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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS BICICLETAS DE SETEMBRO / Baptista Bastos
AS BICICLETAS DE SETEMBRO / Baptista Bastos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Os cavalos corriam à desfilada, dezenas, talvez centenas. O vale estendia-se por alguns quilómetros. Na vertente sul, matas de pinheiros anões, fetos, e anúcares. Os anúcares são árvores do tempo dos visigodos e produzem frutos afrodi­síacos, que possuem a configuração de castanhas. A norte, o vale despenhava-se abruptamente num talude. A seguir, um nunca acabar de urzes, ervas silvestres, puas retorcidas. Lá adiante, as ruínas de uma casa com torreão. Sobre essa vegeta­ção divisavam-se serras a perder de vista. Serras circundantes: a mão em concha, de granito. No cume mais elevado de uma dessas serras havia um capacete de neve. Neve eterna. Desde que o mundo nascera, nascera com ele aquela neve. Naquelas serras estávamos sempre a nascer. Os cavalos corriam, as bo­cas cheias de espuma, olhos desorbitados, olhos endoidecidos. Um relâmpago riscou o céu. Um, dois, três, quatro, trovejou forte e fundo, um, dois, três, quatro quilómetros. Os cavalos estavam no centro do mau tempo. Relâmpagos, trovões, chu­va. Os cavalos pareciam enfurecidos. Pararam um pouco. Logo a seguir fincaram as patas dianteiras no chão, que começava a amolecer, e saltaram. Saltaram tão alto que passaram as serras, mas caíram num terrenos cheio de puas. Muitos deles rasgaram os ventres nos bicos afiados de piteiras antiquíssimas, tão anti­gas que estavam petrificadas. Os cavalos morreram todos: estropiados, patas quebradas, pescoços seccionados, degola­dos, olhos desorbitados, malucos de pavor, rios de sangue, vís­ceras espalhadas por todo o lado; um odor a doce e a húmido.

«o mais estranho de isto tudo era o modo como relincha­vam. Parecia que se queixavam», diz Jesuina.

Estava sentada num banco baixo, as saias enormes chega­vam-lhe aos pés. Cabeça de ave rapace, rosto cheio de rugas, as rugas cruzavam-se umas com as outras. Passou as mãos pelos cabelos grisalhos, longos, duas tranças pelos ombros até aos seios enormes; as mãos percorreram as tranças.

«Parecia que se queixavam.»

 

 

        Calou-se, chamada por pensamentos certamente tenebro­sos. O rosto exprime as cambiantes da banalidade até ao as­sombro. Em torno dela, os miúdos estão transidos: de espanto, de medo, de incredulidade. Observou-os, um a um, como se retivesse, no fundo da memória, todos os rostos. Possuía a ca­pacidade de se colocar no lugar do outro. Mas era uma mulher cheia de lágrimas.

Hoje, compreende que Jesuina precisava de todos: a dor, como a solidão, precisam de companhia. Algum dentre nós teria de escrever sobre esses corredores e essas portas incertas, as imensidões sem fundo do tempo fugitivo e eterno. Sobre as nuvens em Setembro, que formavam círculos e pareciam rodas de bicicletas, quem me dera ir com elas, por esses céus fora, quem me dera. Tudo isto será esquecido, ele sabe: a bordadei­ra que tinha um olho de vidro (lacustre, imenso, medonho), um olho sempre aberto, mesmo quando ela dormia o olho de vidro parecia sempre atento, um olho de vidro alerta, olho fixo, fatal, acusador, inflexível. E também ninguém mais recor­dará a menina Angélica, com oitenta anos e ainda tratada de menina; o odor forte dos pinheiros, o cheiro das cavalariças dos quartéis; as três putas da rua do Laranjal que saíam à noite para fazer a vida na casa da madame Blanche, cabeça, posta e rabo.

«Isto é verdade», diz Jesuina.

        Prolongava as vogais da palavra veeer-daaa-deee. Assim, dava à palavra a inesperada força de uma evidência testemu­nhada. Ele estava deitado por terra, a cabeça apoiada nas mãos, olhava a mulher antiga, e tentava não pensar, como se estives­se sozinho no interior de um círculo. Ouvia-lhe as histórias e acreditava nelas, porque a mulher antiga não só tomava conta dele e dos outros como sabia de árvores, dos nomes das árvo­res, a diferença entre um plátano e um loureiro; e conhecia os ventos, as luas, as correntes do Tejo, e outras ruas. Também sabia de oceanos, de ervas para chás e infusões. E de pessoas.

Ele vai tomando notas desse espaço inverificável e infini­to, onde sobrenadam antepassadas figuras. E sente imensa gra­tidão por ter mergulhado no mar do tempo. Escreve: a dúvida e a indulgência são luxos que não podem ser oferecidos.

 

Em frente da casa para onde fora viver, na rua do meio, havia um penhorista, homem afável, benevolente e calmo que, diziam, fora, outrora, informa dor da polícia política. Mes­mo por cima da porta, um letreiro a néon explicava: COMPRA, em letras grandes; mais pequenas, mas sempre em maiúsculas: OURO PRATA JOIAS ANTIGUIDADES. Iluminadas, apenas as palavras: JOIAS ANTIGUIDADES. Houve tempos em que as mulheres empenhavam os fatos dos maridos às segundas-feiras e iam buscá-los nas tardes das sextas. As mulheres pediam às vizinhas dinheiro emprestado para obter o resgate dos fatos, mediante um juro de 5 por cento. Os maridos desconheciam esses negócios.

Uma dessas prestáveis vizinhas tinha um filho já adulto, que passava os dias, de manhã ao entardecer, sentado na gua­rita de um antigo quartel. A mãe levava-lhe comida, ele comia-a sofregamente, os grandes olhos sem entendimento, boca be­suntada, dedos imundos. Regressava a casa pela noite e pedia mais comida com gestos e sons guturais. Por vezes, na guarita, masturbava-se, independentemente de estar ou não a ser visto. A mãe arrastava-o para um local discreto, limpava-o passiva­mente, sem imprecar, sem se lamentar, com infinita paciência.

Beijava-o na face, ele fitava-a com olhos de rafeiro agradecido, ela dizia:

"Meu filho, meu filho, meu filho.»

        Como desejava sonhar o homem que o filho só parcial­mente era, respeitosa do seu sonho, mas inconsolável na sua dor, dizia:

"O meu filho é muito conhecido, coitadinho!, vai a todos os enterros!"

Era pela rua do meio que passavam os funerais. A rua do meio interrompia-se num largo, em cujo centro estava uma cruz, e prolongava-se até ao cemitério. Nessa parte final, enor­mes ciprestes, muito juntos, formavam uma alameda sombria e sinistra. Havia outras ruas, rigorosamente mais seis, mas a do meio era a única que não terminava no largo. Chamavam-lhe o largo das sete ruas. Os funerais contornavam o largo, paravam um pouco em frente da cruz, as pessoas genuflectiam e ben­ziam-se.

Quando eram funerais ciganos as mulheres soltavam gri­tos lancinantes, e os homens mantinham a dor numa seca e austera contenção. O luto carregado exprimia o lancinante so­frimento que eles entendiam dar público testemunho. Os fu­nerais ciganos não levavam padre. Os funerais de oficiais do exército levavam pálio, padre, sacristãos e áulicos; às vezes, membros do governo. Atrás do clero, oficiais fardados, sargen­tos. Pelo caminho, os padres agitavam o turíbulo e a atmosfera ficava impregnada do odor adocicado das essências. Evolava de tudo aquilo um erotismo confuso e sagrado.

O aparato fúnebre era especialmente construído numa sala esconsa das agências funerárias. Se fosse um general, prepara­vam o cadáver com espada na cinta e bigode levantado a ferro, acaso o morto usasse bigode. Quase sempre alguém discursava, e a assistência amontoava-se, silenciosa e transmudada, junto da sepultura. A tradição do panegírico atraía as pessoas, e o orador realçava as excelências do falecido nas duas esferas, a militar e a espiritual, refazendo o tecido das lembranças, que retirava a personagem das misérias da insignificância, omitin­do-lhe as fraquezas com a utilização de expedientes estilísti­cos.

Perto do cemitério, mesmo à entrada do bairro de casas económicas, num arruinado prédio de bico, existiu, em tem­pos, uma taberna, em cuja porta se manteve, anos a fio, um banco corrido, pregado ao solo. Os acompanhantes dos fune­rais iam lá beber, rir, jogar à sueca ou ao dominó, e apalpar a viúva do proprietário, um galego pró-Franco, de feições áspe­ras, voz ríspida e gesto acintoso. A especialidade da casa, em matéria de bebidas, era o carrascão e o licor de bolota. As mu­lheres gostavam muito do licor de bolota.

Havia enterros com música. Nesses enterros, as carretas eram puxadas por quatro e, dependente dos luxos, seis cava­los. Os cavalos eram ajaezados de veludo negro, apunham­-lhes enormes antolhos, debruados a oiro, que os impediam de ver para os lados e os enervavam até ao desassossego. Nas cabeças levavam adereços que pareciam espanadores. Os cas­cos batiam compassados no solo, o som perturbava. A música era pesada, solene e trágica, tocada por bandas da GNR ou contratadas em sociedades filarmónicas.

Jesuina dizia:

“Todos querem ir para o céu, mas ninguém quer morrer."

 

Jesuina alugara a casa quando ainda havia pinheiros na meseta onde hoje se erguem três pesados e feios edifícios da administração pública. Entrara e nunca de lá saíra. Entrara vistosa, opulenta, alta, uma beleza fulgurante; mantivera-se imponente, porém o passar dos anos fizera da sua boca, outro­ra fértil e fremente, um traço rígido, trémulo e ressequido. Mas falava forte e feio, quando necessário. Pelos vistos, era sempre necessário.

Enviuvara nova, embalava no interior de si mesma a mor­dacidade que lhe permitia vencer eventuais ataques de desam­paro, e nunca mais fora inflamada pelo desejo de conhecer homem, talvez por contrição, por temor ou por cansaço. Contrariava essas suposições: "Foi por vingança. Às vezes, sobretudo no tempo do calor, apetecia-me homem. Eles bem olhavam para mim, aluados, e eu sentia umas estrelinhas cá em baixo, até chegava a ser apanhada por tonturas. Mas homem em cima de mim, a desfrutar-me, nunca mais!" Olhava em seu redor, os olhos apertavam-se-lhe: "Sei umas maneiras de ficar feliz.»

No atrevimento, na imodéstia, na astúcia, na sabedoria e na dissimulação ninguém se lhe assemelhava. Se tinha o cora­ção cheio de lágrimas, logo o escondia com a eloquência sim­pática e melancólica de quem encontrava na presença das amigas a consolação ao pé do infortúnio.

Não tinha filhos, tomava conta dos filhos das outras: pu­tas, varinas, costureiras que trabalhavam no Colégio Nun'ÂI­vares Pereira, e até ciganas. As ciganas não confiavam os filhos a mais ninguém a não ser a Jesuina. Houve uma cigana que foi à vida durante três meses, os meses das feiras, e deixou dois fi­lhos à sua guarda. Jesuina afeiçoou-se aos rapazes, e chegaram-lhe as lágrimas aos olhos quando a cigana os foi buscar para os levar para o Alentejo.

Para impor uma ordem condescendente na barulheira infernal que faziam os miúdos, rapazes e raparigas, às vezes doze, treze, catorze, Jesuina soltava turvos palavrões, e aplica­va algumas palmadas nas nádegas dos mais recalcitrantes. Entre ela e as crianças existia uma relação defeituosa: talvez as amasse; de certeza que as não compreendia. A casa era térrea: duas janelas para a rua, um corredor imenso, duas despensas, quatro quartos e uma sala que nunca mais acabava. Era ali que todos se reuniam, brincavam, discutiam, escutavam histórias. Essa sala dispunha de enorme janela rectangular, e de uma varanda com escadas de incêndio, a um canto da qual existia uma pia sanitária, exalando fedores; no outro canto, um pe­queno duche. As escadas terminavam numa estreita plataforma de chão solto, por onde as pessoas caminhavam com prudên­cia, e que continuava num terreno baldio, cheio de entulho, de restos de comida, de gatos mortos, de gaivotas e de outras aves de mau agoiro, e de ratos que devoravam tudo o que era matéria comestível. Para lá desse terreno, que se decompunha num talude, havia pomares bem tratados, hortaliças, cenouras, nabos, alfaces: a quinta do Almargem, bem delimitada por cer­cas de arame farpado.

Ela começara a pagar um aluguer que lhe parecia razoá­vel; depois, na obediência a leis absurdas e iníquas, fora obri­gada a entregar ao senhorio uma importância exagerada. No final de cada mês, quando lhe enviava o dinheiro por mensa­geiro, acompanhava as notas de pragas medonhas, odientas, pérfidas e proveitosas: o senhorio definhara tanto, punido pela força de tanta maldição, que, actualmente, vegetava numa ca­deira de rodas. Impotente para se vingar da ganância, fuzilava o mensageiro com olhares fulminantes, como se estivesse no interior de uma vertigem.

"Puta que o pariu!», gritavaJesuina.

        Tinha um bom e belo par de mãos arcaicas, gostava de fazer croché, e quando insultava alguém que a desfeiteara ou de quem não gostava terminava assim:

"Só estou a pôr os pontos nos is.»

        Quando as crianças dormiam o sono da tarde, logo após o almoço, recebia as vizinhas com as quais compartia segredos, coscuvilhice e favores. Conversas animadas, picantes e impon­deráveis. Umas diziam que os maridos já as não procuravam havia meses; outras, que esta e aquela andavam metidas com o empregado da companhia de seguros. O construtor civil fora preso por fraude; o torneiro de metais, por abusar de uma miú­da. Tinham falta de alguma coisa, e algumas delas de tudo; porém, a maior era a falta de esperança. Todas falavam rápido, precipitado e matreiro. Todas, menos uma delas. Uma velha muito velha, envolta num enorme xaile de Vila do Conde, dor­mia regalada enquanto as outras conversavam. Nascera sem mãos; movia os cotos com destreza, fazia a vida normal de toda a gente. Um dos cotos, no local destinado ao polegar, ex­punha uma espécie de gancho com unha, medonho. Quando a sessão terminava ela despertava sem sobressalto nem espanto, e rematava continuamente do mesmo modo:

«Tal e qual.»

 

O dia que lhe dava maior prazer era a segunda-feira. Uma das vizinhas contava-lhe, minuciosamente, os filmes que vira no dia anterior. Não só os dois habituais, mas também os documentários de actualidades, os desenhos animados e as apresentações. As apresentações eram as partes mais atractivas dos filmes que seriam exibidos no domingo seguinte. O Salão Portugal projectava, todos os domingos, duas longas-metra­gens e o resto.

Durante a narração o silêncio era absoluto. Os rapazes e as raparigas faziam roda e nenhum pormenor lhes era suprimi­do. Pelo contrário: quando as cenas de amor deixavam o arrojo numa ambiguidade assexuada, Jesuina intervinha para adicio­nar-lhes improvisos maliciosos. «Despiram-se, ficaram nus, e começaram logo na funçanata. Um em cima do outro, como manda a lei.» Ria alto e longo divertindo-se com o embaraço das vizinhas e o gozo mordaz da plateia adolescente. Quando algum dos garotos alterava a calma requerida pela narração, o castigo era cruel e implacável: palmatoadas nas mãos, seguidas de impiedosos puxões de orelhas. Se choravam apanhavam mais.

Era uma mulher inundada de felicidade quando contava episódios do tempo em que era nova, mas, sobretudo, quando descrevia o que fora o seu corpo:

«Mamas fortes, grandes e rijas. Pernas bem feitas e ancas largas, ancas parideiras. A minha vaidade estava no pente; tinha um pente mesmo em forma de parra que me chagava ao umbigo. Com os anos, vamos ficando sem pêlo. É o meu maior desgosto, estar quase sem pêlo no sítio onde eu mais gostava que ele se conservasse.»

As outras entreolhavam-se; ela voltava ao mesmo: «Vocês, se vissem, até ficavam de boca aberta! Era cá um pente!»

        «Um pente não é para a gente se pentear?», perguntara um dos rapazes.

«Este pente de que falo não serve para isso.»

«Então, que pente é?»

«É um pente que as mulheres têm entre as pernas, e não adianto mais nada.»

«Entre as pernas?»

«As mulheres têm entre as pernas um mistério que os homens em vão querem descobrir.»

«Um mistério?»

        Os seus olhos eram um argumento de imprevisível malí­cia, e falava como se estivesse a confiar aos circunstantes uma história secreta e proibida. Divertia-se com a perplexidade das vizinhas e com o espanto ladino da miudagem. Rematou:

«Em cada mulher há um mistério por descobrir.»

 

Aos sábados e aos domingos, longas e longas horas sozi­nha. Andava pela casa, de um para o outro lado, arrumando o que estava arrumado, limpando o que estava limpo. Nesses taciturnos furores, bebia copos de vinho tinto, ficava toldada e deitava-se a dormir: ressonava e a vizinhança escutava e co­mentava. Animava-se mais quando havia enterros. Se fosse mais do que um, então, preenchia com curiosidade a sua tene­brosa inquietação. Não saía da janela que dava para o largo, e benzia-se à passagem das carretas. Os acompanhantes obser­vavam aquela mulher tão volumosa, cuja cabeça rapace e ásperas feições exprimiam beligerância.

A partir de certa altura, inspirada, certamente, na experiên­cia alheia, começou a emprestar dinheiro a juros, a menos de 5 por cento, a fim de competir com as vizinhas. Começara a rezar com força a Santo Onofre, jogara nas rifas durante sema­nas a fio, e na lotaria uma vez por mês nos meses de trinta e um dias. O benevolente santo ouvira-lhe as preces. Algum tempo após este fervor nas orações, saíra-lhe algum dinheiro no número eleito, 69, e aplicara-o em empréstimos. Adquirira uma televisão para ver séries de amor, e pouco mais. Notícias, escassas; interessava-se mais por aquelas que as vizinhas lhe traziam. Também costumava conversar um pouco com o em­pregado do talho e quase não falava com o rapaz da mercearia que lhe trazia as compras pedidas num rol semanal.

Jesuina adquiria, semanalmente, um fascículo ilustrado de um romance, A Volta ao Mundo, que contava as peripécias aventurosas de quatro rapazes, Jacques, Francinet, Bafoulos e Atar. Lia em voz alta, não só para nós, como também para as visitas de segunda-feira, logo após escutar a narração dos fil­mes. Contudo, o seu grande momento era a infatigável leitura a que procedia de Amor de Perdição. Os seus olhos extravia­vam-se nas páginas do livro, ignorava a distância que havia entre o divino e o humano, entre a realidade e a ficção, e co­movia-se com as cenas mais lancinantes do drama de Simão Botelho.

Lera o romance quantas vezes? Nem ela sabia. Em voz alta, em voz baixa, de dia e à noite, na insondável insônia e na falível alegria, Amor de Perdição era o livro que lhe prometia o infinito da perturbação mais doce, a forma mais perfeita da emoção absoluta.

Ocasionalmente, quando o escuro dos pensamentos mais dolorosos a impelia para prolongados silêncios, as vizinhas entreolhavam-se, respeitavam-lhe a deplorável ansiedade até que pediam:

«Jesuina, lê o livro.»

        Ela estremecia, emergia desse oceano antigo habitado por convulsas recordações, suspirava, permanecia largos momen­tos a recompor-se, reentrava na pobre realidade, abria o roman­ce em qualquer parte, lia devagar, mas lia sem prestar atenção: palavras, frases que repetia, ideias longe, sabia-se lá onde.

 

«Acredita em Deus?»

« «Pergunta-me isso daqui a três dias.»

A amiga não perguntou e Jesuina nunca respondeu. Se mais nenhuma virtude para se louvar não houvesse, esta, a da improbabilidade das certezas, na prudência de Jesuina, era de aplaudir com entusiasmo.

Gostava de palavras, de descobrir e de decorar palavras no dicionário. Adquirira um; autor: Francisco Torrinha - um montão de palavras por vinte escudos, na Feira da Ladra, pou­co tempo antes de se remeter à reclusão. E, num dos quartos, conservava pilhas e pilhas de jornais, cujas secções de palavras cruzadas estavam totalmente preenchidas com as suas claras e resolutas maiúsculas. Nas horas de sossego, quando as crian­ças dormiam a sesta, embrenhava-se naquela floresta de papel e consultava jornais amarelos, que exalavam um cheiro pecu­liar, sorria ou entristecia com as notícias que reavivavam si­tuações delicadas ou agressivas. Apertara os jornais em montes rigorosos. Nuns largos rectângulos que tinham sido azuis e, agora, desbotados, contraíam manchas diversas e sujas, assina­lara os meses e os anos da publicação.

Uma das suas activas curiosidades era ler e reler a secção de necrologia desses jornais antigos. Um baú de mortos desco­nhecidos cuja história ela tentava adivinhar na leitura das pe­quenas notícias que enalteciam as excelsas qualidades dos ilustres defuntos. Decorara os nomes mais pomposos de al­guns deles, que lhe suscitavam milhares de imagens, num labi­rinto insensato que ela construíra na vã tentativa de amansar a aspereza dos dias solitários.

Forrara parte de uma das paredes com imagens recortadas de revistas, representando paisagens de montanha, de praia, de cidades exóticas, de gente diferente a caminhar nas ruas. De tempos a tempos renovava-as. Gostava de contemplar as imagens e, aos seus olhos, elas adquiriam vida, movimento e sons como se fossem objectos verbais e tacteáveis.

Em outro quarto havia um espelho biselado, de tamanho apreciável. Em frente, um reposteiro pesado, que rojava o pavimento e cobria um desvão húmido. Despia-se, nua, olha­va-se rodando sobre si própria, parava um pouco, fixava com minúcia a erosão que o passar dos anos fizera no seu corpo outrora esbelto, sensual e oferente. Detinha o olhar, por mo­mentos, sentia-se supliciada, descobria um outro sinal de ve­lhice, peles, carnes flácidas, o braço seco e rugoso, as coxas moles e sem viço. Ficava num estado de grande sobressalto, mas persistia em vigiar a lenta punição infligida pelas depre­dações.

Na noite anterior a um desses funestos dias sonhara com homens, não com um: vários - dois, três, que a possuíam com furor, zelo e brutalidade. A cena repetiu-se, e ela reparara que os rostos desses homens brutais e sedentos semelhavam-se aos rostos de alguns dos rapazes de quem tomava conta. Um deles era parecido com aquele que sofrera de poliomielite, e andava de cadeira de rodas, motor a dois tempos, congeminada e construída pelo pai, mecânico de automóveis e porteiro no estádio do Benfica em domingos de futebol. Despertou suada e ofegante. E envergonhada, não muito, um pouco envergo­nhada pela natureza do sonho. Talvez até sentisse um certo grau de felicidade.

Entregara-se à sombria mágoa de uma solidão sem remé­dio. Porém, não se confinava, apenas, a si própria, e não se retraía com ninguém. Assomava à janela, imaginava o que fa­ziam, pensavam ou procediam os transeuntes; ou, então, no imenso rectângulo das traseiras, de onde se divisavam as terras baldias, ficava presa aos pensamentos e às recordações. Não alimentava sentimentos perdulários e irritava-a a facilidade com que muita gente esbanjava as emoções, sem pudor nem discrição.

«Não estou enterrada em vida», dizia. «Sei o que se passa lá fora, e não gosto nada do que se passa lá fora.»

Ligava a televisão, mas ficava fora daquele mundo. Via sem ver, se assim me posso exprimir. Dizia, referindo-se à violência do mundo, às guerras, às tragédias naturais e às pro­vocadas:

«Esta pouca-vergonha nunca mais acaba?!»

        Para ela, tudo era muito claro e compreensível: de um lado, o que não gostava; do outro, o que gostava. E como gostava de muito poucas coisas, tudo se lhe tornava fácil.

Quando a solidão excedia os limites do suportável, sobre­tudo aos sábados e aos domingos, sem jovens e sem vizinhas, ligava ao acaso um número no telefone e falava para um inter­locutor imaginário, pois o aparelho não estava ligado. Adquiri­ra-o, como pagamento, das mãos de uma cigana, e, quando o utilizava, o rosto iluminava-se-lhe de alegria, como se obtives­se um conhecimento imediato do amor, da liberdade, da felici­dade de viver e de ser.

Certa ocasião, a casa foi invadida por centenas e centenas de pulgas. O quarto dos jornais, esse, parecia polvilhado de pontos negros e moventes. Jesuina não reconheceu, naquele amontoado de papel velho, a origem da invasão.

«As pulgas foram os ciganos que as trouxeram do Alentejo! Antigamente, não havia por aqui nem uma pulga! Isto era tudo muito limpinho, graças a Deus!»

Desinfectou a casa mas não se desfez dos jornais: mudou­-os de um para o outro lado do quarto, alterou a posição dos volumes. No fim do mês, as mães pagavam-lhe com dinheiro ou vitualhas. As ciganas, eventualmente, com objectos de prata ou ouro, artesanato de marfim, relógios que ela vendia, sem a mínima demora, ao prestamista, chamado de urgência lá a casa. Jesuina apenas tinha dois temores: do que desconhecia e da polícia.

Dizia-se que o anterior locatário da casa, um colonialista expulso de Angola por crime de sangue, não suportara a ideia de nunca mais ver os grandes espaços e, incapaz de se adaptar à lenta e abafada vida na metrópole, enforcara-se num traveja­mento. Dizia-se que a sua alma penada vagueava pelo corre­dor e pelos quartos e que só algumas pessoas, não todas, algumas, ouviam os sons roucos que o fantasma soltava, sabe­-se lá porquê? Jesuina nunca ouvira nada de extraordinário. Todavia, às sextas-feiras, para exorcizar o morto, empunhava uma chave enorme, dependurava nela um sapato, pelo interior do calcanhar, e murmurava rezas negras. A sua fé, porém, ia, total, para uma pedra polida, de reduzidas dimensões, com uma forma de dois corações unidos. Achara-a, adolescente, na praia da Trafaria. A pedra apresentava duas cores, uma em cada coração: roxa e vermelha. Jesuina acreditava que, se os seus pedidos fossem aceites, as cores da pedra mudavam de um lado para o outro.

Aproxima-se da janela rectangular das traseiras. Passa uma nuvem leve e alva, e divisa-se a lua da tarde. Um bando de pombos voa em círculo. Ouve-se o assobio prolongado e com modulações do dono dos pombos. Estes cortam o espaço no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, afastam-se uns dos outros e logo se reagrupam, harmoniosamente, dirigindo­-se para o pombal.

«Casa de pombos, casa de tombos», murmura Jesuina.

 

«É muito natural que não gostem de mim», disse Jesuina. «Mas pago-lhes com a mesma moeda.»

Na verdade, apenas tolerava as vizinhas porque mensageiras de novidades. No fundo, causavam-lhe desgosto e inspiravam-lhe desprezo e até repugnância; mas evitava, astuciosamente, qual­quer acto irreflectido que pudesse prejudicar a natureza peculiar dessa relação.

«Devia sair um bocadinho.»

«Apanhar um pouco de ar.»

«Só lhe fazia bem.»

«Até lhe dava outras cores.»

«Está sempre muito macilenta.»

Por vezes elas mergulhavam num profundo, febril e doen­tio silêncio, como se houvessem combinado dar-se ao luxo de pensar na vida, sobre a qual, aliás, não alimentavam grandes ilusões. Agora, envolve-as uma penumbra amarela e suja e entreolham-se com mal dissimulada acrimónia.

«O meu marido é um traste», diz uma delas.

A penumbra oculta-lhe os traços fisionómicos, mas a tona­lidade da voz faz adivinhar a boca torcida, depreciativa, odienta, descomposta. Falam dos maridos que têm e dos que morreram.

Falam sem manifestar sentimentos de perda ou de compaixão. Falam sem pudor de coisas íntimas, «O meu Jaime nunca se esquece de passar a perna por cima de mim», com risos abafa­dos ou com expressa amargura, «Há anos que não tenho um contentamento, há anos». Falam como se convocassem segre­dos ou episódios só por cada uma delas vividos ou conheci­dos. E também falam das cores e dos odores de quando eram novas, e com declarada animosidade das raparigas que mos­tram o umbigo e beijam os rapazes no meio da rua.

«Como era o seu homem?», perguntou uma, e todas elas ergueram a cabeça, com indiscriminada cupidez de sensações, e fitaram-na detidamente, tentando adivinhar a explicação que se escondia por detrás daquele orgulho cortante.

O silêncio foi tão prolongado, o ar absorto de Jesuina tão profundo que as outras admitiram que ela não escutara ou não percebera muito bem a pergunta.

«Como era ele, o seu marido?»

«Foi há muito tempo...»

Para surpresa delas, Jesuina não dava sinais de desconten­tamento com a pergunta ou com a aparente impertinência da repetição. Até pareceu que pelos seus lábios murchos perpas­sara a luz breve de um sorriso. Ouviu-se, nítido, o rechinar das rodas de um eléctrico nos carris. Em certas horas do dia os ruí­dos, por mais leves que fossem, eram sentidos naquela zona do bairro: o rumor das árvores, a ronca surda dos vapores, o vento. De súbito, na rua, alguém soltou um grito:

«Mataram o Aires!»

        O grito atraiu as atenções. Jesuina, hábil em responder ao que só lhe convinha, dominava também a arte de se servir do silêncio para manobrar a ingénua confiança de quem com ela convivia.

«Quem matou o Aires está metido num grande sarilho», disse ela, dirigindo-se a todas, mas fitando apenas a muito mais velha, aquela que usava xaile de Vila do Conde e concluía as frases com um convincente «Tal e qual». As mulheres e as crian­ças saíram precipitadamente. Jesuina encolheu os ombros e sentou-se junto da única mulher com a qual podia conversar de uma forma que nunca se lhe tornava penosa, e que era, também, a única pessoa em quem confiava. Nada disseram uma à outra. Há muitas coisas que se não dizem, ou só se po­dem dizer através do silêncio ou do olhar.

A amiga chamava-se Armelinda, não Ermelinda - Arme­linda, e a idade ensinara-a a nunca alterar substancialmente os humores, assim como a saber dominar as emoções sem exte­riorizar o mais leve sinal de esforço. Aconchegou-se mais no xaile. Enquanto aguardava notícias sobre o extraordinário acontecimento, Jesuina foi contando o número de letras grossas contidas num aviso da junta de freguesia, aposto na fronta­ria do prédio em frente: chegou a contar catorze, as outras eram demasiado pequenas para as divisar. Depois, o número de transeuntes; a seguir, os azulejos do edifício anexo, após o que enumerou os botões dos casacos e das blusas daquelas pessoas que conseguia ver na rua, conversando animadamen­te. Somou tudo, com minúcia: oitenta e dois objectos.

O Aires era um cigano novo, esbelto e bexigoso. Vestia a rigor, fatos de bom corte, gravatas de seda, sapatos enverniza­dos qualquer que fosse a cor, e chapéu de feltro. Envolvia-se com mulheres, era esmerado no snooker, passava as manhãs a dormir, as tardes na leitaria do senhor Garrido e as noites a jogar ou a frequentar bordéis no Bairro Alto e pelos bares do Cais do Sodré.

«Teria sido algum marido enganado?», perguntou Arme­linda.

Voz gutural, acentuando as fricativas, olhos fixados em Jesuina, em muda advertência, como se lhe quisesse fazer en­tender que era conhecedora de um segredo terrível, a que a morte do cigano atribuía uma espessura inquietante.

        Com prudente cautela, mas com notória intenção, reno­vou a pergunta há pouco formulada pelas outras:

        "Como era ele, o teu marido?»

 

Estava ali sentada, numa impecável compostura, serena e digna, mas havia nela qualquer coisa de terrivelmente errado. Jesuina nutria uma obstinada preocupação com ser diferente, não considerava que o seu modo de pensar fosse equivocado, apreciava saber muito das pessoas que conhecia, e pouquíssimo revelava do seu passado. Nos dias de calor ar­dente arrastava uma selha para junto da varanda, esperava que o sol aquecesse a água e tomava banho. Observava os seios, as coxas, o baixo-ventre; percorria com as mãos as zonas do corpo, vagarosas nas genitais, para estar consigo mesma, só e cindida, plenitude do único. Durante anos construíram-se histórias a seu respeito: fugira de qualquer acto nefando ocorrido lá lon­ge, na província; fizera e acontecera; matara e esfolara. Aos boatos opunha o desdém e a reserva da sua reclusão. Admitia­-se, inclusive, que o seu nome verdadeiro não seriaJesuina.

"Mataram o Aires na mata de Monsanto!»

        A exclamação não esgotava as interpretações possíveis do assombroso facto. Aires fora encontrado deitado de bruços, golpeado na jugular e com marcas de espancamento pelo cor­po. A polícia começou a fazer perguntas sem alvoroço e com indisfarçável incúria. Não era segredo para ninguém que a polícia detestava ciganos, pretos, homossexuais e comunistas. Era muito incómodo para os agentes reconhecer-se que havia agentes comunistas, homossexuais e pretos; ciganos, nem um - afirmavam com regozijada consciência.

Sussurrou-se, então, que o Aires não seria tão homem quanto apregoava, e que fora assassinado por um arrebenta. Concebeu-se, também, a sua morte como vingança de ultrajes marcantes entre outros ciganos. Ou que as visitas periódicas às prostitutas da zona, das quais ele se servia sem pagar, haviam terminado com um ajuste de contas por elas todas combinado. Dívidas de jogo, caso passional, vingança, a verdade é que o assunto perdeu interesse, censuras, aprovações ou indiferença.

Os dias escoavam-se morosos e macios. Quando se per­guntava sobre o caso da morte do Aires, a resposta amparava­-se numa cuidadosa ambiguidade: está entregue à polícia. E nada demovia a inércia acinzentada da investigação. Nem os protes­tos da família, nem a infatigável lamentação das mulheres, jun­to da esquadra e da sede da Judiciária.

No entanto, a atmosfera compacta e densa, longe de pre­judicar os adolescentes só os beneficiou: a atenção e os cuida­dos que lhes eram dispensados foram negligenciados, e eles correram pelas ruas e iam ver os cartazes dos cinemas, copian­do e decorando os nomes dos artistas. Depois, atribuíam a cada um deles, consoante as características e o temperamento pessoais, os nomes dos actores que mais os tinham impressio­nado: Humphrey Bogart, William Holden, Clark Gable, Gary Cooper, ete. No grupo só havia duas raparigas e baptizaram­-nas: Ava Gardner e Lauren Bacall.

Nesses dias de liberdade aprendiam a fixar as coisas, como insistentemente lhes aconselhara Jesuina. Fixar as coisas e as emoções que desencadeavam. As coisas perdem-se com o tem­po, dizia, mas as emoções, essas, subsistem. O que conservamos de um lugar, dizia, são as emoções que esse lugar em nós des­pertou, e os lugares que recordamos estão cheios da maior de todas as emoções perdidas: a da juventude.

Eles não compreendiam, claramente, esses argumentos sumptuosos, procedentes de antiga sabedoria. Contudo, pres­sentiam ser tão importantes como a memória infinita daqueles sítios cordiais e cheios de afecto.

 

Saíram de casa de Jesuina e dirigiram-se para leste. Gosta­vam de percorrer aquele caminho que os conduzia a uma colina em cujos flancos se estendia grande pomar, protegido por um renque de piteiras. As piteiras estavam cheias de figos. O terreno estava pejado de flores lindíssimas. Corriam, atrasa­vam um pouco os passos, voltavam a correr. Preparavam-se para comer algumas peças de fruta. Antes, observaram, cuida­dosamente, as pêras e as maçãs, não se desse o caso de o pro­prietário haver lançado sobre elas esguichos de jalapa, líquido incolor e sem cheiro que provocava diarreia.

Na vertente que formava uma meseta, sentaram-se e con­templaram o rio. Cuidadosamente, extraíram do renque de piteiras alguns figos. Os figos deixavam escorrer uma baba ama­relada e viscosa. As piteiras exalavam um odor adocicado. Gary Cooper trazia consigo uma navalha: abriu figos, descascou­-os, ofereceu-os aos amigos. Comeram-nos com gula. Naquela parte do bairro, parecia que o tempo se suspendia. O mundo fazia ali um eixo sobre o qual tudo girava: o silêncio, a liberda­de, a felicidade. Humphrey Bogart dirigiu-se a Gary Cooper:

"Nunca hei-de sair daqui.»

Lauren Bacall, que os seguira, comentou:

«Eu hei-de. Viajarei num barco parecido com aquele.» Apontou um transatlântico que abandonava a foz do Tejo.

Riam e dirigiam piadas uns aos outros. Quando o transa­tlântico desapareceu calaram-se e mantiveram-se assim duran­te muito tempo. O sol declinava. Os três exprimiam intensa felicidade.

'Já vi a velha nua», disse Gary Cooper. ,Já a vi nua muitas vezes.»

«Mentiroso», disse Humphrey Bogart.

Lauren Bacall ria, ria, ria. Ergueram-se. Preparavam-se para ladear as piteiras e assaltar o pomar. Ouviu-se o ladrar de um cão. Estacaram. Depois, soou o clarim de um quartel.

«Cinco horas», disse Gary Cooper.

Olhou para as pernas dela. Ela, ao tentar subir um murete e passar por uma frecha aberta no renque de piteiras, inclinara­-se tanto que se lhe viam as calcinhas.

        «A velha teria sido como tu alguma vez?», perguntou. «Ago­ra, até mete nojo olhar para ela.»

        A rapariga fitou-o, surpreendida com o aparente gracejo e com o prazenteiro semblante dele:

        «Quem vê pernas vê canelas; merda para quem olha para elas.»

        ,Tenho pena de que tivessem matado o Aires», disse Humphrey Bogart.

«O Aires era um porco», disse Lauren Bacall.

«Um porco?»

«Sim. E não digo mais nada. Um porco. Inda bem que o mataram.»

Olharam-na atentamente. Ela susteve e desafiou o olhar de­les. Na sua voz havia algo de indecoroso exagero, pensaram. Se desejava encobrir algum segredo infame fizera-o da pior maneira. Lançara suspeitas, certamente infundadas, sobre o cigano assassinado, de quem tanto Humphrey Bogart quanto Gary Cooper entretinham amáveis lembranças. Oferecera-lhes cigarros, dera-lhes algum dinheiro em troca de pequenos re­cados, ensinara-lhes coisas de bilhar, de mulheres, de sexo e de polícias. No arbitrário estado em que a relação entre as pes­soas se encontrava, advertira-os de que se devia esquecer agra­vos, momentaneamente, para, mais tarde, se tirar proveitos e vinganças. Aires demonstrara-lhes, enfim, o poder da astúcia e as virtudes da manha.

«O que é que ele te fez, afinal?», perguntou Coopero «Apalpou-me o peito e meteu-me as mãos pelas pernas acima, uma vez.»

«Uma vez, quando?»

,No carro dele.»

,Ah! Meteste-te no carro dele!»

«Sabia lá o que ele queria fazer?»

«E fez?»

«Fez o quê?»

«Aquilo.»

«Aquilo? Não; nada disso. Fugi.»

«Ora, estás farta de mostrar as pernas a quem te ofereça qualquer coisa.»

«Nunca fiz isso!»

«Fizeste. Nós sabemos», disse Bogart.

Ela começou a chorar e a soluçar baixinho.

,Não dizemos nada a ninguém, se também nos mostrares», disse Bogart.

,Não dizem?»

«Não dizemos.»

,Nem aquilo de mim dentro do carro do Aires?»

,Nem isso.»

«Só mostro um bocadinho.»

Desceu do murete, sem deixar de os encarar. A partir da­quele momento tinha algo contra eles. Eu, sem ter já que esperar, olho para o céu, partida extrema, misteriosa via: as bicicletas parecem resplandecer, brilhantes como risos, rodam e afastam­-se docemente desta fúria.

 

Ele vai a subir a calçada e passa em frente de um dos quar­téis, Ambiciona ser militar mas sabe muito bem que essa ambição é impossível de realizar-se. Receia tudo, tem medo de tudo, como se vivesse no interior de um vasto círculo de inimi­gos invisíveis. É baixo, espavorido, retraído, vigia a própria som­bra, fala sempre baixinho, Sabe onde estão os amigos e caminha célere ao seu encontro. São os únicos, aqueles três, que não zombam com a sua cobardia, que não troçam da sua timidez, que nunca imitaram a sua voz distorcida, gaga e velada, que o não hostilizam. Talvez procure neles uma ternura perdida.

Aceitou, resignado e triste, que lhe chamem Mickey Rooney. Encontram-se, muitas vezes, no abandono daquela colina aco­lhedora, que lhes permite imaginar e inventar - mundo ul­traterreno de onde vêem os navios sair do Tejo, os aviões aproximar-se do aeroporto, e experimenta um prazer anónimo ao sentir o odor das piteiras misturado com o perfume do pomar.

De tempos a tempos lia, em voz alta, páginas da última entrega do folhetim A Volta ao Mundo. As mulheres e os rapa­zes escutavam-no, às vezes com emoção. Quando lia em voz alta, a voz saía-lhe quase límpida, e não gaguejava.

«Como o Tristão da Silva», dizia Armelinda. «Lembram-se do Tristão da Silva, aquele cantor que canta 'Nem às paredes confesso'?, sabem quem é? É gago a falar, mas a cantar é um rouxinol.»

No local onde a colina forma um estreito cotovelo que dá passagem para a meseta estacou. Lauren Bacall cumpria o pro­metido: erguera as saias, puxara um dos lados das calcinhas e mostrava aos seus amigos parte do sexo coberto de curtos e esparsos pêlos castanho-claros. Mickey Rooney não se mexeu; quase nem respirava. Encolhera-se não só para não ser visto, mas, sobretudo, para examinar melhor as pernas e as partes que Lauren Bacall expunha. A rapariga olhava de um lado para o outro, receando ser surpreendida por alguém desconhecido. Baixou as saias.

«Só mais um bocadinho», pediu Gary Cooper.

Ela cometera um acto tão alheio aos seus hábitos que co­rou. Rooney sentiu como sua a vergonha de Lauren. Algumas vezes, pela vida fora, recordaria a cena, que lhe garantia uma inexplicável sensação de doçura e de encantamento. Mas na­quele instante apeteceu-lhe chorar. Sentara-se no solo poeirento, mergulhado numa melancolia sem fim. Lauren concedera-lhes um prémio que não mereciam. Não se considerava um intruso. Experimentava o sentimento apaziguador de que fora ele o único a participar naquela experiência partilhada; os outros, não: estavam a mais. Ele sabia exactamente a grandeza da oferta; os outros, não: impelia-os a grosseria e a vulgaridade. Ele sentia­-se mais real e muito mais próximo de uma imagem sagrada que se movia sozinha, e em cujo abismo antecipado havia algo   de mais profundo.

«Está aí alguém?»

Levantara-se e fizera ruído; a voz de Lauren Bacall revela­va inquietação.

..Sou eu. Cheguei agora.»

Explicação tola, manifestamente uma forma medíocre de afastar possíveis suspeitas da parte dos outros. A sua existência seria sempre assim: marcada por uma sucessão de pormenores mínimos, de timidez, de acanhamento e de omissões. Aproxi­maram-se dele. Teve o sentimento confuso de que cometera um pecado. Preferiria nada ter visto. Lauren fixou-o com insistência. Procurava induzir do gesto mais insignificante, da con­tracção mais diminuta a confissão muda de que Mickey Rooney assistira a tudo. Num ápice, sustentando o olhar dela, Rooney provou os sentimentos que nascem do contacto com os outros: rancor, ciúme, amor, ódio, despeito, desamparo e carinho. Os olhos humedeceram-se-lhe, mas ocultou dos amigos essa fraqueza momentânea.

«Cheguei agora. Vinha ter com vocês.»

Ninguém conseguia disfarçar a atrapalhação. Aparentando indiferença, moveu-se um pouco para o lado, ficou junto de Bogart e tornou a falar:

«Já se sabe quem matou o Aires. Foi outro cigano, à faca­da, com faca de mato, daquelas que têm serra. Ele tinha abusa­do da filha do outro. Uma rapariga mais ou menos da nossa idade, treze ou catorze anos. À facada, com faca de mato.»

De repente houve um clamor e ao ar parado na colina jun­tou-se o forte vento do rio. Redemoinhou e revolveu tudo. Fitaram o rio, cujas águas pareciam pesadas e lentas, volumo­sas e cor de chumbo. Nas ruas, transeuntes apressavam o pas­so, ligeiramente curvados, açoitava-os uma chuva fina e gélida, desciam escadas, atravessavam pátios, não paravam um instan­te sequer. Ouvia-se o raivoso rumor das copas das árvores, o odor da humidade sobrepunha-se ao habitualmente intenso perfume das flores do Jardim Botânico.

Os quatro haviam-se recolhido num recôncavo da colina, a que historiadores zelosos garantiam, com ardente sinceridade, ser o derradeiro vestígio de um templo consagrado aos adora­dores do sol. A chuva, agora, caía a grossas bátegas. Acocora­ram-se próximo de uma parte toscamente escavada na rocha, semelhante a um retábulo aberto para levante. O clamor tor­nou-se mais profundo. Quase nada se divisava a uma distância de três metros. O som de cornetas dos quartéis pareceu-lhes uma fanfarra de trombetas arcangélicas, e a fúria da intempérie deu-lhes a sensação de que anunciava o fim do mundo.

 

Há palavras claras e palavras escuras», disse Jesuina, al­« guns dias depois da tempestade que assolara a cidade, destelhara casas e derrubara muros e árvores no bairro. "Claras, por exemplo, são estas: laranja, mar, Itália, rapariga, bússola, ramagem, diamante. E escuras: medo, rancor, Londres, menti­ra, queda, paragem, cavernoso.»

Estava muito contente. Tão contente que puxava pela me­mória a fim de se lembrar de outras palavras correspondentes às diferenças que as separavam.

«E há cores para outras palavras?»

        "Sim. Creio que sim. Mas ainda não me dediquei a esse es­tudo. Um dia destes talvez consagre algumas horas a analisar o assunto nos meus jornais.»

Estava tão feliz que pediu a quem quisesse, de entre eles, lhe contasse como estava o resto do bairro, e a cidade, acaso tivessem ido para lá do horizonte transponível. Sentam-se em seu redor. Jesuina costuma afirmar que só sentadas as pessoas podem entender as coisas. Diz: <Já viram alguém perceber o mundo enquanto anda ou está de pé?»

Há muito tempo que eles inventam coisas. Sabem que agradam à mulher reclusa. Desejam manter-se leais àquilo que ela própria concebe serem os sítios cuja lembrança, remota e turva, se lhe reaviva em outras e inesperadas imagens. É uma forma de a honrar com palavras que contam histórias.

Ela só conhece o que deixou para trás, há longuíssimos anos. A cidade é outra, o destino dos seus habitantes alterou­-se como uma seta desferida que mudou de rumo devido a fac­tores atrabiliários. Idealiza uma cidade ordenada, claro que com míseras lágrimas, mas também com irreprimíveis alegrias. E fantasia as ruas que conheceu antes de se recolher definitivamente na clausura da sua casa térrea.

O mais vertiginoso intrujão é Mickey Rooney. A sua timi­dez desaparece quando se dedica a forjar circunstâncias. Atri­bui uma grandeza heróica a episódios inexistentes e conta histórias duas e três vezes de maneira sempre diferente. Nem Jesuina nem nenhum outro dos ouvintes se aborrece com isso. A dicção das palavras torna-se-lhe fluida. A gaguez abandona­-o. Mickey diz que as pessoas, agora, se vestem de maneira       diferente das que residem fora do bairro apertado e lacónico.

«E castelos?», pergunta Jesuina.

«Castelos?!»

«Sim, castelos!»

Entreolham-se. As vizinhas contraem-se, expectantes. São percorridas por um mundo de emoções. Não querem quebrar aqueles cintilantes momentos. Mickey prossegue, observa as mulheres e os amigos. Entregam-se todos à vasta extravagância do fabulador. Os que sabem das artificiosas histórias deixam-se enredar pelas maravilhas que o narrador propõe. Mickey não pára. Aos poucos, começa a acreditar no que vai dizendo.

«Claro. Há um... dois castelos construídos mesmo à beira do Tejo, lá para Braço de Prata, parece-me.»

«Parece-te? Nunca lá foste?»

«Não. Mas contaram-me. Foi um funcionário dos correios que me contou.»

        Um universo de extremos, no qual tudo é possível. Mi­ckey Rooney prossegue:

        «Dois castelos quase iguais àqueles que a gente vê nos desenhos animados.»

Impõem-se-lhes imagens à maneira de Walt Disney, e che­ga a altura em que Mickey Rooney deixa de ser o contador para se converter no protagonista. E ele próprio vê-se no in­terior da história.

«E pássaros», diz ele.

«Pássaros?»

«Pássaros novos, como nunca antes vimos outros iguais.»

        Abre os braços:

«Pássaros com duas vezes este tamanho.»

        «Parecidos com águias?»

        «Muito maiores. Voam por cima dos castelos. São as senti­nelas dos castelos», diz ele.

        «Que grande aldrabice.»

        «Eu vi os pássaros no céu dos castelos. Um deles até poi­sou numa ameia, uma ameia igualzinha às do palácio real.»

«Há anos li, numa notícia d'O Século, que numa região da Alemanha haviam surgido, de repente, aves de grande porte, bandos de aves enormes», dizJesuina.

A atenção de todos fixa-se nas palavras de Jesuina. Gos­tam das histórias que ela conta, e nunca duvidam, por um ins­tante sequer, da sua veracidade, por muito extravagantes que sejam.

«Essas aves», continua, "ficaram malucas e começaram a ati­rar-se às pessoas, procurando picar-lhes os olhos. Isto é veeer­-daaa-deee.»

«E depois?»

«Assim como apareceram, assim se foram embora.» Pertencem àquela categoria de pessoas totalmente incapa­zes de subsistir sem sonhos. No mundo cabem a desordem, o esforço, o excesso e a concussão; ali, na casa de Jesuina, o so­nho ressurgia de cada vez que alguém contava uma história, uma façanha, uma conversa havida lá fora. Lá fora era o território do enigma e o fascínio do desconhecido.

«Ainda faz barulho, na cidade?»

«Faz. Cada vez mais. As pessoas deixaram de estar caladas.» «Antigamente, falava-se pouco. Não havia palavras com cor. Só havia uma cor escura», dizJesuina.

Estão nesta conversa nova e inocente que se transforma em outras adivinhações e encantamentos. Inunda-as uma es­pessa ventura. Tão espessa que quase não dão por um ruído inquietante provindo das traseiras. Correm para a janela rectan­gular e para a varanda que dá para o terreno baldio. Olham o céu, de onde vem o ruído, cada vez mais acentuado. Uma nuvem branca move-se com rapidez e aproxima-se do hori­zonte visual deles. A algazarra é medonha. Percebem que são aves brancas, um exuberante bando de aves brancas que se precipitam para o entulho, picando, esgaravatando, grasnando    de forma aterradora.

«Corvos», dizJesuina. «São corvos brancos.»

Tem os olhos muito abertos, como se conhecesse algo de terrível que a lembrava daquele pesadelo lúcido. Estremeceu, quando cerrou a janela e a parte envidraçada da varanda. Correu para a sala dos jornais, indicando a todos para que a seguissem:

        «Ajoelhem-se e rezem! Quem não sabe rezar, feche os olhos! O diabo soltou as almas penadas!»

        A casa estava sombria e lúgubre.

Foi por essa altura que se falou dos indecifráveis e intermi­náveis segredos da morte.

«Não se morre», disse Jesuina, «apenas se muda de lugar.» «E para que lugar vamos?»

«Aí é que está o mistério», disse Jesuina. «Creio que a nossa alma sai muito depressa do corpo, e mergulha na imensidão.»

«Que imensidão?»

«Aí é que está o mistério. Não se sabe se vai para a imensi­dão da luz ou para a imensidão das trevas. Morrer é sempre ir para outro lado.»

«E porque razão não se sabe nada desse lado?»

«Aí é que está o mistério.»

Jesuina falava destes assuntos com indissimulado desagra­do. Pensávamos que residia, ali, algo de reservado e de mau agoiro: a morte de alguém querido, um ser muito amado que desaparecera, uma flor que murchara no seu coração. A morte pode explicar muitas solidões, porque a solidão não é uma en­fermidade da alma: são muitas.

Suspirou. Havia certos gestos, comuns a quase toda a gen­te, que ela desaprendera. Por exemplo: raramente cruzava os braços, raramente colocava as mãos nas ancas. Quando outros o faziam ela fixava-os, demoradamente, um pouco surpreendi­da. Mas apurara os sentidos. Ouvia o mínimo ruído, detectava o mais exíguo odor. Os perfumes, os ruídos, as claridades e as obscuridades eram outros, diferentes.

Desta vez, porém, cruzou os braços. E disse:

«É melhor ter amado e perdido, do que nunca ter amado.»

        Respondia às perguntas sobre o seu passado? Talvez. Ou, então, aludia a estados d'alma vividos por outrem, noutros tempos, sabe-se lá! Quando o peso das recordações e o silên­cio penoso a atingiam dolorosamente, tendia a beber vinho. Não deixava acabar o vinho tinto, que adquiria regularmente, na taberna da rua do meio. Um vinho espesso, denso, avelu­dado e forte, vindo directamente de lavradores do Cartaxo, em garrafões de cinco litros. Não bebia sempre; mas, quando bebia, bebia sempre muito, e só. Toldada, deitava-se, dormia a sesta, ressonava. Os vizinhos ouviam-lhe a respiração entrecor­tada, os roncos surdos, intermitentes.

«Lá se embebedou ela, outra vez.»

«Coitada, que pode ela fazer quando está sozinha?»

«Se calhar, deita-se com algum dos rapazes.»

,Já constou.»

        A intriga e a má-língua são o que há de mais engenhoso na vida. Caminham sem rumo, numa geometria confusa, nasci­das do ócio e multiplicadas por um espécie particular de ódio, de ciúme, de despeito.

Jesuina deitara-se uma vez com um dos rapazes. O rapaz estava gelado, molhara-se na rua sob chuva copiosa, entrara na casa de Jesuina um pouco aturdido. Ela despira-o, enxugara-o e, enquanto as roupas secavam, deitara-se com ele, a fim de o aquecer. Deitara-se vestida, entenda-se. Tempo parado, mons­tro de mil caras, espécie de faca no coração, algo de confuso que a impelira àquele gesto despropositado, àquela atitude que só não era absurda porque nascida de um apelo extasian­te. Encostara-se ao corpo transido e abraçara-o, dizendo para si própria não alimentar outra intenção senão a de o aquecer e de acabar com as tremuras que o agitavam. Ou não seria esse o sentimento que a acometera?

Um atordoamento lânguido, uma irreflexão, a tentação de quem deseja oferecer, oferecer quê? apressa, a respiração, as respirações; e o corpo tenso, os corpos tensos, expectantes. Sentiu, a certa altura, que o rapaz a fitava com olhar alterado. Estavam com os rostos frente a frente, ele afagou-a na testa, ela cerrou as pálpebras, tomada por oscilante felicidade. Perma­neceu assim, abandonada num tempo bom, silenciosa, serena, imbuída por ardente jogo de luz e sombra. Como se a sua vida dependesse daqueles pausados momentos. Despertou da exul­tação. As faces tinham-se-lhe enrubescido, mas não era por vergonha ou pudor, por asco ou repulsa. Foi invadida por uma bela sensação de paz. Sentou-se na cama, como se regressada de uma viagem feliz, contemplou o rapaz.

 

Os indianos e os chineses começaram a tomar conta das antigas mercearias e de lugares de hortaliças. Vinham de Moçambique e de Macau. Toleravam-se, mas não se gostavam. Traziam consigo outros comeres, sabores, formas, modos, silên­cios, perfumes e palavras. Eram atenciosos, alguns mesureiros, outros bajuladores, mas mantinham uma antiga integridade, demonstrada, por vezes, em pequenas recusas, outras respon­dendo com altivo mutismo a provocações e a frases pejorati­vas. Os antigos proprietários dos estabelecimentos que eles haviam obtido, na maior parte dos casos pagando preços exor­bitantes, viviam roídos de ódio e de inveja.

As chinesas velhas pareciam pardais tontos, passo apres­sado, sem saber para aonde ir, circulando as ruas, sorrindo e andando, regressando ao mesmo sítio, voltando a sorrir e a andar. As indianas velhas sentavam-se no chão, graves, melan­cólicas, escondendo a amargura sob os exarados traços dos rostos escuros, teias de rugas. Não se davam, não se hostiliza­vam; desprezavam-se na reservada mudez das suas aflitas soli­dões.

É estranho: lembro-me, agora, de que havia solteironas à janela. Indagavam, com o olhar perdido, algum sonho, o mais minúsculo sinal de algo que lhes fortalecesse as esperanças; esperanças de quê? Já não há solteironas à janela, nem esse jogo de secretas correspondências entre percepção, clausura e erotismo, espiral de repetições e de reiterações, metáforas dos seus pessoais receios.

O vento soltava-se, vinha do cemitério, uivante e lúgubre, corria pelas ruas, embatia no fundo dos becos, revoluteava, procurava saída, as chinesas velhas parecia que sentiam a es­pessura do vento e paravam, olhando firmemente para um ponto por elas conhecido, um ponto do vento, se me faço en­tender; as indianas velhas cerravam os olhos, juntavam as mãos junto da cabeça, murmuravam palavras antigas; o vento lá con­seguia sair do fundo dos becos, redemoinhava nos largos e sacudia as árvores, parecia louco, o vento, dividia-se pelas tra­vessas, chocava um com o outro, o vento, que se não concilia­va, que nunca regressava ao lugar de onde partira; o vento.

Nas épocas das chuvas, os bueiros entupiam-se, as águas derramavam-se por aí abaixo, sujas, impetuosas, os detritos empurrados até ao rio. Formavam-se charcos. Aquecia o tem­po, os charcos ficavam paludosos, pequeníssimas rãs verdes, pouco maiores do que uma unha, introduziam-se nas casas tér­reas, entrando pelas frinchas das portas, dezenas e dezenas, as mulheres gritavam, varriam-nas com as vassouras, elas volta­vam, obstinadas, em grupo, movendo-se de maneira grotesca, obstinadas, em grupo, grotescas. Para não entrarem, as mulheres jogavam fogo a petróleo, sulcos de petróleo em chamas à entrada das portas. Os gatos brincavam com as rãs, os ratos comiam-nas.

Jesuina venerava Santo Onofre, protector de ladrões e, na hagiografia popular, propício a favorecer com dinheiro quem de dinheiro mais precisasse, e dinheiro lhe pedisse. Dependia do fervor da prece. Jesuina orava com força e fé. Jogava em rifas todas as semanas e, nos anos bissextos, uma vez por mês, na lotaria e no mesmo número: 13. Nunca lhe saíra coisa algu­ma. Porém, não perdera a esperança de um dia as coisas do dinheiro lhe tocarem à porta.

Não dividia com ninguém a natureza íntima desses sonhos. Os sonhos não devem ser revelados. Dá azar contar os sonhos. Os sonhos pertencem a quem sonha. É a única coisa que nin­guém pode roubar aos outros. Talvez seja por isso que os sonhos não têm voz: receiam que os usurpem. Era tudo muito claro e compreensível para Jesuina: de um lado, o que não gostava; do outro, o que gostava. E como gostava de poucas coisas, tudo se lhe tornava fácil.

Aprendera que a noite pode ser devastadora. Reprimira o desejo, incandescente quando nova, e a tal ponto que suprimi­ra das lembranças a violência dos desconcertos antigos. Emer­giam, porém, num bulício de metáforas, sombras remotíssimas de amores passageiros: troncos nus, mãos, dedos, sexos que penetravam na sua vagina quente, húmida, maternal, acolhe­dora. Por vezes ouvia música. Só ela ouvia a música; aliás, era ela que escolhia, mentalmente, as músicas que ouvia, ouvia se­cretamente essas músicas. E dançava com essas músicas; dan­çava com os olhos, com movimentos de cabeça, com os braços. Podia estar a ouvir pessoas e estar, ao mesmo tempo, a dançar essas músicas. Dançava, às vezes, por dentro de si mesma.

Escreve. Caligrafia bem desenhada, redonda e clara. Escre­ve ainda, antes de terminar o capítulo; assim: Jesuina sabe que na vida é preferível deixar algumas coisas por fazer; e o pior que pode acontecer a uma pessoa é não ter ninguém em quem pensar. Também sabe que o amor traz o desejo de descobrir coisas novas.

 

Os cavalos relincham. Ouve o relinchar dos cavalos e sen­te os cascos batendo no chão. Os cavalos relincham e parece que estão a queixar-se. Os queixumes são absorvidos pela revelação de outros sons: trovões roncando e gemidos de água dentro da noite. Há, em todos estes elementos, um prolongado choro de dor, a dor resvalante que mói, mói, macera, repisa e atormenta.

Devia falar desse fim de tarde de cuja memória conserva uma imagem de assombro, que tantas vezes o assalta para o inquietar. A percepção de uma sensação que se não dissipava: atenuava-se, desaparecia durante meses, anos, regressava de­pois, insistente como a culpa, obcecante como o remorso.

Jesuina colocara na sala grande um pesado biombo chi­nês, com incrustações na madeira escura: rostos hediondos, cabeças providas de olhos de vidro embutidos, vigiantes, per­seguidores dos passos de cada qual; mãos decepadas, corpos entrelaçados. Nunca nenhum de nós vira aquele móvel estra­nho, nem sequer tivera conhecimento da sua existência. Man­dou as raparigas para um dos lados, e os rapazes para o outro.

«Tirem a roupa toda e fiquem nus", disse. «Resolvi ensinar­-lhes o que ninguém lhes ensina.»

Um vago perfume a colónia. É-lhe muito nítida a memória olfactiva do perfume a colónia. E, também, a surpresa malicio­sa das expressões. Com vagar, espanto e pudor fomo-nos des­pindo, «Tudo, tirem tudo o que têm no corpo", alguém toca no batente da porta, ela grita lá para fora, «Agora não posso aten­der!", respira alto. «Já estão? Juntem-se aqui." Olhamo-nos de «soslaio; em todos nós, rapazes e raparigas, já afloram os pêlos púbicos, os das raparigas são bordados finos, emoldurando o risco das vaginas; num dos rapazes, eu, por sinal, os pêlos são vastos e negros. Nos outros, em todos os outros, os pêlos são louros. O meu sexo, de tão pequeno, quase se não vê. Dis­creto, olho para o dos outros: instintivamente, cubro-me com as mãos. Uma angústia nauseada, que me irritava e me indis­punha quase até à raiva. As raparigas entreolham-se. As formas dos corpos começam a modelar-se, os seios de todas elas são confiantes e luminosos. Sinto-me ansioso e ofegante. Habita em mim uma ponta de incerteza. A rapariga que está a meu lado fita a zona do meu sexo que cobri com as mãos. Afasto-as impelido pelo que entendi ser a muda instigação do olhar dela.

Jesuina avalia-nos. Ficamos constrangidos quando os seus olhos severos se detêm nos nossos sexos. Dá passos preguiço­sos, observa-nos com minúcia enquanto vai falando do que nos vai acontecer ao corpo, o desejo que surge como um ven­daval, explica-nos que o desejo não é uma banal coincidência, é a alma do sexo, o sexo tem alma e essa alma não é demoníaca, bem pelo contrário, é uma alma abençoada, e também fala do estrelejar que sentem as mulheres quando a alma do sexo se incendeia, uma flor aberta, um regalo de aroma, estamos muito atentos, e também diz que ela própria gostava muito do odor dos sexos, os sexos com alma possuem um odor doce e ao mesmo tempo agressivo, as mulheres maduras e ávidas sentem esse odor quando passam pelos homens, e os homens sentem, igualmente, o odor da boca dos corpos, a boca dos corpos é o sexo da mulher, do sexo dos homens diz-se muitos nomes, muitos nomes têm o sexo dos homens, mas nenhum é tão bonito quanto este, dado ao das mulheres.

Falava com fervor, os seus olhos eram círculos de pontos luminosos. Falava, disse ela, do que era bom, e daquilo que constituía a nossa única propriedade privada. Descreveu o acto sexual, a beleza violenta dos corpos unidos, um segredo que guardaríamos entre nós e que jamais subiria aos ouvidos das nossas famílias, a denúncia é uma separação, a separação é uma falta grave, um extravio imperdoável.

De toda ela, do seu corpo denso e maciço, da disposição da cabeça, dos movimentos exactos, do fulgor inquietante do olhar, de tudo o que era visível e do que se pressentia emana­va uma força poderosa e inabalável. Sabíamos que estávamos protegidos por aquela majestade que sequer aparentava o mais leve requebro de abatimento. Que idade tinha? Nunca nin­guém, nenhum de nós tocara alguma vez no assunto. Parecia­-nos incrustada no tempo, antiga e nova, infinita, associada àluz e à sombra, numa unidade coesa, regular e ordenada. E, de súbito, começou a rir; ria, ria sem parar, desordenada, disparatada; ria, ria. Nós entreolhávamo-nos, entre o incrédulo, o receoso e o surpreso.

Porque montara aquela cena? Para nos chocar? Experi­mentávamos a sensação de que nada daquilo poderia ser evita­do porque nada daquilo fora premeditado. Perguntávamo-nos quais as razões daquela exposição embaraçosa? Respondíamo­-nos com o alvoroço de que o estarmos nus correspondia ao limite da diversão dela, e a diversão dela exigia a nossa total submissão. Sentíamo-nos sufocados, acometidos de incómoda sensação física, como quando ela nos beijava e acariciava em excesso. Mas as explicações dadas, as suas descrições incluíam um lado caloroso e afectivo, com algo de transcendente e de natural. E assim nos submetia ao império dos seus caprichos.

 

No largo não se via ninguém. No local onde se forma uma elevação, provocada pelas raízes de uma figueira-da­-índia, estava um homem de negro. Já fora visto amiudadas vezes. As mulheres falavam dele. Não era conhecido nem do bairro nem das redondezas. Rígido, imóvel, atento não se sabia a quê; usava óculos escuros, enormes, quase lhe cobriam o na­riz pequeno e parte da testa. Homem de negro, chapéu negro, camisa e sapatos negros, como os ciganos viúvos.

Pressinto que está à espera; de quê?

        Quando andava arrastava a perna esquerda, o braço do mesmo lado privado de coordenação, hirto, grotesco nos mo­vimentos desordenados, o corpo parecia seccionado na verti­cal, apenas a zona direita acedia às ordens do cérebro. O vento soprou e arrancou-lhe o chapéu da cabeça. O homem de ne­gro debruçou-se, com extrema dificuldade, para o apanhar; o vento soprou, o chapéu rolou e parou mais adiante, soprou Outra vez, o vento, o chapéu continuou num rodopio, percor­reu o diâmetro do largo, foi parar no canteiro redondo de um loureiro. O homem andou lentamente, puxando a perna bamba, braço frouxo, até ao loureiro, apoiou-se no tronco, examinou cuidadoso a vizinhança, receoso de que alguém o estivesse a observar, inclinou-se para pegar no chapéu, desequilibrou-se e caiu, conseguindo, no entanto, não se estatelar: ficou de lado. Curiosamente, os óculos escuros mantiveram-se-lhe no rosto.

Na posição em que estava obtinha uma boa visão de parte do largo. Observou detidamente o movimento, receoso de que alguém o visse assim, risivelmente tombado; a vergonha que o tocava era mais forte do que a sua razão e o seu discernimento. Começava a erguer-se, a mão sã, a direita, fazendo força para impelir o corpo a levantar-se, quando reparou em dois rapa­zes, pálidos e perplexos, sorrisos mordazes, à distância de cin­co metros, não mais.

Redobrou o esforço. A perna inerte estava quase sob a outra, a mão inútil um pouco esfolada, o chapéu inalcançável. Num penoso exercício de vontade rodou o tronco e alcançou maneira de desembaraçar as pernas. Os dois rapazes não se moviam. A curiosidade maliciosa cedera lugar ao respeito. Sen­tiam o poder e a força do homem caído. E esse poder e essa força secretos espalhavam-se, com uma autoridade absoluta, pelo chão empedrado, pelas casas do largo, atravessava as pes­soas numa corrente possante que impunha a deferência e rejei­tava a piedade.

Quando finalmente se ergueu, para o que se abraçou ao tronco do loureiro, e, aos poucos, elevou todo o corpo, até manter o centro do equilíbrio, olhou para os dois rapazes. Um deles deu alguns passos, pegou no chapéu e entregou-lho. Agradeceu com um breve inclinar da cabeça. Tirou os óculos e esfregou os olhos. Olhos tristes e cinzentos, cinzento-escuro e denso. Quem atentasse naqueles olhos adivinharia neles algo de dorido e, simultaneamente, de maligno e nobre. Os rapazes recuaram um pouco. O homem readquirira o porte anterior. Nessa altura um raio de sol passou-lhe pela face: rugas que não desvaneciam lembranças amargas e se abriam para uma melancolia e uma solidão intensas. Olhou para a janela cerrada da casa de Jesuina. A seguir, fitou o infinito para logo examinar as casas baixas do largo, outrora um aduar árabe, ainda havia pátios cheios de flores, alguns com palmeiras altas.

Afastou-se, arrastando a perna.

 

«Vão lá acima; vão ao Armador e tragam-me fruta.»

Subíamos alegremente a colina. Passávamos a Torre do Galo e o Cruzeiro. Havia aquele casarão sóbrio e circunspecto, então encostado a um talude, a escassos metros do palácio, agora sei que viveu ali Alexandre Herculano, e consta haver sido destinado, na época, a albergar monjas; parece, ouvi dizer.

Sentávamo-nos um pouco, habitualmente nas raízes ex­postas do carvalho velho. E permanecíamos em silêncio, ob­servando o rio, um lençol de água a nossos pés, que brilhava e nos induzia a extraordinárias viagens. Levávamos a fruta, não sem antes olhar para o interior da casa do João Roxo. João Roxo, antigo marinheiro, cheio de tatuagens nos braços e no peito, olhava as pessoas de viés e tinha as faces ratadas, até às orelhas, de marcas de bexigas. Gostava de conversar com ho­mens do seu tempo, nunca casara, e dizia-se que, pelo menos uma vez por mês, ia ao 18 de Alcântara, bordel muito frequentado por mudar, periodicamente, de raparigas. «Há carne fresca! Há carne fresca! Carne do norte, boa, forte e rija!», avisa­va a dona da casa, assomando ao hall de entrada.

Foi por entradas da Primavera, quando os perfumes do Jardim Botânico tomavam conta das ruas, que surpreendemos o João Roxo em ameno diálogo com o homem de negro. En­contravam-se junto do carvalho e falavam com animação: ges­tos largos, risos altos, caras chapa das de regozijo. Pareciam amigos de longa data. O homem de negro reparou que os observávamos e acenou. João Roxo fez o mesmo. Estávamos todos muito contentes. Dias depois, perguntei-lhe a identidade do outro homem. «Um amigo regressado de outros tempos." Havia um tom enigmático na voz. Tocou no chapéu com dois dedos da mão direita; afastou-se.

Há coisas que não se partilham com alguém despreocupa­do. Em todo o caso, sempre chamo a sua atenção: ouve os soluços? Parece provirem de alguém que sofre imensa dor. Os soluços enchem a sala, maciços e densos como o sofrimento que exprimem. Veja: a sala está envolvida em penumbra. Há muita gente que ignora o alívio de sentir-se a dor. A dor, por vezes, é aliviante. Eis o caso. Eis a frase: «Esta terra está cheia de gente que está cheia de maldade. Não podemos defender­-nos da maldade com a bondade." Numa das janelas que dão para o largo, entre as cortinas, Jesuina olha, perscruta, espreita, vigia, espera, aguarda, observa. Sente no ar um sentido de epí­logo muito pronunciado, que lhe infunde ansiedade e temor.

Depois de tudo quanto passei, que terá Deus ainda para me dizer? No entanto, acredito numa luz que tem de despon­tar; não sei quando, mas tem de despontar. Entre as cortinas, continua a espreitar, na esperança de voltar a ver o homem de negro.

 

Estou agora a pensar no que o bairro fez aJesuina. Os bair­ros exasperam-me: são conservadores, não gostam da mudança, possuem humores variáveis e obstinam-se nas suas recusas e nas suas pequenas vinganças. As mulheres que a respeitavam e, até, se diziam amigas, visitas de casa, começaram com evasi­vas, num processo sistemático de dilaceração. Intrigas e menti­ras; meias-verdades nascidas, talvez, de ressentimentos e de invejas ocultos, despertados pelo falar baixinho: ela mete-se com miúdos, mexe neles, revela-lhes intimidades só naturais na passagem da adolescência.

Ou talvez porque tudo aquilo tivesse obtido muito menos importância e repercussão do que poderia supor-se, então, re­velavam de Jesuina acções sombrias, como a de fazer abortos sem para isso estar preparada. E acrescentavam que muitas mulheres haviam morrido, esvaídas em sangue. É a parteira dos gatos, diziam. Ela fugira e ali se instalara. Também diziam que dava de comer a ratos. Começara por dar a um, pequeno, vivaz, lustroso; depois, outros apareceram, primeiramente te­merosos, fugidios, atentos ao mínimo gesto, ao mínimo som; depois, afoitos, desembaraçados. Sabia-se destes factos porque ela, às vezes, falava em voz alta, sobretudo quando se acomo­dava no quarto dos jornais.

        - Mas não tomes as minhas palavras, estas revelações que te faço, muito a sério.

        - Então, porque estás a contá-las?

- Estou só, e invento coisas. Sabes?, há pessoas que ti­nham perdido a esperança de que alguma coisa mudasse a sua vida. Ao contar estes episódios estranhos e confusos, talvez possa distrair as pessoas.

- São coisas antigas e extraordinárias.

        - Coisas que nào morrem. Os miúdos ainda brincam nos mesmos sítios onde nós brincávamos. São coisas que nào mor­rem. E posso lá ir e voltar a ver tudo. Volta e meia os rostos dos mortos vêm acordar-nos. Já passaram muitos anos, e só agora entendo a dor do Gary Cooper, esqueci-me do verdadeiro nome dele, mas estou a ver a sua cara fechada e fúnebre. Cor­ria, saltava e, por vezes, ria, mas por pouco tempo, fechava logo a cara e parecia que voava para outros sítios, ou lhe acu­diam imagens terríveis e tenebrosas. A mãe fugira com um homem das obras, o pai ficara alguns tempos indeciso, não compreendera inteiramente a dimensão do assunto, e a cruel­dade das ruas demonstrara-se, uma vez mais, chamando-lhe cabrão, e ao rapaz de filho de puta. Foi quando o pai resolveu colocar-lhe na manga um fumo negro, sinal de luto, a tua mãe morreu, a tua mãe morreu, mete isto na cabeça. Não: ela fugiu. Morreu, morreu, já te disse. A crueldade não amainou, pelo contrário: os desvalidos possuem doses imensas de maldade que sobressaem quando outros desvalidos são atingidos pela desgraça. Eu andava muito com ele, entristecia-me a tristeza dele, e percorríamos em silêncio aquelas azinhagas do Cruzei­ro, as travessas estreitas que conduziam às docas, o odor forte da salsugem, as sirgas untadas em alcatrão, e foi num de esses dias, a um domingo, que assistimos ao retirar de um carro que mergulhara no rio. Muita gente apinhava-se, na estação fluvial de Belém, para assistir à remoção do carro. O carro escorria água e, lá dentro, divisámos os vultos de três corpos grotesca­mente tombados uns sobre os outros. Muitos, mas muitos anos mais tarde tive conhecimento da identidade dos protagonistas daquela tragédia: o poeta Luís de Montalvor, fundador da edi­tora Ática, sua mulher e o filho de ambos; suicídio colectivo, porquê não o sei. Mas nenhuma vida, nem nenhuma morte chegam para explicar, ou pelo menos para esclarecer a perso­nalidade de ninguém.

        - Continua. Por que paraste? O teu olhar ficou carre­gado.

        - Vês? Agora estou com a aparência de um homem que não sabe o que há-de dizer. São as punições da idade. A Ava Gardner julgava que podia dançar com as flores. Hei-de pensar neles durante toda a minha vida. Hei-de pensar sempre neles. Já não me recordo bem dos seus rostos, nem do registo das suas vozes. Até baralho as suas alcunhas. E perdi completa­mente os seus nomes. Mas hei-de recordá-los sempre. Não sei para onde foram; mas que importa para aonde vão as pessoas? A mim não me puseram alcunha de actor. Chamavam-me o Naftalina, porque eu evocada constantemente o herói do mes­mo nome, protagonista de histórias extraordinárias, que apare­cia no suplemento infantil de um jornal desse tempo, O Século. O suplemento chamava-se Pim-Pam-Pum, e o Naftalina era apresentado como o maior detective do mundo. Naftalina! Nafta­lina! Naftalina! Não gostava nada da alcunha; irritava-me; ago­ra, até sinto ternura da nostalgia. Se alguém aparecesse por aí, eh!, Naftalina!, agradar-me-ia reconhecer no chamamento algo de seguro e de cordial.

Tenho saudades do tempo em que éramos bondosos.

Também nunca mais vira ou ouvira falar do Mickey Rooney. "o mundo é muito grande e eu quero conhecer parte dele", referira, pouco antes de desandar do sítio. Ainda não passara a onda de dizeres sobre Jesuina. Ninguém se arriscava a fazer perguntas: apenas meias frases, lacónicas brejeirices. As mães perguntavam aos filhos a natureza do que ouviam: verdade, mentira? Perguntas formuladas com boleados cuidados, analo­gias, advertências veementes. Jesuina via-se sem amigas e sem os jovens: um vazio de cuja intensidade só agora se dava con­ta. Sobretudo, apercebera-se de que deixara de ter ascendente sobre numerosas pessoas. Temeu que não houvesse circuns­tâncias atenuantes. Também não descortinava a malignidade do seu procedimento, a perversidade contida nos seus gestos, a mordacidade dos fundamentos com os quais a reprovavam. Via os rapazes e as raparigas em grupo, correndo pelo largo, depreendia-os a descer a calçada, adivinhava o destino da caminhada: até à fábrica de torrefacçào de açúcar, na zona operária. Ao transportar os sacos de açúcar torrado para as camionetas, os serventes não podiam evitar a queda de peque­nos montículos, espalhados pelos interstícios das pedras dos passeios. O grupo apanhava pequenas doses de açúcar e co­mia-as. Também comiam cascas de laranja achadas no chão, e fumavam pontas de cigarros abandonadas, e tomavam banho nas docas.

Ficara a olhá-lo, mesmo depois de deixar de o ver. A per­feição do dia misturada com assuntos antiquíssimos, emoções esquecidas; vozes perdidas. Há quantos anos não se viam, há quantos? No entanto, ela sabia que ele vestia de negro porque qualquer coisa ficara oculta sob essa cor. Os ciganos, quando morria alguém próximo do seu coração, enlutavam-se, mani­festando assim que havia sempre duas mortes para cada um. É assaltada por misterioso receio. Houve um dia em que pas­seavam num jardim imenso, cheio de recordações coloniais. As árvores eram sacudidas por um frémito, e os murmúrios taga­relas das fontes artificiais faziam ressaltar breves aparências de felicidade. Já se não revê na imagem da rapariga bela que foi. O jardim fora organizado de molde a sugerir as variações as si­métricas da terra. Regatos, cerros, mesetas, e renques de pitei­ras, tufos de fetos, canaviais.

Passeava, só e um pouco assustada, pelas divisões da casa. Permanecia, horas a fio, no quarto dos jornais antigos. Lia algu­mas notícias, sem fixar o seu conteúdo: um vazio, tempo oco. Sentia o rancor e a aversão das ruas, que a atingiam insinuosas, persistentes e inclementes. Esses sentimentos causavam-lhe um mal-estar muito próximo do sofrimento. Percebia que a es­perariam sempre coisas muito velhas, das quais não poderia separar-se: farrapos, tormentos. Pensa: vi várias vezes o diabo mas nunca perdi a alma.

Às vezes íamos até ao cemitério. Antes de chegar a noite, o coveiro, Balalaica, sentava-se nos degraus de uma taberna de porta larga, bebia e conversava. A taberna já não existe, e é pena: sempre matavam o tempo, a falar, aqueles que tinham acompanhado a morte nos funerais. As pessoas precisam de rir, quando enterram os mortos. O Balalaica expunha uma estatura poderosa mas, curiosamente, os ombros eram descaídos, dando a impressão de ser corcunda, e a mão esquerda era maior do que a direita, além de disforme. Pegava nos copos de três, grossos e altos, com a mão deformada. O Balalaica gostava de nos ouvir, e nós apreciávamos aquele adulto vigoroso que nos prestava a atenção negada pelos outros. E revelava-nos a bele­za dos fogos-fátuos, pelas noites de calor: campas iluminadas por uma claridade azulada, bruxuleante e breve; o odor doce, que se confundia com o perfume e se evolava do Jardim Botâ­nico.

Não se lhe sabia o nome verdadeiro, não se lhe conhecia mulher, família, afecto, diversão. Comia nas tabernas e nas casas de pasto, e repartia o seu tempo entre passeios, colina acima, colina abaixo, ou pelos bosques que delimitavam os bairros antigos das casas das antigas povoações. Dormia no que fora um armazém das ferramentas da morte, na parte sul do cemitério, para se atingir a qual era-se obrigado a descer um côrrego tão íngreme que poucos se aventuravam até lá, a não ser obrigados pela disposição das campas, quando as outras Zonas ficavam cheias. Porém, havia sempre ossadas a remover.

Mortos que chegam, mortos que vão, dizia. Ninguém sai vivo da vida, dizia. Nenhum morto tem descanso, dizia. Os vivos querem um pouco de animação, de compreensão e de conso­lo, dizia. Os mortos apenas infundem medo aos vivos, porque os vivos têm medo de tudo o que desconhecem, dizia.

Experimentava um doce encantamento no convívio com os mortos. Nada alterava a disposição com que executava as funções para o cumprimento das quais se comprometera havia mais de trinta anos. Respeitava a emoção dos parentes e dos amigos dos falecidos, e chegava a comover-se, mesmo ainda hoje, com os choros e os gritos e as preces. Desagradava-lhe as carpideiras ciganas, o alarido uníssono, a choradeira no seu en­tender sem sentido, no seu entender apenas para espectáculo. Aliás, não gostava de ciganos, nem de pretos, e muito menos de marrecos.

No final das tardes de domingo vestia-se um pouco me­lhor e apreciava jantar na pensão patriótica de Dona Graça, viúva de um membro da Brigada Naval, temente a Deus, a quem rezava com transporte e unção, pedindo a pessoal salva­ção da alma e a intercessão diligente pelo defunto. A relativa intimidade protectora de Balalaica apaziguava os receios que, amiúde, a assaltavam: de ladrões, de ciganos, de violadores. Detinha o olhar em Balalaica sempre que nisso falava ou a isso aludia. Um homem cá em casa dava-me jeito, dizia. Pagava-lhe um salário, ele olhava-me pela pensão e sempre era uma com­panhia. Um homem cristão, bem entendido; observante das regras; um homem respeitador da polícia, de patrões e de pa­dres. Balalaica, mudo. Balalaica nem a enfrentava, parecia nem atentar ou, sequer, interessar-se minimamente pela conversa dela. Um dia, ela perguntou-lhe: "Não tem medo de nada?" Ele: "De ser inútil." Ela: "E acha que é útil?" Entendeu como absurda alusão ao seu trabalho o que não passava de vulgar pergunta.

Respondeu: "Os vivos são tão estúpidos, quando falam dos mortos". Ela cabeceava. Ele, quedo e calado. Saboreava a atmos­fera de sossego, agradava-lhe as discretas sugestões contidas nos mansos alvitres de Dona Graça. Então, até domingo; ela acompanhava-o à porta, ele descia as escadas, examinava a sala de jantar, o bengaleiro no lado direito, o retrato do faleci­do, a litografia com a Última Ceia. Percorria as ruas silenciosas do bairro, cujas ruas ostentavam nomes de heróis desconheci­dos de velhas e ignoradas guerras, passava pela igreja e desvia­va os olhos, pela antiga escola primária e sorria, pela taberna encerrada do Amador Puime Dominguez e encolhia os om­bros.

Recordo-me daquela história do fedor. Junto do cemitério, ladeando um dos flancos da colina, numa horta de couves­-galegas, tomates, nabos e pepinos, um estranho cheiro, sentido durante dias, determinou uma queixa na esquadra de polícia. Com o calor, o cheiro intensificou-se: acre, nauseabundo. Suspeitou-se de que haveria cadáver enterrado. Homicídio, de certeza. Falou-se logo de vinganças de ciganos. Balalaica, sá­bio e entendedor, avançou logo que o fedor não era de corpo morto. Então? Aguardou-se a chegada da Judiciária. Revolveu­-se o terreno. Nada. Foi então que desvendaram a origem do mau cheiro: um cogumelo com mais de vinte centímetros de altura, nunca por ali visto. (Mais tarde, numa qualquer leitura, descobrirei que a espécie tem um mordaz nome latino: vhalus imvudicus). Dirá Balalaica, acomodando-se melhor nos degraus, imaginoso, agressivo e definitivo: "Coisa de ciganos ou de pre­tos, já se deixa ver."

 

NOS dias tristes caminhava pelas ruas uma densa e opaca solidão. Percebíamos o caminhar dessa solidão quando os pombais ficavam cheios, os pombos não voavam em ban­dos, arrulhavam de modo esganiçado. As tabernas também se enchiam de homens demorados, repousando o cepticismo no silêncio. E ouvia-se o grito aberto: «O meu sangue não presta! Nào presta! Não presta para nada!» Só então os homens silen­ciosos diziam: «Lá vai ele. Lá vai ele, coitado!»

Jesuina fechava hermeticamente as janelas. Apavorava-a o grito repetido. Estremecia ao recordar o que o grito, aquele gri­to, lhe despertava: medo atormentado, espiral profunda de todos os medos: a morte. Espiava-o pelas frinchas da janela. Por vezes, surgia o Balalaica: conversava amenamente com o grita dor; acalmava-o. «A culpa não é tua. A culpa não é tua.» Chegava a dar-lhe a mão, como se faz a um menino assustado. Falava-lhe baixo e meigo, não o largava até o homem entrar na casa térrea onde morava, junto aos carris dos comboios. Ele dizia: «Nào vês nada; tu nunca vês nada. Não sais da casa.» Ela: «Os meus olhos apanham todo o mundo. Não preciso de sair para saber o que se passa. O mundo é muito pequeno para os meus olhos grandes.»

passara muito tempo sobre as circunstâncias que estive­ram na origem do descarrilamento de uma composição cheia de passageiros. Atribuía-se ao homem protegido de Balalaica a responsabilidade do desastre: negligenciara as funções de guarda da passagem de nível, não avisara do estacionamento de dois vagões, por estar perdido de bêbado, e a tragédia so­breviera. Entre ferros retorcidos, placas fumegantes e pedaços de tudo, os corpos despedaçados de dezenas de pessoas. Quis socorrer os vivos, ofereceu-se como dador de sangue. O san­gue não servia, por ele ser diabético e sofrer, ainda, de hepa­tite.

«O meu sangue não presta!»

anda ele, e o vento a passar pelos beirais com arrancos que soam a gemidos, uma dor sem limites, lá anda ele, naquele desespero sem choro, e ele a querer esconder-se muito fundo, olhos inocentes de espanto e deles brota uma estranha fonte de escuridão.

«O meu sangue não presta!»

Um estertor, o olhar raso, não chores agora, ouve-se dizer; e ele vai esquecendo-se de si mesmo.

Estas coisas não devem ser extintas da memória. Sei que outro daquele tempo escreverá, um dia, acaso já escreveu, estes e novos episódios, adicionando-lhes pormenores que perdi, acontecimentos por mim não vividos nem sequer observados. Sei. O que me instigou ao registo avulso do que a memória permite é o medo da velhice, a tentativa de fixar aqueles instantes supremos, no interior dos quais julguei ser feliz. Já há muito que desisti de procurar o misterioso significado do mun­do. Não faz sentido tentar descobrir porque é que as coisas acontecem desta maneira e não daquela. A felicidade nunca tocou no batente das minhas expectativas. Um dos meus filhos dizia-me, há dias, que eu tive uma vida riquíssima de experiên­cias. Dizia-me isto e espreitava por cima do meu ombro, quan­do eu escrevia acerca do quiosque onde ia comprar cigarros por unidade, Definitivos, a marca, depois foram Provisórios, mais fortes e ásperos; tinha para aí catorze anos. Riu-se: era assim? Era assim para os mais pobres. E contei-lhe que o dono do quiosque, esqueci-lhe o nome, se atirava aos rapazes, pro­metendo-lhes cigarros de graça se eles autorizassem lhes tocas­se no sexo. Certa tarde, o pai de um dos rapazes, que se lhe queixara, espancou o pobre homem com extrema violência. O homem cobria como podia o rosto e o corpo, olhava apavo­rado, as pessoas faziam círculo e assentiam que o castigo era justo, dê-lhe mais, dê-lhe mais!, o homem, no chão, cheio de sangue, pedia perdão: «Não tenho culpa!, não tenho culpa! Não faço mal a ninguém, mas não tenho mão em mim, não tenho mão em mim!»

Os olhos grandes de Jesuina estavam em toda a parte, es­crevo agora. Olhos que nos vigiavam, nos protegiam dos peri­gos das ruas e das suas armadilhas; olhos muitos e vários. Ela parecia pressentir os riscos que nos ameaçavam e julgávamo-la omnipresente. Isto, muito antes de a má-língua lhe atribuir procedimentos indecorosos connosco. Recordo-me desse dia em que, sós em casa, sob o calor insuportável, ela se despiu, deitou-se e fez-me sinal para que a acompanhasse na cama. Destrançara o cabelo enorme e grisalho, e eu descobrira que, junto à nuca, havia um redemoinho de cabelos negros. Ela puxara-me a mão e ensinara-me a acariciá-la nas coxas e entre elas, sem, contudo, destapar as zonas íntimas do corpo. Senti os pêlos púbicos, o macio da pele, percebi que cerrara os olhos, quase se não mexia, creio que viajava para outros tempos e para outros sítios. Ouviu-se um rumor, um ligeiro sopro de mar. A janela entreabrira-se, a penumbra tornara-se mais clara, ela suspirou, ergueu-se sem me mostrar a parte da frente do corpo. Observei, por instantes, o volume das nádegas, as cos­tas largas, os ombros poderosos e um pouco dos seios enor­mes e frouxos. Reparei na vaga penugem que circundava a parte detrás das pernas.

Foi também num desses dias que, de repente, ela suspei­tou de que algo de terrível ocorrera na casa térrea, no Beco do Xadrez, onde vivia a velha sem mãos. Seria o odor, o sopro funesto do rio, a paragem súbita do tempo, a rua sem ruídos, os pássaros em silêncio, talvez isso tudo que lhe despertou a iminência de qualquer coisa de grave. Escancarou as janelas e examinou, cautelosamente, em redor. Esperou um pouco. Perscrutou, de novo, o denso, pesado e inquietante sossego que dominava o bairro. Depois, desatou aos gritos: «Acudam à velha!, acudam à velha!» - e apontava para a casa onde a outra residia.

Gente, de roldão, surgiu de todos os lados. Precipitaram­-se para a casa indicada, entre o assombro e a apoquentação. Deparou-se-lhes a mulher prostrada no solo, tocos erguidos numa patética súplica, não falava, mal se movimentava. Cente­nas e centenas de formigas, vindas sabe-se lá de onde, cobriam­-na quase por completo, haviam-na ferido no nariz, na boca, por debaixo dos braços. Mexeu os lábios com raiva e animosi­dade. Amaldiçoava. Quem?

 

Divisavam, à direita, o maciço da serra de Sintra e, à es­querda, a foz do Tejo. Vistos à distância, a meio da cal­çada, por exemplo, eram duas sombras inverosímeis. Não sabia ainda, mas seria a última vez que estaria com ela. Residia, nos seus olhos, a sombra de uma tristeza e o brilho de qualquer coisa de indefinível, porém belo, que a aguardava.

Ouvimos o som de pedras a ser projectadas. Alguns dos nossos amigos apedrejavam várias colmeias que se juntavam na vertente de uma das hortas. Não o faziam directamente: atingiam uma parede de granito, as pedras faziam ricochete e embatiam nas colmeias.

Instalou-se a confusão. Centenas de abelhas despertaram em fúria e dirigiram-se para os apedrejadores. Tentaram fugir; fugiram: as abelhas não os largavam, perseguiam-nos com obs­tinada perícia e picavam-nos. Parecia que nunca mais iam embora. Revoadas negras voavam em círculos concêntricos e espetavam os ferrões.

Assistimos a tudo, salvaguardados por um enorme tapu­me inclinado que servia de resguardo a tintas e a ferramentas agrícolas. Fugia quem podia fugir. Gritos e correrias. Depois, obedecendo a invisível comando, as abelhas reagruparam-se e voaram pela azinhaga que conduzia ao cemitério.

"Nunca mais viste o Balalaica?», perguntei-lhe.

"Não. Ele olha para mim de uma forma estranha», disse ela, compondo a saia e ajustando os soquetes.

Estava muito bonita, usava um laço amarelo no cabelo, e os olhos, profundos, pareciam pintados à maneira dos india­nos.

A pergunta possuía o valor incalculável de uma rotina que não tinha nada a ver com as pequenas coisas. Lembrar-se-iam, pelos anos fora, do guardião dos mortos, da lenta e inteligente observação que ele fazia dos vivos e dos outros.

"Deviam deixar os mortos por aí, uns meses. Ficávamos fartos deles, e perdíamos o desgosto, substituído pela náusea, pelo embaraço e pelo aborrecimento, até chegarmos a odiá­-los, ali sempre presentes.»

Não sei bem como, agora recordo-me de que raramente olhamos de frente esse património dos mortos, e comprovar, junto de uns e de outros, que não restam senão sombras das coisas e das pessoas a quem cada um de nós pertenceu. Por­que todos os dias constituem o abismo quotidiano do futuro.

Do Balalaica não só emerge o volume imponente e disfor­me do corpo, como as palavras rudimentares, sensatas e lacó­nicas de que se servia para se exprimir. Além do modo como olhava para nós. Molhavam-se de ternura, de afecto e de pro­tecção, os olhos dele. E ajudavam a criar um clima que nos aproximava da essencialidade das coisas: vida e morte, dor e felicidade, lucidez e inconsciência estabeleciam o caminho que conduz ao abandono do tempo sem tempo, afinal, os curtos anos da meninice.

Escrevo: "Um caminho que nos avizinha, inevitavelmente, da decepção.»

Mas agora olhávamos para o rio, suavemente melancólico. E sentíamo-nos bem um com o outro.

«Porque te afliges tanto?», perguntou ela.

«Eu? Nada disso.»

«Foi porque a tua mãe morreu?»

«Já foi há algum tempo. E estou a esquecer-me de como era a voz dela.»

Uma brisa vai levantar-se: sentimo-la no rosto. Ao afagá-la ergue-lhe levemente os cabelos. Ela cerra as pálpebras. Alguns sons indistintos ouvem-se neste momento. Zumbidos de abe­lhas: ei-las que regressam, após terem voejado pelas azinha­gas. Um forte odor a pimentos assados. Caminhamos. Alguém se volta para nós. Não reparáramos nele, no homem de negro,     e a súbita aparição fez-nos estremecer. Parou; parámos.

«Não se assustem. Não faço mal a ninguém», disse.

A imaginação e a memória confundem-se. Não sei se as coisas se passaram bem assim. Algo de semelhante aconteceu, podem crer. Caminha com dificuldade, arrasta a perna bamba, está a nosso lado. Ficamos contritos e levemente apreensivos.

«Vou para os lados do Rio Seco. A fábrica foi inaugurada esta manhã e quero vê-la. Em tempos trabalhei numa fábrica assim. Em tempos.»

Porque sentira a necessidade de nos explicar para aonde ia? Prolongava a passeata connosco. Quando atingimos aquela parte que delimita a zona das vivendas para os campos de esteva dirigiu-se no sentido oposto e afastou-se de nós, não sem nos observar por duas ou três vezes. Alguns anos depois, aqueles terrenos cheios de beleza, de silêncio, de claridade e de desamparo seriam substituídos por edifícios altos, desen­contra dos e feios, sem noite e sem dia, sem céu e sem terra, sem quietude e, talvez, até sem Deus.

Mas agora reina uma calma leve e amistosa. Apenas se ouvem os ruídos surdos da torrefacção de açúcar, cujo relógio quadrado, colocado no alto de uma das duas torres da entrada, dá sonoras horas metálicas a cada hora que passa. O açúcar torrado evola um aroma persistente e doce.

A fábrica inaugurada naquela manhã ocupa enorme espa­ço. As quatro chaminés expelem fumo denso e negro. Tão den­so que tomba em forma de grumos pegajosos. Dentro de algum tempo, os grumos espalhar-se-ão e quando aparecerem as ara­gens do sul formar-se-ão nuvens tenebrosas, os grumos cobri­rão os telhados, escura massa húmida derramando-se, depois, em pingos vagarosos; as pessoas amaldiçoarão a fábrica e a imprevidência de quem ali a instalou.

Observo-o a caminhar. Apesar das dificuldades no andar, transpira força e arrojo. No entanto, encontro nele a fragilidade de quem receia algo de indefinível. Começo a simpatizar com ele, depois de o temer. Ou de o recear, pela aparência. Sou desconfiado desde que me conheço. Tenho razões para isso: os meus pais enfiavam-me num quarto fechado à chave quando saíam ou, simplesmente, quando me castigavam. Não chorava; mantinha-me afastado da peculiaridade da agressão sentando­-me a um canto e imaginando histórias. Quando fui entregue àvigilância de Jesuina, a convivência com os outros rapazes e raparigas alterou-me o carácter triste mas não modificou o nó que me apertava a alma. A morte dos meus pais, no intervalo de cinco dias um do outro, não me afectou grandemente. Nunca tivera pais no sentido familiar que o parentesco explica. Esse sentimento, certamente belo, certamente necessário, é-me alheio. Mas estou contente com o que consegui do mundo. Não tenho propensão para o mistério e fecho os meus pensa­mentos num mutismo que muitos presumem ser fragilidade ou insegurança. Penso muitas vezes em Jesuina, nos seus peque­nos gostos e prazeres, sobretudo na decisão que tomara de permanecer em casa, de não sair, de apreciar histórias inverosí­meis que sabia muito bem serem mentiras. Aceito sem reservas quem se atém, ferozmente, à sua intimidade. A intimidade e o corpo são as únicas propriedades privadas do ser humano. No entanto, devo confessá-lo, assalta-me a inveja quando vejo que outros obtiveram aquilo que nunca consegui: a liberdade. Jesuina, a seu modo, conquistara-a, quando se recolhera àquela casa num dos bairros da colina, remoendo memórias, vivendo entre ruínas de que jamais se despediria porque faziam parte do mutismo do mundo que elegera como seu. O desejo pelo indizível alimentava-a e, ao mesmo tempo, ocultava ou atenua­va dores, desgostos e apoquentações sofridos. Volto a pensar naqueles cujos rostos se desvaneceram, cujos nomes olvidei. A fantasia dos desvalidos explica as alcunhas que aplicávamos, e que talvez removessem algo de difícil que se aproximava envolto em sombras. Acaso havíamos perdido tudo, menos o orgulho. Foi o orgulho que me manteve, sobretudo quando, sujeito a submissões infindáveis, sobrepujei-as com a constante certeza de que, interiormente, ninguém me subjugaria. Porém, nunca fui feliz porque nunca fui livre: enganava-me, escudan­do-me no segredo do meu orgulho.

«Um dia, hei-de contar-vos tudo», dissera o homem de ne­gro. Estávamos sob o caramanchão, no pequeno jardim junto da rotunda velha, em cujo centro se erguia uma palmeira. Éra­mos cinco e não escondemos o nosso espanto, entreolhando­-nos, interrogando-nos com as expressões. Sentimos que havia um enigma mortífero naquele homem, cuja voz era, agora, pesarosa e um pouco dramática. Ficámos transidos de dúvidas e de inquietude. A confidência, se assim lhe posso chamar, fazia adivinhar histórias medonhas, factos longínquos em lugares estranhos. Um de nós adiantou: "Porque não nos conta agora?» Recordámos o que nos dissera João Roxo acerca do conheci­mento já antigo com o homem de negro. "Uma boa pessoa, atingida por grande fatalidade», acrescentara. Ambicionávamos conquistar-lhe a confiança, escutá-lo, porventura passear com ele, visitar aquela parte da cidade que nos era desconhecida e nos atraía persuasivamente. Talvez, até, sentíssemos o desejo de o ajudar, de com ele colaborar no que fosse preciso. Pare­cerá pelo menos impetuoso a exposição destes sentimentos em relação a alguém que mal conhecíamos e que nos inspira­va, ainda há pouco, certo receio. Note-se: havia nele, no seu acanhamento desgracioso, nas suas maneiras simples e rudes, muita coisa de desamparo, de pedido de socorro, de apelo à compreensão sem explicações. Creio que muita gente existe no interior deste embaraçoso desassossego, neste cruel castigo sem ânimo para pedir auxílio, de antemão convencida de que ninguém lhe estenderá a mão. "Sabem uma coisa? Gostava de ser útil. Assim, danificado, que posso fazer? As pessoas chegam a ter medo de mim», esclarece, antes de se afastar. «É por causa dos óculos e de andar sempre de preto. Se calhar é por isso», diz um de nós. Ele tira os óculos escuros: o olho direito, vaza­do; o esquerdo apresenta uma cicatriz oblíqua, da sobrancelha até meio do septo. Estremecemos com a fealdade.

Alguns de nós recomeçámos a visitar Jesuina. Envelhecera e perdera o tónus, certamente ferida pelas insinuações e pelos silêncios ambíguos. Também pela solidão. O ser humano resis­te e habitua-se a tudo, nunca à dor causada pela solidão. Pare­cia-nos um corpo extenuado; no entanto, mantinha a vivacidade do olhar e a sobranceria dos gestos. Sobrevinha-nos as sau­dades das suas histórias, o gosto de rever a sua imponência, a firmeza com que parecia enfrentar as contrariedades. Volta e meia lia-nos recortes de jornais que guardava: notícias de cri­mes passionais, assassínios por adultério. E, estranhamente ou nem tanto, o movimento marítimo, a ida e vinda de barcos. Éramos menos, agora, mas ela parecia não se ressentir das ausências. Aqui há tempos apareceu, numa revista semanal, uma crónica manifestamente baseada nela e naqueles tempos, embora sem graça, nem gentileza, nem subtileza: uma cópia fria e vingativa. Assinava-a um tal Crátilo, pseudónimo de al­guém que pertencera, de certeza, ao nosso círculo antigo. A tése referia ao relinchar dos cavalos. Procurei deslindar o enigma e descobrir o nome do autor: um tique de linguagem, uma locução pessoal que me induzisse na revelação de quem seria. Em vão. Não acusei mentalmente ninguém; desconfiei de to­dos, embora não descortinasse em nenhum deles vocação para a literatura. Por vezes, as vocações despertam tarde. Desprezei o indivíduo, quem quer que fosse. No texto insinuava-se o propósito de Jesuina em nos manter submissos e dominados pelo poder das palavras e pela força daquilo que nos contava. Nada mais inexacto. Havia qualquer coisa de humilhante no que o autor escrevia, com pormenores mesquinhos e aberran­tes, tendentes a nublar a imagem do grupo e, sobretudo, a tor­nar degradante a conduta de Jesuina, quase a confundindo com a dona de um bordel. A veneração por Jesuina, que, um tanto inesperadamente, se me revelava, não deixou de me sur­preender. Acudiu-me a ideia de que sempre gostara dela, sem disso profundamente me aperceber. Preso de sentimentos que me impeliam para o passado, reconhecia ser meu dever fazer soçobrar a arrogância de quem se servia de fantasias impró­prias e de episódios fraudulentos com o fim de deformar a memória de uma pessoa estimável. Devia defendê-la, e ao que ela representara, pelo menos para mim. Ocorreu-me escrever uma carta ao director da revista, exigindo o anúncio do nome verdadeiro do escritor, por injúrias a um grupo de amigos e ofensas a alguém indefeso. Logo se me sobrepôs o ridículo da situação. Por outro lado, supus que o autor do texto devia viver, por qualquer razão desconhecida, rodeado de dor, desespero e desdita. Aquele teria sido o modo de vingar-se de algum contratempo que o magoara atrozmente. Só assim se justificava, aliás com reservas, a publicação de tamanha infâ­mia.

Dissemos-lhe que nos encontrávamos com o homem de negro, conversávamo-lo, ouvíamo-lo com activa curiosidade. Evocámos a sensação de desconforto que tivemos quando nos revelara as danificações infligidas ao seu corpo. Jesuina mur­murou umas palavras imperceptíveis. Sob o efeito de vaga es­tupefacção senti-me, por instantes, objecto de intenso e quase perfurante olhar. Contudo, ela observava o vazio, dominada por poderosos pensamentos. Nesse momento despertou do nada e os nossos olhos cruzaram-se. Jesuina tremia, dominada por terrível agitação. A boca torceu-se ligeiramente. Receei a iminência de um ataque, a explosão de uma raiva selvagem. Ou não seria assim? A crise poderia muito bem denotar um estado de fragilidade, inesperado numa mulher cuja natureza parecia preparada para enfrentar todas as contingências, quais­quer contrariedades. Disse-lhe algumas palavras de conforto, um pouco tolas e afectadas. O ambiente era de mal-estar. Jesuina fitou-me: havia nela qualquer coisa que se abatia, sem renunciar a um último esforço de altanaria.

Fechou os olhos e assim os manteve durante alguns minu­tos. Fechou os olhos a fim de não dar a perceber os pensamen­tos que a importunavam.

«Augusto Neiva.»

Ele dissera-lhe, há muitos anos:

«As pessoas como tu existem para inspirar pessoas como eu.»

Mas as palavras comportam várias direcções e possuem o peso que cada um lhes deseja emprestar. Ela retribuíra com uma frase amável, nada mais do que isso. Sabia que ele tinha aversão ao seu próprio corpo, embora ainda não tivesse sido molestado. Sê-lo-ia muito mais tarde, numa rixa em Angola, para aonde fora, como milhares de outros, em busca de me­lhores condições de vida. O país entranhara-se-lhe no corpo e no espírito. Anos depois, em certas ocasiões do ano, chegava a parar e a aspirar a atmosfera junto ao Tejo: cheira-me a Angola, pensava ou dizia a quem o acompanhasse. As pessoas sur­preendiam-se. Aquele encantamento era-lhes estranho. Mas estranho era, realmente, o que sucedera, logo na primeira vez que chegara a Luanda. Amanhecia e sentia-se um poderoso odor a terra húmida, que se lhe colava à pele e o deixava leve­mente entontecido. A bebedeira africana; esse indizível torpor agradável que atraía como um feitiço. Teve a noção, nessa ma­nhã longínqua, de que chegara a um local único, habitado pela felicidade. O bafo quente condizia com o silêncio denso. Uma folha de jornal foi arrastada pela brisa. E percebeu que já vira aquela cena, com os pormenores e as minudências exactamen­te iguais. O déjà-vu não o assustou: haveria uma relação entre a ocorrência e o facto de o seu pai, quando jovem, ter vivido e trabalhado em Luanda? E essa imagem, muito nítida, tê-la-ia ele também visto? A ciência diz que é provável: o cérebro é um arquivo formidável, chega a guardar memórias visuais de qua­tro e cinco gerações. Fora muito feliz em Angola. Regressara com a dolorosa sensação de que nunca mais seria tomado por tamanha felicidade. Quanto mais o tempo passa mais sinto a ternura, os sorrisos, a fidelidade e a graça perdidos para sempre. E havia um homem que me explicava o significado misterioso da palavra Pandinga=terra molhada, numa língua antiquíssima, e começou a falar nessa língua antiquíssima, era um homem antiquíssimo, de rosto impenetrável, cheio de rugas, quase era só isso: uma rede de rugas, rugas fundas, os olhos grandes e amarelados, perguntou-me como me chamava, disse-lhe: Fran­cisco, e ele pediu para tomar conta do meu nome, iria tomar muito bem conta do meu nome porque era um bom nome e eu uma boa pessoa, não me conhecia, só me conhecera naquele momento, era um negro enorme, seco, osso, sabedo­ria e grandeza, e disse-me na sua língua antiquíssima que o meu nome queria dizer amanhecer, e disse-me que o meu coração fora possuído pela vontade daquela terra, e penetrou o olhar na minha infância, amanhecer, disse, e sorriu levemen­te, como se estivesse a escutar vozes da minha infância, daque­le bairro, daquela calçada e dos cavalos que só a desciam, o ruído das ferraduras, as faíscas das ferraduras, o relinchar que parecia queixumes, o relâmpago, o trovão. Festejar o espírito da vida, é o que é. Relembrar as coisas, eis um modo de cele­bração. Tudo isto é um murmúrio, bem entendido; um murmú­rio florido de trepadeiras e de sombras. Observo o homem vestido de negro; corrijo: revejo a memória que conservo do homem vestido de negro. Ele a dizer-me: "Cuidado com as pragas! Não há nada pior do que uma praga. Se for bem lançada, por pessoa competente, provoca efeitos terríveis». Temos de ter cuidado connosco próprios: há um deus dentro de nós.

Mas a instância da morte está por todo o lado.

 

Sente que fora abandonada por todos, e coisa alguma se harmonizava com o que entendia ser a sua alma. Permane­cia assim: dias esquecidos e indiferentes, cavando fundo, as sombras mais frias; tombavam as primeiras folhas amareladas, nasciam as primeiras folhas verdes. Morte e recomeço. Ne­nhum laço a prendia a ternas lembranças, porque as não tinha, a não ser a emoção que tomava conta dela quando recordava os rapazes e as raparigas. Abandonada por todos, unida ao seu pessoal silêncio, era tocada por um sentimento de piedade, muito próximo do religioso. Parecia-lhe uma maldição tudo por que vivera, e certas zonas calcinadas do seu passado emer­giam, agora, nítidas e dolorosas. Não quero acabar assim: en­curralada e assustada. A casa vazia ressumava persistente odor a velhice. A velhice tem um odor húmido que se cola às coisas e, viscoso, parece escorrer pela pele. Tapadas, uma a uma, as janelas abertas pelos sonhos, pelas paixões, pelos desejos, pelas fraquezas e pelas intuições. A subida do desespero extre­mo, instantes sem conteúdo e, simultaneamente, portadores de secretas significações: o torpor de uma tarde suspensa e a inva­são da alma pela morte. Varavam os dias, entretecidos uns nos outros. Sabe-se: gostamos das estações do ano consoante as estações da nossa vida. Apreciamos o Outono quando começa­mos a ficar velhos. A Primavera dói-nos porque nos dói os ossos, os olhos, as carnes do peito e das pernas. Onde menos se supõe, lá está a dor. Mas o pior era os dias finais do Verão: moscas tontas invadiam-lhe a casa, voejavam baixo, poisavam em tudo, sobretudo nos braços e no rosto de Jesuina; mosqui­tos e outros insectos minúsculos, provenientes das lixeiras, monturos fétidos nas traseiras da casa, dos baldios, dos bos­ques a norte cuja vegetação começava a apodrecer. "Porque éque as moscas regressam sempre, mesmo depois de enxota­das?» Ouve o zumbido, agora. As moscas caminhando, pas­seando?, nas mãos de mortos, há mãos crispadas de mortos, mãos distensas e mãos suaves, de mortos. Olhos sem rosto, olhos brancos na arrastada escuridão, na arrastada solidão. Quando espreita entre as cortinas e o vê, recua o tempo: são novos, acreditam em tudo, desconhecem ainda que tudo é inerte, só os sentimentos se alteram e desfiguram; só. Cada novo rosto vai ao encontro do outro, como um novo nasci­mento. Relembra os rostos daquela gente imensa, sentada no chão batido das Terras do Desembargador, ao lado do palácio de baixo, assim chamado por ficar a não muitos metros do rio. Rostos quietos, olhos presos às imagens dos filmes de guerra, projectados num ecrã gigante, as noites eram suaves e eles estavam de mãos dadas, eram tão novos, tão... E, quase sem­pre junto a eles, o cego do Altinho. O cego percebia, pelos sons, o que se passava nas imagens, e o rosto crispava-se ou dilatava-se consoante o entendimento do que ouvia. Depois, tomava o último eléctrico, dos abertos, ainda havia aqueles eléctricos enormes e abertos, é uma pena terem acabado, sen­tia-se o bafo tépido do Verão, era muito bom sentir aquele bafo. O cego do Altinho dizia a cor das coisas servindo-se dos odores: o mar cheira a laranjas; o céu, a uvas brancas; as ruas, a árvores cinzentas; as mulheres, a maçãs. "o olfacto é o senti­do que mais activa a memória», dissera ele. Remove ligeira­mente a cortina: surda ressonância de ansiedade, tremores de volúpia e de repulsa. Ele deixou de aparecer no largo, passo oscilante, orelha murcha, tal como desaparecera muitos anos antes, chamado pelo longínquo céu de África, transparência quente e doirada. A felicidade não existe; há, apenas, instantes felizes. Também se diz que não se pode ter tudo. Mas porque razão não se pode ter tudo? Que nos impede de ter tudo? Quando fiquei só desorientei-me um pouco. Por vezes, era assaltada pelo receio de gritar no meio da noite. Pela primeira vez pressenti-me incapaz de dominar os meus medos e de remediar os meus impulsos. Vagueava pela casa, permanecia horas a reler jornais antigos, o silêncio era denso, o cheiro da solidão horroroso, os pensamentos afluíam e corriam à desfila­da, num tropel doentio. Assustava-me. Pensava na absoluta necessidade de coisas sem importância, mas tudo me conduzia às perplexidades do desalento. O poder das emoções começa­va a esclarecer as causas pelas quais eu fugira de tudo e ali me instalara. Todas as cidades, afinal, dispõem de um sítio onde as pessoas podem recolher-se, e onde o tempo pára quando rimos. Aconteceram tantas coisas turvas que já não tenho aqui amigos e, de vez em quando, foge-me a vontade de viver. Mas nunca me lembraria de sair do meu isolamento. Porque o faria? Tenho respeito por este bairro que me acolheu e que me ofe­receu muitas lealdades. Criei obediências e, de facto, dispus de uma autoridade que nunca reparti, exercendo-a nos meus pupilos na intenção de os ensinar a ver para além deles pró­prios. Não os poupei àquilo que supus ser de utilidade para o seu conhecimento. Quanto às outras companhias, as mulheres que me contavam as suas vidas, os percalços do dia-a-dia, che­gando a desvendar as mais embaraçosas intimidades, ajuizei-as modestas e voluntariosas. Ajuizei mal. A prontidão com que aceitavam as minhas opiniões, com que se não opunham às decisões por mim tomadas, eram sinais de uma falsa vassala­gem, que, cedo ou tarde, rebentaria. A servidão oculta profun­dos ressentimentos: feridas muito finas que jamais cicatrizam. Lamentavelmente, não distingui nelas o reflexo das minhas próprias. Vagamente reconheci que ninguém pode exceder-se em poder e em ascendência sobre os outros. Podemos cuidar das pessoas e, mesmo, julgar que as dominamos; mas não con­seguimos invadir o que nelas existe de mais secreto e de inde­vassável. Quando me excluíram, quando me abandonaram no opróbrio, pensei: não faz mal, tanto melhor. Não me zanguei nem me envergonhei: nada cometera de indecoroso. Mas tinha o coração partido e não o queria admitir. Removo um pouco as cortinas, espio o largo com ansiedade, embora pressinta que o faço em vão.

Por que razão nunca consegui o que quis?

Nunca quis muitas coisas. O que forma a minha e a tua vida foi a atracção mútua, embora nada nos aproximasse. Nem em dúvidas nem em certezas éramos semelhantes. Acreditavas em Deus; eu não só ignorava a Sua existência: desprezava-a. Hoje, admito que esse desprezo talvez contivesse algo de receio e de atracção. Como a morte: atrai-nos enquanto a re­pelimos. Detestavas os meus pequenos prazeres, fizeste-me amargar muitos deles com implacável zombaria: livros, músi­cas, filmes. Não merece a pena nomear as nossas divergências. Provínhamos do mesmo sítio, mas não pertencíamos aos mes­mos sonhos.

Nunca quis muitas coisas. Queria dar uma hipótese a este local antigo, para onde viera viver, e, com paciência, assistir ao fluir do tempo. Gosto da honra que o tempo nos pode trazer, embora nele sobrenadem rostos, luzes intoleráveis, pequenas coisas que existem contra a nossa vontade. Mais um desespero negro do que uma violência fria. Não havia noites nem dias amenos. Tudo me incitava a pensar neles, tudo me conduzia a uma consciência infeliz. Pela primeira vez comecei a pensar naquilo que me separara da minha própria sombra. Atiravam pedras às minhas janelas; refugiava-me no quarto dos jornais, que calafetava os ruídos e, mais do que em qualquer outro local da casa, protegia-me do temor. O temor era uma massa densa, uma rajada que permanecia envolvida no meu corpo, dissolvia-se, voltava, disposta a aniquilar-me. Ouvia as vozes azedas, ameaçadoras das mulheres que, ainda não há muito, se diziam minhas amigas ou, pelo menos, assíduas companheiras dos dias. «Doente, ela é uma doente!», «Está cheia de lama!», «Que raio de mulher!», exclamavam. Para que me serviam os jovens? Perturbava-se e entontecia-se. Talvez precisasse deles para o seu pessoal equilíbrio. Quanto àquelas que a visitavam diariamente e com ela discorriam sobre intimidades, pequenos dramas tão cheios de ninharias e de perfídia, enfim!, talvez um dia se arrependessem, quando tudo fosse esclarecido. Agora, porém, as suas vozes iradas ou falsamente coléricas induziam­-na a pensar no pior. Examinando bem o caso, havia uma pon­ta de raiva em todo o alvoroço. Afinal, passamos a vida a ser outro, a escondermo-nos de nós próprios. Que faço aqui, en­cerrada, perdidos os apetites, um ser que não é; vesgo e falso e ao mesmo tempo verdadeiro?

Impelida por uma teima absurda, decidiu sair. Esperou a noite. O largo, vazio, encorajou-a a prosseguir. Observou, por instantes, em redor. Afastou-se sem deixar de olhar para trás. Hesitou um pouco quando atingiu a calçada. Para baixo ou para cima? Para baixo, caminho do rio. O rio, um belo lençol de água marulhante, apresentava-se negro e ameaçador. Lérias, pensou. E alargou o passo. Não tardou em compreender que nada era sequer semelhante ao que os rapazes lhe haviam nar­rado. E que as narrações eram mentiras. Não, mentiras, não!, fantasias, encantamentos, devaneios ou, quem sabe?, quime­ras. Pensa no que lera um dia: não há verdade, há verdades; não há realidade, há realidades. Também vivia com outras verdades no interior de outras realidades que apenas ela conhecia e sentia. Não é para aqui chamado o que sonho, coisas íntimas, meu recato, mas existi numa multidão de personagens profu­sas, outras vidas noutras terras e com outras gentes. Viajava tanto, sem sequer precisar de cerrar os olhos! "Deixem-me ser feliz a chorar!» Ouvira a frase a quem, e por que se recordava agora dela? Para se ser feliz, por vezes é preciso chorar. Disse­ra-a, recorda-se de súbito, a mulher sem mãos. E, por associa­ção de pensamentos, sentiu saudades do tempo em que lia alto para as outras, atentas e sossegadas. Receou perder-se nas ruas desconhecidas. Nem vivalma. Uma nódoa de silêncio que se alastrava, produzindo um efeito de assombro. A rua é tão an­tiga, tão caminhada, tão cansada, a rua, que os paralelepípedos estão boleados e separados uns dos outros, e brilham na noite. O rio progride à sua direita e parece imóvel. Desliza para a foz e não se dá por isso. Nunca molhara os pés nas águas do rio. Gostava de olhar para ele, conhecia-lhe as cores, consoante as alegrias ou as dores que manifestava: esverdeada, de chumbo, doirada, prateada, azul-celeste, azul-turquesa - mas nunca sentira nos pés a sua água. O rio, como as pessoas, possui sentimentos. Tudo o que vive possui sentimentos. Chegou a pensar que as diversas tonalidades do rio correspondiam às alterações da sua sensibilidade. Não chegava a ser surpresa, esta descoberta: apenas nunca se lhe havia imposto, serena­mente, e, agora, surgia-lhe com excessiva rapidez. Se a lua exerce influência no comportamento humano por que razão o rio e as cambiantes das suas cores não o haveriam de fazer, também, relativamente às pessoas que dele moravam perto? Experimentou uma sensação de segurança e examinou o que a cercava. Silêncio, ordem, a vastidão sôfrega que a tudo resiste, em oposição à torpeza e à falsidade das relações com quem julgava amigas sinceras. Recordou a última visita que lhe fize­ram, na tarde que iria ser pródiga em perturbações. Todas a insultaram, menos uma das ciganas e uma antiga prostituta. Pálidas e dignas olharam-na, detidamente, sem nada dizer. No olhar de ambas revelava-se profunda compaixão, e essa com­paixão provocou-lhe intenso alívio. Deixou de ouvir os gritos coléricos, despreocupou-se com as frases animosas, refugiou­-se no quarto dos jornais, como sempre fazia quando algum acontecimento inusual a desassossegava. Intuiu, vagamente, que nada daquilo por que passara tinha ligação à realidade. À espantosa confusão daqueles dias sobrepôs-se a tranquila opulência do rio. Ninguém a via, tudo o que a rodeava era-lhe desconhecido, a banal fórmula das coisas transformava o seu corpo passivo numa aproximação ao infinito. Por uma vez, gostava de ser aquela que não perde. Num lento desfile fez passar pela memória cenas, episódios e histórias. Naquela casa, afinal, eu não passava de reclusa, imaginando que me preser­vava ow que me refugiava. De quê? Nunca tiveste nada dentro de ti que detestasses? Memória dolorosa e esplêndida de tudo por que passara: entre o maravilhoso dificilmente liberto e o resto de um percurso que a levava a parte alguma. Afinal, oferecera a sua fraqueza, simultaneamente vulnerável e invio­lável, suscitada pela presença corporal dos outros. Não havia razão para repararem numa pessoa como ela. Nada tinha de diferente das outras; mas as outras não o deixavam transpare­cer. O pior de tudo é que aqueles de quem gostamos acabam por desaparecer ou por nos trair. Continua a caminhar. Percebe que a sua idade é a da sua liberdade.

- Deixaste de a ver quando saíste do bairro?

- Não. Havia já muito tempo que a não via. Imaginava-a em casa, movendo-se de um lado para o outro, mexendo nos jornais velhos, certamente recordando-se de nós e dos tempos que connosco passara, tempos afinal felizes, tenho de o admi­tir. E só agora soube que ela saíra uma vez, pela calada da noi­te. Mas alguns de nós começámos a andar um pouco com o homem de negro. Afastaram-se os receios iniciais, as maneiras tornaram-se comedidas. Sentávamo-nos no murete que delimi­tava as grandes hortas do cemitério e ouvíamo-lo com a curiosa atenção reservada a personagens que nos inquietam e intri­gam. Por esta e por aquela frase menos obscura descobríamos certos aspectos mais nebulosos do seu passado. Mas ele queria fechar os olhos e não voltar a ver os sítios por onde tinha anda­do. É impossível. As recordações perseguem-nos sempre; por vezes, parecem serenadas, mas voltam quando menos por elas esperamos. E, certamente, ele tinha lembranças de coisas terrí­veis ou dolorosas, como toda a gente. Esforço-me por ocultar, de mim mesmo, o condenável comportamento que tive, a re­pulsa que senti quando, certa tarde, chovia a cântaros, eu ob­servava a rua através da vidraça embaciada. Havia um grande silêncio em toda a casa, estávamos sós. Ela surgiu por detrás de mim, prendeu os braços no meu pescoço, puxou-me e voltou­-me, colou a boca na minha boca, beijou-me, o hálito dela era desagradável, não me largava, repeli-a com brusquidão. Afas­tada, olhou-me, no constrangimento da humilhação, pareceu que se desmoronava, os ombros caídos, o rosto deformado. Sussurrou; pareceu-me que dissera: ,Tinha-me esquecido do sabor dos beijos.» Correu pelo corredor, lá para dentro, a chuva bateu com violência na vidraça das janelas.

- Alguma vez pensaste que vocês viviam de forma distin­ta da de as outras pessoas?

- Ponhamos a hipótese de que sim. Mas nenhum de nós, vez alguma, interpelou os outros. Soube que ela saíra, uma noite, à procura de uma cidade que não existia, que nunca existira. Creio que, nessa ocasião, pensei, vagamente embora, na necessidade de escrever acerca das coisas que iam adquirin­do outra expressão, e da tristeza que me sobreveio quando abandonei a infância e entrei na adolescência. Não sei se gos­távamos dela, não sei. Apreciávamos os segredos desse doce e lúbrico convívio, das insinuações contidas em certas frases por ela muito bem escolhidas e do ambiente, como direi?, do am­biente enleante jamais dissipado naquela casa. Creio que as outras mulheres também se deleitavam com essa atmosfera insidiosa, um pouco propícia à lascívia. Todas gostavam de lá ir e de lá permanecer; mas a verdade é que ninguém a defen­deu. Afinal, aqueles que julgamos bons tapam os olhos à bon­dade. A bondade é cega; não é a justiça, é a bondade. E o peso da bondade é muito penoso e árduo.

- Trataram-na assim, porquê?

        - Por inveja e por despeito. A inveja nasce da impossibi­lidade de alguém fazer o que vê a outro. O despeito é filho da mediocridade. A inveja é desespero; o despeito é ignóbil. Ela julgava que merecia muito mais do que obtivera. Mas fora ela quem escolhera o modo de vida com o qual se sentia bem. E esse modo de vida estava interdito às outras mulheres, pela simples razão de que as outras mulheres tinham calcado a sua pessoal coragem, e desprezado as coisas da vida, do entendi­mento e da paixão. O homem de negro disse-me: «Cheguei a ser feliz com ela. Não foi só sofrimento. Não havia mais nin­guém, enquanto com ela estive: havia, sim, o sonho de outra pessoa. Tudo o que o amor constrói com dificuldade, o ódio destrói facilmente. Foi quando fugi.» Quase sempre falamos com a voz dos outros. Ela só queria que gostássemos dela.

 

Quem deixou no espelho os traços do envelhecimento do nosso rosto? São esses traços silenciosos que se tornam assustadores, exactamente porque não possuem sons, não dis­põem de instrumentos acústicos que funcionariam como suple­mentos de acusação a tudo aquilo que ocultamos. Quando enfrentamos um espelho, no qual se pode ver as próprias re­cordações, descobrimos que a memória foi manipulada e adap­tada às nossas particulares finalidades. De contrário, seríamos profundamente desgraçados, porque obrigados a carregar pe­sos desconformes, como sejam os erros, as velhacarias, as trai­ções que cometemos.

Escrevo: cada um lida com a dor à sua maneira, mas ne­nhuma dor é solitária: faz parte da grande dor do mundo. E não me sinto à vontade em dizer o nome dela. Jesuina. Ouço-a: «Sou velha de mais para ter ambições.» Está na minha frente. O rosto carregado de temor e de solidão. No fundo, o que ela mais desejava era companhia; um pouco de afecto, o calor de um corpo novo que lhe avivasse memórias de outros corpos. Está na minha frente. Adormeço e sonho, mas uma parte de mim está acordada. Jesuina dava-nos esperança. Vivia num mun­do só dela e isso queria dizer que, quem quiser ser livre, tem à sua frente um imenso território: o do sonho. Ela dava-se mal com tudo o que a rodeava. Fora ferida e tentava esquecer. Quanto mais envelhecemos mais o fenómeno do tempo se tor­na enigmático. O bairro onde vivíamos estava cheio de segre­dos e de histórias extravagantes encenadas por gente cujas fisionomias também se desvaneciam. Diz Jesuina: "Às vezes, penso na minha mãe. Não conheci a minha mãe mas, às vezes, penso nela, e chego a divisar-lhe o rosto.» Diz Jesuina: "Nunca recebi prendas, mas não tenho medo das desilusões. No entan­to, durante anos a fio pensei que, um dia, chegaria a minha vez de ser feliz. Nunca chegou. Nunca esperes porque nunca che­gará tal dia.»

Ela não era apenas uma imagem nas nossas mentes. Que nos ligava a ela? A sensação muito nítida de que nos protegia, e a confusa atracção, feita de receios, mas incitadora de uma agradável sensualidade. Por vezes, sonho ainda com essas ce­nas sinceras e perturbadoras. Os nus, um pouco imprecisos e turvos, regressam às recordações, sucessão de imagens, umas acentuadas, outras difusas. Relembro-a: dava a impressão de que estava sempre a dirigir uma operação importante. Mas até isso se desvanecera. Retomara a amizade com uma cigana, retornada ao bairro depois de uma prolongada estada em ter­ras do Sul. A cigana aproximara-se, a princípio com evasivas e esquivas, caminhando vagarosamente no passeio junto à casa; estacando, breve, junto à porta; parando, demorada, até que tocara no batente, Jesuina abrira, convidara-a, com um gesto, a entrar, e estiveram longo tempo a olhar-se, a observar-se, a desviar os olhos. ,Não tens culpa de nada», dissera a cigana. "São coisas da inveja.» Encolhera os ombros. A dor que sentiam era outra forma de queimadura. Quando nos magoam, ou nos magoamos, fechamo-nos dentro de nós. É estranha, a capaci­dade que possuímos para proceder a esse encerramento. Nun­ca mais ninguém a procurara. Aventurara-se a sair, a enfrentar as ruas de dia, a andar por sítios desconhecidos, absolutamen­te diferentes daqueles que visitara de noite. Tens de escolher entre o ontem e aquilo que realmente queres. Agora, ao anoite­cer, iluminava as salas da casa, removia as cortinas, deslocava-se de uma para a outra divisão, folheava os jornais, ocasionalmen­te cantarolava, sentia um fulgor novo, um alento, uma respira­ção, o eflúvio das madeiras, o aroma provindo dos bosques e que perfumava tudo em volta. Seria mesmo assim?

Escrevo: os padrões do tempo eram indiferentes à forma­ção do carácter e, até, incitavam à existência de segredos. Des­cobri algumas coisas sobre pessoas e acontecimentos. Mas essas revelações sucederam muitos anos após eu haver saído do bairro, e de ter empalidecido a memória das primaveras verdes e frescas, dos verões escaldantes que nos impeliam aos mergulhos no rio, dos outonos com árvores despidas, o pinho castanho ressequido a acumular-se em montículos, o Inverno cheio de chuvas que entupiam as sarjetas e atolavam os buei­ras. A reclusão de Jesuina obedecera, tenho quase a certeza, à fuga dos caídos. De uma maneira ou de outra, todos somos caídos, mercê de desgostos, maldições, pragas, lamentos, ameaças, perigos. Há quem consiga fugir, na vã tentativa de escapar à perseguição de dolorosas lembranças; há. Outras, não o conseguem; não. Porém, ambas as decisões são ociosas: nada resolvem: a memória é um juiz inclemente. Remato: refu­giou-se, expulsou-se pela simples razão de não estar de acordo. Com quê, e com quem?

 

Até parece que existe uma razão para as coisas acontece­rem. Um dia perguntei-lhe: porque é que ninguém gosta de si? Porque é que ninguém a visita? Porque é que não tem marido? Porque é que não tem filhos? Nem tu nem ninguém sabem nada de mim. Se alguém soubesse, matava-me; há uma zona obscura, secreta, em cada um de nós, que temos de res­guardar. Disse e fitou-me como se tivesse sido gravemente ofendida; não, ofendida, não: ferida. Além disso, estou cansada de me magoar. Disse ainda. E a verdade é uma história parcial­mente contada.

E também disse: Continuo a ter de me preocupar contigo? Sempre olhara mais por mim do que pelos outros, essa é que é a verdade. E aquela distinção embaraçava-me, quase como uma afronta. Apertava-me muito nos braços, beijava-me com incisiva doçura, não me sentia bem, não me sentia mal. Expe­rimentava em mim próprio sentimentos que não supunha exis­tirem. Era enleado, sonhava que estava dentro da música, de uma música. E eu era a música.

Reparo, agora, como num puzzle recomposto, nos rostos das outras mulheres quando ela me acariciava e me estreita­va. Reprovação, surpresa, escândalo? Afagava-me lentamente, observava o olhar das outras, dizia mansamente: «É como o filho que nunca tive e que sempre desejei»; mais beijos, mais aconchegos. «O mundo está cheio de gente que pensa não ter tido sorte nenhuma na vida», disse uma, e o tom era de censura. Mas ela só me largava e abandonava os afagos quando muito bem entendia. Através dessa autoridade, impunha-me limites aos pensamentos, isolava-me dos meus actos e das minhas confusas intuições. O medo e a atracção que, alternadamente, me inspirava fundiam-se num desejo obscuro que se cumpria no adivinhar dos contornos do corpo dela e de premonições de cenas de sexo, onde a violência não estava ausente.

Fora ela quem nos escolhera. Finalmente, pudera escolher alguém. Fora sempre por outros escolhida e aceitara com sub­missão essa espécie de destino. Desde que tomara conta de nós, de nós se apoderara com fúria mansa e sentido de posse definido, carnal e até inclemente. Numa dessas vezes em que parecia absorta em pensamentos profundos, vieram-lhe aos lábios estas palavras só na aparência sem propósito: «Quem me dera sentir saudades de um amor que nunca tive.» No entanto, a frase comportava em si um secreto sentido.

Como verificam, não consigo discorrer sobre estes aconte­cimentos sem os escrever assim: cenas soltas, episódios avul­sos, frases desirmanadas, gestos isolados. A verdade é que ela nunca se entregou, cedeu ou franqueou as portas dos seus mistérios. Prestou-se a toques, a carícias, a trânsito de mãos, por curiosidade e também para suscitar curiosidades, por jogo, por autoridade, por amizade intensa, calorosa, sensual, posso dizê-lo, mas sem pretender ultrapassar os limites afectuosos por si própria impostos. Vejo-a abrangida por uma paixão seca, dominada, refreada, cuja intensidade, no entanto, se exprima por todo o corpo. Porém, a autoridade do corpo atemorizava­-a, embora entendesse que se lhe devia submeter. Por outro lado, também exercíamos sobre ela um poder repressivo, pos­suidor de uma vitalidade, uma força e uma persistência de natureza desconhecida.

Mas ela voltara a sonhar, e isso era bom sinal. Quando ia ao aposento dos jornais recuava no tempo, afundava-se na memória dos dias, e a releitura de cada notícia, a descoberta de uma nova história antiga revertia-a para remotas horas da sua vida.

Acidentalmente elevava as lembranças ao registo da voz. Depois, caía em si e não sabia se falara alto ou se, apenas, tive­ra a noção disso. De qualquer modo disfarçava, para si mesma, o que considerava uma fraqueza de espírito. A solidão agredia­-a mais do que a ausência das amigas, porque a impelia a recordar, e certas recordações eram-lhe penosas devido a faze­rem emergir desalentos e derrotas. Por muito que pretendesse afastar os pensamentos, não conseguia esquecer a presença dos homens que amara ou por quem fora amada; amada ou, unica­mente, desejada e possuída. Voltava a sentir os toques deles no seu corpo, os odores de cada qual, os lentos sussurros e as indistintas confidências. Estavam, todos eles, longe no tempo, mas, afinal, perto das suas memórias aparentemente mais re­cônditas, o que a irritava porque se lhe tornava impossível evi­tar a submissão à tirania do passado. A liberdade que julgara ter conquistado não era, enfim, perfeita.

Muitas vezes ficamos em certos sítios, ou com certas pes­soas porque achamos que não merecemos melhor. Lia e relia os jornais que arquivara, sabe-se lá com que sentido?, mas as reminiscências não a abandonavam, ressurgiam vivas, ardentes, entre a adoração, a melancolia e o desejo. Não queria e queria, através da consciência simultaneamente madura e prudente que a impelia a conhecer, com exactidão, os seus motivos, as suas intenções e os seus actos morais.

Tens dúvidas quanto à natureza do ser humano? Há por­menores que gostaria de contar, talvez me aliviasse; o incon­veniente de não ter intimidade com ninguém impede-me de entrar em confidências. E uma espécie de remorso abstém-me de ser guiada, nas minhas decisões, pelo julgamento dos ou­tros.

Caminhava por toda a casa, debruçava-se na janela rectan­gular que dava para o jardim; seguia, com olhos indiferentes, o voar raso dos pombos; sentia, sem sentir, o aroma das flores, o rumor das copas das árvores, a brisa amena do rio. Colocava­-se nos cantos mais sombrios dos quartos, como se quisesse recolher a natureza do silêncio e abranger o enigma das trevas. Ou como se se refugiasse de algo ameaçador. Às vezes, não sei o que fazer; então, improviso. Sentava-se na sala, beberricava vinho branco, pequenos tragos, erguia-se, voltava a sentar-se, bebia mais, aos goles cada vez mais espaçados mas também maiores, ficava ligeiramente entontecida, emocionada, comovi­da, convencida de que a realidade era, simultaneamente, interior e exterior a si própria, e que tudo dependia de testemunhos mútuos. Não chorava. Mantinha-se invisível e escondida.

«Guarda as tuas lágrimas. Um dia podes precisar delas.»

 

Não sei para onde foi parar aquele tempo todo. Não sei o que fiz ao meu tempo. Não sei se agora é tarde. Não sei se é a dor que nos faz durar. Sei, porém, que sempre me senti livre. Faltam-me, claro!, os rapazes e as raparigas que ajudei a formar. Passaram muitos anos. Fui sabendo, ocasionalmente, o que lhes sucedera, para aonde tinham ido, quais os avanços e os retrocessos das suas vidas. A ausência é que a magoa e vai destruindo. A ausência, não a velhice; a ausência e o abando­no. Lembro-me de ela me ter dito: «Nunca aceites um ofício que te digam ser útil. Não há ofícios úteis. Há ofícios que nos fazem sentir o coração.» Eu não sabia muito bem o que fazer. Talvez desejasse fechar-me nos meus sonhos, nunca deixar a adolescência, viver como ela vivia, construir as minhas pessoas esperanças e existir no interior de elas mesmas, o que quer que esse interior fosse ou, mesmo, se é que existia. Naquela época da minha vida, todas as pessoas me eram gentis, corteses e encantadoras. E nenhum interior era oco. De repente, dera pela solidão; a solidão batera-lhe à porta. Vivera sempre com outras pessoas, encerrara-se entre muros, criara esses muros, depois, tudo ruíra.

A solidão vem de mansinho. Pés de feltro, insinua-se, sinuosa, cheia de astúcia. A solidão não gosta de estar só. Sabe, a solidão, que as pessoas conseguem viver com tudo, mesmo com tudo o que há de pior - só não suportam conviver com ela, a solidão. E ali estava, estonteada, a caminhar pelos quar­tos, a parar um pouco neste e naquele, a procurar nos jornais antigos, talvez, talvez, o que o tempo lhe fizera. Afastava as cortinas e observava a rua, os caminhantes, as sombras daque­les que já não existiam, embora houvessem corporizado algo de imponderável, e quem sabe?, algo de imperecível.

Quem sou eu para lhes dizer que não podem viver os seus sonhos? Ensinei-lhes o corpo para os ensinar a sonhar. Mas eu ignorava que o sonho não tem em conta a natureza humana. Sente os remorsos que quiseres, mas não és culpada de coisa alguma de mau. Apenas, apenas... Lembra-te do que te disse a cigana.

Passei a maior parte da minha vida aqui; a melhor parte da minha vida neste bairro, nesta rua, nesta casa. Não saberia viver noutro sítio. Gostaria de ter vivido noutro sítio. O meu instinto de independência funda-se, inteiramente, nos julga­mentos dos outros acerca dos meus actos. Mas a minha liber­dade afirmou-se nas escolhas preferidas.

Decorreram alguns anos, muitos anos. O que me irrita ou alvoroça é quando penso: o pouco que mudou volta ao mes­mo, sob outras formas. Se eu não devesse ou não pudesse uti­lizar a minha liberdade, porque razão a minha vontade foi criada livre?

 

Estou com os meus amigos e bebemos vinho branco, fres­co. O calor é imenso. Corre-me o suor pela cara, pelas costas, camisa encharcada, pescoço a arder. Diz um deles: , «Vi­nho, é tinto; branco, é refresco; verde, a cor da garrafa.» Rimos todos. Não temos muita vontade de rir, mas rimos. Fomos ao enterro de Mickey Rooney, e viemos, cada um, de vários sítios da cidade. Não todos. Os ausentes diluíram-se nessas minu­dências da vida que são o seu mistério e a sua purga.

«É estranho, sempre tratámos o Adérito por Mickey. Mic­key pràqui, Mickey pràli. E já nos tínhamos esquecido do nome dele, Adérito, Adérito quê?», disse um de nós.

«Adérito Mickey», disse outro.

Esquecêramos de muitas coisas; ou havia muitas coisas que queríamos esquecer. Já nada sabíamos uns dos outros. Nem os nomes, nem a que alcunhas correspondiam este e aquele. Tudo o que víamos ocultava outra coisa. Conversáva­mos de vulgaridades, mas o que dizíamos eram sons estranhos, sem significado aparente, se é que os sons humanos não pos­suem significados mesmo quando nos parecem ambíguos.

Bebemos com vagar. Talvez desejemos prolongar o encon­tro. Talvez. Ou não. As faces são outras faces; não conseguimos manter as aparências e as nossas relações deterioraram-se por antiquíssimas e por ausência. Somos sonâmbulos de um passa­do sem imagens ou com imagens toldadas. Na realidade, que­remos recuperar a infância, quando o nosso olhar estava cheio de decisões e a cabeça cheia de respostas. Na realidade, com­preendemos que a infância tinha terminado, e que não havia respostas para quase tudo.

Afinal, nunca fomos verdadeiramente amigos. Insinuou-se

em nós uma peque nina porção de despeito, de rancor e de rai­va. Examinávamos como um e outro estavam vestidos, a de­senvoltura ou a contrição do falar, o modo como cada qual olhava: com apreensão, com curiosidade, com alheamento, nun­ca com afecto, acaso com cortesia. Tínhamo-nos abraçado com circunspecta emoção. Observávamo-nos levemente expectan­teso Não nos víamos há muitos anos. Percebíamos, vagamente mas percebíamos, que perdêramos o nosso lugar, se é que alguma vez tivéssemos sido donos de coisa alguma. E, de súbi­to, eu soube que tinha de procurar neles aquilo que os tornava suportáveis.

Sentíamos a presença dela, lados desiguais de intensidade, confusos transportes das lembranças, um de cada com cada uma, e qual delas a mais feliz, ou a menos afectuosa. A ligação inextricável do subordinado ao seu mestre e um premente, quase asfixiante, clima de feminilidade. Todos nós possuíamos uma história e alguns segredos que, em muitos aspectos, coa­bitavam com uma espécie de união sexual. De súbito, a ausên­cia de vida, e a ideia de que a morte era um mero acidente constantemente actualizado. Porém, a compreensão desses es­tados possíveis requeria, pelo menos de mim, não falo pelos outros, um grande e fatigante esforço. «Não se morre; apenas se muda de lugar", dissera ela. Porém, quando se muda de lu­gar há um pouco de nós que morre.

Ela não só gostava de exercer o poder em nós: creio que nos amava de um modo e de uma maneira como mais nin­guém nos amou. Gostar e entender os outros são coisas dife­rentes e por igual complexas. Ela dirá, não se sabe para quem, mas dirá, tenho quase a certeza: «Eu apenas fiz nascer os so­nhos que já existiam em vocês.» Olhamo-nos e não nos co­nhecemos. Se todos esses dias, se todos esses episódios, se todos esses rostos não existiram, então todo o resto não passa de um sonho.

«E quando fomos ao Salão Portugal ver Ressuscitados?" «Já me não lembro.»

«Passaram-se muitos anos."

«Ressuscitados, com o Lon Chaney.»

«Talvez. Chaney. Talvez.»

«Chovia muito e fomos todos ao cinema.»

«Ressuscitados, com o Lon Chaney. Saímos antes do fim, cheios de medo. Era um filme de terror, com o Lon Chaney.»

        Ele não exprimia directamente a cólera que o invadia com o esquecimento dos outros: apenas insistia:

        «Ressuscitados, Ressuscitados, com o Lon Chaney, com o Lon Chaney.»

Examinávamo-lo como se fosse um fantasma emerso de sombras e de adeuses. Mas não fazíamos o menor esforço para seguir o seu raciocínio e acompanhar as suas memórias. De súbito, apercebi-me de que todos nós revivíamos o episódio com alguma nitidez e que, por qualquer obscura razão, recusá­vamos que ele despontasse no fluir da conversa. Sublimáva­mos a memória ausente com as ausências que nós próprios infligíamos à memória. Criávamos algo de insólito com o que perdêramos ou deixáramos escapar.

«Ressuscitados, lembram-se?»

 

Há um momento furtivo e incerto no dia, em que o dia parece parar: não desapareceu e ainda não mergulhou na noite. Talvez então possamos aprender o que se passa den­tro de nós. Às vezes, procuro entender o que dizem essas vozes suspiradas: falam de coisas remotíssimas, de gente. Mas quem é aquela gente? Imagino-as. A imaginação esclarece a intimidade mas não atenua o chumbo da velhice.

«Eh, Jesuina! Eh, Jesuina!»

        Agressão e violência, desprezo e violência, ódio e violên­cia. Faz-lhe falta ler para as outras, as outras fazem-lhe falta; faz-lhe falta olhar para os jovens e o ruído deles; faz-lhe falta saber que todos têm alguma coisa a perder e sentir que dela não precisam ou precisam e não dizem.

«Eh, Jesuina! Eh, Jesuina!»

        Temia-as, mas não queria dar a entender o meu temor.

Vigiava-as de um canto da janela. Via-as passar, resmungando impropérios e insultos. Nem um homem, notei. Só mulheres. E pressinto que, tal como eu, pouco ou nada tiveram na vida, nem sequer a mais leve cortesia. A afabilidade que demonstravam era, somente, a máscara dos seus desgostos, todos eles fundos, agrestes, secretos e, acaso, sórdidos. Vingavam as suas pessoais ressacas, atribuindo as culpas àquela outra que ousara explicar aos seus tutelados os mistérios do corpo, e os nãos que ocultavam o ardor dos desejos. Toda a repulsa esconde a mais inflamada curiosidade. Elas não criticavam e rejeitavam o que não compreendiam: rejeitavam e criticavam os seus mais íntimos gostos. Todos os crimes encobrem uma paixão, e todas as paixões possuem algo de criminoso ou de impulso para o crime porque não são saciadas, em nome das conveniências.

Alimentara as histórias de amores longínquos porque, na verdade, precisava de acreditar que esses amores haviam exis­tido. Mantivera, no silêncio e nas evasivas, a teia de suposições que as outras sobre ela teciam. Afastara, do corpo, o ardor do desejo. Não. Não conseguira afastá-lo: apenas o adormecera, na esperança de que, um dia, um certo dia, abrir-se-ia uma ja­nela na outra parte do mundo, e algo de diferente aconteceria, para a levar a conhecer outras diferenças.

Esquecera-se, no entanto, de que a esperança é uma virtu­de que pertence ao passado. Ou não se esquecera e apenas persistira na teimosia da esperança?

Afastava as cortinas da janela. Permanecia assim, um rosto turvo de dor e esfomeado de gente, a espreitar, a espreitar, aca­so por vezes sem ver, ou a ver sob outra luz as pessoas que passavam e a miravam de soslaio, entre o desdém e a curiosi­dade. Aquele rosto de cor sépia, que todos os dias envelhecia um pouco mais, inspirando pensamentos escabrosos que só o silêncio e o isolamento concitam.

Fora, também, assaltada pelo medo. Quando deu por isso, permaneceu acordada as primeiras noites. Um turbilhão de recordações surpreendeu-a porque a muitas delas as julgava sepultadas na parte mais reservada do seu íntimo. E sentiu que a vida lhe pedia vontade e paixão, não a ligeireza do fervor. Os sonhos não possuem voz; porém, nos seus sonhos, ela ouvia: «Eh, Jesuina! Eh, Jesuina, grande puta!»

        Não me chamo Jesuina, pensa. Nunca saberão o meu nome verdadeiro. Sonhava sem dormir? Ou era aquela mentira de sono que fazia despertar uma espécie particular de culpa e de remorso? E lá vinham as palavras da cigana, a sossegá-la, nada tinha de se desculpar, nada fizera de reprovável. Voltava a vê­-los, sentados em volta, a ouvi-la contar histórias bizarras, ou, então, deitada com um deles, um pouco confusa, um pouco intimidada, um pouco feliz.

Sou velha, não preciso de que me o recordem, pensa. Sei que nada do que foi feito poderá alguma vez ser apagado. Po­derá, temporariamente, ser esquecido; um dia, porém, quando menos se espera, a recordação voltará, pensa.

        «Para aonde vão os pássaros quando morrem?», tínhamos­-lhe perguntado.

em baixo, mar de chumbo: o rio ia cheio e temível. Pe­quenos pedaços de sol no cume de alguns montes da Outra Banda.

        «Vão para onde morre o mar», respondeu.

        Breve sorriso, agora. Tem as mãos pousadas nos joelhos, os dedos entrelaçados.

 

«A memória existe para atraiçoar os factos», diz um deles. « E suprimio-nos aquilo de que não gostamos.»

Com o rodar dos anos eu aprendera que a memória é a base da identidade; e ela decidira suprimir a memória a fim de preservar a ocultação de quem era. Eu sou mais do que eu, e não há nenhum caminho para a fuga.

O homem de negro dissera-nos: "Um dia hei-de contar­-vos tudo.» Mas não contara. Nem era preciso. As coisas me­lhoram quando ampliadas pelas exigências da imaginação. O homem de negro fora-se, do mesmo modo como surgira. Aliás, tudo desaparecia e tudo parecia velado pela distância, pela reserva e pela natureza daquilo que desejávamos ou não.

Mesmo cada um de nós fora-se afastando. Procurávamos outros bairros, outras ruas e outros amigos. Sei o que vocês estão a pensar: que transportamos sempre, dentro de nós, o local iluminado pela luz festiva da infância e da adolescência. É verdade. E não receiem amar o passado onde foram felizes porque jovens. Até eu, que tenho tudo para me queixar, sinto o coração alegre quando reverto as ideias para esse tempo. Ainda hoje estremeço quando revivo as cenas ocorridas com Jesuina, o seu corpo majestoso e albergante, a sua grandeza severa e irónica.

Tê-la conhecido era como estar no interior de uma semen­te. Fora a única verdadeiramente amiga que tivéramos. Pode­remos falar de Jesuina dizendo que sentia ternura e compaixão por nós; e nós éramos o que lhe restava para nos oferecer aquilo que tinha para dar. Compaixão e ternura que os outros, simplesmente, ignoravam ou desdenhavam. Os outros. Os ou­tros que nem ela própria sabia quem eram, quem tinham sido. Os outros: a ameaça invisível.

Os outros, nós, por exemplo, que começámos também a execrá-la. A ameaça, o perigo éramos, afinal, nós. Não suportá­mos o desdém mordaz com que os adultos nos olhavam; o directo destino da infâmia para que nos apontavam as mudas observações deles, os risinhos, os gracejos em surdina, as zomba­rias declaradas. Jesuina era a causa de todos os males, a origem da nossa infelicidade. Eliminámos, lentamente mas consciente­mente, a associação àqueles jogos fúteis, que nos traziam àlembrança descoradas cinzas e parcelas de compassivas ternu­ras. Odiámo-la porque, de repente, fôramos abandonados pela avidez e pela ansiedade que precediam o vagar quase penoso da nossa excitação.

Colocávamos à sua porta excrementos dos cavalos, ratos mortos, lixo que transportávamos dos caixotes da vizinhança. Tudo se desintegrava e a maldade apossara-se de nós. Pouco a pouco, nas tabernas da calçada, onde os homens bebiam e jogavam, fomos sugerindo pequenos episódios perversos, que nos pareciam adequados à culpabilização de Jesuina. É razoá­vel imaginar qual o resultado obtido por essas maquinações. Os homens que bebiam e jogavam nas tabernas da calçada contaram a outros as histórias que inventáramos. Não tardou muito para as mulheres deles apedrejarem as janelas da casa de Jesuina. Demasiado incompatíveis com a realidade, as mu­lheres a quem os maridos haviam contado as histórias inventa­das, aumentaram-nas com pormenores incríveis.

«Desgraçada! Desgraçada!»

        Olhava para a rua, para as pessoas que se juntavam e a ameaçavam; estremecia: pálida, trémula, sobressaltada por pen­samentos terríveis. Andava de quarto para quarto, apertava os ouvidos, refugiava-se num canto, mas regressava à janela, es­piava a rua, removendo um pouco as cortinas, o ruído das vozes erguia-se. Juntava as mãos, implorava em silêncio, não sabia a quem.

Esteve sempre à espera de que alguém dos outros lhe dis­sesse que precisava do seu amparo. Mas ninguém foi ao seu encontro; ninguém daqueles que ela julgava necessitarem de delicadeza, compreensão e, quem sabe?, de um pouco de feli­cidade.

Ela esteve sempre errada; ou não? Ninguém faz nada por ser certo, só o faz quando a isso é obrigado.

 

Olargo voltara a ser o que fora. Ouvia-se o rumor manso da serração de madeira; os ruídos das ferraduras dos ca­valos que todos os dias saíam dos quartéis; faíscas nos parale­lepípedos, resfolegar; este ou aquele grito; o guinchar dos carriléctricos a curvar para o desvio. O cheiro forte e ácido da fundição de metais. E, quando o vento mudava, um odor de salsugem inundava as ruas.

A ausência não me afastara dos locais. Afastara-me do de­sejo. Eu fora simplesmente removido daquilo que julgara inte­ressar-me. Mas já nada me interessava, a não ser, talvez, um pouco de carinho, uma pequena ração de afecto, um quase nada de compaixão. Isso me bastaria. Nem o futuro me interes­sava; aliás, não havia futuro, nem para mim nem para ela.

Estática e extática, horas a fio, dias seguidos, semanas sem conta. Às vezes, passeava um pouco pelo largo, ligeiramente entontecida, remota, longe das coisas, e as pessoas olhavam­-na com desprezo ou indiferença, ou como se a não conheces­sem. Deixara de conhecer os outros, os outros não a queriam. Essa presença na ausência já a não magoava. Vultos, sombras, fantasmas de um tempo que não existia, que nunca existira sequer.

No começo de certa noite embrulhou-se num xaile e des­ceu a colina. Passou pelos quartéis, cruzou-se com criaturas também elas embiocadas, percorreu o baldio do rio, caminhou ao lado dos armazéns e dos hangares, trevas e escuridão, silhuetas que se transformavam em espectros, o marulhar cavo das águas.

        Foi para o outro lado da cidade onde, parece, havia caste­los e árvores esquisitas e flores extraordinárias. Havia?

        Caminhou até se perder no interior de outras trevas espes­sas.

 

Do fundo tenebroso das lembranças, ergo às vezes o ros­to, tentando perscrutar o silêncio que as envolve. É pre­ciso esquecer muita coisa. Mas aprender que o tempo já não nos pertence torna-se penoso: vai demorar muito a habituar­mo-nos à crueldade de que a nossa vida tem tudo a ver com sacrifício, dor, perda e pena. Tínhamo-nos perdido uns aos ou­tros, o futuro deixara de o ser e, por isso, deixara de nos inte­ressar. Ninguém sabia de ninguém. E na maior parte da vida andamos perdidos. É preciso, porém, que acreditemos em nós próprios. Porque é que as pessoas têm sempre de estar em lados opostos?

passou muito tempo. Tanto, que só me reconheço quando desejo abandonar a infância. Às vezes, passo por lá. Não sei o que procuro porque já nada existe. Onde ela viveu está um prédio feio. As casas térreas foram demolidas. O largo perdeu as árvores, a cor e o encanto. Tem tristes bancos de pe­dra. Por detrás das cortinas das casas que já não há, ela vigia, observa as pessoas que por ali já não caminham, e olha para as nuvens que deixaram de ser rodas de bicicletas no céu.

 

                                                                   Baptista Bastos

 

 

 

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E uns tinham apenas gasto horas, outros a eternidade; e apagava-se o rasto convulso de uma consciência cujo segredo perdêramos havia muito sem disso darmos conta; e tudo era indiferença, talvez recordação da ausência, talvez; de uma maneira ou de outra todos temos cicatrizes: há umas que se não vêem. Bruscamente, notou que os vizinhos se mudavam aos poucos, um a um, casal a casal: retirantes de um bairro que já nada lhes dizia, de ruas sumárias cujo passado pertencia a outra história que não às deles. Um outro silêncio sobrepunha-se ao seu silêncio interior. As coisas lacónicas e recessivas que, outrora, o demoviam ou faziam agir iam desaparecendo. Teve medo de mergulhar nesse lago podre que é a solidão. E entretanto as ruas esvaziavam-se. Sem rostos nem sons. Renunciavam a conviver com aqueles que haviam criado a esperança para melhor a poder perseguir e sitiar. Anos a fio dedicara-se à civilização e ao mito e vivia entre a beleza e a indignação, mas uma espécie de impotência espiritual, resignada e soturna, impedia-o de realizar as suas aspirações. Guiava o carro com precaução; porém como se estivesse distante: sofria o seu próprio silêncio. Mas a memória restaurava contra si a escrita invisível do tempo, os rumores de ruas reencontradas, de gestos evanescentes; rostos e mortes ressurrectos, o bulir das folhas no renascer de curtas primaveras, e amara-a mais do que é possível dizer. Os tempos que passámos juntos ajudam-me a recordá-la. Por isso não a abandonara. Queria conservar dela a lembrança da minha juventude: o seu rosto de antigamente era o meu rosto de antigamente. Disseram que eu fora insensível; que manifestara um sentimento muito próximo da indiferença e do desdém. Ah!, como as pessoas não entendem nada das pessoas. Mas, apesar de tudo, a morte, ocasionalmente, é mais do que aceitável e desejável: é reconfortante. Tenho o sentimento da perda mas, também, a percepção da qualidade do silêncio. Não pretende encurtar a distância. Gosta da natureza oculta e do sentido secreto da palavra demora. Conduz o carro por um caminho antigo, ainda o mesmo desde os tempos da adolescência, quando ia para a aldeia passar férias. Conserva na memória, no ponto mais

     A memória, porém, é uma cábula que só diz o essencial, e a que recorremos quando procuramos respostas vitais. Em vão: a memória não possui um registo fidedigno. A memória, com indulgência e reserva, alimenta os esforços que fazemos para reavivar impressões soterradas, mas destrói as imagens mais vivas acumuladas pela lenta sedimentação dos anos.

     O caminho antigo termina abruptamente num campo de cardos. Pára o carro, desliga o motor. Agora pensas assim: a minha imaginação era intrépida mas a realidade física admoestava-a com severidade. Nunca gostei da realidade: a realidade contém resíduos de múltiplos horrores e apresenta quase sempre cenários inamistosos; chove; um odor fértil misturado com pedaços soltos de névoa evola do campo de cardos; noite; fuma lentamente, os vidros do carro embaciados; chovia e era Inverno; ela despira-se, tiritara nua, envolvera-se numa velha gabardina amarela, colocara um lenço vermelho na cabeça e caminhara para a praia; correra pelas dunas, envolvera-se nas ondas do mar; saíra rindo; cada um de nós está sempre suspenso da imaginação de um outro; ela dissera mais tarde: acho que preciso de alguém que me faça chorar; ele, nessa estação da vida, sabia apenas exprimir-se pelo silêncio ou pela ira; examinou-a bebendo pequenos goles de aguardente; alugara uma vivenda de praia, a praia era antiga e ignorada; as casas do povoado escassas e afastadas umas das outras; e havia também o firmamento e ela juntou as mãos como se fosse rezar; para ela a meta da harmonia era o céu, sendo a salvação uma questão individual que dependia da graça divina; então porque decidiste passar este fim-de-semana comigo?; era grotesca, a frase; citou Fernando Pessoa, um despropósito; ele concluíra: os católicos morrem julgando que tudo é graça, os materialistas que tudo é desgraça, ambos simplificam julgando que aprofundam: completam-se; dormiram serenamente, trocando um desajeitado beijo.

     Uma observação: as suas vozes eram vozes de perdidos.

    

    

 

 

 

 

     A casa na aldeia, para aonde se dirigia, obtivera-a de uma herança confusa e dolorosa. Raramente lá ia. Quando adolescente, inscrito numa lógica de integração familiar, passava na aldeia dois longos e entediados meses. Relações de vizinhança cortês impeliam-no a um convívio constrangido com os Magalhães, proprietários rurais propensos a conclusões irrecusáveis: reclamavam-se da ascendência do circum-navegador, aumentavam os seus domínios, convocavam Deus e a Ordem para testemunhar a linguagem da sua frágil unidade e o estilo dos seus direitos.

     Um longínquo avô de origem castelhana, Alejandro Parra Magallanes, inculcara em dispersos descendentes o gosto da beleza e o culto das letras. Gerações posteriores, pressionadas pela lavoura e pela comercialização, tinham perdido a intimidade com os livros ou nunca haviam sido conquistadas pelos prazeres da contemplação. Bêbados, ex-pegadores de touros, corredores de ralis, agentes de import-export, estilistas de moda, publicitários, um jornalista: a teia reticular de uma família que festejava datas em comum, sobretudo as canónicas, com jantares prolongados até madrugada na enorme mansão construída em forma de anfiteatro no extremo sudeste da aldeia.

     Conhecera Sebastian num desses verões antigos. Sebastian era um rapaz paciente e resignado, repartido entre o torpor de uma espécie de autismo, os sobressaltos pouco repetidos de uma vocação canhestra para a pintura e a manutenção e defesa dos invioláveis direitos familiares. Sem disso se aperceber fora perdendo as características da sua pessoal identidade. Repetia definitivas parábolas: “A natureza de toda a propriedade baseia-se no desejo constante de independência. E esse desejo obriga a que tudo o que construamos permaneça e aumente no tempo, de forma a que todas as gerações futuras sejam cada vez mais independentes.”

     Sebastian, porém, nos intervalos dos seus tédios, manifestava um júbilo caloroso quando convidava o amigo da cidade a visitar a espaçosa biblioteca. Sentia, no entanto, que estava sempre a desiludir ou a surpreender as pessoas com as suas evasivas ou com as suas paixões.

     Nos últimos tempos tinha descoberto uma grande parte de si mesmo que desconhecia. Lia volumes consagrados à formação da Terra, os grossos códices adquiridos pelo avô Alejandro Parra Magallanes que enalteciam os mistérios da Cabala, consultava portulanos, devorava páginas e páginas sobre...

 

                                                                              

 

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