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As Pupilas do Senhor Reitor / Júlio Dinis
As Pupilas do Senhor Reitor / Júlio Dinis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As Pupilas do Senhor Reitor

 

José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma tão feliz disposição de gênio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos - rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.

Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforço de malquerenças e murmurações.

Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e não sei o que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de família, não havia também que por a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices - que lhe não estavam no gênio - mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos - Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.

A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas.

Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogênito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabiça, e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de colheita.

Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes. Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida.

Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.

O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam aquela invejável construção.

Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de julho ou os tufões regelados de dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.

E desde então, desde que pensou nisto, um idéia fixa principiou a laborara no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as poucas horas que o trabalho não absorvia.

De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogações.

O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupação do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no coração - o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça.

A qualidade de egresso não tolhia os ser liberal de convicção. Era-o como poucos.

— Ó homem de Deus - disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas daquele mistério - que tens tu há tempos a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há tantos dias?

— Que quer, Sr. Padre Antônio? um homem de família tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos.

Foi a resposta que obteve.

— Ora essa! - insistiu o padre - Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares a teus filhos.; mas, quando não os tivesses, sempre eram dois rapazes; e deixa lá, José; um homem é outra coisa que não é uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra é sua; em toda a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem. Agora os pobres que vejo por ai com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai... esses, sim, é que não sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontrá-los nas festas, que é um louvar a Deus.

— É assim, Sr. Reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que eu, mas...

— Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.

— Graças a Deus que não são, Sr. Reitor. O Pedro, sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não é assim. Aquilo é outra mãe - o Senhor a chame lá. Um dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que me dá cuidado.

-- Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade. O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa.

José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de alguém, antes de lho revelarmos.

— Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar, mas tinha cá certos escrúpulos.

— Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância.

— Não é isso, Sr. Padre Antônio, não é isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e , mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel?

— Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado do criminosos e mau. Essa sim, que é estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! o quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? - concluiu o reitor - manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido - e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo do braço, a caminho da casa do reitor.

 

— Ó ti'Tomásia - dizia, ao vê-lo passar, uma velha que, sentada ao soalheiro, fiava, rezava padre-nossos e cabeceava com sono - o pequeno do José das Dornas anda agora nos estudos?

— Pois não sabe que o pai o quer pôr a padre? - respondeu a vizinha da porta de cima, ao passo que desenredava uma meada e fazia soltar à dobadoura os mais inarmônicos gemidos.

— Toma que te dou eu! A coisa vai ser grande então!

— Bem se diz: mais anda quem tem o bom vento, do quem muito rema. Verá você, ti'Custódia, que o Pedro, que se mata com trabalho, há de ter sempre vida de galés, sem nunca levantar cabeça; e o pelém do irmão é que há de pimpar de senhor e dar leis em casa.

— Uma coisa assim! Já agora havia mister de um senhor abade ou cônego na família! Ora este mundo sempre está!.

— E então veja que padre aquele! A mim não me engana a pinta. É de boa raça. Não tem dúvida nenhuma.

— Sai ao lado da mãe, vizinha. Lembra-se do tio dele - o Joaquim do Morgado? - Que menino!.

A inflexão com que este - que menino! - foi pronunciado era altamente significativa. É de crer que o referido Joaquim do Morgado, cunhado de José das Dornas, deixasse indeléveis recordações entre as mulheres de sua época.

— Se me lembra! Aquilo era uma coisa por maior. Bastava dar-lhe um pouco de trela, que ele aí estava! Nanja eu, comigo nunca ele fez farinha.

E dizendo isto, desviava a cara a abaixava-se para apanhar o novelo que deixara cair, enquanto a vizinha fazia um gesto e resmoneava um aparte ininteligível, que ambos pareciam contrariar a última asserção da velha e pôr em dúvida a sua apregoada isenção de outros tempos.

— Nem comigo, ti'Tomásia - disse, em tom já elevado, esta do aparte - nem comigo, que ele bem sabia com quem se metia.

Desta vez, gesto e aparte pertenceram à outra interlocutora, e tinham a mesma significação.

É certo, porém, que Daniel ia andando com seu latim e, dentro em pouco tempo, já papagueava os substantivos e os adjetivos com incrível e surpreendente velocidade.

José das Dornas divertia-se excessivamente a ouvi-lo. As declinações ditas pelo filho em voz alta "lá lhe caiam no goto" como ele dizia; e já procuravam imitá-lo nas suas horas de bom humor, que, segundo já afirmamos, eram numerosas.

— Dize lá, rapaz, dize lá. Então como é? Como é? Altrotoro, altrotoro, altrotoro. Ó tranca, ó trinque, ai, diabos, diabos, diabos. Ah! Ah! Ah! Ora dize lá, rapaz, dize lá.

E Daniel principiava a repetir as lições acompanhado das gargalhadas de José das Dornas que, sem o saber, ia demonstrando com o exemplo um grande preceito de instrução, tantas vezes recomendado: - o de vencer, pelo estímulo do agradável, o fastio que acompanha o estudo. De fato, a facilidade com que Daniel retinha já as enfadonhas lições da arte do Padre Pereira era em parte devida à maneira por que lhas amenizavam estes gracejos do pai; quanto mais arrevesados eram os nomes, com mais vontade os decorava Daniel, para despertar com eles a estranheza e hilaridade paternas.

Que estrondosas gargalhadas se não deram na noite em que repetia em voz alta a declinação do relativo Qui e seus compostos!

— Ora essa! - dizia José das Dornas - que vem cá a ser isso? Qui, qui, qui, qui... Ai que o Sr. Reitor quer ensinar-me ao filho a língua dos cevados!

E toda a família desatava a rir, e Daniel mais que todos.

E assim procedia o menino Daniel nos seus estudos com grande aprazimento do reitor, que muitas vezes dizia ao pai, em tom confidencial.

— Sabes que mais, José? O rapaz é esperto, e era até um pecado desviá-lo do estudo, para que tem tanta queda. Olha que me estudou as linguagens em oito dias!

José das Dornas não podia avaliar ao certo e gênero e grau de dificuldade que vencera o filho; mas entendeu, lá de si para si, que fora alguma coisa de heróico, e nesse dia não pode deixar de olhar para o rapaz como se ele tivesse no rosto o que quer que fosse de estranho - a auréola dos predestinados para grandes coisas.

— E então, Sr. Reitor - perguntou ele um dia ao mestre - o pequeno vai bem?

— Otimamente. O Sulpicio para ele é já como água de unto. Qualquer dia passo-o para o Eutrópio e dentro em pouco para o Cornélio.

Estas sucessivas passagens do Sulpicio para o Eutrópio, e do Eutrópio para o Cornélio, impressionaram profundamente José das Dornas.

Lá lhe pareceu aquilo uma façanha ginástica admirável.

— Faremos dele um padre Sr. Reitor?

— Que dúvida? E um padre às direitas.

Ora aqui é que o bom do pároco se enganava, como, pouco tempo depois, ele próprio reconheceu.

Foi o caso que, ai por volta de um ano depois que o Daniel principiara os estudos - tinha ele então doze para treze anos - começou o reitor a observar que o rapaz lhe vinha um pouco mais tarde para a lição. Ao princípio eram cinco, dez minutos, um quarto de hora de diferença. Depois cresceu a demora a vinte, vinte cinco minutos, meia hora, e o padre pôs-se a parafusar:

— Já não me vai parecendo bem a história. Dar-se-á o caso que o rapaz me ande por aí a garotar? Se eu o sei! E então que ia tão bem! Deixa-o vir, que eu sempre hei de querer saber o que isto é. Nada, não vamos assim à minha vontade. Deixa-o vir.

Se bem o pensou, melhor o fez. Chegou o pequeno, todo ofegante e suado, como quem viera às carreiras, e o reitor, fitando-o com olhar severo e penetrante, disse-lhe antes de lhe dar as bênçãos, que ele, de chapéu na mão, lhe pedia:

— Olha cá, Daniel; donde vens tu a estas horas?

O rapaz fez-se vermelho como um lacre, e não atinou com a resposta. Ficou-se a coçar na cabeça, a encolher-se, a engolir em seco, a rosnar não sei o quê, e ... mais nada.

— Anda que eu desconfio que me vais saindo garoto. E, se assim é, tens que ver comigo. Grandessíssimo brejeiro! Teu pais manda-te para o estudo ou para andares jogando pedra com a outra canalha?

— Eu não andei jogando pedra, não senhor! - exclamou Daniel com uma tão eloqüente vivacidade que, sem possível ilusão, atestava que ele não mentia.

— Então que fez vossemecê até estas horas?

Nova confusão do rapaz.

— Eu hei de saber; hei de mandá-lo vigiar, e depois direi a seu pai.

Nos quinze dias que se seguiram a esta cena, Daniel foi pontual às horas da escola. O reitor estava satisfeito com a emenda do rapaz, e lisonjeado, lá muito para si, com o seu poder persuasivo e a conversão que operava com uma simples admoestação.

Ao fim de duas semanas encontrou-se por acaso com José das Dornas, e já não se lembrava até de lhe fazer queixa do filho, que assim entrara obediente no bom caminho do dever. José das Dornas, porém, é que se mostrava preocupado. Quanto mais o padre lhe gabava a habilidade de Daniel, tanto mais o bom homem parecia constrangido, limitando-se a soltar uns ininteligíveis monossílabos em sinal de aprovação.

— Que tens tu, José? A modo que te estou estranhando! - exclamou o reitor, já um pouco impaciente.

— É que, Sr. Padre Antônio, eu... a falar a verdade... queria dizer-lhe uma coisa.

— Pois dize, homem, dize para ai. Então deste agora em fazer cerimônias comigo?

— Eu sei o grande favor que o Sr. Reitor me faz ensinando o pequeno...

— Bem, bem, adiante; deixemo-nos agora disso. Se eu o ensino, é porque quero e gosto. O que estimo é que ele aproveite, como de fato aproveita; o mais são histórias.

— Pois muito agradecido. Mas dizia eu... sim... custa-me a explicar...

— Com S. Pedro! Fala, homem, dize lá o que tens a dizer.

— É que o rapaz a modo que é fraquito, e então...

— E então o quê ?

— Tenho medo que, estudando demais, me adoeça por aí, e ...

— Mas ele estuda demais?

— Não, senhor; mas... sim... queria eu dizer, que talvez fosse bom que o Sr. Reitor o demorasse menos na aula. Digo eu isto, mas se vir que...

— Sim, sim, mas então... vamos a saber, então ele demora-se muito?

— Não digo que seja muito. Tudo é necessário, bem sei...Mas... quero eu dizer... para quem é fraco como ele... Como sai às duas horas e vem só às trindades... e às vezes à noite fechada...

O Reitor ficou como se lhe caíra o coração aos pés, ficou... - diga-se a frase, visto que a autorizou quem podia - ficou desapontado. Das duas horas às trindades, e à noite cerrada, às vezes, quando ele lhe entrava em cada às três e lhe saia pouco depois das cinco! Tinha assim o padre de modificar duplamente o seu juízo - quanto ao rapaz e quanto a si - descrendo da conversão do primeiro e do seu próprio poder de catequese. Este sacrifício em duplicado, custou-lhe e conservou-o por algum tempo mudo. Esteve para contar ao pai a história toda, mas calou-se. Tinha um coração generoso afinal de contas e compreendeu que a revelação, iria afligir o velho.

— Tens razão, homem - limitou-se pois a dizer - Tens razão. O rapaz há de sair mais cedo. Eu olharei por isso. Mais alguns dias só, para chegar cá a um ponto que eu quero, e depois será como dizes.

E lá consigo dizia o bom padre.

— Deixa estar, meu Danielzinho, que eu hei de saber por onde tu me vais, depois que te mando embora. Deixa estar, deixa, que me não tornas a enganar, meu menino.

E foi para casa com firme resolução de elucidar este negócio.

 

No dia seguinte deu Daniel a lição de costume, e às cinco horas recebeu ordem de se retirar, - ordem cuja execução, como era natural, não se fez esperar muito.

Ele a voltar costas, e o reitor a pôr o chapéu na cabeça para lhe ir na pista.

A tarefa não era fácil; basta lembrar-mos da agilidade de Daniel, natural à sua idade, e compará-la com os já trôpegos movimentos do velho padre, que, com a pressa que levava, impelia diante de si todas as pedras soltas do caminho.

Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de José das Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados pelas portas ou debruçados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno. Por muito tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor, pois indicavam-lhe que, até aquele ponto, o rapaz não se havia extraviado, deixando de seguir o caminho de casa.

Chegou, porém, a um largo, onde desembocavam diferentes ruas e azinhagas, e as coisas mudaram então de face.

O reitor continuando a seguir seu sistema de indagações, tomou a direção que devia ser mais prontamente o pequeno Daniel aos lares paternos.

A porta duma casa térrea, que havia na esquina, dobava uma velha, a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cortesia da cadeira em que estava sentada.

— Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui o pequenito do José das Dornas?

— Nosso Senhor venha na companhia de V.S.ª. Pois nada, não senhor, Sr. Reitor. O rapazito passava dantes por aqui todas as tardes; mas haverá coisa de quinze dias, ou três semanas, que já o não tenho visto.

O reitor pôs-se a coçar na orelha. O delito começava a fazer-se evidente.

— Esta agora - murmurava ele deveras zangado, e depois acrescentou mais alto: - E eu que me esqueci de lhe dar um recado para o pai! Diacho!

— Se V.S.ª. quer, eu mando lá a minha neta.

— Nada, não; obrigado. A coisa também tem tempo. Fique-se com Deus, tia Bernarda, e agradecido.

— Nanja por isso, meu senhor - E a velha fez reverência.

— Temos história - dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. - Perguntemos aqui - e parou junto dum alpendre rústico, debaixo do qual estava sentado um velho quase paralítico, que procurava nos raios do sol o calor que lhe escasseava nos membros, já regelados pela idade.

— Boas tardes, tio Bonifácio - disse o reitor, elevando a voz e parando defronte dele.

— Sr. Padre Antônio, um criado de V. Rev.ma.

— Sabe me dizer, tio Bonifácio, se o pequeno do José das Dornas passou há pouco tempo por aqui?

O velho, já meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais elevado, e depois dum momento de silêncio, durante a qual pareceu interrogar a memória, já perra e enfraquecida.

— Sim senhor, vi - respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça - Vi sim senhor. Passou aqui com os bois, há meia hora.

— Com os bois!... Aí, esse é o Pedro. Falo no pequeno: no Daniel.

— Ah!... nada... esse... ah! sim, sim... um que anda nos estudos?

— Esse mesmo.

— Sim, pelos modos que... agora neste instante passou ele a correr, para o lado dos açudes.

— Obrigado, tio Bonifácio.

— O mafarrico do rapaz que terá para fazer do lado dos açudes? - dizia o padre consigo, tomando a direção indicada. Efetivamente pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informações de Daniel, acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas semanas, era ele certo por ali todas as tardes.

O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante rodeio.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Para que virá o rapaz dar esta esquisita volta?

De certo ponto por diante faltaram-lhe as informações, porque o sítio tornava-se quase despovoado.

A tarde ainda estava longe do seu fim; mas umas nevoazitas começavam a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu reumático a atender, já ia perdendo grande parte daquele fogo com que encetara a pesquisa.

No meio dum estreito e alagado caminho, que seguia tortuosamente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a refletir:

— O rapaz sumiu-se. Para o ir procurar assim à toa e a estas horas do dia não estou eu. Vão lá atrás do homem da capa preta. Quem sabe onde o diabrete foi dar agora consigo? O pai que o procure que tem obrigação disso. O melhor é retirar em boa ordem, antes que venha o frio da noite.

Já se preparava para seguir o prudente conselho, que a si próprio acabava de dar, quando lhe despertou a atenção um assobio agudo e vibrante, cujo timbre lhe era tão conhecido como a toada da cantiga que executava.

— Olá - disse o reitor, parando equilibrado sobre duas alpondras no meio do lamaçal do caminho - Moiro na costa, ou eu me engano muito!

Pôs-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar as suas suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar, sucedeu uma voz infantil, que ele logo reconheceu como a do discípulo, cantando, ainda na mesma toada, que era de uma música popular, as seguintes coplas:

Morena, Morena De olhos castanhos Quem te deu, morena, Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos Não vi nunca assim Morena, morena, Tem pena de mim.

Morena, morena, De olhos rasgados Teus olhos, morena, São os meus pecados.

São os meus pecados Uns olhos assim Morena, morena, Tem pena de mim.

Morena, morena, Dos olhos galantes Teus olhos, morena, São dois diamantes.

São dois diamantes Olhando-me assim Morena, morena, Tem pena de mim.

Morena, morena, Dos olhos morenos O olhar desses olhos Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos Não sejas assim Morena, morena, Tem pena de mim.

- Temos o homem - disse o reitor, depois de ouvir a cantiga, e enfiou resoluto pela rua adiante. Mas tendo dado alguns passos mais, parou como se mudasse de tenção. -

- Nada, não convém que ele me veja. É preciso espiá-lo sem que ele dê por isso.

Feita esta reflexão, passou um rápido exame ao terreno e retrocedeu. Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira; costeou o campo do lado direito, até se lhe deparar uma cancela rústica, que não lhe opôs a mínima resistência, e oculto pelo centeio, caminhou, o mais prudentemente que pôde, até o lugar correspondente àquele de onde partia a voz e daí por diante até descobrir a caça que procurava. Não levou muito tempo a realizar o seu intento.

Eis a cena que viu o reitor, acocorado ente o centeio, com a bengala fixa no chão, mãos apoiadas na bengala, o queixo apoiado nas mãos

 

Defronte do campo, donde, com as melhores intenções deste mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele pela estreita e úmida rua, de que já falamos, estendia-se um trato de terreno inculto, muito coberto de tojo e de giestas, e dessa espontânea vegetação alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda mais os montes mais áridos e bravios.

Dispersas por toda a extensão deste pasto, erravam as ovelhas e cabras de um numeroso rebanho, de que eram os únicos guardadores, um enorme e respeitável cão pastor e uma rapariguita de, quando muito, doze anos de idade.

Até aqui nada de notável para o reverendo pároco.

Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele momento, a pequena zagala, o cão e o nosso conhecido Daniel, por via de quem o bom do padre empreendera tão trabalhosa excursão.

A pequena sentada junto de uma pedra informe e musgosa, folheava com atenção um livro, dirigindo, de tempos em tempos, meios sorrisos para Daniel, que, deitado aos pés dela, de bruços, com os cotovelos fincados no chão e o queixo pousado nas mãos, parecia, ao contemplar embevecido os olhos da engraçada criança, estar divisando neles todos os dotes mencionados na canção da Morena, que lhe ouvimos cantar.

Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel.

Completava o grupo o cão, enroscado junto do pequeno estudante com desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhecimento entre eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora, não era já de recente data.

Este grupo, apesar de toda a sua beleza artística, realçada pelas meias tintas do crepúsculo e por o fundo alaranjado do céu, sobre que se desenhavam os rendados das árvores ao longe, não agradou de maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar.

Esteve para surgir entre o centeio e mostrar-se aos enlevados personagens deste idílio infantil, severo e terrível, como o velho vulto do gigante Adamastor, nas estâncias do grande épico.

Pôde, porém, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com mal reprimido desagrado.

A pequena, que estivera por muito tempo inclinada sobre o livro, como a lutar com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer por si, acabou por fazer um gesto de impaciência, e, apontando com o dedo a palavra da dúvida, colocou a página diante de dos olhos de Daniel, perguntando-lhe:

— Isto que quer dizer?

Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu:

— Cataclismo.

— E o que vem a ser cataclismo?

Daniel ficou embaraçado. A falar a verdade, ele não sabia bem o que era cataclismo. Não teve coragem para o dizer francamente e titubeou:

— Cataclismo... sim... cataclismo é... sim... eu sei o que é... agora para to dizer é que ... Cataclismo...

O reitor apesar da posição crítica em que estava, não deixou de se zangar lá consigo, ao ver um discípulo seu não poder desenredar-se de tais dificuldades filológicas.

Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa da hesitação de Daniel e delicadamente lhe pôs fim, olhando outra vez para o livro e continuando a estudar em silêncio.

Daí a pouco voltou, porém, a consultar o seu pequeno mestre.

— E isto? Como se lê?

— Metempsicose - foi a reposta de Daniel

— E o que vem a ser?

Desta vez ainda o embaraço de Daniel era maior. Nunca ele soubera o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via pilhado em falso, perdeu a paciência. Saiu-se do aperto, como alguns professores em casos análogos.

— Ora! Isso é uma coisa que leva muito tempo a explicar.

Margarida resignou-se a não entender.

Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática que a originou.

Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar. Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com certo despeito mal encoberto:

— Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.

— Mas depois... amanhã...

— Amanhã! Que tem? Sossega, que não te castigo. E demais ainda tens muito tempo. Não vês que só venho e tarde?

— Mas...

— Mas... agora não quero que estudes, quero que cantes.

— Ora cantar! Que hei eu de cantar?

— A cantiga da Morena.

— Eu não gosto dela.

— Não?

— Eu, não.

— Então de qual gosta mais, Guida? - perguntou Daniel, dando à pergunta, e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Margarida, uma música de afetuoso galanteio, que não deixaria ficar mal ninguém.

— A da Cabreira, é muito mais bonita.

— Já não me lembra bem. Pois então canta a da Cabreira.

— Agora não.

— Agora sim; e por que a não hás de cantar agora?

— A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem, eu não.

— Ora adeus, ela é ainda uma criança - disse Daniel com um soberbo gesto de homem - Eu quero-a ouvir de ti.

— Eu julgo que nem a sei.

— Sabes, sabes, ora vamos a ver.

— Olhe... eu canto, mas...

E Margarida pôs-se a cantar e com a voz tão sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma posição mais cômoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas na ausência destas condições de juízo desapaixonado, foi um crítico como quase todos.

Ai vai o que ela cantava. em uma dessas singelas e monótonas melopéias de quase todas as xácaras populares:

Andava a pobre cabreira O seu rebanho a guardar, Desde que rompia o dia Ate a noite fechar.

De pequenina nos montes Não tivera outro brincar, Nas canseiras do trabalho Seus dias vira passar.

— Assim como tu - disse Daniel.

Margarida sorriu, fazendo com a cabeça um movimento afirmativo, e continuou:

Sentada no alto da serra Pôs-se a cabreira a chorar, Por que chorava a cabreira, Ides agora escutar

"Aí! que triste a sina minha, "Aí que triste o meu penar "Que não sei de pai nem mãe, "Nem de irmãos a quem amar

"De pequenina nos montes "Nunca tive outro brincar "Nas canseiras do trabalho Meus dias vejo passar".

Mas, ao desviar os olhos Viu coisa que a fez pasmar. Uma cabra toda branca Se lhe fora aos pés deitar.

— Assim, pouco mais ou menos - disse Daniel, pousando a cabeça nos braços encruzados sobre as urzes do chão.

Margarida prosseguiu:

Branca toda, como a neve, Que nem se deixa fitar, Coberta de finas sedas, Que era coisa singular!

E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou os dedos por entre os cabelos de Daniel.

Nunca a tinha visto antes No seu rebanho a pastar, E foi a fazer-lhe festa... E foi para a afagar...

E continuava a correr as mãos pela cabeça de seu jovem companheiro, que sorria.

Eis vai a cabra fugindo Pelos vales sem parar; Ia a cabreira atrás dela Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias. E três noites sempre a andar! Até que a porta de uns paços Afinal foram parar.

Chorava o rei e a rainha Há dez anos sem cessar, Que lhe roubaram a filha Numa noite de luar.

E dez anos são passados Sem mais dela ouvir falar, Eis chega a cabreira à porta

À porta foi se sentar

"Ai que bonita cabreira...

E Margarida, ao cantar este verso, não pôde conservar-se séria, vendo Daniel levantar os olhos para ela.

Que lá embaixo vejo estar! E uma cabra toda branca Que nem se deixa fitar

Meus criados e escudeiros Ide a cabreira buscar". Isto dizia a rainha, Este foi seu mandar.

Foram buscar a cabreira E a cabra de a acompanhar Até a sala dos paços Onde o rei a viu chegar.

"Pela minha c'roa de ouro Eu quero agora apostar, Que esta é a filha roubada Numa noite de luar".

Milagre! Quem tal diria! Quem tal pudera contar! A cabrinha toda branca Ali se pôs a falar.

A seguinte quadra foi cantada também por Daniel e sem ofensa da harmonia:

"Esta é a filha roubada Numa noite de luar, Andou sete anos no monte Quem nasceu para reinar!"

O resultado da intervenção de Daniel foi acabarem os dois a rir, com grande risco de deixarem incompleta a cantiga.

A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momentos, concluiu:

Que alegrias vão nos paços, E que festas sem cessar! A filha há tanto perdida, No trono os pais vão sentar,

E vêm damas p'ra vesti-la E vêm damas p'ra calçar, E as mais prendadas de todas Para as tranças lhe enfeitar

Vão procurar a cabrinha... Ninguém a pôde encontrar; Mas...

Foi olhando Daniel que a pequena Guida terminou:

Mas um anjo de asas brancas Viram as céus a voar

E assim acabou a última quadra da xácara, e por algum tempo, as duas crianças se conservaram caladas, como se quisessem seguir ainda, até as derradeiras vibrações, as notas melodiosas daquela voz, ao desvanecerem-se no espaço.

Daniel foi o primeiro a romper o silêncio,

— Então, vês como a soubeste até o fim? E cantaste-a tão bem!

— Ora!

— Mas é noite, Guida, Repara. Olha que são horas de tu ires juntar o gado.

E acrescentou, suspirando melancolicamente:

— Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim! E que lição tamanha me marcou o padre esta manhã!

— Então de que tamanho é?

— Olha; vai vendo - disse Daniel, abrindo a Seleta e mostrando a Margarida as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. - É esta lauda... e esta... e esta, até aqui.

— E então isso diz o que diz?

— Conta a vida lá de uns generais antigos que fizeram guerras mortes e que quase sempre se matavam a si, quando não os matavam a eles.

— E para que é preciso que saiba estas histórias quem quer ser padre?

— Eu sei lá! Mas que estás tu a dizer? Padre! padre! Não me fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser padre, estou querendo.

— Então?

— Ora quando chegar a hora eu lhas cantarei. Ainda está por nascer o barbeiro que me há de abrir a coroa. O tio João das Bichas disse-me noutro dia - a rir, já se sabe - que já tinha em casa uma navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava então a navalha para o barbearem em morto.

— Mas o seu pai mata-o!

— Meu pai? Deixa-te disso. Meu pai não há de querer fazer-me padre a força.

— Mas o Sr. Reitor?

— O Sr. Reitor não é cá chamado. Que se meta com a sua vida. Ora é muito boa!

— E por que não quer ser padre, Danielzinho?

— Olhem que pergunta! Não quero ser padre, porque não quero, porque gosto de ti, e, porque, afinal de contas, hei de vir a casar contigo.

— Ora!

— Hei de, sim. Verás.

E dizendo isso, passou facilmente o braço pelo pescoço da pequena Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo que ainda nem sequer a fazia corar.

O reitor estava escandalizado e estupefato por quanto vira e ouvira.

Tivesse assistido em pessoa ao aparecimento do anticristo, que não se maravilhara tanto.

Esta cena inofensiva, esta écloga entre duas crianças, parecia-lhe mais abominável do que a outro qualquer as mais impudicas aventuras daquele herói, que Byron imortalizou com o nome de D. Juan, nome, já antes dele, de pouco austera memória.

Ao chegar a seus atônitos ouvidos, a vibração sonora do beijo, que terminou o diálogo, o padre estremeceu como se acabasse de escutar um silvo de serpente cascavel, e não pôde reprimir uma interjeição desaprovadora, bastante audível, para ser percebida por todas as personagens da cena que descrevemos.

— Não ouviste, Guida? Que foi aquilo? - disse Daniel, já meio erguido e olhando com inquietação ao redor de si.

— Não é nada - respondeu esta, com pouco mais de frieza de ânimo.

Mas, neste tempo, já o cão se havia levantado e ladrava furiosamente na direção do lugar onde o reitor estava escondido.

— Aqui, Gigante, aqui! - bradava-lhe, em vão, Margarida.

— O que estará acolá no centeio para o cão ladrar assim? - perguntou Daniel, já sem pinta de sangue.

E o cão ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter contra um inimigo oculto.

O reitor, como é de prever, começava a achar-se muito pouco à vontade.

— Aqui, Gigante - continuava a pequena, já cansada de bradar.

Mas Daniel, assustado, valeu-se do cão, como instrumento de exploração e defesa, e soltou uma palavra imprudente:

— Busca, Gigante, pega!

Não foi preciso mais nada.

O Gigante galgou de um salto o estreito caminho que o separava do campo onde o reitor cada vez suava mais com a iminência do perigo, e rompendo por entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas dianteiras sobre os ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na figura deste monstruoso cão.

Como esses bonecos que fazem as delícias dos pequenos feirantes de S. Miguel e do S. Lázaro, no Porto, e que ao abrir-se a caixa que os contém, são repentinamente expelidos por uma mola interior, o pároco, ao toque mágico do agigantado quadrúpede, ergueu-se, de súbito, sobre os calcanhares, e, meio sufocado pelo susto e com as faces enfiadas, bradou para Daniel:

— Chama este cão rapaz endemoniado! Ele mata-me!

Daniel é que não podia lhe valer, tão embasbacado ficou com a inesperada aparição do mestre. A mulher de Ló por certo não se conservou tão imóvel, depois do fatal momento em que cedeu à sua irresistível curiosidade.

A pequena Margarida é que salvou a situação - como me parece que se costuma dizer em política. Armou-se da maior severidade que lhe era possível, e com a inflexão de voz imperiosa, pronunciou um - "aqui Gigante!" - que foi prontamente obedecido.

O reitor estava salvo, mas ainda não senhor seu, e deveras chufado com as circunstâncias ridículas que acompanharam a sua descoberta. Ora, como sempre acontece , estas circunstâncias inabilitavam-no para assumir o caráter severo, grave e pedagógico, necessário a quem se propõe a dar uma repreensão ou a fazer uma prática de moral.

Com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projeto, e sem dar palavras, virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, interiormente quase tão pouco satisfeito consigo como com o seu discípulo.

Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo, desatou a rir, a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criança, que não tem outro igual. Esqueceu o que para ele havia de estranho e sério em tudo aquilo, e as conseqüências que poderia ter, para só se lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem, do susto que apanhara, do aspecto sorumbático que levava ao partir, e por isso tudo ria às bandeiras despregadas.

Vejam lá se o padre não fez bem em adiar o sermão para ocasião mais oportuna?

Porém. Margarida? Essa é que não ria. Certo instinto de delicadeza inato em quase todas as mulheres, não sei que vaga presciência de infortúnio, que algumas, de criança possuem, parecia-lhe estar dizendo que tudo aquilo, sem saber por quê, lhe poderia vir a ser funesto.

E enquanto Daniel ria, ela, coitada, não se pôde conter, e começou a chorar.

— Que tens tu, Guida? Isso que é? - perguntou-lhe Daniel, já sério e meio sensibilizado - Por que choras assim?

— Deixe-me. Não sei bem... mas sinto uma tristeza... e tamanha... tamanha! Vamos. É tarde, vou juntar o gado.

— E eu ajudo-te.

— Não. Vá para casa e corra bem, antes que o Sr. Reitor chegue lá primeiro.

— Pois ele irá?

— Ande... corra.

Foi então que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma razão     em não levar o caso a rir, e que não devia ser para ele uma     coisa de todo insignificante a aparição do padre ali. Por isso     disse adeus à sua companheira, e deitou a correr para casa.

 

No dia seguinte, que era um domingo, vestia-se o reitor, na sacristia, para     celebrar a missa conventual. Entre as diversas pessoas que assistiam ao ato,     avistou ele o nosso conhecido José das Dornas, e a lembrança     do ocorrido na véspera surgiu-lhe outra vez ao espírito, acompanhada     de todas as circunstâncias desagradáveis que se deram então.     Durante a noite, havia o padre, à sós com o travesseiro, tomado     uma resolução. Foi, pensando nela, que no momento em que José     das Dornas se aproximou mais do lugar, em que ele se paramentava, lhe disse:

— Logo, depois da missa, espera-me lá fora, no adro, que temos     que conversar.

José das Dornas fez um sinal de assentimento, e entrou para a capela.

Nada ocorreu durante a missa, que exija especial referência. Foi dita     pela reitor com todas as formalidades do rito, e escutada pelo auditório,     e principalmente por José das Dornas, com respeitosa atenção.

Acabada ela, formaram-se diferentes grupos pelo adro, do qual uma frondosa     alameda fazia, naquela época do ano, um dos lugares mais apetecíveis     da terra; José das Dornas trocou meia dúzia de palavras com     alguns conhecidos seus. Falou no tempo, no aspecto das searas, nas mudanças     da lua, e pouco a pouco, foi ficando cada vez mais desacompanhado, porque     os aldeões iam dispersando, atraídos pela lembrança do     jantar que os esperava.

Finalmente achou-se de todo só e pôs-se de mãos nos bolsos,     a passear no adro. No entretanto ia fazendo suas conjeturas sobre os motivos     que levariam o reitor a mandá-lo esperar e sobre a natureza da conversação     que ia ter com ele.

De fato não tardou. O reitor saiu finalmente da sacristia, e dirigiu-se     imediatamente para José das Dornas, que se descobriu ao avistá-lo.

— Está à vontade, José, está à vontade.     Ora... nós temos que falar a respeito do teu pequeno.

— Então é preciso comprar-lhe mais alguns livros? O que     V.S.ª vir que...

— Nada, nada. A coisa agora é muito diferente.

— Então?

— É que... Ora escuta, José. Lembras-te de que eu te     disse, aqui há tempos, que o rapaz havia de ser padre?

— Se lembra? Muito bem. E eu disse...

— Bem, bem. Pois é... se queres que te fale a verdade... parece-me     que o melhor... é dar-lhe outra arrumação.

José das Dornas parou e pôs-se a olhar boquiaberto para o reitor.

— Então... o pequeno não tem memória para os estudos?

— Tem, tem e até demais... Mas... ouve cá; esta vida     de sacerdote quer vocações decididas. Não as havendo,     é um grande erro abraçá-la, e um grande pecado constranger     alguém a segui-la contra a vontade.

— Credo! pois quem diz menos disso? Mas então, acha o Sr. Reitor     que o rapaz não terá queda?

— Hum, hum... - murmurou o reitor.- Parece-me que não tem grande     queda, não.

— Valha-me Deus, mas... por que julga V.S.ª isso? E queira perdoar     se sou confiado em perguntar.

— Cá por certas coisas.

— E eu que até me parecia que o pequeno fora mesmo talhado para     a vida!

— Também eu o julgava.

— O seu gosto era ajudar a missa.

— Olha lá se o vês agora!

— Até pelos seus brinquedos. Olhe que não havia para     ele como armar igrejinhas e pregar sermões.

— Isso agora... quanto a gostos e brinquedos... parece-me que houve     sua mudança ultimamente.

— Então?

O reitor hesitava em falar a verdade inteira a José das Dornas; por     isso, a esta pergunta, começou ainda a titubear, e respondeu evasivamente:

— Sim... creio que já não se entretém muito com     igrejinhas...

— Ah! pois sim... mas... é que agora tem já outras canseiras...     Os estudos...

— Ah! os estudos... É o que me lembra.

— Olhe, Sr. Reitor - continuava José das Dornas, um tanto incrédulo     a respeito da mudança de inclinação do filho - eu finalmente...     sim... como o outro que diz... - não sei lá as razões     que tem V.S.ª para pensar dessa forma... mas a mim está-me a parecer     que V.S.ª se engana.

O reitor tinha atingido os limites de sua grande paciência. Esta dúvida     de José das Dornas, ainda que formulada a medo, acabou por resolvê-lo     ser mais explícito.

— E se eu te disser, José das Dornas, - exclamou ele, parando     e voltando-se para o seu interlocutor - se eu te disser que teu filho Daniel     apesar dos seus doze ou treze anos, que será a idade dele, tem já     na aldeia a sua conversada?

José das Dornas parou como fulminado.

O reitor continuou seu caminho

— Que diz, Sr. Reitor?! - exclamou afinal José das Dornas, atrasado     já uns cinco ou seis passos, e na mesma posição em que     o deixara a revelação.

— O que sei! - respondeu o reitor, com eloqüente laconismo.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Está     o mundo roto! Pois o rapaz... Oh, Sr. Reitor, palavra, que se fosse outra     pessoa que mo dissesse, eu não acreditava.

— E se eu te afirmar que vi, com os meus olhos, o teu Daniel sentado     no monte ao pé de da rapariga, cantando juntos, lendo juntos, e afirmando-lhe     o rapaz que nunca há de ser padre, pois queria casar com ela?

— Ora, ora, Sr. Reitor, essa é demais. Há de perdoar,     mas essa...

— E se eu te disser que ele lhe deu um beijo - acrescentou o padre     em tom confidencial.

— Um beijo!

— E se eu te disser que ele, todos os dias, me sai da aula às     cinco horas, e passa o resto da santa tarde junto da pequena?

— Ora o rapazinho!

— Então, já vês que não convém fazê-lo     padre. Para dar maus exemplos, temos cá, infelizmente, bastantes. E     quando o pano é assim em amostra, que fará a peça inteira.

— Mas que lhe havemos de fazer agora?

— Se te guiares pelos meus conselhos, aí tens um plano: deixa-te     de ordenar o rapaz. Pega nele e remete-o quanto antes para um colégio,     onde não lhe deixem por o pé em ramo verde. Fá-lo depois     médico... advogado... o que quiseres e que ele não repugne...

— Então quer dizer que o mande para Coimbra?

— Para Coimbra?... Eu sei?... Homem, a falar a verdade, semente desta     em Coimbra, é para dar uns frutos por aí além. Para o     Porto, onde ele possa estar sob as vistas dos parentes que lá tens,     vai muito melhor. Põe-mo a cirurgião. Eles hoje, dizem, que     saem de lá como de Coimbra, e olha que é uma boa carreira. O     nosso João Semana está velho, e, morrendo ele, não temos     por aqui mais ninguém. Mas é preciso tratar já disso.     Impõe-me o rapaz daqui para foras, se queres fazer dele alguma coisa     de jeito.

— Mas, ó Sr. Reitor, e quem era a cachopa?

— Isto agora é que já não é da tua conta.     Faze o que eu te digo, e deixa o resto.

E nestes termos se separaram os dois, tomando cada um a direção     da casa.

José das Dornas ainda este por algum tempo impressionado com o que     lhe acabara de dizer o reitor.

Há notícias de uma digestão demorada e laboriosa, como     a de certos alimentos.

Enquanto ela dura, o espírito não se acha à vontade     e como que se agita sob a influência de uma incômoda sensação;     mas, pouco a pouco, opera-se um íntimo trabalho assimilador, acalma-se     a espécie de febre digestiva, que acompanhara aquela elaboração     mental, e tudo entra na ordem. A notícia, que nos impressionara, perde     enfim quanto se nos havia figurado de estranho; sentimo-nos mais livres e     em mais felizes disposições para encararmos os fatos.

Assim aconteceu como José das Dornas: o que, ao princípio,     lhe avultara como calamidade, acabou por se transformar em uma coisa naturalíssima     e engraçada até; o que lhe parecera desmoronamento de um belo     edifício em construção, convenceu-se em pouco tempo que     não passava de uma reforma preparatória para futuro melhor;     e de carrancudo e pesaroso que ficara ao princípio, acabou por se tornar     prazenteiro e quase risonho.

— O rapaz sai-me da pele do diabo! Com quê, já tinha também     a sua conversada! Havia mister! Ah!, ah!, ah! E o reitor atrapalhado! Ah!,     ah!, ah! Agora é que eu lhe acho graça! E como soube dizer que     não havia de ser padre, porque queria casar. Ora o rapazinho! Esperto     é ele! Oh lá! Mas como diabo o ouviu o reitor? A falar a verdade...     o pequeno tem razão. Eu, que tão bem me dei com aquela santa,     que está no céu, como havia de obrigar um filho meu a não     gozar de uma felicidade como a minha! Deixar o rapaz... Quer casar?... Faz     ele muito bem. Deus lhe depare uma boa cachopa, que seja mulher de casa...     Mas quem seria a tal? Isso é que o padre não diz. Pois hei de     sabê-lo. Sempre mandarei o pequeno para o Porto... E que dúvida!     Nas terras grandes é que se fazem os homens... Há de ser cirurgião,     se quiser. O reitor lá nisso diz bem, O João Semana está     acabado... Padres não faltam... e com a esperteza do Daniel, era uma     pena não fazer dele uma outra coisa... Aí o rapazinho que é     os meus pecados! Ah!, ah!, ah! Sume-te! Já tem o sangue na guelra.     Madruga!

E com estes monólogos e as mais fagueiras disposições     de ânimo, chegou José das Dornas a casa, e jantou com apetite.     À mesa lançava, às furtadelas, maliciosos olhares para     o filho mais novo, o qual, sentindo-se sob iminente pronúncia, não     levantava os seus. O pai a custo podia suster o riso ao observá-lo.   

 

E ainda bem não tinha decorrido uma semana, depois do que referimos,     já o pequeno Daniel era transferido para o Porto na melhor égua     da casa, em conformidade com o plano traçado pelo reitor.

O rapaz chorou muito ao partir. O pai sensibilizou-se, mas foi dominando     a sua emoção conforme pôde.

Daniel entrou na cidade invicta com pouca disposições de se     lhe afeiçoar. Matavam-no saudades da terra, da família, e mais     que todas a da sua pequena Guida, de quem nem ao menos lhe tinha sido possível     despedir-se, pois nem para isso lhe haviam dado ensejo.

Desde a tarde em que fora surpreendido pelo reitor no inocente colóquio     que tanto escandalizou o bom do pároco, nunca mais a tornara a ver,     nem dela ouvira falar. Somente, ao despedir-se do seu mestre, este lhe disse,     afagando-o nas faces e sorrindo afavelmente: -"Vai, que eu continuarei     com a lição da tua discípula". - Daniel não     pôde responder e partiu. Mas, ao ver sumirem-se atrás de si as     copas das árvores, a cuja sombra o esperava talvez Margarida, borbulhavam-se     as lágrimas nos olhos. Pobre criança!

E Margarida?... Essa mais pungentes sentia ainda as saudades. Sempre assim     acontece. Em todas as separações, tem mais amargo quinhão     de dores o que fica, do que o que vai partir. A este esperam-no novos lugares,     novas cenas, novas pessoas; sobretudo espera-o o atrativo do desconhecido,     que de antemão lhe absorve quase todos os pensamentos. Vai experimentar     outras sensações, e à força de distrair os sentidos,     é raro que não acabe por distrair o coração. Mas     ao que fica... lá estão todos os objetos que vê a recordar-lhe     as venturas que perdeu; ali as flores que colheram juntos, para as trocar     depois; acolá, a árvore a cuja sombra se sentaram; além     o ribeiro que arrebatou na corrente as pétalas, desfolhadas um dia,     do bem-me-quer fatídico, que os amantes interrogam; o tronco onde se     gravaram unidas as iniciais de dois nomes; o canto dos pássaros que     tantas vezes escutaram; o ponto da perspectiva, mais procurado pela vista     de ambos... Oh!, há bem mais alimentos para as saudades assim! E depois,     o que se ausenta vai esperançado nisto mesmo: em que a afeição,     que deixa, lhe será fielmente mantida até a volta; que evitarão     o esquecimento das promessas feitas tantas testemunhas que as presenciaram     e que, sem cessar, as recordarão; os que ficam antevêem que,     longe de tudo que possa falar-lhes delas, pouco a pouco se varrerão     essas promessas da memória do ausente, e, ao dizer o adeus da despedida,     um amargo pressentimento lhes segreda que dizem adeus a uma ilusão.

Ora é preciso saber que Margarida se sentia triste, profunda e inconsolavelmente     triste, sem que lhe acudisse à idéia tudo quanto havemos dito.     Porém, a nós, é-nos lícito analisar aquele tenro     coração de criança, afeiçoado para os sentimentos     e dotado de delicadíssimos instintos, como o de poucos, Alma voltada     à melancolia e que se habituara a sentir, sem se estudar! Não     há para mim mais simpática espécie de sofredores! os     mártires que se analisam, e nos fazem resenha e inventário dos     seus tormentos; esses que, todos os dias, desenvolvem em estilo imaginoso     a fisiologia do próprio coração indagam a teoria do padecer,     que, dizem eles, os tortura e o fazem com uma profundeza de vistas, verdadeiramente     filosófica... esses mártires... para falar a verdade, não     creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim, acha-se com pouca     vontade de esquadrinhar os mistérios do sofrimento e não se     põe com grandes filosofias a esse respeito. Eu julgo mais natural e     sincero fazer como a pequena Margarida, depois da partida de Daniel: subindo     todas as tardes ao outeiro silvestre onde tantas vezes ele se viera sentar     também, sentia cerrar-se-lhe o coração de tristeza, e     ... desatava a chorar. Não sei que moda anda agora de se não     considerar o choro como a mais eloqüente expressão do pesar! Eu,     por mim, é dos sinais em que deposito mais fé.

Era bem justificada a saudade de Margarida. A curta biografia dela a fará     compreender.

Guida era o fruto único do primeiro matrimônio de seu pai, cuja     morte recente acabara de a fazer órfã de todo. Entregue ao domínio     de um madrasta, que não desmentia pela sua parte, a fama que de ordinário     acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar, nos maus     tratamentos recebidos e na frieza ou declarada aversão, como que lhe     dispensavam os poucos cuidados de que se via objeto, toda a amargura de uma     existência sem carinhosas afeições, esse tão necessário     alimento ao coração das crianças. Arredada de propósito     de casa, e passando dias inteiros nos montes, a acompanhar o gado, habituou-se     de pequena a vida da solidão - e é sabido que hábitos     de melancolia se adquirem nesta escola. Foi, pouco a pouco, contraindo o caráter     triste e sombrio que é o traço indelével que fica de     uma infância, à qual se sufocaram as naturais expansões     e folguedos, em que precisa de transbordar a vida exuberante dela. Por isso     se afeiçoara a Daniel, o único que a viera procurar à     sua solidão e oferecer-se como o suspirado companheiro das suas horas     infantis. Vê-lo desaparecer agora, era assistir ao desvanecimento da     mais grata das ilusões, da mais intensa das suas alegrias; e a sensibilidade     nascente da pobre criança recebia uma nova têmpera nesta separação     dolorosa.

 

Mas deixemos as lágrimas, e as íntimas e não ostentosas     tristezas de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem     que, contra seus direitos de primogenitura, temos até agora deixado     oculta na penumbra dos bastidores.

Falamos de Pedro, o filho mais velho de José das Dornas.

Pedro, mais idoso que seu irmão cinco anos, teve uma infância     mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de menção no     romance. Votado, como já disse, aos trabalhos da lavoura, as horas     que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas do dia     faziam digno de inveja.

Por certo que os leitores não quereriam que eu lhes referisse aqui     as pequenas diversões daquela vida de rapaz da aldeia. Seria uma fastidiosa     enumeração de jogos e freqüentes lutas com os companheiros,     por vários motivos pueris. Isto quase aos dezessete anos. Enquanto     que Daniel estudava o latim e se distraia já da aridez das regras da     sintaxe, conversando a sós no monte com Margarida, Pedro trabalhava,     dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes de sua idade, sem sentir outras     aspirações e achando-se até pouco a vontade junto das     mulheres, com quem não sabia conversar.

Não eram porém definitivas estas disposições     de espírito em Pedro, como se vai mostrar. Aos dezoito anos operou-se     a revolução.

Isto não quer dizer que a febre da adolescência principiasse     a fazer circular nas veias do moço lavrador esse sangue inflamado que     devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas súbitas,     desses devaneios e não sei que fantasiar mal distintas felicidades,     desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objeto, que é o mais puro     e espontâneo culto do coração humano. Nada disso. A natureza     não afinara a alma de Pedro para as sutilíssimas vibrações     desta ordem. Esta quinta-essência da sensibilidade não lhe fora     concedida. A gente da aldeia não conhece os prenúncios do amor,     que os poetas têm apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar     por aí na universal realidade deles; sendo forçoso confessar     que muita gente há, que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos     sintomas a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se serão     os bens ou mal organizados, não me atreverei a decidir, mas que os     há, isso, sustento eu. E Pedro era dos tais.

Querem saber como principiou nele a transformação a que aludo?     Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenômenos precursores,     que, à imitação dos médicos, poderíamos     talvez chamar de críticos.

Um dia foi convidado para um serão. Aceitou contra vontade. Lá     divertiu-se mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a sono solto depois.     Daí por diante não faltava a nenhuma dessas assembléias     campestres: fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas; lá ia a toda     com sua viola, traste indispensável aos dandys da localidade.

Habituou-se por lá a conversar com as raparigas, e, dentro em pouco,     era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se uma vez a cantar     ao desafio; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe concedida a palma     nesse gênero de certames.

Com tais predicados não lhe podiam escassear aventuras de amores;     e não lhe escassearam.

Mas, em todo esse tempo, e apesar de todas as ocorrências, continuava     dormindo as suas noites placidamente e de um sono só, dando assim uma     excelente lição a esses amantes wertherianos que, por as mais     pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele não. Os seus arrufos,     as suas contrariedades não chegavam a esses excessos. Com o amor dá-se     o mesmo que com o vinho - Perdoem-me as leitoras o pouco delicado da confrontação;     mas bem vêem que ambos eles embriagam. É portanto lícito     compará-los. Diz de certas pessoas - que têm o vinho alegre -      de outras que - o têm triste - estúpido - bulhento - conforme     dá a alguns a embriaguez para a hilaridade.; a outros para os sentimentalismo,     a outros para a modorra ou para brigas. Pois com o amor é o mesmo.     Amantes há que celebram os seus amores, e até suas infelicidades     amorosas sempre em estilo de anacreôntica - esses têm o amor alegre;     outros que, quando amam, embora sejam ardentemente correspondidos, suspiram,     procuram os bosques solitários, que enchem de lamentos, e as praias     desertas, onde carpem com o alcião penas imaginárias - têm     estes o amor sombrio; a outros serve-lhes o amor de pretexto para espancarem     ou esfaquearem quantas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos,     e, nesses acessos de fúria, chegam a espancar e esfaquear o objeto     amado - são os do amor bulhento e intratável; há-os que     emudecem e embasbacam diante da mulher dos seus afetos, que em tudo lhe obedecem,     que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um prazer indefinível     de adormecer-lhe aos pés - pertencem aos do amor impertinente e estúpido.     Poderia ir muito longe essa classificação, se fosse aqui o lugar     próprio para ela.

Basta, porém, que diga que o amor de Pedro das Dornas pertencia a     primeira categoria; - tinha de fato ele o amor alegre.

Pedro cantava sempre; tudo lhe servia de tema a uma série de quadras     improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho. É verdade     que talvez isso fosse porque Pedro não tinha ainda encontrado o verdadeiro     amor, aquele que, dizem, uma vez só na vida se experimenta. Em todo     caso era o que sucedia com ele.

Mas o reitor estava sempre a pregar-lhe.

— Pedro, tu andas por aí muito à solta! Vê lá     onde vais cair.

— Ó Sr. Padre Antônio, a gente também precisa de     se divertir um bocado.

— Pois sim, mas tudo se quer em termos e que não venham depois     as lágrimas e os arrependimentos!

— Eu não hei de fazer coisa que...

— Sim, sim... Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, é procurares     o que te faça arranjo, e então que seja deveras. Casa-te e deixa-te     de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro dá para bem.

— Ora, Sr. Reitor, ainda tão novo, hei de já tomar canseiras     de família?

— Queira Deus que, conservando-te assim como estás, nas as acarrete     mais pesadas ainda.

Não obstante os conselhos do reitor, Pedro não se sentia com     grande vocação matrimonial. Todas as suas afeições     eram efêmeras, e daquelas, em cujo futuro o próprio que as sente     não acredita, mas - lá vem uma vez que é de vez - diz     o ditado: e, com Pedro, não estava esta fórmula de sabedoria     popular destinada a ser desmentida.

Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos já - era então     um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e músculos invejáveis.     Andava certa manhã ocupado a cortar milho em um campo, propriedade     da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atravessava a     aldeia em continuados meandros.

Próximo havia uma ponte de pedra de dois arcos, construção     já antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco fundo,     e deixava à flor da água as maiores das pedras espalhadas pelo     seu leito, permitindo assim a passagem, a pé enxuto, de uma para outra     margem.

De joelhos sobre essas poldras, como por lá lhe chamam, desde o arco     até alguma extensão no sentido contrário ao da corrente,     um bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a roupa,     ao som de alegres cantigas, interrompidas às vezes por estrepitosas     gargalhadas; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e, algumas, mais     madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da manhã havia já     secado.

Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas quase todas,     mas sem que o vê-las o distraísse da tarefa em que andava empenhado.

À medida, porém, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava     mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho lhe     concedia mais vagares, pôs-se a reparar com atenção para     uma das lavadeiras e a achar certo prazer na contemplação.

Era uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas arredondadas,     vivacidade de lavandisca, digna efetivamente das atenções de     Pedro e até de qualquer outro mais exigente que ele.

As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns     braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência     significativa. Um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e     fazia-lhe realçar o rosto oval regular de maneira muito vantajosa.

De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com um movimento     cheio de graça, a trança mais indomável, que, desprendendo-se-lhe     do lenço escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas,     beijar-lhe o canto dos lábios, efetivamente de tentar.

Em um desses movimentos freqüentes, reconheceu que era observada, se     é que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lho não     fizera já adivinhar. Sabendo-se observada, conjeturou que era admirada     também - conjetura que por mulher alguma é feita com indiferença     e muito menos por Clara - era o nome da rapariga - porque diga-se o que é     verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.

Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer apreciar     mais do que pelos olhos, de cujo conceito ela não já podia duvidar.

Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas eternas e     popularíssimas músicas da nossa província, das que mais     espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras aos remos,     cantou a seguinte quadra:

Ó rio das águas claras,     Que vais correndo pro mar.

Na pausa que, segundo as exigências da música, se faz ao fim     de dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lançou com     disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava; e depois concluiu:   

Os tormentos que eu padeço     Ai, não os vá declarar.

Pedro efetivamente estava recebendo com prazer o timbre agradável     daquela voz feminina; sentiu em si uma comoção estranha, visitou-a     a musa rústica, e atirando-se com vontade ao trabalho, elevou também     a voz, já tão conhecida por todos os freqüentadores de     arraiais e esfolhadas, e respondeu

Não declara quem não pode,     E não tem que declarar.

Na pausa olhou também para o lado onde estava Clara, a qual ria ocultamente     com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva fora levantada e principiava     o certame. O momento era solene! Pedro terminou:

Pois quem como tu é bela,     Não pode ter que penar.

Um murmúrio de aprovação se levantou do conclave feminino.

A reputação de Pedro não fora desmentida desta vez ainda.

Mas Clara não era menos repentista. Tinha fama de nunca haver cedido     o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. É verdade que, no caso     presente, o contendor era de respeito; ela porém aventurou-se e não     fez esperar a resposta:

O que eu peno ninguém sabe,     Ninguém o pode saber;     Porque eu peno e não me queixo,     Em segredo sei sofrer.

Novos sinais e aprovação das mulheres, os quais estimularam     a emulação de Pedro. Ele respondeu:

Pois o sofrer em silêncio     É um dobrado sofrer;     Melhor contarmos tudo     A quem os possa entender.

Esta quadra ainda produziu mais efeito, do que as precedentes - graças     à insinuação que nela se fazia, e tendências que     mostrava para dar novo caráter ao desafio.

Clara aceitou a direção que lhe era indicada assim, e respondeu:   

A quem me possa entender     Tudo eu quisera contar;     Mas os amigos são raros,     Não sei onde os encontrar.

    E logo Pedro:

    Encontra-os em cada canto     Quem os quiser procurar;     E um dos mais verdadeiros     Aqui te está a escutar.

    Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por bastante tempo,     sustentado de parte a parte com igual denodo e perícia. No entanto,     a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo ceifado. Os contendores,     cada vez mais próximos, pareciam cada vez mais e coração     empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo.

Com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os campeões     vencidos um por outro, pois ambos se reconheciam já seriamente apaixonados.

Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa na canastra;     e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e travaram então um     diálogo em prosa, que foi a confirmação de quanto, em     verso, tinham dito já. E daí se originou uma afeição     mútua, que, desde o princípio assumiu em Pedro caráter     mais grave e prometedor de bons resultados, do que as antecedentes.

O reitor, que andava com os olhos sempre em cima do rapaz, disse-lhe dias     depois:

— Lembra-te dos meus conselhos, Pedro. Não vás mais longe.     Fica por onde estás, que não ficas mal.

Pedro já lhe não opôs os acostumados argumentos antimatrimoniais,     Calou-se. É que desta vez a coisa era mais séria; e demais Pedro     ia nos vinte e sete, e por isso começava a sorrir-lhe mais afavelmente     o remanso do matrimônio.

Mas para justificarmos a opinião do reitor a respeito da nova inclinação     de Pedro, digamos quem era Clara que assim de repente pusemos diante do leitor     sem prévia apresentação.

 

Clara era a filha do segundo matrimônio do pai daquela mesma Margarida     ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam já dado que entender ao     reitor.

O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima, que nada     mais lhe havia trazido em dote, além de um afeição ilimitada     e de um coração excelente.

Durante a vida da primeira mulher viveu sempre ele a custa de muito trabalho,     pelo ofício de carpinteiro, não podendo até mandar aprender     a ler à filha, único fruto desta primeira união, pois     que de pequenina a teve de ocupar no trabalho.

A mãe de Margarida morreu, porém, deixando-a de idade de cinco     anos. O pai, como já dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta, e,     na opinião do mundo, fez um ótimo negócio o carpinteiro.

De fato, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro de alguns     dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofício e entregar-se todo ao     fabrico e administração de suas novas terras, tornando-se um     dos mais conceituados lavradores dos arredores. Mas a próspera fortuna     do recente lavrador converteu-se em tormento e desventura para a desamparada     criança.

A madrasta, em pouco tempo mãe de uma outra rapariga, ciosa de toda     afeição e carícias paternas, que Margarida pudesse disputar     a sua filha, aborrecia-se e procurava sempre pretextos para a trazer por longe.

Daí, a causa daquela solidão a que fomos encontrar, quando     pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou baixava a cabeça     resignada. Tinha um caráter dócil e submisso, e não se     atrevia a protestar nem sequer por uma daquelas espontâneas e irrefletidas     revoltas, tão próprias da infância atribulada.

Com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circunstâncias.     Livre da única repressão que podia coagir a completa má     vontade que tinha à enteada, aquela mulher de gênio violento     acabou por desprezá-la de todo. A cada passo lhe lançava em     rosto a pobreza de condição em que nascera, clamando que o pão     que lhe dava a comer era um roubo que fazia a sua própria filha.

Margarida ouvia; humilhavam-na estas contínuas e injustas recriminações,     mas até as lágrimas procurava ocultar, com medo que dessem causa     a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para que a levasse     para si.

A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um único raio     de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais ânimo as trevas     completas do presente.

Uma só compensação experimentava a triste e desarrimada     criança, em troca de tantas dores e constante suplício: - era     a amizade de sua irmã.

Clara não herdara da mãe durezas de coração nem     violências de gênio. Afável no meio de suas alegrias de     infância, compadecia-se já pelo que via sofrer a irmã,     e admirando aquela resignação de mártir, que ela bem     se conhecia incapaz de mostrar em ocasião alguma da vida, principiou     a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco a pouco, degenerou em     prestígio e lhe cultivou no coração uma verberação     sem limites.

Muitas vezes as rudezas da mãe para com Margarida faziam-na chorar     também, e, às ocultas, vinha pedir perdão a esta de um     tratamento, de que ela bem percebia ser a causa involuntária.

Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afeto de Clara, e em     pouco tempo ficou sendo esse laço o único pelo qual ela parecia     prender-se ainda ao mundo, que tão despovoado destas seduções     lhe andara sempre.

Pequenos episódios, na aparência insignificantes, corroboraram     em uma e outra estes sentimentos e influíram na sorte futura das duas     irmãs, que, ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis.

Em uma noite de inverno, a mãe de Clara deitara-se às nove     horas com a filha; e por um requinte de crueldade estúpida obrigara     Margarida a conservar-se a pé serandando, até concluir certa     tarefa que lhe marcara; e ao deixá-la só, dirigiu-lhe estas     palavras cheias de humilhação para a pobre rapariga:

— Minha rica, quem vier a este mundo, sem meios de levar melhor a vida,     não deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar outros, com que,     ao depois, não possa. Fica a pé e tem-me essa obra acabada.

Margarida não tentou uma só queixa ou súplica, em seu     favor. Calou e obedeceu.

Era, como disse, no inverno; fazia um frio excessivo. A lareira estava apagada     já; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz bruxuleante era     a única a iluminar o recinto. O vento assobiava nas inúmeras     fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuosas pelo tubo da     chaminé, indo inteiriçar os membros regelados da desditosa criança,     que, só a custo podia já suster a roca e torcer o fio, para     terminar o trabalho. O silêncio da noite era interrompido por mil ruídos     sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersticiosas     como sempre, mais ou menos, são as da gente de campo.

Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga que nunca, a sua orfandade     e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu à     Virgem que se compadecesse dela.

Lembrou-se então de quando a mandavam sozinha para o monte, e daquelas     raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a companhia do pequeno     Daniel.

As saudades desses dias nunca mais a deixaram. Com ela vivia sempre, com     elas se achava só, quando, olhando para o passado, lhe pedia uma recordação     de prazer, em paga de tanta tristeza que, no presente, lhe oferecia a vida,     de tantas sombras, com que lhe vinha o futuro.

Nessa noite pensou também em Daniel; pensado nele, e naqueles breves     momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão dos     montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá; e esqueceu     o frio e o medonho da noite - que um outro lhos fizera desvanecer a vara mágica     da fantasia; - e insensivelmente parou-lhe a mão que fiava, descaíram-lhe     os braços, vergou a cabeça melancólica, e o pensamento     perdeu-se em longa e abstrata contemplação que, sem transição     apreciável, terminou em um sono profundo. Encontraram-se e confundiram-se     os últimos devaneios da vigília, com os primeiros sonhos em     que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.

Clara não pudera, porém, adormecer com a idéia do sacrifício     imposta à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe,     ouvia o som do soluçar de Margarida, e isto era um martírio     para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da     irmã, que já não tinha nenhum amparo, e, rezando assim,     chorava ainda mais do que ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar     deu-lhe a certeza de que a mãe havia já caído no sono.

Clara não hesitou mais.

Com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar     de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de     baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou-se para     a cozinha, onde Margarida já tinha adormecido. Clara não a acordou.     Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado dela e tirando-lhe     sutilmente a roca da cinta, pôs-se por sua vez a trabalhar.

Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia...     sonhava ainda.

Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que     a mãe tivesse acordado; por isso, mal teve tempo de correr a meter-se     no leito, procurando não excitar a desconfiança materna, e não     pôde chamar a irmã para a mandar deitar.

Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-lhe que adormecera     com o trabalho mal principiado ainda, apertou-se-lhe o coração,     e a pobre criança juntou as mãos de desesperada. Mas que espanto     ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe haviam dado por tarefa!

A sua primeira idéia foi que tinha sido aquilo um milagre da Senhora,     a quem se havia encomendado e cujo auxílio fervorosamente suplicara.     Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonado um dia a ermida     da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixão mundana, voltara     mais tarde às portas do claustro, coberta de arrependimento e de vergonha:     e, quando esperava recriminações e opróbrios, soube que     ninguém tinha lhe dado pela falta, porque a Senhora se compadecera     dela, e revestindo a sua imagem, viera todos os dias fazer o serviço     da clausura.

Margarida acreditou em outro milagre desse gênero e com estas idéias     se foi deitar, rendendo expansivas ações de graças à     Virgem, por tão miraculosa intercessão.

Mas, pouco a pouco, a verdade foi lhe aparecendo mais distinta, e pela madrugada     acabaram de confirmá-la alguns vestígios evidentes de Clara     ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia; denunciou-a um     lenço que ela deixara cair na pressa com que voltara à alcova.

Nessa manhã, pois, Margarida aproximou-se da irmã, e beijou-a     com efusão.

— Obrigada, Clarinha, Deus te há de recompensar essa bondade.

— Se achas que mereço alguma recompensa, por que ma não     dás tu mesma Guida?

— Eu, meu coração? Que recompensa podes esperar de uma     pobre?

— Que não queiras muito mal a minha mãe por tanto que     te mortifica, e que... me tenhas um pouco de amizade.

— Querer mal a tua mãe, doida! E posso eu querer mal a quem     me dá o pão, de que me sustento, o teto e os vestidos que me     cobrem? Que eu nada disto tenho, Clarinha.

— Não me digas isso.

— A minha amizade, pedes-me tu! E um pouco de amizade disseste! E,     a não ser a ti, a quem queres que eu vá dar toda esta que Deus     me pôs no coração para dar? Da tua mãe recebo eu     a esmola do pão e do abrigo, agradeço-lha e rogo a Deus por     ela; a ti devo-te mais; devo-te a esmola da consolação e do     conforto; por isso te estremeço e quero, Clarinha. E tu duvida-lo?

— Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmola em casa de     teu pai, Guida? - perguntou Clara, com uma viva expressão de nobre     orgulho que lhe estava no caráter.

Margarida sorriu melancolicamente a esta exaltação da sua irmã     e respondeu:

— Esta casa não é de meu pai, é de minha...

Ia dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar à palavra uma entonação     menos afetuosa.

Clara saltou-lhe ao pescoço, e, por um daqueles impulsos irresistíveis     da sua índole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas faces.

— Guida, Guida, esta casa ainda há de ser minha, e então     veremos se me fazes a desfeita de lhe não chamares de tua também.

Doutra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. Com inacreditável     exigência havia-lhe a madrasta fixado, de antemão, qual seria     o preço da venda, não lhe permitindo baixá-lo, e obrigando     a pequena, ao mesmo tempo, a não voltar para a casa sem a ter realizado.

Os maus tratos e ásperas repreensões esperavam infalivelmente     Margarida naquele dia, visto a exorbitância dos preços estabelecidos     e uma tão grande afluência de fruta na praça, que barateara     o gênero. A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores     sorriam ao ouvir o preço excessivo que ela pedia pela fruta.

Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele momento.     Viu a irmã assim aflita, e aproximou-se dela.

— Que é isso, Guida? Tu choraste?

— E admiras-te ainda de me veres choras, Clarinha?

— Mas... dize-me, por que foi isto?

Margarida contou-lhe tudo.

Clara ficou a olhar para o chão pensativa.

— E de tanta gente rica que há por aí, ninguém     terá alma de pagar mais cara alguns vinténs esta fruta, para     fazer bem a uma pobre rapariga.

O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento, atravessava     o lugar, fazendo provisão de fruta, e parecendo não regatear     muito.

— Ai - disse Clara, ao encarar com ele - o meu padrinho, o Sr. Cônego     Arouca! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta?

— Que vais fazer, Clarinha?

— Escuta.

E, imediatamente, arrebatando a canastra das mãos da irmã,     Clara correu a colocar-se no caminho do velho cônego, quando este prosseguia     no seu feirado.

— Muito bons-dias, meu padrinho, deite-me as suas bênçãos.   

— Tu por aqui, Clarita? Deus te abençoe, rapariga. Então     que fazes tu?

— Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?

— Sim, pequena? Então por quê? Não encontraste     noivo ainda?

— Ora! está a brincar. Não é isso.

— Então?

— Trago à feira uma canastra cheia de frutas, e ainda não     encontrei compradores.

— E o defeito é da fruta, ou de quem a vende?

— Há de ser de quem a vende que lá a fruta... essa boa     é.

— Boa, sim; mas cara...

— Ora essa! meu padrinho. Nós cá não somos mais     do que as outras. Vendemos pelo mesmo preço que elas vendem.

— Ora deixa cá ver a fruta. Então quanto queres tu por     isso? Um dinheirão?

Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cônego tinha resolvido,     de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse dura como pedra,     e cara como o açafrão.

— Se for para o meu padrinho, o que quiser - respondeu Clara.

— Está bom. Não é má de todo. Passa-me     ai para a canastra do criado, enquanto eu faço as contas.

E, ao passo que a filhada cumpria a ordem recebida, ele mexia, e remexia     nos bolsos do colete, donde tirou não sei que moeda em ouro, que quadruplicava     o preço da fruta, e passou-a para as mãos de Clara, dizendo:

— Aí tens; o que crescer é para um lenço.

— Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me suas bênçãos.

— Vai com Deus, rapariga, e faz visitas à tua gente - respondeu     o cônego, dando-lhe a mão a beijar.

Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe:

— Vê, vê, não te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos     para tremoços.

Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas de gratidão.

Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe     de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável     enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos,     expressões inequívocas de aversão que nunca deixava de     sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na     afetuosa caridade com que a tratava.

A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável.

Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou     a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu     procedimento para com Margarida.

À hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos,     disse-lhe entre soluços:

— Guida - pela primeira vez lhe deu este nome afetuoso - perdoa-me!     Deus alumiou-me o espírito. Só agora conheço a minha     maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me minha filha, e sê generosa até     o fim,. Clara fica só, é ainda muito criança. Lembra-te     que ela é tua irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela.     Perdoa-lhe o ser filha de... tua madrasta.

Foram as derradeiras palavras que disse.

Margarida caiu sufocada de choro, junto do leito da morta. Não lhe     restava no coração a menor sombra de ressentimento contra aquela     que a fizera tão infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lágrimas     dessa órfã.

Passado tempo, sentiu que um braço a levantava. Voltou-se: era o reitor,     que olhava para ela comovido.

— Muito bem, Guida, muito bem! - exclamou o velho com entusiasmo -      Essas lágrimas são generosas, são verdadeiras jóias     da tua boa alma. Elas devem ser de grande alívio para aquela cujo maior     pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer.

E daí por diante ficou o reitor tendo por súbito conceito a     Margarida.

 

Depois da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma feição     mais favorável.

Vivendo na companhia da irmã, nunca mais teve que suportar aquelas     humilhações continuadas que a faziam corar.

Antes, no modo porque era tratada em casa, parecia ser ela a senhora de tudo,     e Clara a que recebia o benefício; contra estas aparências só     a sua modéstia protestava.

Clara possuía um coração excelente, mas faltava-lhe     cabeça para superintender nos negócios da casa; por isso pedira     a Margarida que os gerisse ela e lhe deixasse ir gozando a apetecida liberdade     dos seus dezoitos anos.

O pároco, por tutor das duas órfãs, sancionou e dirigiu     com seus conselhos esta disposição de coisas.

Mas um tal sistema de viver não podia bastar por muito tempo a Margarida.     Havia no caráter desta rapariga um fundo de dignidade pessoal que lhe     não deixava aceitar a vida plácida, que cordialmente a irmã     lhe talhara.

Habituara-se muito cedo ao trabalho e como ele contava.

— Se o desprezo agora - dizia ela a si mesma, pensando nisto, - quem     sabe se um dia, ao procurá-lo, ele fugirá?

Sentia-se jovem, com forças e coragem; envergonhava-se da ociosidade.     Entre os projetos, que formou então, um lhe sorriu sempre mais que     todos.

Margarida tinha uma educação pouco vulgar para a sua condição.     Várias circunstâncias haviam gradualmente concorrido para lhe     aperfeiçoar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e quando     outra razão não houvesse, as saudades que a vista e a leitura     dos livros ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, levá-la-iam     a procurá-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao     que prometera ao discípulo. Vendo o padre a inclinação     da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes     de livros, depois de os passar pela crítica dos seus rígidos     princípios morais, e julgá-los salutares. Margarida lia-os com     ardor, e, pouco a pouco, costumou-se a lê-los com reflexão também.     Não sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a     reler, mais que uma vez, os mesmos livros - o que é sempre uma vantagem     para a instrução colhida neles.

Além do interesse crescente que ia encontrando na leitura, um motivo     mais oculto lhe alimentava esse ardor - motivo que ele própria quase     ignorava, ou pelo menos não dizia a si. - Como que desta se forma se     aproximava de Daniel. Das duas inteligências de criança, que     se tinham visto a par, como duas aves que brincam na relva, uma levantara     vôo e subira; que admirava que a outra, saudosa, ensaiasse as forças     para a acompanhar? Para, ao menos, a não perder de vista de todo? Há     destes motivos ocultos das nossas ações, que passam desconhecidos.

O que é certo é que a sede de saber devorava Margarida. O hábito     da meditação, que adquirira, permitia à sua inteligência     tirar grandes riquezas da pequena mina em que trabalhava.

Um acontecimento favoreceu ainda estas tendências.

Um dia, acolheu-se à aldeia, a viver vida e privações     de miséria, um destes desgraçados, a quem as ondas do mundo     arrojam, náufragos e quebrantados, à praia. Era um homem, que,     saindo em criança ainda, daquela mesma aldeia, entrara, sob os sorrisos     da sorte, na vida das cidades. A instrução, a riqueza, as honras,     tudo o rodeara do prestígio que parece assegurar a felicidade. Se ele     a sentiu então, não o sei eu; - um dia, porém, como o     Jó da Escritura, viu as mão da desgraça baixar sobre     sua cabeça, privá-lo das riquezas, das dignidades e da família,     e deixá-lo só; só ao declinar a vida, só quando     já não há no coração fogo para alimentar     esperanças, vigor no braço para arrotear caminhos novos!

Este homem sacudiu a poeira dos sapatos à porta das cidades, onde     sonhara meio século, e veio, tendo por único arrimo a consciência,     procurar o teto que, nu, o abrigara na infância e quase o recebia na     velhice como de lá saíra, - teto que nem já era seu.

É uma história vulgar a deste homem. Insistir nela seria contar     ao leitor coisas sabidas.

A quem reservará a sorte o privilégio de ignorar uma história     assim?

Era, pois, um desgraçado. Isto bastava para que, ao seu lado, visse,     olhando-o compadecido, o rosto de Margarida e, animando-o, os sorrisos de     Clara.

O infortúnio chamou para junto do leito da miséria deste velho     desanimado, estas duas mulheres. Ao lado de todas as cruzes aparecem desses     vultos compassivos.

Com que havia de recompensar a devoção heróica de duas     juventudes à velhice empobrecida, quem nada tinha a dar?

Não lhe exigiam elas a recompensa, é certo; mas pedia-lha a     alma.

Dos amigos que tivera, só lhe restavam quatro; e esses lhe valeram.     Eram quatro livros...

Talvez os leitores já estivessem imaginado que este homem trouxera     ainda quatro amigos para a diversidade, sem serem livros. Custa-me desenganá-los;     mas não trouxe.

Foi nestes livros que Margarida encontrou novos alimentos para a leitura.     Não sei bem ao certo quais eram eles.

Estas leituras, dirigidas agora pela crítica esclarecida e o são     juízo do pobre velho, valeram imenso a Margarida, que, dentro em pouco     chegou a uma cultura intelectual, a que nunca tinha aspirado.

Por isso, na ocasião de formar projetos, para se dignificar aos próprios     olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira do ensino. Ensinar     era aprender, ensinar era amar; e estas duas necessidades daquele espírito     generosos, aprender e amar, se satisfaziam assim.

Cultivar inteligências e cultivar afeições!... Que futuro!     A alma no íntimo apaixonada, de Margarida, exultava só com a     idéia.

Restava obter o consentimento de Clara, e que tática nãos seria     necessária para isso?

— Clarinha - disse-lhe pois um dia Margarida - vou pedir-te um favor!

— É possível! - exclamou Clara, sinceramente admirada.      - É esta a primeira vez que me pedes um favor, Guida. repara bem.

— Tanto mais razão para mo concederes, filha; não é     verdade?

— Assim me pedisses mil, Guida, para todos te conceder também.     Ora dize.

— Sabes? eu não me dou com esta vida de senhora, em que tu me     tens. Que queres, minha filha? Isto de trabalhar é hábito que     se ganha de pequena e não se perde mais...

— Mas, então - disse Clara, pondo-se séria como se suspeitasse     vagamente o que a irmã lhe ia dizer.

— Queria que me deixasses trabalhar.

— Mas não trabalhas tu tanto, mais do que eu, Guida? Podia eu,     sem ti, olhar por estas coisas de casa, de que não entendo, de que     não quero entender? Só se queres vir a lavar ao ribeiro comigo.     Ora! Guida, essas mãos delgadas já não foram feitas para     isso.

— O que dizes que eu tenho que fazer, Clarinha, não é     trabalho que ocupa muitas horas, como sabes. Resta-me ainda tanto tempo!...     Olha que os dias são muito grandes.

— Mas que queres tu afinal?

— Sabes?... uma coisa que eu desejava... uma coisa que me faria alegre     até!... não desejas tu ver-me andar alegre? não me ralhas     tu pelas minhas tristezas?

— Mas vamos ver o que tu querias; o que é que te daria essas     alegrias grandes? Alguma loucura grande também?

— Não é, não. Olha... se eu tivesse umas poucas     crianças para ensinar...

Clara não a deixou continuar.

— Tu, tu, minha irmã!... Ensinares tu as filhas dos outros?!     Viveres de educar filhos alheios!

— Oh! orgulhosa! Então isso é alguma vergonha? Anda,     lá, que o Sr. Reitor te ouvia...

— Mas que se diria de mim, Guida? Sempre tem coisas! Repara bem, que     se diria de mim?

— Que és uma boa alma, Clarinha, tu que reparte comigo a tua     casa, o teu...

— Guida! - exclamou Clara, interrompendo-a com um tom de repreensão.

— E que se dirá de mim, se não me concederes o que eu     te peço? o que se terá dito?

— Que és muito boa em não me abandonares, em me dares     conselhos, em me perdoares as minhas doidices.

— Mas não é também por o que dirão, que     eu te peço isto não; é porque o coração     me leva a pedir-to.

— Guida, por amor de Deus! Perde essa idéia! É uma desfeita     que me fazes.

— Não é, minha filha, não é. Pois bem,     pergunte-se ao Sr. Reitor, e se ele disser que...

— Ora, o Sr. Reitor, sim! Basta ser pedido teu para ele aprovar.

— Estás sendo muito má - disse Margarida, afagando-a.

Depois de alguma luta, foi resolvido consultar o pároco, ficando cada     uma com a liberdade de pleitear a causa própria.

Clara tinha alguma razão em suspeitar da imparcialidade do juiz. O     pároco, tutor das duas raparigas, costumara-se a admirar o bom senso     e a inteligência superior de Margarida a ponto de confiar mais nela     do que em si mesmo.

Decidiu pois a demanda em favor da irmã mais velha, excitando contra     si um amuo de Clara, que durou três dias. Era extensão excepcional     dos despeitos da boa rapariga; mas é que desta vez sempre se tratava     de Margarida, e em tais assuntos Clara era intolerante.

Em resultado de tudo isto, passados dias, começou Margarida sua tarefa     de educação, à qual se entregava com amor. As crianças     afluíam-lhe, atraídas por aquela suavidade de maneiras, que     constituía um dos mais fortes atrativos do caráter dela.

Esta fase mais bonançosa da existência de Margarida já     não conseguiu porém modificar-lhe o caráter pensativo     e suavemente melancólico, que a infância oprimida lhe fizera     contrair. Adquirira já o hábito da tristeza e das lágrimas,     e este, como todos os hábitos, não se perde facilmente.

No meio das recentes felicidades da sua vida, ela própria, por muitas     vezes, se surpreendia a chorar.

— Não é isto uma ofensa a Deus? - dizia então     consigo - Por que choro eu? Não tenho a amizade de Clara, amizade extremosa,     como ainda a não recebi de ninguém? Eu devo estar alegre e bendizer     ao Senhor, que não desvia de mim os seus olhares de misericórdia.

Em um momento de expansiva conversação, Clara disse-lhe um     dia, vendo-a assim triste:

— Não me dirás tu, Guida, o que hei de fazer para te     ver rir e estar alegre?

— Olha, Clarinha, a gente é como as flores, que umas nascem     com cores vermelhas que alegram, outras com cores escuras que entristecem.     Olha tu as violetas e os suspiros, que te digam por que nasceram assim e por     que, crescendo na mesma terra e sendo alumiadas pelo mesmo sol, não     têm as cores brilhantes da rosa.

— Bem respondido, sim senhora; daqui em diante hei de chamar-te sempre     a minha violeta.

— Criança! E tu, Clarinha, nunca te sentes triste?

—Triste por quê? Que tenho eu a desejar para ser feliz de todo?

— Tens razão. Tu... nada.

— E tu? - perguntou Clara, fitando os olhos da irmã.

— Eu...

E Margarida sem responder ficava mais triste ainda do que até ali.

Clara impacientava-se.

— Olha, Guida. Há muito tempo que ando vontade de te dizer uma     coisa; mas... como que até me chega vergonha de te falar nisto. Eu     não entendo nada destes enredos de justiça; mas... lembra-me,     em vida de minha mãe, ouvir-te dizer muitas vezes que... nada disto     era teu e... que dela recebias tu... a... a...

— A esmola do agasalho que me dava; e era... e é assim.

— E era e é assim! Guida! Eu não sei lá como os     homens fazem estas coisas. Mas se eu sou agora, como dizes, a senhora de tudo,     não quero mais ouvir-te falar deste modo. Quero que olhes, como teu,     tudo o que me pertence; que não me tornes a dizer essa palavra tão     feia, que ainda agora te ouvi. De outro modo, fico de mal contigo; isso fico.     Já o merecias por te estares a cansar com trabalho, sem precisão.

Margarida sorriu.

— E quando, para o futuro vier alguém tomar parte consigo nestes     bens, pensará assim como tu?

— Alguém! ... como alguém?

— Sim; julgo que não estás para freira, Clarinha.

— Ai, e pensas nisso já? Pois bem, se assim for, hei de escolher     quem seja digno de ser teu amigo, ou então...

— Está bom, está bom. Dá cá um beijo, e     não falemos mais nisso. Farei tudo como dizes.

E a tristeza de Margarida não terminava ainda.

No entretanto o reitor ia-se afeiçoando todos os dias mais às     suas pupilas.

À mais velha dizia:

— Toma-me conta de Clara. É rapariga e amiga de brincar. Faz     com que te confie todos os seus segredos. Serve-te do poder que tens sobre     ela para a guiares, minha filha. Dá-lhe parte do teu juízo.   

E por outro lado, dizia a Clara:

— Olha lá, rapariga. Tu anda-me com juízo, ouviste? É     bom rir e estar alegre, mas em termos, em termos. Segue os conselhos de tua     irmã e faz por imitá-la.

E consigo só, dizia, ao lembraram-lhe as duas:

- Excelentes corações! Deus lhe dê na terra a felicidade,     que eu lhes desejo e que são dignas. A Clarita bem está... Tem     dos bens da fortuna, não lhe faltarão arrumações;     mas a pobre Margarida... Se ao menos, por felicidade, tiver um cunhado que     seja um homem de bem!...

  

    Foi por isso que o reitor, ao perceber um dia a inclinação recíproca     de Clara e Pedro das Dornas, exultou com a descoberta.

Amigo das duas famílias, e conhecedor da boa índole de Clara     e dos sentimentos generosos de Pedro, ele só antevia ventura na projetada     união.

Em relação aos dotes, não havia entre os noivos grande     desigualdade, e, em vista disso, não era provável que, da parte     de José das Dornas, surgissem dificuldades sérias.

Por outro lado, a boa alma do noivo tranqüilizaria o reitor, em relação     à sorte de Margarida: ele a saberia estimar como ela merecia. Esta     consideração, sobretudo, fazia o contentamento do padre. Daí,     aquele conselho dado a Pedro - conselho que encontrou este em muito boas condições     de o observar.

Passados dias, procurou o reitor o seu amigo José das Dornas e comunicou-lhe     que Pedro estava resolvido a casar, e lhe pedira para servir de embaixador     em solicitar o consentimento paterno.

Como tinha conjeturado, o projeto passou sem oposição da parte     de José das Dornas, que antes ficou muito contente com a novidade.     Somente pediu o adiamento da época dos esponsais, para quando chegasse     do Porto, Daniel, que devia, naquele ano, terminar a sua formatura na escola     de medicina na Cidade Invicta.

Clara tinha, antes disso, respondido ao pároco, perguntando-lhe este     se aceitava o pedido de Pedro, que desejaria consultar a irmã. Aprovou     o Padre esta atenção delicada, e esperou-se pela resposta de     Margarida, de quem não havia grandes impedimentos a recear. Estava     Margarida a ler, quando Clara foi ter com ela.

Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida.     Não se podia dizer um tipo de beleza irrepreensível, mas havia     em toda aquela figura um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem avultavam     essas pequenas incorreções, só reveladas a um exame minucioso     e indiferente; mas a primeira, a grande, a invencível dificuldade era     conservar esta precisa indiferença ao vê-la. Os olhos, sobretudo,     negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade,     que só a contemplá-los, esquecia-se de tudo o mais. Não     possuía uma desses tipos fascinantes que atraem as vistas; era fácil     até passar por ela, desatendendo-a, mas fitada uma vez, o olhar deixava-a     com pena, e a memória conservava-a com amor. A boca tomava-lhe naturalmente     uma expressão de triste meditar, entreabrindo-se-lhe, de quando em     quando, os lábios por uma dessas mais profundas inspirações     que dissimulam um suspiro,

Clara aproximou-se da irmã sem ser pressentida e sentou-se junto dela.

O grupo graciosos, que ambas formavam assim, tentaria qualquer artista que     o visse.

A aparência jovial de Clara fazia realçar, pelo contraste, o     vulto melancólico de Margarida. Naquela tudo era reflexos de desanuviada     alegria interior, nesta difundia-se incessantemente uma dessas meias sombras,     como as que produzem as pequenas nuvens brancas que, sem ofuscar inteiramente     a luz do sol, lhe mitigam contudo um pouco o resplendor dos raios.

Clara tomou as mãos da irmã, sem romper o silêncio.

— Que tens tu, Clara? - perguntou-lhe Margarida - Não sei que     te leio nos olhos. Desconfio que me vais dizer alguma coisa.

— E vou.

— E parece ser de importância, ao que vejo; estás tão     séria! - acrescentou Margarida sorrindo.

— É que é deveras sério e muito sério o     que te vou dizer.

— Então?

— Querem-me casar.

— Ah!

— E olha, Guida, eu julgo que o meu noivo é um bom rapaz...     mas... sempre queria saber o que tu pensas dele, e se merece a tua aprovação.

— A minha!? E também te é precisa, filha?

— É, sim; pudera não. Já o disse ao Sr. Reitor     e ele concordou.

— Sois todos muito bons para comigo. Mas que te hei eu de dizer! Que     te diz o coração?

— Ora, o coração...

— O coração, sim. Por que não? Quando é     bom, como é o teu, deve-se sempre ouvir, e ... quer-me parecer que     já o consultaste, antes de mim...

— Falo a verdade. É certo que já.

— E que te disse ele?

— Aconselha-me... que sim.

— Que mais queres?

— Que também me aconselhes.

— O mesmo que o coração, já se sabe.

— Não, senhora, com franqueza, aquilo que pensares.

— E quem é o noivo?

— O Pedro do José das Dornas.

— Ah!... Por certo que é um bom casamento. Conquanto pouco conheça     ainda esse rapaz, ouço dizer que é honrado, trabalhador, e ...     de mais a mais, está bem.

— Então, aprovas?

— Se te fosse necessária a minha aprovação, dir-te-ia     que estimo até muito que se faça esse casamento, e que sejas     feliz.

Clara abraçou-a com efusão, e correu a dar parte ao Reitor     do resultado da entrevista.

Margarida ficou só.

O que acabara de ouvir da boca da irmã deixava-a pensativa. A idéia     de que a vida de Clara em breve se ia associar a de uma pessoa estranha, não     podia deixar de lhe fazer sentir graves preocupações pelo destino     dela e seu.

Era um problema proposto à solução do futuro, e Deus     só sabia como o futuro o teria de resolver. Clara ia entrar na vida     de família; ia cedo transformar em amor de esposa e de mãe todos     aqueles tesouros de sentimentos que, até então, a ela só     confiara, a ela, Margarida, à desvalida da sorte, à órfã     e esquecida sempre, e talvez dali em diante, ainda mais esquecida e mais desamparada     de afetos! Ao pensar nisso, não podia evitar certas angústias     de coração. Era mais uma afeição que lhe roubavam!     Pois nem esta lhe pertencia? E depois, como seria considerada pelo marido     de Clara? Humilhações, pudera-as suportar de sua madrasta ,     mas receava não ter já resignação bastante para     as receber de mais ninguém.

É certo que o bom nome de Pedro a tranqüilizava; mas quantas     decepções sobre os melhores caracteres humanos nos prepara uma     íntima convivência com eles? Quantos defeitos ocultos, ignorados     do mundo, a vida de família faz evidentes, a ponto de tornar inevitáveis,     discórdias, que aos olhos do vulgo nunca se justificam?

A corrente destes pensamentos tomou, porém, de uma maneira gradual,     diverso curso. O nome da família de Pedro não era desconhecido     para Margarida.

Andava-lhe associada à mais grata recordação da amargurada     infância da órfã. Quem em tão pequeno número     contava os corações que haviam simpatizado com o seu, que muito     era que se recordasse com saudade do pequeno estudante de latim que, de tão     longe, vinha sentar-se ao pé dela e falar-lhe com um afeto que até     então desconhecera?

Desde que as apreensões do reitor haviam ocasionado a partida de Daniel,     nunca mais Margarida lhe falara. Via-o todos os anos, quando ele vinha passar     as férias à aldeia, e não podia ocultar a si própria     a afetuosa atenção com que ainda então o observava.

Mas, pelos seus novos hábitos de vida, Daniel distanciara-se daquela     que conhecera em criança; nem dela talvez se lembrasse já. Margarida     pensava agora no caso, que os aproximava assim, e não podia, sem uma     vaga inquietação de espírito, ver, no futuro, a possibilidade     de uma entrevista com ele.

Os caráteres concentrados como o de Margarida alimentam-se ordinariamente     de uma idéia fixa... - Quantas vezes de uma ilusão? Que forma     o segredo inviolável da sua existência inteira. Abre-lhes ela     as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos embates     do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua delicada sensibilidade.     Quando os encontramos sós, estes melancólicos devaneadores,     acreditemos que lhes povoam a solidão formas invisíveis, criadas     à poderosa evocação da sua fantasia; o silêncio     em que o virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem     desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É     uma singular loucura procurar distraí-los, chamando-os à consideração     das coisas reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria     daquelas almas, é aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.

Deixem-nos assim. Não queiram erguer-lhes a fronte que involuntariamente     se inclina, não tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisionomia, sobre     a qual se derrama uma severa gravidade; não se esforcem por lhes tirar     dos lábios comprimidos uma palavra qualquer, o fogo da vida, que parece     tê-los abandonado, deixou somente a superfície, para mais intenso     se lhes concentrar no coração.

Margarida tinha também o seu pensamento secreto que, em momentos assim,     acariciava com amor.

Esse pensamento de longe lhe viera; há muito lhe era companheiro.     Assim como nas trevas da noite os olhos involuntária e quase irresistivelmente     se fixam no mais pequenino ponto luminoso, que lhes surja na obscuridade,     assim se voltava o pensamento de Margarida para o último raio, que     lhe luzira débil de entre as sombras da existência passada. A     cândida afeição de Daniel era esse raio; através     das diversas fases da sua vida a acompanhara sempre a imagem dele, modificando-se     conforme a natureza dos sonhos em cada uma. Aos vinte e dois anos, que Margarida     contava agora, recebera essa imagem toda a vida, de que um coração     juvenil anima as suas criações queridas.

De fato, não fora sem comoção de suspeitosa natureza,.     que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas gradações,     afugentar das reminiscências da boa rapariga e do pequeno Daniel, que     ela conhecera outrora; não foi sem íntimas turbações     de ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado,     a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para     um futuro que, agradavelmente e melancolicamente também, agitava o     coração da ingênua cismadora.

Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga realidade do presente     desencantado; mas era inevitável. O destino decidira de outra sorte.

- Vamos - dizia Margarida a si mesmo - Que mulher sou eu? Quando precisava     de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho a pensar... não     sei em quê. Pensar!... É um luxo, com que não podem os     pobres - acrescentava, sorrindo amargamente - É um prazer de ricos     e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado     a pensar assim.

- Clara vai casar - cismava ela depois - É forçoso que me separe     dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina idéia de viver     pelo trabalho; dele só e com ele deve ser agora principalmente o meu     viver. É custoso, porque querias devera a esta pobre criança,     mas é necessário. Um dia podia causar-lhe involuntariamente     mal, se ficasse. Hei de partir.

 

Procedia-se com toda atividade aos preparativos do casamento contratado.

José das Dornas não cabia em si de contente. A formatura de     um dos seus filhos, e a perspectiva do vantajoso casamento de outro eram para     isso motivos de sobejo.

Acrescentem agora que o ano tinha sido fértil, que o enxoframento     das suas vinhas prometia excelentes resultados, e poderão julgar se     tinha ou não razão o robusto lavrador para andar satisfeito     e para cantar, amiúde, a sua cantiga favorita:

Papagaio, pena verde,     Não venhas ao meu jardim;     Todas as penas se acabam,     Só as minhas não tem fim.

Depois de haver superintendido em todos os aprestes que se faziam na casa,     para receber o novo adepto da ciência hipocrática, José     das Dornas, cedendo àquela irresistível necessidade, tão     geral em todos nós, de transmitir aos outros parte das nossas alegrias,     comunicando-lhes a narração delas, saiu e transportou-se à     loja do Sr. João da Esquina, ponto de reunião da mais escolhida     sociedade da terra.

— Ora viva Sr. José das Dornas; passasse muito bem, é     o que estimo - disse o merceeiro do fundo da loja, onde, em pé sobre     um banco de pau, se ocupava a dependurar velas de sebo para satisfazer a requisição     de um freguês.

— Deus seja aqui - respondeu José das Dornas, sentando-se familiarmente     em um dos bancos, que havia por fora do mostrador.

— Muito calor, Dr. José - observou-se o merceeiro adiantando-se.

— De morrer - acrescentou o lavrador, tirando o chapéu e passando     o lenço pela cabeça escalvada.

— E então que se diz de novo? - perguntou o outro, pagando-se     da importância do gênero que acabava de aviar.

— Que se há de dizer? Que se vive, como Deus quer, e cada um     pode. Os velhos, como eu, com os seus achaques. - Tal foi a resposta de José     das Dornas, morto já por encontrar uma transição natural     para falar do filho, sem quebra de modéstia paternal.

— Então já se sabe que o Padre Custóias é     quem prega este ano o sermão da Senhora do Amparo? - disse João     da Esquina, que sempre que perguntava o que ia de novo, é porque tinha     alguma coisa a responder.

— Sim? - exclamou com afetada admiração José das     Dornas, a quem naquele momento a notícia importava muito mediocremente.

— É verdade. E a filarmônica é que vai tocar.

— Então a festa é de espavento!

— A confraria tem no cofre perto de cem mil-réis.

— Está feito!

— E diga-me, Sr. José, que lhe parece da pega do nosso reitor     com os do Amparo? Não acha que é um despotismo?

— Eu sei? Olhadas as coisas de certo modo, o homem não deixa     de ter alguma razão.

— O quê, senhor, o quê? - exclamou indignado o merceeiro      - Não tem razão nenhuma. Não me diga isso. Ora... pois     fale a verdade. De quem é a cera das promessas que fazem à Senhora?     Não é dela? A quem compete então o direito de a vender?     À confraria, que é a sua procuradora. Isto é claro como     água.

— Pois sim... não digo menos disso... mas... os direitos paroquiais...     enfim, não sei, não sei - murmurava José das Dornas,     ansioso por dar de mão ao assunto, sobredelicado para ele, que tinha     amizade nos dois partidos, muito fora do seu propósito naquela ocasião.

— Que direitos, que direitos? Tortos lhe chamo eu. Eu bem sei o que     aquilo é... Lembra-se do que o reitor de Cisnande fez ao do Mártir?     Pois temos outra aqui.

— Homem - insistiu José das Dornas, deveras impaciente por não     ver aproximar-se a conversa do tópico desejado, antes afastando-se     cada vez mais dele. - Não diga isso do Padre Antônio; você     bem sabe que o quinhão do nosso reitor é o quinhão dos     pobres. Mas... eu dessas coisas não entendo, nem quero entender; parece-me     contudo que era bom que andassem nisso com prudência e aconselhados     por quem possa dizer alguma coisa a tal respeito.

— Então o juiz da confraria é algum tolo? Olhe que o     João da Semana é homem para fazer frente ao reitor se...

Como já tivemos ocasião de dizer, João da Semana era,     por aquele tempo, o único facultativo da freguesia, e lisonjeiramente     conceituado na opinião pública da terra.

Desde que José das Dornas ouviu pronunciar o nome do velho cirurgião,     alegrou-se por lhe parecer preparar-se a índole da conversa em sentido     favorável ao assunto que ele mais pretendia tratar; por isso, logo     se apressou em observar:

— João da Semana é homem fino, bem sei. Mas é     também amigo velho do reitor; são amigos de tu, e por isso duvido     que queira deixar ir as coisas ao mal. De mais a mais, está velho e...

A conjunção devia ser a ponte de passagem para o assunto suspirado;     mas o merceeiro cortou-lhe no princípio.

— Velho, sim., mas robusto como poucos rapazes. Olhe vossemecê     que aquela alminha já às cinco horas da manhã tem visitado     mais de sete ou oito doentes.

José das Dornas julgou este terreno favorável para lançar     os alicerces da ponte que queria construir.

— Isso lá é assim; bem precisa de quem o ajude; e dentro     em pouco...

João da Esquina ainda desta vez lhe baldou a tentativa.

— Mas diz você que ele é amigo do reitor? Também     eu sou; mas isso não quer dizer nada, o que é de direito...

— Pois sim; eu não digo menos que isso; mas enfim...um cirurgião     tem o tempo tão ocupado... ainda se meu filho...

— Uma quarta de açúcar - bradou uma rapariga, que nesta     ocasião entrava na loja, e por essa forma, uma vez mais, impediu que     José das Dornas realizasse o seu intento.

Quando a freguesa se retirou ele, prosseguiu com constância digna de     melhor sorte:

— Mas ainda, se meu filho...

O tendeiro, porém, que, com a transação que operara,     tinha deixado escapar o fio da conversa, julgou que se tratava de Pedro e     perguntou:

— Então quando casa ele com a Clarita dos Meadas?

— Veremos; provavelmente breve; chegando do Porto o outro rapaz...

— Olhe que foi bem bom arranjo, Sr. Zé - continuou o tendeiro     com impertinente falta de percepção - Só o campo dos     Bajuncos é uma tal peça de lavra!

— E sobretudo é boa cachopa a rapariga; lá isso é.     Pois... quando vier o outro... - teimava o lavrador.

De novo um feirante veio interromper o discurso ao pobre do pai, que se vingou     mandando-o interiormente ao diabo. Já ia desesperando de conseguir     a realização do seu inocente propósito quando o reitor,     passando pela porta da loja, lhe perguntou:

— Então vem hoje o homem ou não?

— Eu espero que sim, Sr. Reitor - disse José das Dornas, levantando-se     e descobrindo-se. - Pelo menos não recebi notícias em contrário.

— Vê se me mandas avisar, logo que chegue que o hei de querer     ir ver.

— Não há de haver dúvida.

— Adeus.

E o padre continuou seu caminho, cortejando amavelmente, com um movimento     de bengala, João da Esquina, que apesar de partidário dos do     Amparo, não colheu friamente a saudação. Mas afinal,     graças às palavras do padre, tomou a conversa o rumo desejado     de José das Dornas.

— Como que então temos cirurgião novo cá na terra?     Ora Deus o ajude - disse João da Esquina.

— Enquanto João da Semana viver, há de custar a afreguesar-se     o rapaz - observou o pai traindo no gesto, porém, convencimentos contrários     ao que em palavra exprimia.

— Deixe lá. Há gente para ambos. A terra já vai     dando para dois, graças a Deus. E o rapazinho saiu esperto!

— Lá isso diga-se o que é a verdade, não é     agora por ser meu filho, mas todos o confessaram. Criança era ele ainda,     e já o reitor se espantava da memória do rapaz. E se você     visse, Sr. João, o livro que ele escreveu? Chamam-lhe lá teses,     ou não sei quê. Pelo modos, sem escrever aquilo, não podem     ter as cartas de examina. Eu tenho um que me mandou. Como sabe, eu daquilo     nada entendo, mas bem vejo que é obra acabada e bem feita. Deixe estar     que lho hei de trazer, para ver.

— Eu disso pouco sei dizer, não é a minha especialidade.

Não estamos habilitados para declarar aqui qual fosse a especialidade     do Sr. João da Esquina.

— Pois sim, bem sei; - continuou o pai - mas sempre há de encontrar     coisa que o perceba. O João da Semana também tem um que o Daniel     lhe mandou, e disse-me que está coisa asseada; e o Sr. reitor afirmou-me     que bem se conhece que o rapaz não se esqueceu do latim, porque em...     geografia, parece-me que foi geografia que ele disse, nisto que ensina a escrever     com letras dobradas, não tem nada que se lhe note.

— Bom é isso - replicou o tendeiro, já um pouco distraído     a somar as parcelas do seu livro de assentos.

José das Dornas continuou:

— Quer saber, Sr. João? Olhe que, pelos modos, o rapaz até     lá provou... Já sei que se vai admirar, mas olhe que é     fato, assim o leu no fim do livro o Sr. Reitor, até lá provou...     que não há doenças.

João da Esquina interrompeu efetivamente a sua tarefa, para fitar     no seu interlocutor uns olhos espantados.

— Que não há doenças?!

— É verdade - respondeu o lavrador, saboreando em delícias     a estupefação do seu vizinho.

— Essa agora! - dizia este ainda no mesmo tom de espanto - mas como     se entende isso?

— Assim como eu digo.

— Ó Sr. José das Dornas, então que é este     reumatismo que me não deixa mexer?

— Não sei. Diz ele que é outra coisa; lá lhe dá     um nome, mas é tão arrevesado, que me não ficou.

— Que não há doenças! Essa lá me custa     a engolir! Então para que andou o rapaz a estudar, e o que vem fazer     para cá, se não há doenças? Faz o favor de me     dizer?

— Ele não me disse que...

Mas João da Esquina estava muito ofendido nas suas crenças,     para o deixar continuar:

— Que não há doenças! Sempre é uma, a falar     a verdade! Não, não há! Que diabo viu ele então     lá no hospital? Ora essa! E que disseram lá os... mestres a     isso?

— É o que eu estou morto por lhe perguntar. Mas o Sr. João     admira-se? E então se eu lhe disser que ele provou também que     um homem é a mesma coisa que um macaco?

João da esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.

— Irra! Está a caçoar comigo, Sr. José? Ele podia     lá dizer semelhante coisa?

— Pergunte ao Sr. Reitor, que assim o explicou: pergunte, se não     acredita.

— Eu não, pois... Macaco! Então eu sou macaco? Então     vossemecê é macaco? Então ele é macaco? Então     nós somos... Ora, isso não pode ser.

— Você, Sr. João, cuida que eles entendem as coisas assim     como nós. Isso tem lá sentido.

— Outro sentido! Que diabo de sentido há de ter? Todos sabem     o que é um homem, todos sabem o que é um macaco. Não     vejo que outro sentido seja. Macaco! Irra! Não, essa agora é     que me não entra cá.

— Ele, salvo seja - observou José das Dornas, rindo - aqueles     diabos parecem às vezes mesmo gente, lá isso parecem; o Sr.     João nunca os viu?

— Vi, vi; tenho visto muitos.

— Olhe que fazem coisas! Que, fora a alma, já se sabe...

— Pois sim; mas o... mas a cauda?

— Ah! lá isso... - respondeu o lavrador embaraçado.

— Ora então, aí tem - disse João da Esquina com     ar triunfante, capaz de fulminar Lamarck.

— Deixe ver se me lembro de outras que ele provou...

— Não; essa já não é má! Mas, ó     Sr. José, deveras ele disse?

— Ora essa, vizinho! Palavra que sim.

— Macacos! O rapaz não estava em si decerto. Macacos! Mas então     que queria ele dizer afinal? Pois nós somos macacos, Sr. José?     Ora diga?

— Não sei. Eles lá o lêem, lá o entendem.

— Vão para o diabo. Bem me importa a mim o que eles lêem     e o que eles entendem. Não está má essa! Macacos!

Durante este solilóquio de João da Esquina, fazia José     das Dornas por lembrar-se de mais outra das proposições, que     publicamente sustentara seu filho, perante o júri escolar.

— Ah! é verdade - exclamou afinal. - esta também lhe     vai fazer mossa. Já estou vendo... Diz que sustentou lá também     que a gente, verdadeiramente, devia andar com as mãos pelo chão.

O gesto de tendeiro foi tão violento, que José das Dornas acrescentou     como corretivo:

— Ele não diz isto bem assim, mas lá por umas outras     palavras, que eu não tinha entendido, mas que o Sr. reitor explicou.

João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhar desconfiado.

— Vai me parecendo que o Sr. José tem estado mas é a     caçoar comigo.

— Ó homem! Com a verdade com que eu falo, assim Deus salve a     minha alma.

— Então com que havemos de andar a quatro como, com sua licença,     as cavalgaduras?

— Não; ele tanto não quer dizer.

— Não quer? Mas se ele diz...

— Sim, mas ele não diz...

E os dois olhavam-se embaraçados. José das Dornas não     podia resignar-se a tirar a conseqüência, um tanto dura, formulada     pelo tendeiro; mas também não lhe corria escapula razoável.     João da Esquina aguardava em vão a resposta.

Afinal José das Dornas saiu-se de entre as duas pontas dilemáticas     deste " diz e não diz", graças a evasiva costumada     em casos tais:

— Homem, eles lá sabem o que querem dizer na sua.

— Eu julgo que não é necessário ser grande doutor     para defender isso. Mas que ande quem quiser com as mãos pelo chão,     que eu por mim...

— Outro - continuava José das Dornas - Disse que há muito     pouca diferença entre um ... um alimento ou elemento, diz que é     a comida que a gente come, e um veneno.

João da Esquina já não podia espantar-se mais; limitou-se     a observar com ironia:

— Pois, quando ele vier, cozinhe-lhe vossmecê um guisado de cabeças     de fósforos com rosalgar, a ver como ele se dá. Se é     a mesma coisa... Sempre ao que ouço! estes médicos de agora!

— Enfim, mostrou muito outra coisa o rapaz e de que eu agora não     me lembro. Pelos modos deixou-os todos maravilhados.

— Se lhe parece que não!... sendo todas desse jaez.

Para os leitores, alheios a certas noções de ciência     e que se sintam tentados, como o Sr. João da Esquina, a duvidar da     veracidade de quanto José das Dornas referira, devo eu, em bem do caráter     sisudo do honrado lavrador, acrescentar aqui, à maneira de nota elucidativa,     informando-me com pessoa competente, soube que as proposições     que tanto impressionaram o tendeiro tinham seus fundamentos em várias     opiniões e teorias filosóficas mais ou menos à moda.

Daniel, com o amor extravagante natural a quem deixa aos vinte anos os bancos     das escolas, afeiçoara-se àquelas proposições     que, formuladas, pudessem aparentar-se mais paradoxais, não hesitando     em levar às últimas conseqüências os princípios     sistemáticos de algumas escolas e seitas.

Esta vulgar tentação da juventude não lhe granjeou grandes     créditos no conceito de João da Esquina, a cujo bem senso repugnavam     as asserções, que, pelo relatório do José das     Dornas, lhe vieram assim, nuas e cruas, ao conhecimento.

Assim que o lavrador virou as costas, João da Esquina murmurou com     os seus botões:

- Nada, para mim não serve o doutor. Se ele diz que não há     doenças, que há de vir cá vir fazer? E depois, pôr-me     em dieta de vidro moído e cebola albarrã ou outras coisas assim,     e mandar-me a correr de quatro pelos montes. Nada. Quero-me com o João     da Semana, que é homem sério, e não tem destas esquisitices     da moda.

 

Ao deixar José das Dornas, na tenda do seu vizinho da esquina, o     reitor, apoiado na grossa bengala de cana, companheira fiel das fadigas de     muitos anos, foi seguindo pelos caminhos poucos cômodos de sua paróquia,     entrando na casa dos mais pobres, onde levava a esmola e o conforto das doutrinas     evangélicas que tão singelamente sabia pregar.

Era esta, para ele, tarefa habitual.

Sentava-se com familiaridade à cabeceira do jornaleiro doente, ele     próprio lhe arrefecia os caldos, lhe temperava os remédios e     lhos ajudava a tomar; guiava com conselhos e ensinava com o exemplo os enfermeiros     que, entre a gente pobre dos campos, são quase sempre os mais pequenos     da família, aqueles que, pela idade, representam ainda uma parte pouco     produtiva da receita; porque os outros reclamam-nos as exigências do     trabalho.

No cumprimento desta obra de misericórdia, atravessou o reitor quase     toda a aldeia, e com o coração apertado pelos infortúnios     que vira, e desafogada a consciência pelo bem que fizera, continuava     placidamente a sua tarefa abençoada.

Depois de muito andar e de muito consolar misérias, parou por algum     tempo por debaixo das faias, que assombravam um largo terreiro, e sentou-se     com o fim de ganhar forças para prosseguir.

Enquanto descansava foi dar balanço às algibeiras, que trouxera     bem providas de casa. Este balanço foi desanimador para os projetos     ulteriores do velho. A esmola, essa sublime gastadora, que nunca abandonava     a direita do pároco nestas visitas pastorais, havia-lhe esgotado o     capital, sem que ele desse por isso.

O reitor mostrou-se mortificado; não que lamentasse o dinheiro gasto     assim, mas porque estava longe de casa, e tinha ainda mais infelizes a socorrer.

Poucas cogitações financeiras de um ministro de Estado, perante     um deficit no orçamento, valem as do pároco naquela ocasião.     Apertando entre o indicador e o pólex o lábio inferior e com     o olhar imóvel próprio das profundas abstrações     do espírito, conservou-se por bastante tempo irresoluto, entre o prosseguir     a sua visita com as mãos vazias, e o transferir para outra vez o complemento     dela.

Nem um nem outro alvitre lhe agradavam porém.

De vez em quando tornava a procurar nas algibeiras, a ver se lhe passava     despercebida alguma moeda, que o tirasse de maiores dificuldades. Mas de nada     lhe valia a pesquisa.

Enfim levantou-se; radiava-lhe a fisionomia com um ar de resolução     como se afinal lhe ocorrera o pensamento desejado; e foi já com andar     firme e decidido que continuou o seu caminho, murmurando consigo mesmo não     sei que palavras pouco perceptíveis, acompanhada ás vezes de     certa mímica de mãos.

Depois de trezentos passos, pouco mais ou menos, dados assim, achou-se o     reitor defronte de uma casa branca, cujas funções eram bem indicadas     pelo ramo de loureiro que pendia à porta e pelo coro e vozes e ruído     de gargalhadas e juras, que vinham do interior dela.

O padre tomou a direção desta casa.

Não o surpreendeu o espetáculo que presenciou, porque o esperava.

Alguns lavradores e homens de ofício, sentados à volta de uma     banca de madeira, todos formidavelmente munidos de grandes copos de vinho,     estavam ali recebendo simultâneas as comoções de beberronia     e de jogo de parar. Cada um deles seguia de olhos atentos as evoluções     do baralho de cartas, moído e sebento, que um banqueiro, igualmente     dotado desta última qualidade, executava a prestidigitação     de consumado artista; o ardor do ganho, a recíproca desconfiança     que os animavam, rompiam ainda através dos densos nevoeiros que pareciam     toldar aquelas vistas avinhadas.

Havia um considerável monte de cobre e alguma prata no meio a mesa     e montes parciais, mais ou menos bem providos, ao lado de cada jogador. A     cada sorte, que se decidia entre um silêncio e ansiedade de suspender     quase a respiração, seguia-se um vozear infernal composto de     exclamações de júbilo dos felizes e pragas dos sacrificados.

O reitor assomou ao limiar da porta, em um desses momentos de tumulto. Discutia-se,     quase tão desordenadamente como nas mais importantes sessões     dos nossos parlamentos, a legalidade e a inteireza da mão última     do jogo.

A correr parelhas com a pouca moderação das palavras, só     a das libações do vinho. Os copos vazavam-se e enchiam-se com     rapidez pasmosa, e o taberneiro a cada um que se despejava traçava     um sinal a giz na porta vermelha da cozinha.

O aparecimento do reitor causou sensação.

O primeiro movimento dos circunstantes ao darem por ele, foi o de esconderem     as cartas e o dinheiro; mas, na impossibilidade de o fazer a tempo, levantaram-se     e, com ar de embaraço, tiraram o chapéu e baixaram os olhos.

Houve um momento de silêncio, empregado por o reitor em reconhecer     os delinqüentes, e durante o qual estes não ousaram levantar os     olhos.

— Não é regedor, sosseguem - disse enfim o, reitor ainda     no, limar da porta - e pena é que não o seja para vos meter     a todos na cadeia. - E adiantando-se na taberna, continuou: - Santa vida esta!     Assim é que é ganhar o reino do céu! Sim, senhores! Aqui     estão uns poucos de santos varões, que empregam bem o seu tempo!     Respeitáveis e exemplares patriarcas, de quem muito se pode esperar     como educadores de família! Sim, senhores! - E, mudando para um tom     mais severo: - Vossas mulheres estafam-se com o trabalho, para dar um bocado     de pão negro aos filhos e a vós esta vida regalada, não     é assim? Ainda agora encontrei o teu pequeno, Manuel, que pedia esmola     pela porta dos vizinhos; não tens vergonha? - Tua mulher, Francisco,     estava há pouco de cama e teve de mandar à cidade a filha mais     nova com uma canastra de hortaliça, com que ela mal podia; ia a vergar,     a pobre pequena. Achas isso bonito? Teu irmão, João, ainda não     há três dias que foi pedir emprestado, chorando, ao José     das Dornas, dinheiro para pagar ao mestre da fábrica, em que traz o     filho na cidade; talvez tu não tivesses para lho emprestares? - Não     há muito o pobre José Maia se me queixou a mim, de que tu, Damião,     ainda lhe não tinhas pago por inteiro o preço daqueles bois     que lhe compraste. Mas que importam essas pequenas coisas? Que importa lá     a miséria que vai por casa, se não falta o dinheiro para o vinho     e para o jogo! Isso é o que se quer! E tu - acrescentou voltando-se     para o taberneiro, que, de trás do mostrador, assistia calado a toda     essa cena: - Tu vais engordando à custa destas misérias todas.     Passam fome as mulheres e as crianças, para te encher as gavetas e     a barriga! Ó Santo Deus! - e tanta desgraça, que por aí     vai, e tanta gente sem pão para comer!

— Essa é boa! o meu ofício é vender vinho, vendo-o;     faço o meu dever - resmungou o taberneiro despeitado.

— Fazes também o teu dever, enchendo com outro tanto de água     as pipas de vinho que vendes? e permitindo em tua casa estes costumes proibidos     pelos homens e amaldiçoados de Deus? - estes jogos infernais, que têm     levado tantas cabeças à forca, e tantas almas ao inferno? É     esse também o teu ofício? Pois deixa estar avisarei o regedor,     para que te dê a recompensa, por o bem que o cumpres.

O taberneiro não redargüiu.

O reitor voltou-se de novo para os jogadores, ainda silenciosos.

— Chego ao meio de vós com as mãos e as algibeiras vazias.     Vede. O dinheiro, com que sai de casa, ficou-me por esses caminhos, alguns     nas casas de muitos dos que vejo agora aqui. A esses não estou disposto     a perdoar a dívida, pois vejo que não precisavam da esmola,     que eu lhes dei; os outros, que têm para perder no pecado, também     hão de ter para a obra de misericórdia, ou tisnada trazem já     a alma pelo fogo do inferno. Tenho ainda muitos pobres para ver, e não     trago já dinheiro comigo. Peço esmola para os pobres - prosseguiu     o reitor em voz alta, e aproximando-se da mesa - quem não dará     aqui esmola para os pobres? - Amanhã, continuando vós nesta     vida, eu pedirei também esmola para vós. Lembrai-vos disso.

E a um por um estendia o chapéu, fitando-os com um gesto nobre de     composta severidade.

O respeito que lhe impunha a figura do ancião, pedindo desinteressadamente     pela pobreza, e em muitos, a voz da consciência, coroaram do melhor     êxito a inspiração do pároco.

Houve quem lhe despejasse no chapéu todo o dinheiro que tinha diante     de si.

— E tu?

— Não tenho nada - respondeu este homem com ar abatido - perdi     e devo.

— Não tens nada! - redargüiu o padre com amargura - tens     sim; tens cinco filhos e uma velha mãe moribunda.

O homem cobriu o rosto, para ocultar as lágrimas.

— A que vem esse choro agora? Pois julgavas tu que matarias a fome     à tua família por essa maneira? Para que te deu Deus os braços     robustos, homem, e o peito valente, se os negas ao trabalho? - E voltando-se     para os jogadores que sabia mais abastados prosseguiu com maior veemência:      - E vós tivestes alma para vos entregardes a este jogo danado com um     homem, que punha em cima da mesa o pão e o sangue dos seus filhos e     de sua mãe! Vergonha e desgraça sobre vós, miseráveis,     se dentro de um dia não compensardes o mal que fizestes, abrindo por     vossas mãos a este pai e filho desnaturado a carreira do trabalho,     que é da honra igualmente - dentro de um dia como podeis e deveis.     Eu vos forçarei a isso . Homens, que tão bens servis para perder,     servi um dia ao menos para salvar. Não podes pagar?... Alguém     pagará a tua parte.

— Não pode pagar, não - confirmou o taberneiro - que     a mim me deve ele uma conta, e não pequena, de vinho.

— Ah, sim? - disse o reitor, voltando-se para o da observação.      - Pois hás de ser tu que pagarás a parte dele. Ainda não     deste nada. Dá-me a sua dívida.

— Mas, Sr. Reitor... - balbuciou o taberneiro.

— Consideras-te mais que os outros! Só se for por seres o mais     culpado.

— Não, senhor... De boa vontade lha perdôo, lá     por isso... - e acrescentou falando consigo o taberneiro: - Não cedo     grande coisa, que perdida a tinha eu há muito.

Depois desta abundante colheita, o reitor continuou:

— Compensem ao menos com esta boa ação o pensamento diabólico,     que vos juntou aqui. E agora ide para vossas casas, e para o trabalho. Lembrai-vos     que mal vai a família e a fazenda do que se esquece na taberna assim;     e retenha-vos essa lembrança, se ainda não tendes endurecido     de todo o coração. O que entra rico nestas casa, sai a pedir;     se entrar pobre, sai criminoso. Ide. Fugi às tentações     destes inimigos - isto dizia tomando as cartas da mesa - e fazei como eu quando     as tiverdes à mão. - E, com um rápido movimento do braço,     fez voar todo o baralho até ao fogo, que em pouco tempo o reduziu a     cinzas.

E pondo outra vez o chapéu na cabeça, saiu da sala.

Após ele foram saindo também os jovens consócios da     taberna, que não se sentiam com alma de continuar ali.

Para alguns tinha de ser a última tentação.

O que menos contrito se mostrou foi o dono do estabelecimento que deu ao     diabo a intervenção do pároco na pacífica diversão     de meia dúzia de fregueses honestos e tementes a Deus. No entretanto     o reitor ia prosseguindo a sua visita e distribuindo pelos necessitados o     dinheiro dos ociosos. Sorria de satisfação o velho, ao fazê-lo.

— As grandes ventanias - monologava ele - são também     um mal para o lavrador, porque lhe derrubam as searas, mas... como se não     podem evitar... que se faz? - levantam-se nos montes as asas de um moinho,     e elas aí estão aproveitadas. Aproveitemos pois também     da loucura má desses perdulários, já que pude acabar     com ela de todo. Se a água é muita nas presas, não se     deixa extravasar à toa, abre-se um regueiro, que a leve onde ela seja     precisa. Ó Santo Deus! e então que há por aí terras     tão sequinhas de água! Doer-me-ia a consciência se tivesse     enchido a bolsa com as esmolas dos laboriosos e poupados; mas com as destes...     ora... folgo e orgulho-me.

 

Ao chegar a um largo todo plantado de sobreiros, quase seculares, que havia     no centro da aldeia, ainda o bom do pároco levava as algibeiras bem     fornecidas.

A tarde aproximava-se do fim, estendiam-se já as sombras muito mais     para o oriente, e coloriam-se de vermelho afogueado as vidraças voltadas     ao ocaso.

O reitor encaminhou-se para uma das casas de mais miserável aparência     que havia naquele lugar.

— Terminemos por este - dizia o velho consigo.

Empurrou adiante de si a porta desta casa, e ia entrar, quando deu de rosto     com Margarida, que saia.

Os olhos vermelhos da sua pupila, a expressão de dor que trazia no     semblante, chamaram a atenção do reitor.

— O que tens, Margarida? - perguntou ele, como solicitude - Esses olhos     são de quem chorou.

— É que me despedaça o coração ouvi-lo.

— Então está mais doente?

— Está muito mal.

— E onde ias tu?

— A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios...

— Que não vá arruinar-se o homem. Deixa que tem de me     ouvir. É pior que o pior dos seus cáusticos. Porém, não     tem dúvida, que eu venho bem provido. Entra, mas antes alegra-me este     rosto. Vamos.

E os dois entraram na sala. O interior da casa não contradizia o aspecto     de fora.

Era a casa de um pobre.

Com a cabeça encostada nas mãos e os cotovelos apoiados na     mesa, estava um homem escanecido e pálido - tão absorto, que     nem deu pela chagada do reitor, o qual se aproximou dele lentamente.

Este homem era o infeliz que servia de mestre a Margarida.

O pároco ficou por algum tempo a observá-lo em silêncio;     vendo porém que não era sentido, dirigiu-lhe a palavra.

— Que grande dormir é esse, Sr. Álvaro, que nem dá     pela chegada de um amigo?

O velho levantou finalmente a cabeça como sobressaltado por aquela     voz.

— Ah! é o Sr. Reitor? Não dormia, não ...

— Então?

— Pensava.

— Em quê?

— Em quê? E falta-me em que pensar? Na minha vida passada e na     futura, que está próxima já.

— O passado - disse o reitor, sentando-se do outro lado da mesa e sem     desviar os olhos do velho Álvaro - é um sonho, que se sonhou.     E quando dele, felizmente, não ficaram remorsos, que peçam reparações,     arrependimentos ou... penitências, perde-se muito tempo a pensar nele     assim. Da vida futura... bom é ter nela sempre o pensamento, decerto;     mas quem sabe lá quando nos está próxima?

— Sei-o eu. Há dois dias que me sinto fraco, muito fraco. Nem     já pude sair para, como costumava, ir ver o pôr-do-sol lá     acima dos degraus da capela do Calvário.

— Isso lá... todos nós temos dessas fraquezas, sem causa.     Há dias assim. E então desanima por isso?

— Desanimar! - replicou o velho, sorrindo tristemente - E que ânimo     tenho ainda para perder? Há muito que ele me falta na vida. Bem vê     - continuou apontando para Margarida - que tenho precisado de um braço     para me sustentar.

— Grande ânimo tem o que sai das grandes provações     com a cabeça levantada. Para que se faz de cobarde diante de quem lhe     conhece e admira a coragem? A Cristo, também houve uma mulher que lhe     limpou o suor da fronte vergada; e mais era um ânimo divino, aquele.

— Não, eu não sou forte - continuou o velho doente -      Colocado, como estou, entre a morte e a vida, receio-me de ambas. desfalece-me     o alento diante das provações continuadas de uma; assusta-me     a incerteza, o desconhecimento da outra. O meu coração é     muito da terra, para poder ser forte. Os meus olhos ainda não se secaram     para as lágrimas...

— Bem aventurados os que choram! - redargüiu o reitor.

— Como me há de sustentar a vida, se há muito que, onde     busco a consolação, encontro só o desespero? - continuou     o enfermo - Ao findar o dia, gostava eu de me ir sentar lá fora, a     ver descer o sol; mas, dentro em pouco tempo, tomava-me de uma tristeza profunda     e rompia em lágrimas, que não podia estancar. Aquele descimento     do sol lembrava-me outros ocasos. Eu tenho visto tantos! um dia, em volta     de mim, apagaram-se os esplendores da riqueza. O meu coração     era de homem... padece: mas Deus sabe que não foi para ele esta a prova     mais terrível. Outro dia apagou-se a luz da vida no olhar da esposa     adorada; outro, nos rostos de duas crianças inocentes, que, ainda a     morrer, me sorriem; então sim, fez-se noite em minha alma... Era isto     que me recordavam aqueles ocasos.

— Mas então para que procurava essas ocasiões de tristeza,     diga? - perguntou Margarida com afabilidade e quase sorrindo. - Olhe, se às     mesmas horas se voltasse para o outro lado, para aquele onde o sol nunca vai     se esconder, nem as estrelas, havia muitas vezes de avistar a lua que subia,     a lua que não deixava que a sua noite fosse escura de todo. Também     ela o afligiria assim?

— Também ela. As vezes a vi. Lembrava-me então que, para     mim igualmente, ao apagarem-se as mais ardentes afeições do     meu coração, nasceu a luz do teu afeto, melancólica e     suave como a dela, Margarida; entristecia-me com a lembrança.

— Por que? - perguntou Margarida.

— Porque tentando descobrir a força misteriosa que te aproximava     da minha desventurada velhice, a ti, a quem, pela idade, só alegrias     deviam atrair, encontrava apenas a explicá-la a tristeza dessa alma,     tristeza que é o segredo do teu coração, que a ninguém     revelas, e que Deus queira que não acabe por te devorar um dia.

Margarida desviou os olhos da vista fixa e penetrante do velho, e respondeu,     fingindo sorrir.

— Pois então, dessa vez, meu bom amigo, era bem sem razão     que se entristecia.

— Prouvera a Deus que o fosse... que o seja. Mas, bem vêem, havia     em mim muita amargura, para me ser suportável a vida. Se o pavor nos     está nos lábios, não há doçura de mel que     o disfarce. Vergava pois o peso da existência. Pedia fervorosamente     a Deus que me tirasse deste martírio, e era sincera a prece, era! Persuadi-me     eu que, ao ouvir bater a minha última hora, a saudaria com júbilo;     e agora que bem sinto que chegou... e chamam-me forte ainda! agora ou ouvi-la,     assusto-me, estremeço... Está próximo a revelar-se o     mistério... e que segredos me descobrirá? Que verá minha     alma ao rasgar-se a nuvem que caminha diante dela? Que verá minha alma     depois do túmulo? Que verá minha alma no dia de amanhã?

— A glória eterna, a bem aventurança do Céu -      respondeu o reitor com a firme convicção da fé.

O velho Álvaro fitou nele um olhar demorado e perscrutador, e depois,     escondendo o rosto entre as mãos, exclamou quase soluçando:

— Senhor! Senhor! por que me negais o bálsamo de uma crença     como esta!

O reitor contemplava com olhos de piedade. Para a sua alma, ingênua     e sinceramente cristã, era desconhecida e quase inconcebível     esta excitação febril, a que certa ordem de meditações     arrebata alguns espíritos ilustrados. A dúvida, esse demônio     inquietador, nunca dirigira às suas crenças piedosas a interrogação     fria e implacável, que as faz estremecer. Elas protegiam-lhe ainda,     como dantes, a cabeceira do leito contra os maus sonhos dos filósofos,     e, alumiado pela sua luz, achava-se também o bondoso pároco     no fim da viagem da vida, sem se lembrar de perguntar a que porto chegaria.     Sabia-o de pequeno; desde então lhe repetia o nome de contínuo.     Como que já aspirava as auras desses país e às vezes     quase se iludia a ponto de o julgar entrever. Era feliz na sua fé.

Contudo o reitor era destes homens que têm coração para     se compadecer de todos os infortúnios, daqueles mesmos que a sua inteligência     não compreende bem.

A solicitude, com que se aproximava dos infelizes, não podia comparar-se     à do médico, que procura sondar e conhecer o mal, para o debelar     apropriadamente; era antes como a da mãe, que responde a todos os gritos     do filho estremecido com beijos e lágrimas, e, se não cura assim     a causa da dor, porque a desconhece mitiga-a, por as simpatias que revela.

As palavras cheias de resignação cristã, que o reitor     dirigiu ao atribulado enfermo, serenaram a este um pouco as amarguras do espírito,     que o espinho da dúvida pungia; e foi com verdadeira gratidão,     que apertou as mãos do padre, quando este se preparava para retirar-se.

Uma das razões, que o levaram a resumir sua visita, foi o parecer-lhe     ter ouvido o rumor de altercação um pouco viva, travada à     porta da casa, entre Margarida, que momentos antes deixara a sala, e outra     pessoa, cuja voz parecia vir da rua.

Ao aproximar-se, o reitor percebeu melhor que sua pupila falava em tom suplicante,     e o interlocutor, se não com aspereza, com menos cordura, do que o     pároco desejaria. Isto obrigou-o a apressar o passo.

— Mas, por amor de Deus, fale mais baixo que não vá ele     ouvir. Eu lhe prometo que tudo se lhe pagará - dizia Margarida, quando     o reitor chegava junto deles.

— Que é? - perguntou este com modo desabrido, saindo para a     rua e fechando atrás de si as portas da casa.

O personagem que falava com Margarida baixou logo de tom ao reconhecer o     reitor, e respondeu com certa timidez:

— Era uma continha que trazia; mas uma vez que aqui a menina se responsabiliza...     Eu sou o senhorio. Sim, porque V.S.ª bem vê que se eu estivesse     no seu caso de poder fazer esmola de boa vontade...

— Quem lhas pede? - disse asperamente o velho padre, tomando o papel     das mãos do credor, que falara assim. - Para pagar aos vampiros como     você, é que se pedem esmolas aos outros; aos que tem coração.     Aluguer de dois meses - Olham a grande coisa! Então é o que     se lhe deve? Ai tem - acrescentou, contando-lhe o dinheiro. - Não repare     o ir quase todo em cobre; mas é dinheiro de esmolas, e poucas se realizam     em prata cá na terra.

— Mas, Sr. Reitor, eu não exijo de V.S.ª... eu confio...

— Leve isso daqui, homem! e saia você também que me está     inquietando o espírito.

O senhorio foi embolsando o dinheiro, insignificante preço de dois     meses de aluguer daquele miserável casebre, e retirou-se com uma alegria     profunda.

— Restam cento e dez - disse o pároco, vendo o dinheiro que     lhe ficara. - Chegará para os remédios? - perguntou olhando     para Margarida.

Esta fez um gesto de dúvida.

— Nesse caso, eu vou falar com o boticário, que não é     mau sujeito afinal, e hei de resolvê-lo esperar até amanhã;     E de caminho, irei também visitar o filho e José das Dornas,     que deve já ter chegado.

Estas últimas palavras não foram escutadas com indiferença     por Margarida.

— O Sr... Daniel chega hoje? - perguntou ela.

— Pelo menos o pai espera-o.

E acrescentou como para consigo

— Agora para aí vem estabelecer-se o rapaz. Deus queira que     ele sossegue aquela cabeça, que, segundo me informam, não tem     sido lá das mais assentes. Vai tu para casa também, Margarida.     O teu mestre fica mais sossegado e espero que dormirá.

O que é preciso é mandar recado ao João da Semana que     o venha ver. Acho-o muito abatido e mudado nos modos. Aquilo não está     bom. não. Adeus. Eu vou avisar a Maria do Caleiro que venha tratar     do doente. É uma esmola que se faz também à pobre mulher.

E o reitor saiu para realizar estes diversos intentos; Margarida, depois     de se despedir do seu velho mestre, que de fato parecia mais sossegado, partiu     também para casa.

Entre os pensamentos que a dominavam na volta, um dos mais persistentes era     o que a anunciada vinda de Daniel lhe sugerira; e contudo nada de extraordinário     havia no fato. Se quiséssemos dizer quanto lhe ocorria a este respeito,     ver-nos-íamos embaraçados. São tão vagas, tão     difíceis de apreender, as idéias que evocam em nós a     lembrança de uma pessoa querida!

 

O grande acontecimento do dia realizava-se enfim.

Pelas cinco horas da tarde, parava à porta de José das Dornas     a mais vigorosa e anafada das suas éguas, e dela se desmontava Daniel,     em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal     evidente de formatura completa.

A vizinhança toda afluiu curiosa às portas e às janelas     para ver o facultativo novo e julgar dele pelas primeiras impressões.     Era uma coleção de olhos arregalados e bocas abertas, a convidar     o lápis de um artista.

— Ainda é tão novinho! - dizia uma mulher.

— Não sei o que me parece um cirurgião sem barba - observava     um velho filosoficamente. - Parece um estrangeiro.

— Lá bonito é ele - notava uma rapariga.

— Olhem que boniteza! Um homem quer-se um homem - argüiu um alentado     rapagão ao ouvi-la.

Neste tempo, porém, já Daniel estava rodeado pelo pai, irmão     e criados de um e de outro sexo, em cujos semblantes luziam naquela ocasião     sorrisos de júbilo não afetado.

Daniel era agora um esbelto rapaz de vinte e três anos, de aspecto     mais varonil, mas conservando ainda a mesma delicadeza de organização,     que o caracterizara na infância, e que tantas apreensões fizera     conceber ao pai.

No meio daqueles homens do campo distinguia-se singularmente o seu tipo quase     setentrional, e com grande vantagem para ele no conceito das mulheres, que     umas às outras faziam baixinho esta observação, traída,     porém, pelos olhares que lhe lançavam.

Trocaram-se cordiais abraços, baratearam-se parabéns e cruzaram-se     perguntas, às quais era quase impossível responder de pronto,     tantas e tão simultaneamente se faziam.

Enfim entraram para a sala.

O leitor concordará comigo, decerto, que será melhor deixar     passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos discretamente, como     hóspedes importunos sempre nestas cenas de tanta alegria doméstica.     Deixemos Daniel gozar-se à vontade dos abraços da família,     e preparar-se para sofrer, como puder, os apertos de mãos oficiosos     de amigos e conhecidos, que não tardarão a vir cumprimentar     o zelador de suas importantíssimas saúdes.

Entremos, pois, com estes. que é a companhia que melhor nos convém.     Entre os primeiros encontramos logo o reitor.

O bom pároco caminhou para Daniel com os braços abertos e lágrimas     de alegria a bailarem-lhe nos olhos, Ficara com afeição ai rapaz,     desde que o tivera por discípulo.

Falou-lhe desses tempos com saudades e perguntou-lhe se ainda se lembrava     do latim.

Daniel, em resposta, declinou-lhe, sorrindo, hora, horae, e até ao     ablativo do singular, com grande satisfação do velho que, em     paga,. terminou com uma prática sobre os deveres do médico na     sociedade, recheada de preceitos de excelente moral. Daniel escutou-o com     fisionomia atenta; mas, diga-se o que é verdade, com o espírito     um tanto distraído.

Veio também João Semana - João Semana, o velho cirurgião,     de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a     mão de Daniel, pondo em exercício uns músculos de oitenta     anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte.

Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos     de atividade, a que não sabia fugir.

Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo, para     começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e nunca     reprimia a velocidade de sua pacífica e bem intencionada azêmola,     para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar o gorjeio     de alguma ave oculta na folhagem, nem para cortar a flor desabrochada à     borda dos caminhos, ou de entre a relva dos campos. Nada disso; se abrandava     o trote da égua, era nos sítios mais azados a quedas, se parava,     era à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta, à qual,     até a cavalo, respondia, e nos mais lacônicos termos possíveis.

Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à     qual em vão fora resistir. Quem o quisesse ver morto, era condená-lo     à inação, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos     e chuvas excessivas a que, havia mais de meio século, andava sujeito.

Viam-no sempre alegre, da mesma alegria de José das Dornas, a alegria     sem sombras.

Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório     vivo. Os frades era ordinariamente os seus heróis preferidos; contra     eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto a correr caminho.

Esta bossa anedótica é sempre de grande valor para o facultativo     que aspira à vida clínica. Uma história contada a tempo,     e com graça, vale bem três récipes, pelo menos.

Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era-o João Semana     também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração,     que lhe não deixava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar     com o que sofria, e sem empregar os meios para o aliviar.

Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida     a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar, por aquela repugnância     a ostentações de todo o gênero, que constituía     um dos distintivos do seu caráter.

A conversa de João Semana com Daniel, não entendida, e por     isso admirada pelos circunstantes, versou sobre medicina. As exaltadas crenças     teóricas de Daniel, e a casuística inflexível e fria     do velho prático acharam-se em conflito.

João Semana era céptico em relação à ciência     moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta     notável, a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros,     sorrindo.

— Tudo isso é muito bonito - dizia ele, com poucas contemplações     para com a impaciência do seu jovem colega - mas não me serve     para nada. Era o que me faltava se eu, que não tenho tempo para dormir,     me punha agora a ler essas coisas todas. Que nomes! que moléstias que     eu nunca vi, em sessenta anos de prática! Sabe você, Daniel?     Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas     de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também;     cá à aldeia não chegam; é o que sei lhe dizer.     Você para cá virá, você para cá virá     - há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco, mais     gástricas, menos gástricas e disse.

Daniel falou em mil assuntos: nos aperfeiçoamentos da análise     médica, no microscópio, na eletricidade, na química,     na anatomia patológica, com um ardor de proselitismo, próprio     da idade; chegou a persuadir-se que sua eloquência conseguiria, enfim,     vencer o indiferentismo teórico do clínico.

Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando ao terminar     um bem elaborado período em honra da ciência moderna, obteve     em resposta a frase do costume:

— Isso é tudo muito bonito, mas você para cá virá,     você para cá virá, e então falaremos.

Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação.     Era o antagonismo permanente entre a teoria e a prática, revelado em     uma das suas multiplicadíssimas manifestações.

Mais arrojado do que o empirismo de João Semana, era, sem dúvida,     o sistema médico do barbeiro, que também tinha uma clínica     na aldeia, à qual, para maior exemplo de observância à     lei, pertenciam duas autoridades: o regedor e o presidente da câmara.   

O barbeiro entrou risonho, cerimoniático, afável, modesto,     penteado, felino - perfeita personificação do ideal do barbeiro,     todo mesuras, todo senhorias, todo humildades, todo delicadezas velhacas.

E quantos estavam na sala o rodearam de atenções, e o próprio     João Semana, com grande espanto de Daniel, o interrogou com referência     a uma doente, de quem tratavam juntos.

Com audácia, mal encoberta por transparente modéstia, o barbeiro     expôs assim a sua opinião.

— Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes,     aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a     doentinha tem aqueles pasmos, que se vêem. Ora os sinapismos, puxando-lhe     os humores para os pés, algum bem lhe podem fazer. Mas eu por mim,     Sr. João Semana, penso que nestas doenças de retrocesso a matéria     reimosa não sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa,      - e fel, que é ainda pior - isso é que há. Já     vê então... mas isto digo eu; agora lá os senhores que     estudaram... - acrescentou humildemente, mas obliquando para Daniel um olhar,     de quem estava satisfeito de si.

Daniel tratou senhorilmente este colega de contrabando, e na ocasião     em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição de     uma teoria sua, na qual ferviam os humores, os flatos, as matérias     reimosas, os postemas e não sei que mais, em indigesta caldeirada,     interrompeu-o, perguntando-lhe secamente:

— Teve hoje muito que fazer, mestre?

O barbeiro acolheu a pergunta com um sorriso e uma mesura.

— Está feito. Apenas fiz três visitas.

— E quantas barbas?

O mestre mordeu os beiços antes de responder:

— Nenhuma.

Este colega do célebre Oliveiro - o gamo - não gostava que     lhe falassem na única das coisas em que era eminente.

É uma fraqueza esta mais comum à humanidade, do que talvez     se julga.

João Semana reparar nesta curta cena, e tomando de parte Daniel, aconselhou-o     a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como colega, sob pena de indispor     contra si a mesma gente da terra.

— Meu caro amigo - concluía ele - quem quiser viver bem neste     mundo, faz vista grossa a muita coisa. Está bom, está!

E, como para não perder um hábito antigo, acrescentou:

— Você quer saber? Quando eu andei no Porto, conheci um frade,     que era pregador de nomeada. Pois não havia outro passa-culpas como     aquele; não gostava de meter medo a ninguém com as penas do     inferno. O prior do convento chegou um dia a dizer-lhe que ralhasse mais contra     o pecado, que não fosse tão bom de contentar; respondeu-lhe     o frade: "Não que, reverendíssimo padre, é preciso     tento; nem o diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí     muitos amigos". Ora pense nisto, e adeus, que vou à minha vida.

E saiu.

O resultado de tudo foi uma grande depressão no entusiasmo de Daniel,     pelo modo de vida que adotara.

Finalmente retiraram-se as visitas.

São quase trindades; a família toda, incluindo os criados,     que na aldeia fazem quase parte dela, está reunida em conclave na eira,     a experimentar cada qual, como à porfia, a sagacidade e ciência     do novo facultativo, interrogando-o sobre todos os pequenos incômodos     sentidos, de que a memória lhes pode sugerir ainda notícia.     É esta a prova tremenda, que espera o estudante de medicina em tempo     de férias, ou ao terminar a formatura - prova mil vezes mais decisiva     para o seu futuro, de quantos diplomas lhe possa dispensar a douta corporação,     da qual recebe os títulos profissionais.

Um perguntava a Daniel se a grama era mais fresca do que a cevada; outro     qual a razão porque os pigmentos da conserva nunca lhe faziam mal enquanto     a salada de alface lhe causava uma irritação no estômago     infalível; vinha outro que desejava saber se seria melhor purgar-se     no quarto crescente, se no minguante da lua; queixava-se um de arrepios, que     sentia ao deitar-se na cama, e principalmente no inverno; outro do muito que     suava no verão; um velho criado da casa, viúvo inconsolável,     fez-lhe a história circunstanciada da doença de que morrera     a mulher, havia dez anos, pedindo a Daniel que a diagnosticasse, e lhe expusesse     o tratamento que a devia ter salvo; em contraste com esta medicina retrospectiva,     vinha uma rapariga perguntar, muito ingenuamente, se lhe poderia fazer mal     ir a uma romaria de aí a oito dias: José das Dornas também     quis saber se o caldo de abóbora era melhor para a saúde do     que o de nabos. Uma velha interrogou Daniel sobre a doença das galinhas,     e o próprio Pedro, tentado por este exemplo, fez algumas perguntas     sobre a dos perdigueiros.

Daniel via-se em talas para satisfazer a tantas exigências, que não     timbravam de racionais, e procurava deslindar-se airosamente delas com aquele     desculpável grau de charlatanismo, mais ou menos correto e disfarçado,     que todas as sociedades do mundo, rústicas e urbanas, são as     primeiras a exigir aos médicos. Querem elas que se lhes responda sempre,     e com desaforada segurança, às suas interrogações     absurdas, preferindo serem iludidas, a ficarem sem resposta, a qual muitas     vezes, em consciência, medicina alguma do mundo lhes poderia dar.

Peço, portanto, um bill de indenidade para Daniel.

 

Pedro foi quem, ao cerrar da noite, pôs fim a este interrogatório,     que levava jeito de eternizar-se.

— Vem daí dar um passeio, Daniel; e de caminho hei de mostrar-te     a minha mulher... a que há de ser.

— Ah!... é verdade que estás para casar. Estimo que ma     dês ocasião de tomar desde já conhecimento com a que dentro     em pouco chamarei irmã. Espero encontrá-la digna de ti. Vamos     lá.

— Ide, ide, rapazes - observou José das Dornas - Vais ver uma     guapa cachopa, Daniel. Mas tu conhecê-la... É uma filha dos Meadas.

— Ah!... sim... tenho uma idéia.

Cumpre-me confessar que Daniel não tinha tal idéia das filhas     do Meadas. Enquanto esteve no Porto e até nos curtos intervalos de     férias que passara na terra, vivera ele muito estranho à vida     do campo, para se recordar ainda das alcunhas, pelas quais, na aldeia, mais     geralmente são conhecidas as famílias, do que ainda pelos verdadeiros     nomes e sobrenomes.

José das Dornas é que tinha uma idéia ao dizer aquilo;     era a de fazer lembrar ao filho o episódio da infância, que decidira     da sua vida inteira.

Mas, ainda sob o risco de indispor o ânimo das leitoras contra uma     das principais personagens desta singelíssima história, farei     aqui a desagradável, mas conscenciosa declaração, de     que a imagem de Margarida andava, por aquele tempo, tão desvanecida     já na memória de Daniel, que nem o nome, pelo qual fora sempre     designada na terra a família de Margarida, lhe pôde avivar os     traços.

Havia muitos anos que Daniel observava um sistema de vida, que de todo o     trazia desafeito dos hábitos campestres e indiferente ás coisas     e pessoas da localidade que o vira nascer.

Encarnara-se intimamente nele o espírito das cidades. As momentosas     questões que ocupavam as cabeças sérias da aldeia, faziam-no     sorrir: as distrações que entretinham as mais levianas, obrigavam-no     a bocejar.

Daniel não deixara mentir o prognóstico que aquelas duas boas     velhas, das quais não sei se o leitor ainda se lembrará, tinham     feito do jovem estudante de latim ao verem-no passar, sobraçando os     livros, para a casa do reitor. Durante os seus anos de estudo fora efetivamente     o filho de José das Dornas herói de numerosas aventuras de amor,     de mui diverso caráter.

Deixando-se impressionar de circunstâncias insignificantes, que outro     espírito, menos exaltado, receberia com indiferença, andava     ele quase de contínuo sob o império, fértil em deleitosas     sensações, de uma paixão nascente.

Este coração, eminentemente acessível e irritável,     não tivera quase, até final, um instante de sossego.

Eu disse este coração - quase me estou arrependendo de me ter     servido da palavra.

Entraria de fato, como elemento destas paixões efêmeras, tão     instantâneas como a combustão da pólvora, essa víscera     simpática que, a despeito dos médicos e da medicina, eu julgo     o sacrário augusto dos sublimes e duradouros sentimentos que constituem     o dote mais valioso do nosso patrimônio moral? Não sei; antes     me quer parecer que não.

Daniel amava de imaginação; nem eu vejo bem como pudesse amar     de outra maneira quem, por vezes, se deixou levar por futilidades quase ridículas.

O coração não é tão sujeito a fraquezas     desta ordem; ou eu ando muito enganado.

Houve, por exemplo, uma mulher que, durante alguns meses, conseguiu assenhorar-se     dos pensamentos do nosso herói pela maneira individualíssima     e inimitável, com que sabia dizer aquele gracioso ágora minhoto,     tão levianamente criticado pela gente da capital.

Ora diga-me se é este um fenômeno do coração,     e não antes um como desvario da cabeça, mais azada a tais singularidades.

Mas o que é certo que, fosse pela cabeça, fosse pelo coração,     Daniel achara-se, em todas as ocasiões que viera a férias, suficientemente     apaixonado para escapar à influências das formosas da sua terra.     Envolvia-o uma como que atmosfera de isolamento - para me servir de uma frase     da língua científica - e nesse ambiente não floresciam     os amores bucólicos.

Raras vezes mostrou recordar-se daquelas suas afeições de criança,     que tantas lágrimas lhe tinham já feito verter.

Só um dia em que, passeando nos campos, chegara por acaso ao pequeno     outeiro, onde sucedera a inocente cena de idílio, tão mal encarada     pelo reitor, foi que lhe veio à idéia essa passagem da infância,     já quase esquecida; e a imaginação lhe apresentou então     o vulto, suave e meigo da pequena Guida, como uma visão momentânea,     rodeada pelo branco perfume da poesia e da saudade.

Lembrou-se dessa vez de perguntar por ela. Disseram-lhe que tendo ficado     órfã de pai e mãe, vivia só com a irmã     e que ensinava meninas - tarefa que raras vezes lhe permitia sair de casa.

Daniel nunca mais renovou a pergunta.

Fora isto talvez dois anos antes da sua vinda definitiva para aldeia. Não     admira, pois, que com estas disposições mentais estivesse muito     longe de pensar em Margarida, quando, com segunda intenção,     o pai pronunciou o apelido da família da noiva de seu irmão.

Foi como por demais que Daniel disse ter uma idéia desse apelido,     o qual lhe soara quase como novo.

Acompanhando Pedro, levava ele, portanto, o espírito inteiramente     despreocupado, e somente um pouco movido pela curiosidade de ver a destinada     esposa de seu irmão mais velho.

Tinha-se por conhecedor em belezas femininas, e agradava-lhe sempre a análise,     aplicada a esta especialidade estética.

Àquela hora do dia são os caminhos a aldeia muito freqüentados     pela gente que regressa do trabalho a casa.

Os dois irmãos a cada passo se encontravam com vários grupos     de aldeões - homens, mulheres e crianças - que todos os saudavam     com as fórmulas sabidas; -"guarde-os Deus" - e "louvado     seja Nosso Senhor Jesus Cristo", - às quais ambos correspondiam     com outras análogas.

Subiam eles a encosta de uma pequena colina, no alto da qual, sob o fundo     magnífico do céu ainda iluminado pelos últimos rubores     do crepúsculo, se delineava o vulto negro de uma cruz de granito, quando     lhes chegou aos ouvidos o som de vozes longínquas, cantando concertadas;     simultaneamente pararam a escutá-las.

Pouco a pouco, a música tornava-se mais distinta, e cedo, ao lado     do cruzeiro, desenharam-se também as figuras graciosas de um bando     de raparigas, que voltavam à aldeia, entoando em coro uma saudação     à Virgem Maria - a predileta da piedade popular. Harmonizavam-se tão     bem aquelas vozes frescas e juvenis; combinava-se tão admiravelmente     a poética melancolia do lugar e da hora com a daquela toada singelíssima,     que Daniel sentiu-se comovido.

Os dois irmãos puseram-se de lado para deixar passar as raparigas;     e nem o mais estouvado deles teve coragem de interromper com a menor frase     de galanteio o coro piedoso que elas, sem interrupção, continuaram     cantando; e até de todo se perderem as vozes pela distância,     conservaram-se ambos silenciosos e imóveis.

Como se esta cena reconciliasse Daniel com a vida do campo, logo que prosseguiram     o caminho, ele exclamou, mais para si talvez do que para o irmão.

— Digam o que quiserem, há na aldeia belezas magníficas.     A cena é inexcedível - e isto dizia, correndo com a vista o     horizonte vasto que o rodeava - e as personagens, às vezes, são     bem dignas de atenção!

As raparigas do coro tinham-lhe ensinado a apreciar um gênero de beleza,     a que, até então fora indiferente.

Preciso é também que se diga desta vez, trazia Daniel, por     exceção, o coração, ou como quiserem, a cabeça     em disponibilidade - circunstância que não pouco concorreu para     o efeito produzido.

Chegaram enfim a casa das irmãs.

Era uma pequena, modesta, mas graciosa habitação, um pouco     fora já do centro do povoado.

A solidão em que ela ficava, própria a fomentar saudades, sem     quebrantar com desalentos, agradaria aos menos poetas. Havia tanto sussurrar     de folhagem, tanta pureza de ares, tanto desafogo de horizontes em volta dela,     que uma íntima serenidade se insinuava na alma do que parava ali. A     tênue claridade daquela ameníssima noite de estio mais realçava     ainda a poesia do lugar.

A casa era toda caiada de branco; abria para a rua duas largas janelas envidraçadas     que alguns pequenos vasos de flores adornavam. De um e de outro lado prolongava-se     um lanço de muro de sólida alvenaria, igualmente caiado, e que     a folhagem do pomar interior sobrepujava, caindo para o caminho as balsâminas     em festões verdes e floridos.

Foi à porta deste muro que Pedro bateu familiarmente, dizendo para     Daniel que estava saboreando o prazer daquela perspectiva.

— É aqui.

Uma voz e mulher correspondeu ao sinal de Pedro.

Era a de Margarida.

— Sou eu, Margarida, abre - disse Pedro - Sou eu e uma visita.

Passados alguns momentos, a porta girou nos gonzos, abrindo passagem para     um vasto pátio ou quinteiro, assombrado de ramadas, o qual, naquele     momento, atravessavam ainda algumas aves domésticas, retardadas, a     procurarem o abrigo das capoeiras.

Margarida que fora a que abrira a porta, ao ver Daniel, retirou-se sobressaltada     para a quase obscuridade, que interiormente projetava a ombreira.

— Não se assuste, Margarida - disse Pedro sorrindo ao perceber-lhe     o movimento. - Não se assuste ; é tudo gente da casa. Este é     o meu irmão, Daniel, o nosso cirurgião novo. Esta é a     minha cunhada, que já assim lhe posso chamar - acrescentou, voltando-se     para o irmão - é muito acanhada, e por isso não repares...

Daniel dirigiu um cumprimento distraído a Margarida, cujas feições     não pôde distinguir pela pouca luz que as iluminava. Demais eram     estas feições, como já atrás dissemos, daquelas     que exigem um exame mais demorado para se lhes sentir toda a sua beleza.

Podia dizer-se delas o mesmo que destas óperas, privadas de combinações     brilhantes, que não deixam impressão em quem uma só vez     as escuta; mas acabam por patentear segredos em harmonia aos ouvidos que repetidamente     as recebem, segredos que nunca se esquecem.

— Onde está a Clara? - perguntou Pedro, entrando, seguido do     irmão.

— No poço, julgo eu - respondeu Margarida, com a voz ainda trêmula     de comoção.

E, muito tempo depois de os ver passar, ali se conservou imóvel, com     o olhar vago, a fronte inclinada e o seio inquieto. O que ia neste momento     por o coração da pobre rapariga? Adivinha-o decerto a leitora,     se já pensou na delicada sensibilidade deste caráter de mulher.

A indiferença, com que Daniel passara por ela, o modo por que a saudara,     a frieza com que lhe ouvira o nome... tudo lhe mostrou que a não conhecia     já.

Dolorosa descoberta para aquela alma, tanto mais amorável, quanto     mais se encobria de manifestar os seus tesouros de afetos!

Foi com certa revolta de delicadeza feminina, com uma quase má vontade     contra si própria, que ela, sondando o íntimo do coração,     reconheceu o sentimento que o inquietava assim.

Como que se interrogava com a severidade do mentor para com o discípulo     mal encaminhado.

— Que loucura é esta, mulher? Pois ainda tens dessas criancices,     doida? Que pensavas tu? Que esperavas? Era acaso possível que ele se     lembrasse de ti?... E para quê? Não foi melhor que se esquecesse?     Dize.

Em situações como esta, opera-se em nós uma espécie     de separação em duas entidades de sentir contrário.

Arvora-se uma em juiz, interroga da maneira que vimos, fala em nome da razão,     julga, repreende, condena a outra quando, sob o severo exame da primeira,     mais subjugada parece, conserva, na sua humilhação, intato o     espírito de independência; assim como, curvada a cabeça     às admoestações da preceptora, a pequena discípula     sente em si o instinto de rebelião, que mal pode reprimir.

Em Margarida também se dava este antagonismo. Faltava-lhe a razão,     como dissemos; mais baixo, como a medo, murmurava-lhe outra coisa não     sei que voz mais atendida por ela.

— Podias - segredava-lhe essa voz - podias e devias esperar que ele     se lembrasse, sim. Acaso o esqueceste, tu?

Diga-se a verdade. Até aquele momento, Margarida conservava uma ilusão,     muito escondida dos outros e de si, mas nunca mais de todo extinta.

Avaliando, por os seus, os sentimentos dos mais, não podia convencer-se     de que, em Daniel, estivessem inteiramente apagados os vestígios daquela     infância, gozada em comum por ambos. Pensava que ele a reconheceria     logo, ao vê-la, que lhe não ouviria pronunciar o nome, sem que     a memória o repetisse; que o primeiro olhar seria fértil em     recordações, que bastariam só para ressuscitar o passado     inteiro.

Enganara-se; conheceu que se enganara, agora que o vira passar-lhe assim;     e apesar de toda a força de sua razão, Margarida sentiu enevoarem-se-lhe     os olhos de lágrimas, e a alma de melancolias.

Afinal de contas a boa da rapariga tinha um coração de mulher.

Perdoem-lhe esta fraqueza. Não há caráter humano que     as não tenha iguais; assim fora possível sujeitá-las     à rigorosa análise dos seus recônditos mistérios.   

 

Os dois irmãos dirigiram-se ao lugar onde, segundo as indicações     de Margarida, deviam encontrar Clara.

O ranger da bomba do poço, e a voz da alegre rapariga, que cantava      - pois nela dir-se-ia ser o canto, como nas aves, a mais natural expressão      - serviam-lhes de guia.

Tomando por uma rua extensa, revestida de limoeiros, através de cuja     espessura coava já, a custo, a claridade nascente do luar, conseguiram     aproximar-se, sem que fossem percebidos.

Clara cantava: Vem livrar-me com teus olhos,

Que eu por eles me perdi;

Dá-me a vida com teus beijos,

Já que por beijos morri. Porém, ao voltar naturalmente a cabeça,     descobriu Pedro na companhia do irmão; vendo-se surpreendida assim,     interrompeu de súbito o trabalho e o canto, e meia confusa, saudou-os     com os olhos baixos e a voz embaraçada.

Foi curta a apresentação, e em nada cerimoniática. Pedro     odiava etiquetas, ou antes, ignorava-as.

A figura de Clara, inundada pelos raios de lua, que já se levantava     esplêndida no horizonte, fez conceber a Daniel uma subida opinião     do bom gosto do seu irmão.

Não era Daniel homem para se coibir, por acanhamentos, em observação,     que tanto o deleitava. Sem disfarces, nem precauções, analisava,     feição por feição, aquela fisionomia simpática,     e como que lhe delineava com a vista o perfil, onde se continuavam graciosamente,     por suaves inflexões, as mais elegantes curvas.

Clara, adivinhando-se objeto daquela inspeção minuciosa de     conhecedor e entusiasta, não ousava erguer os olhos. Dir-se-ia que,     magnificamente condensados, os raios visuais, que a envolviam daquela maneira,     lhe tomavam os movimentos até mal a deixarem respirar.

Pedro sentia certo desvanecimento, lendo a tácita aprovação     da sua escolha, na expressão do olhar do irmão.

Clara conseguiu afinar dominar o enleio dos primeiros instantes, dirigindo-se     a Pedro:

— Então isto faz-se? - disse ela, ainda não de todo serenada     da primeira confusão, e descendo e apertando nos punhos as mangas da     camisa, que tinha arregaçadas - Trazer assim uma visita, sem dizer     nada à gente.

— É meu irmão - dizia Pedro sorrindo.

— Que tem que seja? Não é para assim vir ter com uma     pessoa, que anda cá no seu trabalho. E sem fazer barulho, então!      - Ora sempre! - Ora sempre! - E ao dizer isto, lançava para o noivo     um olhar que, tentando ser de repreensão, só conseguiu enlevá-lo.

— Olhe, Clarinha - disse Daniel, adiantando-se e dando às palavras     o tom de amigável familiaridade - O culpado fui eu. Mas que quer? É     costume antigo que tomei. Quando era rapaz, gostava já muito de ouvir     os rouxinóis que cantavam nos laranjais da nossa casa; mas eles, percebendo-me,     calavam-se. Sabe o que eu fazia então? Ia-me devagarinho, pé     ante pé, onde eles estavam, e lá me ficava a ouvi-los cantar     horas e horas. Foi o que fiz agora.

A lisonja não desagradou de todo a Clara, que respondeu gracejando:

— Os rouxinóis já não cantam neste tempo.

— Mas cantam outras vozes sonoras como as deles e mais felizes ainda;     pois nem as fazem calar as neves do inverno, nem os ardores do estio. Era     uma dessas que nós paramos para ouvir.

Clara, sentindo-se pouco à vontade para responder ao galanteio, disfarçou-se,     afastando-se como para regar as flores de um alegrete vizinho.

Pedro aproximou-se dela.

— Nunca mais - murmurou-lhe a rapariga ao ouvido - tornes a fazer uma     destas, Pedro. Também não sei como a Guida vos deixou entrar     assim. Eu lho direi.

— Ora vamos, Clara - disse Pedro, auxiliando-a na tarefa da rega -      não vás agora ralhar com a Margarida, que mais embaraçada     ficou ela do que tu.

— Sim!? Pois ai está, vês? Não tinha razão     para isso. A Margarida é outra coisa. O Sr. Daniel não falou     ainda com a Margarida? - continuou Clara, já mais senhora sua, e fazendo     uso desimpedido do olhar, que fitou no interpelado. - Ela é que saberia     responder bem. Quando quer, sabe dizer coisas... Até o Sr. Reitor,     muitas vezes, não tem que lhe responda. O Pedro que o diga.

Pedro fez um sinal de assentimento.

Este duo em honra de Margarida não causou grande impressão     em Daniel, que continuava a fitar Clara com persistente atenção,     encantado pelo timbre daquela voz, por aqueles movimentos, cheios de graça     e de vida, e pela inimitável expressão do olhar, meio de bondade     e meio de malícia, que ainda a branca claridade da lua fazia realçar     o seu fulgor.

A conversa tomou, pouco a pouco, familiar e jovial caráter de intimidade.     Só, alguma vez, uma frase mais cortesã de Daniel vinha tirar     a Clara a frieza de ânimo necessária à resposta - isto     com grande estranheza sua, pois não se tinha por demasiado tímida.

— Pobre João Semana! dizia Clara em um dos seus momentos de     malícia. - Quem mais o chamará agora, depois de haver na terra     médico novo?

— Está enganada; - respondeu Daniel - quando mais ninguém     o chamasse, teria por si a melhor de todas as freguesias, a das raparigas.

— Agora? E então por que o haviam de querer?

— Porque os médicos novos tem o mau costume de desejarem saber     das doenças do coração, e dessas não querem elas     tratar.

— Não sei por que não; pois não são tão     perigosas? Eu sempre ouvi dizer que se morria disso.

— Se se morre? Morre-se a todo momento até. Mas, pelos modos,     é um morrer de que se gosta.

— Deixe lá; sempre é morte, não pode ser muito     boa.

— Ora! Morre-se a cantar: Dá-me a vida com teus beijos,

Já que por beijos morri, Não era assim que se dizia?

Clara não pode suster o riso, e Pedro fez coro com ela.

— Ora, responda: se o médico tomasse a receita a sério,     e quisesse dar vida à sua doente?

— Isso mais devagar.

— Aí tem: é por esse motivo que não é bom     consultar os médicos novos. O João Semana é que não     é capaz dessas atenções, julgo eu... E que as tivesse...

Tal foi a feição predominante do resto do diálogo, que     só terminou quando a lua ia já alta no firmamento, com toda     a pompa de um desanuviado plenilúnio.

— Sabes tu - dizia Daniel ao irmão quando juntos se retiravam      - que não podia escolher mais galante noiva? Em toda a aldeia não     há outra decerto que se lhe ponha a par.

Isto foi dito já na rua, mas próximo da porta do quintal onde     se demorara Clara, a cujos ouvidos chegaram distintamente estas palavras de     Daniel.

Se elas lhe poderiam ser indiferentes, pergunto eu às leitoras bonitas.     Sendo sinceras comigo, não se atreverão a condenar este sentimento     de vaidade, que moveu o coração de Clara. Se a vaidade constituísse     pecado capital, talvez que certa particularidade do paraíso muçulmano     tivesse sua razão de ser.

Clara era pouco reservada.

Tudo quanto sentia, fossem tristezas, fossem alegrias, vinha-lhe do coração     aos lábios, por um movimento de expansão irreprimível.

Procurando, pois, a irmã, contou-lhe tudo quanto lhe dissera Daniel,     o que ela lhe respondera, e, finalmente, as últimas palavras, que lhe     havia escutado.

Margarida não foi senhora de seu coração a ponto de     não sentir certa amargura, ao comparar a intensidade da impressão     produzida por sua irmã no ânimo de Daniel, que péla primeira     vez a via, à indiferença, com que ela fora desatendida - ela,     por quem deviam falar tantas memórias do passado.

Eu já disse que Margarida não era de natureza tão superior,     que não tivesse dessas desculpáveis fraquezas. Muito para apreciar     é já a placidez nas ações, se como ela, se não     desmente nunca; seria exigência demasiada e um excessivo querer apurar     a natureza humana ao grau da perfeição quase divina, pretender     que, no mundo oculto dos pensamentos e dos afetos, reine também a inalterável     serenidade, que só pode ser de anjos, e nunca de criaturas, a quem     de contínuo os vendavais das paixões salteiam.

O que posso assegurar a respeito de Margarida - e já não é     pouco assegurar - é que este movimento de ciúme - nem eu sei     se tal nome lhe posso dar - se envenenou, convertendo-se em má vontade     contra o objeto, que lho desafiara.

Margarida não sentiu, para com a irmã, nenhum desses odiozinhos     feminis, que em tantas tempestades se desencadeiam às vezes.

Calou-se, sorriu até, e pensou consigo:

— E de que me serviria se fosse de outra sorte? Melhor é que     a memória lhe seja sempre infiel; melhor, muito melhor para o sossego     do meu espírito. Ainda bem.

Era ainda a razão que falava; mas o coração? Aí,     o coração!...

É inevitável a luta, sempre que a um espírito vigoroso     e lúcido anda associado um coração que sente, que se     comove sob a influência dos estímulos naturais dos afetos humanos.

Quando o coração é de gelo, a razão dirige desafogada,     imperturbável, em linha reta, o caminho da vida; quando a razão     abdica e o coração domina, o movimento é irregular, mas     livre; caprichoso, mas resoluto; funesto, mas incessante; porém se     o coração e a cabeça medem forças iguais, a cada     momento param para lutar, como atletas destemidos. De qualquer lado que tenha     de se decidira vitória, será disputada, até o último     instante, pelo contendor vencido; a pausa terá sido inevitável;     a reação enérgica; e a crise violenta.

Podem passar ignoradas de todo as peripécias desse combate íntimo;     mas a aparente tranqüilidade exterior mais lhe exacerbará a crueza.

Margarida escutou por muito tempo a irmã, sem saber como acolher aquelas     ingênuas confidências; afinal lembrou-lhe, sorrindo, que devia     ser menos sensível à opinião de estranhos quem, dentro     em tão pouco tempo, ia ligar o seu destino ao destino de outro.

Clara possuía um gênio, com o qual não se davam as apreensões.     Não calculava conseqüências. A vida para ela era o presente.     Raras vezes lhe lembrava o passado; o futuro não lhe tomava muitos     momentos de meditação também. As palavras e os atos irrefletidos     eram nela freqüentes. De nada suspeitava. A sua confiança em todos     e em tudo chegava a ser perigosa. Um inesgotável fundo de generosidade,     elemento principal daquele caráter simpático, levava-a ao cepticismo     em relação à malevolência e à má     fé que outros possuíssem. Parecia muitas vezes afrontar a opinião     do mundo, e não era por a desprezar, mas porque não pensava     nela.

Quem possui um caráter assim, se se não perde, se se não     perde inocentemente, é porque tem a defendê-lo a Providência,     porque o abrigam as asas do seu anjo da guarda.

Ouvindo depois a observação da irmã, Clara desatou a     rir.

— Que me estás aí a dizer, Guida? Que me estás     tu a dizer? Então, por eu me casar, devo deixar de fazer gosto de mim?     Olha, eu não me quero com gente muito sisuda. A ti perdôo-te,     porque enfim... és muito boa também, mas ainda assim não     perdias se ... - E, mudando subitamente de tom, acrescentou com um pouco de     malícia na voz e no olhar: - Ora diz-me cá uma coisa, Guida,     com toda essa tua seriedade, não gostarias também que um rapaz,     assim como Daniel, dissesse de ti o mesmo? Anda, confessa.

— Doida!

— Tu és mais velha, bem sei, mas eu sou dentro em pouco mulher     casada e por isso posso fazer-te destas perguntas já. Anda, responde.

Esta jovialidade de Clara não foi recebida pela irmã sem confusão.

Em vez de responder, limitou-se a apertá-la nos braços, dizendo-lhe     quase ao ouvido:

— Então, Clara! É preciso ser menos criança. Quem     está para tão cedo tomar canseiras de família... A falar     a verdade...

— E cuidas tu que me hão de tirar esta alegria as tais canseiras?     Ai. Guida isso é que não. Com'assim... Olha, eu já não     nasci para tristezas.

— E talvez seja melhor - disse Margarida, respondendo a Clara, e pode     ser que, em parte, à seus próprios pensamentos.

 

Era meio dia, um meio dia de verão ardente, asfixiante, calcinador,     a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem na folhagem, as plantas     inclinam as sumidades, desfalecidas de seiva, e os ribeiros quase nem murmuram,     de débeis e exaustos que vão.

Nem uma tênue viração fazia sussurrar as alamedas e os     soutos nos vales ou os pinheiros dos montes.

Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas,     enxames de insetos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o cantar longínquo     dos galos, os únicos sons a interromperem o silêncio daquela     hora.

Os caminhos e os campos estavam desertos; povoadas e fumegantes as cozinhas,     onde a família do lavrador se reúne para a refeição     principal do dia.

Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a macadame,     que corta em linha reta a povoação, e onde, naquele momento,     o sol batia em cheio sem ser impedido por a menor folha de árvore,     ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando a trote     e envolto na densa nuvem de poeira, levantada pelos pés da cavalgadura.

Este cavaleiro era João Semana.

Trajava com toda singeleza o velho cirurgião. Um fato completo de     linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à     prova de todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado     daquele sol canicular por uma enorme umbela de paninho vermelho, rival em     dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido característico     do nosso homem.

As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distração     do cavaleiro e dos admiráveis instintos e superior discrição     da alimária, que mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para     ela se dirigia mais apressada que de costume.

Causava dó olhar para a fisionomia de João da Semana naquela     ocasião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe     haviam feito negras; o suor corria-lhe, como lágrimas pelas faces abaixo.

Mas o heróico octogenário não desanimava. Sorvia filosoficamente     a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahs,     bem guturais - eloqüentíssima expressão das delícias     que o olfato pode proporcionar a um mortal - dava mostras de consolado.

De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração     para os milhos dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o calor     e a escassez das águas tinha definhado; e ao contemplá-lo parecia     mais sentir por ele, do que por si, a insuportável temperatura daquele     ambiente.

João Semana era também proprietário rural, e portanto,     apaixonado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognosticador     do futuro das novidades agrícolas; por isso, examinando com profunda     curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior parte conhecia, quase     chegara a esquecer-se de que um ardentíssimo sol lhe dardejava sobre     a cabeça raios ameaçadores, tentando em vão exercer naquela     robusta constituição a sua influência maligna.

A égua é que não se esquecia assim facilmente disso,     e, cada vez mais rápida, procurava furtar-se a tão incômodo     calor, e ao seu inevitável cortejo de moscas, que a traziam impacientemente,     não obstante os folhudos ramos de carvalho, com os quais João     Semana lhe enfeitara o pescoço.

Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre animal, com     manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro, por uma rua estreita,     que abrindo-se ao lado esquerdo da estrada, seguia, sob espesso toldo de verdura     por entre duas quintas fronteiras.

Era um oásis, depois do deserto.

João Semana, porém, parecia tão indiferente ao vantajoso     da mudança, como o fora à desagradabilíssima influência     dos raios do sol, em campo descoberto.

Daí por diante começavam a ser mais freqüentes as habitações,     e, ao barulho que fazia a égua sobre o terreno sólido e nas     pedras soltas do caminho, assomava a cada janela uma cabeça. e João     Semana recebia um cumprimento e um convite para jantar, a ambos os quais ele     correspondia com benevolente familiaridade e às vezes com gracejos     sempre bem recebidos e festejados.

Logo ao princípio, foi um velho, em mangas de camisa, e de cabeça     já despovoada de cãs, que segurando uma enorme tigela de caldo     de tronchuda e vagens coroado por uma pirâmide de boroa esmigalhada,     apareceu à porta da cozinha, e disse com a boca meio ocupada por mantimentos,     e sorrindo:

— É servido do meu jantar, Sr. João Semana? É     pobre, sim, mas dado com a melhor vontade.

— Obrigado, tio José das Bicas, vou ver se lá em casa     a Joana tem também o meu caldo em bom andamento.

— Então vá com a graça do Senhor, vá, que     o calor não se sofre.

— Está picante, está. - E, andando sempre e falando,     já com as costas voltadas, perguntou: - E como vão os seus milhos,     Sr. José?

— Ora!... nem me fales nisso! A sequeira é muita.

— Veremos se para a lua nova haverá mudança de tempo.

— Deus o queira.

— Há de querer.

E prosseguiu no seu caminho.

Mais adiante, foi uma mulher idosa que espreitou do postigo de uma casa meia     arruinada.

João Semana desta vez foi o primeiro a saudar.

— Bons dias, tia Rosa. Então como vai lá o seu velho?     Fero e rijo, hein?

— Muito agradecida a V.S.ª. Está fraquinho ainda, e por     isso...

— Pois que saia, que saia. É preciso também trabalhar     para deitar foras as moléstias; nós não podemos fazer     tudo. Que passeie, diga-lhe que passeie. O mais que lhe pode acontecer, é     que dêem com ele as moças, mas disso não se morre.

— Já não está em idade para tanto, Sr. Doutor.

— Fie-se nele, fie-se nele; olhe que são os piores.

E, dando uma gargalhada, dobrou a esquina e tomou por outra rua.

Do interior de um pardieiro saiu-lhe ao encontro uma rapariga do povo, magra,     remendada, e como rosto que denotava aflição.

— Muitos boas tardes, Sr. João Semana - disse a pobre rapariga     com voz chorosa.

— Que temos lá, Maria? Alguma novidade?

— É que... dizia ela, hesitando e baixando os olhos.

— Fala; despacha-te, que vou com pressa.

— É que me esqueci do que me disse daquele remédio para     minha mãe...

— Então onde diabos tinhas tu o juízo, galo doido? Ai     que vocês andam-me com essas cabecinhas não sei por que terras,     e eu que vos ature depois. Aposto que te lembras melhor do que te disse ontem     o teu conversado?

— Ora, o Sr. João Semana tem coisas! É que não     sei se o remédio era todo para uma vez, ou...

— É o que eu digo; é o que eu digo. estouvada! Cabeça     no ar! Quantas vezes te repeti que era para três porções!     Cuidas que eu não tenho mais que fazer, do que andar sempre a cantar     a mesma cantiga por este mundo de Cristo? Ora vamos!

— E há de ser distantes da comida, que?...

— Que diabo aprendeste tu então de tudo o que eu te recomendei,     fazes favor de me dizer? Pois não te expliquei, cabeça de bogalho,     que era para dares meia hora depois das comidas? Que tinhas tu nos ouvidos?

— Muito agradecida, Sr. João Semana; e perdoe por as almas,     mas... a gente tem tanta coisa na cabeça...

— Valha-te uma figa.

E quando a rapariga se ia já a retirar, ele acrescentou, mudando e     tom:

— Olha cá, ó Maria, ouves?

A rapariga voltou-se. Levava os olhos vermelhos de chorar.

— Então que diabo é isso? Por que choras tu?

— Nada, Sr. João Semana: é cá de nossa vida.

— Quanto te levou o boticário pelo remédio?

— Seis vinténs.

— E... dize-me... E mataste hoje a galinha para tua mãe?

— Dei-lhe o resto de ontem.

— E para amanhã?

E a rapariga calava-se, embaraçada e triste.

João Semana tossiu para desimpedir a laringe de um pigarro importuno,     e pôs-se a olhar atentamente para um troco de árvore que lhe     ficava à direita, como se lhe achasse o que quer que fosse extravagante.

Durante esse tempo, mexia nos bolsos do colete e depois nas algibeiras das     calças; em seguida, olhando em roda, como se receasse ser observado,     curvou-se sobre o pescoço da égua e introduziu uma moeda de     prata na mão da pobre rapariga, dizendo-lhe como modo rápido     e desabrido:

— Toma lá. Olha agora se te pões por aí a dar     à língua, como costumas. Aflige bem tua mãe, aflige!

A rapariga não teve uma só palavra com que lhe agradecer. Quis-lhe     tomar as mãos para beijá-las; João Semana furtou-lhas     rapidamente, dizendo-lhe com simulada aspereza:

— Larga, larga. Não me venhas cá com essas imposturas,     que eu não sou para isso.

O melhor dos agradecimentos tinha-o ele nas lágrimas, que desciam     pelas faces da pobre, na expressão de entranhado afeto, que lhe animava     o olhar.

O velho cirurgião sabia compreender estas coisas, apesar das aparências     de homem endurecido de que fazia ostentação.

Ao afastar-se do lugar da cena que descrevemos, dizia ele para si.

— Excelente vida! Lucrativa clínica! rendeu-me esta consulta,     na verdade! Quem não há de fazer casa assim?

Estava o bom homem a fingir de interesseiro consigo mesmo!

Dentro em pouco tinha-se esquecido do que praticara.

Mais adiante, esperava um lavrador robusto, sentado na soleira da porta,     a comer um fêvera de bacalhau. Assim que João Semana se aproximou     levantou-se o homem e tirando o barrete:

— Nosso Senhor venha em sua companhia.

— Bons dias; então que há?

— Queria que vossemecê me dissesse se minha mulher pode comer     uma sardinha assada.

— Pode, mas de caminho avisa o padre que a venha sacramentar.

— Credo! mas então...

— Adeus, minhas encomendas. A perguntas tolas não se dá     respostas. Forte descoco!

E, sem mais palavras, estimulou o passo da égua.

O consultante sentou-se de novo, e voltando-se para dentro, disse:

— Ouviste-o? Ora aí tens.

Respondeu-lhe um suspiro.

Ainda não pararam aqui as consultas. Ao passar por uma azenha, o moleiro,     vindo à porta, anunciou ao velho facultativo que a mulher não     queria tomar remédio algum.

— Está no seu direito; - respondeu João Semana - e que     queres que eu lhe faça?

— Mas, sendo precisos?

— Sabes que mais, Francisco? Eu, se me não casei, não     foi para agora andar a aturar as impertinências das mulheres do meu     próximo. Atura-a , atura-a, rapaz, que são ossos do ofício.

E continuou cavalgando, e deixou o moleiro embasbacado. Depois de se ter     afastado, acrescentou, elevando a voz, mas sem se voltar para trás.

— Olha lá: sempre lhe vai dizendo que se amanhã não     a encontrar melhor, prego-lhe um cáustico nas costas, que lhe dá     de fazer ver estrelas ao meio dia. Ora anda.

Enfim, em um largo assombrado de castanheiros, foram duas crianças     as que lhe interromperam a passagem; assim que o avistaram, ergueram-se do     chão, onde estavam sentadas, tirando chapéu, e pondo-se a coçar     na cabeça.

— Que temos nós, pequenada? - perguntou João Semana.

Um dos pequenos foi o relator da comissão.

— O nosso Luís está doente, e a mãe manda pedir     ao Sr. Doutor para o ir ver.

— Está bem; lá irei de tarde; e como está tua     mãe?

— A mãe diz que está melhor, mas ela chora tanto!

— Tens razão, Manuel, em duvidar da saúde do que chora.     Pois eu verei isso. Vá; ide jantar e fazer rir vossa mãe, que     é meia cura já.

Por tal forma ia sendo o bondoso João Semana cumprimentado, interrogado     e consultado, e ele a responder a tudo com a máxima expedição     possível, que já lhe não sofreiam delongas as reclamações     imperiosas do estômago.

Chegou assim ao largo da igreja da freguesia, e atravessou-o por diante da     residência do reitor. Deitou de soslaio os olhos para as janelas da     casa paroquial, e, como as visse fechada, picou a égua, para ver se     escapava sem vir à fala, e evitava novo empecilhos.

Não conseguiu, porém , o seu intento.

Uma das vidraças correu-se repentinamente e o reitor apareceu à     janela, animado de sorrisos, e com um guardanapo na mão...

— Ó João Semana! Ó homem! Ó velhote! Pschiu!     - bradava ele.

João Semana foi obrigado a voltar-se.

— Que é lá?

— Espera; fala à gente.

— Vou com pressa.

— Então andas por fora com um calor desses? Isso é criar     malignas, homem.

— Que queres tu, abade? Meu pai caiu na patetice de me arranjar este     modo de vida. Se lhe tivesse dado na mania fazer-me padre, outro galo me cantara.

— Cuidas então que não tenho canseiras.

— Aí, dão-te muito que fazer as tuas ovelhas; estou vendo.

—E não dão pouco.

— Só a cardá-las com as côngruas e derramas! Por     isso estás magro. Para vos sustentar suamos nós outros.

O reitor sorria sem a menor sombra de ofensa.

— Vamos a saber: queres provar meu arroz?

— Eu? Já não tenho estômago criado para comidas     de padres. Padre, abade e egresso de mais a mais! Safa! Morria de indigestão     esta noite.

— Anda lá, anda lá; ainda não perdoaste aos frades.     Morres impenitente.

— Como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim aquela santa     vida de convento?

— Santa sim; porém sem mortificações, não.

— Oh! Decerto que não. Os melhores cozinheiros têm às     vezes os seus descuidos, e os paladares de V.Rev.mas, lá de quando     em quando, aturam o esturro no arroz, sal de mais na sopa, pimenta de menos     no guisado, ou outra coisa assim, lá isso...

— Valha-te não sei que diga. A vida é para ti, homem,     que, com oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao     nascimento do século vinte.

— É para veres que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida     viveria como Noé. Mas tu estás a palanque e à fresca     e eu aqui estatelado a dar-lhe trela. Adeus, meu amigo.

— Olha cá, espera, homem. Então nem um cálice     do meu bastardo, hein? Olha que é do que tu gostas.

— Prefiro uma garrafa em minha casa.

— Lá franco no pedir és tu! Mas do que ninguém     se gaba é de saber o gosto do teu moscatel.

— Querias talvez que eu te mandasse um presente de vinho? Era o que     me faltava! Presentes de vinho! E a um frade!...

E dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco, a distância     já considerável das residência.

De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança cuja comunicação     não podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando a     voz:

— Ó abade, tu não sabes a história daquele frade     franciscano que?...

— Não sei, não; ora conta lá, João Semana,     conta - disse o reitor, debruçando-se no peitoril da janela, e já     com aspecto risonho.

— Havia lá no convento - principiou João Semana - uma     pintura muito grande representando a ceia de Cristo; e era pintura a que mais     atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual,     de olhos fitos naquele quadro, passava horas e horas esquecido de tudo o mais.     Outro farde, que tinha notado isto, não pôde ter mão em     si que lhe não perguntasse com aquela voz de lamúria de franciscano     manhoso: "Em que pensais vós, irmão, quando com tanta atenção     olhais para este quadro?" "Nos tormentos que por nós padeceu     o Salvador" - respondeu o tal. "E longos foram na verdade!"     - continuou o primeiro. "Mas por que esta pintura mais do que as outras,     vos traz tão santas idéias? Não tendes na sacristia a     do Descimento da Cruz e aquela do Senhor preso à coluna?" "É     verdade, irmão,! - diz-lhe então o franciscano com cara de mortificação      - "é verdade, mas olhai que não menor tormento era este     de ter doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela".

E João Semana, dizendo isto, roçou as esporas pela barriga     da égua, e partiu, acompanhado de uma grande gargalhada do reitor,     que era perdido por as anedotas de João Semana.

— Onde diabo vai este homem buscar estas coisas? - dizia o reitor chorando     de tanto que se riu.

E João Semana ia quase a dobrar a esquina quando de novo o suspendeu     a voz do padre, bradando-lhe:

— Ó João Semana, olha lá.

— Que é? - respondeu o facultativo, já com certo mau     humor - Tu queres que eu fique hoje sem jantar?

— É só uma pergunta.

— Dize.

— Não sabes que chegou ontem o Danielzinho do Dornas?

— Como não sei? Pois não estive eu já com ele?

— Ah, sim? E então que te perece o homem?

— Que me há de parecer? Bem. - e depois acrescentou: - Bem e     mal.

— Como é isso? Bem e mal?

— Sim , o rapaz é talentoso, e nas cidades talvez fizesse figura;     para aqui não serve.

— Ah! João Semana!... Ciúmes...

— Estás doido? Tomara eu que ele me descarregasse de parte desta     tarefa, mas... dize-me lá tu se aquele corpo franzino, aquela pele     de mulher pode aturar metade, a quarta parte, a décima parte do que     eu tenho aturado.

— Lá isso.

E dizendo isto, sempre conseguiu dobrar a esquina.

O reitor fechou a janela e foi jantar. Sentado à mesa ainda sorria     de quando em quando, repetindo à meia voz:

— Doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela!     Ora o diabo do homem...

 

    Enfim, chegou João Semana ao lugar, onde se erguiam os seus solares.

A égua saudou a aparição dos telhados domésticos     com a mais melodiosa das suas emissões de voz.

O próprio João Semana não foi insensível à     perspectiva, que o dobrar do último cotovelo de uma rua tortuosa lhe     patenteou, porque o seu estômago tinha também necessidades que,     como todos os outros, manifestava. Ao aproximar-se, recebeu, porém,     uma desagradável impressão.

Avistou encostado à porta da casa o criado de uma freguesa sua, o     qual provavelmente vinha requisitar-lhe a assistência e talvez com toda     pressa. Tais estorvos, à hora do jantar, eram da maior impertinência     para João Semana. Doente que lhe quisesse fazer a vontade, não     devia adoecer a hora tão crítica.

O seu pressentimento saiu verdadeiro. Ainda ele se não desmontara,     e já o criado que o esperava, lhe dizia, com grande impaciência     do facultativo:

— A Sr.ª D. Leocádia mandou-me esperar por V.S.ª para     lhe pedir o favor de ir, logo que chegasse, à casa dela.

— Quem está lá doente?

— Não sei dizer a V.S.ª

— Pelo costume é toda a gente. Todos se queixam, pelo menos,     quando eu lá vou. E... vamos a saber, e é de pressa?

— Julgo que sim, senhor, visto que me mandaram esperar.

— Isso não tira. Seria para se verem livres de ti, e parece-me     que têm razão.

— Ora, isso é graça.

— É graça, é, mas... Vamos lá ver o que     me quer a Sr.ª D. Leocádia. A falar a verdade... a esta hora...     Valha-me Deus, valha. - E voltando-se para o criado pequeno, que viera ajudá-lo     a desmontar, continuou suspirando:

— Deixa estar, Miguel, deixa estar. Eu...como assim, não me     desmonto. Torno a sair.

Mal acabara de dizer estas palavras, correu-se uma vidraça do andar     superior, e a cabeça de uma velha criada, convenientemente armada de     largo pente de tartaruga, assomou à janela. esta aparição     foi logo seguida das seguintes palavras, muito açucaradas:

— Ouviu, Sr. João Semana? Não vá, sem primeiro     subir.

— Pois que há?

— Tenho que lhe dizer.

— Diga então daí.

—Ora essa! Não é maneira de falar a que diz. Suba, se     faz favor, suba primeiro.

— Mas essa senhora que espera?

— É um instante só.

— Valha-a Deus! - disse João Semana, apeando-se e preparando-se     para obedecer à criada. Já do portal, voltou-se para o mensageiro     do recado, dizendo-lhe: - Espere um bocadinho, que eu vou já.

— Nada, nada - acudiu de cima a criada - Pode estar fazendo falta às     senhoras. É melhor ir, que o Sr. João Semana vai já também.

— Mas... - quis objetar o criado.

—Vá, vá. Basta o tempo que se demorou já aqui,     e sem precisão, porque eu cá daria o recado. Diga em casa que     já o Sr. João está lá num momento.

Isto foi dito com certo tom intimativo, ao qual o criado, habituado a obedecer,     não pôde resistir. Partiu.

Logo em seguida, a expedita velha disse, em tom mais baixo, mas não     menos imperioso, para o rapaz, que ficou a segurar as rédeas da égua:

— Miguel, avia-te, meu pasmado; mete essa cavalgadura na cavalariça,     e anda por cima.

— Mas o patrão...

— Anda, papalvo, faze o que eu te digo.

E Miguel assim o fez.

Quando João Semana entrou na sala, onde era esperado pela criada,     e ia perguntar a notícia prometida, ficou surpreendido, achando a mesa     posta e uma enorme malga de sopa, exalando odoríferos e apetitosos     vapores.

— Que é isto? Que foi fazer? - disse o velho cirurgião,     olhando para a criada, a qual procedia azafamada aos mais preparativos para     o jantar. - Então tirou a sopa, e eu tenho de sair ainda.

— Que sair? que sair? Era o que faltava. Não basta o calor que     tem apanhado já? Ande lá, ande lá, que, enquanto não     cair deveras doente, não há de escarmentar, já vejo.

— Mas, mulher, não viu o que eu disse àquele criado?

— Deixe lá. Daqui até a casa tem ele de parar em mais     de quatro tabernas e de se demorar meia hora em cada uma, pelo menos. Verá     que há de ainda chegar primeiro do que ele. Vamos, vamos. É     jantar.

— Se eu nem mandei desaparelhar a égua!

— Alguém teve esse cuidado. Ande, que o caldo arrefece.

— E aquelas senhoras que tem pressa?

— Ora adeus! Ainda não conheces aquela gente? Fervem em pouca     água. Sempre assim foram. Afinal verá que há de passar     de alguma enxaqueca de D. Leocádia, algum flato de pequena, ou uma     indigestão do procurador; e ainda acredita naquilo!

Evidentemente João Semana ia-se deixando convencer. Aproximara-se     pouco a pouco da cadeira, hesitando ainda na aparência, mas no íntimo     resolvido já.

Ia enfim a sentar-se, quando a criada o interpelou de novo, exclamando:

— Então que é isso? Assim mesmo como está? Nem     muda e fato?

— Para quê?... Não estou com tantos vagares...

— Não, então, se é para comer de afogadilho, mais     vale fazer primeiro a visita. Assim nem lhe presta o que come. Eu guardo o     jantar então, visto isso.

Joana - era o nome a criada - bem sabia que tal proposta não podia     já ser recebida por João Semana, cujo apetite se irritara com     as exalações da sopa; foi a razão pela qual ela se mostrou     tão pronta em reunir a ação às palavras, retirando     da mesa o serviço.

O êxito desta tática foi completo.

João Semana impediu-a, dizendo:

— Deixe ficar, já agora deixe ficar. Também para me vestir     não é preciso muito tempo.

E, depois destas palavras, descalçou-se, enfim, os pés em uma     chinelas, que tinham sido botas, pôs-se sem cerimônia em mangas     de camisa, sentou-se à mesa, e rompeu um ataque em forma contra a volumosa     e apetrechada tigela, que tinha defronte de si.

A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo,     e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora     elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é     das melhores cozinhas do mundo.

Dou razão nisto a João semana.

As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras - galicismos     culinários, por exemplo - repugnavam-lhe tanto ao estômago, como     aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos severos puritanos,     a outra qualidade de galicismos.

Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz do forno açafroado      - esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses;     queria-se com o prato clássico da orelheira de porco, e até     com aquele outro prato tão castiço como qualquer período     de Fr. Luís de Souza - prato que valeu aos portuenses um epíteto     gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas     das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja     nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão     a comer.

Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês     certo das mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de     estrangeirices, as velhas tradições nacionais.

Em Portugal, terra de lhaneza um tanto rude, mas não afetada, o dono     da casa não costumava dantes experimentar a imaginação     dos seus convivas com enigmas culinários.

Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou     empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o     de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o     de um poeta da moda.

Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis     misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas     um pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós.

Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura     culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum     a que todas as nomenclaturas aspiram - o de valerem por definições.

Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu Anfitrião o     que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia; era     um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada...     coisas que toda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta é     um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da     gramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades;     e por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer     cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é - tormento     insuportável.

Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares     à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros.     Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete,     para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como     se come.

João Semana é que nisto, como em tudo mais, não queria     saber de modas.

E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de substancial     caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida,     com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface     e azeitonas; atacar com igual denodo, uma porção de roast-beef,     não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente     assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis     da Ilíada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual     ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação     de pêras de amorim, sem conta peso, nem medida...

Durante o jantar não estivera calado João Santana.

Cada prato sustentara-lhe uma reflexão crítica, um discurso     laudatório, ou um anedota, que fazia rebentar de riso a Sr.ª Joana.

Ao descobrir o prato de carne assada, exclamou João Semana em tom     de satisfação manifesta:

— Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma!

A criada riu-se, mas observou:

— Não diga isso; Santo Antônio?

— O quê? Então você não sabe o que disse     aquele frade, quando estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto     se comia... - Ó Joana, deixe-me ver esse limão - ocupar-se algum     frade com leituras devotas . - E vá-me deitando aí mais vinho.     - Um dia, a comunidade escutava um desses reverendo... - O diabo desta faca     não corta nada... - um sermão sobre os perigos aos quais os     viventes andam sujeitos, neste vale de lágrimas. - Olhe, chegue para     aqui essas azeitonas. - Vede, irmão, dizia o tal frade... - Este ano     as batatas não foram grande coisa... - vede como é difícil     fugirmos às tentações dos três grandes inimigos     da alma. - Ó Joana, o padeiro está servindo mal: não     tem senão côdea o pão. - O mundo e seus encantos perigosos;     o diabo e seus poderes maléficos, e a carne, ai meus irmãos...     e a carne e as suas tentações mágicas. - Chegando a este     ponto, o frade pousa o livro, suspira, estende o prato ao seu vizinho fronteiro,     dizendo: "Tão fortes são, que nem lhes resisto eu, pobre     pecador; uma posta desse terceiro inimigo, que tão bem assado está".

Gargalhada da criada, e vitória formal de João Semana sobre     o inimigo em questão.

À sobremesa o mesmo sistema. A pêra de amorim atraiu um elogio     do facultativo e mereceu as honras de um caso.

— Excelente fruta! disse João Semana, ao comer a duodécima.     Tinha razão aquele frade, que do púlpito dizia: "Ó     meus amados ouvintes, que miserável é a condição     humana! Vede como a desgraça do mundo veio de uma má tentação.     Eva perdeu-nos por uma maçã! Se ao menos fosse por uma pêra,     meus fiéis ouvintes, ainda se poderia desculpar, mas por uma maçã!"

— Ora! Essa é sua, Sr. João Semana - disse Joana rindo.      - O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem     se perderia mais depressa por uma maçã, - acrescentou ela, pouco     depois, e preparando o café.

— Bem! - disse João Semana, ao concluir a sua refeição.      - Estou como um abade! O pior é ter agora de sair para ir visitar a     Sr.ª Leocádia.

— Sair, já! Isso tem tempo - acudiu a criada.

— Como? Pois ainda havia de as fazer esperar mais?

— Descanse ao menos um bocado. Está costumado a passar pelo     sono, e, se o não faz, fica doente para todo dia.

— Que remédio senão ter paciência!

— É um bocadito mais.

—Nada, nada, não pode ser. Vou sair já - insistiu João     Semana, procurando porém uma posição mais cômoda,     com grave risco da resolução que exprimia. Joana percebeu este     movimento e previu o que sucederia, se conseguisse entreter o amo cinco minutos     mais. Não hesitou.

— Ainda se fosse para outra parte, não digo que não;     mas para casa da D. Leocádia!... Eu já sei o que querem dizer     aquelas pressas. A D. Leocádia esta manhã, provavelmente, abriu     a boca três vezes ou espirrou duas, e por isso imagina já que     está a morrer. Louvado seja Deus, nunca vi quem tenha mais medo de     adoecer; uma coisa assim! Não é senhora de meter um bocado de     pão na boca, sem perguntar ao cirurgião se lhe poderá     fazer mal. Pois não se lembra daquela vez que o mandou chamar, porque     tinha deixado de noite, por esquecimento, uma açucena no quarto e pela     manhã julgou que estava envenenada?

— É verdade - dizia João Semana, fechando os olhos e     bocejando. - Não era açucena, era uma bela... há! há!     há!... - isto foi um bocejo que o interrompeu, e com voz já     mal percebida concluiu depois: - era uma beladona.

— Ou isso.

Joana, espiando como médico atento, estes sintomas, prosseguiu.

— Esta gente parece de vidro. A filozinha da pequena é outra     que tal. É uma pena que tal. É uma pena, que qualquer ventinho     leva. E dizem bonita aquilo! Lá na minha terra chamava-se bonito quem     era sadio e tinha boas cores.

— Você está agora como... aquele frade que,... - tentou     dizer João Semana mas não concluiu. Tomou-o sono profundo, denunciado     dentro em de pouco tempo, por um ruidoso ressonar. Joana escutando-o, aproximou-se     nos bicos dos pés, examinou-lhes os olhos, e vendo-os cerrados, sorriu,     e dizendo a meia voz:

— Sempre caiu! Agora tem para uma hora pelo menos. E fechando as janelas,     deixou o amo ressonando na mesma cadeira de braços que adormecera.   

 

Quando a Sr.ª Joana chegou à sala imediata, achou-se na presença     de uma visita inesperada. Era Daniel, que de braços abertos, caminhou     para ela, chamando-lhe "a sua boa Joana".

Por muito tempo fora Daniel o querido da velha criada do cirurgião,     a qual não se cansava de apregoar por toda a parte que não havia     aí menino de rosto mais galante e de modos mais bonitos, do que o filho     mais novo de José das Dornas. Quando a idade veio imprimir cunho mais     varonil àquela beleza, Joana, como mulher que era afinal, não     foi insensível à perfeição do tipo masculino que     tantas atenções tinha já merecido ao seu afeiçoado,     durante a vida de cidade.

Ultimamente, porém, um pequeno azedume de má vontade viera     misturar-se à simpatia da boa mulher. Em Daniel via um futuro rival     de João Semana, e a dedicação fanática, que votava     ao amo, não a deixava encarar desassombrada a probabilidade dessa luta     e, sem algum despeito, o novo atleta, que aparecia na arena, de encontro ao     velho colosso.

Joana bem se fingia tranqüila, dizendo às suas conhecidas e comadres     que enquanto João Semana fosse vivo, ninguém havia de poder     fazer-lhe sombra; mas lá no fundo, não estava muito satisfeita.

Ainda assim - tal é o poder das antigas afeições - ao     ver Daniel vir para ela tão abertamente amável, esqueceram-lhe     todas as más prevenções, que contra ele tinha, e recebeu-o     nos braços com expansão igual.

— Jesus! que mocetão! Ora quem há de dizer que é     este o menino a quem eu dava biscoitos, e que trepava, como um gato, pela     pereira do quintal acima?! E então como gostava daquelas pêras     .

— E quando o seu patrão tinha uns quatro pêssegos muito     grandes, que destinava para o vigário da vara, e eu lhos furtei, inventando     depois nós ambos uma história muito comprida de ratoneiros,     a que não se deu pouco que fazer ao regedor.

— Sempre foi uma, essa! E o vigário foi quem mais se zangou     com a graça. E daquela vez que o menino entornou o tinteiro por cima     do livro dos assentos do Sr. José Semana?

— Aí, é verdade. Por sinal que você depois lhe     disse que foi o gato.

— E, coitado, foi ele o que pagou. Levou uma sova mestra! O pobre bichano     não podia imaginar por quê.

— É provável que ele não perdesse muito tempo     a investigar a razão do fato. Foi bem mais razoável, fugindo.

— O menino era um traquinas! Era uma coisa por maior.

— Há de lembrar-me sempre com saudades, Joana, de quando se     cozia o pão em casa, e eu vinha ao sair da aula, buscar o bolo, que     você me guardava no forno. Lembra-se?

— Ora, como se fosse hoje. E daquela tarde em que o menino foi beber     água fria logo por cima! O meu amo parecia que me matava.

— Que bons tempos esses, Joana!

— Se eram! Agora já o menino não quer da nossa fruta,     nem do nosso bolo. Quem sabe se no-lo comerá por outra forma?

— Como?!

— Recebendo algumas das medidas e avenças que, até agora,     eram só do Sr. João Semana - disse a criada com ciúme     renascente.

— Está doida, Joana? nem seu amo tem receios de que eu lhe faça     mal, nem eu vontade de lho fazer. Graças a Deus, eu não preciso     para comer de andar a furtar o pão daqueles que tantas vezes e de tão     boa vontade mo oferecia. Para o ajudar, isso sim, estou pronto, que não     é pouco pesada a cruz que ele traz.

— Não é, não, menino! - exclamou, já sensibilizada     e reconciliada de todo com Daniel, a velha criada. E, suspirando, continuou:

— Aquilo é um negro de trabalho. Aí, se ele faltasse     o que seria dos pobres! Eu bem sei que o menino há de fazer o que poder,     que tem bom coração, isso tem; mas quem lhe deu as forças     dele? Aquele corpo é de ferro. Não faz idéia. desde pela     manhã, até a noite, não tem aquele pobre de Cristo um     momento de sossego.

— Ele está cá?

— Está agora a passar pelo sono. E mais tinha um recado com     pressa. Foi preciso usar de malícia para o fazer descansar.

— Pois, Joana, eu vinha para agradecer-lhe a visita que me fez, mas     deixe-o dormir.

— Ele há de gostar de o ver; que olhe que é muito seu     amigo, Danielzinho. Ele tem aqueles modos assim secos, mas... Inda ontem aqui     esteve a dizer que o menino há de vir a ser cosa grande.

— Não, agora já não cresço mais.

— Ora! bem sabe o que eu quero dizer. Está a rir.

— Eu lhe digo, Joana. Eu que vim meter-me nesta terra, é porque     tenho ambições. Lá isso tenho. A si, digo-lhe baixinho,     o meu grande desejo é vir a ser...

— O quê? - perguntou Joana, com curiosidade feminina.

— Nada menos que regedor cá na aldeia.

— Ora... fala sério?

— Pois isso é coisa lá que se brinque?

— Então para que quer ser regedor?

— E não é uma posição tão bonita?

— Não lhe digo que não. Pois olhe, com o tempo isso não     será difícil. O Sr. João Semana já esteve para;     ele é que não quis. Mas o que é, é que o menino     está aqui, está casado.

— Por que diz isso?

— Ora! o pai há de arranjar-lhe noiva rica.

— E então há por cá muito desse gênero?

— Se há? Boa! Olhe; aí tem a filha do morgado da Cova     do Frade, que é uma moça bonita.

— Aí, muito bonita! Parece mesmo uma dália vermelha.

— Que está a dizer? É uma rapariga escarolada e sadia.

— Lá escarolada será, e então tem muito dinheiro?

— Para cima de vinte mil cruzados.

— Ih! que dinheirão!

— Então acha pouco?

— Está claro. Mulher com menos de quarenta contos, Joana, não     me serve.

— Quarenta contos! Quanto é quarenta contos?

— São cem mil cruzados.

— Credo! O que aí vai! Então não casa decerto,     também lhe digo.

— Se a não encontrar cá, trago mulher da cidade. Olhe     que são mais bonitas. Uma senhora, que saiba tocar piano, que saiba     cantar, que ande à moda.

— Sume-te! Sempre as tais modas! É no que eles pensam. Ora que     graça acham àquelas coisas.

— Você não sabe o que diz, Joana. Inda hei de vê-la     andar à moda, a si também.

— A mim?

— A si, sim, minha senhora, e então por que não?

— Alguma estará nesse dia para suceder.

— Mas olhe cá, Joana, e quando você me vir passar de braço     dado com a minha senhora, ela com o vestido de seda a arrastar pelo chão...

— Isso! Olhe que há de ficar em bom estado. Passeie pelo tojo     e verá.

— Um pé muito pequenino; eu gosto dos pés muito pequeninos,     Joana.

— Também muito pequenos demais não servem para andar.     Querem-se em termos.

— Nada, quero-os muito pequeninos: e depois uma vozinha que mal se     perceba.

— Ora essa! Então não se há de ouvir o que ela     diz?

— Vocês cá não tem nada disso.

— Isso não. O pé mais pequeno que eu conheço...     é um da filha do Mateus, que teve, salvo seja, um raminho em criança     e ficou aleijadinha... e agora voz que não se perceba... olhe, tem     a ti'Ana do regedor, que, desde que lhe caiu aquela constipação     no peito, ninguém lhe entende a palavra.

Neste ponto do diálogo, entrou Miguel, rapaz do serviço da     casa, com um bilhete na mão.

— Sr.ª Joana - disse ele- vieram entregar este bilhete para o     patrão.

— Temos mais alguma impertinência. Está bem, deixe ficar.

— É que esperam pela resposta, Sr.ª Joana.

— Pois que esperem, Miguel. O patrão está a dormir, e     eu não o vou agora acordar por causa disse. Do mando de quem vem?

— Diz que das do Meadas.

— Aí, então é a pedir por algum pobre. Não     fazem outra coisa as raparigas. Têm vagar, destas fortunas é     que nos aparecem. Mas a carta não vem fechada... Ó menino, então     leia-a.

— Porém... - ia a observar Daniel.

— Não tem dúvida, pode ler. Isto não é     de segredo.

Obedecendo às instâncias de Joana, Daniel abriu a carta e leu:     "Meu bom Sr. João Semana:

— Isso! - anotou a criada - Façam-lhe a boca doce.

Daniel continuou lendo:

"O nosso pobre doente está mal, muito mal. Corta o coração     vê-lo padecer assim. Se não for possível salvá-lo,     ao menos que se não veja desamparado ao morre. É tão     compadecido o seu coração, Sr. João Semana, abre-se tão     depressa à caridade, que me atrevo a pedir-lhe que venha ver este desgraçado.     A consciência lho pagará.

Da sua respeitosa amiga

Margarida

— Bonitas palavras - disse Joana - não tem dúvida nenhuma;     o pior é que não se aduba o caldo com elas.

— De quem é esta carta? - perguntou Daniel. - Eu já ouvi     este nome de ...

— Olhem, quem o pergunta? Pois de quem é ela, homem de Deus,     senão da irmã de sua cunhada, da que há de ser?

— Ah! bem me parecia. Mas... da irmã! e ela escreve assim? -      continuou Daniel, admirado da boa ortografia e singeleza de frase da carta     que tinha ainda na mão, e para a qual tornou a olhar.

— Pois que julga que é essa rapariga? Bem digo eu que o menino     já se esqueceu de todo da sua terra. Então saiba que não     há aí quem se ponha ao lado de Margarida, em falar e escrever.     Esse homem por quem elas pedem... - e, interrompendo-se - É verdade,     ó Miguel - disse para o criado - vai dizer que ficou entregue, anda.

Depois do Miguel se retirar, Joana continuou:

— Esse homem por quem pede, foi mestre delas. Pelos modos era pessoa     que teve do seu; mas hoje está quase a pedir. Para aí veio,     e aí tem vivido. As raparigas do Meadas, que são dois corações     de anjos - lá isso são - têm-no socorrido sempre. Coitadas!     Não, eu devo dizer o que é verdade, o seu Pedro leva uma mulher     como se quer; mas olhe, quem levar a Margarida, não vai mais mal servido.     Este pobre homem tem-lhe ensinado, em paga, a ler e a escrever, que é     um primor, segundo dizem. A Margarida principalmente; porque pelos modos,     a Clarita tem menos paciência . Mas, a Margarida?... até cá     o Sr. João Semana o diz, pode-se ouvir. Agora até ela dá     lição em casa. Não sabia? Pois dá. Ora, o tal     pobre de Cristo está a morrer, e, segundo diz o patrão, não     deita o mês fora. As raparigas então, credo! Isso é um     cuidado por aí além, nem que fossem filhas. Mas o que eu não     sei é se o Sr. João lá irá hoje. Fica-lhe tão     longe do seu giro.

— Mas há de deixar o homem assim?

— Então? Cada um faz aquilo que pode, que a mais não     é obrigado. Olhe... sabe o que me lembra? Por que não vai o     menino lá? Não diz que quer ajudar o Sr. João Semana?     Pois aí tem.

— Para me ficar depois com zanga.

— Credo! Zanga, não; eu só dizia que... Demais, isso     não lhe rende cinco réis. Bem vê o que ela diz: A consciência     é que paga. Ora, eu bem sei que as pequenas quiseram pagar, quiseram;     cá o patrão é que não deixou. Não sei se     fez bem, porque afinal... elas têm por onde paguem. Mas vá, vá.     Além de que...

— Eu por mim vou; não me custa; mas se o seu amo se ofende?

— Não, não ofende; amanhã lá irá.     Demais, as raparigas são agora quase da família do menino; é     natural que o procurem primeiro.

— Pois então nem espero que ele acorde. Você diz-lhe...

— Sim, sim: não tenha dúvida; eu cá lhe digo.

E, chamando outra vez Daniel, que ia a retirar-se, continuou:

— E então, olhe. Também pode fazer-nos ainda outro favor.     Eu tenho, desde esta manhã, um recado para o Sr. João Semana     ir à casa do João da Esquina, lá do seu vizinho da tenda.     Não lho dei, porque enfim... hoje ficava-lhe bastante longe, e, aqui     para nós, não andam muito bem em dia as contas com o tendeiro;     como ao menino lhe fica perto da casa, se não lhe custasse, ia por     lá.

— Também irei, o ponto está em que o homem me queira.

— Se não quiser, que mande fazer um de encomenda. Era o que     faltava! Já vê que eu não tenho nenhuma má vontade     contra o menino, até lhe dou freguesia.

Daniel agradeceu os dois fregueses que a velha Joana lhe cedera, com poucos     auspícios de lucros, e saiu sem esperar que o seu velho colega acordasse.

A pressa com que Daniel saiu e a facilidade em aceder à proposta de     Joana, tinha um motivo. E aí estamos nós para o explicar, e     referimo-nos outra vez ao caráter do nosso herói.

A carta de Margarida falara-lhe à imaginação. Achou-a     tão singular, na sua simplicidade, por ser escrita por uma rapariga     da aldeia, que não pôde eximir-se de fantasiar um tipo de romance,     o qual logo suspirou por conhecer.

Segundo as instruções de Joana, Daniel pôde, dentro de     um quarto de hora, achar-se à cabeceira do enfermo, para quem se pedira     o socorro de João Semana.

Mas, contrariamente ao que esperava, foi Clara e não Margarida que     ele encontrou ali.

 

A princípio, a substituição desagradou a Daniel, por     lhe dissipar umas vagas fantasias, com que tinha vindo; mas Clara não     era mulher junto de quem se pudesse sentir por muito tempo a falta de outra.

Daniel, passados alguns minutos, achava-se conformado.

— Olhem quem nos vem! Bem dizia eu ontem; dentro em pouco, ninguém     quer saber do João Semana.

— Devo lembrar-lhe Clarinha, que é à força, quase,     que eu venho aqui, porque não houve quem tivesse a idéia de     me mandar chamar - replicou Daniel, sorrindo. - Não lhe disse eu que     as raparigas seriam fiéis ao João Semana? Veja, nem a Clarinha     nem a mana se lembraram de mim, sendo eu da família quase.

— Bem vê que pouco se lhe podia prometer - respondeu Clara, lançando     para a humilde mobília do quarto um olhar expressivo.

—Nem a recompensa da consciência, que sua irmã prometia     a João Semana?

— Com franqueza lho digo; eu por mim tinha-me lembrado de o chamar,     tinha.; mas Guida é que não quis.

— E por que não quis sua irmã?

— Eu sei lá? Eu já não estou acostumada a perguntar     a razão por que ela diz isto ou aquilo. Para quê? Afinal de contas,     não sei fazê-la mudar de tenção.

— Então é assim teimosa?

— Teimosa? Não, credo; mas é que depois de falar com     ela... não sei como isto é... eu sou que mudo sempre. Mas, já     que veio, entre; aqui tem o nosso doente.

E, dando ao gesto a expressão de desesperança, acrescentou,     baixando a voz e suspirando:

— Isto!... coitado!

O doente era o velho que já conhecemos, agora de todo prostrado por     uma caquexia, infalivelmente mortal.

Realizara-se o seu pressentimento. Vida... só lhe restava para agradecer     com o olhar, mais já do que com palavras, os cuidados quase filiais,     de que as duas raparigas o rodeavam.

A idade e os padecimentos morais deste homem haviam-se tornado elementos     quase invencíveis, do mal que lentamente lhe minava as forças.

O único alívio, no seu leito de dor, era a vista das duas irmã.     Faziam-lhe bem os sorrisos de Clara, e as lágrimas de Margarida - duas     expressões diversas da mesma simpatia.

Daniel aproximou-se do leito do enfermo; do outro lado, ficava-lhe Clara.

A luz era escassa na alcova. As feições de Clara tinham tomado     uma expressão de melancolia, a qual aquelas sombras pareciam aumentar.

Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e naturalmente     se estabelece entre duas pessoas um trato familiar.

A etiqueta e as reservas do costume sentem-se mal colocadas e intempestivas     ali.

Se é sincera a compaixão para o que padece, perde-se a frieza     necessária à estrita observância das insignificantes convenções     sociais. Não são possíveis as afetações     nem os constrangimentos, quando a mesma generosa simpatia domina o pulsar     de dois corações.

Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira, crescera,     rapidamente, certa familiaridade, a qual não pouco concorrer para fazer     demorado o exame do doente, cuja moléstia era de uma evidência     e de uma fatalidade de êxito, que deviam facilitar a tarefa do seu estudo.

Depois... nunca é tão cheia de atrativos a mulher, como ao     velar, solícita, por o doente que estima. Às mais levianas revela-se-lhes     então a grandeza e a sublimidade da sua missão na terra. O coração,     que as vaidades podem trazer abafado, estremece e acorda ao primeiro grito     de dor; o instinto feminino revive com toda a espontaneidade de abnegação,     dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao olhar requebros     de meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo que nos pedia proteção     e amparo, transforma-se em coragem heróica, diante da qual nós,     os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados.

Um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os pequenos defeitos,     que temos por costume censurar nela.

Quando o império do amor e de piedade deve reger a vida, aceita então     ela de nós, com sorrisos de brandura, o cetro de soberana.

E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce,     é absoluto; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.

Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali; fitava sem constrangimento,     os expressivos olhos negros de Daniel, como se para nele espiar o passar das     idéias, que o exame do doente lhe fosse sugerindo.

Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o deixava     pensar!

O enleado agora era Daniel. Com os olhos no rosto cadavérico do enfermo,     comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado, quase não tinha     consciência do que fazia.

Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele - porque há     fenômenos assim, - e sentindo-o - desgraçada natureza a sua!      - em vez de médico impassível e atento, já não     era senão o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação.

Enfim terminou aquele exame, longo, mas distraído, e, depois de algumas     perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar.

Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da cadeira     na qual Daniel se sentara.

Era o bastante para tirar a este toda a tranqüilidade.

A seu pesar, a mão tremia-lhe ao escrever.

Clara pôs-se a rir.

— De que se ri? - perguntou Daniel, voltando-se

— Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe a mão assim, que     o João Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina     uma sentença de morte.

Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.

— Isto é nervoso - disse ele, levantando-se.

— Nervoso? Então também é nervoso! Eu cuidei que     isso era só das senhoras da cidade.

— Enganava-se.

— Então que é ser nervoso?

— É... por exemplo, não ter firmeza na mão ao     escrever, quando nos seguem os movimentos com uns olhos assim como os seus     Clarinha.

— Ah! Deve então ser má doença, que obriga os     outros a andarem com os olhos fechados - redargüiu Clara, com certo tom     de zombaria.

Daniel ia replicar, quando um gemido do enfermo chamou Clara à alcova.

Enfim, passados alguns segundos, Daniel muito a custo preparava-se para sair.

Clara voltou, trazendo-lhe água para as mãos; ato naturalíssimo     e sem significação - porém Daniel era destes homens,     para quem quase não há atos sem significação.

Lavando-se, e enquanto Clara sustentava a bacia, aventurou-se um olhar para     a gentil rapariga, a qual o recebeu com firmeza.

Como este olhar se prolongasse, Clara disse com um sorriso de ironia aparente     através do gesto de ingenuidade de que o acompanhou.

— Está tão distraído, a pensar... no seu doente     talvez, que nem repara que se está a lavar em seco.

Daniel baixou os olhos e abreviou a operação.

Quando ia retirar-se, ouviu Clara que lhe diziam gracejando:

— Quando se lhe deve pela visita, Sr. Doutor?

A esta pergunta, esteve iminente de sair da boca de Daniel um galanteio,     que ele susteve a tempo, por não sei que pressentimento, que lhe dizia     que esse jogo podia ter seus perigos. Limitou-se a responder:

— Deve-se-me um pouco de afeição pela boa vontade, quando     mais não seja.

— Já vejo que é fácil de contentar.

— Acha então de pouco valor a afeição?

— Como não pede muita...

— É que receio que já não tenha muita para me     dar.

— Tão pobre me faz disso?

— Pois não dispôs já da melhor?

— A afeição de que dispus, não lhe podia servir.

— Acha?

Esta pergunta, ou mais do que ela, a inflexão de voz com que foi dita,     o olhar de que foi acompanhada, era imprudente.

Clara desviou a vista diante deste olhar de Daniel.

— Ouça - disse ela, mais séria já do que até     ali, - A gente tem sempre no coração duas afeições     diferentes, penso eu; uma, que se dá toda a uma pessoa, e julgo que     uma só vez na vida; outra que se dá às porções,     mais a uns menos a outros, mas que nunca se acaba. Para querer a este pobre     velho, que ali está dentro - e quero-lhe deveras - nada tive de tirar     à afeição grande, que tinha a Margarida. Conte por isso     que ainda tenho afeição - dessa - para lhe dar. A Guida não     terá que sofrer com isso... nem os outros.

Havia uma delicada correção nestas palavras de Clara, que produziu     efeito no ânimo de Daniel. Inclinou-se, e com sorriso não constrangido,     replicou, estendendo-lhe a mão:

— Agradecido, Clarinha. Essa mesma é a que me deve; pois não     seremos dentro em pouco tempo, irmãos.?

E separaram-se.

— Que diabo de homem sou eu? - dizia Daniel consigo. - Pois não     ia principiando apaixonar-me por a mulher do meu irmão? Quando terei     eu força para me vencer nestas coisas? mas é que tem uns olhos     esta rapariga, e umas maneiras!...

E, sob o domínio destas novas impressões, a impressão     que da carta de Margarida havia recebido, desvanecera-se de todo.

Não era, porém, esta a única mudança que se tinha     de operar nele, aquele dia.

   

Cumprindo a promessa que tinha feito a Joana, foi o novo clínico fazer     sua segunda visita.

O leitor deve estar lembrado de que o doente era o nosso já conhecido     João da Esquina, ou, pelo menos, alguém da sua respeitável     família.

Ao apresentar-se, em lugar de João Semana, Daniel foi recebido com     uma visagem, pouco lisonjeira, do dono da casa, impressionado ainda talvez     com as revolucionárias, e em nada tranqüilizadoras opiniões     médicas, que conhecia no seu vizinho.

— Então como é isto? É o senhor que vem?... -     dizia o homem, meio desconfiado, e como hesitando em entregar-se aos cuidados     da medicina nova.

— É verdade; sou eu - respondeu Daniel. - O João Semana     não podia vir hoje para estes sítios e, como me lembrou que     talvez fosse de pressa a doença.

Um sorriso encrespou os lábios do tendeiro.

— A doença? - Ah!... - Então nós sempre temos     doenças?! - perguntou o João da Esquina com certo ar de finura     triunfante.

— Pois que dúvida? - disse Daniel, muito longe de imaginar o     sentido oculto da interrogação. - Não mandou chamar um     médico? É provável que não seja para o consultar     sobre alguma demanda.

João da Esquina meneava a cabeça com ar de satisfação.

— Portanto, segue-se que temos doenças? Bem, bem.

— Mal, mal - emendou Daniel , sorrindo.

— Eu cá me entendo. Afinal há de vir para o bom caminho,     e no mais também, se Deus quiser.

— No mais? - repetia Daniel, sem entender o anfiguri.

— No mais sim, no mais. Ora diga-me - continuou ele, tomando Daniel     de parte e falando-lhe quase ao ouvido - parece-me que eu sou algum macaco?

O filho de José das Dornas olhou espantado para os eu interlocutor,     e principiou a suspeitar que a moléstia, que exigia os cuidados do     médico, era desarranjo intelectual.

— Macaco? O Sr. João da Esquina macaco?! Essa agora ! Como me     queres que eu suponha tal absurdo?

— Absurdo!? - exclamou jubiloso o merceeiro. - É o que eu digo.     Assim, assim é que eu gosto de os ver.

— Esquisita monomania! - comentava para si Daniel.

João da Esquina continuou no mesmo tom, meio irônico, meio confidencial:

— E acha que me ficaria muito bem, se me pusesse a andar por aí     com as mãos pelo chão?

Daniel muito fora, naquele momento, das razões que motivavam estas     perguntas, achava-as tão extravagantes, que sentia agravarem-se cada     vez mais as apreensões, relativamente ao estado intelectual do tendeiro.

— Decerto que não seria exemplo muito para tentar - respondeu     Daniel, não podendo outra vez disfarçar um sorriso.

— Ah! Então parece-lhe isso?

— Acaso as íntimas convicções do Sr. João     da Esquina repelirão esta maneira de pensar?

— O senhor é que parece ter mudado de idéias.

Lembrou-se então Daniel que talvez tivesse alguma vez pronunciado,     diante de indiscretos, uma ou outra frase, menos favorável em relação     a João da Esquina, a qual, tendo-lhe sido transmitida, desse por tal     forma, motivo a esta desconfiança.

— Estou supondo que o Sr. João da Esquina tem não sei     que prevenção contra mim. Pode ser que lhe viessem referir algumas     palavras minhas, as quais julgue ofensivas à sua dignidade; mas creia     que são menos verdadeiras. As coisas alteram-se sempre ao passar de     boca em boca.

— Então, dá o dito por não dito?

— Tudo o que lhe for injurioso, creia que o não disse eu - respondeu     Daniel.

O tendeiro mais tranqüilo a respeito do novo médico, o qual ele     via assim abjurar solenemente as suas teorias subversivas do estado regular     das coisas na sociedade e no mundo, não duvidou encetar os estiradíssimos     capítulos da sua longa história mórbida.

Pouparei ao leitor o ouvi-los. Imaginem uma interminável exposição     de todos os incômodos sentidos há vinte anos, e cortada de variados     episódios, alheios ao assunto principal, ou mantendo com eles laços     imaginários.

A propósito da moléstia, veio, por exemplo, a campo a história     minuciosa de uma demanda sobre uma pensão de duas frangas, o relatório     das despesas feitas com os melhoramentos em uma propriedade sua, e as desavenças     entre ele, tesoureiro da confraria do Sacramento, e o secretário da     mesma.

Daniel escutava-o distraído.

No fim, fundando-se em uma outra circunstância que lhe ficara de todo     o arrazoado, fez o diagnóstico, e formulou alguns preceitos médicos,     mencionando, entre outros medicamentos que aconselhou, as preparações     do arsênico.

Lembrança imprudente!

A palavras arsênico, João da Esquina estremeceu, e de novo se     lhe assombrou o olhar da desconfiança.

A quarta das opiniões teóricas de Daniel, as quais lhe tinham     sido referidas por José das Dornas, aparecia-lhe agora de novo com     toda a sua aparência sinistra e homicida.

— Arsênico? - exclamou ele com voz quase rouca de susto e de     indignação. - O senhor quer que eu tome arsênico?!

— Que dúvida? - respondeu Daniel. - É um medicamento     heróico, prodigioso em muitos casos.

— Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois     gatos!

— Ora adeus! A questão está na maneira de o tomar.

— Arsênico! mas que idéia! esta não esperava eu!     Arsênico!

— Está enganado. O arsênico até...

— Engorda também, não é verdade? - perguntou o     tendeiro, com amarga ironia na voz.

— E ainda que lhe pareça que não.

— Para o senhor vale tanto como o toucinho. Eu já cá     sabia .

— Mas ouça. Olhe... na Áustria... na Áustria,     os cavalos de boa raça recebem sempre na aveia uma porção     de arsênico, o qual lhes dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso     e inexcedível.

O exemplo beliscou o amor próprio do Sr. João da Esquina, que     redargüiu com despeito:

— Muito obrigado pela notícia. Isso talvez anime a gente da     Áustria, ou certos doutores que eu conheço, que pensam que um     homem é como qualquer animalejo dos tais, e que pode andar a quatro     como eles também. Eu por mim...

— Mas aí tem outro exemplo - continuou Daniel. - Em certas partes     da Alemanha há povoações inteiras, nas quais o arsênico     é comido com um prazer excessivo.

— Pois que se regalem.

— Mas olhe que é fato. São verdadeiros toxicófagos     esses povos.

— Eu logo vi que haviam de ser assim uma coisa; homens é que     ...

— E então as pessoas novas e, ainda mais, as raparigas são     as que usam dele com avidez, e o que é certo é que conservam     assim um ar de mocidade, uma frescura,. uma nutrição e uma força     que, segundo a frase dos autores, parece que lhes permite voar.

— Para o outro mundo?

— Não senhor. É verdade isto que lhe digo.

— Eu já sei, eu já sei que, para o senhor, pão     e arsênico deve ser tudo a mesma coisa. Mas eu por mim...

— Porém, sossegue, eu não quero obrigar o meu amigo a     jantar arsênico; aplico-lhe apenas como medicamento e com as devidas     precauções...

— Escusa de se dar a esse trabalho. Disso o dispenso eu. É coisa     que me não há de entrar na boca. Arsênico! Que tal está!

— Mas esse receio é indigno de um homem de coragem, permita-me     que lho diga.

Nesse tempo tinha entrado na loja, onde se passava o diálogo, a cara     metade do Sr. João da Esquina, a Sr.ª Teresa de Jesus, gorda e     rubicunda matrona, que saudou Daniel com sorrisos amáveis, e disse     para o marido, com a voz mais melodiosa deste mundo:

— Toma arsênico, menino, toma. E por que não hás     de tomar arsênico?

O Sr. João da Esquina fitou na mulher um olhar sombrio.

Dir-se-ia que estava vendo nela uma nova Clitemnestra, de conjugícida     memória.

— Toma-o tu, se gostas - foi a resposta que lhe deu, em tom de voz     cheia de amargas exprobrações.

— É que me não será preciso a mim - redargüiu     a senhora suspirando.

Este suspiro foi o prelúdio da história dos seus complicados     males.

A crônica não foi menos longa, nem menos fértil em episódios,     do que a do marido. Os nervos, já se sabe, representam um papel importantíssimo     na série de catástrofes, que a organização da     Sr.ª Teresa vira cair sobre si durante os quarenta anos e nove anos de     sua existência.

Daniel foi miraculosos de paciência na atenção que lhe     deu, e sublime de sisudez e compostura nos conselhos que em seguida recomendou.

O pobre rapaz olhava com saudades para a porta da rua, sem ver possibilidade     de a transpor tão cedo.

Enfim, quando julgava haver terminado a sua missão, e tomava jeito     de retirar-se, as seguintes palavras da Sr.ª Teresa vieram a apertar-lhe     o coração:

— Mas não é tanto por nós que mandamos chamar     facultativo. A doença principal da casa é outra. Aos nossos     achaques já nos vamos acostumando. Foi por causa da pequena. Quer ter     o incômodo de subir?

Daniel não pôde reter um suspiro de impaciência. Se aquelas     tinham sido doenças de segunda ordem, que monstruosa história     patológica lhe estava reservada ainda?

Os dois cônjuges fizeram-no subir adiante de si.

Pelas escadas, Daniel, apesar dos eu mau humor, não pôde deixar     de sorrir, ouvindo a Sr.ª Teresa, a qual fechava o cortejo, dizer para     o marido:

— Toma arsênico, João. Ora não hás de tomar     arsênico?

— Não me digas isso, mulher! - respondia João da esquina,     quase alterado.

Dentro em pouco, estavam na presença da menina Francisca, filha única     deste bem talhado par.

Se os amáveis sorrisos da esposa tinham já procurado dar a     Daniel compensação ao menos cordial acolhimento feito pelo tendeiro,     o sobressalto e a confusão com que a menina estendeu para ele um pulso,     sofrivelmente modelado, conseguiram mais eficazmente esse mesmo resultado.

Era esta menina a trigueira mais trigueira de toda a aldeia. Ingrata para     com esta cor maravilhosa, que, tingindo certos tipos fisionômicos como     o dela, é de efeitos surpreendentes, tinha porém a fraqueza     indesculpável de se afligir por não ser corada!

Era idéia fixa na menina Francisca; uma conversação     de quarto de hora, que se tivesse com ela, bastava para a fazer avultar.

Debalde protestava contra tal injustiça o brilho esplêndido     de uns olhos que, naquela tez, realçavam como poucos. Dera-lhe para     se reputar infeliz por aquilo e não havia maneira de distraí-la.   

A doença, que atualmente molestava esta progênie dos senhores     da Esquina, era uma impertinência nervosa, dessas para as quais se receitam     banhos de mar.

Daniel não deixou de os aconselhar: mas não terminou as visitas     com o conselho.

Os tais olhos pretos sobre aquelas faces, esquisitamente trigueiras, davam-lhe     deveras que pensar.

Agora não tinha ele pressa de ir embora.

Por onde andaria a imagem de Clara?

Prolongando-se a visita, era inevitável a descoberta da corda sensível     da enferma. Mais cedo ou mais tarde, um queixume indiscreto a poria em relevo.     Assim aconteceu. Daniel ficou sabendo que mal oculto entenebrecia aquele coração,     e preparou-se para ser eloqüente na apologia da cor trigueira.

João da Esquina tinha saído da sala. O pobre homem já     não podia suportar a sua cara metade, a qual, pela décima vez,     lhe repetia:

— Toma arsênico, filho, toma. Não posso saber por que     não hás de tomar arsênico?

Só, na presenças das duas mulheres, deitou Daniel ombros à     empresa de distrair a menina Francisca.

Entre outras muitas coisas, afirmou, por sua conta e risco, que as belezas     célebres, essas que inspiraram os grandes poetas, os grandes artistas     e os grandes amores, tinham sido trigueiras, e, especificando, citou Dido,     Natércia, Cleópatra, Beatriz, Fornarina, Laura, Inês de     Castro, etc., etc. Desta gente toda, a Sr.ª Teresa e sua filha só     conheciam Inês de Castro, porque havia meses que tinham visto representar     uma obra dramática, produção inédita de não     sei que Shakespeare rústico, na qual entrava esta senhora, mais maltratada     ainda das mãos do trágico, que das dos "brutos matadores".

A mãe fez notar à filha que de fato não era das mais     alvas a moçoila que desempenhou a parte da heroína daquela vez.

Além destes argumentos histórico-apologéticos, a respeito     da cor trigueira, Daniel, aproveitando uma curta ausência da Sr.ª      Teresa, segredou à menina algumas amabilidades de efeito salutar. Ela     teve a condescendência de sorrir.

Diga-se a verdade: nunca até então escutara também mais     gentil conforto contra o motivo das suas penas.

Daí até o fim da entrevista foi toda sorrisos.

Daniel, quando saiu, ia muito bem conceituado pela parte feminina da família     e prometeu voltar.

João da Esquina conservava-se ainda um pouco frio.

De mais a mais, quando Daniel passou pela loja, a Sr.ª Teresa que era     para ele de uma amabilidade monstruosa, disse para o marido:

— Toma arsênico, João; que teima a tua em não tomar     arsênico!

Esta insistência produziu calafrios na espinha dorsal do tendeiro.

— Ó mulher, não me digas isso! Que cisma! - exclamou     ele irritado.

Na noite desse dia, pela primeira vez, deixou a menina de lavar o rosto com     água misteriosa, que o barbeiro lhe vendera por um bom preço,     afirmando-lhe possuir a virtude de tornar brancas, com o tempo, as mais escuras     africanas.

 

No dia seguinte, Daniel voltou. A família Esquina, até sem     exceção do elemento masculino, sorriu-lhe cordialmente.

O que fizera esquecer assim ao tendeiro as suas negras apreensões,     e abrira em sorrisos aqueles sobrecenhos da véspera?

O leitor, que toma a peito, decerto, a varonil rijeza de caráter do     tesoureiro da confraria do Sacramento, não me perdoaria se eu não     explicasse o fenômeno.

Foi o caso que, na véspera, depois que Daniel se retirou, a menina     Francisca, ainda pensativa e enleada, veio à janela para o ver passar,     e ao perdê-lo de vista, retirou-se suspirando.

Este suspiro entrou pelos ouvidos da mãe, a qual chegava à     sala naquela ocasião.

A Sr.ª Teresa teve uma idéia.

Este fenômeno dava-se, de vez em quando, na esposa do Sr. João     da esquina.

— Tem umas maneiras muito bonitas este rapaz - disse ela, fixando na     filha o olhar mais investigador que tinha à sua disposição.

— Tem - respondeu esta secamente.

— Ou ele ou o João Semana, a quem ninguém pode tirar     da boca uma palavra delicada. Este é coisa mais fina.

— É - replicou a outra.

— Bem mostra que tem vivido entre gente polida e educada.

— Bem - continuava a menina.

— E não lhe hão de faltar bons casamentos, a esse rapaz.

— Não - dizia a filha.

— Isso há de ser bonito agora. Todas as raparigas da terra a     enfeitarem-se para lhe agradar. Há de ter que ver.

— Há de.

A Sr.ª Teresa principiava a impacientar-se com o laconismo da filha.

— Mas acham-se muito enganadas - continuou ela - um rapaz assim não     cai facilmente. Estas nossas raparigas são umas estúpidas. Louvado     seja Deus. Não sabem dizer duas palavras. E desembaraço é     o que se quer.

— É...

— E por que não o hás de tu ter, menina? - acrescentou     ela, em tom mais baixo e insinuante.

— Eu?

— Tu, sim, por que não? Para que gastou teu pai contigo, a mandar-te     aprender os verbos, senão para poderes agora mostrar o que és,     e diferençar-te das outras?

A menina desta vez nem um monossílabo pronunciou. Encolheu os ombros     só.

— Bem se via que o Sr. Daniel logo conheceu com quem lidava. Cuidas     tu que ele se gastava assim com qualquer Maria do monte? Diz-lhe que sim.     Ele bem sabe que seria deitar pérolas a porcos. Por isso, menina, não     deixes perder a ocasião. Acredita que darás muito gosto a teus     pais, se...

A Sr.ª Teresa vacilou ao principiar a condicional, em que ela queria     conservar a conveniente dignidade materna.

— Se?... perguntou a filha, e foi este de todos os monossílabos,     que até ali tinha soltado, o mais embaraçoso para a mãe.

— Se... sim... quero eu dizer, que eu e o teu pais não levaríamos     mal se... um dia o Sr. Daniel nos viesse pedir a tua mão.

O ar de satisfação, que se desenhou no rosto da esposa do Sr.     João da Esquina, mostrou que ela estava contente consigo pela construção     final da frase.

A menina ao ouvi-la, baixou os olhos; devia ver-se corar, se tal fenômeno     fosse de possível observação nas faces dela. Enquanto     a palavras, limitou-se a balbuciar um "Ora!" eloqüente de graciosa     confusão.

A Sr.ª Teresa passou à loja, onde estava o marido.

— Ó João, olha que nós temos de conversas - disse-lhe     ela, sentando-se ao pé do mostrador.

— Vens falar-me do arsênico outra vez? - perguntou o marido inquieto.

— Não! Ainda que, para dizer a verdade, não sei por que     não o hás de tomar.

— E a dar-lhe!

— Mas ouve. Essa visita de Daniel do Dornas não te deu o que     pensar?

— Deu-me que pensar, deu. E vou já mandar dizer-lhe que escusa     de cá voltar, porque...

— Não sejas tolo, homem! Abre os olhos e vê - exclamou     a Sr.ª Teresa, com ar de mistério.

— O quê? - perguntou João da esquina, não, podendo     deixar de abrir instintivamente os olhos.

— Que idade tem o Daniel?

— Eu sei lá?

— Vinte e tantos anos, vá. E que idade tem a Chica?

— Ela nasceu logo depois do cerco...

— Faz vinte anos para setembro.

— E daí?

— E daí? E quanto virá herdar o Daniel por morte do pais?

— Eu te digo... para cima de trinta mil cruzados, não falando     em...

— E ainda perguntas: "E daí?".

João da Esquina olhou para a mulher significativamente, e não     deu palavra. Tinham-se compreendido os dois.

Passados momentos, murmurou o homem:

— Olha que não era mau, se...

— Vê lá então agora...

— O pior é...

— Pois sim, eu não digo que...

— Mas ele já?... sim...

— Não, porém...

— Então quem sabe se...

— Isto é... até certo ponto.

— É verdade que também...

— Sim, pois está claro, e...

— E mau era que já...

— Com certeza... demais...

— Agora o que é preciso, é...

— Isso com o tempo... bem vês que...

Não sei se o leitor penetrou bem o sentido deste diálogo, cortado     de expressivas reticências, e ao qual falta para o interpretar, a eloqüência     do olhar e de gestos, que os dois cônjuges trocavam entre si. É     certo que eles se compreenderam assim, e largas horas ficaram discutindo os     teres e haveres de Daniel, e as probabilidades e vantagens de uma união     entre a casa dos Esquina e a dos Dornas, as quais, com os anos, podiam fornecer     sofríveis elementos para a confecção de um brasão     heráldico.

A Sr.ª Teresa foi encarregada por o marido de excitar na menina o ardor     pela conquista, e industriada em dirigir o negócio de maneira a "prender     o melro por asa" - foi a frase imaginosa, da qual João da Esquina     se serviu.

— O pior há de ser o pai: mas segura-me tu o rapaz, que eu depois     tomarei a meu cargo a empresa - dizia ele.

Conspirados assim os dois, sentiam-se radiosos de esperanças no futuro.

João da Esquina estava de tão condescendente disposição     de espírito, que a sua cara metade aventurou um pedido.

— Agora para seres bonito, João, devias tomar arsênico.

O tendeiro deu um murro no mostrador.

— Não te calarás com isso, Teresa?!

Aí ficam expostas as razões dos sorrisos, com que o próprio     João da Esquina recebeu Daniel, à segunda visita.

A mãe conduziu-o aos aposentos da menina e teve o discreto cuidado     de se distrair à janela enquanto Daniel interrogava a doente.

O sistema de tratamento encetado continuou, e com igual êxito. Daniel     desta vez, ao retirar-se, levava já a autorização para     continuar por escrito as consolações principiadas vocalmente.

A Sr.ª Teresa não deixou sair Daniel sem que ele visse todas     as obras de crochê das industriosas mãos da menina, e os modelos     caligráficos, que escrevera na mestra. De passagem. disse-lhe também     que ela havia aprendido os verbos, coisa que pouca gente sabia na terra.

A Sr.ª Teresa possuía fé, quase supersticiosa, nesta ciência     dos verbos.

João da Esquina quis obrigar Daniel a beber um cálice de vinho,     do qual ele a muito custo conseguiu dispensar-se.

— Da rua, Daniel voltou-se para cima, e vendo à janela a descendente     dos Esquinas, cortejou-a com um sorriso cheio de amabilidades.

Um cotovelão da Sr.ª Teresa fez notar ao marido esta circunstância.     O homem conseguiu arranjar um gesto de finura, e recomendou gravidade.

Naquela tarde, Daniel, escrevendo a um seu antigo condiscípulo, dizia,     entre outras coisas, o seguinte:

"Participo-te que se está desenvolvendo em mim o gosto pelo gênero     campestre. Principio a achar mais dignas do pincel do artista estas formosuras     expressivas e, quase direi, enérgicas da aldeia, do que as sempre monotonamente     lânguidas maravilhas da cidade. Pena é que o reconhecesse um     tanto tarde. Resta-me já pouco alento para as empresas de rapaz, e,     demais, a minha nova posição social obriga-me a uma seriedade     que me tolhe a ação. Agora só devo aspirar às     doçuras emolientes do lar conjugal. Não obstante, andam-me a     tentar uns olhos pretos, e eu não sei se sustentarei o equilíbrio     por muito tempo. Encomenda a todos os santos a manutenção da     minha sisudez, se não queres ver perdida a fama do teu amigo, no ninho     seu paterno."

As visitas de Daniel à casa de João da Esquina continuaram.

O mulherio da vizinhança falava já.

A Sr.ª Teresa deixava falar o mulherio. Se isso entrava até nos     seus planos.

Uma vizinha, comadre e muito íntima da Sr.ª Teresa - uma só     ocultava à outra o mal que dela dizia pelas costas - falando-lhe um     dia, aludiu a Daniel e às suas visitas.

— Então comadre? pelos modos, o nosso cirurgião gosta     muito destes sítios.

— Cada um vai para onde mais lhe agrada, comadre.

— Isso lá é assim. E quem sabe o que será?

— Que será o que?

— Sim comadre, ele não é de raça que não     seja a sua filha,

— Decerto que não é, não.

— Pois então...

— O futuro só Deus o sabe.

— É verdade. O ponto está que a sua pequena... Se ainda     não lhe passou aquela cisma que teve para o Chico, sapateiro...

— O Chico, sapateiro! - exclamou indignada a Sr.ª Teresa - Não.     que a minha filha é cabedal muito fino, para ir às mãos     de um remendão daqueles.

— Nisso tem razão. Inda se fosse com o Joaquim sacristão.

— Qual sacristão, nem meio sacristão! A comadre pensa     que uma criatura se sustenta com aparas de hóstia e com escorralhas     de galhetas?

A comadre aplaudiu com uma gargalhada o dito, e observou:

— O das estradas é que... está feito... já era     assim mais jeitoso esse.

— Pássaro de arribação! Olhe, enfim não     sei o que será. Esta pequena é muito difícil de contentar.     Que quer? Está estragada de mimo... Mas se ela não o enjeitar...     que tem agora ocasião de fazer um bom casamento, isso tem.

— E ele?

— Ele? pois não vê como o rapaz não nos larga a     porta?

— Mas será... com boas idéias?

— Ora essa, comadre! Então julga que nós somos?...

— Não digo isso. Mas... Dizem que ele foi um estróina     dos meus pecados...

— Pois sim; mas isso é com gente de pouco mais ou menos: mas     nós cá...

Neste estado estavam as coisas, e assim duraram alguns dias mais.

Chegou a ocasião da Sr.ª Teresa ter obtido alguma alavanca para     fazer caminhar o negócio.

Houve neste dia longa conferência entre os cônjuges.

Ficou demonstrado para eles que o "melro estava preso pela asa".

João da Esquina , levantando a sessão, disse com modo solene:

— É ocasião de dar o grande passo!

E, enfiando a sua roupa dos domingos, preparou-se para sair.

Agitava-o certa comoção interior, própria das grandes     ocasiões. Queixou-se disto à mulher; esta observou-lhe:

— O culpado és tu.

— Então? - perguntou o marido.

— Se tomasses o...

João da Esquina não ouviu o resto. Saiu impetuosamente.

A Sr.ª Teresa, vindo à janela para o ver, dizia consigo:

— Mas por que não há este homem tomar o arsênico?

Que circunstância tinha convocado o conciliábulo conjugal, e     o que foi fazer o João da Esquina assim ataviado.

Vê-lo-emos no capítulo seguinte.

 

Tomando certos ares de gravidade e de importância, em grande parte     devido a uns estupendos colarinhos engomados, acessório daquele vestuário     típico, dobrou o Sr. João da Esquina a esquina, donde lhe vinha     o nome, e, atravessando a rua adjacente, caminhou em direção     à casa de José das Dornas.

Ao entrar no portão do lavrador, deu o tendeiro ao rosto um jeito     de indignação e procurou simular em seus movimentos uma impetuosidade     e impaciência, contra as quais estava protestando aquele todo bonacheirão.

— Diga ao Sr. José das Dornas que está aqui o João     da Esquina, que lhe quer dizer duas palavras - foi como, em tom desabrido,     ele se mandou anunciar pelo primeiro criado que viu.

José das Dornas que acabaras de dormir uma sesta refociladora, veio     ter com seu vizinho, com o rosto alegre e cantarolando.

Ai, lá ri ló lé lá.     Eu vou pela mansidão

- Olá - bradou o jovial lavrador, vendo o tendeiro - Viva o Sr. João!     Ditosos olhos que o vêem! Como vai essa bizarria? Sente-se; esteja a     seu gosto. Vai um copito de rascante?

— Muito obrigado - respondeu secamente João da Esquina.

— Pois mal sabe o que perde; é daquele de esfolar o céu     da boca. Então que milagre o traz por esta sua casa?

— Um negócio muito sério.

— Temos empréstimo - disse, em parte, José das Dornas;     e alto: - Muito sério?! O caso é que você traz cara de     funeral. Ah! Ah!...

— Tenho pouca vontade de rir, Sr. José.

— Mau é isso. Então que diabo o aflige? Desembuche para     aí. Olhe que eu sou homem para as ocasiões. A sua filha está     pior?

— A minha filha está boa - replicou, com certo mau modo, o tendeiro.

— Boa! Com que então... logo à primeira... hein? O meu     Daniel saiu-se como um homem.

— Saiu-se otimamente - disse João da Esquina duma maneira que     procurou fazer notável.

— Olhe que me tem esquecido emprestar-lhe o livro do rapaz - continuou     José das Dornas, que não notara a tal maneira - aquele em que     lhe falei; mas espere, que eu vou...

Ia a levantar-se, porém um gesto do seu interlocutor fê-lo parar.

— Não tenha incômodo. É de outra obra de seu filho,     que lhe quero falar.

— De outra!

E José das Dornas principiou a dar mais atenção aos     modos esquisitos do tendeiro.

— Homem, você hoje não sei o que tem consigo! Não     o entendo!

Em vez de responder, João da Esquina pôs-se a mexer nos bolsos,     e tirou de lá um papel cor-de-rosa, pequeno, elegante, lustroso e aromatizado;     desdobrou-o, e pondo-o diante dos olhos do lavrador, disse-lhe simplesmente:

— Ora, faça o favor de ler isto.

— Mas isto o que é?

— Leia e verá.

Era fácil dizer: "leia", mas não de pequena dificuldade     para José das Dornas a tarefa, que com essas palavras lhe impunham.

— Homem, é melhor que você me diga o que é isto,     do que...

— Nada, não senhor. Leia.

— Valha-o Deus! - disse o bom lavrador, afastando o papel dos olhos     quatro palmos, para o poder ler; não o conseguindo, tirou do bolso     umas cangalhas, das quais armou o nariz, depois de ter lançado para     o interlocutor um olhar, que valia um recurso, para tribunal de última     instância, contra uma sentença de morte.

— "Trigueira" - leu ele logo no topo da página, e     voltou para o tendeiro os olhos de espanto.

— Trigueira! - Que quer dizer isto?

— Homem, leia, leia que o saberá.

José das Dornas continuou, já se imagina como. Eu evitarei     ao leitor o assistir às verberações, que ele aplicou     à prosódia portuguesa. Eis o que leu:

Trigueira! que tem? Mais feia     Com essa cor te imaginas?     Feia! tu, que assim fascinas     Com um só olhar dos teus!     Que ciúmes tens da alvura     Desses semblantes de neve!     Ai, pobre cabeça leve!     Que te não castigue Deus.

No fim desta primeira estância, José das Dornas, como atordoado,     levantou os olhos para João da Esquina; mas viu-o tão sério,     que continuou:

Trigueira! se tu soubesses     O que é ser assim trigueira!     Dessa ardilosa maneira     Por que tu o sabes ser,     Não virias lamentar-te.     Toda sentida e chorosa,     Tendo inveja à cor-de-rosa,     Sem motivos para a ter.

- Ô vizinho, mas isto... - ia a dizer José das Dornas, que principiava     a suar.

Um gesto do tendeiro obrigou-o a prosseguir:

Trigueira! Porque és trigueira,     É que eu assim te quis tanto

- Repare Sr. José - observou do lado, João da Esquina - "É     que eu assim te quis tanto". Vá reparando.

José das Dornas abriu muito os olhos para reparar, e continuou:

Daí provém todo o encanto     Em que me traz este amor.

- "Este amor" repare, vizinho, "este amor"! - tornou     a dizer João da Esquina, e José das Dornas tornou a abrir muito     os olhos, repetindo, sem saber para quê:

— "Este amor"... é verdade, "este amor..."     Cá está.

E prosseguiu:

E suspiras e murmuras!

- É peta! notou João da Esquina.

— Palavra de honra, que está aqui "E suspira e murmuras",     Sr. João. Ora faça favor de ver.

— Não nego; quero eu dizer que... mas adiante, adiante.

José das Dornas continuou:

E suspiras e murmuras!     Que mais desejavas ainda!     Pois serias tu mais linda,     Se tivesses outra cor?

José das Dornas começou a lançar para o vizinho um olhar     inquieto; estava seriamente pensando que o homem endoidecera.

— Continue - disse-lhe o tendeiro.

E o lavrador continuou, suando cada vez mais:

Trigueira! onde mais realça     O brilhar duns olhos pretos     Sempre úmidos, sempre inquietos     Do que numa cor assim?     Onde o correr duma lágrima     Mais encantos apresenta?     E um sorriso, um só nos tenta,     Como me tentou a mim?

- "Como me tentou a mim" - repetiu João da Esquina.- Vá     vendo.

— Homem! exclamou José das Dornas, estafado - bastará     de leituras.

— Pouco falta. está a acabar - respondeu o outro.

José das Dornas resignou-se e prosseguiu.

Trigueira! E choras por isso!     Choras, quando outras te invejam     Essa cor, e em vão forcejam     Para como tu fascinar?     Ó louca, nunca mais digas,     Nunca mais, que és desditosa,     Invejar à cor-de-rosa,     Em ti, é quase pecar.

- Ó Sr. João! Eu não posso mais! - exclamou José     das Dornas, com acento lastimoso.

— É só um agora; e acabou.

— Mas...

E, ficando na reticência, José das Dornas tomou fôlego     para ler ainda:

Trigueira! Vamos, esconde-me     Esse choro de criança.     Ai, que falta de confiança!     Que graciosa timidez!     Enxuga os bonitos olhos.     Então, não chores, trigueira,     E nunca dessa maneira     Te lamentes outra vez.

- Buff! - bradou José das Dornas, ao terminar a leitura, e limpando     o suor, que o banhava.

— Leu? - perguntou o tendeiro.

— Sim, senhor. Estão bonitos. São seus, Sr. João?

— Meus!? - exclamou o tendeiro, escandalizado quase. - Isto é     mais uma receita do nosso médico novo.

— Hein! - disse José das Dornas, parecendo-lhe que não     tinha ouvido bem - diz vossemecê que é?

— Outra das lembranças do senhor seu filho.

— Do... do meu... do Daniel?!...

— Sim, senhor... Do Daniel.

— Pois o rapaz fez isto?!

— Era com essas e outras que ele andava a tratar a minha filha. O culpado     fui eu, que lhe dei entrada em casa.

José das Dornas esteve a deixar escapar uma gargalhada, mas conteve-se     prudentemente.

— Ó vizinho, por quem é, não ande por aí     a dizer essas coisas, que me desacredita o rapaz. Olhem se o João da     Semana o sabe! Um médico poeta! Para que diabo lhe havia de dar...

— Que faça versos à Lua e ao Sol, se quiser - dizia João     da Esquina - não há de tirar disso grande proveito, mas que     os faça, que os faça; agora andar a inquietar famílias     e ...

— Tem razão, vizinho, tem razão, e eu lhe prometo...

— Abusar da confiança de um homem como eu!

— Tem muita razão, vizinho

— Fazer andar à roda a cabeça de uma rapariga de juízo!

Neste ponto, José das Dornas engoliu em seco, mas não deixou     de repetir:

— Tem toda a razão, vizinho...

— É um desaforo!

— Não o nego, Sr. João, não o nego.

— Não é homem em que a gente se fie.

— A falar verdade....não é, não é.

— Enfim, Sr. José - continuou o tendeiro com ar resoluto, e,     depois de uma pausa, concluiu - É forçosa uma satisfação!

— Eu lhe prometo que o rapaz não volta lá.

João da Esquina fez um gesto de quem não se lisonjeava com     a promessa.

— Não é por isso que eu digo.

— Então?

— O vizinho sabe o que são bocas do mundo?

— Sim; e depois?

— O que são línguas chocalheiras?

— Sim; e daí?

— O que são...

— Vamos; adiante.

— Pois bem; para as fazer calar, é preciso...

— É preciso o quê?

— É necessário...

— É necessário o quê?

— É indispensável...

— O quê? Sr. João, o quê?... - exclamou o lavrador,     já impaciente - o que é necessário?

— Que seu filho...

— Que meu filho?

— Case...

— Com sua filha, não?

— Está bem de ver.

Com grande escândalo do tendeiro, José das Dornas pôs-se     a cantarolar:

Ai, lá ri ló lé lá,     Eu vou pela mansidão.

- E foi para isso que teve o trabalho de vir aqui? Ora olhe, Sr. João:     nós somos conhecidos antigos, e eu macaco velho, como deve saber, que     já não me deixo levar por essas. Aqui para nós, por que     não tapou o vizinho da mesma forma as bocas mundo, que tanto falou     do derriço de sua filha com o filho do sineiro? Por que se deu lhe     não deu que elas tagarelassem por ocasião da festa do Coração     de Jesus, quando o Bento do padeiro não tirou os olhos dela, e ela     dele, durante toda a festa? Por que fez ouvidos de mercador, quando o Sr.     Padre Antônio lhe disse que casasse a rapariga com o Chico sapateiro     para não dar que falar a cegueira em que ela andava com ele? Aí     então, não quis: nem lhe importaram as línguas chocalheiras?     Chegaram-lhe agora as febres. Pois veio bater a má porta. Sossegue.     Não tenha susto. Homens, que fazem versos, não são os     piores. Contentam-se com isso. Sabe que mais? Meta a viola no saco; retese     a corda à cachopa, e deixe correr.

— Isso não é resposta que se dê, Sr. José     - exclamou o tendeiro, que via prestes a fugir-lhe uma ótima ocasião     de negócio.

— Não se zangues, Sr. João. Amigos como dantes. Pensemos     em outra coisa. Está um tempo muito criador...

— Sr. José, isto não vai assim.

— Não me mortifique, Sr. João, para que não vá     pior. Os milhos...

— Sr. José!

— Não berre, vizinho.

— Eu quero ver...

— Pois abre os olhos... Mas...

— Quero ver se é capaz...

— Sr. João, vá para casa.

— Sr. José das Dornas! veja o que faz.

— Estou vendo.

— Repare bem para mim.

— Estou reparando.

— Saiba que eu sou...

Não pôde dizer o quê. Interrompeu-lhe o discurso o reitor,     que entrou na sala. Vendo o aspecto dos dois interlocutores, e a vivacidade     do gesto do tendeiro, o padre quis saber a razão da contenda. João     da Esquina desanimou em presença do reitor. Agourou mal da intervenção.

Depois e ouvir as queixas do tendeiro, o reitor perguntou-lhe, com o rosto     severo, se o casamento da filha com empreiteiro das estradas não viria     reparar mais falhas na inteireza da sua boa fama doméstica.

João da Esquina sentiu-se derrotado, e já procurava uma saída     airosa.

— Bem; eu retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de     que fiz o meu dever. Mas o mundo saberá...

O resto da oração pronunciou-a fora da porta. esta circunstância     impossibilita-me de informar o leitor sobre o que o mundo tem de vir a saber     a respeito do tendeiro.

— Que lhe parece esta, Sr. Reitor? - disse José das Dornas,     mal o viu sair. - Havia o meu Daniel de...

— O teu Daniel é um doido; e se isto assim continua, há     de vir a fazer a tua desgraça.

— Mas uns versos que mal fazem? e então àquele cata-vento     da Chica do tendeiro, que é mesmo... o Senhor me perdoe.

— Homem; a coisa não está nos versos. O que eu digo é     que o Daniel tem deveres tão sagrados, entrando no seio das famílias,     como nós os párocos. E se as mãos, que devem levar o     remédio, espalham a peçonha, a maldição de Deus     desce sobre elas. Quem abrirá as portas da alcova, onde padeça     uma filha, uma esposa ou uma irmã, ao médico que não     tem força para sufocar as paixões más do seu coração?     Fá-lo-ias tu? Não nem eu. Quanto mais santa é uma missão     neste mundo, José, mais se rebaixa e avilta quem a aceita sem ter-lhe     compreendido o alcance. O mau padre é o pior dos homens; e parece-te     que será muito melhor o médico imoral? Pensa nisto, e diz-me     se Daniel merece grandes desculpas.

As palavras do reitor tinham o poder de calar no ânimo de José     das Dornas, como as de ninguém.

O lavrador baixou a cabeça, e perguntou humildemente:

— Então acha V.S.ª que Daniel deve casar com a ...

— Não digo tanto! - respondeu com vivacidade o reitor - Ali     houve cálculo neles, conheço-os há muito; e espero que     da parte de Daniel nada mais se deu além da loucura dos versos, que     não valem nada afinal. Mas que lhe sirva de aviso.

— Se o Sr. Reitor lhe fosse ralhar...

— Onde está ele?

— Deve estar lá dentro no quarto.

O padre foi ter com Daniel.

 

A vida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia era de uma monotonia     capaz até de saciar as exigências do homem mais indolente e ocioso.   

Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o suspeitar,     estava sendo objeto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo     antecedente, nos aventuramos a ser cronista.

Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto     de Daniel.

Não sei se é a voz da consciência a que me está     a bradar que vou cometer uma indiscrição.

As pessoas mais sisudas e graves têm momentos na vida, durante os quais,     a sós consigo, se entregam a distrações de crianças.

É possível, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos;     e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos leitores.     Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e enfado,     ouso eu afirmá-lo, não tem sido também demasiado os escrúpulos     na escolha de passatempos; essa consideração decerto os fará     indulgentes.

Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo     dos telhados paternais.

O calor não o deixava sair.

Quis ler: faltavam-lhe porém os livros. Os seus ainda não tinham     chegado da cidade.

Revistando os cantos e escaninhos da casa, apenas encontrou três repertórios     dos anos findos, uma cartilha de doutrina cristã, uma tábua     de pesos, medidas e dinheiros, e, em gênero mais ameno, o Testamento     do Galo, a confissão do Marujo Vicente e a Vida Milagrosa de não     sei que santo padroeiro da freguesia.

Ainda assim, tudo isto leu Daniel, por motivo análogo aos que levou     os náufragos da nau Catrineta a "deitarem sola de molho para o     outro dia jantar".

Esgotado este pecúlio literário, lembrou-se Daniel de escrever     cartas. Encontrou, porém, o tinteiro muito pobre de tinta; essa, amarela     e bolorenta; e, pior que tudo, uma pena de pato, de tantos caprichos, que     lhe fez perder logo a paciência.

Veio para a janela; e, durante algum tempo, divertiu-se a atirar biscoitos     a um cão, que andava solto pela quinta. As galinhas, patos, pombos     e perus, que havia em abundância na casa, corriam tumultuosamente a     disputar ao quadrúpede as migalhas as quais ele defendia com unhas     e dentes.

Este jogo de circo, em miniatura, encantava Daniel. Afinal cansou-se dele     também, e fê-lo cessar.

Vendo então um gato em pachorrento repouso, no alto duma ramada distante,     tomou um espelho, e, por meio dele, fez cair sobre a cabeça do sonolento     animal os raios ofuscadores daquele sol de agosto.

O gato, assim despertado, abriu os olhos, mas fechou-os logo, e desviou a     cabeça para se furtar àquela pouco agradável impressão.     Depois de vários movimentos, sentindo-se sempre perseguido por o mesmo     reflexo, ergueu-se, espreguiçou-se, aguçou as unhas na madeira     da ramada, e, voltando-se para o outro lado, ajeitou-se com o manifesto intento     de concluir o sono interrompido.

Impossibilitado, por esta evolução do gato, de continuar a     incomodá-lo da mesma forma que até ali, Daniel fez-lhe pontaria     com uma maçã verde, e tão certeira que o projetil foi     bater em cheio nas costas do animal, que num salto desapareceu.

Terminou para Daniel mais este divertimento.

No peitoril da janela descobriu, porém, uma formiga. Uma formiga!     Que valiosos achado naquelas alturas!

A providência dos desocupados velava decerto por ele.

Procurou logo uma migalha de pão e pô-la na passagem do laborioso     inseto.

A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo, assim de repente lançado     no seu caminho, examinou-o de todos os lados, depois, talvez por capricho      - porque até os insetos têm, a meu ver, alguns caprichos - deu-lhe     para desprezar o alimento e deitou a fugir.

Daniel insistiu, colocando-lhe outra vez o pão na passagem; o mesmo     exame da parte da formiga, e a mesma rejeição final. Nova tentativa     de Daniel foi ainda seguida do mesmo resultado. Era demais para sua paciência;     com um sopro fez voar a migalha e formiga pela janela fora.

E mais uma vez, ficou sem entretenimento.

Pôs-se a passear no quarto; primeiro descrevendo ziguezagues; depois,     procurando conservar os pés na linha de juntura de tábuas do     soalho; em seguida, medindo escrupulosamente a passos regulares o comprimento     e a largura do retângulo do aposento; e, feita esta última operação,     multiplicou os resultados obtidos, como se tomasse muito a peito o cálculo     daquela área.

Completa esta tarefa, e, depois de alguns bocejos expressivos de enfado,     procedeu ao trabalho, não menos importante, de equilibrar na ponta     do dedo mínimo uma vara de marmeleiro.

Cansou-o cedo a violência do exercício, no qual, de mais a mais,     não foi muito feliz; este mau êxito desgostou-o como se naquilo     tivera posto a sua reputação.

Acendeu um cigarro comprado no único e mal fornecido estanco da terra.     O papel parecia, porém, apostado a impacientá-lo: era incombustível;     o tabaco tinha crepitações que aos ouvidos de Daniel soavam     como risadas de mofa; e os lumes prontos, aqueles perfeitos e elegantes lumes     prontos de pau, primitivos modelos da industria nacional, bem conhecidos de     nós todos, perdiam a cabeça à primeiro tentativa feita     para os inflamar... faziam-na perder também a Daniel, diria eu, se     se usassem ainda os trocadilhos.

Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este ardia-lhe só     de um lado. Afinal não fumou.

Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana     que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária     de Genaro na Lucrécia:

Di pescator ignobile     Esser figliuolo credei

Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam     todos a olhar para cima boquiabertos, admirando aquele acesso de fúria     musical.

— Bom - pensou Daniel - Estou dando escândalo, e a arriscar a     minha reputação de homem sisudo.

E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela.

Depois passeou, sentou-se, ergueu-se de novo, e tornou a passear.

Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na porta da     janela, as seguintes palavras:

Coge-Çofar - Sumatra - Telescópio - Manon Lescaut

O oculto fio lógico, que, encadeava essas quatro palavras na mente     de Daniel, é um mistério que eu não sei decifrar.

O giz gastou-se.

Ó doce vida da aldeia - exclamou por fim Daniel com amargura - Ó     sonho dourado dos poetas de geórgicas e de idílios, como eu     me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os     molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que     aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há de fazer no campo     a estas horas do dia? Que vida! que vida esta, meu Deus! e que futuro!

Ao dizer isso, lançou casualmente os olhos para o leito, e, como se     este lhe desse a resposta, ao que ele queria perguntar ao cantor de Enéias,     deitou-se.

Deitou de costas, e pôs-se então a contar as tábuas do     teto.

Contou dezessete.

— Dezessete, noves fora, oito - disse insensivelmente Daniel.

Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá consigo     muito esta, na verdade admirável, coincidência.

Um resultado tão curioso animou-o a prosseguir em observações     análogas.

Preparava-se para contar as cabeças dos pregos, que viu pelo teto,     porém uma mosca importuna. teimando em pousar-lhe na testa, veio perturbá-lo     neste ponderoso exame, e obrigou-o a desistir.

Por acaso, fitou então os olhos em uma espécie de mancha escura,     que estava na parede fronteira. Ao princípio olhou-a distraído,     mas pouco a pouco, a atenção empenhara-se naquilo, como se em     objeto de grande monta.

A distância não lhe permitia distinguir o que fosse.

— É uma nódoa de umidade, decerto - disse Daniel consigo      - ou não... é um inseto talvez... Mas não se move?...     Seja o que for...

E desviou os olhos.

Daí a pouco estava outra vez a olha r para lá.

— É um inseto, é... mas tão imóvel!...

Não pode deixar de soprar-lhe, ainda que sem probabilidade nenhuma     de o atingir, pela distância a que lhe ficava.

A mancha negra não se movei.

— Não é inseto - pensou Daniel.

E outra vez retirou a vista daquele ponto, para, passados instantes, a levar     de novo lá.

— Mas a forma é de inseto...

E ergueu meio corpo e estendeu a cabeça para o sítio. Não     pode ainda distinguir o que fosse aquilo.

Tornou a deitar-se, simulando a resolução de se não     importar mais com o problema.

Mas a curiosidade irritada subiu a ponto de o constranger a levantar-se.     Aproximou-se então da mancha da parede, e viu que era uma mariposa     escura, em um daqueles estados de imobilidade, em que por tanto tempo se conservam     às vezes. Daniel não resistiu à tentação     de lhe tocar de leve nas asas; a mariposa fugiu.

Perseguindo-a, chegou até a janela.

Neste momento passava no pátio um dos mais velhos criados da quinta.     Daniel chamou-o e mandou-o subir.

Daí a instantes, entrava-lhe o homem no quarto.

Daniel deitou-se e disse-lhe que falasse.

O criado não sabia em quê.

— No que quiseres; mas fala-me para aí.

O velho olhou para a janela, olhou para o ar, e disse:

— Temos vento; aquelas nuvens brancas costumam dar nisso.

— Tu sabes o que é o vento? - disse Daniel, espreguiçando-se

— O vento? O vento é assim um coisa... como um... assopro -     respondeu o homem.

— És um asno. O vento é uma corrente de ar, produzida     pela desigual distribuição de temperatura na atmosfera.

E Daniel dizendo isto, entre dois bocejos, olho para o criado divertindo-se     em estudar-lhe no rosto o efeito da definição científica.

O homem abriu a boca, sorrindo de dúvida.

— Mas aposto que o menino não me sabe dizer uma coisa?

— O quê? - perguntou Daniel, que estava a achar sabor ao diálogo.

— Donde vem o vento e para onde vai?

Esta pergunta, análoga a outra que, ainda não há muito     se fez em lugar mais sério, embaraçou algum tanto Daniel.

— E tu sabes, Antônio?

— Eu!? Não que nem nenhum matemático. E diga-me, sabe     também o que são estes sinais que aparecem, às vezes,     como a semana passada?

— Que sinais?

— Pois não viu aquela noite da semana passada a Lua a sumir-se,     que era uma coisa de estarrecer?

— Ai, isso era um eclipse.

— Um eclis? Pois um eclis, seria. Mas o que é aquilo?

— É a Terra.

— Terra!

— A Terra, a Terra, a sombra da Terra, do mundo.

— A sombra! Então... nós estamos de baixo e a Lua de     cima, como lhe havemos de fazer sombra? Essa não é má!

Daniel, para se distrair, quis experimentar até que ponto podia fazer     compreender a este homem a idéia do fenômeno físico em     questão. Alguma coisa se há de tentar na aldeia, em uma longa     tarde de estio.

— Imagina tu aquela janela, o Sol; eu a Lua; tu a Terra. Ora bem; põe-te     a andar pela esquerda.

— Mas se a janela é que é o Sol, que ande a janela.

— Não há tal; pois a Terra é que anda.

— Como! Então o Sol não é que anda?

— Não. O Sol está parado.

O criado deu uma risada.

— Muito obrigado. Para ver o Sol andar, olhe que não é     preciso ir ao Porto. Vê-se mesmo de cá.

O passatempo principiava já a enfastiar Daniel.

Veio interrompê-lo a propósito uma criança de nove anos,     filha do seu interlocutor, a qual tendo ouvido a voz do pais, entrou sem cerimônia,     pelo quarto adentro. Ao ver, porém, Daniel, parou como hesitando.

— Vem cá, pequena, vem cá - bradou-lhe Daniel, que naquele     momento recebia com prazer toda a qualidade de diversão. - Não     tenhas vergonha, vem cá. Toma um biscoito.

A pequena ganhou ânimo com a oferta, e dentro em pouco estava a comer     biscoitos, familiarmente sentada junto de Daniel.

— Então como se diz? - perguntava o pai; e, como ela não     respondesse, respondeu ele próprio:

— Muito obrigado, Sr. Daniel.

— Tu como te chamas, pequena? - perguntou Daniel.

— Rosa.

— Uma criada de V.S.ª - emendou o pai.

A pequena dispensou-se de repetir.

— Olha - continuou Daniel, tomando-a ao colo - dize-me uma coisa, que     é da tua mãe?

— Está em casa.

— E tu gostas dela?

— Gosto.

— Gosto, sim senhor - emendou o pai.

— E de teu pai?

A criança olhou para o pai e pôs-se a rir.

— Dize assim - disse-lhe este: - Também gosto, sim senhor.

— Também gosto - repetiu a pequena, suprimindo, como uma inútil     excrescência, o resto da frase.

— Mas o teu pai é um tratante.

A criança sorriu.

— Dize: não é, não senhor - ensinou-lhe o pai.

— Não é - repetiu a criança.

— É, é...

— Não é; vossemecê é que ...

— Ah! - atalhou o velho. - Feia! isso não se diz.

— Tu sabes adivinhas, Rosa? - perguntou Daniel, rindo.

— Sei.

— Sim, senhor - corrigiu ainda outra vez o velho.

— Ora vamos lá a uma adivinha.

A pequena não se fez rogar.

— Então diga lá o que é esta:

Altos castelos     Verdes e amarelos

Isso é de certo a casa de um brasileiro - respondeu.

A criança pregou-lhe uma risada, e toda satisfeita, exclamou:

— Boa! É uma laranjeira.

— Ah! Ninguém havia de dizer. Vá lá outra.

— Que é, que é, que

Alto está, e alto mora,     Todos o vêem, e ninguém o adora?

Daniel ergueu a cabeça a fingir que meditava no enigma; viu que o     pai da pequena lhe fazia não sei que sinal com o dedo. Seguindo a direção     que lhe pareceu indicada assim, Daniel parou a vista em um pinheiro longínquo,     e disse:

— É um pinheiro.

Pai e filha deram uma risada.

— É um sino - disse a pequena.

— Pois nem viu que eu apontava para a torre.

— E esta - continuou a criança:

Mil marinhinhos, mil marinhões,     Dois parafitas e quatro chantões?

- Isso agora é que tem mais que se lhe diga. Que língua vem     a ser essa? Marinhinhos e marinhões? e que mais? Que mais?

— É um boi, é um boi - respondeu a rapariga, a quem faltava     a paciência para ver estar a pensar muito tempo.

— Um boi! Sempre quero saber como é que isso é um boi.     Mil marinhinhos, um boi?

— Mil marinhinhos, são os pêlos.

— Ah?... E mil marinhões?

— São os pêlos maiores - respondeu o pai.

— Dois parafitas são as gaitas - continuou a filha.

— E então, provavelmente, os quatro chantões... - ia     a dizer Daniel.

— São as pernas - concluíram pai e filha.

— Pois essas, de todas é a mais bonita - disse Daniel, que efetivamente,     no estado de espírito em que se achava, encontrou certo sainete de     originalidade no disparatado enigma, tão popular no Minho.

Neste tempo entrou Pedro no quarto; o criado velho retirou-se, levando a     filha consigo, e os dois irmãos ficaram sós.

 

Pedro era caçador e dos apaixonados. Dizendo eu isto, já o,     leitor, se não é um homem fadado por Deus para felicidades excepcionais     cá na Terra, em qual assunto falaria ao irmão o primogênito     de José das Dornas.

De fato, quem haverá aí que, por mais de uma vez, não     tenha visto irem-se-lhe duas horas seguidas pelo menos, duas horas de tempo     preciosos a escutar uma dessas intermináveis descrições     de caça, de astúcia de galgos e perdigueiros, de singularidades     de tiros; de manhas de lebre, galinholas, garças e perdizes, com que     Nemrods desapiedados fazem cair sobre seus irmãos em Adão todo     o peso da sua paixão venatória?

Ao princípio acolheu Daniel de bom grado a nova diversão que     lhe oferecia o assunto, ao qual não era adverso também. As duas     primeiras aventuras de caça escutou-as com atenção não     afetada.

Tratava-se de uma caçada de lebres, na qual Pedro obrara maravilhas,     com a coadjuvação de um cão, de que ainda agora sentia     saudades.

Era um longo romance, que daria para muitos capítulos. Permitam-me     que lhes registre aqui ao menos o argumento, o qual, mutatis mutandis, serve     para todos do mesmo gênero.

De como se originou o projeto da caça - O que se disse por essa ocasião      - Escolha da época - Princípios gerais que devem regular o caçador     nessa escolha - Descrição da partida - Enumeração     e descrição dos caçadores - Apreciação     filosófica das suas qualidades venatórias - Divagação     sobre os dotes indispensáveis ao bom caçador - Condições     meteorológicas da madrugada, no dia da surtida - Reflexões sobre     a influência dela nos destinos prováveis da empresa - Esboço     topográfico do campo de ação - Impaciência dos     cães - Sinais característicos de um cão de boa raça      - Projeto inédito do narrador sobre a educação canina      - Algumas considerações sobre a melhor qualidade de espingarda,     de pólvora e vestuário mais acomodado ao gênero de caça     em questão - Exame do problema: "se é preferível     almoçar antes da partida ou no campo" - Primeiros indícios     de caça - Alvitres dos caçadores - Análise crítica     de cada um dos alvitres, concluindo pela demonstração da vantagem     do narrador, o qual prevalece sempre - O primeiro tiro e a primeira lebre     morta - O autor atribui, com a possível modéstia, a glória     de ambos a si próprio - Novos episódios, alguns lances felizes     dos companheiros e muito mais desastrados - De como o autor deu, em certo     caso, prova de grande prudência, contemporizando, e em outro, soube     ser arrojado, como devia. - Notável contraste nisto com todos os companheiros      - Descrição de um aguaceiro, trovoada ou vadeação     de um rio, e efeitos próximos e remotos que teve sobre os caçadores      - De como se jantou - Amarguras estomacais e provações musculares      - Campanha da tarde - Bom emprego do último tiro - Dificuldades que     trouxe a noite - Confusão dos companheiros e frieza de ânimo     no autor - Considerações sobre a maneira de se orientar no caminho     um caçador perdido - Algumas palavras sobre o melhor sistema de cozinha     a caça - Preceitos do regime alimentar do cão - Recapitulação     de tudo quanto se disse - Peroração em honra da casa em geral     e da caça da lebre em particular - Transição para outra     história.

Todos estes capítulos, difusamente desenvolvidos, ouviu portanto Daniel,     com mostras de curiosidade. A terceira história, porém, já     o mais indiferente; a quarta recebeu-a com bocejos, a moda de comentários;     a quinta com impaciência manifesta; a sexta com inquietação;     a sétima com horror - horror que foi crescendo gradualmente até     a duodécima.

Pedro fazia então o elogio fúnebre do perdigueiro, que, havia     um mês, lhe tinha morrido.

— Olha que era um animal aquele, Daniel, que parecia que entendia uma     pessoa! Eu nunca vi bicho mais fino! Se tu o visses no monte! Aquilo era um     azougue. Um dia, tinha ido, eu, o Luís do mestre-escola e o Francisco     do alferes.

— Isto que horas serão? - perguntou Daniel, a ver se desviava     de si a história iminente.

— Vai nas três - respondeu Pedro, e continuou: Mas íamos     nós todos... aí, é verdade, ia também o Domingos     cabo-mor... oh!... mas esse não mata um pardal. Tem aquele diabo um     costume...

— Que insuportável calor! - bradava Daniel, tão pouco     à vontade no leito, como se fora de Procusto.

— Hoje está quente, está - concordou o irmão,     e continuou: - Mas tem aquele diabo um costume, que por mais que eu lhe diga,     não é capaz de perder.

Daniel colocou a almofada do travesseiros sobre os ouvidos para não     ouvir.

— O costume é o seguinte: Tu sabes que no tempo das perdizes...

Foi neste momento que entrou o reitor no quarto.

— No tempo as perdizes, no tempo das perdizes, tanto mentes, quanto     dizes. É manha velha de caçador. Gabo-te os vagares, Pedro!     Nem que um homem viesse a este mundo para andar de arma, ao ombro e polvorinho     a tiracolo, por montes e vales, tiro aqui, tiro acolá, vida de galgo,     atrás da lebre; e a casa por aí sabe Deus como!

— Isto era para conversar um bocado - disse Pedro, sorrindo a esta     objurgatória do padre.

Daniel ia erguer-se; o reitor não lho permitiu.

— À vontade, à vontade; quem acabou de ouvir uma ladainha     de Santo Huberto, como eu imagino... ainda se fosse só imaginar; -     como eu infelizmente, sei por experiência também - não     deve sentir-se com grandes forças para se ter em pé.

Daniel sorriu.

— Mas veja lá, Daniel - continuou o padre - veja você     este seu irmão. Que homem de casa aqui se está preparando! Esquecido     a taramelar, e o trabalho da eira entregue aos criados que, quando eu passei,     bem pouco se cansavam com ele. Tudo vai ao deus-dará nesta casa, depois     que o maldito vício da caça virou a cabeça a este homem!     Olha que um chefe de família, Pedro, não é só     responsável por si, mas também por toda a sua gente - parentes     e criados. - Ele é que deve dar o exemplo. e eu, para te dizer a verdade,     não gostei nada de ver aquela doida da Maria, lá embaixo com     os meliantes dos teus criados, que só sabem tanger violas e dançar,     como ainda agora o fazem. Eu, apesar da coisa não ser comigo, que não     sou dono da casa, sempre lhes fui ralhando, para de todo não perder     o tempo. Agora tu...

— Pois os vadios estavam a cantar, e com o trabalho por fazer?

— Boa dúvida! Onde o patrão dorme, ressonam os criados.     E fazem muito bem.

— Ora eu lhes vou ar já a cantiga.

E, distraído da sua paixão favorita, Pedro saiu do quarto,     com direção à eira.

— É um bom rapaz! - disse o reitor ao vê-lo sair.

— Isso é. Pedro há de vir a dar um excelente pai de família      - acrescentou Daniel.

— Para isso basta-lhe o grande fundo de moralidade daquela alma! -      replicou o padre, indo buscar uma cadeira que aproximou da cabeceira do leito,     no qual Daniel, a instâncias dele, se conservava ainda.

Daniel seguia com a vista e os movimentos e gestos do padre, e suspeitava     que ele tinha alguma coisa a dizer-lhe.

— A moralidade - continuava este - é a primeira condição     para a felicidade do homem. Como pode querer que o respeitem, o que não     sabe respeitar os outros, nem respeitar-se a si próprio?

— Temos sermão - pensava Daniel. - Onde quer ele chegar?

De repente o reitor, como se lhe acudira uma idéia imprevista, disse,     fitando os olhos em Daniel e em tom que procurou fazer natural:

— É verdade, ó Daniel, então você tem casamento     contratado, e não dá parte à gente?

— Eu!?... Casamento?... - exclamou Daniel, deveras admirado, e sentando-se     no leito.

— Casamento, sim. Ainda agora me asseguraram.

— E quem é a noiva que me destinam?

— Uma vizinha sua. É aqui a filha do João da Esquina.

— Ah! Isso sim - disse Daniel, sorrindo-se e deitando-se outra vez.

— Isso sim? Não leve o caso a rir, que o negócio é     muito sério. Porventura não haverá fundamentos para a     notícia que me deram?

— Eu tenho ido a casa dela, é verdade.

— Ah!

— Mas... como médico...

— Não está má medicina a sua! Então que     tratamento lhe aconselhou?

— Confortativo - respondeu Daniel gracejando.

— Ah! e o boticário entenderia as receitas que escreveu?

— Nem todos os conselhos médicos precisam do auxílio     do boticário. Os banhos do mar, os passeios, os leites de jumenta,     e as diferentes prescrições do tratamento moral, por exemplo.

— Estou vendo que foi um tratamento moral que fez.

— Exatamente.

— Olhem que cegueira a do João da Esquina, e a de seu pai, e     a minha até, que não vimos que era uma carta de guia para bom     caminho, uns mandamentos para a salvação do corpo, e não     sei se da alma também, o que ainda há pouco lemos!

— O quê? Pois leram?... - perguntou Daniel com vivacidade, e     erguendo-se outra vez.

— Lemos, sim. Mas não entendemos. Veja lá: a mim pareceu-me     aquilo uma coisa desaforada; e ao João da Esquina, então? Esse     não descansou enquanto não teve de nós a promessa solene     de que o obrigaríamos, a si, uma reparação.

Daniel tinha já os pés no pavimento.

— Uma reparação? Por quê?... A quem?...

— Olhem que inocência! precisa talvez que eu lhe responda?

— E que espécie de reparação hei de eu...

— A única devida a uma rapariga, a quem...

— A quem?...

— Cuja boa fama se perdeu!

— Então acusam-me de ter perdido a boa fama daquela menina,     e querem constranger-me talvez a casar com ela! - exclamou Daniel sobressaltado,     e pondo-se a pé num ímpeto, como se o picasse uma víbora.

— Quem mais o constrangerá há de ser a consciência,     que ainda não emudeceu de todo em si.

— Não constrange, não. Não me julgo moralmente     obrigado a reparação de qualidade alguma. A menina Francisca...     tem uma cabeça... bonita, na verdade, realmente bonita.

— Está bom, está bom. Que tenho eu com essas bonitezas?     Isso não vem agora a nada.

— Bonita, digo eu, mas leve, leve como uma bola de sabão - continuou     Daniel.

— É defeito de muita gente.

— Achei-a triste, tão triste por ser trigueira... veja que doidice     aquela!... que entendi... - não entraria isso nos meus deveres de médico?      - entendi que a devia curar. Ora, pensando que para este efeito valeria mais     um galanteio do que todas as drogas medicinais...

— Então, então... - disse o reitor, um pouco despeitado     com o tom leviano de Daniel - deu agora em gracejar comigo?

— Não gracejo. É que realmente o meu procedimento...     não digo que fosse de uma sisudez exemplar, mas não merece as     cores negras com que lho pintaram, nem reclama as medidas extremas e violentas     que me propõem. Um casamento impossível!

— Impossível! O que aí vai! Não o fazia tão     fidalgo! Com que então...

— Olhe, Sr. Reitor - disse Daniel, tomando ar mais sério - vou     falar-lhe com toda a sinceridade. Eu sou bastante leviano; conheço     que o sou. De ordinário, não me canso muito a calcular conseqüências,     antes de dar um passo qualquer. Caminho de olhos fechados em muitos atos da     vida, e sobretudo quando só eu lhe posso vir a sentir os efeitos maus.     Mas há uma coisa em que não me costumo a pensar levianamente.     É no casamento. Se um dia me vir casado...

— Rezarei a todos os santos por sua mulher? Estou certo que será     bem preciso.

— Se um dia me vir casado, suponha que encontrei uma mulher, por quem     sinto alguma coisa além do amor, por quem sinto o respeito e a confiança     que se devem a uma mãe de família. Não tenho sido muito     escrupuloso em contrair certa ordem de ligações, é verdade;     porém nunca me lembrei de fazer dessas mulheres que amei, nem quando     a paixão me cegava mais, os anjos familiares a quem entregamos o nosso     futuro inteiro. Neste sentido tem-me espantado o arrojo de muitos. E não     é isto tenção formada em mim contra o casamento; mas     é que acho muito grave a missão de esposa e de mãe, para     a entregar assim levianamente em quaisquer bonitas mãos, só     porque são bonitas.

— Isso lá é verdade - disse o reitor, que não     previa que nestas palavras aprovadoras assinava sua capitulação.

Daniel, ainda que tivesse sido sincero no que dizia, não desestimou     ver assim o reitor quase voltado para o seu lado e prosseguiu com mais ardor:

— Ora quem quiser que tente fazer daquela menina, que sabe os verbos,     uma boa mãe de família; eu por mim é que não farei     a experiência. Era uma tremenda responsabilidade que tomava para com     meus futuros filhos.

— Não, não vamos também agora a fazer da pequena     pior que o que ela é, - observou o reitor. A cabeça é     um pouco estouvada, sim, mas o fundo é bom, e passados anos... Mas,     homem dos meus pecados, se você pensa assim - e nisso não serei     eu que lhe diga que pensa mal - para que se mete nestes enredos? Para que     dá ocasião a que os outros se julguem com direito a...

— Tem razão, Sr. Reitor. Eu não me quero apresentar como     inocente. Digo humildemente: peccavi. Mas que quer? Onde se encontram as facilidades...     nem todos tem força para se vencer. E depois, olhe que nos faz falta     deveras a capa egípcia de José, para a sacudir dos ombros em     ocasiões de aperto.

— Adeus! Aí torna com as suas! - disse o reitor, custando-lhe     a disfarçar um sorriso.

O certo é, porém, que o padre estava aplacado. Tranqüilizou     Daniel, contando-lhe tudo que tinha sucedido. Fez-lhe um longo sermão     de moral, afirmando-lhe no fim que, se não fosse por saber a família     Esquina "useira e vezeira" nestas tentativas de especular casamentos     de vantagem, e nem sempre por meios justificáveis, seria menos indulgente.

Daniel fez voto de emenda, e protestou ser aquela a sua última rapaziada.

Graças, porém, à loquacidade da Sr.ª Teresa a história     dos versos transpirou e causou escândalo na aldeia. Não se falou     em outra coisa, durante algumas semanas. Os pais olharam Daniel com desconfiança;     os rapazes, com ciúmes; as raparigas, com curiosidade. O trio de línguas     da casa dos Esquina cantou a palinódia a respeito de Daniel, e com     valentia não menor que a empregada nas loas, com que primeiro o tinham     celebrado.

Por todos os lados da aldeia ressoaram os coros. O nível da reputação     de João Semana subiu no conceito público. Daniel confirmou sua     reputação de libertino e de homem perigoso. Ele é que     era indiferente a isso tudo. Dava-lhe poucos cuidados o futuro de sua vida     clínica assim tão ameaçado. Continuava gozando, com resignação,     se não com prazer, os ócios daquele viver de morgado. As suas     maiores distrações eram o passeio, a caça e a pesca.

Na menina Francisca já não pensava. Desprestigiou-a de todo     aquela conspiração matrimonial. Do ódio, com o qual daí     em diante o honraram os progenitores da menina, nunca ele se lembrou.

 

Quando contaram a João Semana o que se passou entre Daniel e a família     dos Esquinas, o velho cirurgião não o quis acreditar. Teve,     porém, de ceder à unanimidade das opiniões, e então     não se fartou o nosso bom homem de benzer-se, de espantado.

João Semana era intolerante em coisas de moral, e principalmente médica.     Para bons ditos, anedotas e contos, ainda que às vezes temperados com     o sal de Bocácio, de La Fontaine e da rainha da Navarra, tinha grande     indulgência o velho clínico, que, por toda parte, os contava     também, sem escolha de auditório, nem de ocasião; mas     a menor aventura que de longe sequer se aproximasse do gênero das que     ele fazia crônica de tão boa vontade, dificilmente encontraria     remissão no seu tribunal. Se o réu era um colega, crescia então     de ponto a austeridade. Por isso o procedimento de Daniel encontrou nele um     severíssimo juiz.

Forçoso é, porém, dizer que uma circunstância     havia em todo aquele episódio, que, mais que nenhuma, o escandalizava.     De fato, conquanto manifestamente não o dissesse, o que em extremo     o irritava era Daniel ter caído na fragilidade de fazer versos. João     Semana não tinha em grande conta de coisa séria a poesia; e     então poesia daquela? Inda se fosse um soneto, vá. O soneto     tem um aspecto sério, grave e discreto, que não derroga a dignidade     de ninguém. Qualquer desembargador, cônego, ministro de estado     honorário, ou lente jubilado - quatro das mais sérias entidades     sociais - pode fazer um soneto, sem agravo da sisudez oficial; mas aquela     poesia travessa, ligeira, folgazã, de Daniel, poesia de um gênero     novo para João Semana, poesias sem musas nem Apolo, fê-lo sair     fora de si.

Joana teve que o ouvir naquele dia.

— Aí está o que você faz, aí está     - dizia ele - por sua causa, pela desastrada lembrança que teve de     mandar aquele doido em meu lugar, é que tudo isto sucedeu. Sempre tem     lembranças!

— Deixe lá, Sr. João, olhem a grande coisa! - respondia     a criada. - Ora! afinal de contas não passa de uma brincadeira. Fosse     a rapariga seriazinha, e não tivesse aquela cabeça que nós     todos sabemos, que já nada disso acontecia.

— Ela não é que tem a culpa.

— Não tem? Pois quem? Ele? Não que ele é rapaz.     Nada lhe fica mal.

— Que diz você? Nada lhe fica mal? Então um cirurgião     ou médico pode lá ter essas liberdades? Onde é que se     viu um homem da nossa posição fazer versos? Não tem vergonha.

— Ora adeus! São rapazes.

— E a dar-lhe! São rapazes, são rapazes, e acabou-se.     Boa desculpa! Essas e outras é que deitam a perder a classe.

— Mas que perde o Sr. João Semana com isso?

— Que perco?

O facultativo, por mais que fez, não conseguiu efetivamente dizer     o que perdia; por isso passado algum tempo, continuou:

— Não é bonito aquilo, não; não é.

— Pois sim, não digo que seja; mas com os anos passa-lhe o fogo.     Verá.

Em geral, nos tribunais femininos os delitos da natureza daqueles de que     João Semana acusava Daniel, são julgados como Joana acabava     de julgar este. Grande magnanimidade para com o homem e severo rigor para     com a mulher. Entrem lá na explicação do fato os que     tiverem estudado. Eu, por mim, registro-o apenas.

Houve longa discussão entre a criada e o amo, a este respeito; discussão     que não deu em resultado a vitória a nenhum dos contendores      - fato vulgar em quase todas as discussões. - Ela suscitou, porém,     em Joana o desejo de se informar melhor das particularidades do delito e da     extensão dele.

Em cumprimento desse desejo, tomou a criada do João Semana a sua capa     de pano e partiu, logo que pôde, a colher noções.

Depois de muito andar, de muito perguntar e ouvir, e de muito ralhar, em     defesa de Daniel, ainda que de si para si, a lisonjeasse um pouco a comparação,     que todos estabeleciam entre e João Semana, em grande proveito do último,     deu consigo a Sr.ª Joana... onde? Em casa das duas pupilas do reitor.

Foi Margarida quem lhe falou. Passados os usuais cumprimentos, e depois de     tentar recusar o oferecimento do cálice de vinho que Margarida lhe     fazia, e que afinal sempre aceitava, trouxe a Sr.ª Joana à conversa     o assunto que a procurava.

— Então, diga-me cá uma coisa, menina. Que lhe parece     o nosso cirurgião novo.

Margarida fitou os olhos em Joana, como para adivinhar-lhe nas feições     o sentido da imprevista pergunta.

— Que me parece? Que me há de parecer?

— Sim; não acha que está um bonito médico para     uma rapariga doente o mandar chamar? - continuou Joana, sorrindo.

Ignorando ao que a velha criada de João Semana queria aludir, a pupila     do reitor, a seu pesar, sobressaltou-se com esta interrogação.

— Mas por que me pergunta você isso?

— Pois não sabe?! Ora a menina, há de andar sempre fora     deste mundo! Aposto que não sabe o que por aí vai com Daniel?

— Não - respondeu Margarida, sem já, poder disfarçar     a sua curiosidade, à qual certa inquietação, por ela     mesmo mal explicada, se vinha misturar.

— É o que eu digo! tornava Joana.

— Mas então que há?

A Sr.ª Joana com a melhor boa vontade informou Margarida da história     da menina Francisca; já se sabe com muita severidade de comentários     para ela, e a costumada indulgência para com Daniel.

— Aquela bandeira de torre - dizia ela - volta-se para onde lhe sopram.     Louvado seja Deus! Não há olhos para que se não enfeite.     E ainda o acusam a ele! Faz muito bem: é rapaz. Eu sei que para cirurgião     devia ter mais juízo; devia, mas ora!... Hoje em dia, já se     não repara nessas coisas. E depois, ele é uma criança     e se a Chica não lhe desse trela... estou que se não atreveria     a...Em todo o caso, menina, é sempre bom traze-lo de olho. Aquela cabeça,     benza-a Deus, não vale grande coisa, não. Sempre assim foi.     Como a Clarita lhe casa agora na família, é natural que ele     venha por aqui. Cautela menina! Eu bem sei que com certa gente não     faz ele farinha, mas...

Margarida forcejou por sorrir às recomendações de Joana,     mas conseguiu-o mal. Aquelas palavras atravessavam-lhe o coração.

Afligia-a a leviandade de Daniel.

Estava-lhe, pois, destinada a cruel provação de um desengano     destes?

As almas delicadas, como a dela, sofrem intensamente, sempre que vêem     projetar-se uma sombra na imagem daqueles, a quem as suas afeições     iluminavam de ideal. Ver abaixar-se à região das paixões     menos elevadas e nobres, o coração que se tinham costumado a     fantasiar, palpitando-o só de generosos instintos, é para as     ferir de desalento, ou para as atormentar de desespero.

Joana continuava:

— A menina ri-se! É o que lhe digo. Não lhe dêem     muita confiança. Não que ele tenha mau coração.     Credo! Conheço-o desde pequeno. Aquilo não faz mal a uma pomba,     mas enquanto ao mais... O Padre Santo Antônio nos acuda! Eu digo, que     se eu fosse a rapariga... Mas... que tem, que está tão falta     de cor, menina? Não está bem?... Que sente?

— Nada - respondeu Margarida, procurando mostrar-se tranqüila.      - Não tenho nada. É que está aqui muito abafado...

E, levantando-se, caminhou para a janela, a disfarçar a sua perturbação     e a respirar o ar mais livre, que chegava dali, batido pela folhagem das árvores.

— Não que olhe que sempre hoje está um calor! - disse     Joana - Mas isso também há de ser debilidade. A menina foi sempre     de pouco comer. Beba uma água de caldo, que isso passa-lhe. Ou serão     vertigens? Olhe que não é outra coisa. Eu também as tenho     e daquelas! As vezes parece que se me parte a cabeça. É como     se me tropitasse cá dentro um regimento de cavalaria. O que é     muito bom para isso... sabe?

Não se pode calcular para que longa enumeração de receitas     tomava fôlego a Sr.ª Joana, cujos conhecimentos terapêuticos     a convivência com João Semana enriquecera, se Margarida a não     interrompesse, dizendo-lhe da janela:

— Mas quem sabe lá se a inclinação do Sr. Daniel     por essa rapariga é sincera?

E, ao dizer isto, passava a mão pela fronte, como se de fato a tivesse     tomado uma vertigem.

— Boa! - exclamou Joana. - Sempre tem coisas! A menina então     não sabe nem quem é o Daniel, nem a Chica da Esquina.

— Então ele é assim incapaz de gostar de alguém?      - perguntou Margarida, com afetada indiferença.

— Ele? Ele gosta de todas. Lá por isso... Vá perguntar     ao sobrinho do regedor, que viveu com ele quando andou lá no Porto     a estudar para padre... e olhe que também saiu um padre!... de se lhe     tirar o chapéu; não tem dúvida nenhuma... mas vá-lhe     perguntar quem é o menino. Gostar da Chica?

Neste ponto a Sr.ª Joana fez um gesto, muito de seu; fungou ruidosamente,     torcendo o nariz, fechando o olho esquerdo e prolongando o lábio inferior      - conjunto de sinais fisionômicos, que valia um discurso.

Em seguida continuou:

— Olhe que ele soube-me muito bem dizer, no outro dia, que só     lhe fazia conta mulher que tivesse cem mil cruzados e que a queria da cidade.     E ia agora gostar da Chica? estava indo! A menina está a ler.

Esta conversa torturava Margarida. Joana sem o saber, era de uma crueldade     inquisitorial. A sua loquacidade prometia longa duração, se     as badaladas do meio dia, na torre da igreja paroquial, a não viessem     por em sustos de chegar a casa depois de seu amo.

— Aí, meio dia já! Senhor me dê paciência      - exclamou ela, juntando as mãos. - E eu que tenho o jantar tão     atrasado! Adeus, menina, adeus, sem mais.

E tomando, toda açodada, a capa que tinha pousado, e ajeitando à     pressa o lenço engomado que trazia na cabeça, ia a sair, rosnando     a oração meridiana:

— Bendita e louvada seja a hora em que meu Deus, Nosso Senhor Jesus     Cristo, padeceu e...

Mas, ao transpor o limiar da porta, achou-se inesperadamente em frente de     Clara, que a obrigou a parar.

Segundo o costume, vinham radiantes de alegria as simpáticas feições     da irmã de Margarida.

Ao ver Joana, saiu-lhe dos lábios uma exclamação de     prazer:

— Viva! Já não há quem a veja, Sr.ª Joana!     Eu até principiei a rezar-lhe todas as noites por alma um padre-nosso     e uma ave-maria.

Joana, a quem tanto quadrava este gênio folgazão e descuidado     de Clara, tinha por costume fingir, na presença dela, que o não     podia sofrer; mas o jeito que, a seu pesar, lhe tomava a boca, inutilizava-lhe     a dissimulação.

— Olhem os meus pecados! - disse ela, voltando para a sala. - Inda     mais esta! Boa te vai? Estou bem aviada!...

Clara pusera a olhá-la com atenção e espanto afetado!...

— Então que tafularia é esta?! Lenço novo de cassa!     Já reparaste, Guida? E arrecadas! Ai! Estou para morrer. O mundo perde-se!     Agora é que o digo.

— É para que você veja - disse Joana, custando-lhe a manter     a serenidade.

— Ó Joana, você irá casar-se?

— Olhem, olhem... ela aí vem com as suas tolices! Tenha juízo.

— Não, mas... sério, isto tem que se lhe diga... E penteada!     Ai, e penteada!

— Que penteada? que penteada? Cuida que todas são como ela.     Sempre está uma mulher casada.

— Ainda não, se faz favor.

— Pobre do homem! melhor sorte merecia aquele Pedro, que tão     bom mocinho era... e é.

— Ah! Como ela diz isto! Querem ver que... Queres tu ver Guida, que...     Pois será com ele? Veja o que faz Joana, olhe que eu...

— Adeus! Sabe o que mais? Não estou para a aturar. Deixe-me     ir embora, ande.

— Embora? Isto é que não vai daqui tão cedo.

— E Jesus, Senhor! Deixe-me ir, que é meio dia, e faz-se-me     tarde. O meu amo está a espera... Valha-me deus! Ora o que me havia     de aparecer?

— O seu amo? Ainda há pouco ele ia para a banda dos Casais.

— Num momento põe-se em casa. Deixe-me ir menina.

— Não vai.

— Olhem que praga! Então? Isto não tem graça nenhuma.     Não vê ali a Margarida como tem juízo.

— Venha com isso a ver se me mete em brios.

— Ai, cuida que eu tenho os seus cuidados? menina, deixe-me ir embora.     Que seca!

— Deixe-a ir, Clara, deixa, que pode fazer falta - disse por fim Margarida,     que as estivera escutando distraída.

— Vá lá; em atenção à Guida. Mas     há de vir então pelo quintal que lhe quero dar um ramo para     o Sr. João Semana.

— Não que ele está agora mesmo à espera dos seus     ramos; nem dorme com a lembrança.

— Há de levar-lhe um ramo de meu mando. Já disse. Amores     antigos não esquecem.

— Olhe, deixe antes isso para o cirurgião novo, que esse é     que não lho enjeita.

— Quem? o Sr. Daniel! Ai, é verdade... Tu sabes, Guida? - disse     Clara, rindo - A Chica do tendeiro...

— Sei, sei - respondeu Margarida, levantando-se com vivacidade.

— Sempre tem uma cabecinha o tal senhor meu cunhado! Mas eu por mim     sou ainda pelo João Semana. Olha, Joana, diz-lhe você que me     faças uns versos também? Assim como os do outro.

— Ai, vai já fazê-los; pode esperar por isso.

— Uns versos como os tais da... trigueira... Não eram os da     trigueira?

— Sim, sim; tudo se há de arranjar.

— É verdade, que já sei uns que serviam.

E, saindo com Joana para o quintal, Clara pôs-se a cantar: Morena,     morena

Dos olhos rasgados

Teus olhos, morena

São os meus pecados.

 

Margarida ficou só na sala.

Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava já , esta     cantiga de Clara.

Andava-lhe muito ligada a idéias do passado, para a poder escutar     com indiferença.

Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas que em certos     contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos páramos     mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados; povoara-se-lhe     a imaginação ao ouvi-la, um pouco de recordações     ao princípio, e depois muito de fantasias...

Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos, assim     ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais vago do que o olhar     ainda.

Se o espírito, ao sair dessas exaltadas abstrações,     se volta de súbita para as realidades do presente, o desencantamento     é fatal e amargo. Entra-nos então no coração um     profundo desgosto da vida, e como que se nos quebram as forças para     continuar a ação.

Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida.

As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos ouvidos;     e afligiam-na aqueles sinais de alegria.

As vivas cores das rosas e dos cravos atraiam-lhe a seu pesar, as vistas     para os alegretes do jardim, e impacientavam-na; quase lhes queria mal por     aquele aspecto festivo.

Quando, em épocas de provação para a alma, a sós     com os nossos pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora     o ruído ou divisamos o esplendor das festas alguma coisa estremece     dolorosamente em nós.

Sentia-o Margarida naquele instante, e tanto lhe crescia o mal que, para     fugir-lhe, ergue-se e passeou com agitação por algum tempo na     sala.

— E por que não hei de eu também distrair-me, como se     distrai a Clara!? - pensava ela - Virão já de nascimento estes     gênios assim? Mas como se há de acreditar que os Senhor queira     fazer cair sobre a criatura que ainda não o ofendeu, este grande castigo     de uma tristeza tamanha? Não, não pode ser. - Antes creio...     isso sim, que o gênio de cada um toma a feição da vida,     que em criança se teve... Uma pessoa, afinal, é como uma árvore;     enquanto nova, é que se pode dobrar, que depois... Ali estão     aqueles cedros que, de pequenos, Clara vergou em arco; ganharam essa forma,     e hoje já não se erguem direitos como os outros. É assim.     Quem abriu os olhos, começou a pensar, sem ver grandes alegrias em     volta de si, pode lá aprender a sorrir? As crianças então,     que tudo aprendem dos outros, a falar, a andar, a brincar... como não     aprenderiam também alegria ou a tristeza?

Nisto fizeram-na ir à janela algumas vozes infantis.

Eram quatro crianças, quase nuas, que rodeavam uma pobre mulher, coberta     de andrajos e macilenta. E elas, apesar de sua nudez e dos rostos pálidos,     riam e brincavam em redor da mãe, que nem tinha pão para lhes     dar.

À porta das duas irmãs estava sempre sentada a caridade. Não     se fechou vazia ainda desta vez a mão da indigência, aberta a     implorar por ali. A pobre mãe chorava de gratidão ao retirar-se;     as crianças brincavam ainda.

E calou-se por algum tempo; depois prosseguiu a meia voz:

— Pois sim, mas há uma riqueza que elas têm e eu não     tive. Aquele olhar da mãe. Não vi eu sorrir-lhes a mãe?     Coitada, no meio da sua desgraça ainda não desaprendeu de sorrir;     precisa de risos para os filhos. É ver como eles olhavam para ela.     É isso... deve ser isso.

E tornava a passear no quarto; depois parando junto da janela ao lado do     quintal, continuou como antes:

— Deve ser isso, sim. No meio da pobreza, no meio da miséria,     pode nascer ainda a alegria, mas é preciso que haja um olhar de afeição     para a criar... um olhar de mãe, sobretudo. Ai, um olhar de mãe     deve ser para agente quase como um raio de sol para as flores. É ver     aquela rosa, que nasceu acolá, à sombra do muro. Como é     desmaiada! Enquanto que as outras... Bem faltas de cuidado cresceram por entre     a horta aquelas papoulas vermelhas; quem pensava nelas? Mas lá ia o     sol animá-las... Clara teve uma mãe que estremecia, teve o seu     raio de sol... eu, de bem pequena, perdi a minha... Quem tão cedo se     viu órfã, como há de ser para alegrias?

Neste ponto, entrou na sala uma rapariga, que as servia, trazendo um ramo     de flores na mão.

— Veja menina, - disse ela - Veja o bonito ramo que eu trouxe do campo     de baixo. Vou já, já daqui pô-lo ao Santo Antônio,     lá dentro.

—Pois vai, vai, Maria.

E a rapariga, que era uma exposta, saiu cantando alegremente.

— E esta então - continuou pensando Margarida, quando ela se     retirou. - Que mãe teve esta para lhe semear a alegria, que nunca perde?     A pobre nem família conhece; a gente que a criou não a tratava     com carinhos. E como ela vive! e como ri! Não há dúvida     pois; não há dúvida que se vem ao mundo assim. Então     eu... Ó Senhor! mas isto não pode ser. Que condenação,     meu Deus!

E como se procurasse convencer-se de outra solução menos desconsoladora,     do problema em que meditava, prosseguiu pouco depois:

— Mas quem me diz que é isso uma condenação? Por     que não hei de ver se posso tirar de mim estas idéias negras?     Olhando-se bem claro dentro de nós, talvez... vejamos: Estou hoje triste;     é verdade. E por que? Esta manhã não estava. lembra-me     que até ri com Clara... Parece que é mau agouro esta alegria,     que sentimos às vezes ao acordar! Depois... Há pouco... foi     depois que veio aquela mulher... E que me disse ela? Tudo que eu lhe ouvi     não era para isto. Não, decerto. Afinal que tenho eu com...

Aqui o pensamento quebrou o jugo que o constrangera a seguir o caminho estreito     da reflexão, e entregou-se insofrido à mais extravagante carreira.

Na posição e nos gestos de Margarida nada acusava a revolução     mental que se operara; mas instantes depois ela murmurava já:

— Quem sabe se aquela rapariga? Mas não, não pode ser...     E ele? Que mudanças traz o tempo! Eu não sei como são     certas memórias também... Mas que admira? A vida da cidade...     Quem havia de pensar?... Parece-me que ainda estou a ver, quando ele era criança     e vinha... Dez anos!

Absorvida em pensamentos desta ordem a veio encontrar o reitor que raro deixava     de visitar as suas pupilas.

— Em que cismas tu, rapariga? - disse-lhe o padre - Santo Nome de Jesus!     não posso atinar o que tanto tens para cismar. Nem que te cansassem     aos ombros grandes canseiras de família! Deita o coração     ao largo. Não vês a Clarita? Faz assim como ela. Lembra-te que     tens vinte e três anos. Aos sessenta é que é natural pensar     assim.

Margarida beijou-lhe a mão dizendo:

— Isto julgo que nem é pensar. É quase ume esquecimento     de tudo, e de nós mesmos, em que às vezes se cai. Mas faz bem     ralhar comigo, Sr. Reitor, faz muito bem. Este costume é mau. É     quase uma doença da qual hei de ver se me curo.

— E tem juízo. Olha, minha filha, isto de pensar muito... Enfim,     o Senhor para isso nos deu a razão, mas... Queres tu saber? Um dia,     veio aqui um homem que, pelos modos, é um grande sábio, um desses     filósofos da cidade. Era domingo e eu tinha que fazer a minha prática.     O tal sujeito foi para a igreja. Quando o vi lá fiquei assustado. Enfim...     com esta boa gente daqui, entendo-me eu bem, mas, pobre cura da aldeia que     sou há vinte anos, o que queres tu que eu possa dizer diante de gente     instruída e ilustrada, como era o tal? Estive para desanimar, Margarida,     olha que estive; mas disse comigo: "Não senhor, eu não     devo recear. Não tenho lido muitos livros, é verdade; mas os     Evangelhos leio-os todos os dias. Eles me ajudarão. Pois não     tenho eu lá aquele sermão da montanha?" E fui para a igreja,     e abri o S. Mateus, e li: "Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos     maldizem, fazei bem aos que vos tem ódio, e orai pelos que vos maltratam     e vos perseguem". Bastou-me isto, e pus-me a falar, assim que te falo     agora, Margarida. Achava-me à vontade. Pois sabes - que é ao     que eu trouxe isto - o tal homem, de que eu me receava, foi ter comigo à     sacristia para me abraçar, e disse-me: "Gostei de ouvir; deram-me     a suas palavras, por algum tempo, mais sãs consolações     do que as minhas noites de estudo". Ficou-me este dito do homem, e pareceu-me     que ele tinha consigo grande coisa a afligi-lo. Pensava demais talvez. Corre-se     o risco de endoidecer. Nada, não tem jeito.

Margarida sorriu, assegurando ao reitor que evitaria esse perigo, fazendo     por se distrair.

No decurso da conversa ulterior, falou-se em Daniel. O padre aludiu à     entrevista que tinha tido com ele, e procurou atenuar a culpa do rapaz, expondo     as idéias que lhe ouvira em relação ao casamento e à     escolha de uma esposa.

O resultado de tudo quanto disse foi deixar Margarida mais pensativa do que     antes.

 

Passou todo o mês de agosto e parte do de setembro, sem que se celebrasse     o casamento de Pedro e de Clara.

Pequenos estorvos, os quais será inútil referir aqui, baldaram     a diligência com que andara o reitor em obter os papeis necessários     às duas partes contraentes.

O padre estava ansioso por proclamar, à missa conventual, os primeiros     banhos, e não cessava de interrogar o lavrador sobre o andamento em     que iam os preparativos domésticos para as bodas do filho.

José das Dornas dava a entender que depois do S. Miguel era a ocasião     mais favorável para a solenidade, visto que a cobrança das rendas     lhe permitiria então fazê-la com o esplendor devido.

A ansiedade na aldeia era imensa, porque todos conjeturavam já quanto     teriam de memoráveis uma bodas em casa do abastado e liberal lavrador.

Achava-se terminada a principal colheita de milho e não se fixara     ainda o dia em que tão falada e prometedora festa devia realizar-se.

Em conseqüência de tais delongas, à primeira esfolhada     em casa de José das Dornas assistia ainda Pedro como rapaz solteiro.

Esta circunstância não foi sem influência na sucessão     dos acontecimentos que temos por narrar.

Concorramos nós também para este serão campestre, que     assim nos é necessário.

Julgo que pequeno será o número dos leitores, que não     tenham assistido a uma esfolhada na aldeia, ou que pelo menos de tradição,     não saibam a índole folgazã e traquinas deste gênero     de trabalho, do qual ninguém procura eximir-se: pois antes espontaneamente     correm de toda a parte a oferecer-lhe os braços.

E não há outros serões mais divertidos também.

Ali todos riem, todos cantam, todos se abraçam, e se beijam até;     e fala-se ao ouvido, e graceja-se e dança-se, e com franqueza se apontam     defeitos, e sem ofensa se recebem censuras, e até são mal colhidas     as lisonjas; e tudo isto então, toda esta apetecível desordem,     todo este abandono de etiqueta, à vista da porção sisuda     da companhia, à qual a tolerância fecha deste vez excepcionalmente     o olhos; e, a alumiar uma tal azáfama, meio festiva, meio laboriosa,     apenas a luz mortiça de um modesto lampião, pendurado de uma     trave do teto, ou, ainda melhor, a suave claridade do luar em campo descoberto!

Aquelas liberdades todas são permitidas, ordenadas até, pelo     código das esfolhadas.

Cada espiga vermelha, cada espiga de milho rei - como por lá lhe chamam     - é a sentença promulgada contra o feliz, a cujas mãos     ela chegou.

Cabe-lhe distribuir por toda a assembléia, ou receber de toda ela,     um abraço, mais ou menos apertado; sentença que ele de boa vontade     cumpre, principalmente quando ente tantos abraços, há um pelo     qual em vão suspira nas outras épocas do ano.

Esta lei, digna das ordenações daquelas joviais "Cortes     de amor" da Idade Média, é a alma das esfolhadas.

Dela provém os risos, os arrufos, as recusas, as insistências,     as queixas, as acusações, os despeitos, e os ciúmes,     que, ao mesmo tempo, desordenam o serão, excitam os trabalhadores e     adiantam a tarefa.

Quando um dia a máquina agrícola fizer ouvis nas aldeias portuguesas     o silvo estridente do vapor; quando a força prodigiosa de suas alavancas,     o movimento de suas rodas gigantes e complicadas articulações     dispensar o concurso de tantos braços, nestes trabalhos rurais; quando     a musa pastoril, resignada, trocar as vestes primitivas por a glouse do artista,     e esquecer as antigas cantilenas, para aprender as canção das     fábricas; lembrar-se-ão com saudades das esfolhadas os felizes     que as puderam ainda gozar.

A onda econômica adianta-se rápida; dentro em pouco inundará     os campos. Dêem-se pressa os que ainda quiserem conhecer as velhas usanças,     para as quais está já a soar a derradeira hora.

De há muito gozavam de apregoada fama as esfolhadas em casa de José     das Dornas.

A impulso do seu gênio prazenteiro, o velho lavrador pusera em costume     o observar-se pontualmente o rito destas festividades campestres.

Não havia ali isentar-se de cumprir a sentença a que a sorte     o sujeitasse, sob pena de ignominiosa expulsão do grêmio e perpétua     exclusão de festas semelhantes.

Homens e mulheres, crianças e velhos, amos e criados, todos fraternizavam,     todos se nivelavam aquela noite para se abraçarem ou beijarem e até     dançarem por fim.

Quem não gostava disso era o reitor, o qual todos os anos, por este     tempo, mimoseava com uma longa pregação o seu amigo José     das Dornas mas sempre sem nada conseguir.

Os costumes populares, as práticas tradicionais encontravam no lavrador     um apego, quase igual ao que tinha para as crenças religiosas. Parecia-lhe     um sacrilégio o infringi-los.

Debalde o reitor lhe dizia:

— Acaba-me com essas folganças, José. Isso é a     perdição de muita gente. Não sei como tu, homem sisudo,     te pões assim a brincar com as crianças e com os moços,     em termos de te perderem o respeito.

José das Dornas limitava-se a responder-lhe:

— Ó Sr. Reitor, deixe lá. Uma vez não são     vezes. Beijos e abraços, quanto mais às claras, menos perigosos     são. Daqueles que se dão ás escondidas, é que     é ter medo. Enquanto ao respeito, sossegue, que quando for preciso,     eu sei como ele se faz ter aos atrevidos. E depois, que quer? Eu fui criado     nisto.

Este último argumento é sempre o mais irresistível da     lógica do nosso homem dos campos.

Qual dos dois velhos tinha razão? Eu sei lá! A falar a verdade,     não acredito demasiado na inocência daqueles abraços beijos     e muito menos na de alguns que, por motivos particulares, se dão mais     do coração e mais tempo se prolongam; mas é também     certo que, evitando as esfolhadas muitas ocasiões se oferecem ainda     de uma pessoa se perder, e alguma razão tinha José das Dornas     ao dizer que estas coisas, na presença de espectadores, se despojam     de grande parte da sua gravidade.

Desta vez deviam ser as esfolhadas em casa da família Dornas dignas     da sua tradicional nomeada.

A pedido de Pedro, foi convidada muita gente. Encarregou-se ele mesmo de     formar a lista, a qual naturalmente abriu com o nome de Clara.

Clara recebia sempre com alegria convites da natureza deste.

Margarida quis dissuadi-la de aceitar.

— Que vais fazer, Clarinha? - disse-lhe ela. - Olha, eu, se fosse a     ti, não ia. Afinal, por mais que digam, sempre nestas esfolhadas há     liberdades e costumes, que... que...

— Sabes, Guida? - respondeu-lhe Clara - se todos se fosse a elevar     por os teus conselhos, e a dar atenção aos teus medos, pode     ser que o mundo andasse muito bem guiado - e andava decerto - porém     morria-se de aborrecimento por aí. É ver que nem me queres deixar     ir à esfolhada em casa de meu marido, e quando é ele mesmo que     me convida!

— E quem sabe se mais estimaria se não fosses?

— Qual? Estás enganada. Supõe-lo como tu. Eu bem o digo!     Olha, minha Guida, tu não servias para casada. Fazias-te ainda mais     sisuda do que és, sisuda e séria que nem uma abadessa de convento,     e depois havias de querer que o teu homem fosse sisudo e sério como     tu.

— Vai, vai, Clarinha; nem eu to posso impedir. Mas, se queres que fale     a verdade, fico sempre a tremer, quando te vejo sair para estes serões.     Às vezes há por lá desordens, rixas...

— Ai, sossega. Eu te prometo que não me meterei em nenhuma.

— Promete-me também que não dará causa a nenhuma     - tornou Margarida sorrindo.

— Como queres que eu dê causa a uma desordem, doida?

— Como há de ser! Eu digo-te, mas não te arrenegues.     Tu tens um bocadinho de ruindade, confessa; e às vezes para te divertires,     gostas de fazer perder a paciência aos outros. Ora, Pedro tem um gênio     assomado e...

— Deixa-te disso. O Pedro não é homem para se finar por     ciúmes só por ver receber ou dar um abraço em noite de     esfolhada! Era o que me faltava também!

— Pois Deus vá contigo, filha; mas lembra-te que dentro em pouco     és mulher casada e que o teu noivo está ao pé de ti.

— Estás descansada. E depois, sabes o que o Pedro me disse em     segredo? O irmão também faz tenção de ir à     esfolhada.

— Quem? O Sr. Daniel?!

— É verdade. Que graça! Mas o Pedro não quer que     isto se saiba para que não lhe faltem as raparigas, com medo ou com     vergonha. Estou morta por ver como elas ficam, assim que o virem lá.     Ora diz tu se isto se podia perder!

— Ainda pior.

— Que dizes? Ainda pior! Pois também és das que o pensam     excomungado? Pobre rapaz! Quem ouvir falar a essa gente por aí, há     de fazer dele uma idéia!... Pois não tem nada do que dizem.     É amigo de rir, isso, sim, mas também sabe falar sério,     quando é preciso. E não ouves o que muitas vezes o Sr. Reitor     tem dito a respeito dele? Que é um excelente coração,     afinal.

— Nem eu digo o contrário, mas...

— Mas és uma medrosa, é o que tu és; uma medrosa,     que me andas por aí sempre a sonhar sonhos negros. Um dia hei de fazer-te     falar com ele, e verás...

— Ai, não, não - exclamou Margarida, quase assustada.

— E como dizes isso! Que medos! Estás como a outra gente, já     vejo. Pois admira-me em ti que não é dessas coisas. É     uma cisma que te hei de fazer perder, assim como tu me fizestes perder as     das bruxas que eu dantes tinha. Lembras-te?

Horas depois, Clara despedia-se da irmã, dizendo-lhe:

— Então, Guida, até logo. Ei bem queria que viesses,     mas fizestes voto...

— Bem sabes que nunca sinto alegria nestas festas.

— Como hás de tu senti-la, se nunca vais lá?

E Clara partiu, e pulsava-lhe o coração de contente, quando     ia pelo caminho.

O gênio de Clara pedia-lhe isto. Era uma necessidade para ela a alegria     e as festas.

Não se lhe coadunavam com a índole as melancolias de Margarida.

Quando só, saia-lhe dos lábios tão depressa o canto,     como os suspiros do seio da irmã.

E a alegria de uma, como a tristeza de outra, nem sempre tinham motivo definido.

Vinham-lhes do coração, que parecia espontaneamente exalá-las.

Na natureza há fenômenos assim. O canto de algumas aves parece     uma lamentação, repassada de profunda melancolia; o de outras     soa brilhante como hino festivo, nos coros da criação; e nem     as primeiras têm pesar de que se carpirem, nem estas júbilos     a celebrar.

O canto sai-lhes da boca modulado por uma disposição natural;     pois quase de igual forma, acudiam os sorrisos aos lábios de Clara     e as lágrimas aos olhos de Margarida.

 

A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das     Dornas, e por formosíssima noite de luar claro como o dia. O ser alumiado     pelo luar é uma circunstância que redobra o valor da festa.

Eu creio nas influências planetárias - perdoem-me a fragilidade     astrológica os homens da ciência positiva. Bem sei que passou     já de moda esta crença tão arraigada nos mais severos     espíritos de outros tempos; mas por mim, ainda não pude resolver     a romper com ela de todo.

Penso em que o moral e o físico da humanidade andam sob o império     de forças multiplicadíssimas, muitas das quais ainda estão     por descobrir ou estudar, e não vejo que se possa desde já excluir     do rol delas a luz desse planeta pálido, tão querido aos amantes     e poetas.

Digam-me por exemplo, se uma esfolhada ao meio dia pode ter nunca a índole     jovial das que se fazem à claridade da Lua? - se nela se concedem beijos     e abraços com tão poucos escrúpulos? - se a gente se     ri com igual vontade e franqueza? E não me venham explicar isto só     pelo efeito da meia obscuridade, que serena as repugnâncias dos tímidos,     e excita a audácia dos arrojados; porque nunca vi elevaram-se ao mesmo     grau de intensidade essas ruidosas alegrias e folguedos, quando a luz, ainda     menos limpa de sombras, de uma só lâmpada ilumina o lugar do     serão.

Forçosamente tem a Lua parte nisso. Não sei o que há     na atmosfera em uma noite assim!

O espírito mais embotado para as suaves comoções da     poesia, parece receber então um raio de lucidez e acreditar vagamente     na existência de alguma coisa, acima dos prosaicos interesses da vida     positiva; os corações mais fechados a arroubamentos de amor,     sentem-se embrandecer, e de mais de um consta haver infringido, em noites     dessas, velhos e porfiados protestos de isenção.

E negam a influência da Lua?! No coração dão-se     fluxos e refluxos de sentimento, cuja teoria pode ter alguma coisa de comum     com a do fluxo e refluxo dos mares. É uma velha crença esta,     que me leva a supor a Lua favorável ao amor e indispensável     à alegria das esfolhadas.

E do meu lado encontro José das Dornas, que esperou por uma noite     de lua cheia, para celebrar a sua festa.

Um monte enorme de espigas ocupava o meio da eira. Abertas de par em par     as portas do cabanal aguardavam as amplas canastras para onde se iam lançando     as espigas esfolhadas.

Sentados em círculo, à volta daquela alta pirâmide, trabalhavam     azafamados, parentes, criados, vizinhos, amigos e conhecidos, que sempre afluem     aos serões desta natureza, ainda que não convidados.

Não havia lugares de distinção aí. Cada qual     se sentava ao acaso, ou, quando muito, conforme as suas secretas preferências.

A mais completa igualdade se estabelecera na companhia, desde o princípio     dos trabalhos.

José das Dornas, que sabia, como ninguém, manter, nas ocasiões     devidas, a sua dignidade de chefe de família, dava, desta vez o exemplo     a sem-cerimônia, praticando jovialmente, até com o mais novo     dos seus criados; e estes usavam para ele de liberdades que, fora do tempo,     lhes sairiam caras. Pedro, rapaz sempre atencioso e grave no seu trato para     com os velhos, naquela noite, tendo por vizinha uma séria e madura     matrona da aldeia, requebrava-se em galanteios para com ela, e afetava rendidos     extremos, com grande riso dos circunstantes e de Clara, a qual, pela sua parte,     fingia uns ciúmes igualmente aplaudidos da assembléia.

Uma velha, querendo aproveitar o seu tempo, tentou regular ali as suas contas     com Nossa Senhora rezando uma das muitas coroas, de que lhe estava em dívida;     e, a cada passo, rompia em vociferações contra duas raparigas     entre as quais ficara e cuja palestra a fazia perder na fieira de padre-nossos     e ave-marias da sua interminável reza.

Os arrufos da velha eram estímulo para risadas.

As vezes saltava ao meio do círculo uma criança com grandes     bigodes, feitos de barba de milho, e a idéia era logo apoiada e imitada     por todas as outras, com grande embaraço ao bom e pronto andamento     da tarefa do serão. As mães ralhavam, rindo; os pais faziam     os mesmo; e disfarçadamente punham, ao alcance dos pequenos, novos     instrumentos para idênticos delitos.

As raparigas e rapazes tiravam uns aos outros o gorgulho, que por acaso encontravam     nas espigas, o que introduzia grande alvoroço na assembléia,     e enchia os ares de gritos e de vozerias atroadoras.

E ia assim animado o serão, quando uma circunstância, para quase     todos inesperada, veio subitamente esfriar esta fervura.

Esta circunstância foi a chegada de Daniel.

Eram nove horas quando ele apareceu na eira, ainda em trajos de jornada,     pois voltava, naquele momento, de uma excursão distante.

Saudando alegremente a companhia, Daniel pediu para si um lugar no círculo     dos serandeiros.

José das Dornas, Pedro e Clara, que havia já muito o aguardavam     com impaciência, sorriam entre si, ao verem o embaraço em que     todos ficaram com aquele reforço.

A reputação que Daniel adquirira não era de fato para     lhe preparar um lisonjeiro acolhimento.

Os homens franziam as sobrancelhas e exprimiam em rosnados apartes, o seu     desagrado; as mulheres de idade fitavam no recém-chegado um olhar,     como o que lhes merecia um lobisomem; as raparigas acotovelavam-se, cochichavam     umas com as outras; sufocavam os risos e olhavam às furtadelas para     Daniel; porém, não houve quem se afastasse para dar lugar; antes     apertavam uns contra os outros, para lhe evitarem a vizinhança.

Daniel repetiu a reclamação, e, ao mesmo tempo, corria com     os olhos as diferentes figuras ali reunidas, como a procurar aquela cuja proximidade     mais agradável lhe pudesse ser.

O tácito indeferimento do seu pedido continuou porém. Os risinhos     mal abafados, as murmurações a meia voz e o som do esfolhar     das espigas, tarefa em que todos pareciam com dobrada vontade empenhados,     era o que se ouvia, em seguida à requisição que ele pela     segunda vez fizera.

— Então que é isso? - dizia José das Dornas, meio     a rir, meio despeitado. - Que diabo! Não haverá ai lugar para     mais um? Olhem que o rapaz não está empestado.

Houve um movimento geral, como para conceder o lugar requerido, movimento     simulado porém, que, longe de abrir brecha no círculo, ainda     mais o estreitou.

Daniel principiava a preparar-se para conquistar terreno, que lhe negavam,     e com esse intuito fitava já um espaço entre duas galantes raparigas,     que naquele momento falavam ao ouvido e riam, quando escutou a voz de Clara,     que lhe dizia do outro lado da eira:

— Venha para aqui, Sr. Daniel, se lhe agrada a companhia.

E, arredando-se de uma velha meia mouca e cega, que tinha à direita,     Clara ofereceu a Daniel o lugar que ele pedia.

A este não desagradou a colocação e apressou-se a tomar     assento, junto de sua futura cunhada.

Uma tal solução foi para todos satisfatória - a não     termos de executar talvez muitas das raparigas, que mais repugnância     tinham mostrado em conceder junto de si o lugar perdido, mas que não     desestimariam vê-lo usurpado - contradições da natureza     essencialmente feminina.

Daniel compreendeu a necessidade de angariar simpatias na assembléia,     que o olhava desconfiada.

Principiou por distribuir cigarros por alguns dos circunstantes, que fumavam,     e chamando-os a cada um pelos seus nomes - para o que interrogava primeiro     disfarçadamente Clara - a todos dirigiu um cumprimento, que algum tanto     os abrandou.

Às velhas ofereceu uma animada descrição vocal da procissão     de Cinzas, no Porto, descrição modelo, embora não primasse     em exatidão, nem no número de andores, nem na designação     dos santos. No fogo do seu raptus inventivo, chegou a falar em um certo S.     Macário, bispo, com grande espanto duma velha, cujas reminiscências     da procissão dos franciscanos nada lhe diziam de tal santo. Daniel     inventou-lhe uma biografia, digna de Ribadaneira. As velhas abrandaram-lhe     a acrimônia dos seus olhares.

E os rapazes? Para com estes experimentou Daniel a receita de Orfeu para     abrandar as pedras; tentou a música.

Achou à mão uma viola, e tirou alguns harpejos e executou umas     variações sobre motivos da Cana-Verde, que atraíram a     si as simpatias dos que tinham no coração verdadeiros instintos     artísticos.

Para as raparigas não procurou arte de se fazer valer, porque estava     ele persuadido - não sei se com fundamentos - que qualquer que fossem     as aparências, não lhe deviam ter elas muito má vontade,     sabendo-o um dos mais entusiastas admiradores do sexo.

Apesar de tudo não se animava o serão. Reinava ainda certo     constrangimento, a conversa fazia-se por grupos, e em voz quase baixa, e mantinha-se,     por assim dizer, desencadeada.

Os únicos a falarem alto, além de Daniel, que por muito tempo     fez, como costuma-se dizer, a despesa da conversação, eram,     às vezes, Pedro , José das Dornas e Clara.

Esta ria ao ver a dificuldade com que Daniel conseguia esfolhar uma espiga,     enquanto ela aviava uma dúzia.

— Que desastrado! - dizia Clara. - Nesse andar tem que fazer.

— Então como é que se arranja esta coisa?

— Assim, ora repare. Pega-se num prego...

— Mas o que é do prego?

— Então não sabia pedi-lo? Aí tem um. Mas pega-se     num prego, e atravessa-se o folhelho assim, e depois...

A execução substituiu o resto do preceito. Em um momento estava     a espiga esfolhada e na canastra.

— Está pronto - acrescentou Clara.

— Vamos a ver se eu sei - disse Daniel.- Seguro o prego, pronto...     Atravesso o folhelho, ou folhido , ou lá o que é... Até     aqui vai bem. E depois... e depois... e depois...

Esta repetição era devido à dificuldade que ele encontrou     a executar a última parte da operação.

Clara não se fartava de rir, e as outras raparigas riam também     com ela. Algumas faziam ouvir o seu epigrama, com menos rebuços já.

Ainda assim, não se declarara abertamente a confiança, nem     se generalizara a conversa. O que cada um tinha a dizer, comunicava-o ao vizinho     mais próximo; este se julgava a coisa digna de referência, transmitia-o     ao imediato, de maneira que todos vinham a saber, mas sucessivamente, e pouco     a pouco; cada qual ria por sua vez, e sem aquelas súbitas, unânimes     e estrepitosas manifestações de alacridade, desafiadas por um     bom dito, ao soar imprevista e simultaneamente aos ouvidos de uma assembléia     inteira.

Havia em todos vontade de modificar esta feição séria     e retraída do serão; mas ninguém tinha coragem de empreender     a revolta.

De mais a mais, nem uma só espiga vermelha aparecia a oferecer pretexto     à realização desse desejo tácito de todos.

Clara foi a única, nestas condições, a quem sobraram     ânimos para fazer alguma coisa decisiva. Levantando a voz argentina     e sonora, que todos os presentes conheciam bem, principiou a cantar:

Andava a pobre cabreira     O seu rebanho a guardar.

Todas as vozes de raparigas, como por impulso comum, juntaram-se em coro,     e terminaram na mesma toada a quadra:

Desde que rompia o dia     Até a noite fechar.

Clara continuou:

De pequenina nos montes,

E prosseguiu o coro:

Nunca teve outro brincar     Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar A letra e a música desta cantiga ou xácara     popular comoveram intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas,     avivando-lhe imagens quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que todas,     o enleava. Era a da pequena Guida, da sua companheira de infância, a     que tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava também     de uma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de Clara alguma coisa     julgou Daniel descobrir da inocente criança que recebera então     as primícias do seu coração infantil, mas apaixonado     já. Esta primeira analogia fez-lhe notar que no olhar também,     no gesto e no rir a havia igualmente, e isto obrigava Daniel a fitar em Clara     olhos mais observadores que nunca.

Dentro em pouco esqueceu-se do que primeiro o levara à contemplação,     e, sem já pensar na pequena guardadora de rebanhos, continuava a olhar     para Clara com uma atenção não encoberta.

No entretanto Clara continuava cantando:

Sentada no alto da serra     Pôs-se a cabreira a chorar.

E as raparigas todas seguiam:

Por que chorava a cabreira     Agora haveis de...

- Milho rei! milho rei! milho rei! - rompeu uma voz, e esta tríplice     exclamação tudo pôs em desordem; interrompeu o canto,     e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se deixara     cair.

Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas     mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.

A festa mudou súbita e completamente de caráter.

À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na     assembléia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei da esfolhadas.     Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição     de abraços.

O alegre lavrador não se fez rogar.

Seguiu-se então um espetáculo iminentemente cômico. José     das Dornas ergueu-se do lugar onde estava para correr um por um, todos os     outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância     à lei reguladora da festa.

Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espectadores, e     entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual fazia     valer sobremaneira o ato, graças ao gênio folgazão que     Deus lhe dera.

A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando     mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso     os circunstantes.

— Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho rei me podia     dar destas fortunas! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos.

Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de desconsolação,     comicamente expressivo.

— Que belo abraço desperdicei agora!

Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes:

— Rapazes, tenham paciência. Eu sei que são destes abraços     que vós quereis. Mas é lei, é lei. Os outros virão     a seu tempo.

A um criado disse, meneando a cabeça:

— Ah! maroto! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade     tinha de te apalpar de outra maneira as costas! Ora vá, que talvez     te não gabes de outra.

O certo é que, depois disso, começou a animar-se a esfolhada.     As espigas vermelhas como se atraídas pelo bom colhimento feito à     primeira, apareceram sucessivamente a diferentes mãos, e cada uma que     aparecia dava lugar a episódios graciosos e a prolongada hilaridade.

Às vezes era uma rapariga tímida e acanhada, que não     queria cumprir a sentença; e então todas as vozes se reuniam     a exigi-la; e ela a recusar-se, e os vizinhos a empurrá-la, e todos     a aplaudirem a rapariga, sorrindo e enleada de confusão, a correr a     roda, e alta vozeria a celebrar com ovações a vitória     sobre a rebelde; outras, era um velho ou velha, a que faziam tropeçar,     ou abaixar-se para dar o abraço, e que depois cobriam desapiedadamente     de montes e folhelho com aprovação e coadjuvação     geral da parte jovem dos serandeiros; outras, um rapaz destemido, que, pela     terceira vez, reclamava abraços, e contra o qual se tramava uma conspiração     mulheril, a contestar-lhe a legalidade das pretensões, acusando-o de     fraude e de trazer de casa as espigas vermelhas, de que se valia; animava-se     então a discussão, mas afinal sempre se davam os abraços.

Todos porém, aceitavam as excepcionais liberdades desta noite de tradicional     folgança, com a consciência de que não poderiam nunca     fazê-las valer a justificar ulteriores e mais arrojadas aspirações.

Havia porém um espectador e ator destas cenas noturnas que, por circunstâncias     fáceis de prever, não estava muito de ânimo a receber     com a mesma frieza as concessões do estilo.

Era Daniel.

Havia muitos anos que ele não tomara parte nestes serões, de     forma que, aos participar dos privilégios que, só em ocasiões     tais, lhe podiam ser concedidos, não conservava no mesmo grau que os     seus companheiros a tranqüilidade de espírito e a frieza de ânimo     com que os outros contavam, ao sair dali, dormir um sono sossegado e livre     de pesadelos.

Todos poderiam receber de uma rapariga um abraço e esquecê-lo     logo depois; Daniel é que dificilmente conseguiria afazer-se a isso.

Além de que, a noite era de luar; daquele luar de que falei, magnético,     inebriante, que exalta a imaginação, que a inquieta, e nos predispõe     a sonhar! E então uma imaginação como a de Daniel.

Havia de mais a mais uma outra circunstância, que concorria para produzir     nele estes efeitos excepcionais. As raparigas não lhe concediam os     abraços, marcados pelo estatuto da festa, com a mesma pronta familiaridade,     com que os outros os obtinham. Não obstante ter cessado já o     constrangimento do princípio da noite, e não pesarem em ninguém     as primeiras prevenções contra o cantor das trigueiras, contudo,     na ocasião crítica, no momento do abraço, havia nas menos     tímidas um ar de pudica hesitação, nas faces adivinhavam-se-lhes     um rubor, no baixar dos olhos uma eloqüência, que centuplicavam     o valor dos tais abraços e, forçoso é confessá-lo,     alteravam-lhe também um pouco a significação.

Quando se concede ou se recebe um abraço, corando, é porque     palpita o coração; e cada palpitação do coração     é um fenômeno cheio de grandes mistérios, que perturbam     o pensamento de quem neles considera.

O de Daniel não estava muito sereno já, quando chegou a vez     de Clara de cumprir a sentença também.

Levantou-se imediatamente a irmã de Margarida, e, com o desembaraço     que lhe era próprio, começou pela esquerda a sua "via sacra",     como ela, rindo, lhe chamou. pela ordem que levava, devia ser Daniel o último,     a quem tinha de abraçar. Ao chegar junto dele, parte da natural audácia     a abandonou.

Já antes notara ela alguma coisa de particular nos olhares e nas maneiras     do irmão do seu noivo, que tinha diminuído a familiaridade,     com que ao princípio o acolhera, e diminuindo na proporção     em que nas outras crescia.

Foi quase a tremer que ela o abraçou.

Daniel percebeu-lhe a agitação, e sorriu.

Clara, sentando-se outra vez junto dele, sentia-se constrangida e não     ousava erguer os olhos.

Daniel achava deliciosa aquela súbita timidez, e começou logo     a formar castelos no ar, quase esquecido de que era a prometida esposa de     seu irmão, de quem nunca mais desviou os olhos, nem distraiu as atenções.

Apareceu afinal, a ele também, uma espiga de milho vermelho.

Daniel mostrou-a, sorrindo, a Clara.

— Visitou-me enfim a ventura - disse-lhe ele. - Graças a Deus!     porém mais feliz seria se me fosse permitido cumprir da sentença     só aquela parte que não me obriga a levantar.

Clara quis responder-lhe, mas nada lhe ocorreu, que dissesse.

Nisto, uma criança que estava próximo deles, denunciou à     assembléia que o Sr. Daniel tinha achado um milho rei.

Agora, já todos foram unânimes a exigir, em grandes brados,     que pagasse ele também o tributo estabelecido.

Daniel não procurou eximir-se; abraçou porém a todos     à pressa e distraidamente, até chegar à Clara. A essa,     apertou-a ao peito de maneira a redobrar o enleio em que se achava já     a rapariga.

Desse momento por diante, Daniel ficou inteiramente dominado por a sua irreprimível     imaginação.

Feliz mente as atenções de todos estavam atraídas pelas     peripécias da esfolhada, que a não ser isso, teriam dado que     falar as maneiras do estouvado rapaz em todo o resto da noite.

Clara sentia uma acanhamento nela pouco habitual, procurava vencê-lo,     para refrear a imprudente exaltação do seu vizinho, mas todos     os seus esforços eram baldados. Nem parecia a mesma, de tímida     que estava.

Daniel, por mais de uma vez, serviu-se das fraudes usadas pelos serandeiros     e freqüentadores de esfolhadas, para renovar os abraços; e isto     sem procurar ocultar-se de Clara.

Esta, não lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudentemente     estabelecer-se, entre ambos, certa cumplicidade, que estimulava Daniel.

A isto sucederam-se frases de galanteio, ditas a meia voz, e olhares que     a não deixavam; por acaso encontravam-se-lhes às vezes as mãos,     e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.

A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, senão fascinada, nem tentava     fugir-lhe nem ousava repreendê-lo; sentia-se triste, no meio de uma     festa em que todos riam. Triste, ela!

Pela meia noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças. Clara     não quis dançar; veio sentar-se junto de José das Dornas.     Daniel sentou-se outra vez do lado dela.

Dentro em pouco o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem cessar., mas     ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escutava-o     em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.

Aquela maneira de conversar, o que ele dizia, e as palavras de que usava,     tudo lhe era desconhecido; impressionavam-na e agradavam-lhe, como uma novidade.     Ela mal poderia explicar o estado do seu espírito naquele momento.

Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto outra a mandava desconfiar     daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música melodiosa.

— Mas, Clarinha, repare que ainda não teve uma palavra que me     dissesse! - segredou-lhe Daniel, por fim, com afetuosa inflexão de     voz

— E que quer que eu lhe diga?

— Pois não se lembra de nada?

— De nada. A minha cabeça não tem neste momento muito     para me dar.

— Oh! mas não lhe peça nada também, peça     antes ao seu coração.

— Que posso eu pedir ao meu coração que lhe sirva? -      perguntou Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.

— Se ele não tiver que dar, que se dê a si próprio      - respondeu Daniel em voz baixa.

— Sr. Daniel! - exclamou Clara, conseguindo, enfim, por um maior esforço,     vencer o seu enleio, e pondo-se subitamente a pé.

Pedro, que lhe escutara a voz, aproximou-se dos dois.

A vista do irmão fez cair Daniel em si, e alentou-lhe a razão     no eterno combate que sustentava com a fantasia.

Curvou a cabeça e sentiu quase uns assomos de remorsos por o seu estouvado     procedimento naquela noite.

— Que tens, Clarinha? - perguntava nesse tempo Pedro à sua noiva.     - Parece-me que te ouvi...

Clara ainda agitada, apertou o braço de Pedro, como se a procurar     proteção, talvez contra si mesma.

— Que tens? dize! continuou Pedro, já mais inquieto.

— Não é nada.

— Mas tu gritaste.

— Não; é que... a falar a verdade, não sei o que     sinto.

A inquietação de Pedro aumentava.

— Mas então... Dói-te alguma coisa?

— Não... Olha, sabes? Queria ver-me em casa. Se soubesse nem     tinha vindo.

— Nesse caso vamos acompanhar-te.

Daniel aproximou-se.

— Está doente, Clarinha?

A vista de Daniel exacerbou o estado nervoso, em que se achava Clara.

— Por amor de Deus! Deixe-me! - exclamou ela, com um grito, cheio de     impaciência, quase febril.

Esse grito chamou as atenções.

Todos se aproximaram dela.

— Que é?

— Que foi?

— Deu-lhe alguma coisa?

— Está mal?

— O Clara, então, isso o que é?

— Que tens, filha?

E cada qual perguntava a seu modo, e cada qual a seu modo respondia e dava     um conselho e uma conjetura.

Amigas obsequiosas preparavam-se para desaperta-la. Houve algumas que a quiseram     obrigar a beber água fria! outras esforçavam-se para lhe untar     as fontes com vinagre.

— Aquilo são bichas - dizia uma velha muito entendida em diagnósticos.

— É flato - sustentava em divergência com esta, outra     colega.

— Com vinagre passa-lhe - dizia a primeira

— Um gole de chá de cidreira, é um instante - emendava     a segunda.

Clara sentia-se deveras mortificada, e tanto que a viam chorar.

— O melhor é acompanharmo-la a casa - disse José das     Dornas - Isso não há de valer nada. Se não puder por     seu pé, o João que vá aparelhar a ruça.

A primeira parte do alvitre foi posta em execução.

Clara partiu, servindo-lhe de escolta Pedro, Daniel e um moço da casa.

E a festa da esfolhada acabou assim.

 

Ao voltar para casa. na companhia de Pedro e de Daniel, Clara caminhava     silenciosa e triste. Os dois irmãos não se achavam com mais     ânimo do que ela para tentar conversa.

Pedro ia pensativo e desassossegado com o súbito incômodo de     sua noiva; e Daniel, ainda sob o domínio das comoções     recebidas naquela noite, que entre memórias agradáveis, lhe     deixava alguma coisa do amargor dos remorsos.

Sem terem trocado uma só palavra, chegaram assim à porta das     duas irmãs. Uma luz no quarto de Margarida era sinal de que ela não     dormia ainda.

Clara, erguendo para ali os olhos, suspirou. Parecia estar invejando o sossego     daquela vigília, a paz da consciência que velava assim. Ao despedir-se     de Clara, Pedro disse-lhe afetuosamente:

— Boas noites, Clarinha; amanhã espero encontrar-te melhor.

Daniel aproximou-se dela também:

— Sossegue - disse-lhe. - Não se assuste. Tenha confiança     em mim; asseguro-lhe que pode estar tranqüila.

E, como visse que a rapariga o fitava com um gesto de estranheza e de interrogação,     acrescentou:

— Sim; então não vê que sou médico? Afirmo-lhe     que pode estar descansada; adeus.

E separaram-se.

De todos os três posso assegurar que nenhum teve bom sono.

Pedro toda a noite lidou com o receio de que o incômodo e Clara fosse     de gravidade; vieram-lhe à imaginação as mais negras     apreensões a respeito do futuro do seu amor; a cada momento levantava     a cabeça do travesseiro para espreitar se, através das frestas     da janela, já aparecia a primeira luz do alvorecer. Em Daniel foi uma     luta do senso íntimo que o não deixou repousar. Odiava-se e     acusava-se com severidade, por haver de alguma sorte abusado, deslealmente,     da confiança de seu irmão; mas, cedo deixava de ouvir esta voz     da consciência como se distraído por um espírito maligno,     que lhe recordava os encantos de Clara; e a seu pensar, sentia-se às     vezes quase desvanecido com esperanças, às quais ele próprio     tentava cerrar o coração.

Alguma cosa semelhante perturbava também naquele momento o espírito     de Clara. A cada passo se esquecia a pensar nos diversos episódios     do serão e em tudo quanto Daniel lhe dissera; e logo se arrependia     e acusava, como de uma traição feita a Pedro, de ter assim escutado     e recordar agora as falas apaixonadas daquele louco imprudente.

Margarida, antes de deitar-se, veio ter com ela.

— Então, divertiste-te? - perguntou-lhe

— Não.

— E por quê?

— Por quem és, Guida, não me perguntes hoje nada, se     é minha amiga. Estou doente.

Margarida assustou-se pela maneira como foram ditas estas palavras.

— Doente! - exclamou ela com verdadeira inquietação;     e apalpando-lhe a fronte, que escaldava:

— E tens febre, Clarinha! Bem me dizia o coração: antes     não fosses!

— E antes! - disse Clara, suspirando. E calou-se, fingindo que adormecia.

Margarida não conseguiu mais serenar a turbação que     lhe produzia o estado da irmã.

— Que sucederia lá? - perguntava ela a si mesma.

Foi mais um que não dormiu naquela noite. Levou-a toda a cismar e     a escutar se algum rumor chegava do quarto de Clara.

A madrugada, porém, opera milagres. Não há luz como     a da manhã para dissipar as visões de uma imaginação     preocupada. Como esses vultos sinistros, que os sentidos alucinados das crianças     medrosas descobrem em cada canto escuro de um quarto de dormir, as criações     do espírito aflito desvanecem-se aos primeiros raios da aurora.

Rimo-nos então das nossas apreensões da véspera, nem     compreendemos os nossos terrores. As sombras de uma floresta, que a noite     nos representa pavorosa, tomam ao amanhecer um aspecto festivo, e mostram-se-nos     recamadas de flores; é também a essa hora que uma transformação     análoga parece operar-se nas sombras do nosso futuro; temos mais esperança     na vida então; aclara-se-nos a nuvem cerrada que caminha diante de     nós, quando ouvimos cantar alvoradas às aves, que o dia desperta.

Este fenômeno íntimo do nosso espírito, realizava-se     em Daniel e Clara.

O desgosto em si, os vagos remorsos da véspera, as inquietações     mal definidas, dissipou-os o surgir da manhã.

Clara olhou para a irmã, que lhe espiava o despertar, com os olhos     expressivos de desassombrada alegria.

Daniel vestiu-se, cantando jovialmente; e, sem vislumbres de pensamentos     negros, preparou-se para sair.

Os acontecimentos da noite anterior eram já sem a menor importância     aos olhos de ambos. E que importância podia ter uma noite de esfolhada?     Quem se lembraria de atribuiu valor às liberdades consentidas então?

Clara perguntava a si própria as causas daqueles seus excessivos terrores,     e não os podia justificar.

Quando Margarida, ainda cheia de cuidados, e olhando-a com solicitude, lhe     falou nisso, Clara pôs-se a rir.

— Que queres tu que te diga? Nem eu mesma já sei o que me afligia     ontem. Não te sucede às vezes isso?

— Em ti é que me admira. É tão pouco do teu gênio!      - respondeu Margarida, olhando-a fixamente.

— E também te prometo que nunca mais me tornarás a ver     assim.

— Deus o queira.

Margarida disse isto, como quem se não dava por satisfeita com a explicação     ou com as palavras de evasiva Clara. Ela suspeitava ainda que alguma coisa     se tinha passado durante a esfolhada, que a irmão lhe não queria     revelar.

Mas Clara conservou tão bem, em todo o dia, a jovialidade do costume,     que as apreensões de Margarida acabaram por dissipar-se de todo.

Correram alguns dias depois destes acontecimentos. Persistindo ainda os mesmos     estorvos ao projetado e decidido casamento de Pedro, passava este o tempo     em trabalhos campestres, e Clara ocupando-se da feitura do enxoval, em que     era ajudada pela irmã.

Daniel, ainda sem cuidado de clínica, prosseguia nas excursões     venatórias pelos arredores. Havia, porém, muitas ocasiões     em que ele voltava a casa sem ter disparado um tiro, o que não o afligia     demasiadamente.

Pedro renovava então as suas preleções sobre a caça,     e instruía Daniel a respeito dos lugares da aldeia, mais abundantes     nela.

Do que Daniel não se esquecia era de passar todos os dias à     porta das duas irmãs, que ambas o viam, e, pode-se até dizer,     o esperavam já. Margarida ocultava-se, porém, mal o sentia;     Clara, pelo contrário, inclinava-se no peitoril, e, sorrindo, correspondia     à saudação do caçador.

Era mais outra inconsideração de Clara. Conseguiu persuadir-se     esta boa rapariga que era obrigada àquilo. Para compensar a demasiada     severidade, com a qual, no seu entender, tratara Daniel na noite da esfolhada,     e sem se lembrar que, não obstante o seu próximo parentesco     com ele justificar estas familiaridades, a má reputação     que Daniel gozava na aldeia e a fértil imaginação dos     noveleiros locais as faziam um pouco imprudentes.

De fato, já nos círculos da terra constava da predileção     de Daniel pela rua em que moravam as duas raparigas; e falava-se disto com     certos olhares, com certas reticências e sorrisos, mais malignamente     eloqüentes do que murmurações explícitas.

Escusado será dizer que na loja do Sr. João da Esquina encontravam     estas meias vozes um eco admirável.

Daniel concorreu para exacerbar esses vagos rumores populares.

Um dia, em que se entretivera meia hora conversando da rua para Clara, passou,     ao retirar-se, por um jornaleiro, que trabalhava a pouca distância dali.     Este homem, com aquele ar de simpleza velhaca, tão vulgar na gente     do campo, pôs-se a cantar:

Caçador que vais à caça;     Muito bem armado vais;     Os olhos levais por armas,     E, em vez de tiros, dás ais.

Ora esta era uma das vezes em que Daniel voltava a casa sem uma vitima da     sua espingarda, que nem chegara a descarregar.

A cantiga do aldeão irritou-o, pareceu-lhe que era uma alusão     insolente; mas teve a prudência de se não dar por entendido e     passou sem dizer nada.

No da seguinte, porém, reproduziu-se o fato.

Voltando outra vez e à mesma hora, de uma caçada, igualmente     incruenta, ouviu de novo o jornaleiro a cantar.

Singular caçada a tua,     Arrojado caçador,     Que, em lugar de penas de aves,     Só trazes penas de amor.

Era demasiada a ousadia, para que Daniel a sofresse. Parou e olhando para     o homem, o qual, de atento que estava na tarefa, nem pareceu dar por ele,     dirigiu-lhe a palavra:

— Ó maroto!

O jornaleiro fingiu reparar então pela primeira vez em Daniel, e,     levando a mão ao chapéu, disse cortejando:

— Nosso Senhor lhe dê muito boas-tardes. O patrão quer     alguma coisa?

— Quero avisar-te que andarás com juízo se deres outro     jeito ás tuas cantigas quando eu passar por aqui.

— Então que cantava eu? Já não me lembra, se quer     que lhe fale a verdade.

— Pois, se na terceira vez te escutar, eu te prometo que to gravarei     melhor na memória.

E dizendo isto prosseguiu Daniel no seu caminho.

A prudência do homem aconselhou-o a que não cantasse mais; porém,     em compensação, foi um dos mais atendidos oradores dos diferentes     círculos, onde a vida de Daniel era discutida com aquele ardor de curiosidade     e bisbilhotice próprias da aldeia.

À Margarida não dava também pouco que pensar a freqüência     com que Daniel lhe passava à porta. Sabia já que ele tinha tomado     parte na esfolhada, e quase tudo o que sucedera então. O resto talvez     que o adivinhasse, conhecendo, como conhecia , o caráter de Clara e     os seus atos irrefletidos que por vezes a prejudicavam. Além disso,     certos indícios que não escapam à perspicácia     de vistas de uma mulher que observa outra, começavam a dar-lhe canseiras.     E tinha razão para estes receios. Mas alguém os concebera já.

Um dia, o reitor, voltando para casa, encontrou Daniel, a cavalo, debaixo     das janelas de Clara, e conversando animadamente com ela. O padre não     gostou muito disto; e logo lhe veio à idéia a primeira e as     sucessivas proezas do seu antigo discípulo. Cortejou-os e passou adiante     sem dizer palavra.

Encontrando-se, porém, a sós com Clara, pouco tempo depois,     foi-lhe dizendo com diplomático ar de naturalidade, estas palavras     ambíguas:

— Escuta, ó Clara: olha que um enxoval é uma coisa séria.     Todos os cuidados e atenções são poucos, quando se está     trabalhando nisso; e tu, minha filha, distrais-te algum tanto. Se eu estivesse     no teu lugar, nem trabalhava à janela. É tão fácil     a distração aí.

Clara respondeu de um modo galhofeiro, como costumava. Era-lhe difícil     tomar alguma coisa a sério.

O padre procurou depois Margarida, e disse-lhe:

— Lembras-te do que te recomendei há tempos, Margarida? Não     tires as vistas de Clara. É uma espionagem necessária e para     bem dela; por isso, não deves ter escrúpulo em fazê-la.

— E por que me repete agora outra vez essa recomendação,     Sr. Reitor?

— Eu cá me entendo. Faze o que eu te digo, Margarida.

E ao retirar-se, dizia consigo o bondoso pároco:

— Também não sei que demoras são estas com o casamento!     É preciso dar aviamento a isto!

As palavras do reitor aumentaram a preocupação de Margarida,     parecendo vir justificá-la. Mas como aconselhar a irmã, se ela     lhe furtava todos os ensejos de confidências? Margarida fez o que o     padre lhe ordenara. Pôs-se a espiar Clara. Foi uma amarga prova para     aquele caráter feminino, e por dois motivos diversos - repugnava-lhe     o papel que se viu obrigada a desempenhar, e depois a execução     dele a cada instante estava lhe valendo descobertas, que dolorosamente lhe     rasgavam o coração.

Ela percebeu que em Clara se passava alguma coisa singular.

Ao aparecer Daniel, ou quando ao longe lhe soavam os passos, já os     olhos de Margarida viam espalhar-se, pelas faces da irmã, uma turbação     pouco discreta; era com vivacidade não disfarçada que se curvava     para o ver passar e com voz alterada de sobressalto que lhe respondia e conversava     com ele.

Todas estas observações inquietavam Margarida. Padecia pela     felicidade de Clara, que via ameaçada assim, e por si, cujas antigas     ilusões, cujo sonho oculto, que, apesar de não ter confiança     na sua realização, ela acalentava ainda, se iam pouco a pouco     desvanecendo, - e em que desprestigiosa realidade.

 

Uma tarde, estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar, à janela     do lado da rua.

A luz do sol apenas dourava já os cimos dos montes mais elevados e     longínquos. Aproximavam-se as horas, às quais Daniel costumava     passar ali.

Já por mais duma vez dirigira Clara a vista pelo caminho que ele ordinariamente     seguia: era uma vereda íngreme e tortuosa que vinha do alto da colina     à planura, onde estava situada a casa, e daí descia ao vale     - centro principal do povoado.

Porém, sempre que os olhares de Clara tomavam aquela direção,     encontravam-se com os da irmã, e instintivamente se abaixavam logo.

Margarida não estava também tranqüila naquela tarde. Em     toda a fisionomia dela, em todos os gestos e palavras, denunciava-se, por     sinais evidentes, um violento desassossego interior.

De quando em quando, voltava-se para Clara, como se resolvida a falar-lhe,     a comunicar-lhe alguma coisa que a preocupava; mas, num momento, parecia abandoná-la     a resolução e permanecia silenciosa.

O estado de espírito de uma e de outra mal lhes permitia sustentar     a conversa, a qual procedera frouxa e interrompida, a todo instante, por freqüentes     pausas.

De uma vez, porém, a impaciência de Clara, ao observar o caminho,     por onde era de esperar Daniel, desenhou-se-lhe tão expressiva na fisionomia,     que isto deu ânimo a Margarida para vencer a hesitação     com a qual lutara até ali. Fixando a vista na costura em que trabalhava,     principiou dizendo, em tom de gracejo:

— É na verdade uma pena, Clara, que tu, que tens tão     bonitos olhos, teimes em os trazer assim fechados,

— Fechados? Que queres tu dizer, Guida?

— Que os fecha para muitas coisas, que é sempre perigoso não     ver, filha.

—Não te entendo - disse Clara, sorrindo.

Margarida prosseguiu:

— Mas isso é gênio teu. Tu andas no mundo, como de noite     pelos caminhos da aldeia. Não te lembras, quando, no outro dia, saímos     mais tarde de casa do nosso pobre mestre? Fazia muito escuro. Eu, a cada passo,     estava a parar; parecia-me por toda a parte ver fojos e barrancos, tu rias-te     de mim e seguia sempre para diante, com uma confiança naquela escuridão,     como se realmente fosse estrada direita.

— E olha que não cai! - acudiu intencionalmente Clara, que julgou     principiar a compreender o sentido das palavras da irmã.

— Não; é certo que não. Parece que há uma     estrela que protege quem assim é animoso; como se todo esse ânimo     não fosse outra coisa senão a mão do Anjo da Guarda a     guiá-lo, sem se mostrar. Mas olha: lembras-te quando uma vez, voltando     assim de noite a casa, e sem escolher caminho, vieste dar aos lameiros dos     Casais? Viste-te obrigada a tornar para trás, e, como se adiantava     a noite, tiveste de ir ficar a casa da tua madrinha, nos Cabeços. Que     susto que eu tive, Santo Deus! se eram já altas horas, e tu sem chegares?

— É verdade. E por sinal que me mandaste procurar.

Mandei. Imagina lá como eu fiquei, como ficamos nós todos quando     sendo já madrugada, nos voltaram a casa com uma das argolas das orelhas,     que tinham encontrada meio enterrada nos lameiros.

— Tinha-me caido lá, tinha.

— Julgamos-te perdida, morta. Ainda não havia muito que lá     morrera afogado aquele pobre cabreiro. Hás de estar certa? Que noite     passei, Nossa Senhora! E tu...

— E eu a dormir muito descansada em casa de minha madrinha. Pudera     não. Imagina tu que eu tinha andado... léguas, talvez.

— Mas aí está como, sabendo-te salva como dessa vez te     sabias, os outros, por alguns sinais mentirosos, como aquele, te podem julgar...     perdida.

E Margarida calou-se, depois de fazer esta observação.

Clara olhou algum tempo para a irmã, sem dizer palavra: em seguida     replicou, parando de trabalhar:

— Fala-me claro, Guida. Dize o que me tens a dizer. Que precisão     tinhas de vir com isso, para me dares um conselho? Alguma coisa fiz eu, que     te desagradou. Vamos, dize o que é. Acaso já deixei de escutar-te     alguma vez como tu mereces?

— Tens razão, Clarinha. Eu devia ter mais ânimo para te     falar... para te dizer certas coisas, vendo como tu me atendes sempre... Mas,     que queres? Ao mesmo tempo, tenho tanta confiança em ti, que pergunto     a mim mesma, se valerá a pena estar a mortificar-te assim...

— Mas então que mal tenho eu feito?

— Ora! que te responda a tua consciência, Clarinha; pergunta-lho.

— Não sei... - disse Clara, um pouco perturbada.

— Não é de nenhum pecado mortal que ela te acusará,     de nenhum crime muito negro; sossega. Mas de uma culpazita... de uma fraqueza     dessa cabeça, um pouco mais leve, do que para uma noiva se queria.

— Bom. É o sermão de costume. Já vejo - disse     sorrindo, Clara. - Sabes ao que acho graça? É a não ser     o Pedro que o prega. Esse tinha mais desculpa. Mas então que fiz eu     de assim de maior?

— Ora vamos. Para que precisas que eu to diga? Ia afirmar que, agora     mesmo, o estás a dizer baixinho a ti própria.

Houve um pequeno silêncio entre as duas.

No fim dele, Clara ergueu a cabeça, dizendo:

— Sim, parece-me que sei o que é. O Sr. Reitor já no     outro dia me deu a entender o mesmo. É por eu falar com o Sr. Daniel     quando ele passa por aqui? Santo nome de Maria! Como há de ser isto,     então? Não me dirás, Guida? - continuava Clara jovialmente.      - Como hei de eu, depois de casada, deixar de conversar com o irmão     do meu marido? Que idéia fazem de mim, tu, o Sr. Reitor e todos os     que nisso repararam?

— Bem vês, Clarinha, que não é de ti que eu receio.     Conheço-te. mas tu bem sabes, o Sr. Daniel é... dizem dele...     passa por...

E Margarida hesitava, ao procurar exprimir a opinião pública     a respeito de Daniel, porque todas as frases lhe pareciam demasiadamente duras     e severas para com o caráter dele.

— Nem sei o que me parece ouvir-te dizer isso. Ainda que ele fosse     o que por aí dizem, conserve-se uma pessoa no seu lugar, que nada pode     temer. Querias talvez que eu fizesse como aquela gente , no outro dia, na     esfolhada, que toda se encolhia quando ele chegou?

— Na esfolhada? - disse Margarida, ainda sem olhar para a irmã.      - Ora tu que ainda me não contaste nada do que se passou naquela noite!

Esta alusão embaraçou manifestamente Clara, que se apressou     a dizer, como se a não tivesse ouvido.

— E demais, não tens tu escutado todas ou quase todas as conversas     do Sr. Daniel comigo? Aí tens estado, por dentro da janela, e sem que     ele o saiba. De que o ouves falar? Diz-me alguma coisa que eu não deva     ouvir? Conta-me o que viu na cidade, o que leu, histórias, versos...      - e como conta bem! - e queres que eu me não entretenha a ouvi-lo,     quando tu mesma, às vezes, sim, que eu bem tenho reparado, deixas de     trabalhar, e ficas quieta a escutá-lo também! Então que     há nisto de mal?

— Mas então? Já se fala... Que se lhe há de fazer?     O mundo tem maldades, e nós vivemos no mundo... Há gente de     tão más tenções, que, só pelo gosto de     fazer mal, pode ir às vezes inquietar o espírito de Pedro, com     histórias mentirosas, e daí sabe Deus...

O ruído de uma cavalo a trote, que vinha do lado dos montes, interrompeu     o diálogo. Clara dirigiu para lá os olhos, e viu um cavaleiro     que se aproximava, saudando-a de longe.

Era Daniel.

— Olha; falai no ruim... - disse ela para Margarida, que instintivamente     retirou a cadeira da janela.

— Vais ver - prosseguiu Clara - como eu sou amiga de fazer vontades.     Vou acabar com isto, já que assim o querem... isto é, já     que assim o queres; pois dos outros bem me importava a mim.

— O melhor é... - ia dizer Margarida, quando a voz de Daniel,     falando da rua para a janela, a obrigou a calar.

— Muito boas-tardes Clarinha - dizia ele. - Receava não a ver     já hoje; por isso obriguei este pobre animal a um trote por estes caminhos     de cabras abaixo, que muito pouco lhe agradou.

— Então tinha o que me dizer?

— Nada. Era para não perder o meu dia. Quando vi fechadas as     folhas da mimosa da Quinta da Feira, temi vir encontrar já fechada     também a sua janela, Clarinha.

— Era pena! - disse Clara, sorrindo; e depois, debruçando-se     ao peitoril, acrescentou, lançando com disfarce, um olhar para a irmã:      - Tenho a pedir-lhe um favor, Sr. Daniel.

— Que felicidade para mim! Diga.

— Quando de hoje em diante, voltar para casa, não há     de vir por este sítio.

— Clara! - disse Margarida em voz baixa, puxando pelo vestido da irmã.

Clara não a atendeu.

— Por que me faz este pedido? - perguntou Daniel, admirado.

— Porque, segundo me dizem, deram-lhe para reparar por aí nestes     seus passeios, e então, para não inquietar o mundo...

— Clarinha, que estás a dizer! - murmurava Margarida, escondendo-se     por detrás da irmã.

Clara fingia não ouvi-la.

— Tenho-a ofendido por acaso alguma vez? - perguntou Daniel.

— Em coisa nenhuma. Bem vê que eu digo que é pelo mundo...

— Então deixe falar o mundo.

— Não é tanto assim. Talvez o fizesse se não fosse     noiva. Parece-me até que o fazia, mas assim...

— Esta vida de aldeia! ... exclamou Daniel, num tom de supremo enfado.      - esta vida de mexericos e de maledicências velhacas! Praga maldita     das terras pequenas, onde faltam coisas sérias em que pensar! Ora vejam     no que esta gente se ocupa? Em saber o que eu faço, como vivo, para     onde vou, com quem converso; e isto entretêm-na! Então repararam     já em eu passar por aqui? Como se não fosse coisa muito natural     conversar consigo, Clarinha. Pois não somos nós parentes quase?

— Isso dizia eu à...

Um sinal de Margarida obrigou-a a interromper-se. Limitou-se a dizer, mutilando     a frase e mudando a inflexão:

— Isso dizia eu.

— Afinal, não há como viver na cidade - continuou Daniel     - Lá pode um homem conversar com uma senhora, apertar-lhe a mão     até, que ninguém repara nisso. Aqui andam a espiar tudo o que     se faz e a tomar tudo a mal. Que costumes estes!

E Daniel prosseguiu numa longa imprecação contra a vida campestre,     exaltando a urbana, o que demorou, ainda por muito tempo a conversa.

No fim dela, renovou Clara o pedido, e conseguiu que Daniel, depois de alguma     resistência, lhe dissesse a sorrir:

— Pois bem; esteja certa que eu farei com que não falem de mim.     Não me hão de ver mais aqui.

E partiu.

— Estás satisfeita? - perguntou Clara, voltando-se para a irmã,     logo que o perdeu de vista.

— Não - respondeu esta.

— Por que não?

— Queria que fosses tu a que deixasses de aparecer, e não lhe     falasses assim.

— Por outra - tornou Clara - levemente despeitada - querias que eu     fosse grosseira.

— Não - respondeu Margarida, abraçando-a - queria que     fosses prudente.

 

Daniel cumpriu a promessa que fizera.

No dia seguinte, à hora costumada, não passou por casa das     duas raparigas.

Era para admirara nele esta pronta condescendência às opiniões     do público.

A própria Clara não tinha esperado encontrá-lo tão     dócil; não ousamos dizer que também o não tinha     desejado, ainda que dos freqüentes olhares que dirigia para o sítio,     donde todos os dias costumava vê-lo aparecer, alguém tiraria     talvez esta ilação.

Cerrava-se a noite. Havia muito tempo que o toque das ave-marias tinha ido     perder-se nas mais distantes serras, que limitavam o horizonte. O fumo das     choças e das herdades difundira-se sobre a aldeia. O zumbido dos ralos,     essa incômoda sinfonia, com que rompem no estio as harmonias do crepúsculo,     era atordoador.

Principiavam a cintilar as estrelas no céu, apenas muito para o ocidente,     uma estreita faixa restava ainda do dia que fenecera.

Clara saiu de casa, em direção a uma pequena fonte que havia     nas proximidades dela, e ao final da estreita rua, que acompanhava o muro     dom quintal.

De dia, era esta fonte muito procurada, em virtude da excelência das     águas, gabadas de tempos imemoriais, pelos clínicos da localidade,     quase como milagrosas em infinitos casos de doenças. Não obstante     a absoluta carência de princípios medicinais não justificar     a nomeada.

Depois das trindades, porém, o solitário e sombrio do lugar     afugentava a gente supersticiosa do campo.

Clara, criada de pequena por aqueles sítios, e desde então     costumada a não os temes, de propósito escolhia estas horas     para mais à vontade fazer sua provisão de água, e demorava-se     ali sem a menor sombra de terror, antes cantando sempre, com ânimo desafogado.

Como o leitor decerto prevê, não era nenhum monumento arquitetônico     a fonte de que falamos.

Imagine-se uma boca de mina, aberta na base de um pequeno outeiro, que, todo     assombrado de pinheirais, se alongava a distância, na direção     do norte da aldeia; uma telha, meia quebrada, servindo de bica; e a receber     o abundante e inesgotável jorro de água límpida, uma     bacia natural por ele mesmo cavada, e onde, à vontade, vegetavam os     agriões ávidos de umidade.

Do pinhal sobranceiro descia-se à fonte por alguns degraus grosseiramente     abertos, havia muito tempo, no terreno saibroso do outeiro, e aperfeiçoados     pelo trilho cotidiano dos que se serviam dos atalhos do monte com o fim de     encurtar distâncias dali a diversos pontos da aldeia.

Ao lado, e separado alguns passos da fonte, abria-se um desses enormes barrancos     rasgados pelas torrentes de sucessivas invernos e cuja entrada quase disfarçavam     os troncos robustos dos fetos e das giestas que, crescendo livremente, haviam     atingido proporções quase tropicais.

Quando Clara chegou à fonte, não havia lá ninguém.

A cantar, aproximou-se dela, e ajoelhando, principiou a encher o cântaro     de barro que trazia.

A água caiu ao princípio ressoante no interior do vaso; depois     amorteceu gradualmente o som, à medida que subia o nível do     líquido; este dentro em pouco transbordava.

Clara ia levantar-se. Na posição em que estava, tinha voltadas     as costas para a entrada do barranco. Neste momento pareceu-lhe ouvir algum     rumor daquele lado.

Não foi superior a um vago sentimento de susto. Voltou-se inquieta.     Deu com os olhos numa forma escura, e em breve reconheceu mais claramente     ser um vulto de homem, que se aproximava dela.

Soltando um grito, Clara ergueu-se de súbito para fugir.

Segurou-a a tempo um braço e falou-lhe uma voz conhecida:

— Que vai fazer? Não se assuste. Sou eu.

Era a Voz de Daniel.

— Santo nome de Jesus! - exclamou Clara ao reconhecê-lo e ainda     tomada de susto. - O que faz por aqui?

— Vim vê-la - respondeu Daniel, com a maior naturalidade.

— Então é assim que cumpre o que ontem me prometeu?

— Pois que prometi eu, senão fazer com que me não vissem?     É o que faço, vindo agora só e aqui.

— É pior, muito pior isto - disse Clara, lançando-se     em volta de si olhares de inquietação.

— Não é - continuou Daniel. - Pois não me disse     que não desconfiava de mim? Não foi só por condescender     com os reparos tolos de meia dúzia de curiosos e de velhacos que me     pediu... que exigiu de mim que não viesse? Falando-me assim, neste     sítio e a esta hora, não pode recear alguém. Lembra-se     de me haver dito que o povo tinha medo de passar de noite por aqui?

— Mas, apesar disso. Jesus, meu Deus! - continuava Clara sobressaltada.      - E para que havia de procurar falar-me? que tem que me dizer?

Daniel sorriu.

— Que pergunta a sua Clara! Imagina lá a minha vida na aldeia?     devoram-me desejos de conversar. Mas não tenho com quem. Privando-me     de a ver, Clarinha, afastava-me da única pessoa, das que até     agora tenho encontrado, com quem se pode sustentar uma conversa seguida e     agradável. Veja se não seria crueldade proibir-me...

— Não diga isso - respondeu Clara - Eu entendo-o às vezes,     sim; mas é quando todos o entendem também; quando a sua conversação     mais me entretém, tenho notado que muitos o escutam como eu, com atenção.     Mas doutras vezes...

Neste ponto Clara reteve-se, como se receasse terminar.

— Doutras vezes? ... repetiu Daniel sorrindo.

— Doutras vezes não o entendo, e é sobretudo quando fala     só para mim.

— Não me entendes? - perguntou Daniel, com uma inflexão     de voz, que fez estremecer Clara.

— Não, não o entendo porque não posso... porque     não quero... porque não devo acreditar na verdade do que me     parece entender.

— E quando lhe falei assim, diz-me?

— Um dia, começava a falar-me desse modo em casa daquele doente     que foi ver. Doutra vez... Oh! e dessa!... foi aquela noite da esfolhada,     em casa de seu pai.

— E não me entendeu nessa noite?

— E queria que o entendesse?

— Pois não deve ser o desejo de quem fala? - perguntou Daniel     dum modo jovial.

— Eu ouço dizer que há muitas pessoas que falam a dormir,     quanto dariam esses por não serem entendidos, então?

— Mas eu nunca fui sonâmbulo, Clarinha.

— Tanto pior para si.

— Por quê?

— Porque então é mau.

— Mau!

— Mau, sim. Eu não sei de maior maldade do que a daqueles que     andam por aí a inquietar o sossego das famílias, a alegria dos     corações, e só por gosto e fazer infelizes.

— Então eu...

— Basta, Sr. Daniel. Se é homem de bem, retire-se ou deixe-me     retirar - disse Clara, com arde seriedade e nobreza que o impressionou.

Dando também às suas palavras mais grave tom, Daniel respondeu:

— Escute, Clara. Acredite que não fala com um homem de sentimentos     perdidos; escute-me e tranqüilize-se. Eu conheço em mim um princípio     mau, é verdade; mas creia que não lhe ando tão sujeito     que nem compreenda já a força dos meus deveres. Conceda-me ainda     um pouco de consciência. As vezes, muitas vezes até, deixo-me     arrastar por esta força, que me leva a loucuras, que chega talvez a     aproximar-se de uma vileza... mas, ao chegar ai, até hoje tenho resistido     e espero... Perdoem-me isto, por quem são. Cedo me verão arrependido.

— Cedo! e quando é cedo ou tarde? sabe-o lá? Quem lhe     há de dizer que é cedo? Cedo para si poderá ser; e para     outros também? Há poucos dias, que todos por aí só     falavam de uma pobre rapariga, a quem , por divertimento o Sr. Daniel trazia     quase doida. Está arrependido, não é verdade? Mas arrependeu-se     cedo para ela? Amanhã poderiam dizer de mim...

— Que hão de dizer, Clarinha? Essa rapariga de que fala, não     fui eu que a fiz doida; engana-se; encontrei-a já assim. Eu não     trabalhei para a perder; também se engana; os seus é que se     esforçaram por a darem por perdida. A Clarinha esquece que a si todos     respeitam e que...

— Não é verdade. Em que sou eu mais que as outras? Ninguém     está acima das vozes do mundo. E se até agora tinha razão     para não me importar com elas, por me não julgar culpada, teria     de as temer, se continuasse a ouvi-lo aqui. Adeus.

— Vejo que me enganava ainda ontem, dizendo-me que tinha confiança     em mim. Esses receios...

— Enganaria; mas enganava-me a mim mesma, também. Eu não     sei mentir. E a prova é que sinceramente lhe digo agora que desconfio.

— De mim?

— De si, sim, por que não? As suas ações não     são leais. Vê que, vindo procurar-me aqui, me pode perder, e     não se importa fazê-lo; peço-lhe que se retire, e teima     em ficar; peço-lhe que me deixe retirar, e impede-mo. Brinca assim     com minha reputação sem se lembrar que sou quase já a     mulher de seu irmão, quase a filha de seu pai, quase sua irmã     também. Diz que sabe quais são seus deveres... e como é     que os cumpre então? Se Pedro passasse por si, neste momento, e lhe     abrisse os braços, como a irmão que é, teria valor para     o abraçar, diga? Não fugiria antes dele como um criminoso? Fale.

Daniel curvava a cabeça, sem coragem para responder.

Clara prosseguiu:

— Peço-lhe pela alma de sua mãe, que nunca mais me procure     aqui, que nunca mais me procure em parte nenhuma. Ontem ainda me ri eu dos     avisos que recebia para me acautelar; hoje, já não sinto vontade     de me rir. Tinham razão eles, tinham; agora o vejo; e este meu gênio     é que me podia perder. Se por mim não é bastante pedir-lhe,     peço-lhe por seu irmão, por sue pai, e por si mesmo, que assim     anda a perder o crédito de um nome, que nenhum dos seus nunca deixou     de honrar.

— Está sendo muito cruel para mim, Clarinha. Concordo que fui     imprudente, inconsiderado, mas... Confesso-lhe que a impressão que     me causou e que me causa...

— Sr. Daniel, eu não quero saber os seus segredos. Deixe-me     retirar.

—Pois bem, será esta a última vez que a procuro, que     lhe falo até, que a vejo, se tanto exigir de mim; mas ao menos desta     vez há de escutar-me.

— Mas, para que preciso eu escutá-lo? - dizia Clara pelo tom     de exaltação que ele falava.

Daniel continuou:

— Todos só têm palavra para me censurar, e ninguém     há de ver um dia claro no meu coração? Ninguém,     melhor do que eu, conhece a fraqueza ingênita deste caráter,     que não sabe lutar; mas o que eu não sei, o que eu peço     que me digam é o remédio para este mal. Clara, não procure     fugir sem ouvir-me. Retirar-se-ia supondo pior do que sou, como todos que     me conhecem. Eu quero que ao menos uma pessoa saiba a verdade a meu respeito.     Escute.

E, ao dizer isto, segurava o braço de Clara, que temia de inquietação.

Neste momento, os passos de uma cavalgadura a trote rasgado soaram próximos,     no caminho que vinha terminar defronte do lugar onde esta cena se passava.

Clara não pode reprimir um grito de susto.

— Jesus, que estou perdida! - exclamou ela; e soltando o braço     que Daniel lhe segurava ainda, fugiu na direção de casa.

Antes, porém, de transpor a esquina que a devia ocultar às     vistas de quem quer que era que se aproximava , e de conseguir fugir pela     porta do quintal, o cavaleiro, tendo-a avistado e conhecido bradava rijo:

— Ó Clara, Clarita! Rapariga! Ó pequena! Pichiu! Eh!     Onde vais com essas pressas? Não são os franceses, sossega.

O homem que bradava assim, era João Semana, que voltava de uma visita     distante. Vendo a Clara a fugir tão apressada, conjeturou que ela se     assustara, supondo-o algum facinoroso ou mal intencionado, e por isso berrava     para lhe fazer perder o medo.

Mas ao aproximar-se da fonte, o velho cirurgião descobriu alguma coisa,     que lhe pareceu procurava ocultar-se dele.

— Hum! - murmurou consigo o velho. - Pelos modos, o susto da rapariga     era de outra espécie... Há de ser o Pedro.

E acrescentou em voz alta:

— Olá, não fujas, rapaz; não é crime nenhum     vir falar assim com uma noiva; ainda que, para dizer a verdade, escusava de     ser tanto às escondidas, escusava.

E com isto foi dirigindo o cavalo para aquele vulto, que parara, desde que     viu que não podia fugir sem ser percebido. À medida que se aproximava,     João Semana principiou a duvidar que fosse Pedro, o homem da entrevista     noturna.

Parecia-lhe menos corpulento do que o primogênito de José das     Dornas.

A esta suspeita, sulcou uma ruga profunda o longo da fronte do honesto celibatário,     que decidiu consigo averiguar aquele mistério.

 

Tendo formado esta resolução, João Semana picou a espora     de sua égua, a qual, estranhando a insólita amabilidade, de     um salto o apresentou junto de Daniel que era, como o leitor sabe já,     o vulto em questão.

Daniel, vendo-se descoberto, julgou que o melhor partido era entrar em jogo     rasgado.

— Boas-noites, colega - disse ele em tom prazenteiro, e caminhando     para João Semana.

Este deu um estremeção na sela ao reconhecer o seu jovem confrade.     O não muito favorável conceito que ultimamente formava dele,     em relação a certas qualidades morais, fê-lo agourar mal     de sua presença naquele lugar.

— Ah! Ah! Você por aqui! Anda a fazer versos?

— Ou a inspirar-me para isso.

— Não é mau o sítio, não. E ao mesmo tempo     pode dar-se a estudos de química também; a água desta     fonte...

— Já me disseram que é medicinal.

— É excelente.

— Para que moléstias?

— Para muitas. Agora o que não sei é se para certos esvaimentos     de cabeça também servirá. Bom era que sim, que anda por     aí muito disso.

Daniel fingiu não entender a alusão, e observou com modo natural.

— Está aqui muito agradável.

— Ai, o sítio é bom, lá isso é. E para     a caça?! Não gosta de caçar?

— Alguma coisa.

— Pois por estes montes há caça famosa. Ainda agora,     quando eu vinha, fugiu daqui uma...lebre, e com uma pressa admirável.     Não a viu?

— Não, não vi.

— O que é ser poeta! Não se vê coisa nenhuma. Com     os meus oitenta anos vejo eu melhor. Pois é verdade; atravessou neste     mesmo instante por esta rua... ia a jurar até que se escondeu ali no     quintal; pareceu-me vê-la escapar através daquela porta.

— Tens boa vista, João; mas não tão boa, que te     não passe por alto um amigo velho.

A voz, que dissera estas palavras, parecia vir do ar.

João Semana levantou a cabeça e deu com os olhos do reitor     muito pachorrentamente estabelecido sobre o tronco de um pinheiro derrubado     no topo das escadas que desciam do outeiro.

João Semana ficou espantado com a tal descoberta, e só isso     o impedia de notar que Daniel o não ficara menos. Quando, porém,     desviou para este os olhos, encontrou-o já sem sinal de perturbação,     e até anediando os cabelos com toda a naturalidade.

As suspeitas, vagamente concebidas pelo cirurgião, desfizeram-se.

— Que diabo fazeis vós ambos aqui? e tu então de poleiro,     abade?!

— É que isso aí embaixo é úmido como um     charco, e eu não quero dar-te o que fazer com o meu reumatismo, João.     Mas eu desço, eu desço.

— Não, não, deixa-te lá estar. Lá por isso..

— Não que vão sendo horas também de me chegar     até casa. Pois é verdade - continuava o pároco, apoiando-se     na bengala, e descendo, com vagar, e cautelosamente, aos poucos suaves degraus,     cavados no saibro do monte - pois é verdade; estávamos nós     aqui, eu com o Daniel e a Clarita, a conversar...

— Ah! bem me pareceu que era ela...

— Era ela, sim. Então que dúvida? Olha que sempre fizeste     uma descoberta!

— Mas para que diabo fugia a rapariga, então?

— Diz antes por que diabo não fugimos nós. Mas o meu     reumatismo é que me não deixou. Quando me hás de tu dar     um remédio para isto, homem?

— É pregar com os ossos nas Caldas, querendo. Mas, dizias tu     fugir? Para que haviam de fugir de mim?

— De todos. Quando se conspira...

— Então vocês?

— Conspirávamos, sim, senhor. Aqui mesmo onde nos vê,     estávamos a combinar uma coisa...

— Que diabo era o que combinavam?

— Combinávamos...

O reitor achava-se um pouco embaraçado por nada lhe ocorrer a propósito;     por isso exclamou para contemporizar:

— Que maldito costume tu tens, João, de estar sempre com o nome     do inimigo na boca! Perde-me esse jeito.

— Pois sim, sim; hei de fazer por isso, apesar de que já vou     um pouco tarde. Eu digo agora como aquele franciscano a quem repreendiam por,     já na idade avançada, cair anda na fraqueza, em que Noé     caiu: "Já agora hei de morrer com isto, dizia ele; porque de duas     uma: ou já estou condenado, e então não sei que lhe faça;     não vale a pena a emenda; ou não estou, e quem pode perdoar     uma bebedeira de quarenta anos, não deve por dúvida em perdoar     a de meia dúzia mais". - Mas então o que combinavam vocês?

A renovação da pergunta, depois da referência do caso,     fez perder ao reitor as esperanças de eximir-se a responder. Quando     João Semana conservava uma idéia fixa, través da narração     de qualquer anedota de frades, era para dificilmente a deixar.

Conhecendo isto por experiência, o reitor resignou-se; e, ainda sem     saber o que dizia, principiou a responder:

— Combinávamos...

E fingindo arrepender-se, exclamou:

— Mas é boa essa! Não há senão perguntar.     Tu não deves entrar no segredo. A coisa é entre nós três.

— Homem, diz lá o que é. Que diabo...

Um gesto dom pároco obrigou João Semana a corrigir-se.

— Que S. Pedro de escrúpulos são esses agora?

A substituição do nome do espírito maligno pelo do apóstolo     não lhe valeu a resposta que pedia, e que o reitor de boa vontade lhe     dera, se a tivesse para dar.

— E a teimar - dizia o padre ganhando tempo. - Sempre és um     curioso.

Daniel interveio enfim

— Olhe, Sr. João Semana, basta que saiba, e depois não     pergunte mais nada, que estávamos preparando uma surpresa a meu irmão     Pedro, para o dia do casamento dele.

O reitor franziu as sobrancelhas, ao ouvir Daniel. Apesar do auxílio     que ele viera lhe dar, desgostou-o a presença de espírito que     mostrava, quando devia estar enleado de confusão e de vergonha; foi     por isso que acrescentou com num evidente tom de severidade e irritação:

— Casamento que, se Deus quiser, hei de brevemente abençoar.     Estás agora satisfeito, João semana? Pois é verdade.     Daniel meditava grandes novidades para o dia do casamento do irmão,     grandes festas por causa dele e da noiva, et cetera, et cetera. Mas o seu     projeto não mereceu, nem merece a minha aprovação.

Daniel baixou os olhos ao ouvir estas palavras do padre.

Este prosseguiu:

— Clara pensa como eu, mas este homem é obstinado, e através     de tudo, teima em seguir sua vontade; mas eu protesto que...

— Vejo que não me entendeu, Sr. Reitor - disse Daniel com vivacidade.

— Entendi, entendi, homem. E julgo que não acho a propósito     entrar agora em maiores explicações.

Daniel guardou silêncio.

— Mas não podiam tratar disso em casa? teimou João Semana,     que não largava assim facilmente uma idéia, de que se tivesse     apossado.

— E a dar-lhe! Não há que se lhe faça - dizia     o reitor. - Homem, nós não queríamos que a Margarida     soubesse nada disto, porque... porque... Mas tu vais a cavalo, e nós     a pé. Segue o teu caminho, e apressa-te, que a Joana já há     de estar com cuidado pela tua demora.

— E eu com vontade à ceia.

— Então, por que esperas? Vai com Deus, homem.

— Até amanhã, abade. Adeus, Daniel. Olhe lá como     se porta, rapaz. Juizinho!... senão está mal servido com a sua     vida. Lembre-se daquele frade...

— Aí, se te pegas a contar histórias, não chegas     a casa à meia noite.

— Pois já não conto.

E fustigando a égua, desapareceu cedo da vista dos dois.

Logo que se afastou, Daniel ia dirigir-se ao padre.

— Sr. Reitor, foi providencial a sua vinda. Acredite porém...

O gesto cheio de severidade, com que o reitor o acolheu, não o deixou     continuar.

— Basta. Não quero escutá-lo. Explicações     não as preciso, por que ouvi tudo; justificações não     as tem, não as pode ter, para dar. Boas-noites.

E, colocando-se diante da porta de suas pupilas, à frente da qual     haviam chegado, afastou-se para deixar passar Daniel.

— Mas... - ia este a dizer.

— Boas-noites - repetiu secamente o reitor, e tão secamente,     que fez perder a Daniel a coragem de insistir.

Curvando-se com respeito diante do velho, retirou-se dali.

O reitor, ficando só, entrou em casa das raparigas.

Depois de trocar algumas palavras com Margarida, chamou de parte Clara, e     em tom um pouco desabrido, disse-lhe:

— Julgo que recebeste hoje um aviso do teu Anjo da Guarda, Clara. Olha     agora se o aproveitas.

Quando a rapariga, levantando para ele os olhos, ia a interrogá-lo,     o padre afastou-se, dizendo-lhe simplesmente:

— Adeus.

Dissera bem o reitor.

Clara ouvira de fato o seu Anjo da Guarda.

Aquela noite conheceu o perigo do caminho que seguira, a sorrir; e resolveu     fugir-lhe. E iria já a tempo? pensava ela.

Da involuntária entrevista, que tivera com Daniel, saíra salva     de todo? de todo livre de suspeitas?

A voz de João Semana, chamando-a de longe, mostrava-lhe que ela fora     reconhecida. Mas que se passara depois? O reitor parecia também estar     informado do sucedido. Como o teria suspeitado ou previsto?

Mas, por outro lado, o tom moderado das palavras que lhe dissera, levou-a     a crer que ele conhecia a verdadeira extensão da sua culpa, e não     a exagerava.

No meio desta corrente de pensamentos, Clara, às vezes estremecia.

Se no dia seguinte, lembrava-se então, se levantasse contra si um     desses boatos surdos, rápidos a propagar-se, prodigiosos a crescer,     que infama, que mancham de lodo as mais firmes reputações, e     inoculam seu veneno sutil numa existência inteira?

A esta lembrança, Clara erguia as mãos com terror.

Aos pés de uma imagem da Virgem, pedia então misericórdia,     e prometia evitar, dali em diante, todas as ocasiões de novos perigos.     Daquela condenação, cuja lembrança bastava só     para a assustar assim, a salvara um acaso... ou antes a Providência.

O reitor, a cujos ouvidos continuavam a chegar todos os dias vozes desfavoráveis     a respeito de Daniel, andava inquieto por causa da assiduidade com que o vira     freqüentar as proximidades da casa das suas pupilas.

Aquelas prolongadas palestras, da rua para a janela, podiam dar que falar,     receava ele; e cedo viu que efetivamente iam já dando.

Qual não foi, pois, o seu desassossego, quando da casa de um pobre     enfermo que fora confessar, viu às trindades daquele dia, passar furtivamente,     e meio disfarçado, um homem, que, apesar e todo o disfarce, o reitor     logo conheceu ser Daniel.

Deu-lhe uma pancada o coração, e, mal que pôde, desobrigou-se     de sua santa tarefa, saiu apressado, e correu à casa de Margarida,     a quem perguntou pela irmã.

Sabendo que naquele momento tinha ela saído para a fonte, para ali     se dirigiu também o velho, mas por outro caminho, que o levou ao próximo     pinheiral.

Chegou ali justamente quando Daniel aparecia a Clara; e pôde, sem ser     visto, assistir a todo o diálogo entre os dois.

Foi por esta forma que o reitor, a quem muitas vezes estava confiado o papel     de Providência na sua paróquia, conseguiu salvar oportunamente     a boa fama de Clara, no conceito de João Semana, e provavelmente, na     opinião geral da terra.

Se as recordações desta noite agitavam o espírito de     Clara, não deixavam mais indiferente e tranqüilo o de Daniel.

Cruzando a passos largos o pavimento do quarto, velou grande parte da noite.

Poucas provações mais amargas há para os caracteres     humanos do que a de se sentirem desprezados pela própria consciência.

Experimentava-o Daniel, então.

— Têm razão os que desconfiam de mim - pensava ele - conhecem-me     melhor que eu próprio. Que sutis distinções ando eu a     marcar por aí, entre o meu proceder e o de muitos miseráveis,     que me causam tédio e desprezo? Que ridículas lamentações     de homem não compreendido são as minhas? É no que se     vingam sempre aqueles, cujos sentimentos inspiram aversão geral...     Clamam-se que ainda não encontraram o espírito ou coração     de harmonia com o seu. Vejamos. Pois não é infame o meu procedimento?     Que lhe falta para ser completamente infame? Que espero eu de Clara? Para     que a persigo? Para que a procurei hoje? - Não hesitei em dar estes     passos, que, na aparência, a podem perder... E hesitaria em perdê-la     na realidade? Quem mo assegura? tenho acaso certeza disso?

E, passeando mais agitado ainda, conservou-se por muito tempo sob o domínio     desta idéia. depois continuou com mais exaltação:

— Tenho, sim. Não rebaixemos também a tal ponto os nossos     sentimentos. Eu sou volúvel, imprudente, inconsiderado; conheço     e odeio-me, quando me vejo assim; porém não sou perverso, porém,     não sou capaz de uma traição infame... Queria que me     acusassem de tudo, mas que não me suspeitassem disso, e muito menos     Clara, essa generosa rapariga, e muito menos o reitor, esse homem honrado...     Mas o que importam as minhas intenções, se dou lugar a que se     diga, a que se possa pensar em calúnia! Se não fosse hoje o     reitor, a quem a Providência parece haver inspirado, que se diria amanhã     nesta mexeriqueira terra? - de mim, digam lá o que quiserem; mas daquela     rapariga... É tempo de me fazer outro homem. E poderei consegui-lo?     este meu temperamento é de uma mobilidade! pequenas coisas fazem-lhe     perder o equilíbrio, que por momentos a razão consegue dar-lhe.     Será pois isto em mim um mal incurável! É verdade que     os médicos falam de certos estados nervosos, que pequenas impressões     sustentam e exacerbam, e que, muitas vezes, uma profunda comoção     consegue serenar, dando a esses pensamentos a estabilidade que não     tinham. O estado de meu coração é assim. Talvez ainda     não experimentasse a têmpera, que tem de o fortificar; talvez.     Em todo o caso devo lutar comigo mesmo. Mas poderei resignar-me à má     opinião que de mim conserva aquela rapariga? Não; preciso falar-lhe     uma vez ainda para que me perdoe e restitua a sua confiança; serei     depois para ela um amigo sincero, um verdadeiro irmão. Hei de falar-lhe.

 

Uma noite, depois de dormido o primeiro sono, ergueu-se Pedro, como solícito     proprietário, para ir rondar um pinhal, distante da casa, onde, segundo     informações recebidas, se tinham ultimamente praticado alguns     roubos de pinheiros.

Ao vê-lo sair, o criado mais velho da casa, o mesmo ao qual vimos Daniel     disposto a fazer compreender a teoria dos eclipses, quis acompanhá-lo.

— Deixe-me ir contigo, Sr. Pedrinho.

— Vai-te daí, homem; eu não sou nenhuma criança,     para precisar de companhia.

— Mas...

— Deita-te; já te disse.

E o noivo de Clara saiu, de espingarda ao ombro, e assobiando uma toada popular.

Apesar da quase certeza que tinha de se não encontrar àquela     hora com o principal e constante objeto dos seus mais gratos pensamentos,     dirigiu o itinerário, com prejuízo da economia de tempo, pela     rua em que morava Clara.

É que é já um prazer contemplar os muros, a cujo abrigo     se sabe repousar a mulher que se ama; prazer inocente, entre os que mais o     são, e que, desde tempos imemoriais, os amantes saboreiam.

Fique a leitora sabendo que, muitas vezes, enquanto dorme, se lhe estão     fixados nas janelas, desapiedadamente cerradas e obscuras, os olhos ardorosos     de alguns desses tresnoitados passeadores.

À medida que se aproximava do lugar, que o obrigara a este rodeio,     ia diminuindo Pedro a velocidade da marcha.

Chegou perto do muro do quintal, e, insensivelmente parou. Lembrou-lhe que     bem podia ser que, apesar do adiantado da hora, Clara estivesse acordada,     pensando nele talvez. Que amante deixaria de fazer, nas mesmas circunstâncias,     iguais suposições?

Como meio de verificação, pôs-se a cantar: Meia noite,     tudo dorme;

Só eu não posso dormir;

Pois não me deixa este amor,

Que me fizeste sentir. Depois de pequena pausa, continuou:

Este amor que é minha vida,

Vida do meu coração,

Atrás do qual meus... A interrupção foi devida a certo     rumor, que Pedro julgou ouvir dentro do quintal. Calou-se por isso, e pôs-se     a escutar.

Tudo caiu em silêncio.

Aplicando, porém, o ouvido à fechadura, pareceu-lhe perceber     o murmúrio de vozes abafadas.

— Quem anda aí dentro?! - perguntou em voz alta Pedro, batendo     à porta.

Ninguém lhe respondeu.

Continuou a escutar, e de novo julgou distinguir o mesmo som.

Ia interrogar outra vez, mas, refletindo mudou de plano.

Continuou o seu caminho cantando: Este amor, que é minha vida,

Vida do meu coração,

Atrás do qual meus suspiros

E meus pensamentos vão. E seguiu, cantando assim, até certa     distância da casa; e depois, retrocedendo, voltou com todas as cautelas,     para junto da porta donde viera o rumor que o estava inquietando.

— Se fossem ladrões - pensava Pedro - que haviam de fazer as     pobres raparigas, neste sítio solitário, e sem braço     de homem em casa para as defender?

E este pensamento decidiu-o a não sair dali sem averiguar aquilo.

O seu estratagema prometia produzir efeito. Desta vez não era possível     a ilusão. As vozes percebiam-se distintamente , e como em conversa     acalorada, e, entre elas. Pedro julgou reconhecer uma de mulher.

Então, sentiu ele um doloroso constrangimento de coração.     Uma idéia terrível, súbita e sinistra, como a luz do     relâmpago, lhe iluminou o espírito, e, pela primeira vez, concebeu     suspeitas que o fizeram estremecer.

— Se Clara... - murmurou, subjugado por aquela idéia. E um tremor     convulso passou-lhe pelos membros com tal violência, que o constrangeu     a apoiar-se à ombreira da porta para não cair. Naquele estado,     a pulsação febril das artérias das fontes, impediu-o     de escutar mais nada; o coração palpitava-lhe tão agitado     que o ouviu bater.

O som das vozes tornava-se mais audível, como se aproximassem da porta     as pessoas que assim conversavam. Pedro levou maquinalmente a mão ao     gatilho da espingarda e ficou à espera com a vista fixa e a respiração     reprimida. Era terrível o seu olhar naquele momento.

Ouviu-se o voltar da chave na fechadura, a porta abriu-se lentamente, e um     diálogo, travado a meia voz, chegou aos ouvidos de Pedro; mas a energia     da vertigem, que lhe tomara os sentidos, não lhe deixava perceber,     senão de maneira confusa.

— Foi para lhe dizer isto, só para lhe dizer isto, que consenti     em ouvi-lo aqui - dizia a voz feminina - Bem vê que seria uma loucura     , se continuasse; mais do que uma loucura, seria um pecado até. Agora     espero que cumpra a sua promessa. Mostre que é homem de bem. Adeus.

— Adeus - respondia-lhe outra voz - E perdoe-me se não posso     ainda dizer friamente esta palavra. Mas verá se saberei emendar-me.     Obrigado pela confiança que teve em mim. Adeus.

E, depois disto, um homem, todo envolvido numa capa comprida, saiu da porta     do quintal, tendo antes apertado a mão, que se lhe estendia de dentro.

Pedro mal tinha ouvido, e mal conseguia ver tudo aquilo; passava-lhe pelos     olhos como que uma nuvem de fogo. Correu para este visitador noturno com a     impetuosidade, de que o animava a raiva e, apontando-lhe ao peito a espingarda,     gritou com um rugido aterrador:

— Alto, miserável! Pára, ou está morto!

O homem ficou imóvel.

Dentro do quintal ouviu-se então um grito dilacerante, e a porta,     violentamente impelida, veio fechar-se de encontro aos batentes.

Pedro rompeu para o desconhecido, que recuou diante dele.

— Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar, infame!

E como o embuçado cada vez procurasse ocultar-se mais, Pedro lançou-lhe     a mão, e, com um movimento rápido, descobriu-lhe o rosto, arrojando     no chão a capa com que se envolvia. O luar bateu em cheio nas feições     do outro.

Reconheceu Daniel.

É inexprimível em linguagem conhecida o que neste momento se     passou no coração do pobre rapaz.

— Daniel! - bradou ele sufocado, pela intensidade da comoção     que recebera.

Daniel conservava-se mudo e abatido. Dir-se-ia fulminado.

Houve um longo espaço de silêncio.

Pedro sentiu que se lhe formava no coração uma tempestade medonha;     um raio de razão que lhe luzia ainda, inspirou-o para dizer em voz     já cava e abafada:

— Por alma de nossa mãe, Daniel, por alma de nossa mãe,     sai daqui, se não queres que suceda alguma desgraça.

— Ouve Pedro, escuta-me - tentou dizer Daniel; mas as palavras a custo     se lhe articulavam, e a voz prendia-se na garganta.

— Daniel, foge, foge daqui, se me não queres perder! foge, irmão!      - bradava Pedro, e, como que já sem consciência, contraiam-se-lhe     espamodicamente os dedos sobre o gatilho da espingarda.

Daniel ia falar-lhe ainda, quando sentiu uma mão pousar-lhe no ombro,     e, em seguida, um homem que, durante o ocorrido se aproximara do lugar, veio     interromper-se entre ele e o irmão.

— Retire-se - exclamou este homem com voz severa, voltando-se para     Daniel - Eu tinha previsto esta desgraça.

Era o reitor.

Ia a dirigir-se depois a Pedro, mas já não o encontrou ali.

O padre estremeceu.

— Meu Deus, é preciso evitar algum crime. O rapaz vai louco.

Pedro batia violentamente com a coronha da espingarda na porta do quintal,     que pouco lhe poderia resistir.

Daniel vendo-o ia correr em defesa da mulher, cujo futuro perdera talvez     irreparavelmente.

O padre susteve-o com energia, pouco de esperar naquela idade avançada.

— Retire-se - bradou com voz vibrante exaltada - Não está     ainda satisfeito com a sua obra? Quer acabar de perder aquela pobre rapariga?

— Mas ele vai matá-la!

— Estou eu aqui para velar por ela. Cabe-me esse direito, que me foi     conferido por sua mãe no leito, onde agonizava. Retire-se.

O reitor naquele momento transformara-se; sublimara-se a ponto de exercer     um império completo na vontade de Daniel; no olhar do velho parecia     haver não sei que influxo magnético, que obrigou Daniel a baixar     a cabeça e a retirar-se, constrangido por irresistível impulso.

Pedro tinha arremetido contra a porta do quintal com verdadeira desesperação.     Um pensamento sinistro o dominava; a raiva do ciúme e da vingança     perturbava-lhe a razão.

Afinal a porta cedeu. Pedro penetrou no quintal como verdadeiro louco; empeceu-lhe,     porém, os passos uma mulher que lhe caiu aos pés, bradando:

— Pedro, Pedro, não cause, não queira causar a minha     perdição.

Este grito fê-lo recuar. A voz desta mulher, que o implorava assim.     Pedro passou da agitação do delírio à imobilidade     do letargo.

— Que é isso? - bradou, enfim, como ao acordar de um mau sonho.     - Margarida aqui?

Era efetivamente Margarida a mulher, que de joelhos e mãos erguidas     lhe jazia aos pés.

Desenhava-se no rosto da simpática irmã de Clara o mais violento     desespero; e quem sabe o que lhe ia no coração.

Era pois Margarida a que tivera a entrevista com Daniel? Abençoada     suspeita iluminou pela primeira vez as trevas do espírito atribulado     do pobre Pedro! Abençoada lhe chamei, pelo conforto que gerou; porque     na horrível tortura de coração daquele desgraçado,     foi um bálsamo consolador.

— Margarida - disse-lhe ele, trêmulo de incerteza e de esperança      - fale-me a verdade. Em nome de Deus, diga-me; quem estava aqui com Daniel?     Diga-me, diga-me tudo pelo Salvador.

Houve um momento de silêncio. Margarida parecia hesitar; por fora da     porta apareciam já alguns rostos curiosos, que chegavam atraídos     pelo ruído.

— Quem estava aqui com Daniel? - perguntou Pedro.

Na alma de Margarida alguma coisa se passou de terrivelmente doloroso que     quase a fez desfalecer.

Fechando os olhos, como quem adota uma resolução desesperada,     como quem se despenha num abismo, respondeu com voz tremula, mas perfeitamente     inteligível:

— Era eu!

A turbação em que estava não lhe impedia de perceber     o sussurro das vozes que, de fora da porta, acolheu esta resposta.

Pedro, alheio a tudo que o rodeava, ergueu as mãos para o céu;     e rebentando-lhe as lágrimas dos olhos, exclamou:

— Bendito seja Deus! Sirva de remissão dos meus pecados o tormento     destes poucos instantes.

Quando o pároco chegou, encontrou-os nesta posição.

Caminhou com o rosto severo para a mulher que via ajoelhada, mas recuou também,     espantado, ao reconhecer Margarida.

— Margarida! Pois era?... O reitor suspendeu-se, antes de concluir,     como se um pensamento súbito lhe ocorrera. - Não pode ser, não     pode ser. - E aproximando-se de Margarida, tomou-lhe o braço, com energia,     bradando-lhe: - Que quer dizer isto, minha filha? Que fazes tu aqui?

Margarida juntou as mãos, e, olhando para o reitor com uma expressão     particular, respondeu:

— Peço misericórdia!

— Para que culpa, minha filha?! - perguntou o padre, que não     tirava os olhos dela.

— Para a minha...

— Para a... Entendo! - disse ele, como falando para si. - E devo eu     consentir que?... Talvez que tenha razão - continuou, fitando em Margarida     um olhar de bondade e quase de respeita, e acrescentou a meia voz: - Seja     como quiseste, como Deus to inspirou decerto. - Depois voltando-se para Pedro:      - E que tens mais que ver aqui, homem!

— Tenho que pedir perdão a todos.

O reitor empurrou-o amigavelmente pelos ombros, dizendo-lhe:

— Vai, vai. Deixa isso para outra vez. Não temos agora vagar     para justificações.

— Mas, Sr. Reitor.

— Então! Vai para a tua vida, Pedro. E não me andes mais     de espingardas, que são más companhias.

Dando depois com os olhos nos poucos espectadores desta cena, que se conservavam     boquiabertos à porta, exclamou, todo irritado:

— E vocês que fazem aí pasmados? Quem vos chamou cá?     Não sois tão prontos para o trabalho. Andar! e ter cautela com     a língua. Ouviram?

Pedro saiu cabisbaixo. Os grupos dispersaram.

Logo que os viu retirar, o padre levantou Margarida, que se conservava de     joelhos e quase exânime e disse-lhe comovido.

— Foi um sacrifício heróico, Margarida, para o qual poucas     teriam fortalezas.

— Um sacrifício?

— Sim, não é a mim que iludiste, filha, que te conheço     bem e há muito. Vai ter com a verdadeira culpada e...

— Não a condene , Sr. Reitor; o seu anjo bom não a abandonou     ainda esta vez.

— Bem sei - respondeu o reitor. - Pois não te vejo eu aqui?     Mas vai, e acaba a tua obra abençoada, confortando-a e chamando-a ao     caminho do arrependimento. Eu também tenho a minha tarefa. E dou graças     a Deus por ter permitido que os meus deveres paroquiais me conservassem por     fora até estas horas. Até amanhã, minha filha;

E o reitor saiu, mas em vez de tomar o caminho de casa, voltou na direção     oposta.

 

A cena a que, um tanto imprevistamente, fizemos, no último capitulo     assistir o leitor, exige de nós algumas palavras de explicação.     Releve-se-nos, portanto, a rápida digressão retrospectiva, em     que vamos entrar.

Daniel, como tínhamos dito, prometera a si próprio falar uma     vez ainda a Clara, para atenuar a má impressão que a sua última     entrevista pudesse ter deixado no espírito da rapariga, e inspirar-lhe     de novo a confiança perdida.

Parecerá talvez um meio singular este de corrigir os efeitos de um     passo imprudente por outro mais imprudente ainda; mas a razão humana,     sofismando com a maior candura do mundo, concebe muitas vezes projetos assim.

Em Daniel, sobretudo, eram freqüentes estas resoluções     irrefletidas. Inspirava-lhas um sentimento de mal fundado brio; mas nem sempre     era bastante a força do seu caráter para briosamente as sustentar     até ao fim.

Não aprendera ainda a desconfiar de si, a ponto de fugir como devia,     a essas ocasiões de tentação.

Foi por isso que, esquecido já das suas promessas a Clara, renovou     outra vez os antigos passeios pelas circunvizinhanças da casa dela,     sempre com esperança de obter a entrevista, que imaginara necessária     à reivindicação do seu crédito.

Clara evitava, porém, todos os ensejos de se encontrar com ele, constrangendo-se     até, para isso, a um estreita reclusão.

Depois da cena da fonte, prometera ela a sua irmã e ao reitor não     falar com Daniel, até estar efetuado o casamento, que o pároco,     mais do que nunca, procurou acelerar.

Assim todas as tentativas de Daniel para vê-la e falar-lhe, ou na rua     ou na janela, saíam-lhe baldadas.

Longe de o desanimar, este mau êxito antes o estimulou, e irritado     pelas dificuldades que encontrava, formou a resolução mais audaz.

Um dia, entrando no quarto, Clara encontrou no chão e próximo     da janela, que deixara aberta, um papel dobrado.

Abriu e leu. Era um bilhete de Daniel a pedir-lhe, nos termos mais respeitosos,     uma entrevista - a única. Alegava em favor da sua pretensão,     o não poder resignar-se à desconsoladora idéia de ser     mal conceituado por Clara; prometia e jurava respeitá-la como irmã,     pois como tal a considerava já; e acrescentava que não deixaria     de a perseguir , até que ela condescendesse a escutá-lo. Se     receava, dizia ele no fim, que essa entrevista desse lugar a interpretações     injuriosas, regulasse e impusesse elas as condições debaixo     das quais a concederia.

Esta carta, que não primava em laconismo, parecia, em boa lógica,     dispensar a entrevista requerida e na qual pouco mais restava a fazes do que     desenvolver o tema, já tão extensamente assim parafraseado por     escrito. mas a lógica não domina de ordinário situações     daquelas.

Clara não respondeu ao bilhete e continuou, mais que nunca, a evitar     Daniel.

De parte deste continuaram as imprudências, às quais servia     de novo estímulo o despeito, esse poderoso fermento de paixões     nas almas mais sujeitas a elas.

Outro bilhete, recebido por Clara da mesma maneira, instava ainda com maior     veemência pela entrevista pedida.

Clara estava para referir tudo a Margarida, mas faltou-lhe o ânimo.

Este estado de coisas continuou por algum tempo mais; até que um dia     Clara, animada de confiança em si, que não perdia nunca, e na     boa fé, que depositava nas promessas dos outros, resolveu consentir     em escutar Daniel.

Não lhe prometia ele ser essa a condição indispensável     para não a perseguir de novo?

— Acabe-se pois este constrangimento em que vivo - dizia ela. - Que     posso recear? A minha boa estrela não me abandonará. Formada     essa resolução, seguia-se a regular maneira de a levar a efeito.

A curiosidade pública trazia muito vigiada a casa das duas irmãs;     era pois difícil iludi-la. Demais, a promessa feita ao reitor e à     Margarida embaraçava Clara. Daí, diversos expedientes lembrados,     pesados e postos de lado, até enfim terminar pela adoção     do pior de todos.

O excesso de prudência e as cautelas conduz muitas vezes a imprudências     mais perigosas.

Clara comunicou a sua resolução a Daniel; este, exultando pela     confiança que nela via transluzir, agradeceu-lhe com efusão,     e prometeu a Clara, e a si próprio, mostrar-se digno dela.

Assim se preparava a entrevista, cujos resultados o leitor conhece já.

Margarida porém, que, observando as recomendações do     pároco, continuava a espiar a irmã, não era de todo alheia     ao que se passava.

Naquele dia sobretudo julgou perceber nos modos de Clara certa preocupação,     que a fez mais vigilante.

Eram trindades quando Margarida ia, como costumava, fechar por suas próprias     mãos a porta do quintal. Clara não lho permitiu; e com tal instância     teimou em se encarregar desse cuidado, aquela noite, que Margarida teve pressentimento     do que se estava preparando. Isto obrigou-a a ficar de pé, depois de     se recolher ao quarto.

Apagou a luz para que lhe não suspeitassem a vigília, e não     abandonou a janela.

Passado tempo, viu - e com que amargor da alma! confirmadas as suas suspeitas.     Clara saia furtivamente de casa. Margarida não hesitou; e com passos     incertos e o coração oprimido de tristeza, seguiu-a, sem ser     sentida. Valeu-lhe para isso a espessura das árvores que orlavam os     arruados do quintal.

Naquele momento, mais comovida das duas não era decerto Clara.

Enfim, ouviu-se o ruído de passos na rua exterior; a porta abriu-se,     e Daniel apareceu.

A impressão que neste momento experimentou Margarida, foi tal, que,     quase a fez sucumbir.

Cedo, porém, a reação daquela vontade enérgica,     apesar de feminil, dominou a luta. Margarida continuou a observar.

Daniel, ao princípio, foi grave, e mostrou-se fiel à promessa     que fizera; mas, pouco a pouco, influíram nele as condições     singulares daquela entrevista. As palavras ganharam fogo e, em breve, animava-as     já o entusiasmo impetuoso de vinte anos. Esquecia-se que viera para     justificar-se, e ia agravando a culpa.

Clara, escutando-o, não conseguia disfarçar completamente a     turbação que a dominava; mas foram sempre dignas da noiva de     Pedro as palavras com que lhe respondia; assim a não traísse     o tremor da voz, a ânsia de respirar, e, mais que tudo isso, o fato     de se achar ali, só, naquela hora da noite, embora lhe atenuasse o     delito o pensamento da generosidade, que a animara a cometê-lo.

Mas os instintos nobres de Daniel só por momentos se deixavam adormecer     com as insidiosas carícias da fantasia; pouco bastava para os acordar     vigorosos.

Desta vez produziu efeito a salutar cantiga de Pedro.

Escutando-o, ambos se sentiram arrependidos de se acharem ali. Viram claro     toda a futilidade de motivos que, momentos antes, para eles justificavam de     sobra este passo irrefletido, e curvaram a cabeça.

— É meu irmão - murmurou - que fará aqui por estas     horas?

— Trazido talvez pela mão de Deus para... - disse, quase para     si, Clara, no mesmo tom de voz.

— Adeus, Clara; perdoe esqueça mais esta imprudência minha.     prometo-lhe que será a última. E de hoje em diante...

— Adeus.

Foi neste momento que Pedro os interrompeu pela primeira vez.

O resto já é sabido.

Quando, no momento em que Daniel saía, Clara reconheceu a voz do noivo,     soltou um grito de terroso, e, fechando instintivamente a porta, caiu desfalecida     na rua do quintal.

Foi então que Margarida correu, que a arrastou nos braços para     longe daquele sítio, e depois, sacrificando a sua reputação     ao futuro da irmã, veio cair aos pés de Pedro, como a verdadeira     culpada.

O conceito que Pedro formava do caráter de Margarida não o     tinha deixado imaginar sequer que pudesse ser ela a que aceitara a entrevista     com o irmão. Apesar de todo o seu amor por Clara, era maior ainda a     confiança que depositava em Margarida.

O que viu depois espantou-o, mas deu-lhe grande alívio.

Clara ignorou tudo quanto ultimamente se passara, pois durante todo este     tempo, não recuperara os sentidos. A noite toda levou-a num quase delírio,     no qual imaginava ver Pedro e Daniel travando uma luta fratricida.

Margarida, velando a cabeceira da doente, torcia as mãos de desespero.

— Meu Deus! Meu Deus! - dizia ela. - Se lhe não passa este delírio,     tudo está perdido. Pedro saberá a verdade.

Pela madrugada, porém, Clara sossegou; um sono reparador acalmou-lhe     a febre e, após ele, só ficou o abatimento e uma palidez geral     que denunciava a crise terrível que tinha vivido.

Margarida, ao despertar dum sono, também inquieto, por que mal passara,     encontrou-a acordada e já aparentemente tranqüila. Receando renovar-lhe     a crise em nada lhe falou. Clara olhava-a em silêncio, mas como que     não ousava também interrogá-la.

Afinal fez um esforço, fitou a irmã nos olhos arrasados de     lágrimas e disse com desalento.

— Tudo está acabado! De hoje em diante, todos me apontarão     ao dedo e me chamarão uma rapariga perdida.

Margarida não pode também reprimir as lágrimas.

— Que estás a dizer, Clarinha? Foi mau o passo que deste, foi;     mas sossega. Eu, que te ouvi, sei que estás inocente.

— Ouviste?

— Tudo... Eu sabia... Eu suspeitava a verdade.

— Mas ele...

— Ele... Pedro? Nada sabe ainda.

— Nada sabe? Queres enganar-me, Margarida? Pois não surpreendeu     ele o ... outro, quando...

— Mas ignora que fosses tu...

— Então quem julga que era?

Margarida calou-se embaraçada, e desviou a vista do olhar fixo da     irmã.

— Não sei, mas... tenho a certeza de que ele não suspeita     de ti... E sabes? é preciso fazer agora por te levantares, e alegrares-te,     para que, se ele vier por aí, não conheça ao ver o estado     em que estás, a verdade, ou suspeite mais do que a verdade; que é     ainda muito pior. Vamos, veste-te; foi uma nuvem a de ontem; uma nuvem que     passou. Hoje está um sol tão vivo - acrescentou, abrindo as     portas das janelas - que dá força e alegria. Vê. Ora anda,     levanta-te.

Enquanto Margarida assim falava, Clara parecia engolfada em profunda abstração.     Afinal, como se nada tivesse percebido de quanto ultimamente Margarida lhe     dissera, exclamou com vivacidade:

— Guida, eu quero saber como isto é. Pedro soube que estava     uma mulher ontem à noite no jardim. Se, como dizes, ele não     suspeita de mim, de quem pode pois suspeitar?

Margarida não respondeu, e abaixou os olhos perturbada.

— Guida, dize-me a verdade - continuou Clara mais inquieta já.      - Pedro julga-me inocente.

— Julga.

— Quem é pois a seus olhos a culpada?

A confusão de Margarida serviu de resposta.

De pálidas que estavam, tingiram-se então de um rubor de indignação     as faces de Clara. meia erguida no leito, os olhos animados, os lábios     trêmulos, exclamou:

— Ele suspeita de ti! de ti! Margarida? Pedro suspeita de ti? E pôde     ter um pensamento... e pôde imaginar que tu serias... Atreveu-se a acusar-te!     Ele? Pedro! Mas diz-me, Guida, Como ele fez isso? Quem lhe deu esse direito?

— Fui eu.

— Tu!

— Sim, fui eu. Não lho poderei eu dar? - acrescentou Margarida,     quase sorrindo, e, afastando os cabelos desordenados, que cobriam a fronte     da irmã.

— Entendo. Perdeste-te para me salvar. Limpaste com os teus vestidos     a lama dos meus, para me apresentares pura aos olhos do meu noivo, que com     razão me supunha culpada! Entendo. Viste-me perdida, e fizeste como     aquela criança que, há tempos, se afogou para livrar um irmão     da corrente; salvaste-me, mas afundando-te. E havia eu de consentir nisso,     Margarida? Tão má idéia fazes tu de mim, para imaginares     que aceitaria tu um sacrifício igual? Não; quero que Pedro saiba     tudo; que me perdoe ou que me despreze depois; a uma ou outra coisa me sujeitarei;     mas sacudir sobre a tua cabeça a vergonha que chamei sobre mim, Oh!     isso...

Margarida tomou-lhe afetuosamente as mãos e em tom persuasivo pôs-se     a dizer:

— Ora escuta, Clarinha. Hás de primeiro ouvir-me com muito sossego     e muito juízo e depois dirás se eu tenho razão. Queres     contar a verdade a Pedro, dizes tu. Que fazes com isso? Torna-lo infeliz ,     fazes com que entre ele e o irmão exista sempre, daí por diante,     um motivo para aversão; e a ti, que amas Pedro, apesar de uma leviandade     de momentos, e a mim, que te amo, e a nós ambas, e a todos, a todos     vais fazer infelizes. Eu que posso perder em que Pedro continue na mesma suspeita?     Se ninguém mais a tem? - forçou-se ela a dizer, mas baixando     os olhos, porque bem sabia que mentia. - Ele não é capaz de     a divulgar. E depois, olha, Clarinha, quem nunca pensou em grandes futuros,     não tem que ter saudades de projetos desfeitos. Eu já não     formo projetos há muito; acredita. Cansei-me. Hoje recebo tudo da mesma     maneira. E olha - continuou sorrindo - que dentro em pouco, chego a não     diferenciar o que é bem do que é mal. Tenho-me feito assim.     Que lhe hei eu de fazer? Mas tu, minha pobre irmã, que ainda fazes     tantos projetos, não te custaria a perder o mais risonho de todos?     De mais a mais, eu tenho uma dívida antiga a pagar-te, e não     sossego enquanto a não pago. Lembras-te quando me vinhas ajudar nas     tarefas, e repartias comigo a tua ração de merenda? São     serviços que nunca mais esquecem. Deixa-me pagar-tos da maneira que     posso. Se soubesses como é uma consolação para os pobres     achar um meio de saldar as suas dívidas! Então, vamos, prometes     não dizer nada?

— Guida, Guida! O que me pedes é impossível. Seria um     grande pecado, se eu deixasse assim a outra expiar a falta que é toda     minha.

— Clarinha, não vês que, de outra sorte, causas a desgraça     de tantos?

Clara levou as mãos às faces e calou-se.

Neste momento, o reitor entrara de mansinho na sala. Pousara o chapéu     e a bengala, e pusera-se a contemplar as duas irmãs, que lhe não     sentiram a entrada.

Passado algum tempo de silêncio, Clara levantou de novo a cabeça,     e com voz lacrimosa, exclamou:

— Pois deverei aceitar este sacrifício, meu Deus?

— Deves - respondeu o reitor, adiantando-se. - É necessário     respeitar inspirações dos anjos como este! - e apontava para     Margarida. - Eu também hesitei ao princípio, mas, depois que     julguei melhor, resolvi obedecer-lhe. Minha filha, o que se passou na noite     de ontem, tem-no por um aviso do céu. Dá graças a Deus     por te não haver abandonado a tua boa estrela, e faz por nunca mais     incorrer em um perigo daqueles. Mas aceita; não é só     a tua felicidade que recebes do sacrifício da tua irmã, é     a de Pedro e a de uma família inteira, é a da própria     sacrificada, pois não é assim, Margarida?

— Se for preciso que lho peça de joelhos... respondeu a bondosa     rapariga.

— Não há de ser. Agora vou procurar Daniel. A Pedro já     eu confortei. Consegui dissuadi-lo de vir aqui, porque suspeitei que sua vinda     podia ser funesta, enquanto se não desvanecessem naqueles olhos todos     os sinais e lágrimas. Daniel não pude encontrar ainda... O pobre     rapaz errou toda a noite por esses caminhos, e Deus queira....

— Jesus, meu Deus - exclamou Margarida fazendo-se pálida. -      Acaso receia que ele... ?

— Tenho fé que nenhuma desgraça sucederá; mas     é mister olhar por isto. Adeus.

 

    As vagas apreensões do reitor, em relação à Daniel,     comunicaram-se a Margarida, e nela adquiriram maior intensidade. As afeições     arraigavam-se profundamente naquele bom coração; baldado era     impedir que viessem à luz e florescessem; a cada momento, recebiam     elas uma vida nova, e desenvolviam-se, como estas árvores que, cortadas     todos os anos, rebentam a cada primavera, brotando jovens renovos.

Vão lá cobrir de gelo um coração assim. Tem vida     de sobra para o fundir todo em lágrimas, e inflamar-se depois ainda.

Tendo salvado a irmã, a generosa rapariga só tinha agora, orações     para pedir ao Senhor a salvação de Daniel. De si esquecera-se!      - Sublime esquecimento!

Cumprindo o que dissera, pusera-se o reitor a caminho, a procurar Daniel.     Levava o coração apertado o bom do pároco, ao atravessar     lugares, onde, segundo os seus cálculos, mais provável seria     encontrá-lo.

Muitos desses lugares eram os mesmos que, havia anos, seguira com uma intenção     análoga - a de espiar os passos do seu pequeno discípulo, que     já então mostrava o que viria a ser.

Lembrava-se agora o reitor daquele dia, e de como fora encontrar o rapaz,     no mais remoto sítio da aldeia, em diálogo pueril com a pequena     pastora, que hoje, por notável coincidência, tão intimamente     se achava ligada outra vez ao seu destino.

Não sei que idéias associadas estas trouxeram consigo, que,     muito contra o que era de esperar, o reitor pôs-se a sorrir.

Dir-se-ia que estava entrevendo um desenlace feliz a todo este enredo, e     que, a pensar naquilo se esquecera das críticas circunstâncias     presentes.

Mas as idéias negras voltaram cedo a assombrar-lhe o semblante.

— Que será feito do rapaz? - dizia o padre consigo. - Esta gente     da cidade é tão sujeita a loucuras! É ver aquele infeliz,     de quem falaram as folhas do Porto, que, não sei porque histórias     de amores, se atirou das Virtudes abaixo. Quem me diz a mim que Daniel...     em um momento de desespero... Nossa Senhora nos valha! Mas tem-se visto coisa!...     Que gênio aquele! A quem sairá este rapaz? A mãe, uma     santa mulher, o Senhor a tenha em glória; o pai, um homem sério...     Mas, na verdade, dá-me que pensar este desaparecimento! Ele não     dormiu em casa... Não teve ânimo de se encontrar com o irmão,     talvez... Santo Antônio nos acuda! Quem sabe se iria para o Porto? Pode     ser. Antes fosse.

Ia pensando nisto o velho pároco, quando ao tomar por a ponte de madeira,     que atravessava um despenhadeiro, de cujo fundo pedregoso chegava aos ouvidos     o fragor medonho de uma torrente , se encontrou, face a face, com o objeto     de sua pesquisa.

Passou um calafrio pelo reitor ao ver Daniel naquele lugar, e ao reparar-lhe     nas feições.

Daniel estava excessivamente pálido e com o rosto desfigurado pela     vigília, e mais ainda pelas angústias do espírito que     naquela noite o torturavam.

Olhava com a vista espantada, e numa espécie de fascinação     o abismo a que ficava sobranceiro, e pareci atento a uma voz interior, que     o impelia ao suicídio.

O reitor parou, fixando nele um olhar perscrutador.

— Que faz aqui? - perguntou-lhe, segurando com força pelo braço,     como se pretendesse desviá-lo do precipício.

Daniel levantou para o padre os olhos entorpecidos, e em seguida, baixando-os     de novo para o fundo do despenhadeiro, respondeu com uma frieza que fez estremecer     o velho:

— Estava a fazer contas comigo mesmo; assistia a meu julgamento e...

— Ora, vamos. Não seja criança. Deixe-se de loucuras.     Venha-se embora. Não queira fazer a infelicidade dos mais, dos que     os estimam, já que a sua lhe merece tão pouca importância.     Lembre-se do seu pai, e veja lá se quer pagar-lhe assim os sacrifícios     que tem feito para si. Venha comigo.

— Sr. Reitor, não se ocupa de mim. Repare que está falando     com um miserável. Não creia que me pode regenerar pelo arrependimento.     Eu sou relapso. A minha alma fraca sabe sentir mas não sabe vencer-se.     Sabe sentir, disse eu? Nem isso. Em mim já se apagou todo o sentimento     moral.

— Não diga blasfêmias, filho, não descreia assim.     A fé é o primeiro passo para a regeneração de     que fala.

— A fé? Agora?... Tenho-a na quietação da morte.      - E outra vez fitou a vista na torrente.

— Chama quietação à morte? Engana-se; depois dela     é que principia muitas vezes o maior movimento, o movimento sem fim,     sem remissão, o eterno. Mas oiça, Daniel; eu concebo o desespero     do seu coração neste momento. Pesa-lhe o que fez? Tanto melhor.     Não o quisera ver tão endurecido, que dormisse tranqüilo     depois das cenas desta noite. Sente doloroso o pungir dos remorsos; pois é     essa a porta da expiação.

— Remorsos! E daqueles que só acabarão, quando este amaldiçoado     coração deixar de bater.

— Que durem como preservativo de novas loucuras, e não virá     mal daí. Mas escute: julga haver destruído o futuro de seu irmão,     imagina que lhe espremeu a esponja de fel no copo que o pobre moço     preparava para levar aos lábios? E assim esteve para ser; e, se fosse,     também eu não sei que vida se prepararia para esse seu coração     incorrigível. Mas tranqüilize-se: Deus foi misericordioso; enviou     um de seus anjos protetores. Tudo está salvo.

— Salvo?! - Que salvação pode haver? Como desviar a desgraça     iminente sobre a cabeça deles?

— Então não lhe estou eu a dizer? Esquece-se das asas     do anjo? Clara foi protegida por elas. Pedro ignora que fosse a noiva dele     a que esteve no jardim a noite passada.

— Não queira iludir-me; Pedro surpreendeu-me quando...

— Bem sei. Mas não a viu.

— Não se precipitou ele contra mim, com a raiva do ciúme?

— A estas horas está arrependido.

— Arrependido? Não o vi eu ainda correr, cego de paixão,     para o quintal? Diga-me o que sucedeu depois. Clara?...

— Já não estava lá quando ele entrou.

— Pedro?

— Retirou-se passado tempo, manso e pesaroso.

— Mas...

— Em uma palavra, Pedro julga haver-se enganado.

— Enganado? E como podia enganar-se?

— Sendo outra a mulher da entrevista.

— E quem mais podia ser?

— Margarida, a irmã de Clara.

— Mas ela pugnará pela sua inocência?

— Pelo contrário. Foi ela quem se acusou.

— Ela? E levou-a a isso?

— A felicidade da irmã leviana, mas não criminosa, cujo     futuro viu ameaçado.

— E existem ainda anjos assim neste mundo, Sr. Reitor?

— Existem, existem, homem descrente e desalentado, existem - respondeu     o padre com gesto severo - e sirva-lhe esse exemplo heróico, para lhe     dar crença e fortaleza.

— E há quem lhe aceite a abnegação?

— Assim é preciso. Ninguém pode recusar sem sacrificar     alguma coisa, além da própria felicidade.

Daniel calou-se. Olhou mais uma vez para a espuma da torrente; mas eram já     menos poderosas as seduções do abismo. Levantou depois os olhos     ao céu, e, a meia voz, disse, quase só para si:

— Como me sinto pequeno e miserável, diante daquele exemplo!     E há quem julgue em decadência moral o mundo, ao qual descem     ainda almas assim.

E calou-se outra vez.

O reitor observava-o.

Depois de algum tempo de silêncio, o padre, pousando a mão no     ombro de Daniel, disse-lhe afavelmente.

— E por que não pede a essa alma, que admira tanto, um pouco     da sua angélica fortaleza? Por que não procura purificar a natureza     demasiado terrena, do seu malfadado coração, na abençoada     influência dela?

— E ser-me á concedido?

— É; siga-me - respondeu o reitor, não disfarçando     o seu contentamento. E, dirigindo o caminho, prosseguiu: - Talvez que vendo-a,     tenha memórias a avivar. Mais oiça, Daniel; se, como diz, desconfia     do coração - e tem razão para isso - faça por     o subjugar, e deixe dominar a consciência, a consciência, que     ontem mesmo, através da loucura - que foi loucura decerto aquilo -      que ontem mesmo lhe devia estar exprobrando o seu mau proceder. Agora veja     também como se apresenta a seu irmão. Olhe que é necessário     que ele viva na crença em que está, ou morre para a felicidade.     Veja o que faz. Vamos.

Daniel, com a cabeça inclinada sobre o peito seguiu maquinalmente     o velho reitor.

 

Pelas dez horas da manhã desse dia, estava Margarida na sala, onde     ordinariamente trabalhava, tendo à volta de si, uma turba de rapariguinhas,     ocupadas em diversos trabalhos de costura.

Em pé, junto dela, dava uma destas lições de leitura.     Margarida seguia o texto, olhando por cima dos ombros da criança, corrigindo-lhe     os erros, às vezes, com um sorriso de afabilidade, outras com uma voz     inflexão de voz maternalmente severa.

Era nos Evangelhos que a pequena lia.

O reitor recomendara o livro à Margarida, dizendo-lhe que o ensinasse     às discípulas, que era guia seguro.

A criança lia naquele momento a parábola do filho pródigo,     em S. Lucas.

— "E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o Céu e diante     de ti; e daqui em diante não sou digno de ser chamado teu filho.

"Disse, porém, o pai aos seus servos: Tirai o melhor vestido     e vesti-lho, e metei-lhe um anel no dedo e os sapatos nos pés:

"E trazei o bezerro gordo, e matai-o, e comamos e alegremo-nos;

"Porque este meu filho era morto e reviveu, e tinha-se perdido a achou-se.     E começaram a alegrar-se"

O reitor, que não usava cerimônias em casa de suas pupilas,     entrou neste momento com Daniel, na sala imediata. Percebendo que Margarida     ainda estava ocupada com a tarefa, que de tão boa vontade tomara sobre     si, disse a Daniel, convidando-o com um gesto a sentar-se, e fazendo-lhe ao     mesmo tempo sinal para que não interrompesse a lição.

— Esperemos. São perto de onze horas. Deve estar a acabar. -     E acrescentou, suspirando:

— Que rapariga esta, meu Deus! Depois do que passou ontem, já     hoje a cumprir as suas obrigações, com aquela serenidade do     costume! É admirável, na verdade! - E depois - continuou ele,     falando ainda a meia voz - se soubesse, Daniel, como nobremente se votou ao     trabalho, ela, a quem a irmã franqueava tudo quanto possuía?     Outra que fosse... mas aquele coração é de um quilate!     Que penetração de espírito, que luz e inteligência     aquela! Fez quase por si só a sua educação.

— E foi esta a que se sacrificou? - perguntou Daniel.

— Foi.

Ambos de novo se calaram.

A criança concluía neste momento o texto bíblico:

— "Ele, porém, lhe disse: Filho, tu sempre estás     comigo, e todas as minhas coisas são tuas.

"Convinha-nos, porém, alegrar-nos e folgar; porque este teu irmão     era morto e reviveu, e tinha-se pedido e achou-se"

Um beijo, que o reitor e Daniel ouviram distintamente, foi a recompensa concedida     por Margarida à discípula, ao terminar a leitura, que ela fizera     com inteligência e numa quase expressiva melopéia, perfeitamente     adequada à poesia dos versículos.

Depois foi a voz de Margarida, que lhe chegou aos ouvidos; sonora, suave,     melancólica, cheio de sentimento e bondade, ecoou saudosamente no coração     de Daniel, que mal podia explicar a natureza da comoção que     experimentava ao ouvi-la.

— Olha, Ermelinda, - dizia ela - Hás de ver se decoras, para     que nunca te esqueçam, aquelas palavras de Cristo: "Há     mais alegria no céu sobre um pecador, que se arrepende do que sobre     noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento". Diz     isto mesmo a história que leste. Jesus Cristo falava ao povo de maneira     que o povo todo o entendesse; por isso lhe contou a história do filho     pródigo. O Céu é também a casa do pai, onde se     recebem com festas e alegrias, os pecadores arrependidos, esses filhos pródigos     do Senhor. É uma grande consolação o saber que não     há pecados, que uma contrição sincera não possa     remir; alma tão perdida do mal, que não possa ainda voltar-se     com esperança para o Céu.

O reitor trocou neste momento um olhar significativo com Daniel, que parecia     recolher com avidez todas as palavras de Margarida. Estavam elas exercendo     em seu coração o efeito dum bálsamo salutar.

Margarida, depois de breve pausa, prosseguiu, como deixando-se levar pela     corrente de seus pensamentos, e falando mais para si, do que ainda para as     crianças que a escutavam:

— Cada alma perdida, que se arrepende, é uma vitória     do nosso Anjo da Guarda sobre o espírito do mal. A paixão, que     nos trazia cega, deixa-nos enfim, e calcamo-la então aos pés,     como aquela Nossa Senhora da Conceição fez à serpente     tentadora. E nunca é tarde para o arrependimento. Quem caminhasse com     os olhos tapados para um despenhadeiro, podia salvar-se ainda, abrindo-os     junto da borda. Junto? Às vezes até um ramo, a que nos seguremos     na queda, nos pode salvar. A fé na misericórdia de Deus é     como esse ramo. Seja o arrependimento sincero, e um olhar do Senhor nos amparará.     Uma oração bem sentida, bem da alma, à borda do túmulo,     pode chamar sobre uma vida inteira de pecados a luz do perdão divino.

Margarida dissera estas palavras, pausada, serenamente e com tanta unção     religiosa, que Daniel sentiu-se comovido. Olhou para o reitor, viu-o atento,     imóvel; o padre parecia estar escutando ainda aquela voz, que o prendia,     como se pregasse uma doutrina nova e diversa da que tantas vezes ele próprio     proclamara do altar à leitura dos Evangelhos.

Daí a alguns instantes, Margarida despedia-se das suas pequenas discípulas     com um beijo, e uma palavra afetuosa para cada uma. Seguiu-se o rumor que     elas faziam ao saírem tumultuosamente e depois o silêncio.

Margarida ficara só.

— Agora chegou a nossa vez de sermos doutrinados - disse o reitor para     Daniel. - E esteja certo que é são a doutrina que vier daquela     boca.

Aproximando-se da porta de comunicação entre as duas salas,     abriu-a de mansinho, e disse, metendo a cabeça pela abertura.

— Licença para dois.

Margarida que estava sentada, com a cabeça entre as mãos, e     absorta em profundo meditar, ergueu-se de súbito, à voz do reitor,     e caminhou para ele, repetindo:

— Licença para dois? Pois quem nos traz consigo?

Mas, antes de receber resposta divisou por entre a porta, meia aberta o rosto     pálido de Daniel.

Ao reconhecê-lo, Margarida estremeceu, e voltou para o reitor o olhar     interrogativo e inquieto.

O Padre entrara já na sala.

— Que foi fazer? - disse-lhe Margarida, a meia voz e quase assustada.

— Deixa-me. Fiz o que entendia - respondeu o pároco; e voltando-se     para Daniel, que hesitava em entrar, acrescentou: - Entre, Daniel, entre.     Aqui tem a santa e corajosa rapariga que...

— Senhor!... - exclamou Margarida, erguendo para ele as mãos,     como a implorar caridade.

Daniel deu alguns passos na sala.

— O que há de dizer o irmão ingrato e perverso, à     irmã sublime e generosa? - disse ele fixando em Margarida um olhar     de simpatia e de respeito que a obrigou a desviar o seu.

Seguiu-se um silêncio constrangedor para ambos.

Foi ela a que primeiro sentiu a necessidade de pôr termo a esta situação.

Para isso era-lhe preciso um esforço poderoso, enérgico, que     rompesse todas as peias da timidez que a enleava.

Não a abandonou ainda desta vez a força com que sabia dominar-se.     Foi já com aparente firmeza que, dentro em pouco, conseguiu responder:

— Sr. Daniel, esses cumprimentos não são de ocasião,     nem eu sou para eles. Coisas mais sérias nos devem ocupar. A felicidade     de duas pessoas está-nos confiada; está de alguma sorte nas     nossas mãos. Uma palavra só a pode perder; bem o sabe. É     preciso que nós todos três tratemos de segurar-lha. Por mim,     fiz o que estava ao meu alcance. Mas não dê ao sacrifício     maior valor que o que ele tem. Eu pouco tinha a sacrificar, além da     paz da consciência. Essa, já vê que a conservei; o mais...

— A paz da consciência! Foi essa mesma que eu perdi e perdi-a     para sempre! - disse Daniel com abatimento.

— Não diga isso - continuou Margarida, com a presença     de espírito que, passada a primeira turbação, pudera     readquirir. - Não diga isso. Pedro ignora tudo. É o principal.     Clara está arrependida de sua imprudência. Mais alguns dias,     para esquecer de todo o abalo a noite de ontem, e tornará a ser alegre     como dantes. Sossegue, pois. O Sr. Daniel há de continuar a gozar da     estima de todos, dos que mais ama, e... ninguém haverá sacrificado.

— Esqueceu-se de si, Margarida. E julga que a devem, ou a podem esquecer     os outros?

— Os outros? Quando eu não me queixo, ninguém tem o direito     de me lamentar.

Estas palavras saíram-lhe dos lábios como irresistivelmente,     e com uma amargura, que o reitor julgou perceber.

— Aí, Margarida, filha - disse o velho, meneando a cabeça     com um modo expressivo, e sorrindo entre afável e descontente - olha     que até aos infelizes, até na desventura, é um pecado     o orgulho; sabes?

— Orgulho, Sr. Reitor? aí, creia que não o sinto. Orgulho     de quê? Mas é que de fato pouco tinha eu a sacrificar, e pouco     sacrifiquei. As vozes do mundo... - será orgulho isto, será     - mas é certo que não penso no que dirão. Além     de que, quando me fosse mil vezes mais custoso o sacrifício, como havia     de evitá-los? Achava melhor que a sacrificassem a ela, que tem mais     a perder? a ela, por quem prometi velar quando ás portas morte, mo     pediu, chorando, sua mãe? Bem vê que não.

O reitor, de olhos no chão, alisava com a manga do casaco o chapéu,     sem atinar palavras que respondesse.

— Mas não falemos em mim - continuou Margarida, dum modo cada     vez mais sereno. - Clara está melhor; temo porém ainda que possa     receber com firmeza e a sangue frio a visita de Pedro. Será possível,     sem causar desconfianças deles, adiar para mais tarde essa primeira     visita?

— É possível, é - respondeu o reitor, enquanto     que Daniel folheando maquinalmente um livro, parecia nem atentar no que se     estava dizendo. - O pobre rapaz está com remorsos de ter suspeitado     de Clara , e treme só com a lembrança de a ver.

— É necessário que se lhe faça acreditar que minha     irmã ignora e deve ignorar tudo o que se passou, ou pelo menos que     nada sabe das suspeitas de Pedro...

— Mas... - ia o reitor a dizer.

Margarida interrompeu-o continuando:

— É indispensável. Eu conheço muito bem Clara;     pode sujeitar-se a tudo, menos a ouvir Pedro, cheio de arrependimento, pedir-lhe     perdão, a ela, que é... que se julga a verdadeira culpada.

— Tens razão, Margarida - disse o reitor, depois de ter estado     algum tempo a ponderar sobre o caso - tens razão. E assim é     melhor, até porque se evitam explicações que não     poderiam ter muito bons resultados. Mas...

— E agora permitam-me que vá ver Clara, sim?

— Pois vai; mas... - insistiu o reitor, seriamente embaraçado     com alguma coisa, que ele queria dizer, sem encontrar maneira conveniente.

— Que é? - perguntou-lhe Margarida, percebendo aquela hesitação;     e acompanhava a pergunta com um sorriso de habitual tranqüilidade.

— Mas... isto com'assim não me pode sair da idéia - continuava     o padre.

— O quê?

— Sim... a falar a verdade... tu, minha filha...

— Eu... que tenho?

— Tu... assim... Valha-me Deus! não se pode fazer nada...

— Por quem é, Sr. Reitor. Não torne a falar nisso. Não     vê que pouco se me importa? Não lho disse já tantas vezes?

— Porém, Margarida, eu sou teu tutor, assim como de Clara; quero-te     como pai e não posso, não devo consentir que o castigo caia     sobre a cabeça inocente, sobre a tua cabeça, filha. É     contra a justiça, é contra a religião.

— Inocente! - redargüiu Margarida, a sorrir. - Que está     a dizer, Sr. Reitor? Quem é inocente neste mundo? Deixe, deixe cair     em mim isso que chamam de castigo, que encontrará pecados a remir;     e quisesse Deus que mos remisse todos.

— Ainda assim... Eu nem sei o que faça... Valha-me Nossa Senhora,     valha! Sempre é uma esta!

E, ao dizer isto, o reitor olhava Daniel, como que a ver se lhe viria auxílio     dali.

Daniel, de braços cruzados e cabeça inclinada, parecia alheio     ao diálogo dos dois.

Margarida aproximou-se do reitor.

— Não sabe o que há de fazer? Digo-lho eu . Siga o seu     primeiro pensamento; foi o de ajudar-me. Por que há de agora desconfiar     daquilo que parecia aceitar com tamanha fé esta manhã? Não     tinha desculpa, se assim me deixava só a salvar Clara. Mas é     tempo de ir ter com ela. Adeus.

E dizendo isto, tomou-lhe a mão, que respeitosamente beijou, e ia     retirar-se.

Diante da porta encontrou Daniel, que a fez parar.

— Margarida - disse-lhe ele, com profunda agitação, manifestada     na voz e no gesto - essa resolução não é tão     unicamente de sua responsabilidade, como diz; sacrifica-se a sorrir, mas não     reparara que mais alguém pode sentir o sacrifício.

— Quem?

— Eu.

— Como?

— Que se dirá de mim, do meu caráter, vendo destruída,     por minha culpa a sua reputação, Margarida, e eu ocioso, tranqüilo,     descuidado... e feliz?

— E que se diria, se se soubesse a verdade? Qual acha de preferir?

— Pois bem. Oculte-se muito embora a verdade. Não quer sacrificar     sua irmã? Compreendo e admiro a nobreza dessa resolução,     creia. Mas não posso consentir que uma indesculpável leviandade     da minha parte seja a causa desse imenso sacrifício, sem que...

— Já lhe disse que não era imenso: mas que fosse, como     queria evitá-lo?

O reitor repetia a interrogação com os olhos.

— Pois não vê que a única maneira, Margarida, é...     Eu sei que sou indigno de aspirar a tanto, mas perdoe-me, a única maneira     é não me recusar a reparação que lhe devo: permita-me     que reuna ao seu o meu destino, já que a Providência...

— Bravo! atalhou o Padre, batendo com a bengala no chão - Isso     mesmo é que eu tinha aqui dentro a pesar-me; até que enfim respiro.

Margarida estremeceu ao ouvir Daniel, e instintivamente levou as mãos     ao coração como se fora ferida aí. Em poucos instantes,     as faces, de ordinário pálidas, passaram-lhe por cambiantes     rápidas de cor. Trêmula de ansiedade, sentiu vergarem-lhe os     joelhos e enevoar-lhe a vista. Valeu-lhe o apoio de um móvel próximo     para não cair. Por algum tempo tentou em vão responder; a voz     não lhe saía da garganta.

Daniel olhava-a ansioso. O padre esfregava as mãos exultando de júbilo.

Afinal, vencendo esta violenta comoção, e assumindo outra vez     a placidez habitual, respondeu com uma voz, onde sem dificuldade se podia     descobrir ainda um indiscreto tremor:

— Obrigada. É generoso o oferecimento... mas não posso     aceitá-lo.

— Que diz? exclamou Daniel.

O padre passou do júbilo à estupefação.

— Pois queria que aceitasse? Aceitá-lo-ia se estivesse no meu     lugar? Diga? Qual será o maior martírio; sofrer as murmurações,     as injúrias, os desprezos até, de milhares de pessoas, que afinal     de contas, nos são indiferentes, ou aceitar a compaixão de quem     nos é... de quem nos devia ser tudo no mundo? Daquele, a quem teremos     de dar todos os afetos, todos os cuidados, todos os pensamentos. Imagina bem     essa tortura?

— Mas, Margarida, quem lhe disse que é por compaixão     que eu lhe faço o oferecimento? Se o aceitar, creia que o agradecido     serei eu.

— Se essas palavras fossem sinceras, Sr. Daniel, era bem certo então     que possuía um desgraçado caráter! Receie sempre de si,     desses primeiros movimentos, a que obedece tão depressa. Já     que é tão fácil em mudar, ao menos faça por ser     mais forte contra si mesmo. Vença-se. Não está ainda     vendo o mal que pode fazer assim?

— Tem razão em duvidar de mim. O meu passado condena-me, porém     talvez seja injusta demais para comigo. Julga-me capaz de...

— Perdão; não julgo, não tenho o direito de julgar,     bem sei. Em todo caso, não posso aceitar.

— Margarida! - disseram-lhe a um tempo o padre e Daniel.

— Não, não posso aceitar - repetiu Margarida, já     com maior veemência. - Nunca me julgaria mais desonrada e perdida, do     que quando aceitasse uma proposta como essa, feita por outro qualquer motivo,     que não fosse a força do coração.

— Mas eu lhe juro que o meu coração...

— Oh, não diga mais! - disse Margarida, interrompendo-o. - Até     me faz mal ouvir-lhe esses juramentos; lembra-me os que ainda ontem fazia     a Clara. Repare no que ia a dizer; assim abre o coração, a quem,     momentos antes, nem conhecia sequer?

— Não há tal; - disse o reitor - diz tu que, desde criança,     já te conhece ele, e até...

— Oh! por quem é - atalhou Margarida, que previu logo onde o     reitor queria chegar. -Por quem é! O que ia dizer!

— Margarida - continuou Daniel - perdoe, se a consciência das     minhas culpas... e acredite que a estou sentindo bem amarga, mas perdoe-me,     se ela me não constrange ainda ao silêncio. Eu vejo que tem razão     para duvidar de mim; mas será só isso? Por que não me     confessa também que recusa porque sentindo insensível o coração,     desconfia dele igualmente?

— Desconfiar do meu coração! - disse Margarida, com uma     leve inflexão de ironia na voz, a qual os dois não perceberam,     e continuou: - Mas... é que não desconfio.

— Então?

— Conheço-o; e o que sei dele, como o que aprendi do seu, Sr.     Daniel, levam-me a recusar.

— Quer dizer que me não pode amar?

— Sim... julgo que sim. Eu desconfio que nem tenho coração!     Eu sei lá! Não o sinto bater, pelo menos. Bem vê que não     devo aceitar. Adeus.

E com um singular sorriso nos lábios saiu da sala, onde ficaram os     dois, atônitos e silenciosos.

Quem, naquele momento, pousasse a mão no coração de     Margarida, como veria desmentidas as suas últimas palavras.

 

Chegou talvez para mim o momento do castigo - murmurou Daniel, passado algum     tempo, depois de Margarida se retirar.

— Que está a dizer? - perguntou o reitor, olhando-o admirado.

— Que talvez àquelas mãos, das quais até hoje     só tem saído o bem, vá Deus confiar a arma de uma vingança     cruel.

— De que maneira?

— Pois não ouviu a firmeza daquela resposta?

— E então?

— E então? É que eu tenho o pressentimento de que, se     um dia se atear em mim uma paixão violenta e fatal, e tiver de ser     repelida assim, sucumbirá com ela este coração que...

— Ora adeus! Sabe os objetos que se partem batendo de encontro às     rochas? São os fortes e rijos; porque os outros, os moles, o mais que     podem é tomar nova forma; quebrar é que não quebram;     e o seu coração é de umas branduras!

— Reconheço que o meu passado me não dá o direito     de ofender-me da ironia; custa-me até a entrar de novo em justificações,     que só me valem sorrisos, mas..

— Mas, ainda assim, sempre vai tentar mais uma vez - disse o reitor     sorrindo. - Ora ande lá.

— Ouça-me. É uma triste confissão para o meu orgulho,     a que vou fazer, mas é verdadeira. Há muito que tenho este pensamento;     até no tempo em que mais procurava evitá-lo, ele me acudia.     É por certo arriscado para qualquer mulher confiar em mim o seu amor,     menos em um caso, que até aqui se não dera ainda comigo.

— Então qual é esse caso?

— É se ela conseguir dominar-me; se a meus olhos se conservar     sempre à altura que dê à paixão, que me inspirar     a natureza de um culto. Há caracteres, para os quais é isto     necessidade. De ordinário, todos os meus esforços são     despojar desses prestígio, que me enleia, a mulher a quem amo; porém,     desde que o consigo, já não respondo por mim. Sei-o por experiência.     Mas, previa-o há muito tempo, se me encontrar com uma destas naturezas     superiores, para as quais nunca se extingue o resplendor que as rodeia, há     de fixar-se este coração volúvel, e não haverá     para elas o risco, de que das minhas afeições lhe possam resultar     lágrimas.

— E conclui daí? - perguntou o padre, no mesmo tom, quase zombeteiro,     em que sustentava o diálogo.

— Que Margarida não podia recear do meu amor. Eu, que duvidava     já que viesse a amar seriamente, porque me julguei superior a todo     o predomínio, hoje...

— Hoje, mudou de opinião.

— E mudei, creia-o. Nunca me conheci assim. Ainda antes de a ver, quando     da sala imediata a estivemos escutando, não sei por quê, sentia     ao ouvi-la, reviver todo o meu passado, a parte mais pura dele.

— Sei eu - resmoncou para si o reitor.

— Depois que a vi, foram sensações novas para mim, as     que experimentei. Eu, que por tantas vezes, e a sorrir, tenho dado passos     na vida, que fazem recear os mais audazes; eu, que, para ser arrojado, não     careci nunca do forte impulso de uma paixão, pois me bastava o simples     estímulo de um capricho, hesitei há pouco, como viu, ao fazer     a proposta a que o dever e o coração me impeliam, hesitei de     timidez, como se fosse um sacrilégio de minha parte. Depois, ao receber     aquela recusa, pareceu-me sentir escurecer-se-me o futuro, e, pela primeira     vez na minha vida, senti-me desalentado com este mau êxito, em lugar     de encontrar nele incitamento para persistir, como tantas vezes o tinha encontrado.

— Desconfie dessas impressões súbitas e violentas, desconfie.     Margarida tem razão. Eu próprio já não me atreveria     a aconselhar-lhe o contrário. É melhor deixarmo-nos guiar pelas     inspirações daquela alma de anjo.

— Mas se eu a amo?

— Paixão de quinze dias! - disse o reitor encolhendo os ombros.

— Aí, não, não. Sinto-me seguro desta vez a jurar-lhe...

— Não jure, - atalhou o padre - não jure nada, homem     de Deus, que almas de outra têmpera, que não é a sua,     têm falhado, depois de jurarem. Lembre-se do que diz o Evangelho: "Seja     o vosso falar: sim, sim, não, não. Porque tudo o que daqui passe,     procede do mal". - Se não perder a idéia desse amor, trabalhe     por merecê-lo; mas não faça juras. Que, se alcançar     aquele coração, grande riqueza granjeia, isso lhe afirmo eu.     E não tenha escrúpulos de se deixar dominar, que melhor é     a cabeça de Margarida do que... Mas que fazemos ainda aqui? Vá,     vá ter com seu irmão. E veja como se porta. Não entre     em grandes explicações. Abrevie-as, quanto puder, que é     o mais prudente.

Daniel saiu da sala vagaroso e triste. O reitor, ficando só, conservou-se     por algum tempo pensativo.

Esta tácita meditação acabou-a ele, murmurando não     sei que mal distintas palavras, e depois, em tom mais perceptível:

— Contudo é pena. Remediava-se este enredo assim, e bem. Seria     talvez uma providência para o rapaz. E eu iria mais descansado deste     mundo, a dar contas da minha tutela no outro aos pais das raparigas. Mas lá     se a Margarida tem os seus escrúpulos... e a falar a verdade, com alguma     razão; e depois, o que é mais e muito mais, se ela não     se sente com inclinação para aí? Aquilo é uma     santa. Coração possui ela, mas para a caridade, que não     para amores. Paciência!

E, falando assim, caminhava lentamente o reitor de sala em sala, de corredor     em corredor, até se encontrar. quase sem saber de que maneira - tão     distraído ia - junto do quarto de Margarida cuja porta viu meio aberta.     Entrou.

Ao rumor de seus passos, ergueu-se, de súbito, uma mulher, que estava     de joelhos no chão, e debruçada sobre o leito com em um genuflexório.

Era Margarida.

Colhida de improviso, não teve tempo de enxugar as lágrimas     que em fio lhe corriam pelas faces descoradas. Em vão se esforçava     por desvanecer com sorrisos o efeito daquelas lágrimas e da expressão     de tristeza, que tinha profundamente gravada no semblante.

O reitor surpreendeu-a assim e olhou para ela inquieto.

— Que é isto? Lágrimas? Choros? - exclamou ele, levantando-lhe     a fronte, que Margarida inclinava, para esconder dos olhos do seu velho amigo     aquele indiscreto pranto. - Aí, filha, filha, que me dizias tu a pouco?     Era então mentira a indiferença que asseguravas? Eu logo vi...     Mas... valha-me... Deus... neste caso... para que fui eu?... Então     Margarida! - então! - então Nossa Senhora te valha, filha! Não     chores, olha que não sou teu amigo. Mas para que dizias tu?... Pois     está bem de ver, sempre custa... Vamos, sossega, mais vale dizer a     verdade. Isto assim não tem jeito. Sossega. Vá o mal a quem     o toca. Nem todos podem ser santos. Os santos?... Os santos estão nos     altares, ora adeus. Há coisas que são superiores ás forças     humanas. Não chores, filha; isso até é uma vergonha.     Pedro é bom e perdoará Clara, e, perdoando ele, quem tem o direito     de condenar? E se não perdoar... não sei o que lhe faça.     Quem mal a cama faz, nela se deita: ora é muito boa! Quanto ao mundo...     adeus, minha vida, o mundo é o mundo; importa lá o mundo! Era     o que faltava se por causa dele te ias agora sacrificar. Na verdade, que valia     a pena. Deixa estar, que tudo de há de arranjar. Verás. Mas     não chores; parece-me uma criança! Então, então,     Margarida? E aí estás chorando mais.

E o bom homem quase chorava também.

Efetivamente. como a todos nós sucede, quando dominados por a tristeza,     encontramos um coração compadecido, uma voz meiga a pretender     consolar-nos, quando reconhecemos verdadeira simpatia nas palavras de conforto     que nos dirigem, cada vez era mais violenta a explosão de sentimentos     em Margarida, mais abundantes as lágrimas,, mais sufocadores os soluços.

— Então, Margarida, filha, então?... - dizia o reitor,     deveras aflito, e, tentando todos os meios de acalmar aquela dor, acrescentou,     contra o seu costume: - Guida! Guida! Isso não é bonito.

Só passados alguns momentos é que Margarida conseguiu falar,     e, ainda com a voz entrecortada de soluços, disse para o reitor:

— Perdoe-me, perdoe-me, por quem é. Mas não pude, não     posso mais. Não julgue que me arrependo do que fiz, que me lembro de     recuar. Creia-me, pouco importa o mundo, o que dizem, o que virão a     dizer. Pouco me importa.

— Mas então este choro?

— Nem sei porque choro, eu mesmo não o sei. Mas faz-me bem o     chorar. Deixe-me, deixe-me por piedade.

— Mas, minha orgulhosa, por que não aceitaste tu a proposta     de Daniel?

— Isso é que nunca! - exclamou com impetuosidade Margarida,     e de novo lhe saltaram as lágrimas dos olhos.

— E aí estás a chorar cada vez mais! Mas isto não     deve ficar assim. É preciso dar-lhe remédio. Tua irmã     não pode querer...

— Mas se eu lhe juro que não choro por isso! Se eu lhe afianço     que pouco me importa o mundo!

— Mas, então, ó Virgem Santa, então por que choras     tu? Eu endoideço ainda hoje... endoideço. Sacrificas a tua reputação     para salvar a da Clara, e não choras por isso; tiveste na tua mão     o meio de remediar tudo, aceitando o leal oferecimento de Daniel, e que afinal     o pobre rapaz fazia do coração, recusaste sorrindo. E agora     venho encontrar-te neste estado, e dizes-me, e juras que não é     nada! Recusas confiar-me a causa! Margarida, é preciso saber, quero     saber por que choras assim!

— Agora não posso, não sei até dizer-lho. Se me     estima, se me quer, como diz, não me pergunte nada; não. Deixe-me     só, peço-lhe, por favor, por alma de minha mãe! Logo     volte, e, quando voltar, verá que me há de achar contente, prometo-lhe.     Que mais quer? Os abalos da noite passada causaram-me isto. Não sei     o que tenho. Vá, peço-lhe que vá. Então não     vai?

O padre olhou por muito para ela, e depois, tomando o chapéu, saiu     sem dar palavra, mas limpando uma lágrima também.

Margarida, vendo-o sair, deixou-se cair outra vez de joelhos sufocada pelo     choro.

— Fraca! fraca! - dizia ente soluços - que não tive forças     para me sustentar até o fim! Vá, vá, acabem de correr     por uma vez estas lágrimas; e que sejam as últimas; que ninguém     mas veja mais nos olhos. A causa... a causa... Oh! essa ninguém a há     de adivinhar.

— Enganas-te, Guida. Adivinhei-a eu já.

Margarida ergueu-se de repente, ao escutar estas palavras, que foram ditas     quase ao ouvido. Voltou-se. era Clara.

— Que dizes, Clara, que estás a dizer, filha?

No rosto de Clara, onde uma pouca costumada tristeza se desenhava ainda,     havia um ligeiro sorriso de malícia, da que se poderá chamar     angelical, se alguma vez for lícito associar estas palavras.

— Digo que te adivinhei, Guida. Que mais queres? estás descoberta,     minha reservada. Não tinhas confiança em tua irmã, e     assim te perdias por uma pessoa de quem desconfiavas! É ação     de santa, é; mas eu te prometo que isto não há de ficar     assim.

— Clara, tu não sabes o que dizes.

— Escuta. Que promessas, que oferecimentos eram aqueles do... do Sr.     Daniel? E por que não os aceitaste tu?

— Clarinha!

— Vamos. Eu ouvi tudo o que disse agora o Sr. Reitor. Não mo     queres dizer? Digo-te eu. Daniel propôs-te...

— Basta, Clara, basta. Bem sabes que não aceitei.

— E por quê? Isso mesmo é o que eu mais quero saber.

— Porque... não devia aceitar.

— Não devias?

— Não, não devia. És tu a que me vens dizer que     se pode, que se deve aceitar um esposo a quem...

— A quem? - interrogou Clara, fitando na irmã, um olhar inquisitorial.

— A quem não ... amamos?

— E então é certo que não amas o Sr. Daniel? -      perguntou Clara, conservando em Margarida o mesmo olhar, e demorando intencionalmente     a articulação de cada sílaba.

— Que pergunta! - disse Margarida, abaixando os olhos confusa.

— E ainda não queres que te ralhe? Ora ouve, Guida. Desde hoje     que o desconfio. Passaste a noite na minha cabeceira. Eram três horas     quando dormias, e eu estava acordada então. Ora tu também tinhas     febres, também sonhaste em voz alta, e alguma coisa disseste.

— Que disse eu?- perguntou Margarida, com perturbação.

— Alguma coisa, algumas palavras soltas, certo nome, de que eu ao princípio     fiz pouco ou nenhum caso, mas em que depois me deu para cismar. E tanto cismei,     que afinal descobri, minha pobre Guida.

— O quê?

— Que esse teu coração não era por fim, o que     se supunha; não era o que eu e o que todos supúnhamos. E olha     que mais te quis por isso; porque eu gosto de quem tenha coração.

— Mas enfim, que queres tu dizer?

— Quero dizer que tu amas, que tu amavas, e, há muito, o Sr.     Daniel.

— Estás louca, filha?

— Não negues, ou ficamos de mal. Eu depois recordei-me do que     dizia o Reitor, de que Daniel foram em pequeno o teu conversado. Muitas vezes     te vi corar ainda, quando o Sr. Reitor, a rir, te caçoava com isso.     Ora eu sei como tu és... isto é, hoje é que me lembrei     que tens um gênio singular, tu;. Eu podia esquecer-me da minha afeição     de criança. Tu não, que tu tomas a sério. É teu     costume. Eu sei. Depois, certa maneira de falar... certo acanhamento... e     as lágrimas de há pouco... e as palavras de agora... e essa     má vontade com que me estás... e esse olhar que se não     atreve a levantar-se para mim... é certo, amá-lo; e por isso     pergunto: por que recusaste o seu oferecimento?

Margarida conservou-se por algum tempo silenciosa. Depois, por uma dessas     resoluções, que são raras em caracteres como o dela,     mas, enérgicas quando chegam a formar-se, disse com uma espécie     de desespero, revelado nas palavras, no gesto, nos movimentos, e tomando com     ímpeto as mãos da irmã, que apertou convulsivamente nas     suas:

— Por quê? Queres sabê-lo? Porque o amo. Entendeste agora?

— Não - respondeu Clara, que surpreendida por aquela exaltação,     não podia desviar os olhos do rosto de Margarida.

— Pois não vês, criança - continuou esta - não     vês, louca, que seria um martírio horrível, um tormento     que nem se imagina aceitar a compaixão do homem a quem se ama? Saber     que só para generosamente nos salvar a reputação, só     para isso, ele nos fez o sacrifício do seu futuro, das suas ambições;     que se abaixou condoído, para do chão nos levantar até     si! Há nada mais doloroso? Diz, desejas esse martírio? Conheces     o coração de tua irmã, dizes tu; e pensas que ele não     estalaria de angústia? E depois, se fosse só isso; mas quem     sabe? Um dia sempre entraria uma suspeita naquela alma; se a delicadeza fechasse     os lábios, lá estava o olhar talvez a revelar-lhe o pensamento     secreto de que tudo isto em mim fora um propósito, interesseiro e vil,     de abusar dos seus brios... Ai, Clara, e cuidas que se resistiria a esta idéia?     Cuidas que eu teria coragem para... Oh! deixa-me, deixa-me; fizeste-me já     dizer o que eu nem a mim mesma dissera ainda. Nunca mais me ouvirás     falar nisto, e, se é minha amiga, nuca mais me falarás também.

E, dizendo estas palavras, saiu arrebatadamente do quarto.

 

Ao abrir as janelas do seu quarto de dormir, e ao franquear os pulmões     ao ar fresco da madrugada, a Sr.ª Teresa, a fiel esposa do nosso conhecido     João da Esquina, recebera, de mistura com o perfume das flores, que     andava nos ares, não sei que cheiro de escândalo de lhe desafiar     a curiosidade.

Para estas coisas tinha inquestionavelmente a Sr.ª Teresa um sexto sentido,     apurado como nenhum dos outros.

Segundo era seu costume, quando percebia em si tais manifestações,     pegou na cesta da meia, e veio tomar assento por detrás do mostrador,     e entre as sacas de arroz da loja de seu marido.

A menina Francisca, aquela mesma trigueira celebrada em octossílabos     por Daniel, viera sentar-se também ao lado da sua mãe. Era a     primeira vez que tal sucedia depois dos episódios que terminaram as     visitas do estouvado clínico.

Com os seus olhos travessos, e o sorriso malicioso já de volta aos     bem talhados lábios, valeu naquele dia aos pais uma afluência     maior de fregueses à loja.

A cada nova personagem que entrava, a Sr.ª Teresa dirigia, com um sorriso     de afabilidade, a pergunta sacramental:

— Então que se diz de novo?

E de cada vez esperava achar justificativa a voz do instinto de escândalo,     que, naquela manhã, tão alto berrava em si.

Por muito tempo foram , porém, malogradas estas esperanças.

Mas, aí pelas nove horas, entrou na loja o sacristão da freguesia,     a comprar cigarros - porque o Sr. João da Esquina, como é costume     nas terras pequenas, vendia tudo, desde o doce de chá, à vela     de sebo; e os cigarros entravam também na lista dos objetos do seu     negócio.

Era este sacristão um rapaz de cara rapada, e tipo de velhacaria,     sempre em olhares e suspiros diante da menina Francisca, em quem estes sintomas     de afeto não encontravam demasiado agrado.

— Ora aqui vem quem nos traz novidades fresquinhas - exclamou, ao vê-lo     entrar, a Sr.ª Teresa que, apesar da opinião que lhe ouvimos sobre     o poder nutritivo das aparas de hóstias e escorralhas de galhetas,     não era, ultimamente, de todo desfavorável às pretensões     do sacristão.

— A Sr.ª Teresa é que mas devia dar, - disse este - pois     está mais perto do sítio onde elas ferveram.

— Não te entendo, Joaquim, então que há? - perguntou,     já ralada de curiosidade, e poisando a meia, a esposa do Sr. João;     e os olhos daquela família toda convergiram para os lábios do     homem.

Este sentiu-se lisonjeado com as atenções, e muito principalmente     com as da menina Francisca, cujo olhar fixo por pouco lhe fazia perder a frieza     da ânimo.

— Então deveras não sabem o escândalo desta noite?

— Não; que houve?... Conta lá isso, Joaquim, conta lá.

E o Sr. João da Esquina, no ardor da curiosidade, e para fazer a boca     doce ao orador, trouxe-lhe uma mão cheia de figos secos de uma seira     encetada e rejeitada por freguês pechoso; e a Sr.ª Teresa esfregou     as mãos, e ajeitou-se para ouvir melhor; e a menina Francisca puxou     a cadeira em que estava para junto do mostrador.

O sacristão principiou:

— O filho do seu vizinho... o doutor novo...

Neste ponto despediu um olhar certeiro à menina Francisca, a quem     um acesso de tosse acometeu; a Sr.ª Teresa espirrou, e o Sr. João     deixou cair não sei o quê, e abaixou-se para apanhar o que deixou     cair. O orador prosseguiu:

— Pois o tal Sr. doutorzinho... esteve para o levar o diabo esta noite.

— Que me dizes, homem? - perguntou a Sr.ª Teresa, já debruçada     no mostrador.

— É verdade.

— Mas como foi isso?

— Foi o irmão, o Pedro, que esteve para o matar.

— Ora, contos! - disse o Sr. João da esquina, encolhendo os     ombros, a afetar uns ares de dúvida, mas dando um pau de canela ao     sacristão que era perdido por gulodices.

— É o que lhe digo - insistiu este, chupando a casca aromática.

— Mas então por quê?

— A mim contou-me esta manhã a tia Brásia, à missa     primeira, que o Pedro pilhou o irmão a sair da cada das do Meadas,     e disparou contra ele a espingarda. A tia Brásia afirmou-me que tinha     ouvido o tiro.

— Agora me lembro que também ouvi um tiro esta noite - disse     a Sr.ª Teresa; e acrescentou com a maior fleuma do mundo:- E matou-o?

— Não, não o matou; mas julgo que o feriu.

— Não se perde nada - disse laconicamente o Sr. João     da Esquina.

— E é de perigo? - perguntou, um tanto inquieta, a menina Francisca.

— Sossegue, menina - respondeu o sacristão, despeitado pelo     tom da voz, em que ela dissera isto. - Sossegue, que, ainda que lhe tirasse     um olho, ficava-lhe o outro para ver as raparigas da terra, que todas lhe     fazem conta.

A petulância foi repelida por a menina com um gesto de soberano desdém.

— Mas então... - continuou a mãe - diz-me cá,     então o Daniel tinha assim entrada em casa das do Meadas? Como se entende     isso?

— Ora, como se entende isso? Pois não conhece ainda aquele melro?

— Mas era com a Clarita então?

— Pelos modos, era com a Margarida, ao que dizem, mas ... eu por mim,     inclino-me a crer que era com ambas - respondeu o sacristão, com a     firmeza do historiador crítico, que decide ecleticamente entre duas     versões de um fato controvertido.

— Com a Margarida?! - exclamou João da Esquina. - Pois com aquela     cara de Nossa Senhora de Soledade... aqueles ares de Santa... Eu sempre vejo     coisas!

— São as piores - sentenciou a esposa. - Bem me fio eu em santidades.

— Não sei como se pode gostar daquilo - disse desdenhosamente     a menina Francisca.

— Deixe lá, menina - notou com ironia o sacristão, ainda     despeitado. - A Margarida não é para desprezar assim. É     trigueirinha, mas nós todos sabemos que Daniel não desgosta     delas, ainda mais trigueiras.

Francisca mordeu os beiços ao escutar a alusão, e espetou a     agulha no novelo de linhas; o pai lançou ao sacristão um olhar     furibundo, e descarregou com o martelo uma forte pancada nos pintos falsos,     que, para escarmenta de velhacos, tinha cravados no mostrador; e a própria     Sr.ª Teresa armou-se de um sorriso constrangido, pouco animador para     o sacristão, e ao mesmo tempo apertou nervosamente uma orelha ao gato     maltês, que dormitava acocorado junto dela, sobre uma saca de arroz.

Muda, mas expressiva linguagem simbólica, que se podia traduzir assim:

A menina Francisca - Tinha alma de atravessar o coração com     esta agulha, maldito.

O Sr. João da Esquina - Não sei o que me contém, que     te não quebre com este martelo quantos dentes tens na boca, brejeiro.

A Sr.ª Teresa - O que tu merecias era um puxão de orelhas, bem     puxado, maroto.

No entretanto, o sacristão prosseguia, imperturbavelmente:

— A tia Brásia disse-me que havia muito que o Daniel não     largava a porta das do Meadas. E isso é fato. Pelos modos, o Pedro     soube-o, e então, se lho não tiravam das mãos, dava cabo     dele.

— Mas então sempre havia alguma coisa com a Clara também?      - insistiu a Sr.ª Teresa, a quem a opinião crítica do sacristão     agradava, por mais escandalosa.

— Pois isso para mim é de fé - disse o sacristão.

Por este tempo tinha entrado na loja um jornaleiro, o qual, tendo ouvido     as últimas palavras do diálogo, percebeu logo do que se tratava.

— Houve mosquitos por cordas esta noite lá para as minhas bandas,     houve - disse o homem com um sorriso malicioso.

— Ah! também já sabe? - perguntou o sacristão.

— Ora se já sei! Pois eu não estive lá?

— Ai, pois viu?

Os quatro, que em comum fizeram esta pergunta, fitaram avidamente os olhos     do jornaleiro.

— Eu lhe digo - disse o homem, tirando o chapéu e coçando     na cabeça. - Eu tinha chegado de fora, havia meia hora. Tinha sido     rogado para uns trabalhos aí para longe. Por sinal, que me pagaram     como a cara deles. Sempre lhe digo, Sr. João, que isto de jornais está     uma pouca vergonha. Deu o que tinha a dar. Eu lembro-me dantes... Mas vamos     ao caso, eu chegava a casa; e tinha dito lá à minha patroa...     que, coitada, também não tem andado lá essas coisas,     não - mas tinha-lhe eu dito que me fritasse uns ovos com presunto -      e deixe-me dizer, que os ovos este ano também são uma peste.     Parece que deu o arejo nas galinhas. Diabos as levem. Daqui a pouco, da maneira     que isto vai, ficamos sem ter que comer e a fazer cruzes na boca. Mas estava     lá a minha patroa a fritar-me os ovos... É verdade, ó     Sr. João, que diabo de azeite me deu vossemecê o outro dia, que     nem a mão de Deus padre se pode levar.

— Homem, pois ninguém mais se me tem queixado dele. É     você o primeiro.

As mulheres e o sacristão começavam a impacientar-se.

— Eu não sei o que lhe acho, sabe-me a chapéu velho,     o maldito. Mas estava lá a minha Quitéria ao lume, eis senão     quando eu ouço uns gritos de "Aqui del-rei".

— Então eles gritaram "Aqui del-rei"?

— Que os ouvi eu, sim senhor, tal qual. Pus-me logo na rua. Porque     eu cá sou assim. Olhe o Sr. João, quando foi daquela espera,     que fizeram ao escrivão da fazenda, eu lá estava.

— Na espera? - perguntou o sacristão, em tom de zombaria.

— Não que eu não sou desses - respondeu o jornaleiro     carregando a sobrancelha - quando quero fazer mal a alguém não     me escondo. Vou ter com ele, esteja onde estiver, na sacristia que seja. Ora     fique sabendo, que pode ser que lhe sirva.

— Então acaba ou não acaba a sua história, Sr.     Manuel? - disse a Sr.ª Teresa, desfazendo a alteração nascente.

— Salto para a rua - continuou o jornaleiro - e como o barulho vinha     do lado dos Juncais, tomei por lá. Vi-me em calças pardas. Não     fazem idéia como está aquilo nos Juncais. Uma coisa é     ver, e outra é dizer. Sempre temos uma Câmara, louvado seja Deus!     Deixa estar aquele mar nos Juncais... porque é um mar, sem tirar nem     pôr. Eu queria que a Sr.ª Teresa passasse por lá de noite,     como eu, que sempre havia de dar ao diabo a cardada.

— Mas depois que viu? - perguntou a Sr.ª Teresa exausta de paciência     com as intermináveis digressões do orador; e acrescentou baixinho:      - Sume-te demo mau!

— Quando cheguei perto da casa das do Meadas, passou por mim um homem,     e eu meti-me num canto para, se fosse preciso, agarrá-lo...

— Deixá-lo fugir - continuou impenitentemente o sacristão     sorrindo.

O Manuel do Alpendre, que era a graça do jornaleiro, nem se dignou     a responder. continuou:

— Vi que era o Daniel ou o diabo por ele, mas pareceu-me que levava     alguma coisa quebrada. Ia assim como a mancar. Olhe que sempre se vai saindo     o tal, menino! Eu digo, que se ele escapa de tantas que faz! Mas há     gente assim! Uns a cavar pés de burro por este mundo, outros então     a levar a vida com uma perna às costas. Este é um dos que parece     ter nascido em um fole, o tal Sr. Daniel... Bem fez cá o Sr. João,     em lhe fechar a porta na cara, e pôr termo às visitas que ele     fazia por aqui; já se sabe por que, sim, já à boca cheia     se dizia...

— Vamos ao caso, vamos ao caso - interrompeu a Sr.ª Teresa - Você     que fez depois?

— Eu? Segui o caminho e cheguei à porta das raparigas. estava     já lá o Pedro do Abade, o João das Pontes, o tio Gaudêncio     das Luzes... por sinal que anda escangalhado o velho. Perdigão perdeu     a pena, não há mal que lhe não venha. Não sei     que diabo aquilo é. Eu ponho as mãos numas Horas, se o homem     deita o ano fora. Quem viver, verá. Mas vai, chego-me a ele... "Ó     tio Gaudêncio, digo-lhe eu, que é isto aqui?" - Olha, diz-me     ele. - E vai, eu olho, e vejo o Pedro das Dornas com uma espingarda na mão,     e o Sr. Reitor ao pé dele, e no chão uma mulher.

— Morta? - perguntou com vivacidade a Sr.ª Teresa.

— Morta não, senhora. A mulher estava viva.

— Mas o tiro que ele deu?

— Eu já disso não sei!... Pois ele deu algum tiro?

— Pois eu não ouvi um tiro? - disse a Sr.ª Teresa. - E     não fui eu só, houve mais quem ouvisse.

— Que ele tinha a espingarda, isso lá, tinha.

— E deu o tiro; não tem dúvida que deu. Mas então     era a Clara?

— Nada, não era; era a irmã, a mestra. Eu bem a vi. E     vai ao depois, o Sr. Reitor não sei o que disse e tal, sim senhores,     e pega e vai ao Pedro e manda-o embora, e volta-se para o, povo que por ali     estava, e manda-o também embora, dizendo que não dessem à     língua; e com razão, porque a rapariga é bem afamada,     e, se se principiasse agora por aí a falar... Sempre me há de     lembrar que quando minha mulher...

— Mas o Pedro o que disse à saída?

— Não disse nada. Parecia nem dar por a gente. Ia assim a modo     de estarrecido. Se lhe parece! Sempre um homem às vezes se encontra     nelas boas! Uma ocasião tinha eu ido...

— Mas então está bem certo que era a Margarida a que...

— Ora se era! Pois eu não conheço a Margarida? Ainda     o pai era vivo, que eu, indo um dia com ele a uma patuscada... que nós     dávamo-nos muito; aí está que, faz pelo S. Martinho doze     anos... Dantes é que o S. Martinho era S. Martinho... Lembra-se, Sr.     João, daquela vez que nós fomos todos?... que tempo! Ainda era     vivo o tio André de Mortosa... Que homem tão divertido! Aquilo     era uma coisa por maior... pois quando ele ia de serandeiro às esfolhadas!     Dantes sim, é que se faziam esfolhadas... Agora já se não     fazem que se prestam... Aí está que eu fui no outro dia à     do Damião... pois, senhores, parecia-me um enterro... Ele também     teve fraco S. Miguel este ano... O homem não sabe dar amanho ás     terras... As terras querem-se bem tratadas, não há que ver...     É como uma pessoa; quem não tem o sustento devido não     pode medrar. Olhem aquela rapariga, filha da João Ferreiro... Quem     a viu e quem a vê.

E, de incidente em incidente, corria à vela cheia o pensamento de     Manuel do Alpendre pelo vasto mar de suas recordações, afastando-se     cada vez mais do assunto primitivo, e cada vez desesperando mais a curiosidade     do auditório.

O sacristão cortou o fio da digressão.

— Mas aí vem quem nos pode dar informações exatas      - disse ele, vendo entrar na loja nova personagem.

Era uma mulher cor de cera, muito macilenta, de olhos meio fechados, e sorriso     de beatitude nos lábios. Usava o cabelo curto penteado para diante     da testa, a qual ficava coberta por ele até às sobrancelhas;     cingia-lhe a cabeça um lenço branco, posto à maneira     de barrete; sobre o primeiro, outro de cor escura, atado por baixo da barba,     e puxado para diante, até deixar-lhe o rosto como no fundo de uma gruta,     e, ainda por cima, a capa de baeta, sem cabeção.

Das mãos pendia constantemente um comprido rosário.

Era enfim um desses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias; mulheres cuja     vida se passa em devoções contínuas, em novenas e vias-sacras,     e em perene confissão; obra dos gordos missionários, que deixam     a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas possessões,     para andar na tarefa mais cômoda de tolher o trabalho e a atividade     na casa do lavrador.

Imbuindo o espírito das mulheres de preceitos de devoção     absurda, afastam-nas do berço dos filhos, da cabeceira do marido enfermo,     do lar doméstico, para as trazer ajoelhadas pelos confessionários     e sacristias; com uma brava eloqüência, perigosa para quem não     tiver o senso preciso para a achar ridícula, incutem-lhe falsas doutrinas     desmentidas e condenadas em cada página do Evangelho, tão severo     sempre contra fariseus e hipócritas.

Numa localidade, não muito distante do Porto, ainda há pouco     um desses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente     a moral dos povos, pregou do púlpito "que a salvação     de um homem casado era tão difícil, como o aparecimento de um     corvo branco".

É triste e desconsolador o aspecto da terra, onde esta praga farisaica     tem feito maiores estragos. A alegria do povo, esse reflexo de alegria das     mulheres, porque das mães se reflete nos filhos, das esposas nos maridos,     das raparigas nos amantes, desaparece pouco a pouco.

Com os trajos escuros, os cabelos cortados, os olhos baixos, as mulheres     têm por pecado rir; o cantar como um crime; ou se cantam, são     umas certas cantigas do Divino, ensinadas pelos missionários, nas quais     a austeridade do conceito nem sempre é mais respeitada do que a eufonia     da forma. Algumas ouvi eu, em que a vinda de missionários era saudada     com um vigor de imagens quase oriental; eram arremedos grosseiros do Cântico     dos Cânticos, que fariam rir, se lhes não percebessem piores     intenções.

E, no meio destas ostentações de ascetismo, quantas vezes se     esconde folgada a devassidão, que não dúvida ornar o     pescoço de camândulas e bentinhos, e vê na excitação     nervosa, produzida pelos jejuns, um alimento a favorecê-la?

O horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tartufo.     Salvem-se as aparências , rezem-se as devoções todas,     e a culpa será atenuada.

Traz-se, por exemplo, o pulso cingido por uma cadeia de aço benzida     de certa forma - distintivo das escravas de Nossa Senhora - cadeia milagrosa,     que, asseguram os missionários por lá, tem a propriedade de     se alargar ou apertar de per si, de modo a andar sempre justa ao braço,     quer este engorde, quer emagreça; pois já o diabo não     se atreve contra quem usa este talismã.

Ora digam se, quando não seja senão para aperrear o diabo,     não dá logo vontade de experimentar a eficácia da cadeia     cometendo um delito?

Era pois a Sr.ª Josefa da Graça a mais famigerada vergôntea     deste viveiro de aspirantas a santas, que se estava organizando na aldeia.     O reitor, que não era para imposturas, tratava-as a todas com aspereza,     o que não lhe granjeava muitas simpatias neste beato congresso.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo - disse ao entrar na loja,     e com voz dolentemente melodiosa, a santa de que falamos.

— Para sempre seja o Senhor louvado - respondeu-lhe menos beatamente     a Sr.ª Teresa.

— Faz-me favor de me vender duas velinhas de cera para uma promessa     que fiz ao Divino Coração de Maria, Sr. João, e que seja     pelas Divinas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

João da Esquina satisfez prontamente a requisição, mas     enquanto o fazia, perguntou:

— Então que houve esta noite lá pelas suas vizinhanças,     ti'Zefa?

— Eu sei, filho? Eu de portas para fora nada posso dizer. Já     não é pouco tratar cada um da sua alma, e dirigi-la no caminho     do Céu. O Padre José ainda ontem o disse.

— Pois sim; mas, quando se faz muito barulho na rua, sempre se abre     um cantinho da janela - disse João da Esquina, piscando o olho para     o sacristão, que lhe sorriu em resposta.

— Abrir a janela? Para que há de uma pessoa abrir a janela?     Para se meter em trabalhos? Não que eu, filho, todas as noites rezo     ao meu devoto padre Santo Antônio, para que me livre de perigos e de     trabalhos, de maus vizinhos de ao pé da porta, e de ferros de el-rei.

— Mas pelos modos o santo não a tem ouvido, porque enquanto     a maus vizinhos...

— Nem por isso a deixam dormir, não é assim, ti'Zefa?     - perguntou a Sr.ª Teresa, entrando na conversa.

— Vizinhos... o que se diz vizinhos, não tenho eu; a casa mais     perto é das pequenas do Meadas, e dessa à minha ainda é     um bocadinho.

— Mas ouvia-se lá o barulho?... perguntou o sacristão.

A beata fez um gesto afirmativo e acrescentou.

— Olhe, Sr. Joaquim, pecados deste mundo, sabe?

— Vamos lá. A ti'Zefa sempre tem inclinação pelas     raparigas. São suas conhecidas há muito tempo e por isso...

— Eu?! Olhe ainda esta manhã o disse o Padre José, aquilo     são tentações do demônio, sabe o Sr. João     da Esquina o que são tentações do demônio; pois     é aquilo. Não que dizem que não vale nada ser escrava     de Nossa Senhora. Não, não vale, Já se está a     ver. As coisas estão a saltar aos olhos.

— Mas, afinal que houve? O caso foi com a Clara ou com a irmã?

A pergunta era feita pelo sacristão, por quem a beata tinha essas     contemplações, e por isso respondeu:

— Foi com a Margarida, Sr. Joaquim. Aquilo estava de ver! Então     admirou-se? Pois olhe, eu... A gente não deve murmurar do seu próximo,     mas enfim... isto é por conversar e não passa daqui. Aquela     rapariga vai mal; ainda hoje mo disse o Padre José; tirando lá     a sua missa ao domingo, já ninguém a vê mais na igreja.     Olhe a Sr.ª Teresa que, ali onde se vê, não quis pertencer     à confraria do Sagrado Coração de Maria! Já viram?     Mas, como disse o Sr. Padre José, e é assim, a culpa não     é dela.

— O nosso reitor é quem a aconselha - insinuou João da     Esquina.

— Julgo que sim, Sr. João, e... Enfim, dada um sabe de si, e     Deus de todos, mas a falar a verdade... - isto não é agora por     dizer do Sr. Reitor, que é muito boa pessoa, assim não fosse     aquela zanga que ele tem ao Padre José e à confraria; mas que     ele não as traz bem guiadas, isso não traz...

— Mas vamos a saber - disse interrompendo-a, a Sr.ª Teresa, e     tomando um tom de íntima familiaridade, que provou admiravelmente,     em soltar a língua à beata - mas se o caso era com Margarida     só, como é então que o Pedro quis matar o irmão?     Que tinha o Pedro com isso?

— Pelos modos - disse o jornaleiro, que estivera calado - ele julgou     ao princípio que era Clara, e... Faz-me lembrar quando, há de     fazer três anos...

— Nada, não, senhor, não foi isso - emendou a beata.      - O que me disseram foi que a Margarida quis lançar as culpas à     Clara, que foi então que o Pedro espetou a navalha no irmão.

— Então ele espetou-lhe alguma navalha? - perguntou a menina     Francisca.

— Pois não espetou? E diz que, por pouco, lhe chegava ao coração...

— Santo nome de Jesus! Isso é crime de degredo, pelo menos.

E, dizendo isto, a Sr.ª Teresa parecia satisfeita por o escândalo     ir assumindo maiores proporções.

O jornaleiro notou do lado:

— Ó ti'Zefa, isto é que me não parece verdade.     Eu julgo que ele nem o feriu.

— Pois eu não vi, Sr. Manuel?

— Com as janelas fechadas, ti'Zefa?

A beata mordeu os beiços.

— Vi esta manhã o sangue, é o que eu queria dizer. E     por sinal que não era tão pouco.

— Quem havia de dizer que aquela sonsinha da Margarida... observou     o tendeiro.

Neste ponto entraram na loja mais alguns fregueses que já informados     do que se passava prestaram logo ouvidos à conversa.

Entre eles achava-se também a criada de João Semana, a qual     viera comprar arroz para o jantar de seu amo.

Não foi de todo auditório a menos atenta esta nossa conhecida;     mas uma contração de lábios e sobrancelhas , e o olhar     que fixou na beata mostravam que não era de ânimo satisfeito,     que ela escutava os boatos daquela manhã.

A confessada do Padre José continuava:

— Olhe, Sr. João da Esquina, isto de viver assim ao deus-dará,     não é lá grande coisa. Aquilo naquela casa é uma     república, sabe? Falta ali uma pessoa de juízo e de temor a     Deus. O Sr. Reitor... enfim, eu não quero dizer mais nada.

— Pois é pena - resmungou a Sr.ª Joana.

— É assim, ti'Zefa, é assim. O Sr. Reitor dá toda     a liberdade àquelas raparigas. Aquilo mais tarde ou mais cedo estava     para suceder - disse a Sr.ª Teresa.

— Melhor tu olhasses por o que te vai por casa - continuava a resmonear     Joana.

— Olhem que mestra de crianças! - observou uma gorda oleira,     que viera comprar uma quarta de sabão. Não, filha minha não     mandava eu lá.

— Deixa estar, que contigo havia de aprender boas prendas - comentava     ainda Joana.

— Não há de ser a minha que há de lá voltar.

— Nem a minha - disseram algumas mulheres presentes.

A Sr.ª Joana principiou a ser acometida de uma tosse seca, tão     significativa, que desviou para ela as atenções.

Mas a Sr.ª Joana, na qualidade de governante do velho, era na terra     uma potência, com que poucos se atrevia a arrostar. Fizeram-se por isso     desentendidos.

— E quem vê aquilo então! - disse João da Esquina.     Toda de mantos de seda, toda Sant'Antoninho onde te porei.

— Tentações do inimigo mau, sabem? tentações     do inimigo mau, é o que é. Não, que dizem que não     serve de nada confessar-se a gente a miúdo, e rezar as orações     dos missionários.

— Aí, serve para livrar de maleitas depois da morte - respondeu,     já em voz mais alta, a Sr.ª Joana preparando-se para sair.

A beata, fingindo não entender, continuou:

— Ainda esta manhã o Padre José...

— Oh! - disse expressivamente a criada de João Semana, já     da porta.

A beata fitou nela uns olhos chamejantes de cólera. Aquela interjeição     irritara-lhe os nervos.

— A Sr.ª Joana tem alguma coisa a dizer do Padre José?

— E você que lhe importa? - retorquiu-lhe Joana embespinhada,     voltando para dentro.

— Eu sempre queria saber...

— Ora meta-se com sua vida, que não é de muitas canseiras,     e não tome tanto fogo pelo que se passa nas casas alheias. Não     está mau o descoco? Olhem agora o estafermo!

— Não se zangue, Sr.ª Joana; lembre-se que a ira é     o quarto pecado mortal.

— Dê conselhos, a quem lhos pedir, que eu, quando precisar deles,     sempre hei de ter, graças a Deus, outras barbas melhores que as suas,     para mos dar.

— Presunção e água benta, cada qual toma a que     quer - disse a beata, com um sorriso de sarcasmo.

O nariz de Sr.ª Joana afogueou-se de vermelhidão, sinal de borrasca     iminente.

— Ó Sr.ª Zefa da Graça, repare bem com quem se mete.     Olhe que eu não sou das da sua igualha, para tomar comigo esses ares     de confiança. Veja que lhe pode sair caro o risinho.

Ninguém falava com a Sr.ª Joana. Quem não quer ouvir as     coisas...

— Então, então, isso não vale nada - disse, intervindo     pacificamente, a mulher do João da Esquina.

— Que não vale nada, sei eu - continuou Joana - porque tenho     bastante juízo para receber as coisas, como da mão de quem vêm.     Mas na verdade que lá custa a uma pessoa estar a ouvir semiscarúnfias     destas a porem a baba na fama de uma rapariga, de quem um só cabelo     da cabeça vale por todas as beatas fingidas desta terra, por todas     de cambalhota, e por tal padre também.

— Veja o que diz! depois não se queixe de ouvir..

— Que hei eu de ouvir, sua desavergonhada, sua papa-novenas, que hei     eu de ouvir? - exclamava já de punhos cerrados e olhar cintilante,     a irascível Joana. - Eu não tenho medo das verdades, e para     as mentiras tenho estas mãos desempenadas graças a Deus. Diga     o que sabe, diga para aí. Não, minha amiga, a mim não     me engana você. Cuida que o rosário é fiada de alcatruzes     que a há de levar ao Céu? Está servida.

— Quem chega à missa depois do credo... não pode falar...      - murmurou, já intimidada, a beata.

— E você, sua rata de sacristia, tem alguma coisa com isso? Que     lhe importa saber se eu chego tarde ou cedo? Não, que não tenho     a sua vida, sabe? Deus, que lê nos corações, bem conhece     que não é de propósito que eu... Mas vejam esta santinha     com que atenção está a missa, que repara para quem entra     e quem sai. São todas assim. Estas e outras coisas é que elas     vão dizer ao confessor. E há de ser isto que há de pôr     a boca em Margarida?

— Então julga que é peta o que toda a gente sabe por     aí já?

— Não, a verdade deve dizer-se - observou João da esquina      - É fato que esta noite...

— Histórias! isso não há de ser tanto como dizem.     Sabem que mais? Eu só lhes desejo, aos que tiverem filhas, que Deus     lhes dê a elas um bocadinho do juízo da Guida dos Meadas. Adeus.

E a Sr.ª Joana ia a retirar-se

— Espere, espere - exclamou a Sr.ª Teresa, ofendida - isso que     quer dizer?

— Não posso estar a taramelar das vidas alheias, que tenho a     olhar por a minha.

E saiu

Não lhe ficaram fazendo muito boas ausências as mulheres que     se conservaram na loja.

A beata sobretudo espalhou todo o seu fel em palavras acerbas, apesar da     costumada doçura da pronúncia, com que lhe saíam dos     lábios.

Afinal retirou-se também da loja, para ir contar a outra parte o escândalo     da noite passada, já mais ampliado talvez.

Dentro em pouco não se falava de outra coisa na aldeia. Cada imaginação     se encarregava de variar o boato..

Houve quem desse Daniel quase morto, e o irmão fugido; outros que     pelo contrário ungiam Pedro e desterravam Daniel.

De Margarida dizia-se que tinha querido sacrificar a irmã, e que esta     a punha fora de casa, deixando-a assim a pedir esmola; e mil outras variantes,     que o leitor pode conjeturar.

— Este rapaz não acaba bem. Ora verão - concluiu, no     fim de tudo isto, o Sr. João da Esquina.

A Sr.ª Teresa apenas observou:

— Mas como lhe deu para olhar para aquela rapariga? Vejam agora as     grandes bonitezas!

A menina Francisca, inclinada sobre o mostrador da loja, escrevia nele distraidamente,     com um gancho de cabelo, diferentes palavras sem nexo, e no fim suspirou.   

 

A tarde desse dia empregou-a o reitor em casa de José das Dornas,     onde, com a sua diplomacia, conseguiu evitar as dificuldades da primeira entrevista     entre os dois irmãos.

Pedro, cheio de remorsos, abraçava Daniel, e este, que com mais razão     os estava sentindo, a custo podia suportar essas provas de arrependimento     de uma culpa imaginária.

Repugnava-lhe afetar maneiras de quem perdoa, quando força interior     o impelia a ajoelhar e confessar-se culpado. Por mais de uma vez esteve para     revelar tudo; susteve-o o olhar, que o reitor, pressentindo essa tentação,     nunca dele desviava.

— Mas - dizia Pedro, já em ponto adiantado da entrevista - se     tu gostas de Margarida, por que não hás de casar com ela?

— E julgas que ela o consentiria? - perguntou Daniel

— Por que não? Não te estima também? Eu julgo     que bem claro to mostrou ontem.

Daniel achava-se embaraçado. A observação do irmão     era, na aparência, tão razoável, que ele não sabia     o que havia de responder. Valeu aqui a tática do reitor.

— Ora que sabes tu dos outros, Pedro? - disse ele. - Tem graça!     Cada um sabe de si, e é quando Deus quer, que, às vezes, nem     de nós sabemos também. O melhor é falarmos de outra coisa,     ou tratar cada qual de sua vida.

Daniel da melhor vontade seguiu o conselho do reitor e a conferência     terminou.

Porém, quando o padre ia transpor o limiar da porta da rua, Daniel     aproximou-se dele.

— E Margarida? - perguntou-lhe com certa ansiedade.

— Margarida? Margarida está boa...

— Falou-lhe depois que hoje nos apartamos?

— Falei.

— E persiste na resolução?

— Que resolução?... Na de salvar a irmã?... Pois     está de ver que sim.

— Não falo disso.

— Então? - perguntou o reitor com afetada simplicidade.

— Na recusa que esta manhã...

— Ah!... já nem me lembrava... não se falou mais em tal.   

Daniel baixou a cabeça. O reitor julgou perceber-lhe no rosto sinais     não simulados de tristeza, e condoeu-se dele.

— E nós cá - disse, batendo-lhe no ombro - como vamos?     A que paixão se traz agora aforado o coração? Aí     nunca pode medrar coisa que preste; um terreno movediço como o das     areias.

— As plantas de fundas raízes também se sabem prender.

— Mas levam um tempo!... E nem sempre vingam. Aí está     que bem antiga foi a primeira sementeira dessa, que traz agora no coração,     se é que a traz, mas não vingou dessa vez, ao que parece.

— Que quer dizer? - perguntou Daniel, olhando para o reitor a quem     não entendia.

— Homens que não têm sempre presentes os tempos de criança,     os mais felizes, e mais inocentes tempos da vida - Deus me livre deles. Há     de haver dez anos... - E de repente parecendo interromper o pensamento, que     ia exprimir, o reitor saiu, e, já da rua, cantou a meia voz e afastando-se     lentamente:

    Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar.

Desde que rompia o dia

Até a noite fechar. - Ah! - exclamou Daniel, como se naquele instante     lhe ocorresse um pensamento inesperado.

O reitor tinha já desaparecido.

Aquela exclamação abriu no espírito do antigo companheiro     de Guida um longa sucessão de memórias e de pensamentos, aos     quais o deixaremos entregue.

Às dez horas da manhã seguinte o pároco, passando por     casa de Margarida, resolveu entrar, não obstante saber serem aquelas     horas de ocupação para sua pupila.

O reitor muitas vezes gostava de assistir às lições     das crianças, e até de auxiliar Margarida tomando algumas também.

Com esse projeto subiu vagarosamente as escadas; ao subi-las, estranhou o     silêncio que havia em casa, de ordinário àquela hora,     ruidosa de vozes infantis.

— Isto será mais tarde do que eu supunha? - disse o reitor,     parando no patamar e consultando o relógio. - Dez horas. Só     se o relógio se atrasou; mas esta manhã ainda...

As pancadas sonoras da campainha de um pequeno relógio de sala interromperam-lhe     o monólogo.

— Quatro, cinco, seis; são dez, não há que ver     - dizia o reitor, contando-as - sete, oito... é isso; nove e dez. São     dez horas, são. Mas então...

E subia, mais apressado já, um segundo lanço de escadas.

— Margarida estará doente? Porém se fosse de cuidado,     tinha-me mandado parte; e não sendo, não era ela a que por qualquer     coisa...

E entrou na primeira sala. Escutou - o mesmo silêncio.

— Oh! Estou admirado!

Desta sala passou à do trabalho.

Estava deserta, postas de lado as pequenas cadeiras das crianças,     arrumados os cestos de costura e os livros, e na sala aquele ar de tristeza,     que parecem ter, quando desertos, todos os lugares ordinariamente concorridos.

Sentiu esta impressão o reitor; foi agitado de secreto receio que     atravessou os corredores e abriu a porta do quarto de Margarida.

Encontrou-a sentada, a ler, com a fronte encostada à mão, o     semblante sereno, mas abatido, e nos olhos vestígios de lágrimas     enxugadas de pouco.

— Que significa isto? - disse o reitor, dando às suas palavras     um tom jocoso, mas conservando no olhar a mesma inquietação.      - É hoje dia de sueto?

Margarida fechou o livro, ergueu-se para beijar a mão ao reitor, e     com uma voz onde, quem estivesse excitado a estudá-la, podia perceber     ainda um desvanecido tremor, respondeu:

— As mães das minhas discípulas quiseram dar-me tempo     para o arrependimento e para a penitência. Dispensaram os meus serviço.     E eu... aproveitei o conselho, que me deram, assim. Veja.

E mostrou o livro que lia, Era o dos Salmos.

O reitor bateu impetuosamente com a bengala no chão.

— Mas isso é indigno! Isso é... é... Ora deixa     estar que eu lhes vou falar...

— Não vá... eu já esperava por isto. De que se     admira? Por que as censura? Então não era da sua obrigação     fazer o que fizeram?

— Margarida, isto é demais! É preciso dar-lhe algum remédio,     ou então...

— E aí voltamos à nossa demanda - disse Margarida, sorrindo.     - Não sabe já que não há melhor remédio     a dar-lhe?

— Há de haver; isto é que há de haver por força,     que to digo eu. Tu estás a obrigar o teu coração a coisas     que não são para corações humanos. Hás     de acabar por o esmagar. Sabe Deus o que ele padece já!

— Ora diga, quando o coração padece, pode-se estar a     sorrir como eu? Vê?

E Margarida obrigava-se a sorrir.

— E as lágrimas de ontem? - prosseguiu o reitor. - E as de hoje.     Terás coragem para, olhando bem para mim, me afirmares que ainda hoje     não choraste, quando eu tas estou a ver nos olhos?

— É certo. Chorei.

— Ah?

— Mas de saudades. Cerrou-se-me o coração de tristeza     ao pensar que me separava daquelas crianças que todas me queriam, que     eu via crescer, que eu ensinava a falar. Mas... paciência! A tudo se     acostuma o pensamento, e dentro em pouco...

— Nada, nada - continuou o reitor - não entendo isso de tal     forma. Tudo tem seus os limites. Isso agora bole-me com a consciência.     Eu vou perguntar a essa gente...

— O que lhe vai perguntar?

— O que significa este desaforo! Quero lançar-lhe em rosto os     seus escrúpulos patetas e estúpidos. Olhem as presumidas!

— Não faça isso.

— Margarida, é um pecado levar as coisas tão longe. E     cuidas que tua irmã sabendo disto...

— Clara não o saberá. Para que há de saber? Tinha     saído quando eu recebi o recado dessa pobre gente. Eu lhe direi...

— Que lhe hás de tu dizer?

— Qualquer coisa... o que me lembrar. Dir-lhe-ei que estou cansada     desta vida afinal; que lhe dou agora razão... e que aceitarei... a     caridade... de minha irmã.

E a estas palavras a comoção dominava outra vez Margarida.

— A caridade! Quem fala de receber caridades? Tu, que foste pródiga     de benefícios? Tu, que te despojaste da tua capa para cobrires com     ela os ombros nus da tua irmã? Aí Margarida, que é isso     menos abnegação, que orgulho já. Não, desta vez     não cederei. Vem, filha, vem comigo.

— Eu?! Aonde?...

— Vem; encosta-te ao meu braço. Quero ver agora quem se atreve     a murmurar daquela que passa apoiada no braço do seu reitor. Sempre     quero ver.

— Não me obrigue a...

— Vem, Margarida; tens os pobres do costume a visitar, e entre eles...     e até, se queres despedir-te do teu mestre, não deves adiar     a tua visita, porque...

— Pois está pior?!

— Está próximo a obter o alívio de todos os seus     males. Ora então vem, e veremos se elas também... se essa pobre     gente, que socorres, recusa a esmola que lhes sabe dar.

— Mas... Jesus, meu Deus! não sei se terei forças agora...

— Pede-as à consciência. Ela tas dará. Não     me recuses o que te peço, Margarida; ou então Clara saberá     tudo. Eu te prometo que isto não fica assim como está.

O pároco mostrou-se desta vez exigente. Margarida cedeu às     reiteradas insistências dele.

Passados momentos, iam ambos silenciosos pelos caminhos da aldeia.

A apreensão de que se possuíra Margarida, fazia-lhe vacilar     os passos. teve de segurar-se por isso ao braço do seu velho amigo     e protetor

Chegaram assim ao largo, onde morava o enfermo.

À sombra das árvores brincava, a saltar e a dançar,     um bando de crianças, a cujas vozes joviais respondiam da copa da alameda     os gorjeios das aves escondidas.

As crianças, ao verem aproximar-se Margarida, mestra de quase todas,     correram, soltando gritos de alegria, a beijar-lhe a mão.

As mães, porém, que estavam sentadas, fiando e conversando,     nas soleiras das casas, que circundavam o largo, obrigaram-nas a parar a meio     do caminho.

— Vem cá, Luisa! - bradou uma

— Ó Maria, onde vais tu? Para aqui, já, corre! exclamava     outra.

— Ó Ana, ó Ana! Então isso é o que eu te     disse? salte para casa. Ande!

— Ó Ermelinda, tu não ouves? Não ouves, Ermelinda?     Olha se queres que eu vá lá.

E no mesmo sentido partiram de todos os lados vozes, que constrangeram as     crianças a pararem irresolutas.

A significação injuriosa daquelas palavra s, daquelas ordens     maternas, foi logo compreendida por Margarida e por o reitor.

Aquela tremeu, e instintivamente apertou o braço do seu velho tutor;     este tremia também, mas de indignação.

— Olá! - bradou ele, não lhe sofrendo o ânimo mais     reservas.

— Olá, Luisa, Maria, Ermelinda, Ana; aqui já, já,     todas aqui já! Então não ouvem?

As crianças aproximaram-se tímidas. Ele continuou, com voz     rija e já alterada pela cólera.

— Já que as vossas mães vos ensinam a ser desobedientes     e malcriadas, aqui estou para vos dar a educação. Beijem a mão     à sua mestra, já. Ouvem-me.

— Senhor! - murmurou Margarida.

— Deixa-me - respondeu o reitor, desabridamente. - Então, vamos!

As crianças tomaram a mão de Margarida e beijaram-na com timidez.     Margarida abraçou-as soluçando.

— E vocês lá? - continuou o padre, dirigindo-se às     mães. - Tudo a pé! Que modos são esses de estar diante     do seu reitor?

As mulheres levantaram-se respeitosas e mudas.

— Agora aproximem-se, e venham aqui pedir por favor a esta rapariga,     à minha pupila; entendem? à minha pupila; venham pedir-lhe que     lhes abençoe as filhas. Vamos!

O orgulho feminino revoltou-se contra a intimação.

— Essa agora!

— Era o que me faltava!

— Olhem os meus pecados!

— Não, que ele não há mais...

— Disso o livrará o senhor.

— Não há de ser a filha do meu pai.

— Para longe a tentação...

— Que é? que é? que é lá isso? - exclamou     o reitor, interrompendo este zunzum de má vontade e insubordinação.      - Que virtuosíssimas criaturas sois vós todas? Olhem lá     que não manchem os lábios a pedir! Não vos custa manchá-los     a jurar em vão o santo nome de Deus, não vos importa manchá-los     a assoalhar as vidas alheias, a caluniar as amigas, a insultar as vizinhas;     mas fazei escrúpulos de os empregar a pedir a benção     para vossas filhas, a quem, mais e melhor do que vocês todas juntas,     lha pode e deve dar.

— Ora! - disseram algumas vozes.

— Ora! Ora o que? Saibam então que todas, todas vocês,     nem são dignas de lhe beijarem as bordas dos vestidos. O que sabeis     é engrolar padre-nossos, e roçar com a testa pelo chão     das igrejas; mas não tendes coração para a doutrina do     Senhor, não. Vós, as santas criaturas envergonhais-vos de pedir     como se vos desonrásseis com isso? Pois eu não me reconheço     tão puro; sou um pobre pecador, e por isso não devo ter essas     soberbas de bem aventurados.

E o padre, dominado pela exaltação que se lhe apoderara do     espírito irritado, curvou-se, descobrindo-se; e tomando a mão     de Margarida, levou-a respeitosamente aos lábios, apesar dos esforços     daquela.

A assembléia feminina baixou toda os olhos de confusão.

As crianças rodearam a sua jovem mestra, e desta vez, espontaneamente     lhe cobriram de beijos as mãos.

Margarida, banhada de lágrimas, baixou-se, e uma por uma as apertou     ao seio, sem poder falar de comovida.

— Bem, minhas filhas, bem - disse o reitor. - Dais assim nobre e belo     exemplo a vossas mães; é decerto a mão de Deus, que vos     tocou os corações. Quem se recusará a imitá-las.

— Eu não - disse uma voz por detrás do reitor.

Este voltou-se e viu José das Dornas, que se aproximara havia alguns     momentos, e assistira à cena que descrevemos.

O velho lavrador, depois de responder assim ao pároco. aproximou-se     também de Margarida, e, pegando-lhe na mão, disse:

— Minha filha, eu tenho setenta anos. Desde que minha mãe morreu...     há cinqüenta anos quase, nunca mais beijei a mão a ninguém.     Pois digo-lhe que o faço agora, ainda com mais respeito, do que o fazia     então.

E o rude, mas generoso lavrador, baldando a resistência de Margarida,     imprimiu-lhe na mão um beijo, em que ia toda a franqueza e lealdade     daquele caráter.

Ao endireitar-se, achou-se nos braços do reitor.

— Bravo, José; bravo, meu homem! Isso esperava eu de ti, que     te conheço há muito. Bravo! Bravo! - dizia ele, entusiasmado     até às lágrimas.

O exemplo obrigava. Algumas mulheres aproximavam-se já de Margarida,     e houve uma que lhe segurou a mão.

Margarida porém retirou-lha, e, esquecida da injúria passada,     recebeu-a nos braços.

As outras, livres assim da ação que mais lhes magoava o orgulho     de mulher, correram já de boa vontade a abraçarem a pupila do     reitor.

Enquanto se passava esta cena, o padre, chamando à parte José     das Dornas, perguntara-lhe:

— Então soubeste?..

— Esta manhã foi que mo disseram. Creia, Sr. Reitor, que não     pus más suspeitas na rapariga. Eu sei de que diamante é feito     aquele coração. Corri a procurá-la para lhe dizer isto     mesmo; soube que tinha saído com o Sr. Reitor; vim-lhes na pista...

— E então que pensas tu de tudo isto, José?

— O que penso? Já o tenho dito por aí. Eu não     sei lá como as coisas se passaram, porque segundo o costume, cada um     conta a seu modo; mas que a culpa é toda de Daniel, isto para mim é     de fé. Tem diabo o rapaz! Já vejo que é impossível     deixá-lo ficar aqui na terra. Lá me custa que sempre é     filho; mas não há outro remédio. Que vá para o     Brasil.

Estas palavras chegaram aos ouvidos de Margarida e fizeram-na estremecer.

— Para o Brasil? - disse o reitor, abanando com a cabeça em     sinal de desaprovação. - Então que há de ir o     rapaz fazer para tão longe?

— Pode enriquecer por lá, que é terra para isso. Que     dúvida? E pelo menos escusa de andar por aqui a desacreditar as raparigas     da aldeia. É sestro que não perde, ao que estou vendo. Escuso     de me arriscar a mais desgostos.

— Mas...

— Para que diabo lhe havia de dar! Logo então esta, a mais sisuda,     a mais santa das nossas raparigas!

— E se os casássemos? - disse em voz baixa o padre a José     das Dornas.

— O quê?! - perguntou este, espantado com o alvitre.

— Sim, que dúvida? Pois que melhor noiva podes querer para teu     filho, do que aquela a quem já pensaste poder beijar a mão?

— Decerto, mas... Não conhece o rapaz, Sr. Reitor! Aquilo casado!     Ó santo nome! E então com esta!... Pobre rapariga!

— Enfim pensaremos e conversaremos. Olhe-me que a dificuldade parece-me     ainda mais dela do que dele.

— Que diz?!

Apesar do elevado conceito em que José das Dornas tinha o caráter     de Margarida, não podia conceber como fossem possíveis as repugnâncias,     da parte dela, para casamento tão vantajoso.

— Então que queres - disse o reitor - orgulhos de pobres...     Não compreendes isto?

E tomando o braço do lavrador, como quem tinha a comunicar-lhe alguma     coisa importante, afastou-se com ele um pouco para o lado.

Depois de darem assim juntos alguns passos, voltou-se de novo o reitor, e     dirigindo-se a Margarida, disse-lhe:

— Olha lá; se queres vai agora visitar o teu mestre enquanto     eu converso aqui com o José das Dornas. Quando saíres, vem ter     conosco à alameda, que lá andamos.

E, caminhando na direção da alameda indicada, prosseguiu na     sua conversa com o lavrador.

— Pois é o que te digo, José. Eu tenho pensado neste     negócio e tão embrulhado o vejo, que não sei de outra     saída melhor, do que essa que te disse. Mas enfim, pensa tu, e se te     lembrares, de alguma preferível...

Não obstante as tolerantes disposições de espírito,     de que fazia assim ostentação, o reitor estava preparado para     achar péssima toda a solução que não concordasse     com a sua.

Deixando-os no passeio da alameda, e na conferência, tão prometedora     de importantes resultados, que iam encetar, seguiremos antes Margarida, a     qual, ainda sob o domínio das últimas e violentas impressões     recebidas, entrou em casa do seu mestre.

 

                                                                                                               Júlio Dinis

 

Carlos Cunha      Arte & Produção Visual

 

 

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