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AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN / Rudolph Erich
AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN / Rudolph Erich

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN

 

[SUPÕE-SE QUE O BARÃO RELATA SUAS AVENTURAS AOS AMIGOS EM MEIO À MUITA BEBIDA.]

 

O Barão faz um relato de suas primeiras viagens - Os incríveis efeitos de uma tempestade - Chegada ao Ceilão; enfrenta e sobrepuja dois extraordinários oponentes - Retorno à Holanda.

 

Alguns anos antes que minha barba anunciasse a chegada da idade adulta ou, em outras palavras, quando eu não era nem homem nem menino, mas estava entre ambos, expressei em repetidas conversas um forte desejo de ver o mundo, da qual fui desencorajado por meus pais, apesar de meu pai ter sido um viajante de valor nem um pouco questionado, como ficará claro após eu ter concluído minhas singulares e, posso acrescentar, interessantes aventuras. Um primo, pelo lado materno, tomando apreço por mim, frequentemente dizia que eu era um rapaz de muito futuro e mosrava-se bastante inclinado a satisfazer minha curiosidade. Sua eloquência fez mais efeito que a minha, pois meu pai consentiu que eu o acompanhasse numa viagem até a ilha do Ceilão, onde o tio de meu primo residia como governador havia muitos anos.

Velejamos de Amsterdã com documentos de importantes autoridades holandesas. A única circunstância digna de nota em nossa viagem foram os maravilhosos efeitos de uma tempestade, que arrancou pela raiz um grande número de árvores de enorme tamanho em uma ilha onde havíamos desembarcado para apanhar um pouco de madeira e água; algumas dessas árvores pesavam muitas toneladas, ainda que tenham sido carregadas pelo vento tão incrivelmente alto que pareciam penas de pequenas aves pairando no ar, pois ficaram pelo menos três quilômetros acima da terra: entretanto, assim que a tempestade amainou, todas elas caíram perpendicularmente em seus respectivos lugares, e enraizaram-se novamente, exceto a maior, pois a ela aconteceu que, ao ser suspensa no ar, encontravam-se entre seus ramos um homem e sua mulher, um casal muito honesto, que ali havia subido para apanhar pepinos (naquela parte do mundo este útil vegetal cresce em árvores): o peso do casal, assim que a árvore caiu, sobrecarregou o tronco, e o fez cair em posição horizontal: exatamente sobre o governador da ilha, matando-o instataneamente; o infeliz havia abandonado sua casa durante a tempestade, temendo que esta caísse sobre ele e já estava de volta quando este fortunado acidente aconteceu. A palavra “fortunado” aqui requer uma explicação. Este chefe era um homem muito ávaro e opressor, que não tinha família, e, com suas suas opressivas e infamantes imposições, fazia os nativos da ilha padecerem a mais terrível fome.

As melhores mercadorias que possuíam haviam sido pilhadas de suas lojas, e os desgraçados mergulhavam na pobreza. Apesar de a destruição de seu tirano ter sido acidental, o povo escolheu os apanhadores de pepino como seus governantes, como um sinal de gratidão por eles terem destruído, ainda que inadvertidamente, o seu tirano.

Após termos reparado os danos recebidos por esta inesquecível tempestade e ganho permissão do novo governador e sua esposa, partimos, soprados por um bom vento, ao objetivo de nossa viagem.

Em cerca de seis semanas desembarcamos no Ceilão, onde fomos recebidos com grandes sinais de amizade e sincera polidez. As seguintes aventuras, bastante singulares, nada têm de desagradáveis.

Após estadia de uma quinzena eu acompanhei um dos irmãos do governador numa caçada. Ele era um homem forte e atlético e, estando habituado àquele clima (pois residia ali havia alguns anos), suportava muito melhor o calor do sol do que eu; em nossa excursão, ele já havia avançado consideravelmente em uma densa floresta, enquanto eu ainda estava apenas na entrada.

Perto de uma imensa massa de água, a qual me havia tomado a atenção, imaginei ter ouvido um murmúrio atrás de mim; ao me voltar, quase fiquei petrificado (e quem não ficaria?) ao ver um leão, que estava se aproximando evidentemente com a intenção de satisfazer seu apetite com minha pobre carcaça, e sem pedir meu consentimento. Que fazer diante de tão horrível dilema? Eu não tinha nem mesmo um momento para reflexão; minha arma estava carregada com apenas uma bala e não restava mais nenhuma outra: entretanto, apesar de não ter idéia de como matar aquele animal com tão pouca munição, eu ainda tinha esperanças de assustá-lo com o disparo e talvez causar-lhe algum ferimento também. Eu o deixei vir, sem esperar, contudo, que ele estivesse ao meu alcance, e o disparo serviu apenas para que ele se enfurecesse mais, pois ele apressou o passo e parecia aproximar-se em plena velocidade: tentei escapar, mas isso somente aumentou meu sofrimento (se é que as coisas poderiam ficar piores); no momento em que me voltei, descobri um enorme crocodilo de boca aberta e pronta para me receber. À minha direita estava a massa de água já mencionada e à minha esquerda um fundo precipício que, conforme soube mais tarde, era um antro de criaturas perversas; logo dei-me como perdido, pois o leão estava já apoiando-se nas patas traseiras, prestes a saltar sobre mim; caí involuntariamente no chão, amedrontado, e, como já indicava, o leão lançou seu ataque. Por alguns momentos, eu me vi em situação que linguagem nenhuma é capaz de exprimir, esperando que a fera cravasse os dentes ou as garras em alguma parte de mim a qualquer momento: após aguardar nessa humilhante situação uns poucos segundos, ouvi um violento porém incomum ruído, diferente de qualquer som que já tivesse entrado em meus ouvidos; não será de todo surpreendente quando eu lhes informar de onde ele procedia: depois de esperar por algum tempo, aventurei erguer a cabeça e olhar ao redor quando, para meu inefável contentamento, notei que o leão, devido ao ímpeto com que havia saltado sobre mim, havia caído, como percebi, bem na boca do crocodilo! a qual, como já observado, estava escancarada; a cabeça de um entalou na garganta do outro! e eles ficaram lutando para se desentalar! Afortunadamente, apanhei minha couteau de chasse que estava ao meu lado; com esse instrumento, decepei a cabeça do leão com um só golpe e o corpo caiu a meus pés! Eu, então, com o cabo de minha arma, empurrei ainda mais a cabeça garganta adentro do crocodilo e o matei por sufocamento, pois ele não podia tragá-la nem expelí-la.

Tão logo obtive tal vitória sobre dois adversários tão poderosos, surgiu meu companheiro, à minha procura; ao perceber que eu não o havia seguido floresta adentro, ele retornou, entendendo que eu tivesse me perdido ou sofrido algum acidente.

Após congratulações mútuas, medimos o crocodilo, que tinha exatamene doze metros de comprimento.

Tão logo relatamos esta extraordinária aventura ao governador, ele enviou alguns servos, que trouxeram as duas carcaças numa carroça. O couro do leão foi devidamente retirado, com a juba, e transformado em bocetas de fumo, sendo que uma delas foi por mim presenteada aos burgomestres em nosso retorno à Holanda; eles, em retribuição, solicitaram que eu aceitasse mil ducados.

O couro do crocodilo foi empalhado da maneira usual e é um dos principais itens do museu de Amsterdã, cujop guia relata a completa história a cada espectador, com algumas adições que ele considera adequadas. Algumas dessas variações são bastante extravagantes; uma delas diz que o leão passou por dentro do crocodilo e estava saindo pela porta dos fundos quando, assim que sua cabeça apareceu, Monsieur o Grande Barão (como ele gosta de se referir a mim), cortou-a fora, juntamente com um metro da cauda do crocodilo; tão pouca atenção esse rapaz dedica à verdade que por vezes ele menciona o fato de que o crocodilo, tão logo havia perdido a cauda, voltou-se, arrancou o couteau de chasse das mãos de Monsieur com uma rabanada e devorou o objeto com tanta voracidade que este perfurou seu coração, matando-o imediatamente!

A simples lembrança do descaramento com que semelhante mentiroso manipula a verdade deixa-me apreensivo às vezes de que os reais fatos possam ser postos sob suspeita por se encontrarem em companhia dessas invenções mentirosas.

 

– Perde seu cavalo e encontra um lobo – Faz com que a fera puxe seu trenó – Promete entreter seus leitores com uma relação de fatos como estes merecem ser contados.

 

Parti de Roma numa jornada em direção à Rússia, em meio ao inverno, com a idéia de que a geada e a neve deveriam ter melhorado as estradas, as quais eram descritas por todos os viajantes como incomumente ruins através do norte da Germânia, Polônia, Courland e Livônia. Fui a cavalo, a melhor maneira de viajar; porém trajava roupas leves e quanto mais avançava rumo a nordeste, mais eu sentia a inconveniência delas. O que não deve ter sofrido num clima tão hostil aquele pobre velho que eu vi abandonado à própria sorte na Polônia, deitado na estrada, desamparado, trêmulo de frio e com escassos recursos para cobrir sua nudez? Apiedei-me daquela pobre alma: apesar de atingido pelo frio, coloquei meu manto sobre ele e imediatamente ouvi uma voz dos céus, que me abençoava por aquela demonstração de caridade, dizendo:

“Serás recompensado por isso, meu filho, no devido tempo.”

Segui meu caminho: a noite e a escuridão alcançaram-me. Vilarejo algum podia ser visto. O país estava coberto de neve e eu não conhecia a estrada.

Cansado, desmontei e conduzi meu cavalo para algo que parecia um tronco de árvore pontiagudo que sobressaía na neve; por segurança, deixei as pistolas debaixo do braço e deitei na imensidão branca, onde dormi tão profundamente que só fui despertar ao raiar do dia. Não é fácil conceber minha estupefação ao me ver no meio de um vilarejo, deitado em um pátio de igreja; não podia divisar meu cavalo, mas o ouvia relinchar num ponto acima de mim. Ao olhar para o alto eu o vi pendurado pelas rédeas a um galo de ferro, na torre da igreja. As coisas tornaram-se então muito claras para mim: a vila havia sido coberta de neve durante a noite; uma súbita mudança de tempo tivera lugar; eu afundei até o pátio enquanto dormia, suavemente, à proporção que a neve ia se derretendo; e o que no escuro eu pensei ser um galho duma pequena árvore a despontar na neve, e ao qual amarrei meu cavalo, nada mais era do que a cruz do galo de ferro da torre!

Sem muitas considerações, apanhei uma de minhas pistolas, arrebentei as rédeas, trouxe de volta o cavalo e prossegui viagem (aqui o Barão parece ter esquecido seus sentimentos; ele certamente deveria ter provido seu cavalo com um pouco de alfafa depois de uma viagem tão longa).

Ele me transportou muito bem – avançando pelo interior da Rússia. Descobri que viajar a cavalo é bastante desusado no inverno e, desse modo, eu me submeti, como sempre faço, ao costume do país, apanhando um simples trenó de apenas um cavalo e dirigindo-me rapidamente até São Petersburgo. Não me recordo exatamente se foi em Eastland ou em Jugemanland, mas lembro que no meio de uma sombria floresta descobri um terrível lobo em meu encalço, seguindo-me com toda a velocidade que a fome de um inverno rigoroso pode proporcionar. Ele logo me alcançou. Não havia possibilidade de escape. Mecanicamente eu me deitei no trenó e fiz o cavalo correr para nossa segurança. O que eu desejava, mas tinha poucas esperanças de obter, aconteceu imediatamente em seguida. O lobo esqueceu-me inteiramente e, passando por mim, caiu furiosamente sobre o cavalo, começando imediatamente a rasgar e devorar as entranhas do pobre animal, que tinha apressado ao máximo. Assim, despercebido e salvo, ergui a cabeça às ocultas e, com terror, observei que o lobo havia despedaçado o corpo do animal; não havia muito que ele iniciara o banquete quando eu, aproveitando-me da situação, caí sobre ele com o cabo do meu chicote. Este ataque inesperado pelas costas assustou tanto o lobo que ele saltou com todas as suas forças, abandonando a carcaça do cavalo e tomando o lugar deste no trenó, enquanto que eu, de minha parte o açoitava continuamente: ambos chegamos a São Petersburgo em alta velocidade, ao contrário de nossas respectivas esperanças, e para grande surpresa dos espectadores.

Não os cansarei, cavalheiros, com a política, as artes, as ciências e a história desta magnífica metrópole da Rússia, nem os aborrecerei com as várias intrigas e agradáveis aventuras que tive nos educados círculos daquele país, onde as senhoras sempre recebem os visitantes com bebidas e cumprimentos. Prefiro me ater a maiores e mais nobres objetos dignos de sua atenção: cavalos e cães, meus favoritos dentre os animais da Criação; e também raposas, lobos e ursos, os quais, assim como as caçadas, abundam na Rússia mais do que em qualquer parte do mundo; para os esportes, principalmente exercícios, e demonstrações de bravura e energia, mostram-se aqueles cavalheiros melhores que os antiquados gregos e latinos, bem como superam os perfumes, o refinamento e as cambalhotas dos franceses ou dos petit-maîtres.

 

Um encontro entre o nariz do Barão e uma porta, com seus maravilhosos efeitos – cinquenta pares de patos e outros animais destruídos por um tiro – Expulsa uma raposa de sua pele – Conduz uma velha porca de uma nova maneira e derrota um selvagem javali.

 

Levou algum tempo para que eu pudesse obter uma permissão do exército, mas, após obtê-la, passei vários meses com total liberdade para esbanjar tempo e dinheiro de acordo como fazem os gentis homens. Vocês podem facilmente imaginar que gastei boa parte de ambos fora da cidade, com nobres cavalheiros que sabiam como caçar na floresta. A simples recordação daqueles maravilhosos divertimentos renova-me o espírito e desperta em mim o desejo de repeti-los. Certa manhã eu vi, através de minha janela, que um enorme lago, não muito distante, estava coberto de patos selvagens. Em um instante, apanhei minha arma a um canto, desci correndo as escadas e saí de casa com tamanha pressa que imprudentemente bati o rosto contra a porta. A arma disparou, ofuscando-me os olhos, mas isso não me impediu de cumprir meu intento; eu logo me coloquei à pequena distância deles quando, observando a arma, notei, para minha tristeza, que a pederneira havia se soltado devido à violência da pancada que eu recebera. Não havia tempo a perder. Lembrando o efeito que o disparo anterior havia causado em minha visão, resolvi tirar proveito disso e apontei a arma contra os patos selvagens, protegendo meus olhos com o punho (os olhos do Barão parecem ter absorvido aquele fogo e, desde então, mostram-se particularmente iluminados quando ele relata esta anedota). Um potente disparo lançou centelhas novamente; o tiro foi dado e matei cinquenta patos, vinte gansos e três casais de marrecos. Presença de espírito é a essência dos principais exercícios. Se soldados e marinheiros devem a ela muitas de suas façanhas, caçadores e esportistas não lhe estão menos agradecidos por muitos de seus sucessos. Em uma floresta, na Rússia, encontrei uma magnífica raposa negra, e seria lastimável ter de perfurar aquela pele valiosa à bala. A raposa deteve-se próximo a uma árvore. Num momento de inspiração, tirei a bala e coloquei em seu lugar uma tachinha, atirei e atingi a raposa com tão rara felicidade que lhe deixei pregada a uma árvore pela cauda. Apanhei minha faca de caça, fiz na cabeça da raposa um corte em cruz, tomei do meu chicote e engenhosamente a expulsei de sua excelente pele.

O acaso e a sorte frequentemente corrigem nossos erros; eu tive um singular exemplo disso pouco depois, quando, no interior de uma floresta, avistei um casal de porcos do mato que corriam, um a seguir o outro. O tiro que disparei não os acertou e o animal que ia à frente continuou sua carreira, mas o outro, uma fêmea, estacou, como se estivesse pregada no solo. Observando atentamente a questão, notei que ela devia ser já uma velha porca, cega pela idade, e que se utilizava da cauda do outro animal para guiar-se, tirando proveito do dever filial. Minha bala, tendo passado entre os dois, havia cortado a cauda que a conduzia e cujo pedaço a porca velha conservava na boca; Sendo assim, como seu condutor não a guiava a parte alguma, ela se deteve; deixei de lado a outra ponta da cauda e conduzi a velha porca do mato para casa, sem qualquer problema e sem nenhuma relutância ou temor por parte do indefeso animal.

Tão terríveis como esses porcos do mato e ainda mais ferozes e perigosos são os javalis, um dos quais tive o infortúnio de encontrar em uma floresta, estando eu despreparado para atacar ou defender. Escondi-me atrás de um carvalho assim que o furioso animal lançou-se num ataque lateral desferido com talta violência que suas presas atravessaram a árvore, de modo que ele não podia repetir o ataque e nem fugir. “Ho, ho!” pensei, “em breve irei capturá-lo!” E imediatamente juntei uma rocha, com a qual golpeei suas presas, entortando-as de tal modo que ele não podia retirá-las por modo algum e fosse obrigado a aguardar meu retorno de uma vila próxima, onde fui buscar algumas cordas para deixá-lo imobilizado e uma carroça que me auxiliasse a transportá-lo são e salvo, tarefas das quais me desincumbi com sucesso.

 

Reflexões sobre o veado de São Humberto – Atira num veado com sementes de cereja; os maravilhosos efeito disso – Mata um urso com extraordinária habilidade; patética descrição do caso – Atacado por um lobo, que vira pelo avesso – É assaltado por um cão raivoso, do qual logra escapar – O manto do Barão é atingido pela hidrofobia e põe a perder todo o seu guarda-roupa.

 

Vocês devem ter ouvido falar, atrevo-me a dizer, do santo protetor dos caçadores e dos esportistas, São Humberto, e do nobre veado que lhe apareceu na floresta, com a sagrada cruz entre os chifres. Tenho rendido minhas homenagens a este santo a cada ano com fervor e observado o seu veado milhares de vezes, seja pintado em igrejas, seja bordado nos brasões de seus cavaleiros; sendo assim, pela minha honra e consciência de bom esportista, sei muito pouco do que se passava nos tempos antigos ou se tais veados ainda existem nos dias de hoje. Mas pemitam-me contar o que vi. Tendo um dia gasto toda a minha munição, encontrei-me inesperadamente na presença de um majestoso veado, que olhava para mim com indiferença, como se soubesse da minha falta de balas. Carreguei imediatamente a arma de pólvora, sobre a qual despejei uma grande quantidade de caroços de cereja, pois eu havia chupado as frutas tão rápido quanto a pressa podia permitir. Desse modo, disparei contra ele, atingindo-o bem no meio da testa, entre os chifres; isso o amedrontou e, assustado, fugiu mato adentro. Um ano ou dois mais tarde, participando de uma caçada na mesma floresta, avistei um grande veado em cuja galhada crescia magnífica cerejeira de mais ou menos três metros de altura. Imediatamente recordei da antiga aventura, reconheci-o como minha propriedade e derrubei-o no chão com um tiro, que de uma só vez deu-me carne e cerejas, uma vez que a árvore estava coberta com as mais deliciosas frutas, cujo sabor eu jamais havia experimentado antes. Quem sabe se não foi algum esportista religioso, ou algum padre ou mesmo um bispo quem, de forma similar a esta, colocou a cruz entre os chifres do veado de São Humberto? Eles foram, e ainda são, famosos por fincarem cruzes e galhos; e em caso de perigo ou dificuldade, o que frequentemente ocorre aos esportistas, um indivíduo é capaz de tudo para se salvar e recorre a qualquer expediente na tentativa de tirar proveiro da situação. Eu mesmo, em muitas momentos, encontrei-me em semelhantes situações.

Que vocês me dizem disto, por exemplo? Certa ocasião, em uma floresta na Polônia, já havia gasto toda a minha pólvora e o dia se findava. Quando voltava para casa, um terrível urso avançou em minha direção, a grande velocidade, boca aberta, pronto para cair sobre mim; em vão remexi os bolsos à procura de pólvora e balas; não encontrei nada senão duas pederneiras: uma atirei com toda a força entre as mandíbulas abertas do monstro, garganta abaixo. Isso lhe foi doloroso e fez com que ele me desse as costas, então eu introduzi a outra pedra na sua porta dos fundos, o que, verdadeiramente, eu realizei com grande sucesso, pois ela seguiu caminho, encontrou-se com a primeira no estômago e detonaram ambas, destruindo o urso numa terrível explosão. Apesar de ter escapado são e salvo dessa vez, jamais desejo passar por tal aperto novamente nem me aventurar contra ursos sem munição.

Parece ser minha sina. Os mais ferozes e perigosos animais geralmente me aparecem quando estou indefeso, como se tivessem alguma percepção instintiva do fato. Sendo assim, um lobo assustador avançou para mim tão repentinamente e estando já a tão pouca distância de mim, que não pude fazer nada a não ser seguir mecanicamente o instinto e enfiar a mão em sua boca aberta. Por segurança, eu a empurrava mais e mais, até que meu braço entrou até o ombro. Como poderia me livrar sozinho? Eu não estava nada contente por me encontrar em situação tão embaraçosa – cara a cara com um lobo; nossos olhares não eram dos mais agradáveis. Se eu retirasse o braço, o animal me atacaria furiosamente; era o que eu depreendia de seus olhos flamejantes. Súbito, apanhei sua cauda, puxei-a de dentro para fora, como uma luva, e atirei o animal no chão, onde o deixei.

O mesmo expediente não pôde ser aplicado contra um cão raivoso que mais tarde atacou-me em uma ruela de São Petersburgo. “Salve-se quem puder”, pensei; e para isso, deitei fora meu manto de couro e num instante coloquei-me em segurança, trancando-me em casa. Depois mandei a meu servo que fosse buscar o manto e ele o pôs no guarda-roupa, junto com as outras roupas. No dia seguinte eu estava impressionado e assustado com seus gritos: “Por Deus, senhor, seu manto está louco!” Corri até ele e encontrei quase todas as roupas espalhadas e feitas em pedaços. O rapaz estava com toda a razão. Vi com meus próprios olhos quando o manto de couro atacou um excelente paletó, ao qual agitava e mordia de maneira impiedosa.

 

Os efeitos de um grande esforço; presença de espírito do Barão – Descrição de uma cadela que dá cria durante caçada a uma lebre; a lebre faz o mesmo, perseguida pela cadela – Presenteado com um famoso cavalo pelo Conde Przobossky; realiza extraordiárias proezas com o auxílio do animal.

 

Todas essas felizes e difíceis escapadas, cavalheiros, foram possíveis devido à presença de espírito e vigorosos esforços, os quais, atuando juntos, como todos sabem, fazem vencedores os esportistas, os marinheiros e os soldados; mas poderiam ser desprezíveis e imprudentes esportistas, almirantes e generais sempre dependentes do acaso e da sorte, sem preocupações sobre si mesmos nem sobre as artes que estão ao seu alcance, e também sem prover os melhores recursos que lhes garantam o sucesso. Eu de modo algum me portei dessa forma, pois tenho primado sempre pela excelência dos meus cavalos, cães, armas e espadas, assim como pela maneira que os uso e gerencio; por isso, sobretudo, eu espero ser lembrado na floresta, nos gramados e no campo. Não entrarei aqui em detalhes sobre meus estábulos, canis ou arsenal; mas existe uma cadela que não posso deixar de mencionar a vocês; ela era de caça e jamais vi ou tive outra melhor. Ela cresceu ao meu serviço e não se destacava por seu tamanho e sim por sua incomum velocidade. Sempre cacei com ela. Tivessem vocês a visto, ficariam admirados e não questionariam tamanha predileção. Ela corria tão rápido, mas tão rápido, e esteve por tanto tempo a meu serviço que jamais abri mão dela; e, na fase final de sua vida, requisitei seus préstimos utilizando-a como um simples terrier, função pela qual ela ainda me serviu por vários anos.

Certa vez, perseguindo uma lebre, que me parecia incomumente grande, apiedei-me de minha pobre cadela, grávida de vários filhotes, ainda que ela pudesse correr tão rápido como antes. Mesmo a cavalo só pude segui-la a grande distância. Súbito, ouvi um choro e deparei ali uma ninhada de lebres – mas tão fracas e medrosas que eu não sabia o que fazer com elas. Aproximando-se delas, fiquei bastante surpreso. A lebre as havia expelido na corrida; o mesmo havia ocorrido à minha cadela durante a perseguição, de modo que havia muitas lebres e cãezinhos. Por instinto, à primeira caçada, seguiu-se uma nova: e assim eu me vi na posse de uma vez só de seis lebres e igual número de cães ao fim de uma caçada que havia se iniciado com apenas um exemplar de cada.

Eu me lembro dessas coisas, minha maravilhosa cadela, com o mesmo prazer e ternura que guardo de meu soberbo cavalo lituano, que dinheiro algum poderia comprar. Ele me caiu em mãos por acidente, o que me deu a oportunidade de tirar partido de minha habilidade de cavaleiro. Eu estava nos domínios do Conde Przobossky, na Lituânia, e tomava chá com as senhoras na sala, enquanto os cavaleiros haviam ido até o pátio para admirar um jovem cavalo de raça que acabara de ser capturado. Então ouvimos o som do perigo; desci as escadas e encontrei o cavalo tão indócil que ninguém ousava aproximar-se para montá-lo. Os mais intrépidos cavaleiros permaneciam apavorados e perplexos; o desânimo estava expresso em cada semblante quando, de um salto, pulei às costas do animal, apanhando-o de surpresa, e obtive dele total docilidade e obediência, usando dos meus conhecimentos em equitação, arte da qual sou mestre. Desejoso de mostrar tal coisa às senhoras e mantê-las a salvo de qualquer perigo, fiz com que ele saltasse por uma das janelas abertas da sala de chá, caminhasse pelo recinto várias vezes, em trote, marcha ou galope e por fim levei-o a saltar sobre a mesa de chá, com o fito de que ele repetisse ali suas lições de forma simplificada, o que agradou sumamente às senhoras, pois ele se portou maravilhosamente bem e não quebrou nenhuma xícara ou pires. Aquilo me elevou tanto no conceito de todos, e me fez ficar tão bem perante o nobre senhor, que ele, com sua usual polidez, implorou que eu aceitasse aquele jovem cavalo e partisse a pleno galope para conquistar os turcos e honrar a campanha contra eles, que em breve seria iniciada, sob o comando do Conde Munique.

Eu realmente não poderia receber presente tão agradável nem tão perigoso quanto aquele, no qual me iniciei como soldado. Um cavalo tão dócil, impetuoso e feroz – ao mesmo tempo um cordeiro e um Bucéfalo, impôs-me as responsabilidades de soldado e de cavaleiro! De um jovem Alexandre e das magníficas coisas que ele realizou no campo de batalha.

Partimos para a guerra, entre outros motivos, ao que parece, com a intenção de recuperar a honra do exército russo, que havia sido um tanto manchada pelo Czar Pedro na última campanha da Prússia; e assim cumprimos nossa missão, após várias batalhas fatigantes e gloriosas sob o comando do grande general por mim mencionado.

A modéstia proíbe aos indivíduos arrogarem para si mesmos os grandes sucessos ou vitórias, cuja glória é geralmente atribuída aos comandantes – não concordo, pois tal coisa é particularmente injusta, uma vez que os reis e as rainhas jamais sentiram o cheiro de pólvora das guerras, nem passaram em revista suas tropas; nunca viram um campo de batalha ou um inimigo em disposição de ataque.

Nem peço qualquer quinhão de glória pelas grandes refregas com o inimigo. Fizemos nosso dever que, na linguagem dos patriotas, dos soldados e dos cavaleiros é uma palavra de fácil compreensão; tem grande honra, significado e importância, coisas cuja totalidade dos políticos ociosos, bisbilhoteiros e bebedores de café não pode entender nem formar a mais simples idéia. De qualquer modo, tendo o comando de um corpo de soldados, tomei parte de várias expedições, com poderes incondicionais; e o sucesso que obtive com elas, creio, deve-se clara e unicamente a mim e àqueles bravos rapazes que liderei à conquista e à vitória. Tivemos um trabalho muito duro diante do exército quando expulsamos os turcos de Oczakow. E quase me meti numa enrascada com meu Lituano: eu estava em um posto avançado e vi o inimigo avançando para mim em uma nuvem de pó que me deixou bastante incerto sobre seu número, bem como sobre suas reais intenções: envolver-me eu próprio numa nuvem similar era o que recomendava a prudência, mas não seria condigno à minha inteligência, nem atenderia aos propósitos para os quais eu havia sido enviado até ali. Desse modo, deixei meus flancos bem abertos tanto à direita quanto à esquerda para levantar o máximo de poeira e eu próprio avancei direto até o inimigo para ter uma melhor visão dele: fui recompensado por isso, uma vez que eles, embora mantivessem a postura de ataque no início, acabaram por temer o avanço dos meus flancos e passaram a se mover desordenadamente. Foi o momento de cair sobre eles com denôdo; nós os desarticulamos inteiramente – causando grande destruição em suas fileiras e os obrigamos a recuar não apenas até uma cidade fortificada às suas costas, como os fizemos atravessá-la, ao contrário de nossas mais ardentes expectativas.

A velocidade de meu Lituano permitiu-me liderar a perseguição; e, vendo que o inimigo corria rumo ao portão oposto, pensei que seria prudente parar à altura do mercado para organizar meus homens. Eu parei, cavalheiros; mas imaginem minha estupefação quando descobri que nenhum de meus vassalos estava comigo! Teriam eles seguido por outras ruas? Que teria sido feito deles? Não poderiam estar longe e, por certo, logo me localizariam. Nessa expectativa, caminhei com meu ofegante cavalo até uma fonte que havia no mercado e deixei-o beber. Ele bebia de forma incomum, com uma ganância que não podia ser satisfeita, porém bastante natural; pois quando olhava em redor a procura de meus homens imaginem o que vi, cavalheiros! A parte traseira da pobre criatura – cortada e as patas ausentes, como se ele sido cortado em dois, de forma que a água escorria toda para fora, tão logo entrava, sem refrescá-lo nem lhe fazer bem nenhum! Como aquilo poderia ter acontecido foi um mistério para mim até o momento em que retornei à entrada da cidade. Lá eu vi que, ao transpor o portão em perseguição ao inimigo, havia sido baixada a porta corrediça (um pesado portão que desce do teto, de afiados espetos no fundo e utilizado exatamente para prevenir a entrada de um inimigo numa cidade fortificada); tal fato ocorrera de forma imperceptível para mim e decepara totalmente a parte traseira do animal, a qual ainda se encontrava do lado de fora da cidade, em convulsões. Teria sido uma perda irreparável não tivesse nosso tratador de cavalos contribuído para juntar as partes enquanto elas ainda estavam quentes. Ele as costurou com pequenos ramos de louro que tínhamos a mão; o ferimento cicatrizou e, como só teria acontecido a um grande cavalo, os ramos se enraizaram em seu corpo, cresceram e formaram uma vasta sombra sobre mim; desse modo eu pude acompanhar muitas outras batalhas à sombra dos louros meus e do meu cavalo.

 

O Barão é feito prisioneiro de guerra e vendido como escravo – Cuida das abelhas do sultão, que são atacadas por dois ursos – Perde uma de suas abelhas; uma machadinha, que ele atira nos ursos, reboteia e vai cair na lua; consegue trazê-la de volta por um engenhoso invento; cai de volta à terra no retorno e ajuda a si mesmo a sair de um buraco – Livra-se de uma carruagem que encontra numa rua estreita de maneira nunca antes vista ou tentada– Os maravilhosos efeitos do frio na trompa francesa de um servo.

 

Não consegui vencer sempre. Tive o azar de ser superado em número pelo inimigo e cair prisioneiro de guerra; mas, o que é pior, porém sempre comum entre os turcos, é que fui vendido como escravo (depois o Barão veio a cair nas graças do Grande Senhor, como se verá mais adiante). Submetido à tamanha humilhação, minha rotina diária não era tão dura nem laboriosa, porém bastante singular e entediante. Eu era encarregado todas as manhãs de levar as abelhas do Sultão até o “pasto”, tomar conta delas durante todo o dia e levá-las de volta para sua colméia à noite. Certa tarde perdi uma abelha e observei que dois ursos a perseguiam, atrás do mel que ela carregava. Eu não tinha nenhuma arma comigo a não ser uma machadinha de prata, que é uma espécie de distintivo dos jardineiros e lavradores do Sultão. Arremessei-o nos ladrões com intenção de espantá-los e deixar livre a pobre abelha; mas, por um azar, ela subiu demais e continuou sua ascenção até cair na lua. Como eu poderia recuperá-la? Como trazê-la de volta novamente? Lembrei-me de que os feijões turcos crescem bastante rápido e alcançam uma altura impressionante. Imediatamente plantei um; ele cresceu e foi atar-se por si mesmo a um dos cornos da lua. Não me restava outra coisa a não ser escalá-lo; consegui chegar em segurança, e tive um pouco de trabalho para localizar uma machadinha de prata num lugar onde tudo é prateado; finalmente, eu o encontrei em um monte de palha picada. Estava pronto para voltar mas Oh! O calor do sol havia ressecado meu pé de feijão; ele estava inteiramente inutilizado: então me lancei ao trabalho e fiz daquela palha picada uma corda tão comprida quanto possível. Atei-a a um dos cornos da lua corda e comecei a descer por ela. Ali, enquanto segurava a corda com a mão esquerda, com a direita, utilizando a machadinha, cortei a longa e, agora inútil para mim, extremidade superior, que, amarrada à inferior, deu-me uma grande quantidade de corda para descer: esse repetido cortar e amarrar não melhorou a qualidade da corda nem me trouxe de volta à fazenda do sultão. Eu estaria a sete ou oito quilômetros da terra quando a corda arrebentou; caí no chão com tanta violência que fiquei impressionado com o buraco de dez metros de profundidade aberto pelo impacto da minha queda: consegui me restabelecer, mas não sabia como sair dali; sendo assim, pus-me a escavar degraus na terra com as unhas (o Barão cultivava longas unhas, que não cortava havia quarenta anos) e facilmente logrei sair.

A paz foi logo firmada com os turcos e, ganhando liberdade, deixei São Petersburgo durante aquela singular revolução em que o imperador ainda no berço, sua mãe; seu pai, o Duque de Brunswick; o Marechal Munique e muitos outros foram mandados para a Sibéria. O inverno foi extraordinariamente severo em toda a Europa e até mesmo o sol parecia tiritar de frio. No meu retorno a tal lugar, passei por maiores inconvenientes na estrada do que os que experimentara na partida.

Numa viagem posterior, encontrando-me numa viela estreita, pedi ao mensageiro que desse um sinal com sua trombeta para que outros viajantes não se encontrassem conosco naquela via estreita. Ele soprou com toda a força; mas seus esforços foram em vão, pois não conseguiu fazer a trombeta ecoar, pois o som da mesma estava prejudicado e, desafortunadamente, logo depois nos vimos na presença de uma outra carruagem, que chegava pelo outro lado: não havia nada a fazer; de qualquer forma, sendo bastante forte, coloquei-a, com rodas e tudo, sobre a cabeça: saltei então por sobre uma sebe de uns três metros de altura (que, considerando o peso da carragem, era bastante difícil), indo parar em um campo, e, por meio de outro salto, retornei à estrada: fui em busca dos cavalos; colocando um sobre a cabeça e o outro debaixo do braço esquerdo, do mesmo modo os levei à minha carroça, atrelei-os e prossegui até uma hospedaria. Devia ter dito aos senhores que o cavalo que trouxe debaixo do braço era muito fogoso e não tinha mais do que quatro anos; quando efetuei o segundo salto sobre a sebe, ele expressou grande desconforto por meio de coices e bufadas àquele modo violento de locomoção; sendo assim, imobilizei suas pernas colocando-as no bolso do meu casado. Quando chegamos à hospedaria, eu e meu mensageiro fomos nos alimentar; ele pendurou sua trombeta em uma estaca perto do fogo; eu sentei do outro lado.

Súbito, ouvimos um tereng! tereng! teng! teng! Olhamos em redor e descobrimos a razão pela qual o mensageiro não havia conseguido tirar som algum do instrumento; o som estava congelado no interior da trombeta e, derretido, saía agora, bastante claro, para alívio do rapaz; Desse modo, o honesto companheiro nos estreteve por algum tempo com uma variedade de melodias, sem sequer por a boca na trombeta – “A Marcha do Rei da Prússia”, “Além do Rio e do Vale”, além de muitas outras minhas favoritas; e com o caso da trombeta, dou por encerrada esta pequena descrição de minhas viagens pela Rússia.

Alguns viajantes são capazes de avançar mais do que talvez permita a verdade; se alguem dentre os senhores guarda alguma dúvida de meu relato, devo apenas informar o seguinte: apiado-me de sua falta de fé e peço que tais incrédulos saiam antes que eu inicie a segunda parte de minhas aventuras, as quais são estritamente baseadas em fatos, assim como as narradas anteriormente.

 

O Barão relata suas aventuras em uma viagem à América do Norte, as quais bem merecem a atenção do leitor – Travessuras de uma baleia – Uma gaivota salva a vida de um marinheiro – A cabeça do Barão vai parar no estômago – Um perigoso vazamento detido com atraso.

 

Embarquei em Portsmouth num vaso-de-guerra inglês que transportava cem armas e mil e quatrocentos homens para a América do Norte. Não vale a pena mencionar o que se passou até cento e oitenta quilômetros do rio Saint Laurence, quando a embarcação chocou-se com tanta força contra uma rocha (ao que imaginávamos); tendo baixado âncora, não encontramos o fundo do mar, mesmo a quatrocentos metros. O que tornou tais circunstâncias mais maravilhosas e verdadeiramente além da compreensão foi ter sido tamanha a violência do impacto que perdemos o leme, sem falar que o gurupés partiu-se ao meio e dispersou todos os nossos marujos, dos quais somente dois ficaram a bordo; um pobre rapaz, que foi arremessado enquanto enrolava a vela principal, acabou indo parar a pelo menos vinte quilômetros no navio; mas ele afortunadamente se salvou agarrando-se às costas de uma gigantesca gaivota, que o trouxe de volta e o acomodou no mesmo local de onde ele havia sido arrancado. Outra prova da violência da batida foi a força com que as pessoas dos compartimentos inferiores foram atirados contra o teto; minha cabeça, particularmente, foi pressionada contra o estômago, onde permanceu por vários meses antes de retornar à sua posição original. Enquanto estávamos ainda todos assombrados diante do tumulto geral e inenarrável no qual nos envolvêramos, tudo foi subitamente explicado pela aparição de uma enorme baleia, que dormia tranquilamente sobressaindo-se uns cinco metros da superfície do mar. Este animal encontrava-se tão aborrecido com a perturbação que nosso navio tinha lhe causado – pois à nossa passagem o leme arranhara seu nariz - que golpeou com sua cauda a galeria e parte do convés e quase no mesmo instante apanhou entre os dentes a âncora principal, que estava suspensa, como era comum, e arrastou o navio por pelo menos sessenta quilômetros, à média de doze quilômetros por hora, quando felizmente o cabo se rompeu e nos vimos livres de ambas, a âncora e a baleia. Entretanto, em nosso retorno à Europa, alguns meses depois, deparamos a mesma baleia, que se encontrava ainda no mesmo lugar, boiando morta à superfície; Media cerca de três quilômetros de largura. Como não podíamos trazer senão uma pequena quantidade daquele monstruoso animal à bordo, saímos com nossos botes e enfrentando muita dificuldade cortamos sua cabeça, onde, para nosso júbilo, encontramos a âncora e cerca de setenta metros de corda escondidos no lado esquerdo de sua boca, exatamente debaixo da língua (talvez tenha sido essa a causa de sua morte, pois aquele lado de sua língua estava bastante inchado, com uma séria inflamação). Estas foram as únicas cincunstâncias extraordinárias ocorridas durante a viagem. Uma parte dos nossos perigos, entretanto, eu gostaria de ter esquecido: enquanto a baleia nos arrastava mar adentro ela movia grande massa de água, e esta caía sobre nós com tanta força que nossas bombas não davam conta de manter o navio à tona; foi, contudo, minha boa sorte que me fez ser o primeiro a descobrir tal fato. Encontrei um enorme buraco de mais ou menos meio metro de diâmetro; os senhores hão de supor que esta circunstância me deu enorme prazer quando eu lhes informar que aquela nobre embarcação foi preservada, com toda a sua tripulação, por uma idéia das mais felizes! Num instante, sentei sobre o buraco e teria dado conta da tarera ainda que ele fosse maior; vocês não ficarão surpresos quando lhes informar que descendo de pais holandeses (os ancestrais do Barão instalaram-se aqui há puco; em outra parte de suas aventuras ele se vangloria de seu sangue real).

Minha situação enquanto permaneci ali foi verdadeiramente tranquila, mas as habilidades do carpinteiro felizmente me socorreram.

 

Banha-se no Mediterrâneo – Encontra um companheiro inesperado – Chega inadvertidamente a regiões de calor e escuridão, das quais se liberta dançando – Prega um susto em seus Salvadores e retorna à praia.

 

Certa vez vi-me sob grande ameaça de morte singular no Mediterrâneo: eu me banhava naquele mar agradável, próximo à Marselha, numa tarde de verão, quando descobri um peixe de enormes proporções e de mandíbulas escancaradas, que se aproximava de mim à grande velocidade; não havia tempo a perder, nem eu tinha meios de fugir dele. Imediatamente encolhi-me ao menor tamanho possível, recolhendo os pés e envolvendo-me com os braços; nessa posição passei direto por entre suas mandíbulas, indo parar no estômago do animal, onde passei algum tempo imerso em total escuridão e confortavelmente aquecido, como os senhores podem imaginar; finalmente ocorreu-me que se lhe causasse algum incoômodo ele poderia pensar em se ver livre de mim: como tivesse muito espaço à disposição, iniciei minhas travessuras, tais como atirar-me no chão, pular, andar de um lado para o outro e dar cabriolas etc., mas nada parecia perturbá-lo tanto como o movimento rápido de meus pés enquanto eu dançava; até que ele soltou um horrível rugido e ergueu-se, ficando quase perpendicular à água, com a cabeça e os ombros expostos, sendo logo descoberto pela tripulação de um navio mercante italiano que velejava por ali e que lhe cravou um arpão minutos depois. Tão logo o peixe foi trazido a bordo, ouvi que os marinheiros conversavam sobre a melhor maneira de cortar a carne para obter a maior quantidade de óleo possível. Como entendo italiano, fiquei bastante apreensivo de que os recursos empregados por eles pudessem destruir-me também; desde então coloquei-me o mais perto possível do centro do animal, pois havia espaço suficiente para uma dúzia de homens no estômago daquela criatura e eu imaginava que eles naturalmente começassem pelas extremidades; porém meus temores foram logo aplacados, pois eles principiaram por abrir na parte inferior da barriga. Tão logo percebi uma nesga de luz, gritei vigorosamente para ser salvo daquela situação, em que já ia quase me sufocando. É impossível para mim descrever o grau de assombro que se estampou em todos os semblantes aquela voz humana que saía de dentro de um peixe e, no entanto, surpresa maior causou-lhes a visão de um homem nu que saiu caminhando de dentro do peixe; logo, cavalheiros, contei a eles a estória toda, como fiz aos senhores, e a estupefação deixou-os apalermados.

Após uma refeição, saltando no mar para um banho, nadei até minhas vestes, que permaneciam na praia, onde as havia deixado. Segundo meus cálculos, estive por quatro horas e meia confinado no estômago daquele animal.

 

Aventuras na Turquia e no rio Nilo – Vê um balão sobre Constantinopla; atira nele, obrigando-o a descer; encontra em seu interior um filósofo experimental francês – Segue numa embaixada rumo ao Grande Cairo e retorna ao Nilo, onde é envolvido numa situação inesperada e ali se detem por seis semanas.

 

Quando estive a serviço dos turcos, frequentemente costumava passear de barco pelo litoral de Marmora, e dali tinha uma vista completa da cidade de Constantinopla, incluindo o harém do Grande Senhor. Certa manhã, enquanto admirava a beleza e a serenidade do céu, observei um objeto arredondado no ar, e que parecia ter o tamanho aproximado de um pequeno globo, que levava consigo algo suspenso. Imediatamente tomei minha arma de caça maior e mais potente, sem a qual jamais deixo de fazer alguma viagem ou excursão em que possa precisar dela; carreguei-a com chumbo e atirei no globo, inutilmente, porém, visto que estivesse à grande distância. Eu então pus o dobro da pólvora e cinco ou seis balas: esta segunda tentativa foi coroada de sucesso; todas as balas atingiram o alvo e abriram um rombo no balão, obrigando-o a descer. Julguem minha surpresa quando um elegante cesto dourado com um homem dentro e também parte de um carneiro que parecia ter sido assado, pousaram a dois metros de mim. Quando a surpresa havia diminuído, ordenei a meus homens que conduzissem até mim aquele estranho viajante dos céus.

Trouxe-o a bordo do meu barco (o homem era francês): o viajante estava muito debilitado devido à queda e incapaz de falar; após algum tempo, entretanto, ele se recobrou e me falou o seguinte: “Há uns sete ou oito dias, não sei dizer exatamente, pois perdi as contas, parti de Land’s End, na Cornualha, localizada na ilha da Grã-Bretanha, neste cesto onde fui recolhido, suspenso por um grande balão e levando comigo uma ovelha para realizar experiências atmosféricas: infelizmente, o vento mudou após dez minutos da minha partida e, ao invés de ir direto para Exeter, onde pretendia pousar, fui levado para o mar, sobre o qual suponho ter permanecido desde então, porém alto demais para fazer observações.

“Os apelos da fome eram tão prementes que os experimentos pretendidos sobre o calor e a respiração deram vez a ela. Fui obrigado, no terceiro dia, a matar a ovelha para ter alimento; àquela altura, encontrava-me bem acima da lua e o sol já brilhava havia mais de dezesseis horas, num calor tão intenso que já me ia quimando as sobrancelhas, depus a carcaça na parte do cesto onde o sol brilhava com toda o seu poder, tomando o cuidado de esfolá-la primeiro; em outras palavras, onde não havia sombra; por este método a carne ficou tostada em cerca de duas horas. Esta tem sido minha comida desde então.” Aqui ele pausou e pareceu confuso ao relancear os olhos nos objetos em torno. Quando eu lhe disse que as construções diante de nós eram o harém do Grande Senhor de Constantinopla, ele pareceu tremendamente aturdido, como se imaginasse estar em situação estranha. “A causa”, acrescentou ele, “de meu longo vôo deve-se a uma falha numa corda fixada a uma válvula do balão responsável pela saída do gás inflamável; e se meu balão não tivesse sido alvejado e rasgado da maneira anteriormente referida, eu poderia, como Maomé, ter ficado suspenso entre o céu e a terra até o Juízo Final.”

O Grande Senhor, a quem fui apresentado pelos embaixadores do Império, da Rússia e da França, encarregou-me de negociar uma questão de grande interesse no Grande Cairo, e que era de tal natureza que precisava ser mantida em sigilo.

Fui até lá por terra, com grande pompa; tendo concluído o negócio, dispensei quase todos os meus assistentes e retornei como um indivíduo comum; o tempo estava magnífico, e o famoso rio Nilo, belíssimo, além da minha capacidade de descrevê-lo; logo fui tentado a alugar uma barca para descer o rio até Alexandria. No terceiro dia de viagem o rio começou a subir de forma assustadora (os senhores devem ter ouvido falar, eu presumo, das cheias anuais do Nilo), e no dia seguinte suas águas se haviam espalhado por todo o país! No quindo dia, ao amanhecer, encalhamos no que de início pensei serem arbustos, mas, à medida que a luz tornava-se mais forte, descobri estar rodeado de amêndoas, que estavam perfeitamente maduras, e eram saborosíssimas.

Utilizando um prumo, a tripulação descobriu que estávamos a pelo menos vinte metros do solo e incapazes de avançar ou recuar. Lá pelas oito ou nove horas, como eu calculava pela posição do sol, o vento aumentou subitamente e inclinou nossa barca: ela então se encheu de água e não vi mais nenhum sinal dela. Afortunadamente todos nos salvamos (seis homens e dois garotos), agarrados a uma árvore, cujos galhos conseguiam suportar bem nosso peso, apesar de não terem feito o mesmo à embarcação: nesta situação permanecemos seis semanas e três dias, vivendo de amêndoas; não preciso informar aos senhores de que dispúnhamos de bastante água. No quadragésimo segundo dia de nosso sofrimento, a água baixou tão rapidamente quanto havia subido e no quadragésimo sexto já podíamos nos aventurar lá embaixo, em terra firme. Nossa barca foi o primeiro e maravilhoso objeto que divisamos; estava a cerca de duzentos metros do local onde havia afundado. Depois que, aproveitando o calor do sol, secamos tudo o que nos era útil e recolhemos todos os itens necessários a bordo, partimos dispostos a recuperar o tempo perdido e descobrimos, segundo nossos cálculos, que havíamos sido levados por quinhentos quilômetros além dos jardins e outras localidades. Em quatro dias, depois de uma exaustiva jornada a pé, já de solas gastas, alcançamos o rio, que agora estava confinado às suas margens, e relatamos nossas aventuras a um garoto que gentilmente atendeu todos os nossos rogos e mandou-nos de volta numa barca de sua propriedade. Em seis dias chegamos em Alexandria, onde tomamos um navio para Constantinopla. Fui amavelmente recebido pelo Grande Senhor e tive a honra de ver o harém, ao qual fui apresentado por meu próprio anfitrião.

 

Faz uma visita ao seu velho amigo General Elliot durante o cerco a Gibraltar – Afunda um velho navio de guerra espanhol – Desperta uma velha no litoral africano – Destrói todos os canhões inimigos; assusta o Conde D’Artois e o envia a Paris – Salva a vida de dois espiões ingleses utilizando o mesmo expediente que matou Golias; e aumenta o cerco.

 

Durante o último cerco a Gibraltar parti com uma frota de provisões, sob o comando de Lorde Rodney, para ver meu velho amigo, o General Elliot, que havia, por sua atuação na defesa do lugar, obtido louros que jamais se desvanecerão. Após a usual alegria que geralmente surge no encontro de velhos amigos ter arrefecido, fui analisar o estado da guarnição e observar as operações do inimigo, em cujo propósito o general me acompanhou. Trouxe comigo de Londres o melhor telescópio de refração existente, comprado de Dollond, e por cujo auxílio descobri que o inimigo estava vindo disparar uma carga de dezoito quilos exatamente no lugar onde estávamos. Contei ao general que eles estavam perto; ele observou pelo telescópio também e constatou a exatidão de minhas conjecturas. Imeditamente, com sua permissão, ordenei que fosse trazida de uma bateria vizinha uma carga de vinte e quatro quilos, que posicionei com tamanha precisão (tendo estudado por longo tempo a arte da guerra) que fiquei convencido do meu acerto.

Continuei a observar o inimigo até perceber que ele acendia o pavio de seu canhão; no mesmo instante dei o sinal para que o nosso fosse disparado também.

No meio do caminho entre os dois canhões, as duas balas se chocaram uma na outra com incrível força e o efeito foi surpreendente! O projétil do inimigo ricocheteou de volta com tanta força que matou o homem que o havia disparado, arrancando-lhe fora a cabeça e fazendo o mesmo a outros dezesseis por quem passou em sua trajatória até Barbary coast, onde sua força já estava tão reduzida que, após atravessar três matros de embarcações postados em linha no porto, foi deter-se no teto da cabana de um pobre trabalhador, tendo percorrido cerca de duzentos metros e destruído os poucos dentes que ainda restavam numa velha senhora, a qual dormia de costas, a boca aberta. A bala alojou-se em sua garganta; Seu marido logo chegou em casa e esforçou-se por extrair o projétil; mas percebendo que era impossível, com a ajuda de um martelo, empurrou o corpo estranho para o estômago da velha. Nossa bala fez excelente serviço, pois ela não apenas repeliu a outra da maneira descrita, como, procedendo exatamente da forma que planejei, ela desmontou o canhão que havia sido empregado contra nós, projetando-o contra um navio, onde foi cair com tanta força que abriu caminho por entre os seus pavimentos, atravessando o casco. O navio imediatamente encheu e afundou, com cerca de mil marinheiros espanhóis a bordo, além de um considerável número de soldados. Não desejo, contudo, arrogar a mim todo o mérito; meu raciocínio foi o principal fator, mas fui um tanto auxiliado pela sorte, pois mais tarde fiquei sabendo que o homem encarregado de introduzir a carga de vinte e quatro quilos, por engano, introduzira o dobro da pólvora; de outro modo, jamais teríamos obtido tamanho sucesso, além de toda a expectativa, especialmente ao repelir a bala do inimigo.

O General Elliot queria me oferecer uma comissão por esse singular auxílio; mas declinei de tudo, exceto de seus agradecimentos, que recebi em uma mesa onde se acotovelavam oficiais, numa ceia realizada ainda naquele mesmo dia.

Uma vez que gosto muito dos ingleses, que são sem sombra de dúvida um bravo povo, determinei-me a não deixar a guarnição enquanto não lhes houvesse prestado algum outro serviço e em cerca de três semanas uma outra oportunidade se apresentou. Vesti o hábito de um religioso e lá pela uma da manhã abandonei a guarnição, passando para as linhas inimigas e chegando até o meio do seu acampamento, onde entrei na barraca onde o Príncipe d’Artois se encontrava na presença do comandante-em chefe e vários outros oficiais, num profundo conciliábulo, arquitetando um plano de ataque para a manhã seguinte. Meu disfarce era minha proteção; eles toleraram que eu permanecesse ali, ouvindo tudo o que se passava, até que por fim foram se recolher a suas camas. Quando tive campo aberto, e mesmo os sentinelas estavam agasalhados nos braços de Morfeu, comecei meu trabalho, que era o desmonte de todos os canhões, de quatro a vinte e quatro quilos, e atirá-los dezoito quilômetros debaixo do oceano. Sem nenhuma assistência, percebi ser a missão mais difícil que já havia realizado, exceto nadar até o lado oposto do litoral com os famosos canhões turcos, como descrito pelo Barão Tott em suas memórias, e que mencionarei mais adiante. Amontoei então todas as carroças no centro do acampamento, as quais, para prevenir ruído de rodas, carreguei aos pares sob os braços; e elas ficaram muito bem empilhadas, tão altas quanto o rochedo de Gibraltar. Situado a seis metros do solo (sobre um velho muro construído pelos Moors quando invadiram a Espanha), acendi então um fósforo riscando um seixo no cabo de minha arma e então pus fogo à pilha inteira. Esqueci de informar a vocês que coloquei todos os carros de munição no topo.

Antes de usar o fósforo, dispus os combustíveis na base da pilha tão judiciosamente que tudo se incendiou num instante. Para prevenir suspeitas, fui o primeiro a expressar surpresa. O acampamento inteiro ficou, como os senhores podem imaginar, petrificado de susto: a conclusão do general foi de que seus sentinelas haviam sido subornados e sete ou oito regimentos haviam sido empregados naquela horrenda destruição de sua artilharia. O Senhor Drinkwater, na descrição deste famoso cerco, menciona que uma grande perda foi inflingida por um incêndio àquele acampamento, mas nunca soube da causa; e como saberia? uma vez que nunca divulguei nada antes (apesar de, sozinho, ter salvo Gibraltar), nem mesmo o general Elliot soube. O Conde d’Artois e todos os seus fugiram de medo e não se detiveram enquanto não chegaram até Paris, o que foi feito em quinze dias; essa terrível conflagração causou tamanha impressão neles que foram incapazes de comer alguma coisa durante os três meses seguintes, e, à maneira dos camaleões, viviam do ar.

Se algum cavalheiro dentre vocês duvida da veracidade desta história, será multado com um galão de brandy, que o farei beber de um gole só.

Dis meses após minha façanha, certa manhã, enquanto eu tomava café com o General Elliot, uma granada (pois não tive tempo de destruir seus morteiros) entrou no recinto onde nos encontrávamos; foi alojar-se debaixo da mesa: o General, como fazem a maioria dos homens, abandonou o local imediatamente; mas eu agarrei a granada antes que ela explodisse e a carreguei até o teto, de onde, olhando para o acampamento inimigo, numa elevação perto do litoral, notei um considerável número de pessoas, mas não pude, a olho nu, descobrir em que estavam ocupados. Iria recorrer novamente ao meu telescópio quando vi que dois de nossos oficiais, um general, o outro coronel, com os quais eu havia passado a noite anterior e soubera que se dirigiam ao acampamento inimigo como espiões, esses pobres oficiais haviam sido descobertos e estavam sendo conduzidos naquele momento para a forca. Constatei que a distância era grande demais para arremessar a granada com a mão, porém, afortunadamente recordei que trazia no bolso a genuína funda que auxiliara Davi a matar Golias; coloquei a granada nela e incontinenti atirei-a no meio do inimigo: o artefato detonou assim que caiu, destruindo todos os presentes, exceto os dois condenados, que estavam suspensos a tão grande altura para que tivessem morte mais rápida, e exatamente por estarem tão alto foram salvos: contudo, um dos estilhaços da granada atingiu com tanta violência a base do cadafalso que ele imediatamente caiu, trazendo-os para baixo. Nossos dois amigos mal haviam caído em terra firme e já se perguntavam as causas daquilo; mas, vendo que os guardas, o carrasco e todos os que se preparavam para enforcá-los haviam morrido, eles imediatamente se livraram das malditas cordas e correram para a praia, sendo recolhidos por um barco espanhol com dois homens e conduzidos a um dos nossos navios, o que foi feito com segurança; e poucos minutos depois, quando relatava ao General Elliot como eu havia me saído, ambos nos tomaram pela mão e, depois de congratulações mútuas, nos retiramos para passar o dia em festividades.

 

Um interessante relato sobre os ancestrais do Barão – uma disputa relativa ao lugar onde Noé construiu sua arca – A história da funda e suas propriedades – Um poeta insigne apresentado em ocasião não menos importante – A abstinência da rainha Elizabeth – O pai do Barão vai da Inglaterra à Holanda montado num cavalo-marinho, que é vendido por setecentos ducados.

 

Os senhores desejam (posso ver em seus semblantes) que eu informe como me tornei possuidor de semelhante tesouro como a funda outrora mencionada (aqui os rostos devem mostrar-se contritos). Ocorreu assim: sou descendente da esposa de Urias, de quem, todos sabemos, Davi era íntimo, tendo vários filhos com ela; certa vez o casal debatia sobre uma questão da maior importância, ou seja: o lugar onde havia sido construída a arca de Noé e o paradeiro da mesma após o dilúvio. Uma divergência consequentemente surgiu e separaram-se. Ela o ouvia falar com frequência daquela funda como o seu mais valioso tesouro: foi exatamente o que ela subtraiu quando deixou o acampamento; como demorasse demais para abandonar os domínios de Davi, acabou sendo perseguida por não menos que seis dos homens do rei: contudo, utilizando a funda, ela atingiu o primeiro deles (pois era mais ativo na perseguição do que os demais) da mesma forma que Davi fez a Golias, e matou-o instantaneamente. Seus companheiros ficaram tão alarmados com o fato que se retiraram, deixando que a esposa de Urias prosseguisse sua jornada. Ela trazia consigo, eu devia ter informado antes aos senhores, seu filho favorito, a quem ela deixou a funda, a qual, sem interrupção, tem passado de pai para filho até que veio parar em minhas mãos. Um de seus possuidores, meu tetravô, que viveu há cerca de duzentos e cinquenta anos atrás, estava em visita à Inglaterra e tornou-se íntimo de um poeta que era um grande ladrão de veados; acho que o nome dele era Shakespeare: ele frequentemente tomava emprestada a arma e com ela matou tantos animais de Sir Thomas Lucy que escapou por muito pouco do destino reservado aos meus dois amigos de Gibraltar. O pobre Shakespeare foi aprisionado e meu ancestral obteve a liberdade do larápio de maneira bastante original. A Rainha Elizabeth estava então no trono, mas era tão indolente que qualquer questão, por mais insignificante, era um problema para ela; vestir-se, despir-se, comer, beber e alguns outros atos cotidianos que não mencionarei transformavam a vida num fardo para ela. Pois ele a ajudou a fazer todas essas coisas sem a ajuda de um deputado sequer! E o que vocês acham ter sido a única recompensa que ele aceitou por serviços tão importantes? Colocar Shakespeare em liberdade! Tamanha era sua afeição por aquele famoso escritor que ele podia ter aberto mão dos seus dias de vida para adicioná-los aos do seu amigo.

Desconheço quaisquer dos assuntos da rainha, particularmente o que diz respeito aos comedores de bife, como são vulgarmente chamados nestes dias, entretanto, eles poderiam ficar bastante surpresos com a novidade daquele tempo, inteiramente aprovada por ela, que era a de ficar sem comer. A própria rainha não suportou mais do que sete anos e meio.

Meu pai, que foi o imediato possuidor desta funda antes de mim, contou-me a seguinte anedota:

Ele caminhava pela praia de Harwich com esta funda no bolso; antes de percorrer um quilômetro, ele foi atacado por um animal feroz chamado cavalo-marinho, de boca aberta, que corria em sua direção com grande fúria; ele hesitou por um momento, então agarrou a funda, recuou uns cem metros, juntou um par de seixos entre os muitos que havia sob seus pés e arremessou ambos tão habilmente no animal que cada pedra foi se alojar num olho, abrindo duas cavidades, onde ficaram alojadas. Ele então subiu em suas costas e conduziu-o mar afora, pois no momento em que perdeu a visão, o animal perdeu também a ferocidade, tornando-se dócil como um cachorrinho: a funda havia sido colocada como um bridão em sua boca; o animal foi guiado com a maior das facilidades através do oceano e em menos de três horas ambos chegaram ao litoral oposto, a cerca de cento e oitenta quilômetros. O governante da Three Cups, em Helvoetsluys, Holanda, comprou este cavalo-marinho para exibi-lo ao público e pagou por ele setecentos ducados, que correspondiam a mais de trezentas libras, e no dia seguinte meu pai voltou para Harwich de barco.

Meu pai fez várias obserações curiosas nesta passagem, as quais relatarei a seguir.

 

A brincadeira; suas conseqüências – Castelo de Windsor – St. Paul – Colégio de Médicos – Coveiros, sacristãos etc quase arruinados – Indústria dos remédios.

 

                               A BRINCADEIRA

Minha famosa funda torna seu possuidor capaz de realizar qualquer coisa.

Fiz um balão de dimensões tão amplas que um relato acerca de toda a seda empregada nele excederia toda a credibilidade; cada comércio ou armazém de tecidos em Londres, Westminster, e Spitalfields contribuiu na sua confecção: com este balão e minha funda realizei muitas traquinagens, tais como tirar uma casa do chão e colocar outra em seu lugar, tudo sem perturbar seus moradores, que geralmente estavam dormindo ou ocupados demais para observar a peregrinação de suas moradias. Se o sentinela do Castelo de Windsor ouviu o relógio da Catedral de St Paul soar treze horas foi graças à minha destreza; deixei as duas construções bem próximas naquela noite, descendo o castelo nos campos da Catedral de St Paul e levando-o de volta antes de o dia amanhecer e sem despertar nenhum de seus moradores; não obstante tais proezas, eu teria mantido meu balão e suas propriedades em segredo não tivesse Montgolfier tornado pública a arte de voar.

A 30 de setembro, quando o Colégio de Medicina escolhe seus oficiais, que depois ceiam de forma suntuosa, enchi meu balão, levei-o até a cúpula do prédio, atei uma ponta da funda à bola dourada no topo da construção, enquanto que a outra foi amarrada ao balão, o qual imediatamente subiu, juntamente com o colégio, até uma altura imensa, onde me mantive por três meses. Os senhores naturalmente desejam inquirir sobre qual teria sido o alimento deles durante tanto tempo. A isto eu respondo que tivesse eu os mantido lá pelo dobro do tempo, ainda assim não teriam experimentado nenhum aborrecimento, tão amplamente, melhor dizendo extravagantemente, haviam recoberto a mesa de comida para aquele festim.

Apesar de ser uma brincadeira tão inocente, ela causou muito prejuízo a vários personagens respeitáveis, como os sacerdotes, os papa-defuntos, os sacristãos e os coveiros: eles foram, isto deve ser dito, prejudicados, pois é um fato bem conhecido que durante os três meses que o colégio passou suspenso no ar, e desse modo incapaz de atender seus pacientes, nenhuma morte aconteceu, exceto por uns poucos que sucumbiram ante a foice do Tempo e outros, vítimas de melancolia, que, talvez para fugir a algumas tolas insignificâncias, praticaram violência contra si mesmos e precipitaram-se em miséria infinitamente maior do que aquela da qual pretendiam escapar sem nenhuma reflexão.

Se os farmacêuticos não tiveram muito o que fazer durante aquele período, metade dos papa-defuntos provavelmente devem ter ido à falência.

 

                     UMA VIAGEM PARA O NORTE

O Barão veleja com o Capitão Phipps, ataca dois imensos ursos e consegue escapar por pouco – Ganha a confiança desses animais e então aniquila milhares deles; carrega o navio com o couro e a carne dos animais – distribui-os como presente, e obtém uma licença para frequentar todas as festas da cidade – Uma disputa entre o capitão e o Barão na qual, por cortesia, o Barão cede a vitória ao oponente – O Barão declina de um trono e de uma imperatriz que lhe foram oferecidos.

 

Todos nós lembramos da última viagem de exploração do Norte, realizada pelo Capitão Phipps (agora Lorde Mulgrave). Acompanhei o capitão não como oficial, mas como amigo. Quando chegamos a uma elevada latitude norte, eu passei a observar os objetos em redor com meu telescópio, já conhecido dos senhores na minha aventura em Gibraltar. Pensei ter visto dois grandes ursos em violento combate sobre uma massa de gelo consideravelmente acima dos mastros e a cerca de quinhentos metros de distância. Imediatamente apanhei minha carabina, apoiei-a no ombro e subi no gelo. Quando cheguei ao topo, a irregularidade do terreno tornou minha aproximação problemática e perigosa além do esperado: às vezes certas cavidades surgiam diante de mim e eu era obrigado a saltá-las; em outras partes, a superfície era tão lisa quanto um espelho e eu caía a todo momento: quando me aproximei o bastante para atingi-los, descobri que eles estavam apenas brincando. Imediatamente comecei a calcular o valor de suas peles, pois elas eram tão grandes quanto a de um boi muito bem alimentado: infelizmente, no mesmo instante em que eu apontava a carabina, meu pé escorregou, caí de costas e a violência da queda privou-me inteiramente dos sentidos por cerca de meia hora; entretanto, quando me restabeleci, imaginem minha surpresa ao descobrir que um daqueles animais gigantescos dos quais falei havia me virado de bruços e mexia no meu cinto, que era novo na ocasião e feito de couro: ele certamente iria me arrastar pelos pés, sabe Deus para onde, quando apanhei esta faca de um bolso lateral (o Barão exibe uma enorme faca) e dei um talho numa de suas patas traseiras, cortando três de seus dedos; urrando tremendamente, ele de pronto me largou. Tomei de minha carabina e o alvejei enquanto ele fugia; o animal tombou incontinenti. O som do disparo acordou milhares de ursos brancos que dormiam no gelo num raio de quinhentos metros. Eles correram imediatamente até o local. Não havia tempo a perder. Um pensamento dos mais felizes irrompeu em meu pericrânio naquele instante. Arranquei a pele junto com a cabeça do urso morto na metade do tempo que algumas pessoas levam para esfolar um coelho e me envolvi nela, introduzindo minha própria cabeça sob a do cadáver; o rebanho inteiro rodeou-me imediatamente e vi-me em situação das mais delicadas: entretanto, meu plano mostrou-se bastante eficiente. Todos eles farejavam o ar e evidentemente tomaram-me por um irmão urso; eu não desejava outra coisa senão continuar representando bem meu papel: contudo, vi diversos filhotes que não eram menores do que eu. Depois que me farejaram, na verdade o cadáver do seu falecido companheiro, cuja pele tornava-se agora minha salvação, começamos a nos dar muito bem e percebi que podia imitar todas as suas ações razoavelmente bem; mas em se tratando de rosnar, urrar e agarrar, eles eram realmente melhores do que eu. Cogitei que poderia tirar proveito da confiança que depositavam em mim.

Eu tinha ouvido um velho cirurgião do exército dizer uma vez que um golpe na espinha significava morte instantânea. Determinei-me então a tentar a experiência; novamente recorri à minha faca, com a qual feri o maior deles atrás do pescoço, próximo aos ombros, mas com grandes temores e sem nenhuma dúvida de que se a criatura sobrevivesse ao golpe iria me retalhar em pedaços. Entretanto eu tive sorte considerável, pois ele caiu morto a meus pés sem fazer o menor ruído. Resolvi-me então a dizimá-los todos, um por um e da mesma maneira, do que me desincumbi sem nenhuma dificuldade, pois embora os ursos vissem seus companheiros tombarem, não tinham a menor suspeita do motivo. Quando todos haviam caído por terra, senti-me um segundo Sansão, com milhares de cadáveres a meus pés.

Para encurtar a história, voltei ao navio e consegui que uma parte da tripulação me auxiliasse a esfolar os ursos e a trazer para bordo as peles e a carne, da qual somente aproveitamos o pernil, tarefa que realizamos em poucas horas, abarrotando o navio. Quanto às sobras, foi tudo atirado no mar, apesar de eu não ter dúvidas de que tudo estava próprio para consumo, desde que devidamente tratado.

Assim que voltamos, em nome do capitão, enviei alguns dos pernis aos senhores Almirantes, outros pernis foram aos senhores do Tesouro, outros ainda ao senhor prefeito de Londres e seus partidários, um pouco para cada companhia de comércio e o restante a meus amigos particulares, de todos os quais recebi calorosos agradecimentos; mas da cidade fui honrado com importante notícia, a saber, um convite para cear anualmente no Salão de Convidados a cada aniversário do prefeito.

As peles mandei à imperatriz da Rússia, para agasalhar Sua Majestade e a corte no inverno, razão pela qual ela me escreveu uma carta de agradecimento de próprio punho, a qual mandou por meio de um embaixador extraordinário, e onde me convidada a dividir com ela as honras da coroa; mas como nunca fui ambicioso da dignidade real, declinei do favor de Sua Majestade com termos educados. O mesmo Embaixador tinha ordens para aguardar minha resposta e levá-la a Sua majestade pessoalmente, o que o obrigou a ficar ausente por três meses: a réplica de Sua Majestade convenceu-me da força de suas convicções e da sua dignidade; sua última indisposição de saúde fora inteiramente devida à minha crueldade (segundo ela, pobre criatura! referiu certa vez ao Príncipe Dolgoroucki). O que o belo sexo vê em mim não sei dizer, mas a Imperatriz não é a única soberana a me oferecer a mão.

Algumas pessoas têm dito muito injustamente que o Capitão Phipps não foi tão longe quanto poderia ter ido com aquela expedição. Sendo assim, é meu dever absolvê-lo; nosso navio estava muito bem preparado, até que o abarrotei com tão imensa quantidade de couros e pernis de urso; após isso, porém, teria sido loucura tentar ir mais longe com ele, uma vez que ficamos sem condições de enfrentar até mesmo uma ventania, quanto mais aquelas montanhas de gelo que grassam nas longínquas latitudes.

Desde então o Capitão tem expressado sua insatisfação por eu não ter dividido as honras daquele dia memorável com ele, que enfaticamente chamou dia da esfola. Ele também tem se mostrado desejoso de saber por quais artes destruí tantos milhares de ursos sem ter me fatigado nem corrido risco algum; ele se mostrou tão interessado em querer dividir a glória comigo que discutido muito sobre isso e hoje já não estamos mais dirigindo a palavra um ao outro. Ele sustenta veementemente que não tive mérito algum ao ludibriar os ursos porque estava coberto com a pele de um; ao contrário, ele declara que em sua opinião não há na espécie humana alguém tão similar a um urso quanto ele próprio.

Ele é hoje um nobre e eu sou apegado demais às boas maneiras para disputar tão delicada questão com sua nobreza.

 

Nosso Barão supera o Barão Tott além de toda comparação, ainda que falhe parcialmente em sua tentativa – Cai em desgraça com o Grande Senhor, que ordena sua decapitação – Escapa, a bordo de um navio, no qual é transportado para Veneza – Origem do Barão Tott, com algumas informações sobre seus parentes – Romances do Papa Ganganelli – Sua Santidade é apreciadora de ostras.

 

O Barão de Tott, em suas Memórias, faz de um fato banal um grande escândalo, assim como muitos viajantes que passam a vida viajando o mundo; de minha parte, se eu tivesse sido arremessado da Europa à Asia pela boca de um canhão iria me vangloriar menos disso do que ele por ter disparado um canhão turco. O que ele diz de sua magnífica arma é isto, se não me falha a memória: “Os turcos haviam posicionado logo abaixo do castelo, próximo à cidade e às margens do Simois, um famoso rio, um enorme canhão feito em latão capaz de disparar uma bala de mármore de seis toneladas. Eu estava inclinado”, disse Tott, “dispará-lo, mas desejava primeiro calcular o efeito; as pessoas ao meu redor tremiam diante da idéia, temerosos de que isso pudesse destruir não apenas o castelo, mas a cidade também; no fundo seus temores eram em parte justificados, mas fui autorizado a fazer fogo. Eram necessários nada menos que cento e cinquenta quilos de pólvora e a pesada bala que mencionei há pouco, de seis toneladas. Quando o engenheiro trouxe a primeira carga, os circunstantes recuaram o mais rápido que puderam; e foi com tremenda dificuldade que persuadi o paxá, o qual viera para me demover, de que não havia nenhum perigo: mesmo o engenheiro encarregado de desferir o tiro às minhas ordens mostrava-se alarmado. Protegi-me atrás de uma estátua atrás do canhão, dei o sinal e senti um choque como o de um terremoto! À distância de quinhentos metros a bala se partiu em três pedaços; os fragmentos atravessaram o desfiladeiro, ricochetearam na montanha oposta e deixaram a superfície da água recoberta de espumas por toda a extensão do canal.”

Isto, cavalheiros é, salvo engano, o relato do Barão Tott sobre o maior canhão conhecido no mundo. Quando estive naquele lugar, não faz muito tempo, a anedota de Tott disparando seu tremendo canhão foi mencionada como prova da extraordinária coragem daquele cavaleiro.

Eu estava decidido a não ser superado por um francês, então suspendi o referido canhão nos ombros e, tendo-o equilibrado corretamente, saltei no mar com ele e nadei até a margem oposta, de onde tentei desafortunadamente atirá-lo de volta ao seu lugar de origem. Digo desafortunadamente porque ele escorregou de minha mão quando o arremessei e em consequência disso foi cair no meio do canal, onde agora descansa, sem que haja qualquer projeto de recuperá-lo: e, não obstante a elevada conta em que me tinha o Grande Senhor, como mencionado anteriormente, este cruel turco, tão logo soube da perda do seu famoso canhão, deu ordem para cortarem minha cabeça. Imediatamente fui informado disso por uma das sultanas, da qual eu me tornara grande favorito, e ela me ocultou eu seus aposentos enquanto o oficial encarregado de me executar estava à minha procura com seus assistentes.

Naquela mesma noite realizei minha fuga a bordo de um navio para Veneza e que já estava levantando âncora para iniciar viagem.

Não fico à vontade, cavalheiros, ao mencionar a história anterior, uma vez que falhei em minha tentativa e fiquei bastante próximo de perder a vida: entretanto, como não há qualquer dano à minha honra eu não a ocultaria dos senhores.

Agora todos os senhores já me conhecem, cavalheiros, e não têm dúvidas da minha seriedade. Irei então entretê-los com a origem deste fanfarrão e truculento Tott.

Seu reputado pai era nativo de Berna, Suíça; sua ocupação era a de cuidar das ruas, becos e vielas, ou como vulgarmente dizemos, era um gari. Sua mãe era oriunda das montanhas de Savóia e tinha um belo e enorme calombo no pescoço, comum a ambos os sexos naquela parte do mundo; ela deixou seus pais quando jovem, e foi tentar a sorte na mesma cidade onde nascera seu pai; conseguiu manter-se solteira devido ao tratamento carinhoso que dava aos de nosso sexo, pois ela nunca recusava nenhum favor pedido, o qual era concedido mediante pagamento adiantado. O maravilhoso casal encontrou-se por acidente na rua, o que resultou de se estatelarem ambos no chão em virtude de andarem cambaleando, pois estava alcoolizados; isso gerou mútuas ofensas, do qual eram totais adeptos; foram ambos conduzidos à delegacia e depois à casa de correção; eles logo notaram a tolice que era brigar por coisa à toa, fizeram as pazes, tornaram-se admiradores um do outro e casaram; mas madame voltou aos seus velhos hábitos e o marido, que tinha noções de honra, logo separou-se dela; ela acompanhou então uma família de saltimbancos que fazia show com marionetes. E quando chegou à Roma, tornou-se vendedora de ostras. Os senhores conhecem, sem dúvida, o Papa Ganganelli, comumente chamado Clemente XIV: ele era apreciador inveterado de ostras. Uma sexta-feira, enquanto ele caminhava pela famosa cidade para pregar às massas na Igreja de São Pedro, ele viu as ostras daquela mulher (que eram de excelente qualidade e frescor); o Papa não pôde continuar sem antes prová-las. Havia cerca de cinco mil pessoas na feira; ele ordenou a todas que saíssem e mandou dizer à igreja que só poderia falar às massas no dia seguinte; então, descendo do cavalo (pois o Papa sempre anda a cavalo em tais ocasiões) ele foi até a barraca da jovem e devorou todas as ostras que estavam ali, retirando-se depois para o porão, onde havia mais. Aquele aposento subterrâneo era cozinha, sala de estar e quarto de dormir. Ele gostou tanto daquela situação que dispensou todos os seus criados; para encurtar a história, Sua Santidade passou a noite toda lá! E antes de partir, absolveu a jovem não apenas de todos os pecados que esta pudesse ter cometido, como também dos que, porventura, viesse a cometer.

Pois, cavalheiros, esta senhora me deu sua palavra (e sua honra não pode ser contestada) de que o Barão Tott é fruto daquele amor. Quando Tott nasceu, mãe apontou Sua Santidade como pai da criança; o sumo-pontífice imediatamente introduziu o menino entre pessoas de respeito e, quando este cresceu, deu-lhe uma educação de nobre, ensinou-lhe o uso de armas, obteve-lhe promoção e título na França e, quando morreu, deixou ao jovem um vasto patrimônio.

 

Um relato superficial da jornada de Harwich a Helvoetsluys – Descrição de objetos nunca mencionados antes por viajante algum – As rochas vistas nesta passagem eram iguais aos Alpes em magnitude; lagostas, caranguejos etc de extraordinário tamanho – Salva a vida de uma mulher – A causa de sua queda no mar – As instruções do Dr. Hawes seguidas com sucesso.

 

Omiti muita coisa da viagem de meu pai através do canal inglês até a Holanda, as quais, para que não possam ser esquecidas, transmitirei fielmente aos senhores com minhas próprias palavras, como as ouvi dos amigos de meu pai várias vezes.

“Na minha chegada a Helvoetsluys”, disse meu pai, “observei que respirava com dificuldade; como os moradores me inquirissem a causa, informei-lhes que o animal que me havia transortado desde Harwich através do oceano não viera nadando! Tais eram suas peculiares forma e disposição que ele não pode flutuar ou mover-se à superfície da água; ele corre com incrível velocidade, mas sob as águas do oceano, deixando para trás milhares de peixes, muitos dos quais bastante diferentes de qualquer um que eu já tenha visto, pois carregam a cabeça na extremidade da cauda. Eu atravessei”, continuou ele, “um prodigioso paredão de rochas, iguais em altura aos Alpes (dizem que as partes mais altas dessas montanhas marinhas elevam-se duzentos metros acima da superfície do mar); ao lado delas há uma grande variedade de altas e nobres árvores, carregadas de frutos do mar, tais como lagostas, caranguejos, ostras, lesmas, mexilhões, mariscos etc, etc; cada uma delas capaz de encher sozinha uma carroça! E das grandes! Aquelas que são recolhidas na praia e vendidas nos mercados são de uma variedade nanica e inferior, mais propriamente, refugo, ou seja, frutos caídos das árvores, que crescem ao movimento da maré, assim como aquelas plantas que nascem em nossos jardins por ação do vento! As árvores de lagosta pareciam as mais exuberantes, porém as de caranguejos e de ostras eram as maiores. A árvore de moluscos é uma espécie de arbusto que cresce ao pé da de ostras, enrolando-se em torno dela, como faz a hera ao carvalho. Observei o efeito de vários acidentes e etc naqueles rochedos, particularmente o de um navio que havia se chocado contra uma rocha com seis metros de altura. Com o desastre, o navio adernou, forçando um pé de lagostas muito elevado para fora de seu lugar. Era primavera, quando as lagostas ainda estavam muito jovens, e várias delas, arrancadas pela força do choque, caíram sobre uma árvore de caranguejos que crescia logo abaixo; eles se misturaram, como as raízes das plantas, e produziram uma criatura híbrida. Pensei em trazê-la um comigo, mas seria tarefa por demais incômoda estando eu a cavalo e meu Pégasso de água salgada ficava aborrecido a cada tentativa de deter sua carreira; além disso, eu estava àquela altura galopando sobre uma montanha de rochas que ficava a meio caminho da passagem, pelo menos um quilômetro abaixo da superfície do oceano, e comecei a sentir uma inconveniente falta de ar, de modo que não tinha interesse de prolongar o tempo. Deve-se acrescentar a isso que minha situação em outros aspectos era muito desagradável; encontrei muitos peixes graúdos que eram, a julgar pelas suas bocas abertas, não só eram capazes de nos devorar como estavam bastante dispostos a fazê-lo; uma vez que meu Rocinante estivesse indiferente, eu tinha de me manter de guarda contra as investidas letais daqueles gentis cavalheiros, em adição a minhas outras dificuldades.

“Enquanto seguíamos pelo litoral da Holanda e a massa de água sobre nossas cabeças não excedia quarenta metros, imaginei ter visto uma figura humana de vestido que jazia diante de mim e ainda demonstrava alguns sinais de vida; chegando perto, percebi sua mão se mover, a qual segurei, e trouxe a mulher para a praia, como se ela fosse um cadáver. Um farmacêutico instruído pelo dr. Hawes (o pai do Barão deve ter vivido até bem recentemente se o Dr. Hawes foi seu preceptor), de Londres, tratou-a adequadamente e ela se restabeleceu. Ela era esposa de um homem que comandava uma embarcação pertencente a Helvoetsluys. Ele já estava deixando o porto para seguir viagem quando ela, ouvindo falar que o marido possuía uma amante, seguiu-o num bote. Tão logo chegou ao convés, ela voou sobre o marido, e tentou golpeá-lo com tanta impetuosidade que ele de pronto desviou-se da agressora, achando melhor que ela golpeasse as águas e não ele: não era um sujeito com grande noção de responsabilidade; sem obstáculos pela frente, ela caiu do navio; e foi por minha causa que o feliz casal pôde reencontrar-se novamente.

“Posso imaginar que execrações o marido me teria endereçado quando, de retorno à casa, encontrou sua gentil esposa aguardando por ele e ficou sabendo como esta fora salva. De qualquer modo, tão grande como suas injúrias foi o ato que pratiquei em favor deste pobre-diabo; espero que ele me perdoe na sua morte, pois minha intenção era boa, apesar de que as consequências para ele, devo confessar, tenham sido terríveis.”

 

Este é um capítulo bastante curto, mas contém um fato pelo qual a memória do Barão deve ser cara a todos os ingleses, especialmente aqueles que doravante tenham o infortúnio de virar prisioneiros de guerra.

 

No meu retorno de Gibraltar, viajei da França à Inglaterra. Apesar de estrangeiro, não levei em conta que isso pudesse ser uma inconveniência para mim. Descobri no porto de Calais um navio recém-chegado com um grupo de marinheiros ingleses que eram prisioneiros de guerra. Imediatamente concebi uma idéia para dar àqueles bravos rapazes a liberdade, o que foi realizado como se segue: após fabricar um par de longas asas, cada uma com quarenta metros de largura e quatroze de comprimento e anexá-las a mim, alcei vôo ao romper do dia, quando todas as criaturas, mesmo os vigias de gávea estão adormecidos. Enquanto pairava sobre o navio, atei três enormes grampos a cada um dos mastros da embarcação e, amarrando-os à minha funda, suavemente ergui o navio a vários metros da água, prosseguindo então até Dover, onde cheguei em meia hora! Não tendo mais nenhuma ocupação para aquelas asas, dei-as de presente ao senhor do Castelo de Dover, onde hoje elas estão expostas aos curiosos.

Quando aos prisioneiros e aos franceses que os guardavam, nenhum deles acordou antes de duas horas após sua chegada ao pier. No momento em que os ingleses entenderam que sua situação havia mudado, trocaram de lugar com seus carcereiros e tomaram de volta o que lhes havia sido roubado, porém nada mais do que isso, pois eles eram generosos demais para retaliar e jamais saqueariam os franceses como forma de vingança.

 

Viagem ao Oriente – O Barão apresenta um amigo que jamais o decepcionou: ganha cem guinés por acreditar no faro do amigo – Caçada iniciada no mar – Outras circunstâncias que deverão, espera-se, proporcionar ao leitor enorme deleite.

 

Em uma viagem que fiz às Índias Orientais com o Capitão Hamilton, levei comigo meu cão de caça. Aquele belo animal, para usar uma expressão comum, valia seu peso em ouro, pois jamais me decepcionou. Um dia, quando estávamos, segundo nossas observações, a pelo menos trezentos metros da terra meu cão deu o aviso, apontando alguma coisa; observei-o por quase uma hora com assombro e mencionei as circunstâncias ao capitão e aos demais oficiais a bordo, asseverando que devíamos estar perto da terra, pois meu cachorro farejava caça. Isto ocasionou o riso geral, mas não alterou em nada a opinião que eu tinha do meu cachorro. Depois de muito discutir prós e contras, disse ao capitão que eu tinha mais confiança no faro de Tray do que na vista de qualquer marinheiro a bordo e, desse modo, afirmei que encontraríamos caça dentro de meia hora e apostei o equivalente à soma que paguei pela passagem (a saber: cem guinés). O capitão (um rapaz de bom coração) riu novamente, solicitando ao Sr. Crowford, cirurgião que já esperava pela ordem, que tomasse meu o pulso; ele o fez e diagnosticou-me em perfeito estado. O seguinte diálogo teve lugar entre eles; ouvi casualmente, apesar de falarem baixo e a alguma distância.

CAPITÃO: O cérebro deste homem está perturbado; não posso aceitar sua aposta.

CIRURGIÃO: Sou de pensamento diverso; ele está perfeitamente são e confia cegamente no olfato de seu cachorro em detrimento da opinião de todos os oficiais a bordo; ele irá perder, por certo, e merecerá amplamente a derrota.

CAPITÃO: Tal aposta não pode ser justa, a meu ver; entretanto, eu a aceitarei desde que fique com o dinheiro dele no final.

Durante a conversa acima, Tray continuou na mesma posição, convencendo-me ainda mais da minha opinião anterior. Propus a aposta uma segunda vez e ela foi aceita.

Fechado! Fechado! Foi dito de ambos os lados, quando alguns marinheiros que pescavam num escaler arpoaram um tubarão gigante, o qual trouxeram a bordo para extrair-lhe o óleo; olhando atentamente, encontraram nada menos que seis pares de perdizes vivas no estômago do animal!

Eles se demoraram tanto na tarefa que uma das aves teve tempo de por quatro ovos e um quinto já estava saindo da fábrica quando o tubarão foi finalmente aberto!!! Esta jovem ave nós deixamos em companhia de uma ninhada de gatinhos que trazíamos conosco e cujo nascimento se dera poucos minutos antes! A gata tornou-se mãe daquela perdiz; gostava dela tanto como de qualquer outro de seus filhos de quatro patas e mostrava-se bastante incomodada quando a perdiz voava para longe, só se acalmando quando esta retornava. Quanto às outras perdizes, havia quatro fêmeas entre elas; uma ou mais estavam constantemente chocando durante a viagem e consequentemente tivemos bastante comida na mesa do capitão; em gratidão ao pobre Tray (por ter me ajudado a ganhar cem guinés), eu lhe mandava diariamente alguns ossos e às vezes uma ave inteirinha.

 

             UMA SEGUNDA VIAGEM À LUA

Uma segunda visita (porém acidental) à lua – O navio, levado por um furacão a seis mil quilômetros da superfície da água, onde uma nova massa de ar o encontra, carregando-o até um espaçoso porto na lua – Descrição dos habitantes e seu modo de vida no mundo lunar – Animais, costumes, armas de guerra, vinho, vegetais etc.

 

Já informei aos senhores de uma viagem que empreendi à lua em busca de uma machadinha de prata; mais tarde, fiz outra de maneira ainda mais agrdável e permaneci na lua por tempo suficiente para dar notícia sobre diversas coisas, as quais me esforçarei por descrever tão fielmente quanto minha memória permitir.

Segui em viagem de exploração, à procura de um parente distante que tinha a estranha idéia fixa de encontrar pessoas iguais em tamanho às descritas por Gulliver no império de BROBDIGNAG. De minha parte, sempre tive tais idéias como fantasiosas: de qualquer modo, para auxiliá-lo, pois ele me fizera seu herdeiro, assumi a responsabilidade e fiz velas para os Mares do sul, onde chegamos sem topar nada de extraordinário, exceto alguns homens e mulheres voadores que saltavam “carniça” e dançavam minuetos no ar.

Dezoito dias depois que passamos pela ilha de Otaheite, mencionada pelo Capitão Cook como o lugar de onde foi recolhido Omai, um furacão soprou, levando nosso navio a pelo menos seis mil metros acima da superfície da água, e manteve-nos naquela altitude até que uma fresca massa de ar em ascenção inflou as velas, impulsionando-nos a prodigiosa velocidade; dessa maneira permanecemos acima das nuvens por seis semanas. Finalmente descobrimos um grande território nos céus, como que uma ilha fosforescente, redonda e brilhante; tendo alcançado um porto conveniente, descemos à praia, e logo descobrimos tratar-se de local habitado. Abaixo de nós víamos outro mundo que continha cidades, árvores, montanhas, rios, mares etc, e que conjecturamos ser o planeta Terra, que havíamos deixado. Naquele novo mundo vimos criaturas gigantes que cavalgavam falcões de prodigioso tamanho, os quais possuíam três cabeças. Para se ter idéia da magnitude dessas aves, devo dizer-lhes que cada uma de suas asas é seis vezes maior que a vela principal do nosso navio, o qual pesa cerca de seiscentas toneladas. Assim, ao invés de montar cavalos, como fazemos aqui na terra, os habitantes da lua (descobrimos que estávamos na Senhora Lua) voavam às costas daquelas aves. O rei, soubemos, estava envolvido em uma guerra com o sol e ofereceu-me uma comissão, mas declinei da honra que Sua Majestade me oferecera. Tudo naquele mundo é de extraordinário tamanho! Uma simples pulga é muito maior do que nossas ovelhas: na guerra, as principais armas são rabanetes, os quais são usados como flechas: quem é atingido por eles morre instantaneamente. Os escudos são feitos de cogumelo e as flechas (quando não é tempo de rabanete) de talos de aspargos. Alguns dos moradores da estrela Cão costumam ser vistos por lá; é o comércio que os leva ao passeio; seus rostos são como o de enormes mastins, com os olhos caídos ou convergindo para os focinhos: eles não têm pálpebras e na hora de dormir cobrem os olhos com a língua; possuem geralmente seis metros de altura. Quanto aos nativos da lua, nenhum deles têm menos de doze metros de altura: não são considerados da espécie humana, mas de uma outra raça, pois, apesar de prepararam as refeições com o fogo, como nós, eles não perdem tempo com a comida, pois têm uma abertura no lado esquerdo onde tudo é depositado diretamente no estômago; a seguir a passagem é fechada novamente para ser utilizada somente no mês seguinte, pois eles nunca se permitem ingerir coisa alguma mais do que doze vezes por ano, ou uma por mês. Todos, exceto os glutões e os epicuristas, preferem este método ao nosso.

Não há senão um sexo entre eles e os outros animais existentes na lua; todos são nascidos em árvores de variado tamanho e folhagem; as que produzem a referida criatura é muito mais bela que as outras; têm compridos galhos retilíneos e folhas polpudas, os frutos possuem formato de noz ou vagem, a casca é resistente e tem pelo menos dois metros de espessura; quando amadurecem, o que se dá ao mudarem de cor, são colhidas com grande cuidado e acondicionadas da forma se entende ser a mais adequada: quando os seres lunares pretendem dar vida àquelas sementes, eles a despejam num enorme caldeirão de água fervente; as duras cascas rompem-se em poucas horas e delas saem as criaturas.

A natureza forma seus intelectos com diferentes habilidades antes de virem ao mundo; de uma casca nasce um guerreiro; de outra, um filósofo; da terceira, um padre; da quarta, um advogado; da quinta um fazendeiro; da sexta, um palhaço etc, etc, e cada um deles imediatamente começa a aprimorar seus dotes, praticando o que antes sabiam apenas em teoria.

Quando ficam velhos, eles não morrem, mas transformam-se em ar, dissolvendo-se como fumaça! Quando à bebida, eles não têm necessidade; as únicas evacuações que fazem são-lhes imperceptíveis, pois são feitas pela respiração. Não possuem senão um dedo em cada mão, com o qual realizam tudo de modo tão perfeito quanto nós, com nossos quatro dedos e o polegar. Suas cabeças ficam sob o braço direito e quando partem em viagem ou praticam algum exercício, eles geralmente as deixam em casa, pois podem consultá-las de qualquer distância; é um hábito muito comum; e quando as pessoas distintas e de bom nível entre os Lunares têm curiosidade de saber o que se passa entre as pessoas comuns, elas ficam em casa, isto é, seus corpos ficam em casa, e mandam somente as cabeças, cuja presença é tolerada; estas retornam e, com satisfação, dão notícia do que se passou. As suas uvas são do tamanho de enormes granizos; e eu ficava maravilhado quando uma ventania abalava os vinhedos, arrancando as uvas dos cachos. Os frutos caíam como uma doce chuva de granizo. Aconselhei a alguns dos habitantes da lua que recolhessem do chão aquelas deliciosas frutas na próxima “chuva” e produzissem vinho com elas. É uma bebida típica do dia de S. Lucas. Algumas circunstâncias materiais por pouco não iam sendo esquecidas. Eles usam a barriga do mesmo modo que usamos uma sacola e lhe atiram dentro o que bem entendem, pois eles podem abri-la e fechá-la quando bem entendem, como fazem com o estômago; não estão preocupados com as tripas, o fígado, o coração ou quaisquer outros órgãos, nem se cobrem com roupas; tampouco há qualquer parte de seus corpos cuja exibição seja inadequada ou indecente.

Seus olhos podem ser tirados das órbitas e colocados de volta à vontade, uma vez que podem ver muito bem com eles, estejam na mão ou na cabeça! E, se por algum acidente, perderem ou danificarem algum, podem pedir emprestado ou comprar outro e ainda assim continuar vendo muito bem. Vendedores de tais mercadorias são bastante numerosos na maior parte da lua; neste item os habitantes da lua são muito caprichosos: a moda é usar olhos verdes ou amarelos. Sei que essas coisas parecem bizarras; mas se persistir a menor sombra de dúvida na cabeça de alguma pessoa, aconselho-a a empreender viagem semelhante para que saiba ser eu um viajante que prima pela verdade.

 

O Barão cruza o Tâmisa sem ajuda de ponte, navio, barco, balão ou mesmo da própria vontade: desperta após um longo cochilo e extermina um monstro que vivia da destruição dos outros.

 

Minha primeira visita à Inglaterra foi lá pelo início do atual reinado. Tive o privilégio de ir até Wapping para ver certas mercadorias, as quais desejava enviar a alguns amigos em Hamburgo; concluída a tarefa, na volta, resolvi visitar a Torre Wharf. Lá o sol estava muito forte e eu me encontrava tão fatigado que entrei num dos canhões para me restabelecer e acabei caindo em sono profundo. Devia ser lá pelo meio-dia: era quatro de junho; exatamente à uma hora todos os canhões foram disparados em memória daquele dia. Haviam sido carregados de manhã e, sem desconfiar da situação, acabei sendo arremessado por sobre as casas do lado oposto do rio, na área de uma fazenda entre Bermondsey e Deptford, onde caí sobre um grande monte de feno, sem acordar, e continuei ali a sono solto até que o feno atingiu um bom preço no mercado (deve ter sido uns três meses depois) e o fazendeiro entendeu vender todo o seu estoque: o monte onde eu repousava era o maior, e de considerável peso; foi o que começaram a cortar primeiro; acordei com o vozerio das pessoas, que haviam começado a subir as escadas para começar pelo topo, e despertei, totalmente ignorante de minha situação: na tentativa de fugir, caí sobre o fazendeiro dono do feno e, apesar de eu próprio não ter sofrido qualquer ferimento, acabei por quebrar o pescoço do homem na queda. Tomei conhecimento depois, para meu consolo, que este sujeito era a mais detestável das criaturas, sendo toda a produção de sua fazendo oriunda de trabalho escravo.

 

O Barão atravessa o mundo: depois de visitar o Monte Etna, ele vai parar nos Mares do Sul; visita Vulcano em sua passagem; coloca a bordo um holandês; chega a uma ilha de queijo rodeada por um oceano de leite; descreve alguns objetos extraordinários – Perde sua bússola; seu navio passa por entre os dentes de um peixe desconhecido nesta parte do mundo; sua dificuldade em escapar dali; chega ao Mar Cáspio – Faz um urso morrer de fome – Anedota sobre um colete– Neste capitulo, que é o maior, o Barão prega a virtude da sinceridade.

 

O livro “Viagens pela Sicília”, do Sr. Drybones, que li com grande prazer, influenciou-me a conhecer o monte Etna; minha viagem ao lugar deu-se sem nenhum grande fato que mereça destaque. Ora, aconteceu que, três ou quatro dias após minha chegada, de manhã cedo, parti da pequena habitação onde me havia instalado e que ficava a dez quilômetros da base do vulcão, determinado a explorar as partes internas deste, ainda que perecesse na tentativa. Depois de três horas de duros esforços, consegui atingir o topo; foi quando o vulcão estremeceu, já estava assim há mais de três semanas: sua aparência em tal estado tem sido narrada tão frequentemente por diferentes viajantes que não aborrecerei os senhores com descrições já conhecidas. Caminhei pela borda da cratera, que parecia ser cinquenta vezes maior que a Garganta do Diabo, em Petersfield, na estrada de Portsmouth, mas não tão larga no fundo, assemelhando-se ali mais a um funil. Finalmente, criando coragem, dei um passo à frente; logo me vi em um ambiente muito calorento e meu corpo sofria queimaduras por toda parte, devido às cinzas em brasa que o vulcão cuspia; em oposição a elas, eu seguia minha descida: meu peso logo me levou para o fundo, onde me encontrei em meio a muito barulho e gritos, misturados às mais horrendas imprecações: após recobrar a calma e sentir minorarem as dores, olhei em redor. Imaginem, cavalheiros, meu assombro quando me vi em companhia de Vulcano e seus Ciclopes, que já vinham discutindo por três semanas, como mencionado, sobre a manutenção da boa ordem e da obediência; tal era a causa dos abalos que vinham atingindo a superfície. De qualquer modo, minha aparição restaurou a paz àquela sociedade e o próprio Vulcano me deu a honra de aplicar emplastros aos meus ferimentos, que se curaram imediatamente; ele também serviu-me refeição, particularmente néctar e alguns vinhos excepcionais aos quais somente deuses e deusas podem aspirar. Após o repasto, Vênus ordenou a Vulcano que este me socorresse em tudo que minha situação exigisse. Descrever os aposentos, a cama na qual repousei, é totalmente impossível, e desse modo não tentarei fazê-lo; basta dizer que excede o alcance da linguagem, assim como não existem palavras capazes de expressar as qualidades daquela generosa deusa.

Vulcano fez-me uma descrição muito concisa do Monte Etna: ele disse tratar-se tão somente de um acúmulo de cinzas expelidas de sua forja; ele era obrigado com muita frequência a castigar seus homens, e, em sua fúria divina, costumava arremessar contra eles carvões em brasa, dos quais conseguiam desviar-se com muita habilidade. Depois eles atiravam tudo fora, pela boca do vulcão, para que o deus não fizesse mais uso daquele expediente. Diga-se de passagem que esses homens jamais tentaram atacá-lo, arremessando de volta os carvões. “Nossas perlengas”, acrescentou ele, “duram às vezes três ou quatro meses e essas aparições de brasas e cinzas no mundo são o que eu acho que vocês, mortais, chamam de erupções.” O Monte Vesúvio, ele me assegurou, era outra de suas forjas, para a qual havia uma passagem de dois mil quilômetros sob o leito do oceano, e onde similares disputas provocavam similares erupções. Eu teria permanecido ali como um humilde criado de Madame Vênus, mas alguns tagarelas, amantes da calúnia, sopraram alguma estória no ouvido de Vulcano que o deixou tomado de um ciume impossível de ser aplacado. Certa manhã, sem nenhum aviso ele me pegou pelo braço enquanto eu, como de hábito, esperava por Vênus, e conduziu-me por um aposento onde eu nunca havia estado antes e no qual havia, tudo levava a crer, um poço com enorme abertura: diante dele, Vulcano me agarrou os braços e disse: “Ingrato mortal, retorne ao mundo de onde veio”, e sem me dar nenhuma chance de defesa, empurrou-me no poço. Vi-me caindo numa velocidade crescente, até que o horror privou-me dos sentidos. Imagino ter caído numa espécie de transe, do qual fui subitamente despertado pelo mergulho em uma imensa massa de água iluminada pelos raios do sol!!

Eu sabia nadar muito bem desde pequeno e fazer algumas travessuras na água. Encontrava-me no paraíso, considerando os horrores pelos quais havia passado. Depois de contemplar a paisagem por algum tempo, não vi mais nada senão uma extensão de mar que se estendia a perder de vista em todas as direções; também achei o tempo muito frio, bastante diferente da forja de Vulcano. Finalmente, a alguma distância, divisei um corpo de incrível magnitude, semelhante a uma imensa rocha, que se aproximava de mim; logo descobri ser um iceberg; nadei em redor dele até encontrar um lugar por onde pudesse subir, o que fiz, mas não sem alguma dificuldade. Quando perdi a terra de vista, o desespero retornou com força redobrada;entretanto, antes que a noite viesse, divisei um veleiro que se aproximava a grande velocidade; quando ele se encontrava a pequena distância de mim, saudei-o em alemão; a tripulação respondeu em holandês. Eu então me lancei no mar e eles me atiraram uma corda, pela qual fui trazido a bordo. Perguntei onde estava e fui informado que era no oceano do Sul; isso foi uma descoberta que resolveu todas as minhas dúvidas. Estava evidente que, partindo do Monte Etna, eu havia atravessado todo o centro da terra até cair nos Mares do Sul: isto, cavalheiros, era um atalho muito mais curto ao redor do mundo e que nenhum homem havia percorrido nem sequer tentado, exceto eu; de qualquer modo, da próxima vez serei mais cuidadoso com minhas observações particulares.

Fiz minha refeição e fui descansar. Os holandeses são um tipo de gente muito rude; relatei minha passagem pelo Etna aos oficiais, exatamente como fiz aos leitores, e alguns deles, particularmente o Capitão, pareceram, por suas caretas e meias-palavras, duvidar da minha sinceridade; entretanto, como eles tivessem me recolhido a bordo com tanta gentileza e me suprissem todas as necessidades, relevei a afronta.

Por minha vez comecei a inquiri-los sobre sua missão. Responderam estar a procura de novas descobertas; “e se”, disseram, “sua estória for verdadeira, uma nova passagem foi descoberta e não retornaremos desapontados.” Estavamos exatamente na rota da primeira viagem do capitão Cook e chegamos na manhã seguinte a Botany Bay. Este lugar eu de modo algum recomendaria ao governo inglês como adequado à reclusão de bandidos ou local de punição; deveria, ao invés disso, ser usado para premiar os heróis, tal se mostrou generosa a natureza com aquele lugar, cumulando-o de dádivas.

Permanecemos ali por três dias; no quarto dia após nossa partida, uma tempestade pavorosa formou-se e em poucas horas destruiu nosso navio, quebrou os gurupés e derrubou o mastro superior; ele caiu exatamente na caixa onde estavam encerradas as bússolas e, juntamente com as elas, foi feito em pedaços. Todos aqueles que já estiveram no mar conhecem as consequências de semelhante infortúnio: ficamos inteiramente perdidos. Finalmente a tempestade cessou e foi seguida de um vento forte e refrescante que nos impulsionou a cerca de setenta quilômetros por hora durante seis meses (supomos que o Barão tenha cometido algum erro aqui, substituindo meses por dias)! Então notamos a incrível mudança que começava a ser operada em torno de nós: nosso humor tornou-se agradável, nossos narizes foram regalados com os mais aromáticos eflúvios já imaginados: o mar havia mudado de aspecto e de verde tornara-se branco!! Logo depois dessas maravilhosas alterações, avistamos terra e, não muito distante, uma baía, na qual adentramos perto de quatrocentos quilômetros e descobrimos ser larga e profunda, repleta de leite do mais delicioso sabor. Ali nós ancoramos e logo descobrimos que a ilha era feita de queijo queijo: soubemos disso devido a uma síncope sofrida por um dos tripulantes que havia desembarcado conosco: esse homem sempre teve aversão a queijo; quando ele se recobrou, pediu que o afastassem de todo aquele queijo que tinha sob os pés: depois de examinar, percebemos que ele estava coberto de razão, pois a ilha inteira, como já observado antes, era nada mais nada menos do que um queijo de imensa magnitude! E era principalmente disto que os nativos, incrivelmente numerosos, mantinham seu sustento, sendo que a ilha crescia à noite, na mesma proporção que era comida durante o dia. Parecia estar cheia de videiras carregadas de enormes uvas, as quais, amassadas, não vertiam nada senão leite. Vimos os nativos disputarem uma corrida sobre a superfície do oceano de leite, onde eles não afundam, mas correm sobre a superfície do leite, como nós fazemos numa verde campina. Eram aprumados, elegantes, dois metros e meio de altura; tinham três pernas, mas nenhum braço. No geral, bastante formosos; na luta utilizam-se com grande habilidade de seus chifres compridos, que, nos adultos, crescem bem no meio da testa;

Sobre essa ilha de queijo cresce grande quantidade de milho, cujos sabugos são na verdade bisnagas de pão em formato redondo como o de cogumelos. Descobrimos, em nossas excursões pela ilha, dezessete outros rios de leite e dez de vinho.

Depois de trinta e oito dias de jornada, chegamos ao lado oposto àquele onde desembarcamos: ali encontramos algumas matrizes azuis, como chamam os nativos, das quais pipocavam todos os tipos de deliciosas frutas; ao invés de escassas, elas produziam pêssegos, nectarinas, damascos e milhares de outras saborosas frutas que não conhecíamos. Essas árvores, que são de prodigoso tamanho, estão repletas de ninhos, entre os quais havia o de um alcião gigante; ele tinha pelo menos o dobro da circunferência da cúpula da igreja de St. Paul, em Londres. Observando, este ninho era feito de grande árvores curiosamente trançadas; havia, deixe-me ver (pois me determinei a falar somente dos assuntos que domino), havia mais de quinhentos ovos no ninho e cada um tão grande quanto quatro barris comuns ou oito barricas e podíamos não apenas ver, mas ouvir as jovens aves que trinavam em seu interior. Tendo, com grande esforço, aberto um desses ovos, deixamos sair uma das avezinhas, ainda implume, consideravelmente maior que vinte falcões adultos. Tão logo havíamos dado a liberdade ao pássaro, apareceu repentinamente a mãe, agarrando nosso capitão, que havia tomado parte bastante ativa na quebra do ovo; subiu a mais de mil e quinhentos quilômetros de altura, levando-o entre suas garras e então o atirou no mar, mas não sem antes lhe ter arrancado todos os dentes da boca com suas asas.

Os holandeses geralmente nadam bem: ele logo se juntou a nós e fugimos para nosso navio. Em nosso retorno, encontramos uma rota diferente e observamos muitas coisas estranhas. Alvejamos dois bisontes, de apenas um chifre cada, assim como os nativos da ilha, exceto que os desses animais brotavam por entre os olhos; ficamos, porém, preocupados pelo que fizemos, pois descobrimos que os nativos costumam domar tais bestas e as utilizam, como montaria e animais de carga, do mesmo modo que utilizamos os cavalos. A carne dessas criaturas, foi-nos informado, é excelente, mas inútil num lugar onde pessoas vivem sobre queijo e leite. Quando já estávamos no segundo dia na jornada de volta até o navio, avistamos três homens pendurados pelos calcanhares a três árvores; inquirindo-lhes a causa da punição, soube que eram viajantes e haviam ludibriado seus amigos com descrições de lugares onde na verdade nunca tinham estado e narrando coisas jamais acontecidas: isto não me preocupou de modo algum, uma vez que sempre me atenho exclusivamente aos fatos.

Tão logo chegamos ao navio, desfizemos as amarras e partimos daquele lugar magnífico; para nossa surpresa, todas as árvores da costa, que eram muito altas, prestaram reverência a nós, curvando-se duas vezes como manda o protocolo, e imediatamente retornaram à postura ereta de antes.

Pelo que vimos, aquela ilha de QUEIJO era consideravelmente maior do que toda a Europa!

Depois de viajar três meses, não sabíamos nossa posição, pois estávamos sem bússola, e chegamos a um mar que parecia quase negro: provando-o, descobrimos ser do mais excelente vinho e tivemos grande dificuldade para impedir que os marinheiros não ficassem bêbados; Em poucas horas, vimo-nos cercados por baleias e outros animais de considerável tamanho, um deles era grande demais para que o olho humano pudesse ter idéia de suas dimensões: só foi possível vê-lo quando chegamos perto dele. Esse monstro, por meio de sucção, arrastou nosso navio, com os mastros içados e as velas infladas, para dentro de sua boca, por entre seus dentes, que eram muito maiores que o mastro de um navio de guerra. Quando já estávamos em sua boca havia algum tempo, ele a escancarou inteiramente, engolindo uma imensa quantidade de água, de forma que nosso navio, que pesava quinhentas toneladas, começou a flutuar em seu estômago; ali permanecemos estacionados, como um âncora em mar parado. O ar, para ser claro, era bastante quente e muito desagradável. Encontramos âncoras, botes, lanchas e veleiros em abundância, que haviam sido engolidos pela criatura. A iluminação era feita com tochas; não havia sol, lua ou estrelas para ver. Em geral, encalhávamos duas vezes por dia; sempre que o monstro bebia, grande massa de água nos punha a flutuar e sempre que ele evacuava, ficávamos encalhados; segundo nossos cálculos, ele bebia mais água a cada gole do que há no Lago de Genebra, apesar de este ter mais de trinta quilômetros de cinrcunferência. No segundo dia de confinamente naquelas regiões escuras, eu me aventurei pela área rasa, como dizíamos quando o navio encalhava, para explorar a área junto com o capitão e alguns oficiais, todos munidos de tochas; encontramos pessoas de todas as nações; seriam talvez mais de dez mil e iriam se reunir em conselho para deliberar como sair daquele lugar; algumas viviam no estômago do animal há vários anos; encontravam-se ali diversas crianças que nunca tinham visto o mundo e cujas mães não se conformavam àquela situação desesperadora. Exatamente quando o presidente nos inteirava do motivo pelo qual estavam reunidos, aquele maldito peixe mostrava-se sedento, bebendo de maneira incomum; a água afluiu com tanta impetuosidade que fomos obrigados a retornar a nossos respectivos navios imediatamente, ou correríamos o risco de morrer afogados; alguns foram obrigados a nadar e foi com dificuldade que salvaram as vidas. Em poucas horas tivemos mais sorte, pois nos encontramos após o monstro ter evacuado. Fui eleito o presidente e a primeira coisa que propus foi atar dois grandes mastros e utilizá-los como cunha na próxima vez que o monstro abrisse a boca, impedindo-o, assim, de fechá-la. Foi aprovado por unanimidade. Cem robustos homens foram escolhidos para o serviço. Mal havíamos preparado os mastros quando a oportunidade se ofereceu; o monstro abriu a boca e imediatamente o topo de um mastro foi-lhe colocado contra o palato, enquanto que o outro foi cravado em sua língua, o que efetivamente impediu a criatura de fechar a boca. Assim que os objetos em seu estômago começaram a flutuar novamente, ocupamos alguns barcos e remamos para o mundo. A luz do sol após, segundo imaginávamos, três meses de confinamento em total escuridão, alegrou incrivelmente nossos espíritos. Quando todas as embarcações haviam conseguido escapar do enorme animal, contabilizávamos um frota de noventa e cinco barcos, de todas as nações, os quais haviam passado por aquele tormento.

Deixamos os mastros na boca do monstro para evitar que outras pessoas acabassem aprisionadas naquele mesmo antro de escuridão e imundície. Nosso primeiro objetivo foi tentar saber em que parte do mundo estávamos; isso foi por algum tempo algo difícil de verificar: por fim, descobri, por observações anteriores, que nos encontrávamos no Mar Cáspio! que banha parte do país dos Tártaros. Como chegamos lá era impossível conceber, uma vez que este mar não tem comunicação com nenhum outro. Um dos habitantes da ilha de Queijo, o qual trouxera comigo, disse-me o seguinte: o monstro em cujo estômago havíamos ficado presos por tanto tempo teria nos levado por alguma passagem subterrânea; de qualquer modo, seguimos para a praia e fui o primeiro a desembarcar. Assim que pus os pés no chão, um grande urso saltou à minha frente, garras à mostra; agarrei-lhe as patas e as apertei, fazendo-o berrar da forma mais terrível; e nessa posição eu o mantive até matá-lo de fome. Vocês podem rir, cavalheiros, mas o caso se deu assim como estou lhes contando: evitei o urso esmagando-lhe as patas. Depois disso, viajei para São Petersburgo uma segunda vez: ali um velho amigo presenteou-me com um magnífico cão de caça, descendente da famosa cadela já mencionada, e que havia nascido enquanto ela caçava uma lebre. Tive o azar de encontrar o animal quando o infeliz se achava baleado devido ao erro de um caçador, que o alvejara enquanto tentava atirar num bando de perdizes localizadas pelo cão. Meu colete, que foi feito da pele desse maravilhoso animal (diz o Barão, mostrando o colete), sempre me leva involuntariamente à caça se eu estiver caminhando pelo campo; quando estou em boa condição de tiro, algum dos meus botões sempre cai, indo parar exatamente no lugar onde está a caça, fazendo as aves alçarem vôo, assustadas; satisfeito e contente, eu nunca erro o tiro. Já se foram três botões, como os senhores podem ver, mas farei pregar outros assim que começar a próxima temporada de caça.

Quando um bando de perdizes é perturbado dessa maneira, por qualquer coisa que caia entre elas, sempre alçam vôo em linha reta, uma após a outra. Um dia, tendo esquecido de tirar da arma a vareta que uso para socar a pólvora, acertei uma fileira de perdizes, atravessando-as com a vareta de forma tão precisa que o galeto parecia ter sido feito pelo melhor dos cozinheiros. Havia esquecido de colocar as balas e a vareta ficou tão quente com a explosão da pólvora que as aves já estavam completamente assadas quando cheguei em casa.

Desde minha chegada à Inglaterra, tenho seguido sempre as ordens do coração, a saber, ajudar o nativo da Ilha de Queijo que havia trazido comigo. Meu velho amigo, Sir William Chambers, é-me agradecido e aprendeu comigo tudo o que sabe sobre jardinagem chinesa, arte cuja descrição o fez ganhar toda a enorme reputação de que goza hoje; informo-lhes, cavalheiros, que, certa vez, numa conversa que tive com este senhor, ele se mostrava bastante angustiado à espera de alguma idéia para acender as lâmpadas de uma nova construção, a Somerset House; a maneira usual, com escadas, ele observou, era ao mesmo tempo suja e inconveniente. O nativo que trouxe da Ilha de Queijo veio-me logo à mente; ele tinha somente dois metros e meio de altura quando chegou, mas então já estava com mais de três; apresentei-o a Sir William, e ele foi nomeado para aquele honorável cargo. Foi designado também a usar um grande casaco, onde carregava uma ferramenta em cada bolso, ao contrário daquelas quatro que Sir William muito propriamente havia fixado por motivos particulares em tão conspícua situação.

Meu nativo também obteve do Sr. PITT o emprego de mensageiro dos lordes da Casa Real, dos quais a principal ocupação agora será divulgar os segredos da família real ao seu importante patrão.

 

Extraordinário vôo às costas de uma águia, da França a Gibraltar, passando pelas Américas do Sul e do Norte, regiões polares e voltando à Inglaterra, tudo em trinta e seis horas.

 

No início do reinado de Sua Majestade mantive alguns negócios com um parente distante que então vivia na Ilha de Thanet; era uma disputa de família e parecia que não teria um fim tão cedo. Adquiri o hábito, durante minha estadia ali, de caminhar de manhã. Depois de algumas dessas excursões, avistei um grande objeto sobre uma elevação, a cerca de cinco quilômetros de distância: dirigi-me até lá e encontrei as ruínas de um antigo templo: aproximei-me com admiração e assombro; os traços de grandeza e magnificência que ainda restavam ali eram provas evidentes do seu antigo esplendor: não pude deixar de lamentar os efeitos do tempo sobre as coisas, do que aquela nobre edificação exibia tão melancólica evidência. Caminhei ao redor dela por várias vezes, meditando sobre a fugaz e transitória natureza de todas as coisas terrestres; na extremidade leste encontravam-se o que restara de uma elevada torre, de doze metros de altura, coberta de trepadeiras e cujo topo parecia plano; inspecionei cada lado minuciosamente, imaginando que se pudesse galgar a torre até o topo, eu desfrutaria a mais bela visão das circunjacências. Animado por essa idéia, resolvi, se possível, alcançar o topo, o que consegui subindo pelas trepadeiras, apesar da grande dificuldade e do perigo; encontrei o piso forrado de plantas, exceto onde havia um buraco, bem no meio do lugar. Depois de analisar com agradável surpresa as belezas da natureza e da arte, que conspiravam para enriquecer o cenário, a curiosidade me alfinetou a ir bisbilhotar o buraco aberto no piso para determinar-lhe a profundidade, pois suspeitava de que ele provavelmente tivesse comunicação com alguma caverna subterrânea inexplorada em alguma montanha; mas, sem uma corda, eu não tinha idéia de como proceder. Depois de muito remoer a questão por algum tempo, resolvi atirar uma pedra lá embaixo para ouvir seu eco: encontrando uma que atendia aos meus propósitos, coloquei-me à beira do buraco, pernas afastadas, encurvando-me todo para ouvir; deixei cair a pedra, e sem muita demora ouvi um sussurro lá embaixo; repentinamente uma monstruosa águia irrompeu do abismo, e passando por trás de mim, subiu com irresistível força, carregando-me, sentado em seu dorso: imediatamente agarrei-lhe o pescoço, que era largo o bastante para preencher meus braços, e suas asas, quando estendidas, tinham nove metros de uma extremidade a outra. Como a ave subisse de forma regular, meu assento estava perfeitamente confortável e apreciei a paisagem abaixo com inefável prazer. A águia pairou sobre Margate por algum tempo, sendo vista por várias pessoas, sendo que muitas atiraram nela; uma bala atingiu meu sapato na parte correspondente ao calcanhar, mas não me causou nenhum ferimento. A ave dirigiu seu curso para o penhasco de Dover, onde pousou; pensei em descer, mas fui impedido por uma repentina descarga de fuzilaria, vinda de alguns marinheiros que faziam exercícios na praia; as balas passaram perto de minha cabeça, indo se chocar contra as penas do pássaro, lembrando uma chuva de granizo, mas apesar disso não lhe notei qualquer ferimento. A águia imediatamente rumou por sobre o oceano em direção a Calais, mas ia tão alto que o Canal, à altura da Ponte de Londres, parecia não ser maior que o Tâmisa. Num quarto de hora, encontrei-me sobre uma densa floresta, na França, onde a águia pousou rapidamente, o que me fez escorregar de suas costas para a cabeça; mas como ela estivesse numa árvore elevada, quando a ave ergueu novamente a cabeça, consegui retornar ao meu assento original, mas sem qualquer possibilidade de descer dali, devido ao perigo da queda; então determinei-me a ficar onde estava, cogitando se a ave não me levaria até os Alpes ou alguma outra elevada montanha, onde eu pudesse saltar sem correr perigo. Após descansar por alguns minutos, ela bateu asas, voou várias vezes em torno da floresta e berrou alto o bastante para ser ouvida do lado inglês do Canal. Em poucos minutos uma ave da mesma espécie emergiu da floresta e voou diretamente para nós. Contemplou-me com evidentes sinais de desagrado e veio para perto de mim. Tendo voado vezes em redor do lugar, ambas dirigiram-se a sudoeste. Logo observei que aquela onde eu me encontrava agarrado não conseguia acompanhar o ritmo da outra e inclimava-se muito para baixo, devido a meu peso; percebendo isso, sua companheira fez uma manobra e posicionou-se de tal maneira que a outra pudesse apoiar a cabeça em suas costas; dessa forma elas prosseguiram até o meio-dia, quando vi o rochedo de Gibraltar muito distintamente. O dia continuava claro, não obstante a elevada altitude, e a superfície da terra assemelhava-se a um mapa, onde terras, oceanos, lagos, rios, montanhas e tudo mais eram perfeitamente visíveis; conhecedor de geografia, não tive dificuldade para determinar o ponto do globo onde me encontrava.

Enquanto contemplava esta maravilhosa paisagem, horrendos rugidos soaram repentinamente e num momento vi-me atacado por milhares de criaturas assustadoras, deformadas, negras e minúsculas que me fustigavam de todos os lados, de modo que eu não podia mover mãos ou pés: mas não estava nem dez minutos daquele jeito quando ouvi a mais deleitosa música que possa ser imaginada, mas que se transformou a seguir no mais terrível e tremendo barulho que um tiro de canhão ou o ribombar do trovão não podiam igualar; era como o gentil zéfiro diante de um violento ciclone; mas a brevidade de sua duração impediu os fatais efeitos que aquele ruído certamente teria provocado.

Reiniciou-se a música e vi um grande número de belas criaturas, minúsculas, que agarraram as outras e as atiraram com grande violência dentro de um recipiente semelhante a uma caixa de rapé, que foi fechado e atirado para longe, a incrível velocidade, por uma das criaturinhas; então, voltando-se para mim, ela me comunicou que aqueles a quem ela e sua companheiras haviam aprisionado eram uma horda de demônios que tinham escapulido de suas habitações e o veículo no qual eles estavam aprisionados voaria, inalcançável, por dez mil anos, quando terminaria o prazo determinado e então poderiam novamente os demônios recobrar a liberdade, bem como seus poderes. Ela mal havia encerrado seu relato quando a música cessou e todas desapareceram, deixando-me num estado que beirava os confins do desespero.

Quando melhorei um pouco, e olhei em torno, com indescritível prazer notei que as aves se preparavam para pousar no pico do Tenerife: desceram no topo da rocha, mas, sem divisar nenhum meio possível de fuga, decidi permanecer no mesmo lugar. As águias estavam aparentemente fatigadas, e o calor do sol fez com que ambas caíssem no sono, sendo que nem mesmo eu consegui resistir ao tremendo poder do astro-rei. No frio da noite, quando o sol já se havia retirado para baixo do horizonte, acordei com a agitação da águia onde estava agarrado; estando deitado em suas costas, acabei por me sentar, reassumindo minha posição de viagem. Ambas partiram, na mesma formação de antes, dirigindo seu curso para a América do Sul. Como a luz brilhasse intensamente toda a noite, tive uma visão magnífica das ilhas que se espalham por aqueles mares.

Ao fim do dia atingimos o grande continente americano, na parte chamada Terra Firma, e pousamos no pico de uma montanha muito alta. Naquele momento a lua, distante à oeste, embora obscurecida pelas nuvens, ainda fornecia luz suficiente para se perceber uns arbustos que cresciam por toda parte e se encontravam repletos de um certo fruto semelhante a um repolho, o qual as águias se puseram a devorar avidamente. Esforcei-me por descobrir onde estava, mas uma névoa que encobriu o luar envolveu-me na mais completa escuridão, e o que tornou as coisas ainda piores foram os urros apavorantes de animais selvagens, alguns das quais pareciam estar muito perto: resolvi manter-me em meu posto, imaginando que a águia me levaria embora caso alguma fera lhe fizesse alguma aproximação hostil. Quando o dia começou a raiar, pensei em examinar os frutos que havia presenciado as águias comerem e como houvesse um pendente à curta distância, apanhei minha faca e cortei um pedaço; mas qual não foi minha surpresa ao ver que ele era composto de carne assada regularmente disposta em fatias de carne gorda e magra! Tendo provado, achei a carne saborosa, uma delícia; então cortei várias fatias e guardei-as no bolso, onde havia um pedaço de pão que trouxera de Margate; encontrei ali também três balas de mosquete que haviam sido guardadas ainda no rochedo de Dover. Retirei-as, assim como havia feito ao pão e, cortando mais fatias, alimentei-me de um saudável sanduíche. Cortei então dois dos frutos mais próximos e, não conseguindo prendê-los à cinta, escondi-os por entre as penas do pescoço da ave para alguma emergência, do mesmo jeito que também enchi os bolsos. Enquanto me ocupava dessas coisas, percebi uma imensa fruta que mais parecia uma bexiga inflada e que me despertou o desejo de experimentá-la: ferindo uma delas com a faca, do corte escorreu um licor semelhate a gim holandês, o que foi notado pelas águias, que sofregamente o beberam do chão. Cortei a bexiga o mais rápido que pude; nele ainda restava cerca de meia medida do licor, o qual provei e não consegui distingui-lo do melhor vinho da montanha. Bebi tudo e me senti bastante refrigerado. Por esse tempo, as águias começaram a cambalear, esfregando-se pelos arbustos. Esforcei-me para não cair, mas fui logo jogado à distância, caindo entre as folhagens. Na tentativa de me erguer, pus a mão sobre um grande ouriço que calhara de estar ali entre as folhas: ele instantaneamente se enrolou em torno de minha mão de tal forma que considerei impossível livrar-me dele. Golpeei-o várias vezes contra o chão sem resultado; enquanto me ocupava dessa tarefa, ouvi um rumor por entre os arbustos e olhando por cima da folhagem, lobriguei um enorme animal a três metros de mim; não tinha meios de lutar contra ele, mas me defendia de seu ataque com as mãos e aconteceu que a fera abocanhou o ouriço que se havia agarrado a uma delas. Estando minha mão livre, corri para longe, onde vi a criatura repentinamente cair por terra e morrer, entalada com o ouriço na garganta. Passado o perigo, procurei as águias com os olhos e avistei-as adormecidas sobre a grama, intoxicadas com o licor que haviam bebido. Para falar a verdade, também eu estava um tanto bêbado e, vendo tudo calmo, saí a procura de mais, o que logo consegui; e tendo cortado duas enormes bexigas de quase cinco litros cada, amarrei-as, pendurando ambas no pescoço da outra águia; outras duas menores, amarrei em torno da cintura, por meio de uma corda. Tendo garantido um bom estoque de provisões e percebendo que as aves começavam a acordar, novamente tomei assento. Em meia hora elas ganharam majestosamente os céus, sem tomar o menor conhecimento do peso extra. Reassumiram a formação de antes e rumaram para o norte, cruzando o golfo do México, entrando pela América do Norte e seguindo diretamente para as regiões polares, o que me deu uma visão daquele vasto continente até então apenas imaginada.

Antes mesmo de entrarmos na zona fria, a baixa tempeatura começou a me incomodar; mas, perfurando uma das bexigas, tomei um trago e daí em diante o frio passou a não me incomodar mais. Passando sobre a Baía de Hudson, vi vários dos navios da Companhia das Índias fundeados e diversas tribos de índios que seguiam com suas peles até o mercado.

Por esse tempo eu já tinha me habituado ao assento, tornando-me um cavaleiro experiente, de tal maneira que podia olhar ao redor; mas em geral permanecia agarrado ao pescoço da águia, dedos mergulhados entre suas penas para mantê-los aquecidos.

Naquele clima frio observei que as aves voavam mais depressa, com a intenção, suponho, de manter a circulação do sangue. Cruzando a Baía de Baffin, vi diversos nativos da Groenlândia, muito altos e diversas montanhas de gelo por aqueles mares.

Enquanto admirava tais maravilhas da natureza, ocorreu-me que aquela era a grande oportunidade de descobrir a passagem noroeste, se é que existia alguma, e não apenas obter a recompensa oferecida pelo governo, mas também a honra de uma descoberta que anunciava tantas vantagens às nações européias. Mas enquanto meus pensamentos eram absorvidos por estes inebriantes pensamentos, assustei-me com a outra águia, que se havia chocado violentamente contra uma sólida substância transparente e no momento seguinte era eu que experimentava a mesma coisa, e eu e minha águia caímos também, aparentemente mortos.

Nossas vidas teriam inevitavelmente terminado ali, não houvesse o senso de perigo e a singularidade de minha situação inspirado-me com uma inteligência e uma destreza que nos permitiram cair por quase três quilômetros na perpendicular, mas com um pequeno incômodo, como se descêssemos uma corda: pois tão logo percebi que as aves se tinham chocado contra uma nuvem congelada, o que é muito comum perto do pólos, deitei-me às costas da que ia à frente (tão juntas voavam as duas, como já lhes referi) e segurei em suas asas para mantê-las estendidas, enquanto que, ao mesmo tempo, com as pernas mantinha abertas as asas da águia de trás. A idéia teve o efeito desejado e descemos com segurança em uma montanha de gelo, que calculei estar cinco quilômetros acima do nível do mar.

Desci, retirei toda a carga depositada sobre as águias, abri uma das bexigas e administrei um pouco de licor a cada uma das aves, sem nem mesmo considerar que os horrores da morte pareciam trabalhar contra mim. O fragor das ondas, o estalar do gelo, que rachava por toda parte, o rugir dos ursos conspiravam para criar um cenário dos mais pavorosos e terríveis: mas, não obstante tudo isso, minha concentração no restabelecimento das águias era tão intenso que fiquei insensível ao perigo a que estava exposto. Tendo prestado às aves toda a assistência que ao meu alcance, estaquei diante delas em dolorosa ansiedade, inteiramente cônscio de que elas eram os únicos meios de que eu dispunha e somente elas poderiam me salvar daquele situação desesperadora.

Porém repentinamente um monstruoso urso começou a rugir atrás de mim, com uma voz de trovão. Eu me voltei, e vendo que a criatura estava pronta para me devorar; de tanto medo, apertei uma bexiga que tinha na mão com tamanha força que ela estourou e o licor espirrou nos olhos do animal, privando-o totalmente da visão. Ele imediatamente me deu as costas, fugindo de tal forma transtornado que acabou por despencar num precipício, caindo no mar, e nunca mais o vi.

Findo o perigo, novamente voltei minha atenção para as águias, as quais encontrei em lenta recuperação, e, suspeitando de que estivessem debilitadas devido à falta de alimentação, apanhei uma das frutas de carne, cortei-a em pequenos pedaços e os ofereci, sendo tudo devorado com avidez.

Tendo lhes dado o bastante para comer e beber e dispondo de algumas sobras para mim, retornei ao meu “assento”. Após me arrumar e ajustar tudo da melhor maneira, comecei a comer e beber animadamente; devido aos efeitos do vinho da montanha, como o chamava, senti-me bastante contente e comecei a cantar uns versos de uma canção que aprendi quando era criança, mas o barulho alarmou as águias, adormecidas devido à quantidade de licor que haviam ingerido, e elas alçaram vôo, apavoradas. Felizmente para mim, quando as alimentei, casualmente acabei virando suas cabeças em direção ao sudoeste, cujo rumo as aves tomaram num rápido movimento. Em poucas horas vi as Ilhas Western e logo após tive o inefável prazer de avistar a Velha Inglaterra. Não tive notícias das ilhas nem dos mares por onde passei.

As águias desceram gradualmente, como que pretendendo pousar na costa, talvez numa das montanhas de Gales; mas quando elas chegaram à distância de cinquenta metros, dois tiros foram disparados contra elas, um deles atingiu a bexiga de licor que eu trazia presa à cintura; o outro acertou a águia que ia à frente, que se estatelou no chão, enquanto que aquela que me carregava, sem ter recebido nenhum ferimento, seguiu em frente com incrível velocidade.

Tais circunstâncias me alarmaram bastante e comecei a imaginar que fosse impossível escapar com vida; mas, recobrando o ânimo, uma vez mais olhava para a terra lá embaixo quando, para minha indescritível alegria, vi Margate à pouca distância, enquanto a ave descia em direção à velha torre de onde eu fora raptado na manhã do dia anterior. Logo ela pousou e desci, feliz por me encontrar uma vez mais de volta ao mundo. A águia se foi depois de uns minutos e eu me sentei para recompor o espírito agitado, o que consegui depois de algumas horas.

Não demorou muito e visitei meus amigos, relatando-lhes essas aventuras. O assombro se fez presente em cada semblante; as congratulações por meu retorno em segurança foram repetidas com prazer espontâneo e passei a noite como agora, recebendo elogios de todos por minha CORAGEM e minha SINCERIDADE.

 

O Barão de Munchausen certamente trouxe muito benefício à literatura mundial; a quantidade de egrégios viajantes aumentou tanto, que seria necessário um novo Gulliver para superá-los. Se o Barão de Tott destemidamente disparou um enorme canhão, o Barão de Munchausen fez ainda mais - colocou o canhão às costas e atravessou o oceano. Quando viajantes estão dispostos a ser heróis de sua própria história, por certo eles devem admitir a derrota e envergonharem-se de si mesmos, pois foram todos superados pelo renomado Munchausen: duvido que qualquer um dentre Pantagruel, Gargântua, Capitão Lemuel ou de Tott tenham sido capazes de superar nosso Barão nesse aspecto: e como no momento atual nossa curiosidade parece muito voltada para o interior da África, seria bastante interessante ter ali o Barão antes que qualquer outra sumidade resolva dar o ar de sua graça, pois ele parece adaptar a si mesmo e às suas proezas ao espírito dos tempos, para depois oferecer ao público o que achar mais interessante.

Não posso afirmar que o Barão, nas estórias seguintes, pretenda satirizar alguma questão política, qualquer que seja. Não; mas se o leitor entende assim, nada posso fazer.

Se o Barão depara um navio de negros transportando escravos brancos para trabalhar nas suas plantações devemos então imaginar que ele pretenda uma reflexão sobre o presente tráfico de seres humanos? E se por acaso os negros fizessem isso, seria justo, pois tal vingança faz parte da lei de Deus! Se pensarmos nisso como uma reflexão sobre alguma presente questão comercial ou política, seremos tentados a ver, talvez, concepções políticas a cada página, a cada frase desta obra. Se o Barão fez tais coisas intencionalmente ou não, cabe ao leitor julgar.

Não temos apenas excelentes viajantes neste mundo desprezível, mas também temos os medíocres, que não são poucos, nem sérios. É uma pena que o Barão não tenha se esforçado em superá-los também no modo como contam suas estórias. Quem é que consegue ler sem admiração as viagens de Smellfungus, como Sterne as chama?

E pensar que uma pessoa do Norte da Escócia pudesse viajar por todos os países mais desenvolvidos da Europa e descobrir falhas em tudo que viu por lá – nada o agrada! E desse modo, creio, a viagem às Hébridas é mais justificável, assim como também a viagem do Sr. Twiss à Irlanda. O Dr. Johnson, criado no luxo de Londres, com mais razão ficaria atormentado e melancólico nas gélidas e sombrias regiões das Hébridas.

O Barão, na presente obra, parece estar um tanto filosófico; sua comparação entre os idiomas falados na África Central e a linguagem dos habitantes da lua demonstra que ele está profundamente versado na antiguidade etimológica das nações e atira nova luz sobre a obscura história dos antigos citas e a Collectanea.

Seu empenho em abolir o costume de comer animais vivos no interior da África, como descrito nas Viagens de Bruce, é genuinamente humano. Mas longe de mim supor que suas referências a Gog, Magog e o Prefeito representem uma sátira a alguém ou a algum grupo de pessoas quaisquer: ou ainda que ao se referir a alguma tediosa questão entre juízes cegos e senhoras estúpidas que se dispõem todos a correr mundo atrás de uma ave ele esteja fazendo referência a outros fatos quaisquer.

Todavia, permito-me dizer que foi extremamente presunçoso da parte de Munchausen dizer que metade dos soberanos do mundo estão errados, e ainda aconselhá-los sobre como proceder; que ao invés de ordenar a milhões de seus súditos que se matem uns aos outros, eles deveriam empregar essa tremenda mão-de-obra na tentativa de alcançar o bem comum; como se ele pudesse saber mais que a Imperatriz da Rússia, o Grande Vizir, o Príncipe Potemkin ou qualquer outro açougueiro. Mas que ele agisse como um Aristocrata real e tomasse o partido da humilhada Rainha da França no presente drama político, disso não me surpreendo; suponho que sua mente tenha se incendiado ao ler o panfleto escrito pelo Sr. Burke.

 

O Barão insiste na veracidade contida em suas anteriores Memórias – Acalenta o desejo de fazer descobertas no interior da África – Sua conversa com Hilaro Frosticos sobre o assunto – Seu diálogo com Lady Fragrantia – O Barão vai, com outras pessoas de distinção, à Corte; relata uma anedota ao Marquês de Bellecourt.

Tudo o que narrei antes, disse o Barão, é sagrado; e se há alguém tão corajoso para refutar, estou pronto para duelar com as armas que esse indivíduo quiser. Sim, chorem-no, no mais elevado tom, pois será por mim condenado, sentado em seu assento, a engolir esta garrafa cheia de kerren-wasser (um tipo de aguardente de cerejas muito apreciada em algumas regiões da Alemanha). Desse modo, caros amigos e companheiros, tenham confiança no que digo e creiam nas estórias de Munchausen. Um viajante tem o direito de embelezar suas aventuras como bem entender e seria muito indelicado rejeitar aquilo que somente merece respeito e aplausos.

Tendo passado algum tempo na Inglaterra desde a conclusão de minhas memórias, comecei a meditar sobre o prodigioso campo de descobertas que deveria ser o interior da África. Não conseguia dormir pensando nisso. Desse modo, determinei-me a obter apoio do governo para penetrar na celebrada origem do Nilo e assumir o vice-reinado das regiões interiores da África ou, pelo menos, o grande reino de Monomotapa. Para minha felicidade, eu tinha um amigo dos mais influentes na Corte, o ilustre Hilaro Frosticos. Os senhores talvez não lhe conheçam o nome; mas chegamos até mesmo a conversar numa linguagem própria, pois no curso de minhas pergrinações, adquiri o domínio de precisamente novecentos e noventa e nove idiomas. Quê! Cavalheiros, por que me olham desse modo? Bem, eu compreendo que não existem tantas línguas assim neste desprezível mundo; mas então não estive eu na lua? E confiem em mim, quando escrever meu tratado sobre educação, incluirei neles meus métodos para o aprendizado de dúzias de línguas de uma vez, como francês, espanhol, grego, hebraico, cherokee etc, num estilo tal que todos os pedagogos existentes hão de se cobrir de vergonha.

Como passasse a noite toda sem conseguir pregar o olho devido aos pensamentos sobre as descobertas que pretendia fazer na África, apressei-me por encontrar meu amigo, o ilustre Hilaro Frosticos, e, tendo mencionado meu intento com todo o vigor de minha imaginação, ele considerou minhas palavras com gravidade e após longas meditações, assim falou: “Olough, ma genesat, istum fullanah, cum dera kargos belgarasah eseum balgo bartigos triangulissimus! Entretanto”, acrescentou ele, “seria prudente de tua parte considerar sobre os perigos e os múltiplos riscos que correm aqueles homens que saem em busca de aventuras: e, sinceramente, valente e respeitável Barão, espero que conserves contigo toda a louvável seriedade e toda a cautela que, como é relatado no tricentésimo quadragésimo sétimo capítulo dos Profiláticos, são mais levados em conta neste globo terrestre do que todo o mérito. Sim, com meus votos mais sinceros eu peço a Deus por ti e por ti intercederei junto à Ele, valente Munchausen, como a maior estima, e desejo-te sucesso em tua viagem; pois diz-se que nos reinos centrais africanos existem certas tribos que não podem ver mais do que três oito centímetros diante do nariz; em verdade, deves moderar a ti mesmo e agir com prudência, pois eles tropeçam em quem caminha depressa demais. Serás levado à presença de Lady Fragrantia e ela terá conhecimento de teus planos.” Ele então tirou do bolso um chapéu de dignidade, tal como descrito na honorável e antiga heráldica e, colocando-o sobre minha cabeça, dirigiu-me estas palavas: “como desejas novamente reviver o espírito dos antigos aventureiros, permite-me depositar em tua cabeça este favor, como sinal da estima na qual eu tenho tua valorosa disposição.”

Lady Fragrantia, caros amigos, era uma das mais divinas criaturas da Grã-Bretanha, e viu-se imediatamente desesperada de amores por mim. Ela estava bordando meu retrato sobre um tecido de cetim branco, quando o nobre Hilaro Frosticos avançou. Ele apontou para o chapéu, símbolo de dignidade que havia colocado em minha cabeça. “Eu declaro, Hilaro”, disse a adorável Fragrantia, “que não existe homem mais belo e atraente; eu o amo, eu o adoro, meu caro Barão”, disse ela, e, pondo outra pluma no chapéu: “Isto dará um ar mais delicado e fantástico. Faço isso, caro Munchausen, como sua amiga, rejeitando ou aceitando você esta minha recordação; eu gosto da ilusão; é agradável, e desejo aprimorá-la ainda: quaisquer que sejam os inimigos com quem você se defrontar, terei a doce satisfação de saber que você leva minha lembrança na cabeça!”

Apanhei o presente, cheio de temor e graciosamente caí de joelhos, beijei-o três vezes com todo o êxtase do amor. “Eu juro”, gritei, “pelos teus olhos brilhantes e pelo amável testemunho do teu braço, que nenhum selvagem, tirano ou inimigo sobre a face da terra irá privar-me deste teu presente enquanto uma gota de sangue dos Munchausen circular em minhas veias! Carregarei triunfante a tua pluma através dos reinos da África, para onde quer que me dirija, e o farei respeitado, mesmo na Corte do Prestes João.”

“Admiro sua coragem”, replicou ela, “e usarei de toda a minha influência na Corte para despachá-lo daqui com toda a pompa e tão breve quanto possível. Mas aí vem chegando algumas pessoas verdadeiramente brilhantes: Lady Carolina Wilhelmina Amelia Skeggs, Lorde Spigot e Lady Faucet, e também a Condessa de Belleair."

Depois que as cerimônias de apresentação acabaram, passamos a tratar de negócios; e como minha causa recebesse a aprovação geral, foi determinado que eu devia seguir imediatamente, sem atraso, tão logo obtivesse o consentimento do soberano. “Estou convencido”, disse Lorde Spigot, “de que se existe algo realmente desconhecido e digno do nosso conhecimento, devem ser as imensas regiões da África; aquele continente parece ser o mais velho do globo e a maior parte de suas riquezas são ainda inteiramente desconhecidas. Que prodigiosa fortuna em ouro e diamantes não se deve encontrar debaixo daquele solo tórrido, onde os rios despejam contínuas ondas de ouro em pó! É de minha opinião, portanto, que o Barão merece o aplauso de toda a Europa pelo seu espírito empreendedor e faz jus à mais completa assistência do soberano.”

Tão lisonjeira aprovação, os senhores podem estar certos, foi-me muito prazerosa ao coração e com toda confiança e prazer, consegui deles que me levassem à Corte naquele instante. Depois das usuais cerimônias de apresentação, basta dizer que recebi honras e aplausos como somente minhas mais ardentes expectativas poderiam conceber. Sempre tive um gosto pela atual je ne sais quoi desta sociedade elegante e, na presença de todos os soberanos da Europa, parti, recebendo de toda a Corte as maiores demonstrações de estima e admiração. Lembro-me do acontecido ao desafortunado Marquês de Bellecourt certo dia. A Condessa de Rassinda, que lhe fazia companhia, estava divina. “Sim, estou confiante”, disse-me o Marquês de Bellecourt, “de que agi conforme os mais estritos sentimentos de justiça e lealdado ao meu soberano. Existe armadura mais forte do que um coração incorruptível? E ainda que eu não receba uma palavra ou um olhar, ainda assim não mudarei – não, é-me impossível ceder. Consciente de minha integridade, tentarei novamente – e vencerei triunfalmente.” O Marquês de Bellecourt viu a oportunidade; avançou três passos, levou a mão ao peito e curvou-se em reverência. “Permita-me”, disse ele, “com o mais profundo sinal de respeito...”. Sua língua vacilou – ele quase não podia crer nos próprios olhos, pois naquele momento todos os convivas deixavam a sala. Viu-se sozinho, abandonado por todos. “Quê!”, disse ele. “Pois Sua Majestade deu-me as costas com o mais vil desprezo? Não podia ao menos falar comigo? Não podia sequer deixar que eu falasse algo em minha defesa?” Seu coração murchou – nem mesmo um olhar, um sorriso de qualquer um que fosse. “Meus amigos! Acaso eles não me conhecem mais? Não me viam aqui? Ora! Por certo temem que eu lhes transmita alguma doença. Então”, disse, “adieu! – é mais do que posso tolerar. Voltarei ao meu rincão e nunca, nunca mais tornarei aqui. Adieu, volúvel Corte, adieu!”

O venerável Marquês de Bellecourt deteve-se por um momento antes de entrar na carruagem. Por três vezes olhou para trás, por três vezes enxugou uma lágrima que escorria. “Sim”, disse. “Desta vez, pelo menos, a verdade será lançada – no fundo do poço!”

Paz ao teu espírito, nobre marquês! Que o Rei dos reis tenha piedade de ti; os milhares que ainda não nasceram, deverão sua felicidade a ti; perdoados sejam os milhares que jamais saberão teu nome; mas Munchausen celebrará tua glória!

 

Preparativos para a expedição do Barão à África – Descrição de sua carruagem; a beleza da sua decoração interna; os animais que a puxam e o mecanismo das rodas.

 

Estando tudo pronto e tendo recebido instruções para viagem, fui conduzido pelo ilustre Hilaro Frosticos, Lady Fragrantia e uma enorme quantidade de nobres, e instalado no alto do palácio; após ali ter permanecido por três dias, numa espécie de prova para testar minha perseverança, bem como minha determinação, às três da manhã, fui conduzido à carruagem da Rainha Mab. Era um veículo de enormes dimensões, grande o bastante para conter mais espaço que o tonel de Heildelberg e esférica como uma casca de noz: de fato, parecia realmente ser uma casca de noz crescida, e pensar que um verme de grandes proporções já havia até feito um buraco naquela casca. Através dessa referida entrada fui conduzido. Ela era tão grande quanto a porta de uma carruagem e tomei assento no centro, um tipo de cadeira flutuante que não tinha contato com nada, como a imaginária tumba de Maomé. Todo o interior da noz parecia uma luminosa representação das estrelas do céu, os astros fixos, os planetas e um cometa excessivamente brilhante, como se reunisse todos os olhos das belas garotas do reino, e os combinassem, semelhante a uma cauda de pavão, mas na forma de um cometa – isto é, um globo seguido de uma enorme cauda, que vai diminuindo gradualmente até um ponto do céu. Aquele astro parecia alegre e agradável. Suas formas lembravam um girino! e, sem cessar, seguia, cheio de esfuziante vertigem, para cima e para baixo, percorrendo todo o alto da concavidade da noz. Num momento ele poderia estar sob meus pés e no outro, passando sobre minha cabeça. Nunca cessava, descanbando para norte, sul, leste, oeste, sem mostrar respeito algum aos diferentes mundos ao redor, como se fossem eles meras lanternas. Chegava mesmo a arremeter contra alguns deles e arrancá-los de suas árbitas; a outros ele carbonizava, reduzindo-os a cinzas: a outros ainda ele partia em pedaços e seus fragmentos instantaneamente adquiriam um formato esférico, como mercúrio derramado, e tornavam-se satélites dos planetas que por acaso viessem a cruzar seu caminho. Para encurtar, aquele mundo parecia uma síntese da criação, passado, presente e futuro; e toda a vida das estrelas durante um ano era ali reproduzida em poucos segundos.

Contemplei todas as belezas da carruagem com maravilha e deleite. “Certamente”, gritei, “isto é o céu em miniatura!” Em breve, terei os reinos em minhas mãos. Mas antes, de prosseguir com minhas aventuras, devo citar o restante do meu aparato. A carruagem era puxada por nove touros, três a três, devidamente enfeitados. Na primeira fila estava um possante touro chamado John Mowmowsky; os outros não eram dignificados por nenhuma denominação particular. Estavam todos calçados para a viagem, não exatamente como se faz aos cavalos ou aos bois que puxam carroça; eram calçados com crânio humanos. Cada uma das patas era, com casco e tudo, enfiada num crânio, cortado exatamente para esse propósito, e fixada ali dentro por um tipo de cimento ou pasta, de forma que o crânio parecia fazer parte das patas de cada animal. De tal forma calçadas, aquelas criaturas podiam realizar surpreendentes façanhas, como deslizar sobre as águas do oceano com grande velocidade. Seus ornamentos eram atados com fivelas de ouro e guarnecidos com botões de soberbo estilo; os touros eram cavalgados por nove mensageiros, na verdade cigarras de enorme tamanho, tão grandes quanto macacos, que, sentadas nas cabeças dos touros, trinavam numa zoeira infernal, muito maior do que poderiam fazer animais daquele tamanho.

As rodas da carruagem consistiam de mais de dez mil molas, arrumadas para dar a maior velocidade possível ao veículo, formando uma estrutura mais complexa do que uma dúzia de relógios iguais àquele de Estrasburgo. A parte externa da carruagem era adornada com faixas e uma soberba grinalda de louros que formosamente outrora me fazia sombra quando eu costumava cavalgar. E agora, tendo fornecido aos senhores uma concisa descrição da máquina que utilizei para viajar pela África, que vocês devem admitir ser superior ao aparato usado por Monsieur Vaillant, passarei a relatar agora as minhas proezas.

 

O Barão segue viagem – Escolta um esquadrão até Gibraltar – Declina do oferecimento da ilha de Candia – Sua carruagem é danificada pelo Pilar de Pompeu e a Agulha de Clópatra – O Barão supera Alexandre – Quebra a carruagem e fende uma grande rocha no Cabo da Boa Esperança.

 

De rédeas na mão, saudado pela música, estalei o chicote e seguimos em frente, sendo que em três horas nos encontrávamos entre a Ilha de Wight e a região principal da Inglaterra. Ali permaneci por quatro dias, até encontrar parte da comitiva, que deveria me acompanhar em comboio. Era uma esquadra de navios de guerra que há longo tempo vinha se preparando para o Báltico, mas que era agora enviada para o Mediterrâneo. Com o auxílio de enormes ganchos e cordas torcidas em laços, exatamente como aqueles que usamos nas fitas do chapéu, mas de maior tamanho, algumas das quais com cinquenta quilos cada, os navios foram guindados sobre o veículo: e, de fato, nada podia ser mais simples ou conveniente, porque eles podiam ser enganchados ou desenganchados num instante, com a maior facilidade. Logo, ante uma descarga de sua artilharia e três vivas, estalei o chicote e partimos com grande pressa, e num instante eu e meus acompanhantes nos vimos salvos e de espírito renovado diante do rochedo de Gibraltar. Ali, liberei minha esquadra e após ter me despedido calorosamente dos oficiais, deixei que posseguissem da maneira usual ao seu lugar de destino. Toda a guarnição ficou maravilhada com a novidade do meu veículo; e diante das fortes pressões do governador e dos oficiais para que eu fosse até a praia e desse uma olhada naquele árido rochedo, contra o qual metade da pólvora gasta já seria suficiente para comprar todas as terras férteis daquela região!

Subindo na carruagem, apanhei as rédeas e novamente fui adiante, em desabalada carreira Mediterrâneo abaixo até a ilha de Candia. Ali recebi um comunicado da Sublime Porta que me implorava ajuda na guerra contra a Rússia e me oferecia toda a ilha de Candia como recompensa pela aliança. De início hesitei, pensando que a ilha de Candia fosse uma aquisição mais valiosa ao soberano, e que o mais delicioso vinho, açúcar e etc seriam produzidos com fartura na ilha; porém quando considerei que o comércio da Companhia das Índias Orientais provavelmente seria prejudicado em suas relações com a Pérsia no Mediterrâneo, de imediato rejeitei a proposta e recebi mais tarde os agradecimentos da Honorável Casa dos Comuns por minha dignidade e meu discernimento político.

Tendo me alimentado em Candia, novamente segui viagem e, em curto período cheguei ao Egito. As terras daquele país, ao menos na região próxima do mar, são muito baixas, de modo que cheguei até lá sem perceber e o Pilar de Pompeu se embaraçou nas várias rodas da máquina e danificou completamente o mecanismo. Ainda me foi possível seguir sem grandes problemas, mas, ao passar pelo grande obelisco chamado Agulha de Clópatra, as rodas se viram presas novamente e desde então balançavam miseravelmente sempre que cruzavam o terreno lamacento daquele país; meus pobres touros ainda avançaram com incrível esforço pelo Ístmo de Suez rumo ao Mar Vermelho e deixaram uma trilha, um enigmático caminho, que o Sr. De Tott imagina serem as ruínas do canal aberto por alguns dos Ptolomeus, o qual ia do Mar Vermelho até o Mediterrâneo; mas, como os senhores percebem, não era mais do que a trilha de minha carruagem, o veículo da Rainha Mab.

Apesar de os mecânicos daquele país não serem nem um pouco talentosos, não obstante a gloriosa cultura egípcia antiga, como se diz, eles são excelentes camaradas; não precisei procurar novas molas, tampouco foi preciso deixar minha máquina aos cuidados do rei do Egito; e como não me fosse possível tentar outra jornada por terra e das grandes montanhas de mármore além da nascente no Nilo, pensei que seria mais razoável seguir pelo melhor caminho possível via mar, até o Cabo da Boa esperança, onde imaginava encontrar alguns ferreiros e carpinteiros holandeses, ou talvez alguns mecânicos ingleses; consertado meu veículo, era minha intenção prosseguir, por terra, através do coração da África. A superfície da água, eu bem sabia, oferecia muito menos resistência às rodas da máquina – ela transpunha as ondas como a carruagem de Netuno; e, em breve, tendo cruzado o Mar Vermelho, avançamos, admirados, pela passagem de Babelmandeb até a grande costa Oeste africana, por onde Alexandre não teve coragem de se aventurar.

E realmente, meus amigos, se Alexandre tivesse se aventurado pelo Cabo da Boa Esperança, ele provavelmente jamais retornaria. É difícil determinar se naquela época havia ou não habitantes na regiões mais ao sul da África; de um modo ou de outro, o conquistador do mundo não teria realizado senão uma disparatada aventura; seus miseráveis navios, não planejados para viagens longas, acabariam por fazer água e afundariam antes que ele dobrasse o Cabo, abandonando sua Majestade muito além dos limites do mundo então conhecido. Ainda que isso representasse uma morte digna para Alexandre, após ter subjugado a Pérsia e a Índia em nome de Jup e Ammon; ele poderia ter ficado vagando por Deus sabe onde ou até acabar chegando à lua, como na estória que um chefe índio narrou certa vez ao capitão Cook.

Todavia, de minha parte, obtive mais sucesso do que Alexandre; conseguindo passar por ali com grande velocidade, e pensando em aportar na praia do Cabo, desafortunadamente aproximei-me demais e espatifei as rodas do lado direito do meu veículo contra a rocha hoje conhecida como Montanha da Mesa. A máquina foi arrojada contra ela com tanta impetuosidade que abriu na mesma uma grande fenda horizontal; devido a isso, o pico da montanha, no formato de semi-esfera, foi atirado no mar, e a montanha escarpada tornou-se desse modo achatada no topo, pelo que desde então recebeu o nome de Montanha da Mesa, por causa de seu semelhança com aquela peça de mobília.

Assim que essa parte da montanha foi derrubada, o espírito do Cabo, aquele tremendo fantasma que é figura marcante nos Lusíadas, foi surpreendido de cócoras em uma escavação feita por ele mesmo no centro da montanha. Parecia uma pequena abelha prestes a deixar seu favo ou um feijão em sua vagem; quando a porção superior da montanha foi atirada por terra, a parte superior de sua pessoa foi descoberta. Ele saía de dentro de uma garrafa azul, e ofuscou-se com o inesperado brilho da luz: ouvindo o terrível ruído das rodas e o ensurdecedor trinado das cigarras, ficou tremendamente assustado e instantaneamente soltou um grito, afundando vinte quilômetros no solo, enquanto a montanha, a vomitar rolos de fumaça, silenciosamente se fechava, sem deixar nenhum traço do que havia ali antes!

 

O Barão deixa em segurança sua carruagem e etc no Cabo e compra passagem de volta para a Inglaterra em um navio hindu – Naufraga em uma ilha de gelo, próximo à costa da Guiné – Escapa do naufrágio e cultiva uma variedade de vegetais na ilha – Encontra alguns navios pertencentes a negros que praticam tráfico de escravos da Europa e, em retaliação, obrigam os homens brancos a trabalhar em suas plantações, numa região de clima frio vizinha ao Pólo Sul – Chega à Inglaterra e faz um relato de sua expedição ante o Conselho de Estado – Grandes preparativos para uma nova expedição – A Esfinge, Gog e Magog e uma grande companhia prestam-lhe auxílio – As idéias de Hilaro Frosticos concernentes às regiões centrais da África.

 

Recebi com pesar e consternação o extravio de todo o meu aparato; de qualquer modo, eu não era de todo infeliz: é na adversidade que se conhece um grande homem. Com permissão do governador da Holanda, a carruagem foi devidamente guardada em um grande armazém à beira-mar e os touros receberam toda a alimentação possível após tão terrível viagem. Os senhores podem estar certos de que eles eram merecedores de semelhante tratamento, que lhes seria dispensado até o momento que eu retornasse.

Como nada mais me fosse possível fazer, comprei uma passagem em um navio hindu, para retornar a Londres e expor o caso ao Conselho de Guerra.

Não encontramos nada de particular até atingirmos a costa da Guiné, onde, para nosso espanto, percebemos uma enorme montanha, que parecia feita de vidro, a avançar em nossa direção em pleno mar aberto; os raios solares refletiam-se nela com tanto esplendor que era extremamente difícil olhar diretamente para o fenômeno. Imediatamente soube tratar-se de uma ilha de gelo, apesar de estarmos em região tão quente, e determinei que manobrássemos de todas as formas para desviar daquele horrível perigo. Nós tentamos, mas em vão, pois lá pelas onze da noite, soprados por um vento forte e em meio à escuridão, acabamos por nos chocar contra a ilha. Nada podia se comparar ao tumulto, aos gritos e ao desespero de toda a tripulação até que eu, sabendo que não havia tempo a perder, encorajei meus homens, incitando-os a que não desanimassem, e fizessem tudo o que eu pedisse. Em poucos minutos a água já ocupava metade do barco e a enorme estrutura de gelo parecia rodear-nos por todos os lados, sendo que de alguns deles precipitavam-se gigantescos blocos de gelo, dizimando metade da tripulação; diante disso, escalando um mastro, consegui conduzir o navio rapidamente até um grande promontório no gelo e, pedindo ao restante dos marinheiros que me seguissem, conseguimos escapar todos do naufrágio e chegamos ao topo da ilha.

O amanhecer logo nos deu um panorama de nossa situação e da perda, ou melhor, congelamento, do navio; a embarcação foi cercada de gelo por todos os lados durante a noite e estava completamente congelada, entranhada no gelo de tal forma que não era possível chegar até o navio, mesmo seguindo pela parte central da ilha. Após discutirmos o que fazer, imediatamente começamos a quebrar o gelo e alcançamos uma das cordas da embarcação, e também os barcos, que remamos vigorosamente na tentativa de rebocar a ilha, com todo o nosso empenho, determinados a levá-la para casa ou morrer tentando. No alto da ilha colocamos estopas e todo tipo de lixo que encontramos no navio, o que, no espaço de poucas horas, devido ao derretimento do gelo e ao calor do sol, foram se transformando num estrume de excelente qualidade; e como eu tivesse algumas sementes de alguns vegetais exóticos no bolso, nós obtivemos em pouco tempo uma fartura de frutas e raízes suficientes para alimentar a tripulação inteira, especialmente graças às árvores de fruta-pão; havia também umas árvores que davam uns pudins de ameixa maravilhosos com uma tal quantidade de açúcar e frutas que na Inglaterra não havia nada igual: em pouco tempo, o escorbuto, que havia feito um grande progresso entre os marujos antes de nossa batida no gelo, teve um fim quase que imediato devido ao suprimento de vegetais e especialmente de fruta-pão e fruta-pudim.

Não havíamos passado muitas semanas assim, avançando com incrível dificuldade, soprados pelo vento, quando topamos com uma frota de navios que transportavam escravos. Aqueles desgraçados que se ocupavam do tráfico, devo informá-los, caros amigos, encontraram compradores para aqueles escravos europeus, capturados em navios que cruzavam a costa da Guiné e, experimentando o sabor da riqueza, tais biltres formavam colônias em várias ilhas recém-descobertas próximo ao Pólo Sul, onde cultivavam certos vegetais que só cresciam nas regiões mais frias. Como os habitantes negros da Guiné eram pouco afeiçoados ao excessivo frio daquelas ilhas, eles conceberam o diabólico projeto de obrigar escravos cristãos e trabalhar por eles. Com esse propósito, eles enviavam diversos navios a cada ano até a costa da Escócia e partes mais ao norte da Irlanda e País de Gales, já tendo sido vistos até mesmo no litoral da Cornualha. E tendo comprado ou aprisionado por fraude ou violência um grande número de homens mulheres e crianças, eles partiam com sua carga de seres humanos até o outro lado do mundo, para vendê-los aos seus agricultores, onde todos os cativos eram açoitados e obrigados a trabalhar como cavalos por todo o resto de suas vidas.

Meu sangue gelou ante a idéia, enquanto todos os meus companheiros expressavam horror por tão iníquo tráfico ainda ser tolerado pela humanidade. Mas, exceto pela violência, seria impossível dar fim àquele comércio, pois os negros de há muito acreditavam que os homens brancos não tinham alma! Entretanto, decidimos atacá-los: salvamos tantos brancos quanto possível, mas deixamos os negros livres para seguir seu caminho. As pobres criaturas que salvamos da escravidão ficaram tão contentes que se debulhavam em lágrimas de gratidão e experimentamos uma sensação agradável de pensar na felicidade que proporcionávamos a seus pais, seus irmãos, irmãs e filhos por trazê-los sãos e salvos de volta para casa, livres da escravidão e de retorno ao seu torrão natal.

Tendo chegado à Inglaterra, imediatamente fiz um relato de minha viagem ao Conselho De Guerra e roguei uma imediata assistência para a jornada até a África e, se possível, uma reequipagem do meu veículo, para que eu pudesse levá-lo comigo. Tudo foi instantaneamente concedido, para minha satisfação, e recebi ordens de me aprontar para partir tão logo quanto possível.

O Imperador da China havia enviado um curioso animal de presente à Europa. Essa criatura, de enorme tamanho e capaz de realizar a viagem com éclat, era mantida na Torre, e foi colocada à minha disposição. Chamava-se Esfinge e era uma das mais terríveis figuras, apesar de magnífica, que já contemplei. Estava vestida com soberbos enfeites e encontrava-se em um barco de fundo achatado, no qual havia um palácio de madeira, exatamente igual ao Westminster Hall. Dois balões estavam amarrados por cordas à embarcação para manter-lhe o equilíbrio e impedi-la de adernar devido ao prodigioso peso da construção.

O interior do edifício estava repleto de assentos, que formavam um anfiteatro onde costumavam se acotovelar os lordes com suas senhoras, como se fossem meu conselho de estado, prestando todo tipo de assistência a este pobre servo. Perto do centro havia um assento elegantemente decorado por mim, e do lado oposto, foram colocados os famosos Gog e Magog, com toda a sua pompa.

Tendo o Lorde Visconde Gosamer como condutor, navegamos elegantemente rio abaixo; a nobre Esfinge saltitava como o ingente Leviatã e, logo acima dela, viam-se os balões.

Assim avançamos, velejando calmamente pelo mar aberto; estando calmo o tempo, mal podíamos notar o movimento das águas e passávamos o tempo em grandes discussões sobre a gloriosa intenção de nossa viagem e as descobertas que dela poderiam resultar.

“Sou de opinião”, disse neu nobre amigo Hilaro Frosticos, “que a África era originalmente desabitada em sua maior parte, ou, devo dizer, habitada por leões que, junto com o homem, parecem ser as mais mortíferas de todas as criaturas. A região é em geral – ao menos pelo que sabemos no momento – bastante hostil à vida humana; o calor insuportável do lugar, as areias escaldantes que subjugam exércitos inteiros e as cidades quase todas em ruínas, além da detestável vida que algumas tribos são obrigadas a levar, inclinam-me a imaginar que se tentarmos instalar ali uma grande colônia ela se tornará o túmulo de muitos dos nossos conterrâneos. Ainda que esteja mais perto de nós do que as Índias Orientais, creio que toda a produção da China e das Índias Ocidentais e Orientais floresceriam ali se propriamente cuidadas. E como a região é tão prodigiosamente extensa e desconhecida, que fonte de descobertas ela não seria! De fato, sabemos menos coisas sobre o interior da África do que sobre a lua; pois desta última podemos ver as proeminências, observar as variedades de seus terrenos, bem como suas irregularidades, com a ajuda de lunetas – as florestas e as montanhas de sua superfície manchada.

“Mas não vemos nada no interior da África, tão somente aquilo que alguns compiladores de mapas ou geógrafos são criativos o bastante para imaginar. Que feliz evento, desse modo, não deveríamos nós esperar de uma viagem de exploração e colonização realizada em tão magnífico estilo como a presente! Que orgulho – que aquisição à filosofia!”

 

O Conde Gosamer é arremessado pela Esfinge até o topo do Tenerife – Gog e Magog conduzem a Esfinge pelo restante da viagem – O Barão chega ao cabo e une sua antiga carruagem e etc aos seus novos acompanhantes – Passa pela África, prosseguindo a norte do Cabo – Defende-se de um grupo de leões utilizando-se de um curioso estratagema – Viaja através de um imenso deserto – Toda a sua comitiva, com carruagem e tudo, é acossada por uma tempestade de areia – Salva-se e chega a uma região fértil.

O bravo Conde Gosamer, com um par de esporas pontiagudas e cavalgando a Esfinge, conduziu toda a comitiva até as Ilhas Madeiras. Mas o Conde, dotado de uma vaidade nada pequena, ao perceber as grandes multidões que se aglomeravam à sua passagem, por toda a costa francesa, gascões e etc, não pôde se furtar a alguns saltos, jamais vistos antes por ali: principalmente quando avistou todos os membros da Assembléia Nacional espalhados ao longo da praia; estavam ali para demonstrar a polidez francesa e honrar a expedição, tendo à frente do grupo Rousseau, Voltaire e Belzebu; o Conde então cravou as esporas na Esfinge, ao mesmo tempo que a açoitava com toda a violência, puxando vigorosamente as rédeas, na tentativa de fazer a criatura saltar e realizar algum truque incomum. Porém, a Esfinge mostrou-se aborrecida e mal-humorada: ela saltou realmente – mas que salto! A um pinote violento da Esfinge, o infeliz, passando por sobre a cabeça desta, foi arremessado para longe, caindo numa massa de água que havia mais adiante. Era a Baía de Biscaia, como todo mundo sabe, um mar bstante agitado, e a Esfinge, temendo que ele pudesse se afogar, sem olhar para os lados, avançou furiosamente e, inclinando levemente a cabeça, sorvendo o líquido, logrou retirar o Conde dali, juntamente com dois ou três barris de água, que, para um monstro gigantesco como uma Esfinge, tem o mesmo efeito que uma simples colherada para vocês ou eu. Ela acabou por engoli-lo, mas quando sentiu as tremendas esporas do Conde a arranhar e fazer cócegas em seu estômago, foi tomada por enorme ânsia de vômito. Não havia muito que o Conde entrara e já estava saindo, num jorro, com horrível impetuosidade, como uma bala de canhão. A Esfinge estava por esse tempo bastante enjoada do mar e o desafortunado Conde foi lançado, como um foguete, mergulhando no pico do Tenerife, caindo com a cabeça enfiada na neve - requiescat in pace!

 

Observei todos esses fatos de meu assento, mas fui atacado por uma tal convulsão de riso que não consegui proferir uma palavra inteligível. Depois disso, a Esfinge, privada do seu condutor, passou a andar em zigue-zague e aos saltos, da maneira mais temerária. Desse jeito, poria tudo a perder, não tivesse eu dado ordens imediatas a Gog e Magog para que a dominassem. Eles mergulharam na água e, nadando um de cada lado, passaram à frente do animal e apanharam suas rédeas. Assim, continuaram eles nadando, cada um de um lado, como tritões, guiando a Esfinge, enquanto eu, saltando à frente, escarranchei-me nas costas da criatura, e a conduzi em nossa viagem ao Cabo da Boa Esperança.

Chegando ao Cabo, imediatamente dei ordens para que minha carrugem fosse consertada, no que fui diligentemente obedecido pelos excelentes mecânicos que trouxe comigo da Europa. E, sendo tudo reparado, lançamo-nos de novo às águas: talvez não houvesse nada mais glorioso nem mais imponente. Era magnifico contemplar a Esfinge fazer sua reverência sobre o oceano, e as cigarras trinando às costas dos touros, devolvendo a saudação; enquanto Gog e Magog, avançando, receberam as rédeas do grande John Mowmowsky, e fizeram descer a carruagem diante de toda a comitiva por meio de ganchos e cordas; a seguir posicionaram a Esfinge logo à frente dos touros. Assim, o cojunto ganhava uma aparência magnífica e triunfal. À frente pontificava a poderosa Esfinge, com Gog e Magog de cada lado, a seguir vinham os touros, com as cigarras sobre as cabeças; depois vinha a Carruagem da Rainha Mab, contendo a curiosa reprodução dos astros celestes; depois da qual aparecia o barco que conduzia o conselho, sobre o qual elevavam-se dois balões, o que emprestaam um ar de leveza e elegância ao todo. Eu coloquei no convés, logo abaixo dos balões, e às costas dos touros, um bom número de excelentes corais, acompanhados pela música marcial de clarinetas e trompetes. Eles cantaram "Watery Dangers," e "Pomp of Deep Cerulean"! O sol brilhava gloriosamente sobre a água enquanto a procissão avançava por terra, sob quinhentos arcos de gelo, iluminados por luzes coloridas e adornados pelo mais grotesco e fantástico estilo, com vegetação aquática, elegantes grinaldas e ostras de todo tipo; enquanto isso, mil colunas de água dançavam à frente e atrás de nós, atraindo a água do mar e formando com ela uma espécie de cone, tudo isso de mistura aos mais fantásticos trovões e relâmpagos.

Desembarcado nossa tripulação, imediatamente avançamos rumo ao coração da África, mas primeiro concebemos um jeito de colocar rodas sob a arca para facilitar o seu deslocamento. Rumamos para o norte por vários dias, e nada encontramos de excepcional, a não ser o assombro dos selvagens nativos diante de nossa equipagem.

O governo holandês, que administrava o Cabo, para fazer-lhe justiça, deu-nos toda assistência possível. Presumo que tenham recebido instruções nesse sentido da própria Alteza Real da Holanda. Presentearam-nos com uma amostra do seu excelente vinho e mostraram-nos cada detalhe de suas forças ali instaladas. À medida que avançavamos, surgiam muitos lugares que se prestavam ao cultivo, sendo de abundantes fertilidade. Os nativos e Hotentotes desta parte da África têm sido frequentemente descritos pelos viajantes e, desse modo, não é necessário dizer nada sobre eles. Mas nas partes mais recônditas da África as aparências, maneiras e gênios das pessoas são totalmente diferentes.

Dirigíamos nosso curso pelas estrelas, obtendo a cada dia prodigiosa quantidade de caça nas florestas e à noite acampávamos em áreas estreitas, temendo o ataque de animais selvagens. Certa vez em particular, instalados entre as montanhas, ouvimos por todo o dia, de todos os lados, horríveis rugidos de leões, que ecoavam de rocha em rocha, como enorme trovoada. Parecia que aquelas feras estavam se reunindo para nos atacar. Durante todo o dia avançamos com cautela e nossos caçadores raramente se aventuravam à distância maior do que um tiro de pistola, temendo perder-se da caravana. À noite, acampamos, como usual, e cavamos trincheiras ao redor de nossas barracas. Mal havíamos nos recolhido para descansar quando nos vimos cercados por cerca de mil leões, que, à distância de cem passos, se aproximavam, vindos de todas as direções. Nosso gado dava as mais horríveis demonstrações de medo e, trêmulo, suava frio. Imediatamente ordenei à toda a companhia que pegasse em armas e não disparasse nenhum tiro enquanto eu não mandasse. Muni-me então de uma grande quantidade de piche, que havia trazido exatamente para aquele propósito, e espalhei-o ao redor de todo o acampamento; dentro deste círculo de piche imediatamente espalhei um círculo de pólvora e, tendo tomado essa precaução, ansiosamente aguardei que os leões se aproximassem. Esses temerários animais, como presumo, sabendo da força de nossa tropa, avançaram lentamente e com cautela, aproximando-se de nós, fechando o cerco num mesmo ritmo e rosnando, num abominável concerto, de tal forma que parecia um terremoto ou alguma convulsão similar da natureza. Quando eles já tinham avançado o suficiente e empapado as patas de piche, puseram-se a farejar aquele negro líquido, lambuzando, assim, as densas jubas e os bigodes. Foi nesse momento, quando eles todos se preparavam para cair sobre nós num mesmo e mortífero ataque, que disparei um tiro de pistola na trilha de pólvora, que instantaneamente se inflamou, fazendo com que todos os leões recuassem, numa algazarra infernal e fugissem com máxima precipitação. A alguma distância, contemplamos sua dispersão pela floresta; rugindo em agonia, moviam-se como fógos-fátuos, as patas, as faces em chamas. Ordenei então uma caçada: nós os perseguimos pela floresta, e as próprias labaredas que os incendiavam serviam para iluminar o caminho; até que, depois do nascer do sol, conseguimos alcançá-los e, seja à bala, seja por outra forma qualquer, exterminamos todos eles e durante todo o restante da jornada não mais ouvimos rugidos de leões, assim como nenhum outro animal selvagem tentou lançar qualquer ataque contra nossa comitiva, o que mostra a excelência de uma imediata presença de espírito e o terror inspirado por um procedimento bem planejado nos inimigos ferozes.

Nós então chegamos aos confins de um incomensurável deserto – uma imensa área plana que se estendia por toda parte, como um oceano. Nenhuma árvore, nenhum arbusto, nenhum tufo de grama havia por ali; tudo era um mar de areia finíssima misturada a pó de ouro e pequenas pérolas.

O pó de outo e as pérolas pareciam-nos de pequeno valor porque não planejávamos retornar à Inglaterra tão cedo. Observamos, à grande distância, algo como uma fumaça que subia no horizonte e, observando com nossos telescópios, percebemos tratar-se de uma tempestade de neve que revolvia nos ares tremenda quantidade de areia, numa assustadora impetuosidade. Imediatamente ordenei à minha companhia que erguesse em torno de nós uma imensa barragem de areia, o que foi feito com incrível tenacidade; nós a cobrimos com tábuas e pedaços de pau, que tínhamos conosco exatamente para esse propósito. Mal havíamos terminado o trabalho quando a areia veio rolando no ar, como as águas do oceano; era ao mesmo tempo uma tempestade e um rio, ambos de areia, que caíam sobre nós. E a desgraça continuou seu avanço, sem trégua, por três dias, e cobriu completamente a barragem que havíamos erigido, enterrando-nos todos lá dentro. O intenso calor do local era insuportável; mas, percebendo que cessara o rúido de tempestade, ficou-nos evidente que o perigo havia passado; pusemo-nos, então, a escavar uma passagem até a luz do dia, o que efetivamos em um curto espaço de tempo e, subindo, descobrimos que toda a paisagem tinha sido coberta inteiramente pela areia. De repente não existiam mais montanhas ali, apenas um plano contínuo, e as irregularidades e sulcos deste terreno eram como as ondas do mar. Logo desenterramos nosso veículo e todos os equipamentos das areias escaldantes, não sem grande perigo, uma vez que o calor era violento, e seguimos viagem. Tempestades de areia de natureza similar por várias vezes nos atacaram, mas utilizando as mesmas precauções já mencionadas, conseguimos repetidamente escapar à destruição. Tendo percorrido mais de dez mil quilômetros daquele inóspito terreno plano, expostos aos raios perpendiculares de um sol fervente e sem encontrar qualquer regato ou chuvisqueiro que nos refrescasse, ficamos à beira do desespero, quando, para nosso inefável contentamento, avistamos umas longínquas montanhas, as quais, já mais próximos, observamos estarem cobertas por um tapete de vegetação, recheado de árvores. Nada nos parecia mais romântico ou belo do que aquelas montanhas e precipícios entremeados de flores e arbustos de todo tipo, além de palmeiras de tão prodigiosa altura que excediam em tamanho as existentes na Europa. Frutos de variados tipos cresciam por toda parte, em abundância, e antílopes, ovelhas e búfalos vagavam em profusão por entre as florestas e vales. Das árvores ecoava a melodia dos pássaros. A paisagem constituía-se numa cena bucólica de felicidade e prazer.

 

Um festim reunindo touros vivos e kava – Os habitantes admiram as aventuras dos europeus – O imperados vai ao encontro do Barão e faz-lhe grandes lisonjas – Os habitantes do centro da África descendem dos povos da lua, o que é provado por uma inscrição, e, também por analogia, seu idioma é o mesmo dos antigos Cítios – O Barão é declarado soberano do interior da África quando da morte do imperador – Ele se empenha em abolir o costume de comer touros vivos, o que excita muito descontestamento – A advertência de Hilaro Frosticos a respeito do caso – O Barão faz um discurso a uma Assembléia, o que só serve para levantar grandes murmurações – Ele consulta Hilaro Frosticos.

 

Havendo transposto as montanhas mais próximas, penetramos num maravilhoso vale, onde avistamos uma multidão de pessoas que se banqueteavam com touros vivos, cuja carne, cortada com grandes facas, recobria as mesas, tudo ao som dos gemidos dolorosos do animal. Nada faltava acrescentar ao banquete senão a kava, descrita nas viagens do Capitão Cook, preparada por eles, que beberam com avidez o licor ao final do ágape. Naquele momento, inspirado por uma idéia de benevolência universal, determinei-me a abolir o costume de comer animais vivos e a ingestão de kava. Mas eu sabia que semelhante idéia não poderia ser posta em prática de imediato, somente depois de algum tempo.

 

Após descansar por alguns dias, decidimos partir rumo à principal cidade do império. A novidade que representava nossa aparição por ali foi considerada em todo o reino como um fenômeno. A multidão olhava a Esfinge, os touros, as cigarras, os balões e toda a tropa como algo de outro mundo; o som das nossas armas de fogo, em especial, causava horror e assombro em todo o reino.

Logo chegamos à metrópole, situada às margens de um nobre rio, e o imperador, acompanhado de toda a sua Corte, veio em grande comitiva até nós. O imperador apareceu montado em um dromedário adornado condignamente, enquanto que todo o seu séquito seguia a pé, em respeito ao soberano. Ele tinha uma altura bem acima da média daquele país, um metro e trinta de altura, com um semblante que, como os dos seus patrícios, era branco como a neve! Sua chegada foi precedida por uma banda de excelentes músicos, de acordo com o costume local, e todos os seus acompanhantes detinham-se a cada cinquenta passos da nossa tropa. Retribuímos a saudação com uma salva de tiros e um toque marcial das nossas cornetas. Ordenei à nossa caravana que se detivesse, demontasse e avançasse desarmada; destaquei então dois homens para que se dirigissem à Sua Majestade. O imperador foi igualmente polido e, descendo de seu dromedário, veio ao meu encontro. “Estou feliz”, disse ele, “por ter a honra de receber tão ilustre viajante e asseguro ao senhor que todo o meu império está à sua disposição.”

Agradeci à Sua Majestade pela cortesia e expressei quão feliz eu estava de encontrar população tão cortês e sofisticada em pleno centro da África; manifestei igualmente que esperava mostrar toda a gratidão da minha companhia por tanta estima, o que seria feito pelo ensino das artes e ciências européias ao povo.

Imediatamente percebi a verdadeira descendência daquele povo, que não parece ser de origem terrestre, devido à sua semelhança com os habitantes da lua, porque os principais idiomais falados ali e na África Central são praticamente os mesmos. Seu alfabeto e métodos de escrita são incrivelmente parecidos e mostram a antigüidade daquela nação africana, bem como sua origem superior. Darei aqui uma amostra de sua escrita (Vide Otrckocsus de Orig. Hung./ p. 46): - Stregnah, dna skoohtop.

 

Estes caracteres foram submetidos ao exame de um celebrado antiquário e no próximo volume será provado, para a satisfação geral, que deve ter havido um estreito comércio entre os habitantes da lua e os antigos Cítios, não os que habitaram a Rússia, mas sim os da África Central, como posso provar com abundantes evidências ao meu culto e aplicado amigo. As palavras acima, escritas com nossos caracteres, Sregnah dna skoohtop, demonstram que os Cítios são de origem celestial. A palavra Sregnah, que significa Cítios, é compasta de sreg ou sre, de onde vem o termo inglês sire, ou sir: e nah ou gnah, conhecimento, uma vez que os Cítios uniram as essências na nobreza e do conhecimento: dna significa céu, ou pertencente à lua, de duna, que era antigamente cultuada como deusa daquele astro. E skoot-top significa origem ou início de qualquer coisa, de skoo, o termo utilizado na lua para desginar um ponto em geometria, e top ou htop, vegetação. Essas palavras estão inscritas em uma pirâmide no centro da África, próximo à nascente do rio Níger; e se alguém negar tal afirmação, que vá até lá para comprovar.

O imperador conduziu-me até seu palácio, em meio à admiração dos cortesãos e tratou-nos com toda a amabilidade possível a um monarca africano. Ele nunca fazia coisa alguma sem nos consultar antes e olhava para nós como se fôssemos criaturas superiores, demonstrando grande respeito às nossas opiniões. Ele frequentemente me inquiria sobre os estados europeus e o reino da Grã-Bretanha, parecendo fascinado com as descrições que eu lhe fazia de nossos navios e da imensidão do oceano. Nós o ensinamos a governar com regras próximas à da Constituição Britânica e a instituir um parlamento e títulos de nobreza. Sua Majestade era a última na linha sucessória e, no caso de sua morte, com o unânime consentimento do povo, fez-me herdeiro de todo o seu império. A nobreza e as autoridade do país imediatamente me cobriram de petições, implorando que aceitasse o governo. Consultei meus nobres amigos Gog, Magog e etc e após muita conversa, concordamos que eu deveria aceitar o governo, não como um monarca independente, mas como vice-rei, subordinado à Sua Majestade, a rainha da Inglaterra.

Foi àquela altura que pensei em abolir o costume de comer animais vivos e beber kava; com esse propósito, usei todos os métodos possíveis para demover o povo dessas práticas abomináveis. Isso, para minha surpresa, não foi bem aceito por eles, que passaram a olhar com outros olhos para aqueles estrangeiros que pretendiam fazer inovações nos hábitos locais.

Todavia, eu estava muito preocupado por saber que meus súditos pudessem ser capazes de praticar tamanhas barbaridades. Eu fiz tudo o que um coração repleto de bondade e boa vontade para com os seres humanos podia ser capaz. Primeiro tentei toda sorte de persuasão e incitamento. Não os reprovei; ao contrário, convidava-os frequentemente ao milhares para almoçar carne assada, como era moda na Europa. Oh, foi tudo em vão! Minha generosidade estava a ponto de excitar uma revolta popular. Murmuravam entre eles, falavam de minhas intenções, minhas idéias bárbaras e ambiciosas, como se eu, Ó céus! Pudesse ter qualquer interesse pessoal por querer vê-los como homens e não como crocodilos ou tigres. Logo, percebendo que a gentileza não teria nenhum resultado, e sabendo que a complacência não alcança a certos espíritos e que a obrigação excita o respeito e a veneração, proibi, sob ameaça de severas penalidades, a ingestão de kava e de animais vivos pelo espaço de nove dias nos distritos de Angalinar e Paphagalna.

Mas isso despertou tamanha aversão e ódio geral ao meu governo que meus ministros e eu próprio fomos ridicularizados por todos; piadas, sátiras, zombarias e insultos foram lançados ao nome Munchausen onde quer que ele fosse mencionado; de modo que jamais houve governo tão detestado por motivo tão fútil.

Diante deste dilema, recorri ao meu nobre amigo Hilaro Frosticos. De seu bom senso eu esperava alguma luz, pois o restante do conselho, que já me havia advertido contra o método anterior, não me deu senão uma débil amostra de habilidade e discernimento e eu precisava agir de maneira mais eficaz. Rapidamente ele se reportou a mim e ao conselho como se segue:

“É em vão, nobre Munchausen, que Sua Excelência se esforça em compelir ou forçar essas pessoas a uma vida à qual elas jamais poderiam se acostumar. Em vão o senhor lhes diz que tortas de maçã, pudins, carne assada, bolinhos de carne e bolos são deliciosos, que o açúcar é doce, que o vinho é excelente. Ah! Eles não podem e jamais poderão compreender a delícia, a doçura ou o sabor de uma uva. E ainda que estivessem convencidos da superioridade de nosso modo de viver, eles nunca, nunca, poderiam ser convencidos a adotá-lo, uma vez que tentamos fazer uso da força e da persuasão. Abandonemos tais idéias e tentemos outros métodos. Minha opinião, desse modo, é que devemos cessar todas as tentativas feitas nesse sentido. Procuremos, se possível, obter alguns bombons da Inglaterra e cuidadosamente espalhá-los pelo reino; por essa disposição de coisas eu presumo – presumo, não, tenho certeza de que poderemos salvar seu povo do horror e da barbárie.”

Tivesse isso sido proposto antes, receberia violenta oposição do conselho; mas agora, que todas as tentativas haviam fracassado, quando parecia não haver mais nenhum recurso, a maioria, de boa vontade, submeteu-se a uma sugestão que ninguém sabia se ia dar certo, pois não se tinha idéia do que se tratava, nem das possibilidades de sucesso, muito menos imaginavam como colocar as coisas em prática.

No entanto, era um plano e como tal eles o haviam aprovado. De minha parte, reebi com êxtase as palavras de Hilaro Frosticos, pois sabia do singular conhecimento que ele detinha sobre o gênero humano e, desse modo, poderia agradar os nativos e persuadi-los à felicidade e ao bem comum. Então, de acordo com o conselho de Hilaro, despachei um balão com quatro homens, que, partindo daquele deserto, chegou ao Cabo da Boa Esperança; com eles iam cartas endereçadas à Inglaterra, solicitando, sem demora, cargas de bombons.

O povo havia passado todo esse tempo num estado geral de agitação e murmúrio. Tudo o que o rancor, a fraqueza de espírito e a deplorável ignorância puderam conceber para minar meu governo foi posto em prática. As mais honradas atitudes, mesmo os atos beneficentes, tudo o que fosse de boa-fé era tido como danoso.

O coração de Munchausen não era feito de matéria tão impenetrável que pudesse ser insensível ao ódio, ainda que do mais imprestável desgraçado daqueles nativos; e, certa vez, na Assembléia Geral dos Estados, obcecado por tão contínua ingratidão, agi de forma patética, assim creio, aviltando minha dignidade, tentando fazer o povo se apiedar de mim: declarei que o bem universal e a felicidade das gentes eram tudo o que eu queria e desejava; que se minhas ações estavam erradas ou se eu havia formado concepções equivocadas, não fora essa a minha intenção, nem meu desejo, mas sim o bem público etc, etc, etc.

Hilaro Frosticos ficou todo esse tempo bastante perturbado; olhava-me com severidade – franzindo as sobrancelhas, mas meu coração estava tão endurecido que eu não o entendia: eu não via nada senão uma nuvem de lordes, senhoras, chefes (tal é a força da sensibilidade) – e a assembléia parecia flutuar diante de meus olhos. Por mais que eu pensasse em minhas boas intenções, não conseguia extirpar da mente as zombarias que tanto ofendiam minha delicadeza, minha bondade, minha ternura – Esqueci de mim mesmo – Falava rápido, inflamado – caridade, fogo, carinho – Ai de mim! Desmanchei-me em lágrimas.

“Hum, Hum!”, disse Hilaro Frosticos.

A partir de então meu governo foi ainda mais ridicularizado, satirizado, ofendido, desgastado e vilipendidado. Um dia, lágrimas nos olhos, lendo as críticas que me eram feitas, desabafei com Hilaro assim que ele adentrou o recinto: “Olhe, olhe aqui, Hilaro! – como posso suportar isso? É impossível agradá-los; deixarei o governo – não posso tolerar tal coisa! Veja que anedotas patéticas – que suspeitas lançam sobre mim: farei o povo sentir minha falta – deixarei o governo!”

“Droga!” , disse Hilaro. Aquela simples palavra mudou-me inteiramente, como por magia! pois sempre olhei Hilaro como uma pessoa cheia de experiência, de fortaleza e de bom senso. “Há três veleiros”, acrescentou Hilaro, “recém-chegados ao Cabo, após uma feliz passagem, carregadas com os bombons que pedimos. Não há tempo a perder; que seja tudo trazido até aqui e distribuído para todos os principais celeiros do império.”

 

Um decreto do Barão – Excessiva curiosidade do povo para saber o que eram bombons – O povo em agitação geral – Arrombam todos os celeiros do império – Os ânimos do povo são acalmados – Uma ode é escrita em honra do Barão – Sua conversa com Fragrantia sobre a qualidade da música.

Algum tempo depois, ordenei que o seguinte decreto fosse publicado na Gazeta da Corte e em todos os outros jornais do império:

 

                 O PODEROSO E VALENTE MONARCA,

                 SUA EXCELÊNCIA

                 REI BARÃO DE MUNCHAUSEN.

               

Grande quantidade de bombons foi distribuída por todos os celeiros do império para uso particular e, como os nativos já expressaram sua aversão a todos os hábitos alimentares europeus, fica, por meio deste, estritamente proibido, sob risco de severos castigos, a qualquer um dos oficiais encarregados da guarda dos bombons, dar, vender ou oferecer para venda qualquer parte ou quantidade do referido produto até que seja de nossa inteira boa vontade e gosto.

  

                   Castelo de Gristariska

                   a Triskill do mês de

                   Griskish, ano de Moulikasra-navas-kashna-vildash.

 

Este decreto excitou a mais ardente curiosidade em todo o império. “O senhor sabe o que é um bombom?”, disse Lady Mooshilgarousti a Lorde Darnarlaganl. “Bombom!”, disse ele. “Bombom! Não: que bombom?” “Refiro-me”, replicou a senhora, “à enorme quantidade de bombons que está armazenada por todo o império e cuja venda ou doação aos nativos é estritamente proibida, sob pena de severos castigos.” “Deus!”, replicou ele. “Que maravilha deve ser essa? Proibida! Rogo-lhe, Lady Fashashash, a senhora sabe o que vem a ser um bombom? E o senhor, Lorde Trastillauex? E a senhora, dona Gristilarkask? Quê! Pois ninguém sabe o que vem a ser um bombom?”

O fato engrossou por vários dias as fofocas por todo o império. Bombom, bombom, bombom, ressoava em todas as companhias, em todos os lugares, de raiar do dia até o crepúsculo; e mesmo à noite, quando dormiam suavemente os mortais, estavam as senhoras sonhando com bombons!

“Juro por minha honra”, disse Kitty, enquanto ajustava seus óculos logo após sair da cama. “Eu daria tudo para saber o que vem a ser um bombom.” “Oh! meu querido”, replicou a senhora Killnariska, “Por toda a noite não sonhei com outra coisa que não fosse esse maldito bombom; via meu namorado beijando-me a mão e pressionando-a contra seu peito, enquanto eu, numa careta, esforçava-me por desvencilhar-me dele: Não, eu jamais, jamais, olharei novamente para você, eu gritava, enquanto você não me explicar o que é um bombom, ou não me trouxer algum. Saia daqui! Gritei, com toda a dignidade de uma dama ofendida, de uma majestade ou de uma rainha trágica. Saia! E nunca mais digne-se a olhar para mim se não me trouxer um bombom. Ele jurou, pela honra de um cavaleiro, que percorreria todo o mundo se preciso fosse, e enfrentaria qualquer perigo para satisfazer o anjo de sua alma, ou morreria tentando.”

As autoridade e a nobreza da nação, quando se encontravam para beber kava não falavam de outra coisa senão de bombons. Era uma fúria de curiosidade, uma agitação geral, uma febre universal – nada mais além de bombons poderiam amainar aquela tempestade.

Mas eles eram unânimes num ponto: o governo devia ter algum interesse em vista ao dar ordens tão severas para preservar os tais bombons e mantê-los longe dos nativos. Petições foram-me endereçadas de todos os quadrantes, de cada corporação, de cada grupo existente no império. Os eleitores exigiram e o parlamento apresentou uma petição rogando que eu discursasse em respeito à nação e desse ordem para satisfazer o povo, caso contrário, teriam lugar as mais infaustas consequências. A esses pedidos, diante da súplica de meu conselho, não fiz réplica, ou melhor, não forneci senão respostas insatisfatórias. A curiosidade era geral; nem se satirizava mais o governo, tão interessado estava o povo nos bombons. A grande assembléia dos estados não conseguia pensar em outra coisa. Ao invés de decretar leis para conter o povo, no lugar de buscar uma saída inteligente, a única coisa na qual conseguiam pensar, falar e arengar eram bombons. Em vão o presidente da mesa pedia ordem; quanto mais eram repreendidos, mais interrogativos se mostravam.

Logo a população de muitos lugares sublevou-se da maneira mais ultrajante e tumultuosa, arrombou os celeiros de todo o país num único dia e triunfalmente distribuiu os bombons por todo o império.

Não sei se devido à longa espera, à grande curiosidade, à imaginação ou à disposição do povo, não posso dizer – mas a iguaria caiu no gosto de todos; foi uma intoxicação de prazer, foi satisfação geral, foi aplauso.

Percebendo o quanto eles haviam gostado daqueles bombons, mandei buscar mais da Inglaterra, em quantidade muito maior do que a anterior e cuidadosamente o distribuí por todo o reino. Desse modo, consegui reconquistar a simpatia do povo; e eles, desde então, passaram a venerar, aplaudir e admirar meu governo mais do que nunca. A seguinte ode foi escrita no meu castelo, em soberbo estilo e universalmente admirada:

               Vós touros, cigarras, Gog e Magog,

             E trombetas soando alto o anthrophog,

             Rimando tudo em “og”,

             Caralog, basilog, fog, and bog!

 

               Grande e soberba aparece a tua capa sublime,

               Admirada e adorada como o raiar do sol;

               Solene, majestoso, belo, como o velho Tempo,

               E famoso pela virtude, senso e alegria.

 

               Então vibre na nobre corda uma canção,

               Com elegância divina,

               Enquanto as deusas amontoam-se ao redor,

               Juntamente com as nove musas.

 

               E touros, cigarras, Gog e Magog,

              E trombetas soando alto o anthrophog,

              Rimando tudo em “og”,

             Caralog, basilog, fog, and bog!

 

Esta singela poesia foi bastante aplaudida, admirada e repetida em todas as reuniões públicas, celebrada como uma incrível demonstração de intelecto; e a música, composta por Minheer Gastrashbark Gkrghhbarwskhk, foi considerada de mesma qualidade! – Nunca houve nada tão universalmente admirado, o ápice da mais requintada sabedoria, o mais penetrante louvor, a mais excelente das músicas.

“Juro por minha honra e por minha fé“, disse eu. “Por mais que a arte musical seja cultuada na Inglaterra, para compreender a verdadeira alma da harmonia, o mundo deveria tomar conhecimento desta ode.” Lady Fragrantia estava naquele momento tamborilando os dedos na borda de seu leque, perdida em pensamentos, imaginando tocar um instrumento musical, talvez um piano.

“Não, minha cara Fragrantia”, disse eu, e, suavemente, tomando-a nos braços enquanto ela se desfazia em lágrimas; “nunca, nunca mais tocarei outro piano!”

Oh! foi divino contemplá-la. Ela estava como uma manhã de verão, rubra e coberta de orvalho!

 

O Barão coloca todo o povo do império para trabalhar, construindo uma ponte do seu país até a Grã-Bretanha – O artifício usado para se construir um arco seguro – Ordena que uma inscrição seja gravada na ponte – Retorna com toda a sua companhia, carruagem e etc à Inglaterra – Do meio da ponte supervisiona os reinos e as nações sob o domínio do rei.

 

“E agora, nobre Barão”, disse o ilustre Hilaro Frosticos, “é chegado o momento de fazer seu povo trabalhar em algum negócio que achamos procedente. Deixe-os com essa idéia na cabeça, não lhes dê tempo de pensar, mas ao invés disso mande-os logo ao trabalho.” Logo toda a nação entregava-se de bom grado ao trablho, construindo uma estrutura jamais vista no mundo. Tive o cuidado de supri-los com seus alimentos preferidos: kava e bombons, e eles mourejavam como cavalos. A torre da Babilônia, que, segundo Hermogastricus, tinha dez quilômetros de altura, ou a muralha da China não passavam de uma mera brincadeira comparadas à minha suprema edificação, que foi concluída num período muito curto de tempo.

Era de uma altura imensa, muito além de qualquer coisa já erguida antes, sendo tão fácil subir por ela que um regimento de cavalaria, ainda que armado de canhões, poderia fazê-lo sem dificuldade e em perfeita calma. Parecia um arco-íris que nascia no centro da África e terminava na Grã-Bretanha. A mais espetacular das pontes, realmente, e uma obra de engenharia que havia sobrepujado a de Sir Christopher Wren. Que maravilha foi ter construído tão tremendo arco, especialmente porque os pedreiros encontraram na naquele arco certa dificuldade jamais vista na construção de outros arcos pelo mundo – refiro-me à atração exercida pela lua e demais astros: devido à elevada altura do arco, em algumas partes ele se distanciava tanto da Terra que nesses pontos diminuía a força gravitacional terrestre; em verdade parecia mais cômodo trabalhar sob a atração dos astros: tanto assim que as pedras, imaginem, umas vezes eram atraídas pela lua, outras, pela Terra. Como esta última representasse algum perigo, assegurei a segurança da obra por meio de um artifício muito curioso: ordenei aos arquitetos que trouxessem algumas centenas de crânios de burros e jumentos e os fixassem, a intervalos, por toda a extensão da ponte, na sua superfície interior; por tais meios a obra manteve-se firme, com seu equilíbrio perfeitamente estabelecido, pois, de todas as coisas da Terra, as cabeças daqueles animais apresentam uma estranha tendência a pender para baixo.

Concluída a obra, fiz com que lhe fosse gravada uma inscrição em magnífico estilo, bem no topo do arco, em letras grandes e luminosas, para que todos os barcos que velejassem, rumo às Índias Orientais ou às Ocidentais, pudessem lê-la distintente no céu, como o lema de Constantino.

 

     KARDOL BAGARLAN KAI TON FARINGO SARGAI RA

     MO PASHROL VATINEAC CAL COLNITOS RO NA FILNAT

     AGASTRA SA DINGANNAL FANO.

 

O que significa: “Que enquanto existir este arco e laço de união, perdure também a felicidade do povo. Que todos os poderes do mundo sejam inofensivos contra ele, a menos que a lua, escapando de sua órbita, venha a atrair as cabeças e causar uma repentina elevação, na qual todo o mundo mergulhará no mais horrível tumulto.”

Um fácil meio de comunicação foi, desse modo, estabalacido entre a Grã-Bretanha e o centro da África; multidões viajavam continuamente de uma região a outra e, por minha ordem, foi criado um correio para servir a ambos os impérios. Após algum tempo, tendo estabilizado o governo, solicitei permissão para renunciar, pois que uma grande intriga era urdida contra mim na Inglaterra; tão logo se resolveu toda a burocracia, preparei-me para retornar à Velha Inglaterra.

Por fim, segui viagem, coberto do aplauso e da admiração geral. Levava comigo os mesmos acompanhantes de outrora – a Esfinge, Gog e Magog etc, e com eles avancei pela ponte. Íamos em linhas de três, adornados com guirlandas de várias flores e iluminadas de luzes coloridas. Avançávamos a grande velocidade pela ponte, a qual era tão extensa que mal podíamos perceber sua inclinação para cima; seguimos, pois insensivelmente até que chegamos ao centro do arco. A vista foi gloriosa, além de toda a compreensão; era divino olhar para aqueles reinos, mares e ilhas lá embaixo. A África tinha uma cor marrom-amarelada, queimada de sol; a Espanha parecia tender mais para o amarelo, devido às plantações de milho espalhadas por todo o reino; já a França exibia uma cor-de-palha misturada ao verde; e a Inglaterra estava coberta da mais bela verdura. Admirei a vista do Mar Báltico, que parecia ter se introduzido entre aqueles dois países por uma repentina rachadura no solo, sendo que a Suécia era unida originalmente à costa ocidental da Dinamarca; em resumo: o golfo da Finlândia deixou de existir; então esses países, por mútuo consentimento, separaram-se um do outro. Tais eram minhas meditações filosóficas enquanto eu seguia caminho, quando notei um homem de armadura, armado com uma tremenda lança e montado a cavalo, que avançava contra mim. Logo descobri com meu telescópio que não poderia ser outro senão Dom Quixote, e prometi a mim mesmo desfrutar bastante daquela refrega.

 

Os acompanhantes do Barão em luta contra o heróico Dom Quixote, que por sua vez é atacado por Gog e Magog – Lorde Whittington, com a aparição do Prefeito, chega para dar assistência a Dom Quixote – Gog e Magog atacam Sua Senhoria – Lorde Whittington faz um discurso e leva Gog e Magog para o seu lado – Um panorama geral do escarcéu e da batalha, até que o Barão, com grande presença de espírito, pacifica o tumulto.

 

“Quem és tu?”, exclamou Dom Quixote de sua potente montaria. “Quem és tu? Fala! ou, pela eterna força do meu braço, toda a tua parafernália perecerá ao simples som da minha trombeta!”

Assombrada por tão rude saudação, a grande Esfinge deteve o passo e, aprumando o corpo, afastou para trás a cabeça, como a lesma quando toca em algo que lhe desagrada: os touros puseram-se a bufar, inquietos, as cigarras pareciam soar um alarme e Gog e Magog tomaram a frente do pelotão. Um dos poderosos irmãos segurava um grande bastão, em cuja extremidade estava amarrada uma corda de cerca de meio metro de comprimento, ao fim da qual via-se atada uma bola de ferro cheia de espinhos que lhe brotavam de dentro, como os raios de uma estrela; com tal arma ele se preparou para a batalha e, avançando, assim falou:

“Audacioso senhor, o que te leva, assim vestido de armadura, a cruzar o caminho do grande Munchausen? Saibas, orgulhoso cavaleiro, que tu encontrarás morte imediata sob o meu potente braço.

Ao que Quixote, cavaleiro da Mancha, respondeu com firmeza:

“Gigantesco monstro! Líder das bruxas, cigarras e horrendas quimeras! Saibas tu que aqui, diante deste céu azul-celeste, o representante da verdade, da honra e da pureza desafia-te para um duelo!”

Assim ele falou e, brandindo sua poderosa lança, realizaria uma sublime performance, não tivesse o Rocinante encontado o traseiro numa incômoda urtiga; após o que, tropeçando nas próprias patas, caiu fragorosamente por terra, levando consigo o Cavaleiro da Triste Figura.

Naquele mesmo momento, dez mil sapos saíram dos capacetes de Gog e Magog e furiosamente assaltaram o cavaleiro por todos os lados. Em vão ele rogou, invocando Dulcinéia del Toboso: o coaxar dos sapos era ainda mais alto, muito mais sonoro do que as invocações do bravo cavaleiro. E assim, em vil batalha, foi o cavaleiro derrotado, enquanto se debatia contra a asquerosa saparia sobre seu capacete reluzente.

“Detestáveis vilões!”, rugia o cavaleiro; “Avante! Somente bruxos ou demônios poderiam realizar tal proeza, impondo ao cavaleiro da Mancha tão humilhante derrota, numa batalha jamais vista antes. Então ouça, Ó del Toboso! Ouça meu apelo: na angústia em que se encontra minha alma, entre esses sapos, necessito da ajuda de Gridalbin, Hecaton, Kai, Talon, e Rove (pois tais nomes são perfeitas definições de suas qualidades)! Então surgiu Merlin pairando no ar, um brilho de luar iluminava sua excêntrica varinha de condão a cujo toque dez mil sapos materializaram-se no ar, coaxando horrivelmente. E a seguir atacaram, avançando contra o cavaleiro glorioso, defensor da virgindade, das matronas mal-comportadas, dos encanecidos peregrinos e dos modos corteses! “Teria acabado a era dos cavaleiros? Estará a glória da Europa extinta para sempre?”

Ele falou e subitamente o bom lorde Whittington avançou, à frente do seu exército, na sua antiga armadura de cavaleiro, com seu velho capacete e suas tropas embandeiradas: flâmulas e estandartes deslubrantes, vermelhos, dourados e púrpuras; cada mão brandia de forma terrível um dourado pãozinho de gengibre. A uma palavra, dez milhões de biscoitos napolitanos, bolachas, tortas, bolos e chapéus de gengibre foram atirados para o ar, em gloriosa exaltação, como uma violenta tempestade de pedras de moinho ou uma chuva de cães e gatos.

Os sapos, assombrados, estupefatos, esqueceram as notas da sinfonia que excutavam, antes tão terrível, aliviando assim o renomado cavaleiro, e, mudos, fascinados, ouviram as palavras de Whittington, que dizia solenemente: “Demônios, hórridas quimeras, sapos ou o que sejam, retornem ao aspecto anterior; atendam às palavras de paz; e tu, bom mensageiro, lê em voz alta a nossa Lei contra a baderna!”

Ele se calou - lúgubre tornou-se o ambiente entre os sapos, e eles teriam ficado ali, petrificados de pavor, não tivessem aparecido Gog e Magog, que nunca haviam se voltado contra Whittington; ambos vinham munidos de bastões, dos quais saíam correntes, donde pendiam bolas de ferro com espinhos. De forma constante e anônima, as pesadas bolas produziam grande ruído, proclamando sua fúria contra a lei, autêntico abuso de poder do prefeito; foi quando ele próprio apareceu, submisso, e insidiosamente assim se referiu aos cavaleiros: “Gog e Magog, renomados e famosos! Por que, meus filhos, vocês assaltam seu pai, amigo e chefe? Desejam vocês, armados com essas vis bolas de ferro, atacar meu título, minha eminência, minha pompa sublime? Saia, vil discórdia, e novamente retorne ao lugar de onde veio. Pensem, meus amigos, com que freqüência enchi seus pratos de magnífica sopa de tartaruga.

Lembrem-se de como se banquetearam durante longas eras, e nas proporções imensas que alcançaram. E pensem quão diferente é o serviço com Munchausen, onde vocês precisam enfrentar a fúria dos mares frios e salgados, navegar contra as ondas, trabalhando como eternos escravos da Argélia ou de Trípoli. E mesmo nas alturas, em vôos de balão pelos céus, vocês têm se empenhado, cruzando o arco-íris ou alguma ponte recém-construída. , como se na terra esse asqueroso Barão não tivesse trabalho suficiente para ocupá-los! Não, vai ele procurar nos céus o que fazer! Considerem, meus amigos, se há alguma razão para atacarem seu supremo magistrado ou mesmo para abandoná-lo? A que ou a quem serve este Munchausen, lorde alemão, que, apesar de todos os esforços de vocês, recebe sozinho todos os louros? Então cessem e com fraternidade retornem à amizade vocês todos, sem demora." Calou-se o prefeito, inteiramente extasiado, e nesse momento ambos os guerreiros abandonaram a batalha e, em sinal de paz e unidade, retornaram, pisando forte, fazendo tremer a terra, e deixaram cair as armas letais; mas o som da batalha preencheu todo o ar, atordoando todos os presentes, como o rugir do trovão, a convulsionar céus e terra:

Era o cavaleiro da Mancha, a lança em riste, investindo contra os touros, que lhe fugiam. E tu, estridente Crillitrilkril, que qualquer cigarra do campo ou de lareira jamais conseguiu superar na arte do canto, ainda que tenhas já perecido, é como se teu fantasma ainda preenchesse o ar com seu maravilhoso canto, fazendo a alegria dos ventos. Pois mesmo teu coração tão alegre e generoso foi cruelmente atravessado pela lança do cavaleiro da Mancha enquanto, destemido, foste pousar entre os chifres que coroavam Mowmowsky. Avançou Whittington, trajando uma armadura antiga e contando com os poderes de Gog e Magog; usando sua varinha mágica, tocou a cabeça de cada um daqueles sapos que há muito quedavam-se mudos e estupefatos, e eles, num coro alegre e jubiloso, avançaram contra minhas tropas. Enquanto isso, a Esfinge mostrava-se atemorizada e covarde à vista do estandarte com pão de gengibre e os poderes de Magog, Gog e Quixote, todos investindo contra ela, arrasando tudo por onde passavam: barco, balões etc; alto rugiram os touros, terríveis, e o girar das rodas somada ao pavoroso tumulto que se formou chegava até os céus. Ainda mais ferozmente atacou Lorde Whittington, lançando mão da brutal Grimalkin. Ela, com seus olhos de fogo, atacou meus touros aturdidos, atirando como um raio e metade da tropa mergulhou no desespero. Nem podiam cavaleiros e cigarras escapar de tamanha fúria, ainda maior que a dos canhões das batalhas navais. O grande Mowmowsky rugia com todas as forças, tomado de angústia, enquanto se desviava dos dardos da feroz Grimalkin, de olhos de fogo. Era horrendo o fragor da batalha travada entre as cigarras, Quixote e Magog; foi quando Whittington, avançando, exclamou: Bem, meus amigos e guerreiros, ataquemos para refrear o ímpeto do inimiigo." E, erguendo a varinha, sua magia fez vergar os poderosos touros, que ainda mais alto berravam, enquanto o forte encantamento ia pouco a pouco lhes arrancando as forças. Tudo acabaria numa sangrenta batalha não tivesse eu, como Netuno diante da tempestade, me erguido entre as ruínas de minhas tropas. Sereno e calmo permaneci, e olhei em derredor, com destemor; nada podia fazer contra o ímpeto de meus inimigos. Súbito, uma caixa abarrotada de bombons caiu da carruagem, e estes espalharam-se por todo o campo de batalha. Do mesmo modo que a velha Catarina ou a cuidadosa Joana distribuíam migalhas de pão às galinhas, enquanto que estas, rejubiladas, precipitavam-se, ávidas, para a comida abundante, tomadas de uma santa paz fraternal; e “calma!”, gritava sua dona. “Calma!” Calma!”

 

O Barão chega à Inglaterra – O Colosso de Rodes vai congratulá-lo – Grande regozijo no retorno do Barão e um tremendo concerto – A conversa do Barão com Fragrantia e sua opinião sobre a viagem às Hébridas.

 

Tendo mais uma vez voltado para casa, os maiores festejos foram realizados pelo meu retorno; a cidade inteira parecia uma grande fogueira, tão iluminada estava, e o Colosso de Rodes, ouvindo falar das minhas incríveis proezas, foi até a Inglaterra com o propósito de congratular-me por meus feitos, os quais não tinham paralelo na história. Mas, acima de todas as outras celebrações na minha volta, estavam o oratório e a música de triunfo, ambos magníficos ao extremo. Gog e Magog receberam ordens de escalar a torre de Windsor e fazer dela um tambor. Com tal objetivo, eles estenderam um enorme couro de elefante devidamente preparado para a ocasião por todo o alto da torre, cobrindo toda a construção, de forma que, proporcionalmente, aquela pele de elefante era para o castelo o que o couro é para um tambor, transformando o conjunto num grande instrumento de guerra.

Para não ficar atrás, o Colosso de Rodes arrebanhou Guildhall e o mosteiro de Westminster e, virando-os de cabeça para baixo, ele os atou com arames e assim, atados, eles ficaram com a aparência de uma cítara. Ele então arrancou a cúpula da Catedral de St Paul, erguendo-a com tanta facilidade como os senhores erguem uma taça de vinho. E a catedral ficou parecendo um garrafão de chope. O colosso, de imediato, com uma dentada, quebrou a parte superior da cúpula e então, aplicando-lhe os lábios, como se tivesse nas mãos uma trombeta, começou a tocar. Era uma música marcial indescritível – tantará! – tará! – tá!

Durante o concerto eu caminhei pelo parque com Lady Fragrantia: ela vestia naquela manhã uma chemise à la reine. “Eu gosto”, disse ela, “do orvalho da manhã, este delicado e etéreo orvalho que assim me orna de lantejoulas; creio que ele me deixa parecida à uma rosa (a dama parecia-se com a aurora); e para manter esta cor, irei a uma estação de águas.” “E beberá das fontes de Podhon?", acrescentei, mirando-a de alto a baixo. “Sim”, replicou a adorável Fragrantia, “com todo o meu coração; é uma bebida suave e delicada. Nunca se viu gente como os bebedores de água de Spa; eles parecem flores de pessegueiro, que sugam toda a água nos dias quentes. Existe algo naquelas águas que dá vigor a todo o corpo e deixa o coração estourando de entusiasmo e generosidade. E eles bebem! Deus do céu! Como bebem! E depois, como dormem! Por favor, meu caro Barão, o senhor já esteve nas cataratas do Niágara?” “Sim, minha senhora,” respondi, surpreso por tão estranha associação de idéias; “já estive lá, muitos anos atrás, nas cataratas do Niágara, e não encontrei mais dificuldade de nadar para cima e para baixo do que encontraria para dançar um minueto.” Naquele momento, ela deixou cair seu ramalhete. “Ah”, disse ela, assim que lhe juntei as flores, “não há grande variedade nessas flores primaveris. E lhe asseguro, meu caro Barão, que há bom gosto na seleção das flores, assim como em todas as outras coisas, e, tivesse eu ainda meus dezesseis anos, recobriria o seio com botões de rosa; mas aos vinte e cinco, acho que seria mais apropriado usar uma rosa desabrochada, já pronta para cair do talo - heigh-ho!" “Mas diga-me, senhora”, disse eu. “O que está achando do concerto?” “Oh!”, disse ela, languidamente, enquanto punha a mão no meu ombro, “que são esses sons intangíveis, que são essas vibrações para mim? E que dizer dessa delicada doçura das músicas do norte da nossa ilha: Tu te foste de mim, Maria! Quão patéticos e divinais devem ser o ares da Escócia e das Hébridas! Que nunca, nunca mais me venha à mente outra vez o Doutor Johnson – aquele POLICIAL, como Fergus Macleod o chama – pois tenho uma idéia do que seja uma grande peruca marrom e um barril! Oh, é ridículo! Ser tratado em toda parte com polidez e hospitalidade, e como retribuição espalhar invejosamente mau cheiro; ir para o país de Kate de Aberdeen, de Auld Robin Gray, e entre a doçura e a inocência rural, levantar suas mantas e dançar. Oh! doutor, doutor!”

“E o que me diria, senhora Fragrantia, se tivesse que escrever uma viagem às Hébridas?” “Paz aos heóris”, replicou ela, num tom delicado e ao mesmo tempo teatral; “paz aos heróis que dormem na ilha de Iona; os filhos das ondas e os chefes de escudo marrom-escuro! A lágrima da estrangeira é tolhida pelo vento e arrojada nas antiquíssimas rochas enquanto ela medita tristemente sobre a senilidade! E o que eu diria sentada nalgum monte ou túmulo druida. O fato é este: há um jeito certo e outro errado de se fazer as coisas e há mais prazer em pensar com nobreza de coração do que com a mesquinharia e o sarcasmo de um patife.”

 

Uma disputa judicial entre Dom Quixote, Gog, Magog etc – Uma grande corte reúne-se para julgar o caso – O aspecto da corte – As matronas, juízes etc – Os métodos de escrita e de investigação corrente – Wauwau chega do país do Prestes João e leva toda a assembléia a persegui-lo, numa caça ingente, do topo do Plinlimmon até a Virgínia – O Barão encontra uma ilha flutuante na sua viagem até a América – Com toda a tropa, persegue Wauwau pelos desertos da América do Norte – Sua curiosa invenção para apanhar Wauwau em um pântano.

 

A disputa entre Gog e Magog, a Esfinge, Hilaro Frosticos, Lorde Whittington etc era fértil de infinitas questiúnculas. Todos os advogados do reino foram empregados para tratar daquele caso absolutamente complexo e gloriosamente incerto; por fim, acabou toda a nação se interessando pela briga, e dividindo sua preferência entre os dois lados. O Colosso ficou do lado da Esfinge e o caso foi finalmente submetido à decisão de um grande conselho, em um grande salão, adornado com assentos de todos os lados, na forma de um anfiteatro. A assembléia parecia a mais magnífica e esplêndida do mundo. A corte do júri, composta de mil matronas, ocupava a principal e mais honorável parte do anfiteatro; elas usavam mantos azul-celestes de veludo, adornados com grinaldas de brilhantes e estrelas de diamantes; de aspecto grave e tranquilo, usando óculos sobre os narizes; à frente delas, viam-se mil juízes, de perucas encaracoladas, que lhes desciam até os pés, de modo que Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Diante dos ardentes pedidos de todo o império para que eu fosse presidente da corte e estando preparado para o cago, tomei assento sob uma cobertura erguida no centro do salão.

Diante de cada juiz foi colocada uma banqueta contendo um galão de tinta e penas de tamanho proporcional; e diante delas um enorme fólio, grande o suficiente para servir de mesa e de livro ao mesmo tempo. Mas eles não fizeram muito uso das penas nem da tinta, exceto para borrar e manchar o papel; isso se explica pelo fato: desejando que eles fossem o mais imparciais possível, eu havia dado ordens para que somente indivíduos cegos fossem honrados com o emprego: Deste modo, sempre que eles tentavam escrever algo, mergulhavam as penas na caixinha de areia e, tendo rabiscado em branco uma página, desejando secar suas penas com areia, derramavam meio galão de tinta sobre o papel e com isso acabaram emporcalhando igualmente os dedos e, toda vez que apoiavam a cabeça nas mãos para aparentar gravidade, acabavam por sujar os rostos também. Quanto às matronas, para evitar suas tagarelices, que tornariam todo o julgamento ininteligível, achei que era absolutamente indispensável fechar suas bocas; assim, lidando com juízes cegos e matronas mudas, pensei que o julgamento acabaria mais cedo. As matronas, sem poder usar as línguas, tinham outros meios de divulgar suas idéias: cada uma tinha três placas; além da que lhes pendia da baoc, havia mais uma para cada mão. Quando desejavam expressar negativa, erguiam as placas que tinham nas mãos; quando desejavam expressar concordância, acenavam com a cabeça, mostrando a placa pendente da boca. O julgamento prosseguiu desse modo por um longo tempo, para a admiração de todo o império, quando finalmente eu pensei que seria correto solicitar ao meu velho amigo e aliado, Prestes João, que me mandasse uma de das espécies de pássaros selvagens e curiosos que são encontradas em seu reino, chamadas Wauwau. Essa criatrura foi trazida de balão do interior da África, passando por cima da grande ponte já mencionada. Sob o balão foi colocada uma espécie de barco, tripulado por pessoas encarregadas de conduzir a embarcação e proteger o Wauwau. Este pássaro profético, ao chegar à Inglaterra, imediatamente alçou vôo e transpôs uma das janelas do grande salão, indo empoleirar-se na cobertura central, para admiração de todos os presentes. Sua cantoria parecia realmente um oráculo; e a primeira questão proposta à ela, sob o consentimento unânime de matronas e juízes, foi esclarecer se a lua era ou não feita de queijo. A solução deste dilema era considerada absolutamente necessária para a continuação do julgamento.

Wauwau tinha um aspecto não muito diferente do de um cisne, exceto que seu pescoço não era tão longo, e animal tinha uma admirável postura, como Vestris. Ele começou a cantar mais alto e a assembléia inteira concordou que era absolutamente necessário apanhá-lo. Assim que nos tívessemos apoderado dele, nada mais seria necessário para a conclusão daquele litígio. Com esse propósito, toda a casa pôs-se à cata da ave e, com grande tumulto, os juízes brandiam suas penas e agitavam as enormes perucas, enquanto que as matronas se viravam tanto quanto possível em todas as direções, o que deixou Wauwau muito assustado. Batendo as asas, ele imediatamente evadiu-se do salão. A assembléia saiu em perseguição do pássaro e junto com ela foram Gog, Magog, a Esfinge, Hilaro Frosticos, a carruagem da Rainha Mab, os touros com suas cigarras e etc, seguidos por bandas de músicos; enquanto Wauwau, descendo no solo, fugia da tropa, como um avestruz, cacarejando por todo o caminho. Buscando capturar aquela criatura o mais rápido possível, os juízes e as matronas apressavam o passo, mas a ave fazia o mesmo e permanecia fora do alcance ou então saía voando por muitos quilômetros e pousava para retomar fôlego, voltando aos ares assim que chegávamos perto. Nossa perseguição atravessou grande parte do território numa linha reta, sobre montanhas e vales, até o topo do Plinlimmon, onde imaginamos ter apanhado o Wauwau; mas ele imediatamente vôou sem se deter, até chegar ao rio Potomac, na Virgínia.

Nossa companhia imediatamente embarcou nas máquinas já descritas anteriormente, na qual havíamos viajado até a África, e depois de uns poucos dias velejando, chegamos à América do Norte. Não deparamos nada curioso durante a viagem, exceto uma ilha flutuante, que continha vários vilarejos aprazíveis, e habitadas por alguns brancos e negros; a cana-de-açúcar não fazia sucesso entre eles devido, pelo que fiquei sabendo, à variedade de climas; a ilha era algumas vezes levada às proximidades do Pólo Norte e outras, da linha equinocial. Apiedado dos pobres ilhéus, eu tinha, felizmente, uma enorme estaca de ferro e, cravando-a no centro da ilha, fixei-a às rochas e à lama do fundo do mar; desde então a ilha tornou-se imóvel, sendo muito conhecida hoje pelo nome de St. Christopher e não há no mundo ilha mais segura.

Chegando à América do Norte, fomos recebidos pelo presidente dos Estados Unidos com honra e polidez. Ele se mostrou bastante satisfeito por nos dar toda informação possível sobre as florestas e as imensas regiões da América, ondenando a tropas de diferentes tribos de esquimós que nos guiassem pelas florestas em perseguição ao Wauwau que, pelo que sabíamos, havia se refugiado no meio de um pântano. Os habitantes do país, que adoram caçadas, compraziam-se de ver nossa louca perseguição ao Wauwau; a caçada era nobre e incomum. Decidi que devíamos cercar o animal por todos os lados e para esse propósito ordenei aos juízes e às matronas que estendessem em redor do pântano certa rede que tinha um quilômetro e meio de altura. Em várias partes dessa rede alguns dos caçadores ficavam pendurados, como fazem as aranhas em suas teias. Magog, ao meu comando, vestiu uma determinada armadura que sempre levava consigo, toda feita em aço, com manoplas, capacete e etc, e ficou parecendo uma toupeira. Ele imediatamente mergulhou no solo, escavando com suas afiadas manoplas, rasgando a terra com as garras de aço, e não encontrou grande dificuldade nisso, visto que o pântano em geral é de uma textura suave e fofa. Assim, surgindo repentinamente do chão, ele esperava surpreender Wauwau, agarrando-lhe pelos pés, enquanto seu irmão Gog percorria os ares com um balão, na tentativa de apanhar a ave caso ela escapasse de Magog. Desse modo, o animal foi cercado de todos os lados, ficando de início, bastante aterrorizado, sem saber para onde seguir. Por fim, ouvindo um obscuro ruído no subterrâneo, Wauwau fugiu antes que Magog tivesse tempo de agarrá-lo. O pássaro vôou à direita, depois à esquerda, ao norte, à leste, à oeste e ao sul, mas encontrava por toda a parte a rede estendida pelas tropas. Finalmente, ela deu uma guinada para o alto, voando rumo ao sol numa velocidade incrível, enquanto toda a companhia explodiu numa aclamação geral. Mas Gog, em seu balão, logo deteve Wauwau em sua carreira, e o aprisionou em uma rede, cuja abertura ele mantinha fechada na mão. Wauwau não perdeu totalmente sua presença de espírito e, após algumas considerações, fez vários ataques violentos contra a superfície do balão; tão violentos que abriram um grande rasgo, pelo qual o gás inflamável começou a escapar, e todo o imenso aparato caiu em direção à terra com grande velocidade. Gog foi cuspido para fora do veículo, deixando escapar a rede – Wauwau obteve a liberdade novamente e num instante colocou-se fora do alcance de nossas vistas.

Gog estava a mais de mil metros do solo quando iniciou a queda e, à medida que avançava, mais aumentava sua velocidade, de tal modo que mergulhou no pântano como uma bola de canhão, e feriu o nariz em uma das manoplas de ferro de seu irmão Magog, justamente quando este se elevava das profundezes. Gog começou a sangrar em abundância e somente graças à suavidade do lodaçal foi que não perdeu a vida.

 

O Barão incita seus companheiros e eles continuam a perseguição – O Barão, perdendo-se de sua tropa, é capturado por selvagens, escalpelado e amarrado a uma estaca para ser assado; mas consegue escapar e mata os selvagens – O Barão viaja pelas florestas da América do Norte, até os confins da Rússia – Chega ao castelo do Nareskin Rowskimowmowsky e galopa rumo ao reino dos Loggerheads – Uma batalha onde o Barão enfrenta o Nareskin e generosamente poupa-lhe a vida – Chega às ilhas Friendly e conversa com Omai – O Barão, como todos os assistentes, vai de Otaheite até o ístmo de Darien e, tendo aberto um canal através do ístmo, retorna à Inglaterra.

 

“Meu caros e sábios e audazes juízes”, disse eu. “Não se desanimem por Wauwau ter conseguido escapar de vocês por enquanto: perseverem e teremos sucesso. Os senhores jamais devem desesperar tendo Munchausen por general; desse modo, sejam bravos, sejam corajosos e a fortuna acompanhará seus esforços. Continuemos com destemor esta perseguição, sigamos o ardiloso Wauwau – ainda que tenhamos de dar três voltas ao mundo para apanhá-lo.”

Minhas palavras encheram-nos de confiança e heroísmo, e eles unanimemente concordaram em prosseguir a caçada. Penetramos os assustadores desertos e as obscuras florestas da América, além da fonte do Ohio, passando por regiões inteiramente desconhecidas até então. Com frequência eu costumava caçar na floresta e certo dia aconteceu de, junto com três companheiros, me perder da tropa; fomos rapidamente capturados pelos selvagens. Como já havíamos gasto toda a munição e não tivéssemos qualquer outro tipo de arma, teria sido inútil resistir a centenas de inimigos. Dentro em pouco eles nos amarraram, conduzindo-nos até uma escura caverna, onde eles se haviam banqueteado com a caça daquele dia, mas como não fora suficiente, apanharam meus três desafortunados amigos e eu e nos escalpelaram. A dor pela perda do couro cabeludo foi das mais horríveis; fez-me pular de dor e rugir como um touro. Eles então nos ataram a estacas e, fazendo grandes fogueiras ao nosso redor, puseram-se a dançar, em círculos, cantando e estorcendo-se todos, com barbaridade, e, às vezes levando a mão à boca, faziam o canto de guerra. Como tivessem arrebanhado de nós boa quantidade de vinho, esses bárbaros, achando-o delicioso e inconscientes do seu poder embriagador, começaram a bebê-lo em profusão, enquanto observavam nossa queima na fogueira; em um curto espaço de tempo, eles estavam completamente bêbados e caíram no sono em torno das fogueiras. Percebendo a chance, usei de todas as forças para escapar das cordas, o que a custo consegui. Imediatamente desamarrei meus companheiros que, apesar de bastante tostados, ainda tinham forças para caminhar. Procuramos pelos nossos escalpos e, tendo-os encontrado, imediatamente os recolocamos de volta às nossas cabeças sangrentas, fixando-as com um tipo de cola de excelente qualidade que brota de uma árvore da região e a carne cicatrizou-se em poucas horas. Fizemos questão de nos vingar dos selvagens e, com suas próprias machadinhas, os fomos matando um por um. Quando retornamos à companhia, que já nos dava por mortos, todos festejaram nosso retorno com grande alegria. Seguimos jornada através daquela prodigiosa imensidão; Gog e Magog agiam como pioneiros, cortando árvores e etc à medida que avançávamos. Passamos por incontáveis pântanos, lagos e rios, até que finalmente descobrimos uma habitação à grande distância. Parecia um tétrico castelo, cercado por uma forte muralha e um fosso. Convocamos um conselho de guerra e decidimos enviar uma comissão com uma trombeta até os muros do castelo para obter a amizade do governador, quem quer que ele fosse, e também saber dele se não tinha informações sobre o Wauwau. Com este propósito, nossa caravana deteve-se na floresta; Gog e Magog ficaram dormindo na floresta, escondidos, para que o senhor do castelo não ficasse amedrontado com eles. Nossa embaixada aproximou-se da fortaleza e, tendo pedido um curta audiência, conseguiu que a ponte levadiça fosse baixada e teve franqueada a passagem. Tão logo cruzaram o portão, ele foi imediatamente fechado; de cada lado, havia uma fileira de homens munidos de alabardas, o que fez toda a comitiva tremer de medo. “Nós viemos”, anunciou o arauto, “da parte de Hilaro Frosticos, Dom Quixote, Lorde Whittington e o triplamente renomado Barão de Munchausen para proclamar amizade ao nobre chefe deste castelo e para ter notícias do pássaro Wauwau.”

“O nobre soberano”, replicou o oficial “está bastante feliz por receber viajantes que cruzam estes imensos desertos e gostaria muito que Hilaro Frosticos, Dom Quixote, Lorde Whittington e o triplamente renomado Barão de Munchausen adentrassem os muros de seu castelo.”

Logo nossa tropa ganhou acesso ao castelo. O rei sentou à mesa com toda a nossa comitiva, cercado de seus amigos, todos de aparência bárbara e guerreira. Eles falavam pouco e pareciam muito austeros e reservados; foi finalmente trazida a primeira refeição. Os pratos eram servidos por ursos, que caminhavam nas patas traseiras e em cada prato havia um fricassê feito de pistolas e balas, molho de pólvora, além de águas-vivas. Semelhante comida parecia indigesta até mesmo para o estômago de um avestruz, porém o soberano informou-me que sempre foi seu costume oferecer como entrada ao estrangeiros aqueles pratos bizarros; se eles estivessem dispostos a comer, o soberano faria o mesmo, mas se eles recusassem as balas de pistola e tudo o mais, o rei concluiria, assim, que eram indivíduos pacíficos e lhes trataria com a maior gentileza possível. Logo, depois de ter sido removida intocada a primeira refeição, nós almoçamos, após o que o soberano mandou que toda a companhia nos saudasse, erguendo as garrafas com alegria. Ele nos informou ser o Nareskin Rowskimowmowsky, que havia se retirado para aquele deserto, desgostoso com a corte de S. Petersburgo. Fiquei muito feliz por encontrá-lo; recordava-me de meu grande amigo, que conheci na Rússia, quando do episódio em que recusei a mão da Imperatriz. O Nareskin, e todos os seus cavaleiros, beberam até não poder mais e todos nós, montados em cavalos de caça, saímos do castelo em altos brados. Nunca tinha visto semelhante cavalgada antes. À frente galopaam cem cavaleiros pertencentes ao castelo, com trompas e um grupo de excelentes cães; a seguir vinha o Nareskim Rowskimowmowsky, Gog e Magog, Hilaro Frosticos e seus humildes servos, gritando como uma horda de demônios; incitando os cavalos a cavalgar em grande velocidade, chegamos ao reino dos Loggerheads. O reino dos Loggerheads era tão selvagem quanto a Sibéria e o Nareskin havia construído ali uma romântica residência de verão em estilo gótico, para a qual ele costumava se retirar com frequência com sua tropa depois do almoço. O Nareskin tinha um dúzia de ursos de enorme estatura que dançaram para o nosso divertimento e seus chefes dançaram o minuet de la cour de forma admirável. Então o nobre Hilaro Frosticos pensou ser adequado pedir informações sobre o Wauwau, cuja procura nos havia feito percorrer boa parte da região, encontrando tão grandes perigos, e aproveitamos para solicitar ao Nareskin Rowskimowmowsky que emprestasse seus ursos à nossa expedição. O Nareskin pareceu surpreso com a idéia; ele olhou com infinita arrogância e fúria para Hilaro e, afetando uma violenta cólera, perguntou-lhe: “Imagina o senhor que o grande Nareskin Rowskimowmowsky possa dar importância a um Wauwau? Ele que voe por aí quanto quiser! Pensa o senhor que um soberano com sangue real nas veias poderia se envolver em uma caçada tão bizarra? Pelo sangue e pelas cinzas da minha bisavó, eu deveria cortar sua cabeça, isso sim!”

Hilaro Frosticos sentiu-se ofendido com isso e logo um tumulto generalizado começou. Os ursos, junto com os cem cavaleiros, tomaram partido do Nareskin; Gog e Magog, Dom Quixote, a Esfinge, Lorde Whittington, os touros, as cigarras, os juízes, as matronas e Hilaro Frosticos puseram-se contra eles.

Desembainhei a espada e desafiei o Nareskin a um duelo. Ele franziu a testa, os olhos cheios de fogo e de indignação e, escudo no braço esquerdo, ele avançou contra mim. Ataquei-o com toda a força, mas ele aparou meu golpe com o escudo, de modo que minha espada se quebrou.

Vendo-me desarmado, o covarde Nareskin, atacou-me, distribuindo seus golpes com a mais brutal ferocidade, enquanto que eu me defendia com um escudo e o coto da minha espada, lutando como um galo de briga.

Um enorme urso atacava-me ao mesmo tempo, mas ainda tive forças para enfiar o que restara de minha espada partida em sua garganta e cortar-lhe a língua pela raiz. Apanhei então sua carcaça pela patas traseiras e, girando violentamente o urso no ar, arremessei-o contra o Nareskin, impondo-lhe um violento golpe, que o deixou bastante grogue. Repeti meu ataque várias vezes, batendo a cabeça do urso contra a do Nareskin até que, num golpe feliz, a cabeça do russo foi parar entre as mandíbulas do animal e, como ainda restasse um fiapo de vida à fera, esta cerrou os dentes, à maneira de um quebra-nozes. Larguei o urso, mas o Nareskin permaneceu preso, incapaz de se soltar das mandíbulas poderosas do animal, e implorando perdão. Concedi-lhe o infortúnio de viver: um leão não rapina carcaças.

Àquelas alturas, minha tropa já havia derrotado os ursos, assim como os demais inimigos. Fui piedoso e ordenei que recebessem perdão.

Naquele momento, percebi Wauwau voando à grande altura nos céus e imediatamente iniciamos nova perseguição a ele, e não nos detivemos enquanto não chegamos até Kamschatka; dali passamos para Otaheite. Encontrei ali meu velho amigo Omai, que havia estado na Inglaterra com o grande navegador Cook, e fiquei bastante feliz por saber que ele havia instituído aulas aos domingos em todo o reino. Falei-lhe da Europa e da sua última viagem à Inglaterra. “Ah!”, disse ele, mais enfaticamente. “Os ingleses, os cruéis ingleses, assassinam-me com sua bondade e deliciam-se com a tortura que estou vivendo – levaram-me à Europa, apresentaram-me à Corte da Inglaterra, com toda a delicadeza de sua vida requintada; mostraram-me os deuses e o céu, como se tivessem o propósito de me fazer sentir a falta deles.”

Partimos daquelas ilhas acompanhados por uma frota de canoas apinhadas com os chefes guerreiros das ilhas, comandados por Omai. Assim, a carruagem da rainha Mab, os touros e suas cigarras, a arca, a Esfinge, os balões, Hilaro Frosticos, Gog e Magog, Lorde Whittington, o exército do prefeito, Dom Quixote etc, com a frota de canoas, tinham juntos uma formidável aparência quando de nossa chegada no Ístmo de Darien. Sensível ao benefício geral que daria à humanidade, imediatamente concebi um plano de abrir um canal através do ístmo, ligando um mar ao outro.

Com esse propósito, dirigi minha carruagem com grande impetuosidade repetidamente de um litoral ao outro, sempre na mesma trilha, rasgando, assim, as rochas e o solo e construindo um razoável leito para a água. Em seguida avançaram Gog e Magog; iam à frente de um milhão de pessoas recrutadas nos Américas do Norte e do Sul, além da Europa, e que, com enorme trabalho, carregaram o aterro, fruto do meu trabalho com a carruagem. Eu então refiz o trajeto com meu veículo, tornando o canal mais largo e profundo, e ordenei a Gog e Magog que repetissem o trabalho de antes. O canal tinha um quatrocentos metros de largura e trezentos metros de profundidade; imaginei que fosse suficiente e imediatamente deixei entrarem as águas do mar. Entendia que devido ao movimento de rotação da terra de oeste para leste, o nível do mar pudesse ser maior no lado oriental e que, ao se unirem os dois oceanos, se formaria uma forte corrente no rumo leste, o que de fato aconteceu. O mar veio com tremenda força e alargou as margens do canal, de tal modo que criou uma passagem de alguns quilômetros de largura e transformou a América do Sul numa ilha. Diversos navios de guerra e de comérico utilizaram-se desse canal para chegar aos mares do sul, à China e etc, e saudavam-me com um tiro de canhão cada vez que cruzavam o ístmo.

Com meu telescópio, olhei para a lua e percebi que os filósofos de lá encontravam-se em grande confusão. Eles não conseguiam entender as transformações operadas na superfície de nosso globo e especulavam sobre que estranha ocupação aqueles mortais dos planeta vizinho estariam tendo. Eles achavam incrível que seres tão ínfimos como nós, seres humanos, pudéssemos realizar tão fantástica empreitada, e mais – que ela pudesse ser vista de um mundo distante.

Assim, tendo unido o Oceano Atlântico aos Mares do Sul, retornei à Inglaterra e descobri o Wauwau precisamente no mesmo lugar de onde ele havia partido, dando início àquela caçada que se estendeu ao redor do mundo.

 

O Barão vai para S. Petersburgo e conversa com a Imperatriz – Persuade os russos e os turcos a pararem de cortar a garganta uns dos outros e construírem juntos um canal através do Ístmo de Suez – O Barão descobre a Biblioteca de Alexandria e encontra Hermes Trismegristus – Reclama Seringapatam e desafia Tippoo Sahib a um duelo – Eles lutam – O Barão recebe alguns ferimentos no rosto mas consegue, por fim, derrotar o tirano – O Barão retorna à Europa e traz de volta à tona o navio Royal George.

 

Tomado por uma fúria de construir canais, fiquei obcecado pela idéia de abrir uma comunicação entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho e, com esse intento, viajei até S. Petersburgo.

A ambição sanguinária da imperatriz não deu importância aos meus propósitos até que, aproveitando um momento de privacidade, ao tomar café com Sua Majestade, disse-lhe que eu estava inteiramente disposto a sacrificar minha vida em prol do bem estar da humanidade e que se ela cedesse ao meu interesse de abrir um canal, eu, ipso facto, daria a ela minha mão em casamento!

“Meu muito querido Barão”, disse ela. “De bom grado aceito tudo o que for de sua vontade e concordo em fazer as pazes com o inimigo nas condições que o senhor deseja. “E”, adicionou ela, erguendo-se com toda a majestade de uma Czarina, imperatriz de meio mundo, “seja conhecido de todos que ordenamos tais coisas com muita boa-vontade e satisfação.

Segui então rumo ao Ístmo de Suez, à frente de um milhão de pioneiros russos, e lá, uni minhas forças às de um milhão de turcos, armados de pás e picaretas. Eles não estavam ali para cortar as gargantas uns dos outros, mas apenas para tratar do interesse mútuo – facilitar o comércio e a civilização, além de escoar as riquezas da Índia pelo novo canal da Europa. “Meus bravos camaradas”, disse eu. “Pensem no imenso trabalho que tiveram os chineses na construção de sua renomada muralha; pensem no benefício que nossa tarefa dará à humanidade; perseverem e a fortuna acompanhará seus esforços. Lembrem-se de que é Munchausen quem os lidera e podem ficar certos do sucesso.”

A essas palavras, conduzi minha carruagem com toda velocidade pelo caminho anterior, aquele utilizado pelo Barão de Tott, e quando já havia avançado consideravelmente, percebi o veículo afundando. Tentei prosseguir, mas o chão, ou melhor, um imenso buraco, deu passagem ao veículo e mergulhei numa queda livre. Atordoado pela queda, só depois de alguns momentos foi que pude me restabelecer e foi quando, para meu assombro, percebi que havia caído na Biblioteca de Alexandria, mergulhado num oceano de livros; milhares de volumes caíam com estrondo sobre minha cabeça, soterrando por longo tempo meus touros e eu numa pilha de sabedoria. Entretanto consegui escapar e avancei com enorme admiração pelas avenidas da biblioteca. Percebi de cada lado inumeráveis volumes, repositórios da cultura antiga e de toda a ciência do mundo ante-diluviano. Ali encontrei Hermes Trismegistus e um grupo de velhos filósofos que debatiam sobre a política e a cultura de sua época. Dei-lhe grande prazer ao mencionar, em poucas palavras, todas as descobertas de Newton e a história do mundo até os dias atuais. Aqueles senhores, em retribuição, contaram-me milhares de estórias tão antigas que alguns de nossos historiadores seriam capazes de dar os próprios olhos para conhecer.

Logo ordenei que a Biblioteca fosse preservada, desejando dá-la de presente, assim como também Hermes Trimegistus e meia dúzia de antigos filósofos, à Sociedade Real assim que chegasse à Inglaterra. Conservava aquelas extraordinárias criaturas numa belíssima jaula, alimentando-as de pão e mel, pois, como acreditassem numa certa doutrina de transmigração, não aceitavam tocar em carne. Hermes Trimegistus tinha o aspecto mais antigo; com uma barba de meio metro de comprimento, vestido numa túnica de bordadura dourada, ele falava sem parar, como um papagaio. Dará uma excelene peça de museu.

Tendo traçado o caminho com minha carruagem de um mar ao outro, ordenei aos turcos e russos que começassem e, em poucas horas tivemos o prazer de ver uma frota de navios da companhia da Índias Orientais navegando em grande velocidade pelo canal. Os oficiais dessa esquadra foram muito educados e deram-me todos os aplausos e congratulações que meus esforços mereciam. Falaram-me de seus problemas na Índia e da ferocidade daquele terrível Guerreiro, Tippoo Sahib, o que me levou a ir até a Índia para encontrar o tirano. Desci o Mar Vermelho até Madras e, à frente de uns poucos sipaios e europeus, perseguimos o exército de Tippoo até os portões de Seringapatam. Eu o desafiei para um combate até a morte e, montado em meu cavalo, cavalguei até os muros da fortaleza, por entre uma chuva de morteiros e balas de canhão. Tão rápido quanto essa munição pesada caía sobre mim, eu a apanhava no ar, como se fossem seixos, e a atirava de volta contra a fortaleza, demolindo suas resistentes muralhas. Minha pontaria estava tão boa naquele dia que não errei um só alvo, atingindo todo mundo que entrou em minha mira: num determinado momento, percebendo uma tremenda peça de artilharia apontada contra mim, e sabendo que uma bala daquele tamanho certamente iria me causar sérios danos, agarrei uma pequena bala de canhão e, tão logo percebi o oficial inimigo abrindo a boca para dar a ordem de atirar, fiz mira e arremessei a bala, que entrou goela abaixo do homem.

Tippoo, temendo que eu pusesse sua fortaleza abaixo se continuasse a atingi-la daquele modo, apareceu para me enfrentar, montado em seu elefante; eu o saudei e insisti que ele deveria atirar primeiro.

Tippoo, apesar de bárbaro, não era falho de educação e declinou a gentileza; diante disso, tirei meu chapéu e, curvando-me, disse a ele que um Munchausen jamais deveria aceitar tal vantagem contra um tão valente guerreiro: ao que Tippoo instantaneamente disparou sua carabina. A bala atingiu a orelha de meu cavalo, fazendo-o escoicear de raiva e indignação. Em represália, atirei em Tippoo com minha pistola, arrancando-lhe o turbante. Ele tinha ainda uma pequena arma consigo e disparou-a contra mim; a carga de chumbinhos, caindo sobre mim como um chuveiro, chocou-se contra os louros que eu trazia na cabeça, ficando pendente, como uvas nos seus cachos. Eu, então, evançando, agarrei a tromba do elefante e, usando-a como um chicote, logrei atingir a cabeça do sultão várias vezes com ela, até que finalmente consegui fazê-lo desmontar. Nada se comparava à fúria daquele bárbaro ao se ver derrubado de seu elefante. Ele se ergueu e, furioso, investiu contra mim e minha montaria: mas eu me recusei a enfrentar um homem que estava em tão grande desvantagem e imediatamente desmontei para enfrentá-lo de igual para igual. Nunca havia enfrentado um adversário tão capaz; ele aparava meus golpes e os respondia com incrível precisão. Ao primeiro golpe de seu sabre, recebi um corte no nariz e, não fosse a firmeza de meus ossos, teria ficado com o nariz pendente sobre a boca. Ainda hoje trago a cicatriz.

O Sultão em seguida investiu contra minha cabeça, mas eu, desviando, abrandei a força de seu sabre, de modo que fiquei apenas com uma pequena marca na testa, e, no mesmo instante, fazendo uso de minha espada, decepei-lhe um braço, que caiu por terra, a mão ainda agarrada ao sabre; ele cambaleou uns passos e foi cair aos pés do seu elefante. O sagaz animal, vendo que seu amo corria perigo, tratou logo de protegê-lo, envolvendo com sua tromba a cabeça do Sultão.

Destemido, avancei contra o elefante, desejoso de capturar com vida o arrogante Tippoo Sahib; mas ele trazia uma pistola na cinta e a descarregou contra meu rosto, o que não me causou nenhum mal, a não ser um ferimento na bochecha, que me deixou um tanto desfigurado abaixo do olho esquerdo. Não pude resistir ao ódio e ao impulso de momento e, num golpe de espada, separei a cabeça do Sultão de seu corpo.

Retornei à Europa por terra com admirável velocidade, tão rápido que o relato de minha luta contra Tippoo ainda não havia chegado lá, o que só aconteceu depois de um tempo considerável. Eu simplesmente narrei os fatos acontecidos entre o Sultão e eu da forma como eles aconteceram; e se houver aqui alguém que duvide da veracidade do que digo, trata-se de um infiel, e lutarei com ele a qualquer hora e lugar, com a arma que ele escolher.

Ouvindo tantas pessoas falarem do salvamento do “Royal George”, apiedei-me daquele pobre navio submerso e decidi trazê-lo de volta à tona. Sabia dos vários meios empregados para salvar a embarcação, todos sem sucesso, e recorri a um método diferente de qualquer outro já tentado. Eu tinha um imenso balão, feito com um duro tecido empregado em velas de navio e, tendo descido às profundezas na minha campânula, amarrei diversos cabos à embarcação; de volta à superfície, atei os tais cabos ao balão. Prodigiosa multidão encontrava-se reunida para ver a subida do “Royal George” e, tão logo comecei a encher o balão de gás inflamável, o barco foi se despregando do fundo do mar: porém, quando o balão estava completamente cheio, ele arrastou o “Royal George” com incrível rapidez. A aparição do navio na superfície provocou um enorme brado de triunfo nos milhões de indivíduos que acompanhavam o resgate. Mas o balão continuou a subir, levando consigo e embarcação, como uma lanterna à cauda de uma pipa, e em poucos minutos aparecia flutuando por entre as nuvens.

Era da opinião de muitos filósofos que seria mais difícil trazer o navio para baixo do que tê-lo tirado do fundo do mar. Mas eu os convenci do contrário, atirando no balão com uma pistola, o que trouxe de volta o navio num instante.

Eu imaginava que se o dirigível estourasse enquanto ainda estivesse sobre a terra, a queda vertiginosa levaria à inevitável destruição do navio, sem falar que ele poderia atingir a multidão; desse modo, calculei que seria mais seguro esperar que o balão se pussesse sobre as águas e, apontando minha arma, atingi com felicidade o dirigível, levando o gás a escapar com grande força, e o “Royal George” desceu como uma estrela cadente exatamente oara o mesmo lugar onde ele estava antes. Assim, consegui convencer toda a Europa da possibilidade de trazê-lo de volta à tona.

 

O Barão faz um discurso à Assembléia Nacional e expulsa todos os seus membros – Derrota as pescadoras e a Guarda Nacional – Persegue toda a multidão em uma igreja, onde luta contra a Assembléia Nacional etc, auxiliada por Rousseau, Voltaire e Belzebú, e liberta Maria Antonieta a família real.

 

Passando pela Suíça em meu retorno da Índia, fui informado que vários nobres alemães haviam privado de honras e imunidades os seus estados franceses. Soube do sofrimento da adorável Maria Antonieta e jurei vingar cada olhar infamante dirigido contra ela. Fui à caverna daqueles Anthropophagi, que estavam reunidos e, graciosamente, levando o punho da espada até os lábios, gritei: “Eu juro pela sagrada cruz de minha espada que se os senhores não reinstaurarem imediatamente o rei, a rainha ofendida, assim como toda a nobreza, cortarei todos os senhores ao meio.”

Ao que o presidente, apanhando um pesado tinteiro, atirou-o contra minha cabeça. Abaixei para desviar do tiro e, correndo até o tribunal, agarrei o orador, que discursava ferozmente contra os aristocratas, e, segurando-o pela perna, arremessei o desgraçado contra o presidente. Readquirindo a compostura, expulsei todo mundo da casa e, trancando as portas, guardei a chave no bolso.

Dirigi-me então ao pobre rei e, fazendo uma mesura, disse: “Senhor, seus inimigos foram expulsos. Eu, sozinho, sou a Assembléia no momento e aprovarei seus decretos que mandam reintegrar a princesa e os demais nobres; no futuro, se for do agrado de sua majestade, serei também seu Parlamento e Conselho.” Ele me agradeceu e a adorável Maria Antonieta, sorrindo, deu-me sua mão a beijar.Naquele momento percebi um grupo da assembléia Nacional que se havia aliado à Guarda Nacional e uma enorme procissão de pescadoras, todos avançando contra mim. Deixei Suas Majestades em lugar seguro e, espada desembainhada, avancei contra meus inimigos. Trezentas pescadoras, envoltas em arbustos e com fitas nas mãos, investiam contra mim, furiosas, soltando gritos pavorosos. Repugnava-me sujar minha espada com aquele sangue, por isso, apanhei a primeira a se aproximar e, ajoelhando-a, tocando-a com minha espada, nomeei-a cavaleiro, o que apavorou todas as outras, que, aos gritos, fugiram em disparada, temerosas de virar aristocratas como a colega.

 

Quanto aos Guardas Nacionais e o restante da Assembléia, logo os coloquei para correr; e tendo feito alguns deles prisioneiros, obriguei-os a retirar a fita do chapéu e pôr em seu lugar a velha fita real.

Persegui os demais até o topo de uma montanha, onde um nobre edifício ofuscava-me a visão; nobre e sagrado que fosse, era, porém, empregado em vis propóstios; aquele monumento de grands hommes, uma igreja cristã que os sarracenos tinham pervertido num antro de abominação. Arrombei as portas e adentrei, espada na mão. Ali observei toda a Assembléia Nacional marchando em redor de um grande altar erguido à Voltaire; havia ali uma estátua dele, em triunfo, e as pescadoras, enfeitavam-na de guirlandas e cantavam “Ca ira!” Não pude suportar a visão daquilo por mais tempo; investi contra aqueles pagãos e deixei prostadas dúzias deles ali mesmo onde estavam. Os membros da Assembléia e as pescadoras continuavam a invocar o grande Voltaire e todos os mestres daquele monumento de grands hommes, implorando que vissem socorrê-los dos aristocratas e da espada de Munchausen. Seus clamores eram horríveis, como os gritos das bruxas e dos encantadores versados em magia negra; soou o trovão, uma tempestade abalou as muralhas e Rousseau, Voltaire e Belzebú apareceram, três horrendos espectros; um era somente pele e osso, cadavérico, parecendo mais a própria morte do que um repugnante esqueleto; era Voltaire, na mão trazia uma lira e uma adaga. Do lado oposto estava Rousseau, com um cálice de doce veneno na mão, e entre eles estava o pai de ambos, Belzebú!

Estremeci ante a visão horrenda e, com todo ódio, horror e piedade, atirei-me no meio deles. Agarrei aquele maldito esqueleto chamado Voltaire e o obriguei a renunciar a todos os erros que já cometera; enquanto ele falava, como que por mágica, toda a assembléia pôs-se a gritar, pois a enorme construção desabava com estrondo, deixando tudo em ruínas.

Retornei ao palácio em triunfo; lá a Rainha correu para os meus braços, chorando ternamente. “Ah, flor da nobreza”, disse ela, às lágrimas. “Fossem todos os nobres da França iguais a ti e jamais teríamos chegado a este ponto!”

Esperei que aquela adorável criatura enxugasse os olhos e, com o rei e o Delfim, subisse em minha carruagem; seguimos para Mont-Medi, pois não havia tempo a perder. Eles concordaram comigo. Levei-os até uns poucos quilômetrtos adentro de Mont-Medi, quando o rei, agradecendo a assistência, pediu que eu não me preocupasse mais, pois presumia já estarmos fora de perigo; o mesmo fez a Rainha: lágrimas nos olhos, agradeceu-me de joelhos e fez o Delfim tomar minha bênção. Em breve, parti, enquanto o rei saboreava uma coxa de carneiro. Adverti-o para que não se atrasasse, caso contrário, acabaria capturado e, fincando as esporas no meu cavalo, desejei-lhe uma boa noite, e retornei então para a inglaterra. Se o rei demorou-se demais à mesa e acabou sendo capturado, não foi culpa minha.

 

 

                                                                                Rudolph Erich  

 

                      

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