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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AS LENDAS VIVEM / R. Costac
AS LENDAS VIVEM / R. Costac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A caminhonete vermelha rodava pelas ruas quase desertas da região portuária. O lugar era cercado por enormes armazéns abarrotados de mercadorias que, em algum momento, seriam embarcadas em grandes navios cargueiros. O veículo reduziu a velocidade até estacionar próximo ao único bar-restaurante das redondezas.

Era véspera de um feriado prolongado e nuvens escuras prenunciavam um dia chuvoso.

Após descer da antiga pickup reformada, era um modelo Chevy fabricado em 1954, o motorista teve problemas para travar a porta, era sempre assim, correr para escapar das primeiras gotas de chuva e se esconder no bar que acabara de abrir.

O estabelecimento tinha janelas largas envidraçadas que expunham a rua vazia. O movimento seria fraco naquele dia com os trabalhadores do porto fugindo para o lazer e o descanso de três dias.

O homem escolheu uma mesa junto a maior janela até que alguém resolvesse vir atendê-lo. O bar estava quieto, sem pressa e sem clientes. O único freqüentador olhou para as garrafas enfileiradas na prateleira atrás do balcão. Decidiu não beber nada que o deixasse tonto naquela manhã. Pediria um café bem forte a fim de espantar o tédio e rever algumas anotações para o seu próximo livro.

Seus olhos escuros avaliavam o ambiente, nunca havia estado ali, todavia, era um local que oferecia o que ele mais queria naquele instante: sossego para relaxar.

A chuva apertou e os pingos repicavam muitas vezes na lataria do robusto Chevy 1954.

O escritor solitário não tinha pressa. Pouco se importava se demoravam a vir à sua mesa para fazer o pedido. O seu maior comprometimento era em repensar sobre o que havia se passado com ele uma hora atrás: a discussão que teve com o seu editor, e que o deixara colérico. As insistentes propostas de inventar histórias para fazer seu livro vender mais eram uma grande afronta à seriedade do seu trabalho e um desrespeito à sua dignidade. Nunca antes havia usado de artimanhas para que suas obras tivessem aceitação do público e da crítica, e não seria agora que lançaria mão de ardis para enganar seus leitores com o intuito de vender seus livros. Estava convencido de que a ganância havia transformado o bom e honesto editor em um maníaco inconseqüente que agora só pensava em ganhar dinheiro com o mercado literário.

A sua última publicação Fábulas e Mitos, o que há de verdade neles, havia atingido mais de quinhentos mil exemplares vendidos pelo mundo afora. Desse modo, ele havia conquistado respeito e admiração.

Era um pesquisador ferrenho e dedicado, todas as suas teorias tinham um cunho científico e estavam bem amarradas e embasadas. Quando não havia res­paldo para levar em frente a sua investigação, decidia, então, abandonar meses de estudos e sacrifício com a mesma facilidade que se amassa uma folha de papel rasurada e a joga em um cesto de lixo.

A chuva se avolumava lá fora e as calhas do armazém em frente ao bar expulsavam jorros de água na calçada.

As sarjetas formavam pequenos rios que desciam a rua na direção do porto.

Ele cerrou os olhos para reposicionar as idéias e pensar sobre o que deveria fazer a partir dali. Estava preso a um maldito contrato que exigia dele mais quatro publicações; caso contrário, a multa rescisória o arruinaria. Obviamente, nada o obrigava a fraudar o conteúdo de sua obra ainda inédita. Contudo, a pressão exer­cida pelo seu algoz editorial abalava a sua serenidade.

Quando seus olhos voltaram a se abrir, o aborrecido escritor se deparou com a presença de uma pessoa de pé ao seu lado. Num primeiro momento imaginou ser o empregado do bar que, finalmente, achou por bem vir atender a única mesa ocupada. Não era.

Junto dele estava um homem muito idoso que o observava com algum interesse.

- Me permite desfrutar de sua companhia? - pediu o sujeito de idade bastante avançada.

Não obstante o dia chuvoso e calorento, o velho vestia uma camisa cáqui de mangas compridas abotoadas no punho. Seu olhar era jovial, embora o seu rosto trouxesse as marcas rugosas de muitas décadas vividas.

O escritor resistiu em aceitar dividir sua mesa com alguém, principalmente um estranho. Preferia ficar sozinho e decidir o que fazer a respeito da questão incômoda entre ele e seu inescrupuloso editor. Deu-se por vencido e sua educação falou por ele, gesticulando meio a contragosto para que o ancião puxasse uma cadeira e se sentasse.

- Não há muito que fazer por aqui a não ser observar, entre um e outro gole de café, a chuva caindo na rua. - O velhote puxou assunto, desejando mostrar-se afável.

O escritor esfregou as mãos com declarada impaciência e comentou.

Ouvi dizer que chove durante todo o feriado. — E viu um cão do outro lado da rua encolhendo-se na enxurrada, o pelo encharcado, a expressão triste e assustada.

Eu o conheço — afirmou o velho. - Você escreve sobre lendas e coisas do tipo. Li toda a sua obra e, obviamente, aprecio o que faz. Desde bem pequeno me interessei por histórias fora do comum. - E acrescentou, demonstrando conhecer bem sobre o seu interlocutor: — Você assina como L. A. S. Dypes...

É o meu nome: Lucad Anacleto Sidromus Dypes. Ficaria muito extenso na capa de um livro - explicou, daí olhou pela janela, o cão havia desaparecido.

Você deve ter vivido experiências emocionantes em suas viagens pelo mundo. Testemunhado coisas que a maioria das pessoas nem sonharia em ver.

Lucad apenas assentiu com a cabeça. Estava impaciente com a intromissão educada do homem diante dele. Pensou em arranjar uma desculpa, se levantar e ir embora. Mas não houve tempo, pois o velho o interpelou com uma pergunta aparentemente óbvia.

Gosta de ouvir histórias, senhor Dypes?

Eu vivo delas - respondeu secamente.

Lucad notou pela expressão do velhote que a resposta não foi exatamente a que ele esperava ouvir. Havia algo nos olhos daquele indivíduo, um segredo, um enigma aguardando para ser desvelado. Lucad sabia disso. Tinha muita experiência em entrevistar pessoas e conseguia identificar uma história verdadeira dentre cen­tenas de outras contadas por mentirosos ávidos por fama. Imediatamente corrigiu o que havia dito.

Me interesso por boas histórias, desde que sejam verdadeiras. E acho que o senhor tem algo muito interessante guardado em suas lembranças. O que me diz?

Você é um rapaz muito esperto, Lucad. Mas não consigo falar por muito tempo sem tomar algo. E o que tenho para lhe revelar é uma história muito, mas muito longa. Está mesmo disposto a escutar um velho carcomido pelos anos?

Pediram a mesma coisa: grandes xícaras de café preto e sanduíches de queijo e presunto.

A chuva que persistia fustigando, inclemente, não dava sinais de cessar.

O ancião prendeu a xícara com as suas mãos enrugadas, bebericou o café quente, e começou a narrar a sua surpreendente história.

 

 

 

 

                                          Divina Providência

Foi numa tarde de maio de 1539.

A Nau Divina Providência já navegava há quarenta e dois dias cruzando o imenso oceano Atlântico rumo ao novo continente conhecido como América do Sul.

O mar se mostrava calmo naquele dia. O vento que soprava de nordeste para sudoeste estufava as velas distendidas como o tórax de gigantes, fazendo com que a embarcação de mais de setecentas toneladas atingisse a velocidade de onze nós com facilidade, cortando o oceano impetuosamente rumo ao seu destino. A nau por­tuguesa não tinha a mesma navegabilidade das ágeis caravelas, mas era ideal para o fim a que se destinava: transportar grande quantidade de carga e passageiros que deveriam desembarcar no auspicioso e misteriosamente fascinante Novo Mundo.

O entardecer conferiu um tom dourado às velas abertas e as primeiras estrelas despontavam timidamente no leste, anunciando a chegada de outra noite que tudo levava a crer ser marcada pela quietude.

Alguns tripulantes, esparramados pelo convés, descansavam preguiçosamente sem se darem conta do que estava para acontecer naquele dia fatídico.

Uma figura baixa e atarracada usando longas costeletas grisalhas dirigia-se rapidamente em direção ao castelo da popa, seu andar era cambaleante por ter as pernas arqueadas, o convés de tábuas grossas rangia sob seus pés.

A cabine do capitão Gaspar Manuel dos Reis era pequena, mas de extremo bom gosto para os padrões e as condições dos navios onde a falta de higiene era comum; ratos e baratas infestavam os porões, dividindo o espaço e a comida com a tripulação. Muitos adoeciam e até morriam durante as viagens que, de tão longas, pareciam intermináveis.

Uma mesa e cadeiras de carvalho compunham o ambiente sóbrio da cabine de comando. Duas lamparinas pendiam do teto e dançavam ritmadas ao balanço provocado pelas ondas do mar, e uma janelinha deixava entrar os últimos raios de sol iluminando fracamente o interior da cabine.

O capitão Gaspar Manuel já passava dos quarenta anos, sua barba bem apa­rada e suas vestes cobertas por um gibão que ia até a altura dos joelhos lhe confe­riam uma aparência digna de sua posição de liderança.

Com sua licença, caro senhor - disse o Mestre Pedro Martins quando aden­trou o aposento e fechou a porta atrás de si, suas costeletas pareciam se afastar para cima quando ele fez menção de continuar falando, no entanto, foi interrompido.

-Algum problema, marujo? - perguntou o comandante ao erguer os olhos semi- cerrados para o seu comandado, deixando de lado suas anotações no diário de bordo.

Ao contrário, capitão — respondeu animadamente, a voz dísfona. — As notícias são favoráveis. Devemos avistar a terra daqui a três dias, se não enfrentarmos nenhuma calmaria.

A boa informação satisfez o capitão, pois sendo ele um homem de confiança da Coroa Portuguesa, teve a importante incumbência de conduzir com segurança os fidalgos, os artífices e os demais passageiros que deveriam compor a administração e exploração das terras descobertas há quatro décadas. Portugal iniciava um difícil desafio de colonização dos seus territórios além-mar recobertos por léguas e mais léguas de florestas desconhecidas e habitadas por gente de pele morena e animais exóticos. Um imenso continente a desbravar.

Libere um pouco de vinho e biscoitos para a tripulação - ordenou o capitão, voltando o olhar através da pequena janela para a esteira de espuma formada pela passagem do Divina Providência. — Preciso de todos os homens bem-dispostos nos próximos dias.

Pedro fez um aceno com a cabeça concordando e seguiu rumo ao depósito de mantimentos. A chegada da noite escurecia o horizonte.

Era tema corriqueiro das conversas a bordo, as lendas fantásticas contadas como verdadeiras entre os homens que passavam a maior parte de suas vidas no mar ou nos portos, em tavernas mal iluminadas freqüentadas por gente de todo tipo. Afinal, as superstições eram bastante comuns aos homens do mar que invariavelmente navegavam por lugares desconhecidos. Essas histórias eram regadas à cerveja e música, por vezes rompendo a madrugada e indo até o raiar do dia. Sempre havia alguém que conheceu um pobre diabo que por pouco não escapou de ser devorado por algum monstro marinho surgido repentinamente no meio de uma tempestade. Relatos de ruídos estranhos no casco anunciavam o aparecimento de serpentes gigantescas que, ao se enroscarem na embarcação, arrastavam-na e a todos a bordo para o fundo, deixando apenas destroços como vestígio, ou nem isso. Outras histórias descreviam polvos descomunais com tentáculos tão longos como grandes mastros e que, desferindo um abraço fatal, destroçavam qualquer navio em mil pedaços. O fato é que muitos juravam ter visto criaturas grotescas, demônios e bestas de todas as formas e tamanhos ameaçando suas vidas miseráveis a cada via­gem. Viam, ou imaginavam ter visto, olhos cintilando no meio do oceano escuro, espreitando e aguardando o melhor momento para arrastar os pobres infelizes para as profundezas do inferno. Essas e muitas outras lendas povoavam as mentes e as conversas daqueles que passavam meses ou mesmo anos entre céu e mar.

No convés, três dos marinheiros que descansavam de seu turno depois de um árduo dia de trabalho, entretinham-se falando sobre um dos assuntos preferidos.

Apoiado na amurada estava Diogo, um experiente marinheiro, que apesar dos seus cinqüenta e tantos anos, ainda possuía o vigor e a agilidade de um jovem grumete. Seu rosto coberto por uma barba espessa aumentava ainda mais a severidade de suas palavras. Profundas cicatrizes nos braços curtidos pelo sol eram testemu­nhas de uma vida rude que levava desde os treze anos de idade. Comentava-se que ele era um homem de mau agouro como um corvo que surge pela janela em meio a um temporal. Falava de um jeito como se as desgraças flutuassem sobre a cabeça dos incautos. Um profeta do infortúnio.

Essas águas são amaldiçoadas - afirmou ele com dramaticidade. — Essa calma aparente pode ser traiçoeira. Acreditem!

Estamos quase chegando, mais alguns dias e pisaremos em solo firme. — Tentou tranquilizá-lo seu companheiro Antonio, um jovem marinheiro alto e magricelo, com pouca experiência na arte da navegação e que não tinha muita convicção em suas próprias palavras.

Além disso, o céu está limpo e duvido que tenhamos alguma mudança no tempo antes de atracarmos - completou Felício, um terceiro marujo de rosto redondo e ar bonachão, apontando para o céu negro e estrelado.

Pois aí é que vocês se enganam, amigos — persistiu Diogo, olhando enigmaticamente um a um, Antonio e depois Felício. - As desgraças também acontecem em dias como esse. O tempo muda de repente, o vento deixa de soprar e algo terrível acaba com nossos sonhos e nossas vidas.

Todos foram interrompidos pela voz disfônica de mestre Pedro.

Comemorem! - gritou ele. - O capitão mandou distribuir vinho e biscoi­tos para festejar o fim de nossa viagem que se aproxima. Comam e bebam, mas mantenham-se sóbrios ou serão pendurados no mastro grande até o fim da viagem.

Disse isso e ergueu o primeiro copo de vinho, deixando escorrer pelos cantos da boca a bebida preciosa. A aprovação foi geral e a marinhagem se aproximou do tonei, disputando, com algum rebuliço, a sua parte.

Viu?! - disse Antonio, o marujo magricelo a Diogo. - Nossa sorte está mesmo mudando, para melhor.

Eu diria que para muito melhor - acrescentou Felício deliciando-se com a visão das canecas sendo enchidas.

O diabo é astucioso e enganador — retrucou Diogo, seu olhar se apertou ainda mais. — Primeiro ele nos dá migalhas e nos deixa felizes e desatentos, mas logo se aproveita de nossa ingenuidade e suga nossas almas para que padeçam no seu mundo infernal por toda a eternidade.

Uma hora após o modesto banquete, o silêncio voltou a reinar quebrado apenas pelo ranger dos cabos do velame ao roçarem nas malaguetas e ferros e pelas ondas que batiam incessantemente no casco. A noite, já absoluta, cobria com seu escuro véu a tudo e a todos.

O cansaço fez com que a maioria dos tripulantes aqui e ali fosse mergulhando em um sono pesado, improvisando rolos de cordas como travesseiros e panos imundos como aconchegantes cobertores que os protegiam da fria brisa do mar.

Antonio, o jovem marujo magricelo, deitou-se próximo ao castelo de popa e pôs-se a observar o céu perfurado de estrelas. Ele notou que a lua que acabara de nascer lançava o seu brilho de mármore projetando compridas sombras e formando imagens indefinidas pelo convés. As palavras de Diogo arranhavam a sua mente, mas aos poucos, vencido pela preguiça, adormeceu embalado pelo suave balanço do mar como um bebê sob o olhar materno.

O enigmático marujo Diogo, debruçado na amurada, tentava sem sucesso enxergar através da escuridão que enegrecia totalmente o horizonte. Ele sabia que estavam navegando numa área onde se registravam vários naufrágios sem uma explicação satisfatória. O sono não vinha e Diogo tentou se distrair fixando o olhar na estrada de luz que o reflexo da Lua formava no oceano. Estava quase se conven­cendo de que naquela noite teria um pouco de paz e sossego, contrariando as suas mais sombrias expectativas.

Do interior de sua cabine o capitão Gaspar Manuel revisava, juntamente com o seu piloto, Fernando de Souza Bento, os últimos cálculos realizados com o auxílio da bússola e dos instrumentos de navegação, concluindo que a rota que haviam traçado estava correta.

O piloto Fernando, de cabelos louros e pele clara ruborizada pelo sol, aparentava não ter mais do que trinta e cinco anos, acumulava um forte conhecimento técnico marítimo que conquistou a confiança de seu capitão e de toda a tripulação. Porém, sua maior experiência era as rotas do oriente onde havia passado os últimos oito anos costeando a África quando rumava para os entrepostos comerciais na Índia.

Perfeito, capitão! - afirmou Fernando com veemência. - Há muito não fazíamos uma viagem tão bem-sucedida, pelo que me recordo, nem mesmo em nossas empreita­das pela costa africana.

Fora as calmarias, as correções de traçado no percurso e as brigas a bordo, os resultados foram positivos — acrescentou o capitão com palavras bem-humoradas. - Mas só me darei por satisfeito quando deixarmos essa gente da comitiva da Coroa em terra firme. As recomendações foram muitas para que eles tenham o melhor tratamento ao longo dessa viagem — concluiu apoiando os cotovelos sobre a mesa e acarinhando com as pontas dos dedos a barba que quase lhe escondia o rosto.

Lá fora, Diogo o marinheiro, inclinou-se sobre a amurada ao perceber que algo estranho estava ocorrendo. Sem que houvesse algum motivo aparente, alguma coisa sacudiu o barco e as águas se tornaram mais encrespadas. Voltando-se e per­correndo rapidamente o velame com o olhar, não notou nenhuma mudança na direção ou velocidade dos ventos.

Droga, está acontecendo! — praguejou Diogo disparando em direção à cabine do capitão.

Diogo abriu a porta com violência e gritou com nervosismo.

Os malditos demônios vieram buscar nossas almas, senhores!

O que deu em você, marujo? — disse exaltado o piloto Fernando em tom de repreensão, imaginando que uns goles a mais do vinho tinham afetado o seu juízo.

As águas, venham ver as águas — insistiu Diogo voltando para o convés.

O capitão e o piloto seguiram-no ainda sem entender o que acontecia. Mas ao olharem o mar a sua volta compreenderam que algo estava muito errado.

Estamos fora de rota, senhor — disse o piloto ao observar a posição das estrelas, em seguida subiu as escadas que davam na parte superior do castelo de popa onde se localizava a roda do leme.

O diabo nos aguarda para dar o seu abraço mortal! - dramatizou Diogo com voz profética e os olhos fixos no mar cada vez mais agitado.

Todo o leme a bombordo — ordenou o piloto ao timoneiro.

Já virei todo o timão, senhor, mas estamos sendo arrastados para oeste.

Fernando verificou as velas sem se dar conta de por que o Divina Providência não se deslocava para o sudoeste.

Mantenha o leme todo a bombordo - disse o piloto enquanto descia as escadas e procurava o capitão no meio da escuridão.

Alguns passageiros que perceberam a agitação e a gritaria saíram de suas cabines exigindo explicações sobre o que ocorria. O capitão procurou tranquilizá-los pedindo que voltassem aos seus aposentos. Disse que estavam atravessando um encontro de correntes marinhas e que logo tudo estaria bem. Ele mesmo não acreditava no que estava dizendo.

O leme não responde, capitão — disse ofegante o piloto enquanto olhava as águas ainda mais encrespadas a sua volta. — Estamos sendo arrastados por uma força invisível.

Pela cabeça do capitão rodopiavam mil pensamentos. Aquilo não devia estar acon­tecendo. Havia mulheres e crianças a bordo. Ele precisava fazer alguma coisa. Mas o quê?

Baixem a âncora! — gritou o capitão numa atitude desesperada. — Tentaremos roçar o fundo para diminuir a velocidade. Se houver fundo — pensou.

A âncora foi lançada, mas a velocidade só parecia aumentar. A luta travada pelos ventos contra as velas e a forte corrente já começava a tombar a Nau, fazendo com que os tripulantes e os passageiros corressem para o convés, aumentando a confusão que já se instalara.

Um dos líderes da comitiva que iria desembarcar no Novo Mundo agarrou o capi­tão pelo braço e sem ter noção do que estava se passando perguntou com voz trêmula:

O que se passa? Os passageiros estão apavorados. - O capitão notou que o homem atracado ao seu braço era o vigário que fora designado para dirigir uma paróquia em um dos povoados da novíssima colônia portuguesa.

Eu não sei — respondeu friamente com os olhos fixos na escuridão da noite. - Só nos resta esperar. — Então as palavras saíram lúgubres de sua boca. — Rogue por nossas vidas, vigário, se não for o bastante, implore a Deus pelas almas dessa pobre gente.

Nenhum dos trezentos e vinte e dois tripulantes e passageiros do Divina Providência haviam passado por algo semelhante. A velocidade ultrapassara os vinte nós naquele momento, ameaçando romper a estrutura da nau de grande tonelagem.

Senhor, temos que alinhar o curso do navio ao arrasto ou iremos a pique — avisou o piloto Fernando como sendo um ultimato.

Então faça rápido, piloto - concordou refletindo sobre o que devia ter feito de errado para se encontrar naquela situação.

O breu da noite, pouco iluminado pelas estrelas e pela Lua que aos poucos ganhava altura, dificultava as ações dos tripulantes que se apinhavam no convés aguardando uma ordem milagrosa do capitão como se ele pudesse salvá-los. Mas a ordem nunca vinha.

Terra, terra à vista! - berrou a todos pulmões um marinheiro que se postava no cesto da gávea localizado no mastro principal, e que observava de uma privilegiada perspectiva o tumulto lá embaixo.

Onde você vê terra, marujo? — gritou o capitão postando as mãos junto a boca para melhor se fazer ouvir.

Bem à frente, senhor!

Descreva o que consegue avistar.

Ainda não está bem visí... - ele interrompeu o que ia dizendo com uma breve pausa, procurando identificar melhor, e emendou: - Rochedos! Agora posso ver as ondas se quebrando neles! — e enchendo os pulmões novamente, disparou: - Vamos bater! Vamos bater!

Do convés era possível avistar a muralha de rochas que se erguia pela frente. Os gritos desesperados do marinheiro levaram pânico a todos; alguns se jogavam nas águas revoltas tentando evitar o choque inevitável; famílias inteiras se abraçavam sem saber o que fazer; outros se agarravam ao comandante do Divina Providência implorando para que suas vidas fossem salvas. Pela primeira vez o capitão Gaspar Manuel dos Reis sentiu que a situação fugira completamente de seu controle.

Àquela altura, se tornava bem nítida a visão da fúria do mar se arrebentando contra os rochedos que eram mais altos do que o cesto da gávea, agora abandonado pelo marinheiro que presenciou tudo desde o começo.

O capitão se esforçava para localizar, naquela muralha inexpugnável, um ponto onde pudessem se agarrar e assim tentar salvar o maior número de vidas, mas era um paredão muito íngreme e que parecia crescer a cada segundo à medida que a nau se aproximava atingindo perigosamente a velocidade de trinta nós. A estrutura de madeira do navio começava a se desmantelar produzindo estalos por toda parte e que só aumentavam o pavor generalizado.

Por um breve momento, o capitão observou toda a desordem como se esta passasse lentamente diante dos seus olhos: as pessoas correndo de um lado para outro, uns caindo nà sua frente... e os gritos, muitos gritos. Os sons lhe eram quase imperceptíveis e toda a sua vida foi lembrada numa pequena fração de tempo.

O impacto violento interrompeu seus pensamentos, despertando-o de seu transe e arremessando-o a longa distância. Os estampidos de madeiras se que­brando se misturavam aos gritos agonizantes e ao estrondo ensurdecedor das ondas explodindo nos rochedos.

O capitão já não sabia direito onde estava, procurava agarrar-se com todas as suas forças a um pedaço da amurada que se partiu, enquanto via o mastro principal tombar trazendo na sua queda vários cabos e amarras que iam sendo tragados pelas ondas.

A violência das águas atirava pessoas e pedaços da embarcação contra os rochedos. Não restava mais nada a fazer. Ele mesmo foi jogado violentamente contra o paredão, ferindo o ombro e o joelho esquerdos. Precisava sair dali ou morreria despedaçado.

Tenho que fugir desse inferno. Talvez se nadar para o outro lado eu encontre uma saída - pensou.

Numa última olhada, ainda pôde ver o que fora o Divina Providência, agora transformado em um monte de destroços atirados repetidamente contra o gigantesco paredão.

Seu raciocínio era confuso. Ele nadou e lutou contra a morte por muito tempo. O cansaço tomava conta do seu corpo e todos os seus músculos doíam. O ar parecia não querer entrar mais em seu peito. Quando pensava em desistir, avistou uma faixa de areia que reavivou as suas forças.

Preciso conseguir — continuou com aquele pensamento obstinado, lutando e tentando assim não desistir.

Então nadou com maior ímpeto mesmo que as águas enfurecidas continuassem batendo no rosto, dificultando muito mais a sua respiração ofegante. Com muito esforço conseguiu sair da água arrastando-se pela areia de uma pequena praia, os dedos enterrando-se na areia úmida e o joelho ardendo com o ferimento. Procurou, com muita dificuldade, levantar-se, mas foi superado pela exaustão e caiu desfalecido. O vaivém das ondas ainda molhava os seus pés, entretanto, ele já não respondia mais a nenhum estímulo.

Horas haviam transcorrido quando o capitão abriu os olhos lentamente e a primeira coisa que viu foi a Lua que ia alta no céu tomado de estrelas. Ele sentou-se e olhou ao seu redor, conseguindo discernir apenas umas poucas dezenas de metros, até onde sua visão alcançava, os restos do naufrágio espalhados pela praia. Alguns corpos inertes despertavam sua dúvida se jaziam mortos ou somente permaneciam desacordados pelo extremo esforço na tentativa de sobreviverem.

O capitão Gaspar Manuel levantou-se claudicante buscando se orientar melhor, e caminhou para o interior do terreno desconhecido, e que tudo indicava ser uma ilha não identificada em suas cartas náuticas. Havia pouca esperança de conseguir ajuda naquele fim de mundo, mas ele não tinha outra alternativa e resolveu prosse­guir. O luar clareava com palidez o caminho à sua frente confundindo a sua visão embaçada pelo castigo que lhe foi imposto. O marulhar das ondas rosnava atrás dele, e se distanciava, abafado pela sinistra quietude do interior daquela terra estranha.

O silêncio foi quebrado por um grito apavorante que deveria vir de onde o seu nariz apontava. Ele correu e viu mais adiante uma intensa luz emanando do que poderia ser a entrada de uma caverna. Seu impulso de aventureiro íez com que ele ali entrasse, apoiando-se nas paredes rochosas, sentindo estranhamente uma forte pressão nos ouvidos, que reduziu sensivelmente sua audição. Passo a passo, prosse­guiu na direção da luz que lhe era mais e mais brilhante. Foi naquele instante que o capitão ficou estarrecido ao deparar-se com aquela coisa. Seus olhos se arregalaram diante da vtsão aterradora. Algo que ele jamais esqueceria enquanto vivesse.

 

                                O Envelope Pardo

Daniel Crowley pedalava sua bicicleta pelas ruas da luxuosa e agradável vila de Marylebone ao sul do Regent's Park, na capital londrina. Ele inclinava o corpo para frente a fim de atingir maior velocidade e logo chegar a sua casa localizada na rua Portland Place, depois de uma manhã repleta de cálculos na enfadonha aula de mate­mática. O vento frio do início de dezembro batia no seu rosto obrigando-o a enrolar o cachecol para proteger o nariz e as orelhas que congelavam até doer.

Daniel era o melhor aluno da escola, só ameaçado por sua irmã Margaret que o atormentava com troças cada vez que o superava nas notas das provas periódicas. Seus olhos azuis e cabelos bem ruivos eram parcialmente ocultados pelo boné cinza dado pelo seu avô na última vez que veio a Londres visitar a família. O menino Daniel tinha uma grande paixão pelos truques de ilusionismo e gostava de se exibir para seus amigos, deixando-os boquiabertos com a sua mágica. Certa vez, Daniel deixou uma pequena platéia de colegas de sua escola intrigada ao transformar um ás de espadas em um rei de copas e depois fazer desaparecer no ar com um simples movimento de mãos, bem debaixo dos olhares arregalados e dos murmúrios per­plexos de curiosidade.

Ao chegar em casa, Daniel encostou a bicicleta na grade de ferro que separava a entrada e o jardim e subiu rapidamente depositando os livros e os cadernos em um balcão ao lado da porta.

A sala da residência era espaçosa e bem arrumada, um grande candelabro dourado de cinco braços pendia do teto, quando aceso, devia emitir luzes encantadoras sobre os móveis lustrosos.

Mãe! — gritou, procurando nos cômodos amplos que se distribuíam no tér­reo do luxuoso sobrado.

Ele ouviu os passos de sua mãe vindo da escadaria que dava acesso ao segundo pavimento.

A Sra. Dorothy Crowley possuía lindos olhos azuis como os de Daniel, seus cabelos claros quase louros ficavam presos o que a fazia aparentar mais do que os seus trinta e quatro anos. Ela era a pessoa mais equânime da casa, o pilar que equi­librava e sustentava a família nas freqüentes ausências do marido.

Parece que o seu presente chegou um pouco atrasado — disse ela.

A Sra. Dorothy se referia ao pedido que Daniel havia feito quando perguntado o que gostaria de ganhar no seu último aniversário, quando completara quatorze anos. Ele entendeu as palavras de sua mãe no instante em que ela lhe entregou um envelope pardo com um símbolo impresso, e que lhe era familiar. Seu coração dispa­rou quando ele pegou aquele envelope e, olhando-o contra a luz, procurou a melhor maneira de abri-lo sem danificar o conteúdo. Sua mãe olhava-o com uma expressão incógnita analisando cada movimento seu. Daniel rasgou cuidadosamente a borda do envelope e retirou de dentro uma folha de papel que tinha o mesmo timbre do invólucro, o conteúdo datilografado continha a seguinte mensagem:

 

      Congratulações

Prezado, Daniel Crowley

É com satisfação que comunicamos a sua admissão na escola internacional do Atlântico.

A partir de agora, você faz parte de um seleto grupo de alunos que terá a oportu­nidade de desenvolver um alto grau de produção intelectual nas mais diversas áreas do conhecimento humano.

Junto com este comunicado, segue um cartão de identificação com um código personalizado que deverá ser apresentado no momento da sua matrícula.

Você terá até o dia 15 de dezembro de 1932 (ano corrente) para confirmar a sua matrícula na embaixada da República Federativa do Brasil localizada em seu país. A confirmação deverá ser feita por um responsável legal devidamente identificado.

Importante: o não comparecimento até a data limite para a realização da referida matrícula será interpretado como desistência de sua vaga em caráter inapelável.

Ilha da Coroa, 14 de novembro de 1932.

               Helmut Neckel, Diretor

 

Daniel voltou a vasculhar o envelope encontrando o cartão mencionado com o mesmo timbre da instituição impresso no centro e o seu nome completo seguido por um código: 21BCFH.

- Fui aceito, mãe! - exclamou Daniel com um largo sorriso, não conseguindo conter a emoção.

Naquele instante, Margaret, sua irmã, também entrou em casa e se deparou com a cena sem perceber direito o que se passava. A garota usava longos cabelos ruivos quase vermelhos que emolduravam o seu belo rosto pontilhado de sardas. Ela era um ano mais jovem que Daniel, havia completado treze dois meses atrás.

Passei, Meg, fui aprovado na Escola Internacional do Atlântico — disse ele, agitando os papéis e explodindo de felicidade.

Margaret sinceramente ficou feliz pelo irmão, mas não conseguiu evitar uma pontinha de inveja, pois também havia se esforçado para ser aprovada submetendo-se a difíceis testes de conhecimento realizados seis meses antes. Daniel notou a frustra­ção da irmã e procurou se conter para não causar um constrangimento em família.

A Sra. Dorothy intercedeu:

Também tenho algo para você, querida.

Os olhos da menina brilharam quando viram sua mãe exibir outro envelope igual ao de Daniel. Tanta felicidade contrastava com o sorriso tímido da Sra. Doro­thy, ciente que seus dois únicos filhos estariam tão distantes, a milhares de quilômetros nos próximos oito anos.

Há anos, o pai de Daniel e Margaret, um respeitado oficial da Real Marinha Inglesa, o capitão John Crowley, incentivava sutilmente os dois a tentarem a apro­vação naquela inusitada escola, apesar da resistência da mãe deles. Ele dizia que, se concluíssem o curso, estariam aptos a seguirem carreiras brilhantes em pratica­mente qualquer profissão. Ele mesmo havia se formado na mesma instituição que lhe deu condições para exercer uma das mais cobiçadas carreiras do Reino Unido.

Daniel não via a hora de poder falar para seu pai da sua felicidade e de poder abraçá-lo antes de partir.

Devolvendo os papéis novamente ao envelope, perguntou a sua mãe que ainda esboçava aquela expressão melancólica:

Será que papai chegará a tempo de se despedir de nós dois, mamãe?

Não sei ainda, Daniel — respondeu com uma suave voz maternal. - Talvez seu pai só retorne no final de janeiro.

Provavelmente não estejamos mais aqui - disse Daniel, imaginando qual a data em que deveriam partir.

O capitão John Crowley permanecia há mais de dois meses em missão no Oriente, e quando fazia tais viagens nunca tinha um dia certo para voltar para casa. As cartas que escrevia para sua família eram enviadas sempre relatando fatos incomuns vividos em terras estranhas e distantes que despertavam a imaginação de Daniel. O orgulho e a admiração que o filho tinha pelo pai eram tão grandes que ele sonhava em seguir toda a sua trajetória. A admissão na Escola Internacional seria o seu primeiro passo.

O almoço estava na mesa e a Sra. Dorothy chamou Daniel e Margaret que desceram aos saltos ocupando seus lugares como de costume. Os três almoçaram e o assunto girou em torno dos preparativos para a longa viagem.

Preciso dizer algo a vocês dois — interrompeu a Sra. Dorothy pondo o guardanapo de lado, ela estava mesmo sem muito apetite. - Sei o quanto é importante para vocês e para o seu pai tudo isso que está acontecendo, mas quero que saibam que eu não concordo que tenham de ir tão longe para estudar. Existem ótimas escolas aqui mesmo em Londres. Na verdade, eu nunca entendi essa insistência de seu pai em querer que vocês se afastem por tanto tempo de nós.

Os dois sentiram nas palavras amarguradas a insatisfação da mãe e ficaram desconcertados sem saber ao certo o que dizer. Daniel e Margaret se entreolharam.

Estaremos bem, mamãe - arriscou Margaret procurando consolá-la. - Além do mais, voltaremos para casa duas vezes por ano - concluiu tocando carinhosamente a mão da Sra. Crowley.

Escreveremos todas as semanas contando tudo - disse Daniel repetindo o gesto da irmã.

Não sei. — As palavras da Sra. Dorothy pesaram. — Algo me diz que não deveriam ir, mas se é a vontade de vocês e de seu pai, só me resta desejar-lhes boa sorte e torcer para que dê tudo certo — encerrou olhando ternamente os filhos.

Daquele momento até o dia do embarque eles teriam vários detalhes a cum­prir desde a confirmação das matrículas até os preparativos finais, arrumando as malas e verificando os pormenores da viagem que seriam orientados conveniente­mente pela embaixada brasileira.

Daniel tinha um outro motivo para querer tanto estudar naquela escola. Ele era fascinado pela aventura. Ouvia histórias sobre aquele lugar encoberto por mistérios que o faziam sonhar, e o momento tão esperado finalmente havia chegado.

 

Do outro lado do vasto oceano Atlântico, na encalorada cidade do Rio de Janeiro, Rafael Fab havia acabado de fazer o seu desjejum antes de sair para ir à escola; um simples café com leite e pão lambuzado com manteiga. Seria mais um dia agitado, já que após cada aula, ele ajudava a sua família, trabalhando em uma pequena oficina no bairro, na dedicada atividade de chaveiro. O pouco dinheiro que recebia, dava-o todo para a sua mãe. Ele possuía olhos e cabelos castanhos e a pele bronzeada típica de um habitante dos trópicos. Rafael que acabara de com­pletar quatorze anos, trabalhava desde os oito aprendendo a consertar fechaduras, fazer cópias de chaves e até a descobrir segredos complicados de pesados cofres. Aprendia tudo com extrema facilidade. Seu ótimo desempenho na escola fazia com que seus pais vissem um futuro melhor para ele que não o de passar o resto da vida numa profissão sem grandes expectativas.

Ao retornar no final da tarde para casa, cansado e ainda tendo que fazer os deveres escolares, recebeu a notícia que o encheu de alegria. O envelope com a insígnia característica era o prenúncio de um futuro muito promissor. A alegria de Rafael contagiou os seus pais que tinham consciência do esforço do garoto que passou as noites e finais de semana estudando por meses a fio sem reclamar.

E você pai, como fará para se virar sozinho? — indagou Rafael, consciente que o trabalho de chaveiro ajudava no sustento da casa.

Não se preocupe, filho — tranquilizou-o Sr. Lino. O dedicado pai de mãos grandes e grossas calejadas pelo trabalho de tantos anos como carregador de caixas pesadas no mercado municipal. Por trás dos pequenos óculos ovais ele olhava o filho com satisfação e carinhosamente o abraçou como a um amigo que não via há muito tempo. - Posso muito bem me virar como fazia antes de você crescer. Além disso, seus irmãos já estão crescendo e muito em breve também estarão em condições de nos ajudar.

Lino se referia aos seus outros dois filhos, a pequena Duane de sete anos e Vitor de cinco, ambos muito apegados a Rafael.

A Sra. Odete, mãe de Rafael, muito magra, de olhos negros e fundos, cabelos castanhos e voz gentil, aproximou-se do filho pondo algo na palma de sua mão, uma diminuta imagem de Nossa Senhora. Disse-lhe que a pequena miniatura da santa católica iria protegê-lo e que o menino sempre deveria levá-la com ele.

Rafael assentiu dando um forte abraço em sua mãe. A imagem da santa indo direto para o seu bolso.

As conversas se estenderam até tarde da noite quando o cansaço tomou por completo o garoto. Ainda meio confuso com toda aquela revolução que estava acontecendo em tão pouco tempo na sua vida. Rafael se retirou para o quarto que dividia com os irmãos e, mesmo esgotado, não conseguiu dormir de tanta excitação. Os pensamentos conturbavam a sua cabeça juvenil. Nunca havia se separado dos pais e isso lhe causava um certo vazio que intensificava a sua ansiedade. Ele olhava para os irmãos menores que dormiam profundamente sem saberem o que estava acontecendo e que logo mudaria por completo a sua vida. Seu irmão, Vitor dormia abraçado com um elefante de pano de orelhas grandes e cara engraçada que sua mãe havia feito para ele. Aquela noite estava particularmente agradável apesar da proximidade do verão. Rafael olhava pela janela do quarto a rua já deserta, somente iluminada pelas luzes amareladas dos postes parcialmente encobertos pelas copas das árvores.

Da porta do quarto, entreaberta, ele conseguia ouvir resquícios da conversa de seus pais.

Dizem que essa escola é muito rigorosa — comentava Odete. — Muitos alunos não conseguem terminar sequer o primeiro ano.

Estou confiante de que ele vai conseguir concluir o curso - dizia Lino, esperançoso. - Do sucesso dele depende o futuro dos irmãos.

Rafael sentiu o peso da responsabilidade e estava disposto a tudo, para um dia voltar e mostrar aos pais o resultado do seu esforço. Naquele instante ele assumiu um compromisso consigo mesmo de um dia regressar para casa formado e com condições de prover seus dois irmãozinhos que tanto amava.

Os dias se transformaram em semanas e a ansiedade aumentava com a aproximação do momento em que Rafael partiria finalmente.

 

Não esqueça de escrever! - gritou tia Mary despedindo-se de Chester da soleira de casa.

Cuide do Coronel! - respondeu ele, referindo-se ao seu cavalo Quarto-de-Milha que havia recebido de presente dos tios quando completou dez anos.

Chester Thompson, agora com quatorze anos, de cabelos louros bem aparados e olhos azuis-claros acinzentados, havia passado quase toda a sua vida morando no rancho dos tios, a quarenta quilômetros da cidade de Houston no Estado americano do Texas, depois que seus pais haviam perdido a vida em algum lugar a sudo­este de Oklahoma, vítimas de um tornado devastador quando ele ainda tinha cinco anos. Chester sobreviveu por milagre quando foi jogado em um buraco e ficou ali até tudo terminar. As autoridades tiveram dificuldade para localizar alguém que fosse responsável pelo garotinho ferido e assustado, pois não havia nada que reve­lasse a sua identidade, e os seus pais haviam desaparecido e seus corpos só foram encontrados dois dias depois no meio de uma pilha de destroços.

Seus tios o amavam como a um filho, e a separação deixaria o rancho menos alegre sem as cavalgadas que Chester fazia todas as tardes.

Não se esqueceu de nada? - perguntou o tio Fred ao mesmo tempo em que acomodava as bagagens na caminhonete. O tio Fred era alto como um urso e gostava de se vestir com seu velho macacão surrado, ele sempre usava um farto bigode que quase lhe cobria a boca.

Creio que não, tio — disse o garoto empurrando a última mala de viagem para dentro da carroceria.

O tio Fred deu a partida e o veículo foi saindo lentamente dando tempo de Chester acenar pela última vez para a tia.

A caminhonete passou pela porteira do rancho Neblina virando à esquerda em direção à cidade.

Você não precisa ir se não quiser - disse Fred mesmo assim, embora estivesse consciente que seu sobrinho não voltaria atrás.

Eu sei disso, tio - respondeu, registrando na memória as últimas imagens daquele lugar aprazível em que conhecia cada arbusto, árvore ou riacho. — Mas não posso perder essa oportunidade que tanto lutei para conseguir.

Bem, se você não se ajeitar por lá poderá desistir - insistiu.

Está bem, prometo fazer isso — riu Chester da última tentativa do tio.

Chester permaneceu em silêncio por vários minutos enquanto Fred alternava o olhar entre a estrada e o calado sobrinho que mantinha os olhos voltados para fora do veículo.

Tio Fred quebrou a breve pausa.

O que você está pensando, Chester?

Meus pais... o que eles achariam se estivessem vivos? — respondeu com outra pergunta e com a expressão ainda pensativa.

Certamente estariam orgulhosos de você — disse Fred trocando a marcha e ace­lerando mais. - Qualquer um ficaria feliz e orgulhoso ao saber do sucesso de um filho.

Gostaria que eles estivessem aqui agora. Gostaria de me lembrar deles... mas não me lembro de nada - respondeu com a voz embargada e olhando novamente para fora.

Você não tem culpa, filho — disse o tio para confortá-lo. — Quando eles se foram você ainda era muito pequeno.

É... eu sei — disse Chester com o olhar perdido nos vãos das árvores que separavam a estrada de uma pastagem ressecada pela falta de chuva dos últimos meses.

A caminhonete seguiu seu caminho levantando uma leve nuvem de poeira e depois sumiu entre as curvas da estrada de terra.

A sala era ampla e acomodava no seu centro um piano de cauda que sempre era tocado magistralmente por um menino de apenas quatorze anos. Seu nome era Marc Fournier, um jovem de altura acima da média, olhos claros e cabelos negros que emolduravam o seu rosto de expressão desafiadora. Marc era assim, enfrentava as pessoas, mesmo os adultos.

Seus pais tentavam dissuadi-lo da idéia de morar em uma ilha que nem sabiam ao certo onde ficava no mapa. O certo é que o rapaz tinha muito talento para a música e não entendiam como ele estava disposto a interromper uma carreira de sucesso para estudar em uma escola no meio do oceano que nem oferecia em suas disciplinas um mísero curso de música.

Marc era uma daquelas pessoas privilegiadas que tinha o ouvido absoluto. Ele identificava facilmente a nota musical de um talher caindo no chão, uma porta batendo ou um cão latindo. Marc também tocava flauta e violino com refinada desenvoltura e costumava passar horas seguidas das frias noites do inverno parisiense acompanhado por seus pais que também eram músicos como ele, todos embalados pelo que havia de melhor da música clássica.

Marc dedilhou as últimas notas de um noturno de Chopin e sorriu para os pais satisfeito do seu próprio desempenho ao piano o qual tocava sem o menor esforço. Em seguida tirou do bolso o envelope que era o seu passaporte para um outro mundo totalmente diferente daquele que desfrutara até o momento.

Leu mais uma vez o que dizia a mensagem e, voltando-se para seus pais, disse muito seguro de si:

Não se preocupem, prometo que darei seqüência aos meus estudos, e quando eu voltar nas próximas férias mostrarei que o meu talento está mais afiado do que nunca.

Jean Paul ouvia atentamente as explicações do filho. Jean Paul Fournier, podia se dizer que era um desses homens que gostava de se vestir bem, mesmo dentro de casa, ele tinha a constituição magra e estatura alta, cabelos escuros penteados para trás com brilhantina. Amava o seu único filho como um pai dedicado que era, mas respeitava sua decisão por considerar que o rapaz era suficientemente maduro para fazer escolhas. Foi então que ele argumentou.

Filho - disse, debruçando-se sobre o piano de cauda. - A música está no seu sangue e você sabe que indo para esse fim de mundo não aprenderá nada de novo. Porém, se é isso mesmo o que deseja, estaremos do seu lado. Quer mesmo levar isso adiante?

Marc fez que sim, inabalável e determinado.

Sua mãe, a Sra. Monique Fournier, uma serena senhora de quase quarenta anos, cabelos e pele clara e marcas de expressão nos cantos da boca, prosseguiu de onde Jean Paul havia parado.

Gosto da sua ousadia em querer enfrentar o mundo sem nossa presença, mas sua carreira poderá ser prejudicada pelo tempo que você ficará fora — disse ela, e juntou as mãos quase num gesto de oração. — Essa interrupção pode interferir negativamente no seu desenvolvimento. O que diz disso?

Marc propôs um acordo.

- Vejam. — Se ajeitou no banquinho em frente ao piano negro e tão polido que refletia o brilho da sala como se fosse um espelho. - Se nas próximas férias, quando voltar pra casa, o meu desempenho estiver a desejar, prometo desistir da idéia e ficar em Paris.

Os pais de Marc se olharam e com alguma resistência acabaram consentindo.

Marc sabia do seu potencial e podia mostrar muito mais para os pais que, embora fossem bons músicos, não possuíam nem de perto o mesmo talento do filho que, naquela fase de sua vida, poderia ser considerado um gênio musical. Ele era cobiçado por mestres que lecionavam música na França e em toda a Europa e que enviavam cartas oferecendo seus préstimos como orientadores do jovem que era, sem dúvida, uma joia a ser lapidada.

Tendo em vista que Marc não poderia levar o piano na bagagem, ao menos levaria a sua flauta transversal que seria a sua fiel companheira naquele mundo tão diferente do seu, um mundo estranho... e fascinante.

Ao seu modo, alunos previamente selecionados estariam vindo de todas as partes do mundo para estudar em uma das escolas mais eficientes de todos os tempos, e seguramente, a mais estranha. Alguns desses alunos iriam passar por uma experiência tão fantástica que se tornaria a maior aventura que eles jamais imaginariam ter.

 

                       Uma Escola no Meio do Oceano

O estridente apito do navio acordou Daniel que olhou para a cama ao lado da sua e viu que sua irmã não estava mais na cabine. Ele levantou ainda meio zonzo e bocejou longamente especulando onde ela teria ido tão cedo. Depois olhou pela escotilha e verificou que o dia mal acabara de nascer lançando os primeiros raios de sol sobre o navio e o mar aberto. Daniel poderia voltar a dormir mais um pouco, mas achou por bem ir a procura da irmã, então trocou de roupa e deixou a cabine atravessando um corredor com várias portas em ambos os lados. Eram as portas de outras cabines que certamente abrigavam os outros passageiros que ainda insistiam em dormir profundamente naquele início de manhã.

Margaret se debruçava na amurada observando os primeiros sinais de terra. A brisa do verão do hemisfério sul esvoaçava seus cabelos passando uma sensação agradável que amenizou um pouco a sua ansiedade da chegada ao Brasil, e que se daria dentro em pouco.

Bom dia, Meg — disse Daniel com cara de sono.

Olhe, já dá para ver a cidade de Recife - disse ela apontando.

Por que levantou tão cedo?

Estava ansiosa pela chegada o que me fez perder o sono quando ainda estava escuro — voltou-se para Daniel, se esforçando inutilmente para arrumar os cabelos que teimavam em cobrir seu rosto. — Ouvi um tripulante dizer que deveríamos chegar às primeiras horas dessa manhã, ele acertou em cheio.

Já que estou acordado, vou voltar a cabine e terminar de arrumar minhas malas - disse Daniel enquanto dava uma espiada no continente que se aproximava muito lentamente.

É melhor você se apressar, dentro de uma hora deveremos desembarcar — alertou Margaret. — Ainda temos que fazer um desjejum e quero ser a primeira a pisar em terra.

Como sabe que chegaremos em uma hora?

Informei-me com a tripulação e olhe pra você, parece que não acordou ainda — disse zombando.

Meg gostava de saber de tudo, mas principalmente se a informação era conseguida antes do irmão. Daniel, por sua vez, considerava tais provocações como sendo novos desafios para superá-la em seus confrontos particulares, mas nem sem­pre ele conseguia e isso chegava a irritá-lo. O escárnio da irmã o aborrecia.

Daniel acomodou rapidamente os seus pertences em uma das malas e foi encontrar-se com Margaret, fazendo em igual velocidade o desjejum no restaurante. Ao retornarem, notaram que o movimento de passageiros no convés já era intenso com sons de vozes por todos os lados. A viagem transoceânica estava che­gando ao fim.

A embarcação se aproximava lateralmente do cais empurrada agora por dois rebocadores que lentamente faziam os últimos procedimentos de atracação. Minu­tos depois uma rampa lateral permitiu o desembarque dos passageiros. Margaret era a primeira da fila seguida por Daniel.

Pra que tanta pressa? — disse Daniel com ar de censura.

Eu disse que seria a primeira a desembarcar, não foi? - respondeu orgulhosamente com uma expressão de ter vencido mais uma contenda. Daniel deu de ombros e desviou a atenção para o porto que acordava com a chegada dos estivadores para seus postos de trabalho.

Logo adiante, numa área livre do cais movimentado, havia um homem de pele morena e cabelos lisos e negros vestindo um amarrotado terno branco. Ele segurava acima da cabeça um cartaz grande no qual estava escrito: ALUNOS DA ESCOLA INTERNACIONAL DO ATLÂNTICO. O tal homem que não pare­cia ser afetado pelo calor dos trópicos, apesar de trajar seu abafado terno de linho, foi rodeado imediatamente por um grupo de rapazes e moças com idades que variavam entre os treze e os vinte anos. Aguardou mais alguns minutos até que todos desembarcassem e se juntassem a ele num grande círculo. Em seguida, pegou uma prancheta com uma extensa relação de nomes. Daniel e Margaret, rodeados pela multidão de jovens, olhavam à sua volta reparando nos rostos e vestimentas que confirmavam que os seus novos colegas eram oriundos de todas as partes do mundo. Alguns, provavelmente, também calouros, mostravam expressões apreen­sivas e aguardavam receber novas orientações.

O homem de terno branco, com a lista na mão deu início a chamada e a cada nome pronunciado, alguém levantava a mão confirmando a sua presença. Ao final da verificação dos nomes ele mesmo se identificou:

Para aqueles que ainda não me conhecem, meu nome é Ramón Almendra. Sou o vice-diretor da Escola Internacional e o responsável em conduzir todos vocês até a Ilha da Coroa. — Ramón fez um aceno para que fizessem silêncio mediante o burburinho ocasionado pelas conversas paralelas dos alunos agitados, e prosseguiu: — Ouçam, e não vou repetir. Uma equipe de funcionários vai acompanhá-los até um navio no extremo sul do cais, que irá transportá-los à ilha. Subam e aguardem a partida. Os que já conhecem as regras sabem muito bem o que fazer.

O vice-diretor Ramón Almendra, nascido e criado na capital mexicana, abriu caminho entre os alunos e seguiu em direção a uma fila de caminhões que levaria os alunos e as bagagens até o próximo embarque. O grupo em procissão ultrapassava o número de duzentos alunos que iriam se juntar a outros cem que já estavam aguar­dando a bordo da embarcação. Os caminhões que os levariam até o outro navio não eram muito confortáveis, mas o trajeto seria rápido, encurtando o transtorno dos solavancos. Do alto dos caminhões os alunos admiravam o porto apinhado de marinheiros, estivadores e cargas de todos os tipos e tamanhos sendo embarcadas e desembarcadas de outros navios que se encontravam atracados ao longo do cais. A maresia se misturava ao cheiro de óleo de navio e produzia um odor típico dos grandes portos com enorme movimentação de mercadorias.

Os veículos pararam ao lado de um navio de nome Divina Providência III, que se encontrava atracado no final do cais onde o movimento de pessoas era bem menor. Era um navio de casco pintado de preto, escrito com letras brancas na popa, com pequenos sinais de ferrugem devido ao seu uso ininterrupto e sem o tempo necessário para se fazer as devidas manutenções. O embarque se fez de imediato, entretanto, os alunos foram obrigados a esperar por várias horas por mais alunos que ainda chegariam naquele dia.

Quanto tempo levaremos para chegar até a ilha? - perguntou Meg, impa­ciente com a demora.

Você não é a sabe-tudo? - provocou Daniel com ar de gozação e desafio. - Deveria saber a resposta.

Pois eu vou descobrir - ela saiu com o nariz empinado em busca da informação.

Margaret percorreu o convés e depois de algum tempo encontrou Ramón dando ordens aos seus auxiliares para a acomodação das bagagens que não paravam de subir a bordo.

Com licença, senhor. — Ela interrompeu o homem que cuidava pessoal­mente para que toda a operação de embarcar as centenas de alunos não registras­sem nenhum erro.

O que deseja? - disse Ramón continuando a fazer algumas anotações em sua prancheta, ele não dava muita importância à garota, não havia muito tempo para conversas inúteis.

Desejo saber o tempo que levaremos até a Ilha da Coroa.

Ramón parou de escrever e enxugou a testa suada com a manga do paletó, finalmente olhando para Margaret.

Se o tempo nos ajudar, estaremos lá em quinze horas. Isso é um transtorno para você, novata?

Quinze horas ? - pensou ela, cansada de tanta viagem.

Não, realmente não é - disse, evitando deixar transparecer a sua insatisfação, ela agradeceu e não ousou fazer mais nenhuma pergunta por ora, intimidada com a cara sisuda de Ramón.

Daniel que se achava logo atrás dela, cuidava de seus movimentos como se fosse incumbido como seu tutor, sabia que a bisbilhotice de Meg poderia arranjar proble­mas a qualquer momento. Por isso sugeriu.

Vamos conseguir um canto para que possamos nos esticar um pouco.

Sentaram-se próximo à popa e aguardaram inquietos a hora da partida que parecia não ter definição.

O alto-falante do navio convocou os passageiros para o almoço que seria ser­vido no refeitório. Por não haver lugares suficientes, cada um se ajeitou como pôde sentando no chão e apoiando a bandeja no colo. Com o sol a pino, o calor e a longa espera tornaram-se cada vez mais desconfortáveis. Um calouro reclamou em voz alta do tratamento que estava recebendo sem se dar conta que Ramón ouvira o protesto. Ramón aproximou-se e se agachou olhando o rapaz diretamente nos olhos. O garoto o olhou assustado como se visse um fantasma.

Isso também faz parte do aprendizado, calouro. — Aguardou por alguns segundos se o garoto diria algo em sua defesa, então se levantou e falou dirigindo-se a todos que pudessem ouvir: — A disciplina é algo que decide quem permanece e quem volta pra casa — fez outra pausa. — Jamais esqueçam disso!

Os que presenciaram tal cena, permaneceram em silêncio por alguns instantes até o vice-diretor se afastar.

Primeira lição - disse Meg com um sorriso discreto. — A disciplina é matéria que reprova.

Segunda lição — completou Daniel. — Evitar certos comentários em voz alta é uma virtude. Portanto, controle a sua boca.

Outro calouro que procurava um lugar para se sentar se aproximou interes­sado em fazer amizade.

Olá, meu nome é Chester Thompson, se importam se eu me sentar com vocês?

Oi, Chester - disse Daniel, largando o garfo e estendendo a mão para cumprimentá-lo. - Sou Daniel Crowley e essa é minha irmã Margaret. Somos de Londres, Inglaterra.

Sou do Texas, Estados Unidos da América — continuou Chester olhando a comida em sua bandeja que lhe parecia apetitosa, qualquer gororoba lhe pareceria apetitosa, pois ele não comia nada há horas.

Em pouco tempo os três já se conheciam melhor e também os motivos que os empurraram para tão longe de casa. Margaret é a que fazia o maior número de perguntas à Chester, sem se preocupar se o seu novo amigo estaria disposto a res­ponder àquele interrogatório. Chester, por sua vez, não se importava, pois estava mais interessado em fazer novas amizades com pessoas que se encontravam em situação parecida com a dele.

Marc Fournier retirou sua flauta e depois colocou sua mochila, em que trazia os seus pertences, no chão do convés; em seguida se sentou fazendo-a de encosto e começou a tocar uma suave música com o propósito de se distrair e fazer o tempo pas­sar mais rápido. Belas músicas atraem as pessoas, e aquela atraiu a atenção de Rafael Fab que vagava pelo convés, ele arrumou um lugar perto de Marc a fim de apreciar a sua habilidade com a música. Ao final da despretensiosa apresentação, Rafael deu um sorriso de aprovação e se apresentou a Marc, que respondeu cordialmente.

Pelo seu sotaque você deve ser francês.

Sim, de Paris - assentiu Marc. - E você, é latino, estou certo?

Sou, daqui mesmo, do Brasil.

Você deve saber muita coisa da misteriosa Ilha da Coroa, estou certo? - aproveitou Marc para tentar obter algumas informações extras sobre o seu destino.

Acho que não muito mais do que você — disse Rafael dando de ombros. — Já ouvi muitas histórias estranhas daquela ilha, mas acho que é mais invenção de gente que não tem o que fazer e também pelo fato da Ilha da Coroa ser tão afastada da civi­lização. Essas coisas fazem as pessoas ficarem felizes inventando todo tipo de história.

E aquelas águas sempre agitadas?

Até hoje ninguém deu uma explicação convincente — Rafael encolheu as pernas abraçando-as e olhou para Marc. - Dizem que é algum tipo de magnetismo que faz as águas ao redor da ilha se comportarem daquele jeito.

Arrisco pensar que tem mais coisa por trás disso. Espero não me decepcionar ao chegar lá — Marc levou a flauta até a altura da boca. - Quer ouvir outra música?

Sim, claro - incentivou-o Rafael ajeitando-se para uma melhor audição.

Já era quase três horas da tarde quando Margaret, entediada, reparou que a escada de acesso ao navio estava sendo erguida. Ouviu-se um sonoro apito e todos sentiram um leve balanço anunciando que a embarcação estava sendo afastada do cais. Alguns jovens passageiros correram para ver as manobras realizadas pelos rebocadores que acio­navam seus motores a toda força deslocando o Divina Providência III lateralmente até um local onde houvesse condições para que a poderosa hélice fosse colocada em funcionamento. Os rebocadores se afastaram e com outro apito o navio começou a ganhar velocidade rumando em direção ao mar aberto.

Marc passou a tocar uma música mais alegre e Rafael, também animado com a partida, percebeu o contentamento dos passageiros que estampavam em seus rostos imensos sorrisos.

Daniel continuava sentado ao lado de Margaret que conversava animada­mente com seu novo amigo Chester, ele desligou-se momentaneamente da con­versa e voltou a sua atenção para o passadiço que ficava na parte mais alta do navio. Levantou-se e caminhou pelo convés, ziguezagueando entre os passageiros e tripulantes e parou em frente a escada que levava à ponte de comando. Apoiando-se no corrimão, começou a subir lentamente com passos retumbantes sobre a escada de metal, degrau por degrau, curioso por saber quem comandava o navio que os levaria até o seu destino. Quando enfim pisou o último degrau, foi interceptado por um marinheiro com cara de poucos amigos que se colocou entre ele e a cabine de comando.

O que deseja, menino? - indagou com voz rouca. - Não é permitida a pre­sença de passageiros por aqui.

Eu não tinha... a intenção de incomodar - disse justificando-se. - Só queria conhecer o lugar de onde se comanda esse navio.

Do interior da ponte ouviu-se uma voz grave.

Deixe-o passar, marinheiro!

Era a voz do comandante. O marinheiro abriu passagem e Daniel pôde ver um homem que deveria ter algo em torno de setenta anos, vestido com uma impecável farda branca. O oficial lembrava um personagem dos livros de aventura no mar: os cabelos, a barba e as sobrancelhas igualmente brancos, como um capitão de navio deveria se parecer. Sua pele se destacava, pois, de tantos anos exposta ao sol equa­torial, era bastante bronzeada.

Aproxime-se, vamos! - insistiu ele de maneira rude e ao mesmo tempo amigável. - Sou o comandante Hugo Lemos - ele esperou que Daniel dissesse alguma coisa.

Meu nome é Daniel...

Crowley, eu suponho.

Como sabe meu nome? - perguntou surpreso, seus olhos se arregalando para o oficial.

Conheço seu pai há muitos anos e fiquei sabendo que vocês estariam no meu navio. - Olhou para o convés lá em baixo e apontou para Margaret que havia se levantado e parecia estar procurando o irmão. — Você, Daniel, e sua irmã.

E quem lhe disse que nós viríamos? - perguntou ainda mais intrigado.

Ah, o seu pai mesmo - respondeu serenamente enquanto olhava para o horizonte, e continuou: - Quando John pisou pela primeira vez nesse barco, era ainda um garoto como você. Subiu aquelas escadas como você fez há pouco e passou quase a viagem toda querendo saber de tudo, me enchendo de perguntas.

O comandante Hugo colocou gentilmente a mão sobre o ombro de Daniel trazendo-o para o interior da ponte de comando e prosseguiu:

Já transportei muitos alunos ao longo desses anos para a Ilha da Coroa - esfregou o queixo peludo com a mão e levantou uma sobrancelha. - Alguns desis­tiram e voltaram para casa, outros resolveram ficar e se tornaram pessoas de sucesso em suas carreiras.

O senhor deve conhecer bem a ilha - comentou Daniel, curioso.

O comandante pegou um bule e encheu duas xícaras com café, oferecendo uma a Daniel que aceitou de bom grado.

Eu também estudei lá. - Fez uma pausa, saboreando o café ainda quente. - Foram oito longos anos de muito estudo e disciplina. Os dias eram repletos de atividades e quando o sol se punha, estávamos tão cansados que só nos restava irmos para o quarto e cairmos na cama.

Daniel quase não piscava enquanto ouvia o depoimento do comandante. Aquele relato lhe era familiar, pois seu pai havia contado por diversas vezes a mesma história, alimentando sua curiosidade e fazendo-o imaginar que lugar fascinante devia ser a tão afamada Ilha da Coroa.

E as histórias que contam sobre a ilha? — aproveitou Daniel para investigar mais com alguém que realmente conhecia muito bem tudo aquilo.

A que histórias você se refere? — Se fez de desentendido o comandante Hugo, pousando a xícara vazia em uma mesinha e sendo imitado por Daniel.

O senhor sabe... as águas em torno da ilha estranhamente agitadas, os vários naufrágios e as lendas sobre criaturas monstruosas que surgem das profundezas — coçando a cabeça, completou: - O que há de verdade nessas histórias?

O comandante riu meneando a cabeça e recostando-se em uma parede, por fim cruzou os braços:

Lendas... lendas tão antigas criadas por gente ignorante e supersticiosa. — Voltou o olhar para o mar azul-turquesa. - As pessoas adoram acreditar na veraci­dade dessas bobagens para tornarem suas vidas menos monótonas.

O rosto de Daniel expressava dúvidas quanto aquelas palavras. O comandante percebeu.

Você nunca perguntou essas coisas ao seu pai? — questionou com um tom desafiador. - Ele na certa teria visto algo fora do comum durante esses anos todos que permaneceu na ilha.

Sim... claro - titubeou Daniel concordando. - Ele nunca me disse nada.

Ouça bem, meu jovem - continuou, tocando o ombro de Daniel com o dedo indicador. - Não há nada lá além de uma escola que vai exigir muito estudo e disciplina de vocês — concluiu com uma expressão severa.

O mesmo marinheiro que tinha impedido a passagem de Daniel interrompeu com sua voz rouca e um ar de insatisfação:

-Tem mais dois garotos aqui fora, comandante. Devo expulsá-los?

Com um gesto breve de mão o comandante Hugo chamou Daniel, que o acompanhou para fora da cabine. Os dois garotos que o marinheiro se referia eram Chester e Margaret que haviam avistado Daniel do convés.

Deixe-os comigo - disse o comandante ao marinheiro de olhar grave.

Depois das apresentações, o comandante Hugo fez um convite aos três.

Sigam-me, vou lhes mostrar uma coisa grandiosa.

Daniel, Margaret e Chester, bastante curiosos, desceram as escadas seguindo o comandante que caminhava a passos rápidos, e entraram por um corredor indo até o final, onde havia uma pesada porta de ferro. Ouviam um som ritmado de máquinas trabalhando que lembrava uma locomotiva. Quando a porta se abriu, o barulho produzido pelas máquinas se tornou muito mais alto, dificultando o diálogo entre eles. O comandante foi o primeiro a entrar na casa de máquinas e começou a descer uma estreita escada de metal, novamente seguido pelos seus convidados que olhavam atentos para toda aquela parafernália barulhenta. Canos, grades, mostradores de tem­peratura, placas de ferro, tudo preso por grossos parafusos, compondo um cenário que mais lembrava uma cidadela. Só que toda de metal.

Lá em baixo o comandante gritou.

Esse é o meu orgulho! — Erguendo o braço, mostrou tudo à sua volta. - Um poderoso motor capaz de enfrentar qualquer mar bravio.

Até o que circunda a Ilha da Coroa? - perguntou Chester, incrédulo.

Até ele! — exclamou convicto e orgulhoso.

Eles passaram algum tempo observando a movimentação da tripulação que trabalhava incessantemente para manter o enorme motor em funcionamento, quando o comandante Hugo fez um sinal para subirem novamente. De volta ao convés viram que o pôr do sol encerrava mais um dia, porém o calor, mais tolerável naquele momento, ainda se fazia presente, o que não diminuía o ânimo dos jovens passageiros.

Quando a noite finalmente chegou, todos os jovens passageiros se recolhe­ram em seus aposentos provisórios nos quais repousariam até o amanhecer. Tais aposentos eram dois grandes salões, masculino e feminino, onde se enfileiravam muitas camas como o dormitório de um quartel. Daniel se despediu de Meg e os dois se separaram seguindo cada um para a sua ala. Margaret foi a primeira do seu grupo a encontrar uma cama onde pôs sua bagagem de mão. Próximas a ela, outras meninas acomodavam seus pertences e procuravam, da melhor maneira, tornarem o ambiente o mais aconchegante possível. Embora tivessem um aspecto de limpas, as camas eram bem simples e os colchões um tanto duros e encaroçados.

Espero que a cama da escola seja mais macia — pensou, um pouco desanimada. Apertou o travesseiro e se deitou.

Na outra ala, Rafael depositou sua mala no chão e sentou-se na beira da cama, inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos sobre as pernas onde ficou pensativo por alguns minutos. Ele tentou imaginar como estaria a sua família agora e o que deveriam estar falando, provavelmente sobre ele, trocando palavras orgu­lhosas e fazendo projetos para quando ele voltasse um dia. A saudade de casa só era abafada pela expectativa de chegar na ilha e começar logo seus estudos. Rafael notou que a três camas à esquerda da sua estava sentado Marc Fournier, o francês que havia conhecido naquela tarde. Marc girava sua flauta entre os dedos e seus pensamentos pareciam distantes, talvez sua mente viajasse ao encontro de seus familiares. O jovem francês posicionou-se e passou a tirar as primeiras notas de uma melodia, mas foi contido pelo Sr. Ramón, que levando o dedo indicador aos lábios exigiu silêncio. Marc, a contragosto, acatou a ordem, guardou a flauta em sua mochila e esticou-se na cama, mantendo o olhar fixo no teto. Será que minha decisão foi correta? Será que meus pais não estavam certos em tentar impedir a minha vinda para este fim de mundo?

Tudo estava acontecendo muito rápido e isso confundia a jovem mente de Marc, o que poderia levá-lo a desistir de tudo e fazê-lo decidir voltar à Paris.

Ramón, encarregado de manter a ordem durante a viagem, puxou uma cor­rente que estava presa ao seu cinto e retirou do bolso da calça um relógio dourado para confirmar a hora; constatou que já passava das nove da noite e isso fez com que apontasse para as luminárias do teto, determinando que fossem desligadas, só permanecendo acesas umas poucas luzes auxiliares, o que deixou todo o ambiente mergulhado numa suave penumbra. Os sons de gente cochichando ou se ajeitando nas ruidosas camas de estrado de arame e molas foram dando lugar a uma profunda quietude. Era o cansaço que vencia, obrigando a todos adormecerem, um a um, enquanto o Divina Providência III prosseguia a sua imperturbável travessia.

Daniel acordou de repente e, com olhos perdidos na tênue escuridão, repa­rou que todos dormiam um sono pesado. Certamente percebeu que ainda era noite quando olhou por uma escotilha do alojamento e viu tudo escuro lá fora. Ele tentou voltar a dormir, mas não conseguiu, pois o silêncio era discretamente quebrado pelo barulho quase imperceptível do potente motor do navio, um som distante e repe­titivo. Sua mente acompanhava o ritmo das máquinas e os seus pensamentos diva­gavam impedindo-o de pegar no sono mais uma vez. Ele concluiu em pensamento: Não adianta, perdi o sono.

Daniel levantou-se tomando cuidado para não despertar os alunos ou chamar a atenção de um dos tripulantes, ciente de que a sua cama era por demais barulhenta. Ele caminhou cautelosamente saindo do alojamento e ganhando o convés totalmente deserto. A brisa do mar soprava no seu rosto, mas Daniel não sentia frio. Estava uma noite agradável em que todas as estrelas pareciam olhá-lo como se quisessem saber o que ele faria em seguida. Daniel resolveu aproveitar ao máximo aquele momento. Deu alguns passos e debruçou-se na amurada, pondo-se a observar o casco do navio cortar as águas, produzindo uma sinuosa estrada de espuma branca. Esse lugar deve estar infestado de navios afundados. Talvez, bem aqui em baixo, haja uma caravela ou um galeão... Daniel imaginou.

Seus pensamentos foram desmanchados por uma voz.

Lindo, não?

Daniel virou-se rapidamente e se deparou com a figura branca, fantasmagó­rica, do comandante Hugo que contrastava na escuridão.

O que o senhor disse? - perguntou, surpreendido.

O mar, não é lindo? - Então dando alguns passos à frente, se colocou ao lado de Daniel e contemplou o oceano que parecia se ligar ao céu estrelado, ele revelou por fim. - Faço esse caminho há mais de cinqüenta anos e cada viagem parece ser diferente das outras.

Daniel desconcertado com a presença do comandante temeu ser repreendido por estar acordado àquela hora e achou prudente ficar calado. O comandante Hugo notando o seu constrangimento tranquilizou-o.

-Aproveite esse momento, Daniel - e de forma enigmática continuou: - Um dia essas lembranças estarão enevoadas em sua mente como um sonho distante, mas nunca se apagarão.

Daniel imaginou a avançada idade do comandante, ganhou confiança e manifestou outra vez a sua curiosidade.

O senhor não pensa em se aposentar? O que quero dizer é, gosta tanto de viver desse modo o tempo todo dentro de um navio?

Esse navio é a minha casa, a tripulação a minha família... — respirou com profundidade e prosseguiu: - O mar é a minha vida. Preciso disso para viver - o capitão fez outra pausa e confessou: - Espero um dia viver com as lendas... as len­das vivem para sempre... em algum lugar.

Daniel não entendeu as últimas palavras do comandante e quando ia falar algo foi interrompido.

É melhor você ir dormir mais um pouco, Daniel Crowley - e virando-se, convidou Daniel a voltar para o alojamento. - Logo vai amanhecer e vocês terão um dia bem movimentado.

O comandante Hugo tomou o caminho para a ponte e Daniel entrou deitando-se novamente. Ele passou alguns instantes refletindo sobre a conversa que teve há pouco, mas principalmente nas palavras que mexeram com ele: Viver com as lendas... as lendas vivem para sempre... em algum lugar. Depois adormeceu.

A luz da manhã que se erguia no leste foi empalidecendo, pouco a pouco, o brilho das estrelas, até escondê-las totalmente.

Daniel despertou, dessa vez não pelo estrondoso apito do navio, mas pelo agito causado por alguns alunos que já arrumavam as suas tralhas nas malas. Outros cal­çavam os sapatos ou penteavam os cabelos se preparando para o desjejum. Ramón entrou a passos rápidos no alojamento e com gestos largos ordenou.

Não esqueçam de arrumar as camas — disse, apontando para algumas ainda desarrumadas. - Aliás, isso deverá ser um hábito daqui por diante.

Daniel pulou da cama e, recuperando o tempo perdido, vestiu-se rapidamente e acompanhou um pequeno grupo de alunos que saía do alojamento. Margaret o aguardava impaciente, e a primeira coisa que fez ao ver o irmão foi reclamar.

Por que demorou? O dia já raiou faz uma hora.

Não dormi muito bem - se justificou esticando-se para enxergar melhor por cima da pequena multidão que se aglomerava na entrada do refeitório. - Você já comeu algo?

Fui a primeira a entrar no refeitório — proferiu com altivez. — Minhas malas já estão prontas e colocadas próximas ao desembarque. Não vejo a hora de chegarmos.

Daniel e Margaret viram um braço levantado e acenando na direção deles. Era Chester que com alguma dificuldade foi se desviando das pessoas e conseguiu se unir aos irmãos.

Que confusão, será que é sempre assim para se comer alguma coisa?

Tomara que não — disse Daniel enquanto entrava na fila que estava sendo organizada por um marinheiro que parecia saber exatamente o que deveria fazer.

O marujo tratava a multidão inquieta como se fosse um bando de garotos na porta do cinema que está prestes a estrear um filme muito esperado.

Daniel e Chester pegaram as bandejas que continham pão, queijo, um copo de leite e frutas, e procuraram um lugar no convés menos concorrido para se sentarem. Margaret os seguiu:

Encontrei o comandante essa manhã - disse ela se sentando ao lado deles. - Ele comentou que o apito seria acionado ao avistarem a Ilha da Coroa.

Esse comandante, parece que não dorme nunca - criticou Daniel tomando um gole do leite branco.

Por que você diz isso? — perguntou Chester quando não compreendeu o comentário do colega.

Daniel então contou o que ocorrera horas antes, quando teve o encontro inesperado com o comandante Hugo durante a madrugada, no seu momento de insônia.

Talvez ele seja um fantasma — brincou Margaret roubando uma migalha de pão da bandeja do irmão.

É... um fantasma de carne e osso — ironizou Daniel, deixando a bandeja vazia de lado.

É melhor vocês pegarem suas coisas e as deixarem perto das minhas - alertou Margaret. - Vai facilitar a nossa descida quando o navio atracar.

Pra que a pressa? — perguntou Daniel em tom de protesto. — Vamos desembarcar do mesmo jeito.

Daniel Crowley! — exclamou indignada, levantando-se. — Eu não entendo você. Só quis ajudar!

Margaret empertigou-se e, pisando duro, misturou-se aos passageiros, sumindo de vista. Chester, que presenciava a cena de desavença entre os irmãos, disse, procurando descontrair.

Ela é um pouco temperamental, não é?

Você ainda não viu nada - avisou Daniel balançando a cabeça num sinal de desaprovação. - Mas vai ver... pode ter certeza.

Marc não viu mais Rafael desde o dia anterior. Correu o olhar pelo convés e não conseguiu encontrá-lo, então voltou ao alojamento para pegar a sua bagagem de mão. Ele caminhou pelo amplo salão que estava praticamente vazio, passando pelas camas enfileiradas, lado a lado, até chegar à sua, encontrando sua bolsa e a pequena maleta de couro onde guardava algumas mudas de roupa. Marc sentou-se e tirou do fundo da tal maleta, o cartão de identificação com o código: 21CFRT, fixando o olhar naquela combinação de números e letras sem entender do que se tratava. Não chegando a nenhuma conclusão, terminou de arrumar seus pertences e apoiando a alça de sua bolsa no ombro, pegou a maleta e caminhou de volta em direção à saída. Ramón entrou no alojamento, passou por Marc e, de repente, deteve o passo, girando nos calcanhares:

Por obséquio - fez uma pausa aguardando Marc se virar —, você é o flautista, estou certo?

Sim, sou eu... — respondeu Marc, ajeitando novamente a bolsa que teimava em escorregar-lhe do ombro.

Por favor, me procure amanhã em meu gabinete. Caso não se lembre, sou o vice-diretor Ramón Almendra.

Sei quem o Sr. é. Não se preocupe, vou procurá-lo sem falta - concordou titubeante sem entender direito e retomou lentamente o caminho da saída.

Lá fora o acúmulo de pessoas já era igual ao do dia anterior e Marc finalmente localizou Rafael que vagava como se estivesse perdido:

Rafael! — gritou.

Ele respondeu com um aceno e se aproximou mostrando um sorriso de satisfação.

Onde você estava? — indagou Rafael descansando sua mala no chão. — Procurei-o por todo o navio.

Eu também estive a sua procura. Acabamos nos desencontrando.

Marc esfregou a mão no queixo e confidenciou:

Aconteceu algo estranho minutos atrás. Lembra-se do Sr. Ramón?

O vice-diretor? — emendou imediatamente.

Ele mesmo!

Marc contou o que havia acontecido levando Rafael a especular.

Possivelmente ele tem algum grupo musical e quer que você participe.

Acho que ele quer me proibir de tocar. Se for assim eu embarco de volta no primeiro navio - disse resoluto. - Não me desfaço da minha música por motivo algum.

Isso você só saberá amanhã. Até lá procure aproveitar a resto da viagem — disse amenizando as dúvidas do amigo.

Vamos para a proa - sugeriu Marc. — A qualquer momento deveremos avis­tar a Ilha da Coroa - Rafael agarrou a sua mala e seguiu o companheiro.

Daniel estava na companhia de Chester e espiava o mar, tentando avistar algum sinal de terra. Ele exagerou.

Estamos a tanto tempo navegando que tenho a sensação de que daqui a pouco avistaremos a costa da Inglaterra.

Chester riu.

Já estamos chegando. Em pouco tempo estaremos na ilha.

 

Daniel olhou para a ponte de comando e viu o comandante Hugo com a aten­ção voltada para o horizonte. O comandante inclinou a cabeça, fitando o convés tomado de passageiros e então fez um discreto aceno com a mão. Daniel entendeu que era com ele e respondeu da mesma forma. Depois se voltou para Chester e sussurrou:

Meu pai nunca me falou dele. De uma pessoa assim ele deveria ter comen­tado comigo ao menos uma vez.

Pode ser que ele tenha esquecido ou mesmo não tenha dado tanta importância - argumentou Chester dirigindo o olhar para a ponte e não localizando mais o comandante.

Você não tem a impressão que a Ilha da Coroa esconde algum grande mis­tério? — questionou Daniel mordendo o lábio.

Talvez essas coisas sejam fruto da imaginação das pessoas — argumentou erguendo os ombros. — Ou quem sabe seja o nosso desejo de que aquela ilha abrigue mesmo algo estranho, mas olhe só, tanta gente já esteve lá e ninguém comprovou nada — Chester fez uma pausa. - Mas você tem razão, eu também carrego essa impressão.

 

Marc tirou da bolsa o cartão de identificação e o mostrou a Rafael:

Olhe isso aqui, você sabe o que significam esses números e letras?

Não... não sei — disse examinando atentamente o cartão de Marc. - O meu também tem um desse, mas não me recordo agora a combinação correta de núme­ros e letras. Eu o deixei aqui dentro da minha mala, mas espere que vou achar...

Esqueça! — interrompeu Marc. — Perguntaremos depois a algum aluno mais antigo, certamente alguém saberá dizer o que significa.

 

De repente, o estrondoso apito chamou a atenção. Era o sinal que Margaret tanto aguardava. Ela então correu à procura de Daniel que se espremia disputando um lugar na amurada com outros alunos.

A visão era impressionante! Onde o navio deslizava, o mar tinha uma aparên­cia normal apresentando ondulações suaves, mas a uns duzentos metros a bom­bordo, as águas pareciam ferver; um círculo gigante de águas crepitantes envolvia a ilha que despontava como um pontinho no horizonte. O Divina Providência III seguia contornando o imenso círculo, mantendo uma distância segura para evitar romper o limite entre o navio e o desastre. Era um momento de tensão para toda a tripulação que não podia correr o risco de cometer nenhum erro.

Os novatos contemplavam a cena, extasiados. Por mais que imaginassem, jamais esperavam ver algo parecido. Como podia o mar mudar de comportamento abruptamente? Por um instante, o navio se aproximou tanto das águas enfurecidas que os alunos, assustados, gritaram em coro como se estivessem em queda livre numa montanha-russa.

Rafael manifestou a sua emoção:

É mágico! Eu nunca experimentei nada igual

Só por esse momento já valeu a pena ter vindo! - disse Marc, maravilhado.

Daniel, Chester e Margaret estavam encantados com aquela manifestação única da natureza. O sorriso deles era o retrato da felicidade que estava se concretizando com a chegada sonhada há tanto tempo. Uma chegada triunfal!

Daniel olhou novamente para a ponte de comando e viu o comandante Hugo com a sua costumeira postura imponente. O comandante levantou o polegar fazendo um sinal de positivo para ele que respondeu prontamente.

O senhor Ramón percorria o convés alertando:

Não se debrucem muito na amurada! Não queremos que aconteça nenhum acidente. — E puxando educadamente para trás alguns alunos mais imprudentes, continuava: — Não se debrucem muito na amurada!

Numa guinada para boreste o Divina Providência III começou a se afastar do gigantesco círculo de águas enlouquecidas e, mais à frente, retomou a bombordo. Agora o navio seguia diretamente com a proa apontada para o mar revolto, causando apreensão maior aos calouros. Mesmo os mais experientes prendiam o fôlego, pois sabiam que a manobra que estava prestes a se realizar merecia uma boa dose de cautela. Outro espetáculo estava começando: uma larga faixa de águas calmas se abria como uma estrada longa e reta até a ilha, permitindo que a embar­cação penetrasse no círculo sem ser tragada pelo forte turbilhão. Aquela passagem levava diretamente à ilha que se tornava, aos poucos, mais perceptível aos olhos admirados dos jovens passageiros. Alguns, não querendo de maneira alguma perder os detalhes do show deslumbrante, corriam de um bordo ao outro como crianças em um parque de diversões repleto de sonhos e fantasias.

É como na Bíblia, com Moisés: As águas foram separadas — disse Marc de maneira solene.

Não foram separadas — consertou Rafael. — Tem muita água embaixo do navio.

Ora, é apenas um modo de dizer. Você não tem imaginação?

Os olhos de Rafael e Marc brilhavam apreciando com admiração a aproxima­ção da Ilha da Coroa que se materializava diante deles. Rafael exclamou.

As ondas, Marc, olhe como elas quebram nos rochedos!

Agora entendo por que a ilha tem esse nome! - deduziu Marc, concentrando o olhar na inusitada formação que emergia do oceano. — Veja as pedras pontudas! Elas parecem contornar toda a ilha, só deixando uma pequena parte livre. As pontas da coroa de um rei que cercam a ilha como se quisessem protegê-la contra o ataque furioso do mar.

Marc estava certo. A formação rochosa, escura, quase negra, cercava toda a ilha e só permitia o acesso a ela por uma faixa de areia de uns oitenta metros de largura. Por uma coincidência inexplicável, essa era a mesma largura da passagem no mar que permitia o navio chegar com segurança até a areia da praia. As ondas explodiam com tanta violência contra a muralha de rochas que chegavam a atingir alturas vertiginosas, tornando a paisagem ainda mais dramática.

Com a aproximação lenta e cautelosa do navio, já era possível distinguir dois longos atracadouros que avançavam paralelos, mar adentro, como duas pontes interrompidas bruscamente nos seus percursos. Um rebocador que saíra em auxílio do Divina Providência III, se preparava para iniciar os procedimentos de atracação. As potentes máquinas foram desligadas e somente o rebocador trabalhava com o motor a todo giro trazendo a embarcação lotada para o seu repouso. O Divina Providência III atracou perfeitamente entre os píers com extrema desenvoltura, os marinheiros mostravam suas habilidades jogando grossas cordas para a amarração do navio que cumpriu satisfatoriamente a sua missão.

Chegamos! - manifestou-se Margaret, posicionando-se, como de costume, no primeiro lugar da fila.

Chester e Daniel, bem mais atrás, dessa vez não conseguiram acompanhá-la, superados que estavam pelo batalhão de gente que se apinhava aguardando para descer em terra.

Marc e Rafael preferiram evitar o tumulto e, ainda inclinados sobre a amurada, se encantavam com a vista de parte da ilha. Em primeiro plano se erguia uma grande edificação de três andares ocupando extensa área do setor visível de toda a porção de terra. Uma dupla de torres de vigia se elevava nas duas extremidades oeste da imponente construção. O objetivo das torres parecia ser o de observar o que se passava na densa floresta que cobria o lado oeste da ilha. Mais a oeste ainda, sobre um monte escuro e rochoso, despontava um farol branco listrado de vermelho e que contrastava com o límpido azul do céu. O farol se erguia no topo do monte como uma gigantesca vela sobre um bolo. Outras construções menores rodeavam a principal, fazendo com que o conjunto arquitetônico se assemelhasse a uma pequena cidade interiorana. Aves marinhas faziam voos rasantes sobre o mar em busca da primeira refeição da manhã. Atobás, mergulhões e fragatas cortavam o céu num harmonioso balé aéreo. Rafael comentou quase sem sentir as palavras saírem de seus lábios.

Essa será nossa casa nos próximos anos.

Espero que seja agradável — desejou Marc se afastando da amurada. — Oito anos é um longo tempo.

Você está arrependido de ter vindo? - perguntou curioso, percebendo no tom de voz de Marc a possibilidade de que ele desistisse e fosse embora. Em seguida tentou animá-lo. - Com o tempo você vai gostar daqui.

O que você está dizendo? Não estou arrependido! - afirmou incisivo, tomando o caminho para a escada de acesso ao píer. - Quero fazer desse lugar algo interessante pra mim. Mas por ora, o que eu vi já é o suficiente para me convencer a ficar. Vamos descer?

Rafael fez um aceno com a cabeça concordando em desembarcar logo e os dois seguiram juntos para o final da fila.

 

                                         Um Quarto para Quatro

Quando os seus pés tocaram em terra firme, Meg aguardou Daniel e Chester que se juntaram a ela e seguiram até o final do píer que sacolejava como uma enorme serpente de madeira sobre o mar. Eles nem chegaram a pisar a areia da praia, pois um caminho de pedras de tamanhos irregulares ligava o atracadouro até o pátio da escola que ficava em frente ao grande prédio principal. O sinuoso caminho era ladeado por vários mastros que sustentavam as bandeiras tremulantes de diversos países. Os calouros podiam identificar as bandeiras de Portugal, França, Espanha, Inglaterra, México, Estados Unidos, Brasil, Itália, Argentina e tantos outros que estavam ali representados. Todos aqueles países contribuíam por meio de doações em dinheiro e equipamentos para manter a instituição funcionando há mais de cinqüenta anos, formando intelectuais de renome. O valor da Escola Internacional do Atlântico era reconhecido no mundo todo. A instituição abasteceu o mundo com mentes brilhan­tes e muito bem preparadas nos campos da Matemática, Filosofia, Geografia, Biologia, Física, Química, Geologia dentre outros que consolidaram a boa fama da escola, fazendo frente às melhores organizações de ensino do planeta.

A área livre da escola era ampla e bem cuidada. Inúmeras mesas com guarda-sóis de palha, para protegerem os alunos do sol forte, se distribuíam de maneira uniforme pelo enorme pátio. Ali, os alunos costumavam se reunir para darem seqüência aos seus estudos e também conversarem sobre outros assuntos, sempre vigiados pelos monitores atentos a qualquer ato de indisciplina.

A frente, com andar ligeiro, o senhor Ramón conduzia o numeroso grupo de alunos que se aproximava da grande entrada em arco do prédio escolar com fileiras de janelas que contornavam a construção pelos três andares. Do lado oeste das edi­ficações, a uns trezentos metros de distância, era possível vislumbrar uma espessa barreira de mata fechada que se estendia atravessando a ilha de norte a sul.

Ramón deteve o passo e fez um gesto levantando o braço direito para que todos parassem. Ele esperou um momento até que os últimos retardatários se aproximassem e discorreu:

— Bem-vindos à Ilha da Coroa! — apertou as mãos uma na outra e continuou falando. - Dentro de alguns instantes vocês ouvirão o pronunciamento de boas- vindas do nosso diretor, o Sr. Helmut Neckel. Sei que estão bastante cansados da longa viagem, mas logo serão liberados para descansarem um pouco antes do almoço.

Com a chegada dos últimos alunos, foi formado um compacto semicírculo com mais de quinhentas pessoas que esperavam atentamente ouvir as palavras do diretor. Do fundo da entrada em arco foi aberta uma grande porta de madeira maciça marrom-escuro e surgiu um homem que devia ter uns sessenta anos ou mais. Seus olhos claros e cabelos brancos como os do comandante Hugo e seus óculos de aro fino e um paletó comprido cinza, não adequado ao calor tropical, lhe conferia uma aparência de alguém que ainda vivia no século XIX. Ele trazia algumas folhas que conferia rapidamente enquanto andava e ao chegar na beira da escada de cinco degraus que descia ao pátio, parou. Por um breve instante observou a massa de alunos que se postava à sua frente, e pronunciou:

Creio estar perante as mais privilegiadas mentes que habitam este planeta. Caso algum de vocês não concorde, o navio ainda está atracado e o momento de desistir é agora. - Fez uma pausa fitando alguns alunos que estavam mais próximos, como um sargento que desafia os seus soldados. - Eu espero e exijo duas coisas de vocês - disse provocando expectativa: — Dedicação e disciplina! - exclamou descendo os degraus e se aproximando dos alunos que mostravam a mesma expres­são séria e intimidada. Caminhou a passos lentos olhando duramente nos olhos daqueles que formavam o primeiro pelotão. Helmut parou em frente a Meg e olhou diretamente para ela. — Para nós não importa o sexo, a cor da pele, a religião ou a origem dos que aqui estão, mas se vieram para essa ilha é porque devem ser os melhores. - Margaret quase não piscava e sequer movia um músculo. O diretor prosseguiu: — E vou exigir o melhor de cada um! Como sempre acontece todos os anos, alguns de vocês não resistirão e seguirão por aquele caminho até o navio e contarão aos amigos e parentes como essa escola é rígida e desumana. Melhor assim. Essa ilha não é lugar para derrotados. Só os melhores permanecem.

Chester cochichou no ouvido de Daniel:

Bem-vindo a Legião Estrangeira!

Helmut moveu a cabeça parecendo estar procurando o autor do gracejo. Ele passou a primeira folha que estava em suas mãos para o final e seguiu o seu discurso:

Nós queremos oito anos das suas vidas e em troca podemos oferecer uma vida de sucesso profissional e pessoal. Acho que não é novidade para ninguém que todo aluno aqui formado tem assegurada uma carreira com um futuro promissor. Nós temos a melhor escola e vocês as mais prodigiosas mentes — disse enrolando as folhas e fazendo um canudo com elas. — A união dessas forças será recompensada no final.

Ramón já conhecendo o desfecho da fala retomou a palavra:

Atenção! Os veteranos já sabem qual o procedimento a tomar a partir de agora - e tirando uma caderneta do bolso do paletó, completou: - Os calouros devem me seguir imediatamente! - ordenou, e erguendo mais uma vez o braço chamou a atenção dos calouros. - Outra coisa, não se preocupem com as bagagens mais pesadas, pois elas serão levadas até os seus dormitórios pelos nossos ajudantes.

Os veteranos já haviam se dispersado, restando apenas oitenta e três novatos que aguardavam as próximas orientações a serem passadas.

Helmut e Ramón trocaram algumas palavras sem que ninguém mais ouvisse o que estavam conversando. E em seguida, o diretor sumiu atrás da grande porta de onde havia surgido. Ramón anotou algo em sua caderneta e se dirigiu novamente aos calouros:

Estão prontos? Então, sigam-me!

Ele tomou o mesmo caminho do diretor e foi seguido pelos jovens iniciantes que procuravam acompanhar o seu passo apressado. Ao cruzarem a grande porta de entrada, penetraram em um saguão enorme com a parede ao fundo ocupada por inúmeros retratos que deveriam ser de pessoas importantes na história da escola. O ambiente era mais apresentável do que eles esperavam e os móveis e tapetes que decoravam o salão eram de um estilo bastante refinado. Os passos dos calouros provocavam estalidos como se estivessem no interior de uma catedral e por mais que diminuíssem o tom de suas conversas não conseguiam evitar o eco que se propagava por todo lado. Ao atravessarem o saguão, entraram por outra porta igualmente imponente e seguiram por um largo corredor que parecia não acabar mais. Candelabros de bronze e escudos de todas as cores e formas cruzados por belíssimas espadas, eram fixados nas paredes, dando um aspecto medieval ao local e despertando a imaginação dos novos moradores que por ali passavam.

Rafael, que tentava não perder nenhum detalhe, comentou admirado:

Esse lugar é bem maior do que eu havia imaginado! Parece que estamos voltando no tempo.

Estou começando a gostar daqui - confidenciou Marc com um sorriso de encantamento ajeitando a teimosa alça da mochila em seu ombro.

Antes que chegassem ao final do longo corredor, Ramón estacou em frente a uma porta larga e sinalizou com um movimento contínuo de mãos para que todos adentrassem.

Vamos, entrem! Acomodem-se nas cadeiras para que possamos dar seqüên­cia ao programa e finalizarmos logo a admissão de vocês.

Todos os alunos então invadiram um auditório de cadeiras enfileiradas que se elevavam cada vez mais à medida que se afastavam do tablado central. Marc e Rafael se sentaram na última fileira, e assim, podiam visualizar tudo bem de cima. Marc, apoiando seu cotovelo no braço da cadeira, aproximou-se de Rafael e comparou:

Isso aqui me lembra um pequeno teatro em que eu me apresentei no ano passado. A acústica daqui parece ser boa para uma audição de piano.

Você também toca piano? — perguntou curioso, descobrindo aos poucos as aptidões do amigo francês.

E violino também - concluiu como se tocar três instrumentos de forma magistral fosse a coisa mais corriqueira do mundo.

Violino?! - Espantou-se Rafael, percebendo que tinha conhecido alguém que era uma verdadeira orquestra ambulante.

Os calouros se ajeitaram ao mesmo tempo em suas cadeiras ao notarem que estava adentrando no auditório o diretor Helmut, trazendo embaixo do braço uma volumosa pasta de cartolina preta. O diretor abriu a tal pasta sobre uma mesa de aparência sólida e contornos roliços e voltou-se para a platéia empurrando os óculos com o dedo indicador para mais perto dos olhos. Então começou a discursar:

Essa escola prima pela excelência na formação de seus alunos, como deve ter ficado bem claro. E para que isso aconteça efetivamente, é preciso que todos, sem exceção, cumpram determinadas regras de conduta — explicou retornando à mesa para pegar uma pilha de folhas datilografadas e depois continuou: — Esse é o regu­lamento que vocês deverão seguir enquanto estiverem nesta ilha — disse exibindo o regulamento e prosseguiu: — Estou falando com pessoas que têm a inteligência acima da média e que certamente entendem muito bem o que estou dizendo.

O diretor passou a pilha de folhas para Ramón que imediatamente começou a entregar para os calouros desejosos de saber dos pormenores que constavam naquela lista. Enquanto a distribuição era realizada, Helmut adicionou outras recomendações:

Quero destacar algumas regras fundamentais para a boa estada de todos por aqui. - Preparou-se com uma breve pausa e elevando a voz, enfatizou: — O cumprimento dos horários como: levantar, entrar na sala de aula ou se recolher aos dormitórios é regra básica, passível de punição caso não sejam obedecidos. Os deveres depois da aula deverão ser apresentados dentro do tempo solicitado. Não aceitaremos justificativas de última hora para os possíveis atrasos - alertou, e aproximando-se ainda mais da platéia, correu um olhar severo de lado a lado, então disparou: - E finalmente! Ninguém!- articulou cada sílaba vagarosamente. - Em nenhuma circunstância está autorizado a entrar na floresta sem permissão.

A inusitada regra deixou a todos intrigados. Por que não se podia entrar na floresta? O que havia lá que impedia os alunos de terem acesso àquela parte da ilha? Rafael olhou atônito para Marc que respondeu com ar de quem havia matado uma charada.

Margaret não se segurou e levantou o braço pedindo permissão para falar. Helmut consentiu estendendo a mão na direção dela:

Qual o motivo da proibição de entrar na floresta?

O questionamento de Margaret foi provocativo recebendo a aprovação silen­ciosa dos colegas que adoraram o seu atrevimento e também gostariam de saber a mesma coisa. Helmut se aproximou da aluna ousada e respondeu:

Foi oportuna a sua pergunta, Srta...

Margaret Crowley! — se identificou com segurança.

Crowley... — repetiu minuciosamente o sobrenome da menina buscando na memória alguma lembrança oportuna. Meg logo compreendeu que seu sobrenome era familiar ao diretor. Helmut deu prosseguimento à sua resposta:

O exercício da disciplina é essencial ao aprimoramento dos nossos alunos e o cumprimento das regras estabelecidas serve para acompanharmos o estágio de desenvolvimento em que se encontra cada um. Mas não é só isso - percorreu novamente os presentes com o olhar, e em tom professoral revelou: — Na floresta vivem animais peçonhentos e plantas tóxicas que poderiam matar com um sim­ples e descuidado toque qualquer ser humano. - Olhou de novo para Margaret e provocou: — De que outra forma você acha que conseguiríamos manter centenas de alunos por ano nessa escola durante décadas sem ter havido sequer um caso de morte entre os internos?

Meg ficou sem palavras e achou prudente não prolongar o assunto. Ela só estava começando e evitar confrontos seria a melhor estratégia a tomar.

Helmut não hesitou em completar sua argumentação.

Mas não se preocupem, uma parte da área sudeste da floresta está livre para que os alunos possam fazer seus estudos e pesquisas, desde que supervisionados pelos nossos professores - disse pegando a pasta preta, já vazia, em cima da mesa, e finalizou: - Mais alguma pergunta?

Mediante o silêncio que se seguiu, ele se despediu e retirou-se do auditório, tão inesperadamente quanto entrou.

Daniel inclinou o corpo para o lado de Chester e perguntou murmurando:

Você ficou convencido com as justificativas desse... Helmut?

Nem um pouco e você?

Claro que não! Tem algo esquisito nessa história toda e eu gostaria muito de descobrir o que é - disse inconformado, tamborilando os dedos no braço da cadeira. - Também acho estranho o meu pai nunca ter falado nada sobre essa proibição.

Ramón interrompeu novamente assumindo o comando da turma.

Muito bem, pessoal, para encerrarmos e podermos descansar um pouco antes da refeição ser servida, quero passar algumas informações complementares: caso alguns de vocês queiram se candidatar para trabalhar em algum departamento da escola, aproveitando suas habilidades, estamos aceitando voluntários. Tal ati­tude poderá melhorar seus conceitos no final do ano - afirmou riscando em sua caderneta o recado que acabara de passar e usando o lápis como uma batuta. — Se houver interessados me procurem na secretaria a partir de hoje à tarde - disse virando algumas páginas e achando outro recado que imediatamente foi passado.

Todos aqui receberam um cartão cada um com um código alfanumérico, confirmam? - Os alunos concordaram entre murmúrios e acenos. — Pois bem, esse código se refere ao número do dormitório que vocês irão ficar, seguido da primeira letra do sobrenome de cada um dos quatro companheiros de cada quarto.

Marc puxou o seu cartão, e agora sabendo o que significava o misterioso código, conferiu em voz baixa:

Vinte e um CLFT... Veja Rafael, a terceira letra é "F" de Fournier.

E o dormitório é o 21 - completou Rafael tirando da maleta o seu cartão.

No meu está 16AFMR. Ficaremos em quartos diferentes - lamentou coçando a cabeça.

Daniel e Chester já comemoravam, pois seus cartões tinham o mesmo código que indicava que ficariam juntos: 21 CLFT. O mesmo de Marc.

Só mais um momento, por favor! — exclamou Ramón pedindo outra vez a atenção da platéia e examinando sua caderneta, correu o dedo sobre uma página parando em uma anotação. — Tivemos algumas desistências e para um melhor aproveitamento dos dormitórios, faremos o remanejamento de alguns alunos — disse erguendo a caderneta para uma leitura mais clara. — O dormitório 16 será desativado por que dois dos alunos que ali estavam lotados não vieram e perderam suas vagas. O aluno Kamal Rached ficará no dormitório 14 e o aluno Rafael Fab no dormitório 21, substituindo outro desistente.

Rafael vibrou:

Estamos juntos, Marc!

Seja bem-vindo, Rafael! - comemorou desferindo um tapinha no novo companheiro de quarto.

Ramón encerrou a reunião com os calouros e conduziu-os, dessa vez até o final do amplo corredor que dava para outro salão, tendo ao fundo uma escadaria. Ele orientou:

Subam as escadas e procurem seus quartos. A direita fica a ala feminina e à esquerda a masculina. Os números estão fixados nas portas. - Puxou o relógio de bolso e verificou a hora. — O almoço será servido às 12 horas. Fiquem atentos e desçam imediatamente quando ouvirem o toque do sino.

Os alunos subiram e a turma dividiu-se em dois grupos, o masculino e o feminino. Depois seguiram outro corredor olhando cada porta, procurando o número do dormitório em que deveriam se instalar:

Número 18! É mais para frente - disse Chester quando olhou a porta seguinte.

Quarto 19... 20... 21! E aqui! Chegamos! - disse Daniel parando em frente ao quarto e esperando Chester que vinha logo atrás.

Daniel entrou primeiro e fez o reconhecimento do local. O dormitório náo era muito grande, mas havia espaço suficiente para acomodar com folga dois beliches, um armário de quatro portas que ia até o teto e uma mesa com quatro cadei­ras, o bastante para os quatro alunos cumprirem as suas tarefas escolares ao mesmo tempo. Uma janela de duas folhas se abria para o lado oeste da ilha, sendo possível avistar uma grande área dedicada às práticas esportivas contornada por uma longa pista de corrida. Ao fundo se via a misteriosa floresta fechada que tomava mais da metade da ilha. Do meio da floresta se erguia um monte rochoso de formas arredondas que atingia uns trinta metros de altura, e no topo deste, se levantava o majestoso farol branco com faixas horizontais vermelhas, que era usado para orientar as embarcações durante as noites sombrias. Ao se depararem com a luz intermitente do farol, os navegantes sabiam que deveriam se afastar com urgência, pois estavam muito próximos de uma tragédia.

Chester depositou suas coisas em um canto e comentou:

Já deixaram nossas malas maiores no quarto. O serviço de hotelaria é eficiente.

Esqueça o serviço de hotelaria - disse Daniel enquanto avaliava as condi­ções do quarto que lhes fora destinado. - Teremos algum trabalho hoje para arru­marmos tudo nesses armários - comentou enquanto abria as portas e verificava o espaço disponível.

A porta do quarto se abriu vagarosamente e os dois outros moradores do número 21 se mostraram aos seus novos colegas. Eram Rafael e Marc.

Olá, pessoal! — disse Rafael sorridente apertando a mão de Daniel e depois a de Chester.

Marc fez o mesmo e retirou do ombro a sua mochila, deixando-a em cima de uma das camas. O quarteto se apresentou e o constrangimento inicial foi aos pou­cos se dissipando e dando lugar a um clima de confraternização. Eles conversaram sobre a viagem e também sobre o que havia acontecido há pouco no auditório.

Marc, cansado da viagem, resolveu se esticar em uma cama enquanto Chester arrumava algumas peças de roupa, colocando-as empilhadas em uma prateleira do armário. Daniel sofria tentando abrir sua mala que havia sido trazida pelos carre­gadores e desabafou:

Droga! Parece que o fecho quebrou - constatou tentando virar a chave sem ter sucesso.

Posso tentar? - ofereceu-se gentilmente Rafael se agachando ao lado dele.

Tudo bem - concordou Daniel dando de ombros, descrente do êxito de seu novo companheiro de quarto.

Rafael avaliou o fecho que resistia em não abrir, depois, levantou-se e foi até a sua pequena maleta de mão, pegando um pedaço de arame. Daniel olhava curioso aos movimentos do garoto, o que despertou também a atenção de Chester e Marc. Com destreza, Rafael introduziu o arame na diminuta fechadura e em questão de segundos ouviu-se um clique:

Pronto! — disse apontando para a mala com a ponta do arame. — Está aberta!

Ei! Você é bom nisso! — exclamou Daniel agradecido.

Faço essas coisas há anos. Abrir uma dessas é muito simples.

Você não me falou dessa sua habilidade — protestou Marc um tanto indig­nado por ser, dos três, o que mais deveria conhecer sobre Rafael.

Você não perguntou — disse rindo e se debruçando no parapeito da janela. — Uau! Olhem essa vista! Dá pra ver toda a mata daqui.

O que vocês acharam da explicação do Sr. Helmut proibindo de visitarmos a floresta? — perguntou Daniel dirigindo-se a Marc e Rafael.

Não acreditei em nada do que ele disse - respondeu Marc decidido. — Está escondendo alguma coisa.

Em minha opinião essa escola está envolta em mistérios - emendou Rafael igualmente desconfiado.

Ouçam bem o que vou dizer - preparou Marc sentando-se na cama. - Se eles estiverem escondendo algo nesse fim de mundo e se facilitarem... eu vou descobrir.

Daniel e Chester se olharam com a firme sensação de que tinham encontrado um aliado.

Rafael precisava concluir o curso e não queria arrumar complicações. Então mudou o tema do diálogo.

Vocês sabem qual o nome daquele monte que se eleva do meio da floresta? - indagou olhando para fora.

Eu sei! - respondeu Daniel com convicção. - Cabeça do Rei!

E sabe por que recebe esse nome? — questionou novamente testando os conhecimentos do novo colega.

Não — respondeu Daniel olhando de maneira interrogativa para os outros que também desconheciam.

Rafael ficou de costas para a janela e, após apoiar os cotovelos no parapeito, explicou:

Durante séculos essa ilha tinha outro nome - disse fazendo uma pequena pausa. — Ela se chamava Garganta do Diabo.

Nome sugestivo — interferiu Chester apoiando o queixo no punho.

Só o nome já causava terror aos marinheiros que evitavam essa parte do oceano, temendo serem puxados pelas conhecidas águas diabólicas. Quando o Brasil conquistou a sua independência em 1822, mudaram o nome da ilha para homenagear Dom Pedro que foi coroado como o primeiro imperador do Brasil e também para apagar de vez aquele nome agourento — discorreu aos olhos atentos dos amigos, e concluiu: — Portanto, já que a ilha é uma imensa coroa, o monte que se ergue no seu centro seria parte da cabeça do rei. Daí o nome.

De repente a conversa foi quebrada pelo ribombar do sino.

É a chamada para o almoço! — avisou Chester animado.

Estou morrendo de fome! — confessou Daniel. — Vamos descobrir onde se come por aqui.

Eles escaparam imediatamente do quarto e se uniram aos demais alunos descendo as escadas, indo em direção ao refeitório. Eles acompanharam aquele mundo de gente aproveitando a experiência dos mais antigos e seguindo o caminho que levava até outro corredor que desembocava em um grande salão com várias mesas compridas que comportavam seguramente todos os alunos da escola. As filas foram formadas e lentamente os alunos foram se servindo e buscando algum lugar para almoçarem em meio ao barulho de talheres batendo nas bandejas de latão e das con­versas animadas das centenas de jovens irrequietos. O almoço foi encerrado e outro momento livre foi dado aos alunos para que aproveitassem da melhor maneira que lhes conviesse.

Os quatro companheiros resolveram conhecer melhor a parte externa da escola, contornando o gigantesco prédio e tendo uma melhor noção de todo o complexo. Eles decidiram conhecer primeiro a área destinada aos esportes e para­ram bem no centro para observarem melhor todo o cenário. Escolheram primeiro aquela parte não por acaso, era a que ficava mais próxima da floresta; homens vigi­lantes caminhavam nos limites entre a área aberta e o início da vegetação fechada, cuidando para que ninguém chegasse perto.

Isso está mais para um campo militar que para uma escola - comparou Marc cruzando os braços e olhando a sua volta.

Estão ouvindo o quebrar das ondas?Vamos até os rochedos - sugeriu Rafael apoiado pelos outros.

Conforme se aproximavam, os estrondos se tornavam mais fortes. Ao estourarem, as ondas subiam acima das rochas aguçadas, se transformando em uma névoa que era carregada pelo vento. Aquele foi o momento em que eles puderam sentir a violência do mar contra as pedras. Não era de se admirar que nenhuma embarcação ficou inteira depois que caiu naquela armadilha da natureza.

Ei! Vocês! Saiam já daí! - gritou um homem de cabeça raspada e usando um bigode que mais se parecia as asas de um pássaro abertas. - Não podem ficar por aqui, é muito perigoso.

Desculpe, senhor - justificou-se Rafael, sentindo-se culpado por ter tido a idéia. — Não sabíamos que era proibido...

Mas agora já sabem! Dêem o fora!

Marc não gostou nada da maneira grosseira com que o homem falou com eles, mas achou prudente não revidar e junto com os outros se afastou dali. Depois da bronca eles preferiram, por ora, não se meterem mais em encrencas. Era o suficiente para o primeiro dia. Marc lembrou-se de algo:

Preciso ir até ao gabinete do Sr. Ramón! - exclamou, levando as mãos à cabeça, manifestando seu esquecimento. — Ele quer falar comigo. Depois eu encontro vocês.

Chester, por não saber o que havia ocorrido no navio, indagou:

Do que ele está falando?

O Sr. Ramón disse que precisava falar com ele, mas não mencionou qual o assunto - respondeu Rafael, desconhecendo também do que se tratava.

Daniel, Rafael e Chester continuaram o passeio de reconhecimento e após contornarem os fundos do prédio central, viram um grupo de casas dispostas lado a lado com floreiras nas janelas e aparência bucólica.

O trio continuou caminhando e parou diante da entrada do que parecia ser uma vila. Um homem gordo usando um macacão sujo de tinta parou de pintar um muro e veio até eles.

Olá, rapazes, posso ajudá-los? - perguntou, abrindo um largo sorriso enquanto limpava as mãos em um trapo, daí apresentou-se: - Meu nome é Júlio, trabalho no departamento de manutenção. Conserto coisas que os outros que­bram. Bem, às vezes também quebro alguma coisa.

Os garotos riram entre eles e consideraram o amistoso Júlio a primeira cara simpática morando naquela ilha. Eles também se apresentaram e viram naquele com­portamento amigável uma boa oportunidade para bisbilhotarem mais um pouco.

Quem mora nessas casas? — arriscou Chester fazendo a primeira pergunta.

Alguns professores e funcionários - respondeu apoiando as mãos na cintura. - Outros funcionários e o próprio diretor moram no prédio grande.

Você trabalha aqui há muito tempo, Júlio? - perguntou Rafael procurando ganhar confiança.

Quase dez anos. Mas me envolvi tão intensamente com a ilha que tenho a impressão de ter vivido aqui toda a minha vida.

Então você deve conhecer essa ilha como a palma de sua mão?— emendou Daniel com outra pergunta.

Nem tanto, existem lugares que não temos permissão para freqüentar - respondeu enxugando com o trapo o suor que lhe escorria da nuca.

Que lugares são esses? — insistiu Daniel.

A floresta é um deles — disse apontando. — Nenhum empregado como eu pode entrar lá.

A fisionomia de Júlio ficou séria de repente e ele preveniu:

É melhor vocês irem andando... vão logo - murmurou e virou-se retornando ao trabalho.

O que deu nele? - perguntou Rafael intrigado.

Olhe para trás... ali está a sua resposta - alertou Chester acenando com a cabeça para saírem dali.

Rafael virou-se e viu um homem alto de óculos escuros que os encarava com ar de reprovação, provavelmente por estarem conversando com Júlio.

Acho melhor irmos embora daqui - aconselhou Rafael intimidado.

Eles se afastaram da entrada da vila e dirigiram-se até o pátio onde não seriam tão vigiados. Escolheram uma mesa longe dos olhares desconfiados dos monitores e se sentaram debaixo dos guarda-sóis para se protegerem do sol que queimava forte.

 

Marc parou em frente a porta onde havia uma placa que identificava que aquela era a sala do vice-diretor. Ele deu três batidas e aguardou. Quando já ia desistir mediante a demora, a porta se abriu e surgiu Ramón que olhou para ele e demorou um pouco para reconhecê-lo.

-Ah, é você... o flautista! Vamos, entre!

O Sr. tinha me dito no navio para procurá-lo — justificou sua presença entrando na sala, reparando nos grandes armários e prateleiras repletas de documentos.

Claro, sente-se - disse remexendo um armário que guardava inúmeras pas­tas cuidadosamente organizadas. Ele correu os dedos passando por várias delas e puxou uma com um gesto rápido, daí sentou-se em frente a Marc.

Temos ótimas referencias suas — elogiou, abrindo a pasta e tirando algumas folhas que deveriam ser um relatório da vida de Marc. - Deixe-me ver... ah, aqui está! Um notável músico com um talento invejável - balançou a cabeça em sinal positivo e prosseguiu: - Toca piano, flauta e violino com ótima desenvoltura - disse fechando a pasta e entrelaçando os dedos. - Realmente, parece que estou diante de um gênio da música.

É... eu toco bem - concordou simplesmente, sem ainda entender onde aquela conversa iria chegar. Marc recordou-se que mencionou coisas de sua vida particu­lar quando preencheu a ficha de inscrição meses atrás. As outras centenas de pastas arquivadas deveriam conter dados de todos os alunos como um eficiente serviço de espionagem.

Ramón recostou-se na cadeira e, apontando para Marc, foi direto.

Você gostaria de ensinar a sua arte aos seus colegas?

Não sei... talvez... — respondeu Marc hesitante. — O que o Sr. pretende?

Como eu havia comentado antes, incentivamos o trabalho voluntário e a sua contribuição seria muito útil para nós e... esse nós inclui você, Marc Fournier — explicou procurando sensibilizá-lo.

Ramón parou de falar e esperou por algum tempo a resposta de Marc que se fazia pensativo. Por fim respondeu decididamente.

Aceito!

Ótimo! Vou providenciar o local e os horários para as suas aulas.

Marc gostou da idéia e deixou o gabinete satisfeito com a sua nova função. Ao sair para o pátio, Marc procurou os colegas no meio de outros alunos que se espalhavam por todos os lados.

Rafael, vendo o amigo, acenou.

Ei, Marc! Aqui!

Marc apertou o passo e se aproximou.

O que ele queria? - indagou Rafael, tão curioso como os demais.

Vocês estão olhando para o mais novo professor da escola - disse empinando o nariz.

Que história é essa? - quis saber Daniel considerando por demais absurda aquela conversa.

É isso mesmo, o Sr. Ramón me convidou para ensinar música aos alunos — explicou sentando com seus companheiros.

Marc é um músico de mão cheia - elogiou Rafael batendo com o seu ombro no ombro de Marc. - Vocês ainda vão ver, ou melhor, ouvir do que ele é capaz.

A reunião descontraída foi interrompida por Meg que já chegou falando.

Oi, rapazes, posso me juntar a vocês? - perguntou acomodando-se entre Daniel e Chester.

Essa é minha irmã - disse Daniel apresentando-a sem entusiasmo. - Esses são Rafael e Marc.

Prazer, meninos! - disse apertando a mão dos novos colegas. - Tenho novi­dades para vocês, na entrada de cada ala foi colocado um quadro com o número da sala de cada aluno. Estou na sala IA — e olhando para Daniel avisou: — E você, Daniel, está comigo.

Aquela foi uma péssima notícia para Daniel, pois a irmã não ia largar tão fácil do seu pé. Ele sabia muito bem que Margaret iria controlar os seus passos o tempo todo, só tendo um pouco de paz na ala masculina onde Margaret não podia entrar. Daniel também tinha plena consciência que a irmã vinha com o firme propósito de infernizar a sua vida tentando a todo custo superá-lo nas notas de todas as matérias, e se isso acontecesse, é claro que ela escreveria contando tudo com detalhes aos pais.

Sem perder o fôlego Meg continuou.

Ah, sim! Você também está na nossa turma, Chester, fiquei muito feliz por isso. Aliás, as aulas já terão início amanhã cedo.

Chester tinha gostado de ficar na mesma sala que eles, pois Daniel era um cara legal e também porque tinha simpatizado com a colega tagarela.

Rafael levantou-se.

Vou indo, amigos, estou curioso para saber qual a sala que irei estudar durante esse ano. Mais uma vez, gostei de conhecê-la, Margaret.

Me chame de Su. É assim que gosto de ser chamada pelos meus amigos.

Rafael se despediu mostrando um sorriso tímido.

Vou com você Rafael, quero descansar um pouco - disse Daniel se esgueirando da irmã.

Chester e Marc decidiram ficar mais um pouco e fazer companhia a Margaret.

- Já sabe quem são suas colegas de quarto? - perguntou Marc puxando conversa.

Só duas, uma delas é portuguesa, sorridente e falante, e também tem uma chinesa de olhar enigmático como uma gata observadora, a outra eu nem vi ainda - respondeu dando de ombros.

Rafael chegou até o quadro de avisos e passou a procurar cuidadosamente o seu nome e viu que havia ficado na sala 1B. Em seguida passou a procurar o nome de Marc que para sua decepção também estava na sala 1A. Daniel que estava logo atrás dele, notando o descontentamento do colega, procurou confortá-lo.

Só estaremos separados pela manhã, Rafael, depois estaremos juntos o resto do dia.

É, você tem razão - aceitou sem muita firmeza na voz.

 

Os dois foram para o dormitório, e enquanto Rafael terminava de arrumar suas coisas no armário, Daniel se recostou na cama e o sono foi pesando suas pálpebras. Num leve cochilo ele se viu tentando a todo custo se embrenhar pela mata, mas era impedido por um emaranhado de galhos retorcidos, grossos cipós e raízes altas que dificultavam o seu avanço. Quanto mais ele tentava ir adiante, mais difícil se tornava a sua caminhada. De repente, Daniel sentiu os galhos se enroscarem nos seus braços e pernas e um cipó enrolou-se no seu pescoço como uma serpente determinada a enforcá-lo. Ele tentou gritar, mas a voz não saía. O ar começou a fal­tar e o desespero se apoderou dele. Por mais que se debatesse era inútil lutar. Daniel estava só. As árvores a sua volta tinham rostos disformes que lhe eram familiares. Mas quem? Claro! Eram os rostos de Ramón e do diretor Helmut!

Um apito longo arrancou Daniel do seu pesadelo que saltou da cama e passou em disparada quase atropelando Rafael.

Daniel! Aonde você vai? — perguntou, achando esquisita a atitude dele.

Rafael hesitou por um momento e saiu correndo atrás. Daniel descia as escadas

saltando dois ou três degraus a cada passada. No seu encalço vinha Rafael gritando.

Daniel, espere! O que deu em você?

Daniel correu para fora atravessando o pátio e indo em direção ao atracadouro. Rafael, sem compreender o que estava se passando, continuava perseguindo o amigo a certa distância. Daniel desacelerou o passo e finalmente parou e pode observar o Divina Providência III se afastando da ilha. Ele deu mais alguns passos e viu o comandante Hugo como costumava ficar, na mesma posição no seu posto de comando. Daniel agitou repetidamente os braços esperando que Hugo notasse o seu aceno. Nada aconteceu. Mas então houve a resposta. O comandante Hugo começou a acenar de volta e logo em seguida se ouviu um longo apito. O menino sorriu e lembrou-se: Talvez eu viva uma outra vida...

O que houve, Daniel? - perguntou Rafael ofegante.

- Talvez ele viva uma outra vida... — sussurrou sem desviar a atenção do navio que se afastava.

Rafael deu de ombros sem fazer idéia de nada e os dois voltaram calados.

O sol tinha quase se posto no horizonte quando os alunos começaram a se retirar deixando o pátio quase vazio. Os estrondos provocados pelas ondas eram ouvidos com maior clareza e já se conseguia ver as primeiras luzes vindo das janelas dos pavimentos superiores. A pequena vila se encontrava toda iluminada compen­sando o breu da noite que caía pesadamente sobre a ilha. Foi então que os calouros presenciaram algo deslumbrante: um forte jato de luz vindo do farol começou a girar ininterruptamente, clareando alternadamente o mar a sua volta. Um espetá­culo que se tornaria corriqueiro todas as noites para os novatos.

Após o jantar, Rafael entrou no quarto e acionou o interruptor.

A luz é fraca, não vai dar para estudar à noite.

Vocês leram o regulamento? — indagou Chester enquanto escalava o beliche pela escadinha lateral e sentava-se na beirada da cama, com os pés balançando no ar. - A luz é cortada às nove horas em ponto — informou e ergueu os olhos para o brilho fraco emitido pela única lâmpada no teto. - Isso é feito porque a luz é ali­mentada por um gerador que abastece toda a ilha e a prioridade é o fornecimento de energia elétrica para o farol que não pode deixar de funcionar e os refrigeradores de alimento que guardam toneladas de comida perecível.

A cada dez segundos o clarão produzido pelo farol batia na parede oposta do quarto causando preocupação.

Como vamos dormir com essa luz ofuscando a nossa cara? - indagou Daniel indignado.

E se fecharmos a janela vamos morrer torrados de tanto calor - manifestou-se Marc tirando a flauta de dentro da mochila.

O jeito é nos acostumarmos e pronto - completou Chester abrindo a porta do quarto. — Vou ao banheiro coletivo e já volto.

Olhem lá fora! - exclamou Rafael dando uma espiada pela janela. - A flo­resta agora é só um borrão escuro depois que o farol passa pelas copas das árvores.

Os monitores continuam lá — disse Daniel forçando a vista para ver melhor.

Pelo jeito, ficam ali a noite toda.

Estou convencido que tem alguma coisa misteriosa no meio daquela floresta - alertou Marc empunhando a flauta. — E deve ser muito importante para que eles queiram nos manter longe a qualquer custo.

Marc começou a tocar uma música, mas tomando o cuidado de não soprar forte, pois àquela hora qualquer ruído poderia ser escutado a distância. Daniel, que ainda não tinha ouvido Marc executar sua bela melodia, ficou apreciando em silêncio. Quando Marc terminou, Daniel enfatizou o seu talento.

Você é muito bom mesmo! Faz parecer muito fácil tocar flauta.

Marc riu.

Chester retornou para o quarto e depois de fechar a porta cuidadosamente, murmurou.

-Tem outro monitor vigiando aí fora no corredor. Ele ficou parado me olhando enquanto eu ia do quarto até o banheiro e fez a mesma coisa quando voltei.

A situação está ficando séria — salientou Rafael enquanto vestia o pijama. — Pelo visto seremos vigiados o tempo todo, mesmo quando estivermos dormindo.

Sabe de uma coisa? — questionou Daniel respondendo ele mesmo. - Estou começando a gostar de tudo isso.

Para um primeiro dia já dá para perceber que alguma coisa obscura existe lá fora... ou mesmo aqui dentro - refletiu Marc deitado e cruzando as mãos por trás da cabeça. - Só precisamos saber o quê!

A conversa prosseguiu por mais um tempo quando tudo ficou em total escu­ridão só quebrada de vez em quando pela luz do farol. Eram nove horas, as luzes foram desligadas. Rafael aconselhou.

Acho melhor dormirmos logo para que possamos ter disposição no nosso primeiro dia de aula.

Aos poucos eles foram adormecendo, só restando Marc acordado que prestava atenção cada vez que o farol tornava a clarear brevemente a parede do quarto. Ele ouviu passos no corredor que se aproximaram e depois cessaram parecendo que niguém estava parado bem em frente ao quarto deles. Marc prendeu a respiração ficando atento. Deve ser o monitor ouvindo detrás da porta. Os passos recomeçaram, se afastando, e Marc não ouviu mais nada lá fora. Ele imaginou se a luz que o farol lançava dentro do dormitório não era uma outra forma de espionarem os alunos. Pura bobagem, concluiu balançando a cabeça em reprovação às suas próprias idéias. Cansado ele não resistiu e também caiu no sono.

 

                                 Perguntas Inconvenientes

O toque do sino anunciou o momento de despertar. Eram seis horas e os qua­tro companheiros levantaram vestindo-se sem perder um segundo, cientes de que o atraso não era tolerado. Correram para o banheiro coletivo para fazerem a higiene matinal e daí foram direto para o refeitório para o desjejum. Chester, segurando a caneca com uma mão e um pedaço de pão com a outra, comentou após um longo gole de café:

Ainda temos pouco mais de vinte minutos para sairmos e procurarmos nos­sas salas.

Não deve ser difícil a localização - disse Daniel com a boca cheia. - É só seguirmos os veteranos e acharemos com facilidade.

Rafael ao perceber que o refeitório se esvaziava rapidamente, alertou:

Vamos logo ou ficaremos para trás, não quero ser o último a entrar na sala de aula.

Os garotos se levantaram ao mesmo tempo deixando suas bandejas em um local apropriado. Eles seguiram por outro corredor que era ladeado por janelas em forma de arco que dava para um formoso jardim e ao final daquele belo caminho chegaram à área acadêmica propriamente dita. As salas 1A e 1B eram as primeiras da ala de estudos. Rafael despediu-se dos colegas enquanto conferia o número de sua sala.

Nos vemos mais tarde, boa sorte, amigos.

Os outros retribuíram e entraram logo.

Cada sala comportava pouco mais de quarenta alunos e os materiais escolares como lápis, borracha e cadernos já estavam aguardando em cada carteira. Os alunos que iam chegando se acomodavam nos lugares que mais lhe agradassem e em pouco tempo a sala estava totalmente ocupada. Rafael olhava para os lados e sentia aquele desconforto natural do primeiro dia de aula. Na outra sala, Daniel, Marc e Chester acabaram sentando na última fila, pois os outros lugares já se achavam tomados. Margaret ocupava a carteira central da primeira fila e examinava atentamente o mate­rial novinho que acabara de receber.

O sino voltou a tocar anunciando o início da aula. Em poucos segundos entrou na sala 1B, a de Rafael, um homem de fisionomia tipicamente oriental, e depois de se ajeitar, apoiou as duas mãos sobre a mesa e se apresentou:

Sejam bem-vindos — cumprimentou em tom de simpatia —, meu nome é Mitsuro Takahashi. Sou o professor de Biologia.

O professor Mitsuro, um japonês de rosto redondo e fala mansa, parecia ser uma boa pessoa e em poucos minutos iniciava os primeiros conceitos de sua disciplina. Ficou célebre pela quantidade de espécies de animais e plantas que identi­ficou e catalogou quando passou quase um ano na misteriosa floresta amazônica. Referia-se àquela floresta como sendo um planeta dentro de outro planeta, tal a diversidade biológica que havia por lá. Com isso, tornou-se um especialista em sobrevivência na selva. Inúmeros livros e artigos sobre biologia citavam o seu nome e as suas descobertas. Mas agora estava ali, ensinando aos calouros os primeiros passos da sua doutrina.

Na sala 1A o ano letivo começou com a aula de Geologia ministrada pelo professor Brian Hamilton. O professor Hamilton, inglês de origem, alto, magro de olhos aguçados, cativou logo a turma ilustrando a sua aula com as histórias de suas viagens que fez pelos quatro cantos da Terra. Ele narrava as suas aventuras de tal maneira que quem as ouvisse tinha a impressão de estar assistindo a um filme. Certa vez, no Himalaia, se deparou com uma avalanche e se não se protegesse atrás de uma enorme rocha, teria sido soterrado por toneladas de neve. Em outro episódio, quase foi chamuscado pela lava de um vulcão no Hawai. Margaret, entu­siasmada, erguia o braço constantemente e fazia perguntas e mais perguntas. O professor respondia a todas pacientemente.

Marc aproveitou a oportunidade e levantou uma questão.

O que o senhor pode nos dizer sobre a Ilha da Coroa? Como se explica do ponto de vista geológico?

Essa pergunta vem sendo feita há séculos — respondeu o professor Brian circulando entre os alunos, ele gostava de ministrar suas aulas andando a esmo pela sala como os filósofos da antigüidade costumavam fazer ao ar livre, seguido pelos seus alunos. - E embora muitos estudos tenham sido realizados, esse continua sendo um dos maiores mistérios da natureza. Se não o maior.

Provavelmente alguma coisa no interior da ilha seja responsável por esse comportamento estranho - propôs Chester. - Já foram feitas escavações? Quem sabe talvez encontrem a resposta no subsolo.

Tudo isso já foi feito, caro rapaz - respondeu neutralizando todas as supo­sições. - E posso assegurar que a sociedade científica internacional trabalha com incontáveis possibilidades. As pesquisas prosseguem e qualquer novidade eu serei o primeiro a informá-los.

Faremos pesquisas de campo? — indagou Daniel tirando proveito da receptividade do professor.

Sem dúvida alguma. Todas supervisionadas por mim ou pelos meus colegas.

A aula transcorreu satisfatoriamente produtiva, quando foi encerrada pelo sino que voltou a badalar. Um intervalo de quinze minutos foi feito e os alunos retornaram às suas salas para continuarem os estudos.

Enquanto Rafael fazia algumas anotações no seu caderno cheirando a novo, entrou na sala um professor de pele morena e cabelos negros. Ele tinha covinhas nas bochechas e jogava com as pontas dos dedos os cabelos para trás que voltavam a lhe cair na testa.

É um prazer tê-los aqui — disse mostrando um sorriso amável. - Me chamo Guillermo de Leonar Santana. Sou o professor de Química e é meu dever avisá-los que teremos um ano intenso de atividades. Portanto, deem o máximo de vocês e esperem a mesma coisa de mim - dizia, ao mesmo tempo em que analisava os rostos estáticos de seus espectadores. - Nas quintas-feiras teremos aulas práticas no labora­tório e a cada duas semanas serão aplicados testes antes das provas mensais.

A turma prontamente entendeu que Guillermo não estava para brincadeira apesar do seu rosto simpático e da sua voz agradável. Guillermo era um químico brilhante, ganhador de diversos prêmios importantes no meio científico, entretanto, não se preocupava em ir recebê-los pessoalmente. Justificava as suas fre­qüentes ausências dizendo que não tinha tempo para ficar viajando, pois a ilha era a sua prioridade. O laboratório era o local onde passava a maior parte do seu tempo, combinando fórmulas e fazendo anotações sem parar. A direção da escola lhe supria com todo o material que ele requisitasse, sem pestanejar, pois sabia que os resultados das suas experiências sempre trariam novidades. Vez ou outra recebia uma carta vinda da Espanha, sua terra natal, eram seus pais que cobravam uma visita que já não acontecia há quase três anos. Guillermo tinha por hábito respon­der que estava afundado no trabalho, mas que na sua primeira chance cruzaria o oceano para reencontrá-los.

Em poucos minutos ele preencheu quase toda a lousa com fórmulas e elementos químicos, traçando flechas com o giz e explicando cada detalhe apaixonadamente como estivesse declamando um poema.

Quando o professor Rajev Shekar se apresentou, imediatamente compreende­ram que estavam diante de um dos maiores nomes da Física de todos os tempos. Ele se distinguia por ter a pele mais morena que a do professor Guillermo, cabelos negros como as penas de um corvo e usava um anel com uma pedra azulada na mão esquerda. O seu nome rodava o mundo e todas as conferências de que ele partici­pava eram certeza de lotação esgotada. Tinha diversos livros publicados e o próprio Albert Einstein, o gênio da física, assinava o prefácio de alguns deles. Nos últimos cinco anos, Rajev passou a maior parte do seu tempo dedicando-se a lecionar para os alunos da Escola Internacional do Atlântico, o que era uma honra para a Instituição. Os convites choviam para Rajev dar aula nos Estados Unidos e na Europa, mas ele permanecia irredutível. Afirmava que a sua missão na Ilha da Coroa ainda não havia terminado e isso bastava.

Margaret não perdeu tempo.

Existe alguma explicação para os fenômenos que acontecem nessa ilha, professor Rajev?

Sempre há uma explicação — respondeu enquanto apagava a lousa. — Só que iinda não a temos. Teorias nesse caso existem dezenas, talvez centenas, mas um pesquisador sério não pode jogar aleatoriamente suas idéias sem um embasamento científico criterioso, pois corre o risco de ser ridicularizado - esclareceu enquanto regava um giz numa pequena caixa de madeira, então voltou-se para a aluna. - Cautela e muito trabalho são dois fortes aliados dos cientistas.

E o senhor, tem uma teoria? - perguntou Marc do fundo da sala.

O professor Rajev parou por um instante torcendo a boca e depois respondeu.

Muitas pessoas levantam as suas próprias hipóteses. Eu tenho a minha. Mas linda existem pontos obscuros na teoria que defendo — ele franziu a testa e concluiu — Por enquanto a mantenho em total sigilo.

A resposta de Rajev Shekar elevou a curiosidade dos alunos, mas não ousaram insistir com mais perguntas.

As aulas tiveram seqüência até o final da manhã quando a batida do sino encerrou o primeiro dia de aula.

Rafael se encontrou na saída com os seus três amigos de quarto e cercado por um monte de alunos que saíam numa confusão de vozes, quis saber de tudo.

O que vocês acharam das aulas?

Tivemos geologia e física — respondeu Marc procurando uma brecha entre os alunos. — Os professores são muito competentes. E você, o que achou?

Tive aulas de biologia e química. De fato, os dois professores são ótimos — avaliou cheio de contentamento. - Agora tenho certeza de que vou gostar muito le estudar nessa escola.

Conseguiu arrancar alguma coisa dos professores? — perguntou Daniel alcançando Rafael.

Nem abri a boca. Não me senti à vontade em perguntar, e vocês, tiveram algum sucesso?

Nenhum - respondeu Daniel olhando para os lados. - Eles sempre dizem a mesma coisa. Não sabem de nada... Não viram nada...

Os garotos voltaram para o quarto com tempo suficiente até a hora do almoço. Marc comentou enquanto folheava o que tinha escrito nas aulas.

Viram a grade disciplinar que veio com o material? Teremos atividades esportivas três vezes por semana na parte da tarde.

E perceberam como nos encheram de tarefas? — atentou Daniel conferindo os cadernos. — Mal teremos tempo para respirar.

E isso é só o primeiro dia — emendou Rafael. — Se deixarmos acumular os deveres estaremos em maus lençóis.

Nunca tive notas baixas em toda a minha vida - revelou Chester. - E não vai ser agora que isso vai acontecer. Vou tratar de me organizar para evitar surpresas desagradáveis.

A tarde correu bem tranqüila dando tempo para que todos pudessem pegar os uniformes de ginástica no almoxarifado que ficava próximo a área destinada aos esportes. Consistia em camisetas brancas e calções azul-marinho que iam até os joelhos para os meninos. As meninas usariam camisetas igualmente brancas fechadas até o pescoço e bermudões que chegariam na altura das canelas não muito adequados ao calor reinante naquelas latitudes.

O grupo dos iniciantes se reuniu no centro esportivo conforme fora determi­nado por um dos monitores para aguardarem a chegada do professor de educação física. O professor chegou em seguida despertando a atenção dos alunos, pois tinha mais de um metro e noventa de altura e uma constituição física que exibia sua forte estrutura muscular ao menor movimento. Era possuidor de cabelos castanho-claros e os olhos que não definiam a cor, ora verde, ora azuis, dependendo da luz que lhes incidia. De ar extremamente sério, em nenhum momento expressou algo que lembrasse um sorriso. Usava uma camiseta de malha cinza e calça preta de um tecido grosso e sapatos com solas feitas de pneus velhos revestidos com lona de caminhão que ele mesmo manufaturava. Os tais sapatos tinham uma aparência grosseira, mas eram bastante resistentes e flexíveis, adaptados aos exercícios físi­cos de grande impacto. Na mão esquerda carregava uma prancheta com uma lista de chamada que usaria logo em seguida. Norte-americano de nascença, passou alguns anos servindo a marinha dos Estados Unidos onde era respeitado por ser um homem determinado e com uma disposição física de causar inveja. Ainda na marinha, por dois anos consecutivos, foi campeão do torneio de boxe da costa leste quando recebeu o apelido de marinheiro-de-aço.

Sou Roger Seffel Burke, o professor de Educação Física. Durante uma hora e meia, três vezes por semana, vocês estarão sob minha responsabilidade.

Em seguida, posicionou a prancheta e iniciou a chamada, olhando cada aluno que respondia estar presente, como se quisesse gravar cada fisionomia na memória. Depois ordenou:

Quero que vocês dêem três voltas na pista. Corram! Agora!

Os jovens atletas se dirigiram para a pista de corrida e iniciaram a carga de exercícios.

Marc emparelhou com Chester que corria junto a Rafael, o garoto francês ironizou:

Simpático, vocês não acham?

Para um professor ele foi bem mais áspero do que os outros que conhecemos hoje - opinou Chester acelerando o ritmo.

Margaret encostou em Daniel e instigou:

Você está muito mole, caro irmão, acho que não consegue completar as voltas.

Nessa matéria você não chega nem aos meus pés, irmãzinha - respondeu subestimando-a com um sorriso de provocação.

Isso eu quero ver — disse em tom de desafio.

Os dois arrancaram em disparada deixando Chester, Rafael e Marc para trás.

Mas até aqui eles competem? — comentou Chester que estava começando a conhecer bem a rivalidade entre os irmãos.

Principalmente aqui - disse Marc ofegante.

Os garotos passaram a percorrer o lado da pista mais próximo da floresta quando Marc observou:

Vocês notaram aquela trilha que se embrenha pela mata?

Não — responderam Chester e Rafael ao mesmo tempo.

Na parte mais ao norte, há um caminho que eu só notei agora quando fize­mos a última curva. Prestem atenção na próxima volta.

Quase dando uma volta nos três vinha Daniel já com alguma vantagem sobre Margaret que não se entregava.

Mais rápido, Daniel, ela está alcançando você! - envenenou Chester só para irritar o amigo.

Pouco depois vinha Margaret com o cansaço estampado no rosto, mas sem apresentar nenhum sinal de que iria desistir.

Vamos, Margaret, Daniel acabou de dizer que você estava comendo poeira! - incendiou Chester novamente acirrando ainda mais a disputa.

Na segunda volta, Marc voltou a chamar a atenção para o que tinha visto anteriormente:

Olhem, lá está!

É sem dúvida uma trilha - concordou Rafael. - Mas a vista daqui não é muito boa. Existem outras duas, uma mais ao sul próxima aos rochedos e outra que entra reto pela mata, mas essas têm os caminhos bem definidos escoltados pelos guardas.

Quem sabe da janela do nosso quarto a gente consiga enxergar melhor - sugeriu Marc enxugando umas gotas de suor que lhe escorriam pelo queixo.

E aquelas vigias que mais parecem torres em um castelo medieval - observou Rafael. - Há um homem em cada uma delas. Garanto que devem estar armados e atiram no primeiro que se aproximar da floresta.

Marc e Chester riram da observação exagerada.

Ao se aproximarem do professor Roger ouviram a reprimenda:

O que há com vocês? Parecem velhas com reumatismo. Mais rápido! Mais rápido!

Instantaneamente, dispararam obedecendo a ordem dada. A última volta foi concluída em menor tempo, mas o calor que era muito forte esgotou as suas forças e secou a garganta deles.

Na linha de chegada estava Daniel inclinado com as mãos apoiadas nos joe­lhos e respirando fortemente pela boca, o peito inflando e esvaziando desesperadamente por mais ar. Próxima a ele, Meg, agachada e ofegante, balbuciava entre uma respiração e outra:

Ainda... vou... vencer você...

O professor Roger, não satisfeito, mandou que os alunos se agrupassem em uma cancha de terra batida e determinou sem dar chance para o descanso.

Agora quero que vocês deitem e façam cinqüenta exercícios abdominais e ao terminarem, mais dez flexões. Vamos ver até onde agüentam.

A teimosia e a vontade de superação fizeram com que Margaret completasse todos os exercícios exigidos, o que causou admiração por parte do professor.

A menina foi melhor que alguns garotos - disse apontando para ela.

Era tudo o que Meg queria ouvir. Ela olhou para Daniel estampando um risinho cínico.

Pronto... agora agüente - desabafou Daniel sussurrando no ouvido de Rafael.

Vão para o vestiário e vistam os trajes de banho. Quero ver como vocês nadam.

Pouco tempo depois os alunos retornaram. O professor Roger puxou a fila indo direto para o ginásio. Aquela era uma ala ainda desconhecida pelos novatos.

O ginásio tinha uma variedade de equipamentos para ginástica: barras, pranchas, argolas, cordas e no centro, uma piscina de vinte e cinco metros com um trampolim em uma das extremidades que se erguia a uma altura de cinco metros.

Os que sabem nadar façam três filas na borda — convocou o professor expondo a mesma expressão desprovida de sentimentos.

Meg pulou na frente e ponteou uma fila. Daniel não querendo ficar em desvantagem liderou a outra e Rafael ficou com a terceira. Ao sinal os três saltaram na água e deram o máximo para chegar ao outro lado. O professor que os esperava na outra borda rosnou.

Vocês chamam isso de nadar? Se caírem no mar vão acabar no fundo. Uma bigorna se sairia melhor.

Aos poucos, todos tentavam atravessar a piscina à sua maneira, mas nenhum foi aprovado. Meg torcia os cabelos úmidos decepcionada, pois esperava receber um elogio ao mostrar seus dotes como nadadora, o que não aconteceu. Roger então tirou os sapatos e de roupa e tudo mergulhou, nadando como um peixe para espanto e admiração da platéia ao redor. Com poucas braçadas tocou do outro lado, tomou impulso com as duas mãos apoiadas pulou para fora da água e sentou na borda.

É isso que eu quero de vocês... determinação e disciplina!

Já ouvi algo parecido — lembrou Marc cruzando os braços sobre o peito molhado.

Se eu conseguir nadar assim, já me dou por feliz - disse Chester, admitindo a excelente performance do professor atleta.

Roger deu mais algumas orientações sobre o jeito certo de se bater braços e pernas na água e por fim liberou os alunos.

Após tomarem banho e se trocarem, foram para o refeitório e comeram como nunca. O excesso de atividades do primeiro dia tinha consumido todas as suas energias e quando finalmente retornaram para o quarto, estavam tão cansados que só queriam relaxar. Necessitavam mesmo é de um sono restaurador.

Rafael chegou até a janela e olhou lá fora.

O professor Roger ainda está lá na pista, correndo. Parece incansável.

Pois estou esgotado — confessou Daniel, desabando na cama. - Tenho que estar bem-disposto ou amanhã não acordo.

Marc também se aproximou da janela, esticou-se todo e comentou.

Não dá para ver aquela trilha direito agora. O sol já foi embora e o ângulo de visão não favorece muito, mas talvez amanhã, com o dia claro, dê para ver melhor.

O farol foi ligado e iniciou a sua rotação iluminando o mar e a ilha alternadamente. Marc permaneceu na janela para ver até onde ia a disposição do professor que continuava no mesmo pique.

Chester que acabara de ir ao banheiro, retornou avisando.

O nosso amigo monitor está aí fora farejando os nossos passos.

Ei! Cheguem aqui na janela! - chamou Marc olhando atentamente para fora.

Os outros se juntaram a ele para ver o que era.

Olhem bem, quando o farol ilumina a entrada da trilha - alertou Marc apontando para o local. - Vocês viram? Aquele homem que está indo naquela direção?

O que tem ele? - perguntou Rafael se esforçando para ver dentro da escuri­dão que a noite despejava sobre a ilha.

É o professor Roger... perceberam? Acaba de entrar lá!

Você tem certeza? - indagou Daniel titubeante. - Não deu para ver se foi na tal trilha que ele entrou.

Só pode ter sido! - insistiu Marc. — Se não tivesse ido por aquele caminho, ainda o veríamos contra as árvores.

Acho que ele tem razão, Daniel - admitiu Chester. — Ainda posso ver o vigia caminhando ali perto, mas o professor, não o vejo mais.

Vou ficar aqui e esperar até que ele retorne — disse Marc decidido. — Precisamos saber onde vai dar aquele caminho.

Marc permaneceu a postos pouco mais de vinte minutos até que sua persis­tência foi recompensada:

Pessoal! Vejam! Ele está voltando.

Alguém apague a luz do quarto - solicitou Marc se debruçando ainda mais no parapeito.

É ele mesmo! - admitiu Daniel se esticando todo.

Deve estar indo para a vila - imaginou Rafael. - Talvez more em uma daque­las casas.

O escuro da noite tomou conta da ilha e na impossibilidade de continuarem bisbilhotando deixaram o assunto esmorecer. Aproveitaram então o tempo que ainda dispunham antes que a luz fosse cortada e repassaram a matéria dada. O último a se entregar ao cansaço foi Marc, como de costume. Ele ainda abriu os olhos mais uma vez achando ter ouvido passos ou algum outro ruído suspeito, porém só conseguiu ouvir as ondas que se chocavam ao longe contra os rochedos e o farfalhar das folha­gens de alguma árvore mais próxima ao prédio, agitadas pela fresca brisa do mar. O dia havia acabado.

 

                                       Nuvens Negras

No segundo dia de aula, os quatro companheiros, em acordo com Margaret, decidiram não encher mais os professores com aquelas perguntas impertinentes. Em vez disso, resolveram ir fundo nos estudos que eram o real motivo de eles estarem ali. A cada nova aula era despejada uma bateria de tarefas tão grande que a curiosidade que sentiam quanto aos mistérios que circundavam a Ilha da Coroa foi aos poucos sendo colocada em segundo plano.

No fim da manhã, quando os alunos já se retiravam da sala, um monitor de olhos saltados e bigodinho fino aproximou-se de Marc passando-lhe um recado:

O senhor Ramón deseja falar-lhe agora.

O que ele quer comigo? - perguntou fazendo um sinal com a mão para os amigos esperarem.

Não me disse, só mandou avisá-lo. Ele o aguarda no seu gabinete - completou e desapareceu no meio da multidão de alunos.

Vão indo - disse Marc —, eu encontro vocês depois.

Marc foi direto à sala de Ramón, encontrando a porta aberta e o professor afundado em tarefas burocráticas.

Com licença, senhor...

Entre, Marc - disse voltando a ler um papel sobre a mesa e de novo olhando para o garoto músico. — Tenho boas notícias, sente-se.

Ramón cruzou as mãos sobre a mesa e explicou:

Consegui um local apropriado para as suas aulas de música, fica próximo ao ginásio e tem uma boa acústica. Temos alguém da manutenção trabalhando para aprontá-lo até a próxima quinta-feira. A propósito, eu escolhi as quintas-feiras para as suas aulas, tudo bem?

Por mim está bom.

Venha, vou lhe mostrar para ver se gosta.

Ao chegarem no salão se depararam com um piano que Marc prontificou-se a testar. Seus dedos correram habilmente sobre as teclas e entre um dedilhar e outro suas feições se contorciam como se uma agulha estivesse sendo enfiada nos seus ouvidos.

Está um pouco desafinado, mas se vocês tiverem os equipamentos necessá­rios eu dou um jeito.

Não se preocupe — disse Ramón apoiando o cotovelo no piano. — Tudo estará pronto até amanhã.

E os alunos, com que instrumentos irão tocar?

Alguns trouxeram os seus de casa. Receio serem músicos amadores - explicou, dando o seu parecer. - E temos outros instrumentos que fazem parte do acervo da escola. Há mais de dez anos tivemos um professor de história que tocava piano, e muito bem por sinal. Ele tirava algumas horas de folga para ensinar música a quem se interessasse.

O que aconteceu com ele? — indagou Marc verificando o espaço disponível a sua volta.

Foi embora e as aulas foram canceladas.

Ramón passou a dedilhar uma música ao piano, o que deixou Marc surpreso.

Não sabia que o senhor também tocava.

Aprendo o que sei aqui mesmo neste piano há muitos anos - revelou tirando uma última nota e depois ao fechar a tampa prosseguiu. — Sou mais um curioso que um pianista como você pode notar. O acúmulo de trabalho como vice-diretor aos poucos foi me afastando da música. Espero que você possa reviver isso tudo e passar um pouco do que sabe aos seus colegas. Quem sabe formemos até uma orquestra — disse sorrindo.

Conte comigo, senhor Ramón! — exclamou contente por descobrir um lado mais amistoso daquele homem.

A hora do almoço havia chegado e Marc dirigiu-se ao refeitório. Chegando lá, seus colegas devoravam a comida. Marc colocou a bandeja sobre a mesa e sentou-se.

Pensamos que não vinha mais — disse Daniel gesticulando com o garfo.

Fui conhecer o local onde darei aula.

E gostou? - perguntou Rafael cortando um pedaço de carne.

Ainda está um pouco empoeirado, mas quando estiver pronto vai servir bem.

Meg se aproximou trazendo uma colega que os meninos ainda não conheciam.

Oi, rapazes, essa é Ângela Bertassello, a minha colega de quarto.

Ângela era italiana, olhava os rapazes com seus olhos grandes e castanhos, cabelos um pouco mais escuros que o olhar e compridos que iam até o meio das costas. Tinha um sorriso tão simpático que conquistou os garotos em segundos. Seu pai era diplomata e por causa disso, apesar da pouca idade, ela já havia morado em países como Argentina, Portugal e Austrália.

A inspetora Elvira, responsável pelo bom andamento da ala feminina, passou próxima a eles com um olhar inquisidor. Não aprovava o contato contínuo entre

meninos e meninas, embora não pudesse evitar, afinal todos ali eram colegas. Chester inclinou-se procurando ser discreto e perguntou:

Como é a inspetora de vocês?

Muito sisuda - respondeu Margaret. — Controla com rigor cada uma de nós e exige que estejamos em nossos aposentos logo após o jantar.

Não se sintam tão controladas - disse Rafael, depositando os talheres na bandeja vazia. - Não é muito diferente na nossa ala.

Até quando estamos dormindo eles nos vigiam - completou Marc mor­dendo uma maçã bem vermelha.

A tarde foi livre, o que ajudou consideravelmente para que os estudantes adiantassem os trabalhos escolares. Os meninos, juntamente com Margaret e Ângela, se reuniram no pátio debaixo de uma sombra e, refrescados pela brisa que não parava de soprar, trocaram idéias sobre as lições e se ajudaram mutuamente esclarecendo as dúvidas que por ventura surgissem. Quando o sol se pôs no horizonte, eles se despediram e depois do jantar foram para as suas alas. Daniel, de prontidão na ianela e com tempo de folga, pois havia deixado em dia as suas obrigações estu­dantis, admirava a paisagem e aproveitava a leve brisa que entrava agitando os seus cabelos. Ele observou.

O professor Roger segue a sua maratona. Já é a quinta volta que ele dá na pista desde que comecei a contar.

Está quase escuro - disse Rafael, empurrando os sapatos para debaixo da cama. — Daqui a pouco ele para.

O acionamento do farol era a senha para que Roger encerrasse os exercícios e tomasse o caminho da floresta. Daniel, atento a cada movimento do professor, comentou:

Lá vai ele, aposto que se embrenha pela mata.

Tudo se deu como no dia anterior, parecendo um ritual que se repetiria sem­pre. O que eles ainda não sabiam era aonde o professor ia todo o início da noite e para fazer o quê.

 

Marc entrou no salão que lhe fora destinado para o seu primeiro dia de aula como professor e se deparou com uma dezena de colegas que o aguardavam com seus respectivos instrumentos. Ao lado deles estava Ramón que procurou quebrar o gelo entre Marc e os demais.

Boa tarde, professor. Estávamos à sua espera.

Marc sentiu um friozinho na barriga igual a de quando se apresentou ao ar livre para um público de milhares de pessoas pela comemoração dos cento e qua­renta anos da Revolução Francesa. Mas aquela situação era ridícula. Um bando de garotos que não possuíam nem de perto o seu talento e que estavam ali para aprender, não deveriam deixar Marc tão constrangido. Afinal, era ele o professor. E era exatamente por isso que ele estava nervoso.

Vou deixá-los à vontade - disse Ramón percebendo que Marc se sentia deslocado. — Aproveitem ao máximo, vocês têm aqui um dos melhores músicos da atualidade.

A última declaração fez Marc corar, o que era também estranho, pois a vida inteira recebeu elogios. Já estava acostumado com todo tipo de paparicação.

Enfim, quando ficou sozinho com os alunos, Marc sentiu-se aliviado. Aos poucos foi falando sobre notas musicais, compassos, pausas, harmonias e logo estava ensinando com desenvoltura um pouco das técnicas que dominava. Por outro lado, a capacidade e o empenho dos alunos facilitavam o trabalho do mestre francês que foi pegando gosto pela arte de ensinar e continuou vendo a cada dia o progresso de cada um dos seus aprendizes. Parecia que as palavras de Ramón iriam se tornar realidade. Estava nascendo uma orquestra.

Os dias se passaram e a quantidade de afazeres imposta pelos professores não era suficiente para diminuir a energia dos estudantes. Os primeiros testes realizados comprovaram a alta capacidade dos alunos do primeiro ano, tendo muitos deles atingido notas máximas, e é claro, agradando profundamente o comando da escola.

Chester queria preencher o seu tempo vago fazendo algo de útil. Daí ter procurado, em companhia de Daniel, a secretaria da escola em busca de alguma coisa que estivesse de acordo com as suas aptidões. Ele passou os olhos por uma lista que trazia algumas sugestões e nada encontrou:

Não há nada que me interesse - disse estendendo a lista a Daniel.

Talvez eu possa ajudá-lo - ofereceu-se prestativa a secretária Laura Escollera, pondo os óculos que estavam pendurados em seu pescoço por uma correntinha, e dessa forma disfarçando os belos olhos azuis.

Laura era a faz-tudo da administração do grupo escolar. Usava os cabelos lou­ros penteados para trás e presos em um coque trançado. Marcava reuniões, organizava os horários das aulas, requisitava materiais didáticos e ainda tinha tempo para resolver alguns probleminhas que surgiam fora de seu departamento. Só deixava de atender a secretaria quando viajava uma vez por ano até o norte da Argentina para rever a família.

O que você gosta de fazer? — perguntou ela a Chester, mostrando dentes perfeitos ao sorrir.

Cavalgar. Adoro cavalos.

Maravilhoso! Acho que tenho um trabalho perfeito para você. O que acha de trabalhar no estábulo cuidando dos cavalos.

Ótimo! - aceitou Chester sem hesitar. - Quando começo?

Agora mesmo. Ache o senhor Nestor no estábulo e diga que eu o estou mandando como voluntário. Ele está precisando mesmo de alguém que o ajude.

Achou algo, Daniel? - indagou Chester, feliz porque voltaria a ter contato com os seus amigos eqüinos.

Sempre gostei de consertar coisas. Quem sabe na manutenção eu possa ser útil?

Uma boa escolha - disse Laura, animada. - Vou encaminhá-lo agora mesmo para falar com Júlio.

Laura preencheu alguns formulários e entregou-os aos meninos que saíram na mesma hora tomando direções diferentes.

Chester não teve dificuldades para encontrar Nestor, um senhor simplório que deveria ter mais de oitenta anos. Ele ostentava uma barba desgrenhada e cabelos compridos escondidos em parte por um largo chapéu de palha. Nestor avaliou Chester de alto a baixo para se certificar que o seu novo ajudante seria mesmo idequado para a função de tratador de animais.

Sinta-se em casa, meu bom rapaz — cumprimentou mostrando duas fileiras de dentes tortos. — Sabe lidar com quadrúpedes? Conhece mesmo esses animais? Pois temos muito trabalho pela frente.

Chester viu um cavalo baio atrelado a uma carroça e mais outros dois que estavam reclusos, somente deixando à mostra suas cabeças que balançavam irrequietas pelas aberturas da cocheira.

Estou acostumado a cuidar de animais como esses, senhor - disse passando a mão pelo pescoço de um dos animais que aceitou docilmente o agrado.

É, parece que você tem jeito mesmo... — disse apertando os olhos e lendo o formulário que o seu novo ajudante havia lhe apresentado há pouco. — ...Chester Thompson. Espero que você cuide bem das minhas belezinhas, garoto Chester.

Conte comigo Sr. Nestor, será um prazer.

Não me chame de senhor ou de qualquer outra coisa que me faça sentir mais velho do que já sou. Se dirija a mim simplesmente como Nestor. Gostaria que eu o chamasse de garotinho Chester ou menininho Chester?

Não, não gostaria... Nestor. Será Nestor de agora em diante. — O modo informal de se relacionar com uma pessoa idosa saiu de Chester com alguma difi­culdade, mas ele logo se acostumaria a se dirigir ao velho tratador de cavalos sub­traindo o tratamento formal.

Chester prontamente tomou a iniciativa e naquela mesma tarde alimentou e escovou os animais surpreendendo o ancião com a sua habilidade no trato com cavalos.

 

Depois de muito procurar, Daniel encontrou Júlio escorando uma escada comprida em uma parede. Júlio se preparava para subir e arrumar uma calha que havia se desprendido do suporte que a sustentava.

Olá, Júlio, lembra de mim?

Sim, você é o calouro que eu havia conversado faz alguns dias.

Isso mesmo, meu nome é Daniel e agora sou o seu ajudante voluntário - comunicou firmando a escada para Júlio subir.

Ótimo, é bom ter gente bem-disposta na manutenção, mas previno-o que temos muita coisa para arrumar por aqui — alertou pegando algumas ferramentas em uma caixa de metal. — Sabe como é... conserta-se uma coisa e já estraga outra.

Pra mim está bem, gosto de fazer esse tipo de trabalho.

A tarde de Daniel foi realmente movimentada como Júlio havia dito. No entanto, Júlio a tornava interessante explicando todo o funcionamento da escola, desde o sistema hidráulico até a parte elétrica. Por sua vez, Daniel metralhava Júlio com as mais variadas perguntas querendo saber do mais simples ao mais complexo detalhe. Nas poucas horas que trabalharam juntos, Júlio reconheceu que Daniel aprendia muito rápido e fazia um serviço de primeira qualidade. Os dois acabaram se tornando bons amigos no término do primeiro dia.

No final da tarde, Daniel e Chester estavam exaustos, mas satisfeitos com as suas novas atribuições. Sentiam-se úteis e o tempo passava mais depressa, além de não terem que ficar pensando só em estudar. Ao saírem do banho frio e reconfortante, os dois se enfiaram no quarto e encontraram Rafael mergulhado nos livros.

Onde vocês estiveram a tarde toda? - perguntou Rafael, interrompendo a revisão de um cálculo de geometria.

Os meninos contaram o que havia se passado e aproveitaram para dar a mesma sugestão a Rafael: a de se envolver com alguma atividade que não apenas aquelas que habitavam os livros.

Por enquanto não, prefiro me dedicar mais aos estudos e me esforçar para garantir a minha permanência por aqui - justificou, deitando o lápis sobre a mesa e jogando o corpo para trás contra o encosto da cadeira para se espreguiçar. — Eu e minha família dependemos muito do meu desempenho nessa escola.

Você é quem sabe - disse Daniel dando de ombros. - Mas não sei se vai agüentar oito anos sem arrumar algo para matar o tempo.

-Você pode ter razão, Daniel, mas... por ora, acho melhor deixar como está.

Completando a turma, Marc acabara de chegar carregando a flauta, sua companheira inseparável, e algumas partituras que ele mesmo escreveu para auxiliar cuando estivesse ensinando.

As aulas de música estão fazendo um grande sucesso - comemorou com um sorriso incontido. — A cada dia recebo um novo interessado em aprender e já não há instrumentos para todos.

Você não é o único por aqui, Marc - disse Chester ajeitando a gola da camisa e fazendo-se de importante. - Daniel e eu aderimos ao trabalho voluntário e já estamos na ativa.

Marc então ficou sabendo das novidades, apoiando a iniciativa dos companheiros.

O dia estava quase terminando e o sol se pondo projetava nas nuvens uma cor alaranjada. Lá fora, o professor Roger corria com passadas largas como sempre: abdominais, flexões, saltos e corridas se alternavam em sua ginástica solitária. O ritual terminava com o clarão repentino do farol sobre as árvores revelando a figura do professor que caminhava a passos firmes na direção da entrada da floresta densa.

 

A manhã seguinte nascia bem mais quente que o normal, impondo aos alu­nos bastante sofrimento com o calor sufocante nas salas de aula. O raciocínio era lento, tornando-se difícil a concentração. Rafael passava constantemente o lenço na testa e no pescoço tentando estancar o suor que voltava a brotar-lhe na pele. A brisa do mar que entrava pelas janelas era morna e não dava conta de minimizar o desconforto causado pelo calor extremo. A aula se arrastou até próximo ao meio-dia quando a temperatura ficou quase insuportável. Percebendo a angústia dos alunos, o diretor Helmut decidiu encerrar as aulas matinais vinte minutos mais cedo. O dia se arrastou pesado e ao final da tarde os alunos tiveram a má notícia de que não seriam dispensados dos exercícios físicos. Lá estava o professor Roger que os esperava determinado a exigir o mesmo esforço que os garotos já estavam começando a se acostumar.

Hoje realizaremos as atividades esportivas no ginásio - avisou e girando nos pesados sapatos foi seguido pelos alunos que se abanavam incessantemente.

O ginásio se achava mais abafado que lá fora, mas livre do sol escaldante. O professor, consciente que estaria sacrificando em demasia os seus alunos, passou-lhes uma série de exercícios mais leves enquanto socava violentamente um saco de areia que oscilava a cada golpe desferido, provocando estampidos que ecoavam pelo salão. Após vinte minutos todos transpiravam tanto que suas roupas estavam praticamente grudadas no corpo.

Está bem, chega por hoje! — exclamou interrompendo os exercícios. - Troquem de roupa e caiam na piscina.

Nunca uma ordem foi tão bem recebida e em minutos a piscina já estava cheia.

Aproveitem a água, hoje é só recreação — anunciou voltando-se para o saco de areia e reiniciando os socos com o mesmo vigor de antes.

Margaret ficou olhando de dentro da piscina a primeira atitude humana do professor solitário.

O que houve, Meg? - perguntou sua amiga Ângela tentando evitar os respingos no rosto ocasionados pela algazarra formada dentro d'água.

O professor Roger, ele não deve ser de todo mau.

Eu também senti isso — concordou Ângela compreendendo os pensamentos da amiga.

O ginásio tinha duas saídas, uma para o interior do prédio principal e outra para fora que saía em frente à área esportiva tendo a floresta no lado oposto. Os quatro garotos, em companhia de Meg e Ângela, decidiram ir por fora e viram que o tempo mudava, marcado pelo vento forte.

Após o jantar, Margaret e Ângela se despediram e foram para o seu dormitório passando pela senhora Elvira que fiscalizava cada aluna que regressava, dando a impressão que contava uma a uma, como um pastor confere as suas ovelhas.

Quando se aproximou da janela, Chester verificou que a força do vento havia aumentado e grossas nuvens escuras estavam se formando do sul para o norte o que não demoraria muito para atingir a Ilha da Coroa.

Parece que vamos enfrentar uma forte tempestade — comentou observando as copas das árvores que balançavam de um lado para outro, farfalhando como se desejassem se esconder do mau tempo.

Não é de se admirar - disse Rafael, perseguindo uma folha de papel que rodopiava pelo quarto, transportada pelo vento. - Com o calor que fez hoje só podia dar nisso.

O sol havia sido totalmente encoberto pela enorme nuvem que já engolira metade do céu e continuava avançando em direção a ilha. Do interior da nuvem sombria, saturada eletricamente, era possível ver diversos clarões produzidos pelos relâmpagos que cintilavam repentinamente num contraste fabuloso com o negrume que havia transformado a atmosfera ao redor da ilha.

Vai ser uma tremenda tempestade elétrica — disse Marc percorrendo com o olhar todo o céu que escurecia mais e mais.

Ouvia-se o som de janelas e portas batendo descontroladamente e os prendedores que seguravam as duas bandas da janela rente à parede externa, vibravam freneticamente, fazendo parecer que tudo iria pelos ares.

Nunca tinha visto algo assim - disse Daniel esforçando-se para fechar uma banda da janela que estava grudada pela ventania e sendo ajudado por Chester que puxava a outra.

Eu também não - completou Marc, atônito. — Não fechem tudo, quero ver o que vai acontecer.

Atendendo ao pedido de Marc, Daniel decidiu fechar apenas a janela interna feita de uma grossa grade de madeira e vidros retangulares. Era possível assistir os monitores que abandonavam seus postos deixando livre toda a barreira de floresta.

Agora seria uma boa hora de penetrarmos naquele matagal e descobrirmos o que eles escondem - brincou Marc ao mesmo tempo em que forçava para baixo o trinco que prendia a outra banda totalmente lacrada.

Não saio daqui nem que me paguem — enfatizou Rafael, desestimulando a idéia absurda do companheiro.

O número de raios que caíam no mar intensificou-se criando um espetáculo jamais visto pelos novatos. Não havia se precipitado ainda uma gota de chuva sequer. No espaço de apenas um minuto, dezenas de descargas luminosas riscavam o céu, caindo no enorme círculo de águas que se tornavam ainda mais agitadas como se o mar fosse engolir a terra, os raios também passaram a atingir fragorosamente várias partes da Ilha da Coroa. O fenômeno impressionante resultou em uma seqüência de trovões ensurdecedores, dando a tenebrosa sensação de que roda a ilha seria apagada do mapa. Raios e mais raios caíam ao mesmo tempo rormando fileiras luminosas no céu negro e tomando a paisagem de lado a lado, deixando a ilha quase tão iluminada como se fosse dia. Um deles acabara de cair estrondosamente no alto do monte Cabeça do Rei, bem no topo do farol; outros acertavam os rochedos pontiagudos que cercavam a ilha. O farol seria atingido naquela noite por, pelo menos, mais uma dúzia dos violentos raios que atacavam impetuosamente todo o mar e a ilha. Toda a fúria da natureza se concentrara de ama vez naquele ponto perdido no mar. De repente, veio a chuva varrendo pri­meiro a floresta e logo em seguida alcançando os prédios do complexo escolar. A anela trepidava com a ventania parecendo que seria arrancada de suas dobradiças com os vidros estilhaçando numa explosão. Era uma estupenda enxurrada digna de fazer inveja ao dilúvio bíblico. Os companheiros, bastante impressionados em seu refúgio, nem conversavam, embasbacados que estavam diante daquilo tudo; até que a luz se apagou antes do horário previsto. Inesperadamente o farol ficou igualmente às escuras.

Um desses raios provavelmente atingiu o gerador - especulou Daniel, enxergando por uma fração de segundos as fisionomias dos amigos clareadas por mais um relâmpago.

 

No outro quarto, Margaret e suas colegas sentadas lado a lado na mesma cama e sem enxergarem um palmo adiante do nariz, torciam para que a tempes­tade apavorante acabasse logo, quando ouviram alguém bater na porta. Margaret levantou-se da sua trincheira doméstica para atender. Do lado de fora, no corredor, Elvira segurava um lampião que o seu rosto de baixo para cima e lhe conferindo um aspecto fantasmagórico.

Vocês estão bem?

Sim... não... não sabemos — respondeu Meg um tanto confusa.

Fiquem calmas, tempestades dessas proporções são totalmente normais nessa ilha.

Quer dizer que sempre que chove é assim? - perguntou Angela assustada.

Quase sempre — respondeu com a voz sendo abafada por um trovão que estremeceu o prédio.

Ficaremos bem, não se preocupe - disse Margaret, apoiada na maçaneta da porta.

Se é assim, procurem ter uma boa-noite. - Se despediu afastando-se pelo corredor comprido, acompanhada pela fraca luz do lampião à medida que caminhava, até desaparecer completamente na escuridão.

A tempestade alucinante persistiu por mais de uma hora e, aos poucos, foi se dissipando. Por fim, era só a chuva que ainda caía forte com os trovões sendo ouvidos ao longe; o vento também enfraqueceu, restando uma leve brisa úmida que permitiu Chester arriscar a abrir a janela sem o perigo de receber uma rajada de água pela frente. Os trovões se faziam ouvir cada vez mais distantes e a intervalos mais espaçados, até desaparecerem definitivamente, mas a chuva ainda se mantinha consistente e dava a impressão que iria atravessar a noite sem diminuir.

As meninas, mais calmas, resolveram ir cada uma para sua cama. Tinha sido uma experiência incrível para elas, retardando o horário de dormirem. A tempestade que antes fora um tormento para todas, agora transformada em chuva, embalaria o seu sono com o som das gotas batendo seguidamente no telhado e na terra encharcada.

Uma luz solitária iluminou as trevas do alto do monte, o farol finalmente estava funcionando. Pelo visto as coisas tinham se normalizado.

Vamos dormir, já está tarde - recomendou Rafael, socando levemente o travesseiro para deixá-lo mais confortável.

Da posição em que estava deitado em sua cama, Daniel ficou olhando o céu escuro e as gotas de chuva que escorriam pela vidraça da janela em caminhos sinu­osos. Por um breve instante, ele pensou em Margaret e se ela estaria bem. O ruído contínuo da chuva pesou seus olhos extenuados, fazendo Daniel adormecer pro­fundamente.

O dia amanheceu cinzento e um pouco abafado, apesar de todo o aguaceiro que havia caído a noite toda, contudo, bem menos calorento que o dia anterior.

A turma 1A iniciou a aula no laboratório de química do professor Guillermo. Os alunos tiveram contato com tubos de ensaio, pipetas, líquidos das mais varia­das cores e que misturados com outras substâncias apresentavam reações diversas, sendo tudo detalhadamente anotado pelos jovens pesquisadores que ouviam atentos às explicações do professor. Toda vez que Guillermo pedia um voluntário, Meg se oferecia levantando o dedo e dando um passo à frente.

Ela não toma jeito — comentava Daniel balançando a cabeça.

Os colegas apoiavam a atitude de Margaret, tendo em vista que alguns ficavam constrangidos quando expostos ao público.

Marc, acomodado em uma bancada olhando por um microscópio, dialogava com Chester ao seu lado:

Você não achou muito esquisito o que aconteceu ontem?

É, tenho que concordar com você, aquilo não era normal — admitiu, consultando uma tabela de elementos químicos e fazendo anotações em seu caderno.

Parecia que toda a energia contida na natureza estava desabando sobre a ilha.

Eu cheguei a pensar na possibilidade de estarmos em cima de algo muito poderoso.

Como assim? - perguntou Marc, deixando de lado o microscópio e enca­rando Chester.

Chester reduziu a voz para não ser ouvido por mais ninguém.

Pra mim está claro que deve haver algo aí embaixo que provoca todos esses renômenos — disse olhando em volta para ver se não estavam sendo observados. — Um mar que se agita constantemente em um círculo perfeito, somente deixando uma passagem livre por onde se entra e sai da ilha e que coincide com a única parte onde não há os imensos rochedos escuros e dentados. Além disso...

Chester foi cutucado por Marc que notou o professor Guillermo se aproxi­mando.

Já terminaram os trabalhos? - perguntou o professor, apoiando uma mão na bancada.

Estamos quase terminando, senhor - respondeu Marc puxando para perto o caderno de anotações, sendo acompanhado por Chester que tratou de concluir os seus resultados.

Vou deixar bem claro uma coisa, os assuntos que não tenham a ver com a minha disciplina deverão ser tratados em outra ocasião, entenderam?

Sim, senhor! - Chester acatou a ordem dada sem discutir.

Quando deixaram o laboratório, Margaret foi ao encontro de Chester:

O que aconteceu lá dentro?

Fomos chamados à atenção - respondeu caminhando rápido.

Por quê? - insistiu a jovem Meg interessada em saber de tudo.

Estávamos falando demais.

Sobre o quê?

Chester parou e ficou olhando sério para Margaret e depois sorriu achando engraçada a sua persistência.

Falávamos sobre essas esquisitices que rondam a Ilha da Coroa, você sabe a que me refiro, Meg.

E o professor, ouviu o que vocês conversavam?

Acho que não, e se tivesse ouvido, o que teria demais? - irritou-se Chester elevando a voz. — Todo mundo fala sobre isso. Nós não somos os únicos a descon­fiar que tem algo errado nisso tudo.

Fale baixo, Chester! — intercedeu Marc que os acompanhava logo atrás. - Quer que nos ouçam?

Desculpe, Marc, tenho que tomar mais cuidado com o que digo.

A precaução de Marc fazia sentido, pois, sempre havia monitores à espreita cuidando dos alunos em cada canto da escola, e falar o que não devia podia ser muito perigoso.

A tarde seria especial devido à reabertura da biblioteca aos alunos. Desde o final do ano anterior ela havia sido fechada por conta de uma praga de cupins ter destruído algumas estantes e arquivos causando considerável prejuízo à escola. Um número considerável de livros foi danificado, sendo que alguns deles, totalmente perdidos, o que deixou o diretor Helmut muito desgostoso.

A ampla biblioteca era uma das maiores dependências da escola e logo depois da porta de acesso, à esquerda, havia um balcão de mogno que servia para controlar a entrada e saída dos livros. A Sra. Maria Monteiro, a bibliotecária lusitana, conhecida por usar grandes brincos de argola e óculos com lentes fundo de garrafa, registrava cui­dadosamente cada obra nas fichas de cartolina quadriculada, tomando o cuidado de anotar o prazo de devolução dos exemplares tomados por empréstimo. Atrás daquele balcão, fixado na parede, havia um enorme retrato de um homem severo que apa­rentava ter algo em torno dos cinqüenta anos; usava costeletas que se uniam ao farto bigode, mas o que chamava mais a atenção era o tapa-olho que lhe cobria a vista direita e uma grande cicatriz vertical que cortava o seu rosto taciturno da testa até o queixo numa linha profunda que atravessava exatamente na altura do olho oculto.

Da entrada se abria um vasto salão de leitura onde se distribuíam umas vinte mesas de tampos escuros com capacidade para seis cadeiras cada uma. A partir dali, à esquerda e à direita, era possível avistar um labirinto de estantes que tocavam o teto de quatro metros de altura, ocupadas por milhares de livros sobre os mais variados assuntos, sendo necessário utilizar compridas escadas corrediças para alcançar as prateleiras mais altas. No final de cada corredor havia uma janela estreita e alta com vidros em mosaico colorido de desenhos variados e que clareava o interior, projetando luzes multicores. No lado oposto à entrada, passando pelo salão de leitura, bem ao fundo, havia uma sala envidraçada que o diretor Helmut costumava usar com freqüência para ler e escrever por horas a fio.

Os alunos percorriam a biblioteca, se perdendo entre as enormes estantes, e tirando um ou outro livro para uma consulta rápida. A senhora Maria recomendava num tom de voz apreensivo como se os livros fossem peças de delicado cristal que a falta de cuidado faria com que se espatifassem no chão.

Não recoloquem os livros nas estantes, deixem-nos sobre as mesas, por favor.

Era uma orientação desnecessária, sabendo-se que os usuários acostumados a freqüentarem bibliotecas estavam a par de seus mais comuns regulamentos, mas o esmero da bibliotecária não lhe permitia relaxar.

Marc escolheu uma mesa e foi seguido por Rafael e Chester que também se acomodaram ao redor do sólido mobiliário. Daniel surgiu do fundo de um corredor trazendo com ele um livro de capa cinza.

Olhem aqui rapazes, HISTÓRIA DA ILHA DA COROA - disse enfati­zando o sugestivo título.

Daniel abriu o livro de páginas amareladas pelo tempo e passou a folheá-lo, determinado a descobrir algo interessante, até que seus dedos pararam em uma página onde havia impressa uma curiosa gravura antiga.

Essa figura, vejam só isso! Mostra um esboço da ilha sem a cobertura da mata como é hoje — descreveu correndo o dedo indicador pelo desenho. — E o monte Cabeça do Rei está totalmente exposto até a sua base.

Quando foi editado o livro? - perguntou Marc, puxando a sua cadeira para perto de Daniel.

- Aqui está, 1892!

A gravura deve ser bem mais antiga, nem as instalações da escola estão representadas - observou Rafael girando um pouco o livro para ver melhor.

Bem, pelo menos uma coisa já podemos deduzir... - disse Daniel, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos. - A vegetação foi colocada depois e com algum propósito.

Provavelmente para deixar o lugar mais habitável — supôs Rafael, cauteloso.

Ou para ocultar alguma coisa — supôs Marc, fitando cada colega com um ar misterioso e provocativo.

Daniel continuou procurando no velho livro outras pistas que trouxessem alguma luz às suas teorias e comentou desapontado:

Não tem mais nada nesse livro que nos dê algo de novo. Só datas, eventos e as biografias de pessoas importantes na história da escola — concluiu, fechando-o e pousando as mãos em cima.

É melhor que seja assim — disse Rafael abrindo uma outra obra sobre botâ­nica. — Pelo menos não vamos perder tempo com essas coisas e nem correr o risco de sermos envolvidos em confusões.

Marc esfregou os olhos concordando com a cabeça, e também se pôs a ler um livro que abordava a filosofia na antigüidade.

Chester, tamborilando os dedos na mesa, corria os olhos, reparando os pormenores da biblioteca, o entra e sai dos alunos e os caminhos escuros formados por estantes que se perdiam por todos os lados. De repente concentrou a atenção no retrato na parede, atrás do balcão em que trabalhava Maria, a agitada bibliotecária.

Aquele homem... parece que já o vi antes — disse, apoiando o queixo sobre o punho. - Mas não lembro onde foi.

Que homem? — perguntou Marc erguendo os olhos de sua leitura.

O do retrato - respondeu, indicando com um movimento de cabeça.

Não me recordo de tê-lo visto - disse Marc forçando a memória.

Rafael e Daniel também olharam e a princípio não conseguiram reconhecer a enigmática pessoa que fazia uso do tapa-olho.

A porta da biblioteca se abriu e por ela cruzou o diretor Helmut revistando os alunos que ocupavam as mesas mais próximas, causando um certo constrangimento devido à sua expressão carrancuda. Ele se debruçou sobre o balcão e disse alguma coisa para Maria que respondeu fazendo que sim com a cabeça. Ao passar pela mesa dos meninos ele parou como se algo estivesse errado.

Aprecia história? - perguntou ele, agarrando o livro de capa cinza.

Ah, sim... - respondeu Daniel meio sem jeito. — Queria saber um pouco mais sobre a escola - explicou, inclinando-se para trás.

Helmut devolveu o livro para Daniel e se afastou entrando na sala envidraçada.

Vocês notaram? - indagou Rafael, sem desviar os olhos do livro que estava novamente em seu poder. - Somos controlados até no que lemos.

Você está com mania de perseguição - disse Marc, censurando o excesso de cautela de Rafael. - Ele só fez um comentário inocente.

Rafael só ergueu as sobrancelhas e não respondeu à crítica de Marc, preferindo o silêncio.

Helmut ocupou a cadeira de forro verde-escuro e braços de madeira nobre em formato de garras de leão e abriu uma gaveta, remexendo e tirando alguns papéis, colocando-se a examiná-los. De vez em quando parava o que estava fazendo e olhava para fora da sala, atento ao comportamento dos freqüentadores que por ventura viessem a cometer pequenos deslizes.

As horas passavam envoltas em leituras e cochichos e os livros iam se acumulando em pilhas cada vez maiores sobre as mesas. Maria sabia que teria um bocado de trabalho após o fechamento da biblioteca, mas não se incomodava em ter de recolocar todos os livros de volta nas estantes desde que estivessem intactos. A biblioteca foi se esvaziando e só restaram Daniel, Marc, Chester e Rafael, além de um ou outro aluno que se levantava abandonando o grande salão.

Pra mim chega, estou cansado — disse Chester, pressionando os olhos com as pontas dos dedos.

Vamos, ainda temos que jantar e subir — disse Marc, levantando e sendo imitado por Rafael e Daniel.

Só restou um aluno na biblioteca que, logo que eles saíram, levantou-se e foi até a mesa que haviam estado os meninos. O garoto tocou o livro de capa cinza e ficou parado mostrando uma expressão pensativa, até se dar conta que Helmut o olhava de dentro de sua sala com ar de severa desaprovação. Sem aparentar intimidação o estranho aluno também deixou a biblioteca, cumprimentando gentil­mente a senhora Maria ao sair, que respondeu educadamente lançando um olhar ao professor Helmut como se estivesse passando alguma mensagem mental.

 

                                           Pistas na Biblioteca

O sábado não era tão diferente dos outros dias da semana; atividades físicas pela manhã e uma quantidade enorme de lições para se fazer à tarde, que se prolongaria até o domingo.

O céu azul era cortado por finas nuvens brancas que não conseguiam encobrir o brilho do sol matinal que logo cedo ardia forte.

Os exercícios não foram tão puxados, mas continuaram até as dez horas culminando com um agradável banho de piscina.

Quando o almoço foi encerrado, os alunos estavam livres para aproveitarem o fim de semana da melhor maneira que lhes conviesse.

Daniel entrou no quarto e se deparou com Rafael recostado na cama.

O que está fazendo? - perguntou, fechando a porta.

Estou escrevendo uma carta para meus pais - respondeu apoiando um bloco de papéis sobre as pernas dobradas. - Ouvi dizer que em três dias o Divina Providência III retornar à ilha.

Você me deu uma boa idéia! — exclamou Daniel pegando caneta e papel e sentando-se à mesa. — Quero escrever uma longa carta contando tudo o que acon­teceu até agora.

Tudo mesmo? — perguntou Rafael, parando de escrever.

Como assim?

Não sei não, Daniel. Algo me diz que, pelo menos, por enquanto, é melhor não falarmos e nem escrevermos sobre essas nossas conversas.

Mas estou escrevendo para os meus pais! — salientou Daniel, batendo com as pontas dos dedos no papel.

Mas será mesmo que só os seus pais lerão essa carta?

O que você quer dizer, que alguém vai abrir e bisbilhotar as cartas antes de enviarem aos destinatários? - questionou Daniel, indignado.

Quer saber mesmo o que eu penso? - indagou, deixando o bloco de lado e inclinando-se para o amigo. — Acho que é melhor não nos arriscarmos tanto nessa escola. Pouco ou nada sabemos sobre esse lugar e as pessoas que vivem aqui. Ninguém é bobo de achar que essa ilha não esconde um grande segredo. Mas olhe os outros alu­nos, não abrem a boca, pois sabem que se causarem problemas, serão imediatamente expulsos. A maioria se preparou a vida inteira para poder estudar nessa pequena ilha no meio do oceano. Só vejo nosso grupo e sua irmã fuçando por aí como se tudo fosse uma brincadeira de gato e rato - desabafou Rafael, esperando alguma reação de Daniel que não aconteceu. - Eu tenho um pressentimento que alguma coisa de ruim pode acontecer conosco se continuarmos insistindo em bancar os detetives.

As palavras de Rafael sacudiram Daniel fazendo-o repensar a questão.

É, talvez o que você diz faça algum sentido - admitiu, empunhando a caneta sobre o papel. - Não vou escrever nada que possa nos causar problemas.

Rafael aprovou balançando a cabeça e voltou a escrever vigorosamente; e não tocaram mais no assunto.

 

Lá embaixo, sozinho na sala de música, Marc manuseava um violino aproveitando o silêncio para deixá-lo afinado. O seu sossego durou pouco, porque Chester que estava a sua procura, finalmente o encontrou.

Eu sabia que você estava aí, que tal revermos as questões de Física?

Mais tarde, agora estou preparando alguma coisa para a aula de música da semana que vem. Quer me ajudar?

Você sabe que não entendo nada de instrumentos musicais - disse, sen­tando-se em um banquinho ao lado de Marc, os olhos dele correram pelo espaço utilizado como sala de música. — Só entendo de cavalos.

Vê as cordas desse violino? São feitas de tripas de carneiro — disse, oferecendo o instrumento para Chester examinar.

Curioso, Chester passou os dedos sobre as cordas surpreso ao saber de quê eram feitas.

Agora veja a corda deste arco, sabe do que é feita?

Parecem fios enfileirados, mas não consigo identificar.

É crina de cavalo.

Está falando sério? — duvidou, olhando com mais atenção.

Acredite, é verdade! - confirmou, pegando o violino de volta e tirando uma longa nota com o arco.

Então, com os cabelos do meu cavalo, o Coronel, eu posso fazer música? - indagou encantado, aumentando ainda mais sua admiração pelos eqüinos.

E isso mesmo, Chester. São animais fantásticos, não é mesmo?

Marc ofereceu novamente o violino a Chester que tentou tocar alguma coisa, mas o resultado foi um desastre.

Chester... meu amigo.Você é péssimo! — sentenciou, não conseguindo se segurar e caindo na gargalhada.

Chester não deu muita importância ao fato de não saber tocar nada. O seu mundo estava ligado aos cavalos e era naqueles animais de portes majestosos e crinas melodiosas que ele adorava cavalgar.

Marc preparou e revisou os preparativos para a sua próxima aula, e deu uma última olhada para ver se estava tudo em ordem, daí fechou a sala de música.

Vamos. Temos que repassar as questões de Física ainda hoje. Não pretendo deixar nada para o domingo.

Daniel e Rafael já devem estar no quarto, estudando — disse Chester, apressando o passo pelas dependências da escola.

É a única coisa que Rafael sabe fazer com o seu tempo livre — comentou Marc enquanto cortavam caminho pelo saguão central.

Não o censuro - disse Chester, compreendendo a situação de Rafael. - Essa é a grande oportunidade da vida dele e se falhar não vai se perdoar.

Eu sei, Chester, mas ele precisa se distrair um pouco fazendo outras coisas. Olhe só você: cuida dos cavalos e ainda tem tempo para desafinar no violino — disse em tom de gozação.

Gostaria de ver você em cima de um cavalo.

Pois saiba que cavalgo bem.

Você deve cavalgar pior que a minha bisavó.

Qualquer dia eu o desafio numa corrida — provocou Marc enquanto cruza­vam o corredor extenso que ia até os dormitórios.

Fechado! - aceitou Chester, apertando a mão de Marc e selando o duelo.

Quando subiam as escadas que dava acesso ao segundo pavimento, encontra­ram Meg que descia vindo da ala feminina.

Vocês viram meu irmão?

Deve estar no quarto, estudando — respondeu Marc, apoiando-se no corrimão.

Preciso falar com ele, vocês poderiam avisá-lo?

Claro, Meg! - prontificou-se Chester, voltando a subir os degraus.

Os garotos se arremessaram direto para o quarto e transmitiram o recado sobre Margaret. Daniel resistiu à convocação feita pela irmã.

O que ela quer?

Não nos disse — respondeu Chester, pegando seus cadernos e abrindo-os sobre a cama. - Ela está te esperando na escadaria.

Sem ânimo, Daniel pulou da cama e foi ao encontro de Margaret que o aguardava sentada na escada de pedra fria. Ela levantou imediatamente ao ouvir a voz do irmão.

O que houve, Meg?

Venha comigo, quero lhe mostrar uma coisa.

Aonde vamos?

A biblioteca, achei algo que pode nos interessar.

O que é?

Você já vai saber, vamos rápido antes que fechem.

Os irmãos se apressaram e em pouco tempo estavam dobrando o corredor que se ligava à biblioteca.

Sinto muito, meninos, estamos fechando por hoje - disse Maria, a biblio­tecária, verificando se a porta estava realmente trancada. - Aos sábados fechamos mais cedo, eu também preciso descansar — disse, pondo as mãos sobre os ombros dos irmãos e fazendo-os voltarem por onde vieram.

Margaret e Daniel se despediram de Maria, retornando lentamente pelo cami­nho que conduzia aos dormitórios. Daniel segurou a irmã pelo braço e, antes de subirem, perguntou:

O que você queria me mostrar?

Uma coisa que talvez nos ajude a achar o que procuramos.

Daniel girou os olhos, impaciente.

Deixe de rodeios e fale logo. O que você encontrou na biblioteca?

Um desenho, uma antiga planta desse prédio.

Pensativo por uns instantes, Daniel mordiscou o lábio.

Isso pode ser realmente importante. Alguém viu você com esse documento?

Acho que não — presumiu Margaret, disfarçando ao notar que um aluno passava por eles, indo em direção às escadas. — Eu encontrei o tal desenho em uma estante no fim de um corredor e fiquei por lá mesmo examinando-o, até que ouvi passos e resolvi guardá-lo de volta no lugar. Em seguida me afastei dali e não vi ninguém, daí resolvi ir a sua procura pra te contar.

O que você descobriu?

Não muita coisa. Consegui identificar o saguão, o refeitório, alguns corre­dores. Nada mais do que isso.

Pode ser que não nos sirva pra nada, mas talvez nos dê alguma pista.

Daniel olhou por cima do ombro de Margaret e viu a inspetora Elvira observando-os do alto da escada como uma águia à procura da próxima vítima.

É melhor você subir. Estamos sendo vigiados.

Margaret olhou para trás e, percebendo a situação adversa, se despediu do irmão, passando reto por Elvira que a olhava com um semblante acusador. Daniel fez que não era com ele, meteu as mãos nos bolsos da calça e subiu assoviando.

Tenho novidades! — exclamou quando se sentiu seguro no quarto. — Meg achou uma coisa que pode ser útil pra nós.

Daniel então contou com detalhes sobre a planta da escola, aos olhos atentos dos colegas.

A biblioteca só reabre na segunda-feira — lembrou Chester do alto de sua cama, ele encostava os joelhos no peito e abraçava as pernas. - Teremos de esperar até lá.

Marc se recordou de algo.

Daniel, você se lembra quando vimos Júlio pela primeira vez?

Sim, lembro. Ele estava pintando um muro na entrada da Vila de casas.

Isso mesmo! E ele havia falado que havia alguns lugares na Ilha que o acesso não lhe era permitido.

É... parece que ele comentou isso mesmo — disse Daniel, lembrando-se do dia em que chegaram à ilha.

Um desses lugares que Júlio mencionou era a floresta — observou Marc, batendo com a flauta na palma da mão. — Mas quando ele ia continuar, desistiu, constrangido por causa daquele monitor que nos espiava.

Daniel, você precisa conseguir essa informação o quanto antes — salientou Chester, descendo do beliche para se fazer mais enfático para com o amigo. — Quem sabe existe algo escondido dentro da escola bem debaixo do nosso nariz.

Rafael permanecia calado, ouvindo o desenrolar da conversa; ele folheava um livro fazendo de conta que estava alheio ao diálogo explosivo que se desenrolava naquele quarto. Tentava se concentrar na leitura, mas não conseguia entender uma linha sequer. Se lhe perguntassem o que estava escrito ele não saberia responder. Rafael optou por não falar nada, evitando assim inflamar ainda mais a discussão. Toda vez que o assunto era aquele, ele sentia um frio na barriga; tinha a sensação de que mais cedo ou mais tarde estaria metido em uma grande confusão que resultaria em sua expulsão.

Vou conversar com ele sobre isso na próxima vez que trabalharmos juntos - disse Daniel, se referindo a Júlio.

Ótimo! — exclamou Marc, esfregando as mãos. — Se fizermos da forma correta talvez desvendemos um grande mistério que se esconde aqui.

Rafael não conseguiu se conter.

Só tem uma coisa... — advertiu, quebrando o silêncio. - Se nos pegarem, estaremos perdidos e daí, vocês podem dizer adeus às suas investigações.

E você tem alguma sugestão? - perguntou Marc, apontando para Rafael com a flauta.

Vocês têm duas opções, ou desistem dessa idéia maluca ou vão em frente e aí... tudo pode acontecer. Como eu sei que não vão desistir, ao menos tomem bastante cuidado. - Rafael fez uma pausa, olhando para fora em direção à floresta que naquele momento estava sendo encoberta pelo crepúsculo, e em seguida arre­matou: - E, por favor, não me metam nessa história.

As horas corriam para dentro da noite, e Daniel, esticado em sua cama, bus­cava o sono que demorava a chegar. Seus colegas já dormiam há um bom tempo, derrotados pelo cansaço. Ele fechava os olhos e desviava o pensamento até que um longo bocejo prenunciou o sono que se aproximava. Três batidas na porta voltaram a despertá-lo e lentamente ele levantou-se para ver quem era. Chester se mexeu na cama, mas não chegou a despertar. Quem deveria ser àquela hora da noite? Daniel se espantou quando, ao abrir a porta, deu de cara com o diretor Helmut que com uma das mãos agarrou-o pelo pescoço e com a outra tapou a sua boca. Ele tentou gritar em vão, sendo quase sufocado pela mão que apertava forte a sua mandíbula.

Você quer descobrir o nosso segredo, Daniel? - perguntou Helmut, mos­trando os dentes cerrados. — Então vou satisfazer a sua curiosidade.

Então Daniel foi arrastado com violência pelas escadas e na passagem pode ver a Lnspetora Elvira exibindo uma expressão aterradora. Os olhos dela luziam um verme­lho vivo, como se seu interior ardesse em chamas. Ele se debatia, mas não conseguia se soltar e continuou sendo arrastado pelos corredores escuros da escola até ser levado para fora. A floresta seria o seu destino final. Labaredas saíam dos olhos, narinas e boca do diretor. O desespero se apossou de Daniel que nada podia fazer.

Aqui está garoto, esse é o lugar que você vai morar... por toda a eternidade.

Podendo mover apenas os olhos, Daniel pode ver centenas de gaiolas que pendiam das árvores e em cada uma delas havia um aluno vestido com o uniforme escolar. Eles não tinham mais os olhos e das suas órbitas saíam insetos e vermes repugnantes. O garoto estava horrorizado. Uma gaiola ainda vazia foi aberta por Ramón que também mostrava os olhos chamejantes. Daniel foi empurrado para dentro e a gaiola fechada.

Parabéns, menino curioso - disse Helmut cuspindo labaredas. - Você agora já conhece o nosso... segredinho.

 

Daniel acordou sobressaltado; estava suando e tremendo. A luz do farol ilu­minou bruscamente a parede do quarto ajudando-o a se localizar. Ele colocou a mão contra o peito e sentiu seu coração disparado. Então pensou aliviado: Era só um pesadelo.

Ele levantou devagarzinho e foi até a janela, tudo estava calmo.

Eu não vou desistir - murmurou decidido.

 

O domingo começou claro e preguiçoso; não havia o toque do sino, a correria para o desjejum e nem a tumultuada aglomeração em frente às salas de aula. A claridade penetrou no quarto despertando Daniel que acabou não tendo um sono tranqüilo. A mesa de estudos já estava ocupada por Rafael que consultava os livros e rabiscava uma equação num caderno, aproveitando todo o tempo disponível para aprender.

Onde estão Marc e Chester? — perguntou Daniel, esfregando os olhos ainda inchados de dormir.

Desceram até o refeitório — respondeu Rafael, parando de escrever. - Eles desistiram de esperar você acordar.

Que horas são?

Quase nove, vamos descer um pouco? - sugeriu Rafael, se espreguiçando na cadeira. - Estou estudando há quase duas horas.

Puxa, dormi tanto que perdi a hora!

Sentados em um amontoado de pedras em frente a praia, Marc e Chester admiravam o voo rasante de uma gaivota antes de planar e pousar na areia.

Daniel se aproximou e sentou ao lado deles.

Onde está Rafael, seu dorminhoco? - brincou Chester, fazendo desenhos na areia com um galho seco.

Voltou para o quarto, deve estar estudando agora.

Pois eu quero aproveitar o domingo, descansando muito e estudando pouco - disse Marc, recostando-se sobre a pedra e cruzando os braços atrás da cabeça. - Já basta o que eu faço durante a semana.

Preciso encontrar Júlio - disse Daniel, levantando-se. - Ele deve ter informações valiosas.

Espere até amanhã - aconselhou Marc. - Alguém pode desconfiar vendo você conversando com ele num dia de folga. Você pode fazer isso enquanto traba­lha com ele.

Persuadido, Daniel voltou a se sentar, mas estava obcecado com as novas possibilidades que surgiram para resolverem o mistério da Ilha da Coroa. A semana seguinte prometia ser cheia de respostas que provavelmente levantariam outras dúvidas e perguntas a serem respondidas.

O Sol se escondeu atrás do horizonte e os alunos se recolheram aos seus aposentos como de costume. Rafael organizava os livros em uma pilha sobre a mesa; deveria devolvê-los à biblioteca no dia seguinte e certamente pegaria outros empres­tados. Ele estava obstinado a estudar em tempo quase integral e isso, aos poucos, roi afastando-o do convívio com seus colegas de quarto. Marc, Chester e Daniel acharam por bem aceitarem a sua escolha e não mais incomodá-lo com a idéia de fazer com que ele viesse a estudar por menos tempo. Afinal, Rafael estava ali com um objetivo bem definido e respeitar a sua vontade seria o mais sensato a fazerem.

 

                                          A Excursão pela Floresta

Mitsuro, o comedido e simpático professor de Biologia, anunciou que os alunos das turmas 1A e 1B teriam finalmente a sua atividade de campo naquela manhã.

Deixem os seus materiais sobre as carteiras. Em minutos entraremos na parte sul da floresta para uma aula ao ar livre - disse ele aguardando que os estu­dantes saíssem em fila.

Sorrisos de satisfação surgiram na face dos jovens alunos. Eles iriam finalmente conhecer o interior da tão decantada floresta misteriosa.

Do lado de fora do ambiente escolar a turma 1B aguardava impaciente e os dois grupos, liderados pelo professor Mitsuro e acompanhados por dois monitores, seguiram em frente e entraram numa trilha estreita que não permitia passar mais do que dois alunos por vez. A vegetação espessa se erguia por muitos metros em ambos os lados do caminho, formando um grande desfiladeiro verde que impossi­bilitava a visualização do interior da mata.

Marc, que andava lado a lado com Daniel, comentou instigado.

A vegetação é muito densa. Não dá para enxergar muita coisa além desse matagal.

E também é úmida - completou Daniel, afastando um galho que roçava o seu rosto. — Olhe só como a floresta retém a água, provavelmente vinda daquele temporal, apesar do calor que faz agora.

Pássaros de vários tipos e cores voavam de um galho para outro num festival de trinados que davam um tom mais alegre ao ambiente selvagem. O cheiro de mato era agradável e se misturava com a maresia sentida constantemente no lado leste da ilha.

Após caminharem por uns oitenta metros, chegaram a uma clareira rodeada por árvores grossas entrelaçadas por plantas de folhas largas, formando uma bar­reira natural, praticamente intransponível.

No centro da clareira havia uma mesa comprida feita de tábuas rústicas, e sobre ela, uma infinidade de pequenos vasos que comportavam plantas de espéci­mes diferentes.

Aqui estamos — disse o professor Mitsuro, pegando um vaso e girando-o na mão, observando-o com cuidado. - Nessa floresta existem inúmeras espécies de animais e vegetais vindas de diversas partes do globo. Ao longo do tempo muitos deles conseguiram se adaptar e hoje formam um ecossistema único, sem igual.

Pelo que o senhor está nos dizendo, esse ambiente foi produzido pela mão humana - deduziu Rafael, saindo de trás dos colegas.

É isso mesmo, rapaz. Tudo isso começou a ser plantado há mais de trezentos anos para dar um aspecto mais habitável à ilha. Antes disso só havia uma vegetação rasteira tornando o lugar árido e inóspito à vida humana - explicou, suspendendo um vaso em cada uma das mãos. - Esses espécimes são apenas alguns dos vários que existem por aqui e nos permitem fazer uma pequena viagem de conhecimento pela flora ao redor do mundo. Provavelmente este é o maior jardim botânico do planeta, o que nos dá muito orgulho.

A curiosa platéia foi aos poucos se aproximando da bancada e recebendo valio­sas informações sobre cada exemplar que examinava.

E os animais? - perguntou Daniel, mostrando um besouro que perambulava sobre a mesa.

Boa pergunta! — exclamou Mitsuro, com um sorriso afável. — Assim como a vegetação, os animais daqui são oriundos de muitos lugares. Alguns não se adaptaram e desapareceram, mas outros conseguiram sobreviver e estão aí até hoje. Alegro-me em dizer que conseguimos criar um mundo maravilhoso sobre uma enorme pedra quase estéril.

O que há mais adiante? — perguntou Daniel, apontando para além da clareira.

Mais mato, mais animais, e depois disso, o Monte Cabeça do Rei — respondeu, espantando um mosquito que o incomodava. — Além dele, mais mato, mais animais e por último o oceano sem-fim.

Grande novidade, isso nós já sabemos — cochichou Daniel no ouvido de Marc.

Teremos permissão para fazer incursões mais para o interior dessa selva? - perguntou Margaret; seu olhar desafiava a boa vontade do professor.

Infelizmente não. O interior da Floresta é perigoso e traiçoeiro — disse mostrando uma enorme cobra enrolada em um galho grosso de uma árvore próxima a eles. - Mesmo para mim, com bastante experiência em viver na selva, o risco é elevado. Eu me recusaria a passear por esses lados depois do pôr do sol.

Da clareira dava para avistar o topo do único monte que não ficava tão dis­tante e era um dos suspeitos de esconder algo que estaria guardado com tanto cuidado. Talvez tudo não passasse de um grande equívoco, e as cabeças juvenis e fantasiosas dos alunos fizessem com que eles imaginassem histórias que na realidade nunca existiram, a não ser na mente dos mais sonhadores. Mas eram muitas suspeitas para serem deixadas de lado e novas descobertas estavam para acontecer à medida que eles procurassem as respostas.

Duas horas depois a aula havia terminado e os alunos retornaram pela trilha que deixava passar uma leve brisa vinda do mar, refrescada pelas folhagens e perfumada por flores silvestres.

Assim que abandonaram a floresta, os alunos voltaram a sentir o forte vento marí­timo e o calor do sol que lhes ardia a pele. Os últimos a saírem foram os monitores que se certificaram em não deixar ninguém para trás no meio da mata.

Logo que o almoço foi servido, os meninos trataram de comer e se reuniram no pátio com Margaret que havia ficado encantada com a exuberância do bosque.

O que vocês acharam da nossa excursão? — perguntou ela, extasiada.

Vimos muito pouco — disse Chester, apoiando os cotovelos sobre a mesa, o rosto bem encaixado entre as mãos. - Mas o que ouvimos confirmou a nossa teoria. Parece que estamos no caminho certo.

Qual teoria? — quis saber Marc, intrigado.

A de que nem sempre houve uma imensa floresta bem aí ao nosso lado — disse convicto. - Lembram-se do desenho no livro que vimos na biblioteca? Ele deve ter sido feito antes do século XVII e depois copiado naquela edição de 1892.

Portanto, todo esse trabalho que tiveram de plantar uma floresta inteira deve ter servido para ocultarem alguma coisa fora do comum - refletiu Daniel, olhando a cada um na mesa. — E a proibição enérgica imposta aos possíveis intrusos ratifica essa idéia.

Só que vocês não estão levando em conta um detalhe importante - interrom­peu Rafael, debruçando-se para frente para fazer valer a sua opinião. - A justificativa de terem plantado todas aquelas árvores para tornarem a Ilha habitável é razoável; e o fato de proibirem os alunos de terem acesso à floresta também faz sentido. Se eles permitissem que as centenas de alunos circulassem livremente sem restrições, em pouco tempo teríamos colegas despencando dos rochedos e caindo no mar ou sendo envenenados por animais peçonhentos. Todos aqui viram aquela serpente na clareira. Imaginem um animal daquele enrolado no pescoço de um de vocês.

Pode ser que você esteja certo — disse Daniel, admitindo as hipóteses de Rafael. - Mas creio que nos próximos dias teremos algumas respostas que vão derrubar as suas teorias. Você mesmo havia me dito que esse lugar esconde algum segredo. O que você quer agora, nos fazer acreditar no contrário?

Rafael suspirou fundo e não respondeu a Daniel. Ele sabia que era minoria e que não adiantaria forçar a mudar o modo de pensar dos seus colegas. Além do mais, o grupo havia aumentado com a participação mais efetiva de Margaret xeretando a biblioteca.

Insatisfeito com a relutância de Rafael em aceitar a decisão de continuarem investigando, Daniel levantou-se.

Vou procurar Júlio. Mais tarde eu devo trazer alguma novidade. Não poderei ir com você à biblioteca, Meg, veja se descobre mais alguma coisa.

Eu vou com ela - avisou Marc. - É bom mesmo não irmos todos juntos para não despertarmos suspeitas, e todo cuidado é pouco agora.

-Também tenho que visitar o estábulo, o senhor Nestor já deve estar sentindo a minha falta - disse Chester, justificando a sua retirada.

Rafael ficou sozinho na mesa vendo todos se afastarem. Seu coração estava apertado, pois tinha a sensação de estar perdendo os amigos que havia conquistado. Ele estava se sentindo um traidor. Então, respirou fundo e organizou os pensamentos.

Não devo voltar atrás. Não posso me envolver nesse plano, mesmo que me custe perder a amizade deles - murmurou resoluto. - Se eles quiserem a minha amizade, terão que aceitar a minha decisão de ficar fora dessa trama.

Naquele momento de solidão, Rafael retirou do bolso da calça a imagem da pequena santa de metal que sua mãe havia lhe dado. Aquela pequena estatueta de rerro fundido significava a ligação entre ele e sua família. Rafael lembrou com ter­nura dos seus pais e irmãos que deveriam comentar sobre ele todos os dias. Aquilo o revitalizou, fazendo-o apertar forte a imagem e guardá-la novamente. Naquele instante ele levantou-se e foi para o quarto pegar os livros que havia emprestado e tratar de devolvê-los à biblioteca para imediatamente emprestar mais livros, e assim, prosseguir com seus estudos. Nada iria detê-lo.

A biblioteca estava movimentada quando Meg e Marc chegaram. Só havia a bibliotecária, a senhora Maria, cuidando de tudo.

Perfeito! O diretor não está - disse a garota, olhando a sua volta. - Assim poderemos pesquisar mais sossegados.

Você se recorda onde está guardada a planta? — sussurrou Marc, seguindo-a de perto.

Sim, está no final daquele corredor próximo aos arquivos, está espremida no canto de uma das estantes, bem no fundo daquele corredor - ela sussurrou enquanto se embrenhava pelos vãos da biblioteca.

A dupla caminhou discretamente, parando para olhar um livro ou outro nas estantes de maneira desinteressada. Era um cuidado exagerado, levando-se em conta que naquele corredor havia apenas alunos, somente voltados para as suas próprias pesquisas. Meg e Marc chegaram até a estante onde repousava o documento que procuravam. Ela, com um rápido movimento de mão, agarrou uma pasta de cartolina preta com elásticos que mantinham as suas pontas presas. Uma etiqueta revelava o seu conteúdo: PROJETO ESTRUTURAL DA ESCOLA INTERNACIONAL DO ATLÂNTICO. A menina segurou firme o documento contra o peito e, retornando pelo corredor, dirigiu-se a Marc:

Vamos encontrar uma mesa distante das atenções.

Eles se acomodaram em uma mesa isolada, parcialmente escondida por um armário de portas envidraçadas utilizado para acondicionar livros raros.

Margaret abriu a pasta e espalhou sobre a mesa três plantas de aspecto envelhecido e com as bordas danificadas pelo manuseio através do tempo.

A primeira planta que eles decidiram analisar se referia ao terceiro pavimento da Escola que estava dividido em setenta e dois quartos e seis banheiros, sendo ocupados pelos alunos das séries mais adiantadas. Retas e ângulos se cruzavam for­mando os cômodos da parte mais alta do imenso prédio. Meg e Marc rastreavam o desenho com o olhar, procurando qualquer coisa que lhes indicasse uma passagem ou câmara escondida; após uma minuciosa varredura não encontraram nada que lhes chamasse a atenção. Sem obterem nenhum resultado, eles deixaram de lado aquela planta e passaram para a próxima que retratava o andar logo abaixo, o do segundo pavimento, que era idêntico ao anterior em número de quartos e banhei­ros. Aquele eles conheciam bem, pois era onde se localizavam os seus dormitó­rios, mas também não chegaram a conclusão alguma, mesmo que atentassem para os detalhes mais discretos. A última opção era o andar térreo. Margaret respirou fundo e debruçou-se sobre a terceira e última planta.

Estamos bem aqui — disse Margaret, localizando a biblioteca com a ponta de um lápis. - Aqui fica o refeitório e em todo esse setor estão as salas de aula.

Se não me engano, essa é a sala onde ensino música - disse Marc, mostrando com o dedo indicador.

Depois de muito examinarem a planta sobre diversos ângulos, não consegui­ram nenhuma informação consistente.

Acho que fomos ingênuos em pensar que deixariam alguma pista em um pedaço de papel que qualquer um pode consultar — disse ela, desanimada, apoiando a cabeça entre as mãos. — O que poderíamos esperar? Que eles marcariam um X como se fosse um mapa do tesouro?

Marc riu da comparação feita por Meg, e disse ao notar Rafael sair do grande salão.

É melhor irmos embora, creio que não vamos achar nada procurando por aqui. Estou começando a desconfiar que ele está aproveitando melhor o seu tempo — refletiu, referindo-se a Rafael que acabara de deixar a biblioteca com uma nova remessa de livros.

Com braçadas firmes, Daniel puxava a corrente de uma talha para erguer um dos pequenos motores da casa de força que forneciam eletricidade à vila em caso de emergência.

Agora vá baixando devagar, Daniel — orientava cuidadosamente Júlio enquanto encaixava o motor em sua base.

A manobra foi concluída com êxito.

Bom trabalho, garoto! Você está se saindo muito bem, já posso deixá-lo no meu lugar e tirar umas férias — brincou o homem bonachão, limpando as mãos sujas de graxa com uma estopa embebida em querosene.

Daniel se sentou ao lado dele e olhando para o chão, se preparou para falar.

Uma vez você disse que alguns setores não podem ser visitados por qualquer pessoa, lembra?

Ahn... Eu disse isso? - perguntou Júlio, hesitante.

Disse sim, e só não falou mais porque estava sendo vigiado.

Preste atenção, Daniel, meu amigo: você é um rapaz legal e se quer um conselho, esqueça essa história. Eu já soube de alunos e empregados que tiveram de deixar essa ilha por se meterem aonde não foram chamados. Não queira ter a mesma sorte deles.

Vou levar em conta o seu conselho, mas eu apenas quero saber que lugares são esses, só isso. Não vou sair por aí bisbilhotando e nem falando pra todo mundo.

Está bem, eu vou te contar... Mas depois não diga que eu não avisei — Julio fez uma pausa, procurando as palavras certas que iria usar. - A floresta você já sabe... Ninguém pode dar um passo mata adentro sem ter autorização. Muito esquisito, não é?

Sim, sim e que mais? - apressou-o com medo que alguém chegasse e interrompesse.

O outro fica no interior do prédio da escola e acredite, deve esconder algo muito valioso, pois é guardado como uma caixa-forte de um banco - revelou, apoiando os cotovelos sobre as pernas e enrolando a estopa em uma das mãos. - Há uns dois anos eu fui até lá para realizar um serviço.

E que lugar é esse? Onde fica exatamente? — insistiu Daniel, tomado pela ansiedade.

Júlio olhou para os lados e cuidou para que ninguém mais ouvisse o que ele estava prestes a contar.

Existe um corredor no fundo do saguão de entrada...

O grande salão com aqueles retratos na parede! — completou Daniel, ten­tando visualizar mentalmente.

Fale baixo! Não sabe ser discreto? — ele deu mais uma olhada em volta e continuou. — Esse mesmo. Ele segue por uns quinze metros e dobra para a direita, depois se prolonga por mais cinco metros e termina em uma porta não muito grande, mas com dez centímetros de espessura, uma porta bem pesada. Tenho certeza disso, pois tive que tirar a medida para fazer um furo e aquilo me chamou a atenção. Um absurdo para uma porta daquele tamanho — disse, abrindo uma garrafa com água para molhar a garganta, logo depois contou mais coisas. — Fui lá para colocar um reforço naquela porta; uma argola de ferro que me deu muito trabalho, pois como havia dito, precisei furar a madeira grossa para conseguir fixá-la. Uma segunda argola foi presa na parede do corredor bem junto à porta. Depois do trabalho terminado, uniram as duas com um cadeado do tamanho da minha mão. - Júlio fez outra pausa quando lembrou de um detalhe que ele considerou importante. — Além disso, a porta possuía uma fechadura com duas linguetas que entravam fundo na parede. Portanto, as argolas eram um reforço a mais. Daniel, meu caro - e ele olhou fixamente para o garoto —, aquele compartimento guarda alguma coisa muito valiosa e que ninguém mais pode saber o que é.

Para fixar a argola na porta você precisou abri-la, estou certo?

Exatamente, daí constatei como ela era espessa.

E o que havia depois?

Apenas um cômodo escuro - disse, cerrando os olhos e tentando aguçar a memória. - Lembro bem que não havia janelas e a única coisa que pude ver foi um animal estranho em pedra encostado na parede oposta, uma mistura de ave e felino, acho eu.

E você não entrou para satisfazer a sua curiosidade?

De que jeito? Durante todo o tempo que fiquei trabalhando ali, dois moni­tores ficaram comigo sem arredarem o pé um só minuto — disse, levantando e pegando uma chave-inglesa na caixa de ferramentas. — Depois desse dia não retornei mais lá.

Por que eles teriam tanto trabalho para impedir que alguém possa entrar em um cômodo vazio e escuro?

Não sei, Daniel. E é melhor que você também não queira saber... para o seu próprio bem.

Eles foram interrompidos pelo trote de um cavalo se aproximando. Era uma carroça conduzida por Chester que trazia um carregamento de madeira cortada em :ibuas largas. Chester saltou parando na entrada da casa de força.

Onde deixo essas madeiras?

Pode deixar aí mesmo, vou descarregá-las agora mesmo - disse Júlio, cal­çando luvas grossas para não ferir as mãos com as farpas.

Conhece o Lucrécio, Daniel? — perguntou Chester, apresentando o cavalo e indo para trás da carroça ajudar a puxar as longas ripas.

O turno de trabalho estava terminando quando a carroça foi esvaziada.

Estou recolhendo, querem uma carona? — ofereceu Chester, subindo na car­roça e pegando as rédeas.

Eu vou com você — disse Daniel, também subindo e sentando-se ao lado de Chester. - Você não vem, Júlio?

Vou ficar mais um pouco — respondeu, dando a volta na carroça e parando junto a Daniel. - Tome cuidado, garoto, meça as palavras antes de usá-las - sussurrou.

A carroça se afastou ao som de rangidos de madeira e cascos batendo no cascalho, em direção ao estábulo. Chester desatrelou o cavalo e, juntamente com Daniel, retornaram a pé até o prédio central.

Pelo caminho, Daniel que havia aguardado o melhor momento para contar a novidade, começou a falar ao ouvido do companheiro.

Descobri coisas que vão deixar vocês boquiabertos.

O que você descobriu?

Espere até chegarmos ao dormitório, quero que todos saibam ao mesmo tempo.

Quando a noite caiu sobre a ilha, e o quarteto já se encontrava reunido, Daniel começou a falar tudo o que havia ouvido da boca de Júlio. Ele se preocupou em relatar os pormenores para deixar os amigos a par de cada detalhe e juntos começarem a montar o misterioso quebra-cabeça. Eles tinham consciência que ainda faltavam muitas peças para se encaixar e precisavam se empenhar muito para conseguirem as que estavam faltando.

Ao encerrar o que tinha a dizer, Daniel aproveitou a oportunidade de provocar Rafael trazendo-o para a discussão.

O que você acha disso tudo?

Está bem, admito que fiquei curioso - disse, massageando a nuca enquanto pensava em cada palavra proferida por Daniel. — Até aonde vocês pretendem ir?

É muito cedo para responder a essa pergunta — disse Marc, cauteloso. - Mas me sinto encorajado em seguir adiante e tentar descobrir mais coisas.

Pra que serve uma sala vazia, sem janela e totalmente lacrada? — refletiu Chester, olhando no vazio.

E a tal estátua de pedra... será que possui algum poder mágico? — perguntou Marc, testando as possibilidades.

Talvez seja um objeto de adoração - sugeriu Chester. - Um ídolo de alguma sociedade secreta.

Um grifo! — deduziu Rafael aos olhos espantados dos amigos. — Não foi isso que Júlio havia dito? Um híbrido de ave e felino? Ele só pode ter visto um grifo, um ser mitológico com cabeça e asas de águia e corpo de leão.

Você deve estar certo — concordou Daniel, exultante. — A imagem do grifo é a que mais se assemelha a da descrição de Júlio.

Mas ainda assim, o que um grifo estaria fazendo naquela sala? - questionou Chester, intrigado.

Ainda não estou conseguindo ligar as coisas - disse Daniel, sentando ao contrário na cadeira e abraçando o encosto. - A sala deve ter alguma relação com a floresta, mas o quê? - Daniel pensou mais um pouco. - Com relação à planta deste prédio, vocês conseguiram alguma coisa?

Nada. Eu e sua irmã passamos um bom tempo estudando os três pavimentos da edificação e não vimos nada de anormal - informou Marc, levantando-se e seguindo até a janela para tomar um pouco de ar fresco. O feixe de luz lançado pelo farol girava ininterruptamente na noite escura. — Também pudera, nós nem sabíamos o que estávamos procurando.

Mas agora já sabemos, ou quase — disse Daniel, resoluto. — Temos que voltar lá e verificar o desenho do primeiro pavimento, ali pode estar a nossa resposta. Eu mesmo quero ver isso de perto.

Amanhã, após a aula, iremos todos juntos à biblioteca - Marc convocou os colegas. — Você vem conosco, Rafael?

Não me levem a mal, mas eu prefiro ficar.

Você é quem sabe, mas não vejo nada demais em nos acompanhar.

Mesmo assim, acho melhor eu não ir com vocês.

Ao se deitar, Marc começou a anotar as informações obtidas até aquele momento e tentou combiná-las com o propósito de chegar a um denominador comum, mas era notório que faltavam dados importantes.

 

A mesa escolhida foi a mais escondida da biblioteca, a mesma que Marc e Margaret usaram no dia anterior. Marc foi o primeiro a se sentar e tomar a iniciativa de abrir a pasta; ele desdobrou somente a planta que lhes interessava: a do primeiro pavimento. O que eles viram os deixou surpresos. O corredor e a câmara que procuravam não constavam no documento.

Não está aqui — disse Daniel, com os olhos fixos no papel. — O que isso pode significar?

Que eles queriam, de alguma maneira, ocultar esse lugar secreto - especulou Marc, porém sem estar muito seguro.

Mas também, pode ser que na época em que o desenho foi feito aquela sala não fazia parte do projeto inicial - disse Chester, apoiando o queixo no punho fechado. — Ela poderia muito bem ter sido construída depois.

Parece que chegamos numa encruzilhada. Temos algumas informações e não sabemos o que fazer com elas - disse Daniel, desorientado.

Com muitas perguntas e poucas respostas, eles desistiram temporariamente do projeto arquitetônico e pensaram em buscar um outro caminho, caso contrário, voltariam a estaca zero.

O diretor Helmut entrou na biblioteca como um vendaval e passou por eles sem notá-los, refugiando-se no pequeno escritório envidraçado.

Acho bom darmos o fora daqui — disse Marc enquanto levantava-se.

Em pouco tempo eles estavam no pátio, andando a esmo quando Chester lembrou-os de alguma coisa realmente importante.

Os próximos testes são na semana que vem e até agora não estudei o suficiente. O que acham de deixarmos de lado as investigações por enquanto? Após as provas a gente retoma de onde parou, pode até ser que surja alguma idéia nova que nos dê uma luz.

O que você acha, Marc? — quis saber Daniel, buscando um consenso.

Eu concordo, mas depois continuamos de onde paramos. Não podemos descartar o que conseguimos até agora.

A estratégia dos garotos era coerente. Eles não podiam se arriscar a ficar abaixo da média exigida se atirando num plano maluco e inconseqüente ou seriam repro­vados, e se isso acontecesse, era arrumar as malas e embarcar para casa.

Uma semana depois os testes foram realizados e os resultados saíram dias depois. As notas foram bastante satisfatórias e todos os residentes do quarto 21 conseguiram se manter acima da média exigida. Assim, o primeiro semestre estava se fechando com saldo favorável a eles.

Numa manhã de sol forte, Daniel foi acordado por um som familiar, um apito estridente que fez com que ele pulasse dentro das calças e se agachasse para procurar os sapatos debaixo da cama.

O Divina Providência III! - exclamou ele se vestindo em segundos.

Marc olhou no relógio: ainda faltavam trinta minutos para que o sino avisasse da hora de despertar, ao que ele falou com voz sonolenta.

Ainda é cedo, Daniel. Podemos dormir mais um pouco.

Pra mim chega de dormir, quero ver o navio antes da aula.

Não precisa se apressar amigo —"disse Rafael sem abrir os olhos. - Ele deve ficar atracado o dia todo.

Agitado e com a atenção voltada para o atracadouro, Daniel fez que não ouviu e deixou o quarto sem dizer mais nada.

O dia ainda estava clareando e Daniel ignorou que não havia nenhum moni­tor no corredor e nem no primeiro pavimento quando o atravessou rumo à saída. Somente quando passou pelo saguão é que se deu conta que estava sozinho e rela­tivamente próximo do corredor que se ligava à misteriosa sala lacrada. A entrada do corredor ficava meio escondida por uma curva em L que o saguão fazia e para se aproximar dela era necessário que Daniel atravessasse o enorme salão se distan­ciando da porta de saída. Quando esse pensamento passou pela sua cabeça, ele ouviu vozes se aproximando, o que o fez abandonar a idéia e deixar o prédio para não ser pego em atitude suspeita.

A brisa que vinha do mar era fresca e bastante agradável. Daniel viu de longe as manobras de atracação do navio e quando deu os primeiros passos em direção ao atracadouro, foi interceptado pelo diretor Helmut que havia acabado de sair do prédio, logo atrás dele.

O que está fazendo, rapaz?

Quero ver o Divina Providência III, eu adoro navios.

Assim como o seu pai. Os navios sempre foram a paixão dele. Por isso ele se tornou um homem do mar.

Sim, meu pai... Não o vejo há muito tempo - disse, saudoso.

John foi um aluno exemplar — disse Helmut sem deixar de fiscalizar de longe a movimentação próxima a embarcação. - Ele foi um aluno extremamente confiável.

A última sentença proferida pelo diretor acertou Daniel em cheio, pois uma coisa que o menino inglês não estava sendo era confiável. Buscava a todo custo se meter nos assuntos da escola que não lhe eram pertinentes: os segredos que nunca foram da sua conta e que Helmut conhecia muito bem. Astucioso e enganador, Daniel conspirava com seus colegas durante o dia e na calada da noite traindo a confiança da instituição que o acolheu.

Posso me aproximar do navio? - pediu, na esperança de rever o comandante Hugo.

Vá, mas não se demore. Não quero que se atrase para a aula.

Não vou demorar, senhor. Prometo.

Seguindo pelo caminho de pedras, Daniel atravessou a praia e pisou no atracadouro, se desviando dos homens que empilhavam as primeiras levas de supri­mento. Ele tentou avistar o comandante, mas viu que a ponte de comando da embarcação parecia estar vazia.

Volto mais tarde — pensou.

Quando ia retomar o caminho de volta ele ouviu uma voz vinda do alto.

Procurando alguém, jovem Crowley?

Daniel se virou e lá estava ele: o comandante Hugo debruçado sobre a amu­rada do convés.

Suba. Ainda tenho um pouco de chocolate quente.

Daniel não esperou um segundo convite e correu para a escada que levava ao convés do navio e os dois foram juntos até a cozinha.

Um cozinheiro gordo de pele negra e sorriso radiante que descarnava um enorme peixe que estava sendo preparado para o almoço, largou a faca de lâmina afiada sobre o balcão e limpou as mãos no avental para cumprimentar Daniel.

Esse é Ivan - disse o comandante. - O melhor cozinheiro que já subiu em um navio. Nunca erra a mão.

Não ligue pra ele - desdenhou o cozinheiro. - Sempre acha que a sua tripu­lação é a melhor dos sete mares. Nos mima como crianças.

O comandante e o garoto se alojaram no fundo da cozinha onde estava a bebida quente, motivo deles estarem ali. Ele encheu a caneca de Daniel e a sua, esperando o menino tomar o primeiro gole. Depois bebeu da própria caneca e indagou:

O que achou?

Está delicioso, comandante.

É muito bom começar o dia saboreando uma bebida quente, mesmo nesse clima tropical — disse Hugo, apreciando outro gole.

Segurando a caneca pela asa e sacudindo-a levemente para ver o conteúdo girar, Daniel relembrou:

Desde que conversamos naquela madrugada fiquei pensando o que o senhor quis dizer quando falou algo como viver com as lendas.

O comandante se surpreendeu com a abordagem de Daniel. Ele não fazia idéia que seu comentário fosse causar tanto impacto no menino.

Quer saber de uma coisa, rapaz? Eu sempre fui um sonhador... Quando eu ainda era bem pequeno, meu pai costumava embalar o meu sono contando histórias que faziam a minha mente viajar por terras encantadas e habitadas por seres fabulosos - disse levando as duas mãos para trás e apoiando-as na mesa que ficava o chocolate quente. - Quando cresci conservei essas histórias na memória e prometi a mim mesmo que iria percorrer o mundo a procura dos meus sonhos de infân­cia. Enfim eu me tornei um rapaz, aí comecei a achar que esse mundo mágico só existia na minha cabeça .— Voltando-se para a mesa ele fez uma pausa para encher novamente a sua caneca e a de Daniel com mais chocolate fumegante. — Os anos se passaram e hoje eu me arrependo de não ter acreditado mais nas histórias que meu pai me contava antes de dormir. Mas nunca é tarde, pois os nossos sonhos nunca morrem, eles vivem em algum lugar eternamente. Por isso, Daniel, eu disse que gostaria de viver com as lendas, pois só as lendas vivem para sempre.

A concentração do menino foi quebrada pelo longínquo toque do sino da escola.

Vá, Daniel Crowley, está na hora.

Daniel se despediu do comandante e de Ivan, o cozinheiro, e desceu do navio mais intrigado do que quando havia chegado. A imagem que Hugo criou na sua cabeça era um enigma e teria de ser decifrado. Os sonhos de Hugo eram muito parecidos com os do pequeno inglês, o que os uniu de alguma maneira. Ao ir para cama quando criança, Daniel ouvia histórias semelhantes contadas pelo seu pai, o oficial John Crowley. Daniel decidiu que Hugo, o velho marujo, mantinha um grande segredo que certamente tinha ligação com aquela estranha ilha.

A manhã daquele dia havia decorrido rapidamente devido ao excesso de atividades passadas pelos exigentes professores.

A tarde, os alunos foram informados sobre as cartas e encomendas trazidas pelo Divina Providência III e que estariam à disposição para serem retiradas nas caixas de correspondência que ficavam próximas à secretaria. Rafael havia recebido apenas um simples envelope de carta e se isolou em uma mesa no pátio para ler a correspondên­cia com cuidado, valorizando cada linha traçada. Algumas frases lidas voltavam à sua lembrança repetidas vezes: Nós te amamos; Vá em frente; Estamos orgulhosos de você. Era o estímulo que ele precisava para manter o seu empenho nos estudos.

As mãos de Daniel rasgaram cuidadosamente a lateral do envelope, e ele sentiu um nó na garganta ao ler uma mensagem escrita pelo seu pai: Senti muito não poder ter estado ao seu lado e de Meg quando partiram. Em outro trecho estava escrito: Cuide bem da sua irmã. Em breve nos veremos novamente. Estamos ansiosos, contando os dias que faltam.

Sentado na escada que levava aos dormitórios, Marc sorria e balançava a cabeça quando lia: Gostaríamos de tê-lo aqui conosco. O piano está em silêncio aguardando a sua volta. Mais adiante havia um recado: Continuam chovendo convites para suas apresentações. Muitos não sabem que você não está em Paris.

A carta que Chester recebeu dos seus tios não era muito diferente. Eles falavam da falta que estavam sentindo do sobrinho querido e davam notícias do seu cavalo, Coronel e da saborosa torta de maçã que a tia Mary havia acabado de preparar. Só de lembrar veio água na boca do menino texano que recordou como se deliciava sentado na varanda da casa, olhando a relva verdinha se espalhando até o horizonte.

Pouco tempo depois, os quatro amigos já se encontravam reunidos em torno de uma mesa ao ar livre e envolvidos numa conversa animada, entremeada de risadas e exclamações.

Uma menina de cabelos louros, carregando uma maleta verde com motivos florais, passou por eles de cabeça baixa e expressão abatida a caminho do atracadouro.

Lá vai mais uma desistente - comentou Marc, sentindo como se a garota fosse enfrentar um pelotão de fuzilamento.

Quantos mais não agüentarão a pressão e vão acabar desistindo? - refletiu Chester, especulando.

Espero que um dia eu não venha a fazer parte dessa lista — disse Rafael, olhando a menina se afastar.

Naquela tarde, outros dois alunos fizeram o mesmo caminho, aumentando as estatísticas de que pouco mais da metade dos que desembarcavam na Ilha da Coroa completavam os oito anos do curso.

 

Os dias em que os testes eram aplicados, se tornavam invariavelmente tensos. Rafael foi o primeiro a entregar a prova; estava bem preparado, o que o deixava mais seguro. Meia hora depois, o pesado teste havia terminado e dali para frente o jeito era aguardar as notas que sairiam em edital.

As semanas corriam e o quarteto acumulava boas notas que lhe garantiam a média suficiente para assegurar a permanência no segundo semestre.

O alvo de Margaret deixou de ser seu irmão. Ao menos temporariamente. O confronto passou a ser com Rafael, mas a tenacidade do menino era tão grande nos estudos que sobrepujá-lo passou a ser uma tarefa árdua. Embora o garoto ignorasse a disputa, pois, na verdade, a luta de Rafael era com os seus próprios medos.

Com o término do primeiro semestre, os alunos teriam o direito de aproveitar dez merecidos dias de férias. Esse tempo não era suficiente para os alunos viajarem para tão longe e reverem os seus familiares. A solução era permanecerem na ilha, descansando e aguardando o reinicio das atividades escolares.

Numa daquelas tardes em que não há muita coisa para se fazer, Marc, Daniel e Chester se envolveram numa conversa daquelas em que era prudente manterem segredo, e que o mais certo seria o de se enfiarem em seus aposentos para falarem com mais liberdade. Discutiam, pensavam, trocavam sugestões, porém, não chega­vam a um entendimento de como deveriam dar prosseguimento à bisbilhotagem que iniciaram há meses. Não sabiam que rumo seguir.

Deve haver um local exato, preciso, na Ilha, que seja responsável pelas alterações que deixam o mar em permanente perturbação - disse Chester, espreguiçando-se.

Pode ser que não haja um ponto exato como você diz — retrucou Marc. — Quem sabe a ilha toda ocasione isso.

Os três fizeram um breve silêncio buscando alternativas, quando Rafael deci­diu se intrometer.

Acho que o raciocínio de Marc pode estar certo. Se as águas revoltas formam uma circunferência perfeita, então deve existir um ponto central.

Todos olharam admirados para ele, pois há muito tempo Rafael evitava tocar no assunto, ainda mais sem ser chamado.

Mas como podemos identificar onde fica esse provável ponto central? - indagou Marc, aproveitando a solicitude de Rafael. - Mesmo a Ilha pode estar deslocada com relação ao centro da circunferência e esse ponto que você supõe pode até estar localizado no fundo do mar. Não temos como saber.

Não acredito nisso - retrucou Rafael. — Como vocês sabem, as ondas castigam a Ilha por todos os lados, atraídas violentamente por algo desconhecido. Portanto, o que provoca esse fenômeno pode muito bem estar em um ponto qualquer em terra.

Tem coerência o que você está defendendo - concordou Marc, abrindo um sorriso de satisfação.

A hipótese de Rafael começou a fervilhar nas mentes dos seus colegas que esperavam que ele tivesse mais coisas para dizer, o que aconteceu. Ele pegou um dos livros que estavam sobre a mesa e arrastou a sua cadeira se posicionando mais próximo dos companheiros. Em seguida, Rafael abriu a obra numa página previa­mente marcada por uma tira de papel e exibiu um desenho que os deixou atônitos. O desenho que eles viram era o de um círculo envolvendo os contornos da Ilha da Coroa e que representava o gigantesco anel de águas bravias. Rafael então conti­nuou com o seu raciocínio:

Caso a posição que a Ilha esteja com relação ao círculo estiver correta nesse desenho, e parece que está pelo que é informado no pé da página, podemos fácilmente determinar o centro da circunferência e finalmente vocês terão o que tanto procuram.

Sem perder tempo, Rafael entrou em ação colocando o livro aberto sobre a mesa, e fazendo uso de uma régua, traçou levemente com um lápis duas retas formando um grande X de borda a borda dentro do círculo, e por fim anunciou:

Aí está o meio da nossa circunferência!

Mesmo assim, ainda não podemos localizar com certeza que lugar é esse - observou Daniel, tocando com a ponta do dedo indicador no local marcado. - O desenho só mostra os contornos da Ilha da Coroa e não especifica os pormenores do terreno.

Mas podemos deduzir a localização com uma boa margem de precisão — garantiu Rafael, desdobrando uma folha de papel que havia guardado para aquela ocasião. - Elaborei detalhadamente um mapa da Ilha obedecendo as escalas utilizadas e cheguei a esse resultado.

Os olhos de Daniel, Chester e Marc se arregalaram. A marca que Rafael havia feito apontava exatamente para o centro do monte Cabeça do Rei.

Fascinante! Mas ainda me resta uma dúvida - ponderou Chester, exami­nando detidamente o mapa que Rafael havia construído. - Que credibilidade esse livro pode ter?

Isso você mesmo pode responder — disse Rafael, mostrando a capa e revelando o autor.

O livro era de autoria do professor Rajev Shekar, o físico indiano que dava aula para eles todas as semanas.

O professor Rajev vem estudando há vários anos os fenômenos que ocorrem por aqui e certamente ele deve saber de outras coisas que não constam nessa obra, que por sinal, foi publicada em 1929. Este livro é recente.

E por que razão ele forneceria pistas de uma coisa que ele mesmo teria interesse em ocultar? - questionou Daniel, não convencido dos argumentos de Rafael.

Porque até onde eu li não há pista nenhuma. Este é apenas mais um livro que discute o extraordinário comportamento do mar nesta região, procurando estabelecer uma relação com um possível desequilíbrio magnético - disse Rafael, passando a mão por sobre a capa do livro. — Acho que é mais uma satisfação à comunidade científica por parte dos cientistas que estão envolvidos nessa trama para desviarem a atenção de algo muito maior, daquilo que realmente escondem. O professor Rajev pode muito bem ser um deles.

Bastante pensativo, Daniel caminhou até a janela e passou um tempo em silêncio fitando a pequena montanha sendo obscurecida pelo lento cair da noite.

Então está lá! — disse como se estivesse enfeitiçado pelo misterioso monte.

Não se pode afirmar com certeza — disse Rafael com prudência. - Em todo caso, não há como se chegar até ela. A menos que vocês desejem ser expulsos.

Por que nos disse essas coisas? — perguntou Chester, sem compreender a paradoxal atitude do garoto. - Poderia ter guardado essas informações só pra você.

Não nego que também estou fascinado com as histórias que soubemos desde que desembarcamos. Por isso passei parte do tempo fazendo minhas próprias pesqui­sas, mas também tenho que admitir que estou inseguro e amedrontado - confessou, mordendo o lábio inferior. — Quanto a ter revelado à vocês o que descobri, acho que era o melhor a fazer - ele fez uma pausa, abaixando os olhos. - Estava me sentindo como um traidor entre vocês. É muito difícil ficar longe da família num lugar sem amigos.

Mas nunca deixamos de ser seus amigos - protestou Marc, tocando no ombro de Rafael. — Só estávamos divergindo em nossos pontos de vista. Continuamos a ser uma equipe, certo?

Buscando apoio no que dizia, Marc olhou para Chester e Daniel, e insistiu:

Certo?

Claro! Continuamos juntos nisso — respondeu Chester, apoiado por Daniel.

Aliviado pelo apoio dos companheiros, Rafael se sentiu como se tivesse tirado um enorme fardo dos ombros.

O quarteto passou o tempo que lhes restava, enquanto as luzes não fossem apagadas, para discutirem mais sobre as idéias que Rafael havia exposto.

Na manhã seguinte, logo após o desjejum, os meninos se encontraram com Margaret e a deixaram a par de tudo o que havia acontecido no dia anterior. Curiosa, ela quis saber.

E o que vocês vão fazer agora?

Não sabemos ainda — respondeu Daniel enquanto andavam a esmo pelo pátio procurando uma mesa bem afastada dos monitores. — Mas sinto que a cada dia estamos mais perto de resolvermos esse mistério.

Não deixem de me contar nada - recomendou Meg, preocupada em ser deixada de lado. - Começamos isso juntos e eu quero ir ato o fim.

Mas não foi isso que fizemos até agora? — questionou Daniel, indignado. - Você á a única que sabe de tudo além de nós quatro. Só não vá abrir o bico para as suas amigas, caso contrário, toda a escola vai ficar sabendo em pouco tempo.

Não se preocupem, sei muito bem guardar segredo e se alguém descobrir não vai ser pela minha boca.

Ótimo! Selamos assim um pacto de silêncio - completou Marc, pondo um fim nas diferenças.

 

                                   O Aluno Misterioso

Ainda restavam nove dias das curtas férias e os alunos procuravam preencher o tempo achando o que fazer. Muitos deles se enfiavam nas páginas dos livros para reativar a memória com fórmulas químicas e complicadas equações matemáticas.

Daniel e Meg iam freqüentemente à piscina para, além de se refrescarem, aprimorarem suas técnicas de nadadores, obviamente competindo entre si. Chester, por sua vez, passava mais horas com os eqüinos e usava as proximidades do estábulo para realizar suas cavalgadas sob o olhar reverente de Nestor, o velho tratador de cavalos que havia se afeiçoado ao menino. Entrincheirado na biblioteca, Rafael permanecia rodeado de livros e só parava de estudar quando percebia a presença do diretor às suas costas fiscalizando o que o garoto lia. Pela manhã Biologia; à tarde Química; no dia seguinte Física e Matemática. Assim era a sua rotina. As suas visi­tas àquele local se tornaram tão constantes que Rafael já conhecia de cor boa parte de cada seção da imensa biblioteca.

Do outro lado do grande prédio escolar, Marc decidiu ministrar suas aulas todas as tardes durante o período das curtíssimas férias. O contentamento do garoto francês se elevou quando ele recebeu instrumentos musicais novinhos trazidos do continente conforme havia prometido Ramón. A orquestra já havia ultrapassado os quarenta componentes e a sala de música tinha atingido a sua lotação limite.

Temos que nos mudar para uma sala maior — admitiu Ramón, porém satisfeito com o sucesso alcançado. — Provavelmente usaremos o auditório.

A acústica de lá é muito boa — comentou Marc com entusiasmo. - E com a chegada dos novos instrumentos temos condições de atender mais alunos ao mesmo tempo.

Ramón se despediu e antes de sair, voltou-se para Marc:

Ah, sim, o diretor virá aqui amanhã para ver como vocês estão evoluindo. Estou muito orgulhoso de você, garoto.

Obrigado, senhor - agradeceu, mostrando um sorriso no canto da boca.

Os ensaios continuaram por quase duas horas. Exigente em alcançar a perfeição.

Marc interrompia sempre que os seus ouvidos afiados percebiam alguma nota errada no meio de tantas outras. Ele notava qualquer imperfeição vinda de algum instrumento por menor que fosse.

Esperem um instante — dizia ele, parando mais uma vez a execução de uma música. — Um dos violinos está um pouco desafinado.

Ele pediu para que um a um, todos os seis violinistas tocassem até que pudesse localizar onde estava a falha.

Parece que está afinado agora - disse Marc, depois de ajustar as cravelhas e devolver o violino ao seu dono. Já podemos continuar.

Quando o sol começou a deitar-se sobre o horizonte, Marc deu por encerrada a aula daquele dia. A sala que há pouco estava tomada pela melodia conduzida pelo mestre francês, foi sendo subjugada pelo silêncio reinante.

Tão compenetrado que estava relendo uma partitura que não se deu conta de um dos alunos ainda estar no fundo da sala. O tal aluno era o mesmo que há algum tempo os observava de longe, na biblioteca, no pátio ou no refeitório. O enigmático garoto de olhos verdes e cabelos escuros encaracolados e cobrindo-se com um boné preto, aproximou-se de Marc que só notou a sua presença quando o menino se colocou bem à sua frente.

Olá, Marc, posso falar um pouco com você?

Sim, sente-se - disse, puxando uma banqueta e oferecendo-a ao visitante. - Meu nome é Bruno Cassini, eu estava apreciando o trabalho que você está rea­lizando — disse, tirando o boné e usando um dos joelhos para pendurá-lo. — Está excelente.

Com esse nome e esse sotaque você só pode ser italiano.

Acertou em cheio — confirmou Bruno, mostrando-se amigável. - Você vem fazendo uma verdadeira revolução musical nesse colégio. Todos estão comentando sobre como você é bom quando o assunto é a música, sem falar no magnífico resultado que conseguiu em tão pouco tempo montando a orquestra. Vou con­fessar uma coisa: gostaria de ter somente um pouco do seu dom e já me daria por satisfeito, mas não tenho muito jeito para a música. — Bruno fez uma pausa e logo retomou o discurso: — Mas você nasceu pra isso, nunca vi tocar tão bem, você parece tirar mais de cada instrumento do que ele pode oferecer. Definitivamente, estou diante de um gênio.

Você não veio aqui só pra me cobrir de elogios - disse Marc desconfiado, erguendo uma sobrancelha.

O rosto de Bruno se fechou numa expressão séria.

Você tem razão, Marc, não vim aqui pra isso, embora concorde que você é um grande músico - disse dando um grande suspiro preparando-se para revelar o motivo pelo qual ele estava ali naquela hora.

Permita apresentar-me melhor. Sou do segundo ano, portanto, estou nessa ilha desde o início do ano passado. De lá pra cá vi muitas coisas acontecerem de estranho, e desde então, procurei as respostas por conta própria, em conseqüência acabei fazendo descobertas que me deixaram cada vez mais curioso.

Marc ficou estático ao ouvir Bruno falar aquelas coisas, então se levantou.

Espere um pouco - disse indo ité a porta se certificar se ninguém estava escutando, ele retornou em seguida. - Continue, por favor.

Como eu estava dizendo, desde que cheguei tive a sensação de que algo não estava certo. A minha curiosidade crescia cada vez mais à medida que eu tropeçava em um novo mistério, e como você já deve ter percebido, um enigma leva à outro enigma que aponta para um terceiro, formando um grande quebra-cabeça.

Foi exatamente esse termo que eu e meus amigos havíamos usado para defi­nir esses fatos inexplicáveis: um enorme quebra-cabeça — disse Marc, ajeitando-se na banqueta e voltando mais uma vez a atenção para a porta.

Pois bem, a história é um pouco longa. Você deseja que eu prossiga?

Sim, quero saber de tudo!

Me parece óbvio que a chave do mistério está nas entranhas da floresta fechada e que ela foi introduzida ali para servir de barreira aos possíveis intrusos.

Marc concordou fazendo que sim com a cabeça e com os olhos estalados, quase sem piscar aguardou ansiosamente pelo que lhe seria relatado. Bruno continuou:

Quando cheguei aqui, comecei a fazer um monte de perguntas aos cole­gas, professores e funcionários. Perguntas que vieram comigo desde a Itália, mas reparei que todos se esquivavam toda vez que eu mencionava qualquer coisa que envolvesse a floresta ou o mar diabólico que rodeia a Ilha da Coroa. Isso não foi o suficiente para me intimidar, pelo contrário, só reforçou o meu ímpeto de ir mais fundo na questão. — Bruno parou de falar por um momento, passando a mão no rosto enquanto pensava e depois prosseguiu contando: - Cheguei a descobertas e conclusões interessantes, mas aí notei que os monitores, os professores e até o dire­tor Helmut sempre estavam a espreita, aguardando que eu desse qualquer motivo para me mandarem embora. Certa vez, fui chamado de surpresa à sala do diretor e tive que enfrentar uma prova oral com mais de cinqüenta questões de Química e depois de Física. Como acertei quase todas, eles não puderam fazer nada comigo, e quando questionei o por quê do teste surpresa, eles me disseram que era comum aquele procedimento com os alunos. Depois disso, eu andava pela escola pergun­tando aos colegas, inclusive aos das séries mais adiantadas que a minha, se eles haviam passado por situação semelhante, e adivinhe o que eles me diziam:

Nenhum deles fez algo parecido. Nada de provas orais ou coisas do tipo - deduziu Marc, acompanhando atentamente o raciocínio de Bruno.

Exatamente! Não só não haviam feito nenhum tipo de teste como jamais tinham ouvido falar deles. O diretor queria arrumar um pretexto para me colocar pra fora, mas quanto mais o cerco se fechava, melhores eram as minhas notas.

Mas você deve ter sido bastante inconveniente para eles te tratarem daquele jeito - observou Marc enquanto acondicionava um violino em seu estojo.

De fato eu era muito enxerido e pouco discreto, mas, de qualquer modo, aqueles acontecimentos só aumentaram as minhas suspeitas. Mas veja a que ponto chegou a pressão que eles fizeram contra mim: os meus colegas de quarto praticamente recusaram a minha companhia, falando comigo somente o essencial, até que um dia, fui comunicado pelo senhor Ramón que eu mudaria de quarto, assim, sem mais nem menos, e tive que tirar os meus pertences do meu antigo aposento no mesmo dia. Mas ainda não acabou - Bruno deu um sorriso irônico e prosseguiu narrando sua história: - Quando cheguei na minha nova moradia, que se locali­zava no fim do corredor do terceiro pavimento, constatei que ficaria sozinho, sem dividir o quarto com nenhum colega. Aí entendi que eles queriam mesmo era me isolar a todo custo.

E você não questionou por que estavam fazendo aquilo?

Num primeiro momento eu fiquei muito irritado com aquele abuso, mas depois esfriei a cabeça e pensei melhor. Por fim, eu já estava até achando bom, um quarto todinho só pra mim sem ninguém para me importunar - Bruno riu e depois parou o olhar no vazio. — Quando me ausentava do meu dormitório à noite para ir ao banheiro, dava de cara com um monitor me cuidando. Era o recado implícito deles pra mim: "Estamos de olho em você, garoto, náo cometa nenhum erro ou te mandamos pra casa". Se pensavam que eu cairia na armadilha deles, esta­vam totalmente enganados, pois ainda estou aqui e contando tudo pra você. Com o tempo eu deixei de dar motivos e eles foram esmorecendo até que me deixaram em paz. Mas eu sei que eles ainda seguem os meus passos de vez em quando.

E como você sabe que eu não vou sair daqui direto para a sala do diretor e te entregar pra ele?

Eu tenho certeza que não. Vocês e seus amigos são tão curiosos quanto eu - afirmou com segurança, encarando Marc. - Venho observando vocês há meses e duvido que isso aconteça. Além do mais, sei de coisas que vocês não sabem e se me entregarem para a diretoria, essas informações voltariam comigo para a Itália. Mas é melhor pararmos por aqui, já está escurecendo e logo vão dar falta de nós dois.

Continuamos amanhã? - perguntou Marc, compromissando o italiano.

Pode ser, mas sejam um pouco mais cuidadosos e não cometam os mesmos erros que eu. Vocês já estão começando a chamar a atenção.

Pode confiar, saberemos guardar segredo.

Bruno despediu-se e deixou a sala discretamente como havia entrado. Quando ficou sozinho, Marc permaneceu pensativo por alguns minutos tentando colocar as idéias em ordem.

Bruno disse que sabia de coisas que nós não sabemos - pensou ele.

 

Marc pegou a sua sacola e enfiou apressadamente algumas partituras, depois agarrou a sua flauta inseparável e se evadiu, cruzando os salões e corredores que já não apresentavam a mesma claridade da luz diurna; o interior da escola assumiu uma cor monótona cinza-azulada. Quando ele estava atingindo o topo da escada ouviu chamarem o seu nome.

Ei, Marc, espere!

Era o seu amigo Chester que começava a subir as escadas acompanhado de Daniel e Rafael.

Com um aceno de mão Marc sinalizou para subirem mais rápido os degraus.

Onde você estava? - perguntou Daniel franzindo a testa. - Estivemos agora a pouco na sala de música te procurando.

Acabei de sair de lá, acho que nos desencontramos pelo caminho. Preciso falar com vocês, já jantaram?

Ainda não - respondeu Rafael. — Mas temos que ir logo se quisermos comer. Está quase na hora de fecharem o refeitório.

Em questão de instantes os quatro parceiros já estavam se refestelando com um delicioso peixe servido com arroz e batatas coradas.

Marc resolveu aguardar o momento certo para falar, e o refeitório não era o local mais apropriado.

Já terminaram? — perguntou Marc, recebendo uma resposta afirmativa dos colegas. — Então vamos subir que eu tenho uma boa notícia que pode nos ajudar muito.

Dentro do quarto, Rafael fez um comentário dirigindo-se a Marc:

Você parece ansioso. O que houve?

E estou. Sentem-se, pois vocês vão gostar muito do que tenho pra falar.

Por isso você demorou tanto? — perguntou Chester, agarrando a cadeira mais próxima.

Isso mesmo.

Quando Marc viu que todos estavam acomodados, passou a relatar o seu encontro com Bruno. O brilho nos olhos dos meninos irradiava perplexidade enquanto Marc discorria de maneira eloqüente.

Ao terminar, Marc quis saber:

O que vocês acham?

Não podemos perder o contato com esse... Bruno — antecipou-se Chester, ávido por conseguir mais informações do garoto italiano.

Acertamos de nos encontrarmos amanhã à tarde. Ele disse que vai me contar tudo o que sabe.

Eu vou junto - prontificou-se Daniel, imaginando quantas perguntas poderia fazer.

Acho melhor eu ir sozinho - retrucou Marc. - Devemos evitar chamar a atenção. Quanto menos gente, mais seguro estaremos.

Não é que eu duvide de sua capacidade — disse Daniel sem querer ofender. — Mas essa pode ser a oportunidade que precisamos para avançarmos definitivamente nesse caso.

Eu concordo com você e entendo a sua apreensão - disse Marc, cauteloso, porém sem esconder a ansiedade. — Confiem em mim e amanhã à essa hora teremos tanto para conversar que atravessaremos a madrugada. Pelo menos assim espero.

Sem fazer nenhum comentário, Rafael passava quase despercebido roendo a unha do polegar direito. A sua omissão já era por demais conhecida, mas ao menos não interferiu nenhuma vez desaprovando os planos que estavam sendo arquitetados.

Como se estivessem preparando uma estratégia de guerrilha, Chester e Daniel sugeriam várias perguntas que Marc deveria fazer, e na possibilidade de certas res­postas, emendavam outras em seguida averiguando as muitas alternativas que por ventura surgissem.

Um momento de lucidez se apossou de Chester, que prontamente alertou:

Um momento, pessoal. Temos que ir com calma, pois se dermos um passo em falso, corremos o risco enorme que nos colocará na mesma situação do italiano. Há aposentos vazios nesse prédio suficientes para nos separarem, e se assim acontecer, as coisas ficarão bem mais difíceis pra nós.

Rafael não se manifestou e se limitou a continuar roendo as unhas. Espiava a conversa como um esquilo curioso de cima de uma árvore.

 

O alvorecer de mais um dia de férias havia chegado. Caía uma chuva fininha, daquelas que não dão nenhum sinal de quando irão parar. Da janela era possível ver os riscos das gotículas que se precipitavam impulsionadas pelo vento que as jogava ora para um lado, ora para outro. O clima se tornou agradável e se manteve assim o dia todo. Um frescor incomum para os padrões das baixas latitudes equa­toriais. O cheiro de terra e mato molhados se espalhou pelo ar.

Sete horas, rapazes - disse Chester enxergando os ponteiros do relógio com dificuldade devido à vista embaçada pela longa noite de sono. - Hora de levantar!

Marc só virou de lado e continuou dormindo.

Pulando da cama e fazendo um baque no chão com os pés descalços, Chester foi até a janela e vislumbrou a selva parcialmente tomada por uma neblina branca que perpassava pelas copas das árvores orvalhadas. Acima da ilha e se estendendo por todos os lados, dominava um gigantesco teto de nuvens escuras que quase tocavam o topo do monte Cabeça do Rei. Desviando o olhar para baixo, Chester viu a figura do incansável professor Roger, correndo como de hábito e ignorando os chuviscos que lhe umedeciam a roupa e os cabelos.

Um prolongado bocejo dado por Rafael quebrou novamente o silêncio da manhã chuvosa. Ele olhou para fora e não se sentiu muito animado em levantar da cama; vol­tou o olhar para a mesa no fundo do quarto e viu a pilha de livros que se acumulava, resultado dos estudos do dia anterior.

Há muito pra estudar hoje - resmungou em voz baixa.

O dia prometia muita agitação para Marc. Seus dedicados alunos, regidos pela sua batuta, fariam uma apresentação especial para o diretor e logo em seguida o jovem maestro estaria prestes a realizar o tão esperado encontro com Bruno, o italiano.

A chuva miúda impediu que os alunos utilizassem o pátio deixando o lado externo da ilha praticamente vazio. Somente uns poucos monitores rondavam os limites da floresta úmida, protegidos por longas capas de chuva negras.

Chester preferiu passar o dia em companhia de Nestor. Era um excelente dia para conversar com o velho tratador que tinha a mesma paixão que ele. Os encantadores cavalos.

Você nunca me disse como veio parar aqui — observou Chester, enquanto pendurava algumas ferraduras em um suporte na parede do estábulo.

Eu estudei nessa escola há muitos anos — disse Nestor, alisando a barba branca que chegava a altura do peito. — Com o tempo fui perdendo o contato com a minha família que se resumia a um irmão mais velho e uma tia solteirona que vivia sempre de mau humor.

Chester não ousou perguntar o que tinha acontecido com seus pais. Nestor não parou de falar.

Meu irmão entrou para o Exército e nunca mais tive notícias dele. Já a minha tia, bem, eu soube anos depois que ela tinha morrido de tuberculose. Daí em diante eu resolvi que o meu lugar era nessa ilha. Acho que o antigo diretor ficou com pena de mim e fui ficando. O resto você já sabe, eu comecei a cuidar dos cavalos e estou aqui até hoje.

O que há nessa ilha que a torna tão estranha? - perguntou Chester, acredi­tando que poderia arrancar mais do velho.

Todos aqui são estranhos, eu também me tornei assim com o passar do tempo. Estamos isolados do mundo. Olhe à sua volta... Não há ruas rodeadas de lojas com vitrines elegantes, nem praças para se passear aos domingos com a famí­lia; não existem cafés para sentarmos ao final da tarde e conversarmos despreocupadamente com os amigos após um dia estafante de trabalho. É só céu e mar - Nestor olhou profundamente nos olhos de Chester e declarou: - Mas é o melhor lugar do mundo, rapaz, quem sabe um dia você entenda o que estou falando? - Nestor voltou a olhar a chuva fina que caía lá fora e se calou.

 

Júlio seguia rapidamente para fazer um reparo de emergência em um cano de cobre que abastecia de água a cozinha do enorme refeitório. Daniel o acompanhava e recebia as últimas instruções antes de iniciar os trabalhos hidráulicos.

Calce estas galochas, vamos descer no porão da escola, o vazamento já deve ter alagado tudo lá embaixo.

Eles levavam um lampião cada um, pois o subterrâneo não possuía luz elétrica e nem janelas, o ar era úmido e abafado, e ao chegarem ao fundo do porão inundado, Daniel teve uma surpresa. A água que havia vazado do cano furado formava marolas se chocando constantemente contra a parede. O menino refletiu sobre a posição em que se encontravam e deduziu logo que a água sofria um movimento de atração que parecia vir da floresta. Algo muito parecido com as ondas fortes que se arremessavam violentamente contra a ilha.

O que está acontecendo aqui? — perguntou Daniel, tocando com as pontas dos dedos as pequenas ondas que se formavam aos seus pés.

Ah... Essa água maluca? Sempre acontece isso aqui embaixo. Você se acos­tuma logo.

Daniel pegou uma caneca de latão que costumava usar para matar a sede e pôs um pouco da água que não parava de se agitar; a água confinada na caneca se chocava com as bordas do recipiente lembrando novamente as ondas arrebentando contra os imponentes rochedos pontiagudos que contornavam a ilha.

Beba um pouco dessa água - disse Júlio, incentivando com a mão. - Vamos, não tenha medo. É limpa.

Daniel olhou hesitante para Júlio e depois para dentro da caneca. Em seguida, ainda inseguro, tomou um gole.

Então, o que está sentindo? — perguntou Júlio, erguendo as sobrancelhas e exibindo um sorriso maroto.

É estranho. Sinto como se a água estivesse viva... É meio desconfortável.

Isso logo vai passar - tranquilizou-o Júlio, dando um tapinha com as costas da mão na barriga de Daniel. - Uma vez o professor Rajev me disse que a água só se comporta dessa maneira quando não há uma grande quantidade de elementos orgânicos misturados à ela. Quando a água for absorvida pelo seu organismo você não sentirá mais nada — explicou pegando uma chave de grifo. — Observe o mar em volta da ilha. Ele não apresenta esse mesmo percentual de substâncias orgânicas, por isso continua se movendo ininterruptamente. Bem, pelo menos foi assim que o professor Rajev me ensinou.

Mas por que isso está acontecendo aqui embaixo? — pensou ele enquanto olhava Júlio lutando para conter o vazamento que insistia em não parar. - Por que a água não se comporta dessa maneira lá em cima, nas torneiras e chuveiros? — continuou o seu raciocínio silencioso sem chegar a qualquer conclusão.

Então ele teve uma idéia: segurando com uma das mãos a caneca com água, ele começou a subir lentamente a escada e constatou o que havia imaginado. A água do recipiente de repente ficou inerte. Daniel voltou a trazer a caneca para um nível mais baixo e novamente o líquido voltou a sacudir freneticamente como antes. Ele repetiu a operação outras vezes e obteve o mesmo resultado.

O que provoca esse fenômeno deve estar abaixo do nível do solo — cogitou ele num sussurro.

O que disse? — perguntou Júlio, terminando de consertar o vazamento e com a água na altura das canelas.

Nada... Só pensei alto.

Vamos ter que bombear toda essa água. Se demorássemos mais um pouco teríamos uma piscina para refrescar os ratos - brincou Júlio enquanto recolhia as ferramentas e se preparava para subir de volta.

A empreitada só foi concluída quando uma bomba manual sugou toda a água do porão. Júlio desabafou.

Essas construções são antigas e a maresia corrói tudo o que aparece pela frente. Se não fizermos manutenção permanente teremos sérios problemas. Vamos, Daniel, depois do almoço teremos mais trabalho a fazer.

Os alunos já começavam a chegar. Marc, nitidamente nervoso, acompanhava a afinação de cada instrumento e também passava algumas instruções antes da apresentação que estava para acontecer. O posicionamento de cada músico na orquestra era imprescindível para se atingir a melhor sonoridade.

Isso não é um ensaio, portanto não podemos errar — avisou Marc, se diri­gindo a todos em voz alta, recomendando empenho.

A porta se abriu e Helmut entrou a passos lentos percorrendo com olhos altivos os alunos preparados como soldados, cada um em sua posição, ostentando os seus respectivos instrumentos. Atrás dele vinha Ramón e o seu olhar cruzou momentaneamente com o de Marc. A aparente frieza de Helmut deixou o pequeno maestro ainda mais apreensivo. O diretor se sentou em uma cadeira reservada para ele bem em frente a jovem orquestra e entrelaçou os dedos sobre o colo sem profe­rir palavra. Com um gesto discreto Ramón sugeriu que Marc iniciasse a apresenta­ção. Com movimentos de mãos firmes e precisos, o jovem maestro conduziu cada nota tocada com rara beleza, principalmente se levada em conta a inexperiência do grupo. Apenas dez minutos de audição foram suficientes para que Helmut tirasse as suas conclusões sobre o que acabara de ouvir. Quando se encerrou a breve sin­fonia a sala experimentou um silêncio sufocante provocado pela expressão indife­rente do sisudo diretor. Ele olhou para Marc e revelou um sorriso de aprovação.

Muito bom. Estão todos de parabéns! — disse ele, levantando-se.

A manifestação de alegria se apoderou dos alunos que se cumprimentavam mutuamente. Marc suspirou aliviado.

Quero pedir um favor a você e sua orquestra, rapaz, prepare um excelente conserto por esses dias — disse Helmut. — Estaremos recebendo algumas autorida­des internacionais daqui a três semanas e pretendo recepcioná-los em grande estilo.

A sensação do dever cumprido se apossou de Marc contagiando todos os elementos da orquestra. Eles estavam ficando importantes.

Alguns minutos depois, Marc tratou de se livrar dos alunos para aguardar sozinho a visita do italiano.

Cinco, dez, quinze minutos e nada.

Será que ele desistiu? - pensou ele, aflito.

Marc notou a maçaneta da porta girando. Só podia ser Bruno àquela hora da tarde. Bruno seria repreendido pelo atraso. Náo, isso seria um erro que poderia afastar definitivamente o valioso informante. Para a decepção do garoto francês, quem surgiu por detrás da porta foi Daniel.

O que você está fazendo aqui? - perguntou Daniel, deixando transparecer a sua irritação. — Não havíamos combinado que eu faria isso sozinho?

Eu sei, mas achei que juntos conseguiríamos extrair mais informações - justificou-se Daniel, a porta fechando-se atrás dele.

Essa sua atitude pode pôr tudo a perder — disse Marc, pegando Daniel pelo braço e afastando-o da entrada da sala.

Ele não está atrasado? — perguntou Daniel, olhando para um grande relógio na parede, nem um pouco preocupado com a bronca que acabara de levar.

Acho que sim. Talvez tenha se arrependido e acabou desistindo.

A maçaneta girou novamente e dessa vez quem apareceu foi Bruno.

Finalmente! - exclamou Marc, aliviado.

Só estão vocês dois aí? — disse o italiano, vasculhando a sala com um olhar meticuloso. - Pensei que viessem todos.

-Viu só? - disse Daniel, com um sorriso convencido. - Ele esperava que todos nós estivéssemos reunidos.

Isso não é uma conferência — advertiu Marc. — Se Ramón aparecer não teremos como explicar a presença de Bruno.

Está bem, concordo, mas já que estou aqui vou ficar — disse Daniel, procurando encerrar a contenda.

Sente-se, Bruno, não vamos perder mais tempo — disse Marc, impaciente. — Você me disse ontem que tinha coisas interessantes para revelar. Pois bem, estamos aqui.

Bruno inclinou-se para frente e então iniciou.

Vou começar pela biblioteca. Vocês vivem indo lá, mas acho que ainda não perceberam uma coisa.

Do que você está falando? O que há na biblioteca? — perguntou Daniel, depois voltando o olhar para Marc que deu de ombros sem entender.

Estou falando de um livro que está bem guardado em um armário na saleta envidraçada de Helmut.

O que tem esse livro? - quis saber Marc, girando sua batuta nervosamente entre os dedos.

Eu também não sei ao certo, mas desconfio que ele pode ser a chave de todos os segredos que procuramos desvendar.

Mas o que o leva a pensar que esse tal livro pode nos trazer algo importante? - perguntou Daniel atento a cada palavra de Bruno.

Eu explico. Desde o início do ano passado eu ia a biblioteca com bastante freqüência. Havia dias em que eu passava a tarde toda entre as estantes, maravilhado com tantos livros de meu interesse. A conseqüência disso eram as minhas notas. Excelentes. Comecei então a reparar através do vidro que o Sr. Helmut lia e relia o mesmo livro todos os dias, fechado em sua sala e, ao final, após ler algumas páginas, o trancava à chave em um armário atrás de sua mesa.

E o que tem isso demais? — adiantou-se Daniel, interferindo no relato do italiano. Marc o olhou com ar de censura pela sua interrupção.

Vocês já vão saber — disse Bruno, prosseguindo. - Um dia me apresentei como voluntário para trabalhar na biblioteca e fui logo aceito por estar tão familiarizado com o seu funcionamento. Naquela época não havia nenhuma suspeita sobre mim e eu era visto como qualquer aluno. Eu passava horas lá dentro reco­locando nas estantes os livros deixados nas mesas pelos outros estudantes. Acabei descobrindo obras de valor inestimável que usei para aperfeiçoar ainda mais o meu desenvolvimento acadêmico. — Bruno fez uma pausa e tirou o seu boné preto para jogar o cabelo para trás e depois recolocou o boné. — Numa tarde, logo após o almoço quando a biblioteca estava praticamente deserta, aproveitei para percorrer as mesas recolhendo os livros e reorganizá-los. Notei que Helmut tinha ido para o interior da biblioteca, entre o labirinto de estantes, talvez para procurar algum livro. Sua sala estava aberta e o enigmático livro inesperadamente jogado sobre a mesa. Aquilo foi demais pra mim. Num ímpeto entrei na sala e peguei-o jun­tando com outros que já havia recolhido. Olhei em volta e, não vendo ninguém, não resisti e passei a folheá-lo rapidamente, a impressão que tive naqueles poucos segundos que o segurei nas mãos era de que se tratava de um diário, um relato de uma viagem. Todas as páginas que pude examinar naquele curto espaço de tempo eram manuscritas, e não impressas com letras de máquina como eu havia imagi­nado. Não tinha nada escrito em sua capa de couro preta, não havia título e nem o nome do seu autor.

E o diretor? — perguntou Daniel, quase sem respirar.

Aí é que vem a pior parte. Ele me viu examinando o livro e explodiu aos berros: "Solte esse livro! Quem autorizou você a entrar na minha sala e pegar algo sem minha permissão?". Nunca tinha visto aquele homem tão irritado. Tentei explicar que só estava guardando os livros do acervo que foram utilizados e pensei que aquele era um deles. Duvido que ele tenha acreditado em mim, tendo em vista a violência com que o arrancou da minha mão. A partir daquele momento começa­ram os meus problemas.

Mas pode ser que o motivo que ele queira esconder o conteúdo do tal livro seja outro que não esses segredos que investigamos - ponderou Marc, apontando outra possibilidade. - Você foi mesmo ousado entrando na sala dele sem ser convi­dado e talvez somente isso pode ter despertado a ira dele.

Eu também pensava assim a princípio, mas li uma frase na primeira página que me fez mudar de idéia — argumentou Bruno, franzindo a testa. - Me lembro exatamente de cada palavra: "O que aqui está escrito legitima a razão de nossa Ordem secular. Todos os seus membros deverão tomar conhecimento da grande jornada".

E o que essa frase quer dizer? - perguntou Daniel, agora profundamente intrigado.

Passei muitas noites solitárias tentando dar um sentido lógico a ela — disse Bruno, esfregando os olhos. — Imagino que alguém fez uma viagem muito longa e retornou para contar.

E essa viagem se tornou fundamental para a existência de uma sociedade secreta, pelo que entendi — disse Marc, estalando os dedos como se desvendasse uma charada. — Mas quem teria feito uma viagem assim?

Eu também acho que sei essa resposta — revelou Bruno, mostrando um astuto sorriso. — Vocês já notaram um retrato na biblioteca de um homem usando um tapa-olho?

Claro! - confirmou Daniel. - Quem não notaria o retrato na parede atrás do balcão onde atende a Sra. Maria, a bibliotecária?

Pois bem - prosseguiu Bruno. — O homem do retrato foi o diretor dessa escola antes do Sr. Helmut. Ele se chamava Alexei Martov, o russo que contribuiu muito para o desenvolvimento do ensino, ampliando as dependências da biblioteca e adquirindo milhares de obras que enriqueceram o seu acervo. A frase que eu li sobre "a grande jornada" é atribuída a ele. Tenho quase certeza que foi Alexei quem fez essa suposta viagem. Quem me contou foi um aluno que se formou no ano passado, ele chegou a conhecer Alexei e me disse que ele sumiu de repente e só veio a reaparecer quase um ano mais tarde. Esse aluno também me contou algo que pode ter alguma relevância: antes de sumir, o antigo diretor não usava tapa-olho, seus dois olhos eram saudáveis. Ele acabou falecendo em 1929, se tornando uma lenda por aqui.

Mas você não tem certeza absoluta que foi ele quem fez a suposta viagem e sequer foi o autor do livro - contestou Marc.

Isso mesmo, e só conheço um jeito de tirarmos essa dúvida: pegando o livro e conhecendo e seu conteúdo! — propôs Bruno, a idéia absurda.

Daniel e Marc se entreolharam e voltaram-se para o italiano.

Não olhem pra mim, não sei como fazer isso e além do mais todos os meus passos são controlados — esquivou-se Bruno de qualquer responsabilidade.

Você conhece alguma maneira de entrar na floresta sem ser notado? - per­guntou Daniel, dirigindo-se a Bruno.

Não. Aquela floresta é constantemente vigiada pelos monitores e o professor Roger está sempre circulando pelas redondezas, mas tudo o que acontece de esqui­sito nessa ilha aponta pra lá.

O que você sabe sobre o professor Roger? Por que ele é tão fechado? - perguntou Marc, cruzando os braços.

Nem sempre ele foi assim, sisudo. Aconteceu no ano passado - Bruno suspi­rou profundamente se preparando para contar a triste história: - Quem lecionava Biologia para nós era a professora Helen Drosópoulos, uma inglesa de origem grega muito competente; suas aulas eram sempre divertidas, tal era a sua alegria em ensi­nar, o que combinava muito bem com a sua beleza. Ela era lindíssima. O professor Roger e ela já estavam casados quando eu cheguei aqui. Eles moravam em uma simpática casa na vila que fica no fundo da escola e, fora do horário das aulas os dois sempre eram vistos juntos, abraçados. A felicidade dos dois aumentou ainda mais quando eles souberam que estavam esperando um bebê. Mas um dia algo começou a dar errado. Estávamos tendo aula com a professora Helen e de repente ela desmaiou na nossa frente, foi uma correria para acudi-la; ela foi rapidamente levada até a enfermaria e logo se recuperou. Deduziram que o repentino desmaio era relacionado à gravidez. No dia seguinte lá estava a nossa linda professora nos falando animadamente sobre coleópteros, xerófilas ou gimnospermas - a expres­são de Bruno ficou sombria. - Com o passar do tempo os desmaios se repetiram tornando-se cada vez mais freqüentes; o professor Mitsuro foi chamado para subs­tituir temporariamente a nossa querida professora Helen, que acabou se afastando definitivamente das aulas. Pensaram em levá-la até um hospital no continente, mas ela resistiu dizendo que era tudo um mal-estar passageiro. A vida do professor Roger se transformou num pesadelo; soubemos que ele passava o dia todo ao lado do leito da professora que já não reconhecia mais ninguém que entrasse no quarto. Disseram que ela devia estar com algum tipo de tumor no cérebro quando não mais resistiu e veio a falecer. As aulas foram suspensas e todos os alunos e funcionários comparece­ram ao enterro, tal era a admiração que ela despertava em todo mundo. O professor Roger chorava igual a uma criança, debruçado sobre o caixão, e depois daquele dia nunca mais eu o vi expressar um sorriso. Até hoje ele vai diariamente ao cemitério visitar o túmulo da professora e pelo que sei, ele não se conforma com a morte dela e do seu primeiro filho.

Onde fica o cemitério? - perguntou Daniel, totalmente entretido.

Dentro da floresta. Chega-se nele através de uma trilha após a curva da pista de corrida.

Então era lá que ele ia quando estava anoitecendo... - Compreendeu final­mente Marc. - O que você viu quando esteve naquele cemitério?

-Túmulos, lápides... Nada que me chamasse à atenção. Não é um cemitério muito grande, acho que é porque a maioria dos que morrem na ilha é levada para ser enterrada perto da família. Ah... já ia me esquecendo, Alexei, o antigo diretor, também está enterrado lá.

Naquele momento os três assistiram perplexos a maçaneta novamente se mexendo. Se fossem descobertos, eles se encontrariam numa enorme encrenca.

Para surpresa e alívio, era Margaret que, curiosa, estava à procura do-irmão.

O que vocês estão fazendo aí? — perguntou ela.

Você é que tem que responder o que está fazendo aqui — disse Daniel, bas­tante irritado. — Ninguém convidou você pra vir aqui. Quer nos matar de susto?

Você também não foi convidado, Daniel — sussurrou Marc, entre os dentes.

Isso é outra coisa, sou bem mais discreto que ela — respondeu Daniel, devolvendo a provocação com uma resposta ardida.

É melhor fechar logo a porta, Meg — aconselhou Marc. — Ou vai acabar denunciando a nossa presença.

Quem é ele? — perguntou Margaret, se referindo ao italiano.

Meu nome é Bruno - apresentou-se estendendo a mão. - E você é a irmã de Daniel. Só faltam Chester e Rafael para completar o grupo.

Você nos conhece? - perguntou Margaret com cara de espanto.

Há um bom tempo. Depois eles te explicam o que estou fazendo por aqui. Bem, tenho que ir agora, outra hora conversaremos com mais calma.

Esperaremos você ganhar uma boa distância e depois sairemos - disse Marc, cauteloso.

Mal Bruno saiu, Margaret começou a tagarelar.

Daniel Crowley, quero que você me diga direitinho o que está acontecendo.

-Tá...Tá bom. Eu te explico amanhã.

Alguns minutos se passaram.

Acho que já podemos ir embora — disse Marc, pegando suas coisas. — Rafael e Chester devem estar ansiosos para tomar conhecimento do que aconteceu.

Eu também quero saber o que vocês estão tramando — persistiu Margaret, para que contassem logo sobre o acorrido.

Vou te contar tudo só amanhã - disse Daniel, olhando para os lados, preo­cupado se alguém estivesse por perto. - Tenha um pouco de paciência ou vai acabar estragando tudo.

O céu já estava trocando a tonalidade alaranjada de final de tarde pelo cinza- azulado do crepúsculo. As primeiras estrelas já apontavam timidamente no leste surgindo em brechas deixadas pelas nuvens.

Mal Daniel e Marc chegaram aos seus aposentos e colocaram os companheiros de quarto a par das novidades. Chester ouvia atentamente as minúcias das revelações que Bruno havia feito, mesmo Rafael que não gostava de se envolver muito se mostrou concentrado enquanto seus colegas falavam.

Portanto, naquele livro podem estar as respostas que procuramos - conjeturou Chester, tentando imaginar o que estaria ali contido.

Amigos, precisamos conhecer o seu conteúdo — proclamou Daniel com voz firme. Rafael que estava bem à sua frente estremeceu, mas continuou mudo.

Um profundo silêncio se abateu sobre o grupo enquanto eles pensavam no que fazer mediante às circunstâncias que se apresentavam.

Vocês são tão inteligentes e não têm nenhuma idéia? — Daniel incitou uma reação dos colegas.

E você, senhor esperto, por que não sugere algum plano? — disse Marc, desafiando a astúcia do companheiro inglês.

Eu tenho um — disse Daniel, arqueando uma sobrancelha. - Para chegar ao livro, precisamos de alguém que tenha habilidade em abrir fechaduras.Vocês conhecem alguém? - Todos voltaram os olhos para Rafael.

Vocês enlouqueceram?! - disse Rafael, rechaçando a insensata proposta de Daniel. - Eu não vou fazer isso! E suicídio!

Espere um pouco, me deixe esclarecer melhor - disse Daniel, empenhando-se em tranqüilizar o colega. - Você já vai entender o que eu quero dizer.

Eu não quero saber, não contem comigo - disse Rafael, irredutível.

Deixe ao menos ele expor a sua idéia - argumentou Chester, procurando equilibrar os ânimos. — Você não é obrigado a fazer nada se não quiser.

Tudo bem, eu vou ouvir, mas não esperem que eu aceite tomar parte nisso e acabar tendo o meu futuro prejudicado por causa de um ato insano — alertou Rafael, inflexível.

A minha proposta é muito simples - disse Daniel, inclinando-se para frente, querendo se fazer entender claramente. — Quando estivemos na secretaria em busca de um trabalho voluntário, lembro-me de ter lido sobre uma vaga na biblioteca e pelo visto aquela vaga ainda náo foi preenchida, pois não me recordo de nenhum aluno trabalhando naquele departamento.

- E daí? — perguntou Rafael com semblante carrancudo.

- Vocês já vão entender — disse Daniel sem se apressar. — Você só tem que estar lá e esperar uma oportunidade de pegar o livro e verificar do que se trata, Rafael. Conquiste a confiança da Sra. Maria e do diretor, e aí quando eles não estiverem por perto, você abre aquele armário e dá uma boa olhada no que está escrito e então é só colocá-lo de volta no lugar.

Não é tão fácil assim — intercedeu Chester. - A sala parece estar sempre trancada quando o professor não está lá. Além disso, ainda tem a bibliotecária que não se ausenta sem a presença de Helmut.

Em algum momento a biblioteca vai ficar vazia e Rafael só precisa estar atento a uma ocasião favorável. Não precisa ser hoje ou amanhã, mas eu tenho certeza que o momento vai acontecer e aí ele ataca - disse Daniel, com enorme entusiasmo nos olhos.

Eu acho a idéia razoável — ponderou Marc, avaliando o perigo em que o amigo pudesse se expor. — E também você estará mais perto dos livros e terá mais tempo para estudar.

Rafael achou a observação de Marc interessante, mas mesmo assim ainda preferiu não se manifestar. Marc continuou serenamente.

Você pode tentar ficar até mais tarde, simulando a realização de alguma tarefa inadiável, mas lembre-se, pra isso precisa conquistar a confiança deles.

Eles não me deixariam ficar sozinho na biblioteca — retrucou Rafael, defendendo-se do massacre. — E eu acho que não teria coragem de abrir uma sala, um armário e ainda ler um livro, sabendo que poderia ser flagrado a qualquer momento.

Então traga-o escondido para o nosso quarto — sugeriu Daniel, abrindo os braços. — Aí poderemos todos ler com calma e você o devolve pela manhã.

Vocês ficaram loucos mesmo — sentenciou Rafael, balançando a cabeça de um lado para o outro. - Se o Sr. Helmut resolvesse, nesse meio tempo, pegar o tal livro, vocês acham que ele iria desconfiar de quem? E ainda que isso não viesse a acontecer, eu teria de devolvê-lo no outro dia antes do início do expediente. Eu acabaria sendo pego.

Nada disso precisa acontecer se você não quiser - disse Chester, com voz calma. - Mas pelo menos pense no assunto e depois você decide.

Rafael permaneceu com os olhos parados, imerso em pensamentos e hesitações.

A propósito... - disse Daniel, mudando de assunto. - Aconteceu algo que me chamou a atenção quando consertávamos um cano furado no porão do prédio — ele contou sobre o surpreendente comportamento da água subterrânea, adicionando mais aquele dado ao mosaico de coisas estranhas que povoavam a Ilha da Coroa.

Rafael levantou em silêncio e foi mais uma vez consultar o livro do professor Rajev, procurando no índice algo de seu interesse.

Esse fenômeno que você acabou de descrever, está mencionado com termos bastante técnicos em um capítulo que fala sobre "As influências centrípetas seletivas sobre os corpos líquidos". O professor explica que o foco emissor irradia suas ondas de influência para, no caso, a água, alterando o seu comportamento em uma linha bem delimitada, que se ultrapassada, se torna inoperante. - Rafael era assim, náo gostava de se envolver, mas adorava mostrar que tinha conhecimento sobre os fatos.

Em outras palavras - continuou Chester, tentando esclarecer. — A força que está agindo sobre a água irradia seu poder para os lados e o que estiver acima da sua posição não sofre seu efeito. Portanto, o objeto que procuramos deve estar em um nível um pouco abaixo da superfície da ilha. E conforme Daniel nos contou, tudo aponta para a floresta.

A chuva que caíra o dia todo resolveu dar uma trégua. Marc aproximou-se da janela e viu uma cena bastante familiar: o professor Roger corria pela pista espirrando a água que havia se acumulado em poças espalhadas pelo terreno. Ele já havia se exercitado por um bom tempo e aos poucos foi reduzindo as passadas até finalmente parar, aí inclinou-se para frente apoiando as mãos nos joelhos, e enquanto retomava o fôlego, olhava o seu próprio reflexo na pista molhada. Após um breve momento de descanso, o professor deu meia volta e caminhou para a entrada na floresta como fazia habitualmente. Marc logo o perdeu de vista quando ele penetrou na mata.

Agora as coisas estão começando a fazer sentido - murmurou Marc, se refe­rindo ao que Bruno havia lhe contado sobre Roger naquela tarde.

A trilha estava ficando escura dificultando a visão; os passos de Roger produziam um som peculiar nas folhas molhadas que se acumulavam pelo chão. Con­forme avançava, um pesar se abatia sobre ele, era impossível não lembrar daqueles dias fatídicos que antecederam a morte de sua adorada esposa. Finalmente ele atra­vessou um velho portão de ferro e estacou diante de uma lápide, o local onde havia sido sepultada a sua amada Helen. O único som que ele podia ouvir era o vento que perpassava as folhagens produzindo um uivo triste como se fosse seu próprio lamento. Roger permaneceu ali por alguns instantes diante da pedra que trazia a inscrição:

MEU AMOR, O PASSADO NOS APROXIMOU, O PRESENTE NOS SEPARA, MAS O FUTURO NOS UNIRÁ ETERNAMENTE - HELEN DROSÓPOULOS - ☼ 1906 † 1932.

Depois de contemplar em silêncio, ele puxou uma medalha feita de um metal dourado que ficava presa a uma corrente de ouro atada ao seu pescoço; a medalha possuía uma tonalidade de brilho amarelo metálico se intensificava no escuro se tornando quase fosforescente. Ele passou a usá-la a pedido de Helen no seu leito de morte e prometeu a ela que nunca passaria um dia sequer sem portar a bela joia. Anos atrás, no tempo em que ainda eram namorados, os dois estavam sentados na areia da praia sob uma linda noite estrelada, quando ela lhe contou que aquele pingente que trazia gravado o desenho de uma flor exótica, era uma herança de família tão antiga que ninguém sabia informar a sua origem e o seu significado. Roger o apertou na mão direita como se aquele ato trouxesse um pouco da sua querida Helen de volta, depois o colocou por sob a camisa e por fim deixou o cemitério. Já era noite.

 

                                       A Distração de Daniel

No dia seguinte, as nuvens espaçadas permitiam que o sol despejasse alegremente seus raios, dando um belo colorido àquela manhã.

Rafael debruçou-se sobre o balcão que o separava da solícita Sra. Laura, a secretária.

Quero me inscrever para a vaga na biblioteca — disse, com a voz saindo da garganta com dificuldade. — A vaga ainda não foi preenchida? - perguntou, na última esperança de escapar daquela função como se desejasse ardentemente fugir da guilhotina.

Ainda não - informou Laura, com um sorriso suave. - Se for realmente do seu interesse, você precisa estar ciente que esse trabalho irá tomar boa parte do seu tempo livre e que de maneira alguma os seus estudos deverão ficar em segundo plano... Está bem assim?

Sim, estou sabendo das regras, não haverá problemas.

Não quer aproveitar o restante das férias para descansar mais um pouco? - perguntou Laura, estendendo o formulário de adesão.

Prefiro começar logo. Estou muito ocioso e é melhor que seja agora, assim tenho algum tempo para me adaptar - respondeu, dispensando a oferta enquanto começava a preencher o documento sem olhar no rosto gentil da secretária.

Em poucos minutos todos os quesitos estavam devidamente preenchidos.

Após uma rápida verificação dos dados do aluno, Laura orientou:

Vá até a biblioteca e apresente-se a Sra. Maria. Ela vai recebê-lo com muita satisfação e o encaminhará ao seu novo trabalho.

O fato de ter aceitado aquela incumbência causava uma sensação desconfortá­vel a Rafael. Nem ele sabia direito porque havia concordado em tomar tal atitude.

Naquela mesma manhã ele já estava trabalhando, colocando em ordem uma série de fichas e arrumando os livros nas estantes como havia imaginado. O austero Helmut não havia aparecido até aquele momento. Restava a Rafael montar uma estratégia para conseguir o livro ou simplesmente esperar que alguma chance caísse do céu; a opção escolhida era simples: nada a fazer. Rafael simplesmente diria aos seus amigos de alojamento que a tal chance não apareceu e pronto. Ele é que não iria se atirar numa tarefa maluca e agüentar sozinho as suas terríveis conseqüências.

Helmut cruzou o grande salão da biblioteca e foi contido pela atenciosa Maria.

Quero apresentar-lhe o meu novo ajudante - disse ela sorridente, colocando a mão sobre o ombro do menino.

Como é mesmo o seu nome, rapaz? — perguntou Helmut, com parte dos olhos ocultados pelas grossas sobrancelhas.

Rafael, senhor — respondeu, acanhado.

Então... seja bem-vindo, Rafael. Nos veremos muitas vezes por aqui — disse, depois retomando o caminho até a sua sala e se fechando lá dentro.

Não ligue — disse Maria, olhando Rafael por cima dos óculos. - Ele aparenta ser indiferente, mas é um bom homem.

Ele deve gostar muito de estar aqui na biblioteca - presumiu Rafael. - Ao que me consta ele tem um gabinete só pra ele e mesmo assim parece preferir usar aquela salinha em que mal cabem os móveis.

O velho Helmut é um apaixonado pelos livros e gosta de ficar perto deles. Volta e meia se perde entre as estantes e quando retorna traz pelo menos um exem­plar para uma leitura rápida - disse ela, deixando transparecer um profundo res­peito pelo respeitado diretor. - Mas tem mais uma coisa, através daquelas vidraças ele controla quais os estudantes que vem aqui com maior freqüência, é o seu jeito de distinguir os alunos que melhor se preparam e geralmente são os que apre­sentam as melhores notas. Garanto que ele gostou de você ter vindo trabalhar conosco, eu vi isso em seus olhos.

A última declaração de Maria trouxe algum alento ao garoto.

Rafael voltou-se às suas tarefas e passou a observar discretamente cada movimento de Helmut. O enigmático diretor, encerrado em sua pequena sala, assinava papéis, lia documentos, revirava gavetas, e durante quase uma hora não fez nada que pudesse chamar a atenção. Quando por fim Rafael estava mais entretido com seus afazeres do que preocupado em saber o que se passava no interior daquela sala, ele ouviu o arrastar de uma cadeira e pôde ver Helmut se levantando, abrindo com uma pequena chave o armário que se encontrava atrás de si e pegar o afamado livro, motivo da cobiça de seus curiosos colegas, e por que não dizer dele mesmo. Helmut deitou o livro cuidadosamente sobre a mesa e pôs-se a examiná-lo, se fixando momentaneamente em uma página e depois, inclinando-se para trás, ele apoiou a cabeça no encosto alto, mantendo-se assim pensativo como se a sua mente viajasse secretamente por pensamentos que Rafael realmente desejava conhecer. Helmut repetiu esse gesto algumas vezes durante o tempo em que passou entretido com o livro. Rafael daria alguns pontos de suas excelentes notas para poder penetrar nos pensamentos obs­curos daquele homem. A curiosidade começava a tomar conta do garoto e isso não era nada bom.

Helmut retomou o movimento de se levantar, trancou novamente o livro no armário e saiu de sua pequena sala, passando por Rafael e inclinando a cabeça num leve cumprimento que foi imediatamente respondido. Rafael apoiou o queixo na mão direita e mirou os olhos no armário até ser interrompido pela dedicada Maria.

Está na hora do almoço, você não vem?

Ah... sim... me distraí e não vi o tempo passar - disse ele tirado de concen­tração e acompanhando a bibliotecária.

O refeitório não estava tão cheio e localizar os colegas não foi algo difícil para Rafael. Margaret se encostou em um canto permitindo que ele se sentasse entre ela e Chester. A essa altura a menina já estava sabendo dos fatos e mal deixou Rafael se acomodar para começar o interrogatório.

Como foi na biblioteca?

Gostei, o trabalho é interessante.

Que bom que gostou, mas não é isso que queremos saber. Descobriu alguma coisa? - insistiu ela, parecendo estar mais curiosa que os meninos. Marc adiantou-se.

Dê um tempo para o rapaz. Não vê que ele ainda nem começou a almoçar?

Só estava querendo puxar conversa - disse ela, sem graça e ao mesmo tempo indignada. — E não venham me dizer que vocês também não estão querendo ouvir alguma novidade.

Deixe ela, Daniel. Eu não me importo. - Rafael enxugou a boca com um guardanapo e começou a falar: — Aconteceu o que era previsto, Helmut entrou em sua sala, pegou o livro e o leu por um tempo, depois guardou-o de volta, exata­mente como Bruno havia descrito, e é só isso.

Você teria como abrir a porta da saleta e o armário? - perguntou Marc, sendo direto.

Rafael deixou de mastigar e engoliu o que estava em sua boca com um certo esforço. Ele ficou por alguns instantes com o olhar fixo em Marc, e depois respondeu:

É uma tarefa muito fácil abrir aquelas fechaduras, mas se você quer saber se eu pretendo abri-las, a resposta é não!

A brusca resposta incisiva causou um certo desconforto na turma, principal­mente em Daniel e Marc, os mais interessados. Rafael inclinou-se sobre sua ban­deja e continuou comendo como se quisesse ser ignorado.

Após a refeição, Daniel foi atender ao chamado de Júlio que, de tanto serviço não conseguia dar conta de tudo. Os outros funcionários da manutenção igualmente se encontravam bastante atarefados, pois era naquela época das curtas férias que eles aproveitavam para realizarem o trabalho mais pesado, evitando ao máximo atrapalharem o período de aula, e qualquer ajuda adicional era muito bem-vinda.

Chegou bem na hora, Daniel — disse Júlio, separando algumas ferramentas em uma maleta. — Tenho um trabalho demorado e cansativo pra você, mas o seu auxílio será de grande valia para todos nós.

Conte comigo, Júlio!

Muito bom, garoto, é assim que se fala! Venha comigo e eu já explico o que tem de ser feito.

Os dois seguiram até um galpão que servia de depósito, armado com prate­leiras de tábuas grossas sustentadas por estrados e colunas de ferro que chegavam até o teto alto. A luz que penetrava pelas pequenas janelas localizadas no topo, não era suficiente para iluminar todo o depósito, então Júlio foi até o canto ao lado da porta e acionou uma chave de contato que encheu de luz todo o ambiente.

Todo aquele lado está com goteiras — disse Júlio, apontando. — Precisamos transferir temporariamente todo o material estocado ali para esse lado do depósito para que possamos executar os reparos necessários - disse Júlio, tirando o boné e enxugando o suor que lhe escorria da testa franzida. - Mas para isso ser possível, as prateleiras que receberão a carga extra deverão ser reforçadas com essas hastes de metal fixadas com aqueles parafusos que estão na caixa bem ali no chão. Os pontos nas prateleiras onde você deve fixar as barras de sustentação já foram marcados com giz — explicou, mostrando todo o material. Júlio fixou uma haste para mostrar como deveria ser. — Acha que pode fazer isso?

Até amanhã pela manhã tudo deverá estar pronto — calculou Daniel, ava­liando a dimensão da tarefa.

Muito bem — disse Júlio, batendo com seu boné no ombro de Daniel. — Qualquer dúvida, me chame.

Da porta Júlio ainda alertou.

Nenhum ponto deverá ficar vulnerável ou tudo pode desabar.

Depois que Júlio saiu, Daniel deu uma boa olhada à sua volta. Seria uma grande empreitada, mas o garoto inglês era determinado e tinha condições de concluir o serviço no tempo estipulado. Ele não perdeu mais tempo e entrou logo em ação.

Marc saiu do banho e transitou pelo corredor do segundo pavimento com a toalha jogada sobre os ombros. Ele entrou no quarto e deparou-se com Rafael sen­tado à mesa em frente a uma pilha de livros maior que a de costume.

Pelo visto a biblioteca lhe fez bem — brincou o francês, puxando conversa.

Tem razão - concordou, colocando as mãos atrás da nuca e espreguiçando-se. — Descobri uns livros interessantes perdidos naquelas estantes.

Marc aproveitou o momento em que estavam sozinhos para tocar de novo no mesmo assunto.

Não pretendia pressioná-lo hoje no refeitório. Só queria saber até onde poderíamos ir nessa história.

Tudo bem, não gosto de ser coagido, principalmente se me sinto ameaçado. Vamos deixar como está e ver o que acontece. Vou tomar um banho e já volto.

Quando deixou o alojamento, Rafael cruzou com Chester e Daniel que haviam acabado de subir. O dia para eles tinha sido movimentado como sempre.

Soube de alguma coisa? - perguntou Daniel a Marc, se referindo a Rafael.

Não vamos forçá-lo por enquanto, certamente ele vai descobrir algo - afir­mou Marc, com surpreendente segurança.

Como você pode ter tanta certeza? - perguntou Chester, se jogando na cama, seus pés se livraram dos sapatos.

Ele não me disse nada, mas de um jeito ou de outro ele vai descobrir.

Espero que você esteja certo - disse Daniel, esperançoso. - Não quero voltar para a Inglaterra carregando essa dúvida pelo resto da vida.

O dia amanheceu sem uma nuvem no céu prometendo fazer um calor de rachar, não muito comum naquela época do ano, pois a brisa estava fraca e a temperatura já era notadamente mais alta que a da manhã anterior.

Daniel deixou o quarto antes dos outros colegas, tinha que terminar o serviço de reforço das prateleiras até o almoço. O depósito estava quente e abafado fazendo Daniel beber litros de água para repor o líquido perdido devido à transpiração excessiva.

Júlio apareceu no meio da manhã para fazer uma vistoria.

Como está indo? - perguntou, forçando as hastes com as mãos para testar-lhes a resistência.

Até agora tudo bem. Estarei apertando o último parafuso até o final da manhã - comprometeu-se, sentando um pouco em um caixote para descansar.

Parabéns! - elogiou Júlio. - Está ficando um serviço de primeira. Hoje à tarde estarão passando todo o suprimento para o lado que recebeu o reforço. O conserto do telhado terá de ser rápido, pois com o calor que está fazendo hoje, provavelmente teremos outra chuva daquelas. Bom, também tenho que voltar ao trabalho, se você achar que não vai conseguir terminar a tempo, me avise - disse Júlio, indo em direção à saída.

Não se preocupe, está tudo sob controle — disse Daniel, levantando-se após o breve intervalo e batendo a poeira que havia ficado em sua calça.

Sabe de uma coisa? — disse Júlio, cobrindo-se de novo com o boné surrado. - Eu preferiria estar no seu lugar. Desde cedo estou limpando uma fossa enorme que exala um cheiro horrível, e o pior é que os dejetos não param de se mexer - confessou, fazendo uma cara feia e saiu.

Daniel imediatamente relacionou os dejetos que só poderiam estar se movendo pela ação da água no subsolo. Júlio deve estar passando por maus bocados — pensou.

 

O jardim da escola ficava localizado bem no centro do prédio; era um jardim bem cuidado, fornecendo claridade, harmonia e um colorido alegre aos aposentos que tinham suas janelas voltadas para o interior da gigantesca edificação. O mesmo acontecia aos corredores que ladeavam o jardim, recebendo lateralmente os raios do sol e tornando-os um dos recantos mais agradáveis para se transitar. Marc percorria um desses corredores, dirigindo-se a sala de Ramón. Ele iria acertar alguns detalhes da próxima apresentação que a orquestra estava preparando para os visitantes que chegariam nos próximos dias. Uma mão agarrou o seu braço e inter­rompeu bruscamente seus passos. Era Bruno que, atrás de uma coluna, se escondia para não chamar a atenção.

Quero mostrar uma coisa para vocês, me encontrem daqui a vinte minutos na sala de música — Bruno olhou para os lados, cuidando se ninguém os tinha visto e desapareceu da mesma maneira que surgiu.

Marc hesitou por um instante e rapidamente tomou a decisão de avisar Daniel. O que Bruno tinha para falar deveria ser muito importante para ele ter agido daquela forma. Então, aproveitando os vinte minutos que lhe restavam, tempo mais que suficiente para ir ao encontro do italiano, ele mudou a sua trajetória e foi à procura do companheiro inglês.

Temos que ir à sala de música agora - disse Marc, verificando se não havia mais ninguém no depósito. - Bruno estará lá em poucos minutos e tem algo importante para nos mostrar.

Daniel não pensou duas vezes, e logo que atirou as ferramentas de volta na maleta, os dois seguiram apressadamente ao encontro de Bruno.

A sala estava trancada e Marc era um dos poucos que possuíam uma cópia da chave. Quando o salão foi aberto, eles tiveram que aguardar mais alguns momentos até que o garoto italiano chegasse. Bruno entrou em seguida, a porta batendo delicadamente atrás dele.

Sabia que você traria o seu amigo inglês — disse ele, desdobrando um pequeno pedaço de papel e passando-o para Marc. Daniel se aproximou, tam­bém interessado em saber do que se tratava. Bruno explicou: — Eu copiei esse trecho, que guardei de memória, de uma espécie de relatório que estava sobre a mesa do professor Rajev. Estive na sala dele ontem à tarde para pedir ajuda sobre uma questão de Física. Ele, sempre muito preocupado em ajudar, prontamente me atendeu. - Bruno fez uma pequena pausa e logo continuou: — Enquanto o professor me orientava, um documento parcialmente encoberto por uma pilha de pastas e outros papéis que se acumulavam em sua mesa, despertou o meu interesse. Quando o professor se deu conta do que eu estava fazendo, pegou tudo que havia sobre a mesa e colocou fora do meu alcance. Só consegui ler uma parte e logo que deixei a sala, tratei de transcrever o que eu havia memorizado para esse papel antes que me esquecesse de alguma palavra.

No pequeno papel amarrotado estava escrito:

 

O material, aparentemente indestrutível, só se torna instável quando sofre a ação humana ou de um animal de grande porte. Nada que conheço se parece com aquilo. Dediquei vários anos da minha vida a examiná-lo e não consegui avançar muito, apesar do tempo em que eu o venho estudando. É impossível não ficar fascinado por ele. Talvez nunca saibamos qual a sua verdadeira composição e origem.

 

O que acham? - perguntou Bruno, encarando os rapazes.

Não faço idéia - disse Marc, coçando a cabeça, tentando dar um sentido ao que estava escrito. - Mas é evidente que o professor Rajev está se referindo a algo espetacular.

Daniel estava particularmente excitado.

Acredito que seja isso que procuramos. Chester e Rafael precisam saber dessa novidade.

Escondam esse com vocês — disse Bruno, fazendo referência ao pedaço de papel com a enigmática mensagem. — Tenho uma cópia muito bem escondida, espero que vocês procedam da mesma forma e não fiquem mostrando essa coisa pra qualquer um. Agora eu tenho que ir, outra hora nos falamos.

Bruno! - exclamou Marc. O italiano se voltou para ele. — Obrigado pela informação. - Bruno fez um leve aceno de cabeça, ajeitou o boné preto e fechou a porta.

Vamos logo! Essa os rapazes têm de saber - convocou Daniel, dirigindo-se à porta. - Talvez esse texto encoraje Rafael a fazer alguma coisa.

Marc tratou de esconder o papel no bolso da calça antes de trancar a sala.

O sol do meio-dia castigava quem ousasse desafiá-lo caminhando pelo pátio. O ar parado aumentava a sensação de calor, fazendo com que todos ficassem sonolentos e indispostos.

Rafael sentou-se numa confortável cadeira de vime em frente a uma ampla janela para aproveitar a leve brisa que soprava bem na sua direção, proporcionando-lhe uma sensação bastante agradável. Seu deleite durou pouco, pois logo apareceu Chester para acabar com o seu momento de lazer.

Daniel e Marc estão te procurando. Eles disseram que tem uma novidade que vai nos interessar muito e a sua presença é importante.

Eles falaram do que se trata?

Não, mas vindo deles você pode imaginar o que é.

Rafael fez um esforço extra para se levantar, lamentando-se em ter que abandonar o seu pequeno paraíso.

O quarto estava demasiadamente quente, embora a janela permanecesse escancarada. As árvores não se mexiam e a temperatura havia se elevado ainda mais. Os monitores que resguardavam os limites da floresta se enfiavam entre as folhagens, fugindo do sol tórrido.

Rafael entrou escoltado por Chester. Daniel e Marc já os aguardavam. A reu­nião então teve seu início.

Sentem-se - disse Daniel. - Não vamos demorar muito. Aqui dentro está um forno e se não sairmos logo vamos derreter.

Vamos direto ao que interessa - adiantou-se Marc, expondo o papel que havia recebido de Bruno. - Leiam isso e depois falem o que vocês entenderam.

Rafael leu duas vezes o texto e passou-o em seguida às mãos de Chester.

Como vocês conseguiram isso? — perguntou Rafael franzindo a testa.

Bruno obteve da mesa do professor Rajev — contou Daniel após tomar as últimas gotas de água da sua caneca. — Havia mais coisas escritas, mas ele não con­seguiu ler.

Mas só isso já basta para concluirmos que todas as nossas suspeitas são bem fundamentadas — completou Chester sem desviar os olhos do papel. — O que Bruno acha que significa essa mensagem?

Ele também não sabe - disse Marc enquanto se abanava com um caderno. - Mas também não tivemos muito tempo para conversar, ele foi logo embora. Bruno é assim: vive vagando pelas sombras da escola.

Enquanto os outros confabulavam, Rafael se mantinha compenetrado, pesando cada palavra no texto. Então se manifestou:

Ouçam isso: "se torna instável", "composição e origem". Ele parece estar se referindo a um objeto, e não a um ser vivo, que se altera quando é tocado ou quando alguém se aproxima dele.

E por que guardariam segredo sobre a existência de um objeto assim? - perguntou Marc, envolvendo a todos.

Porque ele é... - Chester passou novamente os olhos pela folha de papel — "instável". Isso deve significar que essa coisa se transforma em algo incomum ou que age de maneira incomum.

Pode ser qualquer coisa além da nossa compreensão — foi mais longe Daniel, pegando o pequeno papel com os dizeres misteriosos. - Escutem essa frase: "Nada que conheço se parece com aquilo". Nem o professor Rajev, com todo o seu conhe­cimento e experiência, conseguiu descobrir muita coisa, conforme ele mesmo escreveu.

Rafael começou a roer as unhas. Era o sinal de que algo o incomodava, mas ele não quis dizer o que era. Para o rapaz era mais importante se manter a salvo das ameaças.

Vou à biblioteca. Tenho trabalho a fazer — disse levantando-se e abrindo e se esgueirando pela porta. - Alguém vem junto?

Eu vou com você — disse Chester. — Vou ver os cavalos. Devem estar sofrendo com esse calor.

E eu vou procurar Bruno - anunciou Marc. — Quem sabe ele consegue o texto na íntegra. Isso nos ajudaria muito. Você vem comigo, Daniel?

Daniel não vacilou e num instante os dois já percorriam os salões, corredores e becos do enorme prédio, no encalço do italiano.

Nestor havia recolhido os cavalos para a cocheira a fim de protegê-los do sol escaldante. Eles já estavam bem alimentados e com água a vontade para saciar-lhes a sede.

O que você vai fazer agora, Nestor? - perguntou Chester procurando algo com que se ocupar.

Nada, meu rapaz. Vou ficar aqui mesmo, sem fazer nenhum esforço, pois daqui a algum tempo alguém vem me trazer algum trabalho e eu quero aproveitar para dar um pouco de descanso a mim e aos meus bichinhos. Por que você não faz o mesmo?

Não consigo ficar parado — respondeu aflito. O menino olhou para o chão. — Nestor, se eu quisesse ficar aqui, morando para sempre, será que me aceitariam?

O velho olhou para Chester e disse amistosamente.

Para sempre é um longo tempo, meu jovem. E sua família?

Chester pensou nos tios queridos, no rancho, no cavalo Coronel... A lembrança deles lhe trouxe uma sensação agradável. Pareciam tão distantes como se fizessem parte de um sonho. Por outro lado, o rapaz cavaleiro tinha um espírito arredio. Sonhava em viver aventuras iguais aos dos livros que costumava ler à sombra de um frondoso carvalho de galhos longos e sombras generosas. Estava crescendo nele a dúvida se gostaria de voltar para a monotonia bucólica do rancho de seus parentes. O desconhecido o atraía de um jeito como Chester nunca experimentara.

Já procuramos por tudo, ele sumiu como fumaça — disse Marc, desanimado.

Bruno deve ter ido para o seu quarto — supôs Daniel. - Ele havia dito que se localizava no final do corredor do terceiro pavimento.Vamos tentar lá?

Eu não me atrevo - descartou Marc. - Se nos virem batendo na porta dele, nós também vamos ficar estigmatizados.

Ainda não vimos na praia, talvez ele esteja por lá — sugeriu Daniel, inconformado.

Debaixo desse sol? Eu é que não vou!

O que houve com você, está desistindo, francês?

A provocação de Daniel foi demais para Marc, fazendo-o aceitar a contragosto.

 

Rafael conferia a última relação dos novos livros recebidos e preparava o cadastramento para que pudessem ser colocados ordenadamente nas prateleiras. Maria havia dado uma saída para ir ao dentista, tratar um molar que a estava incomo­dando há dias.

A biblioteca continuava com a freqüência de alunos muita baixa, que optaram por aproveitar as férias com outras atividades mais voltadas para o lazer. Apenas um aluno dividia o amplo espaço com Rafael e o Diretor, este enclausurado em sua sala, debruçado sobre o obscuro livro de capa negra.

O aluno foi até a mesa em que Rafael se encontrava trabalhando e solicitou o empréstimo de um livro de filosofia. O rapaz foi prontamente atendido, e após assinar uma ficha-controle, deixou a biblioteca por conta de Rafael, e o salão ficou vazio. O silêncio era quase absoluto. Rafael cumpria a sua função com esmero, colando as etiquetas de identificação em cada livro e a cada lote terminado, ele se levantava para levar uma nova remessa acondicionando os livros em seus lugares específicos, numa ordem perfeita.

A porta da sala se abriu. Helmut deslocou-se com passos lentos e chegou até o menino, que parou imediatamente o que estava fazendo para voltar a sua atenção ao diretor.

Como está se saindo, meu jovem?

Estou indo bem. O serviço aqui é muito fácil. Mais fácil que as provas men­sais — brincou ele, fazendo-se simpático.

O diretor deu um discreto sorriso e continuou querendo conversa.

Soube que as suas notas são muito boas. Fico feliz por você.

Eu preciso que minhas notas sejam as melhores, senhor. Investi minha vida e meu futuro nessa escola. Eu e a minha família um dia acreditamos que eu chegaria até aqui para estudar e me formar, e se depender de mim, concluirei esse curso atingindo os melhores conceitos.

Gostei de ouvir isso - Helmut puxou uma cadeira e sentou-se. - Aqui não investimos apenas em conhecimento, mas para uns poucos, em algo muito mais nobre. Infinitamente além do que se pode imaginar.

Acho que não entendi, senhor? — perguntou, trêmulo de curiosidade.

Helmut ajeitou os óculos e prosseguiu.

Olhe essa biblioteca! — disse ele, fazendo um amplo movimento com o braço esquerdo. — Milhares de livros em suas prateleiras e muitos outros chegando a cada ano. Mas todo esse conhecimento é nada se comparado ao que desconhecemos. Outros mundos existem, quem sabe outros universos, com leis naturais próprias. Tudo está aí para ser desvendado. — Ele reduziu o tom de voz e voltou-se para Rafael que àquela altura o fitava, extasiado. — Só depende de pessoas como eu ou você, ávidas por conhecer o que nunca foi visto antes, pessoas talhadas e que deci­dem empenhar-se nessa busca.

 

Marc e Daniel chegaram até a praia. A areia ardia, subindo a temperatura, fazendo a pele queimar.

Ele também não está na praia. Vamos embora daqui - disse Marc, querendo se livrar do forte calor.

O problema não era o sol forte, mas a falta de vento que fazia da ilha um lugar insuportável. A sorte dos seus moradores era que a ausência da brisa refrescante era um acontecimento raro.

De repente veio à mente de Daniel uma desagradável lembrança. Ele gritou.

O depósito!

Que depósito? Do que você está falando, Daniel?

As prateleiras do depósito — explicou, nervoso. — Eu tinha que reforçá-las até o meio-dia. Que horas são?

Eu estou sem relógio, mas deve ser umas quatro e meia — calculou Marc. — O que está acontecendo?

Eu não terminei um serviço que deveria ser feito, e se não for concluído, pode acontecer uma tragédia. - O semblante de Daniel expressava nítida preocupação. — Tenho que correr!

Restou a Marc seguir correndo atrás, pois ainda não tinha entendido com detalhes o que Daniel havia feito, ou deixado de fazer.

A grande distância e o calor exagerado, somado ao nervosismo de Daniel, faziam suas pernas bambearem. Daniel estava ficando cada vez mais aflito, parecia que não iria chegar nunca ao depósito. Ele necessitava avisar urgente aos trabalhadores para não sobrecarregarem as prateleiras. Daniel então se lembrou de outra coisa que o colocou em desespero. As oito hastes que faltavam ser fixadas foram guardadas por ele debaixo de uma lona sob as colunas de sustentação. Se Júlio entrou no depósito e não achou as hastes, pode ter deduzido que o seu ajudante havia terminado todo o serviço e autorizado a transferência da carga.

O depósito já podia ser visto por Daniel. Só faltavam uns cem metros para ele chegar. Um trabalhador saiu do armazém sem demonstrar nenhuma anormalidade. Faltava mais um pouco para Daniel, quase sem fôlego, poder avisar, impe­dindo que continuassem a transferir os suprimentos. Mas então, aconteceu.

Um enorme estrondo, vindo de dentro do depósito, deixou Daniel paralisado e boquiaberto. Marc, que parou ao lado do amigo, logo entendeu que era aquilo a que Daniel se referia. Uma tragédia! Pessoas vinham correndo de todos os lados sem ainda conhecerem a razão de tão violento barulho. Só Daniel sabia o real motivo que ocasionou o desabamento. Ele ainda pôde ver quando Júlio chegou apressado. Os pontos vulneráveis das colunas, quando receberam o sobrepeso, se contorceram, iniciando o desabamento e provocando uma reação em cadeia, pois todas as prateleiras e colunas estavam unidas por parafusos e rebites.

Júlio correu para fora, gritando:

Tragam as maças! Chamem o médico!

A cabeça de Daniel parecia que iria explodir. Ele não teve coragem de chegar perto. Ele havia sido o causador de toda aquela confusão. Júlio havia confiado nele e tinha avisado do perigo de desabamento. Talvez até houvesse pessoas mortas, debaixo dos escombros. Marc pousou a mão em seu ombro e estava tão perdido quanto o seu colega. Daniel não se conteve. Precisava ver de perto a catástrofe que tinha provocado. Lentamente, ele foi caminhando em direção a grande porta do depósito. Várias pessoas se aglomeravam na entrada.

Abram espaço! Deixem-nos trabalhar! Há vidas em jogo.

Cada exclamação que ouvia entrava como um punhal, rasgando o estômago de Daniel.

Duas carroças: uma conduzida por Chester e outra por Nestor, encostaram próximas ao local, reforçando o socorro.

Na biblioteca, Helmut, que ainda não tomara conhecimento do que estava acontecendo, continuava o seu diálogo com Rafael, recheado de conselhos e frases enigmáticas, deixando o rapaz mais intrigado ainda.

A porta da biblioteca foi aberta com violência. Um dos monitores, ofegante, veio trazer a péssima notícia.

Senhor, aconteceu um acidente no depósito. Temos feridos e parece que um deles é grave. É um aluno, senhor.

Helmut pulou da cadeira. Parecia descontrolado. Um aluno em estado grave. Aquilo nunca havia acontecido em toda a história da escola. Segurança para com o corpo discente era motivo de orgulho da instituição.

Helmut saiu em disparada com o monitor logo atrás.

Agora Rafael estava sozinho na biblioteca. A porta da sala de Helmut aberta e o livro... bem em cima da mesa. Rafael hesitou. Provavelmente Helmut iria demorar um bom tempo para regressar. Mas e se ele retornasse antes do previsto? Tudo estaria perdido. E a Sra. Maria? E se ela entrasse e o flagrasse com o livro? Mas os tratamentos dentários demoram. Talvez ele nunca mais teria outra chance igual. O livro estava ali, a poucos metros dele. Rafael imaginou-se retornando para sua cidade, para a sua casa, derrotado por um ato inconseqüente. Mas essa seria a sua grande oportunidade de conhecer o conteúdo do livro. Nem Bruno teve uma chance como a que estava sorrindo para ele. O que fazer? Então Rafael respirou fundo e decidiu.

Seja o que Deus quiser — murmurou.

Ele invadiu a sala e pegou o livro, suas mãos tremiam, o livro era mais pesado do que ele havia imaginado. Rafael abriu na primeira página e confirmou o que Bruno havia contado sobre quem o escreveu. As letras graúdas impressas em preto na primeira página denunciavam o seu autor: Alexei Martov, o homem do retrato. As páginas seguintes corriam pelos seus dedos velozmente e assim, ele pôde confirmar outra observação de Bruno: o livro foi todo escrito a mão. Na verdade era um diário como se supunha. Rafael parou por um instante; pensou ter ouvido algum ruído e, receoso, olhou para a porta, temendo que ela se abrisse. Foi só impressão. Ele voltou-se para o diário, abrindo-o em uma página aleatoriamente. As frases diziam coisas sem nexo. Então, ele buscou uma das primeiras páginas, deslizando o olhar pelas linhas de caligrafia bem elaborada, quando os seus olhos cravaram em um parágrafo:

 

A sensação foi estranha. Senti todo o meu corpo desintegrar. Só a minha mente permaneceu intacta no meio do caos. Depois, por alguns instantes, me senti confuso após a travessia. Nesse momento, portanto, inicio o relato da experiência mais fan­tástica da minha vida.

 

Rafael não teve tempo de continuar a leitura, pois sua audição percebeu passos apressados, no assoalho de madeira, se aproximando da biblioteca. Ele largou o diário e saiu correndo da sala do diretor, com tempo suficiente apenas para chegar à sua mesa e abraçar um punhado de livros, como se estivesse levando-os para organizá-los nas estantes. A porta se abriu bruscamente. Era ele mesmo, Helmut que, ainda segurando a maçaneta, olhou para a sua sala e depois procurou Rafael pelo grande salão de leitura. Helmut suspirou profundamente numa visível sensação de alívio.

O que aconteceu lá fora? - Rafael procurou disfarçar.

Se Helmut tivesse prestado mais atenção, teria reparado que Rafael se mos­trava tão tenso quanto ele.

Uma coisa muito ruim - disse, sua voz estava embargada. - Tenho que sair de novo - avisou enquanto guardava o diário no armário e trancava a sala. — Por favor, fique aqui até que Maria retorne. Ela não deve demorar muito.

Sim, senhor — assentiu Rafael, demonstrando sua intenção de colaborar.

Foi fácil para ele notar que Helmut estava transtornado e teria que resolver um grande problema. Só não fazia idéia que um colega de quarto estava envolvido até o pescoço.

Novamente o menino se encontrava sozinho na sala, mas dessa vez não que­ria mais correr o perigo de ser flagrado. Bem melhor assim. Já era o bastante para aquele dia e do jeito que Helmut estava, se o pegasse, seria capaz de torcer o seu pescoço e atirá-lo no mar.

Rafael se deu conta de que não poderia esquecer o que lera minutos antes.O enigmático parágrafo era, sem dúvida, o prenúncio de uma incrível aventura. Ele pegou lápis e papel e tratou de anotar tudo o que sua memória havia registrado. Sem perder tempo, pôs-se a estudar cada palavra, cada frase, buscando um signifi­cado satisfatório. Mas ainda era insuficiente para ele compreender naquelas frases curtas sobre exatamente a que o Diário se referia.

Lá fora, no local do acidente, a situação ainda era muito tumultuada. O resul­tado da tragédia foi cinco funcionários e um aluno feridos. O aluno, que traba­lhava voluntariamente no controle dos estoques foi o mais atingido, tendo a perna e o braço direito quebrados e também um ferimento profundo na cabeça de onde perdeu uma preocupante quantidade sangue. Os primeiros exames detectaram traumatismo craniano, e pelas avaliações do médico ele ainda náo estava fora de perigo. Os funcionários atingidos tiveram escoriações mais leves. Apenas um havia fraturado um braço, mas estava bem. Este seria liberado do atendimento médico logo que o gesso em seu braço secasse.

Daniel ficara inconsolável. Nunca, em sua vida, ele poderia imaginar que um erro seu culminaria com um acidente daquelas proporções.

Marc ainda tentou ajudar consolando o amigo.

Vamos sair daqui, não podemos fazer nada.

Eu quero ficar mais um pouco - disse Daniel que não parava de tremer, e a respiração alterada.

Daniel não queria arredar o pé dali. Não sabia direito o porquê, mas sentia que se abandonasse o local estaria fugindo da responsabilidade e ele não era um covarde. Teria que enfrentar as conseqüências do seu erro brutal, quaisquer que fossem.

Venha, amigo - insistiu Marc. — Você não vai conseguir resolver nada agora. O melhor a fazer é sair daqui e esfriar a cabeça.

O chamado de Marc era inútil. Daniel permanecia ali no meio da desor­dem, olhando o que havia causado, se penitenciando com aquela visão. Gente correndo como formigas desorientadas, as manchas de sangue no chão, as enormes quantidades de arroz, açúcar, farinha, caídos das sacas destruídas, mantimentos espalhados por todos os lados. No depósito não ficava estocado só aquele tipo de produto. Ali também eram classificados e armazenados os materiais de limpeza, peças de máquinas de diversos tipos e tamanhos para serem distribuídos aos vários departamentos de acordo com a necessidade. Quase tudo ficava sob um grande amontoado que tomaria muito tempo e trabalho até estar como antes.

Por debaixo das prateleiras caídas, Daniel localizou o pedaço da lona em que havia enrolado as oito hastes que faltava fixar. Ele interpretou que Júlio nem percebeu o seu desleixo.

Chester se aproximou dos dois. Evidentemente ele ainda não tinha conheci­mento da culpa de Daniel no desabamento.

Que estrago! — exclamou o jovem cavaleiro. — Estão dizendo que Júlio está bastante encrencado depois dessa. Que a responsabilidade era dele e que ele não poderia ter autorizado a execução da transferência dos suprimentos.

Daniel pôs as mãos na cabeça e saiu de perto.

O que houve com ele? - perguntou Chester, que relacionou a reação de Daniel a sua franca amizade por Júlio.

Você não imagina o que ele está passando — resumiu Marc lançando um olhar piedoso para Daniel.

Marc aproveitou que Daniel se afastara para colocar Chester a par do triste acontecimento.

Daniel estava impotente, assistindo os operários andando para todos os lados e improvisando uma operação imediata de reparos. Nos próximos dias eles teriam que priorizar o conserto do depósito e separar os suprimentos que não haviam sido danificados. Uma batalha começou a ser travada na mente do garoto. Ele poderia ter evitado aquele triste episódio se agisse como um aluno normal, sem querer se meter nos assuntos secretos da escola. Aqueles segredos não eram problema seu. Por um momento lembrou do seu pai; queria que ele estivesse ali para lhe dizer o que devia fazer naquela hora. Olhou para todos os lados. Queria encontrar sua irmã para lhe falar que desistisse de meter o nariz onde não era chamada. Desejou que todo aquele sofrimento não passasse de um dos seus macabros pesadelos.

Daniel avistou Júlio e num breve momento seus olhares se cruzaram. O menino se perguntou o que passava pela cabeça do seu companheiro da tarefas de manutenção. O que seria feito dele. "Júlio está bastante encrencado", havia dito Chester antecipando algo muito ruim.

Chester e Marc se aproximaram novamente para dar apoio.

Chega por hoje, Daniel - disse Marc, a voz soava branda. — Você não vai ajudar em nada, só está se torturando.

É, Daniel, se afastar daqui vai ser melhor pra você — aconselhou Chester, dando um tapinha em suas costas.

Daniel soltou um suspiro entristecido e se afastou vagarosamente na compa­nhia de Marc.

Chester voltou ao local arruinado para conduzir a carroça carregada com a primeira leva de ferros retorcidos. Ele estava disposto a ajudar no que fosse possível para compensar de alguma maneira o sofrimento do amigo.

 

Maria havia acabado de retornar do dentista. Rafael a aguardava, conforme o pedido de Helmut. Ele já não tinha mais nada para fazer ali.

Você soube o que aconteceu? - perguntou ela, guardando sua bolsa em uma gaveta no balcão de entrada. Rapidamente ela conferiu o trabalho do dentista, sor­rindo diante de um espelhinho de maquiagem.

O Sr. Helmut só havia me dito que foi algo ruim.

Maria resumiu o ocorrido e liberou o rapaz. Ela havia se encontrado com Helmut que determinou o fechamento da biblioteca mais cedo naquele dia. Não havia mesmo nenhum aluno interessado em passear entre estantes abarrotadas de livros naquele dia. O diretor convocou a bibliotecária para auxiliar a pôr a escola em ordem.

Será que eu poderia ajudar em algo? — Se ofereceu Rafael, querendo ser útil de alguma forma.

Por enquanto não - respondeu ela sorrindo amigavelmente. - Se precisar­mos eu peço para alguém te chamar.

A curiosidade falou mais alto e como é da natureza humana, Rafael quis dar uma passada no lugar onde se deu o acidente depois do expediente na biblioteca. Ele ficou impressionado com o tamanho da avaria. Pensou que naquela altura, seus companheiros já sabiam bem mais do que ele. Mas Rafael tinha visto algo que eles não sabiam: o Diário. A dúvida dele era se contava aos amigos ou se guardava a informação só para si. Por enquanto ele não iria falar nada. Melhor deixar assim.

Daniel resolveu ir ao ambulatório que ficava na parte leste do grande prédio da escola.

O ambulatório tinha todas as características de um pronto-socorro comum, a diferença era que quase nunca havia um movimento como aquele de gente entrando e saindo para dar atendimento ao número anormal de pacientes. Marc manteve o seu apoio e acompanhou-o sem emitir um som. O francês decidiu deixar Daniel esgotar todas as suas dúvidas com relação ao quadro de saúde do aluno ferido, pois só assim o menino inglês deveria se sentir melhor. O atendimento médico pos­suía dois acessos: um voltado para o interior da escola e outro que se ligava à área externa viabilizando um atendimento rápido nos casos de emergência. As paredes pintadas de branco e o cheiro de éter espalhado pelo ar passavam uma impressão de desconforto a Daniel. Ele queria alguma informação do estado de saúde dos feridos, mas principalmente do aluno que se encontrava em piores condições.

A movimentação dentro do ambulatório era grande. Um enfermeiro que tra­zia uma pilha de toalhas foi interceptado por Daniel.

Como está o aluno que se feriu no acidente?

Não sabemos ainda. O Dr. Adama está cuidando dele. Ele é um ótimo médico e fará tudo para salvá-lo. Você é amigo do garoto?

S-Sim! - respondeu, achando melhor esconder a verdadeira razão da sua presença no pronto-socorro. — Ele é meu amigo.

É melhor você não ficar aqui - aconselhou o enfermeiro. — Aguarde lá fora e qualquer novidade eu te aviso.

A palavra "salvá-lo" não foi muito bem recebida pelo menino. Dava a impres­são de que o rapaz ferido estava entre a vida e a morte.

Daniel encostou-se na parede ao lado da entrada do ambulatório e foi escorregando até sentar-se no chão. Marc fez o mesmo.

-Você não quer ir embora? — perguntou Daniel, com o semblante cansado. - Não sabemos quanto tempo vai demorar.

Vou ficar com você até isso acabar, mas me prometa uma coisa: quando o aluno estiver fora de perigo você vem comigo, está bem?

Daniel concordou com a cabeça e permaneceu prestando atenção em cada movimento naquele tumultuado entra e sai.

Não demorou muito, o enfermeiro que havia conversado rapidamente com Daniel veio até ele seguido pelo Dr. Adama. Daniel e Marc se puseram de pé num salto.

São esses os garotos — disse o enfermeiro.

Fiquem calmos, ele está fora de perigo - tranquilizou-os o médico, mostrando os dentes brancos e perfeitos num sorriso confiável.

Podemos vê-lo? — pediu Marc, agora bem mais aliviado.

Infelizmente, não — disse o Dr. Adama. - O que mais o nosso paciente precisa agora é de muito repouso. E, além disso, já está escurecendo e vocês sabem que não podem ficar aqui em baixo. Voltem amanhã e consentirei que o visitem.

Adama Diop era o nome completo do médico. Um negro de cabelos corta­dos rente à cabeça. Senegalês de origem, Adama Diop tinha idéias adiante do seu tempo no complexo campo da medicina. Ele era o responsável por toda a área médica da Ilha da Coroa. Como outros membros importantes da instituição, ele também tinha ido para a ilha ainda garoto estudar durante oito anos e se tornar uma referência na medicina moderna. Dentro do possível, freqüentava os principais congressos que aconteciam pelo mundo, e quando isso não era viável, enviava os seus artigos que invariavelmente eram divulgados, atraindo singular interesse da comunidade médica. Desenvolvia novas técnicas cirúrgicas, tanto ortopédicas, quanto torácicas, algumas delas acabavam sendo praticadas nos mais importantes centros médicos do mundo. O Dr. Adama era conhecido como mãos-mágicas, tal era a agilidade e destreza com que conduzia seus procedimentos cirúrgicos. Gos­tava de ouvir e contar piadas, e quando isso acontecia, as suas gargalhadas eram ouvidas à distância.

Daniel e Marc acataram o pedido do médico e prontamente se retiraram subindo para o quarto.

Chester já havia deixado Rafael a par sobre Daniel e o acidente. Em minu­tos o quarteto estava novamente reunido e com importantes assuntos a tratar. O ambiente no quarto deles estava pesado. Daniel era constantemente confortado pelos seus colegas, mas de pouco adiantava. Daniel não estava preocupado com ele mesmo, pois a função voluntária que realizava era de responsabilidade maior do seu tutor. Ele não corria nenhum risco de sofrer uma punição maior. A dúvida que o importunava era, do que seria feito de seu amigo Júlio.

Temos que aguardar os acontecimentos — ponderou Marc, balançando as pernas do alto do beliche. - Até lá nada podemos fazer.

E também, Júlio sempre foi respeitado pela sua eficiência e a disposição com que trabalha. Dificilmente alguém estaria disposto de se desfazer de um funcioná­rio com essas qualidades - disse Chester com uma boa dose de razão.

Gostaria de ter toda essa certeza... — disse Daniel, apreensivo. - Mas estou com um mau pressentimento.

Rafael devorava as unhas. Um claro sinal que havia algo que o inquietava. Os seus colegas já sabiam que havia uma coisa errada com ele. Devia ser a triste situação de Daniel, deduziram. Então ele resolveu falar.

Eu peguei o livro! — disse enquanto reparava nas unhas roídas.

Todos pararam o que estavam fazendo e voltaram-se para ele.

Como é que é? — perguntou Marc, escorregando do beliche para encarar Rafael bem nos olhos.

É isso mesmo que vocês ouviram. Eu peguei o livro e olhei rapidamente o que estava escrito.

Conte melhor essa história — exigiu Daniel, esquecendo temporariamente os seus problemas.

Rafael passou os próximos dez minutos contando como havia chegado ao livro. Depois enfiou a mão no bolso e tirou o pedaço de papel em que havia escrito do que se lembrou da sua breve leitura.

Então o livro é mesmo um diário que relata uma grande aventura - concluiu Chester, debruçando-se para frente e focando o seu interesse em mais alguma coisa que Rafael pudesse revelar.

Uma "experiência fantástica". Estava escrito isso mesmo? Você tem certeza? — insistiu Marc, lendo vorazmente cada palavra.

E você não leu mais nada? Não procurou saber que "experiência fantástica" seria essa? — perguntou Chester, querendo obter outras respostas.

Eu não tive muito tempo e, além do mais, eu estava muito nervoso. Não conseguia raciocinar direito - justificou-se Rafael. - Agora eu estaria em maus lençóis, bem pior do que Daniel. Aliás, se esse acidente náo tivesse ocorrido, eu não teria conseguido chegar ao livro e essa nossa conversa não estaria acontecendo.

Desculpe, Daniel, mas eu tenho que concordar com Rafael — disse Marc, explicando-se melhor. - Se bem que, de uma forma trágica, avançamos um pouco mais na nossa busca. Pena que pra isso quase tivemos uma morte. Ainda bem que foi só um grande susto.

Mas estou tendo que pagar um preço muito alto por isso - disse Daniel com desconforto em seu coração. — Sinto uma forte sensação de que os meus problemas ainda não terminaram.

 

                                       O Diário de Alexei Martov

Daniel não conseguiu dormir direito durante toda a noite. Pela manhã, bem cedo, ele já estava a caminho do ambulatório. As chuvas não vieram, mas o vento voltou a soprar deixando a temperatura menos severa. Daniel não quis acordar ninguém e quando os outros despertaram, ele já não estava mais no quarto. Passa­dos cinqüenta minutos ele retornou com a fisionomia um pouco menos abatida, contando as boas novas para os companheiros. Tinha visitado o aluno ferido e aproveitou para ver também mais três funcionários que haviam se machucado. Outros dois já tinham recebido alta e se recuperavam em seus alojamentos. O Dr. Adama explicou que o rapaz ferido iria poder assistir as aulas, desde que tomasse certas precauções. A sorte é que ele era canhoto, se é que se pode chamar isso de sorte. Os prejuízos materiais em poucos dias deveriam estar reparados. Só faltava então ser definida a situação de Júlio.

Eu vou procurá-lo. Preciso esclarecer o acidente. Ele também deve estar confuso. Não posso deixá-lo sozinho nessa - disse desabafando quando encontrou novamente os companheiros.

Eu também tenho que sair para ajudar na organização do depósito - disse Chester enquanto se arrumava para sair. — Ainda há muito entulho para ser retirado.

Eu tenho que ir à biblioteca - disse Rafael. - Não posso me atrasar no meu segundo dia.

Eu ainda não conversei com o Sr. Ramón sobre a apresentação que faremos - informou Marc, pegando a sua inseparável mochila e prendendo-a no ombro. - Quer que eu vá com você?

Não, obrigado, Marc, eu quero ir só, pra falar em particular com ele — agradeceu Daniel, pensando no que diria a Júlio, como se explicaria, e como formularia o pedido de desculpas.

Daniel desceu. Cada um tinha tomado o seu rumo.

Júlio não havia sido visto pelos colegas naquela manhã.

Você viu Júlio? — continuou Daniel na sua busca por toda a ilha. As respostas eram sempre negativas.

Após várias tentativas frustradas, um homem de óculos com lentes pequenas, que assumira o comando da equipe de trabalho na restauração do depósito, disse que Júlio se encontrava na sala de Helmut. Daniel não esperou o homem terminar e partiu em disparada, os piores pensamentos sendo construídos em sua mente. Pouco tempo depois, estava ele em uma pequena sala que antecedia o gabinete do diretor. A sala de espera era adornada com sancas no teto, paredes pintadas em um tom de pês­sego e mobiliada com confortáveis poltronas de couro marrom, uma mesinha de tampo oval ao centro. A pesada porta de cedro que dava acesso à sala do diretor era ricamente adornada no melhor estilo barroco. Permanecia lacrada como a entrada monumental de um templo muito antigo.

Quinze asfixiantes minutos se passaram quando a porta se abriu.

O primeiro a sair foi Ramón. Logo atrás vinha Júlio, seus ombros estavam arqueados e o seu rosto expressava um enorme abatimento. Quando notou a presença de Daniel, Júlio foi até ele abrindo um sorriso amarelo.

Estou indo embora, meu amigo.

O quê?! Indo embora, como? Você foi... demitido? — questionou Daniel, perplexo. Ele não estava acreditando no que acabara de ouvir.

Eu cometi uma falha grave e não devo mais ficar trabalhando na ilha.

Mas a culpa foi minha, eu é que mereço ser expulso - argumentou Daniel, chamando para si toda a responsabilidade. — Vocês ouviram isso? — ele fez questão deixar bem claro para Ramón e Helmut que o olhavam com seriedade. - O erro foi meu! Júlio não teve culpa!

Ramón assistia a certa distância, porém calado.

Não se culpe, garoto — disse Júlio, confortando o menino. — Eu deveria ter feito uma vistoria completa antes de liberar a excessiva sobrecarga das prateleiras e estou pagando pelo meu erro. — Júlio deixou de falar por uns instantes. Estava tentando entender o que havia sucedido. — O que aconteceu, Daniel? Por que você deixou de fixar as últimas hastes?

A boca do garoto se abriu, mas ele não conseguiu falar. Não queria mentir para o seu amigo que tanto lhe ensinou, mas não podia falar a verdade. Daniel pensou em contar o motivo de não ter terminado a fixação das hastes, mas se ele revelasse a verdadeira razão do seu ato, não iria salvar a pele de Júlio e ainda comprometeria a si e aos seus colegas. Ele nada pôde fazer. Júlio colocou a sua mão no ombro de Daniel e depois respirou fundo, parecendo querer arranjar forças para se despedir.

Boa sorte, Daniel. Nos vemos algum dia.

A angústia se apoderou de Daniel ao ver o seu companheiro Júlio deixar o gabinete. Em seguida, o menino foi tomado por uma raiva crescente. A raiva se materializava nas figuras de Helmut e Ramón. Eles sabiam quem havia cometido o erro e náo tinham o direito de sacrificar um homem tão bom. Daniel subiu correndo para o seu quarto e começou a maquinar como poderia dar o troco. Ele estava sozinho com a sua raiva. Desviou os olhos enfurecidos para a janela como se esperasse encontrar as respostas lá fora. O sacrifício de Júlio não poderia ser em vão. Ele passou a mão em um papel e começou a rabiscar alguma coisa, depois riscava tudo e começava de novo. Combinou diversas possibilidades; esboçou outros planos. Parava. Pensava. Refazia tudo novamente. De repente, ele levantou a cabeça. Seus olhos brilhavam.

Acho que o nosso momento está chegando - profetizou num murmúrio perspicaz.

Daniel nem quis saber de almoçar. Havia perdido completamente o apetite e aproveitou cada minuto para arquitetar um plano muito arriscado que envolveria outras pessoas. A demissão sumária de Júlio desencadeou nele um desejo incontrolado de desvendar todo e qualquer segredo que Helmut e os seus seguidores ocul­tavam. Ele esperou pacientemente que cada amigo seu retornasse após o almoço e anunciou com a voz dura.

Não sei se vocês já foram informados, mas Júlio foi demitido.

Eu já estava sabendo - disse Chester, balançando a cabeça em sinal de desaprovação. — E o que mais se comenta por aí.

Eu pretendo fazer uma coisa muito arriscada - avisou Daniel, com ar severo. — E pra isso, eu vou precisar muita de sua ajuda, Rafael. - Daniel arrastou uma cadeira, sentando-se de frente para os três companheiros e começou a discorrer acerca de seu plano.

Desde que começamos a investigar os mistérios da ilha, descobrimos coisas interessantes, mas que aparentemente não se conectam — disse, apertando uma mão na outra. Os três ouviam atentamente. — Senão, vejamos: a floresta vigiada permanentemente, que quase a torna impenetrável; a sala secreta que guarda uma figura de pedra, provavelmente um grifo; um livro que descreve uma aventura fan­tástica e que é mantido a todo custo fora do alcance das pessoas; um homem que desaparece por quase um ano e quando volta, está cego de um olho; professores que pouco ou nada sabem, sempre se portando de maneira evasiva, optando por viver num lugar isolado a usufruir dos melhores centros educacionais do mundo — Daniel fez toda aquele preâmbulo para colocar a sua idéia. — Não há outra maneira de desvendarmos esses segredos, ou pelo menos descobrirmos um jeito de chegar­mos a eles, sem conhecer a fundo o que está mencionado no tal diário.

E o que você está pensando em fazer? - perguntou Marc, deixando-se levar pela curiosidade.

Daniel entrelaçou os dedos e expôs a sua idéia.

Eu pretendo entrar na biblioteca e passar uma noite lá dentro, lendo o diá­rio, para tirar a limpo essa história toda - disse, deixando todos pasmos.

Você não tem como fazer isso - duvidou Chester, torcendo o nariz.

Tenho sim! — confirmou Daniel, inabalável.

E eu posso saber como você pretende fazer essa loucura? — perguntou Rafael, totalmente dominado pela curiosidade.

Isso é você quem vai me dizer, ou melhor, me mostrar - respondeu, apon­tando para Rafael que aquela altura já estava mesmo querendo saber que idéia louca passava pela cabeça de Daniel.

Eu vou dizer? Do que você está falando?

Para pegar o diário, eu necessito abrir as portas da biblioteca, da sala do Helmut e, finalmente, a porta do armário. Você, Rafael, pode me mostrar como devo fazer. Depois disso, eu passo lá uma noite, leio o que for possível, e depois conto o que descobrir pra vocês - disse Daniel, explicando com cuidado.

Você não iria conseguir - rejeitou Rafael sobre a proposta insensata do amigo inglês.

E por que não? - indignou-se Daniel, levantando-se. — Acha que eu não posso aprender?

Deixe-me explicar com calma — ponderou Rafael. — Existem vários tipos de fechaduras. Alguns mecanismos se diferem bastante de outros. Além disso, cada fechadura se apresenta em um determinado estado; umas podem estar parcialmente enferrujadas; outras podem não estar devidamente lubrificadas. — Rafael gesticulava bastante com as mãos. — Existe também a questão do tato. Para se abrir rapidamente uma fechadura, a sensibilidade na ponta dos dedos tem que ser muito apurada. Às vezes é preciso combinar dois, até três arames ou outro instrumento, manejados de maneira apropriada, para se desmontar um mecanismo. E tem mais uma coisa, você tem que estar muito bem familiarizado com os ruídos que saem do interior de uma fechadura. Muitas vezes, é pelo som que conseguimos destravar as mais complicadas. E finalmente, isso tudo que eu lhe falei não se aprende de um dia para o outro. Se você não se mantiver calmo na hora, não vai conseguiu perceber essas minúcias e isso pode deixar você em apuros.

Mas você pode ao menos se empenhar para me ensinar - insistiu Daniel, inconformado.

Eu não posso fazer isso — recusou-se Rafael. - Se algo desse errado, eu não me perdoaria.

É a sua última palavra? — pressionou-o Daniel.

É. Prefiro que seja assim. Náo quero passar o resto da minha vida carregando uma sensação desagradável de culpa.

A palavra "culpa" fez Daniel lembrar-se de Júlio. E ele tinha a exata dimensão do que era esse sentimento.

Bastante desanimado, Daniel voltou a sentar-se apoiando os cotovelos sobre as pernas.

E agora, vamos desistir? - questionou ele, olhando os companheiros um a um, como se todos fossem traidores.

Por um momento o quarto ficou em silêncio. Marc, Rafael e Chester se olha­ram reciprocamente. Parecia não haver uma resposta conclusiva para a pergunta de Daniel. Rafael tomou a frente para responder.

Eu vou pegar o diário no seu lugar - disse de forma surpreendente.

Você não pode fazer isso! - protestou Daniel. - Eu tive a idéia. Eu me prontifiquei a ir. E você sempre foi contra corrermos tantos riscos. Não posso deixar acontecer com você o mesmo que houve com Júlio. Se alguém tiver que entrar na biblioteca e apanhar aquele diário, que seja eu.

Você não teria nenhuma chance — disse Rafael, em tom de reprovação. — Além disso, eu estou em melhores condições de executar essa operação do que qualquer um nesse quarto. Você se esqueceu quem é que auxilia na biblioteca? — Rafael tinha fortes motivos para se candidatar como voluntário. Ele prosseguiu com a sua argumentação: — Em tempo recorde eu tive o diário nas mãos. Se a estra­tégia que você montou der certo, antes mesmo das aulas reiniciarem, nós estaremos de posse das informações que estão preservadas no diário.

Pelo que eu entendi, a idéia é fazer tudo na calada da noite - manifestou-se Chester. - Mas como, se os corredores escuros do prédio ficam apinhados de sentinelas espreitando cada movimento dos alunos, mesmo quando vamos apenas ao banheiro?

-Ainda não pensei nessa questão - disse Rafael, olhando para fora da janela, os olhos contra o céu muito azul e sem nuvens. - Mas deve haver um meio de se chegar até a biblioteca sem ser descoberto pelos monitores.

É muito perigoso - alertou Marc, manifestando cautela. - A distância entre o nosso quarto e a biblioteca é muito longa e nenhum de nós fez esse trajeto à noite. Ninguém aqui sabe o que você poderia encontrar pelo caminho.

Eu não estou dizendo que deverá ser feito dessa forma - explicou Rafael, justificando-se. - Mas por enquanto, foi a única que me ocorreu.

É um tiro no escuro - disse Daniel, rejeitando completamente a proposta de Rafael. - Se te pegarem você não vai conseguir alegar nada em sua defesa.

Posso alegar que sou sonâmbulo — brincou Rafael, fazendo o possível para suavizar sua própria inquietação.

Eu sugiro pensarmos melhor em outra alternativa mais coerente e segura - ponderou Chester, preparando-se para sair. — Eu não concordo que um de nós tenha que se arriscar tanto assim. Lembrem-se de Bruno. Por muito menos ele quase foi colocado pra fora. Bem, tenho que ir agora, se eu pensar em algo, aviso vocês.

Rafael voltou à biblioteca inspecionando atentamente todo o percurso que deveria fazer e constatou que durante a noite, com todas as luzes apagadas e os monitores rondando, as chances de ele ser descoberto eram grandes. A biblioteca estava mais uma vez, praticamente deserta. Somente Maria, a bibliotecária, fazia algumas anotações aproveitando o pouco movimento dos estudantes. Rafael sentou e ficou meditando sobre a sua tomada de posição. Não sabia exatamente porque havia se oferecido precipitadamente para tentar pegar o diário no lugar de Daniel. Provavelmente achou que o amigo já havia extrapolado a sua parcela de problemas com o acidente e a demissão de Júlio. O certo é que o contato com o diário desper­tou nele um desejo de saber mais sobre o seu conteúdo. Rafael achava que lendo o que se escondia naquelas páginas talvez encerrasse de uma vez por todas aquela situação que os atormentava há tanto tempo. Mas havia mais: depois que o teve nas mãos, parecia que havia sido enfeitiçado e agora ele estava tão curioso quanto seus amigos. O seu receio era se aquilo que ele descobrisse acabasse empurrando-o para um caminho sem volta. Mas como chegar até o livro sem ser descoberto? Os olhos de Rafael percorriam a imensa biblioteca e nenhuma inspiração parecia lhe ocorrer naquele momento. As horas passavam e ele não conseguia pensar em nenhuma solução para o problema. A biblioteca era tão grande, fácil de se esconder no labirinto de estantes que se ramificavam para o seu interior.

Mas é claro! Como não pensei nessa possibilidade? — murmurou ele, exibindo um reservado sorriso de satisfação.

A porta se abriu e Helmut caminhou desferindo passos duros sobre o assoalho, mostrando-se carrancudo, passando por Maria e Rafael sem proferir uma palavra sequer. Era um comportamento típico quando ele estava preocupado ou irritado com alguma coisa. Naquele estado, Helmut não hesitaria em expulsar Rafael se o garoto fosse pego em circunstâncias tão embaraçosas como a que ele estava disposto a se meter. Uma sensação desconfortável e ameaçadora se abateu sobre o menino só de ver a imagem sombria e enigmática do diretor.

Mas Rafael já tinha uma estratégia e estava disposto a colocá-la em prática a qualquer custo. Ele tratou de controlar seu entusiasmo para não dar na vista. A tarde foi chegando ao fim e Rafael decidiu fazer um teste para confirmar suas suposições. Ele aguardou o quanto pôde e constatou que se ficasse um pouco além do horário a Sra. Maria sairia antes dele.

Já estou indo, Rafael, você não vem? — disse ela, dando a volta no balcão, a inseparável bolsa em sua mão.

Ficarei mais um pouco — respondeu ele, fingindo estar cercado de trabalho. - Não gosto de deixar nada por fazer.

Então até amanhã. - Despediu-se ela, deixando-o sozinho mais uma vez com Helmut. O diretor continuava em sua sala envidraçada, inclinado sobre o cobiçado diário.

Rafael esperou uns poucos minutos e se dirigiu até Helmut, dando umas batidinhas no vidro.

Estou indo, senhor, precisa de alguma coisa?

Não, obrigado rapaz — respondeu sem levantar os olhos.

Rafael notou que, até o instante em que saiu da biblioteca, Helmut permane­cia de cabeça baixa, totalmente absorvido pelo teor do livro. O garoto agora sabia como poderia chegar ao seu objetivo sem se arriscar tanto. Sem desperdiçar tempo, ele precisava colocar os seus companheiros a par do seu estratagema.

O último a chegar foi Marc, que havia passado a tarde toda às voltas com os preparativos da apresentação especial da semana seguinte. Os seus amigos já se encontravam no quarto posicionados para uma nova reunião que definiria os passos a serem dados e que mudaria para sempre as suas vidas.

Acomode-se — disse Daniel, indicando um lugar. - Rafael tem algo muito importante para nos dizer.

Marc sentou-se ao lado de Chester e sentiu que alguma coisa de grande impor­tância estava para se definir.

Eu sei como entrar na biblioteca sem ter que percorrer todo o caminho escuro - anunciou Rafael com voz firme. - Eu só preciso não sair de lá.

Como planeja isso? — indagou Chester com desconfiança.

É simples. No final do expediente, após as seis da tarde, a Sra. Maria normalmente vai embora e só ficamos eu e o diretor na biblioteca. Isso vem se repetindo sempre que eu estendo o meu horário.

E aí... - incitou Daniel, querendo saber mais.

Quando me despeço do Sr. Helmut, geralmente ele só ergue a cabeça para responder o cumprimento e logo volta a ficar compenetrado no diário. Hoje, nem se deu ao trabalho de olhar para mim.

Acho que estou começando a entender... mas, continue - disse Chester, seguindo o raciocínio de Rafael.

Hoje, observei quando estava quase fechando a porta, ao sair, que ele continuava curvado sobre a mesa, com a atenção toda voltada para o diário e não verifi­cou se eu realmente havia saído da biblioteca. Quando ele não estiver olhando, eu simulo estar deixando a biblioteca, mas na verdade, continuo lá dentro e depois, é só esperar o diretor sair. Essa é a oportunidade que eu preciso para permanecer lá a noite toda. Só eu e o diário.

E amanhã? - questionou Marc, ávido por saber de todo o plano.

Eu saio bem cedo, antes da biblioteca abrir, e mesmo se me pegarem nos corredores, eu posso dizer que acordei mais cedo e estava indo para o pátio pegar um pouco de ar ou coisa assim.

A idéia parece boa, mas ainda é arriscada - observou Chester, coçando a cabeça. — Mas não consigo pensar em uma melhor.

E como você pretende enxergar lá dentro depois que as luzes forem apaga­das? — perguntou Daniel, não querendo deixar escapar nenhum detalhe.

Bem, nisso talvez você mesmo possa me ajudar, Daniel — disse Rafael, esticando as pernas sobre uma cadeira vazia. — Como você tem acesso à manutenção, poderia conseguir uma vela de tamanho suficiente para durar algumas horas, ou quem sabe, várias velas menores, e não se esqueça dos fósforos. Imagino que se eu estiver de posse do diário por umas três ou quatro horas, já será o bastante para conhecer boa parte do seu conteúdo. Um lampião ou mesmo uma lanterna chama­riam a atenção pelo grande volume. Velas são mais discretas.

Isso eu posso conseguir - confirmou Daniel.

E se te pegarem? - provocou Chester. - O que você vai fazer?

Pra mim estará tudo acabado. Vou negar a participação de vocês até o fim e vocês farão o mesmo. A propósito, não podemos deixar nenhuma pista se alguma coisa falhar. O mais sensato é destruir aqueles papéis com as anotações do diário.

A posição segura de sacrifício a que Rafael estaria disposto a se submeter, se algo desse errado, doeu em Daniel e àquela altura ele nada poderia fazer. Bastava a ele confiar na inteligência e habilidade do amigo, e desejar-lhe boa sorte. As coisas estavam indo muito rápidas e eles estavam perdendo a capacidade de medir as perigosas conseqüências que estavam por vir.

Quando você pretende executar o plano? - perguntou Daniel, apreensivo.

Amanhã mesmo - disse Rafael, dando um grande suspiro. - E que Deus não me abandone...

Talvez você precise de um pouco mais de tempo para se preparar - sugeriu Daniel, ansioso.

Não há tempo, tem que ser amanhã! - sentenciou Rafael. - Depois que as aulas recomeçarem, a biblioteca vai estar apinhada de alunos até o fim do expe­diente e se tornará bem mais difícil eu arrumar um lugar para me esconder - ele fez uma pausa. - Mas se tudo correr conforme foi planejado, muito em breve, provavelmente, estaremos conhecendo algo de extraordinário.

Embora todos estivessem aflitos com o que estava por acontecer, não foi o suficiente para tirar o sono de Chester e Marc. Já Rafael e Daniel, não conseguiram pegar no sono tão rápido. Rafael procurava repassar mentalmente cada particula­ridade do que tinha que ser feito. Não poderia haver nenhuma falha. Ele foi inva­dido por um forte sentimento de insegurança e não parava de roer as unhas para compensar a sua ansiedade. Daniel se sentia responsável por ter tido a idéia original de passar a noite na biblioteca. Ele refletiu sobre todas as vezes que pressionou Rafael e até o criticou por não ser mais participativo nas investigações. Lembrou-se das vezes em que Rafael se metia nas conversas, trazendo novas informações que contribuíram substancialmente para eles terem chegado até ali.

Da posição em que Daniel estava dava para ver o Armamento cristalino. Um filete de nuvem cruzava o céu noturno, ora ocultando uma estrela, ora escondendo outra. A cena era quase hipnótica. Uma brisa fresca entrava pelo quarto, dimi­nuindo um pouco o clima pesado que se abatia sobre eles.

O sol levantou-se, irradiando o seu brilho por toda a ilha num espetáculo magnífico. Daniel abriu os olhos e não viu mais Rafael na cama. Ele já havia saído. A manhã e a tarde também voaram, e Daniel, obviamente, não conseguia se concentrar em nada que fizesse. Tentou ocupar a cabeça com alguma atividade, mas o nervo­sismo ia aumentando a medida que a noite se aproximava. O anoitecer chegou mais uma vez e Daniel, que mal havia almoçado, nem queria saber do jantar, indo direto para o seu quarto. Chester e Marc já haviam chegado e mantinham o olhar distante, aparentemente não notando a presença de Daniel. Uma batida na porta desconcentrou Daniel que, ao abri-la, teve a perturbadora surpresa da visita de Bruno.

Pegaram Rafael! - avisou ele, ofegante e com os olhos arregalados.

Não é possível! - exclamou Daniel, incrédulo. - Como descobriram nosso plano?

O quê? Vocês também participaram dessa tolice? - perguntou Bruno, per­plexo. — O meu exemplo não serviu pra nada?

Onde ele está? — quis saber Daniel, apavorado.

Está sendo levado para a floresta, e de lá nunca mais poderá sair... E logo você também será levado, garoto idiota.

Os olhos de Bruno se incendiaram e labaredas infernais saíram de suas narinas e de sua boca. Daniel se afastou daquele ser grotesco, e ao olhar para Chester e Marc, como que para pedir ajuda, viu que os dois também despejavam línguas de fogo, numa cena dantesca.

Daniel acordou sobressaltado. Era outro de seus pesadelos. Será um aviso? — pensou ele.

Imediatamente, Daniel olhou para a cama de Rafael. Ele estava lá, com o braço direito sobre os olhos. Náo havia como saber se estava dormindo ou não. Daniel fez de tudo para pegar no sono novamente; demorou, mas ele conseguiu.

Na manhã seguinte, Daniel despertou de um sono turbulento e a primeira coisa que fez foi procurar Rafael em sua cama. Rafael não estava lá. Dois pesadelos numa mesma noite já era demais. Daniel ergueu o tronco, apoiando-se em um cotovelo e viu seu amigo sentado à mesa, apoiando a cabeça com as mãos. Rafael lia o livro do professor Rajev para aprimorar seus conhecimentos. Talvez isso o auxiliasse de alguma forma.

Conseguiu dormir? — perguntou Daniel, com voz arranhada.

Sinceramente... Muito pouco — confessou Rafael, virando uma página.

Está querendo desistir? — indagou Daniel, desejando penetrar nos pensamentos de Rafael - Se você mudar de idéia, nós estaremos do seu lado.

Não, isso está totalmente fora de questão - respondeu, determinado. Ele esfregou os olhos e depois continuou: — Eu vou dizer uma coisa e espero que sirva de conforto para você e para eles — disse, se referindo a Chester e Marc que ainda dormiam. - Estou fazendo isso porque eu quero. Minha vontade de desvendar esse mistério todo superou o meu medo. Espero que eu não venha a me arrepender depois. De qualquer modo, preciso passar por isso. Não sei bem por que, mas eu não volto mais atrás.

Estava criada entre eles uma espécie de aliança. O que acontecesse a um, afeta­ria aos demais. O respeito e a admiração entre eles haviam crescido em proporção exponencial.

Rafael se levantou.

Não esqueça da vela e dos fósforos. Você tem como consegui-los até a hora do almoço?

Sim, deixe isso comigo — assegurou Daniel, pulando da cama. — À tarde nos encontramos e combinamos os detalhes finais.

Marc e Chester acordaram com a conversa e acompanharam Daniel para o desjejum.

A grande vantagem de Rafael era que ele podia ficar horas na biblioteca sem chamar a atenção. Andava por cada corredor, escolhendo o melhor local onde pudesse se instalar, longe das poucas janelas, que por sinal, permaneciam fechadas durante a noite toda. Ele vasculhou cada canto, cada fresta, pois quando acendesse a vela, a sua luminosidade não poderia, por razão alguma, passar para o lado de fora ou chamaria a atenção dos monitores noturnos.

Quando os meninos se encontraram novamente, sabiam que aquela seria a última vez que estariam os quatro juntos, e que Rafael só voltaria a falar com eles no dia seguinte. Se tudo corresse bem...

Trouxe o que lhe pedi? - perguntou Rafael, que já havia guardado em uma pasta de couro marrom o restante do material que precisaria para cumprir a sua missão.

Está aqui — confirmou Daniel, entregando-lhe um pacote fechado. — Uma vela grossa de uns vinte centímetros e uma caixa de fósforos com uns dez palitos. Deve ser o suficiente. - Rafael assentiu com a cabeça.

Se eu não voltar amanhã cedo, comuniquem aos monitores o meu desaparecimento e finjam que não sabem de nada — disse, escondendo o pacote em sua pasta de couro. — Se perguntarem por que não avisaram na noite anterior, falem que eu havia dito que iria trabalhar até mais tarde e que não me esperassem. Daí, vocês podem dizer que acabaram dormindo e só deram pela minha falta de manhã.

Muito bem, agora temos que nos comportar da maneira mais normal pos­sível — recomendou Daniel. — Ao retornarmos para o alojamento no final do dia, não devemos mais sair do quarto. Qualquer movimento anormal de nossa parte levantará suspeitas.

Como você vai se sair sem comida nem água, Rafael? - perguntou Chester, com a sua peculiar prudência.

Eu tenho alguns biscoitos que peguei no refeitório hoje de manhã e a água eu me viro na torneira do lavabo da própria biblioteca.

Você tem que sair de lá logo que começar a clarear o dia, o Sr. Ramón costuma levantar bem cedo - avisou Marc, que conhecia muito bem os hábitos de seu tutor.

Rafael acomodou a pasta debaixo do braço pronto para se despedir.

Tenho de ir agora, pessoal - disse, levantando-se como se tivesse uma montanha pesando nos seus ombros.

Você tem mesmo certeza que quer levar isso adiante? - insistiu Daniel, pela última vez, considerando aquela pergunta como se fosse parte de um ritual.

É como eu falei, Daniel, não posso mais recuar - disse resoluto, abrindo a porta para sair.

Você vai conseguir — disse Chester, incentivando-o.

Espero que sim, Chester... Espero que sim... — suspirou Rafael.

Depois que Rafael deixou o quarto, os outros três ficaram estáticos sem saber o que dizer. Daniel quebrou o silêncio.

Vai ser a noite mais estressante da minha vida — desabafou, massageando a nuca que estava tensa como aço.

Se o apanharem eu não fico mais nessa escola — disse Daniel, solidarizando- se com Rafael. - Não seria justo eu continuar estudando aqui, enquanto ele abandona os seus sonhos por nós.

Eu estou com você - acompanhou-o Marc.

Então vamos fazer um pacto - completou Chester. - Se o pior acontecer, todos saímos.

Os três juntaram as mãos selando o compromisso.

Quando atravessava o belíssimo jardim interno da escola, rumo à biblioteca, Rafael foi abordado por Margaret que não aparecia fazia algum tempo.

Oi, Rafael, você esteve com meu irmão?

Olá, Margaret, ele estava no quarto... agora a pouco, se você o aguardar no pé da escada, deve topar com ele. Daniel e os outros rapazes já estavam de saída - disse com a voz arrastada e o semblante nitidamente aturdido.

Margaret conhecia Rafael o suficiente para desconfiar que algo ia errado. O menino estava sem aquele aspecto afável que costumava olhar para ela.

Você está bem? Parece estranho — ela comentou de forma analítica.

Não é nada - tentou esconder. Ele forçou um sorriso que não conseguiu disfarçar a sua preocupação.

Não... Você não me engana. Tem alguma coisa te afligindo — insistiu ela, querendo descobrir o motivo. A percepção de Margaret era muito aguçada nessas questões e ela sabia que a única coisa que alterava o comportamento de Rafael era a insistência de seu irmão, Daniel, em querer envolvê-lo nos assuntos misteriosos da Ilha da Coroa. — Meu irmão continua te pressionando?

Não! — negou ele com veemência. — Só estou um pouco ansioso com a pro­ximidade das aulas. Depois de amanhã começamos tudo de novo e você sabe como eu sou com essas coisas de nota.

Está bem, se você está dizendo... - disse, dando de ombros. - Se precisar de ajuda, me procure — avisou, se afastando.

Será que está dando tanto na vista? — pensou ele, vendo Margaret se distanciar e desaparecer nas sombras de uma coluna.

Margaret esperava impacientemente, tamborilando no corrimão da escada de acesso às duas alas, a masculina e a feminina. Enfim, Daniel, Chester e Marc apon­taram no alto da escada. Mal desceram e ela atacou:

Vocês descobriram mais alguma coisa sobre o livro?

Não! - antecipou-se Daniel, esforçando-se para evitar que Marc e Chester revelassem os novos planos.

Margaret encarou um por um e não se deu por convencida.

Acho que estão me escondendo alguma coisa - ela fez uma pausa esperando que a reação deles os entregassem. — É o livro, não é?

Que livro? - perguntou Chester, se fazendo de desentendido. — Ah... o livro do Sr. Helmut?... - Daniel arregalou os olhos para Chester.

Falem baixo! — repreendeu-os Marc, olhando para os lados. - Querem que sejamos descobertos?

Bruno me contou detalhes daquele livro - disse ela, baixando o tom de voz. - E estou desconfiada que vocês estão tramando alguma para chegarem até ele.

Vamos andando - disse Daniel, pegando a irmã pelo braço. — No caminho eu te explico.

Eles pararam próximos ao jardim interno, o mesmo lugar que Margaret havia conversado com Rafael minutos antes.

Na verdade estamos tentando bolar um jeito de chegarmos até esse tal livro, mas estamos tendo dificuldades. Você teria alguma sugestão? — disse Daniel, pro­curando desviar a atenção da irmã.

Eu nem pensei sobre isso — disse ela, com o olhar fixo no irmão. — Conheço muito bem você Daniel e tenho certeza que vocês sabem algo que eu não sei.

Você está imaginando coisas — comentou, rindo para os companheiros. — Por que iríamos esconder logo de você que está conosco desde o início?

Talvez, para me proteger — disse ela, inclinando a cabeça para o lado. — E se for assim, o motivo deve ser muito sério. Ou será que é para ficar com toda a glória para vocês?

Ora Margaret, não seja boba. Você está fantasiando essas coisas, e o pior, está acreditando nelas - disse Daniel, firme, resistindo aos ataques da irmã.

Margaret não acreditou muito nas explicações dadas. Ela achou por bem dar uma trégua, mas sua personalidade obstinada não deixaria ficar assim, e Daniel sabia muito bem disso. Então mudou o foco da conversa.

O que está acontecendo com Rafael? — perguntou ela, voltando ao ataque.

C-Como assim? — gaguejou Daniel. Ele sabia que quando sua irmã come­çava a xeretar, nada a segurava enquanto náo conseguia o que queria.

Encontrei-o aqui mesmo no jardim faz pouco tempo, estava visivelmente apreensivo.

Deve ser impressão sua. Não há nada com ele. Não é verdade, rapazes? — disse trocando o peso de uma perna para outra.

Margaret ficou olhando por algum tempo para os três. Para eles parecia uma espinhosa eternidade.

Sinto decepcioná-los, mas vocês não me convenceram. E saibam que não é só o Rafael que anda estranho, vocês também estão bem esquisitos. — O tom de sua voz mudou para algo ameaçador. - Ouça bem, meu caro irmão. Eu vou descobrir o que vocês estão escondendo de mim e quando isso acontecer, você me paga, Daniel, seu traidor - esbravejou, virando as costas e saindo. Não chegou a dar cinco passos e voltou-se para eles, ainda com uma enorme indignação estampada no rosto. - Aliás, todos vocês são uns traidores — desabafou, indo embora pisando duro.

Mais essa agora - disse Daniel, desanimado.

E ainda nos chamou de traidores! - disse, Chester surpreso, olhando para Marc que coçava o queixo ainda assimilando a repreensão que acabara de receber de uma garota.

Ela ainda vai nos trazer problemas — profetizou Daniel. - Podem esperar...

Por que você está querendo deixar Margaret fora do nosso plano? - perguntou Chester, não aprovando muito a decisão de Daniel.

Exatamente por isso - reforçou Daniel, olhando Chester pelo canto dos olhos. - Porque ela ainda vai nos causar algum problema. Vocês não conhecem bem a minha irmã. Ela é ainda mais impulsiva do que tem se mostrado e essa demonstra­ção de irracionalidade foi só o começo. Ela vai aprontar, disso eu não tenho nenhuma dúvida. E tem outra coisa, ela tem razão. Eu quero sim... protegê-la.

A biblioteca continuava com a freqüência baixa de alunos. Rafael havia colo­cado a sua pasta de couro em cima de sua mesa de trabalho.

Trouxe tarefa para a biblioteca, Rafael? — perguntou Maria, sorridente, se referindo à sua pasta.

Ah... é só uma pesquisa que quero fazer mais tarde — explicou meio sem graça. — Nada de importante.

Conforme o tempo passava, um frio na barriga de Rafael se tornava mais intenso. Ele tinha perdido a conta de quantas vezes conferiu as horas no relógio pendurado na parede à sua frente. Suas unhas já estavam destruídas pela voracidade de seu nervosismo.

Quatro e meia! - murmurou ele, entre os dentes.

A hora estava se aproximando, e cada vez mais, Rafael não conseguia disfarçar a sua ansiedade.

Você está se sentindo bem? - perguntou Maria, cochichando ao pé do ouvido do menino, reparando a sua inquietação.

Estou, sim senhora, acho que alguma coisa que comi não me caiu bem - respondeu, justificando o seu comportamento nada natural.

Se você quiser ir embora, sinta-se bem à vontade.

Obrigado, senhora, mas estou perfeitamente em condições de prosseguir com os meus afazeres — disse, dispensando a generosa oferta.

Cinco e meia! Preciso tomar um pouco de ar ou vou explodir - Rafael saiu e foi até o jardim que ficava no fim de um dos corredores que passavam pela biblioteca. Ele procurou equilibrar o raciocínio. Por um momento pensou ter visto alguém entre as folhagens de um arbusto mais alto. Um pássaro levantou voo. Deve ser isso — pensou, acompanhando com o olhar a ave pousar em uma janela do segundo pavimento. Uma ponta de arrependimento espetou o seu coração. A figura de seus pais era mais presente na sua mente. - Não posso fraquejar. Não agora. - Lutou contra os seus medos, e após respirar fundo, voltou e sentou-se novamente. Maria, silenciosamente, o observava por cima dos óculos.

Faltam dez minutos para as seis horas! — resmungou. O tempo estava se esgotando, se Helmut não aparecesse de uma vez Rafael teria que sair da biblioteca junto com a bibliotecária e o plano teria fracassado.

Faltam cinco minutos! — O menino já estava entrando em desespero. Toda aquela ansiedade estaria sendo em vão e aí ele teria que passar por tudo de novo no dia seguinte.

Só tenho três minutos! — O seu batimento cardíaco acelerou ao máximo. Maria já havia retirado sua bolsa de dentro do armário, ajeitando-se para ir embora.

Um minuto!

A porta fez um barulho brusco ao ser escancarada e Rafael ouviu Helmut cumprimentar Maria. Os dedos do diretor deslizaram sobre a mesa de Rafael quando ele passou. Era uma maneira bastante particular de cumprimentá-lo. Como de hábito, Helmut enclausurou-se em sua sala e mergulhou nas páginas do diário de capa preta.

Rafael não sabia mais se estava aliviado ou apavorado.

Você fica, Rafael? — O menino foi arrebatado dos seus pensamentos secretos pela voz carinhosa de Maria.

Sim, fico, mais um pouco. Ainda tenho que fazer algumas anotações.

Bem, nesse caso, boa sorte e boa noite — disse ela, despedindo-se e deixando Rafael outra vez a sós com o diretor.

Rafael, como um felino, esperava o melhor momento para dar o bote. Se Helmut saísse logo, ele também teria que ir embora. Portanto, o menino não sabia quanto tempo teria para decidir, mas provavelmente não seria muito. Ele engoliu em seco e se levantou. Helmut estava na mesma posição: debruçado sobre o diário e de vez em quando virava uma página.

Sr. Helmut! — chamou, batendo com as pontas dos dedos no vidro. — Estou indo embora, vai precisar de mim?

Não rapaz, obrigado - agradeceu, tirando os óculos e apertando os olhos. — Daqui a pouco eu também irei, estou particularmente cansado hoje - disse, inclinando-se para trás e forçando as costas contra o encosto da cadeira.

Então... boa noite, senhor — virou-se, foi até a porta e saiu, fingindo fechá-la.

Rafael vasculhou o corredor que estava vazio e quase escuro. A noite chegava

depressa. Pela fresta da porta entreaberta dava para ver Helmut pensativo como se sua mente não estivesse mais ali. Naquela posição, Rafael seria visto se entrasse novamente na biblioteca. Ele ouviu vozes vindo do fundo do corredor, eram moni­tores assumindo seus postos. O momento era aquele, ou Rafael entrava ou desistia. As vozes aumentavam, logo o menino seria visto se permanecesse ali parado e inde­ciso. Helmut voltou a ler o diário. Era agora ou nunca. Rafael prendeu o fôlego e abriu a porta com cuidado, fazendo uma careta, torcendo para não cometer nenhum ruído. Seus olhos estavam pregados em Helmut que se voltava para a lei­tura. O garoto deslizou sorrateiramente para o corredor de estantes mais próximo, sumindo do campo de visão do diretor. Ele esvaziou os pulmões e se esgueirou cau­telosamente para o final do corredor banhado de penumbra, sentando-se no chão de tábuas corridas. Mal acreditava que tinha conseguido. Só lhe restava esperar o diretor sair para colocar em prática a segunda fase do plano: pegar e ler o diário.

A porta da sala envidraçada se abriu num rangido agudo que assustou Rafael. Passos lentos caminhavam pela biblioteca. Uma cadeira foi arrastada abrindo cami­nho no grande salão. Rafael fechou os olhos para aguçar a audição. Os passos se direcionaram para o corredor em que o menino se escondia, logo aquele que era o mais afastado da sala de Helmut. O som dos sapatos batendo no assoalho de madeira bombavam nos ouvidos de Rafael. Ele, na tentativa de se esconder, encolheu-se o quanto pôde, se apertando contra a última estante que encerrava o corredor. Helmut se aproximava lentamente e estava a uma curva do garoto assustado. O menino podia até ouvir o roçar da roupa do diretor quando ele se movimentava. Rafael prendeu a respiração tentando não produzir nenhum barulho, por menor que fosse, que pudesse chamar a atenção. Um livro foi encaixado na estante. Ele conhecia muito bem aquele som, pois fazia aquilo o dia todo. Os passos começaram a se afastar, deixando Rafael um pouco menos tenso. Agora ele podia ao menos respirar. As janelas de madeira também foram fechadas com trincos de ferro que entravam no batente produzindo um baque seco. Helmut trancou sua sala e desligou um a um os três interruptores deixando o lugar às escuras. Rafael ainda ouviu o girar da chave que confirmou que ele estava finalmente sozinho na imensa biblioteca. O garoto ainda precisava esperar algum tempo, caso Helmut resolvesse voltar.

Marc encontrou Chester subindo as escadas de acesso aos dormitórios.

Soube de alguma coisa? - perguntou o francês, ávido por novidades sobre Rafael.

Nada, não vi Rafael depois de hoje à tarde - disse Chester, apressando o passo para chegar mais rápido ao quarto. - A essa hora ele já deve estar com o plano em andamento.

A dupla entrou no quarto e encontrou Daniel, sentado, batendo nervosa­mente um lápis na mesa. O inglês se ajeitou na cadeira.

Ele não apareceu até agora, o plano deve ter dado certo — presumiu Daniel.

Ou ele foi descoberto e está na diretoria respondendo a uma série de perguntas — arriscou Marc, sarcasticamente.

Nem brinque com isso — protestou Chester em tom de repreensão.

Rafael é esperto, ele não se deixaria agarrar tão facilmente — disse Daniel, confiando na astúcia do colega.

Não adianta ficarmos fazendo suposições agora - disse Chester, desamar­rando os sapatos e os empurrando para debaixo da cama. - Eu acredito na com­petência de Rafael e amanhã ele vai ter tantas coisas para nos contar que teremos assunto pelo resto de nossas vidas — concluiu com otimismo.

Acho que ele não volta mais — sussurrou Rafael para si mesmo, enxergando somente as silhuetas escuras dos móveis.

Era hora de agir. Ele rastejou tateando cuidadosamente até a porta de saída, depois retirou de sua pasta uma toalha de banho e enrolou-a em formato de canudo, usando-a para tampar a fina fresta horizontal que se formava entre o pé da porta e o chão. Em seguida, percorreu pelas sombras em direção ao lavabo e pegou uma pequena toalha de rosto e a pendurou na maçaneta. Ele fez uso das toalhas para impe­dir que a luz da vela fosse vista por quem estivesse do lado de fora. A vela e os fósforos foram tiradas da pasta e em segundos o ambiente tinha luz própria. A tampa de uma lata serviu de suporte para a vela que começava a derramar as primeiras lágrimas de cera quente. A sombra de Rafael rodava pelo salão à medida que ele se movimentava até o gabinete do diretor. Três pequenos arames surgiram do bolso de sua calça; eram os instrumentos necessários para suas mãos habilidosas destravarem qualquer fecha­dura. Ele escolheu um que melhor se adequasse à primeira fechadura, a da sala de Helmut, introduzindo habilmente a diminuta haste metálica e, pronto: um clic se ouviu. A porta estava aberta. O próximo passo era o armário que ficava logo atrás da mesa de Helmut. Nesse, Rafael teve de lançar mão de um segundo arame, que combinado ao primeiro, desarmou o sistema de duas linguetas que cerravam a porta do armário; o sistema de travas mais parecia a de um cofre. Rafael se sentiu recompensado pelo seu esforço. Um êxtase fez suas mãos tremerem quando seus olhos encontraram o livro negro. O diário estava a poucos centímetros de suas mãos; ele o pegou, colocando-o sobre a mesa e aproximando a vela das páginas amareladas. O lume da vela bruxuleava, dando um aspecto medieval ao ambiente obscuro. Os vidros que envolviam a sala devolviam a pálida chama em reflexos. A fisionomia de Rafael mudava de espanto para admiração numa fração de segundos. Ele mal podia crer no que estava escrito. Não rodia ser verdade, e se fosse, Alexei Martov, o autor do diário, estava certo quando falou que aquela era a experiência mais fantástica de sua vida. Ainda havia muita coisa para ler, para conhecer, e a vela estava diminuindo muito rapidamente.Tudo que Rafael lia era fascinante, cada linha merecia a sua total atenção.

— Isso não pode ser verdade! — exclamava, perplexo, enquanto umedecia os dedos com a ponta da língua.

Rafael apressou a leitura, pulando alguns trechos e se fixando em outros de maior interesse. Dois terços da vela já haviam derretido e ele não havia lido muita coisa. A noite avançava e a cada página ele se deparava com uma nova surpresa. Antes que o último brilho da chama iluminasse o diário, ele se lançou para as últi­mas páginas, queria saber o desfecho daquela história alucinante. A luz se apagou, não havia mais nada a fazer. O diário retornou ao seu lugar. O rapaz teve que se esforçar dentro da escuridão da biblioteca para deixar tudo como estava, sem vestí­gios da sua visita. A única prova da sua presença era o cheiro de cera queimada que deveria desaparecer pela manhã. Pelo menos era isso que ele imaginava. Auxiliado mais uma vez pelo tato, ele voltou ao fundo da biblioteca e se deitou no assoalho duro e frio, fazendo de travesseiro a sua pasta de couro. Rafael procurou dormir, mas sua excitação era muito grande, fazendo os seus pensamentos rodopiarem, tentando digerir o que acabara de ler.

Começo a compreender porque o Sr. Helmut lê tantas vezes esse diário — pensou ele, dando sentido às coisas. Os rapazes não vão acreditar quando eu lhes contar o que descobri.

 

                                         Segredos Revelados

A algazarra dos pássaros prenunciando a alvorada despertou Rafael de seu breve sono. Ele só conseguiu dormir umas poucas horas quando finalmente o can­saço o venceu de tanto esperar clarear o dia. A biblioteca ainda se encontrava na penumbra quando ele se levantou, passou a mão em sua pasta e foi até a saída, gru­dando o ouvido na porta e procurando detectar a presença de um possível monitor indesejável. Não ouviu nada.

- Tenho que sair daqui logo — disse para ninguém, num tom quase inaudível.

Rafael pegou do bolso um de seus pequenos arames e, mordendo o lábio, for­çou o mecanismo interno da fechadura da biblioteca até destravá-lo por completo, depois girou a maçaneta lentamente, enfiou a cabeça para fora se certificando se a passagem estava livre. Ninguém. Ele fechou a porta cuidadosamente quando saiu e fez o processo inverso, travando o mecanismo. Pé ante pé se esgueirou pelo cor­redor, passando pelo lado do jardim que já revelava seu colorido, ainda tênue pela ausência plena da luminosidade matinal. O cheiro da manhã era bom e suave. Pas­sos apressados vinham em sua direção, obrigando-o a se esconder atrás de uma das colunas que margeavam o florido pátio interno. As passadas ligeiras cruzaram por ele e se distanciaram até sumirem por completo. Ele só conseguiu identificar quem era quando se esticou e viu um monitor apressado sumir nas sombras. Olhou uma última vez as altas paredes de janelas que cercavam o jardim interior da escola, não deveria haver nenhum aluno acordado. Rafael dobrou outro corredor e se arras­tou junto às paredes, fazendo de tudo para evitar ser um alvo fácil aos olhos dos monitores da noite. Quando chegou ao saguão de acesso às escadarias do segundo pavimento, se assustou com outro homem, vigilante, que estava em pé, de costas para ele. O coração de Rafael quase saltou do peito. Ele recuou de costas e se espre­meu em um espaço côncavo na parede, ocupado por um vaso grande e pesado que acomodava uma planta de folhas largas. A chegada da manhã clareava cada vez mais as formas dos objetos, tornando a presença do menino naquele lugar muito perigosa. Finalmente o monitor saiu dali para realizar sua vigia em outras paragens. Aquela era a oportunidade de Rafael abandonar seu parco esconderijo e ganhar as escadas. Ele escapou cuidadosamente como uma serpente que desliza pelas frestas. Mal começou a subir os degraus e novamente ouviu alguém se aproximando, agora vindo do andar que ele tentava chegar a todo custo. Não havia mais condições de se esconder, seria inevitavelmente descoberto. Numa manobra rápida, ao invés de subir, Rafael fez meia-volta e fingiu estar descendo.

Aonde vai tão cedo, rapaz? — interpelou-o o monitor que fazia a ronda na ala masculina, a voz severamente inquiridora vinha do alto da escada.

P-Pensei em ir à biblioteca - respondeu Rafael, com voz tremida. - Perdi o sono e gostaria de achar algo para ler.

Ainda está muito cedo, garoto - disse o monitor, os braços cruzados sobre o peito e as pernas afastadas. — A biblioteca só abre daqui a duas horas e você não pode ficar circulando por aí fora do horário, sem permissão.

Sim, senhor - obedeceu sem resistir, voltando a subir e passando pelo monitor sem encará-lo.

Como você saiu do seu quarto sem ser notado? - perguntou o homem num tom severo, segurando Rafael pelo ombro.

Não sei... Acho que o senhor estava de costas, caminhando para o fundo da ala e por isso não me viu sair.

O monitor, de queixo largo, cerrou os olhos, pensando se acreditaria na versão do menino.

É... Pode ser... - disse, aceitando a explicação meio a contragosto. Depois, ficou aguardando até Rafael abrir a porta de seu quarto para dar continuidade à ronda.

Era tudo o que Rafael queria: ser mandado para o seu quarto pelo próprio monitor, sem ter que inventar estratégias mirabolantes para despistá-lo.

Quando a porta se abriu, Marc, Chester e Daniel, acordaram ao mesmo tempo, tomando um susto ao verem seu amigo de volta. Os três pularam de suas camas.

Você está parecendo um urso-panda — comparou Chester, se referindo às enormes olheiras que Rafael ganhou em apenas uma noite que passara praticamente em claro.

Falem baixo - preveniu Rafael. - Agora mesmo me livrei de um monitor que pode muito bem estar, nesse momento, com a orelha pregada na nossa porta, ouvindo a nossa conversa.

Como se saiu? — indagou Daniel, preparando um arsenal de perguntas para fazer.

Rafael espreguiçou o corpo doído do chão duro da biblioteca, antes de falar.

Se preparem - anunciou, causando expectativa. - Pois o que vou revelar, vai deixá-los embasbacados.

Então diga logo - apressou-o Marc, perdendo a paciência. — Não temos o dia todo.

Rafael sentou-se e da beirada de sua cama passou a contar o que descobriu.

Li o máximo que pude, até a vela se apagar. O diário fala mesmo de uma grande jornada realizada pelo antigo diretor dessa escola, Alexei Martov, o homem do retrato. Até aí nada demais, mas o que torna a viagem impressionante é onde e de que forma ela acontece.

Você poderia ser mais claro? — protestou Chester, com objetividade.

Náo se preocupem — disse Rafael com tranqüilidade. - Não vou deixar escapar nenhum detalhe — seus olhos brilhavam. — Em algum lugar nessa ilha se esconde uma passagem, uma espécie de portal, que permite que as pessoas se trans­portem para um outro mundo, muito diferente do nosso. Há alguns anos, Alexei Martov atravessou esse portal por acidente, pelo que eu entendi, indo parar numa terra habitada por povos estranhos e seres extraordinários. Ele atravessou desertos e vales; cruzou rios e transpôs enormes montanhas, e de alguma forma conseguiu voltar ao nosso mundo depois de quase um ano de sua penosa jornada. O saldo dessa extraordinária viagem foi a perda de um olho, vários ferimentos que quase o mataram e uma fantástica história que ele transcreveu para aquele diário e que, aparentemente, é o único registro da existência desse mundo fabuloso.

Isso explica o comportamento esquisito de várias pessoas por aqui, a começar pelo diretor - refletiu Chester, esfregando as mãos nervosamente.

O que mais você leu? — indagou Marc, querendo que Rafael retomasse imediatamente a narrativa.

Alexei descreveu seres que só existem na nossa imaginação. Uma coisa me chamou a atenção — disse, contraindo o cenho. — Foi um animal alado com garras afiadíssimas que o deixou cego. Ele fala desse animal estranho, como uma fera com enormes asas e cabeça de ave de rapina e um majestoso corpo de leão.

O grifo! — maravilhou-se Daniel, boquiaberto.

Ele também relata que apesar do ferimento que lhe custou uma vista, o respeito que aprendeu a ter por aquele belo animal era enorme.

De um outro animal ele fala com especial admiração — continuou Rafael, voltando-se para Chester: — Um cavalo... Um imponente e maravilhoso cavalo com asas.

Um cavalo alado! - exclamou Chester, estupefato.

Isso mesmo, Chester! Ele descreve em suas memórias, que viu um animal desses apenas uma vez, planando majestosamente sobre sua cabeça. Depois, bateu vigorosamente as asas e desapareceu entre as nuvens.

Chester acompanhava extasiado o relato de Rafael. Ele daria tudo para ter um momento assim. A veneração que tinha pelos eqüinos merecia ser coroada com uma cena daquela magnitude.

Que outras coisas ele viu? — quis saber Marc, com olhos atentos.

Alexei mencionou lugares de uma beleza impressionante, como ele nunca havia visto antes. Cidades magníficas em meio a uma natureza exuberante. - Des­crevia Rafael, procurando usar as palavras de Alexei e tentando lembrar-se de mais coisas. - Algumas dessas cidades eram, ou são habitadas, por seres com característi­cas físicas e culturas diferentes de qualquer povo que habita o nosso planeta.

Então, talvez esse portal seja uma passagem para um outro planeta - espe­culou Chester.

Ou quem sabe, para um outro universo — Daniel foi ainda mais longe.

Não sei - posicionou-se Rafael. - Pode ser que essa história nem seja verdadeira. Talvez seja tudo uma grande mentira criada para algum fim que desconhecemos.

Você acha mesmo isso, Rafael? - perguntou Marc, duvidando.

Sinceramente, não. Alexei escreveu com tanta convicção e riqueza de deta­lhes que dava a impressão de que eu estava lá, vivendo o que ele viveu.

Como é esse... portal a que Alexei se refere? - perguntou Chester, apoiando-se com um cotovelo sobre a cama.

Alexei quase não fala sobre isso. Está claro que ele não escreveu o diário para ressoas como nós, mas sim para um grupo de iniciados que sabiam muito bem co portal, como ele, e que trabalham para manter essa incrível história e a entrada para esse fabuloso mundo em total segredo - deduziu Rafael, fazendo uma pausa, depois continuou: — No final de sua grande aventura, que quase tirou a sua vida, Alexei fez menção a um outro portal por onde ele conseguiu retornar.

E ele não poderia voltar pelo mesmo? — perguntou Daniel, se dando conta de um pormenor que considerou importante.

Alexei também não esclareceu essa parte, mas tudo indica que a passagem que está escondida na Ilha da Coroa só permite a viagem de ida.

Então, podemos deduzir que existe uma segunda passagem por onde ele voltou, que pode estar em qualquer lugar no nosso mundo - avaliou Marc, pondo o dedo em riste.

Provavelmente, sim — concordou Rafael, esfregando o rosto cansado. — Mas cisso, ele não falou no diário. Se bem que muitas páginas do livro ficaram sem ser lidas. Não havia tempo.

E agora, o que faremos? - disse Marc, jogando a pergunta no ar.

Vocês não acham que já fomos longe demais? - perguntou Rafael, dando graças por ter retornado de sua pequena aventura, ileso.

Se quisermos prosseguir com isso, o próximo passo seria descobrir o local onde está o portal - disse Chester, começando a se vestir.

Tudo leva a crer que a tal passagem fica, ou na sala proibida em que Júlio viu o grifo de pedra, ou em qualquer lugar dentro da floresta — refletiu Daniel, digerindo todas as informações que Rafael havia passado.

Rafael ficou pensativo, olhando para o nada. Depois comentou em conclusão:

A jornada de Alexei foi marcada por muitas dificuldades. Por diversas vezes ele achou que não conseguiria voltar, e só não desistiu porque desejava que todos os membros dessa... sociedade secreta soubessem o que há do lado de lá - disse, depois deu um longo bocejo mostrando o seu cansaço. - Da forma que ele escreveu, é claro que nunca, nenhum outro homem retornou depois de ter atravessado o portal. Ele foi o primeiro.

Vou sair um pouco — disse Daniel, indo até a porta. - Quero ver se me vem alguma inspiração. Algum de vocês me acompanha?

Eu vou! — disse Chester, terminando de calçar os sapatos.

É melhor você dormir um pouco, Rafael - disse Marc enquanto acompa­nhava Daniel e Chester.

Vou aceitar o seu conselho - concordou, sorrindo e se ajeitando na cama.

O trio desceu cochichando, atravessou os corredores, tomando todo o cui­dado para que ninguém mais ouvisse a conversa sigilosa. Quando andavam pelo jardim interno, Daniel olhou rapidamente para trás.

O que foi? - perguntou Chester para Daniel, e também olhou para trás.

Tive a sensação de estar sendo observado — disse, desconfiado.

Os três esquadrinharam o lugar, mas não viram nada.

Deve ser só impressão — disse Marc, ainda olhando em volta.

É... talvez seja isso mesmo — disse Daniel, mas seu olhar contrariava suas palavras. — Vamos para o pátio da praia, me sinto mais seguro em lugar aberto.

Não havia ninguém lá. Poderiam elevar a voz que não seriam ouvidos.

Pois bem, já perdemos muito tempo com isso — disse Chester, indo direto ao que interessava. — Qual o próximo passo agora?

Só vejo uma possibilidade — disse Daniel com os olhos azuis vidrados. — Já que não sabemos como penetrar na floresta sem sermos vistos, só nos resta entrar na sala do grifo.

E como poderemos fazer isso? — perguntou Marc, exibindo um sorriso incrédulo.

Da mesma maneira que fizemos com a biblioteca — disse Daniel olhando firme para Chester e Marc. - Com a ajuda de Rafael!

É arriscado demais — retrucou Chester, balançando a cabeça negativamente. - Ele não vai aceitar mais essa missão. Isso só poderia ser feito durante a madrugada e a distância entre o nosso quarto e aquela sala misteriosa é muito grande, principalmente sem a claridade para nos guiar.

Chester tem razão, Daniel - interveio Marc, cauteloso dessa vez, ciente do perigo da missão que Daniel havia proposto. — A probabilidade de alguém ser visto numa situação dessas é enorme e, além disso, não sabemos ao certo o que acontece no piso inferior durante a noite. Mesmo Rafael só conseguiu permanecer lá embaixo trancado na biblioteca.

Daniel respirou fundo, preparando-se para apresentar seus argumentos.

Faz algum tempo que venho reparando que a sala do grifo não recebe nenhuma proteção especial. Nunca vi nenhum monitor de sentinela por lá. - Daniel passava a mão pelo tampo de madeira bruta da mesa redonda. - Tenho a impressão de que eles estão tão seguros que aquela sala é inviolável e que nenhum aluno seria louco de tentar chegar perto, que a atenção deles se volta toda para a floresta muito mais vulnerável a ser invadida, pela sua enorme extensão e por não possuir trancas, por causa disso eles acabam deixando a sala totalmente desguar­necida.

Você sabe que não tem como dar seqüência a esses planos sem envolver Rafael - disse Chester, inclinando-se para frente e desse modo fazer valer o seu ponto de vista. — Como pretende fazer se ele não concordar em participar de mais esse plano arriscado?

Então eu não vejo outra alternativa a não ser desistir. Não consigo enxergar outra maneira de levar isso tudo adiante. Mas antes quero falar com ele — disse Daniel, observando as gaivotas que sobrevoavam a praia. — Querem saber? Rafael já está tão envolvido quanto nós. Eu vejo isso em seus olhos. Depois que ele expe­rimentou o perigo na pele, duvido que não esteja nessa conosco.

Daniel — disse Marc, tirando o seu amigo dos pensamentos —, se Rafael aceitar, eu vou com vocês. — Chester não disse nada, se limitando a suspirar profundamente. Não sabia que posição tomar àquela altura.

Os três amigos subiram para o quarto e encontraram Rafael dormindo pesadamente. Sua respiração era forte, quase um ronco.

Ele está mesmo cansado - constatou Chester, torcendo a boca.

Mas temos que falar com ele agora, não há mais nenhum tempo a perder — disse Daniel resoluto. - Rafael! Vamos, acorde!

Ahn... — Rafael abriu os olhos com dificuldade. Estava zonzo de sono. - O que houve?

Decidimos fazer uma coisa e queremos sua opinião - disse Daniel, recostando-se no beliche em frente. Quase numa atitude de intimidação.

Mas tem que ser agora? — disse Rafael relutante enquanto esfregava os olhos.

Depois você dorme mais — insistiu Daniel, decidido a resolver aquilo de uma vez por todas.

Tá bom — disse Rafael, apoiando-se nos cotovelos, os olhos semicerrados, a luz do dia o incomodava. — Sei que vocês não vão me deixar dormir mesmo. O que querem?

Daniel contou por alto o que pretendia fazer. Ainda faltavam os detalhes que seriam pensados se Rafael aceitasse tomar parte da aventura. Marc e Chester presta­vam atenção nas reações do amigo sonolento que ouvia com um ar de desconfiança.

Então... O que você acha? — perguntou Daniel, ansioso por uma resposta, de preferência, positiva.

Esperem um pouco - disse Rafael, procurando pôr ordem nas idéias. — Eu estive lá embaixo e vi monitores por todos os lados - Rafael sentou-se na beirada de sua cama, o sono tinha ido embora. — A distância até a sala é o dobro da distância que separa esse quarto da biblioteca.Talvez eu não tenha tanta sorte em uma segunda vez.

Se você concordar eu irei junto - disse Daniel, prontificando-se. - Dessa vez não deixarei você ir sozinho.

E de que adianta alguém ir comigo? Se nos pegarem estamos fritos. E quanto mais gente andando por aqueles corredores escuros, mais chance de dar tudo errado. Além disso, as aulas começam amanhã, Daniel - lembrou Rafael, coçando o ombro. — Tenho de voltar a estudar no mesmo ritmo de antes.

Então entraremos na sala do grifo essa noite! — disse Daniel, entusiasmado. — Posso providenciar todo o material necessário. O dia está claro e a noite vai ser de lua cheia, provavelmente sem nuvens. Isso facilitará os nossos movimentos pelos corredores.

E também vai possibilitar que nos vejam mais facilmente — provocou Marc, seu olhar ia de Daniel para Rafael.

O que está havendo com você, Marc? — disse Daniel, surpreso. — Está desistindo?

Claro que não estou desistindo! - exclamou Marc, rindo. — Só pensei alto.

O francês apreciava avaliar todas as alternativas, e isso o fazia parecer contundente.

Daniel voltou-se para Rafael.

Então, o que você me diz?

Sabe de uma coisa - disse Rafael, olhando fixamente para Daniel. - Acho que vou me arrepender pelo resto da minha vida, mas... estou com vocês.

Ótimo! — Daniel vibrou intensamente. - Tenho bastante tempo para conseguir algumas coisas que nos serão úteis. Antes do almoço eu me encontro com vocês.

O quarto voltou a ter apenas a presença de Rafael. Uma sensação confusa de arrependimento, excitação e medo esmagou seu coração.

Vai começar tudo de novo — resmungou Rafael. Sua curiosidade e fascinação pelo desconhecido falaram mais alto.

Rafael foi até o armário e pegou a santinha que sua mãe havia lhe dado, depois colocou-a sobre a mesa e ficou olhando para ela, lembrando de sua família.

Hoje eu vou precisar de muita proteção - sussurrou ele, correndo o dedo indicador pela pequena imagem de metal.

Daniel entrou de forma sorrateira no depósito da manutenção. Ele ainda tinha acesso livre, apesar da saída de Júlio. Em poucos dias deveriam arranjar-lhe outro tutor. Enquanto isso, ele estaria livre para circular por toda a área reservada aos funcionários que mantinham a escola funcionando, desde que não levantasse nenhuma suspeita ou fizesse algo errado.

Deixe-me ver - murmurou ele remexendo nas bancadas e estantes. - Lampião... fósforos... bússola... também vou precisar de uma corda - disse baixinho vasculhando o depósito repleto de quinquilharias. - Aqui está, essa deve servir - sussurrou, guardando tudo em uma sacola.

Quando se preparava para sair, Daniel ouviu um ruído vindo do lado de fora. Ele se apressou, mas não viu ninguém.

Essa pressão toda está me fazendo ouvir coisas — pensou ele, abandonando o depósito, torcendo para não ser visto.

Uma hora e meia depois, os quatro companheiros de aventura se encontraram novamente, dessa vez no refeitório.

Guardei tudo o que vamos utilizar, bem debaixo da cama - avisou Daniel, enrolando alguns fios de espaguete no garfo. — Após o almoço, voltamos a nos reunir e acertar os detalhes para hoje à noite.

Rafael sentiu um frio na barriga. Ele estava aprendendo a viver sob tensão.

Em seguida, se viam reunidos no pátio da praia, debaixo de um sombreiro de copa muito larga, que estendia sua sombra por vários metros.

Não temos muitas horas para colocar o plano em prática — disse Marc, excitado com a nova aventura que estava por vir.

Minha sugestão é a seguinte — preparou-se Daniel, animado em expor o que havia arquitetado durante toda a manhã. — Esperaremos até a primeira hora da madrugada e aí desceremos. Eu percebi, todas as vezes que fui ao banheiro após esse horário, que o segundo pavimento fica vazio. Imagino que o monitor do andar se recolha por uns tempos após verificar que está tudo sob controle.

Pode ser — concordou Chester. — O número de monitores não é muito grande, e só alguns permanecem à noite dentro do prédio. A maioria deve ficar cuidando dos limites da floresta, enquanto os demais dormem.

Uns poucos assumem seus postos bem cedo, antes que os alunos acordem - completou Rafael. — E o que deve ter acontecido quando eu estava saindo da biblioteca hoje pela manhã.

Será uma jornada pelo desconhecido — disse Chester, brincando com o lóbulo da orelha. - Temos que estar bem preparados para eventuais surpresas.

Você também vai? - perguntou Daniel, espantado.

E por que não? - retrucou Chester, indignado. - Não somos uma equipe?

É claro que somos — concordou Daniel. - É que você ainda não tinha se manifestado se iria ou não com a gente.

Pois dessa vez eu vou junto. Quero ver com meus próprios olhos o que existe por trás daquela porta. Chega de ficar sabendo das coisas pelos outros — desabafou Chester, os olhos estreitados.

Muito bem — disse Daniel, o corpo empertigado. — O que acontecer de bom ou de ruim, vai atingir a todos. A equipe do quarto 21 vai entrar em ação! - concluiu em tom solene.

Eu tenho que ir agora - disse Marc, passando as pernas por cima do comprido banco de madeira. - Os membros da orquestra estão me aguardando para um ensaio. A nossa apresentação está se aproximando e não quero que ela seja um fiasco.

Nos encontramos à noite para os últimos preparativos — disse Daniel, ele­vando um pouco a voz para que Marc, que já estava se afastando, pudesse ouvir.

O que você tem, Chester? - perguntou Rafael, notando a fisionomia preo­cupada do amigo cavaleiro.

Não sei por que tive a sensação de que Marc não vai participar dessa apresentação — comentou com voz melancólica.

Vire essa boca pra lá - protestou Daniel. - Vai dar tudo certo, você vai ver.

Aquela tarde pareceu mais silenciosa do que todas as outras, como se fosse um

presságio de algo avassalador que transformaria a vida dos quatro garotos.

 

                                 A Sala Proibida

O último dia das curtas férias estava acabando. A noite se aproximava e as rrimeiras estrelas, brilhantes como nunca, despontavam em um céu limpíssimo,

Teremos um lindo céu estrelado essa noite — comentou Chester, olhando pela anela e vendo a enorme lua surgir por trás do oceano.

Onde será que se meteu o Marc? — questionou Daniel com aflição na voz. — Já era para ele estar aqui.

Rafael se mantinha calado, roendo as unhas, como era comum nessas horas.

A porta se abriu discretamente. Marc havia chegado.

Onde você esteve? - perguntou Daniel com rispidez.

Não pude escapar de uma reunião com o Sr. Ramón - justificou-se Marc, jogando sua sacola sobre a cama. — Ele me encheu de recomendações novamente.

Está apreensivo com a apresentação.

Tudo bem. Então vamos logo definir as coisas - disse Daniel, impaciente. - Alguém quer desistir?

Rafael ameaçou falar alguma coisa. Daniel interrompeu:

Você não, Rafael!

Não é isso - explicou-se então. - Eu só ia perguntar se alguém tem um cura­tivo. Acabei de ferir o dedo de tanto roer as unhas.

Poupe seus dedos - preveniu Marc, pegando uma atadura no armário e ati­rando para o companheiro. - Precisaremos de cada um deles para abrir aquela porta.

Acho melhor usarmos roupas escuras - sugeriu Chester. - Elas serão úteis para que não sejamos notados com facilidade.

Boa idéia! — exclamou Daniel. — Eu consegui alguns apetrechos, indispensáveis para o sucesso da operação — Daniel se agachou e pegou o material que havia guardado debaixo da cama. — Um lampião, fósforos, bússola e uma corda.

Será que isso é suficiente? — perguntou Marc, desenrolando a corda e verificando o seu comprimento.

Acho que sim - disse Daniel, remexendo no material. - Mas o mais impor­tante é que as ferramentas de Rafael estejam bem afiadas.

Quanto a isso não há problema — disse Rafael, com segurança. — A minha dúvida, é se conseguiremos chegar até a entrada da sala sem que ninguém nos veja. O resto deixem por minha conta.

Os meninos separaram as roupas mais escuras de que dispunham...

Eu não tenho uma camisa escura — disse Rafael, vasculhando o interior do guarda-roupa.

Eu te empresto uma - disse Marc, estendendo-lhe uma de mangas compridas.

Pronto! — disse Daniel, satisfeito. — Agora é só esperar.

Por um tempo, todos ficaram em silêncio como se estivessem aguardando a sua vez para caminharem até à forca.

Tentarei dormir um pouco - disse Rafael, se recostando em sua cama, ele ainda não tinha recuperado totalmente a noite mal-dormida. As luzes se apagaram. Eram nove horas da noite. - Me acordem quando chegar a hora.

Não sei como ele vai conseguir dormir — comentou Chester, sussurrando para Marc. — Eu não conseguiria num momento como esse.

O cansaço o derrubou - disse Marc, batendo a ponta do pé no chão. O francês tentava diminuir seu nervosismo respirando fundo.

As horas passavam. De vez em quando, ouvia-se os passos do monitor fazendo a sua ronda.

Ele logo vai embora — pensou Daniel, torcendo para que sua previsão estivesse correta.

Vou ao banheiro — disse Chester, se levantando.

Não com essas roupas escuras — disse Daniel. — Quer nos denunciar?

Chester vestiu o seu velho pijama e saiu do quarto, nem deu o primeiro passo e viu o monitor em seus calcanhares; num aceno sem graça, cumprimentou o homem que respondeu com um movimento discreto de cabeça. Chester, já dentro do banheiro, ficou se olhando no espelho, esperando o tempo passar, depois abriu a torneira e jogou um pouco de água no rosto. Quando retornou, o monitor o aguar­dava ao lado da porta do banheiro. Chester fez outro aceno e retornou ao quarto.

Ele ainda está lá - disse irritado.

Calma! - disse Daniel para tranquilizá-lo. - Ainda está cedo. Não são nem onze horas.

É melhor ninguém sair de novo - aconselhou Marc. - Ou aquele abutre ficará desconfiado com tanto movimento.

A lua cheia ganhava altura e iluminava a noite.

Meia-noite e os passos lá fora ainda eram ouvidos. Daniel esfregava a testa concentrando-se nos ruídos que vinham do corredor. A cada dez minutos, passadas denunciavam a presença do indesejado vigia. Faltavam cinco minutos para a primeira hora da madrugada. Não se notava mais nenhum sinal do inconveniente vigia.

Vou dar uma olhada - murmurou Daniel. - Acho que ele já foi embora.

Cinco minutos depois Daniel voltou apressado.

Chegou a hora, a ala está livre. Acordem o Rafael.

Marc sacudiu Rafael, que acordou sobressaltado. Ser despertado em tais circunstâncias era praticamente um choque.

Apresse-se. Vamos descer agora — disse Marc, com sua roupa preta quase invisível na escuridão.

O primeiro a sair, carregando as ferramentas foi Daniel, seguido de Chester. Em iiguida vinha Marc e finalmente Rafael que fechou a porta tomando todo o cuidado rara não fazer nenhum barulho. Eles caminharam rapidamente até as escadas e, pelos vãos do corrimão, do alto, averiguaram o saguão no primeiro pavimento.

Também não há ninguém. Depressa, antes que alguém apareça - disse Daniel sibilando as palavras, sua mão direita gesticulando sem parar, chamando os companheiros para que descessem.

Uma última olhada foi arriscada por Rafael para o corredor escuro da ala reminina. Ele não percebeu a presença de ninguém. Temia a perigosa Elvira, apa­recendo e estragando tudo.

Do saguão eles se esgueiraram pelo corredor comprido que margeava o jardim interno. O luar projetava sombras indefinidas por entre os arbustos, fazendo pare­cer figuras humanas espreitando o deslocamento furtivo dos garotos. Duas armaduras medievais, empunhando espadas com as pontas apoiadas no chão, fizeram os meninos gelarem por um segundo. Felizmente era alarme falso. Parecia que todos r.o prédio estavam dormindo. Eles tomaram outro corredor e passaram em frente à biblioteca. O próximo corredor era tão extenso como o primeiro, mas muito mais escuro. Uma luz tênue iluminou o final do corredor em que eles estavam. Alguém se aproximava. O quarteto ficou sem ação. Estavam no meio do caminho, e se começassem a correr, seriam descobertos.

Vamos, se metam debaixo daquele balcão - disse Chester, apontando para um aparador, um desses móveis compridos que servem para se colocar louças, candelabros e outras peças decorativas.

Eles se enfiaram debaixo do móvel, ocultados por uma toalha verde oliva que cobria toda a extensão do móvel. Só conseguiram ver os sapatos quando o homem cassou e parou na frente deles. Os olhos dos meninos se arregalaram. O vigia arru­mou a toalha que estava dobrada e voltou a caminhar.

Essa passou perto — pensou Daniel, aliviado.

-Andem logo, pessoal! - sussurrou Marc, agora liderando a fila. - Falta pouco. Cuidado para não derrubarem nada. Isso tudo aqui é de metal. - Mal acabara de falar e o francês esbarrou em um castiçal de prata que foi direto para o chão. Marc cerrou os dentes, esperando ouvir o barulho que os denunciaria. Nada se ouviu. Ele olhou para baixo e viu Chester agachado, segurando a peça metálica com as duas mãos. - Boa, amigo! Te devo essa!

Quando finalmente cruzaram o corredor, eles chegaram ao salão principal, imenso e ameaçador. Os retratos, mal iluminados pela luz da lua que penetrava pelas estreitas janelas de vidros em mosaico, pareciam olhá-los de maneira acusadora, como que condenando-os por profanarem o sossego daquele lugar. Eles contornaram o saguão, evitando atravessá-lo pelo seu centro, onde seriam alvos mais fáceis. Todos estavam nervosos. Só faltava o último corredor que antecedia a sala misteriosa. O corredor tinha poucos metros e terminava numa curva seca para a direita.

A porta! - exclamou Daniel, olhando-a como se admirasse um quadro famoso. - É exatamente como Júlio descreveu.

Rafael se aproximou, examinando a pesada fechadura, depois pegou o volu­moso cadeado nas mãos e passou a girá-lo de um lado para o outro, querendo conhecer o seu mecanismo.

Mãos à obra - disse ele, tirando as pequenas hastes de metal do bolso. - Primeiro a fechadura da porta.

Chester permaneceu na curva do corredor, atento a uma possível surpresa.

Rafael se esforçava para destravar a fechadura, mas a tensão e o dedo enfaixado dificultavam o seu trabalho.

Abre logo isso! - pressionou-o Daniel, impaciente com a demora.

Não me apresse! — exclamou Rafael, nervoso, gotas de suor escorriam das suas têmporas.

Preciso de luz aqui — disse ele com voz trêmula. - Está muito escuro, não consigo ver nada.

Não podemos ligar o lampião agora - protestou Daniel, tinha o rosto carrancudo. - Seria mais discreto se eu soprasse um apito.

Só um fósforo - insistiu Rafael. - Por uns míseros segundos.

Chester, vá até o início do corredor e veja se não há ninguém no saguão - disse Daniel, prontamente atendido pelo americano.

O fósforo foi riscado e o clarão momentâneo foi suficiente para Rafael se orientar melhor. Um clique grave anunciou a abertura da porta.

Agora só falta o cadeado — disse Rafael, avaliando melhor a peça de aparên­cia grosseira. Dessa vez ele fechou os olhos e introduziu dois pequenos arames e em segundos o arco de metal se soltou da trava.

Marc e Daniel retiraram cuidadosamente a corrente dos dois elos de ferro. A porta estava aberta. Marc chamou Chester que logo se uniu ao grupo.

A porta foi aberta apenas o suficiente para que os meninos entrassem e tornassem a fechá-la, mas mesmo assim, não foi possível evitar um áspero som de porta rangendo. A escuridão dentro da sala era total e o cheiro úmido e abafado deveria ser parecido com uma tumba sendo aberta após mil anos.

Acenda logo esse lampião — exigiu Rafael, cobrindo a fresta inferior da porta com uma toalha que ele mesmo havia trazido. Um outro pano foi pendurado na maçaneta, cobrindo o buraco da fechadura.

Quando Daniel acendeu outro fósforo, revelou-se uma sala vazia, com paredes descascadas pelo tempo e no fundo, lá estava, o grifo de pedra. Júlio provara ser um bom observador.

O lampião foi aceso deixando as formas mais nítidas. O grifo devia ter um metro e vinte centímetros de altura por um metro de largura e mais um metro de comprimento. Ele parecia ter sido esculpido em granito ou outra pedra resistente. Daniel se aproximou da figura de pedra e se agachou, pousando o lampião ao seu lado. Marc também se aproximou, tocando a estátua de pedra fria que exibia a rabeca baixa e um olhar penetrante e inabalável. O animal lendário estava sentado sobre as patas traseiras e a pata dianteira direita se encontrava erguida, como que apoiada em algo inexistente.

Daniel se pôs a examinar o grifo mais detalhadamente, procurando alguma alavanca ou dispositivo que pudesse ser acionado. Ele forçou a pata erguida, empurrando-a para baixo, mas ela não cedeu nem um milímetro.

Chester se aproximou um pouco mais para ver melhor.

Parece haver uma fresta na altura do pescoço — disse ele, observando de um angulo diferente, por cima da criatura mitológica.

Pode ser um sistema duplo de alavancas - opinou Rafael à distância.

Acho que entendi o que você quer dizer - concluiu Marc, agarrando com firmeza a cabeça da estátua.

Deve ser isso mesmo. — Manifestou-se Daniel, segurando novamente a pata suspensa. — Quando eu der o sinal, vamos fazer o movimento inverso, você tenta erguer a cabeça e eu empurro a pata do bicho para baixo. Está pronto? Agora!

Eles acertaram em cheio. Quando terminaram o movimento, o grifo começou a recuar para dentro da parede atrás dele, deixando à mostra uma passagem subterrâ­nea onde segundos antes ele repousava.

Onde será que vai dar isso? - especulou Rafael, se esticando todo sobre Daniel e Marc.

Só saberemos quando entrarmos - deduziu Chester, olhando com curiosi­dade o sombrio túnel vertical.

Daniel pegou o lampião pela alça e o introduziu no buraco.

Tem uma escada aqui, vamos descer — disse ele, com metade do corpo já dentro do túnel.

Chester foi o último a descer e não evitou um comentário.

O ar está pesado, acho que esse túnel não é usado há anos.

Daniel ergueu o lampião, mas não conseguia ver o fim do corredor mergu­lhado na escuridão. O túnel não tinha mais do que um metro e oitenta de altura por um e meio de largura. Uma pessoa mais alta teria dificuldade de andar por ali. Marc estimou que eles haviam descido uns cinco metros abaixo do solo.

Vamos em frente — disse Daniel, começando a caminhar - quero ver onde isso acaba.

Daniel passou o lampião para Chester e retirou uma bússola do bolso da calça.

A bússola aponta para o oeste - anunciou ele com um sorriso de satisfação.

Estamos indo para a floresta.

A respiração era difícil. O túnel parecia não receber muita ventilação.

-Acho que já percorremos uns cem metros - calculou Marc, passando as mãos pelas paredes e pelo teto de pedras retangulares com mais de um metro cada uma e unidas, aparentemente, apenas por encaixes, sem nenhum tipo de argamassa.

A caminhada continuava, o túnel parecia interminável.

Pelos meus cálculos, já devemos ter percorrido mais de quatrocentos metros - disse Marc, atento para não perder a contagem.

Andaram mais trezentos metros e nem sinal do fim do túnel. Mais uns cem metros e o caminho deixou de ser constituído de pedras regulares e passou a ser formado por rocha sólida, escura como chumbo. Daniel parou por um instante, interrompendo a marcha dos demais, e olhou para o teto, pondo-se a examinar a formação rochosa.

Estamos debaixo do monte Cabeça do Rei - disse ele. — Acho que estamos chegando perto do nosso objetivo.

Vamos seguir em frente - disse Chester, reiniciando a caminhada. — Já são duas e quarenta da manhã — avisou, depois de consultar o relógio. — Não podemos perder mais tempo.

O grupo prosseguiu atravessando o interior do monte rochoso, a escuridão ainda se estendia à sua frente. A bússola continuava indicando o sentido oeste. O túnel era mesmo uma grande reta, atravessando a praça de esportes, passando por sob a floresta e penetrando o Cabeça do Rei. Algumas dezenas de passos depois, Chester viu alguma coisa adiante, seus olhos ainda não conseguiam definir o que era. Ele se aproximou mais e pôde ver finalmente o término do imenso túnel.

Uma escada! - constatou Marc. - Igual a que descemos lá atrás.

A escada parecia levar de volta à superfície.

-Vamos subir - disse Chester, passando o lampião para Rafael. - Eu vou primeiro.

Ao atingir o topo da escada, Chester se deparou com uma espécie de alçapão de pedra. Ele empurrou-o para cima usando as duas mãos e a cabeça como apoio e o tampo cedeu. Não havia dobradiças e a cobertura de pedra teve que ser deslizada para o lado, produzindo um som áspero de pedra contra pedra. Chester apoiou-se nas bordas da saída e subiu. Estava tudo escuro, mas o ar era bem mais leve e fresco.

Me passem o lampião - disse Chester, apertando os olhos, tentando enxer­gar alguma coisa.

A mão de Rafael surgiu do buraco, portando o lampião que espalhou uma luz amarelada, fazendo surgir diante dos olhos deles uma caverna mais ou menos cir­cular. A caverna tinha cerca de cinqüenta metros de diâmetro por uns oito metros de altura. Uma passagem estreita se abria em um dos lados, para um corredor que parecia estar lacrado; provavelmente era a saída do interior do monte Cabeça do Rei direto para a floresta.

O último a subir foi Daniel, que juntou-se aos outros e também passou a percorrer com o olhar, averiguando minuciosamente cada canto, cada detalhe. Mas o que mais lhes chamou a atenção, foi um disco, aparentemente feito de uma rocha estranha, tão negra como eles nunca tinham visto antes. O disco que ficava rente ao chão tinha uns quinze metros de diâmetro e era perfeitamente circular. Suas formas se destacavam do restante do piso irregular, pois era tão liso como um espelho de cristal. Chester se aproximou da beirada da enorme circunferência negra cravada no chão de rocha bruta e tocou-a com as pontas dos dedos que deslizaram com facilidade sobre a superfície plana.

Algum de vocês já viu algo assim? — perguntou ele, chegando o rosto mais perto para ver melhor.

Muito provavelmente é esse o portal que Alexei Martov descreveu no diário — disse Rafael, igualmente se aproximando da beirada. - Não há mais nada nessa caverna que se pareça com uma passagem para outro mundo.

Marc pisou com cautela, testando a consistência do disco.

Parece ser seguro - disse ele, pondo o outro pé.

Cuidado, Marc! — advertiu Rafael, erguendo a mão direita para que o amigo não prosseguisse. - Não sabemos o que liga essa coisa.

Acho que está desligado - supôs Marc, dando mais uma meia dúzia de pas­sos em direção ao centro do disco. — Daqui se tem a impressão de estar flutuando no meio de um buraco sem fundo. É muito legal.

Chester também tomou coragem e foi até Marc, depois começou a dar pulinhos para sentir a resistência do material. Marc se afastou, indo até a beirada oposta que ficava bem próxima à parede de rocha escura.

Daniel olhava em volta, procurando alguma alavanca ou coisa parecida que pudesse acionar o portal. Não havia nada que se parecesse com um dispositivo de ignição.

É melhor irmos embora - disse ele, um tanto decepcionado. — já passa das três e meia e temos que voltar antes do dia clarear. Daqui a algumas horas nossas aulas vão recomeçar e precisamos dormir um pouco ou passaremos o dia todo cochilando pelos cantos.

Então algo aconteceu. Chester sentiu uma leve vibração. Marc ao sentir a mesma coisa só teve tempo de pular para uma estreita faixa de pedra que separava a outra extremidade do disco da parede da caverna. Chester não teve a mesma chance e sentiu seus pés afundarem no disco que começou a girar lentamente. Ele estava preso. Não tinha como sair. O disco não oferecia mais a rigidez de uma rocha, mas se tornara instável, como lava vulcânica, ou coisa parecida. Seus pés afundaram ainda mais, deixando-o enterrado até os joelhos. Um zumbido tomou conta da caverna, causando uma pressão nos ouvidos dos meninos e reduzindo sen­sivelmente sua audição. Estranha e gradativamente, a cor do disco passou de negro para vermelho vivo, girando sem parar. Chester não parava de gritar. Sua expressão era de terror. Marc se equilibrava como podia no pequeno pedaço de solo rochoso que lhe restara e não havia como se agarrar na parede da caverna. O disco girava a poucos centímetros dele, como um redemoinho, prestes a devorá-lo.

Num pensamento rápido, Daniel pegou a corda que havia trazido e a atirou para Chester. A corda nem chegou até ele, pois ao tocar na superfície do disco em movimento, foi arrancada violentamente das mãos de Daniel e sugada para dentro do redemoinho como um fio de macarrão. O disco giratório começou a passar de vermelho vivo para um alaranjado brilhante e a essa altura, Chester já estava enter­rado até a cintura. Rafael também não sabia o que fazer. Ele estava desorientado, se arrependendo do momento em que havia aceitado participar daquela aventura inconseqüente. Gritava desesperadamente para Marc.

Fique aí! Se agarre como puder! — Suas palavras não eram ouvidas nem por ele mesmo.

Marc virava o rosto e fechava os olhos. Estava tentando não perder o equilí­brio. Se continuasse a olhar para baixo, acabaria caindo dentro do disco vertigi­noso. Marc não tinha como sair dali. Estava totalmente encurralado.

Eles não podiam ver, mas, o mar em torno da Ilha da Coroa havia enlouquecido tal a sua violência. Esse comportamento atípico chamou a atenção dos vigias.

A coloração do disco havia passado para um amarelo faiscante e Chester já havia sido engolido até a altura do peito. Daniel estava paralisado. Aquela situação fugira completamente de seu controle. A luz do disco já se tornara azulada. Seria maravilhosa se não fosse aterrorizante. O corpo de Chester já havia sido engolfado até o pescoço. Rafael e Daniel se recusavam a acreditar que estavam perdendo seu amigo. E ainda tinha Marc que corria enorme perigo.

Mas o mais impressionante estava por vir. O disco assumiu uma tonalidade branca de um brilho tão intenso que ofuscou os olhos dos garotos e depois começou a afundar; primeiro lentamente e aos poucos foi se aprofundando cada vez mais rápido para o interior do planeta. Chester não podia mais ser visto. O buraco causado pelo fenômeno era tão profundo que Daniel tinha a impressão de poder ver o centro da Terra. Com aquele abismo à sua frente, Marc não resistiu e também despencou, desaparecendo nas profundezas. Rafael gritou, tomado pela agonia.

Não adianta mais ficarmos aqui! — gritou Daniel, transtornado. Ele pegou a sacola e foi em direção ao túnel.

Numa última olhada, os dois puderam ver que o teto da caverna, exatamente acima do círculo, se tornara transparente como cristal, permitindo que eles vislumbrassem o céu noturno estrelado e a Lua alta. O farol, no topo do monte, estava transparente como se fosse feito de vidro.

Ao desceram novamente as escadas, Rafael ainda teve a frieza de recolocar o alçapão no lugar. Eles dispararam pelo túnel, de volta, correndo alucinadamente pela escuridão. Não sabiam o que dizer; o que pensar. O grifo foi colocado novamente na mesma posição e quando abriram a porta da sala secreta que dava para o salão principal, perceberam uma agitação do lado de fora. Passos e vozes conturbadas se espalhavam, indo para a saída do prédio. Em segundos tudo ficou quieto.

Devem ter saído por causa da burrada que fizemos — disse Daniel, esticando- se todo para ver se o caminho estava livre. - Já descobriram tudo. Vamos embora daqui enquanto é tempo.

No quarto, Daniel e Rafael andavam de um lado para o outro tentando por ordem nos pensamentos. Lá fora a movimentação era grande. O monitor do andar havia desaparecido.

Eu vou deitar um pouco - disse Daniel, massageando a nuca.

É isso mesmo — concordou Rafael. — Não adianta ficarmos aqui nos envenenando de preocupações.

Ainda estava escuro, os dois deitados, obviamente o sono não vinha.

Rafael! — sussurrou Daniel.

O que foi?

Conseguiu dormir um pouco?

De que jeito? As imagens de Marc caindo e Chester sumindo naquele buraco não me saem da cabeça.

Tem que haver uma maneira de consertarmos o que fizemos — disse Daniel, inconformado.

Está tudo acabado, Daniel - disse Rafael, desolado. - Em poucas horas eles vão chegar até nós. Não temos como escapar.

Mas Chester e Marc ainda estão vivos - argumentou o inglês, voltando-se para Rafael que só era visto como um vulto na escuridão da noite. - Eles ainda podem ser trazidos de volta.

O que você pretende fazer? - questionou Rafael, desanimado. - Atravessar aquele portal atrás deles?

Talvez... Não sei... — desabafou, sua voz diminuindo. — Eu só queria que não tivesse sido assim. Eu fui culpado. Não deveria ter jogado vocês nessa confusão. Me desculpe, amigo, eu estraguei a sua vida.

Nós quatro assumimos os riscos, Daniel. Se há culpados, fomos todos nós.

Um novo dia estava nascendo. Rafael sentia como se o seu estômago fosse dar um nó de tanta aflição.

O sino tocou. O período letivo estava recomeçando.

Na ala acadêmica, em meio a uma multidão de alunos tagarelando sem parar, Rafael e Daniel se despediram e foi cada um para a sua sala.

De dentro da classe, Daniel notou uma movimentação incomum de professo­res e monitores pelo corredor. Margaret se sentou do lado dele e perguntou.

Onde estão Chester e Marc?

N-Não sei, já devem estar descendo. - Daniel não conseguiu pensar em nada melhor para dizer.

Estranho - comentou ela, sem perder tempo. - Vocês vêm sempre juntos.

Daniel nem olhou para os lados, se limitando a tamborilar na carteira. Ele estava

tão distante que nem percebeu quando Brian Hamilton, o professor de Geologia, sentou-se e abriu o livro de presença. A chamada havia começado. A cada nome proferido era como uma estocada no ouvido de Daniel.

Cemin Naduar! - pronunciou o professor. O aluno respondeu imediatamente.

É agora — pensou Daniel, apertando as mãos.

Chester Thompson! - chamou o professor. Não houve resposta.

Onde está ele? — voltou a perguntar Margaret pelo canto dos lábios.

Cala essa boca! - rosnou Daniel, entre os dentes. Margaret assustou-se com a resposta ríspida dada pelo irmão. O tom grosseiro de Daniel dizia tudo. Alguma coisa estava errada, ela não tinha mais nenhuma dúvida.

Chester Thompson! - repetiu o professor, dessa vez correndo o olhar pela ala. Como não teve resposta, ele fez uma anotação no canto da página e prosseguiu a chamada.

Nome a nome, a chamada se aproximava de Marc.

Marc Fournier! - chamou o professor em alto e bom tom. Ninguém respondeu. O professor Brian ergueu a cabeça e novamente chamou o nome de Marc. O professor contraiu o cenho demonstrando preocupação e novamente anotou algo na lista de chamada.

O professor Brian se levantou e voltou-se para a turma.

Esperem uns minutos, eu volto logo.

A breve ausência do professor Hamilton provocou um burburinho na sala. Dez minutos depois ele retornou e deu início à aula.

Daniel e Rafael voltaram a se encontrar na hora do recreio. Daniel contou o ocorrido. Para Rafael a aula tinha passado dentro de uma desconfortável normalidade. Os dois conversavam num canto, quando Margaret se aproximou.

Dá pra notar de longe a cara preocupada de vocês dois. Onde estão Chester e Marc? - perguntou ela, intimando-os a dizer a verdade. Daniel se rendeu.

Escute, mana, estamos encrencados, mas não podemos dizer o que é... pelo menos por enquanto. Só não conte pra ninguém dessa nossa conversa. Você promete?

S-Sim, prometo - disse ela, curiosa, mas ao mesmo tempo preocupada. A coisa devia ter sido muito séria. Ela nunca tinha visto Daniel naquele estado. - Vocês me contam tudo depois?

Claro, claro, você vai saber de tudo — disse Daniel, concordando, a sineta havia tocado, estava na hora de voltar para a aula.

Rafael e Daniel não conseguiam se concentrar nas disciplinas, tal o estado de ansiedade que se apossara deles. As palavras pronunciadas pelos professores pare­çam vagas e sem sentido. O primeiro dia de aula estava encerrado. O professor Rajev Shekhar que havia ministrado a última aula daquele dia na turma de Daniel e Margaret, recomendou:

Leiam da página 245 até a 249 para a próxima aula.

Os alunos começaram a esvaziar a sala.

Você fica, Daniel. Preciso falar com você - ordenou o professor Rajev, acenando com a mão para que voltasse. Margaret também ficou. - Você não, querida. O assunto é só com ele. - O professor voltou a sentar-se e fez um gesto para que Daniel fizesse o mesmo em uma das carteiras. Daniel não sabia para onde olhar e não ousava fazer nenhuma pergunta. Rajev apoiou o queixo em uma das mãos e esperou o suficiente para que o corredor ficasse vazio. Ele tornou a se levantar.

Agora venha comigo — ordenou o professor, saindo da sala.

Os dois caminhavam rápido, Daniel logo atrás, indo direto para o gabinete do diretor, o mesmo em que Júlio havia recebido a aviso de sua demissão. O coração de Daniel estava acelerado. O professor abriu a porta e mandou Daniel entrar primeiro. Lá dentro estavam, o diretor Helmut sentado atrás de uma mesa opulenta de jacarandá, o Sr. Ramón, os professores Guillermo de Leonar, Brian Hamilton e Roger Burke e, afundado em um sofá, Rafael, com semblante extremamente abatido.

Sente-se — determinou Ramón, os olhos severos, apontando para o mesmo sofá em que encontrava-se Rafael.

O rosto do diretor estava contraído como eles nunca haviam visto. Dava a impressão de que ele iria saltar sobre a mesa e agarrar os meninos pelo pescoço. Ramón buscou uma cadeira e sentou-se próximo aos dois alunos. Então começou o interrogatório.

Serei direto e claro e quero respostas diretas e claras. Onde estão os seus colegas Chester Thompson e Marc Fournier?

Os meninos se entreolharam assustados. Daniel fez uma última tentativa de se safar.

Não sabemos, eles desapareceram e...

Ramón, num movimento brusco, se levantou e abriu um pequeno baú, reti­rando alguma coisa e mostrando aos dois. Era a sacola com o lampião, os fósforos e a bússola.

O que é isso? - perguntou Ramón agitando a sacola, impaciente. - Encon­trei essas coisas no quarto de vocês, escondidas debaixo da cama.

Não adianta, Daniel. É melhor contarmos toda a verdade - disse Rafael, consciente de que não adiantava mais mentir.

Rafael contou tudo: da noite que passou na biblioteca; do diário; da passagem pelo túnel e o triste episódio quando viram Marc e Chester atravessarem o portal.

Vocês traíram nossa confiança — explodiu Helmut, esmurrando a mesa e se levantando, depois se aproximou, inclinando-se para frente, bem de cara com os meninos. - Quebraram as regras, descumpriram as ordens, invadiram a minha sala, pegaram o diário sem autorização e ainda ajudaram a condenar seus dois colegas de quarto a nunca mais voltarem para as suas famílias. - Os olhos do diretor faiscavam de raiva. Daniel se lembrou dos pesadelos que de vez em quando tinha com ele.

Sua irmã, Margaret, sabe de alguma coisa? — perguntou o professor Brian, em tom calmo.

Não! — apressou-se Daniel. — Ela bem que tentou descobrir o que estava acontecendo, mas eu juro que ela não sabe de nada.

Helmut esfregava os olhos, depois balançava a cabeça olhando os garotos com ar de enérgica repreensão. Era capaz de administrar uma escola tão complexa e não sabia o que fazer naquele momento.

Quem são vocês? - perguntou Daniel, sua expressão era inquieta.

Ramón o encarou por alguns sufocantes segundos, mas resolveu responder.

Uma sociedade secreta, uma irmandade ou coisa assim — contou, olhando-os fixamente. Em seguida começou a andar pela sala. — Nos denominamos a Sociedade do Círculo de Pedra. Acho que não temos mais nada a esconder de vocês. Nossa sociedade nasceu séculos atrás, quando os sobreviventes de vários naufrágios que se deram por aqui descobriram o que vocês viram nessa madrugada: o portal que une o nosso mundo a um outro, que por sinal, sabemos muito pouco. No início era só um grupo de pessoas fascinadas com o espetáculo fantástico que o portal proporcionava. Alguns acreditavam que aquilo era a porta para o inferno, pois os "desafortunados" que caíam nele sumiam nas profundezas da Terra. Em pouco tempo descobriram como sair dessa ilha, através da faixa de mar que não sofre a atração do disco. Então, o grupo decidiu fazer um pacto de silêncio para manter o segredo longe dos aventureiros e mercenários — Ramón, suspirou ganhando fôlego, depois prosseguiu: — A sociedade ganhou corpo e se tornou, talvez, o segredo mais bem guardado da história da humanidade, até vocês aparecerem — disse ele com ares de censura.

E Alexei Martov? — perguntou Daniel, esquecendo um pouco da sua situa­ção embaraçosa.

Ele foi o primeiro a transpor o portal e conseguir voltar para contar o que viu do outro lado. Tudo o que sabemos sobre o outro mundo devemos a ele — respondeu Helmut, ajeitando o colete cinza que estava usando. - Sua memória é muito respeitada entre nós.

O que vocês vão fazer conosco? - perguntou Rafael, com medo da resposta.

Se o que vocês fizeram tivesse acontecido há cem anos, certamente seriam mortos - disse Helmut friamente. - Por séculos, nosso segredo foi mantido a um custo muito alto. Quem nos traísse e saísse por aí contando o nosso segredo, pagava com a própria vida. Geralmente eram marujos bêbados que abriam a boca em algum bar de quinta categoria. Para nossa sorte e azar deles, normalmente, ninguém acreditava em tais histórias pelo fato de elas serem fantásticas demais para serem verdadeiras. Essas histórias se misturavam a tantas outras que acabavam caindo no esquecimento. Mas mesmo assim, os membros mais radicais da Sociedade caça­vam esses traidores pelo mundo todo e não descansavam enquanto não estivessem mortos e enterrados ou tragados pelo mar. — Helmut parecia mais calmo ao se abrir para Rafael e Daniel. - Com o tempo, a alta cúpula do Círculo de Pedra achou por bem acabar com os assassinatos e encontrar uma solução mais inteligente e menos violenta para manter o segredo protegido. Então surgiu a idéia da escola.

Não seria mais fácil transformar a ilha numa reserva particular ou coisa parecida ao invés de lotar esse lugar com um monte de alunos bisbilhoteiros? - questionou Rafael, menos nervoso e até simpatizando com os ideais da Sociedade.

Aparentemente sim — continuou Helmut, considerando oportuna a pergunta. — Mas a escola nos trouxe dois excelentes benefícios, que foram previstos mesmo antes de ela nascer: o primeiro foi o dinheiro doado pelos governos de vários países, que nos permitiu reinvestí-lo para manter a própria estrutura da escola; o segundo, e esse o mais importante, foi a formação de homens extremamente capacitados, intelectual e profissionalmente, que depois de formados, estariam em condições de defender os interesses da Sociedade. Pouco depois da inauguração da Escola Internacional do Atlântico, foi instituída uma série de testes de lealdade e sigilo, imperceptíveis aos alunos, para verificarmos quais aqueles que seriam dignos, depois de oito anos, de receberem o segredo do portal. Infelizmente vocês já foram reprovados de cara - a sofisticação daquela organização deixou Rafael e Daniel estupefatos.

Envolvido na própria narração, Helmut seguiu adiante: - Todo ano, dez a quinze alunos que se formam, são incorporados à Sociedade do Círculo de Pedra. Hoje temos espalhados pelo mundo afora: presidentes, cientistas, intelectuais, grandes empresários, políticos e até membros da nobreza, que são fundamentais, usando suas influências e defendendo os nossos interesses. Muitos dos ex-alunos, que não conheceram o nosso segredo, costumam colaborar com a nossa instituição, mesmo muitos anos depois de terem ido embora. - Helmut demonstrava cansaço, estava exausto de tanto quebrar a cabeça para tentar resolver aquele terrível problema. - Mas respondendo à sua pergunta, Rafael. Eu não sei ainda o que fazer com vocês. Mesmo que prometam, eu não posso confiar que você Rafael, e você Daniel, guardem o nosso segredo para o resto de suas vidas.

Por que o túnel foi construído? - perguntou Rafael. - Não é bem mais fácil se chegar à caverna pela superfície, atravessando a floresta?

Atualmente sim - disse Ramón. - Mas, nem sempre houve a floresta que pudesse esconder a entrada para o interior da montanha, então tivemos que abrir o túnel para chegar ao portal sem despertarmos a atenção dos curiosos que visitavam a Ilha da Coroa. Um dia, alguém teve a idéia de cercar o monte Cabeça do Rei com uma densa vegetação. Foram várias décadas de intenso trabalho. Tiveram que trazer toneladas e mais toneladas de terras férteis do continente, para deixar o terreno propício para o plantio de milhares de árvores ao longo dos anos. A floresta desceu e se tornou exuberante, abrigando uma infinidade de espécies animais e vegetais, sendo hoje considerada um dos mais importantes complexos biológicos dessa parte do planeta. Quando finalmente a Ilha passou definitivamente para o nosso controle, sem a inconveniente interferência dos administradores do império, o túnel ficou obsoleto e foi lacrado, pois era muito mais fácil transitarmos pelas trilhas no meio da mata do que pelo túnel estreito e abafado.

E o meu pai - disse Daniel, se acomodando no sofá. — Ele sabe de alguma coisa da Sociedade?

O valoroso John Crowley - disse Helmut, um sorriso de satisfação brotou dos seus lábios. — Você quer saber se ele conhece o nosso segredo? Sim, meu caro Daniel, seu pai é membro da Sociedade do Círculo de Pedra.

Daniel olhou para Rafael com o peito estufado de orgulho pelo pai, que respondeu cutucando as costelas do amigo inglês, compartilhando a alegria da boa notícia.

Mas agora temos outro problema mais urgente para resolver - disse Helmut, -repensando a dimensão da encrenca que teria de enfrentar. — Marc e Chester.

Poderíamos dá-los como mortos - aventou Ramón, cruzando os braços e coçando a ponta do queixo numa atitude de reflexão. - Poderíamos dizer que eles caíram no mar revolto e desapareceram.

E se um dia eles retornarem pelo outro portal, como aconteceu com Martov, e revelarem o nosso segredo? — questionou Rajev, contrapondo-se. Ramón acenou com a cabeça considerando coerente o argumento do colega.

Temos que achar um outro jeito de solucionar esse problema — desabafou Helmut, tirando os óculos e esfregando os olhos, depois os recolocando.

Eu tenho uma sugestão — disse o calado professor Roger, que estava um pouco afastado num canto da sala, pronunciando-se pela primeira vez. Todos voltaram os olhares para ele. - Vamos buscá-los! Vamos atravessar o portal e trazer os garotos de volta para o nosso mundo.

É muito arriscado! — disse Helmut, discordando num primeiro momento. - E nada garante que essa aventura resulte em sucesso. Poderíamos ter mais gente perdida para sempre.

Mas podemos tentar — insistiu Roger, sua fisionomia era serena, mas ao mesmo tempo severa. — Eu me ofereço para ir resgatá-los.

Helmut olhava para os outros membros da Sociedade, buscando alguma manifestação. Ninguém arriscava dizer algo. A proposta de Roger era válida.

Alguém tem alguma idéia melhor? — indagou Helmut. Ramón fez que não com a cabeça.

Eu também sou voluntário. - Se ofereceu Guillermo, o professor espanhol, de química, dando um passo à frente. — Em dois, teríamos mais chance e os meus conhecimentos de química poderão ser úteis de alguma forma nessa empreitada.

Helmut pensou mais um pouco. Esfregou intensamente a testa. Estava num dilema. Finalmente decidiu.

Está bem - concordou, embora ainda inseguro. - Mas vocês têm de ir logo para alcançá-los a tempo de retornarem antes do final do ano quando as aulas se encerram. Se não voltarem a tempo, teremos que considerar os dois garotos como mortos e jus­tificarmos o desaparecimento para as suas famílias. Também preciso convocar, com urgência, outros dois professores substitutos enquanto vocês estiverem ausentes.

Eu vou me preparar - disse Roger, tomando o caminho da porta. — Dentro de uma hora estarei no portal. - Guillermo o seguiu para fazer o mesmo.

Os outros professores também saíram. O momento era tenso.

Eu tenho um monte de coisas para ver — disse Helmut, olhando de um lado para o outro. — Quero que vocês fiquem aqui e me aguardem — ordenou ele com o dedo em riste apontando para Daniel e Rafael, a cara fechada. - Cumpram uma ordem, ao menos essa vez. — Ele saiu e fechou a porta. Rafael notou com seu ouvido treinado quando a chave girou na fechadura trancando-os lá dentro.

E agora, esperamos? — perguntou Rafael, as mãos entre as pernas, os pés batendo no assoalho nervosamente.

E o que você acha que podemos fazer? — perguntou Daniel, correndo os olhos pela sala. — Fugir?

É uma possibilidade.

Daniel voltou-se lentamente para seu amigo.

O que você tem em mente?

Lembra-se de quando fizemos um pacto? - disse Rafael, procurando condu­zir os pensamentos de Daniel. - Entramos nessa juntos e vamos sair juntos.

Aonde você quer chegar, Rafael? - perguntou Daniel, intrigado. Rafael olhava em silêncio para o amigo na esperança que os seus pensamentos pudessem ser lidos. - Você está pensando em atravessar aquele portal? - perguntou. Suas sobrancelhas se contraíram.

De que outra maneira podemos salvá-los? Nossa carreira nessa escola acabou nem sabemos o que o Sr. Helmut reserva para nós. Rafael não parecia estar para

brincadeira.

E como você acha que chegaríamos até o portal? Todas as passagens até lá devem estar bloqueadas — ponderou Daniel.

Talvez não — supôs Rafael. — Com um pouco de sorte ainda podemos usar o túnel e alcançar a caverna sem sermos vistos. Se você não quiser vir eu vou sozinho. - Daniel empalideceu com o que ouvia do amigo. — Não tenho mais como encarar os meus pais, eu não agüentaria a decepção que vou causar a eles. - O que seu pai havia dito há meses, numa conversa com a sua mãe, latejava em sua cabeça. "Estou confiante de que ele vai conseguir concluir o curso."

Estou com você! — exclamou Daniel, resoluto, não dando qualquer chance para Rafael se arrepender. - Não temos tempo a perder.

Rafael foi até a porta e olhou pelo buraco da fechadura.

—Tem alguém aí fora de sentinela - disse ele. Daniel fez uma cara de insatisfação.

A janela! — exclamou Daniel. — Podemos sair por ela.

A janela da sala de Helmut dava para o jardim interno e era cercada por arbustos compactos. Do outro lado do jardim, junto às colunas, outro monitor ia e vinha, atento a um ou outro aluno que passava por ali.

Tem que ser por aqui - disse Rafael enquanto vigiava pela janela, já entreaberta. — Não temos outro caminho.

Rafael saltou e desapareceu entre as folhagens, enquanto o monitor estava de costas. Depois foi a vez de Daniel. Em minutos, eles deslizavam pelos corredores, esforçando-se como podiam para não serem flagrados. Rafael e Daniel tentavam se misturar entre os alunos, desviando-se de um monitor ou outro. O prédio estava visivelmente agitado. A claridade do dia ajudou Rafael a abrir com mais rapidez a porta da sala do grifo e logo já estavam a caminho pelo imenso túnel, só que dessa vez, sem enxergarem um palmo adiante de seus narizes. Nem se preocuparam em fechar de novo a porta que haviam aberto. O tempo estava se escoando.

Você não está ouvindo outros passos, além dos nossos? — perguntou Daniel, apressado, tateando as paredes para evitar um tombo.

Deve ser o eco — disse Rafael, sem dar importância. — Vamos depressa, eles logo vão acionar o portal.

Devido à total escuridão, o percurso pelo túnel demorou o dobro do tempo.

Você não está sentindo algo estranho? — perguntou Rafael, diminuindo o passo.

Os dois pararam por um tempo, em silêncio.

O portal! — exclamou Daniel. — O portal foi acionado! Vamos! Rápido!

Eles percorreram o túnel por mais alguns metros, tropeçando e se arrastando como podiam. Por fim, tocaram de maneira atabalhoada a escada no final do túnel e começaram a subir, escorregando pelos degraus. Empurraram com força o alça­pão para o lado. O barulho que produziam não podia ser ouvido tal era o zumbido que deixava a todos quase surdos. Quando saíram do buraco, os meninos se depa­raram com alguns homens de costas para eles e voltados ao incrível espetáculo do disco girando e afundando na crosta terrestre. O portal havia sido aberto. Entre os observadores estavam Helmut, Brian e Rajev. Os professores Roger e Guillermo já não estavam mais lá. O abismo reluzente provocado pela abertura do portal já era profundo. Os dois garotos se prepararam para correr e saltar, mas por um instante hesitaram.

É agora ou nunca! - gritou Daniel, tomando coragem. Ele finalmente correu e pulou.

Os homens que estavam na beirada se assustaram. Quando Rafael passou correndo, foi segurado pelo professor Brian, que quase se desequilibrou. Atrás dele, surgiu então, Margaret, que os havia seguido todo o tempo pelo túnel escuro. Ela deu um encontrão em Brian, e os três: Rafael, Brian e Margaret também caíram, desaparecendo no abismo de luz branca.

Helmut, desesperado, levou as mãos à cabeça. O portal havia engolido mais três alunos.

 

                                       Pedras Insólitas

Daniel só conseguia distinguir a luz pálida que o envolvia. Os seus sentidos se resumiam apenas à sua visão monocromática do branco intenso. Ele não ouvia nada; não sentia calor nem frio. Tentava puxar o ar para dentro dos pulmões; não havia ar e provavelmente nem seus pulmões existissem naquele instante. Aliás, não con­seguia sentir nenhuma parte de seu corpo. Era só a sua mente no meio do vazio infinito. Daniel não conseguia estimar por quanto tempo vivenciou aquela experiência. Talvez alguns segundos tivessem se passado, ou algumas horas, quem sabe, até mesmo anos. O tempo e o espaço deixaram de ter algum significado para ele. Aos poucos, tudo começou a tomar forma. Por detrás da luz iam surgindo nuances que que­bravam a monotonia, e a agradável sensação de calma parecia esmorecer. Daniel, então percebeu que todos os seus sentidos haviam retornado. Quando ele forçou os olhos, se viu deitado sobre um disco, semelhante àquele por onde havia atra­vessado momentos antes, só que era totalmente branco. Daniel esfregou os olhos embaçados, sua cabeça ainda girava um pouco. Próximos a ele, Guillermo e Roger se levantavam com alguma dificuldade. Numa outra parte do imenso disco, Daniel identificou o seu amigo Rafael, e o professor Brian que acabara vindo por acidente. Mas havia mais uma pessoa deitada; os seus longos cabelos lhe cobriam o rosto. Era uma menina! Daniel foi até ela, mas seu coração começou a bater mais rápido, temendo o pior. Ele afastou aqueles cabelos e viu.

-Meg!

Ela abriu um olho, exibindo uma expressão triunfante.

Eu avisei que iria descobrir o que vocês estavam tramando — disse, sentando- -se e arrumando os cabelos.

Daniel estendeu-lhe a mão para ajudá-la a se levantar. Depois ensaiou dar-lhe uma bronca.

Você não deveria ter vindo. Já estávamos bastante encrencados sem você. Papai vai nos matar quando voltarmos.

Mas primeiro... precisamos voltar — disse ela, inspecionando o lugar a sua volta. — Onde estamos? Que lugar é esse?

Se eu te disser você não vai acreditar — afirmou Daniel, igualmente correndo o olhar pelo local.

Os recém-chegados ainda se ambientavam com a nova paisagem. Eles estavam soore outro disco, só que este era de um branco imaculado, mas de dimensões aénticas ao outro, totalmente negro, por onde eles tinham viajado há poucos instantes. Em torno do disco, algumas rochas disformes se erguiam e além delas, de um lado, um paredão natural se estendia pelo lado oeste, cobrindo-lhes a visão do que poderia haver mais adiante. Pelo lado leste, uma floresta, onde se iniciava uma pequena estrada de terra completavam o cenário. O céu claro tinha algumas poucas nuvens brancas como algodão e um vento se infiltrava pelas rochas, deixando a temperatura bastante amena.

Rafael se aproximou estranhando a presença de Margaret.

Como é que você veio parar aqui?

Quem você acha que te livrou das mãos de Brian? — disse ela, apertando os olhos. - Se não fosse por eu dar um empurrãozinho na hora certa, você estaria na sala do Sr. Helmut a essa hora - disse, e então alertou Daniel e Rafael, com um aceno de cabeça, da aproximação do professor Brian que vinha bufando.

O que vocês fizeram?! - esbravejou ele. - Já não bastava terem provocado a criação dessa expedição? Agora teremos que salvar não dois, mas cinco garotos irresponsáveis numa aventura que nem sabemos como vai terminar.

Brian teve que explicar a Roger e Guillermo como havia atravessado o portal por acidente. Os professores aventureiros olhavam com desaprovação para os meninos.

Temos de nos preparar e fazer de tudo para voltarmos dentro do prazo — disse Brian, procurando se acalmar, passando a mão pelos cabelos.

Vamos por ali — disse Guillermo, mostrando a trilha que entrava pelo bosque. Deve ser o caminho que Martov disse que levaria à civilização.

De repente, de trás de uma das pedras saiu uma figura vestida com um traje comprido e coberta por um capuz que lhe escondia o rosto. O estranho correu e se embrenhou pela floresta, desaparecendo de vista. Roger fez menção de ir atrás, quando Guillermo o segurou pelo braço.

Deixe-o ir Roger, deve ser algum nativo assustado.

O grupo iniciou a caminhada. Roger ia à frente, seguido por Guillermo e pelos garotos e, fechando a fila, estava Brian. Eles caminharam por quase um quilômetro dentro da mata e saíram em um terreno aberto de onde puderam vislumbrar pequenas colinas por onde a trilha continuava.

Vamos - disse Roger, iniciando a subida pelo flanco de uma colina de inclinação suave. - O nosso primeiro destino deve estar logo atrás dessa elevação.

A marcha foi sem muita dificuldade pelo caminho tranqüilo de vegetação rasteira. Quando atingiram o ponto mais alto, eles puderam avistar lá em baixo, uma cidade que parecia ter sido tirada dos livros de história medieval. Além da cidade, até onde a visão alcançava, e por toda a região do lado leste, se estendia um imenso deserto de solo duro e seco. A pequena cidade se localizava nos limites onde ainda era possível abrigar qualquer tipo de vida.

Lá está — disse Guillermo, ajeitando a mochila nas costas. - É a povoação que Alexei Martov fez sua primeira parada. Vamos para lá.

Roger tirou uma pequena luneta de sua mochila e rastreou rapidamente a cidade, podendo ver com mais detalhes as construções e os habitantes que se des­locavam tranqüilamente na sua rotina.

Se Marc e Chester usaram o bom-senso, eles devem estar lá embaixo — comentou Brian, retomando o passo.

Em pouco tempo eles estavam se aproximando dos limites da cidade que tinha uma aparência bucólica e organizada. Um homem de avançada idade, que transportava um feixe de gravetos, percebendo a chegada dos forasteiros, parou o que estava fazendo e encarou-os com curiosidade.

Quem são vocês? — perguntou ele, depositando a carga de gravetos no chão e exibindo a boca que lhe faltavam alguns dentes. — Vieram do disco branco, não é?

Bom dia, senhor — cumprimentou-o Guillermo, aproximando-se. - Tem razão, acabamos de chegar ao seu mundo.

O homem de rosto enrugado fitou-os com ar severo e, depois de alguns segundos, sorriu, mostrando novamente a boca desdentada.

Se é assim, sejam bem-vindos, estrangeiros — disse o velho, estendendo a mão. — Fazia tempo que não recebíamos uma turma tão grande por aqui. Ah, meu nome é Giuseppe Jourdain Smith. O Jourdain é francês e o Smith é inglês e para não dar briga meus pais me deram um nome italiano, seja isto o que for — riu ele.

Um outro grupo maior, de umas vinte pessoas, se aproximou vindo da cidade, rodeando os recém-chegados. Um homem de uns cinqüenta anos, nariz largo, barba farta e usando uma bengala, mais por vaidade que por necessidade, puxava a comitiva.

Meu nome é Raul... Raul Livio Court. — Apresentou-se ele, um jeito de líder, os polegares enfiados no cinturão enquanto falava. - Sou o governador dessa cidade. Bem-vindos à Nova Europa! - disse num sorriso cheio de satisfação.

Agradeço a sua hospitalidade, senhor - disse Brian.

Pode me chamar pelo primeiro nome - antecipou-se Raul.

Pois bem, senhor Raul - continuou Brian. - Estamos procurando dois garotos que vieram parar aqui por acidente, seus nomes são Chester e Marc.

-Ah sim, os garotos. Eles estão bem - disse, abrindo caminho entre a pequena multidão. - Venham, vou levá-los até eles. Precisamos saber o que vocês pretendem fazer. Se decidirem ficar em Nova Europa ou Nova América, serão bem acolhidos.

Nova América? — perguntou Rafael achando engraçado os nomes tão familiares.

É uma pequena cidade que fica a dezesseis quilômetros a noroeste - explicou Raul ao mesmo tempo em que afagava a cabeça de uma criança nativa que observava os visitantes com olhos atentos. — Nova América abastece nossa cidade com a criação de gado e a produção de legumes e frutas e nós retribuímos com nossos manufatu­rados. As terras por esses lados não são muito boas para o plantio e a criação - confi­denciou, falando mais próximo de Brian como se fizesse uma confidência.

Eles começaram a caminhar pelas ruas estreitas. Algumas ruas e ruelas da cidade iram calçadas com pedras arredondadas, e outras, aparentemente de menor impor­tância, com terra batida. Guillermo, Roger, Brian e os meninos, ciceronados por Raul, recebiam informações diversas sobre o lugar enquanto andavam. O tempo havia parado naquele lugar. A primeira impressão que tiveram era de que os morado­res de Nova Europa adoravam receber visitas, e recebiam muito bem. Nos parapeitos das janelas havia estranhas pedras azuladas com diversos tamanhos e formas.

O que são aquelas pedras? - reparou Daniel.

Aquilo? Ora, são luminitas — disse Raul, ensaiando uma explicação. — São elas que nos fornecem luz à noite.

Alexei descreveu essas pedras no seu diário — lembrou Brian.

Não me lembro de ter lido sobre elas — comentou Rafael, levando em conta que havia pulado várias páginas do diário naquela noite, na biblioteca.

Essas pedras absorvem a luz solar e, durante a noite, iluminam as casas, ruas e praças — explicou Raul, pegando emprestada uma pedra que estava exposta em uma janela. - Observem os postes, cada um deles sustenta no seu topo uma luminita que clareia a cidade até o amanhecer. Mas para que elas forneçam a luz de que necessitamos, precisam ser recarregadas assim, ao ar livre.

E quando o tempo está nublado ou chuvoso? - perguntou Rafael, impressionado.

Ainda assim elas funcionam - respondeu Raul, passando a pedra de uma mão para a outra. - Entretanto, a luz se torna mais difusa.

Por quanto tempo elas permanecem brilhando? — perguntou Margaret, roçando a pedra.

Pelo mesmo tempo que ficam absorvendo a luz do sol — respondeu Raul, contente por poder explicar algo que era tão corriqueiro, mesmo para as crianças de Nova Europa. - Por exemplo, se uma pedra absorver luz durante cinco horas, ela brilhará durante as mesmas cinco horas; se o tempo de exposição for de dez horas, então a sua luz se conservará pelo mesmo período.

De onde elas vêm? - perguntou Brian, imaginando como seriam úteis em seu mundo.

Existem três grandes veios, todos bem longe daqui. Dois deles são verda­deiras montanhas de luminita que servem de farol para aqueles que se aventuram a viajar à noite. Eu tive a felicidade de ver um deles brilhando, próximo a Faogard, numa noite nublada. As nuvens baixas cintilavam, refletindo a montanha de luminita. Fiquei ali, admirando o belo espetáculo por horas. Infelizmente, nosso solo não tem nem um mísero grão dessa pedra preciosa e quando necessitamos de alguma, temos que pagar caro por ela.

Eles chegaram até uma pequena praça pouco arborizada e rodeada por alguns prédios baixos, sendo o mais alto o da igreja matriz que ostentava bem no alto, no topo do campanário, uma cruz cravejada de pedras de luminita. Devia ser um lindo espetáculo quando as pedras faziam à cruz brilhar durante à noite. No centro da praça havia o busto em pedra cinzenta de alguém importante. A direita da praça, se localizava a estalagem Javali Roncador.

Ali estão hospedados seus amigos — apontou Raul. - E onde servem o melhor porco assado e a melhor cerveja de toda a região.

E os garotos? - perguntou Daniel, não satisfeito em ainda não tê-los visto.

Ora, devem estar por aí. Eles não sossegaram desde que chegaram por aqui. Não se preocupem, os dois estarão bem enquanto estiverem dentro dos nossos limites.

Como assim, dentro dos nossos limites? - perguntou Guillermo, sua expres­são interrogativa.

O nosso território está bem distante das terras perigosas à leste - disse Raul franzindo o cenho, protegendo-se do sol que lhe batia diretamente no rosto. - Por isso, não necessitamos de muralhas ou qualquer outro meio de fortificação para proteger a nossa comunidade. Porém, além do deserto, as coisas mudam. Mas guardem o seu fôlego, responderei à todas as perguntas que vocês quiserem. Se forem tão ávidos por informações como Martov ou Fawcett que nos visitaram há alguns anos, passaremos dias conversando sobre o assunto.

Fawcett? - murmurou Margaret, olhando intrigada para Daniel e Rafael.

Essa é outra história que eu quero saber direitinho — disse Daniel, devol­vendo o olhar para a irmã.

Não temos tempo para passar dias conversando — disse Roger secamente. — é urgente que comecemos a nossa jornada de retorno o mais rápido que pudermos ou não voltaremos a tempo.

Não quero desiludi-los, amigos, mas... talvez vocês nunca consigam voltar — advertiu Raul com uma expressão mais séria.

Caso você não saiba, senhor Raul, Alexei Martov conseguiu, apesar de enfrentar enormes dificuldades - informou Brian, discordando da opinião do anfitrião.

Eu já soube dessa proeza do amigo Alexei. Seus amiguinhos, Marc e Chester haviam me contado. Ele era muito esperto. Também sinto pela morte dele — disse Raul, sinceramente. - Entretanto, ainda sustento o que eu disse. Uma viagem de volta é muito perigosa, ainda mais quando cinco dos viajantes são crianças.

Não somos crianças! - protestou Margaret, contorcendo os lábios. - Sabe­mos muito bem nos cuidar.

Ora, ora... A princesinha parece ter bastante fibra - observou Raul, movendo a cabeça em sinal de aprovação.

E também não sou princesinha — disse ela, com ares de indignação. - Meu nome é Margaret Crowley.

Peço desculpas — retratou-se Raul, erguendo as sobrancelhas querendo parecer verdadeiramente arrependido. - Isso não se repetirá mais, Srta. Margaret Crowley. Posso chamá-la de Margaret, não é?

Pode — concordou, aceitando as desculpas.

Ótimo! Agora é hora de conhecerem os seus aposentos. Considerem-se hóspedes de Nova Europa pelo tempo que acharem necessário — anunciou Bartolomeu, guiando o grupo até a entrada da estalagem Javali Roncador. — Em tempo, hoje à noite teremos uma festa de boas-vindas que já estávamos preparando para Chester e Marc. A confraternização será na taverna da própria estalagem, vocês só precisarão descer e se divertir — disse, chamando com um aceno de mão um homem bem magro e careca, que usava um colete curto sobre uma camisa azul desbotada pelo excesso de uso. — Esse é Denis, o responsável pela estalagem, ele vai atendê-los no que for possível. Bem, tenho que deixá-los agora. No início da noite eu encontro vocês - disse, despedindo-se.

Venham por aqui, por favor - disse Denis, educadamente.

O salão da estalagem era amplo. Rústico, mas organizado. No fundo, um balcão para servir bebidas estava sendo limpo por um homem grande e gordo que vestia um avental de tecido grosso.

Aquele é Rudolph, nosso taberneiro. Vocês podem xingar a mãe dele, mas se falarem mal de sua cerveja - disse Denis, em tom de advertência. — Os aposentos ficam lá em cima,

Espere um pouco, Denis — disse Roger, fazendo meia-volta. — Quero ver se Chester e Marc estão bem.

Sossegue, amigo, eles estão bem - disse Denis, com expressão calma. Denis fez um sinal para esperarem e foi até Rudolph, o taberneiro. Depois de falar rapidamente, Denis voltou com notícias.

Rudolph disse que os garotos foram para o cercado dos cavalos.

E onde fica? — perguntou Roger, interessado em encontrá-los de uma vez.

À leste daqui passando pela rua do grande mercado, não tem como errar.

Eu vou buscá-los - disse Roger, tomando o caminho da saída. - Vocês vão se ajeitando, eu não devo demorar.

Nós vamos com você! - disse Daniel, seguindo Roger. Rafael e Margaret o seguiram.

A rua do grande mercado era bastante movimentada. Era lá que se realizavam as maiores transações comerciais da cidade. O entra e sai de gente interessada em comprar e vender não parava o dia todo. A rua acabava em uma porteira aberta que dava para o campo. Mais um pouco e eles já avistavam o cercado dos cavalos que Denis havia mencionado. Um ajuntamento de pessoas escandalosas em volta do cercado assistia e torcia pelos melhores cavaleiros da região que punham à prova as suas habilidades de domar cavalos selvagens capturados nas pradarias ao sul de Nova Europa. Aplausos e gritos aconteciam à medida que um cavaleiro conseguia domesticar um dos eqüinos. Para alívio de Roger, os dois garotos estavam bem, sentados sobre a cerca, à vontade, como se fossem do lugar, eles conversavam ani­madamente com dois homens.

Marc! Chester! - gritou Margaret, correndo em direção a eles.

O que vocês estão fazendo aqui? — disse Marc, entre surpreso e feliz por ver novamente os amigos.

Viemos levá-los de volta - disse Daniel, que vinha logo atrás. Ele não se conteve e agarrou os companheiros num abraço desajeitado. A sensação de culpa que ele carregava até aquele instante praticamente havia se evaporado.

Estamos juntos outra vez! - comemorou Rafael, juntando-se também ao caloroso abraço coletivo. - A equipe do quarto 21 está unida novamente. - Os dois homens que pouco antes falavam com Marc e Chester não entenderam nada do que estava acontecendo.

Esses são Leonard e Hans, os encarregados de cuidar das montarias — apresentou-os Chester, como já os conhecesse há anos. — E esses são meus amigos que também vieram pelo disco no chão.

Está tudo bem com vocês? - perguntou Roger, olhando Marc e Chester de cima em baixo.

Estamos ótimos, tirando o susto que tomamos quando aquela coisa nos puxou - disse Marc, satisfeito com a chegada inesperada. Ele imaginou o que os proressores e o diretor Helmut deviam ter pensado quando descobriram o que aconteceu.

-Temos uma longa jornada pela frente - avisou Roger, preparando os ânimos dos garotos.

A conversa foi interrompida quando a platéia explodiu, promovendo uma grande balbúrdia; quatro homens fortes traziam, puxado por cordas, um cavalo negro, de músculos vigorosos e comportamento enraivecido; as cordas eram compridas para evitar que um dos violentos coices que o animal desferia pudesse acertar alguém. Leonard saltou da cerca e correu para o centro do terreiro, pedindo silêncio com as mãos.

Quem se arrisca a tentar domar o Pesadelo? — gritou ele em tom de desafio, citando o nome da fera.

Por que você não tenta, Chester? - Marc acabara de mexer com os brios do imigo cavaleiro.

Ninguém conseguiu até hoje montar naquele cavalo sem levar um belo tombo ou um coice — alertou Hans, desencorajando um possível voluntário.

Um homem de aparência agreste pulou para dentro do cercado, disposto a enfrentar a fúria de quatro patas. O desafiante se aproximou e num movimento ágil, remonstrando grande habilidade na arte de montar, conseguiu subir nas costas de Pesadelo; as cordas foram afrouxadas e o animal, querendo a todo custo desvencilhar-se, começou a pular de maneira alucinada, e em poucos segundos o cavaleiro foi atirado no ar e desabou no chão, rolando como um boneco de pano. Os auxiliares puxaram-no rapidamente para longe dos cascos furiosos que batiam no chão com toda força. O cavaleiro frustrado e mancando, afastou-se, apoiado por dois amigos. Pesadelo ziguezagueava e saltava, como se quisesse avisar que não estava disposto a se submeter a nenhum outro homem que se aventurasse a montá-lo.

Eu sei que posso domá-lo! Já fiz isso muitas vezes com outros cavalos tão arredios quanto esse - garantiu Chester, confiante.

Escute aqui, garoto - disse Roger, perdendo a paciência. — Eu não vim de tão longe para deixar um menino teimoso se quebrar montando um animal enfurecido. Tenho que levar você e seus amigos sãos e salvos, portanto, não me cause mais pro­blemas. — Roger ficou observando Chester por uns instantes e continuou - Vamos rapaz, você não precisa bancar o herói.

Os olhos de Chester acompanhavam cada movimento do cavalo que parecia fazer jus ao nome que lhe deram: Pesadelo.

Eu só quero tentar uma vez - teimou Chester, pulando para dentro do cercado.

Saia já daí ou eu vou tirá-lo à força! — ordenou Roger, irritado com a desobediência de Chester.

Chester fez que não ouviu e aos poucos foi chegando perto do animal que erguia as patas dianteiras e depois as batia violentamente contra o chão. Em seguida, escoiceava no ar, como que dando um recado que a próxima patada seria endereçada ao primeiro que se aproximasse. Muitos gritavam para ele se afastar do cavalo. Chester tinha um dom especial para controlar animais daquele porte. Ele parecia saber o que estava fazendo.

Enquanto isso, Leonard agitava os braços e gritava.

Se afaste, rapaz! Esse cavalo é perigoso! Ele vai acabar com você!

Chester não dava ouvidos aos apelos. Parecia estar hipnotizado e se aproxi­mava cada vez mais. Ele levantou a mão direita e começou a estalar os dedos, dando a impressão de estar se comunicando com o animal. Aquela situação perdurou por uns dois minutos. Perplexa, a platéia se calou. Chester murmurava alguma coisa que os outros não conseguiam entender. Pesadelo pulava e relinchava ameaçador. O garoto não se intimidava e olhava fixamente para os olhos do cavalo furioso. Mas então, alguma coisa aconteceu. Aos poucos, Pesadelo foi se acalmando até parar de se agitar. Chester foi chegando lentamente perto do quadrúpede até tocá-lo cari­nhosamente. Pesadelo, ainda um pouco resistente, aceitou o afago. Todos ficaram pasmos com o que viram. Chester pegou uma das cordas e conduziu Pesadelo com cuidado até próximo a cerca, depois, apoiando-se, montou no cavalo que aceitou passivamente o seu condutor. A multidão foi ao delírio.

Esse menino é um feiticeiro! - deduziu Hans, boquiaberto.

Não... ele é só meu amigo — disse Daniel, altivo, como se ele próprio tivesse realizado a proeza.

Não acredito no que meus olhos estão vendo - disse Leonard, perplexo. - Esse animal nunca aceitou ser montado.

Cavaleiro e montaria davam voltas pelo cercado, como se fizessem isso juntos há muito tempo. Depois de demonstrar do que era capaz, Chester desmontou e, afagando mais uma vez Pesadelo, foi até aos espectadores admirados.

Sugiro que não tentem montá-lo ainda - disse, pulando a cerca de volta. - Ele ainda está bem selvagem.

Ótimo! - disse Roger, aborrecido. - Você já deu a sua exibição particular, agora vamos embora. Temos muito que conversar.

Como você conseguiu fazer aquilo? - perguntou Marc, ainda sem se recupe­rar do que vira. - Quero dizer, domar uma fera daquele tamanho?

Como você consegue tocar tão bem? - retrucou Chester, e trocou empurrões de camaradagem com seus amigos.

No caminho de volta para a pousada, os meninos passaram perto de uma roda de jovens que jogavam um estranho jogo de cartas. Daniel ficou interessado nas figuras coloridas e brilhantes estampadas em cada uma das cartas. Era um baralho diferente de tudo o que ele vira antes. Um dos rapazes que jogavam, e que deveria ser o mais velho de todos, puxou assunto.

Conhecem esse jogo?

Não — respondeu Daniel, inclinando-se para ver mais de perto, muito interessado.

Se chama Dakenkal Lunfe, que quer dizer: Continente em Guerra. É a simulação de uma guerra que envolve os povos do continente: exércitos, criaturas, magos e feiticeiras se confrontam num jogo que pode levar muitas horas até se conhecer o vencedor. Ganha quem tiver a melhor estratégia e uma boa dose de sorte — explicou o rapaz, com boa vontade.

Onde consigo um desses? - perguntou Daniel, apreciando algumas cartas que o rapaz emprestou para manusear.

Não é muito fácil encontrar um baralho como esse - respondeu o jovem jogador pegando as cartas de volta, cuidando para que os seus adversários não vis­sem quais eram. - Esse foi do meu avô e ainda parece novo - disse, lustrando uma das cartas na própria camisa.

Daniel e seus companheiros observaram por mais algum tempo, tirando proveito para conhecerem algumas regras básicas ensinadas pelos jogadores em tom professoral. Daniel estava mais interessado em saber o significado dos personagens representados nas cartas do que nas regras daquela competição. Eles descobriram que o baralho era composto de setenta e nove cartas com a possibilidade de inúme­ras combinações que deixariam o jogo muito disputado e emocionante. O menino inglês despediu-se dos jogadores e afastou-se, desejoso de ter um baralho igual. Seria ótimo fazer alguns truques de mágica com cartas tão bonitas.

Os três professores e os meninos se reuniram em uma saleta no andar de cima da estalagem para, pela primeira vez, todos juntos, conseguirem se organizar num plano que os tirasse dali. Depois que Marc e Chester receberam as reprimendas de Guillermo, Brian e Roger, por terem causado tantos transtornos, foram colocados rapidamente a par dos planos que deveriam participar para chegarem o mais breve possível ao portal de retorno. O sol começava a se pôr. Estranha e maravilhosa­mente, as pedras de luminita começaram a brilhar, nos lustres dentro das casas e nos postes lá fora. Quanto mais escurecia, mais luz as pedras emitiam.

Esse mundo é repleto de magia - encantou-se Daniel.

Nem a indiferença de Roger resistiu à tanta beleza. Ele ensaiou um discreto sorriso. Em seguida, consciente das suas responsabilidades, trouxe todos novamente à discussão.

A minha intenção é sairmos dessa cidade em no máximo dois dias — disse com grande seriedade, cuidando se todos estavam atentos ao que ele dizia.

Alexei Martov levou quase um ano para conseguir voltar — ponderou Marc, duvidando do sucesso da expedição em tão curto tempo. - Como vamos fazer o mesmo caminho em menos de quatro meses?

Ainda não sabemos exatamente — considerou Brian, avaliando as condições que teriam de enfrentar. - Mas é certo de que precisaremos de ajuda.

Quem vai nos ajudar? - questionou Roger, incrédulo. - Esses camponeses? Não vi muita disposição por parte do prefeito.

Ele só quer nos proteger, deve conhecer muito bem o que está além do deserto e o que se esconde por trás daquelas montanhas longínquas — argumen­tou Guillermo, enquanto examinava uma exótica estatueta esculpida em madeira que estava sobre um altar, uma bocarra com dentes pontiagudos e olhos saltados, davam um aspecto horripilante à figura. — Vocês já viram uma criatura assim?

Prepare o seu coração e o seu estômago — profetizou Brian, os cotovelos apoiados sobre uma mesa. — Pois se Martov não exagerou, vamos nos deparar com situações que ficarão marcadas para sempre em nossas vidas. Se é que vamos viver para escrever nossas memórias, como fez o nosso amigo russo.

Não assuste as crianças - censurou Guillermo, olhando energicamente para Brian. — Isso só vai deixá-las amedrontadas.

Se são crianças, então está na hora de crescerem bem depressa - preveniu Roger, afastando uma cortina e olhando pela janela algumas pessoas que chegavam à estalagem, com toda certeza para a recepção.

E eu já disse que não somos crianças — advertiu mais uma vez Margaret, os dentes cerrados. — Vocês nos subestimam, mas viram do que somos capazes.

É... por isso mesmo é que estamos aqui, pensando numa maneira para resol­ver o enorme problema que causaram — instigou Guillermo, esticando os pés sobre uma cadeira.

O som de música tocando e pessoas rindo e conversando no andar de baixo já se fazia alto.

O prefeito Raul os aguarda — avisou uma moça com cara de adolescente, cabelos louros em trança, um vestido longo rodado com diferentes tonalidades de rosa.

Acho que chegou a hora de conferirmos a recepção que nos prepararam - disse Guillermo, levantando-se e se pondo a descer.

No salão, vários membros importantes da cidade se acomodavam pelas mesas. Rudolph, o taberneiro, enchia o balcão de canecas e mais canecas de cerveja espu­mante que eram logo levadas aos fregueses sedentos por uma boa bebida.

O povo daqui parece gostar de uma festa — observou Guillermo, exibindo um sorriso gaiato.

Os freqüentadores da estalagem os olhavam com indiscrição.

Pelo visto, eles devem achar motivos para comemorarem qualquer coisa - completou Brian, procurando Raul em meio a tantas cabeças. - Lá está ele! - avisou, notando um aceno largo do prefeito que os aguardava sentado em uma mesa comprida.

Sentem-se! - disse Raul, oferecendo as cadeiras vazias reservadas aos visitantes. - Esse é Sebastian Soares, o prefeito de Nova América - disse apontando para um homem com mais de sessenta anos, de barbas longas, que usava óculos de lentes redondas e pequenas, apoiados na ponta do nariz. — E essa é minha esposa, Katherine - apresentou, a mulher elegante de leves rugas sob os olhos castanhos, um colar ornado de pedrarias lhe pendia do pescoço. Ela deu um sorriso discreto, mas receptivo - Rudolph, cerveja para os adultos! E para vocês... — disse, olhando para os meninos. — Acho que vão gostar de um bom suco de bantagena. — Raul voltou-se para o atendente que aguardava os pedidos e que não perdeu tempo em anotar prontamente os cinco sucos de nome estranho. — E então, o que estão achando da nossa cidade?

É bem simpática e acolhedora — disse Guillermo, sendo agradável.

Eu fiquei sabendo da sua façanha com o Pesadelo - disse virando-se para Chester. — Todos estão comentando sobre o que fez — Chester ficou vermelho e sorriu encabulado. — Se resolverem ficar eu tenho um emprego perfeito pra você nas cocheiras. Poderá montar quantos cavalos quiser.

Obrigado — disse Chester, agradecido. — Mas tem um lugar no meu mundo onde posso fazer isso sempre, no rancho do meu tio.

Em todo caso, se você mudar de idéia, o convite está de pé — posicionou-se Raul, e virou um grande gole de cerveja.

Em primeiro lugar, gostaríamos muito de agradecer essa recepção toda — disse Brian, chamando a atenção de Raul para si. Raul respondeu com uma reverência com a cabeça. — Em segundo lugar — continuou Brian. - Queremos pedir a sua ajuda para voltarmos ao nosso mundo o quanto antes.

Vocês já conhecem o que eu penso sobre essa aventura, mas não vou tentar impedi-los — disse Raul franzindo a testa. — Posso fornecer todo o material e víveres que necessitarem. Porém, a jornada é muito longa e por demais perigosa, mesmo para aqueles que conhecem bem os difíceis caminhos a serem percorridos.

Não temos alternativas — disse Roger, intervindo na conversa. - As conseqüên­cias deverão ser graves caso não regressemos dentro de quatro meses. A ausência desses cinco garotos poderá revelar um segredo de séculos. Os responsáveis por esses jovens nem sabem que eles sumiram e se isso acontecer, as autoridades inter­nacionais farão de tudo para investigar por que tanta gente desapareceu ao mesmo tempo e aí, a Ilha da Coroa ficará infestada de agentes dos governos que acabarão localizando o Portal.

E caso isso aconteça - prosseguiu Guillermo -, Miríades de aventureiros desem­barcarão por aqui, pondo fim ao sossego e a segurança de sua gente. - Guillermo se inclinou para frente para ser mais convincente, olhando firmemente para Raul. - Acredite meu amigo, o meu mundo foi tomado por gente que, pela cobiça e a sede de poder, faz qualquer coisa para alcançar seus objetivos mesquinhos. Se não voltarmos logo, a sua cidade e o seu mundo estarão seriamente ameaçados.

A declaração incisiva de Guillermo deixou Raul apreensivo.

A cerveja chegou! — alertou Brian, interferindo para que a conversa assumisse um tom mais ameno.

As canecas foram distribuídas aos seus donos. Rafael olhou a bebida de coloração violeta e correu o olhar entre os meninos que também faziam o mesmo.

Hum... isso é bom! — disse, saboreando a bebida. — O sabor é parecido com pêssego.

Pêssego com mais alguma coisa — opinou Margaret, deliciando-se com a bebida. — É como se fosse pêssego com... morango.

Não sei - disse Chester, virando o último gole. — Só sei que é muito gostoso.

O exercício de hoje deixou o nosso cavaleiro com bastante sede — observou Raul, sorrindo, contente por terem gostado do suco de cor atraente.

A cerveja também está ótima — comentou Guillermo depois de provar mais um pouco. - Só que um tanto... forte, eu diria.

A água dessa região deixa a cerveja assim — explicou Katherine, entrando na conversa. - Mas eu garanto que é uma excelente cerveja.

Katherine também é uma cervejeira de mão cheia - elogiou Raul, pegando na mão da esposa. - Nós só não dizemos que ela é a melhor para não provocarmos a ira de Rudolph... Que ele não nos ouça - terminou a última frase sussurrando.

O que você pode nos contar sobre o que enfrentaremos na viagem? — perguntou Roger a Raul, retornando ao que de fato interessava.

O falatório aumentava com a chegada de mais gente no salão. Raul teve que elevar um pouco a voz.

Muitas coisas que podem ou não ser úteis - disse Raul, pensando por onde poderia começar. - Mas acho que devo iniciar pelo melhor caminho que vocês devem ir, mas mesmo assim, até esse estará cheio de surpresas e vocês, meus ami­gos, devem estar preparados para tudo. - Raul olhou para Sebastian, dando-lhe a oportunidade de falar alguma coisa. O prefeito de Nova América continuou:

Primeiramente, para uma expedição dessa importância, é preciso ter um mapa detalhado, e os nossos mapas não são muito confiáveis a partir de um determinado ponto. Esses mapas a que me refiro, foram feitos por desbravadores sem muito conhecimento técnico, ou copiados de outros documentos muito antigos - Sebastian puxou, de baixo da mesa, uma espécie de pergaminho feito em couro e, afastando um pouco as canecas mais próximas a ele para conseguir espaço, desenrolou-o, revelando um minucioso mapa que mostrava uma vasta área desenhada com grande riqueza de detalhes. - Aqui estamos — disse ele, localizando o espaço onde ficavam as duas cidades, Nova Europa e Nova América. — A oeste, fica o mar Inóspito. Todos que se aventuraram a navegar por ele não voltaram. Disso, ninguém sabe porquê. As nossas terras estão cercadas, ao norte, a leste e ao sul, pelo deserto do Kundruir - disse, correndo toda área do deserto com a ponta do dedo indicador. — Depois dele, temos a cordilheira de Malthar; por ali a jornada se torna muito difícil, ainda mais quando há crianças no grupo - Margaret fitou Sebastian com irritação, soltando a caneca na mesa, mas não se pronunciou. Raul olhou-a pelo canto dos olhos, certo de que a observação de Sebastian, quando falou em "crianças", a deixaria indignada. O governador de Nova América não percebeu e continuou sua explanação. - Indo mais para leste, após transpor a cordilheira, fica a imensa e magnífica cidade de Paleandrus. Se conseguirem chegar até ela, ficarão maravilhados. Eu mesmo tentei ir até lá, há muitos anos quando ainda era jovem e mantinha comércio com o leste, mas infelizmente não aconteceu.

Qual a distância até Paleandrus? - perguntou Guillermo, para estimar aproximadamente quanto tempo levariam para alcançá-la.

Cerca de... novecentos e quarenta quilômetros, algo assim - respondeu Sebastian, inclinando-se para trás e erguendo os olhos para o teto enquanto fazia algum cálculo mental da distância.

É muito longe - cochichou Daniel para Rafael ao seu lado.

E isso não é nem a metade do caminho - disse Raul, se utilizando de um bom argumento para tentar desestimular mais uma vez os visitantes.

Mas esperem — alertou Sebastian, lembrando de um detalhe importante. - Entre o Kundruir e Paleandrus, vocês passarão pelo território de Faogard - disse Sebastian, apontando para uma parte intermediária do mapa. - Cuidado, pois é preciso ter muito tato ao lidar com seus habitantes. São guerreiros ferozes. Eles nos toleram, mas não confiam muito em nós. Os faogardianos ou faogards como eles mesmos se denominam, são uma das barreiras que nos protegem dos nossos inimigos declarados, os crassênidas. E é na terra deste povo que se encontra muito bem guardado o destino de vocês. O disco negro.

E o que há depois de Paleandrus? - perguntou Brian, percebendo que a empreitada seria muito mais árdua do que ele imaginava.

Não está muito claro pra mim - respondeu Sebastian, alisando a espessa barba. — Eu nunca fui além de Faogard, mas alguns humanos foram, e os poucos que tiveram a sorte de retornar não trouxeram boas notícias. Aliás, as informações são bastante desencontradas quanto às localizações de estradas e rios, por exemplo.

E tem alguém nessa cidade que explorou mais além? - perguntou Roger, específico.

Nesse momento não — disse Raul, pedindo, com um gesto de mão, outra rodada de cerveja, e a comida. — Estão todos fora. Esses viajantes fazem comércio com os outros povos, e às vezes, passam meses ausentes, só voltando quando a saudade aperta ou os bolsos estão recheados — explicou, entrelaçando os dedos, incomodado com a demora da refeição. - Muitos desses homens foram embora um dia para nunca mais voltarem. O coronel Percy Fawcett foi um deles.

Novamente um comentário sobre Fawcett. Daniel não se conteve e se intro­meteu na conversa dos adultos.

Desculpem, mas o coronel Percy Fawcett, o britânico, não desapareceu na Floresta Amazônica?

Não, Daniel - respondeu Guillermo, diretamente. Ele respirou fundo antes de contar toda a história. - Percy Harrison Fawcett era um grande desbravador, um apaixonado pelo desconhecido. Ele costumava viajar pelos lugares mais insólitos à procura de novos conhecimentos.

Fawcett era membro da Sociedade do Círculo de Pedra? — perguntou Rafael, deixando Marc, Chester e Margaret sem entender direito do que eles falavam.

Sim, um dos mais apaixonados - disse Brian com total conhecimento pelo fato de Fawcett também ser britânico como ele. - Ele e seu filho, Jack.

Mas, após explorar tantos lugares, restava uma coisa que ele queria fazer, mais do que tudo na vida - disse Guillermo como quem conta uma história à beira da lareira em uma noite de inverno.

Atravessar o Círculo de Pedra — adiantou-se Margaret, os olhos brilhando.

Exatamente isso - concordou Guillermo, o olhar vidrado para ela. Depois mudou para uma feição mais natural. — Fawcett era um homem conhecido por muita gente em todo o mundo. Se essas pessoas relacionassem o seu desaparecimento à Ilha da Coroa, não teríamos paz por muito tempo.

Foi então, que se decidiu falar oficialmente sobre o seu desaparecimento, e de seu filho, em uma expedição científica na maior floresta tropical do mundo - emendou Brian, apontando para Daniel.

Então essa história do desaparecimento na floresta... - reforçou Daniel, achando tudo muito interessante.

Foi plantada, para desviar para bem longe as atenções — esclareceu Roger. - A notícia foi amplamente divulgada entre os meios de comunicação de todos os conti­gentes. Para tornar a história mais real, o coronel Fawcett se embrenhou pela floresta, sendo visto por diversas pessoas que depois se tornaram testemunhas oculares de sua passagem, e após algum tempo, ajudado por membros de nossa sociedade secreta, ele retornou incógnito à Ilha da Coroa. Daí, o resto vocês já sabem, o coronel Fawcett atravessou o Portal e aqui chegou. Mesmo Alexei Martov, que andou por aqui, não teve nenhum encontro com ele. Essa é a história do famoso aventureiro.

Uma possibilidade que parecia bastante viável ocorreu a Rafael.

Porque não vamos pelo mar? Vocês devem ter um barco, não é mesmo?

Temos sim — respondeu Raul, voltando-se para o menino. — E essa seria a melhor opção se não houvesse um enorme problema: os crassênidas são a maior força naval dentre todos os povos; suas embarcações chegam a contornar boa parte da Cadecália, e qualquer barco que invadisse o litoral daquele povo seria abordado ou, provavelmente, afundado antes que os tripulantes conseguissem dar qualquer explicação. Eles não gostam nem um pouco de nossa gente. Agora, imagine um barco com nove humanos sendo apanhado costeando Crassen. Qualquer embarcação, por menor que seja, pode ser notada a quilômetros no meio do oceano.

Raul fez uma breve interrupção e voltou a explanar.

Os faogards vigiam constantemente a costa do seu território e também man­têm postos avançados em nossas praias, pois se acautelam de uma possível invasão pelo mar. Já foram avistados navios de guerra crassênidas nessa ponta do continente. O que eles estariam fazendo em nossas águas? Portanto, a melhor opção ainda é a travessia pelo interior da Cadecália, onde temos florestas e montanhas para nos esconder.

Sebastian, que percebeu a tão esperada refeição chegando, enrolou rapida­mente o mapa para dar espaço aos pratos. As bandejas com a comida começaram a ocupar a mesa. Uma delas estava repleta de pedaços de carne de porco, e rodelas de cebola assada aguçavam o aroma do pernil. Em outra bandeja, batatas e cenouras, misturadas com finas fatias de carneiro regadas a molho de laranja completavam a refeição. O cheiro era convidativo.

Acho que eu não vou querer mais ir embora - disse Guillermo, faminto, abocanhando um apetitoso naco de pernil.

A conversa sofreu uma pequena pausa para o deleite dos convidados. A música animava o salão, chamando a atenção de Rafael.

Veja, Marc — disse, cutucando de leve o braço do amigo. — O flautista até que toca bem, mas que tal você mostrar o que pode fazer?

Eu não quero me mostrar como fez Chester quando domou o cavalo - respondeu, determinado em livrar-se da responsabilidade.

Eu não quis me mostrar coisa nenhuma - protestou Chester, a boca cheia de comida. — Mas confesso que o gosto da fama é muito bom — confessou rindo.

O senhor conhece o talento de Marc para a música? - perguntou Rafael a Raul, ignorando a vontade de se esconder do amigo músico. Marc fez uma cara feia, desaprovando Rafael. - Ele toca flauta como ninguém. É um gênio nessa arte.

Ora, mas que boa notícia! - alegrou-se Raul. - Parem a música! - gritou ele, todos no salão olharam com cara de espanto. - Tem um artista entre os nossos con­vidados e peço a atenção de todos vocês para uma apresentação do jovem Marc...

Marc Fournier — ajudou Rafael, soprando para o prefeito.

Isso mesmo - consertou Raul. - Marc Fournier! Por favor, caro amigo, Marc, vá até ao nosso humilde palco e nos dê uma demonstração do seu enorme talento.

Marc se levantou, fuzilando Rafael com os olhos.

Vai logo! - disse Rafael, sorridente, ajeitando-se na cadeira para a audição.

Marc tomou emprestada a flauta e começou a tocar uma melodia suave, encantadora. A platéia ouvia com atenção, tal era a desenvoltura do menino. Após a primeira apresentação, Marc quis incendiar o salão com uma música mais agi­tada. Os componentes da banda o seguiram, entusiasmados. O ritmo da música era acompanhado por palmas animadas e pés sendo batidos no assoalho tosco. Ao final da curta apresentação, Marc se levantou agradecendo e foi ovacionado de pé. Foi, talvez, a apresentação mais emocionante da sua vida. Ao sentar-se novamente perto de Rafael, ele reconheceu:

Te agradeço por ter feito aquilo.

Não há de quê — disse Rafael, piscando um olho.

No meio do salão, em uma das mesas, estavam Hans e Leonard, os tratadores de cavalos. Hans comentou novamente:

O menino é um feiticeiro. Nenhum ser normal consegue tocar dessa maneira.

O dono da flauta que Marc havia usado se aproximou da mesa dos convidados.

Tome, quero que aceite essa flauta.

Mas, eu não devo, ela é sua — disse Marc, constrangido.

Eu insisto - disse o flautista. - É um presente.

Vamos, Marc, pegue a flauta - recomendou Raul, fazendo um gesto com a mão. - É um ótimo instrumento, você vai gostar.

Tenho certeza disso - afirmou Marc, ainda meio sem jeito, pegando a flauta solenemente. - Ela tem um som maravilhoso.

O rapaz que presenteou Marc fez uma reverência e se afastou.

Depois da agitação causada por Marc, com uma pequena ajuda de Rafael, a festa voltou ao nível de antes.

Quando vocês pretendem partir? - perguntou Raul, empurrando o prato, satisfeito com tanta comilança. — Não que eu queira que vocês vão embora — disse, com todo cuidado.

Logo que tenhamos todo o material disponível — disse Roger, soltando a caneca de cerveja vazia na mesa. — Não temos opção, teremos que partir sem um guia.

Acho que tem um homem que pode ajudá-los — disse Sebastian, erguendo uma sobrancelha. — Só não sei se ele está disposto a fazer isso. — Até Raul estranhou as palavras do governador de Nova América.

Do que você está falando? - perguntou Roger, bastante interessado.

Raul ainda não sabe, no entanto, um dos mais experientes desbravadores das terras longínquas retornou faz menos de duas semanas e está em Nova América. O seu nome é Bartolomeu Funchwooc.

Bartolomeu voltou? - surpreendeu-se Raul. - Precisamos falar com aquele fujão. Vocês não poderiam arranjar um guia melhor.

Espere um pouco, Raul - disse Sebastian, com reserva. - Você conhece bem Bartolomeu e sabe como ele é temperamental. Pelo que sei, ele não está nem um pouco propenso a pôr o pé na estrada tão cedo e, além disso, ele só viaja sozinho.

Mas essa é uma situação especial — ponderou Raul, com a intenção de meramente ajudar os novos amigos e prevendo que mesmo com ajuda, o risco das coisas darem errado seria muito grande.

Podemos ao menos falar com ele - sugeriu Guillermo.

Ele não gosta de estranhos — retrucou Sebastian, inexpressivo. - Acho mesmo que ele não gosta de ninguém. Por isso costuma se isolar no deserto ou nas montanhas.

Vocês acham que temos alguma chance de ele ir com a gente? — indagou Brian, desejoso de ter alguém que possa mostrar-lhes o caminho mais curto e seguro até o Portal.

É difícil dizer - observou Sebastian, tirando os óculos e descansando-os em cima da mesa. Ele esfregou os olhos. - Mas posso arranjar um encontro com ele. Eu tenho um relacionamento amistoso com Funchwooc. Porém, isso não garante que ele vá com vocês.

Não custa tentar - disse Guillermo, inclinado a ir até Nova América conhe­cer e convencer Bartolomeu Funchwooc.

Então está acertado — decidiu Sebastian, olhando a todos à mesa. - Parti­remos amanhã bem cedo. Quero que um de vocês me acompanhe para expormos a Bartolomeu toda a situação. Outra coisa, se bem conheço aquele homem, ele é rude, mas tem um bom coração quando se trata de crianças. Quando ele souber que existem menores correndo algum perigo, pode ser que se comova e aceite ajudá-los.

Eu vou — comprometeu-se Guillermo. — Vocês precisarão de alguém que saiba negociar — disse, seguro de suas habilidades de convencimento.

Eu quero ir — ofereceu-se Margaret, sem hesitar.

Alguém vê alguma objeção? - quis saber Sebastian. Ninguém se opôs. — Se é assim, estejam prontos quando o sol sair.

Os cavalos estarão selados aguardando na praça — avisou Raul, os pratos e as bandejas vazias começaram a ser recolhidos.

Aos poucos, as pessoas foram se retirando para suas casas. A banda parou de tocar e a festa foi substituída pelo sossego.

Raul colocou sobre a mesa um pequeno volume envolto em um pano mar­rom, empurrando-o na direção de Daniel.

- É pra você - disse, esperando que o menino abrisse o presente. Daniel desembrulhou desconfiado.

O baralho! - exclamou surpreso. - O baralho de... Como é mesmo o nome?

Dakenkal Lunfe — lembrou Raul, contente pela alegria de Daniel. — Uns amigos me contaram sobre hoje à tarde e esse é um presente que eu quero que leve e guarde pra sempre como um sinal de nossa amizade por vocês.

Como soube das cartas? Apenas falei por alguns instantes com um grupo de garotos quando voltava do cercado dos cavalos. - Daniel estava encantado com o presente.

Sei de muitas coisas que acontecem nessa cidade. Afinal, eu sou a autoridade -máxima por aqui, não é mesmo? — E sorriu satisfeito como um bom anfitrião.

Vamos nos recolher - recomendou Brian. - Todos têm que descansar bem essa noite. Principalmente vocês, garotos.

 

Raul e Denis já estavam posicionados ao lado dos cavalos quando Sebastian, Guillermo e Margaret deixaram a estalagem, após o desjejum. O movimento nas ruas, de tão cedo, ainda era pequeno. O frescor da alvorada prometia uma viagem tranquila. Roger, Brian e os meninos se juntaram a eles.

Chegaremos à Nova América ainda pela manhã — estimou Sebastian, verificando o arreio de sua montaria. Num impulso e ele estava montado.

Boa sorte! - desejou Raul, exibindo um semblante amistoso.

Margaret, Guillermo e Sebastian se despediram e afastaram-se em trote lento, - seguindo por uma das ruas no sentido de Nova América.

O trajeto não foi difícil. A estrada era arborizada dos dois lados em muitos pontos. A presença de pássaros e pequenos animais, como roedores, era constante. Em pouco mais de três horas eles já avistavam a pequena Nova América, pouco menor que Nova Europa, mas com o mesmo estilo arquitetônico de cidade antiga. Um rapazola de uns dezesseis anos e uma linda moça um pouco mais velha vieram recebê-los na entrada da cidade: Jean e Sylvia. Eles eram os dois filhos mais novos de Sebastian, num total de seis. As apresentações foram feitas e os dois jovens fica­ram sabendo resumidamente o propósito da presença dos visitantes.

Vimos Bartolomeu cruzando a avenida principal agora há pouco - infor­mou Sylvia, seus olhos de um azul-claro resplandeciam com a luz do dia. Seus cabelos louros caíam em mechas sobre os ombros.

Guillermo se encantou com a beleza da jovem. Sebastian percebeu e não gostou nem um pouco; afinal, Guillermo estava ali de passagem e não havia qualquer possibilidade de um relacionamento mais afetivo. Sebastian pigarreou.

Devemos ir logo — determinou ele com ar mais sério. — Quero resolver esse assunto antes do almoço.

O grupo cruzou a cidade, sendo observado por diversos olhares curiosos. Náo era comum se ver duas caras novas de uma só vez por aquelas bandas. Ainda por cima na companhia do governante da cidadezinha.

Estamos quase na extremidade de todo o continente — comentou Sebastian enquanto cavalgava ao lado de Guillermo e Margaret. Um galho mais baixo de uma árvore de tronco grosso, quase roçou no rosto dela. Margaret afastou com a mão. — Essa nossa condição nos deixa totalmente fora das rotas de comércio - lamentou, seu olhar se perdia lá na frente. - Mas devemos dar graças por nos deixarem ficar com esse pedaço de terra e podermos tocar nossas vidas sossegadarnente.

O que aconteceu quando os humanos começaram a chegar, atravessando o Portal? — perguntou Guillermo, interessado em conhecer um pouco da história dos ancestrais de Sebastian.

No início foi muito difícil - contou ele, sua memória buscou fatos antigos, passados de geração a geração. - Os habitantes da Cadecália, é assim que chamamos esse continente, não foram muito hospitaleiros com nossos antepassados. Quando os povos das terras ao redor viram que nós humanos não oferecíamos qualquer ameaça, permitiram, com algumas restrições, que nos estabelecêssemos nesse fim de mundo.

Que restrições são essas? - perguntou Margaret, acariciando o pescoço do seu cavalo.

Que não ampliássemos os nossos domínios, não causássemos problemas para os povos dó oeste e, acima de tudo, não mantivéssemos qualquer relação com a grande civilização do extremo leste, os crassênidas, que já tive a oportunidade de mencionar. Por tudo isso, o nosso território ficou, para sempre, limitado entre o mar Insólito e o deserto de Kundruir. E se querem saber, a maioria de nós acha isso muito bom. Essas terras nos dão quase tudo o que precisamos para viver e ninguém nos incomoda, já que somos inofensivos para causar qualquer tipo de preocupação a quem quer que seja.

Os três já haviam atravessado a cidade e penetrado em uma trilha sem nenhum vestígio de civilização. Ao transporem um córrego de águas límpidas, avistaram uma cabana simples entre árvores e arbustos. À frente da cabana, havia um poço redondo cercado com tijolos e um jardim mal cuidado, tomado pelo mato, que exibia algumas flores amarelas.

É ali que mora Bartolomeu - disse Sebastian enquanto se aproximava. - Pelo menos é aqui que ele fica quando não some por meses.

A casa parece vazia — observou Margaret. — Acho que ele não está.

Deve estar - disse Sebastian, apeando. - Sinto cheiro de carne de caça assando. Vejam a fumaça saindo da chaminé.

Aquele não é o cavalo dele? - perguntou Guillermo, avistando o animal de cor negra e com apenas uma mancha branca na testa, amarrado que estava ao lado da casa de madeira. — Sebastian confirmou com a cabeça.

Sebastian foi até o poço e tomou um pouco de água de uma jarra de cerâmica.

A porta da cabana se abriu com um rangido seco e, de dentro da casa, surgiu um homem alto, de cabelos compridos e barba por fazer, sua cara de poucos amigos parecia não ter gostado nem um pouco da visita inesperada.

A sua vinda aqui deve ter um motivo muito forte, governador - disse ele, saindo na soleira da porta.

Realmente tem - confirmou Sebastian, se aproximando do homem de olhar duro. - Esses são meus amigos, Guillermo e Margaret.

Estrangeiros - deduziu Bartolomeu. Guillermo reparou uma enorme faca que pendia de sua cintura. Ela seria capaz de decepar a perna de um adulto de um só golpe.

Vieram pelo disco branco - disse Sebastian, trocando olhares com Guillermo.

Ótimo, sejam felizes - disse Bartolomeu, e virou-se para entrar.

Espere! — exclamou Margaret. — Precisamos de sua ajuda.

Bartolomeu parou e voltou-se lentamente, seu olhar frio e desconfiado foi direto para a menina. Ele a fitou por um tempo que para ela parecia ser interminável.

Entrem, tenho chá quente e carne de coelho assando - disse, arrumando a faca de lâmina comprida e afiada na cintura. Sebastian fez um sinal para Margaret e Guillermo entrarem e não desperdiçarem o convite, pois provavelmente não teriam um segundo.

O interior da cabana era simples e desarrumado; o cheiro de coisa velha, causado pelo tempo que o lugar esteve fechado foi disfarçado pelo odor da comida que vinha de uma lareira funda que também era usada como fogão. Uma mesa pequena no canto da sala foi oferecida aos convidados não tão bem-vindos que trataram logo de se sentar para não contrariarem a aparente boa vontade do homem.

O que vocês querem? — perguntou Bartolomeu, arrumando a lenha no fogareiro improvisado.

Os meus amigos desejam muito retornar ao mundo deles e terão dificulda­des de conseguir se um guia experiente como você não ajudá-los — disse Sebastian, expondo a situação sem desperdiçar nenhum tempo.

Eles encontrarão dificuldades mesmo com um guia - respondeu Bartolomeu, rapidamente, girando a carne no fogo. - Duvido mesmo que consigam - ele olhou diretamente para Sebastian. - Serão todos mortos antes.

Olhe, Sr. Bartolomeu, somos em oito pessoas, três adultos e cinco garotos, Margaret é uma delas - explicou Guillermo, pondo a mão no ombro da menina que examinava com os olhos os cantos do casebre. - Se você não for com a gente, as nossas chances serão bem menores, mas teremos que partir logo, com ou sem ajuda. Caso não saiba, há alguns anos um homem, Alexei Martov, conseguiu regressar.

Bartolomeu contraiu a face. O nome de Alexei lhe era familiar. Ele parou de mexer na fogueira por alguns instantes, parecia estar refletindo sobre o apelo de Guillermo. Bartolomeu tirou um espeto grande com dois coelhos atravessados, a carne estava tostada e pronta para ser servida. Então, destrinchou a carne assada em um prato grande sobre a mesa e indicou com a mão para que Margaret, Sebastian e Guillermo se servissem. Uma jarra com chá quente e canecas de barro foram postas sobre a mesa, sem muita cerimônia. A refeição estava pronta. Bartolomeu sentou-se junto com os outros e começou a comer sem se importar muito se seus convida­dos faziam o mesmo. Guillermo não sabia que decisão Bartolomeu havia tomado, então, resolveu recorrer aos possíveis bons sentimentos que pudessem ainda existir no coração daquele homem.

Você tem a fama de um homem que gosta de solidão — disse, apoiando um cotovelo na mesa e se pondo de frente, encarando Bartolomeu que continuava comendo, indiferente. — Se não voltarmos, em muito pouco tempo outros virão; milhares, talvez milhões de pessoas como nós atravessarão por aquele buraco e irão transformar esse lugar num verdadeiro pandemônio. Você e sua gente nunca mais terão paz; eles se espalharão pelos desertos, montanhas e florestas. Acredite, meu amigo, os humanos são a pior praga que pode existir.

Como se eu não soubesse — murmurou Bartolomeu enquanto olhava a fumaça saindo da caneca de chá.

Então, o que me diz? - cobrou Guillermo, beliscando um pedaço de carne, o gosto estava bom.

Bartolomeu olhou para Margaret. Por um momento, ela teve a impressão de que por trás daquele rosto carrancudo estava um homem de boa índole. Os olhos dele transmitiam uma espécie de ternura embrutecida.

Eu vou, mas com uma condição - disse Bartolomeu, com a face endurecida. Guillermo suspirou relaxando. Margaret sorriu agradecida. - Enquanto servir de guia eu dou as ordens. As decisões serão tomadas por mim sem questionamentos, é pegar ou largar.

Guillermo aceitou as condições sem retrucar.

Ótimo! - exclamou Sebastian, apoiando as duas mãos sobre a mesa e se levantando. - Eu e meus convidados voltaremos agora para a cidade. Tenho que resolver algumas coisas e aproveitar o tempo que nos resta para mostrar-lhes um pouco da nossa acolhedora Nova América. Dentro de duas horas Guillermo e Margaret estarão esperando por você próximos a capela, na saída da cidade. O prefeito Raul estará esperando por vocês com provisões e boas montarias.

Você não volta conosco? - perguntou Guillermo a Sebastian.

Não, minha missão termina aqui - respondeu, com a sensação do dever cumprido. - É imprescindível que eu fique. Administrar uma cidade não é fácil e meus filhos não gostam que eu me ausente por muito tempo. Na verdade, eu também não gosto de ficar tanto tempo longe deles - confidenciou.

Guillermo e Margaret aguardavam a chegada de Bartolomeu em frente à capela da cidade. O guia taciturno surgiu no final da rua trotando lentamente; sua única bagagem era um alforje preso no lombo de seu cavalo negro e seu facão que pendia da cintura, oscilava com o balanço cadenciado do quadrúpede. Ao avistarem Bartolomeu, os dois montaram e se uniram a ele. Uns poucos habitantes que caminhavam por ali naquele momento, especulavam o que dois estranhos faziam na companhia daquele homem arredio. Bartolomeu jogou os cabelos compridos para trás, mostrando melhor seus olhos sombrios. Ele avisou:

Se galoparmos em bom ritmo chegaremos antes do anoitecer.

 

A viagem de volta foi marcada pelo silêncio. Sem conhecerem direito Bartolomeu, Guillermo e Margaret se limitavam a falar o estritamente essencial. Eles não queriam dizer nada que fizesse Bartolomeu se arrepender e fazer meia-volta.

O sol já escondia parte do seu disco por trás das colinas quando os viajantes entraram em Nova Europa.

Apesar da viagem extenuante, Margaret ainda mantinha o vigor de sua juventude. Ela saltou de seu cavalo e se pôs a correr entrando esbaforida pela hospedaria e chamando a atenção dos seus amigos que se encontravam aguardando os amigos para o jantar.

Conseguimos um guia! - anunciou ela, fazendo questão de trazer a novidade. - Ele é um homem estranho e conversa pouco, mas acho que no fundo é uma boa pessoa - metralhou a menina antes que Bartolomeu aparecesse.

Guillermo e Bartolomeu entraram em seguida. Roger não gostou do aspecto de Bartolomeu quando o viu. Guillermo fez as apresentações.

Amigos, esse é Bartolomeu. Bartolomeu, essas são as pessoas que você vai guiar de volta pra casa.

A mesa do jantar ainda estava sendo preparada por Rudolph, o taberneiro.

Acho que dá tempo de nos lavarmos - disse Guillermo, passando a mão no pescoço, tirando uma camada grossa de poeira e suor.

Não demore - alertou Rudolph. - Ou a carne estará tão gelada quanto a cerveja quando você voltar.

Momentos depois, em torno da mesa do jantar, se reunia todo o grupo de visitantes, mais Bartolomeu e o governador Raul que fez questão de se fazer presente.

- Já decidiram quando pretendem ir? — perguntou Raul, molhando um pedaço de pão no caldo da carne de carneiro ensopado.

Amanhã, logo que o sol sair - comunicou Brian, segurando a caneca enquanto Rudolph despejava uma generosa dose de cerveja.

E qual caminho planeja usar? - voltou a perguntar Raul, dessa vez dirigindo- se a Bartolomeu.

Bartolomeu continuava mastigando, parecia querer evitar qualquer tipo de diálogo. Ele não desviou os olhos de sua comida. Sua voz era pausada.

Depois de atravessarmos o deserto do Kundruir, passaremos pelos campos baixos e entraremos no desfiladeiro Blarbuk. - A menção do nome do desfiladeiro transformou a fisionomia do governador. Raul sabia de algo. Bartolomeu continuou a expor o seu plano. - O próximo passo é atravessar as colinas e então chegaremos ao território dos faogards. A partir daí, não tenho nada planejado. Vai depender mais de sorte do que de estratégia. Nem sei se todos chegarão vivos até o final — disse seca­mente, enchendo de cerveja sua caneca. — Outra coisa, a partir de agora, eu dou as ordens e quero que vocês todos acatem as minhas decisões sem perguntas.

Como você não tem nada planejado? - perguntou Roger, em tom de protesto.

Estamos prestes a enfrentar uma jornada dessas proporções e você não planejou toda a rota? Que diabo de guia é você?

Do tipo que não pediu para fazer isso - respondeu Bartolomeu, irritado. Ele bebeu de uma só vez a metade da cerveja de sua caneca e largou na mesa a faca que estava usando para cortar a carne. Seu olhar voltou-se para Roger. — Escute aqui, senhor forasteiro, nenhum de vocês conhece este mundo. Aliás, ninguém que esteja nesse momento em Nova Europa ou Nova América saberia conduzir os seus amigos até o outro lado do continente escolhendo o caminho mais curto e seguro. Se não está satisfeito procure outra pessoa — concluiu ele, tomou o resto da cerveja e voltou a encher sua caneca até a boca. Raul preocupou-se, Bartolomeu não era dado a bebedeiras.

Por mim, vamos sozinhos — rebateu Roger, rejeitando Bartolomeu como guia.

Não estou disposto a seguir as ordens de alguém em que eu não possa confiar.

Bartolomeu se levantou, decidido a desistir da expedição.

Então, está feito. Se virem sem mim!

Ei! Ei! Espere um pouco! - intercedeu Guillermo, procurando amenizar os ânimos - Necessitamos de toda a ajuda que pudermos dispor. Desculpe, Bartolomeu, mas a nossa obrigação em conduzir os meninos a salvo de volta está abalando os nervos de todos nós.

Os meninos, confusos, assistiam o desentendimento dos adultos.

Raul também se meteu, esforçando-se para restabelecer a paz entre Roger e Bartolomeu. Era numa hora dessas que sua experiência em administrar conflitos falava mais alto.

Ouçam-me um pouco! Você primeiro, Roger. Bartolomeu é um perito que já desbravou grande parte do continente cadecaliano. Ele conhece bem desde o Kundruir até o território crassênida, Sem ele, a tarefa a ser realizada se tornará dificílima, talvez impossível. — Roger se segurava, mas o comportamento rude de Bartolomeu o incomodava. Roger estava acostumado à severa disciplina e ele não aceitava muito bem o fato de um homem incrédulo, arrogante e sem um plano para cumprir uma missão tão importante, se auto-elegesse para comandá-los, incondicionalmente. Raul prosseguiu. — E você, Bartolomeu, nossos amigos estão numa situação complicada. Eles não conhecem esse imenso continente. Imagine se você atravessasse o Portal e chegasse a uma terra totalmente estranha. Como se sentiria? Se coloque no lugar deles. Você tem a oportunidade de ajudá-los e eu sei que pode — Raul suavizou a voz. — Nós o conhecemos há muito tempo e eu sei que você é um homem bom. Ajude-os.

Bartolomeu olhou os garotos, olhou para Margaret. Ele voltou a se sentar.

Brian quis dar sua contribuição para que tudo voltasse ao normal e ele mesmo encheu a caneca de Bartolomeu.

Raul ergueu sua caneca, propondo um brinde.

Um feliz retorno ao mundo de nossos ancestrais!

Eles comeram e beberam à vontade. Bartolomeu continuou bebendo acima da conta sob o olhar vigilante de Raul. Foram muitas canecas, uma após a outra.

Guillermo, cansado, quis se recolher ao seu quarto.

Se eu não acordar amanhã cedo, me chutem - ele recomendou em tom de brincadeira.

Bartolomeu aproveitou para sair da mesa, cambaleando e se apoiando nos encostos das cadeiras, ele foi se desviando entre as mesas em direção à saída.

Não estou com sono — disse Brian, também se levantando. — Vou caminhar um pouco pela cidade. Alguém vem comigo?

Eu vou - disse Raul, agarrando sua bengala. - Você nos acompanha, Roger? — Roger aceitou o convite. Precisava de um pouco de ar puro depois daquela conversa nada amigável com Bartolomeu.

Também quero ir! - exclamou Daniel, se dirigindo para a porta da saída.

Você vai é pra cama! - ordenou Brian, apontando para a escada que levava aos quartos. Sua expressão era severa. — Não quero ninguém morrendo de sono quando partirmos.

Gritos vindo de fora da pousada chamaram a atenção. Raul fez uma cara como quem já soubesse o que estava havendo. Ele foi o primeiro a sair batendo forte com a sua bengala no assoalho. Todos correram para fora, curiosos. Na entrada da pou­sada, lá estava ele: Bartolomeu, bêbado e descontrolado, berrando para quem qui­sesse ouvir.

Olhem pra isto! — gritou ele, segurando uma pá de cabo curto acima da cabeça. - Enterraremos nossos mortos com ela!

Roger aproximou-se de Bartolomeu para repreendê-lo.

Pare com isso, não vê que está assustando os meninos?

Quem é você pra me dar ordens, forasteiro? — disse apertando o dedo indicador no peito de Roger.

Bartolomeu era um homem grande e forte, mas naquelas condições, não seria páreo para o lutador de boxe. Roger preferiu não revidar as provocações.

Os passos de Bartolomeu oscilaram e ele parou em frente a Rafael, olhando o garoto com interesse. Depois discorreu com certo cinismo.

Que curioso, alguns dos nossos amigos são crianças, não teremos muito trabalho quando cavarmos suas... covas.

Cale essa boca! - exasperou-se Roger, agarrando-o pelo braço.

Raul interveio enfiando-se no meio de Roger e Bartolomeu, fazendo de tudo para evitar algo pior entre os dois.

Chega! Venha comigo, Bartolomeu. Vou com você até seu quarto.

Bartolomeu livrou-se da mão de Roger com um puxão forte. Raul era uma das poucas pessoas que ele ouvia, mesmo quando fora de si.

Os ânimos se acalmaram e Raul, depois de dialogar serenamente com Bartolomeu e mandá-lo para o quarto, voltou a ter com os convidados.

Desculpem o que ele fez, amigos. A sua atitude impensada foi o jeito de ele pedir para vocês desistirem de uma vez por todas, mas acho que não adiantou muito, não é?

Precisamos mesmo ir - confirmou Brian, impassível.

Raul torceu a boca, no entanto deu-se por vencido.

As pessoas que ainda se aglomeravam na frente da pousada foram, aos poucos, se dispersando, indo para suas casas.

Brian, Roger e Raul deixaram a Pousada do Javali Roncador e passaram a atravessar a praça principal da cidade. O céu estava estrelado. Somente algumas nuvens despontavam a leste, ocultando as montanhas distantes.

Eles pararam em frente ao busto no centro da praça.

Quem é ele? - perguntou Brian, observando a estátua de pedra escura que deveria ser muito antiga.

Gaspar Manuel - informou Raul. - O fundador de Nova Europa. Ele foi um dos primeiros a atravessar o portal. Manuel trabalhou muito para erguer a cidade, mas morreu infeliz, pois conta a história que no seu mundo ele era um valoroso capitão dos mares, mas não conseguiu evitar a perda de centenas de vidas, quando o navio que estava sob o seu comando afundou. Mesmo após tantos anos, quando ele já estava velho e doente, ainda se cobrava por não ter conseguido fazer nada para salvar mulheres e crianças da morte. Mas isso não faz a menor diferença, pois para o meu povo, ele é um verdadeiro herói.

Os três continuaram caminhando e alcançaram uma rua larga, iluminada com brilhantes pedras de luminita. Um ou outro transeunte, voltando para casa, era prontamente cumprimentado pelo governador.

Fale um pouco mais de Percy Fawcett — pediu Roger, disposto a saber mais do explorador desaparecido.

Era um homem interessante e muito inteligente. Perguntava sobre tudo o tempo todo. Depois de várias semanas, quando finalmente conseguiu se munir de um número considerável de informações sobre o continente, ele resolveu seguir

viagem com o seu filho e seu amigo.

Fawcett disse para onde iria ou o que pretendia fazer? - indagou Brian, colocando as mãos nos bolsos enquanto caminhava, os olhos voltados para o chão.

Ele me disse, pouco antes de ganhar o deserto, que havia um continente inteiro para desbravar, e que isso o deixava extasiado. - Raul cadenciava os passos com o apoio de sua bengala. - Um viajante, Cornélio Zoperone é o seu nome, seguiu com ele até Faogard. Meses depois, Cornélio retornou contando que não o viu mais.

Alguém mais soube do paradeiro de Fawcett depois disso? - quis saber Roger, os olhos voltados para uma janela que era fechada, os moradores se prepa­rando para dormir.

Só um aventureiro, Lughy, o mestiço, falou que o viu na parte nordeste do continente, próximo ao território dos Anuabis, uma raça perigosa de seres com corpo de gente e cabeça de chacal - Raul girou a bengala e voltou a tocá-la no chão, dando seqüência a batida cadenciada. - Mas Lughy é um mentiroso e suas histórias não são dignas de crédito. Ele inventa essas coisas para conseguir alguma bebida fácil dos tolos que gostam de ouvir histórias, mesmo que não sejam verídicas. Essa notícia dada por Lughy, verdadeira ou não, foi a última vez que se ouviu falar sobre Percy Fawcett.

O fim da rua por onde andavam Roger, Brian e Raul, desembocava numa área de vegetação rasteira e dali para frente era somente o deserto pedregoso do Kundruir. Sem as luzes da cidade, só havia a escuridão misteriosa e o fascinante deserto adentro. O vento que vinha da escuridão levantava algumas folhas secas... e era o único som que se ouvia, além das vozes dos aventureiros e seu anfitrião.

Roger cruzou os braços sobre o peito, parado diante da imensidão do deserto. Uma lembrança de algo que havia acontecido no momento em que chegaram na Cadecália voltou a sua mente.

Logo que chegamos aqui, ainda no círculo branco, vimos alguém sair detrás de uma das rochas que contornam o Portal e sumir dentro do bosque. Agora, pensando melhor, não entendo por que um habitante desse lugar faria aquilo.

Como ele era? — perguntou Raul, intrigado.

Não conseguimos ver o rosto dele — disse Roger, enrugando a testa. — Ele estava coberto com uma veste comprida e um capuz que deixava o seu rosto escon­dido pela sombra.

Raul raspou a ponta de sua bengala no chão duro do deserto seco, refletindo sobre o que Roger acabara de lhe dizer. Depois comentou preocupado:

Espero estar equivocado, mas acho que estamos sendo espionados. Desde a chegada de Fawcett e depois Martov, o povo comenta sobre esses encapuzados. Alguns até falavam que poderiam ser fantasmas. E agora você me conta que também viram a mesma coisa.

Você desconfia quem pode estar andando por aí vestido como uma assombração e fugindo quando é descoberto? - perguntou Brian, interessando-se pelo caso.

Desconfio sim, e agora mais do que antes - disse Raul, um tanto apreen­sivo. - Crassênidas, ou alguém a mando deles. Se for assim, aves mensageiras estão cruzando o céu nesse momento rumando para o leste, do outro lado do continente, para avisar da chegada de vocês.

Não entendo - disse Brian, muito intrigado. - Se a espécie humana é tão inofensiva, por que deveriam existir espiões infiltrados por aqui?

Isso tem uma explicação - disse Raul, sentando-se numa pedra grande. Ele descansou a bengala atravessada no colo. - Existe uma lenda muito antiga que fala dos demônios do oeste que viriam um dia do inferno para trazer a desgraça e a destruição aos povos do leste de Cadecália.

E esses demônios... seríamos nós — deduziu Roger, agachando-se ao lado de Raul e pegando uma pedra porosa.

Isso mesmo — concordou Raul. — Essa lenda é muito antiga. Dizem que existe há milhares de anos. A nossa sorte é que os povos do oeste não gostam dos crassênidas e por isso, resolveram nos proteger por nos considerarem seus aliados. Parte do povo anuabi, os de cabeça de fera, também acredita na lenda, e isso não é muito bom para nós.

Por que não é bom? — quis saber Brian, a história estava se tornando atraente para ele.

Existe um equilíbrio de forças entre os crassênidas, que têm um enorme poderio militar, distribuído em um vasto território, e os povos do oeste. Os anuabis se mantém mais ou menos neutros nessa questão, pendendo um pouco para o lado dos crassênidas, eu diria. - Raul ergueu a cabeça, admirando a noite; fora da cidade, as estrelas eram muito mais brilhantes. - Essa discreta preferência dos anuabis em apoiar os crassênidas tem certa lógica. Ambos cultivam uma sólida relação de comér­cio que envolve metais, luminita e alimentos. Se numa guerra, os anuabis apoiarem os crassênidas contra o oeste, os aliados poderão ser totalmente dizimados.

Então estamos indo direto para os braços do inimigo - disse Roger, atirando a pedra porosa que se perdeu na noite do deserto.

Infelizmente, essa é a realidade - admitiu Raul. - Temo por vocês, meus amigos. Por isso, a ajuda de Bartolomeu é tão importante. Ele é um dos poucos do nosso povo que tem alguma chance de guiá-los pelas terras do leste sem que vocês sejam descobertos.

O que há com Bartolomeu? - perguntou Brian, um vento mais frio come­çava a soprar vindo do deserto. — Quero dizer, por que ele é assim...

Mal-humorado? - completou Raul. - Bartolomeu nunca foi um homem muito sociável — Raul apoiou-se em sua bengala para se levantar. — Vivia para a família, sua mulher e sua única filha de onze anos. O amor que ele sentia pelas duas era digno de um conto de fadas. Mas, terrivelmente, num espaço de menos de um ano ele perdeu mulher e filha. Até hoje ele se culpa pela morte de ambas.

A trágica história de Bartolomeu deixou Roger pensativo. Ele havia passado por situação semelhante.

Brian imediatamente percebeu porque Bartolomeu e Roger tinham comportamentos parecidos. O ressentimento da perda de quem se ama pode deixar uma pessoa amarga para o resto da vida. No caso de Bartolomeu ainda era pior. Ele havia perdido, além da mulher, a sua única filha.

Estou um pouco velho para apoiar essas andanças, se lhes interessa saber - disse Raul. - Nasci em Nova Europa e, por certo, darei meu último suspiro e serei enterrado por aqui mesmo. Durante muitos anos venho nesse lugar sozinho e me sento nessa mesma pedra, de preferência quando a noite sopra a brisa morna do Kundruir e o céu deixa transparecer as suas mais brilhantes estrelas. É quase como um rito de agradecimento a minha comunhão com o silencioso deserto. Conheço cada som que ele emite: os pequenos animais escarafunchando as fendas do solo enrijecido em busca de comida e a vegetação num arrastar quase imperceptível pelo chão. O Kundruir é nosso amigo e aliado que preserva essas terras suficientemente distantes do mundo lá fora, desconhecido e hostil. Essas imensas distâncias garan­tem a sobrevivência feliz e pacata do meu povo. Entretanto, o mesmo não posso dizer sobre os territórios em que vocês, meus amigos, se embrenharão logo mais, quando o dia amanhecer. É melhor descansarem um pouco — aconselhou Raul. - Terão um dia cheio amanhã.

Roger e Brian se despediram de Raul em frente ao simpático prédio do governo e seguiram para a estalagem.

Seria bom viver aqui - disse Brian enquanto apreciava as construções que rode­avam a praça central, iluminadas suavemente pelos postes de luminita. - Durante o dia eu teria a alegria dessa gente acolhedora, e a noite, o sossego típico de uma cidadezinha pacata do interior.

Você já tem isso na Ilha da Coroa — disse Roger, temendo que passasse pela cabeça de Brian a inoportuna idéia de ficar. - E tem outra coisa, você não ouviu o governador dizer que esse continente é um barril de pólvora a ponto de explodir?

Não sei se é bem assim — duvidou Brian. — Os humanos estão aqui há quatrocentos anos e nunca tiveram problemas.

As coisas mudam — provocou Roger. - E pelo jeito, nós seremos os responsáveis se elas piorarem.

Se você está pensando que a nossa presença vai iniciar uma guerra, eu digo que você está sendo um pouco exagerado.

Tenho minhas dúvidas, Brian - disse Roger, balançando a cabeça, discor­dando da opinião do amigo. - Tenho minhas dúvidas.

 

                                   A Lua Vermelha

Pela manhã, logo que o dia clareou, os cavalos já estavam prontos, carrega­dos de mantimentos e apetrechos para a viagem. Um cavalo extra transportaria o excedente da carga. Uma multidão de habitantes, sabendo da partida do grupo, reuniu-se na praça para a despedida. Era um acontecimento que quebrava um pouco a quietude da antiga cidade. Raul tratava pessoalmente de se certificar se as celas estavam bem firmes.

Tomei a liberdade de abastecer a bagagem com alguns casacos bem grossos - disse ele, apertando um pouco mais uma correia. - A temperatura cai muito durante a noite no Kundruir. Também tem bastante água nos odres, deve bastar até vocês alcançarem o rio Lusa. Ah, sim! Outra coisa! - Raul pegou um fardo grande e o desenrolou. - Pedi para que preparassem esses quatro cajados com pedras de luminita para que vocês tenham luz à noite.

Guillermo pegou um dos cajados e avaliou o seu peso. A luminita, que tinha o tamanho de uma laranja era finamente lapidada como uma jóia.

Não tenho palavras para agradecer tanta hospitalidade - disse ele, ansioso pela aventura que os aguardava.

Hei! Olhem! É o Pesadelo! - exclamou Daniel, surpreso, identificando den­tre as montarias o cavalo que havia domado. — Ele também vai conosco?

Ele é seu, Daniel - revelou Raul, presenteando o garoto inglês com o belo corcel. - Você fez por merecer o animal.

Daniel não se conteve e montou logo, antes que Raul mudasse de idéia quanto ao belo presente.

Vamos logo! - disse Bartolomeu, impaciente, sendo o segundo a montar. - Temos que aproveitar ao máximo antes que o sol fique a pino. O calor do deserto não é muito agradável nessa época.

A caravana finalmente estava a caminho. Bartolomeu puxou a rédea de seu cavalo negro, colocando-o em direção ao deserto. Algum tempo depois, a cidade que ficara para trás, ia sumindo de vista. Só as construções mais altas, como a torre da igreja, ainda podiam ser avistadas. A vegetação pobre se tornava cada vez mais escassa. O terreno duro e quebradiço dava um aspecto desolador à paisagem, e o al­ia se tornando mais seco à medida que eles avançavam pelo deserto árido.

Após algumas horas o sol pairava sobre suas cabeças.

Estou com sede - disse Marc, passando a língua no lábio seco.

Bartolomeu conferiu o número de odres que pendiam dos cavalos, e fez uma expressão como se estivesse calculando quanta água teria disponível até chegarem ao local de reabastecimento, o rio Lusa.

Pegue o seu odre, garoto — disse ele, ajeitando um pano marrom em volta da cabeça e amarrando atrás, ao estilo dos piratas. — Essa é a sua cota de água. Não desperdice, pois só conseguiremos mais daqui a dois dias.

E os cavalos? - preocupou-se Brian, ciente que os animais estavam sendo bastante exigidos.

Eles terão que agüentar até lá - disse Bartolomeu, olhando para frente, sacolejando com o trote do seu cavalo. - Após atravessarmos o Lusa, encontraremos outras fontes de água nas proximidades dos campos baixos e dali em diante, o percurso é mais suave.

De vez em quando, Bartolomeu descia de seu cavalo, recolhendo um ou outro graveto que ele achava pelo chão.

Peguem o que puderem! - recomendou ele, amarrando com uma tira de couro os poucos gravetos que havia achado. - Precisaremos de lenha para fazer uma fogueira essa noite.

Dos garotos, Chester era o que se achava em melhores condições, por ser acostumado a ficar tanto tempo em cima de um cavalo. A primeira parada foi perto do meio-dia para descansarem os animais e esticarem um pouco as pernas.

Meu traseiro dói — reclamou Rafael, mostrando uma cara de sofrimento. Ele aproveitou o momento para tomar vários goles de água e despejou um pouco sobre o rosto suado.

Não faça isso, seu tolo! - rosnou Bartolomeu, puxando o odre das mãos de Rafael. O menino se assustou. - Se algo der errado e não chegarmos a tempo no rio, essa sua atitude pode condená-lo a morte. — Rafael ficou assustado, olhando para Bartolomeu sem saber o que dizer. Bartolomeu devolveu a água com um movimento brusco e se afastou. Brian e Roger se entreolharam, mas preferiram náo se meterem. Infelizmente, Bartolomeu estava certo, e economizar água é uma das primeiras lições a aprender quando se vai atravessar um deserto.

Guillermo aproveitou a parada para verificar os mantimentos transporta­dos pelo animal de carga: sal, carnes defumadas, biscoitos e um tipo de macarrão escuro, foi o que ele encontrou no meio das coisas.

Voltaremos a seguir viagem quando tiver escurecido, assim pouparemos os cavalos — determinou Bartolomeu, aliviando a carga do seu animal. — As luzes dos cajados mostrarão o caminho.

O período de descanso até o final da tarde foi providencial para recuperar a disposição dos membros da expedição. A temperatura caíra rapidamente no início da noite e os casacos deixaram de ser um peso morto nos lombos dos cavalos e passaram a aquecer os viajantes.

A caminhada prosseguiu durante parte da noite, as pedras de luminita eram pontinhos brilhantes na vastidão do Kundruir, norteando os viajantes. Já passava das dez da noite quando Bartolomeu resolveu parar e levantar acampamento.

Ficamos por aqui essa noite - disse ele, saltando de seu cavalo.

Os garotos eram os mais fatigados e aquela parada lhes deu um enorme alívio.

Essa jornada vai ser mais difícil do que pensei - comentou Rafael, espreguiçando os braços para cima.

Você se acostuma com o tempo - disse Chester, retirando a sela de Pesadelo. - apoie mais os pés nos estribos evitando ficar muito tempo sentado na sela. Você se sentirá mais confortável nas longas cavalgadas.

Vou tentar isso - disse Rafael, aceitando o conselho do experiente cavaleiro.

Todos os ramos secos, pedaços de lenha e tudo o mais que eles recolheram pelo caminho, foram amontoados no chão. Bartolomeu acendeu uma bela e aconchegante fogueira e encheu uma panela com água, adicionando ervas que ele trazia. O resultado foi um chá quente que ajudou a aquecer todo o grupo na noite fria. Depois de aquecido, Bartolomeu buscou um canto isolado e se deitou, puxando o seu cobertor até o pescoço.

Brian se recostou numa pedra e passou a olhar as estrelas, ainda mais cintilantes, vistas do meio do deserto.

Não reconheço esse céu.

O que disse? — perguntou Daniel, pego distraído.

As posições das estrelas são diferentes daquelas vistas da Terra. Não identi­fico as constelações de Órion, Cocheiro, Cassiopeia, Perseu ou Escorpião. Talvez estejamos em outro ponto distante no universo.

Ou em outro universo - sugeriu Marc, que acompanhava a conversa, então sentou-se ao lado de Brian.

Também pode ser - disse Brian, aceitando tal possibilidade. - Mas o certo é que estamos muito longe de casa.

Margaret, acomodada do outro lado da fogueira, esfregava as mãos, aquecendo- as perto do fogo. Próximo a ela, Roger consultava uma bússola, verificando se esta­vam na direção certa. A experiência de Bartolomeu deveria bastar para seguirem o caminho correto até o Portal de retorno, mas para Roger, nunca seria demais uma precaução extra.

Você reparou naquela lua bem acima de nossas cabeças? — perguntou ela, puxando conversa com o professor Roger. - Parece que está sempre na mesma posi­ção. Ela não gira no céu. Ontem a noite estava ali mesmo sobre nós e não mudou mesmo depois de horas.

A observação de Margaret tinha fundamento. Naquele mundo, tudo era novo e estranho. Havia duas luas: uma girava normalmente como os satélites devem girar ao redor dos planetas, mas a lua a que Margaret se referia ficava sempre parada, distante, exatamente no zênite. Não nascia e nem se punha no horizonte, contra­riando as leis naturais da astronomia conhecida.

Roger passou também a observar o corpo celeste de comportamento anormal.

Você tem certeza que ela está na mesma posição de ontem? - perguntou ele, curioso, com os olhos fixos no satélite avermelhado.

Tenho - respondeu convicta. - E não se moveu desde então.

Roger cruzou os braços atrás da cabeça e se recostou. Ele ficou lá, contem­plando a enigmática lua que parecia mesmo não se mover. Depois os seus pensa­mentos se desviaram. Ele puxou o objeto metálico que guardava preso ao pescoço por uma corrente sob a camisa e o olhou mais uma vez. Um sorriso discreto brotou do seu rosto; deviam ser lembranças felizes que ele viveu com a sua querida Helen. Roger suspirou e seu semblante voltou a perder o brilho quando ele escondeu novamente o objeto brilhante debaixo da roupa.

Margaret se ajeitou como pôde perto da fogueira e se cobriu até a cabeça; suas orelhas estavam geladas e ela não conseguia dormir com frio. Mais um pouco e ela sentiu-se bem aquecida. O sono veio logo.

 

Marc acordou com o barulho que Bartolomeu fazia selando o cavalo. O acampamento ia sendo desfeito enquanto o sol iniciava sua trajetória, erguendo-se por trás das montanhas longínquas do leste.

Comeremos durante a viagem - estabeleceu Bartolomeu, colocando o pé esquerdo no estribo e tomando impulso para montar. - Temos de chegar na margem do Lusa até o fim da tarde. O dia de hoje deve ser ainda mais quente que o de ontem e os animais não agüentarão por muito tempo sem água.

A marcha foi retomada. Daniel avançou e emparelhou com Bartolomeu que seguia à frente.

Quanto falta para alcançarmos as grandes montanhas além do deserto? - perguntou o garoto, que ainda não havia trocado sequer uma palavra com Bartolomeu.

Bartolomeu fez uma pausa dando a impressão que não iria responder, mas falou.

Nesse ritmo, levaremos uns dezoito dias - disse, fazendo uma rápida estimativa, pela grande experiência que acumulou com muitos anos de aventura.

Tanto tempo assim? - perguntou Daniel, considerando muita coisa. — Qual a altura daquelas montanhas?

São muito altas - explicou Bartolomeu, disposto pela primeira vez a con­versar com um dos jovens. - As maiores atingem mais de seis mil metros. Na verdade, elas formam uma cordilheira com quase três mil quilômetros de extensão. É a cordilheira de Malthar - disse, apontando de lado a lado. - Ela quase divide o continente em dois.

Não era possível para Margaret que Daniel conseguira quebrar a barreira do diálogo com aquele homem tão fechado e ela não. Ela tratou de igualar sua montaria com os dois que estavam logo à sua frente.

O que encontraremos depois da cordilheira? - perguntou ela.

Bartolomeu olhou para o lado. Margaret achou que a fisionomia dele não estava tão sisuda como quando o conhecera em Nova América. Ele voltou a responder:

Uma bela e misteriosa cidade. Acredito que não haja nada igual no mundo de onde vocês vieram — disse ele, seus pensamentos pareciam viajar por outras terras. De repente ele ficou sério, atento no horizonte. — Cavalguem! O mais rápido que puderem para leste! — gritou, batendo no cavalo com os calcanhares para que o ani­mal corresse.

Ninguém entendeu sua inusitada atitude, mas obedeceram sem questionar. Os cavalos puseram-se em disparada.

O que aconteceu? - gritou Brian, ainda confuso, agarrado a rédea do cavalo de carga e fazendo-o correr junto.

Olhem à direita! — exclamou Bartolomeu, forçando a sua montaria a correr ainda mais depressa.

Foi quando todos viram milhares de insetos, cada um tão grande como a mão de um homem, correndo pelo deserto em grande velocidade, varrendo tudo o que havia pela frente. Suas carapaças eram de um marrom brilhante e possuíam mandíbulas em pinça que poderiam dilacerar a carne humana como se fosse papel. Os cavaleiros seriam atacados pelo flanco direito se não fossem velozes o bastante. A distância entre o enorme tapete de insetos corredores e os cavaleiros diminuía rapidamente.

Mais rápido! Mais rápido! - gritava Bartolomeu, desesperado com os retardatários, Rafael e Brian que vinham por último.

Bata mais forte! - gritou Brian para Rafael, vendo que o menino estava ficando para trás.

Rafael batia os calcanhares no seu cavalo, mas parecia que os seus golpes não surtiam muito efeito. Ele não tinha a habilidade de um cavaleiro, ainda mais numa situação tensa como a que estava enfrentando naquele momento.

Os insetos asquerosos se aproximavam mais e mais pela direita deles. Os cavalos, cansados e sem água, não conseguiriam manter a mesma velocidade por muito mais tempo.

Bartolomeu olhava de vez em quando para trás, torcendo para que nenhum dos cavalos tropeçasse, ou seria o fim do animal e de quem o estivesse montando.

Marc nunca tinha visto algo parecido, estava horrorizado com as centenas de milhares ou mesmo milhões de criaturinhas horríveis que vinham de forma ameaçadora de encontro a eles. Seria um choque devastador caso os cavalos fossem alcançados.

Ninguém mais tinha certeza se Rafael conseguiria escapar a tempo do ataque feroz dos insetos que se aproximavam perigosamente, produzindo um som apavo­rante de milhões de perninhas batendo no chão rígido do deserto.

Quando os insetos quase alcançavam Rafael, seu cavalo pareceu perceber o perigo e, num último esforço, saltou, seus cascos chegando a bater nas carapaças duras de alguns dos temíveis insetos corredores sem afetá-los. Uma das criaturas ainda chegou a subir pela perna traseira do eqüino e desferir uma mordida que lhe rasgou o couro, penetrando fundo na carne. O animal, sentindo a forte dor, escoiceou, atirando o inseto para longe.

Bartolomeu, percebendo que estavam todos salvos, reduziu a corrida até cessar o galope.

Os incontáveis insetos, em sua corrida desesperada, passavam indiferentes a poucas dezenas de metros do grupo que ainda se encontrava atordoado pelo enorme susto que havia passado. Rafael temeu que eles mudassem repentinamente de direção e fossem novamente para cima deles; caso isso acontecesse, os viajantes não teriam nenhuma possibilidade de reação, pois seus cavalos, exaustos, já haviam parado e ofegavam ruidosamente querendo se recuperar do extenuante esforço físico.

Quando a última leva de insetos corredores acabou de passar, todos sentiram que o perigo havia terminado.

O que foi aquilo? — perguntou Rafael, trêmulo, os olhos arregalados.

Keklins — disse Bartolomeu, desmontando e examinando o estado do seu animal, suado e ofegante. - São insetos corredores que comem tudo o que cruza o seu caminho. Já foram vistos blocos de cerca de um quilômetro de largura por outro de comprimento desses animais vagando pelo Kundruir. Eles sáo capazes de devorar um cavalo e deixar apenas os ossos em menos de dois minutos. - Barto­lomeu aproximou-se do cavalo de Rafael e buscou o ferimento provocado por um dos horrorosos keklins. — Vejam o que apenas um deles foi capaz de fazer. - O corte era profundo e um fio de sangue escorria pela perna do quadrúpede.

Eu já vi estouro de boiada, mas estouro de insetos, é ridículo! - exclamou Chester, comparando.

Lembro-me que Alexei Martov fez um breve comentário sobre esses monstrinhos - disse Brian, Roger concordou com a cabeça, recordando que também havia lido alguma coisa no diário.

Por que eles não nos atacaram depois que paramos? - quis saber Guillermo, observando a massa de insetos indo longe.

Eles não estavam nos caçando - esclareceu Bartolomeu, ele foi até seu alforje e pegou um bastão amanteigado e passou no ferimento do animal que resistiu ao sentir dor. - Pronto - disse ele, cobrindo a ferida com uma espécie de pasta amare­lada transparente. — Agora não há mais risco de infecção. Como eu disse, os keklins não estavam atrás de nós, eles corriam daquele jeito provavelmente porque tinham detectado uma grande quantidade de vermes do deserto. Os keklins são os predado­res naturais desses vermes. Nós só tivemos o azar de estarmos bem no caminho deles.

Vermes? — admirou-se Daniel.

Os vermes do deserto vivem nas rachaduras do terreno seco e costumam fazer tantos buracos debaixo da terra que acabam deixando o subsolo totalmente oco. O que impressiona é que a superfície permanece intacta e não dá pra perceber que existe um vão que foi escavado por essas criaturas logo abaixo. Eu já soube de via­jantes que foram tragados pelos tais buracos de vermes.

E esses... keklins... não poderiam ter passado bem em cima do nosso acampamento ontem a noite, enquanto estávamos dormindo? - Preocupou-se Margaret, amedrontada.

Não se preocupe — tranquilizou-a Bartolomeu, seu olhar para ela era quase paternal. - Esses bichos não são de hábitos noturnos e só oferecem perigo durante o dia. Dizem que eles precisam do calor do sol para correrem daquele jeito. Os keklins são um mal necessário, pois sem eles, os vermes do deserto deixariam o Kundruir tão esburacado quanto uma esponja, transformando tudo numa gigantesca armadilha para quem passasse por ele. Bem, vamos em frente. É melhor seguirmos a pé, os cavalos estão esgotados depois dessa correria.

Então não chegaremos mais ao rio Lusa até o anoitecer - supôs Brian, puxando a sua montaria e o cavalo de carga pelas rédeas.

Se apressarmos o passo, amanhã até o meio-dia estaremos nos banhando no Lusa — previu Bartolomeu com algum otimismo.

A preocupação maior não era quanto ainda faltava para alcançarem o rio, mas as condições debilitadas dos cavalos que não bebiam desde que saíram de Nova Europa.

De onde vem a água que alimenta o rio Lusa? - perguntou Guillermo a Bartolomeu.

Elas nascem nas montanhas do Malthar, passam pelo território Faogard, quando o rio muda de nome, depois desviam para o norte, sendo novamente alimentadas pelas chuvas que caem nas florestas daquela região, posteriormente atra­vessam o Kundruir, indo diretamente para o sul.

Chester seguia os dois de perto, acompanhando as explicações de Bartolomeu, mas sua atenção estava mais voltada para Pesadelo que já não mostrava o vigor que tinha quando foi montado pela primeira vez.

A caravana avançou o máximo que pode naquele dia e decidiu parar quando já era noite.

A exaustão derrubou os meninos num sono profundo. Eles deveriam se adap­tar logo à nova realidade das caminhadas cansativas, pois elas seriam uma constante na vida deles dali por diante.

No dia seguinte, Bartolomeu imprimiu ao grupo um ritmo forte, e como ele havia previsto, o rio Lusa se destacou à frente deles pouco depois do meio-dia. O rio não era muito largo, mas a sua água era fresca e cristalina, lavada pelas pedras que ficavam no fundo do leito, convidando os viajantes a beberem e se banharem com prazer.

Os cavalos se deleitaram bebendo grandes quantidades e em pouco tempo, recuperaram a energia que foram perdendo durante a travessia pelo deserto. Pesa­delo se refez e o seu trote voltou a ter a imponência e a vitalidade de antes. Chester gostou do que viu.

Venha pesadelo, quero ver se você se recuperou de verdade — disse ele, montando orgulhosamente o garanhão.

Ao comando de Chester, Pesadelo disparou para longe onde o terreno era mais nivelado.

Bartolomeu, que enchia o seu odre no rio, levantou-se quando viu Chester e Pesadelo se afastarem para dentro do deserto.

Chester, não! — gritou ele, correndo para o seu cavalo e indo atrás do garoto americano.

Roger percebeu que havia algum perigo e também montou, seguindo Bartolomeu, adentrando o deserto.

Chester, que cavalgava, arrancando e freando, girando Pesadelo de um lado para o outro, não percebia que Bartolomeu e Roger vinham ao encontro dele. Bartolomeu acenava e gritava.

Chester! Chester! Volte!

Chester então notou a presença deles e devolveu o aceno.

Duvido que eles nos alcancem, amigo — disse ele a Pesadelo, fugindo para mais longe ainda.

Garoto imbecil! - descarregou Bartolomeu, pressentindo o perigo iminente.

Chester reparou que o terreno à sua frente era estranhamente mais claro; alguma

coisa devia estar errada. Ele puxou a rédea, mas não houve mais jeito. O chão se abriu e os dois despencaram caindo num buraco de quase cinco metros de profundidade. Pesadelo relinchou alto de susto e dor. A queda de Chester foi amenizada pelo corpo do cavalo, e mesmo assim, o menino sofreu escoriações nas mãos e nos braços quando tentou evitar bater a cabeça. Chester e Pesadelo foram enganados pelo terreno que era somente uma casquinha, escondendo uma armadilha natural. Zonzo e dolorido, Chester se levantou e viu que dos inúmeros furinhos nas paredes da cavidade em que eles haviam caído, brotavam vermes brancos esverdeados; era uma cena pavorosa e repugnante. O coração do menino se apertou de preocupação quando ele notou que Pesadelo não se levantava. Chester gritou por ajuda.

Roger e Bartolomeu apareceram na borda do buraco. Roger desenrolou uma corda amarrando uma ponta na sela de seu cavalo e jogando a outra para Chester.

Você consegue subir? — perguntou Roger, olhando os milhares de vermes que se apinhavam nas paredes, como que aguardando um banquete.

Brian, Guillermo e os outros garotos também chegaram ao local do acidente. Brian balançou a cabeça quando viu os dois no fundo, rodeados pelos vermes nojentos.

Chester está bem? - perguntou Margaret, nervosa.

Parece que sim — disse Roger. — Acho que o problema é com o cavalo — ele murmurou a última frase.

Chester passou a corda em volta do peito e deu um nó forte. Bartolomeu e Roger o puxaram sem muita dificuldade. O seu rosto passava a centímetros daqueles bichos gosmentos e repulsivos.

E Pesadelo? — perguntou Chester, atemorizado. Ele temia já saber a resposta.

Não sei. Vou descer - disse Bartolomeu, desvencilhando a corda de Chester e enrolando-a em seus braços.

Me segurem! Eu não sou tão leve quanto o garoto — disse Bartolomeu, se jogando para baixo. Seus pés se apoiavam na parede, esmagando alguns vermes, com raiva.

Quando ele chegou no fundo, examinou sem muita esperança o cavalo que continuava deitado.

Estão quebradas! As duas patas dianteiras — anunciou ele, desanimado. — Não tem mais jeito.

Não! - gritou Chester, seus olhos marejaram.

Chester sabia muito bem o que significava aquilo.

Tirem os garotos daqui! — ordenou Bartolomeu. - Voltem para o rio, pelo mesmo caminho. Terei que sacrificar o animal.

Não! Não! Pesadelo, me perdoe! A culpa foi minha! — Chester não reteve as lágrimas. O sentimento de culpa pesava sobre ele.

Ninguém teve culpa, Chester - disse Guillermo com a intenção de consolá-lo. — Poderia ter acontecido com qualquer um. Vamos, monte no meu cavalo.

Chester cavalgou de volta, inconsolável. Ele olhava para trás, Brian e Roger na beirada do buraco, olhando para baixo. Ele tinha consciência do que estava acontecendo naquele momento.

Chester parou às margens do Lusa e ficou olhando para o seu reflexo na água. Margaret se aproximou dele.

Não fique assim, Chester, foi um acidente - ela pôs a mão em seu ombro, querendo confortá-lo.

Rafael e Marc igualmente se aproximaram. Não tinham muito o que dizer.

Você conduz o meu cavalo, amigo — disse Rafael, comovido. — Não sou mesmo muito bom em cavalgadas.

Chester mostrou um sorriso de agradecimento. As lágrimas ainda rolavam pelo seu rosto.

Mas eu deixo você ir na garupa — brincou Chester, tentando se recuperar do choque.

Bartolomeu, Brian e Roger retornaram e Chester ainda viu a lâmina do facão de Bartolomeu suja de sangue antes que ele a lavasse no rio. Ele imaginou que fim doloroso Pesadelo havia tido.

Ele sofreu muito? - perguntou Chester timidamente a Bartolomeu que secava a lâmina molhada na calça.

Nem um pouco - disse ele, prendendo o facão na cintura. Bartolomeu fez uma pausa e olhou seriamente para Daniel. — Foi melhor assim, rapaz.

Eu sei - concordou Chester respirando fundo.

Deem mais água aos cavalos — disse Bartolomeu, enquanto organizava suas coisas. - Vamos sair daqui depressa. Esse lugar vai ficar infestado de keklins.

Como você sabe que os keklins irão voltar? — perguntou Guillermo, ele jogou um pouco de água na cabeça para se refrescar.

Quando os vermes começam a se alimentar, emitem algum tipo de sinal que é percebido a quilômetros pelos insetos corredores que partem em grande velocidade como vocês viram há pouco. Enquanto comem, os vermes do deserto perdem a noção do perigo, e é nessa hora que os keklins aproveitam para investir sobre eles. É a lei da sobrevivência.

Quando Bartolomeu viu que todos estavam prontos para partir, indicou o rumo a tomar.

Bem naquele ponto entre aquelas pedras o rio fica bem mais raso — disse Bartolomeu, indicando rio acima, uns sessenta metros adiante. — Por ali os cavalos têm condições de atravessar.

Logo que o Luza foi transposto, a caravana retomou para o leste.

Olhem! Lá vêm eles! - avisou Guillermo, os keklins famintos chegaram num piscar de olhos e cobriram o buraco, formando rapidamente um monte fervilhante que produzia um som grotesco, capaz de ser ouvido do outro lado do rio.

Chester imaginou do que estaria sendo feito de Pesadelo naquele minuto. Era melhor nem pensar.

Como você soube que havia um buraco camuflado onde Chester caiu? — perguntou Roger a Bartolomeu enquanto se afastavam da margem do Luza.

Eu não sabia — disse ele semicerrando os olhos, olhando em frente. - Quando os vermes removem o subsolo, a fina casca que fica por cima, dando a impressão que é terra firme, assume uma tonalidade mais clara, quase imperceptível - Bartolomeu reapertou o nó do pano em sua cabeça. — Da distância em que nós está­vamos de Chester, não dava para saber se o terreno era firme ou não. Eu só tive certeza quando o chão cedeu.

Do outro lado do rio ainda havia uma larga faixa de deserto que eles teriam de cruzar sob o sol escaldante daquela tarde.

Ao final do dia, começaram a surgir os primeiros sinais de vegetação rala, anunciando que estavam a ponto de completar a travessia pelo deserto do Kundruir. A primeira etapa estava prestes a ser concluída. Mas era apenas o começo. Eles nem imaginavam o que ainda iriam enfrentar.

Chester cavalgava calado, e por um bom tempo ainda iria carregar o peso da culpa pelo que aconteceu com Pesadelo. Rafael, que viajava na garupa do cavalo conduzido por Chester, procurava amenizar a tristeza do amigo desviando a sua atenção com perguntas.

Como você faz para que o cavalo corra mais?

É tudo uma questão de habilidade — respondeu Chester, se esforçando, tentado superar a dor da perda. — Mas você aprenderá rápido quando entender que cavalo e cavaleiro são um só quando estão juntos.

Devem existir muitos cavalos no rancho de onde você veio.

Não muitos — disse Chester, o olhar perdido. - Mas lembro com saudade de cada um deles, principalmente do Coronel.

Coronel? — Rafael fez uma expressão interrogativa.

É o nome que dei ao cavalo que ganhei de presente do meu tio Fred - expli­cou Chester, enrolando a rédea na mão. — Foi uma homenagem ao meu avô que foi coronel do exército dos Estados Unidos da América. Ele era da cavalaria e quando deixou o exército, comprou o rancho onde moram meus tios. Um dia ele soube que estava com uma grave doença e teve que se aposentar mais cedo, mesmo contra sua vontade. Eu não cheguei a conhecê-lo a não ser por umas fotos desbotadas que meu tio Fred guarda como lembrança. Por isso, resolvi batizar o meu cavalo com o nome de Coronel.

É um nome pomposo - elogiou Rafael.

A paisagem continuava se modificando com o aparecimento de vegetação mais densa, fazendo com que o ar ficasse mais fresco e agradável.

Bartolomeu deteve o trote de seu cavalo antes de penetrar em uma trilha que seguia por um bosque de árvores com galhos desprovidos de folhas. Para o interior a vegetação se tornaria mais encorpada, mas nada que se comparasse à floresta fechada da Ilha da Coroa.

Aqui começa o bosque das terras baixas - disse o guia, quebrando um comprido galho seco e espinhoso que se atravessava nà sua frente. — A partir daqui encontraremos todo tipo de gente e criaturas estranhas que poderão nos trazer problemas. Procurem ficar juntos e atentos a qualquer anormalidade.

Daniel respirou fundo de ansiedade e vasculhou com o olhar por entre as árvo­res. Ele achou esquisito não avistar nenhum animal por ali. Ele mesmo comentou.

O bosque parece não ter vida.

É assim mesmo - explicou Bartolomeu, olhando em volta. — Mais pra frente os animais aparecem, onde existem árvores frutíferas e regatos com água boa para se beber. Venham, vamos avançar mais um pouco e encontrar uma clareira para levantarmos acampamento.

A viagem continuou e a tarde deu lugar ao crepúsculo que trouxe o brilho das primeiras estrelas que surgiam por entre os galhos mais altos das árvores. Bartolomeu estava certo quando disse que a vegetação era mais espessa para o interior do bosque. Sons estranhos como pios e chiados discretos tomaram conta do lugar, anunciando que a vida animal ali estava presente.

Margaret olhou para cima e viu a imensa lua mais uma vez sobre sua cabeça. Ela chamou a atenção de Roger, que também confirmou o astro fixo no céu. Roger deu um sorriso com o canto da boca para a menina.

Alguma coisa esvoaçou quase batendo no rosto de Marc. Ele não conseguiu saber se era algum tipo de pássaro ou um inseto grande. As imagens do bosque já se faziam indefinidas com a chegada da noite.

Bartolomeu empunhou seu cajado fosforescente de luminita clareando o caminho.

-Acho que esse lugar está bom para passarmos a noite - disse ele, apontando seu cajado de ponta brilhante na direção de uma clareira.

O espaço não era muito grande, mas o suficiente para acomodar os nove viajantes e as montarias com algum conforto. As árvores que cercavam o terreno aberto eram altas e imponentes parecendo oferecer alguma segurança. Seus galhos se estica­vam sobre a clareira como braços ameaçadores confundidos pela pouca visibilidade existente na mata.

Bartolomeu limpou o terreno onde iria preparar uma nova fogueira. Os meni­nos, já acostumados a rotina do acampamento, começaram a recolher galhos e pedaços de tronco secos sem que Bartolomeu tivesse que pedir ajuda. Em pouco tempo a fogueira estava ardendo.

— Eu preparo o jantar — ofereceu-se Guillermo, trazendo algumas panelas e aco- modando-as perto da fogueira. — Hoje vocês vão provar o sabor da comida espanhola.

Estava claro que Guillermo falava em tom de brincadeira, pois não havia muitas opções para se variar o cardápio. O máximo que ele conseguiria fazer era um macarrão sem muito tempero e carne defumada. Em seguida, ele foi até um pequeno riacho que existia próximo dali e encheu um odre com água até a boca, suficiente para o cozimento.

Brian se deitou após o jantar; sua visão era um céu rodeado de árvores escuras, estrelas brilhantes como tochas azuladas e a grande lua inerte bem no alto. Ele fechou um dos olhos e passou a comparar a posição do astro com as estrelas mais próximas e, depois de algum tempo observando, percebeu que, ao contrário de todas as estrelas, a lua realmente parecia estar fixa, como se estivesse grudada na escuridão noturna. Margaret, observadora como sempre, falou:

Ela sempre fica naquela posição.

Ah! Você também percebeu, Margaret?

Eu e o professor Roger já havíamos notado.

E você sabe o por quê? — indagou Brian, se ajeitando para poder conversar melhor.

Ainda não, mas ele deve saber — disse ela, apontando discretamente na direção de Bartolomeu, usando a ponta do queixo.

Daniel pegou o baralho que havia recebido de presente e se pôs a admirar cada carta, imaginando se todas aquelas criaturas existiriam de verdade.

Bartolomeu amolava a lâmina de seu facão com uma pedra de afiar, depois passava uma folha, verificando se o corte estava bom. Margaret se agachou ao lado dele e expôs a questão que a perseguia há dias. O homem olhou para o alto. A luz da lua se refletiu nos seus olhos. Ele testou mais uma vez e constatou que o corte da lâmina estava perfeito.

Você está disposta a ouvir uma longa história?

Claro! Adoro saber as coisas! - exclamou ela entusiasmada, seu rosto iluminado pela fogueira vacilante.

Pode me emprestar um pouco esse baralho, rapaz? - pediu Bartolomeu a Daniel, o menino organizou as cartas e se aproximou do guia, sentando-se com as pernas cruzadas como um índio.

Os ouvidos atentos de Marc, Rafael e Chester não deixariam passar uma his­tória interessante diante da luz de uma fogueira. Eles se aproximaram e sentaram-se ao redor de Bartolomeu que os olhava como um velho contador de histórias encara a sua platéia. Pela primeira vez, depois de muito tempo, ele gostou de estar cercado de gente. Então começou.

Foi há muitos e muitos anos. Tanto tempo que ninguém sabe exatamente quando aconteceu. Provavelmente uns oito mil anos tenham se passado desde então. Magos poderosos e criaturas fantásticas povoavam este mundo. Os poderes que eles possuíam eram imensos, quase infinitos. Também naquela época, e mesmo muito tempo antes, havia quatro deuses irmãos e uma irmã: Arkopromis, Niabardhian, Zanqeon, Sargaleu e Ninqa, todos deuses filhos de Paetum e Friankea, o casal de deuses que deu origem a todas as raças que existem ou existiram. - A história con­tada por Bartolomeu atraiu até a atenção de Roger, Brian e Guillermo. Bartolomeu mantinha os olhos fixos no baralho como que lembrando um tempo em que não viveu. Ele achou duas cartas e colocou-as no chão. A primeira era a imagem do deus Paetum, sua face e suas mãos brilhando, as vestes em azul e dourado dignos de sua grandeza. Friankea estava totalmente envolta em luz e sua face expressava uma serenidade inabalável. A história continuou: - O mais poderoso dos irmãos deuses era Arkopromis, e também o de pior índole - Bartolomeu desceu outra carta, dessa vez a do deus maligno, os cabelos esvoaçantes e olhos furiosos, uma paisagem tem­pestuosa se formava por detrás dele. - Ele desejava ardentemente governar todas as terras desse mundo. Primeiro tentou convencer seus irmãos que ele era o mais indicado para liderá-los como rei de todos os povos, mas nenhum de seus irmãos, obviamente, aceitou seus argumentos, pois sabiam que sua mente estava contami­nada pela maldade e pela perfídia. Sem obter sucesso, ele voltou-se para seus pais, os grandes deuses, buscando apoio para que o nomeassem o senhor das terras e das águas. Paetum e Friankea, conhecendo bem o filho traiçoeiro, negaram tão infame pedido. Arkopromis não se deu por vencido e já tomado pela loucura, aproveitou enquanto seus pais dormiam no jardim de Rohvenell, em Kalipria, sua morada celestial, e matou-os, devorando seus corações e absorvendo parte de seus imensos poderes - Margaret fez uma careta de decepção ao ouvir o trágico desfecho.

E o que aconteceu depois? — apressou-o Rafael, com declarado interesse.

Shh! Deixe ele contar o resto! — reclamou Marc, inclinando-se para ouvir melhor a história contada pelo guia.

Bartolomeu estava bem à vontade, pois conhecia as lendas locais desde criança. Após fazer um pouco de suspense, prosseguiu:

Quando seus irmãos souberam o que havia acontecido, amaldiçoaram Arkopromis e resolveram vingar a morte dos pais. Mas derrotar Arkopromis não era tarefa nada fácil. O deus da maldade se tornara mais forte que seus irmãos e só os poderes combinados de Sargaleu, Niabardhian, Zanqeon e Ninqa poderiam resistir à fúria do perverso irmão.

E o que isso tudo tem a ver com a lua aí em cima? - questionou Margaret, impaciente, apontando para o alto.

Não interrompa! - protestou Daniel, que estava viajando nas palavras de Bartolomeu.

Eu disse que era uma longa história - lembrou Bartolomeu, franzindo a testa. — Mas você vai entender logo.

Viu o que deu atrapalhar? - disse Daniel, espezinhando a irmã. — Veja se agora fica de boca fechada!

Margaret ficou vermelha de raiva, seus lábios se contorceram.

Ei, o que deu em vocês? - interveio Brian, chamando a atenção dos dois.

Até parecem os irmãos da história! - aproveitou Chester para espetar.

Bartolomeu arqueou as sobrancelhas para baixo fazendo uma cara de quem não estava gostando nada daquilo.

Posso continuar? - disse ele, olhando para Margaret e depois para Daniel. Os dois consentiram.

E você, não se meta! - recomendou Guillermo a Chester, cutucando-o nas costelas.

Bartolomeu abriu mais uma vez o baralho de cartas e continuou:

Os poderes dos deuses foram postos a prova numa violenta disputa de forças que se iniciou e perdurou por muitos anos. Raios cruzavam os céus para todos os lados causando histeria nas populações. Milhões de pessoas inocentes morreram víti­mas do maior confronto de todos os tempos. As noites tornavam-se tão claras como o dia, iluminadas que eram pelos clarões ininterruptos das explosões ensurdecedoras.

Rafael enrolou-se em um cobertor. A temperatura havia caído e ele não era muito acostumado com o frio.

Agora você vai entender porque eu contei toda essa epopeia, Margaret — preparou-se Bartolomeu para concluir a narrativa. — Quando o perverso Arkopro­mis convenceu-se de que não conseguiria vencer seus irmãos, voltou todo o seu poder ensandecido para desestabilizar a órbita da maior das duas luas, Wengarel, e precipitá-la sobre o planeta. O choque iria dizimar todo e qualquer tipo de vida. Mas havia uma chance da catástrofe não acontecer: Sargaleu, o deus das forças da luz, mandou construir uma gigantesca torre, com mais de um quilômetro de altura, e no seu topo colocar a pedra Kalizoel, criada pela deusa Ninqa — o guia mostrou a carta que retratava Ninqa, ela segurava um cristal em uma das mãos e na outra, uma flor de pétalas brancas; uma outra carta era a representação de Sargaleu, que sustentava uma tocha que ao invés de fogo, emitia pura luz. Bar­tolomeu deu seqüência na narrativa: — A pedra Kalizoel deveria concentrar todas as forças dos três irmãos: Sargaleu, Zanqeon e Niabardhian. Eles deveriam entrar na base da torre e se fechar lá dentro, isolando-se de tudo que pudesse distraí-los de sua sagrada missão. A porta da base da torre deveria ser lacrada e eles teriam que se sacrificar fechando-se, enquanto fosse necessário, no interior da torre, em benefício de todas as raças, animais e plantas existentes. O jogo de forças tornou-se titânico entre Arkopromis e os outros três irmãos confinados na torre. Somente Ninqa permaneceu livre com a difícil tarefa de pegar Arkopromis de surpresa e matá-lo. Não foi nada fácil, pois o maligno deus escondeu-se em uma ilha ao sul do continente cadecaliano e isso fez com que a feroz contenda perdurasse por muitos anos. Como conseqüência do desvio da órbita de Wengarel, maremotos destruíram muitas cidades litorâneas, outras cidades foram devastadas por terremotos, vulcões e vendavais. A cada dia, os corpos de homens e animais se amontoavam e tinham que ser queimados às pressas para evitar a proliferação de graves doenças por causa da rápida decomposição. Muitos diziam, e com razão, que o fim do mundo havia chegado. Por sua vez, Ninqa, incansável, passou muito tempo procurando pelo detestável irmão, vasculhando cada montanha, caverna ou qualquer outro lugar que ele pudesse estar escondido. Até que um dia, ela aportou na ilha que até hoje leva o nome de Nattifia. A ilha perdida no oceano entre enormes ondas era uma das últimas esperanças da deusa. Foi ali que numa sombria caverna na encosta de uma montanha, ela encontrou Arkopromis e, aproveitando de sua distração na sórdida intenção em usar sua poderosa magia para derrubar Wengarel, a bela deusa atravessou sua espada no peito do seu nefasto irmão, matando-o e interrompendo a catástrofe que destruiria todo o planeta. No exato momento da morte de Arko­promis, parte da ilha começou a desmoronar, se perdendo nas profundezas do oceano. Só uma pequena parte dela ainda existe como lembrança das maldades de Arkopromis e do heroísmo de Ninqa, que nunca mais foi vista. Costumam dizer até hoje que o que restou da ilha ainda guarda algo de maligno — Bartolomeu então olhou diretamente para Margaret, o fim da história estava para acontecer. — Mesmo com Arkopromis morto, Wengarel ficou perigosamente fora de sua órbita e se os heróicos irmãos abandonassem a torre, as previsões do povo se confirmariam com a destruição do mundo finalmente acontecendo. A solução foi que a torre deveria continuar lacrada para sempre com o total consentimento de Sargaleu, Zanqeon e Niabardhian. E aí está a sua explicação, garota - finalizou Bartolomeu.

Isso é apenas uma lenda, não é mesmo? - perguntou Brian a Bartolomeu, pondo em dúvida o seu teor.

Se é apenas uma lenda eu não posso confirmar — disse Bartolomeu, com ar de desdém, ele juntou todas as cartas e devolveu o baralho a Daniel. — Mas a torre existe. Eu já estive diante dela algumas vezes, e tem mesmo todo aquele tamanho. E magnífica. Em muitos momentos me perguntei: como pode uma estrutura gigan­tesca como aquela se manter de pé por tanto tempo?

Um quilômetro de altura? - perguntou Daniel, perplexo.

Talvez mais — arriscou Bartolomeu, esticando uma perna e dobrando a outra, cansado de ficar na mesma posição.

E a tal entrada localizada na base da torre... - disse Roger, especulando.

Lacrada! — confirmou Bartolomeu, sem dar tempo da frase ser completada. — E como se a porta e toda a estrutura da torre de pedra se tornassem uma coisa só... pela força da magia. Não há frestas que indiquem onde termina a porta e começa o corpo da torre.

Então, os tais deuses irmãos podem ainda estar lá dentro até hoje, após incontáveis anos - disse Roger, pensando como alguém poderia viver tanto tempo. Mas, afinal, eram deuses.

É o que a maioria das pessoas por aqui acredita - disse Bartolomeu dando de ombros. - Senão, qual a explicação para Wengarel se manter presa a esse planeta como se um cordão invisível unisse os dois astros?

Essa torre... Cenoteorus, não deve estar muito distante daqui - supôs Rafael, pois Wengarel dava sempre a impressão de pairar sobre eles.

Wengarel é muito grande e por isso mesmo passa essa ilusão de que a torre fica bem perto - explicou Bartolomeu enquanto se levantava para pegar um pouco de chá quente. - Mas não se enganem, pois a Cenoteorus se localiza a mais de mil quilômetros a leste, na planície de Loreuvena.

No meio da conversa, uma ave de cor parda e bico pontudo voou sobre a cla­reira atacando os cajados fincados na terra.

Guillermo se desviou num reflexo para não ser atingido.

O que houve com esse bicho? — indagou ele, quase caindo por cima de Marc.

É um Mugaurin — disse Bartolomeu, correndo para pegar os cajados, escondendo-os embaixo de um cobertor. — Ele não quer concorrência. As luzes dos caja­dos dispersam a sua comida.

Como assim? — quis saber Margaret, seu braço por cima da cabeça para evitar um possível ataque da ave.

Vocês já vão ver - disse Bartolomeu, parado no meio da clareira, tentando ver aonde o Mugaurin iria pousar. A ave, pouco maior que uma coruja, escolheu um galho grosso para realizar seu pouso. — Fiquem olhando o que vai acontecer.

O bico do Mugaurin começou a se iluminar e atrair diversos insetos voadores que gostam de luz. O Mugaurin não tinha nem o trabalho de caçá-los, bastando apenas abrir o bico e engoli-los um a um.

Mas desse jeito é muito fácil! — protestou Chester, surpreso. — Ele não faz nenhum esforço para conseguir seu alimento!

A natureza é sábia - disse Bartolomeu enquanto aguardava o Mugaurin terminar de comer para, enfim, descobrir os cajados. - Essa ave só tem um filhote por ano. Se não tivesse alguma vantagem sobre as outras, poderia estar extinta.

Depois de se fartar de devorar insetos, o Mugaurin voou se embrenhando entre as árvores e desapareceu. Margaret ainda tentou avistar novamente o inusitado pás­saro, mas o Mugaurin não retornou.

A partir dessa noite e por todas as outras, devemos ter sempre uma sentinela — anunciou Bartolomeu, recolocando os cajados em suas posições. - Toda essa região até Faogard pode se tornar hostil a qualquer instante. Faremos turnos de duas horas até pela manhã.

Eu faço o primeiro turno! - pulou na frente Marc, com espírito aventureiro.

Esse trabalho é para os adultos - disse Roger, olhando sério para Marc. - Você vai dormir que nem os seus amigos.

Mas eu posso...

Sem nenhum "mas" e está decidido - determinou Roger, cortando qualquer possibilidade de argumentação do menino francês.

Marc balançou a cabeça em reprovação, mas achou por bem não insistir com Roger. O garoto sairia perdendo. Isso fez com que os outros meninos desistissem de qualquer condição semelhante e o jeito foi se prepararem para dormir. Roger assumiu as primeiras duas horas; a alvorada chegou quando Guillermo terminava o seu turno.

Ao final daquele dia eles venceram o bosque e chegaram a uma região de campo aberto, com poucas árvores, mas abundante vegetação arbustiva. Aquela paisagem perdurou pelos próximos dois dias. O calor diurno trouxe nuvens de chuva que se precipitaram, forçando-os a se abrigarem em barracas improvisadas de tecido grosso e impermeável.

No outro dia o céu voltou a ficar limpo, com poucas nuvens que se moviam sopradas por uma agradável brisa vinda do sudoeste.

Bartolomeu parou a marcha e inclinou a cabeça para cima. Seus olhos semicerrados buscavam alguma coisa que os outros não haviam percebido. Em seguida, ele puxou sua luneta e a direcionou para um ponto no céu azul.

O que foi? — perguntou Brian, olhando para o céu a esmo. Ele não via nada lá em cima.

Um dragão! - revelou Bartolomeu, um dos olhos fechados e o outro enter­rado na luneta.

O quê? Onde? — perguntou Daniel, desesperadamente.

Roger e Guillermo sacaram seus binóculos, mas só conseguiram ver um pequeno pontinho se deslocando nos vãos das nuvens. Dava para distinguir uma figura lon- gilínea com asas de grande envergadura que se movimentavam constantemente para vencerem o ar rarefeito. Os meninos se esforçavam para ver, mas a distância dificul­tava a observação.

Estou vendo! - gritou Rafael, pondo a mão acima dos olhos para se proteger dos raios solares, aguçando assim a visão.

Ele deve estar muito alto - presumiu Guillermo, passando o binóculo para Brian.

Uns seis quilômetros — calculou Bartolomeu, emprestando sua luneta a Daniel que se achava ao seu lado. Ele não conseguiu localizar o fantástico animal que já havia cruzado uma grande distância. Não era tão fácil utilizar uma luneta daquelas com destreza.

Um dragão! - murmurou Margaret, maravilhada, lembrando-se dos contos de fadas que lia nos livros ilustrados quando ainda era criança.

Não é comum vê-los por essas bandas — disse Bartolomeu, quase não conseguindo mais avistar o ser mitológico. - Pela altitude que voa, ele vai cruzar a cordilheira de Malthar.

Qual o tamanho daquela coisa? — perguntou Brian, se empenhando para não perder a criatura de vista.

E dos grandes - respondeu Bartolomeu, com segurança. - Pelo menos uns vinte metros do focinho até a ponta da cauda.

E existem maiores? - interessou-se Chester.

Os grandões podem atingir os vinte e cinco metros, mas não são muitos. Os menores não passam dos oito metros de comprimento.

E eles cospem fogo como nas histórias? — indagou Daniel, imaginando como poderia ser.

Eu não ficaria na frente deles — disse Bartolomeu, desaconselhando. — A menos que quisesse ser transformado em carvão.

Nossa! Eu vi um dragão! - disse Rafael, com um brilho de encantamento nos olhos, embora o que vira fosse quase imperceptível.

Isso é apenas o começo — avisou Bartolomeu, encolhendo a luneta e guardando-a em uma presilha na sela. — Preparem os seus corações para o que ainda está por vir — pela primeira vez, Bartolomeu exibiu um sorriso afável.

Por todo o resto do dia, Margaret e os meninos comentavam entre si sobre o primeiro dragão que tiveram a oportunidade de ver, mesmo que não pudessem descrevê-lo em seus detalhes.

 

                                 Lendas à Luz da Fogueira

Mais dois dias de jornada e a paisagem voltou a ser de mata fechada, mas com um caminho que permitia cavalgar tranqüilamente entre a vegetação espessa...

Bartolomeu saltou de seu cavalo e foi até a margem da estrada. Ele se agachou e, examinando com cuidado o solo coberto por gramíneas, concluiu:

Não estamos sozinhos nessa floresta.

O que você quer dizer? - perguntou Roger, apreensivo.

Ainda não sei, mas quem andou por aqui evitou usar a estrada intencionalmente. Obviamente não quer ser visto - informou Bartolomeu, intrigado.

Vamos dobrar a atenção - aconselhou Brian, temendo pelo bem estar dos garotos.

Há como cruzarmos essa floresta até o final do dia? - perguntou Roger, olhando em volta.

Impossível! - definiu Bartolomeu. - Necessitamos de, no mínimo, mais dois dias de caminhada forte. Vamos continuar até onde agüentarmos e só pararemos em local aberto, onde possamos ter uma boa chance de defesa.

Você não pode estar enganado? — questionou Guillermo a Bartolomeu, de cima do seu cavalo. Guillermo gostava de ver as coisas pelo lado positivo, mas a expressão preocupada de Bartolomeu disse tudo.

Receio que não - respondeu Bartolomeu, examinando um ramo quebrado. - Minha experiência me diz que alguém ou alguma coisa está nos preparando uma emboscada.

E por que alguém faria isso? — indagou Daniel, verificando que se fossem atacados, não teriam muitos lugares seguros para se esconderem.

Ladrões — especulou Bartolomeu. - Esses belos cavalos seriam motivo suficiente para nos emboscarem e não hesitariam em nos matar para conseguirem seu objetivo. Mas pode ser outra coisa.

A expressão do guia ficou ainda mais séria. Ele explicou:

Vocês já sabem que os humanos não são muito bem aceitos nesse mundo. Sempre fomos tratados como estrangeiros, mesmo vivendo por aqui há séculos. Os crassênidas, o povo do leste, não gostam nem um pouco de nós, e se dependesse deles, seríamos todos exterminados. A nossa sorte é que estamos no extremo oposto do continente, bem longe deles — Bartolomeu ergueu as sobrancelhas, olhou para Daniel e depois para Brian. - O nosso azar é que estamos indo direto para o território do inimigo, direto para a boca do nosso predador - por fim, Bartolomeu revelou as suas suspeitas: - É praticamente certo que a cúpula crassênida já está sabendo da pre­sença de vocês e de nosso deslocamento para o leste. Eles já devem ter enviado uma ordem para deter-nos, pois sabem exatamente aonde este grupo pretende chegar.

E o que devemos fazer agora? - perguntou Roger, deixando a decisão para o mais experiente.

Ainda acho que o risco é muito alto para esses meninos - disse Bartolomeu com sinceridade. - A decisão mais sensata é a de retornarmos a Nova Europa, mas se mesmo assim, vocês acharem melhor prosseguirmos, eu estarei com vocês.

Brian, Roger e Guillermo se entreolharam. Guillermo coçou o queixo num típico gesto de dúvida. Eles estavam ali para levarem os meninos de volta, mas temiam pelo pior. A situação era diferente em relação à Alexei Martov que estava sozinho e teve um ano inteiro para voltar. Agora o grupo era maior e havia cinco menores que deveriam regressar sãos e salvos a qualquer custo.

Eu posso falar? - manifestou-se Rafael, erguendo timidamente o braço.

Fale — consentiu Brian, aceitando qualquer idéia que os tirasse daquele impasse.

A culpa é nossa por estarmos nessa situação.Temos que enfrentar o problema e está claro pra mim que vocês estão com medo de seguir a viagem por nossa causa. Se desistirmos e retornarmos a Nova Europa ou se prosseguirmos e algo de ruim nos acontecer, de qualquer maneira, nossos responsáveis darão por nossa falta den­tro de alguns meses. Então, já que estamos aqui... vamos em frente!

Eu estou com Rafael! - disse Margaret, decidida. — Não posso perder a oportunidade de ver a enorme torre da qual falou Bartolomeu.

E eu quero ver um dragão, mas dessa vez bem de perto! - intrometeu-se Daniel, determinado.

Tem uma orquestra me esperando do outro lado! - anunciou Marc em tom gaiato. - Eu não posso desapontá-los.

De onde vocês tiraram esses garotos? - perguntou Bartolomeu, impressio­nado com a coragem deles. - Acho que eles já decidiram por nós, não é mesmo? - ele voltou a montar retomando a trilha pela floresta.

Naquele dia eles percorreram o caminho até pouco depois do anoitecer. Os cajados com a luminita não iluminavam o suficiente, forçando-os a redobrarem a atenção durante a noite, e os sons vindos do interior da mata se tornavam estranhos e indefinidos para quem não estava habituado a tais ruídos. Eles só decidiram acampar, quando encontraram uma clareira espaçosa. A prática permitia que, com a colaboração de todos, o acampamento ficasse pronto em poucos minutos.

A fogueira ardia, clareando com luzes titubeantes as árvores em volta. Os cajados, fincados no chão, formando um quadrado, completavam a iluminação do acampamento; para dentro da floresta, era só a escuridão.

Naquela noite, nenhum Mugaurin de bico fosforescente apareceu e a floresta parecia mais silenciosa do que nas noites anteriores. Só alguns insetos esvoaçavam ao redor das luminitas, produzindo um discreto som com o bater das suas minús­culas asas.

Os meninos gostavam de sentar-se perto de Bartolomeu para ouvir as suas histórias. Tudo que ele contava os maravilhava, mas Bartolomeu estava mais inte­ressado em montar guarda do que se distrair em meio a longas narrativas. Mesmo assim, Marc puxou conversa.

Estive pensando na lenda que você nos contou outra noite. Como um deus supremo pode morrer. Como Arkopromis matou seus pais, Paetum e Fri... Fri...

Friankea! Friankea era o nome dela — disse Margaret, confiante.

Isso mesmo — aprovou Bartolomeu. - Na verdade eles não morreram totalmente; seus corações vivem no corpo de Arkopromis, dando-lhe mais poder — Bar­tolomeu parou por um momento e ficou prestando atenção na floresta.

Quer dizer que Arkopromis não foi destruído pela espada de Ninqa, a semi- deusa? — interpelou Daniel, confuso.

Os deuses não morrem definitivamente — esclareceu Bartolomeu. — Só mudam de plano ou de forma. Mas os seus poderes estão aí para provarem que eles estão vivos. E tem mais uma coisa, Marc: Paetum e Friankea não eram os deuses supremos na hierarquia divina. Existe um outro que eu ainda não falei. O nome dele é Vagtajonus, o Deus que dorme.

O Deus que dorme? - indagou Margaret, achando engraçado.

O Deus que dorme — confirmou Bartolomeu. - Essa lenda é aceita por todos os povos, sem distinção. Conta ela que, quando adormece, Vagtajonus sonha, e de seu sonho divino nasce tudo o que existe no universo: as estrelas, os planetas, os animais, as plantas, os seres pensantes e até mesmo os deuses.

Então somos parte do sonho desse Deus? - perguntou Rafael, interessado em mais uma das histórias do aventureiro.

E o que todos creem - disse Bartolomeu, cortando um pedaço de carne defumada recém-esquentada na fogueira. Ele mastigou a carne com gosto e continuou: - A lenda também fala que, de tempos em tempos, Vagtajonus desperta de seu sono profundo, mas isso demora muito, muito, muito tempo; o tempo de quase uma eternidade - enfatizou ele. - O suficiente para a criação e o fim de todo o universo. Depois de acordar, Vagtajonus sente uma profunda monotonia diante do nada e novamente ele volta a dormir para, em seu novo sonho, fazer surgir um novo universo.

E isso vai acontecer para sempre - deduziu Chester, os olhos irritados de sono. Ele já se preparava para dormir enrolando-se em seu aconchegante cobertor.

Os contadores de histórias juram que Vagtajonus esteve a ponto de despertar quando houve o grande embate entre Arkopromis e seus irmãos. Se isso realmente tivesse se concretizado, seria o fim de tudo. Mas como vocês estão vendo, não aconteceu.

Daniel procurou rapidamente a carta de Vagtajonus em seu baralho, e encon­trou: o deus supremo era representado por, somente, dois olhos fechados em meio às trevas. O menino teve a sensação que aqueles olhos iriam se abrir a qualquer momento... mas era apenas uma simples carta.

Bartolomeu percebeu que estava na hora de parar por ali. No dia seguinte eles deveriam vencer uma grande distância em sua longa jornada.

A partir dessa noite faremos vigílias em duplas — ele determinou.

Podemos ajudar, dividindo com um adulto — sugeriu Daniel. Os outros garotos concordaram em participar.

Vocês precisam dormir — disse Guillermo, admitindo em silêncio que a carga seria pesada para ele e os outros três adultos.

Se estamos nessa juntos, somos capazes de dar a nossa parcela de contribuição - insistiu Daniel, apoiado pelos colegas. - Algumas horas a menos de sono não vão nos prejudicar — argumentou com segurança.

O que vocês acham? - perguntou Bartolomeu, dirigindo-se a Brian, Guil­lermo e Roger.

Por mim tudo bem - aceitou Roger, admitindo que já estava na hora das responsabilidades serem divididas com mais igualdade ou os jovens aventureiros não saberiam se defender quando fossem exigidos.

Brian e Daniel iniciarão o primeiro turno, tudo bem? - propôs Bartolomeu, já que Daniel havia dado a idéia.

Os dois concordaram e os demais se acomodaram em seus cantos, adorme­cendo rapidamente. Brian e Daniel permaneceram firmes, atentos, com os olhos varrendo as profundezas, sombrias da floresta durante as primeiras duas horas; não ocorreu nada de anormal no turno deles.

O segundo turno pertenceu a Guillermo e a Margaret, que montaram guarda tomando o cuidado de não cochilarem em nenhum momento. A certa altura, as pálpebras de Margaret começaram a vacilar. Ela estava de costas para Guillermo, ocupando-se em vigiar uma das metades da floresta fechada. Em um dado momento, apenas por uma fração de segundos, ela notou um brilho por entre as árvores; aquilo fez com que ela voltasse a ficar alerta.

Acho que vi algo — ela avisou a Guillermo.

O que foi? - perguntou ele, virando-se bruscamente.

Não tenho certeza, mas acho que vi um brilho se movendo naquela direção — disse, apontando.

Os dois olharam atentos por algum tempo e não observaram nada, a não ser a enorme escuridão.

Naquela noite, a não ser pelo fato isolado, tudo correu dentro da normalidade.

O amanhecer passava uma sensação maior de segurança permitindo que todos ficassem mais relaxados.

Enquanto Bartolomeu concluía os preparativos para a partida, Guillermo se dirigiu a ele e contou o que Margaret havia visto naquela noite. Bartolomeu foi até a menina que arrumava seus pertences e se preparava para seguir viagem; encarando-a severamente ele disse com voz serena:

Conte exatamente o que você viu.

Vi um brilho... como se as luzes do acampamento refletissem em uma espé­cie de metal em movimento — contou ela, esforçando-se em descrever os detalhes.

O que mais? - exigiu Bartolomeu, atento ao depoimento. Roger e Brian aproximaram-se percebendo que alguma coisa de diferente tinha acontecido.

Foi só isso - ela garantiu. — Depois não vi mais nada que me chamasse a atenção.

Bartolomeu levantou-se, pensativo, tirando conclusões. Guillermo quis explorar a experiência do guia.

O que você acha?

Bartolomeu afastou-se da garota e com voz arrastada revelou:

Seremos atacados. Não sei quando nem como, mas vai acontecer.

Guillermo esfregou a nuca, receoso.

Você faz idéia de quem seja?

Não são ladrões, posso apostar nisso - disse Bartolomeu, as sobrancelhas arqueadas para baixo. Dava para notar em seu semblante contraído que o momento era sério. — A melhor coisa a fazer agora é deixarmos os meninos cientes do perigo.

E quando nos atacarem estaremos preparados? — perguntou Brian, sem saber o que fazer.

Nesse caso... minha lâmina estará afiada para eles — disse Bartolomeu, sem outra alternativa.

Uma reunião foi feita às pressas para que todos tomassem conhecimento do que estaria por vir. Bartolomeu sentiu-se um pouco aliviado em poder dividir o peso da responsabilidade com os demais.

O grupo montou e tomou a estrada em trote rápido sob os olhos atentos de cada um. Antes de qualquer curva, Bartolomeu, prudentemente, reduzia a veloci­dade para certificar-se de que não teria nenhuma desagradável surpresa. Mas não bastava. A ameaça poderia saltar das margens da estrada, de dentro da mata. Qual­quer som, uma simples brisa balançando as folhagens, era merecedor de precaução.

Os dias se sucederam e a floresta foi transposta. A paisagem mudou nova­mente para um cenário de vegetação baixa e pedras grandes, fendidas, que se espalhavam pelo terreno.

— Um local perfeito para uma tocaia — disse Brian, quando passava ao lado de uma das pedras monolíticas.

Bartolomeu agora andava mais tempo com a mão pousada no cabo do seu facão. Uma coisa o preocupava: além de algumas facas, eles não possuíam mais nenhuma arma que permitisse a sua defesa, como arcos e flechas. Isso os deixava vulneráveis a ataques à distância. Outro problema era a falta de coletes protetores; alguma flecha ou lança atirada de forma certeira seria capaz de atravessar um adulto com facilidade e sem oferecer nenhuma chance de reação. A expedição havia começado errada e Bartolomeu sentia-se responsável por isso, pois não se preo­cupou em tomar o mínimo de cuidado na preparação da jornada; despretensioso e desinteressado no início, envolveu-se emocionalmente e agora sentia um peso enorme sobre suas costas. O aventureiro sempre andava solitário, pouco se impor­tando se a próxima aventura fosse a última. Raras eram às vezes em que ele levava companhia. Viajar em grupo dificultava o seu raciocínio, principalmente quando precisava tomar uma decisão rápida.

Bartolomeu fez um sinal para que parassem e exigiu silêncio, levando o dedo indicador aos lábios. Ele desmontou sem fazer barulho e começou a subir por uma pedra oval; uma ponte natural levava aquela pedra à outra ainda maior. Bartolomeu arrastou-se sorrateiramente sobre o vão entre os dois monólitos e chegou ao topo da segunda formação rochosa. Suas suspeitas se confirmaram: dois homens senta­dos juntos à pedra maior assavam um animal em uma fogueira. O cheiro que vinha lá de baixo era bom. Bartolomeu desceu a pedra, furtivamente como um gato, e se atirou sobre eles forçando o metal de seu facão contra as suas gargantas. Na queda, a fogueira e o que estava assando se despedaçaram, fazendo voar comida e fagulhas para todos os lados. Os dois homens, aterrorizados, olhavam para Bartolomeu com os olhos arregalados. Suas aparências estavam longe de serem uma ameaça; um deles era gordinho e de pouca estatura, e fazia tanto barulho ao falar que seria ouvido a quilômetros; o seu companheiro, um magricelo desajeitado com olhos grandes como os de uma coruja, mostrava tanta coragem quanto um coelho assus­tado. Bartolomeu conhecia bem aquele tipo de gente que gostava de perambular bem longe da civilização, e com isso fugir de qualquer tipo de coisa que estivesse ligada a palavra trabalho.

O que fazem aqui? — inquiriu Bartolomeu, pressionando mais ainda o facão.

Na... Nada! — disse o gordinho, com dificuldade.

Não temos nada para ser roubado — disse o segundo, quase sem voz. — Mas leve o que quiser, só nos deixe vivos, por piedade!

Tem mais alguém com vocês? Não mintam, ou asso suas cabeças depois de separá-las dos seus corpos.

Não, senhor - informou o gordinho com cara de sofrimento. - Viajamos sozinhos pelas terras baixas.

Não era possível para Bartolomeu que aqueles dois fossem perigosos. A aparência deles era tão ridícula e inofensiva que Bartolomeu começou a duvidar do seu poder de avaliação. O guia se levantou, afastando-se; o facão ainda em posição para ser usado.

Roger surgiu por detrás da enorme pedra e viu aquela cena com curiosidade. Os outros vinham logo depois.

O que está havendo por aqui? - perguntou Guillermo, se os estranhos fos­sem os mesmos que os estavam seguindo há dias, o receio do espanhol por um possível ataque provocado por assassinos então deveria ser infundado.

Quem são vocês? - perguntou Bartolomeu sem mostrar-se amigável. Isso ele sabia fazer muito bem.

Meu nome é Nef - se apresentou o gordinho, esfregando o pescoço ainda dolorido, um sulco avermelhado marcava a sua garganta. - E esse é meu amigo Lamdi. Somos eutanos, da vila Eutan.

É um povoado que fica a pouco mais de cem quilômetros daqui — explicou Bartolomeu sem desgrudar os olhos de Nef e Lamdi.

Veja o que você fez — protestou o magricelo, mostrando a bagunça. — Acabou com o nosso almoço.

Bartolomeu espetou um naco de carne com a ponta de seu facão e provou.

Ainda está bom — disse ele, saboreando. — Mesmo que com um leve gosto de... cinzas.

Se você não é um ladrão, por que nos atacou? — questionou Lamdi, aborrecido.

Não somos ladrões e, desculpem a maneira um pouco... impetuosa que o meu amigo abordou vocês — esclareceu Brian, esticando a mão para cumprimentá-los. Nef e Lamdi aceitaram o pedido de desculpas.

Além do nosso grupo, vocês viram mais alguém pelas redondezas? — perguntou Roger objetivamente.

Antes de vocês chegarem não havíamos visto ninguém há mais de uma semana — disse Nef, um pouco mais tranqüilo.

Para onde estão indo? — voltou a questionar Bartolomeu, achando quase impossível que eles fossem capazes de algum tipo de hostilidade.

Vamos atravessar a cordilheira de Malthar — disse Lamdi, orgulhoso. Sua feição se suavizou como a de uma criança. — É nosso sonho desde que éramos garotos.

Também vamos atravessar a cordilheira — disse Margaret, apreciando a coincidência. - Gostariam de viajar conosco?

Bartolomeu não gostou da idéia. A expedição já era muito numerosa e aceitar outros membros só iria causar mais problemas. E além do mais, eles não conheciam Lamdi e Nef para aceitá-los como se estivessem indo a uma excursão turística.

Não, obrigado - disse Nef, rejeitando o convite. - Preferimos viajar sozi­nhos, no nosso ritmo, sem pressa.

Onde estão os seus cavalos? — questionou Guillermo, não vendo nenhum animal.

Não temos cavalos - disse Lamdi, despreocupado. - Andamos a pé e chegaremos quando tivermos que chegar.

Bartolomeu dirigiu-se até o cavalo de carga e pegou um generoso pedaço de carne defumada e um pouco de farinha.

Isso é para pagar o prejuízo que lhes causei.

Nef não hesitou em aceitar e guardou logo a carne em seu alforje, antes que Bartolomeu se arrependesse.

Bartolomeu retomou a liderança e a expedição seguiu o seu destino.

Nos encontramos depois da cordilheira! — gritou Lamdi, acenando.

Daniel emparelhou com Bartolomeu.

Quem são esses eutanos?

Como eu disse, eles são habitantes de um povoado ao sul de onde estamos. É a civilização humana mais a leste desde Nova Europa. Eutan sofre forte influência dos outros povos e sua origem humana está um pouco descaracterizada. Vivem de pequenos negócios entre Nova Europa e Faogard. Não visito aquela cidadezinha há muitos anos, talvez nem a reconheça se um dia eu voltar por lá.

Foram as primeiras pessoas que encontramos depois de dezesseis dias - informou Rafael do meio da fila.

O garoto tem razão - assentiu Bartolomeu, apontando com o polegar para trás. - Toda essa região é praticamente despovoada. Apenas andarilhos, aventurei­ros e ladrões costumam freqüentar as terras baixas.

 

                                 A Angústia de Bartolomeu

Os próximos sessenta quilômetros eram constituídos de terrenos irregulares com sobes e desces que tornavam a caminhada mais vagarosa. Quando alcançavam o topo de uma elevação, se deparavam com outra depressão que terminava em mais um aclive. A vantagem era que o campo de visão ficou bem maior dando a possibilidade de reação em caso de um ataque.

Certa tarde eles chegaram a um campo repleto de árvores frutíferas. Cada uma dessas árvores estava apinhada de frutas desde o alto das copas até os galhos mais baixos. As frutas possuíam a forma de pêssegos, mas eram vermelhas como maçã madura, e eram cobertas de listras amarelas dando-lhes uma aparência inusitada. Pássaros de plumagem dourada investiam contra as frutas, enterrando seus bicos finíssimos para lhes extrair o licor. Margaret passou bem perto de uma dessas frutas que pendia da ponta de um galho, ficando tentada em pegá-la.

Pode comer - disse Bartolomeu, colhendo uma e esfregando na camisa. — Não vai lhe fazer mal — ele deu uma mordida que fez um líquido escorrer dos cantos da sua boca, depois fez um gesto para a menina fazer o mesmo.

Margaret abocanhou e sentiu o seu gosto doce como mel.

Huumm! — exclamou ela, lambendo o suco que gotejava em seus dedos. — É uma delícia, experimentem!

Os meninos seguiram o conselho e fizeram o mesmo, se lambuzando no doce néctar.

Como chamam essa maravilha? - perguntou Marc, colhendo outras três para comer mais tarde.

Suavi - ensinou Bartolomeu, limpando o rosto com as costas da mão. — As suavizeiras ficam carregadas nessa época do ano até a chegada do outono.

Um belíssimo pássaro dourado atacou a suavi que Chester acabara de colher. Ele se assustou, achando interessante a persistência da ave em tentar bicar a fruta na sua mão. Daniel sorria, satisfeito, achando muito divertida a batalha entre a ave e seu amigo.

É um dunin-de-ouro — antecipou-se Bartolomeu, admirando Chester lutando para desvencilhar-se do pequeno pássaro teimoso. - Uma das mais belas aves que habitam o continente. Existem dunins de outras cores, mas esse é de longe o mais bonito.

Os pássaros, agitados pela chegada dos visitantes, eram realmente belíssimos; quando o sol batia em suas penas douradas, fazia o pequeno animal cintilar, parecendo mesmo que era todo feito de ouro, uma pequena joia viva, livre no espaço. Por isso, seu nome ser tão apropriado. Era possível admirar vinte, trinta ou mais deles voando ao mesmo tempo e promovendo um espetáculo deslumbrante pelos ares. Os pios estridentes dos dunins passavam uma alegria contagiante de rara beleza.

Quando um desses dunins-de-ouro fazia um voo rasteiro, sem um motivo aparente precipitou-se, indo impetuosamente ao chão. Bartolomeu segurou a rédea do cavalo de Margaret puxando para trás.

Um lincouro! - alertou ele, olhando adiante.

O que houve? - perguntou Roger, colocando-se imediatamente de sobreaviso.

Olhem para o tronco daquela suavizeira — disse Bartolomeu, indicando. — O que vêem?

Agora estou vendo! — disse Brian, os olhos atentos.

Brian se referia a uma espécie de lagarto com pouco mais de um metro de comprimento e que se agarrava ao longo do tronco, cravando suas unhas negras na casca escura. Sua pele se confundia som a suavizeira formando uma perfeita camu­flagem para enganar os dunins-de-ouro. O grotesco animal, coberto de pequenos espinhos das costas até a ponta da cauda saltou do seu esconderijo e se lançou sobre a ave abatida, engolindo-a de uma só vez.

Foi esse... lagarto que derrubou o pássaro? — quis saber Rafael, ainda confuso com o que se desenrolava bem diante dele.

Foi ele, sim — confirmou Bartolomeu, de olho no lincouro que rastejava de volta ao tronco para preparar, talvez, um novo ataque. - Sua arma é um veneno letal que ele dispara pela boca e que pode acertar com precisão a uma distância de dez metros. Se o veneno atingir os olhos ou a boca, penetra rapidamente na corrente sangüínea e pode matar um adulto em menos de uma hora. Um animal do tamanho de um pomo-de-ouro morre quase que imediatamente, como vocês viram agora.

Afaste-se daí, Meg — recomendou Guillermo, depois do que soube sobre o bicho peçonhento e altamente mortal.

O lincouro não ataca seres humanos se não se sentir ameaçado — esclareceu o guia. — Basta não provocá-lo e não teremos problemas.

Bicho nojento! — revoltou-se Margaret, lamentando a morte da pequena ave dourada.

É a lei da sobrevivência - disse Brian, justificando a atitude predadora do terrível lagarto.

O bosque de suavizeiras foi um dos lugares mais bonitos que eles percorre­ram desde o início da jornada; isso diminuiu um pouco a tensão, mas a paisagem mudou novamente. As árvores deram lugar aos morros escarpados, impossibilitando a travessia com cavalos.

Desviaremos para o sul e passaremos pelo desfiladeiro de Blarbuk - disse Bartolomeu, mudando a rota para uma trilha menor. — Esse desvio nos custará uns dois dias de cavalgada.

Por que não fomos em linha reta para sudeste, até o desfiladeiro? - pergun­tou Roger, circunspeto, acostumado a caminhadas daquele tipo desde os tempos de soldado na marinha. - Dando essa volta perderemos tempo.

Se não desviássemos, chegaríamos a uma região de pântanos intransponíveis - disse o guia, pacientemente. Ele percebeu que Roger sabia do que estava falando e que possuía um ótimo senso de direção, mas o conhecimento de Bartolomeu ainda falava mais alto.

Margaret gostava de andar junto ao guia; enchia-o de perguntas e, invariavelmente, tinha alguma história diferente para contar aos outros meninos; isso a dei­xava assoberbada, fustigando a paciência de seu irmão. Mas alguma coisa mudou o comportamento de Bartolomeu, deixando-o quieto, usando muito pouco as palavras. Os outros membros da expedição também notaram a mudança. Naquela noite, Bartolomeu se recolheu em um canto afastado, longe da fogueira, e nem tocou na comida. Quando perguntado se iria jantar, simplesmente respondeu que estava sem fome e só desejava estar só. Margaret sentou-se perto de Guillermo, Brian e Rafael, que dividiam um pedaço de carne defumada tirada da fogueira.

Bartolomeu não quer conversa — disse ela, abraçando os joelhos junto ao peito. — Será que fizemos alguma coisa que o chateou?

Deixe-o em paz - aconselhou Guillermo, oferecendo um pouco de comida. Ela aceitou. — Ele deve ter os seus motivos.

Passaremos por um desfiladeiro em um ou dois dias - comentou Rafael. - Desfiladeiros são traiçoeiros, não é mesmo?

-Tudo por aqui é traiçoeiro - desabafou Brian. - Mas também se mostra belo e grandioso, pelo pouco que vimos.

Marc mexeu em suas coisas e pegou sua flauta. Há muito tempo não tocava sua bela música; os primeiros sons encheram o ar com uma melodia sublime e relaxante. Bartolomeu ouvia de olhos fechados e sua fisionomia era triste e reservada. A música de Marc trouxe um pouco de paz aos viajantes, mas pareceu avivar lembranças infelizes que Bartolomeu preferia esquecer.

A noite estava muito escura, com o céu totalmente encoberto por nuvens baixas que ocultavam Wengarel, a lua que não se movia no espaço. Brian escolheu um lugar estratégico para se acomodar e então iniciar o primeiro turno da vigília.

Fico com o senhor — disse Rafael, posicionando-se de modo a cuidar da retaguarda do professor inglês.

A madrugada se arrastava com dificuldade para Bartolomeu. Brian o obser­vava, os olhos do guia ainda abertos, que quase não pestanejavam, o olhar perdido nas nuvens obscuras. Os turnos iam sendo trocados e Bartolomeu mantinha-se acordado. Guillermo, que assumira o novo período, foi até ele.

Por que não dorme um pouco? Em algumas horas teremos de partir.

Bartolomeu balançou a cabeça recusando o pedido. Guillermo achou por bem não incomodá-lo mais e se afastou dele.

Uma outra manhã chegou, o céu continuava nublado deixando o dia cin­zento, mas não eram nuvens de chuva que poderiam atrapalhar a caminhada.

Bartolomeu seguiu em silêncio aos olhos vigilantes de Margaret que acompanhava cada reação dele. A respiração do guia ficou mais curta e acelerada e suas mãos fortes não eram mais firmes, e sim trêmulas ao conduzir a montaria.

A entrada do desfiladeiro surgiu longe no meio da tarde. Agora era o queixo de Bartolomeu que tremia descontrolado e então veio a explicação de seu estranho comportamento: após uma curva, eles viram uma árvore de tronco muito grosso e copa larga ornada com milhares de flores amarelas que exalavam um delicioso per­fume. Era uma argnazeira, árvore majestosa que floresce o ano todo cobrindo o chão com um tapete amarelo e perfumado. Debaixo dos galhos estendidos como braços protetores via-se um túmulo raso coberto com pedras arredondadas e uma cruz de madeira inclinada pelo tempo e em que ainda era possível ler um nome "LOUISE".

Bartolomeu desmontou de seu cavalo e andou lentamente até o sepulcro. O homem, que sempre pareceu uma muralha, caiu de joelhos, os ombros arqueados como se sustentassem todo o sofrimento do mundo. Aos poucos os companheiros desmontaram e aproximaram-se bastante constrangidos pelas circunstâncias.

É a minha filha, a minha filhinha — disse ele, a voz fraca e as lágrimas se derramando pelo rosto.

Margaret aproximou-se timidamente e ficou ao lado dele.

O que estaria fazendo a filha de Bartolomeu sepultada distante de casa em um lugar tão ermo? Bartolomeu prosseguiu falando:

Minha mulher morreu há dois anos quando Louise estava com onze anos de idade - ele pegou um pouco de ar e continuou: - Desde então, eu passei a ser toda a família dela; deixei de viajar e vivia de pequenos trabalhos para sustentá-la e vê-la crescer. A falta da mãe foi sendo superada pelo excesso de cuidados e atenção que eu lhe dedicava — Bartolomeu fez uma pausa lutando para falar. — Todas as noites, antes de dormir, eu contava histórias e as que ela mais gostava eram as das minhas muitas viagens; Louise nunca conheceu nada além de Nova América e Nova Europa. Uma noite falei sobre a montanha de luminita de Faogard que ilumina o céu durante a noite e ela me fez prometer levá-la para ver a tal montanha de luz, seria o seu presente de aniversário — Bartolomeu passava a mão sobre uma pedra do túmulo como se acariciasse Louise. - Certo dia partimos, foram os dias mais felizes de sua vida. Eu nunca havia visto Louise sorrir tantas vezes desde a morte de sua mãe. Lembro quando ela viu pela primeira vez um dunin-de-ouro, seu rostinho brilhava mais do que as penas do passarinho - as lágrimas se acumu­lavam no seu queixo e pingavam na terra. Bartolomeu insistiu em desabafar: — No dia do seu aniversário ela acordou antes de mim, queria ver a montanha começar a brilhar, e como havíamos combinado, aquele seria o seu presente, só dela. Viajamos sem descanso e quando passamos bem diante dessa argnazeira naquela tarde, Louise encheu os cabelos de flores dizendo que precisava chegar bonita e perfumada na montanha — a voz dele passou a falhar, estava muito emocionado, mas precisava contar, dividir a sua aflição. - O dia estava como hoje, nublado, e quando começou a escurecer, Louise viu o brilho do gigante de luminita projetado nas nuvens, mas o desfiladeiro alto encobria a fonte de tanta luz e ela não conseguia ver o verdadeiro espetáculo, uma montanha enorme toda acesa. As crianças são muito impulsivas e Louise pediu para subir a encosta do desfiladeiro que era muito íngreme. Foi esse o meu trágico erro - culpou-se severamente, os punhos apertados. - As pedras não eram muito firmes, mas ela se agarrou como pôde e foi subindo, subindo. "Cuidado!", eu gritei, não imaginando o que estaria para acontecer. Quando ela se ergueu na beirada, lá no alto do desfiladeiro, a pedra em que ela pisava se des­prendeu e ela caiu — Bartolomeu fechou os olhos como se não quisesse ver tudo de novo. - Não consigo esquecer o som da sua cabeça batendo em uma rocha. Quando abracei-a junto ao peito, consegui ouvir o que ela disse num sussurro: "Eu vi a montanha, papai, ela é linda, como você sempre me falou!". O sangue da sua cabeça se misturou com as flores amarelas e eu... não pude fazer mais nada — os olhos de Margaret marejaram, Bartolomeu contou mais: - Enterrei-a debaixo dessa árvore para que seu túmulo receba essas lindas flores, pra sempre.

Roger pousou sua mão no ombro de Bartolomeu; ele não sabia muito bem o que se deve dizer nessas horas, não tinha o hábito de consolar, mas sabia o que era perder alguém que se ama muito e a partir daquele momento. Roger passou a entender melhor quem era aquele homem de fala áspera e modos rudes, e a ter respeito e alguma admiração por ele.

Bartolomeu ajeitou a cruz em posição ereta e, por um breve instante, fechou os olhos como se estivesse falando em pensamento com a sua amada filha, Louise. Talvez estivesse falando mesmo, pois naquele mundo tão diferente tudo era possível.

Vamos enquanto ainda está claro! - disse o guia, arrancando ânimo com dificuldade para prosseguir e deixar a sua Louise, ali, sozinha. - Logo entraremos no desfiladeiro que dá para o território Faogard.

Não demorou muito tempo para que os viajantes encontrassem a entrada do desfiladeiro. Os paredões eram muito íngremes e relativamente altos como a portada de um castelo rudimentar, e o vento que atravessava a sua garganta uivava mis­teriosamente. A vegetação ou qualquer outra forma de vida parecia ter abandonado definitivamente aquele pedaço de terra e quando um ou outro cascalho rolava pela encosta, gerava um eco melancólico que, assim como os cascos dos cavalos batendo no solo, era um dos poucos sons que se podia ouvir. Guillermo olhava de um lado para o outro entre desconfiado e admirado. Ele quis esclarecer com Bartolomeu uma dúvida que surgira naquele instante.

Por que simplesmente não seguimos pelo alto, acompanhando o desfila­deiro? Assim poderíamos reduzir as chances de sofrermos alguma emboscada. Daqui de baixo não temos nenhuma visão do que acontece lá em cima.

Os cavalos não teriam como subir — explicou o guia, convicto da sua estratégia. - E mesmo que isso fosse possível, eles não teriam como caminhar sem se arriscarem a quebrar uma perna, afinal, o relevo é muito irregular e cheio de bura­cos traiçoeiros, e com labirintos que nos deixariam mais vulneráveis.

Não deveríamos então enviar um batedor? — perguntou Brian, diante da fragilidade em que se encontravam.

Prefiro deixar o grupo unido — disse Bartolomeu, inflexível. — E um batedor não conseguiria acompanhar a velocidade de nossa marcha. Lembrem-se, há muita dificuldade de se locomover pelo alto, ainda que seja alguém bem preparado.

Roger pensou que se Bartolomeu conseguiu levá-los até aquele ponto sem que nada de ruim lhes acontecesse, então o guia deveria estar correto. E se não fosse por ali? Qual caminho seria o mais seguro? Essas perguntas conflitantes mexiam com Roger que era acostumado a tomar decisões.

A próxima curva, em ângulo suave, deu passagem a uma reta de vereda amuralhada que aumentou o campo de visão à frente.

Uns cem metros adiante havia alguém parado no meio da estrada. Bartolo­meu contraiu os músculos da face. Os corações dispararam. Guillermo inclinou a cabeça para frente e piscou duas vezes para enxergar com nitidez.

Aquilo ali é o que eu estou achando que é? - perguntou o espanhol, os olhos arregalados.

Não, você não está vendo coisas — disse Bartolomeu, dando um sinal dis­creto com o braço para que todos reduzissem o trote. - É um fauno! Caminhem bem devagar e não façam nenhum gesto brusco para não assustá-lo.

Mesmo de longe era inconfundível: as orelhas pontudas, um par de pequenos chifres retorcidos brotando em meio aos cabelos cacheados, pelos cobrindo o corpo da cintura para baixo e em lugar de pés, dois cascos fendidos.

Aproximem-se bem devagar - recomendou Bartolomeu, sem elevar a voz. - Vocês são uns privilegiados. Eu só tive a sorte de colocar os olhos em cima de um fauno outras duas vezes em minha vida. Nunca soube que perambulavam por essa região.

Eles são agressivos? - perguntou Rafael, da garupa, olhando por cima do ombro de Chester.

Nem um pouco, mas são muito ágeis e podem sumir da sua vista num piscar de olhos. São seres muito interessantes — observou Bartolomeu. — Comenta-se que são capazes de se comunicar com os animais e as árvores de forma tão natural como estamos conversando agora. Entendem a língua dos ventos e das chuvas. São as cria­turas que mais interagem com a natureza. Costuma-se dizer que uma floresta não vive sem um fauno e este não sobrevive muito tempo fora dela.

A medida que chegavam mais perto, podiam apreciar com mais detalhes a aparência fantástica do ser mitológico, estático, bem na frente deles.

Marc reparou que do pescoço do fauno pendia um objeto bastante familiar.

É uma flauta de Pan! — ele reconheceu logo que a viu.

Marc sabia do que estava falando. A flauta mítica era constituída de tubos de comprimentos diferentes presos uns aos outros, lado a lado, do maior para o menor.

O fauno olhava cada viajante com expressiva atenção, seus olhos movimentando-se rápido como os de um animal selvagem.

Quando a distância deixou de ser segura, a criatura, meio homem meio ani­mal, disparou para uma das margens e subiu a encosta do desfiladeiro com uma destreza de causar inveja ao mais hábil alpinista. Seus cascos cravaram firmes no terreno íngreme e pedregoso, enquanto ele observava do alto com a mesma curio­sidade de antes.

Façam algo antes que fuja e se embrenhe na floresta! — exclamou Margaret, fascinada.

A única coisa que ocorreu a Brian poderia ser loucura, mas não custava nada tentar.

Toque a sua flauta! - pediu ele a Marc.

O quê? — questionou o menino francês, hesitante. — Tocar o quê? Qual música?

Qualquer uma! — insistiu Brian sem perder tempo. — Uma que seja bem bonita!

Marc puxou sua flauta que repousava com a ponta para fora do alforje e logo o ar foi invadido por uma belíssima música suave e inspiradora: a Alvorada em Peer Gynt de Edvard Grieg. O fauno foi tomado de surpresa e sucumbiu perante o som harmonioso de Marc, as orelhas pontudas do ser se moviam para captar melhor a agradável sonoridade.

Vamos, garoto... - sussurrou Guillermo, sem desviar os olhos do fauno. - Mostre todo o seu talento...

A criatura de curiosos chifres parecia encantada com a melodia. Então, numa atitude surpreendente, o fauno também levou à boca a sua flauta de muitos tubos fazendo Marc parar de tocar. Agora era a vez do ser lendário mostrar do que era capaz, e ele respondeu com outra música tão doce quanto a de Marc. O garoto francês apeou e andou solenemente para a base da encosta, aproximando-se um pouco mais do fauno, que fez um gesto como que pedindo para Marc tocar outra música. O menino prontamente pôs-se a executar mais uma composição, dessa vez mais animada, quase dançante. O fauno sorriu e, acompanhando a alegre toada, fez um inusitado dueto com Marc. Cautelosamente, o fauno, parecendo ter saído milagrosamente de um livro de mitologia, descia o declive provocando o desloca­mento de algumas pedras. Marc não parava de tocar vendo o fauno aproximando-se, cada vez mais para perto dele. Uma combinação de medo e fascínio se apro­priou do garoto e a mesma coisa deveria estar acontecendo com o folclórico fauno de anatomia animalesca, sua altura era a de um homem adulto.

O extraordinário fauno estacou a apenas um passo de Marc que sentia o seu coração querer saltar do peito. Marc, extasiado, contemplava os grandes olhos cas­tanhos, muito claros a fitá-lo com igual encantamento. O fauno estendeu a mão como a pedir algo, articulando algumas palavras incompreensíveis.

Ele quer a sua flauta! - gritou Bartolomeu.

A minha flauta?! Mas eu ganhei de presente, e como vou conseguir outra?

Dê pra ele, Marc! — encorajou-o Chester, curioso em ver o que iria acontecer a seguir. — Depois você consegue uma nova.

Marc olhou para a flauta, olhou para o fauno.

Tome, é sua — disse, oferecendo o instrumento meio a contragosto.

O fauno exibiu uma expressão interessada e tomou para si o presente, examinando-o com especial atenção, seus dedos deslizavam pelos buraquinhos ao longo da flauta. Em seguida, para espanto de Marc, ele desvencilhou-se de sua flauta de tubos de tamanhos variados e a ofertou em retribuição.

Pra mim? - disse Marc, duvidando se era mesmo aquilo que o seu novo amigo desejava fazer. - Está dando a sua flauta pra mim? - o fauno insistiu que o menino pegasse o presente. Marc aceitou enlaçando-o em seu pescoço.

O fauno olhou mais uma vez a todos e subiu em rápida carreira, sumindo por trás da encosta.

Marc voltou-se para os companheiros, ainda não havia digerido o que acabara de acontecer.

Venha agora, Marc, monte e vamos embora, você ainda terá muito tempo para pensar sobre isso — disse Brian, ele mesmo pasmo com tudo o que vira.

Inacreditável! - exclamou Daniel, seus olhos corriam pelo alto do desfila­deiro. Quem sabe o que poderia surgir dessa vez. - Vou guardar pra sempre esse momento na memória.

Marc virava a sua nova flauta de um lado para o outro como se suas mãos segurassem o Santo Gral, o cálice de Cristo. Seus olhos prendiam-se nos pormenores, a madeira caprichosamente polida realçando a riqueza dos detalhes.

Os tubos são presos com fios dourados — observou, embevecido.

É ouro! — informou Bartolomeu. — O mais puro ouro que a natureza pode produzir.

Ainda não me recuperei da emoção - declarou Margaret, um sorriso de incredulidade estampado.

Depois do desfiladeiro as coisas começam a acontecer, meus amigos - avisou o guia, causando grande expectativa. Ele acelerou a cavalgada. — Preparem os seus corações.

 

                               Os Punhais de Arkopromis

O desfiladeiro expandiu-se em um pátio arredondado como se fosse um pequeno coliseu.

Acamparemos aqui esta noite — disse Bartolomeu, sua voz retumbou pelos paredões altos.

As nuvens se dissiparam e o firmamento revelou as estrelas faiscantes que completaram o cenário esplendoroso, quase místico, de uma catedral a céu aberto. Wengarel, como sempre, vigilante no topo das cabeças dos aventureiros.

Daniel saltou de seu cavalo e esticou os braços para cima, espreguiçando-se, o seu rosto estampava o cansaço dos muitos quilômetros de árdua caminhada. Era sempre assim quando o dia terminava: as expressões desconfortáveis reclamando dos corpos doloridos.

Já era hora de pararmos - disse ele, enquanto friccionava as mãos para aquecê-las. - Puxa! Está esfriando muito rápido!

O vento corria o tempo todo, cruzando o desfiladeiro como um rio transpondo o seu curso. Durante o dia isso era um grande benefício, tendo em vista o intenso calor gerado no solo e encosta pedregosos e áridos. Nos primeiros instantes, logo após o pôr do sol, a situação se invertia e forçava os agasalhos a entrarem em ação.

Já vou cuidar disso - disse Bartolomeu, inspecionando o estado dos cascos do seu animal. Depois agarrou um feixe de lenha suficiente para a fogueira daquela noite.

O acampamento foi montado ao pé da muralha norte do desfiladeiro. O grande paredão em ângulo reto serviria perfeitamente como defesa de retaguarda, permitindo que as sentinelas se preocupassem apenas em vigiar a encosta oposta.

O brilho da fogueira, combinado com o lume branco-azulado dos cajados de luminita, causava um efeito multicolorido que se refletia pelo amplo salão semi-oval.

O cardápio pouco ou nada mudava de um dia para o outro, a não ser por alguma raiz colhida pelo caminho e que era assada sob a lenha em brasa. No fim de cada dia extenuante a fome transformava uma simples refeição em um banquete digno dos reis.

Amanhã entraremos nas terras do povo faogard — anunciou Bartolomeu, sentando-se bem próximo ao fogo. Sua faca afiada estava bem ao seu lado, pronta para ser usada.

Como são esses... faogards? — quis saber Brian, ele marcava num papel amassado os dias decorridos desde que chegaram a Nova Europa. A marcação do tempo era necessária se quisessem alcançar o portal de retorno a tempo de voltarem a Ilha da Coroa antes do encerramento do período escolar em quatro meses. Isso evitaria que a ausência dos meninos fosse sentida pelos seus familiares. Afinal, ao término das aulas, no final de cada ano, todos os alunos deveriam regressar para as suas casas e aproveitarem os dois meses de merecidas férias. Se alguém não retornasse, nesse caso, algo deveria estar errado.

Chester deitou-se e cruzou os braços atrás da cabeça. As poucas nuvens que restaram desfilavam no firmamento como barcos à deriva, ora ocultando algumas estrelas, ora revelando outras; ao seu lado, Brian vestia seu casaco para enfrentar melhor o frio noturno.

Sem que se desse conta, o menino texano teve seus pensamentos transportados até a Ilha da Coroa, no interior da biblioteca.

Professor - disse ele, chamando por Brian. — O que houve com o olho de Alexei Martov? Quero dizer, por que ele passou a usar aquele tapa-olho? Lembro que certa vez comentamos sobre outro retrato dele, o do grande hall de entrada, em que Martov não aparece usando nada parecido. Seus olhos não aparentavam nenhum problema.

Assuntos como esse logo despertavam o interesse dos garotos que arranjavam um jeito de se acomodarem o mais próximos da conversa. A fogueira crepitava arremes­sando fagulhas que eram levadas pelo vento frio. Brian fez uma breve pausa dando chance para que os ouvintes se ajeitassem em seus cantos. Então, passou a falar:

O retrato de Martov com um dos olhos tampado foi feito, mais ou menos, um ano após a sua volta. Ele foi ferido gravemente no rosto e veio a perder uma vista. Por isso ele passou a usar o tapa-olho.

Como ele se feriu? — indagou Rafael, exigindo os detalhes.

Ele foi atacado por um grifo que lhe desferiu um duro golpe no rosto com sua garra afiada.

O grifo! — exclamou Marc, ligando as coisas. — A estátua da sala que dá acesso ao túnel pelo qual passamos para chegarmos ao portal...

Foi Alexei Martov quem projetou e mandou construir a figura de pedra — informou Brian. — Apesar de ter sido mutilado, ele tinha uma grande admiração e respeito pelo incrível animal. Martov dizia que um grifo defende o seu território e a sua prole com rara dedicação, assim como a Ordem do Círculo de Pedra faz com o seu segredo. Por isso ele achou adequado colocar o grifo como um dos nossos sím­bolos.

Será que teremos de atravessar as terras por onde habita esse bicho? - quis saber Margaret, temerosa.

Isso eu já não sei. Certamente, o nosso amigo deve saber responder — disse Brian, olhando na direção de Bartolomeu que se encolhia numa dobra do paredão, estrategicamente acomodado para a vigília.

Daniel se ajeitou para dormir. "Wengarel, posicionada sobre ele, entrava em sua fase minguante. Sua mente estava povoada por grifos, faunos e dragões voadores de mais de vinte metros. Quantas outras criaturas fantásticas ele iria encontrar pelo caminho até cruzar o portal de retorno? A sua paixão pelo desconhecido quase superava a preocupação que deveria ter pelo perigo sempre a espreita. Daniel se questionava se não estaria sonhando com tudo aquilo como fazia Vagtajonus: o supremo deus que dorme.

A noite que passariam no desfiladeiro seria a última antes de penetrarem no território aberto Faogard. Provavelmente o povo guerreiro os protegesse das ameaças veladas pelas quais passavam desde que cruzaram o rio Luza que havia ficado para trás na aridez do deserto do Kundruir.

A noite foi longa e enfadonha cortada pelo vento amargurado e frio.

 

A manhã trouxe um dia nublado com mais nuvens de um cinza monótono. O vento ainda soprava ininterrupto.

A tropa retomou o passo e, quatro horas depois, venceu o desfiladeiro che­gando às florestas fronteiriças de Faogard com a estrada voltando a ser ladeada por árvores altas. Os ventos reduziram-se a uma leve brisa com agradável fragrância que lembrava lavanda.

Bartolomeu decidiu por uma parada rápida para o descanso e também para o abastecimento de água que estava quase no fim. Um lago próximo permitiu que os cavalos se fartassem molhando as gargantas secas e sedentas. Os odres foram sendo cheios até a boca. Os meninos se atiraram no chão, aproveitando o exíguo momento para relaxarem.

Margaret foi a única a notar quando Bartolomeu embrenhou-se pela mata e desapareceu entre as folhagens verdejantes e viçosas. Ela o seguiu discretamente até alcançar uma pequena clareira onde, no centro, despontava uma enorme pedra que vertia água do seu topo como um chafariz natural. O borbulhar da água e o canto faceiro de alguns pássaros eram os únicos sons que a menina conseguia perceber naquele ambiente selvagem e solitário. Fora ela, não havia mais ninguém na clareira. Onde teria se enfiado Bartolomeu? O temor se apoderou de Margaret que decidiu voltar imediatamente à estrada, para junto da proteção de seus amigos.

Repentinamente, ela foi agarrada pelos ombros e virada quase com violência.

O que você está fazendo aqui? - vociferou Bartolomeu, sacudia Margaret com um furor contido.

Margaret assustou-se com a atitude colérica de Bartolomeu. Como os olhos de alguém poderiam transmitir fúria e candura ao mesmo tempo?

Só queria saber onde estava indo - explicou-se ela, sua voz vacilava, seus cabelos caindo sobre os olhos. - O senhor mesmo disse que deveríamos ficar juntos, o tempo todo.

Isso não justifica o que você fez! E muito perigoso! - sua voz assumiu uma inflexão mais branda.

O que veio fazer nessa clareira? - insistiu Margaret, aproveitando-se da paciência de Bartolomeu.

Eu queria me isolar um pouco — disse, largando a menina. As mãos de Bartolomeu se fecharam como que se arrependendo de tê-la sacudido com tanta força.

Ela reparou que o guia segurava uma folha de papel. Logo viu que deveria ser uma carta ou algo assim. Algumas dobras rasgadas denunciavam que a carta fora lida e relida um sem-número de vezes.

Bartolomeu percebeu que Margaret olhava com curiosidade para o papel em sua mão.

E de Louise - disse, meio sem jeito. - Ela escreveu essa cartinha para que eu depositasse no túmulo da mãe dela. Queria que a mãe soubesse de nossa viagem. Quando li, não sei por que, não quis me desfazer da carta e guardei-a comigo sem que Louise soubesse.

Bartolomeu hesitou. Olhou para a carta e depois para Margaret.

Pegue, pode ler.

Posso? Não sei se devo - disse ela, entre o desejo de saber o conteúdo e o constrangimento.

Bartolomeu assentiu com a cabeça, autorizando.

Timidamente ela pegou a carta e pôs-se a examinar a caligrafia. Louise não era muito hábil na escrita, as vírgulas e parágrafos foram ignorados, mas desenhou cada letra com muito capricho, como um pintor pincela um quadro com profundo esmero. As palavras estavam borradas pelo constante manuseio, todavia, ainda era possível ler e sentir a emoção com que cada frase havia sido registrada naquele simples pedaço de papel quase em frangalhos.

Margaret leu:

 

                     Querida mamãe

Estou te escrevendo essa carta porque quero que você saiba que amanhã bem cedo eu e papai estaremos fazendo aquela viagem que eu tanto sonhei fazer. Lem­bra mamãe? Irei conhecer a montanha de luz de que papai me falou. Ele me disse que planejou chegarmos lá bem no dia do meu aniversário. Desejo muito que você também esteja lá nesse dia para festejarmos juntos olhando a montanha começar a brilhar quando a noite chegar. Papai sempre fala de você e de como ele gostaria que você estivesse aqui com a gente mas eu sei que você está no céu conversando com os anjinhos. Um dia eu e papai vamos morar com você num lugar bem bonito mamãe e aí estaremos todos juntos novamente.

Te amo muito minha querida mamãezinha

               Louise

 

Margaret dobrou a carta com cuidado para que não se despedaçasse e devol­veu-a ao seu dono. Bartolomeu experimentou um profundo alívio por poder divi­dir com alguém um sentimento tão puro; em seguida guardou a cartinha de Louise com cuidado em uma bolsinha de couro presa ao cinto.

A água que escorria pela pedra era límpida. Bartolomeu juntou as mãos em concha para beber alguns goles.

Dizem que os faunos vêm aqui para beber dessa fonte — ele comentou tão naturalmente como se falasse de coelhos. Então, enxugou o queixo com o dorso da mão.

Margaret também experimentou da água e teve a sensação de estar, de alguma forma, em comunhão com seres sobrenaturais.

Num gesto inesperado, Bartolomeu segurou o braço da menina, com a outra mão desembainhou seu facão.

Fique atrás de mim! - ordenou ele, pressentindo algo de muito ruim.

O que houve? — perguntou ela, seu coração disparou.

Cinco figuras encapuzadas, armadas com punhais de pontas duplas, surgiram como lobos famintos do interior da mata e cercaram Bartolomeu e Margaret, sem dar-lhes alguma chance de fuga.

Quem são eles? - perguntou Margaret, aterrorizada, temendo pela resposta.

Não tenho certeza! Haja o que houver, não saia de trás de mim - disse o guia, girando sua arma, oferecendo a lâmina afiada ao primeiro que ousasse atacar.

Os encapuzados posicionavam-se procurando o melhor momento de usarem suas facas pontiagudas. Seus rostos não podiam ser vistos, escondidos nas sombras dos capuzes.

Bartolomeu olhava de um lado para o outro, como um tigre acuado, espe­rando a primeira investida. Margaret se protegia, amedrontada, entre ele e a fonte monolítica de água.

Por fim, o ataque aconteceu. Os cinco agressores, de uma só vez, arremeteram furiosamente contra Bartolomeu. Seus punhais cortavam o ar tentando atingi-los sem piedade. Bartolomeu acertou o ombro do primeiro, mas também foi atingido no antebraço esquerdo.

Margaret fez a única coisa que estava ao seu alcance: começou a gritar deses- peradamente.

Os punhais zuniam, buscando a carne de Bartolomeu que já sangrava mas sem perder a ferocidade na luta.

Um segundo golpe atingiu seu ombro direito fazendo o sangue espirrar, escorrendo pelo seu braço. Seu maior medo era que algum golpe acertasse a menina. Na mente dele passava em flashes a queda de Louise, a cabeça vertendo sangue, e ele sem poder fazer nada para salvá-la. Não poderia acontecer a mesma coisa com Margaret. Não dessa vez. Outro golpe perfurou sua mão esquerda, cortando-a pro­fundamente. Bartolomeu respondeu com um ataque certeiro no pescoço de um encapuzado que guinchou e caiu de lado: estava morto.

Margaret gritava e se espremia contra a pedra que, indiferente a tudo, continuava derramando serenamente a sua água. Apavorada, a menina berrava, tentado escapar das lâminas que por vezes passavam a centímetros dela. Bartolomeu lutava como podia, protegendo a garota. Ele começou a sentir que estava perdendo as forças, seus movimentos mais lentos, sem a mesma precisão. Mais um ataque, esse acertou-lhe o pescoço. Ele sabia que estava seriamente ferido e contragolpeou atravessando o peito de outro inimigo que caiu despejando um jorro de sangue pela boca. Quase sem forças, mas num ataque preciso, decepou a mão do terceiro homem que gritou inconformado e, pegando com a mão esquerda o punhal agarrado a mão decepada, voltou ao ataque. Nada adiantou, pois Bartolomeu rasgou a garganta do atacante, agora maneta, que desabou como um boneco de pano.

O chão estava empapuçado de sangue causando horror a Margaret que se esquivava de todo jeito para se livrar dos punhais afiados que a acossavam.

Bartolomeu havia perdido muito sangue e suas forças estavam se esvaindo quase que totalmente; mas ele ainda arrancou, sabe-se lá de onde, alguma energia para abater o quarto encapuzado, destroçando suas costelas e perfurando em um só golpe o seu coração.

Bartolomeu caiu de joelhos, exaurido, sem forças para lutar. Seus olhos embaçaram e ele só conseguia pensar em Margaret. O guia já não sabia mais se o que ocorrera seria alucinação ou uma terrível realidade. Viu, ou imaginou ter visto, Louise à sua frente, os braços estendidos, chamando: "Papai! Papai!".

O único encapuzado que sobreviveu, aproximou-se para desferir-lhe o último golpe. Margaret ficou olhando petrificada sem poder agir em defesa do seu amigo. A próxima seria ela mesma a provar do corte frio daquele punhal.

A cabeça do encapuzado foi girada com violência e o seu pescoço quebrado, produzindo um estalo macabro. Roger havia chegado por trás e atacado com raiva, deixando o corpo do agressor cair pesadamente no solo.

Bartolomeu pendeu para frente e foi amparado por Roger que deitou-o cuidadosamente na grama encharcada de vermelho.

Os outros chegaram logo depois trazidos pelos gritos agudos de Margaret. Atônitos, eles se colocaram em torno de Bartolomeu.

O guia respirava com muita dificuldade, sua cabeça sustentada por Roger.

Margaret correu e abraçou Guillermo, procurando fazer proteção. A experiência por qual passou ficaria marcada na sua memória pelo resto de sua vida.

Eles queriam me esfaquear — desabafou, não contendo o choro. - Vi Bartolomeu sendo atacado e o sangue escorrendo e não pude fazer nada. A culpa foi minha, eu não devia ter vindo atrás dele.

Não, não foi sua culpa, querida — disse Guillermo, procurando consolá-la. — Isso iria acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde.

A sensação de impotência do grupo era evidente dada a gravidade dos feri­mentos de Bartolomeu. Ele balbuciou algumas palavras.

Vão embora... Salvem suas vidas... — suplicava, os olhos distantes.

Brian observava o estado deplorável de Bartolomeu. A perda de sangue era muito grande. Ninguém sabia o que fazer para tentar ajudá-lo.

Margaret, penalizada, desprendeu-se dos braços de Guillermo e aproximou-se ajoelhando ao lado do homem que lutou para salvá-la. Guillermo tentou afastá-la para evitar que se torturasse com a visão de um homem prestes a enfrentar a morte; ela resistiu e pegou gentilmente a mão ensangüentada de Bartolomeu.

Os olhos do guia encontraram a menina.

Louise... - falava com voz fraca, o delírio fazia com que visse a imagem da filha no rosto de Margaret. — Louise... que bom que você voltou... Louise... - o nome da filha foi a última palavra que ele proferiu, os olhos agora parados, semi-abertos.

Margaret sentiu a mão forte de Bartolomeu relaxar soltando a sua.

Guillermo baixou a cabeça, lamentando a perda do companheiro.

Os garotos olhavam confusos e as expressões deles estavam contraídas.

A única experiência com morte em que Rafael havia passado foi a de acompanhar os pais a noite toda no velório de um tio que havia morrido de um infarto fulminante. A lembrança que ficou não foi a das gargalhadas espalhafatosas aos domingos, mas o rosto dele emergindo em meio as flores dentro de um caixão de madeira barata e os algodões enfiados nas narinas. Rafael, então torcia para que se lembrasse de Bartolomeu como um aventureiro forte e destemido e não como um cadáver coberto de sangue.

Brian caminhou até um dos assassinos de Bartolomeu, descobrindo-lhe a cabeça. Eram humanos! Mas por que seus semelhantes atacariam um homem e uma menina como feras selvagens caçam para comer?

Depois de revistar as vestes dos agressores procurando por algo que os identificasse, Brian constatou que todos eles usavam cabelos compridos e tinham tatu­agens em forma de "V" invertido nos lóbulos das orelhas esquerdas. Certamente não eram os tais crassênidas, mas talvez, assassinos de aluguel. Brian recolheu um punhal, as duas pontas paralelas despertaram a sua curiosidade.

Alguém deve saber que tipo de pessoa utiliza armas desse tipo — disse, exami- nando-a com mais cuidado. Então, lavou-o na água corrente se livrando do sangue que começava a coagular.

Roger pousou cuidadosamente a cabeça de Bartolomeu no solo. Uma coisa o deixou intrigado.

Por que esses "animais" não usaram flechas ou outro tipo de arma que pudessem disparar à distância? Não entendo por que preferiram o confronto corpo a corpo com um homem experiente como Bartolomeu.

E se o propósito deles era o de matar a todos nós, por que não o fizeram de uma só vez? O desfiladeiro seria um bom lugar - sugeriu Daniel, tentando montar uma hipótese plausível.

Talvez pretendessem nos eliminar aos poucos, um a um — aventou Chester, olhando com repugnância as faces gélidas e inexpressivas dos assassinos.

Muito bem — disse Brian. — Perdemos o nosso guia e ficou muito claro que estão dispostos a nos matar. Não pensei que passaríamos por isso - ele fez uma curta pausa e completou: — Pois bem, seguimos em frente ou voltamos para Nova Europa?

Não podemos voltar - disse Roger, descartando a idéia de Brian. — Nossa missão é a de levar os meninos sãos e salvos. Temos uma missão, lembram-se?

Eu já não sei de mais nada — desabafou Brian, temeroso pela vida dos jovens. — Assassinos que se expõem sem necessidade usando capuzes e com marcas nas orelhas.

Alguma coisa não se encaixa nessa história - refletiu Guillermo. - Bem, não podemos deixar Bartolomeu assim, sem um enterro descente.

Se temos de enterrá-lo, vamos fazê-lo bem rápido - disse Brian, impaciente. - Já perdemos muito tempo e não sabemos se existem outros encapuzados escondidos por entre essas árvores.

Brian tem razão - admitiu Guillermo. - O próprio Bartolomeu pediu para que fôssemos logo embora. Ele sabia muito bem pelo perigo que estamos passando. Vou pegar a pá e terminar logo com isso.

Espere um pouco - interrompeu Roger. - Ele não pode ficar aqui. Temos uma dívida com ele.

O que você quer dizer? - indagou Brian, seus olhos expressavam que ele sabia muito bem o que se passava na mente de Roger.

Vou enterrá-lo junto à filha - decidiu, ele se agachou para pegar o facão de Bartolomeu; poderia ser muito útil em outra ocasião.

E aconselhável ficarmos juntos, Roger. Você nos é muito importante em cada minuto nessa jornada - argumentou Guillermo, sua voz era serena. - Mas se é o que realmente quer, não poderemos atravessar todo o desfiladeiro de volta com você. Perderemos um tempo precioso e estaremos nos expondo a mais perigos.

Eu sei, mas... preciso fazer assim mesmo — disse, irredutível.

O corpo de Bartolomeu foi levado até a estrada com alguma dificuldade devido ao seu tamanho e peso. Roger enrolou Bartolomeu em um cobertor e com o auxílio de Brian e Guillermo, prendeu o corpo no lombo da montaria do guia.

Alcanço vocês em três ou quatro dias — disse, enquanto montava no mesmo cavalo que pendia o corpo de Bartolomeu.

Roger retornara para o desfiladeiro enquanto, finalmente, os seus amigos penetravam o território faogard.

 

                           A Montanha de Luz

As terras faogards eram vastas, e a paisagem se mesclava entre colinas e planícies circundadas por rios de águas calmas. Um lugar interessante para se viver algum dia.

No meio da imensidão destacava-se um monte de base larga e com o pico arranhando os oitocentos metros de altitude. Era uma formação rochosa de coloração azu­lada. Ali, diante deles, a gigantesca jazida de luminita. A afamada montanha de luz.

Continuamos para leste - avisou Brian, assumindo a liderança.

Os meninos, evidentemente, estavam cabisbaixos, atingidos pela morte do líder. Bartolomeu, ao seu modo, ganhara a confiança e o respeito, principalmente dos jovens aventureiros. Margaret era a que havia ficado mais abatida; afinal, ela presenciou como Bartolomeu tragicamente perdera a vida e como ela mesma esteve à beira de também perder a sua.

O terreno aberto facilitava antecipar qualquer aproximação. Por isso, a tensão diminuíra um pouco.

Ao final daquele dia, quando o sol tocava o horizonte, os viajantes acharam por bem assentarem acampamento na beira de um rio fervilhando de peixes. Alguns chegavam tão próximos da margem como que pedindo para serem pescados.

Teremos peixe no jantar - anunciou Guillermo, satisfeito com tanta fartura.

Como é possível que não haja nenhuma aldeia ou pelo menos uma casa nesse paraíso? — interrogou Daniel, as mãos apoiadas na cintura, olhando à volta e respi­rando o ar aromático de frutas silvestres.

Melhor assim — comentou Rafael, apreciando a beleza bucólica dos enormes campos.

Aparentemente, apenas pássaros trinadores e pequenos roedores eram os úni­cos moradores locais.

O sol, esmaecido de nuvens, foi se pondo e as primeiras estrelas desvanecidas ocuparam o céu, e do laranja vivo a abóbada celeste cedeu espaço para um azul cada vez mais escuro até ficar totalmente negro, contrastando com as estrelas cada vez mais brilhantes.

Um espetáculo grandioso, nunca antes visto por eles, começou a se descortinar.

Olhem! A montanha! — exclamou Marc, maravilhado.

A montanha de luminita, então vestida de um azulado opaco, iniciou o seu brilho cada vez mais resplandecente, até iluminar com todo o seu esplendor a pla­nície e as nuvens acima dela. Os rios se transformaram em veios luminosos refle­tindo a montanha que quase convertia a noite em dia. Grande parte das estrelas foi ofuscada pela claridade intensa que a montanha emitia; somente o brilho fraco de algumas mais próximas do horizonte ainda insistia em sobreviver.

Todos assistiam boquiabertos a mais uma magnífica surpresa que se revelava para eles.

Agora entendo porque Louise sonhava tanto em vir aqui — comentou Guillermo, na sua voz percebia-se encantamento e melancolia.

Uma montanha que brilha como mil faróis de Alexandria... O que mais veremos? — especulou Rafael, o queixo apoiado nos punhos.

Acho que é por isso que ninguém mora por aqui - deduziu Daniel. - Como poderiam dormir à noite com toda essa claridade?

Para isso existem cortinas, espertinho? - disse Margaret, sua língua conti­nuava afiada.

Cortinas escuras e bem grossas — acrescentou Chester, sua barriga roncou. - Estou com fome. Será que essas raízes já estão assadas?

Experimente essa - ofereceu Brian, puxando uma do fogo e empurrando-a para o lado do rapaz. - Pela cor já deve estar boa. Cuidado para não queimar os dedos.

Como o professor Roger deve estar se saindo? — perguntou Daniel, imaginando-o sozinho naquele desfiladeiro frio.

Ele sabe se virar. — Tranquilizou-o Brian, mexia vigorosamente a fogueira com um galho seco, ajeitando as raízes para assarem por igual e revitalizando o fogo. - Roger está acostumado a sobreviver em ambientes hostis. Em poucos dias ele estará conosco.

No seu íntimo, Brian não tinha tanta certeza, mas confiava nas habilidades de Roger. Precisava acreditar.

 

Amanhecia e Roger já atravessava o desfiladeiro, determinado a cumprir a sua missão e regressar o quanto antes para se integrar novamente ao seu grupo.

Foi necessário tirar o corpo de Bartolomeu, aliviando a carga para o descanso do cavalo durante a noite. Recolocá-lo de novo sobre o animal foi mais difícil, mas Roger era um homem muito forte e esforço físico não era algo incomum para ele.

Roger exigia um pouco mais de seu cavalo para que a velocidade não diminuísse, sabia que a cada passo se distanciava mais de seus amigos. Estava mais preocupado com o bem-estar deles do que com o seu. Sozinho e conhecendo agora o caminho, ele tentava ir mais rápido, mas o peso extra dificultava o galope.

Uma segunda noite no desfiladeiro foi inevitável e só no fim da manhã do outro dia é que Roger atingiu o seu objetivo: a argnazeira florida de amarelo.

Sem perder mais tempo, Roger serviu-se da pá de cabo curto e passou a cavar uma cova ao lado da sepultura de Louise. Ele só parou quando, finalmente, ajeitou a última pedra para marcar o local de repouso de Bartolomeu, o fiel guia agora abrigado sob a árvore de extensos galhos protetores.

Por fim, Roger agarrou com força um grande galho que se estendia sobre os dois sepulcros e o agitou até que as flores amarelas começassem a cair. Estava feito: pai e filha juntos para sempre em seus leitos de morte, adornados pelas perfumadas flores amarelas.

Roger estufou o seu peitoral avantajado, respirando fundo. O seu trabalho estava terminado.

Incansável, ele girou as rédeas e cavalgou de volta entrando mais uma vez no desfiladeiro.

Sentindo-se mais leve, o cavalo aumentou a velocidade penetrando o imenso corredor de pedra, mais e mais.

Roger puxou as rédeas, detendo o cavalo que relinchou como que reclamando do movimento brusco. Três encapuzados o aguardavam impedindo sua passagem; dois deles se posicionavam, um em cada lado das encostas segurando uma corda. Roger imediatamente compreendeu que se avançasse, tentariam derrubá-lo de sua montaria e daí ele seria um alvo fácil para as intenções dos criminosos. Ele achou prudente desmontar e enfrentar os homens. Puxou o mesmo facão tão longo como uma espada, o mesmo que havia pertencido a Bartolomeu, e pôs-se a caminhar lentamente em direção aos seus perseguidores que abandonaram a corda e puxaram os seus punhais bifurcados, ameaçadores.

Roger sentiu que a empunhadura do facão era perfeita para a sua mão e a lâmina, embora de tamanho exagerado, era leve, permitindo movimentos mais ágeis.

Os três encapuzados atacaram de uma só vez, procurando anular qualquer possibilidade de reação de Roger. Este girava o facão com velocidade, impedindo a aproximação dos algozes. Experimentaram cercá-lo, e então, atacá-lo por trás e pelos lados. Um deles investiu com fúria e foi rechaçado com violência, sua mão enluvada atingida, tendo dois dedos decepados. O inimigo parecia não estar ferido, pois sequer se importou com o sangue que escorria e pingava pelo local da batalha.

Um outro, aproveitando-se de um momento de descuido de Roger, cortou-lhe superficialmente o antebraço esquerdo. O ferimento de Roger instigou os seus agressores a voltarem ao ataque com maior ímpeto. O facão, que antes defendera a Bartolomeu e Margaret, cortava novamente o ar como se fosse a sina daquela arma defender os que estivessem em desvantagem numérica.

A luta interminável foi cansando Roger que não se entregava e rangia os den­tes com furor.

Inesperadamente, uma flecha cruzou o ar atravessando a garganta de um encapuzado, que sufocado pelo ferimento em sua traqueia, soltou ganidos de dor e desespero, caindo ao chão, seu corpo estremecia de forma involuntária; uma segunda flecha se alojou no peito de outro que só teve tempo de esbugalhar os olhos antes de cair morto. O terceiro tentou fugir, mas foi alcançado por outra flecha cravada em suas costas.

Roger procurou com o olhar o autor dos disparos. Lá estava ele. No alto do desfiladeiro. O fauno, portando um belo arco cor de bronze; a flauta, presente de Marc, pendurada em seu pescoço por um fio dourado. Roger o olhou com respeito e gratidão. O fauno fixou o arco no ombro e desapareceu por detrás da encosta.

- Ei! Espere! - gritou em vão, sem ter tempo de agradecer.

As mesmas marcas em "V" invertido nas orelhas, os mesmos punhais de duas pontas, identificou Roger, num breve exame feito nos corpos.

Deve haver outros como esses — pensou ele, e enviou um olhar intrigado aos cadáveres espalhados pelo desfiladeiro.

Duas emboscadas com nove mortes contabilizadas; dentre elas, a do bravo e saudoso Bartolomeu.

Enquanto cavalgava, Roger se esmerava para compreender quem poderiam ser os misteriosos homens de rostos encobertos, estranhos símbolos nas orelhas e punhais exóticos, sua atenção era redobrada esperando outro possível ataque.

O sol surgiu forte na manhã seguinte em Faogard. O território era um dos menores dos que compunham o lado ocidental do continente, embora ocupasse uma enorme área a oeste da cordilheira. A planície por onde o grupo se deslocava, antecipava os campos abertos onde se localizava a capital, conforme acertadamente havia informado Bartolomeu.

Brian, o último da fila, olhava constantemente para trás buscando algum sinal de Roger. Ainda era muito cedo para achar que o professor os tivesse alcançando, mas a apreensão maior era se Roger não aparecesse, pois eles não teriam tempo suficiente para organizarem uma busca.

Guillermo seguia à frente acompanhado de perto por Margaret e Rafael, e ao cruzarem um riacho de pedras limosas, eles percorreram o último trecho de vegetação mais compacta de árvores altas e grandiosas antes de atingirem as pradarias.

Ao pararem para um breve descanso e ao mesmo tempo com a intenção de se abastecerem de água e víveres, Guillermo consultou sua bússola, reviu as provisões e equipamentos se certificando das reais condições para seguirem em frente; a via­gem prosseguiu e a paisagem se abriu em um vasto campo verdejante.

O vento quente ondulava a vegetação de gramíneas que se espalhava em profusão. Os aventureiros e suas montarias se enfiaram numa faixa de capim alto e algum tempo depois já caminhavam na relva fina, ganhando velocidade.

Se meus cálculos estiverem certos, e eu acredito que estão, devemos seguir naquela direção - disse Guillermo, apontando para sudeste. - Depois de amanhã deveremos estar batendo nos portões da cidadela Faogard.

Será que teremos uma boa recepção por parte do povo Faogard? - perguntou Chester a Guillermo que trotava ao seu lado.

Acho que sim. Apesar de não nos conhecerem, eles tinham um bom relacionamento com Bartolomeu - Guillermo arrancou um capim fino e longo que passava do seu lado e analisou sua textura. — Mas o que mais me preocupa agora é Roger — confessou.

Espero que eles tenham camas quentes e macias — disse Rafael com um sorriso leve. — Seria ótimo variar um pouco.

O que você está achando, que vamos de férias para um hotel? — brincou Marc, se intrometendo, provocando. — Pra mim basta uma boa refeição. Não agüento mais comer raízes e carne defumada.

Nesse caso, procure um bom restaurante francês, com luz de velas e tudo - disse Rafael, devolvendo imediatamente a provocação. Marc riu da brincadeira do amigo.

Uma ou outra árvore, de tronco fino e pouca folhagem, surgia à frente entre os montes baixos conforme os cavaleiros seguiam, mas nada de Faogard. A floresta espessa já havia ficado há um bom tempo para trás e agora eles se encontravam caminhando num mar imenso de campos. Isso era bom, já que a possibilidade de uma investida feita de surpresa estava totalmente afastada.

Ei! Olhem! - gritou Rafael, o tronco torcido na sela, sua atenção voltava-se para a retaguarda. - Acho que vi alguma coisa.

Parece o professor Roger - disse Margaret com cautela. Ela olhou com mais cuidado, semicerrando os olhos azuis. — É ele! É o professor! - afirmou com cer­teza, seu rosto irradiando alegria.

O professor Roger reduziu o galope e passou a cavalgar de maneira mais compassada.

Quando se juntou aos companheiros, Roger contou tudo o que acontecera durante aqueles poucos dias: falou do enterro de Bartolomeu e de como ficou satis­feito em unir pai e filha; contou do ataque que sofreu dos encapuzados e de como foi ajudado pelo fauno com três flechadas certeiras.

O fauno fez aquilo? — espantou-se Rafael, os olhos fixos em Roger. - Então temos um ótimo aliado, não é mesmo?

Tomara que existam outros como ele e que sempre apareçam nesses momen­tos de perigo - desejou Marc, agarrando a flauta que fora dada pelo fauno, pendu­rada orgulhosamente em seu pescoço.

Certo - disse Brian com decisão. - Estamos todos juntos novamente. Agora é hora de irmos andando antes que escureça. Não podemos ser confundidos com bandidos pelos faogards. São guerreiros violentos e podem se tornar extremamente agressivos se provocados.

Marc ficou lado a lado com Roger. O garoto queria saber mais sobre o fauno e o seu talento para atirar flechas, além de tocar flauta, é claro. Afinal, ninguém havia chegado tão perto da impressionante criatura como ele.

Uma outra parada foi realizada para fornecer água aos cavalos em um rio próximo e também se esticarem um pouco a fim de amenizar o cansaço.

Brian fazia cálculos e anotações em sua caderneta. O tempo era precioso e um erro de avaliação poderia ser desastroso.

Margaret jogava um pouco de água na nuca. O sol, muito ardido, e alguns mosquitos não deixavam de importuná-la desde que começaram a atravessar o capinzal.

Daniel sorriu para Chester, Marc e Rafael com escárnio.

Está sentindo muito calor, mana? — perguntou, induzindo a resposta.

Claro que estou! — disse ela, com alguma irritação. - Não tem nenhuma sombra a quilômetros daqui. — Sua mão em concha derramava mais água sobre os cabelos molhados.

Daniel chegou o mais perto que pôde de Margaret e chutou um jorro de água molhando toda a roupa da irmã. Depois a empurrou fazendo-a perder o equilíbrio e precipitar-se na parte mais funda do rio, ficando definitivamente encharcada. O cabelo, ensopado, cobria o seu rosto impedindo que enxergassem sua face irada.

Daniel! — vociferou, colérica, sentada com a água até a altura do peito.

Marc, cheio de dó, estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se; ela o agarrou e puxou com força, fazendo o francês tomar um banho contra a sua vontade.

Por que você fez isso? — perguntou ele com cara de espanto, agora sentado ao lado da menina.

Se tornou amigo dele! — justificou possessa a atitude irracional.

Margaret, então se levantou num pulo, a água escorria pelas suas roupas como uma cachoeira, ela avançou com raiva sobre o irmão que disparou e se protegeu correndo em volta de um cavalo que pastava indiferente. Ela tentava agarrá-lo e sua raiva aumentava ainda mais.

Você me paga, Daniel! — ela rosnou entre os dentes.

Mas não era o que você queria? - disse Daniel, rindo, usando frágeis argumentos para se defender. - Agora não vai mais sentir calor.

A ironia de Daniel foi a gota d'água para Margaret.

Espere o troco, Daniel. Vou fazer você se arrepender do que fez - disse, em tom de ameaça, decretando uma vingança a altura de sua ira.

Você está condenado, Daniel - observou Rafael, tendo como certo a vin­gança da irmã que chegaria mais cedo ou mais tarde.

Eu sei - disse ele, aceitando com resignação, o sorriso zombeteiro não abandonava o seu rosto. — Mas ela não vai me pegar tão fácil assim.

Guillermo deu um fim à toda aquela confusão.

Andem logo, montem e vamos embora.

Olhem só como estou. A minha roupa, toda molhada — disse ela, quase choramingando, suas botas, de tão molhadas, chiavam quando ela andava.

Com esse calor a sua roupa secará logo - disse Chester, fazendo o possível para acalmá-la.

O rio foi atravessado e, mais à frente, eles se depararam com uma grande extensão de capim totalmente queimado; uma área de uns cinco metros de largura por uns oitenta metros de comprimento de terreno calcinado. O que deveria ter sido uma pequena árvore havia sido transformada em carvão. O cheiro do mato reduzido a cinzas ainda era forte.

Certamente não foi esse sol abrasador que fez isso - concluiu Brian, examinando a vegetação em volta que era verde e viçosa pela proximidade do rio.

É um claro sinal da ação humana, devemos estar bem perto de Faogard - calculou Rafael.

A tarde mostrou um imenso sol vermelho se escondendo vagarosamente por detrás das colinas distantes.

A noite foi uma das mais sossegadas que eles tiveram nos últimos dias. Há muito tempo que Roger não tinha um sono tão tranqüilo desde quer saiu de Nova Europa.

A manhã seguinte começou com outro sol forte colocando o grupo, totalmente revitalizado, em marcha para a cidade dos guerreiros.

Guillermo firmou a vista para enxergar melhor um movimento incomum vindo de sudeste.

Cavaleiros! - disse ele, avistando um grupo numeroso que se aproximava.

Eram os tais faogards, finalmente o primeiro contato dos viajantes com uma civilização não humana.

A aparência daquele povo era fora do comum: homens de porte atlético e estatura acima da média, no entanto, o que chamava mais a atenção eram os cabelos e os olhos de um vermelho incandescente que contrastava com a pele clara, leve­mente ruborizada. Vestiam-se com trajes pesados de couro e detalhes em ferro nos ombros, tórax e joelhos; botas, de couro grosso, projetadas para longas caminhadas ou mesmo para se escalar encostas, se assim precisassem. Alguns usavam os cabe­los compridos amarrados para trás em uma única trança e fixados com quatro ou cinco anéis de metal até a extremidade, outros deixavam-nos soltos, caídos sobre os ombros. Os guerreiros estavam fortemente armados com espadas, arcos e um outro curioso armamento: martelos de aspectos robustos, capazes de despedaçar crânios com um só golpe; mas não deveriam ser de manuseio muito fácil para os que não possuíssem braços consideravelmente fortes. Os cavalos eram maiores do que o normal e tinham listras cinzas, marrons ou mesmo pretas como as zebras, porém, o porte dos tais animais era de aspecto forte e elegante. Eram os velozes e resistentes gifenontes.

Quero ter um desses — murmurou Chester, impressionado com a beleza dos quadrúpedes.

Os guerreiros, num total de vinte, cercaram o grupo, e o que deveria ser o líder, um dos mais fortes, mostrava uma face bastante hostil. Ele identificou o facão de Bartolomeu na cintura de Roger, resíduos de sangue seco espalhados pela lâmina. O líder proferiu algumas palavras incompreensíveis e depois desceu de seu robusto quadrúpede, sacando o facão da cintura de Roger que reagiu num reflexo segurando vigorosamente a mão do faogard.

Dois dos guerreiros apontaram seus arcos para ele, prontos para atirar.

Não reaja - alertou Guillermo, cauteloso e temendo a fama dos guerreiros conhecida como de exagerada violência.

O pavio curto de Roger poderia colocá-los em uma grande encrenca. Roger soltou a mão do guerreiro que o olhou com um misto de raiva e desprezo.

O líder tornou a montar e ordenou algo em voz alta aos outros cavaleiros que não era possível entender. Com um gesto firme ele acenou para que os forasteiros os seguissem. Brian, achando melhor cooperar e evitar problemas, pôs-se em movimento.

Acho que não entenderam que somos amigos - disse Marc, vindo logo atrás de Brian.

Vamos torcer para que esse mal-entendido se esclareça logo. Não quero nem pensar o que esses feiosos mal-humorados podem fazer com a gente - comentou Chester, olhando com alguma apreensão os estranhos cavaleiros.

O que pensam esses brutamontes agindo com tanta grosseria? — questionou Margaret muito indignada. — Que perigo três homens desarmados e cinco jovens são para eles? - Ainda especulou, com intolerância.

Roger trocava olhares agressivos com os guerreiros, alimentando uma aversão mútua.

Tente controlar-se, Roger — aconselhou Guillermo, fazia o possível para se mostrar agradável, sorrindo timidamente e acenando com a cabeça para um ou outro perigoso anfitrião.

Roger bufava como um touro bravio, não aceitava que lhe tirassem algo que lhe era importante: o facão comprido e afiado que pertenceu ao homem que mor­reu tentando ajudá-los e ainda salvou a sua vida e a de Margaret. Mas o mais prudente naquela hora era mesmo calar-se e esperar até chegarem em Faogard, na certa ele reivindicaria de volta a posse da arma.

Quando passaram a última barreira de colinas, eles finalmente avistaram a esperada Faogard, a capital dos guerreiros de olhos escarlates.

 

                               Luta Feroz

Faogard, localizada na parte mais elevada da região, era protegida por uma surpreendente muralha formada por enormes hastes de pedras pontiagudas dispostas paralelamente e inclinadas para fora assemelhando-se a uma coroa cheia de pontas, a muralha foi erigida dessa forma para malograr qualquer tentativa de invasão, verdadeiros espetos gigantes que apontavam sempre para o inimigo; a inclinação para o exterior impedia que os invasores, que por ventura utilizassem cordas, escalassem apoiando-se nos paredões, já que não havia no que se apoiar, pois acabariam ficando pendurados no ar, como maçãs nas pontas dos galhos, a mercê das flechas dos habilidosos arqueiros.

O portão principal estava completamente aberto e o movimento de entra e sai de cavaleiros e pedestres era ininterrupto.

Quando cruzaram a grande entrada é que tiveram a real dimensão da cidade que parecia ser muito maior do que quando era vista pelo lado de fora. Faogard poderia abrigar com folga duas centenas de milhares de habitantes.

Os habitantes da cidade, homens, mulheres e crianças, paravam para olhar a passagem dos inesperados visitantes escoltados pelos guerreiros que abriam caminho através da multidão curiosa. Uma carroça, abastecida de luminita em estado bruto, passou por eles rumo ao exterior, era o comércio pujante da principal riqueza faogard.

Eles cavalgaram por ruas largas e outras mais estreitas onde havia casas de um, dois e até três pavimentos, uma velha gritou de uma janela algumas palavras que os visitantes não conseguiram entender, depois acenou com um sorriso enrugado, Rafael acenou de volta meio sem graça. Por fim, alcançaram uma área aberta que era usada para treinamentos de guerra e onde havia centenas de guerreiros naquele momento; sons metálicos de espadas e martelos chocando-se contra os escudos amassados enchiam o ar.

O guerreiro líder pulou do seu cavalo tigrado de cinza, e com um movimento brusco de braço ordenou que todos os recém-chegados desmontassem.

Um dos soldados aproximou-se de Marc, seus olhos vermelhos atentos a flauta feita com fios de ouro. O guerreiro agarrou o belo instrumento e arrancou-o do pescoço do rapaz.

— Devolva isso! É meu! Eu ganhei de presente do fauno — esbravejou, inconfor­mado. Era inútil reclamar, o homem não entendia nenhuma palavra que Marc dizia.

As bagagens foram revistadas sob os protestos de Roger que já não suportava tanto abuso sem um motivo aparente. Qualquer coisa que pudesse ser considerada uma arma, como facas, foi recolhida e entregue a um dos soldados.

Devolvam nossas coisas bando de selvagens! - gritou Roger, perdendo a cabeça, partindo para cima do guerreiro que segurava os pertences confiscados.

Roger foi contido por uma dupla de guerreiros e um terceiro colocou a ponta de uma espada em baixo de seu queixo, ameaçando enterrar toda a lâmina em sua cabeça.

Dernat es fassem magrac em droavi! - bradou uma voz grave entre a multidão.

Surgiu então outro faogard, grande, maior que todos os outros, seu cabelo comprido vermelho vivo preso em uma única trança, sua barba espessa, também vermelha, fazia de sua imagem uma coisa ameaçadora. Ele se vestia com roupas grossas apesar do calor reinante dentro da cidadela; tiras de couro se cruzavam atando as placas de metal de seus ombros e peito, formando uma armadura flexível, mas resistente o suficiente para enfrentar qualquer terrível batalha. Sua imponência indicava que ele devia ser um alto oficial, um líder supremo de todos os guerreiros que se encontravam ali reunidos.

Quando teve oportunidade, Roger escondeu a medalha de Helen em um dos bolsos da calça. Não queria perdê-la em hipótese alguma para aqueles ladrões covardes.

O soldado que até aquele momento comandava as ações se colocou em uma posição subalterna e passou a falar em voz baixa, provavelmente relatando o que aconteceu desde que encontraram os intrusos em suas terras. O guerreiro apontava com rigor para Roger, insatisfeito com seu comportamento. Mostrou o facão de Bartolomeu, o que fez o grandalhão de barba vermelha baixar as sobrancelhas com severidade. Quando terminou de falar, o soldado se pôs de lado abrindo caminho para que o faogard mais corpulento passasse. Ele parou na frente de Roger que já não parecia tão grande perto do homenzarrão. Os olhos do faogard, muito verme­lhos, se fixaram em Roger com uma frieza que fez Margaret estremecer.

Vocês invadiram o território faogard, estrangeiro - disse, insensível, falando algo que eles compreendessem, mas com forte sotaque. - E quem faz esse tipo de coisa conhece a morte.

Espere um pouco, senhor - interveio Guillermo, educadamente. - Não invadimos...

O oficial faogard levantou a mão fazendo Guillermo se calar.

Onde está Bartolomeu? - perguntou o chefe dos guerreiros.

Morto — informou Roger, sem entrar em detalhes.

Uma ordem foi dada no idioma faogard e um círculo humano se abriu em torno dos dois.

Meu nome é Rhuror, sou o oficial da guarda e do treinamento dos guerreiros faogards — apresentou-se, armando-se de um martelo negro e um escudo redondo. — Eu e você lutaremos com as armas faogards — disse, fazendo sinal para que outro martelo e escudo fossem passados a Roger.

Roger recebeu as armas e sentiu que o martelo de massa quadrada como um tijolo grande, só que de ferro fundido, era pesado e desajeitado e, além do mais, ele não estava acostumado com armas medievais, era bom com as mãos livres.

Rhuror falou alguma coisa se dirigindo aos seus soldados e se ouviu uma gri­taria de aprovação em resposta. Em seguida se voltou para Roger.

Lute da melhor maneira que puder - aconselhou, empunhando o martelo com a mesma facilidade que podia segurar uma espada. - Se você morrer, os seus amigos também morrem — decretou.

O coração de Roger disparou. Aquilo não poderia estar acontecendo. Os fao­gards eram amigos, deveriam ser.

Meus amigos não tem nada a ver com... - Roger nem teve tempo de termi­nar a frase e já sofreu o primeiro ataque.

Rhuror girou o martelo sobre a cabeça e atingiu em cheio e escudo de Roger que por pouco não teve tempo de se defender. Roger, do seu jeito, procurava golpear o seu adversário, mas todas as tentativas morriam no escudo circular de seu adversário. A luta continuou por alguns instantes com trocas de marteladas, parando sempre nos escudos que começavam a apresentar algumas ondulações das tantas pancadas recebidas.

Agora chega de brincadeira — cansou-se Rhuror, erguendo seu martelo e preparando um ataque mais violento. — Você teve a sua chance.

O guerreiro de olhos vermelhos investiu violentamente sobre Roger desfe­rindo sucessivos golpes em seu escudo que começava a se deformar.

Rhuror era maior e mais pesado, embora aparentasse ser um homem de seus cinqüenta anos, todavia, estava acostumado a lutar desde criança e de ter uma ana­tomia privilegiada que ainda lhe proporcionava velocidade e muita, muita força.

O último golpe sofrido por Roger foi tão brutal que a borda de seu escudo voltou-se atingindo a sua boca que imediatamente começou a sangrar. Foi a deixa para que Rhuror aumentasse ainda mais a carga de golpes contra o seu oponente. O peso do martelo caiu com força sobre a coxa esquerda de Roger que passou a temer ainda mais pela a possibilidade da derrota.

Brian e Guillermo tentaram invadir o local da disputa, mas foram contidos pelos outros guerreiros que rosnaram palavras duras lançando olhares ferozes para eles.

Não posso perder, não posso perder — pensava Roger enquanto se defendia.

Outros golpes atingiram o marinheiro-de-aço, culminando com uma pode­rosa martelada que acertou seu braço direito fazendo-o largar o martelo.

O ódio se apoderou de Roger, suas narinas dilataram de raiva, os dentes cerra­dos faziam os músculos dos maxilares se contraírem, avolumando o rosto molhado de suor e sangue. Com a mão direita livre e percebendo a guarda baixa de Rhuror, Roger usou a única arma que dispunha e sabia usar muito bem: um mortífero direto de direita na ponta do queixo de seu adversário que, mesmo amortecido pela barba, fez o guerreiro dar quatro passos para trás. Um burburinho brotou entre os espectadores, surpresos com a reação inesperada do estranho que se saía melhor com as mãos que com o martelo.

Rhuror se refez e sua raiva aumentou, fazendo as marteladas crescerem de intensidade. O faogard não deu uma segunda chance a Roger, não baixando mais o seu escudo. O escudo de Roger estava afundado de tanto castigo, seu braço esquerdo dolorido; mais outro golpe e o escudo bateu novamente no seu rosto coberto de hematomas. Roger, em desespero e não querendo deixar que seus ami­gos morressem, avançou contra Rhuror como uma locomotiva descontrolada; batia o seu escudo contra o de Rhuror, procurava uma brecha para um soco salvador, mas não houve jeito e o guerreiro de olhos vermelhos aproveitou a pouca experiência em armas do adversário e despejou outra série de duros golpes que fez Roger cair de joelhos, sem defesa. O sangue que escorria de sua boca formava um fio que se unia à terra.

Guillermo e Brian se esforçavam em vão para se libertarem, os meninos não entendiam o motivo de tanta brutalidade.

Roger, prostrado, ergueu os olhos cheios de fúria para Rhuror; quase sem forças, tornou a levantar-se. Cambaleante, ele atacou Rhuror mais uma vez, e sem piedade o guerreiro acertou seu ombro com o martelo derrubando-o uma segunda vez.

Desista e morra em paz - disse Rhuror, observando Roger com altivez.

Roger não se entregou e, deixando todos perplexos, pôs-se de pé com teimosia.

Vou matar você - disse, ofegante e babando sangue.

Não vai, não - disse Rhuror, irritado com o desafio.

Outro golpe, desta feita no pescoço e Roger foi novamente ao chão.

A platéia de guerreiros parou de gritar e os sorrisos sumiram. Uma atmosfera de admiração se espalhou como a fumaça de um incêndio na floresta.

A cabeça de Roger latejava, ele respirava com dificuldade, pois suas costelas estavam muito doloridas, algumas talvez até estivessem quebradas, mas ele, jogado no chão, olhava para os meninos, inconformado e como uma máquina que não quer quebrar, apoiou as mãos espalmadas no chão e iniciou um movimento para erguer-se. Rhuror colocou mais uma vez seu martelo em posição de uso.

Covarde! - gritou Margaret, correndo e se pondo entre Rhuror e Roger.

Um guerreiro fez menção para agarrá-la, Rhuror impediu com um sinal breve.

Muito cuidado com certas palavras, menina — avisou Rhuror, olhando-a de cima. - Elas podem custar a sua vida.

Rhuror deu as costas à Margaret e se afastou, depois parou e voltou-se para ela.

Eu não sou um covarde - disse, falou algo para um soldado e desapareceu na multidão de soldados.

Brian e Guillermo correram para Roger.

Nem vou perguntar se você está bem - disse Guillermo, sem saber onde pegar sem machucá-lo.

Alguns soldados afastaram os amigos que tentavam ajudar Roger. Outros o levantaram e o levaram embora.

O que vão fazer com ele? — perguntou Brian, esticando-se para ver aonde iam.

Guillermo, Brian e os meninos foram empurrados para outra parte da cidade, uma ruela dava para uma edificação de paredes brancas, porta e janelas estreitas e altas, todas fechadas. Eles foram forçados a entrar e esperar dentro de um salão onde havia bancos compridos de madeira e uma mesa rústica de madeira negra; numa parede de alvenaria, bem no alto, uma abertura quadrada deixava entrar um facho de luz que pouco iluminava o interior do salão. A porta foi trancada com um som familiar para Rafael que deduziu logo que estavam presos. Os prisioneiros se entreolharam sem saber o que estava havendo; aliás, as coisas estavam acontecendo de maneira muito rápida. Brian arriscou uma olhada pela fresta de uma janela. Ele viu uma dupla de sentinelas guardar a única saída, deveria haver outros fora do seu campo de visão, e nem adiantava tentar escapar com um exército daqueles em torno deles.

Rafael sentou-se, cansado e apreensivo.

Alguém arrisca um palpite? — disse ele, perguntando ao acaso.

Estou confuso — disse Chester. - Não consigo entender por que agiram daquele jeito.

E eu não consigo deixar de pensar no professor - suspirou Margaret, compadecida. - Como será que ele está?

Guillermo esfregava os olhos cansados. Voltou à sua mente as palavras ameaçadoras de Rhuror: "Se você morrer, os seus amigos também morrem".

Ele devia estar blefando, só queria nos assustar. Se quisesse nos matar já teria feito - pensou.

Uma hora se passou, mais lenta do que de costume.

O movimento lá fora era menos intenso. Brian olhou novamente pela fresta, os soldados ainda montavam guarda, dava para se ver três deles agora.

A tranca foi destravada e a porta se abriu com um rangido seco. O guerreiro que havia tirado o facão de Roger surgiu acompanhado de outros soldados. Ele ordenou, apontando, que Brian e Guillermo os acompanhassem. A porta se fechou mais uma vez com o barulho da tranca e lá dentro só restaram os meninos. Um silêncio mórbido abafou o ambiente.

Chester se distraía observando as partículas de poeira que flutuavam ilumina­das quando atravessavam a luz que vinha das frestas das janelas fechadas.

Essa indefinição vai acabar me deixando louco - desabafou Daniel, aper­tando as mãos nervosamente. - E se você abrisse essa porta ou uma das janelas? - sugeriu, olhando direto para Rafael.

Esqueça — respondeu, desaprovando de uma vez por todas. — Acho que você já ficou louco.

Você tem razão, não é mesmo uma boa idéia — admitiu Daniel, desanimado, o cotovelo apoiado na mesa, a mão segurando o queixo.

Outra hora correu e nada.

Estou com fome e sede, será que eles não sabem que precisamos comer e beber? — disse Rafael, tamborilando na mesa.

Acho que pra onde nós vamos não precisaremos de comida e nem de água - comentou Daniel com humor negro.

Se não pode dizer nada de bom, pelo menos fique com a boca fechada — disse Margaret, censurando o irmão. - Não pense que eu esqueci do que você me fez naquele rio.

Parem de brigar - encheu-se Chester. - Já temos problemas suficientes.

Marc cruzou os braços sobre a mesa e deitou a cabeça, pensativo. Ele reclamou.

Minha flauta - murmurou. — Eles terão que devolver a minha flauta... aqueles ladrões...

Muitos passos foram ouvidos do lado de fora. A porta se abriu de novo e os meninos foram obrigados a deixar a sala. Eles foram conduzidos pelo guerreiro imediato de Rhuror e mais cinco soldados armados com espadas, seguiram por uma rua larga até chegarem a uma praça onde o movimento e o barulho de pessoas eram bem maiores. Ao fundo, havia uma construção que abrangia toda a extensão da praça. Devia ser um prédio importante tal o entra e sai de gente. Os meninos, rodeados de soldados, subiram um lance de escadas e entraram olhando de um lado para outro.

Uma outra sala os aguardava; esta, mais bem cuidada, deveria pertencer a alguém importante.

Rhuror, o grandalhão que havia lutado com Roger, estava de pé ao lado de uma mesa larga com o tampo repleto de perfurações, uma das mãos apoiada no cabo da espada presa na cintura. Ele olhava os garotos com algum interesse como se quisesse descobrir o que passava em suas mentes. Cinco cadeiras de encosto baixo colocadas lado a lado em frente à grande mesa esperavam serem ocupadas.

Os soldados que trouxeram os meninos permaneceram no fundo da sala.

Sentem-se - ordenou Rhuror, indicando as cadeiras, depois cruzou os braços para aguardar alguma coisa acontecer.

Os meninos se entreolharam sem saber o que fazer como se esperassem o início de uma missa dominical.

De uma porta lateral saíram dois homens e uma mulher. Todos os três tinham idades avançadas, mas os seus cabelos conservavam a mesma tonalidade vermelha dos jovens guerreiros. Não eram como os dos humanos que branqueavam ao enve­lhecerem. Eles não se sentaram, não havia mais nenhuma cadeira para se sentar, apenas se posicionaram atrás da extensa mesa e depositaram sobre ela um punhal de lâmina longa e curta cada um.

Por que vocês mataram Bartolomeu Funchwooc? - perguntou a mulher, os olhos tinham um peso acusador.

Não fomos nós que matamos ele - respondeu Marc, sua expressão era de surpresa.

Ele era nosso amigo — disse Rafael, levantando-se. Rhuror fez um movimento ríspido com a mão para que ele se sentasse. O menino obedeceu a contragosto.

Seus amigos já confessaram tudo — disse um dos anciãos que parecia ser o mais velho dos três. — Por que vocês não dizem logo por que fizeram isso e talvez nós deixemos vocês viverem?

Eles não disseram isso — exasperou-se Margaret, se segurando na cadeira para não explodir de indignação. — Bartolomeu foi morto quando me defendia de uns homens que tentavam nos matar.

Tudo mentira! — contestou o terceiro ancião que usava uma barba comprida até a cintura, mostrando-se encolerizado. - Vocês assassinaram Bartolomeu Funchwooc para que ele não revelasse suas reais intenções. Vocês queriam nos espionar e passar informações aos crassênidas. Não adianta negarem. Seus amigos Brian e Guillermo já nos contaram todo o plano — ele pegou o seu punhal e cravou na mesa com furor. — Meu voto é para que todos sejam executados ainda hoje.

Isso é loucura! — levantou-se Margaret, indo até junto da mesa onde estavam os anciãos. - Não fizemos nada disso. Bartolomeu era nosso amigo e não faríamos nenhum mal a ele.

Sente-se! - gritou Rhuror, elevando a voz com impaciência. - Sente-se agora, menina, ou eu...

Você vai é me ouvir, seu brutamontes — disse ela, desafiando o oficial. - Viemos aqui pedir ajuda e o que vocês fazem: nos aprisionam; batem no professor Roger; nos acusam injustamente de assassinato e ainda querem nos matar. Bela recepção a de vocês!

Margaret está certa - interferiu Chester, logo pondo-se de pé. - Não vamos morrer carregando uma culpa de algo que não fizemos.

E ainda por cima, roubam as nossas coisas — ajudou Marc, olhando firme para o guerreiro que havia confiscado a sua flauta.

Vocês tomaram isso de algum fauno descuidado - disse Rhuror, ele esticou a mão para que um dos soldados lhe entregasse algo embrulhado em um tecido de fios grossos trançados, e desenrolando cuidadosamente mostrou a flauta para Marc. — Só eles são capazes de construir uma flauta que produza um som tão belo. Provavelmente o infeliz está morto, apodrecendo em algum bosque.

Isso não é verdade — defendeu-se Marc, esperançoso em ter a sua flauta de volta. — O fauno me deu a flauta de presente quando cruzávamos o desfiladeiro.

Você quer que nós acreditemos que um fauno deu a sua flauta de presente para você? — perguntou o ancião mais velho, com um sorriso de descrença.

Para ser mais exato, ele trocou essa flauta pela minha... Mas eu não forcei nada. Foi ele quem tomou a iniciativa.

Basta! — exclamou a anciã. — Todos serão executados! Esse será o meu voto — ela enfiou com força seu punhal na madeira.

Esperem um pouco — manifestou-se Daniel, olhando os anciãos, um a um. — Isso tudo que está acontecendo aqui não passa de uma encenação. Nossos professo­res nunca diriam isso que vocês estão afirmando que eles confessaram. - Daniel fez uma pausa, olhou para Rhuror e voltou a encarar os três anciãos do outro lado da mesa. — Vocês devem ter feito esse mesmo teatro com eles e como não conseguiram as respostas que queriam, recorreram a nós, não é mesmo?

Você é esperto garoto dos olhos azuis. — Observou o ancião de barbas longas, ele desencravou o seu punhal do tampo da mesa e o guardou dentro das vestes, depois prosseguiu: - Os garotos demonstraram sinceridade e suas palavras me con­venceram. Minha decisão é que eles são inocentes e devem viver.

A anciã repetiu o gesto e retirou o seu punhal. A mesa vazia, agora livre dos punhais, absolvia os jovens réus.

Rhuror fez uma cara de satisfação e aguardou os anciãos se retirarem pela mesma porta que haviam entrado e aproximou-se dos meninos agora aliviados.

Vocês devem vir comigo — disse com sua voz grave, porém, havia algo de amistoso nela.

Marc não desgrudava os olhos de sua flauta, ainda em poder de Rhuror.

Eles abandonaram o prédio de seu julgamento e atravessaram outra vez a grande praça que ainda fervilhava de gente. O cheiro de comida sendo preparada nas barracas próximas fazia os meninos ficarem com água na boca.

Quando vamos comer? - perguntou Rafael a Rhuror. Sua barriga roncava sem parar. Sua fome aumentou depois que o susto e o medo de morrerem passaram.

A partir daqui vocês irão com Parminiaf - disse Rhuror, se referindo ao seu oficial imediato, sem dar importância ao que Rafael lhe perguntara.

Rhuror se afastou sem dizer mais nenhuma palavra.

E a minha flauta?! - berrou Marc, vendo o oficial afastar-se a passos largos. O tamanho agigantado de Rhuror fazia sua cabeça vermelha ainda se destacar sobre a multidão enquanto ele se distanciava.

Com um movimento de cabeça, Parminiaf mandou que os garotos o seguis­sem. Entraram por uma outra rua e chegaram a uma espécie de galpão enorme com diversas mesas e bancos compridos. Rafael lembrou-se logo do refeitório da Ilha da Coroa. E era mesmo um refeitório. Uma das mesas estava forrada de carnes assadas, pães e frutas. Parminiaf fez um gesto para que se servissem. Sem perderem tempo, eles ocuparam os bancos e avançaram sobre a comida.

Estou esfomeado! — desabafou Rafael enquanto torcia a coxa de uma ave assada, algo parecido com uma galinha, com a outra mão enchia uma caneca com algum tipo de suco refrescante.

Como será que se encontram os professores agora? - perguntou Chester enquanto mastigava, a boca cheia quase não o deixava se fazer entender.

Estou mais preocupado com o professor Roger - disse Daniel, escolhendo com curiosidade uma fruta amarela como gema de ovo, apertando-a, testando entre os dedos sua maciez. — Será que tem um gosto bom?

Espero que se recupere bem. Ele estava muito ferido — comentou Margaret; as mãos entrelaçadas escorando o queixo denunciavam sua preocupação. Ela não estava tão esfomeada quanto os outros.

Com a fome e a sede saciadas, os jovens foram levados para outra parte da cidade, mais tranqüila, as ruas bucólicas sugeriam sossego.

A próxima parada foi em uma espécie de quartel, pátios e locais de treina­mento faziam parte do complexo.

Os professores! - exclamou Margaret com alegria quando viu Guillermo e Brian. Aparentavam estar muito bem de saúde, sem nenhum sinal de tortura ou coisa parecida.

Como estão? — quis saber Guillermo, segurando Daniel pelos ombros. — Eles os trataram com dignidade?

Não nos fizeram nenhum mal — disse Chester, feliz por ver os companheiros.

A não ser por uns sustos, quando nos fizeram enfrentar um interrogatório e um julgamento de uma só vez e quase acabaram nos condenando à morte.

Também passamos por isso — disse Brian, contando como se saíram enfrentando um tribunal sem direito a um advogado.

E o professor Roger? - perguntou Marc. - Tiveram notícias dele?

Não estamos sabendo de nada - disse Guillermo com certa inquietação.

Os soldados que nos vigiam não falam nossa língua. Prefiro pensar que estão cuidando bem dele.

Para os prisioneiros foi reservada uma ala isolada por um grande portão de ferro. De certa forma ainda eram prisioneiros, contudo desfrutavam de controlada liberdade. Parecia que os faogards queriam dar-lhes algum conforto, no entanto não abriam mão de mantê-los sob vigilância.

Um dormitório amplo com duas dezenas de camas serviu de acomodação.

Camas! - exclamou Daniel com um enorme prazer estampado no rosto. - Nem sei mais como se dorme em cima de uma dessas.

Deitado, de preferência - brincou Rafael enquanto experimentava o con­forto de uma, atirando-se nela.

Apesar da preocupação com o estado de Roger, não tardaram em adormecer, embalados pelas camas fofas e a temperatura amena do quarto de teto alto, livres dos mosquitos e das emboscadas.

 

                               O Guerreiro Amistoso

O sol que penetrou pela janela fez os olhos de Daniel se apertarem. O garoto acordou cedo, refeito do cansaço do dia anterior.

Aos poucos um ou outro foi deixando a cama e procurando algo para o desjejum.

O portão que os separava da base militar permanecia fechado. Tudo parecia vazio do outro lado das grades de ferro escuro. Passos ecoaram e um soldado des­trancou o pesado portão. Apenas um soldado, sem escolta. O tratamento para com eles estava ficando bem diferente, mais ameno, as coisas pareciam estar se ajeitando.

Uma refeição reforçada foi servida dentro do alojamento gradeado.

Descansados e alimentados, só restava saberem o que seria feito deles e descobrirem como Roger estava se saindo na sua recuperação, caso não estivesse morto.

Rhuror apareceu logo depois que o grupo terminou a refeição matinal.

Vocês devem seguir-me — disse o chefe militar com seriedade.

E Roger? Ele está bem? - perguntou Guillermo, seguindo Rhuror de perto.

Logo terão notícias do seu amigo.

A resposta de Rhuror foi inconclusiva, fazendo pensarem no pior.

Parminiaf encarregou-se de conduzi-los para fora do cativeiro.

Seguiram até uma edificação de grandes dimensões onde havia sinais acima de uma porta alta. Era a escrita faogard que lembrava, de algum modo, a escrita cuneiforme da região mesopotâmica, acrescentada de traços simples, paralelos ou cruzando-se em vários ângulos com alguns círculos concêntricos e triângulos, for­mando desenhos interessantes.

É um hospital - identificou Chester rapidamente quando viu maças vazias apoiadas em uma parede.

Uma criança mancava com certa dificuldade, trazida pela mão da mãe, sua perna direita enfaixada na altura do joelho. Devia ter conseguido o machucado durante alguma brincadeira, andando por sobre muros ou, quem sabe, subindo em alguma árvore para roubar-lhe um fruto suculento.

Faogard era assim: a vida cotidiana não diferia muito de qualquer outra cidade do século XVII. No entanto, não fedia como era comum aos centros urbanos daquela época pela precariedade dos sistemas de esgotos e dos serviços de saneamento. Faogard funcionava, do seu jeito, de maneira bastante satisfatória. Havia água com certa abundância e o desperdício era evitado a todo custo. O plantio e a criação de animais eram cuidadosamente organizados e a mendicância simples­mente não existia. Não havia lugar para o desocupado. Todos deveriam ter uma função, uma utilidade, ou a sociedade local se encarregaria de excluir aqueles que se desviassem dos padrões de conduta. O mau exemplo não era tolerado. Roger havia provado desses padrões rígidos ao enfrentar as autoridades. Margaret, por sua vez, atravessou limites quando sua língua afiada provocou a paciência de Rhuror. Todavia, sua coragem a salvou.

Eles percorreram um corredor longo onde quartos e enfermarias eram distribuídos dos dois lados. As janelas largas permitiam que o ambiente estivesse sempre claro e arejado. No fim do corredor, viraram à esquerda e, logo em seguida, Parminiaf apontou o quarto onde deveriam entrar.

Um cobertor cinza envolvia o corpo do homem deitado em uma cama de pés altos no meio do quarto de paredes claras. Um grande curativo protegia a sua testa e outro, sobre a maçã esquerda do rosto, escondia um pouco o olho inchado, pra­ticamente fechado, das tantas bordoadas que sofreu; o lábio inferior estava inchado como um balão. Roger estava vivo, e apesar de tudo o que havia passado no dia ante­rior e as dores físicas que dificultaram o seu sono naquela noite, parecia bem.

Ao lado da cama se encontrava uma jovem faogard que cuidava de Roger, administrando alguns medicamentos acondicionados em frascos pequenos e verificando os curativos que tinham sido trocados recentemente. Uma touca cinza escondia parte dos cabelos vermelhos da jovem, mas destacavam o lindo rosto de olhos vermelhos amendoados e penetrantes. Ela usava um vestido de tecido leve como seda, quase branco, amarrado na cintura com uma faixa de algum tipo de couro finamente trabalhado. Sua beleza era exótica e harmoniosa.

Ele parece estar sendo bem cuidado - disse Brian a Guillermo.

O que disse? - perguntou Guillermo, meio distraído.

Roger, ele está bem... você não acha?

Mas é claro. Não está vendo? Sua aparência está melhor do que eu esperava encontrar - concordou Guillermo, por fim.

Você fala o meu idioma? - perguntou Margaret à mulher faogard que demonstrava grande habilidade em cuidar de doentes.

Melhor do que imagina - respondeu a moça, olhando com alguma curiosi­dade para os visitantes. — Meu nome é Talemine - ela se apresentou com simpatia. — E se querem saber, seu amigo vai ficar bem em poucos dias. Ele só precisa de algum cuidado e repouso.

Com o olho bom, Roger espiava os amigos, feliz em vê-los bem.

Como estão? - falou vagarosamente, sua respiração era lenta.

Melhores do que você - disse Guillermo, em tom de brincadeira, com a intenção de distrair o amigo enfermo.

Eles nos trataram bem, dentro do possível - informou Brian, tocando o ombro de Roger com solidariedade.

Roger fez uma expressão de dor, depois se ajeitou na cama buscando uma posição melhor.

Ele é muito forte - disse Talemine, recolhendo os frascos numa bandeja, preparando-se para sair do quarto, seus gestos eram delicados e graciosos. — Quando os curativos forem retirados e os hematomas desaparecerem, ninguém vai acreditar que ele se feriu tanto em uma luta.

Naquele momento, Rhuror apareceu, seus cabelos compridos estavam soltos, jogados aos ombros.

Como vai o paciente? — perguntou, seus olhos avaliavam os estragos que ele havia feito no rosto de Roger.

Ele está bem melhor, papai — disse Talemine, um sorriso singelo brotou dos seus lábios.

Papai? — Espantou-se Guillermo, dirigindo-se a Brian num sussurro. — Ela chamou o grandalhão de cabelo vermelho de papai?

E, parece que foi isso que ela disse - concordou Brian, seus olhos iam de Talemine a Rhuror buscando alguma semelhança.

Ele está em boas mãos - afiançou Rhuror, um lampejo de orgulho das habilidades médicas da filha emergiu em sua voz.

Rhuror se aproximou do leito, bem próximo de Roger, seus olhos se cruzaram.

Ainda vou dar uma grande surra em você, cabelo vermelho - garantiu Roger, os dentes cerrados.

Rhuror respondeu a ameaça com uma forte gargalhada.

Você não está em condições de desafiar ninguém, estrangeiro. Principal­mente a mim. — Rhuror mostrou um sorriso confiante emoldurado pela barba espessa. - Espero que você sustente esse seu convite quando se recuperar total­mente, rapaz.

Não é um convite - disse o americano com olhar desafiador - É um aviso.

O senhor está incomodando o meu paciente, papai - interrompeu Talemine a troca de farpas entre os dois. - Devemos sair e deixar ele e seus amigos conversarem um pouco.

A moça, de olhos vermelhos como rubis, demonstrava ter uma grande interação com o pai. Rhuror se comportava de maneira afável com a filha, bem diferente do militar truculento e feroz no manejo com as armas.

Ao passar pelos visitantes, Talemine deixou um agradável rastro de perfume pelo caminho.

Volto amanhã para renovar as ataduras - disse a jovem faogard, pegando o pai pela mão e arrastando-o do quarto.

Acho que não somos mais prisioneiros, somos? - questionou Rafael, dirigindo-se a Guillermo e a Brian.

Creio que não - respondeu Brian, sentindo-se mais à vontade. - Parece que eles se convenceram que não somos seus inimigos.

E que não fomos os causadores da morte de Bartolomeu — acrescentou Marc.

Permaneceram na companhia de Roger por mais uns minutos quando foram

expulsos do quarto por uma enfermeira idosa e bastante carrancuda...

Tar em senkames breliofas! — disse ela com ar autoritário.

Chegaram à rua e buscaram a grande praça no centro de Faogard. Estavam livres pela primeira vez desde a sua chegada. Os transeuntes que passavam por eles os olhavam com indisfarçada curiosidade. Isso deveria mudar com o tempo.

O que faremos agora? — quis saber Daniel, caminhando entre as barracas que vendiam de tudo.

Conhecer um pouco da cultura local - sugeriu Margaret, se enfiando no meio da multidão. Chester deu de ombros e foi atrás dela.

Conforme caminhavam pelas tendas movimentadas, os visitantes conheciam os mais diversos tipos de comidas, requintados vasos de faiança pintados à mão, peças de vestuário, filhotes de animais que se assemelhavam a cães com patas um tanto desproporcionais aos corpos ainda pequenos e desajeitados, inúmeras pedras de luminita que deveriam ser comercializadas a preços módicos tal era a abundân­cia de suas minas. Uma barraca chamou-lhes a atenção pelas magníficas fragrâncias que exalava, dignas dos melhores perfumistas europeus. Uma comerciante de olhar simpático ofereceu um bolinho a Chester que hesitou em aceitar. Ela insistiu com um gesto até que o menino aceitasse a guloseima.

E muito bom - disse com satisfação. — Não sei identificar o gosto do recheio, mas eu poderia comer mais alguns desses.

A comerciante ofereceu mais um bolinho a cada um dos forasteiros que com­provaram o que Chester havia afirmado.

Pombos espiralavam pelo ar e pousavam entre os pés apressados das pessoas, bicando migalhas de comida despejadas pela multidão de compradores.

Pombos! — sussurrou Marc, reconhecendo as aves que sempre fizeram parte da paisagem européia. — Mesmo aqui estão por toda parte.

Um soldado achou-os no meio da grande aglomeração da feira e os guiou até a presença de Rhuror, numa casa que deveria ser o seu gabinete. A sala comportava poucos móveis e uma coleção de armas decorava uma das paredes. Um enorme mapa do continente ocupava toda a extensão da parede do lado oposto, onde se podia ver, destacados, cidades, rios, montanhas, desertos e os limites de cada território.

Espero que já tenham se familiarizado com a nossa cidade — disse o oficial faogard indicando os lugares para se sentarem. — Ordenei que fossem trazidos até a minha presença para saber mais detalhes sobre a sua jornada antes de os apresenta­rem ao nosso comandante maior, ou como vocês costumam dizer: o rei.

O grupo contou a Rhuror tudo o que passaram desde o momento em que atravessaram o portal; a travessia do Kundruir; o desfiladeiro de Blarbuk onde se encontraram com o fauno e a triste morte de Bartolomeu já dentro do território faogard. Guillermo descreveu como eram os assassinos de Bartolomeu, os punhais de ponta dupla e as estranhas marcas nas orelhas.

Seguidores de Arkopromis - disse Rhuror, baixando as grossas sobrancelhas numa expressão pensativa e preocupada. - São membros de uma seita que acredita que Arkopromis é o verdadeiro deus, merecedor do trono que dominará todo o nosso mundo. Eles habitam as florestas e montanhas mais ermas, e se entraram em nossas terras, foi por um bom motivo.

O que são aquelas marcas nas orelhas? - perguntou Chester, considerando muito interessante o que Rhuror relatava.

-Ea marca que os identifica — explicou Rhuror. - O símbolo do mal. Assim também é o formato de suas armas e suas línguas.

Línguas? - perguntou Marc, olhando em seguida para Daniel que estava ao seu lado. Depois voltou-se para Rhuror: — O que têm elas?

Todos eles têm suas línguas cortadas ao meio como serpentes, como as mar­cas nas orelhas e as armas de duas pontas, como os punhais e as pontas de suas flechas — esclareceu o chefe faogard, mostrando dois dedos abertos voltados para baixo. Brian lembrou-se de não ter examinado o interior da boca dos assassinos de Bartolomeu. E por que o faria?

Você falou em flechas — lembrou Daniel. — Por que eles não as usaram contra nós? Seríamos alvos mais fáceis, eles teriam muitas oportunidades para acabarem com a gente.

Isso eu não sei responder — disse Rhuror, intrigado. — E também não sei por que os seguiram e atacaram Bartolomeu e a menina com tanta brutalidade. Eles não costumam fazer esse tipo de coisa sem uma boa razão. Às vezes passam meses sem serem vistos, preferindo o isolamento.

Rhuror via honestidade no comportamento daquelas pessoas e entendeu que estavam praticamente indefesos para seguirem a sua longa jornada. Ele continuou a falar:

Se querem a minha opinião, desistam dessa viagem suicida até o território crassênida - aconselhou Rhuror com extrema seriedade. - Se decidirem retornar à Nova Europa, posso enviar um grupo de soldados bem armados para escoltá-los em total segurança.

A situação não é tão simples assim - ponderou Brian, preparando-se para apresentar uma forte argumentação. - Existe a questão do segredo do portal.

Brian explicou com cuidado que se desistissem de tentar o regresso ao mundo deles, o segredo do portal que se guardara havia séculos, correria um grande perigo de ser descoberto e o mundo de Rhuror poderia ser invadido por gente de toda espécie, quebrando o equilíbrio estabelecido.

Sinto ter que dizer isso - acrescentou Guillermo com tristeza -, mas nossa civilização traz a guerra, polui os rios, destrói florestas e faz todo o tipo de coisas ruins por onde quer que passe.

O professor Guillermo está certo - ajudou Marc. - Desde que chegamos aqui, só vimos beleza e harmonia por onde andamos. O nosso segredo precisa ser preservado a qualquer preço para que o seu reino continue exatamente como está.

Mesmo que isso possa custar as nossas vidas - completou Rafael, suas pala­vras saíram sofridas de sua boca.

Rhuror entrelaçou os dedos, meditou algum tempo sobre as explicações que lhe foram dadas. Não podia deixar que uma horda de estrangeiros mal intenciona­dos se espalhasse por Faogard.

Se é assim — disse ele sem pensar em nada melhor. - Não vejo outra possibilidade que não seja a de vê-los partir em busca dos seus destinos. Mas posso tentar ajudá-los para que não fiquem tão vulneráveis em sua grande jornada.

O que pretende fazer? — perguntou Brian, recostando-se confortavelmente para ouvir com mais atenção.

Quero que fiquem em Faogard por algum tempo para que possam ser trei­nados no manejo de armas e em táticas de guerra.

E quanto tempo levaria esse treinamento? — perguntou Guillermo.

Trinta dias, pelo menos.

Impossível - descartou imediatamente Brian. - Não temos todo esse tempo.

Nesse caso, vocês teriam que fazer um treinamento intensivo. Várias horas por dia, sem descanso. E mesmo assim, não seria uma garantia de que chegassem todos vivos até o Portal do leste. Eu mesmo não acredito nessa possibilidade - Rhuror fez uma pausa, procurando colocá-los a par da real situação de perigo. — Os crassênidas são um povo frio que detesta intrusos em suas terras.

Assim como vocês detestam intrusos nas suas - provocou Margaret. Rhuror olhou-a firme censurando o seu comentário.

Guillermo a repreendeu com um discreto pigarro e passou a perguntar.

Mas quantos dias passaríamos nos preparando nesse... supertreinamento?

Menos de dez dias seria impossível ensiná-los alguma coisa na arte de lutar — previu Rhuror. — Ofereço meus soldados e minha hospitalidade enquanto estiverem conosco, mas quando cruzarem os portões de Faogard rumo ao desconhecido, então será por conta de vocês.

Brian e Guillermo se entreolharam buscando um no outro o apoio necessário para decidirem o que fazer. Guillermo balançou a cabeça positivamente.

Aceitaremos sua ajuda — disse Brian, finalmente.

Então está feito — definiu Rhuror, levantando-se. - Os treinamentos come­çam amanhã, logo que o sol surja no horizonte.

Eu e Brian estaremos prontos, bem cedo.

Rhuror franziu a testa com certa surpresa.

Parece que vocês não entenderam o que eu quis dizer. Os garotos também farão parte do treinamento.

Com armas e tudo? — perguntou Guillermo, apontando para as poderosas armas suspensas na parede.

Cada uma delas será usada. Estejam prontos, todos, sem falta - Rhuror indicou a saída.

Margaret e os meninos inflaram sorrisos triunfantes para Rhuror. Este, por sua vez, entendeu a enorme disposição juvenil para as atividades físicas ligadas a aventura, como era comum nos jovens de sua gente.

Antes de sair, Brian fez uma última observação.

Quando vínhamos em direção a Faogard, nos deparamos com uma extensa faixa de vegetação calcinada. O mato em volta era verdejante e isso nos fez concluir que alguém provocou aquilo.

Um dragão - disse Rhuror, de maneira espontânea. - Provavelmente estava caçando um animal grande como um boi de Nova Europa ou algo ainda maior. Vocês viram alguma carcaça por perto.

Não observamos nada além da queimada - antecipou-se Chester, interes­sado quando o assunto envolvia animais.

Então, levantou voo com a presa. Não devia ser dos menores para voar com um animal de grande porte entre as garras.

Essa não! Outra vez um dragão! - exclamou Daniel, os olhos brilhando.

O grupo, a mando de Rhuror, foi transferido para uma estalagem mais aconchegante próxima a uma das muralhas da cidade-fortaleza.

O prédio possuía dois andares e era destinado aos comerciantes que se hospedavam na cidade durante os dias destinados ao comércio com outros povos: três dias a cada trinta, era a regra para se entrar em Faogard. Nesse curto período, Fao­gard fervilhava de estrangeiros oriundos de toda parte, como formigas em torno de um doce jogado ao chão.

No interior de um dos quartos, Daniel, calçando as botas, se preparava para sair um pouco.

Quem me acompanha? Não quero ficar a noite toda enclausurado nesse quarto.

Vamos todos juntos, apresentou-se Marc abrindo a porta para sair.

E Margaret? — indagou Rafael. — Ela está no quarto aqui ao lado.

Vamos chamá-la também — propôs Chester, abrindo a porta e se lançando ao corredor.

Chester bateu levemente na porta de Margaret.

Não respondeu - disse ele, encostando o ouvido na porta.

Será que ela está dormindo? - perguntou Marc, esperando a porta abrir a qualquer momento.

Chester voltou a bater e não obteve resposta.

Vamos logo. Ela deve ter ido dormir cedo — disse Daniel, louco para sair da estalagem e explorar a cidade à noite.

Não devemos nos demorar muito. Não esqueçam do que teremos pela frente amanhã cedinho - lembrou Rafael, apressando-os para saírem de uma vez.

A noite havia chegado e uma aragem fresca corria por toda Faogard.

As ruas, bem iluminadas, estavam quase desertas o que significava que os habitantes se recolhiam cedo durante a semana, deixando as festas e os encontros sociais para os dias de descanso.

Não há muita coisa para se fazer a essa hora da noite por essas ruas - disse Marc, querendo desistir e voltar para o quarto. Ele ainda estava chateado com a perda de sua bela flauta.

Sempre há algo para se descobrir em uma cidade como essa - disse Chester, apreciando a arquitetura envolvida em sombras.

O que vocês estão fazendo aí embaixo? — perguntou uma voz bastante familiar. Era Margaret chamando do alto da muralha.

Como chegou aí em cima? — quis saber Daniel, olhando a irmã lá no alto. Margaret, mais uma vez, havia saído na frente dos meninos.

Subam por aquela escada que acompanha o muro. Foi por ela que eu che­guei até aqui — disse a menina, mostrando uma escada de armação sólida de ferro e madeira que chegava até o topo e por onde os soldados poderiam se movimentar com agilidade para os trabalhos de vigília e defesa.

Os meninos iniciaram imediatamente a subida com passos apressados que produziram sons desordenados, quebrando o silêncio das ruas sonolentas.

Venham logo - apressou-os Margaret. - Quero que vejam uma coisa.

Estamos chegando, estamos chegando - disse Chester, completando os últimos degraus.

Margaret se debruçou sobre a larga muralha e estendeu o braço, exibindo orgulhosamente o seu achado. Centenas de luminitas estavam distribuídas geometricamente por toda a área externa, além dos limites da cidade. Ficavam cravadas no chão e seus brilhos se projetavam para o céu estrelado. O efeito de luz era des­lumbrante, formando estradas cintilantes que se estendiam até o horizonte. Parecia o reflexo das estrelas em um gigantesco espelho deitado na terra.

Pra que serve tudo isso? — perguntou Rafael com seu olhar prático, mas sem deixar de admirar tanta beleza.

A utilidade dessa maravilha é clarear os arredores da cidade e assim prevenir qualquer invasão de surpresa - explicou Margaret, envaidecida por saber mais uma vez de algo que os outros desconheciam.

Como você conseguiu essa informação? Não me diga que aprendeu a língua desse lugar — disse Marc, verificando que o único soldado que prestava sentinela não devia falar nada que eles pudessem compreender.

Não, não foi o soldado que me falou - esclareceu ela, rodeada pelos garotos. — Rhuror me trouxe até aqui em cima, e quando viu que eu fiquei maravilhada com as luzes no chão, me contou o que vocês já sabem agora.

O portão mais próximo abaixo de onde eles se encontravam se abriu lenta­mente e um grupo de quinze cavaleiros deixou a fortaleza rumo à escuridão do campo aberto.

Outra patrulha - disse ela. — Já vi duas dessas saírem faz pouco tempo. Eles fazem rondas constantes à noite para conservarem suas terras livres de visitantes inoportunos. Foi por uma dessas patrulhas que fomos capturados.

Eles ficaram mais um tempo apreciando aquela visão fascinante, até que o soldado que estava de guarda ordenou, do seu jeito, com sinais, que eles descessem e retornassem aos seus aposentos.

 

 

                                                                    CONTINUA

 

 

                           Os Ensinamentos da Guerreira

As primeiras luzes da manhã que se derramaram sobre Faogard converteram lentamente o azul pálido matinal em um laranja radiante.

O campo de treinamento, onde houvera a luta entre Rhuror e Roger, estava quase vazio; um outro campo, ainda desconhecido pelos novatos, bem maior, era o que estava sendo utilizado pelos guerreiros experientes naquela manhã.

Guillermo, Brian e os jovens aprendizes tiveram a primeira surpresa do dia. Sobre um gifenonte negro, inquieto, coberto de listas cinzentas, e que mudava de posição constantemente, estava Talemine, a doce filha de Rhuror, ela se apresentava com trajes de guerreira: um grande arco na mão esquerda e uma aljava às costas repleta de flechas, na cintura uma espada de lâmina curta que brilhava ao sol que ainda nascia. A guerreira havia passado bem cedo no hospital para cuidar dos feri­mentos de Roger. Ao lado da bela Talemine, também sobre uma montaria dessa vez branca como leite e cortada com listas longitudinais vermelhas, uma outra guerreira ainda mais jovem que a primeira, aparentando ter quinze anos, vestia roupas milita­res de couro e metal, e como Talemine, estava fortemente armada com arco e espada.

 

 

 

 

Onde está aquela mulher delicada que havíamos conhecido ontem? - perguntou Brian a Guillermo que a olhava perplexo.

Vamos ver como se saem quando atacados — disse Talemine sacando uma flecha e prendendo-a em seu arco.

A flecha disparada zuniu no ar desfiando o cabelo de Guillermo; uma segunda veio do mesmo arco e quase atingiu a orelha do espanhol; a terceira e última flecha rasgou-lhe a camisa no lado do tórax.

O que você está fazendo? Ficou louca? - gritou Guillermo, agitando os braços sobre a cabeça, tentando inutilmente se esquivar do ataque.

As setas pararam de voar contra Guillermo que protestou irritado.

Por que fez isso, Talemine? Quase me mata com essa sua... brincadeira irresponsável.

Você já estaria morto se eu assim o quisesse — disse ela, sorridente. Seu fogoso cavalo negro e cinza não parava de se agitar.

Eu também quero ser alvo — ofereceu-se Margaret, ficando na frente de Guillermo.

Você não quer nada - proibiu Guillermo, puxando-a pelo braço. - Se ela errar eu não quero nem pensar no que pode acontecer.

Eu acho que já chega de demonstrações — disse a voz grave de Rhuror que se aproximava. — Pelo que pude ver, vocês entram em pânico por causa de algumas flechas.

O que você acha? — questionou Guillermo, inconformado. — Que no meu mundo passeamos pelas ruas nos desviando de flechas voadoras e golpes de martelo?

Bem, foram vocês mesmos que me disseram que o seu povo tem um instinto destruidor e que devemos evitá-lo... 

 

                                                                               

 

                                         

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