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AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI / Nicholas Sparks
AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI / Nicholas Sparks

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS PALAVRAS QUE NUNCA TE DIREI

 

A garrafa foi atirada ao mar num quente fim de tarde de Verão, algumas horas antes de a chuva ter começado a cair. Como todas as garrafas, era frágil e quebrar‑se‑ia se deixada cair a alguns metros do chão. Mas quando devidamente selada e atirada, ao mar, como aconteceu com esta, tornava‑se num dos objectos mais navegáveis de que o homem tinha conhecimento. Era capaz de flutuar em segurança sob o efeito de furacões e tempestades tropicais e de balouçar‑se no topo das mais perigosas e turbulentas marés, Era, de certa maneira, o abrigo ideal para a mensagem que levava dentro, uma mensagem que fora enviada, para cumprir uma promessa.

Como o de todas as garrafas deixadas ao capricho dos oceanos, o seu rumo era imprevisível. Os ventos e as correntes exercem uma grande influência na direcção de qualquer garrafa; as tempestades e os detritos podem também alterar o seu curso, De vez em quando uma rede de pesca apanha uma garrafa e transporta‑a uma dezena de quilómetros na direcção oposta à qual ela se dirigia. O resultado é que duas garrafas deitadas ao oceano simultaneamente podem ir parar a um continente de distância uma da outra, ou até a lados opostos do globo. Não existe maneira de prever para onde uma garrafa poderá viajar, e isso faz parte do seu mistério.

Este mistério tem intrigado muita gente desde que existem garrafas, e algumas Pessoas têm tentado aprender mais sobre o assunto. Em 1929 uma equipa de cientistas alemães decidiu seguir o trajecto de uma determinada garrafa. Foi lançada ao mar no sul do Oceano índico com um bilhete lá dentro pedindo à pessoa que a encontrasse para registar o local onde ela deu à costa e Para a atirar de novo ao mar. Em 1935 tinha já dado a volta ao mundo e viajado aproximadamente vinte e cinco mil quilómetros, a distância mais longa alguma vez registada oficialmente.

Há séculos que mensagens em garrafas são objecto de crónicas, e algumas incluem nomes dos mais famosos da história. Ben Franklin, por exemplo, utilizou garrafas com mensagens para compilar um estudo básico sobre as correntes da Costa Leste em meados do século XVIII ‑ informação que ainda é utilizada hoje em dia. Mesmo actualmente a marinha norte‑americana usa garrafas para obter informações sobre marés e correntes, e sendo frequentemente utilizadas para seguir o curso da direcção dos derrames de petróleo.

A mensagem mais célebre alguma vez enviada numa garrafa dizia respeito a um jovem marinheiro, Chunosuke Matsuyama, que em 1784 ficou detido num recife de coral, sem comida e água depois de o seu barco ter naufragado. Antes de morrer, gravou o relato do que acontecera num pedaço de madeira e selou a mensagem numa garrafa. Em 1935, 150 anos depois de ter sido posta a flutuar, deu à costa na pequena aldeia no Japão onde Matsuyama tinha nascido.


A garrafa que fora lançada ao mar num quente fim de tarde de Verão, porém, não continha uma mensagem sobre um naufrágio, nem estava a ser usada para ajudar a cartografar os mares. Mas continha uma mensagem que mudaria para sempre duas pessoas, duas pessoas que de outra maneira nunca se teriam conhecido, e por esta razão poderia ser chamada uma mensagem fadada. Durante seis dias flutuou lentamente em direcção ao nordeste, levada por ventos de um sistema de altas pressões que pairava sobre o golfo do México. Ao sétimo dia os ventos expiraram, e a garrafa dirigiu‑se directamente para leste, encontrando por fim o caminho para a corrente do Golfo, onde então começou a viajar mais depressa, seguindo para norte a uma velocidade de quase cento e vinte quilómetros por dia.

Duas semanas e meia depois do seu lançamento, a garrafa seguia ainda a Corrente do Golfo. Ao décimo sétimo dia, porém, outra tempestade ‑ desta vez a meio do Atlântico ‑ trouxe ventos de leste suficientemente fortes para arrastar a garrafa para fora da corrente, e ela começou a flutuar em direcção a Nova Inglaterra. Sem a Corrente do Golfo para a fazer avançar, a garrafa abrandou de novo de velocidade e ziguezagueou em várias direcções perto da costa de Massachusetts durante cinco dias, até ser apanhada numa rede de pesca por John Hanes. Hanes encontrou a garrafa rodeada de milhares de percas saltitantes e atirou‑a para o lado enquanto examinava a sua pesca. Por sorte, a garrafa não se partiu, mas foi prontamente esquecida e permaneceu Junto à proa do barco durante o resto da tarde, até anoitecer, enquanto o barco fazia a sua viagem de regresso para a baía de Cape Cod. ás oito e meia daquela noite ‑ e já com o barco em segurança dentro dos limites da baía ‑ Hanes tropeçou de novo na garrafa enquanto fumava um cigarro. Porque o Sol caía mais baixo no céu, pegou nela mas não viu nada de invulgar lá dentro, e arremessou‑a borda fora sem pensar duas vezes, fazendo com que a garrafa fosse inevitavelmente dar à praia ao longo de uma das muitas pequenas comunidades que ladeavam a baía.

Porém isso não aconteceu de imediato. A garrafa vogou ao sabor da corrente, para trás e para a frente, durante alguns dias como se estivesse a decidir para onde ir antes de escolher o seu percurso e foi finalmente dar à costa numa praia perto de Chatham.

E foi ali, depois de vinte e seis dias e 1188 quilómetros, que ela terminou a sua viagem.


 

Soprava um vento frio de Dezembro, e Theresa Osborne cruzou os braços enquanto olhava para a água. Mais cedo, quando chegou, viu algumas pessoas a caminhar ao longo da praia mas que, tendo reparado nas nuvens, há muito se haviam ido embora. Agora encontrava‑se sozinha, e absorvia o meio que a rodeava. O oceano, reflectindo a cor do céu, parecia ferro líquido, e as ondas rebentavam sem parar na areia. Nuvens pesadas desciam lentamente, e o nevoeiro começava a adensar‑se, tornando invisível o horizonte. Noutro lugar, noutro tempo, ela teria sentido a magnificência da beleza à sua volta, mas naquele momento apercebeu‑se de que não sentia absolutamente nada. De certa maneira, era como se na realidade não estivesse ali, como se tudo aquilo não fosse mais do que um sonho.

Tinha chegado de carro de manhã, embora mal se lembrasse da viagem. Quando tomou a decisão de vir, planeara passar lá a noite. Tinha tratado de tudo e aguardara até com prazer uma noite tranquila longe de Boston, mas ao observar o oceano a redemoinhar e a agitar‑se percebeu que não queria ficar. Regressaria a casa logo que tivesse terminado, por mais tarde que fosse.

Quando finalmente se sentiu pronta, Theresa começou a andar lentamente em direcção à água. Por baixo do braço levava um saco que arrumara com cuidado naquela manhã, assegurando‑se de que não se esquecera de nada. Não tinha dito a ninguém o que levava com ela, nem lhes tinha dito o que tencionava fazer naquele dia. Em vez disso, dissera que ia fazer compras para o Natal. Era a desculpa perfeita, e embora tivesse a certeza de que eles teriam compreendido caso lhes tivesse dito a verdade, aquela viagem era algo que ela não queria partilhar com ninguém. Tinha‑a começado sozinha, e era assim que queria que terminasse.

Theresa suspirou e olhou para o relógio. Em breve viria a maré alta, e seria então nessa altura que ela estaria finalmente pronta. Depois de encontrar um local numa pequena duna que parecia confortável, sentou‑se na areia e abriu o saco. Procurando nele, encontrou o envelope. Respirou fundo e levantou lentamente o selo.

Dentro estavam três cartas, cuidadosamente dobradas, cartas que ela já lera mais vezes do que podia contar. Segurando‑as à sua frente, ficou a olhar para elas.

No saco havia também outras coisas, embora ainda não se sentisse pronta para olhá‑las. Em vez disso continuou a concentrar‑se nas cartas. Ele utilizara uma caneta de tinta permanente quando as escrevera, e havia manchas em vários sítios onde a caneta tinha vertido. O papel, com a imagem de um barco à vela no canto superior direito, começava a descolorir‑se em alguns sítios, desbotando‑se lentamente com a passagem do tempo. Ela sabia que chegaria uma altura em que seria impossível ler as palavras, mas tinha a esperança de depois daquele dia, não voltar a sentir a necessidade de olhar para elas com tanta frequência.


Quando terminou, enfiou‑as novamente no envelope tão cuidadosamente como quando as retirara. Depois de voltar a pôr o envelope dentro do saco, olhou novamente para a praia. De onde estava sentada podia ver o lugar onde tudo tinha começado.

 

Ela tinha estado a fazer jogging ao amanhecer, recordava‑se, e conseguia visualizar aquela manhã de Verão nitidamente. Era o começo de um belo dia. à medida que ia absorvendo o mundo à sua volta, escutava o grasnar estridente de andorinhas‑do‑mar e o marulhar suave das ondas rolando na areia. Apesar de estar de férias, levantara‑se suficientemente cedo para poder correr sem ter de olhar constantemente por onde andava. Dentro de algumas horas, a praia estaria apinhada de turistas estendidos nas suas toalhas absorvendo os raios do sol quente da Nova Inglaterra. Cape Cod estava sempre superlotado naquela altura do ano, mas a maior parte dos veraneantes tendia a dormir até um pouco mais tarde, e ela gostava da sensação de correr sobre a areia dura e lisa deixada pela maré vazante. Ao contrário dos passeios perto de casa, a areia parecia ceder apenas o suficiente, e ela sabia que não ficaria com dores nos joelhos como por vezes acontecia depois de correr nos passeios de cimento.

Sempre gostara de fazer jogging, um hábito que tinha ficado desde os tempos em que fizera corridas de corta‑mato e atletismo no liceu. Embora já não fosse competitiva e raramente cronometrasse o tempo das suas corridas, correr era agora uma das poucas alturas em que podia estar sozinha com os seus pensamentos. Considerava‑o como sendo uma espécie de meditação, e era por isso que gostava de fazê‑lo sozinha. Nunca conseguira perceber porque é que as pessoas gostavam de correr em grupos.

Por muito que amasse o seu filho, estava contente por Kevin não estar com ela. Todas as mães precisam de um descanso de vez em quando, e ela ansiava por poder levar as coisas calmamente enquanto ali estivesse. Nada de jogos de futebol ao fim da tarde ou encontros de natação, nada de MTV em altos berros, nada de trabalhos de casa a requerer ajuda, nada de acordar a meio da noite para confortá‑lo quando ele tinha cãibras nas pernas. Levara‑o ao aeroporto fazia três dias para apanhar um avião para ir visitar o pai ‑ o seu ex‑marido ‑ na Califórnia, e foi só depois de ela lho ter lembrado que Kevin se apercebeu de que ainda não a abraçara e beijara para se despedir. "Desculpa, Mãe", disse ele enquanto a envolvia com os braços e a beijava. "Gosto muito de ti. Não tenhas muitas saudades minhas, está bem?" Depois, voltando‑se, entregou o bilhete ao comissário de bordo e quase pulou para dentro do avião sem olhar para trás.

Ela não o culpava por quase se ter esquecido. Aos doze anos ele estava numa fase difícil em que achava que abraçar e beijar a mãe em público não era fixe. Além disso, tinha a mente ocupada com outras coisas. Desde o último Natal que ele ansiava por aquela viagem. Ele e o pai iam ao Grand Canyon, depois iriam passar uma semana a descer o rio Colorado de balsa, e finalmente iriam à Disneylândia. É a viagem de sonho de qualquer miúdo, e ela sentia‑se feliz por ele. Embora ele fosse estar ausente durante seis semanas, ela sabia que era bom para Kevin passar algum tempo com o pai.


Ela e David estavam a dar‑se relativamente bem desde que se haviam divorciado há três anos. Embora ele não fosse o melhor dos maridos, era um bom pai para Kevin. Nunca se esquecia de mandar um presente de aniversário ou de Natal, telefonava semanalmente, e atravessava o país algumas vezes durante o ano apenas para passar fins‑de‑semana com o filho. Depois, claro, havia também as visitas fixadas pelo tribunal ‑ seis semanas no Verão, o Natal, ano sim, ano não, e o intervalo da Páscoa, quando a escola os deixava sair durante uma semana. Annette, a nova mulher de David, estava ocupadíssima com o bebé, mas Kevin gostava muito dela, e nunca tinha regressado a casa sentindo‑se aborrecido ou negligenciado. Na verdade, ele normalmente vibrava quando lhe contava as visitas e como se tinha divertido. Havia alturas em que isso lhe fazia sentir uma pontada de ciúmes, mas fazia o seu melhor para o esconder de Kevin.

Agora, na praia, corria a um passo moderado. Deanna estaria à espera que ela acabasse de correr antes de começar a fazer o pequeno‑almoço ‑ Brian já se teria ido embora, ela sabia ‑ e Theresa aguardava com prazer ir fazer algumas visitas com ela. Eles eram um casal mais velho ‑ andavam ambos perto dos sessenta ‑ mas Deanna era a sua melhor amiga.

Directora do jornal onde Theresa trabalhava, já há vários anos que Deanna vinha para Cape Cod com o marido, Brian. Ficavam sempre no mesmo lugar, a Fisher House, e quando ela descobriu que Kevin se ia embora para visitar o pai na Califórnia durante uma boa parte do Verão, insistiu para que Theresa fosse com eles. "Brian vai jogar golfe todos os dias, e eu gostaria de companhia", disse ela, "e além disso, que mais é que vais fazer? Alguma vez vais ter de sair daquele apartamento." Theresa sabia que ela tinha razão, e depois de alguns dias a pensar no assunto, acabou por aceitar. "Fico muito contente", disse Deanna com um ar vitorioso no rosto. "Vais adorar aquele lugar."

Theresa tinha de admitir que era um sítio agradável para se ficar. A Fisher House era a casa de um capitão que fora maravilhosamente restaurada e que ficava à beira de um penhasco rochoso com vista para a baía de Cape Cod, e quando ela a avistou ao longe, começou a correr mais devagar. Ao contrário dos jovens corredores que aceleravam o passo quando se aproximavam do fim da corrida, ela preferia desacelerar e não se esforçar. Aos trinta e seis anos já não recuperava tão depressa como fazia em tempos.


à medida que a respiração acalmava, pensava em como iria passar o resto do seu dia. Trouxera cinco livros para as férias, livros que quisera ler durante o último ano sem nunca o ter feito. Parecia simplesmente já não haver tempo suficiente ‑ não com o Kevin e a sua energia interminável, com a manutenção regular das tarefas domésticas, e definitivamente não com todo o trabalho constantemente empilhado na sua secretária. Como colunista do Boston Times para o qual tinha de produzir três colunas por semana cumprindo prazos, estava permanentemente sujeita a uma forte pressão. A maior parte dos colegas pensavam que ela conseguira o trabalho ideal ‑ bastava escrever trezentas palavras à máquina e estava feito o trabalho do dia ‑ mas não era de todo assim. Conseguir produzir constantemente algo de original sobre cuidados paternais já não era fácil ‑ especialmente se quisesse que o seu trabalho continuasse a ser publicado noutros jornais do país. A sua coluna, "Os Pais Modernos", já saía em sessenta jornais, embora a maior parte publicasse apenas uma ou duas das suas crónicas numa semana previamente escolhida. E porque as ofertas de publicação tinham começado apenas há dezoito meses e ela era uma novata para a maioria dos jornais, não podia dar‑se ao luxo de ter sequer alguns dias de folga. O espaço para crónicas na maioria dos jornais era extremamente limitado, e centenas de cronistas lutavam por esse espaço reduzido.

Theresa desacelerou, começou a andar e por fim parou enquanto uma andorinha‑do‑mar dava voltas no céu por cima dela. A humidade era elevada e ela usou o antebraço para limpar a transpiração da cara. Respirou fundo, reteve o ar durante um momento e depois expirou antes de olhar para a água. Era ainda muito cedo, daí que o Oceano estivesse cinzento turvo, o que mudaria logo que o Sol se levantasse um pouco mais. Tinha um aspecto tentador. Passado um momento ela descalçou‑se e tirou as meias, depois desceu para a borda da água deixando as pequeninas ondas lamber‑lhe os pés. A água era refrescante, e ela passou alguns minutos caminhando para trás e para a frente. Sentiu‑se subitamente contente por ter tido tempo de escrever crónicas suplementares ao longo dos últimos meses, para que pudesse esquecer‑se do trabalho naquela semana. Não conseguia lembrar‑se da última vez em que não tivera um computador por perto, ou uma reunião a que assistir, ou um prazo por cumprir, e era uma sensação libertadora estar longe da sua secretária durante algum tempo. Sentia‑se quase como se estivesse de novo a controlar o seu próprio destino, como se estivesse prestes a começar a viver.

Era verdade que havia dezenas de coisas que ela sabia dever estar a fazer em casa. A casa de banho já devia ter levado um novo papel de parede e ter sido modernizada, os buracos dos pregos nas paredes precisavam de ser tapados, e o resto do apartamento também necessitava de ser retocado com tinta. Há dois meses atrás comprara o papel de parede e alguma tinta, toalheiros e maçanetas para as portas, e um novo armário de casa de banho, assim como todas as ferramentas de que necessitava para fazer o trabalho, mas nem sequer tinha ainda aberto as caixas. Era sempre algo para se fazer no fim‑de‑semana seguinte, embora os fins‑de‑semana fossem muitas vezes tão atarefados quanto os outros dias. As coisas que comprara ainda se encontravam nos sacos onde as trouxera para casa, por trás do aspirador, e sempre que ela abria a porta da despensa elas pareciam gozar das suas boas intenções. Talvez, pensou para consigo mesma, quando regressasse a casa...

Virou a cabeça e viu um homem um pouco mais abaixo na praia. Era mais velho que ela, talvez cinquenta anos ou assim, e tinha o rosto muito bronzeado, como se vivesse ali o ano inteiro. Parecia não se mexer ‑ estava simplesmente de pé na água e deixava que ela lhe banhasse as pernas ‑ e ela reparou que os seus olhos estavam fechados, como se estivesse a desfrutar da beleza do mundo sem ter de olhá‑la. Usava umas calças de ganga desbotadas, enroladas até aos joelhos, e uma camisa confortável que não se dera ao trabalho de meter para dentro das calças. Enquanto o observava, ela subitamente desejou ser um tipo de pessoa diferente. Como seria caminhar pelas praias sem nenhuma preocupação no mundo? Como seria vir para um lugar tranquilo todos os dias, longe da confusão de Boston, apenas para apreciar o que a vida tinha para oferecer?


Deu mais uns passos para dentro da água e imitou o homem, esperando sentir o que quer que fosse que ele estivesse a sentir. Mas quando fechou os olhos, a única coisa em que conseguia pensar era em Kevin. Deus sabia que ela queria passar mais tempo com ele, e decididamente ser mais paciente para com ele quando estivessem juntos. Queria poder sentar‑se e conversar com ele, ou jogar Monopólio, ou simplesmente ver televisão na sua companhia sem sentir vontade de se levantar do sofá para ir fazer alguma coisa mais importante. Havia alturas em que ela se sentia uma fraude quando insistia com Kevin dizendo‑lhe que ele vinha primeiro e que a família era a coisa mais importante que ele iria ter na vida.

Mas o problema era que havia sempre qualquer coisa para fazer. Pratos para lavar, casas de banho para limpar, a caixa do gato para ser despejada; os carros a necessitar de revisão, a roupa a precisar de ser lavada, e as contas a terem de ser pagas. Embora Kevin ajudasse muito com as suas tarefas, ele estava quase tão ocupado quanto ela com a escola, os amigos e todas as suas outras actividades. Era assim que as revistas iam directamente para o lixo sem serem lidas, e que ficavam cartas por escrever, e era, em momentos como aquele, que receava que a sua vida lhe estivesse a passar ao lado.

Mas como mudar tudo isso? "Vive um dia de cada vez", a sua mãe sempre dissera, mas a sua mãe não tinha de trabalhar fora de casa ou criar um filho forte e confiante mas carinhoso, sem a ajuda de um pai. Ela não compreendia as pressões que Theresa enfrentava todos os dias. Tão‑pouco a sua irmã mais nova, Janet, que tinha seguido as pegadas da mãe. Ela e o marido tinham um casamento feliz que durava há quase onze anos, com três raparigas maravilhosas para prová‑lo. Edward não era um homem brilhante, mas era honesto, trabalhava muito, e provia as necessidades da sua família suficientemente bem para que Janet não tivesse de trabalhar. Havia alturas em que Theresa pensava que poderia gostar de uma vida assim, mesmo que isso significasse desistir da sua carreira.

Mas isso não era possível. Não desde que ela e David se haviam divorciado. Fazia três anos agora, quatro se se contasse o ano em que estiveram separados. Ela não odiava David pelo que ele tinha feito, mas o seu respeito por ele fora quebrado. O adultério, fosse um caso de uma só noite ou uma ligação prolongada, era algo com que ela não conseguia conviver. E nem o facto de ele não se ter casado com a mulher com quem tivera um caso durante dois anos, a fazia sentir‑se melhor. A quebra de confiança era irreparável.

David voltou para a Califórnia, o seu estado natal, um ano depois de se terem separado e conheceu Annette alguns meses após. A sua nova mulher era muito religiosa, e aos poucos conseguiu que David se interessasse pela igreja. David, toda a vida um agnóstico, parecera sempre ávido de um maior sentido para a sua vida. Agora ia à missa regularmente e servia mesmo de conselheiro matrimonial juntamente com o pastor. O que poderia ele dizer a alguém que estivesse a fazer as mesmas coisas que ele tinha feito, perguntava a si mesma muitas vezes, e como poderia ele ajudar os outros se ele não fora capaz de se controlar? Ela não sabia, não se importava, na verdade. Sentia‑se apenas satisfeita por ele ainda se interessar pelo filho.


Naturalmente, depois de ela e David se terem separado, muitas das suas amizades também terminaram. Agora que já não fazia parte de um casal, ela parecia destoar nas festas de Natal e nos churrascos de quintal dos amigos. Alguns amigos permaneceram, porém, e sabia deles através do atendedor de chamadas, no qual lhe sugeriam que marcasse uma data para almoçar ou que aparecesse para jantar. De vez em quando ela ia, mas normalmente arranjava desculpas para não ir. Para ela, nenhuma daquelas amizades parecia existir da mesma forma que anteriormente, mas claro que tal não era possível. As coisas mudavam, as pessoas mudavam, e o mundo continuava a sua marcha mesmo ali, do lado de fora da janela.

Desde o divórcio que houvera apenas uma mão‑cheia de encontros amorosos. Não que ela não fosse atraente. Era atraente, ou assim lho diziam muitas vezes. O seu cabelo era castanho escuro, cortado mesmo acima dos ombros, e liso como seda de aranha. Os olhos, a feição pela qual recebia mais elogios, eram castanhos com pintas cor de avelã que reflectiam a luz quando ela se encontrava no exterior. Porque corria todos os dias, estava em boa forma e não aparentava a idade que tinha. Também não se sentia velha, mas quando olhava para o espelho, ultimamente, parecia ver a idade a alcançá‑la. Uma nova ruga à volta do canto do olho, um cabelo branco que parecia ter aparecido da noite para o dia, um ar vagamente cansado por andar constantemente apressada.

Os seus amigos pensavam que ela era doida. "Estás com melhor aspecto agora do que há uns anos atrás", insistiam, e ainda reparava nalguns homens a olhar para ela no corredor do supermercado. Mas não tinha, nem nunca iria ter de novo, vinte e dois anos. Não que os quisesse ter, mesmo que fosse possível, a não ser que, pensava por vezes para consigo, pudesse manter a maturidade cerebral que tinha agora. Se não o fizesse, provavelmente acabaria por se envolver com outro David ‑ um homem bonito que ansiava pelas boas coisas da vida com a presunção subjacente de que não tinha de actuar segundo as regras. Mas bolas, regras são importantes, especialmente aquelas que dizem respeito ao casamento. Eram essas regras que ninguém devia quebrar. O seu pai e a sua mãe não as quebraram, a sua irmã e o seu cunhado também não, nem Deanna e Brian. Porque teria ele de o fazer? E porque razão, perguntava a si mesma enquanto permanecia na rebentação das ondas, é que os seus pensamentos voltavam sempre a esse assunto, mesmo depois de todo aquele tempo?

Julgava que tinha algo a ver com o momento em que os papéis do divórcio finalmente chegaram, momento esse em que sentira que uma pequena parte de si mesma tinha morrido. Aquela raiva inicial que sentira transformara‑se em tristeza, transformando‑se agora noutra coisa, numa espécie de quase entorpecimento. Embora ela estivesse sempre em movimento, parecia que já nada mais de especial lhe acontecia. Cada dia parecia exactamente idêntico ao anterior, era por isso que tinha dificuldade em diferenciá‑los. Uma vez, cerca de um ano antes, estivera sentada à secretária durante quinze minutos tentando lembrar‑se da última coisa espontânea que tinha feito. Não conseguiu pensar em nada.


Os primeiros meses tinham sido difíceis para ela. Nessa altura a raiva já se havia esbatido e já não sentia o desejo de atacar verbalmente David fazendo‑o pagar pelo que tinha feito. Tudo o que conseguia sentir, era pena de si mesma. Mesmo tendo Kevin à sua volta o tempo inteiro, nada fazia para alterar o facto de se sentir absolutamente só no mundo. Houve um curto período em que não conseguia dormir mais do que algumas horas por noite, e às vezes, quando estava a trabalhar, deixava a sua secretária e ia sentar‑se no carro para chorar durante um bocado.

Agora, passados três anos, ela não sabia sinceramente se alguma vez iria amar alguém de novo da maneira como amara David. Quando David apareceu na festa do círculo estudantil feminino no início do seu primeiro ano de faculdade, um olhar foi o que bastou para que ela soubesse que queria estar com ele. O seu amor juvenil parecera tão avassalador, tão poderoso, então. Ficava acordada na cama a pensar nele, e quando atravessava a cidade universitária, sorria tanto que as outras pessoas também sorriam sempre que a viam.

Mas amor como aquele não dura muito, pelo menos foi o que ela descobriu. Com o passar dos anos, emergiu um casamento diferente. Ela e David cresceram, e afastaram‑se um do outro. Tornou‑se difícil lembrarem‑se das coisas que no início os tinham atraído a ambos. Olhando para trás, Theresa sentia que David se transformara numa pessoa completamente diferente, embora não pudesse precisar o momento em que tudo começou a mudar. Mas tudo pode acontecer quando a chama de uma relação se apaga, e para ele, ela tinha‑se apagado. Um encontro casual numa loja de vídeos, uma conversa que conduzira a um almoço e por fim a hotéis ao longo da área da grande Boston.

A injustiça de tudo aquilo era que às vezes ela ainda sentia a falta dele, ou antes, do lado bom dele. Estar casada com David era confortável, como uma cama em que estivesse a dormir há vários anos. Habituara‑se a ter outra pessoa à sua volta, com quem pudesse simplesmente falar ou escutar. Habituara‑se a acordar com o cheiro de café a ferver de manhã, e sentia a falta de outra presença adulta no apartamento. Sentia falta de muita coisa, mas mais do que tudo, sentia a falta da intimidade que vinha do abraçar e sussurrar a outra pessoa por detrás de portas fechadas.

Kevin ainda não tinha idade para compreender isso, e embora ela o amasse profundamente, não era o mesmo tipo de amor que desejava naquele momento. O seu sentimento por Kevin era o amor de mãe, provavelmente o mais profundo, o mais sagrado que existe. Mesmo agora ela gostava de entrar no seu quarto depois de ele adormecer e sentar‑se na sua cama para apenas o olhar. Kevin parecia sempre tão sereno, tão bonito, com a sua cabeça na almofada e os cobertores empilhados à sua volta. Durante o dia parecia estar sempre em movimento, mas à noite a sua figura calma e adormecida voltava a despertar nela sentimentos que experimentara quando ele era ainda bebé. No entanto, mesmo esses sentimentos maravilhosos não alteravam o facto de, depois de deixar o quarto dele, ao descer para o andar de baixo e beber um copo de vinho, apenas ter por companhia o gato Harvey.


Ainda sonhava em apaixonar‑se por alguém, em ter alguém que a tomasse nos braços e a fizesse sentir‑se como a única pessoa que tinha importância. Mas era difícil, se não mesmo impossível, encontrar alguém decente hoje em dia. A maior parte dos homens que ela conhecia na casa dos trinta já estavam casados, e aqueles que estavam divorciados pareciam estar à procura de alguém mais novo que pudessem de alguma maneira moldar exactamente naquilo que eles queriam. Restavam os homens mais velhos, mas embora pensasse que poderia ser capaz de se apaixonar por alguém com mais idade, tinha ainda o seu filho com quem se preocupar. Queria um homem que tratasse de Kevin da maneira como ele deveria ser tratado, não simplesmente como o apêndice indesejado de alguém que esse homem desejasse. Mas a realidade era que os homens mais velhos tinham normalmente filhos mais velhos; poucos acolheriam com agrado os dissabores de criar um adolescente nos anos 90. "Eu já fiz a minha parte", informara‑a uma vez um homem secamente. Fora esse o fim daquela relação.

Admitia também sentir a falta da intimidade física que vinha do facto de amar e confiar e agarrar‑se a outra pessoa. Não estivera com um homem desde que ela e David se divorciaram. Tinha havido oportunidades, claro ‑ encontrar alguém com quem dormir nunca era difícil para uma mulher atraente ‑ mas isso simplesmente não era o seu estilo. Ela não fora educada dessa maneira e não tencionava mudar agora. O sexo era demasiado importante, demasiado especial, para ser partilhado com qualquer um. Na verdade, ela fora para a cama com apenas dois homens na sua vida ‑ David, claro, e Chris, o primeiro verdadeiro namorado que tivera. Não queria acrescentar nomes à lista só por alguns minutos de prazer.

Por isso, naquelas férias em Cape Cod, sozinha no mundo e sem um homem a seu lado, queria apenas aproveitar os dias para fazer algumas coisas somente para si mesma. Ler, pôr os pés para cima, e beber um copo de vinho sem a televisão a tremeluzir ao fundo. Escrever a amigos de quem não tinha notícias há já algum tempo. Dormir até tarde, comer em demasia, e correr de manhã cedo, antes de toda a gente chegar à praia e estragar o seu prazer. Queria experimentar novamente a liberdade, mesmo que apenas por um curto período de tempo.

Também queria fazer compras naquela semana. Não na JCPenney ou na Sears ou em lugares que faziam publicidade a sapatos da Nike e t‑shirts dos Chicago Bulls, mas em pequenas lojas de bugigangas que Kevin achava maçadoras. Queria experimentar vestidos novos e comprar um ou dois que realçassem a sua figura, apenas para lhe fazer sentir que ainda estava viva e vibrante. Talvez até fizesse algo ao cabelo. Há anos que não mudava de estilo, e estava cansada de ter a mesma aparência todos os dias. E se um tipo simpático aparecesse a convidá‑la para sair naquela semana, talvez ela aceitasse, só para ter uma desculpa para usar as coisas novas que tinha comprado.

Com um sentido de optimismo um tanto renovado, olhou para ver se o homem com as calças de ganga arregaçadas ainda lá estava, mas ele desaparecera tão silenciosamente como tinha aparecido. E ela também estava pronta para se ir embora. As suas pernas tinham enrijecido na água fria, e sentar‑se para se calçar foi um pouco mais difícil do que esperava. Como não trouxera uma toalha, hesitou por um momento antes de vestir as meias; depois decidiu que não tinha de vesti‑las. Ela estava de férias na praia. Não precisava de sapatos nem de meias.

Levou‑os na mão enquanto se dirigia para casa. Caminhava junto à borda‑d'água e viu uma rocha meio enterrada na areia, a alguns centímetros do local onde a maré das primeiras horas da manhã alcançara o seu ponto mais alto. Estranho, pensou para consigo mesma, parecia destoar ali.


à medida que se aproximava, reparava em algo diferente na sua aparência. Para começar, era lisa e comprida, e quando chegou perto dela percebeu que não era sequer uma rocha. Era uma garrafa, provavelmente descartada por um turista negligente ou um dos adolescentes locais que gostavam de ir para ali à noite. Olhou por cima do ombro e viu um caixote de lixo acorrentado à torre do nadador‑salvador e decidiu fazer a sua boa acção do dia. Quando estendeu o braço para pegar nela, porém, ficou surpreendida ao ver que estava rolhada. Pegou‑lhe, desviando‑a para uma luz melhor, e viu lá dentro um bilhete amarrado com um fio.

Durante um segundo sentiu o coração a acelerar quando outra recordação lhe surgiu. Quando tinha oito anos e estava de férias na Florida com os pais, ela e outra rapariga tinham uma vez enviado uma carta por mar, mas nunca recebera uma resposta. A carta era simples, a carta de uma criança, mas após ter regressado a casa, lembrava‑se de durante semanas ter corrido para a caixa de correio, esperando que alguém a tivesse encontrado e enviado uma carta a partir do local onde a garrafa tivesse dado à costa. Como nada chegava, começou a surgir a decepção, o que fez com que a recordação se fosse desvanecendo acabando por desaparecer por completo. Mas agora tudo voltava. Quem tinha estado com ela naquele dia? Uma rapariga da sua idade, aproximadamente... Tracy?... não... Stacey?... sim, Stacey! Stacey era o nome dela! Tinha cabelos louros... estava a passar o Verão com os avós... e... e... e a recordação terminava ali, sem nada mais surgir por muito que ela se esforçasse.

Começou a puxar a rolha, quase esperando que fosse a mesma garrafa que ela enviara, embora soubesse que isso era impossível. Seria provavelmente de outra criança, mas se pedisse uma resposta, ela iria enviá‑la. Talvez juntamente com uma pequena lembrança do Cape e um postal também.

A rolha estava firmemente apertada, e os seus dedos escorregavam quando tentava abri‑la. Não conseguia agarrá‑la bem. Cravou as unhas curtas na parte exposta da rolha e girou lentamente a garrafa. Nada. Mudou de mãos e tentou de novo. Agarrando‑a com mais força, fincou a garrafa entre as pernas para forçá‑la em alavanca, e mesmo quando estava prestes a desistir, a rolha cedeu um pouco. Subitamente reanimada, mudou de novo de mãos... apertou... girando lentamente a garrafa... mais rolha... e de repente ela desprendeu‑se e a porção restante deslizou para fora com facilidade.

Virou a garrafa de gargalo para baixo e ficou surpreendida quando o bilhete caiu na areia junto aos seus pés quase imediatamente. Quando se debruçou para apanhá‑lo, reparou que estava firmemente atado, sendo essa a razão por que deslizara para fora tão facilmente.

Ela desatou o fio com cuidado, e a primeira coisa que a surpreendeu enquanto desenrolava a mensagem foi o papel. Não se tratava de um artigo de papelaria para criança. Era um papel caro, grosso e sólido, com uma silhueta de um barco à vela gravado em relevo no canto superior direito. E o próprio papel estava enrugado, com aspecto de antigo, quase como se houvesse estado na água durante cem anos.


Deu por si a suster a respiração. Talvez fosse antigo. Podia ser, havia histórias de garrafas que davam à costa depois de cem anos no mar, por isso podia ser esse o caso. Talvez tivesse ali com ela um verdadeiro artefacto. Mas quando examinou a escrita em si, viu que estava enganada. Havia uma data no canto superior esquerdo do papel.

 

22 de Julho de 1997.         

Fazia pouco mais de três semanas.

Três semanas? Só isso?  

Olhou um pouco mais à frente. A mensagem era longa ‑ cobria ambos os lados do papel ‑ e parecia não pedir qualquer tipo de resposta. Uma rápida vista de olhos não revelava qualquer morada ou número de telefone, mas ela supôs que tais pormenores poderiam ter sido incluídos no corpo da própria carta.

Sentiu uma pontada de curiosidade ao segurar a mensagem à sua frente, e foi então que, à luz do nascer do Sol de um dia quente de Nova Inglaterra, ela leu pela primeira vez a carta que mudaria a sua vida para sempre.

 

22 de Julho de 1997          

Minha Querida Catherine,            

Sinto a tua falta, meu amor, como sempre, mas hoje é particularmente difícil porque o oceano tem estado a cantar para mim, e a canção é a da nossa vida juntos. Quase consigo sentir‑te a meu lado enquanto escrevo esta carta, e consigo cheirar o aroma de flores silvestres que me faz sempre lembrar de ti. Mas neste momento, essas coisas não me dão qualquer prazer. As tuas visitas têm sido menos frequentes, e por vezes sinto como se a maior parte do que sou estivesse lentamente a dissipar‑se.

Estou a tentar, ainda assim. à noite quando estou sozinho, chamo por ti, e sempre que a minha dor parece ser a maior, encontras constantemente maneira de voltar para mim. Ontem à noite, nos meus sonhos, vi‑te no pontão perto de Wrightsville Beach. O vento soprava através do teu cabelo, e os teus olhos retinham a luz pálida do Sol que se desvanecia. Fico espantado quando te vejo encostada ao parapeito. Tu és bela, penso, enquanto te vejo, uma visão que nunca consigo encontrar em mais ninguém. Começo a andar lentamente na tua direcção, e quando finalmente te voltas para mim, reparo que outros têm estado a observar‑te também. "Conhece‑la?" perguntam‑me em sussurros invejosos, e enquanto sorris para mim, respondo simplesmente com a verdade. "Melhor do que o meu próprio coração."

Paro quando chego perto de ti e envolvo‑te nos meus braços. Anseio por esse momento mais do que qualquer outro. É a razão da minha vida, e quando tu retribuis o meu abraço, eu entrego‑me a esse momento, em paz mais uma vez.

Levanto a mão e toco suavemente na tua face e tu inclinas a cabeça e fechas os olhos. As minhas mãos são ásperas e a tua pele é macia, e interrogo‑me durante um momento se vais afastar‑te, mas claro que não o fazes. Nunca o fizeste, e é em alturas como esta que eu sei qual é o meu objectivo na vida.

Estou aqui para te amar, para te segurar nos meus braços, para te proteger. Estou aqui para aprender contigo e para receber o teu amor em troca. Estou aqui porque não existe outro sítio onde possa estar.


Mas depois, como sempre, a neblina começa a formar‑se enquanto permanecemos juntos um do outro. É um nevoeiro distante que nasce do horizonte, e descubro que começo a ficar com medo à medida que ele se aproxima. Ele insinua‑se lentamente, envolvendo o mundo à nossa volta, cercando‑nos como que para evitar que fujamos. Como uma nuvem rolante, cobre tudo, fechando, até mais nada restar senão nós os dois.

Sinto a minha garganta a começar a fechar e os meus olhos a encherem‑se de lágrimas porque sei que são horas de partires. O olhar que me lanças naquele momento persegue‑me. Sinto a tua tristeza e a minha própria solidão, e a dor no meu coração, que permanecera silenciosa só por um pequeno intervalo de tempo, torna‑se mais forte quando tu me soltas. E então estendes os braços e dás uns passos para trás, desaparecendo no nevoeiro porque ele é o teu lugar e não o meu. Anseio Por ir contigo, mas a tua única resposta é abanares a cabeça porque ambos sabemos que é impossível.

E eu assisto com o coração a partir‑se enquanto desapareces lentamente. Dou comigo a esforçar‑me por lembrar tudo acerca daquele momento, tudo acerca de ti. Mas depressa, sempre demasiado depressa, a tua imagem desaparece e o nevoeiro recua para o seu lugar longínquo e eu fico sozinho no pontão e não me importo com o que os outros pensam quando baixo a cabeça e choro e choro e choro.

Garrett


 

"Estiveste a chorar?" perguntou Deanna quando Theresa entrou na varanda das traseiras, trazendo a garrafa e a mensagem. Com a confusão, tinha‑se esquecido de deitar fora a garrafa.

Theresa sentiu‑se embaraçada e limpou os olhos enquanto Deanna pousava o jornal e se levantava da cadeira. Embora tivesse excesso de peso ‑ e sempre o tivera desde que Theresa a conhecera ‑ ela movimentou‑se agilmente à volta da mesa, com o rosto a manifestar preocupação.

‑ Estás bem? Que aconteceu lá fora? Magoaste‑te? ‑ Deu um encontrão numa das cadeiras enquanto estendia os braços e pegava nas mãos de Theresa.

Theresa abanou a cabeça.

‑ Não, nada disso. Acabei de encontrar esta carta e... não sei, depois de a ler não me contive.

‑ Uma carta? Que carta? Tens a certeza que estás bem? ‑ A mão livre de Deanna gesticulava compulsivamente enquanto fazia as perguntas.

‑ Estou bem, a sério. A carta estava numa garrafa. Encontrei‑a na praia. Quando a abri e a li... ‑ A sua voz sumiu‑se, e o rosto de Deanna aligeirou‑se apenas um pouco.

‑ Oh... ainda bem. Por um instante pensei que tivesse acontecido alguma coisa horrível. Como se alguém te tivesse atacado ou coisa do género.

Theresa afastou uma madeixa de cabelo que tinha sido atirada pelo vento para a cara e sorriu perante a preocupação dela.

‑ Não, foi só a carta que me impressionou verdadeiramente. É tontice, eu sei. Não devia ter sido tão sentimental. E desculpa ter‑te assustado.

‑ Oh, puu ‑ disse Deanna, não ligando. ‑ Não tens nada de que te desculpar. Sinto‑me satisfeita por estares bem. ‑ Fez uma breve pausa. ‑ Disseste que a carta te fez chorar? Porquê? O que é que dizia?

Theresa limpou os olhos, entregou‑lhe a carta, e dirigiu‑se para a mesa de ferro forjado onde Deanna estivera sentada. Sentindo‑se ainda um pouco ridícula por ter chorado, fez o possível para se compor.

Deanna leu a carta devagar, e quando acabou, olhou para Theresa. Os seus olhos também lacrimejavam. Afinal não era só ela.

‑ É... é bela ‑ disse Deanna por fim. ‑ É uma das coisas mais comoventes que alguma vez li.

‑ Foi o que pensei.

‑ E encontraste‑a na praia? Quando estavas a correr?

Theresa acenou que sim com a cabeça.

‑ Não sei como é que ela pode ter dado à costa ali. A baía é abrigada do resto do oceano, e nunca ouvi falar em Wrightsville Beach.

‑ Também não sei, mas parece que foi lançada à praia ontem à noite. A principio quase que passava por ela, antes de ter reparado no que era.

Deanna passou o dedo pelas letras e fez uma breve pausa.

‑ Gostava de saber quem eles são. E porque estava selada dentro de uma garrafa?

‑ Não sei.


‑ Não sentes curiosidade?

A verdade era que Theresa estava de facto curiosa. Logo depois de a ter lido, lera‑a de novo, depois uma terceira vez. Como seria, meditou ela, ter alguém que a amasse daquela maneira?

‑ Um pouco. Mas e depois? Não há maneira de alguma vez virmos a saber.

‑ Que vais fazer com ela?

‑ Guardá‑la, suponho. Na verdade ainda não pensei assim tanto no assunto.

‑ Hmmm ‑ disse Deanna com um sorriso indecifrável. Depois: ‑ Como foi o teu jogging?

Theresa deu um gole no copo que tinha enchido de sumo.

‑ Foi bom. O Sol estava muito bonito quando nasceu. Parecia que o mundo estava a arder.

‑ Isso é só porque estavas tonta por falta de oxigénio. Correr faz isso às pessoas.

Theresa sorriu, divertida.

‑ Então, deduzo que não virás comigo esta semana.

Deanna estendeu a mão para pegar na sua chávena de café com uma expressão de dúvida no rosto. ‑ Nem pensar. O meu exercício limita‑se a aspirar a casa todos os fins‑de‑semana. Consegues imaginar‑me lá fora a correr, a soprar e a bufar? Provavelmente teria um ataque cardíaco.

‑ É refrescante depois de nos habituarmos.

‑ Isso pode ser verdade, mas eu não sou jovem e esbelta como tu. A única vez que me consigo lembrar de ter corrido foi quando era miúda e o cão do vizinho saiu do quintal. Corri tão depressa, quase fiz chichi nas cuecas.

Theresa riu‑se alto. ‑ Então, qual é o programa para hoje?

‑ Pensei em irmos fazer umas compras e almoçar na cidade.

Apetece‑te fazer isso?

‑ Era o que estava à espera que dissesses.

As duas mulheres conversaram sobre os sítios onde poderiam ir. Depois Deanna levantou‑se e foi para dentro para ir buscar mais uma chávena de café e Theresa observou‑a a entrar.

Deanna tinha cinquenta e oito anos e uma cara redonda, com cabelo lentamente a ficar grisalho. Mantinha‑o curto, vestia‑se sem excesso de vaidade, e era, decidiu Theresa, seguramente a melhor pessoa que ela conhecia. Era entendida em música e arte, e no trabalho, as gravações de Mozart ou Beethoven irrompiam continuamente do seu escritório para o caos da redacção. Vivia num mundo de optimismo e bom humor, e toda a gente que a conhecia a adorava.

Quando Deanna voltou para a mesa, sentou‑se e olhou para a baía.

‑ Não é este o lugar mais bonito que alguma vez viste?

‑ Sim, é. Estou contente por me teres convidado.

‑ Estavas a precisar. Terias ficado completamente sozinha naquele teu apartamento.

‑ Pareces a minha mãe a falar.

‑ Vou considerar isso um elogio.

Deanna estendeu a mão através da mesa e pegou de novo na carta. As suas sobrancelhas erguiam‑se, enquanto lia atentamente a carta, mas optou por não dizer nada. Na opinião de Theresa, parecia que a carta tinha despoletado algo na memória de Deanna.

‑ O que foi?


‑ Estava só a pensar... ‑ disse ela baixinho.

‑ A pensar no quê?

‑ Bem, quando estava lá dentro, comecei a pensar nesta carta. Estava a pensar se não poderíamos publicar isto na tua coluna esta semana.

‑ De que estás a falar?      

Deanna debruçou‑se sobre a mesa.

‑ Daquilo mesmo que disse. Penso que deveríamos publicar a carta na tua coluna esta semana. Tenho a certeza de que outras pessoas adorariam lê‑la. É de facto extraordinária. As pessoas precisam de ler algo como isto de vez em quando. E é tão comovente. Posso imaginar uma centena de mulheres a recortá‑la e a colá‑la nos seus frigoríficos para que os seus maridos possam vê‑la quando chegam a casa do trabalho.

‑ Nós nem sequer sabemos quem eles são. Não achas que devíamos primeiro obter a sua autorização?

‑ Aí está o problema. Não podemos. Posso falar com o advogado no jornal, mas tenho a certeza de que é legal. Não usaremos os nomes verdadeiros, e desde que não atribuamos a autoria da carta a nós mesmos ou revelemos a sua possível origem, estou certa de que não haverá problemas.

‑ Eu sei que provavelmente é legal, mas não tenho a certeza se é correcto. Quer dizer, é uma carta muito pessoal. Não deve ser divulgada para que toda a gente a possa ler.

‑ É uma história de interesse humano, Theresa. As pessoas adoram esse tipo de coisas. Além disso, não há nada aí que possa ser embaraçoso para ninguém. É uma bela carta. E lembra‑te, esse tal Garrett enviou‑a numa garrafa pelo oceano. Ele sabia que ela iria dar à costa algures.

Theresa abanou a cabeça.

‑ Não sei, Deanna...

‑ Bem, pensa no assunto. Pensa o dia todo se for preciso. Eu acho que é uma bela ideia.

 


Theresa pensava efectivamente na carta enquanto se despia e se metia debaixo do chuveiro. Deu por si a interrogar‑se sobre o homem que a tinha escrito ‑ Garrett, se esse fosse o seu nome verdadeiro. E quem, se alguém fosse, seria Catherine? A sua amante ou a sua mulher, obviamente, mas já não se encontrava perto dele. Estaria morta? interrogou‑se ela, ou teria acontecido outra coisa qualquer que os forçara a separarem‑se? E porque fora ela selada numa garrafa e lançada ao sabor das correntes? Tudo aquilo era estranho. Os seus instintos de jornalista tomaram então conta dela, e subitamente pensou que a mensagem poderia não significar nada. Podia ser alguém que queria escrever uma carta de amor mas não tinha ninguém a quem enviá‑la. Podia até ter sido enviada por alguém que sentia um certo gozo vicário em fazer mulheres solitárias chorar em praias distantes. Mas à medida que as palavras se desenrolavam novamente na sua cabeça, ela percebeu que essas possibilidades eram improváveis. A carta obviamente vinha do coração. E pensar que um homem a tinha escrito! Em todos os seus anos de vida, nunca recebera uma carta que se aproximasse minimamente daquela. Sentimentos comoventes que lhe fossem parar à mão vinham sempre brasonados com logotipos do género dos cartões de parabéns da Hallmark. David nunca fora um grande escritor, nem mais ninguém com quem ela tivesse namorado. Como seria um homem como este? perguntava‑se a si mesma. Seria ele tão atencioso em pessoa como a carta parecia sugerir?

Theresa ensaboou e enxaguou o cabelo e à medida que a água fresca rolava pelo seu corpo abaixo, as perguntas iam dissipando‑se na sua mente. Lavou o resto do corpo com um toalhete para o banho embebido em creme hidratante, esteve mais tempo debaixo do chuveiro do que era preciso, e finalmente saiu.

Olhou para si mesma ao espelho enquanto acabava de se limpar com a toalha. Nada mal para uma mulher de trinta e seis anos com um filho adolescente, pensou para consigo. Os seus selos haviam sido sempre um tanto pequenos, e embora isso a tivesse preocupado quando era mais nova, estava contente agora por não terem começado a descair e a pender como os de outras mulheres da sua idade. O seu estômago era liso, e as pernas compridas e magras devido a todo o exercício ao longo dos anos. Tão‑pouco os pés‑de‑galinha à volta dos cantos dos olhos pareciam sobressair, embora isso não fizesse qualquer sentido. De uma maneira geral, estava satisfeita com o seu aspecto naquela manhã, e atribuiu às férias essa aceitação invulgarmente fácil de si própria.

Depois de aplicar um pouco de maquilhagem, vestiu uns calções beges, uma blusa branca sem mangas e sandálias castanhas. Dentro de uma hora estaria quente e húmido, e ela queria sentir‑se confortável enquanto passeava por Provincetown. Olhou através da janela da casa de banho, viu que o Sol tinha subido ainda mais alto, e tomou nota para comprar um creme com protector solar. A sua pele ficaria queimada se não o usasse, e ela aprendera por experiência que uma queimadura do sol era das maneiras mais rápidas de estragar umas férias na praia.

Lá fora na varanda, Deanna tinha posto o pequeno‑almoço na mesa. Havia melão e toranjas, juntamente com doughnuts torrados. Depois de se sentar no seu lugar, espalhou um pouco de queijo‑creme magro sobre os doughnuts ‑ Deanna estava de novo numa das suas intermináveis dietas ‑ e as duas conversaram durante um bom bocado de tempo. Brian tinha saído para jogar golfe, como faria todos os dias daquela semana, e tinha de ir de manhã cedo porque estava a tomar um medicamento qualquer que Deanna dizia "provocar coisas horríveis à pele dele se passasse demasiado tempo ao sol".

Brian e Dearina estavam juntos há trinta e seis anos. Namorados de faculdade, tinham casado no Verão depois da formatura, logo depois de Brian ter aceite um emprego numa firma de contabilidade no centro de Boston. Oito anos mais tarde Brian tornou‑se sócio e eles compraram uma casa espaçosa em Brookline, onde tinham vivido sozinhos durante os últimos vinte e oito anos.


Sempre quiseram ter filhos, mas depois de seis anos de casamento Deanna ainda não conseguira engravidar. Consultaram um ginecologista e descobriram que as trompas de Falópio de Deanna tinham sido danificadas e que, por isso, ter um filho era impossível. Tentaram adoptar durante vários anos, mas a lista parecia interminável, perdendo por fim as esperanças. Depois vieram os anos negros, confidenciara ela uma vez a Theresa, uma altura em que o casamento quase abortou. Mas o compromisso de ambos, embora abalado, permaneceu sólido, e Deanna virou‑se para o trabalho para preencher o vazio na sua vida. Começou no Boston Times quando as mulheres eram escassas e foi gradualmente subindo na escala da empresa. Quando se tornou directora, dez anos atrás, começou a acolher mulheres jornalistas sob a sua asa. Theresa fora a sua primeira estudante.

Depois de Deanna ter subido para ir tomar um banho de chuveiro, Theresa deu uma breve vista de olhos pelo jornal e depois, verificou as horas no relógio. Levantou‑se e foi até ao telefone para ligar o número de David. Lá ainda era cedo, apenas sete horas, mas ela sabia que toda a família já estaria de pé. Kevin acordava sempre de madrugada, e por uma vez ela sentia‑se aliviada por outra pessoa ter de partilhar essa experiência maravilhosa. Passeou de um lado para o outro enquanto o telefone tocava algumas vezes antes de Annette o atender. Theresa podia ouvir a televisão ao fundo e o som de um bebé a chorar.

‑ Olá. É a Theresa. O Kevin está por aí?

‑ Oh, olá. Claro que está. É só um segundo.

O telefone caiu tinindo sobre a mesa e Theresa ouviu Annette chamá‑lo:

‑ Kevin, é para ti. A Theresa está ao telefone.

O facto de não ter sido referida como mãe de Kevin magoou‑a mais do que esperava, mas não teve tempo para pensar muito no assunto.

Kevin estava sem fôlego quando chegou ao telefone.

‑ Olá, mãe. Como tens passado? Como estão a correr as tuas férias?

Ela sentiu uma pontada de solidão ao ouvir a sua voz. Ainda era aguda, de criança, mas ela sabia que era apenas uma questão de tempo antes de começar a mudar.

- É muito bonito, mas só cheguei ontem à noite. Ainda não fiz muita coisa a não ser correr esta manhã.

‑ Havia muita gente na praia?

‑ Não, mas vi algumas pessoas a irem para lá quando estava a acabar. Ei, quando é que partes com o teu pai?

‑ Daqui a dois dias. As férias dele só começam na segunda‑feira, e é então que partimos. Agora mesmo está a preparar‑se para ir para o escritório fazer uns trabalhos para estar livre e despachado quando for altura de partirmos. Queres falar com ele?

‑ Não, não é preciso. Estou só a telefonar para dizer que espero que te divirtas muito.

‑ Vai ser espectacular. Vi um folheto sobre a viagem no rio. Alguns dos rápidos parecem ser o máximo.

‑ Bem, tu tem cuidado.

‑ Mãe, já não sou nenhum miúdo.

‑ Eu sei. É só para tranquilizar a tua mãe antiquada.

‑ Está bem, eu prometo. Vou usar o meu colete salva‑vidas o tempo todo. ‑ Ele fez uma breve pausa. ‑ Sabes, no entanto, não vamos ter telefone, por isso não vamos poder falar até eu voltar.

‑ Já imaginava. Deve ser muito divertido, mesmo assim.

‑ Vai ser o máximo. Quem me dera que pudesses vir connosco. íamos divertir‑nos bastante.


Ela fechou os olhos durante um momento antes de responder, um truque que o terapeuta lhe ensinara. Sempre que Kevin dizia algo sobre os três estarem de novo juntos, ela tentava certificar‑se de que não diria nada de que pudesse arrepender‑se mais tarde. Assim a sua voz soava tão optimista quanto lhe era possível.

‑ Tu e o teu pai precisam de algum tempo juntos. Eu sei que ele tem sentido muito a tua falta. Agora têm de pôr em dia muita coisa, ele anseia por esta viagem há tanto tempo quanto tu.

Pronto, não fora assim tão difícil.

‑ Ele disse‑te isso?

‑ Sim. Várias vezes. Kevin ficou calado.

‑ Vou ter saudades tuas, mãe. Posso telefonar‑te logo que volte para te contar a viagem?

‑ Claro. Podes telefonar‑me em qualquer altura. Adoraria saber tudo sobre a viagem. Gosto muito de ti, Kevin.

‑ Gosto muito de ti também, mãe.           

Ela desligou o telefone, sentindo‑se simultaneamente alegre e triste, como normalmente se sentia sempre que falavam ao telefone quando ele estava com o pai.

‑ Quem era? ‑ disse Deanna atrás dela. Descera as escadas vestida com uma blusa de riscas amarelas, calções vermelhos, meias brancas, e um par de ténis da Reebock. A sua roupa anunciava‑a como uma turista e Theresa fez o melhor para manter uma cara serena.

‑ Era o Kevin. Telefonei‑lhe.

‑ Ele está bom? ‑ Ela abriu o armário e agarrou numa máquina fotográfica para completar o conjunto.

‑ Está bom. Parte dentro de dois dias.

‑ Muito bem, isso é bom. ‑ Pendurou a máquina ao pescoço. - E agora que isso está tratado, temos algumas compras para fazer. Temos de fazer de ti uma nova mulher.

 

Fazer compras com Deanna era uma experiência. Uma vez chegadas a Provincetown, passaram o resto da manhã e o princípio da tarde em várias lojas. Theresa comprou três novos conjuntos de roupa e um novo fato de banho antes de Deanna a arrastar para um lugar chamado Nightingales, uma loja de lingerie.

Deanna ficou completamente entusiasmada lá dentro. Não por ela mesma, claro, mas por Theresa. Escolhia cuecas transparentes e cheias de rendas e os respectivos soutiens das prateleiras e levantava‑os para Theresa os avaliar. "Este parece bastante vaporoso", dizia ela, ou, "Não tens nenhum desta cor, pois não?" Naturalmente havia outras pessoas em redor quando ela proferia abruptamente aquelas coisas, e Theresa não podia evitar rir‑se cada vez que ela o fazia. A desinibição de Deanna era das coisas que Theresa mais gostava. Ela realmente não se importava com o que as outras pessoas pensassem, e Theresa muitas vezes desejara poder ser como ela.

Depois de aceitar duas das sugestões de Deanna ‑ afinal ela estava de férias ‑, as duas passaram alguns minutos na loja dos discos. Deanna queria o último CD do Harry Connick Jr.

‑ É tão giro ‑ disse ela, como explicação ‑ e Theresa comprou um CD de jazz de uma das gravações mais antigas de John Çoltrane. Quando regressaram a casa, Brian estava a ler o jornal na sala de estar.

‑ Olá. Estava a começar a ficar preocupado com vocês as duas. Como foi o vosso dia?


‑ Foi bom ‑ respondeu Deanna. ‑ Almoçámos em Provincetown, depois fizemos algumas compras. Como correu o teu jogo hoje?

‑ Bastante bem. Se não tivesse falhado nos dois últimos buracos, teria conseguido um oitenta.

‑ Bem, vais simplesmente ter de treinar um pouco mais até conseguires jogar como deve ser.

Brian riu‑se.

‑ Tu não te importas?

‑ Claro que não.

Brian sorriu enquanto folheava ruidosamente o jornal, satisfeito por poder passar muito do seu tempo no campo de golfe durante aquela semana. Reconhecendo o sinal de que ele queria voltar à sua leitura, Deanna sussurrou ao ouvido de Theresa. "Aprende comigo. Deixa um homem jogar golfe e ele nunca se chateia com o quer que seja."

 

Theresa deixou‑os a ambos sozinhos durante o resto da tarde. Uma vez que o dia ainda estava quente, vestiu o novo fato de banho que tinha comprado, agarrou numa toalha, numa pequena cadeira desdobrável e numa revista People, e foi para a praia.

Folheou preguiçosamente a revista, lendo alguns artigos aqui e ali, mas não verdadeiramente interessada com o que estava a acontecer aos ricos e famosos. Podia ouvir a toda a sua volta o riso das crianças chapinhando na água e enchendo os seus baldes de areia. Ao seu lado, um pouco afastados, dois pequenos rapazes e um homem, presumivelmente o pai, construíam um castelo junto à beira da água. O som das ondas a marulhar era tranquilizante. Pousou a revista e fechou os olhos, inclinando o rosto em direcção ao Sol.

Queria ter já um pouco de cor quando regressasse ao trabalho, se não por outra razão pelo menos para dar a entender que fora capaz de arranjar algum tempo para não fazer absolutamente nada. Mesmo no trabalho ela era considerada o tipo de pessoa que nunca está parada. Se não estivesse a escrever a sua coluna semanal, estava a trabalhar na coluna para as edições de domingo, ou pesquisando na Internet, ou debruçando‑se sobre revistas dedicadas ao desenvolvimento das crianças. No trabalho ela tinha assinaturas de todas as principais revistas sobre cuidados paternais e todas as revistas sobre a infância, assim como outras dedicadas às mulheres trabalhadoras. Assinava também revistas médicas, examinando‑as regularmente à procura de tópicos que pudessem ser apropriados.


A crónica seguinte nunca era previsível ‑ talvez essa fosse uma das razões porque tinha tanto êxito. às vezes ela respondia a perguntas, outras vezes fazia uma reportagem sobre as mais recentes informações sobre desenvolvimento infantil e o seu significado. Muitas das crónicas eram sobre as alegrias que advinham de criar filhos, enquanto outras descreviam os perigos imprevistos. Escrevia sobre a luta das mães solteiras, um tema que parecia afectar particularmente as vidas das mulheres de Boston. Inesperadamente, a sua coluna tornara‑a numa espécie de celebridade local. Mas embora fosse divertido ao princípio ver a sua fotografia por cima da coluna, ou receber convites para festas privadas, estava sempre tão ocupada que parecia não ter tempo para desfrutar desse novo estatuto. Agora considerava tudo isso apenas como outra característica do seu trabalho ‑ uma característica agradável mas que verdadeiramente pouco significado tinha para ela.

Depois de uma hora ao sol, Theresa percebeu que estava com calor e foi até à água. Arrastou‑se mar adentro até às ancas e depois mergulhou quando uma pequena onda se aproximou. A água fresca fê‑la arfar quando a sua cabeça emergiu à superfície, e um homem que se encontrava ao lado dela riu‑se.

‑ Refrescante, não é? ‑ disse ele, e ela concordou com um aceno de cabeça enquanto cruzava os braços.

Ele era alto com cabelo escuro da mesma cor que o dela, e por um segundo ela interrogou‑se se ele não estaria a namoriscá‑la. Mas as crianças por perto depressa acabaram com essa ilusão com gritos de "Papá!" e depois de mais alguns minutos na água, ela saiu e voltou para a sua cadeira. A praia estava a ficar vazia. Arrumou as suas coisas e iniciou o caminho de volta.

Em casa, Brian estava a ver golfe na televisão e Deanna a ler um romance com a imagem de um advogado jovem e bonito na capa. Deanna levantou os olhos do livro.

- Como estava a praia?

‑ Estava óptima. O sol estava maravilhoso, mas a água dá‑te uma espécie de choque quando mergulhas.

‑ É sempre assim. Não vejo como as pessoas conseguem aguentar estar lá dentro durante mais que uns minutos.

Theresa pendurou a toalha num varal perto da porta e falou por cima do ombro.

‑ Como é o livro?

Deanna virou o livro ao contrário nas suas mãos e olhou para a capa.

‑ Maravilhoso. Faz lembrar‑me o Brian de há alguns anos atrás.

Brian resmungou sem tirar os olhos da televisão. ‑ Hem?

‑ Nada, querido. Apenas a relembrar velhos tempos. ‑ Voltou a sua atenção de novo para Theresa. Os seus olhos estavam a brilhar. ‑ Queres jogar um pouco ao gin rummy?

Deanna adorava jogos de cartas de qualquer tipo. Pertencia a dois clubes de bridge, jogava às copas como uma campeã, e mantinha um registo de todas as vezes que ganhava um jogo de paciência. Mas gin rummy fora sempre o jogo que ela e Theresa jogavam quando tinham tempo, porque era o único em que Theresa tinha realmente alguma hipótese de ganhar.

‑ Claro. - Deanna dobrou a página com alegria, pousou o livro, e levantou‑se. ‑ Esperava que dissesses isso. As cartas estão na mesa lá fora.

Theresa envolveu a toalha à volta do seu fato de banho e foi lá para fora para a mesa onde tinham tomado o pequeno‑almoço. Deanna seguiu‑a pouco depois com duas latas de Diet Pepsi e sentou‑se defronte dela enquanto pegava no baralho. Baralhou as cartas e deu‑as. Deanna levantou o olhar da sua mão.

‑ Parece que conseguiste um pouco de cor nas bochechas. O sol deve ter estado bastante intenso.

Theresa começou a organizar as suas cartas,

‑ Sentia‑me como se estivesse a assar.

‑ Conheceste alguém interessante?

‑ Na verdade, não. Apenas li e relaxei ao sol. Quase toda a gente estava lá com as suas famílias.

‑ É pena.

‑ Porque dizes isso?


‑ Bem, estava mais ou menos com esperanças de que conhecesses alguém especial esta semana.

‑ Tu és especial.

‑ Sabes o que quero dizer. Estava mais ou menos com esperanças de que encontrasses um homem para ti esta semana. Um que te cortasse a respiração.

Theresa levantou o olhar, surpresa.

‑ O que é que fez com que pensasses isso?

‑ O sol, o oceano, a brisa, não sei. Talvez seja a radiação adicional a infiltrar‑se no meu cérebro.

‑ Na verdade não tenho estado à procura, Deanna.

‑ Nunca?

‑ Não muito, de qualquer maneira.

‑ Ah ah!

‑ Não dês tanta importância a isso. Não passou assim tanto tempo desde o divórcio.

Theresa pôs na mesa o cinco de ouros, e Deanna recolheu‑o antes de descartar o três de paus. Deanna falou no mesmo tom de voz que a sua mãe usava quando falavam sobre a mesma coisa.

‑ Já passaram quase três anos. Não tens ninguém em vista que tenhas andado a esconder de mim?

‑ Não.

‑ Ninguém?

Deanna tirou uma carta do baralho e descartou um quatro de copas.

‑ Não. Mas não sou apenas eu, sabes? É difícil conhecer pessoas hoje em dia. Não tenho propriamente tempo para sair e conhecer pessoas.

‑ Eu sei isso, sei mesmo. É só que tens tanto para oferecer a alguém. Eu sei que existe alguém para ti algures.

‑ Tenho a certeza de que existe. Simplesmente não o encontrei ainda.

‑ Procuras, pelo menos?

‑ Quando posso. Mas a minha patroa é uma verdadeira chata, sabes. Não me dá um minuto de descanso.

‑ Talvez devesse falar com ela.

‑ Talvez devesses ‑ concordou Theresa, e riram‑se ambas. Deanna tirou do baralho e descartou um sete de espadas.

‑ Não tens mesmo saído com ninguém?

‑ Na verdade, não. Não desde que o Matt Qualquer‑coisa me disse que não queria uma mulher com filhos.

Deanna franziu a testa durante um momento.

‑ às vezes os homens conseguem ser uns verdadeiros idiotas, e ele era um exemplo perfeito. É o tipo de homem cuja cabeça devia estar pendurada numa parede com uma placa a dizer "Macho Egocêntrico Típico". Mas eles não são todos assim. Há montes de verdadeiros homens por esse mundo fora ‑ homens que se podiam apaixonar por ti num abrir e fechar de olhos.

Theresa recolheu o sete e descartou um seis de ouros.

‑ É por isso que gosto de ti, Deanna. Dizes as coisas mais queridas.

Deanna tirou uma carta do baralho.

‑ Mas é verdade. Acredita em mim. És uma mulher de sucesso, bonita, inteligente. Conseguiria encontrar uma dúzia de homens que adorariam sair contigo.

‑ Tenho a certeza de que conseguirias. Mas isso não significa que iria gostar deles.


‑ Nem sequer dás uma oportunidade para que isso aconteça. Theresa encolheu os ombros.

‑ Talvez não. Mas isso não significa que vá morrer sozinha num lar qualquer para velhas solteiras mais tarde na vida. Acredita, adoraria apaixonar‑me de novo. Adoraria conhecer um tipo maravilhoso e viver feliz para sempre. Simplesmente não posso fazer disso uma prioridade neste momento. O Kevin e o trabalho já me ocupam o tempo todo.

Deanna não respondeu durante um momento e atirou para a mesa um dois de espadas.

‑ Eu acho que tens medo.

‑ Medo?

‑ Absolutamente. Não que haja algo de errado nisso.

‑ Porque dizes isso?

‑ Porque eu sei o quanto David te magoou, e sei que teria medo de que a mesma coisa voltasse a acontecer se fosse eu. É a natureza humana. Gato escaldado.... como diz o velho ditado. Há muita verdade nisso.

‑ Provavelmente há. Mas tenho a certeza de que se o homem certo aparecer, eu saberei. Tenho fé.

‑ Que tipo de homem procuras?

‑ Não sei...

‑ Claro que sabes. Toda a gente sabe um pouco sobre aquilo que quer.

‑ Nem toda a gente.

‑ Claro que sabes. Começa com o óbvio, ou se não conseguires fazer isso, começa com o que não queres ‑ como... importas‑te que ele pertença a um bando de motoqueiros?

Theresa sorriu e tirou uma carta do baralho. A sua mão estava a compor‑se. Mais uma carta e ela terminaria. Atirou para a mesa o valete de copas.

‑ Porque estás tão interessada?

‑ Oh, faz lá a vontade a uma velha amiga, está bem?

‑ Está bem. Nada de bando de motoqueiros, isso é certo - disse ela com um abano da cabeça. Pensou durante um momento. ‑ Humm... acho que mais do que tudo, teria de ser o tipo de homem que seria fiel para comigo, fiel para connosco, ao longo de toda a nossa relação. Eu já tive o outro tipo de homem, e não aguento uma relação como aquela de novo. E penso que também gostaria de alguém da minha idade ou próximo, se possível. Theresa parou ali e franziu as sobrancelhas um pouco.

‑ E?

‑ Dá‑me um segundo, estou a pensar. Isto não é tão fácil como parece. Creio que ficaria pelos clichés habituais. Gostaria que ele fosse bonito, gentil, inteligente, e que tivesse charme, sabes, todas aquelas coisas boas que as mulheres querem num homem.

Fez novamente uma pausa. Deanna apanhou o valete. A expressão dela revelava o seu prazer em colocar Theresa contra a parede.

‑ E?

‑ Teria de passar tempo com Kevin como se fosse o seu próprio filho ‑ isso é mesmo importante para mim. Ah ‑ e teria de ser romântico, também. Adoraria receber flores de vez em quando. E atlético, também. Não posso respeitar um homem se o puder ganhar ao braço de ferro.

‑ É tudo?

‑ Sim, é tudo.


‑ Então, deixa‑me ver se percebo isto bem. Queres um homem de trinta e tal anos, bonito, charmoso e fiel, que seja também inteligente, romântico e atlético. E tem de ser bom para o Kevin, certo?

‑ É isso mesmo.

Ela respirou fundo enquanto colocava a sua mão sobre a mesa.

‑ Bem, pelo menos não és muito exigente. Gin.

Depois de perder decisivamente ao gin rummy, Theresa foi para dentro para começar a ler um dos livros que trouxera. Sentou‑se no parapeito da janela na parte de trás da casa enquanto Deanna voltou para o seu próprio livro. Brian encontrou ainda na televisão outro torneio de golfe e passou a tarde a vê‑lo avidamente, fazendo comentários para ninguém em particular sempre que alguma coisa lhe despertava interesse.

às seis horas daquela tarde ‑ e, mais importante, depois de o torneio de golfe ter acabado ‑ Brian e Deanna foram dar um passeio ao longo da praia. Theresa ficou em casa e observou‑os através da janela enquanto eles passeavam de mãos dadas à beira‑mar. Eles tinham uma relação ideal, pensou ela, enquanto os observava. Tinham interesses completamente diferentes, no entanto isso parecia mantê‑los juntos em vez de os afastar.

Depois do pôr do Sol, os três foram dar um passeio de carro até Hyannis e jantaram no Sam's Crabhouse, um próspero restaurante que merecia a sua reputação. Estava cheio e tiveram de esperar uma hora por uma mesa, mas os caranguejos cozidos a vapor e a manteiga valiam a pena. A manteiga tinha sido condimentada com alho, e em duas horas beberam cerca de seis cervejas. Lá para o fim do jantar, Brian perguntou pela carta que tinha dado à praia.

‑ Li‑a quando voltei do golfe. Deanna tinha‑a preso ao frigorífico.

Deanna encolheu os ombros e riu‑se. Voltou‑se para Theresa com uma expressão nos olhos que dizia "Eu disse‑te que alguém o faria" mas não disse nada.

‑ Foi dar à praia. Encontrei‑a quando estava a correr. Brian acabou a sua cerveja e continuou.

‑ Era uma carta e tanto. Parecia muito triste.

‑ Eu sei. Foi o que senti quando a li.

‑ Sabes onde fica Wrightsville Beach?

‑ Não. Nunca ouvi falar.

‑ É na Carolina do Norte ‑ disse Brian enquanto metia a mão num bolso à procura de um cigarro. ‑ Fui lá uma vez numa viagem de golfe. Belos campos. Um pouco planos, mas jogáveis.

Deanna concordou com um aceno de cabeça.

‑ Com o Brian, tudo está de alguma maneira relacionado com o golfe.

Theresa perguntou:

‑ Onde na Carolina do Norte?      

Brian acendeu o seu cigarro e inalou. Enquanto exalava, falou.

‑ Perto de Wilmington, ou efectivamente pode até ser mesmo uma parte de Wilmington, não tenho bem a certeza quanto às fronteiras. Se fores de carro, fica a cerca de hora e meia a norte de Myrtle Beach. já alguma vez ouviste falar do filme Cape Fear?

‑ Já pois.


‑ O rio Cape Fear é em Wilmington, e foi aí que ambos os filmes foram rodados. Na verdade, vários filmes foram lá realizados. A maioria dos grandes estúdios tem uma presença na vila. Wrightsville Beach é uma ilha mesmo em frente à costa. Muito desenvolvida ‑ é quase uma estância turística agora. É onde muitas das estrelas ficam durante as filmagens.

‑ Como é que nunca ouvi falar nela?     

‑ Não sei. julgo que não atrai muita atenção por causa de Myrtle Beach, mas é popular lá no sul. As praias são muito bonitas ‑ areia branca, água quente. É um óptimo local para se passar uma semana se alguma vez tiveres a oportunidade.

Theresa não respondeu, e Deanna falou de novo com uma insinuação de malícia no seu tom de voz.

‑ Bem, agora já sabemos de onde é o nosso escritor mistério.

Theresa encolheu os ombros.

‑ Suponho que sim, mas ainda não se pode ter a certeza absoluta. Poderia ter sido um local onde eles iam passar férias ou tinham ido visitar. Não quer dizer que ele viva lá.

Deanna abanou a cabeça.

‑ Não acho. A maneira como a carta foi escrita ‑ parecia mesmo como se o sonho dele fosse demasiado real para incluir um lugar onde ele estivera apenas uma ou duas vezes.

‑ Realmente tens pensado bastante no assunto, não tens?

‑ Instintos. Aprende‑se a segui‑los, e estaria disposta a apostar em como Wrightsville Beach ou Wilmington é onde ele vive.

‑ E então?

Deanna estendeu o braço para a mão de Brian, pegou no cigarro, inalou fundo, e manteve‑o como seu. Ela fazia isso há anos. Na opinião dela, como não acendia o cigarro, não estava oficialmente viciada. Brian, sem parecer reparar no que ela tinha feito, acendeu outro. Deanna inclinou‑se para a frente.

‑ Já pensaste melhor sobre a publicação da carta?

‑ Na verdade não. Ainda não sei se é uma boa ideia. ‑ E que tal se não usarmos os nomes deles ‑ apenas as iniciais? Podemos até mudar o nome de Wrightsville Beach, se quiseres.

‑ Porque é isto tão importante para ti?

‑ Porque sei reconhecer uma boa história. Mais do que isso, penso que seria importante para muita gente. Hoje em dia, as pessoas andam tão atarefadas que o romantismo parece estar lentamente a morrer. Esta carta mostra que ele ainda é possível.

Theresa pegou distraidamente num fio de cabelo e começou a enrolá‑lo. Um hábito desde a infância, era o que fazia sempre que estava a pensar em algo. Depois de um longo momento, respondeu finalmente.

‑ Está‑ bem.

‑ Vais fazê‑lo?

‑ Sim, mas como disseste, usaremos apenas as suas iniciais e omitiremos a parte sobre Wrightsville Beach. E escreverei algumas frases como introdução.

‑ Fico muito contente ‑ exclamou Deanna, com um entusiasmo de rapariga. ‑ Eu sabia que o farias. Enviamo‑la por fax amanhã.


Mais tarde naquela noite, Theresa escreveu o começo da coluna à mão numas folhas de papel que encontrou na gaveta da secretária no pequeno escritório. Quando terminou, foi para o seu quarto, colocou as duas páginas na prateleira à cabeceira da cama, depois deitou‑se. Naquela noite dormiu irregularmente.

 

No dia seguinte, Theresa e Deanna foram até Chatham e pediram que a carta fosse dactilografada numa loja de fotocópias. Dado que nenhuma trouxera o seu computador portátil e Theresa insistia para que uma parte da informação fosse excluída da coluna, parecia a Coisa mais lógica a fazer. Quando a coluna ficou pronta, enviaram‑na por fax. Ia ser publicada na edição do dia seguinte.

O resto da manhã e da tarde foi passado como no dia anterior fazendo compras, repousando na praia, conversas descontraídas, e um jantar delicioso. Quando o jornal chegou cedo na manhã seguinte, Theresa foi a primeira a lê‑lo. Acordou cedo, terminou a sua corrida antes de Deanna e Brian se levantarem e depois abriu o jornal e leu a coluna.

 

Há quatro dias, quando estava de férias, escutava algumas velhas canções na rádio e ouvi o Sting a cantar Message in a Bottle. Estimulada pelo seu canto apaixonado, corri até à praia para encontrar uma garrafa só para mim. Passados poucos minutos encontrei uma, e claro está, tinha uma mensagem lá dentro. (Na verdade, não ouvi a canção primeiro: inventei isso como efeito dramático. Mas encontrei realmente uma garrafa numa destas manhãs com uma mensagem profundamente comovente lá dentro.) Não tenho conseguido deixar de pensar nela, e apesar de não se tratar de um assunto sobre o qual eu normalmente escreveria, numa época em que o amor e o compromisso duradouros parecem estar tão pouco disponíveis, esperei que a achassem tão importante como eu a achei.

 

O resto da coluna era dedicada à carta. Quando Deanna se juntou a Theresa para o pequeno‑almoço, leu também de imediato a cOluna antes de olhar para qualquer outra.

‑ Maravilhoso ‑ disse ela quando acabou. ‑ Parece melhor em letra de imprensa do que eu pensava. Vais receber muita correspondência por causa desta coluna.

‑ Achas que sim?

‑ Tenho a certeza absoluta.

‑ Mais até do que o costume?

‑ Toneladas a mais. Sinto‑o. Na verdade, vou telefonar hoje ao John. Vou pedir‑lhe para pôr isto na rádio umas duas vezes esta semana. Podes até conseguir algumas edições de domingo com esta coluna.

‑ Veremos ‑ disse Theresa enquanto comia um doughnut, não sabendo ao certo se deveria acreditar ou não em Deanna, mas mesmo assim curiosa.


 

No sábado, oito dias depois de ter chegado, Theresa regressou a Boston.

Abriu a porta do seu apartamento e Harvey veio a correr do quarto das traseiras. Roçou contra as suas pernas, ronronando suavemente. Theresa pegou nele ao colo e levou‑o até ao frigorífico. Tirou para fora um bocado de queijo e deu‑lho enquanto lhe acariciava a cabeça, grata por a sua vizinha Ella ter aceite cuidar dele enquanto estivera fora. Depois de ele acabar o queijo, saltou dos braços dela e dirigiu‑se a passo travado para as portas de vidro corrediças que davam para o pátio das traseiras. O apartamento estava abafado por ter estado fechado, e ela correu as portas para deixar entrar o ar.

Depois de desfazer as malas e de ir buscar as chaves e o correio a casa de Ella, serviu‑se de um copo de vinho, foi até à aparelhagem, e pôs a tocar o CD de John Coltrane que tinha comprado. Enquanto o som do jazz se infiltrava pela sala, passou em revista o correio. Como de costume, eram principalmente contas, e pô‑las de lado para outra ocasião.

Havia oito mensagens no atendedor quando o verificou. Duas eram de homens com quem ela saíra no passado, pedindo‑lhe para telefonar se tivesse uma oportunidade. Pensou no assunto rapidamente, depois decidiu‑se pela negativa. Nenhum deles a atraía, e não lhe apetecia sair só porque tinha uma vaga no seu programa. Também tinha recebido telefonemas da mãe e da irmã, e tomou nota para lhes telefonar durante aquela semana. Não havia telefonemas de Kevin. Naquela altura ele já estava a descer o rio de balsa e a acampar com o pai algures no Arizona.

Sem Kevin, a casa parecia estranhamente silenciosa. Porém estava arrumada e isso de alguma maneira tornava as coisas mais fáceis. Era bom regressar a uma casa e ter apenas de limpar aquilo que ela sujava de vez em quando.

Pensou nas duas semanas de férias que ainda lhe restavam naquele ano. Ela e Kevin iriam passar algum tempo na praia porque ela prometera‑lhe que o fariam. Mas isso ainda deixava outra semana. Podia aproveitá‑la por volta do Natal, mas naquele ano Kevin estaria com o pai, por isso não parecia valer muito a pena gastá‑la nessa altura. Ela detestava passar o Natal sozinha ‑ tinham sido sempre as suas férias preferidas ‑, mas como não tinha escolha, decidiu que pensar muito no assunto era inútil. Talvez pudesse ir até às Bermudas ou à Jamaica ou a outro lugar qualquer nas Caraíbas ‑ mas na verdade não queria ir sozinha, e não sabia quem mais poderia ir com ela. Janet talvez fosse capaz de ir, mas tinha as suas dúvidas. As suas três miúdas mantinham‑na ocupada, e Edward muito provavelmente não conseguiria arranjar dispensa do trabalho. Talvez pudesse usar a semana para fazer aquelas coisas na casa que ela andara a planear fazer... mas isso parecia um desperdício. Quem é que queria passar as férias a pintar e a colar papel de parede?


Finalmente desistiu e decidiu que se nada de empolgante surgisse, guardá‑las‑ia simplesmente para o ano seguinte. Talvez ela e Kevin fossem até ao Havai durante duas semanas. Meteu‑se na cama e pegou num dos romances que começara a ler em Cape Cod. Leu depressa e sem distracção e terminou quase uma centena de páginas, antes de estar cansada. à meia‑noite apagou a luz. Naquela noite, sonhou que estava a andar ao longo de uma praia deserta, embora não soubesse porquê.

Na segunda‑feira de manhã, a quantidade de correio na sua secretária era impressionante, Havia quase duzentas cartas quando lá chegou, e outras cinquenta chegaram mais tarde naquele dia com o porteiro. Mal ela entrou no escritório, Deanna apontou orgulhosamente para a pilha. "Vês, eu disse‑te", sorrira ela.

Theresa pediu para que as suas chamadas fossem suspensas, e começou logo a abrir o correio. Sem excepção, eram reacções à carta que publicara na sua coluna. A maior parte era de mulheres, embora alguns homens também tivessem escrito, e a sua uniformidade de opiniões surpreendeu‑a. Uma a uma, leu como elas tinham ficado comovidas com a carta anónima. Muitas perguntavam se ela sabia quem era o autor, e algumas sugeriam que se o homem fosse solteiro, elas queriam casar com ele.

Descobriu que quase todas as edições de domingo pelo país fora tinham publicado a coluna, e as cartas vinham de tão longe quanto Los Angeles. Seis homens afirmavam ter sido eles a escrever a carta, e quatro deles reclamavam direitos de autor ‑ um até ameaçava com uma acção judicial. Mas quando ela examinava as diferentes caligrafias, nenhuma delas se assemelhava, ainda que remotamente, à caligrafia da carta.

Ao meio‑dia foi almoçar no seu restaurante japonês preferido, e algumas pessoas que estavam a almoçar noutras mesas diziam que também tinham lido a coluna. "A minha mulher colou‑a no frigorífico", disse um homem, o que fez com que Theresa risse em voz alta.

Ao fim do dia já tinha verificado a maior parte da pilha, e estava por isso cansada. Não tinha ainda sequer trabalhado na sua próxima crónica, e sentiu a pressão a crescer atrás do pescoço, como normalmente acontecia quando se aproximava o prazo de entrega. às cinco e meia começou a trabalhar numa crónica relacionada com o facto de Kevin estar fora de casa e com a maneira como ela encarava o facto. Estava a correr melhor do que esperava e tinha quase terminado quando tocou o telefone.

Era a recepcionista do jornal.

‑ Olá, Theresa. Sei que me pediste para suspender as tuas chamadas, e tenho‑o feito ‑ começou ela. ‑ Não foi fácil. A propósito, recebeste cerca de sessenta telefonemas hoje. O telefone não tem parado de tocar.

‑ Então o que se passa?

‑ Há uma mulher que não pára de telefonar. Esta é a quinta vez que liga hoje, e telefonou duas vezes na semana passada. Recusa‑se a dar o nome, mas já lhe reconheço a voz. Diz que tem de falar contigo.

‑ Não podes simplesmente ficar com uma mensagem?

‑ Tentei, mas ela é persistente. Pede sempre para que a deixe ficar em linha até teres um minuto. Diz que é uma chamada interurbana, mas que tem de falar contigo.

Theresa pensou durante um momento enquanto olhava para o ecrã à sua frente. A sua coluna estava quase pronta ‑ só mais uns parágrafos para terminar.

‑ Não lhe podes pedir um número de telefone onde eu possa contactá‑la?

‑ Não, também não me quer dar isso. É muito evasiva.


‑ Sabes o que ela quer?

‑ Não tenho qualquer ideia. Mas ela parece coerente. Não como muita gente que tem telefonado hoje. Um tipo pediu‑me para casar com ele.

Theresa riu‑se.

‑ Está bem, diz‑lhe para aguardar. Atenderei dentro de dois minutos.

‑ Está bem.

‑ Em que linha é que ela está?

‑ Cinco.

‑ Obrigada.   

Theresa acabou a crónica depressa. Iria revê‑la outra vez logo que se despachasse do telefonema. Pegou no auscultador e carregou na linha cinco.

‑ Está?          

A linha permaneceu silenciosa por um momento. Depois, numa voz suave e melódica, a pessoa no outro lado perguntou:

‑ Fala Theresa Osborne?

‑ Sim, a própria. ‑ Theresa recostou‑se na cadeira e começou a enrolar o cabelo.

‑ Foi a senhora que escreveu a coluna sobre a mensagem na garrafa?

‑ Sim. Em que posso ajudá‑la?

A mulher fez uma nova pausa. Theresa conseguia ouvi‑la respirar, como se ela estivesse a pensar sobre o que dizer a seguir. Depois de um instante, ela perguntou:

‑ Pode dizer‑me os nomes que estavam na carta?

Theresa fechou os olhos e parou de enrolar o cabelo. Apenas outra caçadora de curiosidades, pensou. Os seus olhos voltaram‑se para o ecrã e começou a rever a crónica.

‑ Não, lamento, não posso. Não quero que essa informação seja tornada pública.

A mulher ficou de novo em silêncio, e Theresa começou a ficar impaciente. Começou a ler o primeiro parágrafo no ecrã. Depois a mulher surpreendeu‑a.

‑ Por favor ‑ disse ela. ‑ Eu tenho de saber.      

Theresa levantou o olhar do ecrã. Podia ouvir uma sinceridade absoluta na voz da mulher. Havia outra coisa também, mas não conseguia identificá‑la.

‑ Lamento ‑ disse Theresa finalmente. ‑ Não posso mesmo.

‑ Então pode responder‑me a uma pergunta?

‑ Talvez.

‑ A carta é endereçada a Catherine e assinada por um homem chamado Garrett?

A mulher tinha toda a atenção de Theresa e ela sentou‑se mais direita na cadeira.

- Quem fala? ‑ perguntou com uma urgência repentina, e logo após as palavras terem saído, ela soube que a mulher saberia a verdade.

‑ É, não é?

‑ Quem fala? ‑ perguntou Theresa de novo, desta vez mais gentilmente. Ouviu a mulher respirar fundo antes de responder.

‑ Chamo‑me Michelle Turner e vivo em Norfolk, Virgínia.

‑ Como sabia da carta?


‑ O meu marido está na marinha e foi colocado aqui. Há três anos, estava a passear ao longo da praia, e encontrei uma carta exactamente igual àquela que encontrou nas suas férias. Depois de ler a sua coluna, eu sabia que tinha sido a mesma pessoa que a escrevera. As iniciais eram as mesmas.

Theresa parou durante um momento. Não podia ser, pensou ela. Há três anos?

‑ Em que tipo de papel estava escrita?

‑ O papel era bege, e tinha uma imagem de um barco à vela no canto superior direito.

Theresa sentiu o coração a acelerar. Ainda lhe parecia inacreditável.

‑ A sua carta tinha uma imagem de um barco também, não tinha?

‑ Sim, tinha ‑ murmurou Theresa.

‑ Eu sabia. Soube‑o logo que li a sua coluna. ‑ Michelle soava como se um peso lhe tivesse sido retirado dos ombros.

‑ Ainda tem uma cópia da carta? ‑ perguntou Theresa.

‑ Tenho. O meu marido nunca a viu, mas eu tiro‑a para fora de vez em quando só para lê‑la de novo. É um pouco diferente da carta que copiou na sua coluna, mas os sentimentos são os mesmos.

‑ Pode enviar‑me uma cópia por fax?

‑ Claro que sim ‑ disse ela antes de fazer uma pausa. ‑ É espantoso, não é? Quer dizer, primeiro eu a encontrá‑la há tanto tempo, e agora você a encontrar outra.

‑ Sim ‑ murmurou Theresa ‑, é mesmo.

Depois de dar o número do fax a Michelle, Theresa mal podia rever a sua crónica. Michelle tinha de ir a uma loja de cópias para enviar a carta por fax, e Theresa deu por si a andar da sua secretária até à máquina do fax todos os cinco minutos enquanto esperava que a carta chegasse. Quarenta e seis minutos mais tarde ouviu a máquina do fax dar sinal de vida. A primeira página a sair era uma nota do Serviço Nacional de Cópias, endereçada a Theresa Osborne do Boston Times.

Observou‑a a cair para o tabuleiro debaixo e escutou o som da máquina do fax à medida que esta copiava a carta linha por linha. Funcionava com rapidez ‑ levava apenas dez segundos para copiar uma página ‑ mas mesmo essa espera parecia demasiado longa. Depois uma terceira página começou a ser impressa, e ela percebeu que, tal como a carta que ela encontrara, esta também devia ter ambos os lados preenchidos.

Estendeu as mãos para pegar nas cópias quando a máquina de fax começou a apitar, sinalizando o fim da transmissão. Levou‑as para a sua secretária sem as ler e colocou‑as de face para baixo durante alguns minutos, tentando acalmar a sua respiração. É apenas uma carta, disse ela para consigo mesma.

Respirando fundo, levantou a primeira página. Um relance rápido ao logotipo do barco comprovou‑lhe que era de facto o mesmo autor. Colocou a página sob uma luz melhor e começou a ler.

 

6 de Março de 1994           

Minha Querida Catherine,            

Onde estás tu? E porque razão, interrogo‑me sentado sozinho numa casa escurecida, fomos forçados a separar‑nos?


Não conheço as respostas para estas perguntas, por mais que me esforce por compreender. A razão é evidente, mas a minha mente obriga‑me a rejeitá‑la e sou atormentado pela ansiedade durante todas as minhas horas de vigília. Sinto‑me perdido sem ti. Sinto‑me sem alma, um vagabundo sem casa, um pássaro solitário em voo para lado nenhum. Sinto todas essas coisas, e não sou absolutamente nada. Esta, meu amor, é a minha vida sem ti. Anseio por que tu me mostres como viver de novo.

Tento lembrar‑me de como éramos em tempos, no convés ventoso do Happenstance. Lembras‑te como trabalhámos nele juntos? Tornámo‑nos numa parte do oceano enquanto o reconstruíamos, porque ambos sabíamos que tinha sido o oceano que nos havia juntado. Era em alturas como essas que eu compreendia o sentido da verdadeira felicidade. à noite, velejávamos sobre a água enegrecida e eu contemplava o luar reflectindo a tua beleza. Olhava para ti com espanto e sabia no meu coração que estaríamos juntos para sempre. É sempre assim, pergunto‑me, quando duas pessoas estão apaixonadas? Não sei, mas se a minha vida desde que te tiraram de mim serve de alguma indicação, então penso saber as respostas. A partir de agora, sei que estarei sozinho.

Penso em ti, sonho contigo, invoco‑te quando mais preciso de ti. É tudo o que posso fazer, mas para mim não é o suficiente. Nunca será o suficiente, eu sei isso, mas que mais me resta fazer? Se aqui estivesses, dir‑me‑ias, mas até disso me roubaram. Tu sabias sempre as palavras certas para apaziguar a dor que sentia. Tu sempre soubeste como fazer para que eu me sentisse bem por dentro.

É possível que saibas como eu me sinto sem ti? Quando sonho, gosto de pensar que sim. Antes de nos termos encontrado, atravessava a vida sem sentido, sem razão. Sei que de alguma maneira, todos os passos que dei desde o momento em que comecei a andar eram passos dirigidos ao teu encontro. Estávamos destinados a encontrarmo‑nos.

Mas agora, sozinho na minha casa, comecei a perceber que o destino pode magoar uma pessoa tanto quanto a pode abençoar, e dou por mim a perguntar‑me porque razão ‑ de todas as pessoas do mundo inteiro que alguma vez poderia ter amado ‑ tinha de me apaixonar por alguém que foi levada para longe.

Garrett

 

Depois de ler a carta, recostou‑se na cadeira e levou os dedos aos lábios. Os ruídos da sala da redacção pareciam vir de um sítio muito distante. Procurou a sua mala, encontrou a carta inicial, e colocou as duas lado a lado em cima da secretária. Leu a primeira carta, depois a outra, depois leu‑as de trás para a frente, sentindo‑se quase como um voyeur, como se estivesse a espiar um momento privado e cheio de segredos.

Levantou‑se da secretária, sentindo‑se estranhamente confusa. Na máquina de bebidas comprou uma lata de sumo de maçã, tentando compreender os sentimentos que a assolavam por dentro. Quando regressou, as suas pernas pareceram de repente pouco firmes e ela deixou‑se cair pesadamente na cadeira. Se não se encontrasse exactamente no sítio certo, teria caído no chão.


Esperando clarear a mente, começou distraidamente a arrumar a confusão da sua secretária. As canetas foram para a gaveta, artigos que utilizara nas suas pesquisas foram arquivados, o agrafador foi recarregado, e os lápis foram afiados e colocados numa caneca de café em cima da secretária. Quando terminou, nada estava fora do seu lugar excepto as duas cartas, nas quais não tinha sequer tocado.

Há pouco mais de uma semana ela encontrara a primeira, e as palavras tinham deixado uma impressão profunda, embora a pessoa pragmática dentro de si a forçasse a tentar esquecê‑las. Mas agora isso parecia impossível. Não depois de encontrar uma segunda carta, escrita presumivelmente pela mesma pessoa. Haveria mais? interrogava‑se. E que tipo de homem as enviaria em garrafas? Parecia um milagre que outra pessoa, três anos antes, tivesse encontrado uma carta e a tivesse guardado escondida na sua gaveta porque também ficara comovida. No entanto isso tinha acontecido. Mas o que significava tudo aquilo?

Sabia que o assunto não deveria realmente ter muita importância para ela, mas de repente passou a ter. Passou a mão pelo cabelo e olhou em volta da sala. Por todo o lado as pessoas estavam em movimento. Abriu a lata de sumo de maçã e bebeu um gole, tentando descortinar o que se estava a passar na sua cabeça. Não tinha ainda bem a certeza, e o seu único desejo era que ninguém se dirigisse à sua secretária nos minutos seguintes, até ela ter uma ideia melhor acerca do que estava a acontecer. Voltou a meter as duas cartas na mala, enquanto a frase de abertura da segunda carta se sucedia na sua cabeça.

Onde estás tu?        

Saiu do programa de computador onde costumava escrever a sua coluna, e apesar das dúvidas, escolheu o programa que lhe dava acesso à Internet.

Depois de um momento de hesitação, escreveu as palavras WRIGHTSVILLE BEACH no programa de busca e martelou na tecla de retorno. Sabia que alguma coisa iria encontrar, e em menos de cinco segundos ela tinha uma série de tópicos diferentes por onde escolher.

Foram encontrados 3 registos com Wrightsville Beach.

Categorias ‑ Sítios ‑ Páginas da Web ‑ Mariposa

 

Categorias

 

Regional: E.U. América: Carolina do Norte: Cidades: Wrightsville Beach

 

Sítios

 

Regional: E.U. América: Carolina do Norte: Cidades: Wilmington: Imobiliárias

‑ Imobiliária Ticar ‑ escritórios também em Wrightsville Beach e Carolina Beach

Regional: E.U. América: Carolina do Norte: Cidades: Wrightsville Beach: Alojamentos

‑ Estância de Veraneio Cascade Beach

 

Enquanto fitava o ecrã, sentiu‑se subitamente ridícula. Mesmo que Deanna tivesse razão e Garrett vivesse algures na zona de Wrightsville Beach, mesmo assim seria quase impossível localizá‑lo. Por que razão, então, estava ela a tentar fazê‑lo?


Ela sabia a razão, claro. As cartas foram escritas por um homem que amou profundamente uma mulher, um homem que estava agora sozinho. Quando rapariga, ela aprendera a acreditar no homem ideal ‑ o príncipe ou cavaleiro das suas histórias de infância. No mundo real, porém, homens como aqueles simplesmente não existiam. Pessoas reais tinham programas de vida reais, exigências reais, expectativas reais acerca de como as outras pessoas se devem comportar. Era verdade, havia homens bons por esse mundo fora

‑ homens que amavam com todo o coração e que permaneciam firmes face a grandes obstáculos ‑ o tipo de homem que ela quisera conhecer desde que se divorciara de David. Mas como encontrar tal homem?

Ali e naquele momento, ela sabia que tal homem existia ‑ um homem que estava agora sozinho ‑ e saber isso fez com que qualquer coisa dentro dela se apertasse. Parecia óbvio que Catherine ‑ quem quer que ela fosse ‑ estava provavelmente morta, ou pelo menos desaparecida sem uma explicação. No entanto, Garrett ainda a amava o suficiente para lhe enviar cartas de amor durante pelo menos três anos. Garrett procurava assim ser capaz de amar alguém profundamente e de, mais importante do que isso, permanecer totalmente comprometido ‑ mesmo muito depois de a sua pessoa amada ter desaparecido.

Onde estas tu?

Tinia‑lhe repetidamente através da cabeça, como uma canção que ela tivesse ouvido na rádio de manhã cedo e que estivesse continuamente a repetir‑se pela tarde inteira.

Onde estás tu?        

Ela não sabia ao certo, mas ele existia, e uma das coisas que aprendera cedo na vida era que se descobríssemos algo que nos fazia apertar por dentro, o melhor era tentarmos conhecer mais sobre o assunto. Se ignorássemos simplesmente o sentimento, nunca ficaríamos a saber o que poderia ter acontecido, e de certa maneira isso era pior do que descobrir que estávamos errados desde o início. Porque se estivéssemos errados, podíamos, seguir em frente com as nossas vidas sem nunca olhar para trás e perguntarmo‑nos sobre o que poderia ter sido.

Mas até onde poderia isto tudo levar? E qual era o seu significado? Fora a descoberta da carta de alguma maneira predeterminada, ou seria apenas uma coincidência? Ou talvez, pensou ela, fosse apenas uma lembrança daquilo que lhe fazia falta na sua vida. Enrolava o cabelo distraidamente enquanto meditava sobre a última pergunta. Está bem, decidiu ela. Eu consigo aceitar isso.

Mas ela estava curiosa sobre o escritor misterioso, e não fazia sentido negar isso ‑ pelo menos a ela própria. E porque mais ninguém compreenderia (como poderiam eles compreender, se ela própria não compreendia?), resolveu naquele instante não contar a ninguém o que estava a sentir.

Onde estás tu?        

Lá bem no fundo ela sabia que as buscas no computador e a sua fascinação por Garrett não iriam levar a nada. Aos poucos transformar‑se‑ia numa espécie de história invulgar que ela iria contar e recontar vezes sem conta. Ela seguiria em frente com a sua vida ‑ escrevendo a sua coluna, passando o tempo com Kevin, fazendo todas as coisas que uma mãe solteira tinha de fazer.


E estava quase certa. A sua vida teria continuado exactamente como ela a imaginara. Mas algo aconteceu três dias mais tarde que fez com que ela se atirasse ao desconhecido só com uma mala cheia de roupa e uma pilha de papéis que poderiam, ou não, ter significado alguma coisa.

Theresa descobriu uma terceira carta de Garrett.


 

No dia em que descobriu a terceira carta, ela não esperava, claro, nada de anormal. Era um típico dia de Verão em Boston ‑ quente, húmido, com as mesmas notícias que normalmente acompanham um tal tempo ‑ algumas agressões provocadas por tensões agravadas e dois homicídios ao princípio da tarde, cometidos por pessoas que tinham levado as coisas demasiado a sério.

Theresa estava na redacção, pesquisando um tópico relacionado com crianças autistas. O Boston Times tinha uma excelente base de dados de artigos publicados em anos anteriores numa série de revistas. Através do seu computador tinha também acesso à biblioteca da Universidade de Harvard ou à da Universidade de Boston, e o acréscimo de centenas de milhares de artigos que tinham disponíveis, tornava qualquer busca muito mais fácil e menos demorada do que era mesmo há poucos anos atrás.

Em duas horas conseguira encontrar quase trinta artigos escritos nos últimos três anos, publicados em revistas de que ela nunca ouvira falar, e seis dos títulos pareciam suficientemente interessantes para poderem ser utilizados. Uma vez que iria passar por Harvard a caminho de casa, decidiu ir lá levantá‑los nessa altura.

Quando estava prestes a desligar o computador, um pensamento cruzou subitamente a sua mente e ela deteve‑se. Porque não? perguntou a si mesma. É pouco provável, mas que tenho eu a perder? Sentou‑se à secretária, entrou de novo na base de dados de Harvard, e escreveu as palavras MENSAGEM NUMA GARRAFA.

Porque os artigos no sistema da biblioteca estavam catalogados por assunto ou título, ela escolheu explorar por títulos para acelerar a busca. As buscas por assunto normalmente produziam mais artigos, mas examiná‑los um a um era um processo laborioso, e ela não tinha tempo para o fazer naquele momento. Depois de martelar na tecla de retorno, recostou‑se na cadeira e esperou que o computador procurasse a informação que ela solicitara.

A resposta surpreendeu‑a ‑ uma dúzia de diferentes artigos tinham sido escritos sobre o assunto nos últimos anos. A maioria foi publicada em revistas científicas, e os seus títulos pareciam sugerir que as garrafas eram utilizadas em várias tentativas de pesquisa acerca das correntes dos oceanos.

Três dos artigos pareciam interessantes, e ela anotou os títulos, decidindo ir também buscá‑los.

O trânsito estava compacto e lento, e demorou mais tempo do que pensara a chegar à biblioteca e a copiar os nove artigos que queria. Chegou a casa tarde, e depois de encomendar o jantar ao restaurante chinês do bairro, sentou‑se no sofá com os três artigos sobre mensagens em garrafas à sua frente.


O primeiro que leu foi um artigo publicado na revista Yankee em Março do ano anterior. Continha um resumo histórico sobre mensagens em garrafas e histórias sobre garrafas que tinham dado à costa na Nova Inglaterra ao longo dos últimos anos. Algumas das cartas que tinham sido encontradas eram verdadeiramente memoráveis. Ela gostou particularmente de ler acerca de Paolina e Ake Viking.

O pai de Paolina tinha encontrado uma mensagem numa garrafa que fora enviada por Ake, um jovem marinheiro sueco. Ake, que se sentira aborrecido durante uma das suas muitas viagens no mar, pediu para que qualquer mulher bonita que a encontrasse lhe escrevesse de volta. O pai deu a mensagem a Paolina, que por sua vez escreveu a Ake. Seguiram‑se várias cartas, e quando Ake finalmente viajou até à Sicília para a conhecer, perceberam que estavam apaixonados. Casaram pouco depois.

Mais para o fim do artigo, ela encontrou dois parágrafos que falavam ainda de outra mensagem que dera à costa em Long Island:

A maior parte das mensagens enviadas dentro de garrafas pede geralmente à pessoa que as encontra para responder uma vez, sendo portanto poucas as esperanças de uma troca de correspondência duradoura. às vezes, porém, os remetentes não querem uma resposta. Uma carta deste tipo, um tributo comovente a um amor perdido, foi descoberta numa praia de Long Island o ano passado. Parte dela dizia:

Sem ti nos meus braços, sinto um vazio na alma. Dou por mim à procura do teu rosto no meio das multidões ‑ sei que é impossível, mas não consigo conter‑me. A minha procura por ti é uma busca interminável destinada ao fracasso. Tu e eu tínhamos falado sobre o que aconteceria se fossemos separados por força das circunstâncias, mas não consigo manter a promessa que te fiz naquela noite. Desculpa, meu amor, mas não existirá nunca ninguém para te substituir. As palavras que te murmurei eram absurdas, e eu devia ter percebido isso então. Tu ‑ e só tu ‑ tens sido sempre a única coisa que eu desejei, e agora que já cá não estás, não tenho qualquer desejo de encontrar outra. Até que a morte nos separe, sussurrámos na igreja, e eu tenho vindo a acreditar que as palavras permanecerão verdadeiras até finalmente chegar o dia em que eu, também, serei levado deste mundo.

 

Ela parou de comer e pousou abruptamente o garfo.

Não pode ser! Deu por si a olhar fixamente para as palavras. Simplesmente não é possível...

Mas...            

Mas... quem mais poderia ser?   

Passou a mão pela testa, percebendo subitamente que tinha as mãos a tremer. Outra carta? Voltou para o princípio do artigo e olhou para o nome do autor. Tinha sido escrito por Arthur Shendakin, Ph. D., um professor de história no Colégio de Boston, querendo isso dizer que... ele deve viver na zona.

Saltou do sofá e foi buscar a lista telefónica que se encontrava sobre a estante perto da mesa da sala de jantar. Folheou‑a, à procura do nome. Havia perto de uma dúzia de Shendakins na lista, embora apenas dois lhe parecessem uma possibilidade. Ambos tinham "A" como a primeira inicial, e ela olhou para o relógio antes de telefonar. Nove e meia. Tarde, mas não demasiado tarde. Martelou nos números. A primeira chamada foi atendida por uma mulher que lhe disse que tinha o número errado, e quando ela pousou o auscultador, reparou que a sua garganta tinha secado. Foi até à cozinha e encheu um copo com água. Depois de beber bastante, respirou fundo e voltou para o telefone.


Certificou‑se de que marcava o número correcto e esperou enquanto o telefone começava a tocar.

Uma vez.      

Duas vezes.

Três vezes.  

Ao quarto toque começou a perder a esperança, mas ao quinto toque ouviu a outra linha responder.

‑ Está ‑ disse um homem. Pelo tom da voz, pensou que ele deveria estar na casa dos sessenta anos.

Ela clareou a garganta.

‑ Está? Daqui fala Theresa Osborne do Boston Times. É Arthur Shendakin com quem estou a falar?

‑ É sim ‑ respondeu ele, parecendo surpreso. Mantém‑te calma, disse para consigo mesma.

‑ Oh, olá. Estou só a telefonar para saber se o senhor é o mesmo Arthur Shenclakin que escreveu um artigo publicado no ano passado na revista Yankee, sobre mensagens em garrafas.

‑ Sim, fui eu que o escrevi. Em que posso ajudá‑la? Sentia as mãos transpiradas no auscultador.

‑ Despertou‑me a atenção uma das mensagens que o senhor diz ter dado à costa em Long Island. Lembra‑se de que carta estou a falar?

‑ Posso perguntar porque está interessada?

‑ Bem ‑ começou ela ‑, o Times está a pensar fazer um artigo sobre o mesmo assunto, e estávamos interessados em conseguir uma cópia da carta.

Ela fez uma careta perante a sua própria mentira, mas dizer a verdade parecia pior. Como iria aquilo soar? Oh, olá, estou apaixonada por um homem misterioso que envia mensagens em garrafas, e queria saber se a carta que encontrou foi também escrita por ele...

Ele respondeu devagar.

‑ Bem, não sei. Essa foi a carta que me inspirou a escrever os artigos... Teria de pensar no assunto.

Theresa sentiu um aperto na garganta.

‑ Então, o senhor tem a carta?

‑ Sim. Encontrei‑a há dois anos.

‑ Prof. Shendakin, sei que é um pedido pouco habitual, mas posso dizer‑lhe que se nos deixar usar a carta, teríamos muito gosto em pagar‑lhe uma pequena quantia. E não precisamos da carta em si. Bastava uma cópia da mesma, e assim não ficaria de facto a perder nada.

Ela podia perceber que o pedido o surpreendera.

‑ De quanto é que estamos a falar? Não sei, estou a inventar tudo isto à pressa. Quanto é que quer?

‑ Estamos dispostos a oferecer trezentos dólares, e claro, será devidamente acreditado como a pessoa que a encontrou.

Ele fez uma breve pausa, ponderando. Theresa voltou a falar antes de ele poder formular qualquer recusa.

‑ Prof. Shendakin, tenho a certeza de que deve estar um pouco preocupado com uma eventual semelhança entre o seu artigo e aquilo que o jornal tenciona publicar. Posso assegurar‑lhe de que serão bastante diferentes. O artigo que estamos a fazer é essencialmente sobre o trajecto das garrafas ‑ sabe, correntes oceânicas e tudo isso. Queremos apenas algumas cartas autênticas que possam proporcionar aos nossos leitores algum interesse humano.


Donde veio isto tudo?

‑ Bem...

‑ Por favor, Prof. Shendakin. Seria mesmo muito importante para mim.

Ficou em silêncio durante um momento.

‑ Apenas uma cópia?        

Isso mesmo!

‑ Sim, claro. Posso dar‑lhe um número de fax, ou pode enviá‑la por correio. Passo o cheque em seu nome?

Fez uma nova pausa antes de responder.

‑ Eu... suponho que sim. ‑ Ele soava como se de algum modo tivesse sido encostado a uma parede não sabendo como sair da situação.

‑ Obrigada, Prof. Shendakin. ‑ Antes que ele pudesse mudar de ideias, Theresa deu‑lhe o número do fax, anotou a morada dele, e tomou nota para ir buscar um vale no dia seguinte. Pensou que poderia parecer suspeito se enviasse um dos seus cheques pessoais.

 

No dia seguinte, depois de telefonar para o gabinete do professor no Colégio de Boston para lhe deixar uma mensagem dizendo que o dinheiro já fora enviado, ela foi trabalhar com a cabeça a andar à roda. A possível existência de uma terceira carta tornava difícil pensar noutra coisa. Na verdade, ainda não havia nenhuma garantia de que a carta era da mesma pessoa, mas se fosse, ela não sabia o que iria fazer. Tinha pensado em Garrett quase toda a noite, tentando imaginar a sua aparência, e as coisas que ele gostava de fazer. Não compreendia exactamente o que estava a sentir, mas por fim resolveu deixar que a carta o decidisse. Se não fosse de Garrett, ela terminaria tudo aquilo num instante. Não usaria o seu computador para procurá‑lo, não iria à procura de sinais de quaisquer outras cartas. E se descobrisse que ainda continuava obcecada, deitaria fora as duas cartas. A curiosidade era saudável desde que não tomasse conta da sua vida ‑ e ela não deixaria que isso acontecesse.

Mas, por outro lado, se a carta fosse de Garrett...        

Não sabia ainda o que faria então. Parte dela esperava que não fosse, para que não tivesse de tomar uma decisão.

Quando chegou à sua secretária, esperou propositadamente antes de ir até ao fax. Ligou o computador, telefonou a dois médicos com quem precisava de falar acerca da crónica que estava a escrever, e fez alguns apontamentos sobre outros possíveis temas. Quando terminou o trabalho, já quase se convencera de que a carta não seria dele. Existem provavelmente milhares de cartas à deriva pelo oceano, disse para si mesma. O mais provável é que seja de outra pessoa.


Finalmente foi até ao fax quando já não conseguia pensar em mais nada e começou a examinar a pilha de papel. Ainda não a tinha arrumada e classificada, e havia umas poucas dúzias de páginas endereçadas a várias pessoas. No meio da pilha, encontrou uma carta de introdução endereçada a si. Vinha acompanhada de mais duas páginas, e quando olhou mais de perto para elas, a primeira coisa em que reparou ‑ tal como acontecera com as outras duas cartas ‑ foi no barco à vela gravado em relevo no canto superior direito. Mas esta era mais curta do que as outras, e leu‑a antes de chegar à sua secretária. O parágrafo final era o mesmo que tinha lido no artigo de Arthur Shendakin.

 

25 de Setembro de 1995  

Querida Catherine,

Passou‑se um mês desde que te escrevi, mas pareceu decorrer muito mais devagar. A vida passa por mim agora como a paisagem do lado de fora da janela de um carro. Respiro e como e durmo como sempre, mas parece não haver qualquer grande objectivo na minha vida que necessite uma participação activa da minha parte. Continuo simplesmente ao sabor da corrente como as mensagens que te escrevo. Não sei para onde vou ou quando lá chegarei.

Nem mesmo o trabalho alivia a dor. Posso estar a mergulhar sozinho ou a ensinar aos outros como fazê‑lo, mas quando volto para a loja, parece vazia sem ti. Faço fornecimentos e encomendas como sempre fiz, mas mesmo agora, por vezes olho por cima do ombro sem pensar e chamo por ti. Enquanto te escrevo este bilhete, pergunto a mim mesmo quando, ou se alguma vez, coisas como essas irão alguma vez terminar.

Sem ti nos meus braços, sinto um vazio na alma. Dou por mim à procura do teu rosto no meio das multidões ‑ sei que é impossível, mas não consigo conter‑me. A minha procura por ti é uma busca interminável destinada ao fracasso. Tu e eu tínhamos falado sobre o que aconteceria se fossemos separados por força das circunstâncias, mas não consigo manter a promessa que te fiz naquela noite. Desculpa, meu amor, mas não existirá nunca ninguém para te substituir. As palavras que te murmurei eram absurdas, e eu devia ter percebido isso então. Tu ‑ e só tu ‑ tens sido sempre a única coisa que eu desejei, e agora que já cá não estás, não tenho qualquer desejo de encontrar outra. Até que a morte nos separe, sussurrámos na igreja, e eu tenho vindo a acreditar que as palavras permanecerão verdadeiras até finalmente chegar o dia em que eu, também, serei levado deste mundo.

Garrett

 

‑ Deanna, tens um minuto? Preciso de falar contigo. Deanna levantou os olhos do computador e tirou os óculos.

‑ Claro que tenho. Que se passa?          

Theresa colocou as três cartas na secretária de Deanna sem falar. Deanna pegou nelas uma por uma, os seus olhos dilatando de surpresa.

‑ Onde arranjaste estas duas outras cartas? Theresa explicou como as tinha encontrado. Quando terminou a sua história, Deanna leu as cartas em silêncio. Theresa sentou‑se na cadeira defronte dela.

‑ Bem ‑ disse ela, pousando a última carta ‑, não há dúvida de que tens andado a guardar segredo, não é?

Theresa encolheu os ombros, e Deanna continuou.

‑ Mas há mais nisto tudo do que o simples facto de teres encontrado as cartas, não há?

‑ Que queres dizer?

‑ Quero dizer ‑ disse Deanna com um sorriso matreiro - não vieste aqui só porque encontraste as cartas. Vieste porque estás interessada nesse tal Garrett.

A boca de Theresa abriu‑se, e Deanna riu.


‑ Não pareças tão surpreendida, Theresa. Não sou completamente idiota. Sabia que algo se estava a passar nestes últimos dias. Tens andado tão distraída por aí ‑ como se estivesses a cem quilómetros de distância. Queria falar‑te sobre o assunto, mas calculei que viesses ter comigo quando te sentisses pronta.

‑ Pensei que tivesse tudo sob controlo.

‑ Talvez para outras pessoas. Mas eu já te conheço há tempo suficiente para saber quando algo se passa contigo. ‑ Ela sorriu de novo. ‑ Então diz‑me, que se passa?

Theresa pensou durante um momento.

‑ Tem sido realmente estranho. Quer dizer, não consigo parar de pensar nele, e não sei porquê. É como se estivesse de novo na escola secundária e estivesse apaixonada por alguém que nem sequer conhecia pessoalmente. Só que isto é pior ‑ não só nunca nos falámos, como nunca sequer o vi. Pelo que sei, pode até ser um homem de setenta anos.

Deanna recostou‑se na sua cadeira e acenou com a cabeça, pensativa.

‑ Isso é verdade... mas não pensas que seja o caso, pois não?

Theresa abanou lentamente a cabeça.

‑ Não, na verdade não.

‑ Nem eu ‑ disse Deanna enquanto pegava de novo nas cartas. ‑ Ele fala de como se apaixonaram quando eram jovens, não faz menção de quaisquer filhos, ensina mergulho, e escreve sobre Catherine como se tivesse estado casado apenas alguns anos. Duvido que seja assim tão velho.

‑ Foi o que pensei, também.

‑ Queres saber o que eu penso?

‑ Claro.          

Deanna proferiu as palavras com cuidado.

‑ Eu penso que devias ir a Wilmington tentar encontrar Garrett.

‑ Mas parece tão... tão ridículo, até para mim.

‑ Porquê?

‑ Porque não sei nada sobre ele.

‑ Theresa, tu sabes muito mais sobre Garrett do que eu sabia sobre Brian antes de o conhecer. E além disso, eu não disse para te casares com ele, apenas disse para ires procurá‑lo. Podes descobrir que nem sequer gostas dele, mas pelo menos saberás, não é? Quer dizer, que mal pode isso fazer?

‑ E se... ‑ Ela fez uma pausa, e Deanna completou a sua frase.

‑ E se ele não for o que tu imaginas? Theresa, posso garantir‑te que ele não é o que já estás a imaginar. Nunca ninguém é. Mas na minha opinião, isso não deveria ter qualquer importância para a tua decisão. Se achas que queres descobrir mais, vai. O pior que pode acontecer é descobrires que ele não é o tipo de homem que andas à procura. E que farias então? Voltarias para Boston, voltarias com a tua resposta. Que mal haveria nisso? Provavelmente não seria pior do que aquilo por que estás a passar agora.

‑ Não achas que tudo isto é uma loucura?       

Deanna abanou a cabeça, pensativa.


‑ Theresa, há muito tempo que quero que comeces à procura de outro homem. Como te disse quando estávamos de férias, tu mereces encontrar outra pessoa com quem partilhar a tua vida. Agora, não sei como é que isto com Garrett vai correr. Se tivesse de apostar, diria provavelmente que não iria dar em nada. Mas isso não significa que não devas tentar. Se toda a gente que pensasse que poderia fracassar nem sequer tentasse, onde estaríamos nós hoje?

Theresa ficou em silêncio durante um momento.

‑ Estás a ser demasiado lógica a respeito disto tudo...

Deanna ignorou os protestos dela.

‑ Sou mais velha do que tu, e já passei por muito. Uma das coisas que aprendi na minha vida é que às vezes temos de arriscar. E quanto a mim, neste caso nem sequer estás a arriscar muito. Quer dizer, não estás a abandonar o teu marido e família para ires à procura dessa pessoa, não estás a abandonar o teu emprego e a mudares‑te para o outro extremo do país. Na verdade encontras‑te numa situação maravilhosa. Não tens nada a perder, por isso não dês uma importância exagerada a isto. Se sentes que deves ir, vai. Se não queres ir, não vás. Na realidade, é tão simples quanto isso. Além disso, o Kevin não está cá e ainda tens muito tempo de férias este ano.

Theresa começou a enrolar uma madeixa de cabelo à volta do dedo.

‑ E a minha crónica?

‑ Não te preocupes com isso. Ainda temos aquela crónica que escreveste que não usámos porque publicámos a carta em vez dela. Depois disso, podemos voltar a publicar alguns artigos dos anos anteriores. A maior parte dos jornais ainda não tinha dado pelas tuas crónicas na altura, por isso provavelmente nem vão reparar.

‑ Fazes com que tudo isto pareça tão fácil.

‑ E é fácil. A parte difícil vai ser encontrá‑lo. Mas penso que estas cartas têm alguma informação que podemos usar para te ajudar. Que tal fazer alguns telefonemas e umas buscas no computador?

‑ Está bem ‑ disse Theresa finalmente. ‑ Mas espero não acabar por me arrepender.

‑ Então ‑ perguntou Theresa a Deanna ‑, por onde começamos?

Deu a volta com a cadeira para o outro lado da secretária de Deanna.

‑ Para já ‑ começou Deanna ‑, vamos começar com aquilo de que temos a certeza. Primeiro, penso que se pode dizer que o seu nome é mesmo Garrett. Foi assim que assinou todas as cartas, e não acho que ele se tivesse dado ao trabalho de usar outro nome que não o seu. Talvez o fizesse se fosse apenas uma carta, mas com três cartas, estou quase certa de que se trata ou do primeiro nome, ou até do seu nome do meio. Seja qual for o caso, é o nome porque é conhecido.

‑ E ‑ acrescentou Theresa ‑, vive provavelmente em Wilmington ou em Wrightsville Beach, ou noutra comunidade ali por perto, - Deanna concordou. ‑ Todas as suas cartas falam do oceano ou de termos ligados ao oceano, e claro, é para aí que ele atira as garrafas. Pelo tom das cartas, parece que ele as escreve quando se sente sozinho ou quando está a pensar em Catherine.

‑ Foi isso que pensei. Parece‑me que ele não faz qualquer menção de ocasiões especiais nas cartas. Elas falam do seu dia‑a‑dia, e do que se está a passar com ele.


‑ Muito bem ‑ disse Deanna, acenando com a cabeça. Estava a ficar mais entusiasmada à medida que prosseguiam. ‑ Ele fala de um barco...

‑ Happenstance ‑ disse Theresa. ‑ A carta diz que eles restauraram o barco e que costumavam velejar juntos. Por isso é provável que seja um barco à vela.

‑ Escreve isso ‑ disse Deanna. ‑ Talvez consigamos descobrir mais sobre isso com alguns telefonemas daqui. É provável que exista um lugar onde se faz o registo de barcos por nome. Penso que Posso telefonar para o jornal de lá, para saber. Havia mais alguma coisa na segunda carta?

‑ Não que eu tenha reparado. Mas a terceira carta tem um Pouco mais de informação. Entre aquilo que ele escreve, duas coisas sobressaem.

Deanna intrometeu‑se.

‑ Primeiro, Catherine morreu de facto.  E parece também que ele é proprietário de uma loja de artigos de mergulho onde ele e Catherine costumavam trabalhar.

‑ Isso é outra coisa para anotar. Acho que podemos descobrir mais a partir daqui também. Mais alguma coisa?

‑ Penso que não.    

‑ Bem, é um bom começo. Isto pode ser mais fácil do que pensávamos. Vamos começar por fazer umas chamadas.

O primeiro sítio para onde Deanna telefonou foi o Wilmington Journal, o jornal que servia aquela zona. Identificou‑se e pediu para falar com alguém que percebesse de barcos e coisas ligadas ao assunto. Depois de algumas transferências de linha, deu por si a falar com Zack Norton, que fazia reportagens sobre pesca desportiva e outros desportos aquáticos. Depois de explicar que queria saber se havia um lugar que conservasse um registo de nomes de barcos, ele disse‑lhe que não havia.

‑ Os barcos são registados com um número de identificação, quase como os carros ‑ disse ele, numa voz arrastada e lenta ‑, mas se tiver o nome da pessoa, pode ser que consiga saber o nome do barco se este constar do formulário. Não é uma informação obrigatória, mas há muita gente que a põe lá de qualquer maneira.

Deanna escrevinhou as palavras "Barcos não registados por nome" no bloco à sua frente e mostrou‑o a Theresa.

‑ Esse é um beco sem saída ‑ Theresa disse baixinho. Deanna tapou o auscultador com a mão e sussurrou:

‑ Talvez, talvez não. Não desistas com tanta facilidade. Depois de agradecer a Zack Norton pelo seu tempo e desligar, Deanna passou novamente os olhos pela lista de pistas. Pensou durante um momento, depois decidiu telefonar para as informações para pedir os números de telefone de lojas de equipamento para mergulho na zona de Wilmington. Theresa assistia enquanto Deanna anotava os nomes e números de telefone das onze lojas que vinham na lista.

‑ Em que mais lhe posso ser útil, minha senhora? ‑ perguntou a telefonista.

‑ Nada, muito obrigada, foi muito prestável.

Desligou o telefone, e Theresa olhou para ela curiosa.

‑ O que lhes vais perguntar quando telefonares?

‑ Vou perguntar por Garrett.          

O coração de Theresa deu um pulo.

‑ Assim, sem mais nem menos?


‑ Assim, sem mais nem menos ‑ disse Deanna, sorrindo enquanto ligava. Fez sinal a Theresa para levantar a outra extensão ‑ no caso de ser ele ‑ e ambas esperaram em silêncio que alguém respondesse na Atlantic Adventures, o primeiro nome que lhes fora dado.

Quando finalmente atenderam, Deanna respirou fundo e perguntou num tom simpático se Garrett estava disponível para dar aulas de mergulho.

‑ Desculpe, acho que tem o número errado ‑ disse a voz rapidamente. Deanna pediu desculpa e desligou.

Receberam a mesma resposta nos cinco telefonemas seguintes. imperturbável, Deanna passou para o número seguinte na lista e marcou de novo. Esperando a mesma resposta, ficou surpreendida quando a pessoa em linha hesitou por um instante.

‑ Está a falar de Garrett Blake?    

Garrett.          

Theresa quase caiu da cadeira quando ouviu o nome dele. Deanna respondeu que sim, e o homem que a atendera continuou.

‑ Ele está com a Island Diving. Tem a certeza de que não a podemos ajudar? Temos algumas aulas a começar brevemente.

Deanna desculpou‑se rapidamente.

‑ Não, desculpe. Preciso mesmo de trabalhar com Garrett. Prometi‑lhe que o faria. ‑ Quando pousou o auscultador tinha um sorriso largo nos lábios.

‑ Bem, estamos a aproximar‑nos agora.

‑ Não consigo acreditar que tenha sido tão fácil...

‑ Não foi assim tão fácil, se pensares bem, Theresa. A menos que uma pessoa encontrasse mais do que uma carta, não teria sido possível.

‑ Achas que é o mesmo Garrett?

Ela inclinou a cabeça e levantou uma sobrancelha.

‑ Tu não achas?

‑ Ainda não sei. Talvez.

Deanna não ligou à resposta.

‑ Bem, logo ficaremos a saber. Isto está a ficar divertido.

Deanna telefonou então de novo para as informações e pediu o número do registo de barcos de Wilmington. Depois de ligar, disse à voz em linha quem era e perguntou por alguém que pudesse ajudá‑la a confirmar uma informação.

‑ Eu e o meu marido estivemos a passar férias aí em baixo ‑ disse ela à mulher que atendeu o telefone ‑, quando o nosso barco teve uma avaria. Um senhor muito simpático encontrou‑nos e ajudou‑nos a voltar para a costa. O nome dele era Garrett Blake, e penso que o nome do barco dele era Happenstance, mas queria ter a certeza para quando escrever a história.

Deanna continuou, não deixando a mulher aproveitar um intervalo que fosse na conversa para dizer uma palavra. Contou‑lhe como tinha ficado tão assustada e como tinha sido importante para eles o facto de Garrett os ter ido salvar. Depois de lisonjear a mulher dizendo‑lhe que as gentes no Sul e as de Wilmington em particular eram muito simpáticas e de lhe explicar que queria fazer uma história sobre a hospitalidade sulista e a sua generosidade para com os estranhos, a mulher estava mais do que disposta a ajudar.

‑ Visto que está apenas a querer confirmar a informação e não a pedir algo que já não saiba, tenho a certeza de que não haverá problema. Queira aguardar um segundo.

Deanna tamborilava os dedos sobre a secretária enquanto os sons de Barry Manilow surgiam através do auscultador. A mulher pegou de novo no auscultador.


‑ Ora vamos lá ver... ‑ Deanna ouviu o martelar de teclas, depois um estranho ruído estridente. Passado um momento, a mulher disse as palavras que tanto Deanna como Theresa esperavam que ela dissesse. ‑ Sim, está aqui. Garrett Blake. Hum... tem o nome certo, pelo menos de acordo com a informação que temos. Diz aqui que o nome do barco é Happenstance.

Deanna agradeceu‑lhe profusamente e pediu o nome da senhora, "para que pudesse escrever sobre outra pessoa que representasse a hospitalidade do sul". Depois de voltar a soletrar o nome para que a mulher o confirmasse, desligou o telefone, radiante.

‑ Garrett Blake ‑ disse ela com um sorriso de vitória. ‑ O nosso escritor misterioso chama‑se Garrett Blake.

‑ Não consigo acreditar que o tenhas encontrado.

Deanna acenou com a cabeça como se tivesse conseguido algo de que até ela própria duvidava.

‑ Acredita. Esta velhota ainda sabe como fazer uma investigação.

‑ Lá isso sabes.

‑ Mais alguma coisa que queiras saber?

Theresa pensou durante um momento.

‑ Consegues descobrir alguma coisa sobre Catherine?

Deanna encolheu os ombros e preparou‑se para a tarefa.

‑ Não sei, mas podemos tentar. Vamos ligar para o jornal para ver se têm alguma coisa nos arquivos. Se a morte foi acidental, pode ter sido publicada.

Deanna ligou novamente para o jornal e pediu para lhe ligarem para o departamento de notícias. Infelizmente, depois de falar com algumas pessoas, foi‑lhe dito que os jornais de há alguns anos atrás estavam registados em microfichas e que a sua consulta não era fácil sem uma data específica. Deanna pediu e recebeu o nome de alguém com quem Theresa podia entrar em contacto quando lá fosse, no caso de querer procurar sozinha a informação.

‑ Acho que é tudo o que podemos fazer a partir daqui. O resto depende de ti, Theresa. Mas pelo menos sabes onde encontrá‑lo.

Deanna estendeu‑lhe a folha de papel com o nome. Theresa hesitou. Deanna olhou para ela durante um momento, depois colocou o papel em cima da secretária. Pegou no telefone mais uma vez.

‑ Agora a quem é que estás a telefonar?

‑ à minha agência de viagens. Vais precisar de um voo e de um lugar para ficar.

‑ Ainda nem sequer disse se ia ou não.

‑ Oh, mas tu vais.

‑ Como podes ter tanta certeza?

‑ Porque não te quero por aí sentada na redacção durante todo o ano a pensar no que poderia ter sido. Não trabalhas bem quando andas distraída.

‑ Deanna...   

‑ Não me venhas com Deannas. Sabes muito bem que a curiosidade iria dar contigo em doida. já está a dar comigo em doida.

‑ Mas...


‑ Mas nada. ‑ Ela fez uma breve pausa, e as palavras surgiram mais suaves. ‑ Theresa, lembra‑te, não tens nada a perder. O pior que pode acontecer é voltares para casa dentro de dois dias. Só isso. Não vais em busca de nenhuma tribo de canibais. Vais apenas procurar saber se a tua curiosidade se justificava ou não.

Permaneceram em silêncio enquanto olhavam uma para a outra. Deanna tinha um ligeiro sorriso atrevido no rosto, e Theresa sentiu a pulsação a acelerar quando a finalidade da decisão a atingiu. "Meu Deus, vou mesmo fazer isto. Não posso acreditar que vá fazer isto".

Mesmo assim fez mais uma frouxa tentativa de recusa.

‑ Nem sequer sei o que diria se acabasse por encontrá‑lo...            

‑ Tenho a certeza de que te ocorrerá algo na altura. Agora deixa‑me tratar desta chamada. Vai buscar a tua carteira. Vou precisar de um número de cartão de crédito.

A mente de Theresa rodopiava enquanto se dirigia para a sua secretária. Garrett Blake. Wilmington. Island Diving. Happenstance. As palavras não paravam de girar em torno da sua cabeça, como se estivesse a ensaiar para um papel numa peça de teatro.

Abriu com uma chave a gaveta de baixo onde guardava a carteira e deteve‑se por um segundo antes de voltar. Mas outra coisa apoderara‑se dela, e acabou por entregar a Deanna um cartão de crédito. à tardinha do dia seguinte ela partiria para Wilmington, Carolina do Norte.

Deanna disse‑lhe para tirar o resto do dia e o seguinte de folga, e quando ia a sair do escritório, Theresa sentiu‑se como se tivesse sido quase forçada a fazer algo que não tinha a certeza se devia, da mesma maneira como ela quase forçara o velho Prof. Shendakin a enviar‑lhe a cópia da carta.

Mas ao contrário do que acontecera com o Prof Shendakin, lá bem no fundo ela sentia‑se satisfeita, e depois de o avião aterrar em Wilmington no dia seguinte, Theresa Osborne registou‑se num hotel, perguntando a si mesma onde tudo aquilo iria parar.


 

Theresa acordou cedo, como era seu costume, e levantou‑se da cama para olhar através da janela. O sol da Carolina do Norte projectava prismas dourados através de uma neblina matinal, e ela abriu a porta da varanda para refrescar o quarto.

Na casa de banho, despiu o pijama e preparou‑se para tomar um duche. Ao entrar para a banheira, pensava em como fora fácil chegar até ali. Há pouco menos de quarenta e oito horas tinha estado sentada com Deana a estudar as cartas, a fazer telefonemas e a procurar Garrett. Depois de ter chegado a casa, falou com Ella, que mais uma vez aceitou recolher o correio e cuidar de Harvey.

No dia seguinte fora à biblioteca e estudara mergulho a fundo. Parecia ser o mais lógico a fazer. Os seus anos como jornalista haviam‑na ensinado a não aceitar nada de ânimo leve, a planear as coisas, e a fazer o seu melhor para se preparar para qualquer eventualidade.

O plano que por fim preparara era simples. Visitaria a Island Diving e daria uma olhadela pela loja, na esperança de conseguir ver Garrett Blake. Se se revelasse tratar‑se de um homem de setenta anos ou de um estudante de vinte, ela daria simplesmente meia volta e regressaria a casa. Mas se os instintos delas estivessem certos e ele parecesse ser mais ou menos da idade dela, ela tentaria falar com ele. Por essa razão resolvera aprender alguma coisa sobre mergulho ‑ queria dar a entender que percebia algo do assunto. E provavelmente conseguiria saber mais dele se pudesse falar‑lhe de algo em que ele estivesse interessado, sem ter de lhe revelar demasiado acerca de si própria. Teria então um melhor domínio sobre as coisas.

Mas e depois? Essa era a parte sobre a qual ela não estava muito certa. Não queria contar a Garrett toda a verdade sobre a razão que a trouxera ali ‑ iria parecer uma loucura. Olá, eu li as cartas que escreveu a Catherine, e sabendo o quanto a amou, pensei que você poderia ser o homem de quem tenho andado à procura. Não, isso estava fora de questão, e a outra opção não parecia muito melhor ‑ Olá, sou do Boston Times e descobri as suas cartas. Será que podíamos fazer uma reportagem sobre si? Também não parecia certo. Tão‑pouco qualquer das outras ideias que lhe passavam pela cabeça.

Mas ela não tinha chegado tão longe para desistir agora, apesar de não saber o que dizer. Além disso, como dissera Deanna, se não resultasse, regressaria simplesmente a Boston.

Saiu do chuveiro, secou‑se antes de aplicar loção nos braços e nas pernas, vestiu uma blusa branca de manga curva e calções de ganga, e calçou um par de sandálias brancas. Queria ter um ar informal, e tinha. O que não queria era que reparassem logo nela. Afinal, não sabia aquilo que a esperava, e queria ter a oportunidade de avaliar a situação à sua maneira, sem ter de lidar com mais ninguém.

Quando finalmente estava preparada para partir, encontrou uma lista telefónica, folheou‑a, e escrevinhou a morada de Island Diving num pedaço de papel. Respirou fundo duas vezes, e pouco depois estava a atravessar o vestíbulo do hotel. Mais uma vez repetiu o mantra de Deanna.


A sua primeira paragem foi numa loja de conveniência, onde comprou um mapa de Wilmington. O empregado também lhe deu direcções, e ela encontrou facilmente o caminho, apesar de Wilmington ser maior do que ela imaginara. As ruas estavam cheias de automóveis, especialmente junto às pontes que davam para as ilhas mesmo ao largo da costa. Kure Beach, Carolina Beach e Wrightsville Beach, eram alcançadas por pontes que partiam da cidade, e era para aí que a maioria do tráfego parecia dirigir‑se. Island Diving situava‑se perto da marina. Depois de ter atravessado a cidade, o trânsito ficou um pouco menos congestionado, e ao chegar à estrada que procurava, abrandou a marcha e procurou pela loja.

Não ficava longe do ponto onde tinha virado. Tal como esperara, alguns carros estavam estacionados ao lado do edifício. Parou num espaço a alguns lugares da entrada.

Era um edifício antigo de madeira, desbotado por causa do ar salgado e das brisas marinhas, com um dos lados da loja virado de frente para o Canal Intracosteiro do Atlântico. O letreiro pintado à mão estava preso por duas correntes de metal enferrujadas, e as janelas tinham o aspecto baço provocado por um milhar de tempestades.

Saiu do carro, afastou o cabelo do rosto, e dirigiu‑se para a entrada. Parou antes de abrir a porta para respirar fundo e concentrar‑se, depois entrou, fazendo o seu melhor para fingir que estava ali por razões banais.

Deu uma vista de olhos pela loja, caminhando ao longo dos corredores, observando os vários clientes a tirar e a repor artigos das prateleiras. Estava atenta para ver se reparava em alguém com ar de trabalhar ali. Olhou furtivamente para todos os homens na loja, perguntando, És o Garrett? A maior parte, porém, parecia ser cliente.

Dirigiu‑se para a parede de trás e deu por si a olhar para uma série de artigos de jornais e revistas, emoldurados e laminados, pendurados por cima das prateleiras. Depois de uma rápida vista de olhos, inclinou‑se para a frente para ver melhor e de repente apercebeu‑se de que descobrira a resposta para a primeira pergunta que tinha sobre o misterioso Garrett Blake.

Finalmente sabia qual era a sua aparência.

O primeiro artigo, fotocopiado de um jornal, era sobre mergulho, e a legenda por baixo da fotografia dizia simplesmente: "Garrett Blake da Island Diving, preparando a sua classe para o primeiro mergulho no oceano".

Na fotografia ele estava a ajustar as alças que seguravam a garrafa de ar às costas de um estudante, e ela podia perceber pela fotografia que ela e Deanna tinham tido razão acerca dele. Aparentava trinta e tal anos, com uma cara magra e cabelo castanho curto que parecia ter alourado um pouco por causa das horas passadas ao sol. Ele era cerca de cinco centímetros mais alto que o estudante, e a camisa sem mangas que usava revelava músculos bem demarcados nos seus braços.

Porque a fotografia era um pouco granulosa, não conseguia divisar a cor dos olhos, embora pudesse perceber que o rosto estava também curtido pelo tempo. Pensou ver rugas nos cantos dos olhos, embora isso pudesse ter sido provocado pelo semicerrar dos olhos ao sol.


Leu o artigo com atenção, tomando nota da altura em que ele normalmente dava as suas aulas e de alguns dados sobre como conseguir o certificado. O segundo artigo não tinha fotografia mas era sobre um tipo de mergulho destinado à busca de restos de navios naufragados, muito popular na Carolina do Norte. A Carolina do Norte, assim parecia, tinha mais de quinhentos naufrágios identificados ao largo da costa, conhecida como o Cemitério do Atlântico. Há séculos que os barcos ali naufragavam por causa das Outer Banks e outras ilhas mesmo ao largo.

O terceiro artigo, também sem fotografia, dizia respeito ao Monitor, o primeiro couraçado federal da Guerra Civil. A caminho da Carolina do Sul, afundara‑se ao largo do cabo Hatteras em 1862 ao ser rebocado por um barco a vapor. Os restos tinham finalmente sido descobertos, e Garrett Blake, juntamente com outros mergulhadores do Instituto Marítimo de Duke, tinha sido convidado a mergulhar até ao fundo do oceano para explorar a possibilidade de trazê‑los para a superfície.

O quarto artigo era sobre o Happenstance. Tinham sido tiradas oito fotografias do barco de vários ângulos, por dentro e por fora, todas com pormenores do restauro. O barco, ficou ela a saber, era quase único, pois era feito inteiramente de madeira e tinha sido construído originalmente em Lisboa, Portugal, em 1927. Projectado por Herreschoff, um dos mais notáveis engenheiros marítimos daquela altura, tinha uma longa história cheia de aventuras (como a da sua utilização na Segunda Guerra Mundial para espiar as guarnições alemãs ao longo da costa francesa). Por fim o barco foi parar a Nantucket, onde fora comprado por um homem de negócios local. Quando Garrett Blake o comprara há quatro anos, estava já em estado de ruína, e o artigo dizia que ele e a sua mulher, Catherine, o haviam restaurado.

Catherine...

Theresa olhou para a data do artigo. Abril de 1992. O artigo não dizia que Catherine tivesse morrido, e visto que uma das cartas que ela possuía fora encontrada há três anos em Norfolk, isso significava que Catherine devia ter falecido em 1993.

‑ Posso ajudá‑la?   

Theresa virou‑se instintivamente para a voz atrás dela. Um homem novo estava a sorrir, e ela sentiu‑se de súbito contente por ter visto uma fotografia de Garrett momentos antes. Esta pessoa não era ele, obviamente.

‑ Assustei‑a? ‑ perguntou ele, e Theresa abanou depressa a cabeça.

‑ Não... estava só a ver as fotografias.

Ele acenou com a cabeça na direcção delas.

‑ É qualquer coisa, não é.

‑ O quê?

‑ Happenstance. Garrett ‑ o dono da loja ‑ reconstruiu‑o. É um barco impressionante. Um dos mais bonitos que já vi, agora que já está acabado.

‑ Ele está aqui? Garrett, quero dizer.

‑ Não, está lá em baixo nas docas. Ele só aparece por aqui lá para o fim da manhã.

‑ Oh...

‑ Posso ajudá‑la a encontrar qualquer coisa? Sei que a loja está um pouco desarrumada, mas tudo o que precisa para fazer mergulho pode encontrar aqui.

Ela abanou a cabeça.


‑ Não, obrigada, na verdade estava só a dar uma vista de olhos.

‑ Está bem, mas se puder ajudá‑la a encontrar alguma coisa, chame‑me.

‑ Com certeza ‑ disse ela, e o jovem acenou bem‑disposto com a cabeça, depois voltou‑se e dirigiu‑se para o balcão na parte da frente da loja. Antes que ela pudesse conter as palavras, ouviu‑se perguntar:

‑ Disse que Garrett estava nas docas?

Ele voltou‑se de novo e continuou a andar para trás enquanto falava.

‑ Sim, a dois quarteirões daqui pela estrada. Na marina. Sabe onde fica?

‑ Acho que passei por lá quando vinha para aqui.      

‑ Ele deve estar por lá mais uma hora ou coisa assim, mas como disse, se voltar mais tarde, ele estará cá. Quer que deixe uma mensagem?

‑ Não, não é preciso. Não é assim tão importante.

Passou os três minutos seguintes fingindo examinar diferentes artigos nas prateleiras, depois saiu porta fora despedindo‑se com um aceno ao jovem.

Mas em vez de ir para o carro, tomou a direcção da marina.

Quando chegou à marina, olhou em volta, esperando ver o Happenstance. Encontrou‑o facilmente uma vez que a grande maioria dos barcos era branca e o Happenstance de madeira natural. Encaminhou‑se então para a devida rampa.

Embora se sentisse nervosa quando começou a descer a rampa, os artigos na loja tinham‑lhe dado algumas ideias sobre o que conversar. Quando o encontrasse, ela explicaria simplesmente que depois de ler o artigo sobre o Happenstance, quisera vir ver o barco de perto. Iria parecer credível, e com sorte poderia conseguir uma conversa mais longa. Então, claro, ficaria já com uma ideia de como ele era em pessoa. E depois disso... bem, depois se veria.

à medida que se aproximava do barco, porém, a primeira coisa em que reparou foi que ninguém parecia estar por perto. Não havia ninguém a bordo, não havia ninguém nas docas, e parecia que ninguém ali estivera durante a manhã inteira. O barco encontrava‑se desaparelhado, a vela coberta, e nada parecia fora do lugar. Depois de olhar em volta à procura de um sinal dele, verificou o nome na popa. Era de facto Happenstance. Afastou para o lado algum cabelo que o vento lhe atirara à cara, enquanto ponderava sobre o assunto. Estranho, pensou, o homem na loja dissera‑lhe que ele estaria ali.


Em vez de voltar imediatamente para a loja, ela demorou‑se um momento para apreciar o barco. Era muito bonito, pujante e bem constituído, ao contrário dos que o rodeavam. Tinha muito mais carácter do que os outros barcos à vela atracados a seu lado, e ela percebeu porque é que o jornal fizera uma reportagem sobre ele. De certa maneira, lembrava‑lhe uma versão muito mais pequena dos navios de piratas que ela tinha visto no cinema. Passeou de um lado para o outro durante alguns minutos, examinando‑o de ângulos diferentes, perguntando a si mesma qual teria sido o seu estado de degradação antes do restauro. Grande parte dele parecia construído de madeira nova, embora calculasse que eles não a teriam substituído toda. Tinham‑na provavelmente lixado, e quando se aproximou para ver de mais perto, reparou em chanfraduras no casco, confirmando a sua teoria.

Decidiu por fim tentar a Island Diving um pouco mais tarde. Era evidente que o homem da loja estava enganado. Depois de um último relance ao barco, voltou‑se para se ir embora.

Um homem encontrava‑se na rampa a alguns metros de distância, observando‑a com atenção.

Garrett...        

Estava a transpirar devido ao calor da manhã, e tinha a camisa encharcada nalguns lugares. As mangas tinham sido rasgadas, revelando músculos firmes nos braços e antebraços. As mãos estavam pretas com o que parecia ser óleo, e o relógio de mergulhador que trazia no pulso parecia riscado, como se o usasse há anos. Vestia calções castanhos‑claros, calçava mocassins sem meias e tinha o aspecto de alguém que passava a maior parte do seu tempo, se não todo o tempo, perto do oceano.

Ele observou‑a quando ela deu, involuntariamente, um passo para trás.

‑ Posso ajudá‑la em alguma coisa? ‑ perguntou. Ele sorriu mas não se aproximou dela, como se receasse que ela se sentisse encurralada.

Que foi exactamente como ela se sentiu quando os seus olhos se encontraram.

Durante um momento tudo o que ela foi capaz de fazer foi olhar para ele. Apesar de o ter visto numa fotografia, parecia melhor de aspecto do que esperava, embora não soubesse ao certo porquê. Era alto e tinha ombros largos. Não particularmente bonito, tinha o rosto queimado e rugoso, como se o sol e o mar tivessem deixado as suas marcas. Os olhos não eram nem de perto tão hipnóticos quanto os de David, mas havia nele certamente algo de cativante. Algo de masculino no seu porte perante ela.

Lembrando‑se do seu plano, respirou fundo. Acenou em direcção ao Happenstance.

‑ Estava apenas a admirar o seu barco. É mesmo belo. Esfregando as mãos uma na outra para remover algum do óleo em excesso, ele disse cortesmente:

‑ Obrigado, é muito gentil da sua parte.

O olhar fixo dele parecia pôr a nu a realidade da situação, e subitamente tudo lhe veio à cabeça de uma só vez ‑ o encontrar a garrafa, a sua crescente curiosidade, a investigação que tinha feito, a sua viagem a Wilmington, e finalmente aquele encontro, cara a cara. Aturdida, ela fechou os olhos e deu por si a esforçar‑se por se controlar. De certo modo não esperara que aquilo acontecesse tão depressa. Sentiu de repente um momento de terror puro.

Ele deu um pequeno passo em frente.

‑ Sente‑se bem? - perguntou numa voz preocupada.

Respirando fundo novamente e esforçando‑se por se descontrair, ela disse:

‑ Sim, acho que sim. Foi só uma pequena tontura.

‑ Tem a certeza?    

Ela passou a mão pelo cabelo, envergonhada.

‑ Sim. Estou bem agora, A sério.


‑ Ainda bem ‑ disse ele, como se esperando para ver se ela estava a dizer a verdade. Em seguida, depois de ter certeza de que ela estava mesmo a ser verdadeira, perguntou com curiosidade. ‑ Já nos conhecemos?         

Theresa abanou lentamente a cabeça.

‑ Penso que não.

‑ Então como é que sabia que o barco era meu?

Aliviada, ela respondeu:

‑ Oh... vi a sua fotografia na loja, nos artigos na parede, com as fotografias do barco. O rapaz lá na loja disse que estaria aqui, e eu pensei que já que assim era, deveria vir ver com os meus próprios olhos.

‑ Ele disse que eu estava aqui?

Ela fez uma pausa enquanto se lembrava das palavras exactas.

‑ Na verdade, ele disse‑me que você estava nas docas. Eu apenas supus que isso quereria dizer que você estava aqui.

Ele acenou com a cabeça.

‑ Estava no outro barco, o que usamos para o mergulho.

Um pequeno barco de pesca fez soar a sua sirene, e Garrett voltou‑se e acenou para o homem que estava no convés. Depois de o barco ter passado, ele olhou de novo para ela e ficou admirado com a sua beleza. Parecia ainda mais bonita vista de perto do que quando a tinha visto do outro lado da marina. Num impulso, ele baixou o olhar e estendeu a mão para tirar o lenço vermelho que trazia no bolso de trás das calças. Limpou o suor da testa.

‑ Fez um belo trabalho de restauração ‑ disse Theresa. Ele sorriu vagamente enquanto guardava o lenço.

‑ Obrigado, é gentil da sua parte.            

Theresa olhava para o Happenstance enquanto falava, depois olhou de novo para ele.

‑ Eu sei que não tenho nada a ver com isso ‑ disse casualmente ‑, mas já que está aqui, importa‑se que lhe faça algumas perguntas sobre ele?

Ela pôde perceber pela expressão dele que não era a primeira vez que lhe pediam para falar sobre o barco.

‑ O que é que gostaria de saber?

Ela fez o seu melhor para manter um tom de conversa.

‑ Bem, estava assim em tão mau estado quando o comprou como sugere o artigo?

‑ Na verdade estava em muito pior estado. ‑ Ele deu um passo em frente e apontou para os vários pontos do barco à medida que se ia referindo a eles. ‑ A maior parte da madeira junto à proa tinha apodrecido, havia uma série de rombos nos lados ‑ era um milagre ele estar ainda a flutuar sequer. Acabámos por ter de substituir grande parte do casco e do convés, e o que restou dele teve de ser lixado completamente e depois vedado e envernizado de novo. E isso foi só a parte de fora. Também tivemos de fazer a parte de dentro, e isso levou muito mais tempo.

Embora ela tivesse reparado que ele usara o plural na sua resposta, decidiu não fazer qualquer comentário sobre o facto.

‑ Deve ter sido muito trabalhoso.

Ela sorriu quando falou, e Garrett sentiu algo a apertar‑se por dentro. "Raios, ela é bela."

‑ Foi, mas valeu a pena. É mais divertido velejar nele do que nos outros barcos.

‑ Porquê?

‑ Porque foi construído por pessoas que o usavam como modo de ganhar a vida. Puseram muito cuidado e dedicação na sua construção, e isso torna a navegação muito mais fácil.


‑ Suponho que já saiba velejar há muito tempo.

‑ Desde criança.     

Ela acenou com a cabeça. Depois de uma breve pausa, deu um pequeno passo em direcção ao barco.

‑ Importa‑se?

Ele abanou a cabeça.

‑ Não, esteja à vontade.    

Theresa aproximou‑se do barco e passou as mãos ao longo do flanco do casco. Garrett reparou que ela não usava aliança, embora isso não devesse ter qualquer importância. Sem se voltar, Theresa perguntou:

‑ Que tipo de madeira é esta?

‑ Mogno.

‑ O barco todo?

‑ A maior parte. Tirando os mastros e parte do interior. Ela acenou de novo com a cabeça, e Garrett observou‑a a caminhar ao lado do Happenstance. à medida que ela se afastava, ele não podia deixar de notar a sua figura e como o seu cabelo liso e escuro lhe roçava os ombros. Mas não era apenas a aparência dela que lhe chamava a atenção ‑ havia confiança na maneira como ela se movimentava. Era como se ela soubesse exactamente o que os homens estavam a pensar quando ela estava perto deles, percebeu ele subitamente. Abanou a cabeça.

‑ É mesmo verdade que usaram este barco para espiar os alemães na Segunda Guerra Mundial? ‑ perguntou ela, voltando‑se para ele.

Ele soltou um riso abafado, fazendo o seu melhor para pôr a cabeça no lugar.

‑ Isso foi o que o anterior proprietário me disse, mas não sei se era verdade ou se o disse para conseguir um preço mais alto.

‑ Bem, mesmo que não tenha sido, ainda assim é um belo barco. Quanto tempo levou para restaurá‑lo?

‑ Quase um ano.

Ela espreitou por uma das janelas redondas, mas estava demasiado escuro para se poder ver alguma coisa do interior.

‑ Em que barco é que andava enquanto estava a restaurar o Happenstance?

‑ Não andávamos. Não havia tempo suficiente, não com o trabalho na loja, dar aulas, e tentar arranjar o barco.

‑ Teve de passar por algum síndroma de abstinência por não poder velejar? ‑ disse ela com um sorriso.

Pela primeira vez, Garrett percebeu que estava a divertir‑se com a conversa.

‑ Claro. Mas tudo ficou bem logo que acabámos e o lançámos ao mar.

De novo, ela ouviu‑o a usar o plural.

‑ Acredito.     

Depois de admirar o barco durante mais alguns segundos, voltou para junto dele. Por um instante, nenhum dos dois falou. Garrett perguntava a si mesmo se ela sabia que ele a observava de soslaio.

‑ Bem ‑ disse ela por fim, cruzando os braços. ‑ Provávelmente já tomei demasiado do seu tempo.

‑ Não faz mal ‑ disse ele, e sentiu mais uma vez o suor na testa. ‑ Adoro falar sobre velejar.

‑ Também gostaria. Sempre me pareceu divertido.


‑ Dá a impressão de que nunca andou de barco à vela.

Ela encolheu os ombros.

‑ Nunca. Sempre quis fazê‑lo, mas na verdade nunca tive a oportunidade.

Ela olhou para ele enquanto falava, e quando os seus olhos se cruzaram, Garrett deu por si à procura do seu lenço pela segunda vez em poucos minutos. "Raios, está calor aqui." Limpou a testa e ouviu as palavras saírem da sua boca antes que as pudesse deter.

‑ Bem, se quiser vir, eu normalmente saio para o mar depois do trabalho. Se quiser, terei muito gosto em que me acompanhe esta tarde.

Porque teria dito ele aquilo, não o sabia ao certo. Talvez, pensou ele, o desejo de uma companhia feminina depois de todos aqueles anos, mesmo só por um curto período de tempo. Ou talvez tivesse alguma coisa a ver com a maneira como os olhos dela se iluminavam sempre que ela falava. Mas qualquer que fosse a razão, ele acabara de pedir‑lhe para o acompanhar, e nada havia que pudesse fazer para alterar esse facto.

Theresa também ficou um pouco surpreendida, mas decidiu logo aceitar. Era aquela, afinal, a razão porque viera a Wilmington.

‑ Adoraria ‑ disse ela. ‑ A que horas?     

Ele guardou o lenço, sentindo‑se um pouco desconcertado com o que acabara de fazer.

‑ Que tal sete horas? O Sol começa a pôr‑se então, e é a altura ideal para sair.

‑ Sete horas está óptimo para mim. Trago alguma coisa para comermos. ‑ Para surpresa de Garrett, ela parecia ao mesmo tempo satisfeita e entusiasmada com a perspectiva.

‑ Não tem de fazer isso.

‑ Eu sei, mas é o mínimo que posso fazer. Afinal, não tinha de convidar‑me para ir consigo. Podem ser sanduíches?

Garrett deu um pequeno passo atrás, subitamente precisando de um pequeno espaço para respirar.

‑ Sim, óptimo. Não sou assim tão exigente.

‑ Muito bem ‑ disse ela, depois fez uma breve pausa. Transferiu o seu peso de um pé para o outro, esperando para ver se ele dizia mais alguma coisa. Como ele nada disse, ela ajustou distraidamente a alça da mala no ombro. ‑ Bem, encontramo‑nos então logo à tarde. Aqui no barco, certo?

‑ Aqui mesmo ‑ disse ele, e apercebeu‑se de como soava tão tenso. Pigarreou e sorriu um pouco. ‑ Vai ser divertido. Vai gostar.

‑ Tenho a certeza que sim. Até logo.      

Ela voltou‑se e começou a andar e o seu cabelo voou com a brisa. Estava a afastar‑se quando Garrett se apercebeu do que se esquecera.

‑ Ei! ‑ gritou.

Ela parou e voltou‑se para ele, usando a mão para proteger os olhos do sol.

‑ Sim?

Mesmo à distância ela era bonita.          

Ele deu alguns passos na direcção dela.

‑ Esqueci‑me de lhe perguntar: como é que se chama?

‑ Sou a Theresa. Theresa Osborne.

‑ Eu chamo‑me Garrett Blake.

‑ Muito bem, Garrett. Até às sete.            


Com isto, deu meia volta e encaminhou‑se ligeira para fora das docas. Garrett ficou a observar a figura dela a desaparecer, tentando compreender as suas próprias emoções contraditórias. Embora uma parte dele se sentisse entusiasmada com o que acabara de acontecer, a outra parte achava que havia algo de errado naquilo tudo. Sabia que não havia qualquer razão para se sentir culpado, mas a sensação estava decididamente presente, e desejava que houvesse alguma coisa que pudesse fazer em relação a isso.

Mas não havia, claro. Nunca havia.


 

Os ponteiros do relógio passaram a hora do almoço e continuaram a girar até às sete horas, mas para Garrett Blake, o tempo parara três anos antes quando Catherine dera um passo para fora da borda do passeio e fora atropelada por um homem de idade que perdera o controlo do seu carro e alterara para sempre as vidas de duas famílias diferentes. Nas semanas que se seguiram, a raiva dirigida contra o condutor acabou por se transformar em planos de vingança que nunca seriam cumpridos, simplesmente porque a sua dor o tornava incapaz de qualquer tipo de acção. Ele não conseguia dormir mais do que três horas por noite, chorava sempre que via as roupas dela no guarda‑roupa, e perdeu quase dez quilos com uma dieta de café e bolachas de água e sal. No mês seguinte começou a fumar pela primeira vez na vida e recorria ao álcool nas noites em que a dor era demasiado insuportável para enfrentá‑la sóbrio. O seu pai tomou conta dos negócios temporariamente enquanto Garrett se sentava em silêncio na varanda das traseiras da casa, tentando imaginar um mundo sem ela. Não tinha nem a vontade nem o desejo de continuar a existir, e às vezes, enquanto estava ali sentado, tinha esperanças de que o ar húmido e salgado o engolisse completamente para que não tivesse de enfrentar o futuro sozinho.

O que tornava as coisas tão difíceis era o facto de ele não conseguir lembrar‑se de um tempo em que ela não estivesse presente. Tinham‑se conhecido durante a maior parte das suas vidas e tinham frequentado as mesmas escolas ao longo de toda a infância e juventude. No terceiro ano eram os melhores amigos, e ele ofereceu‑lhe dois cartões no Dia de S. Valentim, mas depois disso, afastaram‑se um do outro e coexistiam simplesmente à medida que avançavam de um ano escolar para o outro. Catherine era desengonçada e magra, sempre a mais baixa na sua turma, e embora Garrett tivesse sempre guardado um lugar especial no seu coração para ela, nunca reparou que ela estava lentamente a tornar‑se numa jovem atraente. Nunca foram a um baile de estudantes juntos ou ao cinema sequer, mas após quatro anos em Chapel Hill, onde se formou em biologia marinha, Garrett encontrou‑a por acaso em Wrightsville Beach percebendo de repente como havia sido idiota. Ela já não era a rapariga desengonçada de que ele se recordava. Era, numa palavra, bela, com curvas maravilhosas que faziam virar a cabeça tanto a homens como a mulheres sempre que ela passava. O cabelo era louro e os olhos continham um mistério infindável; e , quando ele finalmente fechou a boca escancarada e lhe perguntou o que ia fazer mais tarde, iniciaram uma relação que acabou por conduzir ao casamento e a seis maravilhosos anos juntos.

Na noite de núpcias, sozinhos num quarto de hotel iluminado apenas com velas, ela entregou‑lhe os dois cartões do Dia de S. Valentim que ele lhe dera em tempos e riu‑se alto quando viu a expressão dele assim que percebeu do que se tratava.

‑ Claro que os guardei ‑ murmurou ela, enquanto o abraçava. ‑ Foi a primeira vez que amei alguém. Amor é amor, não importa a idade que tem, e eu sabia que se te desse tempo suficiente, tu voltarias para mim.


Sempre que Garrett pensava nela, lembrava‑se ou da sua aparência naquela noite ou da última vez que tinham ido andar de barco. Mesmo depois de tanto tempo ele lembrava‑se nitidamente daquele fim de tarde ‑ o cabelo louro dela voando selvagem na brisa, o seu rosto exaltado quando se ria alto.

‑ Sente os salpicos de água! ‑ gritou ela exultante da proa do barco. Agarrando‑se a uma corda, inclinava‑se para a frente na direcção do vento, o perfil desenhado contra o céu reluzente.

‑ Tem cuidado! ‑ gritou Garrett, mantendo firme a roda do leme.     

Ela inclinou‑se ainda mais para fora, olhando de lado para Garrett com um sorriso travesso.

‑ Estou a falar a sério! ‑ gritou ele de novo. Por um momento pareceu que o pulso dela estava a fraquejar. Garrett largou rapidamente a roda do leme, apenas para a ouvir rir‑se de novo enquanto se endireitava. Sempre de andar ligeiro, ela dirigiu‑se com facilidade para junto do leme e abraçou‑o.

Beijando‑lhe a orelha, murmurou em tom de brincadeira:

‑ Pus‑te nervoso?

‑ Pões‑me sempre nervoso quando fazes essas coisas.

‑ Não estejas carrancudo ‑ troçou ela. ‑ Não agora que te tenho finalmente todo para mim.

‑ Tens‑me todo para ti todas as noites.

‑ Não desta maneira ‑ disse ela beijando‑o de novo. Depois de um rápido relance em redor, ela sorriu. ‑ Porque é que não descemos as velas e lançamos a âncora?

‑ Agora?       

Ela acenou que sim com a cabeça.

‑ A não ser, claro, que prefiras velejar toda a noite. ‑ Com uma expressão subtil que nada traía, ela abriu a porta da cabine e desapareceu de vista. Quatro minutos mais tarde o barco fora rapidamente estabilizado e ele abriu a porta para se juntar a ela...

 

Garrett exalou profundamente, dissipando a recordação como fumo. Embora conseguisse recordar‑se dos acontecimentos daquele fim de tarde, descobriu que à medida que o tempo ia passando, tornava‑se cada vez mais difícil visualizar exactamente a aparência física dela. Aos poucos as suas feições começavam a sumir‑se diante dos seus olhos, e embora soubesse que o esquecimento ajudava a apaziguar a dor, o que ele queria mais do que tudo era voltar a vê‑la. Em três anos tinha passado os olhos pelo álbum de fotografias apenas uma vez, e isso magoara‑o tanto que jurara ser aquela a última vez que o faria. Agora apenas a via nitidamente à noite, depois de ter adormecido. Adorava sonhar com ela, pois era como se ela ainda estivesse viva. Ela falava e mexia‑se, e ele abraçava‑a, e por um momento parecia que subitamente tudo estava bem no mundo. No entanto os sonhos também deixavam a sua marca, porque depois de acordar sentia‑se sempre exausto e deprimido. às vezes ia para a loja e fechava‑se à chave no escritório durante a manhã inteira para não ter de falar com ninguém.


O pai tentava ajudá‑lo o melhor que podia. Também ele tinha perdido a mulher e por isso sabia aquilo que o seu filho estava a passar. Garrett ainda o visitava pelo menos uma vez por semana e gostava sempre da sua companhia. Era a única pessoa com quem Garrett partilhava um verdadeiro entendimento, um sentimento retribuído pelo velho. No ano anterior o pai dissera‑lhe que ele devia começar a namorar de novo. "Não está certo que estejas sempre sozinho", dissera ele. "É quase como se tivesses desistido." Garrett sabia que havia algo de verdade naquelas palavras. Mas a verdade pura e simples era que ele não sentia qualquer desejo de conhecer outra pessoa. Não fazia amor com uma mulher desde que Katherine morrera, e pior, também não sentira qualquer desejo de o fazer. Era como se parte dele estivesse morta por dentro. Quando Garrett perguntou ao pai porque razão devia seguir o seu conselho quando ele próprio nunca tinha voltado a casar, o pai limitou‑se a desviar o olhar. Mas depois o pai dissera outra coisa que atormentava a ambos, algo que mais tarde desejou não ter dito.

"Achas mesmo possível encontrar outra pessoa suficientemente boa para a substituir?"

Com o tempo, Garrett voltou para a loja e começou a trabalhar de novo, fazendo o melhor para continuar a sua vida. Ficava na loja até o mais tarde possível, ordenando arquivos e reorganizando o escritório, pela simples razão de que era menos doloroso do que voltar para casa. Descobriu que se estivesse suficientemente escuro lá fora quando tivesse já regressado a casa e acendido apenas algumas luzes, acabava por não reparar tanto nas coisas dela e por não notar a sua presença tão forte. Habituou‑se de novo a viver sozinho, a cozinhar, a fazer limpezas, a lavar a sua própria roupa, e até cuidava do jardim tal como ela fazia, embora não gostasse tanto de o fazer como ela gostara.

Pensou que estava a melhorar, mas quando chegou a altura de arrumar as coisas de Catherine, não teve a coragem de o fazer. Acabou por ser o pai a tratar dessa tarefa. Depois de um fim‑de‑semana passado a mergulhar, Garrett regressou para encontrar a casa esvaziada dos pertences dela. Sem as coisas dela, a casa ficava vazia, já não via qualquer razão para nela viver. Vendeu‑a passado um mês, mudou‑se para uma casa mais pequena em Carolina Beach, pensando que ao deixá‑la, seria finalmente capaz de prosseguir a sua vida. E tinha‑o conseguido, em parte, durante mais de três anos até àquele momento.

O seu pai não encontrara tudo, porém. Numa pequena caixa na sua mesa de cabeceira, ele guardava algumas coisas das quais não conseguia separar‑se ‑ os cartões de S. Valentim que ele em tempos lhe dera, a aliança de casamento dela, e outras coisas que as pessoas não iriam compreender. à noite, já tarde, gostava de as segurar nas mãos, e apesar de o pai por vezes comentar que ele parecia estar melhor, ficava ali deitado a pensar que não, que não estava. Para ele, nada voltaria a ser como dantes.

 

Garrett Blake foi para a marina com alguns minutos de antecedência para poder aprontar o Happenstance. Retirou a cobertura das velas, abriu a cabine, e fez um exame geral ao barco.

O seu pai tinha aparecido no preciso momento em que ele ia a sair para as docas, e Garrett deu por si a recordar‑se da conversa.

‑ Queres aparecer lá em casa para jantar? ‑ tinha ele perguntado. Garrett respondera que não podia.

‑ Vou sair com o barco hoje à noite, com uma pessoa.


O pai tinha ficado calado durante um momento. Depois:

- Com uma mulher?

Garrett explicou resumidamente como ele e Theresa se tinham conhecido.

- Dá a impressão que estás um pouco nervoso por causa do teu encontro amoroso ‑ comentara o pai.

‑ Não, pai, não estou nervoso. E não é um encontro amoroso. Como eu disse, vamos apenas sair para andar de barco. Ela disse que nunca tinha andado de barco à vela antes.

‑ É bonita?

‑ O que é que isso interessa?

‑ Não interessa. Mas ainda assim continua a parecer‑me que se trata de um encontro amoroso.

‑ Não é um encontro amoroso.

‑ Se o dizes.

 

Garrett viu‑a caminhar ao longo da doca um pouco depois das sete, vestia de calções e uma camisa vermelha sem mangas carregava um pequeno cesto de piquenique numa mão e uma camisola e um casaco leve na outra. Ela não parecia tão nervosa quanto ele, nem a sua expressão revelava o que ela estava a pensar quando se aproximou. Quando ela acenou, ele sentiu a familiar sensação de culpa e acenou rapidamente em resposta antes de acabar de desatar as cordas. Estava a resmungar consigo mesmo e a fazer o seu melhor para pôr a mente em ordem quando ela chegou ao barco.

‑ Olá ‑ disse ela, descontraidamente. ‑ Espero que não tenha estado muito tempo à espera.

Ele tirou as luvas que trazia calçadas enquanto falava.

‑ Oh, olá. E não, não estive de modo nenhum muito tempo à espera. vim para cá um bocadinho mais cedo para preparar o barco.

‑ Já acabou de fazer tudo o que precisava?

Ele olhou em volta para se certificar.

‑ Sim, acho que sim. Posso ajudá‑la a subir?

Ele pôs de lado as luvas e estendeu o braço. Theresa passou‑lhe as suas coisas, e ele colocou‑as sobre um dos assentos que se estendiam ao longo do convés. Quando ele pegou nas mãos dela para a puxar para cima, ela sentiu os calos nas palmas das suas mãos. Depois de ela estar segura a bordo, ele fez um gesto em direcção à roda do leme, dando um pequeno passo atrás.

‑ Está pronta para zarpar?

‑ Quando você estiver.

‑ Então sente‑se e esteja à vontade. Eu vou tirar o barco para fora para nos fazermos ao mar. Quer beber alguma coisa antes de partirmos? Tenho refrigerantes no frigorífico.

Ela abanou a cabeça.

‑ Não, obrigado. Estou bem agora.         

Olhou em volta do barco antes de encontrar um lugar para se sentar ao canto. Observou‑o a girar uma chave e o som de um motor ganhou vida começando a zumbir. Depois, afastando‑se do leme, Soltou as duas cordas que amarravam o barco à doca. Lentamente o Happenstance começou a recuar para fora do seu lugar. Um pouco surpreendida, Theresa disse:

‑ Não sabia que havia um motor.

Ele voltou‑se e respondeu por cima do ombro, falando suficientemente alto para que ela o pudesse ouvir.


‑ É um motor pequeno, apenas a potência suficiente para nos ajudar a sair e entrar na marina. Pusemos‑lhe um motor novo quando o reconstruímos.

Happenstance afastou‑se do seu lugar na doca, depois da marina. Uma vez seguro nas águas do Canal, Garrett virou o barco na direcção do vento e desligou o motor. Depois de calçar as luvas, ele içou depressa a vela. O Happenstance inclinou‑se lateralmente perante a brisa, e num movimento rápido, Garrett estava ao lado de Theresa, encostando o seu corpo perto do dela.

‑ Cuidado com a cabeça, a retranca vai passar a girar por cima de si.

As poucas acções seguintes sucederam‑se furiosamente. Ela baixou a cabeça e viu tudo a acontecer exactamente da maneira como ele dissera que iria acontecer. A retranca passou por cima dela, levando a vela consigo para apanhar o vento. Quando estava na posição certa, ele utilizou as cordas para a prender de novo. Antes que ela tivesse tempo de pestanejar, ele estava de volta à roda do leme, fazendo ajustamentos e olhando por cima do ombro para a vela, como se a certificar‑se de que fizera tudo correctamente. Tudo aquilo não durou mais do que trinta segundos.

‑ Não sabia que era preciso fazer tudo tão rápido. Pensei que a vela fosse um desporto de lazer.

Ele olhou de novo por cima do ombro. Catherine costumava sentar‑se no mesmo sítio, e com o Sol poente repartindo as sombras, houve um breve momento em que ele pensou que era ela. Mas afastou o pensamento e tossiu.

‑ E é, quando se está no meio do oceano com mais ninguém em volta. Mas agora estamos no Canal, e temos de fazer o melhor para traçar um rumo fora do caminho dos outros barcos.

Ele segurava a roda do leme quase perfeitamente imóvel, e Theresa sentia o Happenstance gradualmente a ganhar velocidade. Levantou‑se e caminhou na direcção de Garrett, parando quando chegou ao lado dele. Soprava uma brisa, e embora ela a pudesse sentir no rosto, não parecia suficientemente forte para encher a vela.

‑ Pronto, acho que conseguimos ‑ disse ele com um sorriso fácil, olhando para ela. ‑ Talvez possamos continuar sem ter de velejar à bolina. A não ser que o vento mude, claro.

Dirigiam‑se para a enseada. Ela sabia que ele estava concentrado no que estava a fazer, e por isso manteve‑se calada enquanto permanecia ao seu lado. Do canto do olho, observava‑o ‑ as mãos fortes na roda do leme, as pernas compridas transferindo o seu peso de um lado para o outro à medida que o barco se inclinava ao vento.

No intervalo da conversa, Theresa olhava à sua volta. Como a maior parte dos barcos à vela, este tinha dois pisos ‑ o convés inferior, onde eles se encontravam, e o convés da frente, cerca de um metro e vinte mais alto, que se estendia até à proa do barco. Era aí que se encontrava a cabine, e havia duas pequenas janelas, cobertas na parte de fora com uma fina camada de sal que tornava impossível ver lá para dentro. Uma pequena porta suficientemente baixa para que as pessoas tivessem de baixar a cabeça, dava para a cabine.


Voltando‑se para ele, ela interrogava‑se sobre como seria Garrett. Com trinta e tal anos, provavelmente ‑ não conseguia precisar para além disso. Olhar para ele de perto não ajudava muito ‑ tinha a cara um pouco gasta, quase curtida pelo vento, o que lhe dava um aspecto distinto que sem dúvida o fazia parecer mais velho do que era.

Voltou a achar que ele não era o homem mais bonito que já tinha visto, mas havia nele algo de cativante, indefinível.

Durante a tarde, quando falara com Deanna ao telefone, ela tentara descrevê‑lo, mas tivera dificuldades em fazê‑lo porque ele não se parecia com a maioria dos homens que ela conhecia em Boston. Dissera a Deanna que ele tinha aproximadamente a idade dela, que era atraente à sua maneira e estava em boa forma, mas que tinha um aspecto natural, como se a sua força fosse simplesmente o resultado da vida que escolhera viver. Fora a descrição mais próxima da realidade que conseguira fazer na altura, embora após vê‑lo de perto novamente, achasse que não estivera muito longe da verdade.

Deanna ficou excitadíssima quando ela lhe contou que ia dar um passeio de barco à tardinha, embora Theresa tivesse passado Por um momento de dúvida logo a seguir. Por um instante Preocupou‑se com o facto de ir estar sozinha com um estranho ‑ especialmente em alto mar ‑ mas convenceu‑se de que os seus receios não tinham fundamento. Era como qualquer outro encontro, dissera a si mesma durante a maior parte da tarde. Não dês a isto demasiada importância. Contudo, quando eram horas de se dirigir para as docas, ela quase não partiu. Por fim, decidiu que era algo que tinha de fazer, principalmente por ela mesma, mas também por causa da descompostura que Deanna lhe daria se ela não fosse.

Quando se aproximaram da enseada, Garrett Blake virou a roda do leme. O barco reagiu e afastou‑se das margens, em direcção às águas profundas do Canal. Garrett olhava de um lado para o outro, observando os outros barcos enquanto mantinha o leme estável. Apesar do vento estar sempre a mudar, ele parecia ter o controlo absoluto do barco, e Theresa podia ver que ele sabia exactamente o que fazia.

Andorinhas‑do‑mar andavam às voltas por cima deles, enquanto o barco cortava as águas, deslizando com as correntes de ar ascendente. As velas ribombavam com o vento. A água passava a correr ao lado do barco. Tudo parecia estar em movimento sob o céu escurecido da Carolina do Norte.

Theresa cruzou os braços e foi buscar a camisola. Vestiu‑a, satisfeita por tê‑la trazido. O ar parecia já muito mais fresco do que quando tinham partido. O Sol estava a descer mais depressa do que ela esperava, e a luz esmorecida reflectia‑se nas velas, projectando sombras através da maior parte do convés.

Mesmo atrás do barco, a torrente de água zumbia e redemoinhava, e ela chegou‑se mais perto para ver melhor. Olhar para a água a rodopiar era hipnótico. Mantendo o equilíbrio, ela pôs a mão no parapeito e sentiu algo que tinha ainda de ser lixado. Olhando com atenção, reparou numa inscrição que ali se encontrava gravada: Construído em 1934 ‑ Restaurado em 1991.

As ondas de um barco maior passando à distância fizeram‑nos balouçar, e Theresa voltou para perto de Garrett. Ele estava de novo a virar a roda do leme, com mais força desta vez, e ela apanhou‑lhe um sorriso rápido quando ele fez sinal em direcção ao mar alto. Ela ficou a olhar para ele até o barco ter transposto em segurança a enseada.


Pela primeira vez no que parecia ser uma eternidade, ela fizera algo de completamente espontâneo, algo que não poderia ter imaginado fazer há menos de uma semana. E agora que estava feito, não tinha a certeza do que esperar. E se Garrett se revelasse contrário do que ela havia imaginado? Se isso acontecesse, regressaria a Boston com a sua resposta... mas por enquanto, esperava não ter de partir imediatamente. Já tinha acontecido demasiado...

Quando o Happenstance já se encontrava a uma distância segura dos outros barcos, Garrett pediu a Theresa para tomar conta do leme.

‑ É só mantê‑lo estável ‑ disse ele. Mais uma vez ajustou as velas, aparentemente em menos tempo do que da vez anterior. Retomando o leme, certificou‑se de que o barco rumava contra o vento, depois fez um pequeno laço com a corda da bujarrona e colocou‑a à volta do cabrestante na roda do leme, deixando cerca de dois centímetros e meio de corda bamba.

‑ Pronto, assim deve estar bem ‑ disse ele, dando pancadinhas na roda do leme para ver se ela ficava em posição. ‑ Podemo‑nos sentar agora se quiser.

‑ Não tem de o segurar?

‑ É para isso que serve o laço. às vezes ‑ quando o vento está mesmo incerto ‑ tem de se estar sempre a segurar no leme. Mas tivemos sorte com o tempo hoje. Podíamos velejar nesta direcção durante horas.

Com o Sol a pôr‑se lentamente no céu de fim de tarde por trás deles, Garrett conduziu Theresa de volta para onde estivera sentada. Depois de se certificar de que não havia nada atrás dela que lhe pudesse estragar a roupa, eles sentaram‑se no canto ‑ ela na parte lateral, ele contra a parte de trás ‑ diagonalmente, de modo a poderem olhar um para o outro. Sentindo o vento contra o rosto, Theresa puxou o cabelo para trás, olhando para a água.

Garrett observou‑a a fazer esse gesto. Ela era mais baixa do que ele ‑ cerca de um metro e setenta, calculou ‑ com uma cara bela e um corpo que lhe fazia lembrar os modelos que ele vira em revistas. Mas apesar de ela ser fisicamente atraente, havia qualquer Coisa mais nela que o atraía. Era inteligente, pôde pressentir isso imediatamente, e confiante, também, como se fosse capaz de viver a sua vida de acordo com as suas próprias condições. Para ele, essas eram coisas que realmente interessavam. Sem elas, a beleza nada era.

De certo modo, quando olhava para ela, lembrava‑se de Catherine. Sobretudo a sua expressão. Parecia estar a sonhar acordada enquanto olhava para a água, e ele sentiu os seus pensamentos a voltar para a última vez em que eles tinham velejado juntos. Mais uma vez sentiu‑se culpado, embora fizesse o seu melhor para afastar aqueles seus sentimentos. Abanou a cabeça e ajustou distraidamente a correia do relógio, primeiro afrouxando‑a, depois apertando‑a de novo na posição original.           

‑ Isto é mesmo bonito ‑ disse ela finalmente, virando‑se para ele. ‑ Obrigada por me ter convidado.

Ele ficou contente quando ela quebrou o silêncio.

‑ O prazer é todo meu. É bom ter companhia de vez em quando.

Ela sorriu com a resposta dele, perguntando a si mesma se seria verdade o que ele estava a dizer.


‑ Costuma sair sozinho, normalmente?

Ele recostou‑se no banco enquanto falava, esticando as pernas para a frente.

‑ Normalmente. É uma boa maneira de desanuviar depois do trabalho. Por mais tenso que tenha sido o dia, quando estou aqui, o vento parece varrer tudo para longe.

‑ O mergulho é assim tão difícil?

‑ Não, não é o mergulho. Essa é a parte divertida. É mais ou menos tudo o resto: a papelada no escritório, lidar com pessoas que cancelam as suas aulas à última hora, certificar‑me de que a loja tem a quantidade certa de tudo. Tudo isto pode tornar um dia cansativo.

‑ Não duvido. Mas gosta, não gosta?

‑ Sim, gosto. Não trocaria o que faço por nada. ‑ Ele fez uma pausa e ajustou o relógio no punho. ‑ Então, Theresa, o que é que faz? ‑ Era uma das poucas perguntas seguras em que ele pensara durante o curso da tarde.

‑ Sou colunista do Boston Times.

‑ Está aqui de férias?

Ela fez uma breve pausa antes de responder.

‑ Mais ou menos.

Ele acenou com a cabeça, como se estivesse à espera daquela resposta.

‑ Sobre o que é que escreve?

Ela sorriu.

‑ Escrevo sobre cuidados paternais. - Ela reparou na expressão de surpresa nos seus olhos, a mesma expressão em que reparava sempre que saía com alguém pela primeira vez. Mais vale acabar com isto logo, pensou para consigo. - Tenho um filho ‑ continuou ela. ‑ Tem doze anos.

Ele levantou as sobrancelhas.

‑ Doze?

‑ Parece chocado.  

- E estou. Não parece ter a idade suficiente para ter um filho com doze anos.

‑ Vou considerar isso um elogio ‑ disse ela com um sorriso afectado, não se deixando apanhar no engodo. Não se sentia ainda preparada para revelar a sua idade. ‑ Mas, sim, ele tem doze anos. Quer ver uma fotografia?

‑ Claro ‑ disse ele.  

Ela encontrou a carteira, tirou a fotografia, e entregou‑lha. Garrett Olhou para ela durante um momento, depois para Theresa.

‑ Ele tem a sua tez ‑ disse ele, devolvendo a fotografia. ‑ É um rapaz bem parecido.

‑ Obrigada. ‑ Enquanto guardava a fotografia, perguntou. ‑ E você? Tem filhos?

‑ Não. ‑ Ele abanou a cabeça. ‑ Nenhum filho. Pelo menos nenhum de que eu saiba. - Ela riu‑se com a resposta dele, e ele continuou: ‑ Como se chama o seu filho?

‑ Kevin.

‑ Ele está aqui consigo?

‑ Não, está com o pai na Califórnia. Divorciámo‑nos há uns anos.


Garrett acenou com a cabeça, sem fazer qualquer julgamento, depois olhou por cima do ombro para outro barco à vela passando ao longe. Theresa também o observou durante um momento, e no silêncio, reparou em como tudo era calmo ali no oceano, comparativamente às águas do Canal. Os únicos ruídos vinham da vela agitando‑se ao vento e da água sobre a qual o Happenstance avançava cortando as vagas. Ela achava que ali as suas vozes tinham um som diferente daquele que tinham quando estavam nas docas. Aqui eles pareciam quase livres, como se o ar livre os pudesse transportar para sempre.

‑ Gostaria de ver o resto do barco? ‑ perguntou Garrett. Ela acenou com a cabeça.

‑ Adoraria.    

Garrett levantou‑se e verificou as velas de novo antes de a conduzir para o interior do barco, com Theresa um passo atrás dele.

Quando ele abriu a porta fez uma pausa, de súbito dominado pelo fragmento de uma recordação há muito esquecida, mas agora desenterrada talvez pela novidade da presença daquela mulher.

 

Catherine estava sentada à pequena mesa com uma garrafa de vinho já aberta. à sua frente, um vaso com uma única flor recebia a luz de uma pequena vela a arder. A chama oscilava com o movimento do barco, projectando longas sombras através do interior do casco. Na semiescuridão, ele podia apenas vislumbrar o fantasma de um sorriso.

‑ Pensei que seria uma surpresa gira ‑ disse ela. ‑ Há muito tempo que não comemos à luz de velas.

Garrett olhou para o pequeno fogão. Os dois pratos embrulhados em folha de alumínio encontravam‑se ao lado.

‑ Quando é que trouxeste isto tudo para o barco?

‑ Quando estavas a trabalhar.

 

Theresa passou por ele em silêncio, deixando‑o na privacidade dos seus pensamentos. Se ela reparara na hesitação dele, não o demonstrara, e por isso Garrett estava‑lhe grato.

à esquerda de Theresa, um assento cobria um dos lados do barco ‑ largo e suficientemente comprido para que alguém pudesse dormir nele confortavelmente; no lado oposto do assento estava uma pequena mesa com espaço suficiente para duas pessoas se sentarem. junto à porta havia um lava‑louças e um fogão a gás com um pequeno frigorífico por baixo, e mesmo em frente uma porta dava para a cabine de dormir.

Ele manteve‑se afastado num dos lados com as mãos na cintura enquanto ela explorava o interior, examinando tudo. Não pairou sobre o ombro dela como alguns homens teriam feito mas em vez disso deu‑lhe espaço. Mesmo assim, podia sentir os olhos dele a observá‑la, embora ele não fosse indiscreto ao fazê‑lo. Depois de um momento ela disse:

‑ De fora ninguém diria que é tão grande.

‑ Eu sei. ‑ Garrett tossiu desajeitadamente. ‑ Surpreendente, não é?

‑ Sim, é. No entanto parece ter tudo o que uma pessoa precisa.

‑ E tem. Se quisesse, podia ir até à Europa. Não que o recomende. Mas é óptimo para mim.

Ele contornou‑a e dirigiu‑se ao frigorífico, dobrando‑se para tirar uma lata de Coca‑Cola do seu interior. ‑ Já lhe apetece beber alguma coisa?

- Está bem ‑ disse ela, passando as mãos pelas paredes, sentindo a textura da madeira.


‑ O que é que quer? Tenho Seven‑Up e Coca‑Cola.

‑ Pode ser Seven‑Up ‑ respondeu ela. Ele entregou‑lhe a lata. Os seus dedos tocaram‑se brevemente quando ela a recebeu.

‑ Não tenho gelo a bordo, mas está fria.

‑ Vou tentar sobreviver ‑ disse ela, e ele sorriu.

Ela abriu‑a e bebeu um gole antes de a colocar sobre a mesa.

Enquanto abria a sua lata, ele olhava para Theresa, pensando no que ela dissera antes. Tinha um filho com doze anos... e como colunista, isso queria dizer que provavelmente tinha frequentado a universidade. Se ela esperou até depois de terminar o curso para se casar e ter um filho... isso faria com que ela tivesse cerca de quatro ou cinco anos mais do que ele. Não tinha aspecto de ser muito mais velha do que isso ‑ disso tinha ele a certeza ‑ mas ela não se comportava como a maioria das mulheres de vinte e poucos anos que ele conhecia na vila. O seu comportamento revelava maturidade, algo que apenas aqueles que tinham já experimentado a sua quota parte de altos e baixos na vida conseguiam alcançar.

Não que isso tivesse qualquer importância.     

Ela voltou a sua atenção para uma fotografia emoldurada pendurada na parede. Nela, Garrett Blake estava de pé num pontão com um espadim que ele tinha pescado, parecendo muito mais novo do que era agora. Na foto ele sorria largamente, e a expressão alegre fazia‑a lembrar‑se de Kevin sempre que marcava um golo quando jogava futebol.

Interrompendo aquela pausa súbita ela disse:

‑ Vejo que gosta de pescar. ‑ Apontou para a fotografia. Ele aproximou‑se dela, e quando chegou perto, ela sentiu o calor irradiando dele. Ele cheirava a sal e vento.

‑ Sim, gosto ‑ disse ele baixinho. ‑ O meu pai era pescador de camarões, e pode dizer‑se que eu fui praticamente criado na água.

‑ Quantos anos tem esta fotografia?

‑ Essa tem cerca de dez anos ‑ foi tirada mesmo antes de eu voltar para o último ano de faculdade. Houve um concurso de pesca, e eu e o meu pai decidimos passar duas noites na Corrente do Golfo e apanhámos esse espadim a cerca de sessenta milhas da costa. Levou quase sete horas para trazê‑lo para cima porque o meu pai queria que eu aprendesse a fazê‑lo à moda antiga.

‑ O que é que isso quer dizer?     

Ele riu‑se baixinho.

‑ Basicamente significa que as minhas mãos ficaram cortadas em pedaços quando finalmente acabei, e mal podia mexer os ombros no dia seguinte. A linha que tínhamos escolhido não era na verdade suficientemente forte para um peixe daquele tamanho, por isso tivemos de deixar que o espadim nadasse até parar, depois recolher a linha lentamente, depois deixá‑lo nadar de novo o dia inteiro, até o bicho estar demasiado cansado para continuar a lutar.

‑ Como nO Velho e o mar de Hemingway.

‑ Parecido, só que eu não me senti como um velho até ao dia seguinte. O meu pai, Por outro lado, podia ter representado o papel no filme.

Ela olhou de novo para a fotografia.

‑ O seu pai é aquele ao seu lado?

‑ Sim, é ele.


‑ É parecido consigo ‑ disse ela.

Garrett sorriu um pouco, interrogando‑se se aquilo seria um elogio ou não. Ele fez sinal em direcção à mesa, e Theresa sentou‑se defronte dele. Depois de se instalar, disse:

‑ Disse que tinha frequentado a faculdade?     

Ele olhou‑a nos olhos.

‑ Sim, estive na Universidade da Carolina do Norte e formei‑me em Biologia marinha. Nada mais me interessava muito, e uma vez que o meu pai me tinha dito que não poderia regressar a casa sem um curso, pensei em aprender qualquer coisa que poderia usar mais tarde.

‑ Então comprou a loja.     

Ele abanou a cabeça,

‑ Não, pelo menos não logo a seguir. Depois de me formar, trabalhei para o instituto Marítimo de Duke como especialista de mergulho, mas isso não dava muito dinheiro. Então, arranjei um certificado para dar aulas e comecei a aceitar estudantes ao fim‑de‑semana. A loja surgiu alguns anos mais tarde.

‑ Ele ergueu uma sobrancelha. ‑ E a Theresa?

Theresa bebeu mais um gole da Seven‑Up antes de responder.    

‑ A minha vida não é assim tão emocionante como a sua. Creci em Omaha, Nebraska, e fui para a escola em Brown. Depois de me formar, andei a saltar de um lado para o outro, em dois ou três sítios, e tentei algumas coisas diferentes, acabando por me fixar em Boston. Estou no Times há nove anos a esta parte, mas só nos últimos anos como colunista. Antes disso era repórter.

‑ Gosta de ser colunista?

Ela pensou durante um momento, como se estivesse a pensar no assunto pela primeira vez.

‑ É um bom emprego ‑ disse ela finalmente. ‑ Muito melhor agora do que quando comecei. Posso ir buscar Kevin à escola, e tenho a liberdade de escrever aquilo que me apetece, desde que esteja dentro do assunto da minha coluna. Pagam‑me muito bem, também, quanto a isso não me posso queixar, mas... - Ela fez uma nova pausa. ‑ Já não é assim tão estimulante. Não me interprete mal, eu gosto do que eu faço, mas por vezes sinto como se estivesse a escrever as mesmas coisas vezes sem conta. Mesmo isso não seria tão mau, porém, se não tivesse tantas outras coisas que fazer com Kevin. Creio que neste momento sou a típica mãe solteira com excesso de trabalho, se entende o que quero dizer.

Ele acenou afirmativamente com a cabeça e disse baixinho:

- A vida muitas vezes não corre como nós pensávamos que ela iria correr, pois não?

‑ Não, suponho que não ‑ disse ela, e olharam‑se de novo nos olhos. A expressão dele fê‑la interrogar‑se sobre se ele havia dito algo que raramente dizia a qualquer outra pessoa. Ela sorriu e inclinou‑se para ele.

‑ Está pronto para comer qualquer coisa? Trouxe umas coisas no cesto.

‑ Quando a Theresa estiver.

‑ Espero que goste de sanduíches e saladas frias. Foram as únicas coisas em que consegui pensar que não se estragavam.


‑ Parece melhor do que aquilo que eu teria comido sozinho. Se fosse só eu, provavelmente teria ido comer um hamburger antes de partir para o mar. Quer comer aqui ou lá fora?

‑ Lá fora, decididamente.  

Pegaram nas latas de refrigerante e saíram da cabine. à saída, Garrett agarrou num impermeável de um cabide perto da porta e fez sinal para ela seguir em frente sem ele.

‑ Dê‑me um minuto para lançar a âncora. Assim podemos comer sem estar sempre a ver como está o barco ‑ disse ele. Theresa chegou ao seu assento e abriu o cesto. No horizonte, o Sol afundava‑se entre um aglomerado de cúmulos. Tirou para fora duas sanduíches embrulhadas em celofane, assim como uns recipientes de plástico com salada de repolho cru e batata.

Ela olhava para Garrett enquanto ele punha de lado o impermeável e descia as velas, fazendo com que a velocidade do barco diminuísse imediatamente. à medida que ele trabalhava de costas viradas para ela, Theresa reparou de novo como Garrett parecia forte. De onde estava sentada, os músculos dos ombros pareciam mais largos do que se apercebera a princípio, ampliados pela sua cintura pequena. Ela não conseguia acreditar que estava de facto a velejar com aquele homem, quando apenas dois dias antes estivera em Boston. Tudo aquilo parecia irreal.

Enquanto Garrett trabalhava sem parar, Theresa olhava para cima. Agora que a temperatura tinha baixado, a brisa estava mais forte, e o céu escurecia lentamente.

Garrett lançou a âncora quando o barco parou completamente. Esperou cerca de um minuto, para se certificar de que estava presa, e quando se deu por satisfeito, foi sentar‑se ao lado de Theresa.

‑ Gostava que houvesse alguma coisa que pudesse fazer para o ajudar ‑ disse Theresa com um sorriso. Ela lançou o cabelo para cima do ombro tal como Catherine costumava fazer, e por um momento ele nada disse.

‑ Está tudo bem? ‑ perguntou Theresa. Ele acenou que sim com a cabeça, subitamente desconfortável de novo. ‑ Aqui estamos bem. Mas estava só a pensar que se o vento continuar a aumentar, teremos de velejar à bolina um pouco mais quando voltarmos.

Ela pôs salada de batata e repolho cru juntamente com uma sanduíche no prato dele e entregou‑lho, apercebendo‑se de que ele estava sentado mais perto dela do que estivera antes.

‑ Vamos demorar mais tempo a voltar nesse caso?   

Garrett pegou num dos garfos de plástico branco e comeu um bocado de repolho cru. Levou um momento antes de responder.

‑ Um pouco, mas não haverá problemas, a não ser que o vento pare por completo. Se isso acontecer, ficaremos imobilizados.

‑ Suponho que isso já lhe tenha acontecido antes.

Ele acenou com a cabeça.

‑ Uma vez ou duas. É raro, mas acontece.

Ela parecia confusa.

‑ Porque é que é raro? O vento não está sempre a soprar, pois não?

‑ No oceano normalmente está sempre a soprar.

‑ Porquê?

Ele sorriu achando graça à pergunta e pousou a sanduíche no seu prato.


‑ Bem, os ventos são impelidos por diferenças na temperatura ‑ quando o ar quente sobe para o ar frio. Para o vento parar de soprar quando se está no meio do oceano, seria preciso que a temperatura do ar estivesse exactamente igual à temperatura da água várias milhas em redor. Aqui o ar é normalmente quente durante o dia, mas logo que o Sol se começa a pôr, a temperatura desce rapidamente. É por isso que a melhor altura para sair é à hora do pôr do Sol. A temperatura está constantemente a mudar, e isso é óptimo para quem está a velejar.

‑ O que é que acontece se o vento pára mesmo?

‑ As velas desenfunam‑se e o barco acaba por se imobilizar. Torna‑se completamente impossível fazer o que quer que seja para o fazer avançar.

‑ E disse que isso já lhe tinha acontecido?       

Ele acenou que sim com a cabeça.

‑ O que é que fez?

‑ Nada, na verdade. Recostei‑me simplesmente no banco e desfrutei da calma. Não estava em perigo, e sabia que mais cedo ou mais tarde a temperatura baixaria. Por isso limitei‑me a esperar. Depois de uma hora ou assim, levantou‑se uma brisa e voltei para o porto.

‑ Parece que acabou por ser um dia agradável.

‑ E foi. ‑ Ele desviou os olhos do olhar fixo dela e concentrou‑se na porta da cabine. Depois de um momento acrescentou, quase para si mesmo: ‑ Um dos melhores.

 

Catherine inclinou‑se para o lado no seu assento.

‑ Vem cá. Senta‑te ao meu lado.

Garrett fechou a porta da cabine e dirigiu‑se para ela.

‑ Este é o melhor dia que passamos juntos desde há muito tempo ‑ disse Catherine baixinho.

‑ Parece que temos estado demasiado ocupados ultimamente, e... não sei... ‑ A sua voz sumiu‑se. ‑ Quis apenas fazer qualquer coisa de especial para nós.

Enquanto Catherine falava, Garrett reparou que ela estava com a mesma expressão da noite do casamento.

Sentou‑se ao lado dela e serviu o vinho.

‑ Desculpa ter estado tão ocupado na loja ultimamente ‑ disse ele baixinho. ‑ Eu amo‑te, sabes.

‑ Eu sei. ‑ Ela sorriu e cobriu a mão dele com a sua.

‑ As coisas vão melhorar em breve, prometo.  

Catherine acenou que sim com a cabeça, pegando no seu copo de vinho.         

‑ Não falemos disso agora. Neste momento, quero apenas aproveitar o tempo que temos Juntos, só nos dois. Sem pensar em problemas.           

 

‑ Garrett?      

Sobressaltado, Garrett olhou para Theresa.

‑ Desculpe... - começou ele.

‑ Está bem? ‑ Ela olhava para ele com uma mistura de preocupação e perplexidade.

‑ Estou bem... Estava só a lembrar‑me de uma coisa de que tenho de tratar ‑ improvisou Garrett. ‑ De qualquer maneira ‑ disse ele, endireitando‑se e cruzando as mãos sobre um dos joelhos levantado. ‑ Chega de falar de mim. Se não se importar, Theresa... conte‑me algo acerca de si.


Confusa e um pouco insegura sobre o que ele queria saber exactamente, ela começou no princípio, passando por todos os factos principais com um pouco mais de pormenor ‑ a maneira como foi criada, a sua educação, o emprego, os seus passatempos predilectos. Durante a maior parte do tempo, porém, falou sobre Kevin e sobre como ele era um filho maravilhoso e de como ela tinha pena de não poder passar mais tempo com ele.

Garrett escutava enquanto ela falava, dizendo pouca coisa. Quando ela terminou, ele perguntou:

‑ E disse que esteve casada uma vez?

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

‑ Durante oito anos. Mas David ‑ é o nome dele ‑ parece que perdeu o interesse pela relação, por uma razão ou por outra... acabou por ter um caso. Eu simplesmente não conseguia viver com isso.

‑ Eu também não conseguiria ‑ disse Garrett baixinho mas isso não torna as coisas mais fáceis.

‑ Pois não. ‑ Ela fez uma pausa e bebeu um gole do seu refrigerante. ‑ Mas nós damo‑nos bem, apesar de tudo. Ele é um bom pai para Kevin, e isso é tudo o que eu quero dele agora.

Uma grande vaga passou por baixo do casco, e Garrett voltou a cabeça para se certificar de que a âncora se mantinha segura. Quando se voltou novamente para Theresa ela disse:

‑ Pronto, é a sua vez. Fale‑me de si.

Garrett começou também no princípio, falando sobre como era crescer em Wilmington como filho único. Disse‑lhe que a mãe tinha morrido quando ele tinha doze anos, acabando por crescer e ser educado praticamente no mar pelo facto de o pai passar a maior parte do tempo no barco. Falou sobre os seus dias de faculdade ‑ omitindo algumas das histórias mais loucas que poderiam dar uma impressão errada de si mesmo ‑ e descreveu como tinha sido começar com a loja e como era o seu dia‑a‑dia naquele momento. Estranhamente, nada disse sobre Catherine, sobre quem Theresa podia apenas interrogar‑se.

Enquanto conversavam, o céu escurecia e o nevoeiro começava a assentar em redor deles. Com o barco balouçando levemente sobre as ondas, uma espécie de intimidade desceu sobre eles. O ar fresco, a brisa nos seus rostos, e o movimento suave do barco, tudo conspirava para desanuviar o nervosismo que haviam sentido antes.

Mais tarde Theresa tentaria recordar‑se da última vez em que tivera um encontro como aquele. Nem uma única vez sentiu ela alguma pressão de Garrett para que ela o voltasse a ver, nem ele parecia esperar algo mais dela naquela noite. A maioria dos homens que conhecera em Boston parecia partilhar da atitude de que se eles se haviam esforçado para ter uma noite agradável, então algo se lhes ficava a dever em troca. Era uma atitude adolescente ‑ Mas típica apesar de tudo ‑ e ela achou a mudança refrescante.

Quando chegaram a um intervalo na conversa, Garrett recostou‑se e passou as mãos pelo cabelo. Fechou os olhos e parecia estar a saborear um momento silencioso e privado. Enquanto ele fazia isso, Theresa colocou tranquilamente os pratos usados e os guardanapos no cesto para evitar que eles fossem atirados ao mar pelo vento. Quando se sentiu pronto Garrett levantou‑se.

‑ Acho que está na hora de voltarmos ‑ disse ele, quase como se lamentando que a viagem estivesse a chegar ao fim.


Alguns minutos mais tarde o barco estava de novo em movimento, e ela reparou que o vento era muito mais forte do que antes. Garrett estava ao leme, mantendo o Happenstance no seu rumo. Theresa estava a seu lado com a mão na amurada, recapitulando a conversa que tinham tido. Nenhum deles falou durante um bom bocado, e Garrett Blake deu por si a interrogar‑se porque razão se sentia tão confuso.

 

No último passeio de barco, Catherine e Garrett conversaram calmamente durante horas, desfrutando do vinho e do jantar, O mar estava calmo, e o suave sobe e desce das vagas era tranquilizante na sua familiaridade.

Mais tarde nessa noite, depois de fazerem amor, Catherine estava deitada ao lado de Garrett, passeando levemente os dedos pelo peito dele, nada dizendo.

‑ Em que estás a pensar? ‑ perguntou ele finalmente.

‑ Simplesmente que não pensava ser possível amar alguém tanto quanto eu te amo ‑ murmurou ela.

Garrett passou o dedo pela maçã do rosto dela. Os olhos de Catherine não largavam nunca os seus.

‑ Eu também não pensava que fosse possível ‑ respondeu ele baixinho. ‑ Não sei o que faria sem ti.

‑ Prometes‑me uma coisa?

‑ Qualquer coisa.

‑ Se me acontecer alguma coisa um dia, Promete‑me que vais procurar outra pessoa.

‑ Acho que nunca conseguirei amar outra pessoa a não ser tu.       

‑ Promete‑me mesmo assim, está bem?          

Ele levou um momento para responder.

‑ Está bem, se isso te faz feliz, eu prometo.      

Ele sorriu ternamente.       

Catherine aconchegou‑se a ele.

‑ Estou feliz, Garrett.

 

Quando a recordação se dissipou finalmente, Garrett tossiu e tocou no braço de Theresa com a mão para lhe chamar a atenção. Ele apontou para o céu.

‑ Olhe para tudo isto ‑ disse ele finalmente, fazendo o seu melhor para manter a conversa neutra. ‑ Antes de haver sextantes e bússolas, eles usavam as estrelas para navegar os mares. Ali, pode ver a Estrela Polar. Aponta sempre exactamente ao norte.

Theresa olhou para o céu.

‑ Como é que sabe que estrela é que é?

‑ Usa‑se outras estrelas como sinais. Consegue ver a Ursa Maior?

‑ Sim.

‑ Se desenhar uma linha recta a partir das duas estrelas que perfazem a ponta da colher, elas apontarão para a Estrela Polar.

Theresa observava‑o enquanto ele apontava para as estrelas a que se referia, meditando sobre Garrett e as coisas que o interessavam. Vela, mergulho, pesca, navegação pelas estrelas ‑ tudo o que tivesse a ver com o oceano. Ou tudo aquilo, assim parecia, que lhe permitisse estar horas a fio sozinho.

Com uma mão, Garrett pegou no impermeável azul‑marinho que deixara junto à roda do leme e vestiu‑o.


‑ Os fenícios foram provavelmente os maiores exploradores dos oceanos da história. Em 600 antes de Cristo eles afirmavam ter circum‑navegado o continente africano, mas ninguém acreditou neles porque juravam que a Estrela Polar tinha desaparecido a meio da viagem. E desapareceu, de facto.

‑ Porquê?

‑ Porque entraram no hemisfério Sul. É assim que os historiadores sabem que efectivamente eles o fizeram. Antes disso, ninguém nunca tinha visto tal acontecer, ou se o tivessem visto, nunca o haviam registado por escrito. Foram precisos quase dois mil anos para se provar que eles tinham razão.

Ela acenou com a cabeça, imaginando a viagem longínqua. Perguntava a si mesma porque razão nunca aprendera tais coisas quando era mais nova, e interrogava‑se sobre o homem que as aprendera. E subitamente ela soube exactamente porque razão Catherine se apaixonara por ele. Não que ele fosse extraordinariamente atraente, ou ambicioso, ou até encantador. Ele era parcialmente tudo isso, mas mais importante, parecia viver a vida à sua maneira. Havia algo de misterioso e diferente na maneira como ele se comportava, algo masculino. E isso tornava‑o diferente de todas as pessoas que ela conhecera antes.

Garrett olhou‑a de relance quando ela não respondeu e mais uma vez reparou em como ela era bela. Na escuridão a sua pele pálida parecia etérea, e deu por si a imaginar como seria passar a mão levemente pelo perfil daquela face. Abanou então a cabeça, tentando afastar o pensamento.

Mas não conseguia. A brisa soprava por entre o cabelo dela, e essa visão fez com que sentisse um aperto no estômago. Há quanto tempo não se sentia ele daquela maneira? Há demasiado tempo, certamente. Sabia isso também enquanto olhava para ela. Não era nem a altura certa nem o lugar certo... nem a pessoa certa. Lá no fundo, perguntava a si mesmo se alguma coisa alguma vez voltaria a estar certa.

‑ Espero que não esteja a aborrecê‑la ‑ disse ele finalmente, com uma calma forçada. ‑ Eu sempre me interessei por esse tipo de histórias.

Ela olhou para ele e sorriu.

‑ Não, não é isso. De todo. Eu gostei da história. Estava apenas a imaginar o que aqueles homens devem ter sofrido. Não é fácil aventurarmo‑nos numa coisa completamente desconhecida.

‑ Não, não é ‑ disse ele, sentindo como se ela de alguma maneira tivesse lido o seu pensamento.

As luzes dos edifícios ao longo da costa pareciam tremeluzir no nevoeiro que lentamente se adensava. O Happenstance oscilava levemente sobre as vagas cada vez maiores à medida que se aproximava da enseada, e Theresa olhou por cima do ombro à procura das coisas que trouxera com ela. O seu casaco tinha sido atirado pelo vento para o canto perto da cabine. Tomou nota mentalmente para não o esquecer quando chegassem à marina.


Embora Garrett tivesse dito que normalmente velejava sozinho, ela perguntava‑se se ele já teria levado para o alto mar outras pessoas para além de Catherine e ela. E se nunca o tivesse feito, que quereria isso dizer? Sabia que ele a observara com atenção naquela noite, embora nunca tivesse sido indiscreto. Mas mesmo que estivesse curioso em relação a ela, mantivera os seus sentimentos bem escondidos. Ele não a pressionara por informações que ela não estava disposta a dar, não a questionara sobre se ela estava envolvida com outra pessoa ou não. Não fizera nada naquela noite que pudesse ser interpretado como sendo mais do que uma atenção ocasional.

Garrett ligou um interruptor, e uma série de pequenas luzes acenderam‑se à volta do barco. Não as suficientes para que se pudessem ver bem um ao outro, mas para que os outros barcos os pudessem ver a aproximar‑se. Apontou para o negrume da costa:

‑ A enseada fica mesmo ali, entre as luzes ‑ e virou a roda do leme naquela direcção. As velas encresparam‑se e a retranca mexeu‑se por um momento antes de voltar à sua posição original.

‑ Então ‑ perguntou ele por fim ‑, gostou da sua primeira viagem num barco à vela?

‑ Gostei. Foi maravilhoso.

‑ Fico contente. Não foi uma viagem ao hemisfério do Sul, mas foi quase tudo o que pude fazer.

Permaneceram ao lado um do outro, ambos aparentemente perdidos em pensamento. Outro barco à vela apareceu na escuridão a um quarto de milha de distância, regressando também à marina. Desviando‑se, Garrett olhou de um lado para o outro, certificando‑se de que mais nada apareceria. Theresa notou que o nevoeiro tornara o horizonte invisível.

Voltando‑se para ele, reparou que o seu cabelo tinha sido atirado para trás pelo vento. O impermeável aberto dava‑lhe pelo meio das coxas. Gasto e curtido pelo tempo, parecia que ele o usava há anos. Fazia‑o parecer maior do que era realmente, e seria esta imagem dele de que ela podia imaginar vir a recordar‑se para sempre. Esta, e a da primeira vez que o tinha visto.

Quando se aproximaram da costa, Theresa duvidou subitamente de que eles se voltariam a ver. Dentro de alguns minutos estariam de regresso às docas e iriam despedir‑se um do outro. Ela duvidava que ele lhe pedisse para o acompanhar de novo, e ela própria não o faria. Por alguma razão não parecia a coisa certa a fazer.

Contornaram a enseada, virando em direcção à marina. Mais uma vez ele manteve o barco ao centro do canal, e Theresa reparou na série de sinais triangulares que assinalavam os limites do mesmo. Ele manteve as velas erguidas até aproximadamente o mesmo local onde as havia levantado na partida, depois baixou‑as com a mesma intensidade que empregara para conduzir o barco o tempo todo. O motor ganhou vida, e em poucos minutos passaram pelos barcos que tinham permanecido atracados toda a noite. Quando chegaram à doca, ela permaneceu de pé no convés enquanto Garrett saltou e amarrou o Happenstance com as cordas.

Theresa foi até à popa buscar o seu cesto e o casaco e depois deteve‑se. Pensando por um momento, pegou no cesto, mas em vez de agarrar no seu casaco, empurrou‑o parcialmente para baixo da almofada do assento com a sua mão livre. Quando Garrett perguntou se estava tudo bem, ela clareou a garganta e disse:

‑ Vim só buscar as minhas coisas. ‑ Dirigiu‑se para o flanco do barco, e ele ofereceu‑lhe a mão. De novo ela sentiu a sua força quando a aceitou, e desceu do Happenstance para a doca.


Olharam um para o outro apenas por um instante, como que querendo saber o que se sucederia a seguir, até que Garrett por fim apontou para o barco.

‑ Tenho de desaparelhar o barco, e vai demorar um bocado.

Ela acenou com a cabeça.

‑ Pensei que fosse dizer isso.

‑ Posso acompanhá‑la até ao carro primeiro?

‑ Claro ‑ disse ela, e ele começou a caminhar ao longo da doca com Theresa ao lado. Quando chegaram ao carro alugado, Garrett ficou a observá‑la vasculhar o cesto à procura das chaves. Depois de as encontrar, ela abriu a porta do carro.

‑ Como já disse, foi uma noite maravilhosa, gostei muito ‑ disse ela.

‑ Também eu.

‑ Devia levar mais pessoas a andar de barco. Tenho a certeza de que iriam gostar.

Sorrindo ele respondeu:

‑ Vou pensar nisso.            

Durante um instante, os seus olhos encontraram‑se, e por um momento ele viu Catherine na escuridão.

‑ É melhor voltar ‑ disse ele depressa, ligeiramente embaraçado. ‑ Tenho de acordar cedo amanhã. ‑ Ela acenou com a cabeça, e não sabendo que mais fazer, Garrett estendeu‑lhe a mão.

‑ Gostei muito de a conhecer, Theresa. Espero que se divirta durante o resto das suas férias.

Apertar‑lhe a mão pareceu‑lhe um pouco estranho depois do fim de tarde que tinham acabado de passar juntos, mas ela teria ficado surpreendida se ele tivesse feito algo de diferente.

‑ Obrigado por tudo, Garrett. Foi um prazer conhecê‑lo, também.

Ela tomou o seu lugar à frente do volante e ligou a ignição. Garrett fechou‑lhe a porta e ouviu‑a a engatar o carro. Sorrindo para ele uma última vez, ela olhou para o espelho retrovisor e tirou lentamente o carro do lugar em marcha atrás. Garrett acenou quando ela arrancou e ficou a olhar até o carro deixar por fim a marina. Depois de ela ter partido, ele voltou‑se e caminhou de volta para as docas, perguntando a si mesmo porque razão se sentia tão inquieto.

Vinte minutos mais tarde, na mesma altura em que Garrett estava a terminar de desaparelhar e arrumar o Happenstance, Theresa abriu a porta do seu quarto de hotel e entrou. Atirou as coisas para cima da cama e dirigiu‑se à casa de banho. Salpicou a cara com água fria e lavou os dentes antes de se despir. Depois, deitada na cama apenas com a luz do candeeiro acesa, ela fechou os olhos, Pensando em Garrett.


David teria feito tudo de maneira tão diferente se tivesse sido ele a levá‑la a passear de barco. Teria planeado a noite de forma a condizer com a imagem encantadora que ele próprio quereria projectar ‑ Por acaso tenho este vinho, gostaria de beber um copo? ‑ e teria decididamente falado um pouco mais de si mesmo. Mas teria feito tudo de maneira subtil ‑ David sabia antecipar as coisas quando a confiança ultrapassava a linha da arrogância ‑ e ter‑se‑ia certificado de não passar essa linha imediatamente. Até o conhecer melhor, ninguém saberia que se tratava de um plano cuidadosamente orquestrado para causar a melhor das impressões. Com Garrett, contudo, ela soube logo que ele não estava a representar ‑ havia algo de sincero nele ‑ e ela ficou intrigada com a sua conduta. No entanto teria ela procedido bem? Não tinha ainda a certeza disso. As suas acções pareciam quase manipuladoras, e ela não gostava de pensar em si mesma como uma manipuladora.

Mas já estava feito. Ela tomara a sua decisão, e agora não podia voltar atrás. Apagou a luz, e depois de os seus olhos se adaptarem ao escuro, olhou para o espaço entre as cortinas mal corridas. A meia‑lua tinha finalmente nascido, e um pouco do luar espalhava‑se pela cama. Olhando fixamente para ela, foi incapaz de desviar o olhar até o seu corpo finalmente relaxar e os seus olhos se fecharem para a noite.


 

- E depois o que aconteceu?

Jeb Blake debruçou‑se sobre a sua chávena de café, falando numa voz rouca. Com quase setenta anos, era magro e alto ‑ quase demasiado magro ‑ e tinha o rosto profundamente enrugado. O cabelo ralo na sua cabeça era quase branco, e a sua maçã‑de‑adão projectava‑se do pescoço como uma pequena ameixa seca. Tinha os braços tatuados e marcados com cicatrizes, cobertos de sinais, e os nós dos dedos estavam permanentemente inchados por causa dos anos de desgaste e de rasgões a trabalhar como pescador de camarões. Se não fossem os olhos, as pessoas pensariam que ele estava fraco e doente ao olhar para ele, mas estava na verdade longe disso. Continuava a trabalhar quase todos os dias, embora agora apenas em part‑time, saindo de casa sempre antes do amanhecer e voltando por volta do meio‑dia.

‑ Não aconteceu nada. Ela meteu‑se no carro e foi‑se embora. Enrolando o primeiro da dúzia de cigarros que fumava por dia, Jeb Blake olhava para o filho. Durante anos o seu médico dissera‑lhe que ele se estava a matar fumando, mas o seu pai não dava grande crédito à medicina porque o seu médico morrera de um ataque de coração aos sessenta anos. Como as coisas estavam, Garrett supunha que o velhote provavelmente ainda o enterraria a ele também.

‑ Bem, isso é um pouco um desperdício, não achas?            

Garrett ficou surpreendido com a franqueza dele.

‑ Não, pai, não foi um desperdício. Eu diverti‑me ontem à noite. Ela era boa conservadora, e gostei da companhia.

‑ Mas não vais voltar a vê‑la.       

Garrett bebeu um gole de café e abanou a cabeça.

‑ Duvido. Como disse, ela está aqui de férias.

‑ Por quanto tempo?

‑ Não sei. Não perguntei.

‑ Porque não?         

Garrett pegou noutro pacotinho de natas e adicionou‑o ao seu café.

‑ Porque é que está tão interessado, de qualquer maneira? Eu saí para dar um passeio de barco com uma pessoa e passei um bom bocado. Não há muito mais que possa contar sobre o assunto.

‑ Claro que há.

‑ Como o quê?

‑ Como se gostaste do encontro o suficiente para começares a ver outras pessoas de novo.

Garrett mexeu o seu café a pensar. Então era isso. Embora se tivesse habituado aos interrogatórios do pai ao longo dos anos, não estava com disposição para falar de coisas antigas naquele momento.

- Pai, já falámos nisso antes.

‑ Eu sei, mas estou preocupado contigo. Passas demasiado tempo sozinho ultimamente.

‑ Não, não passo.

‑ Passas ‑ disse o pai com uma ternura surpreendente - passas sim.

‑ Não quero discutir o assunto, pai.


‑ Eu também não. já tentei, e não funciona. ‑ Ele sorriu e depois de um momento de silêncio, Jeb Blake tentou outra abordagem.

‑ Então, como era ela?      

Garrett pensou durante um momento. Involuntariamente, tinha pensado muito nela antes de finalmente se ir deitar na noite anterior.

‑ Theresa? Ela é atraente e inteligente. Cheia de charme, também, à sua maneira.

‑ É solteira?

‑ Penso que sim. Está divorciada, e penso que não teria ido comigo no passeio se estivesse a sair com alguém.

Jeb estudava a expressão do filho com atenção enquanto Garrett respondia. Quando ele terminou, debruçou‑se novamente sobre o café.

‑ Gostaste dela, não gostaste?

Olhando o pai nos olhos, Garrett sabia que não podia esconder a verdade.

‑ Sim, gostei. Mas como disse, provavelmente não voltarei a vê‑la. Não sei onde está instalada, e tanto quanto posso imaginar, até pode ter ido embora hoje.

O pai observou‑o em silêncio por um momento antes de fazer a pergunta seguinte com cuidado.

‑ Mas se ela ainda estivesse cá e tu soubesses onde ela estava, achas que a verias de novo?

Garrett desviou o olhar sem responder, e Jeb debruçou‑se sobre a mesa pegando no braço do filho. Mesmo aos sessenta anos as suas mãos eram fortes, e Garrett sentiu‑o a aplicar apenas a pressão suficiente para conseguir a sua atenção.

‑ Filho, já lá vão três anos. Eu sei que a amavas, mas tens de esquecer agora. Tu sabes isso, não sabes? Tens de ser capaz de esquecer.

Ele demorou algum tempo a responder.

‑ Eu sei, pai. Mas não é assim tão fácil.

‑ Nada que valha a pena é fácil. Lembra‑te disso. Acabaram de tomar café alguns minutos depois. Garrett atirou alguns dólares para cima da mesa e seguiu o pai para fora do restaurante, em direcção à sua carrinha no parque de estacionamento. Quando Garrett finalmente chegou à loja, percorriam‑lhe a mente uma dúzia de coisas diferentes. Incapaz de se concentrar no trabalho de escritório que precisava de fazer, decidiu regressar às docas para acabar de arranjar o motor que começara a consertar no dia anterior. Embora certamente tivesse de passar algum tempo na loja naquele dia, de momento precisava estar sozinho.

 

Garrett tirou a caixa de ferramentas da parte de trás da carrinha e levou‑a para o barco que usava quando ensinava mergulho. Um antigo baleeiro de Boston, era suficientemente grande para levar até oito estudantes e ainda equipamento necessário para o mergulho subaquático.


Trabalhar no motor consumia muito tempo mas não era difícil, e ele fizera um bom avanço no dia anterior. Enquanto removia a cobertura do motor, pensou na conversa que tivera com o pai. Ele estava certo, claro. Não havia qualquer razão para ele continuar a sentir‑se da maneira como se sentia, mas ‑ e Deus era sua testemunha ‑ não sabia como evitá‑lo. Catherine significara tudo para ele. Tudo o que ela precisava de fazer era olhar para ele fazendo‑o sentir de súbito que tudo estava bem no mundo. E quando ela sorria... Meu Deus, isso era algo que nunca fora capaz de encontrar em mais ninguém. Ser privado de algo como ela... não era simplesmente justo. Mais do que isso, parecia‑lhe simplesmente errado. Porquê ela, de todas as pessoas? E porquê ele? Durante meses jazera acordado à noite, perguntando a si mesmo "E se". E se ela tivesse esperado apenas mais um segundo antes de atravessar a rua? E se se tivessem demorado ao pequeno‑almoço apenas mais alguns minutos? E se ele tivesse ido com ela naquela manhã em vez de ir directamente para a loja? Um milhar de "e ses", e não estava mais próximo de compreender o que se passara do que estivera quando aquilo aconteceu.

Tentando aclarar a sua mente, concentrou‑se na tarefa que tinha em mãos. Tirou os parafusos que mantinham o carburador no lugar e removeu‑o do motor. Com cuidado começou a desmanchá‑lo, certificando‑se de que nada estava demasiado gasto no interior. Ele não achava que aquilo fosse a fonte do problema, mas queria examiná‑lo com mais cuidado para ter a certeza.

O Sol elevava‑se no céu enquanto ele trabalha sem parar, e deu por si a limpar o suor à medida que se formava na testa. No dia anterior por volta daquela hora, lembrou‑se, ele vira Theresa descer as docas em direcção ao Happenstance. Tinha reparado logo nela, nem que fosse por ela estar sozinha. Mulheres como ela quase nunca vinham sozinhas às docas. Normalmente vinham acompanhadas de cavalheiros mais velhos e ricos a quem pertenciam os iates atracados no outro lado da marina. Ficara surpreendido quando ela parou junto ao barco, embora tivesse esperado que ela fizesse apenas uma pequena pausa antes de continuar em direcção ao seu destino. Era o que a maioria das pessoas normalmente fazia. Mas depois de a observar durante um bocado, percebeu que ela viera às docas para ver o Happenstance, mas a maneira como ela continuava a dar voltas ao barco dava a entender que viera ali para outra coisa também.

Curioso, fora até lá para falar com ela. Na altura não reparou, mas mais tarde à noite, enquanto estava a arrumar o barco, percebeu que havia algo de estranho na maneira como ela o olhara da primeira vez. Era quase como se ela tivesse reconhecido alguma coisa nele que normalmente ele guardava enterrada bem no seu interior. Mais do que isso, era como se ela soubesse mais acerca dele do que estava disposta a admitir.

Ele abanou a cabeça então, sabendo que isso não fazia qualquer sentido. Ela dissera que lera os artigos na loja ‑ talvez fosse daí que viera o olhar estranho. Pensou no assunto, decidindo por fim que devia ser esse o caso. Ele sabia que nunca a vira antes ‑ ter‑se‑ia lembrado de uma pessoa daquelas ‑ e além disso, era de Boston e estava ali a passar férias. Era a única explicação plausível que ele conseguia encontrar, mas ainda assim havia qualquer coisa que não batia certo em toda aquela situação.

Não que isso tivesse importância.          


Passearam de barco, desfrutaram da companhia um do outro e despediram‑se finalmente. E aí terminava o assunto. Como dissera ao pai, não poderia entrar em contacto com ela mesmo que quisesse. Naquele preciso momento ela estava provavelmente a caminho de Boston, ou então regressaria dentro de alguns dias, e ele tinha uma centena de coisas para fazer naquela semana. O Verão era uma época popular para aulas de mergulho, por isso estaria ocupado todos os fins‑de‑semana até ao final de Agosto. Não tinha nem o tempo nem a energia para telefonar para todos os hotéis de Wilmington à procura dela, e mesmo que a encontrasse, que diria ele? Que poderia ele dizer que não soasse ridículo?

Com estas perguntas às voltas na sua mente, continuou a trabalhar no motor. Depois de encontrar e substituir um grampo com uma fuga, reinstalou o carburador e a cobertura do motor e pô‑lo a funcionar com a manivela. Com o motor a soar muito melhor, soltou o barco das suas amarras e levou o baleeiro de Boston a dar um passeio de quarenta minutos. Fê‑lo navegar a várias velocidades, ligou e desligou o motor mais de uma vez, e uma vez satisfeito, voltou com o barco para a sua doca, Contente por ter levado menos tempo do que pensara necessário, recolheu as ferramentas, levou‑as de volta para a carrinha fazendo os dois quarteirões de volta até à Island Diving.

Como sempre, havia vários papéis empilhados na caixa dos assuntos pendentes sobre a sua secretária, e decidiu dedicar um momento a examiná‑los. A maioria eram impressos de encomendas, já preenchidos, para artigos necessários à loja. Havia também algumas facturas, e instalando‑se na sua cadeira, passou rapidamente em revista todos os papéis.

Um pouco antes das onze, acabou de fazer quase tudo o que precisava dirigindo‑se para a parte da frente da loja. Ian, um dos seus empregados de Verão, estava ao telefone quando Garrett apareceu e entregou‑lhe três tiras de papel. As primeiras duas eram de distribuidores, e segundo as curtas mensagens rabiscadas, parecia que tinha havido uma trapalhada qualquer com algumas das encomendas que tinham feito recentemente. Outra coisa que era preciso resolver, pensou, dirigindo‑se de volta para o escritório.

Garrett leu a terceira mensagem enquanto caminhava e parou quando percebeu de quem era. Certificando‑se de que não era um engano, entrou no escritório e fechou a porta atrás de si. Ligou o número e pediu a extensão correspondente.

Theresa Osborne estava a ler o jornal quando o telefone tocou e atendeu‑o ao segundo toque.

‑ Olá, Theresa, fala Garrett. Tenho aqui uma mensagem a dizer que telefonou.

Ela parecia contente com o seu telefonema.

‑ Oh, olá, Garrett. Obrigada por responder à minha mensagem. Como está?

Ouvir a sua voz trazia de volta recordações da noite anterior. Sorrindo para consigo mesmo, tentava imaginar como seria o aspecto dela sentada no seu quarto de hotel.

‑ Estou bem, obrigado. Estava a trabalhar no escritório e recebi a sua mensagem. Que posso fazer por si?

‑ Bem, deixei o meu casaco no barco ontem à noite e queria saber se o tinha encontrado.

‑ Não, não encontrei, mas na verdade não verifiquei assim tão bem as coisas. Deixou‑o na cabine?

‑ Não tenho a certeza.       

Garrett fez uma breve pausa.

‑ Bem, deixe‑me dar um salto até lá para ir ver. Volto a telefonar‑lhe para lhe dizer se o encontrei ou não.

‑ Isso não será pedir muito?


‑ De maneira nenhuma. Devo demorar apenas alguns minutos. Vai estar aí durante um bocado ainda?

‑ Devo estar.            

‑ Pronto, já lhe volto a telefonar.  

Garrett despediu‑se e saiu da loja, encaminhando‑se rapidamente para a marina. Depois de subir a bordo do Happenstance, abriu a cabine e entrou. Não encontrando o casaco, voltou‑se e olhou para cima para o convés superior, localizando‑o por fim junto à popa, meio escondido debaixo de uma das almofadas. Pegou nele, certificou‑se de que não estava sujo e depois regressou à loja.

De novo no escritório, ligou o número escrito na tira de papel. Desta vez Theresa atendeu ao primeiro toque.

‑ É Garrett de novo. Encontrei o seu casaco.    

Ela parecia aliviada.

‑ Muito obrigada por ter ido procurá‑lo.

‑ Não tem de quê.   

Ela nada disse durante um momento, como se a decidir sobre o que fazer. Finalmente:

‑ Pode guardá‑lo por um instante? Chegarei à sua loja dentro de vinte minutos para o ir buscar.

‑ Com certeza. ‑ Depois de desligar o telefone, ele recostou‑se na cadeira, pensando no que acabara de acontecer. Ela ainda não se foi embora, pensou ele, e vou poder vê‑la de novo. Embora não compreendendo como é que ela se poderia ter esquecido do casaco, se apenas trouxera duas ou três coisas, tornou‑se perfeitamente claro naquele momento que ele estava mesmo contente por aquilo ter acontecido.

Não que isso tivesse alguma importância, claro.

 

Theresa chegou vinte minutos depois, usando uns calções e uma blusa sem mangas decotada que lhe realçava maravilhosamente o corpo. Quando entrou na loja, tanto Ian como Garrett ficaram a olhar para ela enquanto ela olhava em volta. Reparando neles por fim, ela sorriu e chamou de onde se encontrava:

‑ Olá ‑, e Ian levantou a sobrancelha para Garrett, como se a perguntar "O que é que me tens andado a esconder?" Garrett ignorou a expressão e dirigiu‑se para Theresa com o casaco dela na mão. Ele sabia que Ian iria examinar minuciosamente tudo o que ele fizesse e iria aborrecê‑lo mais tarde com o assunto, mas não pretendia contar‑lhe pormenores.

‑ Está como novo ‑ disse, entregando‑o quando ela se aproximou o suficiente para o receber. Enquanto esperara, Garrett lavara o óleo das mãos e vestira uma das novas T‑shirts que a sua loja tinha para venda. Não estava espectacular, mas estava melhor do que antes. Pelo menos agora estava limpo.

‑ Obrigada por ter ido buscá‑lo ‑ disse ela, e havia algo nos seus olhos que fazia com que a atracção inicial que ele sentira no dia anterior começasse a surgir de novo. Garrett coçou distraidamente um dos lados da cara.

‑ Foi um prazer. O vento deve tê‑lo arrastado e escondido.

‑ Suponho que sim ‑ disse ela com um ligeiro encolher de ombros, e Garrett observou‑a a ajustar a alça da blusa com a mão. Não sabia se ela estava com pressa, e não tinha a certeza se queria que ela se fosse imediatamente embora. Disse as primeiras palavras que lhe vieram à mente:


‑ Diverti‑me muito ontem à noite.

‑ Eu também.          

Os olhos dela encontraram os dele quando falou, e Garrett sorriu delicadamente. Não sabia que outra coisa havia de dizer ‑ há muito tempo que não se encontrava numa situação daquelas. Embora fosse sempre bom com os clientes e pessoas estranhas em geral, isto era completamente diferente. Deu por si a transferir o seu peso de uma perna para a outra, sentindo‑se como se tivesse dezasseis anos de novo. Por fim foi ela que falou.

‑ Sinto‑me como se lhe devesse alguma coisa por ter perdido o seu tempo a fazer isto.

‑ Isso é ridículo. Não me deve nada.

‑ Talvez não por ter ido buscar o meu casaco, mas por ontem à noite também.

Ele abanou a cabeça.

‑ Nem por isso. Gostei muito que tivesse vindo.

Gostei muito que tivesse vindo. As palavras rolaram pela sua cabeça imediatamente após tê‑las proferido. Há dois dias ele não conseguiria imaginar‑se a dizê‑las a ninguém.

Ao fundo o telefone tocou, e o som arrancou‑o dos seus pensamentos. Fazendo render o tempo, perguntou:

‑ Veio todo este caminho até aqui abaixo só por causa do casaco, ou ia fazer também um pouco de turismo?

‑ Na verdade não tinha planeado nada. São quase horas do almoço e ia comer qualquer coisa. ‑ Ela olhou para ele, expectante. ‑ Alguma recomendação?          

Ele pensou durante um momento antes de responder.

‑ Eu gosto do Hank's, lá em baixo perto do pontão. A comida é fresca, e a vista é inacreditável.

‑ Onde fica, exactamente?           

Ele fez sinal por cima do ombro.

‑ Em Wrightsville Beach. Apanha a ponte até à ilha e vira à esquerda. Vê logo ‑ é só seguir os sinais até ao pontão. O restaurante fica mesmo lá.

‑ Que tipo de comida é que servem?

‑ Principalmente mariscos. Têm óptimos camarões e ostras, mas se quiser outra coisa para além de mariscos têm hamburgers e coisas do género.

Ela esperou para ver se ele acrescentava mais alguma coisa, e como ele não o fez, olhou para o lado, na direcção das janelas. Ela continuava ali, ainda, e pela segunda vez em poucos minutos, Garrett sentiu‑se perturbado com a sua presença. O que tinha ela que o fazia sentir‑se daquela maneira? Por fim, recompondo‑se, falou.

‑ Se quiser, posso mostrar‑lhe o lugar. Também estou a ficar com fome, e teria muito gosto em levá‑la até lá se quiser um pouco de companhia.

Ela sorriu.

‑ Gostaria muito, Garrett.   

Ele parecia aliviado.

‑ A minha carrinha está lá atrás. Quer que eu guie?

‑ Conhece melhor o caminho do que eu ‑ respondeu ela, e Garrett apontou o caminho, conduzindo‑a através da loja até à porta das traseiras. Caminhando ligeiramente atrás dele, de modo a que ele não pudesse ver a sua expressão, Theresa não conseguia conter um sorriso de satisfação.


O Hank's existia desde que o pontão fora construído e era frequentado tanto por gente da terra como por turistas. De ambiente fraco mas forte em carácter, era semelhante aos restaurantes sobre os pontões que havia em Cape Cod ‑ chãos de madeira raspados e desgastados por anos de sapatos cheios de areia, janelas largas com vista para o oceano Atlântico e fotografias de peixes de troféu nas paredes. A um canto havia uma porta que dava para a cozinha, e Theresa viu pratos de marisco fresco a serem colocados em tabuleiros, carregados por empregados e empregadas vestidos de calções e t‑shirts azuis estampadas com o nome do restaurante. As mesas e as cadeiras eram de madeira, com um aspecto sólido, e decoradas com os entalhes de centenas de visitantes. Não era um local que exigisse mais do que roupa de praia informal, e Theresa reparou que a maioria das pessoas que ali estava parecia ter estado deitada ao sol a maior parte da manhã.

‑ Confie em mim ‑ disse ele enquanto se dirigiam a uma mesa. ‑ A comida é óptima, pouco importa o aspecto do lugar.

Sentaram‑se a uma mesa perto do canto, e Garrett empurrou para o lado duas garrafas de cerveja que ainda não tinham sido recolhidas pelos empregados. As ementas estavam empilhadas entre uma série de condimentos, incluindo ketchup, tabasco, molho tártaro, e molho cocktall em garrafas de plástico, assim como outro molho etiquetado simplesmente "Hank's". Com uma capa barata, as ementas tinham o aspecto de não ser substituídas há anos. Olhando em volta, Theresa viu que quase todas as mesas estavam ocupadas.

‑ Está apinhado ‑ disse ela, instalando‑se confortavelmente.

‑ Está sempre. Mesmo antes de Wrightsville Beach se tornar popular entre os turistas, este lugar era uma espécie de lenda. Ás sextas e sábados à noite nem sequer se consegue entrar, a não ser que se esteja disposto a esperar algumas horas.

‑ Qual é a atracção?          

‑ A comida e os preços. Todas as manhãs Hank recebe uma carga de peixe e camarões frescos, e normalmente consegue‑se sair daqui sem se gastar mais de dez dólares, incluindo a gorjeta. E isso já contando com duas cervejas.

‑ Como é que ele consegue?

‑ Quantidade, suponho. Como disse, o lugar está sempre cheio.

‑ Então tivemos sorte em arranjar uma mesa.

‑ Sim, tivemos. Mas entrámos antes da gente da terra chegar, o pessoal da praia nunca se demora muito. Dão um pulo até aqui para comer qualquer coisa rapidamente e voltam para o sol.

Ela olhou em redor do restaurante uma última vez antes de consultar a ementa.

‑ Então o que é que recomenda?

‑ Gosta de peixe?

‑ Adoro.

‑ Então sugiro‑lhe o atum ou o golfinho. São ambos deliciosos.

‑ Golfinho?

Ele riu‑se baixinho.

‑ Não o golfinho Flipper do filme. É dourada. É assim que a chamamos por aqui.


‑ Acho que prefiro o atum ‑ disse ela com um piscar de olhos ‑, só para jogar pelo seguro.

‑ Acha que eu inventaria uma coisa dessas?

Ela falou numa voz de brincadeira.

‑ Não sei o que pensar. Lembre‑se que só nos conhecemos ontem. Não o conheço suficientemente bem para ter a certeza absoluta do que você é capaz.

‑ Sinto‑me ofendido ‑ disse ele no mesmo tom, e ela riu‑se. Ele riu‑se também, e passado um bocado ela surpreendeu‑o ao estender a mão através da mesa tocando‑lhe no braço brevemente. Garrett apercebeu‑se de repente que Catherine costumava fazer a mesma coisa para lhe chamar a atenção.

‑ Olhe ali ‑ disse ela, acenando com a cabeça em direcção às janelas, e Garrett voltou a cabeça. No pontão um velhote transportava o seu equipamento de pesca, tendo um aspecto completamente normal não fosse o grande papagaio empoleirado no ombro.

Garrett abanou a cabeça e sorriu, sentindo ainda os vestígios do toque dela persistindo no seu braço.

‑ Temos de tudo por aqui. Não é bem a Califórnia, mas dê‑nos mais alguns anos.

Theresa continuou a olhar para o homem com o pássaro que deambulava ao longo do pontão.

‑ Devia arranjar um pássaro daqueles para lhe fazer companhia quando fosse para o mar.

‑ E estragar a minha paz e sossego? Sortudo como sou, o bicho era capaz até de nem falar. Provavelmente passaria o tempo todo a guinchar e arrancar‑me‑ia parte da orelha da primeira vez que o vento mudasse.

‑ Mas iria parecer um pirata.

‑ Iria parecer um idiota.

‑ Oh, você é desmancha‑prazeres ‑ Theresa disse com um franzir do sobrolho fingido. Depois de uma breve pausa, ela olhou em volta. ‑ Então, eles aqui têm alguém que nos sirva, ou temos de ser nós a pescar e a cozinhar o peixe?

‑ Malditos yankees ‑ resmungou ele enquanto abanava a cabeça, e ela riu‑se de novo, perguntando a si mesma se ele se estaria a divertir tanto quanto ela. De algum modo ela sabia que sim, que ele se estava a divertir.

Alguns instantes mais tarde a empregada chegou e tomou nota dos seus pedidos. Tanto Garrett como Theresa pediram cerveja, e depois de transmitir o pedido à cozinha, a empregada trouxe duas garrafas para a mesa.

‑ Não há copos? ‑ perguntou ela com uma sobrancelha levantada depois de a empregada ter ido embora.

‑ Não. Este é um lugar de classe.

‑ Percebo porque gosta tanto dele.

‑ Isso é um comentário sobre a minha falta de bom gosto?

‑ Só se se sentir inseguro acerca do assunto.

‑ Agora parece uma psiquiatra.

‑ Não sou, mas sou mãe, e isso faz de mim uma espécie de especialista em natureza humana.

‑ Não me diga?

‑ É o que digo ao Kevin.

Garrett bebeu um gole da sua cerveja.

‑ Falou com ele hoje?

Ela acenou que sim com a cabeça e bebeu um gole também.


‑ Apenas durante alguns minutos. Estava de partida para a DisneyIândia quando telefonei. Tinha bilhetes para entrar de manhã cedo, por isso não podia falar durante muito tempo. Queria ser um dos primeiros na fila para o passeio do Indiana Jones.

‑ Ele está a gostar de estar com o pai?

‑ Está a divertir‑se imenso. David sempre foi bom para ele, mas penso que ele tenta compensar o facto de não ver Kevin muitas vezes. Sempre que o Kevin vai ter com o pai, espera algo de divertido e excitante.

Garrett olhou para ela com curiosidade.

‑ Parece que não está assim tão segura em relação a isso.

Ela hesitou antes de continuar.

‑ Bem, só espero que isso não conduza à desilusão mais tarde. David e a sua nova mulher começaram uma família, e logo que o bebé tenha um pouco mais de idade, penso que vai ser muito mais difícil para David e Kevin estarem os dois sozinhos.

Garrett inclinou‑se para a frente quando falou.

‑ É impossível proteger os filhos das desilusões da vida.

‑ Eu sei isso, verdade que sei. É só que... - Ela parou, e Garrett gentilmente terminou o seu pensamento.

‑ Ele é seu filho e não quer que ele se magoe.

‑ Exactamente. ‑ Gotas de condensação tinham‑se formado no exterior da sua garrafa de cerveja, e Theresa começou a descolar o rótulo. Mais uma vez, era a mesma coisa que Catherine costumava fazer, e Garrett bebeu outro trago de cerveja obrigando a sua mente a voltar à conversa em curso.

‑ Não sei o que dizer, excepto que se Kevin for de alguma forma parecido consigo, tenho a certeza de que tudo correrá bem com ele.

‑ Que quer dizer?    

Ele encolheu os ombros.

‑ A vida não é fácil para ninguém incluindo‑a a si. Também teve tempos difíceis. Penso que ao vê‑la Ultrapassar as dificuldades, ele aprenderá a fazê‑lo também.

‑ Agora é você que parece um psiquiatra.

‑ Estou apenas a dizer‑lhe o que aprendi crescendo. Eu tinha mais ou menos a idade de Kevin quando a minha mãe morreu de cancro. Observar o meu pai ensinou‑me que tinha de seguir em frente com a minha vida, acontecesse o que acontecesse.

‑ O seu pai alguma vez voltou a casar‑se?

‑ Não ‑ disse ele, abanando a cabeça. ‑ Penso que houve algumas vezes em que ele o desejou, mas acabou por nunca o fazer.

Então é daí que tudo vem, pensou ela. Tal pai, tal filho.

‑ Ele ainda vive aqui? ‑ perguntou ela.

‑ Sim, vive. Estou com ele muitas vezes hoje em dia. Tentamos encontrar‑nos pelo menos uma vez por semana. Ele gosta de ter olho em mim.

Ela sorriu.

‑ A maioria dos pais gosta.


A comida chegou poucos minutos mais tarde, e continuaram a sua conversa enquanto comiam. Desta vez Garrett falou mais do que ela, contando‑lhe como era crescer no Sul, e a razão porque nunca se iria embora dali enquanto tivesse a oportunidade de escolher. Também lhe contou sobre algumas das aventuras que tivera enquanto velejava ou mergulhava. Ela escutava, fascinada. Comparadas às histórias que os homens lhe contavam em Boston ‑ que normalmente se centravam em feitos de negócios ‑ as histórias dele eram uma verdadeira novidade para ela. Falou‑lhe sobre os milhares de diferentes criaturas do mar que vira nos seus mergulhos e sobre como era velejar através de uma tempestade que surgira inesperadamente e quase virara o barco. Uma vez tinha até sido perseguido por um tubarão martelo e fora forçado a esconder‑se nos destroços de um navio que andara a explorar. ‑ Quase fiquei sem ar antes de poder voltar para cima ‑ disse ele, abanando a cabeça ao recordar‑se.

Theresa observava‑o com atenção enquanto ele falava, contente por ele estar mais descontraído do que na noite anterior. Reparava ainda nas coisas que reparara na noite anterior ‑ a cara magra, os olhos azuis‑claros, e a maneira fácil como se movimentava. No entanto, havia uma certa energia na maneira como ele falava com ela agora, o que para Theresa representava uma mudança atraente. Ele já não parecia estar a medir cada palavra que dizia.

Acabaram de almoçar ‑ ele tinha razão, a comida era deliciosa e beberam ambos mais uma cerveja enquanto as ventoinhas do tecto zumbiam por cima deles. O calor aumentava no restaurante à medida que o Sol subia no céu, mas mesmo assim continuava cheio. Quando chegou a conta, Garrett pôs algum dinheiro sobre a mesa e fez sinal para partirem.

‑ Está pronta?

‑ Quando você estiver. E obrigada pelo almoço. Estava óptimo.

Theresa estava convencida, quando chegaram à porta da frente, que Garrett queria regressar imediatamente à loja, mas ele surpreendeu‑a sugerindo‑lhe algo diferente.

‑ Que tal um passeio pela praia? Normalmente está um pouco mais fresco junto à água. ‑ Assim que ela disse que sim, ele conduziu‑a para um dos lados do pontão e começou a dirigir‑se para as escadas, caminhando a seu lado. Os degraus estavam ligeiramente empenados e cobertos de uma fina camada de areia, obrigando‑os a segurarem‑se aos corrimões à medida que desciam. Ao chegarem à praia, viraram na direcção da água, caminhando por baixo do pontão. A sombra era refrescante durante o calor do meio‑dia, e quando chegaram à areia compacta perto da água, pararam os dois por um momento para descalçarem os sapatos. A toda a volta, as famílias acumulavam‑se sobre as toalhas e chapinhavam na água.

Começaram a caminhar em silêncio, seguindo lado a lado enquanto Theresa olhava em volta, fruindo a paisagem.

‑ Já passou muito tempo nas praias desde que chegou? - perguntou Garrett.

Theresa abanou a cabeça.

‑ Não, só cheguei anteontem. É a primeira vez que venho à praia aqui.

‑ E que tal?

‑ É bela.

‑ É como as praias no Norte?

‑ Algumas, mas aqui a água é muito mais quente. Nunca esteve na costa do norte?

‑ Nunca saí da Carolina do Norte. - Ela sorriu para ele. ‑ Um verdadeiro viajante do mundo, hem?

Ele riu‑se baixinho.


‑ Não, não sinto que esteja a perder muito. Gosto disto aqui e não poderia imaginar um lugar mais bonito. Não há nenhum sítio onde gostasse de estar mais do que este. ‑ Depois de alguns passos, ele olhou para ela e mudou de assunto. ‑ Então, quanto tempo vai ficar em Wilmington?

‑ Até domingo. Tenho de voltar para o trabalho na segunda‑feira. Mais cinco dias, pensou ele.

‑ Conhece mais alguém aqui na cidade?

‑ Não. Vim sozinha.

‑ Porquê?

‑ Queria apenas vir conhecer. Tinha ouvido falar bem do lugar, e queria ver com os meus próprios olhos.

Ele admirou‑se com a resposta dela.

‑ Passa normalmente as férias sozinha?

‑ Na verdade, esta é a primeira vez.

Uma mulher a correr dirigia‑se rapidamente em direcção a eles com um Labrador preto a seu lado. O cão parecia exausto com o calor e trazia a língua pendurada. Não se apercebendo da condição do cão, ela continuava a correr, desviando‑se por fim do caminho de Theresa. Garrett quase chamou a atenção da mulher quando esta passou, mas depois achou que não era da sua conta.

Passaram‑se alguns momentos antes de Garrett falar de novo.

‑ Posso fazer‑lhe uma pergunta pessoal?

‑ Depende da pergunta?

Ele parou de andar e apanhou algumas pequenas conchas que lhe haviam chamado a atenção. Depois de as revirar algumas vezes nas mãos, entregou‑as a Theresa.

‑ Anda com alguém lá em cima em Boston?

Ela recebeu as conchas enquanto respondia.

‑ Não.

As ondas enrolavam‑se‑lhes em torno dos pés enquanto permaneciam de pé na água. Embora tivesse esperado aquela resposta, Garrett não conseguia compreender como é que alguém como ela podia passar a maior parte das suas noites sozinha.

‑ Porque não? Uma mulher como você deve poder escolher à vontade os homens que quiser.

Ela sorriu, e começaram a caminhar lentamente de novo.

- Obrigada, é simpático da sua parte dizer isso. Mas não é assim tão fácil, especialmente quando se tem um filho. Há muitas coisas que tenho de levar em consideração quando conheço alguém. ‑ Fez uma pausa. ‑ Mas e você? Anda com alguém neste momento?

Ele abanou a cabeça.

‑ Não.

‑ Então é a minha vez de perguntar: porque não?

Garrett encolheu os ombros.

‑ Creio que por não ter encontrado alguém com quem gostaria verdadeiramente de sair regularmente.

‑ Só isso?

Era um momento de verdade, e Garrett sabia‑o. Tudo o que tinha de fazer era reafirmar o que dissera antes e isso poria fim ao assunto. Mas durante alguns passos nada disse.


A multidão da praia diminuía e dispersava‑se à medida que se afastavam cada vez mais do pontão, e o único som agora era o do rebentamento das ondas. Garrett viu um grupo de andorinhas‑do‑mar à beira da água, já a afastarem‑se do seu trajecto. O sol, agora quase directamente por cima deles, reflectia‑se na areia e fazia com que ambos tivessem de semicerrar um pouco os olhos enquanto caminhavam. Garrett não olhou para ela quando falou, e Theresa chegou‑se mais perto para o poder ouvir por cima do rugir do oceano.

‑ Não, não é só isso. É mais uma desculpa do que outra coisa. Para ser franco, nem sequer tenho tentado encontrar alguém.

Theresa observava‑o com atenção enquanto ele falava. Ele olhava directamente em frente como se estivesse a ordenar os seus pensamentos, mas ela podia pressentir a sua relutância à medida que ele continuava.

‑ Há uma coisa que não lhe contei ontem à noite.

Ela sentiu algo a apertar‑se dentro de si, sabendo exactamente o que vinha a seguir. Mantendo o rosto neutro, disse simplesmente:

- Ah sim?      

Também já estive casado ‑ disse ele finalmente. ‑ Durante seis anos. ‑ Ele voltou‑se para ela com uma expressão que a fez vacilar. ‑ Mas ela faleceu.

‑ Lamento ‑ disse ela baixinho. Garrett parou de novo e apanhou umas conchas, só que desta vez não as entregou a Theresa. Depois de as inspeccionar distraidamente, atirou uma delas para as ondas que se aproximavam. Theresa viu‑a, desaparecer no oceano.

‑ Aconteceu há três anos. Desde então, não tenho tido interesse em conhecer ninguém, nem sequer de olhar para alguém. ‑ Ela parou por um momento, embaraçada.

‑ às vezes deve sentir‑se muito sozinho.

‑ Sinto‑me, mas tento não pensar muito no assunto. Mantenho‑me ocupado na loja ‑ há sempre alguma coisa para fazer lá ‑ e ajuda os dias a passar. Quando dou por mim, são horas de me ir deitar e começo tudo de novo na manhã seguinte.

Quando terminou, olhou para ela com um sorriso fraco. Pronto, dissera‑o. Há anos que quisera contar a alguém para além do seu pai, e acabara por fazê‑lo a uma mulher de Boston que mal conhecia. Uma mulher que de alguma maneira conseguira abrir o que ele próprio fechara a sete chaves.

Ela nada disse. Assim que ele terminou, Theresa perguntou:

‑ Como era ela?

‑ Catherine? ‑ Garrett ficou com a garganta seca. ‑ Quer mesmo saber?

‑ Sim, quero ‑ disse ela numa voz suave.         

Ele atirou outra concha para as ondas, concentrando‑se. Como poderia ele descrevê‑la em palavras? Havia no entanto uma parte dele que queria tentar, queria que Theresa, de entre todas as pessoas, compreendesse. Sem querer, fora mais uma vez arrastado para o passado.

 

‑ Olá, amor ‑ disse Catherine erguendo os olhos do jardim. - Não te esperava em casa tão cedo.

‑ As coisas têm estado bastante paradas na loja hoje, e pensei dar um salto a casa para almoçar e ver como tu estavas.

‑ Sinto‑me muito melhor.

‑ Achas que foi a gripe?

‑ Não sei. Foi provavelmente alguma coisa que comi. Mais ou menos uma hora depois de saíres, senti‑me suficientemente bem para fazer um pouco de jardinagem.

‑ Estou a ver.


‑ Que achas das flores? ‑ Ela apontou para um canteiro com terra acabada de revirar.

Garrett contemplou os amores‑perfeitos recentemente plantados ao lado da varanda. Ele sorriu.

‑ Estão belas, mas não achas que devias ter deixado alguma da terra nos canteiros?

Ela limpou a testa com as costas da mão e levantou‑se, olhando para ele com os olhos semicerrados por causa da luz brilhante do sol.

‑ Estou assim com tão mau aspecto?

Os joelhos dela estavam negros de se ajoelhar na terra, e uma linha de lama atravessava‑lhe a face. O cabelo escapava‑se de um rabo‑de‑cavalo desajeitado, e o rosto estava vermelho e a transpirar por causa do esforço.

‑ Estás perfeita.       

Catherine tirou as luvas e atirou‑as para a varanda.

‑ Não estou perfeita, Garrett, mas obrigada, Vá lá, deixa‑me arranjar‑te um almoço. Sei que tens de voltar para a loja.

 

Ele suspirou e por fim voltou a cabeça. Theresa estava a olhar para ele, à espera. Ele falou baixinho.

‑ Ela era tudo o que eu alguma vez quis. Era bonita e encantadora, com um sentido de humor subtil, e apoiava‑me em tudo o que eu fazia. Tinha‑a conhecido praticamente toda a minha vida ‑ fomos para a escola juntos. Casámo‑nos um ano depois de me ter formado na Universidade da Carolina do Norte. Estivemos casados durante seis anos antes do acidente, e foram os seis anos mais felizes da minha vida. Quando a levaram... ‑ Fez uma pausa como se estivesse com dificuldade em arranjar palavras. ‑ Não sei se alguma vez me habituarei a viver sem ela.

A maneira como ele falava de Catherine fez Theresa sentir mais por ele do que poderia ter imaginado. Não era apenas a sua voz, mas a expressão no seu rosto antes de ele a descrever ‑ como se dividido entre a beleza das suas recordações e a dor de recordar. Embora as cartas tivessem sido comoventes, não a tinham preparado para aquilo. Não devia ter falado no assunto, pensou ela. "Eu já sabia o que ele sentia em relação a ela. Não havia qualquer razão para forçá‑lo a falar no assunto."

Mas havia, uma outra voz na sua cabeça intrometeu‑se subitamente. Tu tinhas de ver a reacção dele com os teus próprios olhos. Tinhas de saber se ele estava preparado para deixar o passado para trás.

Depois de alguns instantes, Garrett atirou distraidamente o resto das conchas para a água.

‑ Peço desculpa ‑ disse ele.

‑ Porquê?

‑ Não devia ter‑lhe falado dela. Ou tanto sobre mim Mesmo.

‑ Não faz mal, Garrett. Eu queria saber. Fui eu que lhe pedi para falar dela, lembra‑se?

‑ Não era minha intenção falar naquele tom. ‑ Ele falava como se tivesse feito algo de errado. A reacção de Theresa foi quase instintiva.

Aproximando‑se dele, pegou‑lhe na mão. Segurando‑a lentamente na dela, apertou‑a com suavidade. Quando olhou para ele, viu surpresa nos seus olhos, mas ele não tentou retirar a mão.


‑ Perder uma esposa, algo de que a maioria das pessoas da nossa idade nada sabe. ‑ Ele baixou o olhar enquanto ela se esforçava por encontrar as palavras certas.

‑ Os seus sentimentos dizem muito acerca de si. É o tipo de pessoa que ama alguém para sempre... Isso não é nada de que se deva envergonhar.

‑ Eu sei. É só que já passaram três anos...

‑ Um dia vai voltar a encontrar alguém especial. As pessoas que já estiveram apaixonadas uma vez normalmente apaixonam‑se de novo. Está na natureza delas.

Ela apertou novamente a mão dele, e Garrett sentiu o toque aquecê‑lo. Por alguma razão ele não a queria largar.

‑ Espero que tenha razão ‑ disse ele finalmente.

‑ Tenho. Eu sei destas coisas. Sou mãe, lembra‑se?            

Ele riu baixinho, tentando libertar‑se da tensão que sentia.

‑ Lembro. E provavelmente é uma boa mãe.

Deram meia volta e encaminharam‑se de volta para o pontão, conversando tranquilamente sobre os últimos três anos, ainda de mãos dadas. Quando chegaram à sua carrinha e voltaram para a loja, Garrett estava mais confuso do que nunca. Os acontecimentos dos dois últimos dias eram tão inesperados. Theresa já não era simplesmente uma pessoa estranha, nem apenas uma amiga. Não havia qualquer dúvida de que se sentia atraído por ela. Mas depois, pensou de novo, dentro de alguns dias ela ir‑se‑ia embora, e ele sabia que provavelmente era melhor que assim fosse.

‑ Em que está a pensar? ‑ perguntou ela. Garrett passou para uma mudança mais alta quando atravessavam a ponte em direcção a Wilmington e Island Diving. Vai em frente, pensou ele. Diz‑lhe verdadeiramente o que te está a passar pela cabeça.

‑ Estava a pensar ‑ disse ele finalmente, surpreendendo‑se a si próprio ‑, que se não tivesse planos para hoje à noite, gostava de a convidar para jantar.

Ela sorria.

‑ Estava com esperanças que dissesse isso.   

Ele ainda estava surpreendido consigo mesmo por ter feito o pedido quando virou à esquerda para a estrada que conduzia à loja.

‑ Pode vir ter a minha casa por volta das oito? Tenho algumas coisas a fazer na loja, e provavelmente terei de lá ficar até tarde.

‑ Está óptimo. Onde é que mora?

‑ Em Carolina Beach. Eu dou‑lhe as indicações quando chegarmos à loja.

Entraram no parque de estacionamento e Theresa seguiu Garrett até ao escritório. Ele escrevinhou as indicações num pedaço de papel. Tentando não parecer tão confuso como se sentia, disse:

‑ Não deverá ter qualquer problema em encontrar o lugar, é só procurar a minha carrinha estacionada à frente da casa. Mas se tiver algum problema, o meu número está aqui em baixo.

Depois de ela sair, Garrett deu por si a pensar na noite que se avizinhava. Sentado no seu escritório, importunavam‑no duas perguntas sem resposta. Primeiro, porque se sentia ele tão atraído por Theresa? E segundo, porque é que subitamente se sentia como se estivesse a trair Catherine?

 

Theresa passou o resto da tarde a explorar a cidade enquanto Garrett trabalhava no escritório. Como não conhecia bem Wilmington, pediu indicações para o centro histórico e passou algumas horas a dar uma vista de olhos pelas lojas. A maior parte vendia artigos para turistas, e ela descobriu algumas coisas de que Kevin iria gostar, mas nada que se adequasse ao seu gosto. Depois de lhe comprar dois pares de calções que ele poderia usar depois de regressar da Califórnia, voltou para o hotel para dormir um pouco. Os últimos dois dias tinham‑na cansado, por isso adormeceu imediatamente.

Garrett, por outro lado, enfrentava pequenas crises sucessivas. Uma encomenda de novos equipamentos chegou logo após ele ter regressado, e depois de pôr de lado aquilo de que não precisava, telefonou para a companhia para combinar a devolução do resto. Mais tarde ficou a saber que três pessoas que se tinham inscrito para aulas de mergulho naquele fim‑de‑semana iriam estar fora da cidade e tinham de as desmarcar. Uma rápida consulta à lista de espera resultou infrutífera.

às seis e meia já estava cansado, e respirou de alívio quando finalmente fechou a loja à tardinha. Depois do trabalho passou primeiro pela mercearia e comprou as coisas de que precisava para o jantar. Tomou um banho de chuveiro e vestiu umas calças de ganga lavadas e uma camisa leve de algodão. Em seguida foi ao frigorífico buscar uma cerveja. Depois de a abrir, foi para a varanda das traseiras e sentou‑se numa das cadeiras de ferro forjado. Olhando para o relógio, deu conta de que Theresa estaria ali, dentro de pouco tempo.

Garrett estava ainda sentado na varanda de trás quando finalmente ouviu o som de um motor em marcha lenta descendo o quarteirão. Desceu a varanda e deu a volta à casa, vendo Theresa estacionar na rua, mesmo atrás da carrinha.

Ela saiu do carro usando jeans e a mesma blusa que trouxera anteriormente, aquela que lhe realçava maravilhosamente o corpo. Parecia descontraída quando veio ao seu encontro, e quando sorriu calorosamente para ele, Garrett percebeu que a sua atracção se tornara mais forte desde o almoço daquela tarde, o que, por alguma razão, o tornava um pouco inquieto.

Encaminhou‑se para ela o mais despreocupadamente possível, e Theresa encontrou‑o a meio caminho, trazendo uma garrafa de vinho branco nas mãos. Quando chegou perto dela, cheirou o aroma do perfume, algo que ela não tinha usado antes.

‑ Trouxe vinho ‑ disse ela, entregando‑o. ‑ Achei que seria bom para acompanhar o jantar. ‑ E, após uma breve pausa, disse: ‑ Como foi a sua tarde?

‑ Muito ocupada. Os clientes não pararam de chegar até à hora do fecho, e tive um montão de papelada para tratar. Na verdade, só cheguei a casa há bocadinho. ‑ Ele dirigiu‑se para a porta da frente, Theresa logo atrás. - E a Theresa? O que é que fez durante o resto do dia?

‑ Dormi uma soneca ‑ disse ela como que a gozar com ele, e ele riu‑se.


‑ Esqueci‑me de lhe perguntar antes, mas quer alguma coisa especial para o jantar? ‑ perguntou ele.

‑ Que está a planear fazer?

‑ Estava a pensar em grelhar uns bifes, mas depois pus‑me a pensar se a Theresa comia esse género de coisas.

‑ Está a brincar? Esquece‑se de que eu cresci no Nebraska. Adoro um bom bife.

‑ Então vai ter uma agradável surpresa.

‑ O quê?

‑ Acontece que eu faço os melhores bifes do mundo.

‑ Ah faz? Não me diga!

‑ Vou provar‑lhe ‑ disse ele, e ela riu, num tom melodioso. Quando se aproximaram da porta da frente, Theresa olhou para a casa pela primeira vez. Era relativamente pequena ‑ rectangular e de apenas um piso ‑ com a tinta sobre o revestimento de madeira a pelar em muito mais do que um sítio. Ao contrário das casas em Wrightsville Beach, esta encontrava‑se directamente sobre a areia. Quando lhe perguntou porque é que a casa não estava erguida em estacas como as outras, ele explicou que ela fora construída antes das regras de construção anticiclones terem entrado em vigor.

‑ Agora as casas têm de ser levantadas para que as marés possam passar por baixo da estrutura principal. O próximo grande furacão irá provavelmente arrastar esta velha casa para o alto mar, mas tenho tido sorte até agora.

‑ Isso não o preocupa?

‑ Não muito. A casa não vale grande coisa, e foi essa a única razão porque a pude comprar. Acho que o antigo proprietário acabou por se cansar de toda a tensão que sentia sempre que uma grande tempestade começava a atravessar o Atlântico.

Chegaram às escadas rachadas da frente e entraram. A primeira coisa em que Theresa reparou ao entrar foi na vista da sala de estar. As janelas iam do chão até ao tecto e estendiam‑se ao longo de todo o comprimento das traseiras da casa, dando para a varanda das traseiras e para Carolina Beach.

‑ Esta vista é incrível ‑ disse ela, surpreendida.

‑ É, não é? já vivo aqui há alguns anos, mas ainda não deixei de a admirar.

Num dos lados havia uma lareira, rodeada por uma dúzia de fotografias subaquáticas. Ela encaminhou‑se para elas. ‑ Importa‑se que eu dê uma olhada?

‑ Não, esteja à vontade. De qualquer modo tenho de ir preparar o grelhador lá fora. Precisa de uma pequena limpeza.

Garrett saiu através da porta de vidro corrediça. Depois de ele sair, Theresa olhou para as fotografias durante algum tempo e depois fez uma excursão pelo resto da casa. Como muitas das casas de praia que já vira, não havia espaço para mais de uma ou duas pessoas lá viverem. Tinha apenas um quarto de dormir, no qual se entrava através de uma porta que dava para a sala. Tal como a sala, o quarto também tinha janelas do chão ao tecto com vista para a praia. Na parte da frente da casa ‑ o lado mais próximo da rua ‑ havia uma cozinha, uma pequena área para refeições (não propriamente uma sala de jantar), e uma casa de banho. Embora tudo estivesse arrumado e limpo, a casa parecia não levar obras há anos.


Regressando à sala, parou junto do quarto dele e olhou para dentro. De novo viu fotografias subaquáticas decorando as paredes. Além disso havia um grande mapa da costa da Carolina do Norte pendurado directamente sobre a cama, assinalando a localização de quase quinhentos naufrágios. Quando olhou na direcção da mesa de cabeceira, viu a fotografia emoldurada de uma mulher. Certificando‑se de que Garrett ainda estava lá fora a limpar o grelhador, ela entrou no quarto para olhá‑la de mais perto.         

Catherine devia ter vinte e tal anos quando o retrato foi tirado. Tal como as fotografias nas paredes, parecia que Garrett a tinha fotografado ele próprio, e ela perguntava‑se se a fotografia fora emoldurada antes ou depois do acidente. Pegando na moldura, ela reparou que Catherine era atraente ‑ um pouco mais petite do que ela ‑ com cabelo louro a dar‑lhe pelo meio dos ombros. Apesar da fotografia ter um pouco de grão e parecer ter sido reproduzida a partir de uma outra mais pequena, ela podia ainda perceber os

olhos de Catherine. Verdes escuros e quase felinos, davam‑lhe uma aparência exótica e pareciam quase como se estivessem a olhar fixamente para ela. Pousou a moldura com cuidado na mesa de cabeceira, certificando‑se de que estava na mesma posição que anteriormente. Voltando‑se, continuou com a impressão de que Catherine estava a observar cada movimento seu.

Ignorando a sensação, olhou para o espelho sobre a cómoda. Surpreendentemente, havia apenas mais uma fotografia que incluía Catherine. Era uma fotografia de Garrett e Catherine sorrindo abertamente, de pé no convés do Happenstance. Como o barco parecia já estar restaurado, Theresa deduziu que a fotografia tinha sido tirada apenas alguns meses antes de Catherine ter morrido.          

Sabendo que ele poderia entrar em casa a qualquer momento, saiu do quarto, sentindo‑se um pouco culpada por ter andado a bisbilhotar. Dirigiu‑se às portas corrediças que davam da sala para a varanda e abriu‑as. Garrett estava a limpar a grelha e sorriu‑lhe quando a ouviu sair. Ela caminhou até à beira da varanda onde ele estava a trabalhar e encostou‑se ao gradeamento, com uma perna por cima da outra.

‑ Foi o Garrett que tirou todas aquelas fotografias nas paredes? - perguntou ela. Ele usou as costas da mão para afastar o cabelo da testa.

‑ Fui. Houve uma altura em que levava a máquina em quase todos os mergulhos. Pendurei a maior parte na loja, mas como tinha tantas, pensei em pôr algumas aqui também.

‑ Parecem de um profissional.

‑ Obrigado. Mas penso que a sua qualidade tem mais a ver com a quantidade enorme que tirei. Devia ter visto todas aquelas que não saíram.

Enquanto falava, Garrett segurava a grelha. Embora estivesse queimada de preto em alguns sítios, parecia estar pronta e ele pô‑la de lado. Pegou num saco de carvão e deitou algum para um grelhador que parecia ter trinta anos, usando a mão para o espalhar por igual. Depois acrescentou um pouco de combustível, embebendo cada pedra apenas por um instante.

Ela falou no mesmo tom de gozo que usara antes.

‑ Sabe, agora já existem grelhadores a gás propano.


‑ Eu sei, mas eu gosto de o preparar como fazíamos quando éramos crianças. Além disso o sabor é muito melhor assim. Grelhar com propano é a mesma coisa que cozinhar dentro de casa.

Ela sorriu.

‑ E prometeu‑me o melhor bife que alguma vez irei comer.

‑ E vai tê‑lo. Confie em mim. - Ele terminou com o combustível e colocou‑o ao lado do saco de carvão. ‑ Vou deixar isto embeber durante uns minutos. Quer beber alguma coisa?

Theresa perguntou:

‑ O que é que tem?            

Garrett clareou a garganta.

‑ Cerveja, refrigerantes, ou o vinho que trouxe.

‑ Pode ser uma cerveja.

Garrett pegou no carvão e no combustível e pô‑los dentro de um velho baú que se encontrava ao lado da casa. Depois de sacudir a areia dos sapatos, entrou em casa, deixando a porta de vidro corrediça aberta.

Enquanto esperava por ele, Theresa voltou‑se e olhou para a extensão da praia. Agora que o Sol se estava a pôr, a maior parte das pessoas tinha desaparecido, e as poucas que restavam faziam jogging ou passeavam a pé. Apesar da praia não estar cheia, mais de uma dúzia de pessoas passara pela casa no curto espaço de tempo em que ele demorara lá dentro.

‑ Nunca se cansa de ter todas estas pessoas à volta? ‑ perguntou ela quando ele voltou.

Ele entregou‑lhe a cerveja.

‑ Nem por isso, também não estou muito tempo em casa, de qualquer maneira. Normalmente quando chego a casa, a praia já está bastante deserta. E no Inverno não há absolutamente ninguém.

Apenas por um instante, ela imaginou‑o sentado na sua varanda, olhando a água sozinho como sempre. Garrett meteu a mão no bolso e tirou de lá uma caixa de fósforos. Acendeu o carvão afastando‑se quando as chamas irromperam. A brisa ligeira fazia o fogo dançar em círculo.

‑ Agora que já acendi o fogo, vou começar a preparar o jantar.

‑ Posso ajudá‑lo em alguma coisa?

‑ Não há muito que fazer ‑ respondeu ele. ‑ Mas se tiver sorte, talvez lhe revele a minha receita secreta.

Ela inclinou a cabeça e olhou para ele com ar matreiro.

‑ Sabe que está a pôr a fasquia bastante alta em relação a esses bifes.

‑ Eu sei. Mas tenho fé.       

Ele piscou‑lhe o olho e ela riu‑se antes de o seguir para dentro em direcção à cozinha. Garrett abriu um dos armários e tirou para fora algumas batatas. Depois de acender o forno, embrulhou as batatas em folha de alumínio e colocou‑as no tabuleiro.

‑ Que posso eu fazer?

‑ Como disse, não muito. Acho que tenho tudo sob controlo. Comprei uma daquelas saladas pré‑embaladas e não há mais nada na ementa.

Theresa afastou‑se para um canto enquanto Garrett punha as últimas batatas no forno e tirava a salada do frigorífico. De soslaio, ele olhou para ela enquanto colocava a salada dentro de uma tigela.


O que havia nela que o fazia de repente querer estar‑lhe o mais próximo possível? Pensando nisso, abriu o frigorífico e tirou para fora os bifes que pedira para talhar na loja especialmente para aquela noite. Abriu o armário ao lado do frigorífico e encontrou o resto das coisas de que precisava. Depois de as retirar, colocou tudo perto de Theresa.

Ela lançou‑lhe um sorriso provocador.

‑ Então, o que há de tão especial nestes bifes grelhados?

Concentrando‑se, ele deitou um pouco de brandy numa tigela rasa.

‑ Há algumas coisas. Primeiro, arranjam‑se alguns bifes grossos como estes. O talho normalmente não os corta assim tão grossos, por isso tem de pedir especialmente para lhe fazerem esse favor. Depois tempera‑os com um pouco de sal, pimenta, e alho em pó, e deixa‑os embeber no brandy até o carvão ficar em brasa.

Ele fez o que explicou enquanto falava, e pela primeira vez desde que ela o conhecera, ele aparentava a idade que tinha. Com base no que lhe havia dito, podia concluir que era pelo menos quatro anos mais novo do que ela.

‑ É esse o seu segredo?

‑ É só o começo ‑ prometeu ele, subitamente consciente de como ela estava bela. ‑ Mesmo antes de irem para a grelha, acrescenta‑se um pouco deste produto para tornar a carne tenra. O resto tem a ver com a maneira como são grelhados, e não com o tempero.

‑ Parece que é um verdadeiro cozinheiro.

‑ Na verdade não. Sei fazer algumas coisas, mas hoje em dia não cozinho muito. Quando chego a casa normalmente apetece‑me qualquer coisa que não exija muito esforço.

‑ Também sou assim. Se não fosse pelo Kevin acho que não cozinharia muito.

Depois de acabar de preparar os bifes, ele foi de novo até à gaveta de onde retirou uma faca, voltando para o lado dela. Pegou em dois tomates que estavam em cima do balcão e começou a cortá‑los.

‑ Parece que tem uma óptima relação com Kevin.

‑ Tenho. Só espero que continue. Ele é quase adolescente agora, e preocupa‑me que quando ele for mais velho, vá querer passar menos tempo comigo.

‑ Se fosse a si não me preocuparia muito. Pela maneira como me fala dele, acho que os dois se darão sempre bem.

‑ Espero que sim. Neste momento, ele é tudo o que tenho. Não sei o que faria se ele começasse a afastar‑me da sua vida. Tenho alguns amigos que têm filhos um pouco mais velhos do que ele que me dizem que isso é inevitável.

‑ Tenho a certeza de que ele vai mudar um bocadinho. Toda a gente muda, mas isso não significa que ele deixará de falar consigo.

Ela olhou para ele.

‑ Está a falar por experiência própria ou está apenas a dizer‑me aquilo que eu quero ouvir?

Ele encolheu os ombros, apercebendo‑se de novo do perfume dela.

‑ Estou apenas a lembrar‑me daquilo por que passei com o meu pai. Sempre fomos muito unidos quando era criança, e isso não mudou quando fui para a escola secundária. Comecei a fazer coisas diferentes e a passar mais tempo com os meus amigos, mas continuámos sempre a falar um com o outro.

‑ Espero que também seja assim comigo ‑ disse ela.            


Um silêncio tranquilo desceu sobre eles com a preparação do jantar. O simples acto de cortar tomates com ela a seu lado aliviava alguma da ansiedade que ele havia sentido até então. Theresa era a primeira mulher que convidara para sua casa, e Garrett percebeu que havia algo de confortável em tê‑la ali.

Quando acabou, Garrett pôs os tomates na tigela da salada e limpou as mãos numa toalha de papel. Depois dobrou‑se para tirar a sua segunda cerveja.

‑ Quer beber mais uma?   

Ela bebeu o resto da sua garrafa, surpreendida por tê‑la acabado tão depressa. Acenou que sim com a cabeça, colocando a garrafa vazia sobre o balcão. Garrett abriu a nova garrafa e passou‑a a Theresa, abrindo depois outra para si. Theresa estava descontraidamente encostada ao balcão, e quando pegou na garrafa, algo lhe pareceu surpreendentemente familiar na sua postura: o sorriso percorrendo suavemente os seus lábios, talvez, ou o seu olhar enviesado enquanto o observava a levar a sua própria garrafa aos lábios. Lembrou‑se de novo daquela indolente tarde de Verão com Catherine, quando viera para casa fazer‑lhe uma surpresa ao almoço ‑ um dia que em retrospectiva lhe parecera tão repleto de sinais... no entanto como poderia ter ele antevisto tudo o que iria acontecer? Estavam na cozinha, tal como ele e Theresa naquele momento.

 

‑ Calculo que já tenhas comido ‑ disse Garrett enquanto Catherine permanecia em frente do frigorífico aberto.

Catherine olhou‑o de relance.

‑ Não tenho muita fome ‑ disse ela. ‑ Mas tenho sede, Queres um pouco de chá gelado?

‑ Seria óptimo. Sabes se o correio já veio?      

Catherine acenou que sim com a cabeça enquanto tirava o jarro do chá da prateleira de cima.

‑ Está em cima da mesa.

Ela abriu o armário e procurou dois copos. Colocou o primeiro sobre o balcão e quando estava a encher o segundo deixou que este lhe escorregasse da mão.

‑ Estás bem? ‑ Garrett deixou cair o correio, preocupado. Catherine passou a mão pelo cabelo, embaraçada, depois agachou‑se para apanhar os cacos de vidro.

‑ Foi só uma pequena tontura. Mas já passou.

Garrett aproximou‑se dela e ajudou‑a a apanhar os cacos. ‑ Estás a sentir‑te mal outra vez?

‑ Não, mas se calhar estive demasiado tempo lá fora esta manhã.

Ele ficou calado durante um momento enquanto apanhava os vidros.

‑ Tens a certeza que devo voltar para o trabalho? Esta última semana tem sido muito dura para ti.

‑ Eu estou bem. E depois sei que tens muito que fazer lá.

Embora ela tivesse razão, quando ele finalmente regressou ao trabalho, teve a sensação de que talvez não devesse tê‑la escutado.

 

Ele engoliu em seco, apercebendo‑se de repente do silêncio na cozinha.

‑ Vou ver como está o fogo ‑ disse ele, precisando de uma coisa, qualquer coisa, para fazer. ‑ Espero que já esteja quase pronto.


‑ Posso pôr a mesa enquanto for ver?

‑ Claro. A maior parte das coisas de que precisa estão aqui.

Depois de lhe mostrar onde encontrar o que precisava, ele foi lá para fora, esforçando‑se por se descontrair e afastar da sua mente as recordações espectrais. Quando chegou ao grelhador, examinou o carvão, concentrando‑se naquilo que estava a fazer. Quase branco, o carvão precisava de mais alguns minutos, calculou ele. Foi novamente até ao baú, e desta vez tirou de lá um pequeno fole manual. Colocou‑o sobre o gradeamento ao lado do grelhador e respirou fundo. O ar do oceano estava fresco, quase embriagante, e pela primeira vez, percebeu subitamente que apesar da visão de Catherine que tivera apenas há alguns instantes atrás, continuava contente por Theresa ali estar. Na realidade, estava feliz, algo que não sentia havia muito tempo.

Não era apenas a maneira como eles se davam um com o outro, mas eram as pequenas coisas que Theresa fazia. O modo como ela sorria, a maneira como olhava para ele, até a maneira como ela tinha pegado na mão dele naquela tarde ‑ começava já a sentir como se a conhecesse há mais tempo. Perguntava a si mesmo se seria por ela ser parecida com Catherine, em tantas coisas, ou se o seu pai tivera razão sobre ele precisar de passar algum tempo com outra pessoa.

Enquanto ele estava lá fora, Theresa punha a mesa. Colocou um copo de vinho ao lado de cada prato e vasculhou na gaveta à procura de talheres. Para além dos talheres havia duas velas com dois pequenos suportes para cada uma. Depois de se interrogar se seria excessivo decidiu colocá‑las também na mesa. Deixaria ao critério dele acendê‑las ou não. Garrett entrou mesmo quando ela estava mesmo a terminar.

‑ Temos alguns minutos. Quer sentar‑se lá fora enquanto esperamos?

Theresa pegou na sua cerveja e seguiu‑o. Tal como na noite anterior, soprava uma brisa que não era nem de perto tão forte. Ela sentou‑se numa das cadeiras e Garrett mesmo a seu lado com as pernas cruzadas sobre os tornozelos. A camisa clara fazia sobressair a sua pele profundamente bronzeada, e Theresa observou‑o enquanto ele olhava para a água. Ela fechou os olhos durante um instante, sentindo‑se mais viva do que vinha a sentir‑se há muito tempo.

‑ Aposto que não tem uma vista como esta onde vive em Boston ‑ disse ele quebrando o súbito silêncio.

‑ Tem razão ‑ disse ela ‑, não tenho. Vivo num apartamento. Os meus pais acham que sou louca por viver no centro. Acham que devia viver nos subúrbios.

- Porque não vive?

‑ Vivi, antes do divórcio. Mas agora é tudo mais fácil. Posso chegar ao trabalho em apenas alguns minutos. A escola de Kevin fica ao fundo do quarteirão, e nunca tenho de apanhar a auto‑estrada a não ser que saia da cidade. Para além disso queria algo de diferente depois do casamento ter acabado. Não conseguia suportar os olhares que os meus vizinhos me lançavam depois de descobrirem que o David se tinha ido embora.

‑ Que quer dizer?    

Ela encolheu os ombros, e a sua voz suavizou‑se.


‑ Nunca disse a nenhum deles porque é que eu e o David nos tínhamos separado. Achei que não tinham nada a ver com o assunto.

‑ E não tinham.       

Ela fez uma breve pausa, lembrando‑se.

‑ Eu sei isso, mas na mente deles, David era um marido maravilhoso. Era bonito e bem sucedido na vida, e eles não queriam acreditar que tivesse feito algo de errado. Mesmo quando estávamos juntos, ele agia como se tudo estivesse perfeito. Não tinha ideia nenhuma de que ele estava a ter um caso até mesmo perto do fim.

Ela virou‑se para ele, com uma expressão triste no rosto. ‑ Como se costuma dizer, a mulher é sempre a última a saber.

‑ Como é que descobriu?

Ela abanou a cabeça.

‑ Sei que parece um cliché, mas de entre todas as pessoas, descobri através da empregada da lavandaria. Quando fui buscar as roupas dele, a empregada entregou‑me algumas facturas que lhe tinha encontrado no bolso. Uma era de um hotel no centro da cidade. E eu sabia pela data que ele tinha estado em casa naquela noite, por isso deve ter sido apenas por uma tarde. Ele negou tudo quando o confrontei, mas pela maneira como olhava para mim, eu sabia que ele estava a mentir. Por fim, a história acabou por vir ao de cima, foi então que meti os papéis para o divórcio.

Garrett escutava em silêncio, deixando‑a terminar, perguntando a si mesmo como é que ela se poderia ter apaixonado por alguém que lhe fez uma coisa daquelas. Como se lesse o seu pensamento, ela continuou:

‑ Sabe, David era um daqueles homens que podia dizer qualquer coisa e fazer com que acreditássemos nele. Penso até que ele acreditava na maior parte das coisas que me dizia. Conhecemo‑nos na faculdade, e fiquei encantada com todas as suas qualidades. Ele era inteligente e cativante, sentia‑me lisonjeada por ele se interessar por uma pessoa como eu. Ali estava eu, uma rapariga jovem vinda directamente do Nebraska, com um rapaz que era diferente de todas as pessoas que eu conhecera antes. E quando nos casámos, pensei que iria ter uma vida de conto de fadas. Mas imagino que isso era o que estava mais longe da mente dele. Descobri mais tarde que ele teve o primeiro caso apenas cinco meses depois de nos termos casado.

Ela parou por um momento, e Garrett olhou para a sua cerveja.

‑ Não sei o que dizer.

‑ Não há nada que possa dizer ‑ disse ela conclusivamente. ‑ Já acabou, e como disse ontem, a única coisa que quero dele agora é que seja um bom pai para Kevin.

‑ Faz tudo parecer tão fácil.

‑ Não é essa a minha intenção. David magoou‑me bastante, e foram precisos alguns anos e mais do que algumas sessões com uma boa terapeuta para chegar onde estou hoje. Aprendi muito com a minha terapeuta, e fui aprendendo muito acerca de mim própria também. Uma vez, quando estava a disparatar sobre como ele tinha sido um parvalhão, ela chamou‑me a atenção para o facto de que se eu continuasse a agarrar‑me à minha raiva, ele estaria ainda a controlar‑me, e eu não estava disposta a aceitar isso. Por isso resolvi esquecer o assunto.

Ela bebeu mais um gole da sua cerveja. Garrett perguntou:

‑ A sua terapeuta disse‑lhe mais alguma coisa de que se recorde?


Ela pensou durante um momento, depois sorriu levemente.

‑ Por acaso até disse. Disse que se alguma vez encontrasse alguém que me fizesse lembrar David, eu deveria dar meia volta e correr para as montanhas.

‑ Eu faço lembrar‑lhe David?

‑ De maneira nenhuma. É completamente diferente de David.

‑ Isso é bom ‑ disse ele com seriedade fingida. ‑ Não há muitas montanhas nesta zona do país, sabe. Teria de correr um bom estiraço.

Ela riu‑se, e Garrett olhou para o grelhador. Vendo que o carvão estava pronto, perguntou:

‑ Está pronta para começar com os bifes?

‑ Mostra‑me o resto da sua receita secreta?

‑ Com prazer ‑ disse ele enquanto se levantavam. Procurou na cozinha o produto para tornar os bifes mais tenros salpicando‑os depois um pouco. De seguida, tirando ambas as fatias do brandy, acrescentou um pouco do produto nos outros lados também. Abriu o frigorífico e tirou para fora um pequeno saco de plástico.

‑ O que é isso? ‑ perguntou Theresa.     

‑ É gordura ‑ a parte gordurosa do bife que normalmente é cortada. Pedi ao homem do talho para me guardar alguma quando comprei os bifes.

‑ Para que serve?

‑ Vai ver ‑ disse ele.           

Depois de voltar para o grelhador com os bifes e umas pinças, Garrett colocou‑os no gradeamento perto do fole. Depois, pegando no fole que fora buscar antes, começou a soprar as cinzas que se amontoavam por cima das brasas, explicando‑lhe o que estava a fazer.

‑ Para bem grelhar um bife é necessário certificarmo‑nos de que as brasas estão quentes. Use o fole para tirar as cinzas de cima e assim não haverá nada a bloquear o calor.

Repôs a grelha em cima do grelhador, deixou‑a aquecer durante cerca de um minuto, e depois usou as pinças para colocar os bifes.

‑ Como é que gosta do seu bife?

‑ Meio passado.

‑ Com bifes deste tamanho, isso significa cerca de onze minutos de cada lado.

Ela ergueu as sobrancelhas. ‑ É muito rigoroso com isto tudo, não é?

‑ Prometi‑lhe um bom bife, e tenciono cumprir. Durante o pouco tempo que demorou a grelhar os bifes, Garrett observou Theresa pelo canto do olho. Havia qualquer coisa de sensual na sua figura, recortada pelo Sol poente. O céu estava a ficar cor de laranja, e a luz quente escurecia os seus olhos castanhos fazendo‑a parecer especialmente bonita. O cabelo elevava‑se sedutor na brisa do fim de tarde.

‑ Em que está a pensar?

Ele pôs‑se direito ao ouvir o som da sua voz, apercebendo‑se subitamente de que não dissera nada desde que começara a cozinhar.

‑ Estava só a pensar sobre como o seu ex‑marido foi um parvo ‑ disse ele, voltando‑se para ela, e vendo‑a a sorrir. Ela deu umas palmadinhas no ombro dele, suavemente.

‑ Mas se ainda estivesse casada, não estaria aqui consigo.


‑ E isso ‑ disse ele, sentindo ainda o toque dela ‑, seria uma pena.

‑ Sim, seria ‑ concordou ela, e os olhos deles demoraram‑se por um momento um num outro. Por fim Garrett desviou o olhar e pegou na gordura. Clareando a garganta:

‑ Penso que já estamos prontos para isto agora.        

Pegou na gordura, que tinha sido cortada em pedaços mais pequenos, e colocou‑a sobre as brasas, mesmo por baixo dos bifes. Depois debruçou‑se e soprou até os pedaços irromperem em chama.

‑ O que está a fazer?

‑ As chamas da gordura queimarão a superfície conservando os sucos no interior e mantendo os bifes tenros. É por essa mesma razão que se usam pinças em vez de um garfo.

Ele atirou mais alguns pedaços de gordura para cima das brasas e repetiu o processo. Olhando em volta, Theresa comentou:

‑ Isto aqui é muito sossegado. Percebo porque é que comprou o lugar.

Ele acabou o que estava a fazer e bebeu mais um bocado de cerveja, humedecendo a garganta.

‑ Há qualquer coisa no mar que faz isso às pessoas. Talvez seja essa a razão por que tanta gente vem para aqui repousar.

Ela voltou‑se para ele.

‑ Diga‑me, Garrett, em que é que pensa quando está aqui sozinho?

‑ Em muitas coisas.

‑ Alguma coisa em particular?     

Penso em Catherine, queria ele dizer, mas não disse.          

Ele suspirou:

‑ Não, na verdade não. às vezes penso no trabalho, outras vezes penso nos novos lugares que quero explorar nos Meus mergulhos. Outras vezes, penso em partir de barco e deixar tudo para trás.

Ela observou‑o atentamente quando ele proferiu as últimas palavras.

‑ Era mesmo capaz de fazer isso? Partir de barco e nunca mais voltar?

‑ Não tenho a certeza, mas gosto de pensar que seria capaz. Ao contrário da Theresa, não tenho nenhuma família tirando o meu pai, e de certa maneira, penso que ele compreenderia. Eu e ele somos muito parecidos, e tenho a impressão de que se não fosse por mim, ele já teria partido há muito tempo.

‑ Mas isso seria como fugir.

‑ Eu sei.

‑ Porque quereria fazer isso? ‑ insistiu ela, sabendo de certa forma a resposta. Garrett não respondeu e ela aproximou‑se dele falando suavemente. ‑ Garrett, sei que não tenho nada a ver com isso, mas não pode fugir daquilo por que está a passar. ‑ Ela fez‑lhe um sorriso animador. ‑ E além disso, tem tanto para oferecer a alguém.

Garrett permaneceu em silêncio, pensando no que ela tinha dito, em como ela parecia saber exactamente o que dizer para fazê‑lo sentir‑se melhor.


Durante os minutos seguintes, os únicos ruídos em redor vieram de outro lugar. Garrett voltou os bifes, e eles chiaram sobre a grelha. A suave brisa do fim de tarde fez repicar um móbil ao longe. As ondas rebentavam na praia num rumor tranquilizante e contínuo.

A mente de Garrett passou em revista os últimos dois dias. Pensou no momento em que a vira pela primeira vez, nas horas que tinham passado no Happenstance, e na conversa na praia à tarde quando ele lhe falou em Catherine pela primeira vez. A tensão que sentira mais cedo durante o dia tinha agora quase desaparecido, e com ela ali a seu lado, à luz do crepúsculo que se adensava, ele pressentia que havia algo mais naquela noite do que ambos queriam admitir.

Pouco antes de os bifes estarem prontos, Theresa voltou para dentro para preparar o resto da mesa. Tirou as batatas do forno, desembrulhou‑as da folha de alumínio, e pôs uma em cada prato. Em seguida, tirou a salada do frigorífico e colocou‑a no meio da mesa, juntamente com vários molhos que descobrira na porta & frigorífico. Por último, pôs o sal, a pimenta, manteiga, e um par de guardanapos. Como estava a ficar escuro dentro de casa, ela acendeu a luz da cozinha, mas pareceu‑lhe demasiado brilhante. Voltou a apagá‑la. Num impulso, decidiu acender as velas, afastando‑se da mesa em seguida para verificar se seria de mais. Achando que estava bem, pegou na garrafa do vinho e estava a colocá‑la na mesa quando Garrett entrou.

Depois de fechar a porta de vidro corrediça, Garrett viu o que ela tinha feito. Estava escuro na cozinha exceptuando as duas pequenas chamas apontando para cima, e o brilho fazia Theresa parecer mais bonita. O seu cabelo escuro parecia misterioso à luz da vela, e os seus olhos pareciam aprisionar as chamas inconstantes. Incapaz de falar durante um longo momento, tudo o que Garrett pôde fazer foi olhar fixamente para ela, e foi nesse momento que soube exactamente o que estivera a tentar negar a si mesmo todo tempo.

‑ Pensei que ficassem bem ‑ disse ela baixinho.

‑ Acho que sim.

Continuaram a olhar um para o outro cada um do seu lado da cozinha, ambos paralisados durante um momento pela sombra das possibilidades distantes. Depois Theresa desviou o olhar.

‑ Não consegui encontrar o saca‑rolhas ‑ disse ela, agarrando‑se a qualquer coisa para dizer.

‑ Vou buscá‑lo ‑ disse ele depressa. ‑ Não o uso muitas vezes, por isso deve estar escondido numa das gavetas.

Ele levou o prato dos bifes para a mesa e de seguida foi até à gaveta. Depois de vasculhar entre os utensílios no fundo, encontrou o saca‑rolhas e trouxe‑o para a mesa. Com alguns movimentos ágeis, abriu a garrafa e serviu apenas a quantidade certa em cada copo. Depois, sentando‑se, usou as pinças para pôr os bifes nos pratos.

‑ É o momento da verdade ‑ disse ela mesmo antes de dar a primeira dentada. Garrett sorriu enquanto a observava a provar o bife. Theresa ficou agradavelmente surpreendida ao descobrir que ele tivera razão o tempo todo.

‑ Garrett, está delicioso ‑ disse ela com sinceridade.

‑ Obrigado.   

As velas consumiam‑se à medida que a noite ia passando devagar, e Garrett disse‑lhe por duas vezes o quanto ele estava feliz por ela ter vindo. De ambas as vezes Theresa sentiu algo a formigar na nuca e teve de beber outro gole de vinho apenas para fazer desaparecer a sensação.


Lá fora a maré subia lentamente, impelida por uma meia‑lua surgida aparentemente de lugar nenhum.

 

Depois do jantar, Garrett sugeriu outro passeio ao longo da praia.

‑ É muito bonito à noite ‑ disse ele. Assim que Theresa aceitou, ele pegou nos pratos e nos talheres e pô‑los no lava‑loiça.

Saíram da cozinha e dirigiram‑se lá para fora e Garrett fechou a porta atrás de si. A noite estava amena. Desceram pela varanda, encaminhando‑se através de uma pequena duna de areia até à praia.

Quando chegaram à beira da água, repetiram os movimentos daquela tarde, descalçando os sapatos e deixando‑os na praia, uma vez que não havia mais ninguém em redor. Caminharam lentamente, próximos um do outro. Surpreendendo‑a, Garrett pegou‑lhe na mão. Sentindo o seu calor, Theresa interrogou‑se apenas por um instante sobre como seria o toque dele sobre o seu corpo, demorando‑se sobre a sua pele. O pensamento fê‑la sentir um aperto por dentro, e quando o olhou de relance, perguntou‑se se ele sabia o que ela estivera a pensar.

Continuaram a passear, admirando a noite.

‑ Há muito tempo que não tinha uma noite como esta ‑ disse Garrett por fim, e a sua voz soou quase como uma recordação.

‑ Eu também não ‑ disse ela.       

A areia estava fresca debaixo dos pés.

‑ Garrett, lembra‑se quando me convidou para ir andar de barco? ‑ perguntou Theresa.

‑ Sim.

‑ Porque é que me pediu para ir consigo?        

Ele olhou para ela com curiosidade.

‑ Que quer dizer?

‑ Quero dizer que pareceu quase como se se tivesse arrependido no momento em que o fez.

Ele encolheu os ombros.

‑ Não sei se arrependido é a palavra certa. Acho que fiquei surpreendido por ter perguntado, mas não me arrependi.

Ela sorriu.

‑ Tem a certeza?

‑ Sim, tenho. Lembre‑se de que eu não convidava ninguém para sair há mais de três anos. Quando disse que nunca tinha andado de barco à vela, penso que de repente me apercebi de que estava farto de estar sempre sozinho.

‑ Quer dizer que eu estava no lugar certo no momento certo?

Ele abanou a cabeça.

‑ Não quis dizer isso. Eu quis levá‑la a passear de barco comigo. Penso que não o teria feito se fosse outra pessoa. Além disso tudo acabou por se revelar muito melhor do que eu pensava. Estes últimos dois dias têm sido os melhores que já tive desde há muito tempo.

Ela sentiu‑se confortável por dentro com o que ele disse. EnquantO caminhavam, ela sentia‑o mexendo lentamente o polegar, desenhando pequenos círculos na pele dela. Ele continuou.

‑ Pensava que as suas férias iriam ser parecidas de alguma forma às que está a ter?


Ela hesitou, decidindo que não era o momento certo para lhe contar a verdade.

‑ Não.            

Caminharam juntos em silêncio. Havia mais algumas pessoas na praia, embora estivessem suficientemente distantes para que Theresa não conseguisse vislumbrar nada a não ser umas sombras.

‑ Acha que alguma vez virá aqui de novo? Quer dizer, para outras férias?

‑ Não sei. Porquê?

‑ Porque estava com esperanças de que o fizesse.

Ao longe, ela conseguia ver as luzes de um embarcadouro. Sentiu de novo a mão dele mexer‑se na dela.

‑ Convidar‑me‑ia outra vez para jantar se voltasse?   

‑ Cozinharia para si o que quisesse. Desde que fosse bife.  

Ela riu‑se baixinho.

‑ Então vou pensar no assunto. Prometo.

‑ E que tal se incluísse umas aulas de mergulho também?

‑ Acho que Kevin iria gostar mais disso do que eu.

‑ Então traga‑o consigo.

Ela olhou para ele.

‑ Não se importaria?

‑ De modo nenhum. Gostaria muito de o conhecer.

‑ Aposto que gostaria dele.

‑ Eu sei que iria gostar.

Continuaram a andar em silêncio, até Theresa balbuciar:

‑ Garrett, posso fazer‑lhe uma pergunta?

‑ Claro.

‑ Sei que isto lhe vai parecer estranho, mas...

Ela fez uma breve pausa, e ele olhou para ela com curiosidade.

‑ O quê?

‑ Qual foi a pior coisa que alguma vez fez?      

Ele riu‑se alto.

‑ Donde é que veio isso?

‑ Só quero saber. Faço sempre essa pergunta às pessoas. Permite‑me saber como é que as pessoas funcionam na verdade.

‑ A pior coisa?

‑ A pior de todas.    

Ele pensou durante um momento.

‑ Creio que poderia dizer que a pior coisa que alguma vez já fiz foi quando eu e um grupo dos meus amigos saímos uma noite em Dezembro ‑ tínhamos bebido muito e estávamos a fazer um barulho dos diabos quando fomos parar a uma rua inteiramente decorada com luzinhas de Natal. Bem, estacionámos e logo ali começámos a desenroscar e a roubar todas as lâmpadas de que éramos capazes.

‑ Não!?

‑ É verdade. Éramos cinco, e enchemos a caixa da carrinha com lâmpadas de Natal roubadas. E deixámos os fios ‑ isso foi a pior parte. Parecia que o Grinch (Personagem de banda desenhada que odeia o Natal) tinha passado por aquela rua. Ficámos lá durante quase duas horas, perdidos de riso com o que estávamos a fazer. A rua tinha aparecido no jornal como uma das mais decoradas da cidade, e quando acabámos... Não consigo imaginar o que aquela gente pensou. Devem ter ficado furiosos.

‑ Isso é terrível!        


Ele riu‑se de novo.

‑ Eu sei. Pensando agora, sei que foi terrível. Mas na altura foi hilariante.

‑ E julgava eu que era um tipo tão bem comportado...

‑ Eu sou um tipo bem comportado.

‑ Comportou‑se como o Grinch. ‑ Ela insistiu, curiosa. ‑ Então e que mais é que você e os seus amigos fizeram?

‑ Quer mesmo saber?

‑ Sim, quero.            

Ele começou então a regalá‑la com histórias de outras tropelias de adolescente ‑ desde ensaboar as janelas de automóveis até embrulhar os arbustos e as árvores das casas de antigas namoradas com papel higiénico. Uma vez, contou ele, passeava de carro com uma namorada, quando um dos seus amigos apareceu noutro carro ao lado deles. Após ter‑lhe feito sinal para descer o vidro ‑ o que Garrett fez ‑ o amigo lançou‑lhe imediatamente para dentro do carro um foguete feito com uma garrafa de plástico que veio explodir aos seus pés.

Vinte minutos mais tarde ele ainda estava a contar histórias, para grande divertimento dela. Quando finalmente terminou, ele fez‑lhe a mesma pergunta que havia começado a conversa.

‑ Oh, nunca fiz nada dessas coisas ‑ disse ela quase envergonhada. ‑ Sempre fui um rapariga bem comportada.

Então ele riu‑se novamente, sentindo‑se como se tivesse sido enganado ‑ não que se importasse ‑ e sabendo muito bem que ela não estava a dizer a verdade.

Caminharam até ao fim da praia, trocando entre si mais histórias de infância. Enquanto ele falava Theresa tentava imaginar como ele seria quando era mais novo, perguntando‑se sobre o que teria achado dele se o tivesse conhecido quando frequentava a faculdade. Tê‑lo‑ia achado tão atraente como o achava agora, ou teria voltado a apaixonar‑se por David? Queria acreditar que teria apreciado as diferenças entre ambos, mas tê‑lo‑ia feito? David parecera tão perfeito na altura.

Pararam durante um momento e ficaram a olhar para a água. Ele estava próximo dela, e os ombros de ambos quase se tocavam.

‑ Em que está a pensar? ‑ perguntou Garrett.

‑ Estava apenas a pensar em como o silêncio é tão agradável consigo ao meu lado.

Ele sorriu.

‑ E eu estava mesmo agora a pensar em como lhe contei um montão de coisas que não conto a mais ninguém.

‑ É porque sabe que vou voltar para Boston e não vou contar a ninguém?

Ele riu‑se.

‑ Não, não é nada disso.

‑ Então o que é?

Ele olhou para ela com curiosidade.

‑ Não sabe?

‑ Não.

Ela sorriu quando o disse, quase desafiando‑o a continuar. Ele interrogava‑se sobre como explicar algo que ele próprio tinha dificuldade em compreender. Após um longo momento em que aproveitou para se concentrar, disse baixinho:


‑ Creio que é porque queria que a Theresa soubesse quem eu sou na realidade. Porque se me conhecer de verdade, e ainda quiser estar comigo...

Theresa nada disse, mas sabia exactamente o que ele estava a tentar dizer. Garrett desviou o olhar.

‑ Desculpe. Não era minha intenção fazê‑la sentir‑se embaraçada.

‑ Não me fez sentir embaraçada ‑ começou Theresa a dizer. - Ainda bem que o disse... - Ela fez uma pausa. Depois de um momento começaram a caminhar de novo lentamente.

‑ Mas não sente o mesmo que eu sinto.

Ela olhou para ele.

‑ Garrett... eu... ‑ A sua voz sumiu‑se.

‑ Não, não precisa de dizer nada...         

Ela não o deixou acabar.

‑ Preciso sim. O Garrett quer uma resposta, e eu quero dar‑lha. ‑ Ela fez uma pausa, pensando na melhor maneira de o dizer. Depois, respirando fundo: ‑ Após eu e o David nos separarmos, passei por um período horrível. E quando pensei que o estava a ultrapassar, comecei a sair com outros homens. Mas os homens que conheci... não sei, parecia simplesmente que o mundo tinha mudado durante o tempo em que estive casada. Todos eles queriam qualquer coisa, mas nenhum deles queria dar. Suponho que me cansei dos homens em geral.

‑ Não sei o que dizer...

‑ Garrett, não lhe estou a contar isto porque penso que seja igual a esses homens. Penso que é muito diferente deles. E isso assusta‑me um pouco. Porque se lhe disser o quanto gosto de si... de certa maneira, estou sujeita a ser magoada de novo.

‑ Eu nunca a magoaria ‑ disse ele gentilmente.          

Ela parou de andar e fê‑lo olhá‑la de frente. Ela falou tranquilamente.

‑ Eu sei que acredita nisso, Garrett. Mas tem andado a lutar com os seus próprios demónios durante os últimos três anos. Não sei se já está pronto para seguir em frente, e se não estiver, então vou ser eu quem se vai magoar.

As palavras atingiram‑no com força, e ele levou algum tempo para responder. Garrett obrigou‑a a olhá‑lo nos olhos.

‑ Theresa... desde que nos conhecemos... não sei...  

Ele parou, percebendo que não era capaz de pôr em palavras aquilo que sentia.                      Em vez disso levantou a mão e tocou o rosto dela com o dedo, acariciando‑a tão levemente que parecia como uma pena contra a pele dela. No momento em que ele a tocou, ela fechou os olhos e apesar das suas dúvidas deixou que a sensação de formigueiro viajasse através do seu corpo, aquecendo‑lhe o pescoço e os seios.

A partir daquele momento ela sentiu que tudo começava a desmoronar‑se ficando subitamente com a certeza de que devia estar ali. O jantar que tinham partilhado, o passeio pela praia, a maneira como ele a olhava ‑ não conseguia imaginar nada de melhor do que aquilo que estava a acontecer naquele preciso momento.

As ondas vinham rebentar na praia, molhando os seus pés. A brisa quente de Verão soprava por entre os cabelos dela, aumentando a sensação do toque dele. O luar emprestava um brilho etéreo à água, enquanto as nuvens projectavam sombras ao longo da praia, tornando a paisagem quase irreal.


Eles cederam então a tudo o que estivera a acumular‑se desde o momento em que se conheceram. Ela afundou‑se nele, sentindo o calor do seu corpo, e ele soltou‑lhe a mão. Então, envolvendo‑a lentamente nos seus braços, puxou‑a para si e beijou‑a suavemente nos lábios. Depois de se afastar ligeiramente para a olhar, beijou‑a de novo suavemente. Ela devolveu‑lhe o beijo, sentindo a mão dele percorrer as suas costas e a parar no seu cabelo, onde ele enterrou os dedos.

Permaneceram abraçados, beijando‑se ao luar durante muito tempo, nenhum deles preocupado em saber se alguém os poderia ver. Tinham ambos esperado demasiado tempo por aquele momento, e quando finalmente se afastaram, ficaram a olhar um para o outro. Depois, pegando de novo na mão dele, Theresa conduziu‑o lentamente de volta para a casa.

Parecia que estavam a sonhar quando entraram. Garrett beijou‑a de novo imediatamente após ter fechado a porta, com mais fervor desta vez, e Theresa sentiu o corpo tremer de antecipação. Ela foi até à cozinha, pegou nas duas velas em cima da mesa, e levou‑o para o quarto. Colocou as velas sobre a secretária, e ele tirou os fósforos do bolso, acendendo‑as, enquanto ela foi até às janelas e começou a fechar as cortinas.

Garrett estava ao pé da secretária quando ela voltou para ele. Novamente muito próximos um do outro, ela passou as mãos pelo peito dele, sentindo os músculos firmes por baixo da camisa, entregando‑se à sua própria sensualidade. Olhando‑o nos olhos, tirou‑lhe a camisa para fora das calças e começou lentamente a puxá‑la para cima ao longo do torso dele. Levantando‑lhe os braços, fê‑la deslizar pela cabeça e encostou‑se a ele, ouvindo a camisa a cair no chão. Beijou‑lhe o peito, depois o pescoço, estremecendo quando as mãos dele passaram para a frente da sua blusa. Dando‑lhe espaço, ela inclinou‑se para trás enquanto ele desabotoava lenta e cuidadosamente os botões, um por um, de cima para baixo.

Quando a blusa caiu aberta, ele abraçou‑a e puxou‑a para si, sentindo o calor da pele dela contra a sua. Beijou‑a no pescoço e mordiscou‑lhe o lóbulo da orelha enquanto as suas mãos traçavam o contorno da espinha dela. Ela abriu os lábios, sentindo a ternura do contacto dele. Os dedos dele detiveram‑se no soutien, e desapertaram‑no com uma volta hábil, fazendo‑a conter a respiração. Depois, continuando a beijá‑la, passou as alças por cima dos ombros dela, libertando os seios. Ele inclinou‑se e beijou‑os ternamente, um de cada vez, e ela inclinou a cabeça para trás, sentindo a respiração aquecida e a humidade da boca dele onde quer que ela a tocasse.

Ela estava quase sem fôlego quando estendeu a mão para procurar o fecho das jeans dele. Olhando‑o de novo nos olhos, ela desabotoou‑lhe as calças, puxando lentamente o fecho para baixo. Continuando a olhar para ele, passou‑lhe o dedo pela cintura, roçando suavemente a unha contra o umbigo dele antes de puxar pela cintura das calças. Elas soltaram‑se ligeiramente e ele deu um passo para trás por um instante, para as despir. Depois, aproximando‑se para a beijar de novo, ele ergueu‑a nos seus braços e transportou‑a com cuidado ao longo do quarto, colocando‑a sobre a cama.


Deitada ao lado dele, ela passou as mãos pelo peito dele de novo, agora húmido com a transpiração, e sentiu as mãos dele deslocarem‑se suavemente para as suas jeans. Ele desapertou‑as, e levantando ligeiramente as nádegas, ela despiu‑as, uma perna de cada vez, enquanto as mãos dele continuavam a explorar o corpo dela. Ela acariciou‑lhe as costas e mordeu‑lhe suavemente no pescoço, escutando a sua respiração a acelerar. Ele começou a tirar os boxers enquanto ela despia as calcinhas, e quando ficaram finalmente nus, os seus corpos aproximaram‑se.

Ela estava bela à luz das velas. Ele passou‑lhe a língua por entre os seios, pela barriga dela abaixo, passando pelo umbigo e de novo para cima. O cabelo dela captava a luz, que o fazia cintilar, e a sua pele era macia e convidativa quando se abraçaram um ao outro. Ele sentiu a mão dela nas costas, puxando‑o para mais perto dela.

Em vez disso ele continuou a beijar‑lhe o corpo, sem apressar o movimento. Encostou o rosto à barriga dela e roçou suavemente. A barba do seu queixo despertava uma sensação erótica na pele dela, e ela deitou‑se de costas na cama, com as suas mãos no cabelo dele. Ele continuou até ela não suportar mais, então ele subiu e fez a mesma coisa aos seios.

Ela puxou‑o de volta para si, arqueando as costas enquanto ele se movia lentamente para cima dela. Ele beijou‑lhe as pontas dos dedos, uma de cada vez, e quando eles finalmente se uniram como num Só, ela fechou os olhos com um suspiro. Beijando‑se ternamente, fizeram amor com um fervor que estivera sufocado durante Os últimos três anos.

Os seus corpos moviam‑se em uníssono, cada um plenamente consciente das necessidades do outro, cada um tentando agradar ao outro. Garrett beijava‑a quase continuamente, a humidade da sua boca demorando‑se onde quer que ela a tocasse, e ela sentiu o seu corpo começar a vibrar com a urgência crescente de algo maravilhoso. Quando finalmente aconteceu, enterrou os dedos nas costas mas mal o momento terminava começava logo outro e ela começou a atingir orgasmos em longas sequências, um logo a seguir ao outro. Theresa estava exausta quando acabaram de fazer amor e por fim abraçou‑o, apertando‑o. As suas mãos acariciavam delicadamente a pele suave enquanto descansava. Ficou a ver as velas a arder lentamente até à base, revivendo o momento que tinham acabado de partilhar.

Ficaram deitados durante a maior parte da noite, fazendo amor várias vezes, agarrando‑se com firmeza quando acabavam. Theresa adormeceu nos braços dele, sentindo‑se maravilhosamente bem, e Garrett ficou a vê‑la dormir a seu lado. Antes de adormecer, afastou delicadamente o cabelo do rosto dela, esforçando‑se por se recordar de tudo.

 

Mesmo antes do amanhecer, Theresa abriu os olhos, apercebendo‑se instintivamente de que ele já não estava na cama. Virou‑se para o lado, procurando‑o. Não o vendo, levantou‑se e foi até à casa de banho onde encontrou um roupão. Envolvendo‑se nele, deixou o quarto e lançou uma olhada em direcção à escuridão da cozinha. Não estava lá. Procurou na sala, mas também lá não estava, e subitamente soube exactamente onde ele estaria.

Saindo lá para fora, encontrou‑o sentado na cadeira, vestido apenas com os seus boxers e uma camisola cinzenta. Voltando‑se, ele viu‑a e sorriu.

‑ Olá.


Ela aproximou‑se, e ele fez sinal para ela se sentar ao seu colo. Beijou‑a enquanto a puxava para si, e ela pôs os braços à volta do pescoço dele. Apercebendo‑se de que havia algo de errado, Theresa afastou‑se e tocou‑lhe na face.

‑ Estás bem?

Ele demorou um momento a responder.

‑ Sim ‑ disse ele, baixinho, sem olhar para ela.

‑ Tens a certeza?    

Ele acenou que sim com a cabeça, mais uma vez sem a olhar nos olhos, e ela usou o seu dedo para o fazer olhar para ela. Disse delicadamente:

‑ Pareces um pouco... triste.         

Ele fez um sorriso fraco sem responder.

‑ Estás triste por causa do que aconteceu?

‑ Não ‑ disse ele. - De maneira nenhuma. Não me arrependo de nada.

‑ Então o que foi?   

Ele não respondeu, desviando novamente os olhos.

Ela falou suavemente.

‑ Estás aqui fora por causa de Catherine?        

Ele esperou um momento antes de responder, depois colocou a mão dela na sua. Por fim olhou‑a nos olhos.

‑ Não, não estou aqui fora por causa de Catherine ‑ disse ele, quase sussurrando as palavras. ‑ Estou aqui fora por causa de ti.

Depois, com uma ternura que a fez lembrar uma criança, ele puxou‑a suavemente para si e abraçou‑a sem dizer mais uma palavra, não a largando até o céu começar a clarear e a primeira pessoa aparecer na praia.

 

‑ Que queres dizer, não podes almoçar comigo hoje? Há anos que o fazemos. Como pudeste esquecer‑te?

‑ Eu não esqueci, pai, simplesmente não posso ir hoje. Retomamos os almoços para a semana, está bem?

Jeb Blake fez uma pausa no outro lado da linha de telefone, tamborilando os dedos sobre a mesa.

‑ Porque é que tenho a sensação de que me estás a esconder qualquer coisa?

‑ Não tenho nada para contar.

‑ Tens a certeza?

‑ Sim, tenho.            

Theresa chamou Garrett do chuveiro, pedindo‑lhe para lhe levar uma toalha. Garrett cobriu o bocal e disse‑lhe que já lá iria. Quando voltou a sua atenção para o telefone, ouviu o pai inalar profundamente.

‑ O que foi isso?

‑ Nada.          

Então, num tom de compreensão repentina:

‑ Aquela rapariga chamada Theresa está aí, não está?

Sabendo que não poderia esconder‑lhe a verdade, Garrett respondeu:

‑ Sim, está aqui.

Jeb assobiou, obviamente satisfeito.

‑ Já era tempo, bolas.        

Garrett tentou minimizar o assunto.

‑ Pai, não dê a isto muita importância...

‑ Está bem ‑ prometo.

‑ Obrigado.

‑ Mas posso fazer‑te uma pergunta?

‑ Claro. ‑ Garrett suspirou.

‑ Ela faz‑te sentir feliz?

Ele demorou um momento a responder.

‑ Sim, faz ‑ disse ele finalmente.

‑ Já era tempo, bolas ‑ disse ele de novo com uma gargalhada antes de desligar. Garrett ficou a olhar para o auscultador enquanto o pousava no descanso.

‑ E faz mesmo ‑ murmurou para consigo com um pequeno sorriso no rosto. ‑ E faz mesmo.

Theresa emergiu do quarto de dormir alguns minutos mais tarde, com um ar descansado e fresco. Sentindo o cheiro de café a fazer, foi até à cozinha para buscar uma chávena. Depois de pôr uma fatia de pão na torradeira, Garrett foi ter com ela.

‑ Bom dia, outra vez ‑ disse ele, beijando‑a na nuca.

‑ Bom dia, outra vez, para ti também.

‑ Desculpa ter deixado o quarto ontem à noite.

‑ Ei, tudo bem... eu compreendo.

‑ A sério?

‑ Claro que sim. ‑ Ela voltou‑se e olhou para ele com um sorriso. ‑ Tive uma noite maravilhosa.

‑ Também eu ‑ disse ele. Tirando uma chávena de café para Theresa do armário, ele perguntou por cima do ombro: ‑ Queres fazer alguma coisa hoje? Eu telefonei para a loja e disse‑lhes que não ia hoje.

‑ Que tinhas em mente?

‑ Que tal uma volta por Wilmington para ver as vistas?


‑ Podíamos fazer isso. ‑ Ela não parecia convencida.

‑ Preferias fazer outra coisa?

‑ E que tal ficarmos apenas por aqui hoje?

‑ E fazer o quê?

‑ Oh, posso lembrar‑me de algumas coisas ‑ disse ela, abraçando‑o. ‑ Quer dizer, se isso não constituir problema para ti.

‑ Não ‑ disse ele sorrindo. ‑ Absolutamente nenhum.

Durante os quatro dias seguintes, Theresa e Garrett tornaram‑se inseparáveis. Garrett deixou a loja ao cuidado de Ian, deixando‑o até dar as aulas de mergulho no sábado, algo que nunca fizera antes. Por duas vezes, Garrett e Theresa foram dar passeios de barco; da segunda vez passaram toda a noite fora, dormindo juntos na cabine, embalados pelas leves vagas do Atlântico. Mais tarde nessa noite ela pediu para ele lhe contar mais histórias de aventuras sobre os navegadores de antigamente, e ela afagava‑lhe os cabelos enquanto o som da voz dele reverberava contra o interior do casco.

O que ela não sabia era que depois de adormecer, Garrett deixara o seu lado como o tinha feito na primeira noite passeando‑se sozinho de um lado para o outro do convés. Pensou em Theresa dormindo lá dentro e no facto de ela se ir embora em breve, e com esse pensamento veio uma outra recordação de há anos atrás.

 

‑ Acho mesmo que não devias ir ‑ disse Garrett, olhando para Catherine com preocupação.

Ela estava junto à porta da frente, a mala a seu lado, frustrada com o comentário dele.

‑ Vá lá, Garrett, já discutimos o assunto. Só vou estar fora durante alguns dias.

‑ Mas não tens andado bem ultimamente.        

Catherine sentia vontade de lançar as mãos ao ar.

‑ Quantas vezes tenho de te dizer que estou bem? A minha irmã precisa mesmo de mim. Sabes como ela é. Está preocupada com o casamento, e a Mamã não ajuda nada.

‑ Mas eu também preciso de ti.

‑ Garrett, só porque tens de ficar na loja o dia inteiro não significa que eu tenha de ficar aqui, também. Não estamos ligados pela anca.

Garrett recuou involuntariamente um passo, como se ela o tivesse atingido.

‑ Eu não disse que estávamos. Só que não tenho a certeza se deverias ir quando não tens estado a sentir‑te bem.

‑ Tu nunca queres que eu vá a lado nenhum.

‑ Que posso fazer se sinto a tua falta quando não estás aqui?

O rosto dela suavizou‑se apenas um bocado.

‑ Eu posso partir, Garrett, mas sabes que voltarei sempre.

Quando a recordação se dissipou, Garrett voltou para dentro da cabine e viu Theresa deitada sob o lençol. Silenciosamente enfiou‑se ao lado dela e apertou‑a com força contra ele.

 


O dia seguinte foi passado na praia, sentados perto do pontão onde tinham almoçado da primeira vez. Assim que Theresa ficou queimada com os primeiros raios de sol da manhã, Garrett foi a pé até uma das muitas lojas perto da praia e trouxe‑lhe um protector solar. Aplicou‑lho nas costas, esfregando‑o delicadamente na pele, como se ela fosse uma criança, e embora ela não quisesse acreditar nisso, lá no fundo sentia que havia momentos em que a mente dele se afastava para longe. Mas depois, tão subitamente como surgiam, os momentos passavam e ela interrogava‑se se não teria estado enganada.

Almoçaram de novo no Hank's, de mãos dadas e olhando um para o outro. Conversavam tranquilamente, inconscientes da multidão que os rodeava, nenhum deles reparando quando a conta foi colocada na mesa e a multidão do almoço se foi embora.

Theresa observava‑o com atenção, perguntando a si mesma se Garrett fora tão intuitivo com Catherine como parecia ser com ela. Era como se ele quase pudesse ler‑lhe os pensamentos sempre que estavam juntos: se ela queria que ele lhe pegasse na mão, ele pegava nela antes de ela o pedir. Se ela queria apenas falar durante um bocado sem ser interrompida, ele escutava calado. Se ela queria saber o que ele estava a sentir em relação a ela em dado momento, a maneira como ele a olhava esclarecia tudo. Ninguém ‑ nem sequer David ‑ alguma vez a tinha compreendido tão bem como Garrett parecia compreendê‑la. No entanto, conhecia‑o há quanto tempo? Alguns dias? Como, interrogava‑se ela, poderia isso ser possível? Mais tarde, à noite, pensou na resposta enquanto ele dormia a seu lado, e a resposta levava‑a sempre de volta às garrafas que encontrara. Quanto mais conhecia Garrett, mais acreditava ter sido destinada a encontrar as mensagens dele para Catherine, como se houvesse uma grande força que as tivesse conduzido a ela, com a intenção de os juntar.

No sábado à noite Garrett cozinhou outro jantar para ela, que eles comeram na varanda das traseiras, sob as estrelas. Depois de fazerem amor, permaneceram deitados na cama, abraçados um ao outro. Ambos sabiam que ela tinha de regressar a Boston no dia seguinte. Era um assunto sobre o qual tinham evitado falar até àquele momento.

‑ Alguma vez te tornarei a ver? ‑ perguntou ela.          

Ele permaneceu silencioso, demasiado silencioso.

‑ Espero que sim ‑ disse ele finalmente.

‑ Queres voltar a ver‑me?

‑ Claro que quero. ‑ Quando o disse, sentou‑se na cama, afastando‑se ligeiramente dela. Depois de um momento ela sentou‑se também e acendeu a luz da mesa de cabeceira.

‑ Que foi, Garrett?

‑ Só não quero que isto acabe ‑ disse ele, baixando o olhar. - Não quero que a nossa relação acabe, não quero que esta semana acabe. Quer dizer, tu entras na minha vida e vira‑la de pernas para o ar, e agora vais‑te embora.

Ela pegou‑lhe na mão e falou calmamente.

‑ Oh, Garrett, também não quero que acabe. Esta foi uma das melhores semanas que alguma vez já tive. Parece que te conheço desde sempre. Podemos fazer com que isto resulte, se tentarmos. Eu posso vir cá abaixo ou tu podes ir a Boston. De uma maneira ou de outra, podemos tentar, não podemos?

‑ Quantas vezes poderia eu ver‑te? Uma vez por mês? Menos que isso?

‑ Não sei. Acho que isso depende de nós e daquilo que estamos dispostos a fazer. Penso que se ambos estivermos dispostos a dar um bocadinho, conseguiremos fazer isto funcionar.


Ele fez uma longa pausa.

‑ Achas mesmo que é possível, se nos virmos tão poucas vezes? Quando poderia eu abraçar‑te? Quando poderia eu ver o teu rosto? Se só nos virmos de vez em quando, não poderemos fazer as coisas que precisamos fazer para... continuar a sentirmo‑nos da maneira como nos sentimos. De cada vez que nos víssemos, saberíamos que seria apenas por alguns dias. Não haveria tempo para que alguma coisa pudesse crescer.

As suas palavras magoavam, em parte por causa da sua verdade e em parte porque parecia que ele queria simplesmente terminar tudo ali naquele momento. Quando ele finalmente se voltou para ela, com um sorriso pesaroso no rosto, ela não sabia o que dizer. Largou a mão dele, confusa.

‑ Não queres tentar, então? É isso que estás a dizer? Queres simplesmente esquecer tudo o que aconteceu...

Ele abanou a cabeça. ‑ Não

‑ não quero esquecer. Não consigo esquecer. Não sei... quero apenas poder ver‑te mais vezes do que parece ser possível que venhamos a conseguir.

‑ Também eu. Mas não podemos, por isso vamos apenas fazer o melhor que pudermos. Está bem?

Ele abanou a cabeça quase indiferente.

‑ Não sei...    

Ela observou‑o atentamente enquanto ele falava, pressentindo a presença de outra coisa qualquer.

‑ Garrett, que se passa?    

Ele não respondeu, e ela continuou.

‑ Existe alguma razão porque não queiras tentar?

Ele continuou calado. No silêncio, ele voltou‑se para a fotografia de Catherine na mesa de cabeceira.

 

‑ Como foi a viagem? ‑ Garrett tirou o saco de Catherine do banco de trás enquanto ela saía do carro. Catherine sorriu, embora ele pudesse ver que ela estava cansada.

‑ Foi boa, mas a minha irmã continua uma lástima. Ela quer que tudo seja perfeito, e descobrimos que a Nancy está grávida e o vestido de dama de honor não lhe vai servir.

‑ E então qual é o problema? Arranja alguém que faça um ajuste.

‑ Foi o que eu disse, mas sabes como ela é. Faz sempre um bicho de sete cabeças de tudo.

Catherine pôs as mãos nas ancas e esticou as costas, fazendo uma pequena careta.

‑ Estás bem?

‑ Estou tensa, só isso. Senti‑me cansada o tempo todo que estive lá, e há dias que as minhas costas têm andado meio doridas.

Ela dirigiu‑se para a porta da frente, Garrett a seu lado.

‑ Catherine, queria apenas pedir‑te desculpa pela maneira como me comportei quando te foste embora. Fico contente por teres ido, mas fico ainda mais contente por estares de volta.

 

‑ Garrett, fala comigo.        

Ela olhava fixamente para ele, preocupada. Finalmente ele falou:

‑ Theresa... é tão difícil neste momento. As coisas por que tenho passado...


A sua voz sumiu‑se, e Theresa soube subitamente do que é que ele estava a falar. Sentiu o estômago comprimir‑se.

‑ É por causa de Catherine? Tudo isto é por causa dela?

‑ Não, é só que... ‑ Ele calou‑se, e ela percebeu com uma súbita e penetrante certeza que tinha razão.

‑ É, não é? Nem sequer queres tentar nada connosco... por causa de Catherine.

‑ Tu simplesmente não compreendes.

Sem querer, ela sentiu um raio de cólera.

‑ Oh, eu compreendo. Foste capaz de passar este tempo comigo, apenas porque sabias que eu iria embora. E depois, quando eu tivesse partido, podias voltar àquilo que tinhas antes. Eu fui apenas um caso, não fui?

Ele abanou a cabeça.

‑ Não, não foste. Não foste nenhum caso. Eu gosto mesmo de ti...

Ela olhou duramente para ele.

‑ Mas não o suficiente para quereres sequer tentar fazer com que a nossa relação funcione.

Ele olhou para ela, o sofrimento evidente nos seus olhos. ‑ Não sejas assim...

‑ Como é que queres que eu seja? Compreensiva? Queres que eu diga simplesmente, "Oh, está bem, Garrett, ficamos apenas por aqui porque isto é tudo muito difícil e não vamos poder ver‑nos muitas vezes. Eu compreendo. Foi um prazer conhecer‑te". É isso que queres que eu diga?

‑ Não, não é isso que quero que tu digas.

‑ Então o que é que queres? Eu já disse que estava disposta a tentar... já disse que gostava de tentar...

Ele abanou a cabeça, incapaz de a olhar nos olhos. Theresa podia sentir as lágrimas começarem a formar‑se.

‑ Olha, Garrett, eu sei que perdeste a tua mulher. Sei que sofreste terrivelmente com isso. Mas agora estás a agir como um mártir. Tens a vida inteira à tua frente. Não jogues tudo fora para continuar a viver no passado.

‑ Eu não estou a viver no passado ‑ disse ele defensivamente. Theresa esforçava‑se por conter as lágrimas. A sua voz enterneceu‑se.

‑ Garrett... eu posso não ter perdido uma mulher, mas também perdi algo de que realmente gostava muito. Sei tudo acerca de dor e sofrimento. Mas para ser bastante franca, estou cansada de estar sozinha o tempo todo. Isto já dura há mais de três anos para mim ‑ tal como tu ‑ e estou cansada. Estou pronta para seguir em frente agora e encontrar alguém especial com quem partilhar a minha vida. E tu também devias fazer o mesmo.

‑ Eu sei isso. Pensas que não sei isso?

‑ Neste preciso momento, não tenho bem a certeza. Algo de maravilhoso aconteceu entre nós, e não quero perder isso de vista.

Ele fez uma longa pausa.

‑ Tens razão ‑ começou ele, esforçando‑se por encontrar as palavras. ‑ Na minha mente, eu sei que tens razão. Mas o meu coração... não sei mesmo.

‑ E o meu coração? Isso não te interessa, pois não?

A maneira como ela o olhou fê‑lo sentir um nó na garganta.


‑ Claro que interessa. Interessa muito mais do que pensas. ‑ Quando estendeu a mão para pegar na dela, ela recuou, e ele percebeu o quanto a tinha magoado. Falou ternamente, tentando controlar as suas próprias emoções. ‑ Theresa, desculpa por te fazer passar ‑ por nos fazer passar ‑ por isto na nossa última noite. Não era minha intenção. Acredita em mim, não foste apenas um caso para mim. Deus, tu foste tudo menos isso. Eu disse‑te que gostava realmente de ti, e foi a sério.

Ele abriu os braços, os seus olhos implorando para que ela viesse para o seu lado. Ela hesitou durante um segundo, depois acabou por se encostar a ele, com um número infinito de sentimentos contraditórios irrompendo na sua mente. Encostou o rosto no peito dele, não querendo ver a sua expressão. Ele beijou‑lhe o cabelo, falando docemente, com os seus lábios agitando‑se sobre ela.

‑ Gosto muito de ti. Gosto tanto de ti que me assusta. Há tanto tempo que não me sentia assim, é quase como se me tivesse esquecido de como outra pessoa pode ser tão importante para mim.

Penso que não poderia simplesmente deixar‑te partir e esquecer‑te, e não o quero. E decididamente não quero que a nossa relação acabe agora. ‑ Por um momento ouvia‑se apenas o som suave e constante da sua respiração. Por fim sussurrou: ‑ Prometo fazer tudo o que for capaz para te ver. E vamos tentar fazer a nossa relação resultar.

A ternura na sua voz fez com que as lágrimas dela começassem a cair. Ele continuou, quase demasiado baixo para ela ouvir.

‑ Theresa, penso que estou apaixonado por ti.

Penso que estou apaixonado por ti, ela ouviu‑o de novo. Penso...

Penso...        

Não querendo responder, ela murmurou apenas:

‑ Abraça‑me só, está bem? Não falemos mais.

Fizeram amor quando acordaram de manhã e permaneceram abraçados até o Sol ter subido suficientemente alto para lhes fazer saber que eram horas de Theresa se preparar para partir. Apesar de ter passado muito pouco tempo no hotel e de ter trazido a sua mala para a casa de Garrett, ela não tinha cancelado o quarto para o caso de Kevin ou Deanna telefonarem.

Tomaram um banho de chuveiro juntos, e depois de se vestir, Garrett preparou o pequeno‑almoço para Theresa enquanto ela acabava de fazer a mala. Correndo o fecho da mala, Theresa ouviu o som de algo a frigir na cozinha enquanto o cheiro a bacon flutuava pela casa. Depois de secar o cabelo e de se maquilhar, foi até à cozinha.

Garrett estava sentado na mesa, a beber café. Piscou‑lhe o olho quando ela entrou. No balcão ele deixara uma chávena ao lado da máquina do café, e ela serviu‑se. O pequeno‑almoço já estava na mesa ‑ ovos mexidos, bacon e torradas. Theresa sentou‑se na cadeira mais próxima dele.

‑ Não sabia o que querias para o pequeno‑almoço ‑ disse ele, fazendo sinal para a mesa.

‑ Não estou com fome, Garrett, se não te importas.    

Ele sorriu.

‑ Tudo bem. Também não tenho assim muita fome.  


Ela levantou‑se e foi ter com ele, sentando‑se ao seu colo. Abraçou‑o e enterrou o rosto no pescoço dele. Ele por sua vez abraçou‑a com força, passando as mãos pelo cabelo dela.

Por fim ela afastou‑se. O tempo que eles tinham passado ao sol naquela semana deixara‑a bronzeada. Nos seus calções de ganga e camisa branca lavada, ela parecia uma adolescente despreocupada. Durante um momento ela olhou para baixo para os pequenos desenhos de flores costurados nas suas sandálias. O seu saco e a mala de mão estavam à espera junto à porta do quarto de dormir.

‑ O meu avião parte cedo, e ainda tenho de ir pagar a conta do hotel e devolver o carro alugado ‑ disse ela.

‑ Tens a certeza de que não queres que vá contigo?

Ela acenou que sim com a cabeça, franzindo os lábios.

‑ Tenho, vou ter de me apressar para apanhar o avião, e além disso terias de vir atrás de mim com a carrinha. Tanto faz despedirmo‑nos aqui como noutro lado.

‑ Telefono‑te logo à noite.

Ela sorriu.

‑ Tinha esperanças que o fizesses.

Os seus olhos começaram a encher‑se de lágrimas, e ele puxou‑a para si.

‑ Vou sentir a tua falta aqui ‑ disse ele enquanto ela começava a chorar a sério. Ele limpava‑lhe as lágrimas com os dedos, o seu toque leve contra a pele dela.

‑ E eu vou sentir a falta dos teus cozinhados ‑ murmurou ela, sentindo‑se idiota.

Ele riu‑se, quebrando a tensão.

‑ Não estejas tão triste. Vamos voltar a ver‑nos dentro de duas semanas, não vamos?

‑ A não ser que estejas a pensar desistir.

Ele sorriu.

‑ Ficarei a contar os dias. E desta vez vais trazer o Kevin, certo?

Ela acenou que sim com a cabeça.

‑ óptimo, gostaria de conhecê‑lo. Se ele for parecido contigo, nem que seja um pouco, tenho a certeza de que nos daremos maravilhosamente.

‑ Tenho a certeza que sim, também.

‑ E até lá, ficarei a pensar em ti o tempo todo.

‑ A sério?

‑ Absolutamente. já estou a pensar em ti.

‑ Isso é porque estou ao teu colo.

Ele riu‑se de novo, e ela fez‑lhe um sorriso lacrimoso. Depois ela levantou‑se e limpou as faces. Garrett levantou‑se e foi buscar o saco dela, e saíram ambos da casa. Lá fora o Sol já subia no céu, e estava rapidamente a aquecer. Theresa pegou nos óculos de sol que guardava no bolso do lado da sua mala, levando‑os na mão enquanto se dirigiam para o carro alugado.

Abriu o porta‑bagagens, e ele colocou as coisas dela lá dentro. Depois, abraçando‑a, beijou‑a uma vez suavemente e soltou‑a. Depois de abrir a porta do carro, ajudou‑a a entrar e ela pôs a chave na ignição.

Com a porta aberta, olharam fixamente um para o outro até ela pôr o carro a trabalhar.

‑ Tenho de ir, se quiser apanhar o meu avião.

‑ Eu sei.        


Ele afastou‑se da porta e fechou‑a. Ela abriu a janela e pôs a mão de fora. Garrett tomou‑a na dele apenas por um instante. Depois ela pôs o carro em marcha a trás.

‑ Telefonas hoje à noite?

‑ Prometo.    

Ela pôs a mão para dentro, sorrindo para ele, e recuou com o carro lentamente. Garrett viu‑a a acenar uma última vez antes de arrancar, perguntando a si mesmo como iria aguentar as duas semanas seguintes.

 

Apesar do trânsito, Theresa conseguiu chegar depressa ao hotel e pagou a conta. Havia três mensagens de Deanna, cada uma aparentemente mais desesperada que a outra. "O que se está a passar aí em baixo? Como correu o teu encontro?" dizia a primeira; "Porque é que não telefonaste? Estou à espera para ouvir tudo", dizia a segunda; e a terceira dizia simplesmente, "Estás a dar cabo de mim! Telefona‑me a contar os pormenores, por favor! ". Havia também uma mensagem de Kevin ‑ ela telefonara‑lhe duas vezes da casa de Garrett ‑ que parecia ter pelo menos dois dias.

Ela devolveu o carro alugado e chegou ao aeroporto menos de meia hora antes da partida. Felizmente a fila para o check‑in era curta, e ela conseguiu chegar ao portão mesmo quando estavam a começar a embarcar. Depois de entregar o bilhete à hospedeira de bordo, entrou no avião e instalou‑se no seu lugar. O voo para Charlotte ia apenas meio cheio, e o lugar ao lado dela estava vago.

Theresa fechou os olhos, recordando‑se dos acontecimentos espantosos da última semana. Não apenas tinha encontrado Garrett, como tinha ficado a conhecê‑lo melhor do que alguma vez imaginara ser possível. Ele despertara sentimentos profundos dentro dela, sentimentos que ela pensava há muito estarem enterrados.

Mas amava‑o?

Ela abordou a pergunta cautelosamente, sabendo o que uma tal admissão significaria.

Descontraidamente, recapitulou a conversa da noite anterior. Os receios dele de largar o passado, os seus sentimentos acerca de não poder vê‑la tanto quando desejaria. Tudo isso ela compreendia totalmente. Mas...

Penso que estou apaixonado por ti.

Ela franziu o sobrolho. Porque acrescentou ele a palavra "penso"? Ou estava apaixonado ou não estava... não estava? Dissera‑o apenas para apaziguá‑la? Ou dissera‑o por uma outra razão?

Penso que estou apaixonado por ti.

Na sua mente, ela ouvia‑o dizê‑lo repetidas vezes, a sua voz revestida de... de quê? Ambivalência? Pensando nisso agora, quase desejava que ele não tivesse dito nada. Pelo menos não estaria então a tentar compreender exactamente o que ele quisera dizer.

Mas e ela? Amava Garrett?         

Fechou os olhos, cansada, subitamente sem vontade para enfrentar as suas emoções contraditórias. Uma coisa era certa, porém, ela nunca lhe diria que o amava até ter a certeza de que ele seria capaz de esquecer Catherine.

 


Naquela noite, nos sonhos de Garrett, desenrolava‑se uma violenta tempestade. A chuva fustigava os lados da casa, e Garrett corria freneticamente de um quarto para o outro. Era a casa onde vivia naquele momento, e embora soubesse exactamente por onde caminhava, a chuva que o cegava entrando pelas janelas abertas, dificultava‑lhe a visão. Sabendo que tinha de fechá‑las, correu até ao quarto de dormir e deu por si enredado nas cortinas que a chuva atirava para dentro. Lutando para se libertar delas, alcançou a janela no preciso momento em que as luzes se apagaram.

O quarto escureceu. Por cima da tempestade, ele podia ouvir o som de uma sirene ao longe, avisando da vinda de um furacão. os relâmpagos iluminavam o céu enquanto ele se esforçava por fechar a janela. Ela não cedia. A chuva continuava a entrar em torrente, molhando‑lhe as mãos e impedindo‑o de conseguir o pulso de que precisava para agarrar na janela.

Por cima dele o tecto começou a ranger com a fúria da tempestade.

Ele continuou a lutar com a janela, mas ela estava emperrada e não cedia. Desistindo por fim, tentou a janela do lado. Tal como a primeira, também aquela estava presa.

Podia ouvir as ripas de madeira a serem arrancadas do telhado, seguidas do estrondo do vidro a estilhaçar‑se.

Voltou‑se e correu para a sala. A janela tinha explodido para dentro, espalhando o vidro sobre o chão. A chuva entrava de lado na sala, e o vento era horrível. A porta da frente tremia nos seus gonzos.

Do lado de fora da janela, ouviu Theresa a chamar por ele. ‑ Garrett, tens de sair agora!         

Naquele momento, as janelas do quarto explodiram para dentro também. O vento, soprando em rajadas pela casa, começou a rasgar uma abertura no telhado. A casa não conseguiria resistir por muito mais tempo.

Catherine.    

Ele tinha de ir buscar a fotografia e as outras coisas que tinha na mesa de cabeceira.

‑ Garrett! já não tens muito tempo! ‑ gritou Theresa de novo.

Apesar da chuva e da escuridão, ele conseguia vê‑la lá fora, fazendo sinais para que ele a seguisse.

A fotografia. A aliança. Os cartões do dia de S. Valentim.

‑ Anda lá! ‑ continuava ela a gritar. Acenava freneticamente com os braços.

Com um estrondo, o tecto separou‑se da estrutura da casa e o vento começou a arrancá‑lo. Instintivamente, ele levantou os braços por cima da cabeça no momento em que parte do tecto caía sobre ele.

Dentro de momentos tudo estaria perdido.       

Não se importando com o perigo, ele dirigiu‑se para o quarto. Não podia partir sem aquelas coisas.

‑ Ainda consegues!            

Algo no som do grito de Theresa o deteve. Lançou um olhar para Theresa e depois um outro em direcção ao quarto de dormir, paralisado.

A maior parte do tecto caía à sua volta. Com um rachar e estalar agudo, o telhado continuava a ceder.


Ele deu um passo em direcção ao quarto e, com isso, viu Theresa parar de acenar com os braços. Pareceu‑lhe que ela tinha subitamente desistido.

O vento soprava em rajada pelo quarto, com um uivo sobrenatural que parecia soprar através dele. As mobílias oscilavam e caíam por todo o quarto, barrando‑lhe o caminho.

‑ Garrett! Por favor! ‑ gritou Theresa. De novo o som da voz dela fê‑lo parar, e com isso percebeu que se tentasse salvar as coisas do seu passado, poderia não conseguir escapar com vida.

Mas valeria a pena?          

A resposta era evidente.   

Desistiu da sua tentativa e correu em direcção à abertura onde estivera a janela. Com o punho, afastou aos murros os cacos de vidro e saiu lá para fora, para a varanda das traseiras, no preciso momento em que o telhado era completamente arrancado. As paredes começaram então a dobrar‑se, e quando ele saltou para a varanda, elas desmoronaram‑se numa pilha com um estrondo ensurdecedor.

Ele procurou Theresa para se certificar de que ela estava bem, mas estranhamente, já não a conseguia ver.

 

Cedo na manhã seguinte, Theresa dormia profundamente quando o som de um telefone a tocar a acordou de sobressalto. Procurando o telefone às escuras, ela reconheceu imediatamente a voz de Garrett.

‑ Chegaste bem a casa?

‑ Sim, cheguei ‑ respondeu ela ensonada. ‑ Que horas são?

‑ Seis e pouco. Acordei‑te?

‑ Sim. Deitei‑me tarde ontem à noite à espera do teu telefonema. Comecei a pensar que te tinhas esquecido da tua promessa.

‑ Não esqueci. Pensei que precisasses de algum tempo para te instalares.

‑ Mas estavas seguro de que estaria acordada logo às primeiras horas da madrugada, certo?

Garrett riu‑se.

‑ Desculpa. Como foi o voo? Como estás?

‑ Bem. Cansada, mas bem.

‑ Então imagino que o ritmo da grande cidade já te pôs cansada de novo.

Ela riu‑se, e a voz de Garrett tornou‑se séria.

‑ Quero que saibas uma coisa.

‑ O quê?

‑ Tenho saudades tuas.

‑ Tens?

‑ Sim. Fui trabalhar ontem apesar da loja estar fechada, esperando avançar com a papelada, mas não consegui fazer grande coisa porque estava sempre a pensar em ti.

‑ É bom ouvir isso.

‑ É a verdade. Não sei como é que vou conseguir trabalhar durante as próximas duas semanas.

‑ Oh, hás‑de conseguir.

‑ Talvez não consiga dormir, também.  

Ela riu‑se, sabendo que ele estava a brincar.

‑ Então, não exageres agora. Não gosto muito de homens superdependentes, sabes. Gosto que os meus homens sejam homens.

‑ Então vou tentar controlar‑me.  

Ela fez uma pausa.

‑ Onde estás agora?

‑ Estou sentado na varanda de trás, a ver o nascer do Sol. Porquê?

Theresa pensou na vista que estava a perder.

‑ É bonito?

‑ É sempre, mas esta manhã, não estou a gostar tanto como de costume.

‑ Porque não?

‑ Porque não estás aqui comigo para gozá‑lo.

Ela recostou‑se na cama, arranjando uma posição confortável.

‑ Também tenho saudades tuas.

‑ Espero que sim. Detestaria pensar que era o único a sentir‑me desta maneira.

Ela sorriu, segurando o telefone junto ao ouvido com uma mão e enrolando distraidamente o fio com a outra, até que ao fim de vinte minutos se despediram relutantemente e desligaram o telefone.

 


Entrando no escritório mais tarde do que o costume, Theresa sentiu finalmente os efeitos da sua turbulenta aventura a começarem a afectá‑la. Tinha dormido pouco, e quando olhara para o espelho depois de falar com Garrett ao telefone, tivera a certeza de que parecia pelo menos uma década mais velha. Como de costume, o primeiro sítio onde ia logo que chegava ao trabalho era à cantina para ir beber um café, e nessa manhã adicionou um segundo pacote de açúcar para lhe dar um abanão extra.

‑ Oh, olá, Theresa ‑ disse Deanna contente, aparecendo por trás dela. ‑ Pensei que nunca mais cá chegasses. Estou morta por ouvir tudo o que aconteceu.

‑ Bom dia ‑ resmungou Theresa, mexendo o café. ‑ Desculpa o atraso.

‑ Já estou contente de teres conseguido chegar cá. Quase corri para o teu apartamento ontem à noite para falar contigo, mas não sabia a que horas irias chegar.

‑ Desculpa não ter telefonado, mas estava um pouco cansada depois da minha semana lá em baixo ‑ disse ela.

Deanna encostou‑se ao balcão.

‑ Bem, isso não é surpresa nenhuma. Eu já percebi mais ou menos o que se passou.

‑ Que queres dizer?           

Os olhos de Deanna brilhavam.

‑ Calculo que não tenhas visto a tua secretária ainda.

‑ Não, acabei de entrar. Porquê?

‑ Bem ‑ disse ela, erguendo as sobrancelhas ‑, parece que causaste boa impressão.

‑ De que estás a falar, Deanna?

‑ Vem comigo ‑ disse Deanna com um sorriso conspirador enquanto a conduzia de volta para a redacção. Quando Theresa viu a sua secretária, ficou de boca aberta. Ao lado do correio que acumulara durante a sua ausência estava uma dúzia de rosas, num belo arranjo dentro de uma grande jarra transparente.

‑ Chegaram logo de manhã. Acho que o homem das entregas ficou um pouco chocado por não estares cá para as receber, mas eu recebia‑as e disse que eram para mim. Então é que ele ficou mesmo chocado.

Mal ouvindo o que Deanna tinha dito, Theresa pegou no cartão encostado à jarra e abriu‑o imediatamente. Deanna ficou atrás dela, espreitando por cima do seu ombro. O cartão dizia:

 

Para a mulher mais bela que conheço...           

Agora que estou sozinho de novo, nada é como dantes.

O céu está mais cinzento, o oceano mais sombrio.

Podes melhorar isso?       

A única maneira é voltares a ver‑me.

Saudades,

 

Garrett

 

Theresa sorriu para o bilhete e enfiou‑o novamente dentro do envelope, inclinando‑se para cheirar o ramo.

‑ Deves ter tido uma semana memorável ‑ disse Deanna.   

‑ Sim, tive ‑ respondeu simplesmente Theresa.

‑ Estou ansiosa por ouvir tudo ‑ todos os pormenores picantes.


‑ Penso ‑ disse Theresa, olhando em volta para todas as pessoas na redacção a olharem para ela discretamente ‑ que seria preferível falar contigo mais tarde, quando estivermos sozinhas. Não preciso do escritório inteiro a mexericar sobre o assunto.

‑ Eles já estão a fazê‑lo, Theresa. Há muito tempo que não entregavam flores aqui. Mas está bem, falamos no assunto mais tarde.

‑ Disseste‑lhes quem enviou as flores?

‑ Claro que não. Para ser honesta, gosto de os deixar na expectativa. ‑ Ela piscou‑lhe o olho depois de passar os olhos pela redacção. ‑ Escuta, Theresa, tenho algum trabalho para fazer. Achas que poderíamos almoçar as duas hoje? Então poderemos conversar.

‑ Claro. Onde?        

‑ Que tal o Mukini's? Aposto que não comeste sushi lá em baixo em Wilmington.

‑ Está óptimo. E Deanna... obrigada por teres mantido isto em segredo.

‑ De nada.    

Deanna deu umas palmadinhas no ombro de Theresa e voltou para o seu escritório. Theresa inclinou‑se sobre a secretária e cheirou novamente as rosas antes de mudar a jarra para o canto da mesa. Começou a examinar o seu correio durante alguns minutos, fingindo não reparar nas flores, até a redacção retomar os seus ritmos caóticos. Assegurando‑se de que ninguém estava a reparar, pegou no telefone e ligou para a loja de Garrett.

Ian atendeu o telefone.

‑ Um momento, penso que ele está no escritório. Quem fala, por favor?

‑ Diga‑lhe que é alguém que quer marcar umas aulas de mergulho para daqui a duas semanas. ‑ Tentou soar o mais distante possível, não sabendo se Ian estava a par da relação entre eles.

Ian pediu‑lhe que aguardasse e seguiu‑se um breve momento de silêncio. Depois ouviu um ruído na linha e Garrett atendeu.

‑ Em que posso ajudá‑la? ‑ perguntou ele, soando um pouco cansado.

Ela disse simplesmente:

‑ Não devias tê‑lo feito, mas ainda bem que o fizeste.

Ele reconheceu a voz dela, e o seu tom de voz animou‑se. ‑ Ei, és tu. Fico satisfeito por saber que elas chegaram. Estavam com bom aspecto?

‑ São belas. Como é que sabias que eu adorava rosas?

‑ Não sabia, mas nunca ouvi falar de uma mulher que não gostasse, por isso arrisquei.

Ela sorriu.

‑ Então envias rosas a muitas mulheres?

‑ Milhões. Tenho muitas admiradoras. Os instrutores de mergulho são quase como estrelas de cinema, sabias.

‑ Não me digas?

‑ Quer dizer que não sabias? E eu a pensar que eras apenas mais uma fã.

Ela riu‑se.

‑ Muito obrigada.

‑ De nada. Alguém perguntou quem as tinha mandado?

Ela sorriu.


‑ Claro.

‑ Espero que tenhas dito coisas boas.

‑ E disse. Disse‑lhes que tinhas sessenta e oito anos e eras gordo, com um terrível defeito de fala que tornava impossível compreender‑te. Mas como tive tanta pena de ti aceitei almoçar contigo. E agora, infelizmente, andas a perseguir‑me.

‑ Ei, isso magoa ‑ disse ele. Ele fez uma pausa. ‑ Pois é... espero que as rosas te façam lembrar de que estou a pensar em ti.

‑ Talvez ‑ disse ela acanhadamente.

‑ Bem, estou a pensar em ti e não quero que o esqueças. Ela olhou para as rosas.

‑ Igualmente ‑ disse ela baixinho. Depois de desligarem, Theresa permaneceu calmamente sentada durante um momento, pegando de novo no cartão. Voltou a lê‑lo, e desta feita, em vez de o colocar junto às flores, escondeu‑o na sua mala. Conhecendo os seus colegas, tinha a certeza de que alguém o leria quando ela não estivesse a olhar.

 

‑ Então, como é ele?         

Deanna estava sentada defronte de Theresa à mesa do restaurante. Theresa entregou a Deanna as fotografias das férias.

‑ Não sei por onde começar.        

Olhando para uma fotografia de Garrett e Theresa na praia, Deanna falou sem olhar para ela.

‑ Começa do princípio. Não quero perder nada.          

Uma vez que Theresa já lhe havia contado sobre o seu encontro com Garrett nas docas, continuou a sua história a partir do fim de tarde em que foram andar de barco. Contou a Deanna como deixara propositadamente o casaco a bordo como pretexto para voltar a vê‑lo ‑ ao que Deanna respondeu ‑ Perfeito! ‑ passando para o almoço do dia seguinte e finalmente para o jantar. Recapitulando os últimos quatro dias que passaram juntos, ela deixou muito pouco de fora, enquanto Deanna escutava com uma atenção arrebatada.

‑ Parece que tiveste um tempo maravilhoso ‑ disse Deanna, sorrindo como uma mãe orgulhosa.

‑ Tive. Foi uma das melhores semanas que já tive. Só que...

‑ O quê?

Levou um momento a responder.

‑ Bem, Garrett disse uma coisa para o fim que me pôs a pensar sobre onde tudo isto iria parar a partir daqui.

‑ O que é que ele disse?

‑ Não foi apenas o que ele disse, mas como o disse. Parecia que não tinha a certeza se queria que nos voltássemos a ver.

‑ Pensei que tivesses dito que ias a Wilmington outra vez daqui a duas semanas.

‑ E vou.

‑ Então qual é o problema?          

Ela mexia‑se na cadeira irrequieta, tentando concentrar os seus pensamentos.

‑ Bem, ele ainda está a tentar esquecer Catherine e... e não tenho bem a certeza se alguma vez ele conseguirá esquecê‑la.

Deanna riu‑se de repente.


‑ Qual é graça? ‑ perguntou Theresa, surpreendida.

‑ És tu, Theresa. O que é que esperavas? Sabias que ele ainda estava a tentar esquecer‑se de Catherine antes de ires lá para baixo. Lembra‑te, foi o seu amor "eterno" que tu achaste tão atraente em primeiro lugar. Pensaste que ele iria esquecer‑se completamente de Catherine em dois dias, só porque vocês os dois se deram tão bem?

Theresa estava com um ar envergonhado e Deanna riu‑se de novo.

‑ Pensaste, não pensaste? Foi exactamente isso que pensaste.

‑ Deanna, tu não estavas lá... Não podes imaginar como tudo parecia tão certo entre nós, até à última noite.

A voz de Deanna enterneceu‑se.

‑ Theresa, eu sei que existe uma parte de ti que acredita que pode mudar uma pessoa, mas a realidade é que não podes. Podes mudar‑te a ti própria, e Garrett pode mudar‑se a si próprio, mas tu não o podes fazer por ele.

‑ Eu sei isso...

‑ Mas não sabes ‑ disse Deanna, interrompendo‑a delicadamente. ‑ Ou se sabes, não o queres ver dessa maneira. A tua visão, como se costuma dizer, ficou toldada.

Theresa pensou durante um momento sobre o que ela tinha dito.

‑ Vamos olhar objectivamente para o que aconteceu a Garrett, está bem? ‑ perguntou Deanna.

Theresa acenou que sim com a cabeça.

‑ Embora tu soubesses alguma coisa sobre Garrett, ele não sabia absolutamente nada sobre ti. No entanto foi ele que te convidou a passear de barco. Por isso alguma coisa entre vocês deve ter feito logo faísca. De seguida, viste‑o de novo quando foste buscar o teu casaco, e ele convidou‑te para almoçar. Ele falou‑te de Catherine e depois convidou‑te para ires a casa dele jantar. Depois disso, passaram quatro dias maravilhosos juntos em que tiveram a oportunidade de se conhecer ‑ e amar ‑ um ao outro. Se me tivesses dito antes de partires que era isso o que iria acontecer, não teria acreditado que tal fosse possível. Mas aconteceu, é isso que importa. E agora, os dois estão a fazer planos para se voltarem a ver. A mim, parece‑me que tudo isto foi um êxito estrondoso.

‑ Então, queres dizer que não me devo preocupar sobre se ele se vai alguma vez esquecer de Catherine ou não?

Deanna abanou a cabeça.

‑ Não exactamente. Mas olha, tens de fazer uma coisa de cada vez. A verdade é que até agora passaram apenas alguns dias juntos. Isso não é tempo suficiente para se poder tomar uma decisão. Se fosse a ti, veria primeiro como é que ambos se sentem durante as próximas duas semanas, e quando estiveres com ele da próxima vez é provável que saibas muito mais do que aquilo que sabes agora.

- Achas que sim? ‑ Theresa olhou para a amiga com um ar preocupado.

‑ Eu tive razão quando insisti para que lá fosses, não tive?

 


Enquanto Theresa e Deanna almoçavam, Garrett trabalhava no seu escritório por detrás de uma gigantesca pilha de papéis até ao momento em que a porta se abriu. Jeb Blake entrou, certificando‑se de que o seu filho estava sozinho antes de fechar a porta. Depois de se sentar na cadeira em frente à secretária de Garrett, Jeb tirou o tabaco e as mortalhas do bolso e começou a enrolar o seu cigarro.

‑ Esteja à vontade e sente‑se. Como pode ver, não tenho muito que fazer. ‑ Garrett apontou para a pilha de papéis.

Jeb sorriu e continuou a enrolar o tabaco.

‑ Telefonei para aqui duas vezes e disseram‑me que não tinhas aparecido a semana inteira. Que tens andado a fazer?

Recostando‑se na sua cadeira, Garrett olhou para o pai.

- Tenho a certeza de que já sabe a resposta da sua pergunta, e essa é provavelmente a razão porque aqui está.

‑ Estiveste com Theresa o tempo todo?

‑ Sim, estive.

Continuando a enrolar o cigarro, Jeb perguntou com um ar de indiferença:

‑ Então, o que é que vocês fizeram?

‑ Fomos andar de barco, passear na praia, conversámos... Sabe, estivemos apenas a conhecer‑nos melhor.

Jeb acabou de enrolar o seu cigarro e pô‑lo na boca. Tirou um isqueiro Zippo do bolso da camisa, acendeu o cigarro, e inalou profundamente. Exalando, mostrou a Garrett um sorriso maroto.

‑ Grelhaste os bifes como eu te ensinei?          

Garrett fez um sorriso tolo.

‑ Claro.

‑ Ela ficou impressionada?

‑ Ficou muito impressionada.      

Jeb acenou com a cabeça e deu outra passa no seu cigarro. Garrett podia sentir o ar no escritório começar a ficar viciado.

‑ Então ela tem pelo menos uma boa qualidade, não é?

‑ Tem muito mais do que uma, pai.

‑ Gostaste dela, não gostaste?

‑ Muito.

‑ Mesmo apesar de não a conheceres muito bem?

‑ Sinto como se soubesse tudo acerca dela.

Jeb acenou com a cabeça e nada disse por um momento. Por fin, perguntou:

‑ Vais voltar a vê‑la?

‑ Na verdade, ela volta daqui a duas semanas com o filho. Jeb observou com atenção a expressão de Garrett. Depois, levantou‑se e caminhou para a porta. Antes de a abrir, voltou‑se e olhou para o filho.

‑ Garrett, posso dar‑te um conselho?

Surpreendido com a partida abrupta do pai, respondeu:

‑ Claro.

‑ Se gostas dela, se ela te faz feliz, se sentes como se a conhecesses, então não a deixes partir.

‑ Porque me está a dizer isso?    

Jeb olhou directamente para Garrett e deu outra passa no seu cigarro.

‑ Porque se eu te conheço, vais ser tu a terminar com a relação, e eu estou aqui para tentar impedir‑te se for possível.

‑ De que é que está a falar?


‑ Sabes exactamente de que é que estou a falar ‑ disse ele baixinho. Dando meia volta, Jeb abriu a porta e deixou o escritório de Garrett sem mais uma palavra.

Mais tarde nessa noite, com os restos dos comentários do pai a rolarem na sua cabeça, Garrett acabou por não conseguir dormir. Levantou‑se da cama e foi até à cozinha, sabendo o que precisava de ser feito. Na gaveta, ele encontrou o papel e a caneta que sempre usava quando a sua mente estava em conflito, e sentou‑se com a esperança de pôr os seus pensamentos em palavras.

Minha querida Catherine, Não sei o que me está a acontecer, e não sei se alguma vez saberei. Aconteceu tanta coisa ultimamente que não consigo entender aquilo por que estou a passar.

Garrett ficou sentado à mesa durante uma hora depois de ter escrito aquelas primeiras duas linhas, e por mais que tentasse, não conseguia pensar em mais nada para escrever. Mas quando acordou na manhã seguinte, ao contrário da maioria dos outros dias, o seu primeiro pensamento não foi para Catherine.

Foi em vez disso para Theresa.

 

Durante as duas semanas seguintes, Garrett e Theresa falaram pelo telefone todas as noites, às vezes durante horas. Garrett também enviou duas cartas ‑ bilhetes curtos, na verdade ‑ para lhe dizer que sentia a falta dela, e na semana seguinte enviou‑lhe mais uma dúzia de rosas, desta vez com uma caixa de chocolates.

Theresa não queria enviar‑lhe flores ou chocolates, por isso mandou‑lhe antes uma camisa azul clara que ela pensou ficar bem com as jeans dele, juntamente com dois postais.

Kevin chegou a casa alguns dias mais tarde, e isso fez com que a semana seguinte passasse muito mais depressa para Theresa do que para Garrett. Na sua primeira noite em casa, Kevin jantou com Theresa, contando‑lhe atabalhoadamente as suas férias, antes de cair num sono profundo que durou quase quinze horas. Quando acordou, havia já uma longa lista de coisas que precisavam de ser feitas. Precisava de roupa nova para a escola ‑ a maior parte das coisas que vestira no ano anterior já não lhe serviam ‑ e teve de se inscrever para o campeonato de futebol de Outono, o que acabou por ocupar quase um sábado inteiro. Além disso, ele tinha chegado a casa com uma mala cheia de roupa suja que precisava de ser lavada, queria pôr a revelar as fotografias que tinha tirado nas férias, e tinha uma consulta na terça‑feira à tarde no dentista para ver se precisava de aparelho.

Por outras palavras, a vida voltava ao normal na casa dos Osborne. Na segunda noite após Kevin ter chegado, Theresa contou‑lhe as suas férias em Cape Cod, depois a sua viagem a Wilmington. Falou em Garrett, tentando transmitir‑lhe o que sentia por ele sem o alarmar. A princípio, quando ela explicou que o iam visitar no fim‑de‑semana seguinte, Kevin não pareceu muito entusiasmado. Mas depois de lhe contar qual era o trabalho de Garrett, Kevin começou a mostrar alguns sinais de interesse.

‑ Quer dizer que ele pode ensinar‑me a mergulhar? ‑ perguntou ele enquanto ela aspirava a casa.

‑ Ele disse que ensinava, se quisesses.


‑ Fixe ‑ disse ele, regressando ao que estava a fazer antes. Algumas noites depois ela levou‑o a uma loja para lhe comprar umas revistas sobre mergulho. Antes de partir, Kevin já sabia o nome de cada peça de equipamento que era possível usar, obviamente sonhando com a aventura que se avizinhava.

Garrett, entretanto, mergulhava no trabalho. Trabalhava até tarde, pensando em Theresa enquanto o fazia, agindo de maneira muito semelhante ao que tinha feito depois de Catherine morrer. Quando disse ao pai que sentia muito a falta de Theresa, este apenas acenou com a cabeça e sorriu. Algo no olhar avaliador do pai fez Garrett interrogar‑se sobre o que estaria exactamente a passar pela cabeça do velho.

Por acordo prévio, Theresa e Garrett tinham decidido que seria melhor que ela e Kevin não ficassem em casa de Garrett, mas no Verão, quase todos os quartos na cidade estavam ocupados. Felizmente Garrett conhecia o dono de um pequeno motel que ficava na praia a cerca de dois quilómetros da sua casa que conseguiu arranjar‑lhes quartos.

Quando finalmente chegou o dia de Theresa e Kevin partirem, Garrett foi comprar comida, lavou a sua carrinha por dentro e por fora, e tomou um banho de chuveiro antes de ir para o aeroporto.

Vestido de calças caqui, moccasins, e a camisa que Theresa lhe comprara, ele esperava nervosamente junto ao portão.

Nas últimas duas semanas os seus sentimentos por Theresa tinham aumentado. Sabia agora que o que quer que tinha acontecido entre ele e Theresa não se baseava apenas na atracção física ‑ a sua saudade apontava para algo de mais profundo e duradouro. Enquanto esticava o pescoço para ver se a vislumbrava entre a multidão, sentiu uma pontada de ansiedade. Há tanto tempo que não se sentia daquela maneira em relação a uma pessoa ‑ e onde iria parar tudo isto?

Quando Theresa saiu do avião com Kevin ao lado, todo o seu nervosismo se dissipou subitamente. Ela estava bela, mais bela do que ele se lembrava. E Kevin era muito parecido com a mãe tal qual vira na sua fotografia. Tinha pouco mais de um metro e meio, os cabelos e os olhos escuros de Theresa, e era magricela, tanto os braços como as pernas pareciam ter crescido um pouco mais depressa que o resto do corpo. Vestia umas bermudas compridas, sapatos Nike, e uma camisa de um concerto dos Hootie and the Blowfish. A sua escolha de vestuário era claramente inspirada na MTV, e Garrett não conteve um sorriso. Boston, Wilmington... na verdade não havia qualquer diferença, pois não? Os miúdos eram sempre miúdos.

Theresa acenou quando o viu, e Garrett foi ter com eles, pegando nos seus sacos de viagem. Não sabendo se devia beijá‑la à frente de Kevin, ele hesitou, até Theresa se inclinar beijando‑o alegremente na face.

‑ Garrett, quero apresentar‑te o meu filho, Kevin ‑ disse ela orgulhosa.

‑ Olá, Kevin.

‑ Olá, Sr. Blake ‑ disse ele formalmente, como se Garrett fosse seu professor.

‑ Podes chamar‑me Garrett ‑ disse ele, estendendo a mão. Kevin apertou‑a, um pouco inseguro. Até àquele momento, nenhum adulto a não ser Annette lhe pedira para o tratar pelo primeiro nome.

‑ Como foi a vossa viagem? ‑ perguntou Garrett.

‑ Foi boa ‑ respondeu Theresa.   

‑ Já comeram alguma coisa?


‑ Ainda não.

‑ Bem, que tal ir comer qualquer coisa antes de vos levar para o motel?

‑ Parece boa ideia.

‑ Queres alguma coisa em especial? ‑ Garrett perguntou a Kevin.

‑ Eu gosto do McDonald's.

‑ Oh, querido, não ‑ disse Theresa depressa, mas Garrett deteve‑a com um abanão da cabeça.

‑ O McDonald's é uma óptima ideia.

‑ Tens a certeza? ‑ perguntou Theresa.

‑ Absoluta. Eu como lá sempre.

Kevin parecia encantado com esta resposta, e os três começaram a dirigir‑se para a área de recolha de bagagens. Quando deixaram os portões, Garrett perguntou:

‑ És bom nadador, Kevin?

‑ Bastante bom.

‑ Estás preparado para umas lições de mergulho este fim‑de‑semana?

‑ Acho que sim. Tenho andado a ler sobre o assunto ‑ disse ele, tentando soar mais velho do que era.

‑ Muito bem. Esperava que dissesses isso. Se tivermos sorte, até pode ser que consigas o certificado antes de voltares para casa.

‑ O que é isso?

‑ É uma licença que te permite mergulhar quando quiseres é mais ou menos como uma carta de condução.

‑ Consegue‑se isso em tão poucos dias?

‑ Claro. Tens de fazer um teste escrito e passar algumas horas na água com um instrutor. Mas uma vez que vais ser o meu único aluno este fim‑de‑semana - a não ser que a tua mãe queira aprender também ‑ teremos mais do que tempo suficiente.

‑ Fixe ‑ disse Kevin. Voltou‑se para Theresa. ‑ Também vais aprender, mãe?

‑ Não sei. Talvez.

‑ Acho que devias ‑ disse Kevin. ‑ Ia ser divertido.

‑ Ele tem razão, devias aprender também ‑ Garrett acrescentou com um sorriso afectado, sabendo que ela iria sentir‑se pressionada pelos dois e provavelmente acabaria por ceder.

‑ Está bem ‑ disse ela, girando os olhos. ‑ Também vou. Mas se vir algum tubarão, desisto logo.

‑ Quer dizer que pode haver tubarões? ‑ perguntou Kevin depressa.

‑ Sim, provavelmente veremos alguns tubarões. Mas são pequeninos e não incomodam as pessoas.

‑ Pequeninos como? ‑ perguntou Theresa, lembrando‑se da história que ele contara sobre o tubarão martelo que encontrara.

‑ Suficientemente pequenos para que não tenhas nada com que te preocupares.

‑ Tens a certeza?

‑ Absoluta.

‑ Fixe ‑ repetiu Kevin para consigo mesmo, e Theresa lançou um olhar a Garrett, perguntando a si mesma se ele estava a dizer a verdade.

 


Depois de levantarem as malas e de irem comer qualquer coisa, Garrett levou Theresa e Kevin para o motel. Enquanto eles acabavam de arrumar as suas coisas lá dentro, Garrett voltou à carrinha e regressou com um livro e alguns papéis debaixo do braço.

‑ Kevin ‑ isto é para ti.        

‑ O que é?

‑ É o livro e os testes que precisas de ler para o teu certificado. Não te preocupes, parece maior do que é na realidade. Mas se quiseres começar amanhã, tens de ler, pelo menos, as duas primeiras secções e completar o primeiro teste.

‑ É difícil?

‑ Não ‑ é bastante fácil, mas mesmo assim tens de o fazer. E podes usar o livro para encontrar as respostas para as perguntas mais difíceis.

‑ Quer dizer que posso ir ver as respostas enquanto estou a fazer o teste?

Garrett acenou com a cabeça.

‑ Sim. Quando entrego estes testes aos meus alunos, é para eles fazerem em casa e tenho a certeza de que quase toda a gente usa o livro. O importante é tentares aprender aquilo que precisas de saber. O mergulho é muito divertido, mas pode ser perigoso se não souberes o que estás a fazer.

Garrett entregou o livro a Kevin e continuou.

‑ Se conseguires acabar até amanhã - são cerca de vinte páginas para ler, mais o teste ‑ podemos ir até à piscina para a primeira parte do curso. Aí aprendes a pôr o equipamento e depois praticamos durante um bocado.

‑ Não vamos para o mar?

‑ Amanhã não ‑ primeiro tens de passar algum tempo na piscina para te habituares ao equipamento. Depois de fazeres isso durante algumas horas, então estarás pronto. Iremos para o mar provavelmente na segunda e na terça‑feira para os teus primeiros mergulhos. E se conseguires fazer as horas suficientes debaixo de água, terás um certificado provisório quando voltares para casa. Depois, tudo o que precisas fazer é enviar um formulário pelo correio, e receberás o certificado verdadeiro também pelo correio dentro de duas semanas.

Kevin começou a folhear o livro.

‑ A mãe também tem de o fazer?

‑ Se ela quiser ter um certificado, também.

Theresa aproximou‑se, espreitando por cima do ombro de Kevin enquanto ele folheava o livro. O conteúdo não parecia muito assustador.

‑ Kevin ‑ disse ela ‑, podemos fazê‑lo juntos amanhã de manhã, se estiveres muito cansado para começar agora.

‑ Não estou muito cansado ‑ disse ele rapidamente.

‑ Então importas‑te que eu e Garrett conversemos um bocado na varanda?

‑ Não, podem ir ‑ disse ele distraidamente, virando já para a primeira página.

Uma vez lá fora, Garrett e Theresa sentaram‑se à frente um do outro. Olhando para trás para o filho, Theresa viu que Kevin estava já a ler.

‑ Não estás a facilitar as coisas para lhe arranjar um certificado, pois não?

Garrett abanou a cabeça.


‑ Não, de maneira nenhuma. Para se conseguir um certificado PADI ‑ o certificado para mergulhadores de recreio ‑ precisas de passar os testes e de um certo período de tempo na água com um instrutor, é tudo. Normalmente alargamos o curso ao longo de três ou quatro fins‑de‑semana, mas isso é porque a maioria das pessoas não têm tempo para fazê‑lo durante a semana. Ele vai ter o mesmo número de horas, só que é mais condensado.

‑ Agradeço‑te por estares a fazer isto por ele.

‑ Ei, esqueces‑te de que isto é a minha vida. ‑ Depois de se certificar de que Kevin estava ainda a ler, ele puxou rapidamente a sua cadeira um pouco para mais perto dela. ‑ Senti muito a tua falta nestas duas semanas ‑ disse ele baixinho, tomando a mão dela na sua.

‑ Também senti a tua falta.

‑ Estás maravilhosa ‑ acrescentou ele. ‑ Eras à vontade a mulher mais bonita que saiu daquele avião.

Sem querer, Theresa corou.

‑ Obrigada... Tu. também estás com bom aspecto, especialmente com essa camisa.

‑ Pensei que ias gostar.

‑ Estás desapontado por não ficarmos em tua casa?

‑ Não muito. Compreendo as tuas razões. Kevin ainda não me conhece, e prefiro que ele se vá habituando a mim à maneira dele em vez de forçar as coisas. Como disseste, ele já passou por problemas suficientes.

‑ Sabes que isso significa que não poderemos passar muito tempo juntos este fim‑de‑semana, não sabes?

‑ Eu aceito‑te de qualquer maneira ‑ disse ele. Theresa olhou para dentro de novo, e quando viu que Kevin estava absorto no livro inclinou‑se para a frente e beijou Garrett. Apesar de saber que não iria poder estar com ele toda a noite, ela sentia‑se surpreendentemente feliz. Estar sentada ao lado dele vendo a maneira como ele olhava para ela aumentou de súbito a batida do seu coração.

‑ Quem me dera que não vivêssemos tão longe um do outro ‑ disse ela. ‑ Tu és como uma droga, crias dependência.

‑ Aceito isso como um elogio.

Três horas mais tarde, muito depois de Kevin ter adormecido, Theresa acompanhou silenciosamente Garrett até à porta. Depois de saírem para o corredor e fecharem a porta atrás deles, beijaram‑se durante muito tempo, cada um achando difícil largar o outro. Nos braços dele Theresa sentia‑se de novo uma adolescente, como se estivesse a dar um beijo às escondidas no pórtico da casa dos pais, e isso de certa maneira aumentava a excitação que sentia.

‑ Gostava tanto que pudesses ficar aqui hoje ‑ murmurou ela.

‑ Também eu.

‑ É assim tão difícil para ti dizer boa‑noite como é para mim?

‑ Aposto em como é muito mais difícil para mim. Eu vou voltar para uma casa vazia.

‑ Não digas isso. Vais fazer‑me sentir culpada.

‑ Talvez seja bom um pouco de culpa. Permite‑me saber que gostas de mim.

‑ Não estaria aqui se não gostasse. ‑ Beijaram‑se de novo sofregamente.

Afastando‑se, ele murmurou:

‑ Tenho mesmo de ir. ‑ Não parecia muito convencido.


‑ Eu sei.

‑ Mas não quero ‑ disse ele com um sorriso acriançado.

‑ Sei o que queres dizer ‑ disse ela. ‑ Mas tens de ir. Tens de nos ensinar a mergulhar amanhã.

‑ Preferia ensinar‑te outras coisas que eu sei.

‑ Acho que já fizeste isso da última vez que estive aqui - disse ela timidamente.

‑ Eu sei. Mas tem de se praticar para atingir a perfeição.

‑ Então temos de arranjar algum tempo para praticar enquanto estiver aqui.

‑ Achas que isso será possível?

‑ Eu acho ‑ disse ela honestamente ‑, que quando se trata de nós os dois, tudo é possível.

‑ Espero que tenhas razão.          

‑ Tenho ‑ disse ela antes de o beijar uma última vez. ‑ Normalmente tenho razão. ‑ Ela afastou‑se dele lentamente e recuou em direcção à porta.

‑ É isso que eu gosto em ti, Theresa, a tua confiança. Sabes sempre o que se está a passar.

‑ Vai para casa, Garrett ‑ disse ela com um ar de fingido recatamento. ‑ E fazes‑me um favor?

‑ Qualquer coisa.

‑ Sonha comigo, está bem?

 

Kevin acordou cedo na manhã seguinte e abriu as cortinas, deixando a luz do sol inundar o quarto. Theresa semicerrou os olhos e virou‑se para o lado, tentando descansar mais alguns minutos, mas Kevin era persistente.

‑ Mãe, tens de fazer o teste antes de irmos ‑ disse ele excitado.

Theresa resmungou. Voltando‑se, olhou para o relógio. Pouco passava das seis horas. Estava na cama havia menos de cinco horas.

‑ É muito cedo ‑ disse ela, fechando de novo os olhos. podes dar‑me mais alguns minutos, querido?

‑ Não temos tempo ‑ disse ele, sentando‑se na cama dela e abanando levemente o seu ombro. ‑ Nem sequer ainda leste a primeira secção.

‑ Acabaste tudo ontem à noite?

‑ Acabei ‑ disse ele. ‑ O meu teste está ali, mas não copies, está bem? Não quero arranjar problemas.

‑ Penso que não irias arranjar problemas ‑ disse ela meio ensonada. ‑ Conhecemos o professor, sabes.

‑ Mas não seria justo. E de qualquer maneira tens de aprender esta matéria, como disse o Sr. Blake... quer dizer o Garrett, se não podes vir a ter problemas.

‑ Está bem, está bem ‑ disse ela, sentando‑se lentamente. Esfregou os olhos. ‑ Há café instantâneo na casa de banho?

‑ Não vi nenhum, mas se quiseres, corro até ao fundo do corredor e trago‑te uma Coca‑Cola.

‑ Tenho alguns trocos na minha carteira...        


Kevin saltou da cama e começou a vasculhar a mala da mãe. Depois de encontrar algumas moedas, saiu a correr pela porta da frente, com o cabelo ainda despenteado do sono. Ouviu ressoar os passos dele ao longo do corredor. Depois de se levantar e esticar os braços por cima da cabeça, dirigiu‑se para a pequena mesa. Pegou no livro e estava a começar a ler o primeiro capítulo quando ele regressou com duas Coca‑Colas.

‑ Aqui está ‑ disse ele, colocando uma sobre a mesa ao pé dela. ‑ Vou tomar banho e preparar‑me. Onde puseste o meu fato de banho?

Ah, a energia infindável da infância, pensou ela.

‑ Está na gaveta de cima, ao lado das tuas meias.

‑ Está bem ‑ disse ele, abrindo a gaveta ‑, já o vi. ‑ Foi para a casa de banho e Theresa ouviu‑o a abrir o chuveiro. Abrindo a sua Coca‑Cola, voltou para o livro.

Felizmente Garrett estivera certo quando lhe dissera que a matéria não era difícil. O livro era de leitura fácil, com imagens descrevendo o equipamento, e quando Kevin acabou de se vestir já ela o tinha terminado. Depois de encontrar o seu teste, colocou‑o à sua frente. Kevin aproximou‑se e pôs‑se atrás da mãe enquanto ela olhava para a primeira pergunta. Lembrando‑se do sítio onde lera acerca do assunto, começou a folhear o livro para trás até chegar à devida página.

‑ Mãe, essa é fácil. Não precisas do livro para essa.

‑ às seis da manhã, preciso de toda a ajuda que conseguir - resmungou ela, não se sentindo minimamente culpada. Garrett tinha dito que ela poderia usar o livro, não tinha?

Kevin continuou a espreitar por cima do seu ombro enquanto ela respondia às primeiras perguntas, comentando. "Não, estás a ver no sítio errado", ou, "Tens a certeza que leste os capítulos?" até ela finalmente dizer para ele ir ver televisão.

‑ Mas não está a dar nada ‑ disse ele, desanimado.

‑ Então lê qualquer coisa.

‑ Não trouxe nada.

‑ Então está quieto e calado.

‑ Mas eu estou.

‑ Não, não estás nada. Estás debruçado sobre o meu ombro.

‑ Estou só a tentar ajudar.

‑ Senta‑te na cama, está bem? E não digas nada.

‑ Não estou a dizer nada.

‑ Acabaste mesmo agora de falar.

‑ Isso é porque estás a falar comigo.

‑ Não podes deixar‑me fazer o teste em paz?

‑ Pronto. Não digo nem mais uma palavra. Vou ficar quietinho como um rato.

E ficou, durante dois minutos. Depois começou a assobiar. Ela pousou a caneta e olhou para ele.

‑ Porque estás a assobiar?

‑ Não tenho nada que fazer.

‑ Então liga a televisão.

‑ Não está a dar nada...     

E assim foi até ela finalmente ter terminado. Levara quase uma hora para fazer uma coisa que poderia ter feito em metade do tempo no escritório. Tomou um longo duche quente e vestiu‑se, pondo o fato de banho por baixo da roupa. Kevin, já esfomeado, queria ir ao McDonald's de novo, mas ela impôs‑se e sugeriu que fossem tomar o pequeno‑almoço na Casa das Waffles do outro lado da rua.

‑ Mas eu não gosto da comida deles.

‑ Nunca lá comeste antes.

‑ Eu sei.

‑ Então como é que sabes que não gostas?    

‑ Sei.  


‑ És omnisciente?

‑ O que é que isso quer dizer?     

‑ Quer dizer, meu rapaz, que vamos comer onde eu quero, para variar.

‑ A sério?

‑ Sim ‑ disse ela, ansiando por uma chávena de café como há muito tempo não acontecia.

 

Garrett bateu à porta do quarto do motel às nove em ponto, e Kevin correu a abri‑la.

‑ Estão prontos? ‑ perguntou ele.

‑ Se estamos ‑ respondeu Kevin rapidamente. ‑ O meu teste está ali. Vou já buscá‑lo para o ver.

Correu até à mesa enquanto Theresa se levantava da cama e cumprimentava Garrett com um beijo rápido.

‑ Como foi a vossa manhã? ‑ perguntou ele.

‑ Parece que já é de tarde. O Kevin levantou‑me de madrugada para fazer o teste.

Garrett sorriu enquanto Kevin regressava com o seu teste.

‑ Aqui está, Sr. Blake. Garrett, quero dizer.       

Garrett pegou no teste e começou a verificar as respostas.

‑ A minha mãe teve alguns problemas com duas perguntas mas eu ajudei‑a ‑ continuou Kevin, e Theresa girou os olhos. - Estás pronta, mãe?

‑ Quando estiveres ‑ disse ela, pegando na chave do quarto e na sua mala.

‑ Então vamos ‑ disse Kevin, seguindo à frente pelo corredor em direcção à carrinha de Garrett.

Durante toda a manhã e princípio da tarde, Garrett ensinou‑lhes as noções básicas do mergulho. Aprenderam como o equipamento funcionava, a vesti‑lo e a testá‑lo, e finalmente como respirar através do bocal, primeiro ao lado da piscina, depois debaixo de água.

‑ A coisa mais importante de que se devem lembrar ‑ explicou Garrett ‑, é respirar normalmente. Não retenham a respiração, não respirem demasiado depressa ou demasiado devagar. Deixem que surja naturalmente. ‑ Claro, nada naquilo parecia natural a Theresa, que acabou por ter mais problemas do que Kevin. Este, sempre o aventureiro, achava que depois de alguns minutos debaixo de água já sabia tudo o que havia para saber.

‑ Isto é fácil ‑ disse ele a Garrett. ‑ Acho que estarei pronto para o mar esta tarde.

‑ Tenho a certeza de que estarias, mas ainda assim temos de fazer as lições na ordem apropriada.

‑ Como vai a mãe?

‑ Bem.

‑ Tão bem quanto eu?

‑ Vão ambos muito bem ‑ disse ele, e Kevin aplicou de novo o bocal. Voltou para debaixo de água ao mesmo tempo que Theresa emergia e tirava o seu bocal.

‑ Sinto uma coisa esquisita quando respiro ‑ disse ela.

‑ Estás a ir muito bem. Descontrai‑te e respira normalmente.

‑ Isso foi o que disseste da última vez que vim para cima a engasgar‑me.

‑ As regras não mudaram nos últimos minutos, Theresa.


‑ Eu sei. Estava só a pensar se não estaria alguma coisa errada com a minha garrafa.

‑ A garrafa está óptima. Eu verifiquei‑a duas vezes esta manhã.

‑ Mas não és tu que estás a usá‑la, pois não?

‑ Queres que a experimente?

‑ Não ‑ resmungou ela, franzindo o sobrolho em frustração, - eu cá me arranjo. ‑ E foi de novo para debaixo de água.

Kevin surgiu de repente e tirou novamente o bocal.

‑ A mãe está bem? Eu vi‑a subir.

‑ Ela está óptima. Está apenas a habituar‑se, tal como tu.

‑ Ainda bem. Sentir‑me‑ia mesmo mal se eu conseguisse o meu certificado e ela não.

‑ Não te preocupes com isso. Continua apenas a praticar.

‑ Está bem.  

E assim continuaram.

Depois de algumas horas na água, tanto Kevin como Theresa estavam cansados. Foram almoçar, e mais uma vez Garrett contou as suas histórias de mergulho, desta vez para Kevin. Este fez o que pareceu serem uma centena de perguntas entusiásticas. Garrett respondeu a cada uma com paciência, e Theresa ficou aliviada por ver que eles se davam tão bem.

Depois de passarem pelo motel para irem buscar o livro e as lições do dia seguinte, Garrett levou os dois para sua casa. Embora Kevin tivesse planeado começar imediatamente os capítulos seguintes, o facto de Garrett viver perto da praia alterou tudo. Encontrando‑se na sala e olhando para o mar, perguntou:

‑ Posso ir até à praia, mãe?

‑ Acho que não ‑ disse ela delicadamente. ‑ Passámos o dia inteiro na piscina.

‑ Ah, mãe... por favor? Não tens de ir comigo, podes ficar a ver‑me da varanda. - Ela hesitou, e Kevin sabia que a tinha convencido. ‑ Por favor ‑ disse ele de novo, oferecendo‑lhe o seu sorriso mais sincero.

- Está bem, podes ir. Mas não vás muito para o fundo, está bem?

- Não vou, prometo ‑ disse ele entusiasmado. Depois de agarrar na toalha que Garrett lhe entregou, correu até à água. Garrett e Theresa sentaram‑se na varanda e observaram‑no enquanto ele começava a chapinhar na água.

‑ Ele é um belo rapaz ‑ disse Garrett baixinho.

‑ Pois é ‑ disse ela. ‑ E acho que gosta de ti. Ao almoço quando foste à casa de banho, ele disse que tu eras fixe.

Garrett sorriu.

‑ Fico contente. Também gosto dele. É um dos melhores estudantes que já tive.

‑ Estás a dizer isso só para me agradares.

‑ Não, não estou. É mesmo. Conheço muitos miúdos nas minhas aulas, e ele é muito maduro e fala muito bem para a sua idade. E é simpático também. Hoje em dia a maioria dos miúdos é muito mimada, mas não acho que ele o seja.

‑ Obrigada.

‑ Estou a falar a sério, Theresa. Depois de ouvir as tuas preocupações, não sabia o que esperar. Mas ele é mesmo um miúdo fantástico. Educaste‑o muito bem.


Ela pegou na mão dele e beijou‑a suavemente. Disse baixinho:

‑ É muito importante para mim ouvir‑te dizer isso. Não conheci muitos homens que quisessem falar sobre ele, muito menos passar tempo com ele.

‑ Então foram eles que ficaram a perder.                      

Ela sorriu.

‑ Como é que tu sabes sempre exactamente o que dizer para me fazeres sentir bem?

‑ Talvez seja porque tu fazes sobressair o que há de melhor em mim.

‑ Talvez.

 

À tardinha Garrett levou Kevin ao clube de vídeo para alugarem dois filmes que ele queria ver e encomendou pizza para os três.

Viram o primeiro filme juntos, comendo na sala. Depois do jantar Kevin começou lentamente a murchar. às nove horas estava já adormecido em frente ao televisor. Theresa abanou‑o gentilmente, dizendo que eram horas de eles se irem embora.

‑ Não podemos dormir aqui esta noite? ‑ resmungou ele, apenas meio consciente.

‑ Acho que devíamos ir embora ‑ disse ela baixinho.

‑ Se quiserem, podem dormir os dois na minha cama ‑ ofereceu Garrett. ‑ Eu fico aqui e durmo no sofá.

‑ Vamos fazer isso, mãe. Estou mesmo cansado.

‑ Tens a certeza? ‑ perguntou ela, mas Kevin já começara a cambalear em direcção ao quarto. Ouviram as molas chiar quando Kevin caiu pesadamente sobre a cama de Garrett. Seguindo‑o, eles espreitaram para dentro do quarto. Kevin tinha voltado a adormecer num instante.

‑ Acho que ele não te está a dar muita escolha ‑ sussurrou Garrett.

‑ Ainda não tenho a certeza se é uma boa ideia.

‑ Eu serei um cavalheiro exemplar, prometo.

‑ Não estou preocupada contigo, só não quero que Kevin fique com a impressão errada.

‑ Queres dizer que não queres que ele saiba que nós gostamos um do outro? Eu acho que ele já sabe isso.

‑ Sabes o que eu quero dizer.

‑ Sim, eu sei. ‑ Ele encolheu os ombros. ‑ Olha, se queres que te ajude a levá‑lo para a carrinha, terei muito prazer em fazê‑lo.

Ela olhou para Kevin durante um momento, escutando a sua respiração profunda e constante. Parecia estar morto para o mundo.

‑ Bem, talvez uma noite não faça mal ‑ cedeu ela, e Garrett piscou o olho.

‑ Esperava que dissesses isso.

‑ Agora não te esqueças da tua promessa de ser um cavalheiro exemplar.

‑ Não esqueço.

‑ Pareces estar muito certo quanto a isso.

‑ Ei... uma promessa é uma promessa.

Ela fechou a porta com cuidado e pôs os braços à volta do pescoço de Garrett. Ela beijou‑o, mordendo‑lhe o lábio na brincadeira.

‑ É bom que assim seja, porque se dependesse apenas de mim, não sei se seria capaz de me controlar.


Ele fez uma careta.

‑ Sabes mesmo tornar as coisas difíceis para um homem, não sabes?

‑ Quer isso dizer que pensas que eu sou uma trocista?

‑ Não ‑ disse ele baixinho. ‑ Quer dizer que penso que tu és perfeita.

Em vez de verem o segundo filme, Garrett e Theresa sentaram‑se no sofá, bebendo vinho e conversando. Theresa foi espreitar Kevin algumas vezes, para se certificar de que ele ainda estava a dormir. Ele parecia nem sequer ter‑se mexido.

Por volta da meia‑noite Theresa bocejava incessantemente, e Garrett sugeriu‑lhe que fosse dormir.

‑ Mas eu vim cá para te ver ‑ protestou ela ensonada.

‑ Mas se não fores dormir, vais ver‑me todo desfocado.

‑ Eu estou bem, de verdade ‑ disse ela antes de bocejar de novo. Garrett levantou‑se e foi até à despensa. Tirou de lá um lençol, um cobertor e uma almofada e trouxe‑os para o sofá.

‑ Eu insisto. Vai tentar dormir um pouco. Temos os próximos três dias para estar um com o outro.

‑ Tens a certeza?

‑ Absoluta.

Ela ajudou Garrett a preparar o sofá e foi para o quarto. ‑ Se não quiseres dormir com a tua roupa, há algumas camisolas na segunda gaveta ‑ disse ele.

Ela beijou‑o de novo.

‑ Tive um dia maravilhoso hoje ‑ disse ela.

‑ Também eu.

‑ Desculpa estar tão cansada.

‑ Fizeste muitas coisas hoje. É perfeitamente compreensível.

Com os braços entrelaçados, ela sussurrou no ouvido dele:

- É sempre assim tão fácil conviver contigo?

‑ Faço os possíveis.

‑ Bem, estás a portar‑te maravilhosamente.

 

Algumas horas mais tarde Garrett acordou com a sensação de que alguém estava a tocar‑lhe nas costelas. Abrindo os olhos, viu Theresa sentada a seu lado. Ela tinha vestido uma das camisolas a que ele aludira antes.

‑ Estás bem? ‑ perguntou ele, sentando‑se.

‑ Estou bem ‑ sussurrou ela, acariciando‑lhe o braço.

‑ Que horas são?

‑ Três e pouco.

‑ O Kevin ainda está a dormir?

‑ Como uma pedra.

‑ Posso saber porque saiu da cama?

‑ Tive um sonho e não consegui voltar a dormir.

Ele esfregou os olhos.

‑ Estavas a sonhar com o quê?

‑ Contigo ‑ disse ela baixinho.

‑ Era um sonho bom?

‑ Oh, sim... Não terminou.

Inclinou‑se para o beijar no peito, e Garrett puxou‑a para junto de si lançando um olhar para a porta do quarto de dormir. Ela tinha‑a fechado.

‑ Não estás preocupada com Kevin? ‑ perguntou ele.

‑ Um pouco, mas vou confiar em ti para seres o mais silencioso possível.


Ela meteu a mão por baixo do cobertor e passou os dedos pela barriga dele. O toque dela era eléctrico.

‑ Tens a certeza?

‑ Hen‑hen! ‑ disse ela.       

Fizeram amor ternamente, silenciosamente, e depois ficaram deitados ao lado um do outro. Durante muito tempo, nenhum dos dois falou. Quando o mais ténue sinal de luz começou a roçar o horizonte, despediram‑se com um beijo e ela voltou para o quarto. Poucos minutos depois dormia profundamente, e Garrett observava‑a através do vão da porta.

Por alguma razão, foi‑lhe impossível voltar a adormecer de novo.

 

Na manhã seguinte, Theresa e Kevin leram o livro juntos enquanto Garrett foi a correr buscar doughnuts frescos para o pequeno‑almoço. Voltaram para a piscina. Desta vez as aulas eram um pouco mais avançadas, cobrindo uma série de técnicas diferentes. Theresa e Kevin aprenderam a partilhar o ar de uma só garrafa no caso de qualquer um deles ficar sem ar debaixo de água, e Garrett chamou‑lhes a atenção para os perigos de se entrar em pânico durante o mergulho e subir para a superfície demasiado depressa.

‑ Se fizerem isso, podem ter o que chamamos barotraumatismos. Não só é doloroso, como pode ameaçar a própria vida.

Passaram também algum tempo na parte funda da piscina, nadando debaixo de água por períodos prolongados, acostumando‑se ao equipamento e a desobstruir os ouvidos. No fim da aula, Garrett mostrou‑lhes como saltar do lado da piscina sem deixar a máscara sair do lugar. Como era de prever passadas algumas horas, ambos estavam cansados e prontos para acabar por ali.

‑ Amanhã vamos para o mar? ‑ perguntou Kevin quando regressavam para a carrinha.

‑ Se quiseres. Acho que estás pronto, mas se preferires passar outro dia na piscina, podemos fazer isso em vez de ir para o mar.

‑ Não, eu estou pronto.

‑ Tens a certeza? Não quero apressar‑te.

‑ Tenho a certeza ‑ disse ele rapidamente.

‑ E tu, Theresa? Estás pronta para o mar?

‑ Se o Kevin está pronto, então também estou.

‑ Sempre terei o meu certificado na terça‑feira? ‑ perguntou Kevin.

‑ Se os mergulhos no mar correrem bem, ambos o terão.

‑ Fixe.

‑ Qual é o programa para o resto do dia? ‑ perguntou Theresa. Garrett começou a arrumar as garrafas de ar na caixa da carrinha.

‑ Pensei em irmos dar um passeio de barco. Parece que vai fazer bom tempo.

‑ Também posso aprender a velejar? ‑ perguntou Kevin entusiasmado.

‑ Claro. Podes ser o meu primeiro imediato.

‑ Também é preciso um certificado para isso?

‑ Não, só depende do capitão, e uma vez que o capitão sou eu, posso decidir agora mesmo.

‑ Assim sem mais nem menos?

‑ Assim sem mais nem menos.   


Kevin olhou para Theresa com os olhos esbugalhados, e ela quase podia ler os seus pensamentos.

- Primeiro aprendo a mergulhar, depois sou nomeado primeiro imediato. Espera até eu contar aos meus amigos.

 

Garrett acertara ao prever o bom tempo, e os três divertiram‑se bastante no mar. Garrett ensinou a Kevin as noções básicas da arte de velejar ‑ desde o como e quando velejar à bolina até ao saber com antecipação a direcção do vento com base nas nuvens. Como da primeira vez em que tinham saído juntos, comeram também sanduíches e saladas, mas desta vez tiveram a companhia de uma família de golfinhos que brincou à volta do barco enquanto eles comiam.

Quando chegaram às docas já era tarde, e depois de ter mostrado a Kevin como desaparelhar e arrumar o barco para o proteger de tempestades inesperadas, Garrett levou‑os de volta para o motel. Como estavam os três exaustos, Theresa e Garrett despediram‑se rapidamente, e tanto Theresa como Kevin estavam já a dormir quando Garrett chegou a casa.

No dia seguinte, Garrett levou‑os para o primeiro mergulho no mar. Depois do nervosismo inicial ter passado, eles começaram a divertir‑se e acabaram por gastar duas garrafas de ar cada durante o curso da tarde. Graças ao clima calmo da costa, a água estava límpida, com uma visibilidade excelente. Garrett tirou‑lhes algumas fotografias enquanto exploravam os destroços de um dos naufrágios em águas pouco profundas ao largo da costa da Carolina do Norte. Ele prometeu‑lhes mandá‑las revelar naquela semana e enviá‑las logo que pudesse.

Passaram o fim do dia de novo em casa de Garrett. Depois de Kevin ter adormecido, Garrett e Theresa sentaram‑se junto um do outro na varanda, afagados pelo ar quente e húmido.

Depois de falar sobre o mergulho daquela tarde, Theresa calou‑se durante um momento.

‑ Não consigo acreditar que vamos embora amanhã ‑ disse ela finalmente, com um sinal de tristeza na voz. ‑ Estes últimos dois dias passaram tão depressa.

‑ Isso é porque estivemos muito ocupados.     

Ela sorriu.

‑ Agora tens uma ideia de como é a minha vida em Boston.

‑ Sempre a correr de um lado para o outro?

Ela acenou com a cabeça.

‑ Exactamente. Kevin é a melhor coisa que alguma vez me aconteceu, mas às vezes cansa‑me. Tem de estar sempre a fazer qualquer coisa.

‑ Não o querias diferente, no entanto, pois não? Quer dizer, não querias ter um viciado em televisão ou um miúdo que ficasse no quarto a ouvir música todo o dia, pois não?

‑ Não.

‑ Então dá graças a Deus. Ele é um miúdo fantástico. Gostei muito de estar com ele.

‑ Fico tão contente. Eu sei que ele sente o mesmo. ‑ Ela fez uma pausa. ‑ Sabes, apesar de não termos passado muito tempo juntos desta vez, parece que te conheço muito melhor agora do que quando estive cá sozinha.

‑ Que queres dizer? Ainda sou a mesma pessoa que era antes.

Ela sorriu.


‑ És e não és. Da última vez que estive aqui, tiveste‑me toda só para ti, e ambos sabemos que é mais fácil envolvermo‑nos com alguém quando podemos passar muito tempo juntos. Desta vez, viste como seria na realidade com Kevin à nossa volta... e no entanto lidaste com tudo melhor do que eu poderia ter imaginado.

‑ Bem, obrigado, mas não foi assim tão difícil. Desde que tu estejas presente, não importa o que fazemos. Gosto simplesmente de estar contigo.

Ele abraçou‑a, puxando‑a para mais perto. Ela descansou a cabeça no ombro dele. No silêncio, ouviam o rebentar das ondas ao longo da praia.

‑ Esta noite ficas cá outra vez? ‑ perguntou ele.

‑ Estava a pensar seriamente nisso.

‑ Querias que voltasse a ser o cavalheiro exemplar outra vez?

‑ Talvez. Talvez não.         

Ele ergueu as sobrancelhas.

‑ Estás a tentar seduzir‑me?

‑ Estou a tentar ‑ confessou ela, e ele riu‑se. ‑ Sabes, Garrett, sinto‑me mesmo confortável contigo.

‑ Confortável? Parece que sou algum sofá.

‑ Não é isso que quero dizer. Quero dizer que me sinto bem comigo mesma quando estamos juntos.

‑ E devias. Sinto‑me razoavelmente bem em relação a ti.

‑ Razoavelmente bem? Só isso?           

Ele abanou a cabeça.

‑ Não, não é só isso. ‑ Ele pareceu quase envergonhado durante um segundo. ‑ Depois de te teres ido embora da última vez, o meu pai veio ver‑me e pregou‑me um sermão.

‑ O que é que ele disse?

‑ Disse que se tu me fazias feliz, não devia deixar‑te partir.

‑ E como é que tencionas fazer isso?

‑ Suponho que terei de te seduzir com o meu carisma.

‑ Isso já fizeste.       

Ele olhou‑a de relance, depois voltou‑se para o mar. Passado um momento disse baixinho.

‑ Então penso que terei de te dizer que eu te amo.

Eu amo‑te.   

Por cima deles, as estrelas cintilavam no céu escurecido. Nuvens distantes erguiam‑se no horizonte, reflectindo a luz de uma meia‑lua. Theresa ouviu as palavras girar na sua cabeça de novo.

Eu amo‑te,

Nenhuma ambivalência desta vez, nenhuma dúvida acerca do que ele dissera.

‑ Amas mesmo? ‑ murmurou ela por fim.

‑ Sim ‑ disse ele, voltando‑se para olhar para ela. ‑ Amo mesmo. ‑ Quando ele respondeu, ela viu algo nos seus olhos que não tinha visto antes.

‑ Oh, Garrett... ‑ começou ela insegura, quando Garrett a interrompeu abanando a cabeça.

‑ Theresa, não espero que tu sintas da mesma maneira. Queria apenas que soubesses o que eu sinto. ‑ Ele pensou durante um momento e deu por si a recordar‑se do sonho que tinha tido. Ao longo das últimas duas semanas, muita coisa aconteceu... Ele fez uma pausa.


Ela começou a dizer qualquer coisa, mas Garrett abanou a cabeça e levou um momento para continuar.

‑ Não tenho a certeza se compreendo tudo, mas sei o que sinto a teu respeito.

Ele passou levemente o dedo pela face e pelos lábios dela.

‑ Amo‑te, Theresa.

‑ Eu também te amo ‑ disse ela baixinho, experimentando as palavras e esperando que elas fossem verdadeiras.

Ficaram abraçados durante muito tempo, e em seguida foram para dentro e fizeram amor, sussurrando um para o outro até às primeiras horas da manhã. Mas desta vez, depois de Theresa ir para o quarto, Garrett dormiu profundamente enquanto Theresa permaneceu acordada, pensando no milagre que os tinha juntado.

 

O dia seguinte passou‑se maravilhosamente. Sempre que tinham uma oportunidade, Garrett e Theresa davam as mãos, trocando alguns beijos furtivos quando Kevin não estava a olhar.

Passaram o dia a praticar como tinham feito no anterior, e depois de terminarem a última aula de mergulho, Garrett ofereceu‑lhes os certificados temporários logo ali no barco.

‑ Agora podes mergulhar quando e onde quiseres ‑ disse ele a Kevin, que manuseava o certificado quase como se fosse de ouro. ‑ É só enviar este formulário e terás o teu certificado PADI dentro de duas semanas. Mas lembra‑te, nunca é seguro mergulhar sozinho. Vai sempre com outra pessoa.

Visto ser aquele o último dia que passavam em Wilmington, Theresa pagou a conta do motel e foram os três para casa de Garrett. Kevin queria passar as suas últimas horas na praia, e Theresa e Garrett sentaram‑se com ele junto à água. Durante um bocado Garrett e Kevin brincaram a lançar o disco, e percebendo que já estava a ficar tarde, Theresa foi para dentro e procurou alguma coisa para comer.

Fizeram um jantar rápido na varanda das traseiras - cachorros quentes na grelha ‑ antes de Garrett os levar para o aeroporto. Depois de Theresa e Kevin terem embarcado sem problemas, Garrett ficou alguns minutos a observar o avião até que este finalmente começou a afastar‑se do portão. Quando desapareceu de vista, ele dirigiu‑se para a carrinha e voltou para casa, olhando já para o relógio para ver quanto tempo faltava até serem horas de telefonar a Theresa naquela noite.

Nos seus lugares, Theresa e Kevin folheavam revistas. A meio da primeira etapa da viagem para casa, Kevin virou‑se subitamente para ela e perguntou:

‑ Mãe, gostas de Garrett?

‑ Sim, gosto. Mas mais importante, tu gostas dele?

‑ Acho que ele é fixe. Para um adulto, quer dizer.       

Theresa sorriu.

‑ Parece que vocês os dois se deram muito bem. Estás contente por termos vindo?

Ele acenou com a cabeça.

‑ Sim, estou contente. ‑ Fez uma pausa, irrequieto, mexendo na revista. ‑ Mãe, posso perguntar‑te uma coisa?

‑ O que quiseres.

‑ Vais casar com Garrett?

‑ Não sei. Porquê?

‑ Queres casar com ele?   


Ela demorou alguns instantes para responder.

‑ Não tenho a certeza. Mas sei que não quero casar com ele já. Ainda estamos na fase de nos conhecermos um ao outro.

‑ Mas podes querer casar com ele no futuro?

‑ Talvez.

Kevin parecia aliviado.

‑ Fico contente. Parecias mesmo feliz quando estavas com ele.

‑ Conseguiste perceber isso?

‑ Mãe, tenho doze anos. Sei mais do que pensas.

Ela estendeu o braço e tocou‑lhe na mão.

‑ Bem, que terias respondido se eu te tivesse dito que queria casar com ele agora?

Ele ficou calado durante um momento.

‑ Acho que quereria saber onde é que nós iríamos viver.

Surpreendida, Theresa não conseguia pensar numa boa resposta. Onde, de facto?

 

Quatro dias após Theresa ter deixado Wilmington, Garrett teve outro sonho, só que desta vez foi com Catherine. No sonho eles encontravam‑se num campo coberto de erva confinado por uma falésia à beira mar. Caminhavam juntos, de mãos dadas conversando, quando Garrett disse qualquer coisa que a fez rir. Subitamente ela desprendeu‑se dele. Olhando por cima do ombro e rindo‑se, ela desafiava Garrett a persegui‑la. Ele assim o fez, rindo‑se também, sentindo‑se quase como se sentira no dia em que tinham casado.

Observando‑a a correr, não podia deixar de reparar em como ela era bela. O seu cabelo ondulante reflectia a luz do sol alto e amarelo, as pernas eram esguias e moviam‑se ritmicamente, sem esforço. O seu sorriso, apesar de ela estar a correr, parecia leve e descontraído, como se ela estivesse ainda parada.

‑ Vem, Garrett. Consegues apanhar‑me? ‑ chamava ela.

O som do riso depois de ela falar flutuava no ar em seu redor, soando como música.

Ele estava lentamente a aproximar‑se dela quando reparou que ela se dirigia para a falésia. Na sua excitação e alegria, ela parecia não perceber para onde ia.

Mas isso é ridículo, pensou ele. Ela tem de saber.     

Garrett gritou‑lhe para parar, mas em vez disso ela começou a correr mais depressa.

Estava a aproximar‑se da beira da falésia.       

Sentindo um certo medo, ele viu que estava ainda demasiado longe para apanhá‑la.

Correu o mais depressa que pôde, gritando para que ela voltasse para trás. Ela parecia não ouvi‑lo. Ele sentiu a adrenalina a atravessar‑lhe rapidamente o corpo, alimentada por um medo paralisante. "Pára, Catherine!" gritou, os pulmões exaustos. "A falésia, não estás a ver para onde vais!" Quanto mais gritava, mais baixa a sua voz se tornava, até se transformar num murmúrio.

Catherine continuava a correr, ignorando o perigo à sua frente. A falésia estava apenas a alguns metros de distância.

Ele ganhava terreno.

Mas estava ainda demasiado longe.     

"Pára!" gritou ele de novo, embora desta vez soubesse que ela não o poderia ouvir. A sua voz diminuíra para o nada. O pânico que sentiu então foi maior do que qualquer coisa que alguma vez sentira na vida. Com todas as suas forças, ele obrigou as suas pernas a movimentarem‑se mais depressa, mas elas começaram a cansar‑se, tornando‑se mais pesadas com cada passo que dava.

Não vou conseguir, pensou, entrando em pânico.      

Então, tão subitamente quanto se havia afastado dele, ela parou. Voltando‑se para o encarar, ela parecia estar inconsciente de qualquer perigo.

Estava apenas a alguns centímetros do precipício, "Não te mexas", gritou ele, mas mais uma vez saiu‑lhe um murmúrio. Parou a alguns centímetros dela e estendeu a mão, respirando com dificuldade.

"Caminha na minha direcção", implorou ele. "Estás mesmo à beira do precipício."


Ela sorriu e olhou para trás. Vendo que estava tão próxima de cair, voltou‑se para ele.

"Pensavas que ias perder‑me?"

"Sim", disse ele baixinho, "e prometo que nunca mais deixarei que isso aconteça."

 

Garrett acordou e sentou‑se na cama, permanecendo depois acordado durante várias horas. Quando finalmente voltou a adormecer, fê‑lo, mas muito intermitentemente, e eram quase dez horas da manhã do dia seguinte quando conseguiu levantar‑se. Ainda exausto e sentindo‑se deprimido, não conseguia pensar em mais nada a não ser no sonho. Não sabendo o que fazer, telefonou para o pai, que foi ter com ele ao pequeno‑almoço no lugar habitual.

‑ Não sei porque me sinto desta maneira ‑ disse ele ao pai depois de alguns minutos de pequena conversa. ‑ Simplesmente não consigo compreender.

O pai não respondeu. Em vez disso olhou para o filho por cima da sua chávena de café, permanecendo calado enquanto ele continuava.

‑ Não é que ela tivesse feito alguma coisa para me desagradar - prosseguiu ele. ‑ Passámos apenas um fim‑de‑semana prolongado juntos, e gosto verdadeiramente dela. Conheci o filho dela, um miúdo bestial. Só que... não sei. Não sei se serei capaz de continuar com isto.

Garrett fez uma pausa. O único som vinha das mesas em redor.

‑ Continuar com o quê? ‑ perguntou finalmente Jeb Blake. Garrett mexeu o café distraidamente.

‑ Não sei se posso voltar a vê‑la.

O pai levantou uma sobrancelha mas não respondeu. Garrett prosseguiu.

‑ Talvez simplesmente não estivesse destinado a acontecer. Quer dizer, ela nem sequer aqui vive. Vive a mil quilómetros de distância, tem a sua própria vida, os seus próprios interesses. E eu aqui, a viver cá em baixo e a levar uma vida completamente diferente. Talvez ela ficasse melhor com outra pessoa, alguém que pudesse ver regularmente.

Ele pensou no que tinha dito, sabendo que não acreditava inteiramente em si próprio. Mesmo assim, não queria contar o sonho ao pai.

‑ Quer dizer, como é que podemos construir uma relação se não nos vemos com frequência?

Mais uma vez o pai não disse nada. Garrett continuou, como se falando consigo próprio.

‑ Se ela vivesse aqui e pudesse vê‑la todos os dias, penso que me sentiria de maneira diferente. Mas com ela longe..

Ele não terminou, tentando compreender os seus próprios pensamentos. Depois de algum tempo falou de novo.

‑ Simplesmente não consigo ver como é que poderemos fazer isto funcionar. já pensei muito no assunto, e não vejo como poderia ser possível. Não quero mudar‑me para Boston, e tenho a certeza de que ela não quer mudar‑se para aqui. Assim, onde é que isso nos levaria?

Garrett parou e esperou que o pai dissesse alguma coisa qualquer coisa, em resposta ao que dissera até àquele ponto. Mas durante algum tempo, ele não emitiu um único som. Finalmente suspirou e olhou para o lado.


‑ A mim parece‑me que estás a arranjar desculpas ‑ disse Jeb baixinho. ‑ Estás a tentar convencer‑te a ti próprio, e estás a usar‑me para te ouvires a falar.

‑ Não, pai, não estou nada. Estou apenas a tentar enxergar isto tudo.

‑ Com quem pensas que estás a falar, Garrett? ‑ Jeb Blake abanou a cabeça. ‑ às vezes juro que deves pensar que eu caí da carroça dos nabos e que passei a vida toda a vaguear sem aprender nada ao longo do caminho. Mas eu sei exactamente o que está a acontecer contigo. Habituaste‑te de tal maneira a viver sozinho que tens medo do que poderá acontecer se realmente encontrares alguém que te possa afastar desse estado.

‑ Não tenho medo ‑ protestou Garrett.

O pai interrompeu‑o abruptamente.

‑ Nem sequer consegues admitir isso para ti mesmo, pois não? - A decepção no seu tom de voz era inconfundível. ‑ Sabes, Garrett, quando a tua mãe morreu, eu também arranjei desculpas. Ao longo dos anos, convenci‑me de todo o tipo de coisas. E queres saber onde isso me levou? - Ele olhou fixamente para o filho. ‑ Estou velho e cansado, e pior do que tudo, estou sozinho. Se pudesse voltar atrás no tempo, mudaria muitas coisas em relação a mim próprio, e diabos me levem se vou deixar que tu faças as mesmas coisas que eu fiz. - Jeb fez uma pausa antes de continuar, o seu tom de voz enterneceu‑se. ‑ Eu fiz mal, Garrett. Fiz mal em não tentar encontrar outra pessoa. Fiz mal em sentir‑me culpado em relação à tua mãe. Fiz mal em continuar a viver a minha vida da maneira como a vivi, sempre a sofrer por dentro e interrogando‑me sobre o que ela teria pensado. Porque sabes o que mais? Penso que a tua mãe teria querido que eu encontrasse outra pessoa. A tua mãe teria querido que eu fosse feliz. E sabes porquê?

Garrett não respondeu.

‑ Porque ela amava‑me. E se tu pensas que estás a mostrar o teu amor por Catherine sofrendo da maneira como tens sofrido, então algures ao longo do caminho, eu devo ter falhado na maneira como te eduquei.

‑ Não falhou...

‑ Devo ter falhado. Porque quando olho para ti, vejo‑me a mim, e para ser honesto, preferia ver outra pessoa. Gostaria de ver alguém que tivesse aprendido que o correcto é seguir em frente e continuar a viver, que o correcto é encontrar alguém que nos faça feliz. Mas neste momento, é como se estivesse a olhar para o espelho e estivesse a ver‑me há vinte anos atrás.

 

Garrett passou o resto da tarde sozinho, passeando na praia, pensando sobre o que o pai lhe havia dito. Olhando para trás, sabia que não tinha sido honesto desde o início da conversa e não ficou surpreendido que o pai tivesse percebido isso. Porque quisera então falar com ele? Quisera ele que o pai o confrontasse da maneira como o fez?


à medida que a tarde passava, a sua depressão transformou‑se em confusão e depois numa espécie de entorpecimento. Quando telefonou a Theresa mais tarde naquela noite, os sentimentos de infidelidade que sentira como resultado do sonho tinham já acalmado o suficiente para que pudesse falar com ela. Ainda lá estavam, embora não tão fortes, e quando ela atendeu o telefone, ele sentiu‑os diminuir ainda mais. O som da voz dela lembrava‑lhe a maneira como ele se sentia quando estavam juntos.

‑ Ainda bem que telefonaste ‑ disse ela alegremente. - Pensei muito em ti hoje.

‑ Também pensei em ti ‑ disse ele. ‑ Gostava que estivesses aqui agora.

‑ Estás bem? Pareces um pouco em baixo.

‑ Estou bem... Apenas só, nada mais. Como foi o teu dia?

‑ Típico. Muito trabalho no jornal, muito trabalho em casa. Mas está tudo melhor agora que já ouvi a tua voz.

Garrett sorriu.

‑ Kevin está por aí?

‑ Está no quarto dele a ler um livro sobre mergulho. Disse‑me que quer ser instrutor de mergulho quando for crescido.

‑ Onde terá ele ido buscar essa ideia?

‑ Não faço a mínima ideia ‑ disse ela, em tom de brincadeira. ‑ E tu? Que fizeste hoje?

‑ Não muito, na verdade. Não fui até à loja ‑ tirei um dia de folga e andei a vaguear pelas praias.

‑ Sonhando comigo, espero?      

A ironia do comentário não lhe passou despercebida. Ele não respondeu directamente.

‑ Senti mesmo muito a tua falta hoje.

‑ Só me vim embora há poucos dias ‑ disse ela ternamente. ‑ Eu sei. E falando nisso, quando é que podemos voltar a ver‑nos?

Theresa estava sentada na mesa da sala de jantar e deu uma vista de olhos à sua agenda.

‑ Hum... que tal daqui a três semanas? Estava a pensar que talvez pudesses cá vir acima desta vez. O Kevin tem um estágio de futebol de uma semana, e poderemos passar algum tempo sozinhos.

‑ Em vez disso não gostarias de vir cá abaixo?

‑ Seria melhor se viesses tu cá, se não te importares. já tenho muitos poucos dias de férias, e acho que conseguiríamos dar a volta ao meu horário. E além disso, acho que já está na altura de saíres da Carolina do Norte, apenas para que possas ver o que o resto do país tem para oferecer.

Enquanto ela falava, ele deu por si a olhar para a fotografia de Catherine na mesa de cabeceira. Levou alguns segundos antes de responder.

‑ Claro... suponho que posso fazer isso.

‑ Não pareces muito convencido.

‑ Estou.

‑ Há mais alguma coisa, então?

‑ Não.            

Ela fez uma pausa, hesitante.

‑ Estás mesmo bem, Garrett?

 

Foram precisos mais alguns dias e vários telefonemas para Theresa para Garrett voltar a sentir‑se progressivamente melhor. Mais do que uma vez deu por si a telefonar‑lhe pela noite dentro, apenas para ouvir a voz dela.

‑ Olá ‑ dizia ele ‑, sou eu outra vez.

‑ Olá, Garrett, que aconteceu? ‑ perguntava ela, ensonada.


‑ Nada de especial. Queria apenas dizer boa noite antes de ires para a cama.

‑ Eu já estou na cama.

‑ Que horas são?

Ela olhou de relance para o relógio.

‑ Quase meia‑noite.

‑ Porque é que estás acordada? Devias estar a dormir ‑ brincava ele, e depois deixava‑a desligar para que ela pudesse ter o seu descanso.

às vezes, quando não conseguia dormir, pensava na semana que passara com Theresa, lembrando‑se de como era boa a sensação de lhe tocar na pele, dominado pelo desejo de a ter nos seus braços de novo.

Depois, entrando no seu quarto, via a fotografia de Catherine perto da cama. E naquele momento o sonho irrompia com uma clareza de cristal.

Ele sabia que ainda andava perturbado com o sonho. No passado teria escrito uma carta a Catherine, o que o ajudaria a colocar as coisas em perspectiva. Depois, levava o Happenstance para o mar pelo mesmo rumo que ele e Catherine haviam tomado da primeira vez após o restauro, selava a garrafa e atirava‑a para o mar.

Estranhamente, não foi capaz de o fazer desta vez. Quando se sentou para escrever, as palavras simplesmente não vinham. Por fim, começando a ficar frustrado, obrigou‑se, em vez disso, a recordar.

 

‑ Ora aí está uma grande surpresa ‑ disse Garrett apontando para o prato de Catherine. Ela amontoava no seu prato a salada de espinafre do buffet à frente deles.

Catherine encolheu os ombros não dando importância ao assunto.

‑ O que há de mal em querer salada?

‑ Não há nada de mal ‑ disse ele depressa. ‑ Só que esta é a terceira vez que comes salada de espinafre esta semana.

‑ Eu sei. Tem‑me apetecido muito comê‑la. Não sei porquê.

‑ Se continuares a comê‑la dessa maneira, ainda viras coelho.

Ela riu‑se e serviu‑se do molho para saladas.

‑ Se fosse esse o caso - disse, olhando para o prato dele ‑, se continuares a comer esse peixe e marisco todo, ainda viras tubarão.

‑ Eu sou um tubarão ‑ disse ele, erguendo as sobrancelhas.

‑ Podes ser um tubarão, mas se continuares a implicar, nunca terás a oportunidade de prová‑lo comigo.

Ele sorriu.

‑ Porque é que não o provo este fim‑de‑semana?

‑ Quando? Vais estar a trabalhar este fim‑de‑semana.

‑ Este fim‑de‑semana não. Acredites ou não, alterei a minha agenda de maneira a podermos passar algum tempo juntos. Não passamos um fim‑de‑semana inteiro sozinhos desde não sei quando.

‑ Que tinhas em mente?

‑ Não sei. Talvez passear de barco, talvez outra coisa qualquer. O que quiseres fazer.

Ela riu‑se.


‑ Bem, eu tinha grandes planos. A minha viagem a Paris para fazer umas compras, um ou dois rápidos safaris... mas acho que posso alterá‑los.          

‑ Está combinado então.

 

à medida que os dias passavam, a imagem do sonho começava a dissipar‑se. Sempre que Garrett falava com Theresa, sentia‑se um pouco mais renovado. Também falou com Kevin algumas vezes, e o entusiasmo deste pela presença de Garrett nas suas vidas ajudou‑o a recuperar o seu equilíbrio também. Apesar do calor e da humidade de Agosto parecerem fazer com que o tempo passasse mais devagar do que habitualmente, ele manteve‑se o mais ocupado possível, fazendo o seu melhor para não pensar nas complexidades da sua nova situação.

Duas semanas mais tarde ‑ alguns dias antes de partir para Boston ‑ Garrett estava a cozinhar quando o telefone tocou.

‑ Olá, estranho ‑ disse ela. ‑ Tens alguns minutos?

‑ Tenho sempre alguns minutos quando se trata de falar contigo.

‑ Estou a telefonar só para saber a que horas é que o teu voo chega. Da última vez que falámos ainda não tinhas a certeza.

‑ Espera um momento ‑ disse ele, vasculhando na gaveta da cozinha à procura do seu itinerário. ‑ Aqui está. Chego a Boston alguns minutos depois da uma.

‑ Isso calha mesmo bem. Tenho de ir deixar o Kevin umas horas antes, e vai dar tempo para arrumar o apartamento.

‑ A fazer limpezas por minha causa?

‑ Vais ter o tratamento completo. Até vou limpar o pó.

‑ Sinto‑me honrado.

‑ Devias. Só tu e os meus pais recebem esse tipo de atenção.       

‑ Achas que deva levar um par de luvas brancas para me certificar de que fizeste um bom trabalho?

‑ Se o fizeres, não sobreviverás para ver a noite.

Ele riu‑se e mudou de assunto.

‑ Estou ansioso por ver‑te de novo ‑ disse ele sinceramente. ‑ Estas últimas três semanas foram muito mais difíceis do que as duas primeiras.

‑ Eu sei. Pude perceber pela tua voz. Parecias mesmo em baixo durante alguns dias, e... bem, estava a começar a ficar preocupada contigo.

Ele perguntava a si mesmo se ela suspeitava da razão da sua melancolia. Concentrando‑se, ele continuou.

‑ Estive, mas já passou agora. já fiz as minhas malas.

‑ Espero que não tenhas ocupado muito espaço com coisas desnecessárias.

‑ Tal como?

‑ Como... sei lá... pijamas.

Ele riu‑se.

‑ Eu não tenho nenhum pijama.

‑ Ainda bem. Porque mesmo que tivesses, não irias precisar dele.

 


Três dias mais tarde, Garrett Blake chegou a Boston. Depois de o ir buscar ao aeroporto, Theresa mostrou‑lhe a cidade. Almoçaram na Faneuil Hall, viram os barcos a remo a deslizar sobre o rio Charles, e fizeram uma rápida excursão à Universidade de Harvard. Como de costume, passaram a maior parte do dia de mãos dadas, deleitando‑se na companhia um do outro.

Mais do que uma vez, Garrett deu por si a pensar na razão porque as últimas três semanas tinham sido tão difíceis para ele. Sabia que parte da sua ansiedade tivera origem no sonho, mas estar com Theresa fez os sentimentos inquietantes do sonho parecerem distantes e insubstanciais. Sempre que Theresa ria ou lhe apertava a mão, reafirmava os sentimentos que ele tivera quando ela esteve em Wilmington pela última vez, banindo os pensamentos negros que o atormentaram na sua ausência.

O dia começou a refrescar quando o Sol mergulhou por detrás das árvores. Garrett e Theresa pararam num restaurante mexicano para comprar comida para levar para casa. Sentado no chão da sala de estar sob o brilho da luz das velas, Garrett olhou em volta.

‑ Tens uma casa agradável ‑ disse ele, levando à boca alguns feijões com uma batata frita da tortilla. ‑ Por alguma razão, pensei que fosse mais pequena. É maior do que a minha casa.

‑ Só um pouco, mas obrigada. Serve para nós. É realmente muito conveniente para uma série de coisas.

‑ Como restaurantes?        

‑ Exactamente. Não estava a brincar quando disse que não gostava de cozinhar. Não sou propriamente uma Martha Stewart.

‑ Quem?

‑ Esquece ‑ disse ela. Do lado de fora do apartamento, ouvia‑se nitidamente o ruído do trânsito. Um carro guinchou na rua em baixo, uma buzina ressoou estridentemente, e de repente o ar encheu‑se de barulho à medida que outros carros se juntavam ao coro.

‑ É sempre assim tão silencioso? ‑ perguntou ele.     

Ela fez sinal com a cabeça em direcção à Janela.

‑ Sextas e sábados à noite são os piores. Normalmente não é tão mau. Mas habituas‑te se viveres aqui o tempo suficiente.

Os sons da vida na cidade continuavam. Ouvia‑se o ruído de uma sirene ao longe, aumentando constantemente de volume à medida que se aproximava.

‑ Queres pôr um pouco de música? ‑ perguntou Garrett.

‑ Claro. De que tipo de música é que gostas?

‑ Gosto dos dois tipos ‑ disse ele, fazendo uma pausa teatral. - Country e western.

Ela riu‑se.

‑ Não tenho nada desse género aqui.    

Ele abanou a cabeça, divertindo‑se com a sua própria piada.

- Estava a brincar, de qualquer maneira. É uma piada antiga. Não tem muita graça, mas há anos que tenho estado à espera de uma oportunidade para dizê‑la.

‑ Deves ter visto muitas coboiadas quando eras novo.          

Agora era a vez dele de se rir.

‑ Voltemos à minha pergunta original. de que tipo de música é que gostas? ‑ persistiu ela.

‑ Qualquer coisa que tiveres serve.

‑ Que tal um pouco de jazz?

‑ Tudo bem. 


Theresa levantou‑se e escolheu algo que achava que ele poderia gostar e introduziu‑o no leitor de CD. Passados uns instantes a música começou, ao mesmo tempo que o congestionamento de tráfego lá fora parecia estar a diluir‑se.

‑ Então o que é que achaste de Boston até agora? ‑ perguntou ela, voltando a sentar‑se no mesmo lugar.

‑ Gosto. Para uma cidade grande, não é assim tão má. Não parece tão impessoal como eu pensava que fosse, e é mais limpa, também. Creio que a imaginava diferente. Sabes, multidões, asfalto, prédios altos, nem uma árvore à vista, e assaltantes a cada esquina. Mas não é nada assim.

‑ É agradável, não é? Quer dizer, não é a praia, mas tem o seu próprio encanto. Especialmente se tiveres em conta o que a cidade tem para oferecer. Podes ir a um concerto sinfónico, ou aos museus, ou simplesmente passear pelos Commons. Há de tudo para todos aqui. Até têm um clube de vela.

‑ Percebo porque gostas de viver aqui ‑ disse ele, perguntando a si mesmo porque razão é que lhe parecia que ela estava a vender a casa.

‑ Gosto. E Kevin também gosta.  

Ele mudou de assunto:

‑ Disseste que ele estava num estágio de futebol?

Ela acenou com a cabeça.

‑ Sim. Está a tentar entrar para a equipa principal dos subdoze. Não sei se vai conseguir, mas ele acha que tem boas hipóteses, No ano passado, fez a última jornada com os de onze anos.

‑ Parece que ele é bom.

‑ E é ‑ disse ela acenando com a cabeça e afastando os pratos agora vazios para o lado e chegando‑se mais para perto dele. ‑ Mas chega de Kevin ‑ disse ela baixinho. ‑ Não temos de estar sempre a falar nele. Podemos falar noutras coisas, sabes.

‑ Que coisas?

Ela beijou‑o no pescoço.

‑ Como o que quero fazer contigo agora que te tenho todo só para mim.

‑ Tens a certeza de que queres apenas falar sobre o assunto?

‑ Tens razão ‑ murmurou ela. ‑ Quem quer falar numa altura destas?

 

No dia seguinte, Theresa levou Garrett para mais uma volta por Boston, passando a maior parte da manhã nos bairros italianos do North End, vagueando pelas ruas estreitas e sinuosas e parando para os ocasionais cannoli e cafés. Embora Garrett soubesse que ela escrevia crónicas para o jornal, não sabia exactamente o que é que mais o seu trabalho envolvia. Fez‑lhe perguntas sobre o assunto enquanto atravessavam calmamente a cidade.

‑ Não podes escrever a coluna em casa?

‑ Daqui a uns tempos, suponho que sim. Mas neste momento, não é possível.

‑ Porque não?


‑ Bem, para começar não está no meu contrato. Além disso tenho de fazer muito mais do que sentar‑me ao computador e escrever. Muitas vezes tenho de entrevistar pessoas, logo isso implica tempo, às vezes até uma pequena viagem. Mais, há toda a pesquisa que tenho de fazer, especialmente quando escrevo sobre temas médicos ou psicológicos, e quando estou no escritório, tenho acesso a muito mais fontes. E depois há ainda o facto de eu precisar de um lugar onde as pessoas me possam contactar. Muitas das coisas que escrevo são de interesse humano, e recebo telefonemas o dia inteiro. Se trabalhasse em casa, sei que muita gente telefonaria ao fim do dia quando estou com Kevin, e não estou disposta a renunciar ao meu tempo com ele.

‑ Recebes telefonemas em casa agora?

‑ De vez em quando. Mas o meu número não vem na lista, portanto não assim com tanta frequência.

‑ Recebes muitos telefonemas malucos?

Ela acenou que sim com a cabeça.

‑ Acho que todos os colunistas os recebem. Muitas pessoas telefonam para o jornal com histórias que querem ver publicadas. Recebo telefonemas sobre pessoas que estão na prisão e que não deveriam estar, recebo telefonemas sobre os serviços municipalizados da cidade e sobre o lixo que não está a ser recolhido a tempo. Recebo telefonemas sobre crimes de rua. Acho que já recebi telefonemas acerca de tudo e mais alguma coisa.

‑ Pensei que tinhas dito que escrevias sobre cuidados paternais.

‑ E escrevo.

‑ Então porque é que te telefonam? Porque não telefonam a outra pessoa qualquer?

Ela encolheu os ombros.

‑ Tenho a certeza que o fazem, mas mesmo assim isso não os impede de me telefonarem. Muitas pessoas começam o telefonema com "Mais ninguém quer ouvir‑me e você é a minha última esperança". ‑ Ela olhou para ele antes de continuar. ‑ Creio que elas pensam que eu poderei fazer alguma coisa em relação aos seus problemas.

‑ Porquê?     

‑ Bem, os colunistas são diferentes das outras pessoas que escrevem para os jornais. A maior parte das coisas publicadas nos jornais são impessoais: reportagens objectivas, números e factos, e coisas do género. Mas quando as pessoas lêem a minha coluna todos os dias, penso que elas julgam que me conhecem. Começam a ver‑me como uma espécie de amiga. E as pessoas recorrem aos seus amigos para as ajudarem quando precisam.

‑ Isso às vezes deve colocar‑te numa situação difícil.                         Ela encolheu os ombros.

‑ Sim, mas tento não pensar nisso. De qualquer modo, o meu trabalho também tem coisas boas: fornecer informação que as pessoas podem usar, estar a par da informação médica mais recente e explicá‑la numa linguagem mais acessível, ou até partilhar simplesmente histórias alegres para tornar o dia um pouco mais fácil.

Garrett parou junto a uma loja com uma banca de fruta fresca à venda no passeio. Tirou duas maçãs da caixa, dando uma a Theresa.

‑ Qual foi a coisa que escreveste na tua coluna que mais êxito teve? ‑ perguntou ele.

Theresa ficou de repente sem ar. A que mais êxito teve? Fácil. Encontrei uma mensagem numa garrafa um dia, e recebi cerca de duzentas cartas.

Ela forçou‑se a pensar noutra coisa qualquer.


‑ Oh... recebo muitas cartas quando escrevo sobre a educação de crianças deficientes - disse ela finalmente.

‑ Isso deve ser gratificante ‑ disse ele, pagando ao dono da loja.

‑ É.     

Antes de dar uma dentada na sua maçã, Garrett perguntou:

- Podias continuar a escrever a tua coluna mesmo se mudasses de jornal?

Ela meditou sobre a pergunta.

‑ Seria difícil, especialmente se quiser continuar a ter as minhas crónicas publicadas noutros jornais. Uma vez que sou tão nova e ainda estou a tentar impor o meu nome, trabalhar para o Boston Times ajuda muito. Porquê?

‑ Curiosidade apenas ‑ disse ele baixinho.

 

Na manhã seguinte foi trabalhar durante algumas horas, mas regressou a casa pouco depois da hora do almoço com o resto do dia livre. Passaram a tarde nos Commons de Boston, onde fizeram um piquenique. A refeição foi interrompida duas vezes por pessoas que reconheciam Theresa da sua fotografia no jornal, e Garrett percebeu que Theresa era efectivamente mais conhecida do que ele pensara.

‑ Não sabia que eras uma celebridade ‑ disse ele ironicamente depois de a segunda pessoa ter partido.

‑ Não sou realmente uma celebridade. É que a minha fotografia aparece por cima da coluna, por isso as pessoas reconhecem‑me.

‑ Este tipo de coisa acontece muitas vezes?

‑ Não muito. Talvez uma ou duas vezes por semana.

‑ Isso é muito ‑ disse ele, surpreendido.            

Ela abanou a cabeça.

‑ Não se pensares nas verdadeiras celebridades. Essas nem sequer podem ir a uma loja sem que alguém lhes tire uma fotografia. Eu tenho uma vida bastante normal.

‑ Mas mesmo assim deve ser estranho ter pessoas completamente desconhecidas a virem ter contigo.

‑ Na verdade até é um pouco lisonjeador. A maior parte das pessoas são muito simpáticas.

‑ De qualquer maneira, ainda bem que não sabia que eras tão famosa quando te conheci.

‑ Porquê?

‑ Poderia ter ficado demasiado intimidado para te convidar a ir passear de barco.

Ela estendeu o braço e pegou‑lhe na mão.

‑ Não consigo imaginar‑te a ficares intimidado com o quer que seja.

‑ Então não me conheces muito bem.

Ela ficou calada durante um momento.

‑ Terias mesmo ficado intimidado? ‑ perguntou ela com um ar de falsa timidez.

‑ Provavelmente.

‑ Porquê?

‑ Acho que ficaria a pensar o que é que uma pessoa como tu poderia ver em mim.

Ela inclinou‑se para beijá‑lo.

‑ Eu digo‑te o que vejo. Vejo o homem que amo, o homem que me faz feliz... alguém que quero continuar a ver durante muito tempo.


‑ Como é que sabes sempre exactamente o que dizer?

‑ Porque ‑ disse ela baixinho ‑ sei muito mais acerca de ti do que tu alguma vez poderias imaginar.

‑ Como por exemplo?       

Um sorriso lânguido demorou‑se nos seus lábios.

‑ Por exemplo, sei que queres que eu te beije outra vez.

‑ Quero?

‑ Absolutamente.    

E ela tinha razão.

 

Mais tarde no mesmo dia Garrett disse:

‑ Sabes, Theresa, não consigo encontrar um único defeito em ti.

Eles estavam os dois na banheira, rodeados de montanhas de espuma, Theresa encostada ao peito dele. Ele usava uma esponja para lhe lavar a pele enquanto falava.

‑ O que é que queres dizer com isso? ‑ perguntou ela curiosa, voltando a cabeça para olhar para ele.

‑ Exactamente o que disse. Não consigo encontrar um único defeito em ti. Quer dizer, és perfeita.

‑ Não sou perfeita, Garrett ‑ disse ela, satisfeita apesar de tudo.

‑ Mas és. És bonita, és simpática, fazes‑me rir, és inteligente, e és também uma óptima mãe. Acrescenta a isso tudo o facto de seres famosa, e não penso que haja alguém que possa igualar‑te.

Ela acariciou‑lhe o braço, recostando‑se contra ele.

‑ Acho que estás a ver‑me com lentes cor‑de‑rosa. Mas gosto...

‑ Estás a dizer que não estou a ser objectivo?

‑ Não ‑ mas até agora só viste o meu lado bom.

‑ Não sabia que tinhas outro lado ‑ disse ele, apertando‑lhe ambos os braços ao mesmo tempo. ‑ Os dois lados parecem bastante bons neste momento.

Ela riu‑se.

‑ Sabes o que quero dizer. Ainda não viste o meu lado negro.

‑ Tu não tens um lado negro.

‑ Claro que tenho. Toda a gente tem. Só que quando tu estás presente, ele gosta de se manter escondido.

‑ Então, como é que descreverias o teu lado negro?  

Ela pensou durante um momento.

‑ Bem, para começar, sou teimosa, e posso ser maldosa quando me zango. Tenho a tendência para disparatar e dizer a primeira coisa que me vem à cabeça, e acredita, não é bonito. Também tenho a tendência de dizer aos outros exactamente aquilo que penso, mesmo quando sei que seria melhor virar simplesmente as costas.

‑ Isso não parece muito mau.

‑ Ainda não estiveste do outro lado.

‑ Mesmo assim não parece tão mau.

‑ Bem... deixa‑me pôr a questão desta maneira. Quando confrontei o David pela primeira vez depois de conhecer o caso, chamei‑lhe alguns dos piores nomes que existem no dicionário.

‑ Ele merecia.

‑ Mas não tenho a certeza se merecia que lhe atirasse com um vaso.

‑ Tu fizeste isso?    

Ela acenou que sim com a cabeça.


‑ Devias ter visto a expressão na cara dele. Nunca me tinha visto daquela maneira antes.

‑ O que é que ele fez?

‑ Nada. Acho que ficou demasiado chocado para reagir. Especialmente quando comecei com os pratos. Limpei o armário quase todo naquela noite.

Ele sorriu com admiração.

‑ Não sabia que eras tão feroz.

‑ É de ter sido educada e crescido no midwest. Não te metas comigo, meu.

‑ Eu não.

‑ Fazes bem. A minha pontaria anda muito melhor hoje em dia.

‑ Não me esquecerei.        

Eles afundaram‑se um pouco mais na água quente. Garrett continuava a passar a esponja pelo corpo dela.

‑ Ainda assim penso que és perfeita ‑ disse ele baixinho. Ela fechou os olhos.

‑ Mesmo com o meu lado negro? - perguntou ela.

‑ Especialmente com o teu lado negro. É mais um elemento de excitação.

‑ Fico contente, porque penso que tu também és bastante perfeito.

 

O resto das férias passou a correr. De manhã Theresa ia trabalhar durante algumas horas, depois vinha para casa e passava as tardes e as noites com Garrett. à tardinha ou mandavam vir qualquer coisa ou iam a um dos muitos pequenos restaurantes perto do apartamento dela. às vezes alugavam um filme para ver mais tarde, mas normalmente preferiam passar o tempo sem outras distracções.

Na sexta‑feira à noite Kevin telefonou do estágio de futebol. Excitado, explicou que tinha entrado para a equipa principal. Theresa estava feliz por ele, embora isso significasse que teria de ir jogar mais vezes fora de Boston e que teriam de viajar quase todos os fins‑de‑semana. Depois, surpreendendo‑a, Kevin pediu para falar com Garrett. Garrett ouviu‑o relatar o que tinha acontecido naquela semana e congratulou‑o. Depois de desligar, Theresa abriu uma garrafa de vinho e os dois celebraram a boa sorte de Kevin até às primeiras horas da madrugada.

No domingo de manhã ‑ no dia em que ele se ia embora ‑ tomaram um pequeno‑almoço tardio com Deanna e Brian. Garrett percebeu imediatamente o que Theresa adorava em Deanna. Ela era não só encantadora como divertida, e Garrett deu por si a rir durante toda a refeição. Deanna fez‑lhe perguntas sobre mergulho e vela, enquanto Brian especulava dizendo que se ele tivesse o seu próprio negócio, nunca iria conseguir fazer nada, porque o golfe iria dominar completamente a sua vida.

Theresa ficou contente por eles aparentemente se darem tão bem. Desculpando‑se depois de terem comido, Deanna e Theresa dirigiram‑se as duas para a casa de banho para tagarelar.

‑ Então, o que é que achas? ‑ perguntou Theresa, expectante.

‑ Ele é fantástico ‑ admitiu Deanna. ‑ Ainda é mais bem parecido do que nas fotografias que trouxeste das férias.


‑ Eu sei. O meu coração dá um salto sempre que olho para ele.

Deanna ajeitava o cabelo, fazendo o seu melhor para lhe dar um pouco de volume.

‑ A tua semana acabou por correr tão bem como tinhas esperado?

‑ Até melhor.            

Deanna sorria radiante.

‑ Vê‑se pela maneira como ele te olhava que também gosta mesmo de ti. A maneira como vocês os dois se comportam juntos lembra‑me Brian e eu. Parecem formar um bom casal.

‑ Achas mesmo que sim?

‑ Não o diria se não achasse.      

Deanna tirou o bâton da sua carteira e começou a aplicá‑lo.

- Então, o que é que ele achou de Boston? ‑ disse ela de improviso.

Theresa tirou também para fora o seu bâton.

‑ Não é aquilo a que ele está acostumado, mas parece que gostou. Fomos a muitos sítios divertidos.

‑ Ele disse alguma coisa em particular?

‑ Não... porquê? ‑ Ela olhou para Deanna com curiosidade.

‑ Porque ‑ Deanna respondeu calmamente ‑ estava apenas a pensar se ele não teria dito nada que pudesse fazer‑te pensar que ele se mudaria para cá se tu lhe pedisses.

O comentário dela fez Theresa pensar em algo que estivera a evitar.

‑ Ainda não falámos nisso ‑ disse ela por fim.

‑ Planeiam fazê‑lo?           

- A distância entre nós é um problema, mas existe ainda uma outra coisa, não existe? - ouviu uma voz dentro dela sussurrar.

Não querendo pensar no assunto, ela abanou a cabeça.

‑ Não penso que seja a altura certa, pelo menos por enquanto. ‑ Ela fez uma pausa, concentrando‑se. ‑ Quer dizer, sei que teremos de falar nisso mais cedo ou mais tarde, mas acho que ainda não nos conhecemos há tempo suficiente para começar a tomar decisões relativamente ao futuro. Ainda nos estamos a conhecer.

Deanna olhou‑a com desconfiança maternal.

‑ Mas já o conheces há tempo suficiente para estares apaixonada por ele, não conheces?

‑ Sim ‑ admitiu Theresa.

‑ Então sabes que essa decisão vai ter de ser tomada, quer tu queiras encarar isso ou não?

Ela levou um momento para responder.

‑ Eu sei.        

Deanna pôs a mão no ombro de Theresa.

‑ E se no fim tiveres de escolher entre perdê‑lo ou deixar Boston?

Theresa meditou sobre a pergunta e as suas implicações.

‑ Não tenho a certeza ‑ disse ela baixinho, e olhou para Deanna, insegura.

‑ Posso dar‑te um pequeno conselho? ‑ perguntou Deanna. Theresa acenou que sim com a cabeça. Deanna conduziu‑a para fora da casa de banho pelo braço, inclinando‑se na direcção do ouvido de Theresa para que mais ninguém as pudesse ouvir.


‑ Seja o que for que decidas fazer, lembra‑te de que tens de ser capaz de seguir em frente na vida sem olhar para trás. Se tens a certeza de que Garrett te poderá dar o tipo de amor que precisas e que serás feliz, então tens de fazer tudo o que for necessário para ficares com ele. O amor verdadeiro é raro, e é a única coisa que dá à vida um verdadeiro sentido.

‑ Mas o mesmo não se aplica a ele? Não deveria ele estar disposto a fazer sacrifícios também?

‑ Claro.

‑ Então onde é que isso me deixa?

‑ Deixa‑te com o mesmo problema que tinhas antes, Theresa um problema no qual terás decididamente de pensar.

Durante os dois meses seguintes, a relação de longa distância começou a evoluir de uma maneira que nem Theresa ou Garrett esperavam, embora ambos devessem tê‑la previsto.

Adaptando‑se aos horários de cada um, conseguiram estar juntos mais três vezes, sempre por um fim‑de‑semana. Numa das vezes, Theresa foi de avião para Wilmington para que eles pudessem estar sozinhos, e passaram o tempo escondidos em casa de Garrett, à excepção de uma noite em que foram passear de barco. Garrett foi a Boston duas vezes, passando a maior parte do seu tempo na estrada por causa dos torneios de futebol de Kevin, embora não se tivesse importado. Eram os primeiros jogos de futebol a que assistia, e deu por si envolvido naquilo mais do que esperara.

‑ Como é possível que não estejas tão entusiasmada quanto eu? ‑ perguntava ele a Theresa durante um momento particularmente frenético no campo.

‑ Porque não esperas até teres visto algumas centenas de jogos, e então tenho a certeza que poderás responder à tua própria pergunta ‑ replicara ela em tom de brincadeira.

Quando estavam juntos durante esses fins‑de‑semana, era como se nada mais tivesse importância no mundo. Normalmente Kevin passava uma das noites em casa de um amigo para que eles pudessem estar sozinhos, pelo menos durante um pequeno período de tempo. Passavam horas a conversar e a rir, abraçados um ao outro, e a fazer amor, tentando compensar as semanas que passavam longe um do outro. No entanto nenhum dos dois abordou o assunto sobre o que iria acontecer à sua relação no futuro. Viviam momento a momento, sem que soubessem muito bem o que esperar um do outro. Não que não estivessem apaixonados. Disso, pelo menos, eles tinham a certeza.

Mas porque não se viam muitas vezes, a sua relação tinha mais altos e baixos do que haviam experimentado em situações anteriores. E porque tudo parecia correr bem quando estavam juntos, tudo parecia correr mal quando não estavam. Garrett, especialmente, tinha sérias dificuldades em suportar a distância entre eles. Normalmente os bons sentimentos que tinha quando estavam juntos mantinham‑se durante alguns dias, mas depois dava por si a ficar deprimido quando começava a pensar nas semanas que faltavam até poder vê‑la de novo.


Claro, ele queria que eles passassem mais tempo juntos do que aquilo que era possível. Agora que o Verão tinha passado, era mais fácil ele ir ter com ela do que ela deslocar‑se a Wilmington. Mesmo depois de a maior parte dos empregados ter partido, não havia muito que fazer na loja. Mas a agenda de Theresa era completamente diferente, se não por mais nada, por causa de Kevin. Ele estava novamente na escola, tinha torneios aos fins‑de‑semana, e era difícil para ela deixar Boston, mesmo que por poucos dias. Embora Garrett estivesse disposto a visitar Boston para estar com ela mais vezes, Theresa simplesmente não tinha tempo disponível. Mais do que uma vez ele sugerira outra viagem a Boston para vê‑la, mas por uma razão ou por outra, tal não fora possível.

Sim, era verdade que ele sabia que havia casais que enfrentavam situações de vida mais difíceis do que a deles. O seu pai contou‑lhe histórias de como ele e a mulher não se tinham falado durante meses seguidos. Ele tinha ido para a Coreia e passou dois anos com a Marinha, e quando havia tempos difíceis na pesca do camarão, costumava arranjar trabalho nos cargueiros que passavam a caminho da América do Sul. às vezes essas viagens duravam meses. A única coisa que eles tinham naqueles tempos eram as cartas, que eram no entanto pouco frequentes. Garrett e Theresa tinham uma situação menos difícil, mas mesmo assim isso não tornava as coisas fáceis.

Ele sabia que a distância entre eles era um problema, mas parecia que isso não ia mudar num futuro próximo. Na sua opinião, havia apenas duas soluções ‑ ele podia mudar‑se, ou ela podia mudar‑se. Por mais voltas que desse ao assunto ‑ e por mais que eles gostassem um do outro ‑ acabariam sempre por ter de escolher uma dessas duas soluções.

Lá no fundo, ele suspeitava que Theresa tinha os mesmos pensamentos, sendo essa a razão por que nenhum deles queria falar no assunto. Parecia mais fácil não introduzir a questão, uma vez que isso significaria entrarem num rumo que nenhum deles tinha a certeza de que queria seguir.

Um deles teria de alterar o seu modo de vida dramaticamente.

Mas qual?    

Ele tinha o seu próprio negócio em Wilmington, o tipo de vida que queria viver, a única vida que sabia viver. Boston era agradável de se visitar, mas não era a sua terra. Ele nunca sequer contemplara a hipótese de viver noutro sítio, E depois havia o pai. Estava a ficar velho, e apesar da aparência forte, a idade fazia sentir os seus efeitos e Garrett era tudo o que ele tinha.

Por outro lado, Theresa estava muito ligada a Boston. Embora os pais dela vivessem noutro lado, Kevin estava numa escola de que gostava, e ela tinha uma carreira prometedora num jornal importante e uma rede de amigos que teria de deixar. Tinha trabalhado muito para chegar onde chegara, e se deixasse Boston, teria provavelmente de desistir da sua carreira. Seria ela capaz de fazê‑lo sem ficar ressentida com ele pelo que ele a obrigara a fazer?

Garrett não queria pensar no assunto. Em vez disso concentrava‑se no facto de que amava Theresa, agarrando‑se à convicção de que se eles estavam destinados um para o outro, então encontrariam uma maneira de resolver o problema.


Lá no fundo, porém, sabia que não ia ser assim tão fácil, e não apenas por causa da distância entre eles. Depois de ter regressado da sua segunda viagem a Boston, mandou ampliar e emoldurar uma fotografia de Theresa. Colocou‑a na mesa de cabeceira ao lado da fotografia de Catherine, mas apesar dos seus sentimentos por Theresa, a fotografia dela parecia deslocada no seu quarto. Alguns dias mais tarde ele mudou‑a para o outro lado do quarto, mas isso não ajudou. Onde quer que a colocasse, parecia‑lhe que os olhos de Catherine a seguiam. Isto é ridículo, disse para consigo depois de a ter mudado mais uma vez. No entanto deu por si finalmente a enfiar a fotografia de Theresa na gaveta e a pegar em vez disso na de Catherine. Suspirando, sentou‑se na cama e segurou‑a à sua frente.

‑ Nós não tínhamos estes problemas ‑ murmurou ele enquanto passava o dedo pela imagem dela. ‑ Connosco, parecia sempre tudo tão fácil, não era?

Quando ele percebeu que a fotografia não respondia, amaldiçoou a sua estupidez e buscou de novo a fotografia de Theresa.

Olhando para ambas, mesmo ele percebia porque estava a ter tantos problemas com tudo aquilo. Amava Theresa mais do que alguma vez pensara que poderia amar... mas ainda amava Catherine...

Era possível amar as duas ao mesmo tempo?

 

‑ Estou ansioso por tornar a ver‑te ‑ disse Garrett. Estavam em meados de Novembro, duas semanas antes do Dia de Acção de Graças. Theresa e Kevin iam de avião visitar os pais dela durante as férias, e Theresa tinha combinado ir a Wilmington no fim‑de‑semana antes para passar algum tempo com Garrett. Passara‑se um mês desde a última vez que tinham estado juntos.

‑ Também estou ansiosa ‑ disse ela. ‑ E prometeste que finalmente iria conhecer o teu pai, certo?

‑ Ele está a pensar em fazer um jantar de Acção de Graças antecipado para nós, em casa dele. Está sempre a perguntar‑me o que é que tu gostas de comer? Penso que ele quer causar uma boa impressão.

‑ Diz‑lhe para não se preocupar. Qualquer coisa que ele faça será óptima.

‑ É isso que lhe estou sempre a dizer. Mas consigo perceber que ele está nervoso.

‑ Porquê?

‑ Porque serás a primeira pessoa a ser convidada lá para casa. Durante anos, tem sido apenas nós os dois.

‑ Estou a quebrar uma tradição de família?

‑ Não. Gosto de pensar que estamos a começar uma nova. Além disso, foi ele que se ofereceu, lembras‑te?

‑ Achas que ele vai gostar de mim?

‑ Eu sei que vai.

 

Quando soube que Theresa vinha, Jeb Blake fez algumas coisas que nunca tinha feito antes. Em primeiro lugar, contratou uma pessoa para ir limpar a pequena casa onde vivia, um trabalho que acabou por durar quase dois dias porque ele insistiu que a casa ficasse impecavelmente limpa. Também comprou uma camisa nova e uma gravata. Emergindo do quarto com a sua nova roupa, não pôde senão reparar na surpresa nos olhos de Garrett.

‑ Que tal? ‑ perguntou ele.

‑ Está muito bem, mas porque está a usar uma gravata?

‑ Não é para ti ‑ é para o jantar deste fim‑de‑semana. Garrett continuou a fitar o pai com um sorriso irónico no rosto.

- Acho que nunca o vi de gravata antes.

‑ já as usei antes. Tu é que não reparaste.

‑ Não tem de usar gravata só porque a Theresa vem cá.


‑ Eu sei isso ‑ respondeu ele concisamente. ‑ Apeteceu‑me simplesmente usar uma gravata para o jantar deste ano.

‑ Está nervoso por causa do encontro, não está?

‑ Não.

‑ Pai ‑ não tem de ser alguém que não é. Tenho a certeza de que Theresa gostaria de si não importa de que maneira estivesse vestido.

‑ Isso não significa que não possa apresentar‑me condignamente perante a tua amiga, pois não?

‑ Não.

‑ Então está esclarecido o assunto, não está? Não vim aqui para pedir os teus conselhos, vim aqui para ver se estava bem.

‑ Estás muito bem.

‑ óptimo.       

Voltou‑se e regressou ao quarto, já a pôr a camisa para fora e a desprender a gravata. Garrett viu‑o desaparecer, e um momento mais tarde ouviu‑o chamá‑lo.

‑ O que foi agora? ‑ perguntou Garrett.

O pai espreitou com a cabeça à esquina.

‑ Também vais usar uma gravata, não vais?

‑ Não planeava fazê‑lo.

‑ Então altera os teus planos. Não quero que Theresa descubra que eduquei alguém que não sabe vestir‑se quando recebe uma companhia.

 

No dia antes da chegada dela, Garrett ajudou o pai a terminar os seus preparativos. Garrett cortou a relva enquanto Jeb tirou para fora a louça de porcelana do casamento que ele raramente usava, e lavou os pratos à mão. Depois de procurar talheres que combinassem uns com os outros ‑ mais fácil de dizer do que fazer ‑ Jeb encontrou uma toalha de mesa na despensa que decerto daria um toque especial ao jantar. Atirou‑a para a máquina de lavar no momento em que Garrett entrou depois de acabar no quintal. Garrett caminhou até ao armário e tirou um copo da prateleira.

‑ A que horas é que ela chega amanhã? ‑ perguntou Jeb do outro lado da casa.

Garrett encheu o copo de água e respondeu por cima do ombro.

‑ O avião chega por volta das dez horas. Devemos estar aqui às onze ou assim.

‑ A que horas é que pensas que ela quererá comer?

‑ Não sei.      

Jeb entrou na cozinha.

‑ Não lhe perguntaste?

‑ Não.

‑ Então como é que vou saber em que altura porei o peru no forno?

Garrett bebeu um gole de água.

‑ Faça as contas para comermos a meio da tarde. Qualquer hora serve, tenho a certeza.

‑ Achas que devias telefonar e perguntar‑lhe?

‑ Não penso que seja realmente necessário. Não é assim tão importante.

‑ Talvez não para ti. Mas é a primeira vez que vou estar com ela, e se vocês os dois acabarem por se casar, não quero ser objecto de quaisquer piadas mais tarde.

Garrett ergueu as sobrancelhas.


‑ Quem disse que nos vamos casar?

‑ Ninguém.

‑ Então porque falou no assunto?

‑ Porque ‑ disse ele rapidamente ‑ achei que um de nós devia, e não tinha a certeza que tu alguma vez o fizesses.

Garrett fitou o pai.

‑ Então, pensa que me devo casar com ela?   

Jeb piscou o olho ao responder.

‑ Não interessa o que eu penso, é o que tu pensas que é importante, não é?

Mais tarde nessa noite, Garrett abriu a porta da frente no preciso momento em que o telefone começou a tocar. Depois de correr para ele, pegou‑lhe e ouviu a voz de que estava à espera.

‑ Garrett? ‑ perguntou Theresa. ‑ Parece que estás sem fôlego.

Ele sorriu.

‑ Oh, olá, Theresa. Acabei de entrar. Estive em casa do meu pai o dia inteiro a preparar as coisas. Ele está mesmo ansioso por te conhecer.

Seguiu‑se uma pausa desconfortável.

‑ Em relação a amanhã... ‑ disse ela por fim.

Ele sentiu um aperto na garganta.

‑ O que é que tem amanhã?

Ela demorou‑se a responder.

‑ Lamento muito, Garrett... Não sei como te dizer isto, mas afinal não vou poder ir a Wilmington.

‑ Aconteceu alguma coisa?

‑ Não, está tudo bem. É que surgiu uma coisa de última hora. Uma grande conferência a que tenho de ir.

‑ Que tipo de conferência?

‑ É para o meu trabalho. ‑ Ela fez de novo uma pausa. ‑ Sei que parece horrível, mas não iria se não fosse mesmo muito importante.

Ele fechou os olhos.

‑ Para que é?

‑ É para os grandes directores de jornais e tipos dos media, têm um encontro em Dallas este fim‑de‑semana. Deanna pensa que seria uma boa ideia se eu conhecesse alguns deles.

‑ Acabaste mesmo agora de saber isso?

‑ Não... quer dizer, sim. Bem, eu sabia que ia haver um encontro, mas não era para eu ir. Normalmente os colunistas não são convidados, mas Deanna puxou uns cordelinhos e arranjou maneira de eu ir com ela. ‑ Ela hesitou. ‑ Lamento mesmo muito, Garrett, mas como disse, seria uma oportunidade maravilhosa de me dar a conhecer, e é uma oportunidade única na vida.

Ele ficou calado durante um momento. Depois disse simplesmente:

‑ Eu compreendo.

‑ Estás zangado comigo, não estás?

‑ Não.

‑ Tens a certeza?

‑ Tenho.        

Ela sabia pelo seu tom de voz que ele não estava a dizer a verdade, mas achou que nada havia que pudesse dizer que o fizesse sentir‑se melhor.

‑ Pedes desculpa ao teu pai por mim?


‑ Sim, eu digo‑lhe.

‑ Posso telefonar‑te este fim‑de‑semana?

‑ Se quiseres.

No dia seguinte jantou com o pai, que fez o possível para minimizar o assunto.

‑ Se é como ela disse ‑ explicou o pai ‑, tinha uma boa razão. Ela não está propriamente numa situação de pôr o emprego em segundo plano. Tem um filho para criar, e tem de fazer o seu melhor para cuidar do sustento dele. Além disso, é apenas um fim‑de‑semana, não é o fim do mundo.

Garrett acenava que sim com a cabeça, escutando o pai mas ainda aborrecido com tudo aquilo. Jeb continuou:

‑ Tenho a certeza de que vocês os dois vão conseguir fazer as coisas funcionar. Na verdade, ela vai provavelmente fazer alguma coisa verdadeiramente especial da próxima vez que estiverem juntos.

Garrett nada disse. Jeb deu algumas dentadas antes de falar de novo.

‑ Tens de compreender, Garrett. ela tem responsabilidades, tal como tu, e às vezes essas responsabilidades têm prioridade. Tenho a certeza de que se alguma coisa acontecesse na loja que tivesses de resolver, terias feito a mesma coisa.

Garrett recostou‑se na cadeira, afastando o seu prato só meio comido para o lado.

‑ Eu compreendo tudo isso, pai. Só que já faz um mês que não a vejo, e estava mesmo ansioso pela visita dela.

‑ Pensas que ela também não te queria ver?

‑ Ela disse que queria.      

Jeb debruçou‑se sobre a mesa e empurrou o prato de Garrett para a frente dele de novo.

‑ Come o teu jantar ‑ disse. ‑ Passei o dia inteiro a cozinhar, e não vais agora desperdiçá‑lo.

Garrett olhou para o seu prato. Apesar de já não estar com fome, pegou no garfo e comeu um bocado.

‑ Sabes ‑ disse o pai enquanto debicava a sua própria comida ‑, esta não é a última vez que isto vai acontecer, daí que não devias ficar tão em baixo por causa disto agora.

‑ Que quer dizer?

‑ Quero dizer que enquanto os dois continuarem a viver a mil quilómetros de distância um do outro, coisas como estas vão acontecer, e não se verão com tanta frequência como qualquer um de vós desejaria.

‑ Pensa que não sei isso?

‑ Tenho a certeza de que sim. Mas não sei se algum dos dois tem a coragem para fazer algo acerca do assunto.

Garrett olhou para o pai, pensando, Bolas, pai, diz aquilo que sentes realmente. Deita tudo para fora.

‑ Quando era novo ‑ continuou Jeb, não se apercebendo da expressão amarga do filho - as coisas eram muito mais simples. Se um homem amasse uma mulher, ele pedia‑a em casamento, e depois eles viviam juntos. Era tão simples quanto isso. Mas vocês os dois, é como se não soubessem o que fazer.

‑ Já lhe disse antes, não é assim tão fácil...


‑ Claro que é. Se a amas, então descobre uma maneira de estar com ela. É tão simples quanto isso. Assim, se surgisse alguma coisa e vocês não pudessem ver‑se durante um fim‑de‑semana, não agiriam como se a vida tivesse terminado. - Jeb fez uma pausa antes de continuar. ‑ O que vocês os dois estão a tentar fazer simplesmente não é natural, e a longo prazo, não vai funcionar. Sabes isso, não sabes?

‑ Sei ‑ disse Garrett simplesmente, desejando que o pai parasse de falar no assunto.

O pai levantou as sobrancelhas, aguardando. Como Garrett não acrescentou mais nada, Jeb falou de novo.

‑ "Sei"? É tudo o que tens a dizer?         

Ele encolheu os ombros.

‑ Que mais posso dizer?

‑ Podes dizer que da próxima vez que estiverem juntos, os dois vão resolver o assunto. É isso que podes dizer.

‑ Está bem ‑ vamos tentar resolver o assunto.

Jeb pousou o garfo e olhou severamente para o filho.

‑ Eu não disse tentar, Garrett, disse que os dois vão resolver o assunto.

‑ Porque insiste tanto nisso?

‑ Porque ‑ disse ele ‑ se vocês os dois não resolverem o assunto, eu e tu vamos continuar a comer sozinhos durante os próximos vinte anos.

 

No dia seguinte, Garrett saiu com o Happenstance logo de manhã e permaneceu no mar até depois do Sol posto. Embora Theresa lhe tivesse deixado uma mensagem com as informações do seu hotel em Dallas, ele não telefonara na noite anterior, dizendo a si mesmo que era tarde de mais e que ela estaria já a dormir. Era uma mentira e ele sabia‑o, mas simplesmente não lhe apetecia falar com ela ainda.

A verdade é que não lhe apetecia falar com ninguém. Estava ainda aborrecido com o que ela tinha feito, e o melhor lugar para ele pensar no assunto era o oceano, onde ninguém o podia importunar. Durante a maior parte da manhã ficou a interrogar‑se sobre se ela tinha ideia de como aquilo tudo o aborrecia. O mais provável era ela não se ter apercebido ‑ convenceu‑se ‑ caso contrário não o teria feito.

Isto é, se ela gostasse dele.         

Porém, quando o Sol atingiu o seu ponto mais alto no céu, já a sua ira começara a dissipar‑se. Quando pensou com mais clareza sobre a situação, tomou consciência de que o seu pai tivera razão ‑ como de costume. A razão pela qual ela não tinha vindo, não tinha tanto a ver com ele como com as diferenças nas suas vidas. Ela tinha de facto responsabilidades que não podia ignorar, e enquanto eles continuassem a viver vidas separadas, coisas daquelas iriam continuar a surgir.

Apesar de não ficar satisfeito com isso, perguntava a si mesmo se todas as relações tinham momentos como aquele. A verdade é que ele não sabia. A outra única verdadeira relação que tivera fora com Catherine, e não era fácil comparar as duas. Para começar, ele e Catherine eram casados e viviam debaixo do mesmo tecto. Mais até, conheciam‑se desde a infância, e porque eram mais jovens, não tinham tido as mesmas responsabilidades que tanto Garrett como Theresa tinham agora. Acabados de sair da universidade, não eram donos de uma casa, e obviamente não havia qualquer criança para cuidar. Não, o que eles tinham era completamente diferente daquilo que ele e Theresa tinham agora, e não era justo tentar ligar as duas coisas.


Mesmo assim havia algo que ele não podia ignorar, algo que o apoquentou a tarde inteira. Sim, ele sabia que havia diferenças ‑ sim, ele sabia que não era justo compará‑las ‑ mas no fim, o que sobressaía para ele era nunca ter questionado o facto de Catherine e ele serem uma equipa. Nem uma única vez questionara o futuro com ela, nem uma única vez lhe passara pela cabeça que qualquer dos dois não fosse capaz de sacrificar tudo um pelo outro. Mesmo quando tinham as suas brigas ‑ onde viver, começar a loja ou não, ou até o que fazer aos sábados à noite ‑ nunca nenhum deles punha em causa a relação entre ambos. Havia algo a "longo prazo" na maneira como eles interagiam, algo que o fazia lembrar‑se de que eles estariam sempre juntos.

Theresa e ele, por outro lado, ainda não tinham isso.            

Quando o Sol se pôs, já ele percebera que não era justo pensar daquela maneira. Ele e Theresa conheciam‑se há muito pouco tempo ‑ não era realista esperá‑lo tão cedo. Com o tempo ‑ e as circunstâncias certas ‑ eles tornar‑se‑iam uma equipa também.

Não seria assim?   

Abanando a cabeça, deu conta de que não estava completamente certo disso.

Não estava certo em relação a um monte de coisas. Mas uma coisa sabia, ele nunca analisara a sua relação com Catherine da maneira como estava a fazer com Theresa, e isso também não era justo. Além disso, a análise não iria ajudá‑lo neste caso. Toda a análise do mundo não alterava o facto de que eles não se viam tanto quanto gostariam ‑ ou precisavam ‑ de se ver.

Não, do que eles precisavam agora era de acção.     

Garrett telefonou a Theresa logo que chegou a casa naquela noite.

‑ Olá ‑ respondeu ela ensonada.

Ele falou baixinho para o telefone. ‑ Ei, sou eu.

‑ Garrett?

‑ Desculpa ter‑te acordado, mas deixaste duas mensagens no meu atendedor de chamadas.

‑ Fico contente por teres telefonado. Não tinha a certeza se irias fazê‑lo.

‑ Durante um tempo, não quis.

‑ Ainda estás zangado comigo?

‑ Não ‑ disse ele baixinho. ‑ Triste, talvez, mas não zangado.

‑ Por não estar aí este fim‑de‑semana?

‑ Não. Por não estares aqui a maior parte dos fins‑de‑semana.

 

Naquela noite ele voltou a sonhar. No seu sonho Theresa e ele estavam em Boston, caminhando ao longo de uma das ruas movimentadas da cidade, cheia da sua habitual colecção de indivíduos ‑ homens e mulheres, velhos, novos, alguns de fato, outros vestidos com roupas largas típicas da juventude de hoje. Durante um tempo, estiveram a ver as montras, tal como tinham feito numa das suas visitas anteriores. Estava um belo dia, sem uma nuvem no céu, e Garrett estava a gostar de passar o dia com ela.


Theresa parou junto à montra de uma pequena loja de artesanato e perguntou se Garrett queria entrar. Abanando a cabeça, ele disse, "Entra tu. Eu espero por ti aqui." Theresa perguntou‑lhe se ele tinha a certeza e depois entrou na loja. Garrett estava lá fora junto à porta, descontraindo‑se à sombra dos prédios altos, quando viu algo de familiar pelo canto do olho. Era uma mulher, caminhando ao longo do passeio a uma curta distância dele com o cabelo louro a roçar‑lhe os ombros.

Ele pestanejou, desviou o olhar por um instante, e voltou a olhar rapidamente. Algo na maneira como ela andava chamou‑lhe a atenção, e ficou a observá‑la a afastar‑se lentamente. Por fim a mulher parou e voltou a cabeça, como se estivesse a lembrar‑se de qualquer coisa. Garrett deteve a respiração.

Catherine.    

Não podia ser.        

Ele abanou a cabeça. àquela distância não podia dizer se estava errado ou não.

Ela começou a afastar‑se de novo mesmo quando Garrett a chamou.

‑ Catherine... és tu?            

Ela parecia não o ouvir com o barulho da rua. Garrett deitou um olhar por cima do ombro e viu Theresa na loja, examinando os artigos. Quando olhou de novo para o fim da rua, viu Catherine ‑ ou quem quer que ela fosse ‑ a dobrar a esquina.

Começou a encaminhar‑se na direcção dela, andando depressa, e depois começou a correr. Os passeios tornavam‑se cada vez mais cheios a cada segundo que passava, como se uma estação de metro tivesse subitamente aberto as suas portas, e ele teve de esquivar‑se por entre toda aquela gente antes de alcançar a esquina.

Virou para onde ela tinha virado.            

Do outro lado da esquina, a rua tornava‑se progressivamente ‑ ameaçadoramente ‑ mais escura. Começou novamente a andar mais depressa. Apesar de não ter estado a chover, ele sentia os pés chapinharem nas poças. Parou por um momento para ganhar fôlego à medida que o coração batia com força no peito. Enquanto descansava, começou a adensar‑se um nevoeiro, quase como uma onda, e passado pouco tempo já não conseguia ver para além de alguns metros à sua frente.

"Catherine, estás aí?" gritou ele. "Onde é que estás?"                       Ele ouviu risos ao longe, embora não pudesse perceber ao certo de onde eles vinham.

Começou a andar de novo, devagar. Ouviu novamente os risos, infantis, alegres. Parou de repente.

"Onde é que estás?"          

Silêncio.       

Ele olhou de um lado para o outro.        

Nada.

O nevoeiro tornava‑se cada vez mais denso quando uma chuva leve começou a cair. Começou a andar de novo, não sabendo ao certo para onde ia.

Algo se moveu bruscamente no nevoeiro, e ele caminhou depressa na sua direcção.

Ela estava a afastar‑se dele, apenas alguns metros à sua frente.


A chuva começou a cair com mais força, e subitamente tudo parecia mover‑se muito lentamente. Ele começou a correr... devagar... devagar... conseguia vê‑la mesmo em frente... o nevoeiro tornando‑se mais denso a cada segundo... a chuva a cair fortemente... um vislumbre do seu cabelo...

E depois ela desapareceu. Ele parou de novo. A chuva e o nevoeiro tornavam impossível ver qualquer coisa.

"Onde estás?" gritou ele de novo.                      

Nada.            

"Onde estás?" gritou, mais alto ainda.

"Estou aqui", disse uma voz do meio da chuva e do nevoeiro. Ele afastou a chuva do rosto. "Catherine?... És mesmo tu?"       

"Sou eu, Garrett."    

Mas não era a voz dela.    

Theresa emergiu do nevoeiro. "Estou aqui."    

Garrett acordou e sentou‑se na cama, transpirando profusamente. Limpando a cara com o lençol, permaneceu acordado por muito tempo.

Mais tarde nesse dia, Garrett encontrou‑se com o pai.

‑ Penso que quero casar com ela, pai.  

Estavam a pescar os dois à beira do pontão com uma dúzia de outras pessoas, a maior parte das quais parecia absorta. Jeb levantou o olhar surpreendido.

‑ Há dois dias parecia que não querias voltar a vê‑la.

‑ Pensei muito desde então.

‑ Parece que sim ‑ disse Jeb baixinho. Ele recolheu a sua linha, verificou a isca e depois lançou‑a de novo à água. Embora duvidasse de que iria apanhar alguma coisa que quisesse guardar, pescar era, na sua opinião, um dos maiores prazeres da vida.

‑ Amas a Theresa? ‑ perguntou Jeb.      

Garrett olhou para ele, surpreendido.

‑ Claro que amo. Já lhe disse isso algumas vezes.

Jeb abanou a cabeça.

‑ Não... não disseste ‑ afirmou ele sinceramente. ‑ já falámos muito nela ‑ disseste‑me que ela te fazia feliz, que sentes que a conheces, e que não a queres perder mas nunca me disseste que a amavas.

‑ É a mesma coisa.

‑ Tens a certeza?

 

Depois de ter ido para casa, a conversa que tivera com o pai não parava de se repetir na sua mente.

‑ Tens a certeza?

‑ Claro que tenho ‑ dissera ele logo a seguir. ‑ E mesmo que não seja a mesma coisa, eu amo‑a de verdade.

Jeb olhou para o filho durante um momento antes de finalmente desviar o olhar.

‑ Queres casar com ela?

‑ Quero.

‑ Porquê?

‑ Porque a amo, claro. Isso não chega?

‑ Talvez.       

Garrett recolheu a sua linha, frustrado.

‑ Não foi o pai o primeiro a achar que nos devíamos casar?

‑ Fui.

‑ Então porque me está a questionar agora?


‑ Porque quero certificar‑me de que estás a fazê‑lo pelas razões certas. Há dois dias, nem sequer tinhas a certeza se querias voltar a vê‑la. Agora estás pronto para casar. Parece‑me uma grande reviravolta, e quero ter a certeza de que é por causa daquilo que sentes por Theresa ‑ e que não tem nada a ver com Catherine.

A introdução do nome dela doeu‑lhe um pouco.

‑ Catherine não tem nada a ver com isto ‑ disse Garrett rapidamente. Ele abanou a cabeça e suspirou profundamente. ‑ Sabe, pai, às vezes não o compreendo. Todo este tempo esteve sempre a empurrar‑me para isto. Está sempre a dizer‑me que tenho de esquecer o passado, de que tinha de encontrar alguém novo. E agora que encontrei, parece que está a fazer com que desista.

Jeb pôs a sua mão livre no ombro de Garrett,

‑ Não estou a tentar fazer que desistas de nada, Garrett. Fico contente por teres encontrado Theresa, fico contente por saber que a amas, e sim, é verdade que espero que venhas a casar‑te com ela. Eu apenas disse que se te vais casar, então é melhor que o faças pelas razões certas. O casamento é entre duas pessoas, não três. E não seria justo para ela se te casasses sem esclarecer esta questão.

Ele demorou algum tempo a responder.

‑ Pai, quero casar‑me porque a amo. Quero passar a minha vida com ela.

O pai manteve‑se em silêncio durante muito tempo, olhando para o mar. Depois disse algo que fez Garrett desviar o olhar.

‑ Então, por outras palavras, estás a dizer‑me que já te esqueceste completamente de Catherine?

Embora sentisse o peso expectante do olhar do pai, Garrett não sabia a resposta.

 

- Estás cansada? ‑ perguntou Garrett. Estava deitado na cama enquanto falava com Theresa. Apenas com o candeeiro da mesa de cabeceira ligado.

‑ Estou, acabei de chegar há pouco. Foi um fim‑de‑semana comprido.

‑ As coisas resultaram como esperavas?

‑ Espero que sim. Não sei dizer por enquanto, mas conheci de facto muitas pessoas que poderão eventualmente ajudar‑me com a minha coluna.

‑ Então foi bom teres ido.

‑ Bom e mau. A maior parte do tempo desejei ter ido antes visitar‑te.

Ele sorriu.

‑ Quando é que partes para a casa dos teus pais?

‑ Na quarta‑feira de manhã. Estarei lá até domingo.

‑ Eles devem estar ansiosos por vos ver?

‑ Sim, estão. Há quase um ano que não vêem Kevin, e sei que estão ansiosos por tê‑lo lá em casa durante alguns dias.

‑ Isso é bom. Houve uma breve pausa.

‑ Garrett?

‑ Sim?           

Ela falou baixinho.

‑ Quero apenas que saibas que continuo a lamentar mesmo muito o que aconteceu este fim‑de‑semana.

‑ Eu sei.

‑ Posso compensar‑te?

‑ Que tinhas em mente?

‑ Bem... podes vir cá acima visitar‑me no fim‑de‑semana depois da Acção de Graças?


‑ Acho que sim.

‑ óptimo, porque vou planear um fim‑de‑semana especial apenas para nós os dois.

 

Foi um fim‑de‑semana que nenhum dos dois alguma vez iria esquecer.

Theresa telefonara‑lhe mais do que o habitual nas duas semanas precedentes. Normalmente era Garrett quem telefonava, mas parecia que sempre que ele queria falar com ela, ela antecipava‑se. Houve duas vezes que, quando se dirigia para o telefone para ligar o número dela, o aparelho começou a tocar antes de ele lá chegar, e da segunda vez que isso aconteceu, ele atendeu o telefone com um simples, "Olá, Theresa". Aquilo surpreendera‑a, e gracejaram durante um tempo sobre as capacidades psíquicas dele antes de caírem numa conversa descontraída.

Quando ele chegou a Boston duas semanas mais tarde, Theresa foi buscá‑lo ao aeroporto. Ela dissera‑lhe para ele vestir qualquer coisa de elegante, e ele saiu do avião vestindo um blazer, algo que ela nunca o vira usar antes.

‑ Uau ‑ dissera ela simplesmente.          

Ele ajustou o blazer, constrangido.

‑ Estou bem?

‑ Estás óptimo.        

Foram directamente do aeroporto para o jantar. Ela reservara uma mesa no restaurante mais elegante da cidade. Tiveram uma refeição descansada e maravilhosa, e depois Theresa levou Garrett a ver Les Misérables, que estava naquela altura em cena em Boston. A peça estava esgotada, mas como Theresa conhecia o gerente, acabaram sentados na melhor zona do teatro.

Já era tarde quando foram para casa, e para Garrett o dia seguinte pareceu igualmente apressado. Theresa levou‑o ao escritório e mostrou‑lhe o local - apresentando‑o a algumas pessoas ‑ e depois foram visitar o Museu das Belas Artes durante o resto da tarde. Ao fim do dia encontraram‑se com Deanna e Brian para jantarem no Anthony's ‑ um restaurante no último andar do Edifício da Prudential que oferecia uma vista maravilhosa da cidade inteira.

Garrett nunca vira coisa igual.     

A mesa era perto da janela. Deanna e Brian levantaram‑se ambos para cumprimentá‑los.

‑ Lembram‑se de Garrett daquele pequeno‑almoço, não se lembram? ‑ perguntou Theresa, tentando não soar demasiado ridícula.

‑ Claro que me lembro. É um prazer vê‑lo de novo, Garrett - disse Deanna, inclinando‑se para um rápido abraço e beijinhos na face. ‑ Peço desculpa por ter forçado a Theresa a vir comigo há duas semanas atrás. Espero que a tenha perdoado.

‑ Não faz mal ‑ disse ele, acenando constrangidamente com a cabeça.

‑ Ainda bem. Porque olhando para trás, penso que valeu a pena. Garrett olhou para ela com curiosidade. Theresa inclinou‑se na direcção deles e perguntou:

‑ Que queres dizer, Deanna?

Os olhos de Deanna brilhavam.

‑ Recebi boas notícias ontem, depois de ter saído.

‑ O que é? ‑ perguntou Theresa.


‑ Bem ‑ disse ela com um ar de indiferença ‑, falei com Dan Mandel, o chefe da Media Information Inc., durante cerca de vinte minutos ou coisa assim, e acontece que ele ficou muito impressionado contigo. Gostou da maneira como te comportaste e achou que eras bastante profissional. E melhor do que tudo...

Deanna fez uma pausa dramática, fazendo o seu melhor para conter um sorriso.

‑ Sim?           

‑ Ele vai publicar a tua coluna em todos os seus jornais, a começar em Janeiro.

Theresa pôs a mão na boca para abafar o seu grito, mas foi ainda suficientemente alto para que as pessoas nas mesas mais próximas virassem as cabeças. Ela chegou‑se para junto de Deanna, falando rapidamente e Garrett deu um pequeno passo para trás.

‑ Estás a brincar ‑ disse Theresa, incrédula.

Deanna abanou a cabeça, com um grande sorriso.

‑ Não. Estou a contar‑te o que ele me disse. Ele quer falar contigo outra vez na terça‑feira. Tenho uma reunião marcada para as dez horas.

‑ Tens a certeza? Ele quer a minha coluna?

‑ Absoluta. Enviei‑lhe o teu portfolio por fax juntamente com algumas das tuas crónicas, e ele telefonou‑me. Quer as tuas crónicas, não há dúvida. É algo que ele já decidiu.

‑ Não posso acreditar.

‑ Acredita. E ouvi por portas e travessas que dois outros estão também interessados.

‑ Oh... Deanna...      

Theresa inclinou‑se para a frente e abraçou Deanna impulsivamente com a excitação a animar o seu rosto. Brian acotovelou Garrett.

‑ óptimas notícias, hem?

Garrett levou um momento a responder.

‑ Sim... muito boas.

Depois de se acomodarem para o jantar, Deanna pediu uma garrafa de champanhe e fez um brinde, congratulando Theresa pelo seu futuro promissor. As duas cavaquearam incessantemente durante o resto da noite. Garrett ficou calado, não sabendo exactamente o que mais poderia dizer. Como se pressentindo o seu desconforto, Brian inclinou‑se para ele.

‑ Parecem duas meninas de escola, não parecem? Deanna esteve o dia inteiro a falar no assunto, ansiosa por lhe contar.

‑ Gostava apenas de compreender tudo isto um pouco melhor. Na verdade não sei o que dizer.

Brian bebeu um gole da sua bebida, abanando a cabeça. As suas palavras saíram ligeiramente desarticuladas.

‑ Não se preocupe com isso. Mesmo que compreendesse, provavelmente não conseguiria entrar na conversa. Elas conversam assim o tempo todo. Se não soubesse o que sei, juraria que elas tinham sido gémeas noutra vida.

Garrett olhou através da mesa para Theresa e Deanna.

‑ Deve ter razão.


‑ Além disso ‑ acrescentou Brian ‑, compreenderá melhor quando viver com isso a tempo inteiro. Depois de um certo tempo, irá compreender isso quase tão bem quanto elas. Eu sei que compreendo. O comentário não lhe passou despercebido. Quando viver com isso a tempo inteiro?

Como Garrett não respondeu, Brian mudou de assunto.

‑ Então quanto tempo é que vai ficar por cá?

‑ Até amanhã à noite.        

Brian acenou com a cabeça.

‑ É difícil estarem tão poucas vezes juntos, não é?

‑ às vezes.

‑ Posso imaginar. Eu sei que Theresa se aborrece com isso de vez em quando.

Do outro lado da mesa, Theresa sorriu para Garrett.

‑ De que é que vocês os dois estão para aí a conversar? ‑ perguntou ela bem disposta.

‑ Disto e daquilo ‑ disse Brian ‑, da tua boa sorte, principalmente.

Garrett acenou brevemente com a cabeça sem responder, e Theresa observou‑o a mexer‑se na cadeira. Era óbvio que ele se sentia pouco à vontade ‑ embora ela não soubesse ao certo porquê ‑ e ficou a interrogar‑se sobre o assunto.

 

‑ Estiveste um pouco calado hoje ‑ disse Theresa. Estavam de novo no apartamento dela, sentados no sofá com o rádio a tocar baixinho ao fundo.

‑ Creio que não tinha muito que dizer.   

Ela pegou‑lhe na mão e falou baixinho.

‑ Ainda bem que estavas comigo quando Deanna me deu as notícias.

‑ Fico feliz por ti, Theresa. Sei que é muito importante para ti.         

Ela sorriu, pouco segura. Mudando de assunto, perguntou:

‑ Gostaste de falar com Brian?

‑ Sim... é uma pessoa com quem nos podemos dar facilmente. ‑ Fez uma pausa. ‑ Mas eu não sou muito bom em grupos, especialmente quando sou a pessoa de fora. É que... ‑ Ele parou, pensando se deveria dizer mais alguma coisa, e decidiu não o dizer.

‑ O quê?       

Ele abanou a cabeça.

‑ Nada.

‑ Não, o que é que ias dizer?       

Depois de um momento ele respondeu, escolhendo as suas palavras com cuidado.

‑ Ia apenas dizer que todo este fim‑de‑semana tem sido estranho para mim. O espectáculo, jantares caros, sair com os teus amigos... ‑ Ele encolheu os ombros. ‑ Não é o que eu esperava.

‑ Não estás a gostar?        

Ele passou as mãos pelo cabelo, parecendo de novo pouco à vontade.

‑ Não é que não tenha gostado. Só que... ‑ Ele encolheu os ombros. ‑ Não sou eu. Nada disto é parecido com o que eu normalmente faço.

‑ É por isso que planeei o fim‑de‑semana desta maneira. Queria apresentar‑te a coisas novas.

‑ Porquê?

‑ Pela mesma razão porque querias que eu aprendesse mergulho. Porque é algo de excitante, algo diferente.


‑ Eu não vim cá para fazer algo de diferente. Vim cá para passar algum tempo tranquilo contigo. Há muito tempo que não estou contigo, e desde que cheguei, parece que temos andado a correr de lugar para lugar. Ainda nem sequer tivemos oportunidade de conversar e vou‑me embora amanhã.

‑ Isso não é verdade. Estivemos sozinhos no jantar ontem, e hoje de novo no museu. Tivemos muito tempo para conversar.

‑ Sabes o que quero dizer.           

‑ Não, não sei. Que querias fazer. Ficar aqui sentado no apartamento?

Ele não respondeu. Em vez disso permaneceu em silêncio por um momento. Depois levantou‑se do sofá, atravessou a sala e desligou o rádio.

‑ Tenho uma coisa importante para te dizer desde que cheguei - disse ele sem se voltar.       

‑ O que é?    

Ele baixou a cabeça. É agora ou nunca, murmurou para consigo mesmo. Finalmente voltando‑se para ela e reunindo a sua coragem, ele respirou fundo.

‑ Tem sido realmente difícil não estar contigo durante este último mês, e neste momento, não tenho a certeza se quero que as coisas continuem assim.

Durante um segundo ela ficou sem fôlego.      

Reparando na sua expressão, ele dirigiu‑se para ela, sentindo um estranho aperto no peito por causa daquilo que ia dizer.

‑ Não é o que estás a pensar ‑ disse ele depressa. ‑ Entendeste de maneira completamente errada. Não é que não queira ver‑te mais. Eu quero ver‑te o tempo todo. ‑ Quando chegou ao sofá, ajoelhou‑se em frente dela. Theresa olhou para ele, surpresa. Ele pegou‑lhe na mão.

‑ Quero que venhas viver para Wilmington.      

Embora ela soubesse que aquilo iria acontecer mais cedo ou mais tarde, não esperara que surgisse naquele momento, e certamente não daquela maneira. Garrett continuou.

‑ Sei que se trata de um grande passo, mas se te mudares lá para baixo, não teremos mais estes longos períodos longe um do outro.

Podíamos ver‑nos todos os dias. ‑ Ele estendeu a mão, acariciando‑lhe a face. ‑ Quero passear contigo na praia, quero ir andar de barco contigo. Quero que estejas em casa quando eu regressar da loja. Quero que seja como se nos tivéssemos conhecido a vida inteira...

As palavras saíam rapidamente, e Theresa tentava dar‑lhes sentido. Garrett continuou a falar.

‑ Sinto tanto a tua falta quando não estamos juntos. Eu percebo que o teu emprego é aqui, mas tenho a certeza de que o jornal local te aceitaria...

Quanto mais ele falava, mais a cabeça dela começava a andar à roda. Para ela, parecia‑lhe quase como se ele estivesse a tentar recriar a sua relação com Catherine.

‑ Espera aí ‑ disse ela finalmente, interrompendo‑o. ‑ Eu não posso simplesmente fazer as malas e partir. Quer dizer... Kevin está na escola...

‑ Não tens de partir imediatamente ‑ respondeu ele. ‑ Podes esperar até a escola acabar se isso for melhor. Conseguimos aguentar este tempo todo, mais alguns meses não farão muita diferença.

‑ Mas ele está feliz aqui. Esta é a sua casa. Ele tem os seus amigos, o futebol...


‑ Ele pode ter tudo isso em Wilmington.

‑ Não podes saber isso. É fácil dizeres que sim, mas não tens a certeza.

‑ Não viste como nos demos tão bem?

Ela largou a mão dele, começando a sentir‑se frustrada.

‑ Isso não tem nada a ver com a questão, não vês? Eu sei que vocês os dois se deram bem, mas não estavas a pedir‑lhe para mudar a sua vida. Eu não estava a pedir‑lhe para mudar a sua vida. ‑ Fez uma pausa. ‑ E além disso, isto não é só sobre ele. E eu, Garrett? Tu estiveste presente esta noite. Sabes o que aconteceu. Acabei de receber uma notícia maravilhosa sobre a minha coluna e agora queres que eu desista disso também?

‑ Eu não quero é desistir de nós. Há uma grande diferença.

‑ Então porque é que não podes tu mudar‑te para Boston?

‑ E fazer o quê?

‑ O mesmo que fazes em Wilmington. Dar aulas de mergulho, velejar, qualquer coisa. É muito mais fácil para ti mudar do que seria para mim.

‑ Não posso fazer isso. Como disse, isto ‑ gesticulou para a sala e na direcção das janelas ‑ não é para mim. Sentir‑me‑ia perdido aqui.

Theresa levantou‑se e atravessou a sala, agitada. Passou a mão pelo cabelo.

‑ Não é justo.

‑ O que não é justo?          

Ela olhou para ele.

‑ Tudo isto. Pedir‑me para mudar, pedir para alterar a minha vida inteira. É como se tivesses imposto uma condição: "Podemos viver juntos, mas tem de ser à minha maneira." Muito bem, e os meus sentimentos? Não são importantes também?

‑ Claro que são importantes. Tu és importante, nós somos importantes.

- Bem, não é isso que dás a entender. É como se estivesses apenas a pensar em ti próprio. Queres que eu renuncie a tudo por que lutei, mas tu não estás disposto a renunciar a nada. ‑ Os olhos dela nunca deixaram os dele.

Garrett levantou‑se do sofá e dirigiu‑se para ela. Quando ele se aproximou, ela recuou, levantando os braços como uma barreira.

‑ Olha, Garrett, não quero que me toques neste momento, está bem?

Ele deixou cair as mãos para o lado. Durante um longo momento nenhum deles falou. Theresa cruzou os braços e desviou o olhar.

‑ Então suponho que a tua resposta é que não vens ‑ disse ele finalmente, num tom de voz zangado.

Ela falou cautelosamente.

‑ Não. A minha resposta é que vamos ter de discutir o assunto.

‑ Para que possas tentar convencer‑me de que estou errado?

O seu comentário não merecia uma resposta. Abanando a cabeça ela dirigiu‑se para a mesa da sala de jantar, pegou na sua mala, e encaminhou‑se para a porta da frente.

‑ Onde é que vais?

‑ Vou comprar um pouco de vinho. Preciso de uma bebida.

‑ Mas já é tarde.


‑ Há uma loja ao fundo do quarteirão. Estarei de volta em dois minutos.

‑ Porque é que não podemos discutir isto agora?

‑ Porque ‑ disse ela depressa ‑ preciso de alguns minutos sozinha para poder pensar.

‑ Estás a fugir? ‑ parecia uma acusação.          

Ela abriu a porta, segurando‑a enquanto falava.

‑ Não, Garrett, não estou a fugir. Estarei de volta dentro de alguns minutos. E não admito que me fales dessa maneira. Não é justo da tua parte fazeres sentir‑me culpada acerca disto. Acabaste de pedir‑me para alterar a minha vida inteira, e eu preciso de alguns minutos para pensar no assunto.

Ela deixou o apartamento. Garrett ficou a olhar para a porta durante alguns segundos, esperando para ver se ela voltava. Mas como ela não voltou, amaldiçoou‑se silenciosamente. Nada tinha acontecido como ele pensara. Num minuto ele pedia‑lhe para mudar para Wilmington, no minuto seguinte ela saía porta fora, precisando de estar sozinha. Como é que ele perdera o controlo da situação?

Não sabendo que mais fazer, andou às voltas pelo apartamento. Deu uma olhadela à cozinha, depois ao quarto de Kevin, e continuou a andar. Quando chegou ao quarto dela, parou durante um momento antes de entrar. Depois de se dirigir para a cama dela, sentou‑se, descansando a cabeça nas mãos.

Seria justo da parte dele pedir‑lhe para partir? Certo, ela tinha uma vida aqui ‑ uma boa vida ‑ mas ele tinha a certeza de que ela poderia tê‑la também em Wilmington. Sob qualquer ponto de vista, seria provavelmente muito melhor do que a vida que teriam ali. Olhando em redor, sabia que não havia maneira de ele conseguir viver num apartamento. Mas mesmo que eles se mudassem para uma casa... teria uma vista? Ou viveriam num subúrbio, rodeados de uma dúzia de casas exactamente iguais?

Era complicado. E por uma razão ou outra, tudo o que ele dissera tinha saído mal. Ele não quisera que ela sentisse que ele estava a apresentar‑lhe um ultimato, mas pensando melhor, fora exactamente isso que fizera.

Suspirando, perguntou a si mesmo o que fazer a seguir. De certo modo não pensava que houvesse algo que pudesse dizer quando ela regressasse que não conduzisse a outra discussão. Acima de tudo, ele não queria isso. Brigas raramente conduziam a soluções, e uma solução era o que eles precisavam naquele momento.

Mas se ele não podia dizer mais nada, que mais havia a fazer? Pensou durante um momento antes de finalmente decidir escrever‑lhe uma carta, expondo o seu pensamento em linhas gerais. Escrever fê‑lo sempre pensar mais claramente ‑ especialmente durante os últimos anos ‑ e talvez ela fosse capaz de compreender o que ele queria dizer.

Olhou para a mesa de cabeceira. Era lá que o telefone dela se encontrava ‑ provavelmente era ali que ela apontava mensagens de vez em quando ‑ mas não viu nem caneta nem bloco de papel. Abriu a gaveta, vasculhou‑a, e encontrou uma esferográfica na parte da frente.

Procurando uma folha de papel, continuou a vasculhar ‑ por entre revistas, dois livros de bolso e algumas caixas de jóias vazias ‑ quando algo de familiar lhe despertou a atenção.

Um barco à vela.    


Havia uma folha de papel, metida entre uma agenda fina e uma cópia antiga da Ladies Home Journal. Pegou nela, presumindo tratar‑se de uma das cartas que ele lhe escrevera durante os últimos dois meses, mas depois deteve‑se subitamente.

Como poderia ser?

O bloco de folhas tinha sido uma oferta de Catherine, e ele usava‑o apenas quando escrevia para ela. As suas cartas para Theresa tinham sido escritas em papel diferente, algo que arranjara na loja.

Deu por si a conter a respiração. Rapidamente abriu um espaço na gaveta, retirando a revista e levantando lentamente não uma, mas cinco ‑ cinco! ‑ folhas de papel. Ainda confuso, pestanejou bastante antes de olhar para a primeira página, e ali, na sua letra, estavam as palavras:

 

Minha querida Catherine...

 

Oh, meu Deus. Passou para a segunda folha, uma fotocópia.

 

Minha querida Catherine...

 

A carta seguinte.

 

Querida Catherine...

 

‑ O que é isto ‑ murmurou ele, incapaz de acreditar no que estava a ver. ‑ Não pode ser... ‑ Examinou de novo as folhas para ter a certeza.

Mas era verdade. Uma era original, duas eram cópias, mas tratava‑se das suas cartas, as cartas que escrevera a Catherine. As cartas que escrevera depois dos seus sonhos, as cartas que lançara do Happenstance e nunca esperara ver de novo. Num impulso começou a lê‑las, e com cada palavra, cada frase, sentiu as suas emoções irromperem à superfície, surgindo todas simultaneamente. Os sonhos, as recordações, a sua perda, a angústia. Ele deteve‑se.

A sua boca secou quando pressionou os lábios um contra o outro. Em vez de continuar a ler, olhava simplesmente para elas em estado de choque mal ouvindo a porta da frente abrir‑se e depois fechar‑se. Theresa chamou:

‑ Garrett, estou de volta. ‑ Ela fez uma pausa, ele podia ouvi‑la a caminhar ao longo do apartamento. Depois: ‑ Onde é que estás?

Ele não respondeu. Não conseguia fazer mais nada senão tentar compreender como é que aquilo tinha acontecido. Como podia ela tê‑las? Eram as suas cartas... as suas cartas pessoais.

As cartas para a sua mulher.       

Cartas que não diziam respeito a mais ninguém.       

Theresa entrou no quarto e olhou para ele. Embora ele não o soubesse, o seu rosto estava pálido, os nós dos dedos brancos enquanto agarrava as folhas.

‑ Estás bem? ‑ perguntou ela, não se apercebendo do que estava nas mãos dele.

Por um momento, foi como se ele não a tivesse ouvido. Depois, erguendo lentamente os olhos, olhou furiosamente para ela.


Assustada, ela quase falou de novo. Mas não o fez. Como uma vaga, percebeu tudo ao mesmo tempo ‑ a gaveta aberta, as folhas na mão dele, a expressão no seu rosto ‑ e soube imediatamente o que tinha acontecido.

‑ Garrett... eu posso explicar ‑ disse ela rapidamente, baixinho. Ele parecia não ouvi‑la.

‑ As minhas cartas... ‑ murmurou ele. Ele olhou para ela, uma mistura de confusão e raiva.

‑ Eu...

‑ Como é que conseguiste as minhas cartas? ‑ exigiu ele saber, com um tom de voz que a fez estremecer.

‑ Encontrei uma na praia e...

Ele interrompeu‑a.

‑ Encontraste‑a?     

Ela acenou que sim com a cabeça, tentando explicar,

‑ Quando estive em Cape Cod. Estava a fazer jogging e dei com a garrafa...

Ele olhou para a primeira folha, a única carta original. Era a que escrevera no início daquele ano. Mas as outras...

- E estas? ‑ perguntou ele, erguendo as cópias. ‑ De onde é que elas vieram?

Theresa respondeu baixinho.

‑ Foram‑me enviadas.

‑ Por quem? ‑ Confuso, ele levantou‑se da cama.

Ela deu um passo na direcção dele, estendendo‑lhe a mão.

- Por outras pessoas que as tinham encontrado. Uma das pessoas leu a minha coluna...

‑ Publicaste a minha carta? ‑ Ele parecia que tinha acabado de ser atingido no estômago.

Ela não respondeu durante um momento.

‑ Eu não sabia... - começou ela.

‑ Não sabias o quê? ‑ disse ele em voz alta, a dor evidente no seu tom. ‑ Que era errado fazer isso? Que isto não era uma coisa que eu queria que o mundo visse?

‑ Tinha ido dar a uma praia, tinhas de saber que alguém a encontraria ‑ disse ela rapidamente. ‑ Eu não usei os vossos nomes.

‑ Mas puseste‑a no Jornal... ‑ A sua voz sumiu‑se, com incredulidade.

‑ Garrett... eu...

‑ Não digas nada ‑ disse ele furioso. Olhou mais uma vez para as cartas, depois voltou a olhar para ela, como se estivesse a vê‑la pela primeira vez. ‑ Tu mentiste‑me ‑ disse ele, quase como se se tratasse de uma revelação.

‑ Eu não menti...     

Ele não estava a ouvir.

‑ Mentiste‑me ‑ repetiu ele, como se para consigo próprio. ‑ E vieste à minha procura. Porquê? Para que pudesses escrever outra coluna. É disso que se trata?

‑ Não... não é absolutamente nada disso...

‑ Então o que é?

‑ Depois de ler as tuas cartas, eu... eu queria conhecer‑te.   

Ele não compreendia o que ela estava a dizer. Olhava continuamente das cartas para ela e dela para as cartas. Tinha uma expressão dolorida.

‑ Tu mentiste‑me ‑ disse ele pela terceira vez. ‑ Tu usaste‑me.


‑ Não usei...

‑ Usaste sim! ‑ gritou ele, a sua voz ecoando no quarto. Lembrando‑se de Catherine, segurou as cartas à sua frente, como se Theresa nunca as tivesse visto antes. ‑ Estas cartas são minhas, os meus sentimentos, os meus pensamentos, a minha maneira de lidar com a perda da minha mulher. Minhas, não tuas.

‑ Não foi minha intenção magoar‑te.      

Ele olhou duramente para ela sem dizer nada. Os músculos dos seus maxilares estavam tensos.

‑ Tudo isto é uma farsa, não é? ‑ perguntou ele finalmente, sem esperar que ela respondesse. ‑ Tu pegaste nos meus sentimentos por Catherine e tentaste manipulá‑los e transformá‑los em algo que tu desejavas. Pensaste que porque eu amava Catherine, também te iria amar, não pensaste?

Sem querer, ela empalideceu. Sentiu‑se subitamente incapaz de falar.

‑ Planeaste tudo isto desde o princípio, não foi? ‑ Ele fez de novo uma pausa, passando a mão livre pelo cabelo. Quando falou, a sua voz começou a falhar. ‑ Isto foi tudo uma armadilha...

Durante um momento ele parecia aturdido, e ela estendeu‑lhe os braços.

‑ Garrett, sim, admito que quis conhecer‑te. As cartas eram tão bonitas. Eu queria ver que tipo de pessoa escrevia cartas assim. Mas não sabia onde isso iria conduzir, não planeei nada depois disso. ‑ Ela pegou‑lhe na mão. ‑ Eu amo‑te, Garrett. Tens de acreditar em mim.

Quando ela acabou de falar, ele desprendeu a sua mão e afastou‑se.

‑ Que tipo de pessoa és tu?         

A pergunta magoou‑a, e ela respondeu defensivamente:

‑ Não é o que estás a pensar...

Garrett prosseguiu, ignorando a resposta dela.

‑ Viste‑te apanhada numa fantasia maluca qualquer...

Aquilo era de mais.

‑ Pára com isso, Garrett! ‑ gritou ela zangada, magoada com as palavras dele. ‑ Não ouviste nada do que eu disse! ‑ Enquanto gritava, sentia as lágrimas acumularem‑se‑lhe nos olhos.

‑ Porque havia eu de te ouvir? Tens andado a mentir‑me desde que te conheci.

‑ Eu não menti! Eu simplesmente nunca te contei sobre as cartas!

‑ Porque sabias que tinhas procedido mal!

‑ Não, porque sabia que tu não irias compreender ‑ disse ela, tentando recuperar a serenidade.

‑ Compreendo muito bem. Compreendo que tipo de pessoa tu és!

Os olhos dela semicerraram‑se.

‑ Não sejas assim.

‑ Assim como? Zangado? Magoado? Acabei de descobrir que tudo isto não passou de uma charada, e agora queres que eu pare?

‑ Cala‑te! ‑ gritou ela, com a sua raiva a surgir subitamente à superfície.

Ele pareceu ficar pasmado com as palavras dela, e ficou a olhá‑la sem falar. Finalmente, com a voz a falhar, ele mostrou‑lhe as cartas de novo.


‑ Tu pensas que compreendes o que eu e Catherine tivemos juntos, mas não compreendes. Por mais cartas que leias ‑ por mais que me conheças ‑ tu nunca compreenderás. O que eu e ela tivemos era verdadeiro. Era verdadeiro, e ela era verdadeira...

Ele fez uma pausa, reunindo os seus pensamentos, olhando para ela como se ela fosse uma pessoa estranha. Depois, retesando‑se, disse algo que a magoou mais do que tudo o que ele dissera até então.

‑ Nós nem sequer chegámos perto do que eu e Catherine tivemos.

Ele não esperou por uma resposta. Em vez disso passou por ela, em direcção à sua mala. Depois de atirar tudo lá para dentro, fechou‑a rapidamente. Por um momento ela pensou em detê‑lo, mas a observação dele deixara‑a aturdida.

Ele estava de pé, levantando a mala.

‑ Estas ‑ disse ele, segurando as cartas ‑, são minhas, e vou levá‑las comigo.

Percebendo subitamente o que ele tencionava fazer, ela perguntou:

‑ Porque estás a ir embora?

Ele olhou fixamente para ela.

‑ Eu nem sequer sei quem tu és.            

Sem outra palavra, deu meia volta, atravessou a passos largos a sala e saiu porta fora.

 

Não sabendo mais para onde ir, Garrett apanhou um táxi para o aeroporto depois de deixar o apartamento de Theresa. Infelizmente, não havia qualquer voo àquela hora, e acabou por ficar no terminal o resto da noite, ainda zangado e incapaz de dormir. Passeando pelo terminal durante horas, passou por lojas que há muito tinham fechado para a noite, parando apenas ocasionalmente para espreitar através das barreiras que mantinham os viajantes da noite afastados.

Na manhã seguinte apanhou o primeiro voo que conseguiu e chegou a casa pouco depois das onze, indo directo para o seu quarto. Deitado na cama, contudo, os acontecimentos da noite anterior não paravam de lhe atravessar a mente, mantendo‑o acordado. Tentando em vão adormecer, acabou por se levantar. Tomou um banho de chuveiro e vestiu‑se, depois sentou‑se outra vez na cama. Olhando para a fotografia de Catherine, acabou por pegar nela e levou‑a consigo para a sala de estar. Na mesa de café encontrou as cartas onde as deixara. No apartamento de Theresa ele estivera demasiado chocado para poder entendê‑las, mas agora, com a fotografia dela à sua frente, ele leu‑as devagar, quase com reverência, sentindo a presença de Catherine impregnando a sala.

 

‑ Ei, pensei que te tivesses esquecido do nosso encontro ‑ disse ele quando viu Catherine descer as docas com um saco de compras.

Sorrindo, Catherine tomou a mão dele ao subir para o barco.

- Não me esqueci, fiz apenas um pequeno desvio no caminho.

‑ Onde?

‑ Na verdade, fui ao médico.        

Ele tirou o saco das mãos dela e pô‑lo a um canto.

‑ Estás bem? Sei que não tens andado a sentir‑te bem...

‑ Estou bem ‑ disse ela, interrompendo‑o delicadamente, ‑ Mas acho que não estou em condições para ir passear de barco hoje.

‑ Passa‑se alguma coisa, não passa?   

Catherine sorriu de novo enquanto se dobrava e tirava um pequeno embrulho de dentro de um dos sacos de compras. Garrett observou‑a enquanto ela o abria.

‑ Fecha os olhos ‑ disse ela, ‑ e conto‑te tudo.

Ainda um pouco hesitante, Garrett fez o que ela pediu e ouviu‑a desembrulhar o papel de seda.

‑ Pronto, podes abri‑los agora.

Catherine erguia à sua frente algumas roupas de bebé

‑ O que é isso? ‑ perguntou ele, não percebendo.

O rosto dela estava radiante.

‑ Estou grávida ‑ disse ela, emocionada.

‑ Grávida?

‑ Hen‑hen! Estou oficialmente grávida de oito semanas.

‑ Oito semanas?     

Ela acenou que sim com a cabeça.

‑ Acho que devo ter ficado grávida da última vez que fomos Passear de barco.


Vacilando por causa do choque, Garrett pegou nas roupas de bebé e segurou‑as delicadamente nas suas mãos, depois inclinou‑se finalmente para a frente e deu a Catherine um abraço.

‑ Não consigo acreditar..

‑ É verdade.

Um sorriso largo atravessou‑lhe os lábios quando finalmente deu conta do que realmente se estava a Passar.

‑ Estás grávida.

Catherine fechou os olhos e sussurrou‑lhe ao ouvido:

‑ E tu vais ser pai.

 

Os pensamentos de Garrett foram interrompidos pelo ranger da porta. O seu pai espreitava para dentro da sala.

‑ Vi a tua carrinha lá à frente. Queria ter a certeza de que estava tudo bem ‑ disse ele, explicando‑se. ‑ Não te esperava de volta até logo à noite. ‑ Como Garrett não respondeu, o pai entrou reparando imediatamente na fotografia de Catherine em cima da mesa. - Estás bem, filho? ‑ perguntou ele, cautelosamente.

Permaneceram sentados na sala de estar enquanto Garrett explicava a situação desde o princípio ‑ os sonhos que tivera ao longo dos anos, as mensagens que enviara nas garrafas, chegando finalmente à discussão que eles tinham tido na noite anterior. Não deixou nada de fora. Quando terminou, o pai tirou‑lhe as cartas da mão.

‑ Deve ter sido um grande choque ‑ disse ele, olhando para as folhas, surpreendido por Garrett nunca lhe ter falado das cartas. Fez uma pausa. ‑ Mas não achas que foste um pouco duro de mais com ela?

Garrett abanou a cabeça, cansado.

‑ Ela sabia tudo acerca de mim, pai, e nunca me disse. Ela planeou a coisa toda.

‑ Não planeou nada ‑ disse ele delicadamente. ‑ Ela pode ter vindo cá abaixo para te conhecer, mas não fez com que te apaixonasses por ela. Tu fizeste isso sozinho.

Garrett virou‑se para o lado antes de finalmente voltar a olhar para a fotografia em cima da mesa.

‑ Mas não achas que ela procedeu mal ao esconder tudo de mim?

Jeb suspirou, não querendo responder à questão, sabendo que isso levaria Garrett a repisar terreno antigo. Em vez disso tentou pensar noutra maneira de chegar ao filho.

‑ Há umas semanas atrás, quando estivemos a falar no pontão, disseste‑me que querias casar com Theresa porque a amavas. Lembras‑te disso?

Garrett acenou distraidamente com a cabeça.

‑ Porque é que isso mudou?        

Garrett olhou para o pai, confuso.

‑ Já lhe disse que...

Jeb interrompeu‑o gentilmente antes de ele poder acabar.

‑ Sim, explicaste‑me as tuas razões, mas não foste honesto. Não comigo, não com Theresa, nem mesmo contigo próprio. Ela pode não te ter falado sobre as cartas e, admito, talvez devesse tê‑lo feito. Mas não é por isso que estás ainda aborrecido agora. Estás aborrecido porque ela fez‑te perceber algo que tu não querias admitir.


Garrett olhou para o pai sem responder. Depois, levantando‑se do sofá, foi até à cozinha, sentindo subitamente o desejo de fugir da conversa. No frigorífico, encontrou um jarro de chá doce e encheu um copo. Abrindo o congelador e mantendo‑o aberto, Puxou para fora o tabuleiro de metal para tirar alguns cubos de gelo. Num súbito acesso de frustração, ele puxou a alavanca com demasiada força e os cubos de gelo voaram para cima do balcão e para o chão.

Enquanto Garrett resmungava e praguejava na cozinha, Jeb olhou para a fotografia de Catherine, lembrando‑se da sua própria mulher de há muito tempo atrás. Pousou as cartas ao lado da moldura e caminhou até à porta de vidro corrediça. Abrindo‑a, observou os ventos atlânticos frios de Dezembro fazer as ondas rebentar com violência, fazendo ecoar o ruído através da casa. Jeb contemplava o oceano, vendo‑o a agitar‑se e a encrespar‑se, quando alguém bateu à porta.

Voltou‑se, interrogando‑se sobre quem poderia ser. Estranhamente, apercebeu‑se de que em todas as suas visitas àquela casa, ninguém alguma vez batera à porta.

Garrett não tinha aparentemente ouvido. Jeb foi atender. Atrás dele, o móbile pendurado na varanda de trás repicava ruidosamente.

‑ Já vou ‑ disse ele em voz alta.  

Quando a porta da frente se abriu, o vento entrou de rajada para dentro da sala, espalhando as cartas pelo chão. Jeb, porém, não reparou. Toda a sua atenção estava centrada na visitante sob o pórtico. Não conseguia senão olhar para ela.

à sua frente estava uma mulher jovem de cabelo escuro que nunca vira antes. Hesitou à entrada, sabendo exactamente quem ela era mas dando por si sem palavras. Desviou‑se para o lado para lhe dar espaço.

‑ Entre ‑ disse ele baixinho.          

Quando ela entrou, fechando a porta atrás de si, o vento morreu abruptamente. Ela olhou para Jeb, constrangida. Por um momento, nenhum dos dois falou.

‑ Deve ser a Theresa ‑ disse Jeb por fim. Ao fundo, Jeb conseguia ouvir Garrett a resmungar enquanto limpava o gelo na cozinha. ‑ Tenho ouvido falar muito de si.

Ela cruzou os braços, hesitando.

‑ Sei que não estavam à minha espera...

‑ Não faz mal ‑ encorajou Jeb.

‑ Ele está aqui?

Jeb acenou com a cabeça em direcção à cozinha.

‑ Sim, está. Foi buscar qualquer coisa para beber.

‑ Como está ele?    

Jeb encolheu os ombros e mostrou‑lhe um sorriso lento e forçado. ‑ Terá de falar com ele...

Theresa acenou com a cabeça, interrogando‑se de repente se teria sido uma boa ideia ter vindo. Olhou em volta da sala e reparou imediatamente nas cartas espalhadas pelo chão. Também reparou na mala de Garrett, ainda por desfazer, junto à porta do quarto. Para além disso, a casa parecia exactamente na mesma.

Exceptuando, claro, a fotografia.

Espreitou‑a por cima do ombro de Jeb. Normalmente estava no quarto dele, e por alguma razão, agora que se encontrava plenamente à vista, não conseguia tirar os olhos dela. Ela estava ainda a olhar para a fotografia quando Garrett voltou a entrar na sala.

‑ Pai, que aconteceu aqui...          

Ele gelou. Theresa encarou‑o indecisa. Durante um longo momento, nenhum deles disse nada. Depois Theresa respirou fundo.


‑ Olá, Garrett ‑ disse ela.   

Garrett nada disse. Jeb pegou nas suas chaves que estavam em cima da mesa, sabendo que estava na altura de partir.

‑ Vocês os dois têm muito que falar, por isso eu vou‑me embora. - Dirigiu‑se para a porta da frente, olhando de lado para Theresa. - Foi um prazer conhecê‑la ‑ murmurou ele. Mas enquanto falava, ergueu as sobrancelhas e encolheu ligeiramente os ombros, como se para lhe desejar sorte. Num instante estava lá fora, atravessando o caminho frente à casa.

‑ Que estás aqui a fazer? ‑ perguntou Garrett calmamente logo que se encontraram sozinhos.

‑ Quis vir ‑ disse ela baixinho. ‑ Quis ver‑te de novo.

‑ Porquê?     

Ela não respondeu. Em vez disso, depois de um momento de hesitação, dirigiu‑se para ele sem que os seus olhos deixassem os dele. Quando chegou perto de Garrett, levou os dedos aos lábios dele e abanou a cabeça para o impedir de falar.

‑ Pst ‑ murmurou ela ‑, nada de perguntas... apenas por agora. Por favor... ‑ Ela tentou sorrir, mas agora que podia vê‑la melhor, ele sabia que ela estivera a chorar.

Não havia nada que ela pudesse dizer. Não havia palavras para descrever aquilo por que ela tinha estado a passar.

Em vez disso envolveu‑o nos seus braços. Relutantemente ele colocou os braços à volta dela enquanto ela encostava a cabeça nele. Ela beijou‑o no pescoço e puxou‑o para mais perto de si. Passando a sua mão pelo cabelo dele, aproximou a boca tentadoramente do rosto dele, depois dos seus lábios. Beijou‑os suavemente a princípio, os seus lábios mal roçando contra os dele, depois beijou‑o de novo, com mais fervor agora. Inconscientemente, ele começou a responder aos avanços dela. As suas mãos subiram lentamente pelas costas dela, moldando‑a contra ele.

Na sala de estar, com o rugir do oceano ecoando através da casa, eles abraçaram‑se com força, entregando‑se aos seus desejos crescentes. Por fim Theresa afastou‑se, estendendo o braço para lhe pegar na mão. Tomando‑a na sua, conduziu‑o ao quarto de dormir.

Largando‑o, ela atravessou o quarto enquanto ele esperava mesmo junto à porta.

A luz da sala espalhava‑se pelo quarto, projectando sombras nas paredes. Hesitando apenas ligeiramente antes de o encarar de novo, ela começou a despir‑se. Garrett fez um pequeno gesto para fechar a porta do quarto, mas ela abanou a cabeça. Ela queria vê‑lo desta vez, e queria que ele a visse. Queria que Garrett soubesse que ele estava com ela e com mais ninguém.

Lentamente, muito lentamente, ela despiu a roupa. A blusa... as calças de ganga... o soutien... as calcinhas. Ela retirava a roupa deliberadamente, os lábios ligeiramente abertos, os seus olhos nunca largando os dele. Quando finalmente nua, pôs‑se à frente dele, deixando que o olhar dele lhe percorresse o corpo.


Por fim ela aproximou‑se. junto dele, passou as mãos pelo seu corpo ‑ o peito, os ombros, os braços ‑ tocando‑lhe suavemente, como se quisesse lembrar‑se da sensação de tocar‑lhe para sempre. Recuando um passo para permitir que ele se despisse, ela observou‑o, os seus olhos registando tudo à medida que as roupas caíam no chão. Colocando‑se a seu lado, ela beijou‑lhe os ombros, depois deu a volta lentamente ao seu corpo, a sua boca contra a pele dele e a humidade da sua pele permanecendo onde ela lhe tocava. Em seguida, levando‑o para a cama, ela deitou‑se, puxando‑o com ela.

Fizeram amor intensamente, agarrando‑se desesperadamente um ao outro. O fervor que sentiam era diferente daquele que alguma vez haviam sentido quando tinham feito amor antes ‑ cada um dolorosamente consciente do prazer do outro, cada toque mais electrizante do que o último. Como se temendo o que o futuro lhes traria, veneravam os corpos um do outro com uma intensidade determinada que cauterizaria as suas memórias para sempre. Quando finalmente atingiram juntos o orgasmo, Theresa atirou a cabeça para trás e gritou, não tentando abafar o som.

Depois sentou‑se na cama, embalando a cabeça de Garrett no seu colo. Ela passava as mãos pelo cabelo dele, ritmadamente, constantemente, escutando o som da respiração dele a aprofundar‑se gradualmente.

Algum tempo depois, à tarde, Garrett acordou sozinho. Reparando que as roupas de Theresa também tinham desaparecido, pegou nas suas jeans e na sua camisa. Ainda a abotoar a camisa quando saía do quarto, procurou‑a rapidamente por toda a casa.

A casa estava fria.  

Encontrou‑a na cozinha. Ela estava sentada à mesa, de casaco vestido. Em cima da mesa à frente dela, ele viu uma chávena de café, quase vazia, como se ela estivesse ali sentada há algum tempo. A cafeteira já estava no lava‑loiça. Olhando para o relógio, percebeu que tinha estado a dormir durante quase duas horas.

‑ Olá ‑ disse ele, hesitante.           

Theresa olhou para ele por cima do ombro. A sua voz era submissa.

‑ Oh, olá... não te ouvi a levantar.

‑ Estás bem?           

Ela não respondeu directamente.

‑ Vem sentar‑te comigo - disse ela. ‑ Há muita coisa que tenho de contar‑te.

Garrett sentou‑se à mesa. Sorriu hesitantemente para ela. Theresa mexeu nervosamente na chávena do café durante um momento com o olhar cabisbaixo. Ele estendeu o braço, afastando uma madeixa de cabelo solto do lado do rosto dela. Como ela não reagiu, ele retirou a mão.

Por fim, sem olhar para ele, ela levou a mão ao colo e tirou de lá as cartas, colocando‑as sobre a mesa. Aparentemente ela recolhera‑as enquanto ele dormia.


‑ Encontrei a garrafa quando estava a fazer jogging no Verão passado ‑ começou ela, a sua voz firme mas distante, como se a recordar‑se de algo doloroso. ‑ Não tinha qualquer ideia sobre o que estaria escrito na carta lá dentro, mas depois de a ler, comecei a chorar. Era simplesmente tão bonita. Eu sabia que tinha vindo directamente do teu coração, e a maneira como estava escrita... Acho que senti uma afinidade com as coisas que tinhas escrito porque me sentia muito sozinha também. - Ela olhou para ele. ‑ Naquela manhã, mostrei‑a a Deanna. A ideia de publicá‑la foi dela. Eu a princípio não queria... Pensei que era demasiado pessoal, mas ela não via nada de errado nisso. Pensou que seria uma coisa bonita para as pessoas lerem. Foi por isso que eu cedi, presumindo que isso seria o fim da história. Mas não foi. - Ela suspirou. ‑ Quando regressei a Boston, recebi um telefonema de alguém que lera a coluna. Essa pessoa enviou‑me a segunda carta, que encontrara havia alguns anos. Depois de a ler, fiquei intrigada, mas mais uma vez, não pensei que a coisa fosse tão longe. - Ela fez uma pausa. ‑ já alguma vez ouviste falar da revista Yankee?

‑ Não.            

‑ É uma revista regional. Não é muito conhecida fora de Nova Inglaterra, mas publica algumas boas histórias. Foi aí que encontrei a terceira carta.

Garrett olhou para ela surpreendido.

‑ Foi publicada aí?

‑ Sim, foi. Eu descobri o autor do artigo e ele enviou‑me a terceira carta, e... bem, a curiosidade tomou conta de mim. Tinha três cartas, Garrett ‑ não apenas uma, mas três ‑ e cada uma delas comoveu‑me da mesma maneira que a primeira me tinha comovido. Então, com a ajuda de Deanna, descobri quem tu eras e vim cá abaixo conhecer‑te. - Ela sorriu tristemente. ‑ Eu sei que parece como tu disseste que foi uma espécie de fantasia, mas não foi. Eu não vim cá para me apaixonar por ti. Não vim cá para escrever uma crónica. Vim para ver quem tu eras, mais nada. Queria conhecer a pessoa que tinha escrito aquelas cartas tão bonitas. Então fui até às docas e lá estavas tu. Conversámos, e depois, se te lembras, convidaste‑me para ir passear de barco. Se não o tivesses feito, eu provavelmente teria regressado a casa naquele dia.

Ele não sabia o que dizer. Theresa estendeu o braço e colocou a sua mão com cuidado sobre a dele.

‑ Mas sabes o que mais? Divertimo‑nos bastante naquela noite, e eu percebi que queria ver‑te de novo. Não por causa das cartas, mas por causa da maneira como me trataste. E tudo pareceu progredir naturalmente a partir de então. Depois daquele primeiro encontro, nada do que aconteceu entre nós era parte de um plano. Aconteceu apenas.

Ele ficou em silêncio durante um momento, olhando para as cartas.

‑ Porque não me contaste nada sobre as cartas? ‑ perguntou ele.

Ela levou o seu tempo a responder.

‑ Houve alturas em que quis fazê‑lo, mas... não sei... suponho que me convenci de que não importava a maneira como nos havíamos conhecido. A única coisa que importava era o facto de nos estarmos a dar tão bem. ‑ Ela fez uma pausa, sabendo que havia mais. ‑ Além disso, achei que não ias compreender. Não queria perder‑te.

‑ Se me tivesses contado mais cedo, eu teria compreendido.

Ela observou‑o com atenção quando ele respondeu.

‑ Terias, Garrett? Terias realmente compreendido?

Garrett sabia que aquele era o momento da verdade. Como ele não respondeu, Theresa abanou a cabeça e desviou o olhar.


‑ Ontem à noite, quando me pediste para mudar, não disse logo que sim porque estava com medo da razão porque tinhas Pedido. Queria ter a certeza de que tinhas feito o pedido por causa de nós, e não porque estivesses a fugir de alguma coisa. Acho que queria que tu me convencesses quando voltasse da loja. Mas em vez disso tinhas encontrado estas... - Ela encolheu os ombros, falando mais baixo agora. ‑ Lá no fundo, imagino que sempre soube, mas queria acreditar que as coisas se resolvessem por si.

‑ De que estás a falar?

Ela não respondeu directamente.

‑ Garrett, não é que eu pense que tu não me amas, porque eu sei que me amas. É isso que torna tudo isto tão difícil. Eu sei que me amas, e eu amo‑te, também. E se as circunstâncias fossem diferentes, talvez pudéssemos ultrapassar tudo isto. Mas neste momento, acho que não podemos. Não penso que estejas pronto ainda.

Garrett sentiu como se tivesse levado um murro no estômago. Ela olhou directamente para ele, fitando‑o nos olhos.

‑ Não sou cega, Garrett. Eu sabia porque é que ficavas tão silencioso quando não estávamos juntos. Sabia porque é que tu querias que eu me mudasse para aqui.

‑ Era porque sentia a tua falta ‑ interpôs ele.

‑ Isso era parte da razão... mas não toda ‑ disse Theresa, fazendo uma pausa e pestanejando para reter as lágrimas. A sua voz começou a falhar. ‑ É também por causa de Catherine.

Ela limpou rapidamente o canto do olho, lutando claramente contra as lágrimas, determinada a não deixar‑se ir abaixo.

‑ Quando me falaste dela pela primeira vez, reparei na tua expressão... era óbvio que ainda a amavas. E ontem à noite ‑ apesar da tua raiva ‑ reparei na mesma expressão de novo. Mesmo depois de todo o tempo que passámos juntos, ainda não a esqueceste. E depois... as coisas que disseste... ‑ Ela respirou fundo, irregularmente. ‑ Não ficaste zangado simplesmente porque eu encontrei as cartas, ficaste zangado porque sentiste que eu ameaçava aquilo que tu e Catherine partilhavam, e ainda partilham.

Garrett desviou o olhar, ouvindo o eco da acusação do seu pai. Mais uma vez ela estendeu o braço e tocou‑lhe na mão.

‑ Tu és o que és, Garrett. És um homem que ama profundamente, mas és também um homem que ama para sempre. Por mais que me ames, não penso que sejas capaz de alguma vez esquecê‑la, e eu não posso viver a minha vida sempre a interrogar‑me se estou à altura dela.

‑ Nós podemos tentar mudar isso ‑ começou ele roucamente. ‑ Quer dizer... eu posso tentar mudar isso. Eu sei que as coisas podem ser diferentes...

Theresa interrompeu‑o com um breve aperto na mão.

‑ Eu sei que acreditas nisso, e parte de mim também querer acreditar nisso. Se pusesses os teus braços à minha volta agora e implorasses para eu ficar, tenho a certeza de que ficaria, porque acrescentaste algo à minha vida de que eu estava necessitada há muito tempo. E continuaríamos a viver tal como temos feito até aqui, ambos acreditando que tudo estaria bem... Mas não estaria, não vês? Porque da próxima vez que tivéssemos uma discussão... ‑ Ela parou. ‑ Eu não posso competir com ela. E por mais que eu queira que a nossa relação continue, não posso deixar que isso aconteça, porque tu não deixas.

‑ Mas eu amo‑te.     

Ela sorriu ternamente. Largando‑lhe a mão, estendeu o braço e acariciou‑lhe suavemente a face.


‑ Eu também te amo, Garrett. Mas às vezes o amor não é suficiente.

Garrett ficou calado quando ela terminou, o seu rosto estava pálido. No longo silêncio entre eles, Theresa começou a chorar.

Inclinando‑se para ela, ele pôs o braço à sua volta e abraçou‑a, os braços fracos. Encostou a face contra o cabelo dela enquanto ela escondia o rosto no peito dele, com o corpo a estremecer enquanto chorava. Passou‑se bastante tempo até Theresa limpar a face e afastar‑se dele. Olharam um para o outro e os olhos de Garrett faziam um apelo mudo. Ela abanou a cabeça.

‑ Não posso ficar, Garrett. Por mais que ambos queiramos que eu fique, não posso.

As palavras atingiram‑no duramente. Garrett sentiu subitamente a cabeça a andar à roda.

‑ Não... ‑ disse ele, quase a chorar.        

Theresa levantou‑se, sabendo que tinha de partir antes que perdesse a coragem. Lá fora os trovões soavam estrondosamente. Segundos mais tarde, uma chuva leve e nublada começou a cair.

‑ Tenho de ir.           

Pôs a mala ao ombro e começou a dirigir‑se para a porta da frente. Por um momento, Garrett ficou demasiado desorientado para se mexer.

Por fim, aturdido, levantou‑se e seguiu‑a porta fora, agora com a chuva a cair regularmente. O carro alugado estava estacionado na entrada. Garrett viu‑a a abrir a porta, não conseguindo pensar em nada que pudesse dizer.

Sentada no lugar do condutor ela atrapalhou‑se com as chaves durante um momento, colocando‑as na ignição. Forçou um sorriso fraco quando fechou a porta. Apesar da chuva, desceu a janela para o ver melhor. Dando a volta à chave, sentiu o motor ganhar vida, frouxamente. Olharam um para o outro enquanto o carro aquecia.

A expressão dele ao olhar para ela quebrou‑lhe todas as defesas, e tornou a sua resolução frágil. Durante apenas um instante ela quis voltar com tudo atrás. Queria dizer‑lhe que aquilo que lhe dissera não era a sério, que ela ainda o amava, que não deviam acabar daquela maneira. Seria fácil fazer isso, e pareceria tão acertado...

Mas por mais que ela quisesse, não conseguiu obrigar‑se a dizer as palavras.

Ele deu um passo em direcção ao carro. Theresa abanou a cabeça para o deter. Aquilo já era suficientemente doloroso.

‑ Vou ter saudades tuas, Garrett ‑ disse ela baixinho, sem ter a certeza se ele a podia sequer ouvir. Ela meteu a marcha atrás.

A chuva começou a cair com mais força: os pingos grossos e frios de uma tempestade de Inverno.

Garrett permaneceu onde estava, paralisado.

‑ Por favor - disse ele roucamente, ‑ não vás embora. ‑ A sua voz era baixa, quase obscurecida pelo som da chuva.

Ela não respondeu.           


Sabendo que começaria a chorar de novo se permanecesse mais tempo, ela fechou a janela. Olhando por cima do ombro, começou a sair da entrada em marcha atrás. Garrett pôs a sua mão sobre o capô quando o carro se começou a mover, e os seus dedos escorregavam ao longo da superfície molhada à medida que ele se afastava. Num instante o carro estava na rua, pronto para partir, os limpa pára‑brisas agitando‑se de um lado. para para o outro.

Com uma urgência súbita, Garrett sentiu a sua última oportunidade a sumir‑se.

‑ Theresa ‑ gritou ele ‑, espera!

Com a chuva a cair com regularidade, ela não o ouviu. O carro já tinha passado a casa. Garrett correu até à rua, acenando com os braços para lhe chamar a atenção. Ela pareceu não reparar.

‑ Theresa! ‑ gritou de novo. Ele estava agora no meio da estrada, correndo atrás do carro, os seus pés chapinhando através das poças que já tinham começado a formar‑se. As luzes dos travões piscaram durante um instante, depois mantiveram‑se acesas quando o carro parou. A chuva e o nevoeiro redemoinhavam à sua volta, fazendo‑o parecer uma miragem. Garrett sabia que ela estava a vê‑lo no espelho retrovisor, vendo‑o a aproximar‑se. Ainda havia uma oportunidade...

As luzes dos travões subitamente apagaram‑se e o carro avançou de novo, ganhando velocidade, acelerando mais depressa desta vez. Garrett continuou a correr atrás do carro, perseguindo‑o ao longo da rua. Viu‑a, a afastar‑se cada vez mais, tornando‑se mais pequeno a cada momento que passava. Os seus pulmões ardiam, mas continuou, competindo com uma sensação de futilidade. A chuva começou a cair em cascata, pingos de tempestade, encharcando‑lhe a camisa e tornando difícil a sua visão.

Finalmente abrandou o passo, depois parou. O ar estava denso da chuva, e ele respirava com dificuldade. A camisa colava‑se‑lhe à pele, o cabelo tapava‑lhe os olhos. Enquanto a chuva caía à sua volta, ele permanecia no meio da estrada, vendo o carro virar a esquina e a desaparecer de vista.

Mesmo assim não se mexeu. Ficou no meio da estrada durante muito tempo, tentando recuperar o fôlego, esperando que ela desse meia volta e voltasse para ele, desejando que não a tivesse deixado partir. Desejando mais uma oportunidade.

Ela tinha desaparecido.    

Alguns momentos mais tarde um carro buzinou atrás dele e ele sentiu o coração a saltar subitamente. Voltou‑se depressa e afastou a chuva dos olhos, quase esperando ver o rosto dela por trás do pára‑brisas, mas percebeu imediatamente que estava enganado. Garrett encaminhou‑se para o lado do passeio para deixar o carro passar, e quando sentiu o olhar curioso do homem sobre ele, apercebeu‑se subitamente de que nunca se sentira tão só.

 

No avião, Theresa estava sentada com a sua mala ao colo. Tinha sido um dos últimos passageiros a embarcar, entrando para o avião apenas alguns minutos antes da partida.

Olhando através da janela, observava a chuva a cair em lençóis ondulantes. Por baixo dela, no asfalto, as últimas bagagens estavam a ser carregadas, e os carregadores trabalhavam depressa para evitar que a bagagem se molhasse. Terminaram no momento em que a porta da cabina principal se fechou, e momentos mais tarde as escadas de embarque recuavam em direcção ao terminal.


Estava a anoitecer, e restavam apenas alguns minutos de uma luz cinzenta‑pálida. As hospedeiras de bordo fizeram as suas últimas travessias pela cabina, certificando‑se de que estava tudo em ordem, depois dirigiram‑se para os seus lugares. As luzes da cabina piscaram e o avião começou a sua lenta marcha, afastando‑se do terminal, virando na direcção da pista.

O avião parou paralelamente ao terminal, esperando a autorização para a descolagem.

Distraidamente ela olhou para o terminal. Do canto do olho, viu uma figura solitária junto à janela do terminal, as mãos pressionadas contra o vidro.

Olhou com mais atenção. Seria possível?       

Não podia dizer ao certo. As janelas esfumadas do terminal, a par da chuva a cair torrencialmente, obscureciam a sua visão. Se ele não estivesse tão perto do vidro, ela nem sequer teria reparado nele.

Theresa continuou a olhar para a figura, sentindo a respiração presa na garganta.

Quem quer que fosse não se mexia.

Os motores rugiram, depois acalmaram quando o avião começou o seu lento avanço. Ela sabia que restavam apenas alguns minutos. O portão ia ficando cada vez mais para trás à medida que o avião ia ganhando velocidade gradualmente.

Para a frente... em direcção à pista... para longe de Wilmington...  

Ela voltou a cabeça, esforçando‑se por uma última olhadela, mas era impossível dizer se a pessoa ainda lá estava.

Enquanto o avião rodava na pista para a posição final, ela continuava a olhar para a janela, perguntando a si mesma se o que ela vira tinha sido real ou se o tinha imaginado. O avião virou bruscamente, girando e colocando‑se em posição, e Theresa sentiu o impulso dos motores quando o avião começou a avançar ao longo da pista, os pneus ressoando até se descolarem do chão. Espreitando por entre as lágrimas, Theresa viu surgir Wilmington. Podia distinguir as praias vazias à medida que passavam sobre elas... os pontões... a marina..

O avião começou a descrever uma curva, inclinando‑se ligeiramente, voltando‑se para norte a caminho de casa. Da sua janela tudo o que podia ver agora era o oceano, o mesmo oceano que os juntara.

Por detrás das nuvens pesadas, o Sol estava a pôr‑se, deslizando em direcção ao horizonte.

Mesmo antes de subirem para as nuvens que iriam obliterar tudo o que estava lá em baixo, ela pôs a mão contra o vidro e tocou‑o suavemente, imaginando o tacto da mão dele mais uma vez.

‑ Adeus ‑ murmurou ela.   

Silenciosamente começou a chorar.

 

O Inverno chegou cedo no ano seguinte. Sentada na praia perto do local onde tinha encontrado a garrafa, Theresa reparou que a brisa fria do oceano se tornara mais forte desde que ela chegara de manhã. Nuvens cinzentas e agoirentas passavam no céu por cima dela, e as ondas começavam a subir e a rebentar com maior frequência. Ela sabia que a tempestade finalmente se aproximava.

Estivera ali a maior parte do dia, revivendo a sua relação com Garrett até ao dia em que se tinham despedido, estudando minuciosamente as suas recordações como se à procura de um grão de entendimento que talvez lhe tivesse escapado antes. Durante o ano anterior fora assombrada pela expressão dele na estrada, o seu reflexo no espelho retrovisor perseguindo o carro enquanto ela seguia em frente. Tê‑lo deixado naquele momento fora a coisa mais difícil que alguma vez fizera na vida. Muitas vezes sonhava em voltar atrás no tempo e reviver aquele dia.

Por fim levantou‑se. Em silêncio começou a caminhar ao longo da praia, desejando que ele estivesse ali com ela. Ele iria gostar de um dia tranquilo e nublado como aquele, e ela imaginou‑o a caminhar a seu lado enquanto olhava para o horizonte. Fez uma pausa, hipnotizada pelo movimento e ondulação da água, e quando finalmente voltou a cabeça, percebeu que a imagem dele também a tinha deixado. Permaneceu ali durante muito tempo, tentando trazê‑lo de volta, mas como a imagem dele não voltou, ela percebeu que eram horas de partir. Começou a andar de novo, embora desta vez mais devagar, perguntando a si mesma se ele teria conseguido adivinhar a razão porque ela estava ali.

Involuntariamente, sentiu os seus pensamentos regressarem aos dias imediatamente após o último adeus. Perdemos tanto tempo a compensar as coisas que não fomos capazes de dizer, ponderou ela. Se apenas, começou ela pela milésima vez, as imagens desses dias começaram a passar rapidamente por trás dos seus olhos como uma projecção de diapositivos que ela era incapaz de parar.

Se apenas...

 

Depois de regressar a Boston, Theresa apanharia Kevin a caminho de casa. Kevin, que passara o dia na casa de um amigo, contou entusiasmado o filme que tinha visto, não percebendo que a mãe mal o ouvia. Quando chegaram a casa ela encomendou uma pizza, e comeram na sala com a televisão ligada. Quando acabaram, ela surpreendeu Kevin ao convidá‑lo para ficar com ela durante um bocado em vez de ir fazer os seus trabalhos de casa. Encostado sossegadamente contra ela no sofá, Kevin lançava‑lhe de vez em quando um olhar ansioso, mas ela afagava‑lhe simplesmente o cabelo e sorria para ele com um ar ausente, como se estivesse muito longe dali.

Mais tarde, depois de Kevin se ter ido deitar e de ela saber que ele já estava a dormir, vestiu um pijama macio e serviu‑se de um copo de vinho. Ao regressar ao quarto, desligou o atendedor de chamadas junto ao telefone.


Na segunda‑feira teve um longo almoço com Deanna e contou‑lhe tudo o que acontecera. Tentou parecer forte. No entanto Deanna segurou‑lhe a mão o tempo todo, escutando pensativamente e mal falando.

‑ É melhor assim ‑ disse Theresa resolutamente quando terminou. ‑ Fico bem assim. ‑ Deanna olhou para ela, perscrutando‑a, os seus olhos cheios de compaixão. Mas não disse nada, apenas acenando com a cabeça às corajosas afirmações de Theresa.

Durante os dias seguintes Theresa fez o possível para evitar pensar nele. Trabalhar na sua coluna consolava‑a. Concentrar‑se na pesquisa e vertê‑la em palavras ocupava toda a sua energia mental. O ambiente agitado da redacção também ajudava, e porque a reunião com Dan Mandel correra tão bem quanto Deanna havia prometido, Theresa abordou o seu trabalho com entusiasmo redobrado, preparando duas ou três colunas por dia, mais depressa do que alguma vez escrevera.

à noite, porém, depois de Kevin ir para a cama e ela ficar sozinha, achava difícil manter longe a imagem dele. Copiando os seus hábitos de escritório, Theresa tentava concentrar‑se noutras tarefas. Limpou a casa de cima a baixo durante as primeiras noites ‑ esfregando o chão, limpando o frigorífico, aspirando e limpando o pó ao apartamento e reorganizando os armários. Nada foi deixado intacto. Fez até uma limpeza às suas gavetas, procedendo a uma escolha de roupa que já não vestia mais, com a intenção de a doar. Depois de as encaixotar, levou as roupas para o carro e arrumou‑as no porta‑bagagens. Naquela noite ela deu várias voltas ao apartamento, à procura de alguma coisa mais ‑ qualquer coisa ‑ que precisasse de ser feita. Por fim, percebendo que tinha terminado o seu trabalho, mas ainda incapaz de dormir, ligou a televisão. Saltando de canal em canal, parou quando viu Linda Ronstadt a ser entrevistada no programa Tonight. Theresa sempre gostara da sua música, mas quando Linda mais tarde se dirigiu ao microfone para cantar uma balada sentimental, Theresa começou a chorar. Não parou durante quase uma hora.

Naquele fim‑de‑semana ela e Kevin foram ver os New England Patriots jogar com os Chicago Bears. Kevin tinha andado a pressioná‑la para irem desde que a temporada do futebol terminara, e ela concordou finalmente em levá‑lo, embora percebesse pouco do jogo. Sentaram‑se nas bancadas, respirando em pequenas baforadas, bebendo chocolate quente e torcendo pela equipa da casa.

Mais tarde, quando foram jantar, Theresa, com relutância, contou a Kevin que ela e Garrett não voltariam a ver‑se.

‑ Mãe, aconteceu alguma coisa quando foste ver Garrett da última vez? Ele fez alguma coisa que te deixou zangada?

‑ Não ‑ disse ela baixinho ‑, não fez nada. ‑ Ela hesitou antes de desviar o olhar. ‑ Simplesmente não tinha de ser.

Embora Kevin parecesse nitidamente perplexo com aquela resposta, era o mais longe que ela podia ir naquele momento na explicação do que acontecera.

Theresa foi surpreendida pelo telefone enquanto trabalhava no computador.

‑ É Theresa que fala?

‑ Sim, é ‑ respondeu ela, não reconhecendo a voz.

‑ Daqui fala Jeb Blake... o pai de Garrett. Eu sei que isto vai parecer estranho, mas gostava de falar consigo.

‑ Oh, olá ‑ gaguejou ela. ‑ Hum!... tenho alguns minutos agora.

Ele fez uma pausa.


‑ Gostava de falar consigo pessoalmente, se fosse possível. Não é assunto em que me sinta confortável a falar pelo telefone.

‑ Posso perguntar‑lhe de que se trata?

‑ É sobre Garrett ‑ disse ele baixinho. ‑ Eu sei que é pedir muito, mas acha que seria possível vir até cá de avião? Não lhe faria esse pedido se não fosse importante.

Acabando por aceitar, Theresa deixou o trabalho e foi até à escola de Kevin. Depois de o ir buscar cedo, deixou‑o com um amigo em que podia confiar, explicando que provavelmente iria estar fora durante alguns dias. Kevin tentou fazer‑lhe perguntas sobre a sua súbita viagem, mas o comportamento estranho e distraído dela tornava evidente que as explicações teriam de ser dadas mais tarde.

‑ Diz‑lhe olá por mim ‑ disse ele, despedindo‑se com um beijo.

Theresa acenou apenas com a cabeça e depois foi para o aeroporto apanhando o primeiro voo disponível. Uma vez em Wilmington, foi directamente para casa de Garrett, onde Jeb estava à sua espera.

‑ Fico contente por ter podido vir ‑ disse Jeb logo que ela chegou.

‑ O que se passa? ‑ perguntou ela, perscrutando curiosamente a casa por sinais da presença de Garrett.

Jeb parecia mais velho do que ela o lembrava. Conduzindo‑a até à mesa da cozinha, puxou por uma cadeira para ela se sentar com ele. Falando baixinho, começou com aquilo que sabia.

‑ Por aquilo que consegui perceber depois de ter falado com várias pessoas ‑ disse ele baixinho, ‑ Garrett saiu com o Happenstance mais tarde do que era habitual...

 

Era simplesmente algo que ele tinha de fazer. Garrett sabia que as nuvens escuras e pesadas no horizonte pressagiavam uma tempestade próxima. Pareciam suficientemente longe, porém, para lhe dar o tempo de que precisava. Além disso, ia apenas distanciar‑se algumas milhas da costa. Mesmo que a tempestade o atingisse, estaria suficientemente perto para conseguir regressar ao porto. Depois de calçar as luvas, guiou o Happenstance através das vagas cada vez maiores, as velas já em posição.

Durante três anos ele seguira a mesma rota sempre que saía de barco, guiado pelo instinto e pelas recordações de Catherine. Fora ideia dela rumar directamente a leste naquela noite, a primeira noite depois de o Happenstance estar pronto. Na imaginação dela eles navegavam em direcção à Europa, um lugar onde quisera sempre ir. às vezes ela regressava a casa com revistas de viagens e examinava as fotografias com ele sentado a seu lado. Ela queria ver tudo: os famosos châteaux do Vale do Loire, o Partérion, as terras altas da Escócia, a Basílica, todos os lugares sobre os quais tinha lido. As suas férias ideais variavam desde o mais comum até ao exótico, mudando de cada vez que ela pegava numa revista diferente.

Mas claro, nunca chegaram à Europa.  


Era um dos seus maiores arrependimentos. Quando olhava para trás, para a sua vida com ela, ele sabia que era a coisa principal que devia ter feito. Podia ter‑lhe proporcionado esse tanto, pelo menos, e olhando para trás, sabia que teria sido possível. Depois de dois anos a poupar, eles tinham tido o dinheiro para ir e chegaram a meditar sobre planos de viagem, mas no fim acabaram por usar o dinheiro para comprar a loja. Quando ela percebeu que a responsabilidade do negócio nunca os deixaria com tempo suficiente para ir, o seu sonho começou por fim a dissipar‑se. Começou a trazer as revistas para casa com menos frequência. Após algum tempo raramente falava na Europa.

Porém na noite em que saíram com o Happenstance pela primeira vez, ele percebeu que o sonho dela ainda estava vivo. Ela estava na proa, olhando para o horizonte, segurando a mão de Garrett.

‑ Alguma vez iremos? ‑ perguntou‑lhe ela delicadamente, e era essa visão dela que ele sempre recordava: o seu cabelo ondeando ao vento, a sua expressão radiante e esperançosa, como a de um anjo.

‑ Sim - prometeu ele ‑, logo que tenhamos tempo.

Menos de um ano mais tarde, grávida, Catherine morreu no hospital com Garrett a seu lado.

Mais tarde, quando os sonhos começaram, ele não sabia o que fazer. Durante um tempo tentou afastar para longe os seus sentimentos atormentados. Depois, uma manhã, num ataque de desespero, tentou encontrar alivio expressando os seus sentimentos em palavras. Escreveu depressa, sem parar, e a primeira carta tinha quase cinco páginas. Levou a carta acabada com ele quando foi velejar mais tarde naquele dia, e ao lê‑la de novo teve subitamente uma ideia. Como a Corrente do Golfo corria para norte ao longo da costa dos Estados Unidos e por fim virava para leste quando encontrava as águas frias do Atlântico, com um pouco de sorte, conseguiria fazer com que uma garrafa fosse arrastada pela corrente até à Europa dando à costa da terra estrangeira que ela sempre quisera visitar.

Tomada a decisão, selou a carta numa garrafa e deitou‑a borda fora com a esperança de, eventualmente, cumprir a promessa que fizera. Tornou‑se numa rotina que nunca mais quebraria.

Desde então escrevera mais dezasseis cartas ‑ dezassete, se contássemos aquela que tinha com ele naquele momento. à roda do leme, orientando o barco directamente para leste, ele tocava distraidamente na garrafa aninhada no bolso do seu casaco. Escrevera‑a naquela manhã, logo depois de se levantar.

O céu começava a tornar‑se cinzento, mas Garrett seguia em frente, em direcção ao horizonte. A seu lado, o rádio crepitava com avisos sobre a tempestade que se aproximava. Depois de um momento de hesitação, desligou‑o e estudou o céu. Ainda tinha tempo, decidiu. Os ventos eram fortes e constantes, mas não eram ainda imprevisíveis.

Depois de escrever aquela carta a Catherine, escrevera uma segunda também. Dessa ele já havia tratado. Mas por causa da segunda carta, ele sabia que tinha de enviar a primeira, a Catherine, naquele dia. As tempestades alinhavam‑se ao longo do Atlântico, movendo‑se lentamente para oeste numa marcha em direcção à costa leste. Segundo as reportagens que vira na televisão, parecia que não poderia sair ao mar outra vez durante pelo menos uma semana, e isso era demasiado tempo para esperar. Nessa altura ele já teria partido.


O mar agitado continuava a subir: as vagas rebentando mais alto, cada vez mais cavadas. As velas começavam a agitar‑se com os ventos pesados e constantes. Garrett avaliou a sua posição. As águas eram profundas ali, mas não o suficiente. A Corrente do Golfo era apenas um fenómeno de Verão, e a única maneira da garrafa ter uma hipótese de atravessar o oceano era se fosse lançada ao mar suficientemente longe da costa. De outra maneira a tempestade poderia arrastá‑la de volta para a costa dentro de poucos dias ‑ e de todas as cartas que lhe escrevera, ele queria que aquela, especialmente, chegasse à Europa. Tinha decidido que seria a última que enviaria.

No horizonte, as nuvens pareciam agoirentas.            

Vestiu o impermeável e abotoou‑o. Ele esperava que ele o protegesse pelo menos durante algum tempo, quando a chuva chegasse.

O Happenstance começou a balouçar‑se à medida que avançava para mais longe da costa. Ele segurava a roda do leme com ambas as mãos, mantendo‑a o mais estável possível. Quando os ventos mudaram e ganharam velocidade ‑ assinalando a frente da tempestade ‑ ele começou a velejar à bolina, seguindo diagonalmente através das ondas apesar dos riscos. Velejar à bolina era difícil naquelas condições, atrasando o seu avanço, mas ele preferia ir agora contra o vento do que tentar velejar à bolina no caminho de regresso se a tempestade o apanhasse.

O esforço era fatigante. Sempre que mudava as velas, precisava de toda a sua força apenas para evitar perder o controlo. Apesar das luvas, as suas mãos ardiam quando as cordas escorregavam por elas. Duas vezes, em duas rajadas de vento inesperadas, ele quase perdeu o equilíbrio, salvando‑se apenas porque as rajadas se extinguiram tão depressa como tinham surgido.

Durante quase uma hora ele continuou a navegar à bolina, sempre a observar a tempestade ao longe. Parecia ter acalmado, mas ele sabia que era uma ilusão. Atingiria a costa em poucas horas. Logo que atingisse águas menos fundas, a tempestade aceleraria e o oceano tornar‑se‑ia inavegável. Agora estava apenas a reunir forças, tal como uma mecha a arder lentamente, preparando‑se para explodir.

Garrett já antes tinha sido apanhado em grandes tempestades e sabia não dever subestimar o alcance daquela. Bastava um movimento descuidado e o oceano levá‑lo‑ia, e ele estava determinado a não deixar que isso acontecesse. Ele era teimoso, mas não imprudente, No momento em que pressentisse perigo verdadeiro, voltaria o barco para trás e seguiria a toda a pressa para o porto.

No céu por cima dele, as nuvens continuavam a adensar‑se, enrolando‑se e retorcendo‑se em novas formas. Uma chuva leve começou a cair. Garrett olhou para cima, sabendo que estava apenas a começar. "Só mais alguns minutos", murmurou ele baixinho. Precisava apenas de mais alguns minutos...

Os relâmpagos iluminavam o céu, e Garrett contava os segundos até ouvir as trovoadas. Dois minutos e meio mais tarde elas finalmente fizeram‑se ouvir, ressoando através da extensão livre do oceano. O centro da tempestade estava mais ou menos a vinte e cinco milhas de distância. Com a velocidade do vento naquele momento, calculou ele, tinha mais de uma hora antes de ela chegar em plena força. Quando isso acontecesse planeava já estar bem longe.


A chuva continuava a cair.

A escuridão começou a instalar‑se enquanto ele avançava sem parar. à medida que o Sol descia, as nuvens impenetráveis por cima dele escondiam da vista o que restava de luz do sol, baixando rapidamente a temperatura do ar. Dez minutos mais tarde a chuva começou a cair com mais força e mais fria.

Raios! Começava a ficar sem tempo, mas ainda não estava lá.     

As ondas pareciam levantar‑se, o oceano agitava‑se, enquanto o Happenstance seguia em frente. Para manter o equilíbrio, ele abriu mais as pernas. A roda do leme estava segura, mas as vagas começavam a surgir diagonalmente agora, fazendo oscilar o barco como um berço pouco estável. Decidido, ele continuou em frente.

Minutos mais tarde os relâmpagos tremeluziram de novo... pausa... trovoadas. Vinte milhas agora. Ele olhou para o relógio. Se a tempestade avançasse àquele ritmo, ele evitá‑la‑ia por um fio. Ainda conseguiria voltar ao porto a tempo, desde que os ventos continuassem a soprar na mesma direcção.

Mas se os ventos mudassem...   

A sua mente ponderava o cenário. Ele estava a duas horas e meia da costa ‑ navegando com o vento, precisaria de uma hora e meia para voltar, no máximo, se tudo corresse como planeado. A tempestade atingiria a costa mais ou menos ao mesmo tempo que ele.

‑ Raios ‑ disse ele, desta vez em voz alta. Tinha de lançar a garrafa agora, embora não estivesse tão longe da costa como desejaria. Mas não podia arriscar‑se a ir mais longe.

Agarrou na agora trémula roda do leme com uma mão enquanto metia a outra dentro do casaco e tirava a garrafa para fora. Forçou a rolha para se certificar de que ela estava bem apertada, depois levantou a garrafa à luz pálida. Podia ver a carta lá dentro, devidamente enrolada.

Olhando para ela, experimentou uma sensação de realização, como se uma longa viagem tivesse finalmente chegado ao fim.

‑ Obrigado ‑ murmurou ele, com uma voz quase inaudível por cima do rebentar das ondas.

Atirou a garrafa o mais longe que pôde e observou‑a a voar, só a perdendo de vista quando ela atingiu a água. Estava feito.

Agora, voltar o barco para trás.    

Naquele momento, dois relâmpagos romperam o céu simultaneamente. Quinze milhas de distância agora. Ele hesitou, preocupado.

Não podia estar a vir assim tão depressa, pensou de repente. Mas a tempestade parecia ganhar velocidade e força, dilatando‑se como um balão, dirigindo‑se directamente para ele.


Ele usou os laços para estabilizar a roda do leme enquanto regressava à ré. Perdendo minutos preciosos, lutou furiosamente para manter o controlo sobre a retranca. As cordas ardiam nas suas mãos, rasgando‑lhe as luvas. Conseguiu finalmente mudar as velas, e o barco inclinou‑se bastante quando apanhou o vento. Quando regressou ao leme, houve uma rajada de vento que soprou um jacto de ar frio de uma direcção diferente.

O ar quente corre para o ar frio.

Ligou o rádio mesmo a tempo de ouvir um alerta para pequenas embarcações. Aumentou rapidamente o volume, escutando com atenção enquanto a transmissão descrevia os padrões do clima em rápida mutação. ‑ Repito... alerta para pequenas embarcações... formação de ventos perigosos... esperam‑se chuvas fortes.

A tempestade ganhava força.      

Com a temperatura a baixar rapidamente, os ventos aumentavam perigosamente de velocidade. Nos últimos três minutos tinham aumentado para uma rajada constante de vinte e cinco nós.

Ele debruçou‑se sobre a roda do leme com uma crescente sensação de urgência.

Nada aconteceu.    

Percebeu subitamente que vagas cada vez maiores levantavam a ré para fora da água, impedindo que o leme respondesse. O barco parecia paralisado na direcção errada, balançando‑se precariamente. Subiu outra vaga e o casco bateu com força contra a água, a proa do barco quase submergindo.

‑ Vá lá... reage ‑ sussurrou ele, com os primeiros sinais de pânico a desenrolarem‑se nas entranhas. Estava a demorar demasiado tempo. O céu tornava‑se mais escuro, a cada minuto, e a chuva começou a cair de lado em camadas densas e impenetráveis.

Um minuto mais tarde o leme reagiu finalmente e o barco começou a virar...

Lentamente... lentamente... ainda demasiado inclinado para o lado...

Com um horror crescente viu o oceano erguer‑se à sua volta para formar uma vaga gigante e estrondosa que se dirigia directamente a ele.

Ele não ia conseguir voltar a terra.         

Segurou‑se com força quando a água caiu com um estrondo sobre o casco descoberto, fazendo subir penachos brancos. O Happenstance inclinou‑se ainda mais e as pernas de Garrett dobraram‑se, mas o seu pulso sobre a roda do leme mantinha‑se sólido. Ele pôs‑se de novo em pé, com dificuldade, quando outra vaga atingiu o barco.

O convés foi inundado de água.

O barco lutava para se manter direito no meio das rajadas de vento, agora metendo água abundantemente. Durante quase um minuto a água entrou de enxurrada para o convés com a força de um rio enraivecido. Depois os ventos acalmaram subitamente durante um momento, e miraculosamente o Happenstance começou a endireitar‑se, o mastro erguendo‑se ligeiramente no céu de ébano. O leme reagiu de novo e Garrett girou a roda com força, sabendo que tinha de virar o barco rapidamente.

Relâmpagos de novo. A sete milhas de distância agora.

O rádio crepitava. ‑ Repito... alerta para pequenas embarcações... espera‑se que os ventos atinjam os quarenta nós... repito... ventos a quarenta nós, com rajadas a cinquenta...

Garrett sabia que estava em perigo. Não havia maneira de controlar o Happenstance com ventos tão fortes.


O barco continuava a dar a sua volta, lutando contra o peso extra e as ferozes vagas do oceano. A água a seus pés atingia quase os quinze centímetros agora. Estava quase...

Um vento muito forte começou a soprar subitamente da direcção oposta, travando o seu avanço e sacudindo o Happenstance como um brinquedo. Na altura em que o barco estava mais vulnerável, uma grande onda rebentou contra o casco. O mastro afundou‑se ainda mais, apontando na direcção do oceano.

Desta vez a rajada nunca mais parou.  

A chuva gelada caía de lado, cegando‑o. O Happenstance, em vez de se endireitar, começou a inclinar‑se ainda mais, as velas começaram a ficar pesadas com a água da chuva. Garrett desequilibrou‑se de novo e o ângulo do barco começou a opor‑se aos seus esforços para se levantar. Se outra vaga o atingisse de novo...

Garrett não a viu chegar.   

Como o golpe de um carrasco, a onda despenhou‑se contra o barco numa conclusão terrível, virando o Happenstance de lado, o que fez o mastro e as velas chocarem contra a água. O barco estava perdido. Garrett agarrava‑se à roda do leme, sabendo que se o largasse, seria lançado para o meio do mar.

O Happenstance começou a meter água rapidamente, suspirando com dificuldade como uma enorme besta a afogar‑se.

Ele tinha de chegar ao kit de emergência, que incluía uma balsa. Era a sua única oportunidade. Garrett encaminhou‑se aos poucos para a porta da cabine, segurando‑se a tudo o que podia, lutando contra a chuva que cegava, lutando pela vida.

Relâmpagos e trovoadas de novo, quase simultaneamente.                       Alcançou finalmente o alçapão e agarrou‑se à maçaneta. Não cedia. Desesperado, colocou os pés em posição para obter uma maior força de alavanca e puxou de novo. Quando a porta se abriu com um estalo, a água começou a inundar o interior, e ele percebeu de repente que tinha cometido um grande erro.

O oceano entrou de enxurrada, rapidamente obscurecendo o interior da cabine. Garrett viu imediatamente que o kit, normalmente preso a uma caixa na parede, estava já debaixo de água. Não havia nada, percebeu finalmente, que impedisse o barco de ser engolido pelo oceano.

Entrando em pânico, esforçou‑se por fechar a porta da cabine, mas a torrente de água e a sua falta de equilíbrio tornavam essa tarefa impossível. O Happenstance começou a afundar‑se rapidamente. Em segundos metade do casco estava debaixo de água. De repente lembrou‑se.

Coletes salva‑vidas...        

Eles estavam debaixo dos bancos perto da popa.      

Ele olhou. Estavam ainda por cima da água.   

Lutando furiosamente, tentou agarrar‑se aos corrimões laterais, os únicos apoios para a mão ainda acima da água. Quando conseguiu agarrá‑los, já a água lhe dava pelo peito e as suas pernas agitavam‑se no oceano. Amaldiçoou‑se a si próprio, sabendo que já devia ter colocado antes o colete salva‑vidas.

Três quartos do barco estavam agora debaixo de água, e continuava a afundar‑se.

Esforçando‑se por chegar aos bancos, colocava uma mão por cima da outra, lutando contra o peso das ondas com os seus próprios músculos de chumbo. A meio caminho, o mar chegou‑lhe ao pescoço e finalmente percebeu a futilidade da situação.


Não iria conseguir lá chegar.       

A água já lhe dava pelo queixo quando finalmente parou de tentar. Olhando para cima, o seu corpo exausto, ainda se recusava a acreditar que tudo terminaria daquela maneira.

Largou o corrimão lateral e começou a nadar para longe do barco. O casaco e os sapatos arrastavam‑se pesadamente na água. Ele boiava à superfície, subindo com as vagas enquanto via o Happenstance desaparecer finalmente no fundo do oceano. Então, com o frio e a fadiga começando a entorpecer‑lhe os seus sentidos, ele voltou‑se e começou o lento, impossível percurso a nado em direcção à costa.

 

Theresa estava sentada com Jeb à mesa. Falando aos soluços, ele demorara muito tempo a contar‑lhe o que sabia.

Mais tarde, Theresa recordar‑se‑ia que ao escutar a história, ela fizera‑o não tanto com um sentimento de medo mas com curiosidade. Ela sabia que Garrett sobreviveria. Ele era um velejador experiente, ainda melhor nadador. Era demasiado cuidadoso, demasiado vivo, para que uma coisa daquelas pudesse levar a melhor sobre ele. Se alguém poderia sobreviver, seria ele.

Ela estendeu o braço através da mesa para Jeb, confusa.

‑ Não compreendo... Porque é que ele saiu de barco se sabia que se aproximava uma tempestade?

‑ Não sei ‑ disse ele baixinho. Não conseguia olhá‑la nos olhos.

Theresa franziu o sobrolho, e a confusão tornava as coisas à sua volta surreais.

‑ Ele disse‑lhe alguma coisa antes de partir?

Jeb abanou a cabeça. Estava pálido, os olhos cabisbaixos como se a esconder algo. Distraidamente Theresa olhou em volta da cozinha. Estava tudo arrumado, como se tivesse sido limpo minutos antes de ela chegar. Através da porta aberta do quarto de dormir ela viu a colcha de retalhos de Garrett estendida cuidadosamente sobre a cama. Estranhamente, dois grandes arranjos florais tinham sido colocados em cima dela.

‑ Não percebo, ele está bem, não está?

‑ Theresa ‑ disse finalmente Jeb com lágrimas formando nos olhos ‑, eles encontraram‑no ontem de manhã.

‑ Está no hospital?

‑ Não ‑ disse ele baixinho.

‑ Então onde está ele? ‑ perguntou ela, recusando‑se a aceitar o que ela de certa forma sabia.

Jeb não respondeu.           

Foi então que subitamente começou a ter dificuldade em respirar. O seu corpo começou a tremer. Garrett! pensou ela. Que aconteceu?

Porque não estás aqui. Jeb baixou a cabeça para que ela não visse as suas lágrimas, mas ela podia ouvir o seu arfar entrecortado.

‑ Theresa... ‑ disse ele, a sua voz sumindo‑se.

‑ Onde está ele? ‑ ela exigiu saber, saltando subitamente da cadeira numa vaga frenética de adrenalina. Ela ouviu a cadeira tombar ruidosamente no chão atrás de si como se fosse a grande distância.

Jeb olhou para ela silenciosamente. Depois, com um gesto pausado, limpou as lágrimas com as costas da mão.

‑ Encontraram o corpo dele ontem de manhã.


Ela sentiu o peito contrair‑se como se estivesse a sufocar.

‑ Ele morreu, Theresa.

 

Na praia onde tudo tinha começado, Theresa permitiu‑se recordar os acontecimentos do ano anterior.

Tinham‑no enterrado ao lado de Catherine, num pequeno cemitério perto da sua casa. Jeb e Theresa assistiram juntos ao serviço religioso junto à campa, rodeados pelas pessoas cujas vidas Garrett tinha tocado ‑ amigos da escola secundária, antigos alunos de mergulho, empregados da loja. Foi uma cerimónia simples, e embora tivesse começado a chover no momento em que o padre acabou de falar, as pessoas demoraram‑se no local até muito depois de ela ter terminado.

O velório teve lugar em casa de Garrett. Uma a uma, as pessoas apareceram, todas oferecendo as suas condolências e partilhando recordações. Quando as últimas pessoas saíram, deixando Jeb e Theresa sozinhos, Jeb tirou uma caixa da despensa e pediu a Theresa para se sentar com ele para a examinarem juntos.

Na caixa estavam centenas de fotografias. Durante as horas seguintes ela assistiu ao desenrolar da infância e adolescência de Garrett ‑ todas as peças que faltavam da sua vida e que ela apenas imaginara. Depois havia as fotografias dos anos posteriores ‑ formaturas na escola secundária e na universidade; Happenstance restaurado; Garrett à frente da loja remodelada antes da sua abertura. Em cada uma delas, reparou ela, o seu sorriso nunca mudava. Sorrindo com ele, ela notou que na maior parte o seu vestuário também não tinha mudado. A não ser que a fotografia fosse tirada para uma ocasião especial, desde a primeira infância em diante parecia que ele sempre se tinha vestido da mesma maneira ‑ ou calças de ganga ou calções, uma camisa informal, e moccasins sem meias.

Havia dezenas de fotografias de Catherine. A princípio Jeb parecia pouco à vontade quando ela as viu, mas estranhamente, elas não a afectavam verdadeiramente. Não sentia nem tristeza nem ira por causa delas. Eram simplesmente parte de um outro tempo na vida dele.

Mais tarde nessa noite, quando passavam os olhos pelas últimas fotografias, ela viu o Garrett por quem se tinha apaixonado. Uma foto em particular chamou‑lhe a atenção, e segurou‑a à sua frente durante muito tempo. Reparando na expressão dela, Jeb explicou que tinha sido tirada no dia das comemorações dedicadas aos mortos da guerra, algumas semanas antes de a garrafa ter dado à costa em Cape Cod. Na fotografia Garrett estava na sua varanda de trás, com uma aparência não muito diferente daquela que tinha quando ela viera pela primeira vez à sua casa.

Quando ela finalmente foi capaz de a pousar sobre a mesa, Jeb tirou‑lha delicadamente.

Na manhã seguinte entregou a Theresa um envelope. Abrindo‑o, ela viu que ele lha devolvera, juntamente com várias outras. Com as fotografias estavam as três cartas que tinham permitido que Theresa e Garrett se conhecessem.

‑ Penso que ele quereria que a Theresa ficasse com estas. Demasiado emocionada para responder, ela agradeceu silenciosamente com a cabeça.


Theresa lembrava‑se pouco dos primeiros dias após o seu regresso a Boston, e retrospectivamente sabia que na verdade não queria lembrar‑se. Recordava‑se sim que Deanna estava à sua espera no aeroporto de Logan quando o seu avião aterrou. Depois de olhar para ela, Deanna telefonou imediatamente ao marido, dando‑lhe instruções para que levasse algumas roupas para casa de Theresa porque ela planeava lá ficar durante alguns dias. Theresa passou a maior parte do tempo na cama, sem se preocupar em levantar‑se quando Kevin regressava a casa da escola.

‑ A minha mãe alguma vez vai ficar boa? ‑ perguntava Kevin.

‑ Ela só precisa de um pouco de tempo, Kevin ‑ respondia Deanna. ‑ Eu sei que também é difícil para ti, mas vai ficar tudo bem.

Os sonhos de Theresa, quando conseguia lembrar‑se deles, eram fragmentados e desconcertantes. Surpreendentemente, Garrett nunca aparecia neles. Ela não sabia se era uma espécie de presságio ou se podia até atribuir algum significado a esse facto. No seu aturdimento, achava difícil pensar no que quer que fosse com clareza. Ia para a cama cedo e mantinha‑se lá, encasulada na escuridão apaziguadora durante o tempo que fosse possível.

às vezes ao acordar, experimentava uma fracção de segundo de irrealidade confusa quando tudo aquilo parecia um terrível engano, demasiado absurdo para ter de facto acontecido. Nessa fracção de segundo, tudo era como devia ser. Dava por si a esforçar‑se por ouvir os sons de Garrett no apartamento, segura de que a cama vazia significava apenas que ele já estava na cozinha, bebendo café e lendo o jornal. Em breve ela juntar‑se‑lhe‑ia à mesa e abanaria a cabeça: Tive um sonho horrível...

A única outra recordação daquela semana era a necessidade persistente de compreender como tudo aquilo podia ter acontecido. Antes de deixar Wilmington, ela fez Jeb prometer telefonar‑lhe se soubesse mais alguma coisa sobre o dia em que Garrett saíra com o Happenstance. Numa curiosa deturpação de raciocínio, ela acreditava que conhecendo os pormenores ‑ o porquê ‑ de alguma maneira isso diminuiria a sua dor. O que ela se recusava a acreditar era que Garrett tivesse partido de encontro à tempestade sem intenção de voltar. Quando o telefone tocava, as suas esperanças subiam na expectativa de ouvir a voz de Jeb. "Estou a ver", imaginava‑se a dizer. "Sim... compreendo. Isso faz sentido..."

Claro, lá no fundo, ela sabia que isso nunca iria acontecer. Jeb não telefonou com uma explicação nessa semana, nem a resposta veio ter com ela num momento de contemplação. Não, a resposta chegou por fim de um lugar que ela nunca teria previsto.

 

Na praia em Cape Cod, um ano mais tarde, ela reflectia sem amargura sobre o curso de acontecimentos que a tinham conduzido àquele lugar. Finalmente pronta, Theresa procurou no seu saco.


Depois de retirar o objecto que trouxera com ela, olhou‑o fixamente, revivendo o momento em que a sua resposta tinha finalmente chegado. Ao contrário das suas recordações dos dias logo após o seu regresso a Boston, esta permanecia ainda inabalavelmente nítida.

Depois de Deanna ter ido embora, Theresa tinha tentado restabelecer uma espécie de rotina. Na sua confusão durante a semana anterior, ela ignorara os aspectos da vida que apesar de tudo tinham continuado. Enquanto Deanna estivera a ajudar a cuidar de Kevin e a manter a casa em ordem, ela tinha simplesmente empilhado o correio que acumulara no canto da sala de jantar. Depois do jantar numa noite em que Kevin tinha ido ao cinema, Theresa começou distraidamente a organizar a pilha de correspondência.

Havia algumas dezenas de cartas, três revistas, e dois embrulhos. Um dos pacotes ela reconheceu como um artigo que ela encomendara de um catálogo para os anos de Kevin. O segundo, porém, estava embrulhado em papel pardo simples e não trazia a morada do remetente.

Este segundo pacote era comprido e rectangular, selado com fita adesiva adicional. Havia dois autocolantes dizendo "Frágil" ‑ um junto à morada e outro no lado contrário da caixa ‑ e outro autocolante que dizia "Cuidado". Curiosa, decidiu abri‑la primeiro.

Foi então que ela reparou no carimbo de correio de Wilmington, Carolina do Norte, com a data de duas semanas antes. Imediatamente examinou a morada rabiscada na parte da frente.

Era a letra de Garrett.

‑ Não... ‑ Ela pôs o embrulho de lado, o seu estômago subitamente apertado.

Encontrou um par de tesouras na gaveta e com as mãos a tremer começou a cortar a fita, puxando o papel com cuidado ao mesmo tempo. Ela já sabia o que iria encontrar lá dentro.

Depois de tirar o objecto para fora e examinar o resto da caixa para ter a certeza de que não havia mais nada lá dentro, desembrulhou cuidadosamente o plástico envolvente. Estava bem preso em cima e em baixo, e foi obrigada a usar as tesouras de novo. Finalmente, depois de retirar os pedaços restantes, colocou o objecto sobre a sua secretária e olhou para ele durante um longo momento, incapaz de se mexer. Quando a voltou para a luz, viu o seu reflexo.

A garrafa estava rolhada, com a carta enrolada no seu interior. Depois de tirar a rolha ‑ ele não a tinha apertado muito ‑ ela virou‑a ao contrário, e a carta saiu para fora com facilidade. Tal como a carta que encontrara há alguns meses, esta vinha atada com um fio. Desenrolou‑a cuidadosamente para não a rasgar.

Estava escrita a caneta de tinta permanente. No canto superior direito havia a imagem de um velho barco, as velas agitando‑se ao vento.

 

Querida Theresa,   

Consegues perdoar‑me?

 

Ela colocou a carta sobre a secretária. Doía‑lhe a garganta, dificultando‑lhe a respiração. A luz por cima dela fazia um estranho prisma com as suas lágrimas inesperadas. Ela pegou num lenço de papel e esfregou os olhos. Recompondo‑se, começou de novo.

 

Consegues perdoar‑me?  


Num mundo que eu raramente compreendo, existem ventos de destino que sopram quando menos os esperamos. Por vezes sopram com a violência de um furacão, outras vezes mal os sentimos no rosto. Mas os ventos não podem ser negados, trazendo como muitas vezes trazem um futuro impossível de ignorar. Tu, minha querida, és o vento que eu não antecipei, a rajada que soprou com mais força do que eu alguma vez imaginara possível. Tu és o meu destino.

Eu fiz mal, muito mal, ao ignorar o que era óbvio, e peço que me perdoes. Como um viajante cuidadoso, tentei proteger‑me do vento e perdi a alma em troca. Fui estúpido ao ignorar o meu destino, mas até os estúpidos têm sentimentos, e acabei por perceber que tu és a coisa mais importante que tenho neste mundo.

Eu sei que não sou perfeito. Cometi mais erros nos últimos meses do que alguns cometem numa vida inteira. Fiz mal ao agir da maneira como agi quando encontrei as cartas, tal como fiz mal ao esconder a verdade sobre aquilo que estava a acontecer comigo em relação ao meu passado. Quando corri atrás de ti na estrada e também quando te vi partir no aeroporto, soube que devia ter‑me esforçado mais para te deter. Mas mais do que tudo, fiz mal ao negar o que era óbvio no meu coração: que não sou capaz de continuar a viver sem ti.

Tinhas razão em relação a tudo. Quando estávamos os dois sentados na cozinha, eu tentei negar as coisas que dizias, mesmo sabendo que elas eram verdadeiras. Tal como um homem que olha apenas para trás numa viagem através do país, eu ignorei o que estava à minha frente. Perdi a beleza de um nascer do Sol que estava para vir, o encanto da antecipação que faz a vida valer a pena. Fiz mal ao proceder dessa maneira, em resultado da minha confusão, e gostava de ter percebido isso mais cedo.

Agora, porém, com os meus olhos postos no futuro, vejo o teu rosto e oiço a tua voz, certo de que esse é o caminho que devo seguir. É o meu mais profundo desejo que tu me dês mais uma oportunidade. Como deves ter imaginado, tenho a esperança de que esta garrafa faça valer a sua magia, tal como aconteceu uma vez, e que de alguma maneira nos volte a juntar.

Durante os primeiros dias depois de teres partido, quis acreditar que poderia continuar a viver como sempre tinha vivido até então. Mas não posso. Sempre que assistia a um pôr do Sol, pensava em ti. Sempre que passava pelo telefone, ansiava telefonar‑te. Mesmo quando saía de barco, apenas conseguia pensar em ti e nos tempos maravilhosos que tivemos juntos. Sabia no meu coração que a minha vida nunca mais seria a mesma. Queria‑te de volta, mais do que imaginara possível, e no entanto, sempre que te evocava, ouvia as tuas palavras na nossa última conversa. Por mais que te amasse, sabia que nada iria ser possível a não ser que nós ‑ os dois ‑ tivéssemos a certeza de que eu me dedicaria inteiramente ao caminho que seguia em frente. Estes pensamentos continuaram a perturbar‑me até ontem ao fim da noite, quando a resposta finalmente veio ter comigo. Espero que depois de ta contar, ela seja tão importante para ti como foi para mim:


No meu sonho, vi‑me na praia com Catherine, no mesmo sítio onde te levei depois do nosso almoço no Hanks. Estava‑se bem ao sol, os raios reflectindo, brilhantes, na areia. à medida que caminhávamos ao lado um do outro, ela escutava com atenção enquanto eu lhe falava de ti, de nós, dos momentos maravilhosos que partilhávamos. Finalmente, depois de alguma hesitação, admiti que te amava, mas que me sentia culpado por causa disso. Ela não disse nada imediatamente mas continuou simplesmente a andar até que por fim voltou‑se para mim e perguntou‑me.

‑ Porquê?

‑ Por causa de ti.     

Ao ouvir a minha resposta, ela sorriu para mim divertida e pacientemente, como costumava fazer antes de morrer

‑ Oh, Garrett ‑ disse ela finalmente, tocando‑me ternamente no rosto ‑, quem é que pensas que lhe levou a garrafa?

 

Theresa parou de ler. O leve zumbir do frigorífico parecia ecoar as palavras da carta:

Quem é que pensas que lhe levou a garrafa?

Recostando‑se na cadeira, fechou os olhos, tentando reter as lágrimas.

‑ Garrett ‑ murmurou ela ‑, Garrett... ‑ Lá fora, ela podia ouvir os ruídos de carros a passar. Começou a ler de novo, lentamente.

 

Quando acordei, senti‑me vazio e só. O sonho não me trouxe alívio. Pelo contrário, fez‑me doer por dentro por causa do que eu tinha feito à nossa relação, e comecei a chorar. Quando finalmente me recompus, sabia o que tinha de fazer. Com a mão a tremer, escrevi duas cartas: aquela que tens na tua mão neste momento, e uma para Catherine, na qual eu finalmente digo o meu adeus. Hoje, vou sair com o Happenstance para a lançar ao mar, como fiz com todas as outras. Será a minha última carta. Catherine, à sua maneira, disse‑me para seguir em frente, e eu decidi escutar. Não só as palavras dela, mas também a vontade do meu coração que me levou de volta para ti.

Oh, Theresa, lamento muito, mas mesmo muito, ter‑te alguma vez magoado. Para a semana irei a Boston com a esperança de que encontres uma maneira de me perdoar. Se calhar é tarde de mais agora. Não sei.

Theresa, eu amo‑te e amar‑te‑ei sempre. Estou cansado de estar sozinho. Vejo as crianças a chorar e a rir enquanto brincam na areia, e percebo que quero ter filhos contigo. Quero ver Kevin transformar‑se num homem. Quero segurar a tua mão e ver‑te chorar quando ele finalmente escolher uma noiva, quero beijar‑te quando os sonhos dele se realizarem. Mudar‑me‑ei para Boston se me pedires, porque não posso continuar desta maneira. Fico doente e triste sem ti. Sentado aqui na cozinha, rezo para que me deixes voltar para ti, desta vez para sempre.

Garrett

 

Era crepúsculo agora, e o céu cinzento escurecia depressa. Embora já tivesse lido a carta um milhar de vezes, esta despertava ainda os mesmos sentimentos que tivera quando a lera pela primeira vez. Durante o ano que passara, esses pensamentos tinham‑na perseguido todas as manhãs ao acordar.


Sentada na praia, ela tentou mais uma vez imaginá‑lo a escrever a carta. Passou o dedo pelas palavras, delineando levemente a folha, sabendo que a mão dele tinha ali estado. Esforçando‑se para reter as lágrimas, examinou a carta, como sempre fazia depois de lê‑la. Em alguns sítios viu borrões, como se a caneta estivesse a verter ligeiramente quando ele a escrevera; dava à carta uma aparência distinta, quase apressada. Seis palavras tinham sido riscadas, e ela examinou‑as com atenção, interrogando‑se sobre o que ele quisera dizer. Como sempre, não as conseguia decifrar. Como muitas coisas relacionadas com o seu último dia, era mais um segredo que ele levara consigo. Perto do fim da página, reparou ela, a letra era difícil de se ler, como se ele estivesse a agarrar na caneta com força.

Quando terminou, enrolou de novo a carta e atou o fio cuidadosamente à sua volta, preservando‑a de modo a que ela tivesse sempre o mesmo aspecto. Colocou‑a novamente dentro da garrafa e pô‑la a um canto, ao lado do saco. Sabia que quando chegasse a casa, voltaria a colocá‑la sobre a secretária, onde a tinha sempre. à noite, quando o brilho das luzes da rua atravessava obliquamente o quarto, a garrafa reluzia na escuridão e era normalmente a última coisa que ela via antes de adormecer.

Em seguida pegou nas fotografias que Jeb lhe dera. Ela lembrava‑se de que depois de regressar a Boston, as examinara minuciosamente uma a uma. Quando as suas mãos começaram a tremer, colocou‑as na gaveta e nunca mais voltou a olhar para elas.

Mas agora passava‑as entre os dedos, encontrando aquela que tinha sido tirada na varanda de trás. Segurando‑a à sua frente, recordou‑se de tudo acerca dele ‑ a sua aparência e maneira de andar, o seu sorriso fácil, as rugas nos cantos dos olhos. Talvez amanhã, disse para consigo mesma, pegasse no negativo e fosse mandar fazer outra, uma vinte por vinte e cinco que ela pudesse pôr na mesa de cabeceira, tal como ele fizera com a fotografia de Catherine. Depois sorriu tristemente, percebendo logo naquele momento que não o faria. As fotos regressariam à gaveta onde tinham estado, por baixo das suas meias e ao lado dos brincos de pérola que a sua avó lhe dera. Seria demasiado doloroso ver o rosto dele todos os dias, e ela ainda não estava pronta para isso.

Desde o funeral, que ela mantinha um contacto esporádico com Jeb, telefonando‑lhe de vez em quando para saber como ele estava. Da primeira vez que telefonou, explicara‑lhe o que tinha descoberto sobre a razão porque Garrett saíra com o Happenstance naquele dia, e acabaram ambos a chorar ao telefone. à medida que os meses iam passando, porém, foram conseguindo aos poucos mencionar o nome dele sem lágrimas, e Jeb punha‑se a descrever as suas recordações de Garrett quando criança ou repetindo a Theresa as coisas que ele dissera sobre ela durante as suas longas separações.


Em Julho, Theresa e Kevin apanharam o avião para a Florida e foram fazer mergulho nas ilhas Keys. A água ali, como na Carolina do Norte, era quente, embora muito mais transparente. Passaram aí oito dias, mergulhando todas as manhãs e descansando na praia à tarde. No regresso a Boston, decidiram ambos que iriam fazer o mesmo no ano seguinte. Para o seu aniversário, Kevin pediu a assinatura de uma revista de mergulho. Ironicamente, o primeiro número incluía uma história sobre os naufrágios ao largo da costa da Carolina do Norte, incluindo aquele em águas pouco profundas que tinham visitado com Garrett.

Apesar de ter recebido vários convites, ela não saíra com ninguém desde a morte de Garrett. As pessoas no trabalho, com a excepção de Deanna, tentaram repetidamente propor encontros entre ela e vários homens. Todos eram descritos como bonitos e disponíveis, mas ela recusava delicadamente todos os convites. De vez em quando ouvia os sussurros dos colegas: "Não percebo porque é que ela está a desistir", ou, "Ela ainda é jovem e bonita." Outros, mais compreensivos, comentavam simplesmente que ela acabaria por recuperar, a seu tempo.

Foi um telefonema de Jeb três semanas antes que a levara de volta a Cape Cod. Quando ela ouviu a sua voz simpática, sugerindo calmamente que era tempo de seguir em frente, os muros que ela construíra à sua volta começaram finalmente a desmoronar‑se. Chorou durante quase toda a noite, mas na manhã seguinte sabia o que tinha de fazer. Tratou das coisas para regressar ao local ‑ era fácil, pois estavam na época baixa. E foi então que a sua cura começou finalmente.

Sentada na praia, perguntava‑se se alguém a poderia estar a ver. Olhou para ambos os lados, mas a praia estava deserta. Apenas o oceano parecia mexer‑se, e ela sentia‑se atraída pela sua fúria. As águas pareciam revoltas e perigosas: não era o sítio romântico de que se lembrava. Ficou a olhar para o mar durante muito tempo, pensando em Garrett, até ouvir o rugido de trovoadas ecoar através do céu invernoso.

O vento começou a soprar mais forte, e ela sentiu a sua mente voar com ele. Por que razão, interrogava‑se ela, tinha tudo terminado daquela maneira? Não sabia. Outra rabanada de vento e ela sentiu‑o a seu lado, afastando o cabelo da sua cara. Ele tinha feito assim quando se despediram, e ela sentiu o seu toque mais uma vez. Havia tantas coisas que ela desejava poder mudar em relação àquele dia, tantos arrependimentos...

Agora, sozinha com os seus pensamentos, ela amava‑o. Amá‑lo‑ia sempre. Soubera‑o desde o momento em que o vira nas docas, e sabia‑o agora. Nem a passagem do tempo nem a sua morte podiam mudar o que ela sentia. Fechou os olhos, sussurrando‑lhe ao mesmo tempo.

"Sinto a tua falta, Garrett Blake", disse baixinho. E por um momento, imaginou que ele de alguma maneira a tinha ouvido, porque o vento morreu de repente e o ar ficou parado.

Os primeiros pingos de chuva começavam a cair quando ela desarrolhou a garrafa simples e transparente que segurava com tanta força e tirou a carta que lhe escrevera na noite anterior, a carta que ela viera enviar. Depois de a desenrolar, segurou‑a à sua frente, da mesma maneira que fizera com a primeira carta que tinha encontrado. A pouca luz que restava quase não chegava para ela ler as palavras, mas sabia‑as todas de cor, de qualquer maneira. As suas mãos tremiam ligeiramente quando começou a ler.

 

Meu querido,           

Um ano passou desde que eu e o teu pai estivemos sentados na cozinha. A noite já vai avançada e embora as palavras surjam com dificuldade, não consigo escapar à sensação de que está na altura de responder finalmente à tua pergunta.


Claro que te perdoo. Perdoo‑te agora, e perdoei‑te no momento em que li a tua carta. No meu coração, não tinha outra escolha. Deixar‑te uma vez foi difícil que chegasse; fazê‑lo uma segunda vez teria sido impossível. Eu amava‑te de mais para te ter deixado novamente. Embora esteja ainda a lamentar aquilo que poderia ter sido, sinto‑me grata por teres entrado na minha vida ainda que por um curto período de tempo. No início, pensava que nos tínhamos de alguma maneira conhecido para te ajudar a ultrapassar o teu período de pesar. No entanto agora, um ano mais tarde, acredito que foi exactamente o contrário.

Ironicamente, encontro‑me na mesma posição em que tu te encontravas, da primeira vez que nos conhecemos. Ao escrever, estou a lutar contra o fantasma de alguém que amei e perdi. Agora compreendo melhor as dificuldades por que estavas a passar, e percebo como deve ter sido doloroso seguires em frente com a tua vida, Por vezes a minha dor é esmagadora, e embora compreenda que nunca mais nos voltaremos a ver, há uma parte de mim que quer agarrar‑se a ti para sempre. Seria mais fácil para mim fazer isso porque amar outra pessoa pode diminuir as recordações que tenho de ti. No entanto, este é o paradoxo: Embora sinta muitíssimo a tua falta, é por tua causa que não temo o futuro. Porque foste capaz de te apaixonar por mim, deste‑me esperança, meu querido. Ensinaste‑me que é possível seguir em frente com as nossas vidas, por mais terrível que tenha sido a nossa dor. E à tua maneira, fizeste‑me acreditar que o verdadeiro amor não pode ser negado.

Neste momento, não penso que esteja pronta, mas essa é a minha escolha. Não te culpes a ti mesmo. Graças a ti, tenho esperanças de que virá um dia em que a minha tristeza será substituída por algo de belo. Por tua causa, tenho a força para seguir em frente.

Não sei se os mortos podem voltar para esta terra e andar por aí sem serem vistos por aqueles que os amaram, mas se podem, então sei que estarás sempre comigo. Quando ouvir o oceano, são os teus murmúrios; quando uma brisa fresca acariciar a minha face, é o teu espírito a passar por mim. Tu desapareceste para sempre, não importa quem vier a entrar na minha vida. Estás ao lado de Deus, junto à minha alma, ajudando a guiar‑me em direcção a um futuro que não posso prever.

Isto não é um adeus, meu querido, é um agradecimento. Obrigada por teres aparecido na minha vida e teres‑me dado alegria, obrigada por me teres amado e recebido o meu amor em troca. Obrigada pelas recordações que estimarei para sempre. Mas mais do que tudo, obrigada por me teres mostrado que chegará uma altura em que eu poderei finalmente deixar‑te partir.

Amo‑te,         

Theresa

 

Depois de ler a carta pela última vez, Theresa enrolou‑a e selou‑a na garrafa. Virou‑a ao contrário algumas vezes, sabendo que a sua viagem chegara ao fim. Finalmente, quando soube que já não podia esperar mais, atirou‑a para o mar o mais longe que pôde.


Foi então que surgiu um vento forte e o nevoeiro começou a dispersar‑se. Theresa ficou em silêncio e olhou para a garrafa que começava a flutuar para o alto mar. E apesar de saber que isso era impossível, ela imaginava que a garrafa nunca seria arrastada para a costa. Viajaria pelo mundo para sempre, passando por sítios longínquos que ela própria nunca veria.

Quando a garrafa desapareceu de vista alguns minutos mais tarde, ela começou a dirigir‑se para o carro. Caminhando em silêncio à chuva, Theresa sorriu levemente. Não sabia quando ou onde ou se ela alguma vez iria aparecer, mas na verdade isso pouca importância tinha. De alguma maneira sabia que Garrett receberia a mensagem.

 

                                                                                            Nicholas Sparks

 

                      

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