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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BIZÂNCIO / Stephen Lawhead
BIZÂNCIO / Stephen Lawhead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BIZÂNCIO

Primeira Parte

 

Aidan vive a vida tranquila e contemplativa de um escriba no mosteiro de Cenannus na Ríg, dividindo acordado o seu tempo entre as orações, as tarefas e os sonhos.

Então, um dia, tem lugar um milagre que quebra a sua confortável mas frequentemente aborrecida rotina: Aidan é escolhido para acompanhar um pequeno grupo de monges numa viagem até à área mais longínqua do mundo conhecido - à fabulosa e exótica cidade de Bizâncio - para presentear o Sacro Imperador Romano com o belo Livro de Kells.

Aidan nunca poderia ter imaginado as aventuras que o aguardavam, excitantes, pavorosas e assustadoras para lá dos seus sonhos mais loucos. Muito provavelmente, se as tivesse imaginado, nunca teria abandonado a segurança da sua abadia.

Aidan vai viajar desde as onduladas colinas verdejantes da Irlanda, através dos tempestuosos mares atlânticos e das terras dos terríveis nórdicos, até às águas azuis do Mediterrâneo, às cúpulas douradas de Bizâncio e aos áridos desertos árabes, desde a solidão e a inocência até ao coração de um brilhante mas corrupto Império. Durante a sua jornada, acabará por se tornar num escravo, num embaixador, num espião, num pagão, num viquingue e num sarraceno. Perderá os amigos e o seu caminho, mas acabará por ver mais do mundo do que a maior parte dos homens do seu tempo, até acabar por lhe ser concedida uma dádiva muito rara, a do conhecimento e escolha do seu próprio destino.

Uma jornada fabulosa desde as verdes colinas da Irlanda até ao coração de um Império brilhante mas corrupto...

 

Vi Bizâncio num sonho e soube que era aí que iria morrer. A vasta cidade pareceu-me uma coisa viva, como um grande leão dourado, ou como uma serpente coroada enrolada sobre uma rocha, maravilhosa e mortífera. Com passos trémulos, avancei sozinho para abraçar a besta, com o medo a transformar-me os ossos em água. Não ouvia qualquer som excepto o do bater do meu próprio coração e o silvo baixo da respiração da criatura. Quando me aproximei, o olho semicerrado abriu-se e a besta despertou. A assustadora cabeça ergueu-se, a boca abriu-se. Um som, como o uivo do vento através de um céu de Inverno, rasgou os céus e fez tremer a Terra enquanto uma rajada de um hálito horrendo me atingia, ressequindo-me as carnes.

Continuei, a cambalear, ofegante, incapaz de resistir porque estava a ser empurrado por uma força muito para lá dos meus poderes. Horrorizado, vi a terrível besta a rugir. A cabeça ergueu-se nos ares e desceu rapidamente, tão depressa como um raio ou como o mergulho de uma águia sobre a sua presa... e senti as terríveis maxilas a lançarem-se sobre mim enquanto eu gritava.

Foi então que despertei, mas o meu despertar não me trouxe alegria ou alívio porque me levantei não para a vida mas sim para a terrível certeza da minha morte. Ia morrer e as torres douradas de Bizâncio iriam ser o meu túmulo.

No entanto, antes do sonho - algum tempo antes - encarara tudo sob uma perspectiva muito diferente. Uma tão rica oportunidade não estava ao alcance de toda a gente e considerara-me abençoado para além de todas as medidas pela minha boa sorte. E como não? Era uma honraria rara para alguém tão jovem e eu bem o sabia. Não que me pudesse esquecer desse facto com facilidade porque era constantemente recordado dele pelos meus irmãos monges, muitos dos   quais me olhavam com uma mal disfarçada inveja. Entre os sacerdotes mais jovens, eu era considerado como o mais capaz e o mais sabedor, pelo que tinha mais probabilidades de vir a alcançar a honra que todos procurávamos.

Contudo, o sonho envenenou a minha felicidade. Agora sabia que a minha vida terminaria na agonia e no medo. Fora isso o que o sonho me mostrara e não era tão estúpido que duvidasse. Sabia - com a confiança das convicções à prova de fogo - que o que sonhara se concretizaria.

Sim, sou uma daquelas almas amaldiçoadas que vêm o futuro em sonhos...

e os meus sonhos nunca se enganam.

As notícias sobre o plano do bispo haviam chegado até nós um pouco depois da Missa de Cristo. "Serão seleccionados onze monges," informara- nos o abade Fraoch nessa noite, à mesa. "Cinco monges de Hy, três de

Lindisfarne e três de Cennanus." Essa selecção, acrescentara, deveria ser feita antes da Páscoa.

A seguir, o nosso bom abb abrira os braços para incluir todos os que se encontravam reunidos no refeitório. "Irmãos, é da vontade de Deus honrar-nos deste modo. Acima de tudo o mais, coloquemos de lado as invejas e as orgulhosas discórdias, e que cada um entre nós procure os conselhos do Santo Rei ao longo dos tempos que temos pela frente."

Foi o que fizemos, cada um à sua própria maneira. Na verdade, não me mostrei menos ardente do que o mais zeloso entre nós. Iriam ser escolhidos três e eu queria ser um deles. Por isso, ao longo dos negros meses de Inverno, esforcei-me por me tornar merecedor aos olhos de Deus e dos meus irmãos. Era o primeiro a levantar-me e o último a deitar-me, trabalhava com ilimitada diligência, entregando-me a todas as tarefas que surgissem naturalmente no meu caminho mas sem deixar de me desviar dele para ajudar nas tarefas dos outros.

Se houvesse quem rezasse, rezava com eles. Se houvesse quem trabalhasse, trabalhava com eles. Quer fosse nos campos, na cozinha, no oratório ou no scriptorium, lá me encontravam, diligente e ansioso, fazendo tudo o que estivesse ao meu alcance para aliviar os fardos dos outros e para provar que era merecedor. O meu zelo não podia ser estancado.

A minha devoção não ficava atrás da de qualquer outro.

Quando já não conseguia lembrar-me de nada para fazer, iniciava uma penitência - tão severa quanto fosse capaz de imaginar - para me punir a mim mesmo e para afugentar os demónios da preguiça, do orgulho, da inveja, do desprezo... e todos os outros que pudessem surair no caminho. Era com um coração verdadeiro e contrito que humilhava o meu espírito irrequieto.

Então, uma noite...

Mantinha-me no meio das águas rápidas do Blackwater, agarrando uma malga de madeira com mãos trémulas. O nevoeiro, levemente espectral sob a pálida luz da Lua que acabara de nascer, descrevia lentos remoinhos sobre a superfície do rio. Quando as minhas carnes começaram a ficar entorpecidas, mergulhei a malga nas águas geladas e despejei-a sobre os ombros e as costas. Os meus órgãos internos estremeceram com o choque da água fria sobre a pele nua e esforcei-me de tal modo para impedir que os dentes chocalhassem que as queixadas me ficaram a doer do esforço. Já não sentia nem os pés, nem as pernas.

Formava-se gelo tanto nos locais de águas plácidas, no meio das pedras da margem, como também nos meus cabelos molhados. O meu bafo pairava e formava nuvens por cima da minha cabeça. Lá muito no alto, as estrelas brilhavam como pontos de chamas prateadas, sólidas como o solo do Inverno, duro como o ferro, e tão silenciosas como a noite à minha volta.

Mais uma vez, e outra, despejei a água gelada sobre o corpo, reforçando a virtude da penitência que escolhera.

- Kyrie eleison! - ofeguei - Senhor, tem piedade de mim!

Foi deste modo que mantive a minha vigília e tê-la-ia mantido durante mais algum tempo se não tivesse sido distraído pelo aparecimento de dois irmãos monges que empunhavam tochas. Ouvi alguém a aproximar-se, rodei o pescoço rígido e viu-os a cambalearem pela íngreme margem do rio com os archotes bem levantados.

- Aidan! Aidan! - gritou um deles. Era Tuam, o tesoureiro, na companhia de Dda, o ajudante do cozinheiro. Deslizaram pela vertente até pararem na margem e ficaram ali por instantes, olhando-me por cima dos movimentos das águas. - Temos andado à tua procura.

- Então, já me encontraram - retorqui, por entre os dentes cerrados.

- Tens de sair daí - declarou Tuam.

- Só quando terminar.

- O abade convocou toda a gente. - O tesoureiro baixou-se, apanhou a minha capa e estendeu-ma.

- Como souberam que estava aqui? - perguntei, patinhando para a margem.

- O Ruadh sabia - respondeu Dda, esticando um braço para me ajudar a subir para a escorregadia margem.

Ergui as minhas mãos geladas para eles. Seguraram-nas e puxaram-me para fora da água. Tentei segurar o manto mas tinha os dedos entorpecidos e tremiam tanto que não o consegui. Tuam colocou-me rapidamente o manto sobre os ombros.

- Obrigado, irmão... - murmurei, enrolando o manto à minha volta.

- Consegues andar? - perguntou Tuam.

- Onde vamos? - interroguei-me, tremendo violentamente.

- Para a gruta - explicou Dda, com um brilho de mistério no olhar.

Reuni o resto das minhas roupas e apertei-as contra o peito enquanto se afastavam.

Segui-os... mas os meus pés estavam tão entorpecidos e as pernas tremiam-me tanto que cambaleei e caí por três vezes antes de Tuam e

Dda voltarem para trás para me ajudarem. Apoiaram-me entre si e caminhámos ao longo do trilho do rio.

Os monges de Cennanus na Ríg nem sempre se reuniam na gruta.

Na verdade, só o faziam nas ocasiões mais importantes, e mesmo assim era muito raro estarmos todos juntos. Embora os meus companheiros nada mais dissessem, acabei por compreender, pelas suas maneiras secretas, que iria acontecer algo de extraordinário. Quanto a isso, não me enganei.

Tal como Tuam dissera, todos haviam sido convocados e quando lá chegámos já se encontravam reunidos no sanctorum speluncae. Entrámos rapidamente e ocupámos os nossos lugares no meio dos outros. Ainda a tremer, agarrei no hábito e no manto e vesti-me tão rapidamente quanto mo permitiam as minhas mãos desajeitadas.

Dando pela nossa chegada, o abade avançou e ergueu as mãos numa bênção.

- Fazemos vigílias, jejuamos e estudamos... - declarou o Abade Fraoch, com uma voz que era como um coaxar áspero na câmara abobadada da gruta. - Esta noite, rezamos. - Fez uma pausa, como um pastor satisfeito com a reunião do seu rebanho. - Irmãos, rezamos para que Deus nos guie e abençoe durante a escolha que temos pela frente, pois é esta a noite em que os Célé Dé irão ser escolhidos. - Nova pausa, enquanto nos examinava a todos pela última vez. - Que o espírito de Deus esteja connosco e que a sua sabedoria se manifeste entre nós!

Amém!

- Amém! Assim seja! - responderam todo os que se encontravam ali reunidos.

Chegara finalmente o momento, pensei, e o meu coração acelerou-se.

A espera ia terminar e a decisão seria tomada naquela noite.

- Irmãos, rezemos! - O abade Fraoch deixou-se cair no chão, prostrando-se em frente ao pequeno altar de pedra.

Nada mais foi dito porque não era preciso dizer mais nada. Na verdade já há muito que havíamos extraído todo o significado às palavras através de infindáveis discussões e debates. Assim, depois de muitas vigílias, jejuns e estudos ao longo dos meses negros, chegara ao momento de procurar as bênçãos do trono celestial. Jazemos no chão de pedra nua da gruta e abandonámo-nos às orações. O ar da gruta estava denso com o calor de tantos corpos e carregado do fumo e do cheiro das velas. Ajoelhei-me.

Dobrei-me sobre mim mesmo, com os braços estendidos e a cabeça a tocar no chão de pedra, escutando as invocações sussurradas que enchiam a gruta com o seu zumbido familiar.

Gradualmente, os murmúrios foram diminuindo. Algum tempo depois, a gruta voltou a recuperar o silêncio profundo e calmo de um túmulo. Se não fosse o suave estralejar da oscilante chama das velas e a respiração lenta e regular dos monges, não se ouviria um som. Poderíamos ser os últimos homens sobre a Terra, ou os mortos de uma outra era, à espera de regressarem à vida.

Rezei com um fervor jamais igualado em toda a minha vida. Procurei sabedoria e conselho, e essa minha procura era sincera, juro-o! Rezei:

 

"Rei dos Mistérios, que foste e estás,

Antes dos elementos, antes das eras,

Rei eterno, gracioso de aspecto,

E que reinas para sempre, concede-me três coisas:

Inteligência para discernir a Tua vontade,

Sabedoria para a compreender,

E coragem para a seguir."

 

Foi assim que rezei e todas as minhas palavras eram sentidas. A seguir rezei para que a honraria que procurava fosse deposta nas minhas mãos.

Mesmo assim, fiquei surpreendido quando, após longos momentos, escutei passos perto de mim, senti um toque no ombro e ouvi a voz do abade:

- Levanta-te, Aidan e fica de pé.

Levantei a cabeça lentamente. As velas haviam ardido muito e a noite ia avançada. O abade Fraoch olhou para baixo, para mim, acenou com gravidade e levantei-me. Continuou o seu caminho, deslocando-se por entre os corpos prostrados. Observei-o enquanto avançava para aqui e para acolá.

Pouco depois, dobrou-se junto a Brocmal, tocou-lhe e ordenou-lhe que se levantasse. Brocmal obedeceu e olhou em volta. Viu-me e inclinou a cabeça, como que num sinal de aprovação. O abade prosseguiu, caminhando com passos lentos e aparentemente sem finalidade, passando e tornando a passar por entre os monges que oravam, até chegar junto do irmão Libir. Ajoelhou-se, tocou em Libir e ordenou-lhe que se pusesse de pé.

E ali estávamos nós: éramos três e observávamo-nos silenciosamente uns aos outros. Brocmal e Libir mostravam-se gratos e satisfeitos enquanto eu continuava surpreendido. Fora escolhido! O que mais desejara, acima de todas as outras coisas, fora-me concedido! Mal conseguia acreditar na minha boa sorte e tremia de triunfo e de delícia.

- Levantem-se, irmãos - grasnou Fraoch - e vejam os escolhidos por Deus. - Chamou-nos pelos nomes: - Brocmal... Libir... e Aidan, aproximem-se. - Convocou-nos e ocupámos os nossos lugares a seu lado enquanto os outros monges nos olhavam. - Irmãos, estes serão os três que encetarão a peregrinação em nosso nome. Que o Alto Senhor dos Céus seja louvado!

Sessenta pares de olhos olharam para nós com uma mistura de surpresa e também, para alguns, de desapontamento. Quase conseguia ouvir o que estavam a pensar. O Brocmal? Sim, claro, era o mestre de toda a aprendizagem e da arte dos livros. Libir? Sim, mil vezes sim! Famoso pela sua sabedoria e pelo reconhecido zelo, a paciência e a piedade de Libir eram quase lendárias através de todo o Éire. Mas... o Aidan mac Cainnech? Devia ser engano... A descrença estampada nos seus rostos não era difícil de ler... e mais do que um monge se interrogava por que motivo fora preterido... por mim.

Contudo, o abade Fraoch parecia mais do que satisfeito com as escolhas feitas.

- Agradeçamos a Deus e a todos os santos esta muito satisfatória conclusão das nossas longas deliberações.

Conduziu-nos numa muito simples oração de graças e mandou-nos embora, de volta às nossas tarefas. Saímos da gruta, todos encolhidos para podermos gatinhar pela estreita passagem, e deparámos com a luz da madrugada de um dia estimulante e ventoso. Enquanto nos deslocávamos sob uma luminosidade pálida e rosada, senti-me como se fôssemos cadáveres renascidos. Depois de passar uma eternidade debaixo da terra, fora despertado, erguera-me e abandonara o túmulo para voltar a caminhar no mundo. Este, para mim, parecia-me um mundo grandemente alterado, acabado de criar e repleto de promessas. Bizâncio esperava-me e eu encontrava-me entre os Célé Dé escolhidos para encetarem a jornada. Chamavam-lhe o Martírio Branco... e assim é.

 

Caminhámos ao longo do Blackwater entoando um hino ao novo dia e só chegámos aos portões da abadia quando a luz do Sol nascente já tocava no alto da torre sineira. Depois da prima, reunimo-nos no salão para o pequeno-almoço. Sentei-me na comprida mesa, muito consciente da minha nova proeminência. O irmão Enan, que leu os salmos para a refeição da manhã, não foi capaz de conter a sua excitação perante o facto da nossa comunidade ir, tal como o disse, "enviar os nossos mais reveren- ciados monges para ajudarem a levar o grande livro através dos mares, até ao Sacro Imperador. Enan pediu uma oração de graças especial pelos três escolhidos, pedido que o abade aceitou. Foi assim, com um júbilo estouvado, que leu o Magnificat.

Ao escutar a cadência daquelas palavras bem conhecidas, pensei:

Sim! Então é assim! Isto é o que se sente quando somos escolhidos, quando

Deus nos chama para um grande empreendimento. A minha alma louva o Senhor e o meu espírito rejubila em Deus, o meu Salvador, que não se esqueceu deste seu humilde servo! Sim!

Tratava-se, tal como o abade Fraoch afirmava - e toda a gente concordava - de uma grande honra para todos nós. Na verdade, era uma honra que eu procurara tão ardentemente como todos os outros. Contudo, agora era minha... e ainda não conseguia acreditar na boa sorte. Ao ouvir

Enan rezar a Deus agradecendo aquela exaltada bênção, o meu coração como que pairou dentro de mim. Sentia-me humilhado, satisfeito e orgulhoso... tudo ao mesmo tempo, o que me provocava uma espécie de vertigem. Tinha vontade de me rir em voz alta... ou acabaria por explodir.

Uma vez, durante a refeição, levei a taça aos lábios e aconteceu que olhei ao longo da comprida mesa do refeitório para descobrir que estava a ser observado por um bom número dos meus irmãos. A ideia de que encontravam em mim algo merecedor de destaque provocou-me uma vaga de orgulho que me fez sentir culpado. Comi o meu caldo e o pão de cevada e esforcei-me, para bem dos bem-intencionados irmãos, por tentar não parecer demasiado satisfeito e importante aos seus olhos, de modo a não os ofender.

Quando a refeição terminou, o abade Fraoch chamou-me com um gesto. Aproximei-me e debrucei-me, para o poder ouvir.

- Suponho que deves ter muito em que pensar, Aidan - sussurrou. Anos atrás, o abade perdera a voz por causa do golpe da lâmina de um Lobo do Mar, pelo que as suas palavras nunca eram mais do que sussurros e grasnidos ásperos.

- Sim, abade... - respondi.

- Portanto... - prosseguiu - liberto-te de todos os teus deveres.

Aproveita este dia para descansares, pensares... e para te preparares.

Tentei protestar mas o abade continuou:

- A tua busca desta oportunidade foi muito vigorosa. O teu zelo é louvável, meu filho, mas logo que o tempo mudar irás ter pela frente muito mais trabalho e uma jornada esgotante. - Pousou uma das mãos no meu ombro: - Tens um dia só para ti, Aidan... e poderá ser o último em muito, muito tempo.

Agradeci-lhe, afastei-me e atravessei apressadamente o pátio em direcção à minha cela. Entrei, fechei a pele de boi que me servia de porta e lancei-me para cima do catre, onde fiquei a espernear e a rir-me. Fora escolhido. Escolhido! Ia partir para Bizâncio! Ri-me à gargalhada até os flancos me doerem, as lágrimas me subirem aos olhos e já não conseguir rir-me mais.

A excitação deixou-me exausto. Como não dormira na noite anterior, fechei os olhos e ajeitei-me para descansar, mas a minha mente continuava a rodopiar. Pensa, Aidan! Pensa nos sítios que irás ver, nas pessoas que irás conhecer. Oh, é maravilhoso, não é?

Os meus pensamentos esvoaçavam como aves assustadas e não conseguia dormir embora me sentisse muito cansado.

Por isso, tentei meditar. Tal como o abade sugerira, tratava-se de uma árdua jornada e tinha de me preparar tanto espiritualmente como mentalmente. Parecia-me apropriado trazer à mente todos os perigos e dificuldades que poderíamos ter de encontrar pela frente. Porém, em vez de perigos, vi vastas cadeias de montanhas envoltas em nuvens, estranhos mares a cintilarem sob céus exóticos, vi pessoas a encherem as ruas de grandes cidades e vi os pátios de reluzentes palácios. Em vez de dificuldades, vi potentados orientais, reis, rainhas, bispos e cortesãos... todos trajados com um esplendor capaz de rivalizar com a glória do Sol.

Uma vez que as meditações tinham falhado, virei-me para as orações. Comecei por pedir perdão pela inconstância dos meus pensamentos. Contudo, muito em breve, descobri-me a pensar no encontro com o

Imperador, no modo como deveria falar com ele, o que lhe poderia dizer, se deveria ou não beijar o seu anel ou ajoelhar... bem como em mil outras coisas, muito diferentes da oração que iniciara. Como não conseguia dormir nem rezar, decidi sair para as colinas. A solidão e o esforço, pensei, poderiam acalmar o meu espírito irrequieto e levar-me a um estado mental de maior tranquilidade. Levantei-me imediatamente e abandonei a minha cela. Atravessei o pátio à pressa e dirigi-me para o portão, passei pelos alojamentos para os hóspedes e saí. Prossegui pelo caminho ao longo da muralha, desci ao fosso pouco profundo, subi pelo outro lado e virei para o trilho da colina. O dia outrora brilhante apagara-se sob um céu mortiço mas o vento continuava fresco e apreciei as mordidelas amargas do ar frio no rosto enquanto caminhava, com o bafo a provocar pequenas nuvens de vapor. O trilho era sempre a subir e em breve atingi as alturas por cima da elevação e comecei a abrir caminho ao longo do topo da colina.

Andei durante muito tempo, deixando que as passadas me levassem para onde lhes apetecesse. Era uma alegria sentir o vento frio nas faces enquanto preenchia a alma com a beleza verde das colinas que tanto amava. Por fim, acabei por chegar à beira da grande floresta. Não ousando penetrar sozinho naquele escuro domínio, voltei para trás e refiz o caminho já percorrido... mas a minha mente pairava muito à minha frente, em trilhos desconhecidos.

Tinha a cabeça cheia de pensamentos sobre paisagens estranhas e costumes exóticos, e imaginava o que seria pisar uma terra estrangeira, saborear alimentos estrangeiros e ouvir línguas estrangeiras proferindo palavras que até ali nunca escutara. Porém, mesmo enquanto os olhos da minha mente me viam a caminhar ousadamente através de campos pouco familiares, a apresentar-me perante o Papa ou a ajoelhar na frente do Imperador, continuava a ser-me difícil de acreditar que o homem que estava a ver nessas imagens era eu próprio.

No fim de contas, tratava-se de um exercício suficientemente agradável, embora frívolo, que me ocupou até chegar ao meu poleiro favorito:

uma saliência rochosa logo por cima da crista da colina, com vista para o mosteiro, para o amplo vale e para o rio negro que ficava para lá dele. Sentei-me na turfa coberta de ervas, com as rochas a protegerem-me do vento, e fi-lo no preciso momento em que o sino do mosteiro tocava a sexta.

Apesar de ainda ser meio-dia, o Sol de finais de Inverno já ia muito baixo e banhava o vale com uma luz suave e enevoada. A abadia continuava como sempre a conhecera desde os tempos das minhas mais antigas memórias, imutável, tal como o seu oratório e scriptorium, um local de solidão e de segurança onde nem sequer o tempo, o Grande Destruidor, se atrevia a entrar.

Chamavam-lhe Cennanus na Ríg, a Fortaleza dos Reis. Em tempos antigos servira como fortaleza real, uma fortificação no alto de uma elevação e no interior de anéis protectores feitos de terra e de troncos. Porém, os reis há muito que haviam abandonado aquela fortaleza a favor de

Tara. Assim, enquanto a antiga sede dos monarcas do Éire se gabava novamente da presença de um soberano, os fossos e muralhas de Cennanus protegiam agora um mosteiro, bem como a população de vários povoados.

Chegara à abadia ainda rapaz. Fora desejo do meu pai que viesse a ser sacerdote. Cainnech era rei e eu o seu segundo filho. Como era considerado auspicioso que o clã possuísse um sacerdote de sangue nobre, tinham-me enviado para longe, para ser adoptado não por uma casa nobre mas sim por um mosteiro.

Tinha apenas cinco anos quando havia sido enrolado no pano que a minha mãe tecera para mim e levado para o mosteiro. O pano seria para fazer a minha capa quando prestasse os votos sagrados. Usava-a naquele momento, embora fosse cinzenta e as dos outros monges fossem castanhas, isto porque eu era um príncipe no meu clã. Mesmo assim, qualquer pretensão que pudesse vir a ter em relação ao trono desfez-se por altura do décimo aniversário, quando o meu pai e o meu irmão, bem como a maior parte do clã, foram mortos numa batalha com os dinamarqueses em Dubh Llyn, perto de Atha Cliath.

Depois das suas mortes, o reino passou para um homem de outra tribo, um primo do meu pai. Foi no dia em que enterraram o meu pai que também enterrei todas as esperanças de alguma vez vir a ocupar o meu lugar como sacerdote e conselheiro de um rei. Por outro lado, também nunca me tornaria num soberano, tal como acontecera com outros sacerdotes. O mundo dos reis e das preocupações da corte não era para mim.

Ao princípio confesso que me senti amargamente desiludido. No entanto, à medida que o tempo foi passando, acabei por amar aquela vida do mosteiro onde todas as mãos se mantinham atarefadas desde a madrugada até ao pôr do Sol, e onde todos se moviam num ritmo preciso de acordo com o ciclo do trabalho, das orações e dos estudos.

Dediquei-me à aprendizagem e ao fim de doze Verões atingi o scriptorium, decidido a seguir a vocação de um escriba embora uma pequena parte de mim ainda ansiasse por abraçar uma vida com um âmbito muito mais vasto.

Foi por isso que naquela noite gelada de Inverno, quando a notícia sobre o empreendimento do bispo foi proclamada entre nós pela primeira vez, decidi demonstrar que era merecedor de me juntar a uma tal peregrinação. E conseguira, Deus fosse louvado! Era um homem afortunado e ia partir para Bizâncio! Oh, essa ideia, por si só, deixava-me deliciado. Abracei-me a mim mesmo, oscilando para um lado e para o outro sobre as ervas e rindo-me da minha boa sorte.

Ao olhar para baixo, do meu poleiro no alto da colina, vi os monges a saírem da capela para regressarem às suas tarefas. Alguns dirigiam-se para a cozinha, para prepararem a refeição do meio-dia, outros para o scriptorium, outros para as oficinas e armazéns, e outros ainda para os campos e para os montes de lenha. Embora me tivesse sido concedido um dia de ociosidade, era bom ver os meus irmãos entregues ao trabalho. Depois, virei os olhos para o mundo para lá do mosteiro.

O Blackwater corria no vale para lá do anel de muralhas. No outro lado do rio havia gado a pastar nas vertentes, com os focinhos junto ao chão gelado e as caudas a abanarem ao vento. Mais para diante viam-se apenas colinas desertas, cobertas pelo verde-acinzentado do Inverno, que se prolongavam para leste em ondulações suaves. A mancha de fumo dispersa pelo vento assinalava o local da povoação mais próxima. Ao longo do horizonte, logo por baixo das nuvens de chumbo, aparecia a mais leve das linhas azuis.

Vi essa mancha de cor a alargar-se e a profundar-se até ganhar um brilhante azul de ovo de pássaro. Na abadia, lá em baixo, a sineta da cozinha anunciou a refeição. Observei os monges a encaminharem-se para o refeitório mas, contente com a minha própria companhia, não fiz qualquer tentativa para me juntar a eles. O pão e o caldo não me excitavam o apetite e preferia banquetear-me com a beleza daquele dia... que o meu êxito tornara muito mais doce.

Passado algum tempo o Sol perfurou a cobertura de nuvens e a sua luz, com um pálido tom de mel, espalhou-se pelo alto da colina, tocando-me e aquecendo-me. Recostei-me contra a rocha fria, fechei os olhos e virei o rosto para o Sol, deixando que o calor me descongelasse as orelhas e faces... e dormitei.

- Aidan!

O grito, embora indistinto e vindo de muito longe, despertou-me. Abri os olhos e vi uma volumosa figura a trepar a colina, chamando-me enquanto caminhava.

Aidan!

Dugal, que era de longe o homem mais alto entre nós, aproximava-se rapidamente e subia a vertente com grandes passadas. Fora guerreiro antes de chegar a Cennanus e como tal ainda usava as tatuagens, feitas com tinta de ísatis, que era o símbolo do seu clã: um salmão a saltar no braço direito, e um disco em espiral no esquerdo. Depois de tomar os votos, acrescentara um outra tatuagem, uma cruz sobre o coração.

No que se referia a força e destreza, raramente surgia alguém melhor do que ele. Era capaz de esmagar nozes com punhos, conseguia lançar três facas ao mesmo tempo e mantê-las a rodopiar no ar por todo o tempo que lhe apetecesse. Uma vez, vira-o levantar um cavalo. Guerreiro por treino, monge por vocação, era na verdade, e sob muitos aspectos, um cristão muito invulgar.

Nunca o vira lutar mas as cicatrizes que se entrecruzavam nos braços argumentavam a favor do seu valor em combate. Contudo, como monge...

bom, digamos apenas que nenhum outro estudioso do latim conseguia atirar uma lança nem sequer a metade da distância a que Dugal mac Caran a atirava. Entre todos os irmãos da abadia, era ele o meu melhor amigo.

- Mo anani! - exclamou, quando chegou ao cimo e ficou a pairar sobre mim. - Uma bela subida para um dia frio! Já me tinha esquecido que esta colina era tão alta. - Olhou em volta, com um sorriso a espalhar-se-lhe lentamente pelas faces. - Ah, mas tem uma bela vista!

- Bem-vindo, Dugal. Senta-te e descansa.

Deixou-se cair a meu lado com as costas contra as rochas e ficámos os dois a olhar para o vale. Nenhum de nós falou durante algum tempo, satisfeito por nos podermos ensopar no pouco calor que o Sol nos oferecia.

- Não apareceste para almoçar e Ruadh mandou-me à tua procura.

Sabia que te ia encontrar aqui.

- E aqui estou.

Concordou com um aceno e perguntou, apelas um instante depois:

- E que estás aqui a fazer?

- A pensar - repliquei. - Ainda não consigo acreditar que fui escolhido para acompanhar o livro.

- Sim, é uma maravilha! - declarou Dugal, dando-me uma cotovelada. - Irmão, não estás satisfeito?

Sorri-me para ele para lhe mostrar toda a extensão da minha satisfação.

- Na verdade, creio que nunca me senti tão feliz. Achas que é errado?

Como que para responder à minha pergunta, Dugal replicou:

- Trouxe-te uma coisa. - Meteu a mão no cinto e fez aparecer uma pequena bolsa de couro que endireitou e alisou com a mão. A bolsa era nova e um dos seus lados tinha um nome cuidadosamente gravado a fogo: Dána. A palavra significava "ousado" e tratava-se de um nome que me dera anos atrás e que só ele utilizava. Era uma pequena brincadeira do príncipe dos guerreiros para um dócil escriba.

Agradeci-lhe a dádiva e comentei:

- Deves ter precisado de muito tempo para fazeres isto. Como sabias que iria ser escolhido?

- Nunca o duvidei - respondeu o volumoso monge, com um simples encolher de ombros. - Se um de nós fosse... tinha a certeza de que serias tu.

- Muito obrigado, Dugal - declarei. - Vou guardá-la sempre comigo.

Acenou de satisfação e virou o rosto para o outro lado.

- Dizem que o céu, em , é de ouro - afirmou, com simplicidade - e que até as estrelas são diferentes.

- É verdade - confirmei. - Também tenho ouvido dizer que as pessoas têm a pele preta.

- Todas? - interrogou-se. - Ou serão só algumas?

- Algumas, pelo menos - respondi, com uma certa confiança.

- E as mulheres também?

- Suponho que sim.

- Não me parece... - afirmou Dugal, contraindo os lábios - que me agradasse ver uma mulher de pele preta.

- Nem a mim... - concordei.

Ficámos sentados em silêncio durante algum tempo, pensando na completa estranheza de céus de ouro e homens de pele preta. Por fim, incapaz de se conter durante mais tempo, Dugal suspirou:

- Meu Deus, como eu gostaria de ir contigo! Daria tudo para também poder ir!

Ouvi a ansiedade na sua voz e senti a dor da culpa a mordiscar-me o coração. Desde que soubera da minha boa sorte não pensara uma única vez naquele meu amigo, e nem sequer tomara em consideração os sentimentos dos que iriam ficar para trás. Na verdade, não pensara em mais nada, excepto em mim mesmo e na minha própria felicidade. Despertei para a vergonha e encolhi-me ante a mais recente demonstração do meu tremendo egoísmo.

- Quem me dera que pudesses ir - disse-lhe.

- Ah, que bom que seria! - fez uma pausa, considerando uma tal possibilidade, e soltou novo suspiro de resignação quando a mesma demonstrou encontrar-se para lá da sua capacidade de imaginação. Ah, minha alma...

O gado, do outro lado do rio, começou a mugir enquanto se deslocava lentamente para o rio para ir beber. O pálido Sol descia cada vez mais, tingindo a parte inferior das nuvens com um tom semelhante ao da manteiga. Reparei que o vento abrandara e mudara de direcção, arrastando consigo o cheiro do fumo da cozinha.

- Mo croi... - murmurou o enorme monge algum tempo depois.

- Olha para nós dois... Que achas que irá ser de nós?

Eu vou partir e tu ficas, pensei... e foi nesse mesmo momento que compreendi pela primeira vez que iria deixar para trás todas as coisas familiares que já conhecera. Iria e passar-se-iam meses - talvez até anos

- antes de poder voltar a abraçar qualquer um dos meus amigos e irmãos.

O tecido bem apertado da minha vida iria rasgar-se de maneiras que ainda nem sequer era capaz de conceber. Não lho disse, é claro... Como poderia fazê-lo? Em vez disso, limitei-me a responder:

- Quem o poderá saber?

Ficou calado durante um bocado mas acabou por perguntar:

- Quando voltares, trazes-me um tesouro, Aidan?

- Assim farei - prometi, satisfeito por ter qualquer coisa para lhe oferecer como prémio de consolação. Desloquei a cabeça para o observar. Continuava a olhar para o outro lado do vale mas tinha os olhos enevoados de lágrimas. - Tudo o que quiseres - acrescentei.

- Ouvi dizer que as facas de Bizâncio são as melhores do mundo...

Ainda melhores do que as fabricadas pelos homens de Saex.

- Queres uma faca?

- Ah, sim, claro que quero!

- Então, vou trazer-te a melhor faca que conseguir encontrar em toda Bizâncio - prometi. - E trago-te também uma lança.

Acenou e fitou o outro lado do vale sob a luz que se apagava rapidamente.

Tenho de ir... - declarou, passando rapidamente uma das mãos pelos olhos - ou o Ruadh ainda começa a perguntar a si mesmo se me terá acontecido alguma coisa. Alguns de nós, pelo menos, não tiveram autorização para ficarem sentados todo o dia, a pensar.

- Vou contigo - declarei. Endireitei-me e Dugal estendeu-me uma das suas enormes mãos. Aceitei-a e puxou-me para cima com um único puxão. Ficámos a olhar um para o outro, sem falar.

Por fim, Dugal virou-se e olhou para o outro lado do vale pela última vez.

- Isto aqui em cima é agradável.

- Eu gosto. - Aspirei o ar profundamente, para o interior dos pulmões, e voltei a olhar em volta. O Sol desaparecia rapidamente e as colinas mais distantes brilhavam com um suave tom verde, com tonalidades azuis de gelo. - Sim, vou ter saudades deste sítio...

- Contudo, pensa em todos os novos lugares que irás ver, Dána.

Daquela vez, Dugal não olhou para mim. - Em breve esquecerás tudo...

tudo isto... - A voz faltou-lhe e calou-se.

Um corvo que voava por cima das nossas cabeças fez estalar o ar gelado com o seu apelo solitário e pensei que o coração se me partia.

- Nem imaginas como gostaria de ir contigo... - murmurou Dugal.

- Também eu, meu amigo, também eu.

 

Dugal e eu regressámos à abadia e à rotina diária. Não obstante o abade me ter liberto das minhas obrigações para aquele dia, pensei que seria melhor retomá-las ou, na verdade, até aumentá-las se tal fosse possível, pois isso seria uma boa maneira de me preparar para os rigores da jornada. Dugal dirigiu-se para a cervejaria e eu segui para o scriptorium com a intenção de continuar o meu trabalho.

O Sol mergulhava por cima dos topos das colinas baixas, envolvendo o pátio numa profunda luz amarelada com sombras azuladas. Cheguei à porta do scriptorium quando o sino tocava a nona. Fiz uma pausa e desviei- me para um lado. Um instante depois, os meus colegas escribas começaram a sair para o pátio. Surgiram outros, vindos das mais variadas tarefas, conversando em voz alta enquanto trepavam a vertente em direcção à capela.

- Regressaste tão cedo, Aidan?

Virei-me e vi Cellach, o Mestre da Biblioteca, que me observava com a cabeça inclinada para um lado como se meditasse numa qualquer complexidade filosófica.

- Ah, irmão Cellach, tenho um trabalho que gostaria de acabar.

- Com certeza - concordou Cellach, afastando-se com as mãos metidas nas mangas.

Quando todos partiram, entrei no scriptorium e dirigi-me ao meu lugar.

O manuscrito incompleto continuava pousado na prancheta. Peguei na pena e fiquei a contemplar a última linha que escrevera. As letras negras e nítidas, tão graciosas na sua simplicidade, pareciam-me perfeitamente concebidas para carregarem o peso da sua mensagem inspirada. Surgiu-me na mente um fragmento de verso que já escrevera numerosas vezes: "O Céu e a Terra perecerão, mas a minha Palavra nunca morrerá..."

Palavras sobre as Palavras de Deus, pensei, eu sou o vellum e tu és o

Escriba. Escreve à Tua vontade, Senhor, para que todos os que me vejam possam contemplar a tua graça e majestade!

Pus a pena de lado, deixei-me ficar sentado na sala vazia, olhando e escutando, recordando tudo o que aprendera e praticara naquele lugar.

Observei as mesas quase em cima umas das outras, cada uma com o seu banco, todas amaciadas pelo uso, com a madeira de carvalho polida por anos de utilização constante. Naquela sala tudo era bem ordenado e preciso. As folhas de pergaminho estavam muito bem arrumadas, planas e quadradas, as penas eram colocadas no canto superior direito de cada mesa e os tinteiros erguiam-se do chão sujo ao lado de cada banco.

A luz descia, em ângulo, através das estreitas fendas de arejamento abertas lá em cima, no alto das quatro paredes. O vento moribundo zumbia quando circulava pelo scriptorium, procurando uma passagem entre as fendas dos barrotes, mas tinham sido muitas as mãos, ao longo de inúmeros anos, que haviam enfiado tufos de lã em bruto nessas passagens, frustrando todas as suas tentativas, excepto as das tempestades mais violentas.

Fechei os olhos e respirei aquele ar. Cheirava à turfa do pequeno fogo que lançava clarões vermelhos na lareira, no centro da sala. O pungente fumo branco saía pela chaminé aberta no telhado de colmo.

Fora minha obrigação, quando chegara ali pela primeira vez, carregar a turfa, proteger aqueles carvões e manter o fogo sempre a arder durante os gelados dias de Inverno. Sentava-me num canto, em cima da minha pilha de turfa, e observava os rostos dos escribas entretidos com o seu trabalho, de olhos vivos e muito atentos enquanto copiavam Profetas, Salmos e Evangelhos, com as suas penas a rasparem constantemente nas bem secas folhas de pergaminho.

Naquele momento via o scriptorium tal como o vira na altura: não como uma sala mas sim como uma fortaleza em si mesma, auto-suficiente, uma rocha a enfrentar os ventos do caos que uivavam para lá das muralhas do mosteiro. Ali, quem reinava era a ordem e a harmonia.

Depois das orações, os meus companheiros escribas regressaram ao trabalho e deixaram as conversas à porta. No scriptorium, as vozes nunca se erguiam acima do murmúrio, e mesmo assim só raramente, não fosse o seu som perturbar e distrair. Um lapso momentâneo na concentração podia significar a ruína de uma página e de dias inteiros de um trabalho meticuloso.

Voltei a pegar na pena, tratei de completar a passagem que tinha na minha frente e trabalhei, com grande satisfação, até às vésperas. Por essa altura, guardámos o nosso trabalho para a noite, abandonámos o scripton um e fomos juntar-nos aos nossos irmãos na capela. Depois das orações

reunimo-nos à mesa para partirmos o pão para a refeição nocturna, um aguado guisado de lentilhas castanhas e de carne de porco salgada. O irmão

Ferbach leu do livro dos Salmos enquanto comíamos, Ruadh leu parte das

Regras de Colum Cille e a seguir mandou-nos embora para as nossas celas, para estudarmos.

Dediquei-me à leitura dos Hinos dos Três Jovens a que me apliquei com toda a atenção, e a minha diligência parece ter sido recompensada pois pareceu-me que tinha acabado de acender as velas quando o sino tocou as completas. Pus o livro de lado, com cuidado, saí da cela e juntei-me aos irmãos que se encaminhavam para a capela. Procurei Dugal entre eles mas a noite estava escura e não o vi. Também não o vi depois das orações.

Foram proferidas orações pela viagem que se aproximava, o que me colocou na disposição apropriada para fazer uma petição. Por isso, depois do serviço, fui à procura de Ruadh, o nosso secnab, e pedi-lhe para me encarregar da vigília nocturna. Como segundo em relação ao abade

Fraoch, era da responsabilidade de Ruadh nomear os leitores e vigilantes de cada dia.

Atravessei o pátio e dirigi-me para a pequena cabana, ligeiramente afastada dos aposentos do abade. Aí chegado, fiz uma pausa à entrada da cela, puxei a pele de boi para um lado e bati na porta. Um instante depois, Ruadh mandou-me entrar. Empurrei a estreita porta e entrei numa divisão brilhantemente iluminada pelas velas. O ar cheirava a cera de abelhas e a mel. Ruadh estava sentado numa cadeira, com os dedos dos pés nus quase a tocarem no fogo de turfa que ardia na lareira. Aproximei-me e vi-o pôr de lado o pergaminho que estava a ler, para logo se levantar.

- Senta-te junto de mim, Aidan - disse, apontando para o banquinho com três pés. - Não te farei perder muito do teu tempo de descanso.

Ruadh era, como já disse, o secnab da nossa comunidade, e estava logo a seguir ao abade Fraoch na hierarquia monástica. Contudo, era também o meu confessor e guia, o meu anamcara, o amigo da alma, responsável pela minha saúde espiritual e progressos.

Puxei o banco para a beira do fogo, estendi as mãos para as chamas e fiquei à espera que ele falasse. A sala, como quase todas as outras, era uma cela de pedra nua com um único buraco de ventilação numa das paredes e um catre de palha no chão. A bulga de Ruadh, a sua sacola para livros, em couro, estava pendurada pela alça numa cavilha por cima do catre, e tinha uma bacia com água aos pés da cama. As velas ardiam em árvores-de-velas em ferro, mas também havia outras colocadas em pedras, no chão. O único adorno da pequena divisão era uma prateleira de pedra com um pequeno crucifixo de madeira.

Muitas haviam sido as vezes em que nos tínhamos sentado naquela cabana simples, mergulhados numa conversa sobre uma questão qualquer de teologia ou a desembaraçar uma das numerosas meadas em que a minha alma irrequieta costumava enredar-se. Compreendi que aquela podia ser a última vez que me sentava com o meu amigo da alma. Fui instantaneamente dominado por uma profunda melancolia e senti uma nova guinada de dor ante a perspectiva da separação. Oh, e ainda teria de passar por muitas outras separações...

- Muito bem, Aidan... - disse Ruadh passado um instante, levantando os olhos do fogo - conseguiste o que o teu coração tanto desejava.

Qual é a sensação?

- Oh, estou deliciado, é claro... - respondi. Contudo, a minha súbita falta de entusiasmo parecia querer dizer o contrário.

- Ah, sim? - interrogou-se Ruadh. - Pois olha, Aidan, parece-me que exprimes a tua alegria de um modo muito amargo.

- Não, estou muito satisfeito - insisti. - Tal como muito bem sabe, não pensei noutra coisa desde que ouvi falar no plano do bispo.

- Porém, agora que conseguiste o que querias, começas a ver as outras facetas... - sugeriu.

- Já tive tempo suficiente para analisar o assunto em pormenor retorqui - e conclui que a decisão do abade me deixou tão feliz quanto eu esperava.

- Imaginavas que essa decisão te traria a felicidade? Era por isso que a desejavas tanto?

- Não, Confessor - protestei rapidamente. - Acontece que estou a começar a compreender tudo o que terei de deixar para trás quando partir.

- Tal como seria de esperar... - afirmou, com um aceno de compreensão. - Na verdade, ouvi dizer que para irmos a qualquer lado temos de abandonar o lugar onde estamos para chegarmos a outro. - Fez um trejeito com os lábios e afagou o queixo. - Apesar de não ser uma autoridade nessa matéria, estou convicto de que deve ser verdade...

Aquela pequena brincadeira fez com que o meu coração ficasse um pouco mais leve.

- Como sempre, a sua sabedoria é incontestável, Confessor.

- Recorda-te de uma coisa, Aidan... - declarou, inclinando-se ligeiramente para a frente - nunca duvides, por muita que seja a escuridão, daquilo em que acreditaste à luz do dia. E também disto: se o peregrino não levar consigo o que procura, não irá encontrá-lo quando lá chegar.

- Não me esquecerei.

- Agora... - começou, voltando a recostar-se na cadeira - que preparativos irás fazer?

A ideia de preparativos específicos ainda nem sequer me passara pela cabeça.

- Penso... - respondi, lentamente - que um jejum poderá ser apropriado. Creio que um trédinus me preparará para...

- Três dias de jejum são altamente recomendáveis... - concordou

Ruadh, interrompendo-me rapidamente - mas como estamos na Páscoa, por que não outra disciplina qualquer em que não seja necessário adicionar um jejum ao jejum? Talvez um jejum espiritual, se estiveres de acordo...

- Sim...?

- Faz as pazes com os que irás deixar ficar para trás - prosseguiu.

- Se alguém te magoou, ou se tens ressentimentos contra outra pessoa qualquer... então chegou o momento de esclarecer as coisas.

Abri a boca para protestar e afirmar que não tinha ressentimentos, mas Ruadh não mo permitiu.

- Ouve, meu filho, pois não se trata de uma coisa que possa ser posta de lado com ligeireza. Gostaria que encarasses essa possibilidade como sendo merecedora de toda a tua atenção.

- Se insiste, Confessor... - repliquei, algo confuso com a sua veemência. - Mesmo assim, acho que o jejum podia ser muito benéfico... e podia pôr em prática as duas coisas.

- Aidan, não estás a pensar... - retorquiu Ruadh. - Pensa! Há um tempo para jejuar e um tempo para festejar. A jornada que irás fazer é muito árdua. As dificuldades e privações não fazem parte da lista dos piores perigos que irás ter de enfrentar.

- Sem dúvida, Secnab, estou bem consciente dos perigos...

- Achas que sim? - inquiriu. - Pergunto a mim mesmo se estarás... - Não respondi e Ruadh inclinou-se para mim, por cima do fogo.

- Chegou o momento de ganhares forças para a jornada, filho. Come bem, bebe bem e descansa enquanto podes. Guarda o teu vigor para o dia em que irás precisar dele.

- Se acha que é o melhor, Confessor... - respondi - então é isso o que farei.

Ruadh prosseguiu como se não me tivesse ouvido.

- Em breve deixarás este lugar, talvez para sempre. É preciso dizê-lo. Portanto, deves partir com um coração livre e à vontade. Quando partires, parte com a paz na alma para que possas enfrentar os perigos que terás de enfrentar sem que a coragem e firmeza te falhem, seguro na certeza de não sentires inimizade para com nenhum homem, e de que nenhum homem sente inimizade para contigo.

- Como queira, Confessor - repliquei.

- Ah! Não ouviste uma única palavra do que te disse! Não o faças por mim, filho... porque não sou eu quem vai partir para Bizâncio. Olhou-me com uma leve impaciência. - Bom, pensa no que acabei de te dizer. - Voltou a pegar no pergaminho, num sinal de que a nossa conversa chegara ao fim.

- Pode confiar que farei o que me aconselha - afirmei, pondo-me de pé.

- A paz seja contigo, Aidan.

- Que Deus o proteja esta noite, Secnab - respondi, avançando para a porta. Subitamente dominado pela fadiga, bocejei e decidi que, afinal de contas, não lhe iria pedir o turno de vigília.

Virando a cabeça para olhar para mim, Ruadh acrescentou:

- Descansa enquanto podes, Aidan, pois está a chegar a noite em que nenhum homem poderá descansar.

Avancei para a escuridão e levantei os olhos para um céu que brilhava com a sua poeira de estrelas. O vento morrera e o mundo jazia no silêncio e na tranquilidade. Numa noite como aquela, quaisquer conversas sobre dificuldades e privações eram sem dúvida exageradas. Regressei à minha cela e deitei-me no catre, para dormir.

 

O dia seguinte era Dia da Paixão, em que não se trabalha, excepto o estritamente necessário para a manutenção da abadia e dos seus habitantes. A maioria de nós renovou a tonsura, para estarmos bem barbeados para o Sabat, ou Dia da Ressurreição.

A tonsura dos Célé Dé é característica. A frente da cabeça é rapada de orelha a orelha, deixando apenas uma fina linha que forma um círculo, denominado corona, símbolo da coroa que esperamos vir um dia a receber das mãos de Nosso Senhor. Tem de ser refeita de tempos a tempos e a renovação da tonsura é um serviço que prestamos uns aos outros, pelo que todos nós somos bons barbeiros.

Como o dia estava quente, Dugal e eu fizemos turnos e sentámo-nos no pátio, num banco de mungir as vacas, enquanto o outro executava o ritual da navalha. Como os nossos irmãos se encontravam ocupados na mesma actividade, enchemos o pátio com o som das nossas conversas agradáveis, embora fúteis. Estava precisamente a secar a minha cabeça recém-rapada com um pano quando Cellach me chamou.

- Estão à tua procura... - disse, e ouvi o tom de resignação fatigada da sua voz.

- Perdoe-me, mestre, mas pensei que tínhamos terminado...

- Também eu - retorquiu, com um suspiro - mas não haverá paz até se sentirem satisfeitos. Vai ter com eles, filho. Vê o que podes fazer.

Pois bem, a nossa parte do livro já se encontrava completa. Contudo,

Libir e Brocmal, ainda a trabalharem nas suas folhas há muito terminadas, insistiam numa última revisão de todo o trabalho. Tinham insistido junto do Mestre Cellach com tanto zelo que este acabara por ceder só para deixar de os ouvir, e eu, agora, era obrigado a dar uma ajuda.

Quando cheguei ao scriptorium descobri que os dois escribas tinham disposto cuidadosamente todas as folhas, colocando duas ou três em cada mesa vazia. Depois, começando pelo princípio, foram-se deslocando de mesa para mesa, inspeccionado as folhas uma a uma, com as cabeças baixas, os narizes quase a tocarem nos pergaminhos e os olhos atentos, investigando os textos e as imagens, em busca de falhas invisíveis. Segui-os, de mãos atrás das costas, olhando para aquele magnífico trabalho e abafando pequenas exclamações de admiração. Era na verdade um livro abençoado!

Contudo, ainda no princípio da sua inspecção, os dois exigentes escribas descobriram um defeito.

- Aidan! - gritou Brocmal, virando-se para mim com um ar tão feroz que a minha primeira impressão foi a de que o defeito, fosse ele qual fosse, tinha sido meu. - Precisamos de tinta!

- Podemos salvar esta folha... - entoou Libir com solenidade, com o rosto quase colado à mesa. - Uma linha ou duas... Vês? Aqui... e aqui...

- Cristo seja louvado - respondeu Brocmal, com um alívio exagerado, dobrando-se sobre a folha suspeita. - Vou preparar uma pena. Virou-se, viu que estava a olhá-los e gritou: - Aidan, o que é isto? O bispo vai chegar de um momento para o outro. Precisamos de tinta! Porque estás aí parado como um poste?

- Não me disseram de que cor é a tinta.

- Vermelha, é claro! - atirou-me.

- E azul - acrescentou Libir.

- Azul e vermelha - ordenou Brocmal. - Despacha-te, molengão!

Foi assim que ficámos a trabalhar durante a maior parte daquele dia, porque os dois homens, depois de corrigirem o primeiro defeito logo descobriram outros a necessitarem de atenção imediata, embora eu não visse nenhum dos supostos erros que discerniam com tanta satisfação. Não tomá- mos parte na rotina do dia e nem sequer fomos almoçar para podermos continuar a corrigir os defeitos.

Tinha acabado de soar a nona e encontrava-me na mesa de mistura, despejando chumbo vermelho e ocre num almofariz, quando o sino soou.

Pus as ferramentas de lado, enfiei rapidamente o hábito, agarrei na capa e apressei-me para o scriptorium.

- O bispo chegou! - anunciou Brocmal, embora Libir e eu já corrêssemos para a porta. Saímos para o pátio e juntámo-nos à multidão que avançava para o portão.

Dispusemo-nos em filas, à direita e à esquerda do portão, e começámos a entoar um hino de boas-vindas aos nossos hóspedes. O bispo

Cadoc conduzia o seu grupo e avançava com passadas firmes não obstante ser um homem muito velho. Todavia, os seus passos eram fortes e os olhos eram tão aguçados como os da águia no topo da cambutta que empunhava. Esse símbolo sagrado, fabricado em ouro amarelo e instalado no alto do bordão, brilhava com uma luz santificada sob o Sol do meio-dia e expulsava as sombras à medida que avançava.

Trazia muitos monges com ele, num total de trinta. Observei cada um deles à medida que atravessavam o portão e perguntei a mim mesmo quais seriam os Escolhidos. Também me interroguei sobre quem transportaria o livro, isto porque, embora visse mais do que uma bulga suspensa dos ombros pela respectiva alça, não descobri nada suficientemente grandioso para o Livro de Colum Cille.

O abade Fraoch recebeu os visitantes no interior do portão e deu as boas-vindas ao bispo com um beijo. Cumprimentou toda a companhia com calor, dizendo:

- Saudações, irmãos! Em nome de Jesus, Nosso Abençoado Senhor e Salvador, damos-vos as boas-vindas a Cenannus na Ríg. Que Deus vos conceda paz e alegria enquanto ficarem connosco. Descansem e fiquem à vontade enquanto vos dispensamos todos os confortos que se encontram ao nosso dispor.

- É muito amável, irmão Fraoch - replicou o bispo - mas, tal como vós, somos trabalhadores dos campos do Senhor, pelo que não esperamos receber nada daquilo que negais a vós próprios. - Lançou um olhar em volta e abriu os braços num gesto amplo: - A paz do Senhor seja convosco, meus queridos filhos - proclamou, numa voz bonita e forte.

- E também com o vosso espírito! - respondemos, em coro.

- São muitos os que me acompanham, mas eram muitos mais os que também me teriam acompanhado com todo o gosto - continuou o bispo. - Trago-vos saudações dos vossos irmãos de Hy e Lindisfarne. Fez uma pausa e sorriu de prazer. - Também vos trago um tesouro.

O bispo Cadoc passou o bordão do cargo ao seu secnab e fez sinal a um dos monges para avançar. Quando este se aproximou, passou a alça da bulga por cima da cabeça e entregou-a ao seu superior. Caloc recebeu-a, retirou-lhe a cavilha que servia de fecho, abriu a pala e puxou pelo livro no meio dos gritos de espanto e maravilha de todos os que o rodeavam.

Oh, era magnífico! Mesmo vendo-o de longe, achei-o uma maravilha porque a cumtach não era de couro, nem sequer do calfe tingido utilizado nalguns livros muito especiais. A capa do Livro de Colum Cille era feita com uma folha de prata gravada com figuras fantásticas: espirais, chaves e rosetas. Em cada canto da capa havia um painel com um desenho nosso e no centro de cada um deles fora montada uma pedra preciosa diferente... e os painéis rodeavam uma cruz feita em nós, incrustada com rubis.

Sob a luz do Sol, a cumtach parecia uma coisa viva, dançante, deslumbrante, movendo-se ao ritmo da criação do rei da Glória.

O abade Fraoch tomou o livro nas mãos, levou-o aos lábios e beijou-o. A seguir levantou-o acima da cabeça e virou-o para um lado e para o outro para que todos o pudessem ver de relance. Depois de dois anos de preparativos, o Livro de Colum Cille era um tesouro raro e muito belo, uma oferta digna de um imperador. O meu coração inchou de orgulho ao vê-lo.

Voltando a colocar o livro no seu humilde saco, o abade e o bispo caminharam de braço dado e subiram a vertente até ao oratório, onde mantiveram uma conversa até às vésperas. Entre nós, eram muitos os que tinham vivido em Hy ou em Lindisfarne, pelo que mantinham relações de amizade com os irmãos nossos visitantes, alguns dos quais até eram seus familiares. Atiraram-se aos pescoços uns dos outros ou agarraram nos braços dos outros, numa saudação de amizade, e toda a gente começou a falar ao mesmo tempo. Passado algum tempo, o irmão Paulinus, o nosso porteiro, gritou aos visitantes que o acompanhassem e conduziu-os aos alojamentos para os hóspedes.

Brocmal, Libir e eu regressámos ao scriptorium e ficámos a trabalhar até à hora do jantar, altura em que os dois escribas, incapazes de descobrir um único rabisco a corrigir, anunciaram que o trabalho estava finalmente completo.

- Está pronto! - declarou Libir. - Fizemos a nossa parte. Que

Jesus tenha piedade de nós.

- E Deus queira que o nosso trabalho mereça a aprovação do bispo. - Finalmente, Brocmal permitia-se um sorriso de satisfação enquanto o seu olhar passava por cima das folhas prontas, dispostas em cima das mesas. - Na verdade, merece a minha aprovação.

- Somos verdadeiros bardos do pergaminho - disse-lhes. - Embora a minha contribuição fosse pequena, orgulho-me de vos ter prestado este serviço.

Os dois monges olharam-me com curiosidade e cheguei a pensar que iriam fazer uma referência à minha contribuição, agora que manifestavam a sua alegria por o trabalho ter chegado ao fim. Contudo, viraram-me as costas sem nada dizerem. A seguir juntámo-nos aos nossos irmãos para darmos início às celebrações da Páscoa, mas não sem antes guardarmos as preciosas folhas em local seguro.

O bispo Cadoc, um hóspede que muito nos honrava, leu o Beati e rezou. Escutei com a maior das atenções, tentando determinar que espécie de homem poderia ele ser. Já o vira anteriormente, uma única vez, mas na altura era pouco mais do que um garoto e pouco recordava dessa ocasião.

Cadoc, tal como o meu velho professor Cybi, era um britânico.

Dizia-se que, quando rapaz, estudara em Bangor-ys-Coed sob a direcção do famoso Elffod, e que quando jovem viajara por toda a Gália, pregando e ensinando, antes de regressar à Bretanha para dirigir a comunidade da Cândida Casa, onde fora frequente entrar em discussão com os mais sábios dos Eruigena. O excelente Sedulius, ou Saidhuil, como nós o conhecíamos, escrevera outrora um poema comemorando um belo debate entre os dois.

Observei o pequeno bispo e pareceu-me apropriado que homens ilustres procurassem celebrar a sua amizade. Era de baixa estatura e ia bem avançado nos anos, mas não deixava de possuir a graça e a dignidade de um rei e exsudava a saúde de um homem ainda em plena juventude.

Se, não obstante o seu vigor, houvesse alguém que ficasse com dúvidas, Cadoc só necessitava de falar para que todas as incertezas se desvanecessem. A sua voz era um instrumento poderoso, rico, cheio e sonoro, pronto para entoar um cântico a qualquer momento. Segundo me consta, era uma característica que partilhava com os seus compatriotas, uma vez que uma das coisas que os verdadeiros Cymry mais gostam é de ouvir a sua própria voz a erguer-se num cântico. Sabem, eu nunca tinha ouvido uma trompa, mas não me custaria a acreditar se alguém me dissesse que o seu som era semelhante ao do Bispo de Hy a entoar um hino.

Depois da refeição, Bromal, Libir e eu fomos apresentados a Cadoc.

O abade chamou-nos ao seu alojamento, onde ele e o bispo se encontravam sentados com os respectivos secnabs, saboreando uma taça do hidromel da Páscoa. Agora que as festividades haviam começado já esses luxos eram permitidos.

- Bem-vindos, irmãos. Entrem e sentem-se. - O abade indicou-nos lugares no chão, entre as suas cadeiras. Já tinham sido servidas três taças adicionais, numa antecipação da nossa chegada. O abade distribuiu-as e disse, numa voz que era pouco mais do que um fino sussurro:

- Falei com o bispo Cadoc a respeito da vossa contribuição para o livro e está desejoso de saber o que conseguiram realizar.

O bispo pediu-nos para descrever-mos o nosso trabalho. Brocmal deu início a um longo relato sobre o empreendimento e sobre o modo como os trabalhos tinham sido divididos entre os vários membros do scriptorium.

Libir acrescentou observações de tempos a tempos e o bispo Cadoc fez muitas perguntas aos dois. Escutei, aguardando a minha vez de falar, mas esta nunca chegou.

O facto de começar a sentir-me menosprezado deveu-se sem dúvida ao meu espírito orgulhoso, mas não fui o único. O Mestre Cellach, sob cuja esforçada e habilidosa orientação tínhamos levado a fim aquele grande trabalho, nunca foi mencionado, nem qualquer dos outros escribas, que eram muitos. Quem ouvisse o relato de Brocmal e Libir ficava a pensar que tinham produzido todo o livro apenas entre eles. A minha própria mão copiara nada menos do que trinta e oito passagens separadas, que haviam enchido mais de vinte páginas... e eu não passara de um dos muitos escribas a trabalharem em três scriptoria, em três ilhas diferentes. Na verdade, os homens que criaram as vacas que tinham produzido os vitelos que haviam dado as suas peles para o fabrico dos pergaminhos não eram certamente menos importantes, pelo menos à sua maneira, do que os escribas que tinham decorado essas peles com uma arte tão esplêndida. Apesar disso, reflecti, nenhum pastor fora escolhido para ir a Bizâncio.

Bom, tratava-se de uma pequena coisa, talvez apenas de um lapso, mas não podia deixar de sentir que o mesmo continha em si a ferroada de um insulto. O orgulho, suponho, acabará por ser a minha ruína. Contudo, Brocmal e Libir não deixavam de recolher as recompensas à custa dos esforços de todos os outros, que nem sequer viriam a ser reconhecidos. Decidi-me a remediar aquela injustiça, se tal fosse possível. Contudo, teria de ganhar tempo e esperar por uma boa oportunidade.

Por isso, continuei sentado no chão aos pés do abade Fraoch, beberricando o doce hidromel e ouvindo Brocmal descrever o livro que eu conhecia tão bem - mas que agora nem sequer parecia conhecer - e entretive- me a pensar na jornada que iríamos ter de enfrentar, perguntando a mim mesmo como seriam os outros peregrini. Se fossem como Brocmal e Libir, conclui, então a campanha iria ser muito árdua.

Passado algum tempo, Brocmal terminou o seu relato e o bispo virou-se para o abade.

- Escolheste bem, Fraoch - declarou, sorrindo como um homem que conhece um segredo valioso. - Estes homens irão servir-nos admiravelmente no nosso empreendimento.

A utilização daquela estranha palavra despertou-me a atenção. Estaria a referir-se à jornada... ou teria outra iniciativa em mente? O astuto uso da expressão sugeria que se referia a algo mais do que a simples entrega do livro ao Imperador.

Contudo, o abade limitou-se a devolver-lhe o sorriso.

- Quando a isso, Cadoc, não tenho a mínima dúvida - afirmou, levantando a taça. - Bebo ao êxito da nossa missão, irmãos. Que Deus vos abençoe e que nunca deixe de vos proteger.

- Amém! - replicou Cadoc, e todos nós levantámos as nossas taças com o abade.

O sino tocou as completas naquele momento e fomos mandados embora para as nossas orações.

- Voltaremos a conversar - garantiu-nos o bispo. Demos as boas- noites aos dois e saímos dos alojamentos do abade, dirigindo-nos para a capela. Brocmal e Libir, muito bem-dispostos, cantaram durante todo o caminho até ao alto da vertente. Segui-os, de olhos baixos, sentindo-me vexado por aqueles dois e aborrecido comigo mesmo por me sentir assim.

Entrei na capela e encontrei um lugar junto à parede norte, tão longe quanto possível de Brocmal e Libir. Dugal apareceu e instalou-se a meu lado, dando-me uma cotovelada para me assinalar que se encontrava ali.

Levantei a cabeça mas não falei, perdido como estava nos meus próprios pensamentos. Porque serei sempre assim? interroguei-me. Que me interessa que aqueles dois recebam a honra de serem louvados pelo bispo? No fim de contas, mereceram-na. Não roubaram o livro nem estão a reclamar mais do que merecem. Que se passa comigo?

As orações terminaram, fui para a minha cela e mergulhei num sono descontente. Na manhã seguinte, depois das orações da manhã, quebrámos o jejum na companhia dos nossos hóspedes. Como as tarefas habituais haviam sido suspensas para a celebração da Páscoa, juntámo-nos todos no pátio para cantar. O dia começara frio e brilhante, com um céu cheio de nuvens brancas. As nuvens foram-se juntando e fechando enquanto cantávamos, até a chuva começar a cair, o que acabou por nos persuadir a voltarmos para o salão onde nos sentámos em grupos, para conversarmos com os nossos hóspedes por cima dos tampos das mesas.

Ao contrário da maior parte dos irmãos de Cenannus, eu não conhecia ninguém de Hy ou de Lindisfarne. Mesmo assim, quando Dugal e eu circulávamos por entre as mesas, um dos estranhos chamou-me:

- Aidan mac Cainnech!

Virei-me e avistei um homem baixo, de rosto quadrado, com uns cabelos castanhos eriçados e olhos castanhos-escuros, sentado com outros dois estranhos. Era evidente o interesse com que me observavam.

- Vai ter com eles - incitou-me Dugal. - Querem conversar contigo. - Deixou-me e dirigiu-se a outra mesa.

- As minhas saudações - disse, quando me aproximei.

- Senta-te connosco - pediu o visitante. - Gostaríamos de falar contigo, se estiveres de acordo.

- Estou ao vosso serviço, irmãos - declarei, ocupando o meu lugar à mesa. - Teria muito prazer em dizer-vos o meu nome, mas parece-me que já o ouviram de alguém.

- Não nos consideres como demasiado atrevidos - pediu um dos outros. - Somos Cymry... e a curiosidade, entre nós, é uma praga. - Os dois que o acompanharam riram-se. Tratava-se, indiscutivelmente, de uma alegre praga. Gostei deles à primeira vista.

- Sou Brynach - declarou o estranho que me chamara. - Estes são os meus irmãos. Ou antes... os meus anamcari. - Levantou a mão para os dois homens que estavam com ele. - Este junco, comprido e magro, é o

Gwilym. - Apontou um homem alto e delgado, com uma cabeleira loura já rala. - E este é o Morien - acrescentou, apresentando-me um jovem com um espesso cabelo preto encaracolado e olhos azuis. - Contudo, nunca te responderá se o tratares por esse nome, porque toda a gente o conhece por Ddewi.

- Irmãos - disse - invejando os modos fáceis que tinham uns com os outros - fico muito satisfeito por vos conhecer. Rezo para que a Páscoa que vão passar connosco seja como carne e bebida para a vossa alma. - Fiz uma pausa, pressentindo que a pergunta era desajeitada ainda antes de a fazer, mas sem conseguir conter-me. - Por favor não pensem mal de mim, mas nunca visitei Hy ou Lindisfarne e gostaria de saber qual desses dois belos lugares é a vossa casa.

- Nenhum deles... - replicou Gwilym, muito satisfeito. - A nossa casa é em Ty Gwyn, mas ultimamente passámos alguns anos em Menevia e Bangor-ys-Coed.

- Ah, sim? - respondi. - Não sabia que o livro também estava a ser preparado nesses sítios.

- E não estava - retorquiu Brynach. - Quando soubemos do livro já era demasiado tarde para podermos dar alguma assistência material a essa parte do empreendimento.

Mais uma vez, os meus sentidos captaram a sugestão de que havia uma segunda finalidade para a jornada, uma finalidade que, aparentemente, era conhecida de muitos.

- Parecem bem informados sobre esses assuntos - sugeri. - Terei razão para pensar que se encontram entre os escolhidos para o grupo que irá fazer a viagem?

- Sim, é verdade, fomos escolhidos - afirmou Brynach.

- Mas... vocês não são escribas... - gaguejei, surpreendido. - Perdoem-me, mas esta minha afirmação não soou como eu pretendia. Não a tomem como uma falta de respeito.

- Fica à vontade, irmão - acalmou-me Gwylym. - A verdade é uma delícia constante para os que a amam, e uma tão grande beleza não tem poder para ofender.

- Sim, é verdade... - confidenciou Brynach - que não somos escribas. No entanto, o Grande Rei, na sua infinita sabedoria, achou apropriado incluir-nos na vossa exaltada companhia. Espero que também nos aceitem. - Fez uma pequena vénia com a cabeça e pousou a mão, num gesto de amizade, no ombro do homem alto. - Aqui o Gwilym é o artífice para quem o ouro e as pedras preciosas foram propositadamente criadas. O monge inclinou a cabeça, aceitando o cumprimento com naturalidade.

Brynach virou-se para o jovem de cabelos negros e prosseguiu:

- Ah, e este adolescente que aqui vês é um leighean com dotes raros e extraordinários.

- Há sete gerações que os homens da minha família são médicos

- explicou Ddewi, falando pela primeira vez. - E eu sou o sétimo filho do meu pai, que também foi um sétimo filho. - Tinha uma voz e maneiras tranquilas, que sugeriam profundidades invisíveis.

- Infelizmente... - continuou Brynach - não posso gabar-me dos talentos e habilidades de que estes meus irmãos gozam. A minha única ocupação têm sido os estudos... e agora descobri que já não sirvo para mais nada.

A modéstia era genuína mas duvidava que tivesse sido escolhido se fosse na verdade tão humilde como professava. Contudo, antes de lhe poder fazer mais perguntas, declarou:

- Agora tu, Aidan. Disseram-nos que és o melhor escriba de que esta abadia se pode gabar...

- E não só escriba como também estudioso... - acrescentou

Gwilym.

- É verdade que a abadia mantém muitos bons escribas - admiti - e é verdade que sou um deles, mas sou também o mais jovem e inexperiente de todos. A minha contribuição para o livro é muito pequena quando comparada com as de Brocmal, Libir e alguns outros...

- Pois sim, mas a tua pena tocou no livro abençoado - afirmou

Gwilym. - As tuas mãos trabalharam nele. Quem me dera poder dizer o mesmo.

Brynach acenou, como se essa fosse a maior ambição da sua vida.

Os três homens olharam uns para os outros e deve ter passado um sinal entre eles porque o monge se inclinou para mais perto de mim, como que para confidenciar um segredo.

- Posso dizer-te uma coisa? - perguntou.

- Claro que sim, irmão Brynach.

- Os que escolho para amigos tratam-me por Bryn - disse, fazendo-me um gesto para me aproximar um pouco mais.

Coloquei a minha cabeça perto da dele mas o irmão Diarmot apareceu naquele momento, antes de Brynach poder falar.

- Confio que o nosso irmão vos tenha transmitido as boas-vindas da abadia - declarou, rígido. - Não gostaria de pensar que se esqueceu das suas obrigações para convosco, hóspedes há tanto aguardados.

Brynach voltou a endireitar-se e o seu sorriso reapareceu instantaneamente.

- Pela nossa parte, não há que recear - replicou, com suavidade.

- Fomos mais do que bem recebidos.

- Sem dúvida - interveio Gwilym. - É como se nunca tivéssemos saído de casa.

- Sou o irmão Diarmot e estou ao vosso dispor. Se têm fome, terei todo o prazer em trazer-lhes qualquer coisa para comer.

- Obrigado, irmão - respondeu Brynach - mas não é necessário.

- Então, talvez algo para beber? - insistiu Diarmot. Olhou para mim e esboçou uma amostra de sorriso. - Calculo que Aidan vos tenha oferecido uma bebida, mas terei muito prazer em servi-los.

- Bom - disse Gwilym - um pouco da excelente cerveja que bebemos à mesa, a noite passada, era capaz de me tentar.

- Com certeza! - replicou Diarmot. - O Aidan e eu vamos buscar as taças. É o mínimo que podemos fazer pelos nossos hóspedes.

- Por favor, permitem-me que vos ajude - disse Gwilym, levantando-se rapidamente.

- Não, não - respondeu Diarmot, com firmeza. - São nossos convidados e não posso permitir que vão buscar a vossa própria bebida.

O Aidan poderá ajudar-me.

O teimoso Diarmot pairou sobre mim como uma ameaça, pelo que me levantei e o segui até à cozinha para encher um jarro enquanto ele procurava as taças. Quando regressámos à mesa já outros monges se haviam juntado aos três homens e não tive outra oportunidade para falar com eles a sós. Observei-os e aguardei uma oportunidade durante o resto do dia, mas os acontecimentos não conduziram aos resultados desejados.

Naquela noite retirei-me para a minha cela a arder de curiosidade, frustrado e ressentido com Diarmot por causa da sua inoportuna intrusão.

Antes de adormecer, rezei a Cristo que me perdoasse por não gostar de Diarmot e jazi durante muito tempo a interrogar-me sobre o que seria que Brynach estivera prestes a dizer-me.

 

Quando subimos à colina na escuridão de antes da madrugada somos como o Cristo a ascender do vale da morte. Amontoamo-nos no cimo, como se tremêssemos sob as garras geladas do túmulo, e aguardamos a chegada da verdadeira e infalível luz da ressurreição. Esperamos em silêncio, com os rostos virados para leste, de onde provém a Palavra da Salvação. Muito para lá do rebordo do mundo, a luz do dia concentra as suas forças, crescendo e crescendo, até ao momento em que, finalmente quando os poderes da escuridão se mostram incapazes de a conter durante mais tempo - irrompe num glorioso clarão dador da vida. Ergue-se o Sol vitorioso, o Sol Invictus, renovado como o Cristo Ressuscitado, tal como irá acontecer a todos os homens no Último Dia. Respiramos fundo logo que os primeiros raios da luz dourada incendeiam o céu, e erguemos as nossas vozes para o Trono Dourado:

- Aleluia! Hosana! Glória a Deus nas Alturas! Aleluia!

A seguir descemos a colina em procissão, conduzidos pelo bispo de Hy com a sua cambutta bem erguida, e entoamos o Gloria enquanto caminhamos. Temos tantos hóspedes e visitantes que não há espaço suficiente para todos no interior da igreja, mas como o dia está bonito, a primeira parte da missa é conduzida sob a cúpula do céu. Observámos as várias partes da missa, o Gradual, seguido pela leitura dos Evangelhos, do Credo, dos Salmos e do Ofertório.

Durante as orações os visitantes ajoelharam-se no pátio para logo se levantarem e irem formar uma dupla fileira junto à porta, para a passagem da procissão da Hóstia e do Cálice até ao altar. O bispo Cadoc, ajudado pelo abade, continuou o Serviço dos Sacramentos junto ao altar. Fiquei entre os que permaneceram no exterior da igreja mas não tive qualquer dificuldade de audição porque a bela voz de Cadoc chegava até ao pátio e para lá das muralhas da abadia.

- Quanda canitus... - disse o bispo quando ofereceu o cálice a

Deus - accepit Jesu panem...

Ajoelhámos sob a luz do sol da manhã de Páscoa enquanto os nossos corações aqueciam para o amor de Deus. Um a um, entrámos na igreja e avançámos para o altar, onde recebemos os sacramentos da mão do bispo, para logo regressarmos aos nossos lugares para a bênção.

Foi um serviço cheio de beleza e alegria. Quando acabou, cantámos até o sino tocar a tércia, após o que o abade Fraoch convidou os nossos hóspedes a partilharem a nossa festa.

- Jesus vive! - grasnou, erguendo a voz acima do seu sussurro habitual... - Alegrem-se, meus amigos, porque todos os que crêem em Cristo ganharão a vida eterna. Tal como um dia nos viremos a reunir no Grande Salão do Céu, gozemos as bênçãos da generosidade de Deus neste bom dia de Páscoa, numa antevisão da Festa do Cordeiro.

E foi com estas palavras que o festim começou. Carregámos bancos e mesas do refeitório e colocámo-los no pátio para podermos acomodar todos os nossos convidados. As mulheres dos povoados vizinhos ajudaram os cozinheiros e os ajudantes-de-cozinha a cobrir as mesas com todos os tipos de comida: pão negro com o formato especial próprio da Páscoa redondos, com uma cruz no seu cimo -, ovos cozidos já frios, símbolo do poder e das promessas da vida, salmões e lúcios - frescos, salgados e fumados -, em tabuleiros de madeira, mexilhões e ostras, carne picada e pinhões cozidos em leite com ovos e mel, montões fumegantes de nabos assados, enormes caldeirões de guisado de borrego, de carne de porco, de vaca e de carneiro assada com erva-doce, cebolas e alho, gansos em molho de ervas, lebres recheadas com castanhas doces, frangos recheados com milho e salva, cotovias em bagas de sabugueiro, compotas de ameixas, framboesas e maçãs, bem como muitas outras coisas.

Aengus mac Fergus, Senhor do Reino, enviou-nos alguns dos seus homens com presentes de Páscoa, grandes carregamentos de aves de caça e de javali destinados a alegrarem ainda mais a nossa festa, e esses mesmos homens não perderam tempo e colocaram a carne a assar em espetos, por cima de fogos acesos no pátio. Despachada que foi essa tarefa, dedicaram-se rapidamente ao encarregado da adega e tornaram-se seus escravos, trabalhando afanosamente junto dos cascos de carvalho da escura e espumosa cerveja e do doce hidromel. Para além disso, como era Páscoa, também tínhamos jarros de vinho.

Quando tudo ficou pronto, o Secnab Ruadh impôs o silêncio e pediu as bênçãos de Deus para aquela nossa refeição festiva. A seguir pegámos nas malgas de madeira e quebrámos o prolongado jejum da Páscoa, partilhando os pratos que achávamos mais apetitosos. O dia foi inteiramente dedicado à satisfação da comida e da bebida, e às conversas harmoniosas com familiares e amigos. Todos os que se encontrava reunidos no interior das muralhas da abadia eram como que irmãos e irmãs, pais e filhos, amigos uns dos outros.

Depois das dores da fome terem sido saciadas e banidas, entretivemo-nos com jogos. Incitados pelos filhos dos nossos convidados, envolvemo-nos em competições de força e de habilidade: lançamento de pedras e lanças, força de mãos e outras coisas do mesmo género. Alguns dos homens do senhor local, todos eles guerreiros, imaginaram uma corrida de cavalos em que os cavaleiros deveriam sentar-se nas suas selas virados ao contrário. Foi um espectáculo tão divertido que a corrida teve de ser realizada várias vezes para dar lugar a todos os que quiseram tomar parte nela. A última corrida foi a melhor porque muitas das crianças mais velhas insistiram em participar. Para que as mais jovens não se sentissem ofendidas, alguns dos monges resolveram também entrar na corrida, com cada um deles a levar consigo uma criança pequena para que não lhes acontecesse nada de mal, o que provocou ainda mais confusões e pôs todo o vale a ressoar com as nossas gargalhadas. Ah, foi uma diversão esplêndida!

Permaneci ao lado de Dugal durante todas as festividades, dolorosamente consciente de que o momento da nossa separação estava prestes a chegar. Contudo, como não queria pensamentos infelizes a intrometerem-se naquela gloriosa celebração da Páscoa, fiz o possível por não pensar nisso. Se Dugal, por acaso, teve sentimentos semelhantes... então não os deixou transparecer e divertiu-se ao máximo, correndo do barril de cerveja para a corrida, para a mesa e de novo para o barril. Tive muito poucos relances dos nossos três misteriosos visitantes, Brynach, Gwilym e Ddewi. Pareciam estar sempre a pairar nas sombras do bispo, frequentemente envolvidos em conversas uns com os outros ou com alguns dos nossos irmãos mais velhos. Embora as festividades fluíssem facilmente à sua volta, aqueles três homens, e muito em particular Brynach, mantinham-se isolados. Olhavam, sorriam, mas raramente participavam nos divertimentos.

O dia foi passando e o Sol começou a descer lentamente, iluminando o céu ocidental com a sua luz vermelho-dourada. O nosso bom abb chamou toda a gente, disse-lhes para o seguirem e organizámos uma grande Procissão em volta da cruz do pátio. Demos uma volta, duas voltas, três

voltas, após o que o abade reuniu todos num anel em torno da cruz e declarou, com a sua voz áspera e sussurrada:

- Contemplem esta cruz! Sim, neste momento está nua mas nem sempre foi assim! Quero que recordem, meus amigos, aquele medonho e terrível dia em que o Filho do Grande Rei tomou sob os seus ombros todo o peso do mundo enquanto jazia suspenso na árvore do Gólgota! Pesar e vergonha!

Oh, Coração do meu coração, o teu povo prendeu-te, amarrou-te e bateu-te!

Junco verde em carnes firmes e punhos odiosos em faces avermelhadas! Os amaldiçoados espinhos transformaram-se numa coroa para a cabeça sagrada e uma túnica emprestada escarneceu os ombros daquele que carregou com a deplorável mancha dos pecados da humanidade.

"Depois, ansiosos por mais sangue, agarraram em ti e perfuraram-te as mãos e os pés com os frios e cruéis pregos! Ergueram-te bem alto, acima do chão, para morreres numa agonia amarga, com o teu povo a assistir, impotente.

"Hediondo feito! Cuspiram sobre o Criador do Mundo enquanto a morte roubava a luz dos seus olhos.

A voz de Fraoch tornou-se mais áspera enquanto e as lágrimas rolaram-lhe pelas faces.

- Os trovões e o vento não os detiveram, a chuva e o granizo não os assustou, e nem sequer temeram a voz que gritou: "Abba, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!"

"Ergue-se a lança de lâmina aguçada, que morde profundamente o Teu coração ferido. A água e o sangue escorrem pelos teus flancos reluzentes - como o vinho do perdão derramado por todos - e o maravilhoso Filho de Deus deixa de respirar!

"A seguir descem-Te da cruz, ansiosos por te levarem dali! Foste arrastado pelas ruas envolto num saco! Nada de linhos e peles macias para o Alto Rei dos Céus, mas apenas uma mortalha vulgar.

"O túmulo escavado na pedra torna-se no teu lar, ó Amado. A solidão da casa de turfa é o teu novo domínio, no cemitério dos ossos, e os soldados de César ficam de guarda junto à porta de pedra para que os assassinos não perturbem o teu sono de morte.

"Será que já te receiam? Conduziram-te à morte, Senhor de Todas as Coisas, e montam guarda olhando para a esquerda e para a direita, com as mãos a tremer. A escuridão desce sobre a Terra. E como não? A Luz da Vida foi encerrada num túmulo e a sôfrega noite está repleta de demónios.

- Amigos - sussurrou o abade, com a voz enfraquecida pela contemplação daquela terrível noite - os inimigos da luz e da vida levaram a fim uma grande celebração. O som da folia ressoou nos Salões do Céu e o Deus Pai olhou para baixo, num desgosto magoado. Chamou o seu Campeão e disse: "Repara, Miguel! Mataram o meu amado filho, o que já de si é muito mau, mas não deviam alegrar-se tanto. Estará certo que o mal exulte ante a morte do Único Justo?"

"Miguel, Servo da Luz, replicou: "Senhor, sabeis bem que não está certo. Pronunciai a palavra e matá-los-ei a todos com a minha espada ardente.

"Ah, mas o Sempre Misericordioso leva um dedo aos lábios e diz:

"Paciência, paciência, tudo a seu tempo. Se a solução para um desastre fosse superior às minhas forças, então eu não seria um Deus. Afasta-te e vê o que vou fazer."

"O Alto Rei do Céu, com o seu coração a sofrer, espreitou para o sepulcro gelado. Uma única lágrima escorreu dos seus olhos cheios de amor e caiu no escuro túmulo onde jazia o corpo do filho, o Príncipe da Paz. A lágrima atingiu o Cristo em cheio no rosto magoado e a doce vida voltou a inundá-lo.

"O Grande Rei virou-se para o seu Campeão e disse: "Porque te atardas, meu amigo? Viste como foi. Rola aquela pedra e deixa que o meu filho saia em liberdade!" Miguel, lançando-se para a Terra como um raio, pousou a sua mão na amaldiçoada pedra e lançou a grande mó para um lado com o simples agitar de um dedo.

"E tu ergues-Te! Cristo Vitorioso! Atiras o saco para longe e levantas-Te. A morte, essa coisa fraca e desprezível, jaz estilhaçada a teus pés.

Pontapeias os estilhaços e caminhas para fora do túmulo, com os bravos soldados a caírem por terra, abatidos pela visão de uma tão imensa glória!"

O abade Fraoch abriu muito os braços e prosseguiu:

- Mil boas-vindas, ó Rei Abençoado! Mil Boas-vindas, Juventude

Eterna! Avé e bem-vindo, Senhor da Graça, que sofreste tudo o que a morte te podia fazer. Sim, sofreste pela obstinada raça humana e morreste alegremente. Primogénito da Vida, foi a nós próprios que carregaste para fora do sepulcro com cada um bem agarrado às tuas largas costas.

"Por isso, olhai para a cruz e rejubilai, meus amigos! Pensem nisso e louvem Aquele que tem o poder de erguer os mortos para a vida. Amém!

Toda a gente olhou para a alta cruz sob a luz do Sol poente e gritou:

- Amém, Senhor!

Os irmãos que tinham as harpas já esperavam aquele momento e começaram a tocar. Cantámos. Hinos, é claro, mas também outras canções.

Canções antigas, mais velhas do que qualquer das tribos ou clãs que as reclamavam como suas, mais velhas do que as próprias colinas arborizadas. Cantámos enquanto a noite nos envolvia e voltámos a escutar as histórias da nossa raça, honradas pelas eras.

Naquela noite, quando fomos descansar, íamos satisfeitos de corpo e alma. No dia seguinte levantámo-nos para prosseguirmos as nossas celebrações. Tentei preparar-me para a partida ao longo dos três dias da festa da Páscoa. Raramente vi Dugal. Se não o conhecesse tão bem, teria sido capaz de pensar que me estava a evitar.

Os visitantes só se foram embora no final, já bem tarde, do terceiro dia. Nas vésperas juntei-me aos meus irmãos para uma última oração. O Sol pusera-se e começava a estar escuro no interior das muralhas da abadia, mas o céu ainda conservava um pálido tom azul. A leste, muito baixas, brilhavam duas estrelas. Dizem que o céu de Bizâncio é dourado, afirmara Dugal. E que até as estrelas são estranhas.

O meu coração contorceu-se dentro de mim porque ansiava por trocar algumas palavras com ele. No dia seguinte partiria... e nunca mais voltaria a ver o meu bom amigo logo que me encontrasse no exterior do anel de muralhas da abadia. Essa ideia deixou-me tão preocupado que decidi fazer a vigília da noite para tranquilizar o meu coração.

Fui ter com Ruadh para lhe implorar esse serviço. Pareceu surpreendido com o meu pedido.

- Acho que seria melhor descansares tanto a alma como o coração - sugeriu. - Por isso, aconselho-te uma boa noite de sono.

- Agradeço-vos a preocupação. - repliquei - O que me aconselhais seria sem dúvida o melhor, mas é também a minha última oportunidade para uma vigília em frente ao altar do abade. É por isso que peço, respeitosamente, a vossa autorização...

- E dou-ta com prazer - admitiu Ruadh. - Esta noite é o Diarmot quem está de serviço. Tens de o procurar para o informar da alteração.

- Sem dúvida - concordei, preparando-me para abandonar o alojamento do secnab. - Obrigado, Confessor.

- Vou sentir a tua falta, Aidan... - disse Ruadh, acompanhando-me até à porta - mas rezarei por ti todos os dias, nas matinas. Onde quer que estiveres, saberás que o dia começou com o teu nome a ser pronunciado perante o trono do Alto Rei. Todos os dias, nas vésperas, implorarei a misericórdia do Senhor em teu nome. Desse modo, onde quer que estiveres neste vasto mundo de Deus, saberás que o dia terminou com um rogo para que regresses em segurança.

Estas palavras comoveram-me tanto que não consegui falar... e ainda mais porque sabia que Ruadh manteria a sua promessa, acontecesse o que acontecesse. Passou os braços em volta dos meus ombros e apertou-me contra o peito.

- Vai com Deus, meu filho - disse Ruadh.

Acenei, engoli em seco e deixei-o.

Procurei o meu amigo mas não o encontrei. Um dos irmãos disse-me que Dugal fora ajudar a tratar dos borregos, no vale seguinte, pelo que regressei à minha cela sentindo-me muito infeliz e atirei-me para cima do catre. Ignorei o toque para o jantar, adormeci durante um bocado e acordei quando a sineta tocou a compeline, mas não tive coragem para me juntar às orações dos meus irmãos. Jazi na cela, escutando os sons da abadia que se preparava para a noite. Finalmente, quando pensei que já toda a gente fora descansar, espevitei a vela e apressei-me a sair novamente para a escuridão. A Lua nascera e era uma resplandecente e dura bola de gelo que brilhava no céu. O vento que soprara durante todo o dia também fora dormir e consegui ouvir os cães a ladrarem na povoação que ficava do outro lado do rio. Movi-me silenciosamente através do pátio, sem ver ninguém e com a minha sombra bem nítida por baixo dos pés.

A capela é um quadrado de pedras, simples e sem adornos, com paredes espessas e um telhado de pedra muito íngreme, terminado em bico. É também um lugar de paz e daquela tranquila força que tem a sua origem numa longa devoção. O forte luar transformara a pedra em metal martelado, talvez em bronze, ou até em prata. Dirigi-me à entrada, levantei o trinco, empurrei a pesada porta e entrei no compartimento nu com o achatado altar de pedra por baixo de uma fenda de ventilação, muito alta e estreita. A um canto havia um maciço suporte para livros, agora vazio.

Não era necessário qualquer livro para a vigília da noite. As velas ardiam silenciosamente nas altas árvores de ferro, enchendo a capela com o seu cheiro quente e ligeiramente rançoso.

Empurrei a porta atrás de mim, fechei o trinco e avancei para o altar... e só então reparei em Diarmot.

- Terei todo o prazer em fazer a vigília contigo - declarou, com uma formalidade rígida.

O coração caiu-me aos pés.

- Irmão, não há necessidade... - disse-lhe. - Implorei esta obrigação e suportá-la-ei com alegria. Perdoa-me, devia ter-te avisado mais cedo, mas podes ir-te embora.

- Seja como for - replicou Diarmot com uma satisfação presunçosa - será bom para mim ficar contigo esta noite.

Não apreciava a sua companhia mas não consegui pensar em mais objecções e fiz-lhe a vontade.

- Não me cabe recusar - disse-lhe, e ocupei o lugar no outro lado do altar.

A vigília nocturna é um simples serviço de orações. Não há ritos, salvo aqueles que cada celebrante leva consigo. São muitos os que recitam os Salmos e fazem uma genuflexão depois de cada um deles. Outros rezam durante toda a noite, prostrados com os braços em cruz. Outros ainda guardam o Senhor em silêncio, meditando sobre o nome divino ou num determinado aspecto da Sua divindade.

Muito frequentemente, prefiro orar, deixando que a minha mente vagueie para onde lhe apetece e encarando aquela contemplação na presença do

Alto Rei do Céu como uma oferenda. Contudo, por vezes, quando a minha alma está perturbada, limito-me a ajoelhar e a entregar-me ao Kyrie eleison.

Foi o que fiz.

- Senhor, tem piedade de mim... - rezei, repetindo o rogo a cada respiração enquanto me mantinha ajoelhado ao lado do altar.

Contudo, pareceu-me que Diarmot decidira recitar os Cento e Cinquenta. Entoava os salmos numa voz murmurante, fazendo profundas vénias no começo de cada um e ajoelhando-se quando o terminava. Diarmot, tal como muitos dos irmãos, era honesto e sincero, talvez muito mais do que eu, facto que confesso sem dificuldade. Mesmo assim, era-me difícil suportá-lo porque já reparara que muitos daqueles monges, apesar de toda a sua diligência, pareciam sempre mais preocupados com a aparência de uma coisa do que com o seu significado. De certeza que uma genuflexão sentida devia valer mais de cem que fossem feitas apenas para pontuar uma recitação.

Todavia, muito provavelmente, estou enganado quanto a isso, tal como a respeito de muitas outras coisas.

Resignando-me à ruidosa presença de Diarmot, ajoelhei com a cabeça baixa, respirando aquela minha simples oração: "Senhor, tem piedade!...

Cristo, tem piedade!" Enquanto rezava, pousei os meus olhos no círculo de luz levemente oscilante que manchava o solo à minha frente. A luz e a sombra pareciam pelejar uma com a outra pela supremacia sobre o pavimento de pedra por baixo da árvore-de-velas. Desejei que a luz triunfasse.

mas havia tanta escuridão à sua volta...

Os Salmos de Diarmot transformaram-se mais num balbuciar do que numa devoção enquanto a sua voz continuava a zumbir. Já não eram palavras, mas apenas um som, um gorgolejar tão sem significado como o de um riacho a murmurar. Aquele som enchia-me a cabeça enquanto o suave círculo de luz oscilante me enchia os olhos.

Mergulhei num sonho acordado. Foi então que vi Bizâncio e a minha própria morte.

 

O círculo de luz das velas que iluminava o chão à minha frente transformou-se num buraco através do qual podia ver uma vaga vastidão sem formas, que se estendia até ao horizonte em todas as direcções, sem características e sem cor, mas com nuvens por cima e nevoeiro por baixo.

Naquele firmamento sem fim pairava uma grande ave solitária - uma águia - de asas abertas e olhos vigilantes em busca de um lugar para descansar. Conseguia ouvir o abafado zumbido do vento a passar por entre as pontas das penas bem estendidas enquanto estas varriam o céu vazio, e sentia que o cansaço - um cansaço que a penetrava até aos ossos -, já pesava nas suas amplas asas. Mesmo assim, a maravilhosa ave continuava a voar, rodeada por todos os lados por uma paisagem onde não havia um único lugar onde pudesse pousar.

Então, precisamente quando aquelas boas asas começavam a falhar, tive um relance, lá muito ao longe, para leste, do fraco clarão avermelhado do Sol que surgia por cima do nevoeiro que encobria o mundo. O Sol ergueu-se, mais alto, cada vez mais alto, tornando-se gradualmente mais brilhante, resplandecente com o vermelho-dourado da forja de um artífice.

Encandeado pelo clarão, não consegui suportar a visão e tive de desviar os olhos. Quando recuperei a vista... maravilha das maravilhas! O que via já não era o Sol mas uma enorme e resplandecente cidade disposta sobre sete colinas, com cada um dos seus cumes a brilhar com esplendores e riquezas para lá da minha mais febril imaginação. Irradiando a luz da sua própria beleza, iluminada pelo fogo da riqueza e da magnificência.

a cidade dourada brilhava como um ornamento cravejado de jóias e com uma dimensão inconcebível.

A fatigada águia viu a cidade a erguer-se na sua frente e ganhou alento, batendo as asas com uma força renovada. Finalmente, pensei, a valorosa ave está salva. De certeza que algures, numa cidade como esta, haverá um lugar onde poderá descansar. A águia voou, cada vez mais perto, com cada batimento de asas a aproximá-la rapidamente, com cada batimento a revelar o brilho de outras maravilhas: torres, cúpulas, basílicas, pontes, arcos triunfais, igrejas e palácios de brilhante ouro e vidro.

Apressando-se ansiosamente em direcção ao refúgio da cidade dourada, a orgulhosa ave, com o coração a bater mais depressa à vista daquela extravagante recompensa pela sua longa perseverância, começou a descer e abriu completamente as asas para ir pousar no cimo da torre mais alta.

Porém, quando a águia se aproximou, a cidade modificou-se. De repente já não era uma cidade mas sim uma imensa besta com os quartos traseiros de um leão, os quartos dianteiros de um dragão, uma pele de escamas douradas, garras de vidro e uma vasta boca escancarada com fileiras de espadas a servirem de dentes.

A águia contorceu-se no ar e soltou um guincho, alarmada, batendo as asas para se escapar. Todavia, era já demasiado tarde. A besta dourada esticou o seu longo pescoço serpentino e abocanhou a exausta ave em pleno céu. As mandíbulas fecharam-se e a águia desapareceu.

O eco seco dos maxilares da grande besta dourada a fecharem-se acordou-me, a tremer, da minha visão. A sala estava sombria e o cheiro da gordura das velas era muito forte nas minhas narinas. A árvore-de-velas na minha frente jazia no solo onde caíra, com as velas apagadas ou a derreterem-se em lagos de cera. Diarmot estava prostrado no chão ao lado do altar, de braços esticados para os lados, ressonando baixinho. Adormecera durante as orações.

Levantei-me devagar, avancei para a árvore-de-velas caída e levantei-a. O som da sua queda fizera-me despertar do sonho... mas que fora que a fizera tombar?

A porta bateu, agitada pelo vento. Sem dúvida que me esquecera de prender o trinco e a árvore-de-velas fora derrubada por uma rajada de vento.

Caminhei para a porta e segurei-a com a fita de couro, certificando-me que o trinco de madeira encaixava na respectiva fenda. Regressei ao meu lugar, retomei a minha postura e iniciei novamente o Kyrie. Porém, o sonho permanecia fresco perante mim, assaltava a minha mente com o seu terrível aviso e não me deixava rezar. Acabei por desistir, e limitei-me a ficar sentado, a pensar no que vira. Os meus sonhos nunca se enganam mas é frequente que necessite de pensar muito para conseguir extrair deles o devido significado. Virei a minha mente para aí mas a interpretação escapava-me.

Levantei-me e espreguicei-me quando vi que as primeiras luzes fracas do dia já brilhavam na alta fresta de arejamento. Fiz uma pausa para pensar se deveria acordar Diarmot. O sino tocou as matinas no momento em que me debrucei sobre ele e Diarmot despertou sobressaltado. Caminhei para a porta e saí, sendo saudado por vários irmãos que já trepavam a colina em direcção à capela, com as capas a agitarem-se-lhes em volta das pernas sob o frio vento do norte. Devolvi-lhes as saudações com toda a boa vontade e aspirei o ar frio bem para dentro dos pulmões: uma, duas, três vezes.

Quando regressei à capela para as primeiras orações já o Sol se erguia por cima do vale enevoado, lá longe, para leste. O coração contraiu-se-me no peito ante aquela visão e foi nesse preciso instante que compreendi o significado do meu sonho. O conhecimento transformou-me o sangue em água: a águia era eu próprio e a cidade era Bizâncio. A besta, nesse caso, era a morte.

Deixei-me cair contra a parede da capela, sentindo a pedra áspera contra as costas e ombros. Senhor, tem piedade! Cristo, tem piedade! Senhor, tem piedade!

O que eu vira era o que iria acontecer. A certeza, tão brilhante e total como o Sol que agora banhava o meu rosto com a sua luz, removeu até a mais pequena sombra de uma dúvida. Todas as minhas visões arrastavam consigo uma profunda garantia de verdade: o que vira era o que iria acontecer. O tempo provaria que eu tinha razão. A morte pairava à minha frente, tão certa como o Sol nascente. Iria a Bizâncio e era aí que morreria.

Suportei as orações numa confusão de medo e descrença. Porquê?

Porquê agora? Não servia de nada. Sabia, graças a uma longa experiência.

que não obteria uma resposta. Nunca a obtinha.

Depois das orações juntei-me aos outros no refeitório e quebrei o jejum com pão de cevada e carne cozida, uma refeição consistente apropriada para marcar o início da jornada.

- Ah, Aidan, é a tua última refeição antes de te juntares aos vagabundi, não é verdade? - disse o irmão Enerch, o chefe dos pastores.

- Cautela, irmão - aconselhou-o Adamnan, sentado a seu lado. Quando voltarmos a sentarmo-nos juntos, um de nós já terá jantado com o Imperador. Pensa nisso.

- Achas que o Imperador janta com todos os vadios esfarrapados que se apresentam junto do Portão-Dourado? - perguntou o irmão Rhodri, junto de mim.

Ora, tudo aquilo não passava de uma brincadeira mas as palavras daqueles irmãos encheram-me de apreensão. Embora tentassem envolver-me numa conversa agradável, não consegui elevar-me à altura das zombarias e abandonei a mesa após algumas dentadas, afirmando que tinha de ir reunir os meus pertences.

Abandonei o refeitório e atravessei rapidamente o pátio em direcção ao scriptorium. Por cima da minha cabeça, o céu ganhara um desanimador tom cinzento. Tornara-se obscuro e deixava escorrer uma luz fria e mal-humorada, enquanto o vento, caprichoso, soprava em rajadas sobre a muralha ocidental. Pensei que se tratava de um dia desolado, muito de acordo com a minha própria disposição sombria.

Vários dos gansos malhados da abadia atravessaram-se no meu caminho. Como que para dar ênfase às preocupações, dei um pontapé no que se encontrava mais perto. Os gansos dispersaram, grasnando barulhentos protestos enquanto fugiam. Olhei em volta com um ar culpado e arrependi-me da minha maldade quando o rapaz que guardava os gansos apareceu a correr, com o seu pau, silvando e assobiando para os chamar de volta ao bando. Lançou-me um negro olhar de desaprovação quando passou junto de mim.

- Tem cuidado! - gritei-lhe. - Mantém esses gansos longe dos pés das pessoas!

Sozinho, na minha cela, o desespero fez-me cair de joelhos.

- Cristo, tem piedade! - gemi, em voz alta. - Senhor, se isso te aprouver, remove esta maldição de cima de mim. Restaura a minha felicidade, ó Deus! Senhor, salva o Teu servo.

Deixei extravasar a angústia batendo com os punhos contra os joelhos. Passado um instante ouvi vozes no pátio, lá fora, levantei-me e olhei uma última vez para o meu quarto. Depois de mim, quem ficaria com a pequena cela?, interroguei-me. Fui assaltado por aquela noção e rezei pelo homem que habitaria o pequeno quarto nu. Pedi a Deus que o enchesse de bênçãos e lhe concedesse todas as boas coisas... fosse ele quem fosse.

A seguir peguei na minha bulga, pendurei-a ao ombro, saí da cela e juntei-me ao grupo de viajantes que se reunira no pátio.

Toda a abadia se amontoara ali para nos desejar uma boa viagem e para se despedir de nós. O abade e Mestre Cellach, que iriam connosco até à costa, conversavam com Ruadh e Taum. O bispo e os monges visitantes estavam prontos para a partida. Vi Brocmal e Libir ali perto e ocupei o meu lugar junto deles. Brocmal olhou-me com uma expressão azeda quando me sentiu a seu lado, virou-se para Libir e disse:

- Seria de esperar que qualquer monge suficientemente afortunado para ser escolhido para esta jornada - e ainda por cima contra todas as expectativas - se sentisse na obrigação de não fazer esperar os outros.

O obscuro comentário destinava-se, suponho, a envergonhar-me.

Porém, como já sabia que não podia esperar qualquer espécie de boas palavras da parte daqueles dois escribas presumidos, deixei-o passar sem me sentir ofendido. Ignorei o desprezo e examinei a multidão em busca do único rosto que ansiava por ver. Todavia, Dugal não se encontrava ali.

Senti-me dominado por um terrível pavor ao compreender que chegara o momento da partida, que teria de me ir embora sem poder despedir-me do meu mais querido amigo e que, quando partisse, nunca mais voltaria a vê-lo. A compreensão desse facto, a que não podia escapar, encheu-me de uma inexprimível tristeza. Teria chorado, ali mesmo... se não fosse toda aquela gente que se encontrava à minha volta.

- E assim se inicia a jornada! - exclamou Fraoch. Ergueu bem alto o seu bordão, virou-se e conduziu-nos para o portão. Os nossos irmãos gritaram despedidas, ergueram as vozes num cântico e seguiram-nos até ao portão, sempre a cantar.

Passei através do portão e da muralha... e estava lá fora, já com os meus pés no trilho, deixando a abadia para trás das costas. Caminhei, dizendo a mim mesmo que não devia olhar para trás. Contudo, após não mais do que uma dezena de passos, não suportei a ideia de me ir embora sem um último olhar a Cennanus na Ríg. Espreitei por cima do ombro e vi a elevação encurvada da muralha de defesa e também, erguendo-se por cima dela, a alta torre sineira, o telhado do refeitório, a capela e o alojamento do abade. Os monges tinham-se amontoado à entrada e agitavam os braços numa despedida.

Levantei a minha mão para responder e vi, a atravessar o portão naquele momento, o boi e a carroça que transportavam os abastecimentos para a viagem. E quem conduzia o boi... se não o próprio Dugal? A visão fez-me parar repentinamente.

- Ora, vê se te mexes, Aidan! - protestou Libir, irritado, empurrando-me pelas costas. - Nunca conseguiremos chegar a Constantinopla se continuares a parar a cada dois passos.

- Talvez já esteja fatigado e queira descansar - troçou Brocmal. Fica aqui e descansa, Aidan. Atrevo-me a dizer que seremos capazes de descobrir o caminho sem a tua ajuda.

Deixei-os passar e esperei que a carroça se aproximasse. Dugal conseguira um lugar no grupo de escolta para que eu tivesse a possibilidade de caminhar a seu lado. Que Deus o abençoasse! De facto, ainda tínhamos pelo menos dois dias - o tempo de chegar à costa - antes de nos separarmos para sempre. Foi uma ideia simples mas que deu novas asas à minha alma.

Dugal viu-me. Exibiu um sorriso manhoso e presumido e deu-me as boas-vindas quando acertei o meu passo com o dele.

- Pensaste que te ia deixar partir sem nos despedirmos, irmão? perguntou.

- Aí está uma ideia que nunca me passou pela cabeça, Dugal - menti. - Porque não me disseste?

- Pensei que seria melhor assim - replicou, de novo com o seu sorriso manhoso. - Cellach ficou mais do que satisfeito por me deixar partir. No fim de contas, alguém tinha de trazer a carroça de volta à abadia.

Conversámos sobre a viagem enquanto caminhávamos ao longo do vale e atravessávamos o Blackwater na vau, seguindo pela estrada que se dirigia para leste, para o interior das colinas. Marchávamos por uma estrada velha, muito velha, marcada por pedras verticais ao longo do seu percurso e por altares de pedra em todos os pontos onde havia um cruzamento. Tinha uma boa panorâmica sobre o vale e acabámos por avistar o largo rio Boann, passando para lá da Colina de Slaine, onde tinham lugar as coroações reais desde que os Tuatha DeDanaan haviam chegado ao Éire.

Contudo, havia mais colinas, e cada uma delas, ao longo daquele antigo caminho, era sagrada e possuía a sua própria pedra vertical ou túmulo.

Todavia, era melhor manter no esquecimento os deuses que ali haviam sido adorados em tempos passados. Os Célé Dé deixavam aquelas colinas e os seus apagados deuses entregues a si mesmos.

A nossa pequena procissão estendeu-se ao longo da estrada, com os irmãos a caminharem em grupos de dois ou três, conduzidos pelo bispo e pelo abade. Pela minha parte, satisfeito, seguia ao lado de Dugal, que marchava à frente do boi. Os misteriosos britânicos - Brynach, Gwilym e Ddewi - tinham ocupado lugar logo atrás do bispo e do abade. Caminhámos sem pausas até ao meio-dia e parámos num ribeiro para bebermos. Dugal levou o boi a beber a jusante dos restantes e pensei em falar- lhe do meu sonho de morte. Na verdade, já quase ganhara coragem para o fazer quando o abade nos fez sinal para continuarmos e que nos obrigou a retomar a nossa marcha.

Embora sombrio, o dia manteve-se seco e pareceu-me que toda a gente, excepto eu, se mostrava ansiosa por se ver longe dali. Olhei para as verdes colinas e para os vales enevoados e lamentei a minha partida. Infelizmente, o que deixava para trás não era apenas o Éire mas também a vida, o que fez com que a alegria que sentira por me encontrar junto de Dugal azedasse dentro de mim, envenenada pelo terrível conhecimento que o sonho me transmitira. Ansiava por partilhar o meu fardo com ele, mas não o conseguia. Continuei a caminhar, solitário na minha infelicidade, com cada passo que dava a colocar-me mais perto do meu próprio fim.

Chegámos à vista da Colina de Slaine depois de uma refeição e de um período de descanso. A colina, alta e orgulhosa, erguia-se sobre o Vale de

Boann, com o seu vasto prado, baixo e de vertentes suaves. As nuvens tornaram-se mais finas e permitiram que o Sol se mostrasse de vez em quando.

Por vezes, os outros monges cantavam. Contudo, o meu coração não estava para aí virado. Dugal deve ter reparado na minha disposição sombria, porque perguntou:

- Aqui vai o nosso Aidan, caminhando sozinho e sem amigos! Porque te comportas desse modo?

- Oh... - respondi, forçando um sorriso - agora que o momento chegou, tenho pena de deixar esta terra para trás.

Aceitou a afirmação com um aceno conhecedor e não falou mais no assunto. Caminhámos até ao crepúsculo e montámos o acampamento na própria estrada. Quando desapareceu a última luz do Sol já o rebordo escuro mas brilhante do mar podia ser visto, para leste. O bispo conduziu-nos nas orações depois de uma refeição de carne guisada e pão de cevada, após o que nos enrolámos nas nossas capas e dormimos em volta da fogueira.

Pareceu-me estranho terminar um dia sem que o som do sino da abadia me soasse aos ouvidos.

Levantámo-nos antes da aurora e continuámos o nosso caminho ao longo do Vale de Boann até Inbhir Pátraic, com o seu povoado instalado um pouco atrás das colinas arenosas da costa. Fora ali, dizia-se, que o Santo Pátraic regressara ao Éire trazendo consigo as Boas-Novas. Embora muitos duvidassem da veracidade do facto - uma vez que existiam vários outros locais com pretensões idênticas - não fazia mal acreditar. No fim de contas, o fogoso santo tivera de desembarcar num qualquer local da costa e o estuário do rio, onde o Boann se encontrava com o mar, era suficientemente largo e profundo para os navios. De qualquer modo, agora que os dinamarqueses lá se encontravam, era melhor que o Atha Cliath.

Chegámos a uma pedra vertical que marcava um antigo cruzamento de caminhos e fizemos uma pausa para quebrar o jejum e para rezarmos.

Depois das orações seguimos o trilho que descia das colinas em direcção às terras planas da costa. O vento mudara durante a noite e ar trazia consigo o cheiro ao sal da água do mar, coisa que eu, anteriormente, só experimentara uma ou duas vezes.

Aproximávamo-nos de Inbhir Pátraic: éramos vinte e oito monges, cada um com as suas próprias esperanças e medos. Contudo, penso que nenhum deles tinha medos tão profundos como os meus.

 

O navio encontrava-se fundeado no rio, à nossa espera, e era o mesmo que transportara o bispo e os seis companheiros desde a Bretanha. Era uma embarcação baixa e elegante, com um mastro alto e delgado. Como nada sabia de marinharia ou de navios, achei que era muito bonito... embora o achasse um pouco pequeno para acomodar treze monges.

Quando chegámos à povoação, o regedor veio ao nosso encontro e saudou-nos em nome do senhor da terra.

- Mantivemo-nos de vigia, tal como nos ordenou - disse, dirigindo-se ao bispo Cadoc. - Vou enviar homens para trazerem o navio.

- Os meus agradecimentos e bênçãos para ti, Ladra - respondeu o bispo. - Prepararemos os abastecimentos e esperaremos por ti no cais.

Inbhir Pátraic era formada por pouco mais do que um punhado de cabanas de lama empoleiradas precariamente na íngreme margem norte do Boann, perto da foz do rio. Era uma pequena povoação onde as mulheres criavam porcos nos prados fluviais e onde os homens pescavam a partir de duas resistentes embarcações e navegavam ocasionalmente ao longo da costa sul para comerciarem com as pessoas que encontravam, chegando a aventurar-se até Atha Cliath. Por isso mesmo, o lugar fora considerado como tendo importância suficiente para que o monarca pagasse a construção e a manutenção de um belo cais de madeira. Enquanto o regedor e vários dos seus filhos remavam nos seus pequenos barcos redondos, dirigindo-se para o navio, seis de nós - os monges mais jovens - encarregámo-nos da descarga da carroça.

Tínhamos apenas dado início a essa tarefa quando apareceu lorde Aengus na companhia da sua rainha e de dez guerreiros. Desmontou imediatamente, abraçou o bispo e o abade, e declarou:

- Estou satisfeito por ter conseguido chegar até vós antes de embarcarem, meus amigos. Os meus homens falaram-me da jornada e da sua finalidade. Vim desejar-vos boa viagem e pedir a vossa indulgência... porque também vos vou pedir que levem uma oferta para o Imperador.

o monarca fez sinal à esposa para que se aproximasse. Desmontando com graciosidade - a rainha Eithne era uma mulher muito bela, de cabelos negros e pele branca, tal como é próprio de uma Irmã de Brigit -, chamou um dos guerreiros, que retirou um pequeno e achatado cofre de madeira de trás da sela e lho colocou nas mãos. A rainha, com as suas costas muito direitas e cabeça erecta, transportou o cofre até onde o bispo e o abade se encontravam.

- Homens de valor... - declarou, numa voz baixa e doce - foi-me dito que o Imperador dos Romanos é um homem de grande saber e sensatez. Contudo, até esses têm necessidade de alguma diversão de tempos a tempos. - Dito aquilo, abriu o cofre e revelou um pequeno tabuleiro do tipo utilizado para jogar brandub. - As peças - explicou, metendo a mão no cofre e fazendo aparecer uma pequena figura - são de ouro para o rei e de prata para os caçadores.

o trabalho do artífice era requintado, tanto no cofre como no tabuleiro, e as peças individuais estavam bem feitas e eram muito dispendiosas.

- Minha senhora... - respondeu Fraoch - será com grande prazer que colocarei este presente nas mãos do Imperador e que dedicarei o primeiro jogo em vossa honra.

- Em consideração pelos vossos serviços... - declarou Aengus, que os olhava irradiando satisfação - gostaria de vos oferecer um penhor da minha consideração. - Chamou mais três dos seus homens, que se aproximaram com três grandes fardos de pele de ovelha que pousaram aos pés do amo. Quando abriram o primeiro, o monarca retirou dele um belo capuz de lã negra. - Trouxe um para cada um dos membros do vosso grupo - declarou.

o segundo fardo foi aberto e revelou uma selecção de largos cintos de couro, enquanto o último continha sapatos de couro, novos, do tipo que fabricávamos na abadia. Eram feitos de uma peça de bom e espesso couro, cortada e dobrada de maneira a formar uma resistente sandália fechada, presa por fios de couro entrançado. Também havia ali os suficientes para que pudéssemos escolher e cada monge iniciasse a sua viagem com um par de sapatos novos.

- A vossa generosidade, lorde Aengus - declarou o bispo Cadoc - só é ultrapassada em amabilidade. Ficamos em dívida para convosco.

- De vós, não quero ouvir falar em dívidas - replicou Aengus, ao que a rainha Eithene acrescentou rapidamente:

- Digam uma oração por nós quando chegarem à cidade santa.

- Assim faremos - prometeu Cadoc.

Os capuzes de lã, os cintos e os sapatos foram passados de mão em mão e cada monge escolheu os que melhor lhe serviam. Pela minha parte, fiquei satisfeito por ter um cinto resistente e sapatos novos, mas o capuz também seria bem-vindo sempre que soprassem ventos frios. Enfiei-o na cabeça, deixei-o pousar nos ombros, apertei o cinto em volta da cintura e calçei os sapatos. Os artigos estavam bem feitos e serviam-me bem. Estranhamente, senti-me melhor só por os usar. Se ia morrer, então ao menos que o fizesse com um bom par de sapatos novos.

Todavia, a entrega de presentes ainda não terminara. O abade Fraoch chamou Dugal, que fez aparecer um certo número de odres de couro e bordões, ou seja, um odre e um bordão, ambos novos, para cada monge.

- Todas as nossas esperanças vão convosco - disse o abb. - Por isso, caminhem como pessoas merecedoras do vosso encargo, com ousadia e equipados para todos os trabalhos. Nada receiem, meus amigos. Deus segue à vossa frente.

Só então começámos a transportar os víveres para o cais. Como já disse, a margem era íngreme, para além de pedregosa, e as pedras estavam cobertas de musgos, o que fazia com que o caminho fosse perigoso.

Dugal retirava os fardos da carroça e colocava-os nas nossas mãos, e éramos nós quem os transportávamos até à água.

A medida que a pilha de fardos ia diminuindo, comecei a preocupar- me com a possibilidade de não poder despedir-me de Dugal.

- Já temos pouco tempo - disse-lhe, aproximando-me enquanto ele puxava o último saco de cereal para fora da carroça - e queria despedir-me de ti.

- Ainda não nos separámos - replicou, e pensei que o fez de uma maneira algo brusca. Também não olhou para mim. Em vez disso, virou-se rapidamente, colocou o saco nas mãos do monge que o aguardava e chamou o abade, dizendo-lhe que a carroça estava vazia.

O abade respondeu com um aceno e sussurrou a todos os que o rodeavam:

- Desçamos até ao cais. O navio está à espera.

A maior parte dos irmãos já se encontrava reunida no cais. Só o bispo, o abade e vários dos irmãos mais velhos se tinham deixado ficar para trás, conversando com o monarca e com a rainha. Peguei num fardo e comecei a descer na direcção. do navio quando as últimas provisões já estavam embarcadas.

Ora aconteceu que havia uma passagem particularmente traiçoeira onde o caminho se dobrava sobre si mesmo, passando entre duas rochas.

O nevoeiro da manhã deixara aquele sítio realmente muito escorregadio.

Como já o percorrera por duas vezes, sabia que tinha de pousar os pés com cuidado e apoiar uma das mãos à rocha maior para me firmar. Não era um feito fácil para quem levava um saco de cereal debaixo de um braço mas tive muito cuidado e consegui evitar uma infelicidade qualquer.

Porém, pensei em avisar os que vinham atrás de mim. Parei e comecei a virar-me quando ouvi um grito agudo e estrangulado. Alguém caíra no caminho!

Procurei um lugar a que me agarrar, olhei para trás e vi que Libir escorregara e caíra. Felizmente, Dugal vinha logo atrás dele.

- Irmão! - gritou Dugal. - Aqui! Agarra-te à minha mão!

Assim dizendo, o forte Dugal estendeu a mão, agarrou em Libir e puxou-o. A tragédia fora evitada, mas por pouco. O monge mais velho, de rosto branco e a tremer, pôs-se de pé e libertou-se de Dugal com violência.

- Tira a mão! - gritou Libir, creio que embaraçado com a sua própria falta de estabilidade.

Virei-me, voltei a descer o trilho e ainda não dera um passo quando ouvi um grande estalo, como o de um ramo a bater contra uma pedra.

Um instante depois, Libir gritou. Quando olhei para trás, vi-o caído na vertente da margem com uma perna dobrada num ângulo pouco natural.

- Libir! Libir! - exclamou Brocmal, lançando-se para a frente, por trás de Dugal.

- Cuidado! - avisou-o este último. - Também queres cair?

O velho escriba gemia, com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados. Dugal desceu, colocou-se a seu lado e tomou o monge nos braços com todas as cautelas.

- Calma - disse. - Calma, irmão, eu levo-te.

Dugal endireitou as costas e ergueu o monge que gemia baixinho.

Depois, meio-sentado e meio a trepar, arrastou-se de volta ao alto da margem. Os que se encontravam mais perto do local do acidente reuniram-se à sua volta para ver o que se passara.

Brocmal empurrou Dugal para um lado e ajoelhou junto do amigo.

- Disse-te para teres cuidado - declarou, com secura. - Bem te avisei!

- A culpa não foi dele - comentou Dugal. - O caminho está muito escorregadio.

- Tu! - berrou Brocmal, rodopiando para o enfrentar. - Foste tu quem fez isto!

Para seu crédito, o corpulento monge deixou passar a afirmação.

- Tentei ajudá-lo - respondeu, com simplicidade.

- Empurraste-o!

- Não, foi ele quem me sacudiu!

- Paz, irmãos - grasnou o abade, intervindo rapidamente e ajoelhando junto de Libir, caído no chão. - Deste uma má queda, irmão disse-lhe Fraoch para o acalmar. - Onde foi que te magoaste?

Libir, acinzentado e a suar, murmurou uma palavra incoerente mas suas pálpebras agitaram-se e perdeu a consciência.

- Creio que foi numa perna - declarou Dugal.

Cellach ajoelhou-se ao lado do abade e ergueu o hábito do monge.

Muitos dos que se encontravam por perto ofegaram e desviaram os olhos.

A perna direita de Libir estava horrendamente dobrada e ferida logo abaixo do joelho, e havia um bocado de osso estilhaçado a sobressair no ferimento.

- Ah... - suspirou o abade, com pesar. - Deus do céu... - Sentou-se sobre os calcanhares e passou uma das mãos pelo rosto. - Agora já não podemos partir... - murmurou. - Temos de o levar de volta à abadia.

Lorde Aengus, de pé junto do bispo, avançou e afirmou:

- Por favor, permitam-me que o leve para a minha fortaleza. Fica mais perto e receberá o melhor dos cuidados. Mandá-lo-ei para a abadia logo que estiver em condições de viajar.

- Agradeço-vos... - respondeu Fraoch - mas não é assim tão simples...

- Não há outro que possa ocupar o seu lugar? - interrogou-se o monarca.

- Sim... - concordou o abade - teremos de escolher outro, mas a escolha é difícil porque há muitos factores a ter em conta...

- Sem dúvida que é como dizes... - afirmou a rainha Eithne - mas seria uma pena atrasar tudo, nem que fosse por um momento a mais do que o necessário.

- Ora vamos... - disse lorde Aengus, encorajador - estão a tornar as coisas mais difíceis do que são. Embora não presuma querer intrometer-me nesses assuntos, chamo a atenção para o facto da maré ser a apropriada. Poderão prosseguir a jornada se escolherem outro sem perda de tempo.

O abade Fraoch olhou para o bispo, mas o bispo declarou:

- Deixo a escolha a teu cargo. Pela minha parte, partirei com toda a satisfação se encontrares alguém para substituir o Libir. - Indicou alguns dos seus próprios monges, que se encontravam por perto. - Trago comigo bons homens, que nos servirão bem. Contudo, como Libir era dos teus, respeitarei a decisão que tomares.

Fraoch hesitou e olhou para o círculo de rostos que o rodeava enquanto procurava decidir qual seria a melhor opção.

- Não vejo qualquer inconveniente... - concordou Cellach. - Se houver alguém pronto para ocupar o lugar de Libir... então não teremos de esperar. Talvez o Diabo pretenda contrariar os nossos propósitos... e não gostaria de ver isso acontecer.

Embora as suas palavras fossem razoáveis, compreendi que o mestre dos escribas encarava aquela reviravolta nos acontecimentos como uma oportunidade para se destacar.

- Muito bem - replicou o abade, lentamente. Olhou para Libir, ainda inconsciente, com uma expressão de pena e piedade. - Escolheremos outro... mas vai ser um amargo desapontamento para este bom monge.

- Não vejo que mais possamos fazer - disse Cellach.

- Abade Fraoch - interveio Dugal, baixinho - permite-me ocupar esse lugar? - Antes do abade poder responder, Dugal acrescentou: Sinto-me responsável pelo acidente de Libir...

- Foste tu quem o provocou! - gritou Brocmal, voltando a lançar-se para a frente. - Abade Fraoch, escute-me: Dugal empurrou o Libir no caminho. Vi-o fazê-lo!

- Irmão, por favor... - murmurou Cellach - não é o momento nem o local para esse tipo de acusações.

- Mas eu vi-o com os meus próprios olhos! - insistiu Brocmal, espetando um dedo na minha direcção. - Perguntem ao Aidan. Ele também viu.

De súbito, tornei-me no centro daquela disputa. Desviei os olhos de Brocmal, com o seu rosto vermelho incendiado pela ira, e virei-os para Dugal, que permanecia ajoelhado junto ao inconsciente Libir e se mantinha calmo e tranquilo, aparentemente nada preocupado com as acusações do primeiro.

- Aidan - sussurrou o abade, no seu tom áspero - não preciso de te recordar que se trata de um assunto muito sério. Viste o que se passou?

- Vi, sim, abade.

- Então, conta-me. Que foi que viste?

- Ouvi um grito e virei-me... - respondi, sem hesitações. - O Libir tinha acabado de cair. Dugal pô-lo de pé e tentou ajudá-lo, mas Libir não quis. Afastou-se com um safanão e começou a descer a vertente sozinho.

Foi então que caiu.

- Caiu duas vezes? - perguntou Fraoch.

- Sim, duas vezes.

- E tu viste isso?

- Comecei por ouvir o grito e vi Dugal a tentar ajudá-lo. Depois, vi o Libir a afastar-se dele. Creio que estava embaraçado por ter caído. Voltei a olhar para os meus próprios pés e tinha acabado de me virar quando caiu pela segunda vez.

- Não foi nada disso! - berrou Brocmal. - Mentiroso! Estão ambos metidos nisto! Eu bem os vi, aos dois, quando estavam a maquinar...

- Irmão escriba... - interveio Fraoch com gentileza - o senhor está demasiado enervado. Aparentemente, enganou-se na sua avaliação do que se passou.

Brocmal calou-se mas continuou a olhar-nos com fúria. O abade virou-se para Dugal.

- Brocmal está perturbado, irmão. Não leves a mal a sua ira. Tenho a certeza de que pedirá desculpas logo que se sentir melhor. Pela minha parte, fico satisfeito por teres tentado ajudar o irmão Libir...

- Só desejava que não se tivesse magoado...

- Claro, mas a tua rápida intervenção salvou um velho de uma sorte ainda pior - declarou lorde Aengus. - Procedeste bem.

- Mesmo assim, preferia que nada disto tivesse acontecido - insistiu Dugal. Levantou-se e encarou o abade. - Bom abb, embora eu não seja um escriba, estou pronto para o substituir. Se me aceitar... assim será.

- Irmão... - disse Cellach, aproximando-se - a tua oferta é muito nobre mas não falas latim nem grego. Tal como dizes, não és um escriba e...

Contudo, antes de poder terminar, lorde Aengus interveio:

- Desculpem, meus amigos, mas parece-me que têm convosco escribas e estudiosos mais do que suficientes para a jornada, e que o que vos faz falta é um homem expedito. Quem melhor do que um guerreiro para esse lugar? - Colocou a mão no ombro de Dugal, como se o recomendasse. Perdoem-me a intrusão, mas vivemos em tempos perigosos. Sentir-me-ia responsável se não vos transmitisse a minha opinião a respeito de uma questão como esta...

- É um bom argumento... - afirmou o bispo, acenando a sua concordância. - Penso que devemos encarar a sugestão do rei com toda a seriedade.

- Talvez fosse Deus quem permitiu que isto acontecesse... - declarou a rainha Eithne, com clareza - para que não abandonem a vossa pátria sem a protecção de um forte guerreiro. Se fosse eu a escolher homens para uma tal viagem, iria mais descansada se soubesse que pelo menos um deles já tinha prestado servido na hoste de guerra do rei.

- Não consigo pensar em guerreiro melhor para uma tal tarefa acrescentou o monarca - e tenho boas razões para saber do que estou a falar.

Ouviu-se um chamamento vindo do cais, lá em baixo:

- A maré está a virar!

- É escolher agora... - disse o bispo Cadoc - ou esperar por outro dia. Deixo isso a teu cargo, Fraoch.

O abade decidiu-se imediatamente e virou-se para Cellach.

- Lamento, irmão. Sei que ficarias muito feliz por ir connosco mas fazes falta na abadia. - Encarou o guerreiro que se encontrava na sua frente e continuou: - Bravo Dugal, se o teu coração deseja ocupar o lugar de Libir, então talvez tenha sido o próprio Deus quem inspirou esse desejo. Assim seja. Irás connosco... e que Deus te abençoe, irmão.

Fiquei a olhar, incrédulo. Dugal acenou e pareceu aceitar a decisão do abade quase com relutância.

- Juro, pela minha vida, que farei tudo o que puder para ajudar a completar a jornada com êxito - declarou.

Ouviu-se novo grito vindo do cais:

- A maré está a mudar! Têm de se apressar!

- Então, está resolvido - declarou o monarca. - Cuidaremos do vosso homem enquanto vocês partem. - Virou-se para Dugal e acrescentou: - O mundo é vasto, meu amigo, e os dias estão repletos de perigos.

- Puxou da espada e ofereceu-a ao seu antigo guerreiro. - Por isso.

leva contigo esta lâmina para protecção dos teus bons irmãos.

Dugal ia aceitar a arma mas o bispo estendeu a mão, dizendo:

- Lorde Aengus, guarde a sua arma - pediu. - A Palavra de Deus é a nossa protecção e não precisamos de outra.

- Será como desejam - retorquiu o monarca, voltando a embainhar a espada. - Agora, apressem-se ou não conseguirão transpor a foz do rio.

Encaminhámo-nos para o navio deixando o pobre Libir ao cuidado de Cellach e dos homens do rei. O resto dos abastecimentos havia sido carregado e a maioria dos monges já tinha trepado para bordo. O bispo içou-se por cima da amurada com uma grande dignidade e ocupou o seu lugar ao lado do mastro. Dugal e eu fomos os últimos a embarcar... e eu nunca estivera a bordo de uma embarcação.

- Dugal... - exclamei, num tom de urgência - este navio não é suficientemente grande! Estou certo de que é demasiado pequeno!

- Nada receies! - respondeu, rindo-se. - É um navio resistente.

- Passou a mão ao longo da amurada. - Foi feito para transportar trinta homens quando necessário, e somos apenas treze. Vamos voar à frente do vento!

Fiquei a olhá-lo, ainda maravilhado com a reviravolta nos acontecimentos que acabara de testemunhar. Não teria ficado mais espantado se o próprio arcanjo Miguel tivesse aparecido para retirar Dugal do cais e para o largar no interior do navio a meu lado.

- Também vais fazer a viagem, Dugal! - exclamei repentinamente.

- É verdade, irmão. - O seu sorriso era largo e encantador.

- É maravilhoso, não é?

- É verdade - concordou.

Um dos monges britânicos gritou uma ordem e quatro outros, que se encontravam junto da amurada, pegaram em longos remos e afastaram o navio do cais.

O abade ergueu o bordão e fez o sinal da cruz na nossa direcção.

- Levam um tesouro convosco, irmãos! Que possam regressar com dez vezes mais riquezas e inumeráveis bênçãos! - A seguir levantou a sua pobre voz e começou a cantar:

 

"Coloco a protecção de Cristo à vossa volta,

Coloco a guarda de Deus à vossa volta,

Para vos ajudar e proteger,

Dos perigos, dos males e das perdas.

Para que não sejam afogados nos mares,

Para que não sejam atacados em terra,

Nem derrubados por qualquer homem,

Nem destruídos por nenhuma mulher.

Manter-se-ão ligados a Deus,

E Deus manter-se-á ligado a vós,

Rodeando os vossos dois pés.

E com as Suas mãos sobre a vossa cabeça.

O escudo de Miguel estará à vossa volta,

E a protecção de Jesus estará sobre vós,

O peitoral de Colum Cille vos preservará

De todos os males e malefícios dos idólatras.

O amor de Deus estará convosco,

A paz de Cristo estará convosco,

A alegria dos Santos estará convosco,

E apoiar-vos-á sempre,

No mar, na Terra e onde quer que. fordes,

Abençoando-vos,

Protegendo-vos,

Para sempre, em cada dia e noite das vossas vidas.

Aleluia, amém!"

 

Deixei-me ficar encostado à amurada, escutando aquela bela canção e sabendo que nunca mais voltaria a ver a minha pátria.

O navio deslizou lentamente para o centro da rápida corrente do rio.

A maré arrastou-nos consigo e ficámos a ver as verdes colinas a deslizarem e a ficarem para trás. Os que se encontravam no cais acenavam-nos e cantavam um salmo de despedida. Continuei a ouvir o seu canto mesmo depois de uma curva do rio que os afastou das nossas vistas e limpei as lágrimas do rosto com as palmas das mãos para que ninguém as visse.

As margens altas começaram a diminuir a pouco e pouco, dos dois lados do navio, e entrámos numa baía baixa e muito ampla.

- Icem a vela! - gritou o irmão que se encontrava ao leme. Quatro monges saltaram para o mastro e começaram a manobrar os cabos.

Bastou um instante para que a vela avermelhada começasse a descer e estremecesse na brisa, sacudindo-se e enchendo-se com um estalo. Vi o símbolo do ganso selvagem, Bán Gwyyddm pintado a branco no centro da vela.

De súbito, o navio pareceu ganhar forças e lançar-se para a frente sobre as águas. Ouvi as ondas a marulhar contra a proa. Mal eu dera por isso e já nos encontrávamos no mar, seguindo o nosso caminho. Lancei um último olhar saudoso para as verdes colinas do Éire e disse um último adeus à minha terra natal. A jornada começara.

 

A excitação invadiu-me quando o navio ganhou velocidade à frente do vento e deslizou sobre as ondas suaves e brilhantes tão rápido e vivo como uma qualquer gaivota de asas negras. O mar abriu-se perante a proa da embarcação e fiquei a olhar, estupefacto, para aquela visão: uma vastidão imensa de inquietas águas azuis-acinzentadas que cresciam até ao horizonte e para lá dele, muito mais imenso e selvagem do que jamais imaginara! Que diferente que parecia quando era visto da amurada de uma embarcação a navegar a toda a velocidade!

Ofegando e com o vento frio a roubar-me o ar dos pulmões, maravilhei-me com a velocidade do navio e com o poder das ondas que deslizavam por baixo da amurada. De tempos a tempos havia uma onda que embatia no casco e que me atirava espuma salgada para os olhos.

Senti o vento no rosto, saboreei o sal na língua e soube o que era estar vivo. Respirei fundo, exultando com a corrida do meu coração e com o ar frio nos pulmões. Voávamos!

Estupidamente maravilhado, olhei para as distâncias marinhas enevoadas e murmurei a oração do pescador: Salva-me, senhor! O teu mar é tão grande e o meu barco é tão pequeno! Deus, tem piedade de mim!

Mantive-me no meu lugar na traseira do navio, quase demasiado assustado para me mexer, e observei os irmãos marinheiros a executarem as suas tarefas. Trabalhavam com uma hábil eficiência, movendo-se naturalmente de acordo com as oscilações do navio, com as mãos cheias de cabos, puxando, atando, soltando e amarrando, chamando-se uns aos outros com uma familiaridade nascida de um longo conhecimento.

No total, eram seis: Connal, Máel, Clynnog, Ciáran e Faolan, cinco dos quais pertencentes aos muir manachi, ou seja, aos monges do mar, que enfrentavam as águas profundas sob a liderança de um irmão chamado

Fintán, um homem lúgubre e ossudo que era o piloto. Conservava-se com o leme na mão e com os olhos vivos postos no céu, observando a vela e

gritando ordens secas a que os outros obedeciam instantaneamente. Era óbvio que tinham navegado juntos anteriormente e que haviam sido escolhidos pela sua maestria a lidar com o navio.

Olhei em volta, para os meus outros companheiros. O bispo Cadoc instalara-se na frente do barco, junto dos seus conselheiros, os três britânicos, Brynach, Gwilym e Ddewi. Brocmal, Dugal e eu próprio, para além de Fintán, que se encontrava ao leme, tínhamos dado preferência à traseira do navio.

Éramos um total de treze almas, um número sagrado, o número de Cristo e dos seus discípulos. Treze peregrini escolhidos por Deus, todos eles dedicados Céle Dé.

Não obstante a apreensão da minha morte, não pude deixar de me sentir orgulhoso por me ver incluído em tão eminente companhia. Como ainda não falara a ninguém na minha visão, decidi guardar esse segredo para mim e carregar sozinho com um fardo tão amargo. Estranhamente, foi uma resolução que me agradou. Senti que, de certo modo, se tratava de uma espécie de contribuição pessoal não manifesta para a nossa aventura, ideia que me fez sentir nobre e merecedor. Gostei da sensação.

Como que para confirmar as minhas corajosas intenções, o Sol abriu caminho por entre as nuvens e despejou uma luz encandeante sobre as ondas varridas pelo vento. Olhei para a vasta e infindável oscilação do mar reluzente e pensei: Vamos a isto... e o mundo que nos receba com o que tiver de pior. Aidan mac Cainnech está pronto para o enfrentar.

Ajustei-me gradualmente ao oscilante ritmo do navio e aprendi como prever antecipadamente as suas repentinas subidas e arrepiantes descidas. Os movimentos para cima e para baixo não eram difíceis de dominar mas achei que as erráticas e abruptas deslocações laterais eram enervantes. Sempre que surgiam, agarrava-me à amurada com as duas mãos e segurava-me com força, não fosse dar-se o caso de mergulhar de cabeça no mar.

Dugal tinha alguma experiência com navios e riu-se ao ver os meus primeiros passos hesitantes e cambaleantes.

- Mantém-te direito, Dána - disse-me. - Oscilas como um velho. Compensa os movimentos com os joelhos. - Dobrou as pernas ligeiramente, para me mostrar como se fazia. - É como montar um cavalo.

- Nunca montei um cavalo - queixei-me.

- Um celta que nunca navegou nem montou um cavalo? Bom, agora já vi de tudo! - Voltou a rir-se, no que foi acompanhado por vários dos monges marinheiros.

- Alguns de nós não estão tão a par das coisas do mundo como outros - repliquei.

- Acabarás por aprender, meu amigo - declarou Fintán, do seu lugar junto ao leme. - Podes ter a certeza.

A aprendizagem começou imediatamente com os monges do mar a instruírem-nos a respeito do manejo dos cabos, da vela e dos remos. A seu pedido, trabalhámos lado a lado e em breve acabei por reconhecer que a marinharia era uma ocupação rude mas exigente, tão rigorosa, à sua maneira, como tudo o que eu tivera de enfrentar no scriptorium.

Finalmente, quando acabámos de pôr as provisões em segurança e o navio em ordem, arranjei um ninho entre os sacos de cereal e instalei-me.

Dugal foi ter comigo.

- O modo como Deus funciona é estranho, não achas? - comentei, enquanto ele observava a vela inchada pelo vento. - No fim de contas, sempre vamos juntos.

- É verdade - concordou, olhando a vela com atenção.

- Perdoa-me, irmão, mas preciso de saber... - hesitei, com pouca vontade de pronunciar as palavras.

- Queres saber se empurrei o Libir? - sugeriu, adivinhando os meus pensamentos.

- Brocmal pensa que o fizeste.

- Preocupo-me muito pouco com o que Brocmal possa pensar. Ele que diga o que lhe apetecer. E tu, que pensas? - perguntou, virando o olhar para mim. - Viste alguma coisa?

- Não te vi a fazê-lo... - respondi - nem vejo como o poderias ter feito.

- Então... limitemo-nos a dizer que Deus nos favoreceu grandemente -o replicou. - Na verdade, não me parece que nos queira ver separados .

- E eu que começava a temer que nunca mais te voltaria a ver!

Quem iria acreditar que isto fosse possível?

- Somos amigos - declarou, com toda a simplicidade. Pareceu pronto para dizer mais qualquer coisa mas virou novamente a sua atenção para a vela, respirou fundo e exclamou: - Ah, mo croí! O mar, Aidan! Um navio é uma bela coisa, não é verdade?

- Sem dúvida!

Conversámos durante um bocado mas acabámos por mergulhar num devaneio, observando as lentas subidas e descidas da ondulação do mar.

Recostei-me no meu trono de sacos de cereal e fechei os olhos. Não pensava em dormitar, e acho que não o fiz. Contudo, sobressaltei-me quando Clynnog, um irlandês Dál Riada, gritou:

- Terra à vista!

- Tão cedo? - interroguei-me, pondo-me de pé. Tínhamos navegado apenas durante meio dia... ou pelo menos assim me parecera.

- O vento tem sido nosso amigo - afirmou Fintán, passando uma das mãos pela cabeça grisalha. - Rezem para que este tempo se mantenha.

Passei por cima da forma adormecida de Dugal e avancei para a borda do navio. Agarrei-me à amurada e estudei o horizonte, mas nada vi para além do grande mar, cinzento, ondulante e vazio, parte do qual brilhava onde o Sol o iluminava depois de atravessar um buraco aberto entre as nuvens baixas.

- Não vejo nenhuma terra - exclamei, virando-me para Fintán.

- Além! - respondeu, apontando com a mão direita. - Em baixo, no horizonte.

Olhei para onde ele apontava mas continuei a não ver nada, excepto o mar oscilante.

- Onde? - gritei.

- Continua a olhar! - retorquiu, rindo-se.

Espreitando por cima da amurada, procurei e voltei a procurar... e acabei finalmente por começar a distinguir uma forma vaga na distância enevoada, uma espécie de nuvem logo por cima da linha direita que marcava a fronteira entre o céu e o mar. Observei a mancha confusa durante algum tempo sem lhe ver qualquer modificação significativa, mas acabei por lhe notar uma pequena variação na cor.

O navio voava para aquela costa baixa, saltando do alto de uma onda para o alto da seguinte, com os cabos tensos, a ponta do mastro a vergar- se, a vela a esforçar-se e a empurrar a afilada proa através das profundas águas verdes. Devagar, mas com firmeza, a distante mancha escura ganhou definição e tornou-se num contorno suavemente ondulado malhado de cinzento e verde. Algum tempo depois, esses contornos suaves ganharam características mais nítidas e vi que eram as rudes faces de falésias pedregosas.

Dugal despertou e ocupou um lugar a meu lado, junto à amurada.

- É Ynys Prydein - disse, levantando a mão para a paisagem na nossa frente.

- Já aqui tinhas estado? - perguntei-lhe.

- Uma ou duas vezes... - retorquiu - mas foi à noite e tenho poucas recordações da terra.

- À noite? - interroguei-me. - Por que havias de desembarcar à noite?

- Fazíamo-lo quase sempre de noite - respondeu, encolhendo os ombros. - Fez uma pausa e olhou para a costa de uma maneira quase tristonha. - Oh, mas isso foi há muito tempo e eu ainda era um jovem.

Enquanto Dugal falava, o céu abriu-se, a luz escorreu através de uma abertura nas nuvens e encharcou a alcantilada costa com os seus gloriosos raios dourados. O mar ganhou cintilantes tons de prata e azul, as rochas despedaçadas brilharam, negras como asas de corvos, e as suaves colinas resplandeceram com o fogo das esmeraldas. A súbita intensidade daquela beleza sobressaltou-me. Fiquei com os olhos encandeados, pestanejei e espantei-me com a visão.

Quando não consegui aguentar mais, virei os olhos para a água e captei um reflexo brilhante pelo canto dos olhos. Voltei a olhar e avistei uma forma rápida e graciosa a encurvar-se através das águas. Provocou uma leve ondulação e desapareceu. Virei-me um pouco, para chamar

Dugal... e vi-a outra vez. Tinha um corpo liso e acastanhado, com algumas manchas claras, bem como um rosto e olhos que me fitavam directamente.

- Dugal! - gritei, alarmado, agitando a mão na direcção da água.

Olha! Olha!

Despreocupado, Dugal espreitou por cima da amurada e passou os olhos pelas profundezas.

- O que foi? Algum peixe?

- Não sei o que era - ofeguei, debruçando-me para ver melhor mas não se parecia com nenhum peixe que eu já tenha visto.

Dugal limitou-se a acenar e virou-se para outro lado.

- Ali! - voltei a gritar quando a criatura, que deslizava rapidamente, apareceu por baixo do navio. - Ali está, outra vez! Viste, Dugal? Viste?

O meu amigo limitou-se a abrir as mãos.

- O que era? - inquiri.

- Não sei dizer, porque não vi nada, Aidan. - Voltou a abrir as mãos num gesto de serena impotência.

Fintán, que era o nosso piloto e se encontrava junto ao leme, riu-se e perguntou:

- Aidan, nunca tinhas visto uma foca?

- Nunca - confessei. - Aquilo era uma foca?

- Era, sim. Dizes que era malhada? - O piloto ergueu as sobrancelhas. -Nesse caso era ainda muito nova. Mantém os olhos bem abertos, irmão, e verás muitas coisas nestas águas.

- Focas, Dugal... - murmurei, abanando a cabeça.

Brocmal, que se encontrava por perto, fungou de desprezo e afastou-se. Não modificara a sua expressão indignada desde que tínhamos subido para bordo do navio e mirava-me com desaprovação sempre que os nossos olhos se encontravam.

- Em geral, as focas andam em grupos... - informou-me Faolan e quando as vimos ficamos a saber que estamos perto de terra.

Momentos depois pareceu-me que as águas estavam repletas de focas.

Havia ali uma vintena, ou mais, daquelas deliciosas criaturas. Reunimo- nos todos junto da amurada para as vermos a mergulhar por baixo do navio e a brincar nas ondas, muito perto da proa. Por vezes vinham à superfície para nos observarem, com as cabeças brilhantes a oscilarem por cima das vagas e os grandes olhos reluzentes como azeviche polido, para logo depois virarem as caudas para cima e desaparecerem. Houve uma ou duas vezes em que nos chamaram com os seus latidos ásperos enquanto rolavam e chapinhavam na água.

Fintán deu uma ordem e virou a embarcação. Quando voltei a olhar já as falésias pairavam sobre nós e conseguia ouvir o marulhar das ondas na costa e sobre os rochedos. Avançávamos para sul ao longo da costa, mas aquela parte da terra parecia deserta. Não vi povoações nem habitações, nem sequer uma única quinta ou uma miserável cela de um monge eremita.

- Outrora, havia aqui pessoas... - disse-me Gwilym quando o interroguei - mas foram-se embora há já muitos anos. As povoações mudaram-se para o interior. Procura-as nos prados e vales e é aí que as encontrarás. - Olhou com amor para a terra onde nascera. - Ty Gwyn é a única que ainda pode ser vista do mar - acrescentou, com orgulho.

- Aconteça o que acontecer, a Fortaleza da Fé não mudará de lugar.

- Iremos vê-la?

- Oh, sim, amanhã - replicou. - Pararemos lá para obtermos abastecimentos adicionais.

Quando o Sol começou a descer para o mar ocidental, Fintán, que andava em busca de uma baía abrigada para passar noite, virou o navio para o que à primeira vista não parecia mais do que uma fenda na falésia. Contudo, quando nos aproximámos, a fenda pareceu abrir-se e verifiquei que era na realidade uma pequena enseada.

As águas eram profundas e calmas e permitiam que nos aproximássemos da costa. O bispo Cadoc serviu-se do pequeno barco circular para chegar a terra mas os restantes limitaram-se a deslizar pela amurada e a patinhar na água. Deixámos os monges do mar a tratar de pôr o navio em segurança e começámos a montar o acampamento. Dugal e eu partimos em busca de lenha, enquanto os outros iam à procura de água e iniciavam os preparativos para a refeição.

- Não encontraremos nada nesta rochas áridas - comentou Dugal, olhando em volta, para a praia de seixos de ardósia.

Assim era, pelo que resolvemos trepar ao alto da falésia para ver se descobríamos qualquer coisa. Embora não existissem árvores, grandes ou pequenas, encontrámos um certo número de densos maciços de arbustos com muitos ramos mortos, fáceis de quebrar e de reunir em molhos de boas dimensões que transportámos até à beira da falésia e atirámos para a costa, lá em baixo. Conseguimos reunir, em muito pouco tempo, a lenha suficiente para durar toda a noite.

- Vem daí - disse-me Dugal. - Vamos espreitar esta terra.

Caminhámos ao longo da falésia durante um bocado, para vermos o que poderíamos descobrir a respeito das terras selvagens que nos rodeavam.

A Bretanha, tanto quanto eu visse, não era diferente do Éire. Tinha a mesma turfa verde e o mesmo tojo, sobre o mesmo tipo de pedras...

e mais nada. Mesmo assim, depois de todo um dia a bordo do navio, era bom poder esticar as pernas e sentir um terreno sólido por baixo dos pés.

Regressámos à praia, recuperámos os molhos de lenha que havíamos recolhido e encaminhámo-nos para o acampamento. Em vez de descerem a terra, Fintán e a sua tripulação tinham ficado no navio e lançado linhas de pesca das amuradas. Sem grandes esforços, apanharam cavalinhas suficientes para nos alimentar a todos. Enquanto Connal e Faolan limpavam o peixe, Dugal e eu tratámos da fogueira. Os peixes foram metidos em espetos, que colocámos em volta do perímetro da fogueira para que cozinhassem, o que acabou por provocar um fumo prateado que se ergueu para o céu crepuscular carregado com o aroma a peixe assado.

Escutei as conversas à minha volta enquanto me entretinha a rodar os espetos e a observar o sol poente que tingia as águas azuis-esverdeadas com um tom de ouro fundido. O peixe estralejou no fogo e o céu ganhou um pálido tom amarelo sob a incessante tagarelice das gaivotas que se tinham instalado nas falésias rochosas por cima de nós, preparando-se para a noite.

Quando as cavalinhas ficaram cozinhadas, afastei os espetos da fogueira, arranquei uma tira de carne a uma delas com a ponta dos dedos, soprei-a um pouco e meti-a na boca. Na verdade, pensei que nunca provara nada tão bom em toda a minha vida. Por outro lado, também compreendi que não engolira nenhum alimento desde o pequeno-almoço que tomara de manhã, quando era ainda muito cedo.

Seria realmente verdade que partira naquela manhã? Foi uma pergunta que fiz a mim mesmo enquanto girava o espeto na frente das chamas. Na realidade, parecia-me que o Aidan que partira com um coração repleto de receios já não era o Aidan que comia peixe assado no espeto e lambia os dedos.

Depois da refeição, foi o bispo Cadoc quem nos conduziu nas orações. Um monge em peregrinação está dispensado dessa obrigação diária, uma vez que a própria jornada é considerada como uma espécie de oração. Contudo, mesmo assim, não negligenciávamos a oportunidade de reconfortarmos os nossos espíritos.

Começámos a entoar salmos quando as estrelas apareceram e as nossas vozes ressoaram tanto nas rochas que nos rodeavam como sobre as águas tremeluzentes... e foi apenas depois das últimas notas pairarem na noite que nos enrolámos nas capas e dormimos na praia sob as estrelas.

Acordámos às primeiras luzes para um dia enevoado e de nuvens baixas. O vento mudara durante a noite e vinha agora do leste numa brisa fraca e intermitente. O piloto e Maél pararam à beira da água, com as pequenas ondas a lamberem-lhes os pés, observaram o céu e conversaram entre si. Cadoc juntou-se a eles. Trocaram algumas palavras e o bispo gritou:

- Levantem-se, irmãos! Temos o dia pela frente!

Enquanto Clynnog e Ciáran - de cada lado do pequeno bote redondo - rebocavam o bispo para bordo do navio, os outros desfizeram o acampamento e seguiram-nos, patinhando na água. Uma vez a bordo, Fintán pegou no leme e fez sinal a Connal para içar o ferro. Os homens agarraram nos compridos remos e começaram a virar o navio.

- Vamos ajudá-los - sugeriu Dugal. - Aprender as artes dos marinheiros pode vir a ser-nos útil.

Pegou num remo, meteu-mo nas mãos e procurou outro para ele.

Dugal colocou-se num dos lados do navio e eu do outro. Clynnog mostrou-me como manobrar o longo remo para um lado e para o outro, dentro da água.

- É mais como se estivesses a serrar madeira - disse - e menos do que bater as papas, Aidan. Movimentos longos e fáceis. Não dobres os pulsos desse modo...

Lentamente, o navio deu a volta na água, começou a sair da pequena enseada e regressou novamente ao mar aberto. Uma vez longe das rochas, Fintán mandou içar a vela. O pesado tecido sacudiu-se uma vez, duas vezes... apanhou o vento e encheu-se. O navio deslizou suavemente para águas profundas e partimos.

O piloto manteve um rumo paralelo à terra, deslocando-se para sul, ao longo da costa. A manhã passou-se no meio da humidade do nevoeiro e das neblinas que se agarravam às falésias e obscureciam as colinas, deixando muito pouco para ver.

Quebrámos o jejum com pão de cevada e com os restos do peixe da refeição da noite anterior. Levei alguma comida a Fintán, à popa, que me pôs a segurar no leme enquanto ele comia.

- Ainda acabamos por fazer de ti um marinheiro - afirmou, com uma risada. - Segura-o bem e não tires os olhos da vela.

- Gwilym disse que íamos aportar a Ty Gwyn... - comentei.

- É verdade - confirmou o piloto, partindo o pão. - Precisamos de abastecimentos.

- É longe?

- A distância não é grande - replicou, pensativo, a mastigar o pão.

Fintán pareceu contentar-se com aquela resposta e pouco disposto a explicitá-la, pelo que perguntei:

- A que distância?

O piloto continuou a comer o pão como se contemplasse a profunda complexidade da minha pergunta. Por fim, semicerrou os olhos e respondeu:

- Logo verás.

Contudo, a previsão de Fintán estava errada. Nunca cheguei a ver a abadia a que tinham dado o nome de Ty Gwyn.

 

O vento refrescou, passou a ser de sudeste e soprou cada vez mais forte ao longo da manhã, agitando as águas cinzento-ardósia em grandes vagas compactas e irregulares que se lançavam contra a proa e flancos do navio como se quisessem empurrar-nos contra a costa. Consequentemente, o nosso piloto, que observava o mar com os olhos semicerrados, foi forçado a afastar o navio para longe da terra para evitar aproximar-se demasiado e ser atirado para as rochas.

O mar continuou a engrossar, levantando a embarcação cada vez mais alto e mantendo-o no cimo das vagas antes de a lançar, de lado, para os vales que se abriam entre cada duas ondas. Concluí que aquele movimento de subida-oscilação-queda era mais do que conseguia suportar e retirei-me para a popa do navio, onde podia ranger os dentes e gemer à vontade.

Por volta do meio-dia o vento ganhou a força de uma tempestade e começou a empilhar enormes vagas negras que lançavam espuma branca sobre todo o navio. Deixei-me ficar sentado no meu ninho de sacos de cereal, encolhido, agarrado ao estômago e desejando desesperadamente não ter comido peixe. Dugal, reparando na minha infelicidade, foi buscar uma malga de água ao barril amarrado ao mastro.

- Toma, Aidan - gritou. - Bebe isto, irás sentir-te melhor.

Teve de gritar por cima do vento e do rugido das ondas porque.

embora já nos encontrássemos muito longe de terra, ainda conseguíamos ouvir o terrível estrondo das águas que se lançavam sobre as rochas.

Colocou a malga nas minhas mãos e observou a subida do vaso de madeira até aos meus lábios, enquanto eu derramava a maior parte do seu conteúdo sobre mim mesmo por causa dos violentos movimentos do navio. A água tocou-me na língua e soube-me a ferro. Estremeci ante aquele gosto... mas foi um estremecimento que se transformou em espasmos e senti o estômago a revolver-se dentro de mim. Atirei-me para a amurada mesmo a tempo de lançar o malfadado peixe de regresso ao mar de onde proviera.

- Não te preocupes, Aidan - disse-me Fintán. - Foi o melhor que podias fazer. Agora, já não irás sentir-te tão mal.

Contudo, esta promessa pareceu-me demasiado remota e voltei a deixar-me cair sobre os sacos, babando-me e lutando por ar. Dugal fez-me companhia até ao momento em que os monges do mar o chamaram para ir ajudar a ferrar a vela. Isso, segundo compreendi, faria com que o navio fosse mais difícil de governar. Contudo, tal como Máel explicou, ou o faziam ou perdíamos o mastro.

- As coisas estão assim tão más? - interroguei-me, sentindo-me inexperiente e impotente.

- Não... - respondeu Máel, com uma careta - ainda não estão tão más que não possam vir a estar piores.

- Quer dizer que podem ficar piores.? - perguntei, sentindo a apreensão a invadir-me.

- Oh, claro, podem sempre ficar piores. Isto não é mais do que uma brisa de Verão quando comparada com algumas das tempestades que já enfrentei - declarou, com orgulho. - Digo-te a verdade, Aidan, já naufraguei quatro vezes!

Pareceu-me uma gabarolice muito dúbia na boca de um marinheiro, mas Máel mostrou-se muito contente consigo mesmo. Naquele momento o piloto chamou-o, para ir segurar no leme, e fiquei a olhar enquanto Fintán se arrastava ao longo da amurada para ir ter com Brynach e o bispo, que se encontravam junto ao mastro. Os três homens conferenciaram brevemente, após o que o piloto regressou ao leme. Dugal também assistiu àquela manobra e dirigiu-se ao local onde o bispo e Brynach se encontravam com os braços em volta dos ombros um do outro para evitarem cair.

Depois de conversaram por alguns instantes, Dugal voltou para junto de mim e disse:

- Não podemos entrar em Ty Gwyn. A costa é traiçoeira e o mar está demasiado revolto para o tentarmos.

- Então, para onde vamos? - gemi, embora na realidade já não me preocupasse muito com o nosso destino.

- Para Inbhir Hevren - explicou. - É um grande estuário, com muitas baías e enseadas... e menos rochas. Brynach diz que podemos procurar abrigo aí.

Todos os vestígios de terra já haviam desaparecido há muito no meio do nevoeiro e da confusão de nuvens empurradas pelo vento. Interroguei - me sobre como seria que o piloto podia saber onde estava, mas faltavam-me as forças e a vontade para lho perguntar. Tudo o que conseguia fazer era manter-me agarrado à carga, esforçando-me por conservar a cabeça levantada.

Segurei-me aos sacos de cereal e rezei:

Grande do Céu, Três-em-Um, Todo-Poderoso, que se delícia a salvar homens, ouve a minha súplica e salva-nos. Salva-nos dos tormentos do mar, da angústia das ondas, dos grandes e terríveis temporais e dos ciclones! Protege-nos e santifica-nos. Agarra tu, Rei dos Elementos, no nosso leme, e guia-nos em paz e segurança. Amém, Senhor, assim seja!

A noite caiu sobre nós rapidamente e a tempestade cresceu ainda mais em vez de diminuir, como se fosse buscar forças à escuridão. Ovento começou a soprar com mais violência. Os cabos, tensos contra a tempestade, entoavam lamentos enquanto o mastro estalava. O nosso pequeno navio era atirado para as profundezas e para o alto das vagas, e o meu estômago agitava-se a cada subida e descida. Os sacos de cereal concediam- nos alguma estabilidade, pelo que os homens que não eram necessários para manter o navio a flutuar se amontoaram ali, agarrados uns aos outros.

A última luz do dia desapareceu e Fintán anunciou:

- Não podemos aproximarmo-nos da terra na escuridão. Seria demasiado perigoso tentar entrar no estuário no meio desta tempestade, mesmo que o conseguíssemos ver.

- Então, que fazemos? - inquiriu Brocmal, com o medo a fazer-lhe tremer a voz.

- Continuamos a navegar - replicou o piloto. - Não te preocupes, irmão, o navio é resistente e cavalgaremos a tempestade com toda a facilidade.

Dito aquilo, o piloto voltou para o leme e nós regressámos às orações murmuradas.

Rezámos durante toda a longa escuridão e confortámo-nos uns aos outros o melhor que fomos capazes. A noite foi passando, interminável, mas acabou por se transformar gradualmente em dia embora a luz não sofresse uma grande alteração. Dia ou noite, a escuridão manteve-se pesada enquanto as vagas se erguiam à nossa volta como torres.

Passámos todo aquele terrível dia em busca de um qualquer sinal de terra. Todavia, a noite voltou a cair sobre nós antes de descobrirmos a mais pequena sugestão de uma linha costeira. Abrigámo-nos no fundo do navio, segurando-nos uns aos outros e aos sacos de cereais. O bispo Cadoc, gelado até aos ossos, tremendo e estremecendo, ofereceu-nos uma contínua litania de salmos e orações de salvação. Os homens do Éire pertencem a uma tribo de marinheiros e conhecem muitas invocações de natureza oceânica. O bom do bispo conhecia-as a todas, recitou-as duas vezes, e depois disso ainda disse muitas outras que eu nunca ouvira.

De tempos a tempos, um dos muir manachi fazia um turno ao leme mas foi o nosso piloto quem aguentou com a maior parte desse fardo. Era como uma verdadeira rocha nas garras da tempestade, e nem a pedra de Cúlnahara conseguiria ser mais firme do que Fintán, o piloto. O meu respeito por aquele homem tornou-se maior a cada vaga que se precipitava sobre as amuradas.

Trememos e rezámos durante toda aquela noite torturada pela tempestade, com os uivos do vento e o trovejar das águas a soarem bem alto nos nossos ouvidos. Embora nos encontrássemos numa verdadeira aflição, a nossa coragem nunca esmoreceu graças à fé em Deus e à esperança de salvação.

Não desesperámos nem sequer quando o eixo do leme se partiu. Máel e Fintán puxaram o leme quebrado para bordo e amarraram-no em segurança a um dos lados do navio.

- Agora, estamos à mercê do vento - informou-nos Máel.

- Que Aquele que fixou a Estrela Polar nos guie! - replicou Cadoc. - Senhor, estamos nas Tuas mãos. Faz-nos seguir de acordo com a Tua vontade.

Não notei grande diferença no comportamento do navio, com ou sem leme. Continuámos a ser atirados de uma onda para a outra e soprados por todos os ventos. O mar e o céu mudavam continuamente de lugar, e a água precipitava-se sobre nós em cascatas geladas. Não teríamos ficado mais encharcados se nos tivéssemos instalado debaixo de uma queda-d'água.

Aguentámos a provação durante três dias e três noites, sem conseguirmos comer ou dormir. Nenhum desses confortos era possível. Ao fim desses três dias, e como ainda não havia qualquer sugestão de que a tempestade estivesse para terminar, o bispo Cadoc ergueu a sua cambutta e pôs-se de pé. Então, com os que se encontravam mais perto dele a segurá-lo pelas pernas e pela cintura para o impedir de ser lançado borda fora pelo vento ou pelas vagas, o bispo de Hy gritou uma seun para acalmar a tempestade. A invocação que pronunciou foi esta:

 

"Que os Três me rodeiem, que os Três me socorram e me protejam, que Tu me salves sempre!

Ajuda-me na minha terrível necessidade, ajuda-me nas aflições, ajuda-me em todos os perigos, que Tu me ajudes sempre!

Nem a água me afogará, nem as inundações me afogarão, nem o mar me afogará, porque Tu estás a segurar-me!

Afastai-vos, tempestades, afastai-vos, ciclones, afastai-vos, cruéis ondas assassinas!

Em nome do Pai da Vida,

E do seu Filho Triunfante,

E do mais sagrado Espírito,

Com paz para todo o sempre,

Amém, amém, amém!"

 

Cadoc repetiu esta invocação por três vezes, sentou-se... e esperámos.

Ficámos à espera, agarrados uns aos outros e aos sacos de cereais enquanto a selvagem tempestade rugia em volta das nossas orelhas. O navio sem leme rodopiava e era atirado para aqui e para acolá pelas vagas do mar alteroso.

Então... aconteceu que Ciáran levantou a cabeça, olhou em volta e gritou:

- O Sol!

Todos nós nos erguemos de repente.

- Sol Invictus! O Sol conquistou a tempestade! Gloria Patri!

De súbito, toda a gente se esforçava para se pôr de pé, apontando para o céu e gritando "Glória a Deus!" Louvámos Aquele que Tudo Sabe e todos os seus santos e anjos pela nossa salvação.

Olhei para onde Ciáran estava a apontar e vi uma estreita fenda na sólida massa cinzenta das nuvens. Era por ali que passava a luz dourada, numa vasta faixa com inúmeros raios, perfurando o negrume quase nocturno do céu com as suas lanças de brilhante luz da manhã.

A fenda alargou-se um pouco e derramou cada vez mais luz sobre o mar tempestuoso... e era como se esse clarão cor de mel fosse um bálsamo despejado sobre a tempestade para acalmar as suas águas agitadas.

Ficámos a observar a barra de luz, desejando que se expandisse e que aumentasse. Todavia, o céu voltou a fechar-se e as nuvens de tempestade uniram-se novamente umas às outras, ocultando o Sol. As nossas esperanças bruxulearam e apagaram-se com o desaparecimento do último raio dourado.

Gelados, exaustos pela nossa longa provação, ficámos a olhar, perdidos e infelizes, para o lugar onde havíamos visto a luz pela última vez.

O vento voltou a soprar e estremecemos quando o ouvimos. Foi então, quando voltávamos a encolher-nos para aguentarmos o reavivar da tempestade, que o céu se abriu por cima de nós.

- Olhem! - berrou Clynnog, dando um salto. - O arco de Deus!

Virei-me e vi um grande arco de cores resplandecentes a brilhar no ar, como uma promessa de Deus mais uma vez renovada. Céu azul e um arco-íris... duas das mais belas visões da criação. Estávamos salvos. Virámos os rostos para o céu por cima de nós, dando as boas-vindas ao regresso do Sol com grandes gritos de alegria e de agradecimento.

Fintán, o piloto, que permanecia junto ao leme, gritou-nos:

- Vejam! A tempestade atirou-nos para o outro lado do mar!

Era verdade. As nuvens e o nevoeiro haviam desaparecido e ao longe, para sul, distinguia-se a forma corcovada de uma terra que flutuava no horizonte.

- Conheces aquele lugar, Fin? - perguntou Cadoc, esperançado.

- De facto, até conheço! - replicou o piloto, permitindo-se um grande sorriso de aprovação.

- Nesse caso... - sugeriu o bispo, com ligeireza - serás capaz de nos dizer que terra é aquela que estamos a ver?

- Assim farei! - declarou Fintán. - Irmãos, é Armórica. Embora as tempestades se tivessem lançado sobre nós, acabaram por nos prestar um pequeno serviço. A travessia, não obstante ter sido agitada pelas vagas, foi feita em metade do tempo. Estamos molhados e gelados, é verdade...

mas Deus é bom e trouxe-nos ao nosso destino.

- E isso aconteceu sem leme? - admirou-se Connal.

- É verdade, Con - replicou Fintán. - A mão de Deus esteve sobre nós e guiou-nos. Agora, o resto é connosco... - acrescentou, começando a dar ordens.

Os muir manachi lançaram-se rapidamente às suas tarefas. Os remos foram instalados e todos nos agarrámos a eles e remámos. Sem leme, a utilização da vela, mesmo sob um vento que acalmava rapidamente, teria sido inútil ou até perigosa e era mais fácil governar o navio com os remos. Entretanto, o timoneiro pegara noutro remo e amarrara-o à cana do leme para servir de leme provisório de modo a poder corrigir a direcção das nossas remadas, uma vez que o mar continuava grosso e violento.

Observei as costas e os ombros dos homens que se encontravam na minha frente. Dobravam-se endireitavam-se e encolhiam-se ao ritmo do cântico, e em breve também eu adquiri alguma proficiência naquela tarefa e fiquei satisfeito por poder dar a minha contribuição.

Remámos muito tempo e o esforço, depois de três dias de inactividade, despertou-nos tanto a fome como a sede. Gwilym e Ddewi abandonaram os remos e começaram a preparar uma refeição. Foi nessa altura que soubemos que havíamos perdido a maior parte da nossa água potável. Quando Ddewi se dirigiu ao barril do navio encontrou-o quase vazio e descobriu que a água que restava fora contaminada com água salgada.

A tampa saltara durante a tempestade e a água potável entornara-se com os balanços provocados pelas violentas vagas.

Não era um problema grave porque ainda tínhamos um barrilete com água e vários odres, mas estes destinavam-se à nossa viagem por terra e isso significava que teríamos de voltar a enchê-los logo que possível. O Bispo Cadoc, Brynach e Fintán uniram as cabeças para conferenciarem por instantes e decidir o que deveria ser feito. Como eu manobrava o último remo, encontrava-me suficientemente perto para os ouvir.

- Já que temos de ir a terra para reparar o leme... - salientou

Brynach - então que seja perto de um rio.

- Pode haver uma povoação... - sugeriu Cadoc.

- Sim, é possível... - concordou Fintán, contraindo os lábios.

- Não reconheces a costa?

- Não. - O piloto abanou a cabeça e acrescentou rapidamente: Sei que se trata de Armórica mas não sou capaz de dizer se estamos a norte ou a sul de Nantes.

Foi a primeira vez que ouvi mencionar um local de paragem, mas numa viagem tão longa como aquela era natural que tivéssemos numerosos destinos. Foi com algum desgosto que compreendi o pouco que sabia a respeito da jornada em que embarcara, embora isso não tivesse grande importância. Ia morrer quando chegássemos a Bizâncio. Era algo de que tinha a certeza... e era mais do que o suficiente para ocupar os meus pensamentos.

Mesmo assim, interroguei-me. Porquê Nantes? De acordo com o pouco que ouvira a respeito das abadias gaulesas - e fora realmente muito pouco - os mosteiros da Gália nada tinham em comum com os que conhecíamos na Bretanha ou no Éire. Dizia-se com frequência que os monges continentais não eram Fir Manachi, ou seja, Monges Verdadeiros, e muito menos Célé Dé! Nesse caso, porque iríamos em busca desses homens para nos ajudarem nos nossos propósitos? Que interesse podiam eles ter na nossa jornada?

Pensei no assunto enquanto remava mas não consegui chegar a uma conclusão e contentei-me com a ideia de que tudo me seria revelado muito em breve. O bispo Cadoc e os seus conselheiros tinham sem dúvida bons motivos para reunirem em conselho a fim de discutirem essas questões.

Decidi-me a manter os ouvidos bem abertos a fim de captar qualquer palavra perdida que me pudesse iluminar.

Quando a refeição ficou pronta guardámos ansiosamente os remos e atirámo-nos a ela com vontade. Sentei-me ao lado de Dugal e comemos os nossos pães de cevada e a carne salgada enquanto olhávamos para a terra, a leste. A costa da Armórica, ou Pequena Bretanha, como também era conhecida, estava agora muito mais perto.

- Algumas vez estiveste na Armórica, Dugal? - perguntei.

- Não, nunca - replicou. - No entanto, diz-se que neste momento há lá mais britânicos do que na nossa Bretanha.

- Ah, sim?

- É o que dizem. Foi Samson de Dol quem os levou para lá, sabes?

Os que não levou consigo seguiram-no como puderam, para escaparem à praga dos Saexen. - Dugal encolheu os ombros. - Pelo menos, é isso o que consta.

- Nesse caso... podemos ir a caminho de uma abadia britânica murmurei, narrando-lhe o teor da conversa que escutara.

- Podes ter razão, irmão - concordou Dugal quando Máel lhe passou o jarro da água. Engoliu uns bons golos e passou-mo para as mãos.

- Ainda faremos de ti um bom muir manach, Aidan - disse Máel, rindo-se. - Se todos fossem tão diligentes como tu... poderíamos governar o Império.

A água era doce e boa. Engoli toda a que pude e passei o jarro ao homem. seguinte. Instantes depois, Fintán voltou a mandar-nos para os remos

Remámos durante todo o dia, fazendo pausas de vez em quando para descansarmos e bebermos. Os monges do mar pareciam indiferentes ao esforço. Cantavam de uma maneira regular, marcando as remadas com as suas vozes. Aqueles entre nós que não estavam acostumados a esse trabalho envolveram as mãos inchadas em tiras de pano e fizeram o que puderam no manejo dos remos. Ah, mas era um trabalho duro, ficávamos com cãibras nos ombros e os nossos estômagos começavam a doer do esforço.

A costa tornava-se visivelmente maior a cada remada. As colinas amarelo-acastanhadas tingiram-se com os primeiros verdes da Primavera e apareceram algumas rochas cinzentas, mas não tantas como na costa da nossa Bretanha. Mais para baixo, no meio das colinas, avistei algumas manchas de um verde mais escuro, o que demonstrava a existência de bosques ou florestas embora ainda não se conseguissem ver bem àquela distância. Todavia, na minha opinião, a paisagem não era nada parecida com a do Éire. Até a água mudara de cor e tinha agora um pálido tom cinzento-esverdeado.

Havia muitas algas a flutuar à superfície, que tinham sido arrancadas do fundo pela tempestade e se agarravam aos remos, dificultando o seu manejo em particular para aqueles cujas mãos não estavam habituadas a pegarem em coisas mais pesadas do que a pena.

Fintán mantinha os seus olhos aguçados na linha de costa e procurava sinais de um qualquer povoado. Não nos parecia que as habitações pudessem ser vistas do mar mas pensávamos que, no mínimo, devia ser possível avistar vestígios de fumo mais para o interior. Se isso não resultasse, então continuaríamos ao longo da costa até nos aparecer um rio ou ribeiro onde pudéssemos desembarcar para arranjar água e fazer as necessárias reparações.

- Para onde viramos, Fin? - gritou Brynach para o piloto. - Norte ou Sul?

- Norte! - decidiu Fintán, depois de pensar por instantes. Manobrou o leme improvisado com força, o navio virou lentamente e começámos a subir a costa. As remadas tornaram-se mais cansativas porque a ondulação continuava a ser forte e já não contávamos com a ajuda do vento para nos empurrar. Agarrámo-nos bem aos remos, lutando contra as ondas que ameaçavam afundar-nos a cada balanço lateral.

Sentia o esforço exercido nos remos bem no fundo dos meus músculos doridos, para além de ter as palmas das mãos esfoladas e a pulsar.

Não foi preciso muito para começar a lamentar a ausência da vela e para compreender até que ponto fora grave a perda do leme.

O Sol descia para o mar ocidental e ainda não tínhamos visto sinais de qualquer povoação ou rio.

- Rememos um pouco mais... - sugeriu Brynach - e talvez descubramos qualquer coisa que nos possa servir.

Não sei dizer o que ele pensava que poderíamos descobrir. A terra para o interior da costa continuava a ser monótona e incaracterística em todas as direcções, pelo menos até onde os nossos olhos podiam alcançar.

Se existiam povoações por perto, então estavam 3em escondidas. Manobrei o leme e olhei com ansiedade para a costa, que aparentemente era quase formada por calhaus, embora com algumas rochas a erguerem-se na margem e também dentro de água.

A luz do Sol começou a desaparecer e pareceu-nos que iríamos ser forçados a abandonar o nosso plano.

- A noite estás prestes a chegar... - comentou Brynach. - Talvez seja melhor desembarcarmos. Continuaremos as buscas logo pela manhã...

- Está bem... - concordou o piloto - mas vamos ver o que haverá para lá daquele promontório - acrescentou, indicando o alto e largo cabo que avançava pelo mar, mesmo na nossa frente.

Rodeámos o promontório muito lentamente... A costa do outro lado começou a aparecer e avistei o grande arco de uma baía bordejada por uma praia de areia, sobre a qual as ondas se lançavam, desfazendo-se em espuma e neblina. Para lá da praia erguiam-se falésias baixas, que davam lugar a três colinas escuras. Por trás da mais distante erguia-se um fio de fumo branco. Brynach avistou-o imediatamente e apontou-o. Estávamos todos a olhar para a fina pluma que se erguia no crepúsculo e a sonhar com lareiras quentes e boas-vindas... quando Finán gritou:

- Navio na baía!

Virei novamente os olhos para as águas ondulantes e avistei um navio negro e baixo, com uma proa semelhante a uma serpente, que cavalgava a ondulação e deslizava suavemente para a baía. Estávamos tão atentos ao fumo da povoação que nenhum de nós notara a outra embarcação.

Porém, os homens a bordo do navio estrangeiro já nos tinham visto.

O navio negro mudou de rumo e virou-se para nós no momento em que a sua vela caiu e uma dupla fileira de remos começou a chapinhar nas águas.

- Óptimo! - comentei, para Dugal, que se encontrava ali perto. Talvez nos ajudem ou, pelo menos, poderão dizer-nos onde estamos.

Dugal não respondeu e olhei-o. Tinha o rosto contraído, os olhos semicerrados e muito atentos.

- Dugal? - perguntei.

- A única coisa que aqueles nos darão... - murmurou - será uma morte prematura.

Ia perguntar-lhe o que queria dizer com o comentário quando Fintán deu o alarme:

- Lobos do Mar!

 

- Aos remos! - gritou Fintán, empurrando o leme improvisado de modo a virar o navio. - Remem pelas vossas vidas!

Fiquei a olhar, de boca aberta, incrédulo. Lobos do Mar... Escutara aquelas temidas palavras durante toda a minha vida e receara-as... mas agora, confrontado com a realidade, custava-me a acreditar nelas.

- Rema! - gritou Dugal, saltando para o seu lugar. Agarrou no remo e mergulhou-o na água como um homem enlouquecido.

Fintán gritou a cadência e nós acompanhámos o ritmo. O Bán Gwydd virou e ganhou velocidade a pouco e pouco. A cadência acelerou. Fintán gritava cada vez mais depressa... e nós remávamos cada vez mais rápido.

Mantive os olhos postos nas largas costas de Dugal. Não me atrevia a erguê-los ou a virar a cabeça para a esquerda ou direita, com medo do que pudesse ver. Em vez disso, continuei a golpear a água com o remo e rezei, a cada remada: Senhor, tem piedade! Cristo, tem piedade!

Cadoc mostrou-se digno do seu papel. A sua voz, bela e forte, ergueu-se para proteger o seu rebanho e transformou-se numa arma de gume bem afiado. Voltou para o mastro, ergueu o bordão e implorou a Miguel, o Valente, que nos rodeasse e abrigasse debaixo das suas asas protectoras. Soltou a invocação com uma voz poderosa e deu novo alento a todos os que a ouviram.

De algures, por trás de nós, chegavam-me os sons de remos propulsionados com força e de gritos. Já esquecido de todo o cansaço, baixei a cabeça e remei para salvar a minha querida vida.

O suor escorria-me para os olhos. A respiração saía-me ofegante e áspera, e o remo tornou-se escorregadio e difícil de segurar. Olhei para as mãos e vi que tinha o remo manchado de sangue.

- Remem, por amor de Deus! - gritou Fintán.

Um instante depois ouvi um guincho, espreitei por cima do ombro de Dugal e vi que o navio negro se encontrava perigosamente perto. Tinha um homem de peito nu agarrado à alta proa, com uma corda na mão. Na extremidade da corda via-se uma fateixa com três pontas. O braço do homem rodopiou por cima da sua cabeça, uma vez, duas vezes... três vezes... O estrangeiro soltou outro forte grito e largou a corda... que se contorceu no ar por cima da cabeça do piloto... e desceu. A fateixa embateu na amurada com uma pancada pesada e prendeu-se com força.

O cabo ficou tenso e a nossa embarcação deu um safanão na água, o que provocou gritos selvagens de aprovação por parte dos que se encontravam a bordo do navio negro. Mantivemo-nos agarrados aos remos mas remar era inútil. Por muito que tentássemos, não conseguíamos que o navio avançasse.

Ouvi alguns estrondos. Levantei os olhos e verifiquei que as primeiras três filas de remadores de cada lado do navio inimigo já tinham puxado os remos para bordo e pegavam em machados e escudos. Naquele momento já todos os marinheiros inimigos gritavam, num berreiro de fazer estourar os tímpanos.

Dugal retirou o remo dos apoios e correu para o leme.

- Agarrem a fateixa! - gritou. - Depressa!

Vi que o navio inimigo se aproximava à medida que os Lobos do Mar puxavam a corda. Fintán, Clynnog e Faolan atiraram-se à fateixa e tentaram soltá-la. Dugal, junto à cana do leme, brandia o remo como se fosse uma arma. Os Lobos do Mar uivaram, agitando ansiosamente os seus machados.

Cadoc mantinha-se junto ao mastro e implorava a ajuda dos anjos enquanto todos nós nos debatíamos com os remos e tentávamos desesperadamente mantermo-nos fora do alcance dos guerreiros do navio negro.

A ondulação ergueu o Bán Gwydd bem alto e inclinou-o para o lado, ameaçando atirar-nos a todos para dentro de água, mas a onda passou e o navio endireitou-se.

Os Lobos do Mar puxavam o cabo com todas as suas forças, estavam quase sobre nós e a proa do navio negro encontrava-se prestes a tocar na nossa popa. Tinha seis guerreiros inimigos amontoados na proa, de pé em cima da amurada, prontos para a abordagem.

Dugal, descrevendo um grande arco com o remo, mantinha-os em desequilíbrio. Entretanto, Fintán com o rosto vermelho e as veias salientes no pescoço e testa, esforçava-se por soltar a fateixa.

- Aidan! - gritou Dugal. - Chega aqui!

Peguei no remo e juntei-me a Dugal. Apoiei-me contra a amurada e fiz o meu melhor para manter o remo junto aos rostos dos inimigos.

Agitei-o para um lado e para o outro, achando-o desajeitado nas mãos ensanguentadas, isto enquanto os Lobos do Mar, precariamente empoleirados na amurada, se atiravam a ele com os machados e procuravam uma oportunidade para saltarem para bordo do nosso navio, onde todos gritavam e caíam uns em cima dos outros, numa confusão.

- Remem! - berrou Máel, tentando fazer-se ouvir sobre a gritaria.

- Não larguem os remos! Remem!

Um dos Lobos do Mar, um grande e forte gigante com tranças avermelhadas a aparecerem por baixo do casco de guerra, esticou-se para a frente, agarrado ao delgado pescoço da serpente que ornamentava a proa do navio, e atacou o meu remo com uma enorme moca. O golpe acertou em cheio, fez vibrar o remo nas minhas mãos e quase o deixei cair. Máel apareceu a meu lado, brandindo um remo por cima da cabeça. O Lobo do Mar tentou outro golpe selvagem com a moca mas Máel baixou o remo e atingiu o inimigo num ombro. O homem gritou de raiva e dor, oscilou e quase caiu ao mar. Contudo, no último instante, os companheiros puxaram-no para trás e o seu lugar foi ocupado, num abrir e fechar de olhos, por outro Lobo do Mar.

Os dois navios estavam quase a tocar-se. O mar elevou-se por baixo do Bán Gwydd, fazendo subir uma das amuradas laterais e obrigando a outra a descer. O mar precipitou-se para dentro do navio por cima dessa amurada e a embarcação já se encontrava meia cheia de água quando conseguiu endireitar-se.

- Ajudem-me! - gritou Fintán.

O cabo aliviara um pouco a pressão quando o navio rolara. Por um breve instante, o piloto conseguira soltar a fateixa mas o inimigo voltara a puxar novamente o cabo e entalara-lhe a mão entre o metal e a amurada.

Larguei o remo e corri para o piloto.

Agarrei na fateixa, encostei um pé à amurada e puxei-a com todas as minhas forças. Os dentes da fateixa cederam apenas um pouco.

Ouvi um grito e olhei para cima no momento em que um Lobo do Mar saltava para a nossa amurada. O machado cortou o ar por cima da minha cabeça e caí para trás. Fintán soltou um grito de dor quando a fateixa de ferro voltou a comprimir-lhe a mão. Rebolei para um lado, pus-me de joelhos e agarrei a fateixa, sacudindo com força a sua única ponta livre.

Entretanto, o Lobo do Mar equilibrava-se sobre a amurada e preparava-se para atacar.

Vi o machado pairar no céu e começar a descer. No mesmo instante, escutei um zumbido no ar e vi um remo a voar ao encontro da lâmina que descia para mim. O machado embateu com força na pá do remo e ficou preso. Dugal puxou o remo com violência, desequilibrou o inimigo e arrastou-o na sua direcção.

Quando o guerreiro caiu, Dugal atirou-se a ele, lançou o cotovelo para a frente, atingiu o homem no peito e propulsionou-o contra a amurada. O remo, ainda com o machado cravado, caiu no fundo do navio.

Dugal pôs-lhe um pé em cima, agarrou no cabo do machado e tentou libertá-lo... no preciso momento em que a ondulação crescia, erguia o navio e começava a incliná-lo.

o machado soltou-se e Dugal lançou-o contra o cabo da fateixa.

Ainda estava a tentar cortar o cabo quando apareceu outro Lobo do Mar.

- Dugal, por trás de ti! - gritei.

o guerreiro inimigo passou um braço em volta da garganta de Dugal e puxou-o para trás... mas o gigantesco monge não deixou de golpear o cabo. Uma vez... duas vezes... e ouviu-se um estalo. O cabo partiu-se.

Repentinamente livre do navio negro, o Bán Gwydd balouçou na vaga.

o mar e o céu mudaram de lugares. O navio rolou sobre si mesmo.

Senti-me a escorregar e estendi as mãos... mas não tinha onde me agarrar e caí de cabeça nas ondas remoinhantes. O sabor do sal na boca interrompeu-me o grito.

o choque da água fria sobressaltou-me. Bati as pernas, agitei os braços e nadei para a superfície. A capa e o manto colavam-se-me às pernas e puxavam-me para o fundo. Debati-me, com o pânico a invadir-me e os pulmões a arder.

Avistei uma mancha escura por cima de mim e pensei que era o navio. Esbracejando furiosamente, nadei para ele, fiz um último esforço e subi à superfície. Todavia, só tive tempo para uma golfada de ar antes de uma nova onda me cobrir.

Quando a minha cabeça deslizava para baixo de água, uma das mãos embateu em qualquer coisa dura. Agarrei-a e segurei-me. Alguns momentos depois consegui pôr a cabeça fora da água e descobri que estava agarrado à amurada do navio, agora virado de quilha para o ar e meio afundado.

A onda que nos virara também empurrara os Lobos do Mar para longe.

Ouvi-os a troçarem de nós com gritos roucos que assaltavam o céu com as suas vulgaridades.

Icei-me um pouco mais, junto ao flanco do navio, e sacudi a água salgada dos olhos. Via muito pouco porque me encontrava rodeado, por todos os lados, pelas enormes ondas. Contudo, a ondulação acabou por erguer o navio meio afundado e tive um relance da embarcação inimiga que se afastava lentamente.

Ao que parecia, os Lobos do Mar tentavam virar o seu navio para regressarem para junto de nós, mas as ondas empurravam-nos rapidamente para a costa enquanto, simultaneamente, os afastavam de nós. Calculei que quando conseguissem dar a volta já estaríamos ao alcance da praia. A vaga passou e o Bán Gwydd desceu para o vale entre duas ondas. Quando a vaga seguinte voltou a erguer-me, verifiquei que o navio negro já se encontrava mais longe. Nunca mais voltei a vê-lo.

- Aidan! Socorro!

Ouvi espadanar atrás de mim, virei-me e vi Brocmal a debater-se na água. Segurei-me à borda do navio, estiquei-me, agarrei-o pelo rebordo da capa e puxei-o para mim.

- Aqui, Brocmal... Segura-te!

Cuspindo água e tremendo, Brocmal conseguiu segurar-se e içar-se para cima do casco virado enquanto eu observava o mar à minha volta, à procura dos outros.

- Segura-te bem, Brocmal - disse-lhe, voltando a deslizar para dentro de água.

- Onde vais, Aidan?

- Procurar os outros. - Mantive-me agarrado à amurada submersa e avancei ao longo do casco. Quando cheguei à proa, passei-lhe por baixo e comecei a percorrer o outro lado. Clynnog, Faolan e Ciáran estavam seguros ao velame.

- Aidan! Ciáran! - gritou Clynnog, quando nos avistou. - Viste algum dos outros?

- Só o Brocmal - retorqui. - Está do outro lado do navio. E o Dugal?

- Penso que vi o Brynach... - respondeu Ciáran - e mais ninguém. - Olhou em volta, para as enormes ondas. - Não sei o que lhe aconteceu.

- E agora, que vamos fazer? - perguntei.

- Não podemos fazer nada enquanto não chegarmos à costa - explicou o monge marinheiro. - De qualquer modo estamos com sorte, o vento e as ondas estão a empurrar-nos para a praia.

Não consegui deixar de me maravilhar com a sua plácida aceitação da nossa provação. Sorte? Numa situação extrema como aquela, não me parece que tivesse escolhido uma tal palavra.

- Vou voltar para junto do Brocmal - ripostei - para lhe explicar a nossa boa sorte.

Continuei a minha circumnavegação do navio virado, não encontrei mais ninguém e aproximei-me de Brocmal, que trepara mais para o alto do casco. Pedi-lhe que me ajudasse mas não quis estender-me uma das mãos com receio de voltar a deslizar para a água.

- Podes trepar sozinho - declarou, com secura. - Não me arrisco a outra queda.

- Clynnog, Faolan e Ciáran estão do outro lado da quilha - expliquei, contorcendo-me para subir ao casco, para junto dele. - Clynnog diz que em breve chegaremos à costa, graças ao vento e à 3 ondas.

- E quanto aos outros? - perguntou Brocmal. - Onde está o bispo Cadoc?

- Não sei. Ciáran só vi u o Brynach, mais ninguém.

- Devem ter-se afogado todos, suponho... - comentou Brocmal incluindo o teu Dugal.

Não soube o que responder àquilo e mantive a boca fechada.

A ondulação tornou-se muito mais severa à medida que nos fomos aproximando da costa. Agora, quando o navio se erguia no alto de uma vaga já me permitia avistar as fileiras de ondas, brancas e furiosas, que se lançavam sobre a costa, e também ouvia o seu rugido constante. Pouco depois, essas mesmas ondas começaram a rebentar à nossa volta e por cima de nós.

Ouvi um grito e olhei para cima. Os monges marinheiros tinham trepado para o alto do casco e estavam agarrados à quilha.

- Venham cá para cima! - gritou Clynnog novamente. - Subam para aqui, é mais seguro!

Dei uma cotovelada em Brocmal e indiquei-lhe que se deveria juntar aos outros. Contudo, recusou mexer-se e manteve os olhos temerosos pousados nas ruidosas ondas da rebentação.

- Ele diz que é mais seguro lá em cima - gritei-lhe. A boca de Brocmal moveu-se, numa resposta, mas não o consegui ouvir sobre o trovejar do mar.

- Não se quer mexer - gritei para Clynnog.

- Então, pelo menos, tem cuidado contigo - aconselhou-me o monge marinheiro.

Olhei para Brocmal, que tremia e continuava desesperadamente agarrado ao casco.

- Acho melhor ficar aqui, com ele - respondi.

- Segura-te bem - gritou Clynnog, esforçando-se por se fazer ouvir por cima do estrondo das vagas. - A coisa vai ficar feia... Afasta-te do navio o mais depressa que puderes logo que sintas a areia debaixo dos pés.

Compreendeste?

Como Brocmal nem sequer fazia uma tentativa para olhar para Clynnog, comecei a repetir o conselho do marinheiro.

- Eu ouvi! - afirmou o desagradável monge. - Ainda não estou morto.

Não tive tempo para responder porque houve uma vaga que se esmagou sobre o navio e a partir desse momento necessitei de todas as minhas forças para me manter agarrado. O mar atirou o impotente Bán Gwydd para um lado e para o outro como se o navio não passasse de um tronco a flutuar nas ondas, erguendo-o, fazendo-o mergulhar, primeiro a proa e depois a popa, pondo-o a rodopiar e cobrindo-o de torrentes de água. Mantive-me agarrado, a tremer de frio e com os dedos a doerem, rezando pela salvação.

 

As vagas cobertas de espuma branca precipitavam-se sobre nós vindas de todos os lados ao mesmo tempo e não conseguia ouvir nada para além do trovejar das ondas que colidiam umas com as outras e se lançavam contra a praia. Cada vaga que surgia fazia-me deslizar cada vez mais para baixo ao longo do flanco do navio. Por fim, fui incapaz de me manter agarrado. Houve uma última grande vaga que se lançou sobre mim, fui arrancado do meu lugar, rodopiei e rolei debaixo de água.

Afundei-me, tonto e desorientado, agitando os braços e as pernas...

até que o meu joelho tocou em qualquer coisa sólida. Era areia!

Puxei as pernas para baixo de mim e levantei-me. Para minha surpresa, fiquei com metade do corpo fora da água. A costa estava directamente na frente, a não mais de cinquenta ou sessenta passos. Recordando-me do conselho de Clynnog para me afastar do navio, mexi os pés e comecei a correr. Contudo, ainda não havia dado três passos quando fui atingido por trás e atirado abaixo. As ondas enrolaram-me e arrastaram- me pelo fundo. Quando a onda recuou, debati-me para me ajoelhar e fiquei a cuspir areia. Dei mais dois passos antes da onda seguinte me apanhar, mas daquela vez já estava preparado e consegui manter-me de pé.

Verifiquei que o Bán Gwydd se encontrava agora a cerca de cinquenta passos de distância, com os três monges do mar ainda a bordo, agarrados à quilha. Segui o navio, caindo uma única vez, arrastei-me para fora da espuma da zona de rebentação e deixei-me cair na praia. Jazi ali por instantes, de olhos fechados, com o coração a martelar, recuperando as poucas faculdades e forças que ainda me restavam.

- Deus seja louvado! Estás vivo, Aidan?

- Por pouco... - respondi, tossindo. Abri os olhos e vi Gwylin de Pe por cima de mim, com o cabelo em cima dos olhos e a escorrer água por toda a parte.

 

- É o Aidan! - gritou para alguém, por cima do ombro. - Não está ferido. - Virou-se para mim e perguntou: - Estás ferido, irmão?

- Aghhh! - respondi, cuspindo água salgado e ofegando por ar.

A seguir recordei-me: - Brocmal estava comigo, num dos lados do navio.

Não sei o que foi feito dele.

Rolei e pus-me de gatas, mas Gwylim ajudou-me a pôr-me de pé.

- O navio está ali adiante - declarou - pelo que Brocmal não pode andar longe.

O desengonçado britânico começou a caminhar pela praia. As ondas haviam empurrado a embarcação bem para cima da areia, onde ficara presa, a não mais de trinta passos de distância. Clynnog, Ciáran e Faolan desciam do casco para a areia quando nos aproximámos.

- O Brocmal está convosco? - perguntei, tentando fazer-me entender por cima do estrondo das ondas.

- Infelizmente, não - respondeu Ciáran. - Não o vimos.

- Quem foi que encontraram? - inquiriu Clynnog.

- Brynach e Cadoc estão a salvo - disse-nos Gwilym, apontando para uma saliência rochosa, um pouco mais para diante, ao longo da praia.

- O Ddewi e eu andávamos à procura dos outros.

- Nesse caso, já somos oito - declarou Faolan.

- Nove - corrigiu-o Gwilym - contando com o Brocmal... se o conseguirmos encontrar.

Ouvimos um grito vindo de algures do outro lado da praia. Virámo- nos, olhámos ao longo da costa e vimos quatro figuras que cambaleavam na nossa direcção. Mesmo à distância, consegui perceber que uma delas era a de Dugal. Ele e outro monge apoiavam uma terceira pessoa entre eles.

- É o Dugal - expliquei - e tem o Fintán com ele.

- E o Con e o Máel! - exclamou Clynnog, protegendo os olhos com as mãos. Apressou-se ao encontro dos outros e Ciáran foi atrás dele.

- E faz doze... - comentou Faolan. - Só falta o Brocmal.

- Não pode estar longe - repliquei, avançando para a água. O Sol já ia baixo. Protegi os olhos contra o seu clarão e examinei as ondas em busca de um qualquer sinal de Brocmal. Os monges do mar também se puseram a observar a rebentação. Estávamos absorvidos nessa tarefa quando ouvimos um grito de Gwilym:

- Além! O Ddewi encontrou-o!

Gwilym e Faolan começaram a correr na areia em direcção ao local onde Ddewi estava agachado sobre uma figura que jazia meia dentro de água. Quis segui-los mas, quando me virei, senti qualquer coisa a embater contra a minha perna. Olhei para baixo e vi a cabeça e os ombros de um homem a oscilar, para cima e para baixo, na rebentação da onda.

- Aqui! - gritei, surpreendido! - Encontrei alguém!

Contudo, ninguém me ouviu porque me tinham deixado sozinho e continuavam todos a correr pela praia para irem ajudar Ddewi.

Agarrei num braço nu, puxei o corpo para a areia até onde fui capaz e virei-o. Nem sequer precisei de ver a corrente de prata ao pescoço e a grossa braçadeira também de prata para perceber que tinha encontrado um Lobo do Mar.

Era um homem grande. Tinha barba e cabelos louros muito compridos, um urso tatuado a negro no braço direito e usava um largo cinto de couro em volta da cintura. Trazia uma comprida faca com punho de ouro enfiada no cinto. Não usava túnica ou manto, mas exibia perneiras de um belo couro e borzeguins feitos de pele de porco, ainda com os pêlos.

Parecia completamente sem vida... mas achei melhor certificar-me, pelo que me ajoelhei e encostei a orelha ao peito do homem.

Ainda tentava ouvir um batimento do coração quando uma onda me apanhou por trás, fazendo-me cair e atirando-me para cima do corpo.

Aquele abraço gélido desgostou-me tanto que me pus de pé rapidamente e comecei a afastar-me. Todavia, detive-me e voltei para trás. Não podia deixar o corpo num local onde as ondas o poderiam arrastar de volta para o mar gelado.

- Que Cristo tenha piedade... - murmurei, por entredentes cerrados. Respirei fundo, agarrei os dois punhos do homem e arrastei o corpo bastante para cima da marca da água na areia - a uns bons quinze passos de distância. - após o que me deixei cair a seu lado, respirando com dificuldade.

A minha acção precipitada deve ter reacendido a vida no cadáver porque, quando me sentei sobre os calcanhares a olhar para a forma pálida e fria a meu lado, o corpo sofreu uma convulsão e vomitou uma golfada de água do mar. A seguir, o bárbaro começou a tossir e a engasgar-se tanto que pensei que podia voltar a afogar-se, pelo que acabei por o empurrar, deitando-o de lado.

Saiu-lhe mais água da boca. O homem aspirou o ar de um modo prolongado e irregular, gemendo baixinho. Levantei-me, preparado para fugir se se pusesse de pé num salto e me atacasse. Os meus olhos pousaram na faca que trazia à cintura e ocorreu-me que talvez fosse melhor tê-la em meu poder.

Agachei-me e estendi cautelosamente a mão para o cinto.

Foi nesse momento que os olhos do bárbaro se abriram de repente. A expressão que vi naqueles frios olhos azuis - uma mistura de surpresa e terror - fez-me parar. Imobilizei-me, com as pontas dos dedos quase a tocarem no punho da faca. O homem reparou na mão perto da faca e ficou rígido.

Retirei a mão rapidamente e sentei-me. O bárbaro pestanejou, com as feições a darem forma a uma expressão de absoluto espanto. Olhei para ele, ele olhou para mim... e nenhum de nós se moveu. Penso que, nesse momento, passou entre nós uma espécie de compreensão porque o homem descontraiu-se, voltou a fechar os olhos e encostou o rosto à areia.

- Que tens tu aí, Aidan? - perguntou alguém. Levantei os olhos quando Dugal e os outros se aproximaram.

Fintán, com o rosto contraído pela dor e agarrado a um braço, mantinha-se apoiado aos ombros de Dugal e Connal. O pulso do piloto estava vermelho e inchado e a mão não se mexia. Máel agachou-se a meu lado enquanto os outros se reuniam em volta a olharem para o corpo estendido na areia.

- Está morto? - perguntou Clynnog.

- Já esteve... - respondi - mas recuperou.

- Que vamos fazer com ele? - interrogou-se Máel. Começámos a discutir o assunto e estávamos a chegar a uma decisão quando Gwilym regressou.

- Brocmal não se afogou... - informou-nos - embora me pareça que engoliu o seu peso em água e areia. Brynach e Cadoc estão com ele.

- Então, sobrevivemos todos - disse Clynnog. - Os treze... e mais um... - acrescentou, tocando no bárbaro com a ponta de uma pé.

O Lobo do Mar acordou com aquele toque e encolheu-se quando viu os monges sobre ele. Dugal, sendo um tipo de homem muito diferente de mim, baixou-se e arrancou a faca do cinto do bárbaro com um só movimento.

- Permite-me que fique com isto, meu amigo - disse. O guerreiro ainda tentou agarrar a lâmina mas Dugal foi mais rápido. - Paz. Fica quieto e nada te acontecerá.

Era óbvio, pela expressão de medo e espanto no rosto do bárbaro.

que não compreendia nada do que lhe dizíamos. Pensando em tranquilizá-lo, fiz um movimento calmo e suave com a mão. O homem respondeu com um movimento do queixo e deitou-se.

- Temos de ir - afirmou Gwilym. - O Bryn pensa que a povoação não está longe, mas acha melhor que a procuremos antes do anoitecer.

- O navio... - interveio Fintán, numa voz abafada - tem de ficar em segurança. Não podemos deixá-lo à mercê das ondas.

- Navios e povoações! - protestou Connal. - Homem, não serás capaz de me dizer o que terá acontecido ao livro abençoado?

- Suponho que está em segurança - retorquiu Gwilym, parecendo despreocupado.

- Estamos a perder horas de luz - comentou Dugal. - O Sol irá pôr-se em breve.

- Nada receies pelo Bán Gwydd, Fin - disse Clynnog. - Venham, irmãos, temos de nos apressar.

Ele e os monges do mar apressaram-se na direcção do casco virado e começaram a escavar a areia ao lado da amurada. Não precisaram de muito tempo para escavarem um buraco suficientemente grande para deixar passar Máel, que rastejou para o interior. Um instante depois surgia na areia um cabo, logo seguido por um martelo e por várias estacas de madeira.

Deixámo-los a trabalhar na amarração do navio e dirigimo-nos para junto do bárbaro. Dugal obrigou-o a pôr-se de pé, retirou-lho o cinto e enrolou-o em volta dos braços do guerreiro, fixando-lhos aos flancos.

A seguir dirigimo-nos para onde o bispo e os outros estavam à nossa espera.

Ddewi encontrava-se ajoelhado ao lado de Brocmal, que se sentara contra as rochas com as pernas abertas na sua frente. Brynach e o bispo estavam de pé, ali perto, conversando tranquilamente. Viraram-se quando nos aproximámos e exprimiram surpresa ante a presença de mais uma pessoa no nosso grupo.

- Foi o Aidan quem o salvou - explicou Dugal com simplicidade.

- Não gostámos da ideia de o deixar na praia.

- Só o Aidan se lembraria de salvar um bárbaro... – murmurou Brocmal.

- E eu pensei que te estava a salvar a ti... - retorqui.

Brocmal tossiu e limpou a boca numa manga encharcada. Depois.

como se aqueles movimentos tivessem sido um esforço demasiado grande, voltou a deixar-se cair contra a rocha.

- Estará em condições de caminhar? - perguntou Fintán, indicando o abatido Brocmal.

Ddewi levantou os olhos quando o piloto falou, viu o braço do timoneiro e pôs-se de pé num salto.

- Está menos fraco do que parece... - explicou o médico. - Deixa-me ver essa mão, Fin.

- Não te preocupes comigo, jovem Ddewi - retorquiu o piloto. Se necessário, posso pilotar o navio com uma única mão.

Ddewi examinou-lhe a mão inchada com toques leves e rápidos.

- Consegues mexer os dedos, Fin? Experimenta... - A experiência provocou uma contracção de dor ao timoneiro, que oscilou sobre as pernas.

- Nada disto teria acontecido... - queixou-se Brocmal amargamente - se não fosse o Dugal. O castigo de Deus caiu sobre nós por termos permitido que a injustiça que ele cometeu continue por punir. Os desastres acompanharão os nossos passos enquanto o malfeitor for tolerado entre nós.

- Irmão, tem tento na língua! - atirou-lhe o bispo, num tom zangado. - A questão do acidente de Libir está encerrada. Escuta-me, Brocmal:

não voltarás a falar nisso ou descobrir-te-ás sujeito a castigo. - O bispo virou-se para Dugal e acrescentou: - Lorde Aengus tinha razão quando te recomendou. Confesso que me sinto muito mais seguro sabendo que temos entre nós um homem com a tua perícia. Posso pedir-te para permaneceres a meu lado, irmão?

- Se isso lhe agrada, bispo Cadoc...

- Agradava-me muito, meu filho.

- Então não precisa de dizer mais nada - replicou Dugal, satisfeito. - A sombra que vê a seu lado passará a ser a minha.

Brocmal fechou os olhos e deixou-se cair para trás com um resmungo. O médico prosseguiu o exame ao ferimento do piloto e Brynach avançou para onde eu estava à espera com o bárbaro.

- Vamos levá-lo connosco para a povoação - declarou. - Os habitantes lidarão com ele...

- Vão matá-lo - afirmei.

- É muito provável - concordou Brynach com um aceno sombrio.

- Nesse caso teria sido melhor deixar que se afogasse - argumentei, sentindo-me zangado e desgostoso.

- Sem dúvida - admitiu Dugal com toda a franqueza. - Foi este quem tentou abrir-te o crânio com o machado de guerra... e tê-lo-ia feito se a onda não nos virasse.

Fiz uma careta. O que Dugal dizia era verdade, mas tratava-se de uma verdade amarga que me deixou engasgado.

- Aidan, as tuas preocupações são louváveis mas não temos outra solução - declarou o bispo Cadoc. - Não podemos fazer prisioneiros... e a sorte dele não seria melhor se ficasse sozinho. Entregamo-lo ao senhor da povoação que fica aqui perto e ele que decida.

Os monges do mar juntaram-se-nos nesse momento, depois de terem prendido o navio com estacas. Connal avistou o báculo do bispo, que dera à costa, e colocou-o nas mãos de Cadoc. O bispo recebeu-o, virou-se para

Brynach e fez um movimento circular com o bordão. Brynach sorriu, levantou o seu manto e revelou a bulga de couro que continha o livro.

- O nosso tesouro está a salvo, irmãos - disse Bryn. - Deus permitiu que nos salvássemos, bem como ao nosso troféu.

Ao ouvir aquilo, Cadoc irrompeu numa exaltação de agradecimentos aos céus.

- Irmãos... - disse, levantando o bordão encimado pela águia Deus é grande e merece ser louvado. Libertou-nos da tempestade e das mãos dos perversos.

Pusemos Brocmal de pé e partimos para a povoação, entoando um salmo de acção de graças enquanto marchávamos. O Sol pôs-se antes de conseguirmos chegar ao cimo dos penhascos mas ainda havia luz suficiente para localizarmos a coluna de fumo branco, que parecia emanar de um ponto entre a primeira e a segunda das três colinas que se encontravam na nossa frente. Brynach fixou a localização na sua cabeça e avançou com passos firmes, indicando o caminho, e todos nós nos colocámos atrás dele. Como eu era o último da fila, calhou-me ser o guarda do nossobárbaro.

Como não sabia o que fazer com ele, deixei-o caminhar um pouco à minha frente sem o perder de vista, não fosse tentar fugir, embora considerasse que isso não seria assim tão mau tendo em conta a recepção que o aguardava na povoação. Como o solo era irregular e tinha os braços amarrados aos flancos, o homem tropeçava de vez em quando e descobri-me a apoiá-lo. Quando ficou demasiado escuro para se ver claramente,

Peguei-lhe por um braço para que não caísse. Da primeira vez que o fiz afastou-se com um safanão violento e grunhiu o seu desagrado. Contudo, a quinta ou sexta vez, virou a cabeça para olhar para mim, com o branco dos olhos a reluzir sob o crepúsculo. A partir daí, nunca mais resistiu quando o agarrei.

Logo que deixámos para trás os penhascos salpicados de rochas, o caminho tornou-se mais fácil e pudemos mover-nos mais rapidamente.

As colinas eram muito arborizadas mas, quando nos aproximámos da primeira, Brynach descobriu um trilho que nos permitiu caminhar depressa e sem medo de virmos a tropeçar a cada passo. A elevação era mais íngreme e mais alta do que nos parecera sob a luz do crepúsculo e em breve comecei a suar. Esse facto, combinado com as roupas encharcadas e coladas ao corpo, deixou-me cada vez mais incomodado. Para além disso, tinha comichões na pele por causa da água salgada, as mãos doíam- me dos remos, sentia os olhos simultaneamente secos e lacrimejantes, e as pernas, ombros, costas e flancos encontravam-se doridas por causa do esforço de remar. Tinha fome e sede, estava gelado até aos ossos e molhado.

Atingimos o alto da primeira colina e Brynach fez uma pausa para voltar a localizar a coluna de fumo. Ao longe, para leste, havia uma brilhante fatia de Lua a erguer-se por cima das nuvens baixas.

- A povoação é ali em baixo... - disse Brynach quando nos reunimos à sua volta. - Penso que é relativamente grande. Olhem, além...

Vê-se o contorno de um campo trabalhado.

Apontou para o fundo do vale. Embora eu visse o fumo a subir por entre as árvores, não consegui distinguir nem o campo, nem qualquer sinal de uma povoação. Iniciámos a descida para o vale, sempre seguindo o trilho que eu não duvidava que nos levaria directamente ao nosso destino.

Uma vez do outro lado da colina, o vento enfraqueceu e pude ouvir os sons nocturnos dos bosques à nossa volta: um cuco a emitir o seu apelo de um ramo por cima das nossas cabeças, logo respondido por outro, a pouca distância, leves restolhadas furtivas nos detritos de Inverno acumulados em volta das raízes das árvores, o súbito agitar de asas invisíveis por entre os ramos cobertos de folhas novas.

Tornou-se difícil ver mais do que um passo ou dois à nossa frente.

De vez em quando estendia a minha mão para o bárbaro, tanto para me certificar que ainda ali se encontrava como para o guiar. Em cada uma dessas vezes, o calor e a solidez do toque surpreenderam-me, uma vez que quase esperava estender a mão e descobrir que o homem desaparecera.

O bosque tornou-se menos cerrado quando nos aproximámos da povoação e o trilho foi alargando até ao momento em que saímos de entre as árvores e entrámos numa clareira - o campo de que Brynach tivera um relance, lá do alto - e avistámos o amontoado de cabanas baixas, com tectos de colmo, a pouca distância. Detivémo-nos para olhar e escutar antes de continuarmos a avançar, mas o povoado permaneceu pacífico e tranquilo. Aparentemente. a nossa chegada ainda não fora notada.

Contudo, essa tranquilidade não durou muito. Logo que chegámos ao meio do campo houve um cão que começou a ladrar, no que foi imediatamente imitado por todos os cães do vale, o que provocou um alarido que despertou os habitantes do povoado e os fez aparecer a correr. Na escuridão era difícil contá-los mas calculei que estaria ali um total de mais de vinte homens e rapazes equipados com tochas, e que além disso empunhavam lanças e as forquilhas já prontas. Não me pareceram muito satisfeitos por nos verem.

 

- Tenham calma, irmãos - pediu Brynach, vendo as tochas a precipitarem-se para nós através do campo. - Não digam nada até vermos como nos recebem. - Fez um gesto a Dugal para que este se colocasse a seu lado, e o volumoso monge passou para a frente do grupo.

Quando a primeira fila de pessoas do vale se aproximou de nós, Brynach ergueu as mãos vazias e avançou lentamente ao seu encontro.

- Pax, frater - disse, falando em latim. Este facto, adicionado ao seu traje e à tonsura, deu-lhes a saber que se estavam a dirigir a um sacerdote.

O homem que vinha à frente lançou uma olhadela a Bryn e gritou para os companheiros:

- Parem, são apenas monges!

A frase foi proferida numa língua que, embora tivesse um som muito parecido com a do sul do Éire, usava palavras britânicas e algumas outras que não reconheci mas que os britânicos que se encontravam entre nós compreenderam perfeitamente.

- São Cernovii... - explicou Ciáran mais tarde - ou, pelo menos.

já o foram, outrora.

- Somos clérigos em apuros... - explicou Brynach, dirigindo-se ao chefe do grupo. - Somos peregrini e naufragámos na baía. Terão comida que nos possam ceder, e um lugar onde possamos descansar?

- Temos, sim... - concordou o homem, com um aceno - e são bem-vindos aqui. Vieram de Dyfed?

- Sim... ou seja, alguns de nós vieram de Dyfed. Os outros... apontou o nosso grupo, amontoado por trás dele - são sacerdotes de Lindisfarne e Cennanus, no Éire. - Os homens da povoação chegaram-se para mais perto para nos verem melhor.

Brynach fez sinal ao bispo para avançar e juntar-se a ele. Quando Cadoc se aproximou, declarou:

- Saúdem o nosso superior. Meus amigos... - ananciou o britânico bem-falante num tom suficientemente alto para todos ouvirem - apresento-vos Cadocius Pecatur Episcopus, o Santo Bispo de Hy.

O anúncio produziu uma reacção instantânea e gratificante. Muitos dos habitantes do vale ofegaram de espanto e vários dos que se encontravam mais perto procuraram a mão do bispo e levaram-na aos lábios com reverência.

- Paz, amigos - pediu o bispo. - Dou-vos as minhas saudações em nome do santo e abençoado Jesus. Levantem-se e fiquem de pé. Não sou homem que mereça ser venerado deste modo.

- São bem-vindos à nossa aldeia - declarou o chefe dos aldeões, utilizando uma palavra que eu nunca ouvira. - Venham, vamos conduzi-los até lá.

Levantando a tocha, o chefe guiou-nos através do campo, em direcção à povoação. Era maior do que eu imaginara: tinha cinquenta ou mais cabanas, armazéns, um grande e bonito salão e um cercado para o gado.

Não possuía muralhas ou fossos e suponho que os bosques lhe serviam de protecção. Por outro lado, os habitantes pareciam ser homens muito vigilantes.

Conduziram-nos directamente para o salão, onde o fogo ardia brilhantemente numa ampla e generosa lareira. Entrámos e precipitámo-nos para ela para nos aquecermos ao seu calor. Como ninguém me deu instruções, levei o bárbaro comigo e mantive-me a seu lado. Olhou para mim com curiosidade e pareceu prestes a falar - pressenti as palavras quase a explodirem-lhe nos lábios - mas manteve a boca firmemente fechada e não disse nada.

Todos nos libertámos das capas, que espalhámos à nossa volta sobre as pedras da lareira, para depois nos aproximarmos tanto quanto possível das chamas, onde ficámos a dar voltas lentas. Coloquei o meu manto ante as chamas e momentos depois já as minhas roupas molhadas fumegavam com o calor enquanto o fogo me aquecia maravilhosamente bem.

Num dos lados da lareira havia uma enorme mesa feita com um tronco rachado ao meio. Ainda exibia vestígios de uma refeição, mas o chefe da aldeia deu uma ordem e aqueles restos foram rapidamente removidos enquanto as mulheres corriam a preparar novos pratos.

- Cerveja! - gritou o chefe. - Cerveja! Tylu... Nominoé, Adso! Tragam jarros para os nossos hóspedes sequiosos!

Os rapazes precipitaram-se em busca dos jarros da cerveja e o anfitrião virou-se para nós e declarou:

- Amigos, sentem-se e fiquem à vontade. Penso que tiveram um dia muito tumultuoso. Descansem e partilhem da nossa refeição. - Levou uma grande mão ao peito e acrescentou: - Chamo-me Dinnot e sou o chefe desta tuath, tal como vocês diriam. O meu povo e eu ficamos satisfeitos por terem descoberto o caminho até junto de nós. Aqui, nada de mal vos poderá acontecer.

Assim dizendo, conduziu o bispo para a mesa e pediu-lhe que se sentasse no lugar de honra. Os restantes arranjaram lugares nos bancos.

Como ninguém me disse nada em contrário, levei o bárbaro comigo para a mesa.

Contudo, quando nos aproximávamos da extremidade da mesa, Dinoot reparou que o homem que estava comigo não era um sacerdote.

- Bispo Cadoc... - disse, levantando a mão para mandar parar o bárbaro - perdoe-me a curiosidade mas parece-me que há um estranho entre vós.

- Ah, sim! - respondeu o bispo com algum embaraço, recordando-se repentinamente do guerreiro. - Tens olhos aguçados, Mestre Dinoot.

- Não tão aguçados como os de alguns... - retorquiu o chefe, com os ditos olhos a cerrarem-se ligeiramente - mas ainda reconheço um Lobo do Mar quando o vejo.

- Perdemos o nosso leme na tempestade... - começou Brynach a explicar - e vínhamos para terra...

- Teríamos desembarcado sem problemas - declarou Fintán, intervindo - se não fosse o mais cobarde dos ataques... - o piloto contou o que se passara com os Lobos do Mar e abanou a cabeça com desgosto.

- Agora, o pequeno Bán Gwydd está na praia, amarrado com cordas.

- Demos pela tempestade - respondeu Dinoot com uma careta mas não tínhamos consciência de que os bárbaros navegavam na nossa costa. - Esfregou o rosto coberto do restolho da barba e acrescentou: lorde Marius vai querer ser informado...

- O vosso senhor... - inquiriu Brynach - não está aqui?

- O seu caer fica a meio dia de distância - explicou Dinoot. Tem cinco aldeias sob a sua protecção. - Virando-se para o bárbaro, que se mantinha a meu lado, mudo e resignado, o chefe perguntou: Que vamos fazer com ele?

- Pensámos que deveriam ser vocês a decidir - sugeriu o bispo Cadoc. - Também somos estranhos aqui, mas estamos convencidos que o vosso senhor saberá o que fazer.

- Então... vou enviar alguém imediatamente, para o avisar. - O chefe chamou um dos homens jovens da tribo. Depois de uma breve troca de palavras, o jovem saiu do salão levando dois outros com ele. O machtiern será informado deste lamentável incidente logo pela manhã.

- Encurvou os lábios com crueldade enquanto olhava para o cativo. podem ter a certeza de que este monte de merda dinamarquesa não voltará a incomodar-vos.

Dinoot levantou-se, bateu as palmas e pediu ajuda. Surgiram quatro homens que se precipitaram para ele, a quem o chefe ordenou:

- Atirem este lixo para o poço da estrumeira e vigiem-no até à chegada de lorde Marius. - Dois dos homens agarraram no bárbaro com violência e começaram a arrastá-lo.

O Lobo do Mar não emitiu qualquer som nem ofereceu a mínima resistência, mas olhou com anseio para a mesa em que estava a ser colocados cestos de pão e jarros de cerveja. Apercebi-me disso e o meu coração comoveu-se.

- Esperem! - gritei. A palavra saiu-me dos lábios antes de me poder conter.

Os homens hesitaram. Os olhos de todos os que se encontravam no salão viraram-se para mim e descobri-me a ser objecto de um repentino escrutínio. Avancei rapidamente para a mesa, retirei um pão do cesto mais próximo e dei-o ao Lobo do Mar. A excitação infantil que demonstrou perante este acto tão simples foi maravilhosa de contemplar. Sorriu e apertou o pão contra ele. Um dos homens que o segurava estendeu a mão para lhe tirar a comida.

- Por favor... - pedi, afastando-lhe a mão.

O homem olhou para o seu chefe. Dinoot acenou, o homem encolheu os ombros e largou o pão. Levaram o bárbaro e ocupei o meu lugar à mesa, ansiando por me fazer tão pequeno que me tornasse invisível.

Depois da saída do bárbaro, o salão ganhou uma nova vida. O bispo e o chefe sentaram-se juntos numa extremidade da mesa, e Dugal, tal como Cadoc pedira, sentou-se à direita do bispo. Brynach instalou-se a seu lado e começaram todos a conversar amigavelmente. Era agradável ver que Dugal conseguia algum reconhecimento. Sempre o conhecera como um muito capaz e competente mestre das suas próprias capacidades mas, infelizmente para ele, tratava-se de capacidades que raramente faziam falta no dia-a-dia de um mosteiro, pelo que nunca tivera oportunidade para se distinguir... até agora.

- Procedeste bem... - sussurrou Ciáran, sentado a meu lado. Eu não me teria lembrado de o fazer. Parabéns.

Brocmal, a dois passos de distância pareceu ter ouvido a frase e contraiu os lábios numa expressão de desprezo. Faolan, junto dele, viu e comentou:

- Era um pão, irmão, mais nada. Serias capaz de recusar um bocado de pão a um homem esfomeado?

O monge arrogante virou os seus olhos frios para Faolan, fitou-o com dureza e acabou por desviar a cara sem pronunciar uma palavra.

Estendeu a mão, pegou num dos pães que se encontravam no tabuleiro à sua frente, partiu-o e mordeu-o.

- Demos graças... - disse Cadoc, levantando-se do seu lugar e proferindo uma simples oração de agradecimento pela comida e de bênção aos nossos anfitriões.

Os pães passaram de mão em mão e os jarros de cerveja despejaram a bebida para as taças e malgas de madeira. Havia também um guisado quente, de carne salgada e cevada, que nos encheu as barrigas. Aparentemente, a povoação não dispunha de garfos, pelo que levámos as malgas à boca e começámos por engolir o guisado para depois ensoparmos o pão mole e escuro no molho. Para finalizar, empurrámos tudo para baixo com grandes golos da espumosa cerveja.

Alguma vez tivera melhor comida na minha frente...? Não, nunca houvera nada que se pudesse comparar àquela refeição simples e alimentícia, que devorei como um esfomeado... o que até era verdade.

Enquanto comíamos, Ciáran contou-nos o que aprendera durante o caminho para a aldeia.

- Os pais deles vieram de Cerniu, mas isso já foi há muito tempo. Agora, esta terra chama-se An Bhriotáini - disse-nos, entre duas bocas cheias de comida. Silenciosamente, repeti o nome para mim: Britânia.

- Estamos a norte de Cannes - continuou Ciáran - mas ninguém sabe muito bem a que distância. O Fin pensa que a tempestade nos lançou mais para leste do que para sul, e o Dinoot afirma que lorde

Marius deve saber que distância teremos de percorrer para chegarmos ao rio.

Começámos a conversar sobre os acontecimentos dos últimos dias e a refeição passou-se numa espécie de neblina muito satisfatória. Recordo-O de ter comido, bebido e cantado... e de repente Ciáran estava debruçado sobre mim, sacudindo-me suavemente por um ombro.

- Aidan, acorda, irmão. Levanta-te, vamos para as nossas camas.

Levantei a cabeça da mesa e olhei em volta. Alguns dos irmãos estavam já a enrolar-se nas suas capas quase secas, em frente da lareira.

Outros avançavam para a porta. Recuperei a minha capa e fui atrás de Ciáran. Conduziram-nos para um estábulo coberto onde havia uma camada de palha nova à nossa espera. Sem me ralar quanto ao sítio onde iria dormir, cambaleei para um canto, bocejei e deixei-me cair. Puxei a capa húmida para cima de mim, pousei a cabeça no feno, com o seu cheiro doce... e fiquei novamente a dormir logo que as minhas pálpebras se fecharam.

O que me acordou de um sono profundo e insensato podem ter sido os gritos, mas também pode ter sido o cheiro acre do fumo. Lembro-me de ter tossido quando acordei. O estábulo estava cheio de fumo. Abri muito os olhos para a escuridão e levantei-me, sem saber onde estava.

Os cães ladravam. Ouvi o som de pés em corrida a martelarem no chão, lá fora. Ecoou um grito agudo no pátio, logo seguido por outro.

Não compreendi o que diziam.

Sacudindo o sono, avancei até à porta do estábulo e espreitei para o exterior. Vi formas rápidas a moverem-se ao luar. O ar estava cheio de fumo. Olhei na direcção do salão e avistei longos dedos de chamas a lamberem o telhado de colmo. Apareceu uma figura à porta do salão, olhou em volta rapidamente e desapareceu. Ouvi mais uma vez o som de passos em corrida e virei-me para o som. Vi o brilho duro do luar na lâmina nua de uma espada e recuei para dentro do estábulo quando o homem passou por mim a correr.

Um grito de mulher estilhaçou o silêncio como os fragmentos de um jarro partido.

- Acordem! - gritei. - Levantem-se! Estamos a ser atacados!

Corri de uma forma adormecida para a seguinte, sacudindo os monges do seu torpor. Lá fora, os cães manifestavam-se, frenéticos.

Ouvi guinchos a perfurarem o tranquilo ar da noite e a gritaria aumentou.

Os Primeiros monges que consegui acordar cambalearam para a porta e saíram. Acordei mais dois e corri para fora do estábulo, atrás dos outros...

Uma cabana rebentou em chamas do outro lado do pátio. Ouvi gritos no interior e crianças a chorarem. Corri para a cabana, atirei para um lado a pele que cobria a entrada e o fumo começou a sair pela porta em turbilhões

- Depressa! - gritei, lançando-me para o interior. - Vou ajudá-la! Depressa!

No centro da cabana havia uma mulher jovem com o rosto iluminado pelas chamas que se propagavam rapidamente. Segurava numa criança pequena e tinha outra agarrada às pernas, de boca aberta e com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto aterrorizado. Tomei a criança nos braços e corri de volta para o exterior, arrastando a mulher atrás de mim. Uma vez fora da cabana incendiada, a mulher recuperou tanto as faculdades como as crianças, agarrou-as bem e escapuliu-se para a segurança da floresta numa correria que a fez desaparecer no escuro.

Virei-me outra vez para o pátio onde agora fervilhava um torvelinho de homens irados e aos gritos, muitos dos quais se encontravam agarrados uns aos outros, num combate que ganhava um aspecto diabólico sob as chamas dos telhados e habitações incendiadas. Alguém soltara os cães e os animais, enlouquecidos pelo medo, atacavam todos os que lhes apareciam pela frente, quer fossem amigos ou inimigos. Havia gente a fugir do salão. Vi Dinoot aparecer no exterior, gritando ordens, logo seguido por Dugal, de espada em punho.

O bispo Cadoc, que o Deus o proteja, atirou-se para a frente, de mãos levantadas, gritando:

- Paz! Paz!

Bryn e Gwilym correram atrás dele, tentando desesperadamente interpor-se entre o bispo e o ataque. Contudo, sem se preocupar com a sua segurança, Cadoc precipitou-se para o âmago da batalha e foi imediatamente atacado.

A lâmina de um machado, cruelmente rápida, brilhou sob aquela luz confusa. Ouvi o agoniador estalo da lâmina sobre ossos e o bispo foi-se abaixo como um boneco de trapos. Comecei a avançar para o local onde o bispo havia caído mas a batalha deslocou-se para o meu lado e não o consegui alcançar. A última coisa que vi foi Gwilym a debruçar-se sobre o corpo imóvel. Logo a seguir, também Gwilym foi atingido pelo mesmo machado.

- Gwilym! - gritei, correndo com todas as minhas forças.

Contudo, de repente, quando ainda não dera mais de três passos levantou-se na minha frente um enorme bruto de ombros largos e braços grossos como presuntos, que soltou um berro. Atacou e derrubou um dos defensores com um único golpe da sua enorme moca, colocou-se em cima do corpo e levantou a arma para desferir o golpe final. Os meus pés já corriam quando o homem ergueu a pesada moca acima da cabeça.

Lancei as mãos para a frente e atingi o bárbaro nos rins, atirando-o para a frente no preciso momento em que a moca descia. O golpe falhou e a arma embateu na terra ao lado do pé do gigante. Soltando um tremendo grito de raiva estrangulada, o inimigo rodopiou para me enfrentar e foi apenas nesse momento que compreendi que já vira aquele gigante musculoso a balouçar-se na proa do navio dos Lobos do Mar.

Este pensamento ocupou-me durante mais tempo do que aquele que a sensatez teria recomendado. Fiquei colado ao chão, a olhar, enquanto o bárbaro de tranças avançava para mim, de moca no ar, pronto para me esmagar o crânio e espalhar-me os miolos por cima da camisa ensanguentada. Mesmo sob aquela luz lúgubre, ainda consegui ver as veias salientes do seu pescoço e braços enquanto rodava a moca num círculo apertado por cima da cabeça, avançando para mim com passos lentos e assassinos.

- Aidan! - Alguém gritou o meu nome. Era Dugal, correndo em minha ajuda. - Corre, Aidan! Foge!

Porém, Dugal foi obrigado a enfrentar outro inimigo quando ainda corria para mim. Tentou libertar-se daquele ataque baixando o ombro e lançando o punho da espada contra o rosto do homem. O bárbaro deixou-se cair no chão e atacou Dugal com um golpe de pernas, fazendo-o tropeçar. Vi o meu amigo cair. Um segundo bárbaro saltou sobre as suas costas, lançando-se à cabeça de Dugal com um machado.

- Dugal! - gritei, tentando dirigir-me para ele. Contudo, o gigante com a moca desviou-se rapidamente e bloqueou-me o caminho. A luz iluminou a humidade viscosa na ponta da sua arma e vi a mancha vermelha no momento em que a moca rodopiava, preparando-se para descer sobre mim.

Ouvi um grito selvagem atrás de mim mas não consegui desviar os olhos dos assustadores movimentos da pesada arma. A moca desceu com uma velocidade capaz de imobilizar o coração... e nesse mesmo instante senti mãos a agarrarem-me o braço esquerdo e a puxarem-me para o lado. A moca bateu no ar ao lado da minha orelha e tive um relance de um rosto coberto de sujidade antes de me puxarem o capuz por cima da cabeça.

O gigante rugiu qualquer coisa e ouvi uma voz muito alta a berrar o meu lado. Tentei libertar-me do meu atacante mas tinha os braços enrodilhados na minha própria roupa. De súbito, arrancaram-me a capa e enrolaram-ma em volta da cabeça e ombros. Cambaleei para a frente, tentando correr... e bati com a cabeça em qualquer coisa dura.

Enquanto caía ainda vi um clarão de luz azul a arder-me nos olhos e Senti um estranho e violento zumbido nos ouvidos.

 

O chão oscilou por baixo de mim. O zumbido nas orelhas tinha dado lugar a um retinir surdo, semelhante o que pode ser provocado por um sino mal fundido. A cabeça pulsava-me com uma dor ferozmente hostil e não conseguia sentir nem as pernas, nem as mãos. O céu continuava negro e tudo permanecia tranquilo. Ouvi o murmúrio baixo de vozes sussurradas vindo de algures muito perto, mas soavam-me ao grasnar de patos e não lhes conseguia tirar qualquer espécie de sentido. O ar era abafado e quente, e a minha respiração era dolorosa.

Tentei levantar-me... e o céu explodiu em flamejantes fragmentos de luz cegante. Fui envolvido por uma vaga de náuseas e voltei a cair para trás, ofegando com o esforço.

Houve uma recordação qualquer que abriu caminho através da minha consciência entorpecida e apenas meia acordada, como se fosse uma pequena bolha a subir num grande tonel negro... bolha que rebentou no momento em que chegou à superfície. O que fora...? O quê...?

Ouvi um grito. O som fez-me recuperar as faculdades quando as recordações me caíram em cima com a violência de uma vaga oceânica a desfazer-se contra uma rocha. Recordei-me do ataque.

Fechei os olhos com força para resistir às dores, debati-me para me levantar e descobri que tinha os ombros e braços envoltos em tecidos pesados. Sacudi os braços, torci-me para um lado e para o outro, libertei-me daquela prisão - a da minha própria capa e manto - e afastei o capuz.

A luz do dia precipitou-se sobre os meus olhos. Coloquei uma das mãos em frente do rosto e descobri-me a olhar para o forte clarão vermelho do nascer do Sol. O grito voltou a ouvir-se e olhei para cima, para um céu claro, e vi uma gaivota branca deslizando serenamente lá no alto.

O mastro do navio oscilou e entrou no meu campo de visão.

O mastro do navio! Estendi a mão para a amurada e pus-me de pé, oscilando sobre as pernas inseguras.

O meu estômago contraiu-se e vomitei por cima da amurada. Quando terminei, passei a manga pelos lábios e levantei os olhos muito devagar desta vez com um medo indiscritível - para o ambiente novo que me rodeava: encontrava-me num navio de bárbaros e tinha Lobos do Mar como companheiros. Manobravam os remos e não me prestavam atenção. Avistei um grande bruto vestido com uma túnica sem mangas feita de pele de ovelha, com borzeguins e um cinto castanho, que se conservava de pé, de costas para mim, a um ou dois passos de distância. Parecia intensamente interessado no distante horizonte oriental onde o Sol acumulava forças para o novo dia e enchia o céu de luz.

Um dos remadores levantou os olhos, viu-me e disse qualquer coisa ao homem do cinto castanho. Este virou-se, olhou para a minha boca aberta e suja de vómito, exibiu um grande sorriso e voltou a prestar atenção ao que estivera a fazer. Rodei a cabeça para ver para onde o bárbaro olhava e avistei, ao longe, as colinas irregulares e acinzentadas de Armórica. Precisei de um momento para compreender que navegávamos para norte sobre as grandes ondas verde-acinzentadas.

O navio dos Lobos do Mar era comprido e estreito, forte e de quilha aguçada, com uma proa e uma popa muito elevadas. Tinha cerca de vinte remadores mas possuía bancos pequenos para mais alguns. Por trás do elegante mastro fora erguida uma plataforma sobrepujada por paus dobrados em arco, formando uma estrutura semelhante a uma espécie de tenda fechada, coberta com peles de bois. Havia um fio de fumo a emanar por baixo das peles, mas que acabava por desaparecer na fresca brisa do leste.

As dores confundiam-me a visão mas de qualquer modo não havia muito mais para ver para além da vastidão das águas com um tom cinzento-ardósia que se estendiam para a minha direita, e uma costa incaracterística à minha esquerda. Voltei a sentar-me e aspirei o ar para os pulmões, para clarificar a cabeça. Tentei pensar. Contudo, o meu cérebro recusava-se a responder às exigências que eu lhe fazia e tudo o que me vinha à mente era o facto, de agora, ser um cativo.

Cativo. A palavra ocupou-me durante um tempo descomedido. Saboreei cada uma das suas solitárias e desesperançadas sílabas, repetindo-os uma e outra vez até acabarem por perder o seu significado. Que me iria acontecer? O que faziam os Lobos do Mar aos seus cativos? Cheguei a uma muito sombria conclusão, a de que era provável que os matassem.

No que se referia aos meus captores, não passam de uma matilha suja, barulhenta e malcheirosa, manchada de lama e sangue... e cheirando a coisas muito piores. o cheiro daqueles homens chegava-me ao nariz e provocava-me náuseas sempre a que a brisa marinha soprava do lado deles.

Havia vinte e dois bárbaros no meu campo de visão. Sei-o porque os contei com cuidado. Estavam vestidos de peles e de couro, e usavam largos cintos de vários tipos, quase todos em couro, mas também vi alguns com discos de cobre e prata. A maioria usava facas ou adagas enfiadas nos cintos. Dois ou três entre eles envergavam siares, ou túnicas, feitas de um tecido muito apertado e tingido num tom amarelo-claro ou castanho. Pareciam imoderadamente orgulhosos dos seus tufos de cabelos desgrenhados, uma vez que todos exibiam compridas barbas e bigodes. Alguns usavam os cabelos entrançados enquanto outros os atavam nas costas com tiras de couro, mas também havia quem os tivesse soltos.

Mais de metade ostentava uma espécie qualquer de ornamento nos cabelos, tal como um bocado de fio de ouro, um pente esculpido ou um enfeite de prata representando qualquer coisa, uma folha, um peixe, uma ave ou mão humana.

Também reparei no surpreendente número de bárbaros que usavam grossos fios de ouro em volta dos espessos pescoços, e todos eles, do maior ao mais pequeno, exibiam dispendiosos ornamentos de vários tipos, tal como anéis de ouro e prata, braçadeiras, pulseiras, pregadores e correntes.

Eram todos grandes... O mais pequeno entre eles era maior do que eu e o maior era ainda mais volumoso do que o Dugal.

Dugal! Oh, o que lhe teria acontecido? Que acontecera aos meus amigos? Distraído com os meus próprios problemas, não dedicara um único pensamento aos que haviam ficado para trás. Tanto quanto soubesse, toda a população do povoado fora massacrada durante o ataque. Naquele momento podiam estar a jazer no seu próprio sangue enquanto o Sol se erguia sobre o dia da sua morte.

Kyrie eleison! rezei, com fervor, para dentro de mim. Senhor: tem piedade! Abre os teus braços de amor em volta daqueles que invocam o teu nome em momentos de necessidade. Cura as suas mágoas e protege-os de todos os males. Por favor, Senhor, sê piedoso para com o Teu povo. Perdoa o meu orgulho e egoísmo, Senhor. Salva os Teus servos... Senhor, tem piedade!

Alguém emitiu uma ordem grunhida que me fez interromper a oração e levantar a cabeça. Vi um Lobo do Mar de cabelos louros e barba amarela de pé na plataforma atrás do mastro. Soltou mais um grito e três ou quatro dos outros largaram apressadamente os remos e apressaram-se a ir ter com ele. O piloto deu uma ordem e dois outros agarraram em cabos e começaram a içar a vela. Pensei que aquilo queria dizer que iríamos avançar para o largo e para mais longe de Armórica. Içada a vela, os bárbaros arrumaram os remos e reuniram-se em volta da plataforma. Entretanto, o navio mantinha o seu curso e seguia paralelo à costa. Contudo, passado algum tempo, verifiquei que a minha primeira impressão me induzira em erro uma vez que estávamos, de facto, a dirigirmo-nos para terra ao longo de uma linha oblíqua, o que nos aproximava um pouco mais da costa a cada rolar das vagas.

Fiquei encolhido no meu lugar, junto à proa, observando aquela terra... e surgiu-me a ideia de que me poderia atirar ao mar. Era verdade que não tinha grande vontade de me afogar mas cheguei à conclusão de que, se escolhesse o local com cuidado, talvez me fosse possível nadar para a liberdade. Tinha a certeza de que podia saltar borda fora antes de alguém me conseguir deter.

O piloto bárbaro - o dos borzeguins e manto de pele de ovelha berrou uma estranha palavra que, para os meus ouvidos, não acostumados àquela língua, me soou a vik. A vela foi instantaneamente arreada e os remadores voltaram aos seus bancos e remos. Embora continuasse a observar atentamente a costa que se aproximava, não consegui ver sinais de povoações nem nada que merecesse qualquer espécie de atenção.

Contudo, mesmo assim, mantive-me vigilante e continuei a observá-la, à espera de uma oportunidade para me escapar.

Surgiu muito mais depressa do que pensara porque o navio se aproximou da costa e o mar se tornou rapidamente menos profundo. Não foi preciso esperar muito para avistar o fundo de calhaus por baixo das ondas, embora ainda nos encontrássemos longe da costa. Nunca mais teria uma oportunidade como aquela.

Respirei fundo, levantei-me rapidamente e atirei-me por cima da amurada antes de alguém dar por isso. Caí na água no meio de um grande chapinhar e arrependi-me imediatamente da minha decisão apressada. O mar estava frio e afundei-me como uma pedra, tocando no fundo com um joelho. Puxei as pernas para baixo de mim e propulsionei-me.

Infelizmente, calculei mal o salto e voltei à superfície junto ao navio, mesmo entre o casco e as pás dos remos.

Compreendendo o erro, voltei a respirar fundo e mergulhei. Não sei o mergulho não foi suficientemente profundo ou rápido, mas senti-me agarrado. Embora agitasse os braços e as pernas com grande esforço, não me consegui libertar. Voltei à superfície, ofegante, com a ponta da minha capa bem apertada nas mãos inexoráveis de um dos Lobos do Mar. O bárbaro limitara-se a debruçar-se sobre a amurada e a agarrar uma ponta das minhas roupas.

Puxou-me para fora da água e manteve-me suspenso no ar, para grande divertimento dos seus amigos bárbaros. Todos rugiram de gozo ao verem-me pendurado do flanco do navio como um peixe. As gargalhadas, tal como as vozes, era grosseiras e rudes, e magoavam-me os ouvidos.

o navio penetrou numa pequena enseada pouco funda e começou a virar quando se aproximou da costa. Quando isso aconteceu, vi o que o piloto já sabia que existia naquele local: um rio, não muito largo mas suficientemente fundo para deixar passar a quilha. Sem pausas ou hesitações, a embarcação deslizou na pequena enseada e penetrou na foz do rio. Os remadores puxaram os remos e utilizaram-nos como varas para empurrar o navio mais para montante. Oh, aqueles Lobos do Mar eram realmente astutos... e fortes. O homem que me segurava só me libertou quando o navio descansou numa larga praia de calhaus... e atirou-me para dentro de água como um peixe demasiado patético para ser conservado.

o Lobo do Mar que impedira a minha fuga saltou para a água comigo. Agarrou-me pela capa, endireitou-me dentro de água e virou-me para ele. Abanou a cabeça lentamente e falou-me num tom de aviso enquanto agitava um dedo molhado na frente da minha cara. Embora não compreendesse uma única palavra do que estava a dizer-me, percebi perfeitamente, pelos modos e gestos, que me avisava para não repetir a tentativa de fuga.

Acenei, mostrando-lhe que compreendia o que me queria dizer. O homem sorriu... e depois, ainda bem agarrado à minha capa, bateu-me com força no rosto com as costas da mão. A minha cabeça dorida deu um salto para um lado e a força do golpe derrubou-me e atirou-me para dentro de água. Voltou a segurar-me pela capa e a endireitar-me. A boca doía-me e saboreei o sangue na língua.

O bárbaro satisfeito voltou a erguer a mão... ainda com o seu amplo e abençoado sorriso. Fechei os olhos numa antecipação do golpe e preparei-me. Contudo, não cheguei a sentir a pancada e ouvi uma ordem grunhida com secura. O Lobo do Mar libertou-me imediatamente. Abri os olhos e vi outro bárbaro que patinhava na água. Avançava na nossa direcção e falava com o companheiro com um tom zangado. O primeiro encolheu os ombros, sacudiu o dedo na minha direcção, largou-me e afastou-me.

O segundo Lobo do Mar aproximou-se de mim, pegou-me num braço com violência e conduziu-me, meio puxado, meio arrastado, para a costa.

Aí chegados, virou-me para ele e deu-me uma bofetada com a mão aberta.

A bofetada chamou a atenção dos que se encontravam por perto mas o seu som fora mais violento do que a pancada. Embora tivesse provocado sorrisos e gargalhadas nos Lobos do Mar - alguns dos quais se dirigiram ao bárbaro, que lhes respondeu com firmeza - não pude deixar de pressentir que o golpe não reflectira uma ira verdadeira nem qualquer espécie de malícia.

É estranho, mas foi apenas nessa altura que percebi quem tinha perante mim: era o meu bárbaro, aquele que encontrara na praia, que fora levado para a povoação connosco e a quem eu dera o pão. Estávamos novamente frente-a-frente... mas em posições completamente invertidas.

Levei a mão ao lábio rachado e cuspi sangue para o chão. O bárbaro voltou a pegar-me pelo braço, arrastou-me para uma das maiores rochas na praia e atirou-me contra ela. Fez um gesto de descida com a mão e proferiu um único grunhido gutural que me fez saber que deveria sentar-me e ficar quieto, sem pensar em fugir.

Não precisava de se preocupar. De momento, sentia-me muito satisfeito por me poder sentar na rocha e secar as roupas ao sol. Tentaria escapar-me outra vez, disse para mim mesmo, mas não podia fazê-lo precipitadamente, à primeira oportunidade. Precisava de aguardar pelo momento mais apropriado. Consolei-me com esta ideia e também com o facto de ainda nos encontrarmos em Armórica, e resolvi aproveitar o que pudesse da péssima situação em que me encontrava.

Entretanto, os Lobos do Mar haviam começado a preparar uma refeição. Fizeram uma pequena fogueira e trouxeram alimentos do navio, que partilharam entre eles sem um único relance na minha direcção.

Um enorme bárbaro de tranças vermelhas - que reconheci como sendo o bruto da moca, da noite do ataque - trepou de volta ao navio, pegou num barril que levantou nos braços e preparou-se para o transportar para a praia. Contudo, foi detido pelo grito rápido de um dos outros, um homem louro, com uma longa barba amarela, entrançada, e uma corrente de ouro em volta do pescoço. Era o bárbaro que eu vira em cima da plataforma dando ordens aos outros.

O Cabelo Amarelo, conclui, devia ser o chefe do bando. Contudo, embora os homens lhe dessem atenção, não pareciam demasiados solícitos para com ele e nem sequer demasiado atenciosos. Mesmo assim, era óbvio que merecia parte do respeito dos outros ou, no mínimo, uma obediência rancorosa, uma vez que o gigante vermelho pousou o barril com um grunhido, saltou do barco e regressou à refeição.

Depois de comerem, os bárbaros adormeceram. Limitaram-se a rolar para um lado, fechar os olhos e adormecer como se fossem porcos estendidos ao sol.

Qualquer ideia a respeito de me escapulir enquanto dormiam desvaneceu-se no momento em que o meu bárbaro acordou de repente e se recordou de mim. Aproximou-se e amarrou-me as mãos e os tornozelos com um bocado de corda entrançada. Felizmente, deixou-me à sombra da rocha, num local de onde podia vigiar os meus captores. Todavia, foi uma ocupação que se demonstrou desanimadora porque os bárbaros se mantiveram inertes durante a maior parte do dia e só se levantaram quando as sombras já se estendiam sobre as pedras da praia.

Acordaram, espreguiçaram-se e aliviaram-se no rio. Alguns aproveitaram a oportunidade para se lavarem, pondo-se de pé sobre as pedras e atirando água para cima dos corpos... com roupas e tudo. O meu bárbaro aproximou-se, desamarrou-me, pôs-me de pé e arrastou-me para o navio.

Patinhei até à embarcação, fazendo uma pausa apenas para engolir algumas mãos-cheias de água. Por causa disso, fui chicoteado com uma corda - sem grande convicção, é verdade - e os abusos verbais incompreensíveis amontoaram-se sobre a minha pobre cabeça.

Foi um entretenimento para os Lobos do Mar, que soltaram algumas gargalhadas ao verem-me em dificuldades. Não que me importasse muito porque, mais uma vez, não senti uma genuína animosidade naquele exercício. Comecei a formar uma opinião: o meu bárbaro tentava executar a tarefa que os outros esperavam da sua parte, mas fazia-o sem grande vontade. Sendo monge, tinha alguma experiência com esse tipo de comportamento e reconhecia-o rapidamente quando o via. Trepámos por cima da amurada e uma vez a bordo fui empurrado para o meu lugar à proa, com um grunhido que considerei como significando que devia ficar ali. De qualquer modo, não me restringiram os movimentos.

Não comi nesse dia, nem no seguinte, e só me permitiram engolir a água que tinha conseguido arranjar durante a paragem. O facto não constituiu uma preocupação uma vez que estava habituado aos jejuns e considerei aquela privação como mais um trédinus que dediquei, com satisfação, ao Deus Salvador. Quando os outros comiam, eu rezava. Rezava pelo nosso pobre bispo - que Deus o recompense! - pelos meus irmãos, que não sabia se estavam feridos ou mortos, pela segurança do livro abençoado e também por mim, que fora arrastado para um tão cruel cativeiro. Rezei todos os dias, de um modo sincero e prolongado, mas em breve aprendi a esquecer as prostrações ou até a ajoelhar-me. Os meus captores não gostavam de me ver numa posição de devoção e pontapeavam-me com força quando me apanhavam a fazê-lo. Contudo, tal não constituía para mim uma grande provação porque Deus só vê o espírito contrito e a minha reverência era verdadeira. É verdade que a falta de comida não me preocupava, mas o facto de continuarmos a avançar firmemente para o norte enchia-me de uma ilimitada apreensão. Dia após dia, afastava-me cada vez mais da região de Nantes, o que fazia com que fossem diminuindo as esperanças - as poucas que me restavam -, de voltar a ver os meus irmãos. Foi por causa disso que as minhas orações se tornaram ainda mais ferventes e que resolvi fortalecer-me com infindáveis repetições de salmos.

Um dia, quando permanecia instalado no meu poleiro na proa, olhei para fora do navio e verifiquei que a familiar costa cinzenta já desaparecera completamente. Não voltei a vê-la durante dois dias. Continuei a observar o horizonte vazio em busca de qualquer sinal de terra... e quando isso aconteceu constatei que a paisagem se modificara. A terra era agora baixa, plana e incaracterística. Os Lobos do Mar também não navegaram perto da costa, como tinham feito anteriormente. Para além disso, deixaram de procurar viks para descansarem e arranjarem água, e passaram a manter-se em guarda tanto de noite como de dia.

Um dos resultados desta mudança foi o facto de me terem dado alguma comida, igual à deles mas em muito menor quantidade. Era um alimento grosseiro, uma carne dura e sem sabor, sem tempero e mal seca.

Mesmo assim, satisfazia a sua humilde finalidade: manter o cativo vivo até que este se reconciliasse com o seu eventual destino, que tanto podia ser a morte como qualquer coisa pior.

Mantive-me no meu lugar do costume, uma vezes de pé e outras sentado, olhando para aquela estranha terra sem nome, e rezei com fervor para que a Mão Rápida e Segura de Deus descesse e me arrancasse a uma tão pesada provação. Pois bem, tal não aconteceu e o navio de quilha aguçada continuou a voar rapidamente sobre os mares. Navegámos Para norte, sempre mais para norte. Só vimos um navio, uma única vez, e fugimos dele.

Ao avistar o navio, o Borzeguins Castanhos chamou o Cabelos-Amarelos, que se juntou a ele junto ao mastro. Permaneceram os dois ombro com ombro por instantes, num atento escrutínio do navio estrangeiro, após o que o Cabelos-Amarelos começou a gritar ordens que fizeram com que os indolentes tripulantes se precipitassem para os remos. "Todos eles remaram com um vigor nunca visto mesmo apesar da vela continuar cheia e do vento ser bom. Em breve se tornou claro que nos distanciávamos do navio desconhecido. Passado algum tempo, o inimigo desistiu da perseguição, facto que os Lobos do Mar celebraram ruidosamente.

A alegria por terem escapado a um potencial rival transformou-lhes os espíritos. Senti a sua excitação e sorri, mesmo contra vontade. Pensei que eram muito parecidos com crianças, pelo menos no que se referia à sôfrega satisfação dos seus apetites. Tal como acontecia com as crianças, só o presente os preocupava. Haviam escapado a uma confrontação não desejada e a sua alegria não conhecia limites. Saltavam dos bancos para a amurada, agitavam as lanças no ar e batiam nos escudos, a transbordar de fanfarronice agora que o suposto inimigo lhes virara as costas.

No fundo, foi uma lição muito instrutiva, que não desperdicei.

Depois disso, já não me senti tão ansioso por regressar a Armórica.

Os bárbaros, segundo me pareceu, encaminhavam-se para um porto seguro.

Virei os olhos para o norte e investiguei aquelas águas frias e negras em busca de um qualquer destino provável. O tempo voltou a piorar e o vento soprou com força, fazendo crescer as vagas. O mar estava coberto por nuvens baixas e por um nevoeiro pesado que obscurecia a costa. No entanto, e apesar disso, não desembarcámos. Aparentemente, os Lobos do Mar gostavam das águas agitadas.

O Sol regressou ao fim do terceiro dia e pude ver que a terra voltara a modificar-se. Agora era formada por profundas baías rodeadas por margens de rochas, com florestas verdes-escuras a crescer nas vertentes para lá das margens. As colinas não eram altas, mas os seus cumes estavam frequentemente envolvidos em espessas camadas de nuvens, e nos nevoeiros que eram a pior praga daqueles climas inóspitos. Não vi povoados de qualquer dimensão e até as habitações isoladas eram muito raras.

Mesmo assim, os Lobos do Mar receavam passar por ali. Sei-o porque depois de penetrarmos naqueles mares negros passámos a navegar apenas de noite, uma técnica que os bárbaros dominavam bem.

Nunca antes me ocorrera a possibilidade de também eles poderem ter inimigos. Porém, ao ver o modo como se tornavam cautelosos e temerosos à medida que se aproximavam de casa, fiquei a saber que também eles - embora vivessem à custa dos que consideravam mais fracos -, eram presa de outros mais fortes, e que o receio que tinham deles era semelhante ao próprio medo que inspiravam. Na verdade, eram mesmo como lobos: selvagens e brutais, com inimigos prontos para se erguerem contra eles para onde quer que fossem.

Mantive-me atento e tentei aprender tudo o que pudesse sobre os seus modos selvagens. Quanto mais aprendia maior era a piedade que sentia por aqueles homens, pois estavam para além da redenção e não tinham nem sequer a menor esperança de salvação. Que Deus me ajude, mas comecei a sentir-me superior por causa dos meus conhecimentos e civilização. A arrogância tomou conta de mim, atingiu-me com força e o meu orgulho inchou. Imaginei que, se me dessem uma oportunidade, poderia levar a fim um grande trabalho entre eles, transmitindo-lhes as Boas- Novas de Jesus. Já ouvira falar em casos semelhantes.

Na verdade, o santo Pátraic não realizara o mesmo feito entre os seus antigos captores? Era, decidi, o que eu tentaria fazer. Tornar-me-ia num Pátraic para aqueles Lobos do Mar e alcançaria a glória eterna.

 

Navegávamos velozmente para uma terra cinzenta e verde, com baías de águas frias e elevações de rochas negras eriçadas de grandes bosques de pinheiros e bétulas, e salpicada por pequenos campos abertos nas florestas sempre presentes por todo o lado, campos esses onde os solos, finos e pobres, eram cultivados com muitos cuidados e dificuldades. As povoações eram pequenas, pouco mais do que meros amontoados de cabanas de madeira dispersos ao longo da costa, à beira das florestas ou em ilhas arborizadas. Chegámos finalmente ao nosso destino vários dias depois de termos entrado nas águas do norte e de termos navegado furtivamente junto a numerosas ilhas e baías: era uma povoação bem aconchegada no fundo de uma larga enseada, protegida por uma península larga e elevada. Estava rodeada por uma paliçada de madeira e quase não se distinguia da floresta em que fora aberta tão laboriosamente.

Havia ali outros navios e barcos mais pequenos, tanto na baía como puxados para cima das duras pedras da margem. Quando o nosso navio apareceu, toda a população se precipitou para a beira da água e começou a soltar altos gritos de boas-vindas. A chegada foi ansiosamente saudada por todos, incluindo os cães, que corriam ao longo da margem latindo alegremente ante a perspectiva de voltarem a ver os seus donos. Toda a gente gritava, chorava e falava ao mesmo tempo, numas boas-vindas que se transformaram numa alegre barulheira.

Ansiosos por se reunirem novamente aos seus, foram muitos os Lobos do Mar que saltaram da amurada para a água e nadaram para terra, onde foram recebidos com grandes aclamações e muita satisfação. As mulheres abraçaram os maridos, as crianças correram para os pais, os velhos caminharam nas pedras gritando e gesticulando, os rapazes brandiram paus afiados e os homens jovens agitaram lanças. Era óbvio que aquele regresso.

Permaneci no meu lugar à proa, assistindo a toda aquela agitação.

Era como qualquer outra recepção, com as famílias a darem as boas-vindas a maridos, pais e filhos que haviam estado longe, no mar. Todavia, aqueles homens tinham estado longe, sim, mas em missões de pilhagem e saque, e em vez de lançarem as suas redes ao mar haviam deixado atrás de si uma esteira de terror e morte.

o Cabelos-Amarelos permitiu que o navio tocasse em terra e permaneceu atento enquanto o mesmo era amarrado a dois fortes paus cravados na margem. Depois disso, quando ficou satisfeito com a operação, ordenou aos seus homens que fossem buscar o resultado dos saques.

A tenda instalada na plataforma foi rapidamente liberta das peles de boi, pondo à vista cinco arcas de madeira e um verdadeiro monte de armas, que incluía espadas, lanças, escudos e outras coisas do mesmo género.

o Gigante-Vermelho baixou-se, tomou uma das arcas nos seus grandes braços, levantou-a acima da cabeça, soltou um poderoso grunhido e atirou-a para a praia, lá em baixo. A arca partiu-se, rebentou... e o amarelo do ouro ficou a brilhar ao sol. Enquanto dois outros Lobos do Mar se debatiam com uma Segunda arca, o gigante agarrou na terceira e levou-a para terra, colocando-o ao lado das outras. A quarta arca embateu nas restantes e abriu-se, espalhando os seus tesouros.

As pessoas reuniram-se em volta do tesouro e maravilharam-se com as riquezas ali amontoadas. Contudo, ninguém, nem sequer os que as haviam descarregado, ousou tocar-lhes com a ponta de um dedo. Ficaram todos à espera até o Cabelos-Amarelos desembarcar para se deter junto das arcas.

Aquela era, ou pelo menos assim me pareceu, a primeira vez que os bárbaros continham os seus apetites durante tanto tempo. Todos se amontoaram em volta com os rostos a irradiarem uma ansiosa antecipação, com os olhos a brilharem com a luz do tesouro e murmurando uns para os outros por trás das mãos.

O chefe estendeu uma pele de boi na praia, mandou abrir duas das três arcas restantes e despejar o seu conteúdo sobre a pele. Reparei que a última arca continuou fechada e que foi posta de parte, mas o conteúdo das que haviam sido rebentadas foi escrupulosamente reunido e acrescentado à pilha de peças de ouro, de prata e de moedas. E não era uma pequena pilha! Nunca vira tantas riquezas num só lugar e tratava-se na verdade de um saque capaz de rivalizar com o de Tuatha de Danaan.

A seguir, ajoelhando-se reverentemente na frente das suas riquezas, o Cabelos-Amarelos começou a mexer naquela massa, tal como creio que deveria ter feito muitas vezes na privacidade da sua tenda a bordo do navio. Para grande delícia dos espectadores, que arrulharam como pombos espantados, fez aparecer uma grande taça de ouro. Colocou a dispendiosa taça a seu lado e virou-se novamente para o monte. Depois de alguns instantes de buscas, recuperou uma bela gamela que colocou ao lado da taça.

A seguir puxou por uma corrente de ouro com elos tão espessos como o polegar de um homem. O chefe bárbaro levantou-se, segurou na corrente entre as mãos esticadas e virou-se para um lado e para o outro, falando tranquilamente. Depois, repentinamente e com um grito selvagem, atirou a corrente ao Gigante-Vermelho. O rosto do homem abriu-se num grande sorriso de dentes partidos e o bárbaro rugiu de prazer, sacudindo-se como um urso.

Concluí que o Gigante-Vermelho era o campeão do chefe, facto que estava naquele momento a ser reconhecido perante todos os outros, tendo portanto o direito ao melhor prémio. Um a um, também os restantes foram recompensados: um pregador de prata para um, um par de pulseiras para outro, taças e gamelas para alguns, correntes de ouro e braçadeiras para outros. Toda a gente recebeu qualquer coisa, suponho que de acordo com o valor dos serviços prestados. O facto de receberem tão valiosas recompensas pelas suas actividades assassinas desgostou-me.

Jesus, rezei, livra-me deste antro de iniquidade!

Infelizmente, os meus sofrimentos só agora começavam.

Foi grande o desgosto quando reconheci, no meio do montão de ouro saqueado, a bela águia do bordão do bispo. A orgulhosa ave tinha sido arrancada ao poleiro que fora dela por direito e abria agora as suas asas para grande gozo dos seus captores. Contemplei aquele símbolo sagrado e o meu coração afundou-se como uma pedra. "Pobre Cadoc," murmurei, "não merecias uma tal morte." Pelo menos, felizmente, o precioso livro não se encontrava entre o saque, o que considerei como sendo um bom sinal.

Quando a última peça de ouro foi entregue, o Cabelos-Amarelos virou-se para as moedas e pratas. Os objectos de prata de maior tamanho fora rapidamente feitos em pedaços com machados - sem ter em conta nem a sua beleza, nem a qualidade do trabalho do artífice - e esses pedaços foram acrescentados ao monte. Estremeci ao ver uma bonita travessa e vários pratos a desfazerem-se sob os golpes, isto para não mencionar as numerosas pregadeiras, alfinetes, anéis e braçadeiras.

Sempre ajoelhado para executar o seu trabalho, o chefe separou as moedas e os bocados de prata em montes, de acordo com o tamanho e peso, e dividiu-os meticulosamente em partes iguais, uma para cada Lobo do Mar. Feito isto, os bárbaros fizeram um sorteio e escolheram a parte que a sorte lhes designara. A última pilha calhou ao chefe, que a apanhou rapidamente, despejando as moedas dentro da sua taça.

Foi deste modo que se fez a distribuição dos tesouros. Muitos, reparei, foram imediatamente transferidos para outras mãos. Na verdade, foram surpreendentemente poucos os tesouros que continuaram a ser propriedade exclusiva dos que os haviam recebido. Mal um Lobo do Mar se via com aquelas riquezas nas mãos e logo a sua esposa as reclamava. Retirava os objectos preciosos das mãos do marido e guardava o ouro - obtido de uma maneira tão iníqua - atando-o num fardo muito apertado, num canto do manto.

Depois de distribuir todos os tesouros, o Cabelos-Amarelos passou a receber as adulações do seu povo. Aclamaram-no ruidosamente, dando- lhe palmadas nas costas e nos ombros enquanto algumas mulheres lhe puxavam pelas barbas e cabelos num gesto afectuoso. Foi no meio de tudo isto que o meu bárbaro se aproximou do chefe. Trocaram algumas palavras rápidas e senti o coração a apertar-se-me no peito quando os vi virarem-se e olharem-me com atenção.

O Cabelos Amarelos encolheu os ombros de uma maneira desinteressada e enfrentou a multidão. Disse qualquer coisa e apontou para mim, o que provocou uma certa sensação entre as pessoas, algumas das quais se riram em voz alta enquanto outras murmuravam de uma maneira agoirenta. Houve algumas que se aproximaram do navio para me verem melhor, observando-me com uma curiosidade especulativa.

Uma delas, um homem de espessas sobrancelhas, levantou a voz para o chefe e obteve uma resposta benigna. O Cabelos-Amarelos olhou para o meu bárbaro, que acenou, com uma boca firme. O homem das sobrancelhas espessas voltou a dizer qualquer coisa, apontou para mim e levantou dois dedos. Compreendi, com algum desânimo, que estavam a regatear por minha causa.

O chefe falou e o meu bárbaro acenou uma concordância. O outro homem olhou para mim, abanou a cabeça e afastou-se. O Cabelos-Amarelos estendeu a mão. O meu bárbaro meteu os dedos no cinto e fez aparecer três moedas de ouro que largou na palma da mão do chefe.

O Cabelos-Amarelos mandou que a última arca de tesouro fosse levada de volta para o navio e a seguir sentou-se, de pernas cruzadas, sobre a pele de boi, segurando na taça com uma das mãos e na gamela de ouro com a outra. A pele de boi foi imediatamente levantada e o chefe bárbaro

foi transportado para a fortaleza sobre os ombros do seu povo, que o seguiu no meio de muitas e barulhentas aclamações.

O meu bárbaro chamou-me, fazendo-me sinal para que desembarcasse do navio, de onde estivera a observar tudo o que se passava na margem. Trepei por cima da amurada e juntei-me ao meu novo amo, que pousou a mão no peito e disse.

- Yuu... nar. - Continuou a bater no peito e repetiu a palavra várias vezes, acenando para mim com uma expressão de intensa expectativa.

- Yu... nar - repliquei, pronunciando o estranho o melhor que podia.

- Gunnar - repetiu. Sorriu, satisfeito com o meu esforço. De seguida, bateu no meu próprio peito com uma expressão esperançada.

- Aidan - disse-lhe. - Chamo-me Aidan.

- Ed-dan... - repetiu, pensativo.

- Aidan - corrigi-o, falando devagar e acenando. - Aeedan.

- Aeddan - replicou.

Preparava-me para voltar a corrigi-lo quando, de súbito, levantou as mãos, agarrou-me pelo pescoço e começou a apertar com força. Esforcei-me por lhe afastar as mãos mas apertou-me ainda com mais força e comecei a recear que me fosse estrangular até à morte. Os meus olhos esbugalharam-se e não conseguia respirar. Gunnar obrigou-me a pôr-me de joelhos.

Comecei a ver manchas negras nos olhos e grasnei:

- Piedade!

O bárbaro largou-me. Ofeguei, aspirando o ar para os pulmões. De pé por cima de mim, Gunnar pegou numa longa tira de couro semelhante às utilizadas para prender os cães e tratou de a amarrar em volta do meu pescoço. Deu-lhe duas ou três voltas e atou-a com força. Depois, com um grunhido, estendeu-me a mão direita. Pensei que queria que me levantasse e aceitei a mão. Todavia, o bárbaro sacudiu-a e colocou a mão junto do meu rosto.

Como não voltei a mexer-me, pegou-me na cabeça com a mão livre e segurou-a enquanto comprimia as costas da mão direita contra a minha testa. Entendi esse gesto como querendo dizer que se considerava meu amo, que eu era o seu escravo e que lhe devia a vida, que detinha nas suas mãos.

Virou-se e caminhou para a fortaleza. Contudo, deteve-se depois de alguns passos, para verificar se eu o seguia. Quando viu que continuava ajoelhado, pronunciou uma seca palavra de comando que tomei como uma ordem para o seguir. Levantei-me e avancei para o povoado atrás do meu amo.

Aproximámo-nos dos grandes portões comigo a tremer de medo e apreensão. Fiz o sinal da cruz e invoquei a protecção divina, dizendo:

- Protege-me com o Teu poderoso escudo, Senhor. Permite que Miguel, Chefe-das-Hostes, avance à minha frente neste lugar terrível. Tens a minha alma nas tuas mãos, Poderoso Rei, e as tuas asas a envolverem-me neste mar de maldade. Assim seja!

Feita a invocação, voltei a repetir o sinal da cruz em cima do coração e entrei na fortaleza, passando pelos enormes portões e penetrando no reino infernal.

Nunca tinha visto a habitação de um bárbaro mas já ouvira alguns homens a falar do povoado que haviam construído em Dubh Llyn. Para além da ausência de um rio, o lugar até podia ser o mesmo. As habitações eram grandes cabanas achatadas de troncos e barro, com íngremes telhados de colmo. Aquela povoação tinha sete dessas cabanas, com cada uma delas a servir para quinze ou vinte pessoas.

Havia uma grande estrutura separada das outras, que ocupava um lugar central no interior da paliçada de troncos. Na sua frente viam-se dois delgados postes de bétula com os topos ornamentados com grinaldas e ramos cortados de fresco, atados com trapos brancos e amarelos.

Contudo, mesmo que os postes ali não estivessem, teria percebido que se tratava do salão do Cabelos-Amarelos.

Gunnar e eu passámos pelas habitações, atravessámos um vasto pátio, seguimos a multidão por entre os postes de bétulas e entrámos no grande salão. A sala era sombria e muito parecida com uma floresta, uma vez que tinha troncos de árvores a erguerem-se a todo o seu comprimento, cujos ramos se encontravam obscurecidos na enfumaçada escuridão do telhado.

Os troncos que sustentavam o telhado estavam pintados de vermelho, branco e amarelo, mas um deles, o que se encontrava mais perto do canto ocidental onde o monarca tinha a sua câmara - pouco mais do que uma baia igual às que usamos para os cavalos - fora pintado de azul.

As tochas fuliginosas ardiam nos suportes de ferro, projectando uma luz fraca e suja sobre tudo o que se encontrava no interior. A sala era flanqueada a todo o seu comprimento por recantos ou compartimentos próprios para dormir, alguns dos quais protegidos por biombos ou peles de modo a terem alguma privacidade. Os barrotes por cima das cabeças exibiam escudos redondos, em madeira, suspensos por cima de amontoados de lanças. Em frente à lareira encontravam-se duas longas mesas apoiadas em cavaletes com bancos baixos que corriam a todo o seu comprimento, de ambos os lados. O pavimento fora coberto com juncos e palha e havia cães a dormitarem, preguiçosos, debaixo dos nossos pés, ou a farejarem as pernas dos recém-chegados.

Todos os lordes são iguais no que toca à ostentação das suas habitações, mas os bárbaros mostravam uma tendência especial para um excesso de exibicionismo. A cadeira do Cabelos Amarelos era um enorme trono de carvalho, com anéis e saliências em ferro. A lareira era larga e profunda, forrada a pedras, com grandes suportes de ferro capazes de sustentar os gigantescos troncos que aí ardiam dia e noite, para além de estar equipada com um vasto caldeirão suspenso de um tripé por uma dupla corrente, e cujo conteúdo borbulhava e fervilhava.

Lorde Cabelos-Amarelos encaminhou-se directamente para o gorgolejante caldeirão, pegou num comprido garfo com dois dentes e enfiou-o no guisado, fazendo aparecer um fumegante bocado de carne que levou à boca e do qual arrancou um bocado. Mastigou-o com vontade, engoliu-o e virou-se para os que o estavam a observar:

- Öl! - berrou. - Öl! Fort!

Foram vários os rapazes que desapareceram a correr para regressarem momentos depois com espumosas tigelas de cerveja preta, a bebida favorita de todos os Dinamarqueses. Cabelos-Amarelos bebeu, despejou a tigela na boca e engoliu o espesso líquido com grandes golos. Quando terminou, limpou o bigode amarelo à manga, passou a tigela ao seu campeão, cambaleou para o trono, virou-se para a multidão e sentou-se de um modo excessivamente cerimonial.

Creio que aquele era um sinal há muito aguardado porque mal o rabo do chefe tocou na madeira de carvalho polida e logo todo o salão explodiu numa agitação frenética. Instantaneamente, os homens empurraram-se uns aos outros para conseguirem lugares à mesa enquanto as mulheres corriam para um lado e para o outro e toda a gente gritava. Que barulheira!

Reinava o caos e a minha cabeça começou a andar à roda.

Os jarros e tigelas com cerveja começaram a aparecer, levados para a mesa pelos rapazes de serviço que corriam por todo o salão. Os Lobos do

Mar emborcavam a espumosa beberagem, acotovelavam-se uns aos outros de impaciência, batiam na mesa com as mãos e pediam mais. As taças, jarros e tigelas passavam de mão em mão e circulavam por todo o salão.

Surgiram vários homens carregados com um grande barril que pousaram num suporte de ferro ao lado do trono do rei. Trataram de mergulhar todas as tigelas no barril, de onde saíam cheias, a verterem espuma. para serem imediatamente atiradas para o remoinho. Ao ver aqueles homens beber com tanto zelo tornei-me consciente de que me encontrava nas ganas da minha própria sede, mas ninguém me deu nada para beber, nem pensei que fosse provável que o fizessem.

Os Lobos do Mar acomodaram-se para beber e logo surgiram as mulheres e raparigas, carregadas com cestos de pão escuro. A visão de todos aqueles belos pães arredondados fez-me crescer água na boca e provocou uma dor aguda no meu pobre estômago. Vi cesto após cesto a ser colocado em cima da mesa, e vi os homens a pegarem em pães, aos dois ou três de cada vez, a quebrá-los e a enfiarem-nos na boca.

Entretanto, eram vários os homens que se atarefavam em volta da fogueira, onde instalaram dois grandes suportes de ferro, um de cada lado da lareira. Cumprida essa tarefa, e depois das chamas bem atiçadas, os homens desapareceram mas voltaram logo a seguir carregados com a carcaça de uma vaca inteira enfiada num longo espeto de ferro, que suspenderam nos suportes de modo a poder girar lentamente sobre as chamas. Muito em breve, o estralejar das chamas passou a ser acompanhado pelo chiar e estalar da gordura a arder enquanto o grande salão se enchia com o saboroso aroma da carne assada.

Pensei que ia desmaiar.

Para me distrair do meu dilema, resolvi olhar para outro lado e avistei, sentado num banco, num canto escuro, um homem muito velho, de costas dobradas. Para além disso, o homem fixava-me com muita atenção. Quando percebeu que eu notara o seu olhar, levantou-se e arrastou-se na minha direcção, mas na verdade parecia-se mais com um urso do que com um homem porque estava vestido com farrapos de trapos sujos e. porque a sua cabeça oscilava para a frente e para trás quando andava

Tinha as feições cobertas de fuligem e porcaria, e as poucas madeixas de cabelo que ainda lhe restavam estavam empastada de esterco e misturadas com palhas. De ombros redondos e coxo, abandonou o seu lugar no canto para parar na minha frente, fitando-me com olhos tão grandes e lustrosos que parti do princípio de que se tratava de um louco.

Aquela criatura miserável ficou a olhar para mim durante um bocado.

A seguir chegou-se para a frente, colocou o rosto junto do meu, levantou uma das mãos cobertas de sujidade e esfregou-a no cimo da minha cabeça, após o que começou a rir-se em voz alta, expelindo um hálito tão desagradável que me vi obrigado a ofegar e a agitar o ar com a mão. Voltou a rir-se e eu inclinei-me para trás, sobre os calcanhares, e quase caí.

O velho deu uma última palmada na minha cabeça rapada, abriu a num sorriso desdentado e perguntou:

- Como te chamas, irlandês?

Surpreendido, fiquei a olhá-lo de boca aberta.

- Chamo-me... - fiz uma pausa, tentando lembrar-me do meu nome - Aidan! O meu nome é Aidan!

A estranha criatura contorceu-se toda, trocista, e apontou para Gunnar, sentado à mesa a um passo de distância.

- Apanhou-te, não foi, rapaz?

- É verdade - respondi.

O estranho riu-se e voltou a sacudir-se de alto a baixo como se a revelação lhe desse um prazer muito singular.

- Verdade, verdade... - retorquiu. Sempre a rir-se, começou a cantar: "Os Lobos do Mar partem a-viking e trazem consigo carne e ossos irlandeses. Gostam mais de ouro e prata, mas estes Lobos até são capazes de devorar pedras!"

Olhei-o, espantado, perguntando a mim mesmo como teria aquela criatura vil aprendido a falar latim. Na verdade, tratava-se de um latim preguiçoso e muito desgastado, mas não deixava de ser a língua dos clérigos.

- Quem és tu, homem? - perguntei-lhe.

- Sou o Scop - replicou - e sou cada vez mais scop.

- Scop? - repeti, porque se tratava de um nome invulgar para o mais invulgar dos homens.

- Quer dizer "adivinho," rapaz. Os homens do norte dizem Skald, mas tu talvez dissesses "bardo." - Colocou um dedo muito sujo ao lado do meu nariz e assumiu uma expressão sabedora: - Sou a Voz da Verdade para Ragnar Cabelos Amarelos - acrescentou, indicando o homem no trono com um gesto reverente da mão.

- Chama-se Cabelos-Amarelos? De verdade? - admirei-me, em voz alta.

- Chama-se, sim e tem cuidado com ele. É o senhor dos Geats e dos Oscingas. - Levantou os dois punhos e uniu-os com força. Manda em duas tribos, sabes? São muitas as facas em dívida de sangue para com ele e é um grande distribuidor de ouro... - Scop fechou um dos olhos e observou-me com atenção. - És um escravo ou um refém, irlandês?

- Creio que sou um escravo - respondi, narrando-lhe a negociata na praia.

O velho acenou e colocou um dedo coberto de fuligem na minha coleira de couro.

- Sim, és um escravo... e ainda bem. É frequente que os escravos sejam melhor tratados do que os reféns. A tua sorte podia ter sido pior, irlandês... Podia ter sido muito pior! Há sítios onde os homens de cabeças rapadas como tu ainda rendem um bom preço.

Nesse momento, Ragnar avistou o velho e chamou-o. Scop arrastou-se, rindo-se e contorcendo-se enquanto caminhava. Fiquei a olhá-lo, perguntando a mim mesmo que espécie de homem era aquele que acabara de conhecer. Contudo, tive muito pouco tempo para pensar no assunto porque Gunnar me chamou.

- Aeddan! - gritou, torcendo o pescoço.

Aproximei-me e o bárbaro enfiou-me o jarro vazio nas mãos.

- Öl! - ordenou-me, apontando o barril.

Peguei na taça e encaminhei-me para o barril onde os rapazes continuavam a encher os recipientes. Vi como mergulhavam as tigelas e jarros na cerveja e fiz o mesmo. Regressei ao meu lugar e coloquei o jarro nas mãos do meu amo, que acenou com um sorriso de auto-satisfação ao ver que o seu negócio produzira bons resultados em tão pouco tempo.

Voltei a colocar-me por trás dele e continuei a observar toda aquela agitação. A visão de tanta comida e bebida, devoradas com tanto vigor, quase me fazia desfalecer de fome. Não conseguia tirar os olhos dos cestos onde o pão se amontoava, nem das carnes brilhantes que rodavam lentamente na lareira. Olhei com ansiedade para as taças e tigelas cobertas de espuma a serem continuamente levantadas e baixadas a todo o comprimento da mesa, e escutei a cacofonia de gritos, de gargalhadas ásperas e de mãos a baterem na mesa. O divertimento enchia todo o salão enquanto eu permanecia ali de pé, esquecido, contemplando a perspectiva de um dia muito comprido e seco, e de uma noite de fome a estender-se à minha frente.

Quando a carne ficou assada, a carcaça foi esquartejada e os bocados levados para a mesa, onde os bárbaros se atiraram a ela como os lobos que eram. Vi-os a entusiasmarem-se com o festim, dobrados sobre a refeição, com as mãos a agarrarem e os dedos a rasgarem, de cabeças baixas, dentes enterrados nas suculentas carnes, sucos quentes e saborosos a escorrerem-lhe pelas mãos e queixos. Comiam e tornavam a comer, enchendo-se até não poderem mais e talvez mesmo depois de já não poderem mais, até que, finalmente saciados, caíam sobre a mesa para dormirem. Tenho a certeza que nenhuma matilha de lobos ressonou mais alto ou dormiu mais profundamente.

Quando acordaram, atiraram-se novamente à comida e à bebida. Apaziguadas as primeiras fomes, lançaram-se num consumo menos frenético.

Agora, o que desejavam era um divertimento que lhes aumentasse ainda mais o prazer, pelo que começaram a exigir ao seu skald que cantasse para eles.

Ragnar Cabelos-Amarelos levantou-se do seu trono e gritou:

- Scop! Siung Scop!

A Voz da Verdade surgiu a arrastar-se do seu canto silencioso, com a cabeça a abanar lentamente de um lado para o outro. Coxeou para o trono e baixou-se para abraçar as pernas do seu amo. Ragnar sacudiu-o, empurrando-o para longe, mas não houve violência nos golpes. Pondo-se de pé, o velho Scop endireitou-se e atirou os farrapos para trás das costas... como uma ave coberta de sujidade a preparar-se para o voo.

O salão mergulhou no silêncio e a antecipação cresceu. Os convivas lamberam os dedos engordurados e inclinaram-se nos bancos, na expectativa, enquanto o homem esfarrapado, com a garganta a tremelicar de esforço, abriu a boca e começou a cantar.

 

Parece que Nosso Senhor sempre teve o maior prazer em esconder as suas dádivas mais preciosas nos lugares mais improváveis. No fim de contas, os mais raros dos tesouros são frequentemente guardados em vasos de barro. Embora já tenha apreciado muitas canções, entoadas pelas melhores vozes do mundo, nunca ouvi nada que se comparasse com os sons saídos da garganta do velho Scop. Não eram belos, nem nada que se parecesse... Eram verdadeiros... mas na sua verdade havia uma beleza que ultrapassava em muito todos os ornamentos de ouro que lorde Cabelos- Amarelos distribuíra pelos seus.

Diz-se que o tempo pára quando se ouve o canto de alguém que tenha sido abençoado pelo Dador das Palavras. Pelo menos, era o que pensavam os antigos Celtas. Agora, também acredito que seja verdade. Enquanto Scop cantou, manteve todos os presentes no salão submetidos ao som da sua voz, acorrentando-os como escravos com as suas entoações subtis e astuciosas. O tempo deteve-se e o seu voo interminável ficou em suspenso, incapaz de se mover.

Não consegui compreender as palavras, proferidas na áspera e pouco agradável língua das gentes do norte, mas no entanto apercebi-me do sentido mais amplo das suas estrofes tão bem como me apercebo da minha própria mente, uma vez que as mudanças na expressão tanto da voz como do rosto era milagres de transformação. Entoou feitos de valor, fez com que o sangue fervesse nas minhas veias e tivesse vontade de sentir o frio do resistente aço contra a minha anca e coxa. Quando a canção se tornou alegre, o seu rosto começou a irradiar um brilho desconhecido de todos excepto daqueles que já contemplaram o próprio doce Jesus em visões beatíficas. Quando se tornou lamentoso, a tristeza esmagou-o com um peso tal que receei vê-lo perecer. As lágrimas corriam livremente pelos rostos levantados dos seus ouvintes - que Cristo tenha piedade de mim -, e também eu chorei.

A canção terminou e quando consegui secar os olhos já Scop desaparecera. Recuperei as minhas faculdades, pestanejei e olhei à minha volta como alguém que acabasse de despertar de um sono profundo. Devagar, e a pouco e pouco, o salão foi recuperando a sua ruidosa agitação e os convivas regressaram à mutonia, libertando-se das garras do encantamento que o bardo lançara sobre eles.

A carne, o pão e a cerveja voltaram a aparecer e foram colocadas na frente dos participantes no festim, num abastecimento perpétuo. Começaram também a aparecer outros pratos diferentes, bem como alguns petiscos requintados: maçãs cozidas em mel, peixe estufado com cebolas, gordas salsichas cozidas, porco com lentilhas e ameixas secas a nadar em cerveja.

De vez em quando havia alguém que se levantava da mesa e cambaleava até um dos compartimentos de dormir, ou então fazia-o para ir vomitar ou para se aliviar, e o lugar era imediatamente ocupado por outra pessoa qualquer.

Ocasionalmente, aquelas festividades também foram marcadas por querelas quando os temperamentos dos homens, estimulados e incitados pela bebida, os dominavam. Todas essas discussões acabaram em pancadaria.

e dois deles terminaram com os contendores caídos e inconscientes, para louca delícia dos espectadores que aplaudiam efusivamente sempre que alguém começava a sangrar.

Foi desse modo que a ruidosa festa prosseguiu. Era como uma briga de bêbados num salão sufocante que cheirava a fumo, a sangue a mijo e a vomitado. Já não saberia dizer se era noite ou dia. Estava cansado.

esfomeado, sequioso... e para mim já nada interessava. Ansiava por me arrastar para um dos muitos catres ao longo das paredes. Porém, cada vez que tentava escapulir-me, Gunnar acordava e ordenava que lhe fosse buscar mais cerveja.

Ao abrir caminho para o barril, caminhando com cuidado por entre os ossos e os estilhaços de tigelas partidas que agora cobriam o chão, reparei que os rapazes que serviam os bárbaros tomavam frequentemente um golo furtivo da tigela que estavam a encher antes de voltarem a levá-la para a mesa. Era assim, pareceu-me, que conseguiam a sua comida e bebida.

Roubavam-na quando ninguém estava a olhar.

Instigado por este pensamento. aproximei-me do barril.. debrucei-me e mergulhei a taça no líquido fresco e escuro. Chegou-me ao nariz o cheiro entontecedor da doce cerveja e a minha sede levou a melhor. Antes de conseguir deter-me já a taça se encontrava nos meus lábios e a cerveja me escorria pela garganta. Ah, abençoada cerveja! Bebi-a avidamente… e em toda a minha vida só uma ou duas vezes provara uma cerveja tão boa como aquela!

Que o Senhor me ajude! Não me consegui dominar, engoli todo o conteúdo da tigela de uma só vez, voltei a enchê-la apressadamente, virei-me e afastei-me do barril... mas descobri o meu caminho barrado por um enorme dinamarquês.

Fitou-me e disse-me qualquer coisa que não compreendi. Baixei a cabeça e tentei passar em torno dele, mas o homem agarrou-me por um braço e torceu-mo, fazendo a sua exigência num tom muito mais alto.

Não percebi o que queria mas olhava para a tigela, pelo que lha ofereci.

- Nay! - trovejou. Ao mesmo tempo, fez saltar a tigela das minhas mãos com um violento golpe do braço. A tigela de metal voou pelo ar, provocou uma chuva de cerveja à sua volta e acabou por ir cair em cima da mesa, a alguns passos de distância. Os homens que se encontravam mais perto calaram-se e olharam-nos.

O irado bárbaro voltou a gritar-me qualquer coisa mas, como não respondi, agarrou-me pelos braços e levantou-me do chão. Aproximou-se do barril com um único passo rápido e atirou-me com força contra o recipiente de carvalho, forçando a minha cabeça a descer na direcção do líquido espumoso.

Felizmente, o barril já não estava cheio. O alto da minha cabeça tocou na espuma mas consegui manter o rosto fora da bebida. Agarrei-me ao aro de metal e segurei-me com todas as minhas forças. Contudo, a madeira e o metal estavam pegajosos e escorregadios. Não conseguia manter-me agarrado e fui descendo cada vez mais enquanto todos os que observavam a cena se riam com vontade ante a minha provação.

Incapaz de me aguentar durante mais tempo, aspirei uma golfada de ar um pouco antes da minha cabeça mergulhar no líquido espumoso.

As bolhas fizeram-me cócegas no nariz e nas orelhas, agitei a cabeça furiosamente e consegui respirar mais uma vez antes de ser novamente forçado a mergulhar, agora para mais fundo. Embora me sacudisse, agitando os braços e esperneando, não era capaz de me libertar. Deixei de me debater para poupar o pouco ar que me restava nos pulmões e rezei pela salvação.

Senhor, Meu Deus, defende-me! pensei. Seria uma pena deixares que oteu servo se afogue em cerveja!

Repentinamente, quando murmurava a oração, fui puxado para trás com violência. O barril tombou e derramou toda a cerveja. Rebolei e fiquei de costas. ofegando por ar, contorcendo-me no chão e protegendo a cabeça com as mãos e braços contra os fortes golpes que me atingiam.

Tive um relance de um rosto vermelho a pairar sobre mim e ouvi um grito de fúria. O Lobo do Mar pareceu ficar com uma segunda cabeça, que apareceu por cima do seu ombro... mas era a de Gunnar. De súbito, o oscilante bárbaro cambaleou e caiu sobre mim com o meu amo montado nas suas costas.

Os dois homens rolaram como serpentes entrelaçadas, esbracejando e escorregando na cerveja entornada. Escapuli-me à luta e afastei-me um pouco. Os habitantes do salão, despertos dos mais variados torpores, formaram rapidamente um círculo em volta dos combatentes e incitaram- nos com provocações e aplausos.

- Hrothgar! - gritaram alguns. - Gunnar! - berraram outros.

Ragnar saltou do trono e bateu com uma lança contra um escudo para chamar a atenção da multidão durante o tempo suficiente para se fazer ouvir. Gritou uma ordem e a multidão avançou, agarrou nos dois lutadores e arrastou-os para fora do salão. Levaram-nos para o pátio onde, no meio de muitos gritos, o círculo de espectadores se refez muito rapidamente.

Embora o dinamarquês chamado Hrothgar fosse mais corpulento, Gunnar era mais rápido e indómito. Enfrentava o enorme bárbaro de igual para igual, encaixando golpes terríveis e devolvendo-os. Os punhos bateram, uma e outra vez, nas faces, nos pescoços, nos ombros e nos estômagos. O sangue escorria de narizes e bocas mas os dois homens continuavam a trocar golpes... e qualquer um desses golpes teria sido o suficiente para derrubar um cavalo.

Hrothgar, vendo-se incapaz de conseguir uma qualquer vantagem sobre o seu oponente, afastou-se repentinamente. Recuou, baixou a cabeça e lançou-se à carga como um touro, berrando enquanto corria. Gunnar permaneceu imóvel, com os pés bem plantados no chão. Hrothgar atirou-se a ele e pareceu que o iria dominar... mas os braços do bárbaro fecharam-se em volta de um vazio. Rápido como um raio, Gunnar caiu de joelhos e agarrou Hrothgar pelo pescoço num único movimento. O surpreendido bárbaro soltou um grito estrangulado e caiu de cabeça no chão.

Tentou levantar-se mas o meu amo já se encontrava em cima dele.

Gunnar juntou as duas mãos, ergueu-as por cima da cabeça e atirou-as com toda a força contra a traseira do pescoço do adversário, entre as omoplatas. Hrothgar soltou um grunhido semelhante ao de um boi abatido e pousou o rosto no solo. Ainda tentou levantar-se mas as suas pernas cederam e caiu de braços abertos, abraçado à terra.

Gunnar levantou-se e limpou o sangue dos olhos e da boca enquanto a multidão berrava o seu nome. Olhou para o círculo de espectadores que o rodeava e levantou um braço, num gesto de triunfo. A multidão atirou-se imediatamente para a frente, agarrou nele, levantou-o em peso e carregou-o para o salão para irem celebrar a sua vitória.

Vi-os afastarem-se mas não fiz qualquer esforço para os seguir. O Sol brilhava, estava um belo dia e não tinha qualquer vontade de regressar ao salão escuro e malcheiroso.

- Estavam a lutar por tua causa, irlandês.

- Scop! - exclamei, virando-me. O facto de o ver ali surpreendia-me e alarmava-me. O homem tinha os olhos vermelhos e vazios, e vi- lhe gotas de suor a escorrerem-lhe pelo pescoço. - Por que iriam lutar por minha causa? - perguntei. - Que foi que eu fiz?

- Bebeste do barril de cerveja do jarl Ragnar e a seguir ofereceste a taça a Hrothgar. - Abanou a cabeça, numa desaprovação fingida. Foi um gesto de muito má educação...

Virou-se para se afastar com os seus passos arrastados, mas chamei-o.

- Não te vás embora. Por favor, Scop. Andei a ver se te via. Pensei que poderias cantar mais uma vez.

O andrajoso skald rodou lentamente a cabeça, piscou-me um olho com uma expressão astuta e sorriu.

- É com grande relutância que atiro as minhas pérolas a estes porcos - replicou. - Só canto quando me apetece.

- E isso não desagrada a Ragnar, o teu senhor e amo?

- O jarl Ragnar é o meu senhor... - replicou, fazendo uma careta e levantando o queixo - mas não é o meu amo. Só canto quando quero.

- Mas então... não és um escravo?

- Já o fui, outrora, mas deixei de o ser. Precisei de vinte anos mas agora sou um homem livre.

- Perdoa-me, irmão, mas se estás livre, por que ficas aqui? Por que não voltas para o teu povo?

O ignóbil. bardo sacudiu os ombros e sacudiu os farrapos para trás das costas.

- Esta é a minha terra. Este é o meu povo.

- Aí está uma coisa em que me custa a acreditar... - retorqui.

- Acredita, rapaz, porque é verdade - ripostou, subitamente irritado..-- Deus abandonou-me aqui para morrer... mas não morri. Sobrevivi e enquanto estiver vivo sou livre e não servirei ninguém, excepto a mim mesmo.

- Nesse a caso, diz-me uma coisa, se for possível. Como conheces o latim? - SCop virou-se e começou a afastar-se. Segui-o, a um passo de distância. - Por favor - insisti - gostaria de saber como é que aprendeste a língua dos clérigos.

Pensei que não me iria responder porque continuou a coxear, sem pressas. Contudo, após cerca de uma dúzia de passos, deteve-se abruptamente e virou-se para mim.

- Como pensas que foi? - inquiriu. - Achas que encontrei o latim no fundo da minha taça de hidromel? Ou talvez penses que acompanhei os Lobos do Mar durante um ataque e o roubei a um qualquer pobre sacerdote indefeso?

- Não fiz a pergunta com má-intenção, irmão - respondi, procurando acalmá-lo. - O facto de saberes essa língua pareceu-me um mistério, mais nada...

- Um mistério? - repetiu, esfregando o pescoço enegrecido com uma das suas mãos muito sujas. - Atreves-te a falar-me de mistérios, irlandês? - Fitou-me com fúria. - Ah, nesse caso talvez penses que a tua própria fala é misteriosa!

- De modo nenhum! - retorqui. - Sou um sacerdote, ensinaram-ma na abadia.

- Pois eu também aprendi o latim desse modo.

- Ah, sim? - Não consegui evitar o tom de surpresa na minha voz.

- Por que te espantas? - contrapôs, num desafio. - É assim tão improvável? Está para lá da tua estreita credulidade?

- Acho que é... - confessei - muito improvável.

- Então diz-me - desafiou-me - o que consideras mais improvável: que tu tenhas sido feito escravo dos dinamarqueses, ou que eu tenha sido enviado para o meio deles como sacerdote?

Dito aquilo, ajeitou as suas miseráveis roupas e afastou-se com os farrapos a flutuarem à sua volta como as penas sujas de uma qualquer grande ave desajeitada.

Nunca mais voltei a vê-lo porque, depois de mais comida, bebida e jogos - lançamento de maços, machado e até, que Deus lhes perdoe, de porcos. que os bárbaros apanhavam e levantavam no ar sob as ruidosas aclamações dos companheiros - Gunnar pediu autorização ao seu senhor. despediu-se de todos os companheiros, reuniu as armas e o saque num saco de couro e abandonou a povoação levando-me com ele depois de me amarrar uma longa corda em volta da cintura.

Caminhámos por florestas cerradas durante todo o dia, deslocando- nos muito devagar porque Gunnar tinha dores de cabeça e parava frequentemente para se deitar. Aproveitei um desses descansos para preparar uma refeição com os fragmentos de pão e carne que levava no seu saco.

O meu amo não aguentava comida no estômago mas não levantou objecções quando eu comi. Foi assim que quebrei o meu longo jejum, com pão duro e carne rançosa, uma refeição pobre mas que não deixou de ser bem- vinda. Depois da refeição desamarrei-me, fui à procura entre as plantas da floresta e encontrei algumas ffa'r gos, que esmaguei e misturei com água limpa de um riacho próximo. Depois de coar a polpa, dei o líquido a beber a Gunnar, o que acabou por fazer, mas só depois de eu ter sido o primeiro a beber. Adormeceu outra vez e quando acordou já parecia muito mais bem-disposto.

À noite acampámos no trilho. Gunnar fez uma fogueira e dormimos de cada lado da mesma, para voltarmos a pormo-nos em marcha de madrugada, quando os pássaros nos acordaram. Quando o pão e a carne se acabaram ficámos sem nada para comer mas não deixámos de parar repetidamente para bebermos nos riachos que abundavam naquela terra. Procurei bagas e encontrei algumas, mas ainda não estavam maduras.

Caminhávamos durante o dia com Gunnar à minha frente. Levava o saco ao ombro e eu seguia-o. Embora o saco fosse pesado, não permitia que lhe tocasse e preferia ser ele a carregá-lo. Devíamos constituir uma visão estranha, pensei, com o amo a esfalfar-se por baixo da carga enquanto o escravo ia atrás, de mãos vazias. Contudo, era assim que ele queria.

Como o meu amo não se dignava a falar comigo - e eu também não o entenderia, se o fizesse - tive muito tempo para pensar. Pensei principalmente nos meus irmãos monges e perguntei a mim mesmo se alguns deles teriam sobrevivido. Nesse caso, o que lhes iria acontecer? Regressariam à abadia? Continuariam para Constantinopla? Como o livro abençoado não aparecera junto do saque, parti do princípio de que alguns irmãos deveriam ter conseguido escapar e que o nosso tesouro não fora descoberto.

Senti-me seguro nessa crença, raciocinando que se o livro tivesse sido descoberto, então teria sido roubado, e que se tivesse sido roubado eu tê-lo-ia visto a ser partilhado entre os bárbaros como recompensa pelos seus odiosos feitos. Como não o vira, considerei que não fora roubado, o que me deu a esperança de que talvez a peregrinação prosseguisse, sem mim, é claro... mas prosseguiria.

Enquanto caminhava, rezei para que - fossem quantos fossem os sobreviventes do meu grupo, muitos ou poucos -, pudessem continuar a sua jornada e seguir para Bizâncio com o presente para o Imperador.

Contudo, essa ideia produziu-me um sentimento peculiar, uma curiosa mistura de remorsos e de alívio. Remorsos pelas vidas tão subitamente requeridas pelo Martírio Vermelho daquela peregrinação, e alívio por não me ter de juntar a elas.

Isto porque, apesar da escravidão a que estava sujeito e que parecia contrariar a concretização do meu sonho, continuava a não duvidar de que iria morrer em Bizâncio. De qualquer modo, não desejo despertar a ira dos céus tentando negar que o alívio que senti no mais fundo do meu coração talvez se tenha sobreposto aos remorsos. Fui sempre uma criatura caprichosa, facto que confesso com toda a franqueza.

O crepúsculo do quarto dia caiu sobre nós e comecei a notar que a floresta se tornava menos densa. Saímos da floresta pouco tempo depois, quando as primeiras estrelas começavam a brilhar nos céus, e entrámos numa vasta clareira coberta por um prado, no centro da qual se erguia uma enorme casa de madeira com um celeiro e um cercado para gado.

Para leste e para sul da casa podiam ver-se dois campos bem trabalhados, onde os rebentos verdes exibiam um tom dourado sob a luz do poente.

Gunnar lançou uma olhadela à casa e soltou um grito selvagem que ressoou através do prado. Os cães começaram a ladrar e bastou o espaço de três batimentos do coração para eu ver duas negras formas caninas que corriam na nossa direcção, logo seguidas, um instante depois, por três figuras humanas, duas das quais, a julgar pelas roupas, eram mulheres.

Os cães foram os primeiros a chegar e Gunnar saudou-os com tanta satisfação como se fossem filhos há muito perdidos e dados como mortos. Abraçou-os e beijou-lhes repetidamente os focinhos, chamando-os pelos nomes e afagando-lhes a pelagem brilhante. Eram cães grandes, com enormes cabeças e maxilas poderosas. Na ocasião senti-me muito satisfeito por me encontrar na companhia de Gunnar, pois não duvidava que aquelas mesmas criaturas seriam capazes de rasgar alegremente a garganta de qualquer intruso.

O meu amo recebeu os seus familiares com o mesmo zelo com que saudara os cães. As mulheres - uma das quais, como agora já podia ver, pouco mais era do que uma rapariga - ficaram obviamente satisfeitas por o ver e abraçaram-no muitas vezes, beijaram-lhe o rosto e o pescoço e seguraram-no pelas mãos e pelos braços. A mais velha das duas, soube-o algum tempo depois, era Karin, a esposa. A mais nova chamava-se Ylv-a.

Era da família da esposa e ajudava-os como criada.

A terceira figura era de um rapaz, alto, elegante e mais jovem do que me parecera à primeira vista. Quando o rapaz se aproximou, Gunnar deixou de beijar a esposa e apertou o jovem num feroz abraço. Receei que o esmagasse, mas o rapaz sobreviveu, rindo-se e abraçando o pai.

Depois de mais alguns beijos e abraços, o jovem virou-se e ficou a olhar para mim.

o pai reparou nos seus olhos muito abertos e disse, dando uma forte palmada no meu ombro:

- Aeddan.

rapaz repetiu o nome, após o que o pai pousou a mão no filho e disse:

- Ulf.

A seguir apresentou-me as mulheres, tratando-as pelos nomes, que repeti até ficar satisfeito com a maneira como eu os pronunciava. Karin, a esposa, era uma mulher forte, com um rosto largo e bondoso. Tinha cabelos castanhos-claros e olhos tão verdes como o mar. Os seus movimentos eram hábeis e estavam perfeitamente de acordo, tal como descobri mais tarde, com as suas maneiras decididas. Era uma mulher prática e muito perfeita em todas as artes femininas. Por outro lado, nunca nenhum tirano governou com maior firmeza... porque a sua autoridade sobre a casa era absoluta.

Ylva, a sua familiar, era uma verdadeira sílfide, radiante como os raios do Sol, esbelta e bonita como uma flor dos bosques. Tinha cabelos amarelos-pálidos, uma testa lisa, seios e braços bem formados e mãos compridas e elegantes. Era uma alegria tanto para os olhos como para a mente porque, quando acabei por a conhecer melhor, conclui que era tranquila, solícita e de fácil trato.

Ulf era um rapaz igual a todos os rapazes, feliz, que gostava de pescar, de caçar e de ir apanhar bagas, e que exibia o entusiasmo próprio da juventude. Adorava o pai... e raramente saía de junto dele se não fossem as pescarias no lago.

Todos eles me foram apresentados, um a um, e todos me deram as boas-vindas não como a um inimigo vencido mas sim como a um convidado ou familiar. Não obstante o duro tratamento a que fora sujeito durante a jornada, agora que chegara a casa de Gunnar senti que havia sido admitido sem reservas no quente abraço da sua família. Talvez a vida nas frias florestas do norte já fosse suficientemente dura para não precisarem de lhe adicionar amarguras desnecessárias.

Com uma palmada das mãos e um grito, Gunnar enviou os cães a correr através do prado, de volta a casa, e riu de satisfação ao ver como lhe obedeciam. Ulf, incapaz de se conter durante mais tempo, soltou um grito e correu atrás deles enquanto Gunnar passava um braço em volta dos ombros de Karin, puxando-a para si e encaminhando-se para a casa com passadas longas e rápidas. Atirou a cabeça para trás e começou a cantar ruidosamente, para grande divertimento das mulheres, que se riram e o acompanharam na canção.

O saco de couro de Gunnar, momentaneamente esquecido, jazia a meus pés. Portei-me como um bom escravo, coloquei-o às costas e segui o meu amo.

 

Passei aquela noite no celeiro ao lado do boi e das vacas de Gunnar.

Não se preocupou em prender-me ou limitar-me os movimentos de nenhuma maneira, e em breve compreendi porquê. Os lobos começaram a uivar logo que a Lua se ergueu por cima dos altos pinheiros. Claro que já anteriormente ouvira lobos, mas nunca tantos nem tão perto. O som dos seus lamentosos uivos levou-me a crer que as matilhas enxameavam o próprio rebordo da floresta. O celeiro era suficientemente seguro, como uma verdadeira fortaleza, uma vez que Gunnar não desejava perder os seus valiosos animais. Contudo, os uivos mantiveram-me acordado até muito tarde na noite e adormeci com o seu som nos meus ouvidos.

De manhã, a familiar Ylva foi acordar-me para me conduzir à cozinha.

Os dinamarqueses constróem as suas habitações de modo a que a cozinha faça parte da própria casa, de que acabam por constituir uma parte muito importante. Na realidade, a casa de Gunnar era muito semelhante ao salão de Ragnar, salvo no que se referia ao facto de haver um sótão para dormir.

Construído no meio dos barrotes do telhado, por cima da mesa. O sótão estava virado para a lareira, lá em baixo, e chegava-se a ele por intermédio de uma escada. Ao lado da lareira existia um recanto onde guardavam os barris da cerveja e da água, e também havia aí uma porta baixa que dava acesso a um pequeno armazém. No fundo da grande sala havia um estábulo onde os animais podiam ser recolhidos em caso de mau tempo, forrado a palha e equipado uma manjedoura para os alimentar.

Quebrei o jejum com a família e foi assim que se iniciou o que passaria a ser um costume: Gunnar e o filho sentavam-se num banco na extremidade da mesa mais perto da lareira. e eu na extremidade oposta,

Junto ao estábulo, empoleirado num banquinho com três pernas. Equilibrava a malga em cima de um joelho enquanto Karin e Ylva esvoaçavam da lareira para a mesa, conversando e preparando a refeição. Os dinamarqueses, conforme descobri. gostavam das suas refeições insuportavelmente quentes e iniciavam quase todas com uma espessa papa de cevada que engoliam de malgas de madeira, por vezes com a ajuda de colheres, mas mais frequentemente sem se servirem delas.

Era depois da papa ter sido comida e de serem recolhidas as malgas, que surgia o pão, a carne e um queijo muito branco. Se a época era de frutas, também as ofereciam. Gunnar gostava particularmente das amargas groselhas-azuis e de uma pequena e ácida baga vermelha a que chamavam lingõn, que Karin preparava numa compota fervida que o marido despejava sobre o pão. Era um molho tão ácido que nunca consegui engoli-lo sem o misturar com mel.

Por vezes havia peixe, fresco quando o conseguiam arranjar, mas que em geral era salgado ou preservado numa solução de salmoura e vinagre.

Esse peixe, o lutfisk, emitia um odor capaz de fazer subir as lágrimas aos olhos. Comiam essa abominação cozinhada em leite e afirmavam gostar, mas bastava o cheiro para que eu sentisse o estômago a subir-me à garganta e não o conseguia suportar.

Quando não havia peixe comiam salsichas cozidas ou assadas, pois não fazia qualquer diferença. Ocasionalmente, também aparecia um tipo de carne que era preparada ensopando pernas de porco inteiras em salmoura durante vários meses, para serem depois suspensas em paus sobre a lareira de modo a que o fumo as preservasse. Esse tratamento fazia com que a carne ficasse muito vermelha, como a carne crua, mas o seu sabor era magnífico, doce, suculento e salgado... tudo ao mesmo tempo. Tornei-me num grande apreciador da rõkt skinka e comia toda a que apanhava, sempre que podia.

Os dinamarqueses gostavam que a carne, e também o pão, pesado e escuro, fossem servidos quentes, directamente da lareira ou do forno, e em breve comecei a apreciar esse estranho costume. A cerveja de Karin era igual ao pão: pesada, rica e satisfatória, com um gosto doce que me fazia pensar em nozes. Um dia, Karin meteu bagas na bebida e produziu a mais invulgar das cervejas. Não a consegui beber mas Gunnar achou que se tratava de uma interessante variação em relação à bebida normal.

Infelizmente, desdenhavam o vinho - que, no fim de contas, tinha dificuldade em obter - mas compensei essa falta adquirindo um certo gosto pela escura cerveja de Karin.

Como já disse, comia com a família. Para seu crédito, Gunnar nunca se mostrou avarento comigo no que se refere à comida, nem me dava alimentos de qualidade inferior. Comia o mesmo que o meu amo em doses iguais. Ainda hoje me envergonho de ter de confessar que por vezes me saciei de um modo pecaminoso, sem ter o mínimo respeito pela Regra da Moderação. Não foram poucas as vezes em que pedi para repetir os pratos que me eram oferecidos!

Continuo a ver o rosto bondoso de Karin a brilhar de satisfação - e do calor da lareira - quando punha a comida sobre a mesa com as suas mãos vermelhas do trabalho, mas com umas tranças perfeitamente limpas e roupas tão impecáveis como a sua cozinha. Era uma mulher meticulosa e trabalhadora e nada a satisfazia mais do que ver os frutos do seu trabalho a serem admirados e louvados. Claro que esses louvores não eram difíceis de proferir para os que tivessem a sorte de arranjar um lugar à mesa; as suas propostas culinárias, apesar de simples, nunca eram menos do que soberbas.

Contudo, sob este aspecto, também havia ali duas pessoas não tão afortunadas, embora o fossem muito mais do que eu sob outros aspectos.

Eram Odd, o trabalhador, e Helmuth, o guardador de porcos, ambos saex e ambos escravos. Odd era um homem grande, paciente, incansável e quase mudo. Helmuth era uma pessoa madura, com boas maneiras e uma disposição tranquila. Apesar das aparências e tal como vim a descobrir, era um homem com alguns conhecimentos.

O pobre Helmuth nunca era autorizado a entrar na casa por causa do cheiro a porcos que permeava tanto as suas roupas como a sua própria pessoa. Dormia no celeiro quando chovia ou nevava, mas nos dias bonitos e, quentes preferia fazê-lo no exterior, com o vasto campo de estrelas do céu como único telhado. Contudo, mesmo que não o preferisse, teria de o fazer para proteger os seus preciosos porcos contra os lobos. Quando ao Odd, mantinha-se junto de Helmuth sempre que não tinha nenhum trabalho para fazer.

Inicialmente, o facto de eu tomar as refeições com a família enquanto os meus irmãos escravos comiam sozinhos, na rua, ou juntos, no estábulo.

Provocou-me alguma angústia. Porém, como mais ninguém considerava o facto como uma injustiça e os dois homens pareciam satisfeitos com a sua sorte, não levei muito tempo a aceitar a situação.

Naquele primeiro dia, Gunnar saiu logo depois do almoço, na companhia de Ulf e dos dois cães, para ir inspeccionar o estado dos seus domínios. Na verdade, tratava-se de uma bela propriedade, com tudo bem feito e perfeitamente arrumado, e o proprietário tinha motivos para se Orgulhar do que conseguira realizar naquelas duras terras do norte. Pela sua parte, o pequeno Ulf orgulhava-se do pai e verifiquei que nunca saiu do seu lado durante todo o dia.

Caminhámos pelos campos, com Gunnar e Ulf a conversarem e eu a segui-los. De vez em quando, o meu amo parava para examinar uma qualquer área ou pormenor da propriedade: um campo arado, um vitelo novo, um fecho de ferro para uma porta, o nível de cereais no silo, o lago dos peixes, um tapume recentemente levantado, qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente. Até um cego conseguiria perceber a que ponto aquele duro e musculoso dinamarquês amava a sua terra, preocupando-se com todos os pormenores da manutenção e exploração.

Passámos todo aquele dia a percorrer as fronteiras do reino de Gunnar, uma espécie de solitária ilha-fortaleza, ou pelo menos assim me pareceu, engastada num mar sempre verde e isolada do vasto mundo.

À medida que osdias foram passando, comecei a sentir-me cada vez mais distante do mundo que conhecera. A nossa pequena abadia, em comparação, fora como um movimentado porto numa rota comercial muito batida, onde o comércio havia sido conduzido não em prata mas em palavras.

Não posso negar que Gunnar me salvara de uma morte certa... mas o preço da minha salvação fora na verdade muito alto. Sentia-me perdido e muito, muito solitário. Por isso, comecei a rezar durante todo o dia e a recitar salmos sempre que tinha uma oportunidade. Uma noite, à mesa, rezei em voz alta antes da refeição enquanto o meu amo e a sua família me olhavam com espanto. Ficaram tão surpreendidos com aquele comportamento peculiar que nem lhes ocorreu impedirem-mo. Com o tempo, acabaram por se habituar e esperavam que eu pronunciasse a oração antes de comer. Suponho que o ritual lhes agradava, mas não faço ideia sobre o que pensariam a seu respeito.

Contudo, naquela primeira noite, quando ergui a cabeça depois da oração, descobri Gunnar a olhar para mim. Karin encontrava-se a seu lado, também a olhar-me e a dar insistentes cotoveladas no marido, que se virou para ela, pronunciou algumas palavras e a fez desistir.

Na manhã seguinte o meu amo conduziu-me até junto de Helmuth.

Serviu-se de uma complicada série de gestos e indicou-me que deveria rezar outra vez, tal como fizera na noite anterior.

Foi o que fiz.

O efeito sobre o guardador de porcos foi extraordinário. O homem atirou fora o varapau, caiu de joelhos e chorou. Juntou as mãos e vi-lhe os lábios a tremerem numa acção de graças enquanto enormes lágrimas lhe enchiam os olhos e lhe escorriam pelas faces. A seguir deu um salto.

agarrou-me pelos braços e gritou:

- Aleluia! Aleluia!

Gunnar observou tudo aquilo com uma expressão divertida. Helmuth acalmou-se alguns instantes depois e começou a murmurar para si mesmo.

Gunnar disse-lhe algumas palavras, após o que o guardador de porcos pegou na mão do seu amo, beijou-a e balbuciou entusiasticamente. O surpreendido dinamarquês acenou cortesmente para o escravo, deu meia volta e deixou-nos sozinhos com os porcos.

- O patrão Gunnar diz que eu... - Helmuth fez uma pausa, rebuscando a sua memória empoeirada em busca da palavra apropriada. Heyal Tenho de ser aluno... nay, não aluno... scólere, não... professor!

Aleluia! - Ficou radiante, quase que em êxtase, e tive a incómoda sensação de estar a olhar para o zeloso irmão Diarmot, mas sob outra forma.

- Ter de ser teu professor... - prosseguiu. - Tu ter de ser aluno meu... - Estudou-me, à espera de uma reacção.

- Perdoa-me, meu amigo, não pretendo ofender - repliquei - mas como é que todos os skald e guardadores de porcos desta terra sabem falar bom latim? - Continuei e contei-lhe o meu encontro com Scop.

- Scop! - exclamou. - Scop foi quem ensinou mim. Um excelente homem, o Scop. Fui mandado a ele como rapaz para me sentar a seus pés e aprender os mirabili mundi. Era o melhor dos seus alunos!

- Então, o Scop nessa altura ainda era sacerdote...

- Sacerdote, sim... - confirmou Helmuth - e chamava-se Ceawlin, um homem muito santo e honesto. Um saecsen, tal como eu. Ensinou-me o amor de Jesus e a veneração de todos os santos, e muito mais. Pensei em também ser sacerdote... - interrompeu-se e abanou a cabeça com tristeza - mas tal nunca seria. - Olhou para mim. Embora não ouça Missa há muito, ainda acredito... e converso frequentemente com o Todo-Poderoso, pedindo alguém com quem falar. Penso que te enviou a ti.

Falava o melhor que era capaz. Apesar do que eu lhe dissera, o latim de Helmuth não era bom e estava poluído com muitas palavras estranhas, de várias línguas. Mesmo assim, nos dias que se seguiriam começámos a compreendermo-nos melhor um ao outro e acabei por juntar as peças da história sobre como acabara a servir Gunnar. Com muitas hesitações e incompreensões de ambos os lados, Helmuth acabou por me explicar a guerra que matara Ake, o Reticente, bem como Svein, o seu belicoso filho, e que acabara por colocar Rapp, o Maço, no trono.

Rapp não acreditava em nada, excepto no maço-de-guerra que tinha na mão - observou Helmuth, amargo. - Rapp fazia escravos de todos os não mortos... Não, Rapp fazia escravos de todos os que viviam...

- Os que sobreviviam...

- Heya, sim, os sobreviventes! Vendia alguns, ficava com outros.

Achava que os saecsens eram úteis, e manteve-me a mim e ao Ceawlin.

Pensou que seríamos bons reféns se os saecsens o atacassem. Servimos no salão até morrer...

- E que aconteceu a seguir?

- Teve duplos rapazes...

- Teve dois rapazes. Dois filhos.

- Heya. Thorkel, o mais velho, Ragnar, o mais novo. Depois da morte de Rapp - engasgado com o osso da medula, no salão - Thorkel ficou com o trono. Não era um mau jarl, mas também não era cristão...

- Que lhe aconteceu?

- Partiu a-viking... - declarou Helmuth, pensativo - e nunca regressou. Esperaram dois anos e fizeram Ragnar rui...

- Rei?

- Heya! O Cabelos-Amarelos é rei desde aí. - O guardador de porcos encolheu os ombros. - O povo gosta dele porque é mais generoso do que o pai e o irmão. Dá tudo o que tem com pena... Sem pena, quero dizer.

- Incluindo os escravos.

- Sim, incluindo os escravos. - Helmuth suspirou. - Deu-me ao pai de Gunnar, que me fez guardador de porcos apesar de eu saber ler e escrever... e aqui estou. Não me queixo, sou bem tratado.

- Alguma vez tentaste fugir?

Helmuth fez um gesto amplo e abriu muito os olhos.

- Para onde iria? Há lobos na floresta... e homens ferozes por todo o lado. - Sorriu com algum pesar. - O meu lugar é aqui. Tenho de tomar conta dos meus porcos. - Olhou em volta e contou-os rapidamente, para se certificar que se encontravam todos à vista.

- E o Odd? - perguntei.

- Gunnar comprou-o para trabalhar na quinta - disse Helmuth.

A seguir explicou o modo como uma pancada na cabeça, quando fora capturado, privara Odd de tudo excepto algumas palavras muito simples.

- O Odd pode ser lento a pensar, mas é um bom trabalhador e muito forte. - Fez uma pausa e acrescentou: - Sabes, Aeddan...

- Aidan - corrigi-o.

- Gostava de saber como vieste aqui parar. Gunnar ganhou-te ou comprou-te no mercado de escravos de Jutland?

- Capturou-me - respondi. Contei-lhe o ataque nocturno à aldeia mas tive o cuidado de omitir qualquer referência à peregrinação ou ao tesouro. - Depois, quando chegámos aqui, comprou-me ao Cabelos Amarelos por três moedas de ouro.

- Gunnar é um bom amo, heya - disse Helmuth. - Raramente me bate, mesmo quando está bêbado, e Karin é uma mulher digna de louvores em qualquer língua. Manda na cozinha e em tudo o que passa por baixo da sua... - o homem hesitou - visão?

- Olhos - sugeri, com delicadeza. - Tudo o que passa por baixo dos seus olhos.

- Heya. São boas pessoas. - A seguir acrescentou, pensativo: Gunnar diz que corta as nossas duas línguas se não te ensinar a falar como um dinamarquês antes da próxima Lua Cheia.

Com um incentivo tão atraente na nossa frente, começámos a minha instrução formal naquela mesma manhã. Helmuth, hesitante e com falta de prática, foi ganhando segurança à medida que lhe regressaram as recordações dos seus tempos de infância sob a tutoria de Ceawlin. Depois de um começo difícil, em breve organizámos um sistema de aprendizagem em que eu apontava para uma coisa e dizia o seu nome em latim, ao qual ele respondia com o nome apropriado na linguagem nórdica. Depois, eu repetia a palavra em voz alta, muitas vezes, para a fixar na memória.

Depois de muitos dias de uma tal disciplina acabei por ganhar um certo sentido da língua, se é que lhe podemos chamar sentido, e já conseguia designar um bom número das coisas que me rodeavam. Gradualmente, Helmuth começou a introduzir palavras que implicavam acção, tal como cortar, cavar, plantar, acender uma fogueira e assim por diante. Encontrei nele um professor cheio de boa vontade e um bom companheiro, afável, paciente e ansioso por ajudar. Para além disso, deixei de pensar que o homem cheirava a esterco de porco.

O Odd, depois de terminar o dia de trabalho, sentava-se e ficava a olhar para nós com uma expressão de espanto. Nunca soube o que ele pensaria a respeito do que via que porque não lhe ouvi mais do que grunhidos durante todo o tempo em que o conheci.

Gunnar exigiu-me muito pouco durante aqueles dias. Rachei lenha para armazenar, dei de comer às galinhas, transportei água do poço, ajudei Odd a dar de comer às vacas e a reparar as cercas quando o gado as derrubava. Ajudei Helmuth a tratar dos porcos, removi cinzas de lareiras, mudei a palha no celeiro, espalhei esterco pelos campos, arranquei tocos de árvores e auxiliei Ylva a depenar os patos e a mondar os campos...

Em resumo, levei a fim as tarefas que precisavam de ser feitas, mas o meu trabalho não era mais pesado ou árduo do que qualquer um dos que executara na abadia. Na verdade, o meu amo guardava as tarefas mais pesadas para o Odd e para ele próprio. Porém, de qualquer modo, ninguém trabalhava mais do que Karin, pelo que cheguei à conclusão de que Gunnar não necessitava, na verdade, de outro escravo. Fossem quais fossem as razões que o tinham levado a comprar-me a Ragnar, o trabalho não fora uma delas.

Continuei a tomar as minhas refeições na casa e comecei a sentir que fazia tão parte da família como Ylva ou Ulf. Não era tratado nem pior nem melhor do que eles. Quando aprendi a reunir as palavras, formando frases rudimentares e por vezes divertidas, o meu amo louvou-me e manifestou a sua satisfação com os meus progressos... e essa sua satisfação foi tanta que o dia do teste surgiu pouco depois da minha primeira e hesitante conversa com ele.

Resolvi perguntar-lhe o que se passara na noite do ataque, numa tentativa para tranquilizar o meu espírito.

- Sabe o que aconteceu aos meus irmãos? - perguntei-lhe, tropeçando nas palavras.

- A noite estava muito escura - respondeu, num tom calmo.

- Foram mortos?

- Sim, talvez alguns deles tenham sido mortos - admitiu - mas não sei quantos. - A seguir explicou que, devido à confusão que se seguira à súbita chegada do rei e dos seus homens, não tinha certezas a respeito de coisa nenhuma. - O jarl apareceu e nós fugimos, levando apenas o que conseguimos carregar. Deixámos muitos tesouros para trás - concluiu, com tristeza - e não sei o que aconteceu aos teus amigos.

Na manhã seguinte, Gunnar foi ao celeiro despertar-me e informou-me que ele e Helmuth iriam conduzir alguns porcos a Skansun.

- Há um mercado - explicou - e é um dia de marcha. Passaremos a noite e voltaremos para casa. Compreendes?

- Heya - repliquei. - Vou convosco? - inquiri, esperançado de que teria oportunidade de voltar a ver qualquer coisa do resto do mundo.

- Nay. - Abanou a cabeça com solenidade. - Ficas com a Karin e a Ylva. O Ulf e o Helmuth irão comigo. O Odd fica contigo. Heya?

- Compreendo.

- Levo o Garm comigo. Deixo o Surt para tomar conta do gado. Momentos depois já nos encontrávamos reunidos no pátio para nos despedirmos dos viajantes. Gunnar disse qualquer coisa à mulher, encarregando-a, suponho, dos trabalhos da quinta. A seguir chamou Garm, o cão preto, e saiu do pátio sem sequer olhar para trás. Ulf colocou-se a seu lado e Helmuth, com os porcos, foi ter com eles à saída do pátio. Vimo-los afastarem-se e regressámos às nossas tarefas.

O dia foi bonito e brilhante, com o ar quente e cheio de insectos, uma vez que o Verão se aproximava. Odd e eu passámos a manhã a trabalhar no campo de nabos. Depois da refeição, Ylva e eu enchemos um caldeirão com o leite do dia anterior, que tinha ficado a assentar, acendemos uma pequena fogueira no pátio e começámos a fazer queijo. Logo que o líquido começou a fervilhar, deixámos o caldeirão aos cuidados de Karin e voltei para os campos.

O primeiro indício de que a situação era diferente do que imaginara só surgiu ao pôr do Sol quando, por acaso, levantei os olhos da monda dos nabos e vi Gunnar e Ulf a atravessarem o pátio, com Helmuth e os porcos a seguirem-nos a alguma distância. Pensei que lhes acontecera qualquer coisa terrível, larguei o sacho e corri para eles.

- Que aconteceu? - ofeguei, sem fôlego por causa da corrida. - Passou-se alguma coisa?

- Está tudo bem - replicou Gunnar com um leve sorriso matreiro. - Regressei.

- Mas... - comecei, acenando a mão na direcção de Helmuth - então o mercado... e os porcos? Mudou de cabeça... Quero dizer, mudou de ideias?

- Não fui ao mercado - informou-me o meu amo. Ulf soltou uma gargalhada, como se tivessem pregado uma bela partida a alguém.

- Não compreendo... - queixei-me, olhando de um para o outro.

- Foi um teste - explicou Gunnar com simplicidade. - Queria ver o que farias quando não estivesse aqui para te guardar.

- Vigiaram-me?

- Sim, vigiámos-te.

- Para ver se eu fugia, sim?

- Sim, e também...

- Não confiaram em mim... - A compreensão de que fora posto à prova, embora de um modo inofensivo e bem-humorado, fez-me sentir estúpido e desapontado. É claro, concluí, que um amo tinha o direito de pôr à prova a lealdade dos seus servos, mas mesmo assim sentia-me ofendido.

Gunnar olhou-me com uma expressão profundamente intrigada.

- Não fiques assim, Aeddan. Procedeste bem - declarou. - Estou satisfeito.

- Mas nunca me perdeste de vista... - queixei-me.

Gunnar respirou fundo e endireitou-se.

- Não te compreendo - afirmou, abanando a cabeça de um lado para o outro. - Eu - salientou, batendo no peito - estou muito satisfeito.

- Mas eu não estou - respondi, numa voz sem entoação. - Eu estou zangado.

- O problema é teu - replicou. - Pela minha parte, estou satisfeito. - A sua expressão tornou-se altiva. - Pensas que és um homem com conhecimentos, heya? Pois bem, se conhecesses como as coisas são em Skania, também ficarias satisfeito.

Afastou-se, irradiando contentamento. Mais tarde, quando jazia na minha cama de palha, arrependi-me do meu comportamento vergonhoso. Gunnar era um bom amo, alimentava-me bem e nunca levantara a mão contra mim desde que eu ali chegara. A minha amargura não tinha razão de ser e resolvi pedir-lhe perdão no dia seguinte. Infelizmente, não cheguei a ter essa oportunidade.

 

Ouvi um ruído no pátio e acordei. Ainda estava escuro mas o Sol começava a aparecer quando saí do celeiro. Gunnar despedia-se de Karin, que enfiava pequenos pães nas mãos de Ulf. Helmuth já caminhava pelo trilho, de varapau na mão, e ficava parado, à espera dos porcos, sempre que estes procuravam desenterrar cogumelos por entre a vegetação. Feitas as despedidas, Gunnar virou-se, chamou Garm, o maior dos dois cães pretos, e saiu do pátio com o filho e o cão a correrem atrás dele.

- Onde vai o Gunnar? - perguntei, parando junto de Karin.

- Gunnar e Helmuth foram para o mercado - replicou. - Tê-lo-iam feito ontem se não fosse o teste.

- Compreendo - respondi, sentindo-me levemente enganado por não ter oportunidade de lhe pedir desculpa.

- Sim - afirmou - fazendo um aceno de confirmação com a cabeça. - Regressam amanhã. Vai buscar lenha.

Iniciei o meu dia de trabalho com o transporte de lenha para a cozinha, para depois à água. Odd apareceu com o sacho na mão e arrastou-se para o campo e pouco depois também me juntei a ele. Trabalhámos num agradável silêncio até ao momento em que Karin nos chamou para a primeira refeição do dia. Sentámo-nos no pátio, ao calor do Sol, com as nossas malgas de madeira cheias de fumegantes papas que comemos com a ajuda de pão escuro, já duro.

Odd regressou ao campo depois do primeiro almoço e eu reparei o cabo do seu sacho, que se soltara. Afiei-lhe a lâmina, bem como a da faca de cozinha de Karin. A seguir ajudei Ylva a esfolar três lebres que ela apanhara numa armadilha durante a noite. Esquartejámos as pequenas carcaças e esticámos as peles em estruturas de paus, para que secassem. Concluída essa tarefa, levei as vacas até ao lago, para beberem, e passei o resto da manhã a vigiá-las.

Após a refeição do meio-dia regressei ao campo, onde trabalhei na monda dos nabos até o Sol começar a afundar-se por trás das árvores.

Todavia, quando cheguei ao fim da última fileira, endireitei-me e olhei para trás. Embora fosse um escravo, executava o meu trabalho com todo o cuidado, como se ainda estivesse na abadia. Fazia-o para agradar a Gunnar mas também, o que era mais importante, para agradar a Deus, uma vez que as Sagradas Escrituras nos ensinam que um escravo deve servir bem o seu amo para o ganhar para o Reino dos Céus, e era isso o que eu pretendia fazer.

Admirava o meu trabalho quando Odd grunhiu para mim do outro lado do campo. Virei-me e olhei para onde ele apontava: aproximavam-se duas figuras escuras que saíam ousadamente da cobertura da floresta e avançavam para a casa.

Agarrei o sacho com força e corri para a casa tão depressa quanto podia.

- Karin! Karin! - gritei. - Vem aí alguém! Depressa, Karin, vem aí alguém!

Ouvi-me e apareceu a correr do interior da casa.

- Que barulho é esse que estás a fazer? - inquiriu, olhando-me rapidamente de alto a baixo.

- Vem aí alguém - repeti. - Além! - Apontei para trás de mim, para o prado. - Dois homens.

Karin semicerrou os olhos e observou a floresta. A sua expressão tornou-se mais séria.

- Não os conheço - disse, mais para si mesma do que para mim, para logo soltar toda uma fiada de palavras que não consegui compreender. Olhei-a, mas não tinha palavras para aquela situação e encolhi os ombros.

- Ah! - exclamou Karin, num tom cada vez mais urgente. - Ylva! No lago... Vai buscá-la! Depressa! - pediu, já a correr para dentro de casa. - Vai buscar o Surt. Depressa!

Corri através do pátio e para lá do celeiro, com os pés a martelarem no trilho de terra batida que conduzia ao lago dos peixes, que ficava no pequeno vale a norte da casa. Não era longe e encontrei a jovem Ilya, com o manto arregaçado até às ancas, a patinhar na água. Estava de costas para mim mas virou-se quando deslizei pela margem enlameada e só parei dentro de água.

- Aeddan, heya!- disse, bem-disposta. - Vem nadar!

A visão das suas coxas brancas, tão redondas e firmes, que se adelgaçavam delicadamente até aos joelhos, fez-me deter de repente. Por instantes até esqueci o que fora ali fazer. Olhei para as suas belas carnes e debati-me para recuperar a voz.

- É... é... - Obriguei-me a desviar os olhos daquelas pernas. - Vem aí alguém! Temos de ir! Depressa!

Virei-me e comecei a subir a vertente. Cheguei ao cimo e olhei para baixo. Ylva continuava na água e não fizera qualquer movimento para me seguir.

- Vem, Ylva! - gritei, olhando em volta, para as margens do lago. - Surt! - Chamei. Heya, Surt!

Compreendendo-me finalmente, a jovem saiu da água com leveza, baixando o manto enquanto o fazia. Tive um último relance daquelas encantadoras pernas quando começou a trepar a margem.

- Surt!- chamou. - Heya, Surt, vem aqui!

Ouvimos agitação nos arbustos quando o grande cão preto saltou para o caminho por trás de nós e nos ficou a olhar, na expectativa, com a boca aberta e a língua pendurada. Ylva correu para ele e segurou-o pela coleira com a sua elegante mão.

- Para casa, Surt!

Corremos os três de regresso à casa e vimos Karin, de mãos nas ancas, a enfrentar os estranhos que tinham acabado de entrar no pátio. Odd apareceu nesse momento na esquina da casa, de sacho na mão. Surt lançou uma olhadela aos dois homens, rosnou baixinho, no fundo da garganta, libertou-se da mão de Ylva e correu para o lado de Karin, começando a rosnar num tom mais alto. Ouvi Karin perguntar:

- Quem são vocês?

Os homens ignoraram-na e avançaram mais alguns passos. Surt rosnou com mais força, com os pêlos do lombo espetados como navalhas.

- Parem aí! - ordenou Karin, acrescentando mais qualquer coisa que não percebi.

Os homens pararam e olharam em volta. Um era louro e o outro era moreno, mas eram ambos guerreiros altos e musculosos, com longas barbas. O moreno usava uma comprida trança por cima do ombro enquanto o louro tinha o cabelo muito curto. Transportavam lanças, traziam espadas penduradas à cintura e longas facas enfiadas nos cintos de couro. Reparei que nenhum deles possuía capa, mas que um vestia uma túnica de couro, enquanto a do outro era de tecido e sem mangas. As suas botas altas, de couro, estavam bem gastas.

- Saudações, boa mulher - respondeu finalmente o estranho de cabelos louros, virando os seus olhos preguiçosos para nós. - Está um dia quente, heya?

- Há água no poço - retorquiu Karin. O gelo da sua voz estava de acordo com a arrogância dos bárbaros.

Os olhos frios do estranho saltaram para Ylva e demoraram-se nela.

- Onde está o teu marido? - perguntou.

- O meu marido está a tratar dos seus assuntos. - Os dois homens trocaram um olhar.

- E os assuntos do teu marido levaram-no até onde? - perguntou o moreno, falando pela primeira vez. A voz, não obstante a aparência do homem, era agradável e convidativa. - Longe?

- Não, está perto - respondeu Karin.

O estranho disse qualquer coisa que não compreendi. Sorriu, tranquilizador, dando um passo lento em frente. Odd agitou-se, inquieto, e Surt rosnou.

Ao que me pareceu, a resposta de Karin foi curta e defensiva mas não sei o que ela disse. Movi-me para me pôr ao lado de Odd, desejando que o teste de Gunnar tivesse sido naquele dia em vez de no anterior. Karin voltou a falar, creio que numa espécie de desafio.

O homem louro respondeu e entendi algumas palavras: "Rei Harald Berro-de-Touro", "mensagem" e "homens livres de Skania." Pareceu-me tratar-se de uma comunicação de alguma importância e lamentei os meus reduzidos conhecimentos da língua, que se limitavam quase só aos trabalhos na quinta.

Penso que Karin os interrogou a respeito da mensagem, mas fê-lo num tom de aguda desconfiança. Foi o guerreiro moreno quem lhe respondeu. Ouvi-o dizer:

- Só para o Gunnar... queremos falar com ele agora...

- Não devemos lealdade a ninguém, excepto a Ragnar Cabelos-Amarelos! - retorquiu Karin, sem entoação.

- Ragnar Cabelos-Amarelos - troçou o bárbaro louro - deve lealdade a Harald Berro-de-Touro...

- Sem dúvida - continuou o moreno, com um tom suave - e o próprio Cabelos-Amarelos to diria, se estivesse aqui. Infelizmente... - Abriu a mão vazia num gesto de impotência. Contudo, reparei que a outra mão, a direita, pousara no punho da espada.

- Se recusares... - disse o outro, pronunciando palavras que não reconheci - ... com Gunnar, agora... será pior para ti.

- O meu marido não está cá neste momento - declarou Karin. - Transmitam-me a mensagem ou esperem pelo seu regresso.

O moreno pareceu ficar a pensar no assunto. Virou mais uma vez os olhos para Ylva, que se encontrava a meu lado.

- Esperaremos - decidiu.

Karin fez um aceno cortês e disse qualquer coisa a respeito do poço e do celeiro. A seguir virou-se, chamou Ylva e voltou para casa caminhando com movimentos rígidos. Os homens viram-na a afastar-se sem nada dizerem, mas o seu silêncio era claramente encrespado. Também não gostei da maneira como olharam para Ylva, pois vi sinais de ameaça nas suas prolongadas miradas.

O Odd e eu regressámos às nossas tarefas. As vacas encontravam-se no prado mas, com a ajuda de Surt, reuni-as rapidamente e levei-as para o cercado do gado. Acabei de as mungir, dei de beber ao cão e levei o leite para a casa.

Ia a entrar no pátio quando ouvi vozes que pareciam estar a discutir. Apressei o passo, dobrei a esquina da casa e vi Ylva na frente do celeiro, entre os dois bárbaros. O louro tinha-a segura por um braço, a jovem procurava libertar-se mas o homem segurava-a com demasiada força. Os dois homens conversavam um com o outro e com Ylva, em tons brincalhões, todos cheios de sorriso e de lisonjas. Ylva, contudo, parecia implorar - que a libertassem, creio - e a sua expressão era de medo.

Pousei o jarro do leite junto à porta e entrei no pátio.

- Ylva... - disse, chamando-a e avançando para eles, como se tivesse andando à procura dela - a Karin está à tua espera.

Ylva virou-se ao ouvir-me e implorou-me ajuda com os olhos.

- Tenho de ir - disse, para os homens.

- Não - retorquiu o louro. - Fica e conversa connosco.

- Vinte moedas de prata - declarou o moreno, ignorando-me. - Darei vinte moedas...

- Vinte! - troçou o companheiro. - Isso é muito mais do que tu...

Não consegui compreender nada do que disse a seguir, mas o amigo replicou:

- Não sabes nada, Eanmund. - Virou-se para Ylva e acrescentou:

- Darei vinte e cinco moedas de prata por uma boa esposa. És uma boa esposa?

- Por favor... - respondeu Ylva, numa voz fraca e muito assustada - tenho de ir. - Disse mais qualquer coisa, que tomei como sendo um pedido para que a largassem.

- Heya! - intervim, avançando com muito mais ousadia do que aquela que na verdade sentia. Apontei para Ylva e disse-lhes: - Querem-na na casa.

O louro largou Ylva, virou-se para mim, pousou as duas mãos no meu peito e empurrou-me para trás.

- Vai-te embora, escravo! - gritou.

Ylva, momentaneamente livre, tentou escapar-se, mas não conseguiu dar mais de três passos antes do homem moreno voltar a agarrá-la. Puxou-a com força para o celeiro, falando-lhe com modos duros. Pus-me de pé e preparava-me para correr para ir avisar a Karin quando ouvi um curioso grito estrangulado.

Virei-me e avistei Odd, agarrado ao sacho, que avançava para nós com passos curtos e rápidos. Tinha o rosto vermelho de raiva.

- Não, Odd! - gritei-lhe. - Pára! - Virei-me para os bárbaros e acrescentei: - Larguem-na, por favor! O Odd não... - O meu pobre domínio da lingua abandonou-me. "Pensa" não era a palavra que me fazia falta. Compreende! - Por favor, ele não compreende!

- Odd! - exclamou Ylva - Volta para trás! - Disse mais coisas mas não serviu de nada porque Odd continuou a avançar, empunhando o sacho como se fosse uma arma. Voltou a emitir o seu estranho mugido e compreendi que estava a tentar articular o nome da jovem.

Temendo o embate que se iria seguir, virei-me e corri para a casa, gritando por Karin. Não sei se me ouviu ou se foi atraída pelos gritos no pátio, mas apareceu à porta quando lá cheguei.

- Depressa! - disse-lhe, apontando para o celeiro onde os estranhos, ainda a segurarem Ylva, enfrentavam Odd.

- Nay! Nay!- Gritou Karin, já a correr para o celeiro.

De súbito, surgiu-me uma ideia na cabeça: o Surt!

Apressei-me na direcção da cerca para o gado, chamando o cão enquanto corria. Surt ouviu-me e foi ter comigo ao caminho. Agarrei-o pela coleira e disse-lhe:

- Vem, Surt!

Regressei ao pátio a toda a pressa e encontrei Ylva e Karin a gritarem para Odd, que parecia estar a abraçar o estranho de cabelos louros enquanto o outro homem do rei lhe batia nas costas com o punho da espada. Quando me encontrava mais perto, vi Odd levantar o homem em peso, num abraço esmagador.

Os olhos do louro estavam fechados contra a dor enquanto agitava as pernas para tentar libertar-se. Por fim, o amigo lançou um golpe contra a base do pescoço de Odd. O gigantesco escravo soltou um grunhido e largou a sua presa. O louro caiu no chão, onde ficou a ofegar, enquanto Odd cambaleava para trás e se ia abaixo. Quando o estranho moreno se baixou para o amigo, Karin aproveitou a oportunidade, agarrou Ylva por um braço e puxou-a para longe.

Surt, vendo os seus a serem maltratados, rosnava e tentava lançar-se para a frente. A luta pareceu terminar mas mantive-o bem agarrado pela coleira. Era tudo o que podia fazer para o dominar. Estávamos a chegar ao local onde Karin e Ylva se encontravam quando o bárbaro começou a levantar-se com dificuldade. Pôs-se de pé, agarrado às costelas e a praguejar, com sangue a escorrer-lhe de um canto da boca.

A seguir, o louro arrancou a espada das mãos do companheiro e virou-se para Odd, que se encontrava sentado no chão, agarrado à cabeça e a gemer. Sem sequer pronunciar uma palavra, o bárbaro louro cravou a ponta da espada no peito do escravo.

O pobre Odd olhou para cima, surpreendido. A sua mão agarrou na lâmina nua e tentou puxá-la... mas o estranho obrigou a lâmina a penetrar ainda mais fundo, com o rosto transformado numa careta de satisfação brutal.

Ylva guinchou. Karin soltou um grito e puxou a jovem para trás das costas.

Vi a maléfica lâmina a sair do corpo de Odd, vermelha e a pingar, e também o bárbaro a levantar o braço para um segundo golpe. Odd caiu para trás e contorceu-se, tentando escapar. Antes de compreender perfeitamente o que estava a fazer, deixei que os meus dedos largassem a coleira do cão.

- Vai, Surt! - gritei-lhe.

Ouvi-se um som estranho, uma espécie de sussurro. O louro olhou para cima e viu a morte a precipitar-se para ele sob a forma de um cão negro. O bárbaro moreno ainda fez uma tentativa desajeitada para o agarrar quando aquela mancha escura passou junto dele.

O homem do rei virou-se, com a lâmina a brilhar no braço levantado.

Surt, com os dentes completamente a descoberto, ainda se encontrava a três passos de distância quando saltou. O animal atirou-se contra o peito do homem com todo o seu peso, derrubou-o... e o pátio ecoou um grito subitamente interrompido quando as maxilas do animal se fecharam sobre a garganta do bárbaro.

O moreno lançou-se para a frente mas Surt já sacudia furiosamente a sua vítima loira, acabando-lhe com a vida. Karin gritou a Surt que parasse mas o animal já saboreara o sangue e não se mostrava disposto a largar a sua presa.

Agarrando na espada caída, o bárbaro moreno lançou um golpe rápido contra a base da cabeça do cão, que caiu e rolou para um lado com os dentes ainda cravados no ferimento da sua vítima.

O bárbaro contorceu-se no chão com a garganta a emitir um peculiar som gorgolejante. De repente, tossiu violentamente e expeliu uma espécie de neblina vermelha de sangue. As suas pernas endireitaram-se, arqueou as costas, afastando-as do chão... e foi-se abaixo com um suspiro áspero quando o ar se lhe escapou dos pulmões.

Karin e eu corremos para Odd... que parecia sereno e pensativo como se estivesse a contemplar o céu sem nuvens. Contudo, os olhos que fitavam as alturas já contemplavam um reino diferente do nosso. O sangue deixara de lhe escorrer dos ferimentos e a respiração não lhe agitava os pulmões.

Caiu um silêncio pesado sobre todo o pátio. Sentia a cabeça a pulsar com o som do meu próprio sangue a correr-me nos ouvidos. Desviei os olhos daquela visão de morte e avistei Ylva, de mãos apertadas contra a boca, a soluçar e com os seus membros a tremerem de alto a baixo. O meu primeiro impulso foi o de correr para ela para a reconfortar... mas ainda mal me virara para dar o primeiro passo quando fui detido por um rosnido de raiva:

- Escravo!

O estranho que estivera ajoelhado ao lado do corpo do companheiro levantou-se, empunhando a espada, e avançou devagar para mim cuspindo palavras que não fui capaz de compreender. Contudo, o seu significado era bastante claro: queria matar-me. Não tenho dúvidas de que o teria feito - tão facilmente como ao cão -, se não fosse a rápida intervenção de Karin.

- Pára! - gritou, estendendo a mão para o bárbaro. - Estas terras são de Gunnar Maço-de-Guerra e já lhe mataste um escravo e um cão... - Acrescentou mais qualquer coisa que não entendi, mas apontou para Ylva e suponho que estaria a dizer que as ameaças à jovem seriam relatadas, bem como as mortes de Odd e Surt.

O bárbaro moreno continuou a avançar, espumando de raiva. A lâmina na sua mão levantou-se para a minha garganta. Vi-lhe o ódio nos olhos mas senti-me estranhamente calmo, como se tudo aquilo tivesse acontecido há muito... e a um outro Aidan.

A ponta da espada aproximou-se.

O golpe atingiu-me num dos lados da cabeça... Todavia, não fora dado com a espada mas sim com o punho que a segurava. Caí imediatamente, cego pela dor, e fiquei à espera do golpe final que me iria separar a alma do corpo. Estava vagamente consciente dos lamentos de Ylva, que gritava e chorava, implorando o fim da matança.

Karin soltou novo grito. Olhei para cima e vi que agarrara um braço do estranho, o que empunhava a arma, impedindo-o de completar o golpe.

- Basta! - exclamou. - Queres matar dois dos escravos de Gunnar?

O homem do rei hesitou e a ponta da espada vacilou enquanto analisava as opções. Karin, com uma expressão sombria e ameaçadora, pronunciou um aviso num tom baixo e o braço que segurava na espada descontraiu-se lentamente. Mantendo a sua expressão assassina, o bárbaro embainhou a espada, proferiu uma jura murmurada e virou-se.

Pus-me de pé com a cabeça a pulsar, e sacudi o pó das roupas.

Karin aproximou-se de Ylva e falou-lhe com rispidez. O choro da jovem transformou-se numa lamúria fraca.

- Vem - disse Karin, passando um braço por cima de Ylva. Virou-se para o homem do rei e para mim e ordenou: - Enterrem-nos.

As duas mulheres regressaram à casa, caminhando lentamente e com grande dignidade, deixando-me a mim, e ao meu inimigo, a tarefa de tratarmos dos corpos. Arrastámo-los até ao lago dos patos, servimo-nos da pá de madeira de Gunnar e de parte de um arado de ferro e escavámos duas covas na terra macia da margem. Na verdade, quem cavou fui eu, porque o homem do rei se sentou logo que chegámos ao lago, não quis fazer mais nada e deixou todo o trabalho a meu cargo.

Quando terminei, o estranho aliviou o corpo do amigo de todos os artigos valiosos, incluindo o cinto da espada, as botas e a jaqueta. A seguir voltou a sentar-se e ficou a olhar enquanto eu rolava os corpos para os túmulos. Entretanto, o bárbaro serviu-se de gestos e de ameaças murmuradas para me dar a saber que, se pudesse, em breve me juntaria àqueles dois.

Não me agradava ver Odd a ser enviado para o seu descanso final sem uma última demonstração de respeito pelo seu falecimento. Era verdade que não se tratava de um cristão, mas de qualquer modo pareceu-me que continuava a ser filho do Padre Eterno e que merecia ser tratado como tal. Na realidade, se eu fosse um monge melhor do que era, poderia ter-lhe falado do Filho Eterno e talvez tivesse acreditado. Por isso, compus uma oração para ele e proferi estas palavras enquanto atirava terra para cima do corpo:

- Ouve-me, Senhor do Céu, que concedes as tuas dádivas a todas as almas que caminham no mundo cá em baixo, sejam elas cristãs ou pagãs. Odd era um escravo que trabalhava duramente para o seu amo. Creio que amava Uva e morreu a tentar protegê-la. Jesus disse que não há amor maior do que o de um homem que entrega a vida por um amigo. Conheço muitos cristãos que não o fariam. Por isso, Senhor, concede esse crédito ao Odd. Se houver espaço no teu salão de banquetes para um homem cuja vida foi vivida sob a luz em que ele a viveu, então permite-lhe que se junte ao festim celestial, não para seu bem, mas em nome do Teu próprio Filho. Amém, assim seja.

O bárbaro não deixou de me fitar, furioso, enquanto eu rezava. Quando terminei, agarrou-me pela minha coleira de escravo e cuspiu... para a minha cara e para dentro do túmulo. Puxando a coleira com toda a força, obrigou-me a pôr-me de joelhos e pontapeou-me no estômago, uma vez... duas vezes... À segunda vez largou-me a coleira, o que me fez cair de costas no túmulo, em cima do cadáver do pobre Odd. A seguir começou a atirar terra para cima de mim, como se quisesse enterrar-me vivo.

Contudo, em breve se cansou e voltou a sentar-se. Trepei cautelosamente para fora do túmulo e prossegui com os enterros, fazendo uma pausa para também murmurar uma oração pelo estranho.

- Meu Bom Deus... - disse - entrego-te um homem que viveu pela espada. Conheces os seus actos, porque a sua alma está na tua presença neste momento. Lembra-te da piedade quando fizeres o teu julgamento. Amém.

O homem moreno olhava-me com espanto. Não sei o que o poderia ter espantado tanto, mas dessa vez não cuspiu para cima de mim. Acabei de colocar a terra sobre os corpos e de a comprimir, marcando os túmulos com uma pedra redonda que fui buscar ao lago. Também enterrei o cão numa cova pouco profunda, ao lado dos dois homens, mas não proferi nenhuma oração pelo animal. Quando terminei, olhei em volta mas o homem do rei desaparecera e não o vi em lado nenhum quando voltei para casa.

Nessa noite fiquei deitado durante muito tempo, sem conseguir adormecer por causa da curiosa e inquietante sensação que sentia a esvoaçar-me no peito. Não era medo do homem do rei, nem me preocupava o facto de poder tentar fazer-nos mal enquanto dormíamos. Não. Era antes a ideia de que causara a morte a outro ser humano, embora se tratasse de um pagão. Num certo momento ainda existia, mas agora já não... e o responsável fora eu.

Mesmo assim, não sentia qualquer espécie de remorsos. O que fizera, fora para salvar Odd. Envergonho-me de o dizer, mas a única coisa que lamentava era ter demorado tanto. O meu coração, a minha mente, todo o meu ser, estavam consumidos com a certeza de que Odd ainda poderia estar vivo se eu tivesse libertado Surt mais cedo.

Claro que sabia que deveria sentir um profundo desgosto e culpa por um pecado com uma tão iníqua envergadura. Que Cristo me salve... mas a verdade é que não consegui descobrir em mim o mínimo sinal de arrependimento, pelo que continuei a jazer na minha cama de palha tentando conseguir um sincero sentimento de remorsos pelo mau acto odioso. Ah, mas a rebeldia ainda continuava a manter-me preso nas suas garras maléficas e eu sabia, sem qualquer espécie de dúvidas, que não hesitaria se tivesse de voltar a fazer o mesmo. Por fim, desisti do sono e desci até ao lago, onde me despi e meti dentro da água até à cintura, recitando os Salmos e pondo em prática o tipo de castigo que já fora o meu preferido.

Contudo, a água não estava suficientemente fria para dar origem a uma verdadeira penitência. Na verdade, achei que aquelas águas frescas e paradas eram refrescantes sobre a minha pele, e que a profunda tranquilidade da noite era um bálsamo para a alma. No fim, tive de admitir a derrota. Icei-me para fora da água e adormeci na margem enquanto a pálida Lua lascada pousava sobre as árvores.

 

Gunnar regressou ao crepúsculo do dia seguinte. O homem do rei esperara durante todo o longo dia de Verão, mantendo uma vigília sombria e meditativa no meio dos bosques. Vi-o uma ou duas vezes enquanto estive à pesca. Mais tarde, quando estava a limpar o peixe, quando ouvi Gunnar a gritar, anunciando a sua chegada. O senhor da casa entrou no pátio chamando pela esposa e pedindo uma taça. Larguei o trabalho e fui ter com ele, com o estômago a contorcer-se numa aterrorizada antecipação.

Estavam todos de pé, no pátio, junto à casa. O pequeno Ulf contorcia-se sob o abraço da mãe e tinha uma faca enfiada no cinto. Reparei que Helmuth calçava botas novas e carregava um fardo de roupas.

- Onde está esse estranho? - perguntou Gunnar, quando me juntei a eles. A satisfação da chegada transformara-se numa amarga desconfiança.

- Não o vi desde as mortes - disse Karin.

Gunnar virou-se para mim com o rosto a contrair-se numa carranca.

- Ajudou-me a... - hesitei, tentando descobrir as palavras.

- A enterrá-los - interveio Karin, completando a minha frase. - Ajudou Aeddan a enterrar os corpos.

- Eram dois? - grunhiu Gunnar, com a ira a crescer.

- Sim, dois. Um matou o Odd, e o Surt matou-o - expliquei, o melhor que podia. - O outro matou o Surt.

- O Surt matou um deles?

- Heya - confirmei.

- Disseram que eram homens do rei Harald... e que vinham à tua procura, marido... - prosseguiu Karin, mas eu perdi o fio à sua narrativa - ... e que só Gunnar podia escutar a mensagem...

Começaram a falar um com o outro tão depressa que não consegui acompanhar o que disseram, mas penso que estavam a discutir como as mortes tinham acontecido. Sei que ouvi o nome de Ylva, e também o meu, porque Gunnar se virou para mim e perguntou qualquer coisa que não compreendi. Abanei a cabeça, impotente.

Helmuth, que se encontrava por perto, disse:

- Quer saber se é verdade que soltaste o cão. Virei-me para Helmuth e pedi-lhe:

- Explica-lhe que pensei apenas em proteger o Odd, mas que não actuei suficientemente depressa para evitar o ataque.

O meu amo disse mais qualquer coisa e voltou a repetir a pergunta. Helmuth transmitiu-me as suas palavras:

- Pergunta se soltaste o cão. Diz-lhe a verdade.

- Sim, soltei-o - repliquei. Que Deus me perdoe, mas não senti qualquer culpa.

- Óptimo - retorquiu Gunnar, num tom rude.

Foi nesse preciso momento que Helmuth levantou a sua vara dos porcos e apontou para o pátio.

- Aí vem ele, patrão - declarou.

Gunnar lançou uma olhadela ao estranho que se aproximava e virou-se para Karin e Ylva.

- Vão para casa e fiquem lá.

Karin pegou na mão de Ulf e arrastou-o consigo. Desapareceram no interior da casa e Gunnar avançou ao encontro do intruso.

- Vocês dois vêm comigo - ordenou, fazendo sinal a Helmuth e a mim para o seguirmos. - É este o homem? - perguntou, quando acertei o meu passo pelo dele.

- Sim - respondi, com um aceno de confirmação.

Quando se encontravam separados por cerca de doze passos, Gunnar parou e esperou que o estranho se aproximasse. Não parecia estar em pior estado depois de ter passado a noite nos bosques, mas o seu aspecto também não melhorara. Tinha as mãos sujas e os olhos vermelhos de falta de sono. Gunnar dirigiu-se-lhe quando o homem se aproximou. Compreendi algumas das coisas que foram ditas e Helmuth explicou-me o resto mais tarde.

- Dizem que são homens do rei... - declarou Gunnar, com secura - mas pergunto a mim mesmo o que faria o vosso rei a homens que violassem uma sua familiar e lhe matassem um escravo e um cão?

- Ninguém violou a tua familiar - murmurou o guerreiro, empalidecendo. - Só queríamos falar com ela.

- E quanto ao Odd? Como não entendia a vossa fala, devem ter pensado que compreenderia a espada. Penso que vos compreendeu muito bem...

- Eanmund matou-o - replicou o bárbaro moreno. Continuou, apontando um dedo acusador para mim. - Ele matou Eanmund. Soltou o cão. Quanto à rapariga, não sabíamos que era da tua família. Pensámos que era uma escrava.

- Por vossa causa - declarou Gunnar - o meu bom escravo está morto, e também o meu cão. Que tens a dizer a esse respeito?

- Se te sentes prejudicado, apresenta a tua queixa perante o monarca. Quanto a mim, só te digo isto: chamo-me Hrethel e estou habituado a reunir em conselho nos salões de jarls e reis, mas tu conservas-me aqui, de pé, como se eu fosse um escravo ou um estrangeiro.

- Ainda continuas à espera da taça das boas-vindas? Pensas que te deverei oferecer a minha melhor cerveja depois de teres trazido a morte e o desgosto à minha casa? - Gunnar soltou uma gargalhada seca. - Dá-te por satisfeito por não derramar o teu sangue.

- Sou um homem de posição - retorquiu o estranho. - Só pretendo que tenhas isso em mente.

- Então deixa de te preocupar... - ripostou Gunnar, com desprezo - porque sei muito bem que espécie de homem tenho na minha frente.

Hrethel fez uma careta mas abandonou as tentativas para levar a melhor sobre Gunnar.

- A mensagem que trago é esta: O rei Harald Berro-de-Touro proclamou uma theng que deverá iniciar-se na primeira Lua Cheia depois da próxima. Como homem livre e detentor de terras de Skania, ordena-te que estejas presente.

- Sou um seguidor do já´rl Ragnar... - respondeu Gunnar, semicerrando os olhos.

- Ragnar Cabelos-Amarelos jurou lealdade a Harald. Portanto, és convocado juntamente com o teu rei. Se não compareceres, as tuas terras serão confiscadas a favor do rei Harald.

- Compreendo... - Gunnar afagou o queixo, pensativo. - E é tudo? Então trata-se de uma mensagem que poderia muito bem ter sido entregue à minha mulher ou ao meu escravo. Se o tivesses feito, o escravo e o cão ainda estariam vivos.

- Fui encarregue pelo meu rei de transmitir a mensagem aos jarl e homens livres de Skania - troçou Hrethel - e não às suas mulheres ou escravos. Já o fiz e agora vou-me embora.

- Sim, segue o teu caminho - respondeu Gunnar. - Não te impedirei. Podes ter a certeza de que irei ao theng... porque pretendo expor o vosso crime perante o monarca.

- Estás no teu direito - confirmou Hrethel com um aceno, exibindo uma expressão indignada.

Deu meia volta, saiu do pátio, atravessou o prado e entrou na floresta. Gunnar observou-o até o ver desaparecer e virou-se para mim:

- Irás comigo ao conselho - disse, espetando um dedo no meu peito. - Viste o que aconteceu e explicarás tudo ao rei.

Gunnar não deixou transparecer, nem nessa noite nem nos dias que se seguiram, se a mensagem que acabara de receber o preocupara. A vida na pequena propriedade prosseguiu tal como antes. Todavia, com a morte de Odd todos nós tínhamos agora muito mais que fazer. Tomei ao meu cuidado a maior parte das suas tarefas mas não considerei isso como uma provação porque me permitia conversar mais frequentemente com Helmuth. Apliquei-me aos afazeres da propriedade e não fui menos diligente na aprendizagem da fala. Pratiquei aquela rude língua sempre que pude, tanto com a ajuda de Helmuth como sozinho. A minha confiança foi aumentando e comecei a falá-la com mais precisão. Reconheci que, se tinha de ir fazer um relato na presença do rei, então seria bom melhorar a fluência e foi essa a ideia que inspirou os meus esforços. Helmuth ajudou-me a preparar a declaração que iria ter de fazer, interrogou-me como se fosse o monarca de todos os dinamarqueses e eu respondi uma e outra vez até ser capaz de descrever com clareza tudo o que se passara no dia da morte de Odd.

Quando não me encontrava a praticar aproveitava o tempo para rezar, tal como me parecia apropriado, e os meus pensamentos viraram-se repetidamente para os meus irmãos em peregrinação. Era frequente que me interrogasse sobre onde se encontrariam, o que estariam a fazer e o que lhes teria acontecido desde que os vira pela última vez. Rezei por eles ao longo dos dias, implorando a Miguel que os protegesse e aos seus anjos que os guardassem ao longo do caminho. O Verão aproximou-se, os dias foram passando e a data para o theng estava cada vez mais próxima. Um dia recebemos a visita de um homem livre, dono de uma propriedade vizinha, que queria falar com Gunnar. Chamava-se Tolar e ia a caminho do mercado. Parou para uma refeição mas não ficou durante a noite. Não sei de que falaram, mas Gunnar ficou muito pensativo depois da sua partida.

A partir desse dia, Gunnar passou a revelar-se cada vez mais irritadiço e embirrento. Encontrava defeitos em tudo, ninguém lhe conseguia agradar e até gritou com Ulf por uma ou duas vezes. De facto, uma noite, pouco antes da nossa partida, tornou-se tão desagradável que saí da casa e fui sentar-me num toco de árvore, no pátio, para poder comer a minha refeição em paz e não ter de ouvir as suas queixas, Gozava o calor da noite e o prolongado crepúsculo do norte quando ganhei consciência de que alguém se aproximara sub-repticiamente e se encontrava agora a meu lado.

Abri os olhos, levantei a cabeça e vi Ylva parada por cima de mim, com as mãos postas, tal como as minhas haviam estado, numa atitude de oração.

- Estás novamente a cantar ao teu deus, heya? - perguntou.

- Sim.

- Talvez esse teu deus possa ajudar o nosso Gunnar... Como não sabia o que responder àquilo, limitei-me a concordar.

- Sim, talvez.

- Há qualquer coisa a morder a mente de Gunnar... - declarou a jovem tranquilamente, ajoelhando-se nas ervas ao lado do toco. - Está preocupado com o theng. Receia que as coisas possam correr mal quando lá estiver.

Virei-me para lhe ver o rosto sob a suave luz do entardecer. A sua maneira, era um belo rosto, de feições finas, bondoso, com uns profundos olhos castanhos e um nariz pequeno e direito. As longas tranças continuavam impecáveis depois de todo um dia de trabalho. A jovem alisou o manto com as mãos. As suas roupas ainda traziam consigo o cheiro da cozinha.

- Fala-me desse... desse theng - sugeri.

- Bom, é o theng - respondeu. - É um... - hesitou, pensando na melhor maneira de mo descrever - um lugar onde os jarls e os homens livres se reúnem para conversar...

- Um conselho - resumi, desenhando um círculo no ar.

- Heya! - exclamou, acenando com vivacidade. - Um círculo de conversas.

- O Gunnar tem alguma finalidade... não, não era isso o que queria dizer... - Fiquei a pensar por instantes. - Motivo! Tem algum motivo para temer o conselho?

Abanou a cabeça e olhou para as mãos pousadas no colo.

- Nenhum... que eu saiba. Das outras vezes sempre aceitou bem o theng. Toda a gente bebe a cerveja do rei e se embebeda. É agradável para eles, suponho.

- Ylva... - pedi, numa inspiração súbita - fazes-me uma coisa? Olhou para mim, desconfiada.

- Que queres que faça?

- Serás capaz... - Detive-me, porque ainda não conhecia a palavra - A... de me cortar, aqui? - Levei a mão à cabeça coberta de pêlos. - Aqui?

- Queres que te rape a cabeça? - perguntou, rindo-se.

- Heya! Quero que ma rapes. Se tenho que me apresentar perante o rei, então quero parecer um...

- Um cabeça-rapada - declarou, fornecendo o termo bárbaro para "sacerdote."

- Sim, quero parecer um cabeça-rapada. Fazes-me isso?

Ylva concordou, foi buscar a navalha de Gunnar e uma taça com água. Instalou-se no toco de árvore e eu no chão, à sua frente. Seguindo as minhas indicações, renovou a minha tonsura com gestos rápidos dos seus dedos ágeis. Karin, preocupada com a ausência de Ylva, apareceu no pátio para nos procurar. Quando viu o que estávamos a fazer, voltou para casa à pressa e chamou Ulf e Gunnar para que estes também vissem o que se passava. Consideraram a visão imensamente divertida e soltaram longas gargalhadas à minha custa.

Se a visão de um monge lhes dava tanto prazer... pois que assim fosse. As gargalhadas, conclui, eram uma das mais pequenas provações que um sacerdote da Santa Igreja tinha de suportar. De qualquer modo, não havia desprezo naquele riso.

Tolar chegou no dia anterior ao da nossa partida para o conselho do rei. Tal como descobri em breve, ele e Gunnar eram bons amigos, faziam frequentemente companhia um ao outro nas idas ao mercado e também em ocasiões especiais como aquela, em que se preparava um theng. Na manhã seguinte, Karin, Ulf e Ylva saíram para o pátio para se despedirem de nós.

Karin desejou boa sorte ao marido e deu-lhe um embrulho com comida, que Gunnar guardou no saco que usava à cintura. Ylva também lhe desejou boa sorte para a jornada. Contudo, a seguir virou-se para mim e declarou:

- Fiz isto para ti, para comeres pelo caminho.

Meteu-me uma bolsa de couro nas mãos, inclinou-se e beijou-me rapidamente na face.

- Que Deus te acompanhe, Aeddan. Que faças uma boa viagem e regresses em segurança.

A seguir, envergonhada com a sua própria ousadia, baixou a cabeça e correu para o interior da casa. Estupefacto, via-a desaparecer na porta.

A minha face parecia arder no local onde os lábios da jovem me tinham tocado e senti as cores a subirem-me ao rosto.

Gunnar já se virara mas Tolar continuava a olhar-me, sorrindo ante o meu embaraço.

- Fiz isto para ti - repetiu, rindo-se sozinho e dando uma palmadinha na bolsa de couro quando passou por mim.

Ulf e Garm acompanharam-nos até à beira da floresta, altura em que Gunnar mandou o filho voltar para trás depois de uma última despedida. Virámo-nos para o trilho e começámos a caminhar a sério. Garm, com o focinho colado ao chão, corria à nossa frente, investigando a pista e os arbustos de cada lado da mesma. Descansámos e bebemos por volta do meio-dia. Enquanto os outros dormitavam, aproveitei a oportunidade para examinar a bolsa que Ylva me dera: no seu interior havia cinco discos duros, castanhos e achatados, que cheiravam a nozes e mel. Parti um bocado de um, saboreei-o e achei que era doce e bom. Comi metade de um daqueles discos e ganhei o hábito de comer uma metade por dia.

Caminhávamos depressa, com passos regulares e firmes, e descansávamos apenas duas ou três vezes por dia. Parávamos cedo e levantávamo-nos de madrugada para continuarmos a nossa marcha. Foi apenas ao fim da tarde do terceiro dia que soube quais as dúvidas que preocupavam Gunnar. Parámos junto a um ribeiro para acamparmos, e o meu amo sentou-se com os pés dentro de água. Descalcei os sapatos e também me sentei, um pouco afastado.

- Ah, isto é bom, depois de um longo dia de marcha - disse-lhe.

- Também temos florestas no Eire, mas não como esta.

- É uma grande floresta, creio - respondeu, olhando em volta, como se estivesse a vê-la pela primeira vez - mas não tão grande como algumas.

Baixou o olhar e a sua expressão voltou a ensombrar-se. Deixou passar alguns instantes e respirou fundo.

- Dizem que Harald vai, mais uma vez, aumentar os tributos. Ragnar deve a Harald um tributo muito grande e todos temos de ajudar a pagá-lo. Torna-se cada vez mais difícil, de ano para ano. - Falava mais para ele próprio do que para mim, como se estivesse apenas a pensar em voz alta.

- Harald é um homem muito ganancioso. Por muito que lhe demos, nunca é o suficiente. Quer sempre mais.

- Os reis são todos assim... - comentei.

Também têm reis gananciosos na Irlândia, heya? - Gunnar abanou a cabeça. - Contudo, penso que não deve haver nenhum tão ganancioso como Harald Berro-de-Touro. É por causa dele que partimos a-viking. Quando as colheitas não são boas e o Inverno é mau... temos de ir à procura de prata em qualquer lado.

Ficou em silêncio durante um bocado, olhando para os pés metidos na água como se fossem eles a causa para os seus problemas.

- Esses ataques são difíceis para um homem com mulher e filho... - suspirou, e eu senti todo o peso do seu fardo. - São bons para os jovens que não têm nada. Os ataques ensinam-nos muitas coisas úteis para um homem. Por outro lado, se obtiverem prata podem arranjar uma esposa e terra suas.

- Compreendo.

- Contudo, as coisas já não são tão fáceis como eram nos tempos em que o meu avô eram um jovem - confidenciou Gunnar. - Nessa altura, só atacávamos em tempo de guerra... ou para encontrarmos esposas. Agora temos de atacar para satisfazer a fome de prata de jarls gananciosos. Não é bom...

- Heya, não é nada bom - concordei, compreensivo.

- Não gosto de deixar a Karin e a Ylva sozinhas. Tenho uma boa propriedade, com boa terra... mas não há muita gente por aqui e se acontecer alguma coisa quando estou fora... - Não completou o pensamento.

- As coisas não são tão más para os jovens que não têm esposas. Mas... quem será o companheiro de Karin se eu não regressar? Quem ensinará Ulf a caçar?

- Talvez Harald não aumente os tributos, este ano... - sugeri, esperançado.

- Nay... - murmurou, virando os seus olhos pesarosos para mim - nunca ouvi falar num jarl que não o fizesse...

 

Depois de caminharmos quatro dias - sempre mais ou menos para leste - chegámos a um grande rio rodeado por prados fluviais de ambos os lados. No centro do prado no outro lado do rio erguia-se uma enorme pedra que marcava o círculo do conselho, o local do theng. Na vasta planície, e também mais abaixo, nas suaves vertentes das margens do rio, via-se um certo número de acampamentos, na sua maioria formados por cabanas improvisadas, embora alguns se pudessem gabar de possuir tendas feitas com peles de boi.

Atravessámos o prado e caminhámos ao longo da margem do rio até à vau.

- Ah, olha, Tolar... - disse Gunnar, apontando para uma das tendas - ali está a tenda de Ragnar.

Tolar confirmou com um aceno e respondeu:

- Talvez nos possam dizer por que motivo fomos convocados deste modo.

Atravessámos o rio e chegámos à outra margem, onde Gunnar e Tolar foram saudados por homens de vários acampamentos, a quem responderam alegremente à medida que avançávamos. Alguns fitavam-me de esguelha, com olhos pouco amistosos, mas ninguém me fez parar nem me desafiou, talvez porque fora encarregue da tarefa de segurar Garm pela coleira para que o cão não fosse lutar com um dos muitos que se encontravam de guarda aos vários acampamentos. Fosse como fosse, fiquei aliviado por ninguém me pedir explicações, e satisfeito por poder observar o que me rodeava.

Julgara, devido ao facto de viver entre os bárbaros, que já me tornara indiferente aos seus hábitos e aparência. Estava enganado. O que os meus olhos viram à medida que atravessávamos os vários acampamentos quase me fez abrir aboca de espanto. Vi homens - e mulheres também, porque havia ali muitas - cobertos com as peles de animais selvagens e com um aspecto muito mais feroz do que as feras cujas peles envergavam. Outros não usavam nada e tinham os corpos manchados por estranhos desenhos em azul e ocre. Eram todos grandes, uma vez que os dinamarqueses são uma raça extraordinariamente alta, e muitos deles, embora fossem adultos, tinham os cabelos tão claros como donzelas. Contudo, quer fossem louros ou morenos, a maioria usava os cabelos amarrados em espessas tranças decoradas com penas, folhas, conchas e ornamentos de madeira.

Não pude deixar de abanar a cabeça de espanto.

Alguns bárbaros, acabados de chegar, saudavam os conhecidos com exclamações e muita agitação, enquanto outros trabalhavam na construção de abrigos e de locais para dormir. Toda a gente falava alto, no meio de muitos gritos e berros. Oh, são uma raça barulhenta... e eu quase nem conseguia pensar.

A mistura de cheiros dos cozinhados que tinham lugar nas mais variadas fogueiras fez-me sentir água na boca mesmo apesar do fumo me arder nos olhos. Passámos por vários pequenos acampamentos e fogos de cozinha e olhei com ansiedade para as carnes assadas e para os borbu-lhantes caldeirões.

A tenda de Ragnar Cabelos-Amarelos era feita com uma pele de boi com manchas brancas, em volta da qual jaziam dez ou mais homens que preguiçavam e esperavam pelo início do conselho. Quando nos aproximámos, um deles levantou a mão e saudou-nos, alertando todos os outros para o facto de Gunnar e Tolar terem acabado de chegar.

- Olá, Gunnar!

- Olá, Bjami! Não estão a esforçar-se demais?

- Cá nos vamos aguentando... - retorquiu o homem, com um bocejo. - Ragnar não está aqui. Foi beber öl com Heoroth e com os jarls.

- Onde podemos acampar?

- Ouvi dizer que há um bom lugar por trás da tenda.

- Muito bem, ficamos com ele... - respondeu Gunnar enquanto Tolar acenava a sua concordância - mas, por favor, não te incomodes. Não queremos perturbar o teu tão necessário repouso.

- Vem beber connosco, mais tarde - pediu Bjami, fechando os olhos. Creio que já estava a dormir antes de darmos seis passos.

Passámos o resto do dia a preparar o acampamento. Fui procurar pedras ao rio para demarcar um local para a fogueira enquanto Gunnar partia lenha no enorme montão de troncos serrados que o rei Harald providenciara para esse fim, e Tolar ia colher juncos nas margens do rio.

Estávamos ocupados com os nossos preparativos quando Ragnar regressou à sua tenda. Gunnar e Tolar foram saudar o seu senhor, deixando-me a dispor os molhos de juncos no chão para não termos de dormir sobre a terra nua.

Pensei que em breve necessitaríamos de uma fogueira para cozinhar e comecei a arrancar cascas secas para servirem de acendalhas. Estava absorto nessa tarefa quando ouvi uma voz áspera que me chamou a atenção. Levantei a cabeça e olhei em volta. Havia um homem enorme a pairar sobre mim, olhando-me do alto... e senti o coração a cair-me aos pés.

- Saudações, Hrothgar - disse-lhe, esperando aplacar o homem que tentara afogar-me no barril de cerveja do rei. Pus a lenha de lado e sentei-me sobre os calcanhares.

- Os escravos não podem estar aqui - declarou, fazendo outros comentários que não consegui acompanhar. Tinha a fala entaramelada pela bebida e era difícil de compreender.

Como não sabia o que dizer, limitei-me a sorrir de uma maneira inofensiva e a acenar com a cabeça.

Baixou-se, agarrou-me pela coleira, pôs-me de pé e aproximou o rosto do meu.

- Os escravos não podem estar aqui - repetiu. Tinha um hálito terrível e cheirava a suor e a cerveja azeda.

- Foi o Gunnar quem me trouxe.

- És um escravo e um mentiroso - declarou, com os olhos semi-cerrados.

- Por favor, Hrothgar, não quero problemas.

- Não vai haver nenhum problema - afirmou, com um sorriso maléfico a espalhar-se-lhe pelo rosto inchado. - Empurrou-me com força e caí no chão, ao comprido. - Agora vou mostrar-te o que acontece aos escravos que usam as línguas para dizerem mentiras. Levanta-te!

Pus-me de pé lentamente, com uma sensação doentia a espalhar-se pelas minhas vísceras. Olhei à minha volta rapidamente, na esperança de ver Gunnar, mas não sabia onde ele fora e não o avistei em lado nenhum.

Pensei em chamá-lo e abri a boca para o fazer, mas o punho de Hrothgar já voava para o meu rosto antes de eu conseguir aspirar o ar para gritar. Baixei-me para evitar o golpe e desviei-me ligeiramente para o lado. O bárbaro virou-se, voltou a atacar-me... e baixei-me.

- Pára, Hrothgar, por favor... - implorei, dando mais um passo para o lado.

- Está quieto! - berrou-me.

A sua voz ressonante chamou a atenção de alguns dos bárbaros que se encontravam mais perto. Começaram a gritar uns para os outros que havia uma luta e fomos rapidamente rodeados por um círculo de espectadores interessados. Alguns diziam a Hrothgar para me agarrar, outros gritavam-me que me desviasse. Aceitei os conselhos deste últimos e fui-me desviando para o lado, passo a passo. Cada vez que o enorme dinamarquês se atirava a mim, chegava-me para o lado, por vezes baixando-me sob o golpe, e outras vezes inclinando-me para trás, para ficar fora do seu alcance. Por outro lado, Hrothgar soltava pragas sempre que falhava e ficava ainda mais zangado.

Pouco depois já suava e ofegava, com o rosto tão vermelho que parecia prestes a explodir.

- Vamos acabar com isto - disse-lhe. - Não há nenhuma querela entre nós. Acabemos com isto e vamo-nos embora.

- Fica quieto e luta! - rugiu, louco de raiva e de bebida.

Lançou novamente o punho contra mim e baixei-me. Contudo, já repetira aquele truque muitas vezes e o bárbaro antecipou os meus movimentos. Quando a sua mão direita passou por cima da minha cabeça... lançou-me um murro baixo, com a esquerda. Infelizmente, vi-o demasiado tarde.

O golpe atingiu-me no queixo. Porém, bêbado como estava, os seus punhos não tinham grande força. Caí para trás, mais por causa da surpresa e do desequilíbrio do que pela pancada. Contudo, Hrothgar pensou que me derrubara... e deixei-o acreditar.

- Derrubaste-me, Hrothgar - disse-lhe. - Já não posso lutar mais.

- Levanta-te... - berrou, enraivecido - para que te possa derrubar outra vez!

- Não me aguento nas pernas. Derrotaste-me.

- Põe-te de pé! - Baixou e agarrou num bocado de lenha, um dos que eu estivera a preparar, e atirou-mo. Foi um lançamento desajeitado, de que me desviei com facilidade rolando para um lado.

Fingi que me levantava com esforço enquanto sacudia as roupas à minha volta. O bárbaro soltou um poderoso grunhido e atacou. Voltei a desviar-me com um salto para o lado. Hrothgar, desequilibrado pela força do murro, caiu para a frente, sobre os joelhos... o que provocou uma grande rajada de gargalhadas entre os que assistiam e um rugido de fúria do bárbaro.

- Por favor, Hrothgar - pedi - acabemos com isto. Já não consigo lutar mais.

Ergueu-se com esforço e atirou-se a mim, de braços abertos. Dei um ligeiro salto para trás e o bárbaro acabou abraçado à terra. A multidão soltou novas gargalhadas e compreendi que exigiam que o derrotasse. Olhei para o anel de rostos e vi Gunnar e Tolar na primeira fila, rindo-se tal como os outros.

- Gunnar, que devo fazer? - gritei, esforçando-me por ser ouvido por cima do barulho da multidão.

- Bate-lhe! - respondeu-me Gunnar. - Dá-lhe com força! Hrothgar pôs-se novamente de pé com um gemido e uma praga, e cambaleou para a frente. A multidão aplaudiu ainda mais ruidosamente, guinchando a sua satisfação e aprovação... e foi nesse instante que vi algo a brilhar pelo canto dos olhos.

Virei-me a tempo de ver a lâmina da faca a cortar o ar. Afastei a cabeça e senti a ponta da lâmina a morder-me o queixo. Caí para trás, sentado sobre o rabo. Hrothgar, incapaz de manter o equilíbrio, também caiu e aterrou em cima de mim, prendendo-me as pernas debaixo do seu peso. Bastava-lhe um gesto rápido para me abrir a garganta ou para me esventrar como a um peixe.

Desesperado por me libertar, agitei as pernas e empurrei-o, mas não consegui soltar as pernas. Hrothgar, ainda agarrado à faca, lançou-a contra o meu rosto num golpe desajeitado. Deixei-me cair para trás, ouvi o sopro da lâmina no ar... e também um estalo quando a minha cabeça bateu em algo duro: o pedaço de madeira que o bárbaro me atirara. A minha mão fechou-se imediatamente sobre ele. Fi-lo sem pensar e pretendia apenas utilizá-lo para desviar os golpes da faca.

Hrothgar, atravessado nas minhas pernas, tentou novo golpe às cegas. Estendeu o braço e a cabeça caiu-lhe, com o esforço. A saliência arredondada da traseira da cabeça ficou mesmo a jeito... e golpeei-a. A madeira ressaltou no crânio do bárbaro com um som oco que me surpreendeu tanto... que lhe bati outra vez, mas com mais força.

Hrothgar soltou um grunhido e ficou caído, com o rosto assente na poeira do solo.

Um instante depois, Gunnar e Tolar rolaram o bruto para um lado e libertaram-me. Os outros homens aproximaram-se, deram-me palmadas nas costas e proclamaram que eu era um combatente rápido e astuto.

- Não pretendia bater-lhe com tanta força - declarei, virando-me para Gunnar. - Acham que ficou magoado?

- O Hrothgar, magoado?! - Gunnar soltou uma risada divertida. - Não, não. Descansa, a cabeça irá doer-lhe mais por causa da cerveja do que pela pancadinha que lhe deste.

Duvidoso, fiquei a olhar para o corpo prostrado.

- Receio que só tenha piorado as coisas. Agora, o Hrothgar ainda vai ficar mais zangado comigo.

Gunnar fez um gesto com a mão, como que a dizer que não me devia preocupar.

- Quando acordar já não se lembrará de nada. De qualquer modo, acho que tiveste muita sorte - comentou, num tom afável.

Tolar, o Taciturno, fez um aceno de sábia concordância.

- Tenho de te ensinar a lutar - continuou Gunnar - para não teres de confiar na sorte... que nem sempre é muito fiel.

- Heya! - confirmou Tolar num tom que transmitia anos de amargas experiências.

Ragnar Cabelos-Amarelos aproximou-se com passos firmes e uma expressão severa. Scop, A Voz da Verdade, flutuava a seu lado como um abutre exageradamente grande. Ragnar desviou os olhos de Gunnar para mim... e fiquei à espera do pior. Estendeu a mão com uma moeda de prata, que Gunnar aceitou e guardou na bolsa. A seguir, Ragnar lançou-me uma olhadela sombria, virou-se e foi-se embora. Scop esvoaçou atrás dele.

De súbito ouviu-se um som tão estranho e intenso que interrompeu todas as conversas. Todos se detiveram e olharam uns para os outros.

- Deve ser Harald Berro-de-Touro - afirmou Gunnar, olhando para os lados do rio.

- Além! - gritou Bjarni, de pé em frente da tenda. - O jarl Harald já chegou!

Olhei para onde o homem estava a apontar e vi uma grande mancha vermelha e branca a deslocar-se por entre as árvores e arbustos ao longo da margem. Todo o acampamento, até ao último homem, começou a correr para o rio onde, depois de alguns instantes, voltou a soar o gigantesco berro trovejante e apareceu um navio.

A embarcação era comprida e de quilha aguçada, com uma proa que se erguia bem alta e terminava numa feroz cabeça de dragão com olhos de fogo e dentes de serpente. A popa também se erguia à mesma altura e representava uma cauda dupla. A proa e a popa tinham sido pintadas de amarelo e vermelho, os flancos do navio eram negros, e as velas eram compostas por belas faixas alternadas, vermelhas e brancas. Tinha escudos perfeitamente polidos pendurados nas amuradas e fileiras de remos eriçadas dos dois lados. Ah, era na verdade uma visão capaz de agitar qualquer coração e de pôr o sangue a circular rapidamente nas veias.

Os que se encontravam reunidos nas margens saudaram o belo navio com fortes gritos. Alguns, dominados pelo entusiasmo, saltaram para a água e nadaram para o navio para treparem pelos seus flancos, juntando-se aos guerreiros que se encontravam na amurada. O tremendo urro voltou a soar, fazendo estremecer o próprio solo por baixo dos nossos pés, e pude constatar que aquele ruído extraordinário era produzido por duas enormes trompas de batalha, cada uma delas com dois bárbaros que faziam turnos para soprar nos instrumentos, não fosse um deles desmaiar com o esforço.

Ragnar, rodeado pelos seus, pôs-se de pé para assistir à chegada.

- É um belo navio - comentou. - Se eu tivesse um navio assim tão bom... seria o Harald e pagar-me tributo e não o oposto.

Levantando uma das mãos para a embarcação que se aproximava da margem, Gunnar declarou:

- Navio? Não vejo nenhum navio, jarl Ragnar. Nada disso! O que tenho perante os olhos é o nosso tributo em prata... com uma cabeça de dragão e velas às riscas... mas não deixa de ser a nossa prata!

- É verdade - concordou Ragnar, num tom amargo. - Agora que vejo as riquezas que lhe entregámos... fico doente do coração.

Tolar acenou, teve uma inspiração súbita e cuspiu para o chão.

Continuaram a queixar-se, com cada um a dizer a sua coisa... mas sem que os seus olhos se desviassem das longas e elegantes linhas encurvadas da embarcação e das suas altas e bonitas velas. Passo a passo, foram descendo para o local onde os postes de madeira estavam agora a ser cravados na margem para receberem os cabos que amarrariam o navio. Descobri-me a caminhar ao lado de Scop.

- Ah! O monge transformou-se num guerreiro! - troçou. - Agora, talvez os guerreiros possam vir a segurar nas penas!

- Foi a cerveja que incitou o Hrothgar... - respondi. - Limitei-me a arranjar um lugar macio para ele cair.

Scop soltou um grunhido desagradável e levantou uma das mãos sujas para me dar uma palmadinha na tonsura.

- Cabeça-Rapada - fungou, malevolente. Ignorei a sua má disposição e retorqui:

- Pensei que não voltaria a ver-te.

- Ora! - exclamou, com desprezo. - E consideras o facto como uma boa surpresa?

- É verdade... - repliquei, já aborrecido com os seus modos desagradáveis - e agradeço a Deus por isso.

A Voz da Verdade olhou-me de esguelha. De súbito, agarrou-me por um braço e obrigou-me a enfrentá-lo.

- Olha à tua volta, irlandês. É esta a tua preciosa abadia? Serão estes os teus irmãos sacerdotes? - Antes de conseguir responder, colocou uma das mãos sujas no meu pescoço e puxou-me para mais perto. - Deus abandonou-me, meu amigo - sussurrou, numa raiva estrangulada. - E agora, Aidan, o Inocente, também te abandonou a ti!

Largou-me e afastou-se à pressa, regressando sozinho ao acampamento. Vi-o afastar-se, sentindo-me frustrado e zangado com a sua impudência e presunção. Libertei-me do desgosto daquela provocação, continuei a caminhar para a margem e juntei-me aos outros.

O rei Harald chegara com todos os karlar da sua casa e com três das cinco mulheres. Algumas das outras mulheres que haviam acompanhado os seus homens deram por isso e fizeram comentários. Vários guerreiros saltaram da amurada e patinharam para a margem, enquanto outros preparavam um certo número de compridas tábuas feitas de pinheiros rachados ao comprido. As tábuas foram colocadas entre a amurada e a margem e fixadas pelos homens que se encontravam na margem.

Foi apenas nesse momento que Harald Berro-de-Touro se dignou mostrar-se... e quando o fez, foi para grande delícia e espanto da multidão.

 

O rei Harald Berro-de-Touro, jarl dos Dinamarqueses da Escandinávia, ergueu-se no navio como se fosse o próprio Odin, vestido no tom de azul da meia-noite nórdica. Ficou imóvel sob o brilhante Sol, a cintilar de ouro e prata, com a longa barba vermelha bem escovada e com as pontas entrançadas. Tinha ouro a brilhar no peito, na garganta e em cada pulso, bem como sete faixas de prata nos braços e sete pregadores de prata a segurarem-lhe a capa.

Quando subiu para cima da amurada verifiquei que estava descalço mas que tinha pulseiras de ouro e prata a cintilarem nos tornozelos. Era um homem grande, com um peito profundo, braços grossos e musculosos, pernas fortes e compridas. De pé sobre a amurada, era um rei no apogeu da vida a observar as hostes ali reunidas com olhos vivos e inteligentes.

Pensei: um monarca é um monarca, seja onde for. Harald ostentava uma pose tão real como a de todos os outros senhores que eu já vira. Por baixo da pele, ele e lorde Aengus eram como irmãos... e teriam reconhecido a realeza mútua se por acaso viessem a pousar os olhos um no outro. Não tinha dúvidas a este respeito.

Levantou as mãos numa saudação, abriu a boca para falar e verifiquei que as batalhas da sua juventude lhe haviam deixado uma cicatriz lívida desde o queixo até à garganta. Falou numa voz simultaneamente profunda e alta, virando-se para aqui e para ali, e abrindo os braços como se desejasse abraçar todos os que se tinham amontoado na margem por baixo dele.

A substância do seu discurso pareceu-me ser a respeito de pôr as divergências de parte durante o conselho. Creio que pediu a todos que se sentassem em paz como homens livres, de modo a decidirem melhor o que deveriam fazer... ou qualquer coisa do mesmo género. É o tipo de discurso que todos os lordes fazem quando querem impor a sua vontade, pelo que se ouviram muitos grunhidos de cepticismo e muitas gargantas a pigarrearem.

Depois, sem qualquer hesitação, Harald levantou um dos seus pés descalços e avançou da amurada do navio para... o ar. Algumas mulheres ofegaram, mas não tinham motivo para preocupações. Logo que o monarca deu o primeiro passo, apareceu uma mão que lhe segurou o pé. A seguir, houve uma segunda mão que se juntou à primeira e Harald deu um segundo passo. Duas outras, as dos guerreiros que haviam colocado as tábuas, agarraram no pé direito do rei e empurraram-no para o alto...

Foi assim que o jarl Harald fez o percurso até à margem, transportado pelos karlar da sua casa enquanto se mantinha direito, o que constituiu um feito muito impressionante. Ninguém falou de outra coisa durante todo o resto do dia: "Viste como o transportaram?!" "Heya! Os pés do rei nunca tocaram no chão!"

Harald Berro-de-Touro foi transportado para o local onde a sua tenda seria erigida. Estenderam uma pele de boi vermelha no chão e o monarca sentou-se para receber as homenagens do povo. Todos se apresentaram perante ele, alguns para se prostrarem a seus pés e outros para lhe concederem dádivas de honra e de boas-vindas. O jarl aceitou as honrarias com bons modos e descobri-me a gostar do homem - por causa da sua deferência fácil -, não obstante as dúvidas que Gunnar ou Ragnar pudessem ter e sem duvidar que os seus receios fossem genuínos e justificados. Contudo, Harald era um homem cativante, todo sorrisos e irradiando confiança, que sabia aproximar-se do seu povo com um gesto ou com uma palavra íntima.

Observei-o enquanto permaneceu sentado na pele de boi, tratando os nobres pelos nomes e desarmando-os com lisonjas e louvores. O theng ainda nem sequer começara e o monarca já se lançara a fundo na sua campanha. Os homens aproximavam-se dele, entorpecidos tanto na fala como nos movimentos, cheios de dúvidas e de desconfiança... para voltarem a levantar-se momentos depois, radiantes, com a convicção e a fé reacendidas por uma palavra ou um toque.

Oh, o jarl Harald era na verdade um mestre na arte dos reis: subtil, astuto, persuasivo e tranquilizador, que derrubava as objecções dos seus opositores antes que estes soubessem como o contradizer ou como se lhe opor.

Sim, já anteriormente vira aquele tipo de poder, pelo menos uma ou duas vezes. Não obstante todo o seu ouro e prata, o lorde bárbaro lembrava-me o bispo Tuwal de Tara, famoso pela compostura, pela confiança e pelo domínio fácil sobre os homens.

Nem sequer Gunnar e Tolar, não obstante as suas apreensões, permaneceram indiferentes ao considerável encanto do monarca. Fiquei à espera enquanto apresentavam os seus respeitos... e vi-os regressar com corações novamente alegres e confiantes. Quando lhes perguntei o que Harald lhes dissera para provocar uma tal mudança, Gunnar retorquiu:

- Terei alguma vez proferido uma só palavra contra o rei? Tens de aprender a ser mais confiante, Aeddan.

Foi um conselho que provocou um aceno de concordância da parte de Tolar.

Entre todos os jarls e homens livres que observei, só Ragnar se mostrou indiferente para com as maneiras convincentes de Harald. Talvez conhecesse o suficiente daquela arte para se deixar enganar pelos métodos que ele próprio utilizava de tempos a tempos... ou talvez lhe fosse difícil, sendo um lorde, permitir-se a indulgência da convicção total. Eram muitos os membros da tribo que dependiam dele e das suas decisões. Fosse o que fosse que os outros pensassem ou fizessem, os seus próprios pensamentos e acções estavam circunscritos pelas obrigações. Assim, se quisesse continuar a ser rei, e não apenas no nome, Ragnar Cabelos-Amarelos não podia submeter-se completamente a nenhum homem.

Os homens orgulhosos são todos iguais. Sem dúvida que se ressentia por ter Harald como seu superior. Pagar um tributo já era suficientemente mau... e não gostava que também o vissem a fazer vénias. Imagino que o mesmo se passaria com outros lordes, mas não os podia observar a todos. Mesmo assim, pareceu-me que, quando a cerimónia das saudações ficou concluída, foi como se tivesse terminado uma batalha... de que o monarca reclamara o campo. Conseguira, ou pelo menos assim me pareceu, lançar entre o seu povo as sementes de uma antecipação repleta de esperanças, para logo se retirar de modo a permitir que essas sementes rebentassem e ganhassem raízes.

É claro que, naquela noite, o ambiente no acampamento fervilhava de expectativas. Por todo o prado, os homens olhavam uns para os outros por cima das fogueiras e especulavam sobre o conselho: o que lhes traria o dia de amanhã? Qual seria a proposta do rei?

Embora eu não tomasse parte nos procedimentos - nada do que decidissem me poderia afectar, de uma maneira ou de outra - não deixava de sentir a intensa antecipação da assembleia e já era muito tarde na noite antes de alguém conseguir dormir.

Na manhã seguinte, muito cedo, um tambor convocou os jarls e os homens livres para a pedra do theng. Estávamos a tomar o pequeno-almoço quando o tambor começou a rufar. Gunnar e Tolar levantaram-se imediatamente.

- Vai começar! - declarou Gunnar, atirando para um lado o osso que estava a roer. - Depressa, para nos sentarmos nas filas da frente!

Infelizmente, todos os outros haviam pensado o mesmo, pelo que o toque do tambor deixou de ser uma convocação e transformou-se no sinal de partida para uma corrida, uma vez que os homens, distribuídos pelos acampamentos dispersos, se apressaram a dirigir-se para o local da reunião. As poucas mulheres ali presentes levantaram-se e ficaram a olhar com expressões de ânsia, mas houve algumas que foram atrás dos seus homens para se instalarem o mais perto possível do perímetro do conselho, cujos limites estavam assinalados por um círculo de pequenas pedras.

Encorajado pelo exemplo dessas mulheres, ocupei um lugar no círculo exterior enquanto Gunnar e Tolar abriam caminho para o centro. Como os melhores lugares já se encontravam ocupados, tive de me manter de pé no meio do aperto, esforçando-me por conseguir ver alguma coisa. Ao princípio pareceu-me que não havia nada para ver, mas depois reparei num velho que se arrastava em volta da pedra theng agitando uma cabaça cheia de calhaus. Murmurava e resmungava, deslocando-se com movimentos estranhos e rígidos em torno da pedra vertical.

- Skirnir - disse alguém perto de mim, e calculei que se tratasse do nome.

Provavelmente, concluí, era uma daquelas curiosas criaturas conhecidas por skalds, que desempenhava o papel de conselheiro do rei Harald.

Vestido com uma túnica curta e com calções de pele de veado a que haviam raspado os pêlos, o velho Skirnir prosseguiu durante algum tempo com os seus encantamentos murmurados. A seguir pôs a cabaça de lado, pegou numa malga de madeira e começou a aspergir um líquido - talvez uma espécie qualquer de óleo - sobre a pedra vertical, servindo-se de um pequeno molho de raminhos de bétulas já muito desgastado em que segurava com a mão direita. Entoava o nome do deus cada vez que metia os raminhos na malga... e espirrava sempre que aspergia a pedra com óleo.

Completou um certo número de voltas em torno da grande pedra, colocou a malga no chão, meteu as mãos no óleo e deu início a um processo de marcação da superfície da pedra com impressões das mãos, por vezes batendo-lhe com as palmas ou, noutras vezes, rodeando-a com um grande abraço. Harald, o monarca, emergiu do lugar que ocupava entre os espectadores enquanto o velho Skirnir prosseguia com a sua função. Levava qualquer coisa metida debaixo do braço mas não consegui perceber o que era.

O skald virou-se para o monarca logo que concluiu a unção da pedra e gesticulou na direcção do objecto que este transportava... que era apenas uma galinha. Antes de ter tempo para pensar porque motivo andaria o jarl Harald com uma galinha debaixo do braço, o rei levantou a ave para que todos a pudessem ver e entregou-a a Skirnir, que também a levantou, uma vez, duas vezes, três vezes... A seguir devolveu-a ao rei, que, por alguns instantes, meteu o bico e a cabeça da galinha na sua própria boca. Era uma estranha visão: um rei, de pé na presença do seu povo, com a cabeça de uma galinha viva metida na boca.

O skald soltou um grande grito e começou a sacudir-se de alto a baixo. As suas mãos e ombros estremeciam, as pernas abanavam e todo o seu corpo tremelicava. De súbito, apoderou-se da galinha, levantou-a bem alto e começou a rodopiar sem nunca deixar de tremer. Descreveu voltas e mais voltas até dar um repentino safanão seco com um dos braços. Ouviu-se um estalo e a cabeça da galinha soltou-se do corpo. A pobre ave começou a correr, a saltar e a esvoaçar. O velho Skirnir, de olhos muito atentos, pôs-se de gatas e seguiu atentamente as convulsões de morte da galinha decapitada, cujo sangue o salpicava, tanto a ele como à pedra.

Toda a gente susteve a respiração e se inclinou para a frente, numa expectativa ansiosa à medida que os movimentos da galinha iam diminuindo gradualmente. Por fim, a pobre ave ficou quieta, com as penas a estremecerem suavemente enquanto morria. Skirnir pôs-se em pé num salto e proclamou, em voz alta, que os augúrios eram favoráveis. Contudo, fê-lo em termos tão insólitos que não consegui compreender tudo o que disse. As pessoas pareceram satisfeitas, acotovelaram-se umas às outras e acenaram solenemente.

Que fique aqui bem claro que não acredito em oráculos ou augúrios, tal como também não acredito nos velhos deuses. Os seus poderes, se é que os têm, derivam da vontade daqueles que persistem em modos de pensar tão repletos de erros. Não afirmo que os velhos deuses sejam apenas demónios - não obstante muitas cabeças mais sábias do que a minha me garantirem que assim é -, mas não passam de vasos vazios, incapazes de suportar o peso das crenças dos homens. Nesses tempos tudo era escuridão e os homens agitavam-se às cegas na sua ignorância em busca de algo que os protegesse contra os perigos da noite.

Porém, como sabem, a luz já chegou e o dia amanheceu finalmente! São boas novas! Por isso mesmo, já não é aceitável adorar todas aquelas coisas envoltas em escuridão. É essa a minha crença. Não condeno os bárbaros por causa da sua fé mal conduzida mas talvez me possam perdoar essa atitude, que alguns dos meus irmãos mais zelosos irão certamente considerar como sendo uma pecaminosa falta de piedade e devoção. Não tenho a mínima dúvida de que, se se encontrassem no meu lugar, teriam chamuscado a própria terra com o fogo da indignação e com a vontade de modificar o estado de coisas.

Porém, sou um monge fraco e pecador, o que admito livremente. Mesmo assim, estou decidido a contar a verdade e podem julgar-me como entenderem.

Logo que os augúrios foram considerados favoráveis, Skirnir proclamou o início do theng. O skald desapareceu da cena depois de reunir a cabaça, a malga de madeira e a carcaça da galinha, e Harald colocou-se perante a assembleia, declarando-se imensamente satisfeito por terem sido tantos os que haviam respondido à sua convocação.

- Companheiros e amigos... - entoou, na sua profunda voz de touro, abrindo amplamente os braços como se quisesse abraçar toda a assembleia - alegra-me vê-los aqui na minha presença, pois somos na verdade um povo poderoso. Pergunto-vos: quem será capaz de enfrentar um dinamarquês logo que a sua ira desperta? As nossas capacidades são simultaneamente terríveis e formidáveis! O poder dos nossos braços é receado por todo o mundo. Quem poderá levantar-se para se lhes opor?

Harald ergueu um braço no ar como se brandisse uma espada e gritou:

- Quem será capaz de se erguer contra os dinamarqueses quando a fúria de Odin enche as suas veias de fogo?

Ouviram-se vozes murmuradas garantindo que ninguém se poderia opor à ira dos dinamarqueses. O monarca iniciou então um longo discurso em que descreveu o modo como o mundo tremia quando as quilhas dos navios viquingues cortavam as águas profundas, e como todo o mundo se encolhia de medo quando as matilhas dos Lobos do Mar saíam para a caça nos trilhos marítimos. Esses sentimentos foram acompanhados por muitos golpes de espadas imaginárias e pelo entrechocar de lanças igualmente imaginárias contra muitos escudos invisíveis.

Os murmúrios transformaram-se em coros de concordância e foram vários os que soltaram vivas, encorajando o monarca com altos gritos. Contudo, embora a maioria permanecesse silenciosa, todos se mantinham atentos, com as orelhas e os olhos bem abertos, ansiosos para saberem os motivos que haviam levado o grande jarl a convocar o theng. Logo que verificou que os tinha do seu lado, Harald decidiu avançar para o cerne das suas preocupações.

Já tenho ouvido falar em guerreiros que são capazes de saltar de um cavalo para outro, em pleno galope, sem nunca perderem a compostura. Foi esse o feito que Harald realizou naquele momento.

- Irmãos - declarou - sei que o tributo anual é um grande fardo sobre os vossos ombros, e sei que esse fardo é difícil de suportar.

O monarca fez esta declaração com uma expressão de convincente compreensão, como se tivesse sido outro senhor qualquer, e não ele, a impor um tão oneroso fardo sobre o seu povo. A seguir afirmou, com uma convicção total, que seria na verdade um muito mau rei se deixasse que as coisas continuassem assim, sem nada fazer para aliviar os ombros dos seus súbditos do fardo daquela lei.

O facto provocou uma pequena agitação enquanto o povo tentava perceber o que estaria Harald a tentar dizer-lhes.

- Por isso - continuou o jarl - imaginei uma maneira que irá permitir... - os ouvintes do rei inclinaram-se para a frente, na expectativa - ... o perdão desse mesmo tributo.

É claro que a agitação entre os ouvintes foi tão grande que o monarca se viu obrigado a repetir o seu espantoso decreto, não uma, mas sim três vezes.

- Heya, sim, ouviram-me bem! - garantiu-lhes, agitando os punhos no ar - O tributo será perdoado!

Harald concedeu-lhes mais alguns momentos para que a novidade conseguisse chegar até às fileiras mais recuadas, para logo ser passada aos que se encontravam fora do círculo de pedra. Conservou-se erecto, de punhos nas ancas, com um grande sorriso e com os seus cabelos vermelhos a brilharem ao Sol. Resplandecia de convicção e a confiança irradiava do seu rosto como se fosse o calor de uma chama.

O jarl prosseguiu, descrevendo como se decidira por uma aventura que traria a fortuna e a riqueza a todos os homens livres da Dinamarca. Abriu muito os braços e implorou-lhes que o escutassem. Contudo, a gritaria geral quase abafava a sua voz tonitruante. Harald voltou a pedir atenção, implorou a indulgência dos presentes e explicou-lhes como decidira ir a Miklagard, onde havia ouro e prata para além do que era possível imaginar, e onde o mais reles dos escravos era muito mais rico que o mais rico rei da Escandinávia.

O povo espantou-se com a audácia do rei: Ouviram aquilo? Miklagardf Exclamaram. O jarl vai a Miklagard! Imaginem!

- Agora, sou eu quem vos pergunta, irmãos... - prosseguiu Harald, com a voz a trovejar por cima da excitação que ele próprio criara - será correcto que os escravos do Sul gozem de mais riquezas do que os reis do norte? Será correcto que nós, os filhos favoritos de Odin, demos cabo das nossas costas a trabalhar, a lavrar, a cortar lenha, a colher e a acarretar água, enquanto os escravos escuros vivem na ociosidade à sombra das árvores de fruto?

Deixou a questão a pairar no ar até produzir resultados.

- Não! - gritou uma voz, que me pareceu muito semelhante à de Hrothgar. - Não está certo! - gritou outra... e toda a gente pareceu concordar que aquele estado de coisas não poderia continuar.

Harald agitou as mãos a pedir ordem. Continuou, falando em tons razoáveis e de um modo algo relutante, como se se limitasse apenas a concordar com os pontos de vista prevalecentes, pontos de vista que parecia não ter grande vontade de apoiar. Falou do modo como jurara, no fundo do coração, que tinha de aliviar os fardos que recaíam sobre o seu povo. Afirmou que iria a Miklagard, se fosse isso o que todos desejavam, e que transportaria de volta as riquezas dos escravos do sul. Traria consigo essas riquezas e utilizá-las-ia para melhorar as vidas dos Dinamarqueses. Seriam tantas riquezas que não teriam de pagar o tributo que lhe era devido. Faria tudo isso e muito mais... se fosse isso o que eles desejavam.

Virou as mãos para o rio, onde o seu grande navio novo se encontrava fundeado. Aquele navio, aquele mesmo navio, declarou, era o mais rápido jamais construído na Escandinávia. Seria nele que embarcaria para conduzir a hoste de guerra até à cidade do ouro. Ele, Harald Berro-de-Touro, encheria aquele grande e rápido navio com tantos tesouros que deixaria todos os outros reis doentes de inveja quando vissem as riquezas de que os seus jarls e homens livres iriam gozar.

O povo não conseguia aguentar uma tão grande boa sorte em silêncio. Abraçaram-se a eles próprios e uns aos outros, gritaram e pularam de alegria ante a perspectiva de tantas riquezas e tão fáceis de alcançar. Aclamaram o seu rei, bem como a sua sabedoria e visão. Ali estava um monarca que, na verdade, sabia o que era o melhor para o seu povo.

- Por isso mesmo... - proclamou Harald quando a barulheira perdeu o ímpeto - vou perdoar-vos o tributo anual que me é devido como vosso senhor!

O monarca foi mais uma vez avassalado por uma verdadeira maré de aclamações e foi forçado a esperar que enfraquecessem até poder continuar.

- Vou perdoar-vos o tributo anual... - repetiu, falando lentamente - mas não apenas por um ano, nem por dois... e nem sequer por três ou quatro anos! - gritou. - Perdoarei os tributos anuais por cinco anos a todos os homens que se armarem e me seguirem até Miklagard!

Oh, era um senhor na verdade muito astuto. Não me parece que um só dos seus ouvintes tivesse reparado na subtil armadilha que lhes preparara com aquelas palavras. Tudo o que conseguiram ouvir foi que o monarca lhes perdoava o tributo por cinco anos. Nem sequer se aperceberam de que, para receber o benefício do tributo perdoado teriam de o acompanhar a Miklagard, a fim de o ajudarem a encher as arcas dos seus tesouros com saques e pilhagens.

Harald chamava-lhes companheiros e chamava-lhes amigos. Pedia-lhes que voassem para o Sul, onde os aguardavam riquezas incontáveis... e fazia com que parecesse que precisavam apenas de pegar em pás para apanharem essas riquezas do chão. Mais uma vez, abriu os braços a toda a sua largura:

- Quem está comigo? - gritou o monarca - ... e todos berraram a sua aprovação, atirando-se para a frente e lutando entre eles para serem os primeiros a declarar o seu apoio a um plano tão inspirado.

Tendo conseguido o que queria, Harald anunciou rapidamente que o conselho terminara, isto para que, pelo menos assim o penso, não começassem a ouvir-se vozes discordantes capazes de arruinar a sua impressionante vitória. Todavia, quem iria discordar se até o próprio Ragnar abandonou o círculo do conselho com a sua carranca de protesto suavizada por um sorriso pensativo, se não benevolente?

A seguir, o monarca declarou que o resto do dia seria dedicado às festividades e à bebida. Para esse efeito, fez com que fossem colocados três grandes barris no centro do acampamento e deu ordens para que, durante os restantes dias e noites da reunião, fossem continuamente enchidos a partir das reservas que tinha a bordo. A seguir ofereceu também três bois e seis porcos que deviam ser assados para alimentarem o seu povo.

As celebrações que se seguiram à audaz decisão de Harald corresponderam inteiramente à exuberância demonstrada pelo rei. Nessa noite, o ousado nome do jarl e as suas capacidades de clarividência, talvez até visionárias, foram louvadas, taça a pós taça, por todos os presentes. Em volta de cada uma das fogueiras, os homens, com os rostos a brilharem da gordura das costeletas que seguravam nas mãos, lamberam os lábios e proclamaram Harald Berro-de-Touro como o melhor rei que jamais caminhara na Terra sobre duas pernas. Louvaram-no como sendo um verdadeiro e nobre senhor, um governante bondoso que pensava apenas em como beneficiar e elevar o seu povo, um homem entre os homens, sábio para lá dos seus anos de vida e muito para além do seu tempo, um soberano bravo e corajoso mas também compreensivo, que conseguia sonhar e ousar grandes coisas a favor do povo.

Também contavam, é claro, com o skald do rei, sempre pronto para lhes avivar esses sentimentos lisonjeiros. Skirnir vagueava pelo prado, saltitando de acampamento para acampamento a fim de entoar cânticos de louvor ao seu patrono, deparando sempre com ouvintes que, embora já tivessem os olhos um pouco nublados, se mostravam predispostos a escutarem as suas espirituosas execuções.

Quando o dia terminou e o último folião se deixou cair no catre ao lado da fogueira, todos concordaram que o theng daquele ano fora o melhor desde que Olaf Nariz-Quebrado matara um boi com as suas próprias mãos.

Foi nessa noite, quando a pesada quietude do Verão jazia sobre os foliões adormecidos, que voltei a sonhar.

 

Um mocho acastanhado voou baixo sobre o prado com as suas asas silenciosas, de olhos muito abertos de surpresa ao ver tantos humanos estendidos no seu terreno de caça. A ave soltou um abafado guincho de irritação e prosseguiu o seu voo ao longo do rio.

O vento levantou-se e soprou em rajadas suaves que fizeram ondular as ervas do prado e que produziram um estranho silvo oscilante. Ouvi aquele som, levantei-me do meu colchão de juncos e olhei em volta. As tendas e os círculos das fogueiras haviam desaparecido. As pessoas que dormiam no chão haviam desaparecido, bem como a pedra do theng e o local da reunião. Enquanto olhava, o prado modificou-se e transformou-se num mar. O lento oscilar das ervas ao vento tornou-se em ondas e as flores em manchas de espuma branca que cobriam a ondulação.

Interroguei-me como era possível que conseguisse manter-me de pé sobre as águas, mas o solo em que me apoiava era agora o convés encurvado de um navio. O navio propriamente dito não podia ser visto na escuridão mas ouvia as velas a estalarem ao vento e o som da proa aguçada a abrir caminho através das vagas.

O céu, por cima de mim, mantinha-se obscuro. Não havia Sol, nem Lua, e as poucas estrelas visíveis tinham configurações estranhas. O navio transportava-nos rapidamente por cima de águas negras e desconhecidas, a mim e aos restantes navegantes porque, embora não os pudesse ver, ouvia-os a trabalhar ali perto e a conversarem uns com os outros em sussurros abafados. Mantinha-me junto à murada, olhando para a distância enevoada, na direcção de um horizonte invisível.

Não sei durante quanto tempo navegámos; um ano, um dia, ou toda uma era. Não sei dizer. Porém, gradualmente, as águas modificaram-se, perderam o frio tom acinzentado das tempestades nórdicas e ganharam um profundo e brilhante azul. Investiguei o horizonte distante e plano em busca de um qualquer sinal de terra, um rochedo, uma ilha, o pico nublado de uma colina ou montanha, mas a minha busca foi em vão. Era tudo céu, mar e estrelas estranhas em céus alienígenas. Contudo, o navio corria ousadamente à frente do vento, deslizando tão rapidamente como uma gaivota alada.

A pouco e pouco, o céu começou a alterar-se. Suavizou-se, aclarou e coloriu-se com uma luz pérola com a cor das pétalas das rosas. Esse tom aprofundou-se e ganhou uma franja dourada que rodopiou e foi ganhando brilho, acabando por se fundir no arco de um brilhante disco de luz ardente, ainda meio escondido abaixo da linha do horizonte marinho. Foi então que soube que estávamos virados para o Oriente e que voávamos em direcção ao Sol Nascente.

Navegámos e continuámos a navegar. O Sol ergueu-se cada vez mais alto, com os seus raios a perfurarem o céu com lâminas de luz tremeluzente, tão brilhante que tive de fechar os olhos e virar o rosto. Quando voltei a olhar, o que vi não era o Sol mas sim uma vasta cúpula dourada, a enorme esfera de um telhado palaciano apoiada em pilares de mármore branco com a espessura e a altura das mais altas árvores. Maravilhei-me com o facto de um palácio tão gigantesco poder flutuar sobre o mar instável. Porém, à medida que nos aproximávamos rapidamente, verifiquei que aquela extravagância oriental repousava sobre uma ponta de terra e que os contornos das muralhas do palácio e dos seus edifícios de muitas câmaras abraçavam a íngreme corcova de uma colina. Era uma colina que se levantava do mar para separar três grandes rios e três grandes povos.

Ergueu-se um som sobre a terra e sobre o mar. Ao princípio pensei que devia ser o suspirar das águas sobre a costa rochosa porque aquele suave trovejar subia e descia com a regularidade das ondas. Todavia, de mais perto, o trovejar do mar definiu-se e transformou-se em vozes humanas que entoavam um cântico curioso e sem pausas.

De repente vi-me no interior de uma enorme câmara construída com pedras de muitas cores, cuja abóbada era tão vasta como a grande e encurvada taça dos céus, tão grande que o Sol e as estrelas ardiam no seu alto firmamento. A luz descia do alto em cortinas de feixes e saí da sombra de um poderoso pilar para a área brilhante caminhando por cima de pedras perfeitamente polidas por séculos de passos lentos e respeitosos.

Avancei e ouvi alguém a chamar-me pelo nome. Olhei para cima, para a luz brilhante, e vi o rosto de um homem que me fitava com grandes olhos tristes e com uma expressão de infinito amor e tristeza.

- Aidan - disse, com suavidade, e o coração agitou-se dentro de mim porque sabia que era o próprio Cristo quem estava a falar. – Aidan - repetiu e mais uma vez, e oh! o meu coração derreteu-se ao escutar a tristeza daquela voz - Aidan, por que foges de mim?

- Senhor - respondi - servi-Te durante toda a minha vida.

- Afasta-te de mim, falso servo! - retorquiu, e a sua voz ressoou como o trovão do Juízo Final.

Fechei os olhos com força. Quando voltei a abri-los era novamente noite e jazia no chão ao lado de uma fogueira reduzida a carvões reluzentes.

As celebrações que se seguiram ao anúncio do rei Harald prosseguiram durante todo o dia seguinte sem darem mostras de esmorecimento., Ninguém levantava a mínima objecção às minhas idas e vindas desde que Hrothgar falhara a tentativa para me matar. Até o meu corpulento atormentador, a quem já vira várias vezes depois da luta, parecia ter perdido todo interesse por mim. Talvez, como Gunnar sugerira, já nem sequer se recordasse da escaramuça.

Gunnar, tal como todos os outros, mantinha-se intensamente ocupado com os festejos e com a bebida, exigia muito pouco do seu escravo e deixava-me livre para vaguear por onde muito bem entendesse. Por isso, servi-me dessa liberdade para me retirar para um local tranquilo a fim de poder rezar. Não era fácil encontrar um tal lugar, mas um sombreado abrigo de bétulas junto à margem serviu perfeitamente como uma espécie de capela no meio da verdura. Era um sítio fresco, tranquilo, com o solo forrado por uma espessa e macia camada de ervas... e passei aí a maior parte do dia, longe das ruidosas festividades do acampamento.

Cantei os salmos e executei a lúirch léire, a vigília da cruz. Depois, sentindo-me penitente e contrito pela minha ausência de práticas diárias, recitei o Cântico dos Três Jovens, cujas provações na fornalha do fogo sempre produziram em mim um renovado entusiasmo pela devoção.

Passei um dia feliz. Como recompensa pela minha diligência, satisfiz-me com um dos doces de Ylva. O sabor que me deixou na boca provocou-me pensamentos agradáveis a seu respeito, que apreciei tanto como o gosto a mel do seu biscoito. Por acaso, ao sair daquela minha cela no meio da verdura, passei junto ao local onde o navio do rei se encontrava fundeado. Houve um movimento a bordo da embarcação que me chamou a atenção e vi duas mulheres a emergirem da tenda erguida por trás do mastro, logo seguidas por uma terceira figura, a do próprio rei Harald. Disse qualquer coisa às mulheres e desembarcou pela prancha. Daquela vez não havia ninguém da sua casa para o sustentar em pleno ar.

Viu-me a pairar junto do navio e deteve-se. Como pareceu querer falar, também me detive. O monarca ficou a olhar para mim por instantes, com a testa contraída e um olhar ameaçador. Depois virou-se abruptamente, como se o facto de me ver o ofendesse, e regressou ao acampamento aparentemente mergulhado em pensamentos, agitando o braço direito como se fosse uma arma.

Também regressei ao acampamento e encontrei Gunnar, Tolar, Rag-nar e vários outros sentados em volta de um barril vazio, com as taças nas mãos, como se tentassem decidir quem deveria ir buscar mais cerveja.

- Penso que devem ir o Jarn e o Leif - dizia Gunnar. - O Tolar e eu fomos lá da última vez.

Tolar olhou para a taça vazia e concordou com um aceno desanimado.

- Falas a verdade, Gunnar, mas estás a esquecer-te de que o Jarn e eu já lá tínhamos ido duas vezes - replicou o homem chamado Leif. - Sim, acho que te esqueceste...

Ragnar levantou a taça e esvaziou-a.

- Bom - declarou - parece que tenho de lá ir.

- Nay, jarl... - interveio Leif, estendendo a mão para deter o seu senhor - Não podemos permitir tal coisa. Essa é uma nossa obrigação.

- Então espero que a cumpram em breve... - replicou Ragnar - pois receio acabar por ficar demasiado velho para erguer a taça.

Leif soltou um suspiro pesado, como se estivesse a carregar com um imenso e muito incómodo fardo.

- Vamos lá, Jarn - disse, sem demonstrar a mínima intenção de se levantar. - Receio que a sorte não esteja do nosso lado. Calhou-nos a pedra preta, mais uma vez...

Entrei no acampamento e todos os olhos se viraram para mim, esperançados.

- O Aeddan vai buscar a cerveja! - gritou Gunnar. Apontou para a barrica vazia e acrescentou: - Mais! Vai buscar mais!

Acenei uma confirmação, baixei-me para a barrica e peguei-lhe.

- Não poderá transportá-la sozinho - observou Gunnar. Os seus olhos percorreram rapidamente o círculo de homens. - O Tolar tem de ir com ele.

Tolar levantou a cabeça, olhou para Gunnar, encolheu os ombros, pousou a sua taça e levantou-se.

- Vem, Tolar - disse-lhe. - Esperemos que ainda restem algumas gotas.

- Então, temos de nos apressar - respondeu. Agarrou na barrica de cerveja, tirou-ma das mãos e colocou-a ao ombro. - Por aqui... - disse, afastando-se rapidamente.

Na verdade, nunca o ouvira dizer tantas coisas de uma só vez nem o vira caminhar tão depressa. Acertei o meu passo com o dele e apressámo-nos em direcção ao local, no exterior do círculo de pedras, onde o monarca mandara acender as fogueiras para os cozinhados. Já havia mais porcos nos espetos e um boi inteiro a assar sobre o lume. Tinham descarregado um montão de barris do navio, que estavam a ser abertos e despejados em tonéis de maiores dimensões. Juntámo-nos aos outros que já se encontravam à espera e vimos o líquido castanho-dourado a escorrer para os tonéis, com uma bela espuma cremosa, que fazia com que o odor ligeiramente adocicado da fermentação nos chegasse às narinas.

- Ah! - disse eu, para Tolar - quem me dera ter um lago de cerveja!

Sorriu e lançou-me uma olhadela de compreensão.

- Se eu tivesse um lago de cerveja - prossegui, levantando a mão num gesto bárdico velho de eras - organizaria uma grande festa para o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, e gostaria que as Hostes do Céu bebessem comigo para toda a eternidade!

Tolar sorriu, pelo que continuei a recitar a Oração do Cervejeiro: "Gostaria de ter os frutos da Fé amontoados na minha casa para todos os poderem saborear, gostaria de ter os Santos de Cristo no meu próprio salão, e que as tinas do Sofrimento estivessem sempre ao seu serviço. Gostaria de ter taças de Caridade para estancar a sua sede e jarros de Misericórdia para cada um dos membros dessa angélica companhia. Gostaria que o Amor nunca se esgotasse no meio deles, e que o Abençoado Jesus se sentasse no trono do herói.

"Ah, mo croi, gostaria de organizar um festim de cerveja para o Alto Rei dos Céus, um festim que durasse para todo o sempre, e que Jesus bebesse sempre na minha companhia.

Não sei o que Tolar terá pensado daquela explosão. Muito provavelmente, traduzira tudo muito mal para a língua em que ainda me exprimia de uma maneira pouco elegante, mas Tolar aguentou, limitando-se a exibir um vago sorriso. Logo que os tonéis ficaram cheios, abrimos caminho à cotovelada e mergulhámos o nosso barril nas suas espumantes profundezas. A seguir segurámos bem nas pegas de corda, com as duas mãos, e transportámos a barrica de volta ao nosso acampamento tendo o cuidado de não derramar nem uma só gota pelo caminho.

Os outros louvaram a nossa diligência e habilidade enquanto se amontoavam em volta da barrica com as taças nas mãos.

- O Cabeça-Rapada... - disse Tolar, referindo-se a mim - encantou esta cerveja com uma runa ao seu deus.

- Ah, sim? - interrogou-se Ragnar.

- Disse uma oração conhecida do meu povo - expliquei, com simplicidade.

- Tens muito respeito por esse teu deus - afirmou Leif, inclinando a cabeça para um lado.

- É verdade - garantiu-lhe Gunnar, aparentemente com algum orgulho. - Aeddan nunca deixou de rezar ao seu deus desde que está connosco. Até reza antes do jantar.

- Ah, sim? - perguntou Ragnar, admirado. - O Scop nunca o faz... e dizem que também foi um Cabeça-Rapada. É o vosso Deus que vos exige isso?

- Não é uma exigência de Deus - repliquei. - É... - Fiz uma pausa, tentando desesperadamente descobrir como descrever a devoção. - É uma coisa que nós fazemos por gratidão por cuidar de todos nós.

- Quer dizer que o vosso deus vos fornece comida e bebida? - exclamou o homem chamado Jarn. - Agora é que já ouvi tudo!

Começaram a discutir sobre se valeria a pena um homem perder tempo com os deuses e sobre quais seriam os melhores para adorar. Leif insistiu que não faria qualquer diferença, quer um homem adorasse todos os deuses, ou nenhum. O debate ocupou-os durante um bom bocado, com a barrica de cerveja a fornecer a necessária humidade sempre que os argumentos secavam as gargantas.

Por fim, Ragnar virou-se para mim.

- Cabeça-Rapada, que nos dizes? Será que os homens devem obedecer aos velhos deuses, ou desistir deles?

- Os deuses de que estão a falar - repliquei, descuidado - são como os restos atirados aos porcos, são como a erva seca, amarrada e queimada para atear as fogueiras. Valem menos do que o ar necessário para pronunciar os seus nomes.

Ficaram todos a olhar para mim... mas a cerveja fizera-me sentir efusivo e sábio, pelo que continuei.

- O Sol já se pôs sobre o tempo desses deuses e não voltará a erguer-se.

- Ho! Ho! - exclamou Jam, trocista. - Ora ouçam! Temos um thul entre nós! Ho! Ho!

- Cala-te, Jarn - grunhiu Ragnar Cabelos-Amarelos. - Quero ouvir a resposta porque há muitos anos que este assunto me preocupa. - Depois de imposto o silêncio, virou-se para mim: - Diz mais coisas. Estou a ouvir-te.

- O Deus que eu sirvo é o Mais Alto - disse-lhes. Jarn resmungou ante a minha presunção, mas ignorei-o e continuei, confundindo as poucas palavras que tinha à minha disposição mas sem desistir. - Este Deus é o Criador de tudo o que existe, o Senhor tanto do Céu como da Terra, bem como dos reinos invisíveis, tanto em cima como em baixo. Não é adorado por intermédio de ídolos de pedra ou de madeira, mas sim no coração e no espírito dos que se humilham perante Ele, e é Seu desejo permanente receber e dar as boas-vindas a todos os que invocam o Seu nome.

- E como sabes tudo isso? - perguntou Leif. - Já alguém viu esse teu deus? Já alguém falou com ele, comeu com ele, bebeu com ele? - Tomou um grande golo da sua taça e os outros recuperaram forças seguin-do-lhe o exemplo.

- Ah! - respondi. - Há muitos anos, foi precisamente isso o que aconteceu. O próprio Deus desceu à Terra vindo do seu Grande Salão. Ganhou carne, nasceu como criança, tornou-se adulto e surpreendeu toda a gente com a sua sabedoria e com as maravilhas que realizou. Foram muitas as pessoas que acreditaram e o seguiram.

- Maravilhas? - troçou Jarn. - Quais foram essas maravilhas?

- Trouxe pessoas mortas de regresso à vida, restaurou a visão a homens que tinham nascido cegos, e deu audição aos surdos. Tocou nos doentes com as suas mãos e ficaram curados. Uma vez, na celebração de um casamento, até transformou a água em öl...

- Ah, isso sim, esse é na verdade um Deus digno de ser adorado!

- exclamou Leif, entusiástico.

- Heya, mas os jarls e cantores da verdade daquela terra não suportaram a Sua presença - prossegui. - Não obstante todas as coisas boas que fez e ensinou, os skalds dos reis receavam-no. Por isso, numa noite escura, lançaram-se sobre ele, agarraram-no e levaram-no perante o magis-ter romano. Acusaram-no falsamente e exigiram a sua morte.

- Ho! - exclamou Gunnar, cada vez mais excitado com a história.

- De certeza que os seus seguidores soltaram o grito de guerra, caíram sobre os Romanos e chacinaram-nos. Cortaram-lhes as cabeças e as mãos e organizaram um festim para os corvos.

- Infelizmente... - informei-o, com tristeza - os seus seguidores não eram guerreiros.

- Nay? Então o que eram? Jarls?

- Não, também não eram senhores. Eram simples pescadores... - expliquei.

- Pescadores! - berrou Jarn, que agiu como se nunca tivesse ouvido nada tão divertido.

- Sim, pescadores, pastores e outros do mesmo género - repliquei. - Por isso, quando os Romanos o prenderam, todos os seus seguidores fugiram para as serranias para que não os apanhassem, torturassem e matassem.

- Ha, ha! - riu-se Jarn, desdenhoso. - Eu não teria fugido. Tê-los-ia expulso com a lança e o machado. Ter-me-ia erguido perante eles, com o meu escudo, para lutar como um homem!

- E que aconteceu a esse Deus-Homem? - perguntou Gunnar.

- Foi morto pelos skalds e pelos Romanos.

- Que estás tu a dizer?! - exclamou Leif, incrédulo e horrorizado. - Esse teu deus foi morto pelos Romanos? Se era o verdadeiro criador do mundo, podia tomar qualquer forma que desejasse. Por que não se transformou num fogo e não os queimou? Não os podia ter capturado e esmagado com todas as suas forças? Não podia ter enviado o vento da morte para o meio deles, matando os inimigos nas suas próprias camas?

- Estás a esquecer-te - disse-lhe - que Ele se havia tornado num homem e que só podia fazer o que os homens fazem.

- E permitiu que o matassem? - perguntou Leif. - Nem sequer o meu cão permitiria uma coisa dessas!

- Talvez o teu cão seja um melhor deus do que aquele que o Aeddan adora - sugeriu Jarn, malicioso. - Talvez todos nós devêssemos adorar o cão do Leif!

- Ah, sim? - perguntou Ragnar, com a testa franzida de preocupação. - Permitiu que os Romanos o matassem? Como pôde isso acontecer?

- Os guerreiros Romanos prenderam-no e levaram-no. Despiram-no, amarraram-no a um poste e açoitaram-no com um chicote de pontas de ferro - expliquei. - Bateram-lhe com tanta força que as suas carnes se lhe soltaram dos ossos e o sangue cobriu o chão. Mesmo assim, não gritou.

- Pelo menos, aguentou-se como um homem - comentou Gunnar, muito impressionado. - Duvido que o cão do Leif conseguisse fazer uma coisa dessas.

- Depois, quando já estava meio morto, colocaram-lhe um tronco sobre os ombros e obrigaram-no a carregá-lo através da cidade, todo nu, até à Colina da Caveira.

- Os Romanos são cães cobardes - declarou Ragnar, como se cuspisse. - Toda a gente o sabe.

- Depois, os romanos deitaram-no no chão... - Pousei a minha taça, deitei-me e coloquei-me na posição da cruz. - Enquanto um guerreiro se ajoelhava sobre os seus braços e pernas, um outro pegou num martelo e em pregos e pregaram-lhe os braços e as pernas ao tronco. A seguir levantaram-no e espetaram o tronco no chão, deixando-o pendurado até morrer.

Os meus ouvintes abriram as bocas de espanto.

- Quando já estava pendurado acima do chão, o céu ficou muito escuro, o vento enfureceu-se feroz e os trovões rugiram pela abóbada celeste.

- Transformou-se numa tempestade e matou-os a todos com raios? - perguntou Gunnar, esperançado.

- Nay - respondi.

- Então, que foi que fez? - inquiriu Jarn, desconfiado.

- Morreu. - Fechei os olhos e deixei descair os membros.

- Se o teu deus era tão fraco e inútil como isso... - fungou Jarn - então acho muito bem que o tenham morto!

- Houve uma vez - salientou Ragnar - em que Odin também se sacrificou desse modo. Ficou pendurado na Árvore do Mundo durante nove dias e nove noites e permitiu que as suas carnes fossem consumidas pelos corvos e mochos.

- E para que serve um deus morto? - perguntou Leif. - Aí está uma coisa que nunca consegui compreender.

- Ah, essa é precisamente a parte mais importante - disse-lhes. - Depois de estar bem morto, os skalds desceram-no do tronco, meteram-no numa gruta e fecharam a entrada com uma enorme pedra, uma pedra tão grande que nem dez homens a conseguiriam mover. Procederam desse modo porque tinham medo dele mesmo na morte. A seguir obrigaram os guerreiros romanos a ficarem de guarda ao túmulo, não fosse acontecer qualquer coisa...

- E aconteceu alguma coisa? - inquiriu Ragnar, duvidoso.

- Voltou à vida. - Levantei-me do chão num salto, para grande espanto dos meus ouvintes. - Voltou a erguer-se três dias depois de morrer e saiu da gruta... mas não antes de ter descido ao mundo subterrâneo para libertar todos os escravos do Hei. - Servi-me da palavra que utilizavam porque tinha mais ou menos o mesmo significado: o lugar das almas torturadas.

O facto deixou-os grandemente impressionados.

- Heya! - exclamou Ragnar com um aceno de aprovação. - E lançou a sua vingança sobre os skalds e os romanos que o mataram?

- Nem sequer exigiu o preço do sangue, e foi assim que demonstrou a sua divindade, porque ele é um deus da justiça e não da vingança, da vida e não da morte. É um deus que estabeleceu, muito antes da era do mundo, que o amor e a bondade deveriam ser os pilares do seu Grande Salão. Continua vivo e continuará para sempre. Por isso, quem quer que invoque o seu nome será salvo da morte e dos tormentos do Hei.

- Se está vivo... - interveio Jarn, desdenhoso - onde é que se encontra neste momento? Já o viste?

- Já muitos o viram - repliquei - porque é frequente que se revele aos que o procuram com diligência. Porém, o seu reino é nos céus, onde está a construir um grande salão onde todo o seu povo se poderá reunir para a festa do casamento quando regressar à Terra para tomar a sua noiva.

- E quando irá regressar? - perguntou Ragnar.

- Em breve - respondi. - Quando regressar, os mortos voltarão à vida e Ele irá julgá-los a todos. Os que praticaram malefícios e traições contra ele serão exilados para o Hei, onde ficarão a lamentar-se para sempre por não lhe terem dado ouvidos quando tiveram a oportunidade.

- E que acontecerá aos que o respeitarem? - inquiriu Leif.

- Aos que lhe demonstraram lealdade... - expliquei - ser-lhes-á garantida a vida eterna e juntar-se-ão a Ele no salão celestial, onde festejarão e celebrarão para todo o sempre.

Os meus ouvintes gostaram da ideia.

- Esse salão deve ser muito grande, para poder conter tanta gente... - observou Gunnar.

- O Valhalla também é grande - comentou Ragnar, dando-me uma ajuda.

- É maior do que o Valhalla - declarei, com toda a confiança.

- Se é assim tão grande, como é que o consegue construir sozinho? - interrogou-se Leif.

- É um deus, Leif - respondeu Gunnar. - Os deuses, como todos sabemos, conseguem fazer essas coisas.

- Para além disso... - acrescentei - tem sete vezes sete hostes de anjos para o ajudarem.

- Quem são esses anjos? - perguntou Ragnar.

- São os campeões do céu - esclareci - que são conduzidos por um chefe chamado Miguel que empunha uma espada de fogo.

- Já ouvi falar dele... - declarou Gunnar. - Helmuth, o meu guardador de porcos, refere-o muitas vezes.

- Não deve ser um grande deus, se permite que pescadores e guardadores de porcos o invoquem... - troçou Jam.

- Todos o podem invocar - retorqui. - Reis e jarls, homens livres, mulheres crianças e escravos.

- Não seria capaz de respeitar um deus que fosse adorado pelos meus escravos - insistiu Jam.

- E esse deus tem um nome? - perguntou Leif.

- O seu nome é Jesus, a quem também chamam o Cristo, uma palavra que quer dizer jarl na língua dos gregos.

- Falas muito bem por esse teu Deus - declarou Ragnar. Gunnar e Tolar acenaram a sua concordância. - Estou convencido de que se trata de um assunto merecedor da nossa atenção.

Todos concordaram que sim, que o assunto merecia mais atenção. Contudo, cogitações tão profundas precisavam da ajuda da öl, a que passaram a dedicar toda a sua atenção. Para além disso foi imediatamente sugerido que não era possível enfrentar pensamentos tão extenuantes sem a força que só um estômago cheio lhes poderia dar. A simples contemplação de uma tal tarefa sem o devido sustento seria uma verdadeira loucura. Por isso, a conversa virou-se rapidamente para o problema de se saber quem deveria levantar-se para ir buscar a carne que muito em breve sairia dos espetos.

Por fim, Gunnar, Leif e eu fomos reclamar a nossa parte da carne. Comemos e bebemos amigavelmente e acabei por adormecer a pensar que, fosse o que fosse que me viesse a acontecer em dias futuros, o meu tempo de permanência entre os bárbaros não fora inteiramente desperdiçado.

 

Na manhã seguinte o rei Harald reuniu a corte no interior do círculo de pedras. Quem quer que tivesse uma queixa ou procurasse uma compensação podia apresentar-se perante ele, para julgamento. É um costume bastante semelhante ao praticado pelos reis irlandeses e pelos seus povos. Talvez aconteça o mesmo em todo o lado, mas não sei se assim é. Contudo, bastava-me observar como se comportavam as pessoas para compreender o processo bastante bem. Apresentavam-se perante o monarca, por vezes sozinhas e outras vezes aos pares, com os respectivos apoiantes por trás deles, para os encorajarem. A seguir declaravam a natureza das suas queixas e suplicavam uma decisão, enquanto o monarca permanecia sentado sobre uma tábua apoiada em duas pedras.

O rei Harald parecia apreciar os procedimentos. Inclinava-se para a frente ansiosamente, de mãos pousadas nos joelhos, escutando as queixas e tomando uma decisão, que por vezes era muito rápida e surgia logo depois de uma ou duas perguntas. Observei os rostos dos que se colocavam na sua presença e pareceu-me que, pelo menos na maior parte dos casos, as pessoas ficavam satisfeitas com a justiça que haviam recebido.

Porém, outras vezes, também se viam carrancas e se ouviam murmúrios sombrios quando os ofendidos se afastavam para lamberem as suas feridas. É também assim no Éire, uma vez que é impossível agradar a todos, mesmo com toda a justiça... e porque há pessoas que nunca se dão por satisfeitas.

Enquanto esperávamos pela nossa vez perguntei a mim mesmo se Gunnar iria ficar satisfeito com o julgamento, tendo em conta que a responsabilidade dos acontecimentos recaía sobre o próprio rei. Qual seria a decisão de Harald Berro-de-Touro?

Finalmente, quando foi chamado, Harald avançou com ousadia arrastando-me com ele e obrigando-me a permanecer a seu lado. O monarca fitou-me e aquele seu olhar recordou-me o nosso encontro anterior, uma vez que a sua expressão revelou os mesmos traços pensativos.

Levantou a mão para Gunnar, reconhecendo o meu amo como um homem livre da tribo de Ragnar e perguntou-lhe ao que ia. Gunnar respondeu com toda a frontalidade, dizendo que se tratava de uma queixa que envolvia nada mais, nada menos, do que o assassinato de um escravo em quem confiara e que o servira durante muito tempo.

O monarca concordou que se tratava, de facto, de um caso muito grave.

- Aparentemente - afirmou Harald - é um assunto merecedor de grande atenção. - Fez uma pausa para que todos os que o rodeavam pudessem apreciar a sua inteligência, e só depois perguntou: - Dizes que se tratou de assassinato. Porquê?

Gunnar replicou que se tratava de assassinato quando os escravos de um homem era atacados por guerreiros armados - que na verdade, eram homens do rei! - e eram mortos sem motivo.

- Odd não tinha nenhuma arma... - concluiu. - Nem sequer uma pedra.

- Agora que me falas nesse assunto... - respondeu Harald - lembro-me que enviei dois karlar da minha casa para essa região e que só um deles regressou. Talvez me possas explicar como foi que isso aconteceu.

Gunnar, antecipando a pergunta, já tinha a resposta pronta.

- Durante o ataque, o meu bom cão matou o homem que assassinou o meu escravo. Por causa disso, também o meu cão foi morto. Como podes ver, perdi um cão e um escravo sem que existissem razões para isso. É um prejuízo que não posso suportar com facilidade.

O monarca não mostrou nenhuma pressa em concordar com Gunnar, mas admitiu que os cães não matavam homens do rei a não se que fossem provocados.

- Quem provocou o cão? - perguntou.

- O vosso homem - respondeu Gunnar.

- E quem soltou o cão? - inquiriu Harald, sugerindo que sabia mais a respeito daquele incidente do que admitira.

- Este homem, meu escravo - declarou Gunnar, apontando-me. - Foi ele quem soltou o cão.

Os olhos de Harald Berro-de-Touro ganharam dureza e as suas feições tornaram-se rígidas.

- Foi assim? - perguntou-me.

Creio que estava à espera que eu negasse ou que tentasse dar uma qualquer explicação. Apanhei-o de surpresa quando me limitei a responder:

- É verdade!

- E sabias que o cão mataria esse meu homem?

- Não, senhor - respondi.

- Pensaste que isso poderia acontecer?

- Sim.

- Pensaste que o cão poderia matar um dos homens do rei - repetiu Harald, num tom zangado e mais alto - e mesmo assim soltaste-o?

- Pensei que seria bom que o cão impedisse o vosso karlar de matar Odd.

A resposta deixou Harald confuso. Creio que já se decidira por uma solução para o assunto, mas que a minha admissão dera um aspecto ligeiramente diferente aos acontecimentos pelo que se interrogava sobre como deveria proceder. Desviou os olhos de mim e disse, dirigindo-se a Gunnar:

- Perdeste um escravo e eu perdi um guerreiro. Pagarei o teu escravo...

- ... e o cão... - acrescentou Gunnar, com todo o respeito.

- Pagar-te-ei a perda do escravo e do cão... - repetiu Harald - e tu pagar-me-ás a perda do meu guerreiro. Agora, afirmo que o meu guerreiro valia vinte moedas de ouro. Creio que o teu escravo não valia nem metade disso...

- Não, meu senhor. - O rosto de Gunnar perdera toda a cor e a sua sede de justiça já não era tão forte como fora apenas momentos antes.

- Então, quanto? - inquiriu o monarca.

- Oito peças de prata - sugeriu Gunnar.

- Ou talvez cinco? - interrogou-se Harald.

- Seis - admitiu Gunnar - e mais seis pelo cão.

- Se admitirmos que doze peças de prata valem duas de ouro, então ainda me deves dezoito peças de ouro pela morte do meu guerreiro - afirmou o rei Harald. - Paga-me agora e o assunto fica resolvido.

- Senhor - declarou Gunnar, com pesar - nunca fui possuidor de uma tão grande soma, nem o meu pai, nem o pai do meu pai. Nem sequer Ragnar Cabelos-Amarelos dispõe de tanto ouro. - Numa súbita inspiração, acrescentou - Tudo o que possuímos é entregue como tributo...

O rei Harald pôs aquela questão de lado com um gesto impaciente da mão.

- Isso não interessa para o caso. Fizemos um negócio e tens de arranjar maneira de pagar a tua parte, heya?

- Nunca conseguiria juntar tamanha riqueza mesmo que vendesse tudo o que tenho - afirmou Gunnar.

Harald pareceu deixar-se comover. Levou uma das mãos ao queixo e ficou aparentemente a pensar no que poderia fazer para ajudar Gunnar a sair de uma tal provação. Afirmou que não era bom deixar assuntos daqueles por resolver e admitiu que era verdade que, para começar, o responsável pelo ataque fora o seu próprio karlar.

- Tomando isso em conta... - concluiu - não exigirei todo o preço do sangue. A dádiva do teu escravo será o suficiente.

Gunnar, incapaz de acreditar na sua boa sorte, não levantou mais objecções e concordou imediatamente para não se dar o caso de ver o monarca a mudar de ideias. Harald chamou um dos seus homens, que avançou para o rudimentar trono do rei e lhe entregou uma bolsa de couro. Harald meteu a mão na bolsa e fez aparecer um punhado de moedas de prata.

- Não quero que fiques a pensar mal do teu rei... - disse. Seleccionou algumas moedas e fez sinal a Gunnar e a mim para que nos aproximássemos.

- Isto é pela perda do teu escravo... - declarou, despejando seis moedas nas mãos estendidas de Gunnar. Depois, como se considerasse melhor a sua oferta, escolheu mais três moedas e juntou-as às outras. - E isto é pelo teu cão - acrescentou o monarca, entregando a Gunnar mais seis moedas de prata. - Heya?

Gunnar olhou para mim e encolheu os ombros.

- Heya - respondeu, grandemente aliviado.

A um aceno do rei, o meu amo retirou-se, manifestando a sua gratidão e guardando as moedas no cinto. O guerreiro avançou, segurou-me por um braço e arrastou-me até ao trono do monarca. Harald Berro-de-Touro estendeu a mão, agarrou-me pela coleira de couro e obrigou-me a ajoelhar.

- Agora és meu escravo! - declarou. - Compreendes o que te estou a dizer?

Manifestei a minha submissão baixando a cabeça, após o que me puseram de pé, me empurraram com alguma violência para trás do rei e me obrigaram a juntar-me aos outros servos. Pensei para comigo, enquanto me esforçava por me adaptar a esta surpreendente mudança na minha sorte, que o monarca preparara a sua justiça com todo o cuidado. Creio que começara a planeá-la desde o momento em que me vira na margem do rio, e que aquele era o resultado final do seu plano.

Instalei-me no meio do séquito de servos e escravos do rei. Uma vez longe das vistas, o monarca pareceu perder todo o interesse por mim. Por outro lado, como não me deu nada para fazer, mantive-me fora do seu caminho e aproveitei para observar o funcionamento da corte. Todavia, os meus esforços de pouco serviram uma vez que parecia não existir qualquer espécie de funcionamento ordenado.

Na manhã seguinte, aquando da conclusão do theng, toda a gente se despediu dos amigos e familiares, que na sua maior parte só voltariam a ver quando surgisse uma nova convocação que os levasse a reunirem-se no círculo do conselho. Os trilhos da floresta à nossa volta ecoaram com os sons dos dinamarqueses que regressavam a casa, que se chamavam uns aos outros e que soltavam altos gritos de exuberância ante a perspectiva de navegarem para a fama e para a fortuna na companhia de Harald Berro-de-Touro, isto porque, antes de os mandar embora para as suas diversas jornadas, o monarca se instalara na proa de dragão do seu belo navio e reafirmara as condições da oferta: quem quer que o seguisse até Miklagard ficaria isento do pagamento de tributo durante cinco anos e também ganharia uma parte de todos os tesouros que fossem conquistados. Como é óbvio, a maior parte dos homens livres e dos nobres tinha-se imediatamente comprometido a juntar-se a Harald.

A maior parte, sim, mas não todos. Ragnar Cabelos-Amarelos não lhe manifestou o seu apoio. Em solidariedade para com a relutância revelada pelo seu senhor, Gunnar, Tolar e vários karlar da casa de Ragnar também não se comprometeram com o monarca embora, a verdade seja dita, não tenham ficado muito satisfeitos com a oposição do jarl ao plano de Harald.

Concluídas as últimas despedidas, o monarca embarcou no seu navio e começámos a descer o rio. Encontrei um lugar junto à amurada e observei o local do theng a desaparecer ao longe, atrás de nós. A tristeza invadiu-me ao constatar que não voltaria a ver a Ylva, a Karin, o Helmuth, o pequeno Ulf ou até o próprio Gunnar. Haviam sido bons para mim e nem sequer tivera oportunidade para me despedir deles. Contudo, fiz o que pude, rezei por eles e pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo para enviar um anjo para os defender. Como não sabia que espécie de amo poderia ser o jarl Harald, também aproveitei para rezar por mim mesmo, para que me demonstrasse merecedor do destino que me havia sido preparado.

Atingimos a foz do rio após três dias de viagem, tanto de dia como de noite. Foi preciso ainda mais um dia de viagem, para norte e leste ao longo da costa, para alcançarmos finalmente as terras do monarca, situadas numa minúscula enseada chamada Bjorvika. Na verdade, pouco mais eram do que um acampamento armado, protegido por uma muralha pouco elevada, feita de turfa, que se erguia em volta de um punhado de casas de lama e colmo. Todavia, o povoado dispunha de um resistente cais de madeira para as embarcações do rei, que eram três. O navio com a cabeça de dragão era o maior, mas os outros, mesmo assim, dispunham de vinte bancos cada um.

Em breve descobri que aquela propriedade do rei era apenas uma de três. Para além daquele porto, Harald também mantinha uma instalação de Verão, com campos e com gado, e uma outra de Inverno onde bebia e caçava durante os meses frios. Uma vez que planeara partir da Dinamarca com a próxima Lua Cheia, o monarca levara consigo apenas as pessoas que iriam ser necessárias no porto e deixara as restantes noutros lados.

Nos dias que seguiram foi-me permitido vadiar pelas terras do monarca à minha vontade e até explorei os recantos mais longínquos da pequena enseada sem que ninguém levantasse objecções. Ocasionalmente mandavam-me executar algum pequeno trabalho, tal como transportar lenha, ir buscar água ou dar de comer aos porcos. Numa certa manhã apareceram dois homens do rei que substituíram a minha coleira de couro por outra de ferro, e que a seguir aproveitaram para me espancar. Esmurraram-me e pontapearam-me com tanta força que perdi a consciência e quase não consegui caminhar durante três dias. Tirando isso, fui deixado em paz não obstante andarem todos muito atarefados de sol-a-sol, preparando abastecimentos e provisões para a grande jornada do monarca.

Pela minha parte, decidi que aproveitaria o tempo para melhorar tanto quanto possível o meu domínio da língua dos dinamarqueses, pelo que pratiquei aquele idioma desajeitado até os lábios ficarem dormentes e me doer a cabeça. Mesmo assim, o tempo pesava-me e pensei frequentemente em Gunnar e na sua família, desejando poder estar junto deles.

A estação mudou e o Verão transformou-se rapidamente num Outono frio e húmido. Os ventos também mudaram e sopraram mais insistentemente do norte e do leste, isto enquanto o Sol se ia mostrando cada vez mais baixo no céu. Assinalei essas mudanças e entretive-me o melhor que pude, tendo o cuidado de me manter longe dos guerreiros não fosse dar-se o caso de um deles se lembrar de aproveitar a oportunidade para me espancar. Depois, apenas dois dias antes da data prevista para a partida, o monarca recordou-se subitamente da minha existência e fui convocado ao salão por um dos seus karlar.

O salão de Harald era muito semelhante ao de Ragnar, talvez ligeiramente maior mas essencialmente igual. Para além disso, também não havia uma grande diferença nas actividades que lá se desenvolviam. A lareira era larga e confortável, os bancos eram compridos, a mesa ampla e eternamente cheia de homens que comiam e bebiam a todas as horas do dia e da noite. Contudo, ao contrário de Ragnar, Harald instalara um trono de madeira de carvalho no lado sul da lareira. As costas dessa enorme cadeira tinham a forma de um grande escudo, com aplicações e pregos de bronze polido e com um rebordo de prata fixo com pregos de ouro. Os pés nus do monarca repousavam sobre uma banqueta baixa coberta com as peles de Inverno, inteiramente brancas, de focas jovens.

O guerreiro empurrou-me para a frente do trono e foi-se embora sem proferir uma palavra. O monarca, que falava com um dos muitos conselheiros que era habitual encontrarem-se em volta do trono, avistou-me pelo canto dos olhos e mandou o homem embora. Harald pousou as mãos nos joelhos, fitou-me com uma expressão de modo nenhum amigável e semicerrou os olhos lentamente como se o que via na sua frente não fosse inteiramente do seu agrado.

- Dizem... - afirmou, passado um momento - que falas sozinho. Porquê?

- Para aprender a língua dos dinamarqueses - respondi, com toda a franqueza.

Contraiu os lábios e aceitou a minha resposta sem comentário. A seguir acrescentou, como se estivesse a fazer uma observação:

- Pertences aos Cabeças-Rapadas.

Mantive-me em silêncio uma vez que não me parecia que o comentário necessitasse de uma resposta.

- Compreendes o que te estou a dizer neste momento? - perguntou o monarca.

- Sim, jarl - afirmei. - Compreendo.

- Então, responde!

- É verdade, senhor, sou um dos Cabeças-Rapadas.

- E sabes alguma coisa sobre os runor?

- Perdoai-me, senhor, mas não conheço essa palavra. O que é um runor?

O monarca encheu as bochechas, exasperado.

- Runor! Runor! Uma coisa como esta... - Deu um estalo impaciente com os dedos. Um dos seus homens entregou-lhe uma pele enrolada, que o monarca desenrolou e me mostrou.

Examinei-a e verifiquei que se tratava de um mapa rudimentarmente desenhado com uma lista de povoados ao longo de um dos lados. Junto de cada povoado havia uma concisa descrição dos povos que viviam na região e do comércio que aí se podia desenvolver. Estava escrito em latim e eu disse ao monarca que sim, que se um runor era aquilo, então podia lê-los sem qualquer dificuldade.

Pensei que a minha afirmação agradaria ao jarl Harald, mas estava enganado. Deu um segundo estalo com os dedos e surgiu outro pergaminho.

- E isto? - inquiriu, atirando-me o rolo. Abriu-o e olhei para aquele antigo documento.

- Também o posso ler - declarei.

- Então, diz-me o que aí está escrito - pediu, transformando o pedido num desafio.

Voltei a olhar para o pergaminho e verifiquei que se tratava de uma espécie qualquer de inventário, tal como é costume fazer dos bens existentes num armazém. Partilhei essa minha opinião com Harald, que insistiu:

- Nay, nay! Lê-o!

Comecei a fazê-lo mas ainda só murmurara meia dúzia de palavras quando me mandou parar.

- Nay! Lê-o em dinamarquês!

- Perdoai-me, jarl... - disse, recomeçando a leitura: - Cevada, seis sacos... Toucinho salgado, três costelas... Azeite, sete barris pequenos...

- Basta! - ordenou Harald, distraído. Olhou-me com dureza, como que a tentar decidir se deveria pressionar-me mais ou banir-me da sua vista para sempre. Passado alguns instantes pareceu ter chegado a uma conclusão porque levantou a mão e chamou dois do seus karlar, que se aproximaram carregados com um cofre de madeira reforçado com tiras de ferro e fechado com uma estranha tampa semelhante ao telhado de uma casa.

O cofre do tesouro foi aberto na minha frente e revelou um objecto quadrado envolto em panos, que os dois homens depositaram nas mãos do rei. Harald pousou o embrulho no colo e começou a desenrolar as longas tiras de pano. Tive um relance do brilho da prata quando um dos panos caiu. A seguir, o monarca pegou no objecto e mandou-me avançar.

Não sei o que estava à espera de ver... mas a visão com que os meus olhos depararam fez com que o coração me subisse à garganta. Ofeguei e fiquei a olhar, mergulhado num espanto doentio, para o objecto que se encontrava nas mãos do rei... isto porque ali, quase ao alcance das minhas mãos, se encontrava a cumtach de Colum Cille.

Não se tratava do livro inteiro, nada disso - uma vez que que não teria qualquer espécie de interesse para os Lobos do Mar - mas sim a sua grande encadernação em prata cravejada de jóias, muito mais atraente para os olhos avaros dos saqueadores dinamarqueses.

Kyrie eleison! Murmurei. Deus tenha piedade! Cristo tenha piedade!

Harald abriu a capa do livro e vi que ainda lhe restavam algumas folhas, mas não muitas, talvez apenas três ou quatro. Muito provavelmente, as outras haviam-se soltado durante a precipitação da pilhagem. Para meu santo horror, o monarca pegou numa daquelas páginas e separou-a das restantes com o punhal. Tive de me esforçar muito para não soltar um grito. O Livro de Colum Cille tinha sido profanado!

- Lê-o - ordenou o monarca, entregando-me a página sagrada. Contudo, não estava em condições de falar. Peguei no fragmento com dedos trémulos e levei-o aos olhos - era uma das páginas iniciais dos Evangelhos conhecidos por Livro de Mateus - e observei mais uma vez as cores ricas e brilhantes, bem como o intrincado rendilhado de cruzes, espirais, chaves e folhas, sem nunca deixar de murmurar para mim mesmo: Senhor, Nosso Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem.

- Lê-o! - ordenou o monarca mais uma vez, com mais firmeza. Dominei a minha perturbação e obriguei-me a permanecer calmo sob a mirada do monarca. Pensei que não seria bom revelar-lhe que sabia alguma coisa a respeito daquele livro. Mesmo naquela situação e com o coração à beira da ruptura, apercebi-me que não revelar qualquer espécie de apego por aquele tesouro seria a melhor maneira de me conseguir manter perto dele.

Virei a página na mão, inspeccionei as linhas e concluí que se tratava de uma das páginas escritas na nossa própria abadia. Abri a boca e li a passagem... mas não sei o que li. As palavras oscilavam na frente dos meus olhos e foi-me muito difícil manter a mão firme. Li uma linha, e depois outra, com a minha voz a soar a vazio aos meus próprios ouvidos. "E quando Jesus nasceu em Belém da Judeia durante o reinado do Rei Herodes, os Magos do Oriente encaminharam-se para Jerusalém..."

- Basta! - rugiu Harald, como se o som daquelas palavras lhe magoasse os ouvidos. Ficou a olhar para mim por instantes, com o silêncio a enrolar-se aos seus pés como uma medida de corda. O grande salão mergulhou no silêncio, com toda a gente à espera de ver o que iria fazer a seguir.

Permaneci sob o seu olhar, inseguro, tentando determinar se o meu comportamento traíra o facto de conhecer aquele livro. No entanto, apesar do monarca me olhar com atenção, creio que não era em mim que pensava e que a sua mente se concentrava num qualquer outro assunto. A minha leitura talvez fizesse parte das suas preocupações... mas não era de modo nenhum a parte principal.

Por fim, acabou por levantar a mão com uma expressão distraída e fez um gesto para me mandar embora. Virei-me para sair do salão, implorando por um pouco de força nas pernas, mas ainda não dera mais de três passos quando o monarca voltou a chamar-me:

- Cabeça-Rapada... - gritou de repente, como que num impulso súbito - vais acompanhar-me até Miklagard!

 

O vento soprava e o dia estava bonito quando dobrámos o escuro e pesado promontório do Geats e entrámos num mar cinzento e agitado pelos ventos. Não sabia onde me encontrava e muito menos para onde nos dirigíamos. Não fazia a mínima ideia sobre onde seria Miklagard e nem sequer me preocupava com isso. Até poderia estar a navegar para o inferno levando o próprio diabo a cavalo nas minhas costas que não teria feito qualquer diferença.

Permanecia no convés do navio de Harald como um homem dominado por uma forte decisão. Depois de pensar muito no assunto, concluí que não podia alhear-me e permitir que a sagrada cumtach continuasse a ser profanada pelos bárbaros. Acontecesse o que acontecesse, arriscaria tudo para preservar o tesouro pelo qual os meus irmãos haviam dado as suas vidas.

Infelizmente, a preservação daquele tesouro exigia que fosse cúmplice da malignidade do rei Harald. Que Cristo tivesse piedade de mim!

Contudo, um homem só pode fazer o que lhe cabe. Aquela fora a sorte que me coubera e faria o que fosse preciso. Harald, decidi, podia contar com toda a minha ajuda enquanto essa mesma ajuda me permitisse manter a cumtach sagrada ao meu alcance. Se uma tal ajuda contribuísse para facilitar os seus planos odiosos... pois que assim fosse. Pagaria pelos meus pecados tal como acontece a todos os homens, mas salvaria a capa de prata do livro de Colum Cille mesmo que tivesse de desistir da paz eterna e estivesse condenado ao tormento das chamas para todo o sempre.

Infelizmente, o precioso livro propriamente dito perdera-se. Fora um maldito desperdício de uma bela criação mas a cumtach sobrevivera. Para além disso, encontrava-se mesmo à mão de semear: Harald trouxera a encadernação de prata com ele e guardava-a no seu aposento a bordo do navio - dentro do cofre com a tampa em forma de telhado -, ao lado das duas arcas cheias de ouro e prata que pensara virem a ser necessárias para a viagem.

Não estava interessado nem nas arcas, nem nos seus tesouros, mas pretendia vigiar o cofre de madeira com olhos de águia.

Oh, a dura certeza da provação que teria de enfrentar fizera com que a minha determinação se tornasse verdadeiramente feroz. Tudo o mais - tanto a vida anterior como também a que poderia vir a ter - nada eram ao lado da força da minha recém-descoberta fortitude... e se os decretos do acaso exigissem firmeza, então eu seria como uma rocha, como uma verdadeira fortaleza de arrojo.

Os quatro navios partiram de Bjorvika e vi-me obrigado, nesse mesmo dia, a reforçar o coração para poder enfrentar a minha nova vocação: ser conselheiro de um Lobo do Mar saqueador cuja luxúria pelo ouro iria consumir as vidas de muitos. Harald Berro-de-Touro estava disposto a lançar as garras a tudo o que pudesse... e as suas garras eram realmente muito grandes.

Ninguém conseguia decidir, pelo menos de um modo satisfatório, se o plano do rei Harald era pura loucura ou pura astúcia. As opiniões pendiam demasiado facilmente para ambos os lados e era frequente vacilarem de um extremo ao outro conforme o dia ou a direcção do vento. Quando o vento soprava do Norte, frio e violento, toda a gente resmungava que era uma loucura abandonar o calor e a segurança das lareiras numa altura em que a época já ia tão avançada. Porém, quando o Sol brilhava e soprava uma brisa constante de Oeste ou do Sul, todos concordavam que ninguém estaria à espera de um ataque precisamente porque a estação ia adiantada, e que esse facto seria o suficiente para conseguirem grandes pilhagens entre os desprevenidos habitantes de Miklagard.

Para mim, tanto me fazia que fizesse chuva ou sol. Ocupava o meu lugar no grupo do monarca, antecipando as suas ordens mas mantendo as distâncias. Cumpria o meu dever, executando as obrigações de um escravo, e mais nada. Se as ambições de Harald tivessem de ser contidas, então seria por intermédio das mãos de Deus e não das minhas. Eu era o vaso feito para ser destruído, uma promessa de vaso que saíra perfeita das mãos do mestre oleiro mas que se estragara no forno e que agora só merecia ser esmagada debaixo do calcanhar e deitada fora.

Porém, Deus é bom! Teve piedade de mim e enviou-me amigos para me reconfortarem. Gunnar e Tolar, ansiosos por se verem perdoados de cinco anos de tributos, tinham acabado por se decidir a favor da viagem até Miklagard. Contudo, como o seu próprio jarl, Ragnar Cabelos-Amarelos, se recusara a apoiar o plano de pilhagem do rei com homens ou navios, haviam conseguido lugares a bordo da embarcação de Harald. O facto alegrou-me imensamente porque sentira a falta deles muito mais do que esperara. Por outro lado, como já não era escravo de Gunnar, tratavam-me como a um igual.

Estávamos no mar há apenas dois dias e encontrava-me sentado perto da popa com as costas para a amurada, encharcando-me nos breves raios do Sol que surgira no fim de um dia de chuva quando ouvi uma voz a dizer:

- Pareces triste, Aeddan.

- Ah, sim? - Abri os olhos e vi Gunnar, Tolar e um outro homem parados na minha frente. O estranho era alto e louro, com um rosto ver-melhusco profundamente marcado e uns olhos claros, permanentemente semicerrados por passar o tempo a olhar para o horizonte distante sob todos os tipos de clima.

- Tens o aspecto de quem perdeu o seu único amigo - acrescentou Gunnar, concluindo o seu comentário.

- Suponho que é por sentir a falta de uma bela cama seca no teu celeiro. É difícil adormecer em cima de uma tábua nua, num navio que está sempre a balouçar.

Gunnar virou-se para o estranho.

- Vês? Eu bem te disse que ele era irlandês.

- Sim, não há dúvida de que é irlandês - admitiu o homem, num tom plácido. - Outrora, o meu primo Sven teve uma mulher irlandesa. Comprou-a em Birka por seis peças de prata e uma braçadeira de cobre. Era uma boa esposa, mas tinha mau temperamento e não lhe permitia outras mulheres. Afirmou sempre que bastaria que ele pensasse em levar outra mulher lá para casa para ela o esventrar como a um peixe. Acho que isso o deixava muito vexado. A mulher morreu ao fim de cinco anos, apanhada por um lobo, ou por um gato-selvagem. Foi uma infelicidade para o Sven, que não tinha posses para conseguir outra mulher como aquela.

- Sim deve ter sido uma infelicidade... - concordei. - És o timoneiro do rei. Já te vi com ele. Chamo-me Aidan.

- E tu és o novo escravo do rei - afirmou o estranho. - Também já te tinha visto. As minhas saudações, Aeddan. Sou o Thorkel.

- Já navegámos juntos anteriormente, o Thorkel, o Tolar e eu - disse Gunnar. - Esta é a terceira vez... e toda a gente sabe que a terceira vez trás muito má sorte.

Tolar confirmou com um aceno e uma expressão muito grave.

- Diz-se que és cristão - informou-me o piloto. - Também se diz que o facto do rei confiar num cristão nos pode dar muito má sorte. Receiam que, por isso mesmo, as pilhagens não corram tão bem como seria de desejar quando chegarmos a Miklagard. - Thorkel fez uma pausa, como que a distanciar-se das opiniões dos boateiros. - Bom, as pessoas dizem muitas coisas... e na sua maior parte são asneiras, é claro.

- Aeddan é um sacerdote - declarou Gunnar alegremente, levantando a mão para a minha tonsura, cujos cabelos estavam já demasiado crescidos. - Diz muito bem do seu Deus. Devias ouvi-lo, um destes dias.

- Ah, sim? - admirou-se Thorkel. - Um sacerdote cristão? Nunca tinha visto nenhum.

- É verdade - confirmei, decidindo ir à procura de uma navalha em qualquer lado para restaurar a minha tonsura.

O marinheiro mirou-me com uma olhadela especulativa e chegou imediatamente a uma conclusão.

- Bom, mesmo assim, não me parece que confiar num cristão seja pior do que confiar a nossa sorte à Lua e às estrelas, coisa que os homens estão sempre dispostos a fazer. Penso que és suficientemente inofensivo.

A partir daquele momento, Thorkel e eu ficámos amigos. Como não tinha quaisquer obrigações determinadas, passava uma boa parte dos dias na sua companhia. Por vezes sentava-me no seu banco junto ao leme, e outras vezes instalava-me na amurada enquanto ele perscrutava o mar com os seus vivos olhos azuis. O alto timoneiro tomou a seu cargo informar-me de tudo o que pudesse sobre os nossos progressos, embora não houvesse muito para dizer. Para além de algumas vagas marcas terrestres - serras, rochas, rios, quintas e outras coisas do mesmo género - havia muito pouco para ver ou que valesse a pena ser mencionado.

Continuámos a sulcar o mar varrido pelas vagas. As tempestades do Outono aproximavam-se e os dias, nos reinos do norte, tornavam-se mais frios e curtos. Thorkel mantinha um rumo firme ao longo de costas pouco familiares e o monarca resistia resolutamente a expedições contra povoados não protegidos embora as oportunidades que se apresentavam não fossem muitas. Os sinais de habitações humanas eram escassos ao longo das costas escuras e cobertas de florestas, uma vez que seguíamos em direcção ao nosso destino pela rota do norte, que poucos conheciam e em que ainda menos confiavam. Sendo mais difícil do que a rota do sul, a rota do norte gozava da apreciável vantagem de encurtar a jornada. Todavia, ninguém era capaz de dizer até que ponto a mesma seria mais curta. Alguns apostavam que no Jul, o festival do solstício do Inverno, já estaríamos a beber òl no salão de Harald. Contudo, os pessimistas que se encontravam entre nós tinham tendência para pensar que o Verão já iria bem avançado antes de conseguirmos provar a cerveja do rei.

Foi desse modo, saltando de promontório para ilhota e de ilhota para promontório, que fomos navegando ao longo da costa enevoada, avançando sempre para leste. Na verdade, o Mar Oriental é uma expansão pouco amigável de água salgada, fria e negra, atravessada apenas por baleias solitárias e por outros monstros das profundezas salpicadas de espuma, e nunca vi um navio qualquer para além dos três que seguiam na nossa esteira.

Finalmente, doze dias depois de termos partido, chegámos ao sítio que Thorkel começara a procurar três dias antes, a foz do rio Dvina. Fizemos uma pausa apenas suficiente para os outros navios nos alcançarem, penetrámos no profundo canal do rio e iniciámos a parte da viagem que nos levaria para o sul.

Na verdade foi uma viagem peculiar, isto porque deixámos as rotas marítimas para trás de nós e navegámos pelos cursos de água do interior, sempre para sul, pelo Dvina e pelo Dniepre, passando através das terras dos Gardáricos, dos Curled, e por outros sítios sem nome, bem como pelos reinos bárbaros do Polotjans e Poljans, Dregovitas, Severians, Pat-zunaks e Kazars. Fomos atacados por duas vezes, uma delas em plena luz do dia e quando navegávamos. Os nossos adversários surgiram do meio dos campos de juncos, soltando gritos agudos e atirando-nos pedras e paus. Como não parámos, perseguiram-nos ao longo do rio, saltando sobre as margens rochosas montados em pequenos e peludos ponies, uma visão que fez com que os Lobos do Mar se rissem à gargalhada e que ocasionou muito divertimento nos dias que se seguiram.

O segundo ataque surgiu durante a noite, ao quarto dia da grande varação por cima das colinas entre o Dvina e o longo e profundo Dniepre. A luta foi selvagem, brutal e durou até ao meio dia. De acordo com as ordens do rei Harald, Thorkel, eu e cinco outros recuámos para bordo do navio para guardarmos as velas e as provisões. Não tomei parte no combate mas observei-o da amurada, rezando para que os anjos de Miguel protegessem Gunnar e Tolar, que conseguia avistar de vez em quando, labutando no meio do fumo, do sangue e dos gritos.

Que criatura peculiar é o homem, tão caprichoso como o vento e igualmente inconstante! Entre aqueles mesmos Lobos do Mar encontravam-se muitos dos que, em circunstâncias semelhantes, tinham atacado os meus queridos irmãos, mortos não sei quantos, arruinado a nossa peregrinação e roubado o nosso principal tesouro. Todavia, ali estava eu, de mãos unidas numa oração fervente, abrindo o meu coração por eles e rezando com todas as minhas forças para que conseguissem rechaçar os assaltantes. Era desse modo, assim o creio, que Deus me estava a mostrar até que ponto eu havia caído. De certeza que não era necessária nenhuma outra prova adicional.

Harald perdeu um total de dezassete homens, onze dos quais foram mortos e os restantes tomados como escravos. Os inimigos perderam mais - penso que muitos mais - mas não parámos para os contar nem para tomar escravos. Logo que a batalha terminou, os Lobos do Mar apressaram-se de volta aos navios, agarraram nos cabos e continuaram a puxá-los até atingirmos um local mais abrigado, no meio de uma floresta de carvalhos. Passámos aí o dia, descansando e tratando dos feridos. Na madrugada do dia seguinte a varação prosseguiu como se nada de especial tivesse acontecido e o embate do dia anterior se encontrasse completamente esquecido.

Poucos eram os povoados com dimensões capazes de chamar a atenção. Contudo, um desses poucos era uma fortaleza de troncos chamada Kiev, um entreposto comercial na posse de uma tribo dinamarquesa a que creio que davam o nome de Rhus e onde pensávamos desembarcar para trocar parte da prata do rei Harald por carne fresca e por outras provisões.

- Essa tal Kiev está talvez a um dia ou dois para lá das águas baixas - informou-nos Thorkel alguns dias depois do ataque. Tínhamos passado o dia a puxar o navio por cima de baixios lamacentos, o que constituía um trabalho aborrecido e opressivamente cansativo. Thorkel, Gunnar e eu estávamos sentados junto a uma pequena fogueira ao lado do navio, na margem do rio, porque tínhamos ganho o hábito de comer a refeição da noite em conjunto, dividindo o pão entre nós e ensopando-o na mesma panela.

Não sei explicar por que motivo Harald tolerava esta estranha comunhão entre um escravo e os seus homens. Porém, por outro lado, e para começar, também ainda não conseguira descortinar porque razão se mostrara tão desejoso de me ter como seu escravo. Para mim, toda aquela questão era inescrutável mas tirava conforto da companhia familiar de Gunnar e dos outros, e não me envergonho de dizer que eram meus amigos.

Thorkel parecia conhecer bem a região, apesar de nunca ter estado tão a sul. Gunnar fez um comentário a esse respeito, levando o piloto a sorrir e a inclinar-se para a frente, numa confidência:

- Tenho uma pele, sabem? - murmurou, batendo num dos lados do seu nariz com uma expressão significativa.

Em breve descobri que o homem pretendia dizer que tinha em seu poder uma pele oleada na qual fora desenhado um mapa rudimentar.

- Aqui está Kiev... - declarou, desenrolando a pele que conservava debaixo da camisa. Os rios eram rabiscos negros e os povoados eram pintas castanhas. Pousou um dedo sobre uma dessas pintas, deslocou-o mais para a frente e voltou a pousá-lo noutra - e aqui está Miklagard. Estão a ver? Estamos quase a chegar!

- Ah, mas ainda temos muito que andar! - comentei.

- Nay - replicou, abanando a cabeça e fazendo uma careta ante a minha ignorância. - Tudo isto... - acrescentou, apontando uma vasta expansão vazia por cima de Miklagard - daqui até aqui... são águas calmas, que atravessaremos facilmente em três ou quatro dias se os ventos nos forem favoráveis.

Passou-me a pele para as mãos. Aproximei-a do fogo e baixei a cabeça sobre ela. Estava muito gasta, amarrotada e suja, mas ainda se viam algumas letras bem como fragmentos de palavras latinas.

- Como conseguiste este mapa? - perguntei-lhe.

- O meu pai era Thorolf, piloto do jarl Knut do Olho-Torto, e comprou-o a outro piloto em Jomsborg - declarou Thorkel, orgulhoso. - Esse homem tinha-o adquirido a um mercador de Frencland... ou seria de Wenland? Já não me lembro! É muito valioso!

Muito em breve, o mapa de Thorkel iria demonstrar todo o seu valor isto porque, dois dias mais tarde, tal como previsto, chegámos finalmente ao tal entreposto comercial conhecido por Kiev.

 

Construída na larga margem do Dniepre, Kiev crescera a partir de um pequeno entreposto comercial dinamarquês e transformara-se numa grande cidade mercantil inserida numa floresta de bétulas, carvalhos e olmos, sobrepujada por uma colina na qual se erguia uma grande fortaleza de troncos onde os senhores de Kiev, segundo se dizia, amontoavam a prata que obtinham do comércio. As peles de visão, de marta, de castor e de raposas negras, os panos de seda do oriente, as espadas e facas, os vidros e as contas, o couro, o âmbar, o marfim das presas de morsa, os cornos de alce e de rena, bem como muitos outros artigos, eram transportados para cima e para baixo ao longo daquele rio e os lordes mercadores de Kiev impunham portagens sobre todos esses bens em denarii de prata ou em solidi de ouro.

Quando chegámos havia sete navios atracados ao longo da margem do rio, e momentos depois vimos aparecer mais dois, vindos do sul, onde as tripulações haviam passado o Verão a comerciar com os Eslavos e Búlgaros. Eram astutos mercadores dinamarqueses, alguns dos quais provinham da Sjaland e outros da Jutlândia. Na verdade, tinham sido os dinamarqueses de Skania quem havia fundado Kiev e muitos dos seus habitantes ainda falavam o dinamarquês, embora com alguns estranhos embelezamentos.

O rei Harald ordenou que os seus quatro navios atracassem juntos e que ficassem dez homens de guarda a cada um, uma vez que não confiava nos outros dinamarqueses para deixarem as suas embarcações em paz. Não permitiu que ninguém desembarcasse enquanto não viu as suas exigências satisfeitas, e não sem que todos fizessem um solene juramento de sangue garantindo que nem sequer sussurrariam uma palavra sobre o nosso destino final, para que não se desse o caso de outros Lobos do Mar virem a atacar a Cidade do Ouro, arruinando a nossa oportunidade de apanharmos os seus cidadãos de surpresa.

A seguir, o monarca reuniu os karlar à sua volta e encaminhou-se para o mercado. A primeira coisa que fez foi comprar uma cabra, uma ovelha e quatro galinhas, que levou directamente para um local que se erguia no centro do mercado e que se encontrava delimitado por um semicírculo de altas estacas. O chão por baixo dos pés estava húmido, o sítio cheirava a sangue e a podridão, e havia vários crânios de animais espalhados em torno dos postes.

Harald avançou para o centro do círculo. Aí chegado, o monarca prostrou-se na frente de um pilar vertical esculpido com as feições de um homem.

- Jarl Odin... - gritou, numa voz suficientemente alta para ter a certeza que todos o ouviam - vim de longe com quatro navios e muitos bons homens, em busca de comércio e de muitas pilhagens, e trouxe-te esta bela dádiva!

Dito aquilo, o monarca levantou-se, puxou pela faca e cortou rapidamente as gargantas aos animais, mantidos bem seguros por um dos seus karlar. Começou pela cabra e pela ovelha, chacinou os pobres animais e recolheu numa malga uma parte do sangue que escorreu para o chão. A seguir aproveitou esse sangue para pintalgar o pilar que tinha na frente e deitou o resto para os postes em volta. As galinhas foram decapitadas e atiradas ao ar para que o sangue se espalhasse por todo o lado, tanto sobre o pilar como sobre os postes, que representavam as mulheres e os filhos do Lorde Odin. Depois dos animais estarem mortos, o monarca retalhou as carcaças, deixou os melhores bocados para os deuses e enviou o resto de volta ao navio, para o seu jantar.

Penso que toda esta agitação se destinou mais a impressionar os mercadores de Kiev do que a satisfazer o desejo de Harald de honrar Odin, Thor e Freya. Porém, apesar dos balidos, dos saltos dos animais e da ruidosa proclamação do monarca, o sangrento sacrifício não despertou mais do que um interesse fugidio por parte da populaça de Kiev. Sem dúvida que o espectáculo, demasiado repetido, já os aborrecia.

Observado o ritual, o rei Harald marchou com toda a confiança para o mercado, onde negociou a água, os cereais e a carne de porco salgada que deveriam ser fornecidos aos seus navios. Entretanto, os homens lançaram-se à descoberta de uma outra faceta comercial de Kiev, talvez não tão descarada mas de modo nenhum menos proeminente. Numa das extremidades do mercado, por baixo da fortaleza, erguiam-se grandes habitações na frente das quais se viam longos bancos onde se encontrava reunido um certo número de mulheres jovens que, tal como tudo o mais em Kiev, se encontravam à venda. Era possível comprá-las imediatamente por um determinado preço e já muitos homens tinham conseguido boas esposas desse modo. Porém, por um preço inferior, também era possível adquirir uma pequena medida dos confortos de uma companhia feminina.

Era esse tipo de companhia o que mais atraía os Lobos do Mar. Harald proibira toda a gente de levar mulheres para bordo dos seus navios, e os homens, na sua maioria, haviam deixado as esposas em casa. Contudo, as preocupações do próprio monarca eram de um género menos lascivo.

Não procurava o comércio ou a companhia feminina, mas sim informações. Thorkel ouvira dizer - e o seu mapa assim o parecia indicar - que a sul de Kiev existiam enormes remoinhos e cataratas capazes de esmagar até os navios mais resistentes. Harald desejava saber qual a melhor maneira de evitar esses perigos e esperava, se tal fosse possível, encontrar um guia ou, no mínimo, inteirar-se do que os outros mercadores sabiam a respeito do curso do rio lá mais para o sul.

Foi com essa ideia em vista que Harald vagueou pelo mercado fingindo admirar os produtos e envolvendo-se em conversa com os vários mercadores. A pedido do monarca, Thorkel e eu acompanhámo-lo nas suas deambulações por entre os mercadores, para a eventualidade das nossas capacidades virem a ser necessárias. Como já disse, a maior parte dos mercadores falava o dinamarquês ou, no mínimo, faziam-se compreender nessa língua. Mesmo assim, foram muito poucas as informações que conseguimos obter não obstante todos os nossos esforços, uma vez que os mercadores estavam apenas interessados nos negócios e no comércio e desviavam todas as perguntas para o valor e qualidade dos seus produtos. No que se referia a outros assuntos, mostravam-se reticentes quase até ao ponto da grosseria.

- Tenho sede! - declarou Harald, finalmente. Tínhamos percorrido todo o mercado, aguentando encolhidelas de ombros, silêncios e insultos. - Creio que um pouco de öl nos ajudará a decidir o que fazer a seguir.

Atravessámos a praça do mercado e dirigimo-nos directamente para uma das casas maiores, que se distinguia pela pequena montanha de barris de cerveja empilhados ao acaso, no exterior. Havia várias mulheres sentadas no banco, observando a actividade do mercado e gozando os fracos raios do Sol. Ao verem que nos aproximávamos, começaram a compor-se, suponho que para revelarem melhor as suas virtudes. Eram mulheres com um aspecto estranho, escuras, com cabelos negros e finos como teias de aranha, com profundos olhos escuros dispostos obliquamente em rostos cheios e redondos como luas. Tinham membros curtos mas de carnes firmes, com uma pele da cor das amêndoas.

O monarca parou para as observar mas não viu nada a seu gosto e entrou na casa, que fora construída à maneira de um salão mas com uma galeria superior onde, a partir de alcovas semelhantes a baias, as pessoas podiam observar o que se passava em baixo. Vimos compridos bancos ao longo das paredes, bem com mesas e cavaletes instalados em volta de uma grande lareira quadrada construída no meio da sala. Eram poucos os homens sentados às mesas a comer e a beber, uma vez que a maioria se encontrava nos bancos e tinha taças nas mãos. A enorme sala era barulhenta, tenebrosa e sombria, uma vez que não existia nem um único orifício de ventilação nas paredes, nem uma chaminé no telhado, e porque toda a gente demonstrava uma certa tendência para gritarem uns aos outros. Bastou-me um passo no interior daquela sala para sentir o conteúdo do estômago a subir-me à garganta por causa do pivete a vomitado, a excrementos e a urina. O solo estava coberto por palha suja e viam-se cães esquálidos caídos ao longo das paredes e encolhidos pelos cantos.

Harald Berro-de-Touro não teve qualquer dificuldade para tornar conhecida a sua presença. Avançou com passos ousados e gritou:

- Heya! Tragam-me öl!

Toda a casa estremeceu com a força da sua exigência e surgiram três homens mal-amanhados para o servirem, cada um deles com um jarro de cerveja e várias grandes taças. Despejaram a cerveja escura e rica nas taças e enfiaram-nas nas nossas mãos. Eu fiquei com uma, mas Thorkel e Harald receberam duas cada um, que emborcaram avidamente sob o encorajamento ardente dos portadores dos jarros, que competiam uns com os outros para nos manterem as taças cheias.

Bebi a primeira imediatamente para depois bebericar a segunda com todo o vagar enquanto olhava em volta. Havia ali homens de muitas tribos e raças diferentes, que na sua maioria eram novas para mim: homens corpulentos e de cabelos claros, vestidos de peles, homens trigueiros e baixos, com mãos ágeis, elegantes e olhos encovados por cima de narizes que pareciam bicos de águias, homens de membros compridos e delgados, de peles pálidas, com roupas largas e botas macias feitas de couro tingido, bem como outros cuja aparência me fez pensar em lugares áridos e desertos. As únicas tribos que reconheci eram formadas por homens dos nossos navios ou por outros dinamarqueses, e não havia ali um único britânico ou irlandês. À medida que Harald e Thorkel foram bebendo, deixaram que os pés os conduzissem para onde lhes apetecesse. A ousadia do rei e a sua ostensiva boa vontade atraíram os outros nórdicos para junto dele, pelo que em breve conseguira reunir à sua volta um amigável grupo de marinheiros e de mercadores do rio, a quem começou a extrair as informações que desejava.

- Devem ser homens na verdade muito corajosos... - afirmou - para já terem estado no sul. Segundo tenho ouvido dizer, só os barqueiros mais valentes se atrevem a enfrentar os rápidos a sul de Kiev.

- Ora, não são assim tão maus... - gabou-se um grande e desgrenhado dinamarquês que cheirava a gordura de urso. - Neste Verão já fui duas vezes até ao Mar Negro.

- Ah, Snorri! - troçou o seu companheiro, com uma risadinha de desdém - Foste lá duas vezes, é verdade, mas uma delas foi no dorso de um cavalo!

- Da outra vez fui com um navio - ripostou o homem, assanhado - e é difícil de dizer qual das duas viagens será a mais perigosa.

- Diz-se por aí... - continuou Harald, despejando mais cervejas nas taças - que há dez cataratas, cada uma delas maior do que a anterior e todas suficientemente grandes para engolirem navios inteiros.

- É verdade - confirmou Snorri, solenemente.

- Nay... - afirmou o homem pequeno que o acompanhava - não são assim tantas. Talvez sejam quatro.

- Sete, pelo menos - corrigiu-o Snorri.

- Ou talvez cinco - interveio outro. - Contudo, só três são suficientemente grandes para engolirem um navio.

- Que sabes tu disso, Gutrik? - ripostou o enorme Snorri, num desafio. - Passaste todo o Verão em Novgorod, com dores de dentes.

- Fui lá há sete Verões - declarou Gutrik. - Na altura havia apenas quatro cataratas e não me parece que o rio se tenha modificado muito.

- Ah, se a tua memória fosse de tanta confiança como o rio... - comentou outro homem, numa leve provocação. - Eu próprio contei seis.

- Oh, são seis, é claro, se também incluirmos as mais pequenas. Pela minha parte, nem sequer lhes prestei atenção.

Thorkel, embora ainda segurasse as taças nas duas mãos, não bebia de nenhuma delas e escutava-os atentamente, tentando compor toda uma verdade a partir dos vários fragmentos com que cada um daqueles homens contribuía.

- Começo a pensar que nenhum deles desceu o rio... - acabou por sussurrar, para Harald.

- Nesse caso, vamos ter de pôr as coisas a limpo... - replicou o monarca. Virou-se para os homens, que naquele momento já deveriam ser uns sete, e disse: - Falam como se fossem homens com uma experiência considerável. Porém, para além do Snorri, quem mais poderá ter descido o rio neste Verão?

Olharam uns para os outros, não conseguiram arranjar uma resposta e baixaram os olhos para as taças. Contudo, o homem chamado Gutrik declarou:

- O Njord desceu o rio e regressou hoje mesmo com os seus navios.

- Heya! - concordaram todos. - O Njord é o homem que vos interessa.

- Encontrem o Njord - garantiu-nos Gudrik - ficarão a saber tudo o que há a saber sobre o Dniepre. Nenhum homem o conhece melhor.

- Uma moeda de prata para o primeiro homem que me trouxer o Njord... - anunciou Harald, tirando uma pequena moeda de prata do cinto - e mais outra se isso não demorar muito!

Três daqueles homens desapareceram imediatamente e instalámo-nos para esperar. Thorkel e o monarca continuaram a conversar com os outros, mas a curiosidade fez-me olhar à minha volta. Em breve se tornou óbvio que aquela casa tinha muito mais para oferecer do que apenas comida e bebida. Verifiquei que, de tempos a tempos, uma das mulheres que se encontrava no banco exterior entrava na casa arrastando um marinheiro atrás de si. Por vezes subiam à galeria, dirigiam-se a uma das alcovas e deitavam-se juntos, mas o mais frequente eram encontrarem um lugar num dos bancos ao longo da parede, onde copulavam à vista de todos os que se dessem ao trabalho de olhar.

A coisa acontecia tão casualmente e provocava tão-pouco interesse por parte dos presentes que eram como se fossem cães ou porcos com o cio e não seres humanos. Vi um homem entrar na casa e dirigir-se directamente para um amigo envolvido numa dessas relações. Os dois homens trocaram saudações e conversaram durante alguns momentos. Depois, o primeiro homem sentou-se no banco ao lado do par de amorosos enquanto o amigo prosseguia com o acto sexual até à sua consumação, após o que trocaram de lugares e o segundo homem começou onde o outro terminara.

A iniquidade era de cortar a respiração. Só conseguia abanar a cabeça de desespero. Contudo, no fim de contas, tratava-se de bárbaros e até era bom que me recordasse esse facto de tempos a tempos.

Acontece que Njord estava entretido com uma ocupação semelhante, numa casa próxima. Quando despachou tanto a mulher como a bebida, concordou em acompanhar Gutrik, que reclamou as moedas de prata apresentando o piloto ao rei Harald e anunciando:

- Tens na tua frente o melhor timoneiro existente desde o Mar Branco ao Mar Negro, Njord Mente-Profunda.

O homem que se encontrava na presença do monarca não podia ser menos impressionante. Um varapau enrugado exigiria muito maior consideração. Njord era um homem de ombros descaídos, de ossos compridos e orelhas-de-abano, como uma pele sulcada e curtida pelos ventos e pelo ar salgado até se assemelhar a couro. Tal como Thorkel, mantinha os olhos sempre semicerrados e usava um grande bigode que quase lhe tapava a boca. As mãos eram ásperas, habituadas a manobrar os cabos e o timão do navio, e mantinha-se sobre uns pés muito abertos para conservar o equilíbrio sobre as tábuas inclinadas de um casco a balouçar. Os seus cabelos estavam reduzidos a um mero farrapo acinzentado pelo Sol. No conjunto, o homem parecia um bocado de cartilagem roída pelos cães e deitada fora.

- Saudações, amigo! - berrou Harald. - Estes teus amigos não se cansam de gabar os teus conhecimentos e capacidades! Dizem muito bem da tua habilidade como marinheiro!

- Se me honram, os meus agradecimentos... - replicou o piloto com uma pequena vénia da cabeça. - Se me insultarem, lanço-lhes uma praga! Sou Njord, jarl Harald, e aceita as minhas melhores saudações.

- Amigo... - declarou o monarca, expansivo - nada me daria mais alegria do que tomar uma bebida na tua companhia! Mais öl! Servidores, ao trabalho! As nossas taças estão vazias e as gargantas estão secas! - Virou-se para Njord e acrescentou: - Toda esta conversa também me deixou com fome! Sentemo-nos e comamos, e poderás falar-me das tuas viagens!

- Um homem deve ser cuidadoso quando se senta na companhia de reis - comentou Njord com astúcia - pois pode sair-lhe caro, tanto no que se refere à vida como aos membros.

Compreendi então porque lhe chamavam Mente-Profunda, porque em breve se tornou aparente que o homem se considerava um filósofo com o dom de exprimir os seus pontos de vista por intermédio de aforismos astuciosos.

Os homens à nossa volta ficaram boquiabertos ante a ousadia, mas Harald atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- Receio que seja uma grande verdade - admitiu, satisfeito. - Contudo, até pode ser bom arriscar a saúde e a fortuna, heya? Quem sabe se os riscos não valerão a pena?

Thorkel e eu encontrámos um lugar para o monarca e para o seu novo e estranho amigo. Gutrik, Snorri e os restantes juntaram-se ao grupo, empurrando outros para o lado a fim de ficarem suficientemente perto para chegarem à carne e à cerveja que começaram a aparecer em cima da mesa. Instalámo-nos para uma refeição que se prolongou até ao crepúsculo e terminou com Harald e Njord a trocarem votos solenes, embora bêbados: o piloto iria guiar-nos para lá das traiçoeiras cataratas e o monarca, em troca, recompensá-lo-ia generosamente com os lucros do seu empreendimento. Por acaso, reparei que Harald se esquecera de mencionar qual era a natureza desse empreendimento.

O pequeno problema referente à obrigação assumida por Njord de conduzir os navios do seu próprio jarl de volta a casa foi rapidamente resolvida quando Harald se ofereceu para pagar a parte dos despojos de Verão a que o piloto tinha direito, como compensação pela perda dos seus serviços. O mestre do outro navio foi convocado, concordou rapidamente e o negócio foi fechado ali mesmo.

Depois de ter obtido tudo o que pretendera e até um pouco mais, o monarca mostrou-se ansioso por se ir embora dali. Levantou-se da mesa e apressou-se em direcção à porta, arrastando atrás de si um considerável grupo de servos, com cada um deles a exigir pagamento e a gritar a plenos pulmões para se conseguir fazer ouvir por cima dos outros. Harald parou junto à porta, virou-se, meteu a mão no cinto e puxou por um punhado de moedas de prata, que entregou ao servo que se encontrava mais à frente, dizendo:

- Partilhem isto entre vocês como entenderem.

Espantados, os servos olharam para aquela miserável recompensa e berraram ainda mais alto.

- Esta é a nossa recompensa?! - guincharam, incrédulos. - Um dia inteiro de comida e bebida... por isto?!

Contudo, o monarca limitou-se a levantar uma das mãos, num gesto de admoestação, e saiu para o exterior.

- Nay, não quero ouvir palavras de agradecimento, porque o prazer foi todo meu! Adeus, meus amigos!

Njord acenou com a cabeça, demonstrando a sua admiração perante o comportamento de Harald.

- É na verdade um rei... - murmurou.

Quando passávamos junto ao pilar de Odin, com os seus odores rançosos, pensei que era bom estar fora do salão mesmo que isso significasse a troca de um mau cheiro por outro. Depois de um dia inteiro ao Sol, o cheiro dos animais sacrificados e já em putrefacção era bastante pungente. Contudo, bem vistas as coisas, o odor a carnes podres sempre era melhor do que a ruidosa mistura de fumo, suor, fezes, cerveja azeda e vómito que se acumulara no interior do salão.

Não havia ninguém a bordo dos navios para além dos guardas, que já não eram os dez que havíamos deixado para trás para vigiar as embarcações uma vez que tinham sido rendidos por companheiros já saciados de bebida e de cópula, e que estavam agora profundamente adormecidos sobre o convés. Os dorminhocos foram acordados e mandados em busca dos camaradas.

Afastar os Lobos do Mar das delícias de Kiev demonstrou ser uma tarefa muito mais difícil do que alguém conseguira prever. As casas de prazer eram grandes e continham muitos quartos, alguns dos quais completamente isolados, que se destinavam aos que procuravam uma maneira mais privada de exprimir as artes carnais. Desse modo tornava-se necessário revistar cada uma dessas casas e cada um desses quartos, para chamar ou até, talvez com mais frequência, para carregar com os marinheiros de volta aos navios que os aguardavam.

A Lua já ascendera no céu e atingira o seu ponto máximo quando todos os guerreiros de Harald foram recuperados e os navios empurrados para longe da margem. Felizmente não era preciso remar porque o fluxo da corrente nos arrastava consigo, pelo que ninguém foi obrigado a agarrar num remo e não se verificou nenhuma espécie de acidente.

Contudo, no dia seguinte não tivemos tanta sorte. Logo a sul de Kiev, o rio corria por serranias que o apertavam e transformavam numa torrente rápida que esculpia uma passagem entre altas falésias de pedra que quase não permitiam a passagem do navio. Nem sequer era possível utilizar um remo de cada lado do casco. Se alguém o tentasse fazer, os remos ficariam estilhaçados, pelo que Thorkel teve grandes dificuldades para manter a quilha centrada na parte mais profunda do canal. O timoneiro passou todo o dia com o rosto franzido numa expressão preocupada, como se esperasse que a calamidade nos atingisse de um momento para o outro. Njord, pelo seu lado, manteve-se com a cabeça escondida por baixo da capa, curtindo a festança da noite anterior.

Quando acabou por aparecer já o pior da passagem se encontrava pelas costas e as águas eram novamente plácidas.

- Ah, estás a ver... - declarou, olhando em volta - isto é esplêndido! Creio que és um verdadeiro timoneiro, meu amigo Thorkel. As tuas capacidades são iguais às minhas sob todos os aspectos... menos um. - Recusou esclarecer que falha singular seria aquela e passou a louvar as qualidades marinheiras da embarcação. - Oh, é um belo navio, heya? Penso que sim! Tem mastro fortes mas o timão é leve. É na verdade um belo navio.

- Foi o que sempre pensámos - replicou Thorkel, talvez um pouco rígido. - No entanto, fico contente por o dizeres.

- Todavia, veremos como se irá comportar dentro de três dias - continuou Njord. - As primeiras cataratas não são muito más... e podemos até afirmar que pouco mais são do que rápidos. Passaremos quatro delas com toda a facilidade porque as águas, nesta altura do ano, não têm muita força. O problema é completamente diferente quando as chuvas da Primavera inundam os vales. Têm bons motivos para agradecer às estrelas o facto de não estarmos na Primavera.

- E as restantes cataratas? - pergunto Thorkel.

- Todos os homens se metem em dívidas... - retorquiu Njord de um modo críptico - mas só um louco se mete em sarilhos. - Virou-lhe as costas e afastou-se, fazendo deslizar os dedos sobre o polido corrimão da amurada.

- Não me preocuparia tanto se soubesse o que tinha pela frente... - resmungou o piloto.

Foi o próprio Senhor Jesus Cristo quem afirmou que as preocupações do dia são mais que suficientes para o dia, e que as de amanhã devem ficar para amanhã. Foi também o que eu disse ao Thorkel, que se limitou a fungar ante aquela noção e nunca mais falou comigo durante todo o dia.

 

As primeiras três cataratas foram ultrapassadas com a ajuda de varas. Tal como Njord previra, as águas iam baixas nas apertadas passagens que o rio percorria no seu caminho para o Mar Negro. Servimo-nos das extremidades dos remos e fomos desviando os navios lentamente em volta das rochas, ora apoiando-os, ora guiando-os ou empurrando-os, até voltarmos a atingir águas mais calmas. Quando passámos para lá da terceira catarata já o rei Harald desejava não ter trazido tantos navios consigo. Depois da quarta, começou a pensar se não seria mais sensato deixar dois navios para trás, para os recuperarmos mais tarde.

Todavia, a cobiça despertou-o a tempo de o persuadir de que necessitaria de todos os seus navios para carregar as pilhagens de Miklagard de volta a casa, e foi isso, mais de que qualquer outra coisa, que o convenceu de que fora uma estupidez não ter trazido mais navios, com dimensões ainda maiores.

A quinta e sexta cataratas puseram à prova a força e a resistência de todos os tripulantes, excepto as do rei e as de dez guerreiros que permaneceram na margem a guardar as provisões contra possíveis ataques. De acordo com Njord, os membros de uma pouco honesta tribo local, conhecidos por Patzinaks, tinham o mau hábito de montar emboscadas precisamente nos locais onde os navios se encontravam mais vulneráveis.

Foi necessário transportar fardo após fardo e dei uma ajuda nesse laborioso processo enquanto cada um dos navios era encalhado e descarregado. Era preciso retirar-lhe todos os sacos de cereal, todos os barris de água, todas as panelas, espadas e lanças, todos os cabos, velas e bancos dos remadores. Depois, quando os navios não passavam de cascos vazios, os homens despiam as roupas, ficavam nus e patinhavam nas águas remoi-nhantes que lhes subiam até à cintura enquanto puxavam pelos cabos - uns à proa e outros a meio navio - servindo-se da força bruta para arrastarem as relutantes embarcações. Alguns tripulantes utilizavam remos para desviarem os cascos das rochas mais próximas e todo o grupo avançava lentamente, mantendo-se tão perto da margem quanto possível para evitar serem puxados para águas mais rápidas e atirados contra as rochas alcantiladas. Depois, quando as embarcações já se encontravam fora de perigo, todos os abastecimentos eram transportados ao longo do rio e novamente carregados a bordo.

Esta labuta ocupou-nos dois dias inteiros para cada catarata... e se as primeiras seis foram suficientemente más, a sétima foi a pior de todas elas. Estava salpicada não só de rochas e de remoinhos como também de duas quedas de água que era preciso ultrapassar. Njord, que até ali fora muito menos útil do que o monarca considerava suficiente, não se apressou a apresentar uma solução.

- E agora, que fazemos? - inquiriu Harald, cada vez mais impaciente face à tarefa impossível que tínhamos pela frente.

- Um homem viaja por muitas estradas... - comentou Njord sabiamente - mas só uma o conduz ao seu destino.

- Sim, pois... - grunhiu Harald - e foi por isso que te trouxe comigo! Mostra-nos por onde devemos seguir!

Njord acenou, os seus olhos estreitos transformaram-se em fendas e os dentes morderam o lábio inferior como se estivesse a trabalhar numa complicada solução.

- Vai ser difícil... - admitiu o piloto grisalho após algum tempo. - Os teus navios são demasiado grandes.

- Mas que vem a ser isto?! - rugiu o monarca, fazendo a terra tremer com a força do seu grito. - Trouxe-te até aqui para te ouvir dizer que os meus navios são demasiado grandes?!

- Não é por minha culpa se os navios são grandes - retorquiu Njord, petulante.

Se alguma vez houve um homem com os pés assentes em areias movediças... então esse homem foi o Njord. No entanto, parecia não dar pelo perigo que corria naquele momento.

- Se mo tivesses perguntado - acrescentou o piloto, fungando - já to teria dito.

- E será que tens mais alguma coisa para me dizer? - perguntou Harald num tom que passou a ser baixo e ameaçador. Quase podia ouvir a lâmina da sua faca a deslizar na bainha...

Njord fez beicinho e olhou para as águas com uma expressão profundamente inescrutável. Contudo, de repente anunciou:

- Se a montanha é demasiado alta para ser trepada... temos de a rodear. - Virou-se para o monarca e declarou: - Já que me pedes conselho, digo-te que os navios têm de ser transportados!

Harald ficou a olhar para ele, incrédulo.

- Impossível! - gritou Thorkel, incapaz de se conter durante mais tempo. A seguir atirou-se para a frente para fazer um apelo ao rei: - Arranca-lhe aquela cabeça inútil de cima dos ombros e acabemos com isto! Eu próprio o farei com toda a satisfação!

A carranca de Njord aprofundou-se ainda mais.

- Se é assim que querem recompensar o melhor conselho que ouvirão ao longo de todo este rio... então entreguem-me a minha parte da recompensa e desaparecei da vossa vista.

- Não! - declarou Harald, com firmeza. - Vais ficar connosco! Os navios chegaram até aqui, mas não graças a ti. Chegou a altura de mereceres a tua prata e de os pores em segurança do outro lado da catarata, tal como combinaste fazer. Falha nessa tarefa... e terás a recompensa que mereces!

Incitado por aquelas palavras, o piloto magricela despertou da sua indolência e começou a dar ordens para a preparação das embarcações.

- Afastem-se para um lado... - declarou - e vejam bem o que vou fazer!

Tal como anteriormente, os navios fora esvaziados e foi apenas depois disso que Njord começou a exibir a sagacidade por que era tão aclamado mas que até àquele momento nunca nos demonstrara. Ordenou a remoção dos remos e a retirada do mastro. Mandou que fossem à floresta cortar altos troncos de bétulas e que os limpassem de todas as ramagens. Também foram abatidas outras árvores para servirem como alavancas. A seguir, os cascos vazios foram retirados do rio e arrastados para a margem com cordas, sendo colocados em cima dos troncos redondos.

Deve ser dito que Njord, depois de começar, se dedicou com calor à sua tarefa e se saiu bastante bem. Parecia saber sempre com exactidão o sítio exacto onde deveria ser aplicada uma alavanca, conseguia prever as dificuldades antes delas surgiram e tomava medidas para as evitar ou, pelo menos, para mitigar a sua severidade. No fim daquele dia, um dos navios já se encontrava para lá dos rápidos e o outro ia a meio caminho.

Nessa noite acampámos na margem. Voltámos ao trabalho no dia seguinte sob uma chuva que começou a cair logo pela madrugada. A chuva tornou a tarefa mais complicada porque os trilhos ficaram lamacentos e os paus molhados eram difíceis de segurar. Contudo, os restantes navios eram mais pequenos do que o do monarca e puderam ser deslocados mais rapidamente e com menos esforço. A noite encontrou-nos com os dois últimos navios já a meio do percurso em seco. Na manhã seguinte, os Patzi-naks atacaram.

O rei Harald foi o primeiro a aperceber-se do perigo. Soltou o seu berro de touro, que despertou os fatigados dinamarqueses do seu sono. Se não fosse isso, não tenho dúvidas de que teríamos sido chacinados em pleno sono. Levantaram-se como um só homem e já com as lanças nas mãos porque os Lobos do Mar envolvidos numa expedição de pilhagem dormem sempre com as armas prontas, muito em particular quando estão em terra.

Os Patzinaks eram pequenos, escuros e astutos, e atacavam-nos com furiosos golpes, deferidos com espadas de lâmina larga e com machados, para logo se afastarem rapidamente. Todas aquelas fintas e correrias tornavam-os difíceis de atingir e frustavam os Lobos do Mar, que preferiam um inimigo que defendesse o seu terreno e trocasse golpe por golpe. Contudo, os Patzinaks já anteriormente haviam enfrentado os dinamarqueses e sabiam qual a melhor maneira de lidar com um opositor mais poderoso.

Harald compreendeu que o inimigo pretendia esgotar os seus guerreiros ou aproveitar-se da sua frustração para os levar a cometer um erro fatal, pelo que fez sinal aos seus para que retirassem para os navios e se defendessem na margem do rio. Foi aí, com as costas protegidas pelos sólidos cascos de carvalho, que se prepararam para enfrentar os fugidios Patzinaks.

Porém, os inimigos perderam rapidamente o interesse pela continuação da luta logo que verificaram que os Lobos do Mar não se deixariam atrair para campo aberto. Contudo, não ficaram desencorajados e limitaram-se a mudar de estratégia: retiraram para alguma distância, reuniram em conselho e elegeram um enviado que avançou para nós sob o sinal do ramo de salgueiro.

O monarca chamou-me com um gesto quando viu o enviado a aproximar-se.

- Vamos conversar com ele, tu e eu... - disse - embora pense que aquilo que vamos ter de ouvir não será ao nosso gosto.

O grupo dos Patzinak avançou até uma distância de cerca de cinquenta passos, parou e esperou por nós. Harald, dez dos seus karlar e eu próprio, fomos ao seu encontro. O monarca exibiu uma carranca muito carregada e inspeccionou as fileiras dos inimigos com o desdém a franzir-lhe a testa e a encurvar-lhe os lábios.

O enviado dos Patzinak começou a falar, balbuciando qualquer coisa numa algaraviada ininteligível. Como não produziu efeito, tentou noutra língua ainda mais incompreensível do que a primeira, se é que tal era possível. Vendo que nenhum de nós o entendia, desistiu e experimentou uma terceira.

- Trago-vos as nossas saudações, homens - disse, num latim miserável.

Compreendi-o bastante bem e devolvi-lhe as saudações, para depois explicar ao rei o que o outro dissera.

- Vemos que não têm medo de lutar... - prosseguiu o enviado, num tom suave. - Por isso, o nosso lorde tem todo o prazer em deixar-vos passar pelas suas terras sem serem molestados.

Repeti as palavras ao rei Harald, cuja resposta foi pronta:

- O vosso lorde tem uma maneira muito peculiar de expressar o seu prazer! - grunhiu o monarca. - No entanto, já tenho sido mais molestado. Não perdi nenhum homem, por sorte para o vosso lorde e para os que os seguem, porque nesse caso a discussão que estamos a ter neste momento seria de um tipo muito diferente...

- É verdade, Vossa Grandeza, e podeis agradecer esse facto ao nosso lorde, que estende sempre as suas mãos num gesto de irmandade a todos os que desejarem a sua amizade. - O enviado, um homem ligeiramente trigueiro a quem faltava a maior parte da orelha direita, fez uma pausa, sorriu com afabilidade e acrescentou: - Claro que uma tal amizade ficará melhor estabelecida com o apropriado gesto de consideração - declarou, esfregando a palma da mão direita com as pontas dos dedos da esquerda.

- Está-me a parecer... - replicou Harald, logo que lhe transmiti as palavras do enviado - que o teu senhor estende as mãos para uma recompensa um pouco mais tangível do que a simples irmandade.

O enviado sorriu e encolheu os ombros.

- As exigências da amizade são muitas e têm as suas próprias obrigações. Um homem da vossa eminência de certeza que o sabe muito bem.

Harald abanou a cabeça ao ouvir aquilo.

- São uns alegres ladrões - disse-me. - Pergunta-lhes quanta prata será necessária para estabelecer esse laço de amizade entre nós.

Fiz a pergunta e o enviado respondeu:

- Não me cabe a mim dizê-lo, Gracioso Rei. Olhe para os seus homens e navios, e calcule o valor que lhes dá. Como é obviamente um homem de posição, estou certo de que se irá comportar de acordo com isso.

Harald pensou naquilo e chamou um dos seus karlar, que se apressou na direcção do navio e voltou a correr trazendo um pequeno saco de couro. O monarca meteu a mão lá dentro e fez aparecer uma braçadeira de prata.

- Isto é pela amizade - declarou, colocando a prata na mão estendida do enviado dos Patzinak. - E isto... - continuou Harald, voltando a meter a mão no saco - é pela amizade dos meus homens. - Colocou uma gema amarela e perfeitamente polida na mão do homem. - Agora, isto... - repetiu, metendo a mão no saco pela terceira vez - é pela futura boa vontade entre os nossos povos se por acaso voltarmos a passar por aqui. - Pousou uma gema verde ao lado da amarela, fechou o saco e devolveu-o ao membro da sua casa.

- Imaginava... - disse o enviado, lançando um olhar de desapontamento para os objectos que tinha na mão - que um homem com o vosso estimável merecimento daria um valor mais elevado à amizade entre os nossos dois povos.

- O meu desejo resume-se a um mero conhecimento - foi a resposta de Harald. - Não pretendo casar com o vosso lorde nem com ninguém do seu povo, por muito agradáveis que possam ser.

O enviado dos Patzinak não gostou da resposta. Suspirou e afagou o queixo, mirando o saque que tinha nas mãos e abanado a cabeça com tristeza de um lado para o outro como se estivesse a contemplar um erro trágico.

- Detesto ter de pensar... - acabou por dizer, largando o tesouro na bolsa que trazia ao cinto - que dais tão pouco valor aos vossos novos amigos. Receio que esse facto seja muito perturbador e estou certo de que, quando o meu lorde for informado da pouca estima que lhe tendes, irá requerer compensações adicionais.

- Ah, mas que estupidez a minha! - replicou Harald depois de eu lhe transmitir aquelas palavras - Esqueci-me de mencionar que, para além da prata e das pedras preciosas que tão rapidamente fizeste desaparecer, também vos estou a conceder, a ti e ao teu ambicioso lorde, a dádiva das vossas vidas.

O monarca dos Lobos do Mar fez uma pausa para ver qual o efeito que as suas palavras iriam ter. Depois, quando o enviado começou a protestar contra uma tal linha de raciocínio, acrescentou:

- O quê? Dais assim tão pouco valor às vossas próprias cabeças? Dito aquilo, puxou do machado e preparou-se para fazer sinal aos seus para retomarem a luta. O enviado dos Patzinak ficou a olhá-lo por instantes e declarou:

- Agora que vos compreendo melhor, fico amplamente persuadido do vosso sincero desejo de amizade. Como tal, tratarei de entregar a vossa generosa oferta ao nosso lorde. Todavia, devo recordar-vos que terão de passar outra vez por aqui quando voltarem para casa... e rogo-vos que tenhais em conta o tipo de recepção que ireis ter quando do vosso regresso.

- Encontraremos a recepção que encontrarmos - grunhiu Harald, já farto daquele jogo.

- Então, sigam o vosso caminho... - declarou o enviado dos Patzi-nak. - Direi ao meu lorde para vos preparar a recepção que mereceis.

- É esse o meu maior desejo - ripostou Harald, passando o polegar ao longo do gume do machado.

- Pois que assim seja! - concluiu o enviado. Fez um sinal aos seus e todo o grupo se retirou rapidamente.

- A situação foi muito bem resolvida, jarl - disse um dos homens de Harald. - Achas que voltarão a atacar-nos?

- Não me parece - replicou o monarca. - Desta vez comprámos um salvo-conduto. Contudo, também fomos avisados: para a próxima irá sair-nos mais caro.

Regressámos aos navios e preparámo-nos para continuar em frente. No fim daquele dia já as quatro embarcações estavam outra vez na água e desciam o rio tranquilamente. Como a Lua era suficientemente brilhante para se poder navegar, nessa noite não houve descanso e a nossa jornada prosseguiu. A manhã descobriu-nos já muito longe das terras dos Patzinak e do último obstáculo que se interpunha entre Harald Berro-de-Touro e a Cidade do Ouro.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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