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AS AREIAS DE CROOKEN / Bram Stoker
AS AREIAS DE CROOKEN / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS AREIAS DE CROOKEN

 

  1. Arthur Fernlee Markam, que arrendou a moradia chamada A Casa Vermelha sobranceira à aldeia das Casas-de-Crooken, era comerciante em Londres e, como um cockney autêntico, julgou necessário, antes de ir passar as férias de Verão na Escócia, vestir-se dos pés à cabeça como um chefe de clã escocês tal como se vê nas gravuras a cores e nos palcos de music-hall. Tinha visto um dia, no Teatro do Império, o Grande Príncipe - “o Rei dos Cavalheiros de Indústria” - obter um êxito retumbante interpretando o papel do “MacSlogan de MacSlogan” e cantando a célebre canção escocesa "Não há nada como o haggis para dar sede", e a partir desse dia tinha conservado na memória uma imagem fiel deste aspecto pitoresco e guerreiro dado pelo comediante. Na verdade, se tivessem podido ler o fundo do pensamento de Mr. Markam acerca da sua escolha de Aberdeenshire como estação estival, teriam visto que, no primeiro plano deste local de vilegia­tura desenhado pela sua imaginação, perfilava-se a figura colorida de MacSlogan, de MacSlogan. Fosse como fosse, o acaso -- pelo menos no que concerne à beleza da paisagem - conduziu-o a escolher a baía de Crooken. É um bonito local entre Aberdeen e Peterhead, exactamente por cima da margem rochosa a partir da qual os recifes extensos e peri­gosos, conhecidos pelo nome de Esporões, se estendem no mar do Norte. Entre estes recifes e as Casas-de-Crooken - uma aldeia abrigada pelas falésias do Norte - estendem-se a baía profunda e, atrás dela, uma multidão de dunas cobertas de arbustos inclinados onde pululam os coelhos aos milhares. Em cada extremidade da baía adianta-se um promontório rochoso, e quando o sol, ao nascer ou ao pôr-se, ilumina os rochedos de sienito vermelho, o efeito é realmente muito belo. O fundo da própria baía é constituído por areia lisa e, quando a maré se retira para longe, deixa uma extensão unida de areia dura entrecortada aqui e além pelas linhas sombrias das redes de pesca com estacas e das redes de pesca com cesta dos pescadores de salmões. Numa das extremidades da baía desenha-se um pequeno grupo, ou um cacho de rochedos, cujas cabeças emergem um pouco acima da maré alta, excepto quando com tempo borrascoso as vagas as cobrem com a sua massa verde. Na maré baixa, ficam totalmente expostos, perigosos nesta parte da costa leste. Entre os rochedos, que distam pouco mais ou menos quinze metros um do outro, existe com efeito um pequeno espaço de areias movediças que, como as Goodwins, é unicamente perigoso no momento da maré alta. Estende-se ao largo, até se perder no mar, e a caminho da margem, até desaparecer na areia dura da praia superior. No declive da colina que domina as dunas, a meio caminho entre os Esporões e o porto de Crooken, situa-se a Casa Vermelha. Ergue-se no meio de um grupo de abetos que a protegem em três lados, deixando aberto o que dá para o mar. Um jardim, bem tratado como um jardim de paróquia, estende-se até à estrada para lá da qual uma vereda ervosa, que as viaturas ligeiras podem seguir, busca a sua via até à praia, contornando as colinas de areia.

Quando a família Markam chegou à Casa Vermelha - após trinta e seis horas de balouço num barco de Aberdeen, o Ban Righ, proveniente de Blackwall, após terem tomado subsequentemente o comboio para Yellon e realizado o passeio de carruagem de uma dúzia de milhas - todos os seus membros estiveram de acordo em dizer que nunca tinham visto sítio mais encantador. A satisfação geral atingira mesmo o cúmulo porque, até então, nenhum membro da família tinha logrado, por diversas razões, apreciar as coisas e as paisagens que se podiam admirar no interior da fronteira escocesa. Embora a família fosse numerosa, a prosperi­dade dos negócios de Mr. Markam permitia-lhe um grande luxo de despesas pessoais, incluindo uma latitude muito larga na escolha do vestuário. O elevado número de vestidos novos das meninas Markam era fonte de inveja para as suas amigas íntimas, e de alegria para elas próprias.

Arthur Fernlee Markam não informara a família acerca do seu novo fato. Não estava completamente seguro de ficar ao abrigo do ridículo, pelo menos dos sarcasmos, e como era sensível a tal respeito, pensava que o melhor seria aguardar a instalação num ambiente que lhe conviesse antes de permitir que o esplendor total do seu trajo lhes surgisse diante dos olhos. Tivera algum trabalho para se assegurar de que o seu fato escocês estava completo. Com tal desígnio, efectuara diversas visitas à loja de vestuário “Tartas escoceses cem por cento lã”, recentemente inaugurada em Copthall Court pelos senhores MacCalum More e Roderick MacDhu. Tinha-se seguido uma série de consultas ansiosas com o director da loja, MacCallum, o qual desejava ser tratado assim, sem os habituais “Mister” ou “Esquire”. As existências disponíveis de fivelas, botões, correias, broches e ornamentos foram examinados até ao mais ínfimo pormenor; feita a escolha, para rematar o todo, foi arranjada uma pena de águia de tamanho suficientemente magnífico, e assim ficou o equipamento completo. Foi só depois de ter visto o fato terminado - as cores vivas do tarta eram atenuadas pela sobriedade relativa da multidão de adornos de prata, do broche de Cairngorm, da espada, do punhal e da bolsa de pele de cabra - que ficou plena e absolutamente satisfeito com a sua escolha. Para o kilt começara por pensar no estrito tartã Royal Stuart, mas desistira quando MacCallum lhe observara que, se por acaso se encontrasse nas cercanias de Balmoral, isso poderia provocar complicações. MacCallum que, anotemo-lo, falava com um sotaque cockney notável, sugeriu outros tecidos que lhe apresentou sucessivamente; mas agora que haviam ultrapassado a questão da autenticidade, Mr. Markam previa dificuldades se por acaso se encontrasse na localidade do clã cujas cores houvesse usurpado. MacCalum propôs então fabricar um tecido com um motivo especial, com as despesas por conta de Markam, e que nunca se pareceria com nenhum tartã existente, porquanto combinaria as características de um grande número de tartãs. O motivo de base foi o Royal Stuart mas com variantes, inspirando-se na simplicidade do motivo dos clãs Buchanan, Macbeth, Macintosh e Macleod. Quando o espécime foi apresentado a Markam, este receou que o tecido pudesse parecer vistoso de mais; mas quando Roderick MacDhu ficou deslumbrado perante a sua beleza, Markam cessou de levantar objecções à execução do fato. Pensava, e correctamente, que se um verdadeiro escocês como MacDhu gostava daquele tecido, este devia servir - atendendo sobretudo a que o mais novo dos dois sócios era um homem que muito se lhe assemelhava devido à sua largura de ombros e ao seu aspecto. Quando MacCallum recebeu o cheque, cujo montante, temos de concordar, era um pouco forte, acrescentou:

- Tomei a liberdade de mandar tecer uma quantidade suplementar de tecido, para o caso de o senhor mesmo ou um dos seus amigos precisar.

Markam mostrou-se reconhecido e disse-lhe que ficaria muito feliz se o belo tecido que os dois sócios haviam criado fosse apreciado pelo seu justo valor - não duvidava de que, com o tempo, seria esse o caso - e que este último podia fabricar e vender toda a metragem que quisesse.

Markam experimentou o trajo uma tarde, no seu escritório, depois da partida de todos os empregados. Sentia-se contente, mas um pouco assustado com o resultado. Mac­Callum tinha feito perfeitamente o seu trabalho, não fora omitido nada que pudesse aumentar a dignidade marcial de quem usasse o fato. "Claro que só levarei comigo a espada e as pistolas nas ocasiões extraordinárias", dizia de si para si Markam quando começou a despir-se. Decidiu que usaria o trajo pela primeira vez quando acostasse a Escócia e foi assim que esta manhã, enquanto o Ban Righ aguardava ao largo do farol de Girdle Ness que a maré entrasse no porto de Aberdeen, Markam surgiu da sua cabina em todo o esplendor deslumbrante do seu fato novo. O primeiro comentário que ouviu proveio de um dos seus próprios filhos que, de entrada, não o reconheceu.

- Mas que tipo mais cómico! Deus do céu, mas é o paizinho!

E o rapaz afastou-se logo a correr e tentou ocultar a risada debaixo de uma almofada do salão. Markam possuía pé de marinheiro e não sofrera com o balanço do barco; o seu rosto naturalmente rubicundo ficou ainda mais colorido, se possível, graças à vermelhidão - da qual teve consciência - que lhe subiu às faces quando se viu num repente o ponto de mira de todo os olhares. Desejava não ter sido tão ousado porque sentia algum frio na parte nua da cabeça, ao lado da calota Glengarry tão atrevida, assente de um modo tão destemido. Contudo, foi com coragem que enfrentou o grupo de estranhos. Não se sentiu muito afectado, pelo menos na aparência, quando alguns dos seus comentários lhe chegaram aos ouvidos:

- Está completamente chalado! - disse um cockney que envergava um fato aos quadrados berrantes.

- Dir-se-ia que está coberto de moscas - disse um ianque alto e magro, empalidecido por causa do enjoo, e que seguia viagem a fim de instalar-se um certo tempo o mais próximo possível das grades do castelo de Balmoral.

- Feliz ideia! Devíamos encher com ela as nossas penínsulas! É o momento! - acrescentou um jovem estu­dante de Oxford que regressava à sua casa em Inverness.

Mas em breve Mr. Markam ouviu a voz da sua filha mais velha:

- Onde está ele? Onde está ele?

E apareceu a correr, precipitando-se para o convés, com o chapéu descaído para a nuca devido ao vento. O rosto mostrava sinais de agitação, porque a mãe acabava de falar-lhe no atavio do pai; mas quando o viu, rompeu logo num riso tão violento que se tornou histérico. Algo do mesmo género se produziu em cada uma das outras crianças. Quando todos acabaram de rir, Mr. Markam voltou para a sua cabina e mandou a criada da mulher dizer a cada mem­bro da família que queria falar-lhes imediatamente. Apare­ceram todos, dissimulando o melhor que podiam os senti­mentos. Ele falou-lhes muito calmamente:

- Meus queridos, então eu não lhes dou todo o dinheiro de que precisam?

- Assim é, pai - responderam todos com uma voz grave -, ninguém é mais generoso do que o senhor.

- Então eu não os deixo vestirem-se como lhes apetece?

- Sim, pai - isto num tom embaraçado.

- Nesse caso, meus queridos, não acham que seria mais simpático e mais caridoso da vossa parte não tentarem colocar-me numa situação desconfortável, mesmo se en- vergo um trajo que lhes parece ridículo, embora seja muito vulgar neste país em que estamos prestes a desembarcar?

Como única resposta, todos inclinaram as cabeças. Ele era um bom pai, e todos o sabiam. Sentiu-se completamente satisfeito e continuou:

- Agora podem ir. Corram! Divirtam-se! Nunca mais falaremos neste assunto.

Depois saiu de novo para o convés, e enfrentou corajo­samente o fogo do ridículo, em seu redor, embora não ouvisse mais nenhuma nova zombaria.

Mas o espanto e o divertimento que o seu atavio tinha provocado a bordo do Ban Righ não eram nada em comparação com o que ele criou em Aberdeen. Os rapazes e os bas­baques, as mulheres com os seus bebés, que aguardavam no barracão do desembarcadoiro, seguiram en masse quando o grupo da família Markam tomou o caminho da estação; até os porteiros com os seus nós de gravata à antiga moda, e que aguardavam, com os carrinhos das bagagens novo modelo, os viajantes na parte baixa da prancha de desembarque, seguiram com um enlevo maravilhado. Felizmente, o com­boio para Peterhead estava prestes a partir e por isso o mar­tírio de Markam não se prolongou muito mais tempo. No compartimento, o glorioso trajo dos Highlands não se via e como estava pouca gente na estação de Yellon, tudo aqui correu muito bem. Mas quando a carruagem se aproximou das Casas-de-Crooken e as famílias dos pescadores acorreram à soleira das portas para ver quem chegara, a excitação ultrapassou todos os limites. As crianças agitavam os bonés e corriam aos gritos atrás da carruagem; os homens abando­navam as redes e os engodos e seguiam-na; as mulheres aper­tavam o bebé nos braços e também a seguiam. Os cavalos estavam cansados depois da sua longa viagem de ida e volta a Yellon, a colina era íngreme e, assim, a multidão dispôs de todo o tempo para se reunir e mesmo preceder a carruagem.

Mrs. Markam e as filhas mais velhas teriam gostado de poder protestar ou de empreender qualquer coisa capaz de lhes aliviar a mágoa provocada pelo ridículo de Markam que se lia em todos os rostos, mas o olhar determinado e fixo do pretenso Highlander impressionava-as um pouco e desistiram de falar. Talvez por causa da pena de águia que lhe subia por cima da cabeça calva, do broche de Cairngorm pregado ao ombro gordo, da espada, do punhal e das pistolas que lhe cinturavam o estômago proeminente, ou se mostravam por cima das meias contra a barriga da perna vigorosa, justificando a sua existência como símbolos da importância marcial e terrificante do seu proprietário. Quando o grupo alcançou a cerca da Casa Vermelha, uma grande parte dos habitantes de Crooken estava à espera, de chapéu na mão e respeitosamente silenciosa; o resto da população subia penosamente a colina. O silêncio foi cortado por um único comentário, o de um homem com uma voz profunda:

- Esta agora, então ele esqueceu-se das gaitas de foles!

Os criados tinham chegado havia já alguns dias, e tudo estava preparado. No bom humor que se segue a um bom almoço após uma viagem penosa, todos os dissabores da deslocação, toda a mágoa provocada pela adopção daquele trajo odioso foram esquecidos.

À tarde, Markam, sempre vestido com a sua panóplia, passeou-se no meio das Casas-de-Crooken. Ia sozinho porque, coisa estranha de dizer, a mulher e as rilhas sofriam de dores de cabeça e tinham-se, disseram-lhe, deitado para descansarem do cansaço da viagem. Também não foi possível encontrar nenhum dos dois rapazes. O filho mais velho, que pretendia ser um jovem senhor, tinha saído sozinho para explorar as vizinhanças. O outro rapaz, quando lhe quisera pedir para o acompanhar no seu passeio, conseguira, por acidente, claro, cair na selha da água e esperava ficar seco e tornar a vestir-se de novo enxuto. Como as suas roupas ainda não se achavam fora das malas, este passeio a dois era, claro, impossível de momento.

Mr. Markam não ficou completamente satisfeito com o passeio. Não conseguiu travar conhecimento com nenhum dos vizinhos. Não que não houvesse ninguém à sua volta, antes pelo contrário, cada casa, cada casebre parecia estar cheia de gente; mas os que se encontravam no exterior man-tinham-se ora à frente das suas portas, a alguma distância atrás dele, ou ainda no caminho, muito distanciadas à sua frente. Quando passava, podia ver o alto das cabeças e o branco dos olhos nas janelas ou nos desvãos das portas. A única conversa que travou foi tudo menos agradável. Teve lugar com um velhote, de um género estranho, que não dizia quase nada, excepto no culto, em que acrescentava “Ámen!” aos outros Ámens. A sua única ocupação parecia ser esperar à janela do edifício dos correios, a partir das oito da manhã, a chegada da correspondência da uma hora a fim de levar o saco a um castelo pertencente a um barão dos arredores. Passava o resto do dia sentado numa cadeira, numa parte ventosa do porto, onde eram lançadas as vísceras dos peixes, o resto dos engodos e as imundícies caseiras, e onde os patos costumavam divertir-se à grande.

Quando Saft Tammie o viu chegar, levantou os olhos, que mantinha geralmente fixos no vazio, na direcção do caminho em frente da sua cadeira e, como se ofuscado por um reflexo de sol, esfregou-os e protegeu-os com a mão. Depois pôs-se subitamente de pé, estendeu o punho de um modo acusador e desatou a falar:

- "Vaidade das vaidades", disse o pescador, "tudo é vaidade!". O homem! Fica prevenido a tempo! Repara nos lírios dos campos que não trabalham, não fiam, mas Salomão em toda a sua glória não se vestia com um só destes lírios. O homem! O homem! A tua vaidade é como as areias movediças que engolem tudo o que cede ao seu encantamento. Acautela-te com a tua vaidade! Acautela-te com as areias movediças, que abrem a boca para ti e que vão engolir-te! Contempla-te! Toma consciência da tua própria vaidade! Enfrenta-te a ti próprio e então, nesse instante, compreenderás a força fatal da tua vaidade. Aprende-a, conhece-a e arrepende-te antes que as areias movediças te engulam!

Depois, sem dizer mais nada, voltou para a sua cadeira e ali permaneceu, imóvel, com a mesma atitude inexpressiva de antes.

Markam não pôde deixar de sentir-se um pouco afectado por esta tirada. Se tivesse sido dita por alguém que parecesse um pouco louco, tê-la-ia atribuído a uma qualquer exibição excêntrica do humor ou da impudência escoceses; mas a gravidade da mensagem era inegável e tornava uma tal interpretação impossível. Estava, porém, decidido a não ceder ao ridículo e embora ainda não tivesse visto nada na Escócia que lhe lembrasse ao menos um kik, achava-se determinado a usar o seu trajo dos Highlands. Quando regressou a casa, em menos de meia hora, verificou que cada um dos membros da família, apesar das dores de cabeça, fora dar um passeio. Aproveitou a ocasião da sua ausência para se fechar no quarto, despiu o trajo dos Highlands para envergar um fato de flanela, depois acendeu um cigarro e dormiu um pouco. Despertado pela família que regressava, vestiu imediatamente o seu trajo escocês e fez a sua aparição com esta apresentação, no salão para o chá. Não saiu mais em toda a tarde; mas depois do jantar - claro que havia envergado o seu fato para jantar, como habitualmente - saiu sozinho para um passeio à beira-mar. Tinha já decidido nesse momento que deveria habituar-se a pouco e pouco ao seu trajo dos Highlands antes de o tornar o seu fato normal. A Lua ia alta no céu, por isso seguiu sem dificuldade a vereda através das dunas de areia e depressa alcançou a beira-mar. A maré estava alta e a praia dura como um rochedo, pelo que caminhou em direcção ao sul quase até à extremidade da baía. Aí a sua atenção foi atraída por dois rochedos isolados a alguma distância do começo das dunas, e dirigiu-se para eles. Quando alcançou o rochedo mais próximo, tfepou até à sua parte superior e aí sentado, a uma altura de quatro ou seis metros acima da areia, apreciou a beleza e a quietude da paisagem. A Lua surgia por detrás da ponta de Pennyfold, e a sua luz mal tocava no cume do rochedo dos Esporões mais afastado, a coisa de três quartos de milha, permanecendo o resto dos rochedos na sombra ao fundo. Quando a Lua surgiu por cima do promontório, os rochedos dos Esporões e depois a praia, aos poucos, foram inundados pela luz.

Durante um bom momento, Mr. Markam permaneceu sentado e contemplou a Lua que surgia e a extensão luminosa que ia aumentando progressivamente. Depois virou-se para leste e sempre sentado, o queixo apoiado na mão, olhou na direcção do mar, gozando tranquilamente a beleza e o aspecto selvagem da cena. A barafunda da vida londrina - a privação de luz, a aspereza, a lassitude da vida quotidiana - parecia esquecida para sempre, e ele vivia neste minuto uma vida mais livre e mais espiritual. Observou as águas brilhantes avançar sobre a extensão lisa da areia, aproximando-se insensivelmente - a maré tinha-se invertido. Algum tempo depois, ouviu uma voz erguer-se, na praia, a alguma distância.

"Pescadores que se chamam uns aos outros", disse para consigo, e olhou à sua volta. Neste momento, recebeu um choque terrível, porque, embora uma nuvem tivesse atravessado a Lua, avistou, apesar da escuridão súbita que o cercara, a sua própria imagem. Durante um momento, no cume do rochedo oposto, pôde ver a parte de trás calva da cabeça e a calote Glengarry munida de uma imensa pena de águia. Recuando, o pé escorregou-lhe e provocou a sua queda na areia entre os dois rochedos. Nada de grave porquanto a areia se encontrava apenas a dois metros abaixo dele, mas o seu espírito estava ocupado pela visão de si mesmo ou do seu duplo que tinha desaparecido. Como era a forma mais fácil de alcançar a terra firme, preparou-se para saltar o resto da altura. Esta decisão não exigiu mais do que um segundo, mas o cérebro funciona rapidamente e no momento de se preparar para o salto, viu a areia debaixo dele, lisa como o mármore, começar a tremer de um modo curioso. Invadiu-o um temor súbito; os joelhos dobraram-se e, em vez de saltar, deslizou miseravelmente sobre o rochedo, esfolando as pernas nuas quando caiu. Os pés tocaram na areia, atravessaram-na como se fosse água e achava-se enterrado até quase aos joelhos quando se deu conta de que estava em areias movediças. Agarrou-se desesperadamente ao rochedo para não se enterrar mais profundamente; por sorte, havia um esporão saliente que conseguiu agarrar por instinto. Agarrou-se-lhe com a energia do desespero. Quis gritar, mas nenhum sopro saiu dos seus pulmões, até ao momento em que, após um grande esforço, a sua voz ecoou. Voltou a gritar, e parecia que o som da própria voz lhe dava um acréscimo de força, porque conseguiu agarrar-se ao rochedo mais tempo do que pensava possível - se bem que só se aguentasse graças a um desespero cego. Apesar de tudo, começava a dar-se conta de que a sua mão ia largar-se quando, milagre dos milagres!, uma voz rude mesmo por cima dele respondeu ao seu grito: - Deus seja louvado, chego a tempo - e um pescador de grossas botas que lhe subiam até às coxas, aproximou-se, trepando rapidamente pelo rochedo. Reconheceu imediatamente a gravidade do perigo e gritou-lhe: - Ó homem, aguente-se, estou a chegar!

Desceu depressa até encontrar um sítio firme para assentar o pé. Então, com uma das mãos fortemente apoiada nas asperezas, baixou-se e, segurando o pulso de Markam, gritou-lhe:

- Agarre-se a mim, homem! Agarre-se a mim com a outra mão!

Servindo-se da sua grande força, puxando com um movimento forte e contínuo, içou Markam para fora das areias movediças esfomeadas e depositou-o são e salvo no cume do rochedo. Mal lhe dando tempo para respirar, puxou e empurrou Markam, não o deixando um só instante no rochedo, até à areia firme do outro lado e depositou-o na parte superior da praia, ainda muito trémulo devido à importância do perigo. Depois, meteu-se a falar:

- Ó homem!, mas eu cheguei mesmo a tempo! Se não tivesse olhado para aqueles bravos rapazes, ali ao fundo, e começado a correr logo a seguir, estaria nesta altura a enterrar-se até às entranhas da terra. Wully Beagrie julgou que era um fantasma, e Tom MacPheil jurou que não passava de um duende encarrapitado num enorme cogumelo! "Não!", disse eu, "trata-se apenas daquele maluco inglês, aquele zaruco que fugiu do museu Tussaud!". Pensei que como é estrangeiro e estúpido, talvez até completamente louco, não conhecesse os perigos das areias movediças. Gritei para avisá-lo e depois corri para safá-lo... se não fosse demasiado tarde. Mas graças a Deus, quer seja doido ou apenas meio doido por causa da sua vaidade, não cheguei demasiado tarde - acabou ao mesmo tempo que tirava o boné com uma reverência.

Mr. Markam ficou profundamente emocionado e agradeceu-lhe por tê-lo salvo de uma morte terrível; mas a acusação de vaidade lançada uma vez mais contra ele constituía uma seta que lhe feria a humildade. Estava prestes a responder com cólera quando, de súbito, o invadiu um grande respeito e ocorreram-lhe as palavras de advertência do empregado do correio meio louco: "Contempla-a e arrepende-te antes que as areias movediças te engulam."

Neste instante também se lembrou de que avistara a sua própria imagem e do perigo súbito das areias movediças assassinas que se seguira. Manteve-se silencioso um longo minuto e depois disse:

- Meu bom homem, devo-lhe a vida!

O robusto pescador respondeu com uma espécie de reverência:

- Não, não, é a Deus que a deve; quanto a mim, sinto-me apenas muito contente por ser o humilde instrumento da Sua misericórdia.

- Mas há-de permitir-me que lhe agradeça - disse Mr. Markam tomando nas suas as duas grandes mãos do seu salvador e apertando-as fortemente. - O meu coração ainda está por de mais comovido e os meus nervos por de mais abalados para que eu possa dizer-lhe muita coisa mas acredite que lhe fico muito, muito reconhecido.

Era bem evidente que o pobre homem se achava profundamente emocionado, porque lhe escorriam lágrimas pelas faces.

O pescador disse com uma cortesia rude mas sincera:

- Sim, senhor! Agradeça-me se o desejar, já que isso fará bem ao seu pobre coração. E estou a dizer para comigo que se me encontrasse no seu lugar, gostaria também de ficar reconhecido. Mas, senhor, pela minha parte, não preciso de agradecimentos. Também eu estou muito contente!

Que Arthur Fernlee Markam estivesse reconhecido provou-o um pouco mais tarde de uma forma prática. Na semana seguinte, o mais belo barco de pesca jamais visto no porto de Peterhead entrou no porto de Crooken. Inteiramente equipado com velas e com todas as espécies de enxárcias, achava-se provido das melhores redes. O seu capitão e os homens voltaram a partir de carruagem depois de terem entregue, acompanhados pela mulher do pescador, os documentos da inscrição marítima com o seu nome.

Enquanto Mr. Markam e o pescador de salmões passeavam juntos ao longo do mar, o primeiro pediu ao companheiro que não mencionasse o facto de ele ter corrido um perigo tão iminente, pois isso só faria afligir a sua família e os filhos. Disse que avisaria os seus acerca do perigo das areias movediças e, com esse fim, fez ao pescador naquele mesmo instante todas as perguntas úteis até sentir que as informações obtidas eram completas. Antes de deixá-lo, perguntou ao companheiro se por acaso não vira um outro homem, vestido como ele, no outro rochedo, quando tinha acorrido para socorrê-lo.

- Não, não - respondeu ele -, não existe outro louco igual ao senhor nas redondezas. Não se viu nada assim desde os tempos de Jamie Fleeman, aquele que era o bobo de Lorde Udny. Digo-lhe, ó homem!, um trajo bárbaro como aquele que usa, de memória de homem não se vê aqui. E eu penso que um tal fato nunca foi feito para se sentar num rochedo frio, como o senhor fez ali. Ó homem!, então não receia os reumatismos ou os lumbagos para pôr assim, nas pedras frias, a sua carne nua! Disse para comigo, quando o vi esta manhã perto do porto, que era meio maluco, porque deve mesmo ser maluco ou idiota quem faz uma coisa destas!

Mr. Markam não se deu ao trabalho de discutir este ponto e, como tinham chegado perto da sua casa, propôs ao pescador de salmão que viesse tomar um copo de uísque, o que ele aceitou; depois despediram-se por aquela noite. Mr. Markam teve o cuidado de avisar toda a família acerca das areias movediças, explicando-lhes que ele próprio tinha corrido um grave perigo por causa delas.

Não pregou olho toda a noite. Ouviu as horas a baterem uma após outra e, apesar de todos os esforços, não conseguiu adormecer. Reviu mais de mil vezes o horrível episódio das areias movediças, o momento em que Saft Tammie quebrou o seu habitual silêncio para exortá-lo acerca do pecado da vaidade e pô-lo de sobreaviso. Ocorria-lhe continuamente à ideia a pergunta: "Estou eu, então, tão cheio de vaidade que pertenço às fileiras dos loucos?" e a resposta surgia sempre sob a forma das palavras do poeta louco: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Contempla-a e repensa-te antes que as areias movediças te engulam." Todavia, um sentimento de fatalidade começou a germinar-lhe no espírito: acabaria, apesar de tudo, por perecer nas areias movediças porque fora ali que já acontecera o seu encontro consigo próprio.

Dormitava na claridade pardacenta da manhã, mas era evidente que prosseguia o assunto nos sonhos porque a mulher, acordando-o, lhe disse:

- Trata de descansar. Este disparatado trajo dos High-lands desarranjou-te a cabeça! Não fales enquanto dormes, se fores capaz disso!

Estava vagamente consciente de viver um sentimento de satisfação, como se um peso terrível lhe tivesse sido retirado do peito, mas não sabia qual a razão disso. Perguntou à mulher o que tinha dito durante o sono, e ela respondeu:

- Deus sabe que tu o repetiste muitas vezes para que nos recordemos. "Não frente a frente. Vi a pena de águia em cima da sua cabeça calva, há ainda esperança! Não frente a frente!" Sossega agora e dorme.

E então ele adormeceu, porque se deu conta de que, em suma, a profecia do homem zaruco não se tinha ainda realizado. Ainda não se encontrara frente a frente consigo próprio, pelo menos ainda não.

Foi acordado cedo por uma das criadas que veio dizer-lhe que havia à porta um pescador que queria falar-lhe. Vestiu-se o mais rapidamente que pôde - porque ainda não se havia habituado ao trajo dos Highlands - e desceu à pressa, não querendo fazer esperar o pescador de salmões. Ficou surpreendido e nada realmente contente ao verificar que o seu visitante não era outro senão Saft Tammie, que atacou de imediato:

- Tenho que ir aos correios, mas antes pensei que poderia perder uma hora contigo vindo ver se ainda continuas tão doido por causa da tua vaidade como na noite passada. E vejo que ainda não aprendeste a lição. Mas isso não vai tardar, é mais do que certo! Disponho de todo o tempo, a manhã à minha frente, por isso tornarei a passar para ver como vais conseguir ir às areias movediças, e depois para o diabo! Agora, parto para o meu trabalho!

E partiu, deixando ali especado Markam, razoavelmente vexado, porque as criadas que tinham ouvido tudo tentavam em vão conter o riso. Tinha mais ou menos decidido nesse dia vestir a roupa vulgar, mas a visita de Saft Tammie modificou a sua decisão. Provaria a toda a gente que não era um poltrão, e continuaria como fizera, acontecesse o que acontecesse!

Quando se apresentou no seu trajo marcial completo para o pequeno-almoço, as crianças, até à última, baixaram a cabeça, e a parte de trás dos seus pescoços ficou muito vermelha. Todavia, como ninguém riu - excepto o mais novo, Titus, que foi assaltado por uma colapso histérico e prontamente afastado da sala -, Markam não pôde repreendê-los, mas começou a partir o seu ovo com um ar severo e determinado. Desgraçadamente, quando a mulher lhe passou uma chávena de chá, um dos botões do seu trajo dos Highlands prendeu-se nas rendas da camisa de noite, de tal forma que o chá a ferver se lhe espalhou sobre os joelhos nus. Lançou naturalmente um palavrão e devido a isso a mulher, algo irritada, explodiu:

- Ora bem Arthur, se continuas a armar-te em idiota, com este ridículo trajo, que outra coisa podes tu esperar que aconteça? Não estás habituado a ele e nunca conseguirás.

Ele quis responder com um discurso indignado: "Minha senhora!..." mas não foi mais longe, porque agora que o assunto fora abordado, Mrs. Markam tencionava dizer tudo o que tinha para dizer. O que ela tinha para dizer não era agradável e não foi dito de um modo agradável. Os modos de uma mulher são raramente agradáveis quando começa a dizer o que considera serem “verdades” ao marido. O resultado foi que Arthur Fernlee Markam decidiu de imediato que, durante a sua estada na Escócia, não usaria outro traje que não fosse aquele criticado pela esposa. Como é muitas vezes o caso com as mulheres, esta teve a última palavra, pronunciada nesta circunstância com lágrimas:

- Muito bem, Arthur! Claro que farás como quiseres! Ridiculariza-me como puderes e estraga as hipóteses de casamento das nossas pobres filhas! De um modo geral, os jovens não parecem apreciar muito ter um idiota como sogro! Mas previno-te de que a tua vaidade, um dia, acabará por provocar-te um rude choque, se, claro, antes, não estiveres num manicómio ou morto!

Decorridos alguns dias, tornou-se evidente que Mr. Markam seria obrigado a fazer a maior parte do seu exercício no exterior sozinho. As raparigas, de vez em quando, davam um passeio com ele, mas a maior parte das vezes de manhã cedo, ou ao entardecer, ou então aquando de um dia de chuva, sem ninguém presente. Pretendiam estar prontas para partir a todo o momento mas, coisa estranha, parecia acontecer sempre algo para impedi-las. Nunca deram com os rapazes para as saídas; quanto a Mrs. Markam, recusava-se seriamente a sair com ele fosse qual fosse o pretexto, enquanto continuasse a armar-se em ridículo. No domingo, ele envergou o fato de cidade habitual, porque pensava com razão que a igreja não era um local onde pudessem exprimir-se sentimentos de cólera; mas na manhã de segunda-feira voltou ao seu trajo dos Highlands. As coisas tinham chegado ao ponto em que muito daria para nunca ter tido a ideia daquele trajo, mas a sua obstinação britânica era grande, e não cederia. Saft Tammie passava pela casa todas as manhãs e, como não conseguia falar-lhe nem mandar entregar-lhe uma mensagem, costumava voltar à tarde, quando o saco do correio já estava entregue, e aguardava a sua saída. De cada vez nunca deixava de alertar Markam para a sua vaidade, utilizando as mesmas palavras da primeira conversa. Após alguns dias, Mr. Markam tinha chegado a considerá-lo quase como uma espécie de castigo. Ao cabo de uma semana, a relativa solidão, obrigatória, a mágoa constante e a reflexão triste contínua que tudo isto engendrara começaram a tornar Mr. Markam muito doente. Era demasiado orgulhoso para se confiar à família, pois os seus membros tinham-no, do seu ponto de vista, tratado muito mal. Além disso, não dormia bem de noite, e quando dormia, fazia incessantemente maus sonhos. Simplesmente, para se certificar de que a sua coragem não o abandonara, adquiriu o hábito de visitar as areias movediças pelo menos uma vez por dia; era raro omitir de lá ir ao entardecer antes de se deitar, última coisa que fazia à noite. O hábito de lá ir todas as noites era talvez devido ao facto de que a experiência terrível das areias movediças lhe ocorria sempre nos sonhos. Aquilo tornava-se cada vez mais obcecante, ao ponto de que, por vezes, ao despertar, mal podia acreditar que não estivera realmente lá, ocupado a visitar o sítio fatal. Por vezes pensava que, talvez, caminhasse durante o sono.

Uma noite, o seu sonho foi tão real que ao despertar duvidou que se tivesse limitado a sonhar. Fechou os olhos, reabriu-os, tornou a fechá-los, mas de cada vez a visão - se era uma visão - ou a realidade - se era a realidade - se mostrava à sua frente. A Lua cheia e amarela brilhava sobre as areias movediças enquanto ele se aproximava; podia ver a extensão da luz vacilante perturbada e cheia de sombra escura quando a areia líquida tiritava, estremecia, se enrugava e agitava, como era costume fazer entre as suas pausas de uma calma marmórea. Quando chegou muito próximo do local, alguém se acercou do lado oposto, com passos iguais. Viu que era ele, o seu duplo, e com uma espécie de terror silencioso, impelido por uma força que desconhecia, avançou, encantado como um pássaro pela serpente, mesmerizado ou hipnotizado, para ir ao encontro daquele outro ele mesmo. No momento de sentir a areia ceder e fechar-se sobre si, acordou, quase in articulo mortis e a tremer de medo e, coisa curiosa, a profecia do simples de espírito pareceu ecoar-lhe aos ouvidos: "Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Contempla-a e arrepende-te antes que as areias movediças te engulam!"

Achava-se tão convencido de que tudo isto não passava de um sonho que se levantou, embora ainda fosse cedo, vestiu-se sem incomodar a mulher e tomou o caminho da borda de água. O coração batia-lhe desenfreadamente quando se cruzou com uma série de passos na areia, que logo reconheceu serem os seus. Havia o mesmo calcanhar, a mesma biqueira quadrada; agora já não duvidava de que estivera realmente ali e, meio horrificado, meio num estado de entorpecimento sonhador, seguiu as marcas e viu-as perderem-se junto das areias movediças. Sofreu um choque terrível quando verificou que não havia nenhuma marca impressa na areia, na outra direcção, e sentiu que existia um mistério terrível que não conseguia penetrar e cuja explicação, bem o sabia, seria a sua perda. Perante um tal estado de coisas, adoptou duas más decisões. Em primeiro lugar, guardou os temores para si, e como ninguém na sua família suspeitava o que quer que fosse, cada palavra ou cada expressão que utilizasse na conversa alimentava o fogo devorador da sua imaginação. Depois, começou a ler obras que se propunham tratar dos mistérios do sonho e dos fenómenos psíquicos em geral, o que teve como resultado que qualquer ideia insensata de um qualquer autor original ou de um filósofo meio louco se tornou um germe vivo de perturbação na terra fertilizada do seu cérebro perturbado. Quer negativa quer positivamente, tudo isto produzia o mesmo efeito. Uma das causas da desordem do seu espírito, e não a menor, era Saft Tammie que agora, em certas horas do dia, parecia fazer parte integrante da cerca em frente da casa. Algum tempo depois, para conhecer o passado deste indivíduo, Markam fez o seu inquérito que deu o resultado seguinte:

De um modo geral, julgava-se que Saft Tammie fosse filho de um lorde de um dos condados dos arredores. Começara por receber uma educação religiosa com o objectivo de tornar-se pastor, mas por uma razão que toda a gente ignorava, abandonou esta via e, depois de se ter deslocado a Peterhead - era a época próspera da caça à baleia - conseguiu fazer-se admitir como membro da tripulação de um baleeiro. Isto durou alguns anos, mas como se mostrava cada vez mais taciturno, finalmente um dia os companheiros de bordo puseram-no de quarentena, de maneira que arranjou um outro emprego num barco de pesca, numa flotilha do norte do país. Aqui trabalhou durante anos, mas mantinha a reputação de ser "um bocadinho bizarro"; depois acabou por instalar-se em Crooken onde o lorde, por conhecer um pouco do seu passado familiar, lhe arranjou um emprego que, com ligeira diferença, fez dele um pensionista. O pastor que acabara de dar estas informações concluiu assim:

- É muito estranho, mas este homem parece possuir um dom singular. Trata-se de um dom de segunda vista, ao qual o povo escocês está muito pronto a aderir, ou de certa forma oculta de conhecimento, eu não sei dizer, mas nunca sucede um desastre aqui sem que logo aqueles que o conhecem estejam à altura de citar, depois do acontecimento, as observações através das quais ele o havia previsto. Fica inquieto ou excitado... na verdade, acorda... quando a morte anda no ar.

Estas revelações não diminuíram em nada as preocupações de Mr. Markam e, pelo contrário, pareceram imprimir mais profundamente o conteúdo da profecia no seu espírito. De todos os livros que tinha lido acerca do seu novo tema de estudo, nenhum lhe interessara tanto como um livro alemão, Der Doppelgänger do doutor Heinrich von Aschenberg, que vivera noutros tempos em Bona. Neste livro, soube pela primeira vez que existiam casos em que os homens tinham levado uma existência dupla - estando cada pessoa completamente separada da outra -, continuando o corpo e o espírito a formarem um todo, e um todo que era duplo do outro. Nem é preciso dizer que Mr. Markam se apercebeu de que esta teoria se adaptava exactamente ao seu caso. A visão que tivera das próprias costas na noite da sua escapadela para as areias movediças - as suas próprias marcas que desapareciam nas areias movediças, sem vestígio de passos visíveis de regresso -, a profecia de Saft Tammie acerca do seu encontro consigo mesmo e do seu sumiço nas areias movediças, tudo isto aumentava a sua convicção de que realizava na sua própria pessoa uma instância do Doppelgãnger. Achando-se, deste modo, consciente de uma vida dupla, adoptou medidas para provar a sua existência, para sua própria satisfação. Com tal intuito, uma noite, antes de se ir deitar, marcou o seu nome a giz nas solas dos sapatos. Nessa noite sonhou com as areias movediças e a sua visita àquele local; sonhou com tanta nitidez que quando despertou na aurora enevoada não podia acreditar que não tivesse lá estado. Levantando-se sem incomodar a mulher, procurou os sapatos.

As marcas a giz estavam intactas! Vestiu-se e saiu sem fazer barulho. Desta vez, a maré estava alta e por isso atravessou as dunas e alcançou a margem do outro lado das areias movediças. E aí, cúmulo do horror, viu as suas próprias marcas que desapareciam nos abismos! Foi um homem desesperadamente triste que voltou para casa. Parecia incrível que um comerciante da sua idade, que passara um longa vida tranquila na prossecução dos seus negócios no meio de uma Londres ruidosa e comercial, pudesse um dia ver-se assim misturado com o mistério e o horror e que descobrisse que tinha duas existências. Não podia falar da sua perturbação nem sequer à própria mulher porque sabia muito bem que ela começaria logo a exigir grandes pormenores acerca dessa outra vida - aquela que ela desconhecia; logo de início não só suportaria mas acusá-lo-ia também de todos os géneros de infidelidades nessa outra vida. Assim, a sua reflexão lúgubre tornava-se cada vez mais profunda. Uma noite, a maré baixava - o mar retirava-se e havia Lua cheia - estava ele sentado à espera do jantar quando a criada anunciou que Saft Tammie desatara a barafustar no exterior porque não lhe permitiam que entrasse para falar com Markam. Este mostrou-se indignado, mas não quis que a criada pensasse que o temia e por isso disse-lhe que o mandasse entrar. Tammie entrou, caminhando mais depressa do que nunca, de cabeça alta, e um ar decidido no olhar que mantinha habitualmente baixo. Mal entrou, exclamou:

- Venho falar contigo mais uma vez; e aqui estás tu sentado, imóvel como uma catatua num poleiro. Ora bem, ó homem! Perdoo-te! Estás a ouvir! Perdoo-te!

E sem dizer nem mais uma palavra, voltou-se e saiu de casa, deixando o dono embasbacado de indignação.

Depois do jantar, decidiu ir fazer mais uma visita às areias movediças - nem queria sequer admitir para si próprio que estava com medo de lá ir. Assim, cerca das nove horas, vestido a preceito, encaminhou-se a pé para a praia e, atravessando as areias, sentou-se na borda do rochedo mais próximo. A Lua cheia encontrava-se atrás de si, e os seus raios iluminavam a baía de tal modo que as suas franjas de espuma, os contornos sombrios do promontório e as estacas das redes dos salmões pareciam acentuar-lhe o relevo. Sob o deslumbramento da luz brilhante e amarela, as janelas iluminadas do porto de Crooken e, mais ao longe, o castelo do lorde tremeluziam como as estrelas no céu. Durante largo tempo manteve-se sentado e saboreou a cena; pareceu-lhe que a sua alma sentia uma espécie de paz que não conhecia há muito tempo. Toda a mesquinhez, o tédio, o temor e o ridículo das semanas passadas pareciam apagados e uma calma nova e salubre apossou-se dele. Embebido neste humor doce e solene, repensou calmamente naquilo que fizera nos últimos tempos e sentiu vergonha de si próprio, da sua vaidade e da obstinação que o acompanhara. E, neste preciso momento, decidiu que esta vez seria a última, que nunca mais envergaria o trajo que o tinha afastado daqueles que amava e que lhe causara tantas horas e dias de mágoa, de vexames e de desgosto.

Mas na altura em que tinha quase tomado esta decisão, uma segunda voz pareceu também falar dentro dele, e perguntou-lhe se teria mais alguma vez a ocasião de usar de novo o seu trajo - agora era demasiadamente tarde, escolhera o seu caminho, e devia aguardar o resultado.

"Não é tarde de mais", a outra parte dele próprio, a melhor, elevara a voz; então, invadido por este pensamento, pôs-se de pé para tornar a casa e despir imediatamente aquele trajo tornado odioso. Deteve-se para deitar um derradeiro olhar àquela bela cena. A luz mantinha-se pálida e suave, adoçando cada contorno de rochedo, de árvore e de telhado, envolvendo as sombras num veludo negro, e acendendo como com uma chama pálida a maré montante que, agora, avançava a sua franja através da extensão lisa da areia. Então abandonou o rochedo e caminhou para a margem. Mas, na altura em que ia partir, um terrível espasmo de horror abalou-o e, durante um momento, o sangue que lhe subia à cabeça bloqueou toda a luz da Lua cheia. Uma vez mais, viu a sua imagem fatal a deslocar-se para lá das areias movediças, do rochedo oposto para a margem. O choque foi ainda maior por contraste com o encantamento aprazível que acabara de usufruir; e com os sentidos meio paralisados, para ali ficou a contemplar a visão fatal e as areias movediças, adornadas e rastejantes, que pareciam contorcer-se e desejar algo que se situava entre elas e ele. Desta vez não se podia enganar, porque, embora a Lua lhe lançasse no rosto a sua sombra, podiam ver-se as faces barbeadas como as suas, e o bigode pequeno e farfalhudo que crescia há algumas semanas. A luz iluminava o tartã brilhante e a pena de águia. Mesmo o espaço calvo num dos lados da calote reluzia como faziam o broche no ombro e a parte superior dos botões de prata. Enquanto olhava, sentiu que os pés se enterravam um pouco porque ainda estava próximo do limite das areias movediças, e recuou. Ao fazê-lo, a outra figura adiantou-se de maneira que o espaço entre eles foi conservado.

Permaneceram assim os dois, frente a frente, como sob o efeito de um estranho fascínio; e no sussurro do sangue que lhe percorria o cérebro, Markam parecia ouvir as palavras da profecia: "Contempla-a e arrepende-te antes que as areias movediças te engulam."

Na verdade, ali estava frente a frente consigo próprio, tinha-se arrependido e agora enterrava-se nas areias movediças! A advertência e a profecia realizavam-se!

Por cima dele as gaivotas gritavam, voando em torno da franja da maré montante, e aquele grito, que era bem humano, devolveu-o a si próprio. Recuou imediatamente vários passos rápidos porque, até agora, apenas os seus pés se achavam enterrados na areia mole. Quando o fez, a outra figura avançou e, penetrando no interior do abraço mortal das areias movediças, começou a enterrar-se. Pareceu a Markam que era a ele que estava a ver descer a caminho da perda e, de imediato, a sua alma angustiada exprimiu-se num grito terrível! No mesmo momento, um grito terrível escapou-se da outra figura e quando Markam ergueu bruscamente as mãos, o outro fez a mesma coisa. Com os olhos repletos de horror, via-se a ficar enterrado mais profundamente; e então impelido por não sabia que força, adiantou-se de novo para as areias ao encontro do seu destino. Mas no momento em que o pé mais avançado começara a enterrar-se, ouviu novamente as gaivotas que pareciam restituir-lhe as suas faculdades entorpecidas. Com um esforço sobrehumano, retirou o pé das areias que pareciam agarrá-lo, deixando o sapato enterrado e, completamente aterrorizado, deu meia volta. Abandonou o local a correr, só parando quando a respiração e as forças lhe faltaram; depois caiu meio desmaiado na vereda ervosa que serpenteava entre as colinas de areia.

Arthur Markam decidiu não dizer nada à família, pelo menos até haver recuperado o domínio completo sobre si mesmo. Agora que o duplo fatal - o seu outro eu - fora engolido pelas areias movediças, recuperara um pouco da tranquilidade de outrora.

À noite dormiu profundamente e não sonhou; e de manhã foi tal e qual como fora noutros tempos. Parecia-lhe realmente que esta recente parte de si próprio, a pior, tinha desaparecido para sempre. E, coisa assaz estranha, Saft Tammie esteve nessa manhã ausente do seu posto e nunca mais apareceu, mas manteve-se no lugar habitual, fitando em frente como dantes, com olhos vazios. Tal como decidira, Mr. Markam deixou de vestir o seu trajo dos Highlands. Uma noite, enrolou-o e fez um embrulho, com a espada, o punhal, a adaga e o resto e, levando-o em segredo consigo, atirou-o às areias movediças. Com um sentimento de prazer intenso, viu-o ser aspirado pelas areias que se fecharam sobre ele formando uma superfície lisa como o mármore. Depois voltou para casa e anunciou com bom humor à família reunida para a oração do entardecer:

- Ora bem, meus queridos! Ficarão contentes por saber que abandonei a ideia de usar o meu trajo dos High-lands. Apercebo-me agora até que ponto era um velho parvo vaidoso, e o quanto me tornei ridículo! Nunca mais o verão!

- Onde está ele, pai? - perguntou uma das filhas, a fim de que o anúncio de um tal sacrifício que o pai acabara de fazer não caísse num silêncio absoluto.

A resposta surgiu tão meigamente que a menina se levantou da cadeira e foi beijá-lo na face. O pai disse:

- Nas areias movediças, minha querida! E espero que esta parte de mim mesmo, a pior, tenha ficado ali enterrada para sempre.

Toda a família passou o resto do Verão em Crooken com delícia e, quando regressou à cidade, Mr. Markam já havia esquecido quase tudo do incidente das areias movediças e tudo quanto lhe dizia respeito, quando um dia recebeu uma carta, enviada por MacCallum More, a qual o fez muito reflectir, embora nada tenha dito à família, e que deixou, por certas razões, sem resposta. Estava assim redigida:

 

Estabelecimentos MacCallum More e Roderick MacDhu

Tartãs escoceses cem por cento lã

Copthall Court, E. C.

30 de Setembro de 1892

Caro senhor:

Espero que desculpará a liberdade com que lhe escrevo, mas estou neste momento a proceder a um inquérito e informam-me que o senhor acaba de passar este Verão no Aberdeen-shire (Escócia, N. B.). O meu sócio Mr. Roderick MacDhu - este nome aparece por razões profissionais nos nossos documentos e nas nossas publicidades, pois o seu nome verdadeiro é Emmanuel Moses Marks, de Londres-, partiu, no princípio do mês passado, para a Escócia (N. B.) em viagem, mas como desde então não recebi quaisquer notícias, excepto uma carta enviada pouco tempo depois da partida, inquieto-me com a ideia de que lhe pudesse ter acontecido um acidente. Como não consegui, após todos os inquéritos que pude empreender, obter a mínima informação a seu respeito, atrevi-me a escrever-lhe. Ele mandou-me a carta num momento de depressão profunda, e precisou-me que receava que o julgasse mal, porque um dia, quando se vestira como um escocês em terra escocesa, numa noite de luar, pouco tempo depois da sua chegada, vira aparecer “um fantasma”, que era o seu duplo. Evidentemente, referia-se ao facto de que antes da sua partida tinha arranjado um trajo dos Highlands parecido com aquele que tivemos a honra de fornecer-lhe e que, talvez se recorde, muito o impressionara. Todavia, é possível que nunca o tenha vestido, porque hesitava, dissera-me, em pô-lo e chegara mesmo a dizer-me que, nos primeiros tempos, só se atreveria a vesti-lo ou com a noite adiantada ou de manhã muito cedo, e mesmo assim em sítios muito afastados, até ao dia em que se lhe habituasse. Infelizmente não me confiou o seu itinerário, e encontro-me, portanto, na ignorância completa do local em que ele poderia estar; por isso, atrevo-me a perguntar-lhe se teria calhado a ver ou a ouvir falar de um trajo dos Highlands parecido com o seu, algures nos arredores onde, disseram-me, o senhor adquiriu recentemente a casa que tinha ocupado temporariamente. Não ficarei à espera de qualquer resposta a esta carta se não puder dar-me informações acerca do meu amigo e sócio, e peço-lhe que não se incomode a escrever-me, salvo se tiver uma razão para tal. O que me leva a pensar que ele poderia encontrar-se na sua vizinhança e que, embora a carta não estivesse datada, o sobrescrito fora posto nos correios de Yellon, que encontrei num mapa do condado de Aberdeenshire, e que não fica longe das Casas-de-Crooken.

Subscrevo-me, caro senhor, com toda a consideração e muito respeitosamente,

Joshua Sheeny Cohen Benjamin

(Estabelecimentos MacCallum More)

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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