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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AVENTURA NO IMPÉRIO DO SOL / Silvia Cintra Franco
AVENTURA NO IMPÉRIO DO SOL / Silvia Cintra Franco

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AVENTURA NO IMPÉRIO DO SOL

 

                   A dupla dinâmica

            — Belinha, Cacá está aqui! — avisou dona Marta, sua mãe. — Anda logo, vê se não atrasa outra vez!

            A garota mergulhou no tapete, procurando ansiosa os tênis, que ela tinha certeza deviam estar em algum lugar debaixo da cama. Nos seus 17 anos, era alta, nem gorda, nem magra, e seu perfil revelava um bonito nariz. O cabelo longo e castanho caiu-lhe sobre a testa. Com um movimento ágil de cabeça, Belinha empurrou-o para trás, sem deixar de tatear o chão em busca dos tênis. Achou-os e, rápida, amarrou-os com vigor e precisão, fez um rabo de cavalo e, agarrando a mochila com o uniforme de vôlei, disparou para a mesa do café.

            Ali, na sala do apartamento antigo em que morava deparou com Cacá, muito bem-instalada em frente de uma xícara de café com leite e bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que dona Marta tinha lhe servido.

            — Ô, Belinha, a gente vai chegar atrasada outra vez — reclamou Cacá, que, na verdade se chamava Carol, e tinha a mesma idade de Belinha. Cacá vivia com fome. Adorava doce e salgado. A turma do vôlei brincava, dizendo que ela só não engordava de pura ruindade. Ouvindo isso, Cacá, que usava aparelho nos dentes, sorria aquele sorriso que era só dela, charmoso, com aparelho e tudo. Continuava em boa forma e com o mesmo bom humor de sempre. Aquela garota de olhos meigos e cabelos curtos, ligeiramente encaracolados, era a companhia constante de Belinha. As duas formavam a dupla dinâmica, uma dupla de muitas idéias e ação fulminante junto a uma rede de voleibol. Eram inseparáveis.

            Belinha sentou-se, garantindo que era capaz de tomar café num instante. Dona Marta balançou a cabeça, observando a filha. A mãe era tão ou mais ativa que a filha. Adorava seu emprego no banco e não resistia aos doces que ela mesma preparava. Sonhava em abrir uma doceira quando se aposentasse. Dava o maior apoio ao vôlei de Belinha e por isso não pôde deixar de alertar a filha.

            — Vocês já estão ameaçadas de perder o patrocínio e ainda se atrasam... Assim não dá, minha filha...

            — Xi, é mesmo dona Marta — comentou Cacá, servindo-se de outro pedaço de bolo. Quando a nossa técnica, a Marilena, explicou o que significa esse negócio de ficar sem patrocínio, foi uma tristeza só. Eles vão dispensá-la, assim como ao Túlio, nosso preparador físico. Nem a quadra a gente vai poder usar mais!

            — Vão é implodir a equipe! — resumiu Belinha indignada e com a boca cheia.

            — Com a boca cheia, o que vai implodir é sua educação, minha filha — tornou dona Marta. — E não tem um jeito de salvar o patrocínio?

            — Tem — interveio Raul, irmão mais velho de Belinha, entrando na sala. Ele estava sempre por dentro de tudo: — Elas têm que ganhar o Interclube de qualquer maneira. Não têm outra saída!

Belinha levantou-se, prestes a partir, ao mesmo tempo que tomava um último gole de suco de laranja. E acrescentou com uma careta:

            — É, mas vencer sem levantadora é que não dá!

            — A Belinha tem razão — concordou Cacá. — A Fátima, que é uma das titulares da equipe está mal, os pais estão se separando e ela não consegue render na quadra nem um décimo do que pode jogar. A Vera, que é a outra levantadora titular, não pode fazer tudo sozinha, e a reserva da Fátima, a Teresa, ainda tem que jogar muito para chegar a titular...

As meninas já pegavam a mochila de vôlei e se preparavam para sair.

            — Mas a gente vai dar um jeito nisso. Temos que dar. Sem quadra e sem técnica é que não vamos ficar. Ou então não me chamo Belinha — proclamou a garota, decidida.

            — Então, tchau, dona Pafúncia — alfinetou Raul. Belinha deu de ombros e não se dignou a responder. Ela ia encontrar um meio de ajudar a equipe a resolver seus problemas! Sem o vôlei é que ela não ia ficar. Ela ia lutar como uma leoa, com unhas e dentes. O mundo que se cuidasse!

 

                   Que medalhas são essas?

            — Belinha, como demora esse elevador!... — reclamou Cacá. — A gente não vai chegar nunca assim!

            — Vamos pela escada — comandou a outra. — São só quatro andares.

            E zumpt, as duas se arremessaram degraus abaixo com a fúria de quem não leva derrota para casa.

            No segundo andar, as duas tiveram de pisar no freio. Toparam com uma mudança, daquelas que ocupam todos os elevadores do prédio e atravancam o andar inteiro com móveis, geladeira, caixas, caixotes e caixinhas. Elas desviaram-se de uma mesa estacionada bem em frente da escada e de um fogão no meio do corredor, e já retomavam a disparada escada abaixo, quando esbarraram numa caixa no meio do caminho, que se espatifou no chão.

            — Viu, Cacá, o que você fez? — exclamou Belinha.

            — Eu fiz, uma vírgula! Você se atrasa, a gente tem que sair correndo e quem leva a culpa sou eu? — defendeu-se Cacá, enquanto recolocava, junto com Belinha, o que caíra da caixa. Eram tênis, calções, livros e uma série de medalhas. E medalhas de vôlei! Cacá levantou a cabeça, preocupada. Será que alguém ia aparecer para reclamar do desastre da caixa? Ela detestava ser apanhada em flagrante. Belinha lia as inscrições das medalhas e sussurrava para a amiga:

            — Puxa! A dona destas medalhas deve ser fera! Campeã de vôlei feminino do ano passado em Belo Horizonte. Ela deve estar vindo de Minas!

            Cacá cutucou Belinha. Ela já estava se sentindo meio ansiosa. Dali a pouco podia aparecer alguém e apanhá-las examinando o conteúdo da caixa. E podia não gostar...

            Belinha devolveu as medalhas à caixa e as duas garotas retomaram a descida. O treino daquele sábado era importante e para chegar na hora era necessário sair com bastante antecedência. Afinal, o trânsito de São Paulo, mesmo aos sábados de manhã, é terrível. E as garotas tinham de pegar o metrô e ainda tomar um ônibus na Paulista, uma das avenidas mais bonitas da cidade, cheia de edifícios de arquitetura avançada, mas também uma das mais movimentas. Naquele sábado, porém, o que preocupava Belinha e Cacá não era o trânsito da avenida, mas o treino de preparação para o torneio de domingo. Sua equipe, patrocinada pela rede de supermercados Baleia Azul, tinha a difícil missão de jogar bem e ganhar de qualquer jeito o torneio Interclube. Com ou sem levantadora. Era vencer ou vencer.

 

                   Podem me chamar de Reca

            Depois do treino, Belinha e Cacá voltaram para almoçar em casa de dona Marta, bastante desanimadas. Fátima não se saíra nem um pouco bem naquele treino.

            — O problema é que ela não consegue se concentrar — comentou Cacá, empurrando o portão de ferro do prédio. Como é que a equipe pode jogar legal se a levantadora está com a cabeça longe da quadra?... O que você acha, Belinha?

            Cacá não obteve resposta. Belinha sumira. Cacá procurou com os olhos e descobriu a amiga, já no jardim, aproximando-se de uma menina que treinava manchetes com uma bola de vôlei. Cacá dirigiu-se para lá, adivinhando, pelo estilo da outra, que só podia ser ela a dona das medalhas. Afinal, naquele prédio, fora Belinha, ninguém mais jogava vôlei.

            — Essa é a Cacá — apresentou Belinha à garota que conversava com ela e que tinha a bola agora debaixo do braço. Da mesma altura que Belinha, tinha algumas espinhas perto do queixo, e uns olhos verdes sempre atentos. Seu nome era Regina, mas preferia que a chamassem de Reca.

            — Você é que é a dona das medalhas? — perguntou Cacá.

            — Medalhas? Como você sabe que eu tenho medalhas? — surpreendeu-se a menina.

            Belinha cutucou Cacá. Ela não havia contado do esbarrão do corredor. Cacá relembrou a descoberta da manhã e Belinha quis saber se Reca tinha time em São Paulo.

            — Eu tinha em Minas. Agora vou ter que procurar um clube aqui. Não quero parar de jogar.

            — E qual a sua posição? — perguntou Belinha, com uma idéia sorridente apontando na cabeça.

            — Jogo em todas, mas sou boa mesmo como levantadora. Aí eu arraso!

            — Então quer dizer que você não tem equipe aqui em São Paulo?... — repetiu Cacá, assaltada pela mesma grande idéia.

            A garota confirmou que não com a cabeça.

            — Acho que nós podemos arranjar uma equipe pra você! — anunciou Belinha de um salto.

            — A nossa! — ajuntou Cacá. — Nós estamos precisando de uma boa levantadora... E, pelo jeito, você é boa, né?

            — Eu era titular do meu time lá em Belo Horizonte. Mas meu pai foi transferido para São Paulo...

            — Então, está fechado — arrematou Belinha. — Se depender da gente você já está escalada. Nós vamos conversar com a Marilena, que é a nossa técnica. Tenho quase certeza de que ela vai topar. À noite, quando a gente voltar do treino, eu procuro você. Tchau, Reca.

 

                   A dupla dinâmica arma a jogada

            Podem começar a correr — comandava o exigente Túlio, iniciando o aquecimento do treino da tarde. Barba sempre por fazer e de estatura mediana, o preparador chamava a atenção no meio das jogadoras, quase todas muito mais altas do que ele. Nem por isso as garotas deixavam de respeitá-lo

            — Será que a Marilena vai topar pôr a Reca no lugar da Fátima? — perguntava-se Belinha, em pleno treinamento. Cacá que corria ao seu lado, começava a acreditar que a técnica não faria a substituição.

            — Oi — disse alguém que se aproximava por trás. Era Fátima, com um ar bem-disposto.

            — Tudo bem? — cumprimentou Belinha meio seca. Para ela, quem não estivesse atuando bem na quadra a ponto de pôr em risco o patrocínio da equipe, deveria conformar-se e dar espaço para outra pessoa. Cutucou Cacá e, forçando o passo, alcançou Marisa mais adiante.

            — Marisa, descobrimos uma levantadora ótima pra substituir a Fátima! — foi falando Belinha.

            — Uau, verdade?

            — Só que a gente ainda tem que falar com a Marilena — ajuntou Cacá, que já corria do outro lado.

            — Ah, podem contar comigo. Estou com vocês! — garantiu Marisa.

            Três voltas depois, e a dupla dinâmica, Belinha e Cacá, já tinha conversado com quase toda a equipe. Apoio do time é que não faltaria, calculava Belinha, quando ouviu atrás de si uma voz zangada:

            — Não acho legal isso que vocês duas estão armando contra a Fátima! — Quem protestava era Lena, a capitã do time, uma garota negra, magra, de olhos inteligentes e bastante vivos.

            — Vocês estão sendo é muito sem caráter — continuou a capitã —, fazendo isso contra a Fátima na pior hora da vida dela!

            Dito isso, Lena disparou à frente, sem dar chances para explicações.

            — Será que a gente está sendo tudo isso que ela está dizendo? — duvidou Cacá, incomodada com aquela censura.

            — Sim e não, né? — retrucou Marisa, que voltava a se emparelhar com elas. — A Fátima não está numa boa fase e a equipe tem que ganhar de qualquer jeito. Ela é que tem de sentir isso, "assumir", como diz minha mãe, porque o que importa é o time, não a jogadora! — argumentava Marisa, a mais baixa do time, nos seus um metro e sessenta e cinco, e que adorava teorizar sobre tudo.

            — Ai, minha nossa — gemeu Belinha, começando a se sentir um tanto mal com a tal da idéia sorridente que lhe fora aterrissar à cabeça naquela manhã de sábado.

            O treino daquela tarde foi leve, para poupar as jogadoras. Na manhã seguinte, seria a primeira partida do Interclube. A equipe vencedora iria disputar o torneio Sul-Americano no Peru. Mas não era isso que estava importando para a equipe do Baleia Azul. As jogadoras precisavam mesmo era ganhar o Interclube no Brasil, para que a rede de supermercados Baleia Azul não lhes cortasse o patrocínio e, de tabela, liquidasse o sonho de todas elas de continuar jogando e de se profissionalizar um dia.

            Acabado o treino, Fátima e Lena aproximaram-se de Cacá e Belinha, que tomavam banho nos vestiários.

            — Vocês estão querendo cravar um punhal nas minhas costas! — denunciou Fátima furiosa.

            Belinha levou um tamanho susto, que deixou o sabonete cair. Ela sabia que Fátima tinha um lado dramático acentuado, mas não poderia imaginar que fosse tão trágico assim. Belinha lançou um olhar mortífero sobre Lena. Tinha quase certeza de que fora ela quem informara Fátima dos planos da dupla dinâmica.

            — Fui eu que contei, sim — admitiu Lena corajosamente. Ela não era garota que gostasse de esconde-esconde. Com ela era pão-pão, queijo-queijo.

            Cacá deu um suspiro resignado. Se era preciso enfrentar a Fátima e dizer-lhe umas verdades, o melhor momento era aquele.

            — Fátima, ninguém está querendo cravar punhal nenhum em você, nós estamos pensando é no time. Você não está numa fase boa e está comprometendo toda a equipe — expôs Cacá, tentando ser a mais diplomática possível.

            — É isso aí — ajuntou Belinha, menos política. — Você está jogando mal e tem de aceitar que a gente procure uma substituta pra você! Você sabe muito bem que a Teresa ainda não tem condições de ser titular.

            Lena pôs a mão na cabeça. A estourada da Belinha, em vez de pôr panos quentes e suavizar as coisas, ia direto com o dedo na ferida! Fátima corou, gaguejou e explodiu num choro incontrolável. Cacá aproximou-se dela com doçura:

            — Olhe, é só uma fase, nós todas sabemos, a Belinha também. Você é a melhor levantadora da equipe quando está bem!

            A garota enxugava as lágrimas em vão, enquanto dizia entre um soluço e outro:

            — É que tudo está difícil pra mim: meu pai saiu de casa, minha mãe só reclama, diz que falta dinheiro, que falta vergonha na cara do meu pai... Eu não agüento! Por que eles não se entendem? Eu não consigo prestar atenção em nada, nem aqui, nem na escola!

            — E com isso o nosso time fica cada vez mais ameaçado de perder o patrocínio — acrescentou Lena, que gostava de justiça, e era sempre sensata no que dizia.

            — E o que eu faço, então? — perguntou Fátima, numa voz entrecortada. Belinha já ia responder, mas o olhar de Lena a deteve:

            — Você deve permitir que a Belinha e a Cacá proponham uma nova levantadora. Dizem que ela é boa. Quando você sair dessa má fase, você volta pra provar que é a melhor — sugeriu a capitã.

            Meia hora mais tarde, Belinha, Cacá, Lena e Marisa procuraram Marilena.

            — Nós precisamos falar com você um instantinho. — Assim iniciava Belinha seu discurso de embaixadora-encarregada-de-convencer-a-técnica a convocar uma nova levantadora para a equipe.

            Marilena descansou o apito que tinha nas mãos e preparou-se para ouvi-la. A técnica tinha um ouvido sempre atento para as alegrias e tristezas de suas jogadoras. Era uma mulher bonita, cujo corpo atlético vinha dos tempos da seleção brasileira. Fora jogadora durante muito tempo até que uma contusão a obrigasse a se transferir das quadras para o banco de técnica.

            — Nós temos uma levantadora — anunciou Belinha.

            — Ah, vocês têm uma levantadora... — brincou Marilena.

            — É, e das boas — assegurou Marisa, mais que convencida de que a levantadora de Belinha e de Cacá devia ser ótima.

            — A Fátima está passando por uma fase meio ruim, e a gente pensava, quer dizer, a gente quer propor a convocação de uma outra levantadora, a Reca. Ela jogou em um clube de Minas e acabou de se mudar pro meu prédio — explicou Belinha.

            Marilena aparou com a mão uma bola que voava em sua direção, devolvendo-a ao grupo que naquele momento ocupava a quadra para treinar cortadas.

            — Tenho que pensar — respondeu a técnica. — A Fátima parece bem-disposta e pode ser que ela se recupere no jogo de amanhã. Vamos ver...

            Foi assim que Belinha voltou para casa, torcendo para não encontrar com a nova vizinha. Ela tinha dado esperanças de convocação e, pelo visto, não ia acontecer nada. "Que mancada", pensou a menina ao se aproximar do portão do prédio.

 

                    Assim não dá!

            — Vamos lá, minha gente, vamos virar agora! — animava Lena. A equipe do Baleia Azul estava correndo perigo: já tinha perdido o primeiro set e agora estava perdendo o segundo também.

            Belinha estava jogando tudo que sabia, caprichando nas cortadas e pondo mais efeito no seu saque, que ela batizara de viagem ao fim do mundo. Cacá esforçava-se na recepção das bolas, nas cortadas de fundo de quadra. Toda a equipe estava empenhada ao máximo. Mas marcar pontos, que era o que interessava, estava difícil. Fátima não estava jogando bem e levantava mal. Um desastre. A equipe das Borrachas Elli ia fazendo pontos e mais pontos, e acabou vencendo o segundo set também. No terceiro set, Marilena tirou Fátima e colocou Teresa, a levantadora reserva. O time recuperou-se um pouco e, com a garra que as garotas puseram, chegou a ficar à frente no marcador: Teresa deu a alma, Cacá estourou diversas vezes o bloqueio adversário em cortadas fulminantes e Belinha caprichou no saque, sacando tudo quanto fosse viagem ao fim do mundo ou às estrelas. Mas não deu. Teresa era boa jogadora, mas não o suficiente para distribuir bem as bolas. A equipe do Baleia Azul acabou perdendo esse último set também, sendo derrotada pelo time das Borrachas Elli pelo placar de 3 x 0.

            — Assim não dá! — lamentou Belinha, enxugando o suor.

            — A gente dá tudo, mas falta levantadora. — Cacá, sentada ao seu lado no vestiário, concordava com um movimento de cabeça. Ela não tinha forças nem para falar.

            Foi quando Marilena apareceu diante delas.

            — Belinha, pode trazer sua amiga para o treino de amanhã — declarou simplesmente.

 

                   Vai dar tudo certo?

            Reca passou a semana treinando e treinando. Marilena e Túlio gostaram dela. A médica da equipe, doutora Patrícia, julgou-a em boa forma. Nenhum deles, porém, quis prometer nada.

            — Lugar se conquista. E se conserva. Vamos ver — dissera Marilena.

            — Vai dar tudo certo, tenho certeza — falou Belinha para a amiga. — Você joga um bolão mesmo, eu vi nos treinos.

            Reca pensou um instante. Ela não era de muitas palavras, mas no fundo tinha confiança em si.

            — Tudo bem, Belinha. Isso faz parte do jogo. Ninguém entrega posição de mão beijada. Eu provo o meu valor, deixa comigo. Eu só espero que a Marilena me dê uma chance no jogo de hoje. Nem que seja por meio set, no fim da partida.

            Já havia passado uma semana desde a derrota para as Borrachas Elli. Belinha, Cacá e Reca tomavam o metrô, rumo à estação Paraíso. De lá, elas pegariam um ônibus, que iria deixá-las próximo ao Ibirapuera, onde disputariam a segunda partida do torneio.

            As meninas iam ligeiramente preocupadas. Se perdessem aquela partida, seriam desclassificadas e acabariam perdendo o patrocínio.

            — Adoro andar de metrô — confessou Reca, que era agora a nova reserva de levantadora, junto com Teresa. Reca tinha fascinação pelas modernas estações de concreto do metrô e adorava as escadas rolantes deslizando para cima e para baixo, num cenário de século XXI.

Um ventinho frio soprou na estação, sinal certo de que o irem se aproximava. Cacá guardou seu comentário até as portas do vagão se abrirem e elas entrarem.

            — Acho que a Marilena vai lhe dar uma chance hoje — disse ela finalmente. — Nós não podemos perder a partida, senão estamos desclassificadas, e adeus patrocínio. O Abreu, da diretoria da rede Baleia Azul, foi claro. Se formos desclassificadas, podemos nos despedir da quadra, dos uniformes e da equipe técnica. Eles estão com política de contenção de gastos, e quem não mostra resultados cai fora.

            Mais tarde, ao saírem do vestiário, as garotas foram saudadas por sua torcida. O ginásio estava lotado, a maior algazarra, faixas azuis à esquerda, animando a equipe. Do outro lado, a torcida adversária, toda em vermelho, do Banco Único.

            Começou o aquecimento, cada time de um lado da quadra. As garotas do Baleia Azul batiam bola com energia e concentração.

            — Nós vamos ganhar! — estimulava Belinha.

            Nas arquibancadas, a família dela e de Reca. Dona Marta e seu Henrique vestiam azul e empunhavam um lençol velho com a inscrição Baleia Azul pintada. Raul segurava um cartaz de cartolina fixado num cabo de vassoura com os dizeres: VENCER OU VENCER! Ao lado deles, os pais de Reca, também trajados em azul, felizes com a possibilidade de a filha voltar às quadras. Só faltava a família de Cacá. Quando Reca lhe perguntou por que eles não tinham vindo, Cacá suspirou:

            — Eles estão pouco se importando se eu jogo ou não vôlei. Só querem saber das minhas notas e se chego antes das dez da noite em casa.

Belinha passou os braços no ombro de Cacá.

            — Pode deixar que a minha família torce por nós duas!

            No banco da equipe técnica, estavam Marilena, Túlio e a médica Patrícia. Era notória também a presença de Abreu, que fizera questão de ir pessoalmente e não conseguia disfarçar a inquietação, fumando um cigarro após o outro. Aquela partida ia definir o destino da equipe de vôlei feminino, que era uma idéia sua e que ele queria manter na rede de supermercados. Mas sem resultados, como convencer a diretoria do departamento financeiro? Quando o juiz apitou, dando o sinal para a equipe do Banco Único pôr a bola em jogo, Abreu já se instalara ao lado de Túlio e torcia as mãos, aflito.

            No primeiro set, a escalação do Baleia Azul contava com Belinha, Cacá, Lena, Marisa, Vera e Fátima. A equipe azul perdeu por 15 a 5. Marilena substituiu Lena e Cacá. Mas Fátima, não. Belinha estava louca de raiva. E, apesar do esforço da equipe, elas perderam o set seguinte por 15 a 8. A essa altura, a torcida azul tinha murchado. E a vermelha festejava, gritando: "Já ganhou! já ganhou!"

            A equipe iniciou o terceiro set com a obrigação de vencê-lo de qualquer forma. Se perdessem, perdiam não só a partida, como também o torneio e o patrocínio! Começaram com muita garra, marcando logo de início cinco pontos. Marilena, lá do banco, já comentava com Túlio que finalmente o time estava acertando, quando aconteceu o inesperado: alguém da torcida adversária jogou um copo plástico, cheio de água, nas costas de Fátima. A garota voltou-se instintivamente para trás e recebeu uma sonora vaia. O jogo foi interrompido para a secagem da quadra e, quando recomeçou, Fátima havia perdido totalmente o domínio, descontrolando-se. Se fosse outro momento, outra fase, ela suportaria isso e muito mais, mas naquela situação... E a equipe caiu de produção, foi perdendo rendimento e desperdiçou pontos importantes. Túlio mascava chiclete furiosamente-, ao seu lado, Abreu passava as mãos nos cabelos e enxugava 3 suor da testa. Patrícia tinha uma das mãos à cabeça, atordoada. O time perdia por 10 a 6.

            Marilena já tinha usado nesse set todos os três tempos a que ela tinha direito para reunir a equipe e acalmar as garotas, além de providenciar alterações táticas. Tentou, então, a única coisa que ainda não havia feito: mandar Reca se aquecer para substituir Fátima. Quando Cacá ouviu isso, seu coração de atleta deu uma cortada de alegria. Ainda havia esperança de virar a partida.

            Reca entrou na quadra com a energia de quem há muito espera a sua hora e a sua vez, decidida a virar o jogo e a conquistar para si a posição de levantadora. E a torcida do Banco Único podia jogar muitos copos de água na quadra e xingá-la do que bem entendesse, ela não haveria de perder nem a garra nem a concentração.

            Belinha recebeu a bola e passou para Reca, que a entregou de jeito para Cacá cortar. A menina subiu à rede com precisão e soltou a mão em cima da bola, que foi estatelar-se diretamente no fundo da quadra adversária.

            Começava a grande virada.

            A equipe do Baleia Azul, lutando com garra e determinação, começou a acertar as jogadas e a marcar pontos, até igualar o marcador com o Banco Único. Não só fechou aquele set como também os dois seguintes. A partida estava ganha.

 

                   Renovação do patrocínio? Ainda não...

            A verdade é que daí em diante a equipe manteve um jogo de muita categoria, regular e ofensivo. E surpreendentemente foi vencendo uma a uma as demais equipes adversárias até sagrarem-se as campeãs do torneio. Quando fecharam o último ponto da partida final, contra o Acquaviva, as meninas do Baleia Azul se abraçavam emocionadas. O locutor de televisão aproximou-se de Belinha e quis saber:

            — Como você acha que vai ser no Sul-Americano, no Peru? Você acha que o Baleia Azul pode fazer uma boa campanha contra as fortes equipes que vai encontrar por lá?

            Belinha enxugava o rosto com uma toalha que alguém lhe passara. Estava feliz:

            — Não, não sei — respondeu ofegante. — Nós vamos jogar com raça. É isso!

            No instante seguinte, o repórter entrevistava o Abreu, que tinha então ao seu lado Alfonso de Lope y Vega, dirigente peruano que viera ao Brasil acertar os últimos detalhes para a participação da equipe vencedora do Interclube no torneio Sul-Americano, que aconteceria no Peru.

            — Nosotros esperamos a todos los equipos de Sudamérica para el gran torneo que vamos a realizar! — proclamava o dirigente, um senhor grandalhão, moreno, de gestos amistosos e ar de político tradicional.

            Enquanto o locutor da TV anunciava que dali a um mês a equipe do Baleia Azul estaria representando o vôlei juvenil brasileiro no Peru, Abreu foi cumprimentar as meninas e a equipe técnica, sempre acompanhado do dirigente Lope y Vega.

            — Agora não existe mais a ameaça do corte de patrocínio? — perguntou Cacá.

Abreu fez um gesto para a menina disfarçar aquela pergunta inconveniente diante do dirigente peruano. Só mais tarde Cacá recebeu uma resposta:

            — Infelizmente a ameaça do corte de patrocínio ainda existe. A renovação será em agosto, depois do retorno de vocês do Peru. É claro que se vocês forem mal, os homens não vão querer renovar.

            Belinha cruzou os braços descontente.

            — Esses caras não ficam satisfeitos nunca! Mas a gente vai ganhar! Ninguém nos segura mais! — afirmou com convicção, abraçando Reca, que a essa altura já conquistara a posição de levantadora titular da equipe.

            Fátima aproximou-se para despedir-se das companheiras:

            — Reca, foi duro, quer dizer, está sendo duro pra mim perder a posição pra você. Mas você está jogando melhor do que eu. Meus parabéns. Só que se cuide! Desta vez pedi dispensa da equipe, mas quando eu voltar vai ser pra valer!

            Na pizzaria em que foram comemorar a vitória, as meninas aproveitaram para perguntar a respeito do torneio internacional e do país que visitariam dali a um mês.

           — Como é o Peru? — perguntou Belinha a Marilena.

            — Fantástico. O melhor vôlei da América do Sul. Vamos ter que treinar forte.

            Lena, que se servia de mais um pedaço de pizza, contou:

            — E o país é superdiferente. Minha irmã já foi pra lá. Disse que é o maior barato. Tem umas ruínas enormes, umas pedras maiores que a gente, montanhas com neves eternas, índios de ponchos, e lhamas, uns animais engraçadinhos que cospem em você!

            — Ninguém vai cuspir em mim — retrucou Belinha decidida. — Nem lhama, nem nada.

 

                   Problemas e mais problemas

            Após alguns dias de descanso que Marilena lhes concedera, as garotas se encontraram na lanchonete do clube da rede Baleia Azul, na segunda-feira.

            — Ei, ei, aqui! — berrava e acenava Belinha de seu canto, na lanchonete. Cacá dirigiu-se para lá.

            — Que cara, meu Deus! — exclamou Reca, quando a menina chegou perto. — O que houve?

            — Deu o maior rebu lá em casa — resmungou Cacá.

            — Uai, por quê? — quis saber a mineira.

            Cacá fez seu pedido ao garçom — um guaraná e um hambúrguer — e desabafou, inconsolável:

            — Não vou mais para o Peru.

            — O quê? O que é isso? — saltou Belinha de seu canto.

            — É isso mesmo que você ouviu. Deu a maior briga lá em casa. Meu pai disse que filha dele não dorme fora de casa, e muito menos fora do país. Daí eu respondi que ele tinha deixado Pedro viajar para Curitiba com o basquete... e o Pedro é mais novo do que eu. Meu pai quase me bateu de tão bravo. Disse que o Pedro é menino e pode. Foi o fim do mundo. Minha mãe não dizia nada. Quer dizer, ela tentava, mas contra o meu pai... Eu sei que eu me levantei da mesa, a gente estava almoçando, saí pisando duro, morta de raiva, e bati a porta. Ainda deu pra ouvir meu pai dizer pra minha mãe que ela não sabia me educar. Foi horrível!

            Belinha e Reca estavam boquiabertas. Belinha conhecia muito bem a família de Cacá os pais dela viviam discutindo e, quando isso acontecia, Cacá sempre aparecia deprimida nos treinos. Nesse instante, chegaram Lena e Vera. Lena, muito observadora, foi logo perguntando o que acontecera.

            — O pai da Cacá não quer deixar ela ir — explicou Belinha.

            — E se o seu pai for falar com o pai dela? — propôs Reca. — Será que daí ele deixa?

            Cacá balançou a cabeça, sem muita convicção. Belinha achou a idéia excelente. E, quem sabe, o Raul e a mãe dela não podiam ir juntos? "Uma passeata na porta da casa da Cacá..." fantasiava Belinha.

            — Por que você não faz uma greve de fome? — propôs Vera, dona de um bonito sorriso com covinhas e também cheia de mil idéias estapafúrdias.

            Cacá nem respondeu, atracada que estava com seu hambúrguer-salada. Ela vivia com fome e nem agüentava ficar sem lanche, quanto mais sem almoço e jantar.

            — Imagina, não vai dar certo! — descartou a menina, com os lábios lambuzados de maionese e mostarda, uma mistura que ela garantia ser deliciosa.

            A porta da lanchonete abriu-se. Entrou Marisa, com uma cara que também não era das melhores.

            — Xi, o que foi? — indagou Belinha. — Seu pai não quer que você viaje?

            — Meu pai? Coitado! Ele lá é de me proibir de jogar vôlei aqui ou na Conchinchina? É o meu namorado. O Caetano implicou com essa viagem. Disse que não é de namorar menina que fica viajando...

            — Que absurdo! — deixou escapar Lena, indignada.

            — Pois é. Ele disse que se eu for, não preciso voltar. Ou ele ou o vôlei.

            — O vôlei, claro, boboca — animou Belinha. — Namorado você acha outro!

            — É, mas eu gosto dele.

            Cacá, que acabara com seu sanduíche e atacava um saquinho de batatas fritas, comentou:

            — Bem, se ele gostasse mesmo de você, ele deixaria você jogar o seu jogo. Um egoísta, esse cara! Problema grave é o meu. Como é que eu posso me tornar uma grande jogadora, se na hora a minha família não deixa? E depois meu pai fica reclamando que eu não quero nada na vida!...O que eu quero ele não deixa!

            A porta da lanchonete voltou a se abrir para dar passagem a Marilena, Túlio e Patrícia.

            — O que está acontecendo aqui? — perguntou a técnica.

            As meninas contaram cada qual a sua desventura. Marilena prometeu que iria falar com o pai de Cacá no dia seguinte. Ela não podia perder uma jogadora tão importante para o seu esquema tático.

            — Você podia aproveitar e falar com o namorado da Marisa também — sugeriu Belinha.

            Marilena soltou uma gargalhada. Com o pai ela ainda falava, mas com namorado... Marisa que se entendesse com Caetano, que ela, Marilena, já tinha que se acertar com o noivo...

 

                   Voando para o Peru

            Em meio ao frio das férias de julho, chegou o dia da partida para o Sul-Americano no Peru. No aeroporto internacional de Guarulhos já se encontravam todas as doze jogadoras convocadas, com as respectivas famílias para a despedida. O pai de Cacá acabara cedendo, convencido pela técnica e pelos pais de Belinha e de Reca, que fizeram uma certa pressão telefonando-lhe. Mas Caetano, esse permanecera irredutível, e foi com lágrimas nos olhos que Marisa decidiu-se pela bola. Afinal, vôlei era a sua vida e, quem sabe, quando ela voltasse, Caetano mudasse de idéia.

 

            No amplo saguão da ala internacional do aeroporto, as meninas despediam-se dos familiares. Nas mãos, o passaporte e o cartão de embarque.

            — Vejam só! — apontaram algumas jogadoras. Era Raul, irmão da Belinha, que chegava, agitando uma folha de jornal para mostrar o colossal anúncio que o patrocinador fizera publicar, desejando boa viagem à equipe e, de quebra, anunciando que, na disputa dos preços baixos, o Baleia Azul era o campeão da economia.

            A irmã de Lena, que também viera, não parava de falar das maravilhas do Peru.

            — Estou morrendo de inveja! Que sorte que vocês têm de irem para o Peru! Lá é bárbaro. Os índios de lá, que são descendentes dos incas, são totalmente diferentes dos nossos. Os incas tinham uma civilização adiantadíssima. Vocês vão adorar Machu Picchu, Cuzco...

            Dona Marta aconselhava a Belinha:

            — Não aceite convite de ninguém que você não conheça, não se perca do grupo, não fique passeando sozinha, viu, minha filha?

            — E nem entre para a guerrilha ou para uma quadrilha de traficantes — gozava Raul, divertido com as instruções da mãe.

            Um plim-plim soou no saguão.

            — Senhores passageiros do vôo 750, com destino a Lima, queiram embarcar. Portão 8. Última chamada! — anunciava uma voz agradável no alto-falante.

            Fizeram-se as últimas despedidas, os pais recomendando a Abreu, Marilena, Túlio e a doutora Patrícia que cuidassem bem de suas filhinhas.

            As garotas tomaram a fila da Polícia Federal, apresentaram o passaporte e passaram para a revista.

            Uma policial revistava a bolsa e a maleta de algumas. Outras, recebiam um tratamento diverso: colocavam seus pertences numa esteira rolante que os conduzia por um pequeno túnel. Enquanto isso, a dona da bagagem tinha que passar por baixo de um arco de metal.

            — Pra que tudo isto? — quis saber Belinha, espantada.

            — Para evitar seqüestro de avião. Por medida de segurança, as malas e as pessoas têm de passar por detectores de metal.

            Se alguém estiver armado, ou com armas na bagagem, a sirene dispara, e o futuro seqüestrador de avião é agarrado no ato — explicou a doutora Patrícia sorrindo. Magra, cabelos lisos e curtos, tinha um ar de menina. Não perdia uma gozação e detestava ter de usar sempre aquelas roupas brancas que pareciam intimidar um pouco as pessoas.

            — Seqüestro? Tá doido! — arrepiou-se Reca, que ouvira a conversa. — Detesto esse papo!

            Depois de passarem pela Polícia Federal, as garotas entraram num grande salão cheio de lojas, dando para um amplo corredor que levava à sala de espera de cada um dos portões de embarque. A equipe apresentou o cartão de embarque e percorreu mais um corredor, todo sanfonado que levava até a porta do avião.

            — Onde é a minha poltrona, por favor? — perguntou Caca à aeromoça.

            — Oba, nós cinco vamos viajar perto uma da outra! — alegrava-se Belinha, sentando-se próximo a Cacá, Reca, Lena e Vera. Ia ser divertido.

            — Ai, morro de medo de andar de avião — queixava-se Reca.

            — Ué! Você já andou de avião? — estranhou Vera.

            — Claro que não — retrucou Reca. — É a primeira vez que boto o pé nesta coisa.

            — Então, do que é que você está reclamando? — disse Belinha. — Tem que experimentar primeiro.

            Uma aeromoça postou-se ao lado delas, com uma espécie de bóia salva-vidas no pescoço.

            — Viu, até a aeromoça tem medo e já está se cuidando — reclamou novamente Reca.

            — Que nada, é só demonstração — avisou Lena, cuja irmã já tinha viajado de avião e lhe contado como era.

            A aeronave começou a se deslocar. As meninas apertaram o cinto, conforme pedia o aviso luminoso. A comissária de bordo fez a demonstração de como usar o equipamento em caso de necessidade.

            O avião dirigia-se lentamente para a cabeceira da pista a fim de decolar e Belinha via pela janela as pessoas lá da sacada, acenando, acenando... De repente, sentiu que o aparelho parou por uns instantes.

            A comissária desaparecera, provavelmente para sentar-se em sua poltrona. O avião começou a andar, depois a correr, ganhando velocidade na pista. Lena fez o sinal-da-cruz, Cacá não fez, mas rezou uma ave-maria. Belinha e Reca permaneceram duras na cadeira. E zapt, o avião empinou-se para cima, as enormes asas elevando-se da pista.

            — A gente está subindo! — Belinha cutucou Reca, que ainda estava imóvel, de olhos fechados e mãos crispadas de medo.

            — Que sensação mais esquisita — arrepiava-se Vera, sentindo os ouvidos se taparem.

            Alguns segundos mais e a aeronave descreveu uma curva ampla e as meninas puderam ver a paisagem, pequenininha, lá embaixo. E as nuvens mansas, brancas, no céu azul lá de cima.

 

                   Esse time é mesmo tão forte?

            Na escala técnica que o avião fez em Manaus para se reabastecer, Marilena convocou as meninas, que formaram um semicírculo na sala de espera do aeroporto. A técnica recapitulou então as coordenadas:

            — São duas chaves: numa, Brasil, Venezuela, Argentina e Bolívia. Na outra, Peru, Colômbia, Chile e Uruguai. De cada chave, classificam-se dois clubes para as semifinais. O vencedor de uma chave joga com o segundo colocado da outra. Esses jogos vão ser em Arequipa. Daí saem os clubes que vão disputar a final entre si. Ela será decidida numa melhor de três, o que significa que é campeão o time que vencer duas partidas de um total de três. Os dois primeiros jogos da final serão em Cuzco.

Se for necessário o terceiro, ele será em Lima.

            Abreu vinha chegando com água para as meninas e foi distribuindo os copos enquanto a técnica fazia considerações sobre as possibilidades de cada time. Uma coisa elas tinham que conseguir: colocar-se em primeiro lugar na chave, para não ter de, na semifinal, enfrentar o Pinedo, time peruano que era o favorito na outra chave.

            — E tem mais uma coisa — acrescentou meticuloso Abreu. — O Lope y Vega já me disse que tem todo o interesse numa final entre o Baleia Azul e o Pinedo.

            — Esse time é mesmo tão forte? — quis saber Belinha.

            — Fortíssimo — confirmou Túlio. — O Peru tem a mesma tradição no vôlei que o Brasil no futebol. Se a gente ganhar deles é a consagração.

            Além disso, o Peru é um país que está situado a centenas de metros acima do nível do mar. Vocês, bem, nós todos, teremos no início problemas com a altitude: ar rarefeito. Vocês vão ficar ofegantes facilmente, vão se sentir cansadas e com tontura.

            — Por quê? Lá não tem oxigênio? — intrigou-se Cacá.

            — Quanto mais você sobe, menos oxigênio — esclareceu Túlio. — Por isso, estamos chegando antes para que vocês se acostumem e possam render ali o que rendem na quadra do Baleia Azul.

            Belinha piscou para Cacá. Aquela conversa estava tão esquisita!... Ela duvidava que fosse ficar ofegante e sem forças. Pagava para ver!

            — Qualquer problema que vocês tenham, mal-estar, tontura, procurem-me — alertou a doutora. — E tenham cuidado com o que comem nas ruas. A comida deles tem um sabor e um tempero diferente do nosso, e vocês podem passar mal.

            Do alto-falante, chamavam os passageiros para o reembarque.

            — Fico na janela! — apressou-se Reca. — Agora é a minha vez.

            A verdade é que todas queriam ficar na janela para ver a floresta e o rio Amazonas. O verde era tão exuberante, a selva tão imponente, o rio tão imenso, que, mesmo do avião, aquilo não ficava pequeno nunca. Era um verde a perder de vista. Isto é: enquanto não acabassem com ele.

 

                   Incas x Espanhóis

            Belinha foi uma das primeiras a constatar que Túlio tinha razão. Logo na chegada a Lima, a menina não sentiu nenhuma diferença. Mas, meia hora depois, começou a sentir-se meio fraca. Com um cansaço que lhe pesava desde os ombros até os pés.

            — Quero ver você dar um pique — provocava Cacá.

            Belinha limitava-se a balançar a cabeça, e, ainda assim, devagarzinho, para não dar tontura.

            — Vamos jantar, dar um pequeno passeio e deitar cedo — comandou a doutora Patrícia. — E não comam muito, porque a altitude dificulta a digestão.

            — Acho que vou dispensar o passeio — gemeu Lena, sufocada por aquela sensação de esforço e peso.

            A delegação do Baleia Azul fez uma refeição leve no hotel. E ficou sabendo que teria a companhia da equipe colombiana, que também deveria hospedar-se ali.

            Após o jantar, as garotas deram uma rápida caminhada. A noite estava fria e todo mundo suspirava por uma cama quente e repousante; um descanso necessário para o dia seguinte, ainda reservado para passeios e adaptação.

            — Gente, olha, olha só! — vibrava Cacá em frente à janela aberta para o dia que mal acabara de nascer.

            — Ai — reclamou Belinha, que detestava acordar cedo. — Fecha essa persiana, por favor! — resmungava, ofuscada.

            Reca deu um salto da cama e foi ver o que era. Diante da janela, abria-se uma praça bonita, ampla e de edifícios baixos. Na calçada oposta vinha vindo uma índia com o filhinho metido numa espécie de saco de pano que ela carregava às costas.

            — Olha o chapéu dela! — exclamou Cacá. — Parece de homem!

            A essa altura, a curiosidade de Belinha falou mais forte que o sono e a garota juntou-se às amigas debruçadas ao peitoril da janela, observando a índia: uma mulher jovem, morena, nariz adunco, cabelos lisos e olhos amendoados, que lembrava um pouco os nossos índios.

            — Que saião rodado! E quanto xale em cima! Não acaba mais! — extasiava-se Belinha, fascinada com o colorido forte das roupas. — Quanta cor!

            — Vou tirar uma foto. O menininho é uma graça, ai que lindinho, sacolejando lá atrás — encantava-se Reca.

            Mas quando a garota reapareceu à janela de câmera em punho, a índia, percebendo a intenção, saiu correndo e sumiu na virada da esquina. As meninas ficaram desapontadas.

Alguém bateu à porta.

            — Entre! — comandou Belinha.

            Era Lena. Enfiou a cabeça pela fresta e soltou um assobio ie admiração.

            — Ulalá! Já acordaram?

            Lena era a encarregada do dia, e tinha como responsabilidade cuidar para que ninguém se atrasasse nas atividades programadas e nas refeições.

            Cacá foi a primeira a aprontar-se.

            — Estou morta de fome. Tchau. Encontro vocês no restaurante! — E, lépida, escorregou para fora do quarto.

            O café da manhã não desapontou o apetite de Cacá. Além café com leite, havia chá, chocolate quente, frutas e bolos lamber os dedos. Mais tarde, Cacá descobriu, para a sua própria felicidade, que, no Peru, qualquer bar, até os mais simples, :am bolo de chocolate com cobertura de creme branco.

            Após aquela maravilha de café da manhã, a equipe toda tomou um ônibus especial para um pequeno giro turístico. Assim, conheceram a Praça das Armas, onde ficam o Palácio do Governo e a Igreja da Mercê, uma igreja de fachada "artisticamente retorcida", como observou Belinha, que Patrícia explicara ser barroco colonial. Algo parecido com Ouro Preto, que também era da época da colônia. Só que os colonizadores deles, esclarecera a médica, não foram os portugueses, mas os espanhóis.

            — Que chegaram e fizeram a maior matança para arrancar ouro e pedras preciosas dos incas — concluiu Patrícia, que nunca fora imparcial na vida.

            — Que horror! — indignou-se Belinha, que, depois que vira a índia, simpatizava mais com os incas que com os espanhóis.

            Nas ruas, elas cruzaram com muitos índios e índias. E, sempre que podiam, fotografavam-nos, antes que eles se escondessem. Cacá vibrava com a idéia de que aqueles índios pudessem ser descendentes dos incas, um povo, em diversos aspectos mais avançado que o espanhol, como assegurara Patrícia.

            — Eles conheciam bem astronomia e eram grandes artistas em trabalhos com ouro — comentava a médica quando a excursão do Baleia Azul estacionou junto ao Museu do Ouro.

            Lá dentro, tudo faiscava. Eram todas peças talhadas em ouro: cálices, pratos, coroas, além de roupas tecidas em fio dourado.

 

                     Um rato entre brasileiras e colombianas

            — Olá! saudaram as colombianas, que também chegavam ao museu para a sua excursão. Marilena conversou com o técnico colombiano, num misto de espanhol e português, apelidado de portunhol.

            — A equipe colombiana chegou tardíssimo ontem, por isso não cruzamos antes com ela — explicou Marilena à sua equipe.

            Belinha dirigiu um sorriso tímido para uma colombiana que lhe parecera simpática:

            — Oi! Vocês fizeram boa viagem?

            A outra sorriu constrangida e fez um gesto com a mão, indicando que não havia entendido nada.

            — Ustedes hicieron un buen viaje? — traduziu Patrícia. O rosto da menina se desanuviou e abriu num largo sorriso. Acenando com a cabeça, ela respondeu:

            — Si, si. Muy buen viaje.

            Foi a partir daí que Belinha e Cacá estabeleceram as regras do portunhol. Simplificadamente, bastava trocar uma e um por una e un. Muito era muy ou mucho, conforme o caso. O problema é que elas jamais conseguiam saber direito quando é que usava mucho em vez de muy.

            — O mais engraçado — comentava Cacá —, é que, se elas falavam devagar, nós as entendemos. Mas o português elas não entendem de jeito nenhum.

            — Después de la cena, nosotras vamos a bailar la salsa un rato. Quieren?

            Belinha olhou aflita para Cacá. Um rato? O que aquelas meninas pretendiam fazer com um rato? Será que naquela dança entravam ratos?

            Por via das dúvidas, Belinha deu uma vigorosa negativa à proposta de rato e salsa. Ratos e baratas eram duas coisas com 15 quais ela não se dava!

            Patrícia veio em socorro para salvar a situação, pois a colombiana que fizera o convite parecia muito surpresa com a reação de Belinha.

            — Ela está nos convidando para dançar a salsa, que é um ritmo do Caribe, depois do jantar. E un rato quer dizer "algum tempo".

Belinha pôs a mão na cabeça. Que confusão ela tinha feito!

            — Pués, si, vamos bailar com vocês — Belinha apressou-se a corrigir, tentando imitar o jeito de as colombianas falarem. — Gracias pelo convite. A gente dança um rato com vocês e vocês bailam samba outro rato com a gente. Certo?

            Com algumas dificuldades, as garotas brasileiras acabaram se entendendo com as colombianas. Patrícia prometeu naquela tarde uma aula de noções de castelhano, para que todas pudessem aproveitar melhor os dias no Peru. E assim ficou combinado que após o jantar no hotel as duas equipes iriam encontrar-se, para dançar o samba e bailar la salsa. Nada como se divertir enquanto não começavam os treinos para o Sul-Americano!...

 

                   Ai, que chatice!

            No dia seguinte, de fato, começaram os treinos dos fundamentos — cortada, passe, manchete, saque — e a preparação física. As garotas ainda sentiam a altitude, mas não tanto quanto na chegada. Elas começavam a adaptar-se. E assim passaram os dias, treinando de manhã, fazendo algum passeio de vez em quando e às noites dormindo cedo, depois de se divertirem tocando violão e cantando com as colombianas.

            — Até que eu estou gostando dessa salsa, e da rumba também — ria Belinha, tentando imitar o balanço das colombianas.

            — Daqui, eu só não me acostumei com o abacate na salada de verdura e com esse tempero esquisito. Esse tal de culantro, que amarela toda a comida! — reclamava Reca.

            — Culantro nada. Coentro, menina — corrigia Cacá. Reca deu de ombros. De qualquer jeito, era ruim. Parecia que Lima inteira estava envolvida por uma camada de culantro.

            — Vai ver que falta oxigênio aqui por causa desse culantro. É isso mesmo! — resmungava Reca. — Tempero bom é o nosso: sal, pimenta, salsa e cebolinha!

            Marilena já pedira ao cozinheiro do hotel para evitar o uso do coentro na comida da equipe brasileira. Ele jurava que havia suspendido, apesar das queixas das atletas e do amarelo persistente que acompanhava todos os pratos saídos de sua cozinha: o frango, o arroz e até o ovo...

            Assim, a delegação brasileira chegou ao dia D: a abertura do Sul-Americano.

            A solenidade de abertura dos jogos se fez no ginásio principal da capital peruana. Ali compareceram todas as equipes, além de técnicos, médicos e dirigentes. Abreu colocara um terno azul-claro com colete e um alfinete de madrepérola na gravata. E achava-se lá adiante, no palanque de honra, próximo ao dono da festa, o dirigente esportivo Alfonso de Lope y Vega e demais autoridades: o prefeito da cidade, o secretário de esportes, uma representante da ministra da Educação. E nenhum deles deixou de fazer seu discurso.

            — Ai, que chatice! — resmungava Belinha, cansada de ouvir de pé a tanta falação.

            Cacá, que volta e meia passava o peso do corpo de uma perna para outra, também se aborrecia mortalmente.

            — Não sei por que temos que ouvir todo esse mundo de gente falando. Cansa mais que jogar uma partida inteira — comentou para a doutora Patrícia.

            A médica deu-lhe uma piscada cúmplice:

            — Os jornais dizem que esse senhor, o Lope y Vega, quer se reeleger deputado, por isso organizou este torneio com toda esta politicagem. Faz parte da campanha... É como o futebol lá no Brasil, a maioria dos dirigentes sempre acaba se candidatando a deputado — comparou Patrícia.

            Após a longa cerimônia de abertura do torneio, foi oferecido um coquetel. No dia seguinte, sábado, teriam início as paradas. E o Baleia Azul iria jogar contra o Sporting, um clube argentino de Buenos Aires.

 

                   O Baleia Azul na final

            Naquele sábado à noite, disputando seu primeiro jogo do torneio contra a equipe argentina, as brasileiras estavam um pouco nervosas. Túlio, que assistia do banco, observou: — Elas estão muito frias!

            — Também, com essa temperatura — comentou Abreu, dando mais uma volta de seu cachecol sobre o pescoço.

            O ginásio não estava cheio e dava até para sentir falta do barulho da torcida. O time argentino iniciou sacando e a equipe brasileira já começou errando na recepção. E continuou errando. O placar chegou a 9 x 0. Abreu roía as unhas e fumava ao mesmo tempo, sem conseguir entender o que estava acontecendo com o seu time. Túlio, como sempre, mascava o seu chiclete com fúria. Patrícia balançava a cabeça, inconformada: aquele não era o Baleia Azul que ela conhecia! Marilena acompanhava atenta a partida, estalando os dedos, apreensiva. O que dera na sua equipe?

A técnica pediu tempo novamente.

            — Prestem atenção, meninas. Este é só o primeiro set. Calma. Nós estamos perdendo por 9 a 0. Ou vocês recuperam com tranqüilidade, ou entregam o jogo e partem com garra para o próximo set. Vocês estão preparadas, são um time incrível. Vão devagar que chegam lá.

            — Gente! — comandou Lena, ao voltarem à quadra. — Vamos recuperar!

            — É isso, vamos virar — apoiaram Reca e Belinha.

            Belinha foi para o saque. Acariciou a bola, concentrou-se e, ao apito do juiz, torpedeou a quadra adversária com o seu viagem ao fim do mundo. As argentinas receberam mal e passaram de qualquer jeito para o campo brasileiro. Lena recebeu e passou no capricho para Reca, que colocou de jeito para Cacá cortar na ponta.

            A menina encheu a mão na bola, com vontade. O bloqueio tentou segurar, mas a bola espirrou fora. Ponto brasileiro.

            — Vamos lá — animava Belinha.

            E assim as jogadoras do Baleia Azul foram marcando pontos, bloqueando bem, recebendo melhor ainda, Reca distribuindo e levantando com categoria. A equipe brasileira fechou o primeiro set em 15 a 12. E ganhou os outros dois também. Uma vitória espetacular, de garra e determinação!

            No dia seguinte, os jornais eram unânimes ao comentar a fantástica virada das brasileiras.

            O jogo seguinte, contra as bolivianas, não fez mais do que confirmar a supremacia do Baleia Azul, por três sets a zero. Contra o time da Venezuela, as brasileiras encontraram uma dificuldade um pouco maior, mas venceram por 4 a 1. Depois das comemorações, elas deixaram o vestiário dispostas a acompanhar o jogo decisivo da outra chave, entre as representantes do Peru e da Colômbia. Nos encontros de salsa, samba e roque, as brasileiras tinham combinado com as colombianas que a final seria entre elas. Para que isso acontecesse, a Colômbia precisava vencer o Peru e ficar em primeiro lugar na chave.

            A delegação do Baleia Azul chegou na metade do jogo. E todos puderam atestar a categoria do clube peruano: potência nas cortadas, bloqueios intransponíveis, a boa recepção. E, como se isso não bastasse, havia a torcida peruana, que era fera. As peruanas ganharam das colombianas e no dia seguinte os jornais anunciavam os semifinalistas: Brasil,, Argentina, Peru e Colômbia, apontando como prováveis finalistas as equipes do Peru e do Brasil. "Será uma guerra!", antecipavam.

            As duas partidas semifinais — Brasil x Colômbia e Peru x Argentina — apenas confirmaram as previsões. As equipes do Brasil e do Peru não tiveram grandes dificuldades para derrotar suas adversárias em Arequipa. Agora, era voar para Cuzco, onde essas equipes se enfrentariam nos dois primeiros jogos da final. Começava então a verdadeira campanha para as brasileiras.

 

                   Não estou gostando desse clima...

            — Umbigo?

            — É isso mesmo que você ouviu, Belinha. "Umbigo do mundo". É isso que quer dizer Cuzco em quíchua, que é a língua dos incas — explicava Patrícia, passando os olhos no folheto turístico.

            — Que umbigão! — riu Belinha divertida. — Acho que eu vou mudar o nome do meu saque: de viagem ao fim do mundo para viagem ao umbigo do mundo!

            A delegação do Baleia Azul acabava de chegar à Praça das Armas, praça principal da cidade que já fora a capital e o centro religioso da nação inca, também chamada de Império do Sol. Era uma praça retangular, circundada por construções baixas, caiadas de branco, que ostentavam graciosas sacadas de madeira. À direita havia uma grande igreja, com as torres em barroco colonial. Do outro lado, havia também um segundo templo, menor e menos majestoso. Da praça, avistava-se uma cadeia de montanhas, que envolvia a cidade. O céu era de um azul límpido, mas o frio era de arrepiar. Túlio puxava cada vez mais o gorro orelhas abaixo.

            — Aqui tem menos ar que em Lima — comentou com ele Cacá.

            — Claro, a gente está a mais de mil metros acima do nível do mar e em plena cordilheira dos Andes — confirmou Túlio, tremendo de frio.

            — Quer dizer que eu estou pisando os Andes? Que legal! — entusiasmou-se Belinha, sapateando na terra, certificando-se, bem certificada, de que pisava mesmo os Andes, aquela cordilheira fantástica de que a professora de Geografia tinha falado tanto. Ao fim do exercício, a menina teve que ser amparada por Reca.

            — Estou zonza! Ai! Acho que já sei por que o primeiro jogo vai ser aqui. Porque brasileira nenhuma vai conseguir tirar os pés do chão. Parece que os meus tênis são de chumbo! — sussurrou Belinha, com voz ofegante.

            Cacá e Reca estavam fascinadas com as montanhas e aspiravam satisfeitas aquele ar puro, frio e revigorante.

            — Bem que a minha irmã disse que essa cidade era incrível! — extasiava-se Lena, observando os índios com seus chullos — gorros coloridos com duas largas abas que desciam sobre as orelhas — e suas mulheres de chapéu-coco e crianças às costas. Encantou-se também com as lhamas que os acompanhavam, uns animais esbeltos e peludos, enfeitados com umas fitinhas vermelhas que as crianças amarravam às suas orelhas.

            — Olhem só o que eu comprei de um índio! — mostrou Túlio, que voltara após breve ausência.

            — Você fica engraçado com esse chullo — riu Cacá, observando-o.

            — Pelo menos não passo frio nas orelhas como o Abreu, que vem aí com o cachecol enrolado até os olhos! — gabou-se Túlio. Abreu se aproximou, convocando as meninas a entrarem no hotel. Era uma construção de pedra e madeira e tinha um nome quíchua: Viracocha.

            — Viracocha? que nome mais gostoso de falar — comentou Vera, que volta e meia o pronunciava como quem masca um chiclete. Patrícia então contou-lhe que Viracocha era o deus da chuva para os incas.

            E, como estivessem todos zonzos, após o almoço, sentaram-se na sala, tratando de economizar movimentos e energias. A altitude de Cuzco valia por um murro bem-aplicado na cabeça.

            — Ainda bem que temos uma semana para adaptação! — ponderou Marilena, preocupada. — Não sei por que o tal Lope y Vega colocou Cuzco no roteiro dos jogos!

            A doutora Patrícia observou enquanto se servia de chá: — Ele está em campanha eleitoral e pode ser que tenha interesse nos votos desta região...

            — Vejam o que diz o jornal, olhem só! — exclamou Abreu, afoito.

            Belinha e Cacá se arrastaram para trás da poltrona do dirigente para lerem. Túlio pediu para que Abreu lesse em voz alta, porque ninguém tinha forças nem para cruzar as pernas, quanto mais para andar!

            — Aqui diz que o Baleia Azul promete ser um grande adversário para o Pinedo. E que no treino de ontem, o técnico peruano insistiu em chamar o time adversário — portanto nós — de inimigo, declarando que vencer este torneio é uma questão de honra!       

            — Inimigo? E eu lá sou inimiga de alguém? — estranhou Cacá.

           Marilena respirou fundo, aspirando aquela escassez de ar.

            — Não estou gostando desse clima de disputa... — afirmou contrariada.

            — E a torcida peruana é terrível. Vamos ter que nos preparar muito bem para não perdermos o equilíbrio emocional — alertou Patrícia.

            Belinha queria saber se elas ainda tinham mesmo que ganhar o torneio para a renovação do patrocínio. Afinal, elas já eram vice!

            Abreu fez uma cara que sim e que não.

            — Falei com o departamento financeiro por telefone antes de virmos para cá, e a última informação era a de que esperavam uma vitória...

            — E o pior é que vai ser uma briga de foice — advertiu a médica —, pois o Pinedo não vai querer ser derrotado em casa.

            — Para mim, o pior não vai ser o jogo dentro da quadra, o duro é fora! Eles já começaram a guerra de nervos — declarou Túlio apreensivo.

            — Eu espero que fiquem por aí e não se atrevam a ir mais longe! — murmurou Marilena, que tinha muita experiência em campeonatos.

            — Como "não se atrevam a ir mais longe?" — repetiu Belinha, sem entender.

            — Ah, nem sei, prefiro nem pensar nisso...

            Belinha e Cacá se entreolharam, e Reca sentiu um frio subir pela espinha. O que significaria aquilo?

 

Como eles trouxeram essas pedras até aqui?

 

            No dia seguinte, toda a equipe do Baleia Azul descansou pela manhã e à tarde fizeram alguns exercícios leves, coordenados por Túlio.

            — Vamos fazer uma adaptação vagarosa. Amanhã, vamos ter dia livre. A doutora Patrícia sugeriu e a Marilena e eu concordamos em passarmos o dia em Machu Picchu.

            — Obaaaaa! — festejou Lena. Desde que a irmã falara daquela cidade perdida na selva, a garota não deixara de sonhar um só minuto em conhecer a lendária Machu Picchu, encravada no topo de uma montanha alta.

            Assim, no dia seguinte, tomaram de madrugada o trem dos turistas. E, margeando o rio Urubamba, contemplaram pela janela as neves eternas que cobriam os altos picos dos Andes como marshmellow em sorvete de chocolate.

            — Já chegamos? — quis saber Cacá, ao descer do trem.

            — Imagina! A gente tem que chegar lá. — Lena apontava rara cima. Lá era bem acima da cabeça da menina, no topo longínquo de uma montanha escura.

            A delegação do Baleia Azul tomou um ônibus que aguardava os turistas e os levava por uma subida íngreme, em zigue-zague, até o cume da montanha.

            Emergindo da espessa névoa que recobria as ruínas, destacava-se isolado e magnífico o Huayna Picchu, ali nos confins da cidade perdida. Na paisagem verde e cinza, de pura pedra e profundidade, o céu parecia baixar e beijar a terra.

            Além, muito além do horizonte, envolvendo o silêncio e o sagrado de Machu Picchu, erguia-se, majestosa e terrível, uma cadeia de montanhas em pedra crua.

            Belinha contemplou muda aquele cenário fantástico. Subitamente, sentiu-se pequena, muito pequena. E teve a impressão de que perdia o equilíbrio e, com o coração batendo, acelerado, a garota tateou em busca de apoio. Alguém a ajudou.

            — Eu também me senti assim da primeira vez que estive aqui — confessou-lhe a doutora Patrícia. — Até hoje não se sabe o que era exatamente esta cidade-fortaleza. Ela ficou perdida durante séculos. Só foi descoberta no início deste por um arqueólogo americano.

            — Eu queria saber como eles trouxeram essas pedras enormes para cá — observou Reca, que se aproximava com Cacá. Elas estavam admiradas com as pedras dos templos e das construções de Machu Picchu. Com efeito, era um mistério intrigante como os incas tinham conseguido recortar as pedras tão perfeitamente a ponto de dispensarem argamassa para erguerem as paredes de suas casas.

            A médica levou as garotas para verem o observatório astronômico: uma construção com janelas e com duas espécies de pratos rasos esculpidos no piso de rocha. Segundo se contava, aqueles pratos, cheios de água, refletiam as estrelas.

            Um guia indicou uma escultura em pedra com quatro vértices que apontavam para os pontos cardeais.

            — Este é o Intihuatana — explicou o guia. — Inti, de "sol", o "Pai dos Incas". Huatana significa "amarrador". Intihuatana é o amarrador do sol. Dizem que através de determinado jogo de luz e de sombras, linhas, projeções e ângulos dos raios solares, essa escultura funcionaria como instrumento astronômico. O que se sabe ao certo, porém, é que era um relógio e um calendário solar.

            — Não estou vendo os ponteiros! — brincou Cacá.

            — Agora entendi por que a moeda do Peru se chama inti — observou Belinha.

            — Como é impressionante tudo aqui! — exclamava Reca com uma ponta de susto, aproximando-se de Belinha e de Cacá e abraçando as duas. As três deixaram-se ficar ali caladas, contemplando aquelas ruínas negras e mudas, que revelavam um mundo distante, perdido e mágico. E que provocavam uma sensação de infinito e de sagrado. Ali habitaram os deuses...

 

                   Machu Picchu torcendo contra o inimigo

            — Atenção! — pediu Marilena. Já haviam se passado seis dias de treino pesado e de preparação física. A equipe estava pronta para o jogo daquela noite. — Vocês estão bem preparadas. Mantenham a calma e a concentração. Não aceitem provocação da torcida ou das próprias jogadoras — recomendou ainda a técnica, destacando as palavras. E finalizou, acrescentando: — Depois do almoço, procurem descansar e não fazer muito esforço. O jogo de hoje vai exigir muito de cada uma de vocês.

 

            Após o banho, atletas e comissão técnica saíram para almoçar. Atravessaram a calçada apinhada de índios vendendo artesanato, chullos e tumis, o onipresente Tumi, totem-símbolo da cultura andina, moldado em estatuetas ou em placas de metal ou desenhado em tapeçaria. O grupo tomou a esquerda, rumo a um simpático restaurante situado na esquina, do outro lado da praça.

            — Epa! — sobressaltou-se Túlio assim que eles entraram ao restaurante. Um grupo de torcedores em uma mesa acabara de vê-los e iniciava um coro: "Peru! Peru!" As pessoas das outras mesas não demoraram a aderir, fazendo um estardalhaço. Marilena não vacilou. Comandou uma retirada imediata, sob as vaias da torcida andina.

            — Não vou expor a minha equipe a este clima. Almoçamos no hotel, está decidido — ordenou a técnica. Belinha, Cacá e Reca entreolharam-se. Elas jamais tinham vivido uma experiência daquelas fora das quadras. A equipe estava chocada. Após almoço, Marilena proibiu as garotas de passearem pela praça. A técnica não queria correr riscos: o time já ia ter que enfrentar o desafio da torcida, no momento do jogo. Não havia por que se expor ainda mais.

 

            O ônibus que trazia a delegação do Baleia Azul chegou ao ginásio com dois batedores à frente e dois atrás. Foi uma providência que Abreu pedira naquela mesma tarde e que o dirigente Lope y Vega fizera questão de atender, mandando dois batedores a mais por sua conta. Abreu não queria surpresas. Ele se assustara com o clima tenso da até então pacata cidade. De repente, Cuzco se enchera de fanáticos torcedores. Qualquer coisa polia acontecer.

            — Minha avó sempre dizia: melhor prevenir! — justificou compenetrado o dirigente.

            Agora, nos vestiários, as garotas tiravam os abrigos azuis e colocavam as joelheiras. Cacá dava pequenos pulos ritmados, tratando de se aquecer. Reca piscava e franzia a testa, intrigada. Algo corria no ar, Belinha sentia, algo difuso e quase palpável, tocando a pele, tensionando os músculos.

            "Hostilidade." Belinha sentia, como se a esmagassem. A cadeia gigantesca dos penhascos de Machu Picchu: era essa a sensação. A torcida e os penhascos pareciam ser a mesma coisa, quando ela entrou na quadra. E era o mesmo frio, o mesmo vento gelado no rosto, uma névoa hostil envolvendo as jogadoras do Baleia Azul. Belinha assustou-se, seguindo-se a mesma sensação de perda de equilíbrio que teve quando estava em Machu Picchu.

            — Belinha! — chamou Cacá. Nos olhos da amiga, a garota descobriu a mesma inquietação. Elas não pronunciaram palavra, apenas uma interrogação no olhar assustado que elas trocaram.

            — Vamos lá, vamos aquecer! — comandava Lena numa voz que não era a dela.

            "Meu Deus, é Machu Picchu, aqui, nesta quadra, torcendo contra nós, o 'inimigo', as brasileiras!'', pensava Belinha, sobressaltada.

            — A Marilena está chamando! — avisou Cacá ao ouvido de cada titular.

            Belinha estranhou. Elas estavam começando o aquecimento! Que novidade era aquela?

            Reuniram-se todas em volta da técnica.

            — Chamei vocês só para dizer isto: vocês podem! Vocês estão preparadas e esta torcida não é pior nem melhor do que qualquer outra. Vocês têm muita força dentro de vocês. E eu sei que cada uma vai ser capaz de tirar de dentro de si toda a concentração, toda a garra, toda a raça e partir para o jogo pra ganhar, sem se importar com torcida, juiz e o que for. Agora voltem à quadra e joguem o que sabem!

            Belinha voltou sentindo o sangue nas veias. Olhou para Cacá, para Reca, para Lena. Elas estavam ali, inteiras.

            — Cacá! — chamou Belinha. E o olhar que trocaram dessa vez era de força e brilho. Elas iam lutar e iam ganhar.

            O juiz apitou o início da partida. Início difícil em que nenhuma das equipes conseguia converter a vantagem em ponto. A torcida aplaudia quando o saque era peruano e vaiava quando quem sacava era o Brasil. No entanto, as garotas do Baleia Azul mantiveram a calma e começaram a fazer pontos. O time começou a deslanchar, recebendo e cortando bem. O Baleia Azul ganhou o primeiro set por 15 a 12. Perdeu o segundo por 17 a 15 e ganhou o terceiro por 15 a 10. O quarto set, que podia sei decisivo para o Brasil, sofreu toda a sorte de interrupções. A brasileiras estavam ganhando com uma diferença de cinco pontos, quando a torcida começou a jogar copos de água na quadra. E lá vinha um indiozinho com um esfregão secar o piso As peruanas se recuperaram, empataram o jogo e depois fecharam o set por 15 a 12.

            Era chegado o quinto e último set. A torcida estava endiabrada, irrequieta. Grosseira mesmo. Marilena voltou a recomendar calma antes de iniciarem aquele set decisivo.

            — Vamos lá, minha gente — estimulava Lena. E cada ponto que a equipe ia convertendo era saudado entre elas com palavras de ânimo e um gesto característico: as palmas das duas mãos batendo de encontro às palmas da companheira.

            Prrrrrim!, apitou o juiz, dando bola dentro para a equipe peruana. A partida, que estava equilibrada em 6 a 6, começava a desequilibrar-se. Belinha reclamou. Ela tinha visto a bola cair fora! O juiz não teve dúvidas: mostrou-lhe o cartão de advertência. E no ponto seguinte deu bola dentro, outra vez, para a equipe andina.

            — Calma! — gritava Lena.

            Marilena pediu tempo, convocando a equipe. Elas perdiam por 12 a 8. Aqueles momentos eram decisivos. Dava para virar o jogo se mantivessem a tranqüilidade.

            — A gente vai virar, deixa comigo — assegurou Reca, decidida.

            O time adversário sacou, ao apito do juiz. Cacá mergulhou, entregando a bola para Reca levantar para Belinha. Mas, em vez de passar para a cortadora, Reca colocou a bola exatamente no vazio da quadra peruana. Cravou uma vantagem, logo convertida em ponto pelo viagem ao umbigo do mundo, o novo saque de efeito de Belinha, que aproveitara naquela semana para aprimorar o antigo viagem ao fim do mundo. Belinha voltou a sacar e fez mais quatro pontos consecutivos. E, apesar de todos os tempos que o técnico peruano solicitou, apesar de toda a algazarra da torcida andina, a equipe do Baleia Azul crescia e crescia em produção, puxada pela eficiência de Reca, uma levantadora esperta e criativa. Foi ela quem entregou a última bola para Cacá subir e cortar, vinda lá do fundo da quadra, numa jogada inesperada para o bloqueio peruano. Ponto brasileiro. As jogadoras do Baleia Azul abraçaram-se, longamente, comovidas. Elas tinham provado que podiam! As brasileiras derrotaram um time perplexo diante de uma torcida agora emudecida.

 

                   E agora? Eles estão vindo para cá!

            No dia seguinte à vitória do Baleia Azul sobre o clube peruano, Abreu irrompeu no café com uma pilha de jornais.

            — Olhem só o que os jornais estão dizendo — anunciava satisfeito.

            As garotas reuniram-se à sua volta. O dirigente pôs-se a traduzir:

            —"Baleia Azul leva a melhor, Pinedo jogou com raça". E vejam aqui mais adiante: "A partida foi disputadíssima, o Pinedo esteve próximo à vitória, mas faltou às nossas jogadoras tranqüilidade para fechar. A jogadora do Brasil, Reca, surpreendeu o time da casa. Muito habilidosa, ela é a arma secreta brasileira!" — finalizava Abreu, que não cabia em si de orgulho pelas proezas do seu time.

            — Deixa ver! — pediu Belinha, esticando o braço. — Ai! —          gemeu a garota. Ela sofrerá um estiramento muscular no final do jogo e, provavelmente, segundo o diagnóstico da doutora Patrícia, estaria fora da segunda partida. Assim como Cacá, que sofrerá uma contusão na perna e amanhecera meio gripada e com febre. Tânia e Ângela, suas reservas, estavam treinando forte para o jogo dali a dois dias. Mas Belinha e Cacá garantiram que se recuperariam a tempo. Cacá acrescentou à sua sobremesa de bolo de chocolate a vitamina C das laranjas e ela e Belinha submeteram-se ao tratamento sem queixas.

            No sábado, véspera do segundo jogo, porém, nem uma nem outra estavam em condições de jogar. E foi com um indisfarçável desânimo que as duas se sentaram à mesa de jantar, onde          já se encontrava Reca.           

            — Acho que este resfriado não vai me largar nunca mais...— reclamou Cacá para Reca.        

            A levantadora não respondeu. Parecia absorta com alguma coisa do outro lado do salão.        

            — Reca, me passa o pão — pediu Belinha.

            A garota continuou alheia. Intrigada, Cacá deu-lhe um beliscão.

            — Ô, acorda, Reca. O que aconteceu? Viu o passarinho verde? — indagou Cacá, sem entender a distração de Reca, que era de todas a mais ligada em tudo.         

            — Ahn? — fez Reca, voltando-se para as garotas. O que vocês querem? — perguntou ainda meio ausente.

            — Nós queremos saber o que está acontecendo pra você estar tão longe, parece no mundo da lua! Estou te estranhando, Reca! — cobrou Belinha, que nunca conseguia ser muito paciente.

            Reca inclinou-se para a frente e cochichou para as amigas:

            — Não olhem agora, mas sentados atrás de vocês, lá no fundo, tem dois caras lindos!

            — Ah, deixa ver! — exclamou Cacá, voltando-se para trás, sem a menor preocupação em atender a recomendação. A Reca fechou os olhos. Agora sim eles iam perceber que ela estivera olhando para eles todo aquele tempo. "Que mancada!"

            — Uau, são mesmo lindos!— avaliou Cacá, entusiasmada. — O da esquerda, de cabelo encaracolado, furinho no queixo, é uma graça. — E Cacá ajeitou a cadeira de modo a poder lançar de vez em quando um olhar de esguelha para os rapazes.

            — Eles já sacaram tudo e estão olhando pra cá! — noticiava Reca, cuja posição privilegiada lhe permitia observar melhor a outra mesa. — Agora, eles estão disfarçando. Eu gosto do outro, que tem uns olhos lindos e parece mais velho.

            Belinha suspirou fundo. Os rapazes pareciam interessantes, mas nenhum deles a atraía particularmente. Ela estava se divertindo com a paquera das amigas. E de vez em quando também arriscava um olhar para lá.

            Os rapazes pareciam demorar e esticar o seu jantar ao máximo. As garotas, em sua mesa, faziam o mesmo.

            — O chá deles já chegou! — avisou Reca. — E nós ainda r.ím acabamos a sobremesa! Vamos, Cacá, acaba logo esse seu bolo! — exigia a amiga, que desejava deixar a sala de jantar ao mesmo tempo que os rapazes. Quem sabe eles se falavam?

            — Tá bom, então não chupo minha laranja — concedeu Cacá. — Podem pedir o nosso chá que eu engulo este bolo num instante!

            Os rapazes, com gestos intencionalmente pausados e vagarosos, deixavam a mesa, com os olhos voltados para as garotas. Reca, mais impaciente, deu só um gole no seu chá e levantou-se quando viu que os rapazes acabavam de cruzar a porta do restaurante.

            — Vamos! — comandou.

            Cacá, mesmo de pé, deu a última garfada em sua sobremesa, limpando o prato. E correu para alcançar as meninas no saguão do hotel.

            Lá chegando, depararam com os dois rapazes, postados junto a uma janela, cochichando entre si. O mais alto parecia descendente de índios: tinha o cabelo liso, a pele morena e os olhos um pouco amendoados. Mas era pelo outro rapaz, o de cabelos encaracolados e de sorriso franco, que o coração de Cacá batia.

            A garota parou perto das amigas e deu um risinho nervoso. Ela tinha quase certeza de que o rapaz também tinha gostado dela. Assim ficaram por algum tempo, os rapazes olhando para elas e elas olhando para eles — difícil saber quem disfarçava mais.

            — E agora? Eles estão vindo para cá! — sussurrou Cacá com um arrepio bom na espinha.

            Reca não parava de apertar as mãos e de fazer caretas cômicas.

            Os rapazes vinham chegando, sorrindo meio embaraçados, quando seu caminho foi interrompido por Túlio, que vinha chamar as garotas para uma reunião com a técnica.

            — Droga! — protestaram Reca e Cacá. Mas, a essa altura, os rapazes já haviam sumido e elas não tiveram outro remédio senão dirigir-se à sala para a reunião noturna.

            Marilena escalou o time: Reca, Lena, Marisa, Vera, Ângela e Tânia. No banco: Teresa, Márcia e Paula. E finalizou com uma novidade:

            — Amanhã, faremos um passeio a uma feira de índios na cidade de Pisaq, que fica a 32 quilômetros daqui. Pelo menos, lá, vão nos deixar passear com tranqüilidade. Acho um risco ficar em dia de jogo aqui em Cuzco. Estejam prontas e com o café tomado às nove e meia em ponto! E tratem de dormir cedo e de descansar bem!

            A doutora Patrícia aproximou-se de Cacá e Reca:

            — Parece que vocês duas já descobriram que os peruanos podem ser muito interessantes... — insinuou a médica, com um ar maroto.

            — O quê? — perguntou Reca, fazendo-se de desentendida. Mas a médica não disse nada, limitando-se a um sorriso de cumplicidade.

            Quando as garotas finalmente deixaram o salão de reuniões, os rapazes não estavam mais por ali, nem na sala de jogos, nem no bar. E nem na calçada em frente ao hotel, que, aliás, apresentava um certo movimento estranho. Belinha não sabia dizer por que achava estranho. Talvez fosse apenas uma impressão. Talvez. Nem Reca nem Cacá notaram algo de diferente. Mas elas estavam ocupadas em procurar os rapazes. Belinha dirigiu-se para o quarto com a sensação de Machu Picchu, da névoa e das montanhas escuras se acercando...

 

                   E essa gente não nos deixa dormir

            Belinha foi despertada por uma certa agitação no quarto. A garota consultou o relógio: duas da madrugada. E o que é que Reca e Cacá faziam àquela hora debruçadas na janela? Um ruído agudo e irritante chegava-lhe aos ouvidos.

            — O que está acontecendo? — indagou Belinha.

            — É a torcida peruana, bagunçando embaixo das nossas janelas — explicou Reca, espiando pelas frestas da veneziana.

            Cacá abriu a porta do quarto, pronta para sair.

            — Aonde você vai? — voltava a perguntar Belinha, ainda não resolvida a abandonar a cama.

            — Vou reclamar com a gerência! Assim não dá! Belinha pulou da cama:

            — Também vou.

            — Vou com vocês — alinhou-se Reca.

            No corredor, as garotas encontraram-se com mais três hóspedes indignados reclamando providências: um casal de americanos e um dos rapazes do jantar da véspera: o mais simpático deles, que, nesse momento, usava um poncho sobre o pijama.

            — Hay que llamar Ia policia — dizia o rapaz para o casal.

            —Buena idéia, vamos chamar a polícia — concordou Belinha em seu melhor portunhol.

            Nisto, vindo da gerência, apareceu o segundo rapaz, de belos olhos e traços índios. Quando ele avistou Reca, teve um segundo de hesitação.

            — Juan... — disse ele em espanhol para o amigo — descobri do que se trata. É a torcida fazendo barulho para não deixar as garotas do Brasil dormirem.

            — Eu já imaginava — intrometeu-se Belinha em portunhol. — As garotas do Brasil somos nós — disse, indicando a si e às amigas Reca e Cacá, que coraram ao estender a mão aos rapazes. Eles não estavam menos perturbados. Parecia que só Belinha estava à vontade.

            — Bueno — gaguejou o rapaz do poncho. — Eu sou Juan e ele é Atahualpa. Nós somos de Lima e lamentamos pelo que eles estão fazendo com vocês. Se valem minhas desculpas...

            — Elas podem valer se você conseguir que eles parem de fazer barulho — sugeriu Cacá, em portunhol.

            Atahualpa balançou a cabeça sem muita convicção. — O gerente já tinha tentado, mas não conseguira nada, e acabara se decidindo por chamar mesmo a polícia — contou o rapaz.

            Reca, que não conseguia encarar de frente o rapaz dos olhos bonitos, emudecera. Cacá também. Apenas Belinha falava:

            — Se estão chamando a polícia, tudo bem. Daqui a pouco ela vem.

            — É — respondeu Juan, de olhos pregados em Cacá, mas sem achar mais nada para falar.

            E, para quebrar o silêncio, Belinha quis saber o que os dois estavam fazendo em Cuzco. Turismo?

            — Não, não estamos fazendo turismo — esclareceu Atahualpa. — Eu me interesso pela história dos incas e sempre quis percorrer a trilha deles até Machu Picchu. Combinei então com Juan e partimos lunes...

            — Lunesl O que é lunes? — perguntou Cacá, que começava a perder a timidez inicial. Juan explicou que era o nome do primeiro dia da semana depois do domingo.

            — Ah, segunda-feira, então! — deduziu Reca.

            — Isso mesmo — prosseguiu Atahualpa. — Foram quatro dias de caminhada dura. Voltamos hoje no trem dos turistas.

            — Estamos mortos de cansaço e essa gente não nos deixa dormir! — acrescentava Juan, bocejando.

            A verdade é que ninguém tinha melhor idéia do que ficar conversando enquanto a torcida não fosse embora. E sempre misturando o português e o espanhol, os cinco foram se entendendo.

            E já que não havia como dormir, Belinha pediu que contassem como foi a caminhada.

            Os cinco resolveram ir para o salão do hotel, que ficava mais distante do barulho, para conversarem com mais tranqüilidade.

            Ao entrarem, encontraram toda a equipe reunida, agasalhada com cobertores, luvas e cachecol junto à lareira.

            — Olhem só quem está chegando! — saudou-as Túlio. — Só agora é que vocês acordaram? — quis saber o preparador físico, aconchegado numa confortável poltrona.

Patrícia ofereceu-lhes chá quente. Os adultos esquentavam-se bebericando pisco, uma aguardente andina.

            Cacá foi direto para a mesinha das bebidas, e apressou-se em anunciar:

            — O gerente está telefonando para a polícia.

            — O Abreu também tomou providências — contou Marilena. — Ele telefonou para o Lope y Vega exigindo uma solução.

            Abreu frisava as palavras da técnica com acenos de cabeça.

            — Lope y Vega ficou indignado com a situação, quando eu lhe disse o que estava acontecendo embaixo de nossas janelas — acrescentou o dirigente, muito compenetrado de suas responsabilidades.

            Apercebendo-se dos olhares furtivos — ou até mesmo abertamente interessados — das colegas em direção aos rapazes, Belinha tratou de fazer as apresentações.

            — Nós nos encontramos no corredor e ficamos conversando. O Atahualpa e o Juan foram a Machu Picchu a pé, imaginem só. Pela trilha dos incas!

            — Puxa, que legal! E como é essa trilha? — quis saber Vera, visivelmente impressionada com Atahualpa. Reca mexeu-se desconfortável no seu canto.

            Atahualpa contou:

            — Essa trilha é muito antiga e era o caminho secreto usado pelos incas para chegar a Machu Picchu — começou o rapaz com voz pausada para ser entendido por todos.

            — Secreto? — indagou Reca, dirigindo-se encabulada aos belos olhos de Atahualpa.

            Ele sorriu para ela, um sorriso acanhado. Atahualpa estava encantado com o jeito espontâneo de Reca. E ela tinha uns cabelos tão lindos!

            — Secreto?! — insistiu Belinha, cortando o instante de enlevo que se apoderara dos dois, fazendo-os esquecer por um momento onde estavam.

            — É. Os invasores espanhóis se metiam em tudo — prosseguiu o rapaz. — Pizarro aprontou tanta destruição que praticamente obrigou os incas a descerem para a Amazônia peruana, na tentativa de despistar os espanhóis. Ali eles construíram uma cidade, Vilcabamba, que acabou sendo descoberta e destruída por Pizarro e seus soldados ...

            — Puxa, esse Pizarro devia ser mesmo um anjo! — brincou Cacá.

            — Não tinha nada de anjo — retrucou Juan, muito concentrado na história para perceber a ironia da garota.

            — Pizarro armou uma cilada para o príncipe dos incas, Atahualpa, e o aprisionou. E era tão anjo que depois que os índios lhe pagaram uma verdadeira fortuna em ouro e prata pelo resgate do príncipe, Pizarro, em vez de cumprir a palavra e libertar o chefe inca, mandou matá-lo!

            — É por isso que você se chama Atahualpa? — perguntou Lena. O rapaz concordou com a cabeça.

            — A sorte de Pizarro foi descobrir o Peru e não o Brasil! Se fosse lá, aposto que ele acabava virando almoço, churrasquinho de espanhol — ria Vera, recordando a antropofagia dos índios brasileiros. Por ela, os nossos índios deviam continuar até hoje comendo gente, principalmente aqueles que invadissem as suas reservas para desmatar a região.

            Atahualpa retomou o seu relato sem achar graça no comentário da garota.

            — Mas Machu Picchu, que quer dizer em quíchua "montanha velha", ele nunca descobriu. Durante séculos esse foi um dos segredos mais bem guardados. Só em 1911 é que foram descobrir a cidade! E a trilha é dificílima. Há trechos a quase 4 300 metros de altitude...

            Belinha fez uma careta só de pensar no que seria a falta de oxigênio àquela altitude.

            — E o frio é terrível! — prosseguiu Atahualpa. — Mas o mais bonito é depois de quatro dias de andar e andar, depois de subir uma escadaria tão alta que a gente precisa usar as mãos, o mais lindo é chegar lá em cima, no Portão do Sol, e ver a vista que se estende: as ruínas de Machu Picchu, o Huayna Picchu, majestoso, ao fundo.

            — Foi sensacional! — reforçou Juan, bocejando. Ele estava cansadíssimo.

            Nesse momento, chegou o gerente, falando em espanhol:

            — A polícia acabou de chegar e está dispersando o pessoal. Vocês já podem voltar para a cama.

            Abreu consultou o relógio.

            — São três e meia. Como eles demoraram!

            — A polícia deve ser difícil de acordar, aqui... — sugeriu Patrícia com um de seus sorrisos mais irônicos.

            Marilena atrasou em uma hora o programa do dia seguinte. E ordenou o retorno geral para as camas. Não sem antes convidar os rapazes para que acompanhassem o grupo no passeio do dia seguinte.

            Juan e Atahualpa entreolharam-se, lançando um olhar de consulta para Reca e Cacá, que os fitavam sorridentes.

            — Claro, iremos com prazer. Muchas gracias!

 

                   Está faltando a Reca!

            O dia amanheceu feio, com um céu cor de chumbo. Era domingo, dia do segundo jogo, Baleia Azul x Pinedo. Se ganhasse a partida, o time brasileiro seria o campeão do Sul-Americano. O moral das garotas estava bom e mesmo o incidente daquela noite não conseguira abalar a confiança da equipe.

            — Basta ficarmos fora do clima da torcida aqui de Cuzco para que tudo dê certo — calculava Marilena, conversando com Patrícia e Túlio.

            Abreu aproximou-se:

            — O ônibus já chegou e eu acabo de falar com Lope y Vega. Ele me telefonou para saber sobre ontem à noite... Ele disse, inclusive, que iria tomar satisfações. Depois, perguntou o que pretendíamos fazer hoje. Falei-lhe do nosso programa. E ele comentou: "Muito bem, muito bem!" Ele também acha conveniente afastarmo-nos de Cuzco até a hora do jogo. Nunca se sabe o que pode acontecer com uma torcida fanática! Foi o que ele me disse.

            Em Pisaq, uma antiga cidade próxima ao Vale Sagrado dos Incas, a equipe de vôlei correu um pouco, fez alguns exercícios leves e foi liberada em seguida para visitar a feira índia.

            — Ai, que chompa linda! — exclamou Lena, experimentando um suéter feito pelos índios com lã de alpaca.

            — Quanta coisa diferente! — impressionava-se Reca, mostrando à doutora o tamanho e a qualidade excepcional das espigas de milho que os índios punham à venda. Atahualpa e Juan, que estavam por perto, contaram que os antigos incas já praticavam rudimentos de engenharia genética e que aquelas espigas eram resultado dessas experiências.

            Belinha e Cacá andavam por toda a feira, muito baixinha para o seu gosto. Os índios punham seu artesanato e espigas de milho sobre um pano, diretamente no chão. Havia muitos turistas e bastante movimento, apesar do tempo feio.

            — Senhoritas! Querem fazer um passeio até o Vale Sagrado? — convidou em espanhol um homem de largas costeletas.

            — Meu táxi está logo ali e a corrida não custa caro.

            — Vale Sagrado?! — estranhou Belinha.

            — É logo aqui. E de lá as senhoritas poderão visitar as ruínas da cidade inca de Pisaq. É uma beleza.

            — Ahn... Não, obrigada. Fica pra próxima. Hoje não dá — dispensaram as duas.

            O homem insistiu, mas não adiantou. Elas iam jogar e tinham que voltar com a equipe.

            — Mas, senhoritas, não é longe!

            — Ai, moço, como o senhor é chato. A resposta é não! — acabou se impacientando Belinha diante de tanta insistência. — Parece criança! — murmurou ela.

            Quando o homem se afastou, as garotas foram reunir-se a Atahualpa e Juan, que experimentavam umas flautas andinas.

            — Vejam só que som! — vibrava Juan e, aproximando os lábios de uma delas, bem pequenina, tocou uma melodia simples e bonita.

            — Que lindo! — derreteu-se Cacá.

            O rapaz ofereceu-lhe a flauta que tinha nas mãos.

            — Para você não esquecer nunca dos Andes — frisou com um sorriso cativante.

            A verdade é que dificilmente Cacá poderia esquecer dos Andes. Afinal, era ali que tudo começava...

            — Hora de voltar! A Marilena está chamando! — avisava Vera, encarregada do dia. Belinha, Cacá, Juan e Atahualpa dirigiram-se para o ônibus.

            — Está faltando a Reca! — balbuciou Vera depois de dar uma olhada na equipe, que se acomodava no ônibus da excursão.

            — Onde será que ela está? — indagava-se, intrigada.

            No instante seguinte, todos se faziam a mesma pergunta, levantando-se do banco, entortando o corpo e o pescoço, esticando o olhar, na ânsia de localizar a ausente.

 

            — E a Reca? — perguntaram-se todos ao mesmo tempo.

 

                   A equipe de resgate em ação

            Marilena pediu que ninguém saísse do ônibus. Ela, Patrícia, Túlio e Abreu dariam uma busca na feira.

            — A Reca já está aí? — Era Túlio que, volta e meia, punha a cabeça para dentro do veículo para saber se Reca aparecera. Dali a pouco vinha Marilena ou a médica com a mesma pergunta. As jogadoras, sem perceber, já tinham até formado um corinho desanimado par        a responder o mesmo não de sempre.

            Meia hora depois, uma reunião se instalava dentro do ônibus.

            — Ninguém sabe, ninguém viu — lamentava Abreu. — Não sei o que pensar. O que deu na Reca?

            "O que deu na Reca?" era o que todos se perguntavam. De repente, Belinha lembrou de algo. A garota cutucou Cacá. Bastou um olhar entre as duas:

            — Marilena, pode ser que ela tenha ido ao Vale Sagrado dos Incas com um motorista de táxi que queria levar a gente para conhecer esse lugar.

            — O quê?! — espantou-se a técnica.

            Cacá contou como elas tinham sido abordadas por aquele peruano de costeletas largas. A comissão técnica não quis acreditar: Reca não iria aceitar uma proposta daquelas, ainda mais sozinha e em dia de jogo importante!

            — E o que nós vamos fazer? — cocava a cabeça Abreu. Prevenido como era, não contava com uma surpresa daquelas.

            Atahualpa aproximou-se com uma sugestão:

            — Meu amigo e eu podemos ficar aqui procurando, para que vocês possam voltar e se preparar para o jogo.

            — A idéia é boa — concordou Marilena. — Nós iremos e mais tarde o ônibus vem buscá-los.

            Cacá e Belinha entreolharam-se com um brilho especial nos olhos.

            — Nós também podemos ficar e ajudar na busca. A gente não vai poder jogar mesmo...

            Belinha acompanhou apreensiva a expressão de Marilena e o olhar de esguelha que ela lançou para Abreu. Mas ele estava tão zonzo com o sumiço de Reca que apenas disse:

            — Que fiquem. Acho que eu também vou ficar. Vocês vão — declarou passando os dedos pela cabeleira rala. — Estaremos lá antes do início do jogo, e com a Reca...

            Marilena ordenou ao motorista que voltasse para Cuzco. Tinha o rosto tenso ao se sentar ao lado de Túlio.

            — Não temos a Belinha, a Cacá e agora a Reca. Como é que vamos jogar? — foi o que se ouviu antes que o sacolejar do veículo na estrada abafasse as palavras da técnica.

            Belinha, Cacá, Abreu e os dois rapazes puseram-se imediatamente em ação. Atahualpa dirigiu-se a diversos índios em quíchua, língua que ele havia aprendido com sua avó índia. Ninguém vira a garota.

            — Vamos até o Vale Sagrado dos Incas, então — sugeriu Belinha quando o ônibus voltou, uma hora e meia depois. Ela era muito prática e, se havia a possibilidade de Reca ter aceita do o convite do motorista de táxi para visitar o Vale, era para lá que a equipe de resgate, nome que ela dera a si e aos demais encarregados de encontrar Reca, deveria orientar as suas buscas. Atahualpa, naquele seu jeito sério, considerou que a idéia era conveniente, Cacá concordou na hora e Juan também. Abreu, que fumava sem parar e andava de um lado para o outro, nervoso, entrou no ônibus a um chamado de Belinha.

            Seguindo a orientação de Atahualpa, que conhecia bem a região, o motorista enveredou pela estrada que leva à antiga Pisaq inca.

            — Olhem! — deslumbrou-se Cacá.

            Vencida uma das curvas da estrada, descortinava-se a paisagem ampla de um vale. No meio, um rio. E as montanhas erguiam-se como se se perfilassem à direita e à esquerda das terras férteis do Vale Sagrado dos Incas.

            — Então, isto é que é um vale? — extasiava-se Cacá. Ela jamais gostara muito de Geografia, mas, assim, ao vivo, Geografia era uma matéria linda. Muito ecológica e até mesmo romântica, pensava a garota, imaginando como seria bom passear de mãos dadas com Juan sob aquelas árvores.

            Encravadas numa das montanhas mais altas, achavam-se as ruínas de Pisaq.

            — Será que a Reca está lá? — duvidava Abreu, que só de pensar em subir e descer tudo aquilo, já se sentia cansado.

            O ônibus estacionou junto a outros carros particulares e táxis, no início da trilha que dava para as ruínas.

            — Se quiser, pode ficar aqui, Abreu. Nós vamos e não demoramos — propôs Belinha. Abreu apressou-se em aceitar a proposta. Seu fôlego de fumante não dava para muitas escaladas.

            — Não consigo acreditar que a Reca tenha vindo parar aqui — afirmou Cacá, subindo vigorosamente a trilha estreita.

            — Pelo menos, vamos verificar todas as possibilidades — respondeu Atahualpa, compenetrado.

            O grupo alcançou uma espécie de guarita de pedra. Atahualpa explicou que ali ficavam os sentinelas avançados da cidade inca, montando guarda.

            — Um soldado inca jamais podia demonstrar medo — contou o rapaz. — O azar deles é que não conheciam a pólvora. Foi aí que os espanhóis levaram a maior vantagem.

            Cacá ficou imaginando como teria sido a cidade inca de Pisaq há séculos atrás, os homens usando aqueles brincos enormes em forma de rodela que deformavam suas orelhas, mas que os incas consideravam elegantíssimo. E Cacá suspirou falando sobre a beleza da bandeira das sete listras, as cores do arco-íris, o símbolo da Tahuantinsuyu, a Confederação dos Incas, tremulando ao vento, no alto de um daqueles edifícios fantásticos.

            — E quem disse que eles tinham mastro de hastear bandeira? — gracejou Belinha, menos sonhadora.

            — Não sei se eles tinham mastro, mas estou com a Cacá. Adoro ficar imaginando como deviam ter sido essas ruínas antigamente — disse Juan, com seus olhos ternos voltados para a garota.

            Cacá ia dizer qualquer coisa, quando, de repente, um vulto à distância lhe pareceu familiar:

            — Olha a Reca lá — apontou ela gritando.

            Belinha e os rapazes dispararam a correr. Acostumada ao esforço físico, Belinha não demorou a alcançar a entrada por onde Cacá vira a figura de Reca sumir.

            — Reca! — gritou esbaforida.

            Uma garota vestida de agasalho azul se voltou assustada.

            — Reca! — os rapazes também se aproximaram aos berros: — Reca!

            Finalmente chegava Cacá, impedida de correr por causa da contusão. Desapontamento geral. Não era Reca. O grupo pediu desculpas à garota pelo engano e pelo susto que haviam lhe pregado.

            Ela saiu pela mesma porta, à procura de seus amigos. Cerca de vinte turistas de todas as nacionalidades transitavam naquele momento pelo bairro sagrado da velha cidade.

            Belinha recostou-se numa das paredes do templo em que eles tinham entrado. Aliás, todos os quatro, ofegantes após aquela corrida.

            — Que pedras mais grudadas! Como eles conseguiam isso? Não têm nem cimento! — examinava Belinha.

            — Ninguém sabe ao certo — respondeu Atahualpa. — Dizem que essas pedras vinham transportadas de muito longe, e que eram moldadas de modo a se encaixarem perfeitamente.

            — Moldadas? Como se fossem massinha de criança? — surpreendeu-se Cacá.

            — Isso mesmo — continuou Atahualpa. — Há quem diga que isso não passa de lenda, mas há quem jure que é verdade: que os incas descobriram uma planta que, esmagada sobre as pedras, produzia um suco que tornava as rochas maleáveis e fáceis de alisar, moldar e cortar. Por isso é que elas se encaixam tão bem umas nas outras, que nem uma lâmina de faca consegue penetrar.

            — Bem que eles podiam ter deixado a receita... O pedreiro que foi colocar o piso de cerâmica da cozinha lá do apartamento quebrou as peças de um jeito tão doido que o meu pai precisou colocar quilos de cimento pra juntar... — considerou Belinha.

            Cacá, sonhadora, tinha os olhos fechados, as mãos espalmadas sobre as pedras, viajando, visualizando a cidade em todo o seu esplendor, com seus palácios reais, faiscantes de ouro, seus guerreiros garbosos e seus aquedutos. Via-se com Juan, como um casal inca, passeando feliz pelas escarpas da montanha...

 

                   A quem interessa o sumiço de Reca?

            Estou morta de fome — foi anunciando Cacá assim que entraram no restaurante próximo à feira índia de Pisaq, para onde haviam voltado após o fracasso da busca em meio às ruínas.

            Atahualpa estava pensativo e quase não falou durante a refeição.

            — O que é que ele tem? — indagou Cacá a Juan. O rapaz sussurrou-lhe ao ouvido que Atahualpa era dado a esses silêncios.

            — Estou tentando descobrir a quem interessa o sumiço da Reca — esclareceu Atahualpa, que tinha bons ouvidos.

            — O sumiço da Reca? Hummmm — resmungou Abreu.

            — Só interessa ao time peruano — brincou Belinha. — E que a esta hora deve estar se preparando para o jogo, como nós.

            — Este sumiço da Reca bem que pode ser obra da torcida... — considerou Juan. — E não seria a primeira ação dos torcedores peruanos contra vocês.

            Belinha não se conteve e explodiu:

            — Mas o que eles pensam? Que nós somos a seleção brasileira na Olimpíada? Nós somos apenas um clube juvenil!

            — Não importa. Para eles é Peru contra Brasil, seleção ou não... E esse clube, o Pinedo, contra o qual vocês estão jogando, é famoso pelo fanatismo da torcida.

            — Bom, tem também os guerrilheiros do Sendero Luminoso — meteu-se na conversa o motorista que almoçava junto com eles.

            A essas palavras, Abreu, que acabara de apagar um cigarro, voltou a acender outro, com as mãos trêmulas. Uma de suas jogadoras, seqüestrada pela guerrilha, era demais!...

            — Que bobagem! — disparou Juan com uma gostosa gargalhada. — Imagina se a guerrilha vai se interessar por seqüestrar uma jogadora de um time juvenil! Nem se preocupe, Abreu.

            — Acho que vou procurar Lope y Vega assim que chegarmos a Cuzco. Estou muito preocupado, sim. É uma responsabilidade enorme!

            — Vamos pedir a conta e voltar para Cuzco. O jogo deve estar começando! — propôs Belinha.

            Juan, que observava Cacá, pôs a palma da mão na testa da menina. A jogadora tiritava de frio e estava com o corpo quente. O rapaz sugeriu que a levassem direto para o hotel e apressou-se em tirar seu poncho para envolvê-la.

            Cacá, no entanto, estava decidida: queria assistir ao jogo, com ou sem febre.

            — Eu não abandono o meu time, ainda mais agora! — teimou a garota.

 

            Quando o grupo de resgate chegou ao ginásio naquele início de noite, a torcida já se retirava, comemorando uma vitória rápida e fácil sobre o desfalcado time brasileiro. As garotas do Baleia Azul tinham lutado muito, mas a verdade é que a ausência de três titulares fazia muita diferença na quadra. Além disso, o desequilíbrio emocional provocado pelo desaparecimento de Reca abalara definitivamente o rendimento da equipe. Assim, com o apoio de uma torcida barulhenta, o clube peruano derrotara por três sets a zero uma desnorteada equipe brasileira.

 

                   E as investigações prosseguem

            Foi na reunião noturna que Marilena avaliou os erros do time e ouviu cada jogadora expressar seu desânimo e sua tristeza. Perder uma companheira de quadra e um jogo importante era mais do que qualquer uma delas podia suportar.

            — Estive pessoalmente com Lope y Vega, que ficou absolutamente chocado com o desaparecimento da Reca — relatou Abreu. — Ele me garantiu todo apoio e me deu certeza de que eles vão achar a Reca amanhã mesmo! — animava o dirigente.

            — A polícia também me disse a mesma coisa. Eles vão procurar até achar, e os responsáveis serão severamente punidos!          

            — Na próxima sexta-feira, ou seja, daqui a cinco dias — sublinhava Túlio —, será a partida decisiva. Seria bom que a Reca aparecesse e que a Belinha e a Cacá pudessem jogar.

            Marilena perguntou à doutora sobre o estado de saúde de Cacá.

            — O que ela precisa é só de repouso para se recuperar bem. Está dormindo agora. Melhorando amanhã, poderemos começar o tratamento da contusão e provavelmente ela deverá estar em condições de jogar em Lima.

            — E eu? — apressou-se em saber Belinha, ansiosa por jogar na decisão. Ela não perdoaria ficar de fora por causa de uma contusão.

            A médica recomendou-lhe não forçar o local machucado.

            — Oba! — festejou Belinha com um salto. O que ela mais queria era jogar.

            Abreu anunciou que a equipe e a comissão técnica deveriam viajar para Lima no dia seguinte, segunda-feira. Ele ficaria em Cuzco para acompanhar as investigações com Atahualpa e Juan. Os rapazes, que estavam de férias, haviam se oferecido para ficar mais alguns dias na cidade para procurar Reca.

            "Investigações?", pensou Belinha, imaginando como seria fantástico participar delas. Ela tinha adorado a investigação daquela tarde. E detestaria ficar de fora, ainda mais sabendo que não poderia fazer nada em Lima. Por isso tratou de garantir presença na equipe de busca que se formara:

            — Marilena, já que eu não posso treinar, bem que eu podia ficar aqui, ajudando a procurar a Reca.

            Marilena balançou a cabeça, em dúvida. Consultou com o olhar a comissão técnica. Belinha, sentindo que não havia oposição declarada, tratou de avançar:

            — Eu fico. Eu e a Cacá. Eu cuido dela, ela de mim, e antes da sexta-feira a gente vai estar de volta com a Reca!

            A comissão técnica não se manifestou, sequer retrucou. Estavam todos com um ar ligeiramente abobalhado. Apenas Patrícia sorria, um sorriso maroto. Quem sabe a esperteza de Belinha e a agilidade de Cacá não ajudariam os nervos de Abreu a enxergar um palmo adiante do nariz...

 

            — E agora? — perguntou Belinha, consultando o relógio. Ela tinha acabado de chegar do aeroporto onde fora se despedir da equipe do Baleia Azul junto com Cacá, Atahualpa, Juan e Abreu. Atahualpa nem piscava, observando cismado as letras garrafais da manchete do jornal, que proclamava: "Jogadora seqüestrada em Cuzco". Com tanta jogadora para desaparecer, fora sumir logo aquela por quem ele se encantara...

            Abreu consultou o relógio também. Era meio-dia. Hora em que ele devia voltar à polícia. Abreu pegou o jornal que estava sobre a mesa e dobrou-o. Na véspera ele havia se comunicado com o Brasil, e a diretoria lhe pedira discrição... O dirigente voltou a desdobrar o jornal, desanimado. Ali estavam aquelas letras indiscretas, denunciando a tragédia: na delegação que ele dirigia, tinha sumido uma jogadora!...

            — Vocês vão ou não à polícia? — perguntava Belinha, cansada dos movimentos indecisos do Abreu.

            Atahualpa disse que sim. Ele havia se oferecido para acompanhar Abreu à delegacia. As garotas e Juan também quiseram ir, mas o dirigente não concordava.

            — Isso não é festa! Basta o Atahualpa para me acompanhar — decretou.

            Quando Atahualpa e Abreu saíram, Juan propôs, naquele seu jeito solto, que as meninas trocassem o abrigo do Baleia Azul por uma roupa comum.

            — Vocês chamam muita atenção assim. E podem ser alvo de um novo seqüestro! — gracejou. Porque, apesar da preocupação com o seqüestro/desaparecimento de Reca, Juan e as garotas não haviam perdido o senso de humor. Para eles, bastavam a tristeza e a depressão da véspera. Agora, era partir para a luta e encontrar Reca onde quer que ela estivesse!

 

                   No restaurante, as inconfundíveis costeletas

            —Estou morta de fome! — foi avisando Cacá, descendo a escada já com outra roupa.

            — Já?! — assustou-se Juan, olhando o relógio. Eram 12 h 30 min.

            —Vamos esperar mais um pouco, até o Abreu e o Atahualpa voltarem da delegacia, aí almoçamos. Dá pra esperar, Cacá?

            A garota concordou, com uma careta de esfomeada. Os três deram uma volta pela praça enquanto aguardavam que Abreu retornasse.

            — Ainda bem que a torcida peruana foi embora — comentou aliviada Belinha. — Estava um inferno andar na cidade com eles nos vaiando a toda hora.

            — Sabe — disse Cacá —, às vezes eu fico imaginando se aquele motorista de táxi das costeletas não teria mesmo a ver com o sumiço da Reca. O que vocês acham?

            Juan balançou a cabeça, sem responder. Mas Belinha não tinha a menor dúvida: claro que ele tinha a ver!

            Passou-se mais meia hora. Abreu e Atahualpa não retornavam e a fome de Cacá aumentava, na mesma velocidade do ponteiro de segundos de seu relógio. Belinha foi obrigada a concordar que eles estavam demorando.

            — A gente podia ir almoçar e deixar um recado no hotel para eles nos encontrarem no restaurante — propôs Belinha afastando-se em seguida para pôr a idéia em prática.

            Juan e Cacá ficaram frente a frente. Era a primeira vez que estavam sós. Cacá, não sabendo bem o que dizer, olhou para a igreja maior da praça, de fachada tão impressionante quanto antiga.

            — Aí era o antigo Koricancha, o grande Templo do Sol, todo de ouro — contou Juan, também ligeiramente embaraçado. — Daí partiam as quatro linhas na direção dos pontos cardeais, que formavam as quatro regiões dominadas pelos incas.

            O império deles ia da Colômbia até o Chile — continuou ele, contemplando os olhos meigos de Cacá. — Os incas, assim como os egípcios, conheciam as técnicas de mumificação e seus reis eram todos mumificados aqui em Cuzco. Naquela época, o império tinha quarenta milhões de habitantes. Hoje existem apenas seis milhões de seus descendentes que falam o quíchua e vivem quase todos nas montanhas.

            — E por que virou igreja? — quis saber Cacá, demonstrando interesse no assunto.

            — Idéia dos conquistadores — suspirou Juan. — Depois da Conquista e da destruição da Cuzco inca, eles fizeram o que bem entenderam, aliás, como todos os conquistadores — finalizou o rapaz, que não deixava de fitar Cacá.

            Belinha voltou a tempo de ouvir as últimas explicações de Juan. Minutos mais tarde, os três entraram no restaurante, escolheram uma mesa de canto que dava para a praça e fizeram seus pedidos. O local era simpático e havia vários turistas estrangeiros e pessoas da região.

            Cacá tirava as luvas, sentindo-se mais aquecida, quando Belinha deu-lhe um beliscão eletrizante por baixo da mesa. A garota levantou os olhos e emudeceu. Adiante, junto à porta do restaurante, destacava-se a figura do motorista de táxi, com suas inconfundíveis costeletas. De repente, com um andar decidido, o homem deu três passos em direção à mesa dos três. Belinha e Cacá gelaram. Mas ele se deteve a meio caminho, junto à mesa da frente. Disse alguma coisa em voz baixa a um dos homens ali sentados, que imediatamente se levantou e o acompanhou em direção à rua. Quando eles cruzaram a porta do restaurante, Belinha sussurrou para a amiga:

            — Vamos!

            Juan fez menção de levantar-se, mesmo sem entender nada.

            — Não! Você tem que ficar para não desconfiarem. A gente não demora — decretou Belinha.

            As duas saíram rapidamente, a tempo de verem os dois homens virando à esquerda na esquina da praça. Não perderam tempo e foram atrás.

            As garotas entraram por uma rua estreita e escura, que separava o paredão da igreja da construção vizinha.

            — Que frio! — exclamou Cacá, arrepiando-se sob aquela sombra.

            Saíram do outro lado, numa rua mais larga, iluminada pelo sol gelado do inverno. Os dois homens caminhavam rapidamente. As garotas, com cuidado, iam devagar.

            — Não ande tão colada à parede — repreendeu Belinha. — Senão, esses dois caras vão desconfiar da gente. Relaxe! Faz de conta que somos turistas!

            — E se ele se lembrar de nós? — inquietou-se Cacá.

            — Se ele não lembrou no restaurante, acho difícil agora, ainda mais dessa distância! — considerou Belinha.

            — Sei não... — resmungou Cacá, não muito convencida.

            — Está bem. E agora? — perguntou a outra, enterrando o chullo na cabeça.

Cacá gostou da idéia e seguiu o exemplo, levantando o seu cachecol à altura do nariz.

            Os homens prosseguiam em seu caminho com passadas largas. Dobraram à direita, depois à esquerda, e entraram num hotel simples, de três andares, uma fileira de janelas pintadas de azul-escuro destacando-se no branco da parede. O das costeletas olhou para os dois lados antes de entrar.

            — Deixa eu amarrar o tênis — reagiu prontamente Belinha.

            O que os homens viram foram duas turistas de cabeça baixa, uma delas lidando com os cadarços do tênis, no meio da rua calçada de antiquíssimas pedras redondas, do tempo da Colônia.

            — Eles já entraram? — indagou Belinha.

            — Já — confirmou Cacá.

            — Então vamos.

            As duas passaram em frente à porta estreita do hotel. Uma graciosa tabuleta de madeira dava conta do nome: Del Rey.

            — Entramos ou não? — hesitou Cacá.

 

                   Rumo à toca do lobo

            Dez minutos mais tarde, elas estavam de volta à mesa, diante de um Juan de cara fechada.

            — O que é isso de saírem e me deixarem aqui? — protestou o rapaz.

            — Sabe aquele homem que entrou aqui? Ele é o motorista de táxi. Naquela hora não dava pra explicar. A gente tinha que agir.

Mas eu queria ir com vocês!...

Ia ser muita gente e o amigo dele podia desconfiar se saíssemos os três juntos, Juan. Não complica — pediu Belinha.

As garotas contaram o que viram.

Mas será que ele tem a ver com o sumiço da Reca? — duvidava Juan.

Pode ser que sim — considerou Cacá, servindo-se de um pedaço de carneiro, que acabava de chegar quentinho e cheiroso.

E que outras pistas nós temos? — suspirou Belinha, ainda às voltas com o mau humor de Juan, inconformado por ter ficado de fora daquela emocionante perseguição.

Cacá cutucou Belinha. Ela não gostava de ver Juan aborrecido.

—        Tá bom, Juan, desculpe. A gente não queria deixar você de fora... É que não dava tempo para discutir.

            O rapaz resmungou alguma coisa que demonstrava não estar suficientemente convencido. Foi quando Belinha teve uma idéia muito interessante:

            — Mas você pode ajudar a gente a descobrir mais coisas. Nós chegamos até o hotel, mas achamos melhor não entrar. Podia ser perigoso. Você bem que podia ir lá, ver se há algum movimento suspeito, se o motorista de táxi, o Costeleta está hospedado ali... Nós não podemos ir, porque já fomos vistas.

            — Ele viu vocês? — perguntou Juan, preocupado.

            — A cara, não, porque fomos espertas, mas viu como estamos vestidas, sim. Se a gente aparecer por lá agora, é só ele somar dois e dois. Ele falou conosco em Pisaq, já nos viu aqui no restaurante e paradas perto do hotel: vai entender no ato! — explicou Belinha.

            Um sorriso apontou na face de Juan.

            — Fantástico. É isso mesmo. Vocês estão marcadas e não podem aparecer mais — declarou satisfeito. — Vou até lá. Vocês lembram o caminho?

            As garotas explicaram. Elas tinham tido o maior cuidado em anotar o nome da rua, o número e o trajeto.

            — Volto para tomar chá — avisou Juan, retirando-se para a sua missão.

Assim que ele virou as costas, as duas jogadoras se cumprimentaram, como faziam na quadra quando marcavam um ponto. Estava tudo bem outra vez. E ele ia fazer algo que era arriscado elas fazerem agora: meter-se na toca do lobo.

            Juan aproximou-se da porta do Del Rey. Parecia tudo tranqüilo, sem grande movimento.

            — Vocês têm quartos? — indagou ao recepcionista, que o olhava com ar questionador. A pergunta fora a primeira coisa que lhe viera à cabeça.

            — Temos. Vários. Um grupo grande saiu hoje de manhã para Lima.

            Juan balançou a cabeça lentamente, buscando idéias. E achou uma muito boa:

            — Aposto que era o pessoal que veio torcer pelas nossas jogadoras — arriscou ele com um ar despreocupado.

            — Era mesmo, mas foram quase todos embora hoje de manhã. Você deseja um quarto?

            A pergunta pegou o rapaz desprevenido. Juan hesitou um instante e acabou por responder que esperava amigos aquela tarde. Talvez eles quisessem hospedar-se ali, pois onde ele estava não havia mais lugar... O recepcionista mostrou-lhe o salão de jogos, o restaurante e Juan despediu-se prometendo trazer os "amigos" assim que chegassem. O rapaz morria de vontade de perguntar sobre os torcedores que ficaram no hotel, mas novas perguntas poderiam gerar suspeitas. Saiu decidido. Tinha que arranjar um jeito de ficar sabendo.

 

                   O índio Atahualpa

            — Descobriu alguma coisa? — perguntou Belinha quando Juan voltou.

            — Encontrou o cara das costeletas? — quis saber Cacá, servindo-se de um belo pedaço de bolo de chocolate, com uma cobertura de marshmellow de dar água na boca.

            Juan garfou-lhe um pedaço daquela delícia de bolo.

            — Não encontrei nenhum hóspede, só os empregados do hotel.

            — Ah — decepcionaram-se as duas.

            — Mas descobri duas coisas importantes: uma, a torcida de Lima ficou naquele hotel. Duas, nem todos da torcida voltaram para a capital!

            — Uau! Boa, boa notícia! — cumprimentou Belinha.

            Nisso, apontaram à entrada do restaurante as figuras cansadas de Abreu e Atahualpa, avisados pelo bilhete que as garotas tinham deixado no hotel.

            — Como vocês demoraram! — reclamou Cacá. — Novidades?

            A expressão de desânimo e cansaço estampada em seus rostos falava por si.

            — Primeiro, nos deram um chá de cadeira — começou Abreu, que se viu obrigado a interromper para explicar aos amigos peruanos o que era chá de cadeira, já que essa expressão não existe em espanhol. — Depois me chamaram só para dizer que a polícia não tinha encontrado nada depois de várias buscas nos arredores de Pisaq. Mesmo sem notícias tive que dar entrevista a um grupo de repórteres.

            — Muito a contragosto, por sinal — comentou Atahualpa. — Bem, o que temos para comer?

            — Truta ou carneiro — adiantou Cacá. — E vocês, não perguntam se nós temos alguma novidade?

            Juan e Belinha contaram cada qual sua parte da aventura. Uma luz voltava aos olhos preocupados de Abreu.

            — A questão — resumiu Cacá — é saber o que esses torcedores que ficaram estão fazendo aqui.

            — Podem ter ficado para fazer um pouco mais de turismo, talvez ir até Machu Picchu, Saqsayhuamán ou Qenqo — comentou Atahualpa, explicando que Saqsayhuamán é uma fortaleza inca, e Qenqo, um labirinto onde funcionava um centro religioso.

            — Ou então ficaram porque têm a ver com o desaparecimento da Reca! — exclamou Cacá.

            Juan, que estivera calado até aquele momento, advertiu, compenetrado:

            — Precisamos ter cuidado para não levantar suspeitas. Se de fato eles têm alguma coisa a ver com o seqüestro da Reca, são capazes de mudar de esconderijo para nos confundir.

            Ouvindo aquilo, Abreu, que já andava muito nervoso, não se conteve: — Co-como? — gaguejou, derramando a água que ele servia no copo de Atahualpa. O rapaz deu um salto, tratando de salvar as roupas de um banho certo.

            — Temos que arranjar um jeito de vigiar esses torcedores que ficaram aqui em Cuzco sem que eles percebam — resumiu Belinha em voz baixa, depois que o garçom que viera enxugar a mesa se retirou.

            Puseram-se todos a pensar de que maneira poderiam observar a torcida sem serem percebidos.

            — E se a gente interrogasse os empregados do hotel? — pensou alto Cacá.

            — O problema é se algum deles estiver do lado dos seqüestradores — advertiu Belinha. Cacá foi obrigada a concordar.

            Um indiozinho apareceu pedindo dinheiro. Cacá deu-lhe uns intis. Quando o menino ia se retirando, Atahualpa chamou-o de novo e deu-lhe mais dinheiro:

            —Isto é pela boa idéia que você me deu.

            O indiozinho agradeceu e saiu correndo, sem querer saber qual era essa boa idéia de Atahualpa. Mas, se ele não se interessara, os outros estavam curiosíssimos.

            — Vamos lá! Conte a sua idéia — pediu Abreu ansioso.

            — Eu poderia me vestir de índio, me instalar na frente do hotel e fingir que vendo artesanato. Só para acompanhar o movimento.

            Abreu achou a idéia muito complicada, mas as garotas adoraram. Juan achou que podia dar certo. Ali mesmo já dividiram as tarefas de cada um:

            — Eu vou ver se arranjo as roupas, o que não é difícil — anunciou Atahualpa.

            — A gente se encarrega das peças de artesanato — avisaram as garotas.

            Juan ajuntou que tentaria conseguir uma mesa de armar para expor os artesanatos obtidos por Belinha e Cacá.

            — E eu? — perguntou Abreu, sem saber o que podia fazer.

            — Você entra com a grana! — respondeu prontamente Belinha, estendendo-lhe a palma da mão. Com um sorriso amarelo, Abreu sacou uma nota de cem dólares do bolso.            As garotas saíram imediatamente para trocá-la por intis no câmbio próximo ao hotel e repartiram o dinheiro com os rapazes.

            Eram seis horas da tarde daquela mesma segunda-feira, quando o grupo de resgate conseguiu reunir no quarto de Juan Atahualpa tudo o que necessitava para enviar seu espião para porta do Del Rey.

            — Daqui a pouco vai escurecer — considerou Juan. — Não vale a pena você ir para lá agora. Amanhã cedo é melhor. — Os outros concordaram e, deixando todo o material arrumado para o dia seguinte, retiraram-se para jantar.

 

                   Tem um chefe na jogada

            Na manhã seguinte, quando as garotas entraram no quarto de Atahualpa, encontraram-no muito compenetrado.

            — Que tal? — indagou diante do espelho. Belinha fez o rapaz dar uma volta sobre si. Estava perfeito. Ele era o próprio índio Atahualpa!

            O rapaz estava orgulhoso de sua transformação.

            — Eu tenho sangue índio nas veias e sou descendente dos incas! — exclamou, muito sério. Belinha precisou fazer força para não rir. Atahualpa era seriíssimo e não iria entender a reação dela. Ele prosseguiu: — Preciso sair discretamente do hotel. Pode ser que algum deles esteja vigiando os nossos movimentos.

            Em seguida, juntou todo o material, a mesa de armar, a sacola com as peças de artesanato e deixou o hotel pela porta de serviço, acompanhado pelo olhar ansioso do grupo de resgate, que se apertava numa das janelas que dava para a praça. Atravessou a rua, cruzou o jardim central e dirigiu-se à paralela posterior a uma rua estreita e permanentemente ensombrada, que ficava nas imediações da praça, onde sua figura de índio desapareceu.

            — Ai, meu São Benedito, ajude o Atahualpa! — deixou escapar Abreu. E como os outros tivessem se voltado para ele, o dirigente acrescentou: — Ele era o santo da devoção da minha avó...

            Deviam ser três da tarde, quando o telefone do quarto das garotas soou:

            — Aqui é o Juan. O Atahualpa acaba de chegar!

            Belinha e Cacá voaram para o quarto dos rapazes. Quando chegaram já encontraram Abreu, fumando o segundo maço de cigarros do dia.

            — Abreu, você vai nos matar de tanta nicotina! — censurou Belinha, enquanto Cacá fazia um gesto de dispersar a fumaça espiralada que vinha em sua direção. E, voltando-se para Atahualpa, pediu que ele contasse tudo.

            — Cheguei, abri a mesinha, coloquei o artesanato e passei as primeiras horas sem novidades, só vendendo algumas peças. Finalmente, lá pelas onze horas, um sujeito de costeletas largas aproximou-se de mim acompanhado de um outro rapaz. Comprou um chullo e, ali mesmo, comentou com o outro que não via a hora de voltar para Lima. Dizia que estava cansado de tudo aquilo e que ficava só porque o chefe exigiu.

            — Chefe!? — espantaram-se todos.

            — É. Pelo visto, há um chefe, só que eles não disseram o nome. O certo é que o Costeleta está apenas obedecendo ordens. Depois disso, ele me deu as costas e ficou observando as janelas do hotel. Quando eles se foram, comecei a examiná-las também e notei que havia três que nunca se abriam.

            — O que será? Vai ver a Reca está presa num daqueles quartos de janela fechada! — arriscou Belinha.

            Atahualpa balançou afirmativamente a cabeça.

            — É o meu palpite também. Só que não temos como confirmar...

            — E se a gente se hospedasse no Del Rey? — propôs Juan empolgado. — Eu digo que vocês são os meus amigos e que resolvi hospedar-me junto!

            Cacá bateu palmas.

            — Vocês podem ir — cortou Belinha —, mas nós três não. Se eles souberem que há brasileiros hospedados no hotel, podem se alarmar e sumir com a Reca. Isto é, no caso de a Reca estar lá.

            Os rapazes concordaram com a garota. Mas nada impediria, apressou-se em dizer Atahualpa, que eles se mantivessem em contato constante. E assim, após o almoço, os dois rapazes fecharam a sua conta no Viracocha e se dirigiram para Del Rey.

 

                    Já estamos chegando

            — É hoje! — exclamou Belinha, admirando o lindo dia que amanhecia naquela quarta-feira.

            Um dia todo azul, com uma luz clara que iluminava com um brilho muito especial cada folha, cada pedra. Uma linda manhã de inverno.

            — É hoje que a gente descobre a Reca! — proclamava confiante Belinha, contagiando-se com a luminosidade do dia lá fora. — Cacá, ligue para os garotos. Hoje vamos tomar o café da manhã lá com eles!

            Cacá cocou a cabeça. O que tinha dado na Belinha? Aproximou-se da janela.

            — Uau! Que lindo! Vamos abrir só um pouquinho a janela? — pediu Cacá.

            Belinha vestiu mais um agasalho e elas abriram devagarinho uma das folhas de vidro da persiana.

            — Brrrrr, que frio! E que gostoso! É hoje! — repetiu Cacá, agora também contagiada pela beleza do dia. Belinha voltou a fechar o frio que vinha de fora.

            Num instante, estavam de banho tomado e bem agasalhadas, de chullo, chompa, cachecol e luvas.

            — Quarto 27, por favor? — solicitou Cacá à telefonista do Del Rey.

            — Sim?

            — Ô Atahualpa, é você? É a Cacá. Nós estamos indo aí tomar café da manhã com vocês. Estejam prontos que nós já estamos chegando! É hoje!

            Belinha viu Cacá ficar em silêncio por um instante, certamente ouvindo as palavras do amigo, recomendando-lhes cuidado. Cacá, porém, apenas balançava negativamente a cabeça. Belinha começou a rir: claro que Atahualpa não podia ver aquela resposta. "Só a Cacá mesmo", pensou.

            — Ninguém vai perceber nada, Atahualpa. Depois, nós não estamos a fim de ficar de fora. Ah, e manda um beijo pro Juan. E diz pra ele botar aquele nariz lindo dele pra fora da janela. O dia mais sensacional do ano está acontecendo hoje. Tchau!

            — E o Abreu? — lembrou Cacá.

            — A gente deixa um recado pra ele se encontrar conosco lá no Del Rey. Ele que coloque um gorro e levante o cachecol até o nariz. Com este frio, ninguém suspeita de nada!

           

                   Qual será o quarto?

            Alguns minutos depois, as duas já estavam no Del Rey.

            — Vocês são loucas — reclamou Atahualpa ao dar com as garotas já sentadas à mesa do restaurante do hotel, diante de uma xícara de café com leite, pãezinhos, geléia e bolo de frutas secas. Juan, mais tranqüilo, beijou as garotas e sentou-se muito bem-humorado à esquerda de Cacá. Só de pensar em ficar longe dela, seu coração doía.

            Mas as garotas estavam tão expansivas, tão fortalecidas com aquele passeio matinal pelas calles ensolaradas de Cuzco, que era impossível pedir-lhes moderação.

            — Descobriram alguma coisa? — perguntou Belinha, antevendo boas novas no brilho do olhar de Atahualpa.

            Atahualpa tomou um gole de suco de laranja e sussurrou, inclinando-se para a frente:

            — Descobrimos que as três janelas sempre fechadas correspondem, na verdade, aos quartos de números 13, 21 e 37...

            — Bom, resta saber, então, quem ou quens estão nesses quartos — considerou Belinha.

            Fez-se um breve silêncio, muito bem ocupado por todos para mastigar bolo e engolir pedaços de pão e uma pirâmide de geléia em cima.

            — O problema é saber quem ocupa esses quartos. Talvez um telefonema de fora, pedindo para falar com o quarto, assim como vocês fizeram conosco hoje de manhã... — propôs Atahualpa.

            — Não sei se vai adiantar — retrucou Juan. — A Reca é que não vai atender a ligação!

            Belinha levantou os olhos para a janela à frente, buscando inspiração no azul magnífico do céu lá fora. Mas não por muito tempo. Uma sombra se colocou entre ela e a paisagem. Era um garçom que passava carregando uma bandeja.

            — Esperem! Acabo de pensar numa coisa — interrompeu Belinha. Todo mundo se inclinou para ela. Os olhos da garota faiscavam. — Se a Reca não pode atender telefone, também não pode descer para tomar as refeições!

            — Claro! É isso mesmo! — concordou Juan. — Parabéns, Belinha. Brilhante, muito brilhante! — cumprimentou.

            — Agora é descobrir, sem levantar suspeitas, quem faz as refeições no quarto — acrescentou Atahualpa.

            Cacá, que até aquele momento se restringira a ouvir e a comer, interrompeu a conversa:

            — Esperem. E se a Reca não estiver no hotel? Essa foi uma das hipóteses que a gente também levantou ontem — recordou ela.

            — É, mas não dá para verificarmos duas, três hipóteses ao mesmo tempo — considerou Atahualpa. — Temos que escolher. Eu voto por começarmos a examinar esses quartos. O que vocês acham?

            Todos estavam de acordo, até mesmo Cacá.

            — Temos que esgotar as possibilidades do hotel, é o que eu acho — reforçou Belinha, servindo-se de mais café, quando foi interrompida por uma exclamação de Cacá.

            —Belinha, olha só: você pegou o bule com a mão esquerda!

            Belinha tomou o próprio braço e apalpou.

            — Puxa, sabe, eu nem tinha reparado... Ele está bom! A gente só percebe que tem braços e pernas quando eles não funcionam!

            Cacá sugeriu que tirassem uma fotografia naquela linda mesa de café, atestando que as duas estavam prontas para voltar para a quadra. Juan dispôs-se a buscar a máquina fotográfica. E sumiu escada acima em direção ao quarto. Quando retornou, tinha uma expressão alarmada.

            — O que aconteceu? — quis saber Atahualpa assustado.

            — Revistaram o quarto? — pressentiu Belinha.

            Juan olhou para os lados, certificou-se de que a área estava livre e revelou:

            — Tem uns tipos estranhos no corredor do primeiro andar. Quando eu subi, dei de cara com eles. Olharam para mim de um jeito tão esquisito!... Quando desci foi a mesma coisa. Eu me senti muito mal.

            — Xiiii. Tem coisa aí... — suspeitou Cacá. — Quantos caras eram?

            Juan respondeu que eram três. E nenhum tinha costeletas largas.

            Belinha se intrometeu:

            — Juan, tire logo uma foto, para justificar sua subida. E depois, o Atahualpa podia subir, levando a máquina como álibi para verificar se eles continuam lá ou se foi apenas uma coincidência. — Atahualpa, que bebia sombrio seu café, acenou, grave, para a garota, concordando. Juan olhou para os lados, procurando alguém disposto a tirar uma fotografia do grupo. E viu um garçom jovem, alto e simpático que se ofereceu antes mesmo que ele pedisse.

            — Pode deixar. Eu tiro a fotografia — prontificou-se com um largo sorriso.

            Juan entregou-lhe a máquina e foi correndo postar-se ao lado de Cacá, aproveitando para passar o braço sobre os seus ombros. Cacá não resistiu e deixou a cabeça cair sobre o ombro robusto do rapaz. O clic veio rápido, fixando para sempre aquele instante descontraído do grupo de resgate.

            — Aqui está sua máquina — entregou o garçom num gesto gentil.

            Belinha observava o rapaz. Havia nele alguma coisa que a interessava. Ela não saberia dizer se era o charme, o sorriso simpático ou porque ele fosse simplesmente bonito.

            — Você trabalha sempre aqui? — indagou, puxando conversa. O garçom, que parecia também ter notado a jogadora de uma forma especial, confirmou, com um belo sorriso.

            Atahualpa entrou na conversa:

            — Nesta época vocês devem ficar loucos de tanto trabalho — comentou o rapaz, dominado por uma nova idéia: sondar o garçom sobre os quartos do hotel. Quem sabe ele revelaria alguma coisa?

            — Ah, sem dúvida — respondeu o garçom, que se chamava Antônio. — E nem todos são simpáticos como vocês — galanteava o rapaz, dirigindo-se às garotas. Um brilho radiante iluminava o rosto de Cacá. É que Juan não havia retirado o braço de seus ombros e sussurrava alguma coisa ao seu ouvido. Cacá sorria feliz.

            — E devem servir muitas refeições também, não? — indagava Belinha, entrando muito satisfeita no jogo de Atahualpa.

            O galante garçom voltou a confirmar.

            — Acho que todo mundo deve descer para tomar o café aqui embaixo — comentou Juan, fazendo a sua parte.

            — Eu detesto refeição no quarto! — ajuntou rapidamente Cacá.

            O garçom sorria sempre gentil.

            — Deve ser um aborrecimento ter que subir todos esses degraus para servir refeições no quarto, não? — insistiu Atahualpa, numa última tentativa.

            — Um pouco, um pouco — confirmou o garçom, que respondia a tudo, mas não revelava nada.

            A turma já não sabia que perguntas inventar. Finalmente, cansados do interrogatório, pediram a conta, enquanto Atahualpa subia para guardar a máquina fotográfica e verificar se os tipos esquisitos ainda estavam lá no corredor.

            — Vamos dar uma boa gorjeta ao garçom — propôs Juan. — Vamos ganhar o homem! — E foi o que fizeram, deixando 30% a mais quando Antônio trouxe a nota. Diante disso, o garçom abriu um sorriso definitivo e fez questão de puxar a cadeira para as garotas se levantarem, além de ajudar Belinha a vestir o casaco. Ela sentiu-se a própria dama...

            Atahualpa subiu as escadas devagar, com a máquina fotográfica à vista. Afinal, álibi que é álibi deve estar bem à vista. Ao aproximar-se do corredor do primeiro andar, viu os três sujeitos a que Juan havia se referido. Um deles o observou de alto a baixo. Eles cochichavam. Atahualpa seguiu para o segundo andar, mas quando chegou ao seu quarto, mudou de idéia. Voltando sobre seus passos, foi ao terceiro andar, aproximou-se do quarto 37 e, discretamente, apurou os ouvidos junto à porta. De dentro não vinha som algum. O rapaz voltou a descer e verificou que também no quarto 21 havia o mais absoluto silêncio. Estariam ambos os quartos desocupados?

            Enquanto isso, como Atahualpa não aparecesse, Juan, preocupado, decidiu subir à sua procura. Belinha e Cacá ficaram sozinhas, esperando na calçada em frente ao hotel.

            — Diga, Cacá — alfinetava Belinha. — O que é que Juan lhe disse, que você deu um sorriso daqui até aqui?

            A garota continuava sorrindo e não dizia uma palavra. Belinha insistiu:

            — Puxa, sou sua amiga ou não? Vai me dizer que você não vai me contar?

            Cacá desistiu de fazer charme quando viu os rapazes apontarem lá no saguão do Del Rey e segredou na orelha bem-agasalhada da amiga: — Ele disse que queria namorar comigo!

            Quando os quatro puseram-se a caminho do Viracocha, Atahualpa contou o que vira:

            — Os tipos continuavam no corredor do primeiro andar. São muito estranhos. Por outro lado, os quartos 21 e 37 estavam no mais absoluto silêncio...

            — Podiam estar dormindo lá dentro — opinou Belinha. — Mas eu acho que se alguma coisa está acontecendo, é no primeiro andar. Não sei em que quarto, porque, como vocês disseram, os sujeitos estão entre os dois primeiros quartos do corredor.

            — Que são os de número 11 e 13 — informou Juan.

            A turma encontrou Abreu saboreando um ovo estrelado sobre uma torrada de pão de fôrma, cheirando deliciosamente.

            — Temos uma pista interessante — foi dizendo Belinha para o dirigente. — No primeiro andar do Del Rey estão plantados uns caras meio mal-encarados. A gente acha que aí tem coisa!

            — Pode ser — admitiu Abreu. — Mas isso não significa muito. Descobriram quem ocupa aqueles três quartos de janelas sempre fechadas?

            — Não! — responderam os quatro ao mesmo tempo.

            — Vocês não avançaram muito — decretou Abreu, voltando-se para o seu café.

            — Precisamos descobrir se algum deles recebe refeições no quarto — insistia Atahualpa. — Como vamos fazer?

            — Podíamos almoçar outra vez no Del Rey, numa mesa que seja servida pelo Antônio — propôs Belinha. — Depois da gorjeta que nós demos, quem sabe ele nos ajude. Talvez ele saiba quem está hospedado no 13, no 21 e no 37 e se algum desses hóspedes recebe refeições no quarto!

            Todos acharam a idéia interessante. Abreu, que morria de frio e achava que não devia ausentar-se do Viracocha, no caso de Lope y Vega ou a polícia o procurarem, abriu mão de acompanhar o grupo no almoço. Bastava que o mantivessem bem-informado. De sua parte, ele poria a diretoria do Baleia Azul, a polícia e seu amigo Lope y Vega a par de tudo.

 

                   Eu não gosto desse garçom

            Onde é que você está servindo? — indagou Juan a Antônio. Era cedo e não havia ninguém almoçando ainda.

            O garçom apontou-lhe algumas mesas. A turma escolheu a mais discreta.

            Quando ele lhes trouxe o cardápio, Belinha comentou:

            — Você deve fazer de tudo aqui, não?

            — Nem tudo, mas muito — sorriu o rapaz. Belinha já ia perdendo a cabeça.       Decididamente, era difícil fazer perguntas disfarçando o especial interesse que o grupo tinha.

            — Tem uns tipos no corredor do primeiro andar que estão lá desde hoje de manhã — contava Atahualpa. — Engraçado o turismo deles, não?

            O garçom ainda sorria.

            — É verdade — ajuntou Juan sério. — Toda vez que eu subo as escadas eles estão lá. Não é esquisito?

            Antônio olhou discretamente para os lados e disse com ar de confidencia:

            — Se são! Chegaram aqui muito animados, saíam todos os dias, e só voltavam à noite. Depois, não sei o que deu. Agora ficam por lá, sempre. De fato, é muito estranho.

            — Além do mais, Antônio, há três quartos sempre com as janelas fechadas: o 13, o 21 e o 37. Tem alguém lá? — arriscou Belinha.

            O garçom pensou um instante e negou:

            — Estão vazios.

            — Vazios! — repetiu Atahualpa desencantado. Ele estava certo de que, se Reca estivesse presa, haveria de ser num deles, provavelmente no 13, para onde o Costeleta parecia estar olhando, naquela manhã em que o rapaz vestira-se de índio. — E o 13? — insistiu.

            — Vazio também — voltou a confirmar o garçom, antes de retirar-se para levar os pedidos do grupo à cozinha.

            — Não sei, mas não gosto desse garçom — resmungou Atahualpa. — Aposto que ele está combinado com os seqüestradores...

 

            As garotas protestaram veementemente. Atahualpa, convicto, não mudava de opinião e comentou:

            — Só porque ele puxou a cadeira para vocês hoje de manhã, já acham que podem confiar nele!...

            Belinha ficou furiosa. Imagine se ela ia se deixar impressionar por tão pouco! E, quando Antônio retornou, a garota foi direto ao ponto:

            — Antônio, me conte uma coisa: há algum quarto que pede para receber as refeições?

            O garçom voltou a ficar pensativo.

            — Hummm, tem sim, só que não me lembro bem qual é. Ah, sim, é do primeiro andar. Acho que é o 11 — concluiu enquanto lhes servia os refrigerantes. E acrescentou, baixando a voz: — Pedem sempre serviço para uma pessoa e exigem que venha sem culantro. Muito estranho, porque o cara que pede as refeições é de Lima, e ele deveria gostar de culantro...

            O garçom voltou a deixá-los. Os quatro estavam numa agitação difícil de conter.

            — É um cara que pede as refeições no quarto, então! — observou Cacá.

            — Claro, imagina se eles vão deixar a Reca receber pessoal mente a bandeja. Ela vai pedir socorro se for vista por alguém. Está na cara! — exaltava-se Belinha.

            — Mas como você tem tanta certeza de que se trata da Reca? — desafiou Juan.

            — Porque a Reca detesta coentro — respondeu Belinha sem hesitar.

            — Ainda não confio nesse cara — sentenciou Atahualpa, batendo na mesa com a ponta dos dedos.

            — Ah, Atahualpa. Ele não tem cara de mau-caráter — respondeu Belinha, indignada.

            — Quem vê cara não vê coração! — argumentou o rapaz.

            — Não acho — discordou Juan, dando um beijo estalado em Cacá e tornando público e notório seu namoro com a jogara do Baleia Azul.

            Belinha balançava a cabeça: Antônio não merecia uma suspeita daquelas. E, quando o garçom voltou com a sobremesa, a garota tomou mais coragem e arriscou:

            — Antônio, conta pra mim uma coisa. Eu apostei com eles que nesse quatro, o que recebe refeições, existe algo estranho. Eles dizem que não. E você, o que acha?

            O garçom serviu a garota e declarou:

            — Pode pegar o dinheiro da aposta. Há mesmo algo estranho lá. Só que agora é minha hora de trabalho e o restaurante já está enchendo. Depois do meu serviço, vocês me encontram lá na estação de trem, às 4 da tarde.

 

                   Será o quarto 11?

            Às três e meia, o grupo já estava instalado sobre um banco da estação de trem, à espera do garçom. Às quatro horas, Atahualpa e Belinha já tinham traçado uma trilha no chão, de tanto ir e vir. Às quatro e quinze, Atahualpa dizia vitorioso para Juan e Cacá que quem tinha razão era ele. O garçom estava combinado com os seqüestradores e pedira aquele tempo para avisar o pessoal e transferir a garota para outro esconderijo.

            Às quatro e meia, Belinha começou a esfregar as mãos, visivelmente nervosa, e só não começou a roer as unhas porque estava muito frio e ela não queria tirar as luvas.

            Finalmente, às quatro e trinta e nove, Antônio apontou na entrada da estação. Belinha respirou aliviada. Atahualpa não deu o braço a torcer:

            — Veio pra enrolar a gente, vocês vão ver — disse ele.

            — Eu estava ficando preocupada, Antônio — confessou Belinha quando o rapaz se aproximou.

            Atahualpa não disse nada. Limitou-se a ficar observando com um ar desconfiado.

            — O que você ia nos dizer? — perguntou Cacá.

            Antônio desculpou-se pelo atraso. Tinha faltado um garçom, ele não pôde sair mais cedo. A cara de Atahualpa não se alterou, com a expressão sempre escrita nos olhos: "Não disse que ele ia enrolar a gente?"

            — Então?... Conte! — pediu Belinha.

            — Não sei por que vocês estão tão interessados — começou o garçom. — Mas vou contar assim mesmo. Vocês são distintos e eu simpatizei com vocês. Por isso vou contar. Normalmente, eu não conto nada. Na minha profissão, o sigilo é fundamental. Sigilo profissional, vocês entendem?

            Belinha acenou impaciente que sim. Ela não agüentava mais esperar. Tomara que Antônio tivesse alguma informação bem quente...

            — Ontem, no jantar, aconteceu uma coisa esquisita. Na hora, achei engraçado, não dei importância, mas, depois das perguntas de vocês, eu comecei a relacionar os fatos.

            Belinha cutucou Atahualpa, como quem diz: "Viu? O cara é legal!"

            Antônio prosseguia:

            — Mandaram-me levar a refeição para um quarto do primeiro andar: o 11. Bati à porta e um sujeito de costeletas largas me recebeu...

            — De costeletas largas? — repetiu Cacá, suspeitando que talvez fosse o motorista de táxi.

            — Sim, por quê? Tem alguma importância? — indagou o garçom, interrompendo sua narrativa. Belinha, ansiosa, pediu rara que ele continuasse. Ela esclareceria esse ponto depois.

            — O homem — continuou Antônio — pegou a bandeja sem me deixar entrar no quarto. Uma hora mais tarde, quando eu estava servindo no restaurante, ele entrou acompanhado de um rapaz. E jantaram, os dois! Quando ele me viu, disfarçou, fingiu que não me vira. Na hora, achei engraçado o homem querer esconder que era um esfomeado. Quase fui lá perguntar se ele não tinha gostado da comida... Mas agora estou desconfiado. Afinal, o que vocês estão querendo saber? — perguntou, enfrentando o olhar sério de Atahualpa.

            O grupo estava meio atordoado depois daquele relato.

            — Um momentinho só, Antônio — pediu Belinha, que assumia o comando daquela operação. Os quatro se reuniram num cochicho só.

            — Acho que a gente não deve abrir a boca sobre a nossa suspeita — insistiu Atahualpa.

            — Ah, não — protestou Cacá. — Tá na cara que ele está a fim de ajudar a gente!

            — Afim do quê? — repetiu Juan, espantado com a gíria. Já era difícil se entenderem em portunhol; com gíria, então, ficava impossível.

            Belinha explicou:

            — A Cacá quis dizer que ele está com a maior boa vontade. E eu concordo com ela.

            Juan cocava a cabeça. Ele não entendia por que Atahualpa tinha ficado tão desconfiado. Não queria abandonar o amigo, mas acreditava que devia ser franco.

            — Acho que temos que contar. Se ele estiver combinado com os outros, já deve ter falado com eles e a Reca nem deve estar mais lá no Del Rey. Mas, se ele não estiver, provavelmente ele vai nos ajudar — considerou o rapaz.

            — Assim é que se fala! — cumprimentou Cacá.

            — Na votação, Atahualpa, você é voto vencido. Nós vamos falar, está decidido — anunciou Belinha.

            E, voltando-se para o garçom, convidou-o a tomar um café no bar da estação. Foi ali que a turma abriu o jogo. Antônio abria a boca a cada nova revelação. Finalmente pronunciou-se:

            — Olha, eu vou ser sincero. Eu torço pelas garotas do Pinedo e quero que elas ganhem. Mas não concordo com seqüestro. O que eu posso dizer a vocês é que no quarto 11 estão registradas duas pessoas. Mas ouvi uma camareira se queixar que não a deixam entrar nunca. Mandam entregar as toalhas da porta mesmo, sem deixar os empregados fazerem a limpeza ou arrumarem as camas.

            — Mas isso não significa que haja alguém fechado lá — comentou Juan, pensativo.     

            — Precisamos conferir.

            — Antônio, você jura que não vai contar pra ninguém o que sabe? — suplicou Belinha. Antônio prometeu com uma expressão compenetrada. E não aceitou a gorjeta que Atahualpa quis lhe dar.

            — Isso eu faço por honradez, não por dinheiro! — respondeu com dignidade.

 

                   Sem ajuda da polícia

            Eram cinco e meia da tarde daquela bonita quarta-feira, quando Belinha, Cacá, Juan e Atahualpa se encontraram com Abreu.

            — Outro cigarro? — foi cobrando Belinha. Ela não agüentava mais a mania de fumante do dirigente.

            Abreu devolveu o cigarro ao maço, mas, dali a instantes, esquecido, voltou a pegar um e acender. A turma tinha acabado de contar para ele o resultado de suas investigações.

            — Precisamos decidir o que fazer... — repetia ele sem parar.

            — A gente podia falar com o gerente do hotel — propôs Cacá.

            — Ou então com a polícia — sugeriram os rapazes. Abreu pensou um pouco mais. Ele sentia falta da comissão técnica, Marilena, Túlio e doutora Patrícia, com quem poderia se aconselhar e decidir. Depois de algum tempo de reflexão e muitas baforadas, declarou:

            — O melhor é irmos à polícia. Ela é meio demorada aqui, mas acho que não falha.

            Atahualpa voltou a oferecer-se para acompanhar Abreu à polícia. Como sempre, Cacá, Belinha e Juan ficaram esperando, enquanto tomavam um chá com bolo de lanche.

            Uma hora mais tarde, Abreu e Atahualpa retornavam, caindo desanimados sobre o sofá. Foi Atahualpa quem deu as notícias.

            — Eles acham que não há provas consistentes — suspirou o rapaz, contrariado. — Além do mais, dizem que esta é uma cidade que vive de turismo. Invadir um hotel é uma ação muito séria. Se eles não encontram nada, vão receber uma censura pública da imprensa e uma repreensão particular das autoridades.

            Calaram-se todos. Abreu murmurou alguma coisa a respeito de telefonar a Lope y Vega solicitando auxílio. Belinha ia dizer que já desconfiava de uma resposta daquelas por parte da polícia, mas decidiu calar-se.

            — Depois de amanhã, sexta-feira à noite, é a partida final — disse Abreu. — Provavelmente soltarão a Reca depois do jogo, é questão de esperar — finalizou, conformado.

            — Mas já teremos perdido o torneio e o patrocínio do Baleia Azul! — lamentou Belinha.

            A essas palavras, Abreu deu um salto do sofá, como que despertado:

            — Ah, eu estava me esquecendo! Falei com Lima e disse que vocês duas estão recuperadas. A Marilena pediu que vocês viajem para lá amanhã mesmo, no primeiro vôo, o das dez horas, para se prepararem. Podem arrumar as malas, portanto. As duas meninas se entreolharam. O que elas mais desejavam era serem escaladas para a decisão contra o Pinedo. Mas também estavam loucas para ficarem em Cuzco e salvarem Reca a tempo de disputar o jogo.

            — Não dá pra gente ficar mais um dia e voltar a Lima na sexta de manhã? — suplicou Cacá.

            Abreu fez que não com a cabeça.

            — Só um diazinho mais — rogou Belinha. — A gente está quase descobrindo tudo!

            Cacá ajoelhou de mãos postas na frente do dirigente:

            — Ai, Abreu, vai, deixa! — implorou ela, dramática.

            Mas o dirigente estava inflexível, inabalável, irremovível.

            — Eu já permiti que vocês fizessem uma série de coisas. Tenho sido muito tolerante. Vocês têm um compromisso com a rede Baleia Azul de supermercados, que é jogar. Despeçam-se da cidade, arrumem as malas, que amanhã estarão voando logo cedo para Lima.

            — Ah, Abreu, puxa! — choramingou Cacá, derrotada.

            — Estejam prontas às nove horas. Eu mesmo vou levá-las ao aeroporto — cortou o dirigente. Juan e Atahualpa assistiam à cena em silêncio. Eles não podiam fazer nada. Só lamentar.

            — Fiquem tranqüilas — procurou consolar Juan, ele mesmo entristecido com a separação e a viagem próxima da namorada. — Nós vamos encontrar a Reca e a levaremos para Lima!

            Belinha saiu correndo. Cacá também. Para chorar. Tanto esforço, tanta determinação para achar a Reca e, na hora em que começavam a descobrir uma pista, eram obrigadas a ir embora! Belinha não se conformava. Fechadas em seu quarto, as garotas choraram lágrimas de raiva e frustração. E entre um soluço e outro, decidiram:

            — Nós vamos encontrar a Reca! Não vamos para Lima sem ela!

            Enxugando as lágrimas, Belinha se aproximou do telefone, decidida. Perguntou as horas a Cacá.

            — Sete horas, hora do jantar. Por quê?

            — Por que eu tenho um plano. Espere só — e Belinha discou um número.

 

                   Entre um prato e outro

            — Antonio? Aqui é a Belinha. Preciso muito falar com você agora. Posso ir aí? — Depois de um breve silêncio, a garota agradeceu e desligou. E, voltando-se para Cacá, comandou:

            — O Antônio prometeu ajudar, vem comigo que eu lhe explico tudo no caminho.

Andando a passos rápidos, Belinha expôs o plano a Cacá.

            — É simples: na hora que o Antônio for levar a refeição para o quarto 11, ele força a entrada para ver se é a Reca quem está lá dentro. Se ela estiver, ele dá um grito e chama a gente.

            Cacá, que corria ao lado da amiga, refletia:

            — Vamos falar com o Juan e o Atahualpa, então. Eles podem nos ajudar!

            — Claro — concordou Belinha. — Mas se já são sete horas pode ser que os hóspedes já estejam fazendo o pedido do jantar. Aí não dá tempo!

            Quando as garotas chegaram ao saguão do hotel, encontraram o Costeleta falando com o Antônio, lá adiante, no fundo do restaurante.

            — Xiiii. O Atahualpa é que tinha razão. Olha lá quem está com o seu amigo Antônio — avisou Cacá.

            As garotas esconderam-se atrás do biombo que separava o restaurante do saguão, e em pouco tempo viram o Costeleta dar a volta e passar rente a elas em direção à escada.

            — O Antônio me paga se ele disse alguma coisa pra esse cara — soltou Belinha, irritada, enquanto lançava-se restaurante adentro. Cacá ia atrás, tímida e apreensiva. "Agora é que a coisa vai estourar!", disse ela para si mesma.

            Belinha chegou até a porta da cozinha. Foi barrada pelo gerente, que vinha em direção contrária.

            — O que as senhoritas desejam?

            — Quero falar com o Antônio! — comandou Belinha, enérgica.

            O gerente fitou-a admirado e acabou por ir chamar o garçom. Cacá, que conhecia muito bem aqueles estouros da amiga, estava preocupada. Belinha irritada era a melhor cortadora do mundo. Estourava todas as bolas com precisão. Mas agora...

            — Ô, Antônio, pensei que você fosse meu amigo! — foi bronqueando a garota. — Você falou pro Costeleta sobre o quarto 11?

            Antônio agarrou a garota pelo braço e puxou-a para a cozinha.

            — Pssst! Senta lá numa mesa, peça o seu jantar e eu explico tudo, sem chamar a atenção. Vai!

            As garotas fizeram o que ele mandou. O tom de voz de Antônio não permitia resistência. Dali a um minuto, ele reapareceu com o cardápio na mão, colocou-o diante do nariz gelado de Belinha e começou a falar como se lhe explicasse um prato:

            — Ele veio trazer a bandeja da comida do 11. Foi só isso. Eu não falei nada e nem gosto que desconfiem de mim!

            — Desculpa, Antônio — disse Cacá na sua voz mais amistosa, tentando salvar a situação. — A Belinha está assim porque acabou de receber uma péssima notícia.

            Antônio apontou um prato qualquer do cardápio como se o estivesse sugerindo e declarou ofendido:

            — Ainda assim, ela não tem o direito de me tratar desse jeito...

            — Desculpa, Antônio — disse Belinha, mais calma. É que acabaram de nos avisar que a gente vai embora de Cuzco amanhã, no primeiro vôo.

            — Então, esperem — pediu ele, retirando-se, com um sorriso profissional. Alguns hóspedes já ocupavam várias mesas do restaurante.

            — O que deu nele para sair assim? — estranhou Belinha. Cacá limitou-se a dar de ombros.

            Antônio reapareceu em seguida com uma sopeira na bandeja. Belinha fez uma careta. Ela detestava sopa, até no frio

            — Sopa, Antônio? — resmungou baixinho.

            — Ah, eu não posso ficar conversando com vocês sem trazer nada. Mas diga o que você queria quando me telefonou — pediu o garçom, enquanto servia a sopa no prato das garotas.

            — A idéia, Antônio, era que você, quando fosse levar o jantar para o 11, forçasse a porta para entrar e ver o que havia lá dentro. Se encontrasse Reca, era só dar um grito que

nós íamos correndo. Mas pelo visto chegamos tarde... — concluiu Belinha.

            O garçom deixou-as um instante e voltou com o queijo ralado. Outra coisa que Belinha detestava, principalmente em sopa de maçarrãozinho, como aquela. Antônio ia espalhando com a colher aquele queijo ralado amarelo. E ainda mandava:

            — Sorria e agradeça! Tem gente nos olhando.

            Belinha obedeceu, contrariada. "Que jeito!"

            — Eu tentei entrar quando subi com a refeição. Foi logo depois que você me telefonou. Eles não me deixaram. Agora tenho que ir. Quando vocês pedirem o próximo prato, continuamos a conversar.

            Belinha contemplou desanimada aquela sopa cheia de queijo ralado.

            — Melhor comer — aconselhou Cacá.

            — Mas eu acabei de lanchar e não tenho o seu apetite! — gemeu a outra.

            Cacá riu divertida. E tratou de comer a sua parte. Belinha fechou os olhos, como se fechasse o nariz, e engoliu aquilo rapidamente. Logo chamavam Antônio de novo.

            — E agora, senhoritas, o que desejam?

            — O cardápio para ver a sobremesa — pediu Cacá.

            Antônio trouxe-o e, usando o mesmo truque da sopa, seguiram conspirando.

            — Acho que teremos que adiar o plano do jantar para o café de amanhã — começou Belinha. — Você pode fazer isso? Você força a entrada e nós...

            Antônio interrompeu:

            — Não. Se a sua amiga não estiver lá, posso perder o emprego. Mas tenho uma outra idéia.

            O rapaz deixou-as e voltou dali a pouco com uma torta de maçã.

            — Ai, Antônio, pelo menos você podia perguntar o que a gente quer. Detesto sopa, queijo ralado e torta de maçã — reclamou Belinha. Mas ele nem deu atenção:

            — Não dá para perdermos tempo com isso, Belinha. A minha proposta é que um de seus amigos se vista de garçom e entregue a bandeja no quarto. Se alguma coisa der errado, eu digo que não sabia de nada.

            — E as roupas de garçom? — indagava Cacá.

            A resposta chegou com o chantili que ele trazia. Serviu porções generosas para as duas, enquanto adiantava:

            — Amanhã, antes de eu vir para cá, deixo um uniforme no seu hotel. Aquele seu amigo, meio índio e meio desconfiado, tem mais ou menos o meu tamanho. Há de servir.   — E Antônio desapareceu cozinha adentro. As meninas só souberam a que horas se daria o encontro quando ele trouxe o chá.

            — Amanhã, às seis da manhã. Agora podem pagar a conta e ir embora.

 

                   Nós temos um plano, e dos bons!

            As garotas atravessaram a praça iluminada de Cuzco. Tão bonita sob aquela luz, que mais parecia um cartão-postal.

            — Agora é só convencer o Juan e o Atahualpa a ajudarem — calculava Cacá em voz alta.

            — O duro vai ser madrugar! — suspirou Belinha.               Quando elas apontaram na porta do Viracocha, Juan já vinha ao seu encontro.

            — Onde vocês se meteram? Nós as procuramos por toda parte!

            Cacá aproximou-se do namorado, deu-lhe um beijo e sussurrou-lhe ao ouvido: — Nós temos um plano, e dos bons!

            — Então, conte — pediu o rapaz. Mas Belinha achou melhor reunir todos primeiro e traçar o plano num local mais discreto:

            — Nesta cidade as paredes têm ouvidos! — enunciou, rindo, lembrando a frase que sempre lia com prazer nos romances de aventura.

            Minutos mais tarde, Abreu e Atahualpa atendiam ao chamado das garotas e batiam à porta do quarto. Belinha contou-lhes o que elas tinham feito naquele início de noite e qual era o plano para salvar Reca, se ela fosse mesmo hóspede do quarto 11.

            — A idéia parece boa — apressou-se Abreu —, mas já vou avisando: dando certo ou não, vocês duas pegam o primeiro avião amanhã. Podem deixar as malas prontas agora à noite.

            As garotas fizeram que sim, e um brilho em seus olhos revelava a convicção delas de que tudo ia dar certo. "Tem que dar certo!", pensava Cacá.

            — O Antônio vem aqui amanha, às seis horas, para entregar um uniforme de garçom para o Atahualpa — explicava Belinha, com determinação. — Nós duas vamos levar para você, Atahualpa. Enquanto você se troca e aguarda, o Antônio vai trazer a bandeja de café para que você a entregue no 11. Daí você força a entrada!

            Atahualpa tinha uma ponta de sorriso nos lábios sempre sérios. Ele queria ação e estava satisfeito em fazer o papel principal. Aliás, ele achava que ficava muito bem como protagonista.

            — Não sei se o Atahualpa vai conseguir fazer tudo sozinho — ponderou Abreu.

            — Tem razão — concordou Juan. Só no corredor ficam de dois a três sujeitos. Lá dentro, pelo menos mais um. O Atahualpa, segurando uma bandeja, não vai conseguir fazer tudo sozinho.

            Atahualpa já ia protestar, mas viu que Juan tinha razão.

            — Poderíamos organizar uma ação bem-cronometrada — propôs Juan. — No momento que o Atahualpa bater na porta do quarto, o Abreu e eu apontamos pelo mesmo lado do corredor para dar apoio.

            Abreu coçou a cabeleira rala. Enfrentar dois ou três sujeitos mal-encarados não era uma perspectiva que o animasse muito...

            Belinha lançou um olhar à barriga de Abreu. Ela tinha lá - suas dúvidas de que o dirigente pudesse dar conta de dois adversários ao mesmo tempo.

            — Acho que esse plano pode ficar melhor — propôs então Belinha. — Se eu e a Cacá ajudarmos.

            — Mas vocês não têm força... — interrompeu Atahualpa.

            — Mas temos cabeça! — retrucou Belinha. — Cacá e eu poderíamos aparecer no corredor, vestidas de camareiras, com toalhas no braço. Na hora em que você estiver batendo na porta, nós estaremos bem perto...

            — E ajudaremos a forçar a entrada, dizendo que temos que limpar o quarto! — completou Cacá, feliz por achar lugar numa ação emocionante como aquela.

            Abreu, que ouvia a tudo dividido entre fumar e passar nervosamente os dedos na cabeleira rala, apresentou uma nova sugestão:

            — Esse plano parece um pouco arriscado... Acho que o melhor é pedirmos ajuda ao Lope y Vega. Estou certo de que uma palavra dele à polícia fará com que ela venha verificar nossas suspeitas sobre o quarto 11. O Lope é um homem poderoso...

            O grupo hesitou um instante entre os dois planos.

            — Não acho bom abandonar o primeiro plano e ficar à espera das providências do Lope. Poderíamos fazer o seguinte: você fala com Lope y Vega. Enquanto isso, nós vamos colocando o nosso plano em ação. Se o Lope y Vega e a polícia forem mais rápidos, melhor pra nós. Se não...

            A reunião foi suspensa com a saída de Abreu, que foi telefonar ao dirigente peruano. Ao se despedir, Atahualpa falou para as garotas, de dedo em riste:

            — Amanhã é o dia D. E é bom que esse Antônio não se atrase e que o pessoal do 11 não peça café antes da hora!

 

                   O dia D

            Às cinco e meia da manhã seguinte, Cacá sacudia a amiga para despertá-la.

            — Acorda, Belinha. O Antônio já deve estar chegando! A garota deu um salto e aprontou-se rapidamente.

            — Onde está a sacola com a roupa de camareira que a gente conseguiu ontem? — procurava Belinha ainda tonta de sono.

            — Está aqui.

            — Ah, e as toalhas? Nós não pegamos toalhas! — observou Belinha, aflita.

            — Xiii, é mesmo. E agora? Bem, a gente podia pegar as nossas — sugeriu apressada Cacá.

            Belinha foi ao banheiro pegá-las. Estavam usadas, mas não tinha importância. Ninguém ia usá-las mesmo. Enfiaram-nas de qualquer maneira na sacola.

            — Lá no Del Rey a gente dobra direitinho...

            Ao passarem pelo saguão do Viracocha, encontraram com Abreu, todo encasacado, com luvas de couro.

            — Que luvas chiques! — brincou Belinha, ligeiramente apreensiva. Já eram seis horas e Antônio não tinha aparecido.

            — As luvas são para proteger a mão do frio e também dos socos — confidenciou o dirigente em voz baixa.

            — Conseguiu avisar o Lope y Vega? — perguntou Cacá. Abreu balançou a cabeça desanimado. Desde a véspera que estava procurando o peruano sem sucesso.

            — Deixei um recado urgente para que ele me telefone o mais cedo possível. Mas já estou desistindo. Ele parece muito ocupado... — contou Abreu.

            Seis e quinze, e Antônio ainda não chegara. Belinha andava de cá para lá, esfregando as mãos. Ele estava se atrasando outra vez! Qual seria a desculpa agora?

            Às seis e vinte, Antônio aparecia.

            — Não deu para eu vir antes. Tive que lavar a roupa ontem e secar no ferro agora de manhã — explicou-se.

            — Está tudo aqui? — perguntou Cacá. O rapaz confirmou.

            — Vou indo que estou atrasado. É melhor vocês irem separados para não chamarem a atenção. Precisamos pegá-los desprevenidos! Quando estiverem todos no quarto dos rapazes, me chamem na copa. Até logo e boa sorte!

            As garotas agradeceram e esperaram alguns minutos. Dali a pouco Belinha saía com a sacola de Antônio nos ombros.

            — Não quer tomar leite, comer um pão antes? — perguntou Abreu a Cacá.

            — Não — respondeu a garota, para espanto do dirigente. Estou meio elétrica e não consigo engolir nada. Cacá esperou cinco minutos e, agarrando a sacola com a roupa de camareira, saiu rumo à neblina branca e fria lá de fora. Em breve, desaparecia na cerração. Abreu puxou do lenço para enxugar o suor, que lhe molhava a testa apesar daquele frio todo.

            — Senhor Abreu? — chamou alguém. Era o rapaz da recepção. — É uma chamada de Lima. O senhor Lope y Vega está na linha.

            Belinha caminhou pela cerração e seguiu em passo firme. Por dentro o coração batia forte. Algumas formas surgiam de repente à sua frente. Um índio com uma lhama, um carro, o contorno de uma casa. Belinha tinha medo de errar o caminho naquela né-voa toda. Tiritava de frio e ansiedade. E de medo também..

 

                   Alguma coisa deu errado!

            Juan ouviu umas batidas secas à porta. Era Cacá.

            — Ainda bem que você abriu logo — foi dizendo a garota.

            — Nossa, Cacá, você está com uma cara tão assustada! O que aconteceu? — quis saber Belinha, que havia chegado uns minutos antes.

            Cacá sentou-se na cama, respirou fundo e revelou:

            — Foram os caras lá no corredor do primeiro andar. Quando eu subi, deram uma olhada de dar medo!

            — Engraçado, quando eu passei por lá eles não estavam... — estranhou Belinha.

            A porta do banheiro abriu-se e apareceu Atahualpa vestido de garçom.

            Juan consultou o relógio. Eram sete horas.

            — Só está faltando o Abreu, será que ele não vem? — perguntava Juan.

            Nesse instante, tocou o telefone. Belinha correu para atender.

            Do outro lado, numa voz controlada, mas tensa, falava Antônio:

            — Belinha, alguma coisa deu errado! Eles estão aqui no restaurante. Em vez de pedir para subir a bandeja, mandaram um sujeito vir pegar aqui.

            Foi um segundo, o cérebro da garota trabalhava com rapidez.

            — Antônio, enrola, trata de ganhar tempo enquanto a gente pensa em alguma coisa — retrucou ela. E, virando-se para os outros, contou a novidade:

            — Eles foram buscar a bandeja!                   A notícia caiu como uma viga na cabeça da turma. Ficaram literalmente atordoados.

            — Não há tempo para pensarmos em um novo plano, vamos manter a idéia inicial! — comandava Belinha, com os reflexos rápidos de boa jogadora de vôlei que era.

            Na hora, todos concordaram, ninguém discutiu. Parecia que o grupo pensava com a mesma cabeça e sentia com o mesmo coração. Atahualpa vestiu o paletó de garçom e anunciou:

            — Belinha, avisa o Antônio: eu vou descer para a cozinha pelo corredor dos fundos e levar a bandeja como se nada houvesse acontecido.

            Belinha já pegava no telefone, enquanto Cacá vestia o uniforme de camareira.

            — Ah, Juan, você conta até sessenta e vai para o primeiro andar. E vocês, garotas, contem até cinqüenta e vão também! Eu estou indo! — disse Atahualpa, antes de desaparecer.

            Cacá e Juan começaram a contagem regressiva. Belinha finalmente conseguia falar com Antônio.

            — Antônio? Sou eu outra vez. O Atahualpa está chegando aí para pegar uma bandeja de café. Nós vamos manter o plano. Segura o cara o tempo que der!

            Atahualpa desceu os dois lances de escada rapidamente. Lá embaixo entrou pela porta de serviço que ia dar na cozinha. Seu coração batia mais forte à medida que se aproximava.

            O rapaz abriu a porta de serviço e deu de cara não com Antônio, mas com o gerente. E empalideceu diante da pergunta inevitável:

            — Quem é o senhor?

            Atahualpa hesitou. Nesse instante, Antônio apareceu por trás do gerente e disse:

            — Estão chamando o senhor no telefone. Dizem que é urgente.

            Foi o tempo de o gerente voltar as costas e Antônio entregar para Atahualpa uma bandeja com café. O rapaz agarrou e subiu o mais depressa que pôde, equilibrando o suco, a xícara e o bule.

            Atahualpa subia preocupado. Será que tinha demorado muito? Ao encontrar com o gerente, ele se perdera na contagem, e agora não sabia se estava chegando muito cedo ou muito tarde...

            No corredor do primeiro andar, virou à esquerda. Lá no fundo, os vultos dos dois sujeitos, encostados à parede, sobressaíam. Atahualpa aprumou-se como vira sempre os garçons fazerem. Colocou a bandeja sobre a mão esquerda espalmada, erguida à altura da cabeça, e veio andando, aproximando-se daqueles vultos que acabavam de notá-lo e agora já o observam fixamente.

            Atahualpa procurava olhar para a frente, como se estivesse indo para outro quarto, como se fosse simplesmente um garçom com uma bandeja num corredor. Com o rabo do olho, verificou que estava à altura do quarto 17. O rapaz morria de vontade de se virar para ver se as garotas estavam atrás dele, como o combinado. E ali adiante, a poucos passos, já o esperavam os dois homens, mãos à cintura e pose de valentões.

            O coração de Atahualpa bateu acelerado quando ele voltou-se repentinamente para a esquerda, colocando-se diante do quarto e batendo à porta.

            A mão pesada do mais alto dos homens desceu-lhe sobre o ombro direito.

            — Não foi pedido serviço de café neste quarto, seu moço — advertiu uma voz ameaçadora. Atahualpa precisou buscar lá dentro de si força e domínio para responder com calma:

            — Recebemos um chamado. — Dito isso, deu mais duas pancadas enérgicas na porta. Ao olhar de lado, avistou as duas garotas se aproximando.

            — Dê cá a bandeja! — ordenou o sujeito.

            O ferrolho da porta girava, a porta se abria. O rapaz passou rapidamente a bandeja para as mãos daquele homem e, com as mãos livres, empurrou a porta.

 

            — Vocês não podem entrar aqui dentro! — gritava o Costeleta, ao avistar um garçom alto e duas camareiras muito decididas invadindo o quarto.

            Belinha lançou um olhar à volta: Reca não estava lá! E alguém já a forçava com violência para fora.

            Vão embora, ninguém chamou vocês aqui! — esganiçava o Costeleta, empurrando Cacá. Belinha avistou o armário, antigo e alto. Ali podia caber uma pessoa do tamanho da Reca. Dirigiu-se para lá. Alguém segurou-lhe o braço. Belinha não teve dúvidas: com a mão livre, num jogo de corpo, deu um tapa em quem a prendia.

            — Cacá, me ajuda! — gritou.

 

            Cacá foi em auxílio da amiga. O homem que prendia Belinha era o sujeito alto de mão pesada que abordara Atahualpa. O homem não esperou: virou uma bofetada em Cacá. Belinha aproveitou para dar-lhe um pontapé na canela ao mesmo tempo que Juan se atirava sobre ele. Atahualpa lutava com o Costeleta. Belinha, novamente livre, lançou-se para a porta do armário. Abriu-a: Reca não estava lá. Onde poderia estar?

            Nisso viu Juan debatendo-se, às voltas com dois homens. Cacá apanhou um vaso da mesa e veio por trás, espatifando-o na cabeça de um deles.

            "O banheiro!", lembrou-se Belinha. Só que, para alcançá-lo, tinha que atravessar o quarto. A garota encostou-se na parede e foi escorregando para lá, tomando cuidado para não receber nenhuma sobra daquela luta furiosa. Quando ia abrir a porta do banheiro, alguém apareceu na sua frente. Era o Costeleta. Foi um segundo: os dois trocaram um olhar de desafio. — Abre a porta! — ordenou Belinha. O homem nem se mexeu, sorrindo um sorriso superior. A garota não teve dúvidas. Com um golpe ágil e inesperado, acertou-lhe um pontapé no joelho. O Costeleta largou a maçaneta e Belinha abriu a porta.

            — Reca! — gritou. Lá estava a amiga, amarrada a uma cadeira, com uma mordaça na boca.

 

                   Reca conta o que aconteceu

            duas horas depois do resgate de Reca, quando o avião já decolava é que as garotas tiveram algum tempo para conversar. Porque, entre acharem Reca e embarcarem no vôo das 10 h, muitas coisas ocorreram. O Costeleta agarrara Belinha e lhe dera um tapa bem-aplicado na cara, Antônio chegou a tempo de salvá-la de um segundo bofetão e o gerente, a tempo de salvar a mobília do quarto. A polícia chegou só para conferir e Abreu foi avisado pelo telefone.

            O Costeleta e seus comparsas foram detidos por seqüestro e Abreu teve que se explicar com a turma por que não comparecera ao salvamento de Reca...

            — Logo depois que Cacá saiu, eu recebi um telefonema de Lope y Vega, que eu vinha procurando desde a véspera. Contei-lhe de nossa descoberta e dos nossos planos. Ele ficou muito preocupado, pois considerava o plano perigoso. Aconselhou-me a ficar no Viracocha, e prometeu telefonar à polícia exigindo uma providência imediata. Ele ficou de me ligar em seguida e eu fiquei esperando...

            — Quem tem razão é a doutora Patrícia — reconheceu Belinha. — Esse Lope y Vega é muito estranho. Por pouco o plano não deu certo! Sorte que nós fomos mais rápidos...

            À hora de partir, Belinha deu um grande abraço em Antônio.

            — Adorei conhecer você! Seria bom se você pudesse ir a Lima assistir ao jogo — disse a garota, oferecendo o rosto para que Antônio beijasse. Ela ainda tinha um grande hematoma na face, resultado da briga matinal.

            — Pode ser que eu vá. Tenho que estar sexta-feira no IFEA, em Lima — respondeu o rapaz, sem explicar o que significava aquela sigla. — Vou tentar chegar a tempo no ginásio. Mas não prometo nada.

            Cacá e os rapazes também agradeceram a Antônio e se despediram. Estavam todos machucados e Atahualpa tinha o braço quebrado. Abreu quis dar dinheiro ao garçom, que recusou. Abreu deu-lhe um abraço comovido.

            — Uma entrevista! — pediam os repórteres. — Como você se sente? — perguntavam a Reca.

            A garota, com a boca machucada pelas longas horas em que estivera amordaçada, apenas sorria. Abreu pediu paciência à imprensa.

            — Prometo uma coletiva hoje à noite, no hotel em Lima. Perguntem ao comissário de polícia e ao Antônio. Eles contarão. Adeus.

            — Que loucura, Reca. Então deixaram você amarrada desde domingo?

            A garota acenou afirmativamente. Tinha os lábios cheios de pomada. Os pulsos também. Contou em poucas palavras o que lhe acontecera.

            — Eles me agarraram quando fui ao banheiro. Antes, aquele cara de costeleta queria me levar para conhecer não sei o quê.

            — Também tentaram fazer isso conosco! — recordou Cacá, interrompendo.

            — Eu tinha dito que não, mas quando eu estava saindo do banheiro, alguém me agarrou por trás e pôs um pano com éter no meu nariz. Desmaiei, claro. Acordei mais tarde dentro de um bagageiro. Uma sensação horrível. Fiquei naquele escuro um tempão. Só me tiraram de lá de noite. Pelo menos haviam colocado um cobertor e um travesseiro. Se não, eu não agüentaria os trancos da viagem. À noite, me carregaram pela escada de serviço até o quarto.

            — Que monstros! — indignou-se Atahualpa.

            Reca parou um instante para descansar. Sua boca doía.

            — Devem ter feito isso na hora do jogo, aposto! — comentou Belinha. Reca confirmou com a cabeça e continuou.

            — Pediram o jantar e assim que tiraram a mordaça, eu botei a boca no mundo. Eles me deram uma bofetada. Mas eu continuava a gritar. Eu sabia que se alguém me ouvisse, eu estaria salva. Então, voltaram a me amordaçar e eu fiquei sem comer. No dia seguinte, eu estava morta de fome. E fiquei quieta até comer o bastante. Quando tentei gritar, me amordaçaram outra vez. Eles enfiavam a comida pela minha boca, sem me dar tempo de mastigar quase. E colocavam o rádio bem alto. O resto do tempo, eu passava amarrada. E um cara me vigiando. Eles diziam que iam me soltar depois da decisão de sexta-feira. Foi horrível! — Reca encostou a cabeça no ombro amigo de Cacá, fechou os olhos e dormiu um sono tranqüilo e livre. O primeiro daqueles últimos dias.

            Cacá perguntou baixinho a Juan se ele e Atahualpa iam assistir ao jogo, no dia seguinte.

            — Mas claro! — confirmou o rapaz, indignado com a dúvida. E, sorrindo, deu um beijo na garota. Um beijo colorido: ele, com os olhos totalmente roxos por causa da briga; ela, com um vergão vermelho estampado na face. — Estou orgulhoso de sua coragem — sussurrou-lhe ao ouvido o namorado.

            Atahualpa, por sua vez, observava a cena em silêncio, perdido em seus pensamentos, quando foi interrompido por Belinha:

            — O que é IFEA? — quis saber a garota.

            — IFEA? Hmmm. Instituto Francês de Estudos Andinos. É lá que eu pretendo estagiar quando estiver cursando Arqueologia. Por quê?

            A garota respondeu no tom mais baixo que pôde, para não acordar Reca.

            — O Antônio me disse que tinha que estar no IFEA sexta-feira...

            Atahualpa voltou àquela sua expressão desconfiada dos primeiros encontros com Antônio.

            — Acho muito esquisito um garçom no IFEA. Vai ver que ele foi convocado para servir chá no Instituto.

            Abreu aproximou-se das poltronas onde o grupo se instalara.

            — Estou preocupado. Será que a Reca vai estar bem para jogar amanhã?

            Belinha pôs a mão na cabeça.

            — Ah, eu tinha até me esquecido. O patrocínio! A gente tem que ganhar; é vencer ou vencer!

 

                   Qual será o jogo de Lope y Vega?

            Naquela quinta-feira, após o treino da tarde, Marilena convocou a todos.

            — Belinha — pediu Marilena. — Você viu o Abreu? Ele ficou de vir para a reunião e ainda não veio.

            Cacá adiantou-se com uma resposta:

            — Ele estava no telefone da recepção, tentando falar com o Lope y Vega.

            — O Abreu está tentando falar com esse homem desde que chegou de Cuzco hoje de manhã! — observou a doutora Patrícia. — E não consegue. Cada vez a secretária diz uma coisa: que está em reunião, que saiu, está ocupado...

            Marilena concordou com ela e desabafou:

            — Precisamos que adiem o jogo de amanhã. A nossa equipe não tem condições de jogar para ganhar. A Reca precisa se recuperar! Se o Lope y Vega transferisse a partida para o domingo, seria excelente!...

            Reca se intrometeu:

            — E tem mais, Marilena. Eles me prenderam para que eu não pudesse jogar! A culpa é da torcida deles. A gente tem que conseguir que adiem esta partida!

            Dali a instantes, aparecia Abreu, desolado:

            — Disseram que ele não pode me receber, mas que ele me telefona quando puder.

            Belinha estava revoltada. Aliás, todos estavam.

            — Abreu, você explicou para a secretária por que está querendo falar com ele? — perguntou Cacá.

            — Foi a primeira coisa que eu disse...

            — Precisamos falar com ele de qualquer maneira e mudar a data desse jogo — anunciou Marilena, decidida.

            — Tenho uma idéia — interveio Patrícia. — Eu vou telefonar para o escritório dele e dizer que sou uma jornalista do El País querendo entrevistá-lo para a edição de amanhã. Como eu falo bem o espanhol, a secretária não vai desconfiar. Marcamos a entrevista, e o Abreu vai comigo como se fosse o fotógrafo. O Túlio nos empresta a máquina dele. Quando o Lope y Vega me receber, estará recebendo o Abreu também, e vamos ver qual é o jogo dele!

            Todos aplaudiram a idéia e a médica tratou de telefonar para o escritório de Lope y Vega. Depois de dez minutos, voltava com um sorriso:

            — Está tudo certo. Ele está nos esperando!

 

            Horas mais tarde, Patrícia e Abreu reuniram toda a equipe e a comissão técnica para contar o que tinha acontecido na entrevista com o dirigente Lope y Vega.

            — Em primeiro lugar, descobri que a Seguradora Pinedo, que patrocina o clube de vôlei Pinedo, é do Lope y Vega, ou melhor, o Lope é um dos donos. Ele nos recebeu lá no escritório da Pinedo! — começou Patrícia.

            — E como foi que ele recebeu vocês? — quis saber Marilena, falando por todos.

            — Pessimamente — respondeu Abreu, enxugando o suor da testa com um lenço.

            E a médica completou:

            — Eu entrei na sala seguida pelo Abreu com a máquina fotográfica do Túlio. Quando ele viu o Abreu, ficou branco, percebendo que havia caído numa armadilha...

            — Eu tentei ser educado, explicando que já que a secretária não queria nos deixar falar com ele, então havíamos inventado aquele meio — explicou Abreu.

            — Mas o homem passou de branco a vermelho, parecia criança surpreendida fazendo travessura! Ficou evidente que ele não queria falar com o Abreu, mas, por que, é que eu não sei — observou Patrícia.

            Abreu prosseguiu:

            — Pedi a ele para adiar a partida. Afinal, o seqüestro da Reca era um fato excepcional e merecia um adiamento...

            — E o que ele disse? — perguntou Belinha.

            — Não disse — respondeu Patrícia. — Gritou que não tinha nada com isso, o jogo estava marcado há meses, o ginásio reservado, as entradas vendidas, e ele não podia ter um prejuízo desses. Depois se acalmou um pouco, tentou consertar a falta de educação, mas nós tratamos de ir embora — contou a médica.

            — Então — concluiu Marilena —, isto significa que teremos que jogar amanhã de qualquer jeito, com ou sem condições! E ainda por cima precisamos vencer para manter o nosso patrocínio...

 

                     Enfim, a final

            O ginásio estava lotado. Repórteres, a rádio e a televisão. Com a repercussão do seqüestro de Reca, chegara uma equipe de televisão brasileira para transmitir o jogo.

            — Nós vamos jogar para ganhar! — afirmava o técnico peruano aos repórteres. — Nós somos contra o seqüestro. Jogo se ganha na quadra!

            — Faremos o possível e o impossível para levarmos o título — respondia Marilena à pergunta se o Brasil estava em condições de jogar.

            A doutora Patrícia, que havia liberado Reca para jogar apenas um set, afirmava à imprensa:

            — A Reca está um pouco debilitada. Eu acho que esse jogo devia ser adiado, e que se deveria procurar imediatamente o mandante do seqüestro!

            — Mas, doutora, os indiciados no seqüestro declararam que não houve mandante, que a idéia foi deles! — observou um repórter.

            — A polícia devia investigar mais — disse Atahualpa, que acompanhava a entrevista com a médica. Ele se recordava de ter ouvido a palavra chefe quando se disfarçara de índio.

            Quando o juiz apitou o início da partida, o time do Baleia Azul estava completo, inclusive com Reca. Saiu jogando com muita garra e fechando favoravelmente o primeiro set por 15 a 13. O segundo set começou sem Reca na quadra. A garota não estava bem por causa do longo tempo em que passara amarrada. Entrou Teresa em seu lugar. Belinha, que também fora substituída para poder descansar, sentia que alguma coisa estava faltando lá por dentro. Ela não sabia dizer o que era. Não era garra, que isso ela tinha de sobra. De repente, vindo de não se sabe de onde, entregaram para ela um botão de rosa com um bilhetinho:

            "Para Belinha, com toda a torcida

                                                      Do Antônio"

 

            A garota procurou-o com os olhos. E viu lá adiante o rapaz. Muito atraente, sem aquele uniforme de garçom. Ele acenou e fez-lhe um sinal de estímulo.

            Belinha retornou à quadra de ânimo novo. Jogou muito, fazendo alguns pontos com o seu imbatível saque viagem ao umbigo do mundo. O Baleia Azul fechava mais um set, com muita dificuldade: 17 a 15.

            Houve então uma reviravolta na partida, com a equipe do Pinedo vencendo brilhantemente dois sets por 15a5el5a3. A verdade é que o Baleia Azul caíra enormemente de rendimento, com as três titulares sem condições para jogar uma partida inteira. Era chegado o momento do quinto e decisivo set. No momento em que o juiz se preparava para apitar, um acontecimento chamou a atenção de todos: na tribuna de honra, Lope y Vega discutia com dois senhores. Não demorou e um guarda-costas do dirigente esmurrava um deles. Policiais dirigiram-se para lá, enquanto populares invadiram a quadra. Túlio mandou as jogadoras se refugiarem no vestiário. O juiz suspendeu a partida, sob a agitação do público.

            Uma hora mais tarde, todas as emissoras de rádio e televisão anunciavam o que ocorrera na partida final Baleia Azul x Pinedo: dois agentes de polícia haviam procurado o dirigente Lope y Vega para interrogá-lo sobre seu envolvimento no caso do seqüestro. O Costeleta havia confessado que Lope y Vega fora o mandante e a polícia queria ouvi-lo imediatamente. Ele resistira, e daí a confusão.

            Assim, o quinto e último set foi adiado para o dia seguinte.

 

                   Nós conseguimos, não conseguimos?

            Belinha voltou novamente o olhar para a sacada do aeroporto de Lima. Lá estavam Juan e Atahualpa acenando às garotas do Brasil, que partiam. Lá estava Antônio também.

            — Ainda bem que nós estamos voltando! — exclamava Lena. — Nunca vi um torneio tão agitado como esse! Até suspensão de partida por invasão de quadra aconteceu!...

            — Aí até foi bom — comentou Patrícia. — A Reca, a Cacá e a Belinha tiveram tempo de se recuperar melhor e jogar aquele quinto set para valer!

            — E eu aproveitei para descontar tudo o que sofri com o seqüestro — completou Reca, feliz. — Nunca joguei tão bem na vida. Mas valeu a pena, porque nós ganhamos! Por 15 a 13! Só tenho pena de deixar o Atahualpa aqui, mas como ele disse que vai com o Juan passar as férias de dezembro em São Paulo...

            Cacá aproximou-se da janela onde estava Belinha.

            — Ele não é uma gracinha, o meu namorado? Ainda bem que ele vem me visitar nas férias. Será que eu agüento esperar até lá?

            Belinha nada respondeu, com os olhos grudados na figura bonita de Antônio, acenando da sacada. A garota tinha um nó na garganta. Parecia que nunca mais ia conseguir falar e rir outra vez.

            — Apertem os cintos — pedia uma comissária de bordo aos passageiros. Cacá voltou à sua poltrona. O avião pôs-se em movimento, lentamente, rumo à cabeceira da pista. A figura dos rapazes foi diminuindo, diminuindo...

            — O melhor de tudo — disse Vera, rompendo o silêncio — foi a renovação do patrocínio! Você não acha, Belinha?

            A garota balançou a cabeça devagar, distraída. Os olhos atentos, fixos na sacada distante, no aceno de mão de Antônio, tão longe...

            O avião parou um momento como que para ganhar impulso e então lançou-se sobre a pista, veloz, decolando em direção às nuvens. Belinha despediu-se de Lima, com ternura e emoção, como se despedira de Antônio no saguão do aeroporto.

            Ela recordava agora os últimos instantes antes do embarque. A equipe estava para partir e Antônio não vinha. Como sempre, atrasado.

            Juan e Atahualpa ali estavam, despedindo-se de Cacá e Reca. Mas Antônio não aparecia.

            Do alto-falante, chamavam os passageiros para o embarque. E Antônio não vinha!

            — Belinha! — chamou Antônio, esbaforido.

            — Pensei que você não viesse! — reclamou Belinha, numa voz sumida de tristeza.

            — Claro que eu vinha! Mas é que eu tinha que entregar um relatório no IFEA e conversar com eles.

            — Relatório no IFEA? — estranhou Atahualpa, que não entendia o que um garçom de restaurante tinha a fazer com relatórios num instituto de estudos andinos.

            — Ah, sim, como estou pesquisando o quíchua em Cuzco resolvi pedir uma bolsa de estudos para poder deixar aquele emprego de garçom...

            — Então, você não é garçom de verdade? — quis saber Belinha.

            — Eu não! Eu sou lingüista, mas, enquanto não chega a bolsa, eu vou me sustentando como garçom.

            — Antônio — disse Belinha, surpresa com a novidade —, o Juan e o Atahualpa vão em dezembro para o Brasil visitar a Reca e a Cacá. Você não pode ir também? — pediu a garota.

            Antônio deu-lhe um beijo.

            — Visita em dezembro? Não vai dar — respondeu o rapaz com um sorriso nos lábios. E, vendo a decepção nos olhos de Belinha, completou: — Recebi há um mês um convite da Universidade de São Paulo para lecionar como professor convidado durante um semestre. Eu não tinha decidido se aceitava ou não. Mas agora vou aceitar. Estarei lá em São Paulo em fevereiro. Está bom para você? — perguntou a Belinha, que, em resposta, deu pulos de alegria.

            — Belinha! Veja só! — avisava Cacá, interrompendo as lembranças da amiga.

            O avião descreveu um círculo e todos puderam admirar as ruínas imponentes de Machu Picchu lá embaixo. O Huayna Picchu destacava-se magnífico e altivo.

            Belinha olhou para Cacá. A amiga devolveu-lhe uma piscadela e um grande sorriso.

            — Nós conseguimos, não conseguimos?

 

                                                                                Silvia Cintra Franco  

 

                      

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