem a pensar nele.

Já passava das nove quando voltámos ao gabinete, depois de termos discutido cinco galinhas e cinco sobremesas de um modo tão exaustivo que estavam arrumadas para sempre. Depois de se conseguir encaixar na cadeira, Wolfe olhou para mim e depois para eles.

- Não me parecem muito atentos - declarou, agastado.

Ninguém deu um salto para se pôr em sentido. Apesar de nenhum deles ter comido tanto como eu, sabiam como Wolfe odiava ter de trabalhar durante o período de mais ou menos uma hora depois do jantar, e que aquilo que o incomodava não era o facto de não estarem atentos e alerta, mas sim o de ele não o querer estar.

- Podemos ir lá abaixo... - sugeri - e jogamos um pouco de bilhar enquanto fazes a digestão.

- O meu estômago - resmungou num tom que não admitia dúvidas - é muito capaz de tratar dos seus assuntos sem necessitar de mimos especiais. Algum dos senhores tem alguma questão premente a tratar, antes de prosseguirmos?

- Talvez mais tarde - sugeriu Saul.

- Muito bem. Como podem ver, não há ponta por onde pegar. O assunto é excessivamente complexo e não possuímos pontes de informações acessíveis. Archie pode tentar com outros, tal como fez com Miss Estey, mas não tem por onde. A Polícia nada me dirá. Em muitas ocasiões do passado tive onde ir arrancar as informações, mas não desta vez. Uma vez que eles sabem tudo aquilo que eu sei, não tenho nada com que possa regatear. É claro que temos uma ideia do que andam presumivelmente a fazer. Andam a ver se descobrem, ou a tentar, se uma qualquer mulher conhecida de Mrs. Fromm tinha um arranhão na cara na terça-feira, à noite, ou na quarta. Se a descobrirem, resolvem o assunto, mas é possível que não a encontrem, uma vez que aquilo a que o rapaz chamou um arranhão, quando a viu de tão perto, poderia ser uma ligeira marca que a mulher tornou praticamente invisível assim que teve essa oportunidade. A Polícia deverá também andar à procura de uma mulher conhecida de Mrs. Fromm, que usasse brincos em forma de aranha, e mais uma vez resolvem o caso se tiverem êxito.

Wolfe virou a palma da mão para cima e continuou:

- Estão a tentar descobrir a história do carro que matou o rapaz e Matthew Birch. Examinam cada centímetro do carro de Mrs. Fromm. Verificam todos os movimentos de Birch, as suas ligações e os seus sócios. Estão a reconstruir tudo, minuto a minuto, desde o momento de ontem em que Mrs. Fromm saiu daqui deste gabinete. Andam a interrogar não só os que estiveram com Mrs. Fromm, na sua última noite, como todos aqueles que possam ser suspeitos de conhecerem qualquer facto pertinente. Confirmam os paradeiros de todos os possíveis culpados: onde estavam na terça-feira, quando uma mulher pediu a Pete Drossos para chamar um polícia, onde estavam mais tarde, nessa mesma noite, quando mataram o Birch, onde se encontravam na tarde de quarta-feira, quando mataram o rapaz, e o que andavam a fazer ontem à noite, quando mataram Mrs. Fromm. Andam a perguntar quem teria motivos para recear ou odiar Mrs. Fromm, ou quem virá, de algum modo, a beneficiar da sua morte. Em todas essas actividades usam uma centena de homens, ou um milhar, todos treinados, e alguns deles são competentes.

Apertou os lábios e sacudiu a cabeça:

- Não podem permitir-se falhar, muito em especial neste caso, e não desistirão. Enquanto aqui estamos sentados poderão já ter escolhido a presa e estarem prontos para a agarrar. Todavia, e até que o façam, proponho que utilizemos o dinheiro de Mrs. Fromm, ou parte dele, para uma finalidade que ela, sem dúvida, aprovaria. Gozando de tantas vantagens, é claro que a Polícia nos irá levantar dificuldades, mas estou decidido a persuadir- me a mim mesmo de que tenho justificações para ficar com esse dinheiro, e, além disso, fico ressentido com o pressuposto de que as pessoas que me vêm pedir ajuda podem ser assassinadas com toda a impunidade. É essa a razão pessoal.

- Apanharemos o filho da mãe! - exclamou Fred Durkin.

- Tenho dúvidas, Fred. Agora já percebem por que motivo os convoquei para esta conferência e lhes contei tudo, em vez de me limitar a distribuir-lhes tarefas, como é habitual. Queria que soubessem que temos poucas possibilidades, e, além disso, também desejava consultá-los. Há dúzias de abordagens diferentes para este assunto e vocês são apenas três. Saul, por onde é que pensas que poderás começar?

Saul hesitou e coçou o nariz:

- Gostaria de começar por duas coisas ao mesmo tempo: a Assadip e os brincos.

- Porquê a Assadip?

- Porque se interessam por pessoas deslocadas e Birch trabalhava para os Serviços de Emigração e Naturalização.

É uma das possibilidades que vejo para descobrir uma ligação entre Birch e Mrs. Fromm. Claro que os chuis estão a trabalhar nisto, mas é um tiro de sorte e qualquer pessoa pode acertar.

- Uma vez que Angela Wright, a secretária executiva da Assadip, esteve presente no jantar da noite passada, é provável que seja inabordável.

- Não para uma pessoa deslocada.

- Ah! - manifestou-se Wolfe, considerando a possibilidade. - Sim, podes tentar por esse meio.

- De qualquer modo, se estiver muito ocupada com os polícias, e sabe- se lá que mais, de certeza que devem ter estenógrafas e alguém para atender o telefone. Como deslocado, vou precisar de muita compreensão e simpatia.

Wolfe acenou uma confirmação.

- Muito bem. Trata disso de manhã. Leva duzentos dólares, mas não te esqueças de que uma pessoa deslocada não anda a nadar em dinheiro. E quanto aos brincos?

- Posso tratar das duas coisas.

- Sim, mas como?

- Ora, ando muito por aí e costumo ter os olhos abertos, mas nunca vi brincos em forma de aranha, nem nas mulheres, nem nas montras das ourivesarias. Disse que o Pete falou em grandes aranhas de ouro com as patas abertas. As pessoas reparam nessas coisas. Se os usou antes de terça-feira, ou depois, é possível que os polícias já a tenham descoberto ou estejam prestes a consegui-lo. Provavelmente tem razão, não temos grandes hipóteses... mas há sempre a possibilidade de a Polícia não a encontrar. Não seriam aqueles que Mrs. Fromm usava ontem? Talvez valha a pena procurar uma loja que tenha vendido brincos em forma de aranhas. Os polícias andam tão ocupados com os outros aspectos que podem não o ter feito. Estarei enganado?

- Não. Raramente te enganas. Se formos os primeiros a encontrar a mulher...

- Eu trato disso - declarou Orrie. - Também nunca vi brincos desses. De que tamanho eram?

- Os que Mrs. Fromm usava ontem eram mais ou menos do tamanho da unha do teu polegar. Ou seja, refiro-me à circunstância descrita pelas pontas das patas abertas. Archie?

- Talvez um pouco maiores - respondi.

- Eram de ouro?

- Não sei. Archie?

- Diria que sim, mas não o posso jurar.

- Bem feitas?

- Sim?

- Bom, eu trato disso.

Wolfe encarou-o de testa franzida.

- Nem num mês o conseguirias.

- Não com o método que vou utilizar, Mr. Wolfe. Fiz outrora um favor a um tipo que é vendedor na Boudet's, e vou começar por aí. Posso pôr as coisas a andar já amanhã, apesar de ser domingo, porque sei onde ele mora. Só uma coisa que não percebi: há alguma indicação de que os brincos que Mrs. Fromm usava ontem eram aqueles que foram vistos na terça-feira, na mulher que seguia no carro?

- Não.

- Então podem ser dois pares diferentes?

- Sim.

- Bom, nesse caso... Como é que dizem os garotos? O último a lá chegar é um grande burro!

- Vais precisar de pagar a esse teu amigo, o vendedor da Boudet's?

- Não, que diabo! Fiz-lhe um favor.

- Então leva cem dólares. Se descobrires alguma coisa prometedora, não dês a entender que a Polícia gostaria de ser informada, pois pode vir a ser desejável sermos nós a aproveitar a gratidão oficial. Telefona-me ao menor sinal de uma pista.

Wolfe virou-se para Durkin. - Fred, por onde é que começas?

O largo rosto de Durkin ficou vermelho. Fizera muitos trabalhos ocasionais para Wolfe ao longo de quase vinte anos, e estar a ser consultado sobre estratégia a alto nível era algo de novo. Apertou os maxilares, engoliu em seco, e declarou numa voz muito mais alta do que a necessária:

- Aqueles brincos...

- Orrie trata dos brincos.

- Eu sei que sim, mas olhe... Devem existir centenas de pessoas que a viram com eles, empregados de elevadores, criadas, empregadas de restaurantes...

- Não - retorquiu Wolfe com secura. - Nessa área a Polícia vai tão à nossa frente que não recuperaremos o atraso.

Com tão poucas forças, devemos encontrar um caminho que não tenha ainda sido explorado. Alguém tem uma sugestão para o Fred?

Trocaram olhares entre si, mas ninguém abriu a boca. Wolfe acenou com a cabeça.

- Sim, sei que é difícil. Uma maneira de evitarmos andar de língua de fora atrás dos calcanhares da Polícia, com o ar poluído pela poeira que ela levanta, é partir do princípio de que não experimentaram ainda uma possibilidade e explorá-la. Tentemos esta: vamos supor que na terça- feira à tarde, quando o carro parou à esquina e a mulher que ia ao volante pediu a Pete Drossos para chamar um polícia, o homem que seguia com ela era Matthew Birch.

- Não estou a perceber, Mr. Wolfe - disse Saul, de testa franzida.

- Óptimo. Então é provável que essa ideia não tenha ocorrido à Polícia. Admito que é uma possibilidade muito fraca, mas nesse mesmo dia, muito mais tarde, o carro atropelou Birch e matou-o, num sítio e de um modo que parece indicar que Birch ia nele. Assim, uma vez que se encontrava no carro nessa noite, porque não pressupor que também seguia nele durante a tarde? Parto desse princípio.

Saul manteve a testa franzida.

- Do modo como as coisas se apresentam não seria melhor partir do princípio de que o homem que atropelou o rapaz na quarta-feira foi o que esteve com a mulher na terça, uma vez que sabia que o rapaz o poderia identificar? Na quarta-feira já Birch estava morto.

- Isso é provavelmente o que a Polícia pensa - concordou Wolfe. - O valor dessa hipótese é óbvio, pelo que não a rejeito. Limito-me a ignorá-la e a substituí-la por outra. Até um pressuposto falso pode vir a ser útil. Colombo partiu do princípio de que entre ele e os tesouros do Oriente só existia água, e deparou-se-lhe todo um continente. - Moveu os olhos. Não estou à espera que se trate de are um continente, Fred, mas partirás do meu pressuposto de que Birch se encontrava no carro com a mulher. Tenta ou prova que é verdade, ou que é uma falsidade. Leva cem dólares... Não, leva antes trezentos, pois nunca desperdiças dinheiro. O Archie fornece-te uma fotografia de Birch.

Virou-se para mim:

- Todos eles devem levar fotografias das pessoas envolvidas. Consegues arranjá-las junto de Mr Cohen?

- Esta noite já não. De manhã.

- Trata disso.

Inspeccionou as suas magras forças, da esquerda para a direita, para depois voltar ao ponto onde iniciara a inspecção.

- Cavalheiros, confio em que eu não tenha enfraquecido o vosso ardor ao dar tanta ênfase à situação de impotência em que nos encontramos. Quero que compreendam que a situação é tal que a mais pequena ninharia será um festim. Na maior parte das vezes, espero sempre muito de vós. Desta vez não espero nada. É provável que...

Ouviu-se o toque da campainha da porta.

Enquanto me levantava e atravessava o gabinete, olhei para o relógio. Eram nove e cinquenta e cinco. Do corredor, quando acendi a luz e me aproximei da porta, avistei dois homens, ambos desconhecidos. Abri a porta e dei-lhes as boas-noites.

O que estava à frente declarou:

- Queremos falar com Mr. Nero Wolfe.

- Os vossos nomes, por favor?

- Eu chamo-me Horan, Dennis Horan. Telefonei esta manhã. Este é Mr. Maddox.

- Neste momento Mr. Wolfe está ocupado, mas vou avisá-lo. Entrem, por favor.

Levei-os para a sala da frente, dei uma olhadela à porta, à prova de som, que estabelecia a ligação com o gabinete, para verificar se estava fechada, convidei-os a sentarem-se e deixei-os. Saí de novo para o corredor, fechei a porta da sala atrás de mim, voltei ao gabinete e disse a Wolfe:

- Temos duas ninharias, na sala da frente. Uma chama-se Horan, o que queria tirar-te a massa das mãos, e vem com um amigalhaço chamado Maddox.

Procedeu como eu esperava. Lançou-me uma careta de fúria. Agora que acabara a reunião e se preparava para se descontrair, agarrado a um livro, eu levava-lhe mais trabalho. Se estivéssemos sozinhos teria feito dois ou três comentários desagradáveis, mas depois de ter dito aos outros que não havia por onde pegar no assunto, teve de se controlar e comportou-se como um homem.

- Muito bem. Saul, Fred e Orrie que saiam, depois de lhes teres dado dinheiro para as despesas, tal como ficou especificado.

Dirigi-me ao cofre para ir buscar a massa.

 

Pelas maneiras e pelos olhares que trocaram entre si quando os levei para o gabinete e os instalei nos cadeirões, compreendi que me tinha precipitado ao afirmar que eram amigalhaços. Os olhares não eram nada afectuosos.

Dennis Horan era um exagerado. As pestanas eram exageradamente compridas, era exageradamente alto para a largura e exageradamente idoso para andar vestido como um estudante. Precisava da ajuda de um especialista para aclarar o rosto, mas aparentemente passara mais de quarenta anos a escurecê-lo ao sol, pelo que duvidava que tomasse a proposta em consideração.

Maddox deixou bem claro a Wolfe que o seu nome completo era James Albert Maddox. Deveria sofrer de úlceras desde o berço, ou seja, perto de meio século, e se não era essa a razão, então precisava de explicar porque é que tinha um rosto tão amargo que só de vê-lo o seu próprio cão se tornaria um pessimista. Coloquei-os em dois cadeirões amarelos que os rapazes tinham acabado de abandonar, isto porque não sabia qual deles - se é que algum - tinha o estatuto necessário para ocupar o cadeirão vermelho.

Foi Horan quem começou. Disse que naquela manhã, ao telefone, não pretendera dar a entender que Wolfe estava a proceder, ou pensar proceder, de um modo impróprio ou pouco ético. Limitava-se a salvaguardar os interesses da sua antiga amiga e cliente, Mrs. Damon Fromm, que fora...

- Não era sua cliente - interpôs Maddox num tom que estava perfeitamente de acordo com a expressão do rosto.

- Aconselhava-a - retorquiu Horan.

- Muito mal - atirou-lhe Maddox.

Miraram-se um ao outro. Não havia dúvidas, não eram amigalhaços.

- Talvez... - sugeriu Wolfe com secura - seja melhor que cada um dos senhores me diga, sem interrupções, até que ponto e com que autoridade representam Mrs. Fromm. As contradições poderão ser esclarecidas ou ignoradas, conforme for mais conveniente. Mr. Horan?

A fina voz de tenor continuava a ser fina, mas não tão perto de um guincho como fora ao telefone.

- É verdade que nunca fui o advogado oficial de Mrs. Fromm em qualquer acção. Consultava-me sobre muitos assuntos e ao pôr esses conselhos em prática demonstrava apreciar a minha ajuda. Como advogado da Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas, o que continuo a ser, estava intimamente associado a ela. Se estivesse viva não creio que discutisse o meu direito de me considerar seu amigo.

- É o executor dos bens?

- Não.

- Obrigado. Mr. Maddox?

Estava com muitas dores, mas falou:

- A minha firma de advocacia, Maddox e Welling, foi conselheira legal de Damon Fromm durante doze anos, e desde a sua morte continuámos a dar assistência a Mrs. Fromm. Sou o executor dos seus bens. Interrompi-vos a conversa, há pouco, porque a afirmação de Mr. Horan de que Mrs. Fromm era sua cliente não é verdadeira. Tenho mais uma coisa a acrescentar.

- Faça o favor de continuar.

- Esta manhã... Não, esta tarde, Mr. Horan telefonou-me e falou-me de um cheque que Mrs. Fromm lhe entregou ontem, bem como da conversa que teve consigo. O telefonema que Mr. Horan lhe fez foi gratuito e impertinente. Esta minha visita não o é. Pergunto-lhe formalmente, como advogado de Mrs. Fromm e executor dos seus bens: sob que acordo e para que fins lhe entregou ela um cheque de dez mil dólares? Se preferir dizer-mo em particular, retiremo-nos daqui. Mr. Horan insistiu em acompanhar-me, mas estamos em sua casa e aquele jovem tem ar de ser capaz de lidar com ele.

Se pretendia que o olhar que me lançou fosse um cumprimento, odiaria ter de ver um dos seus olhares de desaprovação.

- Não prefiro dizer-lhe em particular, Mr. Maddox anunciou Wolfe. - Prefiro nem sequer lho dizer.

Maddox não ficou com um ar mais amargo porque isso era uma impossibilidade.

- Sabe alguma coisa de leis, Mr. Wolfe?

- Não.

- Então deveria procurar um conselheiro. A não ser que possa provar que Mrs. Fromm recebeu um qualquer valor em troca desse pagamento, podemos forçá-lo a devolvê-lo. Estou a dar-lhe a oportunidade de apresentar essa prova.

- Não posso. Mrs. Fromm nada recebeu em troca. Tal como informei Mr. Horan, pelo telefone, pretendo ganhar esse dinheiro.

- Como?

- Certificando-me de que o assassino de Mrs. Fromm é apanhado e punido.

- Isso é ridículo. Essa é a função dos agentes representantes da lei. As informações que tive hoje a seu respeito, a meu pedido, indicaram-me que o senhor não é um aldrabão, mas está a falar como se o fosse.

Wolfe soltou uma risadinha.

- O senhor tem preconceitos, Mr. Maddox. Os sentimentos dos advogados virtuosos para com os aldrabões são os mesmos que as mulheres virtuosas demonstram pelas prostitutas. Condenação, sim, sem dúvida, mas algures, lá no fundo, há um grãozinho de inveja, que não pode ser aceite e muito menos reconhecido. Por favor, não me invéje. Os aldrabões ou são estúpidos ou quase fanáticos, e eu nem sou uma coisa nem outra. Gostaria de fazer uma pergunta.

- Faça-a.

- Antes de Mrs. Fromm aqui ter estado, sabia que ela pretendia visitar-me?

- Não.

Wolfe deslocou os olhos para o outro.

- E o senhor, Mr. Horan? As mesmas duas perguntas.

- Não estou a ver... - hesitou Horan. - Questiono o seu direito de me fazer perguntas.

Maddox encarou o companheiro.

- Responda-lhe, Horan. Insistiu em vir aqui. Afirma que Mrs. Fromm o consultava para assuntos importantes. Mr. Wolfe está a tentar arranjar bases. Se conseguir provar que Mrs. Fromm nos informou que vinha visitá- lo, ou que já cá estivera, mas sem nos dizer para quê, defenderá a posição que é óbvio que não queria que nós o soubéssemos e, portanto, não pode trair a sua confiança. Responda e retire-lhe essa possibilidade.

Horan não queria aceitar.

- Não me submeterei - declarou - a um interrogatório. Maddox ia começar a argumentar, mas Wolfe interrompeu-o.         A sua - A sua explicação pode ser muito inteligente, Mr. Maddox, mas o senhor não está a entender inteiramente as dificuldades de Mr. Horan. Está num beco sem saída. Se responde sim à minha última pergunta, então o senhor tem razão, ficarei com uma arma, que utilizarei. Se me responde que não, pergunto-lhe como é que sabia que Mrs. Fromm me dera um cheque. Vou querer sabê-lo, e creio que o senhor também, Mr. Maddox. - Já o sei, ou, pelo menos, sei o que ele me disse. Esta manhã, quando foi informado da morte de Mrs. Fromm, telefonou para casa dela e falou com Miss Èstey, a secretária de Mrs. Fromm, que se referiu ao cheque. Passei o fim-de-semana no campo e Horan apanhou- me lá. Vim imediatamente para a cidade. - No campo... onde? - Isso é pura insolência! - replicou Maddox, levantando o queixo. Wolfe fez o gesto de quem punha de parte essa questão. - De qualquer modo, é uma futilidade. Peço-vos desculpa, não pela insolência, mas pela estupidez. A força do hábito levou-me a fazer essa pergunta. Neste complicado labirinto devo deixar para a Polícia os procedimentos convencionais, tal como a investigação de álibis. Uma vez que, afinal, não está num beco sem saída, responderá às minhas perguntas, Mr. Horan? - Não, por uma questão de princípio. Não tem autoridade para mas fazer. - E espera que eu responda às suas? - Não, às minhas não, porque também não tenho essa autoridade. É Mr. Maddox quem a tem, como executor dos bens. Terá de lhe responder. - Veremos. - Wolfe mostrava-se judicioso. Dirigiu-se a Maddox: - Segundo compreendo, não está a exigir que devolva o dinheiro que Mrs. Fromm me pagou. - Isso depende. Diga-me qual o acordo e por que motivo o dinheiro lhe foi entregue e considerarei o assunto. Não quero que alguém se aproveite da morte de uma cliente tão apreciada, nem quero que um detective privado se sirva dela para sensacionalismos, por interesses profissionais ou pessoais.

- Uma atitude muito louvável - concordou Wolfe. - Poderia fazer-lhe notar que será difícil tornar o assunto mais sensacional do que já o é, mas mesmo assim a sua atitude é admirável. Há apenas um pequeno problema: não lhe direi nada sobre a conversa que tive ontem com Mrs. Fromm.

- Então está a ocultar elementos?

- Bah! Já os comuniquei à Polícia, por escrito e assinados.

- Nesse caso, porque não mos revela a mim?

- Porque não sou um simplório. Tenho motivos para crer que essa conversa foi um dos elos da cadeia que conduziu à morte de Mrs. Fromm, e, se assim for, a pessoa mais interessada em conhecer o teor da conversa é provavelmente o assassino.

- Não fui eu quem a matou.

- Isso é o que resta saber.

Por instantes pensei que Maddox iria sufocar. A garganta inchou-lhe de um modo visível. Todavia, os advogados veteranos têm muita prática no controlo das emoções, e Maddox conseguiu fazê-lo.

- Isso é mais do que estupidez, é infantilidade.

- Discordo. A Polícia já falou consigo?

- Claro que sim.

- Quantos polícias?

- Dois... ou antes, três.

- Importa-se de me dizer quem eram?

- O capitão Bundy, um sargento e o vice-comissário Youmans, bem como Mandelbaum, assistente do procurador do distrito.

- Algum deles lhe disse por que motivo Mrs. Fromm me consultou ontem?

- Não, não entrámos nesse assunto.

- Sugiro que entre em contacto com alguém nos serviços do procurador do distrito; de preferência alguém que conheça bem, e lhe peça que lho diga. Se essa pessoa o fizer, ou se qualquer outro funcionário o fizer sem quaisquer reservas importantes, estou pronto a devolver o dinheiro que Mrs. Fromm me pagou.

Maddox tinha o ar de estar a olhar para alguém que o tentasse convencer que saíra de casa com o nariz posto ao contrário.

- Posso garantir-lhe - prosseguiu Wolfe - que não sou suficientemente burro para sonegar provas num caso de crime capital, ainda por cima tão sensacional como este. Na realidade, sou muito meticuloso a esse respeito. A não ser que a Polícia tenha informações a vosso respeito que eu desconheça, duvido que vos tenham encarado como possíveis suspeitos, mas vão descobrir que os polícias podem ser muito desagradáveis depois de eu lhes comunicar que foram tão zelosos para descobrirem o que Mrs. Fromm me disse e que se deram a todo este trabalho. Trata-se obviamente do meu dever, que desta vez cumprirei com grande prazer.

- O senhor está... - Maddox estava outra vez a sufocar – a ameaçar-nos com a comunicação deste encontro...

- Não estou a ameaçá-los. Estou apenas a informá-los do que farei assim que saírem daqui.

- Vou sair já - declarou, levantando-se. – Recuperaremos os dez mil dólares por intermédio do tribunal.

Virou-se e saiu do gabinete. Segui-o para lhe abrir a porta, mas atingiu-a primeiro do que eu, apesar de ter de se precipitar para a sala da frente para ir buscar o chapéu.

Quando voltei ao gabinete, Horan estava de pé, a olhar para baixo, para Wolfe, mas as palavras não lhe saíam. Wolfe disse-me:

- Archie, liga para o gabinete de Mr. Cramer.

- Espere um momento. - A aguda voz de tenor de Horan tinha um tom urgente. - Está a cometer um erro, Wolfe, se é que realmente pretende investigar este crime. Investigar, como? Tinha aqui no seu gabinete duas das pessoas mais próximas de Mrs. Fromm e dos seus assuntos e fez com que uma delas se fosse embora. Acha isso sensato?

- Ora! - exclamou Wolfe num tom de desprezo. – Nem sequer me quis dizer se Mrs. Fromm o informou da visita que me fez.

- O contexto da sua pergunta era ofensivo.

- Então tentarei ser afável. Quererá fornecer-me um resumo do que foi dito durante a reunião em sua casa, a noite passada?

Horan agitou as compridas pestanas.

- Duvido que o deva fazer. E claro que informei a Polícia a esse respeito, mas pediram-me para ser discreto.

- É natural. Mas responde ao meu pedido.

- Não.

- E descreverá, de uma maneira franca e aberta, a natureza e desenvolvimento das suas relações com Mrs. Fromm?

- Claro que não.

- Se eu mandar Mr. Goodwin aos escritórios da Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas, dará instruções ao pessoal para responder de uma maneira franca e livre?

- Não.

- Lá se vai a afabilidade. - Wolfe virou-se para mim. - Liga para o gabinete de Mr. Cramer, Archie.

Dei meia volta e liguei o 9-8241, sendo prontamente atendido, mas depois as coisas complicaram-se. Não estava disponível nenhum dos nossos queridos amigos ou inimigos, pelo que acabei por ter de me contentar com um tal sargento Griffin. Informei Wolfe, que pegou no aparelho e disse:

- Mr. Griffin? Fala Nero Wolfe. Trata-se de uma informação para Mr. Cramer, e, por favor, certifique-se de que ele a recebe. Mr. James Albert Maddox e Mr. Dennis Horan, ambos advogados, visitaram-me esta noite. Tomou nota dos nomes correctamente? Ah, sim, suponho que são familiares. Pediram-me que lhes contasse a minha conversa com Mrs. Damon Fromm, quando ontem esteve no meu gabinete. Recusei-me e eles insistiram. Não irei tão longe que diga que Mr. Maddox me tentou subornar, mas fiquei com a impressão de que se lhe narrasse a conversa não faria muita pressão para que eu devolvesse o dinheiro que Mrs. Fromm me pagou, e que de outro modo a faria. Mr. Horan esteve de acordo, pelo menos de um modo tácito. Quando Mr. Maddox se foi embora cheio de pressa, Mr. Horan disse- me que eu estava a cometer um erro. Importa-se de fazer o favor de comunicar isso a Mr. Cramer? Sim, é tudo por agora. Se Mr. Cramer quiser uma declaração assinada, far-lhe-ei a vontade.

Wolfe desligou e murmurou para o advogado:

- O senhor ainda aqui está?

Horan estava de partida, mas só deu três passos e voltou-se para trás para dizer:

- Pode não saber de leis, mas sabe como rodear as fronteiras da calúnia. Depois deste espectáculo, pergunto a mim mesmo como conseguiu a sua reputação.

Foi-se embora e consegui chegar ao corredor a tempo de o ver voltar da sala com o chapéu na mão e sair. Depois de fechar a porta com a corrente, regressei ao gabinete e comentei entusiasmado:

- Não há dúvida de que os espremeste bem! Conseguiste todas as informações. Parabéns!

- Cala-te - gritou-me, pegando num livro, mas não era para mo atirar à cabeça.

 

Tinha programado partir no sábado, à tarde, para um passeio de fim- de-semana até à barraquinha de catorze divisões de Lily Rowan, em Westchester, mas era claro que os planos tinham sido deitados abaixo, ou antes, haviam sido atroprlados por um carro. Para além disso, o meu domingo nem sequer foi domingo. Ora vejam:

O sargento Purley Stebbins apareceu, fresco e madrugador, quando Wolfe ainda se encontrava no quarto entretido com a bandeja do pequeno-almoço, para ser informado sobre a invasão pelos advogados. Estava desconfiado quando chegou, e ainda mais desconfiado quando se foi embora. Apesar de lhe ter explicado que o meu patrão era um génio e que o tempo provaria que o jogo de forças com os advogados fora um golpe brilhante, Purley recusou-se a acreditar que Wolfe tivesse aqueles dois encurralados no gabinete e os deixasse ir embora sem ter feito o pior possível para conseguir a mínima informação. Aceitou cinco ou seis croissants e duas chávenas de café, mas isso deveu-se apenas ao facto de quem quer que seja que saboreie os croissants que o Fritz faz ao domingo de manhã seja incapaz de os recusar.

Wolfe e eu lemos todos os relatos dos jornais de domingo, não porque esperássemos conseguir qualquer pista escaldante, mas porque ficávamos a saber o que o procurador do distrito e Cramer tinham permitido que se publicasse, e havia alguns bocados que valia a pena guardar para futura referência. Angela Wright, a secretária executiva da Assadip, trabalhara anteriormente para Damon Fromm, e fora este quem lhe arranjara o emprego na Assadip. Mrs. Fromm apoiara mais de quarenta associações de caridade e outras causas merecedoras de respeito, mas a Assadip era a sua preferida. Vincent Lipscomb, o editor que se encontrara no jantar de festa no apartamento de Horan, publicara na sua revista, Pensamento Mo derno, toda uma série de artigos sobre pessoas deslocadas, e estava a planear outra série. Mrs. Dennis Horan fora outrora uma estrela do cinema... ou pelo menos trabalhara em filmes. Paul Kuffner tratava das relações públicas da Assadip, considerando-as como um serviço público e não recebia qualquer remuneração, mas também estivera profissionalmente envolvido nos interesses pessoais de Mrs. Fromm. Dennis Horan era uma autoridade em leis internacionais, pertencia a cinco clubes e tinha uma reputação de mestre cozinheiro amador.

Continuava a não aparecer uma única palavra a respeito do bocado do bolso do casaco de Birch, que fora encontrado preso ao chassis do carro que atropelara Pete Drossos. A Polícia estava a manter essa informação em segredo, mas, por causa da semelhança entre os crimes, a morte de Birch também recebia muita atenção.

Wolfe telefonou ao seu advogado, Henry Parker, para se informar acerca do processo de restituição do dinheiro através do tribunal, e para lhe dizer para se preparar, no caso de Maddox manter a promessa de tentar agarrar a massa. Tive de procurar o Parker e acabei por o encontrar num clube de Long Island.

Jean Estey continuava sem dar notícias de si.

Durante o dia telefonaram três jornalistas, enquanto outros dois apareceram pessoalmente à porta, mas também não passaram daí. Não estavam muito contentes por o Gazette ter informado, em exclusivo, a notícia de que Nero Wolfe estava a trabalhar no caso, e tive muita pena deles.

O meu telefonema matinal para Lon Cohen, no Gazette, foi feito cedo demais, e deixei-lhe recado para que me telefonasse, o que fez. Quando lá fui, à tarde, para recolher um carregamento de cópias das melhores fotografias das pessoas em que estávamos interessados, disse a Lon que poderíamos utilizar algumas informações cruciais e ocultas, e ele respondeu-me que também gostaria de as ter. Afirmou que haviam impresso tudo o que sabiam, mas que, como de costume, tinham alguns elementos de má-língua, tal como a informação de que uma vez Mrs. Dennis Horan atirara um batedor de cocktails à cabeça de Mrs. Fromm, e que um certo importador induzira Vincent Lipscomb a publicar um artigo favorecendo as tarifas baixas, em troca do financiamento de uma viagem à Europa. Nada disso me pareceu ser suficientemente importante para ser levado para a 35 Rua.

De qualquer modo, tinha tarefas a cumprir. Para a distribuição das fotografias encontrei-me com o Saul Panzer no     Edifício Times, onde se informava sobre pessoas deslocadas e a Assadip, com o Orrie Cather num bar-restaurante da Avenida Leximgton, onde me disse que o homem que lhe devia um favor estava a jogar golfe no Parque Van Cortland e que se encontraria com ele mais tarde, e com o Fred Durkin num restaurante da Broadway, onde ele estava com a família, e o jantar de domingo custava um dólar e 35 cêntimos para os adultos e um dólar e 5 cêntimos para as crianças. Nova Iorque, a um domingo de finais de Maio, não é sítio para se andar atrás de pistas.

Pela minha parte, fiz uma pequena tentativa antes de regressar à 35. a Rua. Não me recordo de alguma vez ter feito um pequeno favor a um vendedor de joalharia, mas outrora fiz um grande favor a um certo membro do Departamento da Polícia de Nova Iorque. Se tivesse cumprido o meu dever de cidadão e de detective autorizado, o homem ter-se-ia metido num sarilho e ainda continuaria na cadeia, mas havia circunstâncias atenuantes. Ninguém sabe deste assunto, nem sequer o Wolfe. O homem dera-me a entender que não se importaria de me segurar no casaco e no chapéu se alguma vez me metesse numa briga, mas, sempre que possível, mantivera-me longe dele. Nesse domingo, pensei: Que diabo, vamos dar ao tipo a oportunidade de fazer qualquer coisa, pelo que lhe telefonei e me encontrei, algures, com ele.

Disse-lhe que lhe dava cinco minutos para me dizer quem matara Mrs. Fromm. Respondeu-me que pelo caminho que as coisas seguiam precisaria de cinco anos, mas sem garantias.

Perguntei-lhe se aquilo se baseava nas últimas informações e confirmou-me que sim. Expliquei-lhe que era tudo o que desejava saber, e portanto retirei a minha oferta de cinco minutos, mas que se, e quando, pudesse dar-me a resposta em cinco horas em vez de cinco anos, ficaria muito grato se ma comunicasse.          

- Comunicar o quê? - perguntou.            

- Que a coisa está quase madura. Mais nada, para que eu possa avisar Mr. Wolfe de que o melhor é esconder-se.

- É demasiado gordo para arranjàr onde se esconder.

- Mas eu não sou.

- Está bem, negócio fechado. Tens a certeza de que só queres isso?       

- Absoluta.

- E eu que pensava que me ias pedir a cabeça do Rowcliff com uma laranja metida na boca!

Fui para casa e informei Wolfe:

- Descontrai-te, os chuis andam a brincar à cabra-cega. Sabem mais do que nós, mas não estão mais perto da resposta.

- Como é que sabes?

- Encontrei uns ciganos. A notícia é autêntica, fresquíssima e estritamente particular. Vi os rapazes e entreguei-lhes as fotografias. Queres os pormenores sem importância?

- Não.

- Algumas instruções?

- Não.

Isto foi o que me disse no domingo à noite.

Na segunda-feira, de manhã, tive um presente. Wolfe nunca aparece cá em baixo antes das onze horas. Depois do pequeno-almoço no quarto, apanha o elevador para o telhado onde passa duas horas com as plantas antes de descer ao gabinete. Para as comunicações matinais comigo serve-se do telefone interno, a não ser que surja qualquer coisa de extraordinário. Aparentemente, aquela manhã era extraordinária, porque quando Fritz desceu à cozinha, depois de lhe levar o pequeno-almoço, anunciou com solenidade:

- Audiência para ti. Levé.

Escrevo-o em francês, porque foi assim que o pronunciou. Já acabara de ler o jornal da manhã, onde não havia nada que contrariasse a opinião dos meus ciganos, e quando esvaziei a chávena de café subi o lanço de escadas, bati à porta e entrei. Em manhãs chuvosas, ou apenas cinzentas, Wolfe toma o pequeno-almoço na cama, depois de atirar a coberta de seda negra para os pés. Todavia, quando os dias estão claros, Fritz imstala o tabuleiro numa mesa junto da janela. A manhã estava brilhante e tive então o meu presente. De pés descalços, despenteado, com um pijama amarelo a brilhar ao sol, era um espectáculo sensacional.

Trocámos os bons-dias e disse-me para me sentar. Já não havia restos no prato, mas ainda não acabara o café.

- Tenho instruções - informou-me.

- Está bem. Estava a pensar ir ao banco, às dez horas, para depositar o cheque de Mrs. Fromm.

- Podes ir e farás o resto a partir daí. É provável que estejas fora todo o dia. Diz ao Fritz para atender o telefone e tomar todas as habituais precauções com os visitantes. Informa-me pelo telefone a intervalos regulares.

- O funeral é às duas horas.

- Eu sei, e, portanto, talvez possas vir almoçar a casa. Veremos. Agora, as instruções...

Deu-mas, e quatro minutos foram o suficiente. No fim quis saber se eu tinha alguma pergunta.

- Uma - disse-lhe, de testa franzida. - Tudo isso que me disseste é muito claro, mas que vou eu procurar?

- Nada.

- É provavelmente o que terei.

Bebericou o café.

- É do que estou à espera. Vais apenas agitá-los um pouco, mais nada. Vais soltar um tigre no meio da multidão... ou, se achares a frase demasiado bombástica, vais soltar um rato. Como é que o vão receber? Haverá alguém que chame a Polícia? Qual ou quais, entre eles?

Confirmei com um aceno.

- É claro que estou a ver as possibilidades, mas pretendia saber se havia algo de específico que quisesses que eu conseguisse.

- Não, nada - declarou, estendendo a mão para a cafeteira. Desci ao gabinete. Numa das gavetas da secretária tenho uma provisão de cartões de visita, de nove ou dez tipos diferentes, com palavras diferentes para necessidades e ocasiões diferentes. Peguei nos que estavam gravados com o meu nome no centro e que diziam Em representação de Nero Wolfe" a um canto, e em seis deles escrevi, a tinta, por debaixo do nome: Para discutir o que Mrs. Fromm disse a MrWolfe na sexta- feira. Com os cartões na carteira, o cheque e o livro de cheques no bolso, e uma arma debaixo do sovaco, encontrava-me completamente equipado. Peguei no chapéu e pus-me a andar.

Fui a pé até ao banco, num agradável passeio de quinze minutos, numa bela manhã de Maio, e depois apanhei um táxi para a 68. a Rua. Não fazia ideia de qual seria o aspecto da residência de uma milionária falecida, no próprio dia do funeral, que teria lugar numa capela da Avenida Madison, mas por fora estava tudo muito mais tranquilo do que estivera no sábado. Os únicos indícios de que se passara qualquer coisa de invulgar eram o polícia uniformizado no passeio e o pano negro pendente na porta. O polícia não era o mesmo de sábado, e este reconheceu-me. Fez-me parar quando me encaminhei para a porta.

- Deseja alguma coisa?

- Sim, senhor guarda.

- É o Archie Goodwin. Que quer daqui?

- Quero tocar àquela campainha, entregar a Peckham o meu cartão de visita para ele levar a Miss Estey, quero entrar e ser conduzido para o interior, para aí ter uma conversa...

- Pois, não há dúvida de que é o Archie Goodwin. Como aquilo não precisava de resposta e o polícia se deixou ficar quieto, passei por ele, entrei no átrio e toquei à campainha. Momentos depois, Peckham abria a porta. Podia ter sido muito bem treinado, mas a minha aparição foi de mais para a sua resistência. Em vez de conservar os olhos pousados na minha cara, como faria qualquer mordomo merecedor desse nome, revelou todo o seu espanto quando viu o meu fato de lã castanha, a camisa castanha-clara às riscas, o laço castanho e os sapatos castanhos. Para sermos justos com ele, recordem-se de que aquele era o dia do funeral.

Estendi-lhe um cartão de visita.

- Miss Estey, por favor?

Deixou-me entrar, mas com uma estranha expressão no rosto. Devia pensar que eu era louco, pois, de acordo com os factos que conhecia, essa era a explicação mais simples. Em vez de me acompanhar ao longo do vestíbulo, disse-me para esperar, dirigiu-se para a porta do escritório e desapareceu no seu interior. Seguiram-se vozes, num tom demasiado baixo para eu conseguir entender as palavras, e Peckham voltou a aparecer.

- Por aqui, Mr. Goodwin.

Chegou-se para um lado quando me aproximei e atravessei a porta. Jean Estey encontrava-se ali, com o meu cartão de visita na mão. Sem se preocupar com cumprimentos, pediu-me com modos abruptos:

- É capaz de fazer o favor de fechar a porta? Assim fiz e virei-me para ela, que prosseguiu:

- Recorda-se do que eu lhe disse no sábado, Mr. Goodwin? Os olhos castanho-esverdeados apontavam directamente para mim. Por debaixo deles, a pele estava balofa, ou porque dormira pouco ou porque dormira demasiado, e apesar de ainda se poder dizer que era bonita, parecia ter envelhecido dois anos desde a última vez que a vira, dois dias antes.

Dirigi-me para a cadeira junto à secretária e sentei-me.

- Refere-se ao facto de a Polícia lhe ter pedido, para, no caso de falar com Nero Wolfe, lhe comunicar o conteúdo da conversa?

- Sim.

- E então?

- Nada, só que... bom... se Mr. Wolfe ainda me quiser ver, penso que poderei lá ir. Não tenho a certeza... mas o mais certo era não comunicar nada aos polícias. São horríveis. Já se passaram mais de dois dias desde que mataram Mrs. Fromm, mais precisamente cinquenta e nove horas, e não me parece que estejam a chegar a resultados.

Tive de tomar uma decisão em menos de um segundo. O caminho que a mulher estava a seguir dava-me algumas hipóteses de a levar ao gabinete, mas Wolfe quereria falar com ela? Não sei o que teria decidido se tivesse mais tempo para pensar, mas não havia tempo para isso e preferi aguardar futuras instruções. Respondi-lhe:

- Direi a Mr. Wolfe quais são os seus sentimentos, Miss Estey, e estou certo de que terá muito prazer em escutá-los, mas quero explicar-lhe que o que esse cartão diz, Em representação de Nero Wolfe, não é inteiramente verdadeiro. Estou aqui por conta própria.

Inclinou um pouco a cabeça.

- Por conta própria? Não trabalha para Nero Wolfe?

- Claro que sim, mas também trabalho só para mim quando tenho uma boa oportunidade. Tenho uma proposta a fazer-lhe.

Deu uma olhadela ao cartão.

- Diz aqui: Para discutir o que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe na sexta-feira...

- É verdade, é o que quero discutir, mas apenas entre nós dois.

- Não compreendo.

- Já vai compreender. - Inclinei-me para a frente e baixei a voz. - Sabe, estive presente durante a conversa que Mrs. Fromm teve com Mr. Wolfe. Escutei tudo o que disseram. Tenho uma memória extremamente boa. Podia recitar-lha quase palavra por palavra, ou muito perto disso.

- E então?

- Então, penso que era capaz de gostar de a ouvir. Tenho motivos para crer que a achará muito interessante. Pode pensar que estou a arriscar o pescoço, mas sou o assistente confidencial de Mr. Wolfe há muitos anos, levei a cabo um bom trabalho, fiz com que aprendesse a confiar em mim, e se lhe telefonar, quando eu sair daqui, para lhe comunicar o que acabo de lhe dizer, Mr. Wolfe vai pensar que está a querer pregar-lhe uma partida. Se me fizer perguntas, digo-lhe que a senhora é uma mentirosa, e ele vai acreditar em mim. Assim, não tem de se preocupar com o meu pescoço. Conto-lhe toda aquela conversa, sem tirar nem pôr, por cinco mil dólares.

- Oh... - fez Miss Estey, ou talvez fosse Uh! Foi apenas um som. A seguir ficou a olhar para mim.

- Como é natural - continuei -, não estou à espera de que tenha úma importância dessas na mála de mão, portanto poderemos tratar disso mais tarde, mas terei de ser pago adiantado.

- Isto é incrível - disse Miss Estey. - Não lhe pagaria nem cinco cêntimos por essa conversa, quanto mais cinco mil dólares! Para quê?

- Isso seria revelar o que sei - afirmei, sacudindo a cabeça.

- Revelarei o conteúdo da conversa depois de me pagar, e caberá a si decidir se valeu ou não a pena gastar o dinheiro. Não dou garantias de satisfação, mas seria uma estupidez vir aqui com uma tal proposta se não tivesse nada para vender.

Deixou de me fitar. Abriu uma gaveta para pegar num maço de cigarros, retirou um, bateu-o várias vezes de encontro a um bloco de apontamentos, e estendeu a mão para um isqueiro de secretária. Não chegou a acender o cigarro. Deixou-o cair e pousou o isqueiro.

- Suponho... - declarou, de novo a olhar para mim - que devia mostrar-me insultada e indignada, e creio que isso irá acontecer, mas de momento sinto-me demasiado chocada. Não sabia que o senhor era um vulgar vigarista. Se tivesse dinheiro para poder deitar fora, era capaz de lho dar só para ouvir que espécie de mentira está a tentar vender-me. É melhor ir-se embora. - Miss Estey levantou-se. - Ponha-se a andar daqui!

- Miss Estéy, penso que...

- Saia!

Já tenho visto vigaristas em acção, tanto em situações calmas como de precipitação, e nunca têm um ar digno. Consegui tê-lo. Peguei no meu chapéu, que estava pousado na esquina da secretária, e saí. Já no vestíbulo, Péckham mostrou-se tão aliviado por se ver livre de um agente funerário lunático sem que se verificasse qualquer acidente lamentável que me fez uma vénia ao abrir-me a porta. No passeio, o polícia achou que deveria dizer qualquer coisa, mas depois concluiu que era melhor não o fazer.

À esquina descobri uma cabina telefónica numa loja, liguei para Wolfe e fiz-lhe um relatório completo, tal como me tinha pedido. A seguir apanhei um táxi para o centro da cidade.

A morada do meu segundo cliente, no Parque Gramercy, demonstrou ser um velho edifício de apartamentos, de tijolos amarelos. Tinha um porteiro uniformizado, um átrio espaçoso com belos tapetes antigos, e um elevador com um grande ataque de asma. Por fim, lá conseguiu levar-me, e ao moço do elevador, até ao 8o andar, isto depois de o porteiro ter telefonado. Quando toquei à campainha da porta do 8-B; esta foi aberta por um sargento-ajudante feminino vestido de criada, que me deixou entrar, me aceitou o chapéu e me conduziu para uma arcada no fim do vestíbulo.

Era uma grande sala de tecto alto, mais do que mobilada, e as cores dominantes dos reposteiros, estofos e tapetes eram o amarelo, o violeta, o verde-claro e o vermelho, ou, pelo menos, foi essa a impressão com que fiquei depois de uma olhadela em volta. O toque de preto era dado pelo vestido da mulher que se deslocou ao meu encontro quando me aproximei.

Tinha o cabelo de um louro-cinza amarrado atrás da nuca, olhos azul-claros e uma pele clara muito bem tratada, e o preto ficava-lhe bem. Não me estendeu a mão, mas a expressão não era hostil.

- Mrs. Horan? - perguntei.

Acenou uma confirmação.

- O meu marido vai ficar furioso comigo por o ter recebido, mas a curiosidade foi mais forte. É claro que preciso de me certificar... É o Archie Goodwin que trabalha para Nero Wolfe?    

Tirei um cartão de visita da carteira e entreguei-lho, e a mulher segurou-o numa posição inclinada para ter melhor luz. A seguir virou-se para mim com os olhos muito abertos.

- Não percebo... Discutir o que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe Comigo? Porquê comigo?

- Porque a senhora é Mrs. Dennis Horan.         

- Sim, pois sou, é verdade. - O tom deixava implícito que esse ponto de vista ainda não lhe ocorrera. - O meu marido vai ficar furioso!

Espreitei por cima do ombro e disse-lhe:

- Talvez nos possamos sentar perto de uma janela? Trata-se de uma conversa muito particular.

- Com certeza. - Deu meia volta, procurou um caminho no meio de todas as peças da mobília, e eu segui-a. Sentou-se numa cadeira perto de uma janela, e eu puxei de outra e coloquei-a suficientemente perto para criar um recanto acolhedor.

- Sabe - declarou Mrs. Horan -, tudo isto foi uma coisa terrível. Mais do que terrível. Laura Fromm era uma pessoa tão boa. - Poderia muito bem ter-se servido do mesmo tom e expressão para me dizer que gostava do meu corte de cabelo. A seguir acrescentou: - Conhecia-a bem?

- Não, só a vi uma vez, na sexta-feira passada; quando foi consultar Mr. Wolfe.

- Que é um detective, não é?

- É verdade.

- E o senhor também é um detective?

- Sim, trabalho para Mr. Wolfe.

- É fascinante. claro que estiveram aqui dois homens a fazerem perguntas, ou antes, três, e no sábado apareceram mais, dos serviços do procurador distrital, mas esses não passam de polícias. O senhor é um verdadeiro detective. Nunca pensei que um detective fosse... Bom, que se vestisse tão bem.

- Fez um gesto bonito. - Oh, cá estou eu a falar sem parar, como de costume, e o senhor queria discutir qualquer coisa, não era?

- É essa a ideia. Queria discutir o que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe.

- Então vai ter de me contar o que foi que ela disse. Não posso discutir um assunto sem o conhecer, ou posso?

- Não... - concordei. - Mas também não lho posso contar sem saber até que ponto a senhora o quer ouvir.

- Oh, é claro que quero ouvir!

- Belo. Foi o que pensei. Sabe, Mrs. Horan, eu estive no gabinete durante todo o tempo em que Mrs. Fromm e Mr. Wolfe conversaram um com o outro e recordo-me de todas as palavras que disseram. Foi por isso que pensei que a senhora talvez tivesse muita curiosidade a esse respeito, e não me surpreende que assim seja. O problema está em que não posso satisfazer a sua curiosidade gratuitamente. Devia ter-lhe explicado que não estou aqui em representação de Nero Wolfe, e foi por esse motivo que disse que a conversa é particular. Estou a representar-me a mim mesmo. Satisfarei a sua curiosidade se me emprestar cinco mil dólares, a serem pagos no dia em que chover de baixo para cima, em vez de cima para baixo.

Os seus olhos azuis abriram-se um pouco mais e foi essa a única reacção visível.

- É uma ideia divertida - afirmou -, essa de chover para cima. Chover para cima a partir das nuvens; ou chover do chão na direcção das nuvens?

- Qualquer das duas maneiras me serve.

- Preferia que chovesse a partir do chão. - Fez uma pausa.

- Que foi que disse a respeito de dinheiro emprestado? Desculpe, mas fiquei a pensar nessa história da chuva.

Estava pronto a admitir que a mulher era mais forte do que eu, mas continuei a lutar. Desisti da chuva.

- Se me pagar cinco mil dólares, conto-lhe o que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe. Dinheiro adiantado.

Os olhos abriram-se-lhe ainda mais.

- Foi isso o que me disse antes? Bem me parecia que não tinha percebido muito bem.

- Quis ser engraçado, ao falar na chuva. Lamento muito. É melhor assim, sem enfeites.

Abanou a bonita cabeça.

- Não acho que seja melhor, Mr. Goodwin. Parece-me uma loucura, a não ser que... Ah, pois, compreendo! Mrs. Fromm disse qualquer coisa terrível a meu respeito! Não me surpreende, mas o que foi?

- Não afirmei que ela tenha falado de si. Limitei-me...

- Claro que falou! Tinha de ser! O que foi?

- Não - ripostei, enfático. - Talvez não me tenha explicado bem. - Pus um dedo no ar: - Primeiro, a senhora dá-me o dinheiro. - Outro dedo no ár: - A seguir eu dou-lhe os factos. Estou a oferecer-me para lhe vender qualquer coisa, mais nada.

- É esse o grande problema - respondeu, fazendo ùm aceno de tristeza.

- Então porquê?

- Ora, porque não está a falar a sério. Se se oferecesse para me vender a informação por vinte dólares, seria um caso diferente e é claro que eu adoraria saber o que ela disse... Mas cinco mil dólares? Sabe o que penso, Mr. Goodwin?

- Não sei.

- Penso que o senhor é uma pessoa demasiado decente para usar esse tipo de tácticas, para me despertar a curiosidade e me pôr a falar. Quando entrou aqui eu nem sonhava que o senhor fosse assim, em especial por causa dos olhos. Deixo-me guiar pelos olhos.

Até cèrto ponto, também me deixo guiar pelos olhos, e os dela não estavam de acordo com o papel que desempenhava. Apesar de não serem os mais vivos e imteligentes que jamais vira, não eram os olhos de uma tolinha. Gostaria de poder ficar ali mais uma hora, para a espicaçar e ver o que dava, mas as instruções que tinha eram para apresentar a proposta sem rodeios, tomar nota das reacções e seguir em frente. Além disso, qúeria conseguir, antes do funeral, tantas reacções quantas me fosse possível. Assim, levantei-me para me ir embora. Teve pena de me ver partir. Sugeriu até que poderia vir a acrescentar mais dez dólares à sua contraproposta de vinte, mas dei-lhe a saber que o comentário que fizera sobre as minhas tácticas me tinha magoado os sentimentos e que queria ficar sozinho.

Já na rua encontrei uma cabina telefónica para fazer um relatório a Wolfe, e apanhei um táxi para a 42. a Rua.

Lon Cohen tinha-me informado de que não deveria achar estranho o facto de a Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas ter os seus elegantes e ensolarados escritórios no vigésimo sexto andar de um dos novos palácios comerciais do centro da cidade, porque a proprietária do edifício era Mrs. Fromm e a Associação não pagava rendas. Mesmo assim não deixava de ser um grande luxo, em particular para uma organização destinada a aliviar os infelizes e os oprimidos. Na brilhante sala de recepção fiquei com um exemplo mesmo debaixo dos meus olhos. Na ponta de um grande sofá de couro castanho, abatido de cansaço e desespero, encontrava-se um espécime típico envergando um velho fato cinzento que tinha duas vezes o seu tamanho. Quando lhe lancei uma olhadela, perguntei a mim mesmo o que o desgraçado pensaria daquele uxo, mas depois lancei-lhe uma outra olhadela e deixei de me preocupar com isso. Era Saul Panzer. Os nossos olhos encontraram-se, os dele pousaram-se no chão e eu encaminhei-me para a mulher da recepção, que tinha um nariz muito comprido e fino e um queixo a condizer.

Declarou que Miss Wright estava ocupada e só recebia por marcação. Depois de eu lhe apresentar um cartão de visita e a persuadir a ler não apenas o meu nome mas também a mensagem que estava escrita por baixo, disse-me que iria ser recebido, mas não gostou de o fazer. Deixou bem claro, com os lábios apertados e a contracção do queixo, que não queria nada comigo.

Fizeram-me entrar numa grande sala esquinada, com janelas para dois lados, dando uma panorâmica de Manhattan para sul e leste. Havia duas secretárias, mas só uma estava ocupada por uma mulher executiva de cabelo castanho e com um ar tão em baixo como o de Saul Panzer, mas que não cedia nem tinha intenções de o fazer.

Cumprimentou-me com uma exigência:

- Posso ver o seu cartão, por favor?

Fora-lhe lido pelo telefone. Atravessei a sala e entreguei-lho.

- Estou muito ocupada. Isto é urgente?

- Não lhe ocupará muito tempo, Miss Wright.

- Que utilidade terá discutir o assunto comigo?

- Não sei. Teremos de deixar isso em aberto e depois se verá se é útil ou não. Estou a falar estritamente em meu nome, e não em nome de Nero Wolfe e não há...

- Não foi Nero Wolfe quem o mandou aqui?

- Não.

- Foi a Polícia?

- Não, foi uma ideia minha. Tive alguns azares, estou necessitado de dinheiro e tenho uma coisa para vender. Sei que é um mau dia para si, com o funeral de Mrs. Fromm para logo à tarde, mas não a demorarei muito, ou, pelo menos, não conto com isso, e preciso de cinco mil dólares tão depressa quanto for possível.

Sorriu com um dos lados da boca.

- Se isto é uma espécie de assalto, receio não ter tanto dinheiro comigo. O senhor não é um detective, possuidor de uma licença e de uma boa reputação?

- Tento sê-lo, mas, como já disse, tive alguns azares. Tudo o que estou a fazer neste momento é a oferecer-me para lhe vender uma coisa, que a senhora pode comprar ou não. Depende até que ponto esteja interessada em saber exactamente o que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe. Por cinco mil dólares pode ser um belo negócio para si... ou pode não o ser. Quanto a isso, a senhora poderá ser melhor juiz do assunto do que eu, mas é claro que não o poderá saber antes de ouvir a informação.

- Então é isso... - disse, olhando-me.

- É isso - concordei.

Os seus olhos castanhos eram mais difíceis de enfrentar do que tinham sido os de Jean Estey ou de Claire Horan. A minha dificuldade estava em ostentar o aspecto de um homem que tivesse em si uma grande parte de rato dos esgotos, mas em que, por outro lado, se pudesse confiar que forneceria a mercadoria prometida. Aquele olhar frontal e duro provocou-me a sensação de não estar devidamente vestido para o papel desempenhado, e fazia-me dar ordens à minha cara para que esta o não revelasse. A cara pensou que talvez fosse melhor fazer qualquer coisa, e por isso servi-me da boca.

- Compreenda, Miss Wright, que se trata de uma oferta de boa fé. Posso dizer-lhe, e assim farei, tudo o que eles disseram entre si.

- Mas em primeiro lugar quer o dinheiro.

A voz era tão dura como os olhos.

Estendi a mão para a frente, de palma virada para cima.

- Receio que não exista outra maneira. A senhora podia mandar-me dar uma volta.

- Sim, pois podia. - Tinha o cérebro a trabalhar. - Talvez possamos chegar a um compromisso. - Tirou um bloco de folhas de papel de uma gaveta e empurrou a caneta na minha direcção. - Puxe de uma cadeira ou sirva-se da outra secretária, e ponha a sua proposta por escrito e de uma maneira breve. Escreva assim: Após pagamento de cinco mil dólares, em dinheiro, por parte de Miss Angela Wright, farei a relato, total e imediato, da conversa que teve lugar entre Laura Fromm e Nero Wolfe na última sexta-feira, à tarde. Ponha a data e assine, e é tudo.

- E a seguir entrego-lhe este documento?

- Sim. Devolvo-lho logo que cumpra a sua parte do acordo. Não acha justo?

Sorri.

- Nem por isso, Miss Wright. Se eu fosse assim tão tolo, quanto tempo julga que aguentaria a trabalhar para Nero Wolfe?

Devolveu-me o sorriso.

- Quer saber o que eu penso?

- Claro.

- Penso que se fosse capaz de vender os segredos que escuta no gabinete de Wolfe, ele já o teria descoberto há muito           e punha-o na rua.

- Já lhe expliquei que tive uns azares...

- Que não foram assim tão grandes. Também não sou tola.

É claro que tem razão a respeito de uma coisa, ou seja, Mr. Wolfe tem razão, pois é verdade que eu gostaria muito de saber os motivos da consulta que Mrs. Fromm teve com ele.

É natural. Pergunto a mim mesma o que na realidade aconteceria se conseguisse reunir esse dinheiro e lho entregasse.

- Tem uma maneira fácil de o saber.

- Talvez exista outra mais fácil. Posso ir visitar Mr. Wolfe e perguntar-lhe.

- E eu chamo-lhe mentirosa.

- Sim - respondeu, fazendo um pequeno aceno -, suponho que o faria. Mr. Wolfe não admitiria com facilidade que o mandou fazer-me essa proposta.

- Muito em particular se não o tivesse feito.

Os olhos castanhos soltaram um breve clarão e recuperaram a dureza.

- Sabe o que me deixa mais ressentida, Mr. Goodwin? O facto de me tomarem por estúpida. É a minha vaidade. Diga isso a Mr. Wolfe. Diga-lhe que não me importo que tenha experimentado comigo esse pequeno truque, mas que não gostei que me tivesse em tão baixa conta.

- Gosta dessa ideia, não gosta? - perguntei-lhe, sorrindo.

- Sim, gosto muito dela.

- Está bem, mantenha-se agarrada a ela. Não lhe levo nada por isso.

Virei-me e saí. Quando passei pela recepção e vi o Paul sentado no sofá, apeteceu-me avisá-lo de que iria ter pela frente uma leitora de pensamentos, mas é claro que não o pude fazer.

Descobri uma cabina telefónica no vestíbulo, e fiz um relatório para Wolfe, depois fui à procura de uma Coca, em parte porque tinha sede e em parte porque precisava de tempo para um exame post-mortem. Fora eu que procedera mal, a mulher era demasiado esperta para mim... ou o quê? Quando terminei a bebida, concluí que a única maneira de evitar que a intuição feminina se intrometa ocasionalmente, e por pura sorte, é mantermo-nos afastados das mulheres, o que não é prático. De qualquer modo, Wolfe não parecera ficar preocupado, uma vez que eu fizera a proposta e era essa a sua principal meta.

Foi um pequeno passeio até ao cliente seguinte, num edifício mais velho e miserável, na 43á Rua, a oeste da 5á Avenida.

Depois de me meter num elevador até ao 4. o andar e de passar por uma porta que dizia Pensamento Moderno, tive uma surpresa agradável. Como no domingo comprara um exemplar da revista editada por Vincent Li scomb e lhe dera uma vista de olhos antes de a passar a Wolfe, partira do princípio de que qualquer mulher ali empregada teria todas as coisas interessantes - se as tivesse - apenas no interior do crânio, mas foi uma coisinha cheia de curvas e de olhos brilhantes, sentada em frente de um quadro telefónico, quem me lançou um olhar cheio de luz e depois me deu as boas-vindas com um sorriso que indicava que o único motivo que a levara a aceitar aquele emprego fora por pensar que um dia eu aparecia por ali.

Gostaria de ter cooperado, perguntando-lhe qual a espécie de orquídeas de que mais gostava, mas o meio-dia aproximava-se. Limitei-me a devolver-lhe o sorriso, disse-lhe que queria falar com Mr. Lipscomb e entreguei-lhe um cartão de visita.

- Um cartão de visita? - manifestou-se, apreciadora. – Isto é que é estilo! - Vendo o que lá se encontrava escrito, lançou-me um segundo olhar, ainda amigável mas com mais reservas. Inseriu uma tomada com os seus dedos ágeis, carregou num botão e momentos depois falava pelo microfone.

Retirou a tomada do quadro, devolveu-me o cartão e disse:

- Por ali, terceira porta à esquerda.

Não precisei de contar até três, porque quando me meti pelo escuro corredor abriu-se uma porta e apareceu um homem que me chamou aos gritos, como se eu me encontrasse do outro lado de um rio.

- Por aqui! - gritou, voltando a desaparecer no interior. Quando entrei, encontrava-se de pé, de costas para uma janela e de mãos enfiadas nos bolsos das calças. A divisão era pequena e a única secretária e as duas cadeiras poderiam ter sido compradas na 2.a Avenida pelo preço da chuva.

- Mr. Lipscomb?

- Sim.

- Sabe quem eu sou?

- Sim.

A voz, apesar de agora ser mais baixa, continuava no entanto a ter cinco vezes mais decibéis do que os necessários. Devia ser para estar de acordo com a estatura, pois o homem tinha mais cinco centímetros do que eu, ombros maciços também mais largos, ou então era para compensar o nariz, largo e achatado, e que estragaria qualquer fronha por muito bonita que fosse.

- Trata-se de um assunto confidencial - disse=lhe. - É pessoal e privado.

- Sim?

- E só entre mim e o senhor. A proposta é minha e destina-se apenas a si.

- Qual é?

- Uma oferta de troca de informações por dinheiro. Como o senhor é editor de uma revista, deve estar habituado a coisas destas. Por cinco mil dólares posso contar-lhe tudo a respeito da conversa entre Mr. Fromm e Mr. Wolfe na sexta- feira passada. Um relato autêntico e completo.

Tirou uma das mãos da algibeira para coçar a face e voltou a guardá-la. Quando falou, a voz já baixara para um nível razoável.

- Meu caro amigo, não sou o Harry Luce. De qualquer modo, as revistas não fazem as compras desse modo. O pro cedimento é este: diz-me confidencialmente o que tem para vender, e depois, se me puder servir da informação, chegamos a um acordo quanto à quantia. Se não chegarmos a acordo, ninguém perde nada. - Levantou os largos ombros para depois os deixar cair. - Não sei... Sem dúvida que irei publicar um artigo sobre Laura Fromm, um artigo provocador e que dê que pensar, pois era uma grande mulher e uma grande dama, mas de momento não vejo como a sua informação me poderia servir. Que tal é?

- A informação não é para a sua revista, Mr. Lipscomb. É para si, pessoalmente.

Franziu a testa. Se a expressão não era verdadeira, era muito bem feita.

- Receio não estar a perceber...

- É muito simples. Escutei a conversa, do princípio ao fim. Nessa mesma noite, Mrs. Fromm foi assassinada, e como o senhor está envolvido e eu tenho...

- Isso é absurdo. Não estou envolvido. As palavras são a minha especialidade, Mr. Goodwin, e uma das dificuldades

maiores quando se lida com as palavras está no facto de toda a gente as utilizar sem saber, a maior parte das vezes, qual é o seu significado correcto. Estou disposto a aceitar que se serviu dessa palavra por ignorância. Não estou envolvido.

- Muito bem. E não se sente afectado?

- Claro que me sinto afectado. Não era amigo íntimo de Mrs. Fromm, mas tinha uma grande consideração por ela e muito orgulho em a conhecer.

- O senhor esteve no jantar festivo em casa de Horan, na sexta-feira. Foi uma das últimas pessoas a vê-la com vida. A Polícia, que de certo modo também é especializada em palavras, já lhe fez muitas perguntas e ainda irá fazer mais... mas digamos que o senhor se sente apenas afectado. Considerando tudo isto, e incluindo o que ouvi Mrs. Fromm dizer a Mr. Wolfe, pensei que a sua preocupação pudesse valer cinco mil dólares.

- Começa a cheirar-me a chantagem. É isso?

- Não faço ideia, o senhor é que é o especialista em palavras. Eu sou um ignorante.

Retirou as mãos dos bolsos num movimento abrupto e por instantes cheguei a pensar que pretendia estabelecer um contacto físico, mas limitou-se a esfregá-las uma na outra.

- Para ser chantagem, tem de haver uma ameaça! - declarou. - Que acontece, se eu pagar?

- Não há nenhuma ameaça.

- E se não pagar?

- Não recebe a informação.

- E a quem é que a vai dar?

Sacudi a cabeça.

- Já lhe disse, não há nenhuma ameaça. Estou apenas a tentar vender-lhe uma coisa.

- Claro. Uma ameaça não precisa de ser explícita. Veio publicado nos jornais que Wolfe está a investigar a morte de Mrs. Fromm.

- É verdade.

- Mas não foi ela quem o contratou para isso, porque não devia estar à espera de morrer. É assim que vejo a coisa. Portanto, pagou a Wolfe para investigar alguma coisa ou alguém, e foi morta nessa noite. Não pode estar a oferecer-se para me vender informações que Wolfe considere como estando ligadas com o crime, uma vez que não poderia suprimir provas sem a conivência de Wolfe. Não é isso o que está a afirmar, pois não?

- Não.

- Então o que me está a oferecer são informações, algo que Mrs. Fromm disse a Mr. Wolfe e que não precisa de ser revelado como estando relacionado com a morte. Está certo?

- Não faço comentários.

- Assim não vamos lá - declarou, abanando a cabeça. - A não ser que me diga isso, não posso negociar consigo. Não estou a afirmar que negociarei se mo disser; mas sem esse elemento não posso tomar uma decisão.

Deu meia volta e ficou a olhar para a janela, se é que tinha os olhos abertos. Só lhe via as largas costas. Ficou assim tempo suficiente para alguém lhe medir a temperatura, e ainda sobraria para mais qualquer coisa. Por fim virou-se.

- Goodwin, não sei se terá alguma utilidade caracterizar a sua conduta como ela o merece. Meu Deus, que maneira de ganhar a vida! Aqui estou eu, que dedico todo o meu tempo, talento e energias aos esforços para melhorar um pouco a conduta humana... e aparece-me você! Mas isso não lhe interessa. Para si, tudo o que conta é o dinheiro. Meu Deus! Dinheiro! Vou pensar no assunto. Pode ser que lhe telefone e pode ser que não. Vem na lista?

Disse-lhe que sim, que era o número de telefone de Nero Wolfe, e sem me preocupar em ouvir mais factos feios a respeito do meu carácter quando comparado com o dele, desapareci dali. A minha alegre amiguinha do telefone talvez estivesse disposta a entreter-me um pouco, mas pensei que lhe poderiam ser prejudiciais quaisquer contactos com uma pessoa com o meu carácter, e segui em frente.

Na rua procurei uma cabina telefónica, marquei o número que melhor conhecia, e ouvi a voz de Wolfe.

- Estou despachado do número quatro. Lipscomb. Estás bem instalado?

- Podes dizer. Não farei perguntas.

Aquele Não farei perguntas, queria dizer que não se encontrava sozinho. Por isso tive ainda mais cuidado com o relatório, incluindo a minha opinião sobre o melhorador do tom da conduta humana". Feito isso, disse-lhe que passavam vinte minutos do meio-dia, para lhe poupar o trabalho de olhar para o relógio, e perguntei-lhe se podia seguir para o número cinco, Paul Kufner, o conselheiro de relações públicas que me pusera a andar com tanta suavidade quando me vira com Jean Estey:

- Não - retorquiu com secura. - Volta para casa imediatamente: Mr. Paul Kuffner está aqui e quero falar contigo.

 

É claro que o tom e a escolha das palavras da ordem de Wolfe serviram para me avisar do que podia vir a esperar, portanto não fiquei surpreendido pelo feio olhar que me lançou quando entrei no seu gabinete. Paul Kuffner, imstalado no cadeirão de couro vermelho, não fez surgir o sorriso de entusiástica aprovação com que me favorecera no sábado, mas não se podia dizer que a expressão fosse hostil. Suponho que as boas relações públicas excluem a hostilidade aberta em relação a um ser nosso irmão, a não ser que este nos comece a mastigar uma orelha. Só uma dentadinha não seria suficiente.

Wolfe manifestou-se quando me sentei na minha secretária.

- Não te sentes aí, Archie. O teu direito a sentares-te nessa secretária está suspenso. - Apontou para um dos cadeirões amarelos. - Muda-te para ali, por favor.

Fiquei espantado.

- Quê? Qual é a ideia?

- Muda-te, por favor - repetiu, num tom sombrio. Disse à minha cara que, para além de se mostrar espantada, devia também revelar mágoa e confusão, isto enquanto me levantava, me dirigia para o cadeirão amarelo, me sentava e enfrentava o seu olhar fulminante. O tom era a condizer.

- Mr. Kuffner acabou de fazer uma acusação chocante. Quero que a ouças da sua boca. Mr. Kuffner?

Tive pena do Kuffner, por ter de a repetir. Franziu a boca, levando o seu bigode-sobrancelha a descrever um arco. Dirigiu-se a mim e não a Wolfe.

- Fui informado de que esta manhã fez uma proposta a uma mulher, sobre cuja honestidade não tenha dúvidas. Diz que o senhor se ofereceu para lhe contar tudo a respeito da conversa que Mrs. Fromm teve com Mr. Wolfe na sexta-feira passada, isto se ela lhe pagasse cinco mil dólares, em dinheiro.

- A indignação não me fez saltar da cadeira. Sendo um detective veterano, com uma grande experiência, sempre guiado por Nero Wolfe, deveria ser capaz de encarar uma falsidade tão desprezível como aquela com alguma pose. Levantei o queixo alguns centímetros, e perguntei-lhe:

- Como é que se chama a mulher?

Sacudiu a cabeça numa negativa.

- Não o disse a Mr. Wolfe porque ela mo pediu para não o fazer. É claro que o senhor sabe de quem se trata.

- Esqueci-me. Diga-me.

- Não.

- Por amor de Deus! - Mostrei-me levemente enojado. Se o senhor fosse um senador dos Estados Unidos, é natural que não viesse a revelar o nome do meu acusador, mas como não o é, vá dar uma volta.

Kuffner ficou incomodado, mas manteve-se teimoso.

- Não me parece que seja difícil de compreender. Tudo o que tem a fazer é responder à pergunta: fez éssa proposta a uma mulher, esta manhã?

- Muito bem, digamos que respondo à pergunta. A seguir, o senhor diz-me que houve um homem que afirma que lhe roubei o queijo que ele colocou na ratoeira a noite passada, e tenho de responder a isso. Depois diz que houve um cavalo que lhe contou que lhe cortei o rabo e...

- Já chega! - interveio Wolfe. - Archie tem razão, Mr. Kuffner. As acusações anónimas são de um gosto questionável.

- Para mim, não é anónima. Conheço-a.

- Então diga como ela se chama.

- Pediu-me para não o fazer.

- Se prometeu não o fazer, então receio que estejamos num impasse. Não me surpreende que Mr. Goodwin faça essa exigência. Seria um parvo se não procedesse desse modo. Assim, o assunto está arrumado, não o aprofundarei. Se não se justifica que o senhor receba uma resposta a uma acusação anónima, também não tenho o direito de pedi-la.

Kuffner contraiu a boca, e o bigode transformou-se num parêntese deitado de costas. Automaticamente, levou a mão ao bolso lateral e fez aparecer uma cigarreira. Abriu-a, tirou um cigarro, olhou para ele, ganhou consciência do que fizera, e perguntou:

- Não se importa que fume?

- Importo - respondeu Wolfe numa voz seca.

Não se tratava, de modo nenhum, de uma regra imperiosa e obrigatória. Havia excepções, não apenas para alguns homens mas até para algumas mulheres, e nem sempre se tratava de clientes em perspectiva. Kuffner ficou frustrado e confuso. Tinham-lhe impedido de modo arbitrário a concretização de um hábito básico, e agora enfrentava mais um problema. Retirar um cigarro de uma cigarreira metálica com tampa e mola é fácil, basta o toque de um dedo para fazer saltar o cigarro, mas voltar a meter o cigarro lá dentro é mais complicado. Resolveu o problema voltando a meter a cigarreira no bolso lateral esquerdo e guardando o cigarro no bolso direito. Estava a tentar não corar, mas a voz deixou-o ficar mal.

- Foi Miss Angela Wright.

Enfrentei-o como um homem.

- Miss Angela Wright disse-lhe isso?

- Sim.

- Que eu lhe tinha feito essa oferta?

- Sim.

Levantei-me e dirigi-me à minha secretária. Wolfe perguntou:

- Que estás a fazer?

- Vou telefonar a Miss Wright para lho perguntar. Se ela disser que sim, digo-lhe que é uma mentirosa do mais puro sangue e envio-lhe um certificado de pedigree no valor de cinco mil dólares.

- Ela não está - declarou Kuffner.

- Onde está?

- Ia sair para almoçar e depois seguia para a capela onde se realiza o funeral.

- Fizeste a Miss Wright a oferta descrita por Mr. Kuffner? - perguntou Wolfe.

- Não senhor.

- Disseste-lhe alguma coisa que pudesse ser confundida com uma tal proposta?

- Não senhor.

- Houve alguém que tivesse escutado a tua conversa com ela?

- Só se a sala estivesse sob escuta.

- Então senta-te na tua secretária, se fazes favor. - Wolfe virou-se para o visitante. - Se me transmitiu correctamente o que Miss Angela Wright lhe disse, então o que aqui temos é um problema de veracidade entre ela e Mr. Goodwin. Para além daquilo que me disse, tem alguma outra prova contra

Mr. Goodwin?

- Não, não tenho provas.

- Continua a acreditar em Miss Wright?

- S... sim, continuo.

- Então, muito bem. Deve compreender, suponho, que para mim não se trata exclusivamente de escolher quem mentiu, se Mr. Goodwin se Miss Wright, porque a respeito do que ela afirmou só sei aquilo que o senhor mesmo me disse.

Kuffner sorriu. Recuperara o domínio de si mesmo e voltava a mostrar-se muito suave.

- Já agora podemos atingir uma posição de unanimidade, Mr. Wolfe. Não mencionei anteriormente o que vou dizer agora, porque se tratava apenas de uma conclusão pessoal de Miss Wright, mas ela pensa que foi o senhor quem mandou Goodwin fazer-lhe aquela proposta. Portanto, eles dois não são as únicas alternativas.

Wolfe fez um aceno, com um ar nada preocupado.

- Depois de tecido o pano, podemos ornamentá-lo à vontade. - Olhou para o relógio. - Passam vinte minutos da minha hora do almoço. Estamos num beco sem saída e podemos muito bem abandonar este assunto, a não ser que queiram estudar uma hipótese. Podemos partir do princípio de que é o senhor ou Miss Wright quem está a mentir, ou que é Mr. Goodwin quem mente, ou que ele e eu estamos a mentir. Estou pronto a aceitar, como base para discussão, que a última hipótese é a verdade, o que o deixa a si na melhor posição que poderia esperar vir a ocupar. E agora?

Kuffner estava pronto para o desafio.

- Agora, perguntava-lhe que justificação teria para apresentar a Miss Wri ht uma proposta tão imprópria e coerciva.

- E eu respondia-lhe que o senhor não tem nenhum mandato para regulamentar a minha conduta. E então?

- Concluiria... Provavelmente concluiria que era meu dever informar a Polícia de que o senhor está a interferir na investigação oficial de um assassínio.

- Isso não faz sentido. A minha conversa com Mrs. Fromm foi comunicada à Polícia e não tenho direitos exclusivos. Não sou um advogado, e o que um cliente me diz não é absolutamente confidencial. Não houve nenhuma interferência ou incorrecção e nada que se pareça com coerção. Possuía algo que se encontrava legalmente em meu poder, o registo de uma conversação, e ofereci-me para o vender, sem qualquer tentativa de coerção ou sugestão de que se verificaria uma alternativa desagradável. A sua decisão de comunicar o facto à Polícia não me interessa.

- Não há dúvida de que estava preparado para isso - declarou Kuffner com um sorriso.

- Tinha de estar, fui eu quem apresentou a hipótese como base de discussão. Que viria a seguir?

O sorriso desapareceu.

- Preferia abandonar essa hipótese. Mesmo que conseguisse provar que a proposta de venda foi feita, e não posso, porque só tenho a palavra de Miss Wright, e uma vez que o senhor a poderia justificar, e para bem desta discussão, aceito que tenha razão, onde é que isso me levava? Já não temos muito tempo porque quero ir ao funeral, pelo que é melhor passarmos aos negócios.

- Os seus ou os meus negócios?

- Os nossos. - Kuffner inclinou-se para a frente. - A minha função profissional, Mr. Wolfe, é a de aconselhar os meus clientes e tratar até certo ponto dos seus negócios para que eles e as suas actividades sejam vistas sob uma luz favorável.

Mrs. Fromm era uma das minhas clientes. Outro desses clientes era, e é, a Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas.

Tenho um forte sentimento de obrigação para com Mrs. Fromm; de não diminuiu com a sua morte, antes pelo contrário. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para garantir que a sua memória e reputação não sejam prejudicadas. Também estou preocupado com a Associação. Tanto quanto eu saiba, não há qualquer ligação entre a morte de Mrs. Fromm e os assuntos da Associação, mas é possível que exista. Sabe alguma coisa a esse respeito?

- Continue, Mr. Kuffner.     

- É o que farei. Penso que é mais do que possível, é até       muito provável, que exista uma ligação entre a morte de Mrs. Fromm e a conversa que ela teve consigo na sexta-feira. O assunto sobre o qual ela o consultou devia ser secreto, porque, segundo julgo, não disse a ninguém que vinha ter consigo. Seria natural que mo dissesse, isto é óbvio, mas não o fez. Deverá ter sido importante, porque não visitaria um detective particular, em especial o senhor, por causa de uma questão trivial. Se esse assunto estava relacionado com o que quer que fosse, ou quem quer que fosse que a matou, então deverá ter sido mais do que importante: era vital. Quero saber o que era... Preciso de saber o que era. Já tentei que a Polícia mo dissesse mas não o querem fazer. O senhor acabou de afirmar que o registo dessa conversa está legalmente em seu poder e que não vê nada de impróprio na sua venda. Pago-lhe cinco mil dólares por ele. Em dinheiro e adiantado. Se os quiser em moeda corrente, posso obtê-los esta tarde.

Wolfe, encarava-o de testa franzida.

- Vamos lá a ver uma coisa, Mr. Kuffner, o que é que prefere: o branco ou o preto? Não pode ser das duas maneiras. O senhor ia comunicar à Polícia uma proposta iníqua e agora está pronto a tomar parte nela. É uma extraordinária reviravolta ética.

- Não é mais extraordinária do que a sua – protestou Kuffner. - O senhor condenou Goodwin por a ter feito, e até o proibiu de se sentar na secretária, para depois justificar a proposta.

- Sem dúvida. Se Mr. Goodwin tivesse feito uma tal proposta, estaria a tentar vender uma coisa que não lhe pertence; pertence-me a mim. - Wolfe agitou uma das mãos. - Porém, a sua habilidade como acrobata casuístico, apesar de impressionante, é colateral. A questão é esta: aceito a sua proposta? A resposta é: não. Tenho de a recusar.

O punho de Kuffner esmurrou o braço do cadeirão.

- Não pode recusá-la! Não pode!

- Ah, não?

- Não! Como representante dos interesses de Mrs. Fromm tenho o direito de lha exigir! O senhor não tem o direito de a recusar! É uma interferência com as minhas funções legítimas!

Wolfe abanou a cabeça.

- Se não existissem outros motivos para a minha recusa, seria suficiente o facto de ter medo de negociar consigo. O senhor é demasiado ágil para mim. Ainda á minutos uma tentativa de venda da minha parte era uma interferência imprópria; agora que me recuso a vender, o senhor diz que é uma interferência imprópria. Deixou-me confuso e preciso, pelo menos, de algum tempo para me conseguir orientar. Sei como entrar em contacto consigo. - Olhou para o relógio. – Vai chegar tarde ao funeral.

Era verdade. Kuffner lançou uma olhadela ao relógio de pulso e levantou-se. Pela expressão do rosto via-se que decidira sair dali sob uma luz mais favorável. Sorriu primeiro para mim e depois para Wolfe.

- Peço desculpa - declarou - por ter sido demasiado livre nas minhas acusações. Espero que me dêem um desconto. Esta é, de longe, a pior situação com que jamais tive de lidar. De longe. Ficarei à espera que entre em contacto comigo e tenho esperança de que o faça.

Quando regressei ao gabinete depois de o acompanhar à porta, Wolfe já atravessara o corredor na direcção da sala de jantar.

 

Às seis e trinta dessa tarde encontrava-me sentado numa dura cadeira de madeira, no pequeno gabinete do assistente do procurador distrital, Mandelqbaum, fazendo um discurso.

A audiência de três pessoas era demasiado grande para o tamanho da sala. Na secretária encontrava-se Mandelbaum, de meia idade, gorducho, que dentro de dois anos passaria também a ser classificado como careca. A seu lado estava um chui dos Homicídios, chamado Randall, alto e estreito, sem nada mais a cobrir os ossos do que a pele, e só nos sítios mais salientes. Jean Estey, sentada numa cadeira perto da ponta da secretária, do outro lado da esquina da mesma em relação a mim, usava um vestido cinzento-escuro que não ficava muito bem com os seus olhos castanho-esverdeados, mas que, provavelmente, era o melhor que conseguira arranjar para ir a um funeral.

A conferência, que consistia principalmente em perguntas feitas por Mandelbaum e em respostas dadas por Miss Estey e por mim; já durava havia dez minutos, ou coisa parecida, quando percebi que o ambiente estava preparado para o meu discurso e me dispus a debitá-lo.

- Não o censuro - declarei a Mandelbaum - por estar a perder o seu tempo, ou até o meu; porque sei muito bem que nove décimos de uma investigação criminal são compostos por latidos à Lua, mas não acha que isto já foi longe demais?

Em que ponto ficámos? Sejam quais forem os factos, eu retiro-me. Se Miss Estey inventou tudo, não precisam de mim para vos ajudar a descobrir porquê. Se está a dizer a verdade, e lhe fiz essa proposta por conta própria, já a comunicaram a Mr. Wolfe pelo telefone, e foi ele quem me fez passar pela máquina de picar carne, e não os senhores. Se foi Wolfe quem me mandou fazer a proposta a Miss Estey, como preferem acreditar, então para que é tanta confusão? Até podia pôr um anúncio no jornal oferecendo-se para vender uma transcrição da conversa com Mrs. Fromm a alguém que estivesse disposto a pagar qualquer preço, o que poderia não ser muito nobre e; não vos agradaria, mas iam acusá-lo de quê? Vim aqui a vosso pedido e agora gostaria de voltar para casa para tentar convencer o meu patrão de que não sou uma víbora no seu seio.

Não foi assim tão fácil, mas depois de mais cinco minutos permitiram-me que saísse sem ter de abrir caminho a tiro. Jean Estey não se ofereceu para me dar um beijo de despedida.

Era verdade que queria ir para casa, porque precisava de jantar mais cedo para depois me encontrar com Orrie Cather. Cerca das cinco da tarde aparecera no gabinete com um relatório que parecia justificar irmos incomodar Wolfe nas estufas das plantas, pelo que o levara lá acima... Wolfe ficou a resmungar, mas escutou-o. O vendedor da Boudet's nunca vira brincos em forma de aranhas, em ouro ou em qualquer outro material, mas dera a Orrie uma lista de nomes e pessoas ligadas a fabricantes, importadores, armazenistas e retalhistas, e Orrie procurara-as, quase sempre pelo telefone. Às quatro horas estivera pronto a informar que nunca tinham existido brincos em forma da aranha em toda a Nova Iorque, mas o encarregado de compras de um armazenista sugeriu que falasse com Miss Grummon, a responsável pelas lojas da firma.

Miss Grummon disse que sim, que vira um par de brincos em forma de aranhas e que não estava interessada em ver mais. Um dia, umas semanas antes - não se lembrava da data exacta - ao passar pela 46. a Rua parara para admirar uma montra, e lá estavam elas, duas grandes aranhas em ouro num estofo forrado de verde. Pensara que eram horrorosas, que não se tratava de um desenho que pudesse sugerir aos seus patrões, e ficara surpreendida por as ver em exibição na ouri vesaria de Julius Gerster, porque a maior parte dos artigos aí à venda era de excelente bom gosto.

Até ali, tudo bem. Orrie fora direito à loja de Gerster e não conseguira nada. Afirmava ter utilizado uma boa abordagem, dizendo a Gerster que vira os brincos na montra e que os queria comprar, mas Gerster mantivera a boca fechada desde o primeiro momento. Não negara que tivera na loja um par de brincos em forma de aranhas, mas também não o admitira. A sua posição, expressa no mínimo de palavras que lhe foi possível, era a de não se recordar de um tal artigo, e se este existira, não se lembrava como deixara de o ter ou a quem o vendera.

A posição de Orrie, expressa a mim e a Wolfe num bom número de palavras, era de que Gerster não passava de um grande mentiroso e que queria autorização para o regar com gasolina e chegar-lhe um fósforo.

Assim, Orrie e eu iríamos fazer uma visita a Mr. Gerster, a sua casa, naquela noite, sem termos sido convidados.

Durante o dia tinham-se verificado várias outras ocorrências que não vale a pena explicar em pormenor: telefonemas de Saul Panzer e Fred Durkin, que não tinham descoberto nada, e algumas interrogações da parte de Lon Cohen. Devo mencionar aqui uma não ocorrência: não havia qualquer sinal de uma queixa em tribunal para recuperação do cheque, por parte de James Albert Maddox. O nosso advogado, Parker, estava mais do que aliviado.

Encontrei-me com Orrie às oito horas, à esquina da 74. A com a Columbus, e caminhámos para leste quase até Central Park Ocidental sob uma chuvinha monótona que surgira ao fim da tarde. Se os apartamentos de Nova Iorque podem ser divididos em dois grupos, os que têm toldos de lona à entrada e os que não os têm, aquele estava no meio. Os pilares de suporte dos toldos encontravam-se lá, desde o passeio até à entrada, mas não havia nenhuma lona de cobertura. No átrio dissemos Gerster, para o porteiro e seguimos em frente para o elevador. O homem do elevador informou-nos que era no apartamento 11-F.

A porta foi aberta por um liceal, mais ou menos com a idade e o corpo de Pete Drossos, mas muito limpo e bem arranjado. No instante em que o vi abandonei a estratégia que tínhamos esboçado e escolhi uma outra. Virei-me para Orrie:

- Obrigado por me trazeres cá acima. Até logo.

Levou cerca de um segundo para perceber, o que não foi mau.

- De nada - respondeu, dirigindo-se para o elevador. O rapaz déra-me as boas noites e devolvi-lhe o cumprimento, disse-lhe o meu nome e que queria falar com Mr. Julius Gerster.

Respondeu-me:

- Vou dizer-lhe, aguarde um momento - e desapareceu.

Não atravessei a soleira da porta.

Momentos depois apareceu um homem que se aproximou de mim antes de começar a falar. Era mais baixo do que eu, e mais velho, com um rosto pequeno e muito arrumado, o cabelo liso e preto penteado para trás, tão arranjadinho e limpo como o filho... ou pelo menos esperava que fosse o filho. Perguntou-me com boa educação, mas alguma frieza:

- Queria falar comigo?

- Sim, se não for inconveniente. Chamo-me Goodwin e trabalho para Nero Wolfe, o detective. Queria fazer-lhe umas perguntas a respeito do assassínio de um rapaz. Um rapaz de doze anos chamado Pete Drossos.

A sua expressão não se modificou. Como acabaria por verificar, nunca se modificava.

- Não sei de nada a respeito do assassínio de nenhum rapaz... - declarou.

- Sabe, sim - contrariei-o -, mas ainda não sabe que o sabe. Os seus conhecimentos podem ser essenciais para a descoberta do assassino do rapaz. Mr. Wolfe é dessa opinião. Posso entrar por cinco minutos, para lhe explicar tudo?

- É da Polícia?

- Não, senhor. Sou um detective particular. O rapaz foi atropelado por um carro, de propósito. Foi um crime brutal.

- Entre - disse, chegando-se para o lado.

Não me levou para a frente da casa, de onde viera, mas sim ao longo do corredor na direcção oposta, para uma pequena sala com as paredes cobertas de livros e de quadros. Havia uma reduzida secretária a um canto, uma mesa de xadrez junto de uma janela e duas cadeiras estofadas. Fez-me sinal para que me sentasse numa, esperou e só depois se sentou na outra.

Falei-lhe de Pete, não com grandes pormenores mas o suficiente para lhe dar uma ideia completa: a conversa com Wolfe e comigo, a segunda visita que nos fizera no dia seguinte, algumas horas antes de Stebbins aparecer com a notícia da sua morte, e a visita de Mrs. Drossos para nos transmitir o recado e entregar os quatro dólares e trinta cêntimos. Não forcei a nota, contei-lhe apenas os factos. Depois passei ao ataque.

- Há outras complicações - continuei - em que não entrarei, a não ser que as deseje conhecer. Por exemplo, Mrs. Damon Fromm usava brincos em forma de aranha quando a mataram na sexta-feira, à noite, mas estou apenas a pedir a sua ajuda para descobrirmos quem matou o rapaz. A Polícia não chegou a lado nenhum. Mr. Wolfe também não. Na sua opinião, a melhor hipótese de conseguir uma pista é através dos brincos que Pete disse serem usados pela mulher que seguia no carro. Não conseguimos descobrir ninguém que tenha visto uma mulher com esse tipo de brincos, excepto Mrs. Fromm, é claro, e Mr. Wolfe decidiu começar a procurar por outro lado. Arranjou um homem para o fazer, um homem chamado Cather, para descobrir alguém que tenha vendido brincos em forma de aranhas. Esta tarde Cather estava pronto a jurar que em Nova Iorque nunca existira uma tal pessoa ou firma, quando de repente a descobriu. Uma pessoa de confiança, que podemos apresentar se for necessário, disse-lhe que tinha visto um par de brincos desses na montra da sua loja, há uma semana. Foi fazer-lhe uma visita e o senhor afirmou que não se lembrava de nada.

Fiz uma pausa para lhe dar a oportunidade de fazer algum comentário, mas não se manifestou. A sua cara pequenina e composta não mostrou qualquer reacção. Resolvi continuar:

- É claro que eu podia levantar a voz e mostrar-me duro. Também podia dizer que é inacreditável que o senhor tivesse recentemente um artigo tão pouco vulgar na sua loja, e não se lembre de nada. Poderia retorquir que pode parecer inacreditável, mas é verdade. A seguir eu diria que a sua memória precisa de ser espevitada, e como não posso ser eu a fazê-lo teria de o entregar a alguém que o possa, tal como o inspector Cramer, da Brigada de Homicídios. No entanto, não queria ter de o fazer.

Inclinei-me para trás, muito à vontade.

- Portanto, não digo nenhuma dessas coisas. Preferia dar crédito aos seus méritos pessoais. O rapaz foi deliberadamente assassinado por alguém a quem ele não fizera qualquer mal. Foi há cinco dias e aimda não se encontrou uma pista, e, possivelmente, nunca a encontraremos, a não ser que consigamos descobrir a mulher que conduzia o carro. Usava brincos em forma de aranha, e aparentemente só existiu um único par de brincos desses em toda a Nova Iorque, porque se encontrava na sua montra há menos de um mês. Pergunto-lhe, Mr. Gerster, será que esta história produziu algum efeito na sua memória?

Passou a ponta da língua por cima dos lábios.

- Está a tornar-me as coisas muito difíceis, Mr. Goodwin.

- Eu? Não, quem as tornou difíceis foi o homem que matou Pete Drossos.

- Sim, é claro. Quanto a isso, não sei de nada. Em geral, não costumo ler as histórias de crimes que vêm nos jornais. Li qualquer coisa a respeito da morte de Mrs. Damon Fromm, incluindo o pormenor dos brincos. Tem razão, os brincos eram únicos. Um homem de Paris, que me compra objectos exóticos, enviou-me esse par numa encomenda que recebi em finais de Abril. Foram feitos por Lercari.

- E colocou-os na montra?

- É verdade. Esta tarde, quando aquele homem perguntou... como é que ele se chamava?

-. Cather.

- Ah, sim. Quando me interrogou a respeito dos brincos, preferi não me recordar. Desconfiei que fosse um polícia envolvido na investigação da morte de Mrs. Fromm, mas não sabia que os brincos eram assim tão importantes e tenho uma profunda aversão por qualquer tipo de notoriedade. Seria            muito desagradável ver o meu nome num cabeçalho. Fico-lhe muito grato se conseguir impedir que isso venha a acontecer,

mas não lhe peço que mo prometa. Se for necessário o meu testemunho público pois terá de ser dado. Vendi os brincos na tarde de segunda-feira, onze de Maio. Uma mulher que passou na rua viu-os na montra, entrou e comprou-os. Pagou cento e quarenta dólares com um cheque. Era Mrs. Damon Fromm.

Seria uma grande experiência jogar póquer com aquele pássaro. Perguntei-lhe:

- Não tem dúvidas quanto a isso?

- Nenhuma. O cheque estava assinado Laura Fromm, e reconheci-a das fotografias que já tinha visto. Senti-me compelido a dizer-lhe isto, Mr. Goodwin, depois do que me contou a respeito da morte do rapaz, apesar de saber que não lhe servirá de nada, uma vez que a mulher que ia no carro era Mrs. Fromm, que está morta.

Podia ter-lhe dito que Mrs. Fromm não era a mulher do carro, mas prometera à minha avó não me pôr a badalar, apenas para mostrar às pessoas que sabia muita coisa, e por isso calei-me. Agradeci-lhe e disse-lhe que não pensava que fosse necessário que o seu nome aparecesse nos cabeçalhos dos jornais, e levantei-me para sair. Já à porta, quando lhe estendi a mão e ma apertou com cortesia, o seu rosto tinha precisamente a mesma expressão que exibira quando me vira pela primeira vez.            

Orrie juntou-se a mim no átrio. Esperou até nos encontrarmos no passeio, outra vez sob a chuva miudinha, para perguntar:

- Fizeste-o falar?     

- Claro, não custou nada. Disse-me que teria todo o gosto em dar-te a informação esta tarde, mas que te apanhou a meter uma pulseira no bolso. Mrs. Fromm comprou os brincos em onze de Maio.

- Diabos me levem. A que conclusão chegamos?

- Isso não me diz respeito. O Wolfe é que está encarregado de pensar. Eu limito-me a cumprir as missões que tu falhas.

Apanhámos um táxi em Central Park e Orrie seguiu comigo para o centro da cidade.

Wolfe estava no gabinete a olhar para a televisão, o que lhe dá um grande prazer. Já o tenho visto ligá-la oito vezes numa só noite, olhá-la durante uns três minutos, para a voltar a desligar, agarrando-se a um livro. Uma vez fez um grande discurso a seu respeito, que um dia passarei a escrito. Quando Orrie e eu entrámos no gabinete, girou o interruptor.

Contei-lhe tudo. No fim acrescentei:

- Admito que corri um risco. Se o rapaz não fosse um filtro, mas sim um sobrinho a quem lhe apetecesse apertar o pescoço, não teria conseguido nada. Gostaria de recomendar que deixássemos o seu nome de fora se passarmos a informação aos polícias. Ah, e o Orrie quer saber a que conclusão chegámos!

- Também eu - resmungou Wolfe - O Saul telefonou.

Agarrou em qualquer coisa, mas não sabe bem o que é.

- Disse que o vi no escritório da Assadip?

- Sim. Chama-se Leopold Heim e está a viver num hotel barato da Primeira Avenida... tomei nota aqui no meu bloco.

Teve uma breve conversa com Mrs. Wright e outra com o seu assistente, úm tal Mr. Chaney. Foi ter com eles a pedir ajuda.

Entrou ilegalmente no país e vive no terror de ser apanhado e deportado. Disseram-lhe que não podem ser cúmplices de uma violação da lei e aconselharam-no a falar com um advogado. Quando respondeu que não conhecia nenhum, deram-Lhe o nome de Dennis Horan. Aquele peixe fumado estava salgado e tenho sede. Queres uma cerveja, Orrie?

- Quero, sim, obrigado.

- Archie!

- Não, obrigado. A cerveja gosta de mim, mas eu não gosto dela.

Carregou num botão no rebordo da mesa e prosseguiu:

- Saul foi ao escritório de Mr. Horan e contou-lhe os seus problemas. Horan interrogou-o com grande pormenor, tomando muitos apontamentos, e disse que ia estudar o assunto logo que possível e que Saul teria notícias dele. Saul foi para o quarto de hotel e ficou lá toda a tarde. Às seis saiu para comer qualquer coisa e depois regressou. Pouco depois das oito teve uma visita, um homem. O homem não disse como se chamava. Afirmou que já há algum tempo que estava a par dos problemas de Saul, que simpatizava com ele e o queria ajudar. Uma vez que seria preciso tratar tanto com a Polícia como com o FBI, seria uma coisa dispendiosa. Calculou que o valor total necessário para evitar que o denunciassem ou perseguissem poderia chegar aos dez mil dólares.

Abriu a gaveta para tirar de lá o abre-cápsulas, de ouro, que tinha uma inscrição de um cliente amigo, abriu uma das garrafas de cerveja que Fritz lhe levara e serviu-se. Depois de Fritz abrir a garrafa de Orrie, Wolfe continuou.

- É claro que Saul protestou, desesperado, dizendo que lhe era impossível conseguir uma tal soma. O homem estava preparado para fazer concessões. Afirmou que não seria necessário pagar tudo de uma vez, e que seriam aceitáveis pagamen tos semanais ou mensais, que Saul tinha vinte e quatro horas para explorar os possíveis expedientes, e que qualquer tentativa para se escapar seria desastrosa. Disse que voltaria amanhã à mesma hora e foi-se embora. Saul seguiu-o. Tentar uma tal proeza, seguir um homem nessas circunstâncias, seria uma ousadia perigosa até para o operacional mais habilidoso, e creio que arriscada para o próprio Saul, mas conseguiu-o. Foi atrás do homem até um restaurante da Terceira Avenida, perto da Décima Quarta Rua. O homem estará neste momento no restaurante, a jantar. Saul telefonou-me do outro lado da rua há cerca de vinte minutos.

Wolfe bebeu a cerveja. Estive a preparar-me, quando ele acabasse o relato, para ir misturar uma bebida num copo alto, a fim de me esquecer da chuva fria e miudinha, mas agora já não me apetecia. Conseguia ver o Saul, e sentir o que ele sentia, enfiado num qualquer abrigo da 3 á Avenida para se proteger da chuva, de olhos bem abertos e fitos no outro lado da rua, para lá dos pilares, rezando a Deus para que o seu homem não estivesse a telefonar a um amigo para o ir buscar de carro. Como se tratara do Saul, o mais provável era já ter um táxi estacionado no quarteirão, mas mesmo assim...

- Posso pegar no carro - sugeri -, levar o Orrie até junto do Saul e ficar a postos com o carro. Nós três juntos não deixaríamos escapar nem o próprio Houdini.

Orrie engoliu o resto da cerveja, levantou-se e rosnou:

- Vamos embora.

- Suponho que sim - concordou Wolfe, de testa franzida.

Os homens cheios de boa vontade e dispostos a enfrentarem a confusão das ruas deixavam-no sempre perturbado. Admitir uma coisa dessas à noite era ainda pior, e à noite e sob a chuva era algo que nem sequer conseguia compreender. Suspirou.

Está bem, podem ir. - O telefone tocou. Não se mexeu para o atender, pelo que o fiz na minha secretária.

Residência de Nero Wolfe, fala Archie Goodwin...

- É o Fred, Archie. É melhor que o patrão também ouça isto.

- Podes ser rápido?

- Não, vou demorar um bocado e vou precisar da tua ajuda. Vou...

- Espera um segundo. - Virei-me para Orrie. - É o Fred e parece ter qualquer coisa a escaldar. Vai andando. O melhor sítio para apanhares um táxi é na Décima Avenida. Se o Fred não precisar tanto de mim como o Saul, vou ter convosco em breve. Se precisar, não irei.

Wolfe deu a morada a Orrie e pegou no telefone depois de o ver sair.

Então eu disse para o microfone:

- Muito bem, Fred, Mr. Wolfe está na linha.

- Onde é que estás? - inquiriu Wolfe.

- Numa cabina de uma loja da Nona Avenida, perto da Quinquagésima Quinta Rua. Creio que descobri qualquer coisa. Esta manhã falei com aquele tipo do Gazette que o Archie mandou ter comigo, e ele eu-me muitas imformações sobre o Matthew Birch. Birch podia escolher entre vários hábitos pessoais, mas o seu paradeiro habitual era num buraco da Nova Avenida, o Danny's Bar e Restaurante, entre a Quinquagésima Quarta e a Quinquagésima Quinta Ruas. O Danny chama-se Pincus e aceita apostas. Só abre às onze e não teve movimento durante a primeira hora. O Danny só apareceu depois da uma da tarde. Não acampei lá dentro. Entrei e saí várias vezes, fazendo perguntas a toda a gente a respeito do Birch. É claro que os chuis á lá estiveram muitas vezes nos últimos dias, e provavelmente os tipos pensaram que eu era mais um, até que decidi arriscar-me. Disse a um pequeno grupo que me chamava O'Connor e que estava chateado com o Birch, porque me tinham dito que a minha mulher fora vista no carro com ele na última terça- feira,        à tarde, não muitas horas antes de o terem morto. Disse- lhes que o carro era um Cadillac cinzento-escuro com chapas do           Connecticut, e que estivera estacionado em frente do bar do Danny.         

- Isso foi demasiado específico - resmungou Wolfe.   

- Creio que sim, mas estava a ver se apanhava qualquer coisa e o senhor disse-ìme para partir do seu princípio. E apanhei mesmo! A maioria dos tipos não se mostrou interessada, excepto para me dizerem que me esquecesse do assunto e arranjasse uma nova mulher, mas depois houve um que me puxou para um canto e quis saber coisas. Era esperto, e respondi como pude. Por fim, disse-me que lhe parecia que a minha mulher era uma vadia, mas que se alguém me podia contar coisas do Birch era um tipo que costumava aparecer entre as nove e meia e as dez no bar do Danny. Um tipo chamado Lips Egan.

- Neste momento são nove e vinte e oito.

- Eu sei. Preparava-me para entrar logo às nove e meia, mas comecei a pensar. Já ouviste falar de Lips Egan, Archie?

- Não me recordo.

- Pois eu creio que o nome não me é estranho, que é um dos que trabalhavam para o Joe Slocum, nos cais do porto. Se for ele, sou capaz de ter mostrado demasiadas cartas e vão pedir-me para mostrar o jogo, e pensei que gostarias de andar aqui por perto, mas se não puderes, vou continuar com a jogada.

- Muito bem, continua com a jogada.

- Está bem - respondeu, com um ar pouco entusiasmado.

- Mas espera pela minha chegada. O Danny's fica de que lado da avenida?

- Oeste.

- Muito bem. Vou sair agora e levo o carro. Quando me vires do outro lado da rua, entra e não faltes ao encontro. Ficarei no carro até ouvir os teus gritos ou atirarem o teu cadáver para a rua. Se saíres com companhia, eu sigo-vos, e se saíres sozinho e te dirigires para o centro da cidade, paro para te dar uma boleia logo que tenha a certeza de que não és seguido. Percebeste?       

- Sim. Que jogada devo fazer?

- Como diz Mr. Wolfe foste muito específico. Agora aguenta-te, que eu arranjo-te outra mulher.

- Algumas instruções novas, Mr. Wolfe?

- Não. Vai em frente.

Desligámos. Fui buscar a pistola e a sovaqueira à gaveta onde as guardara quando regressara a casa e equipei-me, com Wulfe a fazer-me caretas. A actividade física e os preparativos para a mesma são coisas que o irritam, mas como é um detective praticante, aceita a necessidade de colocar as pessoas - como por exemplo - em situações em que podem ser feridas a tiro, anavalhadas ou atiradas para um precipício. Uma vez que detesta essas actividades, é uma posição muito generosa da sua parte. Fui ao armário do corredor buscar um chapéu velho e uma gabardina e saí.

Depois de tirar o carro da garagem, logo ao virar da esquina, segui para a 10a Avenida e afastei-me do centro da cidade.

A chuvinha miúda piorara, se é que isso era possível, e o nevoeiro tornara-se mais espesso, mas as vacilantes luzes da Avenida permitiram-me continuar a rastejar em frente. Virei à direita na 56. a e depois de novo na 9. Avenida, cheguei-me para a esquerda e abrandei. Havia uma loja à esquina da 55.

Em frente, do outro lado da rua, um anúncio de néon numa montra declarava Danny's bar e Restaurante. Encustei ao passeio e parei ainda antes de ficar em frente do Danny's, desliguei o motor e desci o vidro da direita para conseguir ver qualquer coisa no meio da chuva. Meio minuto depois, Fred apareceu do outro lado, foi direito ao Danny's e entrou. Eram 9 horas 49 minutos.

Recostei-me confortavelmente e verifiquei que a janela aberta me dava uma boa visão do Danny's, excepto quando passava algum carro, mas estes não eram muitos. Decidi esperar meia hora, até às 10e 19, antes de atravessar a rua para ir ver se Fred continuava intacto, mas não tive de suar durante tanto tempo. O relógio do painel disse-me que tinham passado apenas dois minutos quando Fred saiu com um homem que tinha metade do seu tamanho. O homem levava a mão direita no bolso e seguia à esquerda de Fred, pelo que por um segundo pensei que se tratava de um velho jogo, mas depois Fred atravessou o passeio e o homem continuou o seu caminho.

Fred ficou parado na borda do passeio, sem fazer qualquer sinal, e deixei-me ficar quieto. O homem virou à esquerda na 55. a. Passaram-se três minutos, com o Fred de pé e eu sentado, até sair um carro da 55. a Rua, virar para a avenida e parar em frente de Fred. O condutor era o anterior companheiro de Fred e encontrava-se sozinho. Fred sentou-se a seu lado e afastaram-se.

O motor ainda estava quente e não tive problemas. Vejo bem à noite e mesmo com aquela chuva podia dar-lhe um    quarteirão de avanço. Na 9. a Avenida, larga e de um só sentido, se me mantivesse chegado a um lado ele não me veria no retrovisor. Porém, mal tinha acabado de fazer o catálogo de todos esses pontos a meu favor quando ele abandonou a avenida, virando para a direita, para a 47á Rua. Atravessei a avenida em diagonal, mesmo em frente da proa de um camião de mil toneladas, e descrevi a curva. Continuavam à minha frente. Na 10.a Avenida houve um semáforo que os fez parar, mas eu meti o travão e continuei a avançar a passo. Quando a luz mudou, o outro carro virou para baixo para a 10. e dobrei a esquina mesmo a tempo de o ver desaparecer, a meio do quarteirão, na entrada de uma garagem. Quando passei por ela já tinham desaparecido no interior. Continuei em frente, virei na 48. estacionei meio metro para lá da fachada do edificio, saí e atravessei a avenida para o outro lado.

A tabuleta dizia Garagem Nunn's. Era num velho edifício de tijolo de três andares, que não tinha nada de notável, nem para o bem nem para o mal. Escondi-me numa porta em frente, saindo da chuva. No interior da garagem a luz era fraca e não se via grande coisa para lá da porta. Nos dois andares superiores não existia nenhuma luz. A única iluminação adequada era numa pequena divisão à direita da entrada, com duas janelas. Havia aí duas mesas, algumas cadeiras, mas nenhuma pessoa. Após uma espera de dez minutos, e de continuar sem ver sinais de vida, decidi que aquilo não me agradava e que seria melhor ir investigar.

Depois de voltar à esquina e de atravessar outra vez a rua, parei mesmo no meio da entrada da garagem para dar uma olhadela. Não havia ninguém à vista, mas é claro que poderiam encontrar-se vários pelotões instalados entre a congregação de automóveis e autocarros. Infiltrei-me no interior, para a esquerda, colocando-me atrás de um camião de entregas, parei e escutei. Ouvi ligeiros sons de movimentos algures, nas traseiras, alguém começou a assobiar Oh, What a Beautiful Morning. Quando o assobiador se aproximou, vindo da direita, esgueirei-me em volta da traseira do camião. Deixou de assobiar, mas o barulho dos pés no chão de cimento continuava a ouvir-se bem. Continuou pela direita - a esquerda dele - quase até à entrada, e depois abriu-se e fechou-se uma porta. Entrara no escritório.

Desloquei-me depressa, mas em silêncio, até quase junto da parede e depois para as traseiras, através do labirinto de veículos. Quando os pára-choques se tocavam preferia fazer um desvio a arriscar-me a fazer cair um eventual parafuso solto. A meio caminho das traseiras avistei um objectivo, umas escadas de madeira que subiam junto de um canto. Dirigi-me para elas, mas quando me aproximei tornei-me consciente de um objectivo melhor. Eram também degraus, mas que desciam, e da abertura chegava-me o som de vozes, e uma delas era a de Fred. Avancei e parei no alto dos degraus, mas não conseguia entender as palavras.

Numa situação destas só há uma maneira de fazer um reconhecimento sem expor os pés e as pernas antes de os olhos terem a oportunidade de ver qualquer coisa. Deitei-me sobre o lado esquerdo, com o ombro por cima do primeiro degrau, agarrei-me ao corrimão com a mão direita e desci a escorregar, muito devagar, até ficar com o olho esquerdo ao nível do tecto da cave. A princípio só consegui ver uma nova confusão de carros e de peças de carros a desaparecerem na escuridão, mas quando virei a cabeça, quase dando cabo do pescoço, vi e ouvi que as vozes vinham de uma porta de uma divisória que era aparentemente a parede de uma qualquer sala. A porta estava aberta, mas as pessoas que lá estavam dentro não poderiam ver as escadas, a não ser que espreitassem para o exterior.

Pus-me de pé e desci, mas não com muita pressa. Numa escada de madeira tudo o que podemos fazer é mantermo-nos num dos lados, apoiar o peso do corpo lentamente em cada degrau e rezar a Deus para que o carpinteiro fosse dos bons.

Consegui. O chão da cave era de cimento. Agora, tão silencioso como o próprio silêncio, avancei junto do primeiro carro, à direita, e ao longo dele, e depois passei para outro, e para o seguinte. Aí, agachado no escuro, podia olhar para dentro da sala e ouvir o que diziam. Estavam sentados em volta de uma mesa de madeira no meio da sala, com o tipo pequenino na sua extremidade, virado para mim, e Fred à esquerda, de perfil. Fred tinha as mãos em cima da mesa. O mesmo se passava com o tipo pequenino, mas exibia uma arma. Perguntei a mim mesmo como aquilo podia ter acontecido, uma vez que Fred não estava paralisado, mas isso podia esperar. Tirei a arma da sovaqueira e gostei de a sentir na mão. Tendo o carro a jeito para a apoiar, podia acertar, à escolha, em qualquer centímetro do tipo pequenino, que estava a falar:

- Não, eu cá não sou desses. Um tipo que mete chumbo noutro só porque gosta de sentir o atilho a funcionar, um dia acaba por se meter em sarilhos. Prefiro não ter de dar tiros em ninguém, mas, como já te disse, Lips Egan não gosta de conversar com fulanos que tenham uma arma, e ele é que manda. Deve chegar de um momento para o outro. Porque é que estou a fazer todo este discurso? Está quieto com as mãos! Porque vou tirar-te a tua arma, e és suficientemente grande para dar cabo de mim, mas não fiques com a ideia de que não sou capaz de puxar pelo gatilho. Aqui na cave podíamos muito bem montar uma galeria de tiro ao alvo. Pode ser que o façamos um dia.

Pela maneira como segurava na arma, bem firme mas não com demasiada força, via-se que o tipo era um grande mentiroso. De certeza que gostava de sentir o gatilho a funcionar. Conservou-a bem segura enquanto empurrava a cadeira para trás, se punha de pé e dava a volta para se colocar por detrás de Fred. Quando se está por detrás de um homem é um pouco difícil retirar-lhe uma arma debaixo do braço esquerdo com a nossa mão esquerda, mas ele fê-lo de uma maneira rápida e eficiente. Vi que Fred contraía o maxilar, mas tirando isso comportou-se como um cavalheiro. O homem recuou um passo, deu uma olhadela à arma de Fred, fez um aceno de aprovação, meteu-a no bolso do casaco, regressou à sua cadeira e sentou- se.

- Alguma vez estiveste em Pittsburgh, na Pensilvânia? perguntou.

- Não - respondeu Fred.

- Uma vez encontrei aí um tipo que fabricava os seus próprios cartuchos. Nunca vi uma coisa como aquela. Dizia que a sua pólvora tinha mais genica, mas devia ser tudo conversa fiada. Era um maluco. Se alguma vez me passasse uma ideia dessas pela cabeça, abandonava o meu trabalhinho e dedicava-me à pesca. Como era de prever, alguns anos mais tarde ouvi dizer que o tipo apanhara uns chumbos em St. Louis, no Missuri. Deve ter- se esquecido de meter a genica na pólvora.

Soltou uma gargalhada. Até àquele momento não tivera quaisquer sentimentos pessoais a seu respeito, mas punha grandes objecções à gargalhada.

- Alguma vez estiveste em St. Louis, no Missuri?

- Não - disse Fred.

- Nem eu. Ouvi dizer que é junto do rio Mississípi. Gostava de ver esse maldito rio. Houve um tipo que me disse que há lá crocodilos, mas tenho de os ver para acreditar. Há oito anos eu...

Soou um besouro, e creio que foi no interior da sala. Fez um zumbido longo, dois curtos muito juntos e outro longo. O homem deslizou para junto da parede, mantendo os olhos e a arma apontados para Fred, colocou o polegar num botão e premiu-o. Pareceu-me que foi um toque curto, dois longos e um curto. A seguir deu a volta até à porta e parou à entrada, virado para as escadas, mas sem perder Fred de vista. Instantes depois ouviram-se passos no andar superior e depois apareceram pés a descer as escadas. Baixei-me mais, por detrás do carro. Seria normal que um recém-chegado desse uma olhadela em volta e ainda não me sentia pronto para participar na festa.

- Olá, Mort.

- Olá, Lips. Temos estado à tua espera.

- O tipo está limpo?

- Pois, tinha uma Fr debaixo do braço, para tirar a temperatura.

Mantive-me oculto até os passos do recém-chegado terem ultrapassado a porta, e depois ergui-me muito devagar até poder espreitar pelo vidro do carro. Mort voltara para a sua antiga posição e estava de pé por detrás da cadeira. Lips Egan encontrava-se do outro lado da mesa, em frente de Fred. Era bastante robusto, de ombros arqueados, e todo cinzento, excepto a camisa azul: fato cinzento, gravata cinzenta, rosto cinzento, algum cinzento no cabelo escuro e a ponta do nariz um pouco virada para cima.

- Chamas-te O'Connor? - perguntou.

- Sim - respondeu Fred.

- Que história é essa a respeito do Matt Birch e da tua mulher?

- Alguém me disse que a tinha visto no carro com ele, na terça-feira passada. Penso que ela era capaz de me andar a enganar. A seguir mataram-no, naquela noite.

- Foste tu que o mataste?

Fred abanou a cabeça.     

- Antes de ontem nunca tinha ouvido falar nele.

- Onde é que os viram?

- O carro estava estacionado em frente do Danny's. Por isso lá fui...

- Que espécie de carro era?         

- Um Caddy cinzento-escuro com chapa do Connecticut.

Olhem, tudo o que quero é informar-me a respeito da minha mulher. Quero ter certezas. Este homem, Mort, que não sei quem é, disse que me poderias ajudar.

- Pois, talvez possa. Onde estão as coisas dele, Mort?

- Não o revistei, Lips. Estava à tua espera. Só lhe tirei a arma.

- Então vamos ver o que ele traz consigo.

Mort virou-se para Fred.

- Vai dar um abraço à parede.

Fred obedeceu. Logo que desse três passos eu precisaria de me desviar para a esquerda e espreitar por cima do motor do carro para o poder continuar a ver, mas não valia a pena arriscar-me. Mort também me desapareceu da vista. Ouvi ligeiros ruídos e depois a voz de Mort:

- Fica onde estás.

A seguir voltou a aparecer à vista, tirou um monte de objectos dos bolsos e colocou-os em cima da mesa. Eram as coisas habituais que os homens carregam consigo, mas entre elas reconheci o sobrescrito amarelo com as fotografias que eu entregara a Fred no dia anterior.

Lips Egan, que revistava a pilha de objectos, concentrou-se no sobrescrito, na carteira e no livro de apontamentos. Levou o seu tempo a observar as fotografias. Quando falou, a sua voz era diferente. Até aí não se mostrara sociável, mas o tom agora era mau.

- Chama-se Fred Durkin, e é um detective particular.

- Ah, é? Olha o filho da mãe!

Era caso para pensar que Egan dissera que se tratava de um passador de droga.

- Volta a sentá-lo na cadeira - ordenou Egan.

Mort deu uma ordem e Fred ficou de novo à vista. Sentou-se na cadeira e afirmou:

- Olha, Egan, um detective privado também tem vida particular. Ouvi dizer que a minha mulher...

- Cala-te. Para quem estás a trabalhar?

- Estava a dizer-te que só queria verificar...

- Disse para te calares. Onde arranjaste estas fotografias?

- Isso é outro assunto. Tem a ver com os meus negócios.

- Está aqui uma do Birch. Onde é que as foste buscar?

- Pensei que poderia arranjar uma pista sobre o assassínio da tal Mrs. Fromm e descobrir qualquer coisa...

- Para quem estás a trabalhar?

- Para ninguém, já disse. Para mim mesmo.

- Não acredito. Dá-me a arma, Mort, e vai buscar uma corda e um alicate.

Mort entregou-lhe a pistola, dirigiu-se a um armário com gavetas, nas traseiras da sala, e voltou com uma bola castanha de corda grossa e um alicate. O alicate era de tamanho médio e tinha qualquer coisa enrolada nas pontas, mas não percebi o que era. Colocou-se por detrás de Fred.

- Põe as mãos atrás da cadeira.

Fred não se mexeu.

- Queres que te bata com a tua própria arma? Põe as patas para trás.

Fred obedeceu. Mort desenrolou um bocado de corda, cortou-a com uma navalha, ajoelhou-se, fez um bom trabalho ao amarrar os pulsos, passou as pontas da corda em volta das costas da cadeira e atou-as. A seguir pegou no alicate. Não consegui ver o que fazia com ele, mas também não era preciso.

- Isso dói-te? - perguntou.

- Não - retorquiu Fred.

Mort soltou uma gargalhada.

- Tem cuidado. Vais ter de responder a umas perguntas. Se te excitares de mais e desatares aos pulos, arriscas-te a ficar sem um dedo, portanto tem cuidado. Tudo pronto, Lips.

Egan estava sentado em frente de Fred e pousara em cima da mesa a mão que segurava na arma.

- Para quem estás a trabalhar, Durkin?

- Já te disse, Egan, para mim mesmo. Só quero que me digas se viste a minha mulher com o Birch, se sim ou se não, mais nada.

Fred acabou a frase, mas ofegou um pouco e ficou rígido quando ia ainda a meio. Suponho que poderia ter esperado um pouco mais, talvez um ou dois minutos, pois deveria ser muito educacional ver até que ponto Fred conseguiria resistir.

Porém, se lhe partissem um dedo era Wolfe quem teria de pagar a conta do médico, e gosto de proteger os interesses do meu patrão. Assim deslizei para a direita, pousei a arma na tampa do motor do carro, apontei à mão com que Egan segurava na pistola e disparei. A seguir dei a volta à frente do carro, num pulo em que tive de usar todos os meus músculos, e saltei para a porta.

Vira Mort meter a arma de Fred no bolso esquerdo, mas a não ser que se tratasse de um mágico, calculei que tinha cerca de três segundos, em particular porque se encontrava ajoelhado. Todavia, não esperou até estar de pé. Quando atingi a porta já se tinha lançado para trás de Fred. Atirei-me para o chão e foi dessa posição, espreitando por debaixo das pernas da cadeira de Fred, que vi a sua mão esquerda a sair do bolso já com a arma. Caíra com a mão armada estendida na minha frente, junto ao chão, e puxei o gatilho. A seguir vi-me de novo de pé, ou antes, no ar, atirando-me para trás da cadeira de Fred. Mort, ainda de joelhos, tentava apanhar com a mão direita a arma que caíra a cerca de sessenta centímetros de distância. Dei-lhe um pontapé na barriga, vi-o começar a dobrar-se e virei-me para Egan. Estava a três metros de distância, procurando recuperar a pistola. Se soubesse em que condições se encontrava, teria ficado quieto a ver. Como soube depois, a bala não lhe tocara mas atingira o tambor do revólver, arrancando-lhe da mão. Estivera a segurá-lo com tanta força que ficara com a mão entorpecida e agora queria pegar na arma e não conseguia. Como não o sabia, atirei-me a ele, lancei-o contra a parede, apanhei a arma, ouvi movimentos atrás de mim e virei-me de repente.

Fred conseguira de algum modo deslocar-se, com cadeira e tudo, colocara-se onde se encontrava a outra arma e estava sentado com os pés em cima dela. Mort continuava no chão, contorcendo-se.

Parei, ofegante e a tremer por todo o lado.

-Jesus! - exclamou Fred.

Não fui capaz de falar. Egan permanecia encostado à parede, esfregando a mão direita com a esquerda. Mort sangrava da mão esquerda. Continuei parado, ainda ofegante. Quando as tremuras diminuíram um pouco, meti a arma de Mort no bolso, tirei a navalha, aproximei-me de Fred e cortei-lhe as cordas.

Tirou os pés de cima da pistola, apanhou-a, pôs-se de pé e tentou sorrir-se para mim.

- Vai deitar-te e tira uma soneca.

- Pois. - Já quase conseguira controlar a respiração.

- Aquele passarão lá de cima deve estar cheio de curiosidade.

Vou ver o que se passa com ele. Mantém estes dois sossegados.

- Eu vou. Já fizeste a tua parte.

- Não, eu trato disso. Cuidado com estes bebés.

- Não te preocupes.

Deixei a sala, dirigi-me à base da escada, parei e escutei.

Nada. Com a arma na mão e a cabeça toda inclinada para trás, comecei a subir devagar e com cuidado.

Duvidava que o homem da garagem pudesse constituir uma grande ameaça, mas podia ter telefonado a pedir ajuda, e era possível que Lips Egan não tivesse chegado sozinho. Tendo acabado de provar que era um grande herói em frente de uma testemunha, pretendia continuar vivo para gozar as aclamações. Assim, quando atingi o nível do piso superior com os olhos, voltei a parar para ver e ouvir. Tudo na mesma... nada.

Subi o resto dos degraus e pisei o chão de cimento. O caminho que tinha usado para chegar ali era tão bom como qualquer outro, e avancei por entre a confusão de carros e camiões. Parando de poucos em poucos passos para arrebitar as orelhas, ia a meio caminho da entrada quando me apercebi de que havia ali alguém, não muito longe, para a minha direita. É uma coisa que acontece frequentemente, sabermos que está alguém perto sem percebermos como. É possível que às vezes seja pelo cheiro, mas creio que a maior parte das vezes é graças aos ouvidos e aos olhos, tão sintonizados e atentos que captam o mínimo sinal. De qualquer modo, estava ali alguém. Detive-me e agachei-me.

Fiquei imóvel, encostado a um camião, esforçando os olhos e os ouvidos durante dez horas. Bom, sejam dez minutos. Era o suficiente. Comecei a deslocar-me, fazendo trinta centímetros por minuto, na direcção da traseira do camião.

Queria espreitar por aí. Levei uma eternidade, mas acabei por lá chegar. Endireitei-me e escutei, e depois estiquei o pescoço e coloquei um olho por cima da esquina do camião. Estava ali um homem de pé, à distância de um braço, olhando directamente para mim. Meti a cabeça de fora antes que se pudesse mexer.

- Olá, Saul - murmurei.

- Olá, Archie - respondeu, também num murmúrio.

 

Dei a volta à esquina do camião.

- Onde está o tipo que vi aqui?

- O Orrie levou-o para as traseiras do escritório, bem amarrado. Agora está de guarda à entrada.

Deixei de murmurar.

- Belo! Vou recomendar-te para um aumento. Seguiste o Lips Egan até aqui?

- Não sei como se chama, mas seguimo-lo até aqui. Pensámos em entrar para fugir da chuva, mas o tipo viu-nos e tivemos de o apanhar. A seguir ouvimos dois tiros e vim investigar, mas chegou-me o teu cheiro e parei para pensar. Não há dúvida de que fazes muito barulho a nadar.

- Também tu. Nunca tinha ouvido tanta barulheira. Podes falar alto e à vontade. Egan está na cave com um amigo, e o Fred está a evitar que façam asneiras.

- Estás a falar a sério? O Saul é difícil de surpreender, mas daquela vez isso aconteceu.

- Vem comigo e logo vês.

- Como é que conseguiste isso? Tens um radar?

- Oh, em geral podem encontrar-me onde precisam de mim. Goodwin, o Bravo. Depois te conto, agora temos trabalho para fazer. Vamos dar uma palavrinha ao Orrie.

Fui à frente e Saul seguiu-me. Orrie estava de pé, não muito longe da entrada, e ficou de olhos arregalados quando me viu.

- Que diabo! Como é que?...

- As explicações ficam para depois. O Fred está lá em baixo de guarda a dois tipos, e nós vamos descer para um joguinho com eles. Nunca se sabe quem pode aparecer por aqui. O tipo da garagem está seguro?

- O Saul e eu tratámos disso.

- Bom. As nossas vidas estão nas tuas mãos, portanto vai dormir. Anda daí, Saul.

Na sala da cave, Fred tinha a situação controlada. Instalara-se na cadeira antes ocupada por Mort, virado para a porta. Mort estava esticado no chão, junto à parede da esquerda, com os tornozelos amarrados, e Egan encontrava-se perto, sentado no chão, de costas para a parede; também amarrado. O facto de Saul ter entrado comigo causou alguma agitação.

- Ah, foi por isso que demoraste tanto tempo - comentou Fred, não muito satisfeito. - Precisamos de um exército?

Lips Egan murmurou qualquer coisa.

- Estás enganado - disse eu para Fred -, não o chamei. Estava lá em cima, veio atrás do Egan. O Orrie também lá está e agora somos proprietários da garagem.

- Diabos me levem! Deixa-me ver a arma do Mort. Tirei-a do bolso, entreguei-lha, e Fred examinou- a.

- Pois, bem me parecia, foi aqui no tambor. Não tocaste no Egan. A mão de Mort está um pouco escalavrada, mas amarrei-a com um lenço e aguentará um bocado. Atiraste-lhe o estômago para a garganta com aquele pontapé, e eu disse-lhe que era melhor sentar-se para que o estômago volte a escorregar para o seu lugar, mas preferiu deitar-se a descansar.

Aproximei-me de Mort, baixei-me e observei-o. Não tinha muito boas cores, mas os olhos permaneciam abertos e não ostentavam um aspecto vidrado. Dei-lhe umas pancadinhas suaves na barriga e perguntei-lhe se doía. Sem sequer estremecer, disse-me para ir para um determinado sítio. Levantei-me e desviei-me para junto de Egan e fiquei a olhar para ele. Saul juntou- se-me.

- Chamo-me Archie Goodwin - disse-lhe - e trabalho para Nero Wolfe, tal como estes meus amigos. Era o que querias que Fred Durkin te dissesse, portanto agora já o sabes e é a tua vez. Para quem estás a trabalhar?

Não respondeu. Nem teve a delicadeza de olhar para mim, mas fitou os tornozelos. Virei-me para Saul:

- Vou esvaziar-lhe os bolsos. Trata tu do outro. Levei a minha colecção para cima da mesa e Saul levou a sua. Não havia nada que valesse a pena na contribuição de Mort, excepto uma carta de condução em nome de Mortimer Ervin, mas na pilha de objectos de Egan via-se um artigo que se mostrava muito prometedor: um espesso bloco-notas de folhas soltas, com cerca de dez por dezassete centímetros, com mais de cem folhas, e em cada folha podia ver- se cerca de uma dúzia de nomes e moradas. Folheei-o rapidamente. Havia nomes para todos os gostos, e as moradas eram todas da área metropolitana. Entreguei-o a Saul e enquanto este dava uma olhadela atravessei a sala em direcção ao armário de gavetas, a única peça de mobília que poderia conter qualquer coisa, e revistei-o. Não descobri nada de interessante.

- A última entrada neste livro é a de Leopold Heim, com a morada - disse Saul, chamando-me.

Aproximei-me para verificar.

- É interessante. Não tinha dado por isso. - Meti o livro no bolso, naquele em que não tinha a arma de Mort, e dirigi-me para Egan. Levantou os olhos para mim, numa mirada realmente péssima, e depois voltou a fitar os tornozelos.

- Se existirem mil nomes neste livro - disse-lhe - e se cada um entrar com dez mil notas das grandes, serão dez milhões de dólares. Suponho que isto pode ser um exagero, mas mesmo que façamos um desconto de noventa por cento aínda ficamos com uma bela maquia. Queres fazer algum comentário?

Nenhuma resposta.

- Não temos toda a noite, mas devo explicar que, apesar de não concordar com bandos de chantagistas, não é isso o que me interessa agora. Estás metido num assassínio... ou talvez seja melhor dizer três assassínios. Se te faço perguntas sobre o bando, é apenas para apanhar o assassino. Por exemplo, Matthew Birch alinhava contigo?            

Ergueu o queixo e balbuciou para Saul:

- Tu, meu grande sacana!

- Agora que desabafaste e te sentes melhor: o Birch trabalhava contigo?

- Não.

- Quem te informou a respeito de Leopold Heim?

- Ninguém.

- Quanto é a tua parte do bolo e quem fica com o resto?

- Qual bolo?

- Estás mesmo a pedi-las, não é? - perguntei-lhe, encolhendo os ombros. - Pega-lhe pelos braços, Saul.

Agarrei-o pelos tornozelos e levámo-lo, através da sala, para junto da parede em frente, onde o pousámos ao pé de            uma prateleira onde se via um telefone. Começou a contorcer-se todo para se endireitar de encontro à parede, mas eu disse para Saul:

- Conserva-o em baixo enquanto verifico se este telefone está ligado. - Levantei o auscultador e marquei um número. Foram precisos apenas dois toques antes de ouvir uma voz.

- Fala Nero Wolfe.

- Archie. Estou apenas a experimentar um telefone.

- É meia-noite. Onde diabo estás?

- Estamos aqui os quatro, todos juntos, a trabalhar numa garagem da Décima Avenida. Temos clientes à nossa espera e estou demasiado atarefado para conversar. Depois dizemos qualquer coisa.

- Vou para a cama.

- Dorme bem.

Pousei o auscultador, levantei o telefone, fiz deslizar a prateleira ao longo da parede para a tirar do caminho, coloquei o aparelho no chão a trinta centímetros dos ombros de Egan, e disse para Fred:

- Traz-me essa bola de corda. Entregou-ma, perguntando:

- Vamos cruzá-la?

- Isso mesmo. Corta um bocado com dois metros e meio. Enquanto Fred cortava a corda, expliquei a Egan:

- Não sei se já foste apresentado a esta técnica ou não. É um método científico para estimular as cordas vocais. Se, e quando, concluíres que não te agrada, o telefone está aí mesmo ao teu lado. Podes ligar ou para a sede da Polícia, canal seis-dois mil, ou para a décima sexta esquadra, que não é longe daqui, com o número circle seis-zero-quatro- um-seis, mas não tentes ligar qualquer outro número. Se telefonares para os chuis, acabamos com as demonstrações científicas e podes contar-lhes tudo o que quiseres sem interferências. Posso garantir-to. Muito bem, Saul, segura-lhe os ombros. Fred, ajuda aqui.

Agachámo-nos junto dos tornozelos de Egan, um de cada lado. Não é um processo complicado, mas é delicado se o paciente tiver ossos frágeis. Primeiro, dobramos a corda ao meio e passamo-la em volta do tornozelo esquerdo. A seguir, cruzam-se as pernas, com a direita por cima da esquerda, e colocamos a biqueira do pé esquerdo debaixo do calcanhar direito, dando a volta pelo lado direito deste. Para isso é preciso dobrar os joelhos.

Depois puxa-se o tornozelo direito para baixo, para ficar tão nivelado com o esquerdo quanto possível, com a corda dupla enrolada em volta dos dois tornozelos. Três voltas bem apertadas, dá-se meio nó... e pronto. Se puxarmos as pontas da corda e dermos um valente puxão para baixo, para longe  dos pés, o paciente provavelmente desmaia, portanto não o façam. Nem sequer é boa técnica dar um puxão ligeiro, basta conservar a corda esticada para manter a tensão. Entretanto, o colega mantém em baixo os ombros do paciente, mas mesmo sem isso temos todo o controlo da situação. Se duvidam... experimentem.

Com Saul nos ombros e Fred na ponta da corda, puxei de uma cadeira, sentei-me e observei o rosto de Egan, que tentava não revelar qualquer expressão.

- Dói-te mais a ti do que a mim - disse-lhe -, portanto logo que queiras chamar a Polícia, podes fazê-lo. Se as tuas pernas estiverem demasiado desconfortáveis para te virares e marcares o número, posso cortar a corda. Aperta um pouco mais, Fred, apenas um pouco. Birch fazia parte do teu bando?

Aguardei dez segundos. Tinha o rosto a contorcer-se e respirava mais depressa.

- Viste Birch naquele carro, na terça-feira, à tarde?

Tinha os olhos fechados e tentava mover os ombros. Mais dez segundos.

- Quem te informou a respeito de Leopold Heim?

- Quero os chuis - declarou, rouco.

- Está bem. Corta-a, Fred.

Em vez de a cortar, Fred preferiu desfazer o meio nó, afrouxou a corda e aliviou-lhe a posição da biqueira do sapato de baixo do calcanhar. Egan começou a mexer os joelhos, devagar e com cuidado.

- Nada de ginásticas - protestei. - Telefona.

Virou-se para o lado, levantou o auscultador e começou a marcar. Saul e eu ficámos a ver. Acertou nos devidos buracos e marcou o CA 6-2000. Ouvi-o ser atendido. Egan disse:

- Sede da Polícia? - A seguir pousou o auscultador e virou-se para mim. - Tu, meu filho da puta, não farias...

- Sem dúvida - retorqui -, e posso garantir-to. Antes de te estimularmos òutra vez, vamos esclarecer algumas questões.

Primeira: só tens mais uma oportunidade para ligares para a Polícia. Podemos continuar com isto toda a noite. Segunda:       podia ser melhor decidires-te agora. Se estás a considerar como certo que, de qualquer modo, o teu livro de moradas vai parar às mãos da Polícia, estás enganado. Vou entregá-lo a Mr. Wolfe, que está a trabalhar num assassínio, e não me parece que deseje entregar toda essa gente à lei. Não é o seu estilo. Não faço promessas, mas estou a dizer-te como é. Muito bem, Fred, aperta-o.

Desta vez Fred fez ao contrário, cruzando-lhe a perna esquerda sobre a direita, apertou um pouco mais as voltas da corda. Fred segurou nas pontas da corda e eu regressei à cadeira. A reacção foi mais rápida e forte. Após dez segundos começou a contorcer a cara, mais dez segundos e começou a suar da cara e do pescoço. O seu rosto cinzento tornou-se ainda mais cinzento, os olhos abriram-se-lhe muito e começaram a ficar salientes. Preparava-me para dizer a Fred que aliviasse um pouco quando Egan ofegou:

- Soltem-me!

- Afrouxa um pouco, Fred. Limita-te a segurar a corda. Birch fazia parte do vosso bando?

- Sim!

- Quem era o chefe?

- O Birch. Tirem-me essa corda!

- Só mais um minuto, sempre é melhor do que o alicate. Quem é agora o patrão?

- Não sei.

- Pois. O melhor é deixar ficar a corda. Viste Birch no carro com uma mulher, na terça-feira, à tarde?

- Sim, mas não estava estacionado em frente do Danny's.

- Um pouco mais apertada, Fred. Onde é que estava?

- A descer a Décima Primeira Avenida, na direcção da Rua Cinquenta.

- Um Cadillac cinzento-escuro com chapa do Connecticut?

- Sim.

- Era um carro do Birch?

- Nunca o tinha visto antes. Birch também trabalhava com um bando que roubava carros, e é claro que o Cadillac fora roubado. Tudo o que Birch tinha era roubado.

- Pois, mas agora está morto, não custa nada dizer isso. Quem era a mulher que ia com ele?

- Não sei. Estava do outro lado da rua e não a vi. Tirem-me a corda. Não digo mais nada enquanto não ma tirarem. Respirava outra vez de uma maneira ofegante e o rosto estava mais cinzento, por isso disse ao Fred que a aliviasse. Depois das pernas desamarradas, Egan pensou em dobrá-las, e depois em endireitá-las, mas acabou por adiar a decisão de as mexer.

Prossegui com as perguntas:

- Reconheceste a mulher?

- Não.

- Eras capaz de a identificar?

- Não me parece. Passaram por mim demasiado depressa.

- A que horas de terça-feira, à tarde?

- Por volta das seis e meia, talvez um pouco depois. De momento aceitava as suas afirmações, à consignação. Pete Drossos dissera que era um quarto para as sete quando a mulher lhe pedira para chamar um polícia. Quase tive medo de fazer a pergunta seguinte, com medo de que Egan deixasse de merecer confiança dando uma resposta errada.

- Quem ia a guiar, o Birch?

- Não, a mulher. Isso surpreendeu-me. Birch não era tipo para deixar que fosse uma mulher a guiar o seu carro.

Era capaz de dar um beijo no patife. O pressuposto de que Wolfe partira merecera apostas a vinte por um. Tive a ideia de pegar nas fotografias de Jean Estey, Angela Wright e Claire Horan, que estavam no sobrescrito de Fred, e perguntar a Egan se reconhecia alguma delas como sendo a mulher que seguia no carro, mas desisti. Dissera que não a conseguira identificar e de certeza que não aguentaria mais apertões dos que já levara.

- A quem é que entregavas o dinheiro?

- Ao Birch.

- Está morto. A quem o entregas agora?

- Não sei.

- Parece-me que lhe tirámos a corda demasiado depressa. Se Leopold Heim te tivesse pago os dez mil, ou apenas parte, que farias com o dinheiro?

- Guardava-o até receber instruções.

- Instruções de quem?

- Não sei.

- A corda, Fred - disse, levantando-me.

- Espera um minuto - implorou Egan. - Perguntaste-me onde obtive a informação sobre Leopold Heim. Recebia informações de duas maneiras: directamente do Birch e pelo telefone. Era uma mulher que me telefonava e mas dava.

- Que mulher?

- Não sei, nunca a vi.

- Como é que sabias que não se tratava de uma armadilha? Só pela voz?

- Conheço-lhe a voz, mas também temos uma senha. - Qual é?

Egan fechou os lábios com força.

- Já nunca mais te servirás dela - garanti-lhe -, portanto podes dizer-ma.

- Disse a aranha para a mosca.

- O quê?

- É essa a senha. Foi assim que soube do Leopold Heim. Perguntaste a quem entregaria o dinheiro. Pensei que a mulher telefonasse para mo dizer.

- Porque é que não to disse quando te informou a respeito do Heim?

- Perguntei-lho e respondeu que o diria mais tarde.

- Como é que ela se chama?

- Não sei.

- Qual é o seu número de telefone?

- Nunca lhe telefonei. Birch era o meu contacto. Agora não sei como fazer.

- Ora, ora! Voltaremos a isso, nem que seja preciso estimular-te. Porque é que mataste o Birch?

- Não o matei. Não sou um assassino.

- Quem foi?

- Não sei.

- Como já te disse - continuei, sentando-me -, só estou interessado no assassínio. Com essa corda posso espremer-te até te saírem as tripas, mas isso não nos servia de nada, pois só queremos factos e factos que possam ser confirmados. Se não mataste o Birch e não sabes quem o fez, conta-me exactamente como é que...

Soou um besouro. Saltei da cadeira. Ouviram-se dois zumbidos curtos, um longo e um curto. Ordenei de repente:

- Mantenham-nos calados.

Saul colocou a palma da mão sobre a boca de Egan e Fred dirigiu-se a Mort. Avancei para a parede, para o botão de que Mort se servira, e premi-o. Provavelmente, desta vez, a resposta correcta não era um toque curto, dois longos e outro curto, mas era uma aposta quase tão boa como qualquer outra. A seguir saí da sala, de arma pronta, e coloquei-me a três passos da base das escadas. Ouvi uma voz fraca lá em cima, depois uns momentos de silêncio, passos, ao princípio quase inaudíveis, mas depois tornando-se mais altos. Do alto, a voz de Orrie perguntou:

- Archie?

- Sim, estou aqui. - Trago companhia.

- Óptimo. Quantos mais, melhor será a festa.

Os passos atingiram o alto da escada e começaram a descer. Vi uns sapatos pretos muito bem engraxados, depois umas calças azul-escuras bem vincadas, logo seguidas por um casaco a condizer, e no alto daquilo tudo vinha o rosto de Dennis Horan. O seu rosto era muito expressivo. Por detrás vinha Orrie com a arma bem visível.

- Ora viva! - cumprimentei-o.

Como não parecia ter vontade de falar, virei-me para Orrie.

- Como é que ele apareceu?

- Sozinho, num carro. Entrou na garagem e fiz de conta que não era nada comigo e que não estava interessado. Olhou para mim mas não disse nada, foi a um botão num dos pilares e carregou-o. Quando ouvi um besouro, achei que era tempo de intervir. Mostrei-lhe a pistola e disse-lhe para andar. Quem quer que tocou esse besouro deve estar...

- Não te preocupes, fui eu que o toquei. Apalpaste-o?

- Não.

Aproximei-me de Horan e revistei-o nos sítios prováveis e noutros mais improváveis.

- Tudo bem. Volta para cima e atende os clientes. - Orrie afastou-se e eu gritei: - Saul, larga a boca desse tipo, amarra-lhe os tornozelos e chega aqui.

Horan começou a avançar para a porta. Agarrei-o pelo braço e forcei-o a virar-se. Tentou libertar-se, mas dei-lhe uma torcidela no braço.

- Não penses que isto não é a sério - disse-lhe - e sei para que número devo telefonar para pedir uma ambulância.

- Ah, sim, é sério... - concordou. - Suficientemente sério para acabar contigo, Goodwin.

- Talvez, mas agora quem manda sou eu e a autoridade subiu-me à cabeça, portanto tem cuidado. - Saul saiu da sala. Este é Mr. Saul Panzer. Saul, este é Dennis Horan. Mais tarde, convidamo-lo para a conferência, mas primeiro quero fazer um telefonema. Leva-o para junto daquela parede. Não o desfigures, a não ser que insista muito. Não está armado.

Dirigi-me para a sala, entrei e fechei a porta. Fred estava sentado à mesa, massajando um dedo, e os outros dois continuavam como dantes. Voltei a colocar no seu lugar a estante do telefone, coloquei-lhe o aparelho em cima, sentei-me e marquei um número. Desta vez foram precisos mais toques para obter resultados, e mesmo assim só consegui um murmúrio irritado.

- Archie. Preciso de conselhos.

- Estou a dormir.

- Vai passar a cara por água fria.

- Deus me livre! O que se passa?

- Como te disse, estamos os quatro aqui numa garagem. Temos dois sujeitos numa sala da cave. Um deles é um bípede chamado Mortimer Ervin, que provavelmente não tem nada para nos dizer. O outro chama-se Lips Egan. A carta de condução diz que o primeiro nome é Lawrence... É o que visitou Saul esta tarde, que o Saul e o Orrie seguiram até aqui. É uma jóia. Tinha consigo um livro de apontamentos, que está agora no meu bolso, com cerca de mil nomes e moradas de clientes, e o último nome é o de Leopold Heim, portanto tira as tuas próprias conclusões. Estimulámo-lo um pouco e afirma que Matthew Birch era o chefe do bando, mas não acredito. Acredito que viu Birch no tal Cadillac na terça, à tarde, com uma mulher ao volante. Não acredito que não a tivesse reconhecido e que não seja capaz de a identificar. Também não...

- Continua a trabalhá-lo. Para que me incomodaste a meio da noite?

- Porque fomos interrompidos. Dennis Horan apareceu lá em cima e fez o sinal de código para a cave com um besouro. Orrie apanhou-o e trouxe-o para a cave. Não pode ouvir-me, mas os outros dois estão mesmo aqui. Quero a tua opinião sobre o tipo e quantidade de estímulos a aplicar a um membro do clube. É claro que veio falar com o Egan e pertence ao bando, mas ainda não o tenho por escrito.

- Mr. Horan está magoado?

- Mal lhe tocámos.

- Fizeram-lhe alguma pergunta?

- Não, preferi telefonar-te primeiro.

- Isso é muito satisfatório. Espera um pouco enquanto acordo.

Foi preciso um minuto, ou talvez um pouco mais, antes de voltar a ouvir-lhe a voz.

- Como é que estão dispostos neste momento?

- Fred e eu estamos na sala da cave com Ervin e Egan. Saul tem o Horan lá fora. Orrie encontra-se lá em cima para receber as visitas.

- Vai buscar Mr. Horan e pede-lhe desculpa.

- Oh, tem pena de mim!

- Eu sei, mas é um advogado, e não podemos dar-lhe trunfos com que possa jogar. O Ervin ou o Egan exibiram alguma arma?

- Os dois, ao Fred. Desarmaram-no, amarraram-no numa cadeira e estavam a torcer-lhe os dedos com um alicate quando os interrompi.

- Bom. Então podes acusá-los de duas coisas: tentativa de extorsão sobre o Saul e assalto com arma de fogo ao Fred. Eis as minhas instruções...

Transmitiu-mas. Algumas eram demasiado incompletas e tive de lhe pedir para as pormenorizar. Por fim, disse-lhe que julgava ter percebido. Para acabar, disse-me para me manter bem agarrado ao bloco de notas de Egan, não falar nele a nin guém e para o meter no cofre logo que chegasse a casa. Desliguei, abri a porta e disse a Saul para trazer Horan.

O rosto de Horan já não estava tão expressivo. Aparentemente decidira qual a linha de conduta a tomar e concluíra que o melhor era uma cara de pau. Sentou-se como um cordeirinho e não mostrou qualquer interesse por Ervin ou Egan para lá das olhadelas que lançou às figuras prostradas quando entrou.

Dirigi-me a ele.

- Vai perdoar-me, Mr Horan, mas tenho uma coisa a dizer a estes homens. Estás a ouvir, Ervin?

- Não.

- Como queiras. Levaste a cabo um assalto criminoso a Fred Durkin, com uma arma carregada, e cometeste uma ofensa física com um alicate. Estás a ouvir, Egan?

- Sim, estou a ouvir-te.

- Também cometeste um assalto... com a arma que te arranquei da mão. Para além disso, tentaste uma extorsão sobre Saul Panzer, o que é outro crime. Por minha vontade, telefonava aos polícias para vos virem buscar. Todavia, trabalho para Nero Wolfe e é possível que ele pense de outra maneira. Quer fazer-vos algumas perguntas e vou levar-vos aos dois lá a casa. Se preferirem ir para a esquadra, só têm de o dizer, mas não há mais alternativas. Se tentarem escapar-se, pode ser que venham a ter uma surpresa ou pode ser que não.

Virei-me para o advogado:

- Quanto a si, Mr. Horan, apresento-lhe as minhas sinceras desculpas. Estávamos sobre uma grande tensão, depois de termos enfrentado estes dois parceiros, pelo que Orrie Cather se precipitou um pouco, e eu também. Acabei de falar com Mr. Wolfe pelo telefone, que me pediu para lhe comunicar que pede muita desculpa pela maneira como os seus empregados o trataram. Creio que também lhe devo pedir desculpa por outro pequeno pormenor... Quando lhe apresentei Saul Panzer, esqueci-me de que ele tinha estado hoje no seu gabinete, usando o nome de Leopold Heim. Deve ter-lhe feito alguma confusão. É tudo, a não ser que queira dizer alguma coisa. Pode ir tratar da sua vida, e espero que não fique com ressentimentos contra nós... Não, aguarde um minuto, tenho uma ideia...

Virei-me para Egan.

- Queremos ser absolutamente justos, Egan, e acabei de me lembrar que podes desejar ter um advogado junto de ti enquanto estiveres com Mr. Wolfe, e, por coincidência, este senhor é advogado. Chama-se Dennis Horan. Não sei se estará interessado em representar-te, mas posso perguntar-lho, se o desejares.

Pensei, na altura, e ainda continuo a pensar da mesma maneira, que se tratou de um dos mais belos pequenos truques de Wolfe, e não perderia a expressão na cara daqueles dois, nem a troco de uma semana de salário. Egan torceu o pescoço para poder olhar para Horan, sem dúvida à espera de um conselho qualquer. Porém, o próprio Horan também estava necessitado de conselhos.

A sujestão apanhara-o de surpresa e tinha demasiadas facetas. Dizer que sim seria arriscado, porque o ligaria a Egan e não sabia até que ponto este dera à língua. Se dissesse que não também seria arriscado, duplamente arriscado, porque Egan podia pensar que estava a ser lançado aos bichos, e também porque Egan ia ser levado a uma sessão com Nero Wolfe e não tinha maneira de sabér como ele se comportaria. Era demasiado importante e complicado responder de maneira a não morder a isca, e era também um verdadeiro prazer ver Horan a agitar as longas pestanas e a tentar manter uma cara de pau, enquanto trabalhava no problema.

Foi Egan quem quebrou o silêncio.

- Tenho comigo algum dinheiro que lhe posso entregar como sinal, Mr. Horan. Segundo sei, defender pessoas com problemas é uma espécie de obrigação para os advogados.

- É verdade, Mr. Egan... - os guinchos de tenor vinham à superfície - mas de momento estou muito ocupado.

- Pois, também eu estou muito ocupado.

- Sim. Sem dúvida. É claro. - Horan endireitou os ombros. - Muito bem, verei o que posso fazer. Teremos de conversar.

- Qualquer conversa que tenham... - disse-lhes, sorrindo - vai ter ouvintes. Vamos, rapazes. Desamarrem-nos. Fred, traz o alicate, para recordação.

 

Preciso de oito horas e meia de sono, mas prefiro nove. Todas as manhãs, quando o meu relógio de cabeceira liga o rádio às sete e trinta, viro-me para o outro lado, para ficar com ele por detrás das orelhas. Um minuto depois, viro-me outra vez, estendo a mão para o desligar, procuro uma posição confortável e tento imaginar que é domingo. No entanto, sei muito bem que Fritz terá o meu pequeno-almoço pronto às oito e meia. Durante dois ou três minutos luto contra a ideia de o chamar pelo telefone interno, para lhe dizer que aparecerei um pouco mais tarde, mas depois desisto, atiro com as cobertas para trás, faço girar as pernas, endireito-me e enfrento as realidades.

Aquela manhã de terça-feira foi diferente. Regulara o relógio para uma hora antes, para as seis e trinta, e quando se ligou e o rádio iniciou uma daquelas alegres músicas matinais, desliguei o interruptor e pus os pés no chão numa única e desesperada convulsão. Estivera na horizontal apenas duas horas. Tomei um duche, barbeei-me, penteei-me e escovei-me, vesti-me, desci as escadas e entrei na sala da frente.

Não era uma cena alegre. Mortimer estava esticado no tapete, com a cabeça pousada numa das almofadas do sofá. Lips Egan jazia no sofá. Dennis Horan encontrava-se no cadeirão estofado, amarrotado mas nada descontraído. Saul Panzer instalara-se numa cadeira, de costas para a janela, com todos eles bem à vista, sem ter de dar demasiado trabalho aos olhos.

- Bom dia - disse-lhes, sombrio. - O pequeno- almoço será servido em breve.

- Isto é insuportável - guinchou Horan.

- Então não o suporte. Já lhe disse, pelo menos cinco vezes, que pode ir-se embora quando quiser. Quanto a eles, estão instalados com todo o luxo, têm um sofá e um tapete para descansarem. O doutor Vollmer, que saiu da cama às duas da manhã para tratar da mão de Mort, é um dos melhores médicos que há. Estamos a ter cuidados extremos. Mr. Wolfe pensou que pudessem sentir que se estava a aproveitar de uma desvantagem injusta se começasse a trabalhar neles particularmente, antes de notificar a lei, e por isso nem sequer se levantou para lhes dar uma olhadela. Permaneceu isolado no seu quarto, na cama ou a andar de um lado para o outro, isso não sei dizer. Na sua presença, e de maneira a que pudesse escutar, à uma e quarenta e sete telefonei para os Homicídios e disse que Mr. Wolfe tinha algo de importante para comunicar pessoalmente ao inspector Cramer, e que gostaria de receber um telefonema dele ogo que fosse possível. Quanto ao desejo de ficar sozinho com o seu cliente, não nos podíamos permitir perder de vista um rufião como ele. Cramer ficava chateado connosco. Como estás, Saul?

- Óptimo. Tive três horas de sono, antes de substituir o Fred às cinco e meia.

- Olha que não parece. Vou ver o que se passa com o pequeno-almoço.

Quando me encontrava na cozinha, com Fritz, Fred entrou, já vestido e com uma notícia espantosa. Ele e Orrie estavam com as orelhas enfiadas nas almofadas das camas do quarto sul, que fica no mesmo piso que o meu, e tinham sido acordados por barulhos de pancadas no tecto do quarto que ficava por baixo, que é a de Wolfe. Fred descera para ver o que se passava e Wolfe dissera-lhe para mandar o Orrie ir ter com ele imediatamente. Teria de espremer muito a memória para encontrar um precedente em que Wolfe tivesse desempenhado qualquer actividade antes do pequeno-almoço.

Fritz estava cheio de trabalho, com oito pequenos-almoços para preparar e servir, sem contar com o dele, mas Fred e eu demos uma ajuda, pondo uma mesa na sala da frente e transportando comida e equipamento. Nós próprios comemos na cozinha e despachávamos as doses de bolos de milho, presunto e mel, quando Orrie entrou e ordenou a Fritz:

- Larga esses alermas e trata de mim. Tenho uma missão e estou cheio de fome. Archie, vai-me buscar quinhentos dólares. Enquanto o fazes, roubo-te a cadeira. Traz também o nome daqueles tipos que fazem telefonemas á não sei quanto por cada mil.

Mantive-me agarrado à cadeira até ter engolido o pequeno-almoço, incluimdo uma segunda chávena de café, e só depois fui cumprir as ordens. Orrie teve de se empoleirar num banco. Era inútil tentar adivinhar o que ia fazer com os quinhentos dólares, mas se uma parte substancial era para comprar telefonemas por grosso, podia tentar perceber isso só para praticar. Uma vez que fizera um relatório completo a Wolfe, no seu quarto, depois de ter depositado as visitas na sala, ele sabia tudo o que eu sabia, e nada mais. Quem podiam ser os prováveis candidatos a um milhar de chamadas telefónicas? Não podiam ser as pessoas que constavam no livro de clientes de Egan, porque o livro estava fechado no cofre; vira-o lá quando fora buscar o dinheiro para despesas - e Orrie não o pedira. Arquivei essa questão na mente para posteriores considerações durante os tempos livres, se viesse a ter alguns. Não era a primeira vez que Wolfe dava uma missão a um dos seus ajudantes sem me consultar.

Pelas oito horas, Fritz trouxera de volta o tabuleiro do pequeno-almoço de Wolfe. Orrie já partira, Fred e eu havíamos retirado as coisas do pequeno-almoço da sala da frente e estávamos na cozinha a ajudar a tratar da louça quando soou a campainha da porta. Atirei o pano da louça para cima de uma mesa, e quando vi o inspector Cramer e o sargento Purlev Stebbins à entrada não precisei de os fazer esperar para ir receber instruções. Já as tinha e assim, com uma olhadela à porta da sala, para ter a certeza de que estava fechada, abri-lhes a porta e dei-lhes as boas-vindas.

Não se mexeram.

- Vamos a caminho de outro sítio - rouquejou Cramer. O que me querias comunicar?

- Eu? Nada. Mr. Wolfe é que vai fazê-lo. Entrem, por favor.

- Não posso ficar à espera dele.

- Não terá de esperar. Há seis horas que anseia pela vossa chegada.

Entraram e dirigiram-se para o gabinete. Quando entrei atrás deles, Cramer resmungou:

- Não está aqui.

Ignorei-o, disse-lhes para se sentarem, fui à minha secretária, liguei para o quarto de Wolfe pelo telefone interno e comuniquei-lhe quem acabara de chegar. Cramer tirou um charuto do bolso, rolou- o entre as palmas das mãos, inspeccionou-lhe a ponta, como se desconfiasse que alguém a mergulhara nalgum raro e obscuro veneno, meteu-a entre os lábios e cravou-lhe os dentes. Nunca o vi acender nenhum. Stebbins sentou-se lançando-me olhares de esguelha. Detestava ver o chefe ir ali quando tinham entre mãos a batata quente de um grande caso de assassínio, e era capaz de apostar que o detestaria ainda mais se soubesse que tínhamos provas mais do que suficientes, tudo muito bem embrulhado e pronto para entregar.

Ouviu-se o som do elevador a descer e Wolfe entrou momentos depois. Saudou a companhia sem grande entusiasmo e encaminhou-se para a secretária, mas antes de se sentar inquiriu:

- Porque foi que se demoraram tanto? Mr Goodwin telefonou há mais de seis horas. Tenho a casa cheia de personagens indesejáveis e quero ver-me livre delas.

- Acabe com isso - atirou-lhe Cramer. - Estamos com pressa. Que personagens?

- Em primeiro lugar - disse -, têm algum comentário a respeito da acusação de Miss Estey de que Mr. Goodwin lhe disse que tinha algo a ver com a morte de mrs. Fromm? - Não. Isso é com o procurador distrital. Está a empatar. Wolfe encolheu os ombros.

- Em segundo lugar, e a respeito dos brincos em forma de aranhas: Mrs. Fromm comprou-os numa loja da cidade, na segunda-feira, dia onze de Maio; à tarde. Como, sem dúvida, devem ter descoberto, é provável que não haja outro par de brincos como esses em Nova Iorque, e que nunca tenha havido.

Stebbins puxou do bloco de apontamentos. Cramer exigiu saber:

- Onde é que descobriram isso?

- Fazendo perguntas. Dou-lhe factos. Como os obtive, só a mim diz respeito. Mrs. Fromm viu-os numa montra e entrou, comprou-os, pagou com um cheque e levou-os. Como têm acesso aos talões dos cheques, podem provavelmente descobrir a loja e confirmar tudo isto, mas não consigo imaginar o facto, e um pouco de reflexão mostrar-vos-á que é muito significativo.

- Em que sentido?

- Isso não. Faça a sua própria interpretação. Só forneço factos. Eis outro. Já conhecem o Saul Panzer.

- Sim.

- Ontem foi aos escritórios da Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas, apresentou-se como sendo Leopold Heim, deu uma moradia num hotel barato da Primeira Avenida. Conversou com Miss Angela Wright e um homem chamado Chaney. Disse-lhes que estava ilegalmente neste país, que tinha medo de ser descoberto e deportado e pediu ajuda. Responderam-lhe que era um problema fora do campo de actividades da Associação, aconselharam-no a ir a um advogado e deram-lhe o nome de Dennis Horan. Foi visitar Mr. Horan e depois seguiu para o hotel. Um pouco antes das oito horas dessa mesma noite apareceu um homem no seu quarto e ofereceu-se para o proteger de incómodos por um pagamento de dez mil dólares. Mr. Panzer pode fornecer-lhes os pormenores. Deram-lhe vinte e quatro horas para reunir todo o dinheiro que pudesse, e quando o homem saiu Mr. Panzer seguiu-o. É um especialista nisso.

- Sei que é. E então?

- Agora passemos a Mr. Goodwin. Antes de prosseguir, devo explicar que parti de um pressuposto a propósito do homem que seguia no carro na terça-feira, quando a mulher pediu ao rapaz para chamar um polícia. Parti do princípio de que o homem era Matthew Birch.

- Porquê Birch? - perguntou Cramer, de olhos muito abertos.

- Não tenho de o explicar, porque a hipótese foi confirmada. Era o Birch. É outro facto.

- Prove-o, e a prova terá de ser muito boa.

- Mr. Goodwin tratará de o fazer. Archie, começa pelo telefonema de Fred durante a noite passada e continua a partir daí.

Obedeci. Como sabia que aquilo deveria surgir no programa, passara quase uma hora a rever os acontecimentos enquanto estivera de guarda na sala da frente, entre as três e meia e as quatro e meia, e decidira que só deveria omitir duas questões mais importantes: o tipo de estímulo que havíamos aplicado a Egan e o bloco de apontamentos também de Egan. Este último não era para mencionar, e não o foi. Wolfe dissera, durante a nossa sessão no seu quarto, que se mais tarde se verificasse que era uma prova essencial, então teria de a apresentar, mas só nessa circunstância.

Excepto quanto a esses dois pontos, contei tudo. Stebbins começou a tirar apontamentos, mas desistiu a meio. Era demasiado para ele. Entreguei-lhe a arma de Mort e exibi o alicate, que tinha fita preta enrolada em volta dos bicos para não esfolar a pele e ferir a carne. Quando acabei, Cramer e Stebbins ficaram a olhar um para o outro.

Cramer virou-se para Wolfe.

- Isto precisa de alguns esclarecimentos.

- Sim... - concordou Wolfe - não há dúvida de que precisa.

Cramer encarou Stebbins.

- Conhecemos esse Egan?

- Eu não, mas estive nos Homicídios toda a minha vida.

- Telefona ao Rowcliff e diz-lhe para vir aqui sem demora.

Levantei-me, Purley instalou-se na minha cadeira e marcou o número. Enquanto telefonava, Cramer permaneceu sentado segurando o charuto na ponta dos dedos, franzindo a cara para ele e esfregando os lábios com os nós dos dedos da outra mão.

Tinha o aspecto de estar a tentar decidir se deveria ou não deixar de mastigar charutos. Quando Purley acabou o telefonema e voltou para o seu lugar, Cramer olhou para Wolfe.

- Horan está metido nisso até ao pescoço, mas não o podemos deter neste momento.

- Não estou a detê-lo. Está voluntariamente agarrado ao seu cliente.

- Pois, eu sei. Tenho de confessar que essa foi boa. O Horan ficou arrumado. Se conseguirmos que o Egan fale, apanhamo-lo.

- Não é necessariamente o criminoso - afirmou Wolfe abanando a cabeça. - É possível que Egan saiba tão pouco dos crimes como vocês.

Era uma piada suja, mas Cramer ignorou-a.

- Vamos dar-lhe uma oportunidade - declarou. - Tenho de esclarecer isto. Não é absolutamente seguro que fosse Birch quem ia no carro com a mulher. Suponham que não era? Suponham que o homem que seguia no carro era um daqueles pobres diabos a quem andam a explorar? A mulher podia ser a do bando, a que dá as informações ao Egan. Pensou que o homem a ia matar e disse ao rapaz para chamar um polícia. A mulher conseguiu safar-se de qualquer maneira, mas nessa noite o homem apanhou o Birch, que era quem dirigia o bando, e matou-o. Sabia que o rapaz o poderia identificar, até pode ter morto a mulher, mas o corpo aimda não foi encontrado, pelo que no dia seguinte matou o rapaz. Depois descobriu ou já sabia, que Mrs. Fromm era a dirigente da Associação, e matou-a. Meu Deus, ficou tudo às claras, o bando e o Horan metido no meio dele. As pessoas nessas circunstâncias estão desesperadas, e há milhares delas em Nova Iorque, gente que se encontra numa situação ilegal e tem medo de ser expulsa. São mel para os chantagistas. Deve existir em qualquer lado uma lista do que estes bastardos andavam a explorar, e quem me dera tê-la. Até apostaria que o nome do assassino consta desta lista. Não apostavam?

- Não.

- Sempre do contra. Porquê? Não estudou bem as coisas, Mr. Cramer. No entanto, o facto de considerar que o culpado era vítima de chantagem mostra que andou lá perto. Houve três assassínios. Partindo do princípio, para não complicar as coisas, que houve apenas um... já eliminou todos os suspeitos?

- Não.

- Quem é que eliminou?

- Eliminar... nenhum. Claro que há complicações. Por exemplo, Mrs. Horan diz que nessa sexta-feira, à noite, o marido voltou para casa dez minutos depois de ter acompanhado Mrs. Fromm ao automóvel e que foi para a cama e ficou lá, mas é apenas o testemunho da mulher a confirmar o do marido. E se está pronto para nomear um candidato, não o impeço. Tem algum?

- Sim.

- O diabo, é que tem. Nomeie-o.

- A pergunta que me fez era sobre se tinha um candidato e não sobre se estava pronto a nomeá-lo. Posso estar pronto dentro de uma hora, ou uma semana, mas não agora.

- Ou está a armar-se - resmungou Cramer -, o que não seria a primeira vez, ou está a esconder o que sabe. Admito que fez uma boa caçada, apanhou este bando e o Egan, e, por sorte; também o Horan, e estou-lhe agradecido. Muito bem. Nada disso nos indica o assassino. E que mais? Se está à procura de um acordo, aqui me tem. Dou-lhe todas as infor mações que temos, pergunte-me o que quiser saber, e deve ser isso o que pretende, se o favor for recíproco e me contar o que sabe.

Stebbins fez um ruído e tentou fingir que não o tinha feito.

- Essa... - afirmou Wolfe - é teoricamente uma proposta justa e franca, mas na prática não tem qualquer valor. Em primeiro lugar, porque já vos disse tudo o que sei, e em segundo lugar, porque vocês nada têm que eu queira ou precise.

Cramer e Stebbins ficaram a olhar para ele, ambos surpreendidos e desconfiados.

- Já me disse - continuou Wolfe - que ninguém foi eliminado, isto mais de três dias depois de Mrs. Fromm ter sido morta. Para mim, é o suficiente. Neste momento, já têm dezenas de milhares de palavras em relatórios e declarações e admito que é possível que algures, no meio disso tudo, exista uma frase ou um facto que eu pudesse vir a considerar importante, mas mesmo que descarregassem aqui essa papelada, não estou interessado em patinhar no meio de tanta palavra. Por exemplo, quantas páginas têm sobre o ambiente, associados, e idas e vindas recentes de Miss Angela Wright?

- Bastantes - resmungou Cramer.

- Claro. Não pretendo minimizar todo este trabalho. Esse tipo de inquéritos fornece frequentemente respostas, mas é manifesto que neste caso nem sequer sugeriram uma, ou então não estariam aqui. Será que encontraria nos vossos relatórios a resposta a esta pergunta: porque é que o homem que matou o rapaz em pleno dia, com gente à sua volta, na rua, se arriscou a correr o risco de uma identificação posterior por uma ou mais dessas testemunhas? Ou a esta: como justificar o que se passou com os brincos, comprados por Mrs. Fromm em onze de Maio, usados por outra mulher em dezanove de Maio, e usados por Mrs. Fromm em vinte e dois de Maio? Descobriu algum vestígio desses brincos para lá dessas datas? Foram usados por mais alguém, em qualquer outro momento?

- Não.

- Foi por isso que cheguei às minhas próprias respostas, mas como não as posso expor sem nomear o meu candidato, isso terá de esperar. Entretanto...

Calou-se, porque viu a porta para o corredor a abrir-se. Abriu-se apenas o suficiente para Fred Durkin deslizar para o interior e fazer-me sinal para ir ter com ele.

Levantei-me, mas Wolfe perguntou-lhe:

- O que é, Fred?

- Um recado para o Archie, do Saul.

- Pódes dizer o que é, estamos a partilhar tudo com Mr. Cramer.

- Sim, senhor. Horan quer falar consigo. Agora. É urgente.

- Sabe que Mr. Cramer e Mr. Stebbins estão aqui? - Não, senhor.

Wolfe virou-se para Cramer.

- Este Horan é uma hiena e está a irritar-me. Creio que preferirá lidar com ele nas suas próprias instalações. Porque não o leva consigo, mais os outros dois?

Cramer mirou-o. Tirou o charuto da boca, segurou-o por um instante e voltou a metê-lo entre os dentes.

- Seria capaz de jurar... - disse, um pouco indeciso - que já o tinha visto a servir-se de todos os subterfúgios que existem, mas este é novo. Diabos me levem se o compreendo. Teve aqui o Horan, e aquele outro advogado, o Maddox, e correu com eles. Aconteceu o mesmo com Paul Kuffner. Agora tem Horan e os outros dois na sala da frente e nem sequer os quer ver. No entanto, continua a dizer que anda atrás do assassino. Conheço-o suficientemente bem para não lhe perguntar porquê, mas Deus sabe que gostaria de o descobrir. - Virou a cabeça para Fred: - Traga aqui o Horan.

Fred não se mexeu e olhou para Wolfe que soltou um suspiro.

- Está bem, Fred.

 

Por um instante pensei que Dennis Horan iria, na verdade dar meia volta e fugir. Entrou a bater com os calcanhares como um homem cheio de decisão, parou de repente, quando viu que tínhamos companhia, avançou mais quatro passos, reconheceu Cramer e deteve-se outra vez. Foi nessa altura que pensei que iria fugir.

- Oh... - disse. - Não quero intrometer-me.

- Não incomoda nada - garantiu-lhe Cramer. - Sente-se. Estávamos a falar de si. Se tem alguma coisa a dizer, faça-o agora. Já me disseram como veio parar aqui.

Considerando a atmosfera e as circunstâncias, incluindo a dura noite que passara; Horan portou-se bastante bem. Teve de decidir muito depressa se deveria fazer modificações no seu programa, por causa da inesperada presença da lei, e aparentemente conseguiu-o enquanto colocava uma cadeira entre Cramer e Stebbins e se imstalava nela. Sentado, olhou de Cramer para Wolfe e de novo para Cramer.

- Estou satisfeito por o ver aqui... - afirmou.

- Também eu - regougou Cramer.

porque - prosseguiu Horan - é capaz de pensar que Lhe devo desculpas, apesar de eu talvez não concordar. - O tom de tenor baixara bastante. - Talvez seja de opinião que lhe deveria ter narrado uma conversa que tive na sexta- feira, à noite, com Mrs. Fromm.

Cramer lançava-lhe um olhar duro.

-Já nos falou a esse respeito.

- Sim, mas não disse tudo. Tive de tomar uma decisão muito difícil, pensei que o fizera da melhor maneira, mas agora já não tenho a certeza. Mrs. Fromm contara-me uma coisa que poderia demonstrar-se prejudicial para a Associação para a Ajuda às Pessoas Deslocadas se fosse tornada pública. Era a presidente da Associação, e eu era o seu conselheiro, portanto o que me disse constituía uma comunicação confidencial. Em geral, claro, é impróprio que um advogado divulgue uma tal comunicação, e tinha de decidír se se tratava de um daqueles casos em que prevalecem os interesses públicos. Decidi que a Associação tinha o direito de esperar a minha discrição.

- Penso que os relatórios revelarão que o senhor não deu qualquer indicação de estar a esconder elementos.

- Suponho que não... - concordou Horan. - possivelmente, até afirmei que lhes comuniquei tudo o que fora dito nessa noite, mas o senhor sabe como essas coisas são. - Pensou que deveria sorrir, mas depois achou que era melhor não o fazer. Tomei uma decisão, é tudo, e agora penso que foi errada, ou pelo menos quero invertê-la. Nessa noite, depois do jantar, Mrs. Fromm levou-me para um canto e contou-me uma coisa que me deixou muito chocado. Disse-me que recebera a informação de que alguém ligado à Associação estava a fornecer a um chantagista, ou um bando de chantagistas, os nomes de pessoas entradas ilegalmente no país, e que essas pessoas andavam a ser perseguidas. Disse também que o chantagista, ou o chefe do bando, fora um homem chamado Matthew Birch, que tinha sido assassinado na terça-feira, à noite, que um tal Egan estava envolvido no assunto e...

- Mas o senhor não é o advogado de Egan? - inquiriu Cramer.

- Não, isso foi um erro. Agi num impulso. Pensei no assunto e informei-o que não o posso defender. Mrs. Fromm também me disse que o lugar de encontro dos chantagistas era numa garagem na Décima Avenida, de que me deu o nome e o endereço. Queria que eu lá fosse naquela noite, na sexta-feira. Informou-me que havia um botão no segundo pilar, à esquerda, da garagem e que devia fazer um sinal com ele, dois toques curtos, um longo e um curto, e que a seguir tinha de me dirigir às traseiras e descer à cave. Deixou para comigo como proceder com quem lá pudesse encontrar, mas salientou que o mais importante era evitar qualquer escândalo que prejudicasse a Associação. Era mesmo dela! Sempre a pensar nos outros e nunca nela mesma.

Fez uma pausa, e era evidente que por momentos se deixara entusiasmar demasiado. Cramer perguntou-lhe:

- E foi até lá?

- Sabe bem que não, inspector. Como eu e a minha mulher lhe dissemos, regressei a casa e fui para a cama depois de acompanhar Mrs. Fromm ao carro. Disse a Mrs. Fromm que tinha de pensar no assunto. Era provável que me decidisse a lá ir na noite seguinte, no sábado, mas de manhã surgiu a notícia da morte de Mrs. Fromm que foi um choque terrível... - Horan teve de fazer nova pausa, para depois continuar: - Francamente, estava à espera que encontrassem o assassino, e que não existissem ligações entre o crime e os assuntos da Associação. Por isso não lhe falei nessa conversa mas passou-se o domingo, a segunda-feira... e comecei a recear ter cometido um erro. A noite passada decidi tentar qualquer coisa. Cerca da meia-noite fui no carro até à garagem, estacionei no interior, e lá estava o botão no segundo pilar. Premi-o, fazendo o sinal que Mrs. Fromm me indicara, e recebi um sinal de resposta, de um besouro. Quando comecei a avançar para as traseiras, um homem, que estivera a espreitar ali perto, puxou por uma arma e ordenou-me que seguisse à frente dele. Obedeci e levou-me para uma escada, que me obrigou a descer. Aos pés da escada estava outro homem armado, que reconheci: era Archie Goodwin.

Fez um aceno de lado, na minha direcção. Não lho devolvi. Continuou:

- Já o vira no sábado à noite, neste gabinete. Apesar de já não recear pela minha segurança, fiquei ressentido por me estarem a apontar armas e protestei. Goodwin chamou outro homem do interior de uma sala, também armado, e fui conduzido para junto de uma parede e mantido aí. Já anteriormente havia visto esse outro homem. Aparecera ontem no meu escritório, dizendo chamar-se Leopold Heim, e eu...

- Essa parte já conheço - disse Cramer com secura. - Continue com a história da garagem...

- Como quiser, inspector, é claro. Pouco depois, Goodwin chamou esse homem, tratando-o por Saul, dizendo-lhe para me levar para a sala. Estavam lá mais três, um deles com Goodwin, e os outros deitados no chão de tornozelos amarrados. Goodwin disse que telefonara a Nero Wolfe e pediu-me desculpa. A seguir, depois de ter falado aos dois homens no chão, dizendo que tinham cometido crimes e que os ia levar a Nero Wolfe para serem interrogados, disse a um deles, aquele a quem chamou Egan, que eu era advogado e talvez estivesse disposto a representá-lo. Quando o homem me interr           ogou disse-lhe que o faria, mas devo confessar que foi mal pensado. Explico-o, apesar de não pedir que me desculpem pelo facto de não ter o devido comando sobre as minhas faculdades.

Tinha sido empurrado para um lado e para o outro, sob a ameaça das armas, e, além disso, não estava de acordo com o facto de Goodwin querer arbitrariamente transportar estes homens para a casa do seu patrão, quando o procedimento devido seria notificar as autoridades. Foi por isso que concordei e vim para aqui com eles, tendo ficado detido toda a noite. Eu...

- Não - objectei. - Uma correcção. Ninguém o deteve. Disse-lhe várias vezes que se podia ir embora quando quisesse.

- Eles foram detidos aqui, e eu também, por ter concordado em defender um deles. Admito que fui estúpido e lamento-o. Considerando os últimos desenvolvimentos, concluí com relutância que a morte de Mrs. Fromm pode ter tido, no fim de contas, alguma ligação com os assuntos da Associação, ou com alguém do seu pessoal, e nesse caso o meu dever é claro. Estou agora a cumpri-lo, inteiramente e com toda a franqueza, o que espero que seja útil.

Tirou um lenço do bolso e limpou a testa, o rosto e o pescoço.

- Não tive oportunidade de lavar a cara esta manhã - declarou, num tom apologético.

Era uma mentira. Havia uma casa de banho perfeitamente equipada, com portas tanto para a sala da frente como para o gabinete, e ele já lá estivera. Se, por acaso, ainda não se tendo decidido a ser inteiramente franco e útil, não quisera perder Egan de vista durante o tempo necessário para lavar a cara, o problema era dele.

O olhar duro de Cramer suavizara-se um pouco.

- Ficamos sempre gratos pelas ajudas que nos dão, Mr. Horan - declarou com um ar que nada tinha de gratidão -, mesmo quando chegam um pouco atrasadas. Quem ouviu essa sua conversa com Mrs. Fromm?

- Ninguém. Como lhe disse, puxou-me para um canto.

- Falou a alguém nessa conversa?

- Não, Mrs. Fromm pediu-me para não o fazer.

- De quem é que ela suspeitava estar implicado?

- Já lhe disse: Matthew Birch e um homem chamado Egan.

- Não é isso. Quem era o implicado ligado à Associação?

- Não mo disse. Fiquei com a impressão de que não suspeitava de ninguém em particular.

- De quem recebeu ela essas informações?

- Não sei, não mo disse.

- É difícil de acreditar. - Cramer estava a tentar dominar-se. - Conhecia muitos pormenores, o nome de Birch, o de Egan, o nome e endereço da garagem, e até o botão no pilar e o sinal. Não lhe disse onde descobriu tudo isso?

- Não.

- Perguntou-lho?

- Claro que sim. Afirmou que não mo podia dizer porque lho tinham comunicado em segredo.

Os nossos quatro pares de olhos estavam postos nele. Mantinha os seus, de pálpebras avermelhadas, inchadas e de longas pestanas, pousados em Cramer. Todos nós, incluindo ele, compreendíamos perfeitamente a situação. Sabíamos que era um mentiroso, e ele sabia que nós o sabíamos. Estivera metido naquilo até ao pescoço e fizera uma tentativa para se safar. Tivera de inventar uma explicação para o seu aparecimento na garagem, e especialmente para o botão e para o sinal que fizera com ele, e no seu conjunto não se comportara muito mal. Como Mrs. Fromm estava morta, podia-lhe atribuir todas as afirmações que lhe apetecesse, e com Birch também morto não corria qualquer risco ao citá-lo. Egan fora o seu principal problema. Não o podia ignorar, porque se encontrava na divisão ao lado. Não podia manter-se agarrado a ele, porque actuar como advogado de defesa de um chantagista, cujo bando estava a ser exposto - exposição que prejudicaria a Associação, de que Horan também era conselheiro -, estava fora de questão. Portanto, Egan tinha de ser atirado aos lobos. Isto era o que eu compreendia do local onde me encontrava sentado, e como conhecia muito bem os outros três e lhes via os rostos enquanto o fitavam, percebi que era também isso o que eles tinham concluído.

Cramer virou-se para Wolfe com as sobrancelhas levantadas numa interrogação. Wolfe abanou a cabeça. Cramer disse:

- Purley, vai buscar o Egan.

Purley levantou-se e saiu. Horan ajustou-se na cadeira tornando-se mais sólido e endireitando-se. Aquilo ia ser duro... mas estivera mesmo a pedi-lo.

- Deve compreender - declarou para Cramer - que este homem é claramente um reles criminoso e que se encontra numa situação desesperada. Não pode ser considerado como uma testemunha credível.

- Pois... - murmurou Cramer, sem mais comentários.

Goodwin, que tal colocar uma cadeira para ele aí ao pé de si, virada para cá?

Fiz-lhe a vontade. Stebbins iria ficar entre Egan e Horan. Egan ficaria de perfil para Wolfe, mas como este não levantou objecções, coloquei a cadeira no local designado. Quando o fazia, Stebbins apareceu com Egan.

- Aqui - disse-lhe, conduzindo-o para a cadeira. Ao sentar-se, o reles críminoso fixou os olhos em Dennis Horan; mas este não lhe devolveu o olhar.

- Chamas-te Lawrence Egan... - perguntou Cramer - conhecido por Lips Egan?

- Sim.

A resposta saiu rouca e Egan clareou a garganta.

- Sou inspector da Polícia. Este é Nero Wolfe. Em breve terei um relatório a teu respeito. Tens cadastro policial?

Egan hesitou e depois murmurou:

- O relatório vai dizer-lho, não é?

- Sim, mas estou a perguntar-to.

- Devo ter-me esquecido, o melhor é ir ver ao relatório.

Cramer não insistiu no assunto e prosseguiu:

- O homem que está junto de ti, Archie Goodwin, con tou-me o que aconteceu ontem, desde o momento em que visitaste um homem num hotel da Primeira Avenida, cujo nome julgavas ser Leopold Heim, até te terem trazido para aqui. Veremos isso mais tarde, mas agora quero informar-te sobre a tua situação. Poderás estar a pensar que tens um advogado presente, para proteger os teus interesses, mas não tens. Mr. Horan diz que te informou de que não te pode representar e que não o pretende fazer. É verdade que te disse isso?

- Sim.

- Não murmures. Fala alto. Disse-te isso?

- Sim!

- Quando?

- Há cerca de meia hora.

- Então sabes que não tens aqui um defensor. Enfrentas duas acusações: assalto com arma de fogo e tentativa de extorsão. Em relação à primeira acusação há duas testemunhas, Fred Durkin e Archie Goodwin, portanto o caso está arrumado. Sobre a segunda, poderás pensar que só existe uma testemunha, Saul Panzer, aliás Leopold Heim, mas estás enganado. Temos uma comprovação. Mr. Horan diz que foi informado, na sexta- feira passada, por uma pessoa que se encontrava em situação de o saber, que estavas envolvido numa operação de chantagem, extorquimdo dinheiro a indivíduos que entraram ilegalmente no país. Afirma que a sua concordância em representar-te foi obra de um impulso, que lamenta agora. Diz que não quer representar um reles criminoso como tu, e que...

- Não foi isso o que eu disse! - guinchou Horan. - Eu só... - Cale-se! - explodiu Cramer. - Mais uma interrupção e mando-o embora daqui. Disse que o informaram que Egan pertencia a um bando de chantagistas. Sim ou não?

- Sim.

- Disse que não o queria representar?

- Sim.

- Chamou-lhe reles criminoso?

- Sim.

- Então cale-se, se gosta de aqui estar. - Cramer virou-se para Egan. - Achei que tinhas o direito de saber o que Mr. Horan nos disse, apesar de não ser indispensável para fazer valer a acusação de extorsão. Leopold Heim não foi o primeiro, e não penses que não conseguiremos encontrar outros. Quanto a isso não tenho preocupações. Quero perguntar-te uma coisa na presença de Mr. Horan: já o tinhas visto antes da noite passada? Egan mastigava a língua, ou, pelo menos, mastigava qualquer coisa. Deixou escorrer um pouco de saliva pelo canto da boca, limpou-a com as costas da mão: Com os maxilares áinda a movimentarem-se, entrelaçou os dedos com força. Passava por um momento muito desagradável.

- Então? - insistiu Cramer.

- Tenho de pensar - grasnou Egan.

- Acho bem. Não te enganes a ti mesmo. Temos-te bem agarrado, assim... - Cramer levantou um punho fechado quanto aos casos de assalto e extorsão. É uma pergunta simples: já tinhas visto Mr. Horan antes da noite passada?

- Pois... creio que sim. Olhe, que tal um acordo?

- Não. Não há acordos. Se o procurador distrital e o juiz quiserem demonstrar algum apreço pela tua cooperação, isso é com eles. Fazem-no frequentemente, como sabes.

- Pois, eu sei.

- Então, responde à pergunta.

Egan respirou fundo.

- Tem razão. Vi-o antes da noite passada. Muitas vezes. Dúzias de vezes: - Espreitou na direcção de Horan.

- Não é verdade, parceiro? Maldita ratazana mentirosa! - É mentira - retorquiu Horan com toda a calma, enfrentando-o e virando-se depois para Cramer. - Foi o senhor quem provocou isto, inspector. Empurrou-o para essa afirmação.

- Então vou empurrá-lo um pouco mais. Qual é o primeiro nome de Mr. Horan?

- Dennis.

- Onde é o seu escritório de advocacia?

- No cento e vinte e um da Quadragésima Primeira Rua Leste.

- Onde é que ele vive?

- No trezentos e quinze de Gramercy- Park.

- Que espécie de carro conduz?

- Um Crysler de cinquenta e um.

- De que cor?

- Preto.

- Qual é o número do telefone do escritório?

- Ridgway três-quatro-um-quatro-um.

- E o telefone de casa?

- Palace oito-seis-três-zero-sete.

Cramer virou-se para mim:

- Este homem teve alguma oportunidade de conseguir todas estas informações durante a noite?

- Não, nem sequer uma parte.

- Então, por agora chega. Mr. Horan, o senhor vai ser detido como testemunha material num caso de assassínio. Purley, leva-o para a outra sala. Quem é que lá está?

- Durkin e Panzer, com o tal Ervin.

- Diz-lhes que guardem o Horan e volta para aqui. Horan levantou-se com um ar calmo e digno.

- Aviso-o, inspector, que se trata de um erro de que se irá arrepender.

- Veremos, Mr. Horan. Leva-o, Purley.

Saíram os dois do gabinete, com Purley na retaguarda. Cramer levantou-se, encaminhou-se para o meu cesto de papéis e atirou lá para dentro o que restava do charuto, regressando ao cadeirão de couro vermelho. Ia começar a dizer qualquer coisa a Wolfe, verificou que este estava recostado e de olhos fechados, e acabou por não o fazer.

Em vez disso, perguntou-me se o podiam escutar na sala ao lado e respondi-lhe que não, que era à prova de som. Purley regressou e sentou-se na sua cadeira.

Cramer dirigiu-se a Egan.

- Muito bem, vamos a isto. Horan pertence ao bando?

- Quero um acordo - teimou Egan.

- Por amor de Deus - irritou-se Cramer -, estás liquidado. Mesmo que tivesse um saco cheio de acordos, não desperdiçaria um contigo. Se quiseres uma oportunidade, faz por a merecer... e bem depressa. Horan faz parte do bando?

- Sim.

- Qual é o seu papel?

- Diz-me como tratar das coisas, como no caso das pessoas que se querem escapar. Que diabo, é advogado! Por vezes dava-me informações. Foi ele quem me falou nesse Leopold Heim, maldito seja.

- Entregavas-lhe o dinheiro?

- Não.

- Nunca?

- Não, recebia a sua parte do Birch.

- Como é que sabes isso?

- Foi o Birch quem mo disse.

- Como é que entraste nisso?

- Foi o Birch. Propôs-mo, há cerca de dois anos, e eu resolvi experimentar. Três ou quatro meses depois surgiram problemas com um tipo de Brooklyn, e Birch tratou de me marcar um encontro com um advogado, na garagem, para que este me desse algumas indicações. Era o Horan. Foi a primeira vez que o vi. Depois disso já o vi... não sei, para aí umas vinte vezes.

- Sempre na garagem?

- Sempre, sim. Nunca me encontrei com ele noutro lado, mas falei com ele pelo telefone.

- Tens alguma coisa escrita com a letra do Horan? Alguma coisa que te enviasse ou entregasse?

- Não.

- Nem um bilhetinho? Nada?

- Já disse que não. Aquele filho da mãe não caía nisso.

- Esteve alguém presente durante algum dos teus encontros com Horan?

- Claro, Birch esteve connosco muitas vezes.

- Está morto. Mais alguém?

- Não - respondeu Egan, depois de pensar um pouco.

- Nunca?

- Não lá em baixo na cave. É claro que o guarda-nocturno da garagem, Bud Haskins, viu-o sempre que ele lá foi... - Os olhos de Egan iluminaram-se. - É isso! O Bud viu-o! - Sem dúvida. - Cramer não ficou impressionado. - Horan deve estar pronto para isso, ou julga que está. Vai pôr a palavra de um respeitado membro da advocacia contra a tua, a palavra de um reles criminoso, apoiado por outro da mesma laia a quem forçaste a ajudar-te. Não estou a dizer que Haskins não possa vir a ser uma ajuda. Vamos apanhá-lo e... Onde é que vai?

Wolfe empurrara a cadeira para trás, levantara-se e dera um passo. Olhou para baixo, para Cramer.

- Lá para cima. São nove horas.

Passou por entre Cramer e a secretária e continuou a andar.

Cramer protestou:

- Quer ir-se embora... agora que?

- Agora que... O quê? - inquiriu Wolfe. Voltou-se para trás, a meio caminho da porta. - Tem esse patife nas suas garras e está a ver se consegue extrair-lhe qualquer coisa para implicar outro patife, aquele inqualificável Horan, do modo mais desprezível que já vi. Admito que é necessário, e, na verdade, até admirável, mas já contribuí com a minha parte e não precisa de mim aqui. Não ando atrás de chantagistas, mas sim de um assassino. Já conhece o meu horário: estarei disponível às onze horas. Ficava-lhe grato se removesse de minha casa essas criaturas miseráveis. Pode lidar com elas, com a mesma eficiência, em qualquer outro lado.

- Claro que posso! - Cramer levantou-se. - Vou levar a sua gente comigo, os quatro: Goodwin, Panzer, Durkin e Cather, e não sei quando lhos devolverei.

- Pode levar os três primeiros, mas não o Cather. Não está cá.

- Quero interrogá-lo. Onde é que ele está?

- Não o pode ter. Anda a tratar de qualquer coisa. Não lhe dei já o suficiente para uma manhã?

- Archie, lembras-te onde foi o Orrie?

- Não, senhor. Não seria capaz de me lembrar nem para salvar a pele.

- Ó timo. Não tentes lembrar-te.

Wolfe virou-se e saiu.

 

Nunca vira tanta gente importante num só dia como vi durante as oito horas seguintes, das nove da manhã às cinco da tarde daquela terça-feira, uma semana depois de Pete Drossos ter batido à porta para consultar Wolfe a respeito do seu caso. Na sede da 10. a Esquadra, foi o vice-comissário da Polícia Neary. Na Rua do Centro, 240, foi o próprio comissário, Skinner. Na Rua Leonard, 155, foi o procurador do distrito em pessoa, Bowen, flanqueado por três assistentes, incluindo Mandelbaum.

Tanta gente importante a prestar-me atenção não me subiu à cabeça, porque sabia que a atenção não se devia apenas à minha personalidade fascinante. Em primeiro lugar, o assassínio de Mrs. Fromm, ligado como estava a dois outros, era ainda bom para mil barris de tinta por dia, isto para não falar nas ondas da rádio. Em segundo lugar, começara a cavalgada para as eleições para a presidência da câmara, pelo que Bowen, Skinner e Neary preparavam as sardinhas para as colocarem nas brasas. Um bom assassínio, por vezes, oferece boas oportunidades a um tipo tão dedicado às causas públicas que é capaz de se mostrar disposto a carregar com novos fardos, em campos mais vastos.

Nos Homicídios de Manhattan, 10. a Esquadra, separaram-nos uns dos outros, mas não fazia mal. Os únicos pormenores que reservávamos para nós próprios diziam respeito à corda que tínhamos aplicado a Egan e ao livro de apontamentos, e Saul e Fred estavam bem informados a esse respeito. Passei uma hora num quartinho pequenino, com uma estenógrafa, até as minhas declarações serem dactilografadas, lidas e assinadas, e a seguir fui conduzido ao gabinete de Cramer para uma sessão com o vice-comissário Neary. Cramer e Stebbins não se encontravam presentes. Neary mostrou-se mal-humorado, mas amigável. A sua atitude implicava que resolveria tudo se o deixassem a ele e a mim sozinhos por quarenta minutos, mas teve azar. Ainda não tinha passado metade desse tempo quando recebeu uma chamada telefónica e teve de me largar. Enquanto era escoltado ao longo do corredor e das escadas, até onde um carro me aguardava, funcionários que eu mal conhecia de vista e outros que não conhecia de lado nenhum faziam questão de me cumprimentar. Aparentemente, pairava no ar a ideia de que eu iria ter o retrato nos jornais... e podia passar-me pela cabeça concorrer ao lugar de presidente da câmara. Nunca se sabe, não é? Aceitei todos esses cumprimentos com ar de pessoa que aprecia o espírito com que eram feitos, mas que está terrivelmente atarefada.

Na Rua Leonard enfrentei o próprio Bowen, o procura dor do distrito, que tinha em cima da secretária uma cópia das minhas declarações e que durante a conversa me interrompeu constantemente, sempre a consultar as declarações, procurando o devido sítio para as comparar com o que eu lhe dizia, e depois acenando com a cabeça como se quisesse dizer: Pois é, pode ser que não estejas a mentir. Não me deu os parabéns por ter agarrado Ervin e Egan e por ter pregado uma partida ao Horan. Pelo contrário, sugeriu que o acto de os ter levado para a casa de Wolfe, em vez de convidar os polícias para a garagem, poderia valer-me cinco anos na choça... se conseguisse arranjar tempo para ler as leis a esse respeito. Conhecendo-o como o conhecia, fiz de conta que não o ouvi e tentei não o aborrecer. O pobre tipo já tinha demasiado com que se entreter durante o dia. De certeza que lhe tinham dado cabo do fim-de-semana, tinha os olhos vermelhos de falta de sono, o telefone estava sempre a tocar, os assistentes entravam e saíam constantemente, e um jornal da manhã colocara-o em quarto lugar na lista dos favoritos para a presidência da câmara. Ainda por cima, o FBI devia estar já a remexer no ninho de vespas do caso Fromm-Birch-Drossos, a que Saul, Fred e eu tínhamos tirado a tampa, com a dolorosa possibilidade de vir a ser ele (o FBI) a desvendar os crimes. Por isso não admira que o procurador distrital não me tenha convidado para almoçar.

De facto, ninguém o fez. Não passou pela cabeça de nimguém que eu precisasse de comer de vez em quando. Tomara o pequeno-almoço muito cedo. Quando terminou a sessão no gabinete de Bowen, um pouco depois do meio-dia, tinha em mente um sítio que havia à esquina, que eu sabia que se especializara em pés de porco e sauerkraut, mas Mandelbaum disse-me que me queria perguntar qualquer coisa e levou-me para o seu gabinete. Encaixou-se por detrás da secretária convidou-me a sentar e disparou:

- A propósito da oferta que fizeste ontem a Miss Estey...

- Meu Deus! Outra vez?

- Agora tem um aspecto diferente. O meu colega Roy Bonino está em casa de Wolfe, interrogando-o a esse respeito. Acabemos com a comédia e partamos do princípio de que Wolfe te mandou fazer essa proposta. Tu próprio disseste que não havia nela nada de impróprio, portanto... porque não?

- Muito bem - retorqui, cheio de fome -, podemos partir dessa base. E então?

- Então pressupõe-se que Wolfe sabia da existência deste bando de chantagistas antes de te mandar fazer a oferta. Partiu do princípio de que Miss Estey estaria vitalmente interessada em saber se Mrs. Fromm falara com Wolfe a esse respeito. Não estou à espera que o admitas, veremos o que Wolfe diz ao Bonino. O que pretendo saber é isto: qual foi a reacção de Miss Estey... e que disse ela, com toda a exactidão?

Abanei a cabeça e respondi-lhe:

- Se discutisse o assunto sobre essa base, ficaria com uma impressão errada. Permita-me sugerir uma outra hipótese de trabalho.

- Muito bem, de acordo.

- Digamos antes que Mr. Wolfe nada sabia a respeito de qualquer bando, mas que desejava apenas agitar um pouco as coisas. Digamos também que nem sequer estava especialmente interessado em Miss Estey, que era apenas a primeira de uma lista. Podemos também levantar a hipótese de que eu tenha feito essa oferta não apenas a ela mas também a Mrs. Horan, a Angela Wright e a Vincent Lipscomb, e que teria prosseguido se Mr. Wolfe não me tivesse chamado por causa de Paul Kuffner se encontrar no seu gabinete a acusar-me de ter feito uma proposta a Miss Wright. Não seria uma hipótese muito mais interessante?

- Sem dúvida que seria! Hum... estou a ver. Nesse caso quero saber o que todos eles disseram. Podes começar por Miss Estey.

- Como se trata apenas de uma hipótese... terei de inventar.

- Claro, sei que és muito bom nisso. Podes começar. Foi assim que gastei mais úma hora. Quando acabei com as minhas invenções, incluindo as respostas a muitas perguntas realmente brilhantes, Mandelbaum levantou-se para sair e disse-me para o esperar ali. Respondi que ia tratar de comer qualquer coisa, mas retorquiu que não podia ser, que me queria à mão. Concordei em esperar e passaram-se mais vimte minutos. Quando finalmente apareceu, disse que Bowen queria falar outra vez comigo e que devia fazer o favor de me dirigir ao seu gabinete. Ele, Mandelbaum, tinha outro assunto a tratar.

Quando cheguei ao gabinete de Bowen não encontrei ninguém. Mais uma espera. Estava sentado havia já um bocado, pensando em pezinhos de porco, quando a porta se abriu para admitir um jovem com um tabuleiro, e pensei Hurra, afinal há alguém com sentimentos humanos neste buraco, mas o jovem, sem sequer olhar para mim, dirigiu-se à secretária de Bowen, pousou o tabuleiro em cima do mata-borrão e saiu. Quando a porta se fechou por detrás dele, pus-me de pé, fui até à secretária e espreitei para debaixo do guardanapo. Vi, e cheirei, uma atraente bifana ainda quente e uma fatia de empada de cerejas. Havia também uma pequena garrafa de leite. A situação requeria presença de espírito, e eu tinha-a. Levei talvez dezoito segundos a regressar ao meu lugar, pousar o tabuleiro nos joelhos, e arrancar um saudável segmento de bifana com uma só dentada. Ainda nem sequer estava pronto para a engolir quando se abriu a porta e entrou o procurador do distrito.

Para lhe poupar embaraços, manifestei-me imediatamente:

- Foi muito simpático da sua parte mandar-me este tabuleiro, Mr. Bowen. Não que estivesse com fome, mas conhece o velho ditado saco vazio não se pode levantar. Voto por Bowen para presidente da câmara!

Mostrou de que massa era feito. Um homem de estofo inferior ter-me-ia arrancado o tabuleiro das mãos ou telefonado a dizer que um estupor lhe bifara o almoço e que queria que lhe enviassem outro. Mas ele não. Limitou-se a lançar-me um olhar sujo, deumeia volta e saiu. Três minutos depois estava de volta com outro tabuleiro, que levou para a secretária. Não sei a quem o terá confiscado.

O que pretendia era apenas esclarecer oitenta e cinco ou noventa questões a respeito do relatório que Mandelbaum acabara de lhe entregar.

Por isso, eram quase 3 horas da tarde quando cheguei, com escolta, ao 240 da Rua Central, e já gatinhava quando me fizeram entrar no gabinete particular de Skinner, o comissário da Polícia. A hora seguinte foi um pouco confusa. Seria de esperar que, tendo de conversar com um cidadão importante como eu, Skinner tivesse dado ordens para só nos interromperem se se verificasse qualquer coisa superior a um motim, mas não o fez. No meio de todas as interrupções conseguiu fazer-me algumas perguntas de importância vital, tais como se estava a chover quando entrara na garagem, ou se notara alguns olhares de reconhecimento trocados entre Egan e Horan, mas durante a maior parte do tempo, quando não estava a atender um dos quatro telefones que tinha sobre a secretária, ou a fazer um telefonema, ou conversando com um qualquer intruso, ou despachando o monte de papéis que tinham acabado de lhe entregar, passeou de um lado para outro do gabinete, que era espaçoso, de tecto alto e muito elegantemente mobilado.

Por volta das 5 horas entrou o procurador distrital, Bowen, acompanhado por dois súbditos de pastas a abarrotarem de papéis. Aparentemente, ia realizar-se uma conferência a alto nível. Poderia ser educativo, se não me pusessem na rua; pelo que, sem dar nas vistas, deixei a minha cadeira junto da secretária de Skinner e fui instalar-me noutra muito mais modesta, junto à parede. Skinner estava demasiado ocupádo para se lembrar de mim, e os outros devem ter pensado que me estava a guardar para a sobremesa. Reuniram as cadeiras em volta da grande secretária e lançaram-se ao trabalho. Tenho uma boa memória natural, que foi bem treinada durante os anos em que estive com Nero Wolfe pelo que seria capaz de fazer um relato completo e preciso de tudo o que ouvi durante a meia hora seguinte, mas não o farei. Se o fizesse, para a próxima não conseguiria disfarçar-me de flor do papel de parede, durante as reuniões dos grandes chefes, e, além disso, quem sou eu para destruir a confiança que as pessoas têm nos seus funcionários públicos altamente colocados?

No entanto, aconteceu uma coisa que devo registar. Encontravam-se no meio de uma acalorada discussão sobre o que devia e não devia ser dito ao FBI, quando se verificou uma interrupção. Primeiro tocou o telefone e Skinner atendeu-o com poucas palavras, e a seguir abriu-se uma porta para deixar entrar um visitante. Era o imspector Cramer. Lançou-me uma olhadela enquanto caminhava para a secretária, mas a sua mente estava entretida com coisas mais elevadas. Enfrentou o grupo e declarou, atabalhoado:

- Aquele tal Witmer que pensava poder identificar o con dutor do carro que matou Drossos, o rapaz... acabou de apontar o Horan, no meio de uma fila de identificação. Diz que era capaz de jurar que foi ele.

Ficaram todos a olhá-lo. Bowen murmurou:

- Diabos me levem...

- E então? - inquiriu Skinner, irritado.

Cramer franziu a testa para ele.

- Não sei, acabei agora mesmo de receber a notícia. Se admitirmos esse testemunho, voltamos outra vez ao princípio. Horan não podia estar no carro com a mulher, na terça-feira. Não podemos deitar abaixo o seu álibi para terça-feira, nem com um bulldozer, e, de qualquer modo, estamos a partir do princípio de que era o Birch. Então porque é que o Horan ia matar o rapaz? Agora que o temos ligado ao bando, claro que o podemos trabalhar um pouco, mas se tem um assassínio na consciência, não conseguiremos fazê-lo ceder. Teremos de aceitar este facto e investigá-lo, mas as coisas ficaram ainda piores. Digo-lhe, comissário, devia haver uma lei contra as testemunhas oculares.

Skinner continuava irritado.

- Acho que está a exagerar, inspector. As testemunhas oculares são frequentemente de grande utilidade. Isto pode ser a oportunidade de que todos estávamos à espera. Sente-se e vamos discutir o assunto.

O telefone tocou quando Cramer puxava por uma cadeira. Skinner atendeu o telefone vermelho, o primeiro à sua esquerda -, falou um pouco e levantou os olhos para Cramer.

- É o Nero Wolfe, para si. Diz que é urgente.

- Atendo lá fora.

- Não, atende aqui. Parece estar cheio de presunção. Cramer deu a volta à secretária até ficar ao lado de Skinner e pegou no telefone.

- Wolfe? Fala Cramer. O que é que quer?

A partir daquele momento, Cramer quase que só se limitou a escutar. Os outros ficaram a observar-lhe o rosto e fiz o mesmo. Quando verifiquei que o seu tom vermelho ficava cada vez mais escuro, enquanto os olhos se estreitavam gradualmente, deu-me vontade de pular da cadeira e correr para a 35á Rua, mas pensei que não era próprio chamar as atenções. Permaneci sentado. Quando por fim desligou, contraiu os maxilares e ficou com o nariz a tremer.

- Aquele filho da mãe! - exclamou. Recuou um passo. Não há dúvida de que é um presunçoso. Declara que está pronto a ganhar o dinheiro que Mrs. Fromm lhe entregou. Quer-me a mim e ao sargento Stebbins. Quer as seis pessoas directamente envolvidas. Quer o Goodwin, o Panzer e o Durkin. Quer três ou quatro mulheres-polícias, não uniformizadas, que tenham entre trinta e cinco a quarenta anos de idade. Quer o Egan. É tudo o que quer.

Cramer olhou para os que o rodeavam.

- Diz que traremos o assassino connosco. O assassino!

- É um maníaco - declarou Bowen, num tom amargo.

- Em nome de Deus, como pode ele?... - perguntou Sinner.

- É insuportável - disse Bowen. - Tragam-no aqui.

- Não virá.

- Façam-no vir!

- Não virá sem um mandato.

- Eu arranjo um!

- Não abrirá a boca. Pagará uma fiança, irá para casa e enviará os seus próprios convites... que não nos incluirão.

Olharam uns para os outros, e cada um deles viu nas caras dos outros o que também eu estava a ver. Não tinham alternativa.

Abandonei a minha cadeira e despedi-me alegremente:

- Então até logo, cavalheiros e saí dali para fora.

 

Nunca tive relações próximas com uma mulher- polícia, mas já vi uma aqui e outra acolá, e tenho de confessar que quem quer que fosse que escolhera as três que iam participar na festa que Wolfe organizara para a tarde tinha bons olhos. Claro que não eram de estarrecer, mas não me importaria nada de convidar uma delas até à pastelaria da esquina para lhe pagar uma Coca. A única coisa de que as poderíamos acusar era quanto aos olhos, porque estavam de serviço, na presença de um inspector, e tinham de se mostrar alerta, competentes e duras. Estavam todas vestidas como gente, e uma delas usava um conjunto azul com finas riscas brancas que era realmente bonito.

Chegara a casa à frente da multidão, para poder fazer a Wolfe um breve relatório sobre o que me acontecera durante o dia, o que não pareceu interessá-lo muito, e para ajudar Fritz e Orrie a reunir cadeiras e arrumá-las. Quando as primeiras visitas bateram à porta, Orrie desapareceu na sala da frente e fechou a porta. Tendo ido à sala em busca de cadeiras, sabia o que ele lá estava a guardar: um homem de meia idade, de ombros arredondados e óculos, com um cinto demasiado apertado. Orrie apresentou-nos e fiquei a saber que se chamava Bernard Levine, mas mais nada.

A disposição dos lugares fora ditada por Wolfe. As seis mulheres ficavam em fila, na frente, com as mulheres-polícias alternando-se com Angela Wright, Claire Horan e Jean Estey. O inspector Cramer encontrava-se no cadeirão de couro vermelho, com Purley Stebbins à sua esquerda, perto de Jean Estey. Por detrás de Jean Estey sentava-se Lips Egan, ao alcance de Stebins, não fosse o caso de ficar nervoso e começar a usar alicates em alguém, e para a esquerda de Egan, na segunda fila, estavam Horan, Lipscomb e Kuffner. Saul Panzer e Fred Durkin encontravam-se na retaguarda.

Disse que Cramer se encontrava no cadeirão vermelho, mas, na verdade, este estava-lhe apenas reservado. Insistira em falar com Wolfe em privado e estavam os dois na sala de jantar. Não sei o que o inspector pretendera, mas, a julgar pela sua expressão quando entrou no gabinete, à frente de Wolfe, não o conseguira. Tinha o queixo contraído, os lábios apertados e o rosto vermelho. Parou, enfrentou as pessoas ali reunidas, mas só falou depois de Wolfe passar por ele e se instalar na cadeira.

- Quero que compreendam - disse - que isto é oficial apenas - até certo ponto. Foram trazidos para aqui pelo Departamento da Polícia, com o consentimento do procurador do distrito, o que torna as coisas oficiais, mas Nero Wolfe vai proceder sob a sua própria responsabilidade e não tem autoridade para os forçar a responderem a qualquer pergunta que vos faça. Compreenderam?

Ouviram-se murmúrios. Cramer continuou, antes de se sentar:

- Pode começar, Wolfe.

Os olhos de Wolfe deslocaram-se da esquerda para a direita e voltaram ao ponto de partida.

- Isto é um pouco embaraçoso... - declarou num tom de conversa. - Anteriormente, só conheci duas das pessoas aqui presentes, Mr. Horan e Mr. Kuffner. Mr. Goodwin deu-me algumas explicações, mas gostaria de as confirmar. A senhora é Miss Jean Estey?

- Sim.

- Miss Angela Wright?

A mulher fez um aceno de confirmação.

- Mrs. Dennis Horan?

- Sou eu. Não me parece que...

- Por favor, Mrs. Horan - pediu Wolfe num tom brusco. Mais tarde, se for preciso. O senhor é Mr. Vincent Lipscomb?

- É verdade.

Os olhos de Wolfe voltaram a percorrê-los a todos.

- Obrigado. Creio que esta é a primeira vez que tento apontar um criminoso no meio de um grupo de pessoas que me são desconhecidas. Parece uma grande presunção da minha parte... mas veremos. Mr. Cramer disse-lhes que não tenho autoridade para insistir em respostas às minhas perguntas, mas vou aliviar as vossas preocupações quanto a isso. Não tenho perguntas para fazer. Nem uma única. À medida que for avançando, poderá surgir a oportunidade para uma pergunta qualquer, mas duvido.

Cramer soltou um grunhido baixo. Todos os olhos se viraram para ele, mas ele não deu por isso. Estava com toda a atenção posta em Wolfe.

- É verdade que irei fazer perguntas - disse Wolfe - mas a mim mesmo, e responder-lhes-ei. Este caso é tão complexo que poderia fazer centenas delas, mas tentarei reduzi-las ao mínimo. Por exemplo, sei por que motivo Mrs. Fromm usou aquelas aranhas de ouro nas orelhas quando me veio visitar na sexta-feira, ao meio-dia. Faziam parte da sua tentativa de impostura. Mas por que razão os usou na sexta-feira, à noite, durante o jantar em casa de Horan? É óbvio que esperava provocar uma reacção da parte de alguém. Um outro exemplo: porque é que Mr. Horan foi àquela garagem a noite passada? Porque sabia que a sua ganância o impelira a uma acção estúpida, o de dar o nome e endereço de Leopold Heim a Egan, numa altura tão pouco propícia. Ficou alarmado... e depois verificou-se que tinha razão. Suponho...

- Protesto! - guinchou a voz de Horan. - Isso é uma calúnia! Inspector Cramer, o senhor disse que Wolfe fala sob sua própria responsabilidade, mas o senhor é o responsável por nos terem trazido para aqui!

- Pode processá-lo - retorquiu Cramer.

- Mr. Horan - interveio Wolfe, apontando-lhe um dedo -, se eu fosse a si deixava de me agitar por causa da sua implicação em chantagem. Dessa ninguém o salva, o senhor sabe- o, e agora enfrenta um perigo muito maior, a identificação do assassino de Pete Drossos. Não conseguirá escapar a uns tempos na prisão, mas com a minha ajuda talvez continue vivo. Quando isto acabar, o senhor vai ficar em dívida para comigo.

- Maldito seja; já temos contas a ajustar!

- Belo. Não tente pagá-las, nem no seu sentido, nem no meu. Como ia a dizer, suponha que a maior parte dos que estão aqui nada sabia sobre as actividades de extorsão que resultaram na morte de três pessoas, portanto não conseguirão compreender tudo, mas isso pode esperar. Porém, estou certo de que um de vocês compreenderá tudo o que vou dizer...

Inclinou-se um pouco para a frente; com os cotovelos apoiados nos braços da cadeira e as pontas dos dedos em cima da secretária.

- Agora, não pretendo poder indicar o criminoso sem ajuda, mas já tive algumas sugestões. No outro dia, um de entre vós deu-se a um grande trabalho para falar a Mr. Goodwin a respeito dos vossos movimentos na sexta-feira, à noite, e na terça, à tarde, sem haver qualquer razão para o fazer. Essa mesma pessoa fez um estranho comentário ao dizer que se tinham passado cinquenta e nove horas desde a morte de Mrs. Fromm... Extraordinária exactidão! Foram dados que valeu a pena registar como sugestões, e mais nada.

Apertou as mãos na frente da sua principal saliência.

- Contudo, tive duas indicações importantes. Em primeiro lugar, os brincos. Mrs. Fromm comprou-os em onze de Maio. Uma outra mulher usava-os no dia dezanove de Maio. Deve tê-los recebido de Mrs. Fromm como presente, ou emprestados, ou obtidos sem o seu conhecimento. De qualquer forma, Mrs. Fromm tinha-os de novo em seu poder e usou-os três dias mais tarde, sexta-feira, dia vinte e dois... e porquê? Para tentar fazer-se passar pela mulher que os usara na terça! Então sabia quem fora essa mulher, tinha alguma espécie de desconfianças a seu respeito, e o que é ainda mais importante como indicação, conseguiu recuperar os brincos, de maneira clandestina ou às claras, para poder tentar fazer-se passar por ela.

- Indicação de quê - perguntou Cramer.

- Da identidade da mulher. Não é uma identificação conclusiva, mas é muito sugestiva. Deverá ter sido alguém que se encontrava muito perto dela e cujos bens eram facilmente acessíveis, que Mrs. Fromm recuperasse os brincos às escondidas ou às claras. Sem dúvida, que esse elemento entrou nos seus cálculos, Mr Cramer, e que o senhor o explorou ao máximo, mas sem resultados. Neste caso, a sua formidável acumulação de resultados negativos foi-me de grande valor. Ninguém põe em questão a sua capacidade para somar dois mais dois. O senhor sabia que o meu anúncio no jornal, a respeito de uma mulher com brincos em forma de aranha, foi publicado na sexta-feira, de manhã, e que Mrs. Fromm apareceu aqui ao meio-dia com eles. Era uma boa hipótese de trabalho partir do princípio que os conseguira recuperar nesse breve intervalo de duas ou três horas, no máximo. Se precisasse de muito mais tempo para os recuperar, o senhor teria descoberto e aproveitado esse facto, e não estaria aqui neste momento. Não é assim?

- O senhor o diz - resmungou Cramer. - Foi apenas esta manhã que tive conhecimento de que os brincos tinham sido comprados por Mrs. Fromm.

- Mesmo assim, sabia que eram provavelmente exemplares únicos. A propósito, tenho uma interessante especulação sobre o motivo que levou Mrs. Fromm a comprá-los quando os avistou numa montra. Mr. Egan declarou que havia uma mulher que lhe telefonava e usava a senha: "Diz a aranha para a mosca". possível, e até muito provável, que Mrs. Fromm tenha escutado essa peculiar senha, e podemos admitir que fosse um dos factores que lhe despertou suspeitas. Quando viu os brincos em forma de aranhas, cedeu ao impulso de os utilizar para uma provocação.

Wolfe encheu o peito de ar, o que nele corresponde a alguns metros cúbicos, e depois deixou-o sair de modo audível.

- Continuemos. O homem que atropelou o rapaz com o carro era uma criatura estranha, difícil de engolir e impossível de digerir. A teoria mais simples, a de que se tratava do homem que seguia no carro com a mulher no dia anterior, que receou que o rapaz o pudesse identificar, perdeu todo o seu valor quando soube que esse homem era Matthew Birch, que foi morto na terça-feira, à noite. De qualquer modo, a sua conduta era peculiar. Coloquei-me no seu lugar. Por qualquer motivo, decido-me a matar o rapaz, conduzindo até essa esquina em plena luz do dia. Se ele aparecer, e se surgir uma oportunidade, atropelo-o com o carro. Não posso esperar ter a tremenda sorte de me surgir essa oportunidade à primeira tentativa. De certeza que não posso contar com isso. Tenho de prever a necessidade de passar várias vezes por esse cruzamento, talvez mesmo muitas vezes. Há muita gente à volta. Não há qualquer motivo para que alguém me preste atenção até que surja a minha oportunidade e atropele o rapaz, mas vou ser visto por muita gente.

Estendeu a mão com a palma virada para cima.

- Então, que devo fazer? Não posso usar uma máscara, é claro, mas há outros expedientes. Uma barba postiça seria excelente... mas desprezo tudo isso e não faço qualquer esforço para me disfarçar. Uso o meu fato castanho e o chapéu de feltro, e lanço-me na perigosa e mõrtal aventura. Então, nesse caso, ou sou um completo asno ou uma mulher. Prefiro a hipótese de ser uma mulher, pelo menos como hipótese de trabalho. Isto porque, se eu for uma mulher, desaparecem muitas das complexidades porque desempenho a grande maioria dos papéis. Estou envovida no projecto de extorsão, e até talvez seja eu quem o dirige. Mrs. Fromm descobre qualquer coisa...

Não o suficiente para poder actuar, mas o bastante para a deixar desconfiada. Faz-me perguntas veladas. Oferece-me os brincos em forma de aranha. Na terça-feira, à tarde, encontro-me com Matthew Birch, um dos meus cúmplices. Pede-me para guiar o seu carro, o que é invulgar, e de repente puxa por uma arma e espeta-me o cano nas costelas. Seja qual for a causa da sua hostilidade, conheço-lhe o carácter e receio pela minha vida. Ordena-me que o conduza a um sítio qualquer. Numa esquina onde paramos, por causa da luz vermelha, aparece um rapaz que começa a lihmpar os vidros, e como o seu rosto está muito perto de mim digo-lhe com os lábios: Socorro, chama um polícia. A luz muda, Birch espicaça-me, e seguimos em frente. Recupero do pânico, porque também tenho um certo carácter. Onde quer que vamos, num qualquer momento, apanho-o distraído e ataco-o. Como arma utilizo um martelo, uma chave de rodas, um pau, a sua própria arma, mas não lhe dou um tiro. Fico com ele no carro, impotente, inconsciente. Nessa noite, muito mais tarde, guio até uma rua solitária, atiro-o para o chão e atropelo-o. Arrumo o carro em qualquer lado e vou para casa.

- Isso também eu podia dizer - resfolegou Cramer. - Dê-me provas.

- Pretendo fazê-lo. No dia seguinte chego à conclusão de que o rapaz é uma ameaça que não pode ser tolerada. Se Mrs. Fromm decidir verificar, de algum modo, as suas suspeitas e for confirmada a minha ligação com Birch, o rapaz pode identificar-me como sendo a pessoa que acompanhava Birch no carro. Lamento amargamente o meu momento de fraqueza quando lhe disse para chamar um polícia, espantando-o e forçando-o a olhar-nos com atenção, e não posso suportar essa ameaça. Assim, nessa tarde, vestida de homem, vou buscar o carro onde o deixei estacionado e procedo como já descrevi. Desta vez largo o carro mais longe e volto para casa de metropolitano. É caro que neste momento já não tenho escrúpulos morais, sou uma porca egomaníaca com presas de javali. Na sexta-feira, de manhã, Mrs. Fromm vai buscar os brincos em forma de aranha e sai de casa com eles. Quando regressa, ao fim da tarde, diz-me, entre outras coisas, que contratou Nero Wolfe para certa investigação. Foi muito imprudente, já devia ter, pelo menos, desconfiado que sou perigosa. Recebeu a prova nessa noite, mas nunca chegou a sabê-lo. Fui à procura, encontrei o carro dela estacionado não muito longe do apartamento de Horan, e escondi-me por detrás do assento da frente, armada com uma chave de rodas. Horan acompanhou-a até ao carro, mas...

- Um momento! - interveio Cramer. - Está a acusar Jean Estey de assassínio, sem qualquer prova. Disse que seria responsável pelo que declarasse aqui, mas fui eu quem os trouxe comigo e há limites. Dê-me um só facto ou acabamos com isto.

Wolfe fez uma careta.

- Só tenho um facto, Mr. Cramer, e ainda não foi comprovado.

- Muito bem, vamos ouvi-lo.

- Como queira. Archie, vai buscá-los.

Quando me levantei para ir até à porta de ligação com a sala da frente, vi Purley Stebbins prestar a Wolfe um dos maiores tributos que jamais recebeu. Virou a cabeça e desceu os olhos até às mãos de Jean Estey. Tudo o que Wolfe fizera fora proferir um discurso. Tal como Cramer dissera, Wolfe não apresentara a mínima prova e o rosto de Jean Estey não ostentava quaisquer sinais de perturbação, mas Purley, a seu lado, não lhe tirava os olhos de cima das mãos.

Abri a porta e chamei:

- Podes vir, Orrie!

Quando eles entraram, houve cabeças que se viraram e outras que não o fizeram. Orrie deixou-se ficar para trás e eu conduzi Levine através da multidão até à cadeira que o aguardava, junto da esquina da minha secretária, de onde tinha uma perfeita visão sobre a fila da frente. Estava a tentar não mostrar o nervoso, mas quando se sentou fê-lo apenas na borda da cadeira, e tive de lhe dizer para se instalar com mais conforto.

Wolfe dirigiu-se-lhe.

- Chama-se Bernard Levine?

- Sim, senhor - respondeu o homem, lambendo os lábios.

- Este cavalheiro aqui ao pé da minha secretária é o inspector Cramer, do Departamento da Polícia de Nova Iorque.

- Está aqui em serviço, mas apenas como observador. As perguntas que eu lhe fizer são apenas minhas, e o senhor só responde se quiser. Fui claro?

- Sim, senhor.

- Chamo-me Nero Wolfe. Já alguma vez me tinha visto antes deste momento?

- Não, senhor, mas é claro que já tinha ouvido falar de si...

- Qual é a sua ocupação, Mr. Levine?

- Sou um dos sócios da B. & S. Levine. O meu irmão e eu possuímos uma loja de roupas para homem, em Newar, no quinhentos e catorze da Rua Filmore.

- Como é que está aqui? Como foi que isso aconteceu? Conte-nos tudo.

- Ora, telefonaram para a loja e houve um homem que disse...

- Por favor. Quando?

- Esta tarde, cerca das quatro horas. Disse que a mulher dele comprara um chapéu de feltro e um fato castanho na nossa loja, na quarta-feira da semana passada, e perguntou se me recordava disso. Respondi que era claro que me lembrava, pois fora eu mesmo quem a atendera. Depois perguntou se eu a poderia descrever, para que não se verificasse alguma confusão, e assim fiz. Ele...

- Um momento. Esse homem descreveu a mulher ou pediu-lhe a si para descrever a cliente?

- Foi o que eu disse. O homem não descreveu nada. Pediu-me para o fazer e eu fi-lo.

- Continue.

- Depois disse-me que queria ir à loja, onde talvez trocasse o chapéu, e perguntou-me se eu lá estaria. Respondi que sim. Apareceu cerca de meia hora depois, ou talvez um pouco mais. Mostrou-me uma licença de detective, de Nova Iorque, com a fotografia e o nome, Orvald Cather, e afirmou que não fora a sua mulher-que comprara o fato, mas sim que andava a fazer uma investigação. Afirmou trabalhar para Nero Wolfe, o grande detective, e que surgira algo a respeito do fato castanho e do chapéu. Queria que viesse a Nova Iorque com ele. Bom, isso era um problema. O meu irmão e eu não gostamos de nos meter em sarilhos. Não somos os Irmãos Brooks, mas procuramos dirigir um pequeno e honesto negócio...

- Pois sim. Depois decidiu-se a vir?

- A decisão foi minha e de meu irmão. Decidimos tudo em conjunto.

- Mr. Cather deu-lhe algum incentivo? Ofereceu-se para lhe pagar?

- Não, limitou-se a convencer-nos. Fala bem, esse homem. Daria um bom vendedor. Viemos juntos no metropolitano e trouxe-me para aqui.

- Sabe para quê?

- Não, não mo disse com exactidão. Afirmou apenas que era um assunto muito importante, relacionado com o fato e o chapéu.

- Não lhe sugeriu que lhe pediriam para identificar a mulher que comprou o fato e o chapéu?

- Não, senhor.

- Mostrou-lhe fotografias ou alguma espécie de retrato de alguém?

- Não, senhor.

- Descreveu-lhe alguém?

- Não, senhor.

- Então o senhor deve estar com um espírito aberto, Mr. Levine. Vou fazer-lhe uma pergunta sobre a mulher que comprou um fato castanho e um chapéu na sua loja, na passada quarta-feira. Há alguém nesta sala que se pareça com ela?

- Claro, vi-a logo que me sentei. Aquela mulher, ali na ponta. - Levantou um dedo na direcção de Jean Estey. - É ela.

- Tem a certeza?

- A cem por cento.

Wolfe virou a cabeça.

- Como facto, isto chega-lhe, Mr. Cramer?

É óbvio que Jean Estey, sentada entre o sargento e a mulher-polícia, tivera quatro ou cinco minutos para se preparar. No instante em que vira Levine, soubera que fora apanhada por causa da compra do fato, porque, sem dúvida, Levine confirmaria o testemunho de B. Levine. Por isso estava pronta e não esperou que Cramer respondesse à pergunta de Wolfe. Fê-lo ela própria:

- Muito bem - declarou -, é um facto. Fui estúpida. Comprei o fato e o chapéu para Claire Horan. Pediu-me para o fazer e concordei. Levei o embrulho...

A disposição dos lugares resultou na perfeição, com as mulheres-polícias intercaladas entre as civis. Quando Mrs. Horan saltou da cadeira para se atirar a Jean Estey, foi detida com tanta prontidão e rudeza que foi cair no colo da mulher-polícia que se encontrava do outro lado, que a segurou com firmeza. Na fileira traseira alguns dos homens estavam de pé e ouviram-se várias vozes, entre elas a do inspector Cramer. Purley Stebbins, agora um pouco confuso, deixou Jean Estey ao cuidado da sua colega feminina e concentrou-se em Dennis Horan, que se precipitara para salvar a esposa das garras da mulher-polícia que a apanhara em voo. Horan, sentindo no ombro a pesada mão de Purley, libertou-se com um safanão e falou para quem estivesse interessado:

- Isso é mentira! - guinchou, apontando para Jean Estey um dedo que tremia. - É uma mentirosa e uma assassina! Virou o dedo na direcção de Lips Egan. - Tu sabe-lo bem, Egan. Sabes que Birch descobriu que ela o estava a enganar e que ficava com a maior parte do bolo, e também sabes o que Birch queria dizer quando afirmou que ia tratar do assunto. Foi estúpido quando pensou que seria capaz de o fazer. Agora quer atirar um assassínio para cima de mim, e vai arrastar-te também. Vais nessa conversa?

- Não... - grasnou Egan. - Já fui demasiado enganado. Essa estúpida cadela que vá para a cadeia...

Horan virou-se.

- Apanhaste-me, Wolfe, maldito sejas, sei quando estou liquidado. A minha mulher nada sabia disto, absolutamente nada, e eu não sabia dos assassínios. Posso ter desconfiado... mas não sabia. Agora dir-vos-ei tudo o que sei.

- Não quero ouvir - disse Wolfe num tom sombrio. - Estou farto. Mr. Cramer? Importa-se de levar estes vermes para fora da minha casa? - Virou-se, para a assembleia e mudou de tom: - Isto, senhoras e senhores, aplica-se apenas aos que merecem uma tal designação.

Naquele momento estava eu a abrir a gaveta da secretária para tirar uma máquina fotográfica: Lon Cohen e o Gazette mereciam, pensei, uma boa fotografia de Bernard Levine sentado no gabinete de Nero Wolfe.

 

Três dias depois, às onze da manhã de sexta-feira, encontrava-me na minha secretária a dactilografar uma carta para um coleccionador de orquídeas, quando Wolfe desceu das estufas das plantas e entrou. Em vez de se encaminhar para a secretária, dirigiu-se ao cofre, abriu-o e tirou de lá qualquer coisa. Virei-me para ver o que era, porque não gosto de o ver a brincar com coisas sérias. O que tirara do cofre era o livro de apontamentos de Lips Egan. Fechou o cofre e encaminhou-se para a porta.

Levantei-me para o seguir, mas virou-se para trás.

- Não, Archie. Não quero que sejas cúmplice deste crime... ou será contravenção?

- Ora, adoraria partilhar uma cela contigo.

Dirigiu-se para a cozinha, foi ao armário buscar a maior frigideira que lá existia, pousou-a na mesa e forrou-a cuidadosamente com folha de alumínio. Sentei-me num banco e fiquei a ver. Wolfe abriu o livro de apontamentos, retirou-lhe uma folha, amarrotou-a e largou-a na frigideira. Quando nela já se encontrava um monte de uma dúzia ou mais de folhas, aplicou-lhes um fósforo. Foi acrescentando combustível às camadas, folha após folha, até o livro estar vazio.

- Pronto! - declarou com ar satisfeito, dirigindo- se ao lavatório para lavar as mãos, depois de atirar a capa do livro para o caixote do lixo.

Na altura pensei que talvez estivesse a precipitar um pouco as coisas, pois ainda era possível que precisassem de mais algumas provas adicionais. Todavia; isto foi há muitas semanas, mas agora, que Horan e Egan foram devidamente julgados, condenados e sentenciados, e quando um júri de sete homens e cinco mulheres necessitou apenas de quatro horas para mandar Jean Estey para uma determinada cadeira... ora, que diferença faz?

 

                                                                                Rex Stout  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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