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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BRANCA DE NEVE TEM DE MORRER / Nele Neuhaus
BRANCA DE NEVE TEM DE MORRER / Nele Neuhaus

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BRANCA DE NEVE TEM DE MORRER

 

Numa noite chuvosa de novembro, Rita Cramer é empurrada de uma passarela e cai em cima de um carro em movimento. Pia e Bodenstein, da delegacia de homicídios, têm um suspeito: Manfred Wagner. Onze anos antes, a filha de Manfred desaparecera, sem deixar pistas, e um processo baseado em provas circunstanciais condenou Tobias, filho de Rita Cramer, a dez anos de prisão. Logo após cumprir a pena, Tobias retorna à sua cidade natal e, repentinamente, outra garota desaparece. Os acontecimentos do passado parecem repetir-se de maneira funesta. Pia e Bodenstein se deparam com um muro de silêncio. As investigações transformam-se numa corrida contra o tempo, iniciando uma verdadeira caça às bruxas.

                   Quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ele não disse “até logo”. Ninguém que sai da prisão diz “até logo”. Nos últimos dez anos, imaginou inúmeras vezes o dia de sua libertação. Agora era obrigado a constatar que, na verdade, seus pensamentos sempre iam apenas até o momento em que ele passava pelo portão rumo à liberdade, e esta, de repente, lhe parecia ameaçadora. Não tinha planos para sua vida. Não mais. Mesmo sem as contínuas advertências dos assistentes sociais, havia muito ele já sabia que o mundo não lhe daria as boas-vindas e que ele teria de se preparar para todo tipo de restrição e derrota em seu futuro, que já não seria muito cor-de-rosa. A carreira de médico, que em outros tempos ele almejara depois de tirar nota máxima no último exame da escola, ele podia esquecer. Talvez seus estudos e a formação em metalurgia que ele tivera na cadeia o ajudassem. Em todo caso, já estava na hora de encarar a vida.

Quando o portão de ferro cinza e armado de pontas da prisão de Rockenberg bateu com um ruído metálico atrás dele, ele a viu em pé do outro lado da rua. Embora nos últimos dez anos ela fosse a única da antiga turma a lhe escrever regularmente, ficou surpreso ao vê-la ali. Na verdade, estava esperando seu pai. Ela estava encostada no para-lama de uma SUV prata, com o celular no ouvido e dando tragadas rápidas num cigarro. Ele ficou parado. Ao reconhecê-lo, ela dirigiu-se a ele, enfiou o telefone no bolso do mantô e jogou fora a bituca. Ele hesitou por um instante antes de atravessar a rua de paralelepípedos, segurando a pequena mala com seus pertences na mão esquerda, e parar diante dela.

— Oi, Tobi — disse ela, com um sorriso nervoso. Dez anos eram muito tempo. Não se viram por todo esse período, pois ele não quisera que ela o visitasse.

— Oi, Nadja — respondeu. Era curioso chamá-la por esse nome estranho. Pessoalmente, ela tinha uma aparência melhor do que na televisão. Mais jovem. Ficaram frente a frente, observando-se, hesitando. Com um farfalhar, um vento fresco arrastou as folhas secas de outono pelo pavimento. O sol escondera-se por trás de densas nuvens cinzentas. Estava frio.

— Que bom que você está aqui fora de novo. — Ela o abraçou pela cintura e beijou-o na face. — Estou feliz. De verdade.

— Eu também. — Ao pronunciar essas palavras vazias, perguntou-se se eram verdadeiras. Felicidade era algo diferente daquele sentimento de estranheza, de insegurança. Ela o soltou, pois ele não fez menção de abraçá-la. No passado, ela, a filha da vizinha, tinha sido sua melhor amiga, e a importância dela em sua vida era algo evidente. Nadja era a irmã que ele nunca tivera. Mas agora tudo havia mudado, não apenas seu nome. A Nathalie desinibida, que sentia vergonha das próprias sardas, do aparelho dentário e dos próprios peitos, transformara-se em Nadja von Bredow, uma famosa e requisitada atriz. Ela havia realizado seu sonho ambicioso, havia deixado para trás o vilarejo de onde ambos provinham e galgara a escada do prestígio social até o degrau mais elevado. Ele próprio já não podia colocar o pé nem mesmo no degrau mais baixo dessa escada. A partir daquele dia, ele era um ex-presidiário que cumprira sua pena, mas que a sociedade não esperaria de braços abertos.

— Seu pai não conseguiu tirar folga hoje. — Subitamente, ela deu um passo afastando-se dele e evitando seu olhar, como se o acanhamento dele tivesse se transferido para ela. — Por isso vim buscá-lo.

— Foi gentil da sua parte. — Tobias colocou a mala no banco de trás do automóvel e sentou-se no banco do passageiro. O couro claro ainda não tinha nenhum arranhão, e o interior do carro cheirava a novo.

— Uau! — exclamou sinceramente impressionado, e lançou um olhar para o painel, que parecia o de um avião. — Que carro bacana!

Nadja deu um sorriso breve, afivelou o cinto de segurança e apertou um botão, sem colocar a chave na ignição. Imediatamente, o motor arrancou com um ruído sutil. Com habilidade, ela manobrou o imponente automóvel para fora da vaga do estacionamento. O olhar de Tobias passou por algumas castanheiras altas, plantadas junto ao muro da prisão. Nos últimos dez anos, vê-las da janela de sua cela foi seu único contato com o mundo externo. Com a mudança das estações, as árvores eram para ele a única referência real do lado de fora, enquanto o restante do mundo havia desaparecido na névoa difusa por trás dos muros da prisão. E agora, após expiar sua pena, ele, o assassino das adolescentes condenado, estava de volta a essa névoa. Querendo ou não.

— Para onde devo levá-lo? Para a minha casa? — perguntou Nadja, ao conduzir o carro para a autoestrada. Em suas últimas cartas, ela lhe pedira várias vezes para se mudar primeiro para a casa dela — seu apartamento em Frankfurt era grande o suficiente. A perspectiva de não voltar a Altenhain e não ter de encarar o passado era atraente, mas ele recusou.

— Mais tarde, talvez — ele disse. — Primeiro quero ir para casa.

 

Sob uma chuva torrencial, a inspetora Pia Kirchhoff estava no terreno do antigo aeródromo militar, em Eschborn, nas proximidades de Frankfurt. Ela tinha feito duas tranças em seu cabelo louro, colocado um boné, e observava, com as mãos enfiadas nos bolsos de seu impermeável e semblante inexpressivo, seus colegas da Polícia Científica, que armavam uma tenda sobre o fosso a seus pés. Durante a demolição de um dos hangares em ruínas, o condutor de uma escavadeira encontrara ossos e um crânio humano em um dos tanques vazios de combustível e, para grande irritação de seu chefe, chamara a polícia. Agora os trabalhos estavam parados há duas semanas, e Pia podia ouvir as censuras do mestre de obras mal-humorado, cuja equipe multicultural de demolição dissipara-se repentinamente com o aparecimento da polícia. O homem acendeu o terceiro cigarro em quinze minutos e levantou os ombros, como se isso pudesse impedir a chuva de molhar a gola de seu casaco. Enquanto isso, praguejava sem parar.

— Estamos esperando o médico-legista. Ele já vai chegar. — Pia não estava interessada no evidente emprego de trabalhadores ilegais no canteiro de obras nem no cronograma da demolição. — Comecem então a derrubar outro pavilhão.

— A senhora acha que é simples assim? — reclamou o homem e apontou na direção das escavadeiras e caminhões em espera. — Por causa de uns ossos, estamos superatrasados, e isso custa uma fortuna.

Pia deu de ombros e virou-se. Um carro sacolejou sobre o concreto rachado. O mato havia brotado de todas as rachaduras e transformado a antiga pista plana numa faixa de terreno cheia de ondulações. Desde a paralisação do aeródromo, a natureza provara de maneira impressionante que tinha condições de voltar a superar todo obstáculo criado pela mão do homem. Pia deixou o mestre de obras se lamentando e dirigiu-se à Mercedes prata que havia estacionado ao lado das viaturas da polícia.

— Você demorou um bocado — reclamou, cumprimentando o ex-marido de modo pouco amigável. — Se eu pegar um resfriado, a culpa vai ser sua.

O doutor Henning Kirchhoff, diretor interino do Departamento de Medicina Legal em Frankfurt, não se deixou provocar. Com toda tranquilidade, vestiu por cima da roupa o obrigatório macacão descartável, trocou seus reluzentes sapatos de couro preto por botas de borracha e pôs o capuz.

— Estava dando aula — respondeu. — Depois peguei trânsito perto do pavilhão de exposições. Sinto muito. O que temos aqui?

— Um esqueleto em um velho tanque subterrâneo. A empresa de demolição o encontrou há cerca de duas horas.

— Alguém mexeu nele?

— Acho que não. Só removeram o concreto e a terra; depois, desfizeram a solda da parte superior do tanque porque não conseguem transportá-lo inteiro.

— Muito bem. — Kirchhoff meneou a cabeça, cumprimentou os funcionários da Polícia Científica e preparou-se para descer o fosso sob a tenda, onde se encontrava a parte inferior do tanque. Sem dúvida, ele era o melhor homem para essa tarefa, pois era um dos poucos antropólogos forenses da Alemanha, e ossos humanos eram sua especialidade. O vento fazia a chuva cair quase horizontalmente sobre a superfície aberta. Pia estava congelando de frio. A água pingava da viseira de seu boné sobre seu nariz, seus pés tinham se transformado em blocos de gelo, e ela invejava os homens da equipe de demolição, condenada à inatividade, que estavam no hangar bebendo café quente de uma garrafa térmica. Como sempre, Henning era cuidadoso em seu trabalho. Bastava ele encontrar algum osso pela frente que o tempo e as intempéries perdiam toda importância. Ele ajoelhou na base do tanque, curvado sobre o esqueleto, e observou um osso após o outro. Pia abaixou-se sob a lona e segurou-se na escada para não escorregar.

— Um esqueleto completo — gritou Henning para ela, que estava no topo. — De mulher.

— Velha ou jovem? Há quanto tempo está aí?

— Ainda não dá para dizer nada mais preciso. À primeira vista, não há mais restos de tecido, então, supostamente, já está aqui há alguns anos. — Henning Kirchhoff levantou-se e subiu a escada. Os homens da Polícia Científica começaram a recolher cuidadosamente os ossos e a terra circundante. Ia demorar um pouco até o esqueleto poder ser transportado para a sede do Departamento de Medicina Legal, onde Henning e sua equipe o submeteriam a uma análise aprofundada. Volta e meia se encontravam ossos humanos em obras subterrâneas; era importante fazer uma avaliação precisa do corpo e descobrir há quanto tempo estava ali, pois crime de violência contra a vida, inclusive homicídio, prescreviam após trinta anos. Somente depois de estabelecidos a idade e o tempo de permanência do corpo no tanque é que a comparação com os casos de desaparecimento faria algum sentido. Em algum momento dos anos 50, o serviço aéreo fora abolido no antigo aeroporto militar; pelo mesmo período o tanque ficou sem abastecimento. O esqueleto poderia ser de um militar americano da US-Camp, que existira ali ao lado até 1991, ou então de uma moradora da antiga residência dos exilados, que ficava do outro lado do alambrado enferrujado.

— Vamos a algum lugar tomar um café? — Henning tirou os óculos e os enxugou, depois tirou o macacão molhado. Pia olhou surpresa para o ex-marido. Sair para tomar café durante o horário de trabalho não era nem um pouco o estilo dele.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, então, desconfiada. Ele franziu os lábios, depois deu um profundo suspiro.

— Estou numa enrascada — confessou. — E preciso do seu conselho.

 

O vilarejo ficava encolhido no vale, dominado por duas aberrações arquitetônicas dos anos 70, com vários andares, como toda comunidade que se preocupa com a própria imagem e acaba permitindo a construção de edifícios. À direita, na encosta, ficava a “colina dos milionários”, como os antigos habitantes chamavam, com uma pontinha de desprezo, ambas as ruas em que moravam os poucos recém-chegados, donos de mansões em amplos terrenos. À medida que se aproximava da casa de seus pais, ele sentia que seu coração batia aflito. Fazia onze anos que estivera ali pela última vez. Do lado direito ficava a casinha da vovó Dombrowski, que desde sempre dava a impressão de que só estava de pé porque se espremia entre duas outras. Um pouco mais adiante, à esquerda, ficava a propriedade dos Richters e sua loja. E em frente, meio enviesado, o Galo de Ouro, restaurante de seu pai. Tobias teve de engolir em seco quando Nadja parou na frente. Incrédulos, seus olhos vagaram pela fachada desmoronada, pelo reboco descascado, pelas persianas fechadas e a calha pendente. O mato havia brotado nas rachaduras do asfalto, o portão da propriedade pendia torto nos gonzos. Ele quase chegou a pedir para Nadja tirá-lo dali —rápido, rápido, vamos sair daqui! Mas resistiu também a essa tentação, agradeceu-lhe sucintamente, desceu do carro e pegou sua mala no banco traseiro.

— Se precisar de alguma coisa, me ligue — disse Nadja ao se despedir, depois acelerou e foi embora. O que ele esperava? Uma recepção alegre? Ficou em pé, sozinho, no pequeno estacionamento asfaltado na frente da casa, que já fora ponto de encontro daquele triste lugarejo. O reboco branco, que antigamente brilhava, estava deteriorado e esfarelava; quase não dava para reconhecer a inscrição “Galo de Ouro”. Na porta de entrada, atrás de um vidro fosco estilhaçado, estava pendurada uma placa. Lia-se “provisoriamente fechado” numa grafia desbotada. Embora seu pai lhe tivesse contado em algum momento que tinha fechado o restaurante por causa de sua hérnia de disco, Tobias desconfiou de que outra coisa o tinha levado a tomar essa decisão. Hartmut Sartorius era a terceira geração a cuidar de corpo e alma do restaurante. Ele próprio abatia os animais e cozinhava, fazia o vinho de maçã e não descuidava dos clientes nenhum dia sequer por causa de doença. Provavelmente, os clientes deixaram de vir. Ninguém queria comer ou festejar no estabelecimento dos pais de um assassino duplamente qualificado. Tobias respirou fundo e foi até a entrada. Foi preciso algum esforço para mover, pelo menos, uma das folhas do portão. O estado da propriedade deixou-o em choque. Ali, onde antigamente, no verão, havia mesas e cadeiras sob os galhos carregados de uma imponente castanheira e sob uma pérgula muito bonita, coberta por uma trepadeira, e onde garçonetes corriam atarefadas de uma mesa a outra, reinava um triste abandono. O olhar de Tobias vagou por montanhas de entulho jogado sem nenhum cuidado, móveis quebrados e lixo. Metade da pérgula estava caída, e a trepadeira, ressequida. Ninguém havia varrido as folhas caídas da castanheira. Pelo que se via, a caçamba de lixo já não era posta na calçada havia semanas, pois os sacos se acumulavam ao lado dela em um amontoado fétido. Como seus pais conseguiam viver ali? Tobias sentiu que estava perdendo a última pequena porção de coragem com a qual tinha chegado. Lentamente, abriu caminho até os degraus que conduziam à casa, esticou a mão e apertou a campainha. Seu coração batia na garganta quando a porta foi aberta com hesitação. O olhar de seu pai fez Tobias ficar com os olhos marejados. Ao mesmo tempo, sentiu a raiva crescer dentro de si, raiva de si mesmo e das pessoas que haviam abandonado seus pais depois que ele fora para a prisão.

— Tobias! — Um sorriso tremeu no rosto magro de Hartmut Sartorius, que era apenas uma sombra do homem vivaz e autoconfiante de antigamente. Seus cabelos, que já haviam sido escuros e bastos, estavam grisalhos e ralos; sua postura revelava como era difícil para ele carregar o fardo que a vida lhe impusera.

— Eu... eu realmente queria ter dado um jeito na casa, mas não tive folga e... — Ele se interrompeu e parou de sorrir. Simplesmente ficou ali parado, um homem abatido, que se desviava envergonhado do olhar do próprio filho porque se dera conta do que ele estava vendo. Era mais do que Tobias podia suportar. Deixou cair a mala, abriu os braços e abraçou, desajeitado, aquele estranho extenuado e grisalho, no qual quase não reconhecia o próprio pai. Pouco depois estavam ambos sentados à mesa da cozinha, acanhados. Havia tanta coisa a dizer, e, no entanto, qualquer palavra seria superficial. A toalha de mesa de cores berrantes estava cheia de migalhas de pão, os vidros das janelas estavam sujos, um vaso de planta ressequida junto à janela perdera havia muito a batalha pela vida. A cozinha estava úmida e fria, tinha um cheiro desagradável de leite azedo e cigarro apagado. Nenhum móvel havia sido mudado de lugar, nenhum quadro havia sido tirado da parede desde que o prenderam em 16 de setembro de 1997 e ele deixara a casa. Mas antes tudo era claro, alegre e asseado; sua mãe era uma excelente dona de casa. Como ela podia aceitar e suportar aquele abandono?

— Onde está a mamãe? — Tobias finalmente interrompeu o silêncio. Ele percebeu que a pergunta deixou seu pai novamente sem graça.

— Nós... na verdade, queríamos ter contado, mas... mas depois pensamos que seria melhor você não saber — respondeu, por fim, Hartmut Sartorius. — Faz um tempo que sua mãe... se mudou. Mas ela sabe que você vinha para casa hoje e está louca para vê-lo.

Tobias olhou seu pai sem entender.

— Como assim, ela se mudou?!

— Não foi fácil para nós depois que você... foi embora. Os boatos não paravam. Uma hora ela não aguentou. — Não havia sinal de crítica em sua voz, que havia ficado frágil e baixa. — Nos separamos há quatro anos. Agora ela mora em Bad Soden.

Tobias engoliu com dificuldade.

— Por que vocês nunca me contaram? — murmurou.

— Ah, não ia mudar nada. Não queríamos que você se afligisse.

— Então você vive aqui sozinho?

Hartmut Sartorius fez que sim e, com a borda externa da mão, empurrou as migalhas de um lado para outro sobre a toalha de mesa, ordenando-as em formas simétricas e voltando a espalhá-las.

— E os porcos? As vacas? Como você deu conta de todo o trabalho?

— Dos animais eu me desfiz já há muitos anos — respondeu o pai. — Ainda cuido um pouco da horta e arrumei um ótimo trabalho em uma cozinha em Eschborn.

Tobias cerrou os punhos. Como ele havia sido tolo ao supor que apenas ele seria punido pela vida! Nunca entendera direito o quanto também seus pais haviam sofrido com tudo aquilo. Quando iam visitá-lo na prisão, pintavam-lhe um mundo intacto, que na verdade nunca existira. Quanto esforço isso não lhes devia ter custado! Uma fúria impotente apertou sua garganta como uma mão a estrangulá-lo. Ele se levantou, dirigiu-se à janela e fixou o olhar vazio no lado de fora. Sua intenção de ir para algum outro lugar depois de passar alguns dias na casa de seus pais, a fim de tentar recomeçar uma nova vida bem longe de Altenhain, caiu por terra. Ele ficaria ali. Naquela casa, naquele sítio, naquele buraco em que seus pais tiveram que sofrer, embora sem ter culpa de nada.

 

O salão revestido de madeira do restaurante Corcel Negro estava lotado, e o nível de ruído era respectivamente alto. Metade da cidade de Altenhain estava reunida às mesas e junto ao balcão, o que não era comum para um início de noite de quinta-feira. Amelie Fröhlich equilibrou três filés com fritas até a mesa 9, serviu e desejou bom apetite. Normalmente, o construtor de telhados Udo Pietsch e seus colegas sempre tinham uma frase idiota na ponta da língua para se referir à aparência pouco comum da moça, mas, naquele dia, Amelie poderia até servir as mesas nua que ninguém ia reparar nela. Só se viam ânimos tão tensos, no máximo, por ocasião da transmissão de uma partida da Liga dos Campeões. Curiosa, Amelie aguçou os ouvidos quando Gerda Pietsch se curvou sobre a mesa vizinha, à qual estavam sentados os Richters, proprietários da mercearia.

— ...vi quando ele chegou — contou Margot justamente a Richter. — Que falta de vergonha na cara, aparecer de novo aqui, como se nada tivesse acontecido!

Amelie voltou para a cozinha. Junto ao balcão, Roswitha esperava pelo filé de alcatra malpassado de Fritz Unger, da mesa 4, com cebola e manteiga com ervas.

— Que alvoroço é esse que está acontecendo aqui esta noite? — perguntou Amelie à colega mais velha, que tinha tirado o chinelo do pé direito para coçar discretamente as varizes na panturrilha esquerda. Roswitha olhou ao redor, procurando a chefe, que, no entanto, estava muito ocupada com os numerosos pedidos de bebidas para poder se preocupar com os funcionários.

— O filho do Sartorius saiu hoje da cadeia — revelou Roswitha em voz baixa. — Passou dez anos preso porque matou duas moças!

— Nossa! — Amelie arregalou os olhos. Ela conhecia superficialmente Hartmut Sartorius, que vivia sozinho em seu sítio enorme e arruinado, abaixo de onde ela morava, mas nada sabia do filho.

— Pois é — confirmou Roswitha com a cabeça voltada para o balcão, junto ao qual o marceneiro Manfred Wagner olhava fixamente para a frente, com olhos vítreos. Na mão, ele segurava o décimo ou décimo primeiro copo de cerveja da noite. Normalmente, precisava de mais duas horas para cumprir essa tarefa.

— Tobias matou Laura, filha do Manfred. E a pequena Schneeberger. Até hoje não disse o que fez com elas.

— Sai um filé de alcatra com manteiga com ervas e cebolas! — Kurt, o assistente de cozinheiro, empurrou o pedido pelo passa-prato. Roswitha enfiou os pés nos chinelos e manobrou habilmente seu corpanzil pelo salão lotado até a mesa 4. Tobias Sartorius — Amelie nunca tinha ouvido esse nome. Fazia só seis meses que viera de Berlim para Altenhain, e não por vontade própria. O vilarejo e seus habitantes lhe interessavam tanto quanto um saco de arroz na China, e não fosse o chefe de seu pai lhe conseguir o emprego no Corcel Negro, ainda estaria sem conhecer ninguém por ali.

— Saem três cervejas e uma Coca light pequena — gritou Jenny Jagielski, a jovem chefe, que era responsável pelas bebidas. Amelie apanhou uma bandeja, colocou os copos nela e olhou rapidamente para Manfred Wagner. Sua filha havia sido assassinada pelo filho de Hartmut Sartorius! Isso era realmente excitante. No vilarejo mais monótono do mundo abriam-se abismos inimagináveis. Ela levou as três cervejas até a mesa à qual Jörg Richter, irmão de Jenny Jagielski, estava sentado com outros dois homens. Na verdade, ele deveria estar no lugar de Jenny, atrás do balcão, mas raramente fazia o que devia. Menos ainda quando o chefe, marido de Jenny, não estava presente. A Coca light era para a senhora Unger, da mesa 4. Um rápido pitstop na cozinha. Todos os clientes estavam servidos de comida, e, depois de mais uma volta pelo salão do restaurante, Roswitha ficara sabendo de novos detalhes, que ela contou com as bochechas vermelhas e os peitos trêmulos a seus ouvintes curiosos. Além de Amelie, Kurt e Achim, os ajudantes de cozinha, e Wolfgang, o chefe de cozinha, aguçaram os ouvidos. A mercearia de Margot Richter — para espanto de Amelie, em Altenhain as pessoas sempre diziam “vamos dar uma passada na Margot”, embora a loja, na verdade, pertencesse ao marido — ficava bem na frente do antigo Galo de Ouro, e, assim, à tarde, Margot e a cabeleireira Inge Dombrowski, que tinha acabado de parar na loja para bater papo, haviam sido testemunhas oculares do retorno desse sujeito. Ele descera de um carro prata de luxo e entrara no sítio de seus pais.

— É muito atrevimento — exaltou-se Roswitha. — As meninas morreram e o cara volta a aparecer por aqui, como se nada tivesse acontecido!

— Mas para onde ele devia ir? — observou Wolfgang com tolerância e tomou um gole de sua cerveja.

— Acho que você não está bom da cabeça! — lançou-lhe Roswitha. — O que você faria se o assassino da sua filha de repente aparecesse na sua frente?

Wolfgang deu de ombros, indiferente.

— E o que mais? — insistiu Achim. — Para onde ele foi?

— Ora, para dentro de casa — respondeu Roswitha. — Deve ter ficado espantado quando viu como a casa está agora.

A porta vaivém se abriu. Jenny Jagielski marchou para a cozinha e pôs as mãos nos quadris. Como sua mãe, Margot Richter, ela sempre achava que seus funcionários roubavam dinheiro do caixa ou falavam mal dela pelas costas. Três gestações seguidas haviam acabado com o corpo de Jenny, que, mesmo antes, já era robusto: ela era redonda feito uma pipa.

— Roswitha! — gritou asperamente para a mulher cerca de trinta anos mais velha. — A mesa 10 quer pagar!

Roswitha desapareceu, obediente, e Amelie quis segui-la, mas Jenny Jagielski a deteve.

— Quantas vezes já não disse para você tirar esses piercings nojentos e dar um jeito nesse cabelo quando vem trabalhar? — A reprovação estava escrita em sua cara inchada. — Além do mais, uma blusa seria mais adequada do que esse corpete! Isso você pode usar como roupa de baixo! Somos um restaurante decente, e não... não uma discoteca underground de Berlim!

— Mas os homens bem que gostam — replicou Amelie com impertinência. Os olhos de Jenny Jagielski se estreitaram, e manchas vermelhas começaram a aparecer como chamas em seu pescoço gordo.

— Pouco me importa — sibilou ameaçadora. — Leia todas as regras de higiene!

Amelie já estava com uma resposta enviesada na ponta da língua, mas se controlou no último segundo. Embora odiasse Jagielski, desde suas permanentes queimadas e baratas até suas panturrilhas rechonchudas que mais pareciam dois salsichões, não podia se arriscar com ela. Precisava do emprego no Corcel Negro.

— E vocês? — a chefe fulminou os cozinheiros. — Não têm mais nada para fazer?

Amelie deixou a cozinha. Justamente nesse instante, Manfred Wagner caiu junto com o banquinho do bar.

— Ei, Manni! — gritou um dos homens à mesa. — Ainda são nove e meia! — Os outros riram com indulgência. Ninguém se preocupou muito com a cena, que se repetia daquele modo ou de forma semelhante quase toda noite, normalmente por volta das onze horas. Chamavam então sua mulher, que aparecia em poucos minutos, pagava a conta e rebocava o marido para casa. Naquela noite, porém, Manfred Wagner mudou a coreografia. O homem, que costumava ser tão pacífico, levantou-se sem a ajuda de ninguém, virou, pegou seu copo de cerveja e o arremessou no chão. Quem conversava emudeceu quando ele se dirigiu cambaleando à mesa dos habitués.

— Seus filhos da puta — balbuciou com a língua empastada. — Vocês ficam aqui sentados, falando besteira, como se nada tivesse acontecido! Para vocês, tanto faz!

Wagner se apoiou no encosto de uma cadeira e olhou para o grupo com os olhos injetados.

— Mas eu, eu tenho de... ver esse... mau-caráter e... pensar naquilo... — Ele se interrompeu e baixou a cabeça. Jörg Richter se levantou e colocou a mão sobre o ombro de Wagner.

— Venha, Manni — disse. — Não fique aborrecido. Vou ligar para a Andrea e...

— Não toque em mim! — gritou Wagner, e o empurrou com tanta força que o mais jovem cambaleou e caiu. Na queda, agarrou uma cadeira e levou ao chão quem nela estava sentado. Num piscar de olhos, reinava o caos.

— Vou matar aquele filho da puta! — urrava Manfred Wagner repetidas vezes. Começou a dar socos ao seu redor. Os copos cheios que estavam na mesa viraram, seu conteúdo derramou-se na roupa dos homens que estavam no chão. Fascinada, Amelie seguia o espetáculo do caixa, enquanto sua colega lutava para sobreviver no meio do tumulto. Uma pancadaria das boas no Corcel Negro! Finalmente acontecia alguma coisa naquele fim de mundo desolado! Jenny Jagielski passou por ela como um rolo compressor para a cozinha.

— Restaurante decente — murmurou Amelie com ironia e recebeu em troca um olhar hostil. Segundos mais tarde, a chefe saiu num ímpeto da cozinha, seguida por Kurt e Achim. Os dois cozinheiros dominaram o bêbado num piscar de olhos. Amelie apanhou a escova e a pá e foi para a mesa varrer os cacos de vidro. Manfred Wagner já não se defendia e deixou-se conduzir sem resistência, mas, junto à porta, escapou das mãos dos homens e se virou. Ficou em pé, cambaleando, com os olhos injetados. A saliva escorria do canto da boca em sua barba hirsuta. Uma mancha escura espalhou-se pela parte dianteira de suas calças. Ele devia estar mesmo muito bêbado, pensou Amelie. Até então, ela nunca o vira mijar nas calças. De repente, sentiu pena do homem do qual secretamente zombava. Será que o assassinato de sua filha era responsável pela regularidade persistente com que ele bebia toda noite até entrar em coma? No restaurante, reinou um silêncio tumular.

— Vou pegar esse filho da puta! — gritou Manfred Wagner. — Vou moer de pancada esse... esse... porco assassino!

Abaixou a cabeça. E começou a soluçar.

 

Tobias Sartorius saiu do chuveiro e pegou a toalha que havia deixado preparada. Passou a palma da mão no espelho embaçado e observou seu rosto à luz fraca da última lâmpada que funcionava no armário espelhado. Na manhã do dia 16 de setembro de 1997 ele se olhara pela última vez naquele espelho. Pouco depois, chegaram para prendê-lo. Como se achava maduro naquela época, no verão depois do último ano de colégio! Tobias fechou os olhos e apoiou a testa na superfície fria. Ali, naquela casa, na qual cada canto lhe era tão familiar, os dez anos de cadeia lhe pareciam como que apagados. Ele se lembrava de cada detalhe do último dia antes da prisão, como se tudo tivesse ocorrido no dia anterior. Era inacreditável como tinha sido ingênuo. Mas até aquele momento havia buracos negros em sua lembrança, nos quais a justiça não acreditara. Abriu os olhos, olhou fixamente para o espelho e, por um segundo, ficou espantado ao ver o rosto anguloso de um rapaz de 30 anos. Com a ponta dos dedos, tocou a cicatriz branca que partia de seu osso maxilar e ia até o queixo. Esse ferimento, que lhe fora causado na segunda semana em que estava na cadeia, fora a razão pela qual ele passara dez anos em uma cela individual e praticamente não tivera contato com os outros prisioneiros. Na hierarquia rígida da cadeia, um assassino de moças estava apenas um milímetro acima da pior escória, o assassino de crianças. A porta do banheiro já não fechava direito, e uma corrente de ar frio atingiu sua pele úmida e o fez sentir calafrios. Do andar de baixo, vozes chegaram até ele. Seu pai devia estar recebendo visita. Tobias desviou-se da corrente de ar e vestiu as cuecas, o jeans e a camiseta. Pouco antes, havia visitado o resto deprimente da grande propriedade e constatado que, em comparação com a parte posterior, a anterior até parecia em ordem. Desistira de seu vago projeto de voltar a deixar Altenhain rapidamente. Não dava para deixar seu pai sozinho naquele abandono. De todo modo, como não ia poder contar com um emprego tão cedo, nos próximos dias ia tratar de arrumar o sítio. Depois decidiria o que fazer. Saiu do banheiro, passou pela porta de seu antigo quarto e desceu a escada, pulando, por antigo hábito, os degraus que rangiam. Seu pai estava sentado à mesa da cozinha; o visitante estava de costas para Tobias.

 

Quando Oliver von Bodenstein, inspetor-chefe da Polícia Criminal e diretor do Departamento de Crimes Violentos na Inspetoria Criminal Regional, em Hofheim, chegou em casa por volta das nove e meia, encontrou como único ser vivo seu cão, cuja recepção pareceu mais constrangida do que alegre — indício infalível de que estava com a consciência pesada. E a razão, Bodenstein conseguiu sentir pelo cheiro, antes de vê-la. Ele havia tido uma jornada estressante de 14 horas, com uma reunião monótona na sede regional da Polícia Criminal, um esqueleto encontrado em Eschborn, que sua chefe, a superintendente da Polícia Criminal, doutora Nicola Engel, com sua predileção por anglicismos, chamou de “cold case”, e, por fim, a comemoração de um colega da K 23 , que havia sido transferido para Hamburgo. O estômago de Bodenstein roncava, pois, tirando a grande quantidade de bebida alcoólica, só haviam sido servidas algumas batatas fritas. Mal-humorado, abriu a geladeira e nela nada encontrou que pudesse satisfazer seu paladar. Cosima não podia, pelo menos, ter comprado alguma coisa, já que não tinha preparado o jantar para ele? Onde estava ela, afinal? Caminhou pelo hall de entrada, ignorou o cocô fedorento e o xixi que, graças ao aquecimento do piso, já tinha secado e se transformado em uma poça grudenta e amarelada, e subiu a escada até o quarto de sua filha mais nova. Conforme esperado, o berço de Sophia estava vazio. Cosima devia ter levado o bebê junto com ela para onde quer que tivesse ido. Ele é que não ligaria para ela, já que ela não tinha sido capaz de deixar sequer um bilhete com alguma informação ou mandar um SMS! Justamente quando Bodenstein, já despido, ia para o banheiro tomar uma ducha, o telefone tocou. Obviamente o telefone não estava na base sobre a cômoda do corredor, e sim em algum outro lugar da casa. Cada vez mais irritado, começou a procurar e xingou quando pisou em um brinquedo que estava pelo chão da sala. E só foi encontrar o telefone em cima do sofá quando ele parou de tocar. Ao mesmo tempo, a chave girou na fechadura, e o cachorro começou a latir, agitado. Cosima entrou, segurando em um braço o bebê que dormia e, com a outra mão, um enorme buquê.

— Você já está em casa — foi seu único cumprimento a ele. — Por que não atendeu ao telefone?

Ele se enfureceu de imediato.

— Porque antes tive de procurá-lo. Afinal, onde é que você estava?

Ela não respondeu, ignorou o fato de ele estar só de cuecas e passou por ele, dirigindo-se à cozinha. Colocou o buquê em cima da mesa e entregou-lhe Sophia, que acabou acordando e começou a resmungar de maneira insuportável. Bodenstein pegou o bebê nos braços. Logo percebeu que a fralda devia estar suja até a borda.

— Te mandei vários SMS para você ir buscar a Sophia na casa do Lorenz e da Thordis. — Cosima tirou o mantô. Ela parecia exausta e irritada, mas ele não se sentiu culpado.

— Não recebi nenhum SMS.

Sophie debateu-se em seus braços e começou a chorar.

— Porque seu celular estava desligado. Mas você já sabia há semanas que hoje à tarde eu estaria na cinemateca para a inauguração da exposição de fotos sobre a Nova Guiné. — A voz de Cosima soou estridente. — Na verdade, você tinha me prometido que hoje à noite ficaria em casa e cuidaria da Sophia. Como você não deu as caras e seu celular estava desligado, o Lorenz veio buscá-la.

Bodenstein teve de reconhecer que realmente prometera a Cosima ficar em casa naquela noite. Tinha esquecido, e isso o irritou ainda mais.

— A fralda dela está imunda — disse ele, e afastou um pouco o bebê de si mesmo. — Além disso, o cachorro fez as necessidades dentro de casa. Você podia, pelo menos, ter dado uma volta com ele antes de sair. E você também podia ter feito as compras, para eu encontrar na geladeira alguma coisa para comer depois de um dia longo de trabalho.

Cosima não respondeu. Em vez disso, ela o fitou com as sobrancelhas levantadas, o que o deixava furioso, pois essa expressão fazia com que ele logo se sentisse irresponsável e desprezível. Ela pegou de seus braços o bebê em prantos e subiu para trocá-lo e colocá-lo no berço. Bodenstein ficou indeciso na cozinha. Dentro dele se desencadeava uma luta entre o orgulho e a razão, que, por fim, acabou por vencer. Suspirando, pegou um vaso no armário, encheu de água e colocou as flores dentro. Buscou um balde e um rolo de toalha de papel na despensa e pôs-se a limpar a obra de seu cão no hall de entrada. A última coisa que ele queria de fato era brigar com Cosima.

 

— Olá, Tobias. — Claudius Terlinden sorriu amigavelmente. Levantou-se da cadeira que ocupava e estendeu-lhe a mão. — Que bom que você voltou para casa.

Tobias apertou brevemente a mão estendida, mas ficou mudo. O pai de Lars, que antes fora seu melhor amigo, o visitara várias vezes na prisão e lhe assegurara que iria ajudar seus pais. Tobias nunca conseguiu entender os motivos para sua amabilidade, pois, com seu depoimento durante as investigações, causara muitos problemas a Terlinden. Este parecia não guardar rancor; ao contrário, em pouquíssimo tempo contratara o melhor advogado de Frankfurt para defender Tobias. Mas nem assim ele escapou de pegar a pena máxima.

— Não quero incomodá-los mais. Só vim para lhe fazer uma oferta — disse Claudius Terlinden, voltando a se sentar na cadeira da cozinha. Ele quase não mudara nos últimos anos. Era esguio e, mesmo naquele momento, em novembro, estava bronzeado, tinha os cabelos levemente grisalhos penteados para trás e os traços de seu rosto, que antes eram bem marcados, estavam mais flácidos. — Depois que você voltar a se acostumar com o ambiente e se não encontrar um trabalho de imediato, poderia trabalhar comigo. O que acha?

Cheio de expectativa, ele olhou para Tobias por cima da borda dos óculos meia-lua. Embora não conseguisse impressionar com seu tamanho nem com uma aparência particularmente boa, irradiava a autoconfiança serena dos empresários bem-sucedidos e uma autoridade inata, que fazia com que as outras pessoas se comportassem de maneira reservada e até submissa diante dele. Tobias não se sentou na cadeira vaga. Permaneceu em pé, encostado no batente da porta, com os braços cruzados. Não que houvesse muitas alternativas além da oferta de Terlinden, mas alguma coisa deixava Tobias desconfiado. Em seu caro terno confeccionado sob medida, no sobretudo escuro de caxemira e nos sapatos que brilhavam de tão engraxados, Claudius Terlinden parecia um corpo estranho na mísera cozinha. Tobias sentiu sua impotência aumentar. Ele não queria ser devedor daquele homem. Seu olhar deslocou-se para seu pai, que estava ali sentado com os ombros levantados e fitava mudo suas mãos unidas, como um servo devoto diante da visita do patrão. Tobias não gostou nada da cena. Seu pai não deveria precisar se curvar diante de alguém, principalmente se esse alguém fosse Claudius Terlinden, que, graças à sua patente generosidade, transformara metade dos habitantes do vilarejo em seus devedores, sem que ninguém tivesse a possibilidade de retribuir. Mas era assim que Terlinden sempre se comportava. Quase todos os jovens de Altenhain trabalharam em algum momento para ele ou dele se aproveitaram de outro modo. Claudius Terlinden não esperava em troca nenhuma retribuição além da gratidão. De todo modo, como metade de todos os moradores de Altenhain trabalhava para Terlinden, ele gozava de um status de divindade no povoado. O silêncio foi ficando desagradável.

— Bom. — Terlinden se levantou e, de imediato, Hartmut Sartorius também saltou de sua cadeira. — Você sabe onde me encontrar. Me dê uma resposta, então, quando tiver decidido.

Tobias apenas fez que sim com a cabeça e deixou-o passar. Ficou na cozinha, enquanto seu pai acompanhava a visita à porta.

— Ele só quer ajudar — disse Hartmut Sartorius ao voltar dois minutos depois.

— Não quero depender do favor dele — respondeu Tobias com aspereza. — Esse modo de ele entrar aqui, como... como um rei que concede a seu servo a graça de sua visita. Como se ele fosse coisa melhor!

Hartmut Sartorius suspirou. Encheu a chaleira de água e a colocou no fogo.

— Ele nos ajudou muito — disse em voz baixa. — Nós nunca tínhamos feito nenhuma economia, sempre investimos tudo na propriedade e no restaurante. O advogado custou muito caro, e depois os clientes foram embora. Uma hora eu já não ia poder me valer dos empréstimos do banco. Eles estavam me ameaçando com leilão judicial. O Claudius pagou nossas dívidas no banco.

Tobias ficou olhando incrédulo para seu pai.

— Isso significa que, na verdade, todo o sítio pertence... a ele?

— No fundo, pertence sim. Mas temos um contrato. Posso comprar de volta o sítio a qualquer momento e tenho usufruto vitalício.

Antes de mais nada, Tobias sentiu necessidade de digerir a novidade. Recusou o chá que seu pai lhe oferecia.

— Quanto dinheiro deve a ele?

Hartmut Sartorius hesitou por um momento em responder. Há muito conhecia o temperamento esquentado do filho.

— Trezentos e cinquenta mil euros. Essa era a quantia que eu devia no banco.

— Só o terreno vale pelo menos o dobro! — replicou Tobias, esforçando-se para controlar a voz. — Ele se aproveitou da sua necessidade e fez um negócio da China.

— Não tínhamos escolha. — Hartmut Sartorius levantou os ombros. — Não havia alternativa. Se não fizéssemos isso, o banco levaria o sítio a leilão judicial e ficaríamos na rua.

De repente, Tobias lembrou-se de mais uma coisa.

— E o que aconteceu com o campo Schilling? — quis saber.

Seu pai desviou o olhar e ficou olhando para a chaleira.

— Pai!

— Meu Deus. — Hartmut Sartorius levantou o olhar. — Era só um campo.

Tobias começou a entender. Em sua cabeça, os detalhes se encaixaram, formando um quadro. Seu pai tinha vendido a Terlinden o campo Schilling, por isso sua mãe o tinha deixado! Não se tratava simplesmente de um campo. Era o dote que ela levara para o casamento. Inicialmente, o campo Schilling fora uma plantação de maçãs com um valor apenas ideal. Somente após a mudança do plano de utilização do solo, em 1992, é que ele se tornara o terreno mais valioso nos limites de Altenhain, pois, com seus quase 1.500 m2, situava-se bem no meio da zona industrial. Fazia anos que Terlinden estava de olho nele.

— Quanto ele pagou? — perguntou Tobias em voz baixa.

— Dez mil euros — disse seu pai, e deixou a cabeça pender. Um terreno grande como aquele no meio da zona industrial valia cinquenta vezes mais! — O Claudius precisava dele com urgência para sua nova construção. Depois de tudo o que ele fez por nós, eu simplesmente não podia fazer outra coisa. Tive de entregá-lo a ele.

Tobias cerrou os dentes e apertou os punhos com raiva. Não podia criticar o pai, pois ele era o único culpado pela situação precária em que seus pais haviam caído. De repente, sentiu que ia sufocar naquela casa, naquele maldito vilarejo. Mesmo assim, permaneceria, e isso até descobrir o que realmente havia se passado onze anos antes.

 

Amelie deixou o Corcel Negro pouco antes das onze horas pela porta dos fundos, ao lado da cozinha. Bem que naquele dia ficaria até mais tarde, para saber mais sobre o assunto do dia. Mas Jenny Jagielski seguia rigorosamente as prescrições da lei de proteção ao trabalho juvenil, uma vez que Amelie só tinha 17 anos e ela não queria correr o risco de ter algum aborrecimento com as autoridades. Para Amelie era indiferente. Ela estava feliz por ter o emprego de garçonete e ganhar alguns trocados. Seu pai era mesmo um unha de fome, como sua mãe sempre o descrevera, e recusava-se a dar a Amelie o dinheiro para comprar um novo laptop, usando a desculpa de que o antigo ainda estava funcionando. Os três primeiros meses naquele vilarejo miserável tinham sido horríveis. Contudo, como o fim de sua estadia involuntária em Altenhain não estava distante, ela decidiu se virar da melhor maneira possível pelos próximos cinco meses, até completar 18 anos. De todo jeito, em abril de 2009, ela subiria no primeiro trem para Berlim. Ninguém mais poderia impedi-la. Amelie acendeu um cigarro e olhou na escuridão ao redor, procurando por Thies, que toda noite esperava por ela para acompanhá-la até sua casa. A estreita amizade de ambos era tudo o que as fofoqueiras do vilarejo queriam. Os piores boatos já circulavam pela cidade, mas Amelie não estava interessada neles. Aos 30 anos, Thies Terlinden ainda morava com os pais porque não era muito bom da cabeça, conforme os boatos que corriam no vilarejo. Amelie pôs a mochila nas costas e foi embora correndo. Thies estava na frente da igreja, embaixo do poste de luz. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o olhar voltado para o chão, e juntou-se calado a Amelie, quando ela passou a seu lado.

— Esta noite foi movimentada — disse Amelie, e relatou a Thies o que havia acontecido no Corcel Negro e o que havia descoberto sobre Tobias Sartorius. Já tinha se acostumado a nunca receber uma verdadeira resposta de Thies. Diziam que ele era bobo, que não conseguia falar, que era o idiota da cidade. Mas não era verdade. Thies não era nada bobo, ele só era... diferente. Amelie também era diferente. Seu pai não queria que ela andasse com Thies, mas não podia fazer nada contra. Provavelmente — assim pensava Amelie de vez em quando, com cínico divertimento —, o tacanho do seu pai já estaria amargamente arrependido de ter cedido à insistência de Barbara, sua segunda mulher, e levado sua filha maluca, fruto do primeiro e breve casamento, para morar com eles. Aos olhos de Amelie, ele não passava de um homem insípido e fraco, que vivia com cautela sua vida acomodada de contador, sempre se esforçando para não chamar atenção. Para ele, devia ser um verdadeiro horror ter uma filha de 17 anos, com antecedentes criminais, problemas de comportamento, uma cara enfeitada por quase meio quilo de metal, que só usava roupa preta e, no que se refere ao cabelo e à maquiagem, podia ter sido o modelo para o cantor Bill Kaulitz, da banda Tokio Hotel. Com relação à amizade de Amelie e Thies, certamente Arne Fröhlich tinha uma porção de objeções, mas nunca a proibira de nada. Não que fosse adiantar alguma coisa. Durante a vida toda, Amelie nunca dera ouvidos a proibições. Na verdade, ela supunha que a verdadeira razão da tolerância silenciosa do pai era o fato de Thies ser filho de seu chefe. Ela jogou a bituca do cigarro no bueiro e continuou a pensar em voz alta sobre Manfred Wagner, Tobias Sartorius e as moças assassinadas.

Em vez de seguirem pela iluminada Hauptstraße, a rua principal, pegaram o atalho estreito e sombrio que começava na igreja, passava pelo cemitério e pelos jardins das casas e subia até a margem da floresta. Após dez minutos de caminhada, chegaram à Waldstraße, uma rua secundária, margeando a floresta, na qual havia apenas três casas em grandes terrenos, que ficavam bem acima do vilarejo. No meio estava a casa em que Amelie morava com seu pai, sua madrasta e seus dois meios-irmãos, mais novos; à direita, ficava o bangalô dos Lauterbach e, um pouco mais adiante, à esquerda, circundada por um terreno que mais parecia um parque, a mansão antiga dos Terlinden, que era contígua à margem da floresta. A poucos metros do portão de ferro fundido da propriedade dos Terlindens ficava a entrada dos fundos do sítio dos Sartorius, que se estendia ladeira abaixo até a Hauptstraße. Antigamente, era uma fazenda de verdade, com vacas e porcos. Agora, o sítio inteiro não passava de uma pocilga, segundo o que o pai de Amelie costumava dizer com desprezo. Uma vergonha. Amelie ficou parada junto à escada. Geralmente, Thies e ela se separavam ali. Ele simplesmente continuava o caminho, sem dizer palavra. Mas, naquele dia, rompeu seu silêncio quando Amelie fez menção de subir.

— Aqui já moraram os Schneebergers — disse ele com sua voz monótona. Amelie virou-se surpresa. Pela primeira vez naquela noite, ela olhou seu amigo nos olhos, mas, como sempre, ele não retribuiu o olhar.

— É mesmo? — certificou-se ela, incrédula. — Uma das moças que Tobias Sartorius matou morava na nossa casa?

Thies fez que sim, sem olhar para ela.

— Morava. Aqui morou a Branca de Neve.

 

Sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Tobias abriu os olhos e, por um instante, ficou confuso. Em vez do teto branco de sua cela, deu de cara com um pôster brilhante da Pamela Anderson. Somente então compreendeu que já não estava na cadeia, e sim em seu antigo quarto na casa de seus pais. Sem se mexer, ficou deitado, ouvindo os barulhos que chegavam pela janela inclinada. As seis badaladas do sino da torre da igreja anunciavam que era cedo. Em algum lugar, um cachorro latia; outro também começou a latir, depois ambos voltaram a se calar. O quarto estava do mesmo jeito: a escrivaninha e a estante de compensado barato, o armário com a porta que não fechava direito. Os pôsteres do time de futebol Eintracht Frankfurt, da Pamela Anderson e do Damon Hill na Williams Renault, que venceu o campeonato mundial de Fórmula 1, em 1996. O pequeno aparelho de som, que ganhara em março de 1997 de seus pais. O sofá vermelho em que ele... Tobias levantou-se e balançou a cabeça, contrariado. Na prisão ele conseguia controlar melhor seus pensamentos. Agora as reflexões torturantes não o deixavam: o que teria acontecido naquela época se Stefanie não tivesse terminado com ele naquela noite? Será que ainda estaria viva? Ele sabia o que tinha feito. Afinal, explicaram-lhe centenas de vezes — primeiro a polícia, depois seu advogado, o promotor público e a juíza. As provas eram concludentes; havia indícios, testemunhas, sangue em seu quarto, em sua roupa, em seu carro. No entanto, faltavam em sua lembrança duas horas inteiras. Até hoje nada havia nela além de um buraco negro.

Ele conseguia se lembrar exatamente do dia 6 de setembro de 1997. Em respeito à princesa Diana, que seria sepultada naquele fim de tarde, em Londres, já não haveria o planejado cortejo de consagração da igreja. Meio mundo ficara sentado na frente da televisão, assistindo ao caixão com a rosa da Inglaterra, que sofrera um acidente fatal, sendo conduzido pelas ruas da capital inglesa. Contudo, ninguém queria que a festa paroquial de Altenhain fosse cancelada. Antes tivessem todos passado a noite em casa!

Tobias suspirou e virou-se para o lado. O silêncio era tão grande que ele conseguia ouvir as batidas do próprio coração. Por um momento, imaginou que ainda tinha 20 anos e que tudo aquilo não havia acontecido. Sua vaga na faculdade o aguardava em Munique. Com sua média nove no exame de conclusão do ensino médio, ele conseguiria entrar na universidade sem nenhum problema. As lembranças felizes voltavam a se misturar às dolorosas. Na animada comemoração de despedida da escola, realizada no jardim de um colega de classe, em Schneidhain, ele beijara Stefanie pela primeira vez. Laura quase explodira de raiva e na sua frente se atirara nos braços de Lars, para deixá-lo com ciúme. Mas como ele ainda poderia pensar em Laura se estava com Stefanie nos braços? Ela fora a primeira garota por quem ele realmente tivera de se esforçar. Aquela tinha sido uma experiência totalmente nova para ele. Contudo, as garotas costumavam correr em bando atrás dele, para grande desgosto de seu colega. Durante semanas ele tentara conquistar Stefanie, até que ela finalmente tinha cedido. As quatro semanas seguintes foram as mais felizes de sua vida — até a desilusão, em 6 de setembro. Stefanie havia sido eleita Miss Quermesse, um título bobo, que havia anos era conquistado por Laura. Daquela vez, ela havia sido desbancada por Stefanie. Durante a festa, ele trabalhou com Nathalie e outros colegas na barraca das bebidas e não deixou de observar que Stefanie havia paquerado outros caras até desaparecer de repente. Talvez ele já tivesse bebido mais do que o suficiente. Nathalie percebeu o quanto aquilo o fazia sofrer. “Vá atrás dela”, disse a ele, que tinha saído correndo da barraca. Não teve de procurar por muito tempo e, ao encontrá-la, o ciúme explodiu dentro dele como uma bomba. Como ela podia fazer aquilo com ele, magoá-lo e feri-lo na frente de todo mundo? Tudo só por causa daquele maldito papel principal naquela peça de teatro mais maldita ainda? Tobias afastou a coberta e pulou da cama. Tinha de fazer alguma coisa, trabalhar, de algum modo afastar aquelas lembranças torturantes.

 

Amelie caminhava de cabeça baixa pela garoa. Como todas as manhãs, ela havia recusado a carona oferecida por sua madrasta até o ponto de ônibus, mas agora tinha de se apressar se não quisesse perder o ônibus escolar. Novembro mostrava seu lado menos amigável, com neblina e chuva, mas Amelie gostava do desconsolo sombrio daquele mês. Gostava de caminhar sozinha pelo vilarejo que dormia. Dos fones do seu iPod saía uma música ensurdecedora dos Schattenkinder, uma de suas bandas preferidas de dark wave. Ela tinha passado metade da noite pensando em Tobias Sartorius e nas garotas assassinadas. Na época, Laura Wagner e Stefanie Schneeberger tinham 17 anos, a mesma idade dela agora. E ela morava justamente na mesma casa em que uma vítima de assassinato tinha vivido. Precisava, de todo jeito, saber mais sobre essa garota, que Thies chamara de “Branca de Neve”. O que havia acontecido em Altenhain naquela época?

Um carro parou ao lado dela. Certamente sua madrasta, que, com aquela amabilidade enervante, ainda iria levá-la à beira da loucura. Mas Amelie reconheceu, então, Claudius Terlinden, o chefe de seu pai. Estava com a janela do lado do passageiro abaixada e fazia sinal para que ela se aproximasse. Amelie desligou a música.

— Quer uma carona? — perguntou. — Você vai ficar toda molhada!

Na verdade, a chuva não incomodava Amelie, mas bem que ela gostaria de andar no carro de Terlinden. Gostava do carrão preto, uma Mercedes com bancos de couro claro, cheirando a nova, e ficou fascinada com as sofisticações técnicas que Claudius Terlinden estava lhe apresentando. Por razões inexplicáveis, não ia muito com a cara do vizinho, embora ele, com suas roupas caras, seu carrão e sua ostensiva mansão, fosse o verdadeiro protótipo do ricaço decadente, de quem ela e seus colegas tiravam sarro em casa. Às vezes, Amelie se perguntava se ainda era totalmente normal, pois, nos últimos tempos, sempre que um ser masculino era gentil com ela de alguma forma, ela acabava pensando em sexo. Como o senhor Terlinden reagiria se ela colocasse a mão em sua perna e lhe fizesse uma proposta clara? Só de pensar nisso, precisou se conter para não rir como uma histérica.

— Venha de uma vez! — gritou ele, acenando com a mão. — Entre!

Amelie enfiou os fones no bolso do casaco e sentou-se no banco do passageiro. A pesada porta do carro luxuoso fechou-se com um estalo alto. Terlinden desceu a Waldstraße e sorriu para Amelie.

— O que você tem? — perguntou. — Parece tão pensativa.

Amelie hesitou por um momento.

— Posso perguntar uma coisa ao senhor?

— Claro. Vá em frente.

— O senhor conheceu as duas garotas que desapareceram?

Claudius Terlinden lançou um rápido olhar para ela. Já não sorria mais.

— Por que quer saber disso?

— Por curiosidade mesmo. Estão falando tanto a respeito, desde que aquele homem voltou. De algum modo, acho empolgante.

—Hum. Foi uma coisa triste na época. E é até hoje — respondeu Terlinden. — Claro que conheci as duas garotas. Stefanie era filha da nossa vizinha. E eu também conhecia Laura, desde que ela era pequena. A mãe dela trabalhou em nossa casa como empregada. É simplesmente horrível para os pais o fato de as garotas nunca terem sido encontradas.

— É... — disse Amelie, pensativa. — E elas tinham algum apelido?

— Quem? — Claudius Terlinden pareceu surpreso com a pergunta.

— Stefanie e Laura.

— Não sei. Por que... ah, sim. Stefanie tinha um apelido. As outras crianças a chamavam de Branca de Neve.

— E por quê?

— Talvez por causa do seu sobrenome. Schneeberger . — Terlinden franziu a testa e diminuiu a marcha. O ônibus escolar já estava no ponto, com o pisca-alerta ligado, esperando os poucos alunos que deveria transportar a Königstein.

— Ah, não — lembrou-se Claudius Terlinden em seguida. — Acho que tinha a ver com a peça de teatro que devia ter sido apresentada na escola. Stefanie tinha recebido o papel principal. Ela ia ser a Branca de Neve.

— Ia? — indagou Amelie, curiosa. — Não fez o papel?

— Não. É que ela... bem... desapareceu antes disso.

 

As fatias de pão saltaram da torradeira com um clique. Pia passou manteiga com sal nas duas torradas, acrescentando ainda uma boa camada de Nutella, e juntou as duas metades. Era louca por essa combinação peculiar de doce e salgado, saboreando cada mordida e lambendo dos dedos a mistura de manteiga derretida e Nutella, antes que caísse no jornal aberto à sua frente. O corpo encontrado no dia anterior, no antigo aeródromo, era mencionado em uma nota de cinco linhas. Já ao 11o dia de julgamento de Vera Kaltensee, o Frankfurter Neue Presse dedicava quatro colunas de sua página regional. Naquele dia, às nove horas, Pia tinha de ir ao tribunal regional para prestar depoimento sobre as ocorrências na Polônia, no último verão. Involuntariamente, seus pensamentos deslocaram-se para Henning. No dia anterior, uma xícara de café se transformara em três. Ele conversara tão abertamente com ela como nunca acontecera em seus 16 anos de casamento, mas Pia não tinha nenhuma solução para o seu dilema. Desde a aventura na Polônia, ele tinha um caso com Miriam Horowitz, melhor amiga de Pia; contudo, por razões que, lamentavelmente, ele não lhe detalhara, acabou indo para a cama com sua devota admiradora, a advogada Valerie Löblich. Um deslize, conforme ele assegurara, porém, com consequências fatais, pois Löblich engravidara. Henning estava totalmente estressado com a situação e começou a pensar seriamente em fugir para os EUA. Já fazia anos que a University of Tennesse o atraía com um cargo bem lucrativo e muito interessante do ponto de vista científico. Enquanto Pia ainda refletia sobre os problemas de Henning e, ao mesmo tempo, pensava se deveria se permitir uma segunda bomba de calorias, Christoph saiu do banheiro e sentou-se à sua frente, à mesa da cozinha. Seu cabelo ainda estava úmido, e ele exalava o perfume de sua loção pós-barba.

— Você acha que vai conseguir ir esta noite? — perguntou ele, e bebeu seu café. — Annika ia ficar feliz.

— Se não acontecer nenhum imprevisto, não acho que vá ser problema. — Pia cedeu à tentação e preparou uma segunda torrada. — Preciso prestar um depoimento às nove, no tribunal, mas, além disso, não temos nada urgente.

Christoph sorriu, achando graça da Nutella com manteiga salgada, e deu uma mordida em seu equilibrado e saudável pão preto com queijo cottage. O olhar dele sempre causava uma comichão quente na barriga dela. Eram aqueles seus olhos castanho-escuros que a fascinaram logo em seu primeiro encontro e que até então nada haviam perdido de seu poder de atração. Christoph Sander era um homem impressionante, que não precisava ostentar a própria força. Embora não possuísse a boa aparência irretocável do chefe de Pia, seus traços tinham algo notável, que levava as pessoas a olhar para ele uma segunda vez. Sobretudo seu sorriso, que começava em seus olhos e se expandia por todo o rosto, desencadeava em Pia a necessidade quase irresistível de correr para seus braços.

Christoph e ela se conheceram havia dois anos, quando as investigações sobre um assassinato levaram Pia ao zoológico Opel, em Kronberg. Christoph, diretor do zoológico, agradou-lhe logo à primeira vista — era o primeiro homem para o qual tinha olhos desde que se separara de Henning. A simpatia fora mútua. Inicialmente, Oliver von Bodenstein foi tolo ao considerar Christoph altamente suspeito. Depois que o caso foi resolvido e que Christoph se livrou de toda suspeita, o relacionamento dele com Pia desenvolveu-se bem depressa, o namoro apaixonado acabou se transformando em amor, e havia dois bons anos que eles formavam um casal. Embora cada um tivesse mantido sua própria casa, essa situação mudaria em breve, pois as três filhas de Christoph, que ele criara após a repentina morte de sua mulher, 17 anos antes, já eram independentes: Andrea, a mais velha, trabalhava desde a primavera em Hamburgo; Antonia, a mais nova, vivia mais na casa de Lukas, seu namorado, do que na sua; e agora Annika queria se mudar com o filho para a Austrália, onde morava o pai da criança. Naquela noite, Annika daria na casa de seu pai uma festa de despedida, pois, no dia seguinte, seu avião partiria para Sydney. Pia sabia que Christoph não estava nada feliz. Ele desconfiava do rapaz, que quatro anos antes abandonara Annika grávida. Em sua defesa, Jared Gordon, o ex-namorado de Annika, tinha alegado sobretudo que, na época, ela escondera dele a gravidez e ainda terminara o relacionamento. Mas agora estava tudo bem: nesse meio-tempo, Gordon tinha sido promovido a biólogo marinho e trabalhava em uma estação de pesquisa em uma ilha na Grande Barreira de Recifes; portanto, era quase colega de trabalho de Christoph, que, por fim, acabou dando a bênção, ainda que a contragosto, à sua filha e ao namorado.

Como para Pia estava fora de questão renunciar a Birkenhof, Christoph alugaria sua casa em Bad Soden a partir de 1o de janeiro. Naquela noite, a festa de despedida de Annika era também a de Christoph, que se despediria de sua casa, na qual tinha morado longos anos. Suas coisas já estavam empacotadas, e o transporte dos móveis estava marcado para a segunda-feira seguinte. Até o Departamento de Fiscalização de Obras de Frankfurt dar o sinal verde para a reforma e a ampliação da pequena casa de Pia, os móveis maiores teriam de ficar provisoriamente em um depósito. Sim, Pia estava muito satisfeita com o rumo que sua vida particular havia tomado.

 

Tobias subiu todas as persianas e, à luz do dia, avaliou o estado deplorável do interior da casa. Seu pai tinha saído para fazer compras, e ele começara a limpar as janelas. Justamente quando se ocupava da janela da copa, seu pai voltou e passou mudo e cabisbaixo por ele, antes de entrar na cozinha. Tobias desceu da escada e o seguiu.

— O que aconteceu? — Seu olhar caiu no cesto vazio de compras.

— Eles não me atenderam — respondeu Hartmut Sartorius em voz baixa. — Não tem problema. Vou descer até o supermercado em Bad Soden.

— Mas até ontem você comprava na loja dos Richters, não comprava? — Tobias quis saber. Seu pai confirmou levemente com a cabeça. Sem hesitar, Tobias pegou seu casaco no guarda-roupa, apanhou o cesto, no qual estava a carteira do pai, e deixou a casa. Por dentro, tremia de raiva. Em outros tempos, os Richters haviam sido bons amigos de seus pais, e agora aquela gralha seca simplesmente expulsava seu pai da loja! Não ia deixar passar uma coisa dessa. Quando ia atravessar a rua, percebeu pelo canto do olho algo vermelho na fachada do restaurante e virou-se.

AQUI MORA UM ASSASSINO FILHO DA PUTA.

Era o que estava pichado em vermelho no muro da casa. Tobias fitou por alguns segundos a horrível inscrição, que não poderia passar despercebida a nenhum passante. Seu coração martelava contra o peito, e o nó em seu estômago apertou-se ainda mais. Aqueles malditos! O que pretendiam com isso? Expulsá-lo da casa dos pais? Será que o próximo passo seria incendiá-la? Contou até dez, virou-se novamente e, sem pestanejar, atravessou a rua até a mercearia dos Richters. Pela grande janela, a máfia reunida das fofoqueiras viu-o aproximar-se. Quando o sininho da porta tilintou, elas estavam em pé como em uma peça de teatro: Margot Richter reinava atrás do caixa, eriçada, vil e empertigada como sempre. Atrás dela erigia-se o marido atarracado, que mais parecia querer se proteger do que ameaçar. Tobias considerou cada um dos outros presentes com um só olhar. Conhecia todas, mães de seus amigos, desde o jardim de infância. Bem na frente estava Inge Dombrowski, cabeleireira e rainha das insinuações caluniosas. Atrás dela, Gerda Pietsch, com sua cara de buldogue, duas vezes mais gorda do que antes, e provavelmente também com a língua duas vezes mais ferina. Ao lado dela, Agnes Unger, mãe da Nadja, amargurada e, depois de todos aqueles anos, de cabelo grisalho. Inacreditável que tivesse posto no mundo uma filha tão bonita!

— Bom-dia — disse ele. Um silêncio glacial o confrontou. Por outro lado, ninguém o impediu de andar por entre as gôndolas. No silêncio tenso, o motor das geladeiras produzia um zumbido barulhento. Com toda a calma, Tobias colocou no cesto o que seu pai havia anotado na lista de compras. Ao chegar ao caixa, todos ainda estavam como que congelados em seus lugares. Aparentemente inabalado, Tobias colocou as mercadorias na esteira; porém, Margot Richter, que havia cruzado os braços sobre o peito, não fez nenhuma menção de cobrá-las. O sininho na porta da loja soou, e o motorista do serviço de entregas entrou sem suspeitar de nada. Ele percebeu o clima tenso e ficou parado, hesitante. Tobias não se afastou nem um milímetro. Mediu forças não apenas com Margot Richter, mas também com toda a cidade de Altenhain.

—Deixe ele pagar de uma vez — cedeu Lutz Richter após poucos minutos. Rangendo os dentes, sua mulher obedeceu e registrou em silêncio a compra de Tobias.

— Quarenta e dois e setenta.

Tobias lhe deu uma nota de cinquenta euros, e ela lhe devolveu o troco a contragosto e sem nenhuma palavra de cordialidade. Seu olhar teria feito os mares do sul congelar, mas isso não preocupou Tobias. Na cadeia ele enfrentara outras lutas de poder e, na maioria das vezes, saíra vitorioso.

— Cumpri minha pena e estou de volta. — Encarou os presentes um a um, que, consternados, baixaram os olhos. — Quer vocês gostem, quer não.

 

Pia chegou à delegacia por volta das 11h30, depois de ter prestado depoimento no julgamento de Vera Kaltensee, no tribunal regional de Frankfurt. Como fazia semanas que ninguém sentia necessidade de morrer de maneira suspeita, havia relativamente pouca coisa para fazer na delegacia de homicídios K 11. O esqueleto no tanque subterrâneo do aeródromo de Eschborn era o único caso atual. Os resultados do Departamento de Medicina Legal ainda iam demorar; por isso, Kai Ostermann, agente da Polícia Criminal, revia sem muita pressa os casos de desaparecimento dos últimos anos. Ajuda, ele não tinha. Na segunda-feira, o colega Frank Behnke pedira dispensa para a semana inteira. Ao cair da bicicleta, tinha sofrido ferimentos no rosto e contusões. O fato de o agente Andreas Hasse também estar doente não surpreendia ninguém. Havia anos que ele pedia para ser dispensado algumas semanas ou alguns meses por motivo de doença. Os agentes da K11 já estavam preparados para se virar sem ele, que não fazia falta a ninguém. Pia encontrou sua colega mais nova, Kathrin Fachinger, no corredor, junto à máquina de café, onde ela estava batendo papo com a secretária da doutora Nicola Engel, superintendente da Polícia Criminal. Os tempos em que Kathrin costumava circular com blusas cheias de babados e calça xadrez tinham passado. Havia trocado seus óculos redondos de coruja por outros de um modelo moderno e facetado, e recentemente vinha usando jeans justíssimos, botas de salto alto e pulôveres curtos, que valorizavam perfeitamente sua figura esbelta e invejável. Pia não conhecia a razão para essa mudança, e novamente lhe ocorreu como sabia pouco da vida particular de suas colegas. Seja como for, não havia dúvida de que a jovem inexperiente da seção tinha ganhado autoconfiança.

— Pia! Espere! — chamou Kathrin, e Pia parou.

— O que foi?

Kathrin olhou ao redor como se fosse uma conspiradora.

— Ontem à noite estive em Sachsenhausen com uns amigos — disse em voz baixa. — Você não vai acreditar em quem eu vi!

— Teria sido o Johnny Depp? — zombou Pia. Todos na K11 sabiam que Kathrin era louca pelo ator americano.

— Não, vi o Frank — prosseguiu Kathrin, imperturbável. — Ele está trabalhando em um bar, em Klapperkahn, e está tudo, menos doente.

— Não diga!

— Bom, agora não sei o que devo fazer. Na verdade, eu devia contar para o chefe, não devia?

Pia franziu a testa. O policial que quisesse ter um trabalho extra precisaria apresentar um requerimento e esperar pela autorização. O trabalho em um bar com fama duvidosa certamente não estava entre aqueles que seriam autorizados. Se Kathrin tivesse mesmo visto Behnke, ele correria o risco de receber uma advertência, uma multa ou até mesmo um processo disciplinar.

— Talvez ele só estivesse substituindo um colega. — Pia não simpatizava muito com seu colega Behnke, mas ela não sabia direito quais seriam as consequências de uma acusação oficial.

— Não estava, não. — Kathrin abanou a cabeça. — Ele me viu e logo partiu pra cima de mim. Me acusou de espioná-lo. Que absurdo! E depois esse babaca ainda disse que se eu abrisse o bico iria me arrepender.

Naturalmente, Kathrin estava muito ofendida e brava. Pia não duvidou nem por um segundo de seu relato. Aquela reação era típica de seu colega preferido. Behnke tinha tanta diplomacia quanto um pitbull.

— Você já falou alguma coisa para o Schneider? — indagou Pia.

— Não. — Kathrin abanou a cabeça. — Mas eu queria ter contado. Estou tão irritada com isso!

— Imagino. O Frank tem mesmo o dom de irritar as pessoas. Deixe que eu falo com o chefe. Talvez dê para acertar as coisas discretamente.

— Mas por quê? — perguntou Kathrin, indignada. — Por que todo o mundo protege esse babaca? Ele faz o que quer, descarrega seu mau humor na gente e nada acontece.

Ela estava dizendo exatamente o que Pia pensava. Por alguma razão, Frank Behnke tinha liberdade para fazer o que bem entendesse. Nesse momento, Bodenstein entrou no corredor.

Pia olhou para Kathrin.

— Você deve saber o que está fazendo — disse.

— Sei mesmo — respondeu Kathrin, e dirigiu-se decidida para Bodenstein. — Preciso falar rapidamente com o senhor, chefe. Em particular.

 

Amelie tinha decidido que as investigações sobre as garotas assassinadas em Altenhain obviamente tinham uma prioridade muito maior do que a escola e, por isso, depois da terceira aula, fez a professora acreditar que estava se sentindo mal. Agora estava sentada à sua mesa, diante de seu laptop. Escreveu o nome do filho do vizinho no Google e obteve centenas de resultados. Com fascínio crescente, leu os relatos da imprensa sobre os acontecimentos do verão de 1997 e o debate judicial que condenou Tobias Sartorius a dez anos de prisão. Tratava-se de um processo baseado em provas circunstanciais, pois os corpos das moças nunca foram encontrados. Foi justamente isso o que pesou contra Tobias; seu silêncio acabou agravando sua sentença. Amelie olhou as fotos que mostravam um rapaz de cabelos escuros e traços ainda juvenis, nos quais era possível prever o homem que ele seria um dia. Tobias Sartorius devia ser bem bonito atualmente. Nas imagens ele aparecia algemado, mas não escondia o rosto sob um casaco nem atrás de alguma pasta; ao contrário, olhava diretamente para as câmeras. Como um “assassino frio”, diziam, arrogante, sem sentimentos e cruel.

“Os pais das moças assassinadas constituíram parte civil no julgamento de Tobias S., filho do dono de um restaurante em um vilarejo em Vordertaunus. Mesmo a súplica desesperada de Andrea W. e Beate S. não impressionou o estudante que se formou na escola com excelentes notas. Ao ser indagado sobre o que havia feito com o corpo das duas moças, S. se calou. Sua inteligência foi atestada como acima da média por um parecer psicológico. Tática ou arrogância? Mesmo quando a juíza S. propôs transformar a acusação de homicídio doloso de Stefanie S. em homicídio culposo, o jovem persistiu em seu silêncio. A total falta de empatia surpreendeu até mesmo os espectadores mais experientes. O Ministério Público não tem dúvidas de sua culpa, uma vez que a série de indícios e a reconstituição do crime estão completas. Embora anteriormente S. tenha tentado provar sua inocência caluniando outras pessoas e alegando lapsos de memória, o tribunal não se deixou enganar. Tobias recebeu a sentença sem nenhuma emoção aparente, e o tribunal recusou-se a rever o processo.”

Amelie passou os olhos por outros relatos semelhantes sobre o processo, até finalmente encontrar um artigo que descrevia acontecimentos anteriores. Na noite de 6 para 7 de setembro de 1997, Laura Wagner e Stefanie Schneeberger desapareceram sem deixar pistas. Altenhain comemorava sua festa paroquial, e o vilarejo inteiro estava na rua. Em pouco tempo, Tobias Sartorius caiu no foco das investigações, pois os vizinhos tinham observado que, à noite, ambas as moças haviam entrado na casa dos pais dele, mas de lá não saíram mais. Com Laura Wagner, sua ex-namorada, Tobias discutira de forma violenta à porta de casa. Ambos haviam consumido grande quantidade de bebida alcoólica na quermesse. Pouco depois, chegara Stefanie Schneeberger, atual namorada de Tobias. Ele próprio declarara mais tarde que terminara com ela naquela noite e que, por desespero, ainda bebera em seu quarto quase uma garrafa inteira de vodca. Já no dia seguinte, os cães da polícia encontraram vestígios de sangue no terreno dos Sartorius; o porta-malas do carro de Tobias estava sujo de sangue e, além disso, também foram encontrados resquícios de sangue e pele, que poderiam ser atribuídos às moças, na roupa e na casa de Tobias. Testemunhas ainda viram Tobias à noite, ao volante de seu carro, passando em hora avançada pela Hauptstraße. Por fim, em seu quarto estava guardada a mochila de Stefanie Schneeberger, e o colar de Laura Wagner havia sido encontrado embaixo de uma bacia na leiteria. Esses acontecimentos eram precedidos por uma história passional: Tobias deixara Laura por Stefanie; depois, fora Stefanie quem terminara com ele. Portanto, a grande quantidade de álcool consumida por Tobias teria agido como catalisador para os assassinatos. Embora tenha negado até o último dia do julgamento que estivesse envolvido no desaparecimento das moças, o tribunal não aceitou seus supostos lapsos de memória, tampouco apareceram testemunhas de defesa. Ao contrário. Seus amigos declararam no tribunal que Tobias era cabeça quente, se enfurecia com frequência e estava acostumado a ter as garotas aos seus pés — era bem possível que, por frustração, tivesse reagido mal ao final do namoro com Stefanie. Ele não teve a menor chance.

Justamente isso era o que aumentava a curiosidade de Amelie, que odiava a injustiça mais do que tudo, pois, muitas vezes, ela própria já tinha sido vítima de acusações injustas. Podia imaginar como Tobias deve ter se sentido se suas declarações de inocência fossem mesmo verdadeiras. Ela iria continuar suas investigações. Como, exatamente, ainda não sabia. Mas primeiro tinha de conhecer Tobias Sartorius.

 

Cinco e vinte. Ele ainda tinha de esperar meia hora na plataforma até os outros rapazes aparecerem e talvez o levarem para o ensaio no centro juvenil. Nico Bender tinha faltado ao treino de futebol só para não se desencontrar deles, caso chegassem de metrô, às cinco para as seis, vindos de Schwalbach. Embora ele adorasse jogar futebol, sua turma e sua banda eram muito mais importantes. Antes haviam sido amigos, mas desde que seus pais o obrigaram a ir à escola em Königstein em vez de Schwalbach, ele já não era exatamente um deles. Na banda, ele era muito melhor do que Mark ou Kevin, pois sabia tocar muito bem bateria. Nico suspirou e observou o homem de barba e boné que havia meia hora estava em pé e imóvel no fim da plataforma. Apesar da chuva, ele não foi se sentar a seu lado no ponto; para ele não parecia fazer diferença ficar molhado. O metrô de Frankfurt chegou. Oito vagões na hora do rush. Será que ele tinha se sentado em um bom lugar? Se os rapazes estivessem nos vagões da frente, talvez ele os perdesse de vista. As portas se abriram, as pessoas desembarcaram, abriram os guarda-chuvas e correram com o pescoço encolhido até a passarela ou em direção à passagem subterrânea. Seus colegas não estavam no metrô. Nico se levantou e caminhou devagar ao longo da plataforma, onde novamente viu o homem de boné. Ele seguiu uma mulher em direção à passarela, falou com ela. Ela parou, mas depois pareceu ficar com medo, pois deixou cair sua sacola de compras e saiu correndo. O homem correu atrás dela, pegou-a pelo braço, e ela revidou com um golpe. Nico ficou petrificado. Aquilo parecia um filme! A plataforma voltou a ficar vazia, as portas dos vagões se fecharam, e o metrô partiu. Então ele viu o casal na passarela. Parecia que iam brigar. E, de repente, a mulher sumiu. Nico ouviu o chiado de freios, depois um ruído abafado, seguido de um barulho metálico e de estilhaços. A faixa infinita de luzes do outro lado dos trilhos vinha entrecortada. Atordoado, Nico compreendeu que tinha acabado de testemunhar um crime. O homem simplesmente tinha empurrado a mulher por cima da grade da passarela, jogando-a lá embaixo, na movimentada avenida! E agora estava vindo a toda velocidade em sua direção, o olhar para baixo e a bolsa da mulher na mão. O coração de Nico batia na garganta. O medo tomou conta dele. Se o sujeito percebesse que ele o tinha observado, não perderia tempo. Em pânico, Nico saiu correndo. Como uma lebre, fugiu para a passagem subterrânea e correu o máximo que suas pernas aguentavam até alcançar sua bicicleta, que ele deixara do lado do trilho que dava para Bad Soden. Já não pensava nos colegas, na banda nem no centro juvenil. Deu impulso em sua bicicleta e já estava pedalando ofegante quando o homem subiu a escada e lhe gritou alguma coisa. Nico arriscou um olhar por cima do ombro e constatou aliviado que ele não o seguia. Mesmo assim, passou a toda velocidade por Eichwald, até chegar à sua casa em segurança.

 

O cruzamento sob a estação de metrô era uma cena de devastação. Sete carros estavam engavetados, e os bombeiros tentavam desfazer o emaranhado de chapas de metal com maçaricos de corte e maquinário pesado. Além disso, jogavam areia nas poças de gasolina, que se espalhara pela pista. Várias ambulâncias estavam paradas em fila para socorrer as vítimas do acidente. Apesar do frio e da chuva, curiosos se aglomeravam atrás das fitas que isolavam o local e, ávidos de sensações, acompanhavam a terrível cena. Bodenstein interrogou várias pessoas até deparar com o agente Koch, do Distrito Policial de Eschborn, que fora um dos primeiros a chegar ao local do acidente.

— Já vi muita coisa nesta vida, mas esta realmente foi a pior. — O horror estava claramente estampado no rosto do policial experiente. Em poucas palavras, ele explicou a situação a Bodenstein e a Pia. Às 17h26, uma mulher havia caído da passarela bem em cima do para-brisa de uma BMW que vinha de Schwalbach. Sem frear, o motorista jogara abruptamente o carro para a esquerda, colidindo de frente com os carros que vinham no sentido contrário. De ambos os lados houve engavetamentos. Um motorista que estava parado no farol vermelho, em Sulzbach, diz ter visto uma mulher sendo jogada por outra pessoa por cima da grade.

— O que aconteceu com a mulher? — quis saber Pia.

— Está viva — respondeu o agente Koch, e acrescentou: — Ainda. Os paramédicos estão cuidando dela em uma ambulância.

— Nos comunicaram uma morte.

— O motorista da BMW sofreu um infarto fulminante. Talvez por causa do susto. As tentativas de reanimá-lo foram inúteis. — O agente Koch acenou com a cabeça na direção do centro do cruzamento. Ao lado da BMW totalmente destruída havia um corpo. Um par de sapatos sobressaía sob uma coberta molhada. À margem da barreira começou um tumulto. Dois policiais detiveram uma mulher de cabelos grisalhos que, desesperada, tentava entrar na área isolada. O rádio do agente Koch emitiu um chiado, uma voz se fez ouvir.

— É a esposa do motorista da BMW — disse com voz tensa a Bodenstein e a Pia. — Com licença.

Disse alguma coisa em seu rádio e preparou-se para atravessar o campo de batalha. Pia não invejou a tarefa que ele tinha pela frente. Informar parentes sobre a morte de uma pessoa estava entre os encargos mais difíceis da profissão; nem formação psicológica nem anos de experiência tornavam isso mais fácil.

— Vá ver a mulher — disse Bodenstein. — Deixe que converso com as testemunhas.

Pia acenou com a cabeça e foi para a ambulância onde a mulher ferida estava sendo tratada. A porta traseira se abriu e o paramédico desceu. Pia o conhecia de missões anteriores.

— Ah, senhora Kirchhoff — cumprimentou-a. — Conseguimos estabilizá-la e agora vamos levá-la para o hospital de Bad Soden. Ela teve várias fraturas, ferimentos no rosto, talvez também ferimentos internos. Não está em condições de falar.

— Poderia me dizer alguma coisa sobre a identidade dela?

— Ela estava com uma chave de carro no... — O paramédico se calou e deu um passo para trás, pois a ambulância começou a se movimentar, e a sirene tornava qualquer conversa impossível. Pia ainda conversou rapidamente com ele, depois agradeceu e foi encontrar seus colegas. No bolso da mulher ferida encontraram apenas uma chave de carro, nada mais. A mulher, de cerca de 50 anos, não trazia nenhuma bolsa consigo. Nas buscas perto da passarela e da plataforma foi encontrada apenas uma sacola de compras cheia de alimentos. Nesse meio-tempo, Bodenstein conversava com o motorista que vira a queda da mulher. Ele jurou de pés juntos que alguém a empurrou — apesar da escuridão e da chuva, ele tinha certeza de que era um homem.

Bodenstein e Pia subiram a escada que levava à passarela.

— Ela caiu daqui. — Pia olhou para o ponto marcado da passarela. — Que altura você acha que tem?

—Hum... — Bodenstein lançou um olhar por cima da grade que chegava a seu quadril. —Cinco, seis metros. Mal dá para acreditar que ela tenha sobrevivido. Seja como for, o carro passou a certa velocidade.

De cima, a visão dos carros destruídos, das luzes azuis e laranja piscantes e dos policiais com roupas refletoras tinha algo de surreal. A chuva caía oblíqua à luz dos faróis. O que teria passado pela cabeça daquela mulher quando ela perdeu o equilíbrio e se deu conta de que já não haveria salvação? Ou será que tudo havia sido rápido demais para que ela pensasse em alguma coisa?

— Ela teve um bom anjo da guarda — observou Pia e estremeceu. — Tomara que ele continue com ela.

Virou-se e, seguida por Bodenstein, caminhou até a plataforma. Quem era essa mulher? De onde estava vindo e para onde queria ir? Pouco antes estivera sentada no metrô, sem imaginar o que lhe iria acontecer e, minutos depois, estava em uma ambulância, com ossos fraturados. As coisas podiam acontecer tão rápido! Um passo em falso, um encontro inoportuno com a pessoa errada — e nada mais era como antes. O que o homem queria com ela? Seria um ladrão? Assim parecia, pois Bodenstein achou curioso que a mulher não trouxesse consigo nenhuma bolsa.

— Toda mulher tem uma bolsa — disse a Pia. — Ela tinha feito compras; portanto, usou dinheiro, uma carteira.

— Você acha mesmo que o homem a roubaria às cinco e meia numa plataforma cheia de gente? — Pia deixou os olhos vagar pelos trilhos, à esquerda e à direita.

— Talvez a ocasião fosse favorável. Com esse tempo, todo mundo quer correr para casa. Ele já podia estar atrás dela dentro do metrô, porque antes a teria visto no caixa eletrônico.

—Hum. — Pia apontou para a câmera que vigiava a plataforma. — Precisamos dar uma olhada nas gravações. Se tivermos sorte, o ângulo da câmera deve ser grande o suficiente para que a gente consiga ver a passarela.

Bodenstein concordou com a cabeça, pensativo. Naquela noite, duas famílias iam ter de enfrentar más notícias só porque um ladrão de ocasião quis roubar uma bolsa? Não que isso mudasse alguma coisa na trágica experiência, mas a Bodenstein parecia terrível que morte e mutilação resultassem de uma causa tão ridícula. Dois funcionários saíram da passagem subterrânea. No estacionamento ao lado do declive, encontraram um Honda Civic vermelho, ao qual a chave que estava no bolso da mulher se ajustava. A verificação da placa mostrou que a proprietária do veículo morava em Neuenhain. Seu nome era Rita Cramer.

 

Bodenstein estacionou sua BMW com habilidade em uma vaga diante do feio prédio em Neuenhain, bairro de Bad Soden. Pia precisou procurar por algum tempo até encontrar o nome de Rita Cramer entre as quase cinquenta plaquinhas de identificação junto às campainhas. Ninguém respondeu. Então Pia tentou aleatoriamente com outros vizinhos, até que, por fim, alguém os deixou entrar. Embora fosse feio por fora, o prédio era muito bem cuidado por dentro. No quarto andar, Bodenstein e Pia eram aguardados por uma senhora de idade, que examinou a identidade de ambos com um misto de desconfiança e curiosidade. Impaciente, Pia olhou o relógio. Quase nove! Ela havia prometido a Christoph que iria à festa de Annika, e não dava para prever quanto tempo aquela situação ia demorar. Na verdade, naquela noite ela deveria estar de folga. Interiormente, xingou Hasse e Behnke.

A vizinha tinha certa amizade com Rita Cramer e possuía a chave de seu apartamento, que foi logo buscar depois que Bodenstein e Pia mostraram suas credenciais e lhe contaram do acidente. Infelizmente, a vizinha não sabia se Rita Cramer tinha parentes. Em todo caso, nunca recebia visitas. O apartamento era igualmente deprimente. Apesar de muito limpo e cuidadosamente arrumado, contava com poucos móveis. Nenhum indício da personalidade de Rita Cramer nem sinal de fotos particulares. Das paredes pendiam quadros que são vendidos em lojas de departamentos por uma ninharia. Bodenstein e Pia andaram pelo apartamento, abriram as portas dos armários e as gavetas, na esperança de encontrar algum indício de parentes ou alguma razão para o ataque. Nada.

— Tão anônimo quanto um quarto de hotel — constatou Bodenstein. — Isso não existe.

Pia entrou na cozinha. Seu olhar pousou na luz piscante da secretária eletrônica. Apertou a tecla de reprodução. Infelizmente, quem ligara não deixou nada registrado, apenas desligou. Mas Pia anotou o número que brilhava no display. Um prefixo de Königstein. Pegou seu celular e digitou o número. Após o terceiro toque, atendeu uma mensagem eletrônica.

— Um consultório médico — disse ela. — Já não tem ninguém lá.

— Tem alguma outra ligação registrada? — perguntou Bodenstein. Pia apertou a tecla, depois balançou negativamente a cabeça.

— Estranho que uma pessoa consiga viver assim. — Voltou a colocar o telefone no gancho e deu uma olhada no calendário da cozinha, que desde maio não tinha suas folhas viradas. Nele não havia nenhuma anotação. No quadro de cortiça estavam presos apenas o folheto de um serviço de entrega de pizzas e uma cópia já amarelada de uma multa por estacionamento proibido, em abril. Nada daquilo parecia evocar uma vida realizada e feliz.

— Amanhã ligamos para esse consultório médico — decidiu Bodenstein. — Hoje não vamos conseguir mais nada. Vou dar mais uma passada no hospital para saber do estado da senhora Cramer.

Saíram do apartamento e devolveram a chave à vizinha.

— Você poderia me deixar na casa do Christoph antes de ir para o hospital? — perguntou Pia quando já desciam de elevador. — Fica no caminho.

— Ah, claro, a festa.

— Como você sabe? — Pia deu um empurrão na porta de vidro e quase bateu nas costas de um homem, que estava curvado, examinando as plaquinhas das campainhas.

— Desculpe — disse ela. — Não vi o senhor.

Pia conseguiu perceber um olhar fugidio em seu rosto e sorriu sem graça.

— Não foi nada — respondeu o homem, e eles continuaram a caminhar.

— Estou muito bem informado sobre meus colaboradores. — Bodenstein levantou a gola do sobretudo. — Você sabe disso.

Pia se lembrou da conversa matutina com Kathrin Fachinger. A ocasião era ideal.

—Bom, então você também sabe que o colega Behnke tem um trabalho paralelo, que certamente não recebeu autorização oficial.

Bodenstein franziu a testa e olhou rapidamente para ela.

— Não, até hoje de manhã eu não sabia — admitiu. — Por acaso você já estava sabendo?

— Sou a última pessoa a quem Behnke contaria uma coisa dessas — respondeu Pia e bufou com desdém. — Ele sempre faz segredo da sua vida privada, como se ainda estivesse no SEK .

Bodenstein examinou Pia sob a luz pálida do poste.

— Ele está com sérios problemas — disse então. — Sua mulher o deixou há um ano, ele não conseguiu continuar a pagar a prestação do apartamento e teve de entregá-lo.

Pia parou e ficou calada, olhando para ele. Então era essa a explicação para o comportamento de Behnke no passado, para seu constante nervosismo, seu mau humor e sua agressividade. Mesmo assim, ela não sentia nenhuma compaixão por ele, só irritação.

— Você está protegendo esse sujeito de novo — constatou. — O que há entre vocês para que ele tenha essa liberdade para fazer o que bem entende?

— Ele não tem liberdade para fazer o que bem entende — replicou Bodenstein.

— Então por que ele pode se permitir tantos erros e tanta negligência sem sofrer as consequências?

— Eu quis acreditar que, de algum modo, ele fosse conseguir retomar as rédeas da própria vida se eu não o pressionasse tanto. — Bodenstein encolheu os ombros. — Mas se ele realmente tiver um trabalho paralelo não autorizado, não posso fazer mais nada por ele.

— Você vai informar a Engel, então?

— Receio que seja minha obrigação — Bodenstein suspirou e se pôs novamente em movimento. — Mas antes vou ter uma conversa com o Frank.

 

Sábado, 8 de novembro de 2008

Ah, meu Deus! — A doutora Daniela Lauterbach ficou realmente assustada quando Bodenstein lhe explicou como conseguira seu número de telefone. Apesar do bronzeado, ficou pálida. — A Rita é uma grande amiga minha. Até ela se separar alguns anos atrás, éramos vizinhas.

— Uma testemunha teria visto a senhora Cramer ser empurrada por cima da grade da passarela — disse Bodenstein. — Por isso, estamos investigando uma tentativa de homicídio contra pessoa desconhecida.

— Isso é horrível! Coitada da Rita! Como ela está?

— Nada bem. Seu estado é grave.

A doutora Daniela juntou as mãos como em oração e, abalada, balançou a cabeça. Bodenstein calculou que ela estaria no final dos 40 ou início dos 50 anos. Tinha uma aparência bastante feminina, os cabelos escuros e brilhantes atados em um coque simples. Com seus olhos castanhos e calorosos, contornados por rugas de expressão, irradiava cordialidade e algo maternal. Certamente era daquelas médicas que ainda dedicavam tempo a ouvir os pacientes e suas necessidades. O espaçoso consultório ficava na zona de pedestres de Königstein, em cima de uma joalheria. Tinha salas amplas e claras, com pé-direito alto e assoalho.

— Vamos ao meu escritório — propôs a médica. Bodenstein a seguiu em uma ampla sala, dominada por uma imponente escrivaninha antiga. Nas paredes, quadros expressionistas em tamanho grande e cores sombrias formavam um contraste inabitual, ainda que interessante, com o ambiente agradável.

— Posso lhe oferecer um café?

— Ah, sim, obrigado. — Bodenstein sorriu e fez que sim com a cabeça. — Hoje ainda não consegui tomar café.

— O senhor deve ter se levantado cedo. — Daniela Lauterbach colocou uma xícara sob a saída da máquina de café expresso automática, que estava em um aparador ao lado de vários livros especializados, e apertou um botão. O moedor de café começou a fazer barulho, e o saboroso odor de café recém-moído se espalhou pelo ar.

— A senhora também — respondeu Bodenstein. — E hoje é sábado.

Na noite anterior, já era tarde quando ele deixara um recado na secretária eletrônica do consultório, e naquele dia, às sete e meia, ela retornara sua ligação.

— Nas manhãs de sábado faço visitas em domicílio. — Ela lhe estendeu uma xícara de café, e ele recusou leite e açúcar, agradecendo. — E depois geralmente ainda tenho de dar uma olhada em uma porção de papéis que, infelizmente, só aumentam a cada dia. Preferiria usar o tempo para me dedicar aos meus pacientes.

Com a mão, convidou-o a dirigir-se à escrivaninha, e Bodenstein sentou-se na poltrona de visitas. As janelas atrás da escrivaninha, que davam para o jardim da clínica, ofereciam uma vista magnífica das ruínas do castelo de Königstein.

— Como posso ajudá-lo? — perguntou Daniela Lauterbach, depois de tomar um gole de sua xícara de café.

— No apartamento da senhora Cramer, infelizmente não encontramos nem um único vestígio de algum parente — respondeu Bodenstein. — Mas deve haver alguém que possamos avisar do acidente.

— A Rita continua tendo um bom relacionamento com o ex-marido — disse Daniela. — Tenho certeza de que ele cuidará dela. — Balançou novamente a cabeça, preocupada. — Quem pode ter feito isso? — Com seus olhos castanho-claros, olhou pensativa para Bodenstein.

— É o que também queremos saber. Ela tinha inimigos?

— A Rita? Deus do céu, não! É uma pessoa tão adorável e já teve de engolir muita coisa na vida. Apesar disso, nunca foi amarga.

— Engolir? O que quer dizer com isso? — Bodenstein examinou a médica com atenção. Daniela Lauterbach lhe parecia extremamente simpática com seu jeito tranquilo e calmo. Seu médico particular despachava os pacientes como se estivesse em uma linha de montagem. Sempre que Bodenstein tinha de ir a uma consulta com ele acabava ficando nervoso com a pressa com que o exame era feito.

— Seu filho foi preso — respondeu a doutora Lauterbach, e suspirou. — Não foi fácil para a Rita. Por causa disso, seu casamento também chegou ao fim.

Bodenstein, que tinha acabado de tomar um gole de café, parou.

— O filho da senhora Cramer está na prisão? Por quê?

— Estava, faz dois dias que foi solto. Há dez anos ele matou duas moças.

Bodenstein fez um esforço para se lembrar, mas nenhum jovem chamado Cramer e acusado de duplo homicídio lhe ocorreu.

— Depois da separação, Rita voltou a usar o nome de solteira, para não ser associada a esse terrível acontecimento — esclareceu Daniela Lauterbach, como se tivesse lido o pensamento de Bodenstein. — Antes, seu sobrenome era Sartorius.

 

Pia mal podia acreditar no que estava vendo. Incrédula, passou os olhos pelo texto escrito em sóbrio alemão burocrático, impresso em papel cinza. Seu coração dera um pulo de alegria assim que ela encontrou a tão esperada carta do Departamento de Fiscalização de Obras da cidade de Frankfurt em sua caixa de correspondência, mas o que foi obrigada a ler não era absolutamente o que esperava. Desde que Christoph e ela decidiram morar juntos em Birkenhof, planejavam a reforma da pequena casa que, se para duas pessoas já era um pouco apertada, dificilmente acomodaria possíveis visitas. Pia tinha pedido a um amigo arquiteto que fizesse o projeto da reforma e o requerimento prévio para a construção. Desde então, havia esperado com impaciência por uma resposta, pois queria dar início às obras o mais rápido possível. Leu o conteúdo da carta uma segunda e uma terceira vez, depois a colocou de lado, levantou-se da mesa e foi para o banheiro. Após uma ducha rápida, enrolou uma toalha no corpo e olhou-se aborrecida no espelho. Deixara a festa às três e meia; mesmo assim, levantara às sete para passear com os cachorros e alimentar os outros animais. Depois, aproveitou que não estava chovendo para treinar os dois potros no redondel e limpar os boxes. Obviamente não estava preparada para longas noites de festa. Aos 41 anos, já não dava para passar a noite festejando com a mesma facilidade que aos 21. Penteou pensativa seus longos cabelos louros e amarrou-os em duas tranças. De todo modo, depois dessa má notícia já não conseguia pensar em dormir. Pia andou pela cozinha, pegou a desagradável carta da mesa e foi para o quarto.

— Oi, amor — murmurou Christoph e piscou sonolento sob a luz. — Que horas são?

— Quinze para as dez.

Ele se endireitou e massageou as têmporas gemendo. Contrariamente ao que costumava fazer, na noite anterior bebera bastante.

— A que horas mesmo é que parte o avião da Annika?

— Hoje à tarde, às duas. Ainda temos muito tempo.

— O que é isto aí? — perguntou ao ver a carta na mão de Pia.

— Uma catástrofe — respondeu ela, triste. — O Departamento de Fiscalização de Obras escreveu.

— E então? — Christoph esforçou-se para acordar.

— É uma ordem de demolição!

— Como é que é?

— Os proprietários anteriores construíram a casa sem autorização. Dá para imaginar uma coisa dessas? E agora, com o nosso requerimento, levantamos a lebre! Só foram autorizados uma cabana no jardim e um estábulo. Não entendo isso.

Ela se sentou na borda da cama e abanou a cabeça.

— Faz alguns anos que moro aqui. O serviço público de limpeza retira o lixo, pago água e taxa de esgoto. O que eles pensavam? Que eu morasse em uma cabana de jardim?

— Me deixe ver. — Christoph coçou a cabeça e leu a correspondência oficial.

— Vamos recorrer. Isso não está certo. O vizinho constrói um galpão enorme, e a gente não pode reformar uma casinha!

O celular tocou sobre o criado-mudo. Pia, que naquele dia estava em serviço de prontidão, pegou-o sem grande entusiasmo. Por um minuto, ouviu calada.

— Já estou indo — respondeu ela, depois encerrou a conversa e jogou o celular na cama. — Droga.

— Vai ter de sair?

— Vou, infelizmente. Um rapaz ligou para os colegas de Niederhöchstadt e disse que ontem à noite viu na plataforma do metrô quando um homem empurrou a mulher por cima da grade.

Christoph passou um braço por cima do seu ombro e puxou-a para si. Pia deu um longo suspiro. Ele beijou sua face e, depois, sua boca. Esse rapaz não podia ter esperado até a tarde para dar sua informação? Pia não tinha vontade alguma de trabalhar naquele momento. Na verdade, quem deveria estar em turno de prontidão naquele fim de semana era o Behnke. Mas é claro que estava doente. E o Hasse também estava doente. Que fossem para o inferno esses dois babacas! Pia deixou-se cair para trás e acomodou-se ao corpo de Christoph, ainda aquecido pelo sono. A mão dele deslizou sob a toalha e acariciou sua barriga.

— Agora esqueça esse papel — sussurrou ele e beijou-a novamente. — Vamos encontrar uma solução para isso. Não vão demolir a casa tão rápido assim.

— Os problemas não acabam e estão por todo canto — murmurou Pia, e decidiu que o rapaz ainda podia esperar mais uma hora no distrito de Niederhöchstadt.

 

Bodenstein estava sentado em seu carro, estacionado na frente do hospital de Bad Soden, e esperava por sua colega. Daniela Lauterbach deu-lhe o endereço do ex-marido de Rita Cramer em Altenhain, mas antes de dar a má notícia ao homem, ainda quis passar mais uma vez no hospital para saber do estado de Rita. Ela havia sobrevivido à primeira noite. Após uma operação, estava em coma induzido na unidade de terapia intensiva. Eram onze e meia quando Pia estacionou a seu lado, desceu do seu carro e contornou o dele a passos largos, evitando as poças.

— O rapaz conseguiu fazer uma descrição bastante precisa do homem. — Ela se sentou no banco do passageiro e afivelou o cinto de segurança. — Se o Kai conseguir extrair uma foto boa do vídeo de vigilância, vamos ter uma imagem para a imprensa divulgar o homem procurado.

— Ótimo. — Bodenstein deu a partida no motor. Havia pedido a Pia que fosse com ele até a casa do ex-marido de Rita. Durante a curta viagem a Altenhain, ele lhe contou a conversa que teve com a doutora Daniela Lauterbach. Pia esforçou-se para se concentrar. Estava muito mais preocupada com a carta do Departamento de Fiscalização de Obras. Ordem de demolição! Ela havia contado com tudo, menos com isso! E se a prefeitura cumprisse a ordem e eles fossem obrigados a demolir a casa? Onde Christoph e ela iam morar?

— Você está me ouvindo? — perguntou Bodenstein.

—Estou, claro — respondeu Pia. — Sartorius. Vizinha. Altenhain. Sinto muito. Eram quatro horas quando voltamos para casa.

Ela bocejou e fechou os olhos. Estava morta de cansada. Infelizmente não possuía o mesmo autocontrole de ferro de Bodenstein. Ele nunca se deixava abater, nem mesmo após noites em claro e investigações exaustivas. Por acaso ela já o tinha visto bocejar?

— O caso foi manchete há oito anos — ouviu seu chefe dizer. — Tobias Sartorius foi condenado à pena máxima por homicídio doloso e culposo, em um processo baseado apenas em provas circunstanciais.

— Ah, sei — murmurou ela. — Me lembro vagamente. Duplo homicídio sem corpos. O cara ainda está preso?

— Não. Tobias Sartorius foi solto na quinta-feira. E está de volta a Altenhain, na casa do pai.

Pia refletiu por alguns segundos, depois abriu os olhos.

— Você acha que poderia haver alguma relação entre o fato de ele ser solto e o atentado contra sua mãe?

Bodenstein lançou-lhe um olhar risonho.

— É inacreditável! — disse ele.

— O quê?

— Sua perspicácia não a abandona nem quando você está caindo de sono.

— Estou totalmente acordada — defendeu-se Pia, e refreou com a máxima força de vontade um novo bocejo.

Passaram pela placa de Altenhain e chegaram ao endereço na Hauptstraße, que Daniela Lauterbach lhes anotara. Bodenstein entrou no estacionamento descuidado diante do antigo restaurante. Naquele momento, um homem estava justamente ocupado em cobrir com tinta branca uma pichação em vermelho na fachada do edifício, em que se lia: AQUI MORA UM ASSASSINO FILHO DA PUTA. As letras vermelhas ainda transpareciam sob a tinta branca. Na calçada em frente à entrada do sítio, três mulheres de meia-idade estavam paradas.

— Seu assassino! — ao abrirem a porta para descer do carro, Bodenstein e Pia ouviram uma delas berrar. — Suma daqui, seu maldito! Senão você vai ver só!

Ela cuspiu no chão.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou Bodenstein, mas as três mulheres não lhe deram atenção e se afastaram depressa. O homem havia ignorado totalmente os xingamentos. Bodenstein o cumprimentou educadamente, apresentou-se e apresentou Pia.

— O que aquelas mulheres queriam com o senhor? — quis saber Pia, curiosa.

— Pergunte a elas — respondeu o homem asperamente. Ele a considerou com um olhar desinteressado e continuou seu trabalho. Apesar do frio, vestia apenas uma camiseta de manga comprida, jeans e botas de trabalho.

— Gostaríamos de falar com o senhor Sartorius.

Então o homem se virou, e Pia achou que o tinha reconhecido.

— Por acaso o senhor esteve ontem à noite em Neuenhain, na casa da senhora Cramer? — perguntou ela. Se ele ficou surpreso, não deixou transparecer. Sem sorrir, ele a fitou com seus olhos extraordinariamente azuis, e ela, sem querer, sentiu calor.

— Sim, estive — disse ele. — É proibido?

— Não, claro que não. Mas o que queria lá?

— Ver minha mãe. Tínhamos marcado um encontro, mas ela não apareceu. Fiquei preocupado.

— Ah, então o senhor é Tobias Sartorius?

Suas sobrancelhas se ergueram, um traço irônico apareceu em sua boca.

— Sim, sou eu. O assassino das garotas.

Ele era atraente de um jeito perturbador. Em vez de desfigurá-lo, a cicatriz fina e esbranquiçada, que partia de sua orelha esquerda e ia até o queixo, deixava seu rosto bem delineado ainda mais interessante. Alguma coisa no modo como ele a olhava despertou um estranho sentimento em Pia, e ela ficou pensando por que isso acontecia.

— Ontem à noite sua mãe sofreu um grave acidente — interveio Bodenstein. — Foi operada e agora está na UTI. Seu estado é grave.

Pia observou que, por um momento, as narinas de Tobias Sartorius se inflaram. Ele comprimiu os lábios em um fino traço. Em seguida, jogou sem cuidado o rolo no balde de tinta branca e foi até o portão do sítio. Bodenstein e Pia trocaram um rápido olhar e o seguiram. O sítio parecia uma montanha de lixo. De repente, Bodenstein soltou um grito reprimido e ficou como que petrificado. Pia virou-se para seu chefe.

— O que foi? — perguntou surpresa.

— Uma ratazana! — balbuciou Bodenstein. Ele estava branco como cera. — Passou bem em cima do meu pé!

— Não é de espantar, com toda a sujeira que há aqui. — Pia deu de ombros e quis continuar, mas Bodenstein ficou imóvel como uma pedra.

— Não há nada que eu odeie mais do que ratazanas — disse ele com voz trêmula.

— Mas você cresceu em uma chácara — replicou Pia. — Lá devia aparecer uma ratazana ou outra de vez em quando.

— Justamente por isso.

Pia abanou incrédula a cabeça. Ela nunca poderia imaginar que seu chefe sofresse de uma fobia como essa!

— Venha — disse ela. — Elas saem correndo quando nos veem. Essas ratazanas de lixo são medrosas. Minha amiga tinha duas ratazanas domesticadas. Aí era diferente. A gente...

— Não quero ouvir! — Bodenstein respirou fundo. — Vá você na frente!

— Ah, é assim? — Pia teve de rir quando Bodenstein seguiu logo atrás dela. Desconfiado e pronto para fugir a qualquer momento, espreitou o lixo nos dois lados do estreito caminho que conduzia à casa.

— Ai, tem mais uma ali! E das grandes. — Pia parou abruptamente. Bodenstein chocou-se contra ela e olhou ao redor, em pânico. Sua serenidade habitual tinha desaparecido.

— Brincadeirinha — zombou Pia, mas Bodenstein não conseguiu rir.

— Se você fizer isso de novo, vai ter de voltar para casa a pé — ameaçou ele. — Quase tive um infarto!

Foram adiante. Tobias Sartorius desaparecera dentro da casa, mas a porta estava aberta. Bodenstein ultrapassou Pia nos últimos metros e subiu com esforço os três degraus até a porta, como um andarilho que, após caminhar pelo pântano, finalmente quer ter terra firme sob os pés. No vão da porta surgiu um homem mais velho, de ombros curvados. Estava usando chinelos gastos, uma calça cinza manchada e um casaco de malha puído, que dançava em seu corpo franzino.

— O senhor é Hartmut Sartorius? — perguntou Pia, e o homem fez que sim. Ele parecia tão abandonado quanto seu sítio. Seu rosto miúdo e comprido era sulcado por rugas profundas, e a única semelhança com Tobias Sartorius eram os olhos muito azuis, que, no entanto, haviam perdido todo brilho.

— Meu filho disse que é sobre minha ex-mulher. — Sua voz era fraca.

— Sim — concordou Pia. — Ontem ela sofreu um grave acidente.

— Entrem. — Ele os conduziu por um corredor estreito e escuro até uma cozinha que poderia ser agradável, não estivesse tão suja. Tobias estava em pé junto à janela, com os braços cruzados sobre o peito.

— Foi a doutora Lauterbach que nos deu seu endereço — iniciou Bodenstein, que rapidamente se recuperara. — Segundo o depoimento de testemunhas, ontem, no final da tarde, sua ex-mulher foi jogada por cima da grade da passarela em cima de um carro em movimento, numa estação do metrô Sulzbach-Nord.

— Meu Deus! — O rosto magro do homem perdeu toda cor, e ele buscou apoio no encosto de uma cadeira. — Mas... mas quem fez uma coisa dessas?

— É o que vamos descobrir — respondeu Bodenstein. — O senhor consegue imaginar quem poderia ter feito isso? Sua ex-mulher tinha inimigos?

— Minha mãe, não — informou Tobias Sartorius ao fundo. — Mas eu, sim. Aliás, todo este maldito fim de mundo.

Sua voz soou amarga.

— Suspeita de alguém em especial? — perguntou Pia.

—Não — respondeu rapidamente Hartmut Sartorius. — Não, não acredito que alguém daqui tenha feito uma coisa horrível dessas.

O olhar de Pia voltou-se para Tobias Sartorius, que ainda estava na frente da janela. Contra a luz, ela não conseguia ver seu rosto direito, mas, pelo modo como ele levantou as sobrancelhas e torceu a boca, dava para perceber que não concordava com seu pai. Pia quase conseguiu sentir as vibrações de raiva que pareciam irradiar de seu corpo tenso. Em seus olhos flamejava uma ira havia muito reprimida, como uma pequena e perigosa chama, que só estava esperando um motivo para se transformar em um incêndio. Não havia dúvida de que Tobias Sartorius era uma bomba-relógio em contagem regressiva. Seu pai, ao contrário, parecia cansado e sem forças, como um homem de muita idade. O estado da casa e do sítio falava por si. A coragem de viver daquele homem havia se apagado. Ele havia literalmente se entrincheirado atrás dos destroços de sua vida. Ter um filho assassino sempre foi algo assustador, mas como não deve ter sido horrível para Hartmut Sartorius e sua ex-mulher sobreviver em uma cidadezinha como Altenhain, sendo diariamente alvo de comentários maldosos, que, em algum momento, a senhora Sartorius não conseguiu mais suportar? Ela deixara seu marido sozinho, e certamente o fizera com a consciência pesada. A julgar pelo vazio frio de seu apartamento, não teve um bom recomeço.

Pia olhou para Tobias Sartorius. Perdido em seus pensamentos, ele roía a unha do polegar, com o olhar fixo e distraído. O que estaria tramando por trás de seu rosto inexpressivo? Será que aquilo que fizera a seus pais o atormentava? Bodenstein estendeu a Hartmut Sartorius seu cartão, que este olhou rapidamente e depois enfiou no bolso do casaco de malha.

— Talvez fosse melhor se o senhor e seu filho cuidassem de sua ex-mulher. Ela realmente não está nada bem.

— Claro. Vamos agora mesmo ao hospital.

— E caso tenha alguma suspeita de quem possa ter feito isso, não hesite em nos ligar.

Sartorius pai fez que sim com a cabeça. Seu filho não reagiu. Pia teve um mau pressentimento. Desejou que Tobias Sartorius não começasse a procurar por conta própria o homem que tinha atacado sua mãe.

 

Hartmut Sartorius entrou com o carro na garagem. A visita a Rita tinha sido horrível. O médico com o qual conversara não quis arriscar nenhum prognóstico. Disse que ela tivera sorte, pois sua coluna estava praticamente intacta, mas, de resto, dos 206 ossos do corpo humano, quase a metade estava fraturada, para não falar das graves lesões internas que ela sofrera ao cair sobre o carro em movimento. Durante o retorno, Tobias não abriu a boca. Permaneceu triste e com o olhar fixo. Passaram pelo portão em direção a casa, mas, antes da escada que conduzia à porta, Tobias parou e levantou a gola do casaco.

— O que vai fazer? — perguntou Hartmut Sartorius ao filho.

— Vou tomar um pouco de ar fresco.

—A essa hora? Já são quase onze e meia. E está chovendo muito. Você vai ficar ensopado com esse tempo.

— Nos últimos dez anos, não soube o que era tempo. — Tobias olhou para o pai. — Não me incomoda ficar molhado. E, quanto ao horário, pelo menos ninguém me vê.

Hartmut Sartorius hesitou, mas depois colocou a mão sobre o braço do filho.

— Não vá fazer nenhuma bobagem, Tobi. Por favor, me prometa isso.

— Claro que não. Não se preocupe. — Ele sorriu brevemente, embora não estivesse disposto a sorrir, e esperou seu pai desaparecer dentro da casa. De cabeça baixa, correu pela escuridão, passando pelos estábulos vazios e pelo celeiro. O pensamento em sua mãe, em seu estado na UTI, com os ossos fraturados, com todos aqueles tubos e aparelhos, o perturbava mais do que havia esperado. Teria esse ataque alguma relação com o fato de ter saído da cadeia? Se ela morresse, possibilidade que os médicos não descartavam, então quem a empurrara da passarela teria um assassinato em sua consciência.

Tobias parou ao chegar ao portão dos fundos da propriedade. Estava fechado e coberto por heras e mato. Provavelmente, ninguém mais o abrira nos últimos anos. No dia seguinte mesmo iria começar a limpeza. Depois de dez anos, sua ânsia por ar fresco e trabalho autônomo era enorme. Já depois de três semanas na cadeia ele percebera que iria emburrecer se não pusesse a mente para funcionar. Chance de ser libertado ele não tinha, segundo informara seu advogado, pois o recurso havia sido negado. Por isso, candidatara-se a um curso à distância na Universidade de Hagen e logo iniciara sua formação em metalurgia na penitenciária. Todos os dias, trabalhava por oito horas e, após uma hora de esporte, passava metade da noite debruçado sobre seus livros, a fim de se distrair e tornar a monotonia do cotidiano mais suportável. Ao longo dos anos, habituara-se às rígidas regras, e a repentina falta de estrutura de sua vida pareceu-lhe ameaçadora. Não que estivesse sentindo saudade da cadeia, mas iria demorar um pouco até se habituar novamente à liberdade. Tobias pulou o portão e ficou ao abrigo do louro-cereja, que se tornara uma árvore imponente. Virou-se para a esquerda e passou pela entrada do terreno dos Terlindens. O portão de duas folhas, em ferro fundido, estava fechado. A novidade era a câmera em cima de um dos pilares do portão. Logo atrás da casa começava a floresta. Após cerca de cinquenta metros, Tobias entrou no estreito atalho, chamado pelos moradores locais de “cinzel”, que serpenteava pelo vilarejo até chegar ao cemitério, costeando os pequenos jardins e quintais nos fundos das casas estreitamente contíguas. Tobias conhecia cada canto, cada degrau e cada cerca — nada havia mudado! Na infância e na adolescência, costumavam correr por ali, rumo à igreja, ao esporte ou à casa de amigos. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco. À esquerda morara a velha Maria Kettels, em uma casinha minúscula. Ela teria sido a única testemunha a seu favor, pois dizia ainda ter visto Stefanie tarde da noite naquele dia, mas seu depoimento não foi ouvido pelo tribunal. Altenhain inteira sabia que Maria Kettels sofria de demência e, ainda por cima, era parcialmente cega. Naquela época já devia ter mais de 80 anos; certamente nesse meio-tempo tinha se mudado para o cemitério. Ao lado de seu terreno ficava o dos Paschkes. Fazia divisa com o sítio dos Sartorius e, como sempre, estava bem cuidado. O velho Paschke tratava logo de acabar com toda ínfima erva daninha usando produtos químicos. Em outros tempos, havia sido operário da prefeitura e tinha acesso ao depósito de materiais de construção destinados às obras municipais, assim como todos os vizinhos que trabalharam na Hoe- chst AG e, sem nenhum sentimento de culpa, construíram e reformaram a própria casa e o próprio jardim com o material da empresa. Os Paschke eram os pais de Gerda Pietsch, mãe de Felix, amigo de Tobias. Ali, todo mundo tinha algum parentesco com alguém e conhecia muito bem as histórias familiares dos outros. Conheciam-se os segredos mais íntimos, e a atividade preferida era mexericar sobre os delitos, os fracassos e as doenças dos vizinhos. Como estava localizada em um vale estreito, Altenhain fora amplamente poupada de novas áreas habitacionais. Quase não tinha moradores de outras regiões, e, assim, havia séculos a comunidade do vilarejo permanecia mais ou menos igual.

Tobias tinha chegado ao cemitério e, com o ombro, empurrou o pequeno portão de madeira, que se abriu com um rangido agonizante. Os galhos nus das imponentes árvores entre os túmulos eram açoitadas pelo vento, que aumentou até se transformar em tempestade. Lentamente, ele caminhou por entre as fileiras de túmulos. Cemitérios nunca lhe deram medo. Para ele, tinham algo de pacífico. Tobias estava perto da igreja quando a torre do relógio anunciou a meia-noite com doze badaladas. Parou, levantou a cabeça e olhou por um momento para o topo da torre baixa e larga de quartzito. Não teria sido melhor ter aceitado o convite de Nadja e ir morar na casa dela até conseguir se sustentar? Em Altenhain, ninguém o queria; isso estava claro. Mas ele não podia simplesmente abandonar o pai! Sentia uma enorme culpa em relação a seus pais, que nunca se afastaram dele, o assassino condenado das moças. Tobias deu uma volta ao redor da igreja e entrou na antecâmara. Teve um sobressalto ao perceber um movimento à sua direita. À luz fraca dos postes da rua, reconheceu uma moça de cabelos escuros, sentada contra o encosto do banco de madeira ao lado do portal e fumava um cigarro. Seu coração deu um salto. Ele mal podia acreditar no que estava vendo. Diante dele estava sentada Stefanie Schneeberger.

 

Amelie quase não se assustou quando, de repente, um homem passou sob o beiral da igreja. Seu casaco brilhava de tão molhado; seus cabelos escuros escorriam encharcados em seu rosto. Ela nunca o vira; mesmo assim, logo soube quem era.

— Boa-noite — disse ela, e tirou os fones de seu iPod do ouvido. A voz de Adrian Hates, o vocalista da Diary of Dreams, sua banda preferida, grasnou no fone de ouvido até ela desligar o iPod. O silêncio era completo, apenas a chuva rumorejava. Um carro desceu a rua passando pela igreja. Por uma fração de segundo, a luz dos faróis deslizou pelo rosto do homem. Não havia dúvida, era Tobias Sartorius! Amelie vira fotos suficientes dele na Internet para reconhecê-lo. Ele realmente parecia simpático. Até gente boa. Nem um pouco como os outros caras daquele fim de mundo. E menos ainda com um assassino.

— Oi — respondeu ele, finalmente, e a examinou com uma expressão curiosa. — O que você está fazendo aqui a uma hora dessas?

— Ouvindo música. Fumando um cigarro. Está chovendo demais para voltar para casa agora.

— Sei.

— Sou Amelie Fröhlich — disse ela. — E você é Tobias Sartorius, não é?

— Sou. Por quê?

— Ouvi falar muito de você.

— É inevitável quando se mora em Altenhain. — Sua voz soou cínica. Ele parecia refletir sobre como deveria classificá-la.

— Estou morando aqui desde maio — explicou Amelie. — Na verdade, sou de Berlim. Mas briguei tanto com o novo namorado da minha mãe que ela me despachou para morar com o meu pai e a minha madrasta.

— E eles deixam você ficar na rua assim, à noite? — Tobias Sartorius encostou-se na parede e a observou atentamente. — Quando um assassino está de volta ao vilarejo?

Amelie riu.

— Acho que ainda não ouviram nada a respeito. Eu já. À noite trabalho ali. — Ela apontou com o queixo na direção do restaurante, que ficava do outro lado do estacionamento, ao lado da igreja. — Faz dois dias que você é o assunto principal por lá.

— Onde?

— No Corcel Negro.

— Ah, sei. Antigamente não existia.

Amelie lembrou que, na época em que os assassinatos ocorreram em Altenhain, o pai de Tobias Sartorius dirigia o único restaurante da cidade, o Galo de Ouro.

— O que você está fazendo aqui, a essa hora? — Amelie remexeu na mochila dela, tirou o maço de cigarros e o estendeu a Tobias. Ele hesitou por um momento, depois pegou um cigarro e o acendeu com o isqueiro dela.

— Só estou dando uma volta. — Apoiou uma perna contra o muro. — Passei dez anos na cadeia, não dava para fazer isso por lá.

Fumaram por um tempo em silêncio. Do outro lado do estacionamento, alguns clientes saíam do Corcel Negro. Vozes chegaram até eles; em seguida, ouviu-se o estalo das portas dos carros se fechando. Os sons dos motores se afastaram.

— Você não tem medo de ficar sozinha à noite, no escuro?

— Que nada. — Amelie abanou a cabeça. — Venho de Berlim. Às vezes eu dormia com alguns amigos em casas vazias e em ruínas. Às vezes a gente tinha problema com os mendigos que moravam lá. Ou então com os tiras.

Tobias Sartorius soltou a fumaça do cigarro pelo nariz.

— Onde você mora?

— Na casa ao lado dos Terlindens.

— Sério?

—É, eu sei. O Thies me contou. Ali morava a Branca de Neve.

Tobias Sartorius ficou perplexo.

— Agora você está mentindo — disse ele após um momento, com voz alterada.

— Não estou, não — contestou Amelie.

— Está sim. O Thies não fala. Nunca.

— Comigo fala. De vez em quando. Aliás, é meu amigo.

Tobias tragou o cigarro. A luz da brasa iluminou seu rosto, e Amelie viu que ele levantou as sobrancelhas.

— Não amigo do jeito que você está pensando — disse ela rapidamente. — O Thies é meu melhor amigo. E único...

 

Domingo, 9 de novembro de 2008

A comemoração dos 70 anos da condessa Leonora von Bodenstein não ocorreu no hotel-castelo, e sim no picadeiro, embora Marie-Louise, cunhada de Bodenstein, tenha protestado com veemência. Mas a condessa não queria alarde ao seu redor, conforme ela própria exprimira. Modesta e ligada à natureza, fizera questão de uma comemoração pequena e apropriada nos estábulos ou no picadeiro, e Marie-Louise von Bodenstein acabou acatando. Ela havia tomado as rédeas da organização do “evento”, com energia e profissionalismo, como era seu estilo, e o resultado foi de tirar o fôlego.

Pouco depois das onze horas, Bodenstein e Cosima chegaram com Sophia à propriedade da família e só a muito custo conseguiram um lugar para estacionar. No histórico pátio interno do picadeiro, com piso de pedra e fachada cuidadosamente restaurada, não se via nenhuma palha, e a grande porta do estábulo estava toda aberta.

— Meu Deus — observou Cosima, achando graça. — A Marie-Louise deve ter obrigado o Quentin a criar o turno da noite!

Os antigos e altos estábulos, construídos por volta de 1850, constituíam uma das alas da estrebaria do castelo condal. Com o passar dos anos, ganharam uma pátina formada por teias de aranha, poeira e fezes de andorinhas, que, no entanto, tinha desaparecido por completo. Todos os boxes dos cavalos, as paredes e o teto alto irradiavam um brilho fresco; as janelas estavam brilhando de tão limpas; e mesmo os quadros, que ilustravam cenas de caça, tinham as cores renovadas. Os cavalos, que, por cima das portas de seus boxes, observavam curiosos o tumulto na larga ruela do estábulo, tinham suas crinas trançadas para o dia da festa. No vestíbulo, cuidadosamente decorado como para uma festa de ação de graças pela colheita, os garçons serviam champanhe.

Bodenstein deu uma risadinha. Quentin, seu irmão mais novo, era o tipo de pessoa que não gostava de pegar no pesado. Como agrônomo, administrava a propriedade e o estábulo, e não ficava nem um pouco incomodado com as marcas deixadas pelo tempo. Cada vez mais, deixava à sua mulher a responsabilidade de cuidar do restaurante no castelo e, nos últimos anos, Marie-Louise transformara o lugar em um estabelecimento de primeira classe, cuja boa fama ia muito além das fronteiras da região.

Encontraram a aniversariante no círculo de familiares e convivas, no vestíbulo do picadeiro, que também estava magnificamente decorado. Bodenstein conseguiu dar os parabéns à sua mãe justamente no momento em que o corpo de corneteiros de caça do clube equestre de Kelkheim abria a programação na pista. As apresentações foram uma surpresa preparada pelos tratadores e pelos alunos de equitação para sua condessa. Bodenstein trocou algumas palavras com seu filho Lorenz, que, com uma câmera na mão, filmava os acontecimentos. Sua namorada, Thordis, se responsabilizou pelo sucesso da quadrilha de adestramento, pela entrada em cena do grupo de volteio e mais tarde também pela cavalgaria com a quadrilha de salto. Em meio à multidão, Bodenstein encontrou a irmã Theresa, que tinha viajado especialmente para a comemoração. Fazia tempo que não se viam e tinham muito que contar um ao outro. Na tribuna, que ficava em uma lateral da pista, Cosima havia se sentado com Sophia junto à mãe, a condessa Rothkirch, e acompanhava a quadrilha de adestramento.

— Cosima está parecendo dez anos mais jovem— constatou a irmã de Bodenstein e provou seu champanhe. — Dá até para ficar com inveja.

— Um bebê e um bom marido realmente fazem milagres — respondeu Bodenstein, sorrindo.

— Convencido como sempre, esse meu irmãozinho — retrucou Theresa com ironia. — Como se a boa aparência de uma mulher dependesse de vocês, homens!

Ela era dois anos mais velha do que Bodenstein e, como sempre, irradiava energia. O fato de seu rosto simétrico ser mais austero do que belo e de as primeiras mechas grisalhas se misturarem a seu cabelo escuro não tiravam seu carisma. Certa vez ela dissera que ganhara cada ruga e cada fio grisalho com o suor de seu trabalho. Seu marido, que falecera jovem depois de um infarto, havia deixado para ela uma torrefação considerável, mas arruinada, em Hamburgo, um castelo de família que carecia de uma profunda reforma, em Schleswig-Holstein, e vários imóveis com altas dívidas na melhor localização de Hamburgo. Com doutorado em administração de empresas, após a morte do marido e apesar de três filhos e de perspectivas de futuro nada animadoras, ela tomou as rédeas da situação com energia e se lançou sem medo na luta contra credores e bancos. Agora, após dez anos de trabalho duro e tática habilidosa, tanto a empresa quanto a propriedade privada estavam salvas e sanadas. Nenhum posto de trabalho havia sido perdido, e Theresa gozava do mais elevado prestígio junto aos funcionários e sócios.

— Falando em homens — Quentin tomou a palavra —, como andam as coisas com você, Esa? Alguma novidade?

Ela sorriu.

— Uma mulher que se preze aproveita e se cala.

— Por que não o trouxe com você?

— Porque eu sabia que vocês iriam alugar o pobre coitado e dissecá-lo sem compaixão. — Ela acenou com a cabeça na direção dos pais e dos outros parentes, que, fascinados, seguiam os acontecimentos na pista. — Para não falar da parentada toda.

— Então você tem alguém — insistiu Quentin. — Conte para nós alguma coisa sobre ele.

—Não — ela estendeu sua taça vazia para o irmão mais novo. — Você bem que poderia cuidar do reabastecimento.

— Sempre eu — reclamou Quentin, mas obedeceu por velho hábito e desapareceu.

— Você e a Cosima estão com algum problema? — dirigiu-se Theresa a Bodenstein. Ele olhou surpreso para a irmã.

—Não — disse. — Por que acha isso?

Ela encolheu os ombros sem tirar os olhos da cunhada.

— Alguma coisa está diferente entre vocês.

Bodenstein conhecia a intuição infalível da irmã. Não fazia sentido mentir que, de fato, entre Cosima e ele, a situação não era das melhores.

— Bom, no verão, depois das nossas bodas de prata, tivemos uma pequena crise — acabou admitindo. — Cosima tinha alugado um sítio em Maiorca e queria tirar três semanas de férias com toda a família. Depois de uma semana eu tive de voltar, estávamos com um caso difícil. Ela ficou chateada comigo.

— Sei.

— Ela me criticou, dizendo que eu a deixo totalmente sozinha com a Sophia, embora no começo nosso trato tivesse sido outro. Mas o que posso fazer? Não posso simplesmente tirar licença-paternidade e brincar de dono de casa!

— Mas três semanas de férias são perfeitamente possíveis — respondeu Theresa. — Não quero me meter na sua vida, mas você é funcionário público. Na sua ausência, certamente haverá alguém para substituí-lo, ou não?

— Estou sentindo na sua voz certo desprezo pela minha profissão?

— Não seja tão sensível, meu querido! — apaziguou-o a irmã. — Mas posso entender que Cosima tenha ficado chateada. Ela também tem uma profissão e não combina nem um pouco com a fórmula “criança-cozinha-igreja” em que você, seu velho machão, preferia que ela se encaixasse. Talvez você até fique bem feliz por ela já não fazer nenhuma expedição e por tê-la sob o seu domínio.

— Isso não é verdade! — contestou Bodenstein, consternado. — Sempre apoiei o trabalho dela. Acho bom o que ela faz.

Theresa olhou para ele. Um sorriso irônico se expandiu em seu rosto.

— Até parece! Pode contar isso para quem você quiser, mas não para mim. Conheço você, e não é de hoje!

Bodenstein se calou, surpreso. Seu olhar se deslocou para Cosima. Sua irmã sempre conseguira, sem nenhum esforço, colocar o dedo na ferida. E desta vez ela também tinha razão. Desde que Sophia viera ao mundo, ele realmente ficara aliviado por Cosima já não passar semanas viajando pelo mundo. Mas não gostou de ouvir isso da boca de sua irmã mais velha.

Quentin voltou com três taças de champanhe, e a conversa mudou para outros temas, mais inofensivos. Depois que as apresentações de equitação terminaram, Marie-Louise abriu o bufê, que seus funcionários haviam montado num piscar de olhos no vestíbulo do estábulo. Mesas altas e longas fileiras de mesas e bancos convidavam os presentes a se sentar. As mesas estavam decoradas com toalhas brancas e arranjos de flores de outono; os bancos estavam forrados com confortáveis almofadas. Bodenstein encontrou parentes e velhos conhecidos que fazia tempo não via. Havia muito o que conversar e rir. A atmosfera era de descontração. Ele viu Cosima conversando com Theresa e torceu para que sua irmã não a incitasse contra ele com seu papo de mulher emancipada. No próximo ano, Sophia iria para o jardim de infância, e, assim, Cosima teria mais tempo para si mesma. Ela estava trabalhando no projeto de um novo filme que exigia muito dela. Em um esboço de boa vontade, Bodenstein decidiu que, no futuro, chegaria mais cedo em casa e reservaria os fins de semana para ajudar Cosima mais vezes com a filha. Talvez assim o relacionamento entre ambos, que andava tenso desde a briga feia que tiveram em Maiorca, voltasse ao normal.

— Pai — Rosalie tocou seu ombro, e ele se virou para sua filha mais velha. Ela estava fazendo um curso profissionalizante de culinária no hotel-castelo com o maître Jean-Yves St. Clair, chefe francês cinco estrelas, e estava cuidando do bufê. Segurava Sophia pela mão, que estava toda lambuzada com uma substância marrom, e Bodenstein torceu para não ser o que estava pensando.

— Não consigo achar a mamãe — disse Rosalie, nervosa. — Será que você pode trocar a Sophia? Com certeza a mamãe deve ter uma roupa extra no carro.

— O que ela tem no rosto e nas mãos? — Bodenstein manobrou com dificuldade suas longas pernas embaixo da mesa.

— Não se preocupe, é só musse de chocolate — respondeu Rosalie. — Preciso voltar ao trabalho.

— Bom, então, venha cá, sua porquinha — Bodenstein pegou a filha mais nova nos braços. — Já foi se sujar de novo, hein?

Sophia firmou as mãozinhas contra seu peito e esperneou. Não suportava que limitassem sua liberdade de movimentos. Com suas bochechas coradas, os cabelos escuros e macios e seus olhos azuis como centáureas, dava vontade de mordê-la; mas a aparência doce enganava. Sophia herdara o temperamento de Cosima e sabia se impor. Bodenstein saiu com ela pelo portão do estábulo e atravessou o pátio. Por puro acaso, olhou para a esquerda, para a porta aberta da ferraria, do outro lado do pátio interno, e, para sua surpresa, descobriu Cosima, que ia de um lado para o outro com o celular na orelha. O modo como passava a mão pelo cabelo, como inclinava a cabeça e ria o surpreendeu. Por que ela estaria falando ao telefone escondida? Antes que ela pudesse perceber, ele passou correndo, mas uma leve sensação de desconfiança permaneceu no fundo do seu ser, como um minúsculo espinho.

 

Como todos os domingos após a igreja, os suspeitos de sempre se reuniram no Corcel Negro. O happy hour matinal era coisa de homens, as mulheres podiam voltar para casa e cuidar dos assados de domingo. Especialmente por isso, Amelie achava os domingos em Altenhain o cúmulo da pobreza de espírito. Naquele dia, até o chefe estava presente. Durante a semana, Andreas Jagielski cuidava de seus dois restaurantes de luxo em Frankfurt e deixava a direção do Corcel Negro para sua mulher e seu cunhado; somente aos domingos ele ficava lá. Amelie não gostava muito dele. Jagielski era um homem corpulento, com olhos saltados e lábios grossos. Depois da queda do Muro, ele fora o primeiro alemão oriental em Altenhain, segundo o que Amelie ficara sabendo por Roswitha. Havia trabalhado como cozinheiro no Galo de Ouro, porém, aos primeiros sinais de decadência iminente, não tivera a menor consideração por seu patrão, que tinha abandonado e prejudicado ao abrir o concorrente Corcel Negro. Exatamente com o mesmo cardápio de Hartmut Sartorius, mas com preços bem mais acessíveis e o luxo de um grande estacionamento, ele causou consideráveis prejuízos a seu antigo chefe, levando-o a fechar o Galo de Ouro. Roswitha permaneceu fiel até o fim a Sartorius, e só a contragosto aceitou o trabalho no restaurante de Jagielski.

De manhã, Amelie se aprontou com grande esmero, tirou todos os piercings, fez duas tranças e colocou uma maquiagem mais decente. No armário de sua madrasta, pegou emprestada uma blusa branca, e no próprio, após alguma busca, encontrou uma sexy minissaia escocesa. Meias pretas e grossas, bem como coturnos até a altura da panturrilha, completavam o visual. Na frente do espelho, abriu tanto a blusa, que na verdade era pequena demais para ela, que era possível ver seu sutiã preto e um pouco de seu seio. Jenny Jagielski não se deixou provocar e apenas a examinou brevemente. Já seu marido deu uma boa olhada no decote de Amelie e piscou insinuando-se para ela. Naquele momento, ele estava sentado à mesa redonda no meio do restaurante, inteiramente ocupada pelos clientes habituais, entre Lutz Richter e Claudius Terlinden, cliente bastante raro no Corcel Negro, que naquele dia parecia bastante afável e popular. Junto ao balcão também estavam sentados outros homens, com os cotovelos lado a lado, enquanto Jenny e seu irmão Jörg tiravam um chope atrás do outro. Manfred Wagner havia se recuperado mais uma vez; devia até ter ido ao barbeiro, pois sua barba hirsuta havia desaparecido, e ele parecia bem mais educado. Quando Amelie chegou à mesa grande com uma nova rodada de cerveja, ouviu o nome de Tobias Sartorius e aguçou os ouvidos.

— ...atrevido e arrogante como sempre — disse Lutz Richter. — É pura provocação ele voltar a aparecer por aqui.

Um murmurinho de aprovação se fez ouvir. Apenas Terlinden e Jagielski permaneceram calados.

— Se ele continuar com isso, mais cedo ou mais tarde vai acabar levando a pior — acrescentou outro.

— Ele não vai ficar muito tempo por aqui — disse um terceiro. — Vamos dar um jeito nisso.

Foi Udo Pietsch, o construtor de telhados, quem tinha feito o comentário, e os outros homens concordaram murmurando.

— Meus caros, nenhum de vocês aqui dará jeito nenhum — interveio Claudius Terlinden. — O rapaz pagou sua pena e pode morar com o pai o tanto que quiser e enquanto não causar nenhum aborrecimento por aqui.

A roda emudeceu, ninguém se arriscou a discordar, mas Amelie viu que alguns homens trocaram olhares furtivos. Claudius Terlinden podia querer dar por encerrada a discussão contra a aversão coletiva que se nutria em Altenhain contra Tobias Sartorius, mas nem ele conseguiria algum êxito.

— Oito cervejas para os senhores — disse Amelie, para quem a bandeja foi ficando cada vez mais pesada.

— Ah, sim, obrigado, Amelie. — Terlinden acenou-lhe benevolente, mas, de repente, por uma fração de segundo, sua expressão era de quem estava desconcertado. Ele recuperou imediatamente o autocontrole e deu um sorriso um pouco forçado. Amelie entendeu que sua aparição com novo visual era a razão do espanto dele. Ela retribuiu o sorriso, inclinou a cabeça com ar coquete e resistiu um pouco mais a seu olhar, como deveriam fazer as moças decentes, depois se pôs a arrumar a mesa vizinha. Percebeu que cada movimento seu era seguido com olhares, e não conseguiu resistir a rebolar um pouco o traseiro, de propósito, ao voltar com a bandeja de copos usados para a cozinha. Torcia para que os homens estivessem com muita sede; estava louca para ouvir mais coisas interessantes. Até então, seu interesse pela história toda vinha do fato de ela ter descoberto uma ligação entre si e uma das vítimas, mas depois de ter conhecido Tobias Sartorius no dia anterior, havia uma nova motivação para ela. Ele lhe agradava.

 

Tobias Sartorius estava pasmo. Quando Nadja lhe contou que morava no molhe do porto ocidental de Frankfurt, ele imaginou uma construção antiga no bairro de Gutleut e que tivesse sido reformada, mas não o que estava vendo. No enorme terreno do antigo porto, a poucas quadras ao sul da principal estação de trem, surgira um bairro novo e exclusivo, com prédios comerciais modernos no lado de terra firme, e doze prédios residenciais de sete andares no antigo molhe. Ele estacionou o carro na rua e, com um ramalhete de flores embaixo do braço, atravessou espantado a ponte que se estendia sobre a antiga doca. Na água negra deslizavam alguns iates junto aos píeres. No final da tarde, Nadja ligara para ele e o convidara para jantar em sua casa. Embora Tobias não estivesse com muita vontade de dirigir até a cidade, sentia-se em débito com Nadja pela lealdade inquebrantável com que ela estivera a seu lado nos últimos dez anos. Desse modo, tomara uma ducha e às sete e meia partira com o carro do pai, sem imaginar as mudanças que o aguardavam. Para começar, havia uma rotatória novinha em folha junto ao mercado Tengelmann, em Bad Soden; o centro de Main-Taunus também tinha crescido. E em Frankfurt ele já não conseguia se localizar. Para um motorista sem prática como ele, a cidade era um verdadeiro pesadelo. Estava 45 minutos atrasado quando, depois de muito procurar, encontrou o prédio com o número certo.

— Pegue o elevador até o sétimo andar — soou a voz alegre de Nadja pelo interfone. A trava da porta fez um zumbido, e Tobias entrou no hall do prédio, elegantemente decorado com granito e vidro. O elevador envidraçado o conduziu em poucos segundos ao andar. Era fascinante a vista que, acima da água, se tinha da linha do horizonte de Frankfurt, tão mudada nos últimos anos. Novos prédios pareciam ter se acrescentado a ela.

— Aqui está você! — Nadja foi feliz ao seu encontro quando ele saiu do elevador no sétimo andar. Desajeitado, ele lhe entregou o ramalhete de flores embrulhado em celofane, que havia comprado no posto de gasolina.

— Ah, não precisava. — Ela recebeu o ramalhete, pegou sua mão e conduziu-o ao apartamento, que o deixou sem fôlego. A cobertura era enorme. Imensas janelas panorâmicas que iam até o assoalho brilhante ofereciam uma vista espetacular para todos os lados. Na lareira, o fogo crepitava; a voz quente de Leonard Cohen soava baixinho, vinda de alto-falantes invisíveis; uma iluminação refinada e velas acesas conferiam profundidade ainda maior aos cômodos que já eram espaçosos por si sós. Por um momento, Tobias teve vontade de dar meia-volta e sair correndo. Não era uma pessoa invejosa, porém, ao deparar com aquele apartamento de sonho, a sensação de ser um fracassado deplorável lhe sobreveio de modo tão intenso como raramente lhe acontecera antes, deixando-o com um nó na garganta. Entre Nadja e ele havia um verdadeiro abismo. Que diabos ela queria com ele? Ela era famosa, rica e linda — com toda a certeza podia passar suas noites com outras pessoas abastadas, divertidas e espirituosas em vez de um ex-presidiário amargurado como ele.

— Me dê aqui seu casaco — disse ela. Ele o tirou e logo sentiu vergonha do trapo barato e puído. Orgulhosa, Nadja o levou para a grande cozinha, com fogão e bancada centrais. Granito e aço inoxidável predominavam, os eletrodomésticos eram de uma marca sofisticada. Pairava no ar um odor delicioso de carne assada, e Tobias sentiu seu estômago se contrair. Ele havia passado o dia todo trabalhando duro no sítio e separando o lixo. Comer, que era bom, não tinha comido nada. Nadja tirou uma garrafa de Moët & Chandon da geladeira americana cromada e contou como havia adquirido o apartamento ao se mudar para Frankfurt. Na verdade, inicialmente era apenas uma opção de acomodação — ela não suportava ficar em hotéis —, mas acabou virando sua principal moradia. Serviu o champanhe em duas taças de cristal e ofereceu-lhe uma.

— Fico feliz que tenha vindo — sorriu.

— E eu agradeço o convite — respondeu Tobias, que já se havia recuperado do primeiro choque e conseguiu retribuir-lhe o sorriso.

— A você — disse Nadja, e bateu levemente sua taça contra a dele.

— Não, a você — respondeu Tobias, sério. — Obrigado por tudo.

Como ela tinha ficado bonita! Seu rosto claro, quase andrógino com as graciosas sardas, que antigamente, apesar da uniformidade, sempre parecia um pouco anguloso, tinha se tornado mais suave. Os olhos claros brilhavam; algumas mechas de cabelo cor de mel tinham se soltado do coque e caíam na nuca delicada e ligeiramente bronzeada. Ela era muito esbelta, mas não magra demais. Seus dentes entre os lábios carnudos eram brancos e regulares, feliz resultado do odiado aparelho dos tempos de adolescência. Sorriram um para o outro e beberam mais um gole; porém, de repente, outro rosto tomou o lugar daquele de Nadja. Sim, era exatamente daquele jeito que ele queria ter vivido com Stefanie depois de terminar seu curso de medicina, quando ganharia muito bem como médico. Estivera convencido de ter encontrado nela o amor de sua vida, sonhara com um futuro em comum, com filhos...

— O que foi? — perguntou Nadja. Tobias deparou com seu olhar examinador.

— Nada. Por quê?

— De repente você pareceu tão assustado.

— Você sabe há quanto tempo não tomo champanhe? — Forçou um sorriso, mas a lembrança de Stefanie desferiu-lhe uma pontada. Depois de todos aqueles anos, ele ainda pensava nela. A ilusão da felicidade perfeita, que havia durado apenas quatro semanas, acabou terminando em catástrofe. Ele espantou os pensamentos indesejados e sentou-se à mesa da cozinha, que Nadja havia decorado com carinho. Havia tortelloni recheado de ricota e espinafre, filé assado à perfeição, com molho de vinho Barolo, salada de rúcula com lascas de queijo parmesão e, para acompanhar, um vinho Pomerol de quinze anos. Tobias constatou que, ao contrário do que temia, não era difícil conversar com Nadja. Ela contou de seu trabalho, de acontecimentos e encontros engraçados e especiais — e tudo isso de um modo divertido, sem bancar a bem-sucedida. Após a terceira taça de vinho tinto, Tobias começou a sentir seu efeito. Saíram da cozinha e sentaram-se na sala, em um sofá de couro; ela em um canto, ele em outro. Como bons e velhos amigos. Em cima da lareira estava pendurado um cartaz emoldurado do primeiro filme de Nadja no cinema — a única indicação de seu grande sucesso como atriz.

— É realmente incrível o que você conseguiu — disse Tobias pensativo. — Estou muito orgulhoso de você.

— Obrigada. — Ela sorriu e se sentou em cima da perna. — Pois é. Naquela época, quem poderia imaginar que isso fosse possível: a feia Nathalie hoje é uma grande estrela de cinema.

— Você nunca foi feia — contestou Tobias, espantado com o fato de ela se ver assim.

— Seja como for, você nunca reparou em mim.

Pela primeira vez naquela noite, sua conversa se aproximava do assunto delicado que, até então, ambos tinham cuidadosamente evitado.

— Mas você sempre foi minha melhor amiga — disse Tobias. — Todas as outras garotas tinham ciúme de você porque eu passava muito mais tempo na sua companhia.

— Mas você nunca me beijou...

Ela disse isso em tom de brincadeira, mas, de repente, Tobias compreendeu que, naquela época, esse fato deve tê-la magoado. Nenhuma garota queria ser a melhor amiga de um rapaz atraente, ainda que, para ele, essa fosse uma grande distinção. Tobias tentou se lembrar por que nunca se apaixonara por Nadja. Seria porque ela sempre fora como uma irmã mais nova para ele? Eles literalmente brincaram no mesmo tanque de areia, foram juntos ao jardim de infância e à escola primária. A importância dela em sua vida era algo evidente. Mas, naquele momento, alguma coisa tinha mudado. Nadja tinha mudado. Ao lado dele já não estava sentada a Nathalie, a fiel, sincera e confiável companheira de jardim de infância. A seu lado estava sentada uma mulher linda, extremamente atraente, que estava lhe dando indiretas bastante claras, como aos poucos ele foi percebendo. Seria possível ela querer mais do que amizade com ele?

— Por que você nunca se casou? — perguntou ele repentinamente. Sua voz estava rouca.

— Porque nunca encontrei o homem certo. — Nadja encolheu os ombros, inclinou-se e colocou mais vinho nas taças. — Meu trabalho acaba com qualquer relacionamento. A maioria dos homens não suporta uma mulher bem-sucedida. E um colega de profissão vaidoso e narcisista é algo que eu não quero. Não pode dar certo. Me sinto muito bem como estou.

— Acompanhei sua carreira. Na prisão a gente tem muito tempo para ler e ver televisão.

— Qual dos meus filmes você gostou mais?

— Não sei. — Tobias sorriu. — Todos são bons.

— Seu puxa-saco. — Ela inclinou a cabeça. Uma mecha solta caiu sobre sua testa. — Na verdade, você não mudou nada.

Ela acendeu um cigarro, deu uma tragada e colocou-o entre os lábios de Tobias, como costumavam fazer antigamente. Seus rostos estavam bem próximos. Tobias levantou a mão e tocou sua face. Sentiu a respiração quente de Nadja contra seu rosto, depois, os lábios dela em sua boca. Ambos hesitaram por um instante.

— Não vai ser bom para a sua carreira se alguém ficar sabendo que você conhece um ex-presidiário — sussurrou Tobias.

— Imagine, nunca dei a menor bola para a minha carreira — respondeu ela com voz rouca. Tirou o cigarro da mão dele e o colocou de qualquer jeito no cinzeiro atrás dela. Sua face ardia, seus olhos brilhavam. Ele sentiu o desejo dela como um eco de seu próprio anseio e puxou-a para si. As mãos dele deslizaram sobre suas coxas e seu quadril. Seu coração batia mais rápido, uma onda de desejo agitou-se em seu corpo quando a língua dela penetrou sua boca. Quando fora a última vez que estivera com uma mulher? Ele mal conseguia se lembrar. Stefanie... o sofá vermelho... O beijo dela se inflamou. Sem interrompê-lo, tiraram as roupas e se amaram cheios de desejo, em silêncio, ofegantes e sem nenhuma carícia. Para isso, haveria tempo suficiente mais tarde.

 

Segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Claudius Terlinden bebeu seu café em pé e olhou pela janela da cozinha para a casa vizinha, que ficava mais embaixo. Se se apressasse, poderia novamente levar a garota até o ponto de ônibus. Quando, alguns meses antes, seu procurador, Arne Fröhlich, lhe apresentara sua filha, já quase adulta, do primeiro casamento, na hora ele não reparara nela. Os piercings, o cabelo esquisito e a roupa preta e extravagante o enganaram, bem como sua cara amarrada e seu comportamento arredio. Mas no dia anterior, no Corcel Negro, quando ela sorrira para ele, a semelhança lhe ocorreu como em um flash. A garota era incrivelmente parecida com Stefanie Schneeberger. Os mesmos traços delicados, pálidos como alabastro, a boca carnuda, os olhos escuros e cúmplices — simplesmente inacreditável!

— Branca de Neve — murmurou ele. Na última noite, sonhara com ela, um sonho estranho, funesto, no qual presente e passado se misturavam de modo confuso. Quando despertou molhado de suor no meio da noite, levou certo tempo para entender que havia sido apenas um sonho. Atrás de si, ouviu passos e se virou. Sua mulher apareceu junto à porta da cozinha com o cabelo impecável, apesar de ainda ser cedo.

— Acordou cedo. — Ele foi até a pia e deixou correr água quente na xícara. — Vai sair?

— Tenho um encontro com a Verena, às dez, na cidade.

— Que bom. — Não lhe interessava nem um pouco saber como sua mulher passava o dia.

— Vai começar tudo de novo — disse ela nesse momento. — Justo agora que esse assunto estava encerrado.

— Do que você está falando? — Terlinden lhe lançou um olhar irritado.

— Talvez fosse realmente melhor se os Sartorius tivessem ido embora daqui.

— E para onde eles iriam? Ninguém escapa de uma história como essa.

— Mesmo assim. Vai dar problema. O pessoal no vilarejo já está se preparando para a briga.

— Era o que eu temia. — Claudius Terlinden colocou sua xícara de café na máquina de lavar. — Aliás, na noite de sexta, Rita ficou gravemente ferida em um acidente. Parece que alguém a jogou de uma passarela e um carro a acertou.

— Como é que é? — Christine Terlinden arregalou os olhos, perturbada. — Como ficou sabendo disso?

— Conversei rapidamente com o Tobias ontem à noite.

— Você o quê? Por que não me contou nada? — Olhou incrédula para o marido. Mesmo aos 51 anos, Christine Terlinden ainda era uma mulher muito bonita. Trazia os cabelos curtos e naturalmente louros em um corte da moda, no estilo pajem. Era baixa, graciosa e conseguia ficar elegante até de roupão.

— Porque não a vi mais ontem à noite.

— Você conversa com esse rapaz, o visita na prisão, ajuda os pais dele. Esqueceu que na época ele o envolveu nessa história toda?

— Não, não esqueci — respondeu Claudius Terlinden. Seu olhar pousou no relógio pendurado na parede da cozinha. Sete e quinze. Em dez minutos, Amelie ia sair de casa. — Na época, Tobias disse apenas o que tinha ouvido. E, na verdade, também foi melhor do que se... — deteve-se. — Fique feliz por tudo ter acabado assim. Do contrário, hoje Lars certamente não estaria onde está.

Terlinden beijou levemente e por obrigação o rosto da mulher.

— Preciso ir. Talvez chegue tarde esta noite.

Christine Terlinden esperou até ouvir a porta bater no trinco. Pegou uma xícara na prateleira, colocou-a sob a saída da máquina de café e apertou o botão para um expresso duplo. Com a xícara nas mãos, foi até a janela e observou a Mercedes escura do marido descer lentamente a rampa. Pouco depois, ele parou diante da casa dos Fröhlichs, as luzes vermelhas do freio brilhando na escuridão da manhã incipiente. A garota que morava na casa vizinha parecia ter esperado por ele e entrou em seu carro. Christine Terlinden inspirou profundamente, seus dedos apertaram a xícara. Desde que encontrara Amelie Fröhlich pela primeira vez, ela previra que isso iria acontecer. A semelhança funesta logo lhe saltara aos olhos. Não lhe agradava o fato de a garota ter amizade com Thies. Manter o filho deficiente longe de toda aquela história já não havia sido fácil na época. Será que tudo ia se repetir? O sentimento quase esquecido de desamparado desespero cresceu dentro dela.

— Ah, não, Deus do céu! — murmurou. — Por favor, por favor, de novo, não!

 

Embora a foto que Ostermann recortara do vídeo de vigilância da plataforma fosse em preto e branco e bastante granulada, permitia reconhecer facilmente o homem de boné. Infelizmente, o ângulo da câmera não era suficiente para mostrar os acontecimentos na passarela, mas o depoimento verossímil de Niklas Bender, de 14 anos, bastava para prender o homem assim que ele fosse encontrado. Bodenstein e Pia estavam a caminho de Altenhain para mostrar a foto a Hartmut Sartorius e seu filho. Contudo, mesmo depois de vários toques de campainha, ninguém veio abrir a porta.

— Vamos até a loja e mostrar a foto por lá — sugeriu Pia. — De certo modo, estou com a sensação de que esse ataque realmente tem a ver com Tobias.

Bodenstein fez que sim. Tal como sua irmã, Pia tinha uma boa intuição e geralmente acertava em suas suposições. Durante toda a noite anterior, Bodenstein pensara na conversa que tivera com Theresa e em vão esperara que Cosima lhe contasse com quem havia falado ao telefone na ferraria. Provavelmente, assim se convencera Bodenstein, tinha sido totalmente sem importância, e por isso Cosima já o tinha esquecido. Ela dava muitos telefonemas e, com frequência, recebia a ligação de colegas de trabalho, mesmo aos domingos. Naquela manhã, durante o café, ele decidiu não dar muita importância ao assunto, sobretudo porque Cosima voltara a se comportar de modo totalmente normal com ele. Alegre e bem-humorada, ela lhe relatou o que planejava fazer ao longo do dia: trabalhar com o filme na sala de edição, encontrar com o profissional que iria fazer a narração, almoçar com a equipe em Mainz. Tudo perfeitamente normal. Ao se despedir dele, beijou-o como quase todas as manhãs nos últimos 25 anos. Não, ele estava se preocupando à toa.

O sininho da porta da pequena mercearia tocou quando entraram. Algumas mulheres com cestas de compras cochichavam entre as prateleiras e já estavam trocando as fofocas mais recentes do vilarejo.

— A missão é toda sua, chefe— disse Pia em voz baixa a Bodenstein, que, com sua bela aparência e seu charme de Cary Grant, geralmente não tinha problemas para manobrar a maioria dos seres do sexo feminino. Porém, naquele dia, Bodenstein não parecia em forma.

— Você vai se sair melhor — respondeu ele. Por uma porta aberta, era possível enxergar o pátio, onde um homem forte e grisalho estava descarregando frutas e legumes de um caminhão. Pia deu de ombros e dirigiu-se diretamente ao grupo de mulheres.

— Bom-dia. — Apresentou sua identidade. — Polícia Criminal de Hofheim.

Olhares desconfiados e curiosos.

— Na sexta-feira à noite, a ex-mulher de Hartmut Sartorius foi vítima de um ataque pérfido. — Pia escolheu suas palavras com a intenção de produzir um efeito um tanto dramático. — Parto do princípio de que as senhoras conhecem Rita Cramer.

Todas fizeram que sim com a cabeça.

— Temos aqui a foto do homem que a empurrou de uma passarela bem em cima de um carro em movimento.

Como nenhuma delas se mostrou horrorizada, era de supor que a notícia do acidente já tivesse circulado pelo vilarejo. Pia pegou a foto e a mostrou para a mulher de avental branco, que obviamente devia ser a dona do estabelecimento.

— Reconhece este homem?

A mulher observou brevemente a foto com olhos apertados, depois olhou para Pia e abanou a cabeça.

—Não — disse, e fingiu que lamentava. — Sinto muito. Nunca o vi.

Desnorteadas, as outras três também abanaram a cabeça, uma após a outra, mas a Pia não escapou o rápido olhar que uma delas trocou com a dona da loja.

— As senhoras têm certeza? Deem mais uma olhada. A qualidade da foto não é muito boa.

— Não conhecemos este homem. — A dona da loja estendeu a foto para Pia e respondeu a seu olhar, sem pestanejar. Estava mentindo. Não havia dúvida.

— Que pena. — Pia sorriu. — Posso perguntar seu nome?

— Richter. Margot Richter.

Nesse momento, o homem que estava no pátio entrou ruidosamente na loja com três caixas de frutas e as colocou no chão, fazendo barulho.

— Lutz, é a Polícia Criminal — fez-se ouvir Margot Richter, antes que Pia pudesse abrir a boca. Seu marido se aproximou. Era alto e corpulento, e seu rosto benévolo, com nariz de batata, estava avermelhado por causa do frio e do esforço. O modo como olhou para sua mulher denunciou que era dominado por ela e pouco tinha a dizer. Pegou a foto com sua mão grande, mas antes de conseguir olhá-la, Margot Richter a apanhou.

— Meu marido também não conhece esse sujeito.

Pia sentiu pena do homem, que certamente não tinha uma vida fácil.

— Permita-me. — Ela tirou novamente a foto das mãos da senhora Richter e a estendeu ao homem, antes que a mulher pudesse protestar. — Já viu este homem alguma vez? Na sexta-feira, ele jogou sua ex-vizinha contra um carro em movimento. Desde então, Rita Cramer está em coma induzido, na UTI, e ainda não se sabe se irá sobreviver.

Richter hesitou por um instante, pareceu ponderar sua resposta. Não era um bom mentiroso, mas um marido obediente. Por um segundo, seu olhar inseguro piscou para sua mulher.

—Não — disse finalmente. — Não o conheço.

— Tudo bem. Muito obrigada. — Pia obrigou-se a sorrir. — Tenham um bom dia.

Saiu da loja, seguida por Bodenstein.

— Todos o conhecem.

— Sim, não há dúvida. — Bodenstein olhou para a descida da Hauptstraße. — Tem um cabeleireiro ali. Vamos tentar.

Andaram alguns metros pela calçada, mas quando entraram no pequeno e obsoleto salão, a cabeleireira desligou imediatamente o telefone, com expressão culpada.

— Bom-dia — cumprimentou Pia e apontou com a cabeça para o telefone. — A senhora Richter certamente já lhe informou por que estamos aqui. Então posso me poupar de fazer a pergunta.

A mulher ficou sem graça; seu olhar passou de Pia a Bodenstein e nele se deteve. Se seu chefe estivesse melhor naquele dia, a cabeleireira não teria tido nenhuma chance.

— O que há com você? — quis saber Pia, ligeiramente irritada, quando, um minuto depois, estavam novamente na rua. — Bastava você ter sorrido para a tia do salão de beleza que ela teria se derretido toda para você e provavelmente teria dado nome, endereço e telefone do nosso suspeito.

— Desculpe — respondeu Bodenstein, desanimado. — Hoje não estou muito concentrado.

Um carro passou correndo pela rua estreita, depois outro e, em seguida, um caminhão. Tiveram de se apertar contra o muro para não serem pegos por um retrovisor.

— De todo modo, hoje à tarde mesmo vou dar uma olhada nos antigos autos do caso Sartorius — disse Pia. — Tenho certeza de que todas essas ocorrências têm ligação.

Tentaram obter alguma informação também na floricultura, no jardim de infância e na secretaria da escola fundamental. Sem sucesso. Margot Richter já havia passado suas instruções adiante. A comunidade do vilarejo reunira-se em solidariedade coletiva e estava colocando em prática uma espécie de silêncio siciliano, a fim de proteger um dos seus.

 

Amelie estava deitada na rede que Thies estendera só para ela entre duas palmeiras, e balançava-se suavemente. A chuva caía murmurando do lado de fora das janelas e tamborilava sobre o teto da estufa, escondido atrás de um imponente chorão no extenso jardim da mansão dos Terlindens. Na estufa estava quente e agradável, o cheiro da tinta a óleo e da terebintina pairava no ar, pois Thies usava como ateliê a longa construção, que no inverno abrigava as delicadas plantas mediterrâneas do jardim. Centenas de telas pintadas enfileiravam-se junto às paredes, cuidadosamente ordenadas conforme o tamanho. Em potes vazios de geleia havia dúzias de pincéis. Em tudo o que fazia, Thies era disciplinado. Todos os vasos de plantas — oleandros, palmas, camarás, limoeiros e laranjeiras — ficavam lado a lado como soldadinhos de chumbo, igualmente ordenados conforme o tamanho. Nada era disposto aleatoriamente. As ferramentas e os aparelhos que no verão Thies usava para cuidar do grande jardim ficavam pendurados na parede ou enfileirados no chão com a máxima precisão. Às vezes, Amelie desarrumava alguma coisa ou deixava intencionalmente uma bituca de cigarro em algum lugar, só para irritá-lo. Ele sempre corrigia de imediato essa falha, que para ele era insuportável. Também percebia na hora quando ela confundia as plantas.

— Acho muito emocionante — disse Amelie. — Eu bem que queria descobrir mais coisas, mas não sei como.

Não esperou nenhuma resposta, mas mesmo assim lançou um rápido olhar para Thies. Ele estava diante de seu cavalete e pintava concentrado. A maior parte de seus quadros era abstrata e em cores sombrias, nem um pouco adequada a apartamentos de pessoas deprimidas, segundo Amelie. À primeira vista, Thies parecia totalmente normal. Se seus traços não fossem tão petrificados, ele até seria um homem bonito, com rosto oval, nariz fino e retilíneo e boca macia e carnuda. A semelhança com a mãe, que era muito bonita, não passava despercebida. Ele herdara seus cabelos louro-claros e os grandes olhos de um azul nórdico, coroados por cílios espessos e escuros. Mas o que Amelie mais gostava nele eram as mãos. Thies tinha as mãos sensíveis e finas de um pianista, que não se calejavam apesar do trabalho no jardim. Quando ele ficava agitado, às vezes elas adquiriam vida própria, agitando-se de um lado para o outro como pássaros assustados em uma gaiola. Mas, naquele momento, elas estavam bem tranquilas, como quase sempre quando ele pintava.

— Fico me perguntando — continuou Amelie pensativa — o que Tobias fez com as duas garotas. Por que nunca disse? Se tivesse dito, talvez não tivesse ficado tanto tempo na prisão. Que estranho. Mas, de alguma forma, ele me agrada. É muito diferente dos outros caras deste fim de mundo.

Cruzou os braços atrás da cabeça, fechou os olhos e entregou-se a um agradável arrepio.

— Será que ele as esquartejou? Talvez até as tenha cimentado em algum canto do seu sítio.

Thies continuava a trabalhar impassível, misturando em sua paleta um verde-escuro com um vermelho-rubi; reprovou o resultado após uma breve reflexão e acrescentou um pouco de branco. Amelie parou a rede.

— Você realmente me acha mais bonita quando estou com os meus piercings?

Thies não disse nada. Amelie levantou-se com cuidado da rede que ainda balançava e foi até ele. Olhou a tela por cima de seus ombros. Ficou boquiaberta quando viu o que ele havia feito nas últimas duas horas.

— Uau! — disse impressionada e, ao mesmo tempo, surpresa. — Que demais!

 

Catorze pastas gastas pelo uso haviam chegado do arquivo do presídio de Frankfurt e estavam em caixas ao lado da escrivaninha de Pia. Em 1997, ainda não havia nem um único departamento especializado em crimes violentos no distrito Main-Taunus. Até a reforma da Polícia do Estado de Hessen, há alguns anos, os casos de assassinato, estupro e homicídio ficavam a cargo da K11 de Frankfurt. No entanto, o estudo dos autos teria de esperar, pois a doutora Nicola Engel havia marcado para as quatro horas uma daquelas reuniões inúteis, de que ela tanto gostava, com toda a equipe.

Estava quente e abafado na sala de reuniões. Como nada de espetacular estava previsto para a ordem do dia, a atmosfera era sonolenta e beirava a monotonia. Nas janelas, a chuva murmurava, caindo de um céu coberto de nuvens. Já estava escurecendo.

— A foto do procurado tem de sair hoje na imprensa — ordenou a superintendente da Polícia Criminal. — Alguém há de reconhecê-lo e se manifestar.

Andreas Hasse, que de manhã voltara ao trabalho pálido e taciturno, espirrou.

— Por que você já não fica em casa logo de uma vez, antes de contaminar todos aqui? — perguntou-lhe irritado Kai Ostermann, que estava sentado bem ao seu lado.

— Mais alguma coisa? — O olhar atento da doutora Nicola Engel passou de um em um, mas seus subordinados evitaram com prudência olhar diretamente para ela, pois ela parecia capaz de enxergar diretamente o cérebro de cada um. Com sua intuição sismográfica, durante um longo tempo percebera a tensão subliminar que pairava no ar e cuja razão estava tentando descobrir.

— Pedi os autos do caso Sartorius — enunciou Pia. — De algum modo, sinto que o ataque à senhora Cramer poderia ter uma relação direta com a libertação de Tobias Sartorius. Hoje, todas as pessoas de Altenhain reconheceram o homem da foto, mas negaram. Estão querendo protegê-lo.

— Também acha isso? — dirigiu-se Nicola Engel a Bodenstein, que o tempo todo permanecera na frente dela, com o olhar ausente.

— É perfeitamente possível — concordou Bodenstein. — Seja como for, a reação das pessoas foi estranha.

— Muito bem. — Nicola Engel olhou para Pia. — Dê então uma olhada nos autos. Mas não perca muito tempo com essas questões antigas. Também estamos aguardando do Departamento de Medicina Legal os resultados do exame feito no esqueleto, e isso tem prioridade.

— O Tobias Sartorius é odiado em Altenhain — disse Pia. — Picharam a casa do pai dele com ofensas, e quando chegamos lá no sábado, para dar a notícia do acidente, três mulheres estavam do outro lado da rua e o xingavam.

— Conheci esse cara na época do julgamento. — Hasse pigarreou algumas vezes. — Esse Sartorius era um assassino frio. Um bonitão arrogante e metido, que queria convencer todo mundo de que teve um branco e não conseguia se lembrar de nada. Só que as provas eram evidentes. Ele mentiu até ir para a prisão.

— Mas agora ele pagou sua pena. Tem direito de ser ressocializado — rebateu Pia. — E o comportamento das pessoas do vilarejo me irritou. Por que estão mentindo? Quem eles estão querendo proteger?

— E você acha que vai conseguir descobrir isso lendo os antigos autos? — Hasse abanou a cabeça. — Esse cara matou a namorada depois que ela terminou com ele, e como sua ex viu tudo, teve de matá-la também.

Pia espantou-se com o ardor inabitual com que seu colega, geralmente tão indiferente, se manifestou repentinamente.

— Pode até ser — respondeu ela. — Por isso ele ficou dez anos preso. Mas talvez, nas antigas atas de interrogatório, eu depare com aquele que jogou Rita Cramer da passarela.

— Mas o que você está querendo com... — recomeçou Hasse, porém Nicola Engel encerrou energicamente a discussão.

— Senhora Kirchhoff, dê uma olhada nos autos até os resultados sobre o esqueleto chegarem.

Como nada mais havia para ser discutido, a reunião foi encerrada. Nicola Engel desapareceu em seu escritório, e a K11 reunida se dispersou.

— Preciso ir para casa — disse Bodenstein subitamente, após consultar o relógio. Pia decidiu também voltar para casa e levar parte dos autos. No trabalho, dificilmente ocorreria algo importante.

 

— Devo levar sua mala para casa, Secretário? — perguntou o motorista, mas Gregor Lauterbach abanou negativamente a cabeça.

— Pode deixar que eu mesmo levo. — Ele sorriu. — Trate de ir para casa, Forthuber. Amanhã só vou precisar de você às oito da manhã.

— Perfeitamente. Sendo assim, boa-noite, Secretário.

Lauterbach anuiu e pegou sua maleta. Tinha ficado três dias longe de casa. Primeiro, teve compromissos em Berlim, depois, a conferência das Secretarias Estaduais de Educação e Cultura, em Stralsund, durante a qual seus colegas de Baden-Württemberg e da Renânia do Norte-Vestfália travaram inflamada discussão por causa do estabelecimento das diretrizes para cobrir a falta de profissionais de ensino. Ao abrir a porta e desligar o alarme com um movimento da mão, ouviu o telefone tocar. A secretária eletrônica entrou em ação, mas quem ligou não se deu ao trabalho de deixar recado. Gregor Lauterbach colocou a mala diante da escada, acendeu a luz e foi para a cozinha. Deu uma olhada na correspondência acumulada sobre a mesa da cozinha, que a faxineira havia cuidadosamente separado em duas pilhas. Daniela ainda não estava em casa. Se ele bem se lembrava, naquela noite ela daria uma palestra em um congresso de medicina, em Marburg. Lauterbach passou para a sala e, por um instante, observou as garrafas no aparador, antes de se decidir por um uísque escocês Black Bowmore, de 42 anos. Um presente de alguém que queria bajulá-lo. Abriu a garrafa e verteu dois dedos em um copo. Desde que se tornara Secretário Estadual de Educação e Cultura, em Wiesbaden, ele e Daniela se encontravam apenas ocasionalmente ou para ajustar suas agendas. Havia dez anos que já não dormiam na mesma cama. Lauterbach tinha um apartamento secreto em Idstein, no qual, uma vez por semana, se encontrava com uma discreta amante. De antemão, deixara-lhe bem claro que não pretendia se separar de Daniela; assim, quando se encontravam, esse tema não vinha à baila. Se, de sua parte, Daniela também tinha outro relacionamento, ele não sabia, tampouco perguntaria a ela. Afrouxou a gravata, tirou o paletó e o jogou de qualquer jeito sobre o encosto de um sofá; depois, bebeu um gole do scotch. O telefone voltou a tocar. Por três vezes. Depois, a secretária eletrônica atendeu.

— Gregor. — A voz masculina tinha um tom de urgência. — Se você estiver aí, por favor, atenda. É muito importante!

Lauterbach hesitou por um momento. Reconheceu a voz. Sempre e em toda parte, tudo parecia ser muito importante. Mas, por fim, deu um suspiro e atendeu. O interlocutor não perdeu tempo em fórmulas de cortesia. Enquanto Lauterbach ouvia, sentiu os pelos de sua nuca se eriçarem. Involuntariamente, ergueu-se. A sensação de ameaça acometeu-o como um predador.

— Obrigado por ter ligado — disse com voz rouca, e desligou o telefone. Como que petrificado, ficou em pé à meia-luz. Um esqueleto em Eschborn. Tobias Sartorius de volta a Altenhain. Sua mãe arremessada de uma passarela por um desconhecido. E uma policial ambiciosa da K11 de Hofheim remexendo em antigos autos. Maldição! O uísque caro ficou amargo. Indiferente, deixou o copo de lado e subiu apressadamente a escada até seu quarto. Aquilo não tinha, necessariamente, de significar alguma coisa. Podia ser tudo uma coincidência — tentou se acalmar. Mas não conseguiu. Lauterbach sentou-se na cama, tirou os sapatos e se deitou. Uma torrente de imagens indesejadas passou rapidamente por sua cabeça. Como uma única decisão errada, sem nenhuma importância em si, podia ter consequências tão catastróficas? Fechou os olhos. O cansaço arrastou-se por seu corpo. Seus pensamentos deslizaram do presente para as trilhas emaranhadas no mundo dos sonhos e das lembranças. Branca como a neve, vermelha como o sangue, negra como o ébano...

 

Terça-feira, 11 de novembro de 2008

—O esqueleto é de uma moça, que ao morrer tinha entre 15 e 18 anos. — O doutor Henning Kirchhoff estava com pressa. Precisava pegar o avião para Londres, onde era aguardado para periciar um caso. Bodenstein estava sentado em uma cadeira diante da escrivaninha e ouvia, enquanto Kirchhoff colocava documentos importantes em sua maleta e dava uma verdadeira aula sobre sutura basilar, cristas ilíacas parcialmente fundidas e outros indicadores de idade.

— Quanto tempo o corpo ficou no tanque? — interrompeu-o Bodenstein, por fim.

— De dez a, no máximo, 15 anos. — O médico-legista foi até a caixa de luz e apontou uma radiografia. — Ela chegou a quebrar o braço uma vez. Aqui dá para ver claramente uma fratura cicatrizada.

Bodenstein olhou fixamente para a imagem. Os ossos brilhavam em branco contra o fundo preto.

— Ah, sim, o que também é muito interessante é... — Kirchhoff não era do tipo de pessoa que manifestava espontaneamente aquilo que sabia. Mesmo quando tinha pressa, gostava de causar certo suspense. Folheou algumas radiografias, segurou-as contra a luz néon da caixa e pendurou aquela que estava procurando ao lado da imagem do osso do braço. — Extraíram seus primeiros pré-molares no maxilar superior direito e esquerdo, provavelmente porque seu maxilar era muito pequeno.

— E o que isso significa?

— Que adiantamos o trabalho do seu pessoal. — Kirchhoff fitou Bodenstein com as sobrancelhas levantadas. — Quando cruzamos no computador os dados das pessoas desaparecidas, obtivemos um resultado. Desde 1997, a moça é dada como desaparecida. Então, comparamos nossas radiografias com outras anteriores à morte dos desaparecidos, e veja só... — ele prendeu outra imagem na caixa de luz — aqui temos a fratura quando ela ainda era recente.

Bodenstein fez um exercício de paciência, embora, nesse meio-tempo, tenha começado a ficar claro para ele quem os operários do antigo aeródromo em Eschborn haviam desenterrado por acaso. Ostermann tinha feito uma lista de adolescentes e jovens mulheres que haviam desaparecido nos últimos 15 anos e não foram mais encontradas. No topo estavam os nomes das duas garotas que Tobias Sartorius havia assassinado.

— Como já não há substâncias orgânicas — prosseguiu Kirchhoff —, não foi possível fazer um sequenciamento, mas conseguimos extrair o DNA mitocondrial e chegar a dois resultados. Quanto à moça encontrada no tanque, trata-se de...

Ele emudeceu, circundou sua escrivaninha e remexeu em uma montanha de papéis.

— Laura Wagner ou Stefanie Schneeberger — supôs Bodenstein.Kirchhoff levantou o olhar para ele e sorriu aborrecido.

— Você é um desmancha-prazeres, Bodenstein — disse. — Como você quis estragar minha surpresa com essa sua impaciência, eu devia ter feito você esperar até minha volta de Londres. Mas, se for gentil e, com esse tempo horrível, me levar até o metrô, então conto para você qual das duas é.

 

Pia estava sentada à mesa e refletia. No dia anterior, ficara até tarde da noite estudando os autos e deparara com algumas incongruências. Os fatos do caso Tobias Sartorius eram claros; à primeira vista, as provas contra ele eram inequívocas. Mas somente à primeira vista. Já na leitura da ata do interrogatório, Pia sentiu-se incomodada com algumas perguntas, para as quais não encontrou resposta ao longo do estudo dos autos. Tobias Sartorius tinha 20 anos quando foi condenado à pena máxima do direito penal juvenil por homicídio culposo de Stefanie Schneeberger, então com 17 anos, e por homicídio doloso de Laura Wagner, igualmente com 17 anos na época. Um vizinho observou que, na madrugada de 6 de setembro de 1997, as duas garotas deixaram a casa da família Sartorius com poucos minutos de diferença. Já na rua, houve uma forte discussão entre Tobias e sua ex-namorada, Laura Wagner. Antes, os três haviam participado da quermesse, onde, segundo depoimentos de testemunhas, consumiram bebida alcoólica em grande quantidade. Para o tribunal, no calor da emoção, Tobias teria assassinado sua namorada, Stefanie Schneeberger, a golpes de um macaco hidráulico, e depois teria feito o mesmo com sua ex-namorada Laura, que teria sido testemunha do primeiro crime. Pela quantidade de sangue de Laura que fora encontrada por toda a parte na casa, na roupa de Tobias e no porta-malas de seu carro, o crime certamente fora cometido com extrema brutalidade. Desse modo, as características do assassinato estavam constituídas: crueldade e acobertamento de um crime. Em uma busca pela casa, encontraram a mochila de Stefanie no quarto de Tobias e o colar de Laura embaixo de uma bacia na leiteria. Por fim, a arma do crime, o macaco hidráulico, estava na fossa atrás do curral. A argumentação da defesa, de que, após a discussão, Stefanie teria esquecido sua mochila no quarto do namorado, foi afastada como insignificante. Testemunhas viram Tobias mais tarde, pouco depois das 23 horas, saindo de Altenhain em seu automóvel. Entretanto, por volta das 23h45, seus amigos Jörg Richter e Felix Pietsch teriam conversado com ele junto à porta de sua casa! Ele estaria sujo de sangue e teria se recusado a acompanhá-los na vigília da árvore da festa paroquial.

Pia deteve-se nesses horários. O tribunal havia partido do princípio de que Tobias havia transportado os corpos das duas moças no porta-malas de seu carro. Mas o que ele poderia fazer em apenas 45 minutos? Pia bebeu um gole de café e apoiou pensativa o queixo na mão. Na época, seus colegas foram meticulosos e, ao longo de seu trabalho de investigação, interrogaram quase todos os habitantes de Altenhain. Contudo, ela tinha a sensação de que alguma coisa passara despercebida.

A porta se abriu, e seu colega Hasse apareceu junto ao batente. Ele estava pálido como cera; apenas seu nariz estava vermelho e inflamado de tanto ser assoado.

— E aí? — perguntou Pia. — Está melhor?

Como resposta, Hasse espirrou duas vezes seguidas, depois respirou fungando e deu de ombros.

— Nossa, Andreas, vá para casa. — Pia balançou a cabeça. — Fique na cama e cure essa gripe de uma vez. Por enquanto, aqui está o maior marasmo.

— Até onde avançou com essa história? — Ele apontou desconfiado na direção dos autos, que estavam empilhados no chão, ao lado da escrivaninha de Pia. — Descobriu alguma coisa?

Por um instante, ela se espantou com seu interesse, mas, provavelmente, ele só estava com medo de que ela pudesse lhe pedir ajuda.

— Depende — respondeu ela. — À primeira vista, tudo parece ter sido cuidadosamente revisto. Mas, mesmo assim, tem alguma coisa que não está batendo. Quem conduziu as investigações na época?

— O inspetor-chefe Brecht, da K11 de Frankfurt — disse Hasse. — Mas, caso queira conversar com ele, está um ano atrasada. Ele morreu no inverno passado. Estive no enterro.

— Ah.

— Um ano depois de se aposentar. Era o preferido do Estado. O cara se mata de trabalhar até completar 65 anos, e depois vai direto para o caixão.

Pia ignorou a costumeira amargura em sua voz. Certamente, em sua vida, Hasse ainda não tinha corrido o risco de se matar de trabalhar.

 

Depois de deixar o doutor Kirchhoff na plataforma do metrô, junto ao estádio, Bodenstein pegou o acesso em direção ao trevo de Frankfurt. Naquele dia, finalmente os pais de Laura Wagner iriam saber com certeza o que havia acontecido com sua filha. Talvez a possibilidade de enterrá-la e de se despedir definitivamente de seus restos mortais após onze anos lhes trouxesse algum alívio. Estava tão mergulhado em pensamentos que precisou de alguns segundos para reconhecer a placa do carro à sua frente. O que a Cosima estava fazendo em Frankfurt? Não tinha ela se queixado com ele, ainda naquela manhã, de que teria de passar o resto da semana na emissora, em Mainz, porque não estavam conseguindo avançar com a edição do material para o filme? Bodenstein digitou seu número de celular. Apesar da visibilidade ruim por causa da garoa e dos respingos de água, conseguiu ver quando a motorista à sua frente levou o celular ao ouvido. Ele sorriu quando sua voz familiar soou no fone. Dê uma olhada no retrovisor, era o que, na verdade, tinha vontade de dizer, mas uma inspiração repentina o deteve. As palavras de sua irmã relampejaram em seu cérebro. Ele iria colocar Cosima à prova e se convencer de que sua desconfiança era injustificada.

— O que você está fazendo? — perguntou em vez daquilo que tinha vontade de perguntar. A resposta dela o deixou sem palavras.

— Ainda estou em Mainz. Hoje não deu nada certo — respondeu em um tom que, normalmente, não levantaria suspeitas. A mentira o deixou em tamanho estado de choque que, por dentro, começou a tremer. Suas mãos apertaram a direção, ele tirou o pé do acelerador, ficou para trás e deixou que outro carro o ultrapassasse. Ela estava mentindo! E continuou a mentir! Ao ligar a seta direita e virar na rodovia A5, ela lhe contou que havia alterado todo o roteiro e, por isso, não tinha conseguido terminar a edição em tempo.

— A sala de edições só está à nossa disposição até o meio-dia — disse ela. O sangue subiu às orelhas dele. Descobrir que Cosima, sua Cosima, estava mentindo com aquela frieza e aquele descaramento para ele era mais do que Bodenstein podia suportar. Preferia ter berrado, gritado para ela: Por favor, por favor, não minta, estou atrás de você!,mas não conseguiu dizer nada; apenas murmurou alguma coisa e encerrou a conversa. Como em transe, dirigiu o restante do caminho até a delegacia. Ao lado das garagens onde estavam estacionadas as viaturas, desligou o motor e ficou dentro do carro. A chuva batia no teto da BMW e escorria pelos vidros. Seu mundo havia desmoronado. Por que diabos Cosima havia mentido para ele? A única explicação era que tinha feito alguma coisa da qual ele não deveria saber. Ele não queria saber de maneira alguma o que poderia ser. Esse tipo de coisa acontecia com os outros, não com ele! Levou quinze minutos até finalmente ter condições de sair do carro e ir até o prédio.

 

Sob a garoa constante, Tobias carregou a caçamba do trator, para depois transportar tudo até os contêineres, que haviam sido colocados ao lado da fossa seca. Madeira velha, entulho e lixo orgânico. O cara da empresa de tratamento de lixo tinha avisado várias vezes que, se ele não separasse direito o lixo, a brincadeira ia sair cara. Por volta do meio-dia, o sucateiro chegou ao sítio para levar o ferro-velho. Nos olhos do homem apareceram dois cifrões quando ele viu a mina de ouro que se abria à sua frente. Com dois ajudantes, carregou tudo, a começar pelas correntes enferrujadas, com as quais, antigamente, as vacas eram amarradas, até chegar à cocheira e ao celeiro. O sucateiro pagou a Tobias 450 euros e prometeu que na semana seguinte voltaria para buscar o resto. Tobias sabia muito bem que cada movimento seu estava sendo atentamente observado pelo vizinho Paschke. O velho tinha ficado escondido atrás da cortina, mas volta e meia aparecia, espiando por uma fresta. Tobias não lhe deu atenção. Às quatro e meia, quando seu pai voltou do trabalho, nada mais se via da montanha de lixo no pátio inferior.

— Mas as cadeiras — protestou Hartmut Sartorius, perturbado. — Ainda estavam boas. E as mesas. Daria para pintar todas elas...

Tobias conduziu o pai para dentro de casa, depois acendeu um cigarro e aproveitou a primeira merecida pausa desde a manhã. Sentou-se no último degrau da escada e olhou satisfeito para o pátio arrumado, em cujo centro a velha castanheira ainda estava de pé. Nadja. Pela primeira vez ele consentia a seus pensamentos retornar à noite da antevéspera. Embora tivesse 30 anos, no que se referia a sexo ainda era um perfeito iniciante. Em comparação com o que Nadja e ele haviam feito, suas experiências anteriores pareciam até infantis. Por falta de comparações ao longo dos anos, sua imaginação as exagerava a algo grandioso e único, mas agora ele podia colocá-las na relação correta. Coisa de criança aquele tímido vaivém, na cama cheirando a mofo, da adolescência, os jeans e as cuecas abaixados até os joelhos e os ouvidos sempre atentos — para que seus pais não entrassem inesperadamente, pois o quarto não tinha chave.

— Uau! — suspirou pensativo. Soou enfático, mas, sem dúvida, Nadja tinha sido a primeira a realmente fazer dele um homem. Depois da primeira e apressada transa no sofá, foram para a cama, e ele achou que seria tudo. Ficaram abraçados, se acariciaram, conversaram, e Nadja lhe confessou que no passado já gostava dele. Só se dera conta disso quando ele desaparecera de sua vida. E, durante todos aqueles anos, todo homem que ela encontrava acabava comparando inconscientemente a ele. Essa confissão, saída da boca daquela linda mulher estranha, que ele já não conseguia associar à sua amiga do jardim de infância, ao mesmo tempo o irritava e deixava profundamente feliz. Ela havia conseguido motivá-lo a alcançar um desempenho físico que o deixara extenuado, um desempenho do qual ele nunca se julgara capaz. Achou que ainda conseguia sentir seu cheiro, seu gosto e seu tato. Simplesmente maravilhoso. Magnífico. Demais. Tobias estava tão mergulhado em seus pensamentos que não ouviu os passos leves e assustou-se com um sobressalto, quando um vulto dobrou inesperadamente o canto da casa.

— Thies? — perguntou espantado. Levantou-se, mas não fez nenhuma menção de se dirigir ao filho do vizinho nem de abraçá-lo. Thies Terlinden não gostava dessas intimidades. Também desta vez não o olhava nos olhos; ficou simplesmente ali parado, com os braços grudados no corpo. Como antes, não dava para perceber sua deficiência. Lars devia estar parecido com ele agora. Lars, o irmão gêmeo de Thies, dois minutos mais jovem, que, devido à doença do irmão, ascendera involuntariamente ao cargo de herdeiro da dinastia Terlinden. Depois daquele dia funesto, em setembro de 1997, Tobias nunca mais reviu o melhor amigo. Somente naquele instante lhe ocorreu que ele não tinha conversado com Nadja a respeito de Lars, embora antigamente os três fossem como irmãos. Kalle, Anders e Eva-Lotte era como se chamavam e, como nas histórias de Astrid Lindgren , formavam o grupo Rosa Branca. De repente, Thies deu um passo na direção de Tobias e, para seu espanto, estendeu-lhe a mão com a palma virada para cima. Surpreso, Tobias entendeu o que Thies esperava: antigamente, era assim que se cumprimentavam, com três palmas. No começo, esse era o sinal secreto de reconhecimento do grupo, mas depois se tornou uma brincadeira que acabaram mantendo. Um leve sorriso apareceu no rosto bonito de Thies, quando Tobias bateu em sua mão.

— Oi, Tobi — disse ele com sua voz característica, sem nenhuma entonação. — Que bom que você está de volta.

 

Amelie limpou o longo balcão. O salão do Corcel Negro ainda estava vazio; cinco e meia era cedo demais para a clientela noturna. Para seu próprio espanto, não tinha sido difícil naquele dia abrir mão de seu visual costumeiro. Será que sua mãe estava certa quando afirmava que sua vida gótica não era um estilo de vida, mas, na verdade, só uma fase de contestação, típica da adolescência? Em Berlim ela se sentia bem nas roupas largas e pretas, com as bijuterias, a maquiagem e o penteado extravagantes. Todos os seus amigos tinham a mesma aparência, e ninguém se virava para observá-los quando perambulavam em grupo pelas ruas como um bando de corvos, chutavam os postes com seus coturnos e, eventualmente, jogavam futebol com as latas de lixo. Ela se lixava para o que os professores e outras pessoas caretas diziam, e nunca dera bola para eles. Eram como objetos incômodos que moviam os lábios e diziam coisas sem sentido. Mas, de repente, tudo ficou diferente. Ela havia gostado dos olhares de aprovação dos homens no domingo, que sem dúvida aprovaram sua silhueta e seu profundo decote. Mais do que isso. Ela se sentia nas nuvens depois de perceber que todos os homens no Corcel Negro ficaram olhando o seu traseiro, inclusive Claudius Terlinden e Gregor Lauterbach. O entusiasmo ainda não tinha passado. Jenny Jagielski saiu gingando da cozinha. A sola de borracha dos seus sapatos grudava no chão, fazendo barulho. Ao ver Amelie, levantou as sobrancelhas.

— De espantalho a vampe — notou mordaz. — Bom, há quem goste.

Depois, observou rigorosamente o resultado do trabalho de Amelie, passando o dedo indicador sobre o tampo, e ficou satisfeita.

— Dê uma lavada nos copos — disse. — Meu irmão não terminou o serviço de novo.

Ao lado da pia, ainda havia dúzias de copos usados durante o almoço. Para Amelie, era indiferente o que fazia. O importante era receber sua grana toda noite. Jenny subiu em um banco alto do bar, na frente do balcão, e, apesar do aviso de não fumar, acendeu um cigarro. Fazia isso sempre que estava sozinha e de bem com a vida, como naquele dia. Amelie aproveitou a ocasião para lhe perguntar sobre Tobias Sartorius.

— Claro que já o conhecia — respondeu Jenny. — O Tobi era colega do meu irmão e vivia na nossa casa.

Suspirou e abanou a cabeça.

— Mesmo assim, teria sido melhor se ele não tivesse voltado para cá.

— Por quê?

— Ah, imagine como o Manfred e a Andrea vão se sentir quando toparem com o assassino da filha deles pelo caminho!

Amelie secou os primeiros copos lavados, lustrando-os com cuidado.

— Mas, afinal, o que aconteceu naquela época? — perguntou como quem não quer nada, mas nem precisava de motivação, pois sua patroa estava a fim de conversar.

— Primeiro, o Tobi namorou a Laura, depois, a Stefanie. Ela era nova em Altenhain. No dia em que as duas desapareceram, havia uma quermesse. A cidade inteira estava nas barracas. Naquela época, eu tinha 14 anos e achava o máximo poder passar a noite inteira na rua. Para falar a verdade, não percebi nada do que aconteceu. Só na manhã seguinte, quando a polícia apareceu com cães, helicópteros e tudo o mais é que entendi que a Laura e a Stefanie tinham desaparecido.

— Eu nunca poderia imaginar que num fim de mundo como Altenhain pudesse acontecer algo tão emocionante — disse Amelie.

— Emocionante foi mesmo — respondeu Jenny, e observou pensativa o cigarro que queimava entre seus dedos roliços como salsichas. — Mas, depois disso, esta cidade nunca mais foi a mesma. Antes, todo mundo era amigo de todo mundo. Isso não existe mais. O pai do Tobi era dono do Galo de Ouro, que ficava cheio todas as noites, mais do que aqui. Também tinham um salão enorme; no carnaval era muito animado. O Corcel Negro ainda não existia naquela época. Meu marido trabalhou como cozinheiro no Galo de Ouro.

Ela se calou e se entregou às suas lembranças. Amelie empurrou o cinzeiro em sua direção.

— Sei que a polícia interrogou o Jörg e os amigos durante horas — continuou, por fim, Jenny. — Ninguém sabia de nada. E depois disseram que o Tobi tinha matado as duas garotas. A polícia encontrou sangue da Laura no carro do Tobi e as coisas da Stefanie embaixo da cama dele. E o macaco hidráulico com que Stefanie foi morta estava na fossa da casa dos Sartorius.

— Que horror. A senhora conheceu a Laura e a Stefanie?

— A Laura, sim. Faziam parte da mesma turma ela, meu irmão, Felix, Micha, Tobi, Nathalie e Lars.

— Nathalie? Lars?

— Terlinden. E a Nathalie Unger se tornou uma atriz famosa. Hoje ela se chama Nadja von Bredow. Talvez você já a tenha visto na televisão. — Jenny fixou o olhar diante de si. — Os dois se deram bem na vida. Parece que o Lars arrumou um superemprego em um banco. O que faz exatamente, ninguém sabe. Ele nunca mais voltou a Altenhain. Bom, eu também sempre sonhei com um mundo cosmopolita, mas muitas vezes as coisas são diferentes do que a gente pensa...

Para Amelie, foi difícil imaginar sua patroa gorda e cronicamente mal-humorada como uma garota de 14 anos. Será que ela ficava brava com tanta frequência porque tinha ficado naquele fim de mundo, com três filhos pequenos que não paravam de choramingar e um marido que, em alusão ao seu corpanzil, a chamava de “Micheline” na frente de todo mundo?

— E a Stefanie? — perguntou Amelie, quando Jenny ameaçou mergulhar em suas lembranças. — Como ela era?

—Hum. — Jenny fitou pensativa o vazio. — Era bonita. Branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o ébano.

Seu olhar dirigiu-se a Amelie. Seus olhos claros com os cílios louros lembravam os de um porco.

— Você se parece um pouco com ela. — A observação não soou como um elogio.

— É mesmo? — Amelie interrompeu seu trabalho.

— A Stefanie era totalmente diferente das garotas do vilarejo — continuou Jenny. — Tinha acabado de se mudar com os pais para cá, e o Tobi logo se apaixonou por ela e terminou com a Laura. — Jenny deu uma risadinha de desdém. — Então meu irmão viu a sorte lhe sorrir. Todos os garotos eram completamente loucos pela Laura. Ela era mesmo muito bonita. Mas também muito voluntariosa. Ficou uma fera quando Stefanie foi eleita Miss Quermesse e ela, não.

— Por que os Schneebergers foram embora daqui?

— E você ficaria na cidade em que sua filha sofreu algo tão horrível? Ainda ficaram morando cerca de três meses aqui, depois, um dia, foram embora.

—Hum. E o Tobi? Que tipo de sujeito ele era?

— Ah, todas as meninas eram loucas por ele. Eu também. — Jenny sorriu melancólica ao se lembrar do tempo em que ainda devia ser jovem, magra e cheia de sonhos. — Ele era um gato e simplesmente... Incrível. E, apesar disso, nunca foi metido como os outros garotos. Quando iam à piscina, ele não era contra eu ir junto. Os outros reclamavam, dizendo que a pirralha tinha de ficar em casa e coisas do tipo. Ele, não; era legal. E, ainda por cima, inteligente. Todo mundo achava que ia se tornar alguém importante. Pois é. E aí aconteceu aquilo. Mas o álcool muda uma pessoa. Quando o Tobi bebia alguma coisa, deixava de ser quem era...

A porta se abriu, dois homens entraram, e Jenny apagou rapidamente o cigarro. Amelie guardou os copos lavados, dirigiu-se aos clientes e ofereceu-lhes o cardápio. Ao voltar, pegou o jornal que estava sobre uma mesa. Seu olhar bateu na página aberta das notícias locais. A polícia procurava o homem que havia jogado a mãe de Tobias da passarela.

— Puta merda! — murmurou e arregalou os olhos. Ainda que a foto do procurado fosse de má qualidade, ela reconheceu o homem na hora.

 

Bodenstein temia o momento em que tivesse de se defrontar com Cosima. Ficou sentado em seu escritório, refletindo, até já não poder adiar o encontro. Ela estava no banheiro, no andar de cima, quando ele chegou em casa. Como ouviu barulho de água, ela devia estar na banheira. Com os braços pendentes, estava em pé na cozinha, quando seu olhar deparou com a bolsa dela, dependurada no encosto de uma cadeira. Nunca em sua vida Bodenstein vasculhara a bolsa da mulher. Tampouco alguma vez lhe ocorrera remexer sua escrivaninha — pois sempre confiara nela e partira do princípio de que ela nada teria a esconder dele. Naquele momento era diferente. Por um instante, lutou contra si mesmo, depois pegou a bolsa e a vasculhou até encontrar seu celular. Seu coração batia na garganta quando abriu o aparelho. Ela não o havia desligado. Bodenstein sabia que estava cometendo uma indiscrição, mas não conseguia agir de outro modo. No menu, clicou na pasta de mensagens e foi passando as mensagens. Na noite anterior, às 21h48, ela tinha recebido uma mensagem curta de um remetente desconhecido. Amanhã, às 9h30? No mesmo lugar? E ela havia respondido apenas um minuto depois. Onde ele estava, afinal? Como não percebeu que Cosima tinha escrito: Combinado, fico feliz!!!? Três pontos de exclamação. Um mal-estar tomou conta de seu estômago. Os temores que ele carregara o dia inteiro pareciam se confirmar. Com os três pontos de exclamação, já caíam por terra as possibilidades mais inocentes, como médico ou cabeleireiro. Dificilmente ela ficaria tão feliz com esse tipo de compromisso às dez para as dez de uma noite de segunda-feira. Bodenstein tentou ouvir o barulho no andar de cima, enquanto continuava a revistar o celular à procura de mensagens de traição. Mas Cosima devia ter apagado o arquivo recentemente, pois ele não encontrou mais nada. Sacou seu próprio celular e gravou os números de telefone do desconhecido, que, aparentemente, se encontrara de novo com sua mulher às nove e meia de uma manhã de terça-feira. Bodenstein fechou o celular e colocou-o de volta na bolsa. Sentiu-se mal. Só de pensar que Cosima o estava enganando, mentindo para ele, era quase insuportável. Ele mesmo nunca mentira para ela em mais de 25 anos de casamento. Nem sempre era uma vantagem andar na linha e ser honesto, mas mentiras e promessas falsas contrariavam profundamente seu caráter e sua educação rigorosa. Será que então ele deveria subir e confrontá-la com sua suspeita, perguntando-lhe por que ela lhe mentira? Bodenstein passou os dedos pelos cabelos bastos e escuros e respirou fundo. Não, decidiu, não diria nada. Ainda manteria por mais um pouco a aparência e a ilusão de um relacionamento intacto. Podia ser covardia, mas ele simplesmente não se sentia em condições de pegar a vida com as duas mãos e despedaçá-la. Ainda persistia a ínfima esperança de que não era verdade o que parecia ser.

 

Chegaram aos pares ou em pequenos grupos, puderam entrar pela porta dos fundos da igreja, depois que lhes pediram a senha. O convite fora feito oralmente, e a senha era importante, pois asseguraria que apenas as pessoas certas estariam lá. Onze anos já se haviam passado desde que ele convocara esse tipo de reunião secreta e, graças a ela, impedira uma desgraça ainda maior. Já estava mais do que na hora de tomar novas providências, antes que a situação piorasse. Estava em pé ao lado do órgão, no coro, escondido atrás de uma trave de madeira, e observava com nervosismo crescente as fileiras de bancos sendo preenchidas aos poucos. O tremeluzir das poucas velas no altar lançava sombras grotescas no teto e nas paredes da nave abobadada da igreja. Talvez a luz elétrica despertasse uma atenção indesejada, pois mesmo a densa neblina que baixara do lado de fora não conseguiria esconder as janelas iluminadas. Ele pigarreou e esfregou, uma na outra, as palmas úmidas das mãos. Uma olhada no relógio lhe revelou que já estava na hora. Todos já haviam chegado. Lentamente, desceu tateando a escada espiral de madeira. Os degraus rangeram sob seu peso. Ao sair da escuridão e aparecer ao lusco-fusco da luz das velas, o sussurro das conversas se apagou. O relógio da torre da igreja bateu onze vezes — uma coreografia perfeita. Ele entrou no corredor central, passando pela primeira fileira de bancos, e olhou os rostos familiares; o que viu, deu-lhe coragem. Todos os olhos estavam voltados para ele, que neles reconheceu a mesma determinação de antigamente. Todos haviam entendido do que se tratava.

— Obrigado por terem vindo aqui esta noite — iniciou o discurso que mentalmente havia limado por muito tempo. Embora falasse em voz baixa, sua voz chegava até o último ângulo do amplo espaço. A acústica da igreja era perfeita, isso ele sabia dos ensaios do coral. — A situação se tornou insustentável desde que ele voltou, e pedi que vocês viessem hoje aqui para decidir, junto com vocês, como vamos lidar com essa questão.

Ele não era um orador experiente; por dentro, estava tremendo de nervosismo, como sempre quando tinha de falar com outras pessoas. No entanto, conseguiu resumir, em poucas palavras, aquilo que ele próprio e o vilarejo desejavam. A nenhum dos presentes foi necessário esclarecer o tema da noite; assim, ninguém se fez de desentendido quando ele anunciou sua decisão. Por um momento, reinou um silêncio sepulcral. Alguém reprimiu a tosse. Sentiu o suor correr-lhe pelas costas. Ainda que estivesse convencido da absoluta necessidade de seu intento, tinha consciência de que estava em uma igreja e que havia convocado os moradores para um assassinato. Seu olhar deslizou por cima das cabeças das 34 pessoas à sua frente. Conhecia cada uma desde que se conhecia por gente. Nenhuma delas deixaria escapar nem uma palavra que fosse sobre o que estava sendo discutido ali. Antes, onze anos atrás, não fora diferente. Tenso, aguardou.

— Estou nessa — ouviu-se, finalmente, uma voz na terceira fileira.

Fez-se silêncio. Faltava mais um voluntário. Tinham de ser pelo menos três.

— Também estou — disse, por fim, alguém. Um suspiro circulou pelo grupo reunido.

— Muito bem. — Ele estava aliviado. Por um momento, temeu que fossem recuar. — Vai ser apenas um aviso. Se depois ele não desaparecer de livre e espontânea vontade, fazemos a coisa pra valer.

 

Quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Aborrecida, a doutora Nicola Engel observou sua K11 quase vazia. Apenas quatro compareceram à reunião matinal da equipe. Além de Behnke, Kathrin Fachinger também tinha faltado. Enquanto Ostermann relatava sobre a repercussão pouco satisfatória de sua notificação de captura, Bodenstein parecia ausente ao mexer seu café. Pia achou-o extenuado, como se não tivesse dormido muito à noite. O que estava acontecendo com ele? Fazia alguns dias que ele dava a impressão de estar com a cabeça longe. Pia imaginou problemas familiares. Em maio do ano retrasado, ele também ficara estranho; na época, estava preocupado com a saúde de Cosima, mas logo depois viu que não havia motivo — ela estava grávida... e ele não sabia de nada.

— Bom. — Como Bodenstein não se pronunciara, a doutora Engel tomou a palavra. — Quanto ao esqueleto no hangar, trata-se de Laura Wagner, de Altenhain, desaparecida desde setembro de 1997. O DNA é o mesmo, e a fratura cicatrizada no braço esquerdo coincide com uma comparação com uma radiografia feita em vida.

Pia e Ostermann já sabiam do teor do relatório feito pelo Departamento de Medicina Legal, mas ouviram com paciência até sua chefe terminar de falar. Será que a doutora Engel estava entediada em seu emprego e, por isso, sempre se metia no trabalho da K 11? Seu antecessor, o doutor Nierhoff, raramente aparecia; na maioria das vezes, só dava as caras quando havia algum caso realmente espetacular para ser esclarecido.

— Só me pergunto — disse Pia, quando a doutora Engel terminou de falar — como Tobias Sartorius fez para ir de Altenhain a Eschborn, entrar em um terreno militar fechado e com segurança e jogar o corpo no tanque subterrâneo, tudo isso em 45 minutos.

Ao redor da mesa, todos estavam em silêncio. Todos, menos Bodenstein, olharam para ela.

— Sartorius, supostamente, assassinou as duas moças na casa dos pais — esclareceu Pia. — Foi visto pelos vizinhos quando entrou primeiro com Laura Wagner em casa e, mais tarde, quando abriu a porta para Stefanie Schneeberger. Depois, foi visto pelos amigos por volta da meia-noite, quando quiseram ir buscá-lo.

— O que quer dizer com isso? — quis saber a doutora Engel.

— Que talvez Tobias Sartorius não tenha sido o assassino.

— Claro que foi ele — contestou Hasse de imediato. — Esqueceu que foi condenado?

— Em um processo baseado em meras provas circunstanciais. E, ao estudar os autos, deparei com algumas incongruências. Às quinze para as onze, o vizinho viu que Stefanie Schneeberger entrou na casa de Tobias Sartorius e, meia hora mais tarde, o carro dele foi visto por duas testemunhas em Altenhain.

— Sim — disse Hasse. — Ele matou as garotas, pegou o carro e se livrou dos corpos. Fizeram a reconstituição de tudo isso.

— Na época, partiu-se do princípio de que ele havia deixado os corpos nas proximidades. Hoje sabemos que não foi o que aconteceu. E como ele entrou no terreno militar fechado?

— Os jovens sempre fizeram festas clandestinas ali. Conheciam algum acesso secreto.

— Isso é absurdo. — Pia abanou a cabeça. — Como é que um homem embriagado ia conseguir fazer uma coisa dessas sozinho? E que fim deu ao segundo corpo? Não o encontramos no tanque! Estou dizendo a vocês, o tempo foi curto demais!

— Senhora Kirchhoff — advertiu a doutora Engel —, não estamos fazendo nenhuma investigação aqui. O criminoso foi capturado na época, sua culpa foi comprovada, ele foi condenado e pagou sua pena. Procure os pais da moça, informe-lhes que os restos mortais de sua filha foram encontrados e ponto final.

 

— E ponto final! — exclamou Pia, imitando sua chefe. — Nem passa pela minha cabeça deixar isso de lado. É evidente que, na época, a investigação foi malfeita e que as conclusões foram absolutamente arbitrárias. E eu me pergunto por quê!

Bodenstein, que lhe havia entregado a direção do carro, nada respondeu. Ele tinha cruzado as longas pernas na estreita e incômoda viatura da marca Opel, fechado os olhos e não abrira a boca durante toda a viagem.

— Afinal de contas, o que há com você, Oliver? — perguntou Pia, por fim, um pouco irritada. — Não estou a fim de passar o dia circulando com alguém que fala tanto quanto um morto!

Bodenstein abriu um olho e suspirou.

— Ontem a Cosima mentiu para mim.

É. Um problema familiar. Como ela havia suspeitado.

— E daí? Quem é que nunca mentiu uma vez na vida?

— Eu. — Bodenstein abriu o segundo olho. — Nunca menti para a Cosima. Até o caso da Kaltensee eu contei para ela na época.

Ele pigarreou, depois contou a Pia o que havia acontecido no dia anterior. Ela ouviu com um incômodo crescente. O negócio parecia realmente sério. Porém, mesmo nessa situação, seu aristocrático sentimento de honra o deixava com a consciência pesada porque ele havia procurado, às escondidas, provas no celular de sua mulher.

— Para tudo pode haver uma explicação bastante inofensiva — respondeu Pia, embora não acreditasse nisso. Cosima von Bodenstein era uma mulher bonita e temperamental, que, graças a seu trabalho como produtora de cinema, também era autônoma e independente do ponto de vista financeiro. Nos últimos tempos, pelo que Pia percebera, houvera repetidos desentendimentos entre ela e Bodenstein, mas seu chefe parecia não lhes dar grande importância. Típico dele, que, naquele momento, estava atordoado. Vivia numa torre de marfim. E isso era ainda mais espantoso quando se pensava em quanto era fascinado pelos abismos nas relações entre outras pessoas, com os quais ele se confrontava todos os dias. Em oposição a Pia, raras eram as vezes em que ele se deixava envolver emocionalmente por um caso; ele mantinha um distanciamento que ela considerava presunçoso. Por acaso ele achava que estaria livre de passar por uma situação como essa e que era superior a algo tão profano quanto problemas matrimoniais? Será que ele realmente pensava que Cosima ficaria satisfeita em passar o dia em casa com uma criança pequena e esperando por ele? Ela estava habituada a uma vida completamente diferente.

— Você acha inofensivo ela estar se encontrando com alguém e me contar que esteve em outro lugar? —objetou ele. — Isso não é nada inofensivo. O que vou fazer?

Pia não respondeu de imediato. Na situação dele, ela teria feito de tudo para saber a verdade. Provavelmente pediria na hora uma explicação para seu namorado, com gritos, lágrimas e críticas. Impossível fingir simplesmente que nada havia acontecido.

— Pergunte para ela — sugeriu. — Dificilmente ela vai mentir para você cara a cara.

—Não — respondeu ele decidido. Pia suspirou internamente. Oliver von Bodenstein era diferente das pessoas normais. Só para preservar as aparências e proteger a família, talvez até aceitasse um possível rival e sofresse calado. No quesito autocontrole, ele merecia nota dez com louvor.

— Você anotou o número do celular?

— Anotei.

— Me dê, então. Vou ligar. Com número camuflado.

— Não, melhor não.

— Você não quer saber a verdade?

Bodenstein hesitou.

— Escute — disse Pia. — Isso vai consumi-lo se você não souber o que está acontecendo.

— Droga! — irritou-se. — Queria não tê-la visto! Queria não ter ligado para ela!

— Mas você a viu e ligou para ela. E ela mentiu.

Bodenstein respirou fundo e passou a mão pelos cabelos. Raras vezes Pia vira seu chefe tão desnorteado, nem mesmo quando ele tinha descoberto que a filha de Vera Kaltensee o drogara e o forçara a manter relações sexuais, a fim de chantageá-lo. Essa questão o estava afetando muito mais.

— O que faço se descobrir que ela... que ela está me traindo?

— Você já tirou conclusões totalmente erradas do comportamento dela uma vez — lembrou Pia, tentando acalmá-lo.

— Desta vez é diferente — disse ele. — Você iria querer saber a verdade se suspeitasse de que está sendo traída?

— Com toda a certeza.

— E se... — ele se interrompeu. Pia nada disse. Eles haviam chegado à marcenaria de Manfred Wagner, na zona industrial de Altenhain. Homens, pensou ela. Todos iguais. Não têm nenhuma dificuldade em tomar uma decisão no trabalho. Mas tão logo se trate de relacionamento e os sentimentos entrem em jogo, são todos uns tremendos de uns covardes.

 

Amelie esperou sua madrasta sair de casa. Sem desconfiar, Barbara tinha acreditado quando ela dissera que, naquele dia, não teria a primeira aula. Amelie riu interiormente. Aquela mulher era tão crédula que já estava ficando chato mentir para ela. Totalmente diferente da sua mãe, que era desconfiada. Em princípio, não acreditava em nenhuma palavra; por isso, Amelie se acostumara a mentir para ela. Muitas vezes ela engolia mais as mentiras do que a verdade.

Amelie esperou até Barbara sair com as duas crianças em seu pequeno e barulhento Mini vermelho para esgueirar-se pela porta e correr para o sítio dos Sartorius. Ainda estava escuro e não havia ninguém na rua. Não viu nem mesmo Thies em canto algum. Seu coração batia acelerado quando ela entrou furtivamente no sítio sombrio, passou pelo celeiro e pelo comprido estábulo, no qual há muito tempo já não vivia nenhum animal. Manteve-se rente ao muro, dobrou a esquina e quase teve um infarto quando, de repente, dois vultos mascarados apareceram à sua frente. Antes que ela pudesse gritar, um deles a agarrou e tapou sua boca com a mão. Com brutalidade, colocou seus braços atrás das costas e a empurrou contra o muro. A dor foi tão intensa que chegou a lhe faltar o ar. O que deu no cara para machucá-la tanto? E o que aqueles sujeitos estavam procurando ali, às sete e meia da manhã? Amelie já tinha superado algumas situações de ameaça em sua vida, e mesmo naquele momento, após o primeiro susto, não sentiu medo, e sim raiva. Obstinada, lutou contra o aperto inflexível, virou-se e tentou arrancar do seu agressor a máscara com uma fenda nos olhos. Com a força do desespero, conseguiu destapar a boca. Viu um pedaço de pele bem na frente de seus olhos, apenas um segmento entre a luva e a manga do casaco, e o mordeu com o máximo de força que conseguiu. O homem soltou um grito de dor reprimido e jogou Amelie no chão. Nem ele nem seu comparsa haviam contado com uma defesa tão intensa; estavam ofegantes devido ao esforço e à raiva. Por fim, o segundo homem deu um chute nas costelas de Amelie de lhe tirar o fôlego. Depois, deu um soco em sua cabeça. Amelie viu estrelas, e seu instinto lhe gritou que era melhor ficar no chão e calar o bico. Passos se afastaram apressadamente; depois, fez-se completo silêncio, a não ser por sua respiração intensa.

— Merda —xingou e, com esforço, tentou se levantar. Suas roupas estavam ensopadas e sujas. O sangue escorria quente por seu queixo e pingava em suas mãos. Aqueles filhos da puta a tinham machucado pra valer.

 

A marcenaria Wagner e a habitação contígua passavam a impressão de que faltara dinheiro para terminar a construção. Muros sem reboco, metade do pátio com paralelepípedos, outra metade asfaltada, cheia de buracos. Não parecia menos deprimente do que o sítio dos Sartorius. Por toda parte estavam empilhadas pranchas e tábuas de madeira, algumas já cobertas de musgo, dando a impressão de estarem havia anos no local. Portas moldadas em plástico estavam apoiadas contra a parede da oficina, e tudo estava sujo.

Pia tocou a campainha da casa, depois a da porta com a inscrição “escritório”, mas ninguém atendeu. No interior da oficina havia luz; então, ela empurrou o portão de ferro e entrou. Bodenstein a seguiu. Sentia-se o odor de madeira fresca.

— Tem alguém aí? — gritou ela. Atravessaram a oficina, que era uma bagunça só, e, atrás de uma pilha de tábuas encontraram um rapaz com fone nos ouvidos e que balançava a cabeça no ritmo da música. Estava ocupado, envernizando alguma coisa, e tinha um cigarro na boca. Quando Bodenstein bateu em seu ombro, ele se virou bruscamente. Tirou o fone dos ouvidos e fez cara de quem estava consciente da própria culpa.

— Apague o cigarro — disse-lhe Pia, e ele obedeceu de imediato. — Estamos procurando o senhor ou a senhora Wagner. Estão por aqui?

— No escritório, lá em cima — respondeu o rapaz. — Pelo menos é o que acho.

— Obrigada. — Pia poupou-se de adverti-lo sobre o código de prevenção de incêndios e partiu em busca do proprietário, que parecia não se importar com nada. Encontraram Manfred Wagner em um escritório minúsculo, sem janelas e tão entulhado de coisas que mal cabiam três pessoas dentro dele. O homem tinha acabado de desligar o telefone e estava lendo o BILD-Zeitung. Pelo visto não se dava muito valor à clientela por ali. Quando Bodenstein bateu à porta aberta, a fim de se fazer notar, ele desviou contrariado o olhar de sua leitura.

— Pois não? — Tinha cerca de 55 anos e, apesar de ainda ser cedo, cheirava a álcool. Seu macacão marrom parecia não ver uma máquina de lavar havia semanas.

— Senhor Wagner? — Pia tomou a iniciativa. — Somos da Polícia Criminal de Hofheim e gostaríamos de conversar com o senhor e com sua esposa.

Ele ficou pálido como um cadáver e fitou-a com olhos marejados e injetados, como um coelho que fita uma serpente. No mesmo instante, ouviu-se uma porta de carro sendo fechada.

— Minha... minha mulher... acabou de chegar — gaguejou Wagner. Andrea Wagner entrou na oficina, seus saltos batiam no chão de cimento. Tinha cabelos curtos e tingidos de louro, e era bem magra. Deve ter sido bonita em outros tempos, mas naquele momento parecia abatida. Preocupação, amargura e a incerteza sobre o paradeiro de sua filha haviam gravado rugas profundas em seu rosto.

— Viemos para lhes comunicar que os restos mortais de sua filha Laura foram encontrados — disse Bodenstein, depois de se apresentar à senhora Wagner. Por um momento, predominou o silêncio. Manfred Wagner começou a soluçar. Uma lágrima correu por sua face não barbeada, e ele escondeu o rosto nas mãos. Sua mulher permaneceu quieta e serena.

— Onde? — perguntou ela apenas.

— No terreno de um antigo aeródromo militar, em Eschborn.

Andrea Wagner soltou um profundo suspiro.

— Finalmente.

O alívio que havia nessa única palavra era tão grande que ela não teria conseguido exprimi-lo em dez frases. Quantos dias e quantas noites de esperança inútil e medo desesperado havia por trás dessas duas pessoas? Como deve ter sido para eles a constante perseguição dos fantasmas do passado? Os pais da outra garota tinham se mudado, mas os Wagners não puderam abrir mão da oficina, que era seu meio de subsistência. Tiveram de ficar, enquanto sua esperança de ver a filha voltar para casa diminuía cada vez mais. Onze anos de incerteza devem ter sido um inferno. Talvez ajudasse o fato de poderem finalmente enterrar a filha e se despedir dela.

 

— Não, deixe — rejeitou Amelie. — Não é tão trágico assim. Só vou ficar com um hematoma, nada além disso.

Certamente ela não ia se despir e mostrar a Tobias o local em que aquele desgraçado a tinha acertado com o sapato. Aliás, já estava sendo penoso o suficiente para ela ficar sentada, toda suja e feia, na frente dele.

— Mas esse ferimento precisa levar uns pontos.

— Bobagem. Logo cicatriza.

Tobias arregalara os olhos como se tivesse visto um fantasma, quando ela, pouco depois das sete e meia, apareceu diante de sua porta, toda suja e com sangue escorrendo, e lhe contou que tinha acabado de ser atacada por dois homens mascarados no seu sítio! Ele a fizera sentar-se numa cadeira da cozinha e limpara com cuidado o sangue em sua cabeça. O nariz havia parado de sangrar, mas o corte acima da sobrancelha, cujas bordas ele havia juntado precariamente com dois curativos, voltaria a sangrar.

— Ficou bom mesmo esse curativo. — Amelie riu fazendo uma careta e deu uma tragada no cigarro. Estava tremendo, seu coração estava disparado, e isso nada tinha a ver com o ataque, e sim com Tobias. Visto de perto e à luz do dia, ele era ainda mais bonito do que ela havia suposto. O toque de suas mãos a eletrizou, e o modo como ele volta e meia olhava para ela, tão preocupado e pensativo, com seus olhos incrivelmente azuis era mais do que seus nervos podiam aguentar. Não era de admirar que, antigamente, todas as garotas de Altenhain corressem atrás dele!

— Me pergunto o que eles queriam aqui — refletiu ela, enquanto Tobias lidava com a máquina de café. Ela olhou curiosa ao redor. Então naquela casa haviam sido assassinadas as duas garotas. Branca de Neve e Laura.

— Provavelmente estavam esperando por mim, e você cruzou o caminho deles — respondeu. Ele colocou duas xícaras na mesa, além do açucareiro, e pegou o leite na geladeira.

— Você diz isso com tanta simplicidade! Não tem medo?

Tobias apoiou-se na bancada e cruzou os braços sobre o peito. Com a cabeça inclinada, olhou para ela.

— E o que posso fazer? Me esconder? Sair correndo? Não vou fazer esse favor a eles.

— Sabe quem pode ter sido?

— Não exatamente. Mas posso imaginar.

Amelie sentiu que estava ficando com calor sob seu olhar. Afinal de contas, o que estava acontecendo? Nunca tinha sentido uma coisa dessas! Mal se atreveu a olhá-lo nos olhos. No final, ele ainda percebeu que tipo de caos de sentimentos desencadeava nela. Pelo barulho que começou a fazer, a máquina de café parecia estar no fim de sua vida útil, dando estertores e soltando fumaça.

— Você precisa descalcificá-la —constatou ela. Um súbito sorriso iluminou o rosto triste de Tobias, alterando-o de maneira inacreditável. Amelie olhou para ele. De repente, sentiu um desejo absurdo de protegê-lo, de ajudá-lo.

— Esta máquina de café não é a minha prioridade máxima. — Ele riu. — Primeiro preciso arrumar lá fora.

No mesmo instante, a campainha tocou. Tobias foi até a janela, e o sorriso desapareceu de seu rosto.

— Os tiras de novo —disse ele com repentina tensão. — É melhor você desaparecer. Não quero que a vejam aqui.

Ela fez que sim e se levantou. Ele a conduziu pelo corredor e lhe indicou uma porta.

— Por ali se chega à leiteria, no estábulo. Você consegue sozinha?

— Lógico. Não estou com medo. Agora que está claro, dificilmente os caras vão perambular aí fora — respondeu ela bem tranquila. Eles se olharam, e Amelie abaixou os olhos.

— Obrigado — disse Tobias em voz baixa. — Você é uma garota corajosa.

Amelie negou com a mão e virou-se para ir embora. Então Tobias se lembrou de algo.

— Espere — ele a deteve.

— Sim?

— Por que você estava no sítio, mesmo?

— Reconheci pelo jornal a foto do homem que empurrou sua mãe da passarela — respondeu Amelie após uma breve hesitação. — Foi o Manfred Wagner. O pai da Laura.

 

— Vocês de novo. — Tobias Sartorius não fez questão de esconder que a polícia não era muito bem-vinda. — Tenho pouco tempo. Qual o problema?

Pia farejou. Havia um odor de café fresco no ar.

— Está com visita? — perguntou ela. Bodenstein pensara mesmo ter visto uma segunda pessoa através janela da cozinha, uma mulher de cabelo escuro.

— Não, não estou. — Tobias permaneceu com os braços cruzados junto à porta. Não os convidou para entrar, embora tivesse começado a chover. Melhor assim.

— Você deve ter trabalhado feito louco — constatou Pia e sorriu amigavelmente. — Ficou ótimo.

Sua amabilidade não causou o efeito esperado. Tobias Sartorius permaneceu reservado, e sua postura como um todo irradiava rejeição.

— Só queríamos lhe comunicar que os restos mortais de Laura Wagner foram encontrados — disse então Bodenstein.

— Onde?

— O senhor deveria saber melhor do que nós — replicou Bodenstein com frieza. — Afinal, foi o senhor que transportou o corpo de Laura na noite de 6 de setembro de 1997, no porta-malas do seu automóvel.

— Não, não fui eu. — Tobias enrugou a testa, mas sua voz permaneceu tranquila. — Não vi mais a Laura depois que ela saiu correndo. Mas certamente eu já disse isso uma centena de vezes, não é?

— O esqueleto de Laura foi encontrado em uma obra que estava sendo feita no antigo aeródromo militar, em Eschborn — disse Pia. — Em um tanque subterrâneo.

Tobias olhou para ela e engoliu a saliva. Em seus olhos via-se incompreensão.

— No aeródromo — disse em voz baixa para si mesmo. — Eu nunca poderia imaginar uma coisa dessas.

Ele perdeu toda a hostilidade de uma só vez; parecia perplexo e até perturbado. Pia se deu conta de que ele tivera onze anos para se preparar para aquele momento de confrontação com seu crime. Devia contar com o fato de que um dia encontrariam os corpos das moças. Talvez tenha estudado sua reação, refletindo minuciosamente sobre como fazer com que os outros acreditassem que estava surpreso. Por outro lado, com que finalidade faria isso? Já havia pago sua pena; para ele, podia ser indiferente quando encontrassem os corpos. Pia se lembrou do modo como Hasse havia caracterizado Tobias: arrogante, metido, frio. Seria verdade?

— Gostaríamos de saber se Laura já estava morta quando a jogou no tanque — disse Bodenstein. Pia observou Tobias atentamente. Ele estava muito pálido; sua boca tremia, como se ele quisesse romper em lágrimas.

— Sobre isso não posso lhe dar nenhuma resposta — respondeu com voz apagada.

— Quem pode, então?

— Há onze anos que essa questão me ocupa, quase dia e noite. — Ele parecia esforçar-se para controlar a voz. — Para mim, tanto faz se vocês acreditam em mim ou não. Já faz tempo que me acostumei a ser considerado um criminoso.

— Sua mãe poderia estar bem melhor agora se na época o senhor tivesse dito o que havia feito com as moças — observou Bodenstein. Tobias enfiou as mãos nos bolsos de seus jeans.

— Isso significa que vocês descobriram quem foi o filho da puta que empurrou minha mãe da passarela?

— Não, ainda não — admitiu Bodenstein. — Mas, por enquanto, partimos do princípio de que foi alguém do vilarejo.

Tobias riu. Um breve bafejo sem alegria.

— Meus parabéns por essa descoberta incrivelmente perspicaz — disse com sarcasmo. — Eu até poderia ajudá-los, pois sei quem foi. Mas por que eu faria isso?

— Porque quem fez isso cometeu um crime — respondeu Bodenstein. — Tem de nos dizer o que sabe.

— Tenho coisíssima nenhuma. — Tobias Sartorius abanou a cabeça. — Talvez vocês sejam melhores do que seus colegas da época. Aliás, minha mãe, meu pai e eu também estaríamos bem melhor se, naquele período, a polícia tivesse trabalhado direito e prendido o verdadeiro assassino.

Pia quis objetar com uma resposta atenuante, mas Bodenstein se antecipou.

— Claro. — Sua voz soou sarcástica. — O senhor é mesmo inocente. Disso já sabemos. Nossas prisões estão cheias de inocentes.

Tobias mediu-o com expressão impassível. Em seus olhos tremulava uma raiva reprimida com esforço.

— Vocês, tiras, são todos iguais: convencidos e autoritários — sibilou com desdém. — Vocês não fazem a menor ideia do que anda acontecendo por aqui. E agora sumam da minha frente! Me deixem em paz de uma vez por todas!

Antes que Pia e Bodenstein pudessem dizer mais alguma coisa, ele bateu a porta na cara deles.

— Você não devia ter dito aquilo — recriminou Pia quando estavam voltando para o carro. — Agora você fez com que ele fique contra nós, e continuamos sem saber grande coisa.

— Eu estava com a razão! — Bodenstein ficou parado. — Você viu os olhos dele? O cara é capaz de tudo, e caso ele saiba mesmo quem empurrou a mãe dele da passarela, então quem fez isso está correndo perigo.

— Você está sendo preconceituoso — criticou-o Pia. — Depois de passar mais de dez anos na cadeia, onde ele talvez tenha sido trancafiado injustamente, ele volta para casa e é obrigado a constatar que tudo mudou por aqui. Sua mãe é atacada e gravemente ferida, desconhecidos do vilarejo picham a casa de seus pais. Você ainda se admira que ele esteja com raiva?

— Por favor, Pia! Você não está mesmo acreditando que o cara foi julgado injustamente por duplo homicídio!

— Não estou acreditando em nada. Mas, nos antigos autos do caso, deparei com incoerências e, portanto, tenho minhas dúvidas.

— O cara é frio. E, quanto às reações dos moradores, posso até entender.

— Não vá me dizer que você acha certo que tenham pichado os muros da casa e estejam acobertando coletivamente um criminoso! — Pia abanou a cabeça, incrédula.

— Não estou dizendo que acho certo — respondeu Bodenstein. Eles estavam embaixo do arco do portão, brigando como um casal de velhos, e não perceberam que Tobias Sartorius saiu da casa e desapareceu, atravessando o quintal.

 

Andrea Wagner não conseguia dormir. Tinham encontrado o corpo de Laura, ou melhor, o que restava dele. Finalmente, finalmente a incerteza tinha acabado. Fazia muito tempo que ela já não esperava nenhum milagre. Primeiro, sentira apenas um alívio infinito, mas depois viera a tristeza. Durante onze anos ela havia contido as lágrimas e a tristeza, mostrado força e amparado o marido, que se entregara à dor pela filha perdida. Ela mesma não podia permitir-se sucumbir. Havia a empresa para tocar, para que as dívidas com o banco pudessem ser pagas. E havia os filhos mais novos, que precisavam de uma mãe. Nada mais era como antes. Manfred tinha perdido toda energia e alegria de viver, tornando-se uma pedra no sapato com sua autocompaixão chorosa e seu alcoolismo. Às vezes ela o desprezava por isso. Ele se acomodara demais no ódio que sentia pela família de Tobias.

Andrea Wagner abriu a porta do quarto de Laura, onde nada tinha mudado depois de onze anos. Manfred fez questão de mantê-lo intacto, e ela aceitou. Acendeu a luz, pegou a foto de Laura na escrivaninha e sentou-se na cama. Em vão esperou pelas lágrimas. Seus pensamentos caminharam para aquele momento, onze anos atrás, quando a polícia apareceu na frente da porta da casa e lhe comunicou que, pela análise das pistas, Tobias Sartorius era considerado o assassino de sua filha.

Por que o Tobias?,ela tinha pensado, confusa. De saída, ocorreram-lhe dez outros rapazes que teriam mais motivos para se vingar de Laura do que Tobias. Andrea Wagner sabia que, pelas costas, falavam mal de sua filha no vilarejo. Chamavam-na de piranha, de vigaristazinha interesseira e sem caráter. Enquanto Manfred idolatrava a filha mais velha sem restrições e sempre encontrava uma desculpa para seu mau comportamento, Andrea também via as fraquezas de Laura e esperava que, com o passar dos anos, elas se corrigissem. Para isso, a garota já não teria nenhuma oportunidade. Realmente era estranho que, no que se referia a Laura, ela tivesse de se esforçar para conseguir se lembrar dos bons momentos. Muito mais viva era a lembrança de coisas desagradáveis, que não foram poucas. Laura menosprezava o próprio pai e sentia vergonha dele. Queria um pai como Claudius Terlinden, que tinha educação e poder. Dizia isso na cara de Manfred, em qualquer ocasião, adequada ou não. Manfred engolia essas ofensas de modo impassível, e elas nunca abalaram o amor que sentia por sua linda filha. Andrea, por sua vez, ficava chocada ao perceber quão pouco conhecia a filha e que, aparentemente, tinha falhado em algum ponto de sua educação. Ao mesmo tempo, sentia medo. O que aconteceria se Laura descobrisse que ela mantinha um relacionamento com Claudius, seu chefe?

Havia passado noites inteiras em claro, refletindo sobre a filha. Nos anos que se seguiram, teve ainda mais motivos para se preocupar, pois Laura aprontava demais com os garotos da cidade — até finalmente namorar Tobias. De repente, era como se tivesse se transformado em outra pessoa; parecia satisfeita e feliz. Tobias lhe fazia bem. Sem dúvida ele era alguém especial, tinha boa aparência, era um excelente aluno e esportista, os outros jovens o ouviam. Era exatamente o que Laura sempre desejara, e seu brilho exercia uma influência sobre ela, sua namorada. Durante meio ano, tudo correu bem, até Stefanie Schneeberger chegar a Altenhain. Laura a reconheceu de imediato como uma concorrente e ficou amiga dela, mas foi em vão. Tobias se apaixonou por Stefanie e terminou com Laura. Ela quase sucumbiu a essa derrota. O que exatamente aconteceu naquele verão entre os jovens, Andrea Wagner não sabia, mas estava certa de que Laura tinha brincado com fogo quando instigou as amigas contra Stefanie. Ela tinha encontrado Laura junto à copiadora do escritório, onde acabara de fazer uma pilha de cópias. Laura ficou uma fera quando a mãe quis dar uma olhada nos papéis. Chegaram a brigar feio e, na agitação, Laura esqueceu o original dentro da copiadora. Na folha branca, havia apenas uma frase em negrito: BRANCA DE NEVE TEM QUE MORRER. Andrea Wagner dobrou a folha e a guardou, mas não a mostrou ao marido nem à polícia. Só o pensamento de que sua filha desejava a morte de outra pessoa era insuportável para ela. Teria Laura sido vítima de suas próprias intrigas? Ela manteve silêncio, deixando as coisas tomarem seu rumo, e noite após noite ouviu Manfred glorificar a filha.

— Laura — murmurou e acariciou a foto com o indicador. — O que você fez?

De repente, uma lágrima rolou em sua face, depois outra. Ela piscou e passou a mão no rosto. Não era tristeza que suas lágrimas levavam aos olhos, mas a consciência pesada por não ter amado a filha.

 

Era uma e meia quando ele chegou à frente do prédio. Durante três horas, dirigiu sem rumo pela região. Foram tantos os aborrecimentos naquele dia que ele simplesmente não aguentou ficar em casa. Primeiro, Amelie, que apareceu toda ensanguentada na sua frente. Levou um choque ao vê-la. Não foi o sangue em seu rosto que fez seu nível de adrenalina voar ao topo do Monte Everest, e sim sua incrível semelhança com Stefanie. Ao mesmo tempo, ela era bem diferente. Não era aquela pequena e vaidosa rainha de beleza, que o seduzira e envolvera só para depois se livrar dele com frieza. Amelie era uma garota impressionante. E parecia não ter nenhum medo dele.

Depois apareceram os tiras. Haviam encontrado o corpo de Laura. Como estava caindo uma chuva forte, ele deixou de lado a limpeza do sítio e desafogou a raiva limpando seu quarto. Arrancou os pôsteres idiotas das paredes e, sem pensar duas vezes, enfiou em sacos de lixo azuis o conteúdo dos armários e de todas as gavetas. Adeus a toda aquela tralha! De repente, viu-se com um CD na mão. Time to say goodbye, de Sarah Brightman e Andrea Bocelli. Stefanie lhe dera esse CD de presente porque se beijaram pela primeira vez ao som dessa música, em junho, na festa de despedida do colégio. Ele pôs o CD para tocar, sem estar preparado para a sensação de vazio que tomou conta dele logo ao primeiro acorde e que não o deixaria mais. Nunca antes sentiu tanta solidão e tanto abandono, nem mesmo na prisão. Nela ainda conseguia esperar tempos melhores, mas, naquele momento, sabia que eles não viriam. Sua vida estava acabada.

Demorou um pouco até Nadja abrir a porta para ele. Temeu que ela não estivesse em casa. Não tinha ido até lá para dormir com ela, nem chegara a pensar nisso, mas agora que ela estava à sua frente e piscava de sono à claridade, com os cabelos louros desgrenhados sobre os ombros, tão doce e calorosa, então a descarga elétrica do desejo sexual o sacudiu com uma intensidade que ele não esperava.

— O que... — perguntou ela, mas Tobias sufocou o restante da pergunta com um beijo, puxou-a para si, quase esperando que ela se defendesse e o afastasse. Entretanto, o que aconteceu foi o contrário. Ela tirou seu casaco de couro molhado dos ombros, desabotoou sua camisa e puxou sua camiseta para cima. No momento seguinte, já estavam no chão. Ele a penetrava com ímpeto, sentia a língua dela em sua boca e as mãos dela em suas nádegas, forçando-o a penetrá-la com mais intensidade e rapidez. Em pouquíssimo tempo ele sentiu a onda se aproximar e o calor que o fez suar por todos os poros. Então a onda irrompeu sobre ele, de forma tão magnífica e trazendo tamanho alívio que ele gemeu, um gemido que se transformou em um grito abafado. Com o coração disparado, ficou alguns segundos sobre ela e mal pôde acreditar no que havia feito. Deslizou para o lado, permaneceu deitado de costas, com os olhos fechados e arfando como um peixe fora d’água. O riso baixinho de Nadja levou-o a abrir os olhos.

— O que foi? — sussurrou ele, perturbado.

— Acho que precisamos treinar um pouco mais — respondeu ela. Com um movimento gracioso, ela se levantou e estendeu a mão para ele, que a pegou, se levantou com um gemido e a seguiu até o quarto, depois de se livrar dos sapatos e dos jeans. Os espíritos do passado tinham desaparecido. Pelo menos por enquanto.

 

Quinta-feira, 13 de novembro de 2008

— A polícia esteve em casa ontem. — Tobias soprou o café quente que Nadja lhe serviu. Na noite anterior, ele não quisera tocar no assunto, mas agora tinha de contar a ela. — Encontraram o esqueleto da Laura no antigo aeródromo, em Eschborn. Dentro de um tanque subterrâneo.

— Como é que é? — Nadja, que estava para tomar um gole de seu café, paralisou-se em pleno movimento. Estavam sentados à mesa de granito cinza, na cozinha, à qual já haviam jantado juntos recentemente. Passava um pouco das sete horas, e diante das janelas panorâmicas ainda reinava uma profunda escuridão. Nadja tinha de pegar um voo às oito para Hamburgo, onde se realizariam as tomadas externas da nova sequência da série em que ela fazia o papel de uma agente da polícia.

— Quando... — ela pousou a xícara. — Quero dizer... como sabem que é de Laura?

— Não faço ideia. — Tobias abanou a cabeça. — Não me disseram muito mais do que isso. Primeiro não queriam nem mesmo dizer onde encontraram os ossos. O tira chefão simplesmente achou que eu já sabia onde.

— Ai, meu Deus! — balbuciou Nadja, chocada.

— Nadja. — Ele se inclinou para a frente e colocou sua mão sobre a dela. — Por favor, me diga se quer que eu desapareça.

— Mas por que eu ia querer uma coisa dessas?

— Estou vendo que você está com medo de mim.

— Que bobagem!

Ele a soltou, se levantou e virou as costas para ela. Por um momento, lutou contra si mesmo. Tinha passado metade da noite acordado, ouvindo a respiração regular dela e se perguntando quando ela se cansaria dele. Naquele instante, já temia o dia em que ela se desvencilharia dele com desculpas constrangidas, evitando-o, mandando dizer que não estava. Certamente esse dia ia chegar. Ele não era o homem certo para ela. Nunca caberia em seu mundo, em sua vida.

— Simplesmente não dá para deixar esse assunto de lado — disse ele, por fim, com voz rouca. — Fui condenado por homicídio e fiquei dez anos na cadeia. Não podemos fingir que nada aconteceu e que ainda temos 20 anos.

Ele se virou.

— Não faço ideia de quem matou Laura e Stefanie. Não posso excluir que tenha sido eu, mas teria de me lembrar disso! E até hoje não consegui. A única coisa que tenho é esse... esse buraco negro. Na época, a psicóloga forense afirmou que, às vezes, em um choque como esse, o cérebro humano pode reagir com uma espécie de amnésia. Mas você não acha que eu deveria, pelo menos, me lembrar de alguma coisa? Em como coloquei a Laura no porta-malas ou para onde dirigi? Simplesmente não sei de mais nada. A última coisa de que me lembro é que Stefanie me disse que... que... já não me amava. E então Felix e Jörg apareceram uma hora na porta de casa, mas eu tinha bebido tanta vodca que estava ainda pior. E, de repente, os tiras estavam lá, dizendo que eu tinha matado Laura e Stefanie!

Nadja estava sentada e olhava para ele atenta, com seus olhos grandes e verdes como jade.

— Você entende, Nadja? — Seu tom era de súplica. A dor estava de volta, mais intensa do que nunca. Havia muita coisa em jogo. Ele não queria iniciar um relacionamento com Nadja sabendo que terminaria em outra decepção. — É uma tortura horrível não saber o que realmente aconteceu na época. Será que sou um assassino? Ou não sou?

— Tobi — disse Nadja em voz baixa. — Eu amo você. Desde que me conheço por gente. Para mim não tem a menor importância, mesmo que tenha sido você quem fez aquilo.

Tobias fez uma expressão de desespero. Ela simplesmente não estava querendo entender. E ele precisava muito de alguém que acreditasse nele. Que confiasse nele. Não estava preparado para levar uma vida de marginal e não iria aguentar.

— Mas para mim tem importância — respondeu com veemência. — Perdi dez anos da minha vida. Não tenho mais futuro. Alguém o destruiu. E não posso simplesmente fingir que tudo passou.

— E o que você está pensando em fazer?

— Quero saber a verdade. Mesmo correndo o risco de descobrir que fui eu mesmo quem cometeu esse crime.

Nadja afastou a cadeira. Com passos leves, foi até ele, enlaçou-o pela cintura e olhou para ele.

— Acredito em você — disse em voz baixa. — E, se você quiser, vou ajudá-lo em tudo o que precisar. Mas não volte para Altenhain. Por favor.

— E vou para onde?

— Fique aqui. Ou então na minha casa, em Tessin. Ou em Hamburgo. — Ela sorriu, entusiasmando-se com a própria ideia. — Isso mesmo! Venha comigo! Você vai gostar da casa. Fica à beira d’água.

Tobias hesitou.

— Não posso deixar meu pai sozinho agora. E minha mãe também precisa de mim. Quando ela melhorar, então talvez.

— Saindo daqui, de carro, em quinze minutos você está na casa do seu pai. — Os grandes olhos verdes de Nadja estavam bem próximos dos seus. Ele sentiu o perfume da sua pele, do seu xampu. Metade dos homens da Alemanha sonharia em receber de Nadja o pedido para morar com ela. O que o impedia?

— Tobi, por favor! — Ela colocou as mãos no rosto dele. — Temo por você. Não quero que lhe aconteça nada de ruim. Só de pensar que aqueles caras poderiam ter pegado você em vez da garota...

Amelie! Nem pensara mais nela! Ela estava em Altenhain, onde a verdade sobre os terríveis acontecimentos estava escondida em algum lugar.

— Vou tomar cuidado — assegurou. — Não se preocupe.

— Amo você, Tobi.

— Eu também amo você — respondeu ele, e a abraçou.

 

— Chefe? — Kai Ostermann estava junto à porta de seu escritório, com duas folhas na mão.

Bodenstein parou.

— O que foi? — perguntou.

— Isso acabou de chegar por fax. — Ostermann estendeu-lhe as folhas e perscrutou o rosto de Bodenstein, mas, como este nada lhe dizia, absteve-se de fazer um comentário.

— Obrigado — disse Bodenstein apenas, e dirigiu-se com o coração palpitando a seu escritório. Era o perfil de movimentação do celular de Cosima nos últimos 14 dias, que ele requisitara dois dias antes à empresa de telecomunicações. Pela primeira vez se aproveitara de suas possibilidades profissionais para descobrir alguma coisa em âmbito privado. A necessidade de chegar a uma certeza era mais forte do que sua consciência pesada por causa de um procedimento que um relator mal-intencionado poderia interpretar como abuso de autoridade. Sentou-se à sua escrivaninha e armou-se interiormente. O que estava para ler roubou-lhe toda ilusão. De fato, ela estivera exatamente dois dias em Mainz, e apenas por uma hora em cada um. Em compensação, tinha passado oito manhãs em Frankfurt. Bodenstein apoiou os cotovelos na mesa, colocou o queixo sobre os punhos e refletiu por um momento. Então, pegou o telefone e digitou o número do escritório de Cosima. Kira Gasthuber, assistente de produção de Cosima e pau para toda obra, atendeu após o segundo toque. Cosima teria saído por pouco tempo. Por que ele não tentava no celular dela?

Para que ela não minta para mim, sua imbecil — pensou Bodenstein. Ele estava para desligar quando ouviu a vozinha clara de sua filha mais nova no fundo. Imediatamente soaram os alarmes em sua cabeça. Normalmente, Cosima sempre levava Sophia junto para todo canto. Por que nesse dia tinha deixado a menina no escritório? À sua pergunta, Kira respondeu prontamente que Cosima não ia demorar e que Sophia estava se divertindo muito com ela e com René. Quando desligou, Bodenstein ficou mais um tempo sentado à sua mesa. Seus pensamentos giravam. Por cinco vezes, o telefone de Cosima tinha sido localizado na estação de telecomunicação que se encontrava ao norte de Frankfurt. No mapa, a região podia parecer pequena, mas, na realidade, abrangia centenas de prédios com milhares de residências. Droga. Por onde ela estava andando? E, sobretudo, com quem? Como ele reagiria se constatasse que o estava mesmo traindo? E por que acreditava que ela precisava traí-lo? Tudo bem, a vida sexual deles já não era tão animada como antes do nascimento da Sophia; a presença de uma criança pequena acarretava mesmo esse tipo de coisa. Mas também não era para Cosima sentir falta de nada. Ou era? Para sua vergonha, já não conseguia se lembrar direito de qual fora a última vez que dormira com sua mulher. Pensou e fez as contas. Claro! Na noite em que voltaram da festa de aniversário de um amigo e ela estava ligeiramente bêbada e mais bem-humorada. Bodenstein procurou sua agenda e consultou. Foi sendo tomado por uma sensação estranha, que se intensificou à medida que ele voltava as páginas da agenda. Será que tinha se esquecido de marcar o aniversário de Bernhard? Não, não tinha. Bernhard havia comemorado 50 anos em 20 de setembro, no castelo Johannisberg, em Rheingau. Não podia ser verdade! Fez as contas e, envergonhado, constatou que fazia oito semanas que não dormia com Cosima. Seria ele o culpado se ela estivesse tendo um caso? Bateram à porta. Nicola Engel entrou.

— Sim? — perguntou ele.

— Quando é — perguntou ela com frieza — que você ia me comunicar que o inspetor Behnke está mantendo um trabalho paralelo não autorizado em um bar em Sachsenhausen?

Droga! Ele tinha esquecido completamente por causa dos seus problemas particulares. Não perguntou como ela soubera, e recusou-se a dar qualquer tipo de justificativa.

— Eu queria primeiro conversar com você — respondeu simplesmente. — Até agora, não tive oportunidade.

— Hoje, no final da tarde, às 18h30, você terá. Pedi para o Behnke comparecer, estando doente ou não. Veja como vai descascar esse abacaxi.

 

Mal ele passou pela alfândega em direção à saída, seu celular tocou. Lars Terlinden trocou a maleta de mão e atendeu. Tinha passado o dia inteiro em Zurique, levando bronca da diretoria, embora, alguns meses antes, tivesse sido considerado o salvador da pátria justamente por causa dessa negociação, pela qual agora queriam crucificá-lo. Droga! Ele não era nenhum vidente! Como poderia saber que o doutor Markus Schönhausen na realidade se chamava Matthias Mutzler, não era da cidade que dizia ser e era um vigarista da pior espécie? Decididamente, não era problema seu se o departamento jurídico do banco não sabia fazer direito o seu trabalho. Cabeças já haviam rolado, e a sua seria a próxima, caso não lhe ocorresse nenhuma ideia para conseguir compensar a perda total de três dígitos na casa dos milhões.

— Em vinte minutos estou no escritório — disse à sua secretária, quando as portas de vidro fosco se abriram diante dele. Estava esgotado, exausto, com os nervos à flor da pele e arrasado. E isso já aos 30 anos. Dormir, ele só conseguia com remédios. A comida lhe caía mal. Só a bebida ainda passava. Lars Terlinden sabia que estava no melhor caminho para se tornar um alcoólatra, mas com esse problema podia se preocupar mais tarde, quando esse drama já estivesse superado. Entretanto, ainda não se via uma luz no fim do túnel. A economia mundial cambaleava, os maiores bancos da América estavam falidos. Lehman Brothers tinha sido apenas o começo. A própria empresa onde trabalhava, apesar de ser um dos maiores bancos suíços, demitira no ano anterior cinco mil funcionários em todo o mundo. Nos escritórios e nos corredores predominava o medo evidente do desemprego. O telefone voltou a tocar, ele o enfiou no bolso e não atendeu. A notícia da falência do império imobiliário de Schönhausen, há seis semanas, o atingira de maneira totalmente inesperada. Ainda dois dias antes ele almoçara com Schönhausen no Adlon, em Berlim. Na ocasião, fazia tempo que o sujeito sabia que estava à beira da falência, aquele vigarista filho da puta, que, nesse meio-tempo, estava sendo procurado pela Interpol porque sumira do mapa. Com muito esforço, Lars Terlinden pelo menos tinha conseguido garantir por escrito grande parte dos portfólios de crédito e vendê-la a investidores, mas 350 milhões de euros tinham ido para o espaço.

Uma mulher barrou seu caminho. Ele quis se desviar dela, pois estava com pressa, mas ela persistiu e falou com ele. Somente então ele reconheceu sua mãe, que fazia oito anos que não via.

— Lars! — repetiu ela, pedindo. — Lars, por favor, espere!

Ela não tinha mudado. Elegante e bem-cuidada, o cabelo louro-dourado arrumado em um perfeito corte estilo pajem. Maquiagem decente, colar de pérolas no colo bronzeado. Sorriu humildemente, o que o irritou de imediato.

— O que você quer? — perguntou com hostilidade. — Foi seu marido que a mandou?

Não pronunciava as palavras meu pai.

— Não, Lars. Espere. Por favor.

Ele desviou os olhos e obedeceu. Na infância, ele venerava a mãe, a idolatrava e sentia uma enorme falta dela quando ela passava dias ou semanas viajando e os deixava, ele e Thies, aos cuidados da governanta. Ele a perdoava por tudo, mas nunca recebeu nada além de um sorriso, belas palavras e promessas. Somente muito mais tarde compreendeu que ela não conseguia lhe dar mais porque mais não tinha. Christine Terlinden era um recipiente vazio, uma beleza desprovida de espírito, sem nenhuma personalidade, que assumira como tarefa de vida ser a perfeita esposa do bem-sucedido diretor de um grupo empresarial, Claudius Terlinden.

— Você parece bem, rapaz. Talvez um pouco magro. — Mesmo naquele momento, ela continuava a mesma. Depois de todo aquele tempo, mais uma vez ela se contentava apenas com um dos seus comentários superficiais. Lars Terlinden começou a sentir desprezo pela mãe quando ficou claro que, durante toda a sua vida, ela o enganara.

— O que você quer, mãe? — repetiu impaciente.

— Tobias saiu da prisão — disse ela em voz baixa. — E a polícia encontrou o esqueleto de Laura. No antigo aeródromo de Eschborn.

Ele cerrou os dentes. De repente, sua vida retornou em um ritmo acelerado até o passado. Teve a horrível sensação de voltar a ser um garoto de 19 anos, cheio de espinhas, no meio do terminal de chegada do aeroporto de Frankfurt, com o medo em seu encalço. Laura! Jamais esqueceria seu rosto, seu sorriso, sua alegria despreocupada de viver, que teve um fim tão repentino. Não tinha conseguido falar com Tobias nem sequer uma vez, de tão rápido que seu pai tomara todas as decisões por ele e o despachara em um piscar de olhos para a fazenda de um conhecido nos confins de Oxfordshire. Pense no seu futuro, rapaz! Fique fora disso, fique de bico calado, que não vai acontecer nada. Obviamente, ele tinha ouvido o pai. Manteve-se fora da situação e em silêncio. Já era tarde demais quando ouviu falar do julgamento de Tobi. Durante onze anos, fez tudo para não ter de pensar mais no assunto, naquela noite terrível, em seu pavor, em seu medo. Durante onze anos de merda, ele praticamente trabalhou dia e noite só para conseguir esquecer. E agora vinha sua mãe, em casaquinho de pele, a passos curtos, e abria a antiga ferida com um sorriso de boneca.

— Isso já não me interessa, mãe — disse rispidamente. — Não tenho nada a ver com isso.

— Mas... — ela iniciou; porém, ele não a deixou continuar.

— Me deixe em paz! — sibilou. — Deu para entender? Não quero que volte a me procurar. Fique longe de mim, como você sempre fez a vida inteira!

Com isso, ele virou as costas, deixou-a para trás e caminhou em direção à escada rolante, que descia para a estação de metrô.

 

Estavam na garagem, bebendo cerveja diretamente da garrafa, como nos velhos tempos. Tobias não estava à vontade, e todos os outros pareciam sentir-se do mesmo modo. Por que ele tinha ido até lá? Para sua surpresa, seu velho amigo Jörg tinha ligado para ele à tarde e o convidado para tomar uma cervejinha com ele, Felix e alguns amigos. Na grande garagem, que pertencia ao pai de Jörg, costumavam se ocupar quando jovens de seus ciclomotores, mais tarde de suas motocicletas e, finalmente, de seus automóveis. Jörg era um mecânico inato, que desde garoto sonhava em se tornar piloto de corrida. Tal como permanecia na memória de Tobias, a garagem cheirava a óleo de motor e esmalte, a couro e verniz. Estavam sentados na mesma e velha bancada de trabalho, em caixas de cerveja viradas ao contrário e em pneus. Nada havia mudado ao redor deles. Tobias manteve-se fora da conversa, que, provavelmente por causa da sua presença, era de uma alegria forçada. Todos o cumprimentaram com um aperto de mão, mas a satisfação em revê-lo era limitada. Após um instante, Tobias, Jörg e Felix acabaram por formar um grupo. Felix tinha se tornado construtor de telhados na empresa do pai. Se de adolescente já era robusto, com o passar dos anos o trabalho pesado e o intenso consumo de cerveja transformaram-no em um colosso. Seus olhos benévolos quase desapareciam em uma camada de gordura quando ele ria. Tobias não pôde deixar de compará-lo a um pãozinho. Jörg, ao contrário, tinha praticamente a mesma aparência de antes; apenas suas entradas estavam mais acentuadas.

— Que fim levou o Lars? — perguntou Tobias.

— Não o que o pai esperava. — Felix sorriu com malícia. — Os ricos também têm problemas com os filhos. O pai é um babaca, e o filho deu a ele uma banana.

— O Lars fez uma bela carreira — esclareceu Jörg. — Minha mãe é que me contou. Ela tem notícias da família dele. Banco de investimento. Grana alta. Casou-se, tem dois filhos e comprou uma mansão gigantesca em Glashütten, depois de voltar da Inglaterra.

— Sempre pensei que ele queria estudar teologia e se tornar padre — observou Tobias. Para seu espanto, pensar em seu melhor amigo, que desaparecera de sua vida tão repentinamente sem se despedir, realmente o magoava.

— Eu também nunca quis ser construtor de telhados. — Felix abriu outra garrafa de cerveja com o isqueiro. — Mas não me quiseram no exército nem na polícia, e acabei largando o curso para padeiro logo depois... ah... vocês sabem do quê...

Ele se interrompeu e baixou os olhos, consternado.

— E eu, depois do acidente, tive de desistir da carreira de piloto de corrida — acrescentou Jörg rapidamente, antes que o silêncio se tornasse ainda mais penoso. — Por isso, não foi na Fórmula 1 que aterrissei, e sim no Corcel Negro. Você sabe que minha irmã se casou com o Jagielski, não sabe?

Tobias fez que sim.

— Meu pai me contou.

— Pois é. — Jörg deu um gole na garrafa de cerveja. — Parece que nenhum de nós conseguiu ser o que sonhava.

— A Nathalie, sim. — replicou Felix. — Cara, e a gente que ria tanto dela quando ela dizia que ia se tornar uma grande atriz!

— Ela sempre soube o que quis — disse Jörg. — E como mandava na gente! Mas nunca pensei que fosse ficar tão linda.

— Pois é. — Tobias sorriu um pouco. — Eu também não pensei que um dia fosse fazer um curso de metalurgia e uma faculdade de economia na prisão.

Consternados, seus amigos hesitaram por um momento, mas depois riram. O álcool deixava a atmosfera mais relaxada. Após a quinta garrafa de cerveja, Felix passou a falar mais.

— Até hoje me condeno por ter contado aos tiras na época que voltamos à sua casa, velho — disse a Tobias e pousou sua pesada mão em seu ombro.

— Vocês só disseram a verdade. — Tobias deu de ombros. — Ninguém podia imaginar aonde tudo aquilo ia levar. Agora também tanto faz. Já estou de volta, e fico feliz de verdade que vocês não me evitam como a maioria aqui na cidade.

— Bobagem. — Jörg bateu em seu outro ombro. — Somos amigos, cara! Você se lembra de quando acabamos com o velho Opel do meu tio, que tinha passado horas e horas polindo o carro? Cara, aquela foi demais!

Tobias se lembrava, sim. Felix também. E em meio a tantos “você se lembra?”, chegaram à festa na casa dos Terlindens, na qual as garotas se despiram e passaram a correr pela casa, vestindo os casacos de pele da mãe de Lars. O aniversário de Micha, quando os tiras chegaram. As provas de coragem no cemitério. A viagem à Itália com o time de juniores. O incêndio na procissão de São Martinho, que saíra de controle porque Felix usara um galão de gasolina como combustível. Já não conseguiam parar de lembrar nem de rir. Jörg enxugou as lágrimas produzidas por sua risada.

— Gente, vocês se lembram quando minha irmã surrupiou o molho de chaves que meu velho tinha do aeródromo e a gente apostou corrida de carro no antigo hangar? Cara, aquilo foi demais!

 

Amelie estava sentada à escrivaninha, surfando na Internet, quando a campainha tocou. Ela fechou o laptop e deu um pulo. Eram quinze para as onze! Que droga! Será que os velhos tinham esquecido a chave de casa? De meias, desceu correndo a escada, antes que tocassem de novo e acordassem as crianças, que havia uma hora ela conseguira, a muito custo, colocar na cama. Deu uma olhada no pequeno monitor, que estava ligado às duas câmeras que ficavam à esquerda e à direita da porta da casa. A imagem em preto e branco e pouco nítida mostrava um homem de cabelos claros. Amelie abriu bruscamente a porta e ficou muito surpresa quando viu Thies à sua frente. Desde que o conhecia, ele nunca havia ido até a porta de sua casa e, menos ainda, tocado a campainha. Sua surpresa converteu-se em preocupação, quando percebeu o estado do amigo. Nunca vira Thies tão nervoso. Suas mãos iam de um lado para outro, seus olhos flamejavam, e seu corpo todo tremia.

— O que foi? — perguntou Amelie em voz baixa. — Aconteceu alguma coisa?

Em vez de responder, Thies estendeu-lhe um rolo de papel, cuidadosamente amarrado por uma larga fita. No patamar frio, os pés de Amelie transformaram-se em pedras de gelo, mas ela estava realmente preocupada com o amigo.

— Não quer entrar?

Thies abanou a cabeça com força e não parou de olhar ao redor, como se temesse ter sido seguido.

— Ninguém pode ver esses desenhos — disse ele repentinamente com sua costumeira voz rouca. — Você precisa escondê-los.

— Claro — disse ela. — Pode deixar.

Os faróis de um carro subiram a rua rastejando através da neblina e a atingiram por um momento, quando o carro virou na entrada da casa dos Lauterbachs. A garagem ficava apenas cinco metros abaixo da escada em que Amelie estava — sozinha, conforme constatou de repente; Thies tinha como que sido engolido pelo chão. Daniela Lauterbach desligou o motor e desceu do carro.

— Oi, Amelie! — gritou amigavelmente.

— Oi, doutora Lauterbach — respondeu Amelie.

— Por que está aí parada? Ficou presa do lado de fora?

— Acabei de chegar do trabalho — disse Amelie rapidamente, sem saber direito por que estava mentindo à vizinha.

— Então está bem. Mande lembranças a seus pais. Boa noite! — A doutora Lauterbach acenou para ela e, por controle remoto, abriu o portão elétrico da garagem dupla. Entrou em casa, e o portão voltou a se fechar atrás dela.

— Thies? — sussurrou Amelie. — Onde você está?

Ela teve um sobressalto quando ele saiu de trás do grande teixo que ficava ao lado da porta.

— O que foi? — cochichou. — Por que você...?

As palavras ficaram presas em sua garganta quando ela viu o rosto de Thies. Em seus olhos havia um medo evidente. O que ele temia? Muito preocupada, ela lhe estendeu a mão e tocou seu braço para acalmá-lo. Ele se retraiu.

— Você precisa cuidar bem desses desenhos. — Suas palavras soaram entrecortadas, seus olhos brilhavam de maneira febril. — Ninguém pode vê-los. Nem você! Você tem de me prometer!

— Tudo bem, tudo bem. Eu prometo. Mas o quê...

Antes que ela pudesse terminar a pergunta, Thies desapareceu na escuridão nebulosa. Amelie olhou para ele e balançou a cabeça. Ela não estava entendendo nada do comportamento estranho do amigo. Mas era preciso aceitar Thies do jeito que ele era.

 

Cosima estava dormindo profundamente no sofá da sala. O cachorro estava aninhado atrás de seus joelhos dobrados e nem sequer levantou a cabeça, só abanou preguiçosamente a ponta da cauda, quando Bodenstein entrou e parou para contemplar a imagem pacífica. Cosima ressonava baixinho, seus óculos de leitura haviam escorregado de seu nariz, e o livro que estava lendo repousava sobre seu peito. Em uma situação normal, ele teria ido até ela e a despertado com um beijo, tomando cuidado para não assustá-la. Contudo, o muro invisível que de repente se erguera entre ambos o impediu. Para sua surpresa, a sensação de ternura que antes se expandia nele quando via a mulher não se manifestou. Estava mais do que na hora de pôr tudo em pratos limpos, antes que a desconfiança envenenasse seu casamento. Na verdade, o que ele tinha de fazer naquele momento era pegá-la pelos ombros e sacudi-la, perguntando-lhe por que ela mentira para ele, mas sua necessidade covarde de harmonia e o medo da verdade, que ele não conseguiria suportar, o detiveram. Desviou-se e foi para a cozinha. O cão, impelido pela esperança de comer alguma coisa, pulou do sofá para segui-lo e acabou despertando Cosima. Ela apareceu com cara de sono na cozinha quando ele pegava um iogurte na geladeira.

— Oi — disse ele.

— Peguei no sono — respondeu ela. Ele pegou uma colherada do iogurte e observou-a discretamente. De repente, notou rugas em seu rosto, que antes nunca lhe chamaram a atenção, a pele ficando flácida no pescoço e bolsas sob seus olhos cansados. Parecia uma mulher de 45 anos. Será que, além da confiança, haviam subitamente desaparecido os filtros de seu afeto?

— Por que você me ligou hoje no escritório e não no celular? — perguntou ela casualmente, enquanto procurava alguma coisa na geladeira.

— Nem me lembro mais — e raspou concentrado o fundo do pote de iogurte. — Devo ter ligado por engano para o número errado e depois não pensei mais nisso. Não era importante.

— Bom, eu estava no centro de Main-Taunus, fazendo umas compras. — Cosima fechou a geladeira e bocejou. — A Kira ficou com a Sophie. Sem ela, as coisas vão um pouco mais rápido.

—Hum, claro. — Ele estendeu para o cachorro o pote vazio. Por um momento, pensou se deveria lhe perguntar o que tinha comprado, pois não acreditou em uma palavra do que ela dissera. E de repente ficou claro que ele nunca mais acreditaria.

 

Amelie escondeu o rolo com os desenhos em seu armário e sentou-se de novo na frente do laptop. Mas já não conseguia se concentrar. Era como se os desenhos lhe dissessem baixinho: “Dê uma olhada em nós! Venha! Tire-nos daqui!”

Ela se virou na cadeira e olhou fixamente para o armário, brigando com sua consciência. Portas de carro bateram quando a porta de casa se abriu.

— Estamos de volta! — chamou o pai. Amelie desceu rapidamente para cumprimentar os donos da casa. Embora Barbara e os pentelhinhos a tivessem aceitado numa boa, ela nunca conseguia pensar ou simplesmente dizer “minha família”. Depois, voltou para seu quarto, deitou na cama e refletiu. No cômodo ao lado, ouvia-se o barulho da pia. O que poderia haver naqueles desenhos? Thies sempre pintava umas coisas tão abstratas, a não ser aquele retrato que fizera dela e que ela vira dois dias antes. Mas por que ele fazia questão de esconder os desenhos? Pareciam extremamente importantes para ele; mesmo assim, ele tocara sua campainha e lhe pedira para não mostrá-los a ninguém. Que coisa mais esquisita.

Amelie esperou até a casa voltar a ficar em silêncio; depois, foi até o armário e pegou o rolo. Era bem pesado, deviam ser mais do que apenas dois ou três desenhos. E não tinham um cheiro tão forte de tinta quanto os quadros recém-pintados. Com cuidado, desatou os inúmeros nós da fita, com a qual Thies envolvera o rolo. Eram oito desenhos, em formato relativamente pequeno. E eram bem diferentes, nada tinham a ver com o estilo habitual de Thies; ao contrário, eram bem objetivos e detalhados, com pessoas que... Amelie retesou-se e observou a primeira imagem com mais atenção. Sentiu a nuca formigar, seu coração acelerou-se. Diante de um grande celeiro, com o portão bem aberto, dois rapazes estavam inclinados sobre uma garota loira deitada no chão, cuja cabeça jazia sobre uma poça de sangue. Outro jovem, de cabelo escuro e cacheado, estava em pé, ao lado, um quarto corria com expressão de pânico para o observador. E este quarto era... Thies! Febrilmente, ela folheou os outros desenhos.

— Meu Deus! — sussurrou.

O celeiro com o portão aberto; ao lado, um estábulo baixo, as mesmas pessoas. Thies estava sentado ao lado do celeiro; o rapaz de cabelo cacheado estava em pé, junto à porta do estábulo e observava os acontecimentos dentro dele. Um dos rapazes violentava a garota loura, enquanto o outro a segurava. Amelie engoliu em seco e continuou a folhear. Novamente o celeiro, outra garota de cabelo longo e preto e um vestido curto, azul-claro, beijando um homem. Ele estava com a mão no seio dela, e ela, com a perna enlaçada em sua coxa. A situação era incrivelmente real. Ao fundo do celeiro escuro, era possível reconhecer o rapaz de cabelo cacheado que aparecia nos outros desenhos. As imagens pareciam fotografias. Thies capturara cada detalhe, as cores das roupas, o colar da moça, uma inscrição em uma camiseta. Inacreditável! Os desenhos mostravam indubitavelmente o sítio da família Sartorius. E representavam os acontecimentos de setembro de 1997. Amelie alisou com ambas as mãos o último desenho e ficou petrificada. A casa estava tão silenciosa que ela conseguia ouvir sua pulsação batendo nos ouvidos. O desenho mostrava o homem de antes, que beijava a garota de cabelo preto. Ela o conhecia. Conhecia-o bem.

 

Sexta-feira, 14 de novembro de 2008

— Bom-dia. — Gregor Lauterbach acenou com a cabeça para a administradora do escritório, Ines Schürmann-Liedtke, e entrou em sua grande sala na Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado de Hessen, na Luisenplatz, em Wiesbaden. Naquele dia, sua agenda não estava tão cheia. Para as oito horas estava marcada uma reunião com seu Secretário de Estado; para as dez, um discurso no plenário, no qual ele apresentaria a proposta orçamentária para o próximo ano. Ao meio-dia estava reservada uma hora para um rápido almoço com representantes da delegação de professores de Wisconsin, o Estado americano parceiro de Hessen. Sobre sua mesa já estava a correspondência, metodicamente ordenada por importância, em fichários com divisórias de várias cores. Em cima de tudo, a pasta com a correspondência que ele tinha de assinar. Lauterbach desabotoou o paletó e sentou-se à mesa, para terminar logo o que era mais importante. Vinte para as oito. O Secretário de Estado seria pontual como sempre.

— Seu café, Secretário. — Ines Schürmann-Liedtke entrou e colocou à sua frente uma xícara com café fumegante.

— Obrigado — sorriu. A mulher era não apenas uma administradora inteligente e extremamente eficiente, mas também um verdadeiro colírio para os olhos: robusta, morena, com grandes olhos escuros e uma pele como leite e mel. Ela lembrava um pouco Daniela, sua mulher. Às vezes ele se permitia devaneios lascivos, nos quais ela desempenhava o papel principal, mas, na realidade, seu comportamento em relação a ela era irrepreensível. Embora em sua posse, dois anos antes, ele tenha tido o direito de ocupar os postos do escritório com uma nova equipe, gostara de Ines logo de início, e ela lhe agradecia a permanência no emprego com absoluta lealdade e incrível zelo.

— Hoje você está mais uma vez esplêndida, Ines — disse ele, e provou de seu café. — O verde lhe cai muito bem.

— Muito obrigada. — Ela sorriu lisonjeada, mas logo voltou a ser profissional e leu rapidamente para ele a lista das pessoas que haviam ligado e que pediram retorno. Lauterbach ouviu sem prestar muita atenção, enquanto assinava as cartas que Ines escrevera, fazendo que sim ou não com a cabeça. Depois que ele terminou, ela lhe entregou a correspondência. Ela saiu da sala, e ele passou a se dedicar à correspondência que Ines Schürmann-Liedtke já havia selecionado. Quatro cartas estavam no conjunto, expressamente dirigidas a ele com o termo “pessoal” e que ela não abrira. Rasgou as quatro com um abridor de cartas, passou rapidamente os olhos pelas duas primeiras e as colocou de lado. Quando abriu a terceira, sua respiração parou:

Se você continuar de boca fechada, nada irá acontecer. Do contrário, a polícia vai ficar sabendo o que você perdeu, tempos atrás, no celeiro, quando transou com sua aluna menor de idade.

Atenciosamente, Branca de Neve.

De repente, sua boca secou. Ele observou a segunda folha, que mostrava a foto de um molho de chaves. Um medo frio se arrastou por suas veias; ao mesmo tempo, começou a suar. Não estavam brincando, o assunto era muito sério. Seus pensamentos aceleraram. Quem escrevera aquilo? Quem podia saber dele e de seu deslize com a moça? E por que diabos essa carta estava chegando justamente naquele momento? Gregor Lauterbach tinha a sensação de que seu coração ia pular do peito. Durante onze anos ele conseguira reprimir com êxito os acontecimentos do passado. Mas agora estava tudo de volta, tão vivo como se tivesse acabado de ocorrer. Levantou-se, foi até a janela e ficou olhando para a Luisenplatz vazia, que aos poucos era iluminada pela luz da nublada manhã de novembro. Ele inspirava e expirava devagar. Tudo menos perder o controle agora! Em uma gaveta da mesa, encontrou a agenda gasta, na qual havia anos anotava números de telefone. Ao pegar o fone, notou irritado que sua mão estava tremendo.

 

O velho carvalho nodoso ficava na parte dianteira do grande parque, a menos de cinco metros de distância do muro que cercava todo o terreno. Ela nunca gostou da casa em cima da árvore, talvez porque no verão ficasse coberta pela densa copa. Não era nada fácil subir de minissaia e meia-calça os degraus aparentemente pouco confiáveis da frágil escada, que haviam ficado escorregadios por causa da chuva dos últimos dias. Ainda bem que Thies não teve a ideia de, justamente naquele momento, sair do seu ateliê. Ele logo ia saber o que ela estava fazendo ali. Engatinhando, ela finalmente conseguiu chegar à casa em cima da árvore. Era uma caixa estável de madeira, que mais parecia os postos de observação que os caçadores usam na floresta. Amelie levantou-se com cuidado e olhou ao redor, depois se sentou em um banco e olhou para baixo pela janela da frente. Na mosca! Remexeu no bolso do casaco, pegou seu iPod e abriu os desenhos que, na noite anterior, tinha fotografado. A perspectiva batia cem por cento. Dali se tinha uma ampla visão da metade do vilarejo. A parte superior do sítio dos Sartorius, com celeiro e estábulo, estava diretamente a seus pés. Mesmo a olho nu dava para ver com precisão cada detalhe. Partindo do pressuposto de que, onze anos antes, o louro-cereja ainda era um arbusto pequeno, então o autor dos desenhos deve ter observado os acontecimentos exatamente daquele ponto. Amelie acendeu um cigarro e apoiou os pés contra a parede de madeira. Quem havia se sentado ali? Thies não podia ter sido, pois ele estava em três dos desenhos. Será que alguém tinha tirado fotos a partir dali, que Thies encontrara e desenhara? Mais interessante ainda era a pergunta sobre quem eram as outras pessoas nos desenhos. Quanto a Laura Wagner e Stefanie “Branca de Neve” Schneeberger, não havia dúvida. E o homem que havia transado com a Branca de Neve no celeiro, ela também conhecia. Mas quem eram os três rapazes? Pensativa, Amelie deu uma tragada no seu cigarro e refletiu sobre o que poderia fazer com o que já sabia. A polícia estava fora de questão. No passado ela só tivera experiências ruins com os tiras; não foi à toa que havia sido despachada para a casa do seu pai naquele fim de mundo, do qual, nos 12 anos anteriores, só ouvia falar em seus aniversários e nas festas de Natal. A segunda alternativa, seus pais, seria o mesmo que ir à polícia; portanto, não fazia sentido. Uma movimentação no sítio dos Sartorius despertou sua atenção. Tobias entrou no celeiro, e, pouco depois, o motor do velho trator vermelho começou a roncar. Provavelmente ele ia aproveitar o dia razoavelmente seco para continuar a limpeza. O que aconteceria se ela contasse a ele a respeito dos desenhos?

 

Ainda que a doutora Engel tenha dito categoricamente que não se fariam novas investigações nos dois casos de homicídio ocorridos onze anos antes, Pia continuou a se ocupar das dezesseis pastas. Sobretudo para desviar seus pensamentos da ameaça que havia por trás das palavras lapidares do Departamento de Fiscalização de Obras. Mentalmente, ela já havia decorado a nova casa em Birkenhof, transformando-a no lar aconchegante e de bom gosto com que sempre sonhara. Muitos dos móveis de Christoph combinavam muito bem com seus sonhos de arquitetura interior: a mesa de jantar antiquíssima e riscada, à qual doze pessoas podiam se sentar sem aperto, o sofá de couro amarrotado do seu jardim de inverno, o armarinho antigo, o gracioso récamier... Pia suspirou. Talvez tudo acabasse dando certo e o Departamento de Fiscalização de Obras desse a autorização para que eles pudessem começar a reforma.

Ela voltou a se concentrar nos autos que estavam à sua frente, passou os olhos por um relato e anotou dois nomes. Na última vez que estivera com Tobias Sartorius tivera uma sensação estranha. E se durante todos aqueles anos ele tivesse dito a verdade? E se ele, de fato, não fosse o assassino das duas garotas? Desconsiderando-se a hipótese de que o verdadeiro assassino estivesse circulando livremente, o julgamento equivocado tinha custado dez anos da sua vida e da existência de seu pai. Ao lado de suas anotações, ela fez um esboço da cidade de Altenhain. Quem morava onde? Quem era amigo de quem? À primeira vista, antigamente Tobias Sartorius e seus pais haviam sido pessoas respeitadas e queridas no vilarejo. Contudo, na leitura das entrelinhas, a inveja se mostrava claramente nas palavras dos interrogados. Tobias Sartorius fora um rapaz notável e bonito, inteligente, esportista e de bom coração. Parecia carregar os melhores pré-requisitos para um futuro grandioso; ninguém falava mal do primeiro da classe, do campeão no esporte e do ídolo das garotas. Pia observou algumas fotos. Como os amigos de Tobias, que, além de não serem nem um pouco atraentes, tinham o rosto cravado de espinhas, se sentiam ao serem constantemente comparados a ele? Como devia ser ficar sempre à sombra e, para as garotas mais bonitas, ser apenas a segunda opção? Será que a inveja e o ciúme não eram inevitáveis? E, em seguida, ofereceu-se inesperadamente a ocasião de se vingarem de todas as pequenas derrotas: “... Sim, um pouco esquentado o Tobias pode ser”, tinha dito um dos seus melhores amigos. “Especialmente depois de beber alguma coisa. Aí é que ele perde a cabeça mesmo.”

Seu antigo professor o descrevera como um aluno excelente e ambicioso, que aprendia tudo com muita facilidade, mas que também era capaz de ser incrivelmente disciplinado nos estudos. Um verdadeiro porta-voz, de uma autoconfiança que beirava a vaidade, de vez em quando meio esquentado, bastante maduro para sua idade. Um filho único que chegava a ser adorado pelos pais. Mas também alguém que não conseguia lidar direito com a concorrência e a derrota. Caramba, onde é que ela tinha lido isso mesmo? Pia folheou o documento para a frente e para trás. A ata do interrogatório do professor de Tobias, que, na época do desaparecimento das garotas, também dava aula para elas, já não estava ali. Pia ficou surpresa, remexeu em sua mesa à procura das anotações das semanas anteriores e comparou o levantamento que fizera dos nomes com a lista que ela havia terminado naquele dia.

— Não é possível! — exclamou.

— O que foi? — Ostermann passou os olhos pela tela de seu computador enquanto mastigava.

— Nos autos estão faltando as atas do interrogatório de Gregor Lauterbach sobre o caso Stefanie Schneeberger e Tobias Sartorius — respondeu ela, continuando a folhear para a frente e para trás. — Como pode uma coisa dessas?

— Devem estar em outra pasta. — Ostermann voltou ao seu trabalho e ao seu donut. Adorava comer as gordurosas rosquinhas, e havia anos Pia se admirava por seu colega não ser enorme de gordo. Ostermann devia ter um metabolismo sensacional para queimar os milhares de calorias com que se empanturrava todos os dias. Ela, no lugar dele, já estaria rolando por aí.

— Não. — Pia balançou a cabeça. — Simplesmente sumiram!

— Pia — disse Ostermann em tom paciente. — Estamos na polícia. Ninguém entra aqui e surrupia atas de uma velha pasta!

— Disso eu também sei. Mas o fato é que elas não estão mais aqui. Na semana passada mesmo eu as li. — Pia franziu a testa. Quem podia ter interesse no antigo caso? No fundo, não havia razão para roubar atas de interrogatório sem importância. O telefone em cima de sua escrivaninha tocou. Ela atendeu e ouviu rapidamente. Em Wallau, um furgão havia saído da rua e pegado fogo, depois de capotar várias vezes. O motorista estava gravemente ferido, mas nos destroços do veículo os bombeiros encontraram pelo menos duas pessoas queimadas até ficarem irreconhecíveis. Com um suspiro, ela fechou a pasta e guardou suas anotações em uma gaveta. A perspectiva de se arrastar com aquele tempo por um campo lamacento era pouco animadora.

 

O vento ululava ao redor do celeiro, assobiava por entre os caibros e sacudia o portão, como se quisesse entrar. Isso não preocupou Tobias Sartorius. À tarde, ele havia telefonado para uma imobiliária e marcado uma visita para a quarta-feira da semana seguinte. Até lá, o sítio, o celeiro e os velhos estábulos teriam de estar impecáveis. Com impulso, jogou um pneu velho após o outro na caçamba do trator. Havia dúzias deles empilhadas em um canto do celeiro. Seu pai os havia guardado para usar como pesos em cima das lonas que cobriam os fardos de feno e palha no campo. Agora já não havia fardos de feno nem palha, e os pneus não passavam de lixo.

Durante o dia inteiro, a sombra de uma lembrança fugidia o perseguiu, deixando Tobias quase louco porque não lhe ocorria o que era. Um de seus amigos tinha falado na noite anterior, na garagem, alguma coisa que desencadeara nele uma associação fulminante, mas a lembrança havia mergulhado em algum lugar nas profundezas de sua consciência e não se deixava atrair para a superfície, por mais que ele se esforçasse. Ofegante, parou e limpou a testa suada com o antebraço. Um sopro frio o roçou, e ele se virou ao perceber um movimento com o canto do olho. Assustado, teve um sobressalto. Três vultos vestidos de preto e com rosto ameaçadoramente mascarado entraram no celeiro. Um deles fechou a porta por dentro, empurrando a pesada tranca de ferro. Em silêncio, pararam e o fitaram pelas fendas de suas balaclavas. Os tacos de baseball em suas mãos enluvadas denunciavam sua intenção. A adrenalina inundou seu corpo, dos dedos dos pés até a ponta dos cabelos. Ele não tinha dúvida de que dois deles haviam espancado Amelie. Tinham voltado para surpreender seu verdadeiro objetivo, ou seja, ele. Recuou e refletiu febrilmente como poderia escapar dos três homens. No celeiro não havia janelas nem porta dos fundos. Mas havia uma escada, que conduzia ao palheiro vazio! Era sua única chance. Controlou-se para não olhar para cima e não denunciar sua intenção aos três homens. Apesar do pânico crescente em seu interior, conseguiu permanecer tranquilo. Tinha de alcançar a escada antes que eles o alcançassem. Pouco menos de cinco metros os separavam dele quando ele começou a correr. Em segundos, já estava na escada, subindo o mais rápido que conseguia. O golpe de um taco de baseball atingiu sua perna com toda a força. Não sentiu dor, mas sua perna direita logo ficou amortecida. Cerrando os dentes, continuou a subir, mas um dos perseguidores não era muito mais devagar do que ele quando pegou seu pé e o puxou. Tobias agarrou-se aos degraus da escada e, com o outro pé, chutou o homem. Ouviu um grito reprimido de dor e sentiu que o aperto em seu tornozelo afrouxou. A escada balançou. De repente, ele agarrou no vazio e quase perdeu o equilíbrio. Faltavam três degraus! Olhou para baixo e sentiu-se como um gato agarrado a um tronco nu, com três rottweilers sanguinários em seus calcanhares. De algum modo, alcançou o degrau seguinte e deu um impulso com toda a força para a parte de cima. A perna adormecida formigava e quase não o ajudava. Finalmente chegou ao palheiro. Dois dos caras subiam atrás dele, o terceiro havia desaparecido. Tobias deu uma olhada rápida na penumbra do chão. A escada estava pregada no assoalho. Impossível derrubá-la! Cambaleou o mais rápido que pôde até o ponto mais baixo do telhado, empurrou as telhas com a mão, de baixo para cima. Uma se soltou, depois a segunda. Volta e meia olhava por cima dos ombros. A cabeça do primeiro perseguidor apareceu na borda do palheiro. Droga! O buraco ainda era pequeno demais para conseguir passar por ele. Como foi obrigado a reconhecer o despropósito de sua audácia, correu para a fresta, sob a qual, alguns metros abaixo, estava a caçamba do trator com os pneus. Com a coragem do desespero, ousou o salto. Um dos perseguidores virou-se na escada e, como uma grande aranha preta, desceu correndo. Tobias deslizou para o chão e se agachou na sombra negra sob a caçamba. Tateou o chão e amaldiçoou sua mania de limpeza. Já não havia nada ali que ele pudesse utilizar como arma de defesa! Seu coração martelava contra o tórax. Ele ainda persistiu por pouco tempo, depois arriscou todas as suas fichas e saiu correndo.

Alcançaram-no quando ele já estava com a tranca na mão. Os golpes o atingiram nos ombros, nos braços e na região do osso sacro. Seus joelhos cederam, ele se encolheu, protegendo a cabeça com os braços. Eles o espancaram e chutaram, sem pronunciar nenhum som sequer. Por fim, pegaram seus braços, abriram-nos com brutalidade e arrancaram seu pulôver e sua camiseta pela cabeça. Tobias cerrou os dentes para não gemer nem pedir por sua vida. Viu que um dos homens dava um nó em um cordão de varal. Ainda que se defendesse, eles eram mais fortes. Amarraram seus pulsos e seus tornozelos atrás do corpo e enrolaram o cordão em seu pescoço. Sem poder fazer nada e amarrado como um pacote, teve de suportar ser brutalmente arrastado com o tronco nu pelo chão áspero e gelado até a parede dos fundos. Enfiaram um trapo fedorento em sua boca, como uma mordaça, e vendaram seus olhos. Ofegante, ficou deitado no chão, com o coração acelerado. O cordão de varal tirava-lhe o ar até quando ele se movia apenas um milímetro. Tobias tentou escutar algum barulho, mas só ouviu a tempestade que bramia igualmente intensa ao redor do celeiro. Será que os três já estavam satisfeitos? Não estariam planejando matá-lo? Teriam ido embora? A tensão cedeu apenas um pouco, e seus músculos relaxaram. Mas seu alívio veio cedo demais. Ele ouviu cochichos, sentiu cheiro de esmalte. No mesmo instante, um golpe o atingiu bem no meio do rosto. O osso de seu nariz quebrou-se com um estalo, que ecoou em sua cabeça como um tiro. Lágrimas lançaram-se em seus olhos, sangue obstruiu seu nariz. Com a mordaça na boca, ele mal conseguia respirar. O pânico voltara, cem vezes mais intenso do que antes, pois agora ele já não conseguia ver seus agressores. Chutes e golpes precipitaram-se sobre ele e, nesses segundos, que se transformaram em horas, dias e semanas, cresceu nele a certeza de que queriam matá-lo.

 

O movimento estava fraco no Corcel Negro. A habitual roda de skat na mesa dos habitués não estava completa, e Jörg Richter também estava faltando, o que fazia o humor de sua irmã sofrer uma baixa provisória. Na verdade, naquela noite, Jenny Jagielski deveria ter ido ao jardim de infância para a reunião de pais, mas, na ausência do irmão, achou melhor não deixar o Corcel Negro nas mãos dos funcionários, sobretudo porque Roswitha ligara, avisando que estava doente, e só havia ela e Amelie para servirem. Eram nove e meia quando Jörg Richter e seu amigo Felix Pietsch apareceram. Tiraram o casaco molhado e sentaram-se a uma mesa; logo depois chegaram mais dois homens que Amelie tinha visto várias vezes com o irmão de sua patroa. Como um anjo vingador, Jenny caminhou com passos pesados até seu irmão, mas ele a despachou com poucas palavras. Ela voltou com os lábios apertados para trás do balcão, com as manchas vermelhas de raiva iluminando seu pescoço.

— Traga quatro cervejas e quatro aguardentes! — gritou Jörg Richter para Amelie.

— Estão em falta! — estrilou Jenny Jagielski. — Esse canalha!

— Mas os outros são clientes — observou Amelie ingenuamente.

— Alguma vez já lhe pagaram? — cortou Jenny, e, como Amelie balançou negativamente a cabeça, disse: — Então não são clientes coisa nenhuma! Parasitas é o que são!

Não demorou nem dois minutos até Jörg Richter ir ele próprio atrás do balcão e tirar quatro chopes. Não estava menos mal-humorado do que sua irmã, e houve uma intensa altercação à meia-voz. Amelie se perguntou o que havia acontecido. Pairava no ar uma agressividade subliminar, como eletricidade. O gordo Felix Pietsch estava vermelho como um peru, e os outros dois também estavam com cara hostil. Amelie foi desviada de suas reflexões quando os três irmãos que jogavam baralho e que estavam faltando entraram falando alto e ainda a caminho da mesa redonda lhe pediram costeleta com fritas, alcatra e cerveja. Tiraram seus casacos e sobretudos molhados e se sentaram. Um deles, Lutz Richter, logo começou a contar alguma coisa. Os homens se juntaram e escutaram com atenção. Richter se calou quando Amelie apareceu à mesa com as bebidas e esperou que ela se afastasse o suficiente para não conseguir ouvir. Amelie não atribuiu nenhuma importância ao comportamento estranho dos homens. Ainda estava com o pensamento nos desenhos de Thies. Talvez o melhor fosse, antes de tudo, fazer o que Thies lhe pedira e manter silêncio.

 

Ele foi até a porta da casa e tirou o casaco molhado e os sapatos sujos na varanda. No espelho, ao lado do guarda-roupa, deparou com seu olhar e, involuntariamente, abaixou a cabeça. Não era certo o que tinham feito. Não era absolutamente certo. Se o Terlinden ficasse sabendo, ele estaria frito — e os outros dois também. Foi para a cozinha, ainda encontrou uma garrafa de cerveja na prateleira da porta da geladeira. Seus músculos estavam doloridos, e no dia seguinte ele certamente ia ficar com hematomas nos braços e nas pernas, de tanto que o cara tinha se defendido. Mas em vão. Em três eles foram mais fortes. Passos se aproximaram.

— E aí? — soou atrás dele a voz curiosa de sua mulher. — Como foi?

— Como planejado. — Ele não se virou para ela. Pegou um abridor de garrafas na gaveta e o posicionou. Com um sibilo e um leve “plopp”, a tampa da garrafa saltou. Ele estremeceu. Esse tinha sido o barulho que ouvira quando o osso do nariz de Tobias Sartorius se quebrara sob seu punho.

— Ele... ? — Ela deixou a frase incompleta. Então ele se virou e a examinou.

— Provavelmente — respondeu. A frágil cadeira da cozinha rangeu sob seu peso quando ele se sentou. Bebeu um gole de cerveja. Estava choca. Os outros iam deixar o cara sufocar, mas ele ainda tirou rapidamente o trapo da boca dele, que estava inconsciente, sem que eles percebessem. — Em todo caso, demos uma bela lição nele.

Sua mulher levantou as sobrancelhas, e ele desviou o olhar.

— Uma lição. Que ótimo! — disse ela com desdém.

Ele pensou em como Tobias tinha olhado para eles, com o medo manifesto da morte estampado no rosto. Só quando vendaram seus olhos é que ele conseguiu espancá-lo e chutá-lo como faziam os outros. Irritado com sua fraqueza, pusera toda força em seus golpes e chutes. Agora se envergonhava disso. Não, aquilo não tinha sido certo de jeito nenhum!

— Seus molengas! — acrescentou sua mulher nesse instante. Com esforço, ele reprimiu a raiva crescente. O que, afinal, ela esperava dele? Que matasse o homem? Um vizinho? A última coisa de que precisavam naquele momento eram tiras, que estavam vasculhando o vilarejo inteiro e fazendo perguntas idiotas! Havia segredos demais; era melhor que continuassem assim.

 

Passava pouco da meia-noite quando Hartmut Sartorius acordou. A televisão ainda estava ligada — algum filme de terror brutal, em que adolescentes aos berros fugiam, com olhos arregalados de pavor, de um psicopata mascarado, que os abatia, um após o outro, com um machado e uma serra elétrica. Confuso, Hartmut Sartorius tateou à procura do controle remoto e desligou o aparelho. Seus joelhos doeram quando ele se levantou. Na cozinha, a luz estava acesa, e a frigideira tampada, contendo filé e fritas, encontrava-se intocada em cima do fogão. Uma olhada no relógio revelou que já era tarde. O casaco de Tobias não estava no guarda-roupa, mas a chave do carro estava na bandeja embaixo do espelho, portanto, ele não tinha saído. O rapaz estava mesmo exagerando na arrumação. Queria muito, na semana seguinte, poder apresentar o sítio impecável ao corretor. Hartmut Sartorius tinha concordado com todas as sugestões de Tobias, mas sabia que, de todo jeito, teria de conversar com Claudius, no que dizia respeito ao corretor. Em todo caso, Claudius Terlinden era o único proprietário do imóvel, ainda que Tobias não aceitasse. Hartmut Sartorius foi urinar, depois fumou um cigarro à mesa da cozinha. Nesse meio-tempo, já era vinte para a uma. Com um suspiro, pôs-se de pé e foi até o hall. Vestiu seu velho casaco de tricô antes de abrir a porta de casa e sair na tempestuosa e fria chuva noturna. Para sua surpresa, o refletor no canto da casa não se acendeu, embora Tobias, três dias antes, tivesse instalado um sensor de movimento. Atravessou o pátio e viu que o estábulo e o celeiro também estavam escuros. Mas o carro e o trator estavam lá. Será que Tobias estava na casa dos amigos? Uma sensação estranha lhe sobreveio quando ele apertou o interruptor junto à porta do curral. O interruptor estalou, mas a luz não se acendeu. Tomara que nada tenha acontecido a Tobias enquanto ele dormia em casa, assistindo à televisão! Hartmut Sartorius foi à leiteria. Lá ficava a caixa de fusíveis, e a luz estava funcionando, pois o espaço estava ligado ao circuito de fusíveis da casa. Três fusíveis estavam soltos. Ele os apertou, e imediatamente os refletores sobre a porta do estábulo e o portão do celeiro brilharam intensamente. Hartmut Sartorius atravessou o pátio e soltou um palavrão quando pisou em uma poça d’água com seu chinelo de feltro.

— Tobias? — Ficou parado, ouvindo. Nada. O estábulo estava vazio, nenhum vestígio do filho em parte alguma. Foi mais adiante. O vento açoitou seus cabelos e atravessou as malhas do casaco. Ele sentiu frio. A tempestade tinha aberto fendas no denso céu encoberto; farrapos de nuvens velejavam rapidamente, passando pela lua crescente. À sua pálida luz, os três grandes contêineres, que estavam um ao lado do outro, mais acima no pátio, pareciam tanques inimigos. A sensação de que havia alguma coisa errada se intensificou quando ele viu uma das folhas do portão do celeiro balançar rangendo de um lado para outro. Tentou agarrar o portão, mas este quase se desprendeu sob uma nova rajada, como se tivesse vida própria. Com toda a força, Hartmut Sartorius puxou-o e fechou-o atrás de si. O refletor se apagou segundos depois, mas ele conhecia bem seu sítio até no escuro e logo encontrou o interruptor.

— Tobias!

Os tubos de néon zumbiam e tremeluziam e, no mesmo instante, ele viu as letras vermelhas na parede. QUEM NÃO QUER OUVIR TEM QUE CENTIR! O erro de ortografia foi a primeira coisa a lhe chamar a atenção, só depois reparou na figura encolhida no chão. O susto tomou seus membros de forma tão intensa que ele começou a tremer. Atravessou o celeiro tropeçando, caiu de joelhos e, cheio de horror, viu o que tinha acontecido. As lágrimas brotavam de seus olhos. Haviam amarrado as mãos e os pés de Tobias, um cordão apertava tanto seu pescoço que acabou fazendo nele um corte profundo. Os olhos de Tobias estavam vendados, seu rosto e seu tronco nu mostravam marcas evidentes de maus-tratos cruéis. Aquilo devia ter ocorrido horas atrás, pois o sangue já estava coagulado.

— Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Tobi! — Com os dedos trêmulos, Hartmut Sartorius pôs-se a desatar as amarras. Com spray vermelho, haviam pichado uma palavra em suas costas nuas: ASSASSINO! Tocou os ombros do filho e se assustou. A pele de Tobias estava gelada.

Sábado, 15 de novembro de 2008

Gregor Lauterbach caminhava em silêncio na sala, de um lado para o outro. Já tinha bebido três copos de uísque, mas, desta vez, o efeito calmante do álcool não se fez sentir. Durante o dia todo, havia conseguido reprimir o conteúdo ameaçador da carta anônima, porém, mal pisou em casa, e o medo o atacou. Daniela já estava deitada, ele não quis incomodá-la. Por um momento, pensou em ligar para sua amante e ir encontrá-la em seu apartamento, só para se distrair, mas voltou a rejeitar essa ideia. Desta vez, precisava resolver isso sozinho. Tomou um remédio para dormir e se deitou. Mas o toque do telefone o arrancou do sono à uma da manhã. Ligações a essa hora nunca prometiam coisas boas. Tremendo, ficou deitado na cama, molhado de suor e como que enlouquecido de medo.

De seu quarto, Daniela atendeu e, pouco depois, passou pelo corredor, sem fazer barulho para não acordá-lo. Somente quando a porta da casa se fechou atrás dela é que ele se levantou e desceu. Era comum ela ter de ir atender a algum paciente durante a noite. Ele tinha se esquecido do serviço de prontidão. Nesse meio-tempo, eram pouco mais de três horas, e ele estava à beira de um ataque de nervos. Quem poderia ter lhe enviado aquela carta? Quem sabia da Branca de Neve, dele e do molho de chaves perdido? Santo Deus! Sua carreira estava em jogo, seu prestígio, toda a sua vida! Se essa carta ou outra semelhante caísse em mãos erradas, ele estaria acabado. A imprensa só estava esperando um bom escândalo!

Gregor Lauterbach secou a palma úmida das mãos no roupão. Serviu-se de mais um uísque, desta vez um triplo, e sentou-se no sofá. Só a luz do hall de entrada estava acesa; a sala estava escura. Não podia falar da carta para Daniela. Já naquela época teria sido melhor se ele tivesse ficado calado. Ela que, 17 anos antes, tinha construído e pago aquela casa. Com seu parco salário de funcionário público, ele nunca poderia ter bancado uma mansão daquelas. Ela gostou da ideia de tomá-lo sob sua proteção e introduzi-lo nos círculos sociais e políticos certos; ele, que era um simples professor do ensino médio. Daniela era uma excelente médica. Em Königstein e nas redondezas tinha muitos pacientes particulares abastados e muito influentes, que reconheceram e incentivaram o talento político de seu marido. Gregor Lauterbach devia tudo à mulher, e foi doloroso ter de entender isso, quando, na época, por pouco ela não deixou de favorecê-lo e apoiá-lo. Quando ela o perdoou, seu alívio foi infinito. Aos 58 anos, ela ainda era deslumbrante — um fato que sempre lhe causava preocupação. Embora já não dormissem juntos desde aquela época, ele ainda amava Daniela do fundo do coração. Todas as outras mulheres que passaram por sua vida e sua cama não foram importantes, e sim apenas aventuras físicas. Ele não queria perder Daniela. Não, ele nãopodia perdê-la! Em hipótese alguma. Ela sabia demais a seu respeito, conhecia suas fraquezas, seu complexo de inferioridade e o medo de fracassar, que o acometia em acessos angustiantes e que, naquele meio-tempo, ele conseguira controlar. Lauterbach teve um sobressalto quando a chave girou na porta. Ele se levantou e arrastou-se até a entrada.

— Está acordado! — constatou sua mulher, surpresa. Parecia tranquila e imperturbável, como sempre, e ele se sentiu como um marinheiro em mar agitado, que ao longe enxerga o farol salvador.

Ela o examinou e sentiu seu cheiro.

— Você andou bebendo. Aconteceu alguma coisa?

Como ela o conhecia bem! Nunca conseguia enganá-la. Sentou-se no degrau mais baixo da escada.

— Não estou conseguindo dormir — respondeu simplesmente, poupando-se de toda justificativa e de todo pretexto. Repentinamente, e com uma intensidade que o assustou, ele sentiu falta de seu amor materno, de seu abraço, de seu consolo.

— Vou lhe dar um Lorazepam — disse ela.

— Não! — Gregor Lauterbach se ergueu, cambaleou um pouco e estendeu-lhe a mão. — Não quero nenhum remédio. Eu quero...

Interrompeu-se ao ver seu olhar surpreso. Inexplicavelmente, sentiu-se miserável e fraco.

— O que você quer? — perguntou ela em voz baixa.

— Só quero dormir esta noite com você, Dani — cochichou em seu ouvido com voz rouca. — Por favor.

 

Pia observou a mulher que estava sentada à sua frente, à mesa da cozinha. Ela comunicara a Andrea Wagner que o médico-legista havia liberado os restos mortais de sua filha Laura. Como a mãe da garota morta tinha uma expressão serena, Pia lhe fez algumas perguntas sobre Laura e seu relacionamento com Tobias Sartorius.

— Por que quer saber disso? — perguntou a senhora Wagner, desconfiada.

— Nos últimos dias dei uma boa lida nos antigos autos — respondeu Pia. — E, de algum modo, tenho a sensação de que alguma coisa passou despercebida naquela época. Quando dissemos a Tobias Sartorius que Laura havia sido encontrada, tive a impressão de que ele realmente não fazia ideia de nada. Por favor, não me leve a mal; não estou querendo dizer com isso que o considero inocente.

Andrea Wagner olhou para ela com olhar apático. Ficou um longo momento sem dizer nada.

— Parei de pensar em tudo isso — disse em seguida. — Já é difícil o bastante seguir em frente aos olhos da cidade inteira. Meus outros dois filhos tiveram de crescer à sombra da irmã morta; empreguei todas as minhas forças para que, de algum modo, eles tivessem uma infância normal. Mas isso não é fácil com um pai que toda noite, no Corcel Negro, bebe até perder os sentidos, porque não quer aceitar o que aconteceu.

O relato não soou amargo; era a constatação de um fato.

— Não deixo mais esse assunto chegar perto de mim. Do contrário, tudo isso aqui já teria ido para o brejo. — Com um movimento da mão, apontou para uma pilha de papéis sobre a mesa. — Contas não pagas, advertências. Trabalho no supermercado, em Bad Soden, para que a casa e a marcenaria não tenham que ir a leilão judicial ou acabemos na mesma situação dos Sartorius. De algum modo, é preciso seguir em frente. Não posso me dar ao luxo de viver no passado, como faz meu marido.

Pia nada disse. Não era a primeira vez que via como um acontecimento ruim podia tirar totalmente dos trilhos a vida de uma família inteira, destruindo-a para sempre. Até que ponto tinham que ser fortes pessoas como Andrea Wagner, para levantar-se a cada manhã e seguir em frente, sem esperança de melhora? Será que na vida dessa mulher ainda havia alguma coisa que a deixasse feliz?

— Conheço Tobias desde que ele nasceu — continuou Andrea Wagner. — Éramos amigos da família, assim como de todas as pessoas aqui na cidade. Meu marido era comandante no corpo de bombeiros e treinador de jovens na associação esportiva. Tobias era seu melhor atacante. Manfred sempre teve muito orgulho dele. — Um sorriso esgueirou-se em seu rosto pálido e abatido, mas logo voltou a se apagar. Ela suspirou. — Ninguém poderia imaginar que ele fosse capaz de uma coisa dessas, muito menos eu. Mas quem vê cara não vê coração, não é?

—É, nisso a senhora tem razão. — Pia confirmou com a cabeça. A família Wagner já tinha passado por coisas ruins demais, ela não queria continuar cutucando feridas antigas. Na verdade, não tinha motivo algum para fazer perguntas sobre um caso há muito esclarecido. Foi apenas por causa daquela sensação indistinta.

Despediu-se da senhora Wagner, saiu da casa e atravessou o pátio abandonado até seu carro. O barulho estridente de uma serra no interior da oficina chegou a seus ouvidos. Pia parou, deu meia-volta e abriu a porta da marcenaria. Era justo comunicar também a Manfred Wagner que, em pouco tempo, ele poderia enterrar sua filha e, assim, pôr um ponto final naquela história horrível. Talvez, de algum modo, conseguisse se reerguer na vida. Ele estava em pé, de costas para ela, junto a uma bancada de trabalho, e passava uma tábua pela serra. Quando desligou a máquina, Pia fez-se notar. O homem não usava protetor auricular, apenas um boné imundo, e do canto de sua boca pendia uma cigarrilha. Ele apenas passou a vista por ela com um olhar hostil e inclinou-se para pegar outra tábua, fazendo com que sua calça amarrotada escorregasse e apresentasse a Pia a desagradável visão do início peludo de suas nádegas.

— O que quer? — balbuciou ele. — Tenho o que fazer.

Desde o último encontro, ele não tinha se barbeado mais e sua roupa exalava o cheiro azedo de suor velho. Pia estremeceu e, involuntariamente, deu um passo para trás. Como deveria ser ter de conviver, dia após dia, com um homem tão mal cuidado? Sua compaixão por Andrea Wagner aumentou.

— Senhor Wagner, acabei de conversar com sua mulher, mas também gostaria de lhe dizer pessoalmente — começou Pia.

Wagner se ergueu e se virou para ela.

— O médico-legista... — Pia emudeceu. O boné! A barba! Não havia dúvida. Diante dela estava o homem que procuravam com a foto feita a partir do filme da câmera de vigilância.

— O quê? — Ele a fitou com um misto de agressividade e indiferença, mas depois empalideceu, como se tivesse lido o pensamento de Pia. Ele recuou, e a consciência pesada estampou-se em seu rosto.

— Foi... foi um acidente — gaguejou e, desamparado, levantou as mãos. — Juro para a senhora que não queria fazer aquilo. Eu... eu só queria conversar com ela, de verdade!

Pia respirou fundo. Então ela estava certa ao supor que poderia haver uma ligação entre o ataque a Rita Cramer e os acontecimentos do outono de 1997.

— Mas... Mas... Quando ouvi que aquele... Aquele assassino miserável tinha saído da cadeia e voltado aqui para Altenhain, então... Então tudo voltou à minha cabeça. Eu pensei: conheço bem a Rita. Éramos amigos antes. Só queria conversar com ela, para que ela fizesse o filho sumir daqui... Mas aí ela fugiu correndo de mim... E me bateu e chutou... E, de repente,... De repente fiquei com tanta raiva...

Ele se interrompeu.

— Sua esposa já sabia a respeito? — quis saber Pia. Wagner balançou negativamente a cabeça. Seus ombros caíram para a frente.

— No começo, não. Mas depois ela viu a foto.

Obviamente Andrea Wagner tinha reconhecido o marido, assim como todos os moradores de Altenhain. Calaram-se para poupá-lo. Ele era um deles, um homem que tinha perdido a filha de forma cruel. Talvez até considerassem a desgraça que causara à família Sartorius uma justiça compensatória.

— O senhor achou que ia escapar só porque o vilarejo inteiro escondeu seu crime? — A compaixão de Pia por Manfred Wagner tinha sido como que varrida.

—Não — sussurrou ele. — Eu... Eu queria ir à polícia.

De repente, a tristeza e a raiva o dominaram. Soltou o punho, que fez um estrondo na bancada.

— Esse assassino miserável pagou sua pena, mas minha Laura está morta para sempre! Quando a Rita não quis me ouvir, de repente perdi o controle. E a grade era muito baixa.

 

Andrea Wagner estava em pé no pátio, com os braços cruzados sobre o peito e expressão apática, e viu seu marido sendo levado por dois agentes da polícia. O olhar com que o observou dizia tudo. Entre ambos não havia restado nenhum afeto, muito menos amor. Talvez o que ainda os mantivesse juntos fossem os filhos, as obrigações cotidianas ou a falta de perspectiva de uma separação, mas não muito mais. Andrea Wagner desprezava o marido, que afogava suas preocupações e seus problemas no álcool, em vez de enfrentá-los. Pia sentiu verdadeira pena da mulher que passava por tanta provação. O futuro da família Wagner não parecia muito mais cor-de-rosa do que seu passado. Ela esperou até a viatura deixar o pátio. Bodenstein já havia sido informado e mais tarde conversaria com Wagner na delegacia.

Pia sentou-se em seu carro, deu a partida e manobrou. Dirigiu pela pequena área industrial, que consistia principalmente na empresa de Terlinden. Atrás de uma cerca alta, havia grandes galpões em um extenso terreno, entre um gramado bem cuidado e estacionamentos. Para se chegar ao prédio principal, uma construção grande e semicircular, com uma fachada de vidro de um metro de altura, era necessário passar por cancelas e uma guarita. Vários caminhões aguardavam a liberação da entrada diante de uma cancela; do outro lado, um caminhão era controlado pela equipe de vigilância. O caminhão atrás dela buzinou. Pia já havia ligado a seta esquerda, para virar na B 519, rumo a Hofheim, mas acabou decidindo fazer uma breve visita à família Sartorius e virou à direita.

A neblina matinal havia se dissipado e cedido lugar a um dia seco e ensolarado, um sopro de fim de verão em pleno novembro. Altenhain parecia deserta. Pia viu apenas uma mulher jovem, que passeava com dois cachorros, e um homem de idade, que estava parado na entrada de seu sítio, com os braços sobre o portão de meia altura, conversando com uma mulher mais velha. Ela passou pelo Corcel Negro, com seu estacionamento ainda mais vazio, e pela igreja; seguiu pela curva fechada à direita e teve de frear, pois um gato gordo e cinza atravessava a estreita rua com uma lentidão solene. Diante do antigo restaurante de Hartmut Sartorius estava estacionado um Porsche Cayenne prata, com placa de Frankfurt. Pia parou seu carro ao lado e entrou no sítio pelo portão aberto. De montanhas de lixo e pilhas de sucata já não havia nada, e, pelo visto, as ratazanas tiveram de se mudar para campos mais férteis. Ela subiu os três degraus até a porta da casa e tocou a campainha. Hartmut Sartorius abriu. A seu lado estava uma mulher loura. Pia mal podia acreditar em seus olhos quando reconheceu Nadja Bredow, a atriz, cujo rosto se tornara especialmente conhecido em toda a Alemanha devido ao popular papel da agente policial Stein, que atuava no cenário do crime de Hamburgo. O que essa mulher estava fazendo ali?

— Eu dou um jeito de achá-lo — estava ela dizendo a Hartmut Sartorius, que, ao lado daquela figura alta e elegante, parecia ainda mais acabrunhado do que nunca. —Antes de mais nada, muito obrigada. Nos vemos mais tarde.

Ela resvalou em Pia com um olhar desinteressado e passou por ela sem cumprimentá-la ou, ao menos, fazer algum gesto com a cabeça. Pia seguiu-a com o olhar, depois se virou para o pai de Tobias.

— Nathalie é filha de nosso vizinho — esclareceu ele espontaneamente, pois notou a surpresa no rosto de Pia. — Ela e Tobias brincaram juntos quando eram pequenos, e ela manteve contato com ele durante todo o período em que esteve na prisão. Foi a única de todos.

— Sei. — Pia fez que sim com a cabeça. Mesmo uma atriz famosa tinha de crescer em algum lugar; então, por que não em Altenhain?

— O que posso fazer pela senhora?

— Seu filho está?

— Não. Foi dar uma volta. Mas entre, por favor.

Pia seguiu-o pela casa até a cozinha, que, como o sítio, parecia bem mais limpa do que em sua última visita. Por que é que as pessoas sempre levavam a polícia à cozinha?

 

Mergulhada em seus pensamentos, Amelie caminhava ao longo da beira da floresta, com as mãos nos bolsos do casaco. À chuva intensa da noite anterior seguira-se um dia tranquilo e ameno. Sobre os pomares onde pairava um fino véu de neblina, o sol encontrou um caminho por entre as nuvens cinza e fez a floresta brilhar, aqui e ali, em cores outonais. Vermelho, amarelo e marrom iluminavam as últimas folhas secas nos galhos das árvores. No ar, sentia-se o cheiro do fruto dos carvalhos e da terra úmida, do fogo que alguém havia acendido em um dos campos. Amelie, filha de cidade grande, fez o ar fresco e limpo entrar em seus pulmões. Sentia-se tão viva como raramente ocorrera antes, e tinha de admitir que a vida no campo tinha aspectos totalmente agradáveis. Lá embaixo, no vale, ficava a cidade. Como parecia pacífica de longe! Um carro rastejou ao longo da rua como uma joaninha vermelha e desapareceu no emaranhado das casas densamente contíguas. No banco de madeira junto ao antigo cruzamento estava sentado um homem. Quando Amelie se aproximou, para sua surpresa reconheceu Tobias.

— Oi — disse ela e parou à sua frente. Ele levantou a cabeça. Sua surpresa converteu-se em horror quando viu seu rosto. Hematomas roxos estendiam-se na metade esquerda da face, um olho estava inchado e seu nariz, do tamanho de uma batata. Uma ferida aberta na sobrancelha havia sido costurada.

— Oi — respondeu ele. Ficaram se olhando por um momento. Seus belos olhos azuis estavam vítreos, ele devia estar sentindo fortes dores, não havia como não notar. — Eles me pegaram. Ontem à noite, no celeiro.

— Não me diga. — Amelie sentou-se a seu lado. Por um instante, nenhum dos dois disse palavra alguma.

— Você devia procurar a polícia — disse ela hesitante, sem muita convicção. Ele bufou, discordando.

— Nem pensar. Por acaso você tem um cigarro aí?

Amelie remexeu em sua mochila e dela tirou um maço amarrotado e o isqueiro. Acendeu dois cigarros e deu um a ele.

— Ontem à noite o irmão da Jenny Jagielski chegou bem tarde com seu amigo, o Felix gordo, ao Corcel Negro. Sentaram-se com dois outros caras num canto e pareciam bem estranhos — disse Amelie, sem olhar para Tobias. — E na roda habitual de skat estavam faltando o velho Pietsch, o Richter, da loja, e o Traugott Dombrowski. Só foram aparecer lá pelas quinze para as dez.

—Hum— fez Tobias apenas e deu uma tragada em seu cigarro.

— Talvez tenham sido alguns deles.

— Muito provavelmente— respondeu Tobias indiferente.

— Sim, mas então... se você sabe quem poderia ter sido... — Amelie virou a cabeça e deparou com seu olhar. Voltou a desviar-se dele rapidamente. Era muito mais fácil conversar com ele sem olhá-lo nos olhos.

— Por que você está do meu lado? — perguntou ele de repente. — Passei dez anos na cadeia porque matei duas garotas.

Sua voz não soou amargurada, apenas cansada e resignada.

— Passei três semanas na casa de correção porque menti para proteger um amigo e afirmei que a droga que os tiras encontraram era minha — respondeu Amelie.

— O que quer dizer com isso?

— Que não acredito que você matou as duas garotas.

— É gentil da sua parte. — Tobias inclinou-se e fez uma careta. — Tenho de lembrar a você que houve um processo com uma pilha de provas, que, todas juntas, depunham contra mim.

— Eu sei. — Amelie deu de ombros. Deu mais uma tragada em seu cigarro, depois jogou a bituca no campo, do outro lado do caminho coberto com cascalho. Ela precisava, de todo jeito, contar a ele sobre os desenhos! Como deveria começar? Decidiu-se por um atalho.

— Na época, os Lauterbachs já moravam aqui? — perguntou.

— Moravam — respondeu Tobias surpreso.— Por que quer saber disso?

— Há um desenho — disse Amelie. — Na verdade, vários até. Eu os vi e acho que, em três desenhos, o Lauterbach foi retratado.

Tobias olhou para ela com atenção e, ao mesmo tempo, sem entender nada.

— Quer dizer, acho que alguém, naquela época, observou o que realmente aconteceu — continuou Amelie após uma breve hesitação. — Thies me deu uns desenhos, que...

Calou-se. Um carro subiu o caminho estreito em alta velocidade, uma SUV prata. O cascalho crepitou sob os largos pneus, quando o Porsche Cayenne parou bem na frente deles. Uma mulher bonita e loura desceu. Amelie deu um salto e colocou a mochila nos ombros.

— Espere! — Tobias pediu esticando o braço em sua direção e se levantou com uma expressão de dor. — Que desenhos são esses? O que o Thies tem a ver com isso? A Nadja é minha melhor amiga. Você também pode contar tudo a ela.

— Não, melhor não. — Amelie olhou com ceticismo para a mulher. Ela era muito esbelta e parecia muito elegante com seus jeans justos, o pulôver de gola rulê e o colete bege acolchoado, com o logotipo de uma marca cara em evidência. Tinha feito um coque no cabelo liso e louro, e em seu rosto bem-proporcionado via-se uma expressão de preocupação.

— Oi — gritou a mulher e se aproximou. Ela analisou rapidamente Amelie com um olhar desconfiado, depois, seu interesse voltou-se exclusivamente para Tobias.

— Meu Deus, amor! — Ela tocou suavemente sua face. Esse gesto de familiaridade causou uma pontada em Amelie, e ela logo sentiu uma forte antipatia por aquela Nadja.

— Nos vemos mais tarde — disse ela rapidamente e deixou ambos sozinhos.

 

Era a segunda vez naquele dia que Pia se sentava a uma mesa de cozinha e recusava gentilmente um café, depois que informou a Hartmut Sartorius sobre a confissão e a prisão de Manfred Wagner.

— Como está sua ex-mulher? — perguntou então.

— Igual — respondeu Sartorius. — Os médicos falam, falam, mas não dão nenhuma definição.

Pia observou o rosto abatido e cansado do pai de Tobias. O homem não devia ter sofrido menos do que os Wagners, ao contrário: enquanto os pais das vítimas receberam compaixão e solidariedade, os pais do assassino foram excluídos e castigados pela ação do filho. O silêncio tornou-se incômodo. Na verdade, Pia não sabia por que tinha ido até lá. O que ela queria realmente ali?

— Pelo menos agora estão deixando o senhor e seu filho em paz? — perguntou por fim. Hartmut Sartorius deu um curto e amargo sorriso. Abriu uma gaveta e pegou um bilhete amassado, que entregou a Pia.

— Estava hoje na caixa de correio. Tobias jogou fora, mas peguei do lixo.

Corja de assassinos, leu Pia. Desapareçam daqui, antes que uma desgraça aconteça.

— Uma carta de ameaça —constatou ela. — Anônima, não?

— Claro. — Sartorius deu de ombros e voltou a se sentar à mesa. — Ontem atacaram Tobias no celeiro e o espancaram. — Sua voz oscilou, ele lutou para se controlar, mas, de repente, lágrimas brilharam em seus olhos.

— Quem? — quis saber Pia.

— Todos eles. — Sartorius fez um gesto desamparado com a mão. — Vestiam máscaras e traziam tacos de baseball. Quando eu... Quando eu encontrei Tobias no celeiro... Pen... Pensei logo que ele... Que ele estivesse morto.

Mordeu os lábios e abaixou o olhar.

— Por que o senhor não chamou a polícia?

— Não adianta nada. Não vão parar. — O homem balançou a cabeça com um misto de resignação e desespero. — O Tobias está se esforçando para, de alguma forma, reerguer o sítio e torce para encontrarmos um comprador.

— Senhor Sartorius. — Pia continuava segurando a carta de ameaça. — Conheço os autos sobre o caso do seu filho. E me chamaram a atenção algumas incongruências. Na verdade, me admira que o advogado de Tobias na época não tenha recorrido.

— Ele quis recorrer, mas o tribunal recusou o recurso. Os indícios, os depoimentos das testemunhas, tudo era claro. — Sartorius passou a mão no rosto. Tudo nele irradiava desânimo.

— Mas agora o corpo de Laura foi encontrado — insistiu Pia. — E me pergunto como seu filho teria conseguido, em menos de 45 minutos, tirar o corpo da moça de dentro de casa, colocá-lo no porta-malas do carro, levá-lo para o terreno fechado de um antigo aeródromo militar em Eschborn e jogá-lo em um velho tanque subterrâneo.

Hartmut Sartorius levantou a cabeça e olhou para ela. Em seus olhos azuis e turvos ardeu uma ínfima centelha de esperança, que, no entanto, logo se apagou.

— De nada adianta. Não há provas novas. E mesmo que houvesse, para as pessoas daqui, ele é e sempre será um assassino.

— Talvez seu filho devesse sair de Altenhain por uns tempos — aconselhou Pia. — Pelo menos até a moça ser enterrada, quando os ânimos, de certo modo, já estarão apaziguados.

— E para onde ele vai? Não temos dinheiro. Tão cedo o Tobias não vai conseguir trabalho. Quem é que vai empregar um ex-presidiário, ainda que tenha terminado uma faculdade?

— Ele poderia, provisoriamente, se mudar para a casa da mãe — sugeriu Pia, mas Hartmut Sartorius apenas abanou a cabeça.

— O Tobias tem 30 anos — disse. — É gentil de sua parte, mas não posso mandar na vida dele.

 

— Acabei de ter um déjà-vu ao ver vocês dois no banco. — Nadja balançou a cabeça. Tobias voltara a se sentar e tocava cuidadosamente o nariz. A lembrança do medo de morrer que sentira na noite anterior pairava como uma triste sombra sobre o dia ensolarado. Quando os homens finalmente pararam de espancá-lo e desapareceram, ele já não esperava sobreviver. Não fosse um deles voltar para tirar o trapo da sua boca, ele teria morrido sufocado com a mordaça. Eles realmente não estavam brincando. Tobias sentiu um calafrio ao pensar em quanto estivera perto da morte. Embora os ferimentos doessem e tivessem uma aparência dramática, ele não corria risco de vida. Na noite anterior, seu pai ainda ligara para a doutora Lauterbach e ela viera de imediato para tratá-lo. Ela costurou o corte em sua sobrancelha e lhe deixou comprimidos para a dor. Ela não parecia ter guardado rancor de Tobias por ele ter envolvido seu marido no processo, na época.

— Você não acha? — a voz de Nadja penetrou sua consciência.

— O quê? — perguntou ele. Ela estava muito bonita e preocupada. Na verdade, deveria estar filmando em Hamburgo, mas, pelo visto, ele era mais importante para ela. Devia ter saído logo que recebera sua ligação. Isso mostrava que ela era uma amiga de verdade!

— Que a garota é muito parecida com a Stefanie. Incrível! — disse Nadja, e pegou sua mão. Ela o acariciou com a base do polegar, um toque afetuoso, que, em outras circunstâncias, talvez lhe tivesse agradado. Mas, naquele momento, o incomodava.

—É, incrível a Amelie é mesmo — respondeu ele pensativo. — Incrivelmente corajosa e destemida.

Ele pensou em como ela havia suportado o ataque no sítio. Qualquer outra garota teria se debulhado em lágrimas, corrido para casa ou para a polícia, mas não Amelie. O que será que ela queria lhe contar? O que Thies dissera a ela?

— Gosta dela? — quis saber Nadja. Se ele não estivesse tão pensativo, talvez tivesse dado outra resposta, mais diplomática.

— Sim — respondeu. — Gosto dela. Ela é tão... Diferente.

— Diferente de quem? De mim?

Então Tobias olhou para ela. Encontrou seu olhar consternado, quis sorrir, mas o sorriso transformou-se em uma careta.

— Diferente das pessoas daqui, foi o que eu quis dizer. — Apertou a mão dela. — Amelie mal tem 17 anos. Ela é como uma irmã mais nova.

— Bom, nesse caso, cuidado para não virar a cabeça da irmãzinha com seus olhos azuis. — Nadja tirou sua mão da dele e cruzou as pernas. Olhou para ele com a cabeça enviesada. — Acho que você não faz a menor ideia do efeito que causa nas mulheres, não é?

Suas palavras o fizeram se lembrar de antes. Como é que antigamente ele não notava que nas observações críticas de Nadja sobre as outras garotas sempre estava escondida uma centelha de ciúme?

— Ah, qual é? — disse ele e fez um gesto de desdém. —Amelie trabalha no Corcel Negro e andou ouvindo umas coisas por lá. Além do mais, reconheceu Manfred Wagner na foto de captura. Foi ele que jogou minha mãe da passarela.

— Como é que é?

— Pois é. E ela também acha que foram o Pietsch, o Richter e o Dombrowski que me espancaram ontem à noite. Ao contrário do habitual, ontem eles chegaram tarde para a rodada de skat.

Nadja o fitou incrédula.

— Você não pode estar falando sério!

— Estou sim. Além disso, Amelie está absolutamente convencida de que, na época, alguém viu alguma coisa que pode me inocentar. Justamente quando você chegou, ela queria me falar alguma coisa do Thies, do Lauterbach e de uns desenhos.

— Isso seria... Isso... Isso seria monstruoso! — Nadja levantou-se de um salto e deu alguns passos até seu carro. Virou-se e viu Tobias furioso. — Mas por que essa pessoa nunca disse nada?

— Pois é o que eu gostaria de saber. — Tobias recostou-se e esticou cuidadosamente as pernas. Qualquer movimento do seu corpo maltratado doía, apesar dos comprimidos. — De todo modo, Amelie deve ter deparado com alguma coisa. A Stefanie havia me contado na época que tinha um caso com o Lauterbach. Você se lembra dele, não se lembra?

— Claro. — Nadja afirmou com veemência e o fitou.

— No começo pensei que ela só estivesse dizendo aquilo para se fazer de importante, mas depois vi os dois atrás da barraca, na quermesse. Foi por isso que fui correndo para casa. Fiquei... — ele se interrompeu, buscou as palavras certas para descrever o sentimento de revolta que nele se alastrara na época. Nem uma folha de papel separava os dois, de tão próximos que estavam, e Lauterbach estava com a mão na bunda dela. O súbito reconhecimento de que Stefanie andava com outros homens o arrastara como um redemoinho para dentro de um buraco profundo.

— ...Com raiva — completou Nadja logo em seguida.

— Não.— contestou Tobias. — Na hora, não fiquei com raiva. Fiquei... Magoado e triste. Eu amava a Stefanie de verdade!

— Imagine se essa história vem à tona. — Nadja riu baixinho e com um pouco de malícia. — Que tipo de manchete você acha que isso não renderia: um pedófilo como Secretário Estadual de Educação e Cultura?

— Você acha, então, que eles tinham mesmo um relacionamento?

Nadja parou de rir. Em seus olhos havia uma expressão estranha, que ele não conseguiu interpretar. Ela deu de ombros.

— Em todo caso, acho que ele seria capaz disso. Ele ficava feito louco atrás da sua Branca de Neve, chegou a dar a ela o papel principal, embora ela não tivesse talento algum! Bastava ela aparecer na esquina para ele perder o fôlego.

De repente, já estavam falando do tema que até então haviam evitado com tanto cuidado. Na época, Tobias não se espantara com o fato de Stefanie ter recebido o papel principal no conto de fadas encenado pelo grupo de teatro. Só pela aparência ela era a intérprete ideal para fazer a Branca de Neve. Ele se lembrava muito bem da noite em que reparara nela pela primeira vez. Stefanie tinha entrado em seu carro; estava com um vestido branco de verão, batom vermelho, os cabelos pretos voando ao vento. Branca como a neve, vermelha como o sangue, negra como o ébano — ela mesma dissera e rira. Para onde tinham ido naquela noite? Nesse segundo, teve um estalo. A lembrança, que havia dias assombrava sua mente, tinha voltado! ... vocês se lembram quando minha irmã surrupiou o molho de chaves que meu velho tinha do aeródromo e a gente apostou corrida de carro no antigo hangar? Foi o que Jörg dissera na quinta-feira à noite, na garagem. Claro que ele conseguia se lembrar! Naquela noite, eles também tinham ido para lá, e Stefanie insistira para irem embora logo, a fim de ficarem sozinhos no carro. Manfred Richter, pai de Jörg, era funcionário da central de telecomunicações, e nos anos 1970 e 1980 tinha trabalhado no terreno do antigo aeródromo militar! Quando crianças, Jörg, ele e os outros às vezes podiam acompanhá-lo e brincar no terreno baldio enquanto ele se ocupava de alguma coisa. Mais tarde, quando já estavam crescidos, organizavam clandestinamente corridas de carros e festas no local. E agora o esqueleto da Laura era encontrado justamente ali. Será que isso podia ser uma coincidência?

 

Como se tivesse brotado do chão, lá estava ele na sua frente, bem quando ela se virou mais uma vez para dar uma última olhada em Tobias e naquela perua loura com carro de luxo.

—Nossa, Thies! — gaguejou ela assustada e enxugando as lágrimas furtivas. — Você precisa me assustar desse jeito, droga?

Às vezes ela achava sinistro o modo silencioso como Thies conseguia aparecer e desaparecer. Só então percebeu que ele parecia doente. Seus olhos estavam fundos e brilhavam febrilmente. Seu corpo inteiro tremia, e ele mantinha os braços firmemente enlaçados ao tronco. De repente ela pensou que ele realmente parecia um louco. E logo se envergonhou por isso.

— O que você tem? Não está passando bem? — perguntou ela.

Ele não reagiu, olhou nervoso ao seu redor. Sua respiração era rápida e intermitente, como se ele tivesse corrido. Subitamente, soltou os braços do tronco e, para grande espanto de Amelie, pegou sua mão. Isso ele nunca tinha feito. Ela sabia que ele rejeitava o contato físico.

— Não consegui proteger a Branca de Neve — disse ele com voz rouca e tensa. — Mas de você vou cuidar melhor.

Seus olhos moviam-se inquietos de um lado para o outro, e volta e meia ele olhava para cima, onde ficava a borda da floresta, como se dessa direção esperasse algum perigo. Amelie estremeceu. De uma só vez, as peças do quebra-cabeça estavam se juntando como que sozinhas em sua mente.

— Você viu o que aconteceu, não viu? — cochichou ela. Thies virou-se abruptamente e puxou-a, ainda segurando firmemente sua mão. Amelie caminhou tropeçando atrás dele, passando por um buraco lamacento e um matagal fechado. Quando chegaram à floresta protetora, Thies desacelerou um pouco o ritmo; não obstante, ainda era muito rápido para Amelie, que fumava demais e praticava esporte de menos. Com força, ele segurou sua mão; quando ela tropeçou e caiu, ele logo a levantou. Estavam em uma subida. Galhos secos estalavam sob seus pés, pegas gralhavam nos cumes dos pinheiros. De repente, ele parou. Amelie olhou ofegante ao redor e, através das árvores, reconheceu, um pouco mais abaixo da encosta, as telhas avermelhadas da mansão dos Terlindens. O suor escorria em seu rosto; ela tossiu. Por que Thies havia dado toda aquela volta ao redor do terreno? O caminho que atravessava o parque teria sido bem menos árduo. Ele soltou sua mão e se dirigiu a um pequeno portão enferrujado, que se abriu com um rangido contrariado. Amelie o seguiu, passando pelo portão, e viu que estavam bem atrás da estufa. Thies quis pegar novamente sua mão, mas ela não deixou.

— Por que você corre feito um louco por aí? — Ela tentou reprimir o incômodo que repentinamente a acometeu, mas havia alguma coisa muito errada com Thies. A tranquilidade quase letárgica que ele costumava mostrar tinha desaparecido, e quando ele olhou para ela diretamente e sem desviar o olhar, a expressão em seus olhos a assustou.

— Se você não contar para ninguém — disse ele em voz baixa —, então mostro a você meu segredo. Venha!

Ele abriu a porta da estufa com a chave que estava embaixo do capacho. Ela pensou rapidamente se não seria melhor simplesmente sair correndo. Mas Thies era seu amigo, confiava nela. Então ela decidiu também confiar nele, e o seguiu no recinto, que ela conhecia bem. Ele fechou cuidadosamente a porta por dentro e olhou para ela.

— Você pode me dizer o que você tem? — perguntou Amelie. — Aconteceu alguma coisa?

Thies não respondeu. No fundo da imensa estufa, afastou um vaso grande de palmeira e encostou na parede a tábua em cima da qual ele estava. Curiosa, Amelie se aproximou e viu surpresa um alçapão embutido no chão. Thies abriu a tampa e virou-se para Amelie.

— Venha — exortou-a.

Amelie pisou na escada de ferro estreita, íngreme e enferrujada que descia na escuridão. Thies fechou o alçapão em cima de si. Segundos depois, a luz fraca de uma lâmpada flamejava. Ele passou bem rente a ela e abriu uma porta de ferro maciço. Um bafo seco e quente veio de encontro a eles, e Amelie ficou muito espantada ao entrar no grande porão. Carpete claro, paredes pintadas com uma alegre cor laranja. Uma estante grande e cheia de livros, de um lado, e um sofá que parecia confortável, de outro. Metade do recinto, ao fundo, era separada por uma espécie de biombo. Amelie sentiu o coração bater na garganta. Thies nunca lhe dera a entender que queria alguma coisa com ela, e mesmo naquele momento ela não acreditava que ele iria atacá-la e violentá-la. Além disso, em caso de emergência, com alguns passos ela chegaria à escada e ao jardim.

— Venha — disse Thies novamente. Ele empurrou o biombo para o lado, e Amelie viu uma cama antiga, com uma cabeceira alta de madeira. Na parede estavam penduradas fotografias, rigorosamente ordenadas, como era o costume de Thies.

— Venha. Já falei muito de você para a Branca de Neve.

Ela se aproximou e ficou sem fôlego. Com um misto de horror e fascinação, olhou para o rosto da múmia.

 

— O que você tem? — Nadja se acocorou à frente dele, colocou cuidadosamente as mãos em suas coxas, mas ele as retirou com impaciência e se levantou. Mancou por alguns metros, depois parou. A suspeita era monstruosa!

— O corpo da Laura estava em um tanque subterrâneo no terreno do antigo aeródromo militar, em Eschborn — disse Tobias com voz rouca. — Você certamente se lembra de que antigamente nós costumávamos fazer festas ali. O pai do Jörg ainda tinha a chave do portão.

— O que você está querendo dizer? — Nadja o seguiu e olhou para ele sem compreender.

— Não fui eu que joguei o corpo da Laura no tanque — respondeu Tobias asperamente e cerrou os dentes com tanta força que eles rangeram. — Droga, droga, droga. — Cerrou os punhos. — Quero saber o que realmente aconteceu! Meus pais ficaram arruinados, eu passei dez anos na cadeia e depois o pai da Laura ainda ataca a minha mãe! Não aguento mais tudo isso! — gritou ele, enquanto Nadja ficou muda à sua frente.

— Venha comigo, Tobi. Por favor.

— Não! — exclamou ele com rudeza. — Será que você não entende? É justamente isso o que eles querem, aqueles filhos da puta!

— Ontem eles o espancaram. E se voltarem para terminar o serviço?

— Me matar, você quer dizer? — Tobias olhou para Nadja. O lábio inferior dela tremia levemente, seus grandes olhos verdes nadavam em lágrimas. Nadja realmente não merecia que ele gritasse com ela, que fora a única a ficar o tempo todo a seu lado. Sim, ela até o teria visitado na prisão, mas ele não quisera. De repente, sua raiva se dissipou, e a única coisa que ele ainda sentia era a consciência pesada.

— Me desculpe, por favor — disse ele em voz baixa e estendeu os braços para ela. — Não queria ter gritado com você. Venha cá.

Ela se encostou nele, aninhou sua cabeça em seu peito, e ele a abraçou com força.

— Talvez você tenha razão — sussurrou por entre seus cabelos. — Seja como for, não dá para voltar no tempo.

Ela levantou a cabeça e olhou para ele. Havia uma profunda preocupação em seus olhos.

— Temo por você, Tobi. — Sua voz estremeceu levemente. — Não quero perdê-lo de novo, justo agora em que finalmente tenho você de volta.

Tobias contraiu o rosto. Fechou os olhos e encostou sua face na dela. Se pelo menos ele soubesse se o relacionamento com ela daria certo! Não queria se decepcionar novamente. Era melhor ficar sozinho pelo resto da vida.

 

Manfred Wagner estava sentado, todo acabrunhado, à mesa na sala de interrogatório e fez um esforço para levantar a cabeça quando Pia e Bodenstein entraram. Com seus olhos injetados e marejados de alcoólatra, olhou para eles.

— O senhor cometeu vários crimes graves — começou Bodenstein com seriedade, depois de ligar o gravador e dar as informações necessárias para a ata. — Lesão corporal, perturbação perigosa do trânsito e, dependendo de como o promotor público julgar, homicídio involuntário ou até homicídio culposo.

Manfred Wagner ficou um pouco mais pálido. Seu olhar passava de Pia a Bodenstein. Engoliu em seco.

— Mas... Mas... A Rita ainda está viva — balbuciou.

— É verdade — confirmou Bodenstein. — Mas o homem que dirigia o carro em cujo para-brisa ela caiu morreu de infarto ainda no local do acidente. Para não falar dos danos nos automóveis que foram envolvidos no acidente. Essa questão vai lhe trazer consequências graves, e não foi bom o senhor não ter procurado a polícia.

— Eu ia procurar — garantiu Wagner com voz chorosa. — Mas... Mas todos eles me desaconselharam…

— Eles quem? — perguntou Pia. Toda compaixão pelo homem tinha se extinguido nela. Ele sofrera uma triste perda, mas isso não justificava seu ataque à mãe de Tobias.

Wagner deu de ombros e não olhou para ela.

— Todos eles — respondeu de maneira tão vaga quanto Hartmut Sartorius poucas horas antes, quando Pia lhe perguntara quem estaria por trás das cartas anônimas de ameaça e ao ataque a seu filho.

— Sei. E o senhor sempre faz o que todos eles dizem? — A pergunta soou mais áspera do que o planejado, mas estava fazendo efeito.

— A senhora não faz ideia! — enfureceu-se Wagner. — A minha Laura era muito especial. Ela ia ser alguém na vida. E era tão linda! Às vezes eu mal podia acreditar que fosse realmente minha filha. E aí acabou morrendo. Simplesmente foi jogada fora, como uma porção de lixo. Éramos uma família feliz, tínhamos acabado de construir na nova zona industrial, e minha marcenaria estava indo bem. Na cidade tínhamos uma boa comunidade, todo mundo era amigo de todo mundo. E depois... a Laura e a amiga dela desapareceram. O Tobias matou as duas, aquele assassino frio! Implorei para ele me dizer por que a tinha matado e o que havia feito com o corpo. Mas ele nunca disse.

Ele se curvou e começou a soluçar sem parar. Bodenstein quis desligar o gravador, mas Pia o impediu. Será que Wagner estava realmente chorando pela filha morta ou por pura autopiedade?

— Pare com esse teatro — disse ela.

A cabeça de Manfred Wagner se levantou. Ele a fitou tão perplexo como se ela lhe tivesse dado um chute no traseiro.

— Perdi minha filha — começou ele com voz trêmula.

— Disso eu sei — cortou-lhe Pia. — E por isso tem toda a minha compaixão. Mas o senhor tem mais dois filhos e uma mulher, que precisam do senhor. Não chegou a pensar no que significaria para a sua família fazer mal a Rita Cramer?

Wagner permaneceu mudo, mas, de repente, seu rosto se contorceu.

— A senhora não faz ideia do quanto sofri nesses últimos onze anos! — gritou enfurecido.

— Mas sei o que a sua mulher sofreu — respondeu Pia friamente. — Ela não apenas perdeu uma filha, mas também o marido, que por pena de si mesmo passou as noites enchendo a cara e a deixou totalmente sozinha! Sua mulher está lutando para sobreviver. E o que o senhor faz?

Os olhos de Wagner começaram a faiscar. Aparentemente, Pia tinha tocado em seu ponto fraco.

— E que diabos a senhora tem a ver com isso?

— Quem o aconselhou a não procurar a polícia?

— Meus amigos.

— Por acaso foram os mesmos amigos que assistiam, sem fazer nada, o senhor encher a cara todas as noites no Corcel Negro e colocar sua vida em jogo?

Wagner abriu a boca para rebater, mas nada disse. Seu olhar hostil ficou inseguro e deslizou para Bodenstein.

— Não vou permitir que me ofendam aqui. — Sua voz oscilou. — Sem um advogado, não digo nem uma palavra mais.

Ele cruzou os braços e apertou o queixo contra o peito, como uma criança birrenta. Pia olhou para seu chefe e levantou as sobrancelhas. Bodenstein apertou a tecla “stop” do gravador.

— O senhor pode ir para casa — disse ele.

— Não estou... Não estou... Preso? — grasnou Wagner, surpreso.

— Não. — Bodenstein se levantou. — Sabemos onde podemos encontrá-lo. O promotor público irá prestar queixa contra o senhor. De todo modo, o senhor irá precisar de um advogado.

Ele abriu a porta; Wagner passou por ele cambaleando, acompanhado pelo funcionário que estava presente na sala durante o interrogatório. Bodenstein seguiu-o com o olhar.

— Daria quase para sentir pena dele nesse estado lastimável — disse Pia a seu lado. — Mas só quase.

— Por que você foi tão dura com ele? — quis saber Bodenstein.

— Porque tenho a sensação de que há muito mais por trás dessa história do que estamos conseguindo ver no momento — respondeu Pia. — Está acontecendo alguma coisa naquele vilarejo. E não é de agora. Disso eu tenho absoluta certeza.

Domingo, 16 de novembro de 2008

Bodenstein não estava a fim de outra comemoração familiar, mas como desta vez seria para poucas pessoas e em sua própria casa, aceitou seu destino e ofereceu o sommelier. Lorenz estava fazendo 25 anos; na noite anterior, tinha comemorado com seu imenso círculo de amigos em uma casa noturna, cujo dono ele conhecia desde seus tempos de DJ, até as primeiras horas do dia, e na tarde de domingo queria passar seu aniversário com a família em um ambiente mais tranquilo. A mãe de Cosima viera de Bad Homburg, os pais de Bodenstein e Quentin com suas três filhas — Marie-Louise era indispensável no restaurante do castelo —, bem como a veterinária Inka Hansen, mãe de Thordis, namorada de Lorenz, completavam os lugares ao redor da mesa da sala de jantar, caprichosamente decorada em branco e com motivos outonais. O maître St. Clair cedera sua melhor funcionária para o dia; assim, Rosalie trabalhava desde cedo na cozinha, que ela declarara zona proibida, quase à beira de um ataque de nervos. O resultado foi fantástico. O fígado de ganso frito com creme de amêndoas e limão foi seguido por uma sopa cremosa de agrião com crustáceos marinados e ovo de codorna. Como prato principal, Rosalie havia, por fim, se superado: nem mesmo seu chefe teria feito melhor o lombo de corço com ervilhas, os canelones crocantes recheados e o purê de cenoura com gengibre. Os convidados aplaudiram entusiasmados a chefe de cozinha, e Bodenstein abraçou a filha mais velha, que estava totalmente exausta por conta do trabalho e do peso da responsabilidade.

— Acho que vamos ficar com você — brincou e beijou-a na cabeça. — Estava realmente excelente, filha.

— Obrigada, pai — respondeu ela, cansada. — Agora preciso de uma aguardente!

— Para comemorar o dia, você vai ganhar uma — sorriu ele. — Quem quer mais uma...

— Preferimos champanhe — interveio Lorenz e piscou para a irmã. Ela se lembrou do combinado e voltou como um raio para a cozinha, seguida por Lorenz e Thordis. Bodenstein sentou-se e trocou um olhar com Cosima. Ele passara a manhã toda a observá-la discretamente. Por volta das dez horas, Rosalie os acompanhara até a saída de casa, e eles foram até o Taunus, para aproveitar o veranico surpreendentemente ameno e dar uma volta no bosque Glaskopf. Cosima comportara-se de modo totalmente normal, tal como estava habituada, e, durante o passeio, até pegara em sua mão. A suspeita de Bodenstein estava cada vez mais vacilante; mesmo assim, ele não se atreveu a falar com ela sobre o assunto.

Rosalie, Lorenz e Thordis voltaram para a sala de jantar. Em uma bandeja, equilibravam taças cheias de champanhe, que serviram aos convidados e até às três sobrinhas adolescentes, que deram risadinhas animadas. Na ausência da rigorosa mãe, Quentin fechou os olhos.

— Querida família — Lorenz tomou a palavra solenemente. — Thordis e eu queríamos aproveitar a presença de todos para comunicar que vamos nos casar!

Ele colocou o braço sobre o ombro de Thordis, e ambos sorriram satisfeitos um para o outro.

— Não se preocupe, pai — virou-se Lorenz sorrindo para o pai. — Não precisamos nos casar; simplesmente é o que queremos!

— Escutem essa! — disse Quentin. Cadeiras recuaram, e todos se levantaram para cumprimentá-los. Bodenstein também abraçou o filho e a futura nora. Na verdade, o anúncio do casamento não o surpreendeu; só ficou admirado por Lorenz ter guardado esse segredo com tanta firmeza. Seu olhar encontrou o de Cosima, e ele foi até ela, que enxugou uma pequena lágrima de emoção no canto do olho.

— Está vendo só? — disse ela e sorriu. — Até nosso mais velho está ficando careta e vai se casar.

— Ele já nos deu trabalho suficiente com sua vida aventureira — respondeu Bodenstein. Depois de terminar o colégio, Lorenz passara um período, que parecera perigosamente longo, vivendo como DJ e fazendo todo tipo de bico no rádio e na televisão. Na época, Bodenstein queria ter feito valer sua autoridade, mas Cosima permanecera tranquila, firmemente convencida de que, um dia, Lorenz iria encontrar sua verdadeira vocação. Enquanto isso, seu filho trabalhou como moderador de um programa diário de três horas, em uma grande emissora de rádio. Paralelamente, para espanto de todos, ganhou muito dinheiro como animador em festas, eventos esportivos e cerimônias em toda a Alemanha.

Os convidados voltaram a se sentar; a atmosfera era de alegria e descontração. Até Rosalie deixara sua cozinha para beber champanhe.

— Oliver — a mãe de Bodenstein inclinou-se. — Pode me dar mais um pouco de água?

— Sim, claro. — Ele empurrou sua cadeira, levantou-se, passou pela cozinha, que sua competente filha já havia arrumado em grande parte, e foi até a dispensa, onde pegou duas garrafas de água mineral de uma caixa. Justamente nesse momento, um celular que estava em um casaco pendurado em um gancho ao lado da porta que dava para a garagem deu sinal de mensagem recebida. Bodenstein conhecia aquele toque. Era o celular de Cosima! Lutou consigo mesmo, mas, desta vez, sua desconfiança venceu. Rapidamente, colocou uma das garrafas debaixo do braço e, com uma mão, vasculhou os bolsos do casaco que ela havia usado naquele dia. Encontrou o celular no bolso interno, abriu-o e apertou a tecla com o símbolo de carta.

CORAÇÃO, PENSO EM VOCÊ O DIA INTEIRO! VAMOS ALMOÇAR AMANHÃ? MESMA HORA, MESMO LUGAR? EU ADORARIA!

As letras no display desvaneceram diante dos seus olhos, seus joelhos fraquejaram. A decepção golpeou-o no estômago como um soco. Como ela podia fingir daquele jeito, sorrir para ele e caminhar com ele no Glaskopf de mãos dadas? Cosima iria perceber que alguém tinha lido o SMS, pois o símbolo da carta já se tinha apagado. Ele quase chegou a desejar que ela lhe falasse a respeito. Colocou o celular de volta no casaco, esperou até seu coração voltar a bater em uma frequência normal e voltou para a sala de jantar. Cosima estava sentada com Sophia no colo, ria e brincava, como se tudo estivesse na mais perfeita ordem. Bem que ele sentiu vontade de lhe pedir explicações na frente de todos os presentes, dizer que havia uma mensagem de seu amante no celular, mas então seu olhar caiu em Lorenz, Thordis e Rosalie. Seria egoísta e irresponsável estragar aquele belo dia com sua suspeita há muito não comprovada. Nada mais lhe restava a não ser fazer das tripas coração.

 

Tobias esforçou-se para abrir os olhos e gemeu. Mal ele se mexia, e sua cabeça retumbava; começou a sentir-se mal novamente. Inclinou-se sobre a beira da cama, sentiu ânsia e vomitou no balde que alguém havia colocado ao lado. O vômito tinha um forte cheiro de bile. Voltou a se deitar e passou a mão na boca. Sua língua estava áspera, e o carrossel em sua cabeça simplesmente não queria parar. O que tinha acontecido? Como ele tinha chegado em casa? Imagens corriam por seu cérebro perturbado. Ele se lembrava de Jörg e Felix e outros velhos amigos, na garagem, da vodca misturada com Red Bull. Algumas garotas também estavam lá. Volta e meia, sem disfarçar, lançavam olhares discretos para ele, cochichando e rindo entre si. Ele se sentia como um animal no zoológico. Quando tinha sido isso? Que horas eram agora?

Com muito esforço, conseguiu se levantar e pôr as pernas para fora da cama. O quarto oscilava diante dos seus olhos. Amelie também tinha estado lá — ou ele estaria fazendo confusão? Tobias pôs-se de pé, apoiou-se no teto inclinado e cambaleou até a porta, abriu-a e foi tateando pelo corredor. Ressaca ruim como aquela ele nunca tinha tido! No banheiro, teve de se sentar para urinar, do contrário, teria caído. Sua camiseta fedia a cigarro, suor e vômito. Horrível. Levantou-se da privada e assustou-se ao ver seu rosto no espelho. Os hematomas ao redor dos olhos tinham descido e formavam manchas roxo-amareladas em suas bochechas pálidas e com barba por fazer. Ele estava parecendo um zumbi, e era assim mesmo que também se sentia. Passos no corredor, uma batida à porta.

— Tobias? — era seu pai.

— Sim, pode entrar. — Abriu a torneira, deixou a água fria correr no côncavo de suas mãos e bebeu alguns goles. Tinha um gosto horrível. A porta se abriu. Seu pai examinou-o preocupado.

— Como você está?

Tobias voltou a se sentar na privada.

— Uma merda. — Foi necessário um esforço infinito para levantar a cabeça pesada como chumbo. Esforçou-se para olhar o pai, mas seu olhar sempre acabava se desviando. Primeiro, tudo ficava tão perto, depois, muito longe. — Que horas são?

— Três e meia. Domingo à tarde.

— Ai, meu Deus. — Tobias coçou a cabeça. — Realmente, não posso beber mais nada.

A lembrança estava voltando, ao menos em parte: Nadja estivera com ele, lá em cima, na orla da floresta. Eles conversaram. Depois, deixara-o em casa, porque tinha de ir rápido para o aeroporto. Mas o que ele fizera em seguida? Jörg. Felix. A garagem. Muita bebida. Muitas garotas. Ele não tinha se sentido bem. Por que não? Aliás, por que tinha ido até lá?

— O pai da Amelie Fröhlich acabou de ligar — disse, então, seu pai. Amelie! Ele também se lembrava de alguma coisa com ela. Ah, sim! Ela queria lhe contar algo importante, mas então Nadja apareceu, e a Amelie saiu correndo.

— Ontem à noite ela não voltou para casa. — O tom aflito na voz de seu pai fez com que ele prestasse atenção. — Os pais dela estão preocupados e querem informar a polícia.

Tobias fitou o pai. Precisou de um momento até entender. Amelie não tinha voltado para casa. E ele tinha bebido muito. Exatamente como antes. Seu coração se contraiu.

— Você... Você não está achando que tenho alguma... — ele se interrompeu e engoliu em seco.

— A doutora Lauterbach encontrou você ontem à noite no ponto de ônibus na frente da igreja, quando estava voltando de um atendimento de emergência. Era uma e meia. Foi ela que trouxe você para casa. Não foi fácil tirar você do carro e levá-lo para o seu quarto. E você não parava de falar na Amelie...

Tobias fechou os olhos e escondeu o rosto nas mãos. Desesperado, tentou se lembrar. Mas não encontrou nada. Os amigos na garagem, as garotas rindo e cochichando. Será que Amelie estava junto? Não. Ou sim? Não. Por favor, não. Por favor, por favor, não.

 

Segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A K11 inteira estava reunida ao redor da grande mesa na sala de reuniões; exceto Hasse, todos estavam presentes, até mesmo Behnke, que estava com uma cara ainda mais mal-humorada do que de costume.

— Desculpe — disse Pia, e se dirigiu à ultima cadeira livre. Ela tirou o casaco. Nicola Engel deu uma olhada explícita em seu relógio de pulso.

— São oito e vinte — notou asperamente. — Não estamos em um episódio dos Rosenheim-Cops .Daqui para a frente, organize seu trabalho no seu sítio de modo que não coincida com seus horários de serviço!

Pia sentiu o calor subir-lhe ao rosto. Que mulher cretina!

— Eu estava na farmácia comprando um remédio para o resfriado — respondeu ela com a mesma aspereza. — Ou a senhora preferiria que eu pedisse dispensa por motivo de saúde?

As duas mulheres se encararam por um momento.

— Bom, agora estão todos presentes — disse a superintendente da Polícia Criminal, sem pedir desculpas por sua acusação injusta. — Temos uma moça desaparecida. Os colegas de Eschborn nos informaram a respeito hoje de manhã.

O olhar de Pia passou pelo grupo. Behnke estava sentado com as pernas abertas em sua cadeira e mascava energicamente seu chiclete. Volta e meia olhava com ar provocador para Kathrin, que respondia a seus olhares com os lábios apertados de maneira hostil. Pia se lembrou de que, na semana anterior, por iniciativa da doutora Engel, Bodenstein tivera uma conversa com Behnke. Qual teria sido o resultado? De todo modo, Behnke parecia saber que Kathrin tinha comunicado ao chefe que o vira no bar em Sachsenhausen. A tensão entre ambos não passou despercebida. Bodenstein estava sentado à cabeceira da mesa e olhava fixamente para o tampo. Seu rosto era inexpressivo, mas as olheiras e a ruga profunda entre suas sobrancelhas denunciavam que alguma coisa não ia bem com ele. Ostermann também pareceu aborrecido, o que não era comum. Estava sentado entre ambos. Behnke era um velho amigo. Ostermann sempre o protegera e remediara seus erros, mas ultimamente andava aborrecido porque seu colega estava abusando cada vez mais de sua solicitude. Com Kathrin Fachinger, Ostermann se entendia bem — de que lado estaria ele?

— O caso em Wallau foi esclarecido? — perguntou Nicola Engel. Pia precisou de um momento para compreender que a pergunta se dirigia a ela.

— Sim — respondeu, e contraiu o rosto ao se lembrar da grande operação realizada pela Polícia Científica e pelos médicos-legistas no local do crime. — Embora houvesse dois corpos, já não podíamos fazer quase nada com eles.

— Por quê?

— Havia dois leitões assados a serem entregues em uma festa — esclareceu Pia. — O veículo queimou totalmente no acidente, porque o cara do serviço da festa havia colocado alguns bujões de gás butano no compartimento de carga, que explodiram com o calor.

A doutora Engel não esboçou reação.

— Tanto melhor. E o caso Rita Cramer é assunto do promotor público. — Ela se voltou para Bodenstein. — Então o senhor se encarrega da moça que desapareceu. Provavelmente ela vai acabar aparecendo. Noventa e oito por cento dos casos de jovens desaparecidos se esclarecem em poucas horas ou poucos dias.

Bodenstein pigarreou.

— Mas dois por cento, não.

— Converse com os pais e amigos da moça — aconselhou a doutora Engel. — Agora tenho um compromisso na Polícia Criminal Federal. Mantenha-me informada.

Ela se levantou, despediu-se com um aceno da cabeça e foi embora.

— Qual é o caso? — perguntou Bodenstein a Ostermann, depois que ela fechou a porta atrás de si.

— Amelie Fröhlich, 17 anos, de Bad Soden — respondeu. — Seus pais notificaram ontem seu desaparecimento. Ela foi vista pela última vez por eles no sábado à tarde. Como no passado ela já havia sumido de casa várias vezes, eles ainda esperaram um pouco.

— Muito bem. — Bodenstein confirmou com a cabeça. — Pia e eu vamos até os pais da garota. Frank, você e a senhora Fachinger vão...

— Não — Kathrin interrompeu seu chefe, que olhou surpreso para ela. — Com Behnke eu não vou a lugar nenhum.

— Eu poderia ir com o Frank — ofereceu Ostermann apressadamente. Por um momento, fez-se completo silêncio. Behnke continuou mascando seu chiclete e sorriu satisfeito.

— Agora também vou ter de levar em conta os caprichos de cada um? — perguntou Bodenstein. A ruga entre suas sobrancelhas aprofundou-se, ele parecia realmente irritado, o que raramente acontecia. Kathrin, obstinada, fez bico. Era uma recusa clara de trabalho.

— Preste atenção, pessoal. — A voz de Bodenstein soou perigosamente tranquila. — Estou pouco me lixando para saber quem aqui está tendo algum problema com quem. Temos trabalho, e espero que vocês sigam minhas instruções. Talvez no passado eu tenha sido um pouco benevolente demais, mas não sou nenhum palhaço! A senhora Fachinger e o senhor Behnke vão agora à escola da garota para falar com os professores e colegas de classe. Quando terminarem, interroguem os vizinhos dela. Fui claro?

Um silêncio renitente foi a resposta. De repente, Bodenstein fez algo que nunca fizera antes. Deu um soco na mesa.

— FUI CLARO? — gritou.

— Sim — respondeu Kathrin Fachinger, impassível. Ela se levantou, pegou seu casaco e sua bolsa. Behnke também se levantou. Ambos saíram, e Ostermann também se retirou para sua sala.

Bodenstein respirou fundo e olhou para Pia.

— Caramba! — Soltou o ar e deu um sorriso torto. — Fez efeito.

 

— Altenhain? — perguntou Pia, surpresa. — Ostermann tinha falado alguma coisa de Bad Soden.

— Waldstraße 22. — Bodenstein apontou o sistema de navegação da sua BMW, no qual ele costumava confiar cegamente, embora, no passado, já tivesse sido enganado por ele algumas vezes. — Fica em Altenhain. Pertence a Bad Soden.

Pia teve um triste pressentimento. Altenhain. Tobias Sartorius. Ela nunca iria admitir, mas sentia certa simpatia pelo jovem. E agora, outra garota tinha desaparecido. Ela só podia torcer para que ele nada tivesse a ver com isso. Todavia, não duvidou nem por um segundo de que os habitantes do vilarejo iriam julgá-lo, independentemente de ele ter um álibi ou não. Seu mau pressentimento se intensificou quando chegaram ao endereço indicado de Arne e Barbara Fröhlich. A casa ficava apenas a poucos metros da saída dos fundos do sítio dos Sartorius. Pararam na frente do belo casarão revestido de clínquer, com telhado de quatro águas bem alto e várias claraboias. Os pais já estavam esperando por eles. Apesar do sobrenome, Arne Fröhlich era um homem de expressão séria, de cerca de 45 anos, com uma calvície incipiente, cabelos finos castanho-claros, e óculos em armação de aço. Seu rosto sobressaía-se por não apresentar nenhuma característica marcante. Não era gordo nem magro, nem alto nem baixo, e parecia tão mediano que, novamente, era incomum. Sua mulher tinha, no máximo, 30 anos, e era exatamente o oposto dele, ou seja, muito atraente. Cabelos alourados e brilhantes, olhos expressivos, traços regulares, boca carnuda e nariz levemente arrebitado. O que ela via no marido?

Ambos estavam preocupados, mas muito controlados, sem os traços de histeria que geralmente revelam os pais de crianças desaparecidas. Barbara Fröhlich deu uma foto a Pia. Amelie também era uma figura bem marcante, ainda que certamente não no sentido de sua mãe: os olhos grandes e escuros estavam realçados com lápis e delineador; ela usava vários piercings nas sobrancelhas, no lábio inferior e na covinha do queixo. Tinha alisado tanto os cabelos escuros e colocado tanto spray que eles pareciam uma tábua em cima da cabeça. Por baixo daquela máscara, Amelie era uma moça bonita.

— Ela já saiu de casa várias vezes — respondeu o pai quando Bodenstein perguntou por que dera parte do desaparecimento da filha relativamente tarde. — Amelie é minha filha do primeiro casamento e um pouco... Hum... Difícil. Há meio ano a trouxemos para cá; antes, ela vivia com minha ex-mulher, em Berlim, onde ela também teve muitos problemas com... a polícia.

— Em que sentido? — perguntou Bodenstein. A resposta incomodava visivelmente Arne Fröhlich.

— Roubo a lojas, drogas, invasão de domicílio e vagabundagem — enumerou. — Chegou a passar semanas sem aparecer. Uma hora, minha mulher ficou completamente exausta e me pediu para trazer Amelie para cá. Por isso, primeiro telefonamos para várias pessoas e esperamos.

— Mas então me ocorreu que ela não levou nenhuma roupa — completou Barbara Fröhlich. — Nem mesmo o dinheiro que ganhou no restaurante. Achei estranho. E ela também deixou a carteira de identidade aqui.

— Amelie tinha brigado com alguém? Havia algum problema na escola ou com os amigos? — Bodenstein fez as perguntas costumeiras.

— Não, muito pelo contrário — respondeu a madrasta. — Tive até a impressão de que nos últimos tempos ela havia mudado para melhor. Já não estava usando os cabelos tão arrepiados e pegou roupas minhas emprestadas. Geralmente ela usa apenas roupas pretas, mas, de repente, começou a vestir uma saia, uma blusa... — emudeceu ela.

— Será que por trás dessa mudança não há algum rapaz? — inquiriu Pia. — Ela pode ter conhecido alguém pela Internet e ter ido encontrá-lo.

Arne e Barbara Fröhlich trocaram um olhar desnorteado e deram de ombros.

— Demos muita liberdade a ela — disse, então, o pai. — Nos últimos tempos, Amelie também estava muito confiável. Meu chefe, o senhor Terlinden, havia arrumado para ela um emprego de garçonete no Corcel Negro, porque ela queria ganhar o próprio dinheiro.

— Problemas na escola?

— Ela não tem muitas amigas — respondeu Barbara Fröhlich. — É mais independente. Sobre a escola, não fala muito; começou a frequentá-la só em setembro. O único com quem ela costuma ter um contato regular é Thies Terlinden, filho do vizinho.

Por um momento, Arne Fröhlich apertou os lábios. Dava para notar que ele não aprovava essa amizade.

— O que quer dizer com isso? — interrompeu Pia. — Eles estão namorando?

— Não — Barbara Fröhlich balançou a cabeça. — O Thies é... bom... Ele é diferente. É autista, vive com os pais e cuida do jardim da casa deles.

A pedido de Bodenstein, Barbara Fröhlich conduziu-os ao quarto de Amelie. Era grande e agradável, com duas janelas, das quais uma dava para a rua. As paredes estavam nuas, não havia nenhum pôster de artista, que as moças na idade de Amelie gostam tanto de pendurar. Barbara Fröhlich explicou que Amelie se sentia apenas “de passagem” por ali.

— Assim que fizer 18 anos, no ano que vem, quer voltar imediatamente para Berlim —lamentou ela num tom sincero.

— Como é seu relacionamento com sua enteada? — Pia andou pelo quarto, abriu as gavetas da escrivaninha.

— Nos entendemos bem. Evito ao máximo dar ordens. Em vez de protestar, Amelie reage à severidade fechando-se em si mesma. Acho que, nesse meio-tempo, ela ganhou confiança em mim. Ela costuma ser malcriada com os meios-irmãos, mas os dois são muito apegados a ela. Quando não estou em casa, ela passa horas brincando de Playmobil com eles ou lendo alguma coisa para eles.

Pia fez que sim com a cabeça.

— Nossos colegas vêm buscar o computador — disse ela. — Por acaso ela faz algum diário?

Ela levantou o laptop e viu uma coisa que confirmou seus piores temores. Num bloco de papel sobre a mesa estava desenhado um coração. E, dentro dele, em letras cheias de arabescos, um nome: Tobias.

 

— Estou preocupada com o Thies — respondeu Christine Terlinden à pergunta irritada do marido sobre o que, afinal, era tão urgente para ela tê-lo tirado de sua reunião e tê-lo feito voltar para casa. — Ele está... Totalmente perturbado.

Claudius Terlinden abanou a cabeça e desceu as escadas até o porão. Ao abrir a porta do quarto de Thies, logo percebeu que, com a expressão “perturbado”, sua mulher tinha subestimado em muito a situação. Com o olhar fixo, Thies estava completamente nu, ajoelhado no chão, no meio do quarto, dentro de um meticuloso círculo feito de brinquedos, e dava contínuos socos na cabeça. O sangue escorria de seu nariz até o queixo, e havia um forte cheiro de urina no ar. A visão foi um choque e fez Terlinden se lembrar dolorosamente de épocas já bem distantes. Durante muito tempo ele se recusara estritamente a aceitar que seu filho tinha uma doença psíquica. Não quisera ouvir o diagnóstico de autismo. As estereotipias no comportamento de Thies eram assustadoras, e pior ainda era o hábito repugnante do menino de rasgar e sujar tudo com fezes e urina. Christine e ele foram confrontados com esse problema sem nenhum amparo e não viram outra solução a não ser isolar o filho e mantê-lo distante de outras pessoas — sobretudo de seu irmão Lars. No entanto, à medida que o menino foi crescendo e se tornando cada vez mais colérico e agressivo, já não puderam fechar os olhos por muito tempo. Relutante, Claudius Terlinden tivera de encarar o quadro clínico do filho e ouvir dos terapeutas que não havia nenhuma perspectiva de cura. Daniela Lauterbach, sua vizinha, explicara-lhe, por fim, do que Thies precisava para poder viver relativamente bem com sua doença. Era importante que tivesse uma rotina, na qual, de preferência, nada fosse alterado e ocorressem apenas poucos imprevistos. Igualmente importante era permitir que Thies tivesse seu próprio mundo, ritualizado com rigor, para o qual ele pudesse se retirar. Por um tempo, tudo correra bem, até ambos os meninos completarem 12 anos. Alguma coisa acontecera naquele dia que tirara Thies completamente do sério. Ele ficara tão fora de si que quase matara o irmão e ferira-se gravemente. O episódio tinha sido a gota d’água para Claudius Terlinden, e, aos berros e violento, o menino foi levado a um hospital psiquiátrico infantil, onde ficara internado por três anos. Lá era tratado à base de tranquilizantes, e seu estado melhorou. Testes comprovaram que Thies tinha uma inteligência acima da média. Mas, infelizmente, ele não sabia lidar com essa inteligência, pois vivia como um prisioneiro em seu próprio mundo, totalmente isolado de seu ambiente e das pessoas de seu convívio.

Três anos mais tarde, pela primeira vez Thies recebeu a permissão para deixar a instituição em que vivia para visitar sua casa. Ele estava tranquilo e sereno, mas parecia surdo. Em casa, desceu imediatamente para o porão e começou a ordenar lado a lado seus antigos brinquedos. Passou horas fazendo isso, com um olhar alheio. Sob o efeito dos medicamentos, nunca mais teve uma crise. Chegou até a se abrir um pouco. Ajudava o jardineiro e começou a pintar. Embora à mesa ainda usasse seus talheres de criança e seu prato de Ursinho Puff, comia, bebia e se comportava de modo praticamente normal. Os médicos mostraram-se muito animados com esse desenvolvimento e aconselharam os pais a levar o menino definitivamente para casa. Desde então, havia 15 anos, nunca mais ocorrera outro incidente. Thies andava livremente pelo vilarejo, passava a maior parte do tempo no jardim, que tinha transformado sozinho em um parque simetricamente ordenado, com sebe de buxos, canteiros de flores e toda sorte de plantas mediterrâneas. E ainda pintava, muitas vezes até ficar totalmente exausto. Os quadros em grande formato eram obras impressionantes: mensagens angustiantes, obstinada e perturbadoramente sombrias, que transmitiam as profundezas ocultas de sua vida interior de autista. Thies nada tinha contra expor seus quadros. Por duas vezes chegara até a acompanhar seus pais a vernissages. Tampouco se sentia incomodado quando era obrigado a se separar de seus quadros, como inicialmente temera Claudius Terlinden. Desse modo, Thies pintava, mantinha o jardim em ordem e tudo ia bem; até os contatos com o público ele conseguia dominar sem perder o controle. De vez em quando chegava até a falar algumas palavras. Parecia estar no melhor caminho para abrir uma ínfima brecha na porta que dava para seu eu interior. E agora aquilo. Que retrocesso! Mudo e profundamente perturbado, Claudius Terlinden observou seu filho. A imagem doeu em sua alma.

— Thies! — disse com voz branda, depois, um pouco mais severa: — Thies!

— Ele parou de tomar os remédios — sussurrou Christine Terlinden atrás dele. — A Imelda os encontrou no banheiro.

Claudius Terlinden entrou no quarto, ajoelhou-se fora do círculo.

— Thies — disse em voz baixa. — O que você tem?

— Oquevocêtem — repetiu Thies atonamente e batendo no próprio rosto com a regularidade de um mecanismo de relógio. — Oquevocêtem... Oquevocêtem... Oquevocêtem...

Terlinden viu que ele estava segurando alguma coisa na mão fechada. Quando quis pegar seu braço, Thies levantou-se num salto e precipitou-se sobre seu pai, dando-lhe socos e pontapés. Claudius Terlinden ficou surpreso com o ataque, defendeu-se intuitivamente, mas Thies já não era um garoto, e sim um adulto que ganhara músculos com o trabalho no jardim. Seu olhar era desvairado, saliva e sangue pingavam de seu queixo. Arquejando, protegeu-se de seu filho. Como através de uma névoa, ouviu os gritos histéricos de sua mulher. Por fim, conseguiu abrir com violência o punho de Thies e tirar-lhe o conteúdo. De quatro, arrastou-se até a porta. Thies não o seguiu, mas soltou um grito horripilante e permaneceu encolhido no chão.

— Amelie — balbuciou. — Amelie Amelie Amelie Amelie. Oquevocêtem... Oquevocêtem... Oquevocêtem... Pai... Pai... Pai...

Respirando com dificuldade, Claudius Terlinden pôs-se de pé. Seu corpo inteiro tremia. Sua mulher olhava fixamente para ele, com as mãos tapando a boca e os olhos cheios de lágrimas. Terlinden desdobrou o papel e quase teve uma síncope. Na foto amassada, Stefanie Schneeberger sorria para ele.

 

No sábado à tarde, Arne e Barbara Fröhlich foram com os dois filhos mais novos para a casa de amigos, em Rheingau, e só voltaram tarde da noite para casa. Amelie havia trabalhado à noite no Corcel Negro. Como à meia-noite ainda não havia voltado, seu pai ligou para o restaurante e, pela chefe irritada, ficou sabendo que Amelie havia ido embora pouco depois das dez horas, embora estivessem atoladas de trabalho. Em seguida, os Fröhlichs telefonaram para todos os colegas de classe e conhecidos de sua filha, cujos números haviam conseguido encontrar. Em vão. Ninguém viu nem falou com Amelie.

Bodenstein e Pia interrogaram Jenny Jagielski, a dona do Corcel Negro, que lhes confirmou o que Arne Fröhlich dissera antes. Durante toda a noite, Amelie comportara-se de maneira curiosamente ausente e, na cozinha, tentara telefonar várias vezes. Às dez recebera, então, uma ligação e simplesmente saíra correndo. E no domingo não aparecera para servir as bebidas antes do almoço, como costumava fazer. Não, ela não sabia de quem era a chamada que fizera Amelie largar o trabalho apressada; tampouco o restante dos funcionários fazia alguma ideia. Aquela noite havia sido a maior correria no restaurante.

— Dê uma paradinha na loja — disse Pia a Bodenstein, quando passavam novamente pela Hauptstraße. — Mal não vai fazer se nos informarmos por lá.

De fato, chegaram num momento propício para obter “informações”. Naquela manhã de segunda-feira, a pequena loja de Margot Richter parecia ter-se transformado no principal ponto de encontro da população feminina de Altenhain. Desta vez, as senhoras estavam muito mais falantes do que por ocasião da última visita deles.

— Foi exatamente assim que começou naquela época — disse a cabeleireira Inge Dombrowski, e todas as outras presentes confirmaram com a cabeça. — Não quero afirmar nada, mas o Willi Paschke me contou que viu essa Amelie lá no sítio dos Sartorius.

— Também vi que recentemente ela esteve na casa deles — informou outra mulher, e completou explicando que ela morava bem na frente e que tinha uma boa visão do sítio.

— Além do mais, ela é unha e carne com o bobo da cidade — anunciou uma mulher gorda da quitanda.

— É mesmo — confirmaram outras três ou quatro mulheres fervorosamente.

— Com quem? — quis saber Pia.

— Com o Thies Terlinden — explicou novamente a cabeleireira. — Ele não bate muito bem, passa noites andando pela cidade e pela floresta. Não me admiraria se tivesse feito alguma coisa com a garota.

As outras mulheres concordaram com a cabeça. Pelo visto, os moradores de Altenhain tinham sempre uma suspeita pronta. Nem Bodenstein nem Pia disseram algo a respeito. Deixaram que as mulheres simplesmente falassem, e elas estavam gostando de colocar lenha na fogueira, ávidas que eram por sensacionalismo, como se tivessem se esquecido da presença da polícia.

— Durante muito tempo, os Terlindens tiveram de enfiar o moleque em um sanatório — exaltou-se uma das mulheres. — Mas aqui ninguém se atreve a dizer alguma coisa ao velho.

— Claro, porque todos têm medo de perder o emprego!

— O último que disse alguma coisa contra os Terlindens foi Albert Schneeberger. Depois, sua filha desapareceu e, logo em seguida, ele foi embora.

— É estranho o Terlinden ter ajudado o Sartorius. Talvez tenha sido por causa dos dois rapazes.

— O Lars também foi embora correndo de Altenhain logo depois.

— E agora, pelo que ouvi dizer, o Terlinden até arrumou um emprego para o assassino! Não dá para entender! Em vez de fazer com que ele suma daqui!

Por um momento, a loja ficou em completo silêncio. Cada uma parecia refletir sobre o possível significado dessas palavras. De repente, todas voltaram a tagarelar ao mesmo tempo. Pia decidiu fazer-se de ignorante.

— Desculpem! — gritou, tentando fazer-se ouvir. — Quem é mesmo esse Terlinden de que vocês estão falando?

Subitamente, as senhoras se deram conta de que não estavam sozinhas. Uma após a outra, deram uma desculpa e saíram rápido da loja, a maioria com as cestas vazias. Ficou Margot Richter, atrás de seu caixa. Até então, mantivera-se fora das conversas. Como cabia a uma boa dona de estabelecimento, embora não tampasse os ouvidos, conservava a neutralidade.

— Não foi nossa intenção — disse Pia desculpando-se, mas a proprietária permaneceu serena.

— Elas vão voltar — respondeu. — Claudius Terlinden é o chefe da empresa Terlinden, lá em cima, na zona industrial. A família e a empresa estão aqui em Altenhain há mais de um século. E, sem elas, muita coisa por aqui não funcionaria.

— O que quer dizer?

— Os Terlindens são muito generosos. Ajudam a associação, a igreja, a escola fundamental, a biblioteca pública. É uma tradição familiar deles. E metade da cidade trabalha lá em cima, na empresa. Esse filho que Christa acabou de descrever como “o bobo da cidade”, o Thies, é um rapaz de bem. É incapaz de fazer mal a uma mosca. Não consigo imaginá-lo fazendo alguma coisa contra a garota.

— Por falar nela, a senhora conhece Amelie Fröhlich?

— Sim, claro. — Sorriu com certa resistência. — Essa não passa despercebida com as roupas que veste! Além disso, trabalha no restaurante da minha filha, o Corcel Negro.

Pia fez que sim com a cabeça e anotou. Mais uma vez, seu chefe a abandonava por completo, ficando ausente ao seu lado, sem dar um pio.

— O que a senhora acha que pode ter acontecido com a moça?

Margot Richter hesitou por um momento, mas seu olhar dirigiu-se rapidamente para a direita, e Pia logo percebeu de quem ela suspeitava, pois, de seu posto no caixa, a senhora Richter conseguia ver exatamente o Galo de Ouro. A história do filho de Terlinden fora apenas um pretexto. Na realidade, todos os habitantes suspeitavam de Tobias Sartorius, que, afinal, já fizera algo parecido no passado.

— Não faço ideia do que pode ter acontecido — respondeu Margot Richter, esquivando-se. — Talvez ela ainda volte a aparecer.

 

— Tobias Sartorius está correndo um enorme risco de ser linchado — disse Pia, seriamente preocupada, quando já estavam de volta à K 11. — Na sexta-feira à noite ele foi atacado e espancado em seu celeiro; além disso, seu pai vive recebendo cartas anônimas de ameaça, para não falar das pichações no muro da casa.

Ostermann já estava com o laptop de Amelie e seu diário, que, para seu desgosto, em grande parte se apresentava codificado em uma escrita secreta que ele não conseguia decifrar. Ao mesmo tempo, Kathrin Fachinger e Frank Behnke encontraram Bodenstein e Pia e nada tinham que realmente pudesse contribuir. Amelie não tinha amigas íntimas, mantinha-se afastada; apenas no ônibus escolar conversava com as duas colegas de classe que também moravam em Altenhain. Contudo, segundo uma das garotas contara, nos últimos tempos Amelie vinha demonstrando grande interesse por Tobias Sartorius e pelos horríveis acontecimentos de onze anos antes, e sempre fazia perguntas a respeito. Sim, ela tinha conversado com o cara, várias vezes até.

Ostermann entrou com um fax na sala de reuniões.

— A relação das ligações do celular de Amelie acabou de chegar — anunciou. — No sábado à noite, às 22h11, ela deu o último telefonema. Ligou para um número fixo em Altenhain, que já testei.

— Sartorius? — supôs Bodenstein.

— Sim, exatamente. A ligação durou apenas sete segundos; aparentemente, não se conversou muito. Antes disso, ela havia ligado 12 vezes para esse número e sempre desligado. Após as 22h11, o celular ficou desligado. Não deu para traçar um perfil de sua movimentação, pois o aparelho só é captado pela única célula de rádio de Altenhain, que tem um raio de cerca de cinco quilômetros.

— Ligações detalhadas não são captadas, certo? — perguntou Bodenstein, e Ostermann abanou negativamente a cabeça.

— E quanto ao computador?

— Ainda não consegui descobrir a senha. — Ostermann fez uma cara de decepção. — Mas dei uma folheada no diário, pelo menos nas passagens que consegui decifrar. Tobias Sartorius, um tal de “Thies” e um tal de “Claudius” são mencionados com frequência.

— Em que contexto?

— Ela parece se interessar pelo Sartorius e por esse Claudius. De que maneira, ainda não posso julgar.

— Muito bem. — Bodenstein olhou para o grupo; sua antiga determinação havia voltado. — Faz pouco menos de quarenta horas que a garota desapareceu. Quero a programação completa: pelo menos duas tropas de cem policiais, cães e helicópteros com câmeras termossensíveis. Behnke, você vai organizar um comando especial. Quero que todos os agentes disponíveis interroguem todos os moradores do vilarejo. Senhora Fachinger, verifique as conexões de ônibus e as centrais de táxis. O período crítico está no sábado, entre as 22h e, digamos, as 2h da manhã. Mais alguma pergunta?

— Deveríamos conversar com esse Thies e o pai dele — disse Pia. — E com o Tobias Sartorius.

— Sim. Nós dois vamos fazer isso agora. — Bodenstein olhou para o grupo. — Ah, Ostermann. Imprensa, rádio, televisão e o registro habitual nos arquivos digitais de desaparecidos. Às 18h nos encontramos aqui de novo.

 

Uma hora mais tarde, Altenhain estava fervilhando de policiais. Uma equipe já havia sido encaminhada para lá junto com um grupo especialmente treinado de cães farejadores; cães que eram capazes de detectar e seguir até mesmo pistas deixadas quatro semanas antes. Um grupo de cem policiais de plantão passava sistematicamente um pente fino nos campos divididos em quadrados e na orla da floresta ao redor da cidade. Um helicóptero com uma câmera termossensível voava próximo às copas das árvores, e os agentes da Polícia Criminal, destacados para o comando especial “Amelie”, tocavam a campainha de todas as casas e apartamentos em Altenhain. Todos os participantes estavam motivados e cheios de esperança de que a garota fosse encontrada logo e ilesa, mas, do mesmo modo, todos sabiam que a pressão e a expectativa de um resultado rápido eram enormes. O telefone de Bodenstein tocava quase sem parar. Ele havia passado a Pia a direção do automóvel e coordenava a operação com a máxima concentração. Bloqueios na rua diante da casa dos Fröhlichs deveriam impedir que os pais da moça fossem incomodados pela imprensa e por curiosos. Os guias dos cães começariam suas buscas no local onde Amelie fora vista pela última vez, ou seja, no Corcel Negro. Sim, uma amiga poderia entrar na casa dos Fröhlichs, o padre também. Sim, o filme do radar na saída do local deveria ser verificado. Não, civis não poderiam ajudar nas buscas. Justamente quando pararam na frente do Galo de Ouro, a doutora Engel ligou e queria saber da situação.

— Assim que tivermos alguma novidade, obviamente a senhora será a primeira a ser informada — disse Bodenstein com concisão e desligou o som de seu celular.

Hartmut Sartorius abriu a porta da casa, mas apenas olhou por trás da corrente de segurança.

— Queremos falar com seu filho, senhor Sartorius — disse Bodenstein. — Por favor, deixe-nos entrar.

— Agora vocês vão suspeitar dele sempre que uma garota em algum lugar voltar tarde para casa? — A pergunta soou malcriada, quase agressiva.

— O senhor já ficou sabendo?

— Já. Claro. Essas coisas se espalham rápido.

— Não estamos suspeitando do Tobias. — Bodenstein permaneceu totalmente tranquilo, pois viu como Hartmut Sartorius estava nervoso. — Mas, na noite em que desapareceu, Amelie ligou treze vezes para o seu telefone fixo.

A porta se fechou; depois, após ouvirem o barulho metálico da corrente de segurança, ela se abriu por completo. Hartmut Sartorius endireitou os ombros e esforçou-se nitidamente para mostrar-se autoritário. Seu filho, contudo, parecia mal. Estava afundado no sofá da sala, seu rosto estava desfigurado por hematomas. Ele cumprimentou Bodenstein e Pia apenas com um aceno de cabeça quando eles entraram.

— Onde o senhor estava na noite de sábado, entre 22h e a manhã de domingo? — quis Bodenstein saber dele.

— Então é isso! — irritou-se o pai Sartorius. — Meu filho passou a noite toda em casa. Na noite anterior, ele foi atacado em nosso celeiro e quase morreu de tanta pancada!

Bodenstein não se deixou perturbar.

— No sábado à noite, às 22h11, Amelie ligou para o seu número. A ligação foi atendida, mas foi tão rápida, que mal houve tempo para falar. Antes disso, ela já havia ligado algumas vezes.

— Temos uma secretária eletrônica, que liga automaticamente — esclareceu Sartorius. — Por causa de todas as ligações anônimas e xingamentos.

Pia observou Tobias. Seu olhar era fixo e ausente, e ele parecia não estar acompanhando a conversa. Certamente intuía o que se tramava contra ele do lado de fora.

— Que motivo teria tido Amelie para ligar para o senhor? — perguntou ela diretamente para ele. Ele deu de ombros.

— Senhor Sartorius — disse Pia, insistindo. — Uma moça da vizinhança, que tinha contato com o senhor, desapareceu. Querendo ou não, o senhor será ligado a esse desaparecimento. Só queremos ajudá-lo.

— Ah, claro — replicou Hartmut Sartorius de modo rude. — Foi exatamente o que seus colegas também disseram na época. Só queremos ajudá-lo, rapaz. Diga logo onde você escondeu a garota! E depois ninguém acreditou no meu filho. Agora vão embora. Tobias passou a noite inteira de sábado aqui em casa!

— Tudo bem, pai — disse Tobias, de repente, deixando-se interrogar. Ele contraiu o rosto ao se erguer com dificuldade. — Sei que você está querendo ajudar.

Olhou para Pia. Seus olhos estavam avermelhados.

— Encontrei Amelie no sábado, por acaso. Lá em cima, na floresta. Ela tinha urgência em me contar alguma coisa. Aparentemente, havia descoberto algo sobre o que se passou antigamente. Mas então a Nadja chegou, e Amelie foi embora. Provavelmente, foi por isso que, mais tarde, tentou me ligar. Não tenho celular, por isso ela deve ter ligado para o fixo.

Pia se lembrou de seu encontro com Nadja von Bredow no sábado e de seu Cayenne prata. O relato podia ser verdadeiro.

— O que ela lhe contou? — Bodenstein quis saber.

— Infelizmente, não muita coisa — respondeu Tobias. — Disse que, na época, alguém havia assistido a tudo, mencionou Thies e uns desenhos, nos quais Lauterbach também podia ser reconhecido.

— Quem?

— Gregor Lauterbach.

— O Secretário de Educação e Cultura?

— Sim, ele mesmo. Ele mora bem ao lado da casa do pai da Amelie. Antigamente era professor da Laura e da Stefanie.

— E seu também, não é? — Pia se lembrou da ata que havia lido e que, posteriormente, sumira da pasta.

— Sim — confirmou Tobias com um aceno de cabeça. — Ele foi meu professor de alemão nos últimos anos da escola.

— O que Amelie descobriu sobre ele?

— Não faço ideia. Como eu disse, a Nadja apareceu, e Amelie não disse mais nada, só que mais tarde queria me contar tudo.

— O que fez quando Amelie foi embora?

— Nadja e eu ainda conversamos por um tempo, depois viemos para cá e ficamos sentados por mais ou menos meia hora na cozinha. Até ela ter de ir embora, porque tinha de pegar um avião para Hamburgo. — Tobias Sartorius contraiu o rosto e passou a mão pelos cabelos despenteados. — Depois fui à casa de um amigo. Lá, bebemos com outros amigos. Até demais.

Levantou o olhar. Seu rosto era inexpressivo.

— Infelizmente, não consigo me lembrar de mais nada, nem de quando nem de como cheguei em casa. Faltam 24 horas na minha memória.

Hartmut Sartorius balançou a cabeça desesperado. Parecia prestes a romper em lágrimas. O zumbido do celular de Bodenstein, que estava com o som desligado, soou extremamente alto no silêncio que se instalou de repente. Ele atendeu, ouviu e agradeceu rapidamente. Seu olhar buscou o de Pia.

— Quando seu filho voltou para casa, senhor Sartorius? — ele se voltou para o pai de Tobias, que hesitou.

— Diga a verdade, pai. — A voz de Tobias soou cansada.

— Por volta das duas e meia da manhã de domingo — disse seu pai, por fim. — A doutora Lauterbach, nossa médica, o trouxe para casa. Ela o encontrou ao voltar tarde de um chamado de urgência.

— Onde?

— No ponto de ônibus na frente da igreja.

— O senhor saiu com o carro ontem? — perguntou Bodenstein a Tobias.

— Não, saí a pé.

— Como se chamam os amigos com quem o senhor esteve no sábado? — Pia sacou seu lápis e anotou os nomes que Tobias mencionou.

— Vamos conversar com eles — disse Bodenstein com seriedade. — Mas tenho de lhe pedir para se manter à nossa disposição.

 

O chefe de operação da equipe de busca comunicou a Bodenstein que a mochila de Amelie havia sido encontrada. Estava em uma moita entre o estacionamento do Corcel Negro e a igreja — não longe do ponto de ônibus onde a doutora Lauterbach apanhara Tobias na noite de sábado.

— Da outra vez, foi exatamente assim — disse Pia pensativa ao percorrerem de carro os poucos metros até o local onde a mochila tinha sido encontrada. — Tobias ingeriu bebida alcoólica e teve um branco. Só que a promotoria e o tribunal não acreditaram nele.

— E você acredita? — perguntou Bodenstein. Pia refletiu. Tobias Sartorius parecia ter dito a verdade. Ele gostava da vizinha. Mas será que também não gostava das duas garotas que havia matado dez anos antes? Na época, o ciúme estivera em jogo, além da vaidade ferida — não podia ser esse o caso em relação a Amelie. Teria a garota realmente descoberto alguma coisa que tivesse uma ligação direta com o caso daquela época ou Tobias teria inventado tudo aquilo?

— Não posso julgar o caso do passado — respondeu ela. — Mas hoje acho que Tobias não mentiu para nós. Ele realmente não se lembra.

Bodenstein eximiu-se de comentar. Com o passar do tempo, ele aprendera a apreciar a intuição de sua colega, que frequentemente os levava para a pista certa, enquanto, na maioria das vezes, sua própria intuição o induzia irremediavelmente ao erro. Não obstante: em ambos os assassinatos antigos e no caso atual, ele não considerava Tobias Sartorius inocente, como parecia ser a opinião de Pia.

A mochila continha a carteira de Amelie, seu iPod, utensílios de maquiagem e toda sorte de tranqueira, mas nenhum celular. Uma coisa era certa: ela não tinha fugido de casa, algo devia ter-lhe acontecido. O cão farejador perdera o rastro no estacionamento e, com seu guia, esperava, ofegando impaciente, pela próxima operação, que para ele era uma brincadeira excitante. Pia, que graças ao esboço que fizera do vilarejo, lembrava-se claramente do mapa da cidadezinha, conversou com os agentes que se reuniam em número crescente no estacionamento. Os interrogatórios às portas das casas não tinham ajudado em muita coisa.

— O cão encontrou rastros na borda da floresta, por toda a parte na rua em que a garota mora, na casa do vizinho e na estufa dele — relatou o chefe da operação.

— Como se chamam os vizinhos? — quis saber Pia.

— Terlinden — respondeu o agente. — A mulher nos disse que Amelie visitava muito seu filho. Não é, necessariamente, uma pista quente. — Ele pareceu decepcionado. Nada era mais desagradável do que uma busca sem resultado.

 

Kai Ostermann tinha conseguido desvendar a senha do computador de Amelie. Dera uma olhada nas páginas que ela havia visitado na Internet nos últimos tempos. Contrariando sua expectativa, ela raramente frequentava redes comuns como SchülerVZ, Wer-kennt-wen ,Facebook ou MySpace. Embora tivesse perfis em toda parte, quase não os utilizava e também tinha apenas poucos contatos. Em compensação, aparentemente tinha feito pesquisas detalhadas sobre os antigos assassinatos de 1997 e o julgamento de Tobias Sartorius. Além disso, interessara-se pelos moradores de Altenhain, investigando seus nomes em diferentes sites de busca. Parecia ter se interessado especialmente pela família Terlinden. Ostermann estava decepcionado. Esperava deparar com algum colega de chat ou outro conhecido da Internet que fosse suspeito, alguma coisa que levasse a investigações concretas. A reunião marcada pouco antes por Bodenstein, na qual 25 pessoas se apertaram na sala de reuniões da K 11, também foi pouco produtiva. As buscas foram interrompidas sem resultado ao cair da noite. Graças à câmera termossensível do helicóptero, descobriu-se um casalzinho de namorados em um carro, localizado em um estacionamento escondido na floresta, bem como um corço agonizando, que havia escapado do tiro frustrado de algum caçador, mas de Amelie não havia nenhuma pista. Haviam conversado com o motorista do ônibus 803, que às 22h16 tinha parado na frente da igreja, em Altenhain, bem como com seu colega, que pouco depois fizera o percurso contrário. Nenhum dos dois homens notara nenhuma garota de cabelo escuro. Tampouco as centrais de táxi da redondeza tiveram alguma moça como cliente naquele período. Um dos colegas da K 23 descobrira um homem que, ao passear tarde da noite de sábado com seu cão, tinha visto outro homem sentado no banco do ponto de ônibus, por volta de meia-noite e meia.

— Devíamos dar uma busca na casa e no terreno dos Sartorius — sugeriu Behnke.

— Por quê? Não há razão para isso — rebateu Pia de imediato, embora soubesse que não estava totalmente certa. Infelizmente, os fatos falavam contra Tobias Sartorius. Seus amigos haviam confirmado que, por volta das 19h, ele tinha aparecido na garagem. Jörg Richter havia ligado para ele no final da tarde e o convidado. Tobias tomara umas e outras, mas não o suficiente para sofrer um apagão como aquele. Por volta das 22h, deixara a garagem de repente. Primeiro pensaram que ele tivesse ido apenas urinar, mas ele não retornou.

— Caramba, uma garota de 17 anos desapareceu, e temos provas de que ela mantinha contato com um cara que foi condenado por assassinar duas garotas — exaltou-se Behnke. — Tenho uma filha com essa idade, posso entender como os pais dessa menina estão se sentindo.

— Você acha que é preciso ter filhos para conseguir se colocar no lugar dos pais? — devolveu Pia. — E já que você falou em dar busca, por que também não sugere expedir um mandado de busca para revistar a casa dos Terlindens? Lá os cães acharam uma grande quantidade de pistas!

— Isso é verdade — interveio Bodenstein, antes que entre ambos pudesse se desencadear uma briga diante da equipe reunida. — Mas a própria madrasta de Amelie disse que a garota ia muito à casa do vizinho. Portanto, é questionável se essas pistas têm um significado relevante para o caso.

Pia calou-se. Tobias pedira ao pai que ele contasse a verdade, embora devesse saber que tudo isso recairia sobre ele. Ele simplesmente poderia ter se calado ou usado o pai como álibi, como este lhe oferecera de início. Teria ele recusado essa oferta porque já não havia funcionado uma vez?

— Acho que aconteceu alguma coisa a Amelie que está diretamente ligada ao caso de antigamente — disse ela após um momento. — E também acho que várias pessoas têm um grande interesse em manter segredo sobre algumas coisas.

— Bobagem. — Behnke abanou enfaticamente a cabeça. — Esse cara perde o controle quando enche a cara. Ele saiu da festa, Amelie atravessou seu caminho, e ele a mandou desta para melhor.

Pia levantou as sobrancelhas. Como sempre, Behnke tendia a reduzir tudo ao denominador mais simples.

— E o que ele fez com o corpo? Desta vez não estava de carro.

— Isso é o que ele diz. — Behnke apontou na direção do quadro. — Deem mais uma olhada na moça.

Automaticamente, todas as cabeças se voltaram para a foto de Amelie, que estava presa no quadro.

— Ela é muito parecida com a garota que ele matou no passado. O cara é doente.

— Então está certo — decidiu Bodenstein. — Senhora Fachinger, cuide do mandado de busca para a casa, o carro e o terreno dos Sartorius. Kai, continue trabalhando no diário. Todos os outros se mantenham à disposição. Amanhã de manhã, às oito horas, vamos continuar com as buscas e ampliar o raio de ação.

Ao som de cadeiras se arrastando, o grupo de desfez. A atmosfera ainda era de ligeiro otimismo. A maior parte dos agentes era da mesma opinião de Behnke e esperava obter algum resultado com a revista da casa dos Sartorius. Pia esperou que os colegas deixassem a sala de reuniões, mas antes que conseguisse falar com seu chefe e apresentar-lhe suas ressalvas, a doutora Nicola Engel entrou na sala com dois homens de terno e gravata.

— Um momento — disse ela a Behnke, que já queria ir embora. Pia encontrou o olhar de Kathrin Fachinger, e ambas saíram juntas da sala.

— Senhora Fachinger? Por favor, espere um momento do lado de fora. — Assim, Nicola Engel fechou a porta atrás de si.

— Pronto — disse Kathrin no corredor. — Agora estou ansiosa.

— Quem são? — perguntou Pia surpresa.

— Departamento de Investigação Interna. — Kathrin parecia bastante satisfeita. — Tomara que deem um belo de um esporro nesse babaca.

Somente então é que Pia se lembrou do trabalho de Behnke no bar e da recusa sem sucesso de Kathrin de fazer as investigações junto com ele.

— Como ele se comportou com você hoje? — perguntou. Kathrin só levantou as sobrancelhas.

— Para você não preciso mentir — respondeu ela. — Ele foi absolutamente repugnante. Me humilhou na frente de todo mundo, como se eu fosse uma imbecil. Fiquei de bico calado. Só lhe digo uma coisa: se ele sair ileso mais uma vez, vou pedir para ser transferida. Realmente não tenho mais saco para esse cara.

Pia fez que sim com a cabeça. Entendia sua colega. Mas intuía que, dessa vez, Frank Behnke não ia se dar bem, pois Nicola Engel guardava uma antiga antipatia por ele que vinha desde os tempos em que trabalharam juntos na K 11, em Frankfurt. A situação não parecia nada boa para o cretino do seu colega, e ela não lamentava nem um pouco.

Terça-feira, 18 de novembro de 2008

O jornal estava aberto à sua frente, sobre o tampo da mesa. Mais uma vez, uma moça desaparecera em Altenhain, e isso pouco depois de encontrarem o esqueleto de Laura Wagner. Lars Terlinden sabia que, do departamento de vendas e de sua sala de espera, podiam vê-lo em seu escritório envidraçado. Por isso, resistiu ao impulso de esconder o rosto nas mãos. Antes nunca mais tivesse voltado para a Alemanha! Em sua avidez por mais dinheiro, havia dois anos desistira de seu emprego muito bem remunerado, em Londres, e se transferira para Frankfurt, onde trabalhava na administração de um grande banco suíço. No cenário da época, a mudança causara uma grande sensação; afinal, ele acabara de completar 28 anos. Mas ao “menino-prodígio alemão”, como o Wall Street Journal o nomeara, tudo parecia continuar dando certo — e ele sucumbira à ilusão de que era o maior e o melhor. Agora aterrissava bruscamente no solo da realidade e, ainda por cima, tinha de encarar seu passado nos olhos e reconhecer o que havia provocado por covardia. Lars Terlinden deu um longo suspiro. Na época, sua única decisão errada e de grande alcance foi tê-los seguido, às escondidas, quando deixaram a quermesse, movido pela necessidade louca de confessar seu amor a Laura. Se pelo menos ele tivesse deixado isso de lado! Se pelo menos... Balançou a cabeça energicamente, dobrou resoluto o jornal e jogou-o no cesto de lixo. De nada adiantava brigar com o passado. Ele precisava de toda a sua concentração para os problemas com os quais estava se confrontando no momento. Havia muita coisa em jogo para ele se deixar distrair por uma história como essa. Tinha família e um monte de obrigações financeiras, que, em tempos de crise econômica, ele só conseguiria cumprir com extremo esforço: a imensa mansão no Taunus não estava quitada, a casa de veraneio em Maiorca tampouco, as parcelas do leasing de sua Ferrari e da SUV de sua mulher venciam todo mês. É, ele tinha de novo caído em uma espiral, como antes. E essa espiral — ele percebia de maneira cada vez mais clara — descia a uma velocidade vertiginosa. Ao diabo com Altenhain!

 

Fazia três horas que estava sentado na frente do prédio, no Karpfenweg, e olhava fixamente para a água da doca. Nem o frio desagradável nem os olhares desconfiados dos moradores do prédio, que, ao passarem, examinavam seu rosto arrebentado, o incomodavam. Não aguentara ficar muito tempo em casa, e, além de Nadja, não tinha lhe ocorrido mais ninguém com quem pudesse falar. E precisava falar, do contrário, explodiria. Amelie tinha desaparecido, em Altenhain a polícia estava revirando cada pedra em uma gigantesca ação de busca, exatamente como antes. E exatamente como antes ele se sentia inocente, mas a dúvida o roía com dentes pequenos e afiados. Maldito álcool! Nunca mais tocaria em uma só gota que fosse! O ruído de saltos altos ecoou atrás dele. Tobias levantou a cabeça e reconheceu Nadja, que foi até ele com passos rápidos e o celular no ouvido. De repente, ele se perguntou se seria bem-vindo. Ao vê-la, intensificou-se a sensação opressora de inadequação, que sempre lhe acometia quando estava em sua presença. Sentiu-se um mendigo, com seu casaco de couro gasto e barato e com a expressão extenuada. Talvez fosse melhor ele sumir dali e nunca mais voltar.

— Tobi! — Nadja guardou o telefone e correu com cara assustada até ele. — O que você está fazendo aqui com esse frio?

— Amelie sumiu — respondeu ele. — A polícia já esteve lá em casa.

Com esforço, se levantou. Suas pernas estavam geladas, suas costas doíam.

— Mas por quê?

Ele esfregou as mãos e as soprou.

— Bom, uma vez assassino de garotas, sempre assassino de garotas. Além disso, não tenho nenhum álibi para o período em que Amelie desapareceu.

Nadja o fitou.

— Vamos entrar. — Pegou a chave do prédio e abriu a porta. Ele a seguiu com passos rígidos.

— Onde você estava? — perguntou ele, enquanto subiam no elevador envidraçado até a cobertura. — Fiquei esperando por você algumas horas.

— Estava em Hamburgo, você sabia. — Ela abanou a cabeça e, preocupada, colocou suas mãos nas dele. — Você devia arrumar um celular.

Só então se lembrou de que, no sábado, Nadja tinha voado para Hamburgo para gravar. Ela o ajudou a tirar o casaco e o empurrou na direção da cozinha.

— Sente-se — disse ela. — Primeiro vou fazer um café para você se aquecer. Meu Deus!

Ela jogou seu mantô no encosto de uma cadeira. O celular soou com um toque polifônico, mas ela não deu atenção e, em vez disso, foi se ocupar da máquina de café expresso.

— Estou realmente preocupado com a Amelie — disse Tobias. — Não faço ideia sobre o que ela, de fato, sabe a respeito dos acontecimentos de antigamente nem com quem conversou. Se alguma coisa tiver acontecido a ela só porque tentou me ajudar, então a culpa é toda minha.

— Mas você não a obrigou a remexer no passado — respondeu Nadja. Ela colocou duas xícaras de café sobre a mesa, pegou leite na geladeira e sentou-se na frente dele. Sem maquiagem, com olheiras violáceas, parecia cansada.

— Vamos. — Ela colocou sua mão na dele. — Agora beba seu café. Depois, entre na banheira para descongelar.

Por que ela não entendia o que estava acontecendo com ele? Ele não queria merda de café nenhum nem merda de banheira nenhuma! Queria ouvir da sua boca que acreditava na inocência dele e pensasse junto com ele o que poderia ter acontecido a Amelie. Em vez disso, ela ficava falando de café e de se aquecer, como se, naquele momento, isso fosse importante!

O celular de Nadja tocou novamente e, pouco depois, o telefone fixo. Com um suspiro, ela se levantou e atendeu. Tobias ficou com o olhar fixo na mesa. Embora o chefe dos tiras obviamente não tivesse acreditado nele, ele estava mais preocupado com Amelie do que consigo próprio. Nadja voltou, pôs-se atrás dele e colocou os braços em volta de seu pescoço. Ela beijou sua orelha e sua face não barbeada. Tobias teve de se controlar para não se soltar dela com violência. Não estava com cabeça para carícias. Será que ela não percebia isso? Ficou arrepiado quando ela passou o indicador na marca deixada em seu pescoço pela corda de varal. Apenas com o intuito de fazê-la parar, pegou seu pulso, empurrou a cadeira para trás e puxou-a para seu colo.

— No sábado à noite estive com Jörg e Felix e outros caras na garagem do tio do Jörg — sussurrou ele, insistindo. — Primeiro bebemos cerveja, depois esse tal de Red Bull com vodca. Esse negócio me derrubou completamente. Quando acordei na tarde de domingo, estava com uma ressaca enorme e um apagão total.

Os olhos dela estavam bem próximos dos seus. Com atenção, ela olhou para ele.

—Hum— fez ela simplesmente. Ele achou que tivesse entendido o que ela estava pensando.

— Você está duvidando de mim — lançou-lhe, e afastou-a de si. — Você está achando que eu matei... Amelie, assim como fiz com a Laura e a Stefanie! Não é isso?

— Não! Não, não estou achando isso! — protestou Nadja. — Por que você faria uma coisa dessas com Amelie? Ela só queria ajudá-lo!

— É verdade. Também não estou entendendo. — Ele se levantou, encostou-se na geladeira e passou a mão pelos cabelos. — O fato é que não me lembro do período entre as nove e meia da noite e as quatro da tarde de domingo. Em princípio, eu poderia tê-la assassinado, e é o que a polícia está pensando. Além do mais, Amelie tentou várias vezes me ligar. E meu pai disse que fui levado para casa pela doutora Lauterbach, à uma e meia da manhã. Ela me encontrou bêbado no ponto de ônibus na frente da igreja.

— Merda — disse Nadja e se sentou.

— Merda mesmo. — Tobias relaxou um pouco, pegou o maço de cigarros que estava em cima da mesa e acendeu um. — Os tiras me disseram para ficar à disposição.

— Mas por quê?

— Porque sou suspeito, muito simples.

— Mas... Mas eles não podem fazer isso — começou Nadja.

— Podem sim — interrompeu-a Tobias. — Já fizeram isso uma vez. E me custou dez anos.

Inalou a fumaça do cigarro e fitou Nadja na escuridão enevoada e cinza. O período de tempo bom tinha acabado; novembro mostrava seu lado mais desagradável. Uma chuva densa, que caía de nuvens baixas, rumorejava contra os vidros espessos. Só se conseguia divisar a Friedensbrücke como uma tênue silhueta.

— Tem de haver alguém que saiba da verdade — cogitou Tobias e pegou a xícara de café.

— Do que você está falando? — Nadja o observou com a cabeça inclinada. Tobias levantou o olhar para ela. Ficava irritado ao vê-la tão tranquila e controlada. — Da Amelie — respondeu ele, e constatou que ela levantou as sobrancelhas rapidamente. — Tenho certeza de que ela descobriu alguma coisa perigosa. Deve ter recebido um ou vários desenhos do Thies, mas exatamente o que havia neles, ela não me disse. Acho que alguém se sentiu ameaçado por ela.

 

O portão alto, de pontas douradas, na frente da propriedade da família Terlinden, estava fechado. Mesmo depois de vários toques da campainha, ninguém apareceu para abrir. Apenas a pequena câmera com a luz vermelha piscante acompanhava cada um dos seus movimentos. Encolhendo os ombros, Pia sinalizou para seu chefe, que estava falando ao telefone no carro, que seus esforços não haviam dado resultado. Antes disso, já tinham tentado em vão falar com Claudius Terlinden em sua empresa. Devido a um problema particular, não estava no escritório, comunicou a secretária, lamentando.

— Vamos à casa dos Sartorius. — Bodenstein ligou o motor e deu ré, para poder manobrar. — O Terlinden não vai escapar da gente...

Passaram pela saída dos fundos do sítio dos Sartorius, que estava repleto de agentes. O mandado de busca fora dado sem dificuldades. Já era tarde quando, na noite anterior, Kathrin Fachinger ligou para Pia para lhe falar da decisão. Mas, no fundo, o que ela queria era lhe contar como tinha terminado a reunião com os investigadores internos. A tolerância de que Behnke gozara até então tinha mesmo acabado; nesse sentido, nem a tentativa de Bodenstein de intervir poderia mudar alguma coisa. Como Behnke não havia pedido autorização para seu segundo emprego, teria de contar com um processo disciplinar, uma repreensão em sua ficha e, muito provavelmente, um rebaixamento na hierarquia. Além disso, a doutora Engel deixou-lhe bem claro que, se de algum modo ele se comportasse inadequadamente com Kathrin Fachinger ou até a ameaçasse, ela pediria sua imediata suspensão do serviço. A própria Pia nunca apresentaria uma queixa oficial contra ele. Seria isso um sinal de covardia ou de lealdade entre colegas? Francamente, ela admirava sua colega mais jovem pela coragem de denunciar outro colega à fiscalização. Pelo visto, todos tinham subestimado Kathrin.

O estacionamento na frente do Galo de Ouro, que costumava ficar vazio, desta vez estava cheio de viaturas da polícia. Apesar da chuva, na calçada do outro lado da rua havia curiosos. Seis ou sete pessoas de idade, que nada melhor tinham para fazer. Bodenstein e Pia desceram do carro. Hartmut Sartorius estava justamente tentando limpar com uma escova uma nova pichação na fachada do antigo restaurante. Uma tarefa ingrata.

ATENÇÃO, lia-se, AQUI MORA UM ASSASSINO DE GAROTAS!

— O senhor não vai conseguir tirar isso com água sanitária — disse Bodenstein. O homem se virou. Havia lágrimas em seus olhos, e ele oferecia uma imagem de desolação, com os cabelos molhados e o jaleco azul ensopado.

— Por que vocês não nos deixam em paz? — perguntou desesperado. — Antes éramos bons vizinhos. Nossos filhos brincavam juntos. E agora é só esse ódio!

— Vamos entrar — sugeriu Pia com cautela. — Vamos mandar alguém limpar isso para o senhor.

Sartorius deixou a escova cair no balde.

— Seu pessoal está revirando a casa e o sítio. — Sua voz soou acusatória. — O vilarejo inteiro já está comentando por causa disso. O que vocês querem com o meu filho?

— Ele está?

— Não. — Deu de ombros. — Não sei para onde foi. Já não sei mais nada.

Seu olhar vagou por Pia e Bodenstein. Repentinamente e com uma raiva que surpreendeu ambos, ele pegou o balde e atravessou o estacionamento em passos rápidos. Aos olhos de Pia, ele parecia ter crescido; por um momento, foi o homem que devia ter sido um dia.

— Fora daqui, seus filhos da puta! — gritou e lançou o balde com água sanitária quente pela rua, na direção das pessoas que ali tinham se reunido. — Sumam de uma vez! Deixem-nos em paz!

Sua voz esganiçou-se, e ele estava a ponto de atacar os curiosos quando Bodenstein conseguiu segurar seu braço. O impulso de energia foi embora tão rapidamente quanto havia chegado. Sartorius murchou como um balão que perde ar.

— Desculpe — disse em voz baixa. Um sorriso trêmulo esgueirou-se em seu rosto. — Mas eu já devia ter feito isso há muito tempo.

 

Como a casa estava sendo revistada pela Polícia Científica, Hartmut Sartorius abriu a entrada dos fundos do restaurante e conduziu Pia e Bodenstein ao grande salão, decorado com móveis rústicos e que parecia ter sido fechado apenas para a hora do almoço. Cadeiras estavam sobre as mesas, no chão não se via nem uma partícula de pó, e os cardápios encadernados em couro sintético estavam ordenadamente empilhados ao lado do caixa. O balcão brilhava de tão polido, a chopeira reluzia, os bancos altos do bar estavam enfileirados. Pia olhou ao redor e ficou arrepiada. O tempo parecia ter parado por ali.

— Estou todos os dias aqui — explicou Sartorius. — Meus pais e meus avós já administravam o sítio e tocavam o Galo de Ouro. Simplesmente não consigo me desfazer de tudo isso aqui.

Pegou as cadeiras de uma mesa redonda perto do balcão e, com um movimento da mão, ofereceu lugar a Bodenstein e Pia.

— Querem beber alguma coisa? Um café, talvez?

— Sim, seria ótimo. — Bodenstein sorriu. Atrás do balcão, Sartorius foi de um lado para outro, pegou as taças no armário e despejou os grãos de café na máquina. Gestos confiantes, executados milhares de vezes, que lhe davam segurança. Ao mesmo tempo, falou animado de seu passado, quando ele mesmo abatia os animais, cozinhava e produzia seu próprio vinho.

— As pessoas vinham de Frankfurt para comer aqui — disse com um orgulho indisfarçável na voz. — Só por causa do nosso vinho de maçã. Quanta gente famosa já não esteve aqui! Lá em cima, no salão, toda semana havia festa. Antigamente, no tempo dos meus pais, havia cinema, lutas de boxe e muito mais. Naquela época, as pessoas ainda não tinham carro e não iam comer em outro lugar.

Bodenstein e Pia trocaram um olhar silencioso. Ali, no seu reino, Hartmut Sartorius era novamente o chefe que se importava com o bem-estar dos clientes e se irritava com as pichações na fachada; não era mais a sombra por tanto tempo rebaixada e humilhada a que as circunstâncias o haviam reduzido. Só agora Pia compreendia toda a extensão da perda que esse homem sofrera, e sentiu uma profunda compaixão. Queria ter-lhe perguntado por que na época, após os incidentes, ele não deixara Altenhain, mas essa pergunta já não era necessária. Hartmut Sartorius estava tão arraigado no vilarejo em que sua família vivia há gerações quanto o castanheiro que havia no lado de fora, no sítio.

— O senhor arrumou o sítio — Bodenstein entabulou a conversa. — Deve ter dado um trabalhão.

— Foi o Tobias que arrumou. Ele quer que eu venda tudo — respondeu Sartorius. — De fato, ele tem razão; aqui, nunca vamos melhorar de vida. Mas o problema é que o sítio já não me pertence.

— E pertence a quem?

— Tivemos de levantar muito dinheiro para pagar um advogado para Tobias — contou Sartorius prontamente. — Ia muito além das nossas possibilidades, sobretudo porque, independentemente disso, já estávamos endividados por conta da nova cozinha do restaurante, de um novo trator e de outras coisas que tínhamos para pagar. Por três anos ainda consegui pagar as prestações da dívida, mas depois... Os clientes foram embora. Precisei fechar o estabelecimento. Não fosse o Claudius, de um dia para o outro estaríamos na rua.

— Claudius Terlinden? — perguntou Pia e sacou seu bloco. De repente, ela entendeu o que Andrea Wagner quisera dizer recentemente com a observação de que não queria cair na mesma situação dos Sartorius. Preferia ir trabalhar a depender de Claudius Terlinden.

— Sim. Claudius foi o único que nos apoiou. Pagou o advogado e, mais tarde, ia regularmente visitar o Tobias na prisão.

— Sei.

— A família Terlinden vive em Altenhain há exatamente o mesmo tempo que a nossa. O bisavô de Claudius era o ferreiro do vilarejo, até que fez uma descoberta técnica que lhe deu a chance de abrir uma metalúrgica. Por fim, o pai do Claudius abriu uma empresa a partir disso e construiu a mansão lá em cima, junto da floresta — contou Hartmut Sartorius. — Os Terlindens sempre tiveram uma posição social e fizeram muito pelo vilarejo, por seus empregados e pelas suas famílias. Hoje já não precisariam disso, mas o Claudius ouve todos com atenção. Ele ajuda quem está em dificuldade. Sem seu apoio, as associações da cidade não teriam chance alguma. Há alguns anos deu uma nova viatura ao corpo de bombeiros; é diretor da associação esportiva e patrocina o primeiro e o segundo times. Até o campo de futebol com grama sintética a associação deve a ele.

Por um momento, ficou pensativo, com o olhar distante, mas Bodenstein e Pia evitaram interromper o fluxo de seu discurso. Após certo tempo, Sartorius continuou a falar.

— O Claudius até ofereceu um emprego para o Tobias em sua empresa. Até que ele encontrasse outra coisa. Antigamente, o Lars também era o melhor amigo do Tobias. Ele vivia aqui em casa, como um segundo filho, e o Tobias também se sentia em casa com os Terlindens.

— Lars — observou Pia. — Ele é deficiente mental, não é?

— Ah, não, não o Lars. — Sartorius balançou enfaticamente a cabeça. — Esse é o Thies, o mais velho dos dois. E também não é deficiente mental. O Thies é autista.

— Se bem me lembro — disse Bodenstein, que, com o auxílio de Pia, tinha se informado muito bem sobre o antigo caso —, na época, Claudius Terlinden também chegou a ser suspeito. Seu filho não afirmou que o Terlinden tinha tido um caso com a Laura? Na verdade, ele pode não gostar muito do Tobias.

— Não creio que tenha havido alguma coisa entre o Claudius e a garota — respondeu Sartorius após uma rápida reflexão. — A menina era bonita e um pouco atrevida. A mãe dela era empregada lá na mansão, e, por isso, a Laura vivia lá. Ela havia contado para o Tobias que o Claudius andava atrás dela, só para deixá-lo com ciúme. Ela ficou muito magoada por ele ter terminado com ela. Mas o Tobias estava completamente apaixonado pela Stefanie; a Laura já não tinha nenhuma chance. Hum, além disso, ela era totalmente diferente, a Stefanie. Uma verdadeira mulher feita, muito bonita e altiva.

— Branca de Neve — disse Pia.

—É, assim era chamada, depois que recebeu o papel.

— Que papel? — quis saber Bodenstein.

— Ah, em uma peça de teatro da escola. As outras meninas ficaram morrendo de inveja. Afinal de contas, a Stefanie era nova na escola e, apesar disso, logo recebeu o papel principal mais cobiçado no grupo de teatro.

— Mas a Laura e a Stefanie eram amigas, não eram? — indagou Pia.

— As duas, mais a Nathalie, estavam na mesma classe, se entendiam bem e faziam parte da mesma turminha. — Os pensamentos de Sartorius vagueavam em um passado pacífico.

— Quem fazia parte da turma?

— Laura, Nathalie e os meninos: Tobias, Jörg, Felix, Michael. Quando a Stefanie chegou a Altenhain, logo passou a fazer parte do grupo.

— E, por causa dela, o Tobias terminou com a Laura.

— Foi.

— Mas depois foi a Stefanie que terminou com ele. Por quê?

— Isso eu não sei muito bem. — Sartorius ergueu os ombros. — Quem é que sabe o que se passa na cabeça dos jovens? Disseram que ela tinha se apaixonado pelo professor.

— Por Gregor Lauterbach?

— É. — Sua expressão anuviou-se. — Usaram isso para fabricar um motivo diante do tribunal. Tobias teria ficado com ciúme por causa do professor e teria, então... matado Stefanie. Mas isso é um absurdo.

— Quem ficou com o papel principal depois que Stefanie já não podia atuar?

— Se bem me lembro, foi Nathalie.

Pia deu uma olhada para Bodenstein.

— Nathalie, ou seja, Nadja — disse ela — sempre foi leal a seu filho. Até hoje. Por quê?

— Os Ungers são nossos vizinhos encostados — respondeu Sartorius. — A Nathalie era como uma irmã mais nova para o Tobias. Mais tarde, ela tornou-se sua melhor amiga. Ela era... sua companheira. Era bastante desinibida e, principalmente, não era extravagante. Uma garota que topava qualquer parada. O Tobias e seus amigos sempre a trataram como um menino, porque ela participava de tudo. Andava de ciclomotor, subia nas árvores e se pegava com eles quando ainda eram crianças.

— Voltando ao Claudius Terlinden — começou Bodenstein, mas, nesse momento, Behnke, seguido por outros dois agentes, entrou com passos firmes no restaurante pela porta dos fundos, que estava apenas encostada. De manhã, Bodenstein o encarregara de conduzir a busca pela casa. Ele se postou diante da mesa, com os colegas como dois ajudantes de campo ao seu lado.

— Encontramos uma coisa interessante no quarto do seu filho, senhor Sartorius.

Pia notou o brilho triunfante nos olhos de Behnke e o traço de arrogância em sua boca. Em situações como essa, ele sentia prazer em mostrar a superioridade que possuía graças a seu cargo. Uma característica mesquinha, que Pia abominava profundamente.

Como que tocado por uma varinha mágica, Sartorius abateu-se novamente.

— Isto — anunciou Behnke sem desviar o olhar de Sartorius — estava no bolso traseiro de uns jeans no quarto do seu filho. — Certo da vitória, dilatou as asas do nariz. — Isto pertence ao seu filho? Hum? Acho que não! Aliás, aqui no verso estão as iniciais, escritas com marcador permanente. Dê só uma olhada!

Bodenstein pigarreou enfaticamente e esticou a mão, fazendo ainda um movimento com o indicador, que o exortava a entregar-lhe o material. Pia seria capaz de dar um beijo em seu chefe por isso. Precisou se conter para não deixar escapar um largo sorriso. Sem palavras ostensivas, ele colocou Behnke dentro dos seus limites — e isso diante dos colegas da Polícia Científica. Quase dava para ouvir o ranger contrariado dos dentes de Behnke, quando ele, de má vontade, entregou ao chefe o saco plástico com seu espólio.

— Obrigado — disse Bodenstein, sem nem sequer olhar para ele. — Vocês podem continuar o serviço lá fora.

O rosto magro de Behnke primeiro ficou pálido, depois, vermelho de raiva por causa dessa repreensão. Seu olhar passou pelo de Pia, mas ela conseguiu manter uma expressão totalmente imparcial. Enquanto isso, Bodenstein observou minuciosamente o objeto no saco plástico e franziu a testa.

— Parece ser o celular da Amelie — disse sério, quando Behnke e os outros dois agentes já tinham saído. — Como pode ter ido parar no bolso das calças do seu filho?

Hartmut Sartorius estava pálido e abanava a cabeça, perturbado.

— Eu... Eu não faço ideia — sussurrou. — Realmente não sei.

 

O celular de Nadja tocou e vibrou, mas ela apenas deu uma rápida olhada no display e deixou-o novamente de lado.

— Atenda de uma vez. — A melodia começou a irritar Tobias. — Ele não vai nos deixar em paz.

Ela pegou o aparelho e atendeu.

— Oi, Hartmut — disse, e olhou para Tobias. Involuntariamente, ele se levantou. O que seu pai queria com Nadja?

— Ahn?... Sei... Sei, entendo. — Ela ouvia sem tirar os olhos dele. — Não... Sinto muito. Ele não está aqui... Não, não sei onde poderia estar. Acabei de chegar de Hamburgo... Sim, sim, claro. Assim que ele me ligar, digo a ele.

Ela desligou. Por um momento, fez-se silêncio.

— Você mentiu — constatou Tobias. — Por quê?

Nadja não respondeu de imediato. Baixou a cabeça, suspirou. Quando voltou a erguer o olhar, lutou contra as lágrimas.

— A polícia está revistando a casa de vocês — disse, então, com voz reprimida. — Querem falar com você.

Uma revista? Por quê? Tobias ergueu-se abruptamente. Não podia deixar seu pai sozinho em uma situação como aquela, de maneira alguma. De todo modo, fazia muito tempo que ele tinha ultrapassado o limite do suportável.

— Por favor, Tobi! — pediu Nadja. — Não vá até lá! Eu... eu... não vou deixar que prendam você de novo!

— E quem disse que eles querem me prender? — respondeu Tobias, surpreso. — Provavelmente só querem me fazer algumas perguntas.

— Não! — ela deu um salto, a cadeira rangeu no chão de granito. Sua expressão era de desespero, as lágrimas brotavam de seus olhos.

— Mas o que você tem?

Ela enlaçou os braços ao redor de seu pescoço e apertou-se contra ele. Tobias não estava entendendo o porquê de seu comportamento. Acariciou suas costas e segurou-a em seus braços.

— Eles encontraram o celular da Amelie em um dos seus jeans. — Sua voz soou abafada em seu pescoço. Isso tirou a fala de Tobias. Perturbado, soltou-se do abraço de Nadja. Devia se tratar de um engano! Como o celular da Amelie tinha ido parar nos seus jeans?

— Não vá — implorou Nadja. — Vamos para algum lugar! Bem longe, até tudo aqui ser esclarecido!

Tobias ficou mudo, com o olhar perdido. Com esforço, tentou manter o assombro sob controle. Cerrou os punhos e voltou a abri-los. O que teria acontecido nas horas em que ele tinha perdido a memória?

— Eles vão prender você! — disse Nadja, de certo modo já controlada, e enxugou as lágrimas do rosto com as costas da mão. — Você também sabe disso! Além do mais, você já não tem nenhuma chance.

Ela tinha razão, ele sabia disso. Os acontecimentos estavam se repetindo praticamente do mesmo modo sinistro. Antes, tinha sido o colar de Laura, encontrado na leiteria e considerado indício de sua culpa. Ele sentiu a comichão do pânico subir pelas costas e afundou pesadamente na cadeira. Não havia dúvida, ele era o criminoso ideal. Assim que se apresentasse, iam usar o fato de que o celular de Amelie havia sido encontrado no bolso de suas calças e dar-lhe a corda para ele se enforcar. De repente, o antigo tormento voltou a irromper. Como um pus tóxico, as dúvidas sobre si mesmo arrastaram-se por suas veias, por seu corpo, por todas as circunvoluções de seu cérebro. Assassino, assassino, assassino! Disseram isso a ele por tanto tempo que ele próprio já estava convencido de que tinha cometido os crimes. Olhou para Nadja.

— Tudo bem — sussurrou com voz rouca para ela. — Não vou até lá. Mas... E se tiver sido eu mesmo que a matei?

 

— Nenhuma palavra para a imprensa ou a quem quer que seja a respeito do celular! — ordenou Bodenstein. Todos os agentes que haviam participado da busca na casa estavam reunidos junto ao portão de entrada. Chovia a cântaros e, além disso, a temperatura nas últimas 24 horas havia caído dez graus. À chuva se misturavam os primeiros flocos de neve.

— Mas por que não? — protestou Behnke. — O cara some do mapa na maior tranquilidade e nós ficamos parados, feito idiotas!

— Não quero provocar uma caça às bruxas — respondeu Bodenstein. — Os ânimos no vilarejo já estão exaltados o suficiente. Quero um bloqueio absoluto das informações até eu conversar com Tobias Sartorius. Estamos entendidos?

Os homens e as mulheres fizeram que sim, apenas Behnke cruzou obstinadamente os braços e abanou a cabeça. A humilhação de antes estava em brasa como uma tocha acesa, Bodenstein sabia disso. Além do mais, Behnke entendera exatamente o que seu serviço na Polícia Científica significava: esse rebaixamento era uma punição. Na conversa particular que tivera com ele, Bodenstein tinha deixado claro que estava profundamente decepcionado com a indiscrição de Behnke. Nos últimos 12 anos, Bodenstein sempre remediara com generosidade os problemas que Behnke costumava criar com seu temperamento explosivo. Mas agora disse claramente que isso estava acabado. Essa violação das regras tampouco podia ser desculpada com problemas familiares. Bodenstein esperava que Behnke seguisse suas instruções, pois, do contrário, já não haveria possibilidade de livrá-lo de uma suspensão iminente. Virou-se e seguiu Pia a passos rápidos até o carro.

— Comunique que Tobias Sartorius deve ser procurado. — Deu partida no motor, mas não partiu de imediato. — Droga, eu tinha certeza de que ainda íamos encontrar alguma pista da garota no sítio!

— Você acha que foi ele, não acha? — Pia pegou o telefone e ligou para Ostermann. Os limpadores do para-brisa arranhavam o vidro, o aquecedor estava ligado no máximo. Bodenstein mordeu pensativo o lábio inferior. Para ser sincero, não estava se concentrando em nada. Sempre que tentava pensar no caso, a imagem de Cosima nua, rolando em lençóis com um homem estranho, formava-se em sua mente. Será que no dia anterior ela havia encontrado o cara de novo? Quando chegou em casa, tarde da noite, ela já estava na cama dormindo. Ele aproveitou a oportunidade para espiar seu celular e constatou que todas as chamadas e todas as mensagens tinham sido apagadas. Desta vez, ele já não sentia a consciência pesada, nem mesmo quando vasculhava sua bolsa e seu mantô. Já estava quase condenando sua suspeita novamente quando encontrou dois preservativos em sua carteira, escondidos entre os cartões de crédito.

— Oliver! — A voz de Pia sobressaltou-o em seus pensamentos. — Kai deparou com um trecho no diário da Amelie, em que ela escreve que seu vizinho a esperava toda manhã para lhe dar carona até o ponto de ônibus.

— E daí?

— O vizinho é Claudius Terlinden.

Bodenstein não entendeu aonde Pia queria chegar. Não estava conseguindo raciocinar. Sua cabeça não estava absolutamente livre para conduzir essa investigação.

— Precisamos conversar com ele — disse Pia com um vestígio de impaciência na voz. — Ainda sabemos muito pouco do ambiente dessa moça para estabelecer o Tobias Sartorius como o único criminoso possível.

—É, você tem razão. — Ele engatou a ré e pegou a rua.

— Cuidado! O ônibus! — gritou Pia, mas era tarde demais. Pneus cantaram no asfalto, metal colidiu contra metal, e o carro foi sacudido por um forte choque. A cabeça de Bodenstein bateu duramente contra o vidro lateral.

— Ah, que ótimo. — Pia soltou seu cinto e desceu do carro. Perturbado, Bodenstein olhou para trás, por cima do ombro, e reconheceu através do vidro molhado pela chuva os contornos de um veículo grande. Uma coisa quente escorria por seu rosto, ele tocou a face e observou confuso o sangue em sua mão. Somente então percebeu o que tinha acontecido. Só de pensar em sair na chuva naquele momento e discutir, no meio da rua, com um motorista de ônibus irritado o repugnava. Tudo o repugnava. A porta foi aberta.

—Nossa, você está sangrando! —A voz de Pia primeiro soou assustada, mas depois ela começou a rir. Atrás dela, na rua e embaixo de chuva, as pessoas começaram a se aglomerar. Pelo visto, quase todos os colegas que haviam trabalhado na busca queriam examinar os danos à BMW e ao ônibus.

— Qual é a graça? — Bodenstein olhou ofendido para ela.

— Me desculpe, por favor. — A tensão das últimas horas descarregou-se em um ataque de riso quase histérico. — Mas é que, de algum modo, pensei que seu sangue fosse azul, e não vermelho.

 

Já estava quase escuro quando Pia conduziu a BMW bastante amassada, mas ainda funcionando, pelo portão da propriedade dos Terlindens, que, desta vez, estava aberto. Foi puro acaso a doutora Lauterbach ter parado em sua “filial”, como a chamava. Normalmente ela só tinha hora em seu consultório, que ficava na antiga prefeitura de Altenhain, às quartas-feiras à tarde, mas estava justamente indo buscar a ficha de um paciente antes de visitá-lo quando ocorreu a batida na rua. Ela cuidou com competência e rapidez do corte na cabeça de Bodenstein e o aconselhou a passar o resto do dia deitado, pois não se descartava um traumatismo craniano. Todavia, ele se recusou resolutamente a repousar. Pia, que logo voltou a controlar seu ataque de riso, imaginou o que estaria preocupando seu chefe, embora ele não tivesse mencionado Cosima nem sua suspeita.

Passaram pela rampa curva, iluminada por postes baixos e que atravessava um jardim com esplêndidas árvores antigas, sebes de buxos e canteiros de flores desfolhados pelo inverno. Atrás de uma curva, a casa aparecia no crepúsculo nebuloso do anoitecer. Uma mansão antiga, em estilo enxaimel, com sacadas, torres, telhados com empenas pontiagudas e janelas iluminadas, que convidavam a entrar. Ela dirigiu até o pátio interno e parou bem na frente da escada de três degraus. Debaixo do beiral sustentado por ombreiras de madeira maciça, um arranjo de abóboras decoradas para o Halloween lhe sorria. Pia tocou a campainha, e imediatamente, no interior da casa, ouviu-se o latido de vários cães. Pelos vidros foscos e antiquados da porta de entrada, percebeu indistintamente uma matilha inteira, que pulava latindo junto à porta. O que pulava mais alto era um Jack Russel Terrier de pernas compridas, que ladrava como louco. Um vento frio trouxe a chuva fina, que aos poucos foi se transformando em pequenos e afiados cristais de neve, para debaixo do beiral. Pia tocou novamente a campainha, o que fez com que o latido dos cães aumentasse em um crescendo ensurdecedor.

— Acho bom alguém vir logo abrir — reclamou ela, e levantou a gola de seu casaco jeans.

— Mais cedo ou mais tarde alguém virá. — Bodenstein encostou-se na balaustrada de madeira, sem esboçar nenhuma expressão. Pia olhou para ele, aborrecida. Às vezes, sua paciência estoica a tirava do sério. Finalmente, passos se aproximaram, os cães emudeceram e desapareceram como num passe de mágica. A porta se abriu, e no vão apareceu uma loura elegante, com ar juvenil, vestindo um colete debruado em pele, por cima de um pulôver de gola rulê, uma saia xadrez na altura dos joelhos e botas de cano longo da moda. À primeira vista, Pia teria dado uns 25 anos para a mulher, que tinha um rosto liso, de idade indefinida, e grandes olhos azuis de boneca, com os quais examinou primeiro Pia, depois Bodenstein, com uma reserva educada.

— Senhora Terlinden? — Pia procurou nos bolsos do colete acolchoado, depois no casaco jeans por baixo dele, seu distintivo, enquanto Bodenstein permaneceu mudo como um peixe. A mulher cumprimentou com a cabeça. — Meu nome é Kirchhoff, este é meu colega Bodenstein. Somos da K 11. Seu marido está em casa?

— Não, sinto muito. — Sorrindo amigavelmente, a senhora Terlinden lhes estendeu a mão, que denunciou sua verdadeira idade. Ela devia ter passado dos 50 há alguns anos. Repentinamente, seu traje juvenil pareceu um disfarce. — Posso ajudá-los?

Ela não fez nenhuma menção de convidá-los a entrar. Pela porta aberta, contudo, Pia deu uma rápida olhada no interior da casa e viu uma larga escadaria, cujos degraus eram revestidos de tapete bordô, um hall de entrada com piso de mármore no estilo tabuleiro de xadrez e sombrias pinturas a óleo, emolduradas e penduradas em paredes altas e forradas de papel de parede amarelo-açafrão.

— A senhora deve saber que a filha de seu vizinho está desaparecida desde sábado — começou Pia. — Ontem, os cães farejadores encontraram vários vestígios dela nas proximidades de sua casa, e estamos nos perguntando por quê.

— Não é de admirar. Amelie está sempre aqui em casa. — A voz da senhora Terlinden soou como um gorjeio, seu olhar passou de Pia a Bodenstein e voltou para a primeira. — Ela é amiga de nosso filho Thies.

Com um gesto que pareceu inconsciente, passou cuidadosamente a mão nos cabelos em perfeito corte estilo pajem e voltou a dar uma rápida olhada, um pouco irritada, para Bodenstein, que se mantinha em silêncio em segundo plano. O curativo em sua testa resplandecia, extremamente branco, na luz crepuscular.

— Apenas amiga? Não seria ela namorada de seu filho?

— Não, não, isso não. Eles só se entendem bem, os dois — respondeu a senhora Terlinden, com discrição. — A moça não teme o contato e não o deixa perceber que ele... é diferente.

Embora fosse Pia quem estivesse conduzindo a conversa, os olhares da senhora Terlinden volta e meia se desviavam para Bodenstein, como se esperasse seu apoio. Pia conhecia esse tipo de mulher, essa mistura bem ensaiada de desamparo feminino e coquetismo, que em quase todo homem despertava o instinto de proteção. A minoria das mulheres era realmente assim; a maioria, com o passar do tempo, descobria esse papel como método eficaz de manipulação.

— Gostaríamos de conversar com seu filho — disse ela. — Talvez ele possa nos falar alguma coisa sobre Amelie.

— Infelizmente, isso não será possível. — Christine Terlinden puxou a gola de pele de seu colete, passou novamente a mão por seu elmo louro. — Thies não está bem. Ontem teve uma crise, tivemos de chamar a médica.

— Que tipo de crise? — interrompeu Pia. Se a senhora Terlinden esperava que a polícia se contentasse com vagas alusões, estava enganada. A pergunta de Pia pareceu incomodá-la.

— Bem, o Thies é muito instável. Às vezes, pequenas alterações em seu ambiente já são capazes de desestabilizá-lo por completo.

A resposta soou como se tivesse sido decorada. A falta de qualquer empatia em suas palavras era notável. Era evidente que a senhora Terlinden estava pouco interessada no que tinha ocorrido à vizinha. Nem por cortesia perguntara a respeito. Isso era estranho. Pia se lembrou das suposições das mulheres na loja do vilarejo, que consideravam totalmente possível Thies ter feito algo à garota durante suas caminhadas furtivas à noite, pelas ruas.

— O que seu filho faz durante o dia? — Pia quis saber. — Ele trabalha?

— Não. Pessoas estranhas o deixam muito estressado — respondeu Christine Terlinden. — Ele cuida do nosso jardim e dos jardins de alguns vizinhos. É um ótimo jardineiro.

Involuntariamente ocorreu a Pia a antiga canção de Reinhard Mey, que a escrevera como paródia do filme de Edgar Wallace, dos anos 1960. O Assassino é Sempre o Jardineiro. Seria tão simples assim? Será que os Terlindens sabiam de mais coisas e estavam escondendo seu filho deficiente para protegê-lo?

 

A chuva finalmente se transformara em neve. Uma camada fina e branca formara-se no asfalto da rua, e Pia teve muita dificuldade para frear a pesada BMW com pneus de verão na frente do portão da empresa de Terlinden.

— Você devia mandar trocar os pneus — disse ao chefe. — Pneus de inverno, de O a P.

— O quê? — Bodenstein franziu a testa, irritado. Ele estava com a cabeça em outro lugar, mas certamente não no trabalho. Seu celular zumbiu.

— Olá, doutora Engel... — respondeu após dar uma olhada no display.

— De outubro até a Páscoa — murmurou Pia, abaixando o vidro e mostrando seu distintivo ao porteiro. — O senhor Terlinden está nos esperando.

Embora isso não fosse totalmente verdade, o homem apenas fez um gesto afirmativo com a cabeça, voltou correndo para sua guarita aquecida e abriu a cancela. Pia acelerou com cuidado, para não derrapar, e conduziu o automóvel pelas vagas vazias até a fachada de vidro do prédio principal. Bem na frente da porta de entrada estava estacionada uma Mercedes preta, classe S. Pia parou atrás dela e desceu. Será que Bodenstein não podia terminar logo sua conversa com a Engel? Seus pés estavam congelados, e a rápida viagem por Altenhain quase não fizera funcionar o aquecimento do carro. A nevada começou a ficar mais densa. Como faria mais tarde para levar a BMW até Hofheim sem cair na valeta? Seu olhar deparou com um amassado horrível no para-lama traseiro do lado esquerdo da Mercedes preta, e ela olhou com mais cuidado. Muito antigo aquele estrago não podia ser, do contrário, já teria formado ferrugem.

Ouviu uma porta de carro sendo fechada atrás dela e virou-se. Bodenstein segurou a porta para ela, e ambos entraram no hall. Atrás de um balcão de nogueira lustrada estava sentado um rapaz; na parede branca e alta atrás dele sobressaía apenas o nome TERLINDEN em letras de forma douradas. Simples, porém imponentes. Pia explicou-lhe o que desejava, e, após um breve telefonema, ele acompanhou ambos a um elevador no fundo do hall. Calados, subiram ao quarto andar, onde já eram esperados por uma elegante senhora de meia-idade. Pelo visto, ela já havia terminado o expediente, pois já estava de mantô, cachecol e com a bolsa no ombro, mas os conduziu devidamente à sala de seu chefe.

Depois de tudo o que Pia ouvira sobre Claudius Terlinden, ela esperava um patriarca jovial e, no início, ficou um pouco decepcionada ao ver sentado atrás de uma mesa totalmente sobrecarregada um homem de aparência bastante medíocre, vestindo terno e gravata. Ele se levantou quando eles entraram, abotoou o paletó e foi ao encontro deles.

— Boa-noite, senhor Terlinden. — Bodenstein despertara de sua imobilidade. — Desculpe-nos por incomodá-lo tão tarde, mas já tentamos várias vezes encontrar o senhor.

— Boa-noite — respondeu Claudius Terlinden, sorrindo. — Minha secretária me passou seu recado. Eu ia mesmo entrar em contato amanhã cedo.

Ele tinha quase 60 anos; seus cabelos bastos e escuros eram grisalhos nas têmporas. Observado de perto, parecia tudo menos medíocre, constatou Pia. Claudius Terlinden não era um homem bonito; seu nariz era grande demais, seu queixo, muito anguloso, sua boca, um pouco carnuda demais para um homem, mas, apesar disso, ele irradiava alguma coisa que a fascinava.

— Meu Deus! Suas mãos estão geladas! —constatou ele com preocupação, ao estender-lhe a mão agradavelmente quente e seca e, brevemente, colocar a outra mão sobre a dela. Pia estremeceu, como se tivesse tomado um choque elétrico. Uma breve expressão de espanto esgueirou-se pelo rosto de Terlinden.

— Posso lhes oferecer um café ou um chocolate quente, para que descongelem um pouco?

— Não, não, obrigada — respondeu Pia, insegura com a intensidade de seu olhar, que, involuntariamente, fez o sangue subir-lhe ao rosto. Ficaram se olhando um pouco mais do que o necessário. O que acabara de acontecer? Tratava-se de uma simples descarga estática, a ser explicada pela física, ou algo totalmente diferente?

Antes que ela ou Bodenstein pudessem fazer a primeira pergunta, Terlinden quis saber de Amelie.

— Estou muito preocupado — disse seriamente. — Amelie é filha do meu advogado, eu a conheço bem.

Pia lembrou-se vagamente de que, na verdade, pretendia abordá-lo com rigor e acusá-lo de ter ficado de olho na garota. Mas, de repente, essa intenção como que desapareceu por completo.

— Infelizmente não temos nenhuma informação nova — disse Bodenstein. Sem longos preâmbulos, entrou logo no assunto. — Contaram-nos que o senhor teria visitado Tobias Sartorius algumas vezes na prisão. Que razão o senhor tinha para isso? E por que o senhor assumiu as dívidas dos pais dele?

Pia enfiou as mãos nos bolsos do colete e tentou se lembrar o que tinha de tão urgente para perguntar a Terlinden. Mas seu cérebro ficou repentinamente tão vazio como um disco rígido recém-formatado.

— Depois desse caso horrível, o Hartmut e a Rita passaram a ser tratados no vilarejo como dois leprosos — respondeu Claudius Terlinden. — Não os considero culpados de nada. Independentemente do que seu filho possa ter feito, eles realmente não foram responsáveis.

— Mesmo sabendo que, na época, Tobias suspeitava de que o senhor tivesse alguma relação com o desaparecimento das duas moças? O senhor acabou ficando em uma situação complicada por causa do depoimento dele.

Terlinden fez que sim com a cabeça. Estava com as mãos nos bolsos das calças e a cabeça abaixada. Sua autoconfiança não parecia ser prejudicada pelo fato de Bodenstein ser bem mais alto do que ele, que tinha de levantar a cabeça para olhá-lo.

— Não fiquei chateado com o Tobias por causa disso. Ele estava sob uma imensa pressão, só queria se defender com todos os meios. E realmente foi verdade que, na época, Laura me colocou por duas vezes em situações extremamente embaraçosas. Como filha da nossa empregada, ela estava sempre em nossa casa e imaginou que estivesse apaixonada por mim.

— Que tipo de situações eram essas? — indagou Bodenstein.

— Na primeira vez, ela se deitou na minha cama quando eu estava no banho — respondeu Terlinden com voz objetiva. — Na segunda, ela se despiu na minha frente, na sala. Minha mulher tinha viajado, e Laura sabia disso. Ela me disse, com todas as letras, que queria dormir comigo.

Por razões incompreensíveis, suas palavras irritaram Pia. Evitou olhá-lo e, em vez disso, observou a decoração de seu escritório. A majestosa mesa de madeira maciça, com imponentes entalhes nas laterais, repousava em quatro gigantescas patas de leão. Era de supor que fosse muito antiga e valiosa, mas raramente Pia vira algo tão feio. Ao lado da mesa havia um globo antigo, e nas paredes estavam pendurados quadros sombrios, expressionistas, em molduras douradas simples, semelhantes àqueles que ela entrevira anteriormente por cima dos ombros da senhora Terlinden em sua mansão.

— E o que aconteceu depois? — quis saber Bodenstein.

— Quando recusei, ela desatou a chorar e saiu correndo. Exatamente nesse momento, meu filho entrou.

Pia pigarreou. Havia recuperado o autocontrole.

— Várias vezes o senhor deu carona a Amelie Fröhlich em seu carro — disse ela. — Foi o que ela escreveu em seu diário. Ela tinha a impressão de que o senhor a esperava regularmente.

— Esperar, não esperava — Claudius Terlinden sorriu —, mas cheguei a lhe dar carona algumas vezes, quando ela me encontrava por acaso no caminho para o ponto de ônibus ou saindo do vilarejo e subindo a montanha.

Ele falava com tranquilidade e não chegava a dar a impressão de ter a consciência pesada.

— O senhor arrumou para ela o emprego de garçonete no Corcel Negro. Por quê?

— Amelie queria ganhar dinheiro, e o dono do Corcel Negro estava procurando uma garçonete. — Levantou os ombros. — Conheço todo mundo aqui no vilarejo e, quando posso ajudar alguém, faço isso de bom grado.

Pia observou o homem. Seu olhar penetrante encontrou o dela, que resistiu a ele. Ela fazia perguntas, e ele respondia. Ao mesmo tempo, corria entre eles algo totalmente diferente, mas o quê? Em que consistia essa atração peculiar que aquele homem exercia sobre ela? Seriam seus olhos escuros? Sua voz agradável e sonora? A aura de autoconfiança imperturbável que dele irradiava? Não era de admirar que ele tivesse impressionado uma jovem como Amelie, se até ela, que era adulta, estava fascinada por ele.

— Quando viu Amelie pela última vez? — voltou a perguntar Bodenstein.

— Não sei direito.

— Mas sabe me dizer onde esteve no último sábado à noite? A nós interessa concretamente o período entre as 22h e as 2h da manhã.

Claudius Terlinden tirou as mãos dos bolsos e cruzou os braços sobre o peito. Nas costas de sua mão esquerda via-se um arranhão vermelho, que parecia bastante recente.

— À noite saí para jantar com minha mulher, em Frankfurt — respondeu ele após uma breve reflexão. — Como Christine estava com uma forte dor de cabeça, deixei-a primeiro em casa, depois vim para cá e guardei sua joia no cofre.

— A que horas voltou de Frankfurt?

— Por volta das dez e meia.

— Então o senhor passou duas vezes na frente do Corcel Negro — notou Pia.

— Sim. — Terlinden olhava para ela com a concentração de um candidato em um show televisivo, quando o condutor do programa fazia a pergunta decisiva, enquanto às perguntas de Bodenstein ele respondia quase casualmente. Essa atenção irritou Pia, e Bodenstein também pareceu perceber.

— E não houve nada que tivesse chamado sua atenção? — perguntou ele. — Não viu alguém na rua? Alguém passeando, talvez?

— Não, nada chamou minha atenção — respondeu Claudius Terlinden, pensativo. — Mas percorro esse trecho algumas vezes todos os dias e não presto muita atenção nas redondezas.

— De onde vem esse arranhão na sua mão? — perguntou Pia.

O rosto de Terlinden obscureceu. Já não sorria.

— Tive uma briga com meu filho.

Thies — claro! Pia tinha quase esquecido o principal motivo que a levara até ali! Bodenstein também parecia já não se lembrar disso, mas contornou a situação com elegância.

— Justamente — disse ele. — Sua mulher nos contou que o seu filho Thies teve uma espécie de crise ontem à noite.

Claudius Terlinden hesitou por um instante, depois fez que sim.

— De que tipo de crise se trata? Ele é epilético?

— Não. Thies é autista. Vive em seu próprio mundo e sente qualquer alteração em seu ambiente habitual como ameaça. Por isso, reage com um comportamento autoagressivo. — Terlinden suspirou. — Temo que o desaparecimento de Amelie tenha desencadeado sua crise.

— No vilarejo corre o rumor de que Thies poderia ter alguma relação com o caso — disse Pia.

— Isso é absurdo — contestou Claudius Terlinden sem nenhuma indignação; ao contrário, reagiu com indiferença, como se já conhecesse suficientemente esse boato. — O Thies gosta muito da moça. Mas algumas pessoas na cidade acham que o lugar dele é no manicômio. Obviamente não dizem isso na minha cara, mas eu sei.

— Gostaríamos de conversar com ele.

— Infelizmente, no momento, isso não é possível. — Terlinden balançou a cabeça, lamentando. — Tivemos de levá-lo ao hospital psiquiátrico.

— O que acontece com ele lá? —A Pia logo ocorreram imagens terríveis de pessoas amarradas e tratadas com eletrochoque.

— Tentam acalmá-lo.

— Quanto tempo levará até podermos conversar com ele?

Claudius Terlinden ergueu os ombros.

— Não sei. Uma crise grave como essa, Thies já não tinha há muitos anos. Temo que, por causa desse acontecimento, ele retroceda completamente em seu desenvolvimento. Seria uma catástrofe. Para nós e para ele.

Terlinden prometeu que informaria Bodenstein e Pia assim que os médicos que estavam tratando de Thies dessem sinal verde para uma conversa com ele. Ao acompanhá-los até o elevador e estender a mão para despedir-se deles, voltou a sorrir.

— Foi um prazer tê-los conhecido — disse. Desta vez, seu contato não provocou em Pia nenhum choque elétrico, contudo, ela se sentiu particularmente perturbada quando a porta do elevadorpor fim se fechou atrás deles. Durante a descida, ela tentou dominar sua perturbação.

—É, ele ficou caidinho por você — notou Bodenstein. — E você por ele. — Em sua voz vibrou uma leve ironia.

— Que bobagem! — contestou Pia, e puxou o zíper de seu casaco até o queixo. — Só tentei avaliá-lo.

— E então? A que conclusão você chegou?

— Acho que ele foi sincero.

— Ah, é? Acho o contrário.

— Por quê? Ele respondeu a todas as perguntas, até mesmo às desagradáveis, sem hesitar. Por exemplo, não precisaria ter nos contado que, antigamente, Laura o colocou em situações embaraçosas.

— Justamente isso considero seu truque — respondeu Bodenstein. — Não é um acaso curioso que o filho de Terlinden tenha sido afastado da linha de tiro logo no momento em que a garota desapareceu?

O elevador parou no térreo, e as portas se abriram.

— Não avançamos nem um pouco — constatou Pia com repentina lucidez. — Parece que ninguém viu a garota.

— Talvez simplesmente ninguém queira nos dizer — replicou Bodenstein. Atravessaram o hall, despediram-se com um gesto de cabeça do rapaz atrás do balcão da recepção e saíram. Um vento gelado assobiava contra eles. Pia apertou o controle remoto da chave do carro, e as portas da BMW se destravaram.

— Precisamos conversar mais uma vez com a senhora Terlinden. — Bodenstein permaneceu em pé ao lado da porta do passageiro e olhou para Pia por cima da capota do carro.

— Então você está desconfiando do Thies e do pai dele.

— É possível. O Thies fez alguma coisa à moça, e seu pai está querendo encobrir o fato enfiando o filho em um hospital psiquiátrico.

Entraram no carro. Pia deu partida no motor e passou sob o beiral protetor. Logo a neve cobriu o para-brisa, e, graças a sensíveis sensores, os limpadores foram acionados.

— Quero saber que médico tratou do Thies — disse Bodenstein pensativo. — E se no sábado à noite os Terlindens jantaram mesmo em Frankfurt.

Pia só fez que sim com a cabeça. O encontro com Claudius Terlinden deixara nela uma sensação discrepante. Em geral, ela não se deixava deslumbrar tão depressa por alguém, mas o sujeito a impressionara profundamente, e ela queria descobrir a razão.

 

Apenas o posto policial ainda tinha gente quando Pia entrou no prédio da Inspetoria Criminal Regional, às nove e meia da noite. Na altura de Kelkheim, a neve se transformara novamente em chuva, e, apesar do ferimento na cabeça, Bodenstein insistira em dirigir sozinho até sua casa. Na verdade, Pia também queria encerrar o expediente, pois Christoph certamente estaria esperando por ela, mas o encontro com Claudius Terlinden não a deixou tranquila. E Christoph entendia que volta e meia ela tinha de trabalhar até mais tarde.

Passou pelos corredores e pelas escadarias vazias até sua sala, acendeu a luz e sentou-se à sua escrivaninha. Christine Terlinden dera a eles o nome da médica que cuidava de Thies havia muitos anos. Não era de surpreender que se tratasse da doutora Daniela Lauterbach; afinal, ela era uma vizinha de longa data dos Terlindens e, em situações de crise, podia atendê-los rapidamente.

Digitou sua senha no teclado. Desde que deixara o escritório de Claudius Terlinden, repassou várias vezes a conversa mentalmente, tentando se lembrar de cada palavra, de cada formulação e de cada alusão sutil. Por que Bodenstein estava tão convencido de que Terlinden estava envolvido no desaparecimento de Amelie, e ela, não? Teria a atração que ele exercera sobre ela turvado sua objetividade?

Lançou o nome de Terlinden em um site de busca e obteve milhares de resultados. Na meia hora seguinte, descobriu alguma coisa sobre sua empresa e sua família, bem como sobre o serviço social e beneficente de Claudius Terlinden em vários âmbitos. Era ativo em inúmeros conselhos administrativos e institucionais de diferentes associações e organizações, dera bolsas de estudo para jovens talentosos de famílias de baixa renda. Terlinden fazia muito pelos jovens. Por quê? Sua declaração oficial a respeito dizia que, como era uma pessoa que havia sido favorecida pelo destino, queria retribuir alguma coisa à sociedade. Um motivo totalmente nobre, ao qual não havia o que objetar. Mas não haveria mais alguma coisa escondida por trás disso? Ele afirmara ter rejeitado Laura Wagner por duas vezes, quando ela avançara claramente o sinal. Seria verdade? Pia clicou nas fotos dele que o site de busca encontrara e observou pensativa o homem que desencadeara nela sensações tão intensas. Será que a mulher dele sabia que ele gostava de garotas e, por isso, exagerava tanto nas roupas juvenis? Teria ele feito algo a Amelie porque ela se opusera a suas abordagens? Pia mordeu o lábio inferior. Simplesmente não queria acreditar nisso. Por fim, saiu da Internet e lançou o nome dele no POLAS, o sistema de busca do computador. Nada. Ele não tinha ficha na polícia, nunca tivera problemas com a lei. De repente, seu olhar parou em um linkinserido no canto inferior direito. Ela se animou. No domingo, 16 de novembro de 2008, à 1h15, alguém dera queixa contra Claudius Terlinden. Pia abriu o processo na tela. Seu coração começou a bater enquanto lia.

— Ora, vejam só— murmurou.

 

Quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Como todas as manhãs, o despertador tocou pontualmente às 6h30, mas, naquele dia, ele precisou tão pouco desse aviso quanto precisara nos últimos dias. Fazia tempo que Gregor Lauterbach estava acordado. Por medo das perguntas de Daniela, achava impossível voltar a dormir. Lauterbach se ergueu e se sentou na cama. Ele estava molhado de suor, sentia-se exausto. A perspectiva do dia que tinha pela frente, com inúmeros compromissos, desencorajou-o totalmente. Como poderia se concentrar enquanto aquela ameaça tiquetaqueava no fundo de sua mente como uma bomba traiçoeira? No dia anterior tinha encontrado outra carta anônima na correspondência do escritório, cujo conteúdo era ainda mais alarmante do que o da primeira:

Será que as suas impressões digitais ainda estão no macaco do carro que você jogou na fossa? A polícia vai acabar descobrindo a verdade, e sua hora vai chegar!

Quem sabia desses detalhes? Quem estava escrevendo essas cartas? E por que só agora, depois de onze anos? Gregor Lauterbach levantou-se e arrastou-se até o banheiro. Com as mãos apoiadas na pia, fitou no espelho seu rosto extenuado e por barbear. Não seria melhor pedir dispensa por motivo de doença, retirar-se até que a tempestade, que estava se levantando no horizonte, passasse ruidosamente por ele? Não, impossível. Ele tinha de continuar vivendo como antes, não podia, de maneira alguma, permitir que o deixassem inseguro. Seu plano de carreira com o cargo de Secretário Estadual de Educação e Cultura não estava terminado; do ponto de vista político, ele ainda podia ir muito mais longe se, naquele momento, não se deixasse intimidar pelas sombras do passado. Não podia permitir que um único erro, que, além do mais, já tinha onze anos, destruísse sua vida. Lauterbach esticou os ombros e lançou ao espelho um olhar decidido. Em seu atual cargo, ele dispunha de meios e possibilidades com os quais antes nunca ousara sonhar. E ele faria uso disso.

 

Ainda estava escuro quando Pia tocou a campainha junto ao portão fechado da propriedade dos Terlindens. Apesar de ser muito cedo, não demorou até que a voz da senhora Terlinden soasse no interfone. Logo depois, os portões se abriram como que por mágica. Pia sentou-se no banco do passageiro da viatura civil, ao lado de Bodenstein. Seguidos por uma radiopatrulha e um guincho, passaram por uma camada ainda virgem de neve ao longo da subida sinuosa. Christine Terlinden os esperava junto à porta da casa com um sorriso amigável, que, dadas as circunstâncias, era um cumprimento tão inadequado quanto cortês, do qual Pia, de sua parte, se poupou. Pelo menos para o senhor Terlinden aquele não ia ser um bom dia.

— Gostaríamos de falar com seu marido.

— Já o avisei. Ele virá logo. Entrem.

Pia apenas fez um gesto afirmativo com a cabeça, e Bodenstein também permaneceu calado. No dia anterior, Pia ainda havia ligado para ele e, em seguida, ficado meia hora ao telefone com o promotor público competente, que negara um mandado de prisão, mas autorizara um mandado de busca no automóvel de Terlinden e o solicitara ao tribunal. Estavam no imponente saguão e aguardavam. A dona da casa desaparecera; em algum cômodo distante, os cães latiam.

— Bom-dia!

Bodenstein e Pia olharam para cima, quando Claudius Terlinden descia a escada, vindo do primeiro andar, impecável de terno e gravata. Desta vez, sua aparição deixou Pia gelada.

— Vocês saem cedo de casa. — O dono da casa ficou sorrindo diante deles, sem estender-lhes a mão.

— De onde vem o amassado no para-lama de sua Mercedes? — perguntou Pia sem nenhum preâmbulo.

— Como? — Surpreso, ele levantou as sobrancelhas. — Não sei do que a senhora está falando.

— Então vou lhe dar uma dica. — Pia não tirou os olhos dele. — No domingo, um morador da Feldstraße deu queixa de um motorista que teria batido em seu carro à noite e fugido. Ele tinha estacionado o próprio carro às dez para a meia-noite na frente de casa, e à meia-noite e trinta e três estava, por acaso, em sua sacada, fumando um cigarro, quando ouviu uma batida. Conseguiu ver o carro do causador do acidente e até anotar a placa: MTK-T 801.

Terlinden não disse uma palavra. Seu sorriso tinha desaparecido. Um rubor que subia de seu pescoço espalhou-se por seu rosto.

— No dia seguinte, o homem recebeu uma ligação. — Pia percebeu que o atingira, e prosseguiu impiedosamente. — Do senhor. O senhor lhe propôs acertar toda a situação sem burocracia, e, de fato, o homem retirou a queixa. Infelizmente, ela não desapareceu do computador da polícia.

Claudius Terlinden fitou Pia com semblante inexpressivo.

— O que querem de mim? — perguntou ele, esforçando-se para controlar-se.

— Ontem o senhor mentiu para nós — respondeu ela, sorrindo amavelmente. — Como não preciso lhe explicar onde fica a Feldstraße, vou lhe perguntar mais uma vez: ao voltar da sua empresa, o senhor passou pelo Corcel Negro ou pegou o atalho pelo campo e depois a Feldstraße?

— O que significa tudo isso? — Terlinden virou-se para Bodenstein, que, no entanto, permaneceu calado. — Do que vocês estão querendo me culpar?

— Amelie Fröhlich desapareceu nessa noite — respondeu Pia no lugar de Bodenstein. — Foi vista pela última vez no Corcel Negro, mais ou menos na mesma hora em que o senhor passou por lá ao se dirigir para a sua empresa, ou seja, às dez e meia. Somente duas horas mais tarde, à meia-noite e meia, o senhor voltou para Altenhain, e vindo de uma direção diferente da que o senhor havia declarado.

Ele comprimiu os lábios e considerou-a com os olhos apertados.

— E a partir disso a senhora conclui que eu estava à espreita da filha de um empregado, que a arrastei para meu carro e a matei?

— Isso foi uma confissão? — perguntou Pia friamente.

Para irritação dela, Terlinden sorriu quase achando graça.

— De maneira alguma — respondeu.

— Então nos diga o que fez entre as dez e meia e meia-noite e meia. Ou será que não foi às dez e meia, e sim dez e quinze?

— Foi dez e meia. Eu estava em meu escritório.

— O senhor precisou de duas horas para guardar a joia da sua esposa no cofre? — Pia abanou a cabeça. — Acha que somos idiotas ou o quê?

A situação mudara cento e oitenta graus. Claudius Terlinden estava em maus lençóis e sabia disso. Porém, mesmo naquele momento, manteve o sangue-frio.

— Com quem saiu para jantar? — perguntou Pia. — E onde?

O silêncio persistiu. Então ocorreram a Pia as câmeras que ela vira junto ao portão da empresa de Terlinden quando passara recentemente pelo terreno ao voltar da casa dos Wagners.

— Poderíamos ver as fitas das câmeras de vigilância que ficam junto ao portão da sua empresa —sugeriu ela. — Assim, o senhor poderia nos fornecer a prova de que realmente disse a verdade sobre esse dado período.

— A senhora é esperta — reconheceu Terlinden. — Gosto disso. Infelizmente, a instalação de vigilância não funciona há quatro semanas.

— E as câmeras do seu portão lá embaixo, na entrada?

— Não gravam.

— Bem, isso é bastante ruim para o senhor. — Pia balançou a cabeça, fingindo lamentar. — O senhor não tem nenhum álibi para o período em que Amelie desapareceu. Suas mãos estão arranhadas, como se o senhor tivesse lutado com alguém.

— Sei. — Claudius Terlinden permaneceu tranquilo, levantou as sobrancelhas. — E o que vai acontecer agora? Vão me prender porque peguei outro caminho para voltar para casa?

Pia reagiu sem pestanejar a seu olhar desafiador. Ele era um mentiroso, talvez até um criminoso, que, no entanto, sabia muito bem que as suposições dela eram vagas demais para justificar uma prisão.

— O senhor não está preso, apenas temporariamente detido. Conseguiu sorrir. — E não porque pegou outro caminho para voltar para casa, e sim porque mentiu para nós. Assim que nos apresentar um álibi plausível e verificável para o período em questão, estará livre novamente.

— Certo. —Imperturbável, Claudius Terlinden encolheu os ombros. — Mas, por favor, sem algemas. Sou alérgico a níquel.

— Suponho que o senhor não pense em fugir — respondeu Pia secamente. — Aliás, nossas algemas são de aço inoxidável.

 

O telefone em sua mesa tocou bem no momento em que ele estava saindo da sala. Lars Terlinden estava esperando com urgência o retorno do vendedor de derivativos do Crédit Suisse, com cujo auxílio ele vendera grande parte do portfólio de crédito para aquele vigarista do Mutzler, antes de ver-se diante do tribunal da diretoria. Depositou sua maleta e atendeu.

— Lars, sou eu — ouviu a voz de sua mãe; antes tivesse desligado na hora.

— Por favor, mãe — disse. — Me deixe em paz. Não tenho tempo agora.

— A polícia prendeu seu pai hoje de manhã.

Lars sentiu-se primeiro gelar, depois esquentar.

— Antes tarde do que nunca —respondeu, amargo. — Ele não é Deus para poder mandar e desmandar em Altenhain como bem quiser, só porque tem mais dinheiro do que os outros. Na verdade, com os seus joguinhos, ele já escapou ileso por muito tempo.

Ele contornou a mesa e se sentou em sua poltrona.

— Mas Lars! Seu pai sempre quis apenas o melhor para você!

— Conversa! — rebateu Lars friamente. — Ele sempre quis apenas o melhor para ele e para a sua empresa. E, na época, ele se aproveitou da situação, aliás, como se aproveita de toda situação em seu favor, e me empurrou para um emprego que eu nunca quis. Mãe, pode acreditar, estou pouco me lixando para o que acontece com ele.

De repente, tudo voltou à sua mente. Mais uma vez, seu pai estava se metendo em sua vida, justamente naquele momento, em que ele precisava de toda a sua força e de toda a sua concentração para salvar seu emprego e seu futuro! A raiva ferveu dentro dele. Por que não conseguiam deixá-lo em paz, de uma vez por todas? Imagens há muito esquecidas impuseram-se a ele, de maneira espontânea e indesejada, mas ele era impotente contra as lembranças e as sensações que as acompanhavam. Sabia que seu pai costumava dormir com a mãe da Laura, que, na época, era empregada na mansão, em um dos quartos de hóspedes do sótão, quando sua mãe não estava em casa. Mas isso não lhe bastara. Também precisou arrastar para a cama a filha de sua serva, como ele costumava considerar seus empregados e o vilarejo inteiro — ius primae noctis , como um senhor feudal da Idade Média!

Enquanto sua mãe tagarelava sozinha, com voz de autocompaixão, Lars pensou naquela noite. Tinha chegado em casa vindo da aula de crisma e, no vestíbulo, quase deu um encontrão em Laura, que passou correndo por ele, com cara de choro. Na época, ele não entendeu nada quando o pai saiu da sala, enfiando a camisa para dentro da calça, com o rosto bem vermelho e os cabelos despenteados. Filho da puta! Naquele tempo, Laura tinha acabado de fazer 14 anos. Só muitos anos mais tarde é que Lars jogou na cara do pai que ele tinha transado com Laura, mas ele havia negado tudo. A moça teria se apaixonado por ele, mas ele teria tentado rejeitar suas abordagens. Lars acreditou nele. Qual é o rapaz de 17 anos que quer pensar mal do próprio pai? Posteriormente, duvidou das alegações de inocência do pai. Ele mentia demais.

— Lars? — perguntou a mãe. — Você ainda está aí?

— Na época, eu devia ter contado a verdade à polícia — respondeu ele, esforçando-se para controlar a voz. — Mas meu próprio pai me obrigou a mentir, só para que seu nome não fosse enlameado! O que aconteceu agora? Por acaso desta vez ele pegou a garota que sumiu?

— Como você pode dizer uma coisa tão monstruosa? — A voz de sua mãe soou chocada. Christine Terlinden era mestra em se autoenganar. Simplesmente fazia de conta que não ouvia nem via o que não queria ouvir nem ver.

— De uma vez por todas, mãe, abra os olhos! — disse Lars com severidade. — Eu ainda poderia dizer muito mais, mas não vou fazer isso. Porque, para mim, essa história toda acabou, entendeu? Passou. Agora tenho de desligar. Por favor, não me ligue mais.

 

O restaurante em que Claudius Terlinden passara a noite de sábado com sua mulher e amigos ficava na frente das duas torres gêmeas de vidro do Deutsche Bank, conforme a senhora Terlinden informara a Pia na noite anterior.

— Me deixe descer aqui e venha depois que você encontrar um estacionamento — decidiu Bodenstein, depois que Pia deu três voltas no quarteirão. Era impossível estacionar na frente do nobre Ebony Club, por isso, manobristas com uniformes ingleses aguardavam diante da porta de entrada para pegar os carros dos clientes e estacioná-los no subsolo pelo tempo que durasse sua visita. Pia aproximou-se do lado direito da rua, Bodenstein desceu e correu pela chuva, encolhendo a nuca, até a porta de entrada. Não foi parado ao passar reto pela placa com a inscrição Please wait to be seated. O maître e metade da equipe estavam ocupados em fazer grande alarde em torno de uma personalidade qualquer e seu círculo de amigos, que não haviam reservado nenhuma mesa. O restaurante era bem frequentado na hora do almoço. Aparentemente, a crise não estragara o apetite dos executivos dos bancos da redondeza por um almoço de luxo. Bodenstein olhou curioso ao seu redor. Já tinha ouvido falar muito do Ebony Club. O restaurante em estilo colonial indiano estava entre os mais caros e, no momento, mais requisitados da cidade. Seu olhar pousou em um casal sentado a uma mesa para dois, no tablado um pouco mais ao fundo. Sua respiração parou. Cosima. Como que fascinada, ela ouvia um homem, cuja boa aparência chegava a ser repugnante e que parecia explicar alguma coisa com gestos grandes e vivazes. O modo como Cosima estava sentada ali, ligeiramente inclinada, com os cotovelos apoiados e o queixo sobre as mãos entrelaçadas, fez com que todos os alarmes no cérebro dele soassem estridentes. Ela afastou uma mecha do rosto, riu de alguma coisa que o sujeito tinha dito e, depois, ainda colocou a mão sobre a dele. Bodenstein ficou como que petrificado no meio da confusão, os funcionários de serviço passavam correndo e ocupados por ele, como se ele fosse invisível. Pela manhã, Cosima ainda lhe dissera casualmente que, mais uma vez, ficaria o dia todo na sala de edição, em Mainz. Teria alguma coisa feito com que ela mudasse seus planos de última hora ou teria ela mentido de novo para ele? Também, como ela poderia imaginar que as investigações dele o levariam justamente àquele restaurante, entre os milhares que havia em Frankfurt, e bem na hora do almoço?

— Posso ajudá-lo? — Uma moça robusta parou à sua frente e sorriu um pouco impaciente. Seu coração voltou a bater com a violência de um malho. Seu corpo todo tremia, e ele ficou com vontade de vomitar.

—Não — respondeu, sem tirar os olhos de Cosima e de seu acompanhante. — A atendente olhou-o com curiosidade, mas, para ele, era totalmente indiferente o que ela estaria pensando a seu respeito. A menos de vinte metros, sua mulher estava sentada com um homem, cuja companhia a deixava extasiada de tanta felicidade. Com esforço, Bodenstein concentrou-se para inspirar e expirar. Queria ser capaz de simplesmente ir até aquela mesa e dar um soco na cara daquele homem, sem aviso prévio. Porém, como havia sido educado para ter um autocontrole de ferro e boas maneiras, permaneceu em seu lugar e nada fez. De modo totalmente automático, o observador rigoroso que havia dentro dele constatou a familiaridade manifesta de ambos, que segredavam e trocavam olhares profundos. Com o canto do olho, Bodenstein viu que a jovem atendente estava avisando o maître, que, naquele ínterim, arrumara um lugar adequado para a personalidade. Não restava alternativa a Bodenstein: ou ele ia até Cosima e aquele cara, ou sumia dali. Como não se sentia em condições de bancar o ingênuo, que ficava feliz com o encontro, optou pela segunda, deu meia-volta e saiu do restaurante lotado. Ao passar pela porta, ficou um momento parado, fitando os tapumes do outro lado da rua, antes de seguir em frente, atordoado. Seu pulso estava acelerado, ele sentia necessidade de vomitar. A visão de Cosima e daquele sujeito marcara indelevelmente sua retina. Acontecera justamente o que ele temia tanto: agora tinha certeza de que Cosima o traía.

De repente, alguém lhe cortou o caminho. Ele quis desviar, mas a mulher com guarda-chuva também deu um passo para o lado, de modo que ele teve de parar.

— Já terminou? — A voz de Pia Kirchhoff atravessou a névoa que o circundava como uma parede e, no mesmo instante, trouxe-o de volta para a realidade. — O Terlinden esteve lá no sábado?

Terlinden! Ele tinha se esquecido completamente.

— Eu... Eu nem perguntei — admitiu.

— Está tudo bem? — Pia o examinou. — Parece até que você viu um fantasma.

— A Cosima está sentada lá dentro — respondeu ele, afônico. — Com outro homem. Embora hoje de manhã ela tenha me dito...

Não conseguiu continuar. Sua garganta estava seca. Com as pernas bambas, cambaleou até a próxima casa e sentou-se em um degrau de sua entrada, sem se preocupar em se molhar. Pia o observou calada e, como pareceu a ele, com pena. Ele baixou o olhar.

— Me dê um cigarro — pediu com voz rouca. Pia vasculhou os bolsos de seu casaco e lhe entregou, sem dizer palavra, um maço com isqueiro. Fazia quinze anos que ele não fumava nem sentia falta, mas, naquele momento, foi obrigado a constatar que o desejo de nicotina ainda dormitava lá no fundo.

— O carro está em Kettenhofweg, esquina com a Brentanostraße. — Pia estendeu-lhe a chave. — É melhor você ficar sentado no carro do que se resfriar aqui.

Ele não pegou a chave nem respondeu. Para ele, era completamente indiferente se ia se molhar ou se os pedestres o olhariam com espanto. Tudo era indiferente. Embora, em seu íntimo, sua desconfiança não fosse recente, torcera desesperadamente para que houvesse uma explicação inocente para as mentiras e os SMS de Cosima e não contava nem um pouco em vê-la em companhia de outro homem. Avidamente, tragou o cigarro e inalou a fumaça o máximo que pôde. Ficou tonto, como se estivesse fumando um baseado em vez de um Marlboro. Aos poucos, o carrossel de pensamentos que se precipitavam desacelerou sua marcha rápida e parou. Em sua cabeça reinava um silêncio profundo e vazio. Ele estava sentado em um degrau de escada no centro de Frankfurt e sentia-se totalmente sozinho.

 

Lars Terlinden tinha desligado o telefone, e fazia alguns minutos que estava sentado, imóvel. No andar de cima, a diretoria esperava por ele. Os executivos tinham vindo especialmente de Zurique para ouvir como ele pretendia recuperar os 350 milhões que mandara para o espaço. Infelizmente, não tinha nenhuma solução disponível. Eles o ouviriam e, em seguida, com sorrisos falsamente amigáveis, fariam picadinho dele, aqueles filhos da puta arrogantes, que, um ano antes, ainda davam tapinhas camaradas em seus ombros por causa desse grande negócio. O telefone voltou a tocar, desta vez, a linha interna. Lars Terlinden ignorou. Abriu a primeira gaveta da escrivaninha e dela tirou um calhamaço de papel-ofício e sua caneta-tinteiro Montblanc, um presente de seu chefe nos melhores tempos, que ele só usava para assinar contratos. Durante um minuto inteiro, fitou a folha vazia, cor creme, depois começou a escrever. Sem reler o que escreveu, dobrou a folha e a colocou em um envelope. Escreveu um endereço no envelope, levantou-se, pegou sua maleta e o sobretudo e saiu da sala.

— Isto precisa ser enviado ainda hoje — disse à secretária, deixando o envelope cair em sua mesa.

— Pode deixar — respondeu ela brevemente. Em outros tempos, ela fora assistente da diretoria, e ainda considerava uma humilhação ser secretária de um diretor de departamento. —Lembra de seu compromisso?

— Claro. — Ele já estava prosseguindo, sem sequer olhar para ela.

— O senhor já está sete minutos atrasado!

Ele entrou no corredor. Vinte e quatro passos até o elevador, que, de portas abertas, parecia esperá-lo com impaciência. Em cima, no décimo segundo andar, a diretoria reunida estava sentada havia sete minutos. Seu futuro estava em jogo, seu prestígio e até sua vida inteira. Atrás dele, duas colegas da contabilidade se esgueiraram rapidamente no elevador. Ele as conhecia superficialmente, de vista, e cumprimentou-as, ausente, com a cabeça. Elas deram risadinhas e cochicharam, retribuindo seu cumprimento. A porta se fechou sem fazer ruído. Ele se assustou ao ver no espelho o homem com rosto macilento, que respondia a seu olhar com olhos apáticos e deprimidos. Estava cansado, infinitamente cansado e esgotado.

— Para onde vai? — perguntou a morena, de grandes olhos arredondados. — Para cima ou para baixo?

Seu dedo com a longa unha postiça ficou parado, esperando, sobre o painel digital. Lars Terlinden não conseguia se desvencilhar da visão de seu rosto no espelho.

— Para baixo — respondeu. — Bem para baixo.

 

Pia Kirchhoff entrou no Ebony Club e cumprimentou agradecida o porteiro, que lhe abrira enfaticamente a porta. Fazia pouco tempo que Christoph e ela haviam comido ali com Henning e Miriam. Henning tivera de pagar quinhentos euros pela refeição, um verdadeiro exagero aos olhos dela. Pia não gostava muito de lugares da moda, cardápios indecifráveis e cartas de vinho nas quais o preço de uma única garrafa podia ter quatro dígitos. Como ela apreciava vinhos não pela etiqueta, e sim por seu gosto pessoal, para ela um Bardolino ou um Chianti na pizzaria da esquina já estavam de bom tamanho para uma noite bem-sucedida.

O maître arrastou-se de seu posto de observação e dirigiu-se a ela com um sorriso radiante. Pia colocou seu distintivo diante de seu nariz sem dizer nada. Imediatamente, seu sorriso esfriou em alguns graus. Inesperadamente, uma cliente potencial do menu de marajá transformou-se diante de seus olhos em um sapo que ninguém gostava de engolir. A Polícia Criminal não era bem-vista em lugar nenhum, muito menos em um restaurante de luxo na hora do almoço.

— Posso saber do que se trata? — murmurou o maître.

—Não — respondeu Pia secamente. — Não pode. Onde está o gerente?

O sorriso desapareceu por completo e, com ele, a cortesia armada.

— Espere aqui. — O homem se afastou, e Pia deu uma olhada discreta ao redor. De fato! A uma mesa estava sentada Cosima von Bodenstein, em conversa íntima com um homem que era nitidamente dez anos mais jovem do que ela. Estava usando um terno casual, todo amarrotado, e uma camisa aberta no colarinho, sem gravata. Sua postura informal irradiava autoconfiança. Os cabelos desgrenhados e louro-escuros batiam nos ombros; seu rosto anguloso, com o queixo agressivamente proeminente, uma barba de cinco dias e o nariz de águia bem marcado haviam sido curtidos pelo vento e pelo tempo — ou também pelo álcool, pensou Pia maliciosamente. Cosima von Bodenstein mantinha uma conversa animada com ele, que a observava sorrindo e com nítida fascinação. Não se tratava de um almoço de trabalho nem de um encontro ocasional de velhos conhecidos — as vibrações eróticas entre ambos não podiam passar despercebidas nem mesmo a um observador superficial. Ou eles tinham acabado de sair da cama ou estavam pensando em ir para ela depois de um breve almoço, para aumentar ainda mais a alegria da espera. Pia lamentou sinceramente por seu chefe; contudo, também tinha certa compreensão por Cosima, que após 25 anos de rotina matrimonial devia ansiar por uma aventura.

A chegada do gerente arrancou Pia de seus pensamentos. Ele tinha, no máximo, 35 anos, mas, devido aos cabelos ralos, castanho-claros, e ao rosto inchado, parecia mais velho.

— Não vou tomar muito do seu tempo, senhor... — começou Pia, e examinou o homem maciço, que foi tão descortês que não lhe estendeu a mão nem se apresentou.

— Jagielski — completou o homem olhando de cima, enquanto mandava o maître de volta ao posto de observação com um movimento arrogante da mão. — Qual o problema? Estamos bem no horário do almoço.

Jagielski. O nome despertou em Pia uma vaga associação.

— Ah. É o senhor mesmo que cozinha? — rebateu irônica.

— Não. — Ele torceu os lábios em uma expressão azeda, e seu olhar irritantemente inquieto volta e meia deslizava pelo salão. De repente, ele se virou, parou uma jovem garçonete e sibilou uma observação que a fez corar.

— Como costumam dizer, equipe treinada é a mesma coisa que nada — explicou a Pia, sem esboçar nenhum sorriso. — Essas meninas são uma catástrofe. Simplesmente não têm atitude.

Novos clientes chegaram, e eles estavam no caminho. Nesse instante, ela se lembrou de onde já tinha ouvido o nome Jagielski. A chefe do Corcel Negro, em Altenhain, tinha o mesmo sobrenome. Seu questionamento confirmava que a semelhança de nomes não era ocasional. Andreas Jagielski era sócio do Corcel Negro tanto quanto do Ebony Club e de outro estabelecimento em Frankfurt.

— Então, qual o problema? — perguntou ele. Cortesia não era seu forte. Discrição tampouco. Ainda estavam no meio do restaurante.

— Eu gostaria de saber se um tal de Claudius Terlinden jantou aqui no último sábado à noite com sua esposa.

Uma sobrancelha se ergueu.

— Por que a polícia quer saber isso?

— Porque interessa à polícia. — Aos poucos, a petulância altiva dele estava irritando Pia. — Então?

Uma ínfima hesitação, depois, um breve gesto de afirmativo com a cabeça.

— Sim, esteve.

— Só com sua esposa?

— Isso eu já não sei direito.

— Talvez seu maître possa se lembrar. Certamente o senhor tem um livro de reservas.

Relutante, Jagielski acenou para o maître que havia dispensado e mandou-o trazer o livro de reservas. Enquanto aguardava, manteve a mão esticada e esperou calado o maître subir correndo até seu posto. O gerente lambeu o indicador e folheou lentamente o registro encadernado em couro.

— Ah, sim, está aqui — disse, por fim. — Estavam em quatro. Agora me lembro.

— Quem estava com ele? Nomes? — insistiu Pia. Um grupo de clientes preparava-se para sair. Finalmente Jagielski conduziu Pia até o balcão.

— Não sei em que isso lhe diz respeito. — Ele baixou a voz.

— Escute aqui — Pia perdeu a paciência —, estou investigando o caso da sua garçonete desaparecida, Amelie, que no último sábado foi vista no Corcel Negro. Estamos procurando testemunhas que ainda tenham visto a moça depois.

Jagielski fitou-a, refletiu por um momento e decidiu que lhe dizer os nomes seria inofensivo.

— O casal Lauterbach estava junto — confessou.

Pia ficou surpresa. Por que Claudius Terlinden escondera deles que ele e sua esposa tinham saído para jantar com os vizinhos? No dia anterior, em seu escritório, ele falara enfaticamente apenas da esposa. Estranho.

O acompanhante de Cosima von Bodenstein já estava pagando a conta; a garçonete sorriu-lhe, aparentemente a gorjeta tinha sido generosa. Ele se levantou e deu a volta na mesa para puxar a cadeira de Cosima. Se na aparência era totalmente o oposto de Bodenstein, ao menos nas boas maneiras era semelhante.

— Conhece o acompanhante da mulher ruiva ali no fundo? — perguntou Pia ao gerente Jagielski subitamente. Este nem precisou levantar a cabeça para saber de quem Pia estava falando. Ela se virou, para que Cosima não a reconhecesse por acaso ao sair.

— Sim, claro. — De repente, sua voz assumiu quase um tom incrédulo, como se ele não conseguisse entender que alguém não conhecesse aquele homem. — É o Alexander Gavrilow. Por acaso ele tem alguma coisa a ver com a sua investigação?

— Talvez — respondeu Pia sorrindo. — Obrigada por sua ajuda.

 

Bodenstein ainda estava sentado no degrau da escada, fumando. A seus pés havia quatro bitucas de cigarro. Por um momento, Pia permaneceu calada na frente do chefe, para assimilar a visão incomum.

— E então? — Ele levantou o olhar. Seu rosto estava pálido.

— Imagine só: os Terlindens jantaram com os Lauterbachs — anunciou Pia. — E o gerente do Ebony Club é também o proprietário do Corcel Negro, em Altenhain. Não é uma bela coincidência?

— Não acho.

— O que é então? — Pia fez cara de quem não estava entendendo.

— Você... a viu?

— Sim, vi. — Ela se abaixou para pegar o maço de cigarros que ele havia colocado ao seu lado, no degrau, e o enfiou no bolso. — Venha. Não estou a fim de congelar meu traseiro aqui.

Bodenstein levantou-se todo rígido, deu mais uma tragada no cigarro e jogou a bituca na rua molhada. Enquanto caminhavam, Pia deu uma rápida olhada lateral nele. Será que ele ainda esperava uma explicação inocente para aquele tête-à-tête da sua mulher com um estranho atraente?

— Alexander Gavrilow — disse ela, e parou. — O explorador dos polos e alpinista.

— Como? — Bodenstein a olhou perturbado.

— Esse é o homem com quem Cosima estava almoçando — esclareceu Pia e completou em pensamento: ... e com quem ela está transando com toda a certeza.

Bodenstein passou a mão pelo rosto.

— Claro. — Ele falava mais consigo mesmo do que com Pia. — Eu sabia que conhecia esse cara de algum lugar. Uma vez a Cosima o apresentou a mim; acho que foi na última estreia do seu filme. Anos atrás eles elaboraram um projeto juntos, mas que não deu em nada.

— Talvez tenha sido mesmo apenas um encontro de trabalho — contra sua convicção, Pia tentou atenuar a situação. — Eles podiam estar conversando sobre algum projeto, do qual você não deve saber, e você está se preocupando tanto.

Bodenstein examinou Pia com as sobrancelhas levantadas. Em seu olhar, fulgurou por um momento uma faísca de escárnio, que se apagou logo em seguida.

— Não sou cego — respondeu. — E sei o que vi. Minha mulher está indo para a cama com esse cara, sabe-se lá há quanto tempo. Talvez seja bom eu finalmente parar de me enganar.

Pôs-se resolutamente em movimento, e Pia quase precisou correr para acompanhar seu passo.

 

O Thies sabe de tudo, e a polícia está muito curiosa. Você deveria tratar de controlar a situação. Pois você só tem a perder!

As letras na tela desapareceram diante dos seus olhos. O e-mail havia sido enviado para seu endereço oficial, na Secretaria! Santo Deus, se sua secretária o tivesse lido! Ela costumava imprimir suas mensagens pela manhã e apresentá-las a ele. Foi mero acaso naquele dia ele chegar ao escritório mais cedo do que ela. Gregor Lauterbach mordeu o lábio inferior e clicou no remetente. Brancadeneve1997@hotmail.com Quem estaria se escondendo por trás desse endereço? Quem, quem, quem? Essa pergunta dominava seus pensamentos desde a primeira carta. Dia e noite ele mal conseguia pensar em outra coisa. O medo o acometeu como um calafrio febril.

Bateram à porta, que se abriu. Teve um sobressalto, como se nele tivessem despejado água fervente. Ao vê-lo, o amigável bom-dia que Ines Schürmann-Liedtke estava para pronunciar parou em sua garganta.

— Não está se sentindo bem, chefe? — perguntou preocupada.

—Não — rouquejou Lauterbach, e afundou novamente em sua poltrona. — Acho que a gripe me pegou.

— Quer que eu cancele seus compromissos de hoje?

— Tem algum importante?

— Não. Nada realmente urgente. Vou chamar o Forthuber, para que ele o leve para casa.

— Sim, obrigado, Ines. — Lauterbach fez um gesto com a cabeça e tossiu um pouco. Ela saiu. Ele fitou o e-mail. Branca de Neve. Seus pensamentos se aceleraram. Depois, fechou a mensagem, bloqueou o remetente clicando à direita e enviou o e-mail de volta no mesmo instante, como se não pudesse ter sido entregue ao destinatário.

 

Barbara Fröhlich estava sentada à mesa da cozinha, tentando, em vão, concentrar-se nas palavras cruzadas. Após três dias e três noites sem notícias, seus nervos estavam à flor da pele. No domingo, ela levara as duas crianças para a casa de seus pais, em Hofheim, e, na segunda, Arne fora trabalhar, embora seu chefe o tivesse deixado ficar em casa. Mas o que ele ia ficar fazendo em casa? Desde então, os dias se arrastavam de maneira insuportável. Amelie continuava desaparecida, não havia um único sinal de vida dela. Sua mãe ligara três vezes de Berlim, contudo, mais por obrigação do que por preocupação. Nos dois primeiros dias, ela ainda recebera a visita de mulheres do vilarejo, que queriam consolá-la e apoiá-la, mas como ela mal as conhecia, ficaram incomodadas, sentadas na cozinha, esforçando-se para conversar. Na noite anterior, Arne e ela tiveram uma briga feia, aliás, a primeira desde que se conheceram. Ela o censurara por ele se interessar pouco pelo destino de sua filha mais velha e, cheia de raiva, chegara a acusá-lo de ficar feliz se ela não aparecesse mais. No fundo, não tinha sido bem uma briga, pois Arne apenas ficara olhando para ela sem dizer nada. Como sempre.

— A polícia vai encontrá-la — disse apenas, antes de entrar no banheiro. Ela ficou na cozinha, desamparada, muda e sozinha. E, de repente, passou a ver o marido com outros olhos. Com covardia, ele se refugiava em sua rotina. Será que ele se comportaria de outro modo se não tivesse sido Amelie, mas Tim ou Jana os desaparecidos? Seu único medo era que essa sua indiferença desse na vista. Não trocaram mais nem uma palavra, e se deitaram calados, lado a lado na cama. Dez minutos depois, ele já estava roncando, tranquila e regularmente, como se tudo estivesse na mais perfeita ordem. Nunca antes em sua vida ela se sentira tão abandonada como naquela noite horrível e sem fim.

A campainha tocou. Barbara Fröhlich teve um sobressalto e se levantou. Tomara que não fosse novamente nenhuma daquelas mulheres do vilarejo, que só insistiam em bater à porta de sua casa, fingindo compaixão, para mais tarde poderem passar adiante na loja um relato exclusivo da situação. Ela abriu a porta. Diante dela estava uma desconhecida.

— Bom dia, senhora Fröhlich — disse a mulher. Seus cabelos eram escuros e curtos; seu rosto, pálido e sério, com olheiras azuladas, e ela usava óculos de armação quadrada. — Inspetora Maren König, da K11 de Hofheim.

Ela apresentou seu distintivo.

— Posso entrar?

— Sim, claro, por favor. — O coração de Barbara Fröhlich batia angustiado. A mulher parecia tão séria, como se tivesse trazido uma má notícia. — Tem alguma notícia da Amelie?

— Não, infelizmente não. Mas meus colegas descobriram que Amelie teria recebido uns desenhos do seu amigo Thies. Só que no quarto dela não foi encontrado nada.

— Também não sei nada a respeito desses desenhos. — Ela abanou a cabeça, desnorteada, e ficou decepcionada que a policial não tivesse nenhuma novidade para lhe contar.

— Talvez possamos dar mais uma olhada no quarto da Amelie — sugeriu Maren König. — Os desenhos devem mesmo existir e poderiam ser muito importantes.

— Sim, claro. Venha.

Barbara Fröhlich conduziu-a pela escada e abriu a porta do quarto de Amelie. Ela permaneceu junto ao batente e ficou olhando a inspetora fazer uma revista minuciosa nos armários embutidos, ajoelhar-se, olhar embaixo da cama e da escrivaninha. Por fim, afastou um pouco da parede a cômoda em estilo Biedermeier.

— Uma porta escondida — constatou a inspetora, virando-se para Barbara Fröhlich. — Posso abri-la?

— Claro. Eu nem sabia que existia essa porta.

— Em muitas casas com telhado inclinado, as laterais são utilizadas como depósito — explicou a policial, e sorriu um pouco pela primeira vez. — Principalmente quando não há nenhuma despensa na casa.

Ela se agachou, abriu a porta e arrastou-se no pequeno espaço entre a parede e o isolamento do telhado. Um sopro frio entrou no ambiente. Pouco depois, voltou segurando um rolo espesso embrulhado em papel, que estava cuidadosamente envolvido por uma fita vermelha.

— Meu Deus — disse Barbara Fröhlich. — A senhora realmente encontrou alguma coisa.

A inspetora Maren König se ergueu e bateu o pó de suas calças. Vou levar os desenhos. Se a senhora quiser, lhe dou um recibo.

— Não, não, não é necessário — assegurou Barbara Fröhlich rapidamente. — Se os desenhos puderem ajudá-la a encontrar a Amelie, pode levá-los.

— Obrigada. — A inspetora pousou a mão em seu braço. — E não fique muito preocupada. Estamos realmente fazendo todo o possível para encontrar Amelie. Isso eu posso prometer.

As palavras pareciam ter tanta compaixão que Barbara Fröhlich precisou lutar com todas as forças para refrear as lágrimas que sentiu chegar aos olhos. Calada e agradecida, ela fez que sim com a cabeça. Rapidamente, refletiu se não deveria ligar para Arne e lhe contar dos desenhos. Mas ainda estava muito magoada com seu comportamento, por isso, não o fez. Só mais tarde, quando estava fazendo um chá, é que se deu conta de que tinha se esquecido completamente de dar uma olhada nos desenhos.

 

Tobias caminhava inquieto, de um lado para outro, na sala do apartamento de Nadja. A grande televisão na parede estava ligada, mas sem som. A polícia estava à sua procura devido ao desaparecimento de Amelie F., de 17 anos, segundo ele tinha acabado de ler no videotexto. Nadja e ele haviam passado metade da noite deliberando sobre como ele deveria se comportar. Ela teve a ideia de procurar pelos desenhos. Por volta da meia-noite, ela adormeceu, mas ele permaneceu acordado e, desesperado, tentou se lembrar. Uma coisa era certa: se ele se apresentasse à polícia, o prenderiam na hora. Ele não tinha nenhuma explicação plausível para o fato de o celular de Amelie ter ido parar no bolso de suas calças e, como antes, não se lembrava de nada da noite de sábado para domingo.

Amelie devia ter descoberto alguma coisa sobre os acontecimentos de 1997, em Altenhain, algo que poderia ser perigoso para alguém. Mas quem era esse alguém? Seus pensamentos sempre o conduziam a Claudius Terlinden. Durante onze anos ele o considerara seu único protetor no mundo; na prisão, ficava contente quando ele ia visitá-lo e com as longas conversas que tinha com ele. Como tinha sido idiota! Terlinden só estava preocupado consigo mesmo. Tobias não chegava a acusá-lo de ser o responsável pelo desaparecimento da Laura e da Stefanie. Porém, sem nenhuma consideração, Terlinden tinha se aproveitado da necessidade por que passavam seus pais para receber aquilo que queria: o campo Schilling, no qual ele construíra o novo prédio da administração de sua empresa.

Tobias acendeu um cigarro. O cinzeiro sobre a mesa ao lado do sofá já estava quase transbordando. Foi até a janela e olhou a água escura do rio Main. Os minutos passavam com uma lentidão torturante. Há quanto tempo Nadja já estava fora? Três horas? Quatro horas? Tomara que tivesse conseguido! Seu plano era o último fio de esperança ao qual ele se agarrava. Se esses desenhos de que Amelie lhe falara no sábado realmente existissem, então talvez eles pudessem provar sua inocência e, ao mesmo tempo, descobrir quem sequestrara Amelie. Será que ela ainda estava viva? Se... Tobias balançou a cabeça, contrariado, mas o pensamento não se deixava afugentar. E se tudo aquilo que os psicólogos, os peritos e o tribunal atestaram na época fosse verdade? Será que ele realmente se tornava um monstro quando estava sob o efeito do álcool, tal como a imprensa gostava de apresentá-lo? Antigamente, seu potencial de agressividade era grande. Ele tinha dificuldade em aceitar derrotas. Para ele, era natural conseguir o que queria — boas notas na escola, garotas ou sucesso nos esportes. Raras vezes levara em consideração o fato de que ainda era popular, o centro das atenções da turma. Não obstante, era querido. Ou teria acreditado simplesmente que era, em seu egocentrismo cego e presunçoso?

Rever Jörg, Felix e os outros evocaram nele vagas lembranças de acontecimentos há muito esquecidos e que ele havia considerado insignificantes. Antigamente, ele tomara Laura de Michael sem nem sequer sentir um sopro de consciência pesada em relação a seu amigo. As garotas eram meros troféus de sua vaidade. Quantas vezes não feriu os sentimentos alheios com sua falta de consideração? Quanta raiva e quanto sofrimento não provocou? Só entendeu isso de fato quando Stefanie terminou com ele. Não quis aceitar o fim do namoro, chegou a se ajoelhar diante dela e lhe implorar, mas ela apenas riu dele. O que fez depois? O que fez com Amelie? Como o celular dela tinha ido parar no bolso de suas calças?

Tobias afundou no sofá, pressionou as palmas das mãos contra as têmporas e, desesperado, tentou concatenar os fragmentos da sua memória em um contexto lógico. Só que quanto mais ele se esforçava, menos conseguia. Era de enlouquecer.

 

Embora o consultório estivesse lotado, a doutora Daniela Lauterbach não deixou Bodenstein e Pia esperarem muito.

— Como vai sua cabeça? — perguntou a médica amigavelmente.

— Tudo bem — disse Bodenstein, tocando, como por reflexo, o curativo na testa. — Um pouco de dor de cabeça e nada mais.

— Se quiser, dou mais uma olhada.

— Não é necessário. Também não queremos tomar muito do seu tempo.

— Tudo bem. O senhor sabe onde me encontrar.

Bodenstein fez que sim, sorrindo. Talvez fosse mesmo bom ele mudar de médico. Daniela Lauterbach prescreveu rapidamente três receitas, que deixou para sua assistente em cima do balcão, depois conduziu Bodenstein e Pia à sua sala. O assoalho rangeu sob seus passos. Com um gesto, a médica lhes indicou as cadeiras de visitas.

— É sobre Thies Terlinden. — Bodenstein se sentou, mas Pia ficou de pé.

Daniela Lauterbach tomou assento atrás de sua mesa e olhou para ele com atenção.

— O que deseja saber sobre ele?

— A mãe dele nos disse que ele teve uma crise e que agora está internado no hospital psiquiátrico.

— É verdade — confirmou a médica. — Mais do que isso não posso dizer. Vocês sabem, o dever de confidencialidade. Thies é meu paciente.

— Nos contaram que, no passado, Thies perseguia Amelie — manifestou-se Pia, ao fundo.

— Ele não a perseguia, mas acompanhava — corrigiu a médica. — O Thies gosta muito da Amelie, e essa é sua forma de mostrar afeto. Aliás, desde o início, Amelie foi capaz de avaliar isso corretamente. Ela é uma moça muito sensível, apesar de sua aparência um pouco fora do comum. Um feliz acaso para Thies.

— Após a briga com o filho, o pai do Thies ficou com arranhões vermelhos nas mãos — disse Pia. — O Thies tem tendência a cometer atos violentos?

Daniela Lauterbach sorriu um pouco preocupada.

— A esse respeito, estamos nos aproximando do ponto sobre o qual, de fato, não estou autorizada a falar aos senhores — respondeu ela. — Mas suponho que estejam suspeitando que o Thies tenha feito algo à Amelie. Excluo essa possibilidade. Ele é autista e se comporta de maneira diferente de uma pessoa “normal”. Não é capaz de demonstrar nem de externar seus sentimentos. Uma vez ou outra ele tem esses... rompantes, mas muito, muito raramente. Os pais cuidam dele com grande dedicação, e ele tolera muito bem os medicamentos que toma.

— A senhora descreveria Thies como deficiente mental?

— De maneira alguma! — Daniela Lauterbach abanou enfaticamente a cabeça. — Thies é extremamente inteligente e tem um dom extraordinário para a pintura.

Ela apontou para as grandes telas abstratas, muito semelhantes às que também estavam nas paredes da casa e do escritório de Terlinden.

— Foi Thies quem pintou isso? — Pia observou surpresa os quadros. À primeira vista, não percebera, mas naquele instante se deu conta do que representavam. Ela estremeceu ao reconhecer rostos humanos desfigurados e desesperados, os olhos cheios de sofrimento, medo e pavor. A intensidade daqueles quadros era angustiante. Como alguém conseguia suportar aqueles rostos todos os dias?

— No último verão, meu marido organizou uma exposição para ele, em Wiesbaden. Foi um sucesso sensacional; todos os 43 quadros foram vendidos.

Havia orgulho em sua voz. Daniela Lauterbach gostava do filho do vizinho; contudo, parecia manter uma distância profissional suficiente para avaliar com objetividade a ele e seu comportamento.

— Claudius Terlinden amparou generosamente a família Sartorius nos anos após a condenação de Tobias — Bodenstein tomou a palavra. — Na época, ele chegou a arranjar um advogado para o Tobias, e dos bons. A senhora considera possível ele ter feito isso por estar com a consciência pesada?

— E por que estaria? — Daniela Lauterbach parou de sorrir.

— Talvez porque soubesse que, na época, Thies tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento das moças.

Por um momento, fez-se completo silêncio; o toque ininterrupto do telefone soou abafado através da porta fechada.

A médica franziu a testa.

— Nunca vi as coisas dessa maneira — admitiu pensativa. — É bem verdade que, na época, o Thies era totalmente louco pela Stefanie Schneeberger. Passava muito tempo com a moça, assim como hoje passa com Amelie...

Ela se interrompeu ao compreender aonde Bodenstein queria chegar. Seu olhar interrogativo buscou o dele.

— Meu Deus! — exclamou, perturbada. — Não, não, não posso acreditar numa coisa dessas!

— Realmente precisamos falar com Thies, e com urgência — disse Pia, enfática. — É uma pista que poderia nos levar a Amelie.

— Entendo. Mas é difícil. Como tive receio de que, no seu estado, ele pudesse causar algum ferimento a si mesmo, não me restou alternativa a não ser transferi-lo para a psiquiatria fechada. — Daniela Lauterbach uniu as mãos e, pensativa, bateu o indicador contra os lábios franzidos. — Não está em meu poder possibilitar uma conversa entre vocês e Thies.

— Mas se Thies tiver se apoderado de Amelie, ela está correndo um grande risco! — Pia a fez refletir. — Talvez ele a tenha trancado em algum lugar de onde ela não possa sair sozinha.

A médica olhou para Pia. Seus olhos obscureceram de preocupação.

— Vocês têm razão — disse, então, com firmeza. — Vou ligar para o médico-chefe da psiquiatria em Bad Soden.

— Ah, mais uma coisa — complementou Pia, como se somente então lhe tivesse ocorrido. — Tobias Sartorius nos disse que a Amelie teria mencionado seu marido quanto aos acontecimentos de 1997. Na época, teria corrido o boato de que seu marido dera a Stefanie Schneeberger o papel principal naquela peça de teatro porque tinha uma queda por ela.

Daniela Lauterbach já tinha esticado a mão para pegar o telefone, mas deixou-a cair novamente.

— Na época, Tobias culpou todo mundo — respondeu ela. — Queria livrar a própria pele, o que é totalmente compreensível. Mas todas as suspeitas contra terceiros foram totalmente afastadas ao longo das investigações. O fato é que, na época, meu marido, como diretor do grupo de teatro, ficou absolutamente entusiasmado com o talento de Stefanie. E a isso se acrescia sua aparência: ela era perfeita para o papel da Branca de Neve.

Voltou a colocar a mão no telefone.

— A que horas a senhora deixou o Ebony Club em Frankfurt, no sábado? — perguntou, então, Bodenstein. — Consegue se lembrar?

Uma expressão de embaraço passou pelo semblante da médica.

— Sim, consigo me lembrar perfeitamente — respondeu ela. — Eram nove e meia.

— E depois todos vocês voltaram juntos com Claudius Terlinden para Altenhain?

— Não. Eu tinha plantão naquele dia, por isso, fui até lá com meu próprio carro. Às nove e meia recebi uma chamada para atender uma emergência em Königstein.

— Certo. E os Terlindens e seu marido? Quando saíram de lá?

— A Christine veio comigo. Ela estava preocupada com o Thies, que estava de cama, com uma gripe horrível. Deixei-a no ponto de ônibus e depois segui até Königstein. Às duas horas, quando voltei para casa, meu marido já estava dormindo.

Bodenstein e Pia trocaram um rápido olhar. Sobre o decorrer da noite de sábado, Claudius Terlinden tinha, portanto, mentido deslavadamente. Mas por quê?

— Mas quando a senhora voltou da emergência, não foi direto para casa, foi? — quis saber Bodenstein. A pergunta não surpreendeu Daniela Lauterbach.

— Não. Era pouco mais de uma hora quando cheguei de König- stein. — Ela suspirou. — Vi um homem deitado no banco do ponto de ônibus e parei. Somente então eu soube de quem se tratava. — Ela abanou lentamente a cabeça; seus olhos escuros estavam cheios de compaixão. — O Tobias estava completamente bêbado e já com uma forte hipotermia. Tinha vomitado, estava inconsciente. Demorou dez minutos até eu conseguir colocá-lo no carro. Depois, Hartmut e eu o levamos para o seu quarto e o deitamos na cama.

— Ele lhe disse alguma coisa? — Pia quis saber.

—Não — respondeu a médica. — Ele não estava absolutamente em condições de falar. Primeiro, também pensei em chamar o médico da emergência e mandá-lo para o hospital, mas eu sabia que ele não ia querer isso de jeito nenhum.

— Por quê?

— Poucos dias antes, eu havia tratado dele, quando o atacaram e o espancaram no celeiro. — Ela se inclinou e dirigiu a Bodenstein um olhar tão penetrante que ele começou a sentir calor. — Dá mesmo muita pena vê-lo; não importa o que tenha feito. As pessoas podem até dizer que dez anos de prisão foram poucos. Acho que Tobias será punido pelo resto da vida.

— Há indícios de que ele poderia ter alguma relação com o desaparecimento de Amelie — disse Bodenstein. — A senhora o conhece melhor do que muitas outras pessoas. Acha que isso é possível?

Daniela Lauterbach recostou-se em sua poltrona e calou-se por um minuto inteiro, sem desviar seu olhar de Bodenstein.

— Eu gostaria — disse por fim — de agora poder dizer “não” com toda a convicção. Mas, infelizmente, não posso.

 

Ela tirou a peruca de cabelos curtos e jogou-a no chão. Seus dedos tremiam demais para desamarrar a fita vermelha que atava o rolo; por isso, pegou impaciente uma tesoura e a cortou. Com o coração acelerado, desenrolou os desenhos sobre sua mesa. Eram oito folhas, e perdeu o fôlego quando reconheceu, com terror, o que nelas se podia ver. Aquele filho da puta desgraçado tinha desenhado os acontecimentos de 6 de setembro de 1997 com verdadeira precisão fotográfica; nenhum detalhe, por menor que fosse, tinha lhe escapado. Até mesmo a inscrição tola e o porquinho estilizado na camiseta verde-escura eram claramente reconhecíveis! Ela mordeu o lábio, o sangue pulsava em seus ouvidos. De repente, a lembrança estava viva novamente. A sensação humilhante da derrota, bem como a satisfação irrefreada ao ver Laura, que finalmente havia recebido o que merecia, aquela maldita galinha metida a besta! Pegou os outros desenhos, alisou-os com ambas as mãos. Foi tomada pelo pânico, exatamente como antes. Incredulidade, falta de sangue-frio, uma raiva de dar calafrios. Ela se ergueu e forçou-se a respirar fundo. Três, quatro vezes. Bem tranquilamente. Refletir. Aquilo não era uma catástrofe, era o pior desastre que poderia acontecer. Podia arruinar por completo seu plano cuidadoso, e isso ela não podia permitir! Com os dedos trêmulos, acendeu um cigarro. Não queria nem imaginar o que teria acontecido se aqueles desenhos caíssem nas mãos dos tiras! Ficou tonta. O que faria agora? Seriam aqueles realmente todos os desenhos ou Thies teria desenhado outros? Ela não podia correr nenhum risco; havia muita coisa em jogo. Com tragadas rápidas, fumou o cigarro até o filtro; depois, já sabia o que devia fazer. De todo modo, sempre tivera de tomar todas as decisões sozinha. Com determinação furiosa, pegou a tesoura e cortou os desenhos, um após o outro, em pequenos pedaços. Depois, passou tudo na fragmentadora de papel, tirou o saco com os retalhos e apanhou a bolsa. Era só não perder a cabeça agora, que tudo ia dar certo.

 

Derrotado, o inspetor Kai Ostermann era obrigado a admitir que a escrita secreta no diário de Amelie era um enigma insolúvel para ele. Primeiro tinha pensado que seria moleza decifrar os hieróglifos, mas já estava perto de desistir. Simplesmente não estava reconhecendo nenhum sistema. Pelo visto, ela usara as mesmas letras para símbolos diferentes, o que lhe tornava impossível descobrir o código. Behnke entrou na sala.

— E aí? — perguntou Ostermann. Bodenstein tinha encarregado Behnke de interrogar Claudius Terlinden, que desde a manhã estava sentado em uma cela.

— Não deu um pio, o arrogante filho da mãe. — Frustrado, Behnke deixou-se cair na cadeira atrás de sua mesa e cruzou os braços atrás da cabeça. — Para o chefe, falar é fácil! Preciso comprometê-lo com alguma coisa; sim, mas o quê? Tentei provocá-lo, fui amigável, o ameacei, e ele ficou sentado ali, sorrindo! Antes tivesse lhe dado uns tabefes!

— Era só o que faltava. — Ostermann deu uma rápida olhada em seu colega. De imediato, Behnke ficou furioso.

— Não precisa me lembrar que estou na merda! — bradou, e deu um soco tão forte no tampo da mesa que o teclado até pulou. — Acho que o velho está querendo me aporrinhar aos poucos para eu mesmo pedir demissão!

— Que besteira! Além do mais, ele não disse para você comprometê-lo, mas apenas para cansá-lo.

— Exatamente. Até ele voltar do passeio com a sua princesa e ficar com a parte fácil do trabalho! — Behnke estava com o rosto vermelho de raiva. — E eu fico sempre com o trabalho sujo.

Ostermann quase ficou com pena de Behnke. Ele o conhecia desde a escola de polícia, trabalharam juntos na patrulha e juntos foram para o Comando Especial de Operações, até Ostermann perder a perna em uma missão. Behnke ainda ficou alguns anos no Comando, depois foi transferido para a Polícia Criminal, em Frankfurt, onde logo chegou ao topo da K 11. Era um bom policial. Fora um bom policial. Desde que tudo começou a dar errado em sua vida particular, seu trabalho também passou a sofrer as consequências. Behnke apoiou a cabeça nas mãos e entregou-se a uma apática reflexão.

Nesse momento, a porta se abriu com violência. Kathrin Fachinger entrou impetuosamente, suas bochechas ardiam de raiva.

— Me diga uma coisa: você enlouqueceu? — disse ela, censurando o colega. — Você simplesmente me deixa sozinha com o cara e some! O que é isso?

— Você sabe de tudo mais do que eu! — rebateu Behnke, com sarcasmo. Ostermann olhou para um e outro galo de briga.

— Tínhamos uma estratégia — Kathrin lembrou seu colega. — E então você simplesmente desaparece. Mas, veja só: comigo ele falou. — Sua voz ganhou um tom triunfante.

— Que ótimo! Então vá correndo contar para o chefe, sua cretina!

— O que você disse? — Kathrin postou-se na frente dele e colocou os braços nos quadris.

— Eu disse “sua cretina”! — repetiu Behnke em voz alta. — E vou dizer com mais clareza ainda: você é uma mulherzinha traiçoeira e egoísta! Você me dedurou, e isso eu não vou esquecer!

— Frank! — exclamou Ostermann e se levantou.

— Por acaso você está me ameaçando? — Kathrin não se deixou intimidar. Riu com desprezo. — Não tenho medo de você, seu... seu garganta! Você só sabe botar banca e deixar o trabalho para os outros! Não é de admirar que sua mulher tenha ido embora. Quem ia querer ficar casada com alguém como você?

Behnke ficou vermelho e cerrou os punhos.

— Gente! — advertiu Ostermann, preocupado. — Calma!

Era tarde demais. A raiva de Behnke contra a jovem colega, há muito represada, descarregou-se de modo explosivo. Ele se levantou de um salto, empurrou sua cadeira e deu em Kathrin um empurrão enérgico. Ela bateu contra o armário, seus óculos voaram para o chão. Behnke pisou neles de propósito, e as lentes se esmigalharam sob o salto de seu sapato. Kathrin se recompôs.

— Bom — disse ela, e sorriu friamente. — Esse foi o seu fim, caro colega.

Então, Behnke perdeu completamente a cabeça. Antes que Ostermann pudesse impedi-lo, ele partiu pra cima de Kathrin e deu-lhe um soco bem no meio da cara. Por reflexo, ela levantou a perna e cravou o joelho em seus genitais. Com um grito de dor sufocado, Behnke desabou no chão. No mesmo momento, a porta se abriu e Bodenstein apareceu no vão. Seu olhar passou de Kathrin Fachinger para Behnke.

— Alguém pode me explicar, por favor, o que está acontecendo aqui? — perguntou ele, esforçando-se para controlar a voz.

— Ele me atacou e arrancou os óculos da minha cara — respondeu Kathrin Fachinger, apontando para a armação pisoteada. — Eu só me defendi.

— Isso é verdade? — Bodenstein olhou para Ostermann, que, consternado, levantou as mãos e, após um breve olhar para o colega acocorado no chão, fez que sim.

— Muito bem — disse Bodenstein. — Para mim, já chega desse jardim de infância. Behnke, levante-se.

Frank Behnke obedeceu. Seu rosto estava contorcido de dor e ódio. Abriu a boca, mas Bodenstein não o deixou falar.

— Achei que tivesse entendido o que a doutora Engel e eu lhe dissemos — disse friamente. — Está suspenso do serviço a partir de agora!

Behnke fitou-o, mudo, depois foi até sua mesa e pegou o casaco que havia pendurado no encosto da cadeira.

— Deixe o distintivo e a arma aqui — ordenou Bodenstein.

Behnke tirou a arma da cintura e, com displiscência, jogou-a com o distintivo sobre a mesa.

— Vão todos tomar no cu — balbuciou, passou rente a Bodenstein e desapareceu. Por um momento, predominou completo silêncio.

— Como foi o interrogatório de Terlinden? — Bodenstein dirigiu-se a Kathrin Fachinger, como se nada tivesse acontecido.

— Ele é dono do Ebony Club, em Frankfurt — respondeu ela. — E também do Corcel Negro e do outro restaurante, onde Andreas Jagielski é gerente.

— E o que mais?

— Não deu para tirar mais nada dele. Mas acho que isso já esclarece alguma coisa.

— Ah, é? O quê?

— Claudius Terlinden não precisaria ter apoiado Hartmut Sartorius financeiramente se ele próprio não o tivesse arruinado ao abrir o Corcel Negro — respondeu Kathrin. —Na minha opinião, ele é tudo menos um samaritano caridoso. Primeiro ele arruinou Sartorius, depois impediu que ele perdesse o sítio e deixasse Altenhain. Não há dúvida de que, no vilarejo, ele tem ainda mais gente na palma da mão, como esse Jagielski, que transformou em gerente de seus restaurantes. Me lembra um pouco a máfia: ele os protege e, em troca, eles ficam calados.

Bodenstein olhou para sua colega mais jovem e, pensativo, franziu a testa. Depois, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Bom trabalho — disse, reconhecido. — Muito bom.

 

Tobias pulou como que eletrificado do sofá quando a porta do apartamento se abriu. Nadja entrou, segurando um saco plástico com uma mão e, com a outra, tentou tirar seu mantô.

— E aí? — Tobias ajudou-a com o mantô e o pendurou no vestíbulo. — Encontrou alguma coisa? — Após horas de espera e de tensão, ele mal podia controlar a expectativa.

Nadja foi para a cozinha, colocou o saco em cima da mesa e sentou-se em uma cadeira.

— Nada. — Cansada, balançou a cabeça, soltou o rabo-de-cavalo e passou a mão pelos cabelos. — Vasculhei a casa inteira. Aos poucos, comecei a acreditar que esses desenhos são apenas invenção da Amelie.

Tobias olhou espantado para ela. A decepção era imensa.

— Não pode ser! — contestou energicamente. — Por que ela inventaria uma coisa dessas?

— Não faço ideia. Talvez quisesse se fazer de importante — respondeu Nadja levantando os ombros. Parecia exausta. Sob seus olhos havia olheiras escuras. Toda a situação parecia mortificá-la tanto quanto a ele próprio.

— Vamos comer primeiro — disse ela, e estendeu a mão para pegar a sacola. — Trouxe uma comida chinesa para nós.

Embora Tobias não tivesse comido nada o dia inteiro, o cheiro apetitoso que as caixas de papelão exalavam não o atraiu nem um pouco. Como ele poderia pensar em comida naquele momento? Amelie não tinha inventado os desenhos — nunca! Ela não era do tipo de garota que quer se fazer importante, Nadja estava completamente enganada. Calado, viu-a abrir uma caixinha de papelão, separar os palitos de madeira e começar a comer.

— A polícia está atrás de mim — disse ele.

— Eu sei — respondeu ela de boca cheia. — Estou fazendo de tudo para ajudar você.

Tobias mordeu o lábio. Droga, ele realmente não podia fazer nenhuma crítica a Nadja. Mas já estava enlouquecendo por não poder fazer nada. Preferiria ir embora para procurar Amelie por conta própria. Só que o prenderiam na hora, assim que ele pusesse os pés para fora da porta. Nada mais lhe restava a não ser ter paciência e confiar em Nadja.

 

Bodenstein parou do outro lado da rua, desligou o motor e ficou sentado ao volante. Dali, podia observar Cosima pela janela iluminada da cozinha, indo atarefada de um lado para o outro. Ele ainda tivera uma reunião com a doutora Engel por causa de Behnke. Obviamente, o incidente tinha se espalhado como rastilho de pólvora por toda a delegacia. Nicola Engel ratificara a suspensão de Behnke, mas agora Bodenstein tinha um sério problema pessoal. Não apenas Behnke mas também Hasse estavam faltando.

Na volta para casa, ponderou sobre como se comportaria com Cosima. Arrumar suas coisas sem dizer nada e ir embora? Não, ele precisava ouvir a verdade de sua boca. Não estava sentindo raiva, apenas a sensação completamente miserável de uma decepção imensa. Após minutos de hesitação, desceu do carro e atravessou lentamente a rua molhada pela chuva. A casa, que Cosima e ele construíram juntos, na qual ele morava e era feliz há vinte anos, da qual ele conhecia cada canto, de repente lhe pareceu estranha. Antes, toda noite ele ficava feliz ao voltar para casa. Ficava feliz com Cosima e as crianças, com o cachorro e o trabalho no jardim durante o verão, mas agora tinha horror de passar pela porta de casa. Quanto tempo já fazia que Cosima deitava à noite ao seu lado na cama e, intimamente, desejava outro homem, que a acariciava, beijava e com ela dormia? Se ao menos naquele dia ele não a tivesse visto com aquele sujeito! Mas aconteceu, e tudo dentro dele gritava por quê? Desde quando? Como? Onde?

Nunca teria acreditado que um dia se veria em tal situação. Seu casamento tinha sido bom, até... sim, até Sophia nascer. Depois, Cosima mudara. Ela sempre fora incansável; porém, suas expedições a países distantes satisfaziam a tal ponto seu desejo de liberdade e aventura que, nos meses restantes, ela conseguia suportar o cotidiano. Ele sabia disso e aceitara suas viagens sem reclamar, embora sempre tivesse odiado as longas separações. Depois que Sophia nasceu, portanto, há pouco menos de dois anos, Cosima não saiu de casa. Nunca o fizera perceber que estava insatisfeita. Mas, ao olhar para trás, ele reconhecia as mudanças. Antigamente, eles nunca brigavam, e agora faziam isso com frequência. Sempre por coisas pequenas. Censuravam-se reciprocamente, de repente passaram a criticar as manias um do outro. Bodenstein estava com a chave em punho diante da porta de sua casa, quando súbita e inesperadamente a raiva o inflamou. Durante semanas ela escondera dele a gravidez. Ela havia decidido, totalmente sozinha, ter um filho, e o colocara diante do fato consumado. Embora devesse saber muito bem que, com um bebê, sua vida de cigana teria de ser interrompida ao menos por um tempo.

Ele abriu a porta. O cachorro saiu pulando de sua cesta e cumprimentou-o alegremente. Quando Cosima apareceu à porta da cozinha, o coração de Bodenstein afundou até os joelhos.

— Oi. — Ela sorriu. — Chegou tarde hoje. Já comeu?

Lá estava ela, com o mesmo pulôver verde-claro de caxemira, que estava vestindo na hora do almoço, no Ebony Club, e tinha a mesma aparência de sempre.

—Não — respondeu. — Não estou com fome.

— Se ficar, ainda tem almôndega e salada de macarrão na geladeira.

Ela se virou, querendo voltar para a cozinha.

— Hoje você não esteve em Mainz — disse ele. Cosima parou e se voltou. Ele não queria que ela mentisse, por isso, continuou a falar, antes que ela pudesse dizer alguma coisa. — Vi você hoje, na hora do almoço, no Ebony Club. Com Alexander Gavrilow. Por favor, não negue.

Ela cruzou os braços e olhou para ele. Fez-se um grande silêncio. O cão percebeu a tensão repentina e voltou quieto para sua cesta.

— Nas últimas semanas você quase nunca esteve em Mainz — continuou Bodenstein. — Há alguns dias, eu estava voltando do Departamento de Medicina Legal e, por acaso, você estava dirigindo à minha frente. Liguei para você e vi quando pegou o telefone. E você afirmou que ainda estava em Mainz.

Ele emudeceu. Em um cantinho de seu coração, ainda tinha esperança de que, rindo, ela lhe desse uma explicação totalmente inocente. Mas ela não riu nem negou. Simplesmente ficou ali parada, com os braços cruzados. Nenhum traço de consciência pesada.

— Por favor, seja sincera comigo, Cosima. — Sua voz soou lastimosa a seus ouvidos. — Você... você... está tendo um caso com o Gavrilow?

— Estou — respondeu ela tranquilamente.

Seu mundo desmoronou, mas, externamente, Bodenstein conseguiu permanecer tão tranquilo quanto Cosima.

— Por quê? — perguntou ele, amargurando-se.

— Ah, Oliver. O que você quer ouvir de mim agora?

— De preferência, a verdade.

— Encontrei-o por acaso, no verão, em uma vernissage em Wiesbaden. Ele tem um escritório em Frankfurt, está com um novo projeto e busca patrocinadores. Falamos algumas vezes por telefone. Ele achou que eu poderia fazer um filme sobre sua expedição. Eu sabia que você não ia gostar da ideia, e primeiro quis ouvir o que ele tinha em mente. Por isso, não contei a você que tinha me encontrado com ele. Pois bem. E, em algum momento, simplesmente... aconteceu. Pensei que fosse um deslize, mas depois... — Ela se interrompeu e abanou a cabeça.

Era inconcebível que ela tivesse encontrado outro homem e pudesse ter começado um relacionamento sem que ele tivesse suspeitado. Teria ele sido tolo e crédulo demais ou teria estado muito ocupado consigo mesmo? Ocorreu-lhe a letra de uma canção, que Rosalie ouvia sem parar por toda a casa, na pior fase de sua adolescência. O que ele tem que eu não tenho? Diga-me sinceramente o que é. Agora pode ser tarde demais, mas o que lhe faltou? Uma canção tão boba — e, naquele momento, de repente continha tanta verdade. Bodenstein deixou Cosima em pé, subiu a escada até o quarto. Mais um minuto e ele teria explodido, teria dito aos berros na cara dela o que ele achava de aventureiros como Gavrilow, que começavam a se relacionar com mulheres casadas, mães de crianças pequenas. Provavelmente ele devia ter casos espalhados em todo canto do mundo, aquele cachorro! Abriu todos os armários, pegou uma mala grande de uma prateleira mais alta, encheu-a aleatoriamente com roupas de baixo, camisas, gravatas e jogou dois ternos por cima. Depois, foi ao banheiro e guardou seus objetos pessoais em um nécessaire. Apenas dez minutos depois, desceu a escada puxando a mala. Cosima ainda estava no mesmo lugar de antes.

— Aonde você vai? — perguntou em voz baixa.

— Embora — respondeu ele, sem olhar para ela. Abriu a porta e saiu na noite.

 

Sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Às seis e quinze, Bodenstein foi arrancado de seu sono profundo pelo toque de seu celular. Confuso, tateou em busca do interruptor até se lembrar de que não estava em casa, deitado em sua própria cama. Tinha dormido mal e tido sonhos desordenados. O colchão era muito mole, e o edredom, muito quente, de modo que ele suou e sentiu frio, alternadamente. O celular continuou a tocar com insistência, parou por um breve instante, depois voltou a tocar. Bodenstein revolveu-se na cama, levantou-se e, desorientado, tateou na escuridão pelo quarto estranho e resmungou um palavrão ao bater com o dedão do pé contra o pé da mesa. Por fim, encontrou o interruptor ao lado da porta e, logo em seguida, seu celular no bolso interno do paletó, que na noite anterior havia jogado em uma cadeira.

Em um estacionamento da floresta, o guarda-florestal encontrara o corpo de um homem em um carro, no sopé da montanha Eichkopf, entre Ruppertshain e Königstein. A Polícia Científica já estava a caminho, caso ele quisesse passar por lá e dar uma olhada na situação. Claro que ele iria — e lhe restava alguma alternativa? Com o rosto contorcido de dor, voltou cambaleando até a cama e deixou-se afundar em sua beirada. Os acontecimentos do dia anterior lhe pareceram um pesadelo. Por quase uma hora ele dirigira sem destino pela região, até passar, por acaso, pela saída da propriedade rural de sua família. Nem seu pai nem sua mãe lhe fizeram perguntas quando, pouco depois da meia-noite, ele parou à porta da casa deles e pediu abrigo por uma noite. Sua mãe arrumou uma cama para ele no quarto de hóspedes, no sótão, e não o pressionou. Obviamente, pela cara dele, ela percebeu que ele não tinha ido até lá para passear. Ficou agradecido pela discrição. Não teria conseguido falar sobre o assunto, sobre Cosima e aquele sujeito.

Com um suspiro, levantou-se, tirou o nécessaire da mala e atravessou o corredor até o banheiro. Era minúsculo e gelado e, de modo desagradável, fazia-o lembrar da infância e da adolescência, nas quais o luxo era algo inexistente. Seus pais economizavam o que podiam, pois o dinheiro era sempre curto. Lá em cima, no castelo, onde ele crescera, apenas dois cômodos eram aquecidos nos meses de inverno; todos os outros quartos eram apenas “mornos”, como sua mãe costumava chamar a temperatura ambiente de menos de 18 graus. Bodenstein cheirou sua camiseta e torceu o nariz. Não daria para escapar da ducha. Saudoso, pensou no chão aquecido de sua casa, nas toalhas macias, cheirando a amaciante. Tomou banho em tempo recorde, secou-se com uma toalha áspera e desfiada e barbeou-se com os dedos trêmulos, sob a pálida luz fria do armário espelhado. No andar de baixo, na cozinha, encontrou seu pai, que bebia café à mesa de madeira arranhada e lia o jornal.

— Bom-dia. — Ele levantou o olhar e cumprimentou o filho amigavelmente com a cabeça. — Quer café?

— Bom-dia. Sim, por favor. — Bodenstein se sentou. Seu pai se levantou, pegou uma xícara no armário e o serviu. Nunca lhe perguntaria por que ele tinha aparecido no meio da noite e dormido em um quarto de hóspedes. Também no que se referia às palavras, seus pais sempre foram parcimoniosos. E ele próprio não sentia vontade nenhuma de falar de seus problemas matrimoniais às quinze para as sete da manhã. Por isso, pai e filho tomaram seu café em tácito entendimento. Desde sempre, na casa dos Bodensteins comia-se e bebia-se, mesmo no dia a dia, em louça Meissen — por economia. A porcelana era herança de família; não havia razão para não usá-la ou comprar outra nova. Teria um valor inestimável, não fosse pelo fato de que, com o tempo, quase todas as peças haviam sido coladas várias vezes. A xícara de café de Bodenstein também estava trincada e tinha uma asa colada. Finalmente, ele se levantou, colocou sua xícara na pia e agradeceu. Seu pai fez um gesto com a cabeça e voltou à sua leitura, que, por educação, ele havia colocado de lado.

— Leve uma chave de casa — disse de passagem. — Há uma pendurada, com um chaveiro vermelho, no porta-chaves ao lado da porta.

— Obrigado. — Bodenstein pegou a chave. — Até mais tarde.

Aparentemente, seu pai estava certo de que ele voltaria à noite.

 

Faróis e luzes azuis piscantes iluminavam a sombria manhã de novembro, quando Bodenstein entrou no estacionamento da floresta, logo após uma curva. Parou seu carro ao lado de uma radiopatrulha e percorreu o caminho a pé. O odor outonal de terra úmida e folhas apodrecidas penetrou em seu nariz; lembrou-se de alguns versos de uma das poucas poesias que havia decorado. Quem agora está só, por muito tempo só ficará, pelas alamedas caminhará inquieto, de um lado para o outro, quando as folhas se agitarem. A sensação de abandono saltou sobre ele como um cão raivoso, e ele teve de usar de toda a força para seguir em frente e fazer seu trabalho, embora tivesse preferido esconder-se em algum canto.

— Bom-dia — disse a Christian Kröger, chefe da Polícia Científica, que estava tirando a câmera fotográfica do estojo. — O que aconteceu lá em cima?

— A notícia se espalhou pelo rádio da polícia — respondeu Kröger e sorriu abanando a cabeça. — Parecem crianças!

— Que notícia? — Bodenstein continuava sem entender e se espantou com a aglomeração de pessoas. Embora ainda fosse cedo, havia cinco viaturas no estacionamento coberto de cascalho, e uma sexta acabava de entrar, após dobrar a curva da rua. De longe, Bodenstein já ouvia o vozerio. Todos os agentes, uniformizados ou nos macacões brancos da Polícia Científica, estavam em franco alvoroço.

— Uma Ferrari! — comunicou um dos agentes da patrulha com os olhos brilhando. — Uma 599 GTB Fiorano! Uma como essa, eu só vi uma vez, no Salão do Automóvel!

Bodenstein abriu caminho por entre as fileiras de colegas. De fato! Bem no fundo do estacionamento reluzia uma Ferrari vermelha à luz de um farol, respeitosamente circundada por cerca de 15 policiais, que estavam mais interessados nas cilindradas, no número de cavalos, nos pneus, nos aros, nos torques e na aceleração do nobre carro esporte do que no morto ao volante. Uma mangueira saía de um dos escapamentos largos e cromados e ia até a janela, que havia sido cuidadosamente vedada por dentro com fita isolante prateada.

— Esse brinquedo custa 250 mil euros — afirmou um dos agentes mais jovens naquele momento. — Loucura, não é?

— Depois desta noite, vai valer bem menos — respondeu Boden- stein secamente.

— Por quê?

— Talvez você não tenha percebido, mas no banco do motorista há um corpo. — Bodenstein não era do tipo de homem que perdia completamente a cabeça ao ver um carro esporte vermelho. — Alguém verificou a placa?

— Sim — fez-se ouvir, ao fundo, uma policial jovem, que aparentemente também compartilhava pouco do entusiasmo dos colegas. — O carro foi licenciado em nome de um banco, em Frankfurt.

—Hum. — Bodenstein observou Kröger bater suas fotos e, em seguida, abrir a porta do lado do motorista com a ajuda de um colega.

— A crise econômica faz sua primeira vítima — gracejou alguém. Depois, travou-se uma nova discussão sobre quanto dinheiro era preciso ganhar por mês para conseguir pagar o leasing de uma Ferrari Fiorano. Bodenstein viu outra radiopatrulha entrar no estacionamento, seguida por dois veículos civis.

— Mande fazer um amplo bloqueio no estacionamento — instruiu à jovem oficial. — E, por favor, mande embora os colegas que nada têm o que fazer aqui.

A moça fez sinal afirmativo e encaminhou-se com vigor à sua missão. Poucos minutos depois, o estacionamento estava bloqueado. Bodenstein agachou-se ao lado da porta aberta do carro, do lado do motorista, e observou o corpo. O homem louro ainda era jovem, de aproximadamente 35 anos. Vestia terno e gravata; no pulso, um relógio caro. Sua cabeça estava virada para o lado. À primeira vista, parecia estar dormindo.

— Bom-dia, Bodenstein — disse uma voz conhecida atrás dele, e Bodenstein deu uma olhada por cima dos ombros.

— Olá, doutor Kirchhoff. — Levantou-se e cumprimentou o médico-legista com a cabeça.

— Pia não está aqui?

— Não, hoje pude vir sozinho — respondeu Bodenstein, irônico. — Está com saudade dela?

Kirchhoff deu um sorriso cansado, mas não entrou na brincadeira. Excepcionalmente, não parecia disposto a observações sarcásticas. Seus olhos estavam avermelhados atrás das lentes dos óculos; também parecia não ter dormido muito na última noite. Bodenstein cedeu espaço ao médico-legista e dirigiu-se até Kröger, que estava justamente averiguando a pasta depositada no banco do passageiro da Ferrari.

— E então? — perguntou. Kröger entregou-lhe a carteira do morto. Bodenstein tirou a identidade e ficou petrificado. Leu o nome uma segunda vez. Podia ser mera coincidência?

 

A médica-chefe do departamento de psiquiatria informou Pia, tão detalhadamente quanto seu dever de confidencialidade lhe permitia, sobre o estado de Thies Terlinden; e Pia ficou mais do que ansiosa para vê-lo. Ela sabia que não podia esperar muita coisa. Segundo dissera a médica, provavelmente Thies nem sequer responderia às suas perguntas. Por um momento, Pia observou os pacientes pelo vidro da porta. Thies Terlinden era um rapaz muito bonito, de cabelos louros e bastos e uma boca delicada, que não revelava com quais demônios tinha de lutar. Apenas seus quadros denunciavam algo sobre seus tormentos interiores. Estava sentado a uma mesa em uma sala clara e agradável e pintava concentrado. Embora estivesse novamente tranquilo sob o efeito dos medicamentos, não lhe davam nenhum objeto pontiagudo, como lápis ou pincel; por isso, tinha de se contentar com giz de cera, o que, no entanto, não parecia incomodá-lo. Não levantou o olhar quando Pia entrou na sala, acompanhada pela médica e por um enfermeiro. A médica apresentou Pia, explicou-lhe por que ela estava ali e queria falar com ele. Thies inclinou-se ainda mais sobre seu desenho; depois, recostou-se repentinamente e colocou os gizes de cera sobre a mesa. Os coloridos não estavam espalhados; ele os havia arrumado cuidadosamente lado a lado, como soldados a postos para a chamada. Pia sentou-se em uma cadeira à sua frente e olhou para ele.

— Não fiz nada com a Amelie — disse ele com uma voz estranhamente monótona, antes que Pia pudesse dizer alguma coisa. — Eu juro. Não fiz nada com a Amelie, não fiz nada.

— Ninguém está dizendo isso — respondeu Pia, amigável.

As mãos de Thies moviam-se descontroladamente, ele balançava o tronco para a frente e para trás, seu olhar permaneceu fixo no desenho que estava à sua frente.

— Você gosta da Amelie, e ela ia muito à sua casa, não é?

Ele afirmou enfaticamente com a cabeça.

— Tomei conta dela. Tomei conta dela.

Pia trocou um olhar com a médica, que estava sentada um pouco à parte. Thies voltou a pegar no giz, inclinou-se sobre o desenho e continuou a pintar. Predominou o silêncio. Pia refletiu qual seria sua próxima pergunta. A médica a havia aconselhado a conversar de forma totalmente normal com Thies, e não como com uma criança pequena. Mas não era tão simples assim.

— Quando você viu a Amelie pela última vez?

Ele não reagiu, continuou a pintar como se estivesse possuído, e pegou um giz de outra cor.

— Sobre o que vocês conversaram?

Era totalmente diferente de um interrogatório normal. No rosto de Thies, nada se via, sua expressão era tão fixa quanto a de uma escultura de mármore. Não respondeu a nenhuma pergunta. Por fim, Pia parou de perguntar. Os minutos passavam. O tempo nada significa para os autistas, explicara a médica; eles vivem em seu próprio mundo. Era preciso ter paciência. Porém, às onze horas seria realizado o enterro de Laura Wagner no cemitério de Altenhain, onde ela queria se encontrar com Bodenstein. Ao se levantar decepcionada e fazer menção de ir embora, repentinamente Thies Terlinden falou.

— Eu a vi à noite, saindo do ninho da águia. — Seu modo de falar era claro, ele formava frases corretas. Só faltava a melodia, era como se um robô estivesse falando. — Ela estava no sítio, ao lado do celeiro. Quis chamá-la, mas aí chegou... o homem. Eles conversaram e riram e entraram no celeiro, para que ninguém visse o que faziam. Mas eu vi.

Pia olhou confusa para a médica, que, desnorteada, deu de ombros. Celeiro? Ninho da águia? E que homem era esse que Thies tinha visto?

— Mas não posso falar a respeito — continuou —, senão, vou para o sanatório. E lá vou ter de ficar até morrer.

De repente, ele levantou a cabeça e olhou para ela com seus olhos claros e azuis, tão desesperado quanto uma figura dos quadros na sala da doutora Lauterbach.

— Não posso falar a respeito — repetiu. — Não posso falar a respeito. Senão, vou para o sanatório. — Empurrou para Pia o desenho que acabara de fazer. — Não falar. Não falar.

Ela observou a imagem e estremeceu. Uma moça de cabelos longos e escuros. Um homem, que saía correndo. Outro homem, que cravava uma cruz na cabeça da moça de cabelos escuros.

— Esta não é Amelie, é? — perguntou Pia em voz baixa.

— Não posso falar — sussurrou ele, rouco. — Não falar. Só pintar.

O coração de Pia bateu com mais força quando ela compreendeu o que Thies estava tentando explicar. Alguém lhe proibira de falar sobre o que ele tinha visto. Ele não estava falando da Amelie. E o desenho tampouco a mostrava; ao contrário, retratava Stefanie Schneeberger e seu assassino!

Thies desviou o olhar dela, pegou um giz e, empenhado, voltou a desenhar uma nova imagem. Parecia ter-se retirado totalmente em si mesmo, os traços de seu rosto ainda estavam tensos, mas ele havia parado de balançar o corpo para a frente e para trás. Lentamente, Pia entendeu o que aquele homem havia sofrido nos últimos anos. Haviam-no pressionado e ameaçado para ele não contar a ninguém o que vira onze anos antes. Mas quem tinha feito isso? De repente, também ficou claro o risco que Thies Terlinden estava correndo se essa pessoa descobrisse o que ele acabara de informar à polícia. Para protegê-lo, ela precisava fingir também para a médica que aquela conversa era totalmente irrelevante.

— Bem — disse, então. — De todo modo, muito obrigada. — Levantou-se, e a médica e o enfermeiro fizeram o mesmo.

— Branca de Neve tem que morrer, disseram — declarou Thies nesse momento. — Mas ninguém pode fazer mais nada. Porque estou tomando conta dela.

 

A garoa e a neblina não impediram ninguém em Altenhain de acompanhar o enterro dos restos mortais de Laura Wagner. O estacionamento na frente do Corcel Negro não era suficiente para abrigar o número de automóveis. Pia simplesmente parou no acostamento da rua, desceu do carro e, ao ouvir o badalo do sino dos mortos, dirigiu-se com passos apressados à igreja, onde Bodenstein a esperava sob o beiral.

— Thies viu tudo na época — proferiu abruptamente a novidade. — Ele realmente fez desenhos, conforme Amelie havia contado a Tobias. Alguém o pressionou, dizendo que ele iria para um sanatório se algum dia falasse sobre o que viu.

— O que ele disse sobre Amelie? — Bodenstein estava impaciente, sinal de que também tinha descoberto algo importante.

— Nada. Só que não fez nada com ela. Mas falou sobre Stefanie e até fez um desenho.

Pia tirou o papel dobrado de sua bolsa e o entregou a Bodenstein.

Ele deu uma olhada e franziu a testa, depois apontou anuindo para a cruz.

— Esse é o macaco do carro. A arma do crime.

Pia fez que sim, agitada.

— Quem o ameaçou? Seu pai, talvez?

— Pode ser. Talvez ele não quisesse ver o filho envolvido em um crime como esse.

— Mas Thies não participou — contestou Pia. — Ele apenas observou tudo.

— Não estou falando do Thies — replicou Bodenstein. O sino emudeceu. — Hoje de manhã, fui chamado para um caso de suicídio. Um homem se matou em seu próprio carro, no estacionamento junto à curva Nepomuk. E esse homem é o irmão de Thies, Lars Terlinden.

— Como é que é? — Pia ficou perplexa.

— Isso mesmo. — Bodenstein confirmou. — E se Lars foi o assassino de Stefanie e seu irmão viu o crime?

— Lars Terlinden foi estudar na Inglaterra logo após o desaparecimento da moça. — Pia tentou se lembrar da cronologia dos acontecimentos de setembro de 1997. O nome do irmão de Thies nem sequer aparecia nos antigos autos.

— Talvez essa tenha sido a forma de Claudius Terlinden manter seu filho longe das investigações. E pressionou seu outro filho para que ele não abrisse a boca — supôs Bodenstein.

— Mas o que Thies tinha em mente ao dizer que ninguém poderia fazer mais nada a Branca de Neve, pois ele está tomando conta dela?

Bodenstein deu de ombros. A situação não estava ficando mais clara; ao contrário, estava cada vez mais confusa. Deram a volta na igreja e foram até o cemitério. Os familiares e amigos estavam reunidos sob guarda-chuvas, apertando-se ao redor da cova aberta, na qual, exatamente nesse momento, o caixão branco com um buquê de cravos igualmente brancos era descido. Os homens da agência funerária re-cuaram, e o padre começou a falar.

Manfred Wagner fora autorizado a sair da prisão preventiva para ir ao enterro de sua filha mais velha. Com expressão petrificada, estava ao lado de sua mulher e de dois adolescentes na primeira fila; ambos os agentes penitenciários que o haviam acompanhado esperavam um pouco mais apartados. De salto agulha, uma mulher jovem passou apressada por Pia e Bodenstein, sem olhar para eles. Tinha o cabelo louro e brilhante preso em um coque simples, vestia um tailleur preto e justo, e, apesar do clima sombrio e nublado, usava óculos de sol escuros.

— Nadja von Bredow — explicou Pia a seu chefe. — Ela é daqui de Altenhain e era amiga de Laura Wagner.

— Ah, sei. — Bodenstein estava com seus pensamentos em outro lugar. — Aliás, acabei de receber a confirmação da doutora Engel de que ela cuidará de Gregor Lauterbach. Sendo ou não Secretário Estadual de Educação e Cultura, ele estava com Terlinden no sábado em que Amelie desapareceu.

O celular de Pia começou a tocar. Rapidamente, pegou-o e foi para a esquina da igreja, antes que alguém olhasse feio para ela, e atendeu.

— Pia, sou eu — ouviu a voz de Ostermann. — Recentemente você me disse que estavam faltando atas de interrogatório nos antigos autos.

— Sim, exatamente.

— Escute só: para mim é difícil dizer isso, mas me chamou a atenção o fato de o Andreas ter se interessado muito pelos autos. Em uma noite em que ele tinha pedido dispensa por motivo de doença, era tarde e ele ainda estava na sala, e eu...

O restante de suas palavras foi coberto pelo barulho repentino da sirene que se encontrava sobre o telhado do Corcel Negro. Pia tampou o outro ouvido e pediu ao colega que falasse mais alto. Ao ouvir a sirene, três homens deixaram o enterro e passaram correndo por Pia, na direção do estacionamento.

— ...fiquei surpreso... receita... mas estava em nossa sala — ela ainda ouviu. — ...não faço ideia... perguntei para ele... o que é isso?

— A sirene. — Pia fez um esforço para ouvir no celular. — Está pegando fogo em algum lugar. Então, diga de novo. O que aconteceu com o Andreas?

Ostermann repetiu o que dissera pouco antes. Pia ouviu incrédula.

— Isso seria o fim da picada! — disse ela. — Obrigada. Nos vemos mais tarde.

Guardou o celular e voltou pensativa para o lado de Bodenstein.

 

Tobias Sartorius passou pelo celeiro e entrou no antigo curral. Altenhain inteira estava no cemitério, portanto, ninguém o veria, nem mesmo o vizinho Paschke, o velho guardião do quarteirão. Nadja o deixara na parte de cima, junto ao portão dos fundos, e fora até o cemitério para participar do enterro de Laura. Tobias abriu a porta da leiteria e entrou em casa. A sensação de ter de se esconder era horrível. Não era feito para esse tipo de vida. Justamente quando ia subir a escada, seu pai apareceu em silêncio, como uma sombra, à porta da cozinha.

— Tobias! Graças a Deus! — balbuciou. — Fiquei tão preocupado com você! Onde você estava?

— Pai. — Tobias abraçou o pai. — Estava na casa da Nadja. Os tiras não iam acreditar em mim e iam me enjaular na hora.

Hartmut Sartorius concordou com a cabeça.

— Eu só queria pegar umas roupas. A Nadja foi ao enterro e vem me buscar mais tarde.

Somente então lhe ocorreu que seu pai estava em casa em uma manhã normal, e não no trabalho.

— Eles me demitiram. — Hartmut Sartorius deu de ombros. — Arranjaram uma desculpa esfarrapada qualquer. Meu chefe é genro do Dombrowski.

Tobias compreendeu. Sentiu um nó na garganta. Agora também era culpado por terem demitido o pai!

— Ah, eu estava mesmo querendo pedir demissão — disse Hartmut Sartorius, distraído. — Quero voltar a cozinhar de verdade, não apenas pôr aquele negócio congelado para descongelar e colocá-lo no prato. — Então ele pareceu lembrar-se de alguma coisa. — Chegou uma carta para você hoje.

Ele se virou e foi até a cozinha. Tobias o seguiu. A carta não tinha remetente. Teria preferido jogá-la logo no lixo. Provavelmente, era só mais um insulto vulgar. Sentou-se à mesa da cozinha, abriu o envelope e desdobrou a elegante folha de papel, cor de camurça. Sem entender, viu o timbre de um banco suíço antes de começar a ler o texto escrito à mão. Já as primeiras palavras o atingiram como um soco no estômago.

— De quem é isso? — quis saber seu pai. Do lado de fora, uma viatura dos bombeiros passou retumbando, com a luz azul e a sirene ligadas, fazendo as janelas tremerem. Tobias engoliu em seco. Levantou o olhar.

— De Lars — disse com voz rouca. — De Lars Terlinden.

 

O portão da propriedade dos Terlindens estava todo aberto. O cheiro forte de queimado penetrou no carro até mesmo com as janelas fechadas. As viaturas dos bombeiros estavam atravessadas no gramado e tinham deixado marcas profundas no solo pantanoso. Mas não era a mansão que estava em chamas, e sim um anexo bem no fundo do amplo terreno. Pia deixou o carro no espaço na frente da casa e, junto com Bodenstein, foi a pé até o local do incêndio. A fumaça os fez lacrimejar. Os bombeiros pareciam já ter controlado o fogo; já não se viam chamas, apenas nuvens espessas e escuras de fumaça brotavam das aberturas das janelas. Christine Terlinden estava toda vestida de preto, aparentemente tinha estado no enterro ou acabado de voltar ao perceber o fogo. Olhou chocada para o espetáculo, a confusão de mangueiras, os homens do corpo de bombeiros, que pisavam nos canteiros e destruíam a grama. A seu lado estava sua vizinha, Daniela Lauterbach. Ao vê-la, Bodenstein lembrou-se involuntariamente de um de seus sonhos confusos da noite anterior. Ela se virou, como se tivesse ouvido seus pensamentos, e dirigiu-se a ele e a Pia.

— Olá — disse friamente e sem vestígio de sorriso. Naquele dia, seus olhos brilhantes, cor de avelã, tinham a aparência de chocolate frio. — Sua visita a Thies teve algum sucesso?

—Não — respondeu Pia. — O que aconteceu aqui? Que anexo é aquele que queimou?

— A estufa. O ateliê de Thies. Christine está muito preocupada, não sabe como Thies vai reagir quando souber que todos os seus quadros queimaram.

— Infelizmente, temos mais notícias ruins para a senhora Terlinden — disse Bodenstein. Daniela Lauterbach levantou uma de suas sobrancelhas bem delineadas.

— Muito pior do que isso dificilmente pode acontecer — respondeu ela com uma aspereza que não passou despercebida. — Ouvi dizer que vocês ainda mantêm o Claudius preso. Por quê?

Por um momento, Bodenstein ficou tentado a pedir-lhe compreensão e a justificar-se. Mas Pia se antecipou a ele.

— Temos as nossas razões — disse ela. — Infelizmente, temos de comunicar à senhora Terlinden que o filho dela se matou.

— O quê? Thies morreu? — A doutora Lauterbach olhou para Pia. Teria sido alívio o que cintilou brevemente em seu olhar, antes que a consternação tomasse seu semblante? Muito estranho.

— Não, não foi Thies — respondeu Pia. — Lars.

Bodenstein deixou a conversa para Pia. Ficou irritado com tanta benevolência sua para com Daniela Lauterbach. Seria por causa da cordialidade compreensiva que ela lhe demonstrara e que ele, em sua atual crise emocional, acreditava reconhecer? Não conseguia tirar os olhos dela e, de modo despropositado, desejou que ela lhe sorrisse.

— Ele se intoxicou com os gases do escapamento do seu carro — disse Pia logo em seguida. — Encontramos seu corpo hoje de manhã.

— Lars? Meu Deus.

Quando a doutora Daniela Lauterbach se deu conta da triste notícia a ser dada à amiga, o gelo em seu olhar se derreteu. Pareceu desamparada, mas logo endireitou os ombros.

— Eu conto a ela — disse decidida. — É melhor assim. Vou cuidar dela. Me liguem mais tarde.

Virou-se e dirigiu-se à amiga, que não desviara os olhos nem uma única vez do anexo incendiado. Daniela Lauterbach colocou os braços sobre os ombros da amiga e conversou em voz baixa com ela. Christine Terlinden deu um grito reprimido, cambaleou ligeiramente, mas Daniela Lauterbach a segurou firme.

— Vamos — disse Pia. — Elas vão se entender.

Bodenstein parou de olhar as duas mulheres e seguiu Pia no caminho de volta ao jardim devastado. Justamente quando chegavam ao carro, uma mulher, que ele não reconheceu de imediato, foi ao encontro deles.

— Olá, senhora Fröhlich — cumprimentou Pia a madrasta de Amelie. — Como vai?

— Nada bem — admitiu a mulher. Estava muito pálida, mas parecia serena. — Vim para perguntar à senhora Terlinden o que aconteceu aqui, então vi o carro de vocês. Alguma novidade? Sua colega conseguiu descobrir alguma coisa com os desenhos?

— Que desenhos? — perguntou Pia surpresa. Barbara Fröhlich olhou confusa para Pia e Bodenstein.

— M... mas ontem sua colega esteve na minha casa — gaguejou. — Ela... ela disse que vocês a tinham enviado. Por causa dos desenhos que Thies deu a Amelie.

Bodenstein e Pia trocaram um rápido olhar.

— Não enviamos ninguém — respondeu Pia com a testa franzida. Todo aquele caso estava ficando cada vez mais estranho!

— Mas a mulher disse... — começou Barbara Fröhlich, mas depois se calou, desnorteada.

— A senhora viu os desenhos? — Bodenstein quis saber.

— Não... Ela revistou o quarto inteiro e achou uma porta escondida atrás da cômoda. E atrás dessa porta é que estava realmente um rolo com os desenhos. Amelie deve tê-los escondido ali... O que havia nos desenhos, eu não vi. A mulher os levou, quis até me dar um recibo.

— Como ela era, nossa suposta colega? — perguntou Pia. Barbara Fröhlich pareceu entender que tinha cometido um erro. Seus ombros caíram para a frente, ela se apoiou no para-lama do carro, com o punho comprimindo os lábios. Pia foi até ela, colocou o braço sobre seus ombros.

— Ela... ela tinha um distintivo — sussurrou a madrasta de Amelie, lutando contra as lágrimas. — Ela foi... tão compreensiva e gentil. Ela... ela... disse que, com a ajuda desses desenhos, iriam encontrar Amelie, e só isso importou para mim!

— Não se preocupe — Pia tentou consolar a mulher. — Consegue se lembrar como era essa mulher?

— Cabelos escuros e curtos. De óculos. Magra. — Barbara Fröhlich levantou os ombros. Em seus olhos via-se puro medo. — Acha que a Amelie ainda está viva?

— Mas claro — respondeu Pia contra sua própria convicção. — Vamos encontrá-la. Não fique tão preocupada.

 

— Os desenhos de Thies mostram o verdadeiro assassino, estou convencida disso — disse Pia pouco depois a seu chefe, quando já estavam sentados no carro, indo em direção a Neuenhain. — Ele os deu para Amelie guardar. Mas Amelie cometeu o erro de falar para alguém desses desenhos.

— Exato — concordou Bodenstein, melancólico. — Ou seja, Tobias Sartorius. E ele mandou alguém até a casa dos Fröhlichs para pegar os desenhos.

— Para o Tobias é indiferente se os desenhos o mostram — contestou Pia. — Ele já pagou sua pena. O que poderia acontecer com ele? Não, não, deve ter sido outra pessoa, alguém que tenha o maior interesse em nunca deixar que esses desenhos apareçam.

— Quem, então?

Para Pia era difícil declarar sua suspeita. Ela se deu conta de que a primeira impressão que tivera de Claudius Terlinden não poderia ter sido mais errada.

— O pai de Thies — disse.

— É possível — confirmou Bodenstein. — Mas também pode ter sido alguém que ainda não levamos em consideração porque não conhecemos. Aqui você tem de virar à esquerda.

—Aonde estamos indo, afinal? — Pia ligou a seta da esquerda, esperou passarem os carros do contrafluxo e entrou na rua.

— Para a casa de Hasse — respondeu Bodenstein. — Ele mora na última casa do lado esquerdo, lá em cima, na beira da floresta.

Seu chefe permanecera impassível quando Pia lhe contara anteriormente do telefonema de Ostermann, mas parecia querer tirar a história a limpo, sem perder tempo. Pouco depois, ela parou na frente de uma pequena casa com um jardim minúsculo, que ela sabia que Andreas Hasse terminaria de pagar quando se aposentasse. Era o que ele mencionava regularmente, cheio de indignação com o salário de funcionário público que, em sua opinião, era uma miséria. Desceram do carro e foram até a porta. Bodenstein apertou a campainha. O próprio Hasse abriu. Imediatamente, ficou pálido como cera e, consternado, abaixou a cabeça. Então Ostermann tinha acertado em cheio com sua suspeita. Inacreditável.

— Podemos entrar? — perguntou Bodenstein. Entraram em um vestíbulo escuro com piso gasto de linóleo; um cheiro de comida misturado a fumaça de cigarro pairava no ar. O rádio cantarolava. Hasse fechou a porta que dava para a cozinha. Nem por um momento tentou negar; ao contrário, logo confessou tudo.

— Um amigo me pediu um favor — disse, sem graça. — Pensei que não causaria tanto problema.

— Santo Deus, Andreas, você enlouqueceu? — Pia estava fora de si. — Você some com atas dos autos?

— Eu não podia imaginar que essa história antiga ainda tivesse importância — respondeu de modo pouco convincente. — Pensei que tudo aquilo já fosse muito antigo, que já tivesse sido encerrado há muito tempo... — Emudeceu ao perceber o que estava dizendo.

— Você sabe o que isso significa — disse Bodenstein, sério. — Vou ter de suspendê-lo do serviço e abrir um processo disciplinar contra você. Onde estão os documentos?

Hasse fez um gesto desorientado.

— Eu os destruí.

— E por quê? — Pia não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Será que ele realmente achou que ninguém iria notar?

— Pia, o Sartorius matou duas garotas e lançou suspeita sobre todo mundo — até mesmo sobre seus amigos e seu professor! Conheci esse cara na época, participei das investigações desde o começo! Um filho da puta sem coração… e agora ele quer desenterrar essa história de novo para se...

— Isso não é verdade! — Pia o interrompeu. — Sou eu que estou levantando as dúvidas. Tobias Sartorius não tem absolutamente nada a ver com isso!

— Como se chama o amigo que lhe pediu esse favor suspeito? — Bodenstein quis saber. Hasse ainda enrolou um pouco antes de responder.

— Gregor Lauterbach — confessou, por fim, e pendeu a cabeça.

 

O Corcel Negro estava completamente lotado. O vilarejo inteiro se reunira ali após o enterro para o banquete fúnebre; no entanto, entre cafés e sanduíches, falava-se menos de Laura Wagner do que do incêndio na casa dos Terlindens, e faziam-se conjecturas e especulações. Michael Dombrowski era comandante do corpo de bombeiros voluntários de Altenhain e conduzira a operação. No caminho de volta para o centro de suprimentos e materiais da corporação, parou no Corcel Negro, ainda com cheiro de fumaça e fogo na roupa e nos cabelos.

— A Polícia Criminal acha que foi um incêndio criminoso — relatou a seus amigos Felix Pietsch e Jörg Richter, que estavam sentados a uma pequena mesa em um canto, com expressão sombria. — Só me pergunto por que alguém incendiaria a estufa. Somente então reparou no desânimo dos colegas. — O que há com vocês?

— Precisamos encontrar o Tobi — respondeu Jörg. — E pôr um ponto final nessa história de uma vez por todas.

Felix concordou com a cabeça.

— O que você está querendo dizer? — perguntou Michael, sem entender.

— Você não vê o que está acontecendo aqui de novo? Exatamente como antes. — Jörg Richter colocou o sanduíche de queijo já mordido de volta no prato e, enojado, abanou a cabeça. — Não vou suportar isso de novo.

— Eu também não — aderiu Felix ao amigo. — Na verdade, não nos resta alternativa.

— Vocês têm certeza? — Michael olhou incomodado de um para o outro. — Vocês sabem o que isso significa. Para cada um de nós.

Felix e Jörg fizeram que sim. Estavam conscientes da extensão de seu plano.

— O que a Nadja diz?

— Já não podemos levar isso em consideração — disse Jörg e respirou fundo. — Não podemos esperar mais. Do contrário, talvez ainda haja outra desgraça.

— Melhor um fim com susto do que um susto sem fim — completou Felix, concordando.

— Merda. — Michael esfregou o rosto. — Não posso! Quero... quero dizer... faz tanto tempo. Não podemos simplesmente deixar pra lá?

Jörg fitou-o. Depois, abanou a cabeça, decidido.

— Eu não. A Nadja acabou de dizer no cemitério que o Tobi está em casa. Vou agora até lá e acabar com tudo isso.

— Vou com você — disse Felix.

Michael ainda hesitou, buscou desesperadamente uma saída para não se envolver. — Mais tarde, ainda preciso voltar para o local do incêndio — disse, por fim.

— Tudo bem. Mais tarde — respondeu Jörg. — Não vai demorar muito. Venha, vamos.

 

Daniela Lauterbach estava com os braços cruzados sobre o peito e observava seu marido com um misto de incredulidade e desprezo. Quando ela voltara da casa da vizinha, ele estava sentado à mesa da cozinha, com expressão desconsolada, envelhecido em anos. Antes que ela pudesse tirar o casaco, ele começou a falar — de cartas anônimas de ameaça, e-mails e fotos. As palavras brotavam de sua boca como uma enxurrada, amargas, desesperadas, cheias de autocompaixão e medo. Calada e cada vez mais aturdida, ela o ouviu sem interrompê-lo. Seu último pedido a deixou totalmente sem fala. Por um longo momento predominou completo silêncio na ampla cozinha.

— O que espera de mim? — perguntou ela friamente. — Na época, Deus sabe que fiz mais do que o suficiente para ajudá-lo.

— Antes não tivesse feito — respondeu ele, apático. Ao ouvir essas palavras, ela foi tomada por raiva, uma raiva quente e feroz, que dormitava nas profundezas de seu íntimo todos aqueles anos. Fizera de tudo por ele, por esse homem fraco, esse vigarista, que nada mais sabia fazer além de bancar o importante e proferir belos discursos! Tão logo se via em apuros, rastejava e se pendurava choramingando na barra de sua saia. Antigamente ela gostava que ele ouvisse seus conselhos e lhe pedisse ajuda quando já não sabia o que fazer. Ele fora seu mais belo aprendiz de feiticeiro, seu poço da juventude, sua criação. Quando se encontraram pela primeira vez, havia mais de vinte anos, ela logo reconheceu os talentos do rapaz de 21 anos. Na época, ela já era uma médica bem-sucedida, vinte anos mais velha do que ele e com uma boa situação financeira, graças a uma considerável herança. No começo, ela o via apenas como um passatempo na cama, mas depois financiara os estudos do filho de operário sem recursos, aproximando-o da arte, da cultura e da política. Graças a seus relacionamentos, arranjara-lhe um emprego como professor no ensino médio, facilitando-lhe o caminho para a política; o cargo de Secretário Estadual de Educação e Cultura foi a coroação. Porém, depois do acontecimento de onze anos antes, ela devia tê-lo mandado embora. Ele não valia a pena. Um covarde ingrato, que até aquele momento não soubera estimar seus esforços e seus investimentos.

— Se na época você tivesse me ouvido e enterrado o macaco na floresta, em vez de pegá-lo sem luvas e jogá-lo na fossa dos Sartorius, nada disso teria acontecido — disse ela. — Mas você quis ser mais esperto. Por sua causa, o Tobias foi parar na cadeia. Por sua causa, não por minha!

Ele se curvou sob suas palavras como se estivesse levando chicotadas.

— Cometi um erro, Dani! Eu estava sob tamanha pressão, meu Deus!

— Você dormiu com uma aluna menor de idade —lembrou ela com voz impassível. — Agora vem, com toda a seriedade, exigir de mim que eu tire do caminho uma testemunha ocular, que, ainda por cima, é meu paciente e filho do nosso vizinho! Que tipo de pessoa você é?

— Não estou exigindo isso de você — murmurou Gregor Lauterbach. — Só quero conversar com Thies. Nada além disso. Ele só precisa continuar de boca fechada. Você é médica particular dele, tem acesso a ele.

— Não. — Decidida, Daniela Lauterbach abanou a cabeça. — Não vou participar disso. Deixe o garoto em paz, ele já sofre o suficiente. A melhor coisa seria você sumir por uns tempos do mapa. Vá para a casa em Deauville, até a poeira baixar por aqui.

— A polícia prendeu Claudius! — revoltou-se Gregor Lauterbach.

— Eu sei. — Ela confirmou com a cabeça. — E me pergunto por quê. O que vocês realmente fizeram no sábado à noite, você e o Claudius?

— Por favor, Dani — suplicou. — Ele deslizou da cadeira e pôs-se a seus joelhos. — Me deixe falar com Thies.

— Ele não vai responder a você.

— Talvez sim. Se você estiver junto.

— Aí é que ele não vai responder mesmo. — Ela baixou o olhar para o marido, que estava agachado à sua frente como um menininho amedrontado. Ele sempre mentia para ela e a enganava. Antes do casamento, seus amigos já haviam previsto que isso ia acontecer. Gregor era vinte anos mais novo, parecia fascinante, era um orador eloquente e tinha carisma. As moças e as mulheres eram loucas por ele porque nele viam o que ele não era. Só ela mesma sabia o quanto ele era fraco na realidade. Dessa fraqueza e da dependência que ele tinha em relação a ela é que ela tirava sua força. Ela o perdoara com a condição de que esse tipo de coisa jamais voltasse a acontecer. Um relacionamento com uma aluna era, necessariamente, um tabu. Por outro lado, não lhe interessavam as diversas amantes dele; elas até a divertiam. Ela era a única que conhecia seus segredos, seus medos e complexos; conhecia-o melhor do que ele próprio a si mesmo.

— Por favor — implorou ele novamente, com grandes olhos suplicantes. — Me ajude, Dani. Não me abandone! Você sabe o que está em jogo para mim!

Daniela Lauterbach deu um profundo suspiro. Seu propósito de não ajudá-lo desta vez desfez-se no ar. Como sempre. Nunca conseguia ficar brava com ele por muito tempo. E, desta vez, realmente havia muita coisa em jogo, nisso ele tinha razão. Ela se inclinou em sua direção, acariciou sua cabeça e enterrou os dedos em seus cabelos bastos e macios.

— Está bem — disse. — Vou ver o que posso fazer. Mas agora você vai arrumar suas coisas e vai para a França por alguns dias, até as coisas se resolverem, certo?

Ele levantou o olhar para ela, pegou sua mão e a beijou.

— Obrigado — sussurrou. — Obrigado, Dani. Realmente não sei o que seria de mim sem você.

Ela sorriu. Sua raiva por ele havia se extinguido. Sentiu crescer dentro de si uma profunda e tranquila alegria. Tudo estava em equilíbrio de novo, facilmente eles dominariam as ameaças vindas de fora — enquanto Gregor soubesse estimar o que ela estava fazendo por ele.

 

— O Secretário Estadual de Educação e Cultura? — Pia estava esperando uma resposta completamente diferente de seu colega, e ficou pasma. — De onde você o conhece?

— Minha mulher é prima da mulher dele — explicou Andreas Hasse. — Volta e meia nos encontramos em algumas festas familiares. Além disso, nós dois fazemos parte do orfeão de Altenhain.

— Que maravilha — disse Bodenstein. — Não sou capaz de lhe dizer o quanto estou decepcionado com você, Hasse.

Andreas Hasse olhou para ele e, com arrogância, empurrou o queixo para a frente.

— É mesmo? — rebateu, com voz trêmula. — Não sabia que eu poderia decepcioná-lo, menos ainda que o senhor algum dia se interessou por minha pessoa.

— Como é que é? — Bodenstein levantou as sobrancelhas.

Então, ao perceber que seus dias na K11 estavam mesmo contados, Hasse descarregou suas mágoas.

— O senhor nunca me dirigiu mais do que três frases. Era para eu ser diretor da K11, mas aí veio o senhor de Frankfurt, todo arrogante e presunçoso, e modificou tudo, como se tudo o que nós, policiais imbecis de vilarejo, tínhamos feito antes fosse uma porcaria. Para o senhor, não temos nenhuma importância, nenhum de nós! Somos uns tiras idiotas, em relação aos quais o digníssimo senhor von Bodenstein é muito superior! — exclamou Hasse, mordaz. — O senhor vai ver só qual vai ser a consequência disso. Sua cabeça vai rolar.

Bodenstein olhou para Hasse como se ele tivesse cuspido em sua cara. Pia foi a primeira a retomar a fala.

— Diga uma coisa: você está louco? — disse rudemente ao colega, que riu amargo.

— Você também deveria ficar esperta. Na delegacia, todo mundo sabe há muito tempo do caso secreto de vocês! No mínimo, isso fere tanto o regulamento quanto o trabalho paralelo do Frank, do qual o digníssimo senhor também nunca soube de nada!

— Cale a boca! — disse Pia asperamente. Hasse sorriu maliciosamente.

— Desde o começo eu já sabia o que rolava entre vocês. Os outros só foram perceber depois que vocês passaram a se tratar sem formalidades.

Bodenstein se virou e saiu da casa sem se despedir. Pia ainda disse uma meia dúzia de verdades para Hasse, depois seguiu seu chefe. Ele não estava sentado no carro. Ela percorreu a rua e o encontrou na parte alta, na beira da floresta, sentado em um banco, com a cabeça enterrada entre as mãos. Pia hesitou um pouco, mas depois foi até ele e sentou-se calada ao seu lado no banco, cuja madeira reluzia na umidade da neblina.

— Não dê ouvidos à conversa mole desse idiota amargurado e frustrado — disse ela. Bodenstein não respondeu, simplesmente permaneceu sentado.

— Será que ainda consigo fazer alguma coisa direito? —murmurou, apático, após um instante. — Hasse faz intrigas com o Secretário Estadual de Educação e Cultura e rouba atas dos autos; Behnke trabalha durante anos, clandestinamente, em um bar, sem que eu saiba; minha mulher me engana há meses com outro cara...

Levantou a cabeça, e Pia precisou engolir em seco ao ver a expressão de profundo desespero em seu rosto.

— Por que não fico sabendo de nada? Sou realmente tão presunçoso? E como devo fazer meu trabalho se não consigo pôr ordem nem na minha própria vida?

Pia observou os contornos precisos do seu perfil e sentiu verdadeira compaixão. Aquilo que Hasse ou também os outros podiam achar que era arrogância e presunção era simplesmente o jeito de Bodenstein. Ele não era de se intrometer e nunca se valia de sua autoridade. E mesmo que tivesse muita curiosidade, jamais faria perguntas indiscretas a seus colegas. Isso não era indiferença, mas reserva.

— Eu também não sabia nada do trabalho do Behnke — disse Pia em voz baixa. — E também fiquei pasma ao saber que Hasse roubou as atas. — Ela sorriu. — Não suspeitava nem mesmo do nosso caso secreto.

Bodenstein fez um som inarticulado, entre o riso e o suspiro. Então abanou a cabeça, desanimado.

— Tenho a sensação de que minha vida inteira está desabando. — Olhou fixamente para a frente. — Não consigo pensar em nada além do fato de que Cosima me enganou com outro cara. Por quê? O que faltou a ela? Fiz alguma coisa errada?

Ele se inclinou para a frente e cruzou os braços atrás da cabeça. Pia mordeu os lábios. O que poderia dizer? Haveria algum consolo para ele nessa situação? Após uma breve hesitação, ela colocou a mão em seu braço e o apertou levemente.

— Talvez você tenha feito alguma coisa errada — disse ela. — Mas quando existem problemas no relacionamento, nunca apenas um é culpado. Em vez de buscar explicações, seria melhor você pensar em como continuar.

Bodenstein coçou a nuca e se ergueu.

— Tive de olhar no calendário para me lembrar qual tinha sido a última vez em que dormi com ela — disse, com repentina amargura. — Mas também não é nada fácil com uma criança pequena, que chega correndo toda hora.

Pia ficou sem graça. Embora no último ano o relacionamento de ambos tenha ficado bem mais informal do que antes, para ela ainda era penoso conversar com seu chefe sobre coisas tão íntimas. Tirou seu maço de cigarros do bolso do casaco e lhe ofereceu. Ele pegou um cigarro, acendeu e deu algumas tragadas, antes de continuar a falar.

— Há quanto tempo isso já dura? Quantas noites fiquei deitado feito um pateta ao lado dela, sem desconfiar de nada, enquanto ela pensava em outro cara? Esse pensamento está me deixando doente!

Então, aos poucos, o desespero se transformou em raiva. Isso era bom! Pia também acendeu um cigarro.

— Simplesmente fale com ela — aconselhou a ele. — De preferência, fale logo. Assim você não fica se atormentando mais.

— E depois? E se ela confirmar tudo? Que merda! A vontade que tenho é de pegá-la e... — Interrompeu-se e apagou o cigarro com o salto do sapato.

— Então vá em frente. Talvez assim você se sinta melhor.

— Que raio de conselho é esse que você está me dando? — Bodenstein olhou surpreso para Pia, um sorriso se esboçou no canto de sua boca.

— Pelo visto, ninguém tem conselhos a lhe dar — respondeu ela. — Eu tinha na escola um namorado que, um belo dia, terminou comigo. Fiquei com vontade de me matar, de tão triste que estava. Minha amiga Miriam me obrigou a ir a uma festa com ela, e lá acabei conhecendo um cara qualquer. Ele só me elogiava. Pois é. Depois, comecei a me sentir melhor. A fila anda. Para todos.

O celular de Bodenstein tocou. Inicialmente, ele não deu atenção; por fim, tirou-o suspirando do bolso e atendeu.

— Era a Fachinger — disse ele após o relato de Pia. — Hartmut Sartorius ligou. Tobias voltou para casa.

Ele se levantou do banco.

— Tomara que ainda dê para pegá-lo em casa. Já faz duas horas que o Sartorius ligou, mas o motorista de serviço só avisou a Fachinger agora.

 

O portão do sítio dos Sartorius estava completamente aberto. Atravessaram o pátio e tocaram a campainha, mas ninguém veio atender.

— A porta está só encostada — constatou Pia, e a empurrou.

— Tem alguém aí? — chamou dentro da casa. — Senhor Sartorius?

Nenhuma resposta. Deu alguns passos no corredor e voltou a chamar.

— Pelo visto, ele deu o fora de novo. — Decepcionada, ela se virou e se dirigiu até Bodenstein, que esperava diante da porta. — O pai dele também não está. Que saco!

— Vamos dar uma olhada nos fundos do sítio. — Bodenstein pegou o celular. — Vou pedir reforço.

Pia deu uma volta ao redor da casa. No dia do enterro de Laura Wagner, Tobias Sartorius voltara para Altenhain. Obviamente, ele não estivera no cemitério, porém, durante a cerimônia do enterro, o ateliê de Thies Terlinden fora incendiado — com o auxílio de um agente combustível, conforme o corpo de bombeiros e os colegas do departamento especializado em incêndios haviam constatado. O que poderia ser mais evidente do que a suspeita de Tobias ter posto fogo na estufa e depois ter novamente desaparecido?

— ...sem sirene, entendido? — Pia ouviu Bodenstein dizer. Esperou até ele se juntar a ela.

— O Tobias sabia que o vilarejo inteiro estaria no cemitério e que ele poderia causar o incêndio sem ser visto — manifestou sua suposição. — Só não entendo por que o pai dele ligou para nós.

— Também não entendo — admitiu Bodenstein. Deu uma olhada ao redor do pátio. Nas visitas anteriores, o portão e todas as portas sempre estavam cuidadosamente trancados, o que era compreensível após todas as ameaças e o ataque a Tobias. Por que agora estava tudo escancarado? Justamente quando estavam dobrando a esquina da casa, perceberam um movimento mais adiante no sítio. Dois homens desapareceram pelo portão de cima. Pouco depois, ouviram o bater das portas de um carro e o ronco de um motor. De repente, Pia teve uma sensação ruim.

— Aqueles não eram Tobias nem seu pai. — Tirou a arma de dentro do casaco. — Tem alguma coisa errada acontecendo.

Cuidadosamente, abriram a porta que dava para a leiteria e espiaram do lado de dentro. Em seguida, atravessaram-na até o curral. Junto ao portão aberto, entenderam-se em silêncio. Pia levantou a arma e entrou no curral. Olhou ao redor e enregelou-se. Sentado em um banquinho, em um canto, estava Tobias Sartorius. Seus olhos estavam fechados, e a cabeça, apoiada contra a parede.

— Merda — murmurou Pia. — Acho que chegamos tarde demais.

 

Oito passos da porta até a parede. Quatro passos da parede da frente até a estante. Fazia tempo que seus olhos já tinham se acostumado à escuridão, e seu nariz, ao cheiro de podre e de mofo. Durante o dia entrava um pouco de luz por uma minúscula fresta sobre a janela estreita do sótão, que por fora havia sido fechada com alguma coisa. Assim, pelo menos, ela podia definir se era dia ou noite. As duas velas já tinham queimado fazia tempo, mas ela sabia o que havia na caixa da estante. Ainda restavam quatro garrafas d’água, que ela precisava consumir com parcimônia, pois não tinha a menor ideia de quanto tempo teriam de durar. Aos poucos, os biscoitos também iam escasseando, assim como as salsichas em conserva e os chocolates. Nada mais havia. Pelo menos, ia perder alguns quilos naquele lugar, onde quer que ela estivesse.

Na maior parte do tempo, sentia-se cansada, tão cansada que simplesmente adormecia, sem conseguir resistir. Às vezes, quando estava acordada, era tomada por um profundo desespero, então batia os punhos contra a porta, chorava e gritava por socorro. Depois, voltava a cair em uma indiferença melancólica, passava horas a fio no colchão fétido e tentava imaginar a vida do lado de fora, os rostos de Thies e Tobias. Declamava as poesias de que se lembrava, fazia flexões de braço e exercícios de tai chi chuan — não era nada fácil manter o equilíbrio na escuridão —, ou cantava em voz alta as músicas que conhecia para não enlouquecer naquela masmorra úmida. Em algum momento alguém ia aparecer para buscá-la. Com toda a certeza. Acreditava firmemente nisso. Simplesmente não sentia que Deus ia deixá-la morrer naquele momento, ainda antes de completar 18 anos. Amelie encolheu-se no colchão e fixou o olhar na escuridão. Um dos últimos pedacinhos de chocolate derretia em sua língua. Mastigar e engolir seriam puro sacrilégio. Lentamente, um cansaço de chumbo a escalou e sugou suas lembranças e seus pensamentos para dentro de um buraco negro. Cada vez mais ela meditava sobre o que tinha realmente acontecido. Como tinha ido parar naquele lugar horrível? A última coisa de que conseguia se lembrar era de que tentara desesperadamente encontrar Tobias. Mas por quê, simplesmente já não sabia.

 

Pia levou um susto quando Tobias Sartorius abriu os olhos. Ele não se mexeu, apenas olhou para ela, mudo. Os hematomas em seu rosto tinham desbotado, mas ele parecia doente e cansado.

— O que aconteceu? — perguntou Pia, guardando a arma. — Onde esteve esse tempo todo?

Tobias não respondeu. Sob seus olhos havia profundas olheiras, ele havia emagrecido muito desde a última vez que ela o vira. Com esforço, como se estivesse usando todas as suas forças, levantou o braço e estendeu-lhe uma folha de papel dobrada.

— O que é isto?

Ele não disse nada, por isso, ela pegou a folha de sua mão e a desdobrou. Bodenstein postou-se ao lado dela, e ambos leram as linhas manuscritas ao mesmo tempo.

Tobi, certamente você ficará surpreso por eu lhe escrever depois de tanto tempo. Nos últimos onze anos, não se passou um único dia em que eu não tenha pensado em você e me sentido culpado. Você pagou a minha pena, e eu permiti que isso acontecesse. Tornei-me a caricatura de um ser humano, da maneira que mais desprezo. Não sirvo a Deus do modo como sempre quis; tornei-me escravo de um ídolo. Durante onze anos fugi correndo, obriguei-me a não olhar para Sodoma e Gomorra. Mas agora olho para trás. Minha fuga terminou. Fracassei. Traí tudo aquilo que antes tinha significado para mim; fiz um pacto com o diabo quando, seguindo o conselho do meu pai, menti pela primeira vez. Traí e vendi você, meu melhor amigo. O preço por isso foram infinitos tormentos. Sempre que olhava meu rosto no espelho, era você que eu via à minha frente. Que covarde eu fui! Matei Laura. Não com intenção, foi um acidente estúpido, mas ela morreu. Acabei dando ouvidos ao meu pai e me calei, mesmo depois, quando ficou claro que você ia ser condenado. Na época, tomei uma direção errada, que me levou diretamente para o inferno. Desde então, nunca mais fui feliz. Perdoe-me, Tobi, se puder. Não consigo me perdoar. Que Deus me julgue.

Lars

Pia abaixou a carta. Lars Terlinden havia datado sua carta de despedida no dia anterior e utilizado papel timbrado do banco em que trabalhara. Mas o que o levara a fazer essa confissão e a cometer suicídio?

— Ontem, Lars Terlinden cometeu suicídio — disse Bodenstein pigarreando. — Encontramos o corpo hoje de manhã.

Tobias Sartorius não reagiu; ficou apenas mudo, com o olhar fixo.

— Bem. — Bodenstein pegou a carta da mão de Pia. — Pelo menos, agora sabemos por que Claudius Terlinden assumiu as dívidas dos seus pais e foi visitá-lo na prisão.

— Venha. — Pia tocou no braço de Tobias. Ele estava vestindo apenas uma camiseta e jeans, sua pele estava gelada. — Ainda vai ficar doente aqui. Vamos para dentro de casa.

— Eles violentaram a Laura quando ela saiu da nossa casa — disse ele repentinamente, com voz apagada. — Bem aqui, no curral.

Bodenstein e Pia trocaram um olhar surpreso.

— Quem? — Bodenstein quis saber.

— Felix, Jörg e Michael. Meus amigos. Estavam bêbados. Laura tinha passado a noite atiçando-os. A situação saiu de controle. Então Laura saiu correndo, direto para os braços do Lars. Ela tropeçou, caiu e morreu. — Ele falava sem nenhuma emoção, quase indiferente.

— Como ficou sabendo disso?

— Eles acabaram de passar aqui e me contaram.

— Onze anos mais tarde — notou Pia. Tobias deu um suspiro.

— Colocaram a Laura no porta-malas do meu carro e a jogaram no tanque do antigo aeródromo. Lars fugiu. Nunca mais voltei a ver meu melhor amigo. E hoje chega esta carta...

Seus olhos azuis voltaram-se para Pia. Somente então ela compreendeu que, de fato, contra qualquer razão, estivera certa ao supor que Tobias Sartorius era inocente.

— E o que aconteceu com Stefanie? — perguntou Sartorius. — E onde está Amelie?

Tobias respirou fundo e abanou a cabeça.

— Não sei. Sinceramente. Não faço a menor ideia.

Atrás deles, alguém entrou no curral. Bodenstein e Pia se viraram. Era Hartmut Sartorius. Estava pálido como cera e só conseguiu controlar sua inquietação com extremo esforço.

— O Lars está morto, pai — disse Tobias em voz baixa. Hartmut Sartorius foi até o banquinho em que seu filho estava sentado e o abraçou desajeitadamente. Tobias fechou os olhos e apoiou-se em seu pai. A cena comoveu Pia. Será que algum dia o calvário daqueles dois teria fim? O toque do celular de Bodenstein quebrou o silêncio. Ele atendeu e saiu para o pátio.

— Vocês... vocês vão prender o Tobias agora? — perguntou Hartmut Sartorius com voz insegura, levantando o olhar para Pia.

— Temos algumas perguntas para fazer a ele — respondeu ela, lamentando-se. — Infelizmente, ainda existe a suspeita de que o Tobias tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Amelie Fröhlich. E enquanto essa suspeita não for eliminada...

— Pia! — Bodenstein chamou-a do pátio. Ela se virou e foi ao seu encontro. Nesse ínterim, a radiopatrulha que haviam solicitado chegou. Os dois agentes desceram e se aproximaram.

— Era Ostermann — informou Bodenstein, enquanto digitava um número em seu celular. — Ele conseguiu decifrar a escrita secreta no diário da Amelie. Em seu último registro, ela escreveu que Thies lhe mostrou a múmia da Branca de Neve no porão embaixo do seu ateliê... sim... Bodenstein falando... Kröger, preciso de você e da sua equipe na propriedade dos Terlindens, em Altenhain. Lá onde pegou fogo. Sim, imediatamente!

Ele olhou para Pia, e ela entendeu o que passava por sua cabeça.

— Você acha que Amelie poderia estar lá dentro?

Ele fez que sim, tenso; depois, coçou o queixo, pensativo, e franziu a testa.

— Ligue para o Behnke, para que ele e algumas pessoas levem os três homens à delegacia — ordenou a Pia. — Uma radiopatrulha precisa ir até a casa de Lauterbach, à sua residência e ao seu escritório, em Wiesbaden. Quero falar com ele ainda hoje. Também precisamos falar com Claudius Terlinden, ele ainda não sabe do suicídio do filho. E caso realmente encontremos esse porão, vamos precisar de um médico-legista.

— Você suspendeu o Behnke do serviço — lembrou-lhe Pia. — Mas a Kathrin também pode assumir. E o que fazemos com o Tobias?

— Vou falar para os colegas o levarem para Hofheim. Ele vai ter de esperar por nós lá.

Pia fez que sim e pegou seu telefone para dar as instruções. Ditou para Kathrin os nomes de Felix Pietsch, Michael Dombrowski e Jörg Richter, depois voltou para o curral. Viu como Tobias caminhava com dificuldade e se apoiava com todo o peso em seu pai.

— Meus colegas vão levá-lo agora mesmo a Hofheim — disse a Tobias. — Fique esperando lá fora, no pátio, até eles chegarem.

Tobias apenas anuiu.

— Pia! — Bodenstein a chamou impaciente do lado de fora. — Venha logo!

— Bom, nos vemos então mais tarde. — Despediu-se dos dois homens com um gesto de cabeça e saiu.

 

Diante da mansão dos Lauterbachs já havia uma radiopatrulha quando Bodenstein e Pia passaram por ela. Viraram um pouco mais adiante, no portão aberto que dava para a propriedade dos Terlindens, desceram do carro e atravessaram o gramado até os destroços ainda fumegantes da estufa. As paredes enegrecidas ainda estavam de pé, e metade do telhado tinha desabado.

— Precisamos entrar imediatamente — disse Bodenstein a um dos homens do corpo de bombeiros que havia permanecido para vigiar o local do incêndio.

— Impossível. — O bombeiro abanou a cabeça. — Os muros podem desabar a qualquer momento, o telhado está instável. Ninguém entra aí agora.

— Entra sim — insistiu Bodenstein. — Recebemos uma indicação de que há um porão no subsolo. E é muito provável que no porão esteja uma moça ferida.

Isso mudava completamente a situação. O bombeiro consultou seus colegas, deu telefonemas. Também ao telefone, Bodenstein ia de um lado para o outro, contornava o anexo incendiado. Não conseguia ficar parado. Essa maldita espera! Os técnicos da Polícia Científica chegaram, pouco depois apareceram um carro do corpo de bombeiros e um automóvel azul-escuro da Agência Federal de Apoio Técnico. Pia ficou sabendo pela patrulha que não havia ninguém na casa dos Lauterbachs. Pegou com Ostermann o número da diretoria na Secretaria Estadual de Educação e Cultura, em Wiesbaden, e, ao ligar para lá, disseram-lhe que o Secretário estava doente havia três dias e não tinha aparecido no escritório. Então, onde ele estava? Encostou-se no para-lama, acendeu um cigarro e esperou até Bodenstein interromper sua maratona de telefonemas por alguns segundos. Enquanto isso, os homens do corpo de bombeiros e da Agência Federal de Apoio Técnico começaram a avaliar os escombros do telhado e dos muros da estufa. Com um equipamento pesado, afastaram cuidadosamente o entulho fumegante e acenderam holofotes, pois já estava começando a anoitecer.

Kathrin Fachinger ligou e comunicou a missão cumprida: Felix Pietsch, Jörg Richter e Michael Dombrowski estavam na delegacia. Nenhum deles opusera resistência à detenção. Mas ela ainda tinha uma notícia que deixou Pia muito inquieta. Naquele ínterim, Ostermann dera uma olhada nas quinhentas fotos do iPod de Amelie Fröhlich e, entre elas, encontrara o registro de desenhos que poderiam muito bem ser os que Thies lhe entregara. Ao procurar por Bodenstein, Pia caminhou com dificuldade sobre a grama úmida, que sob os pneus dos caminhões se transformara em um mar de lama. Seu chefe estava com expressão apática diante da estufa e fumava um cigarro. Justamente quando ela ia lhe contar dos desenhos no iPod, os homens que estavam no interior da ruína começaram a chamar e a acenar. Bodenstein despertou de seu entorpecimento, deixou cair a ponta do cigarro e entrou. Pia o seguiu. Ainda estava muito quente no anexo que havia ardido em chamas algumas horas antes.

— Encontramos uma coisa! — anunciou o bombeiro que havia assumido a condução dos trabalhos, depois que o comandante desaparecera. — Um alçapão! E dá até mesmo para abri-lo!

 

A estrada estava seca e já não havia congestionamento na A5 depois do trevo de Frankfurt. Nadja acelerou assim que a velocidade máxima permitida aumentou, e chegou a duzentos por hora. Tobias estava no banco do passageiro. Estava com os olhos fechados e não abrira a boca desde que haviam saído. Tudo aquilo era demais para ele. Seus pensamentos gravitavam em torno do que tinha vivido naquela tarde. Felix, Micha e Jörg. E ele os considerava amigos! E Lars, que fora como um irmão para ele! Mataram Laura e esconderam o corpo no tanque do antigo aeródromo, mas nunca disseram nada. Sim, deixaram que ele fosse para o inferno e se calaram por onze anos. Por que agora, de repente, resolveram falar? Por que só agora? A decepção não tinha limites, era incomensurável. Ainda poucos dias antes, eles haviam bebido, dado risada e trocado lembranças do passado com ele — sabendo o tempo todo o que tinham feito, o que lhe tinham feito! Deu um profundo suspiro. Nadja pegou sua mão e a apertou. Tobias abriu os olhos.

— Não consigo acreditar que Lars está morto — murmurou, pigarreando várias vezes, para livrar-se da rouquidão.

— Não dá mesmo para entender nada dessa história —confirmou ela. — Mas sempre acreditei que você era inocente.

Ele se esforçou para sorrir. Entre todas as decepções, a amargura e a raiva, brotava uma ínfima plantinha de esperança. Talvez tudo desse certo entre Nadja e ele. Talvez ambos tivessem uma chance se as sombras do passado se dissipassem e toda a verdade viesse à luz.

— Vou arrumar encrenca com os tiras — disse ele.

— Que nada — ela piscou para ele. — Em poucos dias você vai estar de volta. E, em todo caso, seu pai tem o número do meu celular. É perfeitamente compreensível que você precise se afastar um pouco.

Tobias concordou e relaxou um pouco. A dor onipresente e aguda em seu interior se enfraqueceu.

— Fico tão feliz por você existir! — disse a Nadja. — De verdade. Você é simplesmente maravilhosa.

Ela lhe sorriu, mas não desviou o olhar da estrada.

— Fomos feitos um para o outro, você e eu — respondeu ela. — Eu sempre soube disso.

Tobias levou a mão dela até seus lábios e a beijou com carinho. Teria alguns dias de paz pela frente. Nadja cancelara todos os seus compromissos. Ninguém os incomodaria, ele não precisaria ter medo de ninguém. A música baixa, o calor agradável, os bancos macios de couro. Sentiu o cansaço vencê-lo. Com um suspiro, fechou os olhos e, pouco depois, adormeceu profundamente.

 

A escada enferrujada, estreita e íngreme, conduzia ao subsolo. Ele tateou a parede em busca do interruptor. Segundos depois, a lâmpada de 25 watts mergulhou o pequeno cômodo em uma luz crepuscular. Bodenstein sentiu o coração bater na garganta. Demorou horas até que a ruína finalmente estivesse segura para eles poderem entrar. A escavadeira da Agência Federal de Apoio Técnico tinha removido o entulho e, reunindo forças, os homens abriram o alçapão de aço. Um deles, que vestia uma roupa protetora, foi o primeiro a descer e constatou que, no piso inferior, tudo estava em ordem. O porão resistira intacto ao incêndio.

Bodenstein esperou até Pia, Kröger e Henning Kirchhoff terminarem a descida íngreme e se postarem ao seu lado no minúsculo cômodo. Colocou a mão na maçaneta da pesada porta de ferro, que se abriu sem ranger. Um bafo quente os atravessou. Pairava no ar o odor adocicado de flores murchas.

— Amelie? — chamou Bodenstein. Uma lanterna se acendeu atrás dele e iluminou um cômodo surpreendentemente grande e retangular.

— Um antigo bunker — constatou Kröger. Ouviu-se um clique quando ele ligou o interruptor, e uma luz néon no teto se acendeu bruxuleante e zumbindo. — Os condutores de energia são instalados separadamente, para que, em caso de danos ao edifício, o porão continue sendo abastecido.

O porão era decorado com simplicidade: um sofá e uma estante com um aparelho de som. A parte posterior do cômodo era separada por um biombo antiquado. De Amelie, nenhum vestígio. Teriam chegado tarde demais?

— Nossa — murmurou Kröger. — Como está abafado aqui.

Bodenstein atravessou o cômodo. O suor escorria sobre seu rosto.

— Amelie?

Ele afastou o biombo. Seu olhar pousou em uma cama estreita, de ferro. Teve de engolir em seco. A moça deitada ali estava morta. Seus cabelos longos e pretos estavam espalhados como um leque sobre o travesseiro branco. Ela vestia um vestido branco, tinha as mãos cruzadas sobre o ventre. O batom vermelho causava um efeito grotesco nos lábios secos da múmia. Havia um par de sapatos ao lado da cama. Flores murchas em um vaso sobre o criado-mudo e, ao lado, uma garrafa de Coca-Cola. Demorou alguns segundos até ele entender que a moça que estava na cama não podia ser Amelie.

— Branca de Neve — disse Pia, ao seu lado, em voz baixa. — Finalmente a encontramos.

 

Passava pouco das nove quando entraram na delegacia. Diante da porta da guarita, três colegas precisaram se ocupar de um bêbado barulhento, cuja acompanhante não estava menos bêbada e lançava grosserias para todos os lados. Pia comprou uma Coca-Cola light no distribuidor automático antes de ir para a sala de reuniões, no primeiro andar. Bodenstein estava inclinado sobre a mesa, observando as fotos dos desenhos que Kathrin imprimira. Ostermann e Kathrin estavam sentados à sua frente. Ele levantou o olhar quando Pia entrou. Ela viu as rugas de exaustão em seu rosto, mas sabia que ele não iria se permitir uma pausa naquele momento. Não tão perto do objetivo e muito menos agora, uma vez que podia reprimir suas preocupações particulares com uma atividade sem descanso.

— Vamos interrogar os três ao mesmo tempo — decidiu Bodenstein, e deu uma olhada no relógio. — Também precisamos conversar com o Terlinden. E com Tobias Sartorius.

— Onde está ele? — perguntou Kathrin, surpresa.

— Acho que lá embaixo, numa das celas.

— Não estou sabendo de nada.

— Eu também não — disse Ostermann. Bodenstein olhou para Pia. Ela levantou as sobrancelhas.

— Hoje, na hora do almoço, você falou para os rapazes da viatura que estavam no sítio dos Sartorius para trazerem o Tobias para cá, não falou?

— Não. Disse para irem atrás do Lauterbach — respondeu Bodenstein. — Pensei que você fosse chamar outra viatura.

— E eu pensei que você tivesse feito isso — disse Pia.

— Ostermann, ligue na casa dos Sartorius — ordenou Bodenstein. — Ele precisa vir imediatamente para cá.

Apanhou as fotos e deixou a sala de reuniões. Pia virou os olhos e o seguiu.

— Posso dar uma olhada nos desenhos antes de entrarmos? — pediu ela. Em silêncio, ele lhe entregou as fotos, sem desacelerar seus passos. Ficou aborrecido porque deixara passar um erro. Um mal-entendido que podia acontecer, quando eventos como aqueles se sucediam rapidamente. Na sala de interrogatório ainda não havia ninguém. Bodenstein saiu e voltou logo depois.

— Nada está dando certo aqui — resmungou ele, irritado. Pia calou-se. Pensou em Thies Terlinden, que por onze anos vigiara o corpo de Stefanie Schneeberger. Por que fizera aquilo? Teria sido seu pai a obrigá-lo? Por que justamente agora Lars Terlinden escrevera aquela carta a Tobias e cometera suicídio? Por que o ateliê de Thies pegara fogo naquele dia? Alguém sabia da Branca de Neve — ou o ataque incendiário visava destruir os desenhos de Thies? Nesse caso, a mesma pessoa poderia estar por trás de quem mandou a falsa policial à casa de Barbara Fröhlich. E onde estava Amelie? Thies lhe mostrara a múmia de Branca de Neve e, em seguida, deixara-a ir embora, do contrário, ela não teria conseguido escrever em seu diário. O que ela contara a Tobias? Por que desaparecera? Será que seu desaparecimento não tinha absolutamente nada a ver com o caso antigo?

Milhares de pensamentos inundavam sua mente; ela não estava conseguindo organizar as inúmeras informações. Bodenstein falava de novo ao telefone, desta vez, aparentemente, com a superintendente da Polícia Criminal, a doutora Engel. Ele ouvia com expressão bastante irritada e só dizia, vez por outra, “sim” ou “não”. Pia suspirou. Todo aquele caso estava se transformando em um pesadelo, e isso menos por causa do trabalho do que pelas circunstâncias em que tinham de realizar as investigações. Sentiu o olhar de Bodenstein em si e levantou a cabeça.

— Quando encerrarmos o caso, ela disse que vai tomar medidas enérgicas aqui. Disse, não, ameaçou. — Pôs a cabeça para trás e, de repente, desatou a rir, contudo, sem nenhuma alegria. — Aliás, hoje ela recebeu uma ligação anônima.

— Sei. — Pia não estava nem um pouco interessada. Queria falar com Claudius Terlinden e descobrir o que ele sabia. Toda informação adicional que ela recebesse naquele momento dificultaria seu raciocínio claro.

— Alguém contou a ela que temos um relacionamento. — Bodenstein passou as mãos pelos cabelos. — Supostamente, teriam nos visto.

—Bom, isso não é nenhuma novidade — respondeu Pia. — Passamos o dia inteiro juntos, circulando pela região.

Uma batida na porta encerrou a conversa. Os três amigos de Tobias Sartorius foram conduzidos para dentro. Sentaram-se à mesa, e Pia também tomou assento. Bodenstein permaneceu em pé, observou os três homens, um por um. Por que, de repente, onze anos depois, resolveram se arrepender? Deixou a Pia a tarefa de registrar as informações do interrogatório. Em seguida, colocou as oito fotos sobre a mesa. Felix Pietsch, Michael Dombrowski e Jörg Richter olharam as imagens e empalideceram.

— Conhecem essas imagens?

Negaram abanando a cabeça.

— Mas vocês reconhecem o que elas representam.

Afirmaram, também com a cabeça.

Bodenstein cruzou os braços. Parecia sereno e tranquilo, exatamente como sempre. Pia não conseguia deixar de se admirar com sua autodisciplina. Ninguém que não o conhecesse melhor poderia imaginar o que realmente estava acontecendo com ele.

— Podem nos dizer quem e o que estão representados nas imagens?

Os três homens se calaram por um momento, depois Jörg Richter tomou a palavra. Enumerou os nomes: Laura, Felix, Michael, Lars e ele próprio.

— E quem é o homem de camiseta verde? — perguntou Pia. Os três hesitaram, trocaram rápidos olhares.

— Não é um homem — disse Jörg Richter, por fim. — É Nathalie. Quer dizer, Nadja. Antigamente ela tinha cabelo curto.

Pia selecionou as quatro imagens que mostravam o assassinato de Stefanie Schneeberger.

— E quem é este? — Ela bateu o dedo sobre a pessoa que estava abraçando Stefanie. Jörg Richter hesitou.

— Poderia ser Lauterbach. Talvez ele tenha ido atrás da Stefanie.

— O que aconteceu exatamente naquela noite? — quis saber Bodenstein.

— Estava tendo quermesse em Altenhain — começou Richter. — Passamos o dia inteiro na rua, tínhamos bebido além da conta. Laura estava com ciúme de Stefanie, porque, além de tudo, ela tinha sido eleita miss quermesse. Então, quis deixar o Tobi enciumado e flertou com a gente de tudo quanto foi jeito. Flertar, não, o que ela fez foi nos atiçar. Tobi estava trabalhando na barraca das bebidas, junto com a Nadja. Em algum momento ele saiu, houve uma briga feia com Stefanie. A Laura foi atrás dele, e nós, atrás dela.

Fez uma pausa.

— Subimos, quer dizer, percorremos a Waldstraße, e não Hauptstraße. Depois, ficamos sentados nos fundos do sítio dos Sartorius. De repente, a Laura passou pela leiteria e entrou no curral. Ela chorava e estava com o nariz sangrando. Nós a provocamos um pouco, ela ficou furiosa e deu um tapa no Felix. E, de algum modo,... também já não sei por quê... a situação saiu do controle.

— Vocês violentaram a Laura — constatou Pia com voz objetiva.

— Ela não parou de nos provocar a noite inteira.

— A relação sexual foi consensual ou não?

— Bem — Richter mordeu o lábio inferior. — Eu diria que não.

— Quem de vocês teve relação sexual com Laura?

— Eu e... o Felix.

— Prossiga.

— A Laura se defendeu com chutes e tapas. Depois, saiu correndo. Fui atrás dela. E, de repente, o Lars estava ali parado. A Laura estava deitada diante dele, no chão, e havia sangue por toda parte. Ela deve ter pensado que ele também ia querer alguma coisa com ela. Caiu e bateu a cabeça na pedra que prendia o portão. O Lars ficou totalmente apavorado, gaguejou alguma coisa e saiu correndo. Nós... nós também entramos em pânico, queríamos sair correndo, mas a Nadja estava bem tranquila, como sempre, e disse que tínhamos de sumir com a Laura, assim não restariam provas.

— De onde veio a Nadja, de repente? — perguntou Bodenstein.

— Ela... ela estava junto o tempo todo.

— A Nadja assistiu a vocês violentando Laura Wagner?

— Assistiu.

— Mas por que vocês quiseram desaparecer com o corpo da Laura? A morte dela foi um acidente.

— Bom, é que, de todo jeito... nós a tínhamos violentado. E depois ela ficou ali, deitada. Todo aquele sangue. Também não sei por que fizemos isso.

— O que exatamente vocês fizeram?

— O Golf do Tobias estava estacionado com a chave na ignição, como sempre. O Felix colocou a Laura no porta-malas, e eu tive a ideia de levá-la para o antigo aeródromo, em Eschborn. Eu ainda estava com a chave, porque alguns dias antes tínhamos ido até lá para correr um pouco. Jogamos a Laura no buraco e voltamos. A Nadja ficou esperando por nós. Na quermesse, ninguém percebeu que tínhamos saído. Já estavam todos bem mamados. E, mais tarde, voltamos para a casa do Tobi e perguntamos se ele viria conosco para a vigília da árvore da festa paroquial. Mas ele não quis.

— E o que aconteceu com Stefanie Schneeberger?

Isso nenhum dos três sabia. Nas fotos, parecia que Nadja havia matado Stefanie com o macaco hidráulico.

— Em todo caso, a Nadja tinha um ódio mortal da Stefanie — disse, então, Felix Pietsch. — Desde que a Stefanie apareceu, a Nadja não conseguiu mais nada com o Tobi, de tão apaixonado que ele estava. E, ainda por cima, a Nadja perdeu o papel principal na peça de teatro.

— Na noite da quermesse, a Stefanie ficou de namorico com o Lauterbach — lembrou-se Jörg Richter. — Ele era completamente louco por ela, qualquer um que não fosse cego via isso. O Tobi pegou os dois se agarrando fora da barraca, por isso também acabou indo para casa. Vi a Stefanie pela última vez com o Lauterbach, na frente da barraca.

Felix Pietsch confirmou o relato com a cabeça. Michael Dombrowski não esboçou nenhuma reação. Ainda não dissera uma única palavra; apenas permanecia sentado, pálido, fitando o vazio.

— Vocês acham que a Nadja pode ter tomado conhecimento desses desenhos? — perguntou Pia.

— É bem possível. O Tobi nos contou no último sábado o que Amelie havia encontrado. Falou dos desenhos e de que, supostamente, Lauterbach podia ser visto neles. Com certeza deve ter contado também a Nadja.

O celular de Pia vibrou. Ela reconheceu o número de Ostermann e atendeu.

— Me desculpe por incomodar — disse ele. — Mas acho que temos um problema. Tobias Sartorius sumiu.

 

Bodenstein interrompeu o interrogatório e saiu. Pia juntou as fotos, guardou-as no envelope transparente e o seguiu. Ele aguardava no corredor, encostado na parede, com os olhos fechados.

— A Nadja devia saber o que havia nos desenhos — disse ele. — Hoje de manhã, ela esteve no enterro de Laura, e, ao mesmo tempo, o ateliê de Thies pegou fogo.

— Ela também pode ter sido a mulher que se apresentou na casa de Barbara Fröhlich como policial — conjecturou Pia.

— Também acho. — Bodenstein abriu os olhos. — E para ter absoluta certeza de que outros desenhos não iriam mais aparecer, incendiou a estufa enquanto Altenhain inteira estava no cemitério.

Afastou-se da parede, percorreu o corredor e subiu a escada.

— Para ela, podia não ser nada conveniente que Amelie tivesse descoberto a verdade sobre o desaparecimento das duas moças — disse Pia. — Amelie a conhecia, não tinha nenhuma razão para desconfiar dela. Na noite de sábado, Nadja poderia muito bem ter passado pelo Corcel Negro com alguma desculpa e atraído Amelie para dentro do seu carro.

Bodenstein concordou pensativo. A possibilidade de Nadja von Bredow ser a assassina de Stefanie Schneeberger e, por medo que descobrissem seu crime após onze anos, ter sequestrado e talvez até matado Amelie tornou-se uma possibilidade. Ostermann estava sentado em sua sala com o telefone na mão.

— Falei com o pai e já mandei uma radiopatrulha para lá. Tobias Sartorius saiu hoje à tarde com a namorada. Ela disse ao velho Sartorius que traria Tobias para cá. Mas, como não apareceram até agora, acho que foram para outro lugar.

Bodenstein franziu a testa, e Pia reagiu com mais rapidez:

— Com a namorada? — certificou-se. Ostermann fez que sim.

— O número do Sartorius ainda está registrado aí?

— Está.

Com um mau pressentimento, Pia deu a volta em sua mesa e pegou o telefone. Apertou a tecla de rediscagem e colocou no viva-voz. Hartmut Sartorius atendeu após a terceira chamada. Ela nem lhe deu chance de falar.

— Quem é a namorada do Tobias? — perguntou, embora já imaginasse quem fosse.

— A Nadja. Mas... mas ela ia levá-lo...

— Tem o número do celular dela? O número da placa do automóvel dela?

— Sim, claro. Mas o que está...

— Por favor, senhor Sartorius. Me dê o número do celular. — Seu olhar encontrou o de Bodenstein. Tobias Sartorius havia saído com Nadja e não fazia a menor ideia do que ela tinha feito e o que talvez ainda estivesse planejando. Assim que anotou o número, Pia encerrou a conversa e ligou para o celular de Nadja von Bredow.

The person you have called is temporarily not available...

— E agora? — Ela não fez nenhuma crítica a Bodenstein por ele ter mandado a radiopatrulha à casa de Lauterbach naquele dia, na hora do almoço. O que estava feito não podia ser mudado.

— Vamos pedir uma busca agora mesmo — determinou Bodenstein. — Nesse caso, o celular precisa ser localizado o mais depressa possível. Onde mora essa mulher?

— Vou descobrir. — Ostermann voltou deslizando com a cadeira para a sua mesa e começou a telefonar.

— E o que fazemos com Claudius Terlinden? — Pia quis saber.

— Ele vai ter de esperar. — Bodenstein foi até a máquina de café, enxaguou a caneca, que aparentemente ainda estava cheia, e encheu-a de café. Depois, sentou-se na cadeira vazia de Behnke. — Lauterbach é muito mais importante.

Na noite de 6 de setembro de 1997, Gregor Lauterbach tinha ficado aos beijos com Stefanie Schneeberger, filha de seu vizinho, na quermesse de Altenhain e, mais tarde, estivera com ela no celeiro da propriedade dos Sartorius. Em um dos desenhos, o que se via não era Nadja brigando com Stefanie, e sim, provavelmente, Lauterbach tendo relações sexuais com a garota. Teria Nadja von Bredow percebido e, posteriormente, quando teve oportunidade, matado a odiada rival com um macaco hidráulico? Thies Terlinden observara o que havia acontecido. Por sua vez, quem saberia que Thies havia sido testemunha ocular de ambos os crimes? O celular de Pia vibrou. Era Henning, que já estava investigando o corpo mumificado de Stefanie Schneeberger.

— Preciso da arma do crime. — Ele parecia cansado e tenso. O olhar de Pia pousou no relógio de parede. Eram dez e meia, e Henning ainda estava no instituto. Teria confessado a Miriam, naquele meio-tempo, sua escapada?

— Vai recebê-la — respondeu ela. — Acha que ainda consegue constatar DNA de outra pessoa na múmia? A moça teria eventualmente tido relações sexuais pouco antes de morrer.

— Posso tentar. O corpo está muito bem conservado. Acho que ela passou todos esses anos naquele cômodo com a mesma temperatura, pois praticamente não se decompôs.

— Quando vamos poder ter um resultado? Estamos sob uma pressão considerável aqui. — Obviamente, ela estava minimizando as coisas. Não apenas porque ainda estavam empregando todos os meios e agentes disponíveis na busca por Amelie, mas também porque estavam investigando novamente dois assassinatos ocorridos onze anos antes. O último, com quatro pessoas.

— Quando vocês não estão sob pressão? — rebateu Henning. — Estou me apressando.

Bodenstein tinha terminado seu café.

— Venha — disse a Pia. — Vamos continuar.

 

Bodenstein ainda ficou um tempo sentado ao volante quando parou no estacionamento diante da propriedade de seus pais. Passava pouco da meia-noite, ele estava completamente exausto, mas, ao mesmo tempo, inquieto demais para pensar em dormir. Na verdade, após o interrogatório, ele queria ter mandado Felix Pietsch, Jörg Richter e Michael Dombrowski para casa, mas então lhe ocorrera a pergunta mais importante: Laura já estava morta quando a jogaram no tanque? Os três homens se calaram por alguns minutos. De repente, deram-se conta de que já não se tratava apenas de estupro ou omissão de socorro, mas de algo bem pior. Pia formulou corretamente o crime de que eram culpados: aquiescência tácita da morte de uma pessoa para encobrir um delito maior. Como consequência, Michael Dombrowski rompeu em lágrimas. Para Bodenstein, isso bastara como confissão, e encarregara Ostermann de cuidar das ordens de prisão. No entanto, o que os três haviam contado anteriormente era mais do que elucidativo. Durante anos, Nadja von Bredow não entrou em contato com seus amigos da juventude. Mas, pouco antes de Tobias ser solto da prisão, ela tinha aparecido em Altenhain e pressionado muito os três amigos de infância para que ficassem de boca fechada. Como a nenhum deles interessava ter a verdade de seu crime de onze anos antes revelada, certamente continuariam calados, não tivesse outra moça desaparecido. O fato de eles terem sido os responsáveis pelo julgamento de seu amigo os deixara com a consciência pesada durante todo aquele tempo. Mesmo quando em Altenhain deu-se início a uma caça às bruxas contra Tobias Sartorius, a covardia e o medo das consequências inevitáveis foram grandes demais para que se apresentassem à polícia. No último sábado, não fora por velha amizade que Jörg Richter ligara para Tobias Sartorius. Nadja lhe pedira para convidar Tobias naquela noite para ir beber e se divertir em sua casa. E isso confirmava os temores de Bodenstein. O que mais lhe fez pensar foi a resposta de Jörg Richter à seguinte pergunta: por que três homens adultos obedeceram cegamente a Nadja Bredow?

— Antigamente, ela já tinha alguma coisa em si que era de meter medo. — Os outros confirmaram com a cabeça. — Não foi à toa que Nadja chegou aonde chegou. Quando ela quer uma coisa, ela consegue. Custe o que custar.

Nadja von Bredow via Amelie Fröhlich como uma ameaça e colocou a moça ingênua sob seu poder. O fato de ela não recuar diante de um assassinato não era um bom sinal.

Mergulhado em pensamentos, Bodenstein ficou sentado em seu carro. Que dia! Primeiro, o corpo de Lars Terlinden, o incêndio no ateliê de Thies, as insinuações inacreditáveis de Hasse, o encontro com Daniela Lauterbach... Foi então que ele se lembrou que deveria ter ligado para ela depois de ela ter dado a Christine Terlinden a má notícia do suicídio de seu filho. Pegou o celular e vasculhou o bolso interno de seu sobretudo até encontrar o cartão da médica. Com o coração disparado, Bodenstein esperou ouvir sua voz. Mas em vão. Entrou a caixa de mensagem. Ele falou após o sinal e pediu que ela retornasse a ligação à hora que fosse. Talvez até tivesse ficado em seu carro, não estivesse tão apertado por conta do café que havia tomado. De todo modo, já estava na hora de entrar em casa. Com o canto do olho, percebeu um movimento e quase morreu de susto quando, subitamente, alguém bateu no vidro.

— Pai? — Era Rosalie, sua filha mais velha.

— Rosi! — Abriu a porta e desceu. — O que está fazendo aqui?

— Acabei de sair do trabalho — respondeu ela. — Mas e você? O que faz aqui? Por que não está em casa?

Bodenstein suspirou e encostou-se no carro. Estava morto de cansado e sem nenhuma vontade de conversar com a filha sobre seus problemas. Tinha conseguido passar o dia todo sem pensar em Cosima, mas, naquele momento, a sensação insuportável do fracasso precipitou-se sobre ele.

— A vovó me contou que ontem à noite você dormiu aqui. O que aconteceu? — Rosalie olhou-o preocupada. À luz fraca do único poste, seu rosto tinha uma palidez fantasmagórica. Por que não dizer a verdade? Ela era adulta o suficiente para entender o que tinha acontecido e, de todo modo, mais cedo ou mais tarde ficaria sabendo.

— Sua mãe me contou ontem à noite que tem um caso com outro homem. Por isso, preferi dormir por alguns dias em outro lugar.

— O quê? — Rosalie fez cara de espanto. — Mas isso é... Não, não posso acreditar.

O assombro era autêntico, e Bodenstein sentiu-se aliviado por ver que sua filha não era cúmplice secreta da mãe.

— Pois é — deu de ombros. — No começo, também não consegui acreditar. Mas esse relacionamento já tem um bom tempo.

Rosalie bufou e abanou a cabeça. Porém, de repente, perdeu toda postura de adulta e voltou a ser uma garotinha completamente sufocada por uma verdade que era tão incompreensível para ela quanto para ele. Bodenstein não quis lhe dar falsas esperanças de que tudo entraria nos eixos novamente. Entre ele e Cosima, nada voltaria a ser como antes. A dor que ela lhe causara tinha sido forte demais para isso.

— Bem, e agora? Quero dizer... como... como... — Rosalie se interrompeu. Desorientada. Desamparada. Repentinamente, as lágrimas rolaram por seu rosto. Bodenstein abraçou a filha, que soluçava, e apertou a boca em seus cabelos. Fechou os olhos e suspirou. Como desejava também ser capaz de dar livre curso às lágrimas para conseguir chorar por Cosima, por si mesmo e por toda a sua vida!

— Vamos encontrar uma solução — murmurou ele, acariciando sua nuca. — Também preciso digerir tudo isso primeiro.

— Mas por que ela está fazendo isso? — soluçou Rosalie. — Não consigo entender!

Por um instante, permaneceram assim, imóveis; depois, Bodenstein segurou o rosto de sua filha, úmido de lágrimas.

— Vá para casa, meu amor — disse em voz baixa. — Não se preocupe. Sua mãe e eu vamos resolver isso, está bem?

— Mas não posso simplesmente deixar você aqui sozinho, pai! E... e logo vai ser Natal, e, se você não estiver presente, então não vai haver mais festa em família! — O desabafo soou desesperado e bem típico de Rosalie. Já de criança ela se sentia responsável por tudo o que acontecia com sua família e seus amigos e, muitas vezes, exigia de si mesma mais do que conseguia suportar.

— Até o Natal ainda faltam algumas semanas. E não estou sozinho — assegurou. — Seu avô e sua avó estão aqui, o Quentin e a Marie-Louise também. Não é tão ruim assim.

— Mas certamente você está triste.

A essa lógica, ele nada tinha a opor.

— Tenho tido tanta coisa para fazer que mal consigo arranjar tempo para ficar triste.

— Isso é mesmo verdade? — Seus lábios tremiam. — Não posso suportar a ideia de que você esteja triste e sozinho, pai.

— Não se preocupe. Você pode me ligar à hora que quiser ou me mandar um SMS. Mas agora você precisa ir para a cama, e eu também. Amanhã conversamos de novo, está bem?

Rosalie fez que sim e fungou sentida. Em seguida, deu um beijo úmido na bochecha do pai, abraçou-o mais uma vez, entrou no carro e deu partida no motor. Ele permaneceu no estacionamento e ficou olhando até as luzes traseiras do automóvel dela desaparecerem na floresta. Com um suspiro, virou-se e pôs-se a andar. Saber que continuaria tendo o afeto dos filhos, mesmo que seu casamento terminasse de fato, deu-lhe alívio e consolo.

Sábado, 22 de novembro de 2008

Levantou-se de repente. Dava para ouvir seu coração bater. Com os olhos bem abertos, olhou ao redor, mas ainda estava totalmente escuro como antes. Teria realmente ouvido um barulho ou apenas sonhado? Amelie ficou imóvel na escuridão e aguçou os ouvidos. Nada. Era só imaginação. Com um suspiro, voltou para o colchão mofado, abraçou os tornozelos e massageou os pés frios. Embora sempre dissesse a si mesma que iriam encontrá-la e que sobreviveria àquele pesadelo naquele lugar, intimamente desistira de ter esperança. Quem a trancara ali não pretendia libertá-la nunca mais. Até então, Amelie conseguira reprimir os ataques regulares de pânico. Mas a coragem começava a abandoná-la com frequência cada vez maior, e ela passou a simplesmente esperar pela morte. Tantas foram as vezes em que, com raiva, dissera à sua mãe: “Eu prefiro morrer!”; mas só naquele momento entendeu como tinha sido leviana. Durante muito tempo, arrependeu-se amargamente do que fizera à sua mãe por teimosia ou indiferença. Se saísse dali com vida, faria tudo, tudo, tudo diferente. Melhor. Já não protestaria, nunca mais fugiria de casa nem seria ingrata.

Tinha de haver um final feliz. Sempre havia um. Em todo caso, na maioria das vezes. Sentiu calafrios quando lhe ocorreram todas as notícias de jornal e reportagens de televisão que não tiveram um final feliz. Moças mortas, enterradas na floresta, aprisionadas em caixas, violentadas, torturadas até a morte. Droga, droga, droga. Ela não queria morrer, não naquele buraco imundo, na escuridão, totalmente sozinha. De fome, tão cedo ela não morreria, mas de sede, sim. Já não havia muito o que beber, e, aos poucos, ela ia racionando a água em goles.

De repente, teve um sobressalto. Havia barulho, sim! Não era imaginação sua. Passos do lado de fora, diante da porta! Estavam cada vez mais próximos, pararam. Em seguida, uma chave girou rangendo na fechadura. Amelie quis se levantar, mas seu corpo estava rígido de frio e por causa da umidade que penetrara em seus ossos após tantos dias e tantas noites de escuridão. Um forte clarão precipitou-se no quarto, iluminando-o por alguns segundos e cegando-a. Amelie piscou, mas não conseguiu reconhecer nada. A porta logo se fechou, a chave girou com um chiado, e os passos se afastaram. A decepção agarrou-a com braços de polvo e a apertou. Nada de água fresca! De repente, achou que tivesse ouvido a respiração de alguém. Haveria mais alguém no quarto além dela? Os finos cabelos em sua nuca se arrepiaram, seu coração começou a bater acelerado. Quem seria? Uma pessoa? Um animal? O medo ameaçou sufocá-la. Apertou-se contra a parede. Por fim, reuniu toda a sua coragem.

— Quem está aí? — sussurrou com voz rouca.

— Amelie?

Sem acreditar, respirou com dificuldade. Seu coração deu um pulo de alegria.

— Thies? — murmurou e levantou-se, tateando a parede. Não era fácil manter o equilíbrio na escuridão, embora, depois de todo aquele tempo, já conhecesse cada milímetro quadrado do cômodo. Com os braços esticados, deu dois passos e recuou ao tocar um corpo quente. Ouviu a respiração tensa, pegou o braço de Thies. Em vez de se desvencilhar, ele pegou sua mão e a segurou com firmeza.

— Oh, Thies! — Subitamente, Amelie já não conseguiu conter as lágrimas. — O que você está fazendo aqui? Oh, Thies, Thies, estou tão feliz! Tão feliz!

Ela se apertou contra ele, abraçou-o e deu livre curso às lágrimas. Seus joelhos fraquejaram, tamanho era seu alívio por finalmente, finalmente não estar mais sozinha. Thies deixou-se abraçar. Não só isso. De repente, ela sentiu que ele também a abraçava. Com cuidado e de maneira desajeitada. Mas depois ele a puxou firmemente para si e colocou sua face contra os cabelos dela. E, de modo inesperado, seu medo desapareceu.

 

O celular o despertou novamente. Desta vez era Pia, essa madrugadora sem coração, que às seis e vinte lhe comunicou que, durante a noite, Thies Terlinden desaparecera do hospital psiquiátrico.

— A médica-chefe me ligou — explicou Pia. — Já estou aqui no hospital psiquiátrico e conversei com o médico da seção e com a enfermeira. Ela o viu em sua última ronda, às 23h27, quando ele estava dormindo na cama. Ao passar pela segunda vez, às 5h12, ele já não estava.

— Qual foi a explicação deles? — Bodenstein estava com dificuldade para sair da cama. Após no máximo três horas de sono, sentia-se esgotado. Primeiro fora Lorenz a ligar para ele, quando ele mal havia pegado no sono. Depois, Rosalie, que só a muito custo ele conseguira dissuadir de pegar o carro novamente para ir vê-lo. Reprimindo um bocejo, conseguiu erguer-se e levantar-se. Desta vez, chegou ao interruptor junto à porta sem tropeçar em nada.

— Nenhuma. Procuraram por toda parte, ele não se escondeu em lugar nenhum. A porta do seu quarto estava fechada. Parece que ele evaporou, como todos os outros. É o fim da picada!

Não havia pistas de Lauterbach, nem de Nadja von Bredow, nem de Tobias Sartorius, apesar de as buscas terem sido divulgadas na imprensa, na rádio e na televisão de todo o país.

Bodenstein cambaleou no banheiro em que, ainda à noite, com sábia precaução, tinha ligado o aquecimento e fechado a janela basculante. Seu rosto no espelho não oferecia uma visão agradável. Enquanto ainda ouvia Pia, seus pensamentos giravam. Ele havia sido precipitado ao imaginar que Thies estaria seguro no isolamento do hospital psiquiátrico, quando, na verdade, deveria saber o perigo que o rapaz estava correndo. Deveria ter mandado um guarda para protegê-lo! Este já era seu segundo descuido grave em 24 horas. Se continuasse assim, seria o próximo a poder contar com a suspensão! Encerrou a conversa, tirou a camiseta suada e as cuecas e tomou uma boa ducha. O tempo estava correndo. Todo aquele caso ameaçava escapar de seu controle. O que seria prioridade naquele momento? Por onde ele deveria começar? Nadja von Bredow e Gregor Lauterbach pareciam ser as figuras-chave nessa tragédia. Era preciso encontrá-las.

 

Claudius Terlinden recebeu a notícia do suicídio do filho Lars sem demonstrar emoção. Após quatro dias e três noites sob custódia policial, sua amabilidade serena havia cedido lugar a um silêncio obstinado. Já na quinta-feira, seu advogado entrara com recurso, mas Ostermann conseguira convencer o juiz de que, se ele fosse solto, haveria o risco de destruição das provas. Contudo, se não houvesse indícios mais plausíveis de que ele não tinha nenhum álibi para o momento em que Amelie desaparecera, não poderiam mantê-lo detido por muito tempo.

— A vida toda esse menino foi sensível demais — foi o único comentário de Terlinden. Com o colarinho da camisa aberto, barba por fazer e cabelos desgrenhados, ele tinha tanto carisma quanto um espantalho. Em vão, Pia tentou se lembrar do que a fascinara tanto nele.

— Mas o senhor — disse ela, então, com sarcasmo —, o senhor é durão, não é? Tão durão que, para o senhor, tanto faz o que suas mentiras e seus segredos causaram. Lars cometeu suicídio porque já não conseguia suportar sua consciência pesada; o senhor roubou dez anos da vida do Tobias Sartorius e intimidou Thies de tal maneira que, durante dez anos, ele velou uma garota morta.

— Nunca intimidei Thies. — Pela primeira vez naquela manhã, Claudius Terlinden olhou para Pia. Em seus olhos vermelhos, via-se repentinamente uma expressão atenta. — E de que garota morta a senhora está falando?

— Ah, por favor! — Pia abanou a cabeça, irritada. — Não venha querer me fazer acreditar que não sabia o que havia no porão sob a estufa do seu jardim.

— Não. Com toda a certeza, nunca mais entrei lá em vinte anos.

Pia puxou uma cadeira e sentou-se à sua frente.

— Ontem encontramos no porão, embaixo do ateliê do Thies, o corpo mumificado de Stefanie Schneeberger.

— O quê? — Pela primeira vez, a insegurança cintilou em seus olhos. A fachada de autocontrole impassível ganhou uma primeira e fina rachadura.

— Na época, Thies viu quem matou as moças — continuou Pia, sem tirar os olhos de Terlinden. — Alguém ficou sabendo disso e ameaçou Thies, dizendo que o colocaria em um sanatório se algum dia ele falasse alguma coisa a respeito. Estou firmemente convencida de que essa pessoa é o senhor.

Claudius Terlinden abanou a cabeça.

— Hoje à noite, Thies desapareceu do hospital psiquiátrico, depois de me revelar o que viu naquela época.

— A senhora está mentindo — rebateu Terlinden. — Thies nunca lhe disse nada.

— É verdade. Seu relato como testemunha ocular não foi verbal. Ele fez desenhos que representam o desenrolar do crime de maneira tão detalhada quanto fotografias.

Por fim, Claudius Terlinden mostrou uma reação. Suas pupilas moviam-se de um lado para outro, e suas mãos inquietas revelavam nervosismo. Em seu íntimo, Pia exultou. Será que essa conversa finalmente traria a brecha de que eles tanto precisavam?

— Onde está Amelie Fröhlich?

— Quem?

— Faça-me o favor! Afinal, o senhor está aqui sentado à minha frente porque a filha de Arne Fröhlich, seu vizinho e funcionário, desapareceu.

— Ah, sim, é verdade. Por um momento, acabei esquecendo. Não sei onde está a moça. Que interesse eu teria em Amelie?

— Thies mostrou a Amelie a múmia de Stefanie. Deu a ela os desenhos que havia feito do assassino. A garota estava prestes a desvendar todos os segredos obscuros de Altenhain. É óbvio que o senhor podia não gostar disso.

— Não sei do que a senhora está falando. Segredos obscuros! — Deu uma risada de escárnio. — A senhora realmente está assistindo a muitas telenovelas! Aliás, logo vai ter de me deixar sair daqui. A não ser que tenha algo concreto em mãos, o que certamente não acredito.

Pia não vacilou.

— Na época, o senhor aconselhou seu filho Lars a não confessar que estava envolvido na morte de Laura Wagner, embora provavelmente tenha se tratado de um acidente. Estamos justamente analisando se isso é suficiente para prolongar o mandado de prisão.

— Porque eu quis proteger meu filho?

— Não. Por obstrução da justiça. Por falso testemunho. É só escolher.

— Tudo isso já prescreveu há muito tempo. — Claudius Terlinden encarou Pia friamente. Ele era um osso duro de roer; a confiança de Pia fraquejou.

— Onde o senhor e Gregor Lauterbach estiveram depois que deixaram o Ebony Club?

— Não é da sua conta. Não vimos a moça.

— Onde o senhor esteve? Por que fugiu do local do acidente que provocou? — A voz de Pia foi ficando mais enérgica. — Tinha mesmo tanta certeza de que ninguém ousaria denunciá-lo?

Claudius Terlinden não deu nenhuma resposta. Não se deixou provocar para não fazer nenhuma observação impensada. Ou seria mesmo inocente? Em seu carro, a perícia criminal não conseguira encontrar nenhum vestígio de Amelie. A fuga do local do acidente não era motivo para deter o homem por mais tempo, e, quanto à prescrição dos crimes, infelizmente ele tinha razão. Droga.

 

Ele percorreu a Hauptstraße, que, naquele meio-tempo, já se lhe tornara familiar, passou pela loja dos Richters e pelo Galo de Ouro e, junto ao playground, virou à esquerda, na Waldstraße. As luzes dos postes estavam acesas; era um daqueles dias que não amanheciam brilhantes. Bodenstein nutria a esperança de encontrar Lauterbach em casa logo cedo, em uma manhã de sábado. Por que ele incitara Hasse a destruir as atas? Que papel desempenhara em setembro de 1997? Parou na frente da casa de Lauterbach e constatou irritado que, ao contrário de sua ordem, não se via nenhuma radiopatrulha por perto, tampouco algum carro civil da polícia. Antes de ligar para a central e descarregar sua irritação, o portão da garagem se abriu, e as luzes traseiras de um automóvel se acenderam. Bodenstein desceu do carro e se dirigiu ao portão. Seu coração deu um pulo quando reconheceu Daniela Lauterbach ao volante de uma Mercedes cinza-escura. Ela estacionou ao seu lado e desceu. Dava para perceber em seu semblante que não havia dormido muito na última noite.

— Bom-dia. O que o traz tão cedo aqui?

— Gostaria de lhe perguntar como está a senhora Terlinden. Pensei nela a noite inteira. — Era pura mentira, mas o interesse solidário pelo estado da vizinha certamente faria Daniela Lauterbach sentir simpatia por ele. Não se enganara. Seus olhos castanhos se iluminaram, um sorriso se esboçou em seu rosto cansado.

— Ela não está bem. Perder um filho daquela maneira é mais do que terrível. E depois, o incêndio no ateliê do Thies e o corpo no porão da estufa, tudo isso foi demais para ela. — Abanou a cabeça, lamentando-se. — Fiquei com ela até sua irmã chegar para cuidar dela.

— Realmente, fico admirado em ver como a senhora se dedica aos seus amigos e pacientes — disse Bodenstein. — É muito raro haver pessoas assim.

Seu elogio pareceu alegrá-la. Seu sorriso voltou, aquele sorriso quente, maternal, que podia desencadear uma necessidade difícil de reprimir, que era a de se jogar em seus braços e buscar consolo.

— Às vezes me interesso mais do que deveria pelo destino dos outros. — Suspirou. — Simplesmente não consigo ser diferente. Quando vejo alguém sofrer, tenho de ajudar.

Bodenstein tremeu de frio no ar gelado da manhã. Ela percebeu de imediato.

— O senhor está com frio. Se ainda tiver perguntas a me fazer, vamos entrar.

Ele a seguiu pela garagem e subiu uma escada que dava para um amplo saguão, que, em sua inutilidade representativa, era uma relíquia típica dos anos 1980.

— Seu marido está em casa? — perguntou ocasionalmente e olhou ao redor.

— Não. — Por uma fração de segundo, ela hesitou um pouco. — Meu marido está viajando a trabalho.

Se aquilo era uma mentira, Bodenstein a aceitou momentaneamente. Mas talvez ela de fato não soubesse o papel que seu marido desempenhava.

— Tenho urgência em falar com ele — disse. — Descobrimos que, antigamente, ele teve um caso com Stefanie Schneeberger.

A expressão de alegria desapareceu imediatamente do rosto dela, e ela se virou.

— Eu já sabia — admitiu. — Gregor me confessou na época, mas só depois que a moça já tinha desaparecido.

Aparentemente, era difícil para ela falar da infidelidade do marido.

— Ele ficou preocupado quando achou que pudessem tê-lo visto... namorando no celeiro dos Sartorius e suspeitado dele.

Havia amargura em sua voz. Seu olhar estava triste. A mágoa ainda doía e, involuntariamente, fez Bodenstein se lembrar da própria situação. Daniela Lauterbach podia até ter perdoado o marido após onze anos, mas com toda certeza não tinha esquecido a humilhação.

— Mas por que isso é importante agora? — perguntou, perturbada.

— Amelie Fröhlich se interessou pelos acontecimentos da época e deve ter descoberto isso. Caso seu marido tenha ficado sabendo, ele pode ter visto Amelie como uma ameaça.

Daniela Lauterbach fitou Bodenstein incrédula.

— Vocês não estão suspeitando que meu marido tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Amelie, estão?

— Não, não estamos — tranquilizou-a. — Mas precisamos urgentemente falar com ele. Pois ele cometeu um ato que poderia lhe causar consequências penais.

— Posso saber o que seria?

— Seu marido fez um funcionário meu remover dos autos as atas do interrogatório de 1997.

Essa notícia deixou-a evidentemente em choque. Ela empalideceu.

— Não. — Ela abanou energicamente a cabeça. — Não, não posso acreditar. Por que ele faria isso?

— É o que eu gostaria de saber dele. Portanto, onde posso encontrá-lo? Se ele não entrar em contato conosco imediatamente, seremos obrigados a expedir um mandado de captura. E, na sua posição, gostaria de poupá-lo disso.

Daniela Lauterbach concordou com a cabeça. Respirou fundo e, com seu sangue-frio, manteve as emoções sob controle. Quando voltou a olhar para Bodenstein, havia outra expressão em seus olhos. Seria medo ou raiva — ou ambos?

— Vou ligar para ele e avisá-lo — disse ela, esforçando-se bastante para dar um tom sereno às suas palavras. — Deve haver algum mal-entendido, com certeza.

— É o que também acho — aderiu Bodenstein. — Mas quanto mais rápido esclarecermos isso, tanto melhor.

 

Fazia muito tempo que ele não dormia tão profundamente e tinha um sono milagrosamente sem sonhos como na última noite. Tobias virou-se de costas e sentou-se bocejando. Precisou de um tempo para entender onde estava. Na noite anterior, só foram chegar ali em cima quando já era tarde. Embora estivesse nevando muito, Nadja saiu da rodovia na altura de Interlaken. Em algum momento, parou, colocou nos pneus as correntes para neve e continuou a dirigir incansavelmente, subindo cada vez mais a estrada sinuosa. Ele estava tão exausto que mal reparara no interior do chalé. Tampouco sentia fome. Apenas subira a escada atrás dela e se deitara em uma cama que ocupava todo espaço do mezanino. Mal encostara a cabeça no travesseiro e já adormecera. Não havia dúvida de que o sono lhe fizera bem.

— Nadja?

Não houve resposta. Tobias ajoelhou-se e olhou para fora da minúscula janela acima da cama. Perdeu o fôlego quando viu o céu de um azul intenso, a neve e o impressionante panorama da montanha ao fundo. Nunca estivera nas montanhas; em sua infância e em sua juventude, férias para esquiar eram tão raras quanto férias na praia. De repente, ficou ansioso para sentir a neve. Desceu as escadas. O chalé era pequeno e aconchegante, com as paredes e o teto revestidos em madeira e um banco no canto, com a mesa posta do café da manhã. Sentiu o cheiro do café, e, na lareira acesa, a lenha crepitava. Tobias sorriu. Enfiou os jeans, o pulôver, o casaco e os sapatos, abriu a porta e saiu. Por um momento, ficou imóvel, ofuscado pela claridade cintilante. Inspirou profundamente o ar puro e gelado. Uma bola de neve atingiu-o bem no meio do rosto.

— Bom-dia! — Nadja riu e acenou. Ela estava alguns metros abaixo da escada e extremamente radiante com a neve e o sol. Ele riu, pulou os degraus e afundou na neve fofa até os joelhos. Ela foi ao seu encontro. Suas bochechas estavam avermelhadas, e seu rosto, tão lindo como nunca antes sob o capuz forrado de pele.

— Uau! É muito legal aqui! — exclamou entusiasmado.

— Gostou?

— Nossa, e como! Um lugar como esse eu só conhecia pela televisão.

Caminhou com o passo pesado ao redor do chalé, que, com seu telhado alto, ficava apoiado na encosta íngreme. A neve alta crepitava sob seus sapatos. Nadja pegou sua mão.

— Veja — disse ela. — Aqueles ali são os cumes mais conhecidos dos Alpes de Berna: Jungfrau, Eiger e Mönch. Ah, eu adoro esta vista.

Depois, ela apontou para baixo, na direção do vale. Bem embaixo, onde mal dava para reconhecer a olho nu, havia casas bem próximas umas das outras e, um pouco mais adiante, reluzia azul ao sol um longo trecho do lago.

— A que altura estamos? — perguntou ele, curioso.

— Mil e oitocentos metros. Acima de nós existem apenas geleiras e camurças.

Ela riu, enlaçou-o pelo pescoço e beijou-o com lábios frios e macios. Ele a segurou e retribuiu o beijo. Estava se sentindo muito leve e bem-disposto, como se tivesse deixado as preocupações do passado em algum lugar bem lá embaixo nos vales.

 

O caso estava exigindo tanto dele que não lhe sobrava tempo para refletir sobre sua própria desgraça. Nesse sentido, ficava feliz. Fazia anos que Bodenstein se confrontava quase diariamente com os abismos humanos e, pela primeira vez, reconheceu semelhanças em si mesmo, para as quais, no passado, ele fechara os olhos. Daniela Lauterbach pareceu saber tão pouco sobre o próprio marido quanto ele sabia sobre Cosima. Era assustador, mas, pelo visto, era possível passar 25 anos ao lado de uma pessoa, dormir na mesma cama que ela e ter filhos com ela sem conhecê-la realmente. Várias vezes presenciara casos de pessoas que viveram anos com assassinos, pedófilos e estupradores sem desconfiar de nada, e ficaram boquiabertas ao descobrirem a terrível verdade sobre seus familiares.

Bodenstein passou de carro pela casa dos Fröhlichs e pela entrada dos fundos do sítio dos Sartorius, prosseguiu até a área de retorno no final da Waldstraße, transformada em calçada da propriedade dos Terlindens. Uma mulher abriu a porta da casa para ele. Devia ser a irmã de Christine Terlinden, embora ele não conseguisse constatar entre ambas nenhuma semelhança. A mulher era alta e magra, e a maneira como o mediu demonstrou autoconfiança.

— Pois não? — Os olhos verdes olharam diretamente para ele, examinando-o. Bodenstein se apresentou e disse que desejava falar com Christine Terlinden.

— Vou chamá-la — disse a mulher. — Aliás, sou Heidi Brückner, irmã de Christine.

Devia ser pelo menos dez anos mais nova e, ao contrário da irmã, era totalmente espontânea. Trazia os cabelos castanhos e brilhantes presos em uma trança; seu rosto liso e simétrico, com as maçãs salientes, não estava maquiado. Deixou-o entrar e fechou a porta atrás dele.

— Por favor, espere aqui.

Ela saiu e, por um momento, desapareceu. Bodenstein observou minuciosamente as pinturas nas paredes, que, sem dúvida, também eram de Thies. Tinham a mesma escuridão cinzenta e apocalíptica dos quadros do consultório de Daniela Lauterbach: rostos desfigurados, bocas gritando, mãos atadas, olhos cheios de medo e tormento. Passos se aproximaram, e ele se virou. Christine Terlinden tinha a mesma aparência que ele guardara na memória. Cabelos louros, perfeitamente penteados, um sorriso imparcial em um rosto sem rugas.

— Minhas condolências — disse Bodenstein, estendendo-lhe a mão.

— Obrigada. É muito gentil de sua parte. — Parecia não guardar mágoa dele pelo fato de seu marido estar detido havia dias. E, externamente, mesmo o suicídio de seu filho passara por ela sem deixar rastro, assim como o incêndio no ateliê e a descoberta da múmia de Stefanie Schneeberger. Espantoso. Seria ela mestre em recalcar-se ou estaria sob o efeito de tranquilizantes tão fortes que ela ainda não tinha se dado conta de tudo?

— Desde hoje de manhã, o Thies não é encontrado no hospital — disse ele. — Por acaso ele voltou para casa?

— Não. — A resposta pareceu inquieta, mas não exageradamente preocupada. Ela ainda não havia sido comunicada, o que Bodenstein achou estranho. Ele lhe pediu para falar mais sobre Thies e foi conduzido até o quarto dele, no subsolo. Heidi Brückner os acompanhou, silenciosa e atenta, mantendo certa distância.

O quarto de Thies era agradável e claro. Como a casa ficava em um declive, janelas grandes permitiam uma bela vista sobre o vilarejo. Nas estantes havia livros, e bichos de pelúcia em um sofá. A cama estava feita, nada espalhado pelo chão. O quarto era de um menino de 10 anos, não de um homem de 30. Extraordinários eram apenas os quadros nas paredes. Thies havia retratado sua família. E neles se revelava o grande artista que ele realmente era. Nos retratos, ele capturara não apenas o rosto das pessoas, mas também um traço sutil da personalidade delas. À primeira vista, Claudius Terlinden sorria amigável, mas sua postura corporal, a expressão de seus olhos e as cores ao fundo conferiam ao quadro algo ameaçador. A mãe tinha sido pintada em tons de rosa e com cores claras, ao mesmo tempo plana e bidimensional. Um quadro sem profundidade para uma mulher sem personalidade autêntica. Notável. Quanto ao terceiro quadro, Bodenstein considerou-o, primeiramente, um autorretrato, até lembrar-se de que Lars era irmão gêmeo de Thies. Havia sido pintado de uma maneira completamente diferente, quase esfumado, e mostrava um rapaz com traços ainda indefinidos e olhos inseguros.

— Ele precisa de ajuda — respondeu Christine Terlinden à pergunta de Bodenstein sobre como era Thies. — Não sabe se virar sozinho e nunca carrega dinheiro consigo. Dirigir, ele não sabe. Por causa da doença, não pôde tirar carteira de motorista, e é até melhor assim. Não sabe avaliar as situações de perigo.

— E as pessoas? — Bodenstein olhou para Christine Terlinden.

— Como assim? — Ela sorriu confusa.

— Ele sabe avaliar as pessoas? Sabe quem é bem-intencionado em relação a ele e quem não?

— Isso... eu não sei julgar. O Thies não fala. Ele evita o contato com as pessoas.

— Ele sabe muito bem quem é bem-intencionado em relação a ele e quem não é — fez-se ouvir Heidi Brückner, da porta. — O Thies não é deficiente mental. Na verdade, vocês não sabem direito o que ele realmente tem.

Bodenstein ficou surpreso. Christine Terlinden não respondeu. Ficou junto da janela, olhando para fora, no cinza nublado de um dia de novembro.

— Autismo — continuou sua irmã — é um campo amplo. Em algum momento, vocês simplesmente pararam de estimulá-lo; em vez disso, só o entupiram desses medicamentos, para que ele ficasse tranquilo e não causasse nenhum problema.

Christine Terlinden se virou. Seu semblante, sempre imóvel, pareceu congelado.

— Me desculpe — disse a Bodenstein. — Preciso levar os cachorros para fora. Já são oito e meia.

Ela saiu do quarto, e o salto de seus sapatos ecoou na escada.

— Ela se refugia em seu dia a dia — observou Heidi Brückner, com um tom de resignação na voz. — Sempre foi assim. E não vai mudar mais. — Bodenstein olhou para ela. As irmãs não eram muito apegadas. Mas por que, então, ela estaria ali?

— Venha — disse ela. — Vou lhe mostrar uma coisa.

Ele a acompanhou pela escada até o saguão. Heidi Brückner parou um instante para se assegurar de que sua irmã não estava por perto; depois, foi com passos rápidos até o vestíbulo e pegou uma bolsa que estava pendurada em um gancho.

— Na verdade, eu queria entregar isso a um farmacêutico amigo meu — explicou em voz baixa. — Mas, dadas as circunstâncias, me parece melhor entregar à polícia.

— O que é isso? — perguntou Bodenstein, curioso.

— Uma receita. — Estendeu-lhe uma folha dobrada. — O Thies é obrigado a tomar esse negócio há anos.

 

Pia estava sentada com ar severo à sua mesa e digitava no computador o relatório sobre o interrogatório de Pietsch, Dombrowski e Richter. Estava irritada porque não pudera fazer nada para manter Terlinden por mais tempo sob custódia. Seu advogado recorrera e obtivera a soltura imediata de seu cliente. Após consulta à doutora Engel, superintendente da Polícia Criminal, Pia tivera, por fim, de liberar Terlinden. Seu telefone tocou.

— Não há dúvida de que bateram no crânio da moça com esse macaco hidráulico — disse Henning com voz cavernosa, sem se preocupar em cumprimentá-la. — E, de fato, na vagina constatamos DNA de outra pessoa. Mas ainda vai demorar um pouco para conseguirmos defini-lo com mais precisão.

— Ótimo — respondeu Pia. — E quanto ao macaco hidráulico? Vocês ainda conseguem analisar os vestígios antigos nele?

— Vou procurar saber se nosso laboratório está muito ocupado. — Ele fez uma breve pausa. — Pia...

— Sim?

— A Miriam ligou para você?

— Não. Por quê? Deveria?

— É que aquela infeliz ligou ontem para ela e disse que vai ter um filho meu.

— Puta merda! E agora?

— Pois é. — Henning deu um suspiro. — A Miriam ficou bem tranquila. Me perguntou se isso era possível. Quando então tive de admitir que sim, ela não disse mais nenhuma palavra, pegou a bolsa e foi embora.

Pia evitou lhe dar uma aula sobre fidelidade e puladas de cerca. Ele não deu a impressão de que poderia aguentar algo parecido naquele momento. Embora nada daquilo lhe dissesse respeito, ficou com pena do ex-marido.

— Já passou por sua cabeça que a Löblich pode estar querendo prejudicá-lo? — perguntou ela. — No seu lugar, eu daria uma investigada. Será que ela está mesmo grávida? E, se estiver, não poderia, eventualmente, ser de outro homem?

— Não se trata disso — respondeu ele.

— Do que se trata, então?

Henning hesitou antes de responder.

— Eu, idiota, enganei a Miriam — disse após um instante. — E por isso ela não vai me perdoar.

 

Bodenstein observou a receita que a doutora Daniela Lauterbach havia formulado e deu uma olhada rápida nos medicamentos prescritos. Ritalin, Droperidol, Fluphenazin, Fentanyl, Lorazepam. Mesmo sendo leigo, sabia que o autismo não era uma doença que se podia tratar com psicofármacos e tranquilizantes.

— É realmente mais fácil resolver os problemas com substâncias químicas do que trilhar o penoso caminho da terapia. — Heidi Brückner falava com voz abafada, mas a raiva em suas palavras não passava despercebida. — Durante a vida toda, minha irmã tomou o caminho que oferecia menos obstáculos. Quando os gêmeos eram pequenos, ela preferia sair com o marido a cuidar dos filhos. Na infância, o Thies e o Lars sofreram um extremo abandono. Empregadas que não falam uma palavra de alemão não são exatamente o substituto correto da mãe.

— O que está querendo dizer com isso?

Heidi Brückner inflou as asas do nariz.

— Que o problema do Thies vem de casa — respondeu. — Logo ficou claro que ele tinha dificuldades. Era agressivo, tinha tendência a ataques de fúria e não obedecia. Até os 4 ou 5 anos, não falava. Também, com quem falaria? Seus pais nunca estavam em casa. Claudius e Christine nunca tentaram ajudar o menino com terapias, sempre usaram medicamentos. Thies passava semanas totalmente quieto, só ficava sentado, apático. Depois, mal interromperam a medicação, ele voltou a ter os ataques. Foi internado no hospital psiquiátrico infantil e deixado lá durante anos. Um drama. O rapaz é sensível e muito talentoso, e foi obrigado a conviver com deficientes mentais!

— Por que nunca ninguém interveio? — Bodenstein quis saber.

— Quem? — A pergunta soou sarcástica. — Thies nunca teve contato com pessoas normais nem professores, que talvez percebessem o que estava acontecendo com ele.

— Acha que ele não é autista?

— Não, autista ele é. Mas o autismo não é uma doença claramente definida. Vai desde uma deficiência mental realmente grave até características leves da síndrome de Asperger, na qual os doentes têm toda a condição de levar uma vida independente, ainda que com certas limitações. Muitos adultos autistas aprendem a lidar com suas próprias peculiaridades. — Ela abanou a cabeça. — O Thies é uma vítima de seus pais egoístas. E Lars também acabou por se tornar uma.

— Ah, é?

— Quando criança e adolescente, Lars era extremamente tímido. Mal abria a boca. Além disso, era muito religioso, queria se tornar padre — explicou Heidi Brückner objetivamente. — Como o Thies dificilmente assumiria a empresa, Claudius depositou todas as suas esperanças em Lars. Ele o proibiu de estudar teologia, mandou-o para a Inglaterra, onde o obrigou a cursar administração de empresas. Lars nunca foi realmente feliz. E agora está morto.

— Por que a senhora não interveio quando soube de tudo isso? — perguntou Bodenstein, admirado.

— Tentei, há muitos anos. — Ela deu de ombros. — Como com a minha irmã não dava para conversar, falei com o Claudius. Era 1994, me lembro muito bem, pois eu tinha acabado de voltar do Sudeste Asiático, onde trabalhei como voluntária. Muita coisa tinha mudado por aqui. Wilhelm, irmão mais velho do meu cunhado, tinha morrido alguns anos antes. Claudius tinha assumido a empresa e se mudado para esta casa, que mais perece um caixote gigantesco. Eu queria ter ficado por um tempo, para dar apoio a Christine.

Ela bufou com desprezo.

— Para o Claudius isso não era conveniente. Nunca me suportou, porque não conseguia me intimidar nem dominar. Fiquei duas semanas e observei o drama. Minha irmã ficava passeando pelos campos de golfe e deixava os meninos aos cuidados de uma empregada do vilarejo e dessa Daniela. Um dia, Claudius e eu brigamos feio. Christine estava em Maiorca, como quase sempre. Tinha ido decorar a casa de lá. — Heidi Brückner riu com menosprezo. — Isso era mais importante para ela do que os filhos. Eu tinha ido dar um passeio e voltei para casa pelo subsolo, sem que ninguém percebesse. Não acreditei no que vi quando entrei na sala e surpreendi meu cunhado com a filha da empregada. A menina tinha, no máximo, 14 ou 15 anos...

Ela se interrompeu, abanou a cabeça com repugnância ao se lembrar do acontecimento. Bodenstein ouvia com atenção. A exposição dela coincidia com o que o próprio Claudius Terlinden havia contado — até determinado ponto.

— Ele ficou furioso quando entrei na sala e gritei com ele. A moça saiu correndo. Claudius ficou parado na minha frente, com as calças arriadas e o rosto vermelho. Negar, ele já não podia. E, de repente, Lars também estava lá. Nunca na minha vida vou esquecer sua expressão. O senhor pode imaginar que, desde aquele dia, nunca mais fui bem-vinda por aqui. Christine nunca teve coragem de se revoltar contra o marido. Ela nem sequer acreditou em mim quando lhe contei de imediato pelo telefone o que havia visto. Ela disse que eu era invejosa e uma mentirosa. Hoje nos revimos pela primeira vez depois de 14 anos. E, para ser franca, não vou ficar por muito tempo.

Ela deu um suspiro.

— Sempre tentei perdoar minha irmã — continuou após um instante. — Talvez também para tranquilizar minha consciência pesada. Intimamente, sempre temi que um dia uma catástrofe acontecesse, mas não esperava algo assim.

— E agora?

Heidi Brückner entendeu o que Bodenstein estava pensando.

— Hoje de manhã, finalmente entendi que ter laços familiares não é razão para proteger alguém. Minha irmã deixa tudo a cargo dessa Daniela, como, aliás, já fazia antes. O que eu venho fazer aqui?

— Não gosta da doutora Lauterbach? — perguntou Bodenstein.

— Não. Antigamente eu já achava que havia alguma coisa errada com ela. Esse excesso de cuidado com tudo e todos. E o modo como ela se preocupava com o marido, eu achava estranho e até doentio. — Heidi Brückner afastou do rosto uma mecha que teimava em cair. Bodenstein viu uma aliança em sua mão esquerda. Por um ínfimo instante, ficou decepcionado e, no mesmo segundo, admirou-se com esse sentimento absurdo. Ele mal conhecia a mulher e, após o fim das investigações, dificilmente a veria novamente.

— Depois que vi esse monte de medicação, gosto ainda menos dela do que antes — continuou Heidi Brückner. — Embora eu não seja farmacêutica, me ocupei a fundo da síndrome de Thies. Essa mulher não tem nada a me ensinar.

— A senhora a viu hoje de manhã?

— Vi, ela passou rapidamente aqui para dar uma olhada na Christine.

— Quando a senhora chegou?

— Ontem à noite, por volta das nove e meia. Vim correndo, assim que a Christine me ligou e me contou o que havia acontecido. De Schotten até aqui dá uma hora.

— Então quer dizer que a doutora Lauterbach não passou a noite aqui? — perguntou Bodenstein, surpreso.

— Não. Ela veio faz pouco, por volta das sete e meia, ficou para uma xícara de café e foi embora. Por quê? — Olhou para ele com seus olhos verdes e expressão interrogativa, mas Bodenstein ficou lhe devendo a resposta. Os fragmentos de informações isoladas caíam, como que sozinhos, no lugar certo. Daniela Lauterbach havia mentido para ele. E, por certo, aquela não tinha sido a primeira vez.

— Aqui está meu número. — Entregou-lhe seu cartão de visita. — E muito obrigado por sua sinceridade. A senhora me ajudou muito.

— Foi um prazer. — Heidi Brückner fez um gesto com a cabeça e estendeu-lhe a mão. Seu aperto era quente e firme. Bodenstein hesitou.

— Ah, caso eu tenha mais alguma pergunta, como posso encontrá-la?

Um sorriso sutil passou furtivamente por seu semblante sério. Ela pegou sua carteira e dela tirou um cartão, que deu a Bodenstein.

— Não pretendo ficar aqui muito tempo — disse ela. — Aliás, assim que meu cunhado voltar para casa vai me colocar para fora no mesmo instante.

 

Depois do café da manhã, andaram com dificuldade na neve alta e aproveitaram a magnífica vista dos Alpes nevados de Berna. Em seguida, o tempo mudou de repente, como costuma ocorrer em grandes altitudes. Em poucos minutos, o céu incrivelmente azul se encobriu, e logo a neve começou a cair com intensidade. De mãos dadas, voltaram correndo para o chalé, tiraram sem fôlego as roupas completamente molhadas e subiram nus até o mezanino. O calor da lareira estagnou-se sob o telhado. Aconchegados um no outro, ficaram deitados na cama enquanto o vento assobiava ao redor do chalé e sacudia as persianas. Olharam-se. Os olhos dela estavam bem próximos dos dele, e ele sentiu sua respiração. Tobias afastou o cabelo dela do rosto e fechou os olhos, quando ela se colocou sobre seu corpo nu, lambeu sua pele e o excitou com a língua. O suor começou a emanar de todos os seus poros, ele ficou ofegante, seus músculos se distenderam ao máximo. Com um gemido, puxou-a para si, viu seu rosto alterado pelo prazer. Ela se movia de forma cada vez mais intensa, cheia de desejo, e seu suor escorria sobre ele. Uma onda de gozo inebriante o tomou, invadindo-o com inesperada violência, como se as paredes oscilassem e o chão sob ele tremesse. Por um momento, ficaram inertes, exaustos e felizes, e, ofegando, esperaram até o batimento cardíaco se normalizar. Tobias pegou a cabeça dela e beijou longa e ternamente sua boca.

— Foi maravilhoso — disse ele em voz baixa.

— Foi. E assim deve permanecer para sempre — sussurrou Nadja com voz rouca. — Só você e eu.

Seus lábios roçaram os ombros dele e, sorrindo, ela se apertou contra ele, que puxou a coberta sobre ambos e fechou os olhos. Isso mesmo, assim deveria permanecer. Seus músculos relaxaram e ele se sentiu cansado.

Mas, de repente, viu o rosto de Amelie à sua frente. Atingiu-o como um soco, e ele logo despertou. Como ele podia ficar ali tão tranquilo, enquanto ela continuava desaparecida e talvez lutando por sua vida em algum lugar?

— O que foi? — murmurou Nadja sonolenta. Não era de bom tom falar de outra mulher na cama, mas Nadja também se preocupava com Amelie.

— Acabei de pensar na Amelie — respondeu, então, com sinceridade. — Onde será que ela está? Tomara que não tenha acontecido nada a ela.

Ele não estava preparado para a reação de Nadja. Ela se enregelou nos braços dele, ergueu-se e afastou-o com força. Seu belo rosto estava desfigurado pela raiva.

— Você não pode estar falando sério! — gritou, fora de si. — Você transa comigo e fala de outra mulher! Não sou suficiente para você?

Ela cerrou os punhos e bateu no peito dele com uma força que ele não imaginava que ela tivesse. Tobias teve dificuldade para se defender. Ofegante e perturbado com esse rompante, ele a fitou.

— Seu filho da puta sem-vergonha! — gritou Nadja; as lágrimas brotaram como torrentes de seus olhos. — Por que você sempre pensa em outras mulheres? Antigamente eu já tinha de ouvir o que você havia conversado e feito com esta ou aquela garota! Nunca passou pela sua cabeça que isso poderia me magoar? E agora você está aqui, na cama comigo, tagarelando sobre essa... essa vagabunda!

 

A neblina densa e úmida clareou-se e dissipou-se por completo no topo do Taunus. Quando deixaram a floresta pela B 8, após Glashütten, a neblina deu as boas-vindas ao sol claro. Bodenstein abaixou o para-sol.

— O Lauterbach vai aparecer — disse Pia. — Ele é político e se preocupa com a própria fama. Certamente a mulher já ligou para ele faz tempo.

— Bom, tomara. — Pia não compartilhava tanto do otimismo do chefe. — De todo modo, Claudius Terlinden será vigiado.

As linhas telefônicas entre a K 11, o Ministério Público e o tribunal estavam ocupadíssimas desde a confissão de Jörg Richter de que Laura ainda estaria viva quando ele e seus amigos a jogaram no tanque subterrâneo. Ela havia implorado por sua vida, havia chorado e gritado, até eles empurrarem a tampa sobre o buraco. Não havia dúvida de que, no caso Laura Wagner, seria necessário reabrir o processo, ao longo do qual Tobias Sartorius seria absolvido. Se ele reaparecesse. Até então, não havia rastro dele.

Bodenstein virou à esquerda e atravessou o pequeno vilarejo de Kröftel na direção de Heftrich. Pouco antes da entrada de Heftrich ficava o sítio que os pais de Stefanie Schneeberger haviam comprado dez anos antes. Uma placa grande indicava a loja onde eram vendidos apenas produtos orgânicos, de cultivo e criação próprios. Bodenstein parou no pátio asseado. Eles desceram do carro e olharam ao redor. Da funcionalidade sóbria das antigas propriedades rurais, que, do nada, apareceram aos montes nos anos 1960, quase nada se reconhecia. Ali haviam feito ampliações e reformas; sob o novo beiral da parte central da casa, na qual a loja se encontrava, arranjos outonais aguardavam compradores. Os telhados das construções consistiam quase exclusivamente de placas solares e fotovoltaicas. Dois gatos espreguiçavam-se na escada que dava para a porta da casa e aproveitavam os raros raios de sol. A loja estava fechada para almoço, e na casa também ninguém atendia. Bodenstein e Pia entraram no estábulo claro, com boxes amplos, onde vacas e seus bezerros estavam em pé, com palha até os joelhos, ou deitados, ruminando. Que bela visão, se comparada com a criação usual de gado em boxes apertados, com piso de estrado! Ao fundo, duas moças de 18 ou 19 anos escovavam um cavalo, que, paciente, condescendia com o tratamento carinhoso.

— Olá! —cumprimentou Pia as duas moças. Pareciam-se muito uma com a outra e, sem dúvida, eram as irmãs mais novas da falecida Stefanie. O mesmo cabelo escuro, os olhos grandes e castanhos. — Os pais de vocês estão em casa?

— A mamãe está lá no estábulo — respondeu uma, apontando para o anexo comprido atrás do curral. — O papai saiu com o trator para transportar o esterco.

— Ah, sim. Obrigada.

Beate Schneeberger estava varrendo o beco do curral quando Bodenstein e Pia entraram no estábulo. Ela levantou o olhar quando o Jack Russel Terrier, que vasculhava um boxe vazio à procura de ratos, começou a latir.

— Olá! — chamou Bodenstein, e permaneceu parado, por segurança. O Terrier era pequeno, mas certamente não devia ser subestimado.

— Podem se aproximar. — A mulher sorriu amigavelmente, sem interromper seu trabalho. — O Bobby só faz barulho. O que posso fazer por vocês?

Bodenstein apresentou a si e a Pia. Beate Schneeberger se interrompeu. O sorriso desapareceu de seu rosto. Era uma mulher bonita, mas o desgosto e o sofrimento haviam deixado marcas em seus traços simétricos.

— Viemos para informar-lhe que o corpo de sua filha Stefanie foi encontrado — disse Bodenstein.

Serena, a senhora Schneeberger olhou-o com seus olhos grandes e escuros e anuiu com a cabeça. Tal como a mãe de Laura, reagiu com tranquilidade e autocontrole.

— Vamos entrar em casa — disse ela. — Vou ligar para o meu marido. Em poucos minutos ele estará aqui.

Encostou a vassoura na porta de um boxe e vasculhou o bolso do colete acolchoado à procura do celular.

— Albert — disse. — Pode voltar para casa? A polícia está aqui. Encontraram a Stefanie.

 

Amelie acordou, pois no sonho acreditara ter ouvido um murmúrio de água. Estava com sede. Uma sede horrível, torturante. Sua língua colava no céu da boca, e sua boca estava seca como papel. Poucas horas antes, ela e Thies comeram os últimos biscoitos e beberam o último gole de água; agora, já não restava nada. Amelie já tinha ouvido falar que algumas pessoas conseguiram salvar-se de morrer de sede ao beberem a própria urina. A estreita faixa de luz sob o teto lhe dizia que, do lado de fora da sua prisão, era dia. Ela reconheceu os contornos da estante do outro lado do porão. Thies estava deitado, todo encolhido, ao lado dela no colchão, com a cabeça em seu colo, e dormia profundamente. Como ele tinha ido parar ali? Quem os havia prendido naquele lugar? E onde estavam, afinal? O desespero de Amelie cresceu. Preferia chorar, mas não quis acordar Thies, embora sua perna sob o peso da cabeça dele estivesse totalmente entorpecida. Passou a língua seca pelos lábios ressecados. Lá estava o barulho! Novamente o rumor baixinho e o murmúrio de água! Como se em algum lugar uma torneira estivesse aberta. Quando saísse dali, jurou a si mesma que nunca mais desperdiçaria água. Antes, simplesmente jogava meia garrafa de Coca-Cola fora quando o gás se perdia. O que ela não daria agora por um gole de Coca-Cola morna e choca!

Seu olhar passeou pelo cômodo e pousou na porta. Não acreditou em seus olhos quando viu que, de fato, estava correndo água pela fresta da porta. Aflita, afastou Thies e soltou um palavrão quando sua perna entorpecida não quis obedecer. Engatinhou pelo chão, que já estava molhado. Como um cão, lambeu ansiosamente a água, molhou o rosto e riu. Deus tinha ouvido suas preces desesperadas. Não os deixaria morrer de sede! Cada vez mais água escorria por baixo da porta e murmurava pelos três degraus, como uma bonita e pequena queda d’água. Amelie parou de rir e se ergueu.

— Agora chega de água, meu Deus — sussurrou, mas Deus não ouviu. A água continuou a correr, já formando uma grande poça no chão nu de cimento. Amelie começou a sentir o corpo inteiro tremer de medo. Nada desejara tão ardentemente quanto água, e agora esse desejo era realizado, mas de modo bem diferente do que havia esperado! Thies acordara. Estava sentado sobre o colchão, com os braços envolvendo os joelhos dobrados, e balançava o tronco para a frente e para trás. Ela refletiu febrilmente, foi até a estante e sacudiu-a. Estava enferrujada, mas parecia relativamente estável. Quem quer que a tenha trancado ali com Thies devia ter, com certeza, aberto o registro de água. Obviamente aquele cômodo era mais profundo do que o restante do porão. Não havia escoadouro no chão, e a pequena janela ficava logo abaixo do teto. Se a água continuasse a correr, em algum momento o quarto inundaria. Eles iriam morrer afogados como ratos! Descontrolada, Amelie olhou ao redor. Droga! Agora que tinha sobrevivido por tanto tempo, sem perder a cabeça nem morrer de fome ou de sede, não iria simplesmente permitir que morresse afogada! Inclinou-se sobre Thies e pegou energicamente seu braço.

— Levante-se! — disse com rigor. — Vamos, Thies! Me ajude a colocar o colchão em cima da estante!

Para sua surpresa, ele parou de se balançar para a frente e para trás e se levantou. Juntos, conseguiram levantar o pesado colchão até a última prateleira da estante. Talvez a água não subisse tanto; então, ali em cima, estariam seguros. E a cada hora crescia a probabilidade de que alguém os encontrasse. A água corrente ia acabar chamando a atenção de alguém — dos vizinhos, da central de abastecimento ou de quem quer que fosse! Amelie subiu na estante com cuidado, para que ela não caísse. Quando já estava no topo, estendeu a mão para Thies. O jeito era torcer para que aquela coisa velha e enferrujada aguentasse os dois! Pouco depois, ele já estava sentado ao seu lado, no colchão. Nesse meio-tempo, a água cobriu o chão do porão, afluindo com velocidade inalterada pela fresta da porta. Naquele momento, nada mais lhes restava além de esperar. Amelie deslocou seu peso e, com cuidado, esticou-se sobre o colchão.

— Pois é — disse em tom de humor negro. — Isso é que é ter os desejos realizados! Quando criança, eu sempre quis ter um beliche. Agora, finalmente tenho.

 

Beate Schneeberger conduziu Bodenstein e Pia à sala de jantar e lhes ofereceu cadeiras junto à mesa maciça, bem ao lado da imponente estufa de cerâmica, que irradiava um calor agradável. Os pequenos e numerosos cômodos do antigo casarão haviam sido transformados em um único e grande espaço, e das paredes intermediárias haviam restado apenas as traves de madeira. O resultado tinha um efeito moderno e, não obstante, surpreendentemente aconchegante.

— Por favor, esperem até meu marido chegar — disse a senhora Schneeberger. — Vou fazer um chá para nós.

Ela foi para a cozinha, que também era aberta em todos os lados. Bodenstein e Pia trocaram um olhar. Ao contrário dos Wagners, que se haviam arruinado com o desaparecimento da filha, o casal Schneeberger parecia ter conseguido continuar a viver com as feridas e recomeçar uma nova vida. As gêmeas deviam ter nascido depois do acontecimento.

Menos de cinco minutos depois, um homem alto, magro e de cabelos brancos, vestindo uma camisa xadrez e calças azuis de trabalho, entrou na sala de jantar. Albert Schneeberger estendeu a mão primeiro a Pia, depois a Bodenstein, e também estava controlado e sério. Esperaram a senhora Schneeberger servir o chá, depois Bodenstein lhes informou com cautela todos os detalhes. Albert Schneeberger estava em pé, atrás da cadeira de sua mulher e com as mãos levemente apoiadas sobre os ombros dela. A tristeza de ambos era perceptível, assim como o alívio por finalmente já não terem dúvida a respeito do paradeiro da filha.

— O senhor sabe quem a matou? — perguntou Beate Schneeberger.

— Não, ainda não temos certeza — respondeu Bodenstein. — Só sabemos que pode não ter sido Tobias Sartorius.

— Então ele foi condenado injustamente?

— Sim. É o que parece.

Por um momento, todos se calaram. Através das grandes janelas, Albert Schneeberger olhou pensativo para suas duas filhas, que escovavam em harmonia outro cavalo.

— Eu nunca deveria ter me deixado convencer por Terlinden a ir morar em Altenhain — disse de repente. — Tínhamos um apartamento em Frankfurt, mas procurávamos uma casa no campo, porque, na cidade, Stefanie estava prestes a se envolver com más companhias.

— De onde o senhor conhecia Claudius Terlinden?

— Na verdade, conhecia o irmão mais velho dele, Wilhelm. Tínhamos estudado juntos e, mais tarde, nos tornamos sócios. Depois que ele morreu, fiquei conhecendo Claudius. Minha empresa era fornecedora da dele. Entre nós se desenvolveu algo que eu, erroneamente, considerei amizade. O Terlinden nos alugou a casa que lhe pertencia e que era pegada à dele. — Albert Schneeberger suspirou profundamente e sentou-se ao lado da mulher. — Eu sabia que ele tinha grande interesse na minha empresa. O know-how e a nossa patente se adequavam perfeitamente ao seu conceito e eram importantes para ele. Na época, ele estava para converter sua empresa em uma sociedade anônima, a fim de entrar para a bolsa de valores. Em dado momento, ele me fez uma oferta. Havia alguns interessados. Na época, a concorrência era grande para Terlinden.

Fez uma pausa e provou do seu chá.

— Depois, nossa filha desapareceu. — Sua voz soou objetiva, mas não dava para deixar de perceber como era difícil para ele evocar os terríveis acontecimentos. — Terlinden e sua mulher foram muito atenciosos e compartilharam do nosso sofrimento. Amigos de verdade, como acreditamos no início. Eu mal tinha condições de cuidar do meu negócio. Procuramos Stefanie de todas as maneiras, nos engajamos em diversas organizações, no rádio, na televisão. Quando Terlinden me fez uma nova oferta, aceitei. Eu não estava nem aí para a empresa, só conseguia pensar na Stefanie; sempre tive a esperança de que ela fosse aparecer.

Pigarreou e tentou manter o controle. Sua mulher colocou a mão sobre a dele e a apertou levemente.

— Fizemos um acordo, estabelecendo que Terlinden não alteraria nada e manteria todos os funcionários — continuou Schneeberger após um instante. — Mas aconteceu justamente o contrário. Terlinden encontrou um ponto fraco nos contratos. Foi para a bolsa, despedaçou minha empresa, vendeu tudo o que não precisava e demitiu 80 dos 130 funcionários. Eu já não tinha como me defender. Foi... um horror. Todas aquelas pessoas, que eu conhecia tão bem, perderam o emprego de uma hora para outra. Nada disso teria acontecido se, na época, eu não estivesse com a cabeça tão quente.

Passou a mão pelo rosto.

— A Beate e eu decidimos deixar Altenhain. Ficou insuportável para nós morar bem ao lado desse... desse sujeito e conviver tão de perto com a sua falsidade. O modo como ele pressionava e manipulava as pessoas na sua empresa e no vilarejo, e tudo isso debaixo do manto da generosidade.

— O senhor acha que Terlinden poderia ter feito alguma coisa à sua filha, a fim de conseguir sua empresa? — perguntou Pia.

— Como vocês encontraram... o corpo da Stefanie no terreno dele, seria perfeitamente possível. — A voz de Schneeberger vacilou, e ele apertou os lábios com firmeza. — Para ser sincero, minha mulher e eu nunca conseguimos imaginar de fato que o Tobias tivesse feito alguma coisa. Mas depois apareceram todos aqueles indícios, as declarações. Em determinado momento, já não sabíamos em que deveríamos acreditar. Primeiro, suspeitamos de Thies. Ele vivia seguindo a Stefanie como uma sombra...

Desamparado, deu de ombros.

— Não sei se Terlinden iria tão longe — disse depois. — Mas ele se aproveitou da nossa situação sem pestanejar. Esse cara é um mentiroso e um especulador perverso, sem nenhum escrúpulo. Ele literalmente passa por cima de qualquer cadáver para conseguir o que quer.

 

O celular de Bodenstein tocou. Ele havia passado o volante para Pia e atendeu a ligação sem olhar o display. Ao ouvir inesperadamente a voz de Cosima, teve um sobressalto.

— Precisamos ter uma conversa — disse Cosima. — Uma conversa sensata.

— Não tenho tempo agora — respondeu Bodenstein. — Estamos no meio de um interrogatório. Ligo para você mais tarde.

Dito isso, simplesmente encerrou a conversa, sem sequer uma palavra de despedida. Nunca havia feito isso.

Ao deixarem o vale, o agradável brilho do sol desapareceu e uma neblina sombria e cinzenta voltou a cercá-los. Em silêncio, passaram por Glashütten.

— O que você faria no meu lugar? — perguntou Bodenstein de repente. Pia hesitou. Lembrou-se vivamente da decepção que tivera ao ficar sabendo do caso de Henning com a promotora pública Valerie Löblich, embora, na época, já fizesse mais de um ano que viviam separados. Mas Henning sempre negara, até Pia surpreendê-lo em flagrante com Löblich. Se o casamento deles já não tivesse terminado, isso teria sido motivo de separação. No lugar de Bodenstein, ela nunca mais conseguiria confiar em Cosima; afinal, ela realmente tinha mentido feio para ele. Além do mais, manter um caso era algo diferente de pular a cerca, que, sob certas circunstâncias, era até perdoável.

— Você deveria conversar com ela — sugeriu ao chefe. — Seja como for, vocês têm uma filha pequena. E 25 anos de casamento não devem, simplesmente, ser jogados fora.

— Que maravilha de conselho — respondeu Bodenstein, irônico. — Muito obrigado. E agora me diga o que pensa realmente.

— Quer mesmo saber?

— Claro. Do contrário, nem perguntaria.

Pia respirou fundo.

— Depois que uma coisa se quebra, não há como consertá-la. E mesmo que seja colada, nunca ficará inteira — disse ela. — Essa é minha opinião. Sinto muito se estava esperando outra coisa.

— Não estava. — Para a surpresa de Pia, Bodenstein até sorriu, embora não estivesse nada feliz. — Admiro muito sua sinceridade.

Seu celular tocou novamente. Desta vez, ele olhou antes no display, a fim de evitar outra surpresa.

— É Ostermann — disse, e atendeu. Ouviu durante alguns segundos e anuiu. — Ligue para a doutora Engel. Seria bom ela estar junto quando conversarmos com ele.

— Tobias?

— Não. — Bodenstein expirou profundamente. — O Secretário Estadual de Educação e Cultura apareceu e está esperando por nós com seu advogado.

 

Conversavam diante da porta da sala de interrogatório, para onde Bodenstein mandara levar Gregor Lauterbach e seu advogado. Ele não queria nenhuma atmosfera amigável e descontraída; a Lauterbach tinha de ficar claro que não poderia esperar nenhum tratamento especial.

— Como irá proceder com ele? — perguntou a superintendente, doutora Engel.

— Vou colocá-lo sob forte pressão — respondeu Bodenstein. — Já não temos tempo a perder. Faz uma semana que Amelie desapareceu, e, se quisermos encontrá-la ainda com vida, já não podemos tratar ninguém com luvas de pelica.

Nicola Engel anuiu. Entraram na sala sóbria, na qual uma parede era tomada por um grande vidro espelhado. À mesa, no centro, estavam sentados o Secretário Estadual de Educação e Cultura e seu advogado, que Bodenstein e Pia conheciam muito bem e que não era nada simpático. Quase sem exceção, o doutor Anders defendia personalidades envolvidas em homicídios dolosos e culposos. Não se incomodava em perder nos processos, pois o que cobiçava era ver seu nome na imprensa e, se possível, levar seus casos ao Supremo Tribunal de Justiça.

Gregor Lauterbach percebeu a gravidade da situação e mostrou-se disposto a colaborar. Pálido e visivelmente esgotado, contou com voz rouca o que acontecera em 6 de setembro de 1997. Naquela noite, ele se encontrara com sua aluna Stefanie Schneeberger no celeiro do sítio dos Sartorius, a fim de lhe deixar claro que não pretendia iniciar um relacionamento com ela. Em seguida, teria ido para casa.

— Na noite seguinte, fiquei sabendo que Stefanie e Laura Wagner tinham desaparecido sem deixar rastro — disse Lauterbach. — Alguém ligou para nós e contou que a polícia tinha a suspeita de que o namorado de Stefanie, Tobias Sartorius, teria matado as duas moças. Minha mulher encontrou na nossa lixeira um macaco hidráulico com manchas de sangue. Contei-lhe, então, que havia conversado com Stefanie, porque a noite inteira, durante a quermesse, ela havia me pressionado e dado em cima de mim. Para nós dois estava claro que Tobias tinha jogado o macaco hidráulico na nossa lixeira, depois de ter matado Stefanie por raiva. Daniela quis impedir que eu passasse a fazer parte dos boatos. Ela me disse que eu deveria enterrar o macaco hidráulico em algum lugar. Também não sei por que fiz isso, foi uma reação impensada, mas acabei jogando o macaco hidráulico na fossa dos Sartorius.

Bodenstein, Pia e Nicola Engel ouviram calados. O doutor Anders tampouco disse alguma coisa. Com os braços cruzados e os lábios franzidos, fitou, como que indiferente, o vidro espelhado.

— Eu... eu estava convencido de que Tobias tinha matado Stefanie — continuou Lauterbach. — Ele tinha nos visto juntos, e depois também terminou com ela. Ao jogar o macaco hidráulico na minha lixeira, ele estava querendo me tornar suspeito. Por vingança.

Bodenstein olhou severamente para ele.

— O senhor está mentindo.

— Não, não estou. —Nervoso, Lauterbach engoliu em seco. Seu olhar deslizou para seu advogado, que, no entanto, ainda estava mergulhado na observação de sua própria imagem no espelho.

— Soubemos, nesse meio-tempo, que Tobias Sartorius nada tinha a ver com o assassinato de Laura Wagner. — Bodenstein falava de maneira mais agressiva do que de costume. — Encontramos o corpo mumificado de Stefanie. Buscamos o macaco hidráulico no local onde conservamos as provas e o mandamos para o laboratório. Ainda é possível constatar as impressões digitais nele. Além disso, o médico-legista encontrou na vagina do corpo vestígios do DNA de outra pessoa. Esperma. Caso se verifique que se trata do seu, então o senhor realmente está em maus lençóis, senhor Lauterbach.

Gregor Lauterbach deslocava-se de um lado para outro da cadeira e, nervoso, passava a ponta da língua nos lábios.

— Que idade tinha Stefanie na época? — perguntou Bodenstein.

— 17.

— E que idade o senhor tinha?

— 27. — Lauterbach quase sussurrava. Suas bochechas pálidas enrubesceram, e ele abaixou a cabeça.

— O senhor teve ou não relação sexual com Stefanie Schneeberger em 6 de setembro de 1997?

Lauterbach ficou como que petrificado.

— O senhor está blefando — finalmente, seu advogado veio em seu auxílio. — A moça pode ter tido relação sexual com qualquer um.

— O que o senhor vestia na noite de 6 de setembro de 1997? — Bodenstein não se deixou desconcertar e não desviou o olhar de Lauterbach, que olhou para ele confuso e deu de ombros.

— Eu lhe digo. O senhor vestia calças jeans, uma camisa azul-clara, e, por baixo dela, uma camiseta verde da associação da quermesse e sapatos em tom marrom-claro.

— E o que isso tem a ver com o caso? — quis saber o advogado de Lauterbach.

— Veja. — Bodenstein não lhe deu atenção. Tirou da pasta as impressões feitas dos desenhos de Thies e colocou-as na frente de Lauterbach, uma após a outra. — Foi Thies quem fez estes desenhos. Ele foi testemunha ocular dos dois assassinatos, e esta foi sua maneira de se comunicar.

Bateu o dedo indicador sobre uma das figuras.

— Quem pode ser este aqui? — perguntou. Lauterbach fitou os desenhos e deu de ombros.

— Este é o senhor. Beijou Stefanie Schneeberger na frente do celeiro, depois teve relações sexuais com ela.

—Não — murmurou Gregor Lauterbach, com o rosto pálido. — Não, não, não é verdade, o senhor precisa acreditar em mim!

— O senhor era o professor dela — continuou Bodenstein, impassível. — Stefanie tinha uma relação de dependência com o senhor. O que fez é crime. E o senhor logo se deu conta disso. Deve ter temido que Stefanie falasse a respeito. Um professor que tem relações sexuais com uma aluna menor de idade acaba arruinado.

Gregor Lauterbach abanou a cabeça.

— O senhor matou Stefanie, jogou o macaco hidráulico na fossa e foi para casa. Lá, confessou tudo à sua mulher, que o aconselhou a ficar calado. Seu cálculo deu certo, ainda que não totalmente. A polícia, de fato, considerou Tobias assassino, ele foi preso e condenado. Só que houve um pequeno problema: o corpo de Stefanie havia desaparecido. Alguém devia ter observado o senhor e Stefanie.

Lauterbach continuava a abanar a cabeça.

— O senhor suspeitou que Thies soubesse de tudo. Para que ele ficasse de boca fechada, sua mulher, que é médica de Thies, ministrou regularmente drogas ao rapaz e o intimidou intensamente. Deu certo. Durante onze anos. Até Tobias Sartorius ser libertado da prisão. Por Andreas Hasse, seu conhecido e funcionário da K 11, o senhor ficou sabendo que estávamos interessados nos casos antigos e que até solicitamos os autos. Então o senhor incitou Hasse a tirar dos autos as atas do interrogatório.

— Não é verdade — sussurrou Lauterbach, com voz rouca. Gotas de suor brilhavam em sua testa.

— É sim — disse, então, Pia. — Hasse já confessou e, por isso, foi suspenso do serviço. Aliás, se o senhor não tivesse feito isso, agora não estaria sentado aqui.

— O que significa tudo isso? — interveio o doutor Anders. — Ainda que meu cliente tenha tido relações sexuais com sua aluna no passado, o crime de abuso já estaria prescrito há muito tempo.

— Mas o assassinato, não.

— Não matei Stefanie!

— Então por que convenceu o senhor Hasse a destruir as atas do interrogatório?

—Porque... porque eu... eu... eu pensei que seria melhor manter meu nome fora de tudo isso — admitiu Lauterbach. Ele suava tanto que o suor escorria por suas bochechas. — Posso beber alguma coisa?

Nicola Engel levantou-se sem dizer nada, saiu da sala e retornou pouco depois, com uma garrafa d’água e um copo. Colocou ambos na mesa, na frente de Lauterbach, e voltou a se sentar. Lauterbach abriu a garrafa, encheu o copo de água e bebeu-o de uma só vez.

— Onde está Amelie Fröhlich? — perguntou Pia. — E onde está Thies Terlinden?

— Como é que eu vou saber? — perguntou Lauterbach, em resposta.

— O senhor sabia que, na época, Thies havia observado tudo — respondeu Pia. — Além disso, ficou sabendo que Amelie estava interessada nos acontecimentos de 1997. Ambos representavam uma verdadeira ameaça para o senhor. Assim, não é muito difícil imaginar que o senhor tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento deles. No momento em que Amelie desapareceu, o senhor e Terlinden estavam exatamente onde ela foi vista pela última vez.

À luz forte dos tubos de néon, Gregor Lauterbach parecia um zumbi. Seu rosto brilhava de tanto suor, e ele esfregava nervosamente as palmas das mãos nas coxas, até seu advogado colocar a mão em seu braço.

— Senhor Lauterbach. — Bodenstein levantou-se, apoiou as mãos no tampo da mesa e inclinou-se. Seu tom ameaçador mostrou-se eficaz. — Vamos comparar seu DNA com aquele que foi encontrado na vagina de Stefanie Schneeberger. Se coincidirem, o senhor será responsabilizado pelo abuso de uma aluna menor de idade, independentemente do que seu advogado disser aqui quanto à prescrição. Com base nessa acusação, com toda a certeza o senhor deixará de ser Secretário Estadual de Educação e Cultura. Vou fazer de tudo para levá-lo ao tribunal, isso eu lhe prometo aqui e agora. O que a imprensa vai fazer quando descobrir que, por causa do seu silêncio, um rapaz inocente, que, ainda por cima, era ex-aluno seu, teve que passar dez anos na prisão, nem preciso lhe dizer!

Ele se calou, deixando suas palavras agir. O corpo inteiro de Lauterbach tremia. O que mais o estaria afligindo: a punição a ser esperada ou uma possível execução pública pela imprensa?

— Vou lhe dar mais uma chance esta noite — disse Bodenstein, então, com voz mais tranquila. — Talvez eu desista de fazer uma denúncia junto ao Ministério Público, caso o senhor nos ajude a encontrar Amelie e Thies. Pense a respeito e converse com seu advogado. Vamos fazer um intervalo agora. De dez minutos.

 

— Filho da puta — disse Pia, e, furiosa, observou Lauterbach através do vidro. — Foi ele. Foi ele que matou Stefanie. E agora também pegou Amelie, tenho absoluta certeza.

Não podiam ouvir o que Lauterbach conversava com seu advogado, pois o doutor Anders insistira para que o microfone fosse desligado.

— Junto com Terlinden. —Pensativo, Bodenstein franziu a testa e tomou alguns goles de seu copo d’água. — Mas como ele descobriu que Amelie podia saber de alguma coisa?

— Não faço ideia. — Pia deu de ombros. — Talvez Amelie tenha falado a Terlinden sobre os desenhos. Mas não, não creio.

— Eu também não. Está faltando uma peça. Deve ter acontecido alguma coisa que deixou Lauterbach com medo.

— Hasse? — sugeriu Nicola Engel do fundo.

— Não, ele não sabia nada sobre os desenhos — contestou Pia. — Aliás, quando os descobrimos, ele já havia sido suspenso.

—Hum. Então realmente está faltando uma ligação.

— Esperem um pouco — disse Bodenstein. — E quanto a Nadja von Bredow? Ela estava presente quando os rapazes violentaram Laura. E ela também aparece em segundo plano nos desenhos de Stefanie e Lauterbach.

Nicola Engel e Pia olharam para ele com expressão interrogativa.

— E se ela ficou o tempo todo no sítio? Ela não saiu com os rapazes para esconder Laura. E Nadja estava a par dos desenhos. O próprio Tobias contou a ela!

A doutora Engel e Pia entenderam no mesmo instante aonde Bodenstein queria chegar. Sabendo de tudo, teria Nadja von Bredow chantageado Lauterbach e o obrigado a tal ação?

— Vamos voltar. — Bodenstein jogou o copo no lixo. — Com isso, vamos pegá-lo.

 

A água subia. Centímetro após centímetro. Na última luz do dia, Amelie viu que havia chegado ao terceiro degrau. Sua tentativa de impedir que a água entrasse colocando um cobertor espesso no vão da porta só teve êxito até a pressão da água varrê-lo do local. Já estava bem escuro, mas ela ouvia o mesmo barulho intermitente nos canos. Em vão, tentou calcular quando a água chegaria à última prateleira. Thies estava deitado ao seu lado, ela conseguia sentir seu tórax subir e descer. Volta e meia ele tossia ofegante, e sua pele estava quente de febre; a umidade fria naquele buraco ia acabar com ele. Amelie se lembrou de que recentemente ele já parecera doente. Como ele iria escapar de tudo aquilo? Thies era tão sensível! Algumas vezes ela tentara conversar com ele, mas ele não lhe dera nenhuma resposta.

— Thies — sussurrou. Era difícil falar, pois seus dentes tremiam tanto que ela mal conseguia abrir a boca. — Thies, diga alguma coisa!

Nada. Então, finalmente ela perdeu a coragem. Seu férreo autocontrole, que nos últimos dias e nas últimas noites evitara que ela enlouquecesse na escuridão, tinha chegado ao fim. Ela desatou a chorar. Já não havia esperança. Iria morrer afogada ali dentro, de maneira terrível! A Branca de Neve também nunca fora encontrada. Por que ela teria mais sorte? O medo a dominou. De repente, teve um sobressalto. Sentiu um toque em suas costas. Thies abraçou-a, esticou a perna junto da sua e puxou-a para si. O calor que seu corpo irradiava a aqueceu.

— Chora não, Amelie — sussurrou em seu ouvido. — Chora não. Estou aqui.

 

— Como o senhor ficou sabendo da existência desses desenhos?

Bodenstein foi direto ao ponto. Com olhar seguro, conseguiu avaliar o estado de Gregor Lauterbach. O Secretário Estadual não era um homem muito forte, e a pressão o deixava suscetível. Depois dos acontecimentos exaustivos dos últimos dias, ele não aguentaria por muito tempo.

— Recebi cartas e e-mails anônimos — respondeu Lauterbach e, com um movimento fraco da mão, fez seu advogado se calar, quando este quis protestar. — Eu tinha perdido meu molho de chaves na noite em que estive no celeiro, e junto a uma das cartas havia uma foto dele. Então, logo entendi que alguém tinha visto Stefanie junto comigo.

— Fazendo o quê?

— O senhor sabe. — Lauterbach levantou o olhar, e Bodenstein leu em seus olhos nada além de autocompaixão. — A Stefanie me provocou o tempo todo. Eu... eu não queria ter... tido relação com ela, mas ela insistiu tanto que eu... simplesmente não consegui resistir.

Bodenstein esperou em silêncio, até Lauterbach continuar seu relato, choramingando.

— Quando... percebi que tinha perdido meu molho de chaves, quis procurá-lo. Minha mulher ia me matar, porque no molho também estavam as chaves do consultório dela!

Ele levantou o olhar, pedindo compreensão. Bodenstein precisou fazer um esforço para esconder seu desprezo crescente atrás de um semblante inexpressivo.

— Stefanie disse que era melhor eu ir embora. Ela ia procurar o molho e me entregar depois.

— E foi o que o senhor fez?

— Foi. Voltei para casa.

Por aquele momento, Bodenstein deu-se por satisfeito.

— Então o senhor recebeu cartas e e-mails — reiterou. — O que diziam eles?

— Que Thies sabia de tudo. E que a polícia não ficaria sabendo de nada se eu ficasse com a boca fechada.

— Sobre o que o senhor deveria ficar com a boca fechada?

Lauterbach levantou os ombros e abanou a cabeça.

— Quem o senhor acha que lhe escreveu essas cartas?

Mais uma vez, deu de ombros, desnorteado.

— Mas o senhor deve ter alguma suspeita! Senhor Lauterbach! — Bodenstein voltou a inclinar-se para a frente. — Calar agora é realmente a pior solução!

— Mas eu não faço a menor ideia! — respondeu Lauterbach com desespero desamparado, que, aparentemente, não era fingimento. Sem nenhum apoio e apertado contra a parede, ele se mostrava como realmente era: Gregor Lauterbach era uma pessoa fraca, que, sem a proteção da mulher, reduzia-se a um homenzinho sem fibra. — Eu realmente não sei de mais nada! Minha mulher me contou que deveria haver desenhos, mas que Thies não teria sido capaz de mandar os e-mails e as cartas.

— Quando o senhor lhe falou a respeito?

— Em algum momento. — Lauterbach apoiou a testa nas mãos e abanou a cabeça. — Já não sei direito.

— Tente se lembrar — insistiu Bodenstein. — Foi antes ou depois que Amelie desapareceu? E como sua mulher sabia a respeito? Quem pode ter contado a ela?

—Meu Deus, não sei! — lamentou-se Lauterbach. — Realmente não sei!

— Pense um pouco! — Bodenstein voltou a se recostar. — Na noite de sábado, quando Amelie desapareceu, o senhor foi jantar com sua mulher e o casal Terlinden no Ebony Club, em Frankfurt. Sua mulher e Christine Terlinden voltaram para casa por volta das nove e meia, e o senhor voltou com Claudius Terlinden. O que fizeram depois que deixaram o Ebony Club?

Gregor Lauterbach fez um esforço e pareceu entender que a polícia tinha muito mais informação do que ele imaginara.

— Bom, acho que, na ida a Frankfurt, minha mulher me contou que Thies tinha dado à filha do vizinho alguns desenhos, nos quais eu supostamente estava representado — admitiu a contragosto. — Tinha ficado sabendo disso à tarde, por uma mulher que ligou e não se identificou. Depois, já não tivemos nenhuma ocasião para conversar a respeito. Daniela e Christine foram embora às nove e meia. Perguntei a Andreas Jagielski sobre a Amelie Fröhlich; eu sabia que ela trabalhava no Corcel Negro. Jagielski ligou para sua mulher, que lhe confirmou que Amelie estava no trabalho. Então, Claudius e eu fomos até Altenhain e ficamos esperando pela moça no estacionamento do Corcel Negro. Mas ela não apareceu.

— O que vocês queriam saber da Amelie?

— Se tinha sido ela a autora das cartas e dos e-mails anônimos.

— E então? Tinha sido ela?

— Não consegui perguntar a ela. Ficamos esperando no carro, já era mais ou menos onze ou onze e meia. Então apareceu a Nathalie. Quer dizer, a Nadja. Nadja von Bredow é como ela se chama agora.

Bodenstein olhou rapidamente para Pia e encontrou o olhar dela.

— Ela deu uma volta ao redor do estacionamento — continuou Lauterbach —, deu uma olhada nos arbustos e, por fim, subiu até o ponto de ônibus. Só então nos demos conta de que havia um homem sentado ali. Nadja tentou acordar o homem, mas foi em vão. Por fim, foi embora de carro. Claudius ligou do celular para o Corcel Negro e perguntou por Amelie, mas a senhora Jagielski lhe disse que ela já tinha ido embora fazia tempo. Em seguida, Claudius e eu fomos até o escritório dele. Ele temia que, em breve, a polícia bisbilhotasse sua vida. Uma busca em sua casa não seria nada boa para ele; por isso, quis levar alguns documentos comprometedores para outro lugar.

— Que documentos? — perguntou Bodenstein.

Gregor Lauterbach resistiu um pouco, mas não por muito tempo. Durante alguns anos, Claudius Terlinden assegurara sua posição de poder à custa de suborno em larga escala. Embora sempre tivesse tido uma boa situação financeira, endinheirado mesmo ele havia ficado apenas no final dos anos 1990, quando expandira sua empresa e entrara para a bolsa de valores. Por essa razão, adquirira grande influência na economia e na política. Os melhores negócios, ele teria fechado com países contra os quais havia sido oficialmente imposto um embargo econômico, como o Irã e a Coreia do Norte.

— Naquela noite, ele queria dar um sumiço nesses documentos — disse Lauterbach, por fim. Como agora já não se tratava dele diretamente, voltou a adquirir autoconfiança. — Mas como não queria destruí-los, os levamos para o meu apartamento, em Idstein.

— Sei.

— Não tenho nada a ver com o desaparecimento de Amelie ou de Thies — afirmou Gregor Lauterbach. — E também não matei ninguém.

— Isso, nós vamos ver. — Bodenstein juntou os desenhos e colocou-os de volta na pasta. — O senhor pode ir para casa. Mas está sob vigilância policial, e vamos monitorar seu telefone. Além disso, peço que se mantenha à disposição. Em qualquer caso, avise-me quando sair de casa.

Lauterbach anuiu humildemente.

— Será que, pelo menos por enquanto, o senhor poderia manter meu nome longe da imprensa? — pediu.

— Mesmo com a melhor boa vontade, não posso lhe prometer isso. — Bodenstein estendeu-lhe a mão. — A chave do seu apartamento em Idstein, por favor.

 

Segunda-feira, 23 de novembro de 2008

Pia passara a noite em claro e já estava de pé quando, às 5h15, recebeu a ligação da equipe de vigilância: Nadja von Bredow teria acabado de voltar para seu apartamento em Westhafen, em Frankfurt. Sozinha.

— Estou indo agora mesmo — disse Pia. — Esperem por mim.

Jogou por cima da porta do boxe o feno que estava segurando embaixo do braço e guardou o celular. Não fora apenas esse caso que havia tirado seu sono. No dia seguinte, às 15h30, um funcionário do Departamento de Fiscalização de Obras da cidade de Frankfurt faria uma inspeção em Birkenhof. Se não retirassem a ordem de demolição, em breve, ela, Christoph e os animais não teriam onde morar.

Nos últimos dias, Christoph tinha se ocupado intensivamente do problema, e seu otimismo inicial logo desaparecera. Os proprietários que haviam vendido Birkenhof a Pia não lhe disseram que não era permitido construir no terreno onde estava a casa devido às linhas de alta tensão da MKW . Em algum momento após a guerra, o pai dos ex-proprietários erguera um barracão e, ao longo dos anos, sem nenhuma autorização, o reformara. Durante sessenta anos, ninguém havia percebido nada, até ela, sem saber da ilegalidade, apresentar um requerimento ao Departamento de Fiscalização de Obras. Pia ainda alimentou rapidamente as aves, depois ligou para Bodenstein. Como ele não atendeu, escreveu-lhe um SMS e voltou pensativa para casa, que, repentinamente, lhe pareceu estranha. Entrou no quarto na ponta dos pés.

— Vai ter de sair? — perguntou Christoph.

— Vou. Acordei você? — Ela acendeu a luz.

— Não. Também não consegui dormir. — Ele a observou, com a cabeça apoiada na mão. — Passei a noite pensando no que podemos fazer se eles executarem a ação.

— Eu também. — Pia sentou-se na beira da cama. — De todo modo, vou processar esses filhos da puta que, na época, me venderam o sítio. Eles usaram de má-fé para me enganar, não há dúvida!

— Mas primeiro precisamos provar isso ao pessoal da fiscalização — ponderou Christoph. — Vou conversar hoje com um amigo meu que entende do assunto. Antes disso, não dá para fazer nada.

Pia suspirou.

— Fico tão feliz que você esteja comigo — disse em voz baixa. — Não sei o que faria se estivesse sozinha agora.

— Se eu não tivesse aparecido na sua vida, nunca teríamos apresentado o requerimento para a construção, e isso não teria acontecido. — Christoph deu um sorriso maroto. — Não desanime agora. Vá para o trabalho e deixe que eu cuido disso, está bem?

— Está bem. — Pia conseguiu sorrir. Inclinou-se sobre Christoph e deu-lhe um beijo. — Infelizmente não tenho ideia da hora que vou voltar para casa hoje.

— Não se preocupe comigo. — Christoph também sorriu. — Tenho o que fazer no zoológico.

 

Ele reconheceu de longe a figura familiar. Ela estava sob a luz do poste, no estacionamento, ao lado do seu carro. Seu cabelo ruivo era a única mancha colorida na escuridão enevoada. Bodenstein hesitou por um momento antes de decidir ir ao seu encontro. Cosima não era mulher de aceitar que ele simplesmente desligasse o telefone na sua cara. Na verdade, ele deveria ter contado com o fato de que, cedo ou tarde, ela esperaria o momento oportuno para conversar com ele, mas o trabalho estava tomando muito do seu tempo. Por isso, ele se sentiu despreparado e em desvantagem.

— O que você quer? — perguntou asperamente. — Estou sem tempo agora.

— Você não retorna minhas ligações — respondeu Cosima. — Preciso conversar com você.

— Ah, assim, de repente? — Ficou em pé na frente dela, examinando seu rosto pálido e controlado. Seu coração batia com força, e só com muito esforço ele estava conseguindo permanecer calmo. — Durante semanas você não sentiu essa necessidade. Vá conversar com seu amigo russo, se estiver a fim de conversa.

Ele sacou a chave do carro, mas ela não saiu do lugar e permaneceu na frente da porta.

— Eu queria explicar a você... — começou ela. Bodenstein não a deixou terminar. Quase não havia dormido à noite e estava com pressa para ir embora; não tinha a menor condição de encarar uma conversa tão importante como aquela.

— Não quero ouvir — interrompeu-a. — E agora realmente estou sem tempo.

— Oliver, por favor, acredite: eu não queria magoá-lo! — Cosima estendeu-lhe a mão, mas a deixou cair quando ele recuou. A respiração dela pairava como uma nuvem branca no ar frio da manhã. — Eu não queria que as coisas tivessem ido tão longe, mas...

— Pare! — gritou ele subitamente. — Você me magoou, sim! Tanto como ninguém nunca me magoou! Não quero ouvir nenhuma desculpa nem justificativa de você, porque para mim tanto faz o que você disser; você acabou com tudo! Com tudo!

Cosima calou-se.

—Sabe-se lá quantas vezes você já me enganou, com essa prática toda com que você me iludiu e mentiu para mim — continuou com os dentes cerrados. — O que você aprontou em todas as suas viagens? Por quantas camas você passou enquanto o seu marido careta, babaca e ingênuo ficava comportado em casa com as crianças, esperando por você? Talvez você tenha até rido da minha cara por eu ter sido tão idiota em confiar em você!

Como uma lava venenosa, essas palavras jorraram de seu íntimo magoado; finalmente a decepção represada estava sendo descarregada. Impassível, Cosima suportou seu rompante.

— Provavelmente a Sophia nem é minha filha, mas de algum desses descabelados do cinema com quem você gosta tanto de andar e que não inspiram nenhuma confiança!

Ele se calou, como se tivesse percebido o quanto a crítica era ofensiva. Mas já que a tinha feito, não ia voltar atrás.

— Eu poderia colocar as duas mãos no fogo pelo nosso casamento — disse com voz reprimida. — Mas você mentiu para mim e me enganou. Nunca mais vou conseguir confiar em você.

Cosima encolheu os ombros.

— Eu já podia imaginar que você reagiria assim — respondeu friamente. — Com presunção e intransigência. Você vê toda a questão só do seu ponto de vista egoísta.

— E de que outro ponto de vista eu deveria vê-la? Daquele do seu amante russo, por acaso? — esbravejou. — A egoísta aqui é você! Durante vinte anos você não quis saber de mim e passou semanas inteiras fora. Nunca gostei disso, mas aceitei, porque o seu trabalho era parte de você. Depois você ficou grávida. Nem me perguntou se eu estava a fim de ter outro filho. Decidiu sozinha e me apresentou o fato consumado. Só que você sabia muito bem que, com uma criança pequena, já não ia poder viajar pelo mundo. Por puro tédio, você começou a ter um caso; e agora quer jogar na minha cara que eu é que sou o egoísta? Se tudo isso não fosse tão triste, eu estaria dando risada!

— Quando o Lorenz e a Rosi eram pequenos, eu consegui trabalhar mesmo assim. E na época você também assumiu a responsabilidade — objetou Cosima. — Mas não quero discutir com você. O que passou, passou. Cometi um grande erro, mas não vou ficar fazendo o mea-culpa até você se dispor a me perdoar.

— Então por que você veio? — O celular tocou e vibrou no bolso do seu sobretudo, mas ele não deu atenção.

— Depois do Natal, vou passar quatro semanas acompanhando a expedição do Gavrilow na rota do Mar do Norte — informou-lhe Cosima. — Nesse período, você vai ter de cuidar da Sophia.

Bodenstein fitou sua mulher boquiaberto, como se ela tivesse acabado de lhe dar um tapa na cara. Cosima não o tinha procurado para pedir desculpa, não; fazia tempo que ela havia tomado uma decisão sobre seu próprio futuro. Um futuro em que, pelo visto, para ele estava prevista unicamente a tarefa de cuidar do bebê. Seus joelhos ficaram moles como manteiga.

— Você não está falando sério — murmurou ele.

— Estou sim. Eu sabia que você não iria gostar disso. — Deu de ombros. — Sinto muito, sinceramente, que as coisas tenham se dado dessa maneira. Mas, nos últimos meses, pensei muito. Eu iria me arrepender até o resto da vida se não fizesse esse filme...

Ela continuou a falar, mas suas palavras já não chegavam até ele. O mais importante, ele tinha entendido: intimamente, ela o abandonara fazia muito tempo, livrando-se de sua vida em comum. Na verdade, ele nunca confiara inteiramente nela. Durante todos aqueles anos, acreditara que o temperamento totalmente oposto de ambos fosse algo especial em seu relacionamento, o sal na sopa, mas, naquele momento, ficou claro que eles simplesmente não combinavam. Seu coração se contraiu de maneira dolorosa.

E agora ela fazia o mesmo que tantas vezes antes: havia tomado uma decisão que ele teria de aceitar. Era ela quem determinava o rumo a ser tomado. Era ela quem tinha o dinheiro com o qual haviam comprado o terreno em Kelkheim e construído sua casa. Ele jamais teria condições de dispor daquela soma. Doía-lhe, mas, pela primeira vez, já não via em Cosima, naquela triste manhã de novembro, a companheira bonita, segura de si e dinâmica, mas apenas a mulher que impunha suas vontades e seus planos sem ter a menor consideração por ele. Como ele havia sido tolo e cego aquele tempo todo!

O sangue lhe subiu rapidamente. Ela havia parado de falar e olhava impassível para ele, como se estivesse esperando sua resposta. Ele piscou. O rosto dela, o carro, o estacionamento — tudo perdeu o contorno diante de seus olhos. Ela ia embora com outro homem. Ia viver sua vida, na qual já não havia lugar para ele. De repente, o ciúme e o ódio o dominaram. Deu um passo até ela e agarrou seu pulso. Assustada, ela quis escapar, mas ele apertou sua mão como uma morsa. Repentinamente, a superioridade fria de Cosima havia desaparecido. Amedrontada, ela arregalou os olhos e abriu a boca para gritar.

 

Às seis e meia, Pia decidiu ir sozinha ao apartamento de Nadja von Bredow. Bodenstein não estava atendendo ao celular nem respondendo aos SMS. Justamente quando ia apertar a campainha, a porta do prédio se abriu e um homem saiu. Pia e seus dois colegas à paisana, que tinham vigiado o prédio, passaram por ele.

— Parem! — O homem, meio grisalho, de cerca de 55 anos e com óculos de armação de chifre, colocou-se no caminho deles. — Aqui não se entra assim! Aonde querem ir?

— Não é da sua conta — respondeu Pia asperamente.

— É sim, senhora. — O homem postou-se na frente do elevador, cruzou os braços e examinou-a com arrogância. — Sou o síndico deste prédio. Aqui ninguém pode ir entrando assim.

— Somos da Polícia Criminal.

— Ah, é? Tem uma identificação?

Pia começou a ferver de raiva. Sacou seu distintivo e segurou-o na frente do nariz do homem. Sem dizer mais nada, dirigiu-se à escada.

— Espere aqui embaixo — disse a um dos colegas. — Nós dois vamos subir.

Mal chegaram à cobertura, a porta se abriu. Uma breve expressão de susto passou pelo semblante de Nadja von Bredow.

— Eu havia dito à senhora para esperar lá embaixo — disse de modo pouco gentil. — Mas, já que está aqui, pode ir descendo com as malas.

— Vai viajar? — Pia entendeu que Nadja von Bredow não a tinha reconhecido e a tomara pela motorista de táxi. — Mas acabou de chegar em casa.

— O que a senhora tem a ver com isso? — rebateu, irritada.

— Acho que muita coisa. — Pia mostrou-lhe o distintivo. — Pia Kirchhoff, da Polícia Criminal de Hofheim.

Nadja von Bredow examinou-a e apertou os lábios. Vestia um casaco marrom-escuro da marca Wellensteyn, com gola de pele, jeans e botas. Seus cabelos louros estavam presos em um coque perfeito, mas mesmo a maquiagem abundante não escondia as olheiras sob seus olhos vermelhos.

— Veio em má hora. Preciso correr para o aeroporto.

— Então vai ter de adiar seu voo — respondeu Pia. — Tenho algumas perguntas a fazer.

— Agora não tenho tempo para isso. — Apertou o botão do elevador.

— Onde estava? — perguntou Pia.

— Viajando.

— Sei. E onde está Tobias Sartorius?

Nadja von Bredow olhou surpresa para Pia, com seus olhos de um verde intenso.

— Como é que vou saber? — Sua surpresa parecia autêntica, mas não era por acaso que ela era uma das atrizes mais bem pagas da Alemanha.

— Porque depois do enterro de Laura Wagner a senhora foi embora com ele em vez de levá-lo até nós, para o interrogatório.

— Quem afirmou isso?

— O pai de Tobias. E então?

O elevador chegou, a porta se abriu deslizando. Nadja von Bredow virou-se para Pia e sorriu com ironia.

— Espero que não acredite em tudo o que aquele ali diz. — Olhou para o colega de Pia. — “A polícia, sua amiga e ajudante.” Poderia me ajudar a colocar minha bagagem no elevador?

Quando este realmente fez menção de pegar as malas, Pia ficou furiosa.

— Onde está Amelie? O que fez com a garota?

— Eu? — Nadja von Bredow arregalou os olhos. — Absolutamente nada! Por que deveria ter feito alguma coisa com ela?

— Porque Thies Terlinden deu a Amelie desenhos que comprovam claramente que a senhora não apenas estava presente quando sua amiga Laura foi violentada, como também presenciou a cena de sexo entre Gregor Lauterbach e Stefanie Schneeberger no celeiro dos Sartorius. Depois, a senhora matou Stefanie com um macaco hidráulico.

Para a surpresa de Pia, Nadja von Bredow começou a rir.

— De onde a senhora tirou esse absurdo?

Pia conseguiu se controlar apenas com muito esforço. Gostaria de ter agarrado a mulher e lhe dado uma bofetada.

— Seus amigos Jörg, Felix e Michael fizeram uma confissão — disse. — Laura ainda estava viva quando a senhora incumbiu os três de se livrarem dela. Deve ter ficado com medo que Amelie descobrisse a verdade por meio de Thies e dos desenhos dele. Por isso, era do seu interesse tirar a garota do caminho.

— Meu Deus. — Nadja permaneceu completamente impassível. — Nem um roteirista é capaz de imaginar um absurdo tão extraordinário como esse. Só vi essa Amelie uma vez e não sei onde ela está agora.

— Está mentindo. No sábado a senhora esteve no estacionamento do Corcel Negro e jogou a mochila de Amelie em um arbusto.

— É mesmo? — Nadja von Bredow olhou para Pia com as sobrancelhas levantadas, como se estivesse insuportavelmente entediada. — Quem disse isso?

— A senhora foi vista.

— Consigo fazer muita coisa — respondeu com sarcasmo —, mas estar em dois lugares ao mesmo tempo, ainda não. No sábado eu estava em Hamburgo, há testemunhas.

— Quem?

— Posso lhe dar o nome e o telefone.

— O que estava fazendo em Hamburgo?

— Trabalhando.

— Não é verdade. Seu empresário nos disse que a senhora não tinha nenhuma gravação naquela noite.

Nadja von Bredow olhou para seu relógio caro e fez cara de quem já estava cansada de perder tempo.

— Eu estava em Hamburgo, trabalhando como mediadora com meu colega Torsten Gottwald em um programa para cerca de quatrocentos convidados, que foi gravado pela NDR — disse ela. — Não posso lhe dar o número de telefone de todos os convidados, mas o do diretor, o de Torsten e de alguns outros, sim. Isso é suficiente para provar que, nesse período, eu não podia estar circulando em um estacionamento em Altenhain?

— Economize seu sarcasmo — rebateu Pia asperamente. — Escolha uma de suas malas que meu colega a levará até nosso automóvel.

— Ah, que ótimo. Agora a polícia também presta serviço como táxi.

— E até com muito prazer — respondeu Pia friamente. — Diretamente para a cela.

— Mas isso é ridículo! — Aos poucos, Nadja von Bredow pareceu entender que realmente estava em maus lençóis. Uma profunda ruga surgiu entre suas sobrancelhas cuidadosamente delineadas. — Tenho um compromisso importante em Hamburgo.

— Agora não tem mais. Está temporariamente detida.

— E por quê, se é que posso saber?

— Porque aquiesceu tacitamente à morte de Laura Wagner. — Pia sorriu com arrogância. — Certamente a senhora conhece esse crime dos seus roteiros. Chama-se isso de cumplicidade em assassinato.

 

Depois que os dois colegas à paisana puseram-se a caminho de Hofheim, com Nadja von Bredow sentada no banco traseiro do automóvel, Pia tentou, mais uma vez, falar com Bodenstein. Finalmente ele atendeu.

— Onde você está? — perguntou Pia, nervosa. Apertava o celular entre a orelha e o ombro enquanto afivelava o cinto de segurança. — Faz uma hora e meia que estou tentando falar com você! Nem precisa vir para Frankfurt. Acabei de prender Nadja von Bredow e de despachá-la para a delegacia.

Bodenstein respondeu alguma coisa, mas estava falando de modo tão confuso que ela não conseguiu entender.

— Não estou ouvindo — disse, irritada. — O que aconteceu?

— ...tive um acidente ... esperando o guincho... saída do pavilhão de exposições... posto de gasolina...

— Mais essa agora! Então espere aí. Vou buscá-lo.

Xingando, Pia encerrou a conversa e partiu. Tinha a sensação de estar completamente sozinha, justamente em um momento em que não podia se permitir nenhum erro nem perder o foco. Um mínimo descuido e o caso inteiro estaria perdido! Acelerou. No início daquela manhã de domingo, as ruas da cidade estavam desertas. Para chegar à estação central, cortando pelo bairro de Gutleut, e de lá até o pavilhão de exposições, levou menos de dez minutos, enquanto em um dia útil levaria meia hora. No rádio estava tocando uma música de Amy McDonald, que, anteriormente, Pia até gostava, mas que agora a deixava irritada, pois as emissoras a transmitiam a toda hora, até enjoar. Faltava pouco para as oito quando viu na pista contrária as luzes alaranjadas do guincho no cinza da manhã que se clareava. Os restos da BMW de Bodenstein estavam, justamente, sendo içados. Ela fez o retorno no trevo e, minutos depois, parou na frente do guincho e de uma viatura. Com o semblante pálido e os cotovelos nos joelhos, Bodenstein estava sentado no guard-rail e fitava o vazio.

— O que aconteceu? — perguntou Pia a um colega uniformizado, depois de se apresentar, e observou o chefe com o canto do olho.

— Parece que desviou de um animal — respondeu o policial. — O carro virou sucata, mas ele não sofreu nada. Seja como for, não quer ir para o hospital de jeito nenhum.

— Eu cuido dele. Muito obrigada.

Virou-se. O guincho pôs-se em movimento, mas Bodenstein nem sequer levantou a cabeça.

— Ei! — Pia ficou parada na frente dele. O que poderia lhe dizer? Ir para casa, onde quer que ela ficasse a essa altura, certamente ele não iria querer. Sem contar que, naquele momento, ele tampouco podia se ausentar do trabalho. Bodenstein deu um longo suspiro. Uma expressão de abandono estava estampada em seu rosto.

— Ela vai fazer uma volta ao mundo com ele, por quatro semanas, logo depois do Natal — disse de modo inexpressivo. — Seu trabalho é mais importante do que eu ou as crianças. Ela já tinha assinado o contrato em setembro.

Pia hesitou. Uma frase vazia como “tudo vai se arranjar” ou “bola pra frente!” seria totalmente inoportuna naquele momento. Ela realmente ficou com pena dele, mas o tempo urgia. Na delegacia, não apenas Nadja von Bredow, mas também todos os agentes disponíveis da Inspetoria Criminal Regional esperavam por eles.

— Venha, Oliver. — Embora ela tivesse preferido pegá-lo pelo braço e o arrastado até o carro, obrigou-se a ter paciência. — Não podemos ficar aqui, sentados no acostamento.

Bodenstein fechou os olhos e esfregou o polegar e o indicador na raiz do nariz.

— Faz 26 anos que me ocupo de homicídios e assassinos — disse com voz rouca. — Mas nunca consegui imaginar direito o que leva uma pessoa a matar outra. Hoje de manhã, pela primeira vez, entendi como é. Acho que eu a teria esganado no estacionamento há pouco se meu pai e meu irmão não tivessem interferido.

Abraçou o próprio tronco como se estivesse com frio e olhou para Pia com os olhos vermelhos.

— Nunca me senti tão mal em toda a minha vida.

 

Na sala de reuniões mal cabiam todos os agentes que Ostermann havia convocado na Inspetoria Criminal Regional. Como após o acidente Bodenstein não parecia ter condições de assumir a condução da operação, Pia tomou a palavra. Pediu silêncio, esboçou a situação, enumerou os fatos e lembrou os colegas da máxima prioridade, que era encontrar Amelie Fröhlich e Thies Terlinden. Na ausência de Behnke, ninguém questionou a autoridade de Pia, todos ouviram com atenção. O olhar de Pia pousou sobre Bodenstein, que estava bem no fundo da sala, encostado na parede, ao lado da superintendente da Polícia Criminal, a doutora Engel. Pia havia ido ao posto de gasolina, buscar um café para ele, e despejara no copo uma garrafinha de conhaque. Ele bebera sem protestar e agora parecia um pouco melhor. Mesmo assim, aparentemente, ainda estava em estado de choque.

— Os principais suspeitos são Gregor Lauterbach, Claudius Terlinden e Nadja von Bredow — disse Pia, aproximando-se da tela na qual Ostermann havia projetado um mapa de Altenhain e da redondeza. — Os três são os que mais têm a perder se for descoberto o que de fato aconteceu em Altenhain no passado. Naquela noite, Terlinden e Lauterbach vieram dessa direção. — Ela apontou para Feldstraße. — Antes, estiveram em Idstein, mas já revistamos a casa. Agora vamos nos concentrar no Corcel Negro. O proprietário e sua mulher estão mancomunados com Terlinden; é totalmente concebível que tenham feito algum favor a ele. Possivelmente, Amelie nem chegou a deixar o restaurante. Além disso, todas as pessoas que moram ao redor do estacionamento devem ser interrogadas. Kai, as ordens de prisão estão prontas?

Ostermann fez que sim.

— Ótimo. Jörg Richter, Felix Pietsch e Michael Dombrowski serão trazidos até aqui; Kathrin e seu colega da patrulha cuidarão disso. Duas duplas falarão ao mesmo tempo com Claudius Terlinden e com Gregor Lauterbach. Temos ordem de prisão para os dois.

— Quem vai até Lauterbach e Terlinden? — perguntou um dos agentes.

— O inspetor-chefe Bodenstein e a superintendente da Polícia Criminal, a doutora Engel, vão cuidar de Lauterbach — respondeu Pia. — Eu vou até o Terlinden.

— Com quem?

Boa pergunta. Já não se podia contar com Behnke nem com Hasse. Pia observou a fileira de rostos dos colegas que estavam sentados à sua frente, então decidiu.

— O Sven me acompanha.

Surpreso, o mencionado colega do departamento 21 arregalou os olhos e apontou interrogativo o dedo para si mesmo. Pia confirmou.

— Mais alguma pergunta?

Não havia mais perguntas. A reunião se encerrou em meio ao murmúrio de vozes e ao recuo das cadeiras. Pia abriu caminho até Bodenstein e Nicola Engel.

— Tudo bem eu tê-la convocado para a operação? — Pia quis saber.

— Sim, claro. — A superintendente confirmou com a cabeça, depois, puxou Pia de lado.

— Por que escolheu o inspetor Jansen?

— Me ocorreu espontaneamente. — Pia deu de ombros. — Ouvi muitas vezes o chefe dele dizer que estava muito satisfeito com Sven.

Nicola Engel anuiu. Em outras circunstâncias, a expressão insondável em seus olhos teria feito Pia duvidar de sua escolha, mas, naquele momento, não havia tempo para isso. O inspetor Sven Jansen dirigiu-se até eles. Enquanto desciam, Pia explicou-lhe rapidamente o que esperava dos dois interrogatórios simultâneos de ambos os suspeitos e como pretendia proceder. No estacionamento, separaram-se. Bodenstein reteve Pia por um momento.

— Belo trabalho — disse apenas. — E... obrigado.

 

Bodenstein e Nicola Engel esperaram em silêncio no carro até receberem a ligação de Pia, avisando que ela e Jansen já estavam diante da casa de Terlinden. Em seguida, desceram do carro e tocaram a campainha na casa de Lauterbach, no mesmo segundo em que Pia e Jansen batiam à porta de Terlinden. Demorou um pouco até Gregor Lauterbach vir abrir. Ele vestia um roupão atoalhado, ostentando no bolso peitoral o logotipo de uma rede internacional de hotéis.

— O que querem? — perguntou examinando-os com os olhos inchados. — Já disse tudo a vocês.

— Gostamos de perguntar várias vezes — respondeu Bodenstein educadamente. — Sua esposa não está em casa?

— Não. Está em um congresso, em Munique. Por quê?

— Por nada.

Nicola Engel continuava com o celular na orelha, acenando com a cabeça para Bodenstein. Naquele meio-tempo, Pia e Sven também estavam no hall da mansão de Terlinden. Conforme combinado, Bodenstein fez ao Secretário Estadual de Educação e Cultura a primeira pergunta.

— Senhor Lauterbach — começou —, trata-se novamente da noite em que o senhor e seu vizinho esperaram por Amelie no estacionamento do Corcel Negro.

Lauterbach anuiu inseguro com a cabeça. Seu olhar deslocou-se para Nicola Engel. Pareceu irritado por ela estar ao telefone.

— O senhor viu Nadja von Bredow.

Lauterbach anuiu novamente.

— Tem absoluta certeza?

— Sim, tenho.

— Como reconheceu a senhora von Bredow?

— Eu... eu não sei. Já a conheço.

Nervoso, engoliu em seco quando Nicola passou o celular para Bodenstein, que leu rapidamente o SMS escrito por Sven Jansen. Ao contrário de Lauterbach, Claudius Terlinden não teria visto ninguém em especial naquele sábado à noite no estacionamento na frente do Corcel Negro. Várias pessoas teriam entrado no restaurante, outras teriam saído. Além disso, teria visto um vulto no ponto de ônibus, mas não reconheceu a pessoa.

— Bem. — Bodenstein respirou fundo. — Talvez o senhor e Terlinden devessem ter combinado o que iriam dizer. Ao contrário do senhor, Terlinden afirma não ter reconhecido absolutamente ninguém.

Lauterbach ficou vermelho. Gaguejou por um momento, insistiu em ter visto Nadja von Bredow, quis até jurar.

— Naquela noite, ela estava em Hamburgo — interrompeu-o Bodenstein. Gregor Lauterbach tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Amelie, disso ele tinha certeza quase absoluta. Mas, ao mesmo tempo, estava novamente em dúvida. E se Nadja von Bredow tivesse mentido? Teriam ambos, juntos, tirado o perigo potencial do caminho? Ou teria sido Claudius Terlinden a mentir? Os pensamentos giravam na cabeça de Bodenstein que, de repente, se sentiu tomado pela desoladora certeza de ter deixado passar alguma coisa extremamente importante. Seu olhar encontrou o de Nicola Engel, que olhou para ele de maneira interrogativa. Que diabos ele ia mesmo dizer? Como se tivesse percebido sua insegurança, a superintendente tomou a palavra.

— Está mentindo, senhor Lauterbach — disse friamente. — Por quê? Por que acha que era justamente Nadja von Bredow quem estava no estacionamento?

— Não digo mais nada sem meu advogado. — Lauterbach estava com os nervos à flor da pele, enrubescia e empalidecia alternadamente.

— Está no seu direito. — A doutora Nicola Engel anuiu. — Mande-o ir para Hofheim. Vamos levá-lo conosco.

— Não podem me prender — protestou Lauterbach. — Tenho imunidade.

O celular de Bodenstein tocou. Era Kathrin Fachinger. Parecia estar à beira de um ataque histérico.

— ...não sei o que devo fazer! De repente ele estava com uma arma na mão e atirou na própria cabeça! Merda, merda, merda! Está todo mundo louco aqui!

— Kathrin, fique calma! — Bodenstein virou-se enquanto Nicola Engel apresentava a Lauterbach a ordem de prisão. — Onde você está agora?

Ao fundo, ouviu gritos e tumulto.

— Íamos prender Jörg Richter. — A voz de Kathrin Fachinger tremia. Ela estava totalmente estressada com a situação, que, pelo visto, saía do controle. — Viemos até a casa dos seus pais e lhe mostramos a ordem de prisão. E, de repente, o pai foi até uma gaveta, pegou uma pistola, colocou-a na cabeça e apertou o gatilho! E agora a mãe está com a pistola na mão e quer nos impedir de levar o filho! O que devo fazer?

O pânico na voz de sua colega mais jovem arrancou Bodenstein de sua própria confusão. De repente, seu cérebro voltou a funcionar.

— Não faça nada, Kathrin — disse ele. — Em poucos minutos estarei aí.

 

A Hauptstraße, em Altenhain, estava bloqueada. Diante da loja dos Richters havia duas ambulâncias com giroflex ligados, e várias viaturas estavam atravessadas. Curiosos se apertavam atrás dos cordões de isolamento. Bodenstein encontrou Kathrin Fachinger no quintal. Ela estava sentada em um degrau da escada, que dava para a porta da casa, atrás da loja. Pálida como cera, parecia incapaz de se mover. Ele tocou levemente em seu ombro e assegurou-se de que ela não estava ferida. No interior da casa reinava o caos total. O médico da emergência e o socorrista cuidavam de Lutz Richter, que jazia em uma poça de sangue no chão ladrilhado do vestíbulo; outro médico se ocupava de sua mulher.

— O que aconteceu? — quis saber Bodenstein. — Onde está a arma?

— Aqui. — Um agente da patrulha entregou-lhe um saco plástico. — Uma pistola de alarme. O homem ainda está vivo. A mulher está em estado de choque.

— Onde está Jörg Richter?

— A caminho de Hofheim.

Bodenstein olhou ao redor. Pelo vidro decorativo de uma porta, que estava fechada, viu indistintamente o laranja e branco dos uniformes dos socorristas. Abriu a porta e, por um momento, paralisou-se ao ver a sala. O cômodo estava atolado até o teto; nas paredes estavam pendurados troféus de caça e toda sorte de objetos militares: sabres, fuzis históricos, elmos e armas; no aparador, no armário aberto, na mesa de centro, em várias mesinhas de canto e no chão havia pilhas de baixelas de estanho, jarras para vinho de maçã e tanta tralha que ele logo perdeu o fôlego. Margot Richter estava sentada em uma poltrona aveludada com expressão apática e soro injetado na veia do braço. Ao seu lado estava uma socorrista, que segurava a bolsa com o medicamento.

— Ela está em condições de falar? — Bodenstein quis saber. O médico da emergência fez que sim.

— Senhora Richter. — Bodenstein agachou-se na frente dela, o que, em vista das quinquilharias espalhadas ao redor, não era tarefa muito fácil. — O que aconteceu aqui? Por que seu marido fez isso?

— Não podem prender meu menino — murmurou a senhora Richter. Toda a energia e a maldade pareciam ter abandonado seu corpo magro; seus olhos estavam encovados. — Ele não fez nada.

— Então, quem fez?

— Meu marido é que é o culpado de tudo. — Seu olhar vagou de um lado para o outro, passou rapidamente por Bodenstein e voltou a perder-se ao longe. — O Jörg queria ir buscar a moça, mas meu marido disse que era para ele deixar como estava, que seria melhor assim. Então, ele foi até lá, fechou o tanque com uma placa e jogou terra por cima.

— Por que ele fez isso?

— Para que finalmente houvesse paz. A Laura ia arruinar a vida do menino; na verdade, não tinha acontecido nada, foi só uma brincadeira.

Bodenstein não estava acreditando no que estava ouvindo.

— Aquela piranha queria denunciar os amigos, ir à polícia. Mas ela mesma foi culpada. Ficou a noite toda provocando os meninos. — Passou diretamente do passado para o presente. — Tudo estava indo bem, mas o Jörg tinha de contar para todo mundo o que havia acontecido na época! Um verdadeiro imbecil!

— Seu filho tem consciência — rebateu Bodenstein friamente e se levantou. Toda compaixão pela mulher se apagara dentro dele. — Nada estava indo bem; ao contrário! O que seu filho fez não foi um mero pecadilho. Estupro e cumplicidade em assassinato são crimes graves.

— Ah! — Margot Richter fez um gesto de desprezo com a mão e abanou a cabeça. — Ninguém mais tocou nessa história antiga — disse, amargurada. — Além do mais, eles ficaram com medo só porque o Tobias reapareceu. Nada teria acontecido se tivessem ficado de boca fechada, esses... Esses covardes!

 

Nadja von Bredow anuiu com indiferença quando Pia lhe comunicou que seu álibi para a noite de sábado havia sido verificado e estava correto.

— Ótimo. — Lançou um olhar para o relógio. — Então posso ir agora.

— Não, ainda não. — Pia abanou a cabeça. — Ainda temos algumas perguntas.

— Então, comece logo. Com seus grandes olhos, Nadja olhou entediada para Pia, como se apenas a muito custo conseguisse reprimir um bocejo. Não parecia nem um pouco nervosa, e Pia não conseguiu evitar a impressão de que ela estava representando um papel. Como seria a verdadeira Nathalie, que se escondia por trás da fachada bonita e perfeita da personagem Nadja von Bredow? Será que ainda existia?

— Por que pediu a Jörg Richter que convidasse Tobias para ir à casa dele à noite e fizesse com que ele permanecesse ali o maior tempo possível?

— Eu estava preocupada com o Tobi — respondeu Nadja simplesmente. — Ele não tinha levado o ataque no celeiro realmente a sério. Eu só queria vê-lo em segurança.

— É mesmo? — Pia folheou a pasta e procurou até encontrar a transcrição que Ostermann fizera do diário de Amelie. — Quer ouvir o que Amelie escreveu sobre a senhora nos últimos registros de seu diário?

— A senhora vai ler de todo jeito mesmo. — Nadja revirou os olhos e cruzou as longas pernas.

— É verdade. — Pia sorriu. — “... Achei estranho o jeito como essa loura acabou de se atirar nos braços do Tobias. E o modo como ela me olhou! Totalmente enciumada, como se quisesse me devorar. Thies entrou em pânico quando mencionei o nome ‘Nadja’. Tem alguma coisa errada com ela...”

Pia levantou o olhar.

— Não era conveniente para a senhora que Amelie tivesse tanta intimidade com Tobias — disse Pia. — A senhora usou Jörg Richter como sentinela, depois tratou de sumir com Amelie.

— Que absurdo! — O sorriso indiferente tinha desaparecido do rosto de Nadja. Subitamente, seus olhos começaram a lançar faíscas de raiva. Pia lembrou-se da observação de Jörg Richter de que, mesmo quando garota, Nadja tinha algo em si capaz de instilar medo nas pessoas. Ele a descrevera como alguém sem escrúpulos.

— A senhora estava com ciúme. — Pia conhecia o conteúdo do diário de Amelie. — Talvez Tobias tenha lhe contado que Amelie volta e meia ia procurá-lo. Acho que a senhora simplesmente teve medo de que se passasse alguma coisa entre Tobias e Amelie. Honestamente, senhora von Bredow, Amelie é a cara da Stefanie Schneeberger. E Stefanie foi o grande amor da vida dele.

Nadja von Bredow inclinou-se um pouco para a frente.

— E o que a senhora sabe sobre “grande amor”? — sussurrou com voz dramaticamente baixa e os olhos bem abertos, como se tivesse recebido uma instrução de encenação. — Amo Tobias desde que nos conhecemos. Esperei por ele durante dez anos. Ele precisava da minha ajuda e do meu amor para retomar a vida depois de sair da prisão.

— Aí é que a senhora se engana. Aparentemente, seu amor não se pautou na reciprocidade — espicaçou Pia e, com satisfação, viu que suas palavras haviam acertado o alvo. — Se não conseguiu confiar nele nem por 24 horas.

Nadja von Bredow comprimiu os lábios. Seu belo rosto desfigurou-se por uma fração de segundo.

— Minha relação com o Tobias não lhe diz respeito — respondeu bruscamente. — Para que toda essa droga de interrogatório sobre a noite de sábado? Eu não estava lá e não sei onde está essa garota. Fim de papo.

— E onde está seu grande amor neste momento? — continuou Pia a perguntar.

— Não faço ideia. — Sem piscar, seus olhos verdes e chamejantes fitaram Pia. — Eu o amo, mas não sou sua babá. Então, posso ir?

Pia começou a ficar decepcionada. Ela não podia provar a Nadja von Bredow sua participação no desaparecimento de Amelie.

— A senhora se fez passar por uma policial na casa da senhora Fröhlich — Bodenstein tomou a palavra ao fundo. — Isso se chama usurpação de função pública. A senhora roubou os desenhos que Thies tinha dado a Amelie. E, mais tarde, incendiou a estufa para se assegurar de que já não haveria outros desenhos.

Nadja von Bredow não olhou para Bodenstein.

— Admito que usei o distintivo da polícia e a peruca do figurino para poder encontrar os desenhos no quarto da Amelie. Mas não fui eu que causei o incêndio.

— O que fez com os desenhos?

— Cortei em pedacinhos e passei na fragmentadora de papel.

— Claro. Porque os desenhos a revelariam como assassina. — Pia tirou da pasta as reproduções fotográficas dos desenhos e colocou-as sobre a mesa.

— Muito pelo contrário. — Nadja von Bredow recostou-se e sorriu friamente. — Os desenhos provam minha inocência. O Thies realmente é um observador fantástico. Ao contrário de vocês.

— Por quê?

— Para vocês, todo verde é igual. E todo cabelo curto é igual. Observem melhor a pessoa que ataca a Stefanie. Comparem com a pessoa que assistiu à Laura sendo violentada. — Ela se inclinou, observou rapidamente os desenhos e bateu com o dedo sobre uma das figuras. — Aqui, vejam. A pessoa com a Stefanie tem nitidamente cabelos escuros, e se vocês olharem para esse desenho com a Laura, os cabelos são bem mais claros e cacheados. Além disso, preciso explicar a vocês que naquela noite, em Altenhain, quase todo mundo estava vestindo uma camiseta verde da associação paroquial. Havia uma frase escrita nela, se bem me lembro.

Bodenstein comparou os dois desenhos.

— A senhora está certa — concordou. — Mas, então, quem é a outra pessoa?

— Lauterbach — afirmou Nadja Von Bredow, confirmando o que, de todo modo, Bodenstein já achava. — Fiquei esperando pela Stefanie no pátio, atrás do celeiro, porque queria conversar de todo jeito com ela por causa do papel da Branca de Neve. Ela não estava nem aí para o papel; só fez aquilo para poder passar mais tempo com o Lauterbach, também oficialmente.

— Espere — Bodenstein a interrompeu. — O senhor Lauterbach nos disse que só teve relações sexuais com Stefanie uma vez. E justamente naquela noite.

— Ele mentiu. — Nadja esbravejou. — Os dois tiveram um caso, durante o verão inteiro, embora, oficialmente, ela estivesse com o Tobi. O Lauterbach era completamente louco por ela, e ela achava isso o máximo. Então, eu estava perto do celeiro quando a Stefanie saiu da casa dos Sartorius. Justamente quando eu ia falar com ela, o Lauterbach apareceu. Eu me escondi no celeiro e não acreditei quando vi os dois entrarem e se empurrarem até o feno, a menos de um metro do meu esconderijo. Não tive como sair e precisei assistir a tudo por uma boa meia hora. E ouvi-los falar mal de mim.

— Então a senhora ficou com tanta raiva que acabou matando Stefanie — supôs Bodenstein.

— Nada disso. Não dei um pio. De repente, o Lauterbach se deu conta de que tinha perdido o molho de chaves enquanto transava. Ficou histérico e começou a procurar por toda parte, engatinhando, e por pouco não chorou. A Stefanie riu da cara dele. Então ele ficou uma fera. — Nadja von Bredow riu, maldosa. — Ele morria de medo da mulher; de todo modo, era ela quem tinha grana e que era a dona da casa. Ele não passava de um professorzinho fraco, libidinoso, que bancava o importante na frente dos alunos. Em casa, ele não mandava nada!

Bodenstein precisou engolir em seco. A situação lhe era bem familiar. Era Cosima quem tinha dinheiro, e ele não mandava grande coisa. E, naquela manhã, ao se dar conta disso, quis matá-la.

— Uma hora a Stefanie se encheu. Ela tinha imaginado tudo bem mais romântico e percebeu que babaca medroso era o seu grande amante na realidade. Sugeriu a ele que fosse buscar a mulher para ajudá-lo a procurar. Claro que disse isso de gozação, mas o Lauterbach já não estava para brincadeira. A Stefanie achou que tinha o controle da situação. Provocou-o cada vez mais e ameaçou revelar o caso dos dois, até que ele perdeu a cabeça. Quando ela quis sair do celeiro, ele a segurou. Eles lutaram, ela cuspiu nele, e ele deu um tapa nela. Então, Stefanie ficou furiosa, e Lauterbach entendeu que ela estava mesmo disposta a contar tudo e ir até sua mulher. Ele pegou o primeiro objeto que viu pela frente e bateu nela. Três vezes.

Pia anuiu. A múmia de Stefanie Schneeberger tinha três fraturas no crânio. Contudo, isso ainda não era uma prova da inocência de Nadja, pois poderia se tratar daquilo que ela própria tinha feito.

— Então, ele saiu correndo, como se tivesse sido picado por uma caranguejeira. Aliás, saiu com uma camiseta verde. A camisa bacana de jeans ele tinha tirado quando estava transando. Encontrei o molho de chaves. E, quando saí do celeiro, o Thies estava agachado no chão, ao lado da Stefanie. “Cuide bem da sua querida Branca de Neve”, eu disse para ele e fui embora. Joguei o macaco na lixeira do Lauterbach. Foi exatamente assim que aconteceu, nem mais, nem menos.

— Então a senhora sabia que Tobias não tinha matado Laura nem Stefanie — constatou Pia. — Como pôde deixar que ele fosse para a prisão se o amava tanto?

Nadja von Bredow não respondeu de imediato. Estava sentada, rígida, seus dedos brincavam com uma das reproduções fotográficas.

— Na época, eu estava furiosa com ele — disse, por fim, em voz baixa. — Durante anos, tive de ouvir o que ele havia conversado e feito com uma e outra, como estava apaixonado ou não mais. Me pedia conselhos para saber qual a melhor maneira de levar as garotas para a cama ou se livrar delas. Eu era sua melhor amiga, imagine!

Desatou a rir, com amargura.

— Como mulher, eu não lhe interessava. Era como uma irmã para ele. Depois, ele começou a namorar a Laura, que não queria que eu estivesse junto quando iam ao cinema, à piscina ou às festas. Eu era a quinta roda do carro, e Tobi nem percebeu isso!

Nadja von Bredow comprimiu os lábios, e seus olhos ficaram marejados de lágrimas. De repente, voltou a ser a moça magoada e ciumenta, a tapa-buraco que, como confidente do rapaz mais legal do vilarejo, não tinha nenhuma perspectiva de algum dia ganhá-lo para si. Apesar de todo o sucesso que ela celebrara desde então, suas decepções haviam deixado cicatrizes em sua alma, que ela iria carregar pela vida inteira.

— E, de repente, apareceu essa Stefanie. — Sua voz soou inexpressiva, mas seus dedos, que haviam rasgado uma das fotos em pedacinhos, mostravam como estava seu íntimo. — Ela se meteu na nossa turma, tomou o Tobi para ela. De repente, tudo estava mudado. E depois ela também virou a cabeça do Lauterbach e recebeu o papel da Branca de Neve que ele tinha me prometido. Com Tobi já não dava para conversar. Ele não queria saber de mais ninguém; para ele só existia Stefanie, Stefanie, Stefanie!

O rosto de Nadja adquiriu uma expressão de ódio, e ela abanou a cabeça.

— Nenhum de nós podia imaginar que a polícia fosse tão imbecil e que Tobi pudesse ser realmente condenado. Achei que ele bem merecia umas semanas na prisão preventiva. Quando percebi que iam instaurar um processo contra ele, já era tarde demais para dizer alguma coisa. Todos nós tínhamos mentido muito e nos calado. Mas nunca o abandonei. Escrevi para ele regularmente e esperei por ele. Quis reparar tudo, sim, quis fazer tudo por ele. E impedi-lo de voltar para Altenhain, mas ele foi tão cabeça-dura!

— A senhora não quis impedi-lo — observou Bodenstein —, a senhora tinha de impedi-lo. Pois poderia acontecer de ele descobrir seu papel nessa triste peça. E era exatamente o que não deveria acontecer. A senhora bancou a amiga fiel dele.

Nadja von Bredow sorriu com frieza e se calou.

— Mas Tobias foi à casa do pai — continuou Bodenstein. — A senhora não pôde impedi-lo. E depois ainda surgiu Amelie Fröhlich, que, por ironia do destino, se parece com Stefanie Schneeberger.

— Essa garota imbecil foi meter o nariz onde não era chamada — esbravejou Nadja, furiosa. — Em algum lugar do mundo, Tobi e eu teríamos começado uma vida nova. Tenho dinheiro suficiente. Em algum momento, Altenhain seria apenas uma má recordação.

— E a senhora nunca diria a verdade a ele. — Pia abanou a cabeça. — Que ótima base para um relacionamento.

Nadja não se dignou a olhar para ela.

— A senhora viu em Amelie uma ameaça — disse Bodenstein. — Então escreveu as cartas e os e-mails anônimos para Lauterbach. Pois podia contar com o fato de que ele faria alguma coisa para se proteger.

Nadja von Bredow deu de ombros.

— Com isso, acabou causando algo terrível.

— Eu queria impedir que o Tobias se magoasse — afirmou ela. — Ele já sofreu demais, e eu...

— Conversa fiada! — interrompeu-a Bodenstein. Aproximou-se da mesa e sentou-se na frente dela, de maneira que ela não tinha como não olhar para ele. — A senhora quis impedir que ele descobrisse o que houve antigamente, ou melhor, o que fez! A senhora teria sido a única que poderia livrá-lo da condenação e da prisão, mas não fez isso. Por vaidade ferida, por ciúme infantil. A senhora viu como a família dele foi humilhada e aniquilada no vilarejo, mas foi por puro egoísmo que roubou dez anos da vida do seu grande amor, só para que um dia ele pertencesse inteiramente à senhora. Realmente, esse é o motivo mais torpe que já vi em toda a minha vida!

— O senhor não entende! — objetou Nadja von Bredow com repentina amargura. — O senhor não faz ideia de como é ser constantemente rejeitada!

— E agora ele a rejeitou de novo, não é mesmo? — Bodenstein observou-a com atenção, registrando a expressão de seu rosto, que ia do ódio à obstinação furiosa, passando pela autocompaixão. — Ele achava que lhe devia muito, mas isso não é suficiente. Ele a ama hoje tanto quanto antes. E nem sempre a senhora pode esperar que alguém tire suas concorrentes do caminho.

Nadja von Bredow fitou-o cheia de ódio. Por um momento, fez-se completo silêncio na sala de interrogatório.

— O que a senhora fez com Tobias Sartorius? — perguntou Bodenstein.

— Ele teve o que mereceu — respondeu. — Se não posso tê-lo, ninguém mais terá.

 

— Ela é completamente louca — disse Pia, perplexa, quando Nadja von Bredow foi levada por vários policiais. Esperneou e gritou ao entender que não iam deixá-la ir embora. Bodenstein justificou a ordem de prisão com risco iminente de fuga; afinal, Nadja von Bredow possuía casas e apartamentos no exterior.

— Uma psicopata — confirmou, por fim. — Sem nenhuma dúvida. Quando ficou claro que, apesar de tudo o que ela fez por ele, Tobias Sartorius ainda não a amava, ela atentou contra a vida dele.

— Acha que ele está morto?

— No mínimo, é o que temo. — Bodenstein se levantou da cadeira quando Gregor Lauterbach foi trazido por um agente. Seu advogado apareceu segundos depois.

— Quero conversar com meu cliente — exigiu o doutor Anders.

— O senhor poderá fazer isso mais tarde — respondeu Bodenstein examinando Lauterbach, que estava sentado na cadeira de plástico com ar deprimido. —Bom, senhor Lauterbach, agora vamos ao que interessa. Nadja von Bredow acabou de fazer sérias acusações contra o senhor. O senhor matou Stefanie Schneeberger na noite de 6 de setembro de 1997 na frente do celeiro do sítio dos Sartorius com um macaco hidráulico, porque temeu que Stefanie contasse à sua mulher sobre o caso de vocês. Foi o que Stefanie ameaçou fazer. O que o senhor tem a dizer?

— Ele não tem nada a dizer — respondeu seu advogado no lugar de Lauterbach.

— O senhor suspeitava de que Thies Terlinden fosse testemunha ocular do seu crime e, por isso, pressionou-o para que ele se calasse.

O celular de Pia tocou. Ela deu uma olhada no display, levantou-se e afastou-se alguns metros da mesa. Era Henning. Havia analisado os medicamentos que a senhora Lauterbach prescrevera a Thies havia anos.

— Conversei com um colega da unidade psiquiátrica da seção de cardiologia — disse Henning. — Ele conhece o autismo muito melhor do que eu e ficou chocado quando lhe enviei a receita por fax. Esses medicamentos são absolutamente contraproducentes para o tratamento de alguém com síndrome de Asperger.

— Em que medida? — perguntou Pia, tapando o outro ouvido, pois seu chefe havia elevado a voz e estava usando todas as armas contra Lauterbach e seu advogado, que volta e meia respondia com um “Sem comentários!”, como se já estivesse em meio ao tumulto da imprensa, diante do prédio do tribunal.

— Quando se combina a benzodiazepina com outros fármacos que agem no sistema nervoso central, como os neurolépticos e os sedativos, um intensifica o efeito do outro. Na verdade, esses neurolépticos que vocês encontraram são empregados em casos de perturbações psicóticas agudas, com ideias fixas e alucinações; os sedativos são usados para acalmar, e a benzodiazepina, como ansiolítico. Mas estes últimos ainda têm outro efeito, que, para vocês, poderia ser interessante: eles causam amnésia. Isso significa que, durante o efeito do medicamento, o paciente perde a memória. Em todo caso, o médico que prescreveu esses medicamentos a um autista por um período mais longo merece ter a licença cassada. Isso é, no mínimo, lesão corporal grave.

— Seu colega pode escrever um parecer?

— Sim, com toda a certeza.

O coração de Pia começou a bater de agitação quando ela entendeu o que tudo aquilo significava. Por mais de onze anos, a doutora Lauterbach tinha entupido Thies com drogas que alteravam seu estado de consciência para mantê-lo sob controle. Seus pais certamente acreditaram que a medicação prescrita iria ajudar o filho. A razão pela qual Daniela Lauterbach fizera isso era evidente. Queria proteger o marido. Mas, de repente, surgiu Amelie, e Thies parou de tomar os remédios.

Bodenstein estava abrindo a porta; Lauterbach escondera o rosto nas mãos e soluçava como uma criança, enquanto o doutor Anders pegava sua pasta. Um agente entrou para levar Gregor Lauterbach, que não parava de chorar.

— Ele confessou. — Bodenstein parecia extremamente satisfeito. — Matou Stefanie Schneeberger. Se foi no calor da emoção ou com premeditação, agora já não importa. De todo modo, Tobias é inocente.

— Isso eu sempre soube — respondeu Pia. — Mas continuamos sem saber onde estão Amelie e Thies. Mas agora já está claro para mim quem tirou os dois do caminho. Estávamos o tempo todo na pista errada.

 

Estava frio, muito frio. O vento gelado uivava e se enfurecia, e os flocos de neve picavam seu rosto como ínfimas agulhas. Já não conseguia enxergar nada. Tudo ao seu redor era branco, e seus olhos lacrimejavam tanto, que ele estava como que cego. Já não sentia os pés, o nariz, as orelhas nem a ponta dos dedos. Cambaleava pela tempestade de neve, de um olho de gato a outro, só para não perder totalmente a orientação. Fazia tempo que já não tinha noção do tempo, menos ainda a esperança de um caminhão limpador de neve passar por acaso. Por que continuava a correr? Para onde queria ir? Nos finos tênis, seus pés tinham se transformado em pedras de gelo, e ele mal estava conseguindo tirá-los da neve. Além disso, era preciso fazer um esforço sobre-humano para vencer, passo a passo, aquele inferno branco. Voltou a cair, aterrissando de quatro na neve. As lágrimas correram por seu rosto e congelaram. Tobias deixou-se cair para trás e simplesmente não se levantou. Cada fibra do seu corpo doía. Seu braço esquerdo, que ela atingira com o atiçador de ferro, estava totalmente entorpecido. Como uma louca, ela se lançara sobre ele, espancara-o, chutara-o e cuspira nele com uma fúria violenta e cheia de ódio. Depois, saíra correndo do chalé e simplesmente fora embora, deixando-o num lugar perdido nos Alpes suíços. Durante horas, ele permanecera nu, deitado no chão, incapaz de se mover, como em estado de choque. Ao mesmo tempo, havia esperado e temido que ela retornasse para buscá-lo. Mas isso não acontecera.

O que acontecera, afinal? Eles tinham passado um dia maravilhoso na neve, sob um céu de um azul intenso, tinham cozinhado e comido juntos e depois feito amor apaixonadamente. Inesperadamente, Nadja como que perdera a cabeça. Mas por quê? Ela era sua amiga, sua melhor, mais próxima e antiga amiga, que nunca o abandonara. De repente, a memória o sacudiu como um raio cintilante. “Amelie”, murmurou com os lábios congelados. Ele havia mencionado o nome de Amelie porque estava preocupado com ela; por isso Nadja perdera a cabeça. Tobias comprimiu as têmporas com os punhos e fez um esforço para refletir. Aos poucos, seu cérebro enevoado produziu as conexões que, até então, ele não quisera reconhecer. Nadja já era apaixonada por ele antigamente, mas ele nunca percebera. Como ele não deve tê-la magoado quando lhe relatava os detalhes de suas inúmeras aventuras! Mas ela nunca deixara transparecer nada; dava-lhe dicas e conselhos, como justamente um bom companheiro faz. Perturbado, Tobias levantou a cabeça. A tempestade cedera. Ele resistiu ao impulso de simplesmente permanecer deitado na neve e, ofegante, esforçou-se para pôr-se sobre os joelhos enrijecidos. Esfregou os olhos. Não era uma miragem! Lá embaixo, no vale, ele conseguia ver algumas luzes! Esforçou-se para prosseguir. Nadja tinha sentido ciúme das suas namoradas, bem como de Laura e de Stefanie. E quando recentemente ela lhe perguntara, à beira da floresta, se ele gostava da Amelie, ele, sem suspeitar, respondera que sim. Mas como ele poderia imaginar que Nadja, a famosa atriz, poderia ter ciúme de uma garota de 17 anos? Será que Nadja tinha feito alguma coisa à Amelie? Meu Deus! O desespero o colocou de pé e o empurrou na direção do vale. Nadja estava com uma noite e um dia de vantagem. Se tivesse acontecido alguma coisa com a Amelie, então ele seria o único culpado, pois havia contado a Nadja dos desenhos de Thies e que Amelie queria ajudá-lo. Parou e abriu a boca para dar um grito descontrolado de raiva, que ecoou nas montanhas. Gritou até suas cordas vocais doerem e sua voz falhar.

 

A doutora Daniela Lauterbach tinha como que evaporado. No seu consultório disseram que estava em um congresso médico, em Munique, mas, segundo as investigações, ela não havia comparecido. O celular dela estava desligado, e o carro, impossível de ser encontrado. Era de enlouquecer. Na seção de psiquiatria, consideraram a possibilidade de a doutora Lauterbach ter levado Thies. Como ela também era funcionária do hospital, ninguém teria reparado se ela tivesse entrado em uma seção. Naquela noite de sábado, ela não tivera nenhum atendimento de emergência. Tinha simulado uma chamada e ficado à espreita na frente do Corcel Negro. Amelie a conhecia e certamente havia entrado em seu carro sem desconfiar de nada. Para desviar a suspeita para Tobias, Daniela Lauterbach havia colocado o celular de Amelie no bolso da calça dele quando, mais tarde, o levara para casa. Era um plano tramado com perfeição, e ela ainda foi favorecida por uma ou outra coincidência. A probabilidade de encontrar Amelie Fröhlich ou Thies Terlinden com vida tendia a zero.

Às dez da noite, Bodenstein e Pia estavam sentados na sala de reuniões, assistindo ao jornal de Hessen, que transmitia a notificação de captura da doutora Daniela Lauterbach e relatava a prisão de Nadja von Bredow. Repórteres e duas equipes de televisão continuavam na porta da delegacia, ansiosos por notícias da atriz.

— Acho que vou para casa. — Pia bocejou e se espreguiçou. — Quer carona para algum lugar?

— Não, não. Pode ir — respondeu Bodenstein. — Vou pegar uma viatura.

— Você já está em condições de dirigir?

— Estou sim. — Bodenstein deu de ombros. — Tudo vai ser arranjar. De algum jeito.

Ela ainda lançou um olhar de dúvida para ele, depois, pegou o casaco e a bolsa e saiu. Bodenstein se levantou e desligou a televisão. Durante o dia todo, com a intensa ocupação, conseguira banir da mente o desagradável encontro com Cosima, mas agora a lembrança voltava em uma onda ruim e amarga. Como ele pôde ter perdido o controle daquela maneira? Apagou a luz e andou lentamente pelo corredor até sua sala. O quarto de hóspedes na casa dos seus pais o atraía tão pouco quanto um bar. Ele poderia muito bem passar a noite atrás de sua mesa. Fechou a porta atrás de si e, por um momento, ficou indeciso no meio da sala, que, com a iluminação da rua, mergulhou em uma luz fraca. Ele era um fracassado, como homem e como policial. Cosima o trocara por um cara de 35 anos, e Amelie, Thies e Tobias provavelmente já estavam mortos há muito tempo, porque ele ainda não os encontrara. O passado tinha ficado para trás, em ruínas, e o futuro não parecia muito cor-de-rosa.

 

Se se inclinasse e esticasse o braço, conseguiria tocar a superfície da água com a ponta dos dedos. A água estava subindo mais rápido do que Amelie tinha pensado; pelo visto, não havia escoadouro em parte alguma. Não demoraria muito, e mesmo em cima da estante eles ficariam sentados dentro d’água. E, ainda que não se afogassem, pois a água sairia pela claraboia, iriam morrer de frio. De fato, estava fazendo um frio horrível. Além disso, o estado de Thies piorara drasticamente. Ele estava tremendo e suando, seu corpo ardia de febre. Na maior parte do tempo, parecia dormir abraçado a ela, mas, quando acordava, então falava. O que dizia era tão assustador e sinistro que fazia Amelie chorar.

Como se tivessem aberto uma comporta em sua cabeça, a lembrança dos acontecimentos que a levaram para aquele porão voltara a ficar cristalina. Lauterbach devia ter colocado algum veneno na água e nos biscoitos, por isso Amelie sempre dormia depois que comia ou bebia. Mas agora sabia de tudo. A doutora Lauterbach havia ligado e esperado por ela no estacionamento. Gentil e preocupada, pedira-lhe para ir com ela ver Thies, que não estaria bem. Sem hesitar, Amelie entrara no carro da médica e acordara naquele porão. Achava que nas casas em ruínas que serviam de abrigo aos sem-teto e nas ruas de Berlim já tinha visto todo o mal deste mundo, mas na época não fazia a menor ideia de quanto as pessoas podem ser cruéis. Em Altenhain, naquele vilarejo idílico, que ela havia considerado tão monótono e ermo, viviam monstros impiedosos e brutais, camuflados por máscaras de ingenuidade tacanha. Se ainda saísse viva daquele porão nunca mais confiaria em alguém na vida. Como é que uma pessoa podia fazer algo tão horrível a outra? Por que os pais de Thies nunca perceberam o que a vizinha simpática e gentil fazia com o filho deles? Como um vilarejo inteiro podia se calar e assistir a um jovem inocente ir para a cadeia por dez anos, enquanto os verdadeiros assassinos permaneciam ilesos? Nas longas horas passadas na escuridão, Thies lhe contara aos poucos o que sabia dos terríveis acontecimentos de Altenhain, e não era pouca coisa. Não era de admirar que a doutora Lauterbach quisesse matá-lo. Ao mesmo tempo em que pensou isso, Amelie foi tomada pela certeza desoladora de que era exatamente o que iria acontecer. Lauterbach não era burra. Com toda a certeza tinha cuidado para que ninguém os encontrasse ali. Ou somente quando já fosse tarde demais.

 

Bodenstein estava com o queixo apoiado na mão e observava o copo vazio de conhaque. Como ele podia ter se enganado tanto a respeito de Daniela Lauterbach? No calor da emoção, o marido dela tinha matado Stefanie Schneeberger, mas fora ela quem acobertara friamente seu crime e ameaçara Thies Terlinden durante anos, dopando-o com medicamentos e intimidando-o. Ela tinha permitido que Tobias Sartorius fosse preso e seus pais vivessem um inferno. Bodenstein pegou a garrafa do Rémy Martin, que um dia ganhara de presente, e que há mais de um ano estava intocada em seu armário. Detestava aquele negócio, mas estava precisando de uma bebida. Não havia comido nada o dia todo; em compensação, tinha bebido café demais. De um só gole, esvaziou o terceiro copo nos últimos quinze minutos e contraiu o rosto. O conhaque acendeu um pequeno fogo reconfortante em seu estômago, correu por suas veias e o fez relaxar. Seu olhar vagou até a foto enquadrada de Cosima, ao lado do telefone. Ela sorria para ele, como há muitos anos. Estava chateado porque, de manhã, ela o havia espreitado e provocado, levando-o a dizer e fazer coisas horríveis. Por um bom tempo, arrependeu-se de ter perdido o autocontrole. Embora tivesse sido ela a estragar tudo, ele sabia que tinha feito uma coisa errada. E isso o irritava no mínimo tanto quanto sua convicção presunçosa de ter um casamento perfeito. Cosima o enganara com um homem mais novo porque ele, como homem, já não lhe bastava. Ela se entediara ao seu lado e, por isso, procurara outro, um aventureiro como ela própria. Esse pensamento era um golpe muito maior na sua autoestima do que ele poderia ter imaginado. Quando estava virando seu quarto copo de conhaque, alguém bateu à porta.

— Sim?

Nicola Engel enfiou a cabeça na abertura da porta.

— Incomodo?

— Não. Entre. — Ele franziu a testa. Ela entrou na sala, fechou a porta e se aproximou.

— Acabei de ficar sabendo que a imunidade de Lauterbach foi cassada. O tribunal confirmou a ordem de prisão para ele e a senhora von Bredow. — Ela permaneceu em pé diante de sua mesa e o examinou. — Meu Deus, que cara é essa? Esse caso está lhe fazendo tão mal assim?

O que ele deveria responder? Estava cansado demais para uma resposta taticamente inteligente. Ainda não era capaz de avaliar Nicola direito. Estaria ela perguntando isso por verdadeiro interesse por sua pessoa ou porque finalmente queria usar seus erros e seu fracasso para destituí-lo do cargo de chefe da K 11?

— Os efeitos colaterais estão me fazendo mal — admitiu, por fim. — Behnke, Hasse. Todo esse falatório idiota sobre mim e Pia.

— Mas isso não é verdade, é?

— Imagine! — Recostou-se. Sua nuca doía, e ele contraiu o rosto. O olhar dela pousou sobre o conhaque.

— Você tem outro copo?

— No armário. Embaixo, à esquerda.

Ela se virou, abriu a porta do armário, pegou um copo e sentou-se na cadeira de visitas na frente de sua mesa. Ele verteu uma dose de um dedo no copo dela, e encheu o seu quase até a borda. Nicola Engel levantou as sobrancelhas, mas nada disse. Brindou com ela e bebeu de um só gole.

— Afinal, o que é que está acontecendo? — ela quis saber. Era uma observadora perspicaz e o conhecia. Já há muito tempo. Antes de ele conhecer Cosima e com ela se casar logo em seguida, Nicola e ele tinham passado dois anos juntos. De que adiantava esconder alguma coisa dela? De todo modo, em breve, todos ficariam sabendo, no mais tardar quando ele anunciasse seu novo endereço.

— Cosima tem outro — disse, então, e tentou fazer com que sua voz soasse o mais serena possível. — Suspeitei o tempo todo. Há alguns dias, ela confessou.

— Sei. — O tom não pareceu de satisfação. Contudo, ela tampouco foi capaz de dizer um “sinto muito”. Para ele, pouco importava. Pegou a garrafa e encheu novamente o copo. Nicola olhou-o em silêncio. Ele bebeu. Sentiu o efeito do álcool em seu estômago vazio e conseguiu entender por que, em determinadas circunstâncias, algumas pessoas se tornam alcoólatras. Cosima desapareceu ao longe, atrás de sua consciência, e com ela se volatilizaram os pensamentos sobre Amelie, Thies e Daniela Lauterbach.

— Não sou um bom policial — disse. — E também não sou um bom chefe. Você deveria procurar outra pessoa para fazer meu trabalho.

— De jeito nenhum — respondeu ela, decidida. — Quando comecei aqui, no ano passado, até confesso que essa era minha intenção. Mas tive um ano para observar seu modo de trabalhar e também o modo como você conduz os colaboradores. Eu poderia empregar mais alguns como você.

Ele não respondeu. Quis servir-se de mais um conhaque, mas a garrafa estava vazia. Distraído, jogou-a no cesto de lixo, fazendo o mesmo com a foto de Cosima. Quando levantou a cabeça, encontrou o olhar indagador de Nicola.

— Você deveria encerrar por hoje — disse, olhando o relógio. — Já é quase meia-noite. Vamos, vou levá-lo para casa.

— Não tenho mais casa — lembrou-lhe. — Voltei para a casa dos meus pais. Estranho, não é?

— Melhor do que um hotel. Vamos, venha. Levante-se.

Bodenstein não se mexeu. Não desviou o olhar do rosto dela. De repente, lembrou-se de como ele a encontrara pela primeira vez, há mais de 27 anos, na festa de um colega. Com mais alguns rapazes, ele passara a noite inteira de pé, em uma cozinha minúscula, bebendo cerveja. Nem tinha notado direito as moças que estavam presentes, pois a decepção com Inka, seu amor da juventude, ainda era recente demais para ele pensar em um novo relacionamento. Havia deparado com Nicola na frente da porta do banheiro. Ela o examinara da cabeça aos pés e, com seu jeito direto e inimitável, dissera-lhe algo que imediatamente o fizera deixar a festa com ela, sem se despedir dos anfitriões. Na época, ele também tinha bebido muito e também estava magoado como agora. Subitamente, uma onda de calor correu por seu corpo e jorrou em seu membro inferior como lava ardente.

— Você faz meu tipo — com voz rouca, repetiu o que ela dissera na época. — Está a fim de transar?

Nicola olhou-o surpresa; um sorriso esboçou-se no canto de sua boca.

— Por que não? — Assim como ele, ela não tinha se esquecido do antigo diálogo. — Só preciso dar uma passada rápida no banheiro.

 

Segunda-feira, 24 de novembro de 2008

— Você está com a mesma camisa e a mesma gravata de ontem — notou Pia com olhar perspicaz, quando Bodenstein foi até ela na sala de reuniões ainda vazia. — E não está barbeado.

— Sua capacidade de observação é realmente fenomenal — respondeu ele secamente e dirigiu-se à máquina de café. — Com uma mudança tão precipitada, infelizmente não consegui pegar todas as roupas do meu armário.

— Sei. — Pia riu. — Sempre achei que você fosse alguém que todos os dias, mesmo na trincheira, vestisse roupas limpas. Ou será que acabou seguindo meu bom conselho?

— Por favor, sem conclusões inadequadas. — Bodenstein fez uma cara misteriosa e verteu um pouco de leite no café. Pia estava prestes a lhe responder alguma coisa quando Ostermann apareceu à porta.

— Que más notícias o senhor me traz, inspetor? — perguntou Bodenstein. Ostermann lançou primeiro ao chefe, depois à Pia, um olhar irritado. Esta apenas deu de ombros.

— Tobias Sartorius ligou ontem à noite para o pai. Está em um hospital, na Suíça — respondeu. — Da Amelie, do Thies ou da doutora Lauterbach, ainda não há nenhuma novidade.

Atrás dele apareceu Kathrin Fachinger, seguida por Nicola Engel e Sven Jansen.

— Bom-dia — disse a superintendente da Polícia Criminal. — Estou trazendo o reforço prometido. O agente Jansen vai trabalhar temporariamente na equipe da K 11, Bodenstein. Se você estiver de acordo.

— Sim, estou. — Bodenstein acenou com a cabeça para o colega do Departamento de Roubos, que no dia anterior estivera com Pia na casa dos Terlindens, e sentou-se à mesa. Os outros seguiram seu exemplo. Apenas Nicola Engel desculpou-se e dirigiu-se à porta, onde se virou novamente.

— Posso falar rapidamente com você, em particular?

Bodenstein se levantou, seguiu-a até o corredor e fechou a porta atrás de si.

— O Behnke conseguiu uma disposição temporária contra sua suspensão e imediatamente pediu dispensa por motivos de saúde — disse Nicola Engel em voz baixa. — Seu advogado é do escritório do doutor Anders. Como ele vai conseguir pagar?

— Um caso como esse o Anders faz até de graça — respondeu Bodenstein. — Para ele, só as manchetes importam.

— Bom, vamos aguardar para ver o que acontece. — Nicola Engel examinou Bodenstein. — Fiquei sabendo de mais uma coisa. Na verdade, queria lhe dizer isso em um momento mais apropriado, mas antes que a notícia vaze e você fique sabendo por outra pessoa...

Ele olhou para ela com atenção. Naquele momento, tudo podia acontecer, desde sua suspensão até a novidade de que ela iria assumir a direção do Departamento Federal da Polícia Criminal. Era típico de Nicola nunca deixar que vissem seu jogo.

— Parabéns pela promoção — anunciou ela para sua surpresa. — Primeiro inspetor-chefe da Polícia Criminal, Oliver von Bodenstein. O salário também é maior. O que me diz?

Ela lhe sorriu com expectativa.

— Devo ter agora a impressão de que fui promovido porque dormi com a chefe? — respondeu ele. A superintendente da Polícia Criminal sorriu com ironia, mas depois ficou séria.

— Está arrependido da noite passada? — quis saber. Bodenstein abaixou a cabeça.

— Eu não afirmaria isso agora — respondeu. — E você?

— Eu também não. Embora, normalmente, eu não goste de comida requentada.

Ele sorriu, e ela se virou para ir embora.

— Ah, superintendente...

Ela parou.

— Talvez... ocasionalmente, possamos repetir a dose.

Então ela também sorriu.

— Vou pensar a respeito, inspetor-chefe. Até mais tarde!

Ele a olhou até ela desaparecer, depois colocou a mão na maçaneta. De modo totalmente repentino e inesperado, foi tomado por uma sensação de felicidade quase dolorida. Não porque tinha se vingado, enganando Cosima, por sua vez — e ainda por cima com sua chefe, que ela detestava —, mas porque, naquele segundo, sentiu-se tão livre quanto, na verdade, nunca se sentira na vida. Na última noite, seu futuro se desdobrara à sua frente com uma clareza de tirar o fôlego, abrindo-lhe possibilidades nunca antes imaginadas, depois de ele ter se arrastado a semana inteira, profundamente magoado e cheio de autocompaixão, por um vale de lágrimas. Não que, ao lado de Cosima, ele tivesse alguma vez se sentido preso, mas agora intuía que, com o fracasso de seu casamento, nem tudo estaria, necessariamente, perdido. Muito pelo contrário. Nem todas as pessoas recebem uma nova oportunidade quando já estão perto dos 50 anos.

 

Embora as pernas de Amelie estivessem congeladas, seu corpo inteiro suava. Usou de toda a sua força para manter a cabeça de Thies acima da água. Graças à sustentação da água, que naquele meio-tempo havia subido uns bons quarenta centímetros acima da última prateleira, ela conseguira ficar sentada. Felizmente, a estante estava bem presa à parede, do contrário, provavelmente já teria desabado. Amelie respirava ofegante e tentava relaxar sua musculatura contraída. Com o braço direito, segurava Thies, abraçando-o; com a mão esquerda, tentava tocar o teto. Restava apenas meio metro de ar, nada além disso.

— Thies! — sussurrou e sacudiu-o levemente. —Acorde, Thies!

Ele não reagiu. Ela não conseguia erguê-lo mais, estava acima de suas forças. Porém, em algumas horas a cabeça dele ficaria embaixo d’água. Amelie estava perto de desistir. Fazia tanto frio! E sentia um medo horrível de morrer afogada. Volta e meia as imagens do Titanic retornavam à sua mente. Vira o filme meia dúzia de vezes e tinha chorado copiosamente quando Leonardo DiCaprio escorregava da prancha e afundava nas profundezas do mar. Dificilmente as águas do Atlântico Norte seriam mais frias do que aquela droga de água suja dali!

Com os lábios trêmulos, falava continuamente com Thies, implorava-lhe, sacudia-o, beliscava seu braço. Ele tinha de acordar!

— Não quero morrer — soluçou e, esgotada, apoiou a cabeça na parede. — Não quero morrer, droga!

O frio paralisou seus movimentos e seus pensamentos. Com o máximo esforço, agitou as pernas na água, de um lado para outro, mas em algum momento nem isso conseguia mais fazer. Só não podia dormir! Se soltasse Thies, ele morreria afogado, e ela também.

 

Mal-humorado, Claudius Terlinden levantou o olhar dos papéis que estavam à sua frente, sobre a mesa, quando sua secretária entrou na sala, acompanhando Bodenstein e Pia Kirchhoff.

— Encontraram meu filho? — Ele não se levantou da cadeira nem fez esforço algum para disfarçar seu mau humor. Ao observá-lo de perto, Pia percebeu que os acontecimentos dos últimos dias tinham deixado marcas em Terlinden, embora externamente ele parecesse impassível. Estava pálido e tinha olheiras profundas. Estaria se refugiando na rotina cotidiana para esquecer suas preocupações?

—Não — lamentou Bodenstein. — Infelizmente não. Mas sabemos quem o levou da seção de psiquiatria.

Claudius Terlinden interrogou-o com o olhar.

— Gregor Lauterbach confessou o assassinato de Stefanie Schneeberger — continuou Bodenstein. — A mulher dele encobriu o fato, para proteger a ele e sua carreira. Ela sabia que Thies havia sido testemunha ocular do crime. Ela ameaçou intensivamente seu filho, tratando-o por vários anos com psicofármacos de que ele não precisava. Quando temeu que Amelie Fröhlich e seu filho pudessem ameaçar o marido dela e ela própria, sentiu necessidade de agir. Tememos que tenha feito algo aos dois.

Terlinden fitou-os. Sua expressão estava como que petrificada.

— Quem o senhor achava que tivesse matado Stefanie? — Pia quis saber. Claudius Terlinden tirou os óculos e passou a mão pelo rosto. Respirou fundo.

— Achei que realmente tivesse sido Tobias — confessou após certo tempo. — Imaginei que ele tivesse pegado o Gregor com a garota e, em seguida, tivesse perdido a cabeça por ciúme. Eu tinha certeza de que meu filho Thies devia ter observado alguma coisa, mas, como ele não fala, nunca fiquei sabendo o que ele tinha visto. Agora, naturalmente, algumas coisas estão mais claras para mim. Por isso Daniela estava sempre tão preocupada com ele. E por isso Thies tem verdadeiro pavor dela.

— Ela ameaçou colocá-lo em um sanatório, caso ele viesse a dizer uma palavra que fosse — esclareceu Pia. — Mas ela própria não sabia que Thies mantinha o corpo de Stefanie escondido no porão da estufa. Deve ter ficado sabendo disso por Amelie. Por isso, também foi a doutora Lauterbach que incendiou a estufa. Não eram os desenhos que ela queria destruir, e sim a múmia da Branca de Neve.

— Meu Deus! — Terlinden levantou-se da cadeira, foi até a janela e fixou o olhar no lado de fora. Teria ele alguma ideia de quão fina era a camada de gelo sobre a qual se movia? Bodenstein e Pia trocaram um olhar por trás dele. Ele seria responsabilizado por inúmeros crimes, sobretudo pelo grandioso caso de suborno, que Gregor Lauterbach, na covarde tentativa de limpar o próprio nome, acobertara. Claudius Terlinden ainda não sabia nada a esse respeito, mas, certamente, aos poucos entendeu a enorme culpa que assumira com sua política do silêncio e da dissimulação.

— Ontem Lutz Richter tentou suicídio quando nossos colegas prenderam seu filho — disse Bodenstein, quebrando o silêncio. — Há onze anos ele fundou uma espécie de milícia para encobrir os verdadeiros acontecimentos. Laura Wagner ainda estava viva quando o filho de Richter e seus amigos a jogaram no tanque vazio, no terreno do aeródromo, em Eschborn. Richter sabia disso e aterrou o tanque.

— E quando Tobias saiu da prisão, Richter retomou as rédeas da situação e organizou o ataque contra ele — completou Pia. — O senhor o levou a fazer isso?

Terlinden virou-se.

— Não. Cheguei a proibi-lo expressamente de fazer isso — respondeu com voz rouca.

— Manfred Wagner empurrou a mãe de Tobias da passarela — prosseguiu Pia. — Se na época o senhor não tivesse obrigado seu filho Lars a esconder a verdade, nada disso teria acontecido. Possivelmente seu filho ainda estaria vivo, a família Sartorius não estaria arruinada e, em algum momento, os Wagners conseguiriam pôr um ponto final em toda essa questão. Entende que o senhor é o único culpado do sofrimento pelo qual essas famílias tiveram de passar? Isso para não falar da sua própria família, que, por causa da sua covardia, viveu um verdadeiro inferno!

— Por que eu? — Terlinden abanou a cabeça, perplexo. — Só tentei limitar os danos!

Pia não conseguia entender. Aparentemente, Claudius Terlinden encontrara justificativas para o que tinha feito e deixado de fazer, e havia anos enganava a si mesmo.

— Que danos piores do que esses o senhor queria limitar? — perguntou com sarcasmo.

— A comunidade corria o risco de ruir — respondeu Terlinden. — Faz anos, para não dizer séculos, que minha família tem uma grande responsabilidade no vilarejo. Eu tinha de fazer jus a isso! Os rapazes fizeram uma besteira, estavam bêbados, e a garota os provocou.

Começara com voz insegura, mas depois passou a falar com total convicção.

— Pensei que Tobias tivesse matado Stefanie. Então, de todo modo, ele iria para a prisão. Que diferença faria se fosse julgado por um ou dois crimes? Para que seus quatro amigos ficassem totalmente fora da história, sempre apoiei e cuidei da família dele...

— Agora chega! — Bodenstein interrompeu o homem. — A única pessoa que o senhor queria manter fora dessa história era seu filho Lars! A única coisa que lhe importava era seu bom sobrenome, que forçosamente iria cair na imprensa se Lars fosse associado aos casos de assassinato. O senhor não estava nem um pouco preocupado com os rapazes e com os habitantes do vilarejo. E só o fato de o senhor ter aberto o Corcel Negro para fazer concorrência ao Galo de Ouro e colocado o cozinheiro de Sartorius como locatário já mostra muito bem que o senhor não se preocupou nem um pouco com a família Sartorius.

— Além disso, o senhor se aproveitou friamente das circunstâncias — Pia tomou a palavra. — Albert Schneeberger nunca quis lhe vender a empresa dele, mas o senhor o pressionou tanto nesse momento tão horrível para ele, que ele acabou cedendo. Depois, contra o que havia sido combinado, o senhor demitiu os funcionários e quebrou a empresa. O senhor foi o único a ter se aproveitado de toda a desgraça na época, em todos os sentidos!

Claudius Terlinden franziu os lábios e olhou para Pia com hostilidade.

— Só que então as coisas se deram de um modo bem diferente do que o senhor tinha imaginado. — Pia não se deixou intimidar. — As pessoas em Altenhain não esperaram outras ordens, mas agiram por conta própria. E depois apareceu Amelie, que começou a investigar sozinha, fazendo com que metade do vilarejo se visse obrigada a agir. E fazia tempo que o senhor já não tinha poder suficiente para deter a avalanche que se desencadeara com o retorno de Tobias.

O rosto de Terlinden obscureceu-se. Pia cruzou os braços e encarou seu olhar contrariado sem pestanejar. Ela atingira seu ponto fraco com absoluta precisão.

— Se Amelie e Thies morrerem — disse em tom de ameaça —, o senhor será o único responsável!

— Onde os dois podem estar? — perguntou Bodenstein. — Onde está a doutora Lauterbach?

— Não sei — murmurou Claudius Terlinden entre os dentes cerrados. — Droga, eu realmente não sei!

 

As nuvens pesadas e cinzentas sobre o Taunus prometiam neve. Nas últimas 24 horas, a temperatura tinha caído quase dez graus. Desta vez, a neve não derreteria. Em Königstein, Pia passou com o carro pela zona de pedestres, sem se preocupar com o olhar irritado dos poucos passantes. Estacionou na frente da joalheria, sobre a qual ficava o consultório da doutora Lauterbach. Ali, uma assistente de meia-idade assumia corajosamente o posto, atendendo com paciência ao telefone que não parava de tocar e acalmando pacientes descontentes, que tinham marcado hora naquele dia.

— A doutora Lauterbach não está — respondeu à pergunta de Bodenstein. — Não consigo encontrá-la por telefone.

— Mas no congresso em Munique ela também não está.

— Não, esse foi apenas no fim de semana. — Indefesa, a mulher levantou as mãos quando o telefone voltou a tocar. — Na verdade, ela deveria voltar hoje. O senhor está vendo a confusão que está isto aqui!

— Supomos que tenha fugido — disse Bodenstein. — Provavelmente, ela é responsável pelo desaparecimento de duas pessoas e sabe que estamos atrás dela.

A assistente abanou a cabeça, com os olhos arregalados.

— Mas não pode ser! — contestou. — Trabalho para a doutora há doze anos. Ela jamais faria mal a alguém. Quero dizer, eu... eu a conheço.

— Quando viu ou falou com a doutora Lauterbach pela última vez? Por acaso nos últimos dias ela se comportou de modo diferente ou esteve fora com mais frequência? — Bodenstein lançou um olhar ao crachá no bolso peitoral direito do jaleco alvo e engomado. — Senhora Wiesmeier, por favor, tente se lembrar! Sua chefe possivelmente cometeu um erro, embora tenha tido boa intenção. Agora a senhora ainda pode ajudá-la, antes que aconteça algo pior.

O tratamento pessoal e o tom de emergência na voz de Bodenstein fizeram efeito. Waltraud Wiesmeier concentrou-se tanto que sua testa franziu.

— Fiquei surpresa quando, na semana passada, a doutora Lauterbach cancelou todas as visitas à casa da senhora Scheithauer — disse após um momento. — Durante meses ela tentou encontrar algum comprador para o velho casarão, e finalmente apareceu um interessado, que viria de Düsseldorf na quinta-feira. Mas tive de desmarcar com ele e com dois corretores por telefone. Foi estranho.

— Que casa é essa?

— Um casarão antigo no Grünen Weg, com vista para o vale Woog. A senhora Scheithauer era uma paciente de longa data. Não tinha herdeiros e, quando morreu, em abril, deixou seu patrimônio para uma instituição e o casarão para a doutora Lauterbach. — Sorriu sem graça. — Acho que talvez a chefe tenha preferido ir para lá.

 

“... hoje de manhã, em entrevista coletiva, um porta-voz da Secretaria Estadual de Educação e Cultura atribuiu a demissão do Secretário Gregor Lauterbach a motivos pessoais...”, disse a voz do locutor no rádio do carro, quando Pia deixava o Ölmühlweg para entrar no Grünen Weg. Lentamente, passou pelas construções recentes e virou em uma rua sem saída, que terminava em um grande portão de ferro batido.

“Até agora, o governador não se pronunciou oficialmente. O porta-voz do governo...”

— Deve ser aqui! — Bodenstein soltou o cinto de segurança e desceu do carro, antes que Pia pudesse frear. O portão estava reforçado com uma corrente e um cadeado que parecia novo em folha. Do casarão, via-se apenas o telhado. Pia sacudiu as grades, virou-se para a esquerda e para a direita. Os muros tinham dois metros de altura e eram armados com pontas de ferro.

— Vou pedir reforço e chamar um serralheiro. — Bodenstein pegou o celular. Se Daniela Lauterbach estivesse no casarão, era de prever que não se entregaria sem lutar. Enquanto isso, Pia andou ao longo do muro da extensa propriedade, mas encontrou apenas um pequeno portão trancado, coberto pelo mato espinhoso. Minutos depois chegou um serralheiro; duas viaturas da reserva de Königstein pararam bem mais à frente, na rua, e os agentes se aproximaram a pé.

— O casarão está vazio há alguns anos — sabia um dos oficiais. — A velha senhora Scheithauer vivia em Rosenhof, em Kronberg. Tinha mais de 90 anos quando morreu em abril.

— E deixou toda a propriedade para sua médica — observou Pia. — Por que algumas pessoas têm uma sorte assim?

O serralheiro já tinha concluído seu serviço e estava indo embora, mas Bodenstein pediu-lhe que esperasse mais um pouco. Os primeiros flocos ínfimos de neve começaram a cair quando caminharam pela rampa coberta de cascalho. As ruínas do castelo no lado oposto tinham desaparecido nas nuvens. Era como se o mundo inteiro ao redor tivesse deixado de existir. Outra viatura ultrapassou-os em baixa velocidade e parou na frente do portal. A porta da casa também estava trancada, e o serralheiro pôs-se a trabalhar.

— Estão ouvindo isso? — perguntou Pia, com olhos e ouvidos de lince. Bodenstein prestou atenção, mas só ouviu o barulho do vento nos pinheiros altos da propriedade. Abanou a cabeça. A porta se abriu, e ele entrou em um hall grande e escuro. Havia um cheiro de mofo e de local inabitado.

— Não tem ninguém aqui — constatou decepcionado. Pia passou por ele e apertou o interruptor. Houve um estalo, faíscas se soltaram, e os dois colegas da reserva de Königstein pegaram suas armas. Bodenstein sentiu o coração bater na garganta.

— Foi só um curto-circuito — disse Pia. — Me desculpem.

Foram de cômodo em cômodo. Os móveis estavam cobertos com lençóis brancos, e as venezianas das altas janelas estavam fechadas. Bodenstein atravessou a grande sala, que se anexava ao hall pelo lado esquerdo. O piso rangeu sob seus passos. Puxou as duras cortinas de cetim, devoradas pelas traças, mas o ambiente não ficou muito mais claro.

— Tem alguma coisa fazendo barulho — disse Pia da porta. — Façam silêncio!

Os agentes se calaram. E, de fato, agora Bodenstein também ouvia. Embaixo, no porão, havia barulho de água. Ele recuou e seguiu Pia até uma porta abaixo da escadaria arqueada.

— Por acaso vocês têm uma lanterna? — perguntou, tentando abrir a porta, que não se moveu nem um milímetro. Um dos policiais da patrulha entregou a Pia uma lanterna.

— Não está trancada, mas mesmo assim não abre. — Pia abaixou-se e iluminou o chão. — Deem uma olhada aqui! Alguém passou silicone na fenda da porta. Por que será?

O colega de Königstein se ajoelhou e raspou o silicone com um canivete. Pia sacudiu a porta, até ela abrir bruscamente. O barulho ficou mais alto. Cinco ou seis sombras ligeiras deslizaram por ela e desapareceram nos fundos da casa.

— Ratos! — Bodenstein deu um pulo para trás e chocou-se com tanta força contra um policial que este quase caiu no chão.

— Isso não é motivo para o senhor me nocautear — reclamou o colega uniformizado. — Agora também pode sair de cima do meu pé.

Pia não deu ouvidos aos dois. Estava com o pensamento em outro lugar.

— Por que a porta do porão foi vedada com silicone? — perguntou em voz alta enquanto descia a escada e, com a lanterna, iluminava o caminho à frente. Após dez degraus, parou como se estivesse enraizada no chão.

— Merda! —xingou. Tinha água até os tornozelos. — Um cano furado! Por isso o curto-circuito. Provavelmente, a caixa de força fica embaixo.

— Vou ligar para a central de abastecimento de água — disse um dos policiais de Königstein. — É preciso fechar o registro principal.

— É melhor chamar também os bombeiros. — Desconfiado, Bodenstein procurou por mais ratos. — Vamos, Pia. Lauterbach não está aqui.

Pia não lhe deu ouvidos. Em sua cabeça soavam todos os alarmes. A casa estava vazia e pertencia a Daniela Lauterbach, que, de repente, na última semana, cancelara as visitas de potenciais compradores, marcadas muito tempo antes. E isso não porque ela própria quisesse se esconder ali! Como seus sapatos e suas calças já estavam molhados mesmo, Pia continuou descendo a escada. A água gorgolejava, e o frio a tomou como um choque.

— O que você está fazendo aí? — gritou-lhe Bodenstein. — Saia daí!

Pia se abaixou e iluminou o canto na escuridão. A água chegava a quase quinze centímetros abaixo do teto do porão. Pia desceu mais um degrau e segurou no corrimão. Agora a água chegava até seu quadril.

— Amelie! — chamou, batendo os dentes. — Amelie? Você está aí?

Segurou a respiração e tentou ouvir alguma coisa. O frio a fez lacrimejar. De repente, ficou paralisada. Uma descarga de adrenalina percorreu seu corpo, como se ela tivesse levado um choque.

— Socorro! — ouviu-se em meio ao barulho constante da água. — Socorro! Estamos aqui!

 

Fumando impaciente, Pia ia de um lado para outro do hall. Mal sentia as roupas e os sapatos molhados, de tão nervosa que estava. Bodenstein preferiu esperar na neve, do lado de fora da casa, até o porão inundado finalmente ficar acessível. Só de pensar em ter de ficar com uma porção de ratos debaixo do mesmo teto sentia mal-estar. A central de abastecimento de água havia desligado o registro principal, e os voluntários do corpo de bombeiros de Königstein estavam usando todas as mangueiras disponíveis para bombear a água para fora do porão e jogá-la ladeira abaixo, no jardim coberto de mato. Graças a um gerador de emergência, havia luz. Três ambulâncias com médicos da emergência haviam chegado, e a polícia tinha isolado o terreno.

— Todas as claraboias, pelas quais a água poderia ter vazado, foram vedadas com silicone — relatou o comandante de operações do corpo de bombeiros. — Inacreditável.

Mas era verdade. Para Bodenstein e Pia não havia nenhuma dúvida de quem tinha feito aquilo.

— Podemos entrar! — anunciou um dos bombeiros, que, como dois de seus colegas, vestia uma calça impermeável, que chegava até o umbigo.

— Vou junto! — Pia jogou o cigarro no assoalho mesmo e o apagou com o pé.

— Não, fique aqui! — gritou Bodenstein da porta. — Você ainda vai ficar doente!

— Calce ao menos umas botas de borracha. — O comandante de operações se virou. — Espere, vou buscar um par.

Cinco minutos depois, Pia seguiu os três bombeiros até porão, que ainda tinha água até os joelhos. À luz de uma lanterna, abriram uma porta depois da outra, até encontrarem a certa. Pia girou a chave na fechadura e pressionou a porta, que se abriu bruscamente para dentro com um rangido estridente. Parecia que seu coração ia saltar do peito, e ficou com os joelhos bambos de alívio quando o cone de luz da lanterna iluminou o rosto pálido e sujo de uma moça. Amelie Fröhlich piscou, ofuscada pela luz. Pia desceu tropeçando os dois últimos degraus até entrar no cômodo mais profundo, abriu os braços e puxou a moça que soluçava histericamente.

— Calma — sussurrou, acariciando seus cabelos embaraçados. — Agora está tudo bem, Amelie. Não precisa mais ter medo.

— Mas... mas Thies — balbuciou Amelie. — Eu... eu acho que ele morreu!

 

O alívio de todos os funcionários da Inspeção Criminal Regional era imenso. Amelie Fröhlich sobrevivera aos dez dias no porão do antigo casarão em Königstein sem maiores ferimentos. Estava esgotada, desidratada e tinha emagrecido, mas, do ponto de vista físico, não ia ficar com nenhuma sequela da terrível experiência. Thies fora levado para o hospital. Quanto ao filho de Terlinden, as notícias não eram boas. Suas condições físicas eram ruins, e ele estava sofrendo uma série crise de abstinência. Após a reunião na K 11, Bodenstein e Pia foram ao hospital em Bad Soden e ficaram muito surpresos ao encontrar Hartmut Sartorius e seu filho Tobias no saguão.

— Minha ex-mulher saiu do coma — explicou Sartorius. — Acabamos de falar com ela. Dentro das circunstâncias, ela está bem.

— Ah, que bom. — Pia sorriu. Seu olhar pousou em Tobias, que parecia ter envelhecido alguns anos. Também parecia doente, e sob seus olhos havia profundas olheiras.

— Onde esteve? — Bodenstein dirigiu-se a Tobias. — Ficamos muito preocupados com você.

— Nadja o largou em um chalé nas montanhas, na Suíça — explicou Hartmut Sartorius em seu lugar. — Meu filho caminhou pela neve até o vilarejo mais próximo.

Colocou a mão no braço de Tobias.

— Ainda não consigo entender como fui tão enganado por Nadja.

— Prendemos a senhora von Bredow — disse Bodenstein. — E Gregor Lauterbach confessou ter matado Stefanie Schneeberger. Nos próximos dias vamos entrar com pedido para a revisão do processo contra você. Você será absolvido.

Tobias Sartorius deu de ombros. Pelo visto, para ele não fazia diferença. Nenhuma absolvição posterior iria reparar os dez anos perdidos de sua vida e a ruína de sua família.

— A Laura ainda estava viva quando os três rapazes a jogaram no tanque subterrâneo — continuou Bodenstein. —Quando ficaram com a consciência pesada e quiseram voltar para buscar a moça, Lutz Richter os impediu, cobrindo o tanque com terra. Também foi ele que formou uma milícia em Altenhain e cuidou para manter todos de boca fechada.

Tobias não reagiu, mas seu pai ficou pálido como cera.

— Lutz?

— É. — Bodenstein fez que sim. — Richter também organizou o ataque ao seu filho no celeiro; além disso, ele e a esposa estão por trás das pichações na sua casa e das cartas anônimas. Queriam impedir de todos os modos que a verdade viesse à luz. Quando prendemos o filho dele, Richter deu um tiro na cabeça. Ainda está em coma, mas vai sobreviver e depois terá de prestar contas à justiça.

— E a Nadja? — sussurrou Hartmut Sartorius. — Ela sabia de tudo isso?

— Com toda a certeza — respondeu Bodenstein. — Foi testemunha ocular quando Lauterbach matou Stefanie. E, antes, mandou os amigos jogarem Laura no tanque. Ela podia ter evitado o julgamento de Tobias, mas se calou. Por onze anos. Quando ele saiu da prisão, ela quis impedir com todos os meios que ele voltasse para Altenhain.

— Mas por quê? — A voz de Tobias soou rouca. — Não entendo. Ela... ela sempre me escreveu, me esperou e...

Ele se calou e abanou a cabeça.

— Nadja era apaixonada por você — respondeu Pia. — Mas você sempre a rejeitou. Era conveniente para ela que Laura e Stefanie desaparecessem do mapa. Provavelmente, ela não contou com o fato de que você realmente fosse a julgamento. Quando isso aconteceu, decidiu esperar por você e, assim, conquistá-lo. Mas então apareceu Amelie. Nadja a viu como uma rival, sobretudo como uma verdadeira ameaça, pois, aparentemente, Amelie tinha descoberto alguma coisa. Nadja se disfarçou de policial para procurar os desenhos de Thies na casa dos Fröhlichs.

— Sim, eu sei. Mas não os encontrou — disse Tobias.

— Ah, encontrou sim — respondeu Bodenstein. — Só que destruiu os desenhos, pois logo você veria que ela tinha mentido.

Perturbado, Tobias fitou Bodenstein. Engoliu em seco ao perceber a enorme dimensão das mentiras e da falsidade de Nadja. Era mais do que ele conseguia suportar.

— Todos em Altenhain sabiam da verdade — continuou Pia. — Claudius Terlinden se calou para proteger o filho Lars e o próprio nome. Como tinha a consciência pesada, apoiou financeiramente você e seus pais e...

— Esse não foi o único motivo — interrompeu-a Tobias. A vida voltava aos traços rígidos de seu rosto, e ele lançou um olhar para o pai. — Mas agora, aos poucos, estou entendendo tudo. Ele só estava interessado no próprio poder e...

— E em quê?

Mudo, Tobias abanou a cabeça.

Hartmut Sartorius cambaleou. A verdade sobre seu vizinho e ex-amigo era desoladora para ele. O vilarejo inteiro havia se calado, mentido e, por motivos egoístas, havia assistido impassível à sua existência, ao seu casamento e ao seu nome serem destruídos. Deixou-se cair em uma cadeira de plástico junto à parede e afundou o rosto nas mãos. Tobias sentou-se ao seu lado e pôs o braço em seus ombros.

— Mas também temos boas notícias. — Somente então Bodenstein se lembrava por que ele e Pia tinham ido ao hospital. — Na verdade, estávamos indo ver Amelie Fröhlich e Thies Terlinden. Hoje, na hora do almoço, encontramos os dois no porão de uma casa em Königstein. A doutora Lauterbach havia sequestrado e escondido os dois lá.

— A Amelie está viva? — Tobias ergueu-se como que eletrizado. — Ela está bem?

— Está sim. Venha conosco. Vai ficar feliz em vê-lo.

Tobias hesitou por um momento, mas então se levantou. Seu pai também ergueu o olhar e sorriu timidamente. Porém, segundos depois, seu sorriso se apagou, e sua expressão desfigurou-se em ódio e ira. Ele deu um salto e, com uma velocidade que surpreendeu Pia, disparou na direção de um homem que acabava de entrar no foyer do hospital.

— Não, pai! Não! — ouviu a voz de Tobias e, somente então, viu que o homem era Claudius Terlinden, acompanhado de sua mulher e do casal Fröhlich. Obviamente, estavam indo ver os filhos. Hartmut Sartorius pegou Terlinden pelo pescoço e tentou estrangulá-lo. Christine Terlinden, Arne e Barbara Fröhlich ficaram em pé ao lado, como que paralisados.

— Seu filho da puta! — Hartmut Sartorius espumou de raiva. — Seu filho da puta miserável e maldito! Você é culpado por tudo o que aconteceu com a minha família!

Claudius Terlinden ficou vermelho. Agitou os braços desesperadamente, tentando deter seu agressor. Bodenstein percebeu a situação e pôs-se em movimento. Pia também quis intervir, mas foi bruscamente empurrada para o lado por Tobias. Ela se chocou contra Barbara Fröhlich, perdeu o equilíbrio e caiu. As pessoas ficaram olhando, espantadas. Tobias alcançou o pai e quis segurar seu braço, mas, nesse momento, Claudius Terlinden conseguiu se desvencilhar. O medo de morrer lhe deu forças sobre-humanas, e ele empurrou Sartorius. Pia voltou a se levantar e viu, como em câmera lenta, Hartmut Sartorius tropeçar depois do forte empurrão e bater de costas contra uma porta corta-fogo, que estava aberta. Tobias começou a gritar e precipitou-se sobre o pai. De repente, havia sangue por toda parte. Pia despertou de seu estupor. Arrancou o cachecol do pescoço de Barbara Fröhlich, ajoelhou-se ao lado de Sartorius, na poça de sangue mesmo, que logo se tornou um pequeno lago, e tentou desesperadamente conter o intenso sangramento, comprimindo a pashmina azul-clara contra o ferimento aberto na nuca de Sartorius. As pernas do homem tremiam convulsivamente, e ele agonizava, gorgolejando.

— Um médico! Rápido! — gritou Bodenstein. — Droga, deve ter um médico em algum lugar por aqui!

Claudius Terlinden rastejou para o lado, tossindo e respirando com dificuldade, com as mãos em volta do pescoço. Tinha os olhos saltados.

— Não foi por querer — balbuciava. — Não... foi por querer. Foi... foi um acidente...

Pia ouviu passos e gritos, como se viessem de longe. Seus jeans, suas mãos e seu casaco estavam cobertos de sangue. Sapatos e calças brancas apareceram em seu campo de visão.

— Afaste-se! — gritou alguém. Ela recuou um pouco, ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Bodenstein. Era tarde demais. Hartmut Sartorius estava morto.

 

— Não pude fazer nada. — Chocada, Pia abanou a cabeça. — Foi tudo tão rápido.

Seu corpo inteiro ainda tremia, e ela mal conseguia segurar a Coca-Cola que Bodenstein havia colocado em suas mãos sujas de sangue.

— Não se recrimine — respondeu Bodenstein.

— Não consigo, droga. Onde está o Tobias?

— Estava aqui agora mesmo. — Bodenstein olhou ao redor, procurando-o. O foyer tinha sido bloqueado; contudo, fervilhava de gente. Policiais, médicos com expressão tensa, chocada, e os funcionários do serviço de identificação, em seus macacões brancos, viam o corpo de Hartmut Sartorius ser colocado em um caixão de zinco. Toda ajuda ao pai de Tobias tinha chegado tarde demais. Depois do empurrão dado por Claudius Terlinden, ele teria caído contra a porta de vidro e sofrido um traumatismo craniano. Ninguém poderia ter feito coisa alguma pelo homem.

— Fique sentada aqui. — Bodenstein pousou brevemente a mão no ombro de Pia e se levantou. — Vou procurar Tobias e cuidar dele.

Pia fez que sim e fitou o sangue grudento e seco em suas mãos. Ergueu-se, inspirou e expirou profundamente. Aos poucos, as batidas do seu coração foram se desacelerando e ela conseguiu voltar a pensar com clareza. Seu olhar pousou em Claudius Terlinden, que estava prostrado em uma cadeira, fitando o vazio. À sua frente, uma policial parecia tentar fazer um boletim de ocorrência. A morte de Hartmut Sartorius havia sido um acidente, disso não havia dúvida. Terlinden agira em legítima defesa, sem intenção de matar; contudo, aos poucos ele parecia entender o tamanho da culpa que carregava nos ombros. Uma jovem médica agachou-se na frente de Pia.

— Posso lhe trazer um calmante? — perguntou preocupada.

— Não, estou bem — respondeu Pia. — Mas será que posso lavar as mãos em algum lugar?

— Sim, claro. Me acompanhe.

Com os joelhos trêmulos, Pia seguiu a médica. Procurou por Tobias Sartorius, mas não o viu em parte alguma. Onde estaria ele? Como poderia suportar esse terrível acontecimento de ver o pai morrer? Mesmo em situações de crise, Pia conseguia manter uma boa distância e a cabeça fria, mas o destino de Tobias Sartorius a abalou profundamente. Aos poucos, ele perdera tudo o que um ser humano pode perder.

 

— Tobi! — Amelie ergueu-se na cama e sorriu, sem acreditar. Pensara tanto nele nos últimos e terríveis dias e noites, conversara com ele em pensamento, sempre imaginando como seria quando o revisse. A lembrança do calor em seus olhos azuis como o mar impedira que ela enlouquecesse, e agora ele estava em pessoa, à sua frente. Seu coração deu um pulo irrefreável de alegria. — Nossa, fico muito feliz que você tenha vindo me visitar! Fiquei tão...

Seu sorriso se apagou ao perceber a expressão transtornada de Tobias à meia-luz. Ele fechou a porta do quarto atrás de si e, com passos inseguros, aproximou-se e parou aos pés da cama. Parecia aterrorizado, estava pálido e com os olhos vermelhos. Amelie pressentiu que algo horrível tinha acontecido.

— O que foi? — perguntou em voz baixa.

— Meu pai morreu — sussurrou ele com voz rouca. — Agora mesmo... lá embaixo... no foyer. O Terlinden estava vindo na nossa direção... e meu pai... ele...

Ele se calou. Sua respiração era intermitente; ele pressionou o punho contra a boca e lutou para se controlar. Em vão.

— Ai, meu Deus. — Amelie fitou-o, horrorizada. — Mas como... quero dizer, por quê...

O rosto de Tobias se desfigurou, ele se curvou. Seus lábios tremiam.

— Meu pai foi para cima desse... filho da puta. — Sua voz era átona. — E ele... o empurrou contra uma porta de vidro.

Ele se interrompeu. As lágrimas corriam por seu rosto encovado. Amelie afastou as cobertas e esticou os braços para ele. Tobias afundou na beira da cama e deixou que Amelie o abraçasse. Pressionou a cabeça contra o pescoço dela, e seu corpo foi sacudido por soluços desenfreados e desesperados. Amelie segurou-o com firmeza. Sua garganta ficou apertada quando ela entendeu que, além dela, Tobias já não tinha ninguém no mundo a quem recorrer e contar seu sofrimento.

 

Tobias Sartorius tinha desaparecido do hospital sem deixar rastro. Bodenstein mandara uma viatura até a casa de seus pais, mas, até o momento, ele não tinha aparecido por lá. Claudius Terlinden voltara para a casa com a mulher. Não era culpado da morte de Sartorius, que tinha sido um acidente, uma infeliz coincidência com final trágico. Bodenstein deu uma olhada no relógio. Era segunda-feira, então Cosima devia estar na casa da mãe. As noites de bridge na casa dos Rothkirchs eram um ritual que, havia décadas, não falhava; portanto, ele podia ficar bastante seguro de não encontrá-la se passasse em casa para buscar roupas limpas antes de voltar para a delegacia. Sujo e suado, ele sentia falta de uma boa ducha.

Para seu alívio, a casa estava às escuras; apenas a pequena luminária sobre o aparador da entrada estava acesa. O cachorro lhe fez festa com efusiva alegria. Bodenstein acariciou-o e olhou ao redor. Tudo parecia normal e tão dolorosamente familiar, mas ele sabia que já não estava em casa ali. Antes que pudesse ficar sentimental, subiu decididamente a escada até o quarto. Acendeu a luz e levou um susto ao ver Cosima sentada na poltrona junto à janela. Seu coração logo disparou.

— Por que você está sentada no escuro? — perguntou, já que nada melhor lhe ocorreu.

— Queria pensar em silêncio. — Ela piscou com a claridade, levantou-se e foi para trás da poltrona, como se quisesse se proteger dele.

— Sinto muito por ter perdido o controle hoje de manhã — começou Bodenstein após breve hesitação. — Foi... tudo um pouco demais para mim.

— Tudo bem. A culpa foi minha — respondeu Cosima. Olharam-se calados, até o silêncio se tornar incômodo.

— Vim só para pegar umas roupas — disse Bodenstein, e saiu do quarto. Como era possível, de repente, já não sentir absolutamente nada por uma pessoa pela qual, por mais de 25 anos, não tivera nada além de afeto? Teria sido ilusão, uma espécie de mecanismo de defesa, ou simplesmente a prova de que, durante muito tempo, seu sentimento por Cosima fora apenas mero hábito? A cada pequena briga que tiveram nas últimas semanas e nos últimos meses, um pedacinho do afeto se estilhaçava. Bodenstein surpreendeu-se com a sobriedade com que estava analisando a situação. Abriu o armário embutido no corredor e observou pensativo as malas que ali estavam. Não queria pegar nenhuma daquelas que já haviam acompanhado Cosima pelo mundo. Por isso, decidiu-se por duas malas rígidas, empoeiradas, mas novas em folha, que Cosima achava muito volumosas. Ao passar pela porta do quarto de Sophia, parou. Não haveria tempo que bastasse para dar uma rápida olhada na menina. Pousou as malas no chão e entrou no quarto, que era iluminado por um pequeno abajur ao lado da cama. Sophia dormia tranquilamente, com o polegar na boca, cercada por bichinhos de pelúcia. Bodenstein observou a filha mais nova e suspirou. Inclinou-se sobre a cama, esticou a mão e tocou de leve no rosto da criança, aquecido pelo sono.

— Sinto muito, minha querida — sussurrou. — Mas mesmo por você não posso fingir que nada aconteceu.

 

Aquela policial se ajoelhando no meio na enorme poça de sangue era uma cena que Tobias jamais esqueceria. Sentiu que seu pai tinha morrido antes mesmo de alguém pronunciar a palavra mais definitiva dentre todas as outras. Ele ficara ali, petrificado, surdo e entorpecido, deixando-se afastar por médicos, socorristas e policiais. Em seu íntimo, depois de tantas notícias terríveis, já não havia lugar para nenhum sentimento. Como em um navio que se enchera de água, as últimas comportas se haviam fechado, a fim de impedir que ele afundasse.

Tobias havia deixado o hospital correndo. Ninguém tentara impedi-lo. Caminhando, atravessou Eichwald, e, aos poucos, o frio trouxe clareza à confusão de seus pensamentos. Nadja, Jörg, Felix, seu pai. Todos o tinham deixado, traído ou decepcionado; já não havia ninguém a quem ele pudesse recorrer. Ao cinza inflexível do desamparo misturava-se o vermelho vivo da raiva. A cada passo que dava, crescia seu ressentimento pelas pessoas que haviam destruído sua vida e o ar lhe faltava, fazendo-o parar, ofegante. Seu coração clamava por vingança contra tudo o que haviam feito a ele e a seus pais. Ele já não tinha nada a perder, absolutamente nada. Em sua cabeça, cada vez mais peças soltas se juntavam e, de repente, tudo fez sentido. Subitamente, deu-se conta de que, após a morte de seu pai, ele era o último que sabia do segredo de Claudius Terlinden e Daniela Lauterbach. Tobias cerrou os punhos ao se lembrar do acontecimento de vinte anos antes, que seu pai ajudara ambos a encobrir.

Na época, ele tinha 7 ou 8 anos e, como costumava fazer, passava a noite na sala ao lado do restaurante. Sua mãe não estava, por isso, ninguém se preocupara em mandá-lo para a cama. Em algum momento, ele acordou no sofá, no meio da noite. Levantou-se, esgueirou-se até a porta e ouviu uma conversa que não conseguiu entender. Junto ao balcão estavam sentados apenas Claudius Terlinden e o velho doutor Fuchsberger, que quase todas as noites jantava no Galo de Ouro. Tobias já tinha visto gente embriagada o suficiente para reconhecer que o respeitado tabelião, doutor Herbert Fuchsberger, estava pra lá de Bagdá.

— O que tem de mais? — disse Claudius Terlinden, fazendo sinal para seu pai encher novamente o copo do tabelião. — Meu irmão não vai se importar, ele já morreu.

— Vou arrumar problema para mim — respondeu Fuchsberger com a voz empastada. — Se alguém ficar sabendo...

— E como é que alguém vai ficar sabendo? Ninguém sabe que o Willi mudou o próprio testamento.

— Não, não e não! Não posso fazer isso — lamentou-se Fuchsberger.

— Aumento o valor — respondera Terlinden. — Melhor: duplico. Cem mil. O que acha?

Tobias vira Terlinden fazendo sinal para seu pai. A conversa continuou assim por um tempo, até o homem ceder.

— Está bem — disse. — Mas você fica aqui. Não quero que ninguém o veja no meu cartório.

Em seguida, o pai de Tobias saiu, acompanhado do doutor Fuchsberger, e Claudius Terlinden permaneceu junto ao balcão. Tobias nunca teria entendido o que tinha acontecido naquela noite se, anos mais tarde, no cofre do escritório de seu pai, não tivesse encontrado um testamento quando procurava uma apólice de seguro. Naquele momento, ficara apenas um pouco surpreso de encontrar o testamento de Wilhelm Terlinden no cofre de seu pai, mas o licenciamento de seu primeiro automóvel era muito mais importante. Durante todos aqueles anos, Tobias não pensara mais no assunto, reprimira-o e, por fim, esquecera-o; porém, de repente, como se o choque pela morte do pai tivesse aberto uma câmara secreta em seu cérebro, tudo voltava a se apresentar.

—Aonde estamos indo?

A voz de Amelie arrancou Tobias de suas lembranças sombrias. Ele olhou para ela, pôs a mão em cima da sua e sentiu o coração se aquecer. Seus olhos escuros estavam cheios de sincera preocupação com ele. Sem todo aquele metal no rosto e o penteado maluco, ela era linda. Muito mais até do que Stefanie jamais fora. Amelie hesitara por um momento ao deixar o hospital com ele às escondidas, quando ele dissera que ainda tinha uma conta a acertar. O jeito atrevido e insociável de Amelie era apenas fachada, e Tobias percebeu isso em seu primeiro encontro, na frente da igreja. Depois de ter sofrido tantas decepções e traições, ele sempre se surpreendia com a sinceridade altruísta de Amelie e por ela não ser nem um pouco egoísta.

— Vamos dar uma passada na minha casa, depois preciso falar com o Claudius Terlinden — respondeu ele. — Mas você fica no carro. Não quero que lhe aconteça mais nada.

— Não vou deixar você sozinho com esse filho da puta — contestou ela. — Se estivermos juntos, ele não vai fazer nada contra você.

Apesar de tudo, Tobias precisou sorrir. Ainda por cima, ela era corajosa. Uma ínfima esperança flamejou em seu íntimo, como uma vela, cuja luz procurasse um caminho por entre a névoa e a escuridão. Talvez ainda houvesse um futuro para ele depois que tudo aquilo acabasse.

 

Cosima não saíra do lugar. Ainda estava atrás da poltrona, olhando Bodenstein abrir as malas e nelas colocar o conteúdo de seu armário.

— Esta é sua casa — disse ela após um instante. — Não precisa sair dela.

— Mas vou sair. — Ele não olhou para ela. — Esta era nossa casa. Não quero mais morar aqui. Posso ficar com a casa que era do cocheiro, no sítio. Faz tempo que está vazia. É a melhor solução. Quando você viajar, meus pais ou o Quentin e a Marie-Louise podem cuidar da Sophia.

— Que rápido! — disse Cosima, mordaz. — Pelo visto você já colocou um ponto final nessa questão.

Bodenstein suspirou.

— Não, eu não — rebateu. — Você, sim. Simplesmente aceitei sua decisão, como sempre fiz, e estou tentando lidar com a nova situação. Você escolheu outro homem, não posso fazer nada. Mas pretendo continuar minha vida, apesar de tudo.

Por um segundo, ele refletiu se deveria contar a Cosima da noite de amor passada com Nicola. Lembrou-se de algumas observações maliciosas que Cosima tinha feito sobre Nicola desde que soubera que ele trabalhava com sua ex. Mas isso seria de mau gosto e nem um pouco inteligente.

— Alexander e eu trabalhamos juntos — disse Cosima bruscamente. — Não foi uma... escolha.

Bodenstein continuou a colocar suas camisas nas malas.

— Mas talvez ele combine mais com você do que eu. — Levantou o olhar. —Por quê, Cosima? As aventuras fizeram tanta falta assim na sua vida?

— Não, isso não. — Cosima deu de ombros. — Não há nenhuma explicação razoável. Tampouco alguma desculpa. Simplesmente o Alex apareceu no meu caminho no momento errado. Eu estava aborrecida com você, em Maiorca.

— E por isso você foi logo pulando na cama dele. Porque estava aborrecida comigo. — Bodenstein balançou a cabeça e fechou uma das malas. Ergueu-se. — Que maravilha!

— Oliver, por favor, não jogue tudo fora. — A voz de Cosima soou suplicante. — Cometi um erro, eu sei. Sinto muito, sinceramente. Mas há tanta coisa que nos une.

— E mais ainda que nos separa— respondeu ele. — Nunca mais vou conseguir confiar em você, Cosima. E sem confiança não consigo nem quero viver.

Bodenstein a deixou em pé e foi ao banheiro. Fechou a porta atrás de si, despiu-se e entrou debaixo do chuveiro. Sob a água quente, seus músculos contraídos relaxaram, e a tensão diminuiu um pouco. Seus pensamentos vagaram até a noite anterior e as tantas noites que ainda teria na vida. Nunca mais precisaria ficar acordado, atormentando-se de preocupação com Cosima, pensando no que ela estaria fazendo do outro lado do mundo, se estaria bem ou não, se estaria em perigo, se teria sofrido algum acidente ou até ido para a cama com algum cara. Ficou surpreso ao constatar que não sentia nenhum tipo de tristeza ao pensar nisso, apenas um profundo alívio. Já não teria de viver segundo as regras do jogo impostas por Cosima. E nunca mais viveria segundo outras regras que não fossem as suas — era o que acabara decidir naquele momento.

 

Torceu para que não tivessem chegado tarde demais; porém, não fazia nem quinze minutos que estavam esperando no carro quando a Mercedes preta apareceu e parou bem na frente do portão armado de pontas de lança da fábrica de Terlinden. Como por mágica, o portão deslizou para o lado. As luzes de freio da Mercedes se apagaram, o automóvel se moveu e desapareceu.

— Rápido, vamos! — sibilou Tobias. Saíram do carro, correram e ainda conseguiram passar pelo portão antes que ele se fechasse. A guarita estava vazia. À noite, apenas as câmeras vigiavam o terreno, e há muito tempo já não havia, como antes, nenhum equipamento de proteção, segundo Tobias ficara sabendo por seu amigo Michael, que trabalhava na empresa de Terlinden. Tinha trabalhado, corrigiu-se em pensamento. Agora Michael estava na cadeia, assim como Jörg, Felix e Nadja.

Começou a nevar ligeiramente. Em silêncio, seguiram as marcas deixadas pelos pneus da Mercedes de Terlinden. Tobias desacelerou um pouco o passo. Sentiu a mão gelada de Amelie na sua. Nos dias em que ficara no cativeiro, ela emagrecera muito e, na verdade, ainda estava muito fraca para uma ação como aquela. Mas tinha feito questão de acompanhá-lo. Em silêncio, passaram pelo grande pavilhão da fábrica. Quando viraram na esquina, viram que no último andar do prédio da administração a luz estava acesa. Embaixo, diante do portal de entrada, estava estacionada a Mercedes preta, à luz alaranjada da iluminação noturna. Tobias e Amelie esgueiraram-se pelo estacionamento escuro e chegaram à entrada do prédio.

— A porta está aberta — cochichou Amelie.

— Prefiro que você espere aqui — disse Tobias, olhando para ela. Os olhos de Amelie pareciam enormes em seu rosto magro e pálido. Decidida, ela abanou negativamente a cabeça.

— De jeito nenhum. Vou com você.

— Então está bem. — Ele respirou fundo, depois a abraçou rapidamente e com força. — Obrigado, Amelie. Obrigado por tudo.

— Deixe de bobagem — respondeu bruscamente. — Vamos entrar logo.

Um sorriso esboçou-se em seu rosto, e ele concordou com a cabeça. Atravessaram o grande hall de entrada, passaram pelo elevador e foram para as escadas de emergência, que estavam igualmente com a porta aberta. Claudius Terlinden parecia não ter medo de ladrões. No quarto andar, Amelie ficou cansada e encostou-se por um momento no corrimão, até recobrar o fôlego. A pesada porta de vidro estalou quando Tobias a abriu. Deteve-se por um instante e aguçou os ouvidos no corredor escuro, iluminado apenas por pequenas arandelas próximas ao chão. De mãos dadas, esgueiraram-se pelo corredor. De tão agitado que estava, Tobias sentia o coração martelar contra as costelas. Parou ao ouvir a voz de Claudius Terlinden penetrar por uma porta semiaberta, junto à fachada do corredor.

— ...se apressar. Se nevar mais forte, talvez o motor nem ligue.

Tobias e Amelie trocaram um rápido olhar. Terlinden parecia estar ao telefone. Pelo visto, tinham chegado a tempo, pois parecia que ele estava querendo fugir de avião para algum lugar. Foram em frente. De repente, ouviram uma segunda voz. Amelie teve um sobressalto e agarrou a mão de Tobias.

— O que há com você? — perguntou a doutora Daniela Lauterbach. — Por que está aí parado?

A porta se abriu completamente. Um clarão inundou o corredor. Tobias ainda teve tempo de abrir a porta de uma sala atrás de si. Empurrou Amelie para a escuridão e, com o coração acelerado, ficou em pé ao seu lado.

— Merda, o que é que ela está fazendo aqui? — sussurrou Amelie perturbada. — Ela quis matar a mim e ao Thies! E o Terlinden sabe disso!

Tenso, Tobias fez que sim. Refletiu febrilmente sobre como poderia deter os dois. Tinha de evitar que fugissem e desaparecessem para sempre. Se estivesse sozinho, simplesmente ia pedir satisfações. Mas em hipótese alguma podia colocar Amelie em perigo! Seu olhar deparou com a mesa.

— Esconda-se aí embaixo — disse em voz baixa. Amelie quis protestar, mas Tobias teimou. Esperou até que ela se arrastasse para debaixo da mesa, depois pegou o telefone e pressionou-o contra a orelha. À luz fraca da iluminação externa, ele mal conseguia reconhecer o aparelho. Apertou uma tecla e torceu para que fosse a da linha externa. E era! Ouviu o sinal de linha livre. Com dedos trêmulos, digitou 110.

 

Ele estava diante do cofre aberto, com o olhar fixo, massageando distraído o pescoço dolorido. Desde aquele acontecimento infeliz no hospital, estava se sentindo completamente confuso. Volta e meia achava que seu coração fosse falhar e deixar de bater por alguns instantes. Teria isso alguma coisa a ver com a breve falta de oxigênio? Sartorius partira para cima dele como um possesso e o estrangulara com uma força inesperada, até ele ver pontos brilhantes diante dos olhos. Por alguns segundos, tivera certeza de que sua hora havia chegado. Nunca antes fora atacado fisicamente. Até aquele dia, a expressão “medo da morte” não passava de um conjunto de palavras vazias para ele. Mas agora sabia como era sentir a morte diante dos olhos. Não se lembrava de como havia conseguido se livrar das garras daquele louco, mas, de repente, Sartorius estava no chão, deitado em uma poça de sangue. Simplesmente horrível, absolutamente horrível! Claudius Terlinden percebeu que ainda estava em choque.

Seu olhar pousou em Daniela, que estava ajoelhada debaixo da sua mesa e, com expressão concentrada, reinstalava algumas peças do computador. O disco rígido, que ela havia trocado por outro, já estava em uma mala. Daniela tinha insistido em fazer isso, embora ele achasse desnecessário. Não tinha salvado nada em seu computador que pudesse interessar à polícia. Tudo tinha saído diferente do que ele planejara. Posteriormente, Claudius Terlinden teve de reconhecer que a tentativa de encobrir o envolvimento de Lars no assassinato de Laura Wagner havia sido um erro grave. Ele não havia pensado o suficiente no que poderia acontecer se tirasse o rapaz da linha de tiro. Essa decisão, por si só insignificante, acabou por tornar dezenas de outras necessárias. A trama das mentiras havia se tornado tão densa e intricada que levou a efeitos colaterais lamentáveis, porém, inevitáveis. Se ao menos aquele ignorante imbecil o tivesse ouvido em vez de agir por conta própria! Nada disso teria acontecido! Mas, com sua atitude, a estreita fenda que surgira com o retorno de Tobias Sartorius logo se transformara em um imenso buraco, um abismo escancarado e negro. E sua vida inteira, suas regras, os rituais diários que lhe davam segurança — tudo tinha sido arrastado por aquele redemoinho de acontecimentos infernais.

— O que há com você? Por que está aí parado?

A voz de Daniela arrancou-o de seus pensamentos. Gemendo, ela se pôs de pé novamente e o examinou com uma expressão de desdém. Claudius Terlinden percebeu que ainda estava com a mão na garganta e se virou. Havia muito tempo que ela devia contar com a possibilidade de tudo ir pelos ares. Seu plano de fuga era perfeito e tinha sido pensado nos mínimos detalhes. Já ele reagira friamente à ideia. Nova Zelândia! O que ia fazer lá? O centro de sua existência ficava ali, naquele vilarejo, naquele prédio, naquela sala! Não queria ir embora, mesmo que isso pudesse significar, na pior das hipóteses, alguns anos de cadeia. Só de pensar em morar em um país estrangeiro com identidade falsa fazia-o sentir mal-estar e até medo. Ali ele era alguém, era conhecido e respeitado, e certamente tudo voltaria a se acalmar. Na Nova Zelândia ele seria um nada, um fugitivo sem nome, para sempre.

Seu olhar vagou pela ampla sala. Seria aquele dia realmente a última vez que veria tudo aquilo? Nunca mais iria entrar em sua casa, visitar os túmulos de seus pais e avós no cemitério, observar o panorama familiar do Taunus? Essa ideia era insuportável e realmente levou lágrimas a seus olhos. Havia lutado tanto para conduzir com êxito ainda maior a obra da vida de seus antepassados — e agora tinha de deixar tudo para trás?

— Santo Deus, Claudius, vamos logo! — A voz de Daniela soou cortante. — Está nevando cada vez mais forte lá fora! Precisamos ir!

Ele empurrou para dentro do cofre os papéis que não ia levar. Ao mesmo tempo, tocou a caixa em que guardava seu revólver.

Não quero ir embora. Prefiro me matar.

Paralisou-se. Como esse pensamento tinha entrado em sua cabeça? Nunca entendeu como alguém pudesse ser tão covarde a ponto de ver no suicídio a única saída. Mas tudo mudara depois que a morte lhe sorrira de perto.

— Além de nós, tem mais alguém no prédio? — perguntou Daniela.

—Não — disse Terlinden com voz rouca e tirou do cofre a caixa com o revólver.

— Mas uma das linhas externas está ocupada. — Ela se inclinou sobre o aparelho que estava no meio da mesa dele. — O ramal 23.

— É da contabilidade. Não tem mais ninguém lá.

— Você trancou as portas depois que entrou?

— Não. — Desperto de seu estupor, abriu a caixa e observou a Beretta.

 

O restaurante acima do Opel-Zoo estava cheio. O ambiente estava escuro, quente e barulhento, e isso agradou Pia. Christoph e ela sentaram-se a uma mesa bem ao lado da janela da fachada, mas Pia não estava com cabeça para ouvir o que os funcionários do Departamento de Fiscalização de Obras haviam dito naquele dia nem para apreciar as luzes de Kronberg ou a linha cintilante do horizonte de Frankfurt ao longe. No prato diante dela havia um bife de filé mignon com um cheiro apetitoso, assado à perfeição, mas seu estômago estava como que travado.

Ela havia saído do hospital e ido direto para casa. Colocou suas roupas na máquina de lavar e, em seguida, tomou um banho demorado, até acabar a água quente do aquecedor. Mesmo assim, ainda se sentia suja e manchada. Pia estava acostumada a ver cadáveres, mas não a ver uma pessoa morrer em suas mãos. Ainda por cima um homem que ela conhecia, com quem conversara um minuto antes e por quem sentira profunda compaixão. Estremeceu.

— Prefere voltar para casa? — perguntou Christoph nesse momento. A preocupação em seus olhos escuros levou Pia ao limite de seu autocontrole. De repente, lutou contra as lágrimas. Onde estaria Tobias? Tomara que não tivesse feito nenhuma bobagem!

— Não, está tudo bem. — Forçou-se a sorrir, mas ao ver o bife que estava no prato à sua frente, em meio ao caldo da carne, sentiu vontade de vomitar. Afastou o prato. — Sinto muito, hoje não sou uma companhia muito agradável. Ainda estou me sentindo culpada pelo que aconteceu.

— Entendo. Mas o que você poderia ter feito? — Christoph inclinou-se, esticou a mão e tocou sua face. — Você mesma disse que foi tudo muito rápido.

— Sim, claro. É bobagem minha. Eu não podia fazer nada, absolutamente nada. Mas, mesmo assim... — Deu um profundo suspiro. — Em momentos como esse, odeio minha profissão com todas as minhas forças.

—Venha, querida. Vamos para casa. Abrimos uma garrafa de vinho tinto e...

O toque do telefone de Pia o fez se calar. Ela estava de prontidão.

— Agora fiquei interessada em saber o que estava para vir depois do “e”. — Pia deu um ligeiro sorriso, e Christoph levantou as sobrancelhas de maneira sugestiva. Ela pegou o celular e atendeu.

—Um tal de Tobias Sartorius fez uma chamada de urgência há sete minutos — comunicou o policial da central de operações. — Ele está no prédio da empresa Terlinden, em Altenhain, e disse que uma tal de senhora Lauterbach está lá. Já mandei uma viatura para lá...

— Ai, merda — Pia interrompeu o colega. Seus pensamentos se encavalaram. O que Daniela Lauterbach estava fazendo na empresa de Claudius Terlinden? Por que Tobias estava ali? Estaria querendo se vingar? Sem dúvida, depois de tudo o que tinha ocorrido, Tobias Sartorius era uma bomba-relógio pronta para explodir. Ela levantou-se de um salto. — Entre imediatamente em contato com os rapazes da viatura. Pelo amor de Deus, eles não podem chegar lá com as sirenes e as luzes ligadas. E devem esperar por mim e pelo Bodenstein!

— O que aconteceu? — perguntou Christoph. Pia explicou-lhe em poucas palavras enquanto ligava para Bodenstein de seu celular. Para seu alívio, seu chefe atendeu segundos depois. Nesse meio-tempo, Christoph avisou ao dono do restaurante, que ele conhecia bem, já que era diretor do zoológico vizinho, que passaria mais tarde para pagar.

— Vou levar você — disse a Pia. — Três segundos até eu pegar nossos casacos.

Ela anuiu, já foi saindo e esperou impaciente na nevasca, diante da porta do restaurante. Por que Tobias tinha feito uma chamada de urgência? Teria acontecido alguma coisa com ele? Tomara que não chegassem tarde demais!

 

— Droga! — sussurrou Tobias, irado e sem saber como agir. Claudius Terlinden e Daniela Lauterbach tinham saído da sala e estavam passando pelo corredor, carregando malas e pastas, em direção ao elevador. O que poderia fazer para detê-los? Quanto tempo os tiras iam demorar para chegar? Droga, droga! Virou-se para Amelie que, embaixo da mesa, olhava para ele.

— Fique aqui — disse com voz rouca de tensão.

— Aonde você vai?

— Preciso detê-los com alguma conversa até a polícia chegar.

— Não, por favor, não faça isso, Tobi! — Amelie saiu do esconderijo. À luz fraca da iluminação externa, seus olhos pareciam enormes. — Por favor, Tobi, deixe os dois irem embora! Estou com medo!

— Não posso deixar que eles simplesmente deem no pé, depois de tudo o que fizeram! Você precisa entender isso! — respondeu energicamente. — Fique aqui, Amelie! Me prometa isso!

Ela engoliu em seco, abraçou o próprio tronco e concordou levemente com a cabeça. Ele respirou fundo e pôs a mão na maçaneta.

— Tobi!

— Sim?

Ela foi até ele e tocou sua face com a palma da mão.

— Tenha cuidado — sussurrou. Lágrimas brotaram dos seus olhos. Tobias fitou-a. Por um fragmento de segundo ficou tentado a abraçá-la, beijá-la e ficar com ela. Mas então predominou o desejo intenso de vingança que o havia impelido até ali. Não podia deixar que Terlinden e Lauterbach fugissem. De jeito nenhum!

— Volto logo — murmurou. Antes que pudesse mudar de ideia, saiu para o corredor e correu. O elevador já estava descendo, por isso ele empurrou a porta corta-fogo e desceu correndo a escada, sempre de três em três ou de quatro em quatro degraus. Chegou ao hall justamente no momento em que ambos saíam do elevador.

— Parem! — gritou, e sua voz ecoou. Como que eletrizados, ambos se viraram e o fitaram perplexos. Terlinden deixou as malas caírem. Tobias sentiu que ele estava tremendo no corpo inteiro. Embora preferisse lançar-se sobre eles e lhes dar uma surra, precisou se controlar e permanecer calmo.

— Tobias! — Claudius Terlinden foi o primeiro a se manifestar. — Eu... sinto... sinto muito mesmo pelo que aconteceu. De verdade, você precisa acreditar em mim, eu não queria...

— Cale a boca! — gritou Tobias e caminhou em um semicírculo ao redor deles, sem perdê-los de vista. — Não aguento mais ouvir essas mentiras de merda! O senhor é culpado de tudo! O senhor e esta... esta bruxa traiçoeira!

Acusou apontando o dedo para Daniela Lauterbach.

— Vocês dois sempre agiram com tanta compreensão, mas o tempo todo sabiam da verdade! Apesar disso, deixaram que me mandassem para a prisão! E agora querem dar no pé, não é? Depois de mim, o dilúvio, adeus! Só que isso não vai acontecer. Chamei a polícia, que já está para chegar.

Não lhe escapou o rápido olhar que Terlinden e Lauterbach trocaram.

— Vou contar tudo a eles do que sei sobre vocês. E não é pouca coisa! Meu pai morreu, já não pode dizer nada, mas eu também sei o que vocês fizeram no passado!

— Agora se acalme — disse Daniela Lauterbach, dirigindo-lhe seu sorriso amigável, com o qual ela enganara todo mundo. — Do que você está falando?

— Estou falando do seu primeiro marido. — Tobias se aproximou e parou bem na frente deles. Olhos castanhos e frios penetraram nos seus. — De Wilhelm, tio Willi, o irmão mais velho de Claudius, e do seu testamento!

— Sei. — Daniela Lauterbach sorriu-lhe, olhando-o fixamente. — E por que você acha que isso poderia interessar à polícia?

— Porque aquele não era o testamento correto — respondeu Tobias. — O verdadeiro, o doutor Fuchsberger deu para o meu pai, depois que Claudius o embriagou e lhe prometeu cem mil marcos.

O sorriso no rosto de Daniela Lauterbach enrijeceu-se.

— Seu primeiro marido estava muito doente, mas não achou nada divertido saber que a senhora o traía com o irmão dele; por isso, modificou seu testamento duas semanas antes de morrer, deserdando vocês dois. Ele instituiu a filha do seu motorista como a única herdeira, pois pouco antes de morrer ficou sabendo que, em maio de 1976, Claudius a engravidara e que ela, por ordem dele, tinha feito um aborto.

— Foi seu pai que lhe contou esse absurdo? — intrometeu-se Claudius.

— Não. — Tobias não desviou os olhos de Daniela Lauterbach. — Nem precisou. O doutor Fuchsberger lhe deu o testamento, que meu pai devia ter destruído, mas não destruiu. Ele o guardou, até hoje.

Então, olhou para Claudius Terlinden.

— Por isso o senhor cuidou para que ele ficasse em Altenhain, não foi? Porque ele sabia de tudo. Na verdade, nem a empresa nem a casa lhe pertenciam. E a doutora Lauterbach tampouco receberia sua casa e todo o seu dinheiro se fosse pelo seu primeiro marido. Segundo o testamento, tudo isso pertence à filha de Kurt Cramer, ex-motorista de Wilhelm Terlinden... — Tobias arquejou. — Infelizmente, meu pai nunca teve peito para tirar esse testamento da gaveta. Realmente, uma pena...

— Sim, uma pena mesmo — disse Daniela Lauterbach. — Mas acabo de ter uma ideia.

Terlinden e a doutora Lauterbach estavam de costas para a escadaria e não puderam ver Amelie, que passou pela porta; no entanto, perceberam que, por um instante, a atenção de Tobias se desviou. Daniela Lauterbach pegou a caixa que Terlinden segurava debaixo do braço, e, de repente, Tobias deparou com uma pistola.

— Eu tinha quase me esquecido daquela noite horrível, mas você acabou de me lembrar. Você lembra, Claudius, quando o Wilhelm apareceu de repente na porta do quarto e mirou em nós dois justamente com esta pistola?... — Ela sorriu para Tobias. — Obrigada por ter me dado a ideia, seu idiota.

Sem hesitar nem por um segundo, Daniela Lauterbach apertou o gatilho. Um estalo ensurdecedor rompeu o silêncio. Tobias sentiu um forte impacto e achou que seu peito fosse explodir. Sem acreditar, fitou a médica, que já estava se afastando. Ouviu o grito desesperado e estridente de Amelie chamando por ele, quis dizer alguma coisa, mas ficou sem fôlego. Suas pernas se dobraram sob seu peso. Tobias Sartorius já não sentia seu corpo cair no chão de granito. Ao seu redor, tudo estava preto e em absoluto silêncio.

 

Estavam justamente deliberando sobre como fariam para entrar no terreno hermeticamente fechado da empresa de Terlinden quando, do outro lado do portão, uma limusine escura se aproximou com os faróis acesos e em alta velocidade. O portão deslizou sem fazer barulho.

— É ele! — gritou Pia, fazendo sinal para os colegas. Claudius Terlinden, que estava ao volante da Mercedes, precisou frear bruscamente, quando, de repente, duas viaturas da polícia bloquearam seu caminho.

— Ele está sozinho no carro — constatou Bodenstein. Pia aproximou-se dele, de arma em punho, e fez sinal para Terlinden abaixar o vidro. Dois outros policiais reforçaram a ordem de Pia, cercando o carro, igualmente com as armas preparadas.

— O que querem de mim? — perguntou Terlinden. Estava rígido, com as mãos apertando o volante. Apesar do frio, seu rosto brilhava de suor.

— Desça do carro, abra todas as portas e o porta-malas — ordenou Bodenstein. — Onde está Tobias Sartorius?

— Como é que vou saber?

— E onde está a doutora Lauterbach? Agora desça de uma vez!

Terlinden não se moveu. Em seus olhos esbugalhados via-se puro pânico.

— Ele não vai descer — soou uma voz de dentro do carro, que estava escondida atrás do vidro escurecido. Bodenstein inclinou-se um pouco e viu Daniela Lauterbach no banco traseiro, bem como a pistola que ela comprimia contra a nuca de Terlinden.

— Libere o caminho imediatamente, senão atiro nele — ameaçou. Bodenstein sentiu que ele próprio começava a suar. Não duvidou da decisão de Daniela Lauterbach. A mulher estava com uma arma na mão e nada tinha a perder — uma combinação extremamente perigosa. As portas da Mercedes se travavam automaticamente depois que o carro andava alguns metros. Portanto, nem Bodenstein nem os policiais do outro lado podiam simplesmente abri-las e dominar a médica.

— Acho que ela está falando sério — sussurrou Terlinden, com voz rouca. Seu lábio inferior tremia, e era visível que ele estava em estado de choque. Bodenstein refletiu com rapidez. Dificilmente conseguiriam escapar. Com aquele tempo, mesmo uma Mercedes Classe S, com pneus de neve, chegaria, no máximo, a 120 quilômetros por hora.

— Vou deixá-los passar — disse, por fim. — Mas antes me digam onde está Tobias.

— Provavelmente no céu, com o paizinho dele — respondeu Daniela Lauterbach no lugar de Terlinden, e riu com frieza.

 

Bodenstein e uma viatura seguiram a Mercedes preta na saída da zona industrial, subindo até a autoestrada B 8, enquanto Pia pediu reforço e uma ambulância pelo rádio. Terlinden virou à direita, rumo à rodovia federal, ampliada para quatro faixas. Já em Bad Soden, mais duas viaturas se juntaram a eles e, poucos quilômetros adiante, mais três. Felizmente, o trânsito do final do dia já tinha terminado. Em um engarrafamento, a situação poderia piorar facilmente; contudo, seria pouco provável que Daniela Lauterbach atirasse em seu motorista enquanto ele estivesse dirigindo. Bodenstein olhou pelo retrovisor. Naquele meio-tempo, estavam sendo seguidos por uma dúzia de viaturas, com as luzes azuis acesas e bloqueando as três faixas para os carros que vinham atrás.

—Estão indo para a cidade — constatou Pia, quando a Mercedes preta virou à direita, para o trevo de Eschborn. Sem levar em conta a proibição de fumar em qualquer carro de serviço, acendeu um cigarro. Do rádio, diferentes vozes confundiam-se precipitadamente. Os colegas de Frankfurt estavam informados e tentariam manter as ruas livres, caso Terlinden entrasse mesmo na cidade.

— Talvez ela queira ir para o aeroporto — pensou Bodenstein em voz alta.

— Tomara que não — respondeu Pia, que aguardava notícias de Tobias Sartorius. Bodenstein deu uma rápida olhada para o lado, para o rosto pálido de tensão de sua colega. Que dia! Mal tinham superado a imensa pressão das últimas semanas, depois de encontrarem Thies e Amelie, e os acontecimentos se encavalaram de repente. Teria sido realmente naquela manhã que ele acordara na cama de Nicola?

—Estão indo para a cidade! — exclamou Pia nesse instante ao rádio, pois Terlinden passou reto pelo trevo, em vez de virar na A 5. — O que estão pretendendo fazer?

— Querem nos deixar para trás na cidade — supôs Bodenstein. Os limpadores de para-brisa raspavam rapidamente o vidro. A neve transformara-se em chuva forte, e Terlinden estava correndo muito mais do que o permitido. Dificilmente pararia em um semáforo vermelho, e a última coisa de que precisavam naquele momento era de um pedestre atropelado!

— Agora está perto do pavilhão de exposições, virou à direita na Friedrich-Ebert-Anlage — transmitiu Pia. — Ele está a pelo menos oitenta por hora, mantenham o caminho livre!

Bodenstein precisou concentrar-se. A via molhada refletia as luzes vermelhas do freio dos carros nos acostamentos, bem como a luz azul das viaturas, que estavam bloqueando todos os lados das vias.

— Acho que logo vou precisar de óculos — murmurou e acelerou mais, para não perder de vista Terlinden, que já estava ultrapassando o terceiro semáforo vermelho. O que a Lauterbach estaria pretendendo? Aonde queria ir?

— Você já pensou que talvez ela... — começou Pia, mas logo em seguida exclamou: — Vire! À direita! Ele está virando!

De maneira totalmente inesperada, sem reduzir a velocidade nem ligar a seta, Terlinden saiu da Platz der Republik e entrou na Mainzer Landstraße. Bodenstein também virou bruscamente o volante para a direita e cerrou os dentes quando o Opel derrapou e por um triz não colidiu com um metrô de superfície.

— Droga, essa foi por pouco — sibilou. — Para onde ele foi? Não estou vendo mais nada!

— À esquerda! À esquerda! — Com a tensão, Pia se esquecera do nome da rua, embora durante muitos anos tivesse trabalhado bem em frente, no antigo presídio da polícia. Apontou com o dedo na frente do rosto de Bodenstein. — Ele entrou ali, ali!

— Onde? — ouviram a voz do rádio. — Onde eles estão?

— Entraram na Ottostraße — respondeu Bodenstein. — Já os estou vendo novamente, não, não estou não. Droga!

— Os outros devem seguir reto até a estação! — exclamou Pia no aparelho. — Talvez ele só esteja querendo nos despistar.

Ela se inclinou para a frente.

— Direita ou esquerda? — quis saber Bodenstein, quando chegaram à Poststraße, no lado norte da estação principal. Precisou frear bruscamente, pois da direita vinha um carro a toda. Soltando vários palavrões, Bodenstein voltou a acelerar e, intuitivamente, decidiu virar à esquerda.

— Minha nossa! — exclamou Pia, sem desviar o olhar da rua. — Não sabia que você conhecia esse tipo de expressão!

— Tenho filhos — respondeu, e diminuiu a velocidade. — Está vendo o carro em algum lugar?

— Há uma centena de carros por aqui — reclamou Pia. Ela havia abaixado o vidro e espreitava na escuridão. Mais adiante havia viaturas com as luzes azuis piscando. Apesar da chuva torrencial, pedestres estavam parados e olhavam curiosos para o lado deles.

— Ali! — gritou Pia tão repentinamente que Bodenstein teve um sobressalto. — Ali estão eles! Estão saindo do estacionamento!

Eram eles mesmo! Segundos mais tarde, a Mercedes preta estava novamente à frente deles, e acelerou tanto na Baseler Straße que Bodenstein teve de se esforçar para não ficar para trás. Passaram voando pela Baseler Platz até a Friedensbrücke, e, intimamente, Bodenstein lançou jaculatórias aos céus. Pia continuou transmitindo sua posição. A 120 quilômetros por hora, a Mercedes percorreu a Kennedyallee, seguida por uma coluna de viaturas. Nesse ínterim, os colegas também os ultrapassaram, contudo sem tentar fazê-los parar.

—Estão indo para o aeroporto — disse Pia na altura do hipódromo Niederräder. Mal terminara de dizer isso, Terlinden jogou o carro da direita para a esquerda, atravessando as três faixas da avenida e raspando a roda na guia. Logo perdeu o controle e caiu nos trilhos do metrô de superfície. Pia não estava conseguindo falar na mesma velocidade com que Terlinden mudava de direção. As viaturas na frente dele já estavam na rua do aeroporto e não podiam mais mudar de rumo; no entanto, Bodenstein e Pia continuaram atrás da Mercedes quando ele fez uma manobra perigosa e virou na Isenburger Schneise. Na estrada reta, Terlinden acelerou sem pestanejar, e Bodenstein suou frio ao ser obrigado a fazer o mesmo. No entanto, de repente, as luzes do freio à sua frente se acenderam, a pesada Mercedes derrapou e foi parar na pista contrária. Bodenstein pisou com tanta força no freio que seu carro também derrapou. Será que a Lauterbach tinha atirado em seu refém em plena corrida?

— O pneu traseiro estourou! — exclamou Pia, que logo percebeu a situação. — Agora já não vão conseguir ir adiante!

E, de fato, após a louca e veloz corrida, Terlinden ligou prudentemente a seta da esquerda e virou na direção de Oberschweinstiege. Fazendo barulho, o automóvel prosseguiu a quarenta por hora pelo bosque, atravessou os trilhos e, por fim, parou no estacionamento do bosque, cerca de cem metros mais adiante. Bodenstein também parou, Pia saltou do carro e fez sinal para os colegas da viatura para que formassem um círculo em volta da Mercedes, depois voltou a entrar no carro. Por rádio, Bodenstein instruiu que todos permanecessem nas viaturas. Daniela Lauterbach estava armada, e ele não queria correr o risco desnecessário de colocar a vida dos colegas em jogo, sobretudo porque um comando móvel de operações chegaria em breve. Porém, de repente, a porta do motorista da Mercedes se abriu. Bodenstein prendeu a respiração e se endireitou. Terlinden desceu. Cambaleou ligeiramente, segurou-se na porta aberta do carro e olhou ao redor. Então, levantou as mãos. À luz dos faróis, ficou imóvel.

— O que está acontecendo? — ouviu-se indistintamente pelo rádio.

— Ele parou e desceu — disse Bodenstein. — Vamos descer agora.

Com a cabeça, fez um gesto afirmativo para Pia. Desceram do carro e se aproximaram de Terlinden. Pia manteve a arma apontada para a Mercedes, pronta para atirar ao menor movimento.

— Não precisa atirar em ninguém — disse Claudius Terlinden, e deixou os braços cair. Pia ficou com os nervos à flor da pele ao abrir a porta traseira da Mercedes e apontar para seu interior. A tensão se desfez e se transformou em decepção sem fim. O banco traseiro estava vazio.

 

— Ela apareceu de repente no meu escritório e me ameaçou com uma pistola. — Claudius Terlinden falava com dificuldade. Pálido e prostrado, estava sentado numa das viaturas da equipe. Aparentemente, estava em forte estado de choque.

— Continue — exortou-lhe Bodenstein. Terlinden queria passar a mão no rosto quando novamente lhe ocorreu que estava algemado. Apesar da alergia a níquel, pensou Pia cinicamente e o observou sem compaixão.

— Ela... ela me obrigou a abrir o cofre — continuou Terlinden com voz trêmula. Já não consigo me lembrar direito do que aconteceu. Embaixo, no hall, o Tobias apareceu de repente. Com a moça. Ele...

— Com que moça? — interrompeu-o Pia.

— Com aquela... aquela... já não consigo me lembrar do nome.

— Amelie?

— Isso, isso, é o nome dela.

— Ótimo. Continue.

— Sem hesitar, Daniela atirou em Tobias. Depois me obrigou a entrar no carro.

— E o que aconteceu com Amelie?

— Não sei. — Terlinden ergueu os ombros. — Não sei de mais nada. Só dirigi, sempre em frente. Tal como ela mandou.

— E na estação principal ela desceu — disse Bodenstein.

— Sim. Ela gritou: agora, à direita! E depois: agora, à esquerda! Fiz exatamente o que ela disse.

— Entendo. — Bodenstein fez que sim, depois se inclinou, e sua voz tornou-se penetrante. — Mas o que não entendo é por que vocês já não desceram na estação! Por que essa fuga arriscada pela cidade? O senhor tem ideia de que poderia facilmente ter causado um acidente?

Pia mordeu o lábio inferior e não desviou o olhar de Terlinden. Justamente quando Bodenstein virou-se para ela, Claudius Terlinden cometeu um erro. Ele fez algo que ninguém em intenso estado de choque faria: olhou para o relógio.

— Está mentindo descaradamente! — ralhou Pia, furiosa. — Tudo isso foi uma armação! Vocês queriam ganhar tempo! Para onde foi Lauterbach?

Por alguns minutos, Terlinden ainda tentou manter o disfarce, mas Pia não deu trégua.

— A senhora tem razão — confessou, por fim. — Queríamos fugir juntos. O avião parte às 23h45. Se vocês se apressarem, talvez ainda consigam pegá-la.

— Para onde? Para onde queriam fugir? — Pia precisou se controlar para não pegar o homem pelos ombros e sacudi-lo. — Fale de uma vez! Essa mulher atirou em uma pessoa! Isso se chama assassinato! E se o senhor não disser a verdade, então é cúmplice, pode apostar! Então, é para hoje? Que avião a Daniela Lauterbach vai pegar? E com que nome?

— O que vai para São Paulo — sussurrou Terlinden, fechando os olhos. — Como Consuela la Roca.

 

— Vou ao aeroporto — decidiu Bodenstein do lado de fora do automóvel da equipe. — Você continua o interrogatório com Terlinden.

Pia fez que sim. Ela estava muito nervosa porque ainda não recebera notícias dos colegas de Altenhain. O que tinha acontecido com Amelie? Teria Lauterbach também atirado na moça? Pediu a um agente da patrulha para se informar sobre o estado de Amelie, e voltou para a viatura.

— Como pôde fazer isso? — perguntou Pia. — Por pouco Daniela Lauterbach não matou seu filho, depois de tê-lo entupido de drogas durante anos!

Por um momento, Terlinden fechou os olhos.

— A senhora não entende — respondeu cansado, desviando o olhar.

— Então me explique — exortou-lhe Pia. — Me explique por que Daniela Lauterbach maltratou tanto o Thies e incendiou a estufa.

Claudius Terlinden abriu os olhos e fitou Pia. Passou-se um minuto, dois.

— Me apaixonei por Daniela quando meu irmão a levou pela primeira vez para casa — disse subitamente. — Era um domingo. 14 de junho de 1976. Foi amor à primeira vista. Apesar disso, um ano depois ela se casou com meu irmão, embora eles não tivessem nada a ver um com o outro. Eram muito infelizes juntos. Daniela tinha um grande êxito em sua profissão, e meu irmão ficava à sua sombra. Ele batia nela com frequência cada vez maior, até mesmo na frente dos funcionários. No verão de 1977, ela sofreu um aborto; um ano depois, outro e, depois, um terceiro. Meu irmão queria um herdeiro, ficou furioso com ela e a culpou. Quando minha mulher engravidou e, ainda por cima, deu à luz gêmeos, ele ficou louco.

Pia ouviu em silêncio e evitou interrompê-lo.

— Provavelmente Daniela ia se separar dele, mas, alguns anos mais tarde, meu irmão teve câncer. Incurável. Ela já não queria abandoná-lo nesse estado. Ele morreu em maio de 1985.

— Que prático para vocês dois — notou Pia com sarcasmo. — Mas isso não explica por que o senhor quis ajudá-la a fugir, embora essa mulher tenha sequestrado Amelie e Thies e trancafiado os dois num porão. Se eles não tivessem sido encontrados por acaso, teriam morrido afogados, pois a doutora Lauterbach havia inundado o porão.

— Do que a senhora está falando? — Perturbado, Claudius Terlinden levantou o olhar.

De repente, Pia se deu conta de que talvez Terlinden realmente não soubesse o que Daniela Lauterbach havia feito. Pouco antes, ele tinha ido ao hospital para ver o filho, mas, provavelmente, devido ao trágico incidente, não conseguira conversar com ele. Sem contar que dificilmente Thies teria conseguido contar alguma coisa ao pai. Pia relatou-lhe, então, nos mínimos detalhes, a pérfida tentativa de Daniela Lauterbach para matar Amelie e Thies.

— Não é verdade! — sussurrava com perplexidade crescente.

— É sim. Daniela Lauterbach queria matar Thies porque ele havia sido testemunha ocular quando o marido dela matara Stefanie Schneeberger. E Amelie devia morrer porque, por intermédio de Thies, ficou sabendo desse segredo.

— Santo Deus! — Terlinden passou as mãos pelo rosto.

— Pelo visto, o senhor não conhecia realmente sua amada quando quis fugir com ela. — Pia abanou a cabeça.

Terlinden ficou petrificado.

— Que idiota eu fui! Sou culpado de tudo! Na época, eu mesmo ofereci a casa a Albert Schneeberger.

— E o que o Schneeberger tem a ver com isso?

— Essa Stefanie virou completamente a cabeça do Thies. Ele era completamente louco por ela; depois, em algum momento, ele viu quando ela e o Gregor... enfim... a senhora já sabe. Ficou furioso e atacou Gregor; tivemos de levá-lo ao hospital psiquiátrico. Uma semana antes de a desgraça acontecer, ele voltou para casa. Estava tranquilo novamente. Os medicamentos fizeram milagres com ele. E depois Thies viu Gregor matar Stefanie.

Pia perdeu o fôlego, e sua boca quase se abriu.

— Gregor queria fugir, mas, de repente, Thies apareceu na frente dele. Ficou ali parado, olhando para ele, sem dizer uma palavra, como costuma fazer. Em pânico, Gregor foi correndo para casa, chorando feito um bebê. — A voz de Terlinden assumiu um tom de desprezo. — Daniela me ligou, e nos encontramos no celeiro dos Sartorius. Thies estava sentado ao lado da moça morta. Na hora, achei que o melhor fosse esconder o corpo em algum lugar, então me ocorreu o antigo bunker embaixo da estufa. Mas era impossível mandar Thies embora. Ele não largava a mão da Stefanie. Então Daniela teve a ideia de lhe dizer que ele deveria cuidar da Stefanie. Não deixava de ser arriscado, mas deu certo. Por onze anos. Até essa Amelie aparecer. Essa maldita enxerida pôs tudo a perder.

Durante todos aqueles anos, ele e Daniela Lauterbach sabiam da verdade sobre Laura e Stefanie e se calaram. Como conseguiram viver tendo conhecimento de um fato tão horrível?

— E quem o senhor achou que tinha sequestrado a moça e seu filho? — indagou Pia.

— Nadja — respondeu Claudius Terlinden, com voz abafada. — Eu a vi no celeiro, na noite em que Gregor matou Stefanie, mas não contei a ninguém.

Suspirou profundamente.

— Mais tarde, conversei com ela a respeito — continuou. — Ela foi muito sensata, e quando consegui para ela um contato na televisão com um velho amigo meu, ela me prometeu que jamais falaria alguma coisa a respeito. Saiu de Altenhain, como sempre havia planejado, e fez uma grande carreira. Com isso, a paz voltou para a cidade. Tudo estava em ordem. — Esfregou os olhos. — Nada teria acontecido se cada um tivesse seguido as regras do jogo.

— As pessoas não são peões de xadrez — rebateu Pia, mordaz.

— São sim — contestou Terlinden. — A maioria das pessoas fica feliz e satisfeita quando alguém lhes tira a responsabilidade por sua vida mesquinha e toma decisões das quais elas próprias não são capazes. Alguém precisa ter uma visão geral do conjunto e mexer os pauzinhos quando necessário. E esse alguém sou eu. — Com um vestígio de orgulho, um sorriso surgiu em seu rosto.

— Engano seu — respondeu Pia sensatamente, depois de ter compreendido todo o contexto. — Esse alguém não foi o senhor, mas Daniela Lauterbach. O senhor também era apenas um peão no xadrez dela, um peão que ela moveu de um lado para outro como bem quis.

O sorriso de Terlinden desapareceu.

— Torça para que meu chefe consiga pegá-la no aeroporto. Do contrário, o senhor será o único a aparecer nas manchetes dos jornais e a passar o resto da vida na cadeia.

 

— Não dá para entender. — Ostermann abanou a cabeça e olhou para Pia. — Se entendi direito, então, metade de Altenhain pertence, por direito, à mãe do Tobias?

— Exatamente — Pia confirmou. Diante deles, sobre a mesa, estava o testamento de três páginas de Wilhelm Julius Terlinden, lavrado e reconhecido em cartório no dia 25 de abril de 1985, no qual ele deserdava sua mulher, Daniela Terlinden, cujo sobrenome de solteira era Kroner, e o irmão, Claudius Paul Terlinden. Amelie dera a um colega o documento em um espesso envelope, antes de entrar na ambulância que levaria Tobias Sartorius ao hospital. O rapaz tivera sorte, pois, graças à pouca força de penetração, a arma com a qual Daniela Lauterbach atirara contra ele não lhe causara nenhum ferimento fatal. Entretanto, Tobias perdera muito sangue e, mesmo depois da cirurgia de emergência, ainda não estava fora de perigo.

— Não estou entendendo muito bem por que o testamento de Wilhelm Terlinden estava em posse de Hartmut Sartorius — disse Pia. — Só algumas semanas antes de morrer é que ele o redigiu.

— Provavelmente porque somente então ele se deu conta de que os dois o traíam havia vários anos.

—Hum. — Pia mal conseguiu reprimir um bocejo. Havia perdido toda noção do tempo, estava exausta e, ao mesmo tempo, bem-humorada. Tobias e sua família haviam se tornado vítimas de intrigas pérfidas, cobiça de dinheiro e poder, mas, graças ao testamento que Hartmut Sartorius guardara, ao menos em termos financeiros traçava-se um final bastante feliz para Tobias e a mãe.

— Chega, vá embora — disse Ostermann a Pia. — Essa papelada pode esperar até amanhã.

— Por que Hartmut Sartorius nunca fez valer esse testamento? — perguntou Pia.

— Talvez tivesse medo das consequências ou ele próprio tivesse culpa no cartório. Esse testamento chegou a ele de alguma forma, e, certamente, não foi por vias legais — respondeu Ostermann. — Além do mais, em um vilarejo como esse, as leis são outras. Sei como é.

— Por quê?

Ostermann sorriu e se levantou.

— Você não quer ouvir a história da minha vida às quatro e meia da manhã, quer?

— Quatro e meia? Meu Deus... — Pia bocejou e se espreguiçou. — Você sabia que a mulher do Frank o deixou? E que Hasse era amigo do Secretário Estadual de Educação e Cultura?

— Do primeiro, sim, do último, não — respondeu Ostermann, desligando o computador. — Por que está perguntando isso?

— Também não sei. — Pensativa, Pia deu de ombros. — Mas a gente acaba passando mais tempo com os colegas de trabalho do que com o próprio namorado, e não sabe nada da vida deles. Por que é assim?

Seu celular tocou com a música especial que Christoph havia salvado. Ele estava esperando por ela lá embaixo, no estacionamento. Pia se levantou com um gemido e pegou sua bolsa.

— Isso realmente me dá o que pensar.

— Bom, não vá ficar filosofando agora — disse Ostermann do lado de fora da porta. — Amanhã eu lhe conto tudo o que você quiser saber da minha vida.

— Pia sorriu cansada.

— Tudo mesmo?

— Claro. — Ostermann apertou o interruptor. — Não tenho nada a esconder.

 

— Quer que eu a carregue para dentro de casa? — ofereceu Christoph.

— Melhor não. — Pia bocejou e sorriu ao mesmo tempo. — Senão, na semana que vem, vou ter de arrastar os sacos de ração sozinha, porque você vai estar com uma bela hérnia de disco.

Desceu do carro e foi cambaleando até a porta. Os cachorros a saudaram com latidos alegres e pediram um breve carinho. Só depois de tirar o casaco e arrancar as botas é que se lembrou do compromisso no Departamento de Fiscalização de Obras.

— Afinal, qual foi o resultado da reunião? — quis saber. Christoph acendeu a luz da cozinha.

— Infelizmente, nada bom — respondeu sério. — Nem a casa nem o celeiro foram autorizados na época. E vai ser muito difícil obter uma autorização posterior por causa das linhas de transmissão de energia.

— Não pode ser! — Pia teve a sensação de que o chão ia se abrir sob seus pés. Aquela era sua casa, seu lar! Para onde iria com todos os animais? Fitou Christoph, chocada. — E agora? O que vai acontecer agora?

Ele foi até ela e a pegou nos braços.

— A ordem de demolição é irrevogável. Pode até ser um pouco protelada com um recurso, mas, infelizmente, não para sempre. Além disso, há outro probleminha.

— Ah, não, por favor, não — murmurou Pia, quase chorando. — O que mais?

— É que o Estado de Hessen tem direito a precedência na compra do terreno, pois em algum momento irá construir uma saída rodoviária aqui — respondeu Christoph.

— Ah, que ótimo. Então, como se não bastasse, vou ser expropriada! — Pia desvencilhou-se de seu abraço e foi sentar-se à mesa da cozinha. Um dos cachorros empurrou-a com o focinho, e, perdida em pensamentos, ela acariciou sua cabeça. — Todo o dinheiro foi para o brejo!

— Não, não, escute. — Christoph sentou-se à sua frente e pegou a mão dela. — Na verdade, também há uma notícia muito boa. Você pagou três euros por metro quadrado. O Estado vai lhe pagar cinco.

Pia levantou o olhar, incrédula.

— De onde tirou isso?

— Bom, conheço muita gente. E hoje dei uma porção de telefonemas. — Christoph sorriu. — Acabei descobrindo uma coisa interessante.

Pia também precisou sorrir.

— Como conheço você, já deve ter encontrado outro sítio.

— Estou vendo que você me conhece mesmo — respondeu Christoph, alegre, mas depois ficou sério. — Na verdade, é o seguinte: o veterinário que antes cuidava dos nossos animais no zoológico quer vender sua antiga clínica para tratamento de cavalos, no Taunus. Um tempo atrás, dei uma olhada no sítio, porque estávamos procurando um lugar para deixar os animais de quarentena. O sítio não era apropriado para isso, mas... para você, para mim e para os seus animais seria um sonho. Hoje fui buscar as chaves. Se quiser, amanhã de manhã damos uma passada lá, que tal?

Pia olhou em seus olhos escuros. De repente, sentiu uma felicidade profunda e quente crescer dentro de si. Pouco importava o que ia acontecer — mesmo que a casa fosse demolida e ela tivesse de deixar Birkenhof —, não estava sozinha. Christoph estava ao seu lado, como Henning nunca havia estado. Ele nunca a abandonaria.

— Obrigada — disse em voz baixa e estendeu-lhe a mão. — Obrigada, meu amor. Você simplesmente não existe.

Ele pegou a mão dela e a colocou em sua face áspera.

— Só estou fazendo tudo isso porque quero ir morar com você — respondeu sorrindo. — Você já percebeu que não vai se livrar de mim tão cedo.

Pia sentiu um nó na garganta.

— Tomara que nunca mais — sussurrou e também sorriu.

Terça-feira, 25 de novembro de 2008

Passava pouco das cinco da manhã quando Bodenstein saiu do hospital. Ficara profundamente tocado ao ver Amelie esperar pacientemente ao lado da cama de Tobias Sartorius até ele despertar da anestesia. Bodenstein levantou a gola do sobretudo e dirigiu-se à viatura. Conseguira prender Daniela Lauterbach no último segundo. Ela não estava no avião para a América do Sul, e sim naquele para a Austrália. Bodenstein contornou o hospital, mergulhado em pensamentos. A neve fresca crepitava sob a sola de seus sapatos. Desde o dia em que acharam o esqueleto de Laura Wagner no aeródromo de Eschborn, parecia que meses haviam passado. Se antes ele considerava todos os casos da perspectiva objetiva de alguém de fora, que observa a vida de pessoas totalmente estranhas, desta vez tinha a sensação de ter se envolvido pessoalmente nos acontecimentos. Alguma coisa havia mudado em sua atitude, e ele sabia que nunca voltaria a se sentir como antes. Parou diante do carro. Era como se, em meio ao rio tranquilo e monótono da vida, de repente tivesse ido parar em uma cachoeira e passasse a velejar em outras águas, mais turbulentas, rumo a uma direção totalmente nova. Essa sensação era inquietante e, ao mesmo tempo, emocionante.

Bodenstein entrou no carro, deu a partida e esperou até o limpador de para-brisa remover a neve. No dia anterior, havia prometido a Cosima passar para tomar café da manhã, despedir-se dela e conversar com calma sobre tudo, caso seu trabalho permitisse. Surpreso, constatou que já não tinha nenhum ressentimento com relação a ela e sentia-se totalmente em condições de conversar objetivamente sobre toda a situação. Bodenstein tirou o carro do estacionamento e dirigiu para a avenida, no sentido de Kelkheim, quando seu celular, que na área do hospital tinha ficado sem sinal, emitiu um bipe. Ele tirou o telefone do bolso e leu a mensagem: um pedido de retorno da ligação, feito às 3h21, de um número de celular que ele não conhecia. Imediatamente, digitou o número mostrado no display. Ouviu o sinal de chamada.

— Alô? — Uma voz sonolenta e desconhecida de mulher atendeu.

— Aqui é Bodenstein — disse. — Me desculpe por incomodar tão cedo, mas recebi um pedido de retorno de ligação em meu celular e pensei que fosse urgente.

— Ah... olá— respondeu a mulher. — Eu estava até agora com minha irmã no hospital, para ver Thies, e acabei de chegar em casa. Eu queria lhe agradecer.

Somente então Bodenstein entendeu quem estava do outro lado da linha, e seu coração deu um pulo de alegria.

— Agradecer o quê? — perguntou.

— O senhor salvou a vida do Thies — disse Heidi Brückner. — E, provavelmente, a da minha irmã também. Vimos na televisão que o senhor prendeu meu cunhado e a Lauterbach.

—Hum. Sim.

— Bem — de repente, ela pareceu sem graça. — Na verdade era isso o que eu queria lhe dizer. O senhor... o senhor teve dias muito tensos, provavelmente está cansado e...

— Não, não — disse Bodenstein rapidamente. — Estou bem desperto. Mas faz uma eternidade que não como nada e gostaria de ir tomar café da manhã agora, em algum lugar.

Fez-se uma breve pausa, e ele temeu que a conversa pudesse ser interrompida.

— Eu também tomaria um café agora — respondeu ela, então. Bodenstein conseguiu imaginar seu sorriso e sorriu.

— Vamos a algum lugar tomar um café? —sugeriu ele, torcendo para que o convite soasse tranquilo. Intimamente, ele estava tudo, menos tranquilo. Podia sentir o coração bater até nas pontas dos dedos. Quase teve a impressão de que estava fazendo algo proibido. Há quanto tempo não se encontrava com uma mulher atraente?

— Seria ótimo — respondeu Heidi Brückner, para alívio dele. — Mas infelizmente já estou em casa, em Schotten.

— Melhor do que em Hamburgo — Bodenstein riu e aguardou, tenso, sua resposta. — Se bem que, por um café agora, eu bem que iria até Hamburgo.

— Então é melhor vir até Vogelsberg — respondeu ela. Bodenstein diminuiu a velocidade, pois à sua frente havia um caminhão limpador de neve. Um quilômetro mais à frente, à direita e pela B 8, ia-se a Kelkheim. Para a casa de Cosima.

— Não conheço muito bem a região — disse ele, embora, na verdade, tivesse o endereço no cartão de visita que ela lhe dera. — Não posso dar uma busca em Vogelsberg inteira à sua procura.

— É verdade, seria perder muito tempo. — Ela riu. — Schlossgasse 19. No centro da cidade velha.

— Está bem. Assim é mais fácil encontrar — respondeu.

— Ótimo. Então, até mais tarde. E dirija com cuidado.

— Pode deixar. Até mais. — Bodenstein encerrou a conversa e suspirou profundamente. Se tinha sido uma boa ideia? No escritório, uma papelada o esperava e, em casa, Cosima. O caminhão limpador de neve ainda se arrastava à sua frente. À direita ia-se a Kelkheim.

O trabalho podia esperar. E a conversa importante com Cosima, mais ainda. Bodenstein respirou fundo e ligou a seta. Para a esquerda. Rumo à autoestrada.

 

                                                                                Nele Neuhaus  

 

                      

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