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Atração sem Limites - Nora Roberts
Atração sem Limites - Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Atração Sem Limites

 

Gerações e gerações de ambas as famílias tinham alimentado aquela rivalidade, mas talvez eles conseguissem acabar com ela…

Jillian Baron e Aaron Murdock pareciam empenhados em prosseguir mais uma geração com a inimizade que, desde sempre, existira entre as suas famílias. Ela era mais susceptível e ele, arrogante, contudo a batalha que os seus corações travavam estava prestes a transformar a desconfiança mútua em desejo…

 

O ar açoitava as suas faces e penetrava entre o seu cabelo; cheirava a Primavera. Jillian levantou o rosto, para sentir o vento na cara. Por baixo dela, a sua égua, reluzente e elegante, esforçava-se para atingir uma maior velocidade. Enquanto o sol brilhasse no alto, ambas cavalgariam como dois seres livres.

Os cascos esmagavam a erva, curta e dura, e as flores silvestres dispersas, às quais não prestou grande atenção. Dirigiu-se para o caminho de terra castanha, ladeado de salva, com a sua característica cor prateada.

Não havia árvores naquela área vasta nem ela procurava sombra. Galopou por um campo de trigo que resplandecia sob o sol, balançado apenas por uma brisa leve. Mais à frente estendiam-se os campos de feno, acres e acres de feno pronto para a primeira colheita. Ouviu e reconheceu o canto de uma cotovia. Contra o que pudesse parecer, não era agricultora. Se alguém se tivesse referido a ela com esse termo, ter-se-ia rido ou zangado, dependendo do seu humor.

Semeavam cereais porque precisavam, tal como plantavam os legumes. O facto de cultivar os alimentos que consumiam tornava-a independente e, a seu ver, nada era mais importante. Nos anos bons sobrava grão suficiente para proporcionar alguns lucros suplementares e com esses dólares extra podiam-se comprar mais cabeças de gado. O gado era o importante.

Era rancheira, como já tinham sido o seu avô e o pai do seu avô.

Os campos estendiam-se até onde conseguia ver as suas terras. Eram campos ricos e lavrados, acres e acres de cereais que rebentavam rapidamente, e a seguir vinham as planícies e os prados onde pastavam o gado e os cavalos. Naquele dia, no entanto, não tinha de verificar o estado das cercas, nem contar cabeças de gado nem afundar-se nos livros de contabilidade sobre a secretária de pele e madeira de carvalho do seu avô. Naquele dia queria liberdade.

Não fora criada nas vastas e agrestes planícies do Montana, não nascera sobre uma sela. Era de Chicago: o seu pai preferira a medicina ao rancho e o Este ao Oeste. Não o culpava por isso, como fizera o seu avô. Era uma questão de gostos, cada um tinha direito a escolher a vida que queria levar. Fora por isso que ela voltara para ali, para o lugar onde estavam as suas raízes, há cinco anos atrás, depois de fazer vinte anos.

Parou a égua no alto da colina. Daquele ponto avistavam-se, para além dos campos cultivados, os pastos, delimitados por cercas de vedação que mal se distinguiam àquela distância, o que criava a ilusão de um espaço aberto e ilimitado onde o gado podia andar à vontade. Noutra época, certamente fora assim, pensou enquanto afastava o cabelo para trás. Se semicerrasse os olhos, quase podia vê-lo, aberto e livre, tal como deveria ser quando os seus antepassados se tinham estabelecido ali. Tinham chegado atraídos pela febre do ouro, mas a terra agarrara-os. Tal como a ela.

Ouro, pensou, abanando a cabeça. Quem precisava de ouro quando aquele espaço representava uma riqueza incalculável? Preferia aquela extensão de terra, com os seus vales e as suas montanhas. Se a sua gente tivesse seguido para Oeste, para as montanhas, os seus tetravôs teriam morrido a trabalhar nos rios e nas minas. E mesmo que tivessem conseguido estabelecer-se lá, e encontrar pepitas e extrair ouro em pó, jamais teriam descoberto alguma coisa que tivesse mais valor do que o rancho. Ela compreendera quão valiosa e bela era a terra desde o primeiro momento.

Tinha então dez anos e, em resposta ao convite, melhor dizendo, às ordens do seu avô, corrigiu-se com um sorriso, o seu irmão Marc e ela tinham ido a Utopia. Marc já estivera lá antes, claro. Tinha dezasseis anos, possuía as mesmas qualidades que o seu pai e também não lhe interessava tornar-se rancheiro.

A sua primeira visão do rancho não a surpreendera, apesar de não coincidir com o que a maioria das crianças esperaria; a realidade não tinha nada a ver com a imagem dos filmes do Oeste. Era imenso e, em certo sentido, organizado. Pastos, estábulos, quadras... e o encanto da casa principal. Mesmo aos dez anos, com um único olhar, ela compreendera que não fora feita para as ruas e as calçadas de Chicago. Aos dez anos sentira o que era amor à primeira vista.

Com o seu avô, o amor não surgira à primeira vista. Era já um homem de idade, severo e obstinado. O rancho e o gado tinham sido tudo na sua vida. Não fazia a menor ideia do que fazer com aquela menina desengonçada, a filha do seu filho. Tinham andado um à volta do outro, durante dias, até que ele cometera o erro de deixar escapar uma observação cáustica sobre o seu pai. Com um temperamento impetuoso, ela saltara imediatamente em defesa deste e tinham acabado aos gritos, ela ao rubro mas sem deixar escapar uma lágrima, mesmo depois de o seu avô a ter ameaçado com o cinto de couro.

No fim daquela visita, tinham-se afastado com uma mistura de respeito mútuo e desagrado. Depois, no seu aniversário, enviara-lhe um chapéu
de cowboy de pele de búfalo feito à medida, e assim começara tudo...

É possível que tivessem chegado a gostar tanto um do outro exactamente por terem demorado algum tempo a desenvolver aquele afecto. Na sua adolescência, durante as semanas esporádicas que passava com o seu avô, este passara-lhe os seus conhecimentos, embora apenas parecesse assumir o papel de professor. Ensinara-lhe a prever o tempo a partir do cheiro do ar e o aspecto do céu; a ajudar no parto de um bezerro que vinha de quartos traseiros; a verificar as cercas e a conduzir um novilho perdido até à manada. Chamava-lhe Clay porque eram amigos. A primeira e única vez que tentara mascar tabaco, em vez de lhe dar um sermão, segurara-lhe a cabeça para a ajudar a aliviar as náuseas.

Quando a vista do seu avô se debilitara, ela encarregara-se dos livros de contabilidade. Nunca tinham falado disso, tal como também nunca tinham conversado sobre se a sua mudança para o rancho, no Verão do seu vigésimo aniversário, seria definitiva. Quando a doença se agravara, ela fora assumindo gradualmente as responsabilidadcs, embora sem trocar nenhuma palavra com o seu avô a respeito para oficializar a nova situação.

Depois da sua morte, o rancho passara para ela. Não precisava de ouvir o testamento para o saber. Clay sabia que ela ficaria, que deixara o Este. Se ainda existiam algumas lembranças da sua vida
anterior, enterrá-las-ia... Sem dúvida, mais facilmente do que enterrara o seu avô.

Estava a ter pena de si mesma e aperceber-se disso impacientara-a. Clay vivera muitos anos e muito intensamente, fazendo o que queria e sempre à sua maneira. A doença fora consumindo-o e ter-lhe-ia trazido dor e humilhação se tivesse continuado. Se pudesse vê-la naquele momento, a afligir-se com a sua perda, não o suportaria, insultaria a sua atitude.

”Meu Deus, rapariga! O que fazes aqui a perder o teu tempo? Não sabes que tens um rancho para gerir? Junta alguns homens para irem verificar a cerca do quarenta oeste, antes que tenhas as vacas a passear por todo o Montana.”

Sim, pensou com um meio sorriso. Diria algo do género e teria implicado um pouco com ela antes de partir a resmungar. Ela, claro está, também teria implicado com ele.

- Eh, velho urso sarnento! - murmurou. - Vou transformar Utopia no melhor rancho do Montana só para te chatear - riu-se e levantou a cara para o céu. - Vais ver!

Ao aperceber-se da sua mudança de humor, a égua começou a mover-se com impaciência e a abanar a cabeça.

- Calma, Dalila - inclinou-se para lhe dar algumas palmadinhas no pescoço, - temos a tarde toda - com um movimento ágil, fez o animal dar meia volta e este avançou com passo ligeiro.
Não dispunha de muitas horas livres, pelo que as considerava maravilhosas. Fazia o que fosse necessário para poder dispor de momentos assim, o que fazia com que os apreciasse mais. Se no dia seguinte tivesse de trabalhar dezoito horas para recuperar aquele momento, fá-lo-ia sem se queixar. Até daria uma vista de olhos aos livros de contabilidade, pensou com um suspiro, embora houvesse aquele novilho doente que era preciso vigiar... e o maldito jipe que voltara a avariar pela terceira vez naquele mês. E havia a cerca que delimitava o rancho, que delimitava a fronteira com os Murdock, pensou com uma careta.

A inimizade entre os Baron e os Murdock remontava aos princípios do século XX, quando Noah Baron, o seu bisavô, chegara ao Sudeste do Montana. A sua intenção era seguir para as montanhas em busca de ouro, mas estabelecera-se naquele lugar. Os Murdock já estavam ali, no seu rancho, rico e imenso. Para eles, os Baron eram uns camponeses, intrusos condenados ao fracasso ou a serem expulsos. Jillian rangeu os dentes ao recordar as histórias que o seu avô lhe contara: cercas cortadas, roubo de gado, colheitas arruinadas.

Apesar de tudo, os Baron tinham ficado, tinham sobrevivido e triunfado. Era verdade, não possuíam tantas terras como os Murdock nem tanto dinheiro, mas sabiam tirar o melhor proveito do que tinham. Se o seu avô tivesse encontrado petróleo, como acontecera aos Murdock, pensou com um sorriso de lado, também eles teriam podido permitir-se dedicar o rancho exclusivamente ao gado de pura raça. Fora uma questão de sorte, não de habilidade.

Disse para si que também não lhe importava o gado de pura raça. Que ficassem com as suas medalhas nos concursos e a vangloriar-se de melhorar a raça. Ela continuaria a criar as suas Hereford e a vendê-las ao melhor preço no mercado. A carne dos Baron era de primeira qualidade e toda a gente sabia.

Quando fora a última vez que os Murdock tinham verificado a cavalo a cerca do seu rancho, a suar ao sol enquanto paravam para fazer uma pausa? Quando fora a última vez que um deles engolira pó a conduzir a manada? Sabia de fonte segura que Paul . Murdock, que era da mesma geração que o seu avô, não se incomodara em verificar o cercado do rancho nem em conduzir o gado há mais de um ano.

Deixou escapar uma gargalhada escarnecedora. Esses só entendiam de números, dos seus livros de contabilidade e de política. Quando ela tivesse feito tudo a que se propunha, comparado com o Utopia, o Double M pareceria um daqueles ranchos para turistas.

A ideia pô-la de melhor humor e a ruga que existia entre os seus sobrolhos desapareceu. Naquele dia não pensaria nos Murdock, nem em que no dia seguinte teria que se desfazer a trabalhar desde antes do amanhecer. Pensaria unicamente em quão maravilhosas eram aquelas horas roubadas, no cheiro da Primavera e no azul intenso do céu, interminável.

Conhecia bem aquele caminho, discorria pelo extremo mais ocidental do rancho. Aquela zona era demasiado agreste para o arado e não era fértil o suficiente para servir de pasto para o gado, de modo que a tinham deixado de lado. Era lá que ia sempre que procurava alguma solidão. Mais ninguém ia àquele lugar, nem do seu próprio rancho nem do dos Murdock, cujas terras se estendiam paralelamente às suas. Até a cerca, que em tempos demarcara os limites, caíra há anos atrás e ninguém se preocupara em arranjá-la. Ninguém se importava com aquele bocadinho de terra inútil, excepto ela, o que fazia com que ela se importasse ainda mais.

Havia algumas árvores, os álamos estavam a começar a rebentar. Por cima do ruído dos cascos da égua, distinguiu o canto de uma carriça. Provavelmente, também haveria coiotes e, sem dúvida alguma, cascavéis. Estava tão encantada que não e lembrou disso. Trazia uma arma, carregada e presa à parte de trás da sua sela.

A égua cheirou a água do charco e ela deixou-a mover a cabeça. A ideia de se desfazer da roupa encharcada de suor e dar um mergulho de cabeça atraía-a muitíssimo. Nadar cinco minutos naquelas águas geladas e transparentes seria tonificante, e Dalila poderia descansar e beber antes de empreender o longo caminho de volta. Ficou a contemplar a superfície reluzente da água e alargou as rédeas, relaxou. O seu avô tê-la-ia repreendido pela sua falta de atenção, mas ela já estava a pensar no imenso privilégio de entrar nua naquelas águas frescas e secar-se depois ao sol.

Mas a égua cheirou mais alguma coisa. Bruscamente, empinou-se de tal modo que a primeira coisa em que ela pensou foi numa cascavel. Enquanto tentava controlar Dalila com uma mão, estendeu a outra para agarrar a arma, mas antes que se apercebesse, já estava a voar. Mal teve tempo de murmurar uma blasfémia antes de aterrar com o rabo no charco. Nessa altura, já tinha visto que aquela cascavel tinha pernas.

Conseguiu colocar-se de pé a balbuciar, furiosa, e retirou o cabelo dos olhos para olhar iradamente para aquele homem sentado sobre o seu cavalo. Dalila não deixava de se mover, nervosa, enquanto ele mantinha quieto o garanhão resplandecente.

Não era preciso que desmontasse para ver que era alto. Por debaixo do chapéu preto apareciam várias madeixas de cabelo preto e ondulado, as quais escureciam um rosto curtido de queixo proeminente. Tinha o nariz recto, elegante, e uma boca bem desenhada de expressão solene. Ela não se demorou a admirar o modo como montava o garanhão, relaxadamente, com um domínio que demonstrava confiança em si mesmo e poder. O que viu foi que os seus olhos eram quase tão escuros como o seu cabelo e que sorriam. Ela semicerrou os seus.

- Posso saber o que está a fazer nas minhas terras? - perguntou-lhe.

Ele observou-a em silêncio e limitou-se a levantar lentamente um sobrolho. Ao contrário dela, estava a demorar algum tempo a admirá-la. Ao molhar-se, o seu cabelo ruivo tornara-se acobreado e caía-lhe sobre os ombros de tal modo que acentuava a elegância da sua pele, dourada como o mel, sob a qual se marcavam uns ossos delicados. Reparou nos seus olhos, perigosamente felinos, duas pedras verdes como o jade. Tinha uma boca generosa de lábios cheios, embora, naquele momento, os apertasse com fúria. O lábio inferior, muito sugestivo, contrastava com o queixo, firme e obstinado.

O seu olhar desceu despreocupadamente. Era alta, pensou, e sem curvas, como um rapaz, mas naquele preciso momento, com a camisa molhada e colada como uma segunda pele... Lentamente, o seu olhar voltou a subir até se encontrar com o dela. Não corara com aquele exame à sua anatomia, embora não lhe tivesse escapado nada. Os seus olhos não mostravam medo nem apreensão, muito pelo contrário: dirigiu-lhe um olhar penetrante que teria fulminado qualquer outro homem.

- Perguntei o que raios está a fazer nas minhas terras - repetiu Jillian em voz baixa, como que a conter-se.

Em vez de responder, ele desmontou. Foi um movimento suficientemente suave e calculado para que Jillian se apercebesse de que deveria ter passado a vida a subir e a descer de uma sela. Caminhou pausadamente para ela, muito relaxado, embora sem perder a sua autoridade. Depois sorriu e a sua expressão passou de tremendamente sexy para absolutamente encantadora. Era um sorriso que parecia querer dizer ”podes confiar em mim... por enquanto”. Estendeu-lhe uma mão.

-Senhora...

Ela respirou fundo. Sem aceitar a mão que lhe oferecia, endireitou-se e saiu da água pelos seus próprios meios. Completamente encharcada e com frio, mas longe de se ter acalmado, pôs as mãos na cintura.

- Não respondeu à minha pergunta.

”Tem coragem”, pensou ele enquanto continuava a observá-la, ”muita coragem, carácter e... Então reparou no modo desafiador como ela levantava o queixo. ”E arrogância.” Gostava daquela combinação. Enfiou os polegares nos bolsos e mudou o peso de perna. Era uma pena que com o sol a estivesse a secar tão depressa.

- Estas não são as suas terras - disse calmamente, arrastando na sua voz um ligeiro sotaque do Oeste, - menina...

- Baron - Jillian falou com brusquidão. - E posso saber quem é você para me dizer que estas terras não são minhas?

Ele levantou o chapéu por um momento, num gesto que tinha mais de insolente que de respeitoso.

- Aaron Murdock - franziu os lábios ao ouvir que ela deixava escapar um sopro. - O limite é exactamente aqui - olhou para a ponta das suas botas, a alguns centímetros das dela, como se estivesse a ver uma linha desenhada no chão - e atravessa o charco ao meio - voltou a olhar para ela nos olhos. A sua boca tinha uma expressão solene, mas os seus olhos sorriam. - Acho que aterrou no meu lado.

Aaron Murdock, primogénito e herdeiro. Não devia estar em Billings, dedicado aos seus malditos poços de petróleo? Jillian franziu a testa e decidiu que não tinha o aspecto de um universitário imberbe com que o seu avô o descrevera. Depois pensaria naquilo. Naquele momento, impunha-se defender a sua posição, não recuar.

- Se aterrei no seu lado - disse causticamente, foi porque você estava a vigiar-me montado nisso apontou para o cavalo de Murdock com o polegar. ”É um animal magnífico”, pensou com uma admiração que lhe custava esconder.

- E porque quase tinha largado as rédeas - assinalou ele com toda a tranquilidade.

Era verdade e ela sabia, mas só conseguiu enfurecê-la mais.

- O seu cheiro assustou Dalila.

- Dalila... - repetiu, e por um instante pareceu divertido. Puxou o chapéu para trás e estudou as linhas suaves da égua. - Deve ter sido o destino murmurou. - Sansão - e, ao ouvir o seu nome, o garanhão avançou e empurrou o ombro de Aaron com o focinho.

Jillian reprimiu a gargalhada, mas não pôde esconder as covinhas que se formaram junto aos cantos dos seus lábios.

- Lembre-se qual foi o destino de Sansão - replicou - e mantenha-o afastado da minha égua.

- É linda! - exclamou Aaron pausadamente. Enquanto acariciava a cabeça do seu cavalo, os seus olhos continuavam fixos em Jillian. - Talvez excessivamente nervosa - continuou, - mas bem constituída. Muito apropriada para a cruzar.

Os olhos de Jillian voltaram a semicerrar-se. Aaron gostou do modo como reluziam por detrás das pestanas, longas e abundantes.

- Eu é que me preocupo com isso, Murdock bateu com um pé no chão para sacudir a água que lhe ensopava a roupa. Continuava a pingar, mas a terra absorvia rapidamente as gotas. - O que está a fazer aqui? - perguntou. - Não encontrará petróleo nesta zona.

Aaron inclinou a cabeça.

- Não estava à procura de petróleo. E também não estava à procura de uma mulher - aproximou-se dela com naturalidade e enroscou os dedos numa madeixa do seu cabelo, - mas encontrei uma.

Jillian sentiu uma opressão fulminante no peito que a impedia de respirar e, imediatamente, reconheceu aquela sensação. Oh, não! Já lhe acontecera antes, uma vez. O seu olhar desceu até aos dedos de Aaron, que brincavam com as pontas do seu cabelo, e subiu novamente até à cara do seu interlocutor.

- Tenho a certeza de que não quer perder essa mão - disse com suavidade.

Por um instante, os dedos dele ficaram em tensão. E então, com a mesma naturalidade com que lhe agarrara naquela madeixa, largou-a.

- Não achas que és demasiado susceptível? perguntou Aaron, calmamente. - Claro que os Baron sempre foram rápidos na hora de desembainhar a espada.

- Para nos defendermos - especificou Jillian sem ceder. Durante um momento, ambos se observaram, surpreendidos por considerarem o adversário tão atraente. É melhor ter cuidado!, pensaram os dois, embora habitualmente aquela fosse uma recomendação que lhes custasse seguir.

- Lamento o que aconteceu ao velho - disse Aaron, finalmente. - Era o teu... Avô?

Jillian continuava a olhar para ele com o queixo levantado, com gesto desafiador, mas ele viu que, por um instante, uma sombra atravessou o seu olhar.

-Sim.

Amava-o, pensou Aaron algo surpreendido. Nas suas escassas discussões com Clay Baron, sempre lhe parecera um homem particularmente desagradável. Deixou que a sua memória reunisse os fragmentos de informação que fora juntando desde a sua volta para o Double M.

- Tu deves ser a criança que passava os Verões aqui há anos atrás - comentou enquanto tentava recordar se já se tinham cruzado antes. - Do Este

- agarrou o queixo com uma mão, um pouco áspero porque naquela manhã não se barbeara. Jill, não é?

- Jillian - corrigiu-o friamente.

- Jillian - um sorriso rápido voltou a transformar o seu rosto. - Sim, é melhor.

- Menina Baron é ainda melhor - disse ela enquanto amaldiçoava o seu sorriso.

Aaron não prestou atenção à sua hostilidade deliberada. Cedeu ao impulso de deixar que o seu olhar percorresse novamente a boca de Jillian. Não, não achava que já se tivessem cruzado antes. Nenhum homem esqueceria uma boca como aquela.

- Se Gil Haley se encarregar de gerir o Utopia, tenho a certeza de que tudo correrá bem.

Ela arrepiou-se como um gato. Ele quase podia ver o arqueamento da sua coluna vertebral.

- Eu giro o Utopia - limitou-se a responder. Formou-se uma covinha junto ao canto dos seus lábios.

-Tu?

- Exacto, Murdock, eu. Não passei os últimos cinco anos num escritório em Billings - algo atravessou o olhar de Aaron, mas ela não parou, em vez disso continuou. - O Utopia pertence-me, cada palmo de terra. A diferença é que eu trabalho, em vez de andar a pavonear-me pela Feira Estatal de Gado e a exibir os meus laços azuis.

Intrigado, agarrou-lhe nas mãos sem fazer caso dos seus protestos e observou-lhe as palmas. Eram magras, mas fortes e capazes. Acariciou-lhe o polegar calejado e sentiu admiração... e desejo. Estava farto das mãos inúteis e ociosas de Billings.

- Meu Deus! - murmurou sem largar as mãos de Jillian enquanto a olhava nos olhos.

Ela estava furiosa. Enfurecia-lhe que as mãos de Aaron fossem tão fortes e que retivessem as suas sem esforço, e também a enfurecia que o seu coração batesse com tanta força que zumbia na sua cabeça. A carriça voltara a cantar e podia ouvir o suave roçar das caudas dos cavalos.

Ele cheirava a couro e a suor, agradava-lhe. Agradava-lhe demasiado. Um círculo âmbar rodeava a sua íris e acentuava o castanho-escuro dos seus olhos. Uma cicatriz, fina e branca, discorria pelo seu queixo. Não se notava a não ser que se olhasse de muito perto, tal como as suas mãos não pareciam tão fortes e ossudas até se agarrar numa.

Jillian recuou rapidamente. Não valia a pena reparar nessas coisas, não valia a pena ouvir aquele zumbido na sua cabeça. Já lhe acontecera uma vez e onde a levara? Ingénua, tola! Mas era muito mais inteligente do que há cinco anos atrás. O mais importante era recordar quem ele era, um Murdock, e quem ela era, uma Baron.

- Já te avisei sobre as tuas mãos! - exclamou.

- É verdade - reconheceu Aaron, olhando para a cara dela. - Porquê?

- Eu não gosto que me toquem.

- Não? - arqueou um sobrolho, mas não lhe largou as mãos. - A maioria dos seres vivos gostam, se lhes tocarem da maneira adequada - de repente, olhou-a fixamente nos olhos, de maneira muito directa e intuitiva. - Tiveste alguma má experiência?

Ela sustentou-lhe o olhar.

- Estás a meter-te onde não és chamado, Murdock.

Ele inclinou levemente a cabeça.

- Pode ser. Podemos sempre voltar a levantar a cerca.

Ela apercebeu-se de que percebera a mensagem. Daquela vez, quando puxou as suas mãos, ele largou-as.

- Limita-te a ficar do teu lado - sugeriu.

Ele enterrou o chapéu na cabeça de uma forma que este voltou a deixar o seu rosto em sombras.

- E se não o fizer? Ela levantou o queixo.

- Então terás de te ver comigo.

Deu meia volta, caminhou até Dalila e agarrou nas rédeas. Custou-lhe não acariciar o pescoço do garanhão, mas conseguiu conter-se. Sem olhar para Aaron, deslizou com facilidade para cima da sua sela e compôs o chapéu, molhado e com a aba amachucada. Só então teve o gosto de olhar para ele do alto do seu cavalo.

De melhor humor, Jillian inclinou-se na sela. O couro gemeu por debaixo dela quando Dalila se moveu. A sua camisa estava a secar, sentia calor nas costas.

- Que tenhas umas boas férias, Murdock disse-lhe com um ligeiro sorriso. - Não te mates a trabalhar enquanto estiveres aqui.

Ele aproximou-se e acariciou o pescoço de Dalila.

- Tentarei seguir o teu conselho, Jillian. Ela inclinou-se mais para ele.

- Menina Baron.

Aaron levou a mão até à aba do chapéu de Jillian e puxou-a até ao nariz desta.

- Eu gosto de Jillian.

Antes que ela pudesse endireitar-se, agarrou-lhe no cordão do chapéu e ficou a olhar para ela com um olhar estranho.

- Sabes uma coisa? Cheiras a algo em que qualquer homem se perderia de olhos fechados.

Jillian pensou que era divertido enquanto fingia que não notava o aceleramento da sua pulsação. Afastou-lhe a mão do cordão do seu chapéu, endireitou-se e sorriu.

- Decepcionas-me. Pensei que um homem que passou tantos anos na universidade e na grande cidade se expressasse de maneira mais inteligente e refinada.

Ele colocou as mãos nos bolsos traseiros das suas calças e olhou para ela. Era fascinante o modo como o sol se reflectia nos olhos de Jillian, sem arrancar o menor brilho dourado ou cinzento àquele verde-escuro e frio. Eram uns olhos demasiado obstinados para aceitarem a menor ingerência, muito adequados para ela.

- Terei de praticar - disse, esboçando um sorriso. - Fá-lo-ei melhor da próxima vez.

Ela deixou escapar um sopro que acabou em gargalhada e começou a virar a sua égua.

- Não haverá uma próxima vez.

A mão de Aaron segurou nas rédeas com firmeza antes que ela pudesse pôr o seu cavalo a trote e dirigiu-lhe um olhar tranquilo e levemente divertido.

- Parecias mais inteligente, Jillian. Haverá mais de uma próxima vez antes que tenhamos acabado.

Jillian não sabia como perdera a vantagem tão depressa, mas acontecera. Levantou o queixo.

- Pareces decidido a perder essa mão, Murdock. Ele dedicou-lhe um sorriso relaxado e bateu no pescoço de Dalila antes de voltar para o seu próprio cavalo.

- Até logo, Jillian.

Ela esperou, a soprar, até ele estar sobre a sua sela. Dalila deu alguns passos laterais, com ar assustadiço, e os dois cavalos acabaram quase focinho com focinho.

- Fica no teu próprio lado! - ordenou Jillian, e cravou os calcanhares. A égua lançou-se em frente.

Sansão abanou a cabeça e empinou-se enquanto cavaleiro e cavalo observavam como Jillian se afastava, montada sobre Dalila.

- Desta vez, não - murmurou Aaron para si enquanto tranquilizava o seu cavalo, - mais tarde soltou uma gargalhada e seguiu em sentido contrário. - Muito em breve.

Jillian conseguia livrar-se de aborrecimentos e frustrações com a velocidade e o vento. Cavalgava à velocidade que a égua desejava, ou seja, depressa. Talvez Dalila precisasse de se acalmar tanto como ela, pensou com ironia. Os dois machos eram irresistíveis. Se o garanhão pertencesse a qualquer outra pessoa que não fosse Murdock, teria encontrado um modo de o cruzar com Dalila sem lhe importar o preço. Se realmente aspirava a melhorar a raça dos cavalos do Utopia, todo o peso do processo recairia na sua própria égua. E no seu rancho não havia nenhum cavalo que pudesse comparar-se com Sansão.

Era uma pena que Aaron Murdock não fosse o homem de negócios educado e chato que imaginara. Esse tipo de homem não faria ferver o seu sangue. Na sua posição, nenhuma mulher podia permitir-se reconhecer essa atracção, menos ainda perante um rival. Isso pô-la-ia em desvantagem, quando, na realidade, precisava de acumular a maior vantagem possível.

As possibilidades de crescimento do rancho dependiam dos próximos seis meses. Obviamente, poderiam continuar como até àquele momento, a ter alguns lucros discretos, mas ela queria mais. Herdara a ambição do seu avô. Com a sua juventude e energia, e com sorte, transformaria o Utopia no império com que os seus antepassados tinham sonhado.

Tinha a terra e os conhecimentos necessários. Era hábil e propusera-se a isso. Já investira no rancho a parte da herança que recebera em dinheiro. Dera um adiantamento para comprar a avioneta que a resistência obstinada do seu avô lhe impedira de adquirir antes. Com uma avioneta, poderiam patrulhar o rancho em apenas algumas horas, localizar o gado perdido, avisar onde havia cercas para reparar. Embora ainda acreditasse na necessidade de dispor de cowboys hábeis, compreendia a beleza de misturar o novo com o tradicional.

As carrinhas e os todo-o-terreno percorriam o rancho do mesmo modo que os cavalos. Utilizava-se o rádio para comunicar a longa distância, mas isso não impedia que se continuasse a utilizar o laço, que se trazia na sela ou atrás do pneu sobressalente. O gado era conduzido em grupos grandes se fosse necessário e os bezerros, agrupados no curral para os marcar com o ferro incandescente, embora este fosse aquecido com botijas de gás em vez de numa fogueira. Os tempos tinham mudado, mas o espírito e as regras continuavam a ser os mesmos.

Acima de tudo, o rancheiro, como qualquer outra pessoa que vivesse do campo, dependia de duas coisas: do céu e da terra. Uma vez que o primeiro era inconstante e a segunda inquebrável, ao rancheiro não lhe restava mais que confiar em si mesmo. Essa era a filosofia de Jillian.

Com essa ideia em mente, mudou de rumo sem mudar de direcção. Cavalgaria ao lado do limite das terras de Murdock, com o objectivo de verificar o estado da cerca.

Atravessou a trote uma planície onde pastavam Hereford de garupa larga e focinho branco, que mal levantaram a vista. Os pastos cresciam ricos e abundantes. Ouviu o zumbido de um motor e parou. Farejou o ar quase do mesmo modo como o fazia a sua égua. Gasolina. Era uma pena estragar assim o cheiro da erva e do gado. Com resignação, virou Dalila e cavalgou em direcção ao ruído.

Foi fácil localizar a carrinha amolgada. Levantou o braço em jeito de saudação e cavalgou em direcção a ela. Recuperara o bom humor, embora ainda tivesse as calças húmidas e as botas encharcadas. Gil Haley era um dos últimos verdadeiros cowboys que restavam no seu rancho e nos arredores. Há cem anos atrás teria sido um homem feliz a percorrer as montanhas montado na sua sela, com uma manta para passar a noite e um pouco de tabaco de mascar. E se tivesse a oportunidade, pensou Jillian, agora também seria feliz a ter esse tipo de vida.

- Gil - parou Dalila junto à janela do condutor e sorriu.

- Esta manhã, desapareceste - era uma saudação brusca, com aquela voz que parecia sempre zangada. Não esperava uma explicação, nem ela a teria dado.

Jillian cumprimentou com um movimento de cabeça os dois homens que estavam com ele, outro tipo de cowboys, calçados com sapatos adequados para os trabalhos do campo. Embora Gil patrulhasse de carrinha, porque daquele modo podia percorrer cinquenta acres mais exaustivamente e em menos tempo do que a cavalo, nunca renunciaria às suas botas.

- Algum problema?

- Uma vaca idiota que se prendeu na vedação um pouco mais lá atrás - cuspiu o tabaco que estava a mascar e colocou mais um pouco na boca.

- Tirámo-la antes que provocasse uma catástrofe. Parece que vamos ter de limpar novamente o terreno. Aquela maldita deitou abaixo uma cerca.

Jillian assentiu.

-Alguém verificou hoje a cerca oeste?

Olhou novamente para ela.

- Não.

- Então fá-lo-ei agora - Jillian hesitou. Se havia alguém ao corrente de intrigas, esse era Gil. Deparei-me com Aaron Murdock há uma hora atrás - deixou cair com naturalidade. - Pensei que estava em Billings.

- Não.

Jillian dedicou-lhe um olhar doce.

- Eu sei, Gil. O que faz ele por aqui?

- Tem um rancho.

Ela teve de se esforçar para conter o seu temperamento.

- Eu também sei isso. Também tem poços de petróleo... ou o seu pai.

- A irmã mais nova casou-se com um explorador de petróleo - informou-a Gil. - O velho fez algumas mudanças e conseguiu que o rapaz voltasse para onde ele queria.

- Quer dizer... - Jillian semicerrou os olhos que Aaron Murdock vai ficar no Double M?

- Vai geri-lo - afirmou Gil, e cuspiu com habilidade. - Presumo que as coisas se tenham acalmado depois da discussão de há alguns anos. Murdock já deve ter setenta anos ou mais. Se calhar quer reformar-se e descansar.

- Vai geri-lo... - murmurou Jillian.

Portanto, não iria livrar-se da praga dos Murdock. Pelo menos, o velho e ela tinham conseguido não se interpor nos seus respectivos caminhos. Aaron já invadira o que ela considerava o seu pedacinho de céu... embora metade desse céu lhe pertencesse.

- Há quanto tempo regressou?

Gil demorou algum tempo para responder enquanto torcia com ar ausente uma das pontas do seu bigode grisalho, um hábito que, normalmente, Jillian considerava engraçado.

- Há algumas semanas.

E já esbarrara com ele. Bom, desfrutara de cinco anos de paz, pensou Jillian. Numa região de espaços tão vastos, não lhe custaria muito evitar um único homem. Tinha mais perguntas, mas esperaria até que Gil e ela estivessem a sós.

- Vou verificar a cerca - disse. Virou a égua e cavalgou para Oeste.

Gil olhou para ela e pestanejou. Talvez fosse estrábico, mas a sua vista era boa o suficiente para ter reparado que tinha a roupa molhada. E vira o brilho do seu olhar. Deparara-se com Aaron Murdock, eh? Com uma gargalhada contida, ligou o motor da carrinha. Aquilo dava em que pensar.

- Olha para a frente, rapaz! - exclamou, resmungando ao jovem cowboy, que esticara o pescoço para poder continuar a observar Jillian, a qual se afastava a galope pela pradaria.

 

O dia começava antes do amanhecer. Era preciso alimentar o gado, recolher os ovos, ordenhar as vacas. Inclusive com as máquinas, era sempre preciso algumas mãos. Estava tão habituada a ajudar nas tarefas matinais do rancho que não lhe ocorrera deixar de o fazer ao transformar-se na sua proprietária. A vida no rancho era rotineira, só variava o número de animais dos quais era necessário ocupar-se e as condições climáticas em que se fazia.

Fez o trajecto entre a casa principal e os estábulos. Estava um frio que era agradável, mas já fizera o mesmo caminho com tanto calor que o ar parecera colar-se à sua pele e com tanta neve que as botas se enterravam nela até aos joelhos. No céu, aparecia uma luz fraca a Este e a escuridão apenas começava a ceder, mas o pátio do rancho já mostrava sinais de vida. Sentiu o cheiro da carne no churrasco e do café: a cozinheira preparava os pequenos-almoços.

Homens e mulheres dirigiam-se para os seus afazeres com calma, esporadicamente ouvia-os repudiar ou rirem-se. Todos tinham sofrido o Inverno do Montana, de modo que apreciavam aquela manhã suave de Primavera. A Primavera daria lugar ao calor do Verão e à seca demasiado depressa.

Jillian atravessou a passagem de cimento e abriu a quadra de Dalila. Tal como todos os dias, trataria primeiro dela antes de ir ver os outros cavalos, depois seriam as vacas leiteiras. Alguns homens já estavam ali, a distribuir ração e a encher os bebedouros. Ouviam-se os saltos das botas no cimento, o tinido das esporas.

Alguns deles possuíam os seus próprios cavalos, mas a maioria utilizava os do Utopia.

Todos eram proprietários das suas selas. A regra rigorosa do seu avô.

As quadras cheiravam bem, a cavalo, a feno e a ração. Quando acabaram de alimentar os animais e os tiraram dos estábulos, já quase amanhecera. Mecanicamente, Jillian dirigiu-se para o imenso estábulo branco onde as vacas aguardavam que as ordenhassem.

-Jillian.

Parou e esperou que Joe Carlson, o seu especialista em gado, atravessasse o pátio do rancho. Não caminhava como um cowboy nem se vestia como tal, simplesmente porque não o era. Tinha um andar suave e relaxado que combinava com o seu aspecto cuidado e quase vaidoso. O sol do amanhecer arrancava reflexos dourados aos seus caracóis. Deslocava-se de jipe em vez de o fazer a cavalo e preferia o vinho à cerveja, mas percebia de gado. Precisava dele se aspirava a ter sucesso na indústria do gado de raça pura, na qual, até então, não fizera mais que incursões esporádicas. Contratara-o há seis meses, apesar das queixas do seu avô, e não se arrependia.

- Bom dia, Joe.

- Jillian - cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça quando chegou até ela e depois voltou a colocar o chapéu cinzento que usava sempre impoluto. - Quando vais deixar de trabalhar quinze horas diárias?

Ela riu-se e continuou a andar para o estábulo enquanto ele seguia o seu passo.

- Em Agosto, quando tiver de começar a trabalhar dezoito.

- Jillian - pôs-lhe uma mão no ombro e parou-a à entrada do estábulo.

Era uma mão cuidada e bonita, bronzeada, mas não calosa. Fez-lhe recordar outra, mais forte, mais dura. Franziu o sobrolho.

- Sabes que não precisas de te envolver em todas as tarefas do rancho. Tens gente suficiente a trabalhar para ti. Se contratasses um administrador...

Era uma conversa que se repetia e Jillian respondeu como era hábito.

- Eu sou a administradora - limitou-se a dizer.

- Para mim, o rancho não é nem um brinquedo nem algo provisório, Joe. Antes de contratar alguém para se encarregar dele, vendê-lo-ia.

- Trabalhas demasiado.

- E tu preocupas-te demasiado - replicou ela, mas sorriu. - Mas agradeço-te. Como está o touro?

Os dentes de Joe brilharam, uns dentes direitos, uniformes e brancos.

- Tão anti-social como sempre, mas cobriu todas as vacas que lhe pusemos à frente. É uma beleza!

- Assim espero - murmurou Jillian ao recordar quanto pagara por aquele touro Hereford de raça pura. Se, realmente, fosse tudo o que Joe proclamara, com ele começaria a melhorar a qualidade da carne que o Utopia produzia.

- Espera até começarem a nascer bezerros aconselhou Joe enquanto lhe dava um apertão rápido no ombro. - Queres vir dar uma olhadela?

- Hum, talvez depois! - entrou no estábulo e olhou para trás por cima do seu ombro. - Eu gostaria de ver esse touro a tirar o laço azul ao de Murdock, em Julho - esboçou um sorriso rápido e insolente. - Raios partam se não consigo!

Quando tinham acabado de dar de comer ao gado todo e Jillian já tomara o seu próprio pequeno-almoço, já era completamente de dia. As longas horas de trabalho e o que este exigia deveriam ter mantido a sua mente ocupada. Sempre fora assim. Com tantas questões relativas à alimentação do gado, os salários e as cercas, não deveria restar tempo para pensar em Aaron Murdock, mas havia. Jillian disse para si que uma vez que tivesse as respostas às suas perguntas, conseguiria tirá-lo da cabeça, de modo que o melhor seria tentar descobrir. Chamou Gil antes que este pudesse entrar na sua carrinha.

- Hoje vou contigo - disse-lhe enquanto entrava para o banco do passageiro.

Ele encolheu os ombros e cuspiu tabaco pela janela.

- Como queiras.

Jillian sorriu perante aquelas boas-vindas e voltou a pôr o chapéu. Alguns caracóis ruivos caíam-lhe sobre a testa.

- Porquê nunca te casaste, Gil? És um encanto... Sob o bigode grisalho, os lábios de Gil tremeram.

- Sempre fui um tipo inteligente - ligou o motor e olhou para ela. - E o que me dizes de ti? É verdade que és fraca, mas não és feia.

Ela apoiou a sola de uma das suas botas no tablier.

- Prefiro gerir a minha própria vida - disse calmamente. - Os homens querem sempre dizer-nos o que devemos fazer e como devemos fazê-lo.

- Uma mulher não deve andar sozinha na vida

- afirmou Gil enquanto saíam do pátio do rancho.

- E um homem sim? - replicou Jillian enquanto examinava lentamente a ponta da sua bota.

- Para os homens é diferente.

- Melhor?

Ele pôs uma mudança e disse para si que estava a meter-se em confusões.

- Diferente - voltou a dizer, e fechou a boca. Jillian riu-se e recostou-se no banco.

- Tonto! - exclamou com carinho. - Fala-me dessa discussão dos Murdock.

- Tiveram várias. São muito teimosos.

- Já ouvi falar. Conta-me o que se passou antes de Aaron Murdock ter ido para Billings.

- O rapaz tinha muitas ideias quando voltou da universidade - disse com um sopro, como se considerasse que a melhor maneira de aprender era a prática. - Talvez algumas fossem boas - reconheceu. Sempre foi inteligente e sabe montar um cavalo.

- Não foi para isso que foi para a universidade?

- perguntou Jillian. - Para contribuir com ideias?

- O velho achou que ele mandava muito disse a resmungar. - Diz-se por aí que o rapaz acedeu a trabalhar três anos para o seu pai antes de voltar a cuidar do rancho. a geri-lo.

Gil parou diante de uma cerca e Jillian saiu para a abrir. Esperou que a carrinha passasse antes de voltar a fechá-la. Outro dia sem chuva, pensou, olhando para o céu. Precisava que chovesse depressa. À sua direita, um faisão saiu de entre as ervas e levantou voo, uma mancha de cor no céu.

- E depois? - perguntou quando entrou novamente no veículo.

- Depois, quando passaram os três anos, o velho voltou atrás. Não deu ao rapaz o controlo do rancho, como tinham acordado. Esses Murdock têm carácter - sorriu e, ao fazê-lo, mostrou a dentadura postiça. - O rapaz disse que compraria o seu próprio rancho.

- Eu teria feito o mesmo - murmurou Jillian. Murdock não tinha o direito de não cumprir a sua palavra.

- Talvez não. Mas disse ao rapaz que voltasse para Billings porque havia problemas, algo com os livros de contabilidade... Ninguém sabe porque o fez, por que razão o rapaz voltou, a não ser que o velho o tivesse compensado de algum modo.

Jillian riu-se com desprezo. Dinheiro, pensou. Se Aaron tivesse tido coragem, teria deixado o seu pai e ter-se-ia estabelecido por conta própria. Provavelmente, não conseguira suportar a ideia de começar por baixo... Mas recordava a sua cara, a sua mão forte e decidida. Algo não encaixava, pensou.

- O que pensas dele, Gil? Refiro-me ao que tu pensas, pessoalmente.

- De quem?

- De Aaron Murdock.

- Não posso dizer muito - começou Gil com calma e esfregou a cara com uma mão para esconder um sorriso. - Era um rapaz esperto e insolente, conheci um ou dois do estilo - soltou uma gargalhada quando Jillian olhou para ele com olhos semicerrados. - Não o assustava o trabalho. Quando lhe cresceu a barba, as mulheres já suspiravam por ele - Gil levou uma mão ao coração e lançou um suspiro exagerado. Jillian deu-lhe um murro no braço.

- Não me interessa a sua vida amorosa, Gil começou, e imediatamente mudou de ideias. - Alguma vez foi casado?

- Suponho que acha que uma mulher quererá dizer-lhe o que deve fazer e como deve fazê-lo respondeu Gil num tom afável.

Jillian começou a insultá-lo e depois desatou a rir-se.

- És muito esperto, Gil Haley! Olha, aí! - pôs-lhe uma mão no braço. - Encontrámos os bezerros.

Saíram e caminharam juntos pelo pasto, contando cabeças e desfrutando do primeiro dos verdadeiros prazeres da Primavera: a vida.

- Estes devem ser do touro novo - Jillian observou um bezerro que mamava com entusiasmo enquanto a sua mãe dormitava ao sol.

- Sim - o estrabismo de Gil acentuou-se enquanto olhava para o rebanho que pastava e para os recém-nascidos. - Reconheço que Joe sabe o que faz - murmurou, e esfregou o queixo. - Quantos bezerros contaste?

- Dez e há cerca de mais vinte vacas que parecem prestes a parir - Jillian franziu o sobrolho enquanto verificava os números. - Não havia...? interrompeu-se ao ouvir um som novo por cima dos mugidos e do sussurro das folhas das árvores.

- Por ali! - exclamou, embora Gil já estivesse a caminhar naquela direcção.

Encontraram-no deitado e a tremer atrás da sua mãe, que agonizava. Teria um dia, dois no máximo, calculou Jillian, enquanto abraçava o bezerro e lhe cantarolava. A vaca estava a sangrar, já mal respirava. O parto correra mal. Embora a mãe tivesse conseguido dar à luz a sua cria, já só esperava a morte.

”Se o avião já estivesse pronto...”, pensou Jillian enquanto Gil voltava em silêncio para a carrinha. Se já tivessem o avião, teriam visto do ar que a vaca tinha problemas e... Moveu a cabeça e aproximou-se do recém-nascido. Este era o preço que tinha de pagar, recordou a si própria. Não podia chorar a morte de todos os cavalos e todas as vacas que perdia ao longo do ano. No entanto, quando viu que Gil regressava com a sua arma, lançou-lhe um olhar de angústia. Depois deu meia volta e afastou-se.

Um estremecimento percorreu o seu corpo quando ouviu o disparo, mas obrigou-se a ultrapassar a sua fraqueza. Ainda com a cria nos braços, voltou para o lado de Gil.

- Vais ter de chamar alguns homens pelo rádio

- disse este. - Tu e eu sozinhos não conseguimos colocá-lo na carrinha - agarrou no focinho do bezerro com a mão. - Espero que sejas um lutador, ou não conseguirás seguir em frente.

- Seguirá em frente - afirmou Jillian, - e eu estarei lá para ver - voltou para a carrinha, sussurrando com o objectivo de acalmar o recém-nascido que carregava nos braços.

Quando bateram as nove horas da noite estava exausta. Alguns veados tinham atravessado um campo de feno e tinham danificado, pelo menos, meio acre de cultivo. Um dos seus homens partira um braço: uma cobra assustara o cavalo e este atirara-o pelos ares. Tinham encontrado três buracos na cerca e algumas vacas tinham fugido. Tinham demorado quase o dia todo a reuni-las e a arranjar a cerca.

Todos os minutos livres que conseguira juntar, dedicara-os ao bezerro órfão. Instalara-o num estábulo seco e quente, no edifício dos estábulos para o gado, e encarregara-se ela mesma de o alimentar. Acabara o dia ali, com uma lanterna e o cheiro, e os ruídos dos animais à sua volta.

- Anda cá - sentou-se com as pernas cruzadas sobre o feno e acariciou o focinho branco do bezerro. - Já te sentes melhor - o bezerro dedicou-lhe uma espécie de mugido trémulo que a fez rir-se. Sim, Baby, agora sou a tua mamã.

Para seu alívio, agarrou de bom grado na tetina do biberão. Nas duas vezes anteriores, tivera de o obrigar a tomar o leite contra a sua vontade. Daquela vez, teve de segurar com firmeza na garrafa para impedir que a cria a arrancasse da sua mão de um puxão. Já entendera como se fazia, pensou, e acariciou-o enquanto sugava a tetina. ”É uma vida dura, mas é a única que temos.”

- Meu pequenino - murmurou, e depois riu-se quando o bezerro cambaleou e caiu sentado de repente, com as patas traseiras abertas mas sem largar a tetina. - Vá, sê um glutão! - levantou mais a base da garrafa para que, com a inclinação, o leite caísse com facilidade. - Tens todo o direito - olharam-se nos olhos enquanto o bezerro absorvia o seu alimento. - Dentro de alguns meses estarás lá fora com o resto, no pasto, a comer erva. E tenho a sensação... - disse pensativamente enquanto lhe coçava as orelhas - de que vais ter muito sucesso com as raparigas.

Quando o leite acabou e o bezerro começou a sugar ar, puxou a garrafa para trás. Imediatamente, o bezerro começou a mordiscar-lhe as calças de ganga.

- Eh, tolo, não és uma cabra!

Deu-lhe um empurrão suave e o animal rodou e ficou estendido sobre o feno, contente por receber a sua carícia.

- Vais ficar com ele como animal de estimação?

Jillian virou a cabeça e ficou a olhar fixamente para Aaron Murdock. Enquanto olhava para ele, os seus olhos perderam o sorriso.

- O que estás a fazer aqui?

- Uma das tuas perguntas preferidas - comentou ele enquanto entrava dentro do estábulo. Bonito bezerro! - baixou-se junto a ela.

Sândalo e couro, Jillian sentiu aquela mistura de cheiros e, imediatamente, afastou o nariz. Não queria que nenhum cheiro ficasse na sua memória e fizesse recordar-se dele depois de partir.

- Enganaste-te nalgum cruzamento, Murdock?

- perguntou secamente. - Este é o meu rancho.

Lentamente, ele virou a cabeça até que ambos ficaram a olhar-se nos olhos. Aaron não poderia dizer quanto tempo esteve a contemplá-la, na verdade a sua intenção não fora essa. Talvez fosse o efeito da sua gargalhada, um som grave que lhe subia pela pele e o fazia estremecer. Talvez tivesse de o atribuir ao modo como o seu cabelo resplandecia, como uma chama à escassa luz da lanterna, ou simplesmente à ternura que vira nos seus olhos enquanto alimentava o bezerro. Vira algo naquele olhar. Um homem precisava de uma mulher que o olhasse daquele modo, que fosse a primeira coisa que visse de manhã e a última antes de fechar os olhos à noite.

Naquele momento, o olhar de Jillian não mostrava nenhuma doçura, mas era desafiador. Aquilo também mexeu algo no seu interior, algo que reconheceu com menos dificuldade. O desejo era fácil de identificar. Sorriu.

- Não me enganei em nenhum cruzamento, Jillian. Queria falar contigo.

Ela não podia dar-se ao luxo de se afastar novamente dele, nem dar-lhe o prazer de saber que desejava fazê-lo. Ficou sentada onde estava e fez um gesto inquisitivo levantando o queixo.

- Sobre o quê?

Ele percorreu o seu rosto com o olhar. Começava a desejar não ter ficado em Billings tanto tempo.

- Para começar, sobre criação de cavalos.

O olhar de Jillian tremeu de emoção e traiu-a, apesar do tom desinteressado que imprimiu à sua voz.

- Criação de cavalos?

- A tua Dalila - com toda a naturalidade, enrolou um dedo no seu cabelo. Que segredo feminino teria para o ter tão suave? - O meu Sansão. Sou demasiado romântico para deixar passar uma coincidência assim.

- Romântico? O tanas! - Jillian afastou-lhe a mão, mas ele agarrou-lhe nos dedos.

- Ficarias surpreendida - disse Aaron com suavidade. Com tanta suavidade que só um ouvido muito perspicaz teria captado a firmeza da sua voz. - Sei reconhecer uma potra de categoria - voltou a acariciar o seu rosto com o olhar - quando a vejo - riu-se ao ver que os olhos de Jillian relampejavam. - Estás sempre tão disposta a discutir, Jillian?

- Estou sempre disposta a falar de negócios, Murdock - replicou ela. ”Não sejas ansiosa”, pensou. Recordava bem os ensinamentos do seu avô: ”Não mostres as tuas cartas”. - Poderia estar interessada em cruzar Dalila com o teu garanhão,

mas primeiro teria de lhe dar uma vista de olhos.

- Parece-me justo. Aparece amanhã... às nove horas.

Sentiu vontade de saltar de alegria. Cinco anos em Montana e nunca estivera no rancho dos Murdock. E o garanhão... Mas estava demasiado bem ensinado.

- Vou ver se posso. É uma hora de muito trabalho - então desatou a rir-se porque o bezerro, farto de que não lhe ligasse, começara a dar-lhe cabeçadas no joelho. - Já se tornou um mimado fez-lhe cócegas na barriga.

- Comporta-se mais como um cão do que como uma vaca - afirmou Aaron, mas inclinou-se para lhe coçar as orelhas.

Jillian ficou surpreendida com a doçura com que o fez.

- Como perdeu a mãe?

- O parto correu mal - ela sorriu quando o bezerro lambeu as costas da mão de Aaron. - Gosta de ti. É demasiado jovem para saber o que faz.

Aaron arqueou um sobrolho com ar divertido

- Tal como te disse, tudo consiste em saber tocar - deslizou uma mão sobre a cabeça do bezerro e massajou-lhe o pescoço. - Há uma técnica para acalmar os bebés, outra para domar cavalos... e outra para amansar uma mulher.

- ”Amansar uma mulher”? - Jillian olhou para ele, arqueando ambos os sobrolhos, mais divertida do que incomodada. - Bela frase!

- Uma que tenha aptidões, e em certos casos.

Jillian viu que o bezerro, satisfeito e com a barriga cheia, se aninhava no feno com o propósito de dormir.

- Um macho típico! - assinalou ainda com um sorriso nos lábios. - E tu pertences ao mesmo grupo - disse-o sem azedume, com resignação.

- Pode ser - reconheceu ele. - Eu, pelo contrário, nunca diria que és ”típica”.

Jillian estava muito relaxada. Observou-o.

- Não creio que, na tua boca, isso seja um elogio.

- Não, era um comentário. Se te fizesse um elogio, ficarias furiosa.

Jillian inclinou a cabeça para trás e riu-se, satisfeita.

- Podes ser muitas coisas, Murdock, mas não és parvo - ainda a rir-se, apoiou as costas na parede do estábulo enquanto levantava um joelho e o rodeava com os braços. Naquele momento não queria questionar-se porque lhe agradava a sua companhia.

- Tenho um nome - a luz que incidia nos olhos de Jillian e os iluminava, deixava o resto do seu rosto na escuridão. Ele sentiu novamente que algo se remexia no seu interior, - alguma vez pensaste em usá-lo?

- Na verdade, não - mas era mentira, Jillian apercebeu-se imediatamente. Na verdade, na sua mente, já lhe chamava Aaron. O verdadeiro problema não era sob que nome, mas o facto de pensar nele. Apesar de tudo, sorriu novamente; sentía-se demasiado bem para se preocupar com aquilo. - Baby adormeceu.

Aaron olhou e sorriu. Continuaria a chamar-lhe Baby quando fosse um touro com várias centenas de quilos?, perguntou-se. Provavelmente!

- Foi um dia muito longo.

- Hum... - ela esticou os braços para o tecto e sentiu que os seus músculos relaxavam. O cansaço que sentira ao entrar no estábulo transformara-se numa fadiga que lhe era quase agradável. - Por mais longos que pareçam, nunca dá tempo de fazer tudo o que queremos. Se a semana tivesse mais dez horas, talvez conseguisse pôr as coisas em dia.

Pôr em dia o quê?, perguntou-se ele. A que se referia?

- Nunca ouviste falar de perfeccionismo?

- Ambição - corrigiu ela. Olharam-se nos olhos. - Não sou eu quem está disposta a contentar-se só com o que lhe oferecem.

A fúria que Aaron sentiu foi tão repentina que agarrou com força num punhado do feno que havia no chão. Era evidente que Jillian se referia ao rancho do seu pai e à sua situação ali. A sua expressão permaneceu inalterada enquanto lutava contra o impulso de devolver o ataque.

- Cada um faz o que deve - disse com calma. Abriu o punho e largou o feno.

Chateou-lhe que ele não se defendesse. Queria que tentasse defender-se, justificar-se. Aquilo não deveria importar-lhe, recordou Jillian a si própria. Ele não deveria importar-lhe. Não lhe importava, garantiu a si mesma com algo bastante parecido a pânico, claro que não! Levantou-se e sacudiu o pó das calças.

- Tenho de rever alguns papéis antes de me deitar.

Ele também se levantou, mais lentamente, e já era demasiado tarde quando ela se apercebeu de que estava encostada à parede num canto do estábulo.

- Nem sequer vais convidar-me para uma chávena de café, Jillian?

Esta sentia uma grande tensão na nuca e o seu coração batia com tanta força que lhe repercutia nas costelas. Viu nos olhos de Aaron que estava zangado, mas não era aquela irritação o que a preocupava, mas a sua própria pulsação, muito agitada.

- Não - disse finalmente, - não vou convidar-te para um café.

Ele enfiou os polegares nas presilhas do cinto e observou-a com atenção.

- Que falta de educação! Ela levantou o queixo.

- Nunca tive jeito para isso.

- Não? - o modo como sorriu fez com que ela ficasse alerta. - Então, vamos deixar isso de lado. Com um movimento tão rápido que ela não teve tempo de se esquivar, agarrou-a pela camisa e puxou-a para si. O primeiro impacto foi sentir aquele corpo, alto e forte, contra o seu.

- Raios partam, Murdock...! O segundo, sentir a sua boca sobre a dela. Oh, não...! Aquele pensamento doce e fraco deslizou na mente de Jillian enquanto lutava para se libertar. Oh, não! Não deveria ser tão agradável nem saber tão maravilhosamente. Não deveria desejar que aquilo continuasse.

Empurrou-o para trás e ele apertou-a ainda mais contra si para que não pudesse empurrá-lo novamente. Ela contorceu-se, mas só conseguiu excitar-se com o roçar dos seus corpos. Chega!, disse para si Jillian enquanto a paixão começava a arder no seu interior. Não podia nem devia deixar que aquilo acontecesse. Sabia como enganar o desejo, fizera-o durante cinco anos sem quase nenhum esforço. Mas naquele instante... Naquele instante, algo disparou dentro dela demasiado depressa, e corria e escapulia-se de um modo que não conseguia agarrá-lo e pará-lo, para que não continuasse a avançar até estar fora do seu alcance.

O seu sangue começou a ferver, as suas mãos a agarrarem-se a ele e a sua boca a corresponder. Aaron esperara que ficasse furiosa. Como ele já estava, não lhe importava. Sabia que Jillian ficaria furiosa e que discutiria com ele por a ter surpreendido daquele modo e a ter beijado sem permissão. A sua própria fúria exigia que ela discutisse, tanto como o seu desejo lhe exigia que a beijasse.

Imaginara que a sua boca seria doce. Caso contrário, porque andava há dois dias sem conseguir pensar em mais nada a não ser em beijá-la? Já sabia que o seu corpo seria firme, que as curvas e formas femininas se insinuariam apenas subtilmente. Adaptava-se ao dele como se estivesse moldado para isso. Ela esticou os braços para tentar afastar-se dele, moveu-se, e ele sentiu um formigueiro na pele com a fricção que aqueles movimentos produziam.

De repente, ela abraçou-o e os lábios de Jillian abriram-se. Não se tratava de uma rendição, os seus lábios transmitiam um desejo premente que o sacudiu. Se aquele ardor fora crescendo dentro dela, tivera muito trabalho para o esconder. Explodira num brilho de paixão vinda do nada. Agitado, Aaron recuou, tentando avaliar a sua própria reacção e lutando para não perder de vista quais eram as suas próprias necessidades.

Jillian ficou a olhar fixamente para ele, a sua respiração era irregular. O cabelo caía-lhe pelas costas e reflectia a luz escassa, os seus olhos brilhavam na escuridão. A sua mente estava descontrolada e abanou a cabeça para tentar pensar com clareza. Precisamente quando ela começava a ter o primeiro pensamento coerente, ele disse um palavrão e apanhou novamente a sua boca.

Daquela vez, não houve sinal de resistência, nem de rendição. A sua paixão igualava a de Aaron. Sândalo e couro. Daquela vez, ela inalou com força, absorveu aquele perfume do mesmo modo que absorvia aqueles lábios firmes e implacáveis. Deixou que a sua língua brincasse com a dele enquanto se inebriava de todos aqueles sabores e cheiros tão masculinos. No seu modo de a segurar e beijar havia algo primitivo. E ela gostava.

Deixou que o seu corpo a comandasse. Quanto tempo suspirara por algo do género? Ter alguém que a agarrasse e arrebatasse até ao ponto de não ter pensamentos nem preocupações? Ali não se exigiam responsabilidades, as únicas exigências eram as da carne. Ali, com aquela boca quente e húmida sobre a sua, com aquele corpo firme contra o seu, sentia-se apenas mulher. Egoistamente mulher. Esquecera quão fabuloso podia chegar a ser aquilo ou talvez nunca tivesse experimentado plenamente aquela sensação.

O que estava aquela mulher a fazer-lhe? Aaron pensou em afastar-se e deu por si com as mãos entrelaçadas no cabelo de Jillian, suave e abundante. Tentou pensar, mas os seus sentidos estavam dominados pelo cheiro de Jillian. E aquele sabor... Um gemido tentou sair da sua garganta enquanto a beijava com paixão. Como podia ter intuído que saberia assim? Um sabor forte, atraente, sedutor.

Aquele cheiro possuía toda a exuberância de que o seu corpo carecia e aquela combinação era devastadora. Perguntou-se como conseguira ter vivido até então sem aquilo. Então apercebeu-se de que estava a ir demasiado longe e demasiado depressa. Inclinou-se para trás com cuidado, uma vez que as suas mãos não repousavam sobre os ombros de Jillian com a firmeza que teria desejado.

Ela cambaleou um pouco e agarrou-se. Meu Deus, o que estava a fazer? O que fizera? Ficou a olhar fixamente para Aaron enquanto tentava recuperar o fôlego. Aqueles olhos escuros e atrevidos, aquela boca ardilosa... Esquecera-se. Esquecera-se de quem ela era e de quem ele era. Esquecera tudo à excepção daquela sensação embriagadora de liberdade e paixão. Ele utilizara aquilo contra ela, pensou. Mas algo acontecera quando...

”Não penses agora!”, ordenou a si mesma. ”Limita-te a expulsá-lo daqui antes que acabes por fazer uma figura ridícula”.

Com cuidado, afastou as mãos de Aaron dos seus ombros e rogou para que a sua voz soasse firme.

- Bom, Murdock, já te divertiste. Agora desaparece.

Divertido?, pensou ele, olhando fixamente para ela. Fosse o que fosse, o que acontecera entre eles não tinha nada a ver com a palavra ”divertido”. O chão movia-se ligeiramente sob os seus pés, tal como há anos atrás, quando bebera a sua primeira embalagem de seis cervejas. Também aquilo não fora divertido, mas fora uma verdadeira experiência. Claro que, no dia seguinte, pagara caro. Imaginou que, também agora, teria de pagar.

Não iria desculpar-se, disse para si enquanto se obrigava a acalmar-se, nem pensar, mas sairia dali enquanto ainda pudesse fazê-lo. Com naturalidade, baixou-se para apanhar o seu chapéu, que caíra para o chão quando ela entrelaçara os dedos no seu cabelo. Demorou algum tempo para o pôr novamente na cabeça.

- Tens razão, Jillian - disse calmamente quando conseguiu falar. - Qualquer homem teria dificuldade em resistir a uma mulher como tu - sorriu e deu uma palmadinha no seu chapéu. - Mas farei o que puder.

- Vamos ver se é verdade, Murdock! - gritou Jillian nas suas costas, e depois abraçou-se porque começara a tremer.

Mesmo depois de o som dos passos de Aaron ter desaparecido, ainda esperou cinco minutos antes de abandonar o estábulo. Quando saiu, no pátio do rancho reinavam o silêncio e a escuridão. Apenas se ouvia o murmúrio de uma televisão ou de um rádio vindo do barracão dos trabalhadores. Mais à frente brilhavam umas quantas luzes das casas dos cowboys casados. Parou e aguçou o ouvido, mas não ouviu o ruído do motor do veículo que Aaron teria usado para chegar até ali.

Já está longe, pensou, e virou-se sobre os seus calcanhares para se dirigir para casa. Esta tinha dois andares e era de pedra e madeira. Fora construída no mesmo lugar que ocupara a casa original. O seu avô sempre se vangloriara de ter nascido numa casa que teria cabido na cozinha da actual. Jillian entrou pela porta principal, que nunca estava fechada.

Sempre gostara daquela casa, a distribuição inteligente da madeira, os ladrilhos e a pedra na área de lazer. Na lareira conseguia-se assar um bezerro. As cortinas da sua avó ainda estavam penduradas nas janelas. Gostaria de a ter conhecido. Tudo o que sabia dela era que se tratava de uma irlandesa de aspecto delicado, mas muito forte. Herdara a cor do seu cabelo e, segundo o seu avô, também o seu temperamento. E talvez, pensou ironicamente enquanto subia as escadas, também a sua força.

Meu Deus, como gostaria de ter uma mulher ao pé de si para poder conversar! Quando estava a meio das escadas, parou e apertou as têmporas com os dedos. Mas como?, perguntou-se. Pelo que recordava, nunca procurara a companhia de outras mulheres. Muito poucas se interessavam pelas mesmas coisas que ela e, quando não se interpunha nenhum conflito de tipo sexual, sempre lhe parecera que era mais fácil lidar com homens.

Mas naquele momento, naquela casa tão vazia e com o sangue a ferver nas suas veias, desejava ter uma mulher perto de si, que pudesse entender a luta que se travava no seu interior. A sua mãe? Com uma gargalhada sóbria, empurrou a porta do seu quarto. Se telefonasse à sua mãe e lhe contasse que estava a arder de desejo, e que não sabia o que fazer com ele, a encantadora esposa do médico ficaria vermelha que nem um tomate e a gaguejar, recomendar-lhe-ia um bom livro sobre o assunto.

Não, por muito que amasse a sua mãe, não era uma mulher que pudesse compreender bem aquelas ânsias, admitiu Jillian, tirando a sua camisa de trabalho. Se quisesse ser sincera, fora isso o que sentira nos braços de Aaron. Talvez fosse só isso o que ela era capaz de sentir. Franziu o sobrolho, atirou as calças de ganga para cima da camisa e caminhou nua para a casa de banho

Provavelmente, deveria estar agradecida por conseguir sentir aquilo. Abriu a torneira da água quente ao máximo e depois um pouco da fria. Não sentira absolutamente nada por nenhum homem durante anos. Cinco anos, admitiu, e deitou sais de banho na agua. Apanhou o cabelo no alto da cabeça com a ajuda de dois ganchos

Felizmente, lembrava-se de Kevin e da sua breve e infeliz aventura. Uma noite de sexo poderia ser chamada ”uma aventura”?, perguntou-se com pesar, e, em seguida, entrou na água quente. Independentemente do que lhe chamasse, fora um fiasco e era isso o que devia recordar. Era muito jovem naquela época. Já conseguia quase pensar em tudo aquilo com diversão. Quase!

A jovem e ingénua virgem e o afável e encantador médico residente, de olhos cristalinos como a água de um lago. Não precisara de a persuadir a ir para a cama com ele, não precisara de a pressionar. Não, devia reconhecer que ela o desejara e que ele se mostrara carinhoso e doce. A única coisa que se passara era que a palavra ”amo-te” significava coisas diferentes para cada um deles. Para ela implicava um compromisso, para ele era simplesmente uma palavra.

Aprendera da forma mais dura que fazer amor não equivalia a amor, compromisso ou casamento. Ele rira-se, embora talvez não de um modo cruel, quando ela, ingenuamente, falara de um futuro juntos. Não queria uma esposa, nem sequer uma companheira... Bastava-lhe alguém que quisesse ir para a cama com ele de vez em quando. A sua desenvoltura e a sua sinceridade tinham-na destruído.

Ela estava disposta a adaptar-se ao que ele quisesse, a transformar-se numa esposa de médico bela e sociável, tal como a sua mãe; numa dona de casa dedicada e hábil; numa companheira organizada capaz de conjugar carreira e família. Demorara meses para se aperceber de que fizera uma figura ridícula diante dele, que levara à letra os elogios e as palavras amáveis, porque era o que desejava ouvir. Necessitara de ainda mais tempo e vários milhares de quilómetros de distância para poder reconhecer que Kevin lhe fizera um favor.

Não só a salvara de tentar forçar a sua personalidade para se adaptar a um tipo de vida em que nunca teria encaixado, como também lhe proporcionara uma visão muito clara do que os homens eram. Não se podia confiar neles a nível pessoal.

Quando era jovem, tentava sempre agradar ao seu pai e fracassara porque se parecia demasiado com o seu avô. O único homem que a aceitara tal como era fora Clay Baron. E já não existia.

Recostou-se, fechou os olhos e deixou que a água quente aliviasse a sua fadiga. Aaron Murdock não procurava uma companheira e ela também não. O sucedido entre os dois no estábulo fora um erro e não se repetiria. Talvez ele estivesse à procura de uma amante, mas ela não. Jillian Baron era livre e era assim que gostava de viver.

 

Perguntava-se se Jillian iria. Aaron conduziu de volta para o caminho que noutros tempos servira para que mulas e cavalos transitassem. Não estava em melhor estado do que naquela época remota. O jipe abanava, como se fosse um potro com mau feitio, enterrava-se nos sulcos e saltava sobre as pedras. Gostava, tal como desfrutara da visita matinal, acompanhado por cinco dos seus homens, ao acampamento. Se pudesse dispor de algum tempo, gostaria de passar alguns dias num dos acampamentos em companhia masculina. Trabalho cansativo durante o dia e algumas cervejas para acompanhar o jogo de póquer à noite. E conduzir o gado para suficientemente longe do rancho para esquecer a existência da civilização. Sim, gostaria de algo do género, mas...

Apreciava a maneira conservadora, tradicional, de fazer as coisas do seu pai, em especial quando iam ao encontro das suas próprias ideias, com frequência experimentais. Os homens continuavam a usar o laço e a conduzir o gado para os pastos, mas dois tractores a arrastar um cabo limpariam mais terreno num dia que vários homens num mês com uma enxada. E um avião...

Com um sorriso forçado, recordou como discutira há seis anos atrás para que comprassem um avião e que o seu pai o considerara um luxo desnecessário. Fora ele quem acabara por pagar o aparelho do seu bolso e aprendera a pilotá-lo. O seu pai nunca admitira que o avião se tornara imprescindível. Desde que o utilizasse, Aaron não se importava. A sua intenção não era tirar a figura do cowboy fora de cena, mas simplesmente facilitar-lhe um pouco as coisas.

Reduziu a velocidade e deixou que o jipe descesse a colina aos tombos. As desavenças com o seu pai, que tinham atingido o seu ponto gélido há cinco anos atrás, tinham suavizado, embora sem chegarem a desaparecer. Sabia que teria de lutar por cada uma das mudanças que pretendesse introduzir. E que acabaria por ganhar. Paul Murdock podia ser teimoso, mas não era nenhum estúpido. E estava doente. Dentro de seis meses...

Aaron voltou a meter a quarta. Não gostava de pensar na batalha que o seu pai estava a perder, uma batalha em que ele não podia fazer nada para o ajudar. A desesperança era algo a que não estava habituado. Parecia-se demasiado com o seu pai, talvez essa fosse a razão pela qual passavam a vida a discutir.

Afastou da sua mente o seu pai e a ideia da morte e pensou em Jillian. Toda ela era vida, juventude e vitalidade.

Iria aparecer? Sorrindo, atravessou a grande velocidade um pasto. Pois claro que iria, embora fosse apenas para lhe demonstrar que não era fácil intimidá-la. Levantaria o queixo e lançar-lhe-ia um dos seus olhares gélidos. Não era de admirar que o atraísse tanto e que essa atracção se transformasse numa dor no estômago. Essa dor abrasara-o ao beijá-la.

Nunca estivera tão prestes a gaguejar com nenhuma mulher desde que Emma Lou Swanson o iniciara nos prazeres da vida no celeiro. Uma coisa era um adolescente perder a capacidade de se expressar correctamente quando o rodeavam uns braços ternos e outra muito diferente que isso acontecesse a um homem feito que fizera um estudo dos prazeres e das frustrações que reportavam às mulheres. Não podia jurar, mas sabia que iria ter mais de ambas as coisas. Em breve.

Era uma típica Baron, decidiu. Impulsiva, teimosa, obstinada. Voltou a sorrir. Imaginava que a razão principal pela qual os Baron e os Murdock nunca se tinham dado bem era porque se pareciam demasiado. Não iria ser fácil para Jillian assumir todas as responsabilidades do rancho, mas não duvidava de que o conseguisse. E também não duvidava de que ele iria gostar de ver como o fazia. Quase tanto como gostaria de fazer amor com ela. Assobiando entredentes, travou diante da casa principal. Um cão ladrava perto do estábulo do gado. Alguém estava a ouvir rádio no celeiro, era uma canção country, um lamento lento cantado com voz fanhosa. Nos alegretes de flores, sem uma única erva daninha, começavam a florescer as magnólias. Quando estava a sair do jipe, ouviu abrirem a porta do alpendre e olhou naquela direcção. A sua mãe saiu. Sorria, mas os seus olhos mostravam cansaço.

Era tão bonita... Nunca chegara a habituar-se, emocionava-o sempre. Bela, magra, Karen Murdock caminhava com passo ágil. Era vinte e dois anos mais jovem do que o seu pai e nem os Invernos frios nem o sol abrasador do Montana tinham murchado a beleza da sua pele. A sua irmã parecia-se muito com ela, pensou Aaron, a clássica beleza loira que melhorara com os anos. Karen vestia umas calças que a faziam parecer ainda mais magra e uma blusa cor-de-rosa, e usava o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Poderia ter entrado no Beverly Wilshire sem ter de mudar minimamente o seu aspecto. E, se necessário, poderia, igualmente, ter montado num cavalo e ir arranjar a vedação das cercas.

- Tudo bem? - perguntou, estendendo-lhe uma mão.

- Tudo bem. Apanharam os animais que estávamos a perder pela cerca sul - Aaron observou a cara da sua mãe e agarrou-lhe a outra mão. - Pareces cansada.

- Não - apertou-lhe os dedos, tanto para procurar apoio como para o tranquilizar. - O teu pai não dormiu bem esta noite. Não vieste vê-lo.

- Não teria dormido melhor se eu tivesse vindo vê-lo.

- Discutir contigo é a única coisa que faz ultimamente.

Aaron sorriu, porque era o que ela esperava.

- Virei mais tarde para falar com ele sobre os quinhentos acres de terreno que quero limpar.

Karen riu-se e pôs as mãos sobre os ombros do seu filho. Como ela estava no alpendre e ele em terra, os seus olhos estavam à mesma altura.

- Convém-lhe ver-te, Aaron. Não, não me levantes esse sobrolho! - ordenou com suavidade.

- Quando vim vê-lo ontem de manhã, disse-me para ir dar uma curva.

- É disso que se trata! - os dedos de Karen massajavam os ombros do seu filho distraidamente. Eu tendo a mimá-lo, embora não devesse. Precisa de ti, zangar-se contigo ajuda-o a viver. Sabe que tens razão, que sempre tiveste. Está orgulhoso de ti.

- Não é preciso que me expliques como é - o tom de Aaron endureceu sem que conseguisse evitar. - Conheço-o o suficiente.

- Quase o suficiente - murmurou Karen, apoiando a sua face na do seu filho.

Quando o veículo de Jillian entrou no pátio do rancho, a primeira coisa que viu foi que Aaron estava abraçado a uma loira magra e elegante. A onda de ciúmes deixou-a aturdida, depois enfureceu-se. Afinal de contas, era um homem, recordou a si mesma enquanto as suas mãos se agarravam com força ao volante por um instante. Era fácil para um homem desfrutar de um momento quente num estábulo à noite e, na manhã seguinte, de um abraço terno no alpendre. O verdadeiro sentimento não significava nada. Porquê haveria de o fazer?, pensou, apertando os dentes. Travou, de repente, junto ao jipe de Aaron.

Este virou-se e, apesar de ter a desvantagem de o sol a encandear, dedicou-lhe um olhar gélido. Nem por um momento lhe daria a satisfação de descobrir que passara uma noite inquieta, povoada de sonhos. Saiu do seu velho utilitário e conseguiu não bater a porta com força.

- Murdock - disse secamente.

- Bom dia, Jillian - Aaron dedicou-lhe um sorriso afável, mas no seu olhar havia algo mais penetrante.

Ela caminhou para ele, já que não parecia disposto a largar a loira para se aproximar.

- Vim ver o teu garanhão.

- Estivemos a falar de boas maneiras ontem à noite, não foi? - o seu sorriso tornou-se mais amplo quando ela olhou iradamente para ele. - Acho que vocês as duas não se conhecem.

- Não, com efeito - Karen desceu os degraus do alpendre, divertida com o brilho que via no olhar do seu filho e a fúria evidente nos olhos da recém-chegada. - Tu deves ser Jillian Baron. Sou Karen Murdock, a mãe de Aaron.

Jillian ficou de boca aberta e olhou para a senhora Murdock. Delicada, elegante, bonita.

- Mãe? - repetiu antes de poder conter-se. Karen riu-se e pôs uma mão no ombro de Aaron.

- Acho que acabam de me fazer um elogio. Ele baixou a vista para olhar para ela e sorriu.

- A ti ou a mim?

A sua mãe riu-se novamente e virou-se para Jillian.

- Vou deixar-vos para que tratem do vosso assunto. Por favor, se tiveres tempo, entra para tomarmos um café antes de te ires embora, Jillian. Ultimamente, tenho tão poucas ocasiões de conversar com uma mulher...

- Sim, eh... obrigada! - com o sobrolho franzido, Jillian viu como Karen atravessava a porta do alpendre.

- Parece-me que não é habitual em ti ficar sem palavras - comentou Aaron.

- Não - Jillian abanou a cabeça levemente e olhou para ele. - A tua mãe é muito bonita.

- Surpreendida?

- Não. Quer dizer, tinha ouvido dizer que era bonita, mas... - encolheu os ombros e desejou que ele parasse de olhar para ela com aquele sorriso infernal desenhado na boca. - Não te pareces com ela em nada.

Aaron passou-lhe um braço por cima do ombro enquanto davam meia volta e se afastavam da casa.

- Já estás a tentar enganar-me outra vez, Jillian. Ela teve de morder o lábio inferior para conter a gargalhada.

- Tenho coisas melhores para fazer com o meu tempo - embora lhe agradasse senti-lo sobre o seu ombro, retirou o braço de Aaron.

- Cheiras a jasmim. Puseste isso para mim?

Como semelhante pergunta não merecia resposta, Jillian limitou-se a dirigir-lhe um olhar gélido, que só desapareceu quando ele desatou a rir-se. Aaron inclinou-lhe o chapéu para trás, puxou-a para si e deu-lhe um beijo. Jillian sentiu que os joelhos lhe fraquejavam. Embora a tivesse largado antes que lhe ocorresse pedir-lhe tal coisa, recuperou o bom-senso de imediato.

- Posso saber o que pensas que...?

- Desculpa - os seus olhos continuavam sorridentes, mas levantou as mãos no ar fazendo um gesto de rendição. - Perdi a cabeça. Acontece-me quando olhas para mim como se quisesses partir-me aos bocados. Bocadinhos - acrescentou, e voltou a pôr-lhe o chapéu na cabeça.

- Da próxima vez, não me limito a olhar disse, e pôs-se a andar em direcção ao curral.

Aaron alcançou-a.

- Como está o bezerro?

- Bem. O veterinário vai lá esta tarde para o observar, mas há pouco voltou a beber o biberão todo.

- O pai é aquele teu novo touro? - quando lhe dirigiu um olhar arisco, ele sorriu. - As notícias correm. Além disso, tiraste-mo das mãos. Estava a preparar-me para ir vê-lo a Inglaterra, com o propósito de o comprar, quando descobri que tu já o tinhas feito.

- A sério? - aquilo era uma novidade. E Jillian não podia evitar alegrar-se ao ouvi-lo.

- Pensei que ficarias contente.

- Sou uma antipática - admitiu Jillian enquanto chegavam perto do picadeiro. - Não sou uma rapariga agradável, Murdock.

Ele olhou para ela de um modo estranho e assentiu.

- Então vamos entender-nos. Que nome deram os teus homens a esse touro?

O sorriso de Jillian foi tão amplo que se desenharam duas covinhas junto aos cantos dos seus lábios. Aaron disse para si que tinha de descobrir o que se sentia quando se punha os lábios ali.

- Terror comporta-se de forma irrepreensível quando está em boa companhia.

Ele soltou uma gargalhada contida.

- Parece-me que não foi esse o nome que ouvi. Até agora, quantos bezerros?

- Cinquenta. Ainda é cedo.

- Hum... Usam inseminação artificial? Ela semicerrou os olhos.

- Porquê?

- Só por curiosidade. Dedicamo-nos ao mesmo, Jillian.

- Não me esqueço - replicou ela.

Aquilo incomodou-o e o rosto de Aaron ficou rígido.

- E isso significa que temos de ser rivais?

- Não? - Jillian enterrou o chapéu. - Vim ver o garanhão, Murdock.

Ele olhou-a nos olhos por um momento e ela começou a sentir-se violenta.

- Efectivamente - respondeu Aaron com tranquilidade. Agarrou-se com brusquidão a um dos postes do cercado e, dando prova de grande flexibilidade, inclinou-se sobre a cerca do curral e saltou.

Rude, reprovou-se Jillian. Uma coisa era ser precavida, inclusive pouco amável, e outra era ser rude. Ela não era assim. Franzindo o sobrolho, apoiou-se na cerca e apoiou o queixo sobre uma mão. E, no entanto, mostrava-se continuamente rude com Aaron, desde o seu primeiro encontro. O sobrolho relaxou enquanto via como ele se aproximava do cavalo.

Os dois machos eram fortes e proporcionados, e parecia que ambos gostavam de fazer as coisas à sua maneira. Naquele momento, o garanhão não estava com vontade que lhe pusessem as rédeas. Afastou-se, fazendo algumas cabriolas, e começou a beber com ar distraído a água do bebedouro.

Aaron murmurou algo que fez com que Sansão abanasse a cabeça e voltasse a afastar-se a trote.

- És um demónio! - ouviu-o dizer Jillian, mas quase a rir-se. Aaron dirigiu-se novamente para o cavalo e este voltou a recuar.

Jillian subiu a cerca e sentou-se.

- Vá, dá-lhe a volta! - animou-o.

Ele dirigiu-lhe um sorriso, depois encolheu os ombros e virou as costas ao cavalo, como se se tivesse rendido. Começou a andar em direcção a ela, mas quando se encontrava no meio do picadeiro, Sansão foi até ele e deu-lhe um empurrão com o focinho.

- Agora queres disfarçar - virou-se e acariciou-lhe a crina antes de deslizar as rédeas, - depois de me fazeres parecer inexperiente diante da senhora.

Inexperiente... Nem pensar, pensou Jillian ao observar o modo como segurava no animal caprichoso. Se tivesse querido impressioná-la, teria deixado que o difícil parecesse difícil, em vez de o fazer parecer tão fácil. Deixou escapar um suspiro: o seu respeito por ele acabava de subir um ponto.

Depois, quando Aaron chegou até ela com o garanhão, inclinou-se para acariciar o pescoço de Sansão. O pêlo parecia seda e os olhos do cavalo, precavidos, mas não mesquinhos.

- Aaron... - viu que ele arqueava um sobrolho ao ouvi-la pronunciar espontaneamente o seu nome. Desculpa - limitou-se a dizer.

Algo brilhou nos olhos de Aaron, mas eram tão escuros que era difícil ler neles.

- Está bem - respondeu ele, simplesmente, e estendeu-lhe uma mão. Ela aceitou-a e saltou para dentro do curral.

- É lindo! - Jillian passou as suas mãos pelo peito amplo e os flancos elegantes. - Já alguma vez o cruzaste?

- Duas vezes em Billings - respondeu, olhando para ela.

- Há quanto tempo o tens? - dirigiu-se até à cabeça de Sansão e passou por debaixo dela para se colocar do outro lado.

- Desde que nasceu. Demorei cinco dias para apanhar o seu pai.

Ela olhou para ele e reparou num brilho nos seus olhos.

- Devia haver cerca de cento e cinquenta cavalos naquela manada - prosseguiu Aaron. - Era um demónio enjaulado, quase me matou da primeira vez que lhe pus as rédeas. Depois destruiu o seu estábulo e quase voltou a fugir. Devias ter visto: sangrava de uma pata e os seus olhos eram fogo. Quando o cruzámos com a égua, foram precisos seis homens para o segurar.

- O que fizeste com ele? - engoliu em seco pensando como teria sido fácil cruzá-lo várias vezes e depois castrá-lo. Arruinar o seu valor.

Os olhos de ambos encontraram-se por cima do lombo do animal.

- Deixei-o ir. Há coisas que é impossível tê-las fechadas.

Ela sorriu. Antes de poder dar-se conta, estendeu a sua mão por cima de Sansão para agarrar a de Aaron.

- Fico contente.

Olhando-a nos olhos, acariciou-lhe os nós dos dedos com o polegar. A palma da sua mão era áspera, o dorso da dela, suave.

- És uma mulher interessante, Jillian, com alguns pontos suaves e atraentes.

Perturbada, ela tentou retirar a sua mão.

- Muito poucos.

- Por isso são tão atraentes. Estavas muito bonita ontem à noite, sentada sobre o feno e a sussurrar ao bezerro. O teu cabelo brilhava.

Palavras que encantavam, disse para si Jillian, disso ela sabia alguma coisa. Mas então, porque o seu coração batia mais depressa?

- Não sou bonita - disse. - Não quero ser bonita.

Quando ele se apercebeu de que falava a sério,

inclinou a cabeça.

- Bom, nem sempre obtemos aquilo a que nos propomos, não é verdade?

- Não comeces outra vez, Murdock! - ordenou ela com voz tão cortante que o cavalo se moveu inquieto por debaixo das suas mãos entrelaçadas.

- Começar o quê?

- Sabes muito bem. Estava a pensar porque será que acabo sempre por ser rude contigo - começou a dizer, - e apercebo-me de que a razão é que tu não entendes outra linguagem. Larga a minha mão.

Ele semicerrou os olhos ao ouvir aquele tom.

- Não! - agarrou-a com mais força e deu uma palmada ao cavalo. Este afastou-se a trote e deixou-os um diante do outro, sem nada que se interpusesse entre eles. - Eu estava a pensar porque será que acabo sempre a desejar pôr-te de barriga para baixo em cima dos meus joelhos... ou ao ombro - acrescentou pensativamente. - Talvez seja pelos mesmos motivos.

- Os teus motivos não me interessam.

Os lábios de Aaron curvaram-se ligeiramente para cima, mas no seu olhar havia algo que não tinha nada a ver com humor.

- Estaria disposto a acreditar em ti se não fosse o que aconteceu ontem à noite - deu um passo para ela. - Pode ser que eu te tenha beijado primeiro, mas, tu devolveste-me o beijo. Tive a noite toda para pensar nisso... e no que vou fazer a esse respeito.

Talvez fosse porque ele dissera a verdade quando ela não tinha nenhuma vontade de a ouvir. Talvez tivesse algo a ver com o brilho de malícia que Jillian viu no seu olhar ou com o seu sorriso insolente. Poderia ter sido uma combinação de tudo isso o que a fez perder as estribeiras. Antes de sequer pensar, e sem que ele tivesse tempo de reagir, deu-lhe um murro no estômago.

- Pois isto é o que eu penso fazer a esse respeito! - declarou enquanto ele resmungava de dor. Jillian mal viu a sua cara de perplexidade antes de dar meia volta e se afastar. Não chegou muito longe.

Ficou sem ar ao sentir como a atirava ao chão. Ficou deitada, de costas, imobilizada sob o seu peso. A cara de Aaron já não mostrava perplexidade, mas raiva. Não decorreu nem um segundo antes que começasse a bater-lhe, mas quase imediatamente se apercebeu de que não tinha hipótese.

- És um demónio! - resmungou Aaron, segurando-a. - Estás a pedir umas palmadas desde a primeira vez que te vi.

- Seria necessário alguém mais homem do que tu, Murdock! - quase conseguiu levantar o joelho e alcançar um ponto muito importante, mas ele moveu-se e ela ficou numa posição ainda mais vulnerável. Apareceu no seu interior uma paixão que não tinha nada a ver com o seu aborrecimento.

- Portanto queres provar-me como podes ser má... - ela voltou a contorcer-se e despertou algo perigoso nele. - Se querias jogar sujo, bastavas ter dito - fechou a sua boca sobre a dela antes que Jillian pudesse protestar. Naquele momento, reparou como a pulsação dela acelerava, pois estava a segurá-la pelos pulsos. Depois só pôde sentir a paixão com que a sua boca o recebia.

Não tinha consciência de se ela continuaria a mostrar alguma resistência. Ele mesmo estava a perder-se, muito mais do que esperara. O sol aquecia-lhe as costas e, sob o seu corpo, ela era suave, mas ele só era capaz de sentir os seus lábios, húmidos e sedosos. Pensou que poderia viver com aquela sensação até ao fim dos seus dias, e isso aterrorizou-o.

Inclinou-se para trás e ficou a olhar fixamente para ela. Conseguira deixá-lo sem ar ainda mais do que com o murro.

- Devia bater-te - disse ele, calmamente. Apesar de estar deitada, ela conseguiu levantar o queixo.

- Preferia - não era a primeira mentira que lhe dizia, mas talvez fosse a maior.

Recordou a si mesma que nenhuma mulher gostaria de ser beijada por um homem que, previamente, a atirara ao chão, embora a sua consciência lhe recordasse que tinha o que merecera. Não era uma boneca frágil e não queria que a tratassem como tal, mas não deveria desejar que ele a beijasse novamente... Não deveria desejá-lo tanto que quase pudesse senti-lo.

- Vais sair de cima de mim? - perguntou entredentes. - Não és tão leve como pareces.

- É mais seguro falar contigo nesta posição.

- Eu não quero falar contigo.

Os olhos de Aaron voltaram a brilhar.

- Então não falamos.

Antes que ela pudesse protestar ou que ele fizesse aquilo a que se propunha, Sansão baixou a cabeça e pô-la entre as suas respectivas cabeças.

- Arranja a tua própria rapariga - resmungou Aaron, e empurrou-o para um lado.

- É mais delicado do que tu - começou a dizer Jillian, e desatou a rir-se quando o cavalo voltou a inclinar a cabeça. - Pelo amor de Deus, Aaron, deixa-me levantar! Isto é ridículo.

Em vez de se mostrar complacente, ele voltou a descer o olhar para ela. Os olhos de Jillian brilhavam cheios de regozijo, insinuavam-se as covinhas... O seu cabelo estava espalhado como se fosse uma chama sobre o pó.

- Estou a começar a gostar disto. Não o fazes o suficiente.

Ela soprou para afastar o cabelo dos olhos.

- O quê?

- Sorrir.

Jillian riu-se novamente e ele reparou que os seus braços, que agarrava pelos pulsos, relaxavam.

- E porque haveria de o fazer?

- Porque eu gosto.

Ela tentou exalar um grande suspiro, mas acabou numa gargalhada contida.

- Se pedir desculpa por te ter dado aquele murro, deixas-me levantar?

- Não estragues isto agora. Além disso, não voltarás a apanhar-me desprevenido.

Não, ela já imaginava que não.

- Olha, de qualquer modo eu merecia... E já me fizeste pagar. Agora sai de cima de mim, Murdock. O chão é duro.

- Ah, sim? Pois tu não - arqueou um sobrolho enquanto mudava de posição para estar mais cómodo. Perguntou-se se as suas pernas seriam tão bonitas à vista como ao toque. - Além disso,! ainda temos de discutir aquilo de Sansão ser mais delicado do que eu.

- O máximo que posso dizer a esse respeito - começou ela enquanto Aaron voltava a empurrar distraidamente a cabeça de Sansão, - é que precisas de te polir um pouco. Se me deres licença, na verdade, devo regressar. Alguns de nós têm de trabalhar para viver.

- Polir-me - repetiu ele sem ter em conta o resto. - Gostarias de algo mais... delicado - a sua voz tornou-se mais íntima enquanto roçava na face de Jillian com os lábios, um roçar leve como um suspiro. Ouviu um gemido instantâneo e involuntário que saía da garganta dela enquanto movia a cabeça e procurava a sua boca.

- Não faças isso - a voz de Jillian tremeu e ele olhou novamente para ela. Vulnerabilidade. Aaron leu-o nos seus olhos. Isso... e um pânico incipiente. Ele não esperava nenhuma das duas coisas.

- O teu calcanhar de Aquiles - murmurou, comovido, excitado. - Estás a dar-me vantagem, Jillian - levou uma mão até à sua boca, acariciou-lhe os lábios com a ponta do polegar e reparou que tremiam. - É justo avisar-te de que me servirei dela.

- A tua única vantagem, neste momento, é o teu peso.

Ele sorriu, mas antes que pudesse falar, uma sombra abateu-se sobre eles.

- Ouve, rapaz, o que estás a fazer no chão com esta jovem?

Jillian virou a cabeça e viu um homem idoso de traços proeminentes e muito marcados, de olhos pretos. Embora estivesse pálido e apresentasse um aspecto frágil, apercebeu-se da parecença. Ficou a olhar para ele com perplexidade. Aquele idoso curvado sobre a sua bengala e tão exageradamente magro, seria o tão temido e respeitado Paul Murdock? Os seus olhos, tão pretos e penetrantes como os de Aaron, estavam a examiná-la. A mão que segurava na bengala tremia ligeiramente. Aaron olhou para cima, para o seu pai, e sorriu.

- Ainda não tenho a certeza - disse calmamente. - Tenho de escolher entre dar-lhe uma sova e fazer amor com ela.

Murdock soltou uma gargalhada ofegante e pôs uma mão sobre a cerca.

- Só um parvo duvidaria sobre o que escolher, mas tu aqui não farás nenhuma das duas coisas. Deixa que a rapariga se levante para que eu possa vê-la.

Aaron obedeceu. Agarrou Jillian por um braço e, sem qualquer cerimónia, puxou-a para cima. Ela dirigiu-lhe um olhar assassino antes de se virar para o seu pai. Quão retorcido podia ser o destino, para decidir que no seu primeiro encontro com Paul Murdock estivesse coberta de pó e o seu corpo ainda conservasse o calor do do seu filho. Amaldiçoou Aaron em silêncio e, depois, afastou o cabelo para trás e levantou o queixo.

A cara de Murdock estava tranquila e inexpressiva.

- Portanto, tu és a neta de Clay Baron.

Ela não se intimidou perante o seu olhar e olhou para ele.

- É verdade.

- Pareces-te com a tua avó.

Ela levantou o queixo mais um pouco.

- Já me disseram.

- Era cheia de carácter - a sombra de um sorriso atravessou o seu olhar. - Nenhum Baron tinha vindo às minhas terras desde que ela veio apresentar os seus pêsames a Karen depois do nosso casamento. Se algum jovem tivesse tentado lutar com ela, teria ficado com um olho negro.

Aaron apoiou-se na cerca e passou uma mão pelo abdómen.

- Ela bateu-me primeiro - disse com voz lenta, e sorriu a Jillian. - Com força.

Jillian pegou no seu chapéu e começou a sacudir-lhe o pó e a endireitá-lo.

- Devias endurecer esses músculos, Murdock sugeriu enquanto colocava novamente o chapéu na cabeça. - Consigo bater ainda com mais força.

Paul Murdock desatou a rir-se.

- Sempre pensei que, em criança, devia ter-lhe batido mais um pouco - lamentou-se, referindo-se ao seu filho. - Como te chamas, rapariga?

Ela olhou para ele e hesitou.

- Jillian - disse, finalmente.

- És bonita! - assentiu. - E não pareces tola. A minha mulher adoraria ter um pouco de companhia.

Jillian ficou a olhar para ele durante um instante. O feroz Murdock, o grande rival do seu avô, estava a convidá-la para sua casa?

- Obrigada, senhor Murdock.

- Entra para tomar um café - disse, animadamente. Depois virou-se para Aaron. - Tu e eu temos de resolver um assunto.

Jillian sentiu que entre os dois havia uma certa tensão. Depois Murdock deu meia volta e caminhou de regresso para casa.

- Vens à casa - disse Aaron enquanto abria a porta da cerca. Não era um convite, mas uma afirmação. Curiosamente, Jillian deixou-o passar.

- Só um bocadinho. Tenho de voltar.

Saíram juntos do picadeiro e voltaram a fechar a cerca. Embora não se tivessem apressado, alcançaram Murdock quando este chegava ao alpendre. Ao ver que tinha dificuldades para subir os degraus, automaticamente Jillian fez um gesto para lhe pegar no braço. Aaron agarrou-lhe no pulso antes que pudesse fazê-lo. Abanou a cabeça e esperaram até que o seu pai tivesse subido trabalhosamente até ao alpendre.

- Karen! - se não estivesse sem fôlego devido ao esforço, teria sido um grito. - Temos companhia - Murdock abriu a porta e fez um gesto a Jillian para que entrasse.

Era mais sumptuosa do que a casa do seu avô no Utopia, mas tinha o mesmo ar do Oeste que seduzira a menina de Chicago na primeira vez que fora ao Montana. A madeira estava encerada e reluzente. O chão, as vigas do tecto, a carpintaria... Tudo de carvalho acetinado. Mas ali havia algo que faltava no Utopia, um toque feminino subtil.

Havia flores em várias jarras e cores mais suaves. Embora o avô de Jillian tivesse conservado as cortinas nas janelas, com os anos a casa do rancho tornara-se a casa de um homem. Ela não se apercebera até entrar em casa dos Murdock e sentir a presença de Karen.

Um tapete da índia enorme cobria o chão da zona de estar e, junto à lareira, havia jarrões de latão reluzentes que continham ramos grandes de flores secas. No batente de uma das janelas tinham improvisado um sofá com almofadas bordadas à mão. A sala transmitia uma sensação de ordem e boas-vindas.

- Será que nenhum de vocês os dois vai convidar Jillian para se sentar? - perguntou Karen suavemente enquanto entrava a empurrar o carrinho do café.

- Parece que é a rapariga de Aaron - comentou Murdock enquanto se deixava cair numa poltrona e prendia a bengala no seu braço.

A resposta imediata de Jillian ficou sufocada porque, naquele instante, Aaron deu-lhe uma cotovelada para que se sentasse no sofá. Ela virou-se para Karen, rangendo os dentes.

- Tem uma casa muito bonita, senhora Murdock.

Karen não tentava disfarçar o seu regozijo.

- Obrigada. Acho que te vi no ano passado, no rodeo - disse enquanto começava a servir o café. Lembro-me que pensei que te parecias com Maggie, a tua avó. Também pensas concorrer este ano?

- Sim - agarrou na chávena. Não quis nem leite nem açúcar. - Apesar de o meu capataz se ter zangado bastante quando bati o seu tempo na captura de novilhos com laço.

Aaron estendeu um braço e brincou com o seu cabelo.

- Também estou tentado a participar.

- Será um dia muito triste aquele em que o meu filho não for capaz de apanhar um novilho mais depressa do que uma mulher - balbuciou Murdock.

Aaron dirigiu-lhe um olhar afável.

- Isso dependeria da mulher.

- Talvez te falte prática - disse Jillian friamente,

- depois de cinco anos atrás de uma secretária logo que disse aquilo, sentiu que a tensão entre pai e filho que sentira no picadeiro surgia novamente e com mais força.

- Suponho que essas coisas estão no sangue - disse Karen com suavidade. - Tu dedicaste-te à vida do rancho, mas cresceste no Este, não foi?

- Em Chicago - admitiu Jillian enquanto se perguntava o que acontecera. - Nunca encaixei lá

- antes de se aperceber, já o dissera. Franziu o sobrolho involuntariamente. - Acho que, na minha família, o ofício de rancheiro saltou uma geração.

- Tens um irmão, não tens? - Karen deitou um pouco de leite na sua chávena de café.

- Sim, é médico. O meu pai e ele partilham agora o mesmo consultório.

- Lembro-me do rapaz... Do teu pai - disse Murdock, e depois bebeu de um gole meia chávena de café. - Um tipo tranquilo, sério... Nunca dizia uma palavra a mais.

Jillian teve de sorrir.

- Recorda-o bem.

- É fácil de entender porque Baron te deixou o rancho a ti em vez de a ele - Murdock estendeu a sua chávena para que lhe servissem mais café, mas Jillian reparou que Karen só enchia a chávena até metade. - Acho que não terias conseguido encontrar ninguém melhor do que Gil Haley para se encarregar de tudo.

As covinhas do seu sorriso tremeram. Disse para si que era uma espécie de elogio.

- Gil é o melhor dos capatazes - disse calmamente, - mas eu giro o Utopia.

Murdock arqueou os sobrolhos.

- As mulheres não gerem ranchos!

Ela levantou o queixo.

- Eu sim.

- Quando aparecem cowboys com saia começam a surgir problemas - disse com um sopro.

- Não uso saia quando conduzo o gado.

O pai de Aaron pousou a chávena no prato e inclinou-se para a frente.

- Independentemente do que eu pensava do teu avô, não gostaria de ver que o que construiu vai abaixo por culpa de uma mulher.

- Paul... - começou a dizer Karen, mas Jillian já estava lançada.

- Clay não era tão curto de ideias - contra-atacou ela. - Se uma pessoa é válida, não importa o seu sexo. Eu giro o Utopia e, quando tiver feito tudo aquilo a que me proponho, você ficará de boca aberta - levantou-se, muito digna. - Obrigada pelo café, senhora Murdock - lançou um olhar a Aaron, que continuava comodamente sentado no sofá. - Ainda temos de falar do garanhão.

- Do que se trata? - perguntou Murdock enquanto batia no chão com a bengala.

- Vou cruzar Sansão com uma das éguas de Jillian - respondeu Aaron, calmamente.

A cara pálida de Murdock ficou congestionada.

- Os Murdock não fazem negócios com os Baron.

Aaron endireitou-se lentamente até ficar de pé.

- Faço os negócios que quiser.

Jillian ouviu-o dizer aquilo enquanto se dirigia para a porta. Quando Aaron a alcançou, já chegara ao seu carro.

- Qual é o teu preço? - perguntou ela, entredentes.

Ele inclinou-se contra o carro. Se estava zangado, não parecia.

- Irritas-te muito depressa, Jillian. Eu era o único que conseguia irritar o meu pai ultimamente.

- O teu pai - disse ela - é um intolerante. Aaron olhou para a casa com os polegares enfiados nos bolsos.

- Sim, mas sabe de vacas.

Ela deixou escapar um grande suspiro para não se rir.

- Em relação ao preço do garanhão, Murdock...

- Vem cá jantar esta noite e falaremos.

- Não tenho tempo para fazer vida social afirmou.

- Estás aqui há tempo suficiente para entender as vantagens de um jantar de negócios.

Jillian franziu o sobrolho enquanto contemplava a casa. Uma noite com os Murdock? Não, não acreditava que conseguisse acabar a noite sem atirar algum objecto ao ar.

- Olha, Aaron, eu gostava de cruzar Dalila com Sansão se as condições forem boas. Não me interessa mais nada relacionado com a tua família.

- Porquê?

- Entre os Baron e os Murdock houve muito ódio durante, pelo menos, um século.

Ele olhou calmamente para ela, com as pálpebras semicerradas.

- Agora quem é o intolerante?

Bingo!, pensou ela, e suspirou. Colocou as mãos nas ancas e tentou pôr as suas ideias em ordem. Murdock era um idoso e, a julgar pelo seu aspecto, doente. E embora se tivesse irritado antes de o reconhecer, parecia-se bastante com o seu avô. Teria sido muito mesquinho da sua parte não mostrar uma certa compreensão.

- Está bem, virei jantar - aceitou e virou-lhe as costas. - Mas não assumo a responsabilidade se as coisas acabarem aos gritos.

- Acho que conseguiremos evitar tal coisa. Irei buscar-te às sete horas.

- Conheço o caminho - replicou ela, e tentou empurrá-lo para o lado com o objectivo de abrir a porta do carro. A mão de Aaron fechou-se em torno do seu antebraço.

- Irei buscar-te às sete horas, Jillian - repetiu com voz decidida, e os seus olhos mostravam a mesma determinação.

Ela encolheu os ombros.

- Faz o que quiseres.

Ele agarrou-a pela nuca e beijou-a antes que ela pudesse impedi-lo.

- Isto é aquilo a que me proponho - respondeu calmamente e depois dirigiu-se para casa.

 

A caminho do Utopia, Jillian ainda deitava faíscas. Os comentários de Murdock e a arrogância de Aaron tinham-na deixado tensa. Não era o tipo de mulher que se acalmasse com facilidade. Disse para si mesma que a única razão que a levava a regressar ao Double M naquela noite era interessar-lhe fechar o acordo para cruzar Dalila. Desejava acreditar nele.

As rodas do seu carro levantaram o pó do caminho que conduzia ao pátio do rancho. Este estava quase deserto a meio da amanhã. A maioria dos homens estava nos prados e o resto, ocupado com as diversas tarefas nos edifícios anexos. Mas nem sequer a existência de público teria impedido que saísse do carro batendo a porta com força.

O som da porta soou como um disparo. Por um instante, pensou na papelada que a esperava no escritório, mas afastou a ideia. Naquele momento não conseguia lidar com números e livros de contabilidade.

Precisava de algo físico para descarregar a sua raiva antes de abordar as áridas realidades de cheques e balanços. Virou-se sobre os seus calcanhares e dirigiu-se para os estábulos. De certeza que era necessário limpar esterco e pregar algum prego.

- Gostavas de acabar com alguém em particular?

Jillian virou a cabeça enquanto dos seus olhos ainda saíam faíscas. Joe Carlson caminhava para ela com os olhos tapados pela aba do seu chapéu impecável. Os seus lábios esboçavam um sorriso cúmplice.

- Os Murdock.

Ele assentiu após ouvir a sua resposta.

- Imaginei que andasse por aí. Não conseguiste chegar a acordo sobre o garanhão?

- Ainda não começámos a negociar - apertou o queixo com força. - Voltarei lá esta noite.

Joe coçou a cara e perguntou-se como era possível que uma mulher tão ardilosa a jogar póquer fosse tão transparente quando estava irritada.

- Ah, sim? - limitou-se a responder, e recebeu um olhar irado.

- Sim - dir-se-ia que cuspia as palavras. - Se Murdock não tivesse aquele animal tão bonito, dir-lhe-ia para ir para o inferno e, de passagem, para levar o seu pai com ele.

Daquela vez, Joe sorriu.

- Portanto, conheceste Paul Murdock.

- Deu-me a sua opinião sobre os cowboys com saias - ouviu-se como rangia os dentes.

- A sério?

Jillian não conseguiu resistir ao seu tom irónico e esboçou um sorriso.

- Sim, a sério - depois suspirou ao recordar o difícil que fora para Paul Murdock subir os quatro degraus do alpendre da sua própria casa. - Bolas!

- murmurou, e o aborrecimento dissolveu-se tão rapidamente como aparecera. - Não devia ter deixado que me afectasse. É um velho e...

Interrompeu-se antes de acrescentar ”está doente”. Por algum motivo indefinível, parecia-lhe necessário deixar as suas ilusões a Murdock. Limitou-se a encolher os ombros e olhou para o picadeiro.

-Acho que estava habituada a Clay. Era-lhe indiferente que fosse homem ou mulher, desde que soubesse montar e conduzir o gado.

Joe lançou-lhe um olhar penetrante. Não era aquilo o que começara a dizer, mas não conseguiria arrancar-lhe nada se insistisse. Se aprendera alguma coisa naqueles últimos seis meses era que Jillian Baron era uma mulher que gostava de fazer as coisas à sua maneira. Se um homem se aproximava demasiado, bastava um olhar gélido para lhe recordar qual era a distância adequada.

- Talvez queiras dar uma olhadela ao touro, se tiveres uns minutos.

- Eh? - estava abstraída. Olhou novamente para ele.

- O touro - repetiu Joe.

- Ah, sim! - enfiou os polegares nos bolsos e caminhou junto a ele. - Gil falou-te dos bezerros que contámos ontem?

- Hoje dei uma olhadela à secção sul. Lá estão mais alguns.

- Quantos?

- Cerca de trinta. Dentro de uma semana deverão ter nascido os bezerros todos.

- Sabes? Ontem, quando passámos pelos pastos, pareceu-me que faltavam alguns - franziu o sobrolho e voltou a fazer contas na sua cabeça. Vou precisar que alguém dê uma volta por aí para ver quantas vacas prenhas se perderam.

- Eu trato disso. Como está o órfão?

Com um sorriso, Jillian olhou para os estábulos do gado.

- Vai ficar bem - era um erro criar laços entre Baby e ela, sabia disso. Mas já era demasiado tarde. - Era capaz de jurar que cresceu desde ontem.

- E aqui está o pai - anunciou Joe à medida que se aproximavam do curral do touro.

Jillian compôs o chapéu e inclinou-se sobre a cerca. Bonito!, pensou. Muito bonito!

O touro dirigiu-lhes um olhar sinistro e soprou.

Não era tão corpulento nem tão volumoso como um Angus, mas tinha a aparência impecável de um tanque. A sua pele avermelhada resplandecia sob o sol. No seu olhar não viu aborrecimento, como vira em tantos novilhos e vacas, mas arrogância. Os chifres contorciam-se de ambos os lados do seu focinho e davam-lhe um ar de perigosa soberania. Pensou que o orfãozinho que albergara no estábulo teria aquele aspecto daí a um ano. O touro soprou novamente e raspou o chão com uma pata, como que a desafiá-los a entrarem no cercado e experimentarem a sua sorte.

- Bom, tem mau feitio - comentou Joe.

- Não preciso que tenha boas maneiras - murmurou Jillian. - A única coisa que preciso é que se reproduza.

- Bom, por esse lado não há problema - observou o touro. - Pelo aspecto dos bezerros da primeira fornada, já nos prestou um grande serviço. Como agora estamos a usar inseminação artificial, esta Primavera poderemos cruzá-lo com todas as Hereford do rancho. O teu exemplar de Shorthorne dá uma carne deliciosa, Jillian, mas não se pode comparar com este.

- Não - ela apoiou os cotovelos na cerca enquanto sorria. - Na realidade, hoje descobri que Aaron Murdock estava interessado no nosso... eh... Casanova. Não posso deixar de me felicitar ao recordar como fui a Inglaterra, seguindo uma intuição. Uma intuição bastante cara! - acrescentou ao pensar no peso que representara nos livros de contabilidade. - Aaron contou-me que estava a pensar ir a Inglaterra para ir dar uma olhadela quando descobriu que o tínhamos comprado.

- Isso já faz um ano - comentou Joe com o sobrolho franzido. - Ainda estava em Billings.

Jillian encolheu os ombros.

- Imagino que continuava a par de tudo. De qualquer forma, adiantámo-nos - afastou-se da cerca. - Quando te falei da feira de Julho, falava a sério, Joe. Antes não me importavam os concursos e os laços azuis, mas, este ano, quero ganhar.

Joe desviou a sua atenção do touro para ela.

- Trata-se de algo pessoal?

- Sim - dedicou-lhe um sorriso solene. - Pode-se dizer que é pessoal. Entretanto, conto com este touro para que me proporcione a melhor raça de gado bovino do Montana. Preciso que me dêem um bom preço em Miles City se quiser ter lucro. E no ano que vem, quando alguns dos bezerros já estiverem prontos... - a sua voz desvaneceu enquanto dava uma última olhadela ao touro. - Bom, é melhor ir a pouco e pouco. Informa-me depois das contagens, Joe. Quero ir ver Baby antes de me enfiar no escritório...

- Vou tratar disso - confirmou ele, e ficou a ver como ela se afastava.

Por volta das cinco horas, Jillian tinha posto os livros em dia e estava, se não regozijada com as quantias, pelo menos contente. Era verdade, os gastos tinham sofrido um aumento notável em relação ao ano anterior, mas previa obter grandes lucros no leilão de gado de Miles City. Entrar em despesas tão elevadas fora um risco, mas um risco necessário. O avião começaria a funcionar naquela semana e o touro já demonstrara a sua valia.

Recostou-se na cadeira de pele do seu avô, muito desgastada, e ficou a olhar para o tecto. Se pudesse dispor do tempo necessário, gostaria de aprender a pilotar o avião. Parecia-lhe que, já que era a proprietária do rancho, devia ter um conhecimento operativo de todos os seus aspectos. Em caso de necessidade, sabia ferrar um cavalo ou suturar um corte na pele de uma vaca. Aprendera a conduzir a debulhadora e a escavadora na sua adolescência, durante uma das suas estadias de Verão, no mesmo ano em que, pela primeira e última vez, brandira a faca para transformar um bezerro em novilho.

Quando pudesse, e se pudesse permitir-se, pensou, contrataria alguém que se ocupasse dos livros de contabilidade. Fechou o maior livro fazendo uma careta. Restava-lhe mais energia depois de dez horas a cavalo que após apenas quatro horas a fazer trabalho de secretária. Naquele momento, era inevitável. Poderia justificar acrescentar mais um cowboy à lista de nomes, mas não um administrativo. No próximo ano... Riu-se de si mesma e pôs os pés sobre a secretária.

O problema era que estava a confiar demasiado no próximo ano e poderiam acontecer muitas coisas.

Uma seca poderia dizimar a colheita, um temporal poderia diminuir o rebanho. E isso só no que se referia a fenómenos naturais. Se os preços das rações continuassem a aumentar, teria de pensar seriamente em levar grande parte dos bezerros para o matadouro. E, além disso, havia a conta da reparação do jipe, a conta do veterinário e a da comida dos trabalhadores. A conta da gasolina aumentaria assim que o avião entrasse em funcionamento. Sim, iria precisar que lhe pagassem muito bem em Miles City e não seria nada mau ganhar um ou dois laços azuis.

Entretanto, teria de vigiar os recém-nascidos. E Aaron Murdock. Com um meio sorriso, pensou nele; era um arrogante, pensou quase com admiração. Era uma pena não poder confiar nele o suficiente para conversarem sobre o negócio e trocarem ideias. Sentia falta desse luxo desde a morte do seu avô. Os seus trabalhadores eram simpáticos, mas não podia falar dos pormenores do negócio com alguém que, no ano seguinte, poderia estar a trabalhar para um adversário. E Gil era... Gil era Gil, pensou com um sorriso. Estava orgulhoso dela e até respeitava a sua inteligência, mas tinha demasiado apego à sua maneira de fazer as coisas para falar com ele de ideias e mudanças. E não restava mais ninguém, admitiu Jillian.

Em Chicago, houvera vezes em que desejara um pouco de privacidade, de solidão. Agora, pelo contrário, havia vezes em que desejava ter alguém com quem partilhar, nem que fosse uma hora de conversa. Levantou-se, abanando a cabeça. Estava a pensar em tolices. Havia dúzias de pessoas com quem falar, tudo o que tinha de fazer era descer até ao estábulo ou às quadras. Não sabia de onde vinha aquele repentino descontentamento, mas desapareceria em seguida. Não tinha tempo para aquelas coisas.

Enquanto caminhava pela casa e subia as escadas, podia ouvir o ruído surdo dos saltos das suas botas no chão. Procedente do exterior, ouviu a chamada dos ferrinhos, as três notas rápidas que se repetiam cada vez mais depressa até se transformarem num único som. Os seus homens estariam a sentar-se para jantar. Era melhor que ela também se arranjasse para o jantar.

Avaliou a ideia de não se arranjar mais do que era habitual, de se limitar a vestir umas calças de ganga e uma camisa lavadas. A desenvoltura dessa roupa seria intencionalmente rude. Ainda estava suficientemente incomodada com Aaron e com o seu pai para se vestir assim, mas pensou em Karen Murdock. Com um suspiro, descartou a ideia e remexeu no armário.

Era uma escolha sua quase não ter vestidos. Estavam relegados para um canto do armário e só os tirava quando convidava outros rancheiros ou homens de negócios. Não se afastava do estilo simples, pois apercebera-se de que era vantajoso para ela não chamar a atenção para a sua feminilidade.

Passeou a vista sobre as possibilidades que lhe ofereciam.

A camisa branca de algodão, que lhe ficava muito larga, embora não tivesse um corte masculino, era discreta. Se a combinasse com uma saia branca de roda, presa à cintura por uma faixa muito larga, seria um traje apropriado e pouco apelativo. Fez uma pequena concessão e pôs um pouco de maquilhagem; hesitou sobre colocar alguma jóia e, depois, encolhendo os ombros, colocou uns brincos de ouro em forma de espiral. A sua mãe, pensou, teria insistido para que arranjasse o cabelo de um modo mais sofisticado, mas ela limitou-se a escová-lo e deixou-o solto. Não precisava de ir elegante para negociar um contrato de criação de cavalos.

Quando ouviu o som do motor de um carro que se aproximava, teve de se conter para não correr até à janela. Intencionalmente, entreteve-se antes de descer.

Aaron estava à sua espera no alpendre. Não usava chapéu. Até sem ele, Jillian teve de reconhecer que continuava a parecer o que era: um homem forte habituado a trabalhar ao ar livre e com um toque aristocrático. Não precisava de uniforme para parecer o que era.

Enquanto olhava para ele perguntou-se como teria tido paciência para ir para Billings e sentar-se atrás de uma secretária. Vestia umas calças pretas em bom estado e uma camisola fina, também preta, que lhe assentavam tão bem como a roupa de trabalho, e que destacavam os seus olhos pretos e maliciosos. Sentiu um calafrio e olhou para ele com frieza.

- És pontual - comentou enquanto deixava que a porta se fechasse atrás dela. Talvez não fosse] sensato que estivessem a sós mais tempo do que o necessário.

- Tu também - ele deixou que o seu olhar deslizasse lentamente sobre ela e admirou a simplicidade do seu traje: o modo como a faixa lhe marcava a cintura, o modo como o seu cabelo resplandecia, como o fogo, - e estás muito bonita - acrescentou enquanto lhe agarrava uma mão. - Gostes ou não.

O coração de Jillian reagiu imediatamente e esta compreendeu que devia ir com cuidado.

- Continuas a arriscar-te a perder uma mão, Murdock - tentou retirar a sua, mas ele apertou-a com mais força para a impedir.

- Uma das coisas que aprendi é que tudo o que vale a pena dá trabalho - com lentidão, Aaron levou a sua mão aos lábios enquanto olhava para ela nos olhos.

Não era um gesto que Jillian esperasse dele. Talvez por isso a única coisa que fez foi ficar a olhar fixamente para ele. Deveria ter retirado a mão de um puxão para a colocar fora do seu alcance. Desejava levá-la à sua face e tocar nas suas maçãs do rosto, proeminentes, no seu queixo. Não fez nada... até que ele sorriu.

- Talvez devesse avisar-te - disse Jillian, finalmente - que, da próxima vez que te sacudir, vou apontar um pouco mais para baixo.

Ele sorriu e beijou-lhe novamente a mão antes de a largar.

- Acredito.

Jillian foi incapaz de reprimir o seu próprio sorriso e rendeu-se.

- Vais dar-me de jantar ou não, Murdock? Sem esperar resposta, desceu os degraus à frente dele.

O seu carro era um Maserati baixo e elegante. Ela admirava tudo o que fosse bem proporcionado e rápido; acomodou-se no banco do passageiro com um pequeno suspiro.

- É um brinquedo muito bonito! - comentou com a sombra de um sorriso ainda a rondar os seus lábios.

- Eu gosto - disse ele, calmamente, e ligou o motor. Este rugiu e depois o som transformou-se num ronronar. - Um homem nem sempre gosta de levar uma mulher a passear num jipe ou num utilitário.

- Isto não é um encontro - recordou-lhe ela, mas deixou que a sua vista escorregasse pela pele suave dos bancos. - Admiro o teu lado prático... A maior parte das vezes.

No seu banco, Jillian virou a cabeça ligeiramente para a esquerda para ver como conduzia aquele carro. Tão bem como conduzia o cavalo, disse para si; tão bem como conduzia uma mulher. Um sorriso voltou a curvar os seus lábios. Pois iria descobrir que ela não era o tipo de mulher que se deixava conduzir. Recostou-se novamente no banco para desfrutar da viagem.

- O que acha o teu pai de eu ir jantar esta noite? - perguntou um pouco ausente. Os últimos raios de sol salpicavam a erva de ouro. Ouviu uma vaca mugir preguiçosamente.

- O que deveria achar? - replicou Aaron.

- Mostrou-se bastante afável enquanto me via simplesmente como a neta de Clay Baron - assinalou Jillian, - mas assim que descobriu que eu era ”uma Baron”, por assim dizer, mudou de atitude. Tu andas a confraternizar com o inimigo, não é?

Aaron afastou o olhar da estrada o tempo suficiente para se aperceber do brilho de diversão que dançava nos olhos de Jillian.

- Por assim dizer. E tu não?

- Acho que prefiro ver este assunto como um acordo vantajoso para os dois. Aaron... - hesitou e perguntou o que sabia não lhe dizer respeito, - o teu pai está muito doente, não está?

Viu que a expressão de Aaron se retraía, embora pouco mudasse. -Sim.

- Desculpa - Jillian desviou a vista e olhou pela janela. - É difícil - murmurou, pensando no seu avô, - muito difícil para eles.

- Está a morrer - disse Aaron, sinceramente. -Oh, mas...!

- Está a morrer - repetiu. - Há cinco anos, disseram-lhe que duraria um ano, dois no máximo. Deixou-os perplexos. Mas agora... - por um momento, apertou o volante com força, mas depois relaxou a pressão dos dedos. - Talvez chegue a ver cair as primeiras neves, mas não verá as últimas.

Soava tão prático... Se calhar a súbita tensão nas suas mãos fora fruto da sua imaginação, pensou Jillian.

- Não houve rumores sobre a sua doença.

- Tratámos para que não houvesse.

Ela olhou para o perfil de Aaron e franziu o sobrolho.

- Então porque me contaste isso?

- Porque tu sabes o que é o orgulho e não te pões com tolices.

Jillian observou-o outra vez e depois desviou o olhar. Nenhuma frase delicada nem nenhum elogio poderiam tê-la comovido tanto como aquela afirmação enérgica e carente de emoção.

- Deve ser difícil para a tua mãe.

- É mais forte do que parece.

- Sim - Jillian sorriu novamente. - Tem de ser para aguentar o teu pai.

Passaram por debaixo do arco com o letreiro do Double M que havia à entrada do rancho. O dia estava a desaparecer nas sombras, a luz cedia e o ar tornava-se mais leve. À direita, viam-se vácas nos pastos. Viu uma mãe que lambia pacientemente a sua cria para a limpar enquanto outros bezerros estavam ocupados a tomar a sua refeição da tarde. Daí a alguns meses seriam novilhos e vitelas, e o laço materno cairia no esquecimento, mas, naquele momento, eram crias de patas desajeitadas e estômagos insaciáveis.

- Eu gosto desta hora do dia - murmurou quase para si. - Quando se acabou de trabalhar e ainda não é hora de pensar no dia seguinte.

Aaron baixou a vista para ela, que estava relaxada no seu banco. Competente, nada mimada, de ossos estreitos e dedos magros.

- Já alguma vez pensaste que trabalhas demasiado?

Jillian virou-se e olhou-o calmamente nos olhos. -Não.

- Eu sabia.

- Estamos outra vez com a história dos ”cowboys com saia”, Murdock?

- Não - mas, discretamente, fazia algumas averiguações. Jillian Baron tinha fama de trabalhar doze horas diárias: a cavalo, de carro, a pé. Quando não estava a arranjar uma cerca ou a recolher o gado, estava a alimentar as vacas, a verificar os arranjos ou enterrada nos livros de contabilidade. - O que fazes para relaxar? - perguntou, de repente. O olhar inexpressivo que lhe dirigiu deu-lhe a resposta antes que Jillian falasse.

- Neste momento, não me resta muito tempo para relaxar. Quando tenho algum tempo... Tenho os livros ou o brinquedo que Clay comprou há alguns anos.

- Um brinquedo?

- Um vídeo - disse com um sorriso. - Adorava filmes.

- Entretenimentos solitários - disse Aaron, pensativamente.

- É um modo de vida solitário - replicou Jillian, e depois olhou para fora com curiosidade. Tinham parado diante de uma casa branca de madeira, muito simples. - O que é isto?

- Eu vivo aqui - respondeu ele, calmamente, antes de sair.

Ela ficou sentada no interior do carro com o sobrolho franzido e a olhar para a casa. Pensara que Aaron vivia na casa principal. Tal como pensara que jantariam lá com os seus pais. Virou a cabeça quando lhe abriu a porta do seu lado e lhe dirigiu um olhar intransigente.

- O que preparaste, Murdock?

- O jantar - agarrou-a por uma mão e puxou-a para fora. - Não foi isso que combinámos?

- Tinha a impressão de que jantaríamos lá em cima - apontou para a casa principal.

Aaron seguiu o movimento da sua mão com os olhos. Quando voltou a olhar para ela, a expressão da sua boca era solene, mas nos seus olhos havia uma faísca de humor.

- Impressão errada.

- Não fizeste nada para a corrigir.

- Nem para a promover - contra-atacou ele. Os meus pais não têm nada a ver com o que há,: entre nós.

- Não há nada. Então os lábios de Aaron também sorriram.

- Há o assunto dos cavalos... O teu e o meu como ela continuava com o sobrolho franzido, ele aproximou-se mais. Os seus corpos quase se roçavam. - Tens medo de estar sozinha comigo, Jillian?

Ela levantou o queixo.

- Estás a sobrevalorizar-te, Murdock.

Aaron leu no seu olhar que estava disposta a não recuar, fizesse ele o que fizesse. A tentação era demasiado grande. Baixou a cabeça e deu-lhe uma dentada suave no lábio inferior.

- Talvez - disse calmamente. - Ou talvez não. Podemos sempre continuar até à casa dos meus pais se te sentires... nervosa.

O coração de Jillian subira até à garganta, mas sabia o que era lidar com um gato selvagem.

- Não estou preocupada - respondeu com calma, e depois pôs-se a andar para a casa.

Claro que sim, pensou Aaron, e admirou-a ainda mais porque estava decidida a enfrentá-lo. Disse para si, enquanto andava para a porta, que prometia ser uma noite interessante.

Não podia criticar o seu gosto. Jillian olhou à sua volta e deu uma olhadela à casa, enquanto se perguntava o que poderia descobrir sobre ele a partir dos móveis que escolhera. Aparentemente, tinha a intuição da sua mãe no que se referia à cor e ao estilo, embora não houvesse naquela casa nada semelhante a um toque feminino. Os amarelos mostarda e os cremes eram compensados por uma imponente tapeçaria mural atravessada por azuis e verdes muito vivos. Preferia os móveis antigos e as linhas direitas. Embora a sala fosse pequena, não dava a sensação de estar sobrecarregada. Com curiosidade, foi até uma prateleira de madeira de mogno e examinou a sua colecção de figuras de estanho.

Um potro selvagem a galope chamou a sua atenção, embora todos os animais daquele jardim zoológico em miniatura fossem finamente esculpidos. Por um instante, desejou que não fosse um homem que apreciasse tanto as mesmas coisas que a atraíam a ela. Depois recordou qual era a sua posição e virou-se.

- É muito bonito! Embora demasiado leve para alguém que foi criado como tu.

Ele levantou um sobrolho.

- Obrigado pelo elogio. Como gostas da carne: bem passada, mal passada...?

Jillian enfiou as mãos nos bolsos amplos da sua saia.

- No ponto.

- Acompanha-me enquanto faço os bifes - pôs-lhe uma mão à volta do braço e guiou-a pela casa.

- Portanto vou jantar carne Murdock preparada por um Murdock - lançou-lhe um olhar. - Acho que devia estar encantada.

- Podíamos considerá-lo uma oferta de paz.

- Podíamos - repetiu ela com cautela, e depois sorriu, - desde que saibas cozinhar. Não comi nada desde o pequeno-almoço.

- Porquê?

Olhou-a com tanta desaprovação que ela se riu.

- Enterrei-me nos livros de contabilidade e isso não abre o apetite. Meu Deus! - acrescentou, dando uma olhadela à cozinha. Era simples, como o resto da casa. O chão era de madeira e as bancadas, normais. Não havia nada fora do sítio, nem uma migalha. - És dos arrumadinhos, não és?

- Vivi uma temporada nos barracões dos trabalhadores - Aaron abriu a garrafa de vinho que havia junto a dois copos, sobre a bancada. - Isso ou te corrompe ou te ensina para sempre.

- Porquê nos barracões quando...? - interrompeu-se, desgostada por estar novamente a intrometer-se.

- O meu pai e eu damo-nos melhor quando há uma certa distância - serviu vinho nos dois copos.

- Já deves ter ouvido dizer que nem sempre estamos de acordo.

- Ouvi dizer que tiveram uma discussão há alguns anos, antes de teres ido para Billings.

- E pensas por que razão eu... Cedi em vez de o mandar ir dar uma volta e começar o meu próprio negócio.

Jillian aceitou o copo de vinho que lhe oferecia.

- Está bem, sim, perguntei-me isso. Mas não me diz respeito.

Ele olhou para dentro do seu copo durante um instante, como se examinasse o vermelho escuro do vinho.

- Efectivamente - levantou novamente a vista e bebeu um gole. - Não te diz respeito.

Sem dizer mais uma palavra, virou-se para o frigorífico e tirou dois bifes grandes. Jillian bebeu um gole de vinho e ficou quieta a ver como ele começava a preparar a carne, com a economia de movimentos que o caracterizava. Há cinco anos atrás, tinham dado um ou dois anos de vida ao seu pai. Aaron dissera aquilo sem que na sua voz houvesse nem sinal de emoção. E fora para Billings há cinco anos.

À espera que o seu pai morresse?, perguntou-se ela, e fez uma careta de desagrado. Não, não podia acreditar, seria um homem tão frio e calculista para se sentar à espera da morte do seu pai? Mesmo que os sentimentos de Aaron para com o seu pai não fossem profundos, aquilo soava demasiado frio, demasiado desumano. Sentiu um calafrio e bebeu um bom gole de vinho antes de pousar o copo. Não podia acreditar naquilo.

- Posso fazer alguma coisa?

Aaron virou a cabeça para trás, para olhar para ela, e encontrou-a a observá-lo calmamente. Sabia em que teria estado a pensar, era lógico pensar naquilo, e viu que se inclinara a seu favor. Disse para si que deveria ser-lhe indiferente o que Jillian pensasse dele. Não só foi surpreendente descobrir que não era, como também enervante. Podia sentir como a emoção fervia no seu interior e o esgotava. Com o objectivo de ter um momento para se recuperar, pôs os bifes no churrasco e acendeu-o.

- Sim, há uma coisa que podias fazer.

Atravessou a cozinha até onde ela estava e emoldurou-lhe a cara com as mãos enquanto via que Jillian abria muito os olhos, surpreendida, antes que a sua boca se pousasse sobre a dela. A sua intenção era que se tratasse de um beijo breve e intenso, um gesto que o libertasse da emoção que surgira repentinamente dentro dele, mas, à medida que os seus lábios se moviam sobre os dela, a emoção crescera e ameaçara prolongar-se.

Ela ficou rígida e levantou as mãos para o seu peito num gesto reflexo de defesa. Aaron não queria, daquela vez, a resistência que normalmente tanto o atraía, mas a doçura que sabia que ela reservaria para poucos.

- Jillian, não - enrolou o cabelo nos seus dedos. A sua voz estava carregada de sensações misteriosas e inomináveis que não parou para analisar. - Não discutas, nem que seja só desta vez.

Algo na sua voz fez com que as mãos de Jillian relaxassem sobre o seu peito, antes sequer de a ideia de fazer tal coisa surgir na sua mente. Ela cedeu, e ceder-lhe proporcionou um instante de prazer, doce, inconsciente.

A boca de Aaron movia-se com suavidade sobre a sua, inclusive quando a beijou mais profundamente. Ela levou as mãos até aos seus ombros e inclinou a cabeça para trás para que ele pudesse tomar o que desejava, e proporcionar-lhe mais daquele deleite tão doce de cuja existência nunca tivera consciência. Com um suspiro que era consequência daquela descoberta, rendeu-se.

Aaron não fazia ideia de que fora capaz de se mostrar tão terno. Nunca uma mulher fizera com que aquilo surgisse e ele não tinha consciência de que o desejo pudesse ser pausado e tranquilo. Embora fervesse no seu interior, ao mesmo tempo sentia uma sensação de contentamento. Desfrutou daquilo até que começou a sentir-se enjoado, então largou a cara de Jillian, mas ficou a olhar para ela como um homem que tivesse visto algo que não entende bem. E que não tem a certeza de querer entender.

Jillian recuou e apoiou uma mão na bancada de madeira polida para recuperar o equilíbrio. Encontrara doçura no último lugar onde teria imaginado. Não havia ninguém contra quem estivesse mais decidida a dar luta.

- Vim aqui para jantar - começou a dizer, olhando para ele com tanta cautela como ele para ela e para falar de negócios. Não voltes a fazer isto.

- Tens toda a razão - murmurou ele antes de se virar e ir até ao churrasco para ver os bifes. - Bebe um gole de vinho, Jillian. Estaremos os dois a salvo.

Ela fez o que lhe dizia só porque precisava de algo para acalmar os seus nervos.

- Vou pôr a mesa - ofereceu-se.

- Os pratos estão ali - sem levantar a vista, ele apontou para um armário. Os bifes chisparam quando lhes deu a volta. - Há uma salada no frigorífico.

Acabaram os preparativos em silêncio. O único ruído era o chiado da carne e das batatas que estavam a fritar. Jillian acabou o seu primeiro copo de vinho e contemplou a comida com entusiasmo.

- Ou sabes bem o que fazes ou estou esfomeada.

- As duas coisas - Aaron deu-lhe um frasco de molho vinagrete. - Come. Quando se está magro não se pode saltar as refeições.

Sem se ofender, ela encolheu os ombros.

- Metabolismo - disse enquanto colocava os talheres de servir na salada. - Tanto faz quanto coma, não assimilo nada.

-Alguns chamam-lhe nervos. Ela levantou a vista enquanto lhe enchia o copo de vinho.

- Eu chamo-lhe metabolismo. Nunca fico nervosa.

- Com frequência não, certamente - reconheceu ele. - Por que saíste de Chicago? - perguntou antes que ela tivesse tempo de replicar.

- Não era o meu lugar.

- Poderia ter sido, se quisesses.

Jillian olhou para ele com indiferença durante alguns momentos.

- Então não quis. Aqui, senti-me em casa desde o primeiro Verão que cá vim.

- E a tua família? Ela riu-se.

- Eles não, certamente.

- Refiro-me ao que acham disto de viveres aqui e gerires o Utopia.

- O que deveriam achar? - replicou Jillian. Franziu o sobrolho um instante, olhando para o seu copo de vinho e depois voltou a encolher os ombros. - Imagino que o meu pai sente em Chicago o que eu sinto no Montana. É o meu lugar. Uma pessoa diria que nasceu e foi criado lá. E, claro, a minha mãe era tão... A nossa família nunca funcionou.

- Em que sentido?

Jillian deitou um pouco de sal sobre o seu bife e cortou um pedaço.

- Odiava ter de ir às aulas de piano - limitou-se a dizer.

- Tão simples quanto isso?

- Sim. Marc, o meu irmão, encaixava bem no molde. Imagino que ajudou bastante que, em seguida, mostrasse interesse pela medicina e que goste de ópera. A minha mãe é muito apreciadora

- esclareceu com um sorriso. - De qualquer forma, embora ainda me assuste um pouco suturar uma ferida a uma vaca, continuo sem ser capaz de apreciar La Traviata.

- É isso o que é preciso para que uma família funcione?

- Na minha, era importante. Da primeira vez que vim cá, as coisas começaram a mudar. Clay entendia-me. Dava gritos e dizia palavrões em vez de dar sermões.

Aaron sorriu e ofereceu-lhe mais batatas fritas.

- Gostas que gritem contigo?

- Um sermão paciente é o pior dos castigos.

- Acho que nunca tive que sofrer um. Em casa, tínhamos uma cabana de madeira para cumprir os castigos - gostou da maneira como ela se riu, uma gargalhada grave, cúmplice. - Porque não vieste viver para cá antes?

Ela moveu os ombros, inquieta, e continuou a comer.

- Estava na universidade. Tanto o meu pai como a minha mãe pensavam que era de vital importância que tirasse um curso, e eu queria agradá-los, embora fosse só nisso. Depois vi-me envolvida numa relação com... - interrompeu-se. Estivera prestes a falar-lhe da sua relação com aquele médico residente. Cortou meticulosamente um pedaço de carne. - Não resultou - concluiu, - portanto vim para cá.

O da má experiência, disse para si Aaron. Os olhos de Jillian tinham hesitado apenas brevemente, saíra da conversa depressa e com ligeireza, mas não a suficiente. Não insistiria, era um ponto fraco, mas perguntou-se quem a ferira quando ainda era demasiado jovem para se proteger.

- A minha mãe tinha razão - comentou ele. Há coisas que trazemos no sangue. Este é o teu lugar.

Algo no tom da sua voz fez com que ela levantasse a vista com precaução. Ainda não tinha a certeza de se se referia ao Utopia ou a si mesmo. Os olhos de Aaron recordaram-lhe o quão rude podia chegar a ser quando desejava algo.

- O meu lugar é no Utopia - disse com precisão. - E pretendo ficar. O teu pai também disse hoje uma coisa - recordou-lhe, - que os Murdock não fazem acordos com os Baron.

- O meu pai não manda na minha vida, nem na pessoal nem na profissional.

- Vais cruzar o teu garanhão com Dalila para poderes esfregar-lhe isso.

- Eu não perco tempo nessas coisas - disse calmamente, com uma firmeza que fez Jillian pensar que, se quisesse vingar-se, escolheria um caminho mais directo. - Quero essa égua - ambos ficaram a olhar-se nos olhos, - tenho as minhas razões.

- Quais?

Ele levantou o copo e bebeu.

- São só minhas.

Jillian abriu a boca para falar e depois voltou a fechá-la. Os seus motivos não lhe importavam. Os negócios eram os negócios.

- Está bem, quanto pedes?

Aaron demorou o seu tempo e olhou calmamente para a cara dela.

- Parece que acabaste.

Jillian distraíra-se. Olhou para baixo e viu que tinha comido até ao último pedaço, o prato estava quase limpo.

- Assim parece - disse com uma breve gargalhada. - Enfim, detesto admiti-lo, Murdock, mas estava bom... Quase tão bom como a carne do Utopia.

Ele respondeu enquanto se levantava para levantar os pratos da mesa.

- Porque não acabamos o vinho na sala? A menos que queiras um café...

- Não - levantou-se para o ajudar a levantar os pratos. - Bebi uma chávena cheia com aqueles malditos livros.

- Não te interessas pelo trabalho administrativo? -Aaron agarrou na garrafa de vinho, que estava a meio, enquanto saíam da cozinha.

- Uma maneira suave de o dizer - murmurou ela. - Mas alguém tem de o fazer.

- Podias contratar um contabilista.

- Já pensei nisso. Talvez para o próximo ano disse, encolhendo os ombros. - Digamos que estou habituada a não perder nenhum pormenor.

- Corre o rumor de que és capaz de apanhar um novilho com o laço.

Jillian sentou-se no sofá e a roda da saia ondulou à sua volta.

- Os rumores estão certos - respondeu com um sorriso descarado. - Quando quiseres, podemos apostar.

Ele sentou-se ao seu lado e brincou com o laço da faixa que rodeava a sua cintura.

- Tê-lo-ei em mente, embora deva admitir que não custa nada ver-te com saia.

Ela olhou para ele por cima do rebordo do seu copo.

- Estávamos a falar do preço do garanhão. O que pensaste para Sansão?

Com ar distraído, ele enrolou um dedo no seu cabelo.

- O primeiro potro.

 

Por um instante, a sala ficou em silêncio enquanto ambos observavam o rival. Jillian achara que o tinha controlado e pô-la furiosa confirmar que ele continuava um passo à frente dela.

- O primeiro... - deixou o copo sobre a mesa enquanto fazia um barulho com a língua. - Perdeste o juízo.

- Não me interessa o dinheiro. Vamos cruzá-los duas vezes. Eu fico com o primeiro, seja macho ou fêmea, e tu com o segundo. Eu gosto da tua égua.

- Pretendes que cruze Dalila, assuma todos os gastos da gravidez, prescinda dela durante os três ou quatro últimos meses, pague o veterinário... e depois te entregue o potro?

- Tu ficarás com o segundo. Grátis. Estaria disposto a negociar sobre os gastos.

- Estabelece um preço - disse Jillian enquanto se levantava. - Não estamos a falar de cães, não podes baixar-te junto à cesta e escolher o que mais gostas da ninhada.

- Não preciso do dinheiro - repetiu Aaron, recostando-se no sofá. - Quero um potro, aceitas ou não.

Teria adorado recusar, teria gostado de lhe responder que não lhe interessava... Estava prestes a rebentar, avançou a passos largos até à janela e ficou a olhar para o exterior. Ela mesma estava surpreendida de não ter rejeitado imediatamente a proposta. Até àquele momento não tivera consciência do quanto desejava cruzar aqueles cavalos. Outra intuição, pensou, lembrando-se do touro. Tinha o pressentimento de que sairia algo especial. Clay costumava dizer-lhe que acertava sempre com os animais. Muitas vezes, escolhera um animal guiando-se unicamente por um desses pressentimentos. Agora tinha de ponderar isso... e aquela proposta absurda de Aaron.

Continuava com a vista cravada na escuridão da noite que se estendia por detrás das janelas. Atrás dela, Aaron continuava calado, à espera, a olhar para ela com um sorriso vago. Perguntou-se se saberia como ficava encantadora quando estava zangada. Era tentador continuar a contrariá-la.

- Eu fico com o primeiro potro - disse ela de repente, - e tu com o segundo. A que corre riscos com a gravidez é a minha égua, e eu não poderei usá-la nos meses finais nem enquanto estiver a criar. Os maiores inconvenientes vão ser para mim.

Aaron meditou um instante. Jillian movia as suas fichas com precisão, tal como ele teria feito se a situação tivesse sido a inversa. Aquilo agradou-lhe.

- Mas voltaremos a cruzá-la assim que tiver desmamado o potro.

- Está bem. Tu pagarás metade das despesas do veterinário... nos dois partos.

Ele arqueou os sobrolhos. Sabia muito de gado e em negócios de cavalos também não era nenhuma ingénua.

- Metade - concordou ele. - Cruzá-la-emos assim que ficar com o cio.

Jillian assentiu e estendeu-lhe uma mão. - Queres redigir tu o contrato ou encarrego-me eu? Aaron levantou-se e apertou a sua mão.

- Tanto me faz. Para mim é suficiente um aperto de mãos.

- Penso o mesmo, mas nunca é de mais pôr as coisas por escrito.

Ele sorriu e acariciou-lhe os nós dos dedos com o polegar.

- Não confias em mim, Jillian?

- Nem um pingo - respondeu ela, e depois riu-se porque ele parecia mais agradado do que ofendido.

- Não, nem um pingo. E decepcionar-te-ia se dissesse o contrário.

- Sabes ir directamente à questão. É uma pena ter estado longe daqui estes últimos cinco anos inclinou a cabeça, - mas tenho a impressão de que vamos recuperar o tempo perdido.

- Eu não perdi o tempo - replicou Jillian. - E agora que resolvemos satisfatoriamente os nossos assuntos, Murdock, amanhã espera-me um dia muito longo.

Ele apertou com força a sua mão antes que pudesse retirá-la e dar meia volta.

- Não resolvemos todos os nossos assuntos.

- Todos os que me trouxeram até aqui - ela falou com frieza, inclusive quando ele deu um passo e se aproximou. - Não queria ter de me habituar a bater-te.

- Desta vez, não ias apanhar-me - agarrou-lhe a outra mão e reteve ambas com suavidade, embora não tanta para que ela pudesse afastar-se. Vais ser minha, Jillian.

Ela não tentou retirar as mãos à força, não recuou. Sustentou-lhe o olhar e a sua voz soou prática e realista.

- És insuportável!

- E quando acontecer - continuou ele como se não tivesse falado, - nenhum dos dois poderá esquecê-lo. Desde o instante em que te vi - puxou-a para si e o branco imaculado da saia envolveu as suas calças pretas - algo despertou no meu interior, algo que ainda não encontrou repouso.

- Esse problema é teu - ela levantou o queixo, mas estava sem fôlego. - Não me interessa, Murdock.

- Repete isso - desafiou-a ele - dentro de um minuto.

Pousou a boca sobre a de Jillian com mais força,! com mais rudeza do que pretendia. Com ela as suas emoções não encontravam um ponto intermédio. Ou era cheio de ternura ou paixão desenfreada. Sentiu os braços de Jillian rígidos contra o peito e como o seu corpo tremia, como se fosse rejeitá-lo. Depois sentiu o instante em que a paixão a dominou, tal como lhe acontecera a ele. Um segundo depois, rodeava-a com os seus braços e ela fazia o mesmo.

Era como se tivesse estado a desejá-lo, disse para si Jillian. Embriagador, irresistível. Podia prescindir de tudo, mas não daquela agitação deliciosa dentro do seu corpo. O sabor forte a vinho que persistia na língua de Aaron iria embebedá-la, mas não se importava. A sua cabeça andava às voltas, mas ela só podia agradecer aquela vertigem. Com paixão, respondeu ao que lhe pedia com as suas próprias necessidades.

Quando a boca de Aaron se afastou da sua, esteve prestes a protestar, mas o protesto transformou-se num gemido quando os lábios dele desceram pelo seu pescoço. Instintivamente, inclinou a cabeça para trás para lhe facilitar o caminho e assaltou-a o cheiro do sabonete misturado com um toque de sândalo. A boca de Aaron subiu até à sua orelha e mordiscou-lhe o lóbulo antes de sussurrar algo que ela não entendeu. O que importavam as palavras? O seu mero som deixou-a a tremer. Com um murmúrio de desespero, Jillian guiou os seus lábios novamente para os dele.

Estava-lhe a pedir que continuasse. Ele podia sentir a tensão do seu corpo e sabia que ansiava que lhe tocasse, mas quando caíram em cima do sofá, ainda tinha as mãos enroladas no seu cabelo. Depois, as suas mãos começaram a acariciar-lhe o corpo todo, mas não lhe parecia o suficiente, por muito depressa que se movessem. O seu corpo era muito magro por debaixo de tantos metros de algodão branco. E muito sensível. O seu seio quase se perdia sob a sua mão, apesar de ser muito firme. E, por baixo deste, o seu coração batia-lhe no peito com uma força ensurdecedora.

As suas pernas entrelaçaram-se com as de Jillian antes de deslizar para o meio delas. Quando esta se afundou nas almofadas, ele quase se perdeu na simples elasticidade do seu corpo. Consumiu a boca dela com a sua, não pôde evitá-lo, e Jillian não protestou. Limitou-se a dar e a receber até que ele se virou novamente, meio louco. O seu cheiro, às vezes subtil, às vezes sufocante, envolveu-o de tal modo que soube que seria capaz de o distinguir a muitas milhas de distância. Podia ouvir a respiração de Jillian, o fôlego que escapava por entre os lábios e penetrava na sua boca, como um sussurro quente, doce e prometedor.

O corpo de Jillian correspondia espontaneamente a essas carícias, enquanto a sua mente saía disparada em todas as direcções. Sentia o peso do corpo de Aaron sobre o seu, uma pressão dura e firme que lhe parecia tão natural e a fazia sentir-se tão bem... Aqueles beijos ásperos e rudes eram exactamente o que precisava para se sentir preenchida e ela nem sequer suspeitara! Ele ameaçava-a com palavras apaixonadas, sussurros loucos num universo de cores onde as formas se esfumavam.

A face dele raspou na sua enquanto Aaron lhe cobria o rosto de beijos. Nunca ninguém a desejara daquele modo. Mais ainda, ela jamais desejara com aquela paixão. A sua única experiência no que se referia a fazer amor fora pouco apaixonada, aprazível. Não estava preparada para a ânsia desenfreada que surgia do seu interior. A tentação de se deixar levar era demasiado grande.

A mão de Aaron foi subindo pela sua perna com um objectivo e, dentro de Jillian, o desejo atingiu o seu ponto culminante. Seria a sua perdição deixar que aquilo prosseguisse. Rebentaria em mil bocados que ficariam tão dispersos, que talvez nunca fosse suficientemente forte para se reconstruir.

Em pânico, começou a empurrá-lo enquanto uma parte de si desejava entregar-se a Aaron e possui-lo.

- Não - gemeu, e empurrou-o para trás.

- Jillian, pelo amor de Deus! - o seu nome surgiu com um suspiro, Aaron sentia que se afogava.

- Não! - o medo deu-lhe forças para escapar dele com um empurrão. Antes que algum dos dois tivesse tido tempo para pensar, ela saiu precipitadamente para a rua, fugindo de algo que a perseguia.

Aaron foi atrás dela a praguejar, até que, por fim, a apanhou.

- Posso saber o que se passa? - perguntou enquanto a obrigava a virar-se.

- Deixa-me, quero ir-me embora! Não vou deixar-me manusear assim!

- ”Manusear”? - ainda não tinha acabado de ouvir aquilo e já os dedos das mãos estavam rijos.

- É preciso seres descarada! - reprovou-a quase sem fôlego. - Tu também estavas a manusear-me, se é assim que gostas de lhe chamar.

- Deixa-me, quero ir-me embora! - insistiu com voz trémula. - Disse-te que não gosto que me toquem.

- Claro que gostas - disse com crispação, e então viu o medo que havia no olhar de Jillian. Havia também orgulho, uma espécie de orgulho atemorizado e entrelaçado com a paixão. Recordava-lhe muito um cavalo que outrora fechara no estábulo. Naquele momento, apercebeu-se de que estava a cravar-lhe os dedos nos braços magros com demasiada força.

Embora fosse verdade que não era um homem de maneiras delicadas, ela fora a primeira e única mulher que o fizera perder o controlo até ao ponto de lhe deixar marcas na pele. Com cuidado, afrouxou as mãos sem chegar a largá-la. Mesmo que os seus dedos já não a apertassem, sabia que podia arrastá-la novamente para dentro da casa e fazer com que voltasse a desejar entregar-se a ele. Mas havia coisas que uma pessoa não devia permitir-se fazer.

- Jillian - a sua voz era ainda rouca, mas um pouco mais tranquila, - podes adiar o que vai acontecer entre nós, mas não poderás impedi-lo; ela abriu a boca para falar, mas ele moveu a cabeça em sinal de advertência. - Farias melhor em não dizer nada neste momento. Desejo-te e é uma sensação bastante incómoda. É melhor levar-te a casa enquanto ainda continuo convencido de que devo respeitar as regras, antes que me lembre de que as quebro sempre.

Abriu a porta do passageiro e, em seguida, contornou o carro para se sentar ao volante sem dizer mais nenhuma palavra. Continuaram calados durante muito tempo. Como o seu corpo ainda palpitava com o pulso acelerado, Jillian sentou-se muito direita. Amaldiçoou Aaron e, quando começou a acalmar-se, amaldiçoou-se. Ela também o desejava: cada vez que lhe tocava, a sua reserva inicial desvanecia numa questão de segundos.

No colo, os dedos das suas mãos entrelaçaram-se contra as palmas e apertou os punhos com força. Havia uma palavra para designar a mulher que se mostrava ardente e disposta e, de um momento para o outro, começava a gritar e a proferir acusações. Não era uma palavra agradável. Ela nunca jogara a isso e desdenhava qualquer um que o fizesse.

Ele tinha todo o direito de estar zangado, admitiu, mas então, ela também. Fora ele quem aparecera na sua vida e avivara o que ela preferia que permanecesse adormecido. Não queria sentir aquele desejo, aquela ânsia que a devorava quando ele a abraçava.

Não podia entregar-se a eles. Uma vez que o fizesse, tornar-se-ia dependente. Se isso chegasse a acontecer, a sua confiança em si mesma iria diminuindo até que ele soubesse melhor do que ela quem era e o que queria na vida. Já lhe acontecera antes e o desejo que sentira então não podia comparar-se. O beijo da cozinha, tão surpreendentemente terno, fora um aviso do quão facilmente podia perder-se nos seus braços. E apesar disso... Apesar de estar tudo claro, vira-se forçada a admitir que se comportara como uma idiota. O que mais odiava no mundo era reconhecer que se enganara.

Um veado apareceu de repente, pela esquerda. Saltou sobre a cerca que ladeava a estrada e colocou-se no meio do caminho, deslumbrado pelas luzes do carro. Assim que Aaron travou, saiu disparado: as suas patas muito magras saltaram para o outro lado da cerca e desapareceu na escuridão. Aquela imagem produziu uma alegria íntima a Jillian; acontecia-lhe sempre a mesma coisa. Virou-se para olhar para Aaron e viu que os olhos deste sorriam. A emoção invadiu-a.

- Desculpa - as palavras saíram-lhe muito depressa, sem pensar. - A minha reacção foi exagerada.

Ele olhou para ela. Teria preferido continuar zangado, assim seria mais fácil... mas era-lhe impossível.

- Se calhar, os dois exagerámos um pouco. Tendemos a provocar-nos mutuamente.

Ela não podia negar aquilo, mas também não desejava analisá-lo naquele momento.

- Dado que vamos ter de nos ver de vez em quando, seria melhor chegarmos a um certo entendimento.

Um sorriso desenhou-se nos lábios de Aaron.

- Muito sensato. Em que tipo de entendimento estás a pensar?

- Somos sócios - respondeu ela com secura perante o que a pergunta insinuava.

- Ui! - ele passou-lhe um braço pelas costas; começava a divertir-se.

- Ensaias essa atitude de idiota ou sai-te de maneira natural?

- Eh, Jillian, nada de insultos! Pressupõe-se que queremos chegar a um ”entendimento”...

Ela tentou conter um sorriso, mas não conseguiu.

- Tens um sentido do humor muito estranho.

- Ou seja, um sentido do ridículo forte - replicou ele antes de recomeçar a andar com o carro. De modo que somos sócios. E esqueceste-te que também somos vizinhos.

- E vizinhos - assentiu ela com um movimento de cabeça. - E dedicamo-nos ao mesmo negócio, logo, de algum modo somos colegas, se queres que nos estendamos sobre esta questão.

- Vamos entender-nos - propôs Aaron. - Mas... Posso fazer uma pergunta?

- Sim - respondeu ela com cautela.

- Qual é a questão?

- Bolas, Aaron! - exclamou a rir-se. - Estou a tentar pôr as coisas no seu sítio, portanto não vou acabar por ter de me desculpar outra vez. É uma coisa que detesto.

- Pois eu gosto da maneira como te desculpas, com simplicidade e sinceridade, exactamente antes de voltares a perder as estribeiras.

- Não vou perder as estribeiras outra vez.

- Aposto cinco para um em como sim.

- Bolas, Aaron! - riu-se. Foi uma gargalhada tranquila, suave. - Se aceitasse a aposta, farias o que fosse necessário para me irritar.

- Vês como já nos entendemos perfeitamente? Mas estavas a falar-me daquela questão... - o carro entrou no pátio do rancho. Reinava a escuridão, a luz do alpendre da frente banhou o interior do veículo, mas deixou a cara de Aaron em sombras.

- Poderíamos ter sucesso como sócios se ambos nos esforçarmos para que assim seja.

- Concordo - virou-se para ela e, no reduzido espaço do carro, tocou-lhe. Jillian sentiu como os seus dedos lhe tocavam no ombro, no roçar da sua perna contra a dela.

- Vamos continuar a ser vizinhos, dado que nenhum dos dois pensa mudar-se. Desde que tenhamos presentes estas circunstâncias, acho que seremos capazes de lidar um com o outro sem grandes discussões.

- Estás a esquecer-te de uma coisa.

- Ah, sim?

- Disseste o que somos actualmente, não o que vamos ser - viu como Jillian semicerrava os olhos.

-Queres dizer...?

-Amantes - deslizou um dedo pela curva do seu pescoço com toda a naturalidade. - Propus-me a que sejas minha.

Jillian respirou fundo e concentrou-se em controlar a ponta do seu dedo.

- Está claro que és incapaz de manter uma conversa sensata.

- Há muitas coisas claras - pôs uma mão sobre a de Jillian quando esta se dispunha a levar a sua ao puxador da porta. As caras de ambos estavam muito perto e ele ficou a olhar para a sua boca durante o tempo suficiente para despertar o seu desejo. - Não sou um homem paciente - murmurou,

- mas há algumas coisas pelas quais posso esperar.

- Vai ser uma longa espera.

- Talvez seja mais longa do que eu desejaria aceitou ele, - mas menos do que tu achas - puxou o puxador e abriu-lhe a porta sem lhe largar a mão. - Dorme bem, Jillian.

Ela virou-se bruscamente e saiu do carro, depois lançou-lhe um olhar aceso.

- Não voltes aqui até eu te convidar, Murdock

- fechou a porta com força e subiu os degraus do alpendre amaldiçoando a gargalhada, profunda e relaxada, que ouviu atrás de si.

Nos dias seguintes, tentou não pensar em Aaron. Quando não conseguia evitar que penetrasse na sua mente, fazia o possível para pensar nele com desdém. Uma ou outra vez conseguia vê-lo como um homem obstinado, habituado a obter o que desejava. Mas não conseguia esquecer que a fizera rir-se e que conseguira também acender o seu desejo.

A jornada habitual era suficientemente longa, atarefada e cansativa para lhe deixar pouco tempo para pensar nele ou nos seus próprios sentimentos, mas apesar de as noites serem cada vez mais curtas, amaldiçoava as horas que passava sozinha e sem ocupações. Em momentos como aqueles era capaz de recordar com toda a exactidão como se sentira nos seus braços. Como os seus olhos podiam sorrir enquanto o resto do seu rosto se mostrava sério e solene. E a força, a firmeza da sua boca quando beijava a dela.

Começou a levantar-se mais cedo e a trabalhar até mais tarde. Esgotava-se nos prados ou nos estábulos até ter a segurança de cair rendida na cama. Mas, mesmo assim, ficavam os sonhos.

Saía para os pastos assim que amanhecia.

O céu ainda estava coberto com as cores da alvorada, o azul nebuloso tingido de cor-de-rosa e ouro. Tal como muitos dos seus homens, usava um casaco de trabalho leve e perneiras. Era necessário agrupar uma centena de vacas e bezerros, os primeiros, e conduzi-los para os currais para marcar as crias com o ferro. Aquela parte do trabalho seria lenta e relaxada. Era normal mudar uma vaca de curral em curral, até chegar a vinte e cinco, fazendo bom uso do cavalo e do laço. Grande parte do trabalho podia realizar-se a pé e o resto, com cavalos experientes ou jipes. Se conseguissem atrair as vacas, os bezerros segui-las-iam.

Virou Dalila e manteve-a a passo enquanto afastava uma vaca e o seu bezerro de um grupo de novilhos. Ansiava uma manhã cheia de obrigações e a satisfação do trabalho bem feito. Quando viu Joe que, a pé e com a ajuda de uma vara longa, conduzia lentamente um grupo de vacas, cumprimentou-o, tocando no chapéu.

- Eu pensava que marcar o gado era uma festa exclusivamente masculina - comentou ele quando chegou ao pé dela.

Ela olhou para baixo a rir-se.

- No Utopia, não - olhou à sua volta. Os seus homens, a pé e a animar os animais, estavam concentrados em fazer avançar o gado. - O avião estará aqui dentro de alguns dias. Assim vai ser muito mais fácil localizar os animais dispersos.

- Andaste a trabalhar muito ultimamente. Não, não olhes assim para mim - insistiu ele - porque sabes muito bem. O que se passa?

Aaron entrara furtivamente na sua vida, pensou Jillian, mas limitou-se a abanar a cabeça.

- Nada. Há muito trabalho nesta época. Em breve vamos ter de cortar o feno: a primeira ceifa deveria começar logo depois de termos acabado de marcar os bezerros. E depois vem o rodeo - o seu olhar desceu novamente para Joe enquanto Dalila se movia por baixo dela. - Conto com aqueles laços azuis, Joe.

- Andas há uma semana a trabalhar desde que o sol nasce até ao anoitecer - assinalou ele. - Tens direito a alguns dias de descanso.

- O chefe é o último com direito a alguns dias de descanso.

Estava satisfeita, as suas vacas tinham-se juntado ao grupo principal, que se dirigia lentamente para os pastos. Virou Dalila e avistou um bezerro que corria para Oeste, perseguido por homens, cavalos e jipes. Pôs Dalila a trote e foi atrás dele.

O seu regozijo inicial ao contemplar a corrida frenética do dissidente desvaneceu ao ver que este avançava em direcção à vedação. Praguejou e cravou os joelhos nos flancos para pôr a égua a galope. Imediatamente, agarrou no laço. Com um movimento perito do braço e do pulso, fê-lo girar no ar por cima da sua cabeça e, em seguida, atirou-o. Apanhou a cabeça do bezerro pelo pescoço e obrigou-o a parar a trinta centímetros da vedação. O bezerro começou a mugir e a lutar em vão para se soltar até que apareceu a sua mãe.

- Vaca idiota! - murmurou Jillian enquanto desmontava para ir tranquilizá-lo. - Teria sido bonito se chegasses a ficar preso aí! - olhou para as pontas afiadas da vedação de arame farpado antes de deslizar para cima a corda que lhe rodeava o pescoço. A mãe olhava para ela com irritação enquanto retirava o laço. - Bravo, bem-vinda! - exclamou com um sorriso. Levantou a vista e viu Gil, que se dirigia para ela.

- Ainda pensas que poderás ganhar-me em Julho? - perguntou.

- Forças demasiado as costas.

Embora dissesse aquilo com o seu tom habitual, cru e directo, algo no seu olhar pôs Jillian em alerta.

- O que se passa?

- Devias ver uma coisa aqui perto.

Ela agarrou Dalila pelas rédeas e seguiu-o. Não fazia sentido perguntar, portanto não se incomodou. Uma parte da sua mente continuava a registar as imagens e os sons do seu ambiente: os mugidos de irritação das vacas, os de desconcerto dos bezerros, o movimento majestoso das suas mães e os sussurros que o movimento dos homens e animais pelos pastos produziam. Começariam a marcar a meio da manhã.

- Olha para aqui.

Ela viu a vedação danificada e deixou escapar um palavrão.

- Bolas, tratámos desta cerca na semana passada! Eu mesma arranjei este lance - passou para o outro lado perguntando-se quantos dos seus animais teriam escapado por ali. Aquilo explicaria por que razão, embora os números que lhe dera naquela manhã estivessem correctos, os seus olhos lhe diziam outra coisa. - Vou precisar de vários homens para reagrupar os extraviados.

- Sim - Gil baixou-se e agarrou na vedação entre os dedos. - Olha!

Ela olhou distraidamente. Imediatamente, ficou rígida e agarrou na vedação com os seus próprios dedos. O corte era demasiado direito, demasiado evidente.

- Cortaram-na - disse devagar, depois levantou a vista e olhou para o outro lado. Os domínios de Murdock.

Esperava sentir raiva e ficou perplexa ao aperceber-se de que, em vez disso, se sentia ferida. Seria Aaron capaz daquilo? Pensou que podia mostrar-se implacável, inclusive fazer algo ilícito se lhe conviesse, mas cortar deliberadamente o arame das cercas... Seria essa a sua maneira de lhe fazer pagar as suas diferenças pessoais e a sua rivalidade no campo profissional? Deixou cair o arame.

- Manda três homens irem à procura dos animais que fugiram - disse sem hesitar. - Eu gostaria que te encarregasses pessoalmente de arranjar a vedação - olhou para Gil nos olhos, sem emoção alguma, - e nem uma palavra sobre isto. Ele observou-a com os olhos semicerrados.

- Tu é que mandas - respondeu finalmente.

- Se, quando tiverem reunido o gado todo no curral, ainda não tiver voltado, comecem sem mim. Não temos tempo a perder, é preciso marcar os bezerros todos o quanto antes.

- Talvez já seja demasiado tarde. Jillian saltou para a sela.

- Logo saberemos - conduziu Dalila através da abertura na vedação e depois esporeou-a.

Não passou muito tempo antes que se cruzasse com o primeiro grupo de trabalhadores. Dalila alcançou o jipe e Jillian desceu a vista.

- Onde está Murdock? Aaron Murdock.

O interpelado tocou no chapéu em sinal de saudação. Sabia reconhecer uma mulher ofendida quando a via.

- Na cerca norte, senhora, a reagrupar o gado.

- Há um buraco nesta cerca - disse com resolução. - Alguns dos meus homens virão à procura das cabeças de gado que se tenham extraviado. Talvez vocês queiram fazer o mesmo.

- Sim, senhora - respondeu, mas ela já partira a galope.

Os homens de Murdock trabalhavam tal como os seus. Viu como se abriam em leque para rodear o gado. Moviam-se com lentidão, com prudência, enquanto as cabeças de gado avançavam com passo pesado diante deles. Alguns encontravam-se muito afastados, encarregavam-se dos fugitivos e conduziam-nos de volta ao rebanho.

Viu-o perfeitamente, à direita, às voltas com Sansão ao redor de um bezerro teimoso. Sem fazer caso dos olhares de curiosidade dos seus homens, Jillian abriu caminho entre eles. Ouviu que se riam e gritavam algo ao bezerro antes que Aaron a visse.

A aba do chapéu protegia o rosto de Aaron do primeiro sol da manhã. Ela não conseguia distinguir a sua expressão, apenas que estava a ver como se dirigia para ele. As orelhas de Dalila ergueram-se assim que esta sentiu o cheiro do garanhão e começou a mover-se com passo lateral e ar assustadiço.

Aaron esperou até que estivessem um junto do outro.

- Olá, Jillian!

Uma vez que se apercebeu imediatamente de que se passava alguma coisa, não se incomodou em dizer mais nada.

- Quero falar contigo, Murdock.

- Pois fala.

Empurrou o bezerro, mas Jillian inclinou-se e agarrou a sua sela. Os olhos de Aaron pousaram na sua mão.

- A sós.

A expressão dos olhos de Aaron não se alterou, embora ela continuasse sem conseguir vê-los. Ele fez um gesto a um dos seus homens para que se encarregasse do fugitivo, deu a volta e avançou em direcção a Norte.

- Terás de ser breve. Neste momento, não tenho tempo para fazer vida social.

- Não vim fazer vida social - contra-atacou ela enquanto controlava Dalila, a qual observava o garanhão com cautela.

- Já me dei conta. Qual é o problema? Quando teve a certeza de que ninguém podia ouvi-los, Jillian puxou as suas rédeas.

- Há um buraco na vedação da cerca oeste. Ele olhou por cima da cabeça de Jillian para onde estavam os seus trabalhadores.

- Queres que diga aos meus homens que a arranjem?

- O que quero é saber quem a cortou.

Ele olhou imediatamente para ela. A única coisa que ela conseguia ver nos seus olhos era que eram pretos, o único indício do seu humor foi um movimento repentino, nervoso, do seu cavalo. Aaron controlou o animal sem desviar os olhos dela.

- Cortada?

- Exacto - mesmo naquele momento a raiva borbulhava na sua voz. - Foi Gil quem descobriu e eu mesma confirmei.

Ele inclinou o chapéu para trás com parcimónia. Finalmente, ela pôde ver-lhe a cara sem que as sombras a ocultassem. Já vira aquela expressão, aparecera quando ele a imobilizara no chão, no picadeiro de Sansão.

- Estás a acusar-me de alguma coisa?

- Estou a dizer-te o que vi - o sol da manhã incidiu nas suas pupilas, as quais brilharam. - A partir daí, podes tirar as tuas próprias conclusões.

Ele inclinou-se e agarrou-lhe na lapela do casaco com um gesto que parecia calmo, pausado.

- Não ando por aí a cortar vedações.

Ela não tentou escapar e olhou para ele com serenidade. Uma brisa agitou os caracóis avermelhados que fugiam por debaixo do chapéu.

- Tu talvez não, mas há muitos cowboys a trabalharem nas tuas terras. Três dos meus homens estão agora mesmo neste lado a reunir as vacas que fugiram. Dei pela falta de algumas cabeças de gado.

- Mandarei alguns homens darem uma vista de olhos à tua manada, caso também me tenha fugido alguma.

- Acabei de avisar alguns peões com quem me cruzei perto da vedação, quando vinha para aqui.

Ele mostrou a sua conformidade com um assentimento de cabeça, mas os seus olhos continuavam a expressar aborrecimento.

- Uma vedação pode ser cortada dos dois lados, Jillian.

Ela ficou sem fala, a olhar fixamente para ele. A raiva começou a ferver no seu interior enquanto lhe afastava a mão do seu casaco.

- Isso é ridículo! Não teria vindo falar-te do assunto se tivesse sido eu quem a tivesse cortado.

Aaron viu como Jillian tranquilizava a sua égua, que estava inquieta, e sorriu-lhe com frieza.

- Há muitos cowboys a trabalharem nas tuas terras.

Enquanto olhava fixamente para ele, o aborrecimento de Jillian desvaneceu. Sentira-se ferida e ofendida, e esses eram sentimentos que não permitiam pensar com lógica. Conhecia alguns dos seus homens e confiava neles. Outros... iam e vinham, ganhavam um pouco de dinheiro e depois partiam para outro rancho, até para outro condado. Raramente chegava a saber os seus nomes ou a reconhecer as suas caras. Mas era a ela que lhe faltavam várias cabeças de gado, recordou-se.

- Sentiste falta de animais? - perguntou.

- Depois digo-te - respondeu ele.

- Estarei a contar cabeças na secção oeste. Virou o rosto para o sol, que continuava alto no céu. Poderia ter sido um dos seus cowboys tal como poderia ter sido um dos de Aaron. Ela era a responsável por aquilo que fizessem todos os que estavam na lista de nomes do Utopia, devia assumi-lo.

- Não me fazem falta as tuas vacas. Aaron disse calmamente.

- Nem a mim as tuas.

- Não seria a primeira vez - olhou novamente para ele com o queixo muito alto. - Os Murdock tinham o hábito de cortar as vedações dos Baron.

- Queres realmente voltar atrás oitenta anos? perguntou Aaron. - Todas as histórias têm duas versões, Jillian, tal como uma cerca tem dois lados. Nós não tínhamos nascido nessa altura, o que nos importa?

- Não sei, mas aquilo aconteceu... e poderá voltar a acontecer. Clay está morto, mas o teu pai continua a sentir aversão por nós.

O temperamento voltou a surgir nos olhos de Aaron.

- Se calhar, arrastou-se até aqui e cortou a vedação com o objectivo de te criar problemas.

- Não sou assim tão idiota! - replicou ela.

- Tens a certeza? - Aaron avançou o seu cavalo até estar diante dela, cara a cara. - Pois és uma imitação muito boa. Eu mesmo vou ver essa cerca e depois conto-te aquilo que vir.

Antes que ela pudesse dizer-lhe algum sarcasmo, partiu a galope. Jillian rangeu os dentes e dirigiu-se para Sul, para o Utopia.

 

Quando Jillian entrou a galope no pátio do rancho, o gado já estava todo recolhido. Uma olhadela ao sol informou-a que passavam pouco das oito horas. No curral maior, contidos por um cercado de madeira, apinhavam-se vacas e bezerros que não cessavam de mugir. Os homens tinham começado a afastá-los, não era uma tarefa fácil. Jillian desmontou e tirou a sela à égua enquanto ouvia os protestos do gado e os palavrões que os seus trabalhadores proferiam. Não havia tempo para dar voltas ao assunto da vedação, uma vez que o processo de marcar os bezerros já começara.

Alguns homens continuavam a cavalo: faziam mover o rebanho enquanto obrigavam as mães, frenéticas, a entrar num cercado de arame, enquanto os bezerros eram mudados para outro curral com cerca de madeira. O ar estava povoado de palavrões e blasfémias imaginativas.

À base de gritos e empurrões, tiravam-se uma vaca e o seu bezerro do curral grande. Vários homens a pé formavam uma barreira para impedir o passo à mãe enquanto a cria fugia entre os corpos. Outros trabalhadores conseguiam introduzir a vaca num cercado de arame fazendo uso de assobios, dando gritos e agitando muito os braços. Seguidamente, todo o processo se repetia. Observou Gil, reparou como dobrava o seu corpo, magro e forte, não muito alto, e como se felicitava cada vez que afastavam um bezerro da sua mãe, com uma energia que prometia que aguentaria o dia todo em pé, apesar da sua idade. Jillian riu-se, enterrou o chapéu e dirigiu-se para ele com o laço na mão.

Os bezerros eram atirados de volta para o curral grande. O ar estava cheio de pó. As vacas tentavam abrir caminho contra a barreira para se juntarem aos seus rebentos e os cowboys faziam-nas recuar à base de gritos, cordas ou força bruta. Os homens podiam ser escassos e não muito robustos, mas o gado não podia igualar a habilidade daqueles cowboys.

Gil afastou um bezerro no curral das vacas, rodeou-o com o laço e puxou-o para si sem parar de dizer palavrões. Empurrou-o para dentro do curral que lhe correspondia com um empurrão num dos flancos. Depois olhou para Jillian com o seu estrabismo habitual.

- A cerca está arranjada? - perguntou ela, concisamente.

- Sim.

- Eu tratarei do resto - parou e depois fez girar o laço no ar. - Depois quero falar contigo, Gil.

Este tirou o chapéu, enxugou o suor da testa com a manga cheia de pó e voltou a colocá-lo.

- Quando quiseres - olhou à sua volta enquanto Jillian metia outro bezerro no curral. - Assim que tratarmos destes, acabámos.

Dito aquilo, uniu-se à barreira de homens que fechavam a passagem às vacas mais revoltosas e as empurravam para o seu próprio curral. Dentro do curral dos bezerros, estes, apinhados, não paravam de mugir.

- Não é agradável - murmurou-lhes Jillian, mas vai ser rápido.

A porta do cercado rangeu quando a fecharam para conter os animais. A faca, a agulha e o ferro de marcar eram utilizados com precisão, a um ritmo que, de início, era irregular e, depois, ia ganhando fluidez e velocidade. Os bezerros iam passando pelo corredor, um a um, certamente sonhando ver-se livres, e, de repente, encontravam-se elevados no ar, sobre a mesa.

Viu como o bezerro seguinte movia os olhos, atónito, quando a mesa se inclinou e o deixou deitado de lado, sem hipótese de escapatória, à altura da cintura de um homem.

Era uma tarefa dura e suja. Cheirava a suor, a sangue, a pele queimada e a desinfectante. Enquanto se levava a cabo a operação, de forma ininterrupta, os homens relembravam ocasiões anteriores: histórias incríveis que cada um tentava superar com outras ainda mais descabidas. As vacas mostravam-se furiosas no curral de arame, as suas crias gritavam quando sentiam a agulha ou a faca. O tom das exclamações dos trabalhadores ia subindo, tal como a temperatura dentro do curral.

Não era a primeira vez que marcava gado e, no entanto, o sangue e o suor faziam-lhe sempre recordar porque estava ali em vez de numa das amplas e movimentadas ruas do Este. Era um trabalho duro, mas honrado. Não era qualquer um que servia. O gado que dava voltas no curral e mugia pertencia-lhe, tal como aquelas terras. Aproximou-se da mesa e indicou a um dos homens a tarefa de dar vacinas.

O sol continuava a subir no céu. Alcançou o seu ponto mais alto e começou a descer antes que tivessem largado o último animal. Quando acabaram, os homens estavam famintos e os bezerros, exaustos, mugiam lastimosamente chamando as suas mães.

Ela também tinha calor e fome. Sentou-se em cima de uma caixa que havia por ali e limpou a sujidade da cara. A camisa colava-se-lhe ao corpo, as manchas de suor estendiam-se sob o pó que cobria o algodão. E eram apenas as primeiras cem cabeças de gado, pensou enquanto arqueava as costas para relaxar a tensão. Só acabariam de marcar os bezerros todos no fim daquela semana ou no princípio da seguinte. Esperou até que praticamente todos os homens se tivessem dirigido para a cantina antes de fazer um gesto a Gil. Este tirou duas cervejas de um balde cheio de gelo e foi ter com ela.

- Obrigada - Jillian rodou a tampa e deixou que o líquido, frio e saboroso, arrastasse parte do pó. - Murdock vai verificar o resto da vedação disse sem preâmbulos. - Responde-me sem rodeios - levou a garrafa à testa por um instante e desfrutou da frescura, - ele é o tipo de homem que entraria neste tipo de jogo?

- O que achas tu? - replicou Gil.

O que achava ela?, perguntou-se Jillian. Por muito que tentasse, os sentimentos continuavam a perturbá-la, sentimentos que ainda tinha de analisar, coisa que não se atrevera a fazer.

- Eu perguntei primeiro.

- O rapaz tem classe - respondeu Gil concisamente. - Agora, o velho... - sorriu um pouco e revirou os olhos sob a luz do sol - talvez fizesse coisas do estilo de há anos atrás, por pura maldade. Mas o rapaz... Não creio que as suas diabruras vão por esse caminho. Outra coisa... - cuspiu tabaco e mudou o peso de perna. - Esta manhã, fiz uma recontagem de cabeças. Podem-me ter escapado algumas que se espalharam ao tentar reuni-las...

Jillian bebeu outro gole e deixou a garrafa de lado.

-Mas?

- Parece-me que nos faltam umas cem.

- Cem? - repetiu ela com um sussurro de desmaio. - Tantos animais não podem ter fugido pelo buraco da cerca, pelo menos, não sozinhos.

- Os rapazes só encontraram uma dúzia nas terras de Murdock.

- Estou a ver - Jillian deixou escapar o ar com uma longa exalação. - Então não parece que tenham cortado a vedação só para chatear, pois não?

- Pois não.

- Amanhã de manhã, quero uma contagem de todos os animais, até ao último bezerro. Começa pelos prados da secção oeste - desceu a vista e olhou para as mãos. Estavam imundas e os dedos doíam-lhe. Era inato nela entregar-se ao trabalho, tal como defender o que era seu. - Gil, há muitas possibilidades de que alguém, algum trabalhador de Murdock, esteja a roubar gado. Talvez para o Double M, mas com mais probabilidades de que seja para si mesmo.

Ele puxou uma orelha.

- Pode ser.

- Também pode ser um trabalhador do Utopia. Gil olhou calmamente para ela nos olhos.

- Também é possível - disse simplesmente.

- Talvez também faltem animais a Murdock.

- Quero ter o resultado da contagem amanhã ao entardecer - levantou o rosto para olhar para ele. - Escolhe homens em quem tenhas confiança,

nenhum que esteja aqui há menos de uma temporada. E que saibam guardar os seus comentários para si.

Ele assentiu, compreendia que era necessária muita discrição. O roubo de gado continuava a ser um problema grave, tão grave como no século XIX.

- Vais trabalhar nisto com Murdock?

- Só se for necessário - recordou o rosto furioso de Aaron. Era o orgulho ferido, acontecia-lhe o mesmo. Suspirou quase sem se aperceber, era um suspiro de cansaço.

- Vamos comer alguma coisa - ouviu Gil dizer.

- Não - caminhou até Dalila, colocou-lhe a sela e começou a apertá-la. No curral, o gado começava a recuperar a calma.

Depois de acabar, Gil tocou-lhe num ombro. Ela virou a cabeça e viu que tinha na mão um pedaço de pão com muita carne em cima.

- Come isto, mesmo que não queiras - disse com brusquidão. - Se continuares assim, vais desaparecer.

Jillian aceitou a sandes e deu-lhe uma grande dentada.

- És um resmungão! - murmurou com a boca cheia.

Depois, como não havia ninguém perto que pudesse vê-los e meter-se com eles, beijou-o em ambas as faces. Embora tivesse gostado, repreendeu-a e começou a resmungar. Ela desatou a rir-se enquanto subia para a sela.

Pôs a égua a trote até saírem do pátio, e depois, em busca de um pouco de solidão, passou a galope.

Com o objectivo de satisfazer a sua própria curiosidade, dirigiu-se primeiro para os prados do sector oeste. Verificou a cerca acabada de arranjar e depois, cavalgando devagar, começou a contar os animais que ainda estavam a pastar. Não demorou muito tempo para confirmar que a estimativa de Gil se aproximava muito das suas próprias quantias. Uma centena de cabeças. Fechou os olhos e tentou pensar com calma.

Naquele Inverno só tinham morrido vinte animais. Todos os rancheiros tinham de assumir as perdas provocadas pelo mau tempo, mas não fora a natureza que lhe arrebatara aquelas cem vacas. Tinha de descobrir quem fora, e depressa, antes que continuassem a desaparecer. Jillian deu uma olhadela ao outro lado da cerca. De ambos os lados, os animais pastavam tranquilamente, uma vez que o homem os deixara em paz. Até onde alcançava a vista, não se viam mais que pastos e o gado espalhado neles. Uma centena de cabeças, voltou a pensar. O suficiente para abalar apreciavelmente a sua manada... e os seus lucros. Não ia ficar de braços cruzados perante aquilo.

Sem contemplações, pôs Dalila a galope. Não podia dar-se ao luxo de entrar em pânico. Tinha de ir passo a passo, descobrir com exactidão quantos animais tinham desaparecido, antes de ir às autoridades, mas, naquele momento, estava cansada, suja e desanimada. O melhor que podia fazer era remediar aquilo antes de regressar ao rancho.

Só decorrera uma semana desde a última vez que se aproximara do lago, mas mesmo depois de um período de tempo tão breve, pareceu-lhe que os álamos já estavam mais verdes. Reparou que havia botões de flores de raiz amarga e de rosas silvestres, que eram lindas, mas podiam ser muito destrutivas quando começavam a estender-se pelos pastos. O sol começava a descer a Oeste. Calculou que seriam entre a uma e as duas horas. Conceder-se-ia uma hora ali para retomar forças antes de regressar e iniciar a tarefa árdua de rever várias vezes o número de animais que constava nos livros e nas áreas em que estavam distribuídos. Depois de desmontar, prendeu a égua a um ramo e deixou que pastasse.

Sem mais contemplações, tirou o chapéu e atirou-o para cima da erva. Em seguida, sentou-se numa rocha para tirar as botas, às quais se seguiram as calças de ganga e a camisa. Ouviu-se o piar de uma carriça que celebrava a Primavera. As papoilas estavam a brotar à beira do lago.

A água estava deliciosamente fria. Quando entrou nela, esqueceu as dores musculares, a dor surda e difusa nas costas e o desespero que lhe seguira os passos desde o sector oeste. Como proprietária e chefe do Utopia, enfrentaria o que tivesse de enfrentar, mas, naquele momento precisava de ser unicamente Jillian. Era Primavera, o sol aquecia. Se a brisa soprasse por onde devia, sentiria o cheiro das rosas silvestres. Inclinou a cabeça para trás e deixou que a água lhe banhasse a cara e o cabelo.

Aaron não se perguntou como adivinhara que Jillian estaria ali. Também não se perguntou porque, sabendo-o, aparecera. Tanto ele como o garanhão ficaram imóveis enquanto a contemplavam. Não chapinhava, mas deslizava com lentidão. Pareceu-lhe que a fadiga a abandonava. Era a primeira vez que a via completamente relaxada. Nos seus olhos não dançava a gargalhada nem cintilavam o mau temperamento ou o espírito aventureiro. Aquilo era um presente que dava a ela mesma e, apesar de saber que era um intruso, Aaron ficou onde estava.

A pele de Jillian era clara e pálida onde não lhe batera o sol. Sob as ondas que se formavam na água, viu as curvas magras do seu corpo. O cabelo, molhado e para trás, caía-lhe sobre os ombros e ardia como o fogo. Tal como o desejo que surgiu no seu interior e se estendeu por todo o seu corpo.

Saberia como era perfeita com aquele corpo longo e ágil, e aquela pele aveludada?

Saberia como estava sedutora com aquele cabelo avermelhado a emoldurar-lhe um rosto que transmitia delicadeza e força ao mesmo tempo? Não, pensou enquanto ela mergulhava, não podia sabê-lo... Nunca o reconheceria. Talvez tivesse chegado a hora de se habituar. Com o maior silêncio, conduziu Sansão para uma árvore que se encontrava no lado que pertencia ao Double M.

Jillian emergiu à superfície e deu por si a olhar, cara a cara, para Aaron. A comoção inicial deu lugar ao aborrecimento, ao sentimento de ofensa; mal se lembrou da sua desvantagem. Ele viu aqueles sentimentos e franziu os lábios.

- O que fazes aqui? - inquiriu Jillian. Sabia que não podia fazer nada para se tapar e também não tentou. Adoptou uma atitude desafiadora.

- Como está a água? - perguntou Aaron, calmamente. Outra mulher, pensou, teria ficado frenética e teria tentado tapar-se. Jillian não; limitara-se a levantar o queixo.

- Está fria. Agora, porque não te vais embora por onde vieste, para eu poder acabar de tomar banho?

- Foi uma manhã longa, engoli muito pó - Aaron sentou-se numa rocha perto da beira do lago e sorriu com companheirismo. Tal como no caso de Jillian, tinha a roupa imunda e suada, e a pele coberta de pó. Os sinais do trabalho cansativo e do esforço não eram discordantes na sua pessoa. Inclinou o chapéu para trás. - Dá vontade de entrar.

- Eu estava aqui primeiro - disse ela entredentes. - Se tivesses decência, ias-te embora.

- É verdade - inclinou-se para a frente e tirou as botas. Jillian viu como, primeiro uma e depois a outra, aterravam na erva.

- Posso saber o que estás a fazer?

- Acho que vou dar um mergulho de cabeça Aaron dirigiu-lhe um sorriso insinuante enquanto atirava o chapéu para o lado.

- Pensa bem.

Ele levantou-se e arqueou devagar um sobrolho enquanto desabotoava a camisa.

- Estou nas minhas terras - assinalou. Tirou a camisa e Jillian teve uma visão fascinante, embora não desejada, do seu peito, forte e liso, da pele morena que cobria as suas costelas e da linha de pêlo escuro que descia até à cintura das suas calças.

- Raios partam, Murdock! - exclamou entredentes, e calculou a distância que a afastava da sua própria roupa. Demasiado longe.

- Relaxa - sugeriu ele, desfrutando com a situação. - Podemos fazer como se houvesse uma vedação exactamente a meio do lago - dito aquilo, desabotoou o cinto sem parar de olhar para ela. A primeira intenção de Jillian foi desviar a vista, mas desistiu de o fazer perante o regozijo que viu nos olhos de Aaron. Imperturbável, viu como este se despia por completo. Se teve de engolir em seco, fê-lo disfarçadamente.

Raios! Porque tinha de ser tão bonito?, perguntou-se, e teve o cuidado de ficar no seu lado do lago enquanto ele se metia na água. As ondas que a sua entrada provocou chegaram até ela e acariciaram-lhe a pele. A tremer, Jillian submergiu mais um pouco.

- Isto parece-te muito engraçado, não é? Aaron exalou um longo suspiro enquanto a água levava o pó e lhe arrefecia o sangue.

- Devo admitir que sim. Não há diferença entre o que se vê por dentro e por fora - recordou-lhe calmamente. - E já me tinha passado pela cabeça como serias sem roupa. A maioria das ruivas tem sardas.

- Acho que tenho sorte - durante um instante, surgiram no seu rosto as covinhas que se formavam ao sorrir. Pelo menos, já estavam em igualdade de circunstâncias. - És como a maioria dos cowboys - disse-lhe, arrastando as palavras: muita perna e pouca anca - os seus braços flutuavam preguiçosamente na água. - Já vi melhores mentiu. Rindo-se, inclinou a cabeça para trás e deixou que as suas pernas subissem à superfície, incapaz de resistir ao impulso de se divertir um pouco às suas custas.

Bastava-lhe estender um braço para lhe agarrar o tornozelo e puxá-la para si. Aaron esfregou a palma da mão, desejosa de entrar em acção, contra a coxa e relaxou.

- Adquiriste aqui o hábito de tomar banho nua?

- Nunca vem cá ninguém - afastou o cabelo dos olhos e olhou para ele - nunca vinha. Se começares a vir tomar banho no charco com frequência, é melhor estabelecermos um horário para podermos usá-lo os dois.

- Não me importo de ter companhia - ele aproximou-se um pouco, de modo que o seu corpo chegou até ao ponto por onde passava a linha imaginária que dividia o lago.

- Fica no teu lado, Murdock - avisou-o ela, mas sorriu. - Mesmo nos nossos dias, quem invade uma propriedade privada pode apanhar um tiro - para lhe demonstrar que a sua presença não a preocupava, fechou os olhos e deixou que o seu corpo flutuasse. - Quero vir aqui aos domingos à tarde, enquanto os homens estão no pátio do rancho a ver os cascos dos cavalos e a contar mentiras uns aos outros.

Aaron observou o seu rosto. Não, nunca a vira tão relaxada. Perguntou-se se se aperceberia do pouco tempo que dedicava a si mesma.

- Não gostas de contar mentiras?

- Aos domingos à tarde, os meus homens tendem a recordar que sou mulher. A minha presença limita... Digamos que limita o tipo de mentiras.

- Só se lembram aos domingos à tarde?

- É fácil esquecer o sexo de uma pessoa quando se está nos prados ou a limpar quadras.

Os olhos de Aaron percorreram o seu corpo, coberto por poucos centímetros de água.

- Se tu o dizes... - murmurou.

- E precisam de tempo para se queixarem - Jillian riu-se e as suas pernas afundaram-se. – Da comida, do salário, do trabalho... É difícil se o chefe andar por perto - moveu uma mão dentro de água e o movimento provocou uma onda que chegou até à beira. Ele pensou que aquele era o primeiro gesto puramente ocioso que a via fazer. Os teus homens queixam-se, Murdock?

- Devias tê-los ouvido quando a minha irmã decidiu remodelar os barracões, há uns seis ou sete anos - a lembrança fê-lo sorrir. - Aparentemente, pensou que faziam falta umas cortinas e uma pintura. Mandou pintar as paredes de azul céu e pôs cortinas às florezinhas.

- Meu Deus! - ela tentou imaginar como reagiriam os seus homens se lhes pusesse cortinas às florezinhas. Inclinou a cabeça para trás e desatou a rir-se até lhe doerem os músculos do abdómen.

- O que fizeram?

- Recusaram-se a lavar, varrer e limpar. Ao fim de duas semanas, o lugar parecia o esgoto municipal... e cheirava como tal.

- Como é que o teu pai lhe permitiu fazê-lo? interrogou Jillian, enxugando os olhos.

- A minha irmã parece-se com a minha mãe limitou-se a explicar Aaron.

Ela assentiu e suspirou para se acalmar depois do ataque de riso.

Mas os teus homens tiraram as cortinas, suponho.

- Eu... Digamos que numa noite desapareceram - rectificou ele.

Ela deitou-lhe um olhar rápido.

- Tiraste-as e queimaste-as, não foi?

- Não o admiti em sete anos e não o vou admitir agora. Foi necessária quase uma semana para limpar tudo e pôr o sítio em condições - recordou ele. Jillian estava a sorrir-lhe de um modo tão relaxado e amigável que precisou de toda a sua força de vontade para não lhe agarrar um pé e a puxar para si. - Separaste hoje os bezerros?

- Já estão vacinados, marcados com o ferro e fizemos-lhes o corte na orelha - Jillian foi para trás, impulsionando-se ligeiramente com as mãos.

- Mais alguma coisa?

Ela riu-se, sabia a que se referia.

- Dentro de alguns anos, Baby rivalizará com o seu pai - encolheu os ombros e o seu corpo deslocou-se ligeiramente. O nível da água desceu quase abaixo da curva dos seus seios. Quanto menos preocupada se mostrava com a sua nudez, mais fascinado Aaron ficava com o seu corpo. - Tenho uma intuição - prosseguiu, - e não faz sentido tratá-lo como um bezerro vulgar - uma preocupação nublou o seu olhar. - Estive a verificar a cerca oeste antes de vir para aqui. Não vi mais buracos.

- Não havia mais - ele sabia, desde o início que acabariam por falar do assunto, mas chateou-lhe que se acabasse aquele momento de simples camaradagem. Não recordava alguma vez ter partilhado com uma mulher algo tão simples. Os meus homens reuniram seis vacas que tinham passado para o teu lado. Deu-me a impressão de que tu tinhas, pelo menos, o dobro no meu.

Ela hesitou um instante e tremeu-lhe o lábio inferior.

- E agora, as contas batem-te certo?

- Acho que sim. Porquê?

Ela manteve um olhar inexpressivo.

- A mim, faltam-me cem cabeças.

- Cem? - antes de se aperceber, Aaron já lhe agarrara no braço. - Cem cabeças? Tens a certeza?

- Toda a certeza que posso ter antes de fazer uma recontagem exaustiva e comparar com os números que aparecem nos livros. Mas faltam-me muitos animais, não tenho dúvidas.

Ele ficou a olhar fixamente para ela enquanto a sua mente chegava à mesma conclusão a que ela chegara. Tantas vacas não passariam por um buraco na vedação sem que alguém as empurrasse.

- Amanhã de manhã, voltarei a contar o gado, mas, a partir de agora, digo-te que se tivesse tantos animais a mais nos pastos, já me teria dado conta.

- Eu sei muito bem. Não acho que estejam lá. Aaron estendeu o braço e acariciou-lhe uma face.

- Queria ajudar-te... Se precisares. Podemos passar o rancho a pente fino. Talvez estejam a ir noutra direcção.

Ela sentiu que algo se derretia no seu interior.

Oferecera-se para a ajudar com tanta simplicidade e a carícia daquela mão na sua face era tão delicada...

- Obrigada - começou com voz hesitante, mas não acho que aquelas vacas andem a vaguear pelos prados, e tu também não.

- Na verdade, não - reconheceu ele, e afastou-lhe o cabelo da cara. - Eu acompanho-te para ires falar com o xerife.

Jillian não estava habituada a receber o apoio desinteressado de ninguém e ficou a olhar para ele. Também não tinha consciência de que ambos estavam no limite imaginário que dividia o charco, muito perto um do outro.

- Não, eu... Não é preciso, eu posso desenrascar-me sozinha.

- Não tens de enfrentar isto sozinha.

Como era possível que não se tivesse apercebido antes de quão frágil era?, perguntou-se Aaron. Os seus olhos eram tão jovens, tão vulneráveis... A sua maçã do rosto era muito delicada. Acariciou-a com o polegar e sentiu que tremia. Sem saber como, a mão chegou até debaixo da sua cintura e puxou-a para si.

- Jillian... - mas não tinha palavras, só necessidades. Com suavidade, aproximou a sua boca da dela.

As mãos de Jillian subiram pelas suas costas e percorreram a pele molhada, fria. Os seus lábios afastaram-se com suavidade por debaixo dos de Aaron. Este percorreu preguiçosamente a sua boca com a ponta da língua e, finalmente, enrolou-a com a sua. Jillian relaxou, desejosa de que aquele beijo húmido e ofegante se prolongasse. Não se recordava de alguma vez se ter sentido tão dócil, tão em sintonia com os movimentos e os desejos de outra pessoa. Os lábios de Aaron tornaram-se mais apaixonados e transmitiram-lhe a sua paixão. Ela sentia os batimentos do seu coração, colado ao dela, um batimento rápido e firme. Afastou a sua boca da dela apenas o suficiente para mudar a inclinação das suas cabeças antes de começar a tornar o beijo mais profundo, lentamente.

Foi tão gradual que ela não conseguiu defender-se. Era como se um vazio que ansiava ser repleto se estendesse por todo o seu corpo. A ânsia de ser amada era dolorosa. O seu coração dizia-lhe que Aaron era o homem com quem poderia partilhar tudo, não sem risco, não sem perigo, mas com algo que quase esquecera: esperança.

Mas quando a sua mente começou a nublar-se, lutou para esclarecer as suas ideias. Não era partilhar, disse para si enquanto os lábios dele tentavam persuadi-la. Era dar, e se desse, podia perder. Só uma idiota esqueceria a ténue linha divisória que existia entre eles, o limite, a cerca.

Empurrou-o para se soltar e ficou a olhar para ele. Estaria louca? Fazer amor com Murdock quando alguém cortara a vedação e perdera cem vacas? Seria tão fraca que uma carícia, um beijo, conseguiam fazê-la esquecer as suas responsabilidades e obrigações?

- Disse-te para ficares do teu lado - disse com voz trémula, - e disse-o a sério - virou-se, nadou até à beira e saiu para se colocar de pé.

Aaron observou-a com a respiração acelerada. Mostrara-se tão doce, tão entregue... Nunca desejara tanto uma mulher, nunca se sentira assim. Foi como uma revelação: era a primeira mulher que lhe importava realmente e a primeira com a qual não tinha outro remédio senão reconhecê-lo. Com solenidade, nadou até à zona da beira que correspondia ao seu lado do lago.

- És teimosa, não és?

Jillian ouviu o chapinho da água quando ele saiu do lago. Vestiu a camisa, que estava cheia de pó, sem se incomodar sequer em sacudi-la.

- Exacto. Só Deus sabe porque fui tão parva para pensar que podia confiar em ti - porque tinha tanta vontade de chorar, se nunca chorava?, perguntou-se, e abotoou a camisa com dedos trémulos. - Aquela história toda de me ajudares era só para conseguires o que querias - permaneceu sem se virar, dando-lhe as costas, e vestiu as cuecas.

As mãos de Aaron pararam no fecho das suas calças. A raiva e a frustração invadiram-no tão depressa que achou que não seria capaz de se controlar.

- Tem cuidado, Jillian.

Ela virou-se com os olhos brilhantes e o peito palpitante.

- Não me digas o que tenho de fazer. Desde o início, deixaste claro o que desejavas.

Com todos os músculos em tensão, pousou uma mão sobre a sela do seu garanhão.

- É verdade.

Aquela resposta tão calma só aumentou a fúria que Jillian sentia.

- A tua sinceridade parecer-me-ia respeitável se não houvesse alguém que tivesse cortado a vedação e me tivessem desaparecido cem cabeças. Este tipo de coisas não acontecia quando estavas em Billings à espera que o teu pai... - interrompeu-se, espantada pelo que estivera prestes a dizer. Qualquer desculpa que pudesse formular desvaneceu sob o olhar assassino que lhe dirigiu.

- À espera que o meu pai... O quê? - repetiu Aaron com tranquilidade, com demasiada tranquilidade.

O medo fez com que Jillian levantasse o queixo.

- Isso cabe-te a ti responder.

Aaron não se atreveu a aproximar-se dela. Sabia que, se o fizesse, Jillian poderia não sair ilesa. Os seus dedos fecharam-se sobre a corda que pendia da sua sela.

- Então fazias melhor em guardar as tuas opiniões para ti.

Ela teria dado metade das suas terras para poder apagar aquelas palavras tão odiosas, tão malévolas. Mas já estavam ditas.

- E tu em ter as mãos quietas - disse finalmente. - Quero que te mantenhas afastado de mim e das minhas coisas, Murdock. Não preciso que me elogiem com palavras ternas, nem tu nem ninguém. És muito atraente, é difícil resistir

- virou-se novamente para agarrar nas suas calças.

Aaron agiu depressa, sem pensar. A sua mente ainda hesitava sob o efeito das palavras de Jillian. A insinuação ferira-o porque nunca sentira nem mostrara tanta ternura para com uma mulher. O que sentira no charco ia muito além de uma mera necessidade física e era suficientemente complexo para se sentir, pela primeira vez, vulnerável perante uma mulher.

Jillian deixou escapar um grito de espanto quando o círculo perfeito se fechou em torno dela. O laço cravou o tecido da camisa acima da sua cintura e apanhou os seus braços um pouco mais acima dos cotovelos. Deu meia volta e tentou agarrar a corda para se libertar.

- Posso saber o que achas que estás a fazer? Aaron puxou-a para a frente e Jillian avançou aos tropeções.

- O que deveria ter feito há uma semana - a raiva ofuscava o seu olhar quando Jillian, impotente, chocou contra ele. - Não vou dar-te mais elogios. Nada de palavras ternas.

Ela tentou, em vão, tirar a corda, mas o seu olhar continuava a mostrar-se desafiador e audaz.

- Vais pagar-me por isto, Murdock.

Aaron não duvidava, mas, naquele momento, não lhe importava. Agarrou-lhe o cabelo molhado com uma mão e aproximou-a mais dele.

- Tenho a certeza - murmurou, - mas acho que terá valido a pena. Fazes com que acorde a meio da noite, Jillian, quando um homem deveria estar a descansar. Tão depressa te mostras doce e terna como começas a resmungar, portanto, dado que não consegues decidir-te, vou decidir por ti.

Beijou-a de modo que ela pudesse sentir toda a raiva que o seu desejo continha. Jillian lutou para se soltar inclusive quando o seu corpo já começava a responder. Aaron continuava com o peito nu, ainda molhado, e a sua camisa ficou húmida. O ar acariciou as suas pernas nuas enquanto ele a levantava no ar. Com a sua boca ainda prisioneira por debaixo da de Aaron, encontrou-se deitada sobre a erva, quente pelos raios do sol, e com ele por cima. A fúria não deixava espaço no seu interior para sentir pânico.

Contorcia-se, esperneava e tentava afrouxar a pressão da corda. Insultou Aaron quando este afastou a sua boca da dela para se dedicar a beijar-lhe o pescoço, mas o insulto transformou-se em gemido quando os lábios voltaram a apanhar a sua boca e lhe sugou todo o lábio inferior para desatar a paixão. Por baixo dele, Jillian continuava a mover-se, mas já não para resistir, mas para expressar as suas necessidades, embora nenhum dos dois se apercebesse. Ela só sabia que estava a arder e que, daquela vez, iria render-se ao que o seu corpo lhe exigia sem importar qual fosse o preço.

Aaron estava completamente entregue. Esquecera o laço, o seu aborrecimento e o mal que lhe fizera. Naquele momento, a única coisa que sentia era que Jillian era quente e frágil, e que a sua boca bastava para fazer perder a razão a um homem. Nada nela era tranquilo. Os lábios estavam ávidos e procuravam-no, os dedos fincavam-se na sua cintura. Podia sentir o batimento acelerado do seu coração, que parecia querer pulsar em uníssono com o dele. Quando ela apanhou o seu lábio inferior com os dentes e o sugou, ele gemeu e deixou-a fazê-lo.

Jillian estava a voar com tantas sensações. Sentiu o roçar da erva nas pernas quando as moveu para se apertar mais intimamente contra Aaron. O cabelo deste cheirava tal como as gotas de água que lhe salpicavam na cara. Perguntou-se se teriam algum gosto e sentiu um ligeiro sabor a sal e a carne quando lhe sugou o pescoço. Ouviu que ele pronunciava o seu nome com um gemido desesperado. Nada de palavras ternas. Não havia nada terno nem sentimental no que os unia naquele instante. Era um instinto primário, uma paixão primitiva. Ela apercebia-se apesar de ser a primeira vez que sentia aquela sensação. Sentiu que os dedos de Aaron desciam pela sua camisa e lhe desabotoavam os botões para poder chegar até ela. Mas foi a sua boca, quente e ávida, não a sua mão, que lhe apanhou o mamilo. O desejou rebentou e atingiu-a com força.

Ficou aturdida enquanto, com lábios, dentes e língua, Aaron continuava a dedicar-se a excitá-la. Enquanto tentava recompor-se, ele puxou-lhe a blusa para lha tirar e soltou um palavrão quando a camisa de algodão ficou presa à sua cintura. A mão de Aaron desceu com necessidade. Os seus dedos encontraram-se com a corda e ficou gelado, com o ar a palpitar nos seus pulmões.

Meu Deus, o que estava a fazer? Fechou os olhos com força e lutou para recuperar a razão. Tinha a cara enterrada no ligeiro vale que havia entre os seios de Jillian, de modo que podia ouvir os batimentos frenéticos do coração dela.

Estava prestes a forçar uma mulher indefesa. Não importava qual tivesse sido a provocação, não havia justificação para o que estava prestes a fazer. Amaldiçoou-se, puxou a corda e tirou-lhe o laço por cima da cabeça. Depois de se colocar para um lado, olhou para ela.

Tinha os lábios inchados e os olhos quase fechados. O seu olhar estava tão nublado pelas sensações e as emoções que ele mal podia identificar como se sentia. Estava tão quieta que qualquer tremor era imediatamente perceptível. Desejava-a ao ponto de lhe pedir de joelhos.

- Agora podes fazer-me pagar - disse com suavidade, e deitou-se de costas na erva.

Ela não se moveu, limitou-se a cravar a vista no céu azul enquanto o desejo se agitava no seu interior. A carriça continuava a cantar, as rosas floresciam.

Sim, poderia fazer-lhe pagar por aquilo. Vira no seu olhar que estava enojado de si mesmo, dos seus actos. Bastava-lhe levantar-se e partir, mas nunca se considerara uma estúpida. Com toda a intenção, rodou para um lado e colocou-se em cima dele. Automaticamente, Aaron agarrou-a pelos braços para a ajudar a manter o equilíbrio. Quando os seus olhares se encontraram, nos olhos de ambos brilhava o desejo.

- Vais pagar-me por isto... se não acabares o que começaste - Jillian enterrou-lhe as mãos no cabelo e desceu a boca até à sua.

Tinha a blusa aberta, de modo que a sua pele nua deslizou sobre a de Aaron. Jillian ouviu claramente como este gemia de prazer e sentiu-o também. Depois tudo se tornou muito rápido, muito ardente, tanto que não havia tempo para pensar. Bastava senti-lo, enquanto ambos rivalizavam na expressão de um desejo febril. A sua camisa saiu a voar um instante antes de lhe abrir o fecho das calças de ganga.

Puxou as calças para baixo e, em seguida, ficou a contemplar-lhe a curva longa e magra das ancas. Os seus dedos encontraram uma cicatriz fina que descia pelo osso da pélvis. Sentiu um estremecimento de dor, como se fosse a sua própria carne que tivesse sofrido a ferida. Ele lutou com as calças até que conseguiu tirar-lhas completamente, e ao senti-lo assim, excitado e pronto contra o seu corpo, Jillian apagou qualquer pensamento da sua mente. Mas, quando se inclinou sobre ele, Aaron mudou de posição e pôs-se novamente por cima.

-Aaron... - fosse o que fosse o que ia dizer-lhe, as suas palavras ficaram afogadas num gemido quando lhe deslizou um dedo sob as cuecas. As pontas dos seus dedos moveram-se conscienciosa e sabiamente e conduziram-na a um clímax trémulo.

Toda ela vibrava, interior e exteriormente. Sem ter consciência do que fazia, abraçou-se a ele e, depois, as suas mãos proporcionaram-lhe o mesmo prazer tortuoso com que a brindara. Apenas soube que o seu próprio desejo crescera e voltara a transbordar enquanto ele adiava a satisfação final. Com um olhar nublado pela paixão, viu como a sua boca se aproximava novamente da dela. Os lábios de ambos uniram-se e ele entrou na sua boca, e sufocou os seus suspiros.

Durante um longo momento, permaneceu ali deitada, esgotada. Sobre as suas cabeças, o céu continuava limpo. As suas mãos repousavam nos ombros de Aaron e sentia a sua respiração ofegante. Parecia como se não conseguissem encontrar um momento de repouso, nem sequer depois de a sua paixão ter culminado. Era assim que era suposto ser?, perguntou-se. Nunca conhecera algo semelhante, um desejo que doía e continuava inquieto mesmo depois de ter sido satisfeito. Continuava a desejá-lo naquele momento, quando o seu corpo ardia e tremia depois de se ter fundido com o de Aaron.

Depois de ter evitado, durante tantos anos, comprometer-se numa relação, de repente, precisava desesperadamente de um homem que mal conhecia e do qual a tinham ensinado a desconfiar... e no qual, apesar de tudo, confiava. Aquilo era o que mais a assustava. Fazia com que esquecesse as suas ambições, o seu trabalho e as suas responsabilidades, e recordara-lhe que, acima de tudo, era uma mulher. Mais ainda, daquele modo fizera-a sentir-se gloriosa.

Aaron levantou a cabeça devagar. Pela primeira vez na sua vida, sentia-se inseguro de si mesmo. Ela penetrara profundamente nos seus sentimentos, até um lugar onde ninguém nunca chegara antes. Apercebeu-se de que não queria que se fosse embora e deixasse aquele lugar novamente vazio, e de que não seria capaz de a reter a não ser que ela quisesse.

- Jillian - afastou-lhe o cabelo húmido e enredado da cara, - imaginava que isto seria simples. Porque é tão complicado?

- Não sei - Jillian voltou a deixar-se levar pela fraqueza e aproximou a sua face da dele. Queria aspirar a sua fragrância para poder recordá-la depois. - Preciso de pensar.

- Em que precisas de pensar?

Ela fechou os olhos por um instante e moveu a cabeça.

- Não sei. Deixa-me ir embora, Aaron.

Os dedos deste, entrelaçados entre o seu cabelo, contraíram-se com alarme.

- Até quando?

- Também não sei. Preciso de algum tempo. Seria fácil retê-la... por enquanto. A única coisa que tinha de fazer era voltar a beijá-la. Lembrou-se então do cavalo selvagem, de quanto lhe custara apanhá-lo e depois soltá-lo. Sem dizer nada, largou-a.

Vestiram-se em silêncio. Ambos estavam trespassados por sentimentos que nunca tinham tentado expressar com palavras. Quando Jillian se inclinou para apanhar o seu chapéu do chão, Aaron agarrou-a pelo braço.

- Se te dissesse que isto significou alguma coisa para mim, mais do que esperava e talvez mais do que teria desejado, acreditarias em mim?

Jillian humedeceu os lábios.

- Neste momento, sim Mas tenho de ter a certeza de que amanhã continuarei a pensar o mesmo.

Aaron apanhou o seu próprio chapéu e pô-lo.

- Esperarei, mas não muito - levantou uma mão e agarrou-lhe o queixo. - Se não vieres ter comigo, serei eu quem irá buscar-te.

Ela não fez caso do ligeiro calafrio que lhe subiu pelas costas.

- Se eu não vier, não conseguirás encontrar-me

- deu meia volta, desatou a sua égua e montou.

Aaron segurou Dalila pelas rédeas e ficou a olhar para Jillian.

- Não tenhas tanta certeza - disse com calma, e atravessou novamente o limite imaginário que dividia as suas terras para se dirigir para o seu próprio cavalo.

 

”Se não vieres ter comigo, serei eu quem irá buscar-te”. Jillian não conseguia esquecer aquelas palavras. Ainda não decidira como encarar aquilo como também não decidira como encarar o sucedido entre Aaron e ela. Tinha havido algo mais do que paixão naquela tarde mágica no lago, algo mais do que prazer, por mais intenso que este tivesse sido. Conseguia lidar com a paixão e o prazer, mas era o ”algo mais” o que a mantinha acordada durante a noite.

Se fosse à procura de Aaron, estaria a ir à procura de quê? De um homem que mal conhecia, de uma relação que se anunciava cheia de problemas, mais do que se via capaz de resolver. Do risco. Estava a começar a compreender muito bem qual era o risco. Se afrouxasse as rédeas naquele momento, o amor derrubá-la-ia antes que conseguisse recuperar o controlo. Era-lhe difícil admiti-lo e impossível entendê-lo.

Sempre pensara que as pessoas se apaixonavam porque queriam, porque era o que procuravam ou ao que estavam dispostas, a apaixonar-se. Era verdade que, uma vez, ela também estivera disposta, aberta a albergar sentimentos ternos e emoções intensas. Naquele momento, no entanto, novamente nos limites do amor, não se achava preparada para aquilo nem estava a sentir nada parecido com a ternura. Aaron Murdock não o pedira e, ao não fazê-lo, estava a exigir muitíssimo mais.

Se fosse à sua procura, seria capaz de equilibrar as suas responsabilidades e ambições com o desejo e a necessidade que Aaron desenfreava nela? Quando estava nos seus braços esquecia o rancho e a posição que ocupava, e o seu esforço diário para o manter.

Se se apaixonasse por ele, conseguiria lidar com o desequilíbrio do que sentiam um pelo outro e seguir em frente quando chegasse o momento em que ele decidisse seguir o seu próprio caminho? Não duvidava de que esse momento chegaria. À excepção de Clay, nenhum homem lhe fora leal.

A indecisão atormentava-a, como era de esperar numa mulher habituada a fazer as coisas à sua maneira e a seguir o seu próprio caminho.

E enquanto a sua vida pessoal estava tão alvoroçada, a profissional não andava melhor: perdera quinhentas cabeças. Não havia dúvida de que tinham andado a roubar-lhe gado de forma sistemática.

Jillian desligou o telefone e esfregou as têmporas com a intenção de aliviar a dor de cabeça que estava a martelar-lhe o crânio.

- E então? - Joe Carlson estava sentado no outro lado da secretária com o chapéu no colo.

- Só podem entregar-nos o avião no fim-de-semana - franziu os lábios sombriamente enquanto levantava a vista para ele. - Já não importa quando é. A não ser que sejam imbecis, aqueles ladrões já levaram as minhas vacas para muito longe daqui. Provavelmente, já terão atravessado a fronteira com o Wyoming.

Ele observou o rebordo do seu chapéu impecável.

- Talvez não, porque, nesse caso, estariam a cometer um crime federal.

- Pelo menos, é o que eu faria - murmurou ela.

- Quinhentas cabeças de gado de primeira não passam despercebidas - levantou-se e colocou o cabelo atrás das orelhas. ”Quinhentas cabeças”. Aquelas palavras não paravam de surgir na sua mente: um sinal de impotência, de vulnerabilidade, de fracasso. - Bom, o xerife faz o que pode. mas levam-nos vantagem, Joe. Não há nada a fazer - bateu os seus punhos, um contra o outro, com frustração. - Detesto sentir-me impotente.

- Jillian... - Joe fez virar o rebordo do chapéu entre as suas mãos e ficou a observá-lo por um instante. No silêncio que se seguiu, Jillian ouviu o tiquetaque do velho relógio que repousava na secretária do seu avô. - Não vou sentir-me bem se não te contar isto - disse finalmente, e olhou novamente para ela. - Não seria difícil esconder quinhentas cabeças se as dispersasses entre vários milhares.

O olhar de Jillian endureceu.

- Porque não falas claramente, Joe?

Ele levantou-se. Apesar de estar já há mais de seis meses no Utopia, continuava a parecer mais um homem de negócios do que um homem do campo. E Jillian compreendeu que quem falava com ela naquele momento era o homem de negócios.

- Jillian, não podes ignorar o facto de que a vedação da cerca oeste estava cortada. Aqueles pastos ligam-se directamente com as terras de Murdock.

- Sei com o que se ligam - disse friamente. Tal como sei que preciso de algo mais que uma vedação cortada para acusar alguém, especialmente os Murdock, de roubar gado.

Joe abriu a boca para falar, mas quando se encontrou com o olhar inflexível de Jillian, fechou-a novamente.

- Está bem.

A simplicidade da sua resposta só avivou o temperamento de Jillian. E as suas dúvidas.

- Aaron disse-me que vai fazer uma recontagem minuciosa. Se tiver cinquenta cabeças a mais nas suas terras saberá em seguida, não digamos quinhentas.

- Já sei.

Ela ficou a olhar fixamente para ele. Os olhos de Joe mostravam firmeza e compreensão.

- Bolas, ele não precisa de roubar gado!

- Jillian, se perderes outras quinhentas cabeças, os teus lucros ficarão reduzidos a zero. Se perderes essa quantidade, até metade dessa quantidade, e... talvez tenhas de começar a pensar em vender algumas das tuas terras. Há mais razões do que o preço por cabeça para se roubar gado.

Ela deu meia volta enquanto fechava os olhos com força. Aquilo já lhe acontecera e odiava-se por tê-lo pensado.

- Se quisesse comprar, ter-me-ia perguntado.

- Talvez, mas a tua resposta teria sido não. Diz-se que há alguns anos queria começar o seu próprio rancho, estabelecer-se por sua conta. Não o fez, mas isso não significa que esteja satisfeito com o que o seu pai lhe dá.

Ela não podia rebater nada do que dissera, mas também não acreditava.

- Deixa as investigações para o xerife, Joe. Não lhe tires o seu trabalho.

Ele ficou muito rígido perante o tom cortante da sua voz.

- Está bem. Pressuponho que será melhor voltar para o meu.

Uma onda de frustração e de culpa invadiu Jillian, que se virou antes que ele alcançasse a porta.

- Joe, desculpa. Eu sei que estás a pensar no Utopia.

- E em ti também.

- Agradeço-te, a sério - apanhou uma luva de trabalho da secretária e manuseou-a nervosamente. - Tenho de levar isto à minha maneira e preciso de um pouco mais de tempo para decidir o que está a acontecer.

- Muito bem - colocou o chapéu e baixou um pouco a aba. - Só quero que saibas que tens o meu apoio se precisares.

- Não o esquecerei.

Quando Joe saiu, parou no meio do escritório. Meu Deus! Tinha tanta vontade de gritar, de levantar os braços para o céu e dizer a quem quisesse ouvi-la que não conseguia fazer frente à situação. Tinha de haver alguém que pudesse cuidar dela e ajudá-la a ver as coisas com clareza até tudo ter voltado à normalidade. Mas não lhe era permitido perder as estribeiras nem abandonar as suas responsabilidades, nem sequer por um minuto.

Jillian agarrou no seu chapéu e na outra luva. Havia muito trabalho pela frente. Mesmo que lhe roubassem até às últimas cem cabeças, haveria um modo de voltar a pôr as coisas em ordem. As terras eram dela e também herdara iniciativa e determinação do seu avô.

Assim que abriu a porta para sair, viu que Karen Murdock parava o seu carro diante da casa. Surpreendida, Jillian hesitou e depois foi ao seu encontro no alpendre.

- Olá! Espero que não te importes que tenha passado por aqui sem avisar.

- Claro que não - Jillian sorriu, novamente maravilhada perante a elegância e o encanto da mãe de Aaron. - Fico contente por voltar a vê-la, senhora Murdock.

- Vim em má altura - disse Karen, olhando para as luvas de trabalho que Jillian trazia na mão.

- Não - ela colocou as luvas no bolso de trás. Quer um café?

- Obrigada.

Karen seguiu Jillian para o interior da casa e olhou distraidamente à sua volta quando entraram na cozinha.

- Meu Deus, a última vez que estive aqui foi há anos! Costumava vir visitar a tua avó - disse com um sorriso pesaroso. - O teu avô e Paul estavam ao corrente, claro, mas todos evitávamos mencioná-lo. O que pensas sobre os velhos rancores, Jillian?

Havia regozijo na sua voz. Noutra época, aquilo teria posto Jillian em guarda, mas, naquele momento, só despertou um sorriso nela.

- Não o mesmo que pensava há umas semanas.

- Fico contente por ouvir isso - Karen sentou-se à mesa da cozinha enquanto Jillian começava a preparar uma cafeteira. - Sei que, no outro dia, Paul disse coisas que talvez te tenham zangado. Tenho de reconhecer que, algumas, as disse de propósito. A discussão contigo foi o melhor momento do dia para ele.

Jillian sorriu um pouco e virou a cabeça por cima do ombro para olhar para Karen.

- Talvez se pareça com Clay mais do que teria imaginado.

- Os dois saíram do mesmo molde. Não há muitos homens assim - murmurou. - Jillian, ficámos a saber do roubo do gado. Não imaginas como lamento. Sei que ”se houver algo que eu possa fazer” soa a frase feita, mas digo-o a sério.

Jillian virou novamente a cabeça para a cafeteira e conseguiu encolher os ombros. Não tinha a certeza de encaixar bem a demonstração de simpatia naquele momento.

- Todos corremos esse risco. O xerife está a fazer todos os possíveis.

- Todos corremos esse risco - repetiu Karen. E quando acontece a um, todos o sentimos - hesitou um instante, sabia que o assunto era delicado.

- Jillian, Aaron contou-me sobre o corte na vedação, embora não tenha dito ao seu pai.

- Não me preocupa o corte na cerca - afirmou Jillian com calma. - Sei que Aaron não tem nada a ver, não sou tola.

”Não”, pensou Karen, observando, estudando o seu perfil bem proporcionado. ”Não és tola”.

- Está muito preocupado contigo.

- Não há razão para isso - abriu a porta de um dos armários para tirar duas chávenas. - O problema é meu e eu devo resolvê-lo.

Karen observou Jillian com tranquilidade enquanto esta servia o café.

- Não aceitas ajuda? Jillian suspirou e virou-se.

- Não queria ser rude, senhora Murdock. Gerir um rancho é difícil e as incertezas são muitas. Quando se é mulher, é duplamente difícil - levou o café para a mesa e sentou-se à frente da sua convidada. - Tenho de fazer as coisas muito melhor do que as faria um homem no meu lugar, porque isto continua a ser um mundo de homens. Não posso dar-me ao luxo de me ir abaixo.

- Eu entendo - Karen bebeu um gole e percorreu a cozinha com o olhar. - Mas, neste momento, aqui não tens de demonstrar nada a ninguém.

Jillian levantou a vista da sua chávena e viu compaixão no seu olhar, e aquela cumplicidade que só uma mulher pode dar a outra. Imediatamente, o espartilho rígido com que mantinha as suas emoções sob controlo cedeu.

- Estou muito assustada - sussurrou. - Não me atrevo a reconhecê-lo perante mim mesma porque este ano há muito em jogo. Arrisquei-me muito e se tudo der resultado... Quinhentas cabeças! - deixou escapar o ar dos seus pulmões enquanto a sua mente se enchia de números. - Não vão derrotar-me, não posso permitir-me, mas vai levar-me muito tempo para me recuperar.

Karen inclinou-se para a frente e cobriu-lhe uma mão com a sua.

- Podem encontrá-los.

- Sabe que, nesta altura, há poucas possibilidades - ficou calada por um momento enquanto aceitava o consolo que aquela mão lhe transmitia. Depois voltou a pôr a sua na asa da sua chávena de café. - Aconteça o que acontecer, continuo a ser quem manda no Utopia. Tenho a responsabilidade de que o que herdei continue a funcionar. Clay confiou-me o rancho e vou levá-lo em frente.

Karen dirigiu-lhe um olhar penetrante, muito parecido com os do seu filho.

- Faze-lo por ti ou por Clay?

- Pelos dois - respondeu Jillian. - Estarei sempre em dívida para com ele por me ter entregado a terra e por me ter ensinado tudo o que sei.

- Tu podes contribuir com muitas coisas para esta terra - disse Karen, de repente. - Paul juraria que perdi o juízo se me ouvisse dizer isto, mas é verdade. Aaron... - sorriu indulgentemente, com orgulho - é como o seu pai em muitos aspectos, mas não tem a intransigência de Paul. Talvez porque não foi necessário. Não podes deixar-te dominar pela terra, Jillian.

- É tudo o que tenho.

- Não estás a falar a sério. Ah, ou seja, isso é o que pensas... - murmurou ao ver que Jillian não respondia. - Se amanhã ficasses sem um único acre, poderias perfeitamente dedicar-te a outra coisa. Tens coragem, apercebi-me logo de que és como o meu filho.

- Ele tinha outras opções - Jillian levantou-se para deitar no lava-loiça o café que restava na sua chávena.

- Estás a falar do petróleo - por um instante, Karen ficou calada enquanto avaliava a conveniência de falar daquele assunto. - Fê-lo por mim, e pelo seu pai - disse finalmente. - Espero não ter de voltar a pedir-lhe algo do género.

Jillian voltou para a mesa, mas não se sentou.

- Não entendo.

- Paul enganou-se. É um bom homem, mas comete erros com a mesma força e o mesmo vigor que põe em tudo o que faz - pelos seus lábios passou um sorriso, mas o seu olhar era sério. - Tinha prometido a Aaron algo que se subentendia desde que era pequeno: que o Double M seria para ele se o merecesse. E Deus sabe que o merecia - murmurou. - Acho que entendes o que quero dizer.

- Sim - Jillian desceu o olhar para a sua chávena e pousou-a na mesa. - Claro que sim.

- Quando Aaron voltou para casa depois de acabar a universidade, Paul não estava preparado para se reformar, e então aceitou fazer o que o seu pai lhe pedia. Decorridos três anos, regressaria para cuidar do rancho, com plenos poderes para o gerir.

- Se o diz - começou Jillian, mas decidiu abordar o assunto de outro ângulo. - Não deve ser fácil para um homem entregar a outro tudo o que tanto trabalho lhe custou, mesmo que esse outro seja o seu próprio filho.

- Chegara o momento de Paul se reformar disse Karen sem baixar a cabeça. - E talvez o tivesse feito se... - gesticulou com as mãos como se estivesse a tentar acalmar-se. - Quando se recusou a cumprir o acordado, Aaron ficou furioso. Tiveram uma discussão tremenda, daquelas que são inevitáveis entre dois homens fortes e obstinados. Aaron estava decidido a ir para o Wyoming, comprar algumas terras e começar do zero. Por muito que ame o rancho, acho que desejava partir.

- Mas não foi.

- Não - o olhar de Karen era tranquilo, - porque eu lhe pedi que não fosse. Os médicos tinham acabado de diagnosticar a Paul a sua doença em estado terminal. Davam-lhe dois anos no máximo. O facto de o seu corpo o ter traído punha-o furioso, a idade estava a dar cabo dele... É muito orgulhoso, sempre vencera todos os obstáculos.

Jillian recordou o olhar de falcão e as mãos trémulas do pai de Aaron.

- Lamento.

- Não queria que ninguém soubesse, nem sequer Aaron. Posso contar pelos dedos de uma mão as vezes que o contrariei - olhou para as palmas. Algo na sua expressão disse a Jillian que se aquela mulher transigira ao longo dos anos, não fora por fraqueza, mas antes pelo contrário. - Sabia que se Aaron partisse, Paul deixaria de ter uma razão para viver, para lutar. E depois seria horrível para o meu filho, quando descobrisse tudo, portanto contei-lhe - deixou escapar um grande suspiro e pôs as mãos sobre a mesa com as palmas para baixo. - Pedi-lhe que renunciasse às suas planícies. Foi novamente para Billings e, embora tenha a certeza de que pensará que o fez por mim, eu sei que o fez pelo seu pai. Não acho que os médicos o admitissem, mas Aaron deu ao seu pai cinco anos de vida.

Jillian virou-se ao sentir um nó na garganta.

- Disse-lhe coisas horríveis.

- Não terás sido a primeira, tenho a certeza. Aaron sabia o que podia parecer, mas nunca se importou com o que as pessoas pensassem dele. Excepto algumas pessoas - corrigiu-se.

- Não posso pedir-lhe desculpas - disse Jillian, tentando controlar as suas emoções. - Zangar-se-ia muitíssimo se lhe dissesse que sei de tudo.

- Conhece-lo bem.

- Não - respondeu Jillian com súbita paixão, não o conheço, nem o entendo, e... - interrompeu-se, assombrada porque estivera prestes a despir a sua alma perante a mãe de Aaron.

- Sou a mãe dele - disse Karen ao aperceber-se do que pensava, - mas continuo a ser uma mulher. E sei muito bem o que é sentir algo por um homem com o qual sabemos que teremos de enfrentar dificuldades - daquela vez não media as suas palavras, falava com liberdade. - Eu tinha acabado de fazer vinte anos quando conheci Paul, que já tinha passado dos quarenta. Os seus amigos pensaram que estava louco e que eu me casava com ele por causa do seu dinheiro - riu-se e depois suspirou. Juro-te que há trinta anos não me parecia tão engraçado. Não vim para te dar conselhos sobre o que possa haver entre ti e Aaron, mas para te dar o meu apoio, se o quiseres.

Jillian olhou para ela e viu a beleza duradoura e a força que havia nos seus olhos, a amabilidade.

- Não tenho a certeza de saber como o fazer. Karen levantou-se e agarrou-a pelos ombros.

Tão jovem, pensou com melancolia. Tão assustada.

- Sabes o que é uma amiga?

Jillian sorriu e pôs as mãos sobre as de Karen, que repousavam nos seus ombros. -Sim.

- Isso é o suficiente. Tens coisas para fazer disse de repente, e deu-lhe um ligeiro aperto antes de a largar. - Mas se precisares de falar com uma mulher, como às vezes nos acontece, telefona-me. Está bem?

- Sim. Obrigada.

Karen fez um gesto de assentimento com a cabeça.

- Não me agradeças, não sou tão desinteressada como pareço. Vivo há trinta anos neste mundo de homens - acariciou-lhe brevemente uma face. Sinto falta da minha filha.

Aaron saiu para o alpendre e observou a lua no céu. A noite estava tão silenciosa que ouviu o bater das asas de um falcão sobre a sua cabeça antes de se precipitar sobre a sua presa. Numa mão tinha uma lata de cerveja muito fresca, da qual bebia goles de vez em quando, embora sem desfrutar do sabor. Era uma daquelas noites de Primavera em que se podia sentir o perfume das flores e a proximidade do Verão, que se aproximava a pouco e pouco.

Ficaria louco se continuasse à espera.

Passara uma semana desde o seu encontro no charco. Todas as noites, depois de um dia longo e poeirento, ansiava tê-la ao seu lado, preencher o vazio interior de que tão repentinamente tomara consciência. Já era suficientemente difícil ter descoberto que não desejava Jillian como desejara as outras mulheres com quem estivera, mas, além disso, descobrir que estava vulnerável...

Jillian podia fazer-lhe mal: fizera. Aquilo era uma novidade, pensou Aaron com o sobrolho franzido, e levantou a lata de cerveja. Ainda não tinha descobberto como evitar que voltasse a acontecer, mas isso não impedia que continuasse a desejá-la.

Não confiava nele. Embora tivesse dito uma vez que também não desejava que o fizesse, apercebera-se de que estava a mentir a si próprio. Queria que lhe desse a sua confiança, que acreditasse nele o suficiente para partilhar os seus problemas. Devia estar a sofrer, pensou enquanto os seus dedos apertavam a lata, mas não iria procurá-lo, não o deixaria ajudá-la. Talvez tivesse chegado a hora de fazer algo a esse respeito, quer ela gostasse ou não.

Repentinamente impaciente, zangado, dirigiu-se para os degraus. O ruído de um carro que se aproximava chegou até ele antes que distinguisse as luzes. Olhou na direcção de onde vinha o ruído e viu duas luzes na escuridão. O seu desinteresse inicial transformou-se em tensão muscular nos ombros e no estômago.

Pousou a lata de cerveja meio vazia no corrimão do alpendre enquanto Jillian aparecia diante da sua casa. Por muito que precisasse dela, o seu instinto prevaleceu e impediu que descesse os degraus a correr e a abraçasse. Esperou.

Jillian tinha a certeza de que os seus nervos acalmariam durante o caminho. Como nunca se permitia a si mesma ficar nervosa, não estava habituada a ter a garganta seca e o estômago apertado. Desde que Karen se fora embora naquela manhã, não parara de pensar em Aaron nem por um momento. No entanto, tivera de ultrapassar muitas dúvidas até tomar a decisão final de aparecer.

Com aquele gesto, estava a dar-lhe algo que nunca teria pensado: uma parte de si mesma.

Ficou quieta junto ao carro durante um momento e, dali de baixo, olhou para ele. A lua resplandecia atrás dela. Talvez por não sentir as pernas tão firmes como deveriam, subiu os degraus do alpendre com o queixo erguido.

- Isto é um erro - disse.

Aaron ficou onde estava, com um ombro apoiado no poste do corrimão. -A sério?

- Vai complicar as coisas num momento em que a minha vida já é muito complicada.

O estômago de Aaron parecia uma massa de nós que só se apertavam mais quanto mais olhava para ela. Estava pálida, mas não havia o menor tremor na sua voz.

- Demoraste muito a vir - disse ele serenamente, mas fechou os dedos sobre as palmas e apertou os punhos para se impedir de lhe tocar.

- E acredita que não teria vindo se tivesse conseguido controlar-me.

- Custou assim tanto? - era mais do que esperara que admitisse. Os seus músculos começaram a relaxar. - Bom. já que estás aqui. porque não te aproximas mais um pouco?

Não iria facilitar-lhe as coisas, apercebeu-se Jillian. E ela odiar-se-ia a si mesma se o tivesse permitido. Sem parar de olhar para ele nos olhos, continuou a avançar até que os seus corpos se roçaram.

- É suficientemente perto?

Os olhos de Aaron percorreram o seu rosto e depois sorriu.

-Não.

Jillian entrelaçou as mãos por trás do seu pescoço e apertou os lábios contra os dele.

- Agora?

- Mais perto - permitiu-se tocar-lhe, deslizou uma mão pelas suas costas e acariciou-lhe o cabelo. Nos seus olhos, iluminados pela lua, havia um brilho de triunfo, de regozijo, de paixão. Muito mais perto, Jillian.

Os olhos desta continuavam abertos enquanto ele ajustava o seu corpo ao dela, mais intimamente. Ela sentia a resposta dos músculos do corpo de Aaron, o eco surdo dos batimentos do seu coração.

- Se continuarmos a aproximar-nos aqui no alpendre - murmurou com a boca colada à dele, vão prender-nos por escândalo público.

- Efectivamente - humedeceu-lhe o lábio inferior com a língua e ouviu um ligeiro gemido. - Eu pagarei as fianças, se é isso o que te preocupa.

Os lábios de Jillian estremeceram perante o movimento perito da sua língua.

- Cala-te, Murdock! - murmurou, e colou a sua boca à dele. Deixou que todas as paixões e sentimentos que andavam a persegui-la há dias emergissem. Assim que estes brotaram, consumiram-na. Inconscientemente, apertou-se contra ele, de modo que Aaron se encontrou preso entre o seu corpo e o poste.

O estremecimento de prazer que ele sentiu foi tão intenso que lhe arrepiou a pele. Rodeou-a com um braço e segurou-lhe a cabeça com uma mão para não deixar fugir aquela boca tão freneticamente enérgica. Depois, com rapidez, o braço desceu até aos joelhos e levantou-a no ar.

-Aaron... - o seu protesto ficou afogado por outro beijo terno antes de atravessarem o alpendre em direcção à porta. Embora ela tivesse ficado admirada com a habilidade com que abriu a mosquiteira e a força com que empurrara a porta pesada de madeira apesar de ter os braços ocupados, riu-se.

- Aaron, põe-me no chão. Posso andar.

- Não sei como se eu te tenho nos braços - assinalou ele enquanto começavam a subir os degraus estreitos que conduziam ao segundo andar.

- É este o tipo de coisas que fazes para expressar domínio masculino?

Recebeu um olhar assassino, mas continuou a sorrir com doçura.

- Não - respondeu ele com tom pausado. Este é o tipo de coisas que faço para expressar romantismo. Quando quero expressar domínio masculino... - no momento em que chegaram ao alto das escadas, com um movimento rápido, carregou Jillian sobre o seu ombro.

Depois da surpresa inicial, ela teve de reconhecer que fora um bom golpe.

- Estava-se mesmo a ver! - admitiu enquanto afastava o cabelo da cara. - O que queria dizer é que não estou interessada nem em romantismo nem em domínio.

Aaron arqueou um sobrolho enquanto entrava no quarto. As suas palavras tinham sido bastante claras e ele notara a sinceridade do seu tom. Pô-la no chão com um movimento tão lento e suave que antes que os seus pés o tivessem alcançado, os corpos de ambos roçaram-se com força. Debilitada pela manobra, ela levantou a cabeça e olhou para ele com olhos atormentados pelo desejo.

- Não gostas de romantismo, Jillian?

- Não é o que peço - conseguiu responder. Ele segurou-a pelos pulsos.

- Pior para ti - mordiscou-lhe uma orelha com delicadeza, - terás de aguentar. Parece-te que a paixão nua é mais inofensiva?

- Tão inofensivo quanto alguma coisa pode ser contigo - cortou-lhe a respiração quando a língua de Aaron desceu pelo seu pescoço.

Ele riu-se e em seguida começou a seduzi-la lenta e inexoravelmente, utilizando só a boca.

- É exactamente aqui - murmurou, mordiscando um ponto no seu pescoço. - Tão suave, tão delicado! Qualquer homem se esqueceria de que pode haver partes assim em ti até as descobrir por si mesmo. Quando levantas aquele queixo, sente-se vontade de te dar uma bofetada - moveu a cabeça para mudar de ângulo e percorreu a pele com os lábios - mas, exactamente por baixo, és tão suave como a seda.

Sugou-lhe na base do pescoço e reparou que os braços de Jillian ficavam exangues. Era aquilo que procurava, pensou com excitação crescente, que se fundisse entre os seus braços, dócil, sem vontade, nem que fosse por poucos minutos. O ardor e a paixão eram uma recompensa em si próprios, mas daquela vez, talvez só daquela, desejava ter a satisfação de saber que podia fazê-la sentir-se tão fraca como ela conseguia com ele.

Inclinou a sua boca sobre a dela. Com a ponta da língua começou a atormentar a de Jillian até que a respiração desta se tornou entrecortada e superficial. Ia demorar o seu tempo para a despir, pensou. Iria devagar, muito devagar, deixaria os dois loucos.

Sem pressa, Aaron empurrou-a para trás, para a cama, e puxou-a para baixo até estar sentada na beira. À luz da lua, viu que os olhos de Jillian já estavam nublados pelo desejo, que este sufocara ligeiramente a sua pele. Olhando para ela, deslizou um dedo pelo seu pescoço até chegar ao primeiro botão da camisa. Continuou a olhar fixamente para ela enquanto o desabotoava, depois fez o mesmo com o segundo e com o terceiro. Parou ali e depois as suas mãos percorreram o corpo por cima da roupa: passaram suavemente sobre o seu peito, pela sua cintura e as suas ancas estreitas até chegarem às coxas, firmes e longas. Exceptuando o estremecimento do seu corpo, parecia tranquila.

Ele virou-se, pôs-lhe uma perna entre as suas, levantou-a e começou a puxar-lhe a bota. A primeira caiu no chão, mas quando agarrou a segunda e a puxou, Jillian ajudou-o um pouco pondo o pé descalço no seu rabo, na posição certa.

Surpreendido, olhou para trás e viu que lhe sorria com descaramento. Recuperava-se depressa, pensou. Seria ainda mais emocionante fazer com que voltasse a abandonar-se entre os seus braços.

- Agora podias ajudar-me a mim - sugeriu. Deitou-se sobre a cama, recostou-se sobre os cotovelos e levantou uma perna.

Jillian endireitou-se para fazer o que lhe pedia e agarrou a perna de Aaron entre as suas. Aquilo, o sorriso atrevido e os olhos temerários, sabia como o fazer. Podia despertar a sua paixão, mas não lhe produzia aquela fraqueza incontrolável. Quando finalmente tomara a decisão de ir, propusera-se a que houvesse um equilíbrio entre os dois, sem promessas doces nem palavras ternas que demorariam a desvanecer o fôlego com que tinham sido pronunciadas. Disse para si que, desde que ouvisse apenas o seu corpo, e não o seu coração, não se apaixonaria por ele.

No momento em que a segunda das suas botas caiu no chão, Aaron agarrou-a pela cintura e empurrou-a para trás. Jillian caiu sobre a cama a rir-se.

- És um rapaz obstinado, Murdock! - enfiou os braços por trás do seu pescoço e sorriu de forma escarnecedora. - Sempre a levantar as mulheres no ar.

- É um hábito que tenho - ele baixou a cabeça e roçou os seus lábios nos dela. Jillian quis tornar o beijo mais profundo mas ele resistiu. - Eu gosto da tua boca - murmurou. - É outra daquelas partes suaves e surpreendentes em ti - sugou-lhe com doçura o lábio inferior até sentir que as mãos que lhe rodeavam o pescoço ficavam lassas.

Uma bruma voltava a envolver tudo e Jillian esqueceu os meios e a maneira de o afastar de si. Aquilo não era o que ela desejava, pois não? No entanto, parecia como se fosse tudo o que podia desejar. A sua mente flutuava, fora do seu corpo, de modo que quase podia ver-se estendida, lânguida e dócil, debaixo de Aaron. Via como as tensões e a ansiedade dos dias precedentes desapareciam do seu rosto até que a sua cara ficou tranquila e relaxada enquanto recebia os cuidados da boca e da língua de Aaron. Sentia que o batimento do seu coração não era de todo estável, embora também não fosse frenético. Talvez fosse aquilo o que se sentisse ao se ser cuidada, apreciada. Não tinha a certeza, mas sabia que não suportaria perder aquela sensação. Apagou todas as dúvidas com um suspiro.

Quando ele se inclinou para lhe sussurrar uma tolice ao ouvido, Jillian sentiu o cheiro do sabonete que usara para tomar banho naquela tarde. A sua cara estava áspera, pois não voltara a barbear-se desde manhã, mas ela esfregou a face para desfrutar do roçar. Depois, os lábios de Aaron passaram suavemente sobre a sua pele, que ainda formigava, até se encontrarem novamente com os dela.

Sentiu o toque dos seus dedos, fortes, hábeis, que desciam e iam desabotoando-lhe os últimos botões da camisa. Depois passaram a acariciar-lhe as costelas, com suavidade, conduzindo-a sem esforço para o campo das sensações. Mal lhe tocava. Os beijos continuavam a ser doces, as suas mãos, gentis. Todo o pensamento coerente se esfumou.

- A minha camisa estorva - sussurrou-lhe ele ao ouvido. - Quero sentir-te pele contra pele.

Ela levantou as mãos. Os seus dedos moviam-se trôpegos, mas não conseguia fazer com que actuassem mais depressa. Teve a impressão de que passaram horas até sentir a pressão da sua pele nua sobre a dela. Com um suspiro, levou as mãos até aos seus ombros e depois para trás, até lhe tirar a camisa. Os seus músculos eram duros. Enquanto esfregava as palmas contra eles, apercebeu-se de que a primeira vez que tinham feito amor só tivera uma impressão imprecisa. Tudo acontecera tão depressa e de modo tão desenfreado que não tivera tempo de apreciar como o seu corpo era bem proporcionado.

Todo ele músculo. Aaron era um homem habituado a empregar as mãos no trabalho diário. Não parou para pensar porque aquilo, em si mesmo, lhe era agradável. Depois não conseguiu raciocinar nada porque ele começou a beijá-la.

Aaron nunca pensara que se podia obter tanta satisfação a pensar em como dar prazer ao outro. Desejava-a... Era um desejo forte, apaixonado, que exigia satisfação e, no entanto, era uma sensação embriagadora sentir que tinha o poder de lhe provocar aquela fraqueza só ao tocar-lhe.

A curva do seu peito era tão delicada... que se entreteve ali um momento. A pele que aparecia sobre a cintura das suas calças era branca e suave, e a sua mão alegrou-se de pousar ali. Sentiu os seus primeiros estremecimentos, começou a tremer sob os seus lábios e as suas mãos até que os seus sentidos se perderam. Ele puxou e lutou até que conseguiu baixar-lhe as calças.

Jillian não tinha a certeza de quando a languidez se transformara em desejo. Arqueou-se contra ele, pedindo-lhe algo, mas Aaron continuou a mover-se sem pressa. Ela não conseguia entender tanto fascínio pelo seu corpo, quando sempre se considerara demasiado magra. No entanto, ele parecia ansioso por lhe tocar, por provar cada centímetro da sua pele. E os murmúrios que chegavam até aos seus ouvidos eram de aprovação.

Ele levou as mãos até aos seus joelhos e os dedos acariciaram-lhe a pele sensível das curvas ao afastá-las. Tantos anos em cima de um cavalo e a percorrer distâncias longas a pé tinham originado umas pernas fortes e muito sensitivas.

Quando sentiu os seus dentes a mordiscá-la entre as coxas, gritou, perplexa ao ver-se lançada para a beira do clímax. Mas não lhe permitiu continuar, ainda não. A sua respiração quente acariciou-a e depois a suave brincadeira da sua língua. Ela sentiu a ameaça do estouro que crescia; aumentava em força e profundidade. Sem dificuldade, ele reconhecia-a um instante antes de acontecer aquela explosão e retirava-se. Várias vezes, levou-a até ao limite e fê-la regressar, até que ela se sentiu fraca e desesperada.

Jillian moveu-se por debaixo dele, desejando que tomasse tudo, tudo o que quisesse. Não tinha consciência de que se desfizera da última roupa que se interpunha entre os seus corpos até se deitar sobre ela. Sentiu a sua respiração, quente e hesitante, no rosto antes de os seus lábios pousarem sobre os dela.

- Desta vez... - Aaron encheu os pulmões de ar para poder falar - desta vez vais dizer-me... Vais dizer-me que me desejas.

- Sim - ela agarrou-se a ele, vibrando de excitação. - Sim, desejo-te. Agora.

Algo relampejou nos olhos de Aaron.

- Não só agora - disse com voz rouca, e perdeu-se nela.

Jillian atingiu o primeiro clímax, ofuscada de prazer. Mas havia mais, muito mais.

 

Foi o cheiro do seu cabelo o que, lentamente, o devolveu à realidade. Tinha a cara afundada no cabelo de Jillian. Aquela fragrância recordava-lhe a das flores silvestres que a sua mãe apanhava às vezes e que punha numa pequena jarra de porcelana, e punha no batente de uma janela. O cabelo enredava-se entre as suas mãos e era tão suave em contacto com a sua pele que Aaron sabia que gostaria de passar a noite inteira assim como estava, naquela posição.

Jillian estava deitada por debaixo dele. A sua respiração era tão compassada como se estivesse a dormir, mas quando ele virou a cabeça para pousar os lábios no seu pescoço, ela abraçou-o com força. Ele levantou a cabeça e olhou para ela.

Tinha os olhos quase fechados, as pálpebras pesavam-lhe. No alpendre, reparara que tinha olheiras. Franzindo um pouco o sobrolho, acariciou-as com o polegar.

- Não tens andado a dormir bem, ultimamente.

Surpreendida com aquela afirmação e com o seu tom de voz, ela arqueou os sobrolhos. Depois do que tinham acabado de fazer, teria esperado que fizesse um comentário frívolo ou excitante, mas ele tinha o sobrolho franzido e o seu tom era de desaprovação. Não tinha a certeza porquê, mas deu-lhe vontade de rir.

- Estou bem... - garantiu com um sorriso.

- Não - impediu-a de continuar a falar e agarrou-lhe o queixo com a mão, - não estás bem.

Ela levantou o olhar e apercebeu-se de como seria fácil desabafar com ele, contar-lhe o que pensava e sentia, as suas preocupações, os seus medos, os seus problemas... Tinha a impressão de que se multiplicavam tão depressa que não tinha tempo de os abordar e resolver. Teria sido muito reconfortante contar-lhe tudo aquilo em voz alta.

Fizera-o muitas vezes com a sua mãe, mas, de algum modo, parecia-lhe justificado. Uma coisa era confessar medos e dúvidas a outra mulher, e outra era deixar que um homem tivesse uma ideia de quais eram as suas próprias fraquezas. Quando amanhecesse, ambos voltariam a ser rancheiros, com uma vedação para determinar o limite entre as suas terras.

- Aaron, não vim aqui para...

- Sei porque vieste - interrompeu-a. A sua voz era mais amável do que o seu olhar. - Porque não podias evitá-lo. Entendo. Agora vais ter de assumir o que isso implica.

Era difícil mostrar-se digna quando estava nua e quente por debaixo dele, mas quase conseguiu.

-O que...?

A irritação que havia no olhar de Aaron transformou-se em regozijo.

- Eu gosto de como dizes isso, tal como o meu professor do terceiro ano.

Os lábios de Jillian tremeram.

- É uma das poucas coisas que herdei da minha mãe. Mas não respondeste à minha pergunta, Murdock.

- Estou louco por ti - disse ele de repente, e a sua boca curvou-se num sorriso aberto. Não estava preparada para ouvir aquilo, pensou Aaron, e ele também não tinha a certeza de estar preparado para assumir as consequências, portanto decidiu aliviar o tom. - Claro que sempre senti uma fraqueza pelas mulheres de mau feitio. A sério, estou decidido a ajudar-te, Jillian - de repente, os seus olhos tornaram-se sérios, - nem que seja contra a tua vontade.

- Não há nada que possas fazer, nem que eu quisesse.

Aaron não respondeu imediatamente, mas mudou de posição. Pôs as almofadas contra a cabeceira e recostou-se sobre elas antes de puxar Jillian para si. Primeiro, ela ficou tensa, mas depois tranquilizou-se. Havia algo incrivelmente possessivo naquele gesto, e irresistivelmente doce. Antes que se apercebesse do que fazia, recostou-se contra o seu peito.

Ele sentiu a hesitação inicial, mas não fez nenhum comentário. Quando se tentava que alguém tivesse confiança em nós, agia-se devagar.

- Conta-me o que foi feito a respeito.

- Aaron, não quero implicar-te nisto.

- Já estou implicado, embora seja apenas por causa daquela vedação que cortaram entre o teu rancho e o meu.

Aquilo conseguia aceitar, disse para si Jillian, e deixou que os seus olhos se fechassem.

- Fizemos uma contagem exaustiva e faltam-nos quinhentas cabeças. Por precaução, marcámos os bezerros que faltavam. Calculo que perdemos cinquenta ou sessenta. O xerife esteve a investigar.

- E o que encontrou? Ela moveu os ombros.

- Não consegue dizer por onde os tiraram. Se fizeram outros cortes na vedação das cercas, arranjaram-nos. Um trabalho limpo e rápido - murmurou, consciente de que morria um pouco por dentro cada vez que pensava naquilo. - Parece que não os levaram todos de uma vez, mas aos poucos.

- Então parece estranho terem deixado aquele buraco na vedação.

- Talvez não tivessem tempo de o fechar.

- Ou talvez quisessem dirigir a tua atenção para mim até terem acabado.

- Talvez - Jillian virou a cabeça e escondeu a cara no seu ombro, ligeiramente, só por um instante, mas para ela era um grande passo para a ideia de partilhar. - Aaron, o que disse sobre ti e o teu pai não era a sério.

- Esquece.

Ela inclinou a cabeça para trás e olhou para ele.

- Não posso.

Ele beijou-a com força.

- Tenta - sugeriu. - Ouvi dizer que compraste um avião.

- Sim - deixou cair a cabeça novamente sobre o seu ombro e tentou pôr as suas ideias em ordem.

- Aparentemente, só estará pronto para a semana que vem.

- Então amanhã iremos no meu.

- Mas porque...?

- Não tenho nada contra o xerife - disse ele com calma, - mas tu conheces as tuas terras melhor do que ele.

Jillian apertou os lábios.

- Aaron, não quero estar em dívida contigo. Não sei como explicá-lo, mas...

- Pois não expliques - agarrou-a pelo cabelo e deu-lhe alguns puxões suaves até que ela levantou a cara para ele. - Verás como não sou o tipo de homem que se opõe sempre ao que desejas. Podes discutir comigo, e às vezes ganhar, mas não poderás impedir-me.

Os olhos de Jillian brilharam com indignação.

- Porque me incutes o espírito de discussão quando o que quero é mostrar-me agradecida?

Com um movimento ágil, Aaron mudou de posição e ambos acabaram deitados sobre a cama.

- Talvez porque te prefiro dessa maneira. És muitíssimo mais perigosa quando te suavizas.

Ela levantou o queixo.

- Não é algo que vás ter a oportunidade de ver com frequência.

- Ainda bem - disse ele, e apertou a sua boca contra a dela. - Esta noite vais ficar comigo.

- Não...

Ele silenciou-a com um beijo apaixonado que não deixava espaço para os pensamentos, e muito menos para as palavras.

- Esta noite - repetiu com uma gargalhada que era mais desafiadora do que divertida - ficas comigo.

E abraçou-a com uma ferocidade que denotava desespero.

Os pássaros acordaram-na. Havia um breve período de tempo no Verão durante o qual amanhecia tão cedo que os pássaros acordavam antes dela. Com um suspiro, Jillian aninhou-se na almofada. Fracamente, pensou na jornada que tinha pela frente. Teria de ir ver Baby antes de ir ver os cavalos. O bezerro gostava de ter o seu biberão cedo. Espreguiçou-se com prazer, virou-se no colchão e ficou a olhar fixa e inexpressivamente para o quarto. Era o quarto de Aaron. Ele ganhara a batalha.

Deitada de costas durante um momento, pensou na noite anterior com uma mistura de prazer e desconforto. Ele dissera numa ocasião, que as coisas entre eles não eram tão simples como deveriam. Teria ideia de como a afectara passar a noite com ele? Era a primeira vez que experimentava o simples prazer de dormir com alguém e partilhar a paz, e a escuridão da noite. O que a fizera achar que poderia ter uma relação com Aaron e manter a situação sob controlo?

Mas não estava apaixonada por ele. Estendeu um braço para tocar no outro lado da cama, onde Aaron dormira. Ainda tinha o bom-senso suficiente para impedir que isso acontecesse, recordou a si mesma. O que estava a fazer na cama quando já amanhecera? Furiosa consigo mesma, sentou-se no preciso momento em que a porta se abria. Aaron entrou com uma chávena de café na mão.

- Muito mau - comentou enquanto atravessava o quarto para onde ela estava. - Queria acordar-te.

- Tenho de ir - disse ela, afastando o cabelo dos olhos. - Deveria ter-me levantado há horas.

Aaron pôs-lhe uma mão no ombro e reteve-a onde estava sem qualquer esforço.

- O que deverias fazer era dormir até ao meio-dia

- corrigiu-a enquanto observava a sua cara - mas estás com melhor aspecto.

- Tenho um rancho para gerir.

- Não há nenhum rancho neste país que não possa passar sem uma pessoa durante um dia sentou-se ao seu lado e entregou-lhe a chávena. Bebe o café.

Poderia ter-lhe incomodado aquela ordem peremptória, mas o cheiro do café era muito agradável.

- Que horas são? - perguntou.

- Nove horas.

- Nove horas! - abriu muito os olhos, a sua consternação era cómica. - Meu Deus, tenho de ir para casa.

Aaron reteve-a novamente sem esforço.

- O que tens de fazer é beber o café - corrigiu-a. - E depois tomar o pequeno-almoço.

Depois de uma resistência rápida e pouco frutífera, Jillian lançou-lhe um olhar exasperado.

- Vais parar de me tratar como se tivesse oito anos?

Ele desceu o olhar até às suas mãos, que seguravam o lençol por cima do peito.

- É tentador - brincou.

- Esses olhos para cima, Murdock! - ordenou-lhe com lábios crispados. - Olha, agradeço-te o café - continuou a levantar a chávena no ar, mas não posso ficar aqui sentada até ao meio-dia.

- Quando foi a última vez que dormiste oito horas? - viu que o aborrecimento brilhava nos seus olhos quando, em vez de responder, bebeu outro gole de café. - Esta noite podias ter dormido mais de oito horas se não me tivesses... deixado louco.

Ela levantou os sobrolhos.

- Eu fiz isso?

- Várias vezes, se bem me lembro.

Algo na expressão de Jillian, a sombra de uma dúvida, uma ligeira hesitação, fez com que ele observasse o seu rosto mais atentamente. Seria possível que uma mulher assim precisasse de ouvir palavras que a fortalecessem, que apagassem a sua insegurança? Era uma mistura de força e vulnerabilidade da mais estranha. Aaron inclinou-se e acariciou-lhe um sobrolho com os lábios, pois sabia o que podia acontecer se a beijasse na boca, mesmo que fosse apenas uma vez.

- Claro que não precisas de te esforçar muito para me deixares louco - murmurou. Os seus lábios desceram para as têmporas antes que pudesse evitá-lo. - Se, neste momento, quisesse aproveitar-te de mim...

Jillian exalou um suspiro trémulo.

- Acho que... é melhor ter piedade de ti esta manhã, Murdock.

- Bom... - ele enfiou um dedo no lençol e começou a puxá-lo para baixo. - Não posso dizer que eu goste muito que tenham piedade de mim.

- Aaron - Jillian segurou com força no lençol.

- São nove horas da manhã.

- Provavelmente, já passa um pouco.

Quando se aproximou mais, ela levantou a chávena e pô-la contra o seu peito.

- Tenho de vigiar a manada e verificar as cercas - recordou-lhe. - E tu também.

Ele tinha de cuidar dela, pensou, e surpreendeu-se. Mas tinha bom-senso suficiente para não o mencionar à mulher em questão.

- Às vezes - começou a dizer, mas interrompeu-se para lhe dar um beijo amistoso - não és engraçada, Jillian.

Ela riu-se e acabou o café.

- Porque não te vais embora para que eu possa tomar um duche e vestir-me?

Ele levantou-se.

- Vou preparar o pequeno-almoço - anunciou, e continuou a falar antes que ela pudesse dizer que não era necessário, - e nenhum dos dois vai verificar as cercas a cavalo hoje. Vamos de avião.

- Aaron, não tens de roubar tempo e dedicação ao teu rancho para fazeres isto.

Ele enfiou os polegares nos bolsos da frente e ficou a observá-la durante tanto tempo que ela franziu o sobrolho.

- Para alguém tão inteligente, às vezes mostras-te um pouco lenta a entender as coisas. Se for mais fácil compreender as coisas assim, pensa que um roubo de gado diz respeito a todos os rancheiros.

Jillian apercebeu-se de que estava incomodado, percebia-o na frieza do seu tom.

- Não te entendo.

- Realmente - ele inclinou a cabeça e fez um gesto que podia denotar resignação. - Estou a ver

- dirigiu-se para a porta e Jillian observou-o, desconcertada.

- Eu... - o que era suposto dizer? - Tenho de ir avisar Gil de onde vou estar.

- Já mandei um homem fazer isso - Aaron parou à porta e virou-se para ela. - Sabe que estás comigo.

- Sabe...? Mandaste...? - os dedos de Jillian apertaram a asa da chávena. - Mandaste um homem avisá-lo de que estava aqui?

- Exacto.

Jillian passou uma mão pelo cabelo e a luz do sol arrancou reflexos dourados das pontas do seu cabelo.

- Tens noção do que vai parecer?

O olhar de Aaron tornou-se frio e distante.

- Vai parecer o que é. Desculpa, não me tinha apercebido de que querias escondê-lo.

-Aaron...

Mas este já saíra e fechara a porta atrás dele. Com uma exclamação de desagrado, Jillian pousou a chávena de café na mesa-de-cabeceira e levantou-se. Fora muito desajeitado da sua parte, reprovou-se. Como iria compreender Aaron que não se tratava de vergonha, mas de insegurança? Talvez fosse melhor que não se desse conta.

Aaron tê-la-ia estrangulado com muito prazer.

Uma vez na cozinha, colocou uma fatia de presunto na frigideira. Era culpa sua, pensou enquanto começava a chispar. Raios partam! Era culpa sua. Não deveria ter permitido que as coisas fossem tão longe. Mesmo exagerando, o máximo que podia afirmar era que ela sentia por ele um carinho não isento de cautela. Era improvável que os sentimentos de Jillian pudessem ir mais além disso. Se os seus tinham ido, só podia culpar-se e tentar lidar com aquilo sozinho.

Desde quando precisava de proteger o seu coração?, pensou com raiva enquanto espetava a fatia de presunto com um garfo. Desde quando gostava de uma mulher, de qualquer mulher, para algo mais que companheirismo, inteligência e uma cama disposta? Talvez os seus sentimentos se tivessem desproporcionado um pouco, mas ainda não perdera o controlo da situação.

Serviu-se de um café simples e bebeu um gole. Tinha demasiada experiência para perder a cabeça por uma rapariga de mau feitio que só queria uma relação sem complicações. Afinal de contas, de início, ele também só desejara aquilo. Deixara-se apanhar porque ela tinha de enfrentar problemas graves e mostrava uma coragem inquebrável.

Tranquilizou-se com o café. Sentindo-se já mais seguro, tirou uma embalagem de ovos do frigorífico. Ajudá-la-ia em tudo o que pudesse com o assunto do roubo, levá-la-ia para a cama sempre que fosse possível e ficaria por aí.

Quando Jillian entrou na cozinha, olhou para ela com uma expressão desembaraçada. Ela tinha o cabelo ainda molhado e uma cara saudável, de ter dormido o suficiente.

Meu Deus, estava apaixonado por ela! O que raios ia fazer?

O comentário que Jillian estava prestes a fazer sobre como cheirava bem esfumou-se. Porque Aaron ficara a olhar para ela como se fosse a primeira vez que a vira? Contrariamente ao seu hábito, sentiu-se coibida e cruzou os braços em cima do peito. Estava a olhar para ela como se tivesse ficado sem ar.

- Passa-se alguma coisa?

- O quê?

Estava tão aturdido que ela sorriu. Em que estaria a pensar quando o interrompera?

- Perguntei-te se se passava alguma coisa. Parece que acabaste de ver um fantasma.

Ele amaldiçoou-se e virou-se.

- Nada. Como queres os ovos?

- Mexidos, obrigada - deu um passo em direcção a ele, depois hesitou. Não lhe era fácil exteriorizar o seu carinho, ao longo da sua vida deparara-se com recepções pouco entusiastas às suas demonstrações de afecto. Encheu-se de coragem, atravessou a cozinha e tocou-lhe no ombro. Ele ficou rígido, ela afastou-se. - Aaron... - que tranquila soava a sua voz!, pensou. Há muito tempo que se habituara a esconder a dor. - Não é fácil para mim aceitar ajuda.

- Já me dei conta - ele partiu um ovo e deitou-o na frigideira.

Ela pestanejou para conter as lágrimas que enchiam os seus olhos. Imbecil!, reprovou-se. Nunca se devia mostrar as fraquezas. Era-lhe difícil engolir o seu orgulho, mas, às vezes, era necessário.

- O que queria dizer é que agradeço o que fazes por mim. A sério.

Aaron sentia-se despedaçado pela emoção. Partiu outro ovo e deitou-o na frigideira.

- Nem agradeças.

Ela recuou. O que esperava?, perguntou-se. Não era do tipo de pessoas que inspiravam ternura, nem queria sê-lo.

- Está bem - disse com despreocupação. - Não voltarei a fazê-lo - foi até à cafeteira e encheu novamente a sua chávena. - Tu não vais comer nada?

- Já tomei o pequeno-almoço - Aaron mexeu um pouco os ovos na frigideira e depois estendeu o braço para agarrar um prato.

Ela olhou para as suas costas com dificuldade.

- Sei que estou a afastar-te de um monte de assuntos urgentes. Porque não deixas que um dos teus homens me leve?

- Disse que eu vou levar-te - serviu a comida no prato e deixou-o sobre a mesa sem mais cerimónias.

- Faz o que quiseres, Murdock.

Ele virou-se quando Jillian estava a partir uma fatia de presunto.

- É o que faço sempre - deixando-se levar por um impulso, agarrou-a pela nuca e cobriu os seus lábios com um beijo longo e implacavelmente profundo que os deixou aos dois a tremer de desejo.

Quando acabou, Jillian concentrou-se em evitar que as mãos lhe tremessem.

- Um homem deveria mostrar-se mais prudente - disse suavemente enquanto cortava outra fatia - quando a mulher está a empunhar uma faca.

Aaron soltou uma gargalhada breve e deixou-se cair na cadeira situada à frente dela.

- A prudência não é algo com que me dê bem quando tu estás por perto - bebeu um gole do seu café e viu como ela se concentrava em dar conta da comida que tinha no prato. Talvez fosse tarde para reconhecer que criar intimidade com Jillian fora um erro, mas se conseguisse recuperar o equilíbrio da sua relação, talvez conseguisse manter os seus sentimentos controlados. - Sabes? Já deverias ter comprado um avião para o Utopia há anos - comentou, perfeitamente consciente de que o comentário a incomodaria.

Jillian levantou o olhar do prato com lentidão deliberada. -Ah, sim?

- Só os idiotas se opõem ao progresso. Ela bateu com o garfo no prato vazio.

- Que afirmação tão interessante! – exclamou com calma aparente. - Tens mais alguma sugestão sobre como melhorar o rendimento do Utopia?

- Pois a verdade é - Aaron acabou o café que restava na sua chávena - que poderia dizer-te várias.

- Sim - ela pousou o garfo no prato para não cair na tentação de lho espetar no peito. - Queres que te diga onde podes metê-las?

- Talvez mais tarde - ele levantou-se. - Vamos, já perdemos metade do dia.

Jillian apertou os dentes e seguiu-o pela porta das traseiras. Pensou que era uma pena ter gasto sequer um instante a mostrar-lhe agradecimento.

O pequeno avião de dois lugares fê-la engolir em seco.

Olhou para as hélices enquanto Aaron verificava os indicadores do painel de comandos antes da descolagem. Confiava nos meios de transporte com quatro patas ou quatro rodas. Aqueles podia dominá-los, pensou, mas assim que Aaron fizesse descolar o avião, ela teria renunciado por completo ao controlo da situação. Fingindo indiferença, fechou o cinto de segurança enquanto ele ligava o motor.

- Já alguma vez andaste num destes? - perguntou Aaron, distraidamente. Colocou rapidamente os óculos de sol antes que o aparelho começasse a andar pela pista estreita de asfalto.

- Claro, no que comprei - não mencionou o medo que lhe dera aquele voo. Por muito que odiasse dar-lhe razão, um avião era imprescindível em qualquer rancho dos finais do século XX. O motor rugiu e a terra ficou para baixo, aos seus pés. Teria de se habituar, disse para si, tendo em conta que queria aprender a pilotar. Deixou que as mãos repousassem relaxadamente sobre os joelhos e tentou esquecer o medo que lhe atacava o estômago.

- És o único que sabe pilotar isto? - aquela lata de sardinhas com hélices, pensou sombriamente.

- Não, dois dos meus homens têm brevete de piloto. Não é prático que só uma pessoa possa realizar um determinado trabalho.

Ela assentiu.

- Sim, há um mês que tenho o nome de um homem que sabe pilotar, mas eu também vou ter de aprender.

Ele olhou para ela.

- Eu podia ensinar-te - Aaron reparou que os seus dedos não paravam de se mover, para cima e para baixo, em cima dos seus joelhos. Nervos, reconheceu com surpresa. Escondia-os muito bem.

- Estes aviões são pequenos - disse distraidamente, - mas o bom é serem manobráveis. Se for necessário, consegues aterrá-lo numa pradaria quase sem incomodar o gado.

- É muito pequeno - murmurou Jillian.

- Olha para baixo - sugeriu ele. - É enorme. Ela obedeceu porque não queria, nem por um momento, que ele soubesse o quanto desejava encontrar-se sã e salva, com os pés na terra. O seu estômago deixou de dar saltos assim que o fez. Os seus dedos relaxaram.

A paisagem, verde e reluzente, estendia-se por debaixo deles, com tiras castanhas e âmbar tão claramente definidas que pareciam riscadas com uma régua. Avistou o rio que atravessava o seu rancho e o de Aaron, uma serpentina azul. O gado criava manchas pretas, castanhas e avermelhadas. Dois potros jovens divertiam-se num prado enquanto os cavalos adultos apanhavam sol e pastavam. Viu alguns homens a cavalo. Várias vezes, os cavaleiros tiravam o chapéu e agitavam-no. Aaron inclinava ligeiramente o aparelho para lhes devolver a saudação. Jillian riu-se e olhou para o horizonte, para as planícies e as montanhas solitárias.

- É fabuloso, olho e não consigo acreditar que tudo isto seja meu.

- Eu sei - ele sobrevoou o limite entre os dois ranchos e entrou nas terras de Jillian. - É impossível que alguém se canse de olhar para semelhante paisagem.

Ela apoiou a cabeça na janela. ”Ama esta terra tanto como eu”, pensou. Aqueles anos em Billings deviam tê-lo consumido. Cada vez que pensava naquilo, nos cinco anos a que renunciara, a sua admiração por ele crescia.

- Vou contar-te uma coisa, mas não te rias disse e viu que ele olhava para ela com curiosidade.

Não, não se riria. - Quando era pequena, a primeira vez que vim aqui, arranquei alguns bocados de erva e coloquei-os numa caixa para os levar para casa quando voltasse. Secaram, mas não importava.

Meu Deus, às vezes desarmava-o até o deixar sem fôlego.

- Quanto tempo guardaste a caixa?

- Até a minha mãe a ter encontrado e a ter deitado fora.

Ele tivera de engolir um comentário irado sobre falta de sensibilidade e, ignorância. Em vez disso, limitou-se a dizer:

- Não te entendia.

- Não, claro que não - a ideia fê-la rir-se brevemente. Como iria a sua mãe entender? - olha, aquela é a carrinha de Gil! - a ideia de descer perto dele distraiu-a e esqueceu o olhar indignado de Aaron.

Ele também tivera confrontos com o seu próprio pai, algumas vezes fora doloroso, mas os seus pais sempre o tinham compreendido.

- Fala-me da tua família.

Jillian virou a cabeça para olhar para ele, não lhe inspirava confiança o facto de não conseguir ver o seu olhar sob os óculos de sol.

- Não, agora não - voltou a olhar para baixo pela janela. - Eu gostaria de saber do que estou à procura - murmurou.

”Eu também”, pensou Aaron turvamente e a frustração invadiu-o. Não iria resultar, decidiu. Não seria capaz de se convencer de que não precisava dela.

- Talvez o reconheças quando o vires. Achas que terão roubado mais gado numa determinada zona?

- Parece que o maior golpe foi na zona norte. Não consigo entender como conseguiram que passasse inadvertido. Quinhentas cabeças, diante do meu nariz.

- Não serás a primeira - recordou-lhe ele, nem a última. Se tu tivesses de tirar gado da zona norte, por onde o levarias?

- Se não fosse meu - disse ela secamente, imagino que o carregaria em camiões e o tiraria do estado.

- Pode ser - Aaron perguntou-se se a sua hipótese seria mais difícil de aceitar para ela. - Mas a carne embalada é muito mais fácil de transportar do que o animal vivo.

Ela virou-se lentamente para olhar para ele. Já lhe ocorrera, mais de uma vez, mas descartava sempre a ideia. A última e frágil esperança de recuperar o que lhe pertencia desapareceria.

- Eu sei - a sua voz era tranquila e o seu olhar, firme. - Se for isso o que aconteceu, ainda falta apanhar quem o fez. Não vão ficar impunes.

Aaron sorriu com franca admiração.

- Muito bem. Então vamos pensar desse ponto de vista durante um momento. Tens o gado. As vacas são muito mais valiosas do que os bezerros nesse sentido, portanto talvez os embarques com destino a pastos mais verdes por uma temporada. A não ser que se trate de um grupo de idiotas, não vão sacrificar uma vaca que está marcada com o ferro do teu rancho em troca das poucas centenas de dólares que valeria um bezerro.

- Um grupo de idiotas não teria sido capaz de roubar o gado - precisou ela.

- Não - ele assentiu para mostrar a sua concordância. - Quanto aos bezerros, seria uma escolha sábia levá-los até algum lugar tranquilo e transformá-los em bifes. A carne poderia representar um lucro rápido e em dinheiro enquanto fecham o negócio para vender o resto - ajustou levemente a trajectória e dirigiu-se para Norte.

- E se fossem ainda mais inteligentes, teriam fechado, com antecedência, o negócio da venda das vacas e dos bezerros - apontou Jillian. - Com um reboque, poderiam ir tirando-os em pequenos grupos através dos desfiladeiros da montanha.

- Exacto. Acho que deveríamos descer e ir dar uma olhadela.

A euforia de Jillian esfumou-se, apesar de a paisagem que se estendia aos seus pés mostrar todas as cores e texturas imagináveis. A superfície tornava-se cada vez mais acidentada, com uma estrada asfaltada de duas direcções que serpenteava em curvas e contracurvas. O maciço montanhoso seco não era tão majestoso como os que se elevavam um pouco mais para Oeste, mas erguia-se solitário, habitado por coiotes e gatos selvagens que preferiam manter-se afastados do homem.

Aaron levou o avião a maior altitude e começou a rodear as montanhas. O olhar de Jillian percorreu a linha dentada das cúpulas e os desfiladeiros que se afundavam nas profundidades da rocha. Sim, se ela tivesse em mente sacrificar as cabeças de gado, nenhum outro lugar seria mais apropriado. Então viu os abutres e sentiu um aperto no coração.

- Vou aterrar - limitou-se a dizer Aaron.

Jillian não respondeu, mas, mentalmente, começou a fazer uma lista das opções que tinha se encontrassem o que achava que encontrariam. Poderia, e não lhe restaria outro remédio, cortar nalguns gastos, mesmo depois do leilão de gado que se celebrava no fim do Verão. Teria de mandar arranjar o velho jipe em vez de comprar um novo. Havia dois potros que podia vender para não ficar com a conta a zeros. Equilibrar lucros e despesas, pensou enquanto o avião aterrava aos tombos. Nada pessoal.

Aaron desligou o motor e saltou para fora do avião.

A terra era dura e, como consequência da falta de chuva, levantava-se pó em seguida. O olfacto de Jillian detectou o seu cheiro ligeiramente metálico, tão diferente do cheiro a erva e animais que havia nos campos mais abaixo. Ali não havia árvores para dar sombra, o sol castigava com força. Ouviu o bater das asas de um abutre que desenhou um círculo perto deles, antes de pousar na beira de uma rocha.

Não era complicado avançar pela terra pedregosa e penetrar na abertura que se abria na montanha. Para um veículo com tracção às quatro rodas seria fácil, pensou, e inclinou a aba do chapéu para rebater o brilho do sol.

O desfiladeiro não era comprido e estava encaixado entre paredes de rocha cinzenta. Alguns rebentos de salva tinham conseguido nascer e salpicavam a rocha aqui e ali. Ouviam com clareza o ruído das suas próprias pegadas. De repente, para surpresa dela, Jillian ouviu um gotejamento fraco. Devia ser uma nascente pequena, pensou, ou teria detectado antes o cheiro da água. Ali só cheirava a...

Parou e deixou escapar um longo suspiro.

- Meu Deus...

Aaron reconheceu o cheiro, quente e doce, ao mesmo tempo que ela.

- Jillian...

Ela abanou a cabeça. Não queria que a consolasse nem que lhe desse esperanças.

- Bolas, pergunto-me quantas terão sido...! Continuaram a andar e viram, por detrás de uma rocha, alguns ossos que um coiote desenterrara e roera.

Aaron disse um palavrão entredentes.

- No avião há uma pá - começou a dizer. - Podemos ver o que encontramos aqui ou voltar e avisar o xerife.

- Este assunto é meu - Jillian secou o suor das mãos nas calças. - Prefiro descobri-lo agora.

Ele sabia muito bem que não devia sugerir-lhe que esperasse no avião. No seu lugar, faria exactamente o que ela estava prestes a fazer. Sem dizer mais nada, deixou-a sozinha.

Quando Jillian ouviu como o ruído das suas pegadas se desvanecia, fechou os olhos com força e apertou os punhos. Queria gritar de raiva, de impotência. Tinham-lhe roubado os seus animais, tinham-nos matado e vendido a carne. Já não poderia recuperá-los, não poderia recuperar aquilo a que dedicara tanto trabalho. Lenta e dolorosamente, foi recuperando o controlo. Não podia recuperá-los, mas conseguiria que se fizesse justiça. Às vezes era uma palavra mais elegante para o que, na verdade, era vingança.

Quando Aaron regressou com a pá, viu a raiva que brilhava nos olhos de Jillian. Preferia isso ao brilho de desespero que vira antes.

- Vamos certificar-nos. Depois iremos à cidade para falar com o xerife.

Ela assentiu. Desde que encontrassem a pele de um dos seus animais, seria suficiente. A pá bateu na terra com um ruído surdo.

Aaron não teve de cavar muito. Levantou a vista para Jillian e viu que o seu rosto estava totalmente sereno, em seguida retirou a terra dos primeiros restos. Apesar do fedor, ela baixou-se e sacudiu com a mão o pó que tapava um pedaço de pele até dar com a U do ferro do Utopia.

- Bom, isto deverá ser prova suficiente - murmurou Jillian, e ficou onde estava porque o que realmente desejava era enterrar a cara entre os joelhos e começar a chorar. - Quantos?

- Deixa o xerife encarregar-se disso - respondeu Aaron. A descoberta enfurecera-o como se tivesse sido o seu ferro o que tivesse sido encontrado naquele bocado de pele. Resmungou um palavrão, esgaravatou a terra com a pá e deixou algo a descoberto.

Jillian estendeu um braço e agarrou-a. A luva estava imunda, mas era de pele boa, o tipo de luva que se usava para trabalhar com o arame. A expectativa cresceu no seu interior.

- Deve ter caído a um deles enquanto enterravam os restos - endireitou-se, segurando a luva entre ambas as mãos. - Vão pagar-me - disse com ferocidade. - Cometeram um erro e vão pagá-lo caro. A maioria dos meus homens tem as iniciais gravadas no forro - sem se preocupar com a sujidade e os restos colados à luva, virou-a e viu. Ali estavam.

Aaron viu como o rosto de Jillian empalidecia enquanto esta contemplava o forro. Os dedos ficaram brancos de tanto a apertar e depois olhou para ele. Sem dizer uma palavra estendeu-lhe a luva.

Ele agarrou-a e viu. Havia umas iniciais ali gravadas: as suas.

Quando voltou a dirigir a vista para ela, o seu rosto não tinha expressão alguma.

- Bom - disse com frieza, - parece que voltamos ao ponto de partida, não é? - devolveu-lhe a luva. - Terás de a entregar ao xerife.

Ela dirigiu-lhe um olhar encolerizado que o atravessou.

- Achas que sou idiota ao ponto de acreditar que tens alguma coisa a ver com isto?

Começou a andar às voltas e depois afastou-se antes que ele tivesse tido a oportunidade de entender o que se passava e, menos ainda, de reagir. Aaron ficou onde estava ainda alguns instantes antes de compreender o que ela dissera.

Apanhou-a justamente quando estava a subir as últimas rochas, já na saída do desfiladeiro. Agarrou-a e obrigou-a a virar-se com rudeza. O ritmo da sua respiração era entrecortado.

- Se calhar sim - ela puxou e soltou-se, mas ele voltou a apanhá-la. - Ou se calhar quero que me expliques porque não acreditas.

- Olha, posso pensar muitas coisas de ti e talvez não goste de algumas. Mas isto, não - a sua voz falhou e custou-lhe acabar o que ia dizer. Integridade... A integridade não tem de estar sempre associada às boas maneiras. Tu nunca cortarias as vedações e matarias os meus bezerros.

Só aquele comentário tê-lo-ia abalado, mas também viu que ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Aproximou-se dela e levou uma mão à sua face.

- Jillian...

- Não! Pelo amor de Deus, não sejas carinhoso agora! - Jillian tentou virar-se, mas a única coisa que conseguiu foi que ele a aproximasse mais de si, até que ela enterrou a cara no seu ombro. O corpo de Aaron era como um muro onde encontrava apoio e compreensão. Se se apoiasse e aceitasse o seu apoio naquele momento, o que faria quando ele partisse? - Não faças isto, Aaron - pediu, mas as suas mãos agarraram-se a ele.

- Tenho de fazer alguma coisa - murmurou ele, acariciando-lhe o cabelo. - Apoia-te em mim, não te farei mal.

Mas claro que lhe fazia mal. Chorar sempre lhe fora doloroso, mas não havia forma de conter o choro, de modo que o deixou escapar e chorou com a dor que ambos compreendiam, enquanto ele a abraçava naquela montanha erma, sob a luz ofuscante do sol.

 

Jillian não tinha tempo para se sentar a chorar pelo que perdera. Tinham desenterrado do chão do desfiladeiro as peles de mais de duzentos animais, e todas tinham a marca do Utopia. Falara com o xerife, falara com a Associação de Rancheiros e recebera visitas e chamadas dos rancheiros dos arredores. Depois daquele único acesso de choro, o seu desespero transformara-se numa raiva fria que era muito mais útil. Empurrava-a a seguir em frente, um dia após o outro, a trabalhar ainda mais, a não se ir abaixo quando alguém lhe dirigia palavras de ânimo e compreensão.

Durante duas semanas, não se falou de outra coisa no seu rancho nem em muitas milhas à volta. Não acontecera um roubo de gado daquelas proporções desde há trinta anos. Tudo começou a ser mais fácil quando os comentários começaram a extinguir-se, embora se tivesse tornado também mais difícil continuar a acreditar que a investigação daria alguns frutos. Tivera de aceitar a perda dos animais porque não lhe restara outro remédio, mas não podia aceitar que os ladrões ficassem impunes.

Eram inteligentes, tinha de o admitir. Tinham roubado o gado com uma destreza que nem os mais idosos conseguiam recordar. A vedação cortada, a luva de Aaron... ”Erros” subtis e deliberados, destinados a desviar a sua atenção para as terras dos Murdock. O primeiro resultara suficientemente bem para dar aos ladrões tempo suficiente para apagarem o seu rasto. O único consolo que ficava era pensar que não caíra no segundo.

Aaron não lhe dera outra alternativa a não ser aceitar a sua ajuda. Ela resistira, especialmente depois de recuperar do acesso de choro no desfiladeiro, mas ele mostrara-se tão obstinado como ela. Ele mesmo levara-a a ver o xerife, acompanhara-a à Associação de Rancheiros e, numa tarde, arrastara-a para ver um filme a quarenta milhas dali. E em nenhuma daquelas ocasiões se mostrara compassivo ou condescendente. Por isso, mais do que por qualquer outra coisa, Jillian sentia-se em dívida para com ele. A compaixão deixava-a sem recursos, à beira do desespero.

À medida que os dias passavam, obrigava-se a viver cada dia sem pensar no seguinte. Preenchia as suas horas com dúzias de tarefas, ocupações e responsabilidades, de modo a que não lhe restasse tempo para pensar. Naquele momento, a sua maior preocupação era cruzar a sua égua com o garanhão de Aaron.

Este levara com ele dois dos seus homens. A eles somar-se-iam Gil e um dos seus próprios trabalhadores, os cinco segurariam as cordas para prender o garanhão. Uma vez que este sentisse o cheiro da égua com o cio, tornar-se-ia selvagem como o seu pai e igualmente perigoso.

Assim que Jillian introduziu Dalila no picadeiro, cravou a vista no garanhão, rodeado pelos cinco homens. Uma criatura soberba, pensou, puro macho, por domesticar. O seu olhar foi até Aaron, que estava junto à cabeça do cavalo.

Por debaixo do seu chapéu, apareciam algumas madeixas de cabelo preto que se enroscavam descuidadamente no pescoço e nas orelhas. O seu corpo era seco, magro. Podia-se olhar para ele e pensar que estava totalmente relaxado, mas Jillian via mais além, via a tensão que pulsava por debaixo, a força que estava sempre ali e podia surgir inesperadamente. Os olhos, quase tão escuros como o seu cabelo, estavam meio ocultos sob a aba do seu chapéu enquanto tentava acalmar e controlar o garanhão.

Nenhum outro cavalo teria sido mais apropriado para ele. Para o seu amante, disse para si Jillian com um ligeiro estremecimento. Cada vez que relembrava ou imaginava o que acontecia quando estavam juntos, sentia um arrepio na nuca. Aquela sensação desapareceria alguma vez? Ele chegara a muitos dos seus lugares mais recônditos. Quando estava sozinha, pensar naquilo atemorizava-a; quando o via, os seus sentimentos não tinham nada a ver com o medo.

Talvez fosse o ar denso, pesado, que ameaçava chuva, ou os estremecimentos, meio nervosos, meio impacientes da sua égua, mas o coração de Jillian pulsava com força. Os cavalos sentiram o cheiro um do outro.

Sansão empinou-se e começou a puxar as cordas para se soltar. Inclinando a cabeça para trás e sacudindo a crina, chamou a égua. Um dos homens disse um palavrão como protesto pelas sacudidelas do animal. Jillian apertou os seus dedos com mais força à volta das rédeas quando Dalila começou a lutar contra a mão que a retinha ou contra o inevitável. Acalmou-a com palavras que eram apenas um sussurro. Sansão relinchou com paixão e a égua respondeu-lhe com outro relincho igualmente apaixonado. Depois empinou-se e quase arrancou as rédeas das mãos de Jillian. Ao ver a resistência e os cascos no ar, Aaron sentiu que o coração lhe subia à garganta.

- Ajudem-na a segurar a égua! - ordenou aos homens.

- Não - Jillian encontrou um novo cabo para as suas mãos. - Só confia em mim. Deixem que a monte - o suor fazia com que a camisa se colasse às costas.

O garanhão mostrava-se descontrolado, empinava-se, com o pêlo coberto de suor e olhos orgulhosos. Com cinco homens a rodeá-lo, voltou a levantar-se sobre as patas traseiras, e manteve-se um momento no ar, magnífico, antes de montar a égua.

Os cavalos estavam para além de todo o pensamento e todo o receio, de qualquer respeito que pudessem sentir pelos seres humanos. O instinto guiava-os, um instinto primitivo que os consumia. Jillian esqueceu como lhe doíam os braços e o suor que caía das suas têmporas. Tinha os pés cravados no chão e os músculos das pernas em tensão enquanto empregava toda a sua força para evitar que a égua se descontrolasse ou empinasse e acabasse por se magoar.

Foi apanhada pela fúria e o desespero dos cavalos, a sua beleza elementar. O ar estava carregado do cheiro do suor e da paixão dos animais. Quase não conseguia respirar, mas queria aspirar aquele ar. Desde pequena, vira os animais a procriar, empurrados pelo cio quando era necessário, mas daquela vez, pela primeira vez entendeu a força devoradora que os impulsionava. A necessidade que uma mulher tinha de um homem podia ser igualmente descontrolada, igualmente primitiva.

Então começou a chover, devagar e depois com mais força, gotas frias que lhe caíam pela pele. Jillian levantou a cara para a égua e deixou que a água corresse pelas suas faces. Um dos homens disse um palavrão. As cordas, ao molharem-se, escorregavam-lhes das mãos.

Quando os seus olhos se encontraram com os de Aaron, ainda tinha o coração na garganta. A sua pulsação devia ser tão forte e irregular como a da égua. Sentiu uma necessidade súbita, tão escandalosa como básica. Ele apercebeu-se. Enquanto a chuva também corria pelo corpo dele, sorriu. Os músculos de Jillian, que um momento antes estavam em tensão, relaxaram tão repentinamente que esta teve de se esforçar para ficarem tensos outra vez e manter o controlo da égua, mas não desviou o olhar. A excitação era quase dolorosa e a consciência do que estava a acontecer-lhe, enervava-a. Como se as mãos de Aaron estivessem a tocar-lhe, reparou que ele vibrava com o mesmo desejo.

Gradualmente, invadiu-a um sentimento mais doce. Tinha a estranha sensação de estar a salvo, embora essa segurança estivesse rodeada de perigos. Daquela vez não lutaria, não o questionaria. Ambos estavam a ajudar a que surgisse uma nova vida, estavam unidos por aquele laço.

Os cavalos estavam ofegantes quando os afastaram. A chuva continuava a cair. Ouviu que Gil soltava uma gargalhada perante os comentários de outro homem. Jillian esqueceu-os e dedicou toda a sua atenção à égua. Sussurrando palavras tranquilizadoras, conduziu-a novamente para os estábulos.

A luz era fraca e o ar estava carregado dos cheiros do feno seco e da pele engordurada. Depois de lhe tirar as rédeas, Jillian começou a escovar a égua com carícias longas e lentas, até que esta parou de tremer.

- Aqui estamos nós, querida - Jillian esfregou a sua cara contra o pescoço de Dalila. - Nenhuma das duas pode fazer muito no que se refere ao seu corpo.

- É assim que vês as coisas?

Jillian virou a cabeça e deparou-se com Aaron, à entrada do estábulo. Estava encharcado, mas parecia não lhe preocupar. Viu como observava breve, mas penetrantemente o seu rosto, era um hábito que adquirira desde o episódio do desfiladeiro. Sabia que procurava sinais de tensão e deixara de lhe incomodar.

- Não sou um cavalo - respondeu com calma, e deu uma palmada no pescoço de Dalila.

Aaron entrou dentro do estábulo e também acariciou a égua. O animal estava seco e tranquilo.

- Ela está bem?

- Hum... Fizemos bem em não deixar que se cruzassem em campo aberto e à sua vontade acrescentou - Os dois têm muito temperamento e poderiam ter-se magoado - sorriu e virou-se para Aaron. - O potro vai ser um campeão, pressinto-o. Passou-se algo especial ali fora, algo importante deixando-se levar pelo impulso, colocou os braços à volta do seu pescoço e beijou-o com ardor.

A surpresa deixou-o imóvel. Aaron levou as mãos à sua cintura, mais por um movimento reflexo que para responder aos seus beijos. Era a primeira vez que ela se permitia uma demonstração de afecto espontânea, a primeira que lhe oferecia sem receio. Uma pontada de desejo surgiu no seu interior com o que, naquele instante, compreendeu ser fruto da paixão, mas não unicamente paixão.

Jillian continuava a sorrir quando se afastou, mas ele não. Antes que ela se apercebesse de quão estupefacto estava, Aaron puxou-a novamente para si e abraçou-a. Jillian achou a doçura inesperada daquele gesto, desconcertante e maravilhosa.

- Não era melhor ires ver Sansão? - murmurou.

- Os meus homens já o levaram de volta para casa.

Ela esfregou uma face contra a sua camisa, que estava molhada pela chuva. Podiam roubar um pouco de tempo às suas obrigações, pensou. Uma hora, um momento... Um pouco de tempo.

- Vou fazer-te um café.

- Está bem - passou-lhe um braço sobre os ombros enquanto se dirigiam para a casa à chuva.

- Alguma notícia do xerife?

- Nada de novo.

Atravessaram o pátio do rancho juntos. Ambos estavam demasiado habituados aos elementos para prestarem atenção à chuva, era apenas algo necessário.

- Isto tem revolucionado o condado todo.

- Eu sei - pararam diante da porta da cozinha para tirar as botas enlameadas. Jillian passou descuidadamente uma mão pelo cabelo e sacudiu as gotas de chuva. - Isso é o que poderá ser mais útil. Todos os rancheiros desta zona do Montana, tanto os que conheço pessoalmente como outros de que ouvi falar, estão com os olhos bem abertos. E os que vivem na fronteira com outros estados, pelo que me disseram. Estou a pensar em oferecer uma recompensa.

- Não é uma má ideia - Aaron sentou-se à mesa e esticou as pernas, enquanto Jillian fazia o café.

O ruído das gotas de chuva no telhado e nos vidros das janelas era um ruído surdo e constante. Sentiu um estranho bem-estar ali sentado, quase na penumbra, na cozinha. As coisas poderiam ser assim se aquele fosse o rancho dos dois, e não o dela ou o dele. Poderiam ser assim se ele conseguisse que ela fizesse parte da sua vida para sempre.

Demorou um segundo a pensar naquilo e demorou outro a sentir uma sacudidela forte. Casamento. Estava a pensar em casar-se. Demorou um momento para assimilar a ideia; mais do que incómoda, era inevitável. ”Meu Deus!”, pensou, e quase desatou a rir-se antes de devolver a sua atenção ao que Jillian dissera.

- Deixa-me pagar - disse de repente.

Ela virou-se com as palavras para recuar a sua oferta na ponta da língua.

- Espera! - ordenou ele. - Ouve-me primeiro. O meu pai descobriu sobre a vedação - viu como Jillian se acalmava antes de voltar a virar-se para tirar as chávenas. - Obviamente, não gostou nada. Aquelas velhas histórias entre os Murdock e os Baron... Não é preciso muito para toda a gente começar a falar da inimizade entre as nossas famílias. Há gente que pensa, embora não o diga, que o meu pai é o responsável.

Jillian serviu o café e depois virou-se com uma chávena em cada mão.

- Não acredito.

- Eu sei muito bem - olhou para ela de um modo estranho e estendeu uma mão. Jillian pôs nela a chávena, mas ele pousou-a na mesa e agarrou-lhe nos dedos. - Isso significa muito para mim.

Como ela não sabia como responder perante aquele tom, limitou-se a ficar calada sem parar de olhar para ele.

- Jillian, isto repercutiu na cabeça dele. Há alguns anos, o facto de as pessoas poderem pensar que fizera algo pouco ético ou ilegal, provavelmente ter-lhe-ia agradado, mas já não é tão forte como antes. O teu pai era um rival ao seu nível, um homem da sua época, entendia-o e até o respeitava. Se pudesse fazer algo por ti, sentir-se-ia melhor. Eu gosto tão pouco de pedir favores como tu de os receber.

Ela olhou para as suas mãos entrelaçadas. Tanto a sua como a dele estavam bronzeadas, eram fortes e magras. No entanto, a sua quase desaparecia dentro da de Aaron.

- Ama-lo muito. -Sim.

A resposta foi muito simples e pronunciada com o mesmo tom desprovido de emoção que utilizara para lhe dizer que o seu pai estava a morrer. Daquela vez, ela entendeu-o melhor.

- Agradecer-te-ia se pudesses oferecer uma recompensa.

Ele entrelaçou os seus dedos com os dela.

- Ainda bem.

- Queres mais café?

- Não - pelo seu olhar passou um brilho atrevido, - mas estava a pensar que devia ajudar-te a tirar essa roupa tão húmida.

Jillian riu-se enquanto se sentava.

- Sabes que continuo a pensar em ganhar ao Double M no Quatro de Julho.

- Tinha a certeza de que continuavas a pensar nisso - respondeu ele calmamente, - mas daí a conseguires...

- Gostas de apostas, Murdock? Ele arqueou um sobrolho.

- Isso já se sabe.

- Aposto cinquenta dólares em como o meu touro Hereford ganhará o laço azul e ganhará a qualquer um que se apresente para competir com ele.

Aaron observou as borras do seu café como se estivesse a pensar. Se o que ouvira sobre o touro de Jillian fosse verdade, estava razoavelmente seguro de que apostar contra ela seria deitar o dinheiro fora.

- Cinquenta - aceitou a aposta e sorriu. - E aposto outros cinquenta em como faço um tempo melhor do que tu na apanha de novilhos com o laço.

- Com todo o prazer - Jillian estendeu-lhe uma mão para selar a aposta.

- Vais competir noutras categorias?

- Não creio - endireitou as costas para se esticar e pensou que era um luxo estar calmamente sentada à tarde, a tomar um café. - A corrida de barris não me interessa e sei muito bem que não devo tentar montar o novilho.

- Porquê?

- Por duas razões. Em primeiro lugar, se o fizesse, os homens começariam a murmurar e a queixar-se. E em segundo - sorriu e encolheu os ombros, - porque provavelmente partiria o pescoço.

Aaron pensou que, há uma semana atrás, não teria admitido a segunda hipótese à frente dele. A rir-se, inclinou-se para a frente e beijou-a. Mas aquele beijo amistoso desatou algo e, agarrando-lhe na nuca, voltou a beijá-la lentamente.

- É a tua boca - murmurou ele enquanto as pontas dos seus dedos brincavam sobre a pele de Jillian. - Uma vez que começo, não consigo parar.

A respiração de Jillian filtrava-se irregularmente entre os seus lábios e entrava na boca de Aaron.

- Estamos em pleno dia - disse ela.

Ele sorriu e acariciou-lhe a língua com a ponta da sua.

- Sim! Vais levar-me para a cama?

Os olhos de Jillian, que estavam quase fechados, abriram-se de repente. Aaron viu neles desejo e confusão, uma combinação que considerou muito do seu agrado.

- Tenho de verificar o... - os dentes de Aaron mordiscaram-lhe persuasivamente o lábio inferior.

- O quê? - sussurrou ele quando as suas palavras acabaram num ligeiro estremecimento.

-O... Oh...!

Os lábios de Aaron roçavam nos seus de um modo muito mais provocador que um beijo. A carícia preguiçosa da sua língua mantinha-os húmidos. Sentia a pressão delicada dos seus dedos na nuca enquanto os joelhos de ambos se tocavam. De algum modo, quase podia sentir o peso do seu corpo contra o dela e o calor que sempre o acompanhava.

- Não consigo pensar - murmurou Jillian. Era o que ele queria. Que pensasse nele e só nele. Precisava de saber que, daquela vez, ele iria estar em primeiro lugar, ou, pelo menos, a necessidade e o desejo que provocava nela. Que se ia antepor ao rancho, aos seus homens, ao gado, às suas ambições... Se, por uma vez, conseguisse fazer aflorar os seus sentimentos para que se encontrassem com os dele, depois só teria de repetir aquilo várias vezes até estar tão perdidamente apaixonada como ele estava por ela.

- Porque ”tens de” fazer alguma coisa? - levantou-se e também a levantou. - Podes sentir.

Sim, com os braços à volta do seu pescoço e a cabeça apoiada no seu peito, podia sentir, disse para si Jillian. As emoções invadiam-na e exigiam que cumprisse as necessidades que provocavam, todas relacionadas com ele: o desejo, os pequenos medos, os seus desejos. Não podia negá-lo. Talvez, por uma vez, não precisasse de o fazer.

- Quero fazer amor contigo - suspirou e aproximou-se mais dele. - Sinto como se não conseguisse parar de te desejar.

Ele inclinou-lhe a cabeça para trás para poder ver-lhe a cara e depois, a sorrir de lado, acariciou-lhe o queixo com o polegar.

- Em pleno dia?

Ela afastou o cabelo dos olhos e entrelaçou comodamente as mãos atrás do seu pescoço.

- Tenho de fazer amor contigo neste momento, Murdock. Já!

Ele olhou para a mesa da cozinha, limpa, e o seu sorriso tornou-se atrevido.

- Neste momento?

- Estás a pensar em coisas um pouco estranhas

- comentou ela. - Acho que posso dar-te tempo para subires as escadas - largou-o, foi até à cafeteira e desligou-a. - Se estiveres com pressa, claro

- assim que Aaron sorriu, dirigiu-se novamente para ele. Pôs-lhe os braços à volta do pescoço e, de um salto, colocou-se em cima dele e cruzou as pernas atrás das suas costas para se segurar. - Sabes onde ficam as escadas?

- Eu encontro-as.

Ela aproximou os lábios do seu pescoço.

- Quando chegarmos lá cima, segunda porta à direita - disse enquanto começava a desfrutar do sabor da sua pele.

Enquanto Aaron se movia pela casa, ela perguntava-se o que pensaria e o que diria se soubesse que era a primeira vez que fazia algo do género. Apercebeu-se de que o rapaz que tanto representara para ela, quando era mais jovem, não fora um amante, mas uma anedota. Era necessário mais do que uma noite para que duas pessoas se tornassem amantes. Ter-se-ia sentido muito parva ao dizer a Aaron que era o primeiro. Muito tola e completamente deslocada. Como iria explicar-lhe que, ao primeiro sinal de paixão, saltara todos os muros com que se protegera? Como iria ela confiar nos seus próprios sentimentos quando eram tão confusos e novos?

Apoiou a cabeça no ombro de Aaron por um momento e fechou os olhos. Por uma vez na sua vida, iria desfrutar sem se preocupar com as consequências. Inclinou-se um pouco para trás para poder sorrir-lhe.

- Não estás em forma, Murdock. Só de subires as escadas, o teu coração começou a bater como louco.

- Tal como o teu - assinalou. - E tu é que vais ao colo.

- Deve ser da chuva - disse Jillian com arrogância.

- Ainda tens a roupa molhada - foi para o quarto que lhe indicara, entrou e olhou à sua volta.

Era o que se podia esperar do seu estilo: feminilidade subestimada, sentido prático. Um quarto sem enfeites nem cores claras, mas que ele teria reconhecido que pertencia a uma mulher. Não tinha a desordem feminina que antigamente alvoroçava o da sua irmã no rancho, nem a elegância subtil do da sua mãe. Tal como a mulher que carregava nos braços, Aaron achou que aquele quarto era único.

Paredes simples, chão simples, cores simples, nenhuma desordem. Não, Jillian não era uma mulher que gostasse de desordem na sua vida. Não tinha tempo para isso. Talvez fossem as demonstrações escassas de indulgência para consigo mesma o que lhe permitiam ter uma ideia mais precisa.

Uma jarra de cerâmica com rebordos arredondados dentro da qual havia alguns ramos de aveleira que não podiam chegar a considerar-se flores. Uma caixinha de madeira esculpida na sua cómoda, a qual, tinha a certeza, emitia uma melodia suave quando se levantava a tampa. Talvez ela o fizesse às vezes, quando estava a sós ou se sentia sozinha. Na parede, havia uma aguarela que mostrava os tons arrebatadores de um pôr-do-sol. Pensou que Jillian controlara, cuidadosamente, o romantismo para o qual se sentia inclinada e, precisamente por isso, teria ficado surpreendida ao descobrir que, ao tentar escondê-lo, a única coisa que conseguira fora proclamá-lo em voz ainda mais alta.

Ao aperceber-se da sua observação, Jillian ergueu a cabeça.

- Não tem muito a ver.

- Ficarias surpreendida - murmurou ele. Aquela resposta tão enigmática fez com que Jillian desse uma olhadela à sua volta.

- Não passo muito tempo aqui - começou a dizer ao aperceber-se de que o quarto era muito vazio, inclusive se o comparasse com o de Aaron na casa branca.

- Não me entendeste - Aaron deslizou as mãos pelas suas costas ao colocá-la no chão. - Teria adivinhado que este era o teu quarto. Até tem o teu cheiro...

Jillian riu-se, satisfeita, sem saber porquê.

- Estás a armar-te em poético?

- Talvez.

Ela levantou uma mão e brincou com o botão do colarinho da camisa.

- Queres que te ajude a tirar a roupa?

- Sem a menor dúvida.

Jillian fez o que desejava e dirigiu-lhe um olhar regozijado quando lhe abriu a camisa e a afastou para os ombros.

- Se esperas que te seduza, vais desiludir-te avisou-o Jillian.

- A sério?

- Não sei nenhum truque - antes que Aaron tivesse tempo de responder, ela atirou-se para cima dele e desequilibrou-o, e ambos acabaram por cair em cima da cama. - Nenhuma artimanha - continuou, - nenhum ardil.

- És uma senhora decidida, está bem - sentia o calor do corpo de Jillian através da camisa húmida.

- Eu gosto da tua forma de olhar, Murdock passou-lhe os dedos pelo cabelo, escuro e abundante, enquanto observava a sua cara. - Costumava incomodar-me muitíssimo, mas agora é agradável.

- A minha maneira de olhar?

- Que eu goste da tua maneira de olhar. É um olhar implacável - decidiu ela enquanto percorria o seu queixo com um dedo. - E quando sorris, a tua boca fica muito sedutora, é o tipo de sorriso que uma rapariga inteligente sabe que pode ser perigoso.

Ele sorriu e agarrou-a pelas ancas. -E tu?

- Eu sou uma mulher inteligente - riu-se e esfregou o seu nariz contra o dele. - Reconheço uma cascavel assim que a vejo.

- Mas não suficientemente depressa para te pores a salvo.

- Pois, parece que não. Talvez nem sempre goste das incursões longas e seguras.

Mas das rápidas e em terreno acidentado, pensou ele enquanto os lábios de Jillian pousavam sobre os seus. Com muito gosto lhe proporcionaria uma espiral de perigos e riscos, decidiu, puxando-a para si. E, além disso, ela ia aperceber-se de que ele pretendia que durasse.

Tentou movê-la, mas naquele momento os lábios de Jillian percorriam a sua cara. Suaves, ligeiros, mas com uma paixão intensa. O seu corpo magro e flexível quase parecia não pesar, embora ele sentisse todas as suas curvas. O seu cabelo continuava húmido e recordou-lhe a primeira vez que tinham feito amor, quando a arrastara para ao chão consumido pelo desejo e a raiva. E encontrava-se novamente indefeso perante o assalto de Jillian aos seus sentidos. Não, não conhecia artimanhas, nem ele teria tido paciência para tais coisas.

Ouvia como a chuva batia ritmicamente contra a janela. Sentia-a na pele de Jillian e, quando aproximava os lábios do seu cabelo, podia saboreá-la.

Era quase como se estivessem sozinhos num campo tranquilo, com o cheiro da erva molhada e a chuva a escorrer pelos seus corpos. A luz era cinzenta e difusa, a boca de Jillian, pura intensidade.

Ela não sabia que era tão excitante seduzir assim um homem, sentir que a força o abandonava fazia-a sentir-se nauseada de poder. Houvera vezes em que tinham estado em igualdade de circunstâncias e, de vez em quando, ela em desvantagem, mas nunca se sentira tão segura de poder dominar. A sua gargalhada soou confiante e grave enquanto a sua boca percorria a pele de Aaron, quente e sensual sob os seus lábios.

Parecia contente ali debaixo enquanto ela o explorava. Jillian teve a sensação de que o ar se tornou mais denso. Talvez fosse aquilo o que o mantinha tão entregue a ela e evitava que tentasse assumir o controlo. As suas mãos estavam ávidas, percorriam o corpo de Aaron e paravam aqui e ali, fascinadas. Nos músculos dos braços, que se endureciam sob os seus dedos; na pele suave e lisa, surpreendentemente suave na zona das costelas; na cicatriz fina que lhe percorria o osso da anca.

- Como a fizeste? - murmurou enquanto passava a ponta de um dedo por cima.

- Brahma - respondeu enquanto lhe descia as calças de ganga. - Jillian... - mas os lábios desta alcançaram novamente os seus e sossegaram as suas palavras.

- Um touro?

- Num rodeo.

Jillian ouviu que um som de prazer brotava da garganta de Aaron à medida que a sua boca ia descendo. O seu corpo era um cofre cheio de tesouros que ela ia descobrindo. Olhou-o com aquela luz, suave, líquida: bronzeado e firme sobre a colcha lisa que cobria a cama. As suas extremidades eram flexíveis e ágeis, estavam feitas para cavalgar sem descanso, fortalecidas pelo trabalho e curtidas pelos elementos. Percorreram-na pequenos estremecimentos ao pensar que era seu, que podia tocar-lhe e desfrutar dele tanto tempo quanto lhe parecesse oportuno.

Começou a descer pelo seu corpo, entretendo-se em determinados pontos. Sentia o calor da sua pele e o bater do coração à medida que o despia. O ruído da chuva e da sua respiração acelerada enchia o quarto. O cheiro doce da paixão envolvia-a, uma fragrância que era o resultado da mistura dos cheiros de ambos, íntima. Sentia o sabor do desejo na pele de Aaron, um sabor embriagador que a tornou insaciável quando sentiu o bater do seu coração sob a língua. Mesmo quando a sua própria excitação aumentou até o sangue começar a circular pelas veias a toda a velocidade, teria podido continuar, deleitando-se no corpo de Aaron durante horas. A urgência premente que sentira antes transformou-se numa satisfação incandescente. Proporcionava-lhe prazer, isso era mais do que alguma vez pensara que poderia oferecer a alguém.

Ardia-lhe o peito e as chamas iam-se estendendo. Meu Deus! Jillian era como uma droga, estava perdido, a flutuar como em sonhos enquanto o corpo lhe ardia. Os seus dedos eram tão frios e a sua boca tão cálida... Nunca explorara a sua própria vulnerabilidade, sempre fora mais importante combatê-la ou não lhe prestar atenção. Naquele momento, não tinha alternativa e a sensação parecia-lhe incrível.

Ela excitava um determinado ponto da sua anatomia, provocava-o e afastava-se... E voltava à carga. Os seus beijos enervantes, com a boca muito aberta, estendiam-se enquanto as suas mãos o acariciavam e exploravam com calma, preguiçosamente, e foram encontrando no seu caminho um ponto sensível depois do outro, até que um tremor o estremeceu. Nenhuma mulher o fizera tremer. Assim que esta ideia surgiu na sua mente devastada pelo prazer, Jillian fê-lo tremer novamente, e então apercebeu-se de que estava a enlouquecê-lo.

O vento soprou com mais força e a chuva bateu contra o vidro da janela, para se afastar depois com um uivo distante. Pelo seu corpo estendeu-se algo frenético. Agarrou-a bruscamente, rodou para um lado e segurou-lhe os braços com força por cima da cabeça. Jillian sentia dificuldade em respirar quando ele baixou o olhar.

Tinha o queixo alto, o cabelo estendido sobre a cama e os seus olhos brilhavam. Não havia medo na sua expressão, nem nada parecido com submissão. Embora a sua respiração estivesse alterada, olhava para ele com olhos desafiadores. Um desafio. Podia possui-la, possui-la do modo que quisesse, e, quando o fizesse, ela também estaria a possui-lo.

”Que fosse!”, pensou com uma exclamação afogada, e a sua boca devorou a de Jillian.

Ela igualava a sua urgência, excitada simplesmente com a ideia de que o levara ao limite. Desejava-a. A ela. Em certos sentidos, conhecia-a melhor do que ninguém e, mesmo assim, continuava a desejá-la. Esperara muito por aquilo, embora sem sequer se aperceber de que estava à espera. Não podia pensar naquilo, nem em que efeitos teria na sua vida, enquanto os beijos desesperados e intermináveis de Aaron a provocavam, enquanto começava a ver pequenos brilhos prateados por detrás das suas pálpebras fechadas.

Sentiu que ele puxava os botões da sua camisa, que dizia um palavrão. Quando reparou que o tecido se rasgava, a única coisa que lhe importava era poder sentir a pele de Aaron em contacto com a sua. Como devia ser. Este não deixaria as mãos quietas até a ter excitado tanto como ela a ele. Foi despindo-a com frenesi enquanto a sua boca a percorria, insaciável. Em algum canto da sua mente, ela sentiu como era maravilhoso que a sua mera existência o pusesse naquele estado.

Os seus corpos apertavam-se um contra o outro, as suas extremidades entrelaçavam-se. As suas bocas juntavam-se. Ele pensou que a mistura dos sabores de ambos era a coisa mais íntima que conhecera. Por debaixo dele, Jillian arqueava-se, mais do que a oferecer, a pedir. Levantou-se por cima dela para poder ver o seu rosto, queria que pudesse vê-lo quando a tornasse sua.

Os olhos de Jillian estavam obscurecidos, nublados pelo desejo. Desejava-o. Aaron sabia que já tinha o que procurava: não conseguiria pensar em mais nada nem em mais ninguém a não ser nele.

- Comecei a desejar-te desde a primeira vez que te vi - murmurou enquanto deslizava para dentro dela.

Viu as mudanças que se produziam no rosto de Jillian enquanto se movia lentamente: o piscar de olhos de prazer, a doçura que precedia o delírio. Contendo a necessidade que palpitava nas suas veias, foi fazendo as sensações desabrocharem com o delicioso controlo que lhe queimava os músculos. Baixou a cabeça e mordiscou-lhe os lábios.

Ela não conseguia aguentar, não podia pará-lo. Quando, por fim, achara ter descoberto o que era a paixão, mostrava-lhe que ainda havia mais. Assim que a pressão aumentava dentro dela, ameaçando explodir, desejava que aquilo continuasse. Teria podido soluçar do prazer que aquilo lhe produzia, gemer da dor que lhe causava. Sem ter consciência disso, podia mudar as coisas simplesmente ao sussurrar o seu nome, como se não soubesse nenhum outro.

Ela reparou no instante em que ele perdia o controlo. Só teve tempo de sentir um formigueiro nervoso antes de Aaron a levar com ele para um céu frenético e escuro onde tudo trovejava, e não havia espaço para o ar.

 

Nem o caminho longo e poeirento até à cidade, nem as altas temperaturas tinham afectado o seu ânimo. Era o Quatro de Julho e o dia, que seria estridente e prolongado, ainda só começara.

Logo de manhã, a área de exposição estava a transbordar: rancheiros, cowboys, esposas, namoradas... E os que procuravam namorada para passar o dia. Havia animais de primeira classe expostos ao olhar do público, sobre os quais se podia conversar, alardear e observar com atenção.

Os cowboys luziam os seus melhores ornamentos. Camisas engomadas e calças de ganga apertadas, as botas e os chapéus que se guardavam para as ocasiões, cintos com fivelas vistosas. As crianças vestiam o traje de domingo e a sua roupa prometia acabar coberta de pó e suja de lama no final do dia.

Para Jillian, aquele era o primeiro dia livre de preocupações da temporada e estava decidida a desfrutar dele, precisamente para compensar tudo o que sofrera nos últimos tempos. Durante as próximas vinte e quatro horas iria pôr de parte as preocupações, os números dos livros de contabilidade e esquecer-se de que era a chefe, uma posição que tantos sacrifícios lhe custava. Naquele dia quente e ensolarado, iria limitar-se a desfrutar de fazer parte de um grupo de homens e mulheres que viviam por e para a terra.

Perto do picadeiro e da zona de estábulos, havia um murmúrio alegre de vozes. O cheiro forte dos animais impregnava o ar. De algum lado, vinha já a música de um violino. Ao entardecer, haveria mais música e baile. Primeiro, seriam feitos jogos para miúdos e graúdos, entregar-se-iam os prémios e oferecer-se-ia comida suficiente para alimentar duas vezes o país todo. O seu nariz detectou o cheiro de um bolo de maçã ainda quente quando alguém passou ao seu lado com uma cesta muito cheia. Sentiu água na boca.

Mas havia coisas mais importantes, recordou-se enquanto dava uma volta para confirmar quais eram as hipóteses do seu touro.

Participavam seis concorrentes no total, todos muito musculados e de aparência feroz. Os chifres eram pontiagudos e perigosos; a pele, lustrosa e bem cuidada. Observou-os a todos com objectividade, reparando em quais eram as suas virtudes e defeitos. Não havia dúvida de que o seu maior adversário era o touro que o Double M apresentava. Ganhara o laço azul três anos seguidos.

Mas não naquele ano, disse para si em silêncio enquanto o percorria com a vista. Em peso talvez vencesse o seu, mas parecia-lhe que o seu touro era um pouco mais largo de ombros. E não havia dúvida de que a cor e as manchas do Hereford eram perfeitas, além de o perfil da sua cabeça ser superior.

”Chegou a hora de dares lugar a sangue novo”, disse ao campeão. Satisfeita consigo mesma, enfiou os polegares nos bolsos de trás das suas calças de ganga. Um primeiro lugar e aquele laço azul serviriam para compensar tudo o que sofrera nas semanas anteriores.

- Sabes reconhecer um campeão quando o tens diante dos teus olhos...

Jillian virou-se ao ouvir aquela voz ameaçadora, que ainda conservava um resto de firmeza. Paul Murdock estava vestido na perfeição, mas a sua cara de falcão estava muito pálida por debaixo do chapéu. A sua bengala era elegante e com punho dourado, mas não lhe restava outro remédio a não ser apoiar-se nela com todo o seu peso. Quando os seus olhos se cruzaram com os dela, Jillian viu que eram desafiadores e tinham mais vida que o resto da sua anatomia.

- Sei reconhecer um campeão assim que o vejo disse ela, e desviou o olhar para o seu próprio touro.

Ele soltou uma gargalhada e apoiou o seu peso sobre a outra perna.

- Ouvi falar muito do teu novo rapaz - Paul Murdock observou o touro com o sobrolho ligeiramente franzido e não pôde evitar sentir uma pontada de inveja. Ele também sabia reconhecer um campeão assim que o via.

Sentiu o calor do sol nas costas e, por um instante, apenas por um instante, desejou desesperadamente ser jovem outra vez. Os anos consumiam-lhe as forças. Se pudesse ter cinquenta anos novamente e fosse o dono daquele animal... Mas não era um homem que gostasse de lamentações.

- Tem hipóteses - limitou-se a dizer.

Ela soube reconhecer uma pontada de inveja e sorriu. Nada poderia ter-lhe agradado mais.

- Um segundo lugar também não seria mau replicou subtilmente.

Murdock lançou-lhe um olhar penetrante, ficou com a vista cravada nos seus olhos e depois desatou a rir-se ao ver que ela não hesitava.

- Meu Deus, és uma verdadeira mulher, não és, Jillian Baron? O velho ensinou-te bem.

O sorriso de Jillian mostrava uma postura mais desafiadora do que divertida.

- Bom, o suficiente para gerir o Utopia.

- Pode ser - reconheceu ele. - Os tempos mudam.

Não havia dúvida de que havia um certo rancor nas suas palavras, mas ela podia entendê-lo. E até dar-lhe a sua compreensão.

- O que aconteceu ao teu gado... - ele olhou para ela e viu que a expressão de Jillian era tranquila, impassível. Sentiu o súbito desejo de estar sentado à frente dela numa mesa de póquer e com um bom montante de dinheiro em jogo - foi abominável - disse com uma raiva que lhe roubou momentaneamente o fôlego. - Noutra época, os ladrões de gado eram enforcados.

- Enforcá-los não serviria de nada para recuperar o meu gado - afirmou Jillian com calma.

- Aaron contou-me o que encontraram no desfiladeiro - Murdock olhava fixamente para os dois touros. Eram a seiva vital dos ranchos, proporcionavam os lucros e indicavam a sua posição no sector. - Muito duro para ti, e para todos nós acrescentou, e voltou a olhar para ela. - Quero que compreendas que o teu avô e eu tivemos os nossos problemas. Era um teimoso.

- É verdade - Jillian concordou com tanta rapidez que Murdock riu-se. - O senhor poderia compreender, sem qualquer problema, um homem assim.

Murdock parou de se rir e lançou-lhe um olhar relampejante que ela lhe devolveu.

- Compreendo um homem assim - reconheceu. - E quero que saibas que se lhe tivesse acontecido a ele, o teria apoiado, tal como teria esperado o seu apoio se tivesse sido ao contrário. Os confrontos pessoais não têm lugar nestes casos. Somos rancheiros.

Havia um toque de orgulho na sua voz ao pronunciar aquelas palavras que fez com que a própria Jillian levantasse o queixo.

- Eu sei muito bem disso.

- Seria fácil dizer que podem ter tirado o gado pelas minhas terras.

- Seria fácil - repetiu Jillian com um assentimento de cabeça. - Se me conhecesse melhor, senhor Murdock, saberia que não sou tola. Se achasse que está a comer a minha carne, já estaria a pagá-la.

Os lábios de Murdock curvaram-se num sorriso de admiração.

- O velho ensinou-te bem - repetiu depois de um momento de silêncio. - Embora continue a achar que uma mulher que gere um rancho precisa de ter um homem ao seu lado.

- Tenha cuidado, senhor Murdock, estava a começar a pensar que podia chegar a tolerá-lo.

Ele riu-se novamente, tão satisfeito que Jillian sorriu abertamente.

- Sou demasiado velho para mudar, menina os seus olhos semicerraram-se levemente, como Jillian vira que os de Aaron se semicerravam. Pensou que, dentro de quarenta anos, este teria o mesmo aspecto do seu pai, aquela mesma força um pouco diminuída. A força que alguém queria que o protegesse quando havia dificuldades. - Ouvi dizer que o meu filho te deitou o olho... Não posso acusá-lo de mau gosto.

- Ouviu isso? - replicou ela com calma. - E acredita em tudo o que ouve?

- Se não reparou em ti - contra-atacou Murdock, - é porque não é tão inteligente como pensava. Os homens precisam de uma mulher que lhes faça assentar a cabeça.

- Ah, sim? - perguntou Jillian secamente.

- Não te inquietes, menina! - ordenou Murdock.

- Noutra época, ter-lhe-ia arrancado o couro por dedicar mais de um olhar a uma Baron. Os tempos mudam - repetiu com evidente falta de entusiasmo.

- Somos vizinhos há, pelo menos, um século, gostemos ou não.

Jillian sacudiu a manga.

- Não estou a pensar em fazer ninguém assentar a cabeça. Nem numa junção.

- Às vezes, deparamo-nos com coisas de que não andávamos à procura - sorriu enquanto ela olhava fixamente para ele. - Olha para a minha Karen, nunca imaginei que acabaria com uma beleza que faz-me sempre sentir que devo ir limpar os pés no tapete da entrada, mesmo que não tenha ido trabalhar no campo.

Jillian riu-se e depois surpreendeu-se, dando o braço a Murdock para se afastar dali.

- Tenho a sensação de que está a tentar enterrar o machado de guerra - ao reparar que o seu acompanhante dava um salto, Jillian fez um barulho com a língua e continuou a falar. - Não se inquiete

- pediu com calma. - O meu desejo também é declarar uma trégua. Aaron e eu... damo-nos bem - disse finalmente. - Eu gosto da sua esposa e quanto a si, digamos que o suporto.

- És tal e qual como a tua avó - murmurou Murdock.

- Obrigada.

Enquanto caminhavam, Jillian reparou que algumas pessoas olhavam para eles com curiosidade. Uma Baron e um Murdock de braço dado, realmente os tempos tinham mudado. Perguntou-se como se sentiria Clay e decidiu que, do seu modo resmungão, teria aprovado. Especialmente quando provocava comentários.

Quando Aaron a viu dirigir-se lentamente para a arena, interrompeu a conversa que mantinha com um cowboy. Jillian estava a afastar o cabelo para trás das orelhas, depois moveu levemente a cabeça para o seu pai e as palavras que saíram dos seus lábios fizeram com que este se pusesse a rir. Se não estivesse já louco por ela, Aaron ter-se-ia apaixonado naquele instante.

- Ouve, aquela que está com o teu pai não é Jillian Baron?

- Eh...? Sim - Aaron não perdeu tempo a virar a vista para o seu interlocutor quando podia olhar para Jillian.

- É muito bonita! - assinalou o cowboy com uma certa melancolia. - Diz-se que ela e tu... parou, gelado pelo olhar, frio e inexpressivo, que Aaron lhe dirigiu, e pigarreou com a mão fechada diante dos lábios. - Só estava a dizer que as pessoas comentam que os Murdock e os Baron nunca se deram...

- Ah, não? - Aaron aliviou o mal-estar do seu interlocutor com um sorriso antes de se afastar.

Nunca se podia ter a certeza do que pensava um Murdock, disse para si o cowboy, abanando a cabeça.

- A vida prega-nos surpresas - comentou Aaron quando se aproximou deles. - Não houve sangue?

- O teu pai e eu chegámos a um entendimento.

Jillian sorriu-lhe e, apesar de não se terem tocado, Paul Murdock confirmou que os rumores que ouvira eram verdadeiros. Era difícil de disfarçar a intimidade entre duas pessoas.

- A tua mãe fez-me prometer que faria de juiz no concurso de empadas de carne - resmungou Murdock. Já não se sentia tão melancólico a pensar no que perdera. Ou melhor, sentiu uma grande satisfação ao aperceber-se de que se perpetuaria através do seu filho. - Depois iremos aos estábulos para vos ver - dirigiu um olhar penetrante a Jillian. - Aos dois.

Afastou-se lentamente. Jillian teve de enfiar as mãos nos bolsos das calças para se abster de o ajudar a andar. Sabia que o gesto não seria bem recebido.

- Veio ver os touros - informou Aaron quando o seu pai já não podia ouvi-los. - Acho que para poder falar comigo, foi muito amável da sua parte.

- Pouca gente lhe chamaria ”amável”.

- E pouca gente teve um avô como Clay Baron

- virou-se para Aaron e sorriu. - E tu, como estás?

- mesmo que tivesse querido, não teria conseguido evitar tocar-lhe. Os seus dedos acariciaram-lhe a face.

- O que te parece?

- Não gostas que te diga que estás muito bonita.

Ela riu-se e dedicou-lhe um olhar coquete, com o bater de pestanas incluído. Era o primeiro gesto premeditadamente sedutor que a via fazer desde que a conhecia.

- Hoje é um dia especial.

- E vais passá-lo comigo? - estendeu-lhe uma mão.

Sabia que se lhe desse a sua em público, num lugar cheio de olhos curiosos e bocas desejosas de encontrar algum mexerico, seria um sinal de compromisso.

Os dedos de Jillian entrelaçaram-se com os seus.

- Pensei que nunca irias pedir-me isto. Passaram a manhã como costumavam fazer os casais nas feiras do condado há décadas. Havia limonada para acalmar a sede e concursos para se divertirem. Era fácil rir quando o céu estava limpo e o sol prometia um dia ensolarado.

As crianças corriam de um lado para o outro com balões. Os adolescentes seduziam com a desenvoltura própria da sua idade. Os idosos mascavam tabaco e contavam histórias de outras épocas. O ar cheirava a comida e a animais.

Com o braço de Aaron à volta da cintura, Jillian misturou-se entre a multidão que via um concurso no qual vários homens tentavam apanhar um porco escorregadio. O chão fora molhado e depois remexido para que a lama estivesse em perfeito estado. O porco fora besuntado com gordura para que ficasse ainda mais escorregadio e, além disso, era muito rápido, pelo que conseguia fugir aos seus cinco perseguidores. As pessoas gritavam sugestões, vaiavam, animavam e riam-se às gargalhadas. O porco guinchava e saía disparado, como uma bala, para fora do alcance das mãos daqueles que pretendiam apanhá-lo, os quais caíam de cara no chão a dizer palavrões.

Jillian olhou para Aaron e depois, com uma ligeira inclinação de cabeça, apontou para a pocilga, onde continuavam os gritos e a animação.

- Não gostas de jogos, Murdock?

- Gosto de inventar os meus próprios jogos apertou-a contra si. - Conheço um palheiro muito calmo.

Ela evitou responder com uma gargalhada. Aaron nunca a vira mostrar-se deliberadamente provocadora e não sabia bem como se comportar, mas o brilho que percebeu nos olhos de Jillian fê-lo decidir-se. Com um movimento suave, puxou-a mais para si e deu-lhe um beijo sonoro. Um grupo de cowboys que havia atrás deles aclamou-os. Quando Jillian conseguiu recuperar-se viu que dois dos seus homens estavam a olhar e sorriam.

- É um dia especial - recordou-lhe Aaron quando ela deixou escapar um sopro.

Jillian inclinou a cabeça para trás para olhar para ele. Estava muito orgulhoso dela, decidiu, e merecia um segundo. O seu sorriso fez com que ele se perguntasse o que escondia na manga.

- Queres fogo-de-artifício? - perguntou ela, e, em seguida, deitou-lhe os braços ao pescoço e calou-o antes que ele pudesse responder.

Ele beijara-a de forma firme, mas cordial. O beijo que lhe deu, pelo contrário, sussurrava segredos que só eles os dois conheciam.

- Senti a tua falta ontem à noite, Murdock sussurrou, e depois voltou a pôr a planta completa do pé no chão, de modo que os lábios de ambos se afastaram. Recuou antes de lhe oferecer a mão e um sorriso descarado.

Aaron respirou fundo e deixou escapar o ar lentamente.

- Depois vais ter de acabar isto, Jillian. Ela riu-se novamente.

- Assim espero. Vamos ver se Gil também ganha este ano o prémio de quem consegue comer mais empadas.

Ele seguiu-a. Sentia-se como um miúdo que saía com uma rapariga pela primeira vez. De repente, via-a rodeada por uma aura de despreocupação. Por uma vez, livrara-se de todas as preocupações e responsabilidades e concedera permissão a si própria para se divertir. E talvez por aquilo a fazer sentir-se um pouco culpada, o dia ainda era mais especial.

Jillian teria jurado que, naquele dia, o sol brilhava mais do que nunca e que o céu nunca estivera tão azul. Não recordava ter estado tão disposta a divertir-se em toda a sua vida. Uma fatia de bolo de cerejas pareceu-lhe um néctar dos deuses. Se pudesse, teria concentrado o dia, cada momento, e tê-lo-ia metido dentro de uma caixa de onde pudesse tirar uma hora de vez em quando, quando se sentisse sozinha e cansada. Como isso era impossível, Jillian decidiu viver plenamente cada instante.

Quando o rodeo começou, estava inebriada de liberdade. Quando a Rainha do Quatro de Julho e a sua corte desfilaram à volta da arena, ainda apertava o laço azul entre os seus dedos.

- Deves-me cinquenta dólares - recordou a Aaron com um sorriso.

Este estava sentado no chão a mudar de botas.

- Porque não esperamos para ver o que acontece com a outra aposta?

- Como queiras.

Jillian apoiou-se num barril e ouviu o regozijo da multidão nos degraus. Estava em forma e tinha consciência disso. A sua sorte tinha mudado e não havia problema que não pudesse enfrentar.

Muitos cowboys e outros concorrentes já estavam reunidos detrás da rampa. Embora tudo parecesse muito natural, a emoção flutuava no ambiente. O cheiro do tabaco escapava das caixinhas metálicas que os homens guardavam, invariavelmente, no bolso traseiro direito das calças de ganga, e cheirava também ao óleo com que se engordurava o couro. Em seguida, ouviu o tinido metálico de esporas e arnês que indicava que todos estavam a verificar o equipamento. Primeiro, seria a corrida de cavalos. Quando ouviu que a anunciavam, Jillian levantou-se e foi até à cerca para olhar.

- É estranho não participares - comentou Aaron.

Ela moveu a cabeça com o propósito de a esfregar contra o seu braço. Essa era uma das escassas demonstrações de afecto que o desarmavam por completo.

- Demasiada energia - respondeu Jillian a rir-se.

- Estou a dedicar o dia a vadiar. Reparei que estavas na lista para montar potros selvagens - inclinou o chapéu para trás e levantou a vista para ele.

Ele sorriu e encolheu os ombros.

- Estás preocupada comigo? Jillian soltou uma gargalhada.

- Tenho um bom tratamento para baixar a inflamação das nódoas negras que te vão aparecer.

Ele percorreu-lhe a coluna com a ponta de um dedo.

- A ideia é tentadora. Encarregar-me-ei de fazer umas quantas, mas sabes - apertou-a entre os seus braços com um gesto que era carinhoso e possessivo ao mesmo tempo - que não me custaria nada esquecer isto tudo - baixou a cabeça e mordiscou-lhe os lábios, alheio ao que acontecia à sua volta. - O rancho não fica assim tão longe e não está lá ninguém. Num dia tão bonito... Estou a começar a pensar em dar um mergulho de cabeça.

- A sério? - ela inclinou a cabeça para trás para poder olhá-lo nos olhos.

- Hum...! A água deve estar fresquinha...

Ela fez um barulho com a língua e pôs os lábios sobre os dele.

- Depois da apanha do novilho com laço disse, e afastou-se.

Jillian preferia os degraus aos estábulos. Ali ouvia os homens falarem de outros rodeos e outras corridas enquanto verificava o seu equipamento. Viu uma menina pequena vestida com um fato de camurça que ficava muito nervosa antes da corrida de barris. Um velho amassava um pedaço de resina na palma da luva com infinita paciência. Uma ligeira brisa levou até ela o cheiro da carne no churrasco.

Não, pensou, a sua família nunca poderia entender o atractivo daquilo. Cheiros simples, conversas simples. Estaria fora do seu ambiente, tal como sempre acontecera com ela antes, quando ia à ópera com a sua mãe. Era em ocasiões como aquela, quando outros a aceitavam tal como era, quando podia esquecer os momentos de pânico que sentira até ser adulta. Não, não era que carecesse de algo, como sempre achara. Simplesmente, era diferente.

Viu o concurso para montar touros, estremecida pelo perigo e animando os participantes, que se mediam contra animais de uma tonelada. Havia quedas, assobios e palhaços que tornavam divertido aquele espectáculo terrorífico. Meio a sonhar, inclinou-se sobre uma cerca no momento em que um touro sem cavaleiro bufava e investia na arena, para finalmente descarregar o seu mau feitio contra um palhaço que se protegia dentro de um barril. As pessoas falavam muito alto, mas ela distinguia perfeitamente a voz de Aaron, que conversava com Gil ali por perto. Apanhava partes da conversa sobre o potro alazão que calhara a Aaron. Muito agressivo. Gostava de tentar desmontar o cavaleiro escoiceando em círculos. Relaxada, Jillian pensou que gostaria de ver Aaron agarrado, com unhas e dentes, ao alazão e ganharia outros cinquenta dólares.

Pensou que o dia fora feito para ela, para o desfrutar, quente, ensolarado e sem exigências. Talvez já alguma vez se tivesse sentido assim relaxada, assim feliz, mas custava-lhe recordar quando sentira ambas as sensações com tanta intensidade, e propôs-se a saboreá-las.

Então, aconteceu tudo tão depressa que não teve tempo para pensar, apenas para reagir.

Ouviu a gargalhada infantil quando estava a esticar os músculos das costas. Sem saber muito bem o que se passava, viu algo vermelho, que corria como uma bala, introduzir-se sob as tábuas da cerca e cair do outro lado. Mas depois viu o menino dentro da arena. Estava tão perto dela que lhe roçava nas calças de ganga enquanto gatinhava atrás da sua bola. Antes que a mãe tivesse tempo de gritar, Jillian já saltara a cerca. Pareceu-lhe ouvir a voz de Aaron, entre furioso e aterrorizado, que dizia o seu nome.

Pelo canto do olho, viu que o touro se virava para eles. O animal, excitado e nervoso pela corrida, olhou para ela, mas ela não parou. Manteve o sangue-frio.

Não ouvia o caos dos espectadores, que se puseram em pé de um salto, nem a confusão que se criara nos degraus quando se pôs a correr atrás do menino. Sentiu como a terra tremia quando o touro carregou em direcção a eles. Não podia perder tempo a chamar o menino. Guiada pelo instinto, lançou-se sobre este e deixou que o impulso a projectasse para a frente. Caiu com uma pancada seca em cima do menino, que os deixou a ambos sem ar. Quando o touro lhes roçou, Jillian sentiu uma baforada de ar quente.

”Não te mexas!”, ordenou a si mesma, esmagando o menino por debaixo dela quando este começou a contorcer-se. Não respires. Podia ouvir gritos perto dela, mas não se atrevia a levantar a cabeça para olhar. Não lhe dera uma cornada. Engoliu em seco ao pensar naquilo. Não, se lhe tivesse dado uma cornada, já o teria sentido. E não a pisara. Ainda.

Alguém estava a dizer insultos e palavrões iradamente. Jillian fechou os olhos e perguntou-se se seria capaz de se levantar. O menino estava a começar a chorar e ela tentou abafar o som do choro com o seu corpo.

Quando sentiu que umas mãos se introduziam sob as suas axilas, começou a lutar.

- Sua idiota!

Jillian reconheceu a voz e relaxou. Deixou que a levantasse e a pusesse de pé. Teria gaguejado se ele não a tivesse segurado com tanta firmeza.

- O que pretendias?

Olhou para Aaron, que estava muito pálido e a abanava.

- Estás bem? Estás magoada?

- O quê?

Ele voltou a abaná-la porque as mãos não paravam de lhe tremer.

-Bolas, Jillian!

A cabeça de Jillian ainda andava às voltas, um pouco como quando tentara mascar tabaco daquela vez. Demorou um momento para se aperceber de que alguém estava a agarrar-lhe uma mão. Abstraída, ouviu como a mãe lhe expressava uma gratidão envolta em lágrimas enquanto o menino soluçava aos gritos com a cara enterrada na camisa do pai. O menino dos Simmon, pensou enjoada. O menino que costumava brincar no pátio do rancho enquanto a sua mãe estendia a roupa e o seu pai trabalhava.

- Estás bem, Joleen - conseguiu dizer, embora a sua boca não quisesse obedecer à ordem do seu cérebro. - Talvez um pouco magoado.

Aaron fê-la calar-se e arrastou-a para a tirar dali. Ela tinha a impressão difusa de muitas caras e a raiva de Aaron, que fervia.

- -... vou levar-te ao posto de primeiros-socorros.

- O quê? - voltou a dizer ao ouvir a voz de Aaron, que penetrava finalmente na sua mente.

- Estou a dizer que vou levar-te ao posto de primeiros-socorros - cuspiu, mais do que pronunciar, as palavras enquanto se aproximavam da cerca.

- Não, estou bem - a luz tornou-se cinzenta por um instante e Jillian abanou a cabeça.

- Assim que estiveres bem, vou apertar-te o pescoço.

Ela retirou a mão de um puxão e endireitou os ombros.

- Disse que estou bem - repetiu. Depois a terra inclinou-se e levantou-a no ar.

A primeira coisa que sentiu foi a comichão da erva na palma da mão. Depois, um tecido frio, mais do que húmido, molhado, sobre a cara. Gemeu com aborrecimento quando a água começou a escorrer-lhe pelo pescoço. Abriu os olhos, mas via tudo impreciso, luz e sombras. Fechou-os e tentou focar.

Primeiro viu Aaron, horrorizado e pálido. Ajudou-a a endireitar-se um pouco e levou um copo aos seus lábios. Depois Gil, que mudava continuamente o peso de perna e fazia virar o chapéu entre as mãos.

- Não se passou nada - dizia a Aaron com um tom de voz que tentava convencê-los a todos, incluindo a ele. - Foi um desmaio, mais nada. Às vezes, acontecem estas coisas às mulheres.

- O que sabes tu de mulheres? - murmurou ela, e, em seguida, reparou que o que Aaron segurava nos seus lábios não era um copo, mas uma garrafa de brandy que limpava com eficácia a nebulosidade que a rodeava. - Não desmaiei.

- Pois foi uma imitação perfeita! - exclamou Aaron.

- Deixem a rapariga respirar - a tranquilidade de Karen Murdock, a sua voz elegante, tiveram o efeito mágico de fazer com que as pessoas que a rodeavam recuassem. Karen penetrou entre a multidão e ajoelhou-se ao seu lado. Fez um barulho com a língua, retirou-lhe o pano molhado da testa e torceu-o para escorrer o excesso de água. - Os homens exageram sempre. Bom, Jillian, causaste sensação!

Fazendo uma careta, Jillian sentou-se.

- A sério? - apertou a testa contra os joelhos por um momento até ter a certeza de que não iria começar a ver tudo à roda novamente. - Custa-me a acreditar que desmaiei - balbuciou.

Aaron soltou um palavrão e bebeu um gole da garrafa de brandy.

- Aquele touro quase a matou e ela está preocupada com o facto de desmaiar poder ter afectado a sua imagem.

- Olha, Murdock...

- Eu, no teu lugar, deixava estar - avisou-a ele e, com meticulosidade, tapou a garrafa. - Se conseguires pôr-te de pé, levo-te a casa.

- Claro que consigo pôr-me de pé - replicou ela. - E não vou para casa.

- Tenho a certeza de que já te sentes bem - começou a dizer Karen, e lançou um olhar de advertência ao seu filho. Para um homem inteligente, pensou Karen, Aaron mostrava uma considerável falta de bom-senso. Quando o amor aparecia, a sensatez esfumava-se. - O problema é que, se ficares, vais ter de suportar que toda a gente desfile diante de ti para te felicitar pessoalmente - lançou um olhar à multidão que os rodeava. - És a heroína da semana - sorriu ao ver que as suas palavras faziam efeito.

A resmungar, Jillian levantou-se.

- Está bem - as feridas começavam a doer-lhe. Em vez de o admitir, sacudiu o pó das calças. Não é preciso tu ires também - disse a Aaron, muito tensa. - Sou perfeitamente capaz de...

Os dedos de Aaron fecharam-se sobre o seu braço e puxou-a para a tirar dali.

- Não sei o que se passa contigo, Murdock disse entredentes, - mas não vou aguentar.

- Se fosse a ti, deixaria as coisas tranquilas por enquanto - as pessoas afastavam-se à medida que avançavam. Se alguém tivera a intenção de se dirigir a Jillian, o olhar desafiador de Aaron dissuadira-o imediatamente.

Depois de abrir a porta da sua carrinha de um puxão, Aaron empurrou-a para o interior de maneira não muito carinhosa. Jillian puxou o cordão do chapéu, que estava pendurado nas suas costas, agarrou-o pela aba com ambas as mãos e enterrou-o. Depois cruzou os braços e dispôs-se a aguentar a hora de caminho em absoluto silêncio. Quando Aaron se sentou ao volante, apercebeu-se de que não só perderia a apanha de novilho com laço, como também o seu direito a pavonear-se da vitória do seu touro durante o churrasco que aconteceria à noite. A injustiça da situação indignou-a.

E porque estava tão zangado?, perguntou-se com toda a justificação. Não fora ele quem morrera de medo, quem torcera o joelho e depois sofrera a humilhação de desmaiar em público. Tocou no cotovelo, os arranhões tinham-no deixado em carne viva. Afinal, provavelmente salvara a vida ao menino. Levantou o queixo enquanto o braço começava a doer-lhe com força. Então porque se comportava como se ela tivesse cometido um crime?

- Um dia, vais levantar o queixo assim e alguém vai agarrar-te por ele.

Ela virou a cabeça lentamente para olhar para ele.

- Posso saber o que se passa, Murdock?

- Não me provoques - ele carregou no acelerador até o velocímetro atingir os cento e vinte quilómetros por hora.

- Olha, não sei qual é o teu problema - disse ela com firmeza, - mas dado que tens um, porque não o dizes de uma vez? Não estou com humor para aguentar mais comentários desagradáveis.

Desviou a carrinha tão bruscamente para a borda que ela se viu atirada contra a porta. Quando estava a recompor-se do empurrão, ele já saíra do veículo e caminhava a passos largos por um campo coberto de ervas daninhas. Jillian saiu da carrinha, esfregando o braço dorido, e foi atrás dele.

- O que raios se passa? - agarrou-o por uma manga, o aborrecimento dificultava-lhe a respiração. - Se queres conduzir como um louco, vou procurar alguém que me leve ao rancho.

- Faz o favor de te calares! - afastou-se dela. Distância, disse para si mesmo. Precisava de um pouco de distância para recuperar a calma. Na sua mente, ainda via aqueles chifres a roçarem no corpo de Jillian. Se tivesse falhado com o laço, o touro... Não era capaz de pensar no que poderia ter acontecido. Tinham sido necessários três laços e a força de vários homens para afastar o animal dos corpos estendidos no chão. Tinha estado prestes a perdê-la. Num segundo, poderia tê-la perdido.

- Não me mandes calar - Jillian apareceu diante dele e agarrou-o pela camisa. O chapéu caiu para trás quando levantou a cara para ele e começou a descarregar a sua raiva. - Acabou-se, não vou continuar a aguentar-te. Não sei como te deixei chegar tão longe, mas já chega. Volta a entrar para a carrinha e vai-te embora para onde quiseres. Por mim, vai para o inferno!

Deu meia volta para partir, mas antes que pudesse fazê-lo, ele agarrou-a e apertou-a entre os seus braços. Ela debateu-se e começou a gritar, mas ele agarrou-a ainda com mais força. Quando deixou de resistir, Jillian apercebeu-se de que estava a tremer e que a sua respiração era acelerada e ofegante. Estava dominado pela emoção, não pelo aborrecimento. Ela acalmou-se e esperou. Sem ter muita certeza de porque precisava que o consolasse, acariciou-lhe as costas.

- Aaron?

Ele abanou a cabeça e afundou a cara no seu cabelo. Nunca estivera tão perto de se ir abaixo. Não era de distância que precisava, descobriu, mas daquilo. Senti-la entre os seus braços, sã e salva.

- Meu Deus, Jillian, sabes o que me fizeste?

Desconcertada, apoiou uma face no seu peito, ali onde o batimento do seu coração era mais forte, e continuou a acariciar-lhe as costas.

- Desculpa - disse.

Esperava que fosse suficiente, embora ainda não soubesse o que fizera.

- Estava muito perto, muito perto. Mais alguns centímetros e... Ao princípio não tinha a certeza se não te teria dado uma cornada.

O touro, disse para si Jillian, de repente. Portanto não era que estivesse zangado, mas tivera medo, muito medo. Embargou-a uma sensação quente e doce.

- Não - murmurou. - Não me magoou. De perto não era assim tão terrível como, certamente, parecia de fora.

- Como? - segurou-lhe a cara entre ambas as mãos e obrigou-a a olhar para ele. - Eu estava a apenas a alguns passos quando atirei o primeiro laço. Já estava meio louco. Mais alguns segundos e ter-te-ia levantado do chão com uma investida.

Jillian ficou a olhar fixamente para ele e engoliu em seco.

- Não... Não sabia.

Aaron viu que as suas faces perdiam a cor que tinham recuperado com o aborrecimento. ”E tinha de to dizer” pensou com fúria. Tomou-lhe ambas as mãos, levou-as aos lábios e enterrou a boca numa das palmas e depois na outra.

- Já passou - disse com mais domínio de si mesmo. - Acho que a minha reacção foi exagerada. Não é fácil ver uma coisa assim - sorriu porque viu que ela precisava. - Eu não teria gostado que tivesses acabado cheia de buracos. Jillian relaxou um pouco e sorriu.

- Eu também não. Na verdade, acabei com algumas feridas das quais não me sinto nada orgulhosa.

Ainda a segurar-lhe nas mãos, ele inclinou-se para a frente e beijou-a com tanta delicadeza que ela sentiu que a terra se movia novamente sob os seus pés. Jillian apercebeu-se vagamente de que havia algo diferente, algo... mas escapou-lhe antes de ser capaz de precisar o que era.

Aaron afastou-se dela. Sabia que estava a chegar a altura em que teria de lhe dizer quais eram os seus sentimentos, embora ela não estivesse preparada para o ouvir. Enquanto se dirigia para a carrinha, decidiu que, dado que só iria abrir o seu coração para uma mulher uma vez na sua vida, fá-lo-ia como era devido.

- Vai tomar um banho quente - disse a Jillian enquanto a ajudava a entrar na carrinha. - E depois faço-te o jantar.

Jillian recostou-se no banco.

- Afinal, isto de desmaiar não é assim tão mau.

 

Quando entraram no pátio do rancho, Jillian decidira que, provavelmente, lhe agradaria deixar-se mimar por algumas horas. Até onde recordava, nunca ninguém lhe dispensara muitos cuidados. Fora uma menina forte, com uma boa saúde. Quando ficava doente, o seu pai prescrevia-lhe um tratamento adequado. Ela apercebera-se rapidamente de que, quanto menos se queixasse, menos probabilidades havia de a agulha sair da mala preta. Clay sempre considerara que os galos e o sangue faziam parte da rotina de todos os dias. Lavar-se bem e voltar para o trabalho, isso era tudo.

Portanto, pensou, seria uma experiência muito interessante que os seus arranhões e feridas recebessem consolo. Em particular, se Aaron a beijasse como o fizera à beira da estrada... Daquele modo tão suave e carinhoso que fazia com que a sua cabeça andasse à roda.

Talvez não tivessem à sua volta o ruído, as luzes e a música da feira, mas podiam criar o seu próprio fogo-de-artifício, sozinhos, no Utopia.

Todos os edifícios estavam tranquilos: os barracões, os estábulos, as quadras... Em vez do ruído e da animação que eram habituais ao final da tarde, estendia-se uma paz absoluta em muitos acres à volta. Os animais que não tinham levado para a feira pastavam à sua vontade. Passariam várias horas antes que alguém regressasse para o Utopia.

- Acho que nunca tinha estado aqui sozinha murmurou Jillian quando Aaron parou a carrinha. Permaneceu sentada e absorveu a paz e a tranquilidade do momento. Pensou que podia pôr as mãos à frente da boca em jeito de megafone e gritar, que ninguém a ouviria.

- Que estranho, até me sinto diferente! Há sempre gente à volta - saiu da carrinha e ouviu o eco do ruído que a porta fez ao fechar-se de repente. - Alguém nos barracões ou na sala de jantar, ou em algum dos outros edifícios. A mulher de algum trabalhador a estender a roupa, a trabalhar nos jardins... Nunca se pensa nisso, mas é como uma cidade em miniatura.

- Auto-suficiente, independente - agarrou-lhe numa mão, a pensar que aquelas palavras também eram muito adequadas para descrever Jillian. Eram duas das razões pelas quais se sentira atraído para ela.

- É assim que tem de ser, não é? É muito fácil ficar-se isolado. Uma tempestade e... Além disso, é o que o torna tão especial - embora não compreendesse o sorriso que Aaron lhe lançou, ela também sorriu. - Estou encantada de ter tantos trabalhadores que se instalaram aqui - acrescentou. - É difícil depender dos que vêm de passagem - Jillian observou o pátio do rancho sem entender a sua hesitação em entrar em casa. Era como se sentisse falta de alguma coisa. Encolheu os ombros e atribuiu a sua inquietação à solidão do lugar, mas sem se aperceber, já estava a examinar outra vez os cantos todos.

Aaron olhou para ela e viu que tinha o sobrolho franzido e cara de concentração.

- Passa-se alguma coisa?

- Não sei... Tenho a sensação de que sim - voltou a encolher os ombros e virou-se para ele. - Talvez esteja a tornar-me apreensiva - levantou um braço e inclinou-lhe a aba do chapéu um pouco para trás. Gostava de como lhe deixava a cara na sombra, acentuando assim o ângulo do queixo e fazendo com que os seus olhos parecessem ainda mais escuros. - Não disseste qualquer coisa de me esfregares as costas enquanto eu tomava banho?

- Não, mas tenho a certeza de que poderias convencer-me.

Completamente de acordo, ela refugiou-se entre os seus braços. Cheirava a resina e a couro, pensou. - Já te disse como estou dorida?

-Não.

- É que eu não gosto de me queixar... - aninhou-se contra ele.

- Mas...? - apontou ele com um sorriso.

- Bom, agora que o dizes, há um ou dois pontos que me ardem um pouco.

- Queres que lhes dê um beijinho para melhorar? Jillian suspirou enquanto lhe esfregava docemente a orelha com os lábios.

- Se não for pedir muito...

- Sou muito caridoso - disse, e depois empurrou-a suavemente para os degraus do alpendre. Naquele momento, Jillian lembrou-se. Deu um grito e pôs-se a correr pelo pátio do rancho.

- Jillian! - Aaron seguiu-a, dizendo palavrões. Meu Deus, como podia ter-se esquecido! Jillian correu em direcção à cerca do curral e inclinou-se sobre ela. Vazio. ”Vazio!”. Contraiu os dedos das mãos até fechar os punhos com força enquanto via o biberão que deixara num canto, à sombra. A água do bebedouro brilhava sob a luz do sol. A ração que lhe deixara continuava intacta.

- O que se passa?

- Baby - murmurou, batendo com a mão na cerca. - Levaram Baby - começara a falar muito tranquila, mas cada vez se mostrava mais agitada.

- Entraram no pátio do meu rancho, directamente, e roubaram-mo.

- Talvez um dos teus homens o tenha fechado novamente no estábulo.

Ela limitou-se a abanar a cabeça e continuou a bater com a mão na cerca.

- Não bastava as quinhentas cabeças - murmurou. - Tinham de vir aqui e roubar-me na minha própria casa. Devia ter aceitado a oferta de Joe, ele ofereceu-se para ficar. Eu devia ter ficado.

- Vamos, vamos procurar dentro do estábulo. Ela olhou para ele com olhos inexpressivos.

- Não está no estábulo.

Ele teria preferido que ficasse raivosa, ou começasse a chorar, a ver nos seus olhos aquele olhar tão... resignado.

- Talvez não, mas vamos certificar-nos. Depois veremos se levaram mais alguma coisa antes de telefonarmos para o xerife.

- O xerife - Jillian riu-se sem vontade e, com o olhar perdido, ficou a olhar para o curral vazio. O xerife.

- Jillian... - Aaron rodeou-a com os braços, mas ela escapou imediatamente.

- Não, desta vez não me vou abaixo - a voz tremia-lhe um pouco, mas os seus olhos mostravam resolução. - Não vão conseguir.

Seria melhor que fosse, pensou Aaron. Estava pálida, mas ele já conhecia aquela expressão. Não havia volta atrás.

- Vê tu no estábulo - sugeriu, - eu vou ver nas quadras.

Jillian seguiu as suas instruções, embora soubesse que era inútil. O estábulo de Baby estava vazio. Olhou para as bolinhas de feno e pó que flutuavam no feixe de luz que se filtrava pela porta. Alguém levara a cria. Quem? Fechou os punhos com força. De alguma forma, de algum modo, descobriria o seu nome. Virou-se sobre os calcanhares e saiu para a rua. Embora ardesse de impaciência, esperou até Aaron atravessar o pátio e chegar até ela. Não era preciso dizer nada. Dirigiram-se juntos para a casa.

Não se iria deixar vencer, pensou Aaron com admiração e preocupação. Sim, continuava pálida, mas a sua voz soou firme e clara quando telefonou para o xerife. Resignada, sim, estava resignada com o que acontecera, mas não considerava que o assunto estivesse fechado.

Aaron recordou a forma como acariciara o bezerro quando era ainda um recém-nascido, a maneira como os seus olhos se adoçavam quando falava com ele. Era um erro transformar um dos animais da manada em animal de estimação, mas às vezes acontecia. Agora estava a pagar por isso.

Com ar pensativo, começou a fazer café. Considerava que quem quer que tivesse roubado o bezerro do Utopia cometera um erro. Para o transformar em bifes? Mal compensaria o risco e o esforço. Além disso, que rancheiro da zona compraria um Hereford jovem tão facilmente identificável? Quem quer que o tivesse roubado era muito ambicioso ou muito estúpido. Em qualquer dos dois casos, seria fácil apanhá-lo.

Jillian apoiou-se contra a parede da cozinha e continuou a falar ao telefone com voz tranquila. Ele apercebeu-se de que desejava protegê-la, defendê-la. Ela agarrou na chávena de café que lhe oferecia com um breve assentimento e continuou a falar. Ele abanou a cabeça e recordou-se que já deveria saber que Jillian não aceitaria nada parecido. Bebeu o seu café enquanto olhava para a rua pela janela da cozinha e se perguntava como fazia um homem quando amava uma mulher que tinha mais integridade do que a maioria dos homens.

- Fará o que puder! - exclamou Jillian enquanto desligava o telefone com brusquidão. Vou oferecer uma recompensa exclusivamente por Baby - bebeu metade do café que a chávena continha, simples e forte. - Amanhã irei falar novamente com a Associação de Rancheiros. Vou pressioná-los. As pessoas têm de se aperceber de que isto não vai acabar no Utopia - cravou o olhar dentro da chávena e acabou o café. - Não deixo de repetir a mim própria que não é nada pessoal, inclusive quando encontrámos os ossos e as peles no desfiladeiro, mas desta vez passaram das marcas, Aaron. A arrogância deixa pistas.

Havia energia na sua voz, determinação, e ele olhou para ela e sorriu.

- Tens razão.

- Porque sorris?

- Estava a pensar que se os ladrões te vissem agora, iriam pôr-se a correr e só parariam quando saíssem dos limites do condado.

Os lábios de Jillian curvaram-se. Nunca teria pensado que fosse sorrir tão cedo.

- Obrigada - fez-lhe um gesto com a chávena e depois pousou em cima do fogão. - Parece-me que, ultimamente, te digo esta palavra demasiadas vezes por dia.

- Não precisas de a dizer. Tens fome?

- Hum... - levou a mão ao estômago e ficou a pensar por um momento. - Não sei.

- Vai tomar banho, eu vou fazer alguma coisa para comermos.

Jillian foi até ele, deslizou os braços à volta da sua cintura e apoiou a cabeça no seu peito. Como podia conhecê-la tão bem? Como podia saber que precisava de estar sozinha por um momento para pôr em ordem as suas ideias e os seus sentimentos?

- Porque és tão bom comigo? - murmurou. Aaron soltou uma gargalhada breve e afundou a cara no seu cabelo.

- Só Deus sabe. Vai limpar essas feridas.

- Está bem - mas sentiu a necessidade urgente de lhe dar um abraço forte e apaixonado antes de sair.

Teria desejado saber expressar melhor a sua gratidão. Enquanto subia para o primeiro andar, desejou ser mais expedita com as palavras. Se fosse, poderia dizer-lhe o quanto significava para ela que não lhe tivesse oferecido mais do que, com a sua maneira de ser, lhe era aceitável. O seu apoio naquele dia fora firme, mas não intrusivo, e estava a dar-lhe tempo para estar a sós sem a deixar sozinha. Talvez tivesse demorado demasiado tempo para descobrir quão especial Aaron era, mas já se apercebera. Não era algo que fosse esquecer.

Conforme tirava a roupa, ia descobrindo que tinha mais contusões e feridas do que achava. Abriu a torneira da água quente até esta começar a sair quase a ferver. Algumas feridas dar-lhe-iam algo concreto em que se concentrar. Preferia aquelas às feridas que sentia no seu interior. Seria uma tolice pensar que era como se tivesse traído o seu avô, mas não conseguia livrar-se daquela sensação. Este confiara-lhe uma coisa e ela não fora capaz de cuidar dela. Ter-se-ia sentido melhor se Clay ainda estivesse ali.

Com uma careta de dor, entrou na banheira. A pele do cotovelo protestou, mas ela não fez caso. Um dos seus homens?, pensou, fazendo uma careta. Era muito possível. Levar uma carrinha até ao curral, carregar o bezerro e desaparecer.

Ela mesma começaria por fazer algumas averiguações, com discrição. Roubar o bezerro teria demorado algum tempo. Talvez conseguisse descobrir quem se ausentara da feira. Talvez os ladrões fossem suficientemente confiantes para se atreverem a fazer gastos extra, se acreditassem estar a salvo, e então... Então veriam, pensou enquanto relaxava dentro de água.

Coitado de Baby! Ninguém perderia tempo a coçar-lhe as orelhas nem a falar com ele. Afundou-se mais na água até a sua mente espairecer.

Passou cerca de uma hora até descer novamente para a cozinha. Livrara-se do cansaço muscular e de quase toda a depressão. Deprimida, não poderia agir. Sentiu um cheiro aromatizado e o seu estômago começou a fazer barulho.

Quando entrou na cozinha, tinha o nome de Aaron na ponta da língua, mas estava vazia. O conteúdo de uma caçarola que fervia em cima do fogão atraiu-a irresistivelmente. Levantou a tampa, fechou os olhos e sentiu o cheiro. Chili, denso, aromático... Sentiu água na boca. Não teria de pensar nem dois segundos se lhe perguntasse naquele momento se tinha fome.

Agarrou numa colher e começou a mexer o guisado. Podia prová-lo...

- A minha mãe costumava bater-me na mão quando me via a fazer isso - comentou Aaron.

Jillian deixou cair a tampa com estrépito.

- Bolas, Murdock! Pregaste-me um susto de...

- virou-se e viu o ramo de flores silvestres que segurava na mão.

Alguns homens teriam parecido tolos, ali parados, com umas flores de cores vivas entre as mãos curtidas pelo trabalho e os elementos. Outros teriam tido um aspecto ridículo. Aaron não parecia nenhuma das duas coisas. Quando lhe sorriu, algo deu um salto no peito de Jillian.

Parecia perplexa. Não era que isso lhe importasse, mas não era muito habitual surpreender uma mulher como Jillian Baron. Enquanto olhava para ele, Jillian cruzou as mãos atrás das costas. Ele arqueou um sobrolho. Se tivesse sabido antes que poderia pô-la nervosa com um ramo de flores silvestres, teria arrancado um campo inteiro muito antes.

- Sentes-te melhor? - perguntou e dirigiu-se lentamente para ela.

Jillian apoiou-se contra a bancada antes de se ter apercebido de que realizara aquele movimento defensivo.

- Sim, obrigada.

Ele olhou fixamente para ela, muito sério, mas os seus olhos sorriam.

- Passa-se alguma coisa?

- Não. O chili cheira muito bem.

- Aprendi a fazê-lo num dos acampamentos há alguns anos - inclinou a cabeça e beijou-lhe os cantos dos lábios. - Não queres as flores, Jillian?

- Sim, eu... - apercebeu-se de que estava a apertar os dedos das mãos com tanta força que começavam a doer-lhe. Zangada consigo mesma, relaxou e agarrou as flores que Aaron lhe oferecia. São muito bonitas.

- O teu cabelo cheira assim - murmurou ele, e viu que ela olhava para ele com cautela. Inclinou a cabeça para um lado e observou-a. - Já te tinham oferecido flores?

Não desde há alguns anos, apercebeu-se Jillian. Desde... os ramos de flores com laços vistosos e palavras doces. Apercebeu-se de que estava a fazer uma figura ridícula e encolheu os ombros.

- Rosas - disse, despreocupadamente. - Rosas vermelhas.

Algo no seu tom de voz pô-lo de sobre aviso. Enrolou a ponta de um caracol à volta dos dedos com delicadeza. Era da cor do fogo e parecia seda.

- Muito convencional - limitou-se a dizer Aaron. - Demasiado.

Algo tremeu no interior de Jillian: certeza, precaução, necessidade... Com um suspiro, olhou para as flores que tinha na mão.

- Noutra época, há muito tempo, eu pensava que também poderia ser convencional.

Ele puxou-lhe o cabelo para baixo até que ela levantou a cara para olhar para ele.

- Era isso que desejavas?

- Nessa época, eu... - interrompeu-se, mas havia algo nos olhos de Aaron que exigia uma resposta. - Sim, teria tentado.

- Estavas apaixonada por ele? - não tinha a certeza de porque estava a mexer na ferida, mas não podia evitá-lo.

-Aaron...

- Estavas apaixonada?

Ela deixou escapar o ar lentamente. Mecanicamente, começou a encher uma jarra de água para pôr as flores.

- Era muito jovem. Parecia-se muitíssimo com o meu pai: firme, tranquilo, dedicado à sua profissão. O meu pai amava-me porque esse era o seu dever como pai, não porque o sentisse. Há uma grande diferença - o cheiro fresco e delicado das flores subiu até ela. - Talvez, de alguma forma, pensasse que se ele me aceitasse, seria como se o meu pai me aceitasse. Não sei, era bastante tola.

- Isso não é uma resposta - Aaron descobriu que os ciúmes podiam ser muito amargos.

- Acho que não tenho a certeza de qual é a resposta para a tua pergunta - moveu os ombros e enfiou as flores na jarra de vidro. - Podemos comer? - ficou muito tranquila quando lhe pôs as mãos sobre os ombros, mas não conseguiu resistir quando a virou.

Por um momento, temeu que dissesse algo amável, doce, que a abalasse por completo. Viu resquícios disso no seu olhar, de igual modo que ele viu que os olhos de Jillian mostravam apreensão Puxou-a para si e beijou-a

Ela compreendeu a turbulência dos seus sentimentos e deixou-se levar. Podia aceitar o desejo e a paixão sem medo de transgredir as suas próprias regras. Rodeou-o com os braços e abraçou-o com força. Os seus lábios procuraram-no. Se com o alívio viesse misturado um sentimento mais profundo, poderia convencer-se de que não era nada mais complicado do que a paixão.

- Come depressa - disse-lhe Aaron. - Estou a pensar em passar quatro horas a fazer amor.

- Não tínhamos comido já?

Ele fez um barulho com a língua e esfregou o nariz contra o pescoço de Jillian.

- Não, tu não. Quando preparo o jantar para uma mulher, espero que, pelo menos, coma deu-lhe uma palmada no rabo para a animar a fazer o que lhe dizia e afastou-se um pouco. - Tira as tigelas.

Jillian entregou-lhas e viu como as enchia com doses muito generosas.

- Cheira muito bem. Queres uma cerveja? -Sim.

Ela tirou duas do frigorífico e deitou o conteúdo em dois copos.

- Se alguma vez te cansares de ser rancheiro, podes trabalhar como cozinheiro no Utopia.

- É sempre um alívio saber que temos uma alternativa.

- Agora temos uma mulher como cozinheira continuou Jillian enquanto se sentava. - Os homens chamam-lhe tia Sally. Conquistou-os com os seus biscoitos... - calou-se para dar a primeira garfada. Uma onda de calor estendeu-se por todo o seu corpo. Engoliu e viu que Aaron sorria. - És generoso com a pimenta, eh?

- É o que distingue um homem de um miúdo. Achas demasiado picante?

Com desdém, ela comeu uma segunda garfada.

- Não há nada que não consiga comer de tudo o que possas preparar, Murdock.

Ele riu-se e continuou a comer. Jillian pensou que a primeira garfada lhe queimara a boca até às cordas vocais. Comeu com tanto entusiasmo como ele, refrescando-se de vez em quando com um gole de cerveja.

- A gente que vive na cidade não sabe o que perde - comentou ela enquanto raspava o fundo da tigela.

- Queres mais? - ofereceu-lhe ao ver como devorava o que restava.

- Não quero morrer - replicou ela. - Meu Deus, Aaron, uma dieta à base disto e tens uma perfuração no estômago garantida. Está muito bom.

- Quando era pequeno tínhamos um capataz mexicano - contou-lhe ele. - Nunca conheci nenhum homem que soubesse mais de gado do que ele. Passámos quase um Verão inteiro juntos no acampamento. Tens de provar as minhas omeletas de farinha de milho.

Aquele homem era uma caixinha de surpresas, disse para si Jillian enquanto apoiava os cotovelos na mesa e descansava o queixo entre as mãos.

- O que lhe aconteceu?

- Poupou o suficiente, voltou para o México e cria o seu próprio gado.

- O sonho inalcançável - murmurou Jillian.

- É muito fácil apostar o ordenado num jogo de póquer... e perder.

Jillian assentiu, mas os seus lábios esboçaram um sorriso.

- Tu jogas?

-Aguento algumas mãos. E tu?

- Clay ensinou-me. Temos de combinar para jogar um dia destes.

- Quando quiseres.

- Confio nas minhas habilidades como jogadora de póquer para conseguir resolver este assunto dos roubos.

Aaron viu que se levantava e começava a levantar a mesa.

- Como?

- As pessoas tornam-se descuidadas quando acham que estás disposta a dar-te como vencida. Cometeram um erro ao levar Baby, Aaron. Vou apanhá-los, sobretudo porque ninguém sabe que ando atrás deles. Estive a pensar em contratar um detective privado, custe o que custar. Prefiro pagar a permitir que continuem a acontecer roubos.

Ele ficou sentado por um momento a ouvir o correr da água no lava-loiça, um ruído quotidiano, caseiro.

- Como se vai repercutir tudo isto nas tuas contas, Jillian?

Ela virou a cabeça e olhou para ele por cima do ombro. Um olhar tranquilo, frio.

- Ainda consigo assumir o esforço.

Ele esforçou-se para não lhe oferecer ajuda económica, embora lhe custasse. Levantou-se e deu várias voltas pela cozinha até se colocar atrás dela.

- A Associação de Rancheiros poderá ajudar-te.

- Mas, para isso, teria de lhes contar tudo e quanto menos gente estiver ao corrente, mais eficaz será o trabalho do detective.

- Quero ajudar-te.

Comovida, Jillian virou-se e abraçou-o.

- Já me ajudaste. Nunca o esquecerei.

- Quando aceitaste a minha ajuda antes tiveste de te ver de mãos atadas.

Ela riu-se e levantou a cara para ele.

- Não sou assim tão má.

- Pior - replicou ele. - Se te oferecesse alguns homens para patrulhar as tuas terras...

-Aaron...

- Vês? - beijou-a antes que ela pudesse continuar a protestar. - Eu mesmo posso trabalhar para ti até que tudo esteja resolvido.

- Não posso permitir isso.

Ele beijou-a novamente com força.

- Sou eu quem vai ter de te ver preocupada e a lutar - disse enquanto as suas mãos começavam a descer. - Sabes como isso me afecta?

Ela tentava concentrar-se no que lhe dizia, mas a boca de Aaron reclamava toda a sua atenção. O beijo, picante, com sabor a especiarias, deixou-a sem respiração, mas agarrou-se a ele a pedir mais.

Cada vez que lhe tocava, o desejo dominava-a numa questão de segundos. Nunca conhecera nada tão libertador ou que a tornasse prisioneira com tanta facilidade. Teria lutado se soubesse como. Não lhe restava outro remédio se não aceitar aquela prisão, tal como aceitava o céu aberto e o vento. Era o único homem que podia consegui-lo.

Havia algo que podia fazer por ela, pensou Aaron. Fazer-lhe esquecer os problemas e as tristezas, nem que fosse temporariamente. Mesmo assim, ele sabia bem, se tivesse escolha, Jillian teria mantido uma certa distância, também naquele aspecto. Fora magoada uma vez e ainda não confiava completamente nele. A frustração que aquela ideia lhe produziu fez com que a sua boca se comportasse com maior rudeza e as suas mãos se mostrassem prementes. Jillian só era completamente sua num aspecto. Levantou-a nos braços e silenciou os seus protestos.

Jillian tinha consciência de que estava a levá-la. Algo no seu interior se rebelava, e no entanto... Não a levava para nenhum lugar para onde ela não quisesse ir de bom grado. Talvez ele precisasse daquilo, ”romantismo” fora o que lhe chamara numa ocasião. O romantismo assustava-a, tal como as flores. Era muito fácil mentir à luz das velas, muito fácil enganar com flores e palavras doces. E já não tinha a certeza de que as defesas que a protegiam continuavam a existir. Pelo menos, à frente dele.

- Desejo-te - as palavras surgiram dos seus lábios trémulos, colados aos de Aaron.

Este tê-la-ia levado para a cama, mas estava demasiado longe. Tê-la-ia amado devagar, lentamente, como aquela mulher merecia, mas estava demasiado ansioso por a tornar sua. Com a sua boca ainda unida à de Jillian, deixou-se cair com ela em cima do sofá e deixou que a paixão os devorasse.

Ela entendeu o seu desespero. Era sincera e real. Não podia haver dúvida do frenesi que domi- nava a sua boca e o apresso que mostravam os seus dedos ao tocar-lhe. O desejo não tinha sombras. Podia senti-lo a pulsar nele tanto como nela. Os palavrões de Aaron quando a roupa resistia faziam-na rir-se. Ela tornava-o trôpego, era o maior elogio que podia fazer-lhe.

Ele mostrava-se feroz e, quando finalmente conseguiu tocar-lhe sem a barreira do tecido a interpor-se entre os dois, a cabeça de Jillian começou a andar à roda. Deixou-se ir. A cada carícia frenética e a cada beijo insaciável, afastava-se mais e mais do mundo exacto e prático que ela criara à sua volta. Em tempos, procurara a solidão e recorria à velocidade quando desejava sentir-se livre. Naquele instante, Aaron era tudo o que precisava.

Sentiu o roçar do seu cabelo no ombro nu e saboreou aquela sensação tão simples. Provocava-lhe uma doçura que fluiu dentro dela até que o ardor da boca de Aaron despertou novamente a paixão. Com ele apercebera-se de que era possível ter as duas coisas. Só com ele reconhecera a sua própria necessidade de ter ambas. Aquela revelação, tal como a paixão que a dominava, fê-la gemer.

Sabia o entregue que estava, teria ideia do incrivelmente excitante que era? Aaron tinha de lutar contra a necessidade de a possuir rapidamente, implacavelmente, assim como estavam, meio despidos. Nenhuma mulher o fizera perder o controlo daquele modo. Um olhar, um toque... e tornava-o seu por completo. Como era possível que ela não se apercebesse?

O corpo de Jillian escorregava sob as suas mãos, fluido como a água, embriagador como o vinho. Os seus lábios tinham o toque da seda e a descarga de uma corrente eléctrica. Como era possível que uma mulher não tivesse consciência daquela combinação mortal?

Para recuperar o fôlego, ele levou os lábios ao seu pescoço e escondeu-se ali. Aspirou o cheiro do banho que tomara, um cheiro feminino subtil que subsistia ali, à espera de seduzir o amante. Então lembrou-se das feridas. Abanou a cabeça para tentar elucidar a sua mente.

- Estou a magoar-te.

- Não - ela puxou-o novamente para si. - Não, a sério. Não sou assim tão frágil, Aaron.

- Não? - levantou a cabeça para poder ver a sua cara.

O perfil delicado, a pele de veludo que continuava a ser suave mesmo depois de um dia ao sol.

A fragilidade que surgia e desaparecia no seu olhar com a palavra indicada, a carícia apropriada.

- Às vezes, sim - murmurou. - Deixa-me mostrar-te.

-Não...

Apesar dos seus protestos, beijou-a suavemente nos lábios, com muita doçura e de maneira tranquilizadora. Aquilo não fez diminuir a paixão, apenas a reteve enquanto lhe mostrava a magia de um simples beijo. Como se os seus olhos nunca mais a fossem ver, passou-lhe os dedos pelo rosto e estes desenharam a curva da maçã do rosto e desceram pelo perfil magro do queixo.

Paciente, doce, entre murmúrios, seduziu quem não precisava de ser seduzida. Terno, minucioso, tranquilo, os seus lábios mostraram-lhe o que ainda não lhe tinham dito. A mão que Jillian tinha no seu ombro deslizou até à sua cintura. Tocou-lhe na ponta da língua com a sua e, lentamente, foi aprofundando o beijo até que ambos ficaram exangues. Depois prosseguiu na veneração cuidadosa do seu corpo. Ela flutuava.

Haveria algum tipo de prazer que ele não pudesse mostrar-lhe?, perguntou-se Jillian. Aquele mundo de zumbidos seria outro aspecto da paixão? Desejava desesperadamente dar-lhe algo em troca, no entanto, o seu corpo afundava-se, aflito pelo peso de tantas sensações. Sândalo e couro, aqueles cheiros sempre a fariam recordá-lo. A beira calosa das suas mãos, resultado do roçar diário das rédeas... Nada lhe agradava tanto sobre a sua pele. Aaron moveu-se, ela afundou-se mais nas almofadas e ele também.

Podia identificar o sabor dele, e outro que, apercebeu-se, devia ser uma mistura do seu nos lábios de Aaron. A sua face roçou na dele, não demasiadamente suave, mas Jillian desejava esfregar-se contra ela. Ele sussurrou o seu nome e ela voltou a sentir um calor que a envolvia.

Inclusive quando as suas mãos começaram a percorrê-la, a excitação continuou a ser indefinida. Não conseguia sair da névoa que a envolvia, e já não tentava. A sua pele palpitava e o tremor chegava-lhe ao sangue, aos ossos. A boca de Aaron era toda ela suavidade no seu peito e, com a língua, habilmente, fazia-a estremecer. Depois relaxava e, em seguida, provocava-lhe um novo estremecimento.

Ele manteve aquele ritmo lento, apesar de, sob o seu corpo, Jillian começar a contorcer-se. O tempo ia passando enquanto ele lhe ia mostrando uma nova delícia. Sabia que a tarde estava a acabar pelo modo como a luz incidia no rosto de Jillian. Somente os murmúrios e suspiros quebravam a paz que os rodeava. Nunca se sentira tão a sós com ela.

Possuiu-a lentamente, saboreando cada um dos momentos, dos movimentos, até que tudo acabou.

Por baixo dele, Jillian viu como a luz se ia extinguindo. Fora como um sonho, pensou, como algo pelo qual suspiraria metade da noite, quando os desejos assumem o controlo da mente. Comovê-la-ia mais do que a paixão com a que habitualmente se entregavam um ao outro? De algum modo, sabia que o que acabava de sentir era mais perigoso.

Aaron moveu-se e, embora ela não se tivesse queixado do seu peso, sentou-se e puxou-a para si.

- Eu gosto de como ficas, suave e quente, depois de fazermos amor.

- Nunca tinha sido assim - murmurou ela.

As palavras emocionaram-no, não pôde evitá-lo.

- Não - inclinou a cabeça de Jillian para trás e beijou-a novamente. - Mas voltará a ser igual.

Talvez por ela desejar, mais do que tudo, agarrar-se a algo, ficar, depender, precisamente por isso afastou-se dele.

- Nunca tenho a certeza de como te interpretar

- algo indicava a Jillian que estava na altura de ir com cuidado. Estava perdida, não compreendia absolutamente nada.

- Em que sentido?

Cedeu perante a necessidade de o abraçar novamente e sentiu que uma mão lhe acariciava as costas nuas, para cima e para baixo, com naturalidade. Com relutância, escapou-se de entre os seus braços e vestiu a camisa.

- És muitas pessoas diferentes ao mesmo tempo, Aaron Murdock. Cada vez que penso que, finalmente, sei quem és, transformas-te em alguém diferente.

- Não - antes que ela pudesse abotoar a camisa, puxou-a novamente para si. - Estados de espírito diferentes não significam que seja outra pessoa.

- Talvez não - ela desconcertou-o, beijando-lhe a palma da mão, - mas continuo sem conseguir entender-te.

- É isso que queres, entender?

- Sou uma pessoa simples.

Ele ficou a olhar fixamente para ela enquanto ela continuava a vestir-se.

- Estás a brincar?

Jillian teve a sensação de que na sua voz aparecia uma gargalhada e olhou para ele entre séria e envergonhada.

- Não. Eu preciso de saber onde ando, que opções tenho, o que se espera de mim. Desde que saiba que posso fazer bem o meu trabalho e cuidar do que me pertence, estou satisfeita.

Ele olhou pensativamente para ela enquanto vestia as calças.

- O trabalho é assim tão fundamental para ti?

- É o que sei fazer - replicou ela. - A terra, eu entendo.

- E as pessoas?

- Não sou muito boa com as pessoas. A não ser que as compreenda.

Aaron vestiu a camisa, mas deixou-a aberta, sem abotoar os botões, e foi até ela.

- E a mim, não me compreendes?

- Só às vezes - murmurou. -Acho que a altura em que te entendo melhor é quando estou zangada contigo. Outras vezes... - estava a entrar em águas muito profundas, portanto optou por se afastar.

- ”Outras vezes...” - repetiu Aaron, segurando-a pelos braços.

- Outras vezes, não sei. Nunca imaginei que acabaríamos juntos... assim.

Ele passou-lhe os polegares pela zona interior dos cotovelos, ali onde lhe pulsava o pulso. Já não era firme e regular.

- O que significa ”assim”, Jillian?

- Nunca pensei que nos tornaríamos amantes. Nunca pensei que... - porque lhe pulsava novamente o coração com tanta força? - Que te desejaria assim - concluiu.

- Ah, não? - houve algo na maneira como ela olhou para ele, como se não estivesse segura de si mesma, quando ele sabia que se esforçava por estar, que o tornou audaz. - Eu desejei-te desde o primeiro momento em que te vi montada na tua égua. Embora houvesse outras coisas que não imaginava, como encontrar aqueles pontos tão suaves na tua pele... e debaixo da tua pele.

-Aaron...

Ele moveu a cabeça quando ela tentou pará-lo e continuou a falar.

- Pôr-me a pensar em ti, de repente, a meio do dia, a meio da noite; recordar a maneira que tens de pronunciar o meu nome.

- Não continues.

Ele reparou como ela começava a tremer antes de tentar afastar-se.

- Bolas, já está na altura de ouvires o que sinto.

Amo-te, Jillian.

A primeira coisa que ela sentiu foi pânico, mesmo depois de ter começado a recorrer às suas reservas mentais.

- Não, não tens de me dizer isso - falava depressa, com voz firme. - Não espero que me digas esse tipo de coisas.

- Posso saber do que estás a falar? - ele abanou-a, primeiro com frustração e depois com aborrecimento. - Eu é que sei o que tenho de dizer ou não. E não importa se não é o que esperas ouvir, porque vais ter de o ouvir de qualquer forma.

Jillian recorreu ao seu mau feitio porque sabia que, se se deixasse levar pela emoção, esta poderia traí-la. Se não tivesse o seu orgulho, ter-lhe-ia dito o quanto a magoava aquela frase dita tão ligeiramente.

- Aaron, já te disse que não preciso que me acaricies o ouvido com palavras ternas. Nem eu gosto. Seja o que for isto que há entre nós...

- E o que há entre nós? - perguntou ele. Não sabia que alguém pudesse magoá-lo daquela forma, não o suficiente para sentir que o sangue abandonava as suas veias ali mesmo onde estava. Acabava de lhe dizer que a amava. Era a primeira vez que dizia aquilo a uma mulher, e respondia-lhe com indiferença. - Diz-me o que há entre nós. É só isto? - apontou com uma mão para o sofá, que ainda guardava o rasto dos seus corpos.

- Para ti é só isto, Jillian?

- Eu não... - dentro dela travava-se uma batalha tão feroz que mal conseguia respirar. - Eu achava que para ti... - assustada, levou as duas mãos à cabeça e puxou o cabelo para trás. Porque fazia aquilo, justamente quando ela começava a entender o que queria dela e o que ela procurava nele? - Não sei o que queres, mas eu... Eu não posso dar-te mais do que já te dei. É muito mais do que alguma vez dei a alguém.

Aaron afrouxou a pressão com que a retinha nos seus braços até que afastou as mãos. Eram iguais em muitas coisas, e uma delas era o orgulho. Enquanto abotoava a camisa, dirigiu-lhe um olhar desapaixonado.

- Deixaste que algo congelasse no teu interior, rapariga. Se tudo o que queres é um pouco de calor nas noites frias, não acho que seja difícil para ti encontrá-lo. Eu, pessoalmente, aspiro a algo mais.

Ela viu como saía pela porta e ouviu o ruído do motor da carrinha, que quebrou o silêncio, enquanto o sol se escondia no horizonte.

 

Trabalhava até lhe doerem os músculos e a única coisa em que conseguia pensar era em relaxar. Provavelmente, bebia demasiado. Conduzia o gado, passava muitas horas sobre a sela, à procura de cabeças de gado extraviadas e engolia mais pó que alimento. Passara os longos e trabalhosos dias de Verão nos acampamentos, a trabalhar de sol a sol. Às vezes, só às vezes, conseguia afastá-la da cabeça.

Desde há três semanas que estar perto dele era um inferno, ou, pelo menos, era o que murmuravam os seus homens quando não podia ouvi-los. Era por causa de uma mulher, comentava-se. Só uma mulher podia levar um homem à beira do abismo e depois empurrá-lo amavelmente para o vazio. Surgiu o nome da rapariga dos Baron. Bom, os Murdock e os Baron nunca tinham tido boas relações, portanto não era de admirar. Ninguém pensara que dali fosse sair alguma coisa de bom.

Se Aaron ouvia os boatos, não lhes prestava grande atenção. Fora para o acampamento para trabalhar, e era o que iria fazer até a ter tirado da cabeça. Não iria arrastar-se aos pés de uma mulher. Dissera-lhe que a amava e ela pegara nas suas palavras e nos seus sentimentos e atirara-lhos à cara. Não lhe interessavam.

Aaron enfiou outro dos postes na terra enquanto o suor lhe caía pelas costas. Talvez fosse a primeira mulher pela qual se apaixonara, mas isso não significava que fosse a última. Descarregou todo o peso da marreta sobre o poste e deixou escapar um sopro com o esforço.

Não tivera intenção de lho dizer nem naquele momento nem daquele modo. Sem saber como, as palavras tinham saído dos seus lábios e não fora capaz de parar. Teria preferido que o dissesse com um presente na mão, numa declaração convencional? Soltou alguns palavrões e voltou a descarregar a marreta sobre o poste com uma pancada, que vibrou com o impacto. Talvez ele fosse mais delicado do que se mostrara com ela, e talvez pudesse usar essa delicadeza com outra pessoa, alguém que não fizesse com que os seus sentimentos brotassem e o agarrasse pelo pescoço.

De onde, pelo amor de Deus, tirara a ideia de que, sob o seu temperamento e a frieza que mostrava às vezes, era um ser vulnerável? Devia estar louco, disse para si enquanto começava a pôr vedação nova. Jillian Baron era fria, uma mulher

com um único objectivo na vida e a quem importavam mais as contagens de cabeças de gado que sentir um sentimento verdadeiro.

E ele estava quase doente de amor por ela. Agarrou no arame farpado com tanta força que a ponta atravessou a luva de couro e espetou-se na mão. Disse mais palavrões. Tinha de ultrapassar aquilo. Tinha as suas terras para se manter ocupado. Fez uma pausa e olhou à sua volta. Diante dele estendiam-se os campos de erva, muito alta com o Verão, verde e ondulada. O céu era de um azul impenitente e o sol era forte. Um homem poderia contentar-se com aqueles milhares de acres. O gado engordava e gozava de boa saúde, os bezerros iam crescendo. Ao fim de algumas semanas, juntá-los-ia e levá-los-ia para Miles City. Quando aqueles dias de trabalho extenuante tivessem passado, os seus homens celebrá-lo-iam, com todo o direito do mundo. E o mesmo faria ele, disse para si Aaron. Claro que sim.

Daria metade do que tinha em troca de a tirar da cabeça durante, pelo menos, um dia.

Ao entardecer, lavou-se para se livrar do suor e do pó acumulados durante o dia. Pela janela aberta da cabana entrava o cheiro do jantar daquela noite. Carne. Alguém tocava guitarra e cantava a solidão do amor perdido. Aaron apercebeu-se de que tinha mais necessidade de uma cerveja que do seu bife. Como sabia que um homem não podia trabalhar se não comesse, serviu a carne no prato e engoliu-a, mas depois bebeu uma cerveja e depois mais outra enquanto os homens jogavam o seu jogo de póquer de todas as noites. Quando o tom dos jogadores começou a subir, agarrou numa embalagem de seis cervejas e foi para o alpendre estreito de madeira.

As estrelas estavam a aparecer naquele momento. Ouviu o uivo de um coiote e depois, o silêncio. O ar estava calmo, como durante o dia, e apenas algo mais fresco, mas cheirava a rosas silvestres. Apoiou-se no corrimão do alpendre e desejou que a sua mente se esvaziasse, mas pensou nela...

Totalmente vestida e a dar voltas como uma louca; no charco; a consolar um bezerro órfão; a rir-se, com o cabelo solto no chão do picadeiro; a chorar nos seus braços junto aos restos do seu gado no desfiladeiro. Tão depressa se mostrava doce como susceptível; não era, certamente, uma mulher moderada, mas era a única que amava. A única pela qual sentira o suficiente para se deixar magoar.

Bebeu um gole longo da garrafa de cerveja. Não gostava muito da dor emocional, os poetas que ficassem com ela. Ela não o amava. Disse um palavrão e, na escuridão, franziu o sobrolho. Pois claro que o amava, não era tolo. Talvez as necessidades de Jillian não fossem iguais às suas, mas tinha-as. Pela primeira vez em várias semanas, começou a pensar com calma.

Não jogara bem as suas cartas, disse para si.

Não era próprio dele desistir tão depressa, claro que não estava habituado a perder a cabeça por uma mulher. Inclinou o chapéu para trás com ar pensativo e olhou para as estrelas. Estava demasiado empenhada em fazer as coisas à sua maneira e estava na altura de a fazer sofrer um pouco.

Não, não ia voltar a arrastar-se, pensou com um sorriso brincalhão, mas ia voltar. Nem que tivesse que lhe prender as patas traseiras e marcá-la com o ferro, Jillian Baron seria dele.

A porta da cabana abriu-se e ele olhou com ar ausente. O seu humor melhorara, podia suportar um pouco de companhia.

- Não tenho muita sorte. Jensen, pensou Aaron, fazendo um esboço mental do homem que tinha à frente, enquanto lhe oferecia uma cerveja. Um tanto nervoso, reflectiu. Era a sua primeira temporada no Double M, embora não fosse nenhum rapaz. Tratava-se de um homem reservado e sem mais passado que os remendos das suas botas e a sua sela.

Jensen sentara-se no primeiro degrau, de modo que o seu rosto magro ficara nas sombras. Aaron calculou que devia ter mais de trinta e cinco anos e menos de cinquenta. O seu olhar era velho, o tipo de olhar de um homem que, durante demasiados anos, vira o sol pôr-se nas terras dos outros.

- Não teve sorte com as cartas? - perguntou Aaron enquanto via como Jensen enrolava um cigarro. Não ignorou que lhe tremiam os dedos.

- Há várias semanas - Jensen soltou uma gargalhada breve e acendeu um fósforo. - O problema é que nunca consigo parar de apostar olhou de esguelha, durante um momento, para Aaron enquanto bebia outro gole da sua cerveja. Andava há dias a pensar em como abordaria o assunto com ele. E bebera o suficiente para se lançar. - Você não costuma ter falta de sorte às cartas.

- Vai e vem - disse Aaron. Jensen estava a analisá-lo para lhe pedir um adiantamento ou um empréstimo, pensou.

- A sorte é uma coisa estranha - Jensen limpou a boca com as costas da mão. - No rancho dos Baron, tiveram azar ultimamente, aquelas vacas todas que perderam - continuou quando Aaron olhou para ele.

- Alguém fez um bom dinheiro com aquela carne.

Aaron sentiu um rasto de amargura na sua voz. Com naturalidade, abriu outra cerveja e entregou-lha.

- É fácil obter lucros quando não se teve de comprar o animal. Quem quer que tenha sido, fez um grande negócio.

- E tanto! - Jensen passou à carga. Ouvira rumores de que havia algo entre Aaron Murdock e a rapariga dos Baron, mas não parecia ter prosperado. A maioria das intrigas era sobre o mau sangue que havia entre as duas famílias desde há alguns anos e que parecia ir durar durante ainda mais alguns anos. Naquele momento, precisava de acreditar que era verdade. - Embora pressuponha que deste lado da cerca não importa muito quantas vacas tenham desaparecido do outro lado. Aaron esticou as pernas e cruzou-as à altura dos tornozelos. A aba do chapéu deixava os seus olhos na sombra.

- Temos de saber cuidar de nós mesmos - disse calmamente.

Jensen humedeceu os lábios e aventurou-se um pouco mais longe.

- Ouvi histórias de que, noutra época, o seu avô também beneficiou do gado dos Baron.

Os olhos de Aaron semicerraram-se, mas controlou o seu temperamento.

- Histórias, efectivamente. Nenhuma prova. Jensen bebeu outro gole da sua cerveja.

- Também ouvi dizer que alguém entrou no rancho e levou um bezerro de muito valor, uma das crias daquele touro de que todos falam.

- Foi um trabalho limpo - Aaron procurava que a sua voz soasse indiferente. Jensen estava a estudá-lo, mas não para lhe pedir um empréstimo.

- Seria uma pena que o fizessem em bifes - acrescentou, - aquele bezerro tem o aspecto do seu progenitor. Claro que, dentro de alguns meses, começará a chamar a atenção num sítio pequeno. É uma pena desperdiçar um bom garanhão.

- Ouvem-se coisas - murmurou Jensen enquanto aceitava a cerveja fresca que Aaron lhe oferecia. - Que estava interessado no touro dos Baron.

Aaron bebeu um gole, inclinou o chapéu para trás e esboçou um sorriso de assentimento.

- O bom material interessa-me sempre. Não saberá onde poderia arranjar algo do género, pois não?

Jensen observou a sua cara e engoliu em seco.

- Talvez.

Jillian reduziu a velocidade quando passou diante da casa branca. Vazia. Pois claro que vazia, disse para si. Mesmo no caso de Aaron ter voltado, não estaria em casa a meio da manhã. E ela não deveria estar no rancho de Murdock quando os seus próprios homens estavam com trabalho até às orelhas. Não podia ausentar-se. Se Aaron não voltasse depressa, iria cometer alguma tolice, como ir buscá-lo ao acampamento e...

E o quê?, perguntou-se. Durante metade do tempo não sabia o que queria fazer, como se sentia, o que pensava. A única certeza era que tinham sido as três semanas mais tristes da sua vida Perigosamente perto da dor.

Algo tinha morrido no seu interior quando ele partira, algo que não sabia existir dentro dela. Convencera-se de que não se apaixonaria por ele. Durante vezes incontáveis dissera a si mesma que isso não aconteceria, mesmo depois de já ter acontecido. Porque não se apercebera?

Jillian disse para si que nem sempre era fácil reconhecer algo que acontecia pela primeira vez, em especial quando não tinha uma explicação. Uma mulher tão habituada a andar à sua vontade não tinha nada que fazer com um homem que era igualmente obstinado e independente.

Apaixonar-se! Jillian pensou numa frase adequada. Quando acontecia, uma pessoa perdia o pé e afogava-se.

Talvez Aaron o tivesse dito a sério, pensou. Talvez, para ele, fossem algo mais do que palavras. Se ele também a amava, isso não queria dizer que tinha alguém a quem se agarrar? Deixou escapar lentamente o ar dos pulmões enquanto se aproximava da casa dos pais de Aaron. Se o dissera a sério, porque não estava ali agora? Um erro, disse para si com falsa calma. Era sempre um erro depender demasiado de outra pessoa. Uma pessoa ficava para trás ou, simplesmente, desaparecia. Mas se pudesse vê-lo, nem que fosse só mais uma vez...

- Vais ficar a manhã toda sentada nesse jipe? Jillian assustou-se e, ao virar a cabeça, viu que Paul Murdock se aventurava, com precaução, pelo alpendre. Saiu do jipe, perguntando-se qual das desculpas em que pensara para justificar a visita seria mais credível.

- Senta-te! - ordenou Murdock. - Karen está a fazer chá.

- Obrigada - sentia-se incómoda, ali sentada no baloiço do alpendre, e tentou encontrar uma maneira de quebrar o silêncio.

- Ainda não voltou do acampamento - disse Murdock sem rodeios enquanto se deixava cair numa cadeira de baloiço. - Não dês voltas à cabeça, menina! - ordenou enquanto esfregava, impaciente, uma mão. - Talvez seja velho, mas sei o que tenho diante do nariz. Porque discutiram?

- Paul! - Karen apareceu com uma bandeja carregada com copos e um jarro de chá gelado. Jillian tem direito à sua privacidade.

- Privacidade! - soprou ele enquanto Karen pousava a bandeja na mesa. - É ela que anda atrás do meu filho.

-Atrás do seu filho! - Jillian levantou-se como que impulsionada por uma mola. - Eu não ando atrás de ninguém nem de nada. Quando quero alguma coisa, consigo-a.

Ele riu-se e balançou-se para a frente e para trás, mas quando olhou para ele, Jillian viu que, como consequência do esforço, ofegava.

- Eu gosto de ti, rapariga, não posso negá-lo. Tem uma cara atraente, não tem, Karen?

- Linda! - com um sorriso, Karen ofereceu uma chávena de chá a Jillian.

- Obrigada - ela voltou a sentar-se, ainda tensa.

- Só vim para que Aaron saiba que a égua está bem. O veterinário foi lá ontem para a observar.

- É só isso que vais fazer? - perguntou Murdock.

- Paul... - Karen sentou-se num dos braços da cadeira de baloiço e pôs-lhe uma mão no ombro.

- Para isso não era preciso vires até aqui - balbuciou ele, e depois levantou a sua bengala e apontou para Jillian, - vais dizer-me que não amas o meu filho?

- Senhor Murdock - começou a dizer Jillian, muito digna, - Aaron e eu temos um acordo.

- Um homem que está a morrer não gosta de perder tempo - disse Murdock com um sobrolho ameaçador. - Agora, se, olhando nos meus olhos, disseres que não sentes nada pelo meu filho, está bem, conversaremos um pouco sobre o tempo.

Jillian abriu a boca e voltou a fechá-la. Abanou a cabeça com impotência

- Quando vai voltar? - perguntou num murmúrio. - Está fora há três semanas.

- Voltará quando deixar de estar tão confuso como tu estás - respondeu Murdock, secamente.

- Não sei o que fazer - uma vez dito aquilo, ficou aturdida. Nunca na sua vida dissera, em voz alta, aquelas palavras, a ninguém.

- O que queres? - perguntou-lhe Karen. Jillian observou-os: um idoso e a sua mulher,

muito bonita. A mão de Karen repousava sobre a do seu marido em cima do punho da bengala. Os ombros de ambos roçavam-se. Poucas vezes na sua vida vira aquela cumplicidade perfeita que surgia do amor profundo. Era fácil de reconhecer, invejável. E dava um pouco de medo. Foi um choque aperceber-se de que era aquilo que desejava para si: um homem para a vida inteira. Mas se, afinal de contas, era aquilo o que significava o amor para ela, tinha de ser um sonho partilhado por duas pessoas.

- Ainda estou a tentar descobrir - murmurou.

- Aquele jipe... - Murdock apontou para ele com um movimento de cabeça. - Poderias perfeitamente ir até ao acampamento com ele.

Jillian sorriu e pousou o seu copo em cima da mesa.

- Não posso fazer isso. Para que as coisas funcionem, temos de nos encontrar em terreno neutro, não posso ir atirar-me nos seus braços.

- Jovem e obstinada - resmungou Murdock.

- Exacto - Jillian levantou-se a sorrir. - Se me quiser para ele, isto é o que vai ter - o ruído de um motor fê-la levantar a vista e olhar à sua volta. Quando reconheceu a carrinha de Gil, franziu o sobrolho e desceu os degraus.

- Senhora... - Gil olhou para a Karen e tocou no chapéu em sinal de saudação, mas nem sequer abriu a porta da carrinha. - Senhor Murdock... Temos um problema - limitou-se a dizer, desviando o olhar para Jillian.

- Do que se trata?

- O xerife telefonou. Parece que encontraram Baby num terreno, a umas cento e cinquenta milhas a sul. Quer que vás lá dar uma olhadela.

Jillian agarrou-se com uma mão à janela.

- Onde?

- Nas terras que eram de Larraby. Eu levo-te.

- Deixa o jipe aqui - disse Murdock, colocando-se de pé. - Um dos meus homens leva-to a casa.

- Obrigada - rapidamente, ela deu a volta à carrinha. - Vamos! - ordenou assim que a porta do passageiro se fechou atrás dela. - Como, Gil?

- perguntou enquanto saíam do pátio do rancho dos Murdock. - Quem o identificou?

Gil cuspiu pela janela e sentiu-se muito satisfeito consigo mesmo.

- Aaron Murdock. -Aaron...

Gil sentiu-se ainda mais satisfeito quando viu que ela ficava de boca aberta.

- Isso mesmo - quando chegou ao cruzamento, dirigiu-se para Sul a uma velocidade constante que ia devorando as milhas que os separavam do bezerro.

- Mas como? Aaron está no acampamento há semanas e...

- Se te acalmares, eu conto-te.

Embora a arder de impaciência, Jillian acalmou-se.

- Conta-me.

- Aparentemente, um dos homens de Murdock ajudou no roubo das quinhentas cabeças, um tipo chamado Jensen. Não concordou com a sua parte e, além disso, perdeu tudo a jogar póquer, portanto pensou que, se tinham roubado quinhentas cabeças sem que os tivessem apanhado, bem podia levar mais uma só para ele.

- Baby... - murmurou Jillian, e cruzou os braços sobre o peito.

- Sim. Percebeu que seria um campeão assim que o viu e levou-o, e deixou-o nas terras de Larraby. Costumava trabalhar lá até as coisas terem corrido mal a Larraby. Seja como for, Jensen começou a ficar nervoso quando o homem que tinha organizado o roubo das quinhentas cabeças soube do desaparecimento de Baby, e achou que seria melhor livrar-se, o quanto antes, do animal. Ontem à noite, tentou vendê-lo a Aaron Murdock.

- Estou a ver - já lhe devia mais uma, pensou Jillian com o sobrolho franzido. Era complicado tratá-lo de igual para igual quando acumulava tantas dívidas. - Se for verdade que se trata de Baby e esse Jensen estiver comprometido, outros irão cair.

- Vamos ver se se trata de Baby - disse Gil, e depois olhou para ela com cautela. - O xerife já deitou a mão a outros. Parou Joe Carlson há algumas horas.

- Joe? - perplexa, virou-se completamente no seu banco e ficou a olhar fixamente para Gil. Joe Carlson?

- Aparentemente, tinha comprado um pequeno rancho no Wyoming. E o mais provável é que já tenha duzentas cabeças do teu gado a pastar calmamente lá.

- Joe... - Jillian mudou de posição e começou a olhar fixamente para a frente. Depois de tanto falar de confiança, pensou, da sua habilidade para conhecer as pessoas... Clay não queria que o contratasse, recordou, mas ela insistira. Uma das primeiras decisões que tomara ao assumir o comando do Utopia fora o seu primeiro grande erro.

- Também me enganou - murmurou Gil depois de um momento. - Sabe tudo o que há para saber de gado - resmungou, e apertou os dentes. - Não devia ter confiado num homem com as mãos tão suaves e o chapéu tão limpo.

- Fui eu que o contratei.

- E eu trabalhei com ele - Gil voltou a agitar-se. - Ombro com ombro. E se não sabes como isso é difícil de engolir para mim é porque não és muito inteligente. Deixei-me enganar! - resmungou. -Eu!

Sentia-se ferido no seu orgulho, o que fez Jillian rir-se. Esta subiu os pés para cima do tablier. O que estava feito, feito estava, disse para si. Ela iria recuperar uma boa parte do seu gado e os culpados seriam julgados. E depois do próximo rodeo, teria recuperado das suas perdas. Talvez, afinal de contas, pudessem comprar o jipe novo.

- Foi o xerife que te contou isso tudo?

- Aaron Murdock - respondeu Gil. - Foi ao rancho há pouco.

- Ao rancho? - perguntou ela, com tanta naturalidade que teria enganado qualquer um. Disse... eh... disse mais alguma coisa?

- Só que tinha de tratar de um monte de coisas. É um homem muito ocupado.

- Ah...! - Jillian virou a cabeça para a janela e ficou a olhar para a rua. Gil aproveitou a oportunidade e esboçou um sorriso enorme.

Esperou até ser quase de noite. Não conseguia renunciar à esperança de que aparecesse por ali ou telefonasse, nem que fosse só para saber se tudo correra bem. Estivera a pensar em como começar a falar com ele até lhe ocorrer uma dúzia de maneiras diferentes de iniciar a conversa. Dava voltas sem cessar. Quando se apercebeu de que, se continuasse fechada entre quatro paredes, iria começar a gritar, foi até às quadras e selou a égua.

- Homens! - exclamou a resmungar enquanto pegava na sela. - Se isto faz parte do jogo, não me interessa.

Pronta para montar, Dalila farejou o ar assim que Jillian a puxou para o exterior. Quando a sua dona montou na sela, a égua começar a rodopiar e a puxar as rédeas. Passados alguns momentos, tinham deixado para trás as luzes do pátio do rancho.

Um passeio a cavalo ajudá-la-ia a arejar a mente, disse para si. Um dia como aquele podia deixar qualquer um louco. Recuperar Baby compensara um pouco a sensação de traição que sentira ao descobrir que Joe Carlson a roubara metodicamente, recordou-se, enquanto lhe dava apoio e conselhos. Fora muito inteligente, realmente, pensou. Desviara a sua atenção para os Murdock enquanto ia tirando o gado pelas cercas do lado oposto. Até encontrar um novo especialista em criação de gado bovino, teria de ser ela a encarregar-se de fazer o trabalho de Joe.

Far-lhe-ia bem, disse para si, ter a mente ocupada e longe de outros assuntos. Aaron. Se quisesse vê-la, sabia onde encontrá-la. Aparentemente, fizera um favor aos dois ao rejeitá-lo há semanas atrás. Se não o tivesse feito, estariam ambos numa situação dolorosa. Assim, pelo contrário, cada um seguiria o seu próprio caminho, exactamente como ela soubera que seria desde o início. Talvez tivesse tido alguns momentos de fraqueza, como naquela manhã no Double M, mas não durariam. Durante as semanas seguintes, estaria demasiado ocupada para se preocupar com Aaron Murdock e aquelas fantasias tolas.

Disse para si que não tivera intenção de ir ao charco, mas fora Dalila quem tomara aquele caminho. De qualquer modo, continuava a ser um lugar que escolheria para estar sozinha, independentemente das lembranças que despertasse nela.

Estava lua cheia. Disse para si mesma que não era infeliz, que estava cansada depois de um dia longo em que tivera de percorrer muitas milhas, falar com o xerife, responder a perguntas. Não podia ser infeliz justamente quando acabava de recuperar o que era seu. Assim que o cansaço passasse, comemoraria.

Quando viu a lua reflectida na água, obrigou Dalila a ir mais devagar. Não se ouvia mais nada para além dos cascos do seu cavalo. Ouviu o garanhão assim que a égua sentiu o seu cheiro. Com o coração a bater com força no peito, conseguiu dominá-la e fê-la parar. A égua estava assustada. De repente, Aaron surgiu de entre as sombras de um álamo sem dizer nada.

Sabia que ela iria, mais cedo ou mais tarde. Poderia ter ido vê-la ao rancho ou ter esperado que ela fosse procurá-lo, mas apercebera-se de que teriam de se encontrar ali, num lugar que era de ambos, que pertencia aos dois.

Era melhor enfrentar aquilo de uma vez e resolvê-lo, pensou Jillian, e, enquanto desmontava, apercebeu-se de que as suas mãos estavam húmidas pelo suor. Nada a teria posto mais em alerta. Em absoluto silêncio atou a égua. Quando se virou, viu que Aaron avançara até onde ela estava, tão silenciosamente como o gato selvagem com que o comparara uma vez. Ficou muito rígida e falou com tom impassível.

- Portanto voltaste.

Aaron olhou para ela com olhos tranquilos e divertidos ao mesmo tempo, e observou a sua cara.

- Pensavas que não voltaria?

Jillian levantou o queixo, exactamente como ele esperava que fizesse.

- Não pensei no assunto, nem pouco nem muito.

- Não? - ele sorriu, aquilo deveria ter posto Jillian de sobre aviso. - E nisto, pensaste nisto? puxou-a para si com uma mão na sua cintura e outra na sua nuca, e devorou a boca que tanto ansiava. Esperava que lutasse, e até teria desfrutado com isso, mas devolveu-lhe o beijo com a mesma força e entusiasmo que recordava.

Quando afastou a boca dela, Jillian enterrou a cara no seu ombro. Ainda a desejava, a ideia martelava na sua mente. Não o perdera, ainda não.

- Abraça-me - murmurou. - Por favor, só um minuto.

Como o conseguia?, perguntou-se Aaron. Como conseguia que se sucedesse a paixão à ternura numa questão de segundos? Talvez ainda não tivesse chegado a entendê-la completamente, mas não tinha intenção de parar de a estudar.

Quando Jillian se sentiu mais tranquila, afastou-se dele.

- Quero agradecer-te pelo que fizeste. O xerife contou-me que obtiveste as provas através de Jensen e...

- Não quero falar do gado, Jillian.

- Não - agarrou as mãos e virou-se. Não, deviam deixar aquilo de lado e tratar do que verdadeiramente importava. Do que era fundamental. Pensei no que aconteceu, no que disse da última vez que nos vimos - onde estavam todos os discursos que preparara? Tão pausados, tão lúcidos...? Torceu os dedos até lhe doerem e depois afastou-os. - Aaron, disse-te que não era preciso dizeres-me aquelas coisas e falava a sério. Algumas mulheres precisam.

- Eu não estava a dizê-lo a ”algumas mulheres”.

- É fácil de dizer aquelas coisas - disse-lhe com um suspiro vibrante. - Muito fácil.

- Para mim não.

Ela virou-se lentamente, com cautela, como se receasse que ele pudesse fazer um movimento para o qual não estivesse preparada. Parecia muito tranquilo, pensou. E, no entanto, o modo como a luz da lua incidia nos seus olhos...

- É difícil - murmurou ela.

- O quê?

- Amar-te.

Aaron poderia ter-se dirigido a ela e tê-la abraçado até ela parar de falar, de pensar, mas Jillian tinha o queixo levantado e os olhos humedecidos pelas lágrimas.

- Talvez seja assim que tem de ser - respondeu. - Não estou a oferecer-te um mar de rosas.

- Ninguém me amou como eu queria - engoliu em seco e recuou um pouco. - Ninguém excepto Clay, e ele nunca mo disse. Não tinha necessidade de o fazer.

- Eu não sou Clay, nem o teu pai. E nunca ninguém te vai amar tanto como eu te amo - deu um passo para ela e, embora Jillian não tivesse continuado a recuar, todos os seus músculos ficaram em tensão. - De que tens medo?

- Não tenho medo!

- Mais medo do que um condenado - aproximou-se dela.

- De que deixes de me amar - saiu-lhe quando agarrou as mãos atrás das costas. Uma vez que começara, as palavras continuaram a sair depressa e sem interrupções. - De que digas que, na realidade, nunca me amaste. E de permitir a mim mesma começar a depender e a precisar de ti. Passei a maior parte da minha vida a descobrir a maneira de não depender de ninguém, para nada.

- Eu não sou ninguém - respondeu ele, calmamente.

A respiração de Jillian alterou-se.

- Desde que te foste embora, a única coisa que me importava era que voltasses.

Ele agarrou-a pelos ombros.

- E agora que voltei?

- Não poderia suportar que partisses novamente. E embora ache que aguentaria, o que não consigo aguentar é viver com medo - pôs as mãos contra o seu peito quando Aaron começou a puxá-la para si.

- Jillian, achas que podes dizer-me o que estava desejoso de ouvir e esperar que eu enfie as mãos nos bolsos? Será que não sabes que o perigo é para os dois, que os dois corremos o risco de depender um do outro?

- Talvez - ela obrigou-se a respirar fundo para se acalmar - mas nem sempre as pessoas procuram o mesmo.

-A que te referes?

Daquela vez, Jillian humedeceu os lábios.

- Casas-te comigo? - viu que a pergunta o deixava surpreendido e ficou novamente rígida.

- É um pedido de casamento?

Jillian escapou do seu abraço, zangada consigo mesma por ser tão tola e com ele por se rir dela.

- Vai dar uma curva! - exclamou enquanto se dirigia para a sua égua.

Ele agarrou-a pela cintura e levantou-a nos braços enquanto ela esperneava no ar.

- Tens o pavio muito curto, explodes facilmente

- murmurou, e voltou a colocá-la no chão. - Tenho a sensação de que vou passar a maior parte da minha vida a discutir contigo - enchendo-se de paciência, esperou até ela parar de dizer palavrões, se acalmar e recuperar o fôlego. - Tinha planeado perguntar-to de outra maneira - começou a dizer,

- digamos: ”Queres casar-te comigo?”. Mas estou a ver que é uma perda de tempo - quando ela levantou a cara e ficou a olhar fixamente para ele, ele sorriu. - És tão bonita! E não discutas - avisou-a ao ver que abria a boca, - vou dizer-te isto sempre que quiser, portanto vai-te habituando a partir de agora.

- Estavas a rir-te de mim - começou a dizer, mas ele interrompeu-a.

- Dos dois - baixou a cabeça e beijou-a. Primeiro com delicadeza, depois com crescente paixão. - Agora... - com cautela, foi-lhe largando os pulsos, assim que teve a certeza de que ela não iria dar-lhe um empurrão - dou-te uma semana para organizares as coisas no teu rancho.

- Uma semana...

- Cala-te! - ordenou. - Uma semana e depois vamos tirar a semana a seguir de férias para nos casarmos.

Jillian ficou a pensar. Estava radiante.

- Não precisamos de uma semana inteira para nos casarmos.

- Da maneira que eu quero, sim. E quando voltarmos...

- Voltar? De onde?

- De qualquer sítio onde possamos estar sozinhos. Quando voltarmos, começaremos a fazer planos.

Ela colocou-se em bicos de pés e olhou-o nos olhos.

- Desde que me agradem... Aaron, diz outra vez a olhar para mim.

- Amo-te, Jillian. E, na maior parte do tempo, eu gosto de como és, embora também não desgoste de discutir contigo.

- Acho que o dizes a sério - fechou os olhos por um momento. Quando voltou a abri-los, sorriam. - É arriscado acreditar na palavra de um Murdock, mas vou arriscar.

- E na dos Baron?

- A palavra de um Baron é sagrada - afirmou, levantando o queixo. - Amo-te, Aaron. Vou ser uma esposa desesperadora e um desastre como companheira - sorriu e ele beijou-a nos lábios. O que são esses planos?

- Tu tens um rancho e eu outro - assinalou enquanto lhe beijava a palma da mão. - É-me indiferente se os gerirmos em separado ou juntos, mas existe a questão de onde vamos viver. A história da ”tua casa”, ”minha casa”... Não vai resultar. Portanto é melhor construirmos uma casa que seja dos dois, a nossa casa, para criarmos lá os nossos filhos.

”Nossa”, ”nossos”. Jillian pensou que eram as palavras mais bonitas da língua. Iria usá-las uma dúzia de vezes por dia para o resto da sua vida.

- Onde?

Ele olhou por cima da cabeça de Jillian e olhou para o charco, a solidão do lugar.

- Exactamente no lugar onde deveria passar a cerca, na fronteira entre as tuas terras e as minhas.

Com uma gargalhada, ela virou o pescoço para olhar.

- Que cerca, que fronteira?

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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