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BONECA DE LUXO / Truman Capote
BONECA DE LUXO / Truman Capote

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BONECA DE LUXO

 

          Sou constantemente assaltado por memórias de lugares onde vivi, as casas e os bairros. Por exemplo, há um prédio vermelho de arenito, nos East Seventies, onde, no princípio da guerra, aluguei o meu primeiro apartamento em Nova Iorque. Era um cômodo atravancado de mobílias de sótão, um sofá e grandes cadeiras estofadas daquele veludo vermelho desbotado tão característico, que geralmente se associa aos dias de calor dentro de um comboio. As paredes eram de estuque, de uma cor de seiva de tabaco. Por toda à parte, até na casa de banho, havia gravuras de ruínas romanas acastanhadas pelo tempo. A única janela dava para uma escada de incêndio. Mesmo assim, ficava bastante eufórico quando sentia no bolso a chave para aquele apartamento tão esconso e sombrio; não deixava de ser um lugar meu, o primeiro, e tinha lá os meus livros e coleções de lápis por afiar, tudo o que precisava, julgava eu, para me tornar o escritor que queria ser.

         Nessa altura nunca me ocorreu escrever sobre Holly Golightly e muito provavelmente nunca me lembraria de tal coisa, não fosse por uma conversa que tive com Joe Bell que me despertou subitamente todas as memórias dela.

         Holly Golightly era uma inquilina na velha casa de arenito, habitava no apartamento por baixo do meu. Joe Bell era dono de um bar de esquina na Lexington Avenue, e ainda é. Tanto Holly como eu costumávamos lá ir seis ou sete vezes por dia, iramos sempre para beber, mas também para fazer telefonemas: durante a guerra não era fácil conseguir um telefone privado. Além disso, Joe Bell era bom para transmitir recados, o que, no caso de Holly, era um favor imenso que ele lhe fazia, porque ela tinha uma quantidade de mensagens para toda a gente.

         É claro que tudo isto foi há muito tempo, e há vários anos que eu não via Joe Bell, até à semana passada. Mantínhamos um contato irregular e uma vez por outra eu entrava no bar dele se por acaso passasse pelo bairro, mas na verdade nunca fomos grandes amigos, a não ser na medida em que éramos ambos amigos de Holly Golightly. Joe Bell não tem um trato fácil, como ele próprio admite, diz que é por ser solteiro e ter um estômago fraco. Qualquer pessoa que o conheça pode confirmar que ele é um homem com quem é difícil manter uma conversa. Impossível mesmo, se não partilharmos as suas obsessões, sendo uma delas a Holly. Algumas das outras são hóquei no gelo, cães Weimaraner, Our Gal Sunday, uma telenovela radiofônica que segue religiosamente há quinze anos, e Gilbert e Sullivan - garante ele que é parente de um deles, não me lembro de qual.

          E por isso quando, no fim da tarde da terça-feira passada, o telefone tocou e eu ouvi: "Daqui fala o Joe Bell", soube logo que tinha de ser por causa da Holly. Isso ele não me disse, limitou-se a pedir: "Pode vir a correndo para cá? É muito importante", e na sua voz de rã notava-se um excitado coaxar.

         Apanhei um táxi, debaixo de uma carga de chuva de Outubro, e no caminho até pensei que ela era capaz de estar lá, que eu ia voltar a ver a Holly.

         Mas não havia ninguém no recinto a não ser o proprietário. O bar do Joe Bell é um lugar recatado, comparado com a maioria dos bares de Lexington Avenue. Não ostenta luzes de néon, nem televisores. Dois velhos espelhos refletem o tempo da rua, e atrás do balcão, num nicho rodeado de fotografias de estrelas do hóquei no gelo, há sempre um vaso enorme de flores frescas que o próprio Joe Bell compõe com requintes de matrona. Era isso mesmo que estava fazendo quando entrei.

         - É evidente - começou ele, a enterrar um gladíolo no fundo do vaso -, é evidente que eu não teria te chamado se não quisesse saber a tua opinião. É estranho. Aconteceu uma coisa muito estranha.

         - Teve notícias da Holly? Pegou numa folha entre os dedos, indeciso talvez sobre como responderia. Um homem baixo, com uma cabeça pequena coberta de crespos cabelos brancos, e um rosto afilado e ossudo porventura apropriado a uma pessoa mais alta, aparentava permanentemente queimado pelo sol, e apresentava-se então mais corado do que nunca:

         - Não posso te dizer que tive notícias dela, propriamente. Quero dizer, não tenho a certeza. É por isso que preciso da tua opinião. Vou preparar-te uma bebida. Uma coisa nova. Chamam-lhe "Anjo Branco" - disse ele, misturando meia de vodka e meia de gin, sem vermute. Joe Bell esperou que eu bebesse o resultado, a chupar um Tums e remoendo aquilo que tinha para me dizer. - Lembra-te de um tal Mr. 1. Y. Yúnioshi? Um cavalheiro japonês?

         - Da Califórnia - disse eu, recordando-me muito bem de Mr. Yúnioshi. - É fotógrafo numa revista da especialidade, e quando o conheci vivia no estúdio que ficava no andar de cima do prédio de arenito.

         - Não queira me confundir. Só te perguntei se sabe de quem estou falando. Muito bem. Imagina lá quem é que me havia de aparecer aqui ontem à noite? Exatamente, Mr. 1. Y. Yúnioshi, em pessoa. Já não o via há mais de dois anos, acho eu. E onde é que acha que ele esteve durante estes dois anos?

         - Na África.

         O Joe Bell parou de mordiscar o Turris e semicerrou os olhos.

         - Como é que sabia?

         - Li no Wínche11.

         O que por acaso até era verdade. Abriu a caixa registradora, fazendo retinir a campainha, e tirou um envelope acastanhado.

         - Bem, então vê lá se também leu isto no Winchefl. O envelope continha duas fotografias, mais ou menos iguais, embora tiradas de ângulos diferentes: um negro alto e esguio com uma camisa de capelana e um sorriso tímido, mas vaidoso, exibindo uma estranha escultura, que tinha nas mãos: uma comprida cabeça de moça esculpida na madeira, com o cabelo liso e curto como o de um rapaz, os olhos meigos, de madeira, demasiado grandes e protuberantes para o rosto cônico, a boca aberta, escancarada, pareciam os lábios de um palhaço. À primeira vista, assemelhava-se a uma escultura bastante primitiva, mas depois não, porque era a cara chapada de Holly Golightly, tão parecida com ela quanto podia ser uma coisa escura e imóvel.

         - Ora o que é que você acha disto? - perguntou Joe Bell, satisfeito com a minha perplexidade.

         - Parece ser ela.

         - Ouve, rapaz - disse ele, batendo com a mão no balcão -, é ela. Tão certo quanto eu ser um homem de barba rija. O japonês soube que era ela assim que a viu.

         - Ele viu-a? Na África?

         - Bem. Só a estátua. Mas vai dar no mesmo. Pode inteirar-se você mesmo dos fatos - disse ele, virando uma das fotografias. No verso estava escrito: "Escultura em madeira, tribo S, Tococul, East Anglia, dia de Natal, 1956".

         - O japonês contou-me o seguinte - disse ele, continuando com a seguinte história: no dia de Natal, Mr. Yúnioshi passara com a máquina fotográfica por Tococul, uma aldeia atrás por do Sol e sem qualquer interesse, apenas uma congregação de cabanas de Ia-ma com macacos nos quintais e abutres nos telhados. Estava decidido a seguir caminho quando viu de repente um negro agachado sob o umbral de uma porta a esculpir macacos numa bengala. Mr. Yunioshi ficou muito impressionado e perguntou-lhe se podia ver mais trabalhos seus, tendo-lhe sido mostrada a escultura da cabeça da rapariga; sentiu-se então, pelo que disse a Joe Bell, como se estivesse vivendo um sonho. Mas quando se propôs comprá-la, o negro aconchegou as partes pudicas com as mãos, aparentemente um gesto terno, comparável a bater no coração, e disse que não. Meio quilo de sal e dez dólares, um relógio de pulso e um quilo de sal e vinte dólares, nada o demovia. De qual quer modo, Mr. Yúnioshi estava decidido a saber como tinha acontecido aquela escultura, o que lhe custou o sal e o relógio, e o incidente foi-lhe narrado em africano e crioulo inglês e gestos de dedos. Parece que na Primavera desse ano, um grupo de três brancos aparecera cavalgando detrás de um arbusto. Os homens, ambos de olhos vermelhos e com febre, viram-se forçados a uma quarentena de várias semanas, a tremer, fechados numa cabana isolada, enquanto a jovem mulher, demonstrando uma especial atração pelo escultor, partilhara o seu colchão.

         - Eu não acho que essa parte seja verdade - disse Joe Bell, um pouco melindrado. - Bem sei que ela tinha as suas manias, mas não me parece que fosse a ponto de fazer uma

coisa dessas.

         - E depois?

         - Depois nada - encolheu os ombros. - Ela acabou por ir-se embora como veio, partiu a cavalo.

         - Sozinha ou com os dois homens? Joe Bell pestanejou. - Acho que foi com os dois homens. O japonês perguntou por ela em toda a parte. Mas mais ninguém a tinha visto.

         Perante isto, ele como que sentindo a minha desilusão a contaminá-lo, e não queria aceitá-la.

         - Tem de admitir uma coisa, são as únicas notícias concretas que temos dela desde há não sei quantos anos – contou pelos dedos, mas não bastavam. - Eu só espero que ela tenha enriquecido, deve estar rica. É preciso ser-se rico para se ir vadiar para África.

         - O mais certo é ela nunca ter posto os pés na África comentei eu, convencido do que dizia, mas quase que a podia vê-la na África, era um lugar onde ela podia muito bem ter ido. E a escultura da cabeça... examinei mais uma vez as fotografias.

         - Já que tem tanta certeza, onde é que você pensa que ela está?

         - Morta. Ou num hospital de malucos. Ou casada. Eu acho que ela se casou e assentou, se calhar aqui mesmo nesta cidade.

         Ele considerou a hipótese, por instantes. - Não - disse, abanando a cabeça -, sabe porquê? Se ela estivesse aqui na cidade eu já a tinha visto, um homem como eu, que gosta de andar, que há dez ou doze anos que anda pelas ruas, sempre à procura da mesma pessoa durante todos esses anos, e nunca ninguém se parece com ela, é uma boa razão para concluir que ela não está aqui. Estou constantemente a encontrar partes dela, um traseiro jeitoso, uma garota magricela a andar depressa tesa que nem um espeto...deteve-se, consciente de que eu o olhava fixamente. - Acha que estou maluco?

         - É que eu não sabia que você tinha se apaixonado por ela, pelo menos não dessa maneira.

         Lamentei as minhas palavras, que o desconcertaram. Peguei nas fotografias e voltei a metê-las dentro do envelope. Olhei para o relógio. Não tinha de ir a lugar nenhum, mas achei que era melhor ir-me embora.

         - Espera aí - disse ele, agarrando-me no pulso. - É claro que eu a amava. Mas não era como se quisesse tocá-la. - E acrescentou, sem sorrir: - Não é que não me interesse por esse lado das coisas. Mesmo com a minha idade, e no dia 10 de janeiro faço sessenta e sete anos. É estranho, mas quanto mais velho fico, mais me incomoda esse aspecto. Não me lembro de pensar tanto nisso antes, mesmo quando se é jovem e é só isso que temos na cabeça. Se calhar, quanto mais velhos ficamos e quanto mais difícil é passar do pensamento à ação, é quando passa a ser uma idéia fixa e se torna um fardo insuportável. Sempre que leio no jornal que houve um velho que se desgraçou sei que é por causa desse fardo. Mas... - serviu-se de uma medida de whisky e emborcou tudo de uma vez eu nunca vou me desgraçar. E juro que com a Holly isso nunca me passou pela cabeça. Podemos amar uma pessoa sem ser dessa maneira. Mantemos as distâncias, é uma pessoa amiga que não deixa de nos ser estranha.

         Entraram dois homens no bar e pareceu-me que era altura de me ir embora. Joe Bell acompanhou-me à porta. Agarrou-me de novo pelo pulso.

         - Acredita?

         - Que não a queria tocar?

         - Quero dizer, sobre África. Naquele momento não conseguia lembrar-me da história, só da imagem dela partindo a galope.

         - Seja como for, ela desapareceu.

         - Pois - concordou ele, abrindo-me a porta -, desapareceu completamente.

         Lá fora já não chovia, pairava apenas uma ligeira umidade no ar, por isso, dobrei a esquina e segui pela rua onde fica a casa vermelha de arenito. É uma rua com árvores que, no verão, desenham sombras frescas na calçada, mas agora as folhas apresentavam-se amarelas e quase todas caídas, a chuva fizera-as escorregadias, deslizavam sob as solas dos sapatos. O edifício fica a meio caminho, ao lado de uma igreja onde uma torre sineira azul marca as horas pelo badalo. Foi aperaltado desde os meus tempos, uma porta negra muito sóbria substituiu os velhos vidros foscos, e elegantes portadas cinzentas emolduram agora as janelas. Já nenhuma das pessoas de quem me lembro lá vive, a não ser a Madame Sapphia Spanella, uma cantora de voz melosa que todas as tardes ia patinar no Central Park. Sei que ela ainda mora lá porque subi as escadas e olhei para as caixas do correio. Foi por uma dessas caixas que primeiro notei a existência de Holly Golightly.

         Há cerca de uma semana que vivia na casa, quando reparei que a caixa do correio pertencente ao apartamento dois tinha um cartão muito curioso a identificar a inquilina. Impresso, muito formal, estilo Cartier, dizia assim: "Miss Holiday Golightly", e, ao canto: "Em viagem". Ficou-me na cabeça como uma melodia persistente: "Miss Holiday Golightly, em viagem".

         Um dia, já passava muito da meia-noite, acordei com a voz de Mr. Yúnioshi a gritar com alguém, em baixo, nas escadas. Vivendo ele no andar de cima, a sua voz ouvia-se por todo o prédio, exasperada e ríspida:

         - Miss Golightly! Francamente! A voz que respondeu, ecoando do fundo do poço das escadas, era jovial e divertida.

         - Oh, meu querido, lamento muito. Perdi a droga da chave.

         - Não pode continuar a tocar-me à campainha. Peço-lhe, por favor, que mande fazer uma chave.

         - Mas eu perco-as todas.

         - Eu trabalho, tenho de dormir - gritou Mr. Yunioshi. Mas está sempre a tocar-me à campainha...

         - Oh, não se zangue, meu querido, eu não torno a incomodá-lo. E se me prometer que não fica zangado - a sua voz aproximava-se, vinha a subir as escadas - pode ser que o deixe tirar-me aquelas fotografias que me pediu.

         Por esta altura eu já tinha saltado da cama e entreaberto a porta uns poucos centímetros. Ouvi o silêncio de Mr. Yúnioshi, ouvi porque foi acompanhado de uma perceptível alteração respiratória.

         - Quando? - perguntou ele. A rapariga riu-se.

         - Um dia destes - respondeu ela, comendo as palavras.

         - Quando quiser - disse ele, e fechou a porta. Fui até ao corredor e debrucei-me ligeiramente sobre o corrimão, o suficiente para ver sem ser visto. Ela estava ainda a subir as escadas e alcançou então o patamar, e as cores cambiantes do seu cabelo de rapaz, farripas trigueiras, madeixas de louro-escuro e dourado, refletiram-se à luz do corredor. Era uma noite quente, quase Verão, e ela vestia um vestido preto justo, muito arejado, sandálias pretas, uma gargantilha de pérolas. Apesar da sua elegante silhueta, irradiava saúde como um anúncio de cereais matinais, uma cara lavada de sabão e limão, umas bochechas afogueadas de um rubro-rosa. Tinha uma boca grande, um nariz empinado. Uns óculos escuros vendavam-lhe os olhos. Era um rosto infantil, mas para pertencer uma mulher feita. Pensei que podia ter entre dezesseis e trinta anos: descobri depois que faltavam dois meses para o seu décimo nono aniversário.

         Não estava sozinha, vinha um homem atrás dela. O modo como ele lhe apertava a coxa com a mão ávida era algo ordinário, não no sentido moral, mas estético. Ele era baixo e largo, queimado pelo sol e untado de cremes, um homem atarracado sob os enormes chumaços do terno listado, com um cravo vermelho a murchar-lhe na lapela. Quando chegaram à porta, ela vasculhou pela carteira à procura da chave, sem atentar nos grossos lábios dele passeando-lhe pela nuca. Porém, quando por fim encontrou a chave e abriu a porta, voltou-se para ele educadamente:

         - Que Deus te abençoe, querido, foi muito amoroso em acompanhar-me até em casa.

         - Escute, menina - disse ele, ao ver que ela lhe fechava a porta na cara.

         - Sim, Harry?

         - Harry era o outro tipo. Eu sou o Sid, o Sid Arbuck. Você gosta de mim.

         - Eu o adoro, Mr. Arbuck. Mas boa noite, Mr. A. Mr. Arbuck ficou olhando incrédulo para a porta, que se fechou sem apelo.

         - Escute, menina, me deixa entrar, menina, que você gosta de mim.  Eu sou um tipo de quem se gosta. Não fui eu quem pagou a conta das cinco pessoas, dos teus amigos, que nunca tinha visto mais gordos? Isso não me dá o direito a gostar de mim? Você gosta de mim, menina.

         Bateu à porta suavemente, depois com mais força, por fim, recuou alguns passos, projetando o corpo em frente, como se tencionasse arrombá-la, deitá-la abaixo. Em vez disso, mergulhou pelas escadas, esmurrando a parede. Quando chegou lá abaixo, a jovem abriu a porta do apartamento e pôs a cabeça de fora.

         - Oh, Mr. Arbuck... Ele voltou-se, com um sorriso de alívio olhando para ela, ela estava só brincando.

         - Da próxima vez que uma garota quiser ir mudar a maquiagem - disse ela, com ar de quem não estava ali para brincadeiras - vá por mim, querido, não lhe dê vinte cents!

         Cumpriu o prometido a Mr. Yunioshi, ou suponho que nunca mais voltou a tocar-lhe à campainha, porque nos dias seguintes começou a tocar à minha, as vezes as duas, três e quatro da manhã; não tinha pruridos em acordar-me a qualquer hora para lhe carregar no interruptor que abria a porta de entrada. Como eu tinha poucos amigos, e nenhum que aparecesse àquela hora, sabia sempre que era ela. Mas nas primeiras vezes que isso aconteceu, aparecia à porta com algum receio de más notícias, de um telegrama; e Miss Golightly gritava lá de baixo:

         - Desculpa, querido, esqueci-me da chave. É evidente que nunca nos apresentamos. Embora, na verdade, nas escadas, na rua, nos encontrássemos muitas vezes, mas parecia que ela não reparava em mim. Nunca a via sem os óculos escuros e  sempre bem arranjada, a simplicidade das suas roupas exibia um bom gosto discreto, os azuis e cinzentos e a falta de brilho, que faziam com que ela, por si, irradiasse toda a luz. Era possível confundi-la com um modelo fotográfico, talvez uma jovem atriz, mas era óbvio, a julgar pelas horas que entrava em casa, que não tinha tempo para ser nenhuma das duas coisas.

         De vez em quando, dava de cara com ela fora do bairro. De uma vez, um parente meu em visita levou-me ao 21 e aí, numa mesa sobre o estrado, rodeada por quatro homens, nenhum deles Mr. Arbuck, mas todos permutáveis como ele, estava Miss Golightly a pentear o cabelo lânguida e publicamente, e a sua expressão, o seu bocejo suspenso, arrefeceram me o entusiasmo por estar a jantar num lugar tão badalado. Noutra noite, já bem em meio do Verão, o calor do meu quarto expulsou-me para a rua. Desci a Terceira Avenida e a Rua Cinqüenta e Um, onde havia uma loja de antiguidades que tinha na vitrine um objeto por mim cobiçado, uma gaiola de pássaros, uma mesquita de minaretes e galerias de bambu desejosas de se encherem de papagaios tagarelas. Mas custava trezentos e cinqüenta dólares. De volta para casa, reparei num aglomerado de rapazes defronte do clube noturno de P. J. Clarke, atraídos, ao que parecia, por um grupo feliz de oficiais australianos com olhos de whisky a cantarem em coro o Waltzing Mathílda. Pelo meio da cantoria, dançavam às vezes pela calçada debaixo do El, de braço dado com uma moça, esta não era outra senão Miss Golightly, flutuando em redor dos braços com a leveza de um lenço.

         Mas se Miss Golightly continuou ignorando a minha existência, a não ser pelo serviço de atendimento da campainha, eu tornei-me, durante o Verão, uma autoridade na mesma. Descobri, pelo exame do cesto do lixo à porta, que a sua leitura regular se resumia a jornais populares, prospectos de viagem e cartas astrais, que fumava uns cigarros esotéricos chamados Picayunes, que vivia à base de requeijão e tostas; que o seu cabelo furta cor era invenção da própria. A mesma fonte revelou peremptoriamente que recebia propostas amorosas às centenas. Encontrava-as sempre desfeitas em tiras como marcadores de livros. Era meu costume pegar por vezes num desses marcadores quando ia a passar. "Não te esqueças" e "saudades" e "prometeste" e "não agüento" e "não agüento mais", eram as palavras mais recorrentes dessas tiras, essas e "sozinho" e "amo-te".

         Além disso, ela tinha um gato e tocava violão. Nos dias em que o Sol batia de chapa, lavava o cabelo e, acompanhada pelo gato, um maltês de listas vermelhas, sentava-se na escada de incêndio a dedilhar o violão enquanto secava a cabeça. Sempre que ouvia a música, punha-me à janela sem me fazer notar. Ela tocava muito bem, e às vezes também cantava. Cantava com o timbre rouco e quebrado de uma voz de rapaz adolescente. Conhecia todos os êxitos dos musicais, de Cole Porter e Kurt Wel, gostava especialmente das canções de 0klahoma, que eram novas naquele Verão e populares em toda a parte. Mas havia alturas em que tocava canções que nos punham a pensar onde é que ela as teria aprendido, de que lugar é que ela vinha. Canções vadias, rudes e ternas, com palavras que lembravam pinhais e pradarias. Uma delas dizia: "Não quero dormir, não quero morrer, só quero fugir e correr pelos prados do céu", e parecia ser a sua preferida, porque muitas vezes continuava a cantá-la mesmo depois de ter os cabelos secos, depois de o Sol se ter posto e se verem no acaso as luzes acesas nas janelas.

         Mas o nosso relacionamento apenas singrou em Setembro, numa noite atravessada pelas primeiras vagas de frio outonal. Tinha ido ao cinema, voltara para casa e enfiara-me na cama com um aconchego de um Bourbon e o último Simenon. Era de tal modo o meu ideal de conforto, que não conseguia perceber um certo mal-estar que se expandiu a um ponto em que pude ouvir distintamente as batidas do meu coração. Era um sentimento sobre o qual lera e escrevera, mas que nunca antes experimentara. O sentimento de ser observado. De uma presença no quarto. De repente: uma série de pancadas abruptas na janela, o vislumbre de um espectro cinzento: entornei o Bourbon. Demorei algum tempo até conseguir levar-me a abrir a janela e perguntar a Miss Golightly o que pretendia.

         - Tenho o mais horrível dos homens lá em baixo - disse, saltando das escadas de incêndio para o quarto. - Quero dizer, ele é querido quando não está bêbedo, mas é só deixá-lo começar a se lambuzar de vinho, e oh! Deus, que besta! Se há uma coisa que abomino são os homens que mordem.

         Descobriu o ombro sob o robe de flanela cinzenta para mostrar a evidência do que sucedia se um homem mordesse.

O robe era tudo o que ela vestia.

         - Peço desculpas se te assustei, mas quando o animal ultrapassou os limites, saí pela janela. Acho que ele acha que eu estou no banheiro, não que eu dê um tostão pelo que ele pensa, para o diabo com ele, há de fartar-se, há de adormecer, meu Deus, ele tem de adormecer, oito martinis antes do jantar e vinho suficiente para lavar um elefante.

           - Escute, pode pôr-me na rua, se quiser. É preciso muita cara de pau da minha parte para aparecer assim. Mas aquelas escadas de incêndio estão geladas como tudo. E você parecia tão aconchegado. Tal e qual o meu irmão Fred. Nós costumávamos dormir quatro numa cama, e ele era o único que me deixava enroscar-me nele nas noites frias. A propósito, importas-te que eu te trate por Fred? - já se introduzira completamente no quarto, onde se deteve a contemplar-me. Nunca antes a vira sem óculos de sol, e agora se tornava notório que eram lentes de correção, pois sem eles os seus olhos estreitavam-se num olhar clínico, como o de um ourives. Eram uns olhos grandes, um pouco azuis, um pouco verdes, salpicados com pintas de castanho: furta-cores, como o seu cabelo, e, como este, irradiavam uma luz quente.

         - Deve estar pensando que eu sou uma desavergonhada. Ou très fou. Ou uma coisa qualquer.

         - De modo nenhum. Pareceu desiludida.

         - Pensa, sim. Toda a gente pensa. Não me importo.Dá-me jeito.

         Sentou-se com as pernas dobradas sob o corpo numa das cadeiras bambas de veludo vermelho e olhou em redor, os olhos semicerrando-se mais pronunciadamente.

         - Como é que pode aguentar isto? É a câmara dos horrores!

         - Oh, uma pessoa habitua-se a tudo - disse, contrafeito comigo próprio, pois me orgulhava bastante daquele lugar.

         - Eu não. Nunca me vou habituar a nada, e quem se habituar mais vale estar morto.

         O seu olhar de censura perscrutou de novo o quart o.

         - O que é que fazes aqui o dia todo? Apontei para uma mesa atulhada de livros e papéis.

         - Escrevo coisas.

         - Pensava que os escritores eram bastante velhos. Claro está que o Saroyan não é velho. Conheci-o numa festa e de fato não é mesmo nada velho. Com efeito - ponderou ela - se ele se barbeasse melhor... a propósito, o Hemingway é velho?

         - Anda pelos quarenta, quer-me parecer.

         - Não está nada mal. Não consigo excitar-me com um homem com menos de quarenta e dois. Conheço uma garota idiota que está sempre a dizer para eu ir ao psiquiatra, diz que tenho um complexo de Édipo. O que não passa de uma grande merde. Simplesmente treinei-me a mim própria para gostar de homens mais velhos, e foi a coisa mais acertada que alguma vez fiz. Que idade tem o W. Somerset Maugham?

         - Não sei ao certo. Sessenta e qualquer coisa.

         - Não está nada mal. Nunca fui para a cama com nenhum escritor. Não, espera... conhece o Benny Shacklett? -Franziu o sobrolho quando abanei a cabeça.

         - Curioso. Ele escreveu uma quantidade enorme de material para a rádio. Mas que canalha. Diz-me lá, é mesmo um escritor a sério?

         - Depende do que quer dizer com "a sério".

         - Bem, querido, alguém compra aquilo que escreve?

         - Ainda não.

         - Vou te ajudar - disse ela. - Sou muito bem capaz. Pensa na quantidade de pessoas que eu conheço que conhecem pessoas. Vou te ajudar porque é parecido com o meu irmão Fred. Só que menor. Não o vejo desde os meus catorze anos, quando saí de casa e ele já media um metro e noventa.Os meus outros irmãos eram mais do teu tamanho, baixotes. Era por causa da manteiga de amendoim que o Fred era tão alto. Toda a gente pensava que era uma estupidez, a maneira como ele se empanturrava com manteiga de amendoim, não se importava com mais nada neste mundo sem ser cavalos e manteiga de amendoim. Mas não era atrasado, apenas muito querido e vago e terrivelmente lento, estava a repetir pela terceira vez o oitavo grau quando eu fugi de casa. Pobre Fred. Gostava de saber se o exército é generoso com a manteiga de amendoim. A propósito, estou cheia de fome.

         Apontei para um cesto de maçãs enquanto lhe perguntava como e porquê saíra de casa tão nova. Olhou para mim de modo inexpressivo e coçou o nariz, como se estivesse com cócegas: um gesto que, observado repetidas vezes, acabei por reconhecer como advertência de intrusão. Como acontece com muitas pessoas com uma enorme vontade em fornecerem confidências, a mínima sugestão de uma pergunta frontal, daquelas de encostar à parede, colocava-a de guarda. Trincou a maçã e disse:

         - Conta-me qualquer coisa que tenha escrito. Uma parte da história.

         - Esse é um dos problemas. Não são o gênero de histórias que se possam contar.

         - Demasiado porcas?

         - Talvez algum dia te deixe ler uma.

         - Whisky e maçã ligam bem. Prepara-me uma bebida, querido. Depois lê-me uma história.

         Muito poucos autores, em particular os nunca foram publicados, conseguem resistir ao convite de ler em voz alta. Preparei bebidas para os dois e, instalado numa cadeira diante dela, comecei a ler, a minha voz um pouco trêmula, com uma mistura de receio do palco e entusiasmo: tratava-se de uma história nova, concluída no dia anterior, e o inevitável sentido de distanciamento não encontrara ainda oportunidade de se desenvolver. Era sobre duas mulheres, professoras, que partilhavam a mesma casa; uma delas, quando a outra fica noiva, divulga através de cartas anônimas um escândalo que impede o casamento. À medida que ia lendo, cada olhar que lançava a Holly provocava-me contrações cardíacas. Ela demonstrava sinais de desinteresse. Brincava com as guimbas no cinzeiro, contemplava as meias-luas das unhas, quem sabe se ansiando por uma lixa, pior, quando me parecia prender-lhe a atenção, descobria nela um olhar alheio, como se pesasse os prós e os contras da compra de um par de sapatos expostos numa vitrine.

         - já acabou? - perguntou ela, despertando. Procurou acrescentar mais alguma coisa ao que dissera. - Claro está que não tenho nada contra as fufas. Não me assustam nem um bocadinho. Mas as histórias com lésbicas chateiam-me como o padre-nosso, não consigo mesmo imaginar-me na pele delas. Ora, querido - disse ela ao reparar na minha perplexidade -, se isso não é acerca de um casal de velhas fufas, então o que raio é?

         Mas eu não me encontrava na disposição de somar ao erro que cometera em ler-lhe a história o vexame de a explicar. A mesma vaidade que me levara a expor-me daquela maneira instigava-me agora a rotulá-la de insensível, de fútil desmiolada.

         - A propósito, por acaso não conheces nenhumas lésbicas simpáticas? Ando a procura de quem queira dividir a minha casa. Ouve, não ria. Sou tão desorganizada, e pura e simplesmente não me posso dar ao luxo de ter criada, e na realidade as fufas são ótimas donas de casa, gostam de fazer tudo, não nos precisamos ralar com as vassouras e as coisas a descongelar e a roupa para mandar à lavanderia. Vivi com uma rapariga em Hollywood, uma atriz de western, chamavam-lhe a Lone Ranger. Mas deixa que te diga que ela lá em casa me dava mais jeito que um homem. É claro que as pessoas tinham de começar a pensar que eu própria também devia ser um bocado fufa. E é claro que sou. Toda a gente é um bocadinho. E então? Isso nunca desmoralizou nenhum homem, a falar verdade até parece que os excita. Basta olhar para a Lone Ranger, que casou duas vezes. Normalmente elas só se casam uma vez, por causa do nome. Parece que tem uma grande pinta ser-se chamada Senhora Qualquer Coisa. Não é verdade!

         Olhou assombrada para o despertador em cima da mesa.

         - Não podem ser quatro e meia! A janela azulava-se. A brisa da aurora irisava as cortinas.

         - Que dia é hoje?

         - Quinta-feira.

         - Quinta-feira! - Levantou-se de um pulo.- Meu Deus! - exclamou, tornando a sentar-se com um gemido. É horrível.

         Estava demasiado cansado para me espicaçar a curiosidade. Deitei-me na cama e fechei os olhos. Mas não consegui resistir.

         - O que é que a quinta-feira tem de tão horrível?

         - Nada, a não ser eu nunca me lembrar a que dia é que calha. Está vendo, às quintas-feiras tenho de apanhar o comboio das oito e quarenta e cinco. Eles são tão picuinhas com as horas de visita, se chegarmos lá as dez temos uma hora antes de os coitados irem almoçar. Nem te passa pela cabeça, almoçar as onze. Podemos ir as duas, e para mim era bem preferível, mas ele gosta que eu vá de manhã, diz que o anima para o resto do dia. Preciso ficar acordada - disse, beliscando as bochechas até ficarem coradas. - Não tenho tempo para dormir, havia de parecer tuberculosa, abatida que nem uma casa em ruínas. Não era lá muito justo. Uma garota não pode ir à prisão com cara de enterro.

         - Pois, acho que não. A raiva que lhe tinha por causa da história abrandava, ela voltava a fascinar-me.

         - Todos os visitantes fazem um esforço enorme para parecerem o melhor possível, é muito comovente, é de uma ternura imensa a maneira como as mulheres vão todas embonecadas, com as coisas mais bonitas, quero dizer as velhas, e as pobrezinhas também, fazem um esforço tremendo para parecerem bem e cheirarem bem, o que me faz gostar muito delas. Também gosto dos garotos, especialmente dos de cor. Os

garotos que as mulheres trazem. Devia ser uma coisa triste, ver os garotos ali, mas não é, levam laços no cabelo e montes de graxa nos sapatos, até parece que vai haver gelados, e às vezes é isso mesmo que acontece na sala de visitas, é uma festa. Não é nada como nos filmes. Não há nenhuma grade, é só um balcão entre nós e eles, e os garotos podem empoleirar-se para dar abraços, só precisamos de nos debruçar para os beijarmos. Depois é diferente - disse ela. - Vejo-os no comboio, todos tão quietos a ver o rio passar. Puxou uma madeixa para o canto da boca e mordiscou-a, pensativa.

         - Estás acordado por minha causa. Vai dormir.

         - Por favor, isso interessa me.

         - Eu sei que te interessa. É por isso que quero que vá dormir. Porque se continuar a falar, ainda te conto do SaIly. E talvez fosse um pouco desonesto. - Mastigou o cabelo silenciosamente. - Nunca me disseram para não contar a ninguém, pelo menos não diretamente. E tem piada. Se calhar podia te servir do meu caso numa história, mas com nomes diferentes e outros despiste. Ouve, Fred - disse ela, agarrando noutra maçã -, tens de jurar e beijar o cotovelo.

É provável que os contorcionistas consigam beijar o cotovelo, ela teve de contentar-se com uma aproximação.

         - Bem - começou ela, com a boca cheia de maçã deve ter lido qualquer coisa a seu respeito nos jornais. Chama-se Sally Tomato, e eu falo diche melhor do que ele fala inglês, mas é um velhinho muito querido, terrivelmente beato. Se não fosse pelos dentes de ouro, parecia um monge. Diz que reza por mim todas as noites. É evidente que nunca fomos amantes, no que toca a essa parte, nunca nos conhecemos antes de ele ser preso. Mas eu agora o adoro, afinal de contas, há sete meses que o vou ver todas as quintas-feiras, e acho que continuava a ir mesmo que ele não me pagasse. Esta está tocada - disse, atirando o resto da maçã pela janela. - Por acaso eu até conhecia o Sally de vista. Ele costumava ir ao bar do Joe Bell, o que fica ao dobrar da esquina. Nunca falava com ninguém, limitava-se a parar por ali, tipo os homens que vivem em quartos de hotel. Mas tem graça lembrar-me disso e pensar que ele devia observar-me com muita atenção, porque logo depois de o encanarem - o Joe Bell mostrou-me a fotografia dele no jornal: "A Mão Negra. Máfia", essa candonga toda, mas apanhou com cinco anos -, recebi um telegrama de um advogado a dizer para o contatar imediatamente, por causa de uma informação que era do meu interesse.

         - Pensou que alguém tinha te deixado um milhão?

         - De modo nenhum. Achei que eram as lojas a cobrarem-me. Mas aceitei o negócio e fui ver o tal advogado - se é que ele é mesmo um advogado, o que eu duvido muito, porque não dá ares de ter nenhum escritório, só um atendente de chamadas, e marca sempre encontros no Paraíso dos Hambúrgueres porque é muito gordo, é capaz de comer dez hambúrgueres e duas tigelas de molho e uma torta de merengue inteira. Perguntou-me se eu gostaria de animar um velho solitário e ganhar cem por semana. Eu respondi-lhe: "Ouve lá, querido, não deves estar a falar com a Miss Golightly que você pretende, eu não sou nenhuma enfermeira de biscates". E também não fiquei nada impressionada com os honorários, pode-se ganhar o mesmo a retocar a maquiagem. Qualquer cavalheiro com um mínimo de estilo dispõe de cinqüenta para a casa de banho das meninas, e eu, além disso, ainda cobro a tarifa do táxi, o que dá outros cinqüenta. Mas então ele me disse que o seu cliente era o Sally Tomato. Que o velhinho amoroso me tinha admirado desde sempre à la distance, por isso seria simpático da minha parte ir visitá-lo uma vez por semana. Bem, não fui capaz de recusar, era demasiado romântico.

         - Não sei. Há qualquer coisa que não me soa bem. Ela lançou-me um sorriso.

         - Acha que estou mentindo?

         - Para começar, eles não deixam qualquer um visitar um preso.

         - Ah, pois não. Na realidade são uns chatos a esse respeito. Eu tenho de passar por sua sobrinha.

         - E é assim tão simples? Ele dá-te cem dólares por uma hora de conversa?

         - Ele não, o advogado é que dá. Mr. O'Shaughnessy me envia pelo correio em dinheiro assim que eu lhe comunico o boletim meteorológico.

         - Acho que pode se meter numa grande enrascada - disse eu, desligando o candeeiro, já não era preciso, a manhã invadia o quarto enquanto os pombos arrulhavam na escada de incêndio.

         - Como? - perguntou ela, com um ar muito sério.

         - Deve haver alguma coisa na lei contra a falsa identidade. Afinal de contas, você não é sobrinha dele. E que história é essa do boletim meteorológico?

         Ela levou a mão à boca, bocejando.

         - Não é nada. São só mensagens que eu deixo com atendente para Mr. O'Shaughnessy ter a certeza que eu lá fui. O Sally diz-me o que hei de dizer, coisas como "Há um furacão em Cuba" e "Cai neve em Palermo". Não te preocupes, querido - disse ela, aproximando-se da cama. - Há muito tempo que tomo conta de mim.

         A luz matinal parecia refletir-se nela, aconchegando-me os cobertores até ao pescoço, resplandecia como uma criança transparente, depois deitou se aos meus pés.

         - Não te importas? Só quero descansar um bocadinho. Por isso não vamos dizer mais nada. Dorme.

         Fingi dormir, simulando uma respiração pesada e regular. Os sinos da torre da igreja ao lado tocou há meia hora, depois a hora. Eram seis da manhã quando ela pousou a mão no meu braço, um toque frágil com o cuidado de não me despertar.

         - Pobre Fred - sussurrou, e parecia que falava comigo, mas não. - Onde você está, Fred? É que está frio. Há neve no vento.

         A sua face encostou-se ao meu ombro, um peso quente e úmido.

         - Por que é que está chorando? Reagiu como uma mola e sentou-se de um pulo.

         - Oh, valha-me Deus! - exclamou, precipitando-se para a janela e a escada de incêndio. - Detesto bisbilhoteiros.

         No dia seguinte, sexta-feira, ao chegar a casa encontrei à porta um cabaz de luxo do Charles & Co, com o cartão dela: "Miss Holly Golighdy, em viagem", e uns desajeitados gatafunhos de pré-primária: "Deus te abençoe, querido Fred. Desculpa-me, por favor, a noite passada. Foste um verdadeiro anjo. Com muita ternura - Holly P S.: Não volto a te incomodar". Eu respondi: "É um prazer", e deixei-lhe o cartão à porta com o que as minhas parcas economias lhe podiam oferecer: um ramo de violetas de um florista da rua. Mas talvez ela estivesse a falar a sério. Não a voltei a ver ou a ouvir e conclui que ela arranjou finalmente uma chave da porta de entrada. De qualquer modo, nunca mais me tocou à campainha. Sentia-lhe a falta, e, com o passar dos dias, comecei a ressenti-la absurdamente, como se tivesse sido abandonado pelo meu melhor amigo. Introduziu-se na minha vida uma perturbadora solidão, mas não me apetecia rever os amigos que conhecia há mais tempo e que me pareciam agora uma dieta sem sal e açúcar. Na quarta-feira, a idéia da Holly, da prisão e do Sally Tomato, de mundos onde os homens davam o couro e o cabelo por cinqüenta dólares para a maquiagem, era tão insistente que não me deixava trabalhar. Nessa noite deixei-lhe um bilhete na caixa do correio: "Amanhã é quinta-feira". Na manhã seguinte premiou-me com um segundo bilhete, numa letra de criança: "Deus te abençoe por me lembrar. Pode passar para beber um copo ao fim da tarde por volta das seis?".

         Esperei até as seis e dez, e depois forcei um atraso de mais cinco minutos.

         Uma criatura abriu a porta. Cheirava a charutos e a colônia Knize. Os seus sapatos equilibravam-se sobre altos tacões; sem estes centímetros acrescentados, confundia-se com um pequeno duende. A sua cabeça careca e sardenta era do tamanho da de um anão, apensa à qual pendiam um par de orelhas pontiagudas, verdadeiramente elficas. Os olhos eram de pequinês, impiedosos e ligeiramente protuberantes. Tufos de pêlos espreitavam-lhe das orelhas e do nariz. Tinha a queixada cinzenta, da barba por fazer, e um aperto de mão meio peludo.

         - A garota está no banho - disse ele, apontando com um charuto na direção de um som sibilino de água na outra divisão. A sala onde nos encontrávamos, de pé, porque não havia nada para sentar, parecia que estava em fase de recente ocupação, estranhávamos que não cheirasse a tinta fresca. Malas e caixotes por desempacotar eram a única mobília. Os caixotes serviam de mesas. Um deles sustentava os restos de um Martini, outro, um candeeiro, uma agenda, o gato vermelho da Holly e uma jarra de rosas amarelas. As estantes, numa das paredes, exibiam meia prateleira de literatura. Ambientei-me logo ao espaço. Gostava daquele abandono de casa a saque.

         O homem pigarreou.

         - Está à sua espera? Achou pouco seguro o meu aceno afirmativo. Os seus olhos frios operavam em mim com precisas incisões de reconhecimento.

         - Há uma quantidade de tipos que aqui vêm sem serem esperados. Conhece a garota há muito tempo?

         - Não muito.

         - Então não a conhece há muito tempo?

         - Eu moro no andar de cima. Aparentemente, a resposta foi suficientemente elucidativa para o pôr mais à vontade.

         - Tem a mesma disposição a sua casa? É muito menor. Bateu a cinza do charuto para o chão.

         - Isto é uma espelunca, é inacreditável. Mas a garota não sabe viver bem, mesmo quando tem dinheiro.

         O seu discurso tinha um ritmo brusco e metálico, como um teletipo.

         - Então - disse ele - o que é que acha dela? É ou não é?

         - É o quê?

         - Uma impostora.

         - Não me parece.

         - Está enganado. Ela é uma impostora. Mas, por outro lado, tem razão. Ela não é uma impostora porque na realidade é uma impostora verdadeira. Ela acredita em todas as mentiras em que acredita. Não conseguimos convencê-la do contrário. Eu já tentei com lágrimas escorrendo-me pela face. O Benny Polan, respeitado em todo o lado, o Benny Polan tentou. O Benny estava determinado a casar-se com ela, ela nunca quis saber, o Beriny gastou uns largos milhares de dólares a mandá-la aos psiquiatras. Até aquele famoso, aquele que só sabe falar alemão, nem queira saber o que ela o atazanou. Não conseguimos tirar-lhe aquelas...cerrou o punho, como se fosse esmurrar as inatingíveis idéias da cabeça. Experimente um dia destes. Peça-lhe para ela lhe contar certas coisas em que acredita. Fique sabendo que eu gosto dela. Toda a gente gosta, mas há muita gente que não. Eu gosto. Eu gosto sinceramente dela. É porque eu sou sensível, está vendo? É preciso ter-se sensibilidade para a apreciar. Uma veia poética. Mas, se quer que lhe diga, não vale a pena arruinarmo-nos por ela que ela está-se bem borrifando. Só para lhe dar um exemplo: o que é que ela representa para si hoje? Não passa de uma ripa que há de acabar com um frasco de barbitúricos no bucho, já vi essa história mais vezes do que pode contar pelos dedos das mãos e dos pés juntos. E essas meninas nem sequer eram malucas. Esta é maluca.

         - Mas jovem. E com muita juventude à sua frente.

         - Se quer dizer com futuro, engana-se mais uma vez. Agora aqui há uns anos atrás, na Costa, houve tempos em que as coisas podiam ter corrido de outra maneira. Ela estava em vantagem, os moços estavam interessados nela, ela podia ter dado cartas e sacado os trunfos. Mas quando se abandona uma oportunidade daquelas, já não há meio de voltar atrás. Basta olhar para a Luise Rainer. E a Rainer era uma estrela. Claro está que a Holly não é estrela nenhuma, nunca passou de figurante. Mas isso foi antes de A História do Dr. Wassell. Então ela podia ter dado a volta por cima. Eu sei, bem vê, porque eu sou o tipo que a estava a empurrar - apontou com o charuto para si próprio. - O. J. Berman.

         Esperava que eu o reconhecesse, e eu não me importava de lhe fazer o jeito, só que nunca tinha ouvido falar de nenhum O. J. Berman. Fiquei sabendo que ele era um agente de atores de Hollywood.

         - Eu fui o primeiro a reparar nela. Em Santa Anita. Todos os dias a dar de caras com ela no hipódromo. Interesso-me por ela: profissionalmente. Descubro que é namorada de um dos jóqueis, que vive com o tipo. Viro-me para ele e digo-lhe: "Larga-a, se não queres o tribunal de menores atrás de você". Bem vê, ela só tinha quinze anos. Mas com muito estilo, mexe-se bem, tem pinta. Mesmo quando usa uns óculos muito grossos, mesmo quando abre a boca e não dá para perceber se é uma camponesa do Sul ou de Oklahoma ou de outro lugar qualquer. Eu ainda não sei e acredito que nunca ninguém há de saber de onde é que ela veio. Ela é tão confusa que se calhar nem ela sabe mais a verdade. Mas demoramos anos a disfarçar-lhe a pronúncia e a maneira como finalmente conseguimos foi através de lições de francês, depois de imitar o francês, foi mais fácil para ela imitar o inglês. A fabricamos mais ou menos à imagem da Margaret Sullavan, mas ela tinha o seu próprio encanto, os rapazes estavam interessados, os grandalhões, e, ainda por cima, o Benny Polan, um tipo respeitado, o Benny Polan quer casar com ela. Que mais pode pedir um agente? E então zás! A História do Dr. Wassell. Viu o filme? Cecil B. DeMille. Gary Cooper. Meu Deus, que coisa tremenda, está tudo a postos, vão fazer-lhe uma audição para o papel da enfermeira do Dr. Wassell. Uma das enfermeiras, pelo menos. E então zás! Toca o telefone - agarrou num telefone no ar e levou o bocal ao ouvido. - "Daqui fala a Holly", diz ela. "Querida, a tua voz parece muito longe", respondo eu. "Estou em Nova Iorque", diz ela. "O que raio fazendo em Nova Iorque quando hoje é domingo e amanhã tens uma audição?", pergunto."Estou em Nova Iorque porque nunca estive em Nova Iorque", diz ela. "Então ponha se num avião e volte já para cá", grito-lhe eu. "Não quero". Respondeu ela. "Qual é a tua, boneca?", pergunto."Temos de querer para fazermos bem, e eu não quero", diz ela. "Bem, o que raio você quer?", pretendia eu que ela me dissesse. "Quando descobrir há de ser o primeiro a saber", diz ela.  Percebe o que eu quero dizer: ela não está se borrifando.

         O gato vermelho saltou do caixote e foi-se roçar na perna do homem que o levantou com a biqueira do sapato e lhe deu um pontapé, o que foi horrível da sua parte, embora ele não parecesse reparar no animal, absolutamente dominado pela sua irritabilidade.

         - É isto que ela quer? - perguntou ele, abanando os braços. – Um monte de tipos que aparecem sem serem convidados? Viver de gorjetas. Andar por aí com vadios. Para se calhar ir casar com o Rusty Trawier? Não é de lhe se tirar o chapéu?

         Aguardou que eu dissesse alguma coisa, chispando de cólera.

         - Lamento, mas não o conheço.

         - Se não conhece o Rusty Trawier é porque não sabe muito sobre a garota. Que chatice - disse ele, com a língua estalando-lhe nos beiços grossos -, pensei que o senhor podia ter alguma influência. Pudesse meter-lhe juízo na cabeça antes que seja tarde.

         - Mas na sua opinião já é muito tarde. Soprou um anel de fumo e esperou que desaparecesse antes de me sorrir, o sorriso alterou-lhe o rosto, acrescentou-lhe algo de amável.

         - Eu era capaz de fazer tudo outra vez. Como lhe disse, repetiu ele, e agora parecia mesmo verdade -, eu gosto sinceramente da dela.

         - Que escândalos você está espalhando, O. J.? - Holly entrou na sala chapinhando, mais ou menos embrulhada numa toalha, e os seus pés molhados escorrendo pegadas no soalho.

         - O de costume. Que você é maluca.

         - Isso o Fred já sabe.

         - Mas você não.

         - Acende-me um cigarro, querido - pediu ela, arrancando a touca de banho e abanando o cabelo. - Não te pedi O. J. Você é tão desastrado, deixa sempre o filtro molhado.

         Agarrou no gato e atirou-o para cima do ombro, onde o animal ficou empoleirado com o equilíbrio de um pássaro, as patas enredadas no cabelo dela como se tricotasse; e todavia, apesar da sua simpática tolice, era um gato sinistro, com cara de pirata terrorista; tinha um olho baço de cegueira e o outro chispando de maldade.

         - O. J. é um desastrado - disse-me ela, pegando no cigarro que eu lhe tinha acendido. - Mas sabe uma quantidade imensa de números de telefone. Qual é o número do David O. Selznick, O. J.?

         - Não me chateie.

         - Não é nenhuma piada, querido. Quero que você lhe telefone para contar que o Fred aqui é um gênio. Escreveu toneladas de histórias maravilhosas. Ora, Fred, não fique corado, não foi você que disse que era um gênio, fui eu. Vá lá, O. J. Que vai fazer pela fortuna do Fred?

         - E se você me deixasse acertar esses pormenores com o Fred?

         - Não se esqueças - disse ela, deixando-nos a sós -, eu sou a agente dele. Outra coisa, se eu gritar, anda apertar-me o fecho. E se alguém bater à porta, deixa-os entrar.

         Bateram e entrou uma multidão. No quarto de hora seguinte, um bando de homens invadiu o apartamento, muitos deles de uniforme. Contei dois oficiais da Marinha e um coronel da Força Aérea, mas eram mais as visitas grisalhas sem estatuto definido. À exceção da falta de juventude, nada tinham em comum, pareciam estranhos entre estranhos e, na verdade, cada rosto, à entrada, se cerrava para disfarçar o desânimo de encontrar outros penetras. Era como se a anfitriã tivesse distribuído os seus convites enquanto batia os bares, o que muito provavelmente seria o caso. No entanto, após os iniciais esgares de despeito, conviviam sem ressentimentos, especialmente O. J. Berman, que avidamente procurava nova companhia para evitar a discussão sobre o meu futuro em Hollywood. Fui relegado para um canto junto às estantes, dos livros que ali se encontravam, mais da metade era sobre cavalos e os restantes sobre baseball. Fingindo um interesse em Puros-Sangues, como os Conhecer, aproveitei a oportunidade para avaliar os amigos da Holly.

         Um deles destacava-se. Era um jovem que nunca perdera a gordura de criança, embora qualquer alfaiate talentoso quase tivesse conseguido camuflar o seu rabo balofo à espera de tautau. Não se vislumbrava qualquer vestígio de osso no seu corpo, o rosto, um círculo preenchido de belas feições de miniatura, tinha uma rara qualidade virginal: era como se tão simplesmente se tivesse expandido após o nascimento, sem adquirir contornos na pele, como um balão que se sopra, e a boca desenhava um terno beicinho, embora lhe adivinhássemos a deformidade dos berros e birras. Mas não era o seu aspecto que chamava a atenção. As crianças intactas não são assim tão raras. Era sobre tudo a sua atitude, já que se comportava como se fosse o dono da festa: qual polvo enérgico, misturava cocktails, fazia as apresentações, manejava o Fonógrafo. Em boa verdade, a maioria das suas atividades era ditada pela própria anfitriã: "Não se importa, Rusty", "Faz esse favor, Rusty". Se estava apaixonado por ela, os seus ciúmes experimentavam uma dura prova. Um homem ciumento poderia ter perdido o controlo, ao vê-la deslizando pela sala, com o gato numa mão, mas a outra livre para ajeitar uma gravata ou puxar linhas das lapelas, o coronel da Força Aérea tinha uma medalha que mereceu um valente polimento.

         O homem chamava-se Rutherfurd ("Rusty") TrawIer. Perdera ambos os pais em 1908, o pai às mãos de um anarquista e a sua mãe com o choque. Tal duplo infortúnio fizera de Rusty, aos cinco anos, um Órfão, um milionário e uma celebridade. Tornara-se uma presença discreta nos suplementos de domingo desde então, alcançando honras de catástrofe natural quando, ainda menino de escola, motivou a prisão do seu padrinho-tutor com a acusação de sodomia. Mais tarde, os casamentos e os divórcios sustentaram-lhe o lugar ao sol na imprensa cor-de-rosa. A primeira mulher partira com direito a pensão para os braços de um rival capitalista. A segunda mulher não teve grande história, mas a terceira processara-o no estado de Nova Iorque com um rol interminável de testemunhos comprometedores. Ele próprio tomara a iniciativa do divórcio com a última Mrs. TrawIer, com a queixa principal de que ela instigara um motim no seu iate, resultando na sua estada forçada nas Dry Tortugas.' Embora desde então tivesse permanecido solteiro, corriam rumores de que antes (1. Um grupo de dez ilhas à entrada do golfo do México pertencentes ao estado da Florida.) (N. da T) da guerra se comprometera com Unity Mitford, pelo menos dizia-se que lhe enviara um telegrama a propor-lhe casamento, caso o Hitler não o fizesse. Esta seria uma das razões pelas quais o Winchell o apodava sempre de nazi, isso e o fato de ter assistido a comícios em Yorkville.

         Ninguém me contou estas coisas. Li-as no Guia de Baseball, outra seleção da prateleira da Holly, que parecia servir-lhe de portfólio. Enfiados entre as páginas encontravam-se artigos de jornais de domingo, juntamente com recortes de colunas sociais. "Rusty TrawIer e Holly Golightly no mesmo  camarote na estréia de Um Toque de Vênus." Holly surgiu detrás, surpreendendo-me a leitura de "Miss Holiday Golightly, dos Golightly de Boston, vivendo plenamente a vida com o milionário de 24 quilates Rusty TrawIer".

         - Está admirando a minha publicidade ou se interessa por baseball? - perguntou ela, inclinando os óculos escuros ao olhar por cima do meu ombro.

         - Qual é o boletim meteorológico desta semana? - disse eu.

         Ela piscou-me o olho, mas com ar de quem não achava graça, era um aviso.

         - Eu adoro cavalos, mas detesto baseball - retorquiu ela, e a mensagem das entrelinhas dizia-me que ela pretendia que eu esquecesse qualquer confidência sobre Sally Tomato.

        - Detesto ouvir os relatos na rádio, mas tem de ser, faz parte da minha pesquisa. Os homens têm tão poucos temas de conversa. Se um homem não gosta de baseball, gosta com certeza de cavalos, e se não gosta nem de baseball nem de cavalos, bem me posso considerar perdida, que também não gosta de garotas. E como você está dando com o O. J.Separamos  por acordo mútuo. É uma bela oportunidade, confia em mim. Eu confio. Mas que tenho eu para oferecer-lhe que pareça uma oportunidade?

         Ela insistiu:

         - Se aproxima dele como quem não acha que ele tem um

aspeto esquisito. Ele pode ser uma grande ajuda, Fred.

         - Parecia-me que você não lhe era muito agradecida.

         Ela olhou-me perplexa até eu mencionar A História do Dr. Wassell.

         - Então ele continua ressentido? - disse ela, olhando carinhosamente para o Berman no outro lado da sala. - Mas ele tem razão, eu devia dar-me por culpada. Não por ter podido ficar com o papel ou ser uma boa atriz, nunca havia de conseguir. Se me sinto culpada, acho que é por o ter deixado viver o seu sonho quando para mim não havia sonho nenhum. Estava só a dar-me ares para ter a oportunidade de alguns melhoramentos. Sabia perfeitamente que nunca viria a ser uma estrela de cinema. É muito difícil, e, se formos inteligentes, é demasiado humilhante. Não tenho complexos de inferioridade para tanto, as pessoas julgam que uma estrela de cinema tem de ter necessariamente um ego gigantesco, na realidade, é essencial não ter ego nenhum. Não é que me importasse de ser rica e famosa. Isso faz parte dos meus planos, e um dia destes hei de lá chegar, mas quando isso acontecer, quero arrastar o meu ego atrás de mim. Quero continuar a ser eu quando acordar uma bela manhã para ir tomar o café da manhã no Tiffany's. Está precisando de um copo disse ela, reparando nas minhas mãos vazias. - Rusty! Pode trazer uma bebida para o meu amigo?

         Ela continuava abraçada ao gato.

         - Pobre desgraçado... – lamentou-se, coçando-lhe a cabeça. - Pobre desgraçado sem nome. Não é muito correto que ele não tenha um nome. Mas eu não tenho qualquer direito de lhe pôr um nome, vai ter de esperar até pertencer a alguém. Nós apenas nos encontramos um belo dia à beira-rio, não pertencemos um ao outro, ele e eu somos independentes.

         - Eu não quero ter nada até saber que encontrei um lugar onde eu e as coisas nos completamos. Ainda não sei muito bem quando é que isso será. Mas sei como vai ser. - Sorriu, e deixou o gato ir para o chão. - Como o Tiffany's. Não que eu dê um tostão por jóias. Os diamantes sim. Mas é cafona usar diamantes antes dos quarenta, e mesmo assim é arriscado. Só ficam bem nas mulheres muito velhas. Maria Ouspenskaya. Rugas e ossos, cabelo branco e diamantes, mal posso esperar. Mas não é por isso que eu tenho uma tara pelo Tiflany's. Ouve. Sabe daquele dias em que temos cabeça quente?

         - Como estar de mau humor?

         - Não - respondeu ela, lentamente. - Não, aborrecidos porque estamos ficando gordos ou às vezes porque a chuva nunca mais pára. Ficamos tristes, pronto. Mas a cabeça quente é horrível. Temos medo e suamos como tudo, mas não sabemos do que é que temos medo, a não ser que é uma coisa má que nos vai acontecer, mas não sabemos o que é. Nunca sentiu isso?

         - Várias vezes. Há quem lhe desperte ansiedade.

         - Como quiser, ansiedade. Mas como é que se livra disso?

         - Bem, um copo pode ajudar.

         - Isso eu já tentei. Também tentei a aspirina. O Rusty acha que eu devia fumar marijuana, o que eu fiz por uns tempos, mas só me dá vontade de rir. Descobri que o que me faz sentir melhor é apanhar um táxi e ir até ao Tiffany's. Fico logo mais calma com a serenidade e o ar digno que aquilo tem. Não há nada de realmente terrível que nos possa acontecer ali, com aqueles homens de roupas elegantes, e o cheiro fantástico da prata e das carteiras de crocodilo. Se eu encontrasse um lugar da vida real que me fizesse sentir como o Tiffanys, não hesitava em comprar mobília e dar um nome ao gato. Julgo que talvez depois da guerra, eu e o Fred... - levantou os óculos escuros, e os seus olhos, nos diferentes tons de cinzento e traços de azul e verde, exibiam um lampejo visionário. - Uma vez fui ao México. É um país soberbo para criar cavalos. Vi um lugar junto ao mar. O Fred tem muito jeito para os cavalos.

         Rusty Trawier aproximou-se com um Martini na mão; entregou-me sem me olhar.

         - Tenho fome - anunciou ele, e a sua voz, infantil como todo ele, produziu um guinchinho de fedelho irritante a pôr a culpa em Holly. - São sete e meia e estou cheio de fome. Sabe o que disse o médico.

         - Sim, Rusty, eu sei o que disse o médico.

         - Bem, então acabe com isto. Vamos embora.

         - Tem de se comportar, Rusty. Ela falara com uma voz doce, mas havia uma ameaça de castigo no seu tom de governanta que o fez corar de estranho prazer e gratidão.

         - Você não me ama. - queixou-se ele, como se estivessem a sós.

         - Ninguém gosta de atrevimentos. Era óbvio que ela dissera o que ele queria ouvir, pois pareceu tranqüilizá-lo e excitá-lo ao mesmo tempo. Mesmo assim persistiu, como se fora um ritual:

         - Me ama? - Ela fez-lhe uma festa.

         - Cumpra os seus afazeres, Rusty. E quando eu estiver pronta vamos comer onde você quiser.

         - A Chinatown? Desde que isso não implique entremeada agridoce. Sabe o que disse o médico.

         Quando ele voltou aos seus deveres, bamboleando-se de contente, não resisti a lembrar-lhe que ela não respondera à pergunta dele.

         - Você o ama?

         - Já te disse: podemos amar a todos. Além disso, ele teve uma infância miserável.

         - Se foi assim tão miserável, o que é que o faz apegar-se a ela?

         - Usa a cabeça. Não percebe que o Rusty se sente mais seguro de fraldas do que de saias? O que na realidade seria a escolha certa, só que ele é muito sensível nessa questão. Tentou apunhalar-me com uma faca de manteiga porque eu lhe disse que crescesse e encarasse o assunto, que assentasse e fosse brincar de casinha com um motorista simpático e paternal. Entretanto, tenho-o nas mãos, o que não é mau, ele é inofensivo e acha literalmente que as mulheres são bonecas.

         - Graças a Deus.

         - Bem, se isso fosse verdade para a maioria dos homens, eu não dava graças a Deus.

         - O que eu quis dizer foi graças a Deus por não se casar com ele.

         Ela ergueu a sobrancelha.

         - A propósito, eu não estou fazendo de conta que não sei que ele é rico. Até no México a terra custa algum dinheiro. Agora - disse ela, fazendo-me sinal que a seguisse -, vamos ter com o O. J.

         Resisti enquanto o meu raciocínio se esforçava por conquistar um adiamento:

         - Porquê "em viagem"?

         - No meu cartão? - perguntou ela desconcertada. Acha graça?

         - Graça, não. É apenas provocador. Ela encolheu os ombros.

         - Afinal de contas, como é que eu vou saber onde vou estar vivendo amanhã? Foi por isso que lhes pedi para porem "em viagem". De qualquer modo, foi um desperdício de dinheiro encomendar aqueles cartões, só que pensei que lhes devia comprar qualquer coisinha. São do Tiffany's.

         Estendeu a mão para o meu Martini intacto. Esvaziou-o em dois tragos e pegou-me pelo braço.

         - Não desvia mais do assunto. Vamos travar amizade com o O. J.

         Uma aparição à porta interferiu com o seu projeto. Era uma jovem, que entrou como um vendaval, uma borrasca de lenços e ouro, palpitante.

         - H-H-Holly - disse ela, abanando um dedo ao aproximar-se - sua monopolizadora. A arrebatar todos estes homens tão atraentes.

         Ela media para lá de um metro e oitenta, mais alta que a grande maioria dos homens presentes. Estes endireitaram as espinhas e encolheram o estômago num concurso generalizado para bater a sua altura de junco ao vento.

         - O que é que está fazendo aqui? - atirou-lhe Holly, de lábios tensos como uma corda retesada.

         - Ora, n-n-nada, fofa. Tenho estado lá em cima com o Yúnioshi. Propaganda natalícia para o Ba-ba-zaar. Mas pareces aborrecida, fofa? - Forjou um sorriso de orelha a orelha.

         - Vocês, me-meninos, não estão aborrecidos comigo por me intrometer na sua f-f-festa?

         Rusty Trawier soltou uma gargalhada boçal. Apertou-lhe o braço, como se lhe admirasse os músculos, e perguntou-lhe se ela queria uma bebida.

         - Com certeza - respondeu ela. - Dá-me um Bourbon.                                                                                 -       -Não há - retrucou Holly, pelo que o coronel da Força Aérea ofereceu-se para ir à rua buscar uma garrafa.  

        - Ora, eu acho que não é preciso tanta con-confusão. Contento-me com amoníaco. Holly, querida - disse ela, empurrando-a disfarçadamente -, não te incomodes comigo. Eu posso apresentar-me.

         Esgueirou-se para O. J. Berman que, como grande parte dos homens baixos em presença de mulheres altas, tinha os olhos vidrados de esperança.

         - Sou a Mag W-w-wildwood, de W-w-wildwood, Arkansas.

         Parecia uma dança, o Berman a saltitar para prevenir a intromissão dos seus rivais. Perdeu-a em benefício de uma quadrilha de convivas que engoliam as anedotas gagas como pipocas atiradas aos pombos. Era um sucesso compreensível. Ela triunfara sobre a fealdade, o que tantas vezes é mais sedutor que a verdadeira beleza, nem que seja apenas por atingir o paradoxo. Neste caso, por oposição ao método escrupuloso do bom gosto discreto e dos cuidados científicos, o truque consistia em realçar os defeitos, que ela tornara ornamentais por os assumir abertamente. Saltos que lhe sublinhavam a altura, tão finos que os tornozelos lhe tremiam, um corpete estreito que lhe caía bem indicando que bem podia ir à praia de seminua, o cabelo puxado atrás, acentuando os traços rudes e planos do seu rosto de modelo. Até a gaguez, certamente genuína, mas ainda assim um pouco exagerada, se tornara numa vantagem. Era o toque de mestre, a gaguez, pois concorria para que as suas banalidades soassem mais originais e, além disso, inspirava nos ouvintes masculinos um sentimento protetor, mal-grado a altura e tremenda segurança daquela mulher. Assim, o Berman precisou de umas palmadinhas nas costas porque ela disse:

         - Alguém me pode dizer o-o-onde fica o banheiro? – E depois, completando o ciclo, ele ofereceu-lhe o braço para a guiar.

         - Isso não é preciso - disse Holly. - Ela já esteve aqui antes. Sabe muito bem onde fica.

         Esvaziava os cinzeiros e, quando Mag Wildwood deixou a sala, esvaziou outro e suspirou:

         - É realmente muito triste. Calou-se o tempo de calcular o número de expressões curiosas, era o bastante.

         - É tão misterioso. Quase que não se nota, Deus sabe que ela tem um aspecto muito saudável, muito... limpo. É isso que é extraordinário. Não lhe parece? - perguntou ela num tom apreensivo, mas a ninguém em particular - Não lhe parece que ela tem um aspecto limpo?

         Alguém tossiu, vários pigarrearam. Um dos oficiais da Marinha, que segurava o copo de Mag Wildwood, pousou-o.

         - Mas parece que muitas destas mulheres do Sul têm o mesmo problema.

         Holly estremeceu delicadamente, e foi buscar mais gelo na cozinha.

         Mag Wildwood não encontrava explicação para a súbita frieza que rodeou o seu regresso, as conversas que iniciava eram como troncos verdes, faziam fumo, mas não acendiam. E o que era imperdoável é que iam embora sem lhe pedirem o número de telefone. O coronel da Força Aérea debandou quando ela lhe voltou às costas, e esta foi à gota de água: tinha-a convidado para jantar. De repente, sentiu-se cega. E uma vez que a relação entre o gim e o artifício é da mesma natureza que entre as lágrimas e a base, todo o seu encanto se esvaeceu. Insultou-os a todos. Chamou de depravada a sua anfitriã. Desafiou um homem dos seus cinqüenta anos a bater-se com ela. Disse ao Berman que o Hitler tinha muita razão. Divertiu o Rusty TrawIer encostando-o à parede.

         - Sabe o que vai te acontecer? - perguntou ela, sem

sombra de gaguez. - Vou levar-te para o jardim zoológico e dar para comer ao iaque.

         Ele parecia encantado com a perspectiva, mas ela desapontou-o, deslizando para o chão onde se sentou a gemer.

         - Você é uma chata. Levanta-te - disse-lhe Holly, calçando umas luvas. Os últimos convivas aguardavam a porta e, quando a chata não se mexeu, Holly lançou-me um olhar comprometido.

         - Seja um anjo, Fred. Mete-a num táxi. Ela mora no Winslow.

         - Não, moro no Barbizon. Regent 4-5700. Chamem pela Mag Wildwood,

- Você é um anjo, Fred. Foram-se embora, A perspectiva de arrastar uma amazona para um táxi anulava quaisquer ressentimentos que eu pudesse sentir. Mas ela própria resolveu esse problema. Erguendo-se nas "canetas" bambas, contemplou-me do alto com uma ébria altivez: _ Vamos ao Stork. Apanhar o balão da sorte...

         E estatelou-se no chão como um carvalho cortado numa floresta. A primeira coisa que me ocorreu foi chamar o médico. Mas senti-lhe o pulso, estava bem e respirava normalmente. Pura e simplesmente adormecera. Depois de lhe aconchegar uma almofada debaixo da cabeça, deixei-a descansada.

         Na tarde seguinte, dei de caras com a Holly nas escadas.

         - Você! - vociferou ela, passando por mim apressadamente com um pacote da farmácia. - Lá está ela, à beira de uma pneumonia. Uma ressaca até aqui. E ainda por cima com dor de cabeça.

         Concluí assim que Mag Wildwood se encontrava ainda no apartamento, mas Holly não me deu qualquer oportunidade de explorar a extraordinária simpatia da sua amiga. No fim de semana, o mistério adensou-se. Primeiro, houve o latino que me bateu à porta por engano, porque estava à procura de Miss Wildwood. Demorei um certo tempo a repor a verdade, as nossas pronúncias eram mutuamente incoerentes, e quando finalmente consegui sentia-me fascinado. O homem à minha frente era de uma cuidada configuração, a sua tez morena e corpo de toureiro exibiam uma perfeição exata, como uma maçã ou uma laranja, algo que a natureza fizera à medida. Além disso, exibia como adereços um terno inglês e uma colônia fina e, o que ainda é menos latino, uma atitude humilde. Protagonizou também o segundo acontecimento do dia, ao fim da tarde. Eu saia para jantar quando o encontrei, vendo-o a chegar de táxi. O condutor ajudou-o a levar para o edifício uma grande quantidade de malas. Fiquei a remoer o assunto, no domingo tinha os maxilares doridos.

         Então o cenário iluminou-se ao mesmo tempo em que se escureceu.

         Domingo era um dia de Verão de São Martinho, o sol estava muito forte, tinha a janela aberta e ouvi vozes na escada de incêndio onde Holly e Mag se estendiam sobre um cobertor com o gato ao meio. O cabelo delas, acabado de lavar, escorria-lhes pelos ombros. Holly pintava as unhas dos pés e Mag tricotava uma blusa.

         - Se queres saber a minha opinião - disse Mag -, acho que tem muita s-s-sorte. Pelo menos o Rusty tem uma coisa a seu favor. É americano.

         - Que bom para ele.

         - Fofa. Estamos em guerra.

         - Oras, e quando acabar já não vai me encontrar por aqui.

         - Eu não penso assim. Tenho muito o-o-orgulho do meu país. Os homens da minha família foram grandes soldados. Há uma estátua do avô Wildwood bem no meio da praça da minha terra.

         - O Fred é um soldado - disse Holly. - Mas duvido que alguma vez venha a ser uma estátua. É capaz. Dizem que os

mais corajosos são os mais estúpidos e ele é bastante estúpido.

         - O Fred é o jovem cá de cima? Não fazia idéia que ele era soldado. Mas por acaso parece muito estúpido.

         - É ansioso, mas não é estúpido. Quer desesperadamente olhar aqui para fora do lado de dentro; qualquer um com o nariz esborrachado numa janela pode parecer um bocado estúpido. Mas ele é outro Fred. O Fred é o meu irmão.

         - Você de chama estúpido alguém que é sangue do teu sangue?

         - Pois, se ele é estúpido.

         - Ora, não fica nada bem dizer isso. Um rapaz que anda combatendo por você e por mim e por todos nós.

         - Mas o que é isto? Uma campanha de guerra?

         - Eu só quero que saiba o que eu penso. Gosto de contar piadas, mas no fundo sou uma pessoa s-s-séria. Sinto orgulho em ser americana. É por isso que tenho pena do José.                                        - Pousou as agulhas do tricô.- Não acha que ele é extraordinariamente bem parecido?

         Holly respondeu-lhe com um monossílabo, passando o

pincel do verniz pelos bigodes do gato.

         - Se eu conseguisse me habituar à idéia de me casar com um brasileiro... e de ser também uma b-b-brasileira. É uma distância imensa. Seis mil milhas, e sem saber falar a língua...

         - Inscreve-te numa escola de línguas.

         - Por que raio havia eles de ensinar português? Como se alguém falasse português... Não, só tenho uma hipótese que é tentar tirar a política da cabeça do José e fazer dele um americano. Que aspiração tão inútil para um homem, ser p-p-presidente do Brasil - Suspirou e pegou no tricô. Devo estar loucamente apaixonada. Você nos viu juntos. Acha que eu estou loucamente apaixonada?

         - Bem, ele morde? Mag falhou um ponto.

         - Se morde?

         - Se te morde. Na cama.

         - Ora, não. Porquê devia? - E acrescentou com um tom de censura: - Mas ri.

         - Boa. É assim mesmo. Gosto de um homem com humor, a maioria deles só arqueja e suspira.

         Mag retirou a queixa e aceitou o comentário como uma lisonja refletindo-se sobre a sua pessoa.

         - Pois, também acho.

         - Muito bem. Ele não morde. Ri. E que mais? - Mag apanhou a malha caída e começou outra vez a tricotar,- Uma laçada por cima e outra por baixo.

         - Eu perguntei...

         - Eu te ouvi. E não é que não te queira dizer. Mas não me consigo lembrar. Eu não costumo maquinar nessas coisas. Como tu. Varrem-se da cabeça como um sonho. Tenho a certeza de que é essa a atitude n-n-normal.

         - Pode ser normal, querida, mas eu prefiro natural. Holly parou de pintar os bigodes ao gato. - Ouve, se não consegue lembrar, experimenta deixar as luzes acesas.

         - Por favor, compreende, Holly. Eu sou uma pessoa muito, muito, muito convencional.

         - Oh, está bem está. Que mal tem olhar de frente um tipo de que se gosta? Há muitos homens bonitos. O José é um homem bonito e você nem sequer quer olhar para ele. Eu acho que você anda a servir um prato de macarrão muito requentado.

         - B-b-baixa a voz.

         - Você com certeza que não pode estar apaixonada por ele. Pronto, respondi à tua pergunta?

         - Não, porque eu não sou nenhum prato requentado de macarrão. Eu tenho um bom fundo. É à base da minha personalidade.

         - Ótimo. Você tem um bom fundo. Mas se eu fosse contigo para a cama preferia levar um missal. É mais acessível.

         - O José não se queixa - disse Mag, num tom complacente, as suas agulhas dardejando à luz do sol. – E, além disso, eu estou apaixonada por ele. Já reparou que eu tricotei dez pares de meias em menos de três meses? E esta é a segunda blusa. - Estendeu a blusa e atirou-a para o lado. - Mas de que servem as blusas no Brasil? Eu devia era fazer bonés.

         Holly deitou-se, bocejando.

         - Deve fazer frio de vez em quando.

         - Chove, que eu bem sei. O calor. A chuva. A selva.

- O calor. A seiva. Para falar verdade, eu havia de gostar.

         - Antes você que eu.

         - Sim - respondeu Holly, com uma sonolência sem sono. - Antes eu que você.

         Na segunda-feira, quando desci para ver o correio da manhã, o cartão na caixa de Holly fora alterado com mais um nome: agora Miss Golightly e Miss Wildwood viajavam juntas. O fato ter-me-ia aguçado o interesse por mais tempo não fosse uma carta na minha própria caixa do correio. Era de uma pequena revista universitária para qual eu enviara uma história. Tinham gostado, e embora, como eu devia compreender, não me pudessem pagar, tencionavam publicá-la. Publicação queria dizer palavra impressa. Louco de entusiasmo é mais do que força de expressão. Tinha de contar a alguém, e, galgando os degraus dois a dois, bati com força na porta de Holly.

         Não confiei no som da minha voz para lhe dar a notícia, assim que ela, de olhos de quem havia acabado de acordar, abriu a porta, acenei-lhe com a carta. Ela teria tido tempo de ler sessenta páginas antes de me devolver o papel.

         - Eu não deixaria, a menos que eles te pagassem - disse ela, bocejando.

         Talvez a expressão do meu rosto lhe tivesse indicado que estava equivocada, que eu não pretendia conselhos, mas felicitações.

         - Ah, estou percebendo. É maravilhoso. Bem, entra - disse ela. - Vamos fazer café e celebrar. Não. Eu vou me vestir e te levar para almoçar.

         O quarto dela condizia com a sala de estar, perpetuando mesma atmosfera de acampamento, caixotes e malas, tudo embalado e pronto para a partida, como os pertences de um criminoso que tem a justiça no pé. Na sala não havia qualquer mobília convencional, mas o quarto tinha uma cama, uma cama de casal, e bastante vistosa: madeira clara, cetim com relevo.

         Deixou a porta do banheiro aberta, falando lá de dentro, entre o barulho da água a correr e do corpo a lavar, a maior parte do que dizia era ininteligível, mas o essencial era: ela supunha que eu sabia que a Mag Wildwood se mudara, o que dava imenso jeito, já que, se vamos dividir a casa com alguém que não é fufa, a melhor opção é uma idiota chapada, como no caso da Mag, porque podemos dar-lhe as contas para pagar e mandá-la à lavanderia.

         Era evidente que Holly tinha problemas com a lavanderia, o quarto estava atulhado como um ginásio de mulheres.

         - ...E sabes que mais, ela é uma modelo com bastante sucesso, não é fantástico? E a melhor parte - disse ela, saindo dando pulinhos do banheiro, a ajustar uma liga - é que assim ela não me mói o juízo na maior parte do dia. E não deve haver muitos problemas na frente masculina. Está comprometida. E o tipo até é bastante decente. Embora haja uma pequena diferença de altura, cerca de uns trinta centímetros a favor dela. Onde raio... - estava de joelhos, a espreitar debaixo da cama. Depois de encontrar o que queria, um par de sapatos de crocodilo, teve de vasculhar a procura de uma blusa, um cinto, e dava que pensar como conseguia ela, no meio de tantos destroços, produzir o efeito costumeiro: bem tratada, tranqüilamente imaculada, como se recebesse os cuidados das criadas de Cleópatra. - Ouve - disse ela, Beliscando-me o queixo _, estou contente com a tua história. É sério que estou.

        Aquela segunda-feira de Outubro de 1943: um belo dia, flutuante como um pássaro. Para começar, bebemos Manhattans no bar do Joe Bell e, quando ele soube da minha boa sorte, cocktails de champanhe por conta da casa. Vagamos então até à Quinta Avenida, onde desfilava uma parada. As bandeiras ao vento, a percussão das bandas e das botas militares, pareciam completamente desligadas da guerra, uma fanfarra em homenagem à minha pessoa.

         Almoçamos no café-restaurante do parque. Depois, desviando nos do jardim zoológico - Holly disse que não suportava ver fosse o que fosse numa jaula -, rimo-nos juntos, corremos, cantamos pelos caminhos que iam dar ao velho armazém dos barcos, hoje desaparecido. No lago flutuavam folhas, na margem, um guarda do parque ateava-lhes uma fogueira e a fumaça, subindo como sinais índios, era a única mancha no céu palpitante. Abril nunca tivera grande significado para mim, o Outono parece-se mais com essa outra estação do início, a Primavera, pelo que tive vontade de me sentar com Holly no corrimão do alpendre do armazém. Pensava no futuro e falava do passado. Porque a Holly queria saber coisas da minha infância. Também me falou da sua, mas era esquiva, anônima, sem localização precisa, um relato impressionista, embora a impressão que ela comunicasse fosse oposta à esperada, pois que narrava quase com volúpia as brincadeiras na água no Verão, as árvores de Natal, primos simpáticos e festas: resumindo, feliz como ela não o fora e com certeza de modo algum o passado de uma criança fugida de casa.

         Não era verdade que ela estava fora de casa desde os catorze anos? Perguntei. Ela coçou o nariz.

         - É verdade. O resto não. Mas ora, querido, você falou da tua infância como se fosse uma tragédia tão grande que a mim não me apeteceu competir.

         Saltou do corrimão.

         - Seja como for, lembrei-me agora que devia mandar manteiga de amendoim ao Fred.

         Passamos o resto da tarde para lá e para cá, vasculhando os merceeiros em busca de relutantes latas de manteiga de amendoim, uma raridade em tempo de guerra, caiu à noite antes de termos arrecadado meia dúzia delas, a última numa charcutaria da Terceira Avenida. Ficava perto do antiquário que expunha na vitrine o palácio dos pássaros, por isso levei-a até lá, e ela gostou da idéia, da fantasia.

         - Mas não deixa de ser uma gaiola. Ao passarmos pelo Woolwortws, ela apertou-me o braço.

         - Vamos roubar qualquer coisa - disse, arrastando-me para a loja, onde imediatamente senti o peso dos olhares, como se já nos suspeitassem. - Anda, não seja maricas.

         Alcançou um balcão cheio de abóboras de papel e máscaras do Dia das Bruxas. A vendedora estava ocupada com um grupo de freiras a experimentar máscaras. Holly pegou numa máscara e a pôs no rosto, com outra cobriu o meu rosto.

         Depois me pegou pela mão e saímos da loja. Foi assim tão simples. Lá fora, galgamos alguns quarteirões, julgo que para dramatizar a ocorrência, excitados com o sucesso do furto. Quis saber se ela já tinha roubado muitas vezes.

         - Antes roubava - disse ela. - Quero dizer, tinha de roubar se queria ter alguma coisa. Mas ainda o faço de vez em

quando, para manter a mão treinada.

         Usamos as máscaras durante todo o caminho até em casa.

         Na minha memória passei muitos dias, sempre que calhava, com Holly, e não deixa de ser verdade, em certos períodos de tempo freqüentávamos nos muito, mas no seu todo, é uma memória falsa. Porque, perto do fim do mês, arranjei um emprego, que mais posso dizer? Quanto menos, melhor, a não ser que era necessário e que me ocupava das nove às cinco. O que criava uma grande disparidade entre o meu horário e o de Holly.

         À exceção das quintas-feiras, o dia em que ela ia à prisão, ou de quando ia andar a cavalo no parque, como às vezes acontecia, era muito raro Holly estar acordada quando eu chegava a casa. Às vezes eu passava por lá e partilhava o seu café da manhã enquanto se vestia para à tarde. Ela saía sempre, nem sempre com o Rusty Trawier, mas geralmente, e geralmente também acompanhados por Mag Wildwood e pelo elegante brasileiro bem apessoado, que se chamava José Ybarra-Jaegar e era filho de uma alemã. Eram um quarteto com uma nota dissonante, por conta do Ybarra-Jaegar, que parecia tão deslocado do grupo como um violino numa banda de jazz. Era inteligente, apresentável, parecia muito empenhado no seu trabalho, obscuramente governamental, vagamente importante, pelo que ia a Washington várias vezes por semana. Como podia ele sobreviver noites seguidas em La Rue, no El Morocco, ouvindo a ta-ta-tagarelice da Wildwood e contemplando as bochechas do Rusty, balofas como um bumbum de um bebê? Se calhar, como muitos de nós num país estrangeiro, era incapaz de situar as pessoas, de enquadrar os seus retratos, como no seu país natal, por isso julgava todos os americanos pela mesma medida, e assim os seus companheiros pareciam-lhe exemplos toleráveis da cor local e do espírito nacional. Isso explicava muita coisa; a determinação de Holly explicava o resto.

         Num fim de tarde, estando eu à espera do ônibus para a Quinta Avenida, reparei num táxi que parara do outro lado da rua para deixar uma jovem, que galgou energicamente os degraus da biblioteca pública da Rua Quarenta e Dois. Entrou antes de eu a ter reconhecido, o que era compreensível, visto que não era fácil associar a Holly com uma biblioteca. Deixei que a curiosidade me guiasse entre os leões, ponderando pelo caminho se devia admitir que a seguira ou fingir uma coincidência. Afinal não fiz nem uma coisa nem outra, escondendo-me na sala de leitura, algumas mesas à distância de onde ela se sentava atrás dos seus óculos escuros e de uma fortaleza de literatura que empilhara na escrivaninha. Passava a grande velocidade de um livro ao outro, detendo-se pontualmente numa página, sempre de testa franzido, como se os volumes estivessem impressos de pernas para o ar. Tinha um lápis pousado sobre as folhas - aparentemente, não havia nada que lhe atraísse a atenção, mas mesmo assim, de vez em quando, como que por desencargo de consciência, tomava apontamentos laboriosos. Contemplando-a, lembrei-me de uma moça dos meus tempos de escola, uma carola, Mildred Grossman. Mildred Grossman: com o seu cabelo oleoso e óculos gordurosos, os seus dedos manchados que dissecavam rãs e levavam o café aos piquetes, os seus olhos baços que só se viravam para as estrelas para avaliar o seu calibre químico. O céu e a terra não seriam mais díspares que Mildred e Holly, e, contudo, na minha mente as duas moças adquiriram uma irmandade siamesa, e a linha do raciocínio que as alinhavara corria assim: a personalidade do homem comum evolui constantemente, a cabo de um período de alguns anos até os nossos corpos são completamente recauchutados para melhor ou pior, é natural que mudemos. Muito bem, Holly Golightly e Mildred Grossman eram duas que nunca mudariam. Era isso que tinham em comum. Nunca haviam de mudar porque tinham adquirido uma personalidade demasiado cedo, o que, como a fortuna repentina, dá motivo a uma falta de perspectiva: uma catapultara-se a um realismo inexpugnável, a outra, a um romantismo tresloucado. Imaginei-as num restaurante do futuro, Mildred ainda a estudar o cardápio pelo seu valor nutricional, Holly ainda gulosa por todas as iguarias. Seria sempre assim. Haviam de passar pela vida e deixá-la com o mesmo passo determinado que mal reparava nas ladeiras à esquerda. Tão profundos pensamentos fizeram-me esquecer onde estava, despertei espantado por me encontrar na obscuridade da biblioteca, e de novo surpreso por ver ali a Holly. Passava das sete, retocava o baton e cuidava do aspecto, mudando-o do tom que julgava correto para uma biblioteca, para o que, acrescentando um lenço e uns brincos, considerava adequado para o Colony. Quando se foi embora, aproximei-me da mesa onde tinham ficado os livros, eram o que me interessava: Ao Sul com o Pássaro do Trovão, Atalhos do Brasil, A Mosofia Política da América Latina, e assim por diante.

         Na véspera de Natal, ela e a Mag deram uma festa. Holly pediu-me para vir mais cedo para ajudar a decorar a árvore. Ainda hoje não sei como conseguiram elas enfiar aquela árvore no apartamento. Os ramos superiores esmagavam-se contra o teto, os inferiores estendiam-se de parede a parede, no seu todo, não era muito diferente do gigante natalício que vemos na Rockefeller Plaza. Além disso, seria preciso um Rockefeller para decorá-la, pois engolia fitinhas e bolinhas como neve derretida. Holly sugeriu ir correndo ao Woolwortws e roubar alguns balões, como acabou por fazer, e a árvore ficou agradavelmente garrida. Brindamos ao nosso trabalho e Holly disse:

         - Vai espiar no quarto. Lá há um presente para você.

         Eu também tinha um para ela, um pequeno embrulho no bolso que me pareceu ainda menor quando vi, plantada no meio da cama e envolta numa fita vermelha, a bela gaiola dos pássaros.

         - Mas, Holly! Isto é horrível!

         - Eu também acho, mas pensei que você gostaria de a ter.

         - O dinheiro! Trezentos e cinqüenta dólares! - Ela encolheu os ombros.

         - Umas idazinhas extras para retocar a maquiagem. Mas tens de prometer-me que nunca há de pôr uma coisa viva lá dentro.

         Comecei a beijá-la, mas ela estendeu a mão.

         - Dá aqui. - disse ela, apalpando o volume no meu bolso.

         - Receio, bem..., Que não seja grande coisa. E não era: uma medalha de São Cristóvão. Mas pelo menos vinha do Tiffanys.

         Holly não era mulher para guardar fosse o que fosse zelosamente, e com certeza que por esta altura já perdeu a medalha, esquecida numa mala ou numa gaveta de um hotel. Mas eu ainda tenho a gaiola. Arrastei-a para Nova Orleans, Natucket, por toda a Europa, Marrocos e as índias Orientais. De qualquer modo, quase nunca me lembro que foi a Holly quem me ofereceu, porque a dada altura decidi esquecer, tivemos um grande desentendimento, e entre os objetos que passaram pelos olhos da nossa tempestade houve a gaiola e o. J. Berman e a minha história, de que tinha dado uma cópia a Holly quando apareceu na revista universitária.

em meados de Fevereiro, Holly fora de férias de Inverno com o Rusty, a Mag e o José Ybarra-Jaegar. A nossa discussão deu-se pouco depois da sua chegada. Estava mais castanha que iodo, com o cabelo oxigenado pelo sol, de uma cor quase de fantasma, divertira-se à brava.

         - Bem, primeiro estivemos em Key West, e o Rusty zangou-se com uns marinheiros, ou vice-versa, seja como for vai ter de usar um colete para a coluna para o resto da vida. A querida Mag também acabou no hospital. Queimadura solar de primeiro grau. Arrepiante, bolhas e óleo por toda a parte. Não lhe suportávamos o cheiro. Por isso o José e eu os deixamos no hospital e fomos para Havana. Ele diz que quando eu vir o Rio vou ficar de boca aberta, mas pela parte que me toca a Havana bem pode me ficar com o dinheiro. Arranjamos um

guia incrível, uma grande parte preto e o resto chinês, e, embora nem um nem outro me seduza muito, a combinação dos dois era bastante atraente, por isso deixei-o me roçar nas pernas debaixo da mesa, porque muito francamente não o achava nada banal. Mas numa certa noite ele levou-nos a ver um filme indecente e, quem diria? Lá estava ele na tela. É claro que quando voltamos para Key West, a Mag estava convencida de que eu tinha dormido todo o tempo com o José. E o Rusty também, mas a ele tanto se lhe dá, apenas quer saber os pormenores. Na realidade, as coisas ficaram um pouco tensas até eu ter uma conversa muito franca com a Mag.

         Estávamos na sala de estar onde, embora fosse quase Março, a enorme árvore de Natal, acastanhada e sem cheiro, com os balões mirrados como as tetas de uma vaca velha, ocupava ainda grande parte do espaço. A sala fora acrescentada com uma peça de mobília reconhecível, uma cama do Exército onde Holly se estendia sob uma lâmpada solar, procurando manter o seu tom tropical.

         - E a convenceu?

         - Que não tinha dormido com o José? Meu Deus, claro que sim. Disse-lhe simplesmente que... Mas, está vendo, fiz com que tudo parecesse uma confissão muito sofrida... disse lhe simplesmente que eu era fufa.

         - É impossível que ela tenha caído nessa.

         - Ah, pois não, por que é que acha que ela saiu imediatamente à rua para me comprar esta cama do Exército? Confia em mim, eu sou perita no departamento de choque. Vá querido, seja um cavalheiro e esfrega-me o creme nas minhas costas.

         Enquanto eu cumpria a ordem, ela disse:

         - O O. J. Berman está por aqui e ouve-me só esta: dei-lhe a história que você publicou na revista. Ele ficou muito impressionado. Acha que se calhar vale a pena te ajudar. Mas diz que está no mau caminho. Quem é que se interessa por pretos e crianças?

         - Pelos vistos, Mr. Berman está nas tintas.

         - Ora, eu concordo com ele. Li a história duas vezes. Fedelhos e pretos. Folhas ao vento. Descrição. Não quer dizer nada.

         A minha mão, a espalhar-lhe o creme pela pele, parecia adquirir um temperamento próprio, ansiando por erguer-se e assentar-lhe umas palmadas nas nádegas.

         - Me dá um exemplo. - Pedi eu, muito calmamente de uma coisa que queira dizer alguma coisa. - Na tua opinião.

         - O Monte dos Ventos Uivantes - respondeu ela sem hesitar. Minhas mãos tremiam sem controle.

         - Mas isso não é razoável. Está falando de uma obra genial.

         - Era, não era? Minha Doce e Indomável Cathy. Meu Deus, fiquei lavada em lágrimas. Vi mais de dez vezes.

         - Oh! - exclamei eu com um suspiro de notório alívio.

         - Oh! - com um tom de voz mais alto e humilhante - o filme.

         Seus músculos se retesaram, todo o seu corpo era como uma pedra aquecida pelo sol.

         - Todo mundo tem de encontrar alguém de quem se sinta superior - disse ela. - Mas é costume dar algumas provas antes de se ter esse privilégio.

         - Eu não me comparo a você nem ao Berman. Por isso não posso me sentir superior. Somos pessoas diferentes.

         - Não quer ganhar dinheiro?

         - Ainda não está nos meus planos.

         - É isso que se nota nas tuas histórias. Como se as tivesses escrito sem saber o fim. Bem, ouve o que eu te digo, é melhor para você se ganhar dinheiro. Tem uma imaginação muito cara. Não há assim tanta gente que possa lhe oferecer gaiolas douradas.

         - Lamento muito.

         - Vai lamentar se me bater. E há um minuto atrás, bem que te apetecia. Senti-o na sua mão. E ainda te apetece.

         Tinha uma vontade terrível, a minha mão, o meu coração tremiam ao enroscar a tampa no frasco de creme.

         - Oh, não, não havia de lamentar nem um bocadinho. Só lamento ter gastado o seu dinheiro comigo. O Rusty Trawler é um meio muito complicado para ganhá-lo.

         Ela sentou-se na cama do exército, o rosto e os peitos nus friamente azuis à luz da lâmpada.

         - Devem lhe bastar quatro segundos para ir daqui até à porta. Dou-lhe dois.

         Subi as escadas sem hesitar, peguei a gaiola, levei-a até lá abaixo e deixei-a a sua porta. Isso daria fim ao assunto. Ou pelo menos foi o que pensei até à manhã seguinte, quando, no caminho para o trabalho, vi a gaiola empoleirada num caixote do lixo no calçada, à espera do lixeiro. Muito acanhadamente, recuperei-a e levei-a de novo para o meu quarto, uma capitulação que não alterou em nada a minha decisão de afastar Holly Golightly definitivamente da minha existência. Cataloguei-a como uma "exibicionista indecente", "uma perda de tempo", "uma vil impostora", alguém com quem não voltaria a falar.

         E não voltei. Pelo menos por muito tempo. Passávamos um pelo outro nas escadas de olhos postos no chão. Se ela entrava no bar do Joe Bell, eu saía. A certa altura, Madame Sapphia Spanella, a pintora de aquarelas e entusiasta dos patins que vivia no primeiro andar, fez circular uma subscrição pelos inquilinos do edifício pedindo-lhes para a apoiarem no pedido de despejo de Miss Golightly, que, nas palavras de Madame Spanella, era "moralmente duvidosa" e "perpetradora de encontros noturnos que ameaçam a segurança e sanidade dos seus vizinhos". Embora me tivesse recusado a assinar, sentia no fundo que Madame Spanella tinha razões de queixa. Mas a subscrição não surtiu efeito e, enquanto Abril caminhava para Maio, as noites quentes e primaveris das janelas abertas impregnavam-se do barulho festivo, a vitrolas em altos berros e as gargalhadas de Martini que emanavam do apartamento 2.

         Não era novidade nenhuma encontrar tipos suspeitos entre as visitas de Holly, muito pelo contrário, mas um dia no final da Primavera, ao passar pelo vestíbulo do edifício, reparei num homem com um aspecto estranhíssimo a vasculhar-lhe a caixa do correio. Um indivíduo nos seus cinqüenta e poucos, com um rosto duro e curtido e um olhar cinzento e esgazeado. Usava um velho chapéu cinzento manchado de suor, e o seu terno de Verão azul-claro, de fazenda reles, ficava-lhe muito largo sobre o corpo magro, tinha uns sapatos castanhos novinhos em folha. Não demonstrava qualquer intenção de tocar à campainha de Holly. Lentamente, como se lesse braille, passava um dedo sobre as letras gravadas do seu nome.

         Nessa noite, ao sair para o jantar, reparei de novo no homem. Estava encostado em uma árvore, do outro lado da rua, a olhar fixamente para as janelas de Holly. Passaram-me pela cabeça especulações muito sinistras. Seria um detetive? Ou algum agente do submundo relacionado com o seu amigo da cadeia, o Sally Tomato? A situação ressuscitou os meus mais ternos sentimentos por Holly, era mais que justo interromper a nossa rixa durante o tempo de lhe contar que estava  sendo observada. Ao seguir para a esquina, a leste, na direção do Paraíso dos Hambúrgueres no cruzamento da Rua Setenta e Nove com a Madison Avenue, sentia a atenção do homem concentrada em mim. Depois, sem virar a cabeça, soube que ele me seguia. Porque o ouvia assobiar. Não era uma cançoneta qualquer, mas a melodia triste e bucólica que a Holly costumava tocar no violão: "Não quero dormir, não quero morrer, só quero partir a correr pelos prados do céu". O assobio continuou por toda a Park Avenue até a Madison Avenue. Uma vez, esperando que o semáforo mudasse, fisguei-o pelo canto do olho, detendo-se para fazer festas a um cocker bem tratado.

         - Tem aqui um belo animal - disse ele ao dono, numa pronúncia rural, rouca e arrastada.

         O Paraíso dos Hambúrgueres estava vazio e, no entanto, ele sentou-se mesmo a meu lado ao longo balcão. Cheirava a tabaco e a suor. Pediu um café, mas quando lhe serviram não lhe tocou, mastigando, ao invés, um palito e observando-me no espelho da parede à nossa frente.

         - Desculpe - disse eu, falando com ele pelo espelho o que é que deseja?

         A pergunta não o envergonhou, parecia aliviado por eu ter tomado a iniciativa.

         - Escute, filho, preciso de um amigo - disse ele. Tirou uma carteira do bolso, gasta como as suas mãos calejadas, quase a desfazer-se aos pedaços, tal como o instantâneo desbotado e vincado que me estendeu. Havia sete pessoas na fotografia, todas alinhadas no alpendre dilapidado de uma casa de madeira maciça, e todas crianças, a exceção do homem, ele mesmo, com o braço de volta da cintura de uma menina rechonchuda que protegia os olhos do sol com uma das mãos.

         - Esse sou eu - disse ele, apontando para si. - Esta é ela... - tocou na menina rechonchuda. - E este aqui acrescentou, apontando uma estaca de cabelos louros - é o irmão dela, o Fred.

         Olhei de novo para "ela", sim, agora consegui reconhecer uma semelhança embrionia com a Holly na criança estrábica e de gordas bochechas. No mesmo instante, percebi quem devia ser o homem.

         - O senhor é o pai da Holly. Ele pestanejou, franziu as sobrancelhas.

         - Ela não se chama Holly, chama-se Lulamae Barnes. Chamava-se - disse ele, virando o palito na boca - até se casar comigo. Eu sou o marido dela. Dr. Golightly. Sou médico de cavalos, dos animais. Também me dedico um pouco à agricultura. Perto de Túlip, no Texas. Filho, de que você ri?

         Não era propriamente riso, eram nervos. Engoli um trago de água e engasguei-me, ele bateu-me nas costas.

         - Isto não tem piada nenhuma, filho. Estou cansado. Há cinco anos que procuro a minha mulher. Logo que recebi aquela carta do Fred, comprei um bilhete para a camioneta. O lugar de Lulamae é em casa com o seu marido e os seus filhotes.

         - Filhos?

         - Estes são os filhotes - disse ele, quase gritando. Referia-se aos outros quatro rostos de criança na fotografia, duas meninas descalças e um par de meninos de jardineiras. Bem, era evidente que o homem não as contava todas.

         - Mas a Holly não pode ser a mãe destas crianças. São mais velhas que ela. Maiores.

         - Ora vamos ver, filho - disse ele, num tom conciliador -, eu não disse que eles eram filhos da barriga dela. A santa mãezinha deles, que Deus tem, morreu no dia quatro de Julho de 1936, no Dia da Independência. No ano da seca. Quando me casei com a Lulamae, em Dezembro de 1938, ela estava quase com catorze anos. Talvez uma pessoa normal, com catorze anos, não saiba ainda o que quer. Mas, estás vendo, Lulamae era uma mulher excepcional. Ela sabia muito bem  que fazia quando me prometeu ser minha mulher e mãe dos meus filhotes. Destroçou os corações de todos quando fugiu daquela maneira.

         Bebeu o café frio e olhou-me com uma ansiedade perscrutadora.

         - E então, filho, duvida de mim? Acredita que o que estou a lhe dizer é verdade?

         Eu acreditava. Era demasiado incrível para não ser verdade. Além disso, condizia com a descrição do O. J. Berman do seu primeiro encontro com Holly na Califórnia: "não dá para perceber se é uma camponesa do Sul ou de 0klahoma ou de outro lugar qualquer". O Berman não podia adivinhar que ela era uma mulher-criança de Tulip, no Texas.

         - Partiu-nos o coração quando fugiu daquela maneira - repetiu o médico dos cavalos. - Não tinha razão nenhuma. As filhas faziam todo o trabalho de casa. A Lulamae podia levar uma boa vida, pavonear-se em frente dos espelhos e lavar o cabelo. Tínhamos as nossas vacas, o nosso jardim, galinhas, porcos. Escute, filho, a mulher engordou muito enquanto o irmão crescia que nem um gigante. Bastante diferentes do estado lastimável em que nos chegaram. Foi a Nelly, a minha filha mais velha, foi a Nelly que os trouxe lá para casa. Veio a correndo ter comigo e disse: "Papá, tenho dois meninos trancados na cozinha. Apanhei-os roubando leite e ovos de peru". Eram a Lulamae e o Fred. Digo-lhe uma coisa, nunca se viu um tão triste espetáculo. As costelas saindo de todo o lado, umas pernas tão magricelas que quase não conseguiam ficar de pé, os dentes tão fraquinhos que nem a papa mastigavam. A história é que a mãe tinha morrido tuberculosa e o pai tinha-lhe seguido o mesmo caminho. E todos os filhos, um bando deles, foram entregues a diferentes pessoas más. E a Lulamae e o irmão viviam os dois com uma família má e miserável a umas cem milhas a leste de Túlip. Ela teve muita razão em fugir daquela casa. Mas não teve nenhuma em deixar a minha. Era a casa dela.

         Apoiou os cotovelos no balcão e, pressionando os olhos fechados com as pontas dos dedos, suspirou:

         - Ela fez-se uma bela mulher. E alegre que ela era. Tagarela que nem um gaio. Tinha sempre uma resposta na ponta da língua, era melhor que radio. Imagina lá que me deu para lhe colher flores. Amestrei-lhe um corvo e ensinei-o a dizer o nome dela. Mostrei-lhe como se toca violão. Só de olhar para ela ficava de lágrimas nos olhos. Na noite em que a pedi em casamento, chorei que nem um bezerro desmamado. Ela disse-me: "Para que é que está chorando, Doc? É claro que nos casamos, nunca me casei antes". Deu-me uma vontade de rir, de a abraçar e de a apertar: "nunca me casei antes!”

 

         Soltou uma gargalhada, mastigou o palito por uns instantes.

         - Não me diga que aquela mulher não era feliz! - disse ele, num tom de desafio. - Todos nos esfalfávamos por ela. Ela não precisava levantar um dedo, a não ser para comer uma fatia de torta. A não ser para pentear os cabelos e pedir assinaturas de todas as revistas. Devem ter entrado naquela casa uns cem dólares de revistas. Cá para mim, foi por causa disso. Foi por olhar para as fotografias da gente do espetáculo. Pôr se ali a ler sonhos. Foi por isso que ela se pos na estrada. Todos os dias avançavam mais uma milha, uma milha a frente, e voltava para casa. Duas milhas, e voltava para casa. Um belo dia seguiu sempre em frente.

         Cobriu de novo os olhos com as mãos, arquejando.

         - O corvo que eu lhe dei ficou maluco e foi-se embora. O ouvimos todo o Verão. No quintal. No jardim. Na mata.O raio do pássaro passou todo o Verão a chamar pela Lulamae. Lulamae.

         Permaneceu acabrunhado e silencioso, como que a escutar o som de um Verão há muito tempo. Levei a nossa conta à registradora. Enquanto pagava, ele veio falar comigo. Saímos juntos e seguimos para a Park Avenue. Era uma tarde fresca e agitada, os toldos dos estabelecimentos batiam ao vento. O silêncio entre nós desfez-se com a minha pergunta:

         - Mas então e o irmão? Não se foi embora?

         - Não senhor - disse ele, pigarreando. - O Fred ficou conosco até o terem levado para o Exército. Um bom rapaz. Com muito jeito para os cavalos. Não percebia o que é que se tinha passado com a Lulamae, porque carga dágua ela tinha abandonado o irmão e o marido e os filhos. Mas, depois de estar no Exército, teve notícias dela. No outro dia mandou-me o paradeiro. Por isso vim buscá-la. Sei que ela está arrependida do que fez, que quer voltar para casa.

         Era como se estivesse me pedindo que concordasse com ele.

         Disse-lhe que achava que ele ia encontrar a Holly, ou a Lulamae, um pouco mudada.

         - Ouve, filho - disse ele, ao chegarmos aos degraus da casa de arenito -, eu te avisei que precisava de um amigo, porque não a quero apanhar desprevenida. Não quero assustá-la. Foi por isso que fiquei à espera. Se não te importas de ser meu amigo, conta-lhe que eu estou aqui.

         A idéia de apresentar Miss Golightly ao seu marido tinha o seu quê de gratificante, e, erguendo o olhar para as janelas iluminadas, desejei que os seus amigos lá estivessem, pois a perspectiva de ver o texano a apertar a mão de Mag, ao Rusty e ao José era ainda mais excitante. Mas a dignidade do olhar ansioso de Doc Golightly e o seu chapéu manchado de suor incutiram-me um sentimento de vergonha por tais antecipações. Seguiu-me para dentro do edifício e dispôs-se a esperar no fundo das escadas.

         - Estou com bom aspecto? - sussurrou-me ele, sacudindo o pó das mangas e apertando o nó da gravata.

         Holly encontrava-se sozinha. Atendeu logo a porta, na realidade, preparava-se para sair: sapatos de dança de cetim branco e quilos de perfume anunciavam intenções festivas.

         - Olha, meu idiota - disse ela, bem disposta, batendo-me com a mala. - Estou com muita pressa para fazer agora as pazes. Fumamos o cachimbo amanhã, está bem?

         - Com certeza, Lulamae. Se ainda estiver por aqui amanhã. Ela tirou os óculos escuros, pestanejando. Era como se os seus olhos fossem prismas despedaçados, os salpicos de azul e cinzento e verde como estilhaços de brilho.

         - Foi ele que te contou - disse ela numa voz sumida e alterada. - Oh, por favor. Onde é que ele está?

         Passou por mim, correndo para o patamar.

         - Fred! - gritou ela pelas escadas abaixo. - Fred, onde é que você está, meu querido?

Ouvi os passos de Doc Golightly subindo as escadas. A sua cabeça surgiu sobre o corrimão, e Holly recuou, não como alguém assustado, mas como que se recolhendo numa concha de desilusão. Então ele apareceu-lhe à frente, tímido e envergonhado.

         - Santo Deus, Lulamae - começou ele e hesitou, pois Holly fitava-o com um olhar inexpressivo, como se não o reconhecesse. - Santo Deus, ternura, aqui não te dão de comer? - comentou ele. - Estás tão magrinha. Como quando te vi pela primeira vez. Só pele e osso à volta dos olhos.

         Holly tocou-lhe o rosto, os dedos avaliando-lhe a realidade do queixo, da barba por fazer.

         - Olá Dr. - disse ela meigamente, beijando-lhe a face. Olá Dr. - repetiu alegremente enquanto ele a levantava do chão num abraço de partir as costelas, sacudido por incontroláveis gargalhadas de alívio.

         - Meu Deus, Lulamae. Venha a nós o vosso reino. Nem uma nem outro fez caso de mim quando me encolhi entre eles para seguir para o meu apartamento. Nem repararam sequer na Madame Sapphia Spanella, que abriu a porta do seu apartamento, berrando:

         - Calem-se! É uma desgraça. Vão fazer as vossas poucas vergonhas para outro lado.

          - Divorciar-me dele? É claro que nunca me divorciei dele. Eu só tinha catorze anos, pelo amor de Deus. Aquilo não podia ter sido legal.

         Holly apontou para um copo de Martini vazio.

         - São mais dois, querido Mr. Bell. Joe Bell, em cujo bar nos sentávamos, aceitou o pedido relutantemente.

         - Estás a te entornar um bocado cedo - resmungou ele, mastigando um Tums. Ainda não era meio-dia, segundo o relógio negro de mogno atrás do balcão, e já nos servira duas rodadas.

         - Mas hoje é domingo, Mr. Bell. Os relógios atrasam-se muito aos domingos. Além disso, ainda não me deitei - disse-lhe ela, confidenciando-me - Pelo menos para dormir.

Corou e desviou o olhar com uma sombra de culpa. Pela primeira vez desde que a conhecera parecia sentir necessidade de justificar-se.

         - Ora, não tinha outra hipótese. O Dr. me ama de verdade, sabe. E eu também o amo. Você pode tê-lo achado velho e de mau gosto, mas não sabe como ele é meigo, a confiança que ele inspira aos pássaros e as crianças e a coisas frágeis desse gênero. Nós devemos muito a quem quer que alguma vez nos mereça confiança. Nunca me esqueci do Doutor nas minhas orações. Pára com essas caretas, me faça o favor! - exigiu ela, esmagando um cigarro. - É verdade que eu rezo.

         - Não estou fazendo careta. Estou sorrindo. É a pessoa mais extraordinária que já conheci.

         - Suponho que sim - disse ela, e o seu rosto pálido, um pouco abatido sob a claridade matinal, iluminou-se. Passou os dedos pelos cabelos desgrenhados, e as suas cores acenderam-se como num anúncio de xampu. - Devo estar com um terrível aspecto. Mas é natural. Passamos o resto da noite a andar de um lado para o outro na estação das camionetas. Até ao último minuto, o Doutor estava convencido de que eu ia com ele, apesar de eu lhe dizer constantemente: "Mas, Doutor, eu já não tenho catorze anos e não sou a Lulamae". Mas o pior é que - e apercebi-me disso enquanto ali estávamos - sou mesmo. Continuo a roubar ovos de peru e a pular as cercas. Só que agora digo que estou com o ferro em brasa na cabeça.

         Joe Bell pousou desdenhosamente os Martinis gelados diante de nós.

         - Tente nunca se apaixonar por um animal selvagem, Mr. Bell - aconselhou-o Holly. - Foi aí que o Doutor errou. Estava sempre a trazer animais selvagens lá para casa. Um falcão com uma asa quebrada. Uma vez apareceu com um lince adulto a mancar. Mas não podemos confiar o coração a um animal selvagem, quanto mais lhe damos, mais forte fica. Até ter força suficiente para largar a correr para a floresta. Ou voar para uma árvore. E depois para uma árvore mais alta. E depois para o céu. É o que lhe vai acontecer, Mr. Bell, se se apaixonar por um animal selvagem. Acaba a olhar para o céu.

         - Ela está bêbeda - informou-me Joe Bell.

         - Mais ou menos - confessou Holly. - Mas o Doutor percebeu o que eu quis dizer. Expliquei-lhe com muito cuidado, e foi uma coisa que ele conseguiu perceber. Apertamos as mãos e abraçamo-nos e ele desejou-me boa sorte.

         Olhou para o relógio.

         - Por esta altura já deve estar nas Blue Mouritains.

         - Do que ela está falando? - perguntou-me Joe Bell.  Holly ergueu o Martini.

         - Vamos também desejar boa sorte ao Doutor - disse ela, batendo com o seu copo no meu. - Boa sorte, e, vai por mim, querido Doutor, é melhor olhar para o céu que lá viver. É tão vazio e tão vago. Um país para onde vai o trovão e as coisas desaparecem.

         "Trawler casa-se pela quarta vez." Viajava no metro perto de Brooklyn quando vi a nota do jornal. Era o jornal de outro passageiro. A única parte do texto que consegui ler dizia: "Rutherfurd Rusty Trawier, o playboy milionário várias vezes acusado de simpatias nazis, escapou-se ontem para Greenwich com uma bela...". Não que me apetecesse ler o resto. Holly casara-se com ele: ora, ora, quem me dera estar debaixo das rodas de um comboio. Mas era um desejo que me acompanhava mesmo antes de ter visto a notícia. Por uma série de razões. Não estivera decentemente com Holly desde o nosso domingo de bebedeira no bar de Joe Bell. As semanas seguintes tinham-me dado motivos de sobra para também eu sentir angustia. Para começar, tinha sido despedido: por justa causa, e por causa de um divertido delito demasiado complicado para estar aqui a contar. Além disso, a minha folha de serviços na tropa provocava um interesse inquietante, e, tendo ainda há pouco tempo abandonado a disciplina militar de uma cidade de província, desesperava-me a idéia de me ver numa outra forma de vida regrada. Entre a incerteza da minha situação militar e a falta de experiência profissional especializada, via-me aflito para encontrar um novo emprego. Era isso que fazia no metro do Brooklyn, voltava de uma entrevista pouco animadora com o chefe de redação do jornal PM, hoje desaparecido. Tudo isto, a que se acrescentava o calor insuportável do Verão, reduzia-me a um estado de inércia nervosa. Por isso bem me apetecia estar debaixo das rodas de um comboio, e a notícia do jornal só me veio exacerbar tal desejo. Se a Holly era capaz de se casar com aquele "feto grotesco", só me restava então me deixar espezinhar pelo exército de todos os males maiores do mundo. Ou será que, é uma questão que se impõe, a minha indignação tinha algo a ver com o fato de eu próprio estar apaixonado por ela? Um bocadinho. Porque eu estava apaixonado por ela. Tal como em tempos me apaixonara pela velha cozinheira negra da minha mãe e por um carteiro que me deixava segui-lo nas voltas e por uma família inteira chamada McKendrick. Esse tipo de amor também provoca ciúmes.

         Quando cheguei ao meu ponto, comprei o jornal, e, ao ler a parte final daquela frase, descobri que a noiva do Rusty era: "uma bela modelo de revistas das montanhas do Arkansas, Miss Margaret Thatcher Fitzhue Wildwood". Mag! As minhas pernas ficaram tão bambas de alívio que apanhei um táxi até casa.

         Madame Sapphia Spanella interceptou-me no patamar, de olhos esbugalhados e torcendo as mãos.

         - Vá a correr chamar a polícia - pediu ela. - Ela está matando alguém! Ou então alguém está a matá-la!

         Dava ares disso. Como se a Holly tivesse tigres à solta no apartamento. Uma tempestade de vidros partidos, tecidos rasgados e mobília derrubada. Mas não se ouviam vozes discutindo no meio de tanto alarido, o que parecia pouco natural.

         - Vá correndo avisar a polícia do homicídio! - guinchou Madame Spanella, empurrando-me.

         Eu fui a correr, mas pelas escadas acima até à porta de Holly. Ao bater, obtive um resultado, a fúria arrasadora esmoreceu. Parou por completo. Mas, por mais que implorasse para que ela me deixasse entrar, não obtive qualquer resposta, e as minhas tentativas de arrombar a porta culminaram tão simplesmente num ombro ferido. Então ouvi lá em baixo Madame Spanella a mandar um outro recém-chegado buscar a polícia.

         - Cale-se - disseram-lhe. - E saia-me da frente. Era José Ybarra-Jaegar, que nem por sombras parecia um diplomata brasileiro, todo suado e assustado. Disse-me também que me afastasse do seu caminho. E, com a sua própria chave, abriu a porta.

         - Entre, Dr. Goldman - disse ele, fazendo sinal a um

homem que o acompanhava.

         Visto que ninguém me impediu, segui-os para dentro do apartamento, que estava completamente em ruínas. A árvore de Natal fora enfim literalmente desmantelada, com os seus ramos secos estendidos numa balbúrdia de livros rasgados, candeeiros partidos e discos. Até a geladeira fora atacado e o seu conteúdo atirado pela sala: ovos crus deslizavam pela parede e, no meio dos destroços, o gato anônimo de Holly lambia calmamente uma poça de leite.

         No quarto, o cheiro a frascos de perfume partidos intoxicou-me. Pisei os óculos escuros de Holly, que estavam no chão já com as lentes estilhaçadas e as hastes em duas metades.

         Se calhar foi por isso que Holly, um corpo rígido sobre a cama, olhou para José tão cegamente, sem parecer dar conta do médico que, tomando-lhe o pulso, arrulhou:

         - A menina está muito cansada. Muito cansada. Quer dormir, não quer? Durma.

         Holly coçou a testa, deixando uma marca de sangue de um dedo cortado.

         - Dormir - disse ela, choramingando como uma criança exausta e birrenta. - Só com ele seria capaz. Quem me dera abraçá-lo nas noites frias. Vi um lugar no México. Com cavalos, junto ao mar.

         - Com cavalos junto ao mar - repetiu em tom de lengalenga o médico, escolhendo um hipodérmico na sua mala negra.

         José desviou a cara, nauseado com a vista de uma agulha.

         - A doença dela é só desgosto? - perguntou ele, com o seu penoso inglês, atribuindo à questão uma ironia não intencionada. - Ela só está a lamentar-se?

         - Não doeu nada, pois não? - perguntou o médico, muito satisfeito consigo mesmo, afagando-lhe o braço com algodão.

         Ela reanimou-se o suficiente para fixar o médico.

         - Tudo me dói. Onde estão os meus óculos? Mas não precisava deles. Os seus olhos cerravam-se obstinadamente.

         - Ela só tem desgosto, não é? - insistiu José.

         - O senhor importa-se de me deixar a sós com a doente, por favor? - pediu-lhe o médico, num tom bastante brusco.

         José recuou para a sala de estar, onde descarregou o mau gênio na presença bisbilhoteira e venenosa de Madame Spanella.

         - Não me toque que eu chamo a polícia! - ameaçou ela, ao ser escorraçada com impropérios em português.

         Ponderou se devia expulsar-me também, ou pelo menos foi o que presumi pela expressão do seu rosto. Mas, em vez disso, convidou-me para beber um copo. A única garrafa por partir que conseguimos encontrar continha vermute seco.

        - Estou preocupado com o escândalo que isto tudo pode causar - confidenciou-me ele. - Com ela a partir tudo desta maneira. A portar-se que nem uma maluca. Eu não me posso dar ao luxo de um escândalo público! É muito delicado, por causa do meu nome e do meu trabalho.

         Pareceu mais animado ao ouvir-me responder-lhe que não via nenhum motivo para escândalos, a demolição dos bens pessoais era, para todos os efeitos, um assunto privado.

         - É tudo por causa do desgosto - declarou ele firmemente. - Quando chega a tristeza, ela atira primeiro com o copo de que está a beber. A garrafa. Os livros. Um candeeiro. Eu fico com medo e corro a chamar o médico.

         - Mas porquê? - quis eu saber. - Por que razão havia ela de ter um ataque por causa do Rusty? Se eu fosse ela, tinha ido mas era festejar.

         - O Rusty? Ainda tinha o jornal comigo e mostrei-lhe a notícia.

         - Ali, isso - sorriu ele, trocista. - É um grande favor que o Rusty e a Mag nos fazem. Nós rimo-nos muito com isso: como acham que nos partem os corações quando sempre quisemos que eles se fossem embora. Pode crer que nós nos estávamos a rir quando veio a tristeza.

         Os seus olhos procuraram o lixo no chão, apanhou uma

bola de papel amarelo.

         - Foi isto - disse ele. Era um telegrama de Tulip, no Texas: "Recebi notificação jovem Fred morto em ação no estrangeiro stop teu marido e filhos associam-se no desgosto da nossa mútua perda stop seguirá carta amo-te Doutor".

         Holly nunca mais se referiu ao irmão, a não ser uma vez. Além disso, deixou de me chamar Fred. Hibernou todo o junho e julho, passou os meses quentes como um animal de Inverno sem se aperceber da chegada ou da partida da Primavera. O seu cabelo escureceu, engordou. Tornou-se muito descuidada com o que vestia, costumava sair à mercearia só com uma gabardina sem nada por baixo. José mudou-se para o apartamento, substituindo pelo seu o nome de Mag Wildwood na caixa do correio. Ainda assim, Holly passava muito tempo sozinha porque José ficava em Washington três dias por semana. Quando ele estava ausente, ela não recebia ninguém e quase nunca abandonava o apartamento – com exceção das quintas-feiras, quando cumpria a sua visita semanal à prisão de Ossining.

         O que não quer dizer que ela pura e simplesmente tenha perdido o interesse pela vida, longe disso, parecia mais satisfeita, muito mais feliz do que alguma vez a vira. O natural entusiasmo de Holly concentrado na vida caseira resultou em várias aquisições pouco naturais nela, num leilão de Parke-Bernet, arrematou uma tapeçaria de uma caçada ao javali e, do espólio de William Randolph Hearst, um par assustador de poltronas góticas, comprou a Modern Library completa, coleções de música clássica, inúmeras reproduções do Metropolitan Museum, incluindo uma estátua de um gato chinês que o seu próprio gato odiava, eriçando-se diante dela e acabando por quebrá-la, uma varinha mágica e uma batedeira elétrica e uma biblioteca de livros de cozinha. Passava as suas tardes de dona de casa de roda das panelas na estufa da sua minúscula cozinha.

         - O José diz que se come melhor aqui em casa que no

Colony. Quem havia de dizer que eu tinha um tamanho talento natural? Há um mês atrás eu nem sequer conseguia fazer uns ovos mexidos.

         E, a bem da verdade, continuava na mesma. Os pratos simples, um bife, uma salada normal, ultrapassavam-na. Em vez disso, servia a José e, ocasionalmente, a mim sopas outré (licor de tartarugas negras dentro de cascas de anona), achados da nova cozinha (faisão assado recheado com romãs e diospiros) e outras invenções duvidosas (galinha e arroz de açafrão regadas com molho de chocolate: "Um clássico Indiano, meu querido"). O racionamento de açúcar e natas, devido à guerra, limitava-lhe a imaginação em matéria de doces, todavia, uma vez conseguiu fazer uma coisa chamada tapioca de tabaco; é melhor nem descrever.

         Ou sequer descrever os seus esforços para dominar o português, unia provação tão fastidiosa para mim quanto para ela, porque quando a ia visitar havia sempre um álbum de discos Linguafone a rodar na vitrola. Para, além disso, ela agora raramente dizia frases que não começassem por "Depois de nos casarmos... " ou "Quando nos mudarmos para o Rio ... ". Todavia, José nunca lhe falara em casamento. Ela teve de o admitir.

         - Mas afinal de contas, ele sabe que eu estou grávida. Bem, é que estou mesmo, querido. Já passaram seis semanas.

         - Não percebo por que é que isso te surpreende. A mim não me espanta nem um pouquinho. Estou encantada. Quero ter pelo menos nove. Julgo que alguns vão sair um bocado escuros, o José tem pinta de le nègre, já deves ter reparado. O que a mim não me importa nada, o que é que podia ser mais bonito que um pretinho com uns belos e brilhantes olhos verdes? Eu gostava... Por favor, não ria... mas eu gostaria de ter sido virgem quando eu e o José nos conhecemos. Não que eu tenha tido a multidão de amantes que alguns apregoam que tive, e nem sequer censuro os mentirosos por pensarem assim. Sempre me dei ares de moça muito solta. Mas, para falar verdade, estive fazendo as contas no outro dia, e só tive onze amantes. Sem contar com o que aconteceu antes de eu ter treze anos porque, a bem dizer, essa parte não conta.

         - Onze. Isso faz de mim uma puta? Olha para a Mag Wildwood. Ou a Honey Tucker. Ou a Rose Ellen Ward. Elas já fizeram truca-truca tantas vezes que podiam formar uma banda de percussão. É claro que eu não tenho nada contra as putas.A não ser uma coisa, algumas podem ser verdadeiras mas têm todas corações falsos. Quer dizer, não se pode foder o tipo e descontar os cheques dele sem pelo menos tentarmos acreditar que o amamos. Eu cá tentei sempre. Até o Benny Shacklett e todos esses roedores. Eu como que me deixava convencer que a sua canalhice tinha um certo charme. A bem dizer, com a exceção do Doutor, se for contar com o Doutor, o José é o meu primeiro romance não acanalhado. Não é que ele seja o meu ideal de perfeição. É um pouco confuso e preocupa-se com o que as pessoas pensam e toma uma média de cinco banhos por dia, eu acho que os homens devem cheirar um pouquinho a suor. Ele é demasiado aprumado e precavido para ser o meu tipo ideal, vira-se sempre de costas quando se despe e não faz muito barulho a comer e não gosto nada de o ver correndo porque corre de uma maneira um tanto esquisito. Se eu pudesse escolher entre todos os seres vivos, estalar os dedos e dizer: "Ouve lá, anda cá", não escolhia o José. O Nehru enche-me mais as medidas, ou Weridell Willkie. Escolhia a Garbo sem pestanejar. Por que não? Uma pessoa devia poder casar-se com homens ou mulheres ou... Escute, se você me aparecesses um belo dia dizendo que querias atracar com um maricas, eu havia de te respeitar. A sério. O amor não deve ter entraves. Sou completamente a favor. Agora que tenho uma idéia mais ou menos sólida do que se trata. Porque eu amo o José... Deixaria de fumar se ele me pedisse. Ele é bondoso, faz-me rir até me passar a tristeza, só que agora já não tenho assim tantos ataques, a não ser às vezes, e de qualquer modo já não são tão horríveis que precise engolir calmantes ou de me arrastar até ao Tiffany's, levo-lhe o terno à lavanderia, ou recheio uns cogumelos, e sinto-me bem, mesmo bem. Além disso, joguei fora todos os meus horóscopos. Devo ter gastado um dólar em todas as estrelinhas do raio do planetário. É uma chatice mas a verdade é que as coisas boas só nos acontecem se formos bons. Bons? É mais se formos honestos, não uma honestidade de cumprir a lei...

         - Eu era capaz de profanar uma sepultura e de roubar os dois olhos de um morto se achasse que isso me dava gozo por um dia -, mas sejamos honestos. Tudo menos ser covarde, fingido, um bandido emocional, uma puta: preferia ter cancro a um coração falso. O que não tem nada de beato, é uma questão muito prática. O cancro pode matar, mas a alternativa de certeza que mata. Oh, que se lixe, passa-me a guitarra que eu te canto um fado num português impecável.

         Essas últimas semanas, estendendo-se do final do Verão ao começo de mais um Outono, se confundem na minha memória, talvez porque a nossa empatia um com o outro alcançara essa doce profundidade em que duas pessoas comunicam mais pelo silêncio do que por palavras: um silêncio afetuoso substitui as tensões, a tagarelice provocatória que produz os momentos mais dramáticos e exaltados, a um nível superficial, de uma amizade. Muitas vezes, quando ele estava fora desenvolvera uma atitude hostil para com ele, raramente o nomeando -, passávamos tardes inteiras juntos em que não trocávamos mais de cem palavras. De uma vez, percorremos todo o caminho a pé até Chinatown, jantamos chow-mein, compramos umas lanternas de papel e roubamos uma caixa de pauzinhos de incenso e depois largamos a correr até a Ponte do Brooklyn e, na ponte, contemplando os barcos que iam passando entre as escarpas e o horizonte incendiado rumo ao mar, ela disse:

         - Daqui a muitos e muitos anos, hei de regressar num

desses barcos, eu e os meus nove filhinhos brasileiros. Porque eles têm absolutamente de ver isto, estas luzes, o rio. Eu adoro Nova Iorque, embora não seja minha, da maneira que alguma coisa tem de ser, uma árvore ou uma rua ou uma casa, uma coisa qualquer que me pertença por eu lhe pertenço.

         E eu disse:

         - Cala-se, por favor. Porque me sentia desesperadamente abandonado: um barco de reboque numa doca seca, enquanto ela, entusiasta navegadora de rumo seguro, deslizava pelo porto com assobios vibrando e confeti no ar. Por isso esses dias, os últimos dias, varrem se da minha memória, desfocados, outonais, todos iguais as folhas: até um dia muito diferente de qualquer outro da minha vida.

         Por acaso calhou no meu aniversário, 30 de Setembro, um fato que pouca influência tinha sobre mim, a não ser que, na expectativa de alguma lembrança monetária da minha família, me sentia ansioso pela visita matinal do carteiro. Na verdade, desci as escadas para esperar o correio. Não estivesse eu a andar de um lado para o outro no vestíbulo e Holly não me teria convidado para ir andar a cavalo e, por conseguinte não teria tido a oportunidade de me salvar a vida.

         - Anda, venha. - disse ela, quando me encontrou à espera do carteiro. - Vamos levar um par de cavalos a passear ao parque.

         Vestia um anoraque, calças de ganga e tênis; bateu no estômago, completamente liso.

         - Não penses que vou me arriscar a perder o herdeiro. Mas há uma certa égua, a minha querida Mabel Minerva... e eu não posso partir sem me despedir da Mabel Minerva.

         - Despedir-se?

         - No próximo sábado. O José comprou os bilhetes. - Completamente desnorteado, deixei-me conduzir por ela até à rua.

         - Mudamos de avião em Miami. Depois voamos sobre o mar. Voamos sobre os Andes. Táxi!

         Voamos sobre os Andes. Atravessando o Central Park no táxi, parecia-me que também eu voava, que flutuava tristemente sobre escarpas de neve e terreno incerto.

         - Mas você não pode. Então como é que isso pode ser? Sim, como é que isso pode ser? Ora, você não pode fugir dessa maneira, deixando todos para trás.

         - Não me parece que alguém vá sentir a minha falta. Eu não tenho amigos.

         - Eu vou sentir a sua falta. E o Joe Bell também. E, oh, tanta gente. O Sally, por exemplo. Coitado de Mr. Tomato.

         - Eu gostava muito do velho Sally - disse ela, suspirando. - Sabe que há um mês que não vou vê-lo? Quando lhe disse que ia embora, ele foi muito querido. Para dizer a verdade - comentou ela, franzindo a testa-, parecia encantado por eu ir para o estrangeiro. Disse que era melhor assim. Porque mais cedo ou mais tarde podia arranjar problemas. Se eles descobrissem que eu não era nada sobrinha dele. O advogado gordo, o O'Shaughnessy, mandou-me quinhentos dólares. Em dinheiro. Um presente de casamento do Sally. Parecia-me ser antipático.

         - Pois, eu também te vou dar um presente. Quando... e se... o casamento se realizar.

         Ela riu-se.

         - Ele vai casar-se comigo, sim senhor. Na igreja. Com a família dele assistindo. É por isso que vamos esperar até chegarmos ao Rio.

         - Ele sabe que você já é casada?

         - O que é que se passa você? Está querendo estragar o dia? Está um belo dia... deixa essas coisas em paz.

         - Mas é perfeitamente possível...

         - Não é possível. Já lhe disse que isso não foi legal. Não pode ter sido. - Coçou o nariz e olhou-me de esguelha.

         - Escute, querido, se contar isso a alguém, penduro pelos dedos dos pés e lhe estendo como a um porco.

         As cavalariças, que julgo foram substituídas por estúdios de televisão, ficavam na Rua Sessenta e Seis, da parte ocidental. Holly escolheu-me uma velha égua marreca às pintinhas brancas e pretas.

         - Não se preocupe, é mais segura que um berço.

         O que, no meu caso, era uma garantia necessária, pois a minha experiência eqüestre limitava-se a montar por dez segundos os pôneis da Feira Popular quando era pequeno. Holly ajudou-me a subir para a sela, e depois montou a sua própria égua, um animal prateado que tomou a dianteira ao trotarmos pelo trânsito do lado oeste do Central Park e enveredarmos por um trilho para cavalos atapetado de folhas que bailavam com a brisa.

         - Está vendo? - gritou ela.- Fantástico!

         E de repente era. De repente, olhando os cambiantes do cabelo de Holly brilhando a luz alaranjada das folhas, amei-a o suficiente para me esquecer de mim, dos meus desesperos de autopiedade, e sentir-me feliz por lhe ir acontecer uma coisa que ela julgava boa. Os cavalos trotavam muito de mansinho, ondas de vento bafejavam-nos, afogueavam-nos as faces, nós mergulhávamos dentro e fora de lagos de sol e sombra, e a alegria de estar vivo sacudiu-me como uma descarga de nitrogênio. Isso foi num minuto e no minuto seguinte surgiu a farsa de escuras roupagens.

         Pois subitamente, como selvagens emboscados na selva, um bando de rapazes negros saltou-nos ao caminho detrás de uns arbustos. Berrando e praguejando, atiraram com pedras e fustigaram com chicotes os flancos dos cavalos.

O meu, a égua preta e branca, levantou-se nas patas traseiras, relinchou, balouçou-se qual artista na corda bamba, e depois disparou por ali abaixo, fazendo-me saltar os pés dos estribos, mal seguro na garupa. Os cascos do animal chispavam no cascalho. O céu oscilava tremendamente. As árvores, um lago com veleiros de crianças, as estátuas, passavam a uma velocidade louca. As amas acorriam a salvar os seus encargos da nossa calamitosa aproximação, homens, vadios e outros, gritavam: "Puxa as rédeas!" e "Força rapaz, força!" e "Salta!". Só mais tarde recordei tais vozes, naquela altura apenas tinha a noção da Holly, do soar de filme de cowboys que ela fazia a correr atrás de mim, sem nunca me conseguir apanhar, e sempre a encorajar-me. Para diante, pelo parque até à Quinta Avenida, galopando contra o trafego vespertino, táxis e automóveis que chiavam na travagem. Passamos o paço ducal, o Museu dos Horrores, o Pierre e a Plaza. Mas Holly ganhava terreno e, além disso, um polícia montado juntara-se à corrida. Flanqueando a minha égua assustada, um de cada lado, os seus cavalos produziram um efeito de bloqueio que a fez parar bruscamente. Foi então que caí de cima dela. Caí, levantei-me e olhei em volta, sem ter muito bem a certeza de onde estava. Uma multidão aproximou-se. O polícia, um pouco ofegante, começou a escrever no seu caderninho: foi de uma extrema simpatia, sorriu e disse que ia providenciar para que os nossos cavalos fossem devolvidos ao estábulo.

         A Holly meteu-nos num táxi.

         - Querido, como se sente?

         - Bem.

         - Mas não tem pulsações nenhumas - disse ela, sentindo-me o pulso.

         - Então devo estar morto.

         - Não, idiota. Isto é um caso sério. Olha para mim.

         O problema é que eu não a conseguia ver, ou antes, via muitas Hollys, um trio de rostos suados tão pálidos de preocupação que fiquei comovido e envergonhado.

         - Sério. Não tenho nada. A não ser vergonha.

         - Por favor, tem certeza? Diz-me a verdade. Podia ter morrido.

         - Mas não morri. E obrigado. Por ter-me salvo a vida. É maravilhosa. Única. Eu te Amo.

         - É um idiota chapado. Ela beijou-me na face, depois havia quatro iguais a ela, e eu desmaiei inconsciente.

         Nessa tarde, a cara da Holly aparecia na primeira página da edição tardia do journal-Amerícan e das edições antecipadas do Daily News e do Daily Mirror. A publicidade não tinha nada a ver com cavalos fugidos. Era um assunto completamente diferente, como revelavam os títulos: "Playgirl presa em escândalo de narcóticos" (Journal-Amerícan), "Detenção da atriz contrabandista" (Daily News), "Círculo da droga a nu, jovem acompanhante presa" (Daily Mirror).

         O News foi o que publicou a fotografia mais impressionante de todas: Holly, entrando no posto policial da polícia, ladeada por dois agentes musculados, um homem e uma mulher. Neste contexto sinistro até as suas roupas (estava ainda em traje de equitação, (o anoraque e as calças de ganga) sugeriam uma arruaceira de uma gang de assaltantes de centros comerciais, uma impressão que os óculos escuros, o penteado em desalinho e um cigarro Picayurie pendendo dos lábios inchados não desmentiam. Na legenda lia-se: "Holly Golíghtly, vinte e um anos, a bela estrela de cinema e celebridade da vida mundana, que o Ministério Público alega ser a figura-chave de um negócio internacional de contrabando de droga relacionado com o contrabandista Salvatore Sally Tomato. Os agentes Patrick Connor e Sheilah Fezzonetti acompanham-na ao posto policial da Rua Sessenta e Sete. Desenvolvimento na pág. 3". O desenvolvimento, com uma fotografia de um homem identificado como Oliver Padre O'Shaughnessy escondendo o rosto sob um chapéu de feltro -, estendia-se por três colunas inteiras. Eram estes os parágrafos pertinentes, um pouco resumidos: "Os freqüentadores da vida mundana ficaram atônitos com a detenção da bela Holly Golightly, estrela de Hollywood, de vinte e um anos, uma jovem muito badalada em toda a Nova Iorque. À mesma hora, 14 horas, a polícia prendeu Oliver O'Shaughnessy, de cinqüenta e dois anos, residente no Hotel Seabord, Rua Quarenta e Nove Oeste, ao sair do Paraíso dos Hambúrgueres na Madison Avenue. Ambos são acusados pelo delegado do Ministério Público, Frank L. Donovan, de serem peças importantes de uma cadeia internacional de tráfico de droga, dominada pelo famoso líder da Máfia Salvatore Sally Tomato, atualmente na prisão de Ossining a cumprir uma pena de cinco anos por suborno político... O'Shaughnessy, um padre excomungado indistintamente conhecido nos círculos criminais como Padre ou O Prior tem um registro de detenções que se inicia em 1934, quando cumpriu dois anos por gerenciar um hospital psiquiátrico ilegal em Rhode Island, chamado O Mosteiro. Miss Golightly, sem qualquer registro criminal anterior, foi presa no seu apartamento de luxo num bairro fino da parte oriental. Embora o gabinete do Ministério Público não se tenha pronunciado oficialmente, fontes responsáveis atestam que a bela atriz loura, até há pouco tempo acompanhante incansável do multimilionário Rutherfurd Trawier, serviu de elo de ligação entre o detido Tomato e o seu generalíssimo O'Shaughriessy. Passando por parente de Tomato, Miss Golightly ia todas as semanas à visita da prisão, sendo instruída por este com mensagens codificadas que transmitia a O'Shaughnessy. Com tal contato, Tomato, que se julga ter nascido em Cefalu, na Sicília, em 1874, mantinha o controlo supremo de uma rede de narcóticos com filiais no México, em Cuba, Sicília, Tanger, Teerão e Dacar. Mas o gabinete do Ministério Público recusou-se a fornecer qualquer pormenor a tais acusações, não as confirmando sequer... Alertados por fontes fidedignas, vários jornalistas compareceram ao posto policial da Rua Sessenta e Sete quando o par acusado chegou para averiguações. O'Shaughnessy, um homem ruivo e forte, recusou-se a comentários e agrediu um fotografo com um pontapé nos testículos. Mas Miss Golightly, uma frágil beldade, apesar da aparência de uma Maria-rapaz de calças e anoraque, não se mostrou muito preocupada. "Não me venha perguntar o que droga se passa aqui", disse ela aos repórteres, Darce queje ne saíspas, mes chères. Sim, fui visitar o Saily Tomato. Costumava ir vê-lo todas as semanas. O que é que isso tem de mal? Ele acredita em Deus, e eu também". E em baixo o subtítulo "Assume toxicodependência: Miss Golightly sorriu quando um jornalista lhe perguntou se ela própria consome narcóticos. "Experimentei a marijuana. Não faz tanto mal como o brandy. E é mais barata. Infelizmente prefiro brandy. Não, Mr. Tomato nunca me falou de droga. Dá-me raiva à maneira como estes bandidos o perseguem. Ele é uma pessoa religiosa e sensível. Um velhinho muito querido".

         Este relato comete um erro particularmente grosseiro: ela não foi presa no seu "apartamento de luxo". Foi no meu próprio banheiro, estava eu a embeber as minhas dores eqüestres numa banheira de água escaldante traçada com sais minerais, Holly, uma enfermeira dedicada, sentava-se à beira da banheira, preparando-se para me esfregar com Hirudoid e levar-me para a cama. Ouviu-se uma pancada na porta da frente. Como estava destrancada, Holly gritou: "Entre". E entrou

Madame Sapphia Spanella, escoltada por um par de polícias à paisana, um deles uma mulher com grossas tranças louras atadas à cabeça.

         - Aqui está ela: a mulher procurada! - berrou Madame Spanella, invadindo a casa de banho e apontando um dedo, primeiro para Holly, e depois para a minha nudez. -Vejam só a puta que ela é.

         O policial parecia envergonhado... por Madame Spanella e pela situação, mas um brusco prazer assomou às faces da sua companheira: assentou uma mão no ombro da Holly e, numa espantosa voz de criança, disse:

         - Saia daí, amiga. Vamos dar uma volta. Ao que Holly respondeu calmamente:

         - Tire essas mãos de camponesa de cima de mim. Sua fufa velha e babada.

         O que bastante enfureceu a senhora, pregou uma valente bofetada em Holly. Com tanta força, que a cabeça lhe rodou no pescoço e a bisnaga de Hirudóid lhe caiu da mão, esborrachando-se no chão. Saí, saltando da banheira para me juntar à confusão, a pisei, e tudo o que fiz foi machucar ambos os dedões. Nu e deixando no soalho um rasto de pegadas de sangue, segui a ação até ao patamar.

         - Não te esqueças de dar comida para o gato, por favor; Conseguiu Holly dizer-me ao ser empurrada pelas escadas abaixo pelos agentes da policia.

         É claro que eu julguei que Madame Spanella seria a culpada: já várias vezes se queixara de Holly às autoridades. Não me ocorreu que o assunto pudesse ter tamanhas proporções, até ao fim da tarde, quando Joe Bell me mostrou os jornais proliferantes. Estava muito exaltado para descortinar as coisas claramente, andava que nem um bêbedo às voltas pela minha casa, batendo com as mãos, enquanto eu lia os relatos.

         - Acha que sim? Que ela estava envolvida nesse negócio sórdido?

         - Bem, sim. Enfiou um Tunis na boca e, fulminando-me com o olhar, mastigou-o como se me esmagasse os ossos.

         - É mesmo um porco. E dizia que era amigo dela. Que sacana que me saiu!

         - Espera aí. Eu não disse que ela estava envolvida com conhecimento de causa. Não sabia de nada. Mas foi o que ela fez, transmitir mensagens e essas coisas...

         - Está levando isto com muita calma, não? Santo Deus, ela pode apanhar dez anos de cadeia ou mais.

         Tirou-me os jornais da frente.

         -  Você conhece os amigos dela.  A aqueles tipos ricos. Vamos até ao bar fazer uns telefonemas. A nossa menina vai precisar de uns advogados melhorzinhos do que eu posso pagar.

         Estava muito dorido e fraco para conseguir me vestir, Joe Bell teve de me ajudar. Lá no bar, empurrou-me para a cabine telefônica com um martiní triplo e um copo de brandy cheio de moedas. Mas não me ocorria quem havia de contatar. José estava em Washington e não fazia idéia de como encontrá-lo. Rusty Trawler? Esse sacana é que não! Mas que outros amigos dela eu conhecia? Se calhar ela tinha razão quando me dissera que na verdade não tinha amigos nenhuns.

         Pedi uma chamada para Crestview 5-6958 em Beverly Hills, o número que as informações de longa distância me deram para a casa de O. J. Berman. A pessoa que me atendeu disse que Mr. Berman estava numa massagem e não podia ser incomodado: "Lamento, tente mais tarde". Joe Bell ficou furioso e disse-me que eu devia ter dito que era um caso de vida ou morte, e insistiu para que eu tentasse o Rusty. Primeiro, falei com o mordomo de Mr. Trawier: Mr. e Mrs. Trawier anunciou ele, estavam a jantar, desejam nós deixar algum recado? Joe Bell berrou para o auscultador:

         - Isto é urgente, senhor. É um caso de vida ou morte.

         O resultado foi que acabei a falar com a ex-Miss Mag Wildwood... ou, para falar verdade, a ouvi-la.

         - Os senhores são da imprensa? - perguntou ela. - O meu marido e eu não hesitaremos em processar quem quer que tente associar os nossos nomes ao dessa moça viciosa e depravada. Eu sempre soube que ela era uma desmiolada sem moral, uma cadela com cio. E o meu marido concorda a cem por cento. Não hesitaremos em processar quem quer que...

         Ao desligar o telefone, lembrei-me do velho Dr., em Tulip, no Texas, mas não, com certeza que Holly me mataria se eu lhe telefonasse.

         Liguei outra vez para a Califórnia, a linha estava impedida, continuou impedida e, quando consegui contatar O. J. Berman, já tinha emborcado tantos martinis que foi ele a dizer por que é que eu lhe estava a telefonar.

         - É por causa da menina, não é? Eu já sei. Falei com o Iggy Fitelstein. Iggy é o melhor advogado de Nova Iorque. Eu disse-lhe: "Iggy, trata do assunto, manda-me a conta, mas não mencione o meu nome, Ta vendo". Bem, eu tenho essa obrigação para com da menina. Não que lhe deva coisíssima alguma, bem vistas as coisas. É maluca. Uma impostora. Mas uma impostora de verdade sabe? Seja como for, eles só a largam por uma fiança de dez mil. Não se preocupe, o Iggy vai libertá-la ainda esta noite... Não me espantava nada que ela já esteja em casa.

         Mas não estava, nem na manhã seguinte quando desci para dar comida ao gato. Não tendo a chave do apartamento, desci pelas escadas de incêndio e entrei por uma janela. O gato estava no quarto, mas não sozinho, havia também um homem, debruçado numa mala. Trocamos olhares inquietos, cada um pensando que o outro era um ladrão, enquanto eu saltava pela janela. O homem tinha um rosto aprazível, cabelo lacado, parecia-se com o José, além disso, a mala que ele estava fazendo continha o guarda-roupa que o José guardava na casa da Holly, os sapatos e os ternos que ela tratava tão bem, que estava sempre levando ao sapateiro e à lavanderia. E por isso disse, seguro do que perguntava:

         - Foi o Mr. Ybarra-Jaegar quem o mandou aqui?

         - Eu sou primo dele - respondeu-me, com um sorriso desconfiado e unia pronúncia cerrada.

         - Onde é que está o José? Ele repetiu a pergunta como se a traduzisse para outra língua.

         - Ali, onde é que ele está! Ele está à espera - disse ele e, desinteressando-se da minha pessoa, voltou aos seus deveres de lacaio.

         Com que então o diplomata planeava evaporar-se. Bem, não me surpreendia nem lamentava nada. Mesmo assim, que quebra-corações me saíra.

         - Ele devia ser espancado.

         O primo riu-se furtivamente. Certeza que percebeu o que eu disse. Fechou a mala e estendeu uma carta.

         - O meu primo, ele pediu-me para deixar isto para a menina dele. Não se importa?

         No envelope estava escrito: "Para Miss H. Golightly Em mãos".

         Sentei-me na cama de Holly e abracei-me ao gato e senti tanta pena dela quanto ela sentiria por si própria.

         - Não, não me importo.

         E no fundo importava-me muito. Mas não tive coragem para destruir a carta ou força de vontade para a manter no bolso quando Holly me pôs à prova, perguntando se por acaso eu tinha algumas notícias do José. Foi duas manhãs mais tarde, sentava-me eu à sua cabeceira num quarto que exalava odor de iodo e a comadres, um quarto de hospital. Ela estava ali desde a noite da sua detenção.

         - Bem, querido - cumprimentou-me ela, enquanto eu me aproximava dela na ponta dos pés, com um maço de cigarros Picayune e um ramo de violetas de Outubro na mão. Perdi o herdeiro.

         Parecia ter menos de doze anos, o seu pálido cabelo de baunilha penteado para trás, os seus olhos, por uma vez sem óculos escuros, claros como água da chuva. Não se podia calcular como estivera doente.

         Mas era verdade.

         - Meu Deus, ia indo desta para melhor. Fora de brincadeira, a gorda quase que me apanhou. Estava preparando das boas. Acho que não podia ter-lhe falado da gorda antes, porque eu própria só a conheci quando o meu irmão morreu. Pus-me logo a matutar para onde tinha ele ido, o que significava aquilo, a morte do Fred, e então a vi ali no quarto comigo a embalar o Fred nos seus braços, uma puta gorda, vermelha e má como as cobras embalando-se numa cadeira de balanço com o Fred ao colo e rindo das bandeiras despregadas. Que tremenda ironia! Mas é isso o que nos espera, amigo, a farsante uma hora vai nos pegar. Percebe  agora por que é que eu enlouqueci e desatei a quebrar tudo?

         Com exceção do advogado contratado por O. J. Berman, eu era a única visita que ela permitira. Ela partilhava o quarto com outras doentes, um trio de mulheres que pareciam trigêmeas e que me examinavam com todo o interesse, embora sem hostilidade, especulavam num surdo italiano. Holly explicou-me:

         - Elas pensam que você é a minha desgraça, querido. O tipo que me fez mal.

         Sugerindo-lhe eu que ela pusesse os pontos nos "is", replicou:

         - Não posso. Elas não falam inglês. De qualquer modo, não me passaria pela cabeça estragar-lhes a festa.

         Foi então que me perguntou sobre o José. Mal viu a carta, piscou os olhos e dobrou os lábios num sorriso duro e tênue que lhe deu um ar incomensuravelmente mais velho.

         - Querido - pediu-me ela -, é capaz de abrir aquela gaveta e me dar a minha mala? Uma moça não se presta a ler este tipo de coisas sem o seu baton.

         Orientada por um espelho de maquiagem, escamoteou com pintura e pó-de-arroz todos os sinais de doze anos no seu rosto. Contornou os lábios, realçou a cor das faces. Pincelou as pestanas, azulou as pálpebras, salpicou o pescoço com 4711, pôs brincos nas orelhas e armou-se com os óculos escuros, assim protegida, e depois de uma avaliação pouco complacente do estado miserável das unhas, rasgou o envelope e percorreu a carta com os olhos, enquanto o seu tênue sorriso de pedra diminuía e se retesava. Acabou por pedir um Picayune. Puxou uma fumaça. -  Tem um gosto ordinário. Mas divino - disse ela, atirando-me a carta. - Isto é capaz de te dar jeito... se alguma vez escreveu um romance canalha. Não se acanhes, lê-a em voz alta. Eu própria tenho interesse em ouvir-te.

         Dispus-me a lê-la, começava assim:

         - "Minha querida menina ... "

         Holly interrompeu-me logo. Queria saber o que pensava eu da caligrafia. Eu não pensava nada, uma escrita regular, bastante legível, bastante certa.

         - É o retrato chapado dele. Abotoado e de diarréia, declarou ela. - Continua.

         - "Minha querida menina, amei-te sabendo que não era igual às outras. Mas pode imaginar qual não foi o meu desespero quando descobri de maneira tão pública e brutal como é diferente do tipo de mulher que um homem da minha moral e profissão pensaria em desposar. Lamento sinceramente a desgraça do teu estado atual, e não tenho forças para juntar a minha ao castigo a que se encontra condenada. Por isso espero que também você tenha força para não me condenar. Tenho de proteger a minha família e o meu nome, e sou um covarde no que respeita a essas instituições. Esquece-me, bela menina. Já aqui não estou. Fui para casa. Mas que Deus lhe acompanhe sempre, a você e ao seu filho. Que Deus não seja igual ao... José."

         - Bem?

         - De certo modo parece muito honesto. E até comovente.

         - Comovente? Ele é um covarde de primeira categoria!

         - Mas, veja bem, ele diz que é covarde. E tem de compreender que, do seu ponto de vista...

         Todavia, Holly não queria admitir que compreendia, mas o seu rosto, apesar do disfarce cosmético, traía-a.

         - Pois muito bem, ele não é um canalha sem causa. Não é um canalha do tipo King-Kong, como o Rusty ou o Benny Shacklett. Mas, bolas, que grande porra... - disse ela, enfiando um punho na boca como um bebê no meio de uma choradeira. - Eu amava-o. O grande sacana.

         O trio italiano supôs que se tratava de uma discussão de amantes e, atribuindo a culpa dos gemidos de Holly a quem julgavam de direito, estalaram as línguas acusando-me. Senti-me lisonjeado, orgulhoso por alguém pensar que Holly gostava de mim. Ela acalmou-se quando eu lhe ofereci outro cigarro. Engoliu o fumo e disse:

         - Deus te abençoe, seu trapalhão. Deus te abençoe por montares tão mal. Se eu não tivesse me armado em Calamity Jane, havia de estar para aqui à espera de me sustentar num lar para mães solteiras. Demasiado esforço, foi o que foi. Mas eu pus todos os palavrões em polvorosa como La merde quando lhes disse que tinha sido por causa do bofetão de Miss Dykeroo. Sim senhor, posso processá-los por várias razões, incluindo detenção injustificada.

         Até então evitamos falar das suas sinistras aflições, e tal comentário trocista deixou-me boquiaberto de tão patético, revelando abertamente que ela era incapaz de reconhecer a dura realidade que a confrontava.

         - Vamos lá, Holly - disse eu, tentando encorajar-me ao mesmo tempo. - Vamos ver, Holly, você não pode olhar para isto tão despreocupadamente. Temos de fazer planos.

         - É muito recente para vir-me com sermões. Muito cedo. A propósito, o que é que você tem a ver com isso?

         - Nada. Só que sou seu amigo e estou preocupado. Quero saber o que é que você pensa em fazer.

         Ela coçou o nariz e concentrou-se no teto.

         - Hoje é quarta-feira, não é? Por isso acho que vou dormir até sábado, para ter um bom repouso. Sábado de manhã, escapo-me até o banco. Depois passo pelo meu apartamento para levar uma ou duas roupas de dormir e a minha bolsa de utensílios pessoais. A seguir, apresento-me no aeroporto de Idiewild onde, como você sabe muito bem, tenho uma reserva perfeitamente válida num avião em perfeitas condições. E como você é tão meu amigo, te deixo vir comigo para se despedir. Para de abanar a cabeça, por favor.

         - Holly, Holly. Você não pode fazer uma coisa dessas.

         - Et pour quo i pas? Eu não vou a correr atrás do José, se é isso que você está pensando. Segundo o meu recenseamento, ele passou a ser um cidadão do Limbo. É só que não vejo por que razão hei de desperdiçar um bilhete perfeitamente válido. Já pago e tudo! Além disso, nunca fui ao Brasil.

         - Mas que tipo de comprimidos é que eles estão te dando por aqui? Não percebe que há uma ação criminal contra você? Se te apanharem tentando fugir em liberdade condicional, jogam fora a chave. Mesmo que se safe, nunca mais pode voltar para casa.

         - Ora, tanto pior. De qualquer modo, a nossa casa é onde nos sentimos em casa. E eu ainda estou à procura.

         - Não, Holly, isso é uma estupidez. Você é inocente. Tem de se defender.

         - Explicações, explicações, explicações - disse ela, soltando a fumaça na minha cara. Todavia, estava apreensiva. Os seus olhos dilatavam-se com tristes perspectivas, tal como os meus: celas de ferro, corredores de aço com portas que se fechavam gradualmente.

         - Oh, que se dane - disse ela, esmagando o cigarro. Tenho boas chances de não ser apanhada. Desde que você mantenha a sua boca fechada. Escute, não me despreze, querido.

         Pousou a mão na minha e apertou-a com uma repentina sinceridade.

         - Eu não tenho outra escolha. Já discuti isto com o advogado, é claro que não lhe disse nada sobre o Rio senão ele próprio havia de informar os Policiais, para não perder os honorários, isto para não falar dos níqueis que o O. J. deu de caução. Que Deus o abençoe, mas uma vez na Costa eu ajudei-o a ganhar mais de dez mil numa única partida de pôquer, ficamos quites. Não, a chatice é esta, tudo o que os policiais querem de mim são uns quantos apalpões de graça e os meus serviços como testemunha do Ministério Público contra o Sally. Ninguém tem qualquer intenção de me acusar, não podem provar nada. E escute, eu posso não valer um tostão, mas não vou testemunhar contra um amigo meu. Nem que eles provem que ele drogou as freiras da Misericórdia. Eu julgo as

pessoas pela maneira como elas me tratam, e o velho Sally, está bem que ele não foi completamente franco comigo, digamos que ele se aproveitou um bocado, mas, seja como for, o Sally é um moço muito afável, e eu antes preferia que a gorda me apanhasse a ajudar os meninos da lei a encostá-lo contra a parede.

         Inclinando o espelho de maquiagem sobre o rosto, e retocando o baton de um cor-de-rosa bizarro, acrescentou:

         - E, para ser sincera, não é só isso. Os reflexos dos holofotes estragam a cotação de uma moça. Mesmo que os jurados me deixassem em paz, o meu futuro nesta vizinhança tem os dias contados, haviam de me atirar pedras desde o Lá Rue ao Peronás Bar e ao Grill. Pode crer, seria tão bem recebida como o Mr. Frank E. Campbell. E se você ganhasse a vida neste ramo específico, meu caro, perceberia muito bem o tipo de falência que me espera. Ora, ora, não me agrada nada a hipótese de descer a ponto de andar roçando a barriga por Roseland com um bando de suburbanos, enquanto a elegante Madame Trawier se bamboleia pelo Tiffany's. Era de mais para mim. Mil vezes a gorda.

         Uma enfermeira que se aproximara sorrateiramente avisou-me de que a hora de visita estava acabando. A Holly começou a reclamar, mas as suas queixas foram violentamente substituídas por um termômetro que a enfermeira lhe enfiou na boca. Mas enquanto eu me despedia, ela desentupiu-se para me dizer:

         - Faz-me um favor, querido. Telefona ao Times, ou ao

que achar melhor, e arranja-me uma lista dos cinqüenta homens mais ricos no Brasil. Não estou brincando. Os cinquenta mais ricos, de qualquer raça, cor ou feitio. E faz-me outro favor... procura no meu apartamento aquela medalha que você me deu, de São Cristóvão. Vou precisar dela para a viagem.

         Sexta-feira à noite o firmamento era um toldo vermelho, trovejava, e, no sábado, o dia da partida, a cidade afundava-se sob uma tempestade de todos os tempos. Imaginava-se tubarões a nadar pelo céu, embora fosse pouco provável que um avião o pudesse penetrar.

         Mas Holly, ignorando a minha feliz convicção de que o seu vôo não ia partir, continuou os seus preparativos... Encarregando-me, a bem da verdade, das principais tarefas. Ela decidira que não seria sensato aproximar-se da casa de arenito. No que tinha muita razão, estava sendo vigiada, fosse pela polícia ou pelos repórteres ou por outras partes interessadas, não dava para perceber... Era apenas um homem, às vezes mais, a passear pelo terraço. Assim, Holly saíra do hospital para o banco e seguira diretamente para o bar do Joe Bell.

         - Ela acha que não a seguiram - disse-me Joe Bell, quando me apareceu em casa com o recado da Holly: - Disse-me para lhe pedir para ir falar com ela o mais depressa possível, no máximo, meia hora, com as jóias dela, o violão, escovas de dente e coisas assim. E uma garrafa de um brandy de cem anos que ela diz que há de encontrar escondida no fundo do cesto da roupa suja. Ah, sim, e o gato. Ela quer o gato. Mas, o diabo que me carregue - acrescentou ele -, não sei se devo ajudá-la ou não. Nós devíamos protegê-la de si mesma. Eu sinto que devia denunciá-la à polícia. Se calhar, se eu voltar e lhe fizer uns cocktaíls, sou bem capaz de a embebedar até ela desistir da idéia.

         Tropeçando, escorregando de cima abaixo pelas escadas de incêndio entre o apartamento da Holly e o meu, fustigado pelo vento, enregelado e molhado até aos ossos, e também arranhado até aos ossos, pois o gato não viu com bons olhos a ação de despejo, particularmente, com um tempo tão horrível, consegui um serviço rápido e de primeira categoria a amontoar os pertences dela. Até encontrei a medalha de São Cristóvão. Amontoei tudo no soalho da minha sala, uma bela pirâmide de sutiãs e sapatos de dança e coisas bonitas que arrumei na mala de Holly. Sobraram uma porção de coisas que tive de acomodar em sacos de papel da mercearia. Não fazia idéia de como ia levar o gato, até que me ocorreu enfiá-lo dentro de uma fronha.

         Por um motivo que não vem ao caso, uma vez percorri a pé cerca de setecentos quilômetros de Nova Orleans a Nancy's Landing, no Mississipi. Foi um agradável passeio comparado com a viagem até ao bar de Joe Bell. O vilão cheio água de chuva, a chuva molhando os sacos de papel, os sacos a romperem-se e o perfume entornado na calçada, pérolas que rebolavam para as sarjetas, enquanto o vento me empurrava e o gato arranhava, o gato guinchava. Mas o pior é que eu estava cheio de medo, um covarde da mesma laia do José, aquelas ruas tempestuosas pareciam abarrotar de vultos invisíveis, prontos a agarrarem-me e mandarem-me para a prisão por ajudar uma fora-da-lei.

         A fora-da-lei comentou:

         - Está atrasado, trapalhão. Trouxe o brandy? - E o gato, liberto, saltou da fronha e empoleirou-se num ombro dela, com a cauda a abanar como uma batuta a orquestrar uma rapsódia. Também a Holly parecia possuída de melodia, uma alegre marcha de bon Voyage. Desarrolhando o brandy, disse:

         - Isto fazia parte do meu enxoval. A idéia era beber um gole em todos os aniversários de casamento. Graças a Deus que nunca comprei o resto do enxoval. Mr. Bell, três copos.

         - Só precisa de dois - disse-lhe ele. - Eu não bebo à sua loucura.

         Quanto mais ela o espicaçava ("Ora, Mr. Bell, a senhora não foge todos os dias. Não lhe vai fazer um brinde?"), mais obstinado ele se mostrava.

         - Eu não quero ter nada a ver com isso. Se quiser ir para o inferno, pois que vá sozinha, que eu não lhe ajudo mais.

         Uma declaração imprecisa, pois segundos depois de a proferir, uma limusine com motorista encostou-se ao meio fio defronte ao bar, Holly, a primeira a reparar, pousou o brandy, e arqueou as sobrancelhas como se esperasse ver o próprio – o gado do Ministério Público entrando pela porta. Foi também o que me ocorreu. E quando vi como Joe Bell corava, não me coibi de pensar: "Meu Deus, ele chamou mesmo a polícia". Mas então, com as orelhas vermelhíssimas, ele anunciou:

         - Não é nada. É um Cadillac Carey que eu aluguei para te levar ao aeroporto.

         Voltou as costas para ajeitar um dos seus arranjos florais.

         - Oh, querido Mr. Bell, que amável da sua parte. Olhe para mim - disse Holly. Mas ele não se atrevia. Arrancou as flores do vaso e atirou-as, falharam o alvo, espalhando-se pelo chão.

         - Adeus - disse ele e, como que prestes a vomitar, precipitou-se para o banheiro masculino. Ouvimos trancando a fechadura da porta.

         O motorista do Carey era um espécime mundano que aceitou a nossa bagagem descuidada com muito boas maneiras, permanecendo de cara fechada enquanto a limusine subia a cidade debaixo de uma chuva mais branda. Holly despiu as roupas de equitação que ainda não tivera oportunidade de substituir e enfiou-se a custo num vestido justo de cor preta. Não trocamos palavras, qualquer conversa daria motivo a uma discussão, e, além disso, Holly parecia muito preocupada para conversar. Cantarolava em voz baixa, engolia brandy, debruçava-se constantemente para espreitar pelos vidros como se procurasse uma casa, ou, julguei eu, fixasse na memória uma cena que desejava recordar. Mas não era nada disso.

         - Pare aqui - pediu ela ao motorista, e estacionamos no meio fio de uma rua no Harlem Espanhol. Um bairro atabalhoado, garrido e truculento, guarnecido de cartazes de estrelas de cinema e Nossas Senhoras. O lixo nas sarjetas, cascas de frutas e jornais enxovalhados, voava ao vento, pois o vento ainda batia com força, embora já não chovesse e surgissem no céu manchas de azul.

         Holly saiu do carro com o gato ao colo. Embalando-o, coçou-lhe a cabeça e perguntou:

         - O que é que achas? Parece-me ser o lugar ideal para um tipo como você. Caixotes de lixo. Ratazanas às dúzias. Muitos gatos vadios para te fazerem companhia. Por isso, fuja. - disse ela, deixando-o cair, e, quando ele não se mexeu, erguendo ao invés o seu focinho de bandido que a perscrutava com olhos amarelos de pirata, ela bateu com o pé:

Eu disse para se por a mexer!

         O gato roçou lhe na perna. Eu te disse para desaparecer! - gritou ela, precipitando-se de novo para dentro do carro, batendo com a porta, e ordenando ao motorista: - Siga. Siga.

         Eu estava de boca aberta.

         - Pois olha que você é mesmo uma cobra. Andamos um quarteirão até ela responder:

         - Já te tinha dito. Nós apenas nos encontramos um dia à beira-rio, foi tudo. Somos ambos independentes. Nunca prometemos nada um ao outro. Nunca... - disse ela, e a sua voz esmoreceu, uma contração, uma palidez de inválido assomou-lhe ao rosto. O automóvel parara num semáforo. Então ela abriu a porta e largou a correr pela rua abaixo, e eu corri atrás dela.

         Mas o gato não estava na esquina onde ela o deixara. Não havia ninguém, não havia nada na rua a não ser um bêbedo urinando e duas freiras negras pastoreando um rebanho de crianças que cantavam a plenos pulmões. Outras crianças apareceram às portas e mulheres debruçaram-se nos parapeitos das janelas para ver Holly correndo acima e abaixo pelo quarteirão, para trás e para frente, com a mesma canção:

         - Gato. Onde é que está? Venha cá, gato. Continuou até um rapaz com um ar trigueiro de vadio se aproximar dela com um velho gato maltês agarrado pelo pescoço.

         - Quer um belo gatinho, senhora? Dê-me um dólar. A limusine nos seguira. Holly deixou-se guiar por mim até ela.         À porta, hesitou, olhou por cima de mim, por cima do rapaz, ainda a oferecer o gato, e estremeceu, teve de agarrar-se no meu braço para se manter de pé.

         - Oh, Santo Deus. Nós pertencíamos realmente um ao outro. Ele era meu.

         Então lhe fiz uma promessa, disse que ia voltar lá e

encontrar o gato dela.

         - E vou tomar conta dele. Prometo. Ela sorriu, aquela nova careta de sorriso triste que ela agora usava.

         - Então e eu? - disse ela, num sussurro, estremecendo de novo. - Estou assustadíssima, trapalhão. Sim, finalmente tenho medo. Porque isto pode continuar para sempre, eu posso continuar para sempre sem saber o que é meu até o jogar fora. O ferro em brasa não é nada. A gorda não é nada. Mas isto... Tenho a boca seca, não era capaz de cuspir nem que disso dependesse a minha vida.

         Entrou para o carro, afundou-se no assento.

         - Desculpe, senhor motorista. Vamos.

         "Moça de Tomato desaparecida." E: "Atriz da droga presumível vítima de ajuste de contas". Em seu devido tempo, todavia, a imprensa anunciou: "Playgirl no Rio de Janeiro". Ao que parece, as autoridades americanas não providenciaram quaisquer diligências para a recuperar a fugitiva, e cedo o assunto foi desprezado para um fait-divers ocasional, como notícia, só uma vez foi recordado: no Dia de Natal, quando Sally Tomato morreu de ataque cardíaco na prisão de Singsing. Passaram os meses, um Inverno inteiro sem uma palavra de Holly. O senhorio do edifício vendeu os seus bens abandonados, a cama de cetim branco, a tapeçaria, as suas queridas cadeiras góticas, um novo inquilino alugou o apartamento, chamava-se Quaintance Smith e recebia mais visitas de cavalheiros ruidosos do que a própria Holly - embora, neste caso, Madame Spanella não se opusesse, na realidade, o jovem caiu-lhe nas graças e ela fornecia lhe filet mignon sempre que o encontrava de olho ao peito. Mas na

Primavera apareceu um postal, rabiscado a lápis e assinado com um beijo de baton: “O Brasil foi um horror, mas Buenos Aires é do melhor que há. Não é bem o Tiffany’s, mas quase”.

         - Estou amarrada ao Divino $enhor. Amor? Acho que sim. Seja como for, estou à procura de uma casa - o $enhor tem mulher e sete filhos - e mando-lhe o endereço logo que saiba. Milhões de beijos". Mas o endereço, se alguma vez existiu, nunca foi enviado, o que me entristeceu, tinha tantas coisas para lhe escrever, que eu vendera duas histórias, que lera no jornal que os Trawiers estavam em divórcio litigioso, que ia me mudar da casa de arenito por estar assombrada. Mas, principalmente, queria contar-lhe do gato dela. Mantive a minha promessa: encontrei-o. Levei duas semanas de perambulações pós-laborais por aquelas ruas do Harlem Espanhol e fui despistado por muitos falsos alarmes, pelugens listradas que, após um exame mais de perto, não eram dele. Mas um dia, numa tarde domingueira fria e cheia de sol, era mesmo ele. Rodeado de plantas em vaso e emoldurado por singelas cortinas de renda, sentava-se à janela de uma sala com um aspecto muito acolhedor. Interroguei-me qual seria o seu nome, pois com certeza que ele agora teria um, com certeza que encontrara a sua casa. Numa cabana na África, ou noutro lugar qualquer, espero que Holly também tenha encontrado a sua.

 

                                                                                            Truman Capote

 

                      

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