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ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO / Gilberto Freyre
ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO / Gilberto Freyre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO

 

Os mistérios que se prendem à história do Recife são muitos: sem eles o passado recifense tomaria o frio aspecto de uma história natural. E pobre da cidade ou do homem cuja história seja só história natural.

     Ignoro se é tradição de outra cidade brasileira ter aparecido em alguma de suas ruas ou em algum de seus arredores o próprio diabo: o diabo da magia européia e não simplesmente Exu. Pois no Recife, duas simples mulheres, uma madrugada, na campina da Casa-Forte, ficaram assombradas com a figura estranha que lhes teria aparecido de repente; e que, segundo a tradição, foi não a cabra cabriola — que esta não gosta de velhas mas só de meninos — nem mesmo Exu, diabo só dos negros, e sim o próprio diabo dos brancos com toda a sua vermelhidão e toda a sua inhaca terrível de enxofre e de breu. Contou-me a história Josefina Minha-Fé, moradora dos arredores de Casa-Forte, salientando: “Mas isso foi no tempo antigo.” Talvez ainda no século XVII: “no tempo dos framengo”.

     Estava o Recife ainda quente da presença de herege ruivo e vermelho nas suas ruas e nas suas casas. A invasão flamenga trouxera à capital de Pernambuco muito calvinista e muito judeu, dos quais a gente mais devota da Virgem e mais amiga dos santos não podia deixar de prudentemente afastar-se, benzendo-se, com medo de que os intrusos — mesmo os ricos — tivessem, como o próprio demônio, pés de pato ou de cabra; e como o maldito, fedessem a enxofre. Perseguida por agentes da Inquisição, diz-se que uma israelita de fortuna, Branca Dias, deitou a muita prata que tinha em casa em águas de Apipucos, desde então, segundo entendidos no assunto, mal-assombradas. Como mal-assombradas ficaram terras entre Casa-Forte e o Arraial: todo um sítio onde é tradição ter aparecido durante anos a figura de um guerreiro ruivo trajado de veludo e de ouro, cabelo longo e louro como de mulher, lança em riste, cavalo a galope. Dizia-se que era o fantasma de um general holandês que caíra morto na batalha de Casa-Forte (1645).

     A cabra cabriola — já que se fez alusão a essa espécie de cabra-bicho, diga-se mais alguma coisa a seu respeito — parece ter sido, por longo tempo, para o menino recifense, a própria imagem do Cafute: era a cabriola bicho de arrepiar de medo ao mais bravo menino. Deitava fogo pelos olhos, pelas ventas e pela boca. E ao contrário do lobisomem, que ficava cumprindo seu fado nos ermos, onde com dentes tão agudos como os da cabra cabriola agredia o recifense incauto que se aventurasse a andar por tais lugares no escuro das noites de sexta-feira, a cabriola vinha ao próprio interior das casas, à procura de meninos travessos:

                    

                     Eu sou a cabra cabriola

                     Que como meninos aos pares

                      Também comerei a vós

                     Uns carochinhos de nada.

    

     Era preciso que os meninos se aconchegassem bem às mães ou às avós ao primeiro ruído estranho que ouvissem perto de casa. Ruído que podia ser só de timbu à procura de manga madura ou mesmo espapaçada de podre; ou de raposa com fome de galinha de quintal; mas que talvez fosse o da cabriola, astuciosa como raposa e fétida como timbu. O melhor era que o menino se comportasse bem.

     Que obedecesse ao pai. Que fosse bom para a mãe. Que não mijasse na cama. Que não se excedesse em traquinagem. Casa de menino bom a cabra cabriola nem sequer se afoitava a arranhar-lhe a porta. Passava de largo.

     Quando no silêncio das antigas noites recifenses se ouvia longe, por trás de velhos sobrados, um choro mais triste de menino, era quase certo que a cabra cabriola estava devorando algum malcriado, algum desobediente, algum respondão. Então os meninozinhos acordados, que ouviam ruído tão triste, gritavam por pai, por mãe, por vó, por sinhama, por bá; ou se escondiam por baixo dos lençóis; ou rezavam a Nossa Senhora, faziam o pelo-sinal, diziam o padre-nosso.

     A verdade, porém, é que o choro era quase sempre de menino doente. Menino estraçalhado não pela cabriola mas por doença dos intestinos. Devastado por febre má. Devorado pela bexiga lixa.

     Às vezes nem disso era o choro parecido com o de menino, mas de cururu ou de outro sapo tristonho, e com a fama de bicho de bruxo, em algum capinzal de beira de lagoa ou de rio, nas noites úmidas do Recife. Talvez tenha vindo daí o nome de Chora-Menino que por tanto tempo foi o de um descampado da cidade, afinal chamado oficialmente por outro nome.

     Não nos deixemos porém arrastar pela tentação de reduzir a história natural a história do Recife. Pois neste ponto a tradição é de que naquele descampado houve matança e sepultamento de recifenses, inclusive de meninos ou inocentes, numa das agitações que ensangüentaram o velho burgo. Pelo que durante anos o largo inteiro teria ficado mal-assombrado com o choro dos inocentes. “Uma lenda semelhante a outras muitas criadas pela imaginação popular para explicar certos fatos anda ligada à denominação atual de ‘Chora-Menino’”, escreveu sisudamente no princípio deste século o historiador Sebastião Galvão.

     A lenda diz que “depois do saque da tropa insubordinada que guarnecia o Recife, na revolta de 1831, conhecida por Setembrizada, em que os soldados e vários indivíduos mais associados a eles arrombavam e saqueavam, cometendo toda a sorte de atrocidades”, o Recife ficou cheio de gente morta; e que naquele sítio foi “sepultado grande número de vítimas falecidas”; e que, tempos depois, quem passasse alta noite por aquela paragem ouvia sempre “choro de menino”. Talvez menino morto ali enterrado. A verdade, porém, é que há sapo que faz um ruído muito parecido com choro de menino, podendo neste caso o leitor optar pela interpretação da história natural, sem irritar os entusiastas da interpretação sobrenatural. Para satisfação destes, não faltam casos sem explicação alguma. Choros que não se parecem com os guinchos de animais e risadas, como a do chamado “Boca-de-Ouro”, que não têm semelhança alguma com as risadas dos vivos.

     Outro lugar público com fama de mal-assombrado foi por muito tempo, e é um pouco ainda hoje, a Cruz do Patrão, no istmo que liga o Recife a Olinda. Foi a cruz levantada, não se sabe exatamente quando, entre as fortalezas do Brum e do Buraco. Parece ter sido construída por algum patrão-mor do porto do Recife, cargo que, segundo os cronistas da cidade, é muito antigo: já existia em 1654.

     Sabe-se que por perto da cruz enterravam-se os negros pagãos, de um dos quais a inglesa Maria Graham viu horrorizada pedaços de corpo mal sepultado repontando da terra ou da lama. Também aí se executavam as penas capitais de fuzilamento quando impostas aos militares, lembra o já citado Sebastião Galvão. E outro cronista do Recife, o Franklin Távora d’O Cabeleira, escreveu ter sido crença, por muito tempo, que todo aquele que passasse de noite perto da cruz ouviria gemidos, veria almas penadas ou seria perseguido por “infernais espíritos”.

     Na verdade mais de um incauto, passando por aquele ermo, em horas mortas, desaparecera do número dos vivos. De um estudante, assassinado junto da cruz, pensou-se que o assassino fosse um soldado; mas não fora e sim outro indivíduo animado de “espírito infernal” que quando confessou o crime já o soldado morrera na ilha de Fernando de Noronha, castigado por um crime que não praticara. Matutos, canoeiros, pescadores, toda a gente simples, durante anos evitou no Recife passar perto da cruz mal-assombrada. Fazia-se o caminho mais longo contanto que se evitasse o ermo sinistro.

     O que parece ter regalado feiticeiros e negros de xangô que se tornaram senhores dos arredores da cruz nas noites mais escuras e úmidas do Recife. Principalmente na noite de São João. Conta Távora que numa dessas noites celebrava-se, como de costume, o que ele chama “congresso dos negros feiticeiros do Recife”, que teriam, assim, se antecipado aos brancos e letrados na realização de congressos afro-brasileiros como o que em 1934 reuniu-se, por lembrança minha e com o auxílio de babalorixás como Adão e Anselmo, artistas como Cícero Dias, e doutores como Ulisses Pernambucano e Rodrigues de Carvalho, no Teatro Santa Isabel. Cada um deles — isto é, cada um dos congressistas da Cruz do Patrão — tinha na mão um cacho de flores de arruda. (O povo diz que em noite de São João essa planta dá flores, as quais são logo arrebatadas pelos feiticeiros para as suas bruxarias.) À meia-noite começou a “coréia dos mandingueiros”. E tanto tripudiaram em volta da cruz, rezando suas orações ou fazendo suas mandingas, que Exu lhes apareceu. Apareceu o diabo africano naquela Salamanca recifense de negros.

     Segundo o cronista tinha esse diabo a forma de um animal desconhecido: “Era preto como o carvão. Os olhos acesos despediam chispas azuis. Brasas vivas caíam-lhe da boca encarnada e ameaçadora. Pela garganta se lhe viam as entranhas onde o fogo ardia.” Entre os negros, participantes do congresso de mandingueiros, estava uma preta que devia ser da raça das culatronas para ser descrita pelo cronista, em página ainda quente da tradição por ele recolhida da boca dos antigos, como “tanajura”.

     Atirou-se Exu à pobre “tanajura” por entre “uma chuva de faíscas abrasadoras”. A preta então deitou a correr pelo istmo como uma louca: “foi a sua última carreira”. No desespero, a coitada da “tanajura” quis primeiro atirar-se nas águas que ali gemem como se na verdade fossem mal-assombradas. Mas recuou. E foi meter-se pelas sombras do bom rio Beberibe com o demônio preto, vermelho e azul sempre a persegui-la.

     Outra vez fale o cronista: “Enganado pela vista dos mangues, o demônio atirou-se após à fugitiva, julgando entrar em uma floresta. Assim porém que o corpo ígneo se pôs em contacto com as águas frias súbita explosão destruiu o furioso animal. O estampido ribombou como descarga elétrica. Nuvem de fumo espesso, que tresandou a enxofre, cobriu a face do Beberibe. No outro dia, na baixa-mar, apareceu no lugar onde a negra tinha afundado, não o seu corpo, mas a coroa preta que indicou aí por diante aos feiticeiros a vingança do espírito das trevas.”

     A negra se encantara. E se encantara em “coroa” de terra preta. Castigo de um Exu do mais violento tipo — do chamado “Tranca Rua” — ao qual ainda hoje se sacrificam, no próprio Rio de Janeiro, nas encruzilhadas, galinhas de pescoço torcido; ao qual ainda hoje há quem ofereça charuto e ramo de flor para acalmar as fúrias do Malvado.

     Não se pense porém que a tradição recifense só fale em negras encantadas. Fala também de moças brancas que se sumiram. Não só a emparedada da rua Nova, já consagrada pela literatura em romance de Carneiro Vilela: também outra, para os lados do Pina, num sítio que ficou conhecido por Encanta-Moça.

     Foi esta uma iaiá branca perseguida não por Exu, mas pelo marido ciumento. Para fugir ao Malvado, encantou-se nos mangues. Nunca mais se viu a iaiá que devia ser mulher bonita, além de branca, para ser tão oprimida pelo senhor seu marido. Talvez tenha se tornado alamoa: e ruiva como uma alemãzinha apareça nas noites de lua a homens morenos e até pretos, assombrando-os e enfeitiçando-os com sua nudez de branca de neve. Mas desmanchando-se como sorvete quando alguém se afoita a chegar perto de seu nu de fantasma. Desmanchando-se como sorvete e deixando no ar um frio ou um gelo de morte. Frio ou gelo que é aliás característico de quase toda a assombração recifense em que um morto aparece a um vivo.

     Durante longo tempo a recordação desse mistério poetizou o sítio chamado Encanta-Moça. Até que, iniciada a fase atual de transporte aéreo, uma companhia ou empresa pioneira quis fazer do velho ermo moderno campo de aviação. Deu-se então o seguinte fato: burgueses progressistas do Recife envergonharam-se do nome do sítio antigo que recordava uma simples história de moça encantada em fantasma. Envergonharam-se do nome mágico de Encanta-Moça. Os mais salientes trataram logo de substituí-lo por nome que soasse moderno e lógico. E o próprio Instituto Arqueológico, chamado pelos burgueses progressistas a dar parecer sobre o assunto, concordou em que se mudasse aquele nome vergonhosamente arcaico para o de Santos Dumont. Encanta-Moça nada tinha de histórico, argumentava o Instituto para concordar com os burgueses progressistas. Nada significava para a história da cidade. Era lenda. História da carochinha. Argumento de quem nunca leu aquela página de Chesterton em que o ensaísta inglês lembra que uma lenda é obra de muitos e como tal deve ser tratada com mais respeito do que um livro de história: obra de um único homem. E antes de Chesterton já dizia a sabedoria francesa: Une légende ment parfois moins qu’un document.

     De modo semelhante desapareceram do Recife outros nomes bons e antigos de ruas, praças e sítios: nomes impregnados de tradição nos quais os historiadores rasteiros não vêem história por entenderem que história é só a que se refere a batalhas e governos, a heróis e patriotas, a mártires e revoluções políticas. Só o que vem impresso nos livros ou registrado nos papéis oficiais.

     O caso da rua dos Sete Pecados Mortais, à qual se deu o nome, aliás ilustre, de Tobias Barreto. Chamava-se dos sete pecados mortais — um encanto de nome! — por ter sido nos seus começos “extenso beco contendo sete casas do mesmo lado e habitadas por mulheres fadistas”. Tinha a velha rua tanto direito a continuar rua dos Sete Pecados Mortais como Chora Menino a continuar Chora Menino. Encanta-Moça, Encanta-Moça. Rua do Encantamento, rua do Encantamento.

     Pois o Recife antigo teve uma rua chamada do Encantamento. Era uma rua por trás da do Vigário. Sua história, contada por outro velho cronista da cidade — Pereira da Costa — é das que mais enchem de sobrenatural o passado recifense. É história em que entra frade e aparece casa mal-assombrada. Um frade que costumava deixar à noite, disfarçado, o convento, para dar o seu passeio, ver as moças, talvez as mulatas, matar a fome de mulher. Uma noite, encontrou uma mulher que lhe pareceu de “uma beleza encantadora”. Seguiu-a e depois de algumas voltas subiu as escadas de um sobrado que ficava na tal rua. A sala estava às escuras. Sentaram-se, a mulher e o frade libertino, este procurando descobrir quem era mulher tão bela. De repente, conta o cronista que a sala ficou iluminada. Apareceu no centro um esquife contendo um corpo humano. E a mulher bonita, esta desaparecera. O frade deve ter se assombrado, mas teve a calma necessária para dependurar em um prego o relicário que trazia ao pescoço. Desceu as escadas do sobrado; e da rua olhou para a sala. Estava outra vez às escuras. Voltou ao convento e contou a aventura aos outros frades. No dia seguinte, muito cedo, voltou com alguns deles à casa mal-assombrada: “e com o maior espanto verificaram que só havia ali o relicário que ele tinha deixado como sinal”.

     Não nos diz a tradição em que século aconteceu ao frade libertino a estranha aventura; nem que espécie de luz iluminou de repente a sala do sobrado a que o atraíra a bonita mas fantástica mulher. Terá sido luz parecida com a de azeite de palma? Por séculos o Recife foi, como as demais cidades do Brasil colonial, um burgo escuro, cujas casas se iluminavam a azeite ou a vela. Pelas ruas quem quisesse andar com segurança à noite, que se fizesse acompanhar de escravo com lanterna ou lampião particular. Só os nichos tinham luz. Por algum tempo, apenas iluminaram as ruas ou estradas as luzes de azeite dos nichos, dos passos ou das cruzes como a Cruz das Almas. Só na segunda metade do século XIX apareceram nas casas — as mais fidalgas já iluminadas a vela nos dias de festa e até nos comuns — os candeeiros belgas, os candeeiros de querosene, as lâmpadas de álcool, os bicos e as lâmpadas de gás. Luz mais brilhante que a antiga e que foi afugentando os fantasmas não só das ruas como do interior das casas. Obrigando-os a se refugiarem nos ermos, nos cemitérios, nas ruínas, nos restos de igrejas, de conventos, de fortalezas, nos casarões abandonados, nas estradas tão sombreadas de arvoredo a ponto dessas sombras abafarem a própria luz dos lampiões de gás. Pelo Jornal do Recife, de 4 de junho de 1859, o brasileiro educado em Paris Soares d’Azevedo regozijava-se com a novidade do “gás hidrogênio” no Recife: “o esplendor do gás hidrogênio” que vinha “substituir a luz amortecida do azeite de Carrapato”. Um golpe quase de morte no domínio que até então vinham exercendo as almas dos mortos sobre as ruas escuras do Recife. As almas dos mortos e os lobisomens e mulas-sem-cabeça. Mulas que deviam ser numerosas no Recife antes do corajoso combate do bispo dom Vital aos padres que viviam com comadres. Pois eram precisamente essas comadres de vigários que o povo dizia que se encantavam em mulas-sem-cabeça: deixando em casa as cabeças, às vezes na própria cama, ao lado de maridos dorminhocos, esses corpos de mulher abrutalhados em corpos de mulas largavam-se pelas ruas escuras escoiceando, num tropel dos diabos, fazendo latir a cachorrada dos quintais, espantando cavalos e vacas suburbanas e não apenas homens e mulheres.

     Um trecho do Recife por muito tempo mal-assombrado foi a chamada avenida Malaquias que até quase nossos dias se manteve um resto do Recife do tempo de Cabeleira, com jaqueiras e mangueiras enormes a lhe darem sombras de mata, mesmo depois de iluminada a rua pelo “gás dos ingleses” e até pela luz elétrica: novidade já dos fins do século XIX e dos começos do XX. Sombras e mistérios. Aí se matou no escuro da noite mais de um homem: mesmo no tempo dos lampiões a gás. É tradição que bocas misteriosas, cujos sopros pareciam o de ventos do mar nas noites de tempestade, mais de uma vez apagaram os lampiões. Outras vezes, acendedores vieram de lá às carreiras perseguidos por vozes: “Não me deixes no escuro!”

     Era não o horror, mas o amor das almas-do-outro-mundo — se é certo que elas e não vivos fantasiados de almas de mortos é que dominavam aquele quase pedaço de mata antiga — à iluminação, ao bico de gás, ao “gás dos ingleses”. O que não significa que tenha faltado ao Recife assombração inglesa. Veremos mais adiante que perto da própria avenida Malaquias, numa casa gótica levantada, segundo se diz, por ex-capitão de navio inglês — que, em frente à casa, erguera o mastro do velho barco durante anos comandado por ele — em noites de muito escuro e vento mau, houve quem avistasse um marinheiro no alto do mastro. Devia ser fantasma de marinheiro inglês: alma de bife já descarnado em espírito mas sem saber separar-se daquele pedaço de navio velho, perdido entre as mangueiras e jaqueiras do Recife.

     Mal-assombrado ainda mais romântico é o que por muito tempo animou o escuro das noites recifenses defronte da antiga casa-grande do sítio de Bento José da Costa, da qual só resta hoje a capela. Chama-se mesmo sítio da Capela e diz o povo mais simples que por muito tempo guardou o sítio e a capela uma cobra enorme e misteriosa. Sítio da Capela se chamava quando ainda de pé a casa-grande; sítio da Capela continua hoje. Contou-me mais de um morador antigo do sítio que aí se via sair da capela — nas noites de muito escuro, sustentavam uns, nas de lua, diziam outros — uma moça toda de branco, vestida de noiva, montada num burrico como Nossa Senhora na fuga célebre. E em águas do Capibaribe defronte do sítio da Capela é tradição ter aparecido a um negro aflito não Iemanjá mas a Virgem Maria.

     Cidade talássica — escancarada ao mar — e, ao mesmo tempo, cortada por dois rios e manchada de água por várias camboas, riachos, canais — “Veneza americana boiando sobre as águas” — é natural que no Recife o sobrenatural esteja, como em nenhuma cidade grande do Brasil, ligado à água. À água do mar e às águas dos rios.

     Ainda no século XVI, em águas próximas às do Recife de hoje, navegadores europeus descobriram um rio a que chamaram dos Monstros por terem visto em suas sombras tropicais monstros marinhos. Monstros de braços cabeludos, mãos de forma de pés de pato, corpo coberto de pêlos, cabelos longos, o corpo delgado, e que, “ao saltarem à água como rãs, mostravam às traseiras partes semelhantes às dos monos e quiçá com peludas caudas”. Devem ter sido assombrações, pois não consta da história natural da região a existência de tais monstros.

     Mas não é só nas costas do Brasil e nas águas do Recife que os olhos dos homens do mar ou dos moradores da beira-mar ou da beira dos rios ou dos simples riachos têm visto figuras que não constam dos compêndios de história natural: só da história sobrenatural. Nos mares do Nordeste do Brasil quase inteiro, e não apenas nas águas do Recife, é tradição aparecerem “trouxas de roupas”, “procissões de afogados na noite de Sexta-Feira da Paixão”, “navios iluminados” que desaparecem de repente, jangadas que também se somem por encanto, o “cação espelho”, o “pintadinho”, os “polvos gigantes”. Também sereias que se juntam à maconha — sempre o sobrenatural e o natural a se misturarem — para botar a perder jangadeiros, barcaceiros, pescadores, fazendo-os deixar casa, família, filhos, pelo mar:

    

                     Minha alma é só de Deus

                     O corpo dou eu ao Mar.

    

     Um Mar rival do próprio Deus. Um Mar que para muito marítimo se escreve com M grande como o nome de Deus com D grande. Exigente de sacrifícios e de ritos como o Deus do Velho Testamento. Em página recente, recorda um mestre do folclore alguns desses ritos de homens do mar não só do Recife como do Nordeste inteiro: homens para quem o mar é na verdade um segundo Deus e, na figura de Iemanjá — à qual ainda vi certo babalorixá do Fundão oferecer comida e flores perto da Cruz do Patrão —, uma segunda Mãe de Deus e dos homens. Lembra o folclorista (que não é outro senão o professor Câmara Cascudo) que o mar exige dos seus devotos do Nordeste silêncio em certas ocasiões como exige cantorias, noutras: “Não se canta depois que o sol se põe. Não se grita senão havendo claridade.” E mais: “Não se insulta o mar batendo-lhe com o calcanhar, o joelho ou o cotovelo.” E ainda: o mar ama, entre outras, a cor vermelha (aqui faço restrições à generalização do folclorista rio-grandense-do-norte). Ou antes: entendo que o vermelho pode ser amado pelos monstros do mar mas é evitado pelos homens que trabalham no mar. Pelo menos por alguns dos que tenho conhecido no Recife e em praias de Pernambuco: golas da Alfândega, barcaceiros, jangadeiros, pescadores.

     Como o mar é para o pescador, jangadeiro ou barcaceiro do Recife ou das vizinhanças do Recife, “pagão”, nenhum deles, dentro do mar, deve dizer em voz alta Jesus, Maria, José. Sob pena do mar se agitar, revoltado. Outra crença: a de que praia — como foi muito tempo a do Brum, no Recife — onde as mulheres tomam banho, não dá peixe. Neste caso são os peixes, bons e maus, que se assombram com as mulheres; e fogem delas como de figuras para eles diabólicas.

     Mas não é só o mar que no Recife se tem misturado à história sobrenatural da cidade e dos homens: também — repita-se — a água dos rios, dos riachos, dos simples alagados. Refúgios também de entes estranhos, de mistérios, de assombrações às vezes anfíbias ou metade de mar, metade de rio. Ou metade do mar, metade dos recifes ou dos arrecifes, como parece ser João Galafuz. Espécie de fantasma que o povo diz aparecer certas noites, saindo das ondas ou repontando dos arrecifes ou dos cabeços de pedras como “um facho luminoso e multicor”: “prenúncio” — informa velho e bom folclorista, Pereira da Costa — “de tempestade e naufrágios”. Diz-se de João Galafuz que é alma penada: a de um caboclo que morreu pagão. Meio pagão é aliás o culto das águas que ainda hoje reúne em torno de certo caboclo da estrada de Beberibe todo um grupo de adoradores das águas do mar e dos rios, e dos astros do céu do Recife.

     Dos rios do Recife se diz que os redemoinhos ou peraus são quase todos encantados. Que contra eles não consegue lutar o melhor dos nadadores que não tiver a proteção da Virgem. É velha crença recifense que há mãe-d’água nas águas da Prata ou do Prata, em Apipucos. Mãe-d’água que alguns entendem ser o fantasma da já lembrada israelita Branca Dias guardando não as águas mas as pratas: seu tesouro ali lançado no tempo da Inquisição. Mais adiante se falará na história da moça de quem contava, já muito velha, sua antiga mucama ter a iaiazinha desaparecido nas águas da Prata — ou do Prata — arrebatada pela própria Branca Dias sob a figura de mãe-d’água.

     Felizes das mulheres que na vida sobrenatural se transformam em bonitas mães-d’água alvas ou morenas, em sereias de olhos e cabelos verdes, em alamoas louras. Tristes das que se tornam mulas. Mulas-sem-cabeça. Mulas-de-padre. Mulas que cumprem o seu fadário correndo como desesperadas pelos ermos; e fazendo-se conhecer dos filhos de Deus pelo tilintar lúgubre das cadeias que arrastam no silêncio das noites do mesmo modo que os lobisomens pelo bater das orelhas. Para o recifense que acredita no sobrenatural, repita-se que esse é o destino das barregãs de padre, de um dos quais, por algum tempo vigário de certa paróquia elegante da cidade, se conta que deixou mais de uma barregã, em certas noites todas se encantando ao mesmo tempo em mulas, a espadanarem areia pelas campinas, num tropel de assombrar os cristãos mais valentes. O povo simples já não se assombrava, porém, com o barulho infernal. Sabia — ou supunha saber — que eram “as mulas-do-padre V.” — padre bom mas homem de muitas mulheres que foi durante anos vigário no Recife.

     Não se pense que as assombrações mais características do Recife — das quais são aqui apresentadas algumas — não têm a sua ecologia. Têm. A história natural às vezes limita a sobrenatural. São as assombrações do Recife assombrações de cidade, para a qual “caipora”, “boitatá”, “curupira”, “saci-pererê” são entes fora-de-portas. Mitos rústicos e não urbanos. Não se tem notícia de ter aparecido alguma vez a um recifense autêntico, dentro das portas da sua cidade, o “medonho caboclinho”, com um cachimbo no queixo e montado num porco-espinho que se diz espalhar o mal ou o azar entre os homens. Mas que parece só agir diretamente nas brenhas. Às cidades só chega sua influência indireta através do caiporismo: mal de tanto bom recifense.

     O mesmo é certo do curupira: outro ausente da história sobrenatural do Recife propriamente dito. Outra assombração de fora-de-portas. Também desse duende agreste a área de domínio ou de ação é rústica e não urbana, apresentando-se ele, como se apresenta — segundo a descrição dos entendidos — sob a figura de um indiozinho ou columizinho de cocar e penas: espécie de índio de paliteiro, armado de arco e flecha. Mas em suas excursões, no escuro das noites e pelo interior das matas, o columizinho surge montado valente e agressivamente numa queixada. Apenas não se afoita jamais a entrar em cidades como o Recife, cuja vida sobrenatural parece regulada por invisíveis posturas urbanas que proíbem a entrada na área da cidade e nos seus arredores, de queixada, porco-espinho e outros animais encantados do mato grosso. Nem mesmo dos “zumbis de cavalo” a que se refere o escritor Ademar Vidal no seu recente e interessante Lendas e superstições se encontra notícia no Recife. Do que o Recife não se tem livrado é das misteriosas “cobras mandadas”, que a mandado de inimigos diz-se que têm aparecido no interior, até, de sobrados; nem têm deixado de cantar nos quintais da cidade os também misteriosos galos que outrora, quando cantavam fora de horas, anunciavam moça fugida ou iaiá raptada; nem os galos que quando dão para cocorocar como galinha avisam, segundo a gente do povo, desgraça ou infortúnio na redondeza ou na casa. Ao contrário das aranhas que só fazem “dar felicidade” às famílias que as toleram dentro de casa.

     Interessante é observar-se que animais, regionais ou não, artificiais e não apenas naturais, têm participado das assombrações do Recife. Dos leões de pedra do convento de são Francisco há quem jure terem mais de uma vez se tornado leões vivos, embora fantásticos, e caminhado com olhos de fogo pelas ruas da cidade, na solidão das horas mortas, assombrando os tresnoitados ou os homens, como Augusto dos Anjos, de “sombra magra” a caminho da “Casa do Agra”. Do lobisomem se diz que tem aparecido no Recife em figuras fantásticas, um tanto de homens um tanto de lobos, de cães danados, de bodes infernais, de gatos com olhos de fogo, de porcos doidos por lama e imundície: monstros que a bala comum não mata mas só a de prata que tiver levado um banho de água benta. A cabra cabriola, papão de meninos, parece guardar de cabra mais o nome que a aparência. Cobras grandes, misteriosas, aparecem em histórias recifenses de assombração como a do sítio da Capela. Corujas dão sinal de morte. Sapos também agourentos têm aparecido no Recife, anunciando desgraças às casas. Em compensação as aranhas — como já foi recordado — os chifres de boi, as tartarugas, segundo velhas crenças recifenses, dão felicidade às casas.

     Nas águas recifenses já vimos que peixes monstruosos têm sido vistos por olhos de gente assombrada. Cortando os ares, e às vezes parecendo rasgar mortalhas, aparecem ainda a olhos recifenses aves diferentes das comuns: mesmo das agourentas e feias como a coruja ou a alma-de-gato. Diferentes do besouro-mangangá, roubado pela sobrenatureza à natureza. Do cresce-e-míngua, com alguma coisa de animal fantástico que ora cresce, ora diminui de tamanho, constam aparições no Espinheiro. Mas isto no tempo em que esse trecho do Recife era um areai sombreado de árvores e quase tão exposto aos tropéis de outro animal fantástico — a mula-sem-cabeça — quanto os areais da Matinha e da Capunga. Nesses ermos é tradição que se assustavam com visagens de animais sobrenaturais não só pessoas como simples animais: cachorros, cavalos, carneiros. Eram verdadeiros cafundós-de-judas. Num deles, em velha cacimba, caiu um dia, há quase um século, um irmãozinho de Alberto Rangel, então menino. O pai do menino afogado na cacimba não hesitou um instante: matou o escravo que devia estar tomando conta da criança. Em 1938, o historiador e biógrafo da marquesa de Santos, de passagem pelo Recife (do qual parecia querer despedir-se), pediu-me para o acompanhar na procura da cacimba sinistra, que se dizia ter se tornado poço mal-assombrado. Não o encontramos sob o areai que ao sol do meio-dia brilhava de cru, com alguma coisa de norte-africano na sua crueza.

     De árvores mágicas também se encontram traços na história sobrenatural do Recife. Uma delas, certa gameleira antiga do Fundão, no sítio do velho babalorixá já morto pai Adão, pretalhão quase gigante, formado em artes negras na própria África, embora pernambucano da silva; e ladino como ele só. Foi um dos meus melhores amigos. Ver esse velho gigante preto dançar era um assombro: de madrugada parecia não ele próprio mas alguma coisa de elfo com asas nos pés. Dizem que era pela gameleira mágica que se comunicava com a Mãe África, ouvindo vozes que lhe diziam em nagô: “Adão, faça isso”, “Adão, faça aquilo”. Bem diferente, essa gameleira grave e matriarcal da jaqueira meio burlesca — quase de fita cômica de cinema americano — que outro meu amigo, Paulo Rangel Moreira, conheceu menino em engenho do sul de Pernambuco e cuja fama chegou até ao Recife: jaqueira donde dizia a gente do povo que se desprendiam jacas mal-assombradas de picos um tanto parecidos com espinhos de ouriço-cacheiro. Corriam atrás das pessoas como se fossem bichos enraivecidos. Principalmente atrás de meninos.

     Há árvores que muito recifense acredita guardá-lo de mau-olhado. Plantas, que passam por dar felicidade às pessoas e às casas. Também estas pertencem à história sobrenatural do Recife e não apenas à natural.

     É evidente que à história sobrenatural do Recife não podem faltar sombras de jesuítas nem de judeus nem de flamengos. Dos judeus e flamengos as visitações do Santo Ofício colheram evidências de que nos primeiros tempos coloniais praticaram em Pernambuco, como noutras partes do Brasil, ritos condenados pela Santa Madre Igreja. E para o povo mais simples, tanto flamengos como jesuítas e judeus deixaram tesouros enterrados no Recife: tesouros ligados a assombrações. É um zunzum que vem atravessando séculos. O historiador José Antônio Gonsalves de Melo encontrou, a propósito, curioso ms. Ms da coleção de volumes intitulados “Ofícios do governo”, guardados na Biblioteca Pública de Pernambuco. Datado de 27 de setembro de 1832, refere-se a certo Joaquim Francisco Pires que dizia saber “onde existem enterradas peças de ouro e prata”, pedindo autorização do governo “para ser socavado o indicado lugar à sua custa e pertencer-lhe metade do achado e metade à fazenda pública”. Foi-lhe concedida autorização. Mas devia “prestar fiança”.

     Não foi só Joaquim Francisco Pires. Também outro fuão — João Batista Fernandes — dirige-se ao governo da província, no mesmo ano de 32, e segundo consta da mesma fonte, declarando “existir num lugar do edifício do colégio um tesouro sepultado pelos jesuítas”. E o governo, longe de se fazer de surdo, ordenou ao juiz da paz da freguesia que permitisse a Fernandes socavar o tal lugar misterioso, à procura do ouro dos padres, assegurando-se ao pesquisador “20% do total do tesouro”.

     É assim a história sobrenatural do Recife rica em manifestações de uma diversidade que aos viciados em interpretar a história dos homens ou dos povos por métodos predominantemente naturalistas recorda o fato de ser a velha cidade brasileira do Norte uma das que maior número de influências contraditórias — européias, africanas, indígenas — têm reunido; e vêm harmonizando. Seus lobisomens, um pouco à maneira da maioria dos seus homens, são entes antes mestiços do que puros. O que é certo também das suas mães-d’água, uma das quais, em vez de apenas cabocla, como a iara, ou africana, como a iemanjá, se confunde com o fantasma de uma judia chamada Branca; e talvez tão branca de neve na aparência como a Alamoa.

 

                             ALGUNS CASOS

                             O Recife e o Nordeste

    

     Antes da apresentação de “alguns casos”, umas breves palavras sobre as relações míticas e místicas entre o Recife e o Nordeste.

     O Recife, como metrópole do Nordeste, tanto tem participado das alegrias como dos infortúnios da região. Mais: nas suas igrejas, nas suas casas, nas suas ruas, tanto têm repercutido agitações rústicas do tipo do “quebra-quilos” como explosões de fanatismo sertanejo do furor sanguinário de Pedra Bonita.

     O Recife tem sido ponto de confluência de todos esses transbordamentos de emoção, de exaltação, furor místico vindos do interior do Nordeste: inclusive do Nordeste que o sociólogo francês Roger Bastide classificou de “Nordeste místico”. Cabeleira, o bandido dos canaviais, veio, certa vez, ele próprio, em pessoa, com toda a sua ira de monstro, até as pontes do Recife, ao próprio centro da cidade ilustre, assombrando recifenses até então acostumados a incursões de piratas ou de corsários estrangeiros, saídos do mar, mas não a ser assaltada por demônios vindos do próprio interior da região.

     Durante longo tempo, o recifense viveu sob o terror desse bandido com alguma coisa do próprio satanás: Cabeleira. Cabeleira! Cabeleira! Cabeleira! Cabeleira-eh-vem!

     Rosa que fechasse a porta: Cabeleira, embora enforcado, podia aparecer de novo nas ruas do Recife vindo, outra vez, de canoa, dos canaviais de Pau-d’Alho. Mulheres e meninos do Recife que se escondessem: Cabeleira era capaz de surgir de novo a qualquer momento para chupar-lhes o sangue, arrancar-lhes os olhos, cortar-lhes os seios ou as pirocas, devorar-lhes os fígados, levar-lhes as jóias, roubar-lhes os cruzados. Pais e mães que dessem criação a seus filhos: Cabeleira se danara em demônio por falta de criação.

     Cabeleira existiu. Existiu até que os pés de cana de Pau-d’Alho um dia se tornaram pés de gente para cercá-lo e prendê-lo. Os pés de cana tinham sido seu esconderijo. Ele manchara de sangue muita terra de açúcar. Chegou a vez das canas-de-açúcar acabarem com o vil sanguinário.

     Entretanto, morto Cabeleira para o recifense civilizado, tanto quanto para o matuto esclarecido do interior, ele passou, para muita outra gente, a mais que existir: a subsistir à própria morte. A existir como mito. E esse mito, um mito de terror. Uma assombração. Só o nome — Cabeleira, Cabeleira, Cabeleira! — assombrava. Morrera? Fora enforcado? Fora justiçado? Morrera. Fora enforcado. Fora justiçado. Mas quem tinha, como ele, pacto com o Diabo, morto tornava-se assombração. Cabeleira subsistiu para os recifenses como assombração até quase os nossos dias.

     Mas ninguém o suponha o único terror que, vindo dos canaviais, invadiu o Recife. Outros terrores têm assombrado o recifense, uns vindos dos matos, outros surgidos do mar.

     A recíproca é verdadeira: também não poucos terrores têm saído do Recife para assombrar matutos ingênuos, sertanejos crédulos, gentes sossegadas e tementes a Deus, do interior. Assombrações nascidas, criadas, crescidas no Recife — à sombra dos seus altos sobrados, das suas maternais igrejas, dos seus quartéis, das suas pontes — têm chegado até aquelas gentes, fazendo os mais tímidos pensar da metrópole da região como um antro de mil demônios, disfarçados em cães misteriosos, em bodes sinistramente pretos, em bocas-de-ouro nauseabundas, em terríveis exus, em mães-d’água traiçoeiras que não existiriam — pensam os bons dos matutos — senão como coisas saídas das entranhas do Recife.

     O lavrador, o senhor de pequeno engenho, o fornecedor de cana de outrora, que precisasse de deixar suas terras agrestes para fazer qualquer negócio no Recife, que se acautelasse não só contra os espertos, os trapaceiros, os maus pracianos de voz macia e de modos bonitos, os grandes carros puxados a cavalos diferentes dos de cabriolés de engenhos, como também contra os assombros. Os terríveis assombros do Recife. Voltando à casa do compadre onde se hospedasse podia ser o lavrador de cana ou o senhor de pequeno engenho assaltado por um pretíssimo cão de olhos de fogo. Atravessando sozinho alguma ponte, depois dos sinos de Santo Antônio badalarem nove horas, arriscava-se a ser levado para o fundo das águas por uma linda alemoa de cabelos louros. Ou poderia encontrar-se com o boca-de-ouro e morrer sufocado pela catinga de defunto do horroroso monstro.

     Este o Recife que, pelos seus mistérios, existe, subsiste, persiste desde velhos dias como cidade com alguma coisa de cidade onde o mundo não é só o dos homens. Suas assombrações vêm sendo, mais que suas revoluções, parte do seu modo de ser cidade: de ser a metrópole do Nordeste canavieiro.

 

                     O Boca-de-Ouro

    

     Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados. Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos, e há, hoje, de trabalhadores. Boca-de-Ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casas velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa.

     Acontece que um pacato recifense dos princípios deste século decidiu uma noite, talvez sob a influência das trovas, então na moda e, na verdade, encantadoras, de Adelmar Tavares, ser um tanto boêmio e até byroniano; e sair liricamente ruas afora, e pela beira dos cais do Capibaribe, ora recitando baixinho versos à “vovó Lua” ou à “dona Lua”, ora assobiando alto trechos da Viúva alegre, ouvida cantar por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel; e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar bom da madrugada que dá, na verdade, ao Recife seu melhor encanto. Quem sabe se não encontraria alguma mulher bonita? Alguma pálida iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou mesmo alguma moura, encantada na figura de uma encantadora mulata de rosa ou flor cheirosa no cabelo?

     Mas quem de repente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá desabado sobre o rosto e que lhe foi logo pedindo fogo. O aprendiz de boêmio não gostou da figura do malandro. Nem de sua cor que à luz de um lampião distante parecia roxa: um roxo de pessoa inchada. Atrapalhou-se. Não tinha ponta de cigarro ou charuto aceso a oferecer ao estranho. Talvez tivesse fósforo. Procurou em vão uma caixa nos bolsos das calças cheios de papéis amarfanhados: rascunhos de trovas e sonetos. E ia remexer outros bolsos quando o tipo acapadoçado encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio da noite alta, o ar puro da madrugada recifense, de uma medonha gargalhada; e deixou ver um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro, encravada em bocaça que fedia como latrina de cortiço. Era o Boca-de-Ouro.

     Correu o infeliz aprendiz de boêmio com toda a força de suas pernas azeitadas pelo suor do medo. Correu como um desesperado. Seus passos pareciam de ladrão. Ou de assassino que tivesse acabado de matar a noiva. Até que, cansado, foi afrouxando a carreira. Afrouxou-a até parar. Mas quando ia parando, quem havia de lhe surgir de novo com nova gargalhada de demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes escandalosamente de ouro? Boca-de-Ouro. O fantasma roxo e amarelo.

     O pacato recifense então não resistiu. Espapaçou-se no chão como se tivesse dado nele o tangolomango. Caiu zonzo, desmaiado na calçada. E ali ficou como um trapo, até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a história: e, falador como ninguém, o primeiro a espalhá-la.

 

                           Um lobisomem doutor

    

     Contou-me há quase trinta anos, Josefina Minha-Fé, que conheci negra velha mas ainda bonita — tão bonita que, segundo me confessou ela um dia em voz de segredo, certo ilustre poeta brasileiro, de passagem pelo Recife, tentara conquistá-la sem o menor rodeio lírico, dominado pela mais repentina das paixões, sendo já Josefina mulher cinqüentona e um tanto descadeirada, os quartos meio caídos e os peitos começando a enlanguescer e não mais a vênus hotentotemente culatrona e de busto sólido que fora no verão da vida e no esplendor do sexo — ter conhecido, ainda meninota, no Poço da Panela, um lobisomem. “Era um horror, menino!” dizia-me ela na sua voz meio rouca de mulher um tanto homem na fala e em certos modos mas não nas formas e nos dengos. “Tomava forma de cão danado mas tinha alguma coisa de porco. Toda noite de sexta-feira estava nos ermos de Caldereiro, do Monteiro, do Poço da Panela, cumprindo seu fado nas encruzilhadas. Espojando-se na areia, na lama, no monturo. Correndo como um desesperado. Atacando com o furor dos danados a mulher, o menino e mesmo o homem que encontrasse sozinho e incauto, em lugar deserto. Chegando atrevidamente até perto da casa de José Mariano para espantar Ioiô e o irmão, meninotes brancos.”

     Até que um dia atacou o lube a própria Josefina, que era então negrota gorda e redonda de seus 13 anos. E não se chamava ainda Minha-Fé. Ao contrário: havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus Pecados” — Josefina Meus Pecados — arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca de mucambo. E quem assim a chamava não se pense que era homem à-toa, porém mais de um doutor. José Mariano, este às vezes vinha à porta da casa senhoril, de chambre e chinelo, olhar o rio e conversar com os vizinhos. E quando Josefina passava, perguntava-lhe, brincalhão, se ia jogar no bicho. Ou qualquer coisa assim.

     Saíra Josefina para comprar na venda do português azeite de lamparina para os santos. Não é que os santos estavam naquela noite sem azeite para sua luz?

     Não se lembrou a negrota descuidada de que era noite de sexta-feira e noite escura. Chuvosa, até. José Mariano devia estar dentro de casa, lendo os jornais. Dona Olegarinha, costurando. Os meninos, estudando.

     Tão despreocupada foi Josefina, caminhando da casa, que era um mucambo de beira de rio, para a venda, ao pé dos sobrados dos lordes, que nem pensou em lobisomem a se espojar em encruzilhadas, batendo as orelhas grandes como se fossem matracas em procissão de Senhor Morto.

     Lobisomem era assombração. E assombração parecia a Josefina, já menina-moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso.

     E Josefina sabia que era bonita além de negra em flor. Só pensava em ir a festa, fandango, pastoril, pagode. Em dançar de contramestra e vestida de encarnado no pastoril do Poço que era então um dos melhores do Recife. A mãe é que não deixava. Nada de filha sua em pastoril de rua ou vestida de encarnado. A mãe de Josefina fora escrava dos Baltar, era católica, apostólica e romana e tinha horror a Exu. A Exu e a encarnado vivo.

     Ouvira Josefina falar no lobisomem do Poço que vinha assustando até homens valentes. Que correra atrás de um canoeiro até o rapaz jogar-se desesperado no rio gritando pela mãe e pelo padrinho. Desesperado e vencido pela catinga do Amarelo. Mas quem sabe se o canoeiro não estava um tanto encachaçado e correra de um boi pensando que corria de lobisomem?

     Seguia assim Josefina para a venda, quase sem medo de lobisomem nem de fantasma, quando, no meio do caminho, sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-quê alvacento ou amarelento, levantando areia e espadanando terra; um não-sei-quê horrível; alguma coisa de que não pôde ver a forma; nem se tinha olhos de gente ou de bicho. Só viu que era uma mancha amarelenta; que fedia; que começava a se agarrar como um grude nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo. Um lobo com a gula de comer viva e nua a meninota inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido.

     Foi o que fez o tal lube: estraçalhou o vestido da negrota, que, felizmente, era azul, enquanto ela gritava de desespero. Que a acudissem, pelo amor de Deus. Que a socorresse sua Madrinha, Nossa Senhora da Saúde, que era sua fé! “Minha Madrinha!” “Minha Madrinha! Minha Fé! Minha Fé!”

     Foi o que salvou Josefina: foi ter gritado pela Senhora da Saúde, da qual o lobisomem, amarelo de todas as doenças e podre de todas as mazelas, tinha mais medo do que do próprio Nosso Senhor. Aos gritos da negrota, acudiram os homens que estavam à porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditando em bruxas, passou a acreditar em lobisomem.

     A negra foi encontrada com o vestido azul-celeste em pedaços. Metade do corpo de fora. Os peitos de menina-moça arranhados. Afilhada de Nossa Senhora, só vestia azul. Azul-claro, azul-celeste, azul-marinho, azul-escuro, mas só e sempre azul. Nada de encarnado que, para sua mãe, era cor de vestido de mulher da vida. Pois havia então muito quem pensasse ser o vermelho cor do pecado; e como tal era evitado pelas mães nos vestidos das filhas virgens ou moças. Isto também ouvi de Josefina Minha-Fé — que desde a aventura com o lobisomem passou a ser conhecida por Minha-Fé; e, anos depois, de barcaceiros, pescadores e jangadeiros de litoral de Pernambuco e de Alagoas, cujas crenças procurei estudar. Explica essa crença dos homens do mar (crença de origem talvez moura e talvez trazida ao Brasil por algarvios) — a de ser o azul cor agradável à Nossa Senhora e o encarnado, desagradável —, tanta barcaça pintada de azul ou de verde: homenagem à Virgem e resguardo dos homens não contra os lobisomens amarelentos, que estes são todos da terra e não vão às águas de mar, mas contra as sereias que povoam os mares e temem, segundo alguns, o azul, mas não o encarnado. Não o vermelho. Nem mesmo o amarelo.

     Mas esta não é a história inteira. Falta ainda um trecho que para Josefina era o ponto mais importante da sua aventura. E é que, chamada sua mãe, dias depois, para encarregar-se de lavar a roupa de certo doutor de sobrado do Poço da Panela, um bacharelzinho pálido e de pince-nez que não gostava de José Mariano e dizia ter mais raiva de negro do que de macaco, descobriu que no meio da roupa suja do branco estava mais de um pedaço do vestidinho azul da filha. E reparando bem, viu a preta velha que o doutor branco, em vez de branco ou apenas pálido, era homem quase sem cor: de um amarelo de cadáver velho. Soube depois que vivia tomando remédio — ferro e mais ferro — para ganhar sangue e cor de gente viva. Remédio de botica e remédio do mato, feito por mandingueiro ou caboclo. Que estava morando no Poço justamente por isto: para tratar-se com os banhos que tinham fama de milagrosos e atraíam romeiros de quase Pernambuco todo para a sombra de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela.

     Não sei se o doutor branco conseguiu curar-se de seu mal; se Nossa Senhora da Saúde foi boa ou clemente para o bacharel infeliz; se acabou com o seu fado de toda sexta-feira “virar lobisomem” e correr atrás de mulheres, de meninos e até de homens. Especialmente atrás de mulheres virgens.

     O que sei é que para Josefina Minha-Fé não havia dúvida. O lobisomem que lhe atacara o corpo virgem de afilhada de Nossa Senhora fora o tal doutor de cartola e croisé. Cartola, croisé, pince-nez e rubi no dedo magro. O lobisomem era ele: pecador terrível que, para cumprir seu fado, tomava toda noite de sexta-feira aquela forma hedionda e saía a correr pelos matos, pelos caminhos desertos, pelos ermos, estraçalhando quem encontrasse sozinho. Principalmente mulher e menino. Mulher virgem. Menina-moça como Minha-Fé. E tanto como o Cabeleira (que talvez tenha sido também lobisomem e não simples bandido), o Cabeleira do

    

                     Fecha porta, Rosa

                     Cabeleira eh-vem

                     Pegando mulheres

                     Meninos também,

    

o bacharel pálido do Poço tornou-se, por algum tempo, o terror da gente pobre, moradora nos mucambos daquelas margens do Capibaribe, de águas protegidas por Nossa Senhora da Saúde e por algum tempo alegradas pela presença de outro bacharel, este muito amigo do povo miúdo: José Mariano.

 

                     Luzinhas misteriosas

                     nos morros do Arraial

    

     Isso de haver luzes misteriosas nos morros onde houve guerra, aprendi que é crença entre os celtas com o grande poeta irlandês William Butler Yeats. Homem — esse poeta — como raros europeus de seu tempo, entendido em assuntos de ocultismo, de magia e de sobrenatural e que eu, ainda estudante, conheci pouco tempo antes de ter ele, para meu espanto, se tornado doge ou senador da República irlandesa — ele que tinha uma voz quase de moça e mãos que pareciam plumas, incapazes de esmurrar tribunas e ameaçar tiranos. Entre algumas populações européias mais rústicas se encontra, ainda hoje — disse-me Yeats há muitos anos — a crença de aparecerem luzinhas misteriosas em antigos campos de batalha. Ou nas suas imediações. Luzinhas esquisitas que aparecem e desaparecem como fachos que se avistassem a mais de légua, do tamanho de lanternas de carro de cavalo. Que mudam de lugar. Que podem ser vistas a grandes distâncias, como as luzes naturais não podem.

     Descobri crença semelhante entre velhos moradores de Casa-Forte e das imediações do morro do Arraial, no Recife, quando, há anos, vivi em íntimo contacto com aquela boa gente de mucambo e de casa de barro. Também entre eles — entre os mais velhos — é crença de que aparecem luzinhas misteriosas nos morros onde se travaram encontros da gente luso-brasileira com a flamenga; ou onde a gente luso-brasileira teve seu arraial.

     Ignoro se continuam a aparecer tais luzinhas. Dizia Josefina Minha-Fé, velha moradora da Casa-Forte e da Casa Amarela, que estava farta de vê-las nas noites de escuro; que eram almas de soldados que haviam morrido lutando; que eram espíritos de guerreiros ali mesmo tombados. Zumbis de campo e não de interior de casa.

     Yeats acreditava que no Brasil houvesse muita sobrevivência celta. Perguntou-me se alguém já estudara o assunto. Respondi-lhe que não. Será a crença nessas aparições de luzes misteriosas, em antigos campos de batalha, sobrevivência celta?

 

                 O barão de Escada,

                 num lençol manchado de sangue

    

     Estava uma senhora de família pernambucana no interior do estado em visita a parentes do Recife. Feitas as compras nas lojas do centro, foi a sinhá descansar tranqüilamente, sossegada de seu, numa das cadeiras de balanço da casa, depois de desoprimida do espartilho que lhe apertava o busto e das botinas de duraque que lhe apertavam os pés pequenos para torná-los ainda menores. O corpo à vontade na matinée solta e os pés, ainda mais à vontade, nos chinelos moles. Isto aconteceu nos fins do século passado, que ninguém sabe ao certo nem na Europa nem no Brasil, quando acabou. O Kaiser é que, aconselhado decerto pelos doutores das universidades alemãs, não teve dúvida em considerar o primeiro de janeiro de 1900 o começo do novo século. E assim foi ele principalmente comemorado na Europa e no Brasil.

     Não era aquela sinhá do fim do século XIX, como a baronesa de L., apreciadora de um charutinho forte; nem como a mulher do conselheiro J. ou a ilustre Albuquerque, esposa do dr. C, de um bom cigarro de palha, ainda mais forte que os charutos de qualidade, fumados pelos homens. Não fumava ela nos seus vagares ou nos seus ócios. Estava simplesmente repousando na cadeira de balanço, sem fumar nem ler nem cochilar, sem ninar menino nem rezar o terço no rosário de madrepérola. Sem que alguma mucama lhe desse cafunés. Simplesmente repousando.

     De repente, deu um grito que assustou a casa inteira. Um grito de terror tão grande que até na rua se ouviu a voz da sinhá ilustre.

     Acudiram os parentes, cada qual mais aflito ou assustado. Vieram com suas mãos macias de enfermeiras, de doceiras e catadoras de piolho nos vastos cabelos soltos das senhoras nobres, as mucamas da casa. Mandou-se chamar o médico da família, pois a boa sinhá desmaiara. Que viesse a toda pressa, no seu carro de cavalo. No seu ligeiro cabriolé inglês que aos olhos da gente da época parecia voar e não apenas rodar pelas ruas do Recife.

     Não tardou, porém, a explicação: à dona acabara de aparecer a figura do tio barão envolvida num largo lençol branco todo manchado de sangue.

     Horas depois chegavam ao Recife notícias de Vitória: tiroteio na igreja durante as eleições. Conflito sangrento. O barão de Escada fora assassinado.

 

                 O mastro de navio

                 da casa de Ponte d’Uchoa

    

     Acostumaram-se os recifenses moradores da linha que outrora se chamou a “Principal” — a do trem que ia dos sobrados do centro às matas suburbanas de Dois Irmãos — a ver diante do casarão gótico de Ponte d’Uchoa — casarão gótico que, reformado, é hoje o palacete do médico e milionário luso-pernambucano Manuel Batista da Silva — um alto mastro de antigo navio a vela. Durante longos anos aí esteve o mastro misterioso.

     Do casarão se diz que o levantou velho comandante inglês de navio, enriquecido no comércio uns dizem que de bacalhau, outros que de farinha de trigo. Sentimental como todo bom inglês, quando resolveu residir no Recife — cidade que sempre teve seu it para ingleses, um dos quais deixou-a, há pouco, choroso como um desesperado que deixasse sua Pasárgada — não foi capaz de separar-se do mastro do navio a vela. O mastro do navio que durante anos comandara por mares do Norte e águas do Sul. De modo que diante da casa bizarramente gótica — tão bizarra que Os cronistas do meado do século XIX registraram com espanto o seu aparecimento no meio do arvoredo caboclo — ergueu o inglês aquele mastro, como se ali houvesse encalhado para sempre seu navio: navio bom e romântico do tempo da navegação a vela. E ali ficou o mastro até que o transferiram para o Country Club, onde ainda está.

     Contou-me há anos velho “inglês” — inglês já de água doce, pois, nascido no Brasil e casado com brasileira, falava inglês com sotaque pernambucano — que, por algum tempo, o mastro teve fama de mal-assombrado. Quem passasse tarde da noite pelo casarão ermo via no alto do mastro angulosa figura que alguns supunham de marinheiro. E sendo de marinheiro, devia ser de marinheiro inglês, pois inglês fora o navio de que a saudade do antigo comandante arrancara o mastro.

     Na mesma área do Recife onde se ergueu durante anos esse mastro de navio velho, no qual mais de um recifense antigo cuidou ver, noite de escuro, fantasma de inglês saudoso do seu barco, apareceu, anos depois, a uma meninota brasileira chamada Lurdinha, um vulto esbranquiçado que lhe pareceu fantasma; e fantasma também de inglês, todo de dólmã branco, sapatos como os dos ingleses jogarem tênis. Fantasma de um mister B., que se soube depois ter morado na casa onde morava a família de Maria de Lurdes.

     O fantasma que a moça garantiu à família ter visto com olhos de pessoa acordada era, com efeito, britanicamente correto. Desapareceu logo que descobriu estar assombrando uma simples menina. Não pediu missa: mesmo porque parece que mr. B. fora em vida protestante. Não apontou para móvel ou parede alguma: nem era natural que o fizesse, pois devia ter suas economias em banco solidamente inglês. Não fez um gesto. Não fez um ruído. Simplesmente apareceu à menina chamada Lurdes. Aliás nessa mesma casa, a outra família, a família F. L. — dizem ter aparecido um fantasma de bebezinho brincalhão. Talvez inglês como mr. B. Só fazia brincar. Não assustava ninguém. Espécie de irmão do fantasmazinho de menino feliz de outra casa de Boa Vista do qual mais adiante se falará.

 

                       No riacho da Prata

    

     No Recife velho, como noutras cidades antigas do Brasil, Santo Antônio, São Pedro e principalmente São João eram festas que rivalizavam com os são-joões de engenho. A mesma animação. Muito bolo. Muita canjica. Muita dança. Muito samba. Grandes fogueiras armadas no meio das próprias ruas — e não apenas nos quintais ou nos pátios das casas, para o Diabo não vir dançar à meia-noite diante delas. Verdadeiras batalhas entre rapazes de ruas diferentes: batalhas de busca-pés, limalhas, foguetes, em que mais de um rapaz ficou cego ou perdeu a mão: ou morreu gritando de dor, horrivelmente queimado.

     O culto do fogo até o sacrifício de olhos, de mãos, de pessoas inteiras. O culto do fogo fazendo negros velhos atravessarem com os pés nus fogueiras acesas, gritando “Viva o senhor são João”, sem se queimarem: preservados do fogo pela fé no santo como o negro velho Manuel de Sousa, criado do meu tio Tomás de Carvalho, que em pequeno vi com os meus próprios olhos pisar em fogo sem se queimar. Atravessar fogueiras sem se tostar. Simplesmente gritando “Viva o senhor são João!”

     Mas também foi São João entre os recifenses antigos festa meio pagã de culto da água. Foram célebres no Recife, como noutras cidades do Brasil antigo, os banhos de São João: “reminiscência simbólica do batismo de Jesus pelo precursor”, diz um doutor no assunto a propósito da cantiga popular:

    

                     Na noite de São João

                     Hei de banhar-me no açude

                     Nessa noite é benta a água

                     Para tudo tem virtude

    

     Cantiga entoada pelos que iam se banhar ou se lavar na noite do santo. Banho às vezes só simbólico: simples romaria às águas do rio junto às quais cantavam moças e rapazes, enfeitados com capelinhas de melão:

    

                     Capelinha de melão

                     É de são João

    

     Depois de lavados, corpo e alma, cantavam os devotos mais ortodoxos do santo do carneirinho — os que, na verdade, tinham mergulhado nas águas purificadoras:

    

                     Ó meu são João

                     Eu já me lavei

                     As minhas mazelas

                     No rio deixei

    

     Muitos eram os recifenses que deixavam as mazelas nas águas do Capibaribe: principalmente no Poço da Panela. Outros nas águas do Beberibe. Alguns simplesmente em águas de açudes, das levadas e dos riachos. Até nas águas do riacho da Prata. O célebre riacho da Prata onde é tradição que foi sepultada no século XVII a opulenta prata de Branca Dias, judia rica, perseguida pela Santa Inquisição.

     Mas no Brasil antigo as águas dos rios, dos riachos, dos açudes não se tornavam, noite de São João, apenas purificadoras. Também reveladoras do futuro das pessoas que se debruçassem sobre elas. No Recife velho, o Capibaribe, o Beberibe, os riachos tiveram essa função mágica para muito recifense que, noite de São João, à meia-noite, quisesse saber o futuro. O que visse ou deixasse de ver nas águas era o futuro. A crença principal era a de que a pessoa que, noite de São João, à meia-noite, não conseguisse ver na água a própria imagem ou cabeça, podia estar certa da morte próxima. Não brincava outro São João.

     Dizem que em Apipucos uma moça cuja maior vontade era casar — casar com um homem muito rico ou simplesmente casar, pois numa época em que as sinhazinhas casavam aos 13, 14 anos, ela já estava passando dos vinte, solteirona — saiu de casa com a mucama, noite de São João para “tirar a sorte” de ver ou não ver, menos a própria imagem, que a de noivo ou futuro marido, nas primeiras águas que encontrasse. As primeiras águas que encontrou foram as do riacho da Prata. Decidiu debruçar-se sobre elas. Disse à mucama que esperasse: “espera um pouco, Luzia”. Pois segundo o rito, só desacompanhada ou sozinha a pessoa podia tirar a sorte. O mesmo que acontece com botija de dinheiro enterrado: só desacompanhada a pessoa a quem foi revelado misticamente o esconderijo pode desenterrar o tesouro.

     Chegou-se a iaiá bem para perto do riacho. Afoiteza da moça, pois essas águas há muito tempo tinham fama de mal-assombradas. Eram as águas — repita-se para benefício do leitor estranho ao Recife — que guardavam a prata escondida pela judia rica no tempo da Inquisição. As águas onde havia quem jurasse aparecer o fantasma de Branca Dias, “botando sentido na prata”. Pelo menos era o que supunha a gente simples do lugar.

     Debruçou-se a moça sobre as águas do riacho. Parece que não viu imagem nenhuma — nem de noivo nem a própria — porque debruçou-se mais, inquietando com isso a fiel mucama. E ia a mucama gritar “Iaiá, não se debruce mais!” quando primeiro que ela gritou a moça: “Me acuda, Luzia! Me acuda que ela quer me levar!” “Ela” era com certeza a judia rica.

     Correu a mucama mas já sinhazinha tinha desaparecido nas águas do riacho da Prata. E para a mucama não havia dúvida: o fantasma de Branca Dias levara a outra branca para o fundo das águas. Para o meio das pratas finas sepultadas no fundo do riacho. Ainda hoje há quem às vezes veja, noite de lua, duas moças nuas no meio das águas da Prata. Dizem que uma é Branca Dias e, a outra, a sinhazinha que se sumiu no riacho noite de São João.

 

                   Uma rua inteira mal-assombrada

    

     Da chamada avenida Malaquias, que liga as estradas de Dois Irmãos e do Arraial, e é hoje uma rua banal, já se disse que teve fama de ser ela inteira mal-assombrada. Ainda a conheci com suas velhas e grandes jaqueiras e mangueiras e quase sem uma casa por trás dos muros altos, onde de dia os moleques se divertiam traçando calungas e sinais obscenos. Os mais doutos, escrevendo palavrões de arrepiar a própria gente grande. Parecia a chamada avenida um resto de mata, fantasiado de rua; e a rua, uma caricatura de avenida.

     Mais de um homem incauto foi assassinado à sombra daquelas jaqueiras tristonhas e gordas. Ficou célebre o assassinato do chefe da estação de Ponte d’Uchoa. Uma cruz de pau recorda ainda hoje esse crime.

     No tempo da iluminação a gás, a chamada avenida Malaquias era o pavor dos acendedores de lampião. Mais de um acendedor correu gritando como um menino com medo, apavorado com assombração na avenida. Vultos brancos debaixo das jaqueiras ou espojando-se na lama: talvez lobisomens cumprindo o fado. Bichos estranhos às carreiras: talvez mulas-sem-cabeça. Mulas-de-padre, vindas do lado Capunga. E vozes. Vozes estranhas. Vozes do outro mundo. Uma, certo acendedor de lampião ouviu-a bem ao pé do ouvido. Obrigou-o a fala fanhosa de duende a correr como um doido para a padaria do Castor, sem mais querer saber de apagar lampiões naquele ermo.

     Dizia a voz: “Não me deixes no escuro!” O que contraria quase tudo que se sabe a respeito de fantasmas. Os ortodoxos são amigos do escuro e inimigos das luzes de lampião e até de lamparina.

 

                     Rodar de carro

    

     Quase não há cidade velha do Brasil que não guarde a tradição de algum carro velho — sege, cabriolé ou traquitana — a rodar pelas ruas mal empedradas no silêncio das meias-noites. O povo diz que é carro de alma penada. Em certa cidade do sul de Pernambuco, a gente mais antiga ainda hoje fala de um coche com penachos como carro de defunto que uma vez por outra, tarde da noite, se lança de repente num despenhadeiro entre gritos e lamentações do cocheiro e dos passageiros, numa língua arrevesada. Diz-se que a língua é a dos hereges holandeses que andaram por aqueles sítios no século XVII.

     No Recife, ilustre advogado dos primeiros tempos da República morou, quando moço, numa casa perto da célebre avenida Malaquias. Em redor da casa, nas noites mais feias, rodava um carro de cavalo que assombrava, com seu ruído, as pessoas da casa. Ruído de patas de cavalo, de rodas de carro e até de vozes. Voz áspera de boleeiro. Vozes doces de gente sinhá, afobada de seu, dentro do carro. Abria-se uma porta ou janela da casa: talvez fosse troça de estudantes boêmios que se divertissem com atrizes, entrando de carro num sítio particular. Estudante era antigamente capaz de tudo. Não se avistava, porém, carruagem nenhuma. Apenas paravam as vozes. O barulho das rodas do carro continuava sobre a areia frouxa, sobre as pedras, sobre a grama do quintal. Mas ninguém avistava carro ou enxergava cavalo ou descobria sinal de roda na terra mais mole.

     Também pelas ruas do centro da cidade houve tempo em que à meia-noite se ouvia o rodar de enorme carro de cavalo. Devia ser carro velho porque as rodas rangiam de cansadas. Tinha o rodar do carro alguma coisa de gemido de carro de boi. Houve quem, abrindo de repente o postigo, visse imenso coche fúnebre cheio de penachos e dourados, os cavalos cobertos de crepe. Carro igual, igualzinho, ao coche que há anos levara ao cemitério de Santo Amaro certo titular do Império. Misterioso, o carro preto e dourado aparecia e desaparecia com todos os penachos e cavalos de luxo. Todo ele parecia penar. Corria entre os recifenses da época que o tal titular vendera a alma ao Diabo.

 

                             Assombração no rio

    

     Não é rio sem mistério o Capibaribe, o principal do Recife. O poeta João Cabral de Melo Neto tomou-se de tal paixão por esse rio recifense que o vem cantando com o seu melhor fervor desde “O cão sem plumas”.

     E o historiador José Antônio Gonsalves de Melo — outro Melo descendente, como João e como eu, do mesmo recifense profundo chamado Ulisses Pernambucano de Melo — colhe há anos material para escrever a história dessas águas de rio que há quatro séculos se misturam à vida do recifense, inundando-lhe às vezes as casas com a fúria de um inimigo, de um rebelde, de um Volga revoltado até contra os próprios barqueiros. De ordinário, porém, servem elas aos homens, principalmente aos pobres, com a doçura de um são Cristóvão que se prestasse a carregar aos ombros pessoas e fardos; a recolher a imundície das casas, dos hospitais e das usinas; a lavar cavalos.

    Do meio dessas águas mais de uma vez têm surgido aos olhos do homem do povo — e não apenas de colegiais fugidos das aulas — aparições que talvez sejam — pensam eles — de almas de afogados. Ou de suicidas. Ou de criminosos arrependidos dos seus crimes. E há quem diga que às lavadeiras que lavam roupa às margens do Capibaribe não tem faltado a presença do vira-roupas: fantasmazinho perverso que se especializa em roubar às trouxas das pobres mulheres camisas finas de doutores, toalhas de casas lordes, lenços caros de iaiazinhas. O escritor Ademar Vidal, no mais interessante dos seus livros — um livro sobre superstições do Nordeste — recorda essa assombração de beira de rio e nos dá um retrato de fantasma zombeteiro que se divertisse em fazer mal a gente pobre e simples.

     Muito crime tem se praticado no Recife com a cumplicidade das águas nem sempre ingênuas do Capibaribe. Muito recifense nelas tem encontrado a morte de desesperado ou de desenganado da vida ou do amor ou do poder. Não é um rio apenas lírico, de serenatas melifluamente românticas nas noites de lua. Nem apenas de banhos alegres de estudantes com atrizes como outrora o Beberibe. Também dramático. Rio de afogamentos, de suicídios, de crimes. Rio de doenças que roem fígados, devastam intestinos, rasgam entranhas. Rio de romances russos acontecidos nos trópicos. Donde suas sombras guardarem segredos, alguns terríveis.

     Nem todas as aparições porém têm sido de almas penadas. Sobre as águas do Capibaribe é tradição que apareceu um dia a própria Virgem. Apareceu não a um branco ou a um rico ou a um fidalgo de casa-grande — das que outrora davam a frente e não as costas para o rio — mas a simples escravo negro que ia se afogando ao atravessar as águas, de Ponte d’Uchoa para a Torre. E como era bom católico, quando se sentiu sem forças para lutar com as águas gritou como um desesperado por Nossa Senhora da Conceição. Então Nossa Senhora apareceu — segundo o ex-voto hoje no Museu do Estado — e salvou o escravo bom das fúrias do redemoinho do rio.

      Ainda hoje se pode ver recordada essa aparição — ou pelo menos intervenção — de santa branca ou cor-de-rosa a escravo retintamente preto num ex-voto da capelinha da casa-grande, agora recolhido ao Museu do Estado. Aí se lê: Mercê q fes N. S. da Conceição; a Antonio escravo do Mestre de Campo Henrique Miz; querendo atraueçar este rio naponte dochoa para outra banda sem saber nadar, cahio nofundam, eacorrenteza dagoa olevou por baso daponte te coaze aolaria do Cappitam Joam de Andrade, echamando por esta Snra; da mesma olaria leacodirão eosalvaram, ficando Livre demorrer afogado, em dias de Agosto de 1770.

 

                     Doutores e assombrações,

                     inclusive certa “mensagem” de Raul

                     Pompéia morto, para Martins Júnior, vivo

    

     Pelos fins do século passado e começos do atual um dos sólidos homens de negócios da praça do Recife era o D. Pertencia ao número de negociantes que os jornais daqueles dias costumavam denominar “conceituados”. Apenas em vez de pertencer à Irmandade do Santíssimo Sacramento, fazia da sua casa — da casa de residência, é claro, e não da de comércio — um centro de sessões de espiritismo que chegaram a ser freqüentadas por alguns dos doutores mais ilustres da cidade.

     Velho professor da Faculdade de Direito do Recife, que assistiu, já formado em direito, mas ainda muito jovem, a algumas das sessões, me informa: “Freqüentei algumas vezes as tais sessões, e certa ocasião levei o seu tio Tomás (refere-se ao médico Tomás de Carvalho) e o Ribeiro de Brito (o depois senador federal por Pernambuco, João Ribeiro de Brito). Não vimos nada de extraordinário. Apenas o Tomás e o Brito, numa das vezes, comentaram umas respostas de famoso médico, aliás negro, através de um médium, respostas que, segundo eles, estavam de acordo com a terapêutica da época. O médico chamava-se Dornelas. Evocava-se com freqüência esse doutor negro.”

     Aliás, segundo a tradição popular, esse doutor negro chegou a aparecer à cabeceira de mais de um doente pobre do Recife. Aparecia de cartola e de sobrecasaca como nos seus dias de homem da terra. Ou deste mundo, como diria mestre Silva Melo, também médico e homem de ciência preocupado com o problema das assombrações.

     De Dornelas se conta que, ainda vivo, passava certa vez, de sobrecasaca e de cartola, por uma das ruas mais fidalgas da cidade do Recife quando, da varanda de um sobrado opulento, iaiá mais aristocrática resolveu zombar de qualquer jeito do preto metido a sábio e encartolado como qualquer doutor branco. E não encontrou meio mais elegante de manifestar seu desdém pela “petulância do negro” que este: cuspir-lhe sobre a cartola. Pois cartola era chapéu de branco e não de negro.

     Sentiu Dornelas a cusparada sobre o chapéu. E tirando a cartola ilustre e examinando a cusparada, diz a lenda que concluiu logo a olho nu: “Coitada da iaiá! Tuberculosa. Não tem um ano de vida.” E antes de findar-se o ano, saía do sobrado fidalgo um caixão azul com o cadáver da moça. Morrera tuberculosa.

     Olho mau de negro? Não, diz a lenda: olho clínico. Mas olho clínico iluminado por alguma coisa de sobrenatural. O que fez de Dornelas, no fim da vida, um médico chamado pelos doentes mais graves como se fosse também um negro velho com extraordinários dons africanos de curar males que os doutores brancos e de ciência apenas européia desconheciam.

     Depois de morto, tornou-se um dos espíritos mais invocados nas sessões de espiritismo da cidade. Na verdade, do Nordeste inteiro, onde ainda hoje são célebres “as receitas do dr. Dornelas”.

     O fato é que entre a medicina e o espiritismo, no Recife, desde os dias das primeiras “aparições” ou das primeiras “receitas” de Dornelas, que há namoro. No consultório de dois médicos ilustres dos primeiros anos da República — médicos e propagandistas da Abolição e da República: os mesmos que freqüentaram por algum tempo as sessões na casa do negociante D. — chegou a fazer-se espiritismo experimental ou científico. De médium serviu, mais de uma vez, o bravo abolicionista, companheiro de Joaquim Nabuco e, depois de vencedora a causa da Abolição, apóstolo da causa da “proteção aos animais”, João Ramos. Outras vezes, o velho Guedes Pereira, também homem honrado e de bem, empunhou o lápis revelador. Ainda outras vezes, o médium foi Ulisses Pernambucano de Melo — não o médico, mas o tio do médico e filho daquele guarda-mor da alfândega, homem belo e aquilino como bom. Fonseca Galvão: o primeiro Ulisses Pernambucano da família Gonsalves de Melo — Fonseca Galvão.

     Foi numa dessas sessões de consultório de médico que se passou o caso que vai aqui fixado pela primeira vez: o encontro — segundo a interpretação de alguns — de Raul Pompéia já morto com Martins Júnior ainda vivo. Pelo menos Martins, o homem do “direito positivo” e da “poesia científica”, ficou convencido de que com ele se comunicara, pelo lápis de um médium, o próprio Raul Pompéia. Foi um assombro para o cientificista não só do direito como da poesia.

     Que fale de novo o então jovem bacharel e depois o professor de direito que assistiu com olhos críticos à sessão memorável e viu o mestre já glorioso de “direito positivo” e de “poesia científica” assombrar-se com a mensagem do amigo morto: “...assistiram a sessão o Martins Júnior, seu primo, o farmacêutico Graciliano Martins, e dois ou três outros cujos nomes me escapam no momento. Fizeram-se várias invocações”... “O Martins então lembrou-se de chamar o Raul Pompéia. Fez várias perguntas que foram respondidas, causando muitas delas certa impressão ao Martins que segundo parece era íntimo de Pompéia. Ulisses (o médium) então muito novo, nunca ouvira falar de Pompéia nem sequer conhecia O ateneu. Quase a terminar a sessão, Martins, que estava de viagem para o Rio, disse: ‘Bem, Raul, vou para o Rio. Nada queres para os nossos amigos e companheiros da Semana? Alguma coisa? para o Valentim?’ A resposta lembro-me bem que foi a seguinte: ‘Reúna a tropa, emende os braços e acostele-os de uma só vez’. Com essa resposta Martins ficou muito impressionado e disse: ‘É o Pompéia, não há mais dúvida.’ E fez questão de ficar com a papelada da sessão.”

     Passou-se o fato numa sala de consultório médico do Recife, entre instrumentos cirúrgicos e frascos de remédio — tudo que havia então de mais moderno e mais europeu em medicina. Nesse ambiente cientificista é que o também cientificista Martins Júnior ficou com a exata impressão de ter conversado com Raul Pompéia, amigo morto.

     Finda a sessão, o mestre de direito ainda fixou bem o pince-nez para ler com vagar os papéis com as respostas. Principalmente aquela “Reúna a tropa, emende os braços e acostele-os de uma só vez”. Não podia haver engano: era Pompéia. Só Pompéia falava ou escrevia assim. O jurista, o positivista, o cientificista da “poesia científica”, estava assombrado: “Aquilo era Pompéia! Mas como? Não podia ser!”

 

                       O Papa-Figo

    

     De uma família opulenta do Recife se diz que na segunda metade do século passado teve o desgosto de ver o próprio chefe definhar de repente, devastado por uma das doenças mais inimigas do homem, seja ele rico ou pobre, preto ou branco. Há quem guarde o nome arrevesado que os doutores davam então ao mal raro: nome hoje arcaico. Na medicina é assim: os nomes técnicos das doenças depressa se tornam arcaicos.

     Mas a tradição popular conta outra história. Diz que o ricaço estava dando para lobisomem. Alarmando a população. Empalidecendo, amarelecendo, perdendo toda a cor de saúde, como em geral os homens que dão para lobisomem. Tornando-se mais bicho do mato do que homem de sobrado.

     Desesperado de encontrar cura ou alívio para seu mal na ciência dos doutores recorrera o ricaço ao saber misterioso dos negros velhos. Um dos quais depois de bem examinar o doente rico dissera à família: “Ioiô só fica bom comendo figo de menino.” “Figo” no português do negro queria dizer fígado.

     Diz-se que o próprio negro velho se encarregou de sair pelos arredores do Recife com um saco ou surrão às costas. Ia recolhendo menino no saco e dizendo que era osso para refinar açúcar. Mas era menino. Carne de menino e não osso de boi ou de carneiro. Quanto mais corado e gordo o meninozinho, melhor.

     Desses meninos sussurra a lenda que o africano, protegido pelo branco opulento, arrancava em casa os fígados para a estranha dieta do doente. Só assim evitou-se — diz a lenda que parece ser muito recifense — que o argentário continuasse a alarmar a população sob a forma de terrível lobisomem. Curou-se mas de modo sinistro.

 

                   Fantasma de menino feliz

    

     Contou-me dona Carmem de Sousa Leão que na casa de família recifense muito das suas relações — e creio até que do seu parentesco — moradora em velha rua da Boa Vista, costumava há anos aparecer e desaparecer por encanto a figura de um lindo meninozinho, não me lembro se louro e cor-de-rosa, como os meninos-jesus flamengos, se moreno como um bom e belo brasileirinho do Norte. Brincava o fantasmazinho e sorria como se fosse menino vivo, rico e feliz. Neto em casa de avó.

     Era a mais bela das assombrações. Bela e difícil de ser explicada pela gente da casa onde aparecia: casa antiga da Boa Vista. Casa de gente sinhá e não à-toa.

     Pois o fantasmazinho não intimidava pessoa alguma da casa nem aterrorizava menino vivo nem pedia missa ou doce às senhoras de idade nem dava a impressão de ir quebrar porcelanas ou vidros caros da família nem gemia nem suspirava como se estivesse sofrendo penas no outro mundo. Era o contrário dos fantasmas convencionais. Apenas sorria e brincava como se fosse criança ainda deste mundo.

     Pouco misterioso, deixava que a família chamasse conhecidos e vizinhos para vê-lo brincar. Não se incomodava com os olhos dos curiosos. Continuava a sorrir e a brincar. Até que, por encanto, desaparecia.

     Era quando as pessoas que acabavam de ver sorrir e brincar fantasmazinho tão sem jeito de fantasma de sessão de espiritismo ou de casa mal-assombrada, sentiam o frio do outro mundo arrepiá-las: quando o meninozinho desaparecia de repente, sumindo-se da vista dos vivos como qualquer fantasma de gente grande. Misterioso como qualquer assombração de história de alma-do-outro-mundo.

     Diz-se que mais de uma vez o meninozinho-fantasma pareceu querer beijar pessoas vivas. Beijo de filho em mãe, de neto em avó, de sobrinho em tio. E neste caso, parecido esse fantasmazinho do Recife com aquele fantasma também de menino, embora já quase rapaz, de que falam tradições inglesas; e que aparece na coleção de Lord Halifax de histórias de casas assombradas, aparições, ocorrências sobrenaturais: Lord Halifax’s ghost book (Londres, 1930). Desse fantasma fala também o escritor Osbert Sitwell no livro encantador que é sua autobiografia: The Scarlet tree (Londres, 1946). Diz Sitwell que o fantasma apareceu, em casa de gente sua, tendo se identificado o menino morto: certo Henry Sacheverell, filho de uma Sitwell. O menino se afogara aos 15 anos, no remoto ano de 1724. Diz-se que, durante anos, não só acordou mais de uma pessoa fidalga — uma delas a Condessa de Carlisle — com um beijo, como certa vez, havendo festa — baile de fantasia — em casa dos Sitwell, compareceu vestido de mocinho do tempo de Jorge II; e dançou alegremente valsas com as moças. De estranho só se notaram nele o excesso de palidez do rosto e o frio, também exagerado, das mãos: mãos tão frias que mesmo de luvas pareciam geladas. Mas a alegria desse menino morto há longos anos era a de um vivo bem vivo. Fantasma, também, de menino feliz.

 

                 O adolescente que

                 Assassinou a namorada

    

     Foi no princípio do século. Um adolescente assassinou a namorada ao pé da escada de velho sobrado de São José. Dizem que a menina caiu morta cheia de sangue, nos primeiros degraus. Agarrou-se ao corrimão, chamando pela mãe e pedindo água.

     O sobrado continua o mesmo. A escada também. E toda noite range como deve ter rangido na noite do crime. Pelo menos é o que asseguram bons e honestos moradores da rua.

     Não é de estranhar que moradores de uma rua de São José acreditem ser assombração um ranger de escada burguesa. Mais de uma casa da região tem ganho fama de assombrada por causa de algum ranger misterioso: de escada, de punho de rede, de cadeira de balanço.

     Na casa-grande de velho engenho do sul de Pernambuco é tradição que range, no silêncio das meias-noites, antiga cadeira de balanço em que se balançava certa iaiá ninando o filho. Em casa-grande de engenho também antigo das Alagoas, na sala em que aconteceu há quase um século um crime terrível, contou-me uma vez o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro que é tradição ranger misteriosamente, no silêncio da noite, o punho da rede. Mais de uma vez pessoas calmas, e de modo algum arrebatadas ou crédulas, têm se levantado para verificar quem está se balançando na rede. Não encontram ninguém: nem mesmo rede. O ranger de punho de uma rede que não mais existe continua um mistério.

     Mistério continua também o ranger da escada do sobrado da velha rua de São José onde o adolescente assassinou a namorada menina. Meninota. Menina-moça.

     “Que barulho é esse na escada?” — perguntam às vezes do alto do sobrado tranqüilos burgueses a fazerem de M. Jourdain, isto é, a fazerem poesia sem o saberem. Ninguém responde. O ranger da escada continua a recordar o crime do adolescente como se fosse motivo da poesia célebre: a de Carlos Drummond de Andrade.

 

                               Um barão perseguido pelo diabo

    

     De um barão pernambucano, muito conhecido do Recife do século passado, ainda que suas terras fossem distantes da cidade e terras de boi e de plantas de espinho e não de massapê e de cana-de-açúcar — pois não era homem de se contentar com a rotina dos avós — se conta que viveu grande parte da vida perseguido pelo diabo. Diz-se que fizera um pacto com o Cornudo pensando em desembaraçar-se do chamado Príncipe das Trevas com a facilidade com que se desembaraçara de outros entes incômodos. Pois era brasileiro valente e montava a cavalo como um são Jorge. Aliás a história que se conta desse barão, conta-se também um tanto modificada de outro, este morador no Recife e visconde.

     Todo o esforço do barão — ou do visconde — para libertar-se do demo foi inútil. Vinha o barão ao Recife e aqui vivia como qualquer outro lorde pernambucano da época, vida alegre e descuidada. Jantava no Torres. Divertia-se no teatro vendo as cômicas. Ia afofado em carro de luxo às corridas do Piranga. Mas de repente recebia um sinal misterioso: era do Chifrudo para ir encontrá-lo sozinho nas brenhas, tarde da noite — noite sem lua; e como que refrescar a assinatura no trato que levianamente fizera com o Príncipe Negro. Simples barão, tinha que obedecer ao Príncipe. Era então visto a galope pelos ermos, montado num cavalo que ninguém sabia se era deste mundo, se do outro. Cavalo levado do diabo. E quando voltava do encontro com o Maldito, durante horas parecia o barão ia botar a alma pela boca, de tão mortalmente fatigado. A alma e o sangue, pois seu rosto era então o de um cadáver e suas mãos, também, as de um defunto. Rosto pálido, mãos esverdeadas, olhos que pareciam ir saltar do rosto e cair no chão, horrorizados do que tinham visto. Ou envergonhados do que tinham sido obrigados a ver.

     Os parentes e os amigos procuravam adoçar-lhe o terror, pois era homem respeitado e estimado pelos seus. Davam-lhe água benta para banhar os olhos terrivelmente secos. Uma mucama esfregava-lhe alecrim pelo corpo lasso: corpo de branco que tivesse apanhado de estranho chicote que não ferisse mas doesse até à alma: dor seca e terrível. Que tivesse apanhado mais que todos os negros de seu eito. E, aos poucos, o barão voltava a si para novamente ser chamado, daí a meses, à presença do seu terrível senhor. Entretanto não era homem de quem se dissesse

    

                     Quem rouba pouco é ladrão

                     Quem rouba muito é barão.

    

     Seu pacto com o diabo era um mistério.

     Ninguém explicava o caso pois havia entre os lordes da época quem mais do que o barão X amasse o dinheiro ou fosse doente pelo ouro, ganho ou aumentado de qualquer modo: mesmo com a ajuda do diabo. Havia até quem, tendo título de nobre ou nome ilustre, fosse acusado de ter enriquecido fabricando cédula ou moeda em casa, sabendo-se de uma guitarra de gente de prol que rangera o seu ranger criminoso no fundo de uma doce capela de engenho, assombrando a gente simples: aquilo era alma fazendo mingau! O mingau que é crença entre a gente simples do Recife passarem as almas durante a noite pelos olhos dos meninos.

     De ricos e avarentos há muita história de sociedade com o demônio. Em seu excelente estudo, há anos publicado, Os filhos do medo, a sra. Ruth Guimarães lembra que são várias no Brasil as variantes do velho adágio português: “Na arca do avarento, o diabo jaz dentro.”

     Não parece que fosse o caso do barão pernambucano de quem as más-línguas do Recife durante anos espalharam que era uma vez por outra “levado pelo diabo”. Forçado pelo diabo a encontrá-lo nas brenhas como que para prestar contas de sua vida ao Canhoto, muito mais seu senhor que Pedro II.

     Do visconde diz-se que quando morreu o diabo ficou não só com sua alma como com seu corpo. E que para fingir enterrá-lo em Santo Amaro, a família tivera que encher o caixão de pedra.

 

                           A velha branca e o bode vermelho

    

     Onde hoje está o Country Club de Recife, na estrada dos Aflitos, perto do antigo ponto de parada do Arraial, foi, até os princípios do século, um dos mais vastos sítios da cidade. Tão grande que, indo do ponto de parada ao sobrado amarelo onde há trinta e tantos anos se instalou o Clube Náutico, aprofundava-se até as areias frouxas do Rosarinho: célebres areias por onde dificilmente rodavam carros de cavalo.

     Dominava o sítio velha casa-grande de quatro águas, de janelas com guilhotinas, de portas pintadas de azul; e cercada de muitas árvores de fruto, algumas gordas como as jaqueiras e todas fecundas, nenhuma maninha; jabuticabeiras, goiabeiras, araçazeiros, cajazeiros, pitombeiras, oitizeiros, pitangueiras, abacateiros, sapotizeiros e não apenas mangueiras, bananeiras e cajueiros. Era um sítio quase sem fim; e seu arvoredo quase uma mata.

     Morava na casa com três parentas pobres certa velhinha que conheci já muito velha e com fama de muito rica. Mas que possuía apenas alguma fortuna em ouro e em terras, além de algumas vacas e cabras de leite. Quando eu e meus irmãos a conhecemos, teria talvez seus oitenta e tantos anos, mas seu tamanho era o de uma menina de oito. Era quase cega e andava, como se diz pitorescamente em Pernambuco, engomando, isto é, arrastando os pés à maneira dos ferros de engomar sobre o macio das roupas ou dos panos. Era branca, branquíssima como que coberta toda de neve: toda e não apenas o cabelo. A pele muito branca. As mãozinhas, duas plumas brancas que quando faziam festa a um rosto de menino já pareciam mãos de fantasma. O vestido sempre branco. Parecia a velhinha assim tão branca com o retrato de Leão XIII que ela própria conservava no quarto dos santos. Só que seu sorriso era outro e seu cabelo, de mulher.

     As terras eram aquelas: aquela imensidade de arvoredo bom e útil que, durante o ano inteiro, dava à sua senhora do que viver, tantas eram as quitandeiras, algumas ainda negras da Costa, chamando todo branco de ioiô, toda branca de iaiá, todo menino de ioiozinho, com xales vermelhos, amarelos, azuis, sobre os cabeções e que ali iam encher seus balaios e seus tabuleiros, de fruta doce e madura. De cachos de pitomba e de cachos de bananas. De oiticoró, de caju, de jabuticaba, de macaíba, de groselha, de abiu, de juá, de araçá, de goiaba, de cajá, de sapoti, de pitanga, de carambola, de coração-da-índia, de ingá, de jambo, de tamarindo, de jaca mole, de jaca dura. De manga-carlota, manga-sapatinho, manguito. De todas as boas frutas, hoje raras, porque era então famoso o Recife. Pois ainda não se fizera sentir o imperialismo da manga-rosa ou do abacaxi sobre a arraia-miúda mas fascinante-mente diversa de frutas modestas mas sólidas e gostosas: espécie da classe média do reino vegetal alongada em numerosa arraia-miúda.

     O ouro, conservava-o a velhinha menos em moedas do tempo do rei velho, seu senhor, do que em jóias, medalhas, trancelins dos tempos da Colônia. E essas jóias nem as usava a velhinha nem deixava que as sobrinhas — verdadeiras marias-borralheiras — as usassem. Eram jóias das suas santas e dos seus santos.

     Principalmente, do seu, só seu, puramente seu, Menino Jesus: imagem rara do Salvador do Mundo quando criança e quase do tamanho de um menino de verdade. Imagem que lhe viera de Portugal. E cujos cabelos eram, com efeito, cabelos de meninozinho louro que morrera anjo: parece que um tio-avô da velha.

     Feita a capricho era a imagem anatomicamente perfeita. Parece que tinha até um umbigo, que não devia ter. E um dos prazeres da iaiá velha, e já tão cega que dos seus olhos se podia dizer, com o poeta, que eram olhos que tinham passado às pontas dos seus dedos, era levantar com muito mistério o vestidinho todo de rendas finas e cheio de fitas azuis do seu Menino Jesus para que nós outros, meninos de carne, víssemos que ao do céu, ali adorado, mimado e festejado como nenhum menino Jesus o foi mais na terra, não faltava piroca: uma piroquinha cor-de-rosa. Uma piroquinha em que as pontas dos dedos da velha tocavam com a sua leveza de plumas, fazendo-lhe uma doce festa.

     Não tendo neto, aquela velhinha, com idade de avó, como que fizera da sua devoção a Jesus-Menino não só o culto de sua preferência de católica que se confessava, comungava e jejuava dentro dos rigores da ortodoxia — só não indo à missa todos os domingos por não lhe permitirem essa correção cristã as doenças de velha — como o substituto do netinho que lhe faltava para lhe alegrar o fim da vida, lhe continuar o nome e lhe herdar o ouro e as terras. Daí, talvez, aquela preocupação de mostrar que sendo a imagem do Filho de Deus era também de menino capaz de se tornar homem e homem procriador. Mas isto é reflexão minha de hoje e não daquele tempo.

     Naquele tempo o que me deslumbrava era ver um Menino Deus tão cheio de jóias e tão sobrecarregado de ouro. Os outros santos também tinham suas jóias. E a santa Mãe do Menino Deus mais brincos e cordões de ouro do que qualquer outra das santas: sant’Ana, santa Luzia, santa Cecília. Nem a divina Senhora, porém, chegava a ter metade do ouro, das pedras preciosas, dos brilhantes que rebrilhavam sobre a doce figura do Meninozinho Jesus guardado, com os outros santos, num largo e alto santuário todo dourado por dentro e que devia ser de jacarandá-roxo. Fechava-se todo, como um armário de guardar roupa. Não tinha vidro nenhum. Só via as imagens quem a dona quisesse; e não qualquer curioso que entrasse no quarto dos santos. A chave guardava-a a velhinha como o objeto mais precioso que a acompanhava no mundo. Mais de uma vez vi-a tomar seu chá ou comer seu beiju acariciando a chave. Chave não de cofre mas de santuário.

     Muito menino então, não saberia eu dizer hoje se era a velhinha boa ou má para as três sobrinhas pobres que viviam como ela no casarão da estrada dos Aflitos. Casarão que freqüentei com meus irmãos; e do qual tantas vezes voltamos para casa com as mãos cheias de frutas que nos mandara dar a velha com sua voz fanhosa mas autoritária. Essa voz ainda hoje a ouço: voz meio do outro mundo, meio deste. Como ainda hoje sinto as pontas dos dedos da velhinha — as mesmas que acariciavam a piroca da imagem do Menino Jesus — fazendo festa ao meu rosto; e dando-me aquela sensação de plumas a que já me referi.

     Lembro-me vagamente de que se dizia da velhinha: que era o mesmo que cobra para as três moças suas sobrinhas — todas tão brancas quanto ela — às quais tudo negava, menos a casa e o gozo do sítio; e que, por isto mesmo, as coitadas se esgotavam em costurar para fora e em fazer doces para as negras venderem em tabuleiros na cidade.

     Talvez exagero e até invenção de vizinho. Talvez não fosse tão crua a velha iaiá de fala fanhosa. O zunzum da vizinhança é que fazia dela quase uma moura-torta de histórias da carochinha. Quase uma senhora avó ou uma senhora velha da história do “Água, meus netinhos!”, “Azeite, senhora avó!”

     O que parece é que todo o afeto de que a velhinha era capaz no fim da vida ainda era pouco para “seu adorado menino” que era o Jesus. Para o seu santo ela vivia mais do que para o mundo. Ou para as pessoas ou coisas da terra. E como as sobrinhas eram pessoas da terra, não sabia a velha retirar do Menino Deus jóia ou brilhante nenhum, que diminuísse o esplendor do culto ao Filho de Deus em benefício de filhos simplesmente dos homens. Daí, talvez, serem as três moças obrigadas a costurar e a fazer doce até tarde da noite, vivendo numa casa tão cheia de ouro e de pedra preciosa. Tudo, porém, adorno de santo. Coisa sagrada que a velha não se julgava no direito de vender em benefício das sobrinhas.

     Quem sabe se não foi esta a razão de ter um dia a velhinha se assombrado com a figura de um bode vermelho ou encarnado ou escarlate, como bicho do apocalipse? Quem sabe se Deus, o Pai, desaprovando o culto não digo excessivo, mas exclusivo, à imagem do seu Divino Filho, e a negligência da tia pela sorte daquelas três sobrinhas pálidas, também filhas de Deus, embora simples pessoas da terra, não permitiu ao Maligno aparecer naquela santa casa, só para sacolejar o coração da velha sinhá e abrandá-lo? Quem sabe se não foi esta a razão de ter o próprio Espírito das Trevas se sentido com ânimo para aparecer à velhinha sob a forma de um bode terrivelmente feio e chifrudo, ruivo e barbado?

     O certo é que estava um dia a tranqüila velhinha, ao entardecer, sentada matriarcalmente à cabeceira da mesa depois do jantar — pois à moda dos antigos, jantava sempre cedo, com dia ainda claro — quando de repente, que há de lhe aparecer? Um bode hediondo. Um desses misteriosos bodes que há séculos se supõem enviados de Satanás aos homens esquecidos de Deus e do próximo. Escarlate como se tivesse saído de um banho de sangue. Inhaca de enxofre junto à de bode.

     Grita a velha. Acodem as sobrinhas. Também as negras do fogão e as quitandeiras, todas fazendo o pelo-sinal, agitando xales azuis contra o perigo vermelho. Nenhuma porém consegue ver a horrenda figura. O terrível bode diferente dos outros só o enxergara a velha quase cega.

     Só o vira a velhinha. E a visagem deixou-a em tal sobrosso que não houve quem lhe aquietasse o espírito de devota do Menino Deus e de todos os santos, desrespeitada daquele modo bruto pelo Maligno sob a forma de bode tão nojento. Porque a inhaca do bode, também alguma das negras diziam ter sentido. Era de bicho imundo. Parecida talvez com a de Exu.

     Naquela tarde acenderam-se na casa velas ao Menino Deus e aos santos e não apenas luzes de lamparina de azeite como nos dias comuns. Velas que arderam a noite inteira. Queimou-se incenso. Cantou-se ladainha. Rezou-se longamente. Rezas contra o Maligno. Orações pelas almas penadas.

     E na manhã seguinte, um frade do Carmo, espanhol magro e pálido, apareceu na casa mal-assombrada, chamado pela velhinha. Derramou água benta, pela sala de jantar e pelos quartos. Pelo próprio corredor. Aconselhou penitências. Missas foram encomendadas pela velha ao convento inteiro. Muitas missas. Creio que até as sobrinhas fizeram promessas a favor da tia.

     Durante os anos que ainda viveu a velhinha, cada dia mais devota do seu Menino Deus sobrecarregado de ouro, embora menos esquecida das suas três sobrinhas vestidas de chita e a coserem para fora como umas desadoradoras, não voltou nenhum bode misteriosamente escarlate a aparecer na casa sossegada e tristonha da estrada dos Aflitos. Só os bodes e cabras comuns. Mas o certo é que durante esse resto frio de vida a velhinha não fez senão definhar e secar. Secou tanto que ao morrer não precisou de caixão maior que caixão de menina. Se fosse pobre teria lhe bastado para se enterrar uma caixa de papelão de boneca.

     Duas das sobrinhas da velha rica morreram, logo depois dela. A casa foi ficando a mais triste das casas da estrada já chamada então dos Aflitos.

     A velha, afinal, não era rica: apenas remediada. Rico era só o Menino Deus. O seu rico menino de mulher sem filho, de velha sem neto, de tia desdenhosa de sobrinhas apenas mulheres.

     Até hoje não se explica aquela aparição de bode misterioso em casa tão sossegada e tão temente a Deus. Talvez um alarme, saído do próprio subconsciente, para que a velha dividisse ainda em vida o ouro do santo inutilmente rico com as sobrinhas terrivelmente pobres. Mas isto é reflexão de homem de hoje: destes dias pós-marxistas e pós-freudianos que atravessamos.

 

                   O velho Suassuna pedindo missa?

    

     O casarão que foi do velho Suassuna — do visconde velho, não do barão novo — ainda hoje está de pé, no Pombal, embora desfigurado em fábrica com brasão mas fábrica.

     Conheci-o há vinte e tantos anos, quando ainda era sobrado grande em começo de ruína. Ainda com o ar de residência patriarcal ou de casa senhoril: casa de família rica do tempo da escravidão. Com muitos dos móveis do velho fidalgo — um dos quais, vasto banco patriarcal, de vinhático, hoje me pertence — guarnecendo as salas, os corredores, os quartos. Com a capela ainda adornada de santos velhos e quase sem dourado. Com o sobejo ou ruína da cocheira ainda saudosa do seu cabriolé de lanternas de prata.

     Quis alguém dar-me aquele resto de santos. Recusei. Advertido, anos depois, em Lisboa, pelo bom e sábio mineiro Augusto Viana do Castelo, de que é arriscado trazer-se para casa santo ou santa de altar de igreja velha, pois, em geral, “dá azar” à casa, lembrei-me de que sempre me repugnara retirar, mesmo de altar abandonado, um santo ou uma santa antiga, como se santo ou santa de igreja fosse souvenir de turista. E não carne da carne da igreja, enquanto vivo ou ainda moribundo o templo.

     O que aceitei como lembrança da capela do casarão ainda patriarcal do visconde de Suassuna, como presente do meu querido Pedro Paranhos, foi o sino, que meu irmão e eu armamos à porta de entrada da nossa casa de solteiros, chamada o Carrapixo, perto da Casa-Forte. Sino que, mais tarde, ofereci a meus amigos Maria do Carmo e José Tomás Nabuco para que em sua casa do alto de Icatu, no Rio de Janeiro, continuasse a vibrar um velho sino de casa pernambucana: do solar de Pombal.

     Mas o que desejo lembrar a propósito do casarão do Pombal é que no ano já remoto em que o conheci tinha fama de mal-assombrado. Dizia-se que pelos corredores da casa e pelos restos de jardim outrora opulento e, segundo os inimigos do visconde, de terras fecundadas não só com suor como também com sangue de negro, costumava vagar um fantasma de velho alto e muito branco: a alma do próprio visconde a pedir perdão a escravos que maltratara. Também a pedir missas. Missas para sua pobre alma de rico arrependido dos pecados contra os negros. Chegava a visagem a fazer sinal com os dedos para indicar com precisão matemática aos vivos o número de missas que desejava fossem mandadas dizer por sua alma pela pessoa a quem aparecesse: três, quatro, às vezes cinco missas. Para cinco missas abria a mão direita em leque: velha mão muito branca, branquíssima mesmo, não só de fidalgo velho como de fantasma quase britânico na sua discrição.

     Dizem-me que, desfigurada a casa em fábrica e desaparecidos os restos do jardim, o fantasma de velho de branco — tão branco a ponto de parecer todo ele um lençol que andasse sozinho — passou a surgir em casas das imediações. Garantiu-me um médico ilustre e homem fleugmático, o dr. R. C, que a pessoa de seu íntimo conhecimento, moradora no Pombal, o velho misterioso apareceu certo dia, com toda sua brancura de neve, pedindo com os dedos, longos e finos, três missas. Três. Nem mais nem menos do que três.

     É tradição que o visconde de Suassuna, patriarca duramente ortodoxo, justiçava ele próprio os escravos da casa do Pombal. Açoites, torturas, a própria morte, à revelia da justiça do Império. Os mortos eram, contra a lei, enterrados no próprio jardim, para fecundarem as terras de onde, na verdade, rebentavam as mais belas rosas do Recife. Gostando de pastoris, o visconde gostava também de oferecer às pastoras rosas como não houvesse iguais na cidade. Rosas avermelhadas a sangue de negro.

     Talvez seja tudo invenção de algum inimigo do visconde. Invenção de inimigo que tenha se tornado lenda e, como lenda, chegado até nós. Talvez exagero: porque uma vez — quem sabe? — o senhor de Pombal tivesse mandado enterrar no jardim o cadáver de um negro da casa — escravo de estimação — como se faz com animal mais querido ou bicho mais chorado — espalhou-se a lenda de que o jardim inteiro era um cemitério de negros justiçados pelo visconde. De que o velho era um malvadão, que gostasse de fazer mal a cabras-machos e não apenas a passivas molecas.

     De qualquer modo a crença, que ainda recolhi em torno da casa-grande do sítio do Pombal, foi esta: a de que o visconde em vida, homem tão senhoril, aparecia nas noites de escuro para pedir humilde e cavalheirescamente perdão aos antigos escravos; e não apenas missas aos cristãos piedosos. Missas para a própria e inquieta alma de pecador arrependido.

 

                       O vulto do salão nobre

    

     Dizem de certas casas encantadas que suas assombrações têm um ciclo parecido com o do chamado “espectro” — espectro retórico e não psíquico — das secas do Nordeste. As quais têm aparecido com uma regularidade terrível na paisagem e na vida desta infeliz região pastoril do Brasil.

     Quando uma assombração cíclica aparece é que a casa — isto é, a família que habita a casa assombrada — vai sofrer morte ou desgraça. Ou então outra experiência que lhe revolucionará a vida, não só para pior como para melhor. Ou num e noutro sentido como é próprio dos acontecimentos que revolucionam a vida dos homens.

     Um especialista no assunto, A. T. Baird, no seu livro One hundred cases for survival after death, chama de “assombração premonitora” aquela que anuncia morte, desgraça ou revolução, lembrando que estão nesse caso várias aparições por que se têm tornado famosos alguns dos velhos castelos da Europa. E não poucas das casas referidas por Ingram, em The haunted houses and family traditions of Great Britain, têm suas “assombrações premonitoras” que uma vez por outra cumprem o seu fado de anunciar acontecimentos graves: a “mulher cinzenta” do castelo de Windsor, por exemplo; ou a “mulher de preto”, do outro castelo real da Inglaterra.

     No Brasil, consta de algumas casas antigas, uma delas o palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, que vivem em estado de permanente desgraça ou azar. Não que algum fantasma de mulher de preto ou de homem pardo — do escravo que dizem ter amaldiçoado o Guanabara, ainda em construção, no tempo do Império — anuncie as desgraças que vão acontecer aos habitantes desses solares ou às casas azarentas, em geral (como aquelas casas de esquina de que diz o povo: “casa de esquina, triste sina”). O que se diz do Guanabara é que as desgraças se sucedem a seus sucessivos habitantes, com terrível freqüência: pior do que com a regularidade anunciada por fantasmas como que rítmicos.

     Do Palácio do Governo do estado de Pernambuco se conta que quando estão para acontecer desgraças a Suas Excelências seus moradores, aparece um vulto escuro e alto — “eminência parda”? — no salão nobre, que é o grande e dourado que abre janelas antes cívicas do que festivas para a praça da República. Essa crença, recolhi-a de velhos empregados no palácio — que como Palácio do Governo, datando apenas do século XIX, não chega a ser velho, pelo menos para uma cidade do passado já longo e provecto do Recife — no tempo em que, governador de Pernambuco, “o último fidalgo autêntico que governou um estado brasileiro” (como não se cansava de repetir o perspicaz Edmundo da Luz Pinto), fui, com o nome, mas não com as funções, de “oficial-de-gabinete”, uma espécie de secretário particular do ilustre pernambucano, ajudando-o não só a receber e cumprimentar estrangeiros ilustres de passagem pelo Recife (como o dr. Eckner, do Zeppelin, o infante dom Afonso de Espanha, almirantes ingleses, o urbanista Agache, lorde Dundonald, Rudyard Kipling) como — o outro extremo — a tratar com a plebe nas audiências públicas das sextas-feiras, nas quais fazia meu socialismo moderado mas constante, contra os ricos que abusavam dos pobres. Diziam então os empregados velhos do palácio, a mim e a Júlio Belo, cunhado e tio de Estácio Coimbra e que foi, ele próprio, por algum tempo, na qualidade de presidente da Câmara e na ausência do governador, chefe do governo, que o tal vulto — talvez alma de algum morto do tiroteio de 18 de Dezembro, no tempo de Floriano — não tinha hora para aparecer: até com dia claro podia ser visto. Sua constância era de lugar: o salão nobre. Sua insistência, a de dar sinal de desgraça próxima. E ultimamente vinha aparecendo. Não se esquivara nem à luz do meio-dia recifense, que é, talvez, a mais clara luz de cidade do litoral do Brasil. Pelo menos assim pensava Eduardo Prado, entendido tanto em luzes como em sombras: pois segundo Eça de Queirós freqüentou em Paris ocultistas, penumbristas e espiritistas.

     Estávamos no meado do ano de 1930. Ninguém mais céptico quanto a revolução ou insurreição que o afastasse sangrenta e violentamente do governo de Pernambuco do que Estácio de Albuquerque Coimbra. A situação nacional, esta, há muito que o inquietava. A da Paraíba, doía-lhe como uma dor que à sua sensibilidade de velho político anunciasse tempestade grande para aqueles lados. Mas a situação estadual, não, tais as adesões de políticos oposicionistas que vinha recebendo.

     Entretanto, foi Pernambuco um dos poucos recantos do Brasil onde a revolução de 30, antes de tornar-se, como nas ruas do Rio, “carnaval contra o Barbado”, fez correr sangue brasileiro. Das janelas do salão nobre do Palácio do Governo, vi os soldados fiéis ao governador repelirem corajosamente, da ponte de Santa Isabel, ataques a tiros de revoltosos mais bravos ou afoitos. Bravura de lado a lado. Jantamos em palácio debaixo de tiros, mas como se fosse um jantar de dia comum: nenhum pânico. Os tiros quebrando vidraças e nós comendo o rosbife e bebendo o vinho dos dias normais. Só depois do jantar, o governador decidiu deixar o Palácio do Governo, não fugido, como se tem dito maliciosamente ou por ignorância, mas para aguardar no edifício das Docas, no bairro do Recife, o combate que, ainda à noite ou de madrugada, deveria travar-se entre a tropa federal fiel ao governo e a revoltosa, vinda da Paraíba. Esse combate, disse na minha presença ao governador Estácio Coimbra o então comandante da tropa federal do Recife que parecia, ainda, fiel ao governo, ou simulava essa fidelidade, deveria travar-se na descida da ponte de Santa Isabel. A tropa federal precisava, assim, ocupar o Palácio do Governo para fins militares e era urgente que o governador o deixasse. Só assim, e confiante na palavra do militar, que parecia, aliás, homem sincero e sério, o governador constitucional de Pernambuco concordou em passar a noite — a noite da pequena Itararé, anunciada pelo homem d’armas com absoluta segurança — fora do palácio: no edifício das Docas. De que não saiu fugido, prova-o o fato de que o quase Fradique, havendo tempo para preparativos de viagem, apenas levou consigo uma maleta com sabonete, escova-de-dente e água-de-colônia. Mais nada. Nem mesmo chinelos ou pijama.

     Tudo, porém, se passaria de modo diferente do anunciado com ênfase militar pelo comandante — talvez ele próprio iludido — da tropa federal. Estácio Coimbra e os que o acompanhavam foram obrigados a deixar, nessa mesma noite, o edifício das Docas, num simples rebocador e este quase sem combustível. A Itararé às margens do Capibaribe fora, como a outra, batalha só de boca. Não houve. O Exército, talvez acertadamente do ponto de vista político, isto é, do ponto de vista do interesse nacional, decidira confraternizar com o movimento revolucionário sustentado, de resto, por três estados, dois deles ricos e fortes — Rio Grande do Sul e Minas Gerais — e um, abusado na sua fraqueza pela política espantosamente inepta que, em face da inquietação paraibana e pelo estado de espírito brasileiro — um estado de espírito mais ou menos revolucionário — tornara-se a política do então presidente da República. Mas em Pernambuco, o representante do Exército, para proceder de modo nacional ou politicamente certo, tivera que iludir o homem de boa-fé que confiara na sua palavra; e que por ter confiado na palavra firme de um militar, decerto bem-intencionado e talvez — repita-se — ele próprio iludido por terceiro — ficaria com a fama de fujão e de covarde.

     Nem fujão nem covarde. Estácio de Albuquerque Coimbra, em face da insurreição de 30, portou-se varonil e dignamente.

     Mas que tem que ver tanta história política com a história sobrenatural do Recife? Que tem revolução com assombração?

     Simplesmente isto: ao descer Estácio Coimbra do seu quarto para deixar o palácio e passar a noite — a noite decisiva, dissera-lhe o tal militar — no edifício das Docas, ainda que a escuridão fosse quase completa, o tiroteio de revoltosos contra o pequeno grupo de legalistas aumentou terrivelmente. Era grande o risco que ia correr cada um de nós. Já havia mortos. Desde a madrugada que se combatia em redor do palácio. Um carro blindado do governo fora feito em pedaços. Eu próprio vira partir contra os revoltosos, com um grupo de soldados jovens aos quais quase me juntara, não por heroísmo mas por curiosidade e fiado em que o tal carro fosse na verdade inexpugnável, o suposto carro blindado que se revelara um carro de suicidas e se despedaçara como se fosse um brinquedo grande, todo feito de latas de doces de goiaba.

     No instante em que nos aproximamos do portão do lado da casa do mordomo para deixar, não por uma noite, como supúnhamos, mas para sempre, o Palácio do Governo, velho empregado da casa — um dos que desde junho me garantiam vir avistando o vulto do salão nobre que anunciava desgraça — segredou-me, de certo modo, triunfante: “Eu não lhe dizia que o vulto do salão nobre vinha anunciando desgraça? Quando ele aparece é para anunciar desgraça. Não falha. Apareceu a Zé Bezerra que morreu logo depois. Apareceu a Barbosa antes do cozinheiro de Zé Mariano espalhar veneno na fritada que quase mata mais de cem casacudos de uma vez. E há meses que vinha aparecendo, aparecendo, como quem quisesse dizer alguma coisa de muito importante a dr. Estácio. Era isso que está aí.”

 

                 O negro velho

                 que andava em fogo vivo

    

     Não me esquecerei nunca do negro velho que noite de São João andava em fogo: atravessava de pés nus e a passo quase de procissão, de tão vagaroso, a fogueira do santo onde depois se assavam milhos e batatas-doces, para regalo dos meninos e da própria gente grande. Chamava-se Manuel: Manuel de quê, já não me lembro bem, mas creio que de Sousa. Vi-o eu mesmo, com olhos assombrados de menino, pisar em brasas de fogueira, ainda vermelhas de vivas. Em tições flamejantes cuja quentura chegava até nossos rostos de meninos e grandes, todos espantados do heroísmo do negro velho. Ele apenas gritava: “Viva o senhor são João!” E nós dizíamos: “Viva!” Era o rito.

     Isto há uns bons cinqüenta e tantos anos na casa do meu tio Tomás de Carvalho. Aí, como em quase toda casa do Recife daquele tempo, noite de São João se acendia fogueira no quintal. Era para o diabo não dançar diante da casa, explicavam aos meninos as pessoas antigas. E a fogueira era o centro das comemorações do santo. Já disse que nela se assavam milhos e batatas-doces. Nos tições os meninos acendiam fogos chineses e outros fogos de brinquedos: rodinhas, pistolas brancas de três a dez tiros, foguetes de sete cores diferentes, craveiros, jasmins. E a noite toda o ar se enchia de estouros de buscapés e do brilho de limalhas; e não apenas das cintilações inocentes das estrelinhas que os pequenos de cinco anos soltavam junto com “traques-de-velha”.

     O que nem toda casa do Recife daquele tempo tinha era um preto velho que andasse em fogo como o preto velho, empregado antigo do meu tio e padrinho Tomás. Um preto velho comum, que nos dias comuns não fazia senão rachar lenha para a cozinha, preparar o banho do doutor (que só ele, ao que parece, sabia temperar), ir à venda comprar vinagre, querosene, cominho e outros artigos suburbanos, que os principais — vinhos, azeite, presunto, passa, biscoito — vinham de armazém de luxo do centro da cidade. E tio Tomás morava no ponto de parada do Arraial.

     Pois esse negro velho comum, sem pretensões a mágico, sem artes de babalorixá, sem sequer a graça de contador de histórias de Trancoso, noite de São João tornava-se um herói: andava em fogo sem se queimar. Deixava de ser um ser prosaicamente natural para tornar-se quase uma assombração.

     Anos depois vim a ler em livros e revistas eruditas referências a esse fenômeno psíquico: o dos raros, raríssimos, indivíduos que andam em fogo sem se queimarem. Tomei conhecimento das façanhas de Kuda Bux que assombraram Londres, onde os pés do extraordinário homem foram cuidadosamente examinados por médicos e físicos antes e depois de terem pisado em fogo. E já se tinha visto na Inglaterra certo mr. Home, não andar em fogo, mas pegar em brasas com as mãos nuas, exclamando: “Is not God good? Are not his laws wonderful?”

     O negro velho Manuel dizia apenas “Viva o senhor são João!” Mas pisava em fogo no Recife, dos princípios do século XX, do mesmo modo que Kuda Bux, anos depois, pisaria em brasa, em Londres, fazendo sensação na Europa inteira. Merece Manuel ser recordado aqui já que o seu caso não figura em nenhuma revista erudita da Europa.

     Saliente-se que isso de andar em fogo parece orientalismo comunicado ao Brasil pelo português ou pelo africano. Sabe-se que há cerimônias no sul da Índia, no Japão, em Taiti, noutras terras, em que pessoas extraordinárias andam em fogo sem se queimarem. Tylor, no seu clássico Primitive culture, refere-se ao assunto, de que também se ocupa Percival Lowel em Occult Japan.

     O que nos faz pensar em assunto já ferido em página anterior: o de que o sobrenatural parece ter também sua ecologia. Suas zonas de especialização de fenômenos de acordo com a natureza. Se é certo, como pretende um especialista em assuntos psíquicos, Carrington, no seu The psychic world, que dos fenômenos psíquicos vários são substancialmente os mesmos no mundo inteiro, outros são peculiares a certas áreas de onde se têm comunicado a áreas de clima, ambiente ou cultura semelhante. Gerald Arundel, também especialista não sei se diga na matéria, depois de estudar manifestações psíquicas na América tropical, chegou à conclusão de que há fenômenos psíquicos peculiares aos trópicos e outros aos climas frios.

     É fácil de explicar porque no Recife não se encontram casos nem de adivinhos-d’água — isto é, de indivíduos que dizem por meios sobrenaturais onde se deve cavar o solo para encontrar-se água — nem de provocadores, pelos mesmos meios, de chuvas. Águas e chuvas não faltam à capital de Pernambuco. Tais fenômenos talvez ocorram com freqüência no Ceará.

     Sinto não ter nunca conversado com o preto Manuel sobre seu assombroso poder de pisar em fogo noite de São João. Era eu então muito pequeno e o preto, caladão e até casmurro. A verdade, porém, é que vi, assombrado, não uma, mas várias vezes, o negro velho pisar em fogo como se seus pés fossem os de um fantasma e não os de um homem igual aos outros.

 

                       O pobre que ganhou no bicho

                       graças a Nossa Senhora

    

     Outro orientalismo na vida — inclusive na mística do brasileiro não só de Recife como do Brasil inteiro — parece que é o jogo do bicho. Diz-se que foi o barão de Drummond que o inventou. Mas em 1900 já havia quem sustentasse que não: que o jogo do bicho, em vez de inventado por brasileiro, fora adaptado ao Brasil, de modelo ou exemplo oriental. “A suposta e portentosa criação do finado barão de Drummond” — escrevia o Jornal pequeno, do Recife, em sua edição de 4 de setembro daquele ano: o primeiro ano de um novo século ou assim comemorado na capital de Pernambuco como noutras capitais, inclusive Londres — “o jogo dos bichos, hoje inveterado para sempre, talvez, em todas as classes da sociedade carioca e de quase todo o Brasil, não é positivamente uma criação, mas uma adaptação consciente ou inconsciente do que se pratica há longos anos na Cochinchina”. E para prová-lo, citava recente livro de um Pierre Nicolas no qual se descrevia velho jogo oriental com 36 bichos, evidentemente pai ou avô do jogo brasileiro.

     Contou-me há anos o falecido mestre-cuca José Pedro, filho de célebre capoeira do Poço da Panela e que morreu senhor todo-poderoso do forno e do fogão de uma toca de solteirões perto da Casa-Forte — que no seu tempo de menino — “menino, não, moleque”, teria corrigido José Maria de Albuquerque e Melo, como de uma feita corrigiu, na presença do irmão, Manuel Caetano, o próprio José Patrocínio — conhecera um homem que se libertara da mais triste e feia pobreza, jogando um dia no bicho. Mas jogando no bicho na certeza de ganhar, desde que a própria Nossa Senhora do Carmo, sua madrinha, lhe aparecera nas nuvens e lhe indicara o bicho exato em que devia jogar.

     O pobre do recifense já não sabia o que fazer para dar de comer à mulher e a não sei quantos filhos pequenos, todos a crescerem nus e barrigudinhos num mucambo da ilha do Joaneiro. Uma tarde de domingo estava ele a pensar na vida, estirado numa velha cama de vento, não dentro do mucambo mas ao ar livre. Céu aberto. Pensava na vida e ao mesmo tempo se distraía vendo passar as nuvens quase todas parecidas com carneirinhos, outras só com flocos de algodão. Mas nem cogitava o homem de jogo de bicho. Nem era jogador. Raramente arriscava um tostãozinho em jogo ou cachaça. Tampouco estava pensando na madrinha, que era Nossa Senhora do Carmo, à qual muito já tinha rezado para o livrar de pobreza tão negra; mas em vão. A madrinha parecia só ouvir as rezas dos afilhados ricos, dos filhos de comendadores, das moças elegantes que a enchiam de jóias de ouro e se esmeravam em enfeitar os altares da igreja do Convento do Carmo, de flores raras.

     De repente, porém, o pobre que — garantia José Pedro — “não estava dormindo” pois “pobre não sabe dormir de dia”, vê umas nuvens muito brancas se abrirem; e aparecer, no azul-celeste, como iluminada por muita luz elétrica, sua madrinha. Aparece a santa em toda sua glória e aponta com o dedo luminoso para uma nuvem que, também de repente, toma a forma de um bicho: a forma clara de um bicho que já não me lembro qual foi. Nem está vivo o bom do José Pedro para me refrescar a memória.

     O recifense pobre esfregou os olhos: não era sonho. A santa lá estava e a nuvem com forma de bicho, também. Gritou então o afilhado de Nossa Senhora do Carmo pela mulher. Que corresse! Que viesse ver! Assombramento! Milagre! Pulou da cama. Mas nisso a santa se sumiu. A nuvem em forma de bicho foi tomando outro aspecto. O céu voltou a ser o mesmo céu recifensemente azul, sem outra iluminação que a do sol de fim de tarde. O recifense é que não cabia em si de assombrado e de contente. Era um sinal do céu para que ele se livrasse da pobreza.

     Foi a um compadre e pediu dinheiro emprestado. O compadre fez cara feia mas acabou cedendo, impressionado de algum modo com a história da santa: conto de fada que, na boca de um homem que ele sabia sério e bom e não um falastrão qualquer, dava o que pensar.

     Na segunda-feira, o afilhado da santa madrugou junto à banca do melhor bicheiro da Encruzilhada naquela época. Fez jogo completo. Carregou na centena. Aventurou alguma coisa no milhar. E de tarde, por mais estranho que pareça, era um triunfador completo. Ganhara em tudo. Estava cheio de “louras”, como então ainda se dizia.

     Garantia-me José Pedro, que conhecia o “calso” em todas as suas minúcias, que tudo se passara assim. Que de mucambo da ilha de Joaneiro o pobre, de repente enriquecido graças a Nossa Senhora do Carmo, passara a morar em chalé da Torre, com os filhos em colégio de padre e a mulher com dente de ouro e chapéu de pluma, passeando na rua Nova e tomando sorvete no Café Rui.

 

                         Cemitério de carros

    

     Os Agras não lidavam apenas com enterros: alugavam também coches de passeio. Carros de luxo para batizado, para casamento, para formatura de bacharéis em direito. Carros festivamente forrados de cor-de-rosa e de branco e não apenas de azul-escuro; de damasco, cor de cereja e não somente de cinzento; carros alegremente claros e não somente pretos e dourados como os dos funerais caros; ou os todo pretos dos enterros baratos, quase iguais aos chamados “violões” de caridade.

     Augusto dos Anjos encontrou em Casa Agra rima ideal para sua “sombra magra” de homem preocupado com escarro de sangue, doença, morte, enterro, cemitério. E deu à velha casa da rua do Imperador a triste celebridade de empresa apenas funerária.

     Mas para o recifense de primeira água essa celebridade é completada pela outra: pela de um nome ligado também às melhores alegrias e festas do Recife. Não só às de batizado, às de casamento e às de formatura na Academia de Direito, como aos piqueniques finos, que até os começos deste século se faziam de carros de cavalo; aos pastoris, que os rapazes elegantes dos fins do século passado freqüentavam também de carros às vezes rodando escandalosamente pelas ruas e quebrando o silêncio e a paz das noites burguesas e trazendo dos subúrbios para ceias no centro da cidade, mestras e dianas que, rindo alto, cantando, gritando, dentro dos próprios carros perdiam a virgindade de mulatas pobres; às representações no Teatro Apolo e às companhias italianas no Santa Isabel; às passeatas cívicas, com vivas à liberdade, à República, à Abolição, à princesa Isabel, ao dr. José Mariano; às chegadas de heróis da guerra do Paraguai como o marquês de Herval; ou de bispos oficialmente de Olinda, mas na verdade de Recife, como dom Vital; aos carnavais — os velhos carnavais recifenses quando os carros do Agra, de capotas arriadas, os cocheiros, como sempre, de cartolas solenes como as dos ministros de Estado, rodavam pelas ruas da cidade aos gritos de “Olha, o carro!” levando mascarados elegantes, dominós de veludo, bailarinas de saias de seda; ou simplesmente famílias providas de gordos sacos de confete, caixas de bisnagas, os meninos fantasiados de palhaços e com muitos guizos, as meninas vestidas de camponesas, de holandesas, de ciganas. Os carros eram atacados pelos foliões a pé — isto é, os da mesma condição social da gente que rodava de carro — a bisnaga, a confete, a serpentina. Que carros mais alegres do que esses? Pois eram quase todos da Casa Agra.

     Sucede que há mais de trinta anos, voltando eu do estrangeiro a um Recife já muito despoetizado de seus antigos encantos pelo triunfo, que nele foi rápido após a primeira Grande Guerra, de novidades que o sociólogo escocês Geddes chamaria “paleotécnicas”, procurei matar saudades do Recife da minha meninice vendo coisas nobremente velhas: mesmo as plebéias como as tascas fiéis ao seu passado e por ele enobrecidas. E como já fossem raros nas ruas, nos próprios enterros, os carros de cavalo, e estes mesmos, uns carros desengonçados e feios, rangendo de fadiga mortal e guiados por boleeiros sem cartola, chapéu mole, ar acapadoçado, perguntei por eles: pelos velhos e belos carros do Agra. Eram tantos que não podiam ter se sumido de repente, expulsos das ruas pelos ainda poucos automóveis.

     Um Agra da nova geração — pois a família era amiga já velha da minha gente — prometeu mostrar-me carros antigos, não em movimento, mas parados. Tristonhamente parados como num museu. E em vez de carros vivos, como os raros e moribundos que ainda rodavam arcaicamente pela cidade nos enterros, vi uma tarde, guiado por um Agra, verdadeiro cemitério de velhos carros de luxo, todos mortos. Carros de luxo, carros de qualidade, carros de gala. Carros com as belas lanternas de prata que eu admirara no meu tempo de menino; com as almofadas de veludo, os forros de seda, os tapetes felpudos, as molas doces, todo o macio conforto em que eu me regalara em idas e vindas do centro do Recife a Caxangá, à Capunga, aos Aflitos, em carnavais, em passeios pelas ruas empedradas do centro da cidade, pelas areias secas dos arrabaldes mais elegantes, pelas lamas profundas dos subúrbios desprezados pela prefeitura.

     Esse cemitério de carros de luxo, com muita prata, muito veludo, muita seda, muito damasco, muito resto de luxo antigo a abrilhantar-lhes a velhice melancólica e ignorada, os Agras conservavam numa vasta cocheira para os lados da rua do Sossego. Precisamente a rua que pelo nome e pela situação de lugar, na verdade, quase morto, de tão tranqüilo e próximo do cemitério de Santo Amaro, Convinha ao fim de vida daqueles carros também “postos em sossego”. Quase mortos depois de anos e anos de movimento, de vibração, de glória. Um carro fora de Osório: atravessara as ruas do Recife com o herói da guerra do Paraguai vivado por multidões. Tinha lanternas de prata lavrada que sozinhas davam ao ilustre veículo nobreza e não apenas encanto artístico. Belo era também o cupê que fora dos bispos: forrado de veludo, lanternas de prata parecidas às de procissão, parecia saudoso das murças que tantas vezes animaram de roxo, de vermelho, de brilhos litúrgicos, aquele interior grave, severo, mas não lúgubre, de carro também triunfal. Havia um landau que me informaram ter tido a glória de carregar Quincas, o Belo, numa de suas chegadas ao Recife; e do qual o formoso gigante falara à multidão. Uma vitória meio alegre que me disseram ter sido do Palácio do Governo no tempo de Sigismundo Gonçalves, que foi homem galante, tendo sido ao mesmo tempo austero homem de Estado. Outro cupê, forrado de cor-de-rosa, lanternas que eram duas jóias: este me asseguraram que fora de certa condessinha, iaiá muito mimosa do Recife, no seu tempo de moça.

     Naquela cocheira erma, feia, triste, com um vigia dia e noite para botar sentido nos coches e não deixar que os gringos mais afoitos roubassem as pratas, era esse cupê alegre o único com fama de assombrado ou encantado. Uma vez por outra dizia o velho da cocheira que a própria condessinha aparecia no cupê, toda sinhá, num ruge-ruge de sedas finas e galantes que arrepiava os negros mais calmos. Era pelo menos o que contava esse negro velho, vigia da cocheira.

     Ouvi de outro empregado da cocheira dos Agras que uma vez acordara, noite alta, despertado por um ruído que lhe parecera o de carro de cavalos desembestados. Impossível porque ali não havia cavalo: só carros passivos e tristes. Não afirmava que não fosse um resto de sonho mau: mas sua impressão fora a de ter visto sair do meio dos carros mortos, um, de repente vivo, ruidosamente vivo, puxado por um cavalo alazão com um pé branco e guiado por um negro de sobrecasaca cheia de galões de ouro. Tomara o carro a direção do cemitério de Santo Amaro. Aliás, o cemitério de carros dos Agras ficava tão perto do de Santo Amaro que era como se fosse um seu anexo. O cemitério de carros anexo do cemitério de gente.

 

                           Outro lobisomem

    

     Também se diz, no Recife, do lobisomem, que chupa sangue: sangue de moça e sangue de menino. Sangue de moça bonita e sangue de meninozinho cor-de-rosa. Seria, neste caso, uma sobrevivência do súcubo ou incubo da Idade Média.

     Em Beberibe, contam os antigos que há muitos anos houve um lobisomem assim, velhote de família conhecida e famoso pelo perfil nobremente aquilino. Família aparentada com a de um presidente da República e com mais de um barão do tempo do Império. Em vez de amarelo, era o velhote branco como um fantasma inglês que nunca tivesse visto sol do Brasil: tanto que quando, ainda rapazola, tomava banho de rio, nu, como os outros, seu exagero de brancura era tal que só de olhá-lo os outros tinham vontade de vomitar. Chamavam-no de “barata descascada”. Sua brancura dava nojo. Entretanto o homem não era aça nem sequer sarará: tinha cabelo preto, embora ralo, desses que custam a embranquecer.

     Só com a idade Barata Descascada teria dado para lube. Lube que, segundo os antigos, deu que fazer a quase o Recife inteiro. Lube afoito. Vinha espojar-se nas areias do Salgadinho e até nas lamas de Tacaruna. Chegou até à Lingueta, assombrando embarcadiços acostumados a lidar com tubarões no lamarão. Diz-se que certa madrugada assombrou umas moças que iam tomar banho de mar na praia do Brum que era, naqueles dias, praia da moda. As moças, todas vestidas de pesadas roupas de baeta azul, iam fazer o pelo-sinal para entrarem na água salgada de almas limpas, quando o demônio do lobisomem, estranhamente branco, repugnantemente alvacento, fedendo a defunto, passou raspando por elas e espadanando areia. Roncava como um porco mas pela fúria parecia cão danado. Gritaram as moças “Ai, Jesus!” e o maldito desapareceu nas brenhas. As coitadas das iaiazinhas é claro que desmaiaram.

     Desse lobisomem se conta que se curou mamando leite de mulher. Leite de cabra-mulher. Uma mulata de peito em bico e de filho novo teria sido seu remédio. Montou o velhote casa para a cabra-mulher que lhe dava leite de peito como a um filho. O homem foi ganhando cor até deixar de correr o fado. Branco exagerado não deixou de ser nunca. Mas perdeu o ar de chuchado de bruxa e os traços do seu rosto dizem que voltaram a ser os de brasileiro fidalgo e bom. Tudo graças ao leite da mulata mamado no próprio peito da mulher de cor.                                

 

                           Luís do Rego assombrado

    

     De Carlos Porto Carrero dizem os homens do seu tempo que preferia nas conversas falar de Atenas. De assuntos eruditos e finos. Mas contava às vezes aos amigos histórias do Recife antigo. Contava-as com o brilho literário que fazia de suas mais simples palestras lições do mais belo português falado. Essas suas lições elegantes tanto se alongavam em lições de história natural como em incursões pela história sobrenatural. Há quem diga até daquele bom letrado e sábio gramático que se deliciava em fantasiar a história natural, de sobrenatural. Reação justa de romântico numa época em que os naturalistas se extremavam em esconder o sobrenatural na história humana com o pudor felino de quem escondesse nauseabundo subnatural, satisfazendo todo seu apetite de romance com a figura do pitecantropo ereto. O pitecantropo ereto: essa cabra cabriola de sábios, esse cresce-e-míngua de doutores dos fins dos séculos XIX e dos começos do XX.

     Foi de Carlos Porto Carrero que um recifense, hoje de idade provecta, mas de inteligência ainda moça, ouviu esta história sobrenatural que teria ocorrido no Recife dos primeiros anos do século XIX. O Recife colonial do tempo do governador português Luís do Rego. Luís do Rego Barreto sabe-se que foi homem duro, severo no seu modo, metropolitano ou português, de ser justo. Modo então em conflito com o modo brasileiro de ser livre.

     O que não se discute é o caráter do homem. Podia ser Luís do Rego cru mas era honesto. Podia ser exagerado na sua maneira de ser homem de governo em tempo de inquietação mas era ele próprio bravo.

     Pois desse homem desassombrado é que Carlos Porto Carrero contava que se assombrara em Pernambuco, não com a fúria de leão dos pernambucanos daquele tempo, que lhe marcaram com um tiro a carne ilustre, mas com o fantasma de uma mulher fatídica que viu certa vez num sobrado misterioso do Recife. E que lhe teria marcado de estranho terror, não a carne, mas o espírito forte.

     Falara-lhe alguém do sobrado misterioso. Contara-lhe que nele aparecia um fantasma de mulher: mas só ao homem a quem estivesse para acontecer desgraça ou infelicidade. Luís do Rego quis ver o sobrado, certo, é claro, de que a tal aparição era lenda de gente colonial. Só por curiosidade de homem de espírito forte.

     Mas chegados ao sobrado, Luís do Rego e dois amigos, diz a história contada por Porto Carrero que não tardou a aparecer o fantasma da tal mulher. Mas só ao general português. Só a Luís do Rego. O bravo capitão-general assombrou-se. “Olhem a mulher! Olhem a mulher!” gritava com voz de comando. Mas nenhum dos dois companheiros conseguia ver mulher alguma. Só os olhos de Luís do Rego enxergavam o fantasma. Sinal de desgraça próxima. Dizem intérpretes da história contada por Porto Carrero que aviso de assassinato: o assassinato do bravo capitão-general tentado por patriotas pernambucanos.

 

                             O visconde encantado

    

     No fim do governo Estácio Coimbra, foi esperado toda uma noite no Recife — esperado até de madrugada, até o dia seguinte, durante uma semana, um mês — o visconde de Saint-Roman. Partira de Paris em vôo direto ao Recife. Ele sozinho: sem acompanhante. Era um romântico e um bravo. Um visconde de romance de capa-e-espada tornado aviador moderno na primeira fase heróica da aviação.

     Um vôo transatlântico era então uma aventura. Alguma coisa de épico. Tinham-no realizado, por etapas, chegando festivamente ao Recife, vindos de Lisboa, os portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Depois deles, em vôo da Espanha ao Brasil, chegou ao Recife Ramón Franco. O espanhol Ramón Franco.

     O visconde de Saint-Roman decidiu que também um francês realizaria a façanha de chegar da França ao Recife, em vôo ousado de Paris. Foi a aventura anunciada pelos jornais. O governo do estado de Pernambuco teve comunicação do vôo a realizar-se por um amigo de Saint-Roman residente no Recife: o pernambucano afrancesado Horácio de Aquino Fonseca.

     Horácio de Aquino Fonseca hospedaria o visconde heróico. Para isto preparou com esmero aposentos na sua Vila Jeanne-D’Arc: o visconde teria no Recife honras de príncipe.

     Deveria chegar perto de dez da noite. Meia-noite o mais tardar. Daí os Aquino Fonseca terem preparado um ceia que seria um acontecimento da vida do Recife. Perus, leitões, bifes. Cavala per-na-de-moça. Lagosta, pitu, camarão. Doces, pudins, bolos brasileiros. Champanha é claro que francesa. Vinhos finos. Licores. Conhaque também francês. Frutas: uma opulência de frutas tropicais.

     Desde oito horas que alguns de nós estávamos no campo do Encanta-Moça onde deveria descer o visconde no seu mágico tapete voador. Às dez horas, nada de aparecer avião. Nem às onze horas. Nem à meia-noite. Foi havendo um frio de desânimo junto com um ardor de inquietação entre o grupo de brasileiros e franceses que esperavam Saint-Roman. Os Aquino Fonseca eram naturalmente os mais aflitos. Teria acontecido algum desastre ao seu admirável amigo?

     Desânimo e inquietação foram aumentando com a madrugada. Amanhecemos no campo de Encanta-Moça já temerosos de que o visconde se encantara no mar. Quem sabia, porém, o que lhe sucedera de fato? Talvez tivesse por erro ido parar a outro ponto da costa brasileira, sem ter atinado com as luzes do Recife. Daí esperanças que se prolongaram durante dias e dias.

     Já quase mortas essas esperanças, o governador Estácio de Albuquerque Coimbra recebeu da velha mãe de Saint-Roman comovente carta. Fora ela a uma sessão de espiritismo em Paris e aí lhe fora dito que o filho estava vivo: descera em matas tropicais de Pernambuco.

     Para atender ao clamor da mãe francesa, o governador do estado de Pernambuco ordenou novas buscas em áreas pernambucanas que pudessem ser descritas como de florestas: na verdade, de restos de grandes matas. De fantasmas de matas. Tudo em vão. Em parte alguma, nem de Pernambuco nem do Brasil, encontrou-se traço sequer do desventurado visconde e do seu avião. O espírito se enganara: o visconde caíra não em matas tropicais do Brasil mas em águas do Atlântico. Caíra no mar sem ter conseguido chegar ao Recife.

     Entretanto há recifenses que juram já terem ouvido, em noites altas e de muito silêncio, misteriosos roncos de um avião fantasma que não desce nunca: volta ao mar. Será o do visconde encantado?

 

                 Duas experiências

                  de um psicólogo ilustre

    

     O professor Sílvio Rabelo é, além de escritor, crítico literário, autor de excelentes estudos biográficos — Farias Brito, Silvio Romero, Euclides da Cunha — psicólogo que durante anos foi mestre dessa especialidade na Escola Normal, depois Instituto de Educação, do Recife. Mestre e pesquisador. Dele são vários trabalhos que o recomendam à atenção e ao apreço dos estudiosos de problemas de psicologia.

     Nunca, porém, revelou, em qualquer desses trabalhos, duas de suas experiências, uma de menino, ainda no interior de Pernambuco, outra de adolescente, já no Recife — o Recife do começo deste século — que marcam seu contacto pessoal com fenômenos dos chamados supranormais, por uns, sobrenaturais, por outros.

     Menino, saiu uma vez de casa para a balança de algodão — isto na área algodoeira do Nordeste — chamando em voz alta por um empregado: “Fulano, Fulano, Fulano!” Nada, porém, de encontrar o procurado. Entretanto, ao passar correndo, pela enorme balança, viu nitidamente sobre ela — era pouco mais de meio-dia — enorme figura de preto. Quando se voltou, para fixá-la melhor, não viu figura alguma, nem de preto nem de ninguém. Arrepiou-se. Sentiu um frio inconfundível de medo. Nem gritar conseguiu.

     Já adolescente, participou, com outras pessoas de sua família, de um fenômeno sobrenormal, interessantíssimo por ter sido coletivo. Estava a família quase toda na sala de jantar, a mãe lendo, o pai e os irmãos conversando. Na sala da frente, apenas a irmã mais velha do futuro psicólogo, à janela, conversando com o namorado: rapaz com quem viria a casar-se. Casa típica do Recife de então. Sala da frente, também: com sua mobília de receber visitas, seus consolos e sobre um dos consolos, duas grandes e belas serpentinas de cristal que eram, depois das filhas, as meninas-dos-olhos da dona da casa, senhora aliás erudita e de boas leituras.

     Noite. Noite recifense de subúrbio. Noite de um doce silêncio quebrado apenas por vozes distantes. Uma delas, a do sorveteiro anunciando o sorvete do dia: “Sorvete de maracujáaa!”

     De repente, a família reunida na sala de jantar é alarmada pelo estrondo das duas serpentinas a se espatifarem sobre o piso. Correm todos à sala da frente. Encontram a moça assombrada diante das serpentinas: também ela ouvira o ruído dos cristais a se despedaçarem, como se tivessem caído sobre o piso. Mas as serpentinas se achavam intactas. Absolutamente intactas. Fixas no seu lugar.

     No dia seguinte, o que se soube? Que à hora exata da ocorrência do fenômeno estranhíssimo, falecera a melhor amiga da irmã mais velha de Sílvio Rabelo. Experiência de que o psicólogo não se esqueceria nunca depois de já psicólogo científico, de homem objetivo de ciência, de intelectual notável pelo rigor analítico das suas pesquisas. Compreende-se que, como psicólogo, tenha tido sempre, e continue a ter hoje, um especial apreço por William James.

 

                         O que conta a filha

                         de outro psicólogo ilustre do Recife

    

     O Recife talvez deva ser considerado, neste nosso vasto Brasil, a cidade por excelência dos bons psicólogos. Aqui Ulisses Pernambucano de Melo foi um dos pioneiros, no Brasil, de serviços de orientação profissional segundo técnicas psicológicas modernas; do ensino científico da psicologia; do estudo psicológico das chamadas “seitas africanas”; o fundador, com amigo especializado em estudos de antropologia e de sociologia, de toda uma escola brasileira de psiquiatria social: a primeira no nosso país. Aqui Sílvio Rabelo realizou, quando professor da Escola Normal, estudos igualmente pioneiros de psicologia da criança. Aqui Renê Ribeiro, Gonçalves Fernandes, Valdemar Valente, vêm realizando estudos de repercussão, além de nacional, internacional, sobre aspectos psicossociais do comportamento de brasileiros da região, de origens etnoculturais africanas, ainda apegados a crenças e costumes africanos, negro-africanos, islâmicos.

     Para realizarem esses estudos, eles e outros pesquisadores viveram em íntimo contacto com babalorixás, com ialorixás, e com adeptos pretos, mestiços e brancos das chamadas religiões afro-brasileiras. Religiões ou cultos, alguns deles, ainda florescentes no Nordeste, onde também os estudou o professor Roger Bastide, hoje da Sorbonne; e onde os veio conhecer — no terreiro de babalorixá Mariano, que visitou na minha companhia, permanecendo uma noite inteira até o dia seguinte, em observação participante — o famoso psicólogo Sargant, de Londres: o autor do mais notável livro que se conhece sobre brain washing.

     O maior dos babalorixás do Recife, no último meio século, não há dificuldade alguma em concordar-se que foi o chamado pai Adão. Pai Adão do Fundão. Da minha parte, posso dizer que o tive entre os melhores amigos da minha mocidade recifense. Recebia-me na sua casa como pessoa da família: ele que tanto se esquivava a estranhos. Estudara, pode-se dizer que teologia, em Lagos. Era um sincero místico. Sabia nagô: tinha alguma coisa de erudito. Mas nada de considerar-se negro brasileiro: o que se considerava era brasileiro. Brasileiríssimo é o que sempre foi o babalorixá Adão. Brasileiríssimo, pernambucaníssimo, recifencíssimo.

     Dele também se aproximou, quando muito jovem, para estudos psicológicos da seita imensa que Adão comandava com a dignidade, a autenticidade, a sinceridade na fé que hoje faltam, no Brasil e noutros países, a tantos prelados católicos, o agora consagrado mestre na sua especialidade que é o professor A. Gonçalves Fernandes. No início de sua carreira, o hoje provecto Gonçalves Fernandes aceitou convite, que lhe veio da Paraíba, para ali exercer, por algum tempo, funções de psiquiatra e de mestre de psicologia. Separou-se do Recife. Interrompeu seus estudos psicológicos de assuntos recifenses. Distanciou-se do babalorixá Adão.

     Conta sua filha, então pequena, Pompéia — hoje esposa do sociólogo Renato Campos, autor de tão boas páginas sobre as seitas protestantes na zona canavieira de Pernambuco e chefe da divisão de sociologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais — que, certa vez, o pai mostrou-se de repente impressionado com um “aviso” estranho que recebera por meio que, cientificamente, não sabia explicar: pai Adão morrera. Seu amigo pai Adão falecera. Horas depois chegaram à Paraíba os jornais do Recife: pai Adão morrera!

     Aliás, “aviso” semelhante teria, não no Recife velho, mas no de hoje, certo casal recifense, com quem, de Salvador, desejara comunicar-se inutilmente por telefone, já à noite, o famoso escritor inglês, experimentado em métodos sobrenormais indianos, de comunicação, Aldous Huxley. Uma luz estranha apareceu ao casal. Na manhã seguinte surgiu-lhes em pessoa Aldous Huxley, contando quanto procurara comunicar-se com eles.

 

                       Visita de amigo moribundo

    

     Quem conta é o sociólogo Renato Campos. O professor Renato Campos é diretor — repita-se — da divisão de sociologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Um dos mais notáveis sociólogos brasileiros dentre os mais jovens.

     O fato por ele narrado, colheu-o de fonte idônea e de pessoa antiga. É o seguinte, tanto quanto possível, nas palavras do narrador:

     Dois rapazes, estudantes no Recife, moravam juntos, em Olinda. Chamemos a um Antônio, a outro, José. Havia entre eles a combinação de que, o que chegasse muito tarde, saltasse para dentro do quarto, por uma janela entreaberta, a fim do já ferrado no sono não ter que levantar-se para abrir a porta. Segredo conhecido de outros colegas seus.

     Certa noite, Antônio, já deitado, viu José saltar pela janela e passar por debaixo de sua rede. Não se preocupou com o fato: era com certeza José. Rotina. Pura rotina.

     Apenas não era José. José apareceu no dia seguinte. Explicou ao companheiro que na noite anterior fora a uma dança no Recife, ficara dançando até quase de manhã e dormira no Recife, na casa de um amigo.

     Antônio assombrou-se. Se não fora José, que vulto fora o que ele vira saltar pela janela e passar debaixo de sua rede? Mistério.

     Mistério que no mesmo dia se explicaria. Explicação estranha, porém. A Antônio chegou um apelo de um dos seus melhores amigos para que o fosse ver no Hospital Pedro II: estava à morte.

     O estudante apressou-se em ir ver o colega querido. Estava realmente nas últimas. Moribundo no velho hospital do Recife.

     Ao ver Antônio, animou-se, para surpresa de todos, tal a prostração em que se achava desde o dia anterior: já muito mais morto do que vivo. “Você, Antônio? Que alegria você me dá! Ontem fui à noite a Olinda despedir-me de você!”

 

                      ALGUMAS CASAS

                       O sobrado da Estrela

    

     O sobrado chamado da Estrela foi uma das casas mais mal-assombradas do Recife: levou anos fechado porque nele diziam os vizinhos “aparecer visagem” nas próprias varandas. Vultos que chegavam à janela chamando quem passasse pela rua como misteriosas mulheres-damas a atraírem, com psius e sinais de venha-cá, machos indiferentes, para suas camas-de-vento. Luzes que apareciam nos dois andares da casa vazia. Louças que se quebravam na sala de jantar. Jacarandás que se despedaçavam na sala de visitas. E o papel de “aluga-se” amarelecendo na vidraça suja. Os morcegos, as corujas, as aranhas gozando as delícias do escuro na casa fechada. “Casa com papel para alugar?” perguntava um jornal recifense de 1895. E respondia: “Ou é mal-assombrada ou está deteriorada.”

     De mais de um sobrado velho do Recife se conta a mesma história. De alguns se diz que, em noites de escuro, se ouve ruge-ruge de sedas, som de piano de cauda tocando música do tempo antigo, passos de danças em salas cheias de sombras de bacharéis e iaiás pálidas; e da capelinha de um deles, o sobradão, demolido há poucos anos, do sítio da Capela, muita gente jura ter visto sair à meia-noite uma moça muito branca, vestida de noiva, montada num burrico tristonho. Talvez a filha do rico senhor Bento José da Costa sendo raptada pelo ousado revolucionário de 17 que acabou mártir.

     Vários são os antigos sobrados do Recife onde se acredita ainda haver dinheiro enterrado e até esqueletos de gente emparedada como no romance do velho Carneiro Vilela. Daí as histórias de visagens e de ruídos estranhos, ruas inteiras agitadas por uma como dança-de-são-guido: a dança do medo dos vivos a almas-do-outro-mundo. Ou aos mal-assombramentos, como diziam os antigos. Uma canção hoje esquecida chegou a exprimir esse medo em palavras simples:

    

                     Vê-se a cidade agitada,

                     Todas as velhas rezando,

                     As criancinhas gritando

                    E a polícia agitada,

                     É a casa mal-assombrada!

    

     Nem mesmo hoje, o Recife de igrejas do tempo da Colônia e de restos de casas de ar ainda mourisco, com janelas de xadrez e telhados quase pretos de velhos por onde, em noites de lua, deslizam gatos que parecem de bruxedo, perdeu de todo o seu ambiente da era colonial, quando o feitiço, a cabala dos judeus, o medo às assombrações, o terror dos Cabeleiras, enchiam de grandes sombras o burgo inteiro. As ruas tanto quanto o interior dos sobrados.

     O Recife de hoje, donde a luz elétrica e o progresso mecânico não conseguiram expulsar de todo essas sombras e essas visagens, essas artes negras e essas bruxarias, ainda tem alguma coisa do antigo. Seus grandes sobrados vêm resistindo aos arranha-céus como senhores arruinados da terra a intrusos ricos. Demolidos, às vezes parecem continuar de pé como se tivessem almas fazendo as vezes dos corpos. Almas não só de pessoas mas de casas inteiras parecem vagar pelo Recife. Almas de sobrados. Almas de igrejas. Almas de conventos velhos que não se deixam facilmente amesquinhar em repartições públicas. As almas dos três arcos estupidamente postos abaixo.

     Outras casas, outrora célebres pelo seu mistério, são agora casas banais. Desencantadas, só fazem medo a menino bobo ou a moça dengosa. Nem parecem ter sido o terror até de soldados. De soldados armados de facão rabo-de-galo e capazes de terríveis lutas corpo-a-corpo com capoeiras: mas não com almas-do-outro-mundo.

     O sobrado chamado da Estrela foi uma dessas casas por algum tempo misteriosas e terríveis. Ficava à esquina de velha travessa do tempo em que havia hierarquia nesta como noutras coisas: rua, travessa, beco, viela. Prédio de dois andares, a sua construção, sem ser muito antiga, datava de mais de um século, quando seu assombramento começou a alarmar a gente de São José.

     Foi seu proprietário durante anos Antônio Francisco Pereira de Carvalho, conhecido por Carvalhinho, que, por sua morte, deixou-o, como era elegante na época, para a Santa Casa de Misericórdia do Recife, da qual era mordomo. Mas foi Carvalhinho proprietário sempre ausente desse seu sobrado. Não chegou a identificar-se com o prédio de que era dono.

     Habitou-o quase heroicamente na fase em que o sobrado foi um dos terrores de São José, a família Luna, que era de gente brava. Em 1873, quando os Lunas se mudaram para a casa, na qual haveriam de viver anos, arrepiados com as muitas visagens que diziam lhes aparecerem a todo instante, mas sem se deixarem vencer por esses horrores do outro mundo, o prédio passara vinte anos fechado. Com o tal papel tristonho de “aluga-se”. Pretendentes, muitos. Mas os boatos eram de aterrorizar qualquer cristão. Ninguém se animava a ocupar sobrado tão cheio de mistérios. E as “visagens”, as “assombrações”, as “almas-do-outro-mundo” é que durante anos se tornaram donas absolutas do velho sobrado sem serem incomodadas pela intrusão dos vivos.

     Diz-se que a família Luna, durante o tempo em que morou no prédio, não sossegou uma noite. Ou fosse por sugestão, ou por isto, ou por aquilo, a boa gente via vultos, ouvia quebrar de louças na cozinha e abanar de fogo no fogão. Era como se a cozinha burguesa fosse uma cova de bruxas de Salamanca. E quando anoitecia, mãos que ninguém enxergava, mas que deviam ter alguma coisa de garras de demônios, jogavam areia sobre as pessoas da casa. Obra, evidentemente, de espíritos dos chamados zombeteiros, pensavam os Lunas e os vizinhos dos Lunas.

     Viveram, entretanto, esses corajosos Lunas anos e anos em casa tão incômoda. Perturbados com a misteriosa areia nas próprias horas de jantar e cear. Mas de alguma maneira acomodados às diabruras não sabiam se de almas penadas, se do próprio Cafute. O aluguel do sobrado parece que era baixo e os Lunas talvez preferissem os horrores de casa encantada ao tormento de terem que pagar aluguel alto.

   Das “almas penadas” do sobrado da Estrela chegou a pensar um recifense velho que fossem almas de estudantes de velha república. Almas de boêmios ou gaiatos que por muito terem se mostrado nus das varandas a mocinhas pobres da vizinhança, escandalizando as coitadas das criaturas de Deus com sua nudez obscena; e por muito terem furtado frutas ou doces de tabuleiros de baianas velhas; ou por muito terem judiado com moleques ou molecas inermes, para quem “doutores” eram quase deuses de casaca e cartola — estavam agora purgando seus pecados.

     Diz-se dos Lunas que só deixaram o sobrado depois de terem desenterrado dinheiro. Uma noite, certa pessoa da família teve um sonho. Sonhou que num buraco do socavão da escada do primeiro andar havia “coisa” enterrada. Coisa, isto é, ourama. Ourama do tempo dos reis velhos. Pela manhã contou o sonho aos outros Lunas. Dinheiro enterrado? Devia ser a causa das assombrações, das visagens, dos psius.

     Mas aberto um buraco no socavão, em lugar de moedas de prata e ouro só teriam achado os pacientes Lunas um punhado de miseráveis cédulas de dois mil-réis. Troça de estudantes do tempo em que o prédio fora arremedo de república? Explicaram os Lunas à gente vizinha e abelhuda da rua que não: que eram cédulas furtadas por um dos antigos caixeiros da mercearia que um deles mantinha no andar térreo do edifício. Façanha de caixeiro vivo e não de estudante morto. Um desapontamento. O que parecera romance de alma-do-outro-mundo teria sido simples história de furto de cédulas de uma simples mercearia por um dos seus caixeiros. Nada mais. Em vez de tesouro, simples punhado de cédulas de dois mil-réis. Pelo menos foi o que os vizinhos ouviram dos Lunas ter se verificado no prédio misterioso.

     Quando a família Luna mudou-se do sobrado, achou-se, porém, grande buraco no socavão da escada do primeiro andar. Não parecia ter abrigado apenas miseráveis cédulas de dois mil-réis. E sim ourama, e da boa. Os Lunas que, durante anos, haviam convivido quase heroicamente com almas-do-outro-mundo, não confirmaram o boato de que dali tivesse sido desenterrada botija com dinheiro: muita prata, muito ouro, muita moeda, sussurrava a vizinhança. Apenas um punhado de cédulas sujas — insistiam em dizer os bravos moradores da casa mal-assombrada. E até hoje ninguém sabe o que de fato se passou no sobrado chamado da Estrela, nos últimos anos do Império, um dos mais célebres do Recife pelo seu mistério de casa às vezes comicamente mal-assombrada.

 

                         A casa da esquina

                         do beco do Marisco

    

     Em velho prédio, também com a fama de mal-assombrado, da rua Augusta, na esquina do beco do Marisco, à noite, depois que todos dormiam, ouvia-se uma barulheira dos diabos: queda de móveis, correntes arrastadas pelo soalho, portas se abrindo. Pior do que o sobrado chamado da Estrela. Era como se nele se cumprisse o fadário de casa de esquina: “casa de esquina, triste sina!”

     O bairro de São José é o refúgio daquelas assombrações do tempo dos reis velhos que outrora tornaram famoso o Recife propriamente dito: a quase ilha do Recife. O Recife dos frades do Oratório, dos flamengos de Nassau, dos sefardins chamados Jacó e Abraão, Fonseca, Silva, Mendes, Pereira, Leão: judeus fidalgos e desdenhosos da ralé tanto gentia como israelita.

     Nos sobrados mais antigos dessa parte, também mais antiga, da cidade, a verdade é que se achou nos primeiros anos deste século, com as demolições de casas, de arcos e até da igreja de Corpo Santo — que era monumento e não apenas igreja velha — muita moeda enterrada. Muito ouro do tempo colonial. Lembro-me de ter visto, menino, moedas de ouro do tempo d’el-rei-dom José de Portugal, encontradas numa das casas demolidas do bairro do Recife. Justamente numa demolição de que fora encarregado, como engenheiro, o historiador Alfredo de Carvalho, de quem manda a justiça que se diga que foi na época quase a única voz de pernambucano a protestar com vigor contra a destruição dos arcos e da igreja do Corpo Santo. Quis, porém, o destino que o engenheiro praticasse aquilo que mais repugnava ao historiador: a destruição de casas do Recife velho.

     Mas não nos distanciemos do assunto; e voltemos ao sobrado misterioso da rua Augusta. Ficava ele à esquina do beco do Marisco. Era sobrado de dois andares, além do térreo. Na verdade, de três: três pavimentos. Sua construção datava apenas de 1865. Quase uma criança entre os sobrados velhos da cidade.

     Tinha de frente cinco janelas; e no oitão, oito. Um sobrado como qualquer outro. Sem brasão, sem busto de Camões, sem estátua da fortuna ou estrela de pedra para o distinguir dos outros.

     Passou anos desocupado. O povo dizia que ali vagavam espíritos: o bastante para o papel de “aluga-se” amarelecer nas vidraças. Depois de anos fechado, apareceu pretendente às chaves. Foi o português Belarmino, conhecido por Belarmino Mouco.

     Era surdo: não lhe importavam ruídos de almas penadas. Raciocínio de português de anedota ou de caricatura.

     Homem quietarrão e pé-de-boi, estabeleceu-se muito lusitanamente no andar térreo; e fez sua residência — sua e dos seus — no segundo andar.

     O primeiro andar procurou sublocá-lo. Mas nada de aparecer inquilino.

     Na mesma noite do dia em que Belarmino Mouco foi ocupar o segundo andar do prédio sinistro, sua gente começou a ver visagens e a ouvir barulhos na escada. Vultos entrando e saindo dos quartos. Ruídos de acordarem surdos. Um desadouro. Era como se a casa não fosse dos vivos mas dos mortos. Ou dos vivos só por favor: na realidade e pelo direito, dos mortos ou dos seus espíritos.

     Esses barulhos e essas assombrações continuaram. Depois que todos dormiam, ouviam-se quedas tremendas de móveis na sala de visitas, correntes arrastadas pelo soalho, portas abrindo-se ou fechando-se com escândalo.

     O barulho era de tal maneira que o próprio Belarmino Mouco, com toda sua surdez, levantou-se mais de uma noite para ver o que se quebrara dentro de casa. Mas encontrava tudo em ordem. Os móveis nos seus lugares. As portas fechadas a ferrolho. E corrente só havia no sobrado a do seu relógio: correntona de burguês que apenas começava a ser sólido.

     Voltava para o quarto. Mas quando queria adormecer, o barulho recomeçava. O mouco acordava. Seus ouvidos pareciam de tísico: ouviam todos os barulhos grandes como se fossem diabruras de Seiscentos mil demônios soltos, numa só casa. E a família, que não era surda, esta não parava de ouvir ruídos terríveis. Os grandes, os médios, os pequenos. Toda uma orquestra de ruídos esquisitos.

     Um dia apareceu morto no segundo andar do sobrado um dos empregados de Belarmino Mouco. Foi encontrado enforcado. Suicídio, apurou a polícia. Mas o motivo?

     O suicida era um rapaz de seus vinte e quatro anos de idade, de nome João Teixeira. Não deixou declarações. Um suicídio misterioso. Em torno do caso fez-se grande celeuma. O empregado de Belarmino Mouco passou a ser considerado vítima dos espíritos maus que vagavam no sobrado. Mártir das assombrações. Pois as assombrações também têm seus mártires. Gente que morre ou se suicida de pavor: assombrada.

     Alguns dias depois do suicídio do rapaz, Belarmino Mouco desocupou o prédio. Aquilo não era casa em que morasse cristão.

     A vizinhança começou então a ver vultos nas janelas do segundo andar. Era anoitecer e juntava povo à frente do prédio. A cada instante gritava um: “Olha um vulto naquela janela!”. “É de homem!”, diziam uns; “É de mulher!”, gritavam outros. E no meio desse alvoroço, mãos misteriosas jogavam areia sobre os olhos dos curiosos. Areia que se dizia vir do alto do sobrado mal-assombrado e ser pior para dar azar do que areia de cemitério. Correrias, gritos, mulheres com histéricos, não davam mais sossego à rua.

     A polícia do 1º distrito de São José acabou tendo de intervir no caso. Era subdelegado local o Heliodoro Rebelo. Fora despachante federal e não era homem de lorotas.

     Uma noite, estando muito povo diante do prédio e sendo grande a celeuma, a polícia resolveu violar a porta da escada do sobrado encantado. Mas no terceiro lance da escada jogaram tanta areia nos olhos dos soldados que os sacudidos cabras de facão rabo-de-galo desceram do sobrado às carreiras, uns ainda se limpando da areia, outros pálidos como se tivessem visto o próprio demônio.

     O povo convenceu-se então de que não havia dúvida: o sobrado estava ocupado por espíritos furiosamente maus. Por endemoninhados que faziam correr até soldados de polícia que eram naqueles dias cabras valentes, capazes de lutarem com os capangas de São José. Os célebres capangas que José Mariano tinha em São José.

     Não podendo ter o seu prédio fechado eternamente, o proprietário vendeu-o. Foi ele então reconstruído e adaptado a cinema. Um dos primeiros cinemas do Recife. Como cinema, desencantou-se. As visagens do outro mundo não fizeram competição com as da tela em que apareciam então endemoninhados de outra espécie: o Max Linder, o Tontolini, o Prince, Lídia Borelli, Teda Bara, Mary Pickford ainda com ar de menina ou mais do que isso: de boneca de menina.

     Depois de cinema por alguns anos, o antigo sobrado mal-assombrado passou a igreja protestante. Igreja presbiteriana com muita luz, muito sermão, muita cantoria de hino falando em Jesus. Com o que desapareceram de vez os espíritos zombeteiros que outrora fizeram correr pelas escadas até soldados valentes.

 

                         O sobrado da rua de São José

    

     Na rua de São José, bairro do Recife, houve um prédio de dois andares, por muitos anos apontado pelo povo como casa mal-assombrada. Mas assombrações, por algum tempo, quase de opere-ta. Tanto que a casa esteve quase sempre ocupada.

     As famílias não demoravam no sobrado, é certo. Algumas não passaram nele mais de uma semana. E houve quem abandonasse o prédio às carreiras, deixando os móveis, os trastes, os baús, com medo de ver de novo visagens. Mas sem que essas visagens fossem das terríveis, que fazem desmaiar as pessoas mais dengosas.

     Um dos últimos inquilinos do prédio, nos seus dias de casa mal-assombrada, foi Antônio Leitão, que o ocupou só por quatro dias. Tendo subido para o sobrado numa terça-feira com a esposa, dois filhos e duas criadas, trastes, baús, gaiola de papagaio, na sexta já o desocupava às pressas.

     Motivo? As assombrações. “Desde o dia em que fui morar no sobrado, não sosseguei. Nem eu nem a mulher nem os filhos nem as negras. Durante o dia assobios dentro da casa toda. À noite, grandes baques, como de pianos de cauda virando de pernas para o ar, era um pagode: correntes arrastadas pelo soalho, as portas se abrindo, apesar de estarem fechadas com o ferrolho e chave. Eis portanto a razão da minha retirada tão apressada do sobrado.” Palavras de Leitão a um vizinho, que em 1929 foi ouvido pelo repórter policial d’A província no inquérito que organizei no velho jornal sobre casas mal-assombradas da cidade.

     Depois de Leitão, ocupou o sobrado ninguém menos que um repórter policial. Casa mal-assombrada? Era com ele, sherloque por vocação e profissão. De modo que quando o proprietário do sobrado lealmente o advertiu: “Olhe, seu Fulano, o prédio tem fantasma”, o jornalista gracejou. Que não temia fantasmas: seu receio era do aluguel, que fosse muito alto. Gracejava com o assunto; e estava certo de que, uma vez ferrado no sono, alma-do-outro-mundo nenhuma conseguiria acordá-lo antes do sol alto.

     “Por isso, não, as chaves são suas”, disse o proprietário do sobrado ao pretendente. “O aluguel é de 50 mil-réis mensais.” Aluguel de pai a filho, tratando-se de casa sólida e com muitos cômodos. Quase um palácio enobrecido pelo tempo. Mesmo naqueles dias era pechincha.

     O sobrado foi alugado pelo sherloque com entusiasmo. Chegando à redação do jornal onde trabalhava, gabou-se o homenzinho diante dos companheiros: ia ocupar um prédio que era quase um palácio. Onde? À rua de São José. Como isto era possível, ganhando ele tão pouco? Porque o sobrado era mal-assombrado. E acrescentou para espanto dos rapazes supersticiosos: “Vou morar nesse prédio para retirar dali o dinheiro que dizem estar enterrado.”

     Preparou os móveis e tratou da mudança. Dentro de alguns dias era senhor do tal palácio de dois andares.

     Na primeira noite balançaram-lhe a rede. Ouviu assovios. Baques. Móveis espatifando-se no chão. Repórter policial, pensou policialmente: deve ser gente. Pensando que estava com ladrões em casa, levantou-se, acendeu o candeeiro e correu todo o sobrado com a luz de querosene na mão.

     Tudo em ordem. Nenhum móvel fora do lugar. Nenhuma porta ou janela aberta. Nenhum gato atrás de rato. Nenhum morcego. Nenhuma coruja.

     Voltou para a rede. Mas quando se aproximava da sala da frente, deram-lhe um sopro forte no candeeiro, que se apagou. Não gostou da brincadeira. Mas como não era nenhum bestalhão, continuou a rondar a casa, a procurar seu mistério com olhos de policial e gana de jornalista.

     Aceso de novo o candeeiro, de novo o apagaram com outro sopro. O repórter insistiu. Quis acender o candeeiro pela terceira vez mas não o conseguiu: todos os fósforos que riscava apagavam-se.

     Deitou-se então na rede e no escuro. Mas não pôde conciliar o sono. Os baques no sobrado continuavam cada vez mais fortes: pareciam paredes caindo e não apenas móveis se descolando como nas assombraçõezinhas de opereta. Assim era demais. O prédio parecia ter aumentado de mistério só para desmoralizar o sherloque arrogante e quebrar-lhe o roço.

     Quando o dia amanheceu, deu o repórter graças a Deus. Mas ficou na casa. Não era um burguês qualquer que se mudasse de uma casa cômoda por causa de assombrações.

     Mas na segunda noite a coisa foi pior. Jogaram areia na rede em que ele estava deitado. Sentiu puxarem-lhe o lençol e os próprios pés. Era como se zumbis terrivelmente zombeteiros povoassem a casa.

     Ainda assim o repórter persistiu. E dormiu no sobrado terceira noite.

     Desta vez as cordas da rede partiram-se e o bravo foi jogado ao soalho como uma bola de carne: tim-bum! Não suportou novos insultos de um inimigo que não conseguia ver. Apenas amanheceu o dia, tratou de deixar o sobrado misterioso. À tarde mandou buscar os trastes. E ficou acreditando em mal-assombrados. Em casas velhas onde vagavam almas-do-outro-mundo. Em zumbis inimigos de quem fosse lhes perturbar a solidão, sabido que é vezo dos zumbis vagar no interior de casarões ermos a horas mortas.

     Essa experiência, comunicou-a o bom repórter a Oscar Melo, quando esse também repórter policial, a serviço d’A província, colaborou comigo no inquérito que em 1929 organizou o velho jornal sobre assombrações do Recife antigo. Recordando a aventura do companheiro, disse-me então Oscar: “Não era homem de inventar coisas.”

 

                 No sobrado mal-assombrado

                da rua de Santa Rita Velha

    

     No sobrado mal-assombrado da rua de Santa Rita Velha as visagens só apareciam à noite: depois das sete horas. Era um horror: as portas batiam, ouviam-se assovios, quedas de louça. Até que o sapateiro Juca “Corage”, indo morar no prédio, acabou com os mal-assombrados, desenterrando dinheiro.

     O sobrado ainda existe. Fica à rua de Santa Rita Velha, antigo nº 3. Hoje tem outro número e já não tem fama de encantado. Quebrou-se seu encanto. Mesmo assim não vou ser indiscreto dizendo seu número novo.

     Prédio pacatamente burguês de um andar só, mas com muitos cômodos, era seu dono nos começos deste século chamado das Luzes, mas ainda cheio de mistério, certo Fernando Primo, por muito tempo estabelecido com loja de calçados à rua do Livramento. Ótimo sobrado. Passou, entretanto, longo tempo tristonhamente fechado. Ninguém queria morar no nº 3: 3, note-se bem, simplesmente 3; e não 13. Dizia-se que os mal-assombrados eram tão terríveis que os moradores da rua deixavam de passar pela calçada da casa sinistra. Passavam ao largo e ainda assim sobressaltados. As mulheres benzendo-se, fazendo o pelo-sinal. Os meninos correndo. Os próprios homens receosos.

     De um dos antigos moradores da rua de Santa Rita Velha, o velho Manuel Barbosa, homem em 1929 já de mais de setenta anos de idade, pedi ao repórter d’A província que recolhesse as suas impressões do sobrado da rua de Santa Rita Velha. Pois diziam-me os que o conheciam que era homem sério e honrado.

     Disse o velho Barbosa ao repórter que as visagens só apareciam à noite. Durante o dia as pessoas da família não viam nem ouviam nada de estranho. Era como se fosse uma casa qualquer. Ao anoitecer, porém, começava o horror. As portas batiam, ouviam-se assovios, quedas de louça. Não havia quem pudesse dormir. Devia ser dinheiro enterrado. Pelo que os Barbosa resolveram mudar de casa.

     Uma noite, uma prima de Barbosa viu, em sonho, um homem vestido todo de preto, muito pálido, pedindo-lhe para desenterrar um dinheiro que dizia estar no sótão do sobrado. Com esse sonho a família, que não queria meter as mãos em tesouro de morto, apressou a mudança. Marcada para o dia seguinte à tarde, às primeiras horas da manhã o sobrado estava vazio. Os Barbosa pertenciam ao número de pessoas que temem dinheiro das almas. Nem toda a gente pensa assim: há quem dê um quarto ao diabo para ter o gosto de desencantar casa encantada, desenterrando o tesouro que cause as assombrações.

     Na mesma rua de Santa Rita Velha, perto do sobrado mal-assombrado, morava um sapateiro, homem conhecido como de muita coragem. Sabendo do sonho que tivera a prima de Barbosa, procurou o dono do prédio vazio e alugou-o. Juca “Corage”, como era conhecido o sapateiro de cabelo na venta, só fazia dormir no sobrado. Durante o dia ficava na oficina, botando meia-sola em sapato.

     E assim passaram-se dias. Quando algum vizinho perguntava a Juca o que tinha visto no sobrado, Juca “Corage” respondia: “Até agora nada.” E acrescentava martelando o seu couro de consertar sapatos velhos: “É que até as almas me respeitam.”

     Depois de algum tempo, um belo dia Juca “Corage” muda-se às carreiras da rua de Santa Rita Velha e entrega a chave da casa ao proprietário. Começam os vizinhos a falar. Medonho zunzum na rua inteira. Que fora? Que não fora? Medo? Tesouro?

     Nunca se soube ao certo. A verdade, porém, é que o sapateiro que vivia pobremente da sua oficina, passando às vezes até necessidades, conforme ele próprio confessava aos amigos, depois que deixou de morar na casa mal-assombrada, entrou a melhorar de sorte como por encanto. Mandou fazer roupas de casimira, que nem fidalgo da rua Aurora. Deu para usar chapéu de doutor: XPTO Londó. Começou a passar do bom e melhor: presunto, passa, vinho do Porto. Dizia o povo ter sido o dinheiro das almas que mestre Juca havia encontrado no sobrado velho.

     Juca “Corage”, soube-se depois que deixara dois grandes buracos no sobrado. Um, na parede do sótão. Outro, na cozinha.

     Para muitos, ficou então confirmado o boato: o sapateiro tinha retirado da casa encantada dinheiro das almas. E com esse dinheiro passara de pobretão a lorde.

     Juca “Corage” tornou-se célebre. O Recife inteiro o apontava quando o via passar: “Aquele é Juca ‘Corage’, o do dinheiro das almas.”

 

                               O sobrado das três mortes

    

     No Recife do tempo dos nossos avós foi célebre o sobrado chamado das “três mortes”: espécie de miniatura do das “sete mortes”, de Salvador. Três mortes não comuns mas criminosas. Na época em que foi mal-assombrado tinha o sobrado o nº 195 na rua da Concórdia. Era apenas de um andar.

     Remodelado, tem hoje mais de um andar. E é outro o seu número. Nada, porém, de indiscrição.

     O velho sobrado ficou com fama tão grande de mal-assombrado que havia quem não quisesse sequer avistá-lo de longe. Dizia-se que ali vagavam os espíritos das vítimas de horrível tragédia. E o certo é que o sobrado passou anos fechado. Trancado. Esconjurado.

     Pedi em 1929 ao repórter policial d’A província que me reunisse o que constava nos arquivos e nas tradições policiais sobre o sobrado das “três mortes”. Ele conseguiu informações preciosas com o então comandante do corpo de bombeiros, capitão Manuel Alfredo, também meu conhecido e homem merecedor de fé.

     Antigo morador do sobrado, o capitão informou que a primeira família a ocupar o sobrado depois que ali acontecera medonho crime, fora a de certo José Lima. Residiram os Lima no infeliz sobrado apenas alguns dias. Mudaram-se às pressas. As visagens não deixavam ninguém da família em sossego. Ora eram vultos que apareciam. Ora eram grandes baques de móveis, de guarda-louças, de pianos, que se ouviam dentro de casa.

     Tempos depois é que foi morar no “sobrado fantasma”, como o povo já o chamava, a família do capitão Manuel Alfredo. Isso, aí pela segunda metade do século passado. O bravo oficial era então muito criança. Nas suas próprias palavras ditadas ao repórter: “De uma feita, era eu muito novo e estava brincando na sala de jantar do sobrado, quando surgiu na minha frente o vulto de um homem. O susto foi tão grande que fiquei sem fala. Depois desse caso, os meus pais resolveram nossa mudança de casa.”

     Com a mudança da família de Manuel Alfredo, foi morar no sobrado o João Barbosa, em companhia da mulher e dos filhos. Entre estes, Djalma Barbosa, depois comerciante da praça do Recife e que, ouvido por Oscar Melo para o inquérito que A província organizou, disse que ao tempo em que a sua família residira no sobrado era ele meninote de quatorze anos de idade. Lembrava-se perfeitamente do que viam na casa: um desadouro de assombrações. Nas suas palavras: “Certa manhã, meu pai entrando no quarto do banheiro para tomar banho não chegou a abrir a torneira tal a quantidade de areia que lhe jogavam. Procurando ver quem era o autor da brincadeira, dizia meu pai ter visto um vulto embuçado na porta do quarto. Não resistiu e deu um grande grito. Corremos em seu auxílio e fomos encontrá-lo caído na entrada do quarto do banheiro, acometido de uma síncope. Uma das minhas irmãs, deparando com aquele quadro e julgando meu pai morto, teve uma forte crise de nervos. Em conclusão: deixamos o prédio dois dias depois.”

     No sobrado ainda morou outro negociante, Antônio Pereira, com sua família: mulher, seis filhos, duas irmãs e uma tia. Pois o sobrado das “três mortes” era um vasto sobrado patriarcal.

     Também os Pereira pouco tempo estiveram na casa sinistra. Mudaram-se logo para outra.

     Mudando-se do sobrado mal-assombrado a família Pereira, alugou-o um oficial reformado do Exército, já falecido. Não era positivista: era espírita. Tinha família grande: daí a vantagem para o patriarca de farda em morar num vasto sobrado como o das “três mortes”.

     Todas as semanas o oficial reformado fazia sessões espíritas numa das salas do sobrado. A concorrência era grande. Vinha gente até do interior para assistir às sessões do oficial reformado. E ao que dizem, com as sessões espíritas os mal-assombrados desapareceram do prédio que depois de desencantado pelo militar passou a residência de um bacharel, comerciante da praça do Recife. A ser isto verdade, o militar vencera as almas penadas não a espada nem a tiro, mas por meio de preces dentro dos ritos do espiritismo chamado cristão.

 

                               Outra casa da rua Imperial

    

     Onde hoje se acha certa fábrica de bebidas à rua Imperial, foi nos começos deste século casa mal-assombrada. De construção antiga, tinha o prédio pavimento térreo e primeiro andar. E grande jardim ao lado, com muita planta bonita que perfumava o ar. Esse jardim só desapareceu quando o sobrado antigo perdeu seu ar de residência patriarcal para degradar-se em fábrica de bebida.

     Nessa casa da rua Imperial residiu por algum tempo, nos começos deste século, o general Travassos, que foi comandante da região militar com sede no Recife. Era então governador do estado o conselheiro Gonsalves Ferreira e chefe de polícia, o segundo José Antônio Gonsalves de Melo — depois diretor do Tesouro Nacional — de quem, no Recife, o general Travassos foi muito amigo. Quando morou o general na tal casa, já os mal-assombrados tinham desaparecido. Dizia o povo que a família Bernardo, que havia ocupado o prédio antes do general, tinha desenterrado do jardim um caixão cheio de dinheiro. Estava o caixão enterrado ao pé de uma mangueira velha, acrescenta a boca do povo.

     Um neto do velho Manuel Bernardo — que faleceu em abril de 1921, na Madalena, em casa de uma sua filha casada com um oficial reformado do Exército — contou em 1929 ao repórter d’A província que, na verdade, o prédio fora mal-assombrado na época em que o seu avô ali residira. “Nunca, porém, vi eu mesmo” — acrescentou honestamente — ‘“visagem de espécie alguma’. Entretanto, em casa comentava-se muito o aparecimento de visagens no jardim: meu avô dizia sempre que estava vendo vultos junto a uma mangueira velha. Ora era um homem, ora era uma mulher. E apareciam — conforme ainda declarava o meu avô — apontando para o chão, como quem queria dizer que naquele lugar havia tesouro enterrado. Ele, porém, não tinha coragem de se aproximar da mangueira. Ao contrário, quando dava com qualquer vulto junto à árvore, corria espavorido. Toda a família ficava então alarmada. Essas visagens apareciam entre cinco e seis horas da tarde. Ao anoitecer ou, como geralmente se diz, à boca da noite. Apesar dos pesares, vovô ainda morou meses na casa assombrada.”

     Quando o repórter perguntou ao rapaz pelo caixão de dinheiro que o povo dizia ter sido desenterrado do jardim pelo seu avô, o antigo morador do prédio só fez confirmar que de junto da mangueira velha fora na verdade desenterrado dinheiro. E isto declarava baseado em palavras de seu avô que lhe dissera certa vez ter sido o tesouro desenterrado por um seu empregado, dois dias depois de haver a família saído da casa. As chaves estavam ainda em poder do velho, mas fora seu empregado, Luís Paiva de Sousa, que passara a residir na Bahia, de onde era natural, que desenterrara a ourama.

 

                               Outro sobrado de São José

    

     Outro sobrado da antiga rua Augusta que deu muito que falar ao Recife de há meio século passado foi o da esquina da Campina do Bodé. Nele diziam os moradores que se viam almas-do-outro-mundo tão à vontade como se este fosse o seu verdadeiro mundo.

     Entre os chefes de família que moraram no prédio, ao tempo em que se dizia aparecerem esses mal-assombrados, apurou em 1929 o repórter policial Oscar Melo viver ainda naquele ano de 29 o velho Manuel Silvano de Sousa. Morava no Cordeiro, na Vila Maria, de sua propriedade. Tinha então seus 75 anos e memória muito lúcida: das chamadas de anjo.

     Ouviu-o Oscar Melo a meu pedido, a respeito dos mal-assombrados que dizia a gente de São José aparecerem no sobrado da rua Augusta quando a família Sousa o ocupara. Disse o velho Sousa ao repórter ter morado no tal sobrado no ano já remoto de 1885. A família eram ele, sua mulher, dois sobrinhos rapazes, uma irmã viúva. Havia também um empregado, homem de seus trinta anos. Nessa época Sousa era comerciante no bairro de Santo Antônio. No mesmo dia em que se mudara para o sobrado, contou Manuel Silvano ao repórter que sua mulher vira um vulto à noite, sentado na sala de jantar, à hora da ceia. Dois dias depois, foi sua irmã que viu outro vulto. Ou o mesmo, desta vez entrando no quarto da moça com a maior sem-cerimônia.

     Não acreditando em visagens, Sousa levou tudo na brincadeira. Que aquilo era impressão de mulher. Que deixassem de maluquices.

     Entretanto, um mês depois de estar morando no sobrado, foi ele próprio que ficou impressionado com os zumbis da casa. Eram sete horas da manhã quando, bem acordado, deixou a cama e foi andando para o quarto do banheiro. Viu então um vulto de homem na sua frente.

     Era impossível. Esfregou os olhos. Pareceu-lhe então que não era a mulher mas seu irmão João Silvano que morava então na Paraíba. Sentiu um frio mau por todo o corpo.

     Passada a impressão de assombro, voltou ao quarto de dormir. E encontrando já de pé a mulher, contou-lhe o que acabara de ver. A mulher riu-se e reparou: “Galhofa agora do que eu te dizia!” Mais tarde, chegava um telegrama da família do irmão de Manuel Silvano: João Silvano falecera às seis e meia da manhã.

     Manuel Silvano já não duvidava agora do que as mulheres da casa diziam. Já não duvidava de visagens. O sobrado parecia ter alguma coisa no ar que era como se fosse tela de cinema onde as almas dos mortos apareciam até aos incrédulos. E não apenas às iaiás nervosas.

     O sobrinho de Manuel Silvano desmaiou uma vez diante de uma visagem como qualquer sinhá mais delicada. Foi num domingo pela manhã. Achava-se Manuel Silvano em casa quando bateram à porta. Um dos sobrinhos foi ver quem batia. Aberta a porta disse o rapaz ter visto um vulto misterioso descendo as escadas. Zumbi, com certeza. O pavor foi tão grande que o moço ali mesmo desmaiou. Deu que fazer para que recobrasse os sentidos. Só voltou a si com água fria, café quente, vinho do Porto.

     “Tratei então de me mudar”, contou em 1929 o velho Sousa ao repórter d’A província. “E enquanto procurava casa que me servisse, passaram-se outros casos no sobrado que me obrigaram a deixá-lo quase pela madrugada e às carreiras. Numa noite do mês de abril do ano de 1885, lembro-me bem, numa quinta-feira, por volta das duas horas da madrugada, ouvimos todos um grande baque na sala de jantar; e logo depois um grito. Um grito de quem pedisse socorro. Era o empregado da casa. Dizia ter sido jogado da cama abaixo por mão misteriosa. Quando menos esperava, caíra, tim-bum, no chão. Dizia ter visto o vulto do zumbi se afastando da sua cama de vento.” O duro pernambucano não se mostrava vencido pelo pavor; ao contrário, estava furioso. Blasfemava contra a visagem como se praguejasse contra outro homem. Só com muita energia conseguiram os Sousa acalmar-lhe a fúria de cabra valente disposto a lutar corpo a corpo com o espírito ou zumbi.

     “Nessa mesma noite” — são ainda palavras do velho Sousa recolhidas em 1929 — “minha irmã acordou dizendo que lhe estavam puxando os pés e que era um preto. Veio para o meu quarto. Já se vê, não pude mais dormir. Fui para a sala de visitas e comecei a cochilar numa cadeira de balanço. O relógio batia três horas. Quando entrava naquela sonolência, que ainda não é sono embora já não seja vigília, deram um grande baque junto da cadeira em que me achava que acordou a todas as pessoas da família. Aí é que foi o bonito. Todos se levantaram e ninguém quis mais permanecer no sobrado por mais um minuto. Às cinco horas, com o dia clareando, tive que sair como retirante, com a família inteira, para casa de um compadre na Madalena, deixando para o dia seguinte a mudança dos trastes. Soube depois de ter-me retirado do prédio que ali havia falecido um preto da Costa que tinha dinheiro. Naturalmente esse dinheiro ele deixara enterrado no sobrado. Eu, porém, não o retirei. Com dinheiro de alma não quero brinquedo.”

 

                                A casa da Imbiribeira

    

     Havia na Imbiribeira, além dos Afogados, uma casa que os moradores mais antigos do lugar diziam que era mal-assombrada. Pelo que incumbi em 1929 o repórter policial d’A província de ouvir essa boa gente, moradora de lugar tão sinistro: lugar célebre por fuzilamentos no tempo do Marechal de Ferro.

     Contaram ao rapaz que ali ocorriam fatos na verdade extraordinários. Difíceis de ser explicados.

     Uma das últimas pessoas a morarem na casa fora antiga autoridade policial da cidade. Residia no bairro de São José. Era homem sisudo e incapaz de fantasias. Que o ouvisse o repórter, lembraram os moradores da Imbiribeira. E como fosse pessoa nossa conhecida, foi possível ao enviado d’A província vencer sua resistência de homem discreto e conseguir seu depoimento. O feitiço sobre o feiticeiro. Um velho policial a depor sobre feitiçaria por alguns considerada policiável.

     “Durante o dia tudo corria muito bem: não víamos coisa alguma”, ditou ao repórter o antigo policial. E continuando: “Quando anoitecia, as visagens apareciam. Estávamos às vezes na sala de jantar quando ouvíamos baques na sala de visita; se nos achávamos na sala de visita o barulho era na sala de jantar.” Barulho de casa vindo abaixo. Quase um brinquedo sinistro de esconder: barulhos misteriosos que mudavam de lugar. “Procurávamos observar o que havia de anormal na casa e encontrávamos tudo em perfeita ordem”, acrescentou o velho policial.

       “Quando nos agasalhávamos” — é ainda do depoimento do antigo morador da casa da Imbiribeira — “dificilmente podíamos conciliar o sono, tal a série de coisas que ocorriam no prédio. As janelas da casa batiam continuadamente dando a idéia de que tinham ficado abertas. Ouvíamos quebrar louças na cozinha, cortarem lenha, fazerem fogo. Levantávamo-nos. Todos os objetos encontravam-se nos seus lugares, conforme havíamos deixado. Voltávamos para o quarto de dormir. O ruído recomeçava ainda maior. Várias noites passamos em claro, até que resolvemos deixar a casa.”

     Interrogado sobre se haveria dinheiro enterrado na casa, respondeu a antiga autoridade policial:

     — Dizia-se que sim.

     — Deixado por quem?

     — Contam que por uma preta da Costa que negociou com verduras e flores por muito tempo no mercado de São José.

     — Sabe o local exato em que se acha enterrado esse dinheiro?

     — Os antigos moradores da Imbiribeira dizem que o dinheiro se achava enterrado em uma das paredes da cozinha, pelo fato de várias pessoas que residiram no prédio terem tido sonho com pessoas, já mortas, dizendo-lhes existir dinheiro guardado naquele recanto da casa.

     — Então, fácil de ser retirado?

     — É o que se pensa. Dinheiro de alma é coisa muito difícil de se obter. Pelo menos penso assim. E quando não houvesse essa dificuldade, eu, de minha parte, não desejaria possuí-lo. Enfim já deixei o prédio, quem quiser que o alugue e retire o dinheiro que lá dizem estar ainda enterrado.

 

                         O sobrado do pátio do Terço

    

     No prédio nº 29 — número antigo — do pátio do Terço, em São José, houve há muitos anos uma morte. Morte só, não, que de morte comum quase não há casa da parte velha do Recife onde não tenha morrido não duas ou três, mas várias pessoas, rodeadas cristãmente da família, vela na mão, crucifixo sobre o peito. Morte misteriosa. Morte violenta. Que estas é que deixam as casas marcadas pelo mistério.

     O antigo nº 29 do pátio do Terço era sobrado de construção antiga. Sobrado de três andares, talvez — quem sabe? — do tempo de frei Caneca, que ali passou a caminho da forca.

     No primeiro andar foi onde se deu a morte. Uma senhora já de idade foi ali assassinada.

     Dizem antigos moradores do sobrado que nele apareciam vultos a todo instante. Uns entravam nos quartos. Outros encaminhavam-se para a cozinha. Eram esses fantasmas mansos vistos durante o dia: principalmente à tarde. À noite, porém, as assombrações tornavam-se ruídos de louças que mãos misteriosas jogavam sobre o soalho, arrastar de cadeiras, móveis que caíam com estrondo.

     A última família que morou no sobrado antigo aí por volta dos mil e novecentos, apurou em 1929 a reportagem d’A província, ter sido a família Sousa Ramos. Dias antes dos Ramos mudarem de casa, um dos meninos da família, Luís, de 11 anos de idade, acordou pela madrugada aos gritos. Toda a família acordou alarmada. O menino estava Sobressaltado. Queria pular da cama. Correr. Desaparecer da casa. Dizia ter tido um sonho horrendo. Vira uma mulher estranha. Dizia ela em voz fanhosa de alma ter morrido no sobrado. Pedia ao menino que rezasse por sua alma. Sua alma andava vagando. Que todos da casa rezassem por ela.

     Os pais de Luís, bons católicos, ajoelharam-se em frente ao oratório, que era num quarto junto à sala da frente, e rezaram. Rezaram padres-nossos e aves-marias em intenção da alma da estranha. Mais do que isso: mandaram dizer missas pela alma da desconhecida.

     Dizem que desde então o sobrado se aquietou em sobrado igual aos outros. Sem ruídos estranhos: só os de guabirus, os de morcegos, os de gatos vadios vagando pelo telhado. Os de escada estalando nas noites úmidas. Os de soalhos acompanhando a trepidação dos carros. Os ruídos da rotina burguesa.

     Os vultos não foram mais vistos por ninguém. Nem nenhum barulho de louça quebrada ou móvel espatifado foi ouvido na casa. As visagens tinham desaparecido.

     Quando a família Ramos mudou de casa, espalhou-se em São José o boato de haver alguém retirado de uma parede do sobrado botija ou caixão cheio de dinheiro. Estava o ouro velho enterrado na cozinha, acrescentavam os linguarudos, para quem as visagens haviam desaparecido não apenas com as missas mandadas dizer pelos Ramos por alma da estranha que aparecera ao menino Luís, mas principalmente por ter sido desenterrado o dinheiro.

 

                             A casa da rua de São João

    

     Na rua de São João, perto do Gasômetro, ficava nos fins do século passado uma casa térrea que não apresentava traço algum de residência senhorilmente patriarcal. Ao contrário: acanhada e insignificante. Habitação de pequeno funcionário público: algum Gonzaga de Sá recifense, pálido e magro, de gogó grande, de roupa sovada e de botinas de elástico. Casa de porta-e-janela com cadeira de balanço na calçada, namoro sentimental de menina-moça com caixeiro adolescente e de muita brilhantina no cabelo, boas relações dos moradores com os vizinhos. Casa de gente à noite de chinelo sem meia, a conversar à luz dos lampiões que iluminavam a rua como se iluminassem um pátio particular.

     Entretanto essa casa prosaica teve seu romance. Chegou a ser o pavor da rua inteira: uma quieta rua de pequenos burgueses, de gente simples e pacatamente cristã. Sem sobrados nem palacetes. Sem ricaços, nem doutores importantes. Quase sem gente-sinhá, a não ser decadente. Que em Pernambuco muita filha de senhor-de-engenho acabou morando em casa de porta-e-janela do Recife.

     Quando as visagens começaram a aparecer na rua de São João foi um deus-nos-acuda. Gritos. Correrias. Histéricos. O povo em frente à casa como diante de um teatro de horrores. Com medo mas querendo ver os fantasmas.

     Ninguém queria era alugar o prédio. A casinha de porta-e-janela fechou-se como uma casa maldita. Foi perdendo a cor com o tempo e a graça com o abandono. Perdendo a doçura de casa de residência para ganhar um aspecto de antro de bruxaria ou toca de lobisomem, de onde tudo podia sair: até um capelobo desgarrado.

     Entretanto até os primeiros anos do século fora uma casinha simpaticamente cor-de-rosa, na sua pequenez de casa quase de caboclo. Morava nela um funcionário público com a mulher e os filhos. Parecia gente feliz e vivia tranqüila. O funcionário público não era nenhum secarrão, mas homem de gênio expansivo. Dava-se bem com a vizinhança. Era estimado. Comprava nos tabuleiros das negras doces para os meninos. Tinha gaiolas de passarinhos que alegravam a salinha de visita. Gato gordo que dia de peixe só faltava estourar de contente. Galinha que engordava no pequeno quintal e de que a própria dona da casa cuidava, enfiando-lhe o dedo mínimo no sinhozinho para verificar se tinha ovo. Aos domingos, da casa do pequeno mas feliz empregado público se espalhava pela rua um cheiro bom de munguzá com canela.

     Um dia esse homem pacato entendeu de acabar com a vida. Deu ninguém sabe por que um tiro na cabeça. Foi um assombro para a rua. Ninguém podia explicar o suicídio de pessoa tão satisfeita com as coisas simples do mundo: a mulher, os filhos, os passarinhos, as galinhas poedeiras, o trabalho da repartição, o gato, o munguzá, o peixe comprado ainda vivo à porta da casa para a moqueca de dia de domingo.

     Foi só depois desse caso triste e misterioso que a casa cor-de-rosa da rua de São João tornou-se mal-assombrada. Que começou a aparecer um vulto embuçado à janela, visto não por uma pessoa só mas por muitas, das mais sisudas da rua e das ruas vizinhas.

     Aparecia o fantasma, segundo os moradores da rua, quase todas as noites, depois de onze horas. Com a regularidade de um funcionário público que não faltasse à repartição. Que à hora do ponto aparecesse com o rigor de quem cumprisse uma obrigação e praticasse uma devoção. Era passar das onze e aproximar-se a meia-noite e o fantasma aparecer.

     Vinham pessoas incrédulas de outras ruas ver o vulto. Até um ateu chamado Barbosa veio ver de perto a visagem. Mas dizem que ficou tão emocionado diante da assombração que caiu com uma síncope. Quase morto, como se tivesse dado cara a cara com o próprio capeta sem que a língua de ateu lhe tivesse deixado dizer como mandam os ritos: “Cruz, capeta!” Uma espécie de Vade retro satanás em troco miúdo.

     Foi grande então o alarme: até o ateu se assombrara! Desmaiara que nem mulher. Enquanto umas pessoas socorreram o ateu desmaiado como iaiá nervosa, dando-lhe água e fazendo-o cheirar sinhaninha, outras foram chamar a polícia. Aquilo era demais. A polícia que cumprisse o seu dever. Que pusesse a rua em ordem. Que desencafifasse a casa outrora risonha.

     Os soldados vieram correndo. O comandante da patrulha, sargento Amaro, achou conveniente dar uma busca na casa misteriosa. Talvez estivesse escondido no prédio abandonado algum vadio ou maluco ou mesmo ladrão que se fantasiasse de fantasma para fazer das suas. Era preciso pôr tudo em pratos limpos. Mesmo porque a situação da rua era agora de pânico. Em diversas casas, moças com ataque histérico, gritando como desadoradas. Crianças chorando. Homens preocupados com o mistério. Impressionados com a síncope do ateu.

     O sargento Amaro violou a porta principal da casa misteriosa. Acompanhado de alguns soldados correu quarto por quarto, sala por sala. Até no telhado do prédio a polícia esteve. Não se encontrou pessoa alguma, nem gato nem rato, nem timbu. Evidentemente não era caso que pudesse ser resolvido pela polícia. Só por doutor em medicina. O doutor Raul Azedo, por exemplo. Ou então por padre. Por exorcismo ou missa.

     O ateu Barbosa, a quem a aparição dera tanto sobrosso, depois de recobrados os sentidos, dissera que tinha visto visagens de arrepiar cabelos, as barbas, os nervos e o próprio juízo do mais forte ateu. Dizem que começou a ir à igreja e a aprender a rezar.

     Resolveram então os moradores da rua de São João mandar dizer missas em intenção da alma do suicida. Quem sabe se não era a alma inquieta do suicida pedindo missa? E aquela sua insistência em aparecer à hora certa, sua velha regularidade de funcionário público? As almas talvez conservem no além caracteres adquiridos na terra.

     Foram os moradores da rua à igreja da Penha e encomendaram missas aos barbadinhos. E de um desses moradores é que o repórter policial d’A província soube em 1929 que depois das missas celebradas pelos frades nos altares da Penha haviam desaparecido as visagens da casa de porta-e-janela da rua de São João. Com o que a paz voltara aos moradores da ruazinha por algum tempo tão agitada.

 

                             O Santa Isabel do Recife:

                             suas assombrações

    

     Do Teatro Santa Isabel — do Recife — que tem mais de cem anos e cem anos vividos intensamente, até mesmo dramaticamente, seria espantoso que não constasse nenhuma história de assombração. Constam algumas. Apenas são histórias tão vagas que nenhuma delas se deixa reduzir a formas definidas ou a expressões dramáticas. Todas se mostram antidramáticas. Sem clímax.

     Seria ótimo para as pretensões do velho e profundo burgo que é o Recife, a cidade psíquica — pequena Londres tropical — que no silêncio de alguma noite sem espetáculo algum eletricista ou zelador do fidalgo teatro — fidalgo e democrático a um tempo — tivesse visto de repente a casa de Vauthier iluminada a velas; repleta de casacas e decotes arcaicos; brilhante de leques e jóias do tempo do Império que só se vêem hoje nos antiquários e nas coleções particulares como a de dona Maroquinha Tasso em Apipucos; e à luz das velas, a figura de um homem quase gigante, belo e ainda moço, bigodes e olhos negros de galã de drama espanhol que pelas fotografias se deixasse identificar: Joaquim Nabuco. Mas nem de Joaquim Nabuco nem do também belo Castro Alves, nem do feio Tobias nem do engenheiro francês, louro e socialista, construtor do Santa Isabel — Louis Léger Vauthier — consta qualquer aparição espetacular, sob a forma de fantasma, no velho teatro. Nem no velho teatro nem em parte alguma do Recife mais enobrecido pela presença de homens tão raros pelo espírito e tão revolucionário pela ação.

     O que se murmura entre empregados antigos e discretos do Santa Isabel é que em noites burocraticamente silenciosas se ouvem, no ilustre recinto, ruídos de aplausos, palmas, gritos de entusiasmo de uma multidão apenas psíquica. Mas sem que se possa precisar a que ou a quem são os seus aplausos de bocas e mãos que não aparecem. A Nabuco, é possível. Ou a Castro Alves. Ou a Tobias. Mas é possível que a alguma italiana gorda, triunfal e pomposa, das que outrora encheram o teatro, repleto de pernambucanas também belas e grandiosas — algumas das quais viscondessas de casas-grandes, outras baronesas de sobrados, orientalmente cheias de esmeraldas, rubis, diamantes — com as suas vozes de sereias mediterrâneas. Sereias do Mediterrâneo a fascinarem os bacharéis elegantes e pálidos de aquém-Atlântico, os viscondes tropicais e morenos, os portugueses ricos já enfastiados de mulatas, os comendadores cor-de-rosa e bigodudos do Recife do tempo do Império.

     Também é possível que os aplausos sejam a mágicos, a magnetizadores, a magros doutores em artes quase de feiticeiros, um dos quais empolgou de tal modo o público do Santa Isabel, que um médico da terra saiu pela imprensa protestando, solene e quase acacianamente, em nome da ciência, contra a “mistificação teatral”.

     Há também quem afirme ter visto no interior do Santa Isabel, em noite de silêncio e rotina, a figura de austera senhora do Recife, há longos anos morta e sepultada em Santo Amaro. Não consigo saber se decotada como para ouvir o tenor ou a ópera de sua predileção, se noutro traje: o das senhoras do porte de dona Olegarinha austeramente participarem de solenidades cívicas ou políticas, quase tão numerosas na vida do Santa Isabel quanto as grandes noites de arte. Ou no hábito de São Francisco em que foi, talvez, enterrada a dama pernambucana de espírito apegado ao Santa Isabel. Em assuntos de traje, os fantasmas têm razões que a razão dos homens não alcança. É problema — esse da indumentária dos fantasmas — que já preocupava o velho Flammarion, que a ele se refere em suas páginas — às vezes monótonas como um relatório clínico ou policial — sobre casas mal-assombradas: Les maisons hantées.

     Óperas, concertos e dramas enchem a história do Santa Isabel; também torneios de oratória e demonstrações de eloqüência cívica. As assombrações vagas e indefinidas que dizem velhos empregados do teatro animar de sóbrio mistério as noites sem espetáculo do Santa Isabel tanto podem ter, dentro de sua sobriedade elegante, sem desmandos de espíritos de caboclo, um sentido estético como um sentido cívico. Uma dessas assombrações deve interessar de modo particular os sábios das sociedades de investigações psíquicas, pelo seu caráter de assombração coletivista: “assombração de massa”, talvez dissesse um marxista que admitisse tais erupções do coletivismo. Porém “massa evoluída”, observaria um espiritista ortodoxo em face do bom comportamento da invisível platéia: o homem de Wells multiplicado por três mil.

 

                             Outros casos e outras casas

    

     Os casos aqui recordados de assombração e as casas destacadas dentre as várias mal-assombradas, do Recife, são apenas exemplos retirados de um vasto conjunto de histórias sobrenaturais rejeitadas como sujo monturo de crendice, credulidade, superstição pelos rígidos naturalistas da história escrita com H maiúsculo. Mas não pelos que humildemente acreditam em mistérios que ciência nenhuma explica e nenhuma seita espiritista banaliza.

     Cidade velha, o Recife está quase tão cheio desses casos e dessas casas como uma cidade inglesa desgarrada no trópico. Cheio deles não só na área urbana como também nos subúrbios mais antigos.

     Num casarão velho da linha de Dois Irmãos, ouvem-se vozes contando dinheiro em todos os quartos, me conta um recifense digno de fé, familiarizado com essas paragens. Também de velha casa do Poço da Panela se diz que a horas mortas se escuta tilintar de prata antiga dentro das salas. João Cardoso Aires me falava num vulto de mulher cinzenta que aparecia no interior de certa casa nobre de Benfica. Discreta como uma inglesa, parecia andar em sapatos de sola de borracha. Em casa antiga do lugar hoje pomposamente chamado avenida Norte costumava aparecer à noite, na sala de visita, uma asa pregada à parede. Meu primo Evaldo Carneiro Leão Cabral de Melo, ainda adolescente e já pesquisador cuidadoso de coisas do Recife antigo, me conta que num casarão vermelho da beira do Capibaribe, na altura do Cordeiro — onde ele morava com a família — toda primeira sexta-feira do mês aparecia há anos o fantasma de um negro velho, “parece que do tempo dos escravos, bem vestido e cobrando a coleta”. Até um alemão conhecido de Evaldo teria visto esse fantasma de preto que com seu pretume chegou a assombrar alemães como a alamoa assombra e fascina pretos, pardos e morenos com sua alvura de ariana ruiva, de branca-de-neve de conto da carochinha. Evaldo porém conta o que ouve dizer; e não o que viu.

     De outro velho sobradão do Poço da Panela se diz que em certo quarto do primeiro andar se vê um homem todo de preto, ajoelhado junto a uma cama, rezando.

     Em casa antiga de Apipucos, também, juram os moradores que vêem um vulto esbranquiçado num corredor, parado; e ouvem um andar de mulher, calçada com sapato alto e fidalgo que atravessa altivamente as salas. Passo de sinhá dos velhos tempos.

     Esses são alguns dos fantasmas suburbanos do Recife: dos subúrbios outrora fidalgos.

     Às visagens da área urbana haveria muitos outros fantasmas a acrescentar. O do sobradão da rua de Santa Teresa, por exemplo. Aparece após o escurecer como quase todo fantasma corretamente ortodoxo. É uma figura de velhinha antiga que mais de uma pessoa diz ter visto como se tivesse visto pessoa viva: andando de um lado para o outro, rezando. Tão perfeita dizem ser essa aparição que há quem afirme que se chega a ouvir o rumor dos passos da velha e o bater das contas do seu terço. Completo assim só o fantasma de moça vestida de noiva que se diz aparecer junto à velha cama de jacarandá outrora de sobrado nobre do pátio do Carmo: do tempo em que o pátio do Carmo foi centro de residências elegantes e suas camas, jacarandás e vinháticos austeros onde as moças perdiam a virgindade dentro dos ritos patriarcais.

     De sobradão também velho do pátio de Santa Cruz se diz que é mal-assombrado desde que um crime terrível ensangüentou a casa em dia já remoto: o crime do marido que tendo encontrado a mulher com o amante matou os dois e mais a empregada, que pareceu ao furioso recifense nefanda alcoviteira. Dizem que o crime foi praticado com grande violência. O que talvez explique o caráter também violento que tomou a assombração da casa: o de móveis que parecem vir embolando escada abaixo, no mais infernal dos barulhos, ao mesmo tempo que na cozinha se espatifam pratos e se quebram louças, também com grande estridor. Dos móveis talvez o principal seja algum sofá de jacarandá antigo, cúmplice do adultério. Os pratos, talvez os dos quitutes com que a parda alcoviteira adoçava o amor ilícito dos seus brancos.

     Mas dentre as assombrações do Recife é justo reconhecer que repontam algumas tão angélicas ou celestiais que parecem de história sagrada. Aparições de santos. Aparições da própria Virgem e do próprio Bom Jesus disfarçado em velho misterioso a experimentar a hospitalidade de frades e de conventos da cidade.

     É tradição recifense que os algozes escolhidos para executar frei Caneca — revolucionário de 24 e frade do Carmo — na forca armada no largo de Cinco Pontas, recusaram-se a cumprir a ordem do governo de Sua Majestade, porque viram todos no meio das nuvens, dentro de uma auréola, uma mulher de vestes branquíssimas e de beleza puríssima — igual à Nossa Senhora elogiada em latim nas ladainhas — a acenar-lhes que não tocassem no corpo do frade. O que fez as autoridades decidissem mandar arcabuzar Caneca, já que nenhum algoz se prestava a enforcá-lo, apesar de todos os coices de armas dos soldados imperiais nos recalcitrantes.

     Já outras vezes a Virgem ou santo Antônio teria aparecido a olhos de pernambucanos crédulos, em dias de angústia, no Recife ou nos seus arredores. O herói da restauração pernambucana, Fernandes Vieira, é tradição que viu sinais do céu a lhe animarem o ardor guerreiro contra os holandeses. As portas da igreja matriz da Várzea, embora fechadas a chave, por duas vezes se abriram, escancaradas misteriosamente, para que todos vissem caído diante da imagem de santo Antônio o dossel desse santo: santo sempre tão misturado à vida não só das moças casadouras como dos homens empenhados em guerras ou combates. Diz-se que ao já referido Fernandes Vieira, santo Antônio apareceu fazendo que o rico homem se levantasse da cama e marchasse em busca do inimigo: o santo teria lhe assegurado a vitória nos campos da Casa-Forte. O mesmo santo cuja imagem, venerada na capelinha do engenho de Casa-Forte, aos olhos de outros crédulos verteria sangue dos golpes recebidos de mãos de flamengos heréticos.

     Outra manifestação celeste a olhos pernambucanos, durante os dias incertos da guerra contra os holandeses e nos arredores do Recife — em sítios que hoje são terras do Recife — foi a própria Nossa Senhora do Socorro: levada em imagem por um morador do Arraial para o combate de Casa-Forte, no mais terrível da luta, diz a tradição que começou a suar como uma mãe preocupada com a sorte dos filhos em perigo. O mesmo, aliás, aconteceu no dia da batalha da Casa-Forte com a imagem de são Sebastião, venerada na igreja da Várzea: soldados devotamente ajoelhados diante dela, a rezarem pelos companheiros empenhados na luta em Casa-Forte, viram a imagem suar “como se o glorioso mártir andara pelejando na batalha”, diz um cronista do século XVII. Casos de participação de santos já do céu na angústia de pernambucanos ainda da terra e que fazem parte da história sobrenatural do Recife.

     Também se conta que certa quinta-feira de fevereiro de ano já remoto, noite feia e triste de chuva, trovão, relâmpago, alguém bateu à porta do convento do Carmo. O leigo ainda estava acordado mas decerto já pensando na delícia de um sono bom depois de uns goles quentes de leite de cabra. Ouvindo bater com insistência, foi até à porta da rua: e ao clarão de um relâmpago, viu um velhinho curvado sobre seu bordão. Estava o velhinho quase a morrer de frio, de cansaço e de sono. Que o Carmo lhe desse um abrigo, durante noite tão má, pediu em voz trêmula ao leigo. Trêmula, mas — diz a tradição — suave. Respondeu-lhe o leigo — que era um grosseirão — de modo bruto: que fosse dormir debaixo da ponte ou onde entendesse. E bateu a porta contra o intruso que caminhou então no seu passo vagaroso de velho, para o Corpo Santo. Aí o acolheram cristãmente. Deram-lhe cama onde dormir. Resguardaram-no da chuva e dos ventos.

      Mas ao amanhecer, não se encontrou sinal do velho ou sombra do velhinho de bordão. Misteriosamente surgira, no lugar que lhe fora dado para dormir, uma imagem de são Bom Jesus dos Passos. O velhinho — concluiu-se então — fora o próprio são Bom Jesus a experimentar a hospitalidade de frades e leigos do velho convento do Recife.

     Por esses casos se vê que o Recife guarda na sua história sobrenatural recordações e aparições celestes e não apenas de assombramentos comuns. Casos de imagens de santos suando como se fossem pessoas e do próprio são Bom Jesus caminhando pelas ruas disfarçado em velhinho de bordão e de andar tremido; e assombrando até frades nos seus conventos.

 

                                                                                Gilberto Freyre  

 

                      

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