Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAÇA AOS ROBÔS / Isaac Asimov
CAÇA AOS ROBÔS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAÇA AOS ROBÔS

 

ENTREVISTA COM UM COMISSÁRIO

     Ao chegar perto de sua escrivaninha, Ligi Baley percebeu que R. Sammy estava à sua espera.

     - O que é que você quer? - perguntou com expressão dura.

     - O chefe quer falar com você, Ligi. Agora mesmo.

     - Está bem.

     R. Sammy ficou parado, imóvel.

     Baley repetiu:

     - Já disse que está bem. Pode ir!

     R. Sammy deu meia volta e se afastou para cuidar de suas outras tarefas. Baley, irritado, ficou especulando por que aquelas tarefas não poderiam ser cumpridas por um homem. Examinou sua bolsa de fumo e calculou mentalmente: com apenas duas cachimbadas por dia, poderia ter o suficiente para chegar até à próxima distribuição da ração de fumo. Finalmente passou pela abertura da grade (há dois anos tinha sido promovido, com direito a um canto separado por uma balaustrada) e atravessou o grande salão.

     Simpson estava examinando um painel de mercúrio:

     - O chefe quer vê-lo, Ligi.

     - Eu sei, R. Sammy já me disse.

     Uma fita coberta de sinais em código estava saindo do arquivo ao mercúrio, enquanto o pequeno instrumento procurava em sua "memória" e analisava as informações guardadas entre as vibrações minúsculas da brilhante superfície de mercúrio em seu interior.

     - Gostaria de dar um chute no traseiro de R. Sammy, mas receio que acabaria quebrando meu pé, - disse Simpson. - Há alguns dias, vi Vince Barrett.

     - É mesmo?

     - Veio para ver se poderia reaver seu antigo emprego, ou então um emprego qualquer aqui na polícia. Coitado, está desesperado, mas o que é que eu poderia fazer? Expliquei que R. Sammy estava cumprindo suas tarefas. O garoto foi obrigado a aceitar um emprego de entregador nas usinas de levedura. Uma lástima.   É um garoto inteligente e todo mundo gostava dele.

     Baley encolheu os ombros e falou em tom mais áspero do que queria:

     - Agora todo mundo está exposto ao mesmo risco.

     O chefe tinha direito a um escritório particular. O vidro leitoso ostentava o nome JULIUS ENDERBY. Letras bonitas, cuidadosamente gravadas no vidro. Embaixo estava a indicação do cargo: COMISSÁRIO DA POLÍCIA, CIDADE DE NOVA IORQUE.

     Baley entrou e perguntou:

     - Estava me procurando, chefe?

     Enderby ergueu a cabeça. Estava usando óculos porque seus olhos eram muito sensíveis e não podiam se acostumar às lentes de contato. Era necessário se acostumar a vista daqueles óculos, para poder examinar o resto de suas feições que eram bastante banais. Baley suspeitava que o Comissário usava óculos porque lhe conferiam uma certa personalidade e que seus olhos não eram realmente tão sensíveis. O Comissário estava visivelmente nervoso. Ajeitou os punhos da camisa, endireitou as costas e falou com cordialidade excessiva:

     - Sente-se, Ligi. Sente-se.

     Baley sentou-se com as costas rígidas e esperou.

     Enderby perguntou:

     - Como está Jessie? E o garoto?

     - Muito bem, - respondeu Baley, seco. - Estão bem.  E sua família?

     - Bem, - disse Enderby. - Muito bem.

     Pararam, sem saber como continuar. Baley pensou: Seu rosto parece esquisito. Falou:

     - Escute, Comissário, gostaria que você não mandasse me procurar pelo R. Sammy.

     - Ligi, você sabe o que eu penso a respeito, mas ele foi colocado aqui e preciso me valer dele para fazer algumas coisas.

     - Mas é muito desagradável, chefe. Ele me dá o recado e depois fica parado, esperando. Sabe o que eu quero dizer. Preciso lhe dizer para ir embora, caso contrário fica parado.

     - Sinto muito, Ligi, foi minha culpa. Dei-lhe a ordem e esqueci de especificar que a seguir deveria voltar ao seu trabalho.

     Baley suspirou. As rugas em volta de seus olhos castanhos escuros ficaram mais acentuadas.

     - Está bem. Você queria falar comigo?

     - Sim, Ligi, - confirmou o Comissário. - Mas não é fácil.

     Levantou-se, virou as costas e se aproximou da parede atrás da escrivaninha. Apertou um botão invisível e uma parte da parede ficou transparente. Baley bateu as pálpebras quando a inesperada claridade cinzenta feriu sua vista. O Comissário sorriu.

     - Mandei fazer isto de propósito, Ligi, no ano passado e acho que ainda não lhe mostrei. Venha até aqui para dar uma espiada. Antigamente, todos os aposentos tinham uma abertura assim. Eram chamadas "janelas". Você sabia?

     Baley estava a par, porque tinha assistido a muitas novelas históricas.

     - Já ouvi falar a respeito.

     - Chegue mais perto.

     Baley relutou, mas acabou por obedecer. Expor a intimidade de um aposento ao mundo externo tinha algo de indecente. Chegou à conclusão que o Comissário exagerava um pouco com sua afetação de medievalismo e chegava a parecer um pouco tolo. Por exemplo, quando insistia em usar óculos. Então é isto, pensou Baley. Por isso parece esquisito. Falou:

     - Desculpe, você está usando óculos novos, não é mesmo?

     O Comissário pareceu surpreso. Tirou os óculos, observando-os e depois olhou para Baley. Sem os óculos, seu rosto parecia mais redondo e seu queixo mais acentuado. Tinha também uma expressão indecisa, porque não enxergava muito bem.

     - Sim, - respondeu.

     Colocou os óculos no nariz e continuou, ressentido:

     - Quebrei os outros há três dias e entre uma coisa e a outra, só consegui os novos hoje de manhã. Ligi, pode acreditar, foram três dias infernais.

     - Por causa dos óculos?

     - Sim, e por outros motivos também.

     Voltou a olhar pela janela, imitado por Baley que ficou levemente surpreso quando percebeu que estava chovendo. Durante um minuto, ficou observando o curioso espetáculo das gotas de água que caíam do céu, enquanto o Comissário ostentava um certo orgulho, como se tivesse organizado pessoalmente aquele espetáculo surpreendente.

     - É a terceira vez neste mês que vejo a chuva. Um espetáculo interessante, você não acha?

     Baley admitiu a contragosto que era impressionante. Em seus quarenta e dois anos de vida tinha visto raramente a chuva ou qualquer outro fenômeno da natureza. Disse:

     - Sempre tenho a impressão de que é um grande desperdício. A chuva não deveria cair sobre a cidade, mas se limitar aos reservatórios.

     - Ligi, você é um modernista, - observou o Comissário. - É uma lástima. Na Idade Média os homens viviam ao ar livre, e não só nas fazendas. Até nas cidades, até mesmo em Nova Iorque. Quando chovia, eles não pensavam que era um desperdício, mas ficavam satisfeitos. Viviam em contato com a natureza. Sabe, é melhor, muito mais saudável. A vida moderna é complicada porque fica afastada da natureza. Você deveria ler algo sobre o Século do Carvão.

     Baley sabia tudo a respeito. Tinha ouvido muita gente se queixar por causa da invenção dos reatores atômicos. Ele também se queixava quando estava cansado ou quando as coisas não iam como deviam. A tendência aos queixumes era uma faceta da personalidade humana. No Século do Carvão as pessoas costumavam se queixar pela invenção das máquinas a vapor. Um personagem numa tragédia de Shakespeare se queixava da invenção da pólvora. Daqui a mil anos, os homens iam se queixar da invenção do cérebro positrônico. Para o raio que o parta. Disse com uma certa irritação:

     - Escute, Julius. - (Não tinha o hábito de falar com tanta intimidade durante o expediente, apesar do Comissário sempre o chamar de "Ligi", mas a ocasião era muito especial.) - Escute, Julius, você está desconversando desde que entrei e estou começando a ficar preocupado. O que há, afinal?

     - Já vou explicar, Ligi, mas deixe que o faça à minha maneira, - disse o Comissário.   - É algo bastante... desagradável.

     - Estou vendo, mas por outro lado, o planeta está cheio de coisas desagradáveis. O que é? Mais dificuldades com os Rs?

     - Num certo sentido. Às vezes fico a me perguntar quantas mais complicações este velho planeta poderá agüentar. Quando mandei fazer esta janela, não foi só para ver o céu de vez em quando. Por ela, vejo a Cidade. Fico a observá-la e penso no que poderá acontecer com ela dentro de mais um século.

     Baley ficou escandalizado por tamanho sentimentalismo, mas percebeu que se sentia fascinado por aquela vista. Mesmo escurecida pela chuva, a Cidade oferecia um panorama formidável. O Departamento de Polícia ocupava os andares superiores da Prefeitura, e a Prefeitura era muito alta. As torres da vizinhança eram todas mais baixas e da janela do Comissário só se podiam ver os tetos. Pareciam uma porção de dedos apontando para cima. As paredes eram lisas, sem janelas, o revestimento externo de colméias humanas.

     - Sinto que esteja chovendo, - observou o Comissário.  - Hoje não podemos ver a Cidade Espacial.

     Baley olhou para oeste, mas o comissário estava certo. O horizonte estava fechado. As torres de Nova Iorque se destacavam contra uma parede cinzenta de água.

     - Já conheço a Cidade Espacial, - disse Baley.

     - Gosto de vê-la daqui, - respondeu o Comissário. - Posso percebê-la naquele intervalo entre os dois setores de Brunswick.  É um conjunto de abóbadas baixas. Mostra a diferença que existe entre nós e os Espaciais. Nós ficamos juntos e levantamos torres bem altas. Eles entregam uma abóbada para cada família. Uma família, uma casa. Entre uma abóbada e a outra tem bastante terreno. Alguma vez você já conversou com um Espacial?

     - Sim, algumas vezes. Há um mês, falei com um deles aqui mesmo, pelo seu intercomunicador, - respondeu Baley pacientemente.

     - Sim, estou lembrado. Estou com vontade de filosofar. Eles e nós. Dois estilos de vida diferentes.

     Baley percebeu que seu estômago estava começando a se contrair um pouco. Pensou que o preâmbulo do Comissário estava se encompridando demais e que a conclusão poderia ser fatal. Disse:

     - Está bem. Você acha que isto é muito surpreendente? Não podemos espalhar oito bilhões de pessoas da Terra, alojando-as em pequenas abóbadas. Eles têm espaço suficiente em seus mundos, precisamos deixá-los viver à sua maneira.

     O Comissário voltou à escrivaninha e se sentou. Seus olhos, levemente diminuídos pelas lentes côncavas, fitaram Baley sem piscar. Falou:

     - Nem todos são tolerantes a respeito desta diferença de culturas. Não só entre nós, mas também entre os Espaciais.

     - Certo. E daí?

     - Daí, um Espacial morreu há três dias.

     Então, era isto. Baley encrespou levemente os cantos da boca, mas seu rosto comprido tinha uma expressão tão triste que não deu para perceber. Disse:

     - Que remédio. Espero que tenha sido por causa de alguma doença contagiosa. Um vírus, talvez uma gripe.

     O Comissário ficou a observá-lo, estupefato.

     - O que é que você está dizendo?

     Baley achou que não valia a pena explicar. Todo mundo conhecia os esforços feitos pelos Espaciais para eliminar as doenças em sua sociedade. Os cuidados que usavam para evitar ao máximo qualquer contato com os Terrestres infectos eram ainda mais conhecidos. O Comissário porém não tinha sensibilidade suficiente para reconhecer o sarcasmo. Baley respondeu:

     - Só falei por falar. Como foi que ele morreu? - Voltou a olhar pela janela.

     O Comissário disse:

     - Morreu porque ficou sem peito. Alguém usou um desintegrador.

     Baley enrijeceu os músculos. Perguntou sem se virar:

     - O que é que você está dizendo?

     - Estou lhe explicando que houve um assassinato, - murmurou o Comissário. - Você é um investigador. Você sabe o que é um assassinato.

     Baley finalmente se virou.

     - Mas um Espacial! Você disse que isto aconteceu há três dias?

     - Sim.

     - Quem fez isto? Como aconteceu?

     - Os Espaciais afirmam que foi um Terrestre.

     - Isto é impossível.

     - Por quê? Você não gosta dos Espaciais. Eu também não gosto. Pode me dizer qual Terrestre gosta deles? Alguém foi um pouco além de não gostar. É só isto.

     - Escute, eu...

     - Tudo isto só indica que a insatisfação está aumentando. Possivelmente, alimentada por alguma organização.

     Baley protestou:

     - Comissário, não estou entendendo. Você está querendo me testar?

     - Como? - O Comissário pareceu estupefato. Baley ficou a observá-lo. - Há três dias alguém matou um Espacial, e os Espaciais acreditam que isto foi obra de um Terrestre. Até agora, ninguém descobriu nada, - continuou batendo os dedos sobre a escrivaninha.

     - Não é isto? Por Josafá, Comissário, isto é inacreditável. Uma coisa destas poderia provocar o desaparecimento de Nova Iorque da face da terra.

     O Comissário sacudiu a cabeça.

     - A coisa não é tão simples como parece, Ligi. Escute: estive ausente três dias. Reuni-me com o Prefeito, passei algum tempo na Cidade Espacial e fui até Washington, para consultar o Birô de Investigações Terrestres.

     - Não diga. E qual é a opinião do BIT?

     - Disseram-me que precisamos resolver o caso. Aconteceu dentro dos limites da zona urbana. A Cidade Espacial pertence à Nova Iorque.

     - Mas tem privilégios extra-territoriais.

     - Sei. Já vamos examinar este detalhe. - O Comissário desviou os olhos da expressão dura de Baley.

     Dava a impressão de ser um subordinado de Baley, e o próprio  Baley parecia estar aceitando esta inversão de posições.

     - Os Espaciais podem resolver seus casos sozinhos, - sentenciou Baley.

     - Espere um minuto, Ligi, - pediu o Comissário. - Não seja apressado. Estou tentando discutir o caso com você, de amigo para amigo. Quero que você perceba minha posição. Eu estava lá quando a coisa aconteceu. Tinha marcado uma entrevista com ele - com Roj Nemennuh Sarton.

     - Com a vítima?

     - Isto mesmo. A vítima. - O Comissário fungou. - Por uma questão de cinco minutos, poderia ter sido eu a descobrir o cadáver. Isto, sim, seria um choque. Mesmo assim, o impacto foi brutal, acredite, brutal. Eles me avisaram quando cheguei.  Então começou um pesadelo de três dias, Ligi. E ainda por cima, eu não estava enxergando direito e não tinha sequer o tempo de mandar fazer óculos novos. Mas nunca mais vou me encontrar numa situação destas. Mandei fazer três pares.

     Baley tentou imaginar como tinham acontecido as coisas. Visualizou os Espaciais altos e claros se aproximando do Comissário para lhe comunicar o acontecido, com seu jeito brusco, sem rodeios. Julius sem dúvida tinha tirado os óculos para limpá-los. Emocionado pela notícia, devia tê-los deixado cair, observando, contrariado, os estilhaços espalhados pelo chão. Baley estava convencido de que, pelo menos durante os primeiros cinco minutos, o Comissário tinha ficado mais perturbado por causa dos óculos quebrados que pelo assassinato.

     O Comissário ainda estava falando:

     - Compreenda, Ligi, esta situação é o diabo. Você observou que os Espaciais têm direitos extra-territoriais. Eles podem insistir em fazer sua própria investigação e mandar um relatório qualquer ao seu governo. Os Mundos Externos poderiam se valer deste relatório para pedir qualquer indenização que achassem certa. Você sabe a reação que uma coisa destas poderia provocar entre nosso povo.

     - Se a Casa Branca concordasse no pagamento, cometeria suicídio político.

     - Ao mesmo tempo, cometeria outro tipo de suicídio se recusasse o pagamento.

     - Eu sei, eu sei, - respondeu Baley.

     Ainda era um garotinho quando pela última vez os cruzadores reluzentes do espaço tinham desembarcado soldados em Washington, Nova Iorque e Moscou, para que coletassem o que era devido.

     - Pois é, você sabe. Pagando ou não pagando, tudo isto vai dar encrenca.   Nossa única saída está em encontrar o assassino e entregá-lo aos Espaciais.  Vamos ter que fazê-lo.

     - Por que não entregamos o caso ao BIT? Afinal, mesmo tendo acontecido dentro de nossos limites urbanos, o crime envolve as relações intra-estelares, e...

     - O BIT se recusou. O caso é muito delicado e precisamos resolvê-lo sozinhos. - Lançou um olhar agudo ao seu subordinado. - Preciso também acrescentar, Ligi, que é um caso perigoso. Todos nós nos arriscamos a perder nossos empregos.

     Baley observou

     - Você acha que eles queiram substituir todos nós? Tolices. Não existe suficiente pessoal especializado.

     - Existem os Rs, - retrucou o comissário. - Lembre-se disto.

     - O que?

     - R. Sammy está apenas começando. Entrega recados. Outros podem patrulhar as vias expressas. Diacho, homem, conheço os Espaciais melhor do que você, e sei o que eles estão fazendo. Existem Rs que podem fazer seu trabalho e o meu também. Podemos ser desclassificados. Não pense que isto é impossível. E começar tudo de novo, com a nossa idade...

     - Está bem, - rosnou Baley.

     O Comissário parecia arrependido.

     - Desculpe, Ligi.

     Baley assentiu e procurou afastar a lembrança de seu próprio pai. O Comissário conhecia bem toda aquela história.

     Baley perguntou:

     - Quando surgiu toda esta conversa de substituições?

     - Ligi, não seja ingênuo. Há tempo que isto está acontecendo. Começou há vinte e cinco anos, desde a chegada dos Espaciais. Você sabe que é assim. Agora está alcançando também os escalões superiores, é só isto. Se não conseguirmos resolver o caso, podemos perder nossa aposentadoria. Por outro lado, Ligi, se encontrarmos a solução, os benefícios podem ser de longo alcance. Para você, poderia ser algo especialmente favorável.

     - Por que, para mim? - perguntou Baley.

     - Porque você ficará encarregado do caso, Ligi.

     - Isto está fora de minhas atribuições. Sou simplesmente um C-5.

     - Mas você gostaria de ser promovido à categoria de C-6, não é?

     Baley queria ser promovido. Conhecia muito bem os privilégios de um funcionário da categoria C-6. O assento garantido na via expressa durante a hora do rush, e não só entre às dez e às quatro. Um bom passo para cima na lista de escolha das cozinhas seccionais. Provavelmente a possibilidade de arranjar um apartamento melhor e finalmente, para Jessie, a possibilidade de freqüentar os Solários.

     - Claro que gostaria, - disse. - É óbvio que sim. Quem não gostaria? Por outro lado, o que aconteceria se não conseguisse resolver o caso?

     - Por que você não o resolveria, Ligi? - implorou o Comissário. - Você é um bom investigador, você é ótimo. Você está entre os melhores.

     - Temos uma meia dúzia de homens com melhores qualificações em minha divisão. Por que você pretende preteri-los?

     Baley não acrescentou que, em casos normais, o Comissário não costumava contrariar o protocolo normal. Devia ser mesmo uma emergência gravíssima. O Comissário entrelaçou os dedos.

     - Por dois motivos. Para mim, você não é simplesmente um investigador qualquer, Ligi. Somos amigos. Não posso me esquecer que cursamos a faculdade juntos. Às vezes pode parecer que eu não me lembre mais, porém isto é devido à diferença em nossas posições. Sou o Comissário e você sabe o que isto significa. Continuo porém sendo seu amigo e acho que este caso apresenta uma excelente oportunidade para a pessoa certa. Quero que você se encarregue disto.

     - Esta é só uma razão, - comentou Baley, seco.

     - A segunda razão é que eu penso que você é amigo meu. Preciso de um grande favor.

     - Que espécie de favor?

     - Quero que você trabalhe com um parceiro Espacial. É uma condição imposta pelos Espaciais. Eles concordaram em não relatar o assassínio, e concordaram em deixar a investigação aos nossos cuidados. Insistiram porém que um de seus agentes acompanhe as investigações em sua totalidade.

     - Parece que eles não confiam em nós.

     - Você precisa compreendê-los. Se a investigação não for coroada de sucesso, um bom número de Espaciais ficará muito mal com seu próprio governo. Assim, Ligi, decidi que ia conceder-lhes o benefício da dúvida. Estou disposto a acreditar que são movidos pelas melhores intenções.

     - Não tenho dúvidas a respeito, Comissário. Acho que é este o maior defeito de todos os Espaciais.

     O Comissário pareceu surpreso, mas continuou:

     - Você está disposto a colaborar com um Espacial?

     - Você está pedindo isto como um favor especial?

     - Sim. Estou lhe pedindo para aceitar o caso com todas as condições impostas pelos Espaciais.

     - Está bem, vou aceitar um parceiro Espacial.

     - Obrigado, Ligi. Ele terá que morar com você.

     - Hei, espere aí!

     - Eu sei, eu sei. Porém, você tem um apartamento espaçoso. Três quartos. Você só tem um filho. Você pode hospedá-lo. Isto não vai provocar complicações, pode acreditar. Por outro lado, é necessário.

     - Sei que Jessie não vai gostar.

     - Explique a Jessie como estão as coisas - insistiu o Comissário com a expressão tão séria que seus olhos pareciam querer saltar de trás dos óculos. – Explique a ela que se você me fizer este favor, vou fazer o que estiver ao meu alcance para que, o caso concluído, você seja promovido não a C-6, mas a C-7. Entendeu, Ligi? A C-7.

     - Está bem, Comissário. Estamos combinados. - Baley quis se levantar, olhou para o Comissário e ficou sentado. - Tem mais alguma coisa?

     Enderby assentiu vagarosamente.

     - Sim, mais uma coisa.

     - O que é?

     - O nome de seu parceiro.

     - Que diferença faz?

     - Os Espaciais tem hábitos esquisitos, - disse o comissário. - O parceiro que propuseram não é... não é...

     Baley arregalou os olhos.

     - Espere um minuto!

     - Ligi, precisa, entende? Você precisa! Não temos saída!

     - E terá que morar em meu apartamento? Uma coisa destas?

     - Estou lhe pedindo um favor de amigo!

     - Não. Não!

     - Ligi, só posso confiar em você e mais ninguém. Será que você não entende? Precisamos colaborar com os Espaciais. Precisamos resolver este caso para manter afastadas as naves espaciais da Terra. Mas não podemos fazer isto de qualquer jeito. Você terá um R como parceiro. Entenda, se ele resolver o caso, se ele referir que somos incompetentes, estaremos arrumados de qualquer jeito. Todo o nosso departamento, entende? Estou lhe entregando uma tarefa extremamente delicada, Ligi. Você terá que trabalhar junto com o R, mas você terá que resolver este caso, não pode deixar que ele o faça. Entendeu?

     - Você quer dizer que tenho que cooperar cem por cento e ao mesmo tempo fazer sua caveira?

     - Que mais poderíamos fazer? Não temos a menor possibilidade de encontrar uma outra saída.

     Ligi Baley estava indeciso.

     - Não sei o que Jessie vai dizer a respeito.

     - Se você quiser, vou falar pessoalmente com Jessie.

     - Não é preciso, Comissário. - Respirou fundo: - Qual é o nome do meu parceiro?

     - R. Daneel Olivaw.

     - Esta não é hora de se usar eufemismos, - disse Baley tristemente. - Vou aceitar o caso e podemos usar o nome inteiro do meu parceiro. Robô Daneel Olivaw.

 

IDA E VOLTA PELA VIA EXPRESSA

     Como de costume, a via expressa transportava uma multidão de pessoas: no nível inferior todo mundo viajava de pé, e no nível superior iam os que gozavam do privilégio de usar assentos. Um bom número descia continuamente, em direção às pistas de desaceleração, para apanhar as vias locais ou para entrar nas estações que, debaixo de arcos ou por cima de pontes, permitiam o acesso à intrincada rede das Seções Urbanas. Um outro fluxo de gente chegava continuamente do outro lado, pelas pistas de aceleração, para tomar a via expressa.

     Havia uma infinidade de luzes: paredes e tetos luminosos que pareciam cascatas fosforescentes; um piscar contínuo de anúncios chamando a atenção; o brilho duro e persistente dos "vermes luminosos" que assinalavam ESTE RAMAL PARA SEÇÕES DE JERSEY - SIGA A SETA PARA CHEGAR AO EAST RIVER - NÍVEIS SUPERIORES DE TODAS AS VIAS PARA SEÇÕES DE LONG ISLAND. Sobretudo, havia aquele barulho que acompanhava a vida: milhões de pessoas que falavam, riam, tossiam, chamavam, cantarolavam, respiravam.

     Nenhuma sinalização para indicar o caminho até a Cidade Espacial, pensou Baley. Passou de uma pista para a outra com a agilidade conferida pela prática de toda sua vida. As crianças aprendiam a "pular pistas" logo quando começavam a caminhar. Baley quase não percebeu o arranco da aceleração, enquanto sua velocidade aumentava a cada passo. Também não percebia que estava inclinado para a frente para resistir ao empuxo. Em trinta segundos chegou à pista final que progredia a noventa quilômetros por hora e conseguiu subir na via expressa, que era uma plataforma envidraçada e com grades, que se movia à mesma velocidade. Nenhuma sinalização para indicar o caminho até a Cidade Espacial, pensou. Por outro lado, não havia necessidade nenhuma de sinalização. Quem precisava ir à Cidade Espacial, conhecia o caminho. Quem conhecia o caminho, tinha algo a fazer na Cidade Espacial. Quando, vinte e cinco anos atrás, tinha sido construída a Cidade Espacial, logo se manifestou uma tendência de fazer dela um alvo de excursões. As multidões da Cidade começaram a se dirigir para lá. Os Espaciais tinham posto um paradeiro neste hábito. Agiram com muita polidez (eram sempre polidos), mas sem muitas preocupações de delicadeza, e ergueram uma barreira de força entre eles e a Cidade de Nova Iorque. Criaram postos combinados do Serviço de Imigração e de Fiscalização alfandegária. Se alguém precisava ir até a Cidade Espacial, tinha que se identificar, deixar que o revistassem e se submeter a um exame médico e uma desinfecção de rotina.

     Tudo isto provocou protestos, como era de se esperar. Por sinal, protestos mais irritados do que merecia. A indignação foi tamanha que se constituiu num sério obstáculo aos programas de modernização. Baley se lembrava dos Tumultos da Barreira. Ele também estava entre os manifestantes que vinham pela via expressa, ficavam de pé sobre os assentos, contrariando qualquer privilégio e que depois pulavam de uma pista para a outra, descuidadamente, arriscando se ferir, para chegar mais perto da Cidade Espacial, berrando slogans e destruindo instalações urbanas, para desabafar sua frustração. Com um pequeno esforço, Baley ainda conseguia se lembrar das lenga-lengas gritadas em coro, como "O homem nasceu na Terra, nossa Mãe", com o refrão incompreensível: "Inqui-dinqui-parli-bo". A música era de uma antiga canção popular e havia milhares de versos. Alguns eram engraçados, a maioria eram tolos e até obscenos, mas todos acabavam com "Entendeu, porco espacial?" Porco, porque significava sujo. Uma maneira fútil de se vingar dos Espaciais pelo insulto que faziam aos Terrestres: eles insistiam em considerar todos os nativos da Terra, criaturas infectas e cheias de doenças.

     Como era de se esperar, os Espaciais não foram embora. Nem mesmo precisaram fazer uso de armas ofensivas. A frota terrestre há muito sabia que qualquer aproximação de uma nave dos Mundos Externos equivalia a um suicídio. Aviões terrestres tinham se arriscado a sobrevoar a área da Cidade Espacial nos primeiros dias depois de sua construção e tinham simplesmente desaparecido. Quando muito, uma ponta de asa toda esmigalhada, podia cair dos céus. Os manifestantes, mesmo enfurecidos, não podiam se esquecer dos efeitos dos disruptores sub-etéricos manuais usados pelos Espaciais contra os Terrestres, há mais de um século.

     Assim, os Espaciais ficaram tranqüilamente atrás de sua Barreira, fruto do progresso de sua ciência e que não poderia ser transposta com qualquer sistema conhecido na Terra. Esperaram até que a Cidade interveio e acalmou os manifestantes com gases soporíficos e vomitórios. As cadeias subterrâneas se encheram de líderes, de insatisfeitos e de pessoas que nada tinham com o caso, mas simplesmente passavam por perto. Após algum tempo todos foram postos em liberdade. Depois de um demorado intervalo, os Espaciais diminuíram o rigor das restrições. Eliminaram a Barreira e a polícia de Nova Iorque ficou encarregada de zelar pelo isolamento dos Espaciais. Mais importante ainda, o exame médico tornou-se menos ofensivo.

     Baley pensou que talvez agora as coisas pudessem mudar mais uma vez. Se os Espaciais realmente acreditavam que um Terrestre tinha penetrado em sua Cidade para cometer um crime, poderiam mais uma vez erguer a Barreira. Os efeitos poderiam ser péssimos. Subiu na plataforma da via expressa, atravessou a multidão de pé, e pela estreita escada em espiral, alcançou o nível superior onde se sentou. Evitou colocar sua chapinha de categoria na fita do chapéu até atravessarem o rio Hudson. Um C-5 não tinha privilégios de assento a leste do Hudson e a oeste de Long Island, e apesar de haver muitos assentos vagos, um fiscal o teria enxotado sem hesitações. O ar assoviava de maneira característica, pela fricção contra as capas arredondadas que protegiam cada assento. Era um barulho que impedia qualquer conversa, mas não interferia no pensamento de quem estava acostumado a se servir da via expressa.

     A maioria dos terrestres era de tendências mais ou menos medievalistas. Não era difícil chegar a esta atitude: bastava a gente se lembrar dos tempos em que a Terra era o mundo, e não simplesmente um entre outros cinqüenta mundos. E, por sinal, o pior dos cinqüenta. Baley se virou de repente ao ouvir um grito feminino. Uma mulher tinha deixado cair sua bolsa. Conseguiu vê-la por um instante, uma mancha cor de rosa sobre o cinza escuro da pista. Um passageiro que descia da via expressa devia tê-la chutado sem querer em direção à pista de desaceleração, e a dona estava se afastando rapidamente de sua propriedade. Baley encrespou o lábio. Se ela tivesse suficiente agilidade, poderia alcançá-la movendo-se de uma pista para a outra - se algum outro passageiro não a pisasse ou chutasse de novo. Nunca conseguiria saber o desfecho do caso. Já se encontrava a mais de um quilômetro da cena do incidente. Provavelmente a mulher não conseguiria recuperar a bolsa. Sabia-se, por uma estatística, que a cada três minutos alguém deixava cair alguma coisa sobre as pistas, sem conseguir recuperá-la. Existia uma enorme repartição que cuidava de objetos perdidos e achados. Era mais uma complicação da vida moderna. Baley pensou que antigamente era tudo mais simples. Tudo mesmo. Esta era a base de raciocínio dos medievalistas.

     O Medievalismo tinha muitas manifestações. Para Julius Enderby, dono de uma imaginação limitada, significava o apego às coisas arcaicas. Óculos! Janelas! Para Baley, era o estudo da história. Sobretudo o estudo de costumes populares. E a Cidade: a Cidade de Nova Iorque, onde tinha nascido e onde vivia. Muito maior que qualquer outra Cidade, exceto Los Angeles com uma população mais numerosa que qualquer outra, exceto Xanghai. A Cidade de Nova Iorque só contava três séculos. Pela verdade, naquela mesma área geográfica, antigamente existia algo chamado Nova Iorque. Aquele amontoado primitivo de população tinha existido durante três milênios e não trezentos, mas aquilo não era a Cidade. Naquela época não existiam Cidades. Eram simplesmente aglomerações de habitações, sob o céu aberto. As habitações se pareciam um pouco com as abóbadas dos Espaciais, só que, logicamente, eram muito diferentes. Estas aglomerações (a maior de todas mal chegava a dez milhões de habitantes, e a maioria nunca chegou nem a um milhão) eram espalhadas aos milhares em todos os recantos da Terra. De um ponto de vista moderno, todas elas brilhavam por uma total ineficiência econômica. A eficiência da Terra era o produto de uma população em contínuo aumento. O planeta podia sustentar três e mesmo cinco bilhões de pessoas, diminuindo progressivamente o padrão de vida. Mas quando a população chegasse a oito bilhões, a inanição começaria a se insinuar na vida de todos os dias. Era necessário recorrer a mudanças radicais na cultura da humanidade, especialmente porque os Mundos Externos (que antigamente eram simplesmente colônias terrestres estabelecidas há mil anos) faziam restrições severíssimas à imigração.

     A mudança radical se processou durante um milênio e teve como resultado a formação gradativa das Cidades. A eficiência era implícita na magnitude. Era um fato reconhecido até na Idade Média. As indústrias caseiras desapareceram antes das fábricas e as fábricas cederam o lugar às indústrias continentais. Bastava comparar a ineficiência de cem mil casas para cem mil famílias, com a eficiência de uma Secção habitacional para cem mil; ou uma coleção de livrosfilmes em cada casa, comparada a uma concentração seccional de filmes; de um televisor individual para cada família, comparada ao sistema de televisão unitária. Aliás, era suficiente pensar na loucura da duplicação infinita de banheiros e cozinhas, comparada ao sistema de refeitórios e banheiros eficientes produzidos pela cultura da Cidade. As aldeias, cidades e metrópoles terrestres definharam sempre mais até que foram absorvidas pelas Cidades. As primeiras ameaças de guerra atômica só conseguiram diminuir um pouco o ritmo, que logo voltou a acelerar depois da invenção das capas de proteção. A cultura das Cidades significava a melhor distribuição de alimentos e um sempre maior uso de leveduras e hidropônicos.

     A Cidade de Nova Iorque se espalhava por duas mil milhas quadradas e depois do último recenseamento resultou ter mais de vinte milhões de habitantes. Na Terra existiam mais oitocentas Cidades com uma média de dez milhões de habitantes. Toda Cidade se transformou numa unidade semi-autônoma, economicamente auto-suficiente. Podia erguer suas capas, estabelecer suas defesas laterais, penetrar nas entranhas de seu solo. Transformou-se numa caverna de aço, numa formidável e auto-suficiente caverna de aço e de concreto. A urbanização era cientificamente planejada. No centro estavam os enormes complexos de administração. A seguir, cuidadosamente orientadas, vinham as Secções residenciais interligadas pelas vias expressas e as vias locais. As fábricas, as instalações hidropônicas, os tanques para as culturas de levedura e as usinas de energia estavam situadas nos subúrbios, e por todos os lados havia aquedutos e sistemas de esgotos, escolas, cadeias, lojas, cabos de alta voltagem e ondas de comunicação.

     Estava fora de qualquer dúvida: o homem tinha conseguido dominar o ambiente, e a Cidade era o apogeu deste controle. A conquista máxima não se resumia nas viagens espaciais ou nos cinqüenta mundos colonizados e agora tão arrogantes e independentes: era a Cidade. Na Terra, praticamente, não havia população que vivesse fora de uma Cidade. Fora delas tudo era selvagem, debaixo do céu aberto, e poucos homens possuíam a calma necessária para enfrentar estas condições, mesmo reconhecendo que todo aquele espaço aberto era necessário. Produzia a água, o carvão e a madeira que eram as matérias-primas indispensáveis para a produção do plástico e das sempre mais indispensáveis leveduras. (O petróleo há muito estava esgotado, mas era substituído com sucesso por leveduras gordurosas). As terras entre as Cidades ainda tinham minas e eram largamente usadas para o cultivo de plantas alimentares e a criação de gado. A produção era ineficiente, mas a carne de vaca, a carne de porco e os cereais eram produtos de luxo e usados para exportação. Só poucas criaturas humanas eram necessárias para explorar as minas, dirigir as fazendas e canalizar a água, e sua atividade se limitava a uma supervisão à longa distância. O trabalho era feito pelos robôs que eram mais eficientes e mais baratos.

     Os robôs! Parecia uma ironia: o cérebro positrônico era uma invenção terrestre e os robôs tinham sido empregados pela primeira vez em serviços produtivos na própria Terra. Isto não tinha acontecido nos Mundos Externos, embora os Mundos Externos tivessem assumido a atitude de serem os inventores dos robôs. A economia robótica, porém, chegou ao seu auge nos Mundos Externos. Na Terra, a atividade dos robôs sempre foi limitada às minas e aos campos. Só nos últimos vinte e cinco anos, e por insistência dos Espaciais, os robôs começaram a ser esporadicamente empregados nas Cidades. As Cidades eram boas. Qualquer pessoa, menos os medievalistas, reconhecia que não existia qualquer substituto razoável para as Cidades. Infelizmente, não podiam continuar indefinidamente boas. A população da Terra ainda estava aumentando. Qualquer dia, apesar dos esforços das Cidades, chegaria o momento em que o número de calorias disponíveis para cada pessoa seria menos que o necessário para a sobrevivência.

     A situação parecia ainda pior por causa dos Espaciais, descendentes dos antigos colonizadores que tinham emigrado da Terra e que viviam no luxo em seus planetas do espaço, cuja população era escassa, mas que possuíam uma enorme quantidade de robôs. Os Espaciais estavam decididos a manter o alto grau de conforto daqueles mundos vazios: era por isso que limitavam severamente os nascimentos e proibiam a imigração dos Terrestres. Era este o motivo que... Estava chegando à Cidade Espacial!

     Baley percebeu que estava se aproximando da Seção de Newark. Não podia se demorar mais, a não ser que quisesse chegar à Seção de Trenton, atravessando o centro da região da levedura, quente e cheirosa. Era uma questão de calcular bem o tempo. Precisava de tanto para descer pela rampa, de mais tanto para encontrar um caminho entre as pessoas que viajavam de pé, mais um pouco para encontrar a abertura na grade e finalmente, o necessário para pular de uma à outra pista de desaceleração. Quando terminou, estava em frente à plataforma estacionária. Toda a manobra foi feita sem pensar. É provável que, se tivesse medido seus passos de maneira consciente, teria cometido algum erro.

     Como esperava, Baley viu que estava quase só. Na estação só viu um guarda e, a não ser pelo zunido constante da vida expressa, o silêncio era quase total e inquietante. Tomou uma passagem estreita que o levou por três ou quatro curvas bastante fechadas. Viu logo que isto era proposital. Uma passagem assim não poderia acomodar multidões de terrestres e não permitia ataques diretos. Baley achou muito bom poder se encontrar com seu parceiro ainda fora da Cidade Espacial. Repugnava-lhe a perspectiva de um exame médico, apesar de saber que seria feito com polidez.

     Um Espacial estava parado perto das portas que levavam ao ar livre e às abóbadas da Cidade Espacial. Suas roupas eram do tipo terrestre: calças apertadas na cintura e largas sobre os tornozelos, com uma tira colorida sobre a costura externa. Vestia uma camisa comum de Textron, de colarinho aberto e punhos franzidos, com as costuras fechadas com zíper, mas era sem dúvida um Espacial. Havia algo em sua postura, no jeito de erguer a cabeça, na calma que transpirava das feições tranqüilas daquele rosto largo, de maçãs salientes, e no corte dos cabelos cor de bronze, penteados para trás, que indicava que ele não era um Terrestre. Baley se aproximou dele com passos rígidos e falou em tom monocórdio:

     - Sou o investigador Elias Baley do Departamento de Polícia da Cidade de Nova Iorque, categoria C-5. Mostrou sua identificação e continuou: - Recebi ordens para me encontrar com R. Daneel Olivaw na via de aproximação da Cidade Espacial. - Consultou seu relógio: - Cheguei um pouco adiantado. Posso lhe pedir que minha presença seja anunciada?

     Estava um pouco apreensivo. De uma certa forma já tinha se acostumado com os robôs de modelo terrestre. Sem dúvida, os modelos espaciais deviam ser diferentes. Nunca tinha visto um, mas na Terra corriam boatos horríveis a respeito dos formidáveis robôs que trabalhavam de maneira sobre-humana nos longínquos Mundos Externos. Sem querer, cerrou os dentes.

     O Espacial esperou educadamente que Baley terminasse de falar e disse:

     - Isto é desnecessário. Estava esperando por você.

     Baley ergueu automaticamente a mão, deixando-a cair em seguida. Seu queixo também caiu, parecendo ainda mais comprido. Não conseguiu falar: as palavras pareciam engasgadas em sua garganta. O Espacial continuou:

     - Quero me apresentar. Sou R. Daneel Olivaw.

     - É mesmo? Será que eu me enganei? Pensei que a primeira inicial...

     - Não, está certo. Sou um robô. Você não foi informado?

     - Fui informado. - Baley ergueu a mão suada e alisou o cabelo, sem necessidade. Depois a estendeu. - Sinto muito, senhor Olivaw. Desculpe minha confusão. Bom dia. Sou Elias Baley, seu parceiro.

     - Ótimo. - A mão do robô apertou suavemente a outra, com uma pressão amistosa e logo a largou. - Você parece perturbado. Posso lhe pedir para ser franco? Para uma colaboração satisfatória, acho necessário esclarecer o maior número de fatos importantes. Em nosso mundo, os parceiros costumam se chamar pelo primeiro nome. Espero que isto não contrarie seus próprios hábitos.

     - Acontece que você não tem a aparência de um robô, - observou Baley muito sem jeito.

     - Isto o perturba?

     - Acho que é tolice minha, Da... Daneel. Todos os robôs de seu mundo se parecem com você?

     - Existem diferenças individuais, Elias, como entre os homens.

     - Nossos robôs... bom, dá para ver que eles são robôs, você me entende? Você parece um Espacial.

     - Estou vendo. Você esperava encontrar um modelo primitivo e ficou surpreso.    Por outro lado, é bastante lógico que nosso povo prefira um robô com acentuadas características humanóides, especialmente em casos como o nosso, porque é necessário evitar qualquer complicação. Você não acha?

     O robô estava certo. Se fosse facilmente reconhecível como tal, poderia provocar distúrbios na Cidade. Baley disse:

     - Sim.

     - Então, podemos ir embora, Elias.

     Voltaram em direção à via expressa. R. Daneel logo entendeu o funcionamento das pistas de aceleração e procedeu por elas com perícia e agilidade. Baley pensava ser necessário moderar sua própria velocidade mas logo viu que não era e teve que acelerar. O robô continuava ao seu lado, sem dar qualquer sinal de estar em dificuldades. Baley chegou a imaginar que R. Daneel estava se movimentando mais devagar do que era capaz. Ao chegar à corrente ininterrupta dos carros da via expressa, pulou a bordo sem tomar o menor cuidado pela sua segurança e o robô o imitou com a maior facilidade. Baley enrubesceu, deglutiu duas vezes e falou:

     - Vou ficar com você aqui embaixo.

     - Aqui? - O robô, que não parecia se ressentir do barulho e da ondulação rítmica da plataforma, perguntou: - Será que recebi informações erradas? Disseram-me que a categoria C-5, em certas circunstâncias, gozava do privilégio de assento no nível superior.

     - É verdade.  Eu posso subir, mas você não pode.

     - Como assim?

     - Precisa ser da categoria C-5, Daneel. - Foi o que me disseram. Você não é um C-5. - Era difícil conversar no nível inferior, onde o assovio do ar era mais alto e Baley estava se esforçando para não ser ouvido pelas outras pessoas em sua volta. R. Daneel observou:

     - Por que eu não poderia ser um C-5? Sou seu parceiro e preciso pertencer à sua mesma categoria. Recebi isto.

     Tirou uma identificação do bolso da camisa. O documento era autêntico e mostrava que pertencia a Daneel Olivaw, sem a primeira inicial reveladora. A categoria era C-5.

     - Vamos subir, - falou Baley com o rosto impassível.

     Quando se sentaram, Baley continuou a olhar para frente, chateado consigo mesmo e muito consciente da presença do robô ao seu lado. Por duas vezes, tinha feito um papelão. Em primeiro lugar, não tinha percebido que R. Daneel era um robô e, a seguir, não tinha pensado que, pela lógica, R. Daneel teria documentos que o identificariam como um C-5. Obviamente, isto só podia acontecer porque ele não era um investigador de romance policial. Não era imune a surpresas, não tinha a aparência imperturbável e seu raciocínio era apenas normal. Sabia que era assim, mas só agora começava a lastimar por não ser um superinvestigador. Sobretudo, porque R. Daneel Olivaw, ao que parecia, era a personificação de todos os atributos de um investigador de romance policial. Por outro lado, ele não podia não ser. Era um robô. Baley procurou justificativas perante si mesmo. No escritório estava acostumado a robôs iguais a R. Sammy. Esperava encontrar uma máquina coberta por uma superfície de plástico, dura e brilhante, quase branca. Imaginava que a expressão seria parada num sorriso imbecil. Acreditava que os movimentos seriam espasmódicos e incertos. Mas R. Daneel não era assim.

     Baley virou levemente a cabeça para observar o robô. R. Daneel também se virou para fitá-lo e acenou levemente com a cabeça. Enquanto falava, seus lábios se mexiam de maneira normal e não ficavam simplesmente abertos como acontecia com os robôs terrestres. Era possível entrever os movimentos de uma língua, enquanto articulava as palavras. Baley pensou, como é possível que ele fique sentado ao meu lado com tanta calma? Tudo isto deve ser novo e inesperado para um robô. O barulho, as luzes, as multidões... Baley se levantou, passou em frente a R. Daneel e disse:

     - Venha comigo.

     Desceram da via expressa para as pistas de desaceleração. Baley estava pensando: Meu Deus, o que é que vou dizer a Jessie? Seu encontro com o robô tinha temporariamente afastado esta preocupação de sua mente, mas ela estava voltando com insistência enquanto a via local os levava para a Seção do Baixo Bronx. Disse:

     - Veja, Daneel, tudo isto é um só prédio: tudo o que você pode ver, a Cidade inteira, é um só prédio. Lá dentro vivem vinte milhões de pessoas. As vias expressas funcionam sem parar, a uma velocidade de noventa quilômetros por hora. Temos mais de trezentos quilômetros de vias expressas e centenas de quilômetros de vias locais.

     Dentro de instantes, pensou Baley com ironia, vou calcular quantas toneladas de levedura Nova Iorque consome por dia, quantos litros cúbicos de água bebemos e quantos megawatts de energia são produzidos por hora nas usinas nucleares. Daneel observou:

     - Recebi estes dados e muitos outros do gênero quando me deram minhas instruções.

     Baley pensou, ótimo, isto pelo menos elimina qualquer necessidade de informá-lo a respeito da situação alimentar, hídrica e energética. Por que quero impressionar um robô?

     Estavam na proximidade da rua 182 Leste, a mais ou menos duzentos metros dos elevadores que levavam às camadas de concreto e aço em que se encontravam os apartamentos, entre os quais havia um que era sua residência. Estava a ponto de dizer: - Por aqui, - quando seu progresso foi impedido por uma aglomeração de pessoas em frente a uma porta brilhantemente iluminada que marcava a localização de um entreposto. Nesta Seção havia um grande número de entrepostos de varejo na camada térrea. Assumiu automaticamente um tom autoritário e perguntou à pessoa mais próxima:

     - O que está acontecendo?

     O homem estava se esticando na ponta dos pés. Respondeu:

     - Não sei, acabo de chegar.

     Uma outra voz excitada respondeu:

     - Lá dentro tem uma porção de malditos robôs. Espero que os enxotem daqui. Gostaria de agarrar um para despedaçá-lo.

     Baley lançou um olhar apreensivo a Daneel que não parecia perturbado. Talvez não tivesse entendido o significado daquelas palavras. Baley abriu caminho entre a multidão.

     - Deixe-me passar! Um pouco de espaço! Sou da polícia!

     Conseguiu passar, ouvindo trechos de frases: - ...despedaçá-los ...rosca por rosca... abrir todas as costuras, bem devagar... - Alguém soltou uma gargalhada. Baley sentiu um calafrio. A Cidade funcionava com o máximo da eficiência, mas obrigava seus habitantes a aturar muitas coisas. Eram obrigados a viver dentro de uma rotina rígida e submetidos a um controle severo e científico. O acúmulo de inibições levava às vezes a explosões imprevisíveis. Lembrou-se dos distúrbios perto da Barreira. Sem dúvida, existiam muitas razões que podiam levar a manifestações contra os robôs. Homens que se viam obrigados a considerar uma possível desclassificação, que implicava um sustento mínimo e insuficiente, depois de passar metade de suas vidas trabalhando, não podiam raciocinar friamente e chegar à conclusão que os singelos robôs não podiam ser culpados. Os robôs -representavam algo tangível que podia ser destruído. Ninguém podia bater em algo chamado "política do governo" ou num slogan do gênero: "Produção maior por meio de robôs".

     O governo achava que tudo não passava de dificuldades sem importância, que poderiam ser facilmente superadas e que logo, depois de um necessário período de adaptação, todos poderiam gozar de uma vida melhor. Infelizmente, o processo de desclassificação servia para incrementar a expansão do movimento medievalista. A cada dia os homens ficavam mais desesperados, e às vezes a amargura da frustração pode levar facilmente a atos de vandalismo. Naquele momento a hostilidade da multidão estava aumentando e poderia explodir a qualquer instante, numa orgia de sangue e destruição. Baley empurrava desesperadamente as pessoas em sua volta, tentando alcançar a porta.

 

INCIDENTE NO ENTREPOSTO

     Havia menos gente no interior da loja do que na rua. O gerente, prevendo complicações, tinha acionado o campo de força da porta, logo no começo, impedindo a entrada de possíveis desordeiros. O campo de força também impedia às pessoas que estavam na loja de sair, mas isto era de menos. Baley atravessou a porta usando o neutralizador em poder de todos os policiais. Ficou surpreso ao ver que R. Daneel ainda estava ao seu lado. O robô estava guardando seu próprio neutralizador, um modelo diminuto, mais leve e mais bonito que o modelo policial. O gerente se aproximou rapidamente, falando em voz alta.

     - A Cidade me entregou meus novos empregados. Estou agindo dentro da lei.

     No fundo do entreposto, três robôs se mantinham eretos perto da parede. Seis criaturas humanas se encontravam perto da porta. Eram todas mulheres.

     - Muito bem, - falou Baley, decidido. - O que está acontecendo aqui? Qual é o motivo de toda esta agitação?

     Uma mulher respondeu com voz aguda:

     - Entrei para comprar sapatos. Por que não posso ser atendida por um vendedor decente? Será que não mereço um mínimo de respeito? - Suas roupas berrantes, e especialmente seu chapéu vistoso, eram uma resposta direta à sua pergunta que assim, se tornava retórica. O rosto avermelhado estava coberto por uma maquilagem excessiva.

     O gerente explicou:

     - Se for preciso, eu mesmo vou atendê-la, mas não posso atender a todas. Meus homens trabalham muito bem, são empregados registrados. Tenho aqui seus mapas de especificação, seus certificados de garantia...

     - Mapas de especificação, - berrou a mulher. Soltou uma gargalhada estridente, olhando para as outras. - Escutem só! Ele disse "homens". O que é que há com você? Estes não são homens! São ro-bôs! - Ela esticou as sílabas. - Vou explicar a vocês o que eles fazem. Roubam os empregos de nossos homens. E ainda são protegidos pelo governo porque trabalham sem remuneração. Por causa disto tem famílias obrigadas a viver em barracos e a comer mingau de levedura não processada. São famílias decentes, famílias de trabalhadores. Se eu mandasse, todos os robôs seriam destruídos, eu garanto!

     As outras mulheres vociferavam confusamente e do lado de fora os gritos da multidão estavam aumentando. Baley sentia agudamente a presença de R. Daneel Olivaw ao seu lado. Observou os empregados do entreposto. Eram robôs terrestres, e ainda do tipo menos refinado. Robôs simples, construídos para tarefas relativamente simples. Precisavam conhecer todos os números de referência dos modelos, os preços e os tamanhos disponíveis. Poderiam, possivelmente, conhecer todas as flutuações do estoque, talvez com mais eficiência que uma criatura humana, porque não possuíam outros interesses. Podiam computar perfeitamente o pedido para a semana seguinte. Sabiam como colocar um sapato no pé de um cliente. Em si, cada robô era totalmente inofensivo. Mas como um grupo, eles representavam um perigo incrível.

     Baley percebeu que conseguia sentir mais simpatia por aquela mulher do que teria acontecido no dia anterior. Ou talvez, quem sabe, há apenas duas horas. Podia sentir a presença de R. Daneel e começou a pensar se Daneel não poderia substituir com facilidade um investigador da categoria C-5. Enquanto pensava, via os barracos. Sentia o paladar do mingau de levedura crua. Conseguia se lembrar de seu pai. Seu pai era físico nuclear e sua categoria era a mais alta da Cidade. Houve um acidente na usina nuclear e seu pai foi responsabilizado. Seguiu-se a desclassificação. Baley não conhecia todos os detalhes: naquela época tinha apenas um ano. Lembrava porém os barracos de sua infância, a terrível vida daquela comunidade, que era quase insustentável. Não se lembrava da mãe: ela não conseguira sobreviver por muito tempo. A recordação do pai era muito clara: um homem abatido, quase sempre silencioso, desesperado, que raramente falava no passado, com a voz rouca e frases curtas e desconexas.

     Quando Ligi tinha apenas oito anos, seu pai morreu, ainda desclassificado. O garoto e suas duas irmãs mais velhas foram internados no orfanato seccional. O lugar era conhecido pelo nome de Nível Infantil. Tio Boris, irmão da mãe, era muito pobre e não conseguiu impedir a internação. A vida continuou dura. Foi difícil progredir na escola, sem privilégios paternos que o ajudassem a se afirmar. E agora estava no meio de homens e mulheres que ameaçavam provocar distúrbios, simplesmente porque temiam a desclassificação e a perda de todos os seus privilégios. Falou em voz baixa com a mulher que acabava de protestar.

     - Chega, dona, não queremos desordens aqui dentro. Os empregados não fizeram nada errado.

     - Claro que não, - respondeu a mulher aos gritos. - Também não poderiam fazer nada. Você pensa que vou permitir que me toquem com seus dedos frios e oleosos? Quando cheguei aqui, imaginei que seria atendida como compete a qualquer criatura humana. Sou moradora da Cidade e tenho direito a ser atendida por criaturas humanas. A mais, tenho duas crianças que estão me esperando em casa. Não podem ir até a cozinha seccional para jantar sozinhas, como se fossem órfãos. Preciso sair daqui.

     - Escute, - retrucou Baley que estava começando a perder a paciência. - Se você não tivesse protestado como fez, já teria comprado seus sapatos e não estaria mais aqui. Você está provocando todo este rebuliço sem motivo nenhum. Agora chega.

     - Gostei disso! - A mulher parecia estupefata. - Você realmente acredita que pode falar comigo como se eu fosse lixo. Está na hora de o governo compreender que os robôs não são os únicos a merecer atenção. Sou uma mulher que trabalha e tenho meus direitos. - Seus protestos pareciam não ter fim.

     Baley sentiu-se acuado. A situação estava incontrolável. Mesmo que a mulher consentisse a ser atendida pelos robôs, a multidão lá fora parecia pronta para qualquer coisa. Havia centenas de pessoas apinhadas contra as vitrinas. A multidão parecia ter aumentado do dobro, desde o momento em que os policiais tinham entrado no entreposto.

     - Qual é o procedimento normal nestes casos? - perguntou R. Daneel de repente.

     Baley quase sobressaltou. Disse:

     - Em primeiro lugar, este não é um caso normal.

     - O que dizem as leis a este respeito?

     - A permanência dos Rs aqui é perfeitamente legal. Trata-se de empregados registrados.

     Estavam conversando em sussurros. Baley tentava manter uma expressão autoritária e ameaçadora. A expressão de Olivaw era, como sempre, impassível.

     - Neste caso, - disse R. Daneel, - diga a mulher para deixar que os Rs a atendam. Caso contrário, mande-a sair.

     Baley encrespou o lábio.

     - Precisamos levar em conta aquela multidão, a mulher não tem nenhuma importância. Só temos uma coisa a fazer: precisamos chamar a tropa de choque.

     - Um policial deveria ser o bastante para ordenar aos cidadãos para fazer sua obrigação, - disse Daneel. Virou-se para o gerente. - Senhor, faça o favor de abrir a porta.

     Baley esticou o braço para segurar o ombro de R. Daneel e sacudi-lo, mas mudou de idéia. Um desacordo visível entre dois membros da polícia poderia bastar, neste momento, para afastar qualquer possibilidade de uma solução pacífica. O gerente protestou, olhando para Baley. Baley desviou o olhar. R. Daneel falou sem levantar a voz:

     - Em nome da lei, abra aquela porta.

     O gerente se esganiçou:

     - A Cidade será responsável por qualquer prejuízo na mercadoria e nas instalações. Quero que fique bem claro que vou agir porque estou sendo obrigado.

     O campo de força foi eliminado. Homens e mulheres entraram como uma avalanche. Ouviam-se gritos de triunfo. A multidão percebeu que estava ganhando a parada. Baley já tinha ouvido falar de desordens deste tipo. Uma vez assistira pessoalmente, enquanto os robôs eram erguidos por inúmeras mãos e os corpos pesados e inertes eram carregados para longe. Os homens empurravam e torciam aqueles simulacros metálicos de criaturas humanas. Usavam martelos, facas energéticas e pistolas atômicas. Finalmente reduziram as máquinas a amontoados informes de metal despedaçado e fios de arame. Caríssimos cérebros positrônicos, a mais complicada invenção da mente humana, serviram para um jogo de bola que acabou por destruí-los em poucos minutos. Finalmente, a multidão começou a destruir qualquer coisa que estivesse ao seu alcance. Os robôs empregados no entreposto não podiam ter conhecimento disto, mas soltaram guinchos quando a multidão penetrou no interior da loja e ergueram os braços metálicos em frente aos rostos, como a se esconder. A mulher que tinha provocado o incidente, agora estava assustada e gritava sem parar:

     - Esperem, esperem um pouco! Calma!

     Alguém puxou-lhe o chapéu por cima do rosto e sua voz se tornou estrídula enquanto pronunciava palavras incompreensíveis. O gerente continuava se esganiçando:

     - Mande-os parar, investigador! Mande-os parar!

     Então, R. Daneel falou. Sem nenhum esforço aparente, sua voz se elevou muitos decibéis acima de qualquer voz humana. É claro, pensou Baley, ele não é um...

     R. Daneel disse:

     - Parados! O primeiro a se mexer, será morto.

     Alguém gritou no fundo da loja:

     - Peguem-no!

     Mas ninguém se mexeu.

     R. Daneel subiu agilmente numa cadeira e de lá pulou para o topo da caixa de Transtex que servia de vitrina interna. A fluorescência colorida que surgia das frestas cortadas na película molecular polarizada, dava ao seu rosto liso e calmo uma aparência transterrena. Transterrena, pensou Baley. Todos se mantiveram imóveis enquanto R. Daneel, com uma calma impressionante, esperava. R. Daneel falou:

     - Vocês pensam: este homem está segurando um chicote neurônico, algo que só faz cócegas. Se avançarmos juntos, poderemos derrubá-lo e só uma ou duas pessoas poderão se machucar um pouco, mas ficarão boas. Conseguiremos, porém, fazer o que bem queremos, e a lei e a ordem podem ir para o diabo.

     Sua voz não era áspera ou irada, era simplesmente autoritária. Era uma voz acostumada a mandar. Continuou:

     - Vocês estão enganados. Estou segurando em minha mão um objeto que não é um chicote neurônico. O que tenho aqui é um desintegrador e seu efeito é fatal. Vou usá-lo e não vou apontá-lo acima de suas cabeças. Vou matar muita gente antes que vocês possam me alcançar. Talvez consiga matar a todos. Estou falando sério. Vocês estão percebendo que estou falando sério?

     Houve algum movimento num ponto afastado, mas a multidão não aumentou. Pessoas recém-chegadas ainda paravam para ver o que estava acontecendo, mas muitos estavam se afastando depressa. As pessoas mais próximas a R. Daneel estavam segurando a respiração, resistindo desesperadamente aos empurrões dos que estavam mais atrás. A mulher que era a causa de toda aquela confusão, acabou com o suspense. Começou a gritar, chorando convulsivamente:

     - Ele nos matará. Eu não fiz nada. Por favor, deixem-me sair daqui!

     Virou-se, mas só viu uma parede impenetrável de homens e mulheres apinhados e imóveis. Então caiu de joelhos. Na multidão, era possível ver um acentuado movimento em direção à porta. R. Daneel desceu da vitrina com um pulo e falou:

     - Agora irei até a porta. Vou atirar em qualquer homem ou mulher que quiser me tocar. Quando chegar à porta, atirarei em qualquer homem ou mulher que não quiser sair daqui. Esta mulher...

     - Não, não, - berrou a mulher com o chapéu. - Eu já lhe disse que não fiz nada. Não queria provocar toda esta confusão. Não quero mais comprar sapatos. Só quero voltar para casa.

     - Esta mulher será atendida, - continuou Daneel. - Ela deve ficar.

     Deu um passo para frente. A multidão estava muda. Baley fechou os olhos. Não sou responsável, pensou desesperado. Acontecerá um crime e depois teremos a pior confusão do mundo, mas eles me forçaram a aceitar um robô como parceiro. Eles lhe deram a mesma autoridade. Não, assim não ia adiantar. Ele mesmo não acreditava que adiantaria. Poderia ter mandado parar R. Daneel bem no começo. Poderia ter chamado um carro de patrulha. Tinha deixado que R. Daneel assumisse o comando, sentindo-se aliviado por fazê-lo. Quando tentou explicar a si mesmo que a personalidade de R. Daneel estava controlando a situação, provou um surto de nojo por si mesmo. Um robô estava controlando a...

     Não ouviu nenhum barulho anormal, nenhum grito, nenhum gemido, nenhum protesto. Abriu os olhos. A multidão estava se dispersando. O gerente do entreposto estava se acalmando, ajeitando as roupas em desordem, alisando os cabelos e murmurando ameaças na direção dos desordeiros. Um carro de patrulha parou em frente do entreposto com um suave assovio decrescente de sua sirene. Baley pensou: está chegando quando tudo já acabou. O gerente puxou sua manga.

     - Chega de confusão, por favor.

     Baley respondeu:

     - Não vai haver mais confusão nenhuma.

     Foi bastante fácil se livrar do carro de patrulha que estava ali por ter recebido uma denúncia de aglomeração em frente de um entreposto. Os patrulheiros não conheciam os pormenores e podiam ver que o trânsito na rua era normal. R. Daneel se afastou para um lado enquanto Baley explicava aos homens do carro o que tinha acontecido, minimizando os fatos e sem mencionar a intervenção de R. Daneel.

     A seguir, chamou R. Daneel para um lado e ambos se encostaram numa parede de concreto e aço.

     - Quero que entenda, - disse, - que não estou tentando defraudá-lo de seu sucesso.

     - O que é que você pretende dizer com isto?

     - Não mencionei que você teve um papel importante em dispersar a multidão.

     - Não conheço todos os seus costumes. No meu mundo, costumamos fazer relatórios completos, mas talvez em seu mundo isto não seja necessário. De qualquer maneira, a rebelião foi evitada. Este é o fato importante, não é mesmo?

     - Você acha? Agora escute bem.  - Baley tentou conferir autoridade às suas palavras, mas era difícil, porque estavam cochichando.  - Nunca mais faça isto.

     - Você quer dizer que eu nunca mais devo insistir para que as leis sejam obedecidas? Se eu não fizer isto, qual será minha tarefa?

     - Quero dizer, nunca mais ameace um ser humano com um desintegrador.

     - Elias, você sabe perfeitamente que eu não teria atirado em circunstância nenhuma. Sou incapaz de machucar uma criatura humana. Mas você viu que não foi necessário abrir fogo. Aliás, eu imaginava que não seria necessário.

     - O fato que você não fosse obrigado a atirar foi uma mera questão de sorte.   Nunca mais se arrisque a fazê-lo.  Eu poderia ter feito a mesma cena, com o mesmo truque...

     - Como assim, o mesmo truque?

     - Deixe para lá. Tente entender o sentido do que estou lhe dizendo.  Eu poderia ter ameaçado a multidão com meu próprio desintegrador, afinal estou carregando um. Mas não posso me dar ao luxo de correr estes riscos, e você também não pode. Foi muito mais seguro chamar um carro de patrulha, em vez de bancar o herói.

     R. Daneel refletiu um pouco mas depois sacudiu a cabeça. - Amigo Elias, acredito que você está errado. Recebi a informação de que uma das características humanas aqui na Terra é que, contrariamente ao que acontece nos Mundos Externos, as pessoas são condicionadas desde a infância a aceitar o mando da autoridade. Aparentemente, é o resultado de seu modo de vida. Aliás, provei que um homem, que mostrava ter suficiente autoridade, bastou para acabar com tudo. Sua vontade de ver aparecer um carro de patrulha era, acredito eu, uma expressão de seu desejo instintivo de transferir a responsabilidade a uma autoridade superior. Admito que em meu mundo minhas ações não poderiam encontrar uma justificativa.

     O rosto comprido de Baley enrubesceu pela raiva.

     - Se eles tivessem compreendido que você é um robô...

     - Tinha certeza que não me reconheceriam.

     - De qualquer jeito, lembre-se que você é um robô. Nada mais que um robô.  Simplesmente um robô. Igualzinho aos robôs que são empregados naquele entreposto.

     - Mas isto é óbvio.

     - E lembre-se que você não é humano. - Baley sentiu que estava sendo cruel contra sua própria vontade.

     R. Daneel pareceu refletir. Disse:

     - A diferença entre humano e robô talvez não seja tão significativa como a diferença entre a inteligência e a não-inteligência.

     - Isto pode ser verdade em seu mundo, - disse Baley, - mas na Terra não é assim.

     Olhou para o relógio e quase não conseguiu acreditar que já estava com uma hora e meia de atraso. Ao lembrar que R. Daneel era o vencedor da primeira rodada sentiu a garganta seca e doída. R. Daneel tinha conseguido um sucesso enquanto ele ficava parado, sem saber o que fazer. Falou secamente:

     - Vamos embora. Preciso levar você para minha casa.

     R. Daneel disse:

     - Veja uma coisa. Não é admissível fazer qualquer distinção, a não ser que se considere o fator intel...

     Baley levantou a voz.

     - Está bem. O assunto está encerrado. Jessie está esperando em casa. - Dirigiu-se para o mais próximo tubo de comunicação intra-seccional. - Acho que será melhor avisá-la que estamos a caminho.

     - Você disse Jessie?

     - Sim. Minha mulher.

     Por Josafá, pensou Baley. Estou num estado de espírito formidável para enfrentar Jessie.

 

APRESENTAÇÃO À FAMÍLIA

     O que mais tinha chamado a atenção de Elias Baley para Jessie era sobretudo seu nome. O encontro aconteceu durante a festa de Natal da Secção, no ano 02, ao lado da mesa de ponche. Ele acabava de encerrar os estudos, e por ser um empregado da Cidade, era também um novo residente na Secção. Morava numa alcova para solteiro na Sala Comum 122-A. Estas alcovas para solteiro não eram muito ruins.

     Ela estava distribuindo ponche.

     - Sou Jessie, - ela disse. - Jessie Navodny. Acho que ainda não nos conhecemos.

     - Baley, ele respondeu.  - Ligi Baley.  Acabo de me mudar para esta Secção.

     Apanhou o copo e sorriu automaticamente. Ela parecia alegre e cordata e decidiu ficar perto dela. Era um novato e sempre é muito desagradável estar numa festa sem conhecer ninguém: a gente acaba observando os outros que se divertem, sem conseguir tomar parte na conversa. As coisas costumavam melhorar só quando todos já tinham ingerido uma boa quantidade de álcool. Ficou perto da mesa de ponche, olhando para as pessoas que se movimentavam ao redor e tomando a bebida devagar.

     - Eu ajudei a preparar o ponche. - A voz da moça interrompeu seus pensamentos.  - Posso garantir que é bom mesmo. Quer mais um pouco?

     Baley viu que seu copo estava vazio. Sorriu e disse:

     - Sim.

     O rosto da moça era oval e não muito bonito, especialmente por causa do nariz um pouco pronunciado. Vestia roupas discretas e seus cabelos castanhos claros se encaracolavam sobre a testa. Ela também se serviu de ponche e Baley logo começou a se sentir melhor.

     - Jessie, - falou, saboreando o nome enquanto o pronunciava. - Que nome simpático. Você não se importa se eu a chamar pelo nome?

     - Não, não me importo. Está certo. Quer saber qual é meu nome de verdade? Jessie é só meu apelido.

     - Então, é Jessica?

     - Você não vai adivinhar nunca.

     - Não consigo me lembrar de outros.

     Ela riu e falou com expressão maliciosa:

     - Meu nome verdadeiro é Jezabel.

     O nome despertou imediatamente sua atenção. Largou o copo sobre a mesa e perguntou estupefato:

     - De verdade?

     - Palavra. Não estou brincando. É mesmo Jezabel. Consta em todos os meus documentos. Meus pais gostavam muito deste nome.

     Ela parecia orgulhosa de possuí-lo, mesmo que sua aparência nada tivesse de Jezabel. Baley falou com muita seriedade:

     - Meu nome verdadeiro é Elias, sabe?

     Ela não pareceu perceber o que isto implicava. Ligi continuou:

     - Elias foi o grande inimigo de Jezabel.

     - Ora, não diga?

     - É verdade. Está na Bíblia.

     - Que coisa. Eu não sabia. Você não acha engraçado? Espero que isto não signifique que você também tenha que ser meu inimigo.

     Mas logo viram, desde o começo, que não poderia ser assim. Num primeiro momento a coincidência de nomes a transformou em algo mais que uma moça simpática que servia ponche. Com o tempo ele descobriu que Jessie era bem disposta, tinha um bom coração e era até bonitinha. Apreciava especialmente sua boa disposição. Precisava deste antídoto para a disposição sardônica que tinha, de encarar a vida. Jessie não se importava com seu rosto comprido e tristonho.

     - Escute, - dizia, - que importa se você tem a aparência de um limão azedo? Eu sei que você não é assim e acho, aliás, que se você estivesse sempre sorrindo, como eu faço, acabaríamos explodindo a cada encontro. Continue assim como você é, Ligi, para evitar que eu entre em órbita.

     Jessie também cuidou que Ligi não se deixasse dominar pelo desespero. Com o tempo, ele pediu um pequeno apartamento para um casal, que lhe foi concedido a condição que se casassem. Quando mostrou a Jessie a autorização, falou:

     - Você não poderia arrumar o apartamento, para eu poder deixar o alojamento de solteiro? Não gosto de morar lá.

     Provavelmente esta não era a mais romântica maneira de pedir uma moça em casamento, mas Jessie gostou. Baley só conseguia se lembrar de uma única ocasião em que Jessie não mostrou sua costumeira boa disposição, e esta ocasião também se relacionava ao seu nome. Aconteceu no primeiro ano de casamento e ainda estavam sem filho. Aliás, foi naquele mesmo mês que conceberam Bentley. (Pelo Q. L., pela classificação de seus Valores Genéticos e pela posição de Baley no departamento de polícia, eles tinham direito a duas crianças, e a primeira poderia ser concebida durante o primeiro ano de casamento). Refletindo sobre o fato, Baley chegou à conclusão que a inconstante irritabilidade de Jessie poderia ser atribuída ao fato que Bentley estava a caminho. Jessie naquela época estava um pouco chateada porque Baley sempre chegava muito tarde. Falou:

     - Acho embaraçoso comer sozinha todas as noites.

     Baley sentia-se cansado e de mau humor. Perguntou:

     - Por quê? Você pode encontrar rapazes solteiros bastante simpáticos.

     Como era previsível, ela se inquietou:

     - Por que, Ligi, você pensa que talvez eu não possa chamar a atenção de mais ninguém?

     Talvez fosse porque estava cansado; talvez aconteceu porque Julius Enderby, seu colega de curso, recebera uma promoção para uma categoria C superior à sua. Talvez fosse até porque já não queria ver Jessie fazer o impossível para justificar aquele seu nome, quando sabia que ela não era daquele tipo e nunca poderia sê-lo. Qualquer que fosse o motivo, retrucou irônico:

     - É possível que você possa, mas não acredito que você o faça. Gostaria que você se esquecesse de seu nome e ficasse satisfeita de ser simplesmente você.

     - Vou ser o que bem entendo.

     - Você não vai chegar a lugar nenhum, com todos aqueles esforços de ser uma Jezabel. Para lhe dizer a verdade, seu nome não significa o que você pensa que significa. A Jezabel da Bíblia era uma esposa fiel e, pelos costumes da época, era uma boa esposa. Ninguém pode afirmar que ela teve amantes, não aprontou coisa nenhuma e nunca foi licenciosa.

     Jessie o encarou furiosa.

     - Não acredito. Ouvi mil vezes a expressão "Uma Jezabel pintada". Sei o que significa.

     - É possível que você acredite que sabe. Escute. Quando o rei Acab, marido de Jezabel, morreu, Jeorão foi eleito rei. Jeú, um de seus generais, se rebelou e o assassinou. Jeú então cavalgou até Jezrael onde morava Jezabel, a velha rainha-mãe. Jezabel soube de sua vinda e compreendeu que Jeú pretendia matá-la. Mulher orgulhosa e de muita coragem, pintou cuidadosamente o rosto e vestiu seus trajes mais bonitos, para poder enfrentá-lo com toda sua altivez de rainha. Jeú mandou que fosse jogada por uma janela do palácio e ela morreu, mas foi uma morte digna, pelo menos na minha opinião. Assim, quando as pessoas falam numa "Jezabel pintada", que saibam ou não, elas se referem à morte de Jezabel.

     Na noite seguinte Jessie falou em tom humilde:

     - Ligi, andei lendo a Bíblia.

     - O quê? - perguntou Baley que não se lembrava mais do assunto.

     - Li as partes que se referem a Jezabel.

     - Jessie, sinto muito se a ofendi. Acho que foi infantilidade minha.

     - Não, não. - Rejeitou a mão de Baley e se endireitou sobre o sofá, deixando um bom espaço entre ambos. - Acho ótimo conhecer a verdade. Não quero fazer papelões por não conhecer a verdade. Então, fui ler. Ela era uma mulher malvada, Ligi.

     - Considere o detalhe: aqueles capítulos foram escritos pelos seus inimigos.   Não conhecemos a versão de Jezabel.

     - Ela matou todos os profetas do Senhor que estavam ao seu alcance.

     - Dizem que ela o fez. - Baley procurou um pouco de goma de mascar em seu bolso. (Anos mais tarde, largou este hábito porque Jessie achava que, com seu rosto comprido e o olhar sempre triste, quando mascava goma, ele se parecia demais com uma velha vaca com a boca cheia de capim indigesto). Disse:

     - Se você quer saber o que ela poderia ter dito, posso tentar imaginar algumas razões. Ela era agarrada à religião de seus antepassados que já moravam naquelas terras muito antes da chegada dos Hebreus. Os Hebreus tinham seu próprio Deus, que ainda por cima era um Deus muito exclusivista. Os Hebreus não ficavam satisfeitos de adorar seu Deus, queriam que todo mundo o adorasse. Jezabel era conservadora e defendia sua antiga crença contra qualquer novidade. Afinal, mesmo que as crenças novas tivessem um mais alto conteúdo moral, as velhas crenças a satisfaziam mais de um ponto de vista emocional. O fato dela ter mandado matar sacerdotes, só a caracteriza como uma personagem de sua época. Naqueles tempos, este era o sistema normal para fazer prosélitos. Se você leu o primeiro livro dos Reis, você deve se lembrar que Elias desafiou 850 profetas de Baal, para ver quem poderia fazer cair o fogo do céu. Elias ganhou e sem demora ordenou à multidão de matar os 850 profetas de Baal. E todos foram mortos.

     Jessie mordiscou o lábio.

     - O que é que você me diz a respeito da vinha de Nabot, Ligi? Este tal Nabot não perturbava ninguém, só que se recusava a vender sua vinha ao rei. Então Jezabel conseguiu falsos testemunhos que juraram que Nabot era culpado de blasfêmia, ou coisa que o valha.

     - Disseram que ele tinha "blasfemado Deus e o Rei", - observou Baley.

     - Está vendo? Então confiscaram sua propriedade e o mataram.

     - Foi uma injustiça. Por outro lado, em tempos modernos, o caso de Nabot poderia ser resolvido de maneira muito mais suave. Se a Cidade quisesse sua propriedade, ou mesmo se uma das nações medievais quisesse se apropriar da vinha, uma ordem assinada por um juiz seria o suficiente para mandá-lo embora, e mesmo para removê-lo a força se isto se tornasse necessário. A seguir, a autoridade pagaria a Nabot um preço estabelecido por ela mesma. O rei Acab não dispunha destes meios legais. Mesmo assim, a solução de Jezabel era errada. Sua única desculpa estava no fato que o rei Acab estava perturbado e doente por causa da situação e Jezabel acreditava que seu amor pelo rei justificava qualquer coisa. Quero repetir mais uma vez, ela era uma esposa fiel, dedicada e modelo...

     Jessie se afastou mais ainda, com o rosto avermelhado pela fúria.

     - Acho que você é mesquinho e desprezível.

     Baley ficou apalermado:

     - O que foi que eu fiz? O que é que há com você?

     Jessie saiu, deixando-o sozinho no apartamento, e passou metade da noite nos níveis de vídeo sub-etérico, passando de um espetáculo ao outro e gastando todas as entradas dos próximos dois meses (e as do marido também). Baley ainda estava acordado quando ela voltou, mas Jessie não quis dizer mais nada. Muitos anos mais tarde, Baley um dia chegou à conclusão que tinha destruído uma parte importante da vida de Jessie. Para ela, o nome significava algo pecaminoso e tentador. Contrabalançava de maneira satisfatória sua vida passada um pouco monótona e respeitável. Acrescentava um certo aroma de licenciosidade que ela adorava. Mas estava tudo acabado. Ela nunca mais mencionou seu nome verdadeiro, nem em frente a Ligi, nem em frente aos amigos. Se transformou em Jessie e passou a assinar assim. Com o passar dos dias voltaram a fazer as pazes e a seguir, mesmo que chegassem a brigar, as discussões nunca alcançaram a gravidade daquela primeira e única briga séria.

     Uma só vez houve mais uma referência ao assunto. Jessie estava no oitavo mês de gravidez. Tinha se demitido de seu cargo de assistente dietista na cozinha seccional A-23, e como tinha à disposição um bocado de tempo, estava preparando coisas para o nascimento do bebê. Uma noite, perguntou:

     - Que tal, Bentley?

     - O que foi, querida? - disse Baley levantando os olhos da papelada que estava examinando. (Jessie não recebia mais um ordenado e logo chegaria mais uma boca para alimentar. Baley tinha a impressão que sua promoção não chegaria tão cedo, e trazia trabalho para casa).

     - Quero dizer, se o bebê for um garoto, que tal chamá-lo Bentley?

     Baley estirou os lábios.

     - Bentley Baley? Você não acha que neste caso o nome e o sobrenome seriam muito parecidos?

     - Não sei. Acho que Bentley soa bem. Afinal, a criança sempre pode escolher um nome do meio quando ficar maiorzinha.

     - Se você gosta, para mim está bem.

     - Você tem certeza? Quero dizer... talvez você prefira chamar o garoto de Elias.

     - Todo mundo o chamaria de Júnior, você não acha? Seria uma péssima idéia.  Ele poderá chamar seu filho de Elias, se ele quiser.

     Então Jessie disse:

     - Só tem mais uma coisa, - e parou.

     Depois de algum tempo Baley perguntou:

     - Que coisa?

     Jessie evitou olhar para o seu lado e observou:

     - Bentley não é um nome, bíblico, não é mesmo?

     - Não, - respondeu Baley. - Tenho certeza que não é.

     - Então, está certo. Não quero um nome bíblico.

     Este foi o único vago aceno à briga séria até o dia em que Ligi estava voltando para casa, levando consigo o robô Daneel Olivaw. Estava casado há dezoito anos e seu filho Bentley Baley (que ainda não tinha escolhido um nome do meio) já tinha completado os dezesseis. Baley parou em frente à grande porta de dois batentes que ostentava a escrita: PESSOAL - HOMENS. Mais embaixo lia-se, em letras menores: SUB-SECÇÃO 1 A-1 E. Logo em cima da fechadura, em letras minúsculas, podia-se ler: "A perda da chave deverá ser comunicada sem demora, chamando 27-101-51”.Um homem chegou, passou por eles, enfiou uma lasca de alumínio na fechadura e entrou. Fechou a porta, sem o menor aceno de mantê-la aberta para Baley. Por outro lado, se fizesse este gesto, Baley teria se ressentido. O costume era muito arraigado: no interior ou nas imediações dos Pessoais, os homens não davam a menor atenção à presença dos outros. Baley se lembrava que uma das coisas mais interessantes, aprendidas depois do casamento, era que as mulheres tinham costumes absolutamente diferentes, nos Pessoais para mulheres. Jessie sempre dizia:

     - Encontrei Josephine Greely no Pessoal e ela me contou...

     Uma desvantagem do progresso social era o fato que os Baleys tinham recebido autorização para ativar a pequena pia em seu quarto de dormir e que, por conseqüência, a vida social de Jessie acabou sendo prejudicada.

     Sem conseguir disfarçar completamente seu mal-estar, Baley falou:

     - Daneel, por favor, espere aqui, do lado de fora.

     - Você pretende se lavar? - perguntou R. Daneel.

     Baley ficou ainda mais sem jeito e pensou: Que droga de robô! Deram-lhe tantas informações, mas por que não lhe ensinaram um pouco de educação? Se ele falar neste assunto com qualquer outra pessoa, a responsabilidade será minha. Disse:

     - Pretendo usar o chuveiro. À noite sempre tem muita gente, e eu acabaria perdendo tempo. Se tomar meu chuveiro agora, poderemos dispor de mais tempo.

     R. Daneel manteve sua expressão calma.

     - Seus costumes requerem que eu fique esperando aqui?

     Baley ficou completamente sem jeito.

     - Por que você quer entrar... sem nenhuma necessidade?

     - Agora estou entendendo. Claro, claro. Entretanto, Elias, minhas mãos costumam ficar sujas e pretendo lavá-las.

     Ergueu as mãos com as palmas para cima. Eram rosadas, gorduchas, com todas as linhas necessárias: o produto perfeito de uma fabricação meticulosa. E sobretudo, pareciam muito limpas.

     Baley falou:

     - Temos uma pia em nosso apartamento, sabe? - Não usou de muita ênfase. Não adiantava esnobar, frente a um robô.

     - Muito obrigado pela sua amabilidade. Acredito, porém que é mais aconselhável que eu use este lugar. Considerando que preciso conviver com os Terrestres, acho melhor adotar o maior número de seus costumes e suas atitudes.

     - Está bem. Vamos entrar.

     O interior luminoso e bem decorado contrastava com a aparência estritamente utilitária do resto da Cidade, mas nesta ocasião Baley não reparou.

     Murmurou ao ouvido de Daneel:

     - Vou levar mais ou menos meia hora. Espere por mim. - Antes de se afastar, lembrou-se de mais um detalhe: - Escute, não converse com ninguém e não observe ninguém. Não diga uma palavra e não olhe, entendeu? Este é o costume.

     Lançou um rápido olhar ao redor, para ter certeza que ninguém tivesse reparado em sua atitude, mas não notou nenhum olhar escandalizado. Estavam na ante-sala que, naquele instante, estava vazia. Entrou no corredor, com a impressão de estar sujo, passou pelas salas comuns e chegou aos boxes particulares. Sua autorização de usar um box particular datava de há cinco anos - era um box bastante amplo e continha um chuveiro, uma pequena lavanderia e outras instalações necessárias. Havia até um pequeno projetor que podia ser ligado para assistir filmes de noticiários. Naquela ocasião, num surto de bom humor, Baley tinha declarado jocosamente que o box era um verdadeiro lar. Agora, porém, ficava freqüentemente a se perguntar como poderia agüentar as instalações mais espartanas das salas comunitárias, se seus privilégios fossem cancelados de repente. Apertou o botão para ligar a lavanderia. Quando voltou à ante-sala, com o corpo lavado, as roupas de baixo e a camisa limpinhas e uma sensação geral de bem-estar, encontrou Daneel que esperava pacientemente.

     - Sem complicações? - perguntou Baley quando já estavam a uma prudente distância da porta.

     - Nenhuma complicação, Elias, - respondeu R. Daneel.

     Quando chegaram ao apartamento, Jessie estava esperando-os perto da porta, com um sorriso preocupado. Baley a beijou.

     - Jessie, - murmurou, - este é meu novo parceiro, Daneel Olivaw.

     Jessie esticou a mão que R. Daneel apertou e largou. Olhou timidamente para sua visita. Perguntou:

     - Não quer sentar-se, senhor Olivaw? Preciso falar com meu marido a respeito de um assunto particular. Não vou demorar e espero que não se incomode.

     Puxou Baley pela manga e ambos foram para um outro quarto. Jessie perguntou em voz baixa e preocupada:

     - Você não se machucou, não é mesmo? Fiquei preocupada quando ouvi o noticiário.

     - Que noticiário?

     - Foi transmitido há uma hora. A respeito das desordens em frente ao entreposto. Disseram que a multidão foi dispersada por dois investigadores. Eu sabia que você estava trazendo um colega e a coisa aconteceu na sua sub-secção, numa hora em que você devia estar naquelas paragens. Receava que eles não quisessem dizer toda a verdade e que você...

     - Jessie, por favor. Pode ver que estou muito bem.

     Jessie fez um esforço para se controlar. Perguntou:

     - Seu parceiro não é de sua mesma divisão, não é?

     - Não, - respondeu Baley, muito sem jeito. - Ele é... um estranho.

     - Como é que devo tratá-lo?

     - Como qualquer outra pessoa. Ele é simplesmente meu parceiro.

     Falou em tom tão diferente que Jessie apertou os olhos.

     - O que é que está errado?

     - Não há nada de errado. Vamos voltar para a sala. Nossa ausência pode parecer esquisita.

     Ligi Baley percebeu de repente que sentia-se um pouco inseguro a respeito de seu apartamento. Até aquele dia nunca tivera qualquer dúvida. Muito pelo contrário, sentia até um certo orgulho. O apartamento constava de três grandes aposentos: a sala, especialmente, media cinco metros por seis. Cada aposento tinha um armário embutido. Por estar encostado num dos principais condutos de ventilação, havia, de vez em quando, um leve zunido, mas o controle de temperatura e de condicionamento de ar era excelente. A mais, não se encontrava a muita distância do Pessoal, e isto não era pouca vantagem. Porém a presença daquela criatura de um mundo além do espaço provocou uma certa insegurança em Baley. O apartamento agora parecia acanhado e pobre.

     Jessie perguntou com uma animação um pouco forçada:

     - Ligi, você e o senhor Olivaw já jantaram?

     - Não, - respondeu Baley apressadamente. - Eu ainda não comi e Daneel não vai comer conosco.

     Jessie não achou nada de mais. O fornecimento de alimentos era severamente controlado e as rações eram acanhadas: recusar um convite para almoçar ou jantar era sinal de boa educação. Falou:

     - Senhor Olivaw, espero que não se incomode se comemos. Ligi, Bentley e eu comemos em geral na cozinha comunitária. É mais conveniente e tem uma maior variedade de pratos. Aliás, também as porções são maiores. Por outro lado, Ligi e eu recebemos a autorização de comer em casa três vezes por semana, se assim quisermos - Ligi tem bastante sucesso em seu trabalho e gozamos de um status bastante lisonjeiro - então imaginei que, caso quisesse comer conosco, você preferiria uma refeição particular, apesar de ser minha opinião que as pessoas que desfrutam exageradamente de privilégios particulares, são um pouco anti-sociais.

     R. Daneel, muito polido, ouvia a conversa com atenção. Baley, com um gesto disfarçado da mão, falou:

     - Jessie, estou com fome.

     R. Daneel perguntou:

     - Senhora Baley, seria muito atrevimento se eu a chamasse pelo seu nome?

     - É claro que não. - Jessie tirou a mesa do receptáculo na parede e ligou a tomada do aquecedor de pratos. - Por favor, Daneel, não se acanhe. Pode me chamar de Jessie. - Soltou uma gargalhadinha.

     Baley ficou furioso. A situação estava ficando a cada minuto mais desagradável. Jessie pensava que R. Daneel era um homem. Aquela coisa seria mencionada e descrita num Pessoal para mulheres. Daneel tinha muito boa aparência, apesar de um pouco rígido, e Jessie parecia se sentir lisonjeada pela atenção que estava despertando. A coisa era muito óbvia. Baley sentiu curiosidade pelo que Daneel estava pensando de Jessie. Durante os dezoito anos de convivência ela não tinha mudado muito, pelo menos aos olhos de Ligi Baley. Era um pouco mais cheia de corpo e seus movimentos não tinham a antiga elasticidade. Havia algumas poucas rugas nos cantos da boca e as faces eram mais pesadas. Usava um penteado mais discreto e a cor dos cabelos era menos vistosa. Tudo isto, porém, não vem ao caso, pensou Baley. Nos Mundos Externos as mulheres eram altas e esguias, com um porte majestoso, como os homens. Pelo menos, era o que indicavam todos os livros-filmes e R. Daneel só devia ter visto mulheres daquele tipo. R. Daneel, aparentemente, não se incomodava com a tagarelice de Jessie, ou com sua aparência, ou com o fato que ela o chamasse pelo nome.

     - Você tem certeza que não estou cometendo uma gafe? - perguntou. - Seu nome, Jessie, mais parece um apelido. Talvez seja usado apenas pelos membros de sua família e seus amigos mais chegados, e seria mais apropriado se eu usasse seu prenome de verdade.

     Jessie, que estava tirando as rações da embalagem isolante, concentrou sua atenção na tarefa.

     - Pode me chamar de Jessie, - disse, com os dentes cerrados. - Todo mundo me chama assim. Não tenho outro nome.

     - Muito obrigado, Jessie.

     A porta se abriu e um rapaz entrou vagarosamente. Logo olhou para R. Daneel.

     - Olá, pai? - falou com um pouco de timidez.

     - Este é meu filho Bentley, - explicou Baley.  - Ben, este é o senhor Olivaw.

     - É o seu parceiro, pai? Como vai, senhor Olivaw. - Ben arregalou seus olhos grandes e luminosos. - Pai, diga-me, o que foi que aconteceu no entreposto? O noticiário anunciou que...

     - Não faça perguntas agora, Ben, - interrompeu Baley, seco.

     O rosto de Ben mostrou todo seu desapontamento. Olhou para a mãe que, com um gesto, o mandou se sentar.

     - Você fez tudo o que eu lhe disse, Bentley? - perguntou quando o filho se sentou. Com uma mão acariciou seus cabelos. Eram escuros como os do pai, e dava para ver que o rapaz também teria a mesma altura, mas as outras feições eram da mãe. Tinha o rosto oval de Jessie, seus olhos esverdeados e sua boa disposição.

     - Sim, mãe, - respondeu Bentley, inclinando-se para frente para observar a baixela no centro da mesa, que já estava começando a soltar um aroma apetitoso. - O que é que vamos comer? Não é zimovitela outra vez? Hein, mãe?

     - Não entendo porque você não gosta de zimovitela, - falou Jessie comprimindo os lábios. - É um prato ótimo. Coma o que estiver em sua frente, sem mais comentários, por favor.

     Ficou óbvio que iam jantar zimovitela. Baley teria preferido comer um prato diferente e não a zimovitela que tinha um paladar pungente e deixava um gosto esquisito na boca, mas Jessie já tinha explicado seu problema.

     - Ligi, isto é simplesmente impossível. Fico aqui neste nível o dia inteiro e não posso me arriscar a criar inimizades, porque neste caso minha vida se tornaria insustentável. Todo mundo sabe que já fui assistente-dietista e se todas as semanas eu levasse frango ou bifes, diriam logo que tenho alguém me protegendo. Afinal, neste andar quase não tem gente com privilégios particulares, nem mesmo no domingo. Seria a mesma coisa que mexer num vespeiro, e eu acabaria sem liberdade de sair do apartamento e mesmo de usar o Pessoal sem me aborrecer. A mais, zimovitela e proto-vegetais são pratos ótimos, são alimentos bem balanceados e realmente cheios de vitaminas e minerais e muitas outras substâncias necessárias. Podemos comer frango na cozinha comunitária nas quintas-feiras, quando todo mundo come a mesma coisa.

     Baley não insistiu. As coisas estavam como Jessie dizia. O maior problema da vida era minimizar o atrito com a multidão que vivia ao redor. Bentley resistiu um pouquinho. Nesta ocasião, perguntou:

     - Escute, mãe, porque não posso usar o passe de meu pai e comer na cozinha comunitária? Francamente, eu prefiro.

     Jessie sacudiu a cabeça com ar de reprovação.

     - Me admiro muito, Bentley. O que você acha que os outros diriam, vendo você comer sozinho, como se você desprezasse a companhia de seus pais, ou como se eles o tivessem enxotado de casa?

     - Ora, escute, isto não interessa a ninguém.

     Baley interveio em tom nervoso:

     - Faça o que sua mãe mandar, Bentley.

     Bentley encolheu os ombros com uma careta.

     R. Daneel estava na outra extremidade da sala. Perguntou de repente:

     - A família não se incomoda se eu examinar estes livros-filmes durante seu jantar?

     - Claro que não, - respondeu Bentley, levantando-se da mesa com uma expressão de súbito interesse. - São meus. Consegui-os na livraria com uma autorização especial da escola. Vou trazer meu projetor! É muito bom. Foi um presente de meu pai no meu último aniversário. Entregou o projetor a R. Daneel e perguntou: - Você se interessa por robôs, senhor Olivaw?

     - Sim, Bentley, e muito, - respondeu R. Daneel.

     Baley deixou cair o garfo e se abaixou para recolhê-lo.

     - Neste caso, vai gostar destes aqui. Todos tratam de robôs. Preciso escrever um trabalho para minha escola e estou pesquisando o assunto. É bastante complicado, - explicou Bentley com ar importante e acrescentou: - Pessoalmente, sou contrário aos robôs.

     - Bentley, faça-me o favor de se sentar, - falou Baley, irritado. - Não perturbe o senhor Olivaw.

     - Ele não está me perturbando, Elias. Gostaria de discutir o assunto com você Bentley, talvez numa outra ocasião. Seu pai e eu teremos que trabalhar hoje à noite.

     - Muito obrigado, senhor Olivaw. - Bentley voltou à mesa e com uma expressão de repulsa afundou o garfo numa porção rosada de zimovitela.

     Baley pensou: que trabalho será este, hoje à noite? De repente, lembrou-se da tarefa e teve um choque. Pensou no Espacial morto e percebeu que durante muitas horas suas preocupações pessoais tinham contribuído para apagar completamente de sua memória todos os detalhes de um crime.

 

ANÁLISE DE UM ASSASSÍNIO

     Jessie, com um chapéu na cabeça e usando um casaco de querato-fibra, fez suas despedidas. Falou:

     - Sei que vai me desculpar, senhor Olivaw. Você e Ligi precisam falar de muitas coisas.

     Abriu a porta, arrastando o filho.

     - A que horas você pretende voltar, Jessie? - perguntou Baley.

     Ela refletiu.

     - Qual é a hora que você acha mais oportuna?

     - Bom... não vejo a necessidade de você se atrasar muito. Por que você não volta à hora de costume? Por volta da meia noite? - Lançou um olhar interrogativo a R. Daneel.

     R. Daneel assentiu.

     - Lastimo muito. Estou enxotando-a de sua própria casa.

     - Não se preocupe com isto, senhor Olivaw, não é o caso. Esta é a noite da minha costumeira reunião com as outras moças. Vamos, Ben.

     O rapaz não estava com vontade de sair.

     - Escute, por que preciso sair? Afinal, não vou perturbá-los! Que chateação!

     - Vamos, obedeça.

     - Gostaria de saber por que não posso acompanhar você e assistir o espetáculo etérico.

     - Porque vou com algumas amigas e você tem outras coisas a... - A porta se fechou.

     Havia chegado o momento. Baley tinha afastado o assunto principal de seus pensamentos. Primeiro, por causa da curiosidade de conhecer o robô e ver como era realmente. Depois pela preocupação de levá-lo para casa. Finalmente, por causa do jantar. Agora, porém, não sobravam mais desculpas, não tinha mais motivos para adiamentos. Era hora de considerar o crime, as possíveis complicações intra-estelares, uma possível promoção ou talvez um fracasso. Sobretudo, sabia que não poderia fazer qualquer coisa, a não ser pedindo ao robô que o ajudasse. Seus dedos tamborilavam sobre a mesa. R. Daneel perguntou:

     - Até que ponto estamos protegidos contra a possibilidade de alguém ouvir nossa conversa?

     Baley arregalou os olhos, surpresos.

     - Ninguém ficaria escutando o que se passa no apartamento de um outro homem.

     - Quer dizer que os terrestres não tem o hábito de bisbilhotar?

     - Isto não se faz, Daneel. Seria a mesma coisa que, deixe-me ver, olhar no prato de uma pessoa enquanto ela está comendo.

     - Ou a mesma coisa que matar alguém?

     - O que?

     - Também matar alguém é contrário a todas as tradições, não é, Elias?

     Baley começou a ficar irritado.

     - Escute aqui, temos que ser parceiros, e seria melhor que você não tentasse imitar a arrogância espacial. Isto lhe assenta muito mal, R. Daneel. - Não conseguiu resistir à tentação de por um bocado de ênfase na letra R.

     - Lastimo tê-lo irritado, Elias. Só era minha intenção frisar que, considerando que de vez em quando as criaturas humanas são capazes de matar, contrariando todas as tradições, é também provável que possam infringir hábitos muito menos importantes, como, por exemplo, a proibição de bisbilhotar.

     - Este apartamento tem um revestimento acústico suficiente, - retrucou Baley com a testa franzida. - Você não conseguiu ouvir nenhum ruído dos apartamentos ao lado, não é mesmo? Da mesma maneira, eles não podem nos ouvir. Além de qualquer outra consideração, por que você acha que alguém poderia pensar que aqui está se passando algo fora do comum?

     - É sempre melhor não subestimar os inimigos.

     Baley encolheu os ombros.

     - Vamos começar. Tenho informações muito escassas e posso resumi-las com a maior facilidade. Sei que um homem chamado Roj Nemennuh Sarton, cidadão do planeta Aurora e residente na Cidade Espacial, foi assassinado por pessoa ou pessoas desconhecidas. Pelo que ouvi, os Espaciais julgam que não se trata de um incidente isolado. Estou certo?

     - Você está certo, Elias.

     - Os Espaciais julgam que o crime se relaciona com recentes tentativas de sabotar um projeto patrocinado pelos Espaciais, de nos transformar numa sociedade integrada de humanos e robôs, tomando por modelo as sociedades dos Mundos Externos. Por conseguinte, o crime deveria ser obra de um grupo terrorista muito bem organizado.

     - De fato.

     - Neste caso, vamos começar a análise. Será que esta teoria dos Espaciais corresponde realmente à verdade? Por que o crime não pode ser obra de um simples fanático? Na Terra existe realmente um forte sentimento hostil aos robôs, mas não temos conhecimento de organizações que invoquem a violência.

     - Pelo menos, não abertamente.

     - Mesmo uma organização secreta que tivesse por finalidade a destruição de robôs e de fábricas de robôs, teria bom senso suficiente para ver que a pior coisa possível seria matar um Espacial. Este ato só pode ser fruto de uma mente desequilibrada.

     R. Daneel ficou ouvindo com atenção. A seguir falou:

     - Acredito que as circunstâncias contrariam esta sua teoria de uma mente desequilibrada. A vítima e a hora do crime foram escolhidas com cuidado, e isto indica que o assassinato foi planejado cuidadosamente por um grupo muito bem organizado.

     - Parece que você tem mais informações que eu. Pode chutar!

     - Você usa expressões meio obscuras, mas acho que entendi o sentido. Preciso lhe dar uma idéia da ambientação. As relações com a Terra são, do ponto de vista da Cidade Espacial, bastante insatisfatórias.

     - Que lástima, - murmurou Baley.

     - Ouvi dizer que quando surgiu a Cidade Espacial, a maioria de nosso pessoal acreditava que a Terra estava disposta a aceitar o sistema de integração social que deu excelentes resultados nos Mundos Externos. Mesmo depois dos primeiros levantes, ainda era opinião de todos que o povo da Terra se acostumaria com isto. Mas não foi assim. Apesar da cooperação do governo terrestre e da maioria dos governos das Cidades, a resistência continua e só fizemos progressos negligíveis. Como era de se esperar, a situação deixa nosso povo bastante preocupado.

     - Sem dúvida, por uma questão de altruísmo, - comentou Baley.

     - Não é só por isso, - respondeu Daneel. - Mesmo assim, aprecio que você lhes atribua motivos nobres. Estamos todos convencidos que uma Terra saudável e mais moderna traria grandes benefícios a toda a Galáxia. Pelo menos, é o que acreditamos na Cidade Espacial. Devo porém admitir que nos Mundos Externos existem fortes correntes de oposição.

     - Não diga? Existe desacordo entre os Espaciais?

     - Existe, sim. Alguns acreditam que uma Terra mais moderna poderia se transformar numa Terra perigosa e imperialista. Esta opinião é muito difusa especialmente entre as populações dos mundos mais antigos mais próximos da Terra, que tem razões de sobra para se lembrar dos primeiros séculos de viagens intra-estelares e da época em que seus mundos eram política e economicamente controlados pela Terra.

     Baley suspirou.

     - Esta é história antiga. Será que eles estão realmente preocupados? E será que ainda nos hostilizam por acontecimentos de há mil anos?

     - As criaturas humanas, - disse R. Daneel, - tem características peculiares.  Por exemplo, sob certos pontos de vista, elas não são racionais como os robôs, porque seus circuitos não podem ser adequadamente planejados. Também já me disseram que o fato pode ter suas vantagens.

     - É possível, - admitiu Baley, seco.

     - Você se encontra numa posição mais favorável para opinar a respeito, - respondeu R. Daneel. - De qualquer forma, os contínuos insucessos na Terra consolidaram os partidos nacionalistas dos Mundos Externos. Eles afirmam que existe uma óbvia diferença entre os Terrestres e os Espaciais e por conseqüência eles não podem atuar pelos mesmos sistemas. Afirmam também que se impuséssemos os robôs com a força, aqui na Terra, toda a Galáxia seria fadada à destruição. Você deve se lembrar que existe uma coisa que eles nunca esquecerão, a dizer, que a população da Terra é de oito bilhões, enquanto a população total dos Mundos Externos em conjunto, chega apenas a cinco bilhões e meio. Nosso pessoal daqui, especialmente o dr. Sarton...

     - Ele era médico?

     - Não, era doutor em sociologia, e sua especialidade eram os robôs. Era um homem deveras brilhante.

     - Compreendo. Continue.

     - Como estava dizendo, o dr. Sarton e os outros chegaram à conclusão que a Cidade Espacial e quanto ela representa, acabariam por desaparecer se nosso fracasso continuasse a alimentar os ressentimentos dos Mundos Externos. O dr. Sarton acreditava que já estava na hora de fazermos um esforço supremo para compreender a psicologia dos Terrestres. É fácil dizer que o povo da Terra é basicamente conservador, repetir continuamente lugares comuns do tipo "a Terra imutável" e "a impenetrável mente Terrestre", mas tudo isto só leva a evitar uma confrontação com o problema. O dr. Sarton acreditava que a oposição se originava na ignorância e que não podíamos resolver o problema com ditados ou com calmantes. Era sua opinião que os Espaciais que desejavam reformar a Terra deveriam abandonar o isolamento da Cidade Espacial e se misturar aos Terrestres. Deveriam viver, pensar e ser da mesma forma que os Terrestres.

     - Os Espaciais? - perguntou Baley. - Mas isto é impossível.

     - Você está certo, - concordou R. Daneel. - Apesar de suas convicções, o dr. Sarton não teria sido capaz de entrar numa Cidade terrestre, e ele o sabia. Seria incapaz de aturar as grandes aglomerações de pessoas. Mesmo sendo forçado a entrar numa Cidade, teria ficado confuso pelas aparências, sem qualquer perspectiva de descobrir as verdades interiores que procurava.

     - E o que você me diz a respeito daquela sua eterna preocupação com doenças? - perguntou Baley. - Não se esqueça disto. Acredito que não existe um único Espacial disposto a entrar numa Cidade, só por causa das doenças.

     - De fato. As doenças do tipo terrestre são desconhecidas nos Mundos Externos, e o pavor do desconhecido é sempre uma manifestação mórbida. O dr. Sarton já tinha considerado todos estes fatos, e mesmo assim insistia na necessidade de chegarmos a conhecer mais de perto os Terrestres e sua maneira de viver.

     - Pelo jeito, não conseguiu o que queria.

     - Não podemos afirmá-lo. Todas as objeções às Cidades valem só para os Espaciais humanos. Os robôs Espaciais não obedecem a estas limitações.

     Baley pensou: nunca me lembro disto. Em voz alta, disse:

     - É mesmo?

     - Sim, - continuou R. Daneel. - Obviamente, somos mais flexíveis. Pelo menos, deste ponto de vista. Podemos ser projetados para uma vida terrestre. Quando produzidos com uma aparência externa especialmente cuidada para assemelharmos aos homens, poderíamos ser aceitos pelos Terrestres e assim estudá-los mais de perto.

     - Quer dizer que você... - começou Baley com súbita compreensão.

     - Sou um robô deste tipo. O dr. Sarton se dedicou ao planejamento e à construção deste tipo de robô durante um ano inteiro. Fui o primeiro robô construído, e por enquanto, sou o único. Infelizmente, minha educação ainda não está terminada.   Esta tarefa foi-me confiada prematuramente, por causa do crime.

     - Quer dizer que nem todos os robôs espaciais se parecem com você? Alguns parecem mais robôs e menos humanos, certo?

     - Claro. A aparência externa depende das funções de um robô. Minha função requer uma aparência muito similar à humana. Outros robôs são diferentes, mas todos são obviamente humanóides. São muito mais humanóides que aqueles modelos primitivos empregados no entreposto. Diga-me, todos os robôs terrestres se parecem com aqueles espécimes?

     - Mais ou menos, - respondeu Baley. - Você não aprova?

     - Não posso aprovar. É muito difícil aceitar como igual algo que parece uma caricatura grosseira do corpo humano. Quero dizer, no mesmo nível intelectual. Seus laboratórios não conseguem mesmo produzir algo mais refinado?

     - Tenho certeza que podem. Acontece, Daneel, que preferimos ver logo à primeira vista quando estamos nos defrontando com um robô.

     Olhou diretamente para o rosto do robô. Os olhos da máquina eram brilhantes e úmidos como olhos humanos, mas Baley teve a impressão que o olhar era muito parado, que não se deslocava levemente de um ponto para o outro, como os homens costumavam fazer.

     R. Daneel disse:

     - Espero chegar a entender este ponto de vista.

     Durante um instante Baley duvidou que a frase fosse sarcástica, mas logo decidiu que estava enganado.

     - De qualquer maneira, - continuou R. Daneel, - o dr. Sarton viu claramente que se tratava de um caso C/Fe.

     - Ce fé? O que é isto?

     - São os símbolos químicos dos elementos carbono e ferro, Elias. O carbono é a base da vida humana e o ferro é a base da vida de robôs. É mais fácil dizer C/Fe, quando você quer mencionar uma cultura que combina o melhor de ambas,  em bases  iguais,  mas paralelas.

     - Ce fé. Como é que você escreve isto, com um hífen?

     - Não, Elias, simplesmente com uma barra diagonal. Assim não se refere especificamente a nenhum símbolo, mas a uma mistura de ambos, sem prioridades.

     Baley descobriu que, mesmo a contragosto, estava interessado. A educação acadêmica terrestre não incluía praticamente nenhuma informação sobre a história ou sociologia dos Mundos Externos depois da Grande Revolução que terminou quando eles se tornaram independentes. Os romances mais populares em forma de livro-filme tinham uma boa quantidade de personagens espaciais: os turistas milionários, excêntricos e rabugentos; as herdeiras charmosas que se apaixonavam por terrestres, trocando o desprezo pelo amor; o arrogante rival Espacial, cheio de truques e sempre derrotado. Eram imagens sem valor nenhum, porque negavam até a verdade mais elementar e conhecida: os Espaciais jamais entravam numa Cidade terrestre e as mulheres Espaciais quase nunca visitavam a Terra. Pela primeira vez em toda sua vida Baley sentiu uma estranha curiosidade. Como era realmente a vida de um Espacial? Teve que fazer um esforço para voltar ao assunto que estavam discutindo.

     - Acho que entendo o que você quer dizer, - falou. - Seu dr. Sarton estava tentando se aproximar do problema da conversão da Terra à C/Fe de um ângulo completamente diferente, mas promissor. Os medievalistas, que são nossos grupos conservadores, ficaram de sobreaviso. Receavam que ele conseguisse algum resultado. Então, o mataram. É por isso que você afirma que o crime resultou de uma conspiração organizada, e não foi uma manifestação isolada. Não é assim?

     - Sim, Elias, podemos resumir meu raciocínio desta maneira.

     Baley soltou um leve assovio. Seus dedos voltaram a tamborilar sobre a mesa. Finalmente sacudiu a cabeça.

     - Mas não cola. Absolutamente, não cola.

     - Perdão. Não consigo entender suas palavras.

     - Estou tentando visualizar o acontecimento. Um Terrestre entra na Cidade Espacial, se aproxima do dr. Sarton, dispara seu desintegrador e volta a sair. Não consigo imaginar como isto pode acontecer. Afinal, aposto que a entrada da Cidade Espacial é vigiada.

     R. Daneel assentiu.

     - Acho que posso lhe assegurar com razoável certeza que nenhum Terrestre poderia ter entrado ilegalmente na Cidade Espacial.

     - Então? Como ficamos?

     - Ficamos numa posição meio confusa, Elias. Sobretudo se a entrada deve ser considerada o único acesso possível para qualquer pessoa vinda de Nova Iorque.

     Baley observou seu colega, pensativo.

     - Não entendo. Esta entrada parece ser a única que liga diretamente Nova Iorque com a Cidade Espacial.

     - Diretamente. Certo. - R. Daneel esperou um pouco e continuou: - Você não entendeu onde quero chegar, não é mesmo?

     - É verdade. Não entendi.

     - Se você não se importa, vou tentar explicar. Você pode me dar um pedaço de papel e uma caneta? Obrigado. Olhe aqui, Elias. Vou desenhar um grande círculo que chamaremos Nova Iorque. Aqui, na tangente, vou desenhar um pequeno círculo e chamá-lo Cidade Espacial. Aqui, no ponto de encontro, vou desenhar uma seta e chamá-la Barreira. Agora, diga-me: Você está vendo algum outro ponto de ligação?

     Baley respondeu:

     - Claro que não. Não existe nenhum.

     - De uma certa forma fico feliz por ouvir sua resposta, - disse o robô. - Está de acordo com quanto aprendi sobre o raciocínio dos Terrestres. A Barreira é o único ponto de contato direto. Mas a Cidade e a Cidade Espacial estão abertas para os campos, em todas as direções. Um Terrestre poderia sair da Cidade num ponto qualquer, e chegar à Cidade Espacial atravessando o terreno aberto, sem encontrar qualquer barreira.

     Por um instante a ponta da língua de Baley tocou no lábio superior. Depois ele perguntou:

     - Você disse, atravessando terreno aberto?

     - Sim.

     - Mas, terreno aberto! E sozinho?

     - Por que não?

     - Caminhando? A pé?

     - Sem dúvida, caminhando. Indo a pé, a pessoa teria as melhores probabilidades de não ser descoberta. O crime aconteceu logo cedo, num dia útil, e a aproximação foi feita, sem nenhuma dúvida, na madrugada.

     - Isto é impossível! Na Cidade não existe um só homem que faria uma coisa destas. Imagine! Sair da Cidade? E sozinho?

     - Admito que a coisa pode parecer improvável em condições normais.    Concordo. Nós, os Espaciais, sabemos disto. Por esta razão só temos vigias na entrada. Mesmo durante as desordens, sua gente se limitou a atacar a barreira que protegia a entrada. Ninguém saiu da Cidade.

     - Então?

     - Agora porém estamos nos defrontando com uma situação completamente fora do comum. Não estamos lidando com um ataque de um grande grupo que procura o ponto mais fraco, mas com a tentativa organizada de um pequeno grupo cujo intuito é penetrar deliberadamente num ponto desprovido de vigilância. Desta maneira, como você disse, um Terrestre poderia entrar na Cidade Espacial, aproximar-se da vítima, matá-la e se afastar. O homem que fez isto, planejou seu ataque num ponto totalmente desprotegido.

     Baley sacudiu a cabeça.

     - Parece impossível. Seu pessoal já fez alguma coisa para provar que foi assim?

     - Sim, fizemos. Seu comissário de polícia esteve na Cidade Espacial quase na mesma hora em que aconteceu o crime...

     - Sei.  Ele me disse.

     - Este fato é mais uma prova que o crime foi planejado e perpetrado na hora certa. O Comissário já colaborou com o dr. Sarton no passado, e era o Terrestre escolhido pelo dr. Sarton para os acordos iniciais em vista da infiltração de Rs do meu tipo na Cidade. A reunião daquela manhã visava este assunto. O crime interrompeu o planejamento, pelo menos por algum tempo, e o fato que tudo aconteceu na hora em que o Comissário estava na Cidade Espacial complicou ainda mais a posição dos Terrestres e também de nossa gente. Mas não quero analisar este aspecto. Seu Comissário estava presente. Explicamos a ele que o homem devia ter vindo pelo terreno aberto. Como você, respondeu: Impossível, ou talvez, inimaginável. É óbvio que estava perturbado e talvez isto tenha contribuído para que não conseguisse reconhecer este detalhe essencial. Mesmo assim, conseguimos obrigá-lo a examinar imediatamente esta possibilidade.

     Baley pensou nos óculos quebrados do Comissário e sem querer, seus lábios se encresparam. Coitado do Julius. Devia estar realmente perturbado, especialmente porque não podia explicar as circunstâncias aos Espaciais, tão altivos, que julgavam que qualquer incapacidade física era um atributo especialmente repelente dos Terrestres, que não observavam a seleção genética. com certeza, não poderia explicar sem perder o respeito dos Espaciais, e Julius Enderby precisava deste respeito. Pensando bem, os Terrestres precisavam ser solidários. Baley decidiu não explicar ao robô que Enderby era míope. R. Daneel continuou:

     - Examinamos sistematicamente todos os pontos de saída da Cidade. Sabe quantos são, Elias?

     Baley sacudiu a cabeça e depois arriscou:

     - Vinte?

     - São quinhentos e dois.

     - O que?

     - Antigamente havia mais ainda. As quinhentas e duas saídas são as que ainda se encontram em boas condições. A Cidade cresceu vagarosamente, Elias. Em outros tempos ela não estava coberta e as pessoas costumavam sair para os campos sem maiores complicações.

     - Sim, eu sei.

     - Quando a Cidade foi coberta pela primeira vez, sobraram muitas saídas. Agora, quinhentas e duas ainda funcionam. O resto está bloqueado ou foi incorporado nas construções. Logicamente, não incluímos os pontos de entrada de cargas aéreas.

     - Fale-me das saídas.

     - Foi um trabalho inútil. Não existe qualquer vigilância. Não encontramos nenhum funcionário encarregado, ou que considerasse as saídas de sua competência. Tivemos quase a impressão que todos ignorassem sua existência.  Um homem poderia ter saído por qualquer uma delas, a qualquer hora, e poderia ter voltado sem interferências. Ninguém jamais saberia.

     - O que mais? Suponho que a arma não foi encontrada.

     - Você está certo.

     - Havia alguma pista, algum indício?

     - Nada. Examinamos o terreno em volta da Cidade Espacial com muito cuidado. Os robôs das fazendas mecanizadas não puderam nos dar qualquer auxílio. Trata-se de robôs que podemos considerar máquinas automáticas para a lavoura, que não são humanóides. E não encontramos qualquer criatura humana.

     - Entendo. Que mais?

     - Por enquanto, as tentativas feitas na Cidade Espacial falharam. Agora tentaremos encontrar alguma coisa em Nova Iorque. Vamos ter que descobrir todos os possíveis grupos subversivos e examinar todas as organizações dissidentes...

     - Quanto tempo você pretende dedicar a este trabalho? - perguntou Baley.

     - O menos possível, mas de qualquer forma, o tempo necessário.

     - Bom, - murmurou Baley, pensativo. - Gostaria de ter um outro parceiro para esclarecer esta confusão.

     - Eu, não, - retrucou R. Daneel. - O Comissário não poupou elogios pela sua lealdade e habilidade.

     - Muita amabilidade do Comissário, - disse Baley, sarcástico.

     Pensou: coitado do Julius, ele tenta se livrar do complexo de culpa.

     - Não nos limitamos às opiniões do Comissário, - explicou R. Daneel. - Examinamos sua ficha. Você não escondeu que era contrário ao emprego de robôs em seu departamento.

     - É isto mesmo. Você se importa?

     - De jeito nenhum. Obviamente, suas opiniões lhe pertencem, mas achamos necessário examinar com cuidado seu perfil psicológico. Sabemos que apesar de sua aversão aos robôs, você está disposto a colaborar com um robô, se estiver convencido que esta é sua obrigação. Você tem um conceito de lealdade muito desenvolvido e muito respeito pela autoridade constituída. Precisamos disto. O Comissário Enderby estava certo e sua avaliação, correta.

     - Você, pessoalmente, não fica ressentido pela minha aversão aos robôs?

     R. Daneel respondeu:

     - Se esta aversão não impede que você trabalhe comigo e me auxilie a fazer todo o necessário, porque haveria de ficar ressentido?

     Baley achou que o assunto estava encerrado, mas perguntou com uma certa agressividade:

     - Já que eu fui aprovado, que tal, você? O que é que faz de você um investigador?

     - Não entendo o que você quer dizer.

     - Você foi projetado para ser uma máquina para a coleta de informações.  Uma imitação de homem, que pudesse gravar todos os detalhes da vida humana para uso dos Espaciais.

     - Acho que é uma boa base para um investigador. Você não acredita que a coleta de informações seja muito útil?

     - É apenas um começo, mas está longe de ser tudo o que precisamos fazer.

     - Esqueci de dizer-lhe que meus circuitos sofreram algumas modificações finais.

     - Gostaria de saber alguma coisa a este respeito, Daneel.

     - Fácil. Meus bancos de motivação receberam um forte núcleo de impulsos relacionados à necessidade de justiça.

     - Justiça! - O rosto de Baley perdeu sua expressão irônica para mostrar uma desconfiança total.

     A este ponto R. Daneel virou-se sobre sua cadeira e olhou para a porta.

     - Tem alguém lá fora.

     Era verdade. A porta se abriu e Jessie entrou, pálida e com os lábios apertados. Baley se assustou:

     - Jessie! O que foi que aconteceu?

     Ela parou, evitando encará-lo.

     - Sinto muito, realmente. Eu fui obrigada a... - Não se preocupou em terminar a sentença.

     - Onde está Bentley?

     - Mandei que passasse a noite no Centro Juvenil.

     Baley perguntou:

     - Por quê? Eu não lhe disse nada neste sentido.

     - Você disse que seu parceiro ia passar a noite aqui. Imaginei que teria que dormir no quarto de Bentley.

     R. Daneel falou:

     - Mas isto não era absolutamente necessário, Jessie.

     Jessie fitou o rosto de R. Daneel com uma expressão muito séria. Baley estava observando seus dedos, receando o que estava para acontecer e sem saber o que fazer para evitá-lo. Seus ouvidos ficaram como embotados pelo profundo silêncio que se seguiu e a um certo ponto ouviu a voz de Jessie, como se estivesse penetrando através de uma espessa camada de plastex:

     - Daneel, acho que você é um robô.

     R. Daneel respondeu com a mesma calma de sempre:

     - Sim, você está certa.

 

SUSSURROS NA CAMA

     No último nível das mais ricas sub-secções da Cidade existem Solários naturais, com tampas de quartzo e chapas metálicas removíveis, que não deixam penetrar o ar, mas permitem a passagem dos raios solares. As mulheres e as filhas dos mais altos funcionários e dos mais importantes executivos da cidade freqüentam estes solários para bronzear a pele, e neles também, no fim de cada dia, acontece um espetáculo único. Cai a noite. Em qualquer outra parte da Cidade (inclusive nos Solários Ultra-Violetas, onde os milhões de habitantes podem se expor de vez em quando aos raios artificiais, obedecendo rigorosamente aos horários) existem só os ciclos arbitrários das horas. As atividades da Cidade poderiam facilmente continuar sem interrupção em três turnos de oito horas ou em quatro turnos de seis horas, de "dia" ou de "noite". A iluminação e o trabalho poderiam ser contínuos. Aliás, sempre surgem reformadores cívicos que, periodicamente, sugerem estas medidas no interesse da economia e da eficiência. As sugestões nunca chegam a ser aceitas. Muitos hábitos da sociedade Terrestre de antigamente foram preteridos no interesse da mesma economia e da mesma eficiência, como o espaço, a intimidade e até boa parte do livre arbítrio.

     Eram, porém hábitos da civilização e não tinham mais que dez mil anos. O costume de dormir quando escurece é, porém tão antigo quanto a humanidade: talvez um milhão de anos. Não é fácil perdê-lo. Ninguém pode ver a noite, mas as luzes dos apartamentos ficam sempre mais baixas com o passar das horas noturnas, enquanto o pulso da cidade bate mais fraco. Apesar de ninguém ter a possibilidade de distinguir o meio-dia da meia-noite baseando-se nos fenômenos cósmicos, a humanidade obedece ao mando silencioso dos ponteiros do relógio. As vias públicas se esvaziam, os ruídos esmorecem, a multidão some das enormes avenidas. A Cidade de Nova Iorque se deita na sombra invisível da Terra e sua população adormece.

     Elias Baley não dormia. Estava deitado na cama com as luzes apagadas, mas era só isto. Jessie se mantinha imóvel ao seu lado, na escuridão. Há tempo ele não conseguia perceber ou ouvir qualquer movimento. R. Daneel Olivaw estava sentado, deitado, em pé (Baley não tinha certeza) do outro lado da parede. Baley sussurrou:

     - Jessie! - Logo repetiu: - Jessie!

     O vulto escuro ao seu lado se mexeu levemente debaixo do lençol.

     - O que há?

     - Jessie, você está dificultando tudo.

     - Você devia ter me avisado.

     - De que jeito? Queria fazê-lo, mas ainda não sabia como. Por Josafá, Jessie...

     - Sssst!

     A voz de Baley voltou a ser um sussurro.

     - Como foi que você descobriu? Pode me dizer?

     - Ligi. - Era um cochicho leve como uma brisa. - Será que ele pode nos ouvir? Quero dizer, aquela coisa?

     - Não, se falarmos neste tom.

     - Como é que você pode ter certeza? Talvez tenha algum dispositivo especial para ouvir sons imperceptíveis.  Os robôs espaciais têm capacidade fora do comum.

     Baley sabia. A propaganda em favor dos robôs sempre ressaltava as capacidades milagrosas dos robôs espaciais, seus sentidos adicionais, a possibilidade de servirem à humanidade em cem maneiras novas e diferentes. Pessoalmente, achava aquela propaganda contraproducente. Os Terrestres odiavam os robôs ainda mais, por causa de sua superioridade. Cochichou:

     - Não é o caso de Daneel. Sua aparência humana tem um propósito específico. Eles queriam que fosse aceito como uma criatura humana e por isso só tem sentidos humanos.

     - Como é que você sabe?

     - Se ele tivesse sentidos adicionais, existiria o perigo dele ser reconhecido como um robô por causas puramente acidentais. Suas capacidades seriam visivelmente excessivas.

     - Pode ser.

     Um minuto passou, e Baley fez mais uma tentativa.

     - Jessie, gostaria que você não tomasse nenhuma atitude até que... Escute, querida, você não tem o direito de ficar zangada.

     - Zangada? Ligi, você é um tolo. Não estou zangada, estou assustada. Estou morrendo de medo.

     Agarrou-se ao colarinho de seu pijama e durante algum tempo ficaram assim abraçados. A indignação de Baley começou a se transformar em preocupação.

     - Por que, Jessie? Você não tem motivos para se preocupar. Daneel é inofensivo. Juro que é.

     - Você não poderia se livrar dele, Ligi?

     - Sabe que isto é impossível.  Foi trazido a serviço do departamento. O que é que você quer que eu faça?

     - Que serviço é este? Conte-me, Ligi.

     - Jessie, você me surpreende. - Procurou o rosto de Jessie às apalpadelas e descobriu que estava molhado de lágrimas. Enxugou-lhe os olhos usando a manga do pijama. - Ora, ora, - falou com ternura. - Você está se portando como uma criancinha.

     - Explique ao departamento que escolham outra pessoa, não importa quem for. Por favor, Ligi.

     Baley firmou a voz.

     - Jessie, há muito tempo que você está casada com um policial e sabe que uma missão é uma missão.

     - Por que escolheram você?

     - Julius Enderby...

     Jessie ficou rígida.

     - Eu sabia! Por que você não diz a Julius Enderby para procurar outra pessoa para seus servicinhos sujos, para variar! Você aceita qualquer coisa, Ligi, você nunca protesta e isto é realmente...

     - Está bem, fique calma, - murmurou Baley para apaziguá-la.

     Pensou: ela nunca poderá entender. Desde os tempos do noivado, o nome de Julius Enderby era o suficiente para provocar uma discussão. Quando freqüentava a Escola de Administração da Cidade, Enderby estava dois anos a frente de Baley. Eram amigos e quando Baley se apresentou para os testes de aptidão e de neuro-análise e foi designado para a polícia, descobriu que Enderby já trabalhava há dois anos no mesmo departamento. Enderby já era um investigador à paisana. Baley seguiu o exemplo de Enderby, mas a distância entre ambos continuou a aumentar. Não existiam motivos específicos. Baley era bastante capaz, bastante eficiente, mas faltava-lhe alguma qualidade que sobrava em Enderby. Enderby se adaptava perfeitamente à máquina administrativa. Parecia ter nascido para a hierarquia e sentia-se perfeitamente feliz dentro da burocracia. Baley sabia que o Comissário não era exatamente um gênio. Mostrava possuir peculiaridades infantis, como por exemplo, uma intermitente ostentação de medievalismo. Mas tinha um jeito suave de tratar com as pessoas, evitava se incompatibilizar com qualquer um, sabia aceitar ordens e quando dava ordens, fazia-o com amabilidade e firmeza. Conseguia se entender com os Espaciais. Excedia-se um pouco em subserviência, mas os Espaciais confiavam nele e assim Enderby era de grande valia para a Cidade. (Baley estava convencido que não poderia ficar por muito tempo em contato com os Espaciais sem entrar em choque com eles, por um motivo qualquer, apesar de nunca ter conversado com um Espacial).

     Desta feita Enderby fez uma rápida carreira dentro da Administração, onde um trato agradável e social era mais importante que a competência pessoal, e já era Comissário quando Baley era apenas um C-5. Baley não se ressentia pelo contraste, mas era suficientemente humano para lastimá-lo. Enderby nunca se esquecia da antiga amizade e indiretamente, como era seu costume, fazia o possível para compensar seu sucesso pessoal, favorecendo Baley onde podia. Esta parceria com Daneel era um claro exemplo. O serviço era desagradável e cheio de dificuldades, mas sem dúvida poderia servir como base para uma brilhante promoção. O Comissário poderia ter oferecido a oportunidade a qualquer pessoa. Seu pedido por um favor pessoal, naquela mesma manhã, só servia para disfarçar o favorecimento. Jessie nunca conseguia ver as coisas deste jeito. Em outras ocasiões parecidas já tinha se manifestado a respeito, dizendo:

     - Você tem um excesso de lealdade. Estou cansada de ouvir todo mundo elogiar você pelo seu senso do dever. Gostaria que de vez em quando você pensasse em si mesmo. Já percebi que os que estão em cima, nunca se gabam da lealdade deles.

     Baley continuou deitado e imóvel, mas acordado, para deixar a Jessie o tempo necessário para se acalmar. Precisava pensar. Precisava ter certeza, confirmar suas suspeitas. Lembrou-se de muitos pequenos detalhes e começou a correlacioná-los. Aos poucos, os fatos começavam a mostrar uma certa situação. O colchão cedeu um pouco, enquanto Jessie se virava.

     - Ligi? - Os lábios roçavam o ouvido de Baley.

     - Sim?

     - Por que você não pede demissão?

     - Você está louca.

     - Diga, por que não? - Estava quase ansiosa. - Assim poderia se livrar daquele horrível robô. Diga simplesmente a Enderby que para você já chega.

     Baley respondeu em tom frio:

     - Não posso me demitir no meio de um caso importante. Não posso largar as coisas só porque estou com vontade. Se eu o fizesse, seria desclassificado por justa causa.

     - Não faz mal. Você conseguirá refazer uma carreira. Sei que você pode. Na Administração existem dúzias de empregos disponíveis.

     - Jessie, a Administração não aceita homens que foram desclassificados por justa causa. Minha única alternativa, seria o trabalho braçal, e você também, não teria acesso a qualquer outro. Bentley perderia todos os privilégios paternos. Pelo amor de Deus, Jessie, você não sabe o que está dizendo.

     - Já li a este respeito e não estou com medo, - ela murmurou.

     - Você perdeu o juízo, está completamente biruta.

     Baley percebeu que estava tremendo. A imagem de seu pai estava aparecendo em sua mente. Seu pai, desclassificado, definhando a cada dia, até morrer.

     Jessie suspirou. Baley a rejeitou mentalmente, com um ímpeto quase selvagem. Tomado pelo desespero, voltou a ligar uma série de pequenos fatos. Falou, controlando a voz:

     - Jessie, você precisa me dizer uma coisa. Como foi que você descobriu que Daneel é um robô? Como foi que você chegou a esta conclusão?

     Ela começou:

     - Bom, acontece que... - mas logo parou. Era a terceira vez que ela começava a explicar e parava.

     Baley segurou-lhe a mão, para encorajá-la.

     - Por favor, Jessie. Você tem medo de alguma coisa? Por quê?

     Jessie disse:

     - Imaginei que devia ser um robô. Foi só isto.

     - Não houve nada que levasse você a esta conclusão, Jessie? Quando você saiu, você ainda não pensava que Daneel era um robô, não é mesmo?

     - N... não, mas comecei a pensar, e...

     - Ora, vamos, Jessie. O que foi que aconteceu?

     - Bom... Escute, Ligi.  As moças estavam comentando, no Pessoal. Sabe como isto acontece.   Elas estavam comentando uma porção de coisas.

     Mulheres! Pensou Baley.

     - De qualquer jeito, - falou Jessie, - o boato está correndo por toda a Cidade.

     - Tem certeza? - Baley percebeu o surto rápido de uma sensação de triunfo.   Mais uma pedrinha para completar o mosaico!

     - Foi o que disseram. Parece que todos estão sabendo que um robô dos Espaciais se encontra na Cidade. Este robô tem uma aparência totalmente humana e dizem que está trabalhando com a polícia. Acabaram me perguntando se eu sabia algo a respeito. Estavam rindo e brincando e perguntaram: - Será que Ligi sabe de alguma coisa? - e também comecei a rir e respondi que estavam dizendo tolices. Depois fomos todas para o espetáculo etérico e comecei a pensar em seu novo colega. Você se lembra daquelas fotos que você me trouxe, as fotos feitas por Julius Enderby na Cidade Espacial, para me mostrar como eram os Espaciais? Cheguei à conclusão que seu parceiro tem exatamente a mesma aparência. Tive como uma revelação e pensei, meu Deus, alguém deve tê-lo reconhecido no entreposto, e ele está junto a Ligi, então disse que estava com enxaqueca e...

     Baley interrompeu:

     - Pare, Jessie, pare com isto. Controle-se. Por que você está tão assustada? Você não está assustada por causa de Daneel. Quando você voltou para casa, você o enfrentou. Você parecia muito segura de si...

     Parou de falar e se sentou. Arregalou os olhos na escuridão. Sentiu a mulher se mover ao seu lado. Esticou a mão, encontrou seus lábios, comprimindo-os. Jessie tentou se desvencilhar, agarrou seu pulso, puxando-o, mas ele se inclinou, mantendo a mão firmemente sobre seus lábios. Largou-a de repente. Ela gemeu. Baley murmurou depressa:

     - Sinto muito. Estava à escuta.

     Começou a se levantar da cama. Colocou uma camada morna de plastofilm na sola dos pés.

     - Ligi, o que você está fazendo? Não me deixe sozinha.

     - Não se preocupe. Quero chegar até a porta.

     Enquanto dava a volta da cama o plastofilm produzia um som farfalhante sobre o chão. Baley entreabriu a porta que levava à sala e esperou durante algum tempo. Não aconteceu nada. O silêncio era tão profundo que conseguia ouvir a respiração de Jessie na cama. Percebia o ritmo surdo do sangue em seus próprios ouvidos. A mão de Baley se insinuou pela fresta da porta entreaberta, deslizando sobre a parede. Seus dedos encontraram o botão que controlava a iluminação do forro. Comprimiu-o apenas levemente e logo o forro começou a mostrar uma claridade que, porém era tão fraca que a parte inferior da sala continuava na escuridão. Mesmo assim, conseguiu ver o que queria. A porta do apartamento estava fechada e a sala silenciosa e vazia. Desligou e voltou para a cama. Não precisava de mais nada. As pedrinhas se encaixavam em seus lugares e podia perceber todas as ligações. Jessie pediu:

     - O que é que há, Ligi? Algo errado?

     - Não há nada de errado, Jessie. Tudo está certo. Ele não está aqui.

     - O robô? Você quer dizer que foi embora? Será que não volta mais?

     - Não, sossegue, ele voltará. Quero, porém que você responda a uma pergunta antes que volte.

     - Que pergunta?

     - Do que é que você tem medo?

     Jessie não respondeu.

     Baley insistiu.

     - Você afirmou que estava morrendo de medo.

     - Estou com medo dele.

     - Não, já esclarecemos isto. Você não estava com medo dele e ainda por cima, você sabe que um robô não pode machucar uma criatura humana.

     Jessie falou vagarosamente.

     - Pensei que se todo mundo soubesse que o robô se encontrava aqui, poderia acontecer um tumulto. Poderiam nos matar.

     - Por que nos matariam?

     - Você sabe como estas coisas podem acontecer num tumulto.

     - Mas ninguém sabe onde se encontra o robô, não é mesmo?

     - Poderiam descobrir.

     - Quer dizer que você está com medo de um tumulto?

     - De fato, eu...

     - Ssst! - Empurrou Jessie, comprimindo-a contra os travesseiros.

     A seguir, colou os lábios em seu ouvido.

     - Ele voltou. Escute bem e não diga uma palavra. Está tudo em ordem. De manhã, ele irá embora e não vai mais voltar. Não haverá tumulto nenhum. Está tudo bem.

     Enquanto falava, sentiu-se quase satisfeito. Suficientemente satisfeito para poder dormir. Voltou a pensar: não haverá tumulto, não acontecerá nada. E não haverá desclassificação. Um instante antes de adormecer, pensou: e não haverá investigação. Nem isto. Já está tudo resolvido... Então, adormeceu.

 

VISITA À CIDADE ESPACIAL

     O Comissário Julius Enderby terminou de polir cuidadosamente as lentes dos óculos e depois os colocou no nariz. Baley pensou: é um bom truque. A gente finge estar ocupada enquanto pensa na resposta, e não custa dinheiro, como quando eu acendo meu cachimbo. Este pensamento deu-lhe vontade de fumar. Apanhou o cachimbo e enfiou os dedos na pequena quantidade de fumo grosso. Na Terra ainda se cultivavam algumas poucas plantas consideradas artigo de luxo, entre elas o tabaco, mas previa-se que mesmo estas culturas seriam abolidas dentro de pouco tempo. Os preços só subiam, nunca desciam e as cotas só diminuíam e nunca aumentavam.

     Depois de ajeitar os óculos, Enderby acionou o interruptor sobre a escrivaninha e a porta estalou oferecendo durante um instante uma transparência unilateral.

     - Onde é que ele está?

     - Ele me disse que gostaria de visitar todo o departamento e encarreguei Jack Tobin de acompanhá-lo. - Baley acendeu o cachimbo e apertou seu tampo com cuidado.

     Como todos os não-fumantes, o Comissário não gostava do cheiro do fumo.

     - Espero que você não lhe tenha explicado que Daneel é um robô.

     - Claro que não.

     O Comissário continuou tenso. Uma mão estava brincando distraidamente com um calendário automático sobre a escrivaninha.

     - Como está a situação? - perguntou sem olhar para Baley.

     - Meio desagradável.

     - Sinto muito, Ligi.

     Baley falou em tom de reprovação:

     - Você deveria ter me avisado que suas feições eram completamente humanas.

     O Comissário pareceu surpreso:

     - Eu não avisei? - Falou com súbita impaciência: - Raios, você podia imaginar que seria assim. Não teria pedido que você o levasse para a sua casa se ele se parecesse com R. Sammy, você não acha?

     - Comissário, eu sei disso, mas nunca vi um robô deste tipo, enquanto você já o conhecia. Eu nem sequer sabia que eles existiam. Só teria preferido que você me avisasse.

     - Ligi, já disse que sinto muito. Eu deveria ter falado. Você está certo.   Acontece que minha responsabilidade, todo este caso, me deixam tão nervoso que continuo a responder asperamente às pessoas, sem motivo nenhum. Ele, quero dizer, esta coisa chamada Daneel, é um novo modelo de robô. Ainda se encontra na fase experimental.

     - Ele me explicou.

     - Oh! Então, é isto.

     Baley ficou um pouco tenso. Com expressão indiferente e os dentes cerrados sobre o cabo do cachimbo, falou:

     - R. Daneel tomou as providências necessárias para eu visitar a Cidade Espacial.

     - A Cidade Espacial! - Enderby ficou a observá-lo, visivelmente indignado.

     - Isto mesmo. Parece-me que é um passo lógico, Comissário. Gostaria de ver o local do crime e fazer algumas perguntas.

     Enderby sacudiu a cabeça com firmeza.

     - Ligi, não acredito que seja uma boa idéia. Já examinamos tudo. Duvido que possa surgir alguma coisa que ainda não tenha sido examinada. A mais, os Espaciais são gente esquisita! Devem ser tratados com o maior cuidado, com luvas de pelica! Acredite, luvas de pelica! Você não tem experiência suficiente para isto. Colocou a mão gorducha na testa e acrescentou com surpreendente convicção: - Eu os detesto!

     Baley se esforçou para falar em tom de hostilidade:

     - Raios, o robô veio para cá e eu deveria ir para lá. É bastante desagradável ter que trabalhar com um robô no assento da frente, mas detestaria ter que tomar o assento de trás. Por outro lado, se você acredita que não tenho capacidade suficiente para dirigir as investigações, Comissário...

     - Não é isto, Ligi, não é por sua causa, é por causa dos Espaciais. Você não sabe como eles são.

     Baley franziu a testa.

     - Neste caso, Comissário, você poderia vir conosco. - Sua mão direita se apoiava no joelho e, automaticamente, cruzou dois dedos.

     O Comissário arregalou os olhos.

     - O que é isto, Ligi. Não tenho a menor intenção. Não tente me convencer. - Percebeu que tinha falado demais e procurou se controlar. Disse com mais calma e com um sorriso forçado: - Tenho muito que fazer, sabe? Meu trabalho ficou se acumulando durante estes últimos dias.

     Baley ficou a observá-lo, pensativo.

     - Então, quero lhe fazer uma proposta. Que tal você participar mais tarde, pela trimensão? Quero dizer, só durante um pouco de tempo. Para o caso de eu precisar de ajuda.

     - Bom... sim. Acho que isto é possível. - O Comissário não parecia entusiasmado.

     - Ótimo. - Baley olhou para o relógio na parede. - Vou ficar em contato.

     Enquanto saía do escritório, Baley lançou um olhar para trás, mantendo a porta aberta por mais um segundo. Viu que o Comissário abaixava vagarosamente a cabeça até o braço apoiado sobre a mesa. Enquanto fechava a porta, Baley teve a impressão de ouvir um soluço. Por Josafá! Pensou, profundamente chocado.

     Parou um instante na grande sala e se apoiou no canto de uma escrivaninha, sem se preocupar com a pessoa sentada atrás, que o observou, murmurando um cumprimento e logo voltou ao seu trabalho. Baley tirou o tampo do cachimbo e soprou. Virou o cachimbo acima do pequeno aspirador de cinzas, embutido na escrivaninha e as cinzas esbranquiçadas sumiram. Voltou a apertar o tampo e guardou o cachimbo. Mais uma dose de fumo tinha se evaporado!

     Voltou a pensar na cena anterior. De uma certa forma, a atitude de Enderby não o surpreendia. Esperava que desaprovasse qualquer tentativa de ir à Cidade Espacial. O Comissário falava freqüentemente nas dificuldades que encontrava em suas negociações com os Espaciais e quanto poderia ser perigoso permitir que pessoas inexperientes cuidassem disto, mesmo em se tratando de assuntos de pouca importância. Não esperava, porém, que o Comissário cedesse tão rapidamente. Supunha que Enderby insistiria para, pelo menos, acompanhá-lo. A importância de qualquer outro compromisso tornava-se nula frente à urgência deste problema. Baley não teria gostado. Baley queria que tudo acontecesse como tinha, de fato, acontecido. Queria que o Comissário estivesse presente pela trimensão, para poder acompanhar os acontecimentos, ficando numa posição que ao mesmo tempo o colocasse fora do alcance.

     Tudo deveria acontecer na maior segurança. Baley precisava de uma testemunha que não pudesse ser rapidamente eliminada. Isto tornava-se necessário para garantia que ele próprio gozaria de uma margem mínima de segurança. O Comissário tinha concordado com isto sem demora. Baley pensou naquele soluço percebido através da porta entreaberta (ou talvez só fosse uma sugestão de soluço) e raciocinou: o homem não está à altura de toda esta história.

     Ouviu uma voz alegre e um pouco indistinta quase na altura de seu ombro e sobressaltou.

     - Que diabo você quer, agora? - perguntou, furioso.

     O sorriso imbecil estampado no rosto de R. Sammy não se alterou.

     - Ligi, Jack avisa que Daneel agora está pronto.

     - Está bem. Agora, pode dar o fora.

     Franziu o cenho, observando as costas do robô se afastando. Não havia nada de mais irritante que aquele amontoado imbecil de ferragens, chamando-o continuamente pelo nome ou apelido. Tinha se queixado disto com o Comissário, pouco depois da chegada de R. Sammy no escritório, mas o Comissário só encolheu os ombros e disse:

     - A gente não pode ter tudo, Ligi. O público quer que os robôs sejam construídos com um robusto circuito de amizade. Paciência. Parece que gosta mesmo de você e chama você com o nome mais carinhoso que conhece.

     Circuito de amizade! Nenhum robô, de qualquer tipo, poderia prejudicar qualquer criatura humana. A Primeira Lei Robótica afirmava: "Nenhum robô poderá machucar uma criatura humana ou permitir que ela seja prejudicada pela omissão do robô". Os cérebros positrônicos eram sempre construídos com esta lei solidamente embutida em todos os seus circuitos básicos, a ponto que ela predominava em qualquer circunstância. Não havia necessidade nenhuma para especiais circuitos de amizade. Mesmo assim, o Comissário estava certo. A desconfiança dos Terrestres frente aos robôs era algo totalmente irracional, e por isso era necessário acrescentar um circuito de amizade, como, por outro lado, era necessário que todos os robôs tivessem um rosto sorridente. Pelo menos, na Terra. R. Daneel era diferente. Ele jamais sorria.

     Baley se endireitou com um suspiro. Pensou: a próxima parada será na Cidade Espacial - talvez seja até a última! Os membros da polícia da Cidade e alguns altos funcionários ainda podiam se valer de carros de patrulha nos corredores da Cidade, e mesmo nas antigas rodovias subterrâneas, onde era proibido o trânsito de pedestres. Os liberais não se cansavam de pedir que estas rodovias fossem transformadas em play-grounds para as crianças, em novas áreas comerciais, em vias expressas ou em novas vias locais. Entretanto, não conseguiam prevalecer sobre a oposição baseada na "segurança cívica". Era necessário manter abertos alguns canais de comunicação para os casos de incêndios muito grandes, ou de falhas de energia ou de ventiladores, ou talvez para o caso de tumultos mais sérios, para que as forças da Cidade pudessem chegar até os pontos críticos num piscar de olhos. Nada poderia substituir as rodovias.

     Baley já tinha usado repetidamente as rodovias, mas sempre ficava deprimido por aquele vazio indecente. Tinha a impressão de se encontrar a um milhão de milhas da pulsação quente e viva da Cidade. Enquanto dirigia o carro de patrulha, a rodovia se estendia em sua frente, como um enorme verme oco e cego. Enquanto passava de uma curva à outra, continuavam se descortinando trechos novos. Sabia, sem necessidade de olhar, que às suas costas o mesmo verme oco e cego ia se contraindo e se fechando. A rodovia era suficientemente iluminada, mas naquele silêncio e naquele vazio até a iluminação parecia fora de propósito.

     R. Daneel não fazia nada para amenizar o silêncio e o vazio. Olhava para frente, completamente alheio, sem se impressionar pela solidão da rodovia ou com as multidões das vias expressas. Envolvidos pelo som estridente da sirena do carro de patrulha, saíram da rodovia e, descrevendo uma curva muito larga, entraram numa alameda de acesso a um corredor da Cidade. Estas alamedas de acesso, antigamente reservadas aos veículos, ainda eram devidamente sinalizadas em todos os mais importantes corredores, talvez em homenagem ao passado. Não havia mais veículos circulando, a não ser carros de patrulha, carros de bombeiros e caminhões da manutenção, e os pedestres tomavam conta da alameda em toda sua largura, completamente despreocupados. A aparição do barulhento carro de patrulha provocou uma série de saltos de pedestres indignados, em todas as direções. Baley começou a se sentir mais aliviado enquanto os ruídos em sua volta se faziam mais freqüentes e altos, mas isto não durou muito. Duzentos metros mais adiante se adentraram por um corredor silencioso que levava à entrada da Cidade Espacial.

     Estavam sendo esperados. Os guardas obviamente conheciam R. Daneel de vista, e apesar de serem humanos, acenaram para ele sem qualquer sinal de constrangimento. Um guarda se aproximou de Baley e o cumprimentou com perfeita e fria cortesia militar. Era alto, muito sério, mas não se parecia com o espécime perfeito de Espacial representado por R. Daneel. Disse:

     - Por favor, senhor. Sua identificação.

     O cartão foi vistoriado com eficiência e rapidez. Baley percebeu que o guarda usava luvas cor de carne e um filtro quase imperceptível em ambas as narinas. O guarda voltou a tocar o quepe e devolveu o cartão de identificação. Disse:

     - Temos aqui um pequeno Pessoal para homens que colocamos à disposição do senhor, para o caso em que desejasse tomar um chuveiro.

     Baley sentiu-se tentado a negar qualquer desejo de tomar um chuveiro, mas R. Daneel cutucou levemente seu braço enquanto o guarda voltava ao seu lugar. R. Daneel disse:

     - Amigo Elias, o costume requer que os habitantes da Cidade tomem banho antes de entrar na Cidade Espacial. Estou lhe dizendo isto porque sei que você não deseja nos colocar numa situação desagradável por falta de informações a este respeito. Seria também oportuno que você atendesse a todas as medidas de higiene que você achar necessárias. Na Cidade Espacial não existem quaisquer instalações que possam servir a estes propósitos.

     - Não existem instalações? Mas isto é impossível, - exclamou Baley.

     - Quero dizer, - especificou R. Daneel, - que não estão à disposição dos moradores da Cidade de Nova Iorque.

     Baley ficou estupefato e irritado ao mesmo tempo. R. Daneel acrescentou:

     - Sinto muito, mas esta é a rotina.

     Baley entrou no Pessoal sem dizer mais nada. Sem olhar, sentiu que R. Daneel o seguia. Pensou, será que está me controlando? Será que quer ter a certeza de que vou me livrar da poeira da Cidade? Durante um instante pensou com furiosa satisfação que a Cidade Espacial teria uma surpresa desagradável. O caso que isto poderia de fato prejudicá-lo, pareceu-lhe de nenhuma importância. O Pessoal era pequeno mais muito bem equipado e de uma limpeza anti-séptica. O ar pareceu-lhe algo pungente. Baley farejou, sem entender o que era. De repente, se lembrou: ozônio! O local era sujeito a uma constante irradiação ultra-violeta! Um letreiro piscou repetidamente e depois permaneceu aceso. Dizia: "Pedimos aos visitantes para remover todas as roupas, inclusive os sapatos, e colocar tudo no receptáculo abaixo". Baley obedeceu à sugestão. Desatou o cinto do desintegrador e voltou a atá-lo em sua cintura nua. Parecia mais pesado e mais desagradável. O receptáculo se fechou e as roupas desapareceram. O letreiro se apagou. Um outro letreiro se acendeu. Dizia: - "Pedimos aos visitantes para atender a todas as necessidades pessoais e depois usar o chuveiro indicado pelas setas".

     Baley teve a impressão de ser um utensílio sendo fabricado por uma máquina manobrada por controle remoto. Logo ao entrar no cubículo do chuveiro, cuidou de envolver o coldre do desintegrador com sua capa plástica impermeável. Examinou o fecho com cuidado. Sabia que, mesmo assim, estaria em condições de usar a arma dentro de cinco segundos, em caso de necessidade. Não encontrou qualquer botão ou gancho no interior do cubículo que pudesse servir para pendurar seu cinturão. Colocou então o desintegrador no canto mais afastado da entrada. Um letreiro começou a piscar. Dizia: "Pedimos ao visitante para manter os braços esticados e afastados do corpo e para se colocar dentro do círculo central, com os pés na posição indicada". Quando Baley colocou os pés nas depressões indicadas, o letreiro se apagou. Ao mesmo tempo recebeu o impacto de jatos espumosos que vinham, ao mesmo tempo, do forro, do chão e das paredes laterais. A água surgia até mesmo debaixo da planta de seus pés. Isto durou por sessenta segundos, enquanto sua pele se avermelhava pela pressão e pelo calor e seus pulmões não conseguiam se encher de ar naquela umidade e quentura. A seguir, durante mais um minuto, recebeu jatos suaves de água morna e finalmente um sopro de ar quente que o deixou enxuto e descansado.

     Apanhou seu desintegrador, cuja capa também estava sequinha e quente. Afivelou o cinturão e saiu do cubículo, a tempo de ver R. Daneel emergir de outro cubículo ao lado. Claro! R. Daneel não era um morador da Cidade, mas tinha acumulado poeira e sujeira naquela mesma Cidade. Obedecendo a um impulso automático, Baley desviou o olhar. A seguir, lembrou-se que os hábitos de R. Daneel não eram os mesmos. Lançou um olhar em sua direção e não conseguiu controlar um breve sorriso. R. Daneel se parecia com uma criatura humana não só pelas feições de seu rosto e pelas mãos: nenhuma característica humana faltava no corpo daquele robô, reproduzida com cuidado e com esmero. Baley deu alguns passos na mesma direção que estava seguindo desde o instante em que entrara no Pessoal. Encontrou suas roupas bem dobradas. Tinham um cheiro agradável, limpinho e morno. Um outro letreiro anunciou: - "Pedimos aos visitantes para vestirem suas roupas e colocar uma mão na depressão indicada."

     Baley obedeceu e sentiu uma leve picada na ponta do dedo mediano enquanto sua mão pousava sobre uma superfície limpa e leitosa. Ergueu a mão e chegou a ver um pinguinho de sangue no dedo. O sangue parou de escorrer. Apertou a ponta do dedo mas nenhum sangue voltou a sair da picada. Era claro que estavam analisando seu sangue. Pressentiu uma leve ansiedade. Tinha certeza que seu exame médico anual no departamento não chegava a ser tão extenso e não poderia competir com a eficiência e os conhecimentos destes frios fabricantes de robôs do Espaço Externo. Não sabia se um exame muito aprofundado seria favorável. Nesta ocasião Baley se ressentiu pela espera e achou que era demorada, mas quando mais um letreiro piscou, dizia simplesmente: - "Os visitantes podem continuar." Baley suspirou pelo alívio.

     Caminhou até um arco e, no mesmo instante, duas varas metálicas surgiram em sua frente, barrando seu progresso. Logo apareceram palavras luminosas: - "O visitante terá que permanecer parado."

     - O que diabo... - exclamou Baley. Estava a tal ponto furioso que esqueceu que ainda estava no Pessoal.

     A voz de R. Daneel cochichou em seu ouvido.

     - Os farejadores devem ter individuado alguma fonte de energia. Será que você está carregando seu desintegrador, Elias?

     Baley se virou de repente e enrubesceu. Abriu a boca mas conseguiu falar só na segunda tentativa:

     - Um policial é obrigado a manter sua arma ao alcance, quer durante as horas de serviço, quer durante o descanso.

     Era a primeira vez que falava em voz alta num Pessoal desde seus dez anos. Daquela vez, tinha apenas se queixado por ter machucado o dedão, mas seu tio Boris estava presente. Chegando em casa, tio Boris tinha lhe aplicado uma surra e depois tinha lhe passado um sermão sobre a necessidade da observância de um comportamento decente enquanto estivesse em público.

     R. Daneel explicou:

     - Os visitantes não podem entrar armados. Esta é nossa lei, Elias. Mesmo o Comissário guarda seu desintegrador quando visita a Cidade Espacial.

     Não fosse pelas circunstâncias, Baley teria virado as costas, afastando-se da Cidade Espacial e do robô. Agora, porém, estava dominado por uma vontade louca de levar a termo seu plano e conseguir sua desforra. Baley desatou seu cinturão, furioso. R. Daneel o apanhou e o depositou num receptáculo embutido na parede. Uma chapa metálica deslizou, fechando-o hermeticamente.

     - Coloque seu polegar no lugar indicado, - explicou R. Daneel. - Na volta, só seu polegar poderá remover a chapa metálica.

     Sem sua arma, Baley se sentiu mais nu do que no cubículo do chuveiro. Passou além do ponto em que as varetas metálicas tinham impedido seu progresso e saiu do Pessoal. Encontrava-se num corredor, mas havia algo estranho. Lá no alto, a luz tinha características desconhecidas. Sentiu um sopro de ar sobre o rosto e teve a impressão de que um carro passasse à grande velocidade. R. Daneel, pareceu adivinhar sua sensação de desconforto. Falou:

     - Neste instante, Elias, você está ao ar livre. Não se trata de ar condicionado.

     Baley sentiu um leve mal estar. Como era possível que os Espaciais tomassem tantos cuidados com o corpo humano, só porque vinha da Cidade, e não se importassem de respirar o ar imundo dos campos? Apertou as narinas, como a filtrar o ar que estava respirando.

     R. Daneel observou:

     - Acho que você poderá se convencer de que o ar não-condicionado não é prejudicial à saúde.

     - Está bem, - murmurou Baley.

     As correntes de ar eram desagradáveis enquanto batiam em seu rosto. Não eram fortes, mas imprevisíveis e isto o incomodava. A seguir, aconteceu uma coisa pior ainda. O corredor acabava em um espaço muito azul e quando chegaram ao fim, foram envolvidos por uma luz branca e muito forte que vinha do alto. Baley já conhecia a luz do sol. Uma vez tinha visitado um Solário natural por questões de serviço. No Solário, porém, havia vidros que o protegiam e a luz do sol era refletida, produzindo uma claridade igual. Aqui, tudo era aberto. Ergueu a cabeça num gesto automático e olhou para o sol, mas logo virou a cabeça. Seus olhos ofuscados lacrimejaram.

     Um Espacial estava se aproximando. Baley teve um átimo de desconfiança. R. Daneel, porém, deu um passo para frente e cumprimentou o Espacial apertando sua mão. O Espacial olhou para Baley e disse:

     - Queira me acompanhar, senhor. Sou o dr. Han Fastolfe.

     Baley sentiu-se melhor quando chegaram no interior de uma abóbada. Arregalou os olhos ao ver o tamanho dos aposentos e todo aquele desperdício de espaço, mas gostou de sentir que o ar era condicionado. Fastolfe se sentou, cruzou as pernas e disse:

     - Pelo jeito, você prefere o ar condicionado e não gosta do vento.

     Parecia um homem amável. Sua testa era coberta de finas rugas e a pele debaixo dos olhos e em volta do queixo era levemente flácida. Os cabelos também eram um pouco ralos, mas não havia sinal de fios brancos. As orelhas grandes se destacavam da cabeça, dando-lhe um ar feioso e ao mesmo tempo engraçado, que tranqüilizou Baley. Naquela mesma manhã, Baley tinha examinado mais uma vez as fotografias feitas por Enderby na Cidade Espacial. R. Daneel tinha marcado o encontro e Baley estava se preparando para se defrontar com Espaciais em carne e osso. Era bastante diferente conversar com eles a distância de muitas milhas, através das ondas, como já tinha feito em diversas ocasiões. As fotografias mostravam Espaciais muito parecidos com os espécimes que apareciam de vez em quando nos livros-filmes: altos, ruivos, sérios, com um ar frio e distante. Muito parecidos com R. Daneel Olivaw. R. Daneel identificava os Espaciais a pedido de Baley, e quando Baley de repente apontou para uma imagem e perguntou, surpreso:

     - Isto não é você, não é mesmo?

     Respondeu, tranqüilo:

     - Não, este é o dr. Sarton.

     - Você foi feito à imagem de seu criador? - perguntou Baley, irônico, mas não houve resposta e ele nem a esperava.

     Sabia que a Bíblia era um livro muito escassamente conhecido nos Mundos Externos. Baley agora estava observando Han Fastolfe, um homem que não se parecia com o protótipo dos Espaciais, e o Terrestre sentiu-se grato por isso.

     - Você não quer comer alguma coisa? - perguntou Fastolfe.

     Indicou a mesa que o separava do Terrestre e de R. Daneel. Na mesa só havia uma tigela cheia de esferóides coloridos. Baley ficou um pouco surpreso. Ao vê-los, pensou que serviam como decoração.

     R. Daneel explicou:

     - Trata-se de frutas naturais de plantas próprias do planeta Aurora. Sugiro que você experimente este tipo. Chama-se maçã e tem fama de ser agradável.

     Fastolfe sorriu.

     - R. Daneel, obviamente, não fala por experiência pessoal, mas está certo.

     Baley aproximou a maçã da boca. Sua superfície lisa era verde e vermelha. Era também fresca ao tato e exalava um leve aroma bastante agradável. Mordeu a maçã com um esforço e o paladar inesperadamente ácido da polpa afetou seus dentes. Mastigou com cuidado. Os moradores da Cidade comiam alimentos naturais só quando as rações o permitiam. Ele já tinha comido pão e carne naturais, mas estes alimentos sempre eram apresentados preparados: cozidos, moídos, misturados ou homogeneizados. As frutas sempre eram apresentadas com molhos ou em forma de geléia. Aquela maçã, ao contrário, devia ter chegado diretamente da terra de um planeta qualquer. Pensou: espero que alguém tenha se lembrado de lavá-la. Voltou a se admirar pela aparente irracionalidade da higiene espacial.

     Fastolfe disse:

     - Deixe que me apresente de maneira um pouco mais específica. Sou encarregado das investigações no caso do assassinato do dr. Sarton, aqui, na Cidade Espacial, como o Comissário Enderby comanda as operações na Cidade de Nova Iorque. Estou ansioso em ajudá-lo de todas as maneiras possíveis. Desejamos, como vocês da Cidade, que o caso seja resolvido com a máxima discrição e ao mesmo tempo queremos prevenir incidentes similares no futuro.

     - Obrigado, dr. Fastolfe, - respondeu Baley. - Aprecio muito sua atitude.

     E aqui terminam os cumprimentos, pensou. Mordeu o centro da maçã e sua boca se encheu de pequenos ovóides duros e pretos. Reagiu imediatamente, cuspindo-os e eles caíram ao chão. O dr. Fastolfe afastou rapidamente suas pernas. Baley ficou vermelho e se abaixou para recolhê-los.

     Fastolfe disse:

     - Pode deixar, senhor Baley. Não faz mal.

     Baley se endireitou com cuidado e largou a maçã sobre a mesa. Estava convencido de que tão logo se afastasse, os pequenos objetos ovóides seriam recolhidos com um aspirador e as frutas da tigela acabariam queimadas ou jogadas longe da Cidade Espacial. Provavelmente, a sala em que se encontravam seria nebulizada com um viricida. Disfarçou sua sensação de mal estar com um tom áspero. Disse:

     - Queria pedir licença para que o Comissário Enderby se reunisse a nós através da trimensão.

     Fastolfe ergueu as sobrancelhas.

     - Concordo, sem dúvida. Daneel, quer providenciar uma ligação?

     Baley ficou sentado, rígido, até que a superfície brilhante de um paralelepípedo muito grande, num canto da sala, pareceu se dissolver, mostrando Julius Enderby e uma parte de sua escrivaninha. Naquele instante a sensação de mal-estar desapareceu e Baley sentiu um surto de carinho por aquela imagem familiar, junto ao desejo de estar de volta naquele escritório, em segurança. Aliás, qualquer parte da Cidade seria bem vinda, até mesmo os malcheirosos tanques de leveduras de Jersey. Sua testemunha estava presente e Baley não viu razões para maiores adiamentos. Falou:

     - Acredito ter desvendado o mistério que cerca a morte do dr. Sarton.

     Com o canto dos olhos percebeu que Enderby se levantava com um pulo, ao mesmo tempo fazendo gestos espasmódicos para segurar seus óculos. Mas ficando de pé, o Comissário deixava sua cabeça fora dos limites do receptor trimensional, e foi obrigado a sentar-se mais uma vez. Ficou em silêncio, com o rosto congestionado. O dr. Fastolfe também parecia estupefato, mas de maneira muito mais discreta. Só R. Daneel ficou impassível.

     - Você está querendo dizer que sabe quem é o assassino? - perguntou Fastolfe.

     - Não, - disse Baley. - Quero dizer que não houve crime.

     - O que! - berrou Enderby.

     - Um minuto, Comissário Enderby, por favor, - disse Fastolfe erguendo uma mão. Fitou Baley e perguntou: - Você quer dizer que o dr. Sarton está vivo?

     - Sim, senhor. Acredito também saber onde ele se encontra neste momento.

     - Onde está?

     - Está aqui mesmo, - respondeu Baley e apontou com firmeza para R. Daneel Olivaw.

 

DISCUSSÃO SOBRE UM ROBÔ

     Baley ouvia sobretudo as batidas de seu próprio coração. Tinha a impressão de que o tempo tivesse parado, deixando tudo suspenso. A expressão de R. Daneel, como sempre, não mostrava qualquer emoção. Han Fastolfe deixava transparecer uma surpresa discreta e nada mais. Baley, porém, estava se preocupando com a reação de Julius Enderby. O receptor trimensional não conseguia oferecer uma reprodução perfeita do rosto. Sempre havia um mínimo de bruxuleio e por causa desta imperfeição e dos óculos de Enderby, Baley não conseguia ver seus olhos. Pensou: não perca os nervos, Julius, estou precisando de você. Não estava realmente acreditando que Fastolfe agiria precipitadamente, ou impelido por uma reação emocional. Tinha lido em algum lugar, não lembrava onde, que os Espaciais não tinham religião, mas a substituíam por um intelectualismo frio e fleumático, pelo qual alcançavam os níveis mais altos da filosofia. Achava que isto devia corresponder à verdade e confiava nisto. Os Espaciais provavelmente faziam questão de agir vagarosamente, e só com base no raciocínio.

     Imaginava que se estivesse sozinho e tivesse falado as mesmas coisas, nunca mais voltaria à Cidade. Sucumbiria por causa de um frio raciocínio. Os Espaciais estavam convencidos de que seus planos valiam muito mais que a vida de um morador da Cidade. Encontrariam uma justificativa qualquer para Julius Enderby, quem sabe, até entregariam seu cadáver, sacudindo a cabeça e explicando que ele era a mais nova vítima de uma conspiração terrestre. O Comissário acreditaria. Era um homem feito assim. Odiava os Espaciais, mas seu ódio nascia do medo. Não ousaria desacreditar. Era por isso que ele devia ser uma testemunha de fato dos acontecimentos, e ao mesmo tempo ficar em segurança, fora do alcance dos Espaciais.

     O Comissário falou com a voz embargada:

     - Ligi, você está enganado. Eu vi o cadáver do dr. Sarton.

     - Você viu os restos calcinados de algo, e aqui lhe explicaram que aquilo era o cadáver do dr. Sarton, - retrucou Baley. Lembrou-se dos óculos quebrados. Os Espaciais ainda se aproveitaram daquela circunstância fortuita.

     - Não, não, Ligi. Conhecia muito bem o dr. Sarton, e seu rosto não estava atingido. Era mesmo o dr. Sarton. - O Comissário ergueu a mão e tocou levemente nos óculos. Talvez estivesse se lembrando daquele detalhe, porque ficou meio sem jeito e acrescentou: - Eu o observei de perto, com muita atenção.

     - E que tal, este aqui, Comissário? - perguntou Baley apontando para R. Daneel. - Ele não se parece com o dr. Sarton?

     - Sim, parece a estátua do dr. Sarton.

     - Comissário, é muito fácil assumir uma expressão vazia. Vamos supor que os restos que você viu eram de um robô. Você afirma que olhou com muito cuidado.    Você realmente observou com bastante atenção para poder ver que as beiradas calcinadas eram realmente de tecido orgânico decomposto, ou simplesmente uma camada  calcinada, propositalmente superposta para esconder o metal fundido?

     O Comissário parecia enojado. Disse:

     - Você é ridículo.

     Baley olhou para o Espacial.

     - Dr. Fastolfe, estaria disposto a fazer exumar o cadáver para uma autópsia?

     Fastolfe sorriu.

     - Normalmente, não me oporia, senhor Baley. Acontece que não costumamos enterrar nossos mortos. Costumamos cremá-los.

     - Muito cômodo, - comentou Baley.

     - Senhor Baley, continuou Fastolfe, - poderia me dizer como você chegou a esta sua extraordinária conclusão?

     Baley pensou, ele não quer ceder. Vai blefar, se eu o deixar. Disse:

     - Não foi muito difícil. Imitar um robô não se reduz simplesmente a assumir uma expressão impassível e uma fala esquisita. Vocês, homens dos Mundos Externos, têm um grande defeito: estão acostumados demais a ver robôs. Vocês os aceitam quase como criaturas humanas. Vocês já não percebem as diferenças. Aqui, na Terra, a situação é diferente. Mantemos uma atitude diferente com os robôs. Em primeiro lugar, R. Daneel é humano demais para ser um robô. Quando o vi pela primeira vez, acreditei que fosse um Espacial. Tive que fazer um esforço para acreditar que era um robô, como afirmava. Sem dúvida, foi porque ele é um Espacial e não é um robô.

     R. Daneel interrompeu, sem dar qualquer sinal de embaraço por ser o assunto principal daquela conversa. Falou:

     - Como já lhe expliquei, amigo Elias, fui projetado para tomar um lugar temporário na sociedade humana. Minha semelhança com as criaturas humanas é proposital.

     - Mesmo na meticulosa reprodução daquelas partes do corpo humano que, em condições normais, costumam ser sempre cobertas pelas roupas? – perguntou Baley. - Mesmo na reprodução de órgãos que não podem servir de jeito nenhum a um robô?

     Enderby se intrometeu:

     - Como foi que você descobriu isto?

     Baley corou:

     - Não pude deixar de reparar... no Pessoal.

     Enderby mostrou-se escandalizado. Fastolfe disse:

     - Acredito que você compreenderá que uma semelhança deve ser perfeita para poder ser útil. Considerando nossos propósitos, qualquer meia medida seria equivalente a zero.

     Baley perguntou de repente:

     - Posso fumar?

     Três cachimbos no mesmo dia eram uma grande extravagância, mas Baley estava se deixando levar por uma torrente de audácia e precisava de alguma coisa que o acalmasse. Estava decidido a tachar todo mundo de mentiroso.

     Fastolfe respondeu:

     - Sinto muito, mas prefiro que você não fume.

     Esta "preferência" equivalia a uma ordem, e Baley entendeu. Voltou a colocar o cachimbo no bolso. Não podia ser diferente, pensou furioso. Enderby não me avisou, porque ele não fuma, mas tudo me parece muito claro, muito óbvio. Naqueles Mundos Externos tão higiênicos, eles não fumam, não bebem e não têm outros vícios humanos. Não me admira que eles aceitem robôs naquela danada - como foi mesmo que R. Daneel a definiu? - sociedade C/Fe? Não me admira que R. Daneel consiga imitar um robô com tamanha perfeição. Lá fora, todos eles são robôs. Falou:

     - Esta semelhança excessiva, exagerada, é só um detalhe entre muitos. Quando eu estava levando-o para minha casa, aconteceram alguns distúrbios em minha secção que quase terminaram em tumulto. (Teve que apontar para o robô, porque não conseguia chamá-lo Daneel ou dr. Sarton.) - Foi ele quem acabou com as desordens, apontando um desintegrador para a multidão.

     - Santo Deus, - protestou Enderby. - Pelo relatório, foi você que...

     - Sim, Comissário, eu sei, - respondeu Baley. - O relatório foi feito com base em informações que forneci. Não queria que se soubesse que um robô tinha apontado um desintegrador contra homens e mulheres.

     - Não, não. Claro que não, - concordou Enderby horrorizado. Inclinou-se para frente para observar algo fora da área do receptor trimensional.

     Baley sabia o que era. O Comissário estava se certificando se havia alguma interferência no transmissor.

     - Este é mais um detalhe? - perguntou Fastolfe.

     - Sim, sem dúvida, é mais uma prova. A Primeira Lei Robótica estabelece que nenhum robô pode prejudicar uma criatura humana.

     - De fato, R. Daneel não prejudicou ninguém.

     - É verdade. Mais tarde ele afirmou mesmo que não teria atirado em qualquer circunstância. Entretanto, nunca ouvi falar num robô que chegasse a infringir a Primeira Lei, ameaçando um homem, mesmo não tendo a intenção de concretizar a ameaça.

     - Compreendo. Você é técnico em robôs, senhor Baley?

     - De jeito nenhum, embora tenha feito um curso de robótica geral e de análise positrônica. O assunto não me é totalmente desconhecido.

     - Isto é bom, - afirmou Fastolfe, satisfeito. - Acontece que eu sou especializado em robótica e posso lhe garantir que a essência da mente robótica consiste numa interpretação ao pé da letra de todo o universo. A mente robótica não entende o espírito da Primeira Lei, só as palavras. Os modelos primitivos usados na Terra possivelmente recebem dispositivos de segurança adicionais, e deste jeito são incapazes de ameaçar uma criatura humana. Num modelo sofisticado como R. Daneel, a situação é muito diferente. Se entendi direito, a situação requeria que R. Daneel ameaçasse a multidão para evitar um tumulto. A ameaça servia para evitar que criaturas humanas fossem machucadas. Por conseguinte, R. Daneel estava obedecendo à Primeira Lei.

     Baley se sentiu abalado, mas continuou a aparentar calma. Previa que a luta seria dura, mas estava decidido a não permitir que o Espacial o derrotasse. Falou:

     - Você pode discutir cada ponto em separado, mas no fim todos levam à mesma conclusão. Ontem à noite, enquanto discutíamos o que, até agora, chamamos um assassinato, este assim-chamado robô afirmou que foi transformado num investigador quando seus circuitos positrônicos receberam um novo impulso. Este novo impulso é o desejo da justiça.

     - Correto, - afirmou o dr. Fastolfe. - Isto aconteceu há três dias, sob minha supervisão.

     - Um desejo de justiça? Dr. Fastolfe, a justiça é um conceito abstrato. Só uma criatura humana pode usar este termo.

     - Só no caso em que você queira definir a justiça de maneira abstrata, ou seja que ela significa dar a todo homem o que lhe é devido, ou escolher o que é direito, ou qualquer coisa neste sentido. Na atual fase de desenvolvimento da ciência, ainda não conseguimos introduzir num cérebro positrônico a capacidade humana de compreender o que é abstrato.

     - Então você admite isto, mesmo sendo especializado em robótica?

     - Claro que sim. Agora precisamos ver o que R. Daneel entende quando usa o termo "justiça".

     - Pelo teor de nossa conversa, ele entendia a mesma coisa que você, eu ou qualquer outra criatura humana entenderia, mas que robô nenhum poderia entender.

     - Por que você não pede a R. Daneel para definir o termo?

     Baley sentiu uma ponta de insegurança. Olhou para R. Daneel.

     - Então, diga.

     - O que, Elias?

     - Como você definiria a justiça?

     - Elias, a justiça é algo que existe quando se aplicam todas as leis.

     Fastolfe assentiu.

     - É uma ótima definição para um robô, senhor Baley. Introduzimos no cérebro de R. Daneel o desejo de ver a aplicação de todas as leis. Para ele, a justiça é um termo muito concreto porque se baseia no respeito às leis, e as leis existem de maneira específica e muito bem definida. Nestes termos, não existe nenhuma abstração. Uma criatura humana pode reconhecer que, com base em um código moral abstrato, algumas leis podem ser prejudiciais e sua aplicação pode ser injusta. O que é que você acha, R. Daneel?

     - Uma lei injusta, - respondeu R. Daneel, - é uma contradição verbal.

     - Está vendo, senhor Baley? - perguntou Fastolfe. - Você não pode fazer confusões entre sua justiça e a de R. Daneel.

     Baley olhou para o robô e falou com severidade:

     - Ontem à noite você saiu de meu apartamento.

     R. Daneel respondeu:

     - De fato. Sinto muito se perturbei seu sono.

     - Para onde foi?

     - Fui ao Pessoal para homens.

     Por um instante, Baley hesitou. Já tinha pensado que devia ser assim, mas não imaginava que R. Daneel ia responder nestes termos. Percebeu que mais uma porção de sua segurança estava se evaporando, mas decidiu ficar firme, e insistir. O Comissário continuava a observar tudo e as lentes de seus óculos brilhavam enquanto virava a cabeça, olhando de um para o outro. Baley agora não podia ceder. Precisava insistir a qualquer custo. Disse:

     - Quando chegamos em minha Secção, ele insistiu para entrar no Pessoal junto comigo. A desculpa que deu era inconsistente. Durante a noite, como ele admitiu agora mesmo, voltou ao Pessoal. Em se tratando de uma criatura humana, eu não acharia nada demais. Mas em se tratando de um robô, tudo isto não tem sentido. Só podemos concluir que se trata de um homem.

     Fastolfe assentiu. Não parecia abalado. Falou:

     - Sabe, isto é realmente interessante. Que tal perguntarmos a Daneel por que foi até o Pessoal durante a noite.

     O Comissário Enderby se inclinou para frente:

     - Por favor, doutor Fastolfe, - murmurou. - Não acho muito apropriado...

     - Não se preocupe, Comissário, - respondeu Fastolfe. Seus lábios finos se esticaram um pouco, mas não estava sorrindo. - Tenho certeza que a resposta de Daneel não poderá ofender sua sensibilidade ou a do sr. Baley. Quer continuar, Daneel?

     Daneel disse:

     - Jessie, a mulher de Elias, quando saiu do apartamento ontem à noite, parecia bem disposta a meu respeito. Era óbvio que ela não tinha razões para supor que eu não fosse humano. Quando ela voltou para casa, sabia que eu era um robô. Cheguei à óbvia conclusão que esta informação foi recebida fora do apartamento. Por conseguinte, minha conversa com Elias devia ter sido ouvida por alguém. A informação não poderia ter sido obtida de outra forma. Elias me assegurou que o apartamento possuía um revestimento acústico. Tínhamos conversado em voz baixa. Um bisbilhoteiro normal não poderia nos ouvir. Por outro lado, todos sabem que Elias é um policial. Se na Cidade realmente existe uma conspiração tão bem organizada e ela serviu para planejar o assassinato do dr. Sarton, era possível que os conspiradores soubessem que Elias tinha sido encarregado da investigação. Neste caso seria plausível, e até provável, que em seu apartamento houvesse uma escuta.

     “Quando Elias e Jessie foram se deitar, vasculhei o apartamento até onde me foi possível, mas não encontrei um transmissor. A situação então se complicou. Uma duo-onda direcional poderia servir ao mesmo propósito, dispensando qualquer transmissor, mas requer um equipamento bastante complicado. Pela análise da situação cheguei às seguintes conclusões. O único local em que um morador da Cidade pode fazer qualquer coisa sem ser perturbado ou interrogado, é o Pessoal.   Poderia inclusive se valer de uma duo-onda. No Pessoal o hábito de não interferir na intimidade dos presentes é observado com muito rigor, e os homens nunca olhariam para o lado de qualquer um. O Pessoal seccional é bastante próximo ao apartamento de Elias, a ponto que o fator distância deixaria de ser importante. Bastaria um modelo reduzido, tipo portátil.  Fui até o Pessoal para investigar.

     - O que foi que você achou? - perguntou Baley.

     - Não encontrei nada, Elias. Não havia o menor sinal de uma duo-onda.

     Fastolfe, perguntou:

     - Então, Baley, a explicação lhe parece razoável?

     Baley tinha recuperado sua segurança. Disse:

     - Talvez eu diria, suficientemente razoável, em termos, mas não chega a ser perfeita. Ele não sabe que minha mulher me disse como tinha recebido a informação e quando. Ela soube que se tratava de um robô logo depois de sair de casa. Mesmo assim, o boato já estava circulando há algumas horas. Podemos então concluir que o boato não surgiu de um bisbilhoteiro que tivesse espionado e ouvido nossa conversa.

     - Entretanto, - interferiu Fastolfe, - sua saída do apartamento para ir ao Pessoal está suficientemente explicada.

     - Só que surgiu algo que não foi explicado, - retrucou Baley, começando a se acalorar. - Quando, onde e como surgiu o boato? Como é possível que a notícia tenha começado a circular? Pelo que sei, só havia duas pessoas que sabiam a respeito do robô espacial, a dizer, o Comissário Enderby e eu, e nós não falamos com ninguém. Comissário, alguém no departamento estava a par?

     - Não, - respondeu Enderby, preocupado. - Nem o prefeito sabia. Só nós e o doutor Fastolfe.

     - E ele, - acrescentou Baley apontando para Daneel.

     - Eu? - perguntou Daneel.

     - Pois é.

     - Elias, nunca me afastei de você.

     - Mentira, - gritou Baley. - Antes de ir ao meu apartamento, fiquei no Pessoal durante meia hora ou mais. Durante este tempo não tivemos contato nenhum. Foi então que você entrou em contato com o grupo da Cidade.

     - Que grupo? - perguntou Fastolfe.

     - Que grupo? - perguntou o Comissário quase ao mesmo tempo.

     Baley se levantou da cadeira, virando-se para o receptor trimensional. - Comissário, quero que preste muita atenção. Depois, diga-me se tudo isto não se enquadra perfeitamente num padrão. Ficamos sabendo a respeito de um assassinato que, por uma curiosa coincidência, aconteceu logo quando você estava entrando na Cidade Espacial, para ter uma entrevista com o homem assassinado. Você viu o cadáver, supostamente humano, mas agora este cadáver já foi destruído e não pode ser mais examinado.

     “Os Espaciais afirmam que o assassino é um Terrestre, mesmo sabendo que um Terrestre não poderia entrar na Cidade Espacial a não ser atravessando os espaços abertos e fazendo isto de noite. Você sabe que podemos excluir esta possibilidade, por ser totalmente improvável. A seguir, eles enviam à Cidade um suposto robô, aliás, insistem na necessidade de fazê-lo. Logo de início, este robô ameaça criaturas humanas com um desintegrador. A seguir, faz circular o boato que um robô espacial se encontra na Cidade. O boato é muito específico porque esclarece que o robô trabalha para a polícia, como Jessie me explicou. Isto significa que, breve, todo mundo ficará sabendo que o robô estava apontando o desintegrador. É possível que o boato já esteja se espalhando entre os tanques de levedura e as culturas hidropônicas de Long Island. Devem estar murmurando que um robô assassino está à solta na Cidade”.

     - Mas isto é impossível! - gemeu Enderby.

     - Não, não é impossível, porque é exatamente o que está acontecendo, Comissário. Não está vendo? Existe realmente uma conspiração na Cidade, mas ela está sendo dirigida da Cidade Espacial. Os Espaciais querem fazer um relatório sobre o assassínio. Eles querem tumultos. Querem que a Cidade Espacial seja atacada. Se as coisas piorarem, o incidente ficará ainda melhor e as naves espaciais chegarão para ocupar as Cidades da Terra.

     Fastolfe observou, tranqüilo:

     - Já poderíamos ter feito isto há vinte e cinco anos, depois dos Tumultos da Barreira.

     - Há vinte e cinco anos vocês não estavam preparados, mas agora já estão. - O coração de Baley estava a lhe pular no peito.

     - Escute, Baley, este complô que você está atribuindo à Cidade Espacial, me parece bastante complicado. Se quiséssemos ocupar a Terra, poderíamos fazê-lo sem recorrer a complicações.

     - Talvez não poderiam. Este suposto robô me disse que nos Mundos Externos a opinião pública é muito dividida. Acho que estava dizendo a verdade. Então, uma ocupação pura e simples poderia não ter uma boa repercussão lá fora. Talvez seja absolutamente necessário criar um incidente.

     - Um incidente bastante chocante. Como, por exemplo, um assassínio. Não é mesmo? Você deve concordar que é preferível que o crime não seja real. Espero que você não queira insinuar que mataríamos um dos nossos, só para criar um incidente.

     - Você construiu um robô à imagem do dr. Sarton. Destruíram o robô e exibiram os restos ao Comissário Enderby.

     - A seguir, - disse o dr. Fastolfe, - depois de usar R. Daneel para personificar o dr. Sarton na encenação do falso assassinato, usamos o dr. Sarton para personificar R. Daneel na falsa investigação de  um crime inexistente.

     - Isto mesmo. Estou afirmando isto à presença de uma testemunha que não se encontra aqui pessoalmente, para evitar que você possa fazê-la desaparecer, desintegrando-a, e que é suficientemente importante para ser ouvida pelo governo da Cidade e pelo governo de Washington. Estaremos preparados para enfrentar vocês, porque agora já conhecemos suas intenções. Se isto se fizer necessário, nosso governo entrará em contato direto com seu povo, para mostrar a situação exatamente como ela é. Duvido que alguém aceite esta espécie de estupro intra-estelar.

     Fastolfe sacudiu a cabeça.

     - Por favor, Baley, deixe de tolices. Preciso reconhecer que você tem uma imaginação surpreendente. Agora, por favor, suponha, simplesmente suponha, que R. Daneel é apenas R. Daneel. Suponha que Daneel é, de fato, um robô. Não acha que neste caso o cadáver do dr. Sarton, que mostramos ao Comissário Enderby, realmente pertencia a Sarton? Presumir que o cadáver fosse mais um robô, seria menos que racional. O Comissário Enderby assistiu à montagem de R. Daneel e pode afirmar com toda segurança que só foi montado um robô.

     - Quero salientar, - insistiu Baley, teimoso, - que o Comissário não é um especialista em robôs. Vocês poderiam ter montado uma dúzia de robôs iguais.

     - Vamos nos limitar ao assunto em pauta, Baley. O que aconteceria se R. Daneel fosse realmente apenas R. Daneel? Você não acha que toda sua teoria acabaria desmoronando? Você acredita que continuaria tendo alguma base para esta implausível e melodramática conspiração intra-estelar que você inventou?

     - Se ele fosse um robô! Mas eu afirmo que ele é um homem!

     - Receio que você não investigou exaustivamente a questão, senhor Baley, - observou Fastolfe. - Para ver a diferença entre um robô, mesmo entre um robô extremamente humanóide, e uma criatura humana, não é necessário deduzir teorias complicadas, mas muito frágeis, baseadas em pequenos detalhes de conversas ou ações. Por exemplo, já tentou enfiar um alfinete no corpo de R. Daneel?

     - O que? - O queixo de Baley caiu.

     - Trata-se de uma experiência realmente muito simples. Existem outros testes menos simples. A pele e os cabelos parecem reais, mas será que você os observou com uma lente? Embora ele pareça estar respirando, especialmente quando se vale do ar para falar, será que você percebeu que sua respiração é irregular e que às vezes passam muitos minutos sem que ele respire? Você poderia até ter recolhido parte do ar expirado, para medir o conteúdo de dióxido de carbono. Você poderia ter tentado obter uma amostra de sangue, ou medir seu pulso ou as batidas de seu coração. Está vendo o que eu quero dizer?

     - Estas são só palavras, - respondeu Baley, um pouco sem jeito. - Não vou me deixar convencer por um blefe. Eu poderia ter feito qualquer uma destas coisas, mas você acredita que este pretenso robô deixaria que eu o espetasse com uma agulha, ou encostasse nele um estetoscópio e um microscópio?

     - Compreendo perfeitamente seu ponto de vista, - disse Fastolfe. Olhou para R. Daneel e fez um rápido gesto com a mão.

     R. Daneel tocou o punho da manga direita de sua camisa, e a costura dia-magnética abriu-se em todo seu comprimento, deixando aparecer um braço liso, musculoso e aparentemente humano. Os pelos curtos e ruivos, pela sua quantidade e distribuição, eram iguais aos de uma criatura humana.

     Baley perguntou:

     - E daí?

     R. Daneel apertou a ponta do dedo mediano direito entre o polegar e o indicador da mão esquerda. Baley não conseguiu ver todos os detalhes da manipulação seguinte. O gesto teve uma conseqüência esquisita: aconteceu tudo da mesma maneira como antes, quando o campo dia-magnético da costura, interrompido, tinha permitido a abertura da manga da camisa. O braço simplesmente se abriu em duas partes. Debaixo de uma leve camada de material parecido com carne humana, apareceram finas varetas de aço inoxidável, cordões e juntas, com seu característico brilho mate, cinza azulado.

     - Baley, quer fazer o favor de examinar de perto? - perguntou o dr. Fastolfe com muita amabilidade.

     Baley quase não conseguiu ouvir as palavras por causa de um zunido insistente em seus próprios ouvidos e porque a gargalhada histérica e repentina do Comissário obliterou qualquer outro som.

 

EXPLICAÇÕES DE UM HOMEM ESPACIAL

     Os minutos passavam e o zunido ficou mais forte, obliterando as gargalhadas. A abóbada e tudo que nela se encontrava se tornou confusa e na cabeça de Baley até a noção do tempo se evaporou. A um certo ponto percebeu que estava sentado, na mesma posição de antes, mas com a sensação nítida que um certo tempo já tinha passado. O Comissário tinha desaparecido e o receptor trimensional era opaco e leitoso. R. Daneel estava sentado ao seu lado apertando uma porção de pele do braço nu de Baley, perto do ombro. Baley viu uma minúscula lasca hipodérmica logo abaixo da epiderme. Enquanto a observava, viu que se dissolvia e desaparecia no líquido inter-celular, passando logo para a corrente sangüínea e para as células mais próximas. E pelas células penetrou no corpo. Começou logo a ter uma mais clara percepção da realidade.

     - Amigo Elias, está se sentindo melhor? - perguntou R. Daneel.

     Baley estava bem melhor. Puxou o braço e o robô o soltou. A seguir, abaixou a manga da camisa e olhou ao seu redor. O dr. Fastolfe ainda estava sentado no mesmo lugar, com as suas feições pouco atraentes que pareciam abrandadas por um sorriso que lhe encrespava os lábios. Baley perguntou:

     - Eu perdi os sentidos?

     Fastolfe respondeu:

     - Receio que sim, ligeiramente. De fato, você levou um choque.

     Num só instante, Baley se lembrou de tudo. Agarrou o braço mais próximo de R. Daneel, empurrou a manga para cima e observou o pulso. O braço do robô parecia macio ao toque, mas embaixo era possível perceber a dureza de algo que não era osso. R. Daneel não se esquivou e deixou que o investigador examinasse o braço. Baley observou-o com atenção, beliscando a pele, a procura de um ponto de sutura. Seria este? Era lógico que tivesse um ponto assim. Um robô coberto de pele sintética, fabricado com o propósito de parecer um homem, não poderia ser consertado de maneira normal. Seria impossível desparafusar uma chapa para penetrar em seu tórax. O crânio não poderia ter dobradiças, para abrir e inclinar para um lado. Era óbvio que as várias partes do corpo precisariam ser juntadas por uma série de campos micro-magnéticos. A mais, um braço, a cabeça e mesmo o corpo inteiro deveriam ser abríveis a um simples toque, podendo fechar-se também por um toque.

     Baley levantou a cabeça.

     - Onde está o Comissário? - murmurou, arrasado pela humilhação.

     - Parece que tinha alguns compromissos urgentes, - respondeu Fastolfe. - Receio que facilitei seu afastamento. Prometi-lhe que íamos tomar conta de você.

     - Sem dúvida, você tomou conta de mim, e muito bem, - disse Baley com os dentes cerrados. - Acho que não temos mais nada a dizer.

     Endireitou-se apesar do enorme cansaço. Tinha a impressão de ter envelhecido de repente. Era velho demais para começar tudo de novo. Não precisava ter nenhuma vidência especial para saber o que lhe aconteceria num futuro muito próximo. O Comissário devia estar meio assustado e meio furioso. Ao se defrontar com Baley, ficaria muito nervoso, polindo os óculos de quinze em quinze segundos. Explicaria em voz baixa e bem modulada (porque Julius Enderby quase nunca levantava a voz) que Baley tinha insultado mortalmente os Espaciais.

     - Você não pode falar com os Espaciais neste tom, Ligi. Eles não admitem uma coisa destas. - (Baley conseguia ouvir a voz de Enderby muito claramente, com toda a gama de suas inflexões). - Eu avisei. Ainda não é possível avaliar até que ponto chegue o prejuízo que você provocou. Entenda bem, posso compreender seu ponto de vista, estou vendo onde você pretendia chegar. Em se tratando de Terrestres, as coisas poderiam ser diferentes. Teria aprovado o risco, teria até apoiado seu esforço para desmascará-los. Mas com os Espaciais! Ligi, por que você não me avisou? Por que você não pediu minha opinião? Eu os conheço, eu os conheço de cor e salteado.

     A este ponto, qual poderia ser a resposta de Baley? Que em sua opinião, Enderby era exatamente a pessoa que não poderia saber de nada? Que se tratava de um risco muito grande, e que Enderby era um homem excessivamente cauteloso? Que o próprio Enderby tinha apontado o perigo enorme de um fracasso total e mesmo de um pleno sucesso... Ou que a única maneira de evitar a desclassificação era demonstrar que a própria Cidade Espacial devia arcar com toda a responsabilidade? Enderby ia dizer:

     - Ligi, será necessário fazer um relatório. O incidente terá vastas repercussões. Sei o que posso esperar dos Espaciais. Eles exigirão que você seja afastado do caso, e vou ter que satisfazê-los. Você me entende, Ligi, não é mesmo? Vou fazer por você o que estiver em meu poder. Pode acreditar. Vou protegê-lo até onde estiver ao meu alcance, Ligi.

     Baley sabia que isto correspondia à verdade. O Comissário ia protegê-lo até onde pudesse, mas nunca até o ponto de provocar a ira do Prefeito, que devia estar muito zangado. Conseguia imaginar também a reação do Prefeito.

     - Raios, Enderby, o que significa isto? Por que ninguém me consultou? Quem governa esta Cidade, afinal? Por que permitiu a entrada de um robô não autorizado na Cidade? E posso saber por que este malfadado Baley teve que...

     Se o caso se reduzisse a uma simples alternativa entre o futuro de Baley e o futuro do Comissário dentro do departamento, o que poderia Baley esperar? Não conseguia encontrar nenhum motivo plausível para reprovar o Comissário. O mínimo que poderia lhe acontecer era o rebaixamento, e isto já era muito grave. O simples fato de uma pessoa viver numa Cidade lhe assegurava o mínimo indispensável para viver, mesmo que fosse completamente desclassificada. Baley conhecia muito bem este mínimo. Só o status de uma pessoa lhe trazia os pequenos benefícios: Um assento mais confortável, um pedaço de carne de melhor qualidade, o privilégio de ter que esperar menos numa fila. Tudo isto pode parecer pouca coisa para uma mente filosófica, algo que não vale o muito esforço necessário para adquiri-la. Mesmo assim, mesmo sendo um filósofo, ninguém conseguia renunciar a estes pequenos privilégios sem lastimar sua perda, depois de tê-los conquistado.

     Era este o âmago da questão. Afinal, uma pia ativada era um detalhe bastante negligível para o conforto de um apartamento, especialmente se durante trinta anos uma pessoa tinha usado o Pessoal sem maiores queixas. Era uma coisa inútil mesmo para provar o "status", porque a exibição do "status" era considerada o máximo do mal gosto. Mas se a pia fosse desativada, qualquer ida ao Pessoal se transformaria em algo humilhante e intolerável. Sentiria saudade dos tempos em que podia se barbear confortavelmente em seu próprio dormitório. Entre os escritores políticos modernos era moda tecer considerações fátuas a respeito do "fiscalismo" dos tempos medievais, quando a economia ainda se baseava no dinheiro. Afirmavam que naqueles tempos a competição pela existência era brutal. As tensões provocadas pela "luta pelo tostão" obstaculavam o estabelecimento de uma sociedade realmente complexa. (Os estudiosos não concordavam na interpretação do termo "tostão", mas todos concordavam a respeito do sentido da expressão). O "civismo" moderno, ao contrário, merecia todos os elogios por ser eficiente e esclarecido. Era possível. Talvez. Existiam romances históricos, no estilo romântico e também no estilo sensacionalista, e os Medievalistas acreditavam que o "fiscalismo" tinha favorecido o individualismo e a iniciativa.

     Baley estava indeciso a respeito, mas agora começou a especular e a se perguntar se naqueles tempos os homens costumavam lutar mais duramente pelo lendário "tostão", qualquer coisa que fosse, ou sentiam mais profundamente sua falta, de quanto o morador da Cidade lutasse para não perder o privilégio de poder optar por uma coxa de frango no jantar de domingo - uma legítima coxa de frango que tinha pertencido a uma ave viva e verdadeira. Baley refletiu que a coisa não o tocava muito de perto. Mas devia pensar em Jessie e em Ben.

     A voz do doutor Fastolfe interrompeu suas reflexões.

     - Baley, está me ouvindo?

     Baley piscou.

     - Sim? - Quanto tempo tinha ficado parado como um tolo?

     - Faça-me o favor, sente-se, sim? Suponho que já terminou seus comentários mentais. Acredito que você se interessará por alguns filmes que foram tomados no local do crime e outros que guardam as imagens dos acontecimentos que se seguiram.

     - Não, obrigado. Preciso resolver algumas questões na Cidade.

     - Não posso imaginar que você tenha compromissos mais importantes que a solução do caso do dr. Sarton.

     - Receio que isto não esteja mais em minhas mãos. Acredito que o caso já deva ter sido entregue a outra pessoa. - De repente, sua raiva transbordou: - Raios, você podia provar logo que R. Daneel era um robô, porque ficou esperando? Por que você fez toda aquela encenação?

     - Meu caro Baley, eu estava bastante interessado em ouvir suas deduções.   Duvido muito que o caso seja entregue a outra pessoa. Pedi encarecidamente ao Comissário que você continuasse com o caso, antes dele desligar o trimensional. Acredito que atenderá meu pedido.

     Baley sentou-se, ou melhor, deixou-se cair sobre a cadeira. Perguntou com a voz áspera:

     - Por quê?

     O dr. Fastolfe cruzou as pernas e suspirou.

     - Escute, Baley, na maioria dos casos só encontrei dois tipos de moradores da Cidade, manifestantes ou políticos. Seu Comissário é uma pessoa muito útil, mas é um político. Ele só fala o que desejamos ouvir. Não sei se consigo me explicar claramente, mas ele gosta de nos manipular, entende? Você, muito pelo contrário, veio para cá com o maior descaramento para nos acusar de crimes hediondos, e ainda tentou provar que estava certo. Francamente, gostei muito. Acho que conseguimos dar um passo para frente.

     - Como assim? - perguntou Baley, irônico.

     - Acredito que é um bom presságio. Você é uma pessoa com a qual posso falar abertamente. Ontem à noite, R. Daneel se comunicou comigo pelo sub-etérico blindado. Falou algumas coisas a seu respeito que despertaram o meu interesse.  Por exemplo, algo que mencionou a respeito dos livros-filmes que viu em seu apartamento.

     - O que é que eles têm de especial?

     - Uma boa parte trata de assuntos históricos e arqueológicos. Dá a entender que você se interessa pela sociedade humana e que sabe alguma coisa sobre sua evolução.

     - Até os policiais tem licença de ocupar as horas vagas com livros-filmes, se assim desejam.

     - Sem dúvida. Fiquei satisfeito quando ouvi por que assuntos você se interessa. Isto pode ser de grande valia para me auxiliar a conseguir meus propósitos. Em primeiro lugar quero explicar, ou pelo menos, vou tentar explicar o exclusivismo dos homens dos Mundos Externos. Vivemos aqui, na Cidade Espacial; nunca vamos à Cidade de Nova Iorque, e nossos encontros com os moradores da Cidade são rigidamente limitados. Respiramos o ar livre, mas usamos filtros nas narinas. Agora, por exemplo, estou usando estes filtros, minhas mãos estão cobertas por luvas, e estou decidido a não me aproximar de você mais do que é necessário. Na sua opinião, por que isto é assim?

     Baley respondeu:

     - Não adianta eu tentar adivinhar. - Pensou, prefiro que ele o diga.

     - Se você fizesse uma tentativa para adivinhar, diria, como já aconteceu com outros moradores da Cidade, que fazemos isto por causa do desprezo que sentimos pelos Terrestres, e porque pensamos que perderíamos nosso "status" se permitíssemos ser tocados pelas suas sombras. É uma mentira. A verdade é bastante óbvia. Seu exame médico e seu banho obrigatório não foram simplesmente um ritual. Trata-se de medidas necessárias e indispensáveis.

     - Por causa das doenças?

     - Isto mesmo. Meu caro Baley, os Terrestres que colonizaram os Mundos Externos chegaram a planetas completamente isentos de bactérias e vírus terrestres. Sem dúvida, levaram seus próprios vírus, mas também levaram as mais adiantadas técnicas médicas e microbiológicas. Tiveram que lidar com pequenas comunidades de micro-organismos e não encontraram qualquer portador intermediário. Não havia pernilongos para espalhar malária e não havia caracóis para espalhar a esquistossomose. Os transmissores de doenças foram eliminados enquanto era permitido o crescimento de bactérias simbióticas. Com o tempo, os Mundos Externos se tornaram livres de doenças. Naturalmente, os requisitos necessários à imigração de Terrestres se tornaram mais e mais severos, porque os Mundos Externos não podiam mais arriscar a introdução de doenças.

     - Dr. Fastolfe, você nunca esteve doente?

     - Nunca tive uma doença parasitária, Baley. Somos todos passíveis de doenças degenerativas, como, por exemplo, a arteriosclerose, é claro, mas pessoalmente nunca tive o que você chamaria de um resfriado. A mais, se eu apanhasse um resfriado, poderia morrer. Meu organismo nunca teve que desenvolver uma resistência a um vírus. Este é o grande defeito dos moradores da Cidade Espacial. Todos os nossos, os que vieram para cá, estão correndo grandes riscos. A Terra está repleta de doenças, e falta-nos qualquer defesa natural. Por exemplo, você é portador dos germes de quase todas as doenças conhecidas. Você não sabe nada a respeito, porque todos estes germes são controlados pelos anticorpos que seu organismo desenvolveu durante todos estes anos. Eu, por exemplo, não possuo qualquer anticorpo. Você ainda estranha que eu não me aproxime mais de você? Acredite-me, Baley, fico distante porque preciso me proteger.

     Baley observou:

     - Se as coisas estão neste pé, porque ninguém explica esta situação aos Terrestres? Quero dizer, eles deveriam saber que vocês agem como agem, não porque são estupidamente enjoados, mas porque precisam se defender contra possíveis e muito reais perigos físicos.

     O Espacial sacudiu a cabeça.

     - Baley, somos poucos, e, para começar, gozamos da antipatia de todos por sermos forasteiros. Mantemos nossa própria segurança com base em um prestígio meio instável de criaturas "de uma classe superior". Não podemos nos dar ao luxo de perder nosso prestígio, admitindo que temos medo de nos aproximar dos Terrestres. Pelo menos, não podemos fazê-lo, até que consigamos chegar a um melhor nível de compreensão entre Terrestres e Espaciais.

     - Na situação em que estamos, isto não poderá acontecer tão cedo. Nós, quero dizer, eles odeiam sua pretensa superioridade.

     - É um verdadeiro dilema. Não pense que não o sabemos.

     - O Comissário sabe alguma coisa a este respeito?

     - Nunca conseguimos explicar as coisas tão francamente como fizemos com você. Entretanto, é possível que o Comissário já tenha percebido alguma coisa. É um homem bastante inteligente.

     - Penso que se ele tivesse percebido, teria me dito alguma coisa, - observou Baley, pensativo.

     Fastolfe ergueu as sobrancelhas.

     - Você quer dizer que se ele tivesse falado a respeito, você não teria imaginado que R. Daneel era um Espacial humano, não é mesmo?

     Baley ergueu levemente os ombros, sem dar maior importância ao assunto.

     Fastolfe, porém, continuou.

     - Realmente, acho que você está certo. Deixando de lado as dificuldades psicológicas, o efeito terrível que o barulho e as multidões provocam em nós, ainda resta o fato que se um Espacial tivesse a temeridade de ir para a Cidade, estaria praticamente condenado à morte. Isto explica os motivos pelos quais o dr. Sarton iniciou seu projeto de robôs humanóides. Queria produzir substitutos de homens, que poderiam entrar na Cidade em nosso lugar...

     - Sim, R. Daneel já me explicou isto.

     - Você acha que é uma boa idéia?

     - Escute, - disse Baley, - já que estamos falando abertamente, deixe que lhe faça uma pergunta bem simples. Diga-me por que vocês, Espaciais, vieram para a Terra? Por que vocês não nos deixam em paz?

     Fastolfe perguntou sem disfarçar sua surpresa:

     - Você está satisfeito com sua vida na Terra?

     - A gente se acostuma.

     - Está certo, mas até quando as coisas continuarão como estão? A população aumenta num ritmo assustador. Os esforços para produzir as calorias necessárias ao sustento desta população estão se tornando dia a dia mais difíceis. Acredite, homem, a Terra está num beco sem saída.

     - A gente dá um jeito, - repetiu Baley, teimoso.

     - Só à muita custa. Uma Cidade como Nova Iorque é obrigada a fazer esforços gigantescos só para eliminar a água e o lixo. As usinas nucleares são alimentadas com urânio que, a cada dia, é mais difícil de ser encontrado nos planetas do sistema, e a cada dia as necessidades aumentam. A vida na Cidade depende a cada minuto da chegada de polpa de madeira para as usinas hidropônicas. A circulação de ar deve ser constante. Trata-se de um equilíbrio extremamente delicado em todos os sentidos, e que se torna mais difícil a cada ano.    O que aconteceria com Nova Iorque se o enorme fluxo de entrada e de saída tivesse que ser interrompido mesmo que fosse só por uma hora?

     - Até agora nunca aconteceu.

     - Isto não representa uma garantia para o futuro. Antigamente, nas épocas primitivas, os centros populacionais eram praticamente auto-suficientes e se sustentavam com os produtos das fazendas mais próximas. Nada podia prejudicá-los, a não ser uma catástrofe, como uma enchente, uma epidemia ou uma estiagem. Entretanto, com o crescimento destes centros e com o progresso da tecnologia, as catástrofes locais podiam ser amenizadas recorrendo ao auxílio de centros mais distantes, o que significava a independência de áreas sempre maiores. Na Era Medieval, as cidades abertas, mesmo as maiores, podiam se manter durante pelo menos uma semana, com as reservas alimentares e com toda espécie de rações de emergência. Quando Nova Iorque se transformou numa Cidade, podia ainda viver um dia inteiro, gastando suas reservas. Agora não pode mais sobreviver nem por uma hora. Um desastre qualquer que, há dez mil anos seria considerado apenas desagradável, há mil anos seria considerado sério e há cem anos seria já mais agudo, agora resultaria fatal, com toda certeza.

     Baley se agitou nervosamente sobre a cadeira.

     - Já ouvi estas argumentações. Os Medievalistas querem acabar com a Cidade. Querem que todo mundo volte à terra e à agricultura natural. Pois eu acho que são loucos. Nossa população é excessiva, e a história ensina que ninguém pode voltar atrás, só pode ir em frente. Por outro lado, se a emigração para os Mundos Externos não fosse limitada...

     - Você já sabe porque ela deve ser limitada.

     - Neste caso, o que é que podemos fazer? Você está malhando em ferro frio.

     - Que tal a emigração para mundos novos? A Galáxia contém cem bilhões de estrelas. Calcula-se que existem cem milhões de planetas habitáveis ou que podem ser transformados em habitáveis.

     - Que afirmação ridícula.

     - Por quê? - perguntou Fastolfe com uma certa violência. - Por que você acha que isto é ridículo? No passado os Terrestres colonizaram planetas. Mais de trinta entre os cinqüenta Mundos Externos, inclusive o meu planeta nativo Aurora, foram colonizados diretamente pelos Terrestres. Você acha que a colonização já não é mais possível?

     - Na realidade...

     - Você não tem resposta? Então, deixe que eu lhe explique que se não é mais possível, isto é devido ao desenvolvimento da cultura das Cidades na Terra. Antes das Cidades, a vida humana na Terra não era tão especializada, a ponto que os moradores não fossem mais capazes de ir embora e começar uma vida nova num mundo primitivo. Afinal, isto foi feito mais de trinta vezes. Agora, porém, os Terrestres são a tal ponto mimados, a tal ponto amolecidos pela vida que levam, aprisionados em suas cavernas de aço, que nunca mais poderão se libertar. Veja só, Baley, você mesmo não é capaz de acreditar que um morador da Cidade possa atravessar os campos para chegar até a Cidade Espacial. Por conseguinte, atravessar o espaço para ir até um mundo novo deve representar o impossível ao quadrado. Acredite, o civismo está arruinando a Terra.

     Baley ficou furioso.

     - E daí? Por que isto preocupa vocês? O problema é nosso. Vamos resolvê-lo. Se não conseguirmos, o prejuízo também será nosso.

     - Quer dizer, é melhor aceitar um prejuízo do que seguir os conselhos dos outros para chegar ao paraíso? Compreendo seu ponto de vista. Não é muito agradável ouvir sermões de estranhos. Embora eu pessoalmente gostasse que vocês pudessem nos pregar sermões, porque nós também enfrentamos um problema bastante parecido com o seu.

     Baley sorriu com sarcasmo.

     - Excesso populacional?

     - É um problema análogo, mas não idêntico. Trata-se de carência populacional. Quantos anos você acha que eu tenho?

     O Terrestre ficou a observá-lo um pouco e depois exagerou de propósito.

     - Mais ou menos sessenta anos.

     - Você deveria ter dito cento e sessenta.

     - O que!

     - Para lhe dizer a verdade, serão cento e sessenta e três no meu próximo aniversário. Não estou lhe contando mentiras, e para medir o tempo, uso o ano-padrão terrestre. Se eu tiver sorte, se cuidar bem de mim mesmo e sobretudo, se eu não contrair uma doença terrestre, posso chegar até o dobro desta idade. Em Aurora tivemos homens que viveram mais de trezentos e cinqüenta anos. E nossas possibilidades de sobrevida estão em contínuo aumento.

     Baley olhou para R. Daneel (que durante toda aquela conversa tinha ficado calado), como a procurar uma confirmação. Perguntou:

     - Como é possível?

     - Numa sociedade com escassa densidade populacional, é mais prático concentrar as pesquisas na gerontologia, para diminuir o ritmo de envelhecimento. Num mundo como o seu, alimentar a sobrevida poderia equivaler a um desastre.  Vocês não poderiam agüentar o aumento populacional que disto resultaria. Em Aurora temos espaço suficiente para homens tricentenários. A mais, uma vida longa torna-se duas ou três vezes mais preciosa. Se você tivesse que morrer agora, perderia talvez quarenta anos de sua vida, mas provavelmente até menos que isto. Se eu tivesse que morrer, perderia cento e cinqüenta anos, ou talvez mais. Pelo visto, numa cultura como a nossa, a vida de cada indivíduo é da maior importância. Nosso índice de nascimentos é baixo, e o aumento populacional é rigidamente controlado. Mantemos também uma razão estabelecida entre homens e robôs, com a finalidade de oferecer aos homens o máximo do conforto. É lógico que as crianças em desenvolvimento são cuidadosamente examinadas para individuar qualquer defeito físico ou mental, antes que lhes seja permitido amadurecer.

     Baley interferiu:

     - Você quer dizer que são eliminadas se elas não forem...

     - Se elas não são perfeitas. Por sinal, posso lhe garantir que o processo é totalmente indolor. Você ficou escandalizado, da mesma forma que ficamos escandalizados por causa do aumento populacional descontrolado da Terra.

     - Temos controles, doutor Fastolfe. Toda família só pode ter um número estabelecido de filhos.

     Fastolfe sorriu com ar paciente.

     - Um número pré-estabelecido de crianças de qualquer tipo, mas não um número estabelecido de crianças sadias. Mesmo assim, precisamos considerar os filhos ilegítimos, e a população continua aumentando.

     - Quem decide quais crianças podem sobreviver?

     - Isto é bastante complicado e não pode ser explicado com uma única sentença. Qualquer dia poderemos voltar a este assunto, com mais detalhes.

     - Então, qual é o problema? Tenho a impressão de que você está satisfeito com sua sociedade, assim como ela é.

     - Ela é estável. Nosso problema é este. Ela é demasiadamente estável.

     Baley retrucou:

     - Parece que você não gosta de nada. Em sua opinião, nossa civilização está beirando o caos, e a sua demasiadamente estável.

     - De fato, uma sociedade pode ser exageradamente estável. Nenhum Mundo Externo colonizou planetas novos durante os últimos duzentos e cinqüenta anos. Não vemos nenhuma futura perspectiva de colonização. Nossas vidas nos Mundos Externos são muito longas e muito confortáveis. Não desejamos arriscá-las e detestamos a idéia de qualquer mudança.

     - Realmente, não parece, dr. Fastolfe. Você veio até aqui e você está exposto ao perigo das doenças.

     - De fato. Alguns entre nós acreditam que o futuro da raça humana é bastante valioso e merece o risco da possível perda de uma vida previsivelmente longa. Infelizmente, somos poucos.

     - Está bem. Agora parece que chegamos ao assunto em pauta. De que forma a Cidade Espacial pode ajudá-los em seu propósito?

     - Estamos tentando introduzir os robôs na Terra porque achamos que pode ser este o melhor meio para desequilibrar economicamente sua Cidade.

     - Sua ajuda se resume nisto? - Os lábios de Baley tremeram. - Você quer dizer que vocês estão criando propositalmente um grupo crescente de homens deslocados e desclassificados?

     - Acredite, não somos movidos pela crueldade. Acreditamos que um grupo de homens deslocados, como você os chamou, pode constituir o núcleo de colonizadores que estamos precisando. Em tempos antigos, sua América foi descoberta por navios tripulados com homens egressos das cadeias. Será que você não entende que a cultura da Cidade não inclui o homem deslocado? Deixando a Terra, ele não tem nada a perder mas pode ganhar mundos novos.

     - A coisa parece não estar funcionando.

     - Não está mesmo, - concordou Fastolfe. - Existe um obstáculo. O ressentimento dos Terrestres pelos robôs está atrasando tudo, apesar de que estes mesmos robôs poderiam acompanhar os humanos, ajudá-los a superar as dificuldades iniciais num mundo primitivo e auxiliá-los a tornar a colonização uma realidade.

     - E depois, o que teremos? Mais Mundos Externos?

     - Não. Os Mundos Externos se estabeleceram antes que o Civismo tomasse conta da Terra, antes das Cidades. As novas colônias seriam estabelecidas por homens que teriam a formação das Cidades e ao mesmo tempo os preliminares de uma cultura C/Fe. Se constituiria assim uma síntese, uma hibridação. Do jeito que ela está, a própria estrutura da Terra acabará desmoronando num futuro próximo; os Mundos Externos estão fadados a degenerar e fracassar num futuro um pouco mais distante, mas as novas colônias terão linhagens novas e saudáveis, que reunirão o melhor de ambas as culturas. Sua reação sobre os mundos mais antigos, inclusive a Terra, poderá nos dar uma nova vida.

     - Não sei. Parece muito nebuloso, doutor Fastolfe.

     - Sim, é um sonho. Pense um pouco neste assunto. - O Espacial levantou-se de repente. - Não tinha previsto que passaria tanto tempo em sua companhia. De fato, é mais de quanto é permitido pelas nossas leis sanitárias. Você me dá licença?

     Baley e R. Daneel saíram da abóbada. Mais uma vez, foram envolvidos pela luz do sol, agora mais amarela e num ângulo diferente, mais enviesado. Baley sentiu uma vaga curiosidade de saber se a luz do sol poderia parecer diferente num mundo novo. Talvez menos violenta, menos ofuscante. Mais agradável. Um outro mundo? Aquele Espacial feioso, de orelhas proeminentes, tinha mencionado conceitos que agora enchiam sua mente com imagens esquisitas. Será que algum dia os médicos de Aurora tinham examinado Fastolfe ainda criança, para ver se suas condições lhe permitiriam amadurecer? Será que os médicos não levaram em consideração que era muito feio? Ou seus critérios não se relacionavam à aparência física? A que ponto a feiúra se transformava em deformidade, e quais deformidades eram...

     Quando saíram do sol e passaram pela primeira porta que levava ao Pessoal, seu humor mudou. Achou difícil defini-lo. Baley sacudiu a cabeça, exasperado. Tudo isto era ridículo. Querer forçar os Terrestres a emigrar! A estabelecer uma nova sociedade! Que tolice. Qual era o verdadeiro propósito dos Espaciais? Examinou demoradamente a questão sem chegar a um resultado. O carro de patrulha desceu devagar pela rampa. A realidade começou a surgir em volta de Baley. O desintegrador em seu coldre era um peso morno e agradável em seu quadril. Os ruídos e a vida vibrante da Cidade também eram mornos e agradáveis, reconfortantes.

     Durante um instante, enquanto se adentrava pela Cidade, suas narinas perceberam um cheiro leve, pungente. Pensou, admirado: - A Cidade fede. Lembrou-se dos vinte milhões de criaturas humanas apinhadas entre as paredes de aço daquela grande caverna, e pela primeira vez em toda sua vida farejou sua presença com narinas lavadas pelo ar puro dos campos. Pensou: - Isto poderia ser diferente num outro mundo? Poderia haver menos gente e mais ar? Um ar mais limpo? Logo ficaram envolvidos pelo rugido vespertino da Cidade, o cheiro esmaeceu, sumiu e Baley sentiu-se levemente envergonhado. Empurrou levemente a vara de direção, absorvendo uma porção maior de raios energéticos. O carro de patrulha acelerou de repente, descendo a rampa inclinada que dava acesso à rodovia. Falou:

     - Daneel.

     - Sim, Elias.

     - Por que o doutor Fastolfe me disse todas aquelas coisas?

     - Acho provável que ele quisesse explicar a você, Elias, os motivos que contribuem para tornar esta investigação uma coisa muito importante. Não estamos aqui apenas para resolver um caso de assassinato, mas para salvar a Cidade Espacial, e ao mesmo tempo, o futuro da espécie humana.

     Baley observou, seco:

     - Acho que teria sido melhor se ele me mostrasse o local do crime e me deixasse entrevistar os homens que descobriram o cadáver.

     - Elias, duvido que você descobriria qualquer novidade. Nossa investigação foi exaustiva.

     - É mesmo? Vocês não encontraram nada. Nem um indício e nem um suspeito.

     - É verdade. Precisamos encontrar a resposta na Cidade. Mas, de fato, tínhamos um suspeito.

     - É mesmo? Você não mencionou este detalhe.

     - Julguei que não era necessário, Elias. Você deve já ter percebido que, automaticamente, havia uma pessoa suspeita.

     - Quem? Quer me dizer, quem?

     - O único Terrestre que se aproximou do local do crime. O Comissário Julius Enderby.

 

TARDE DE UM INVESTIGADOR

     O carro de patrulha deu uma guinada lateral e parou encostado à parede de concreto da rodovia. Sem o zunido do motor, o silêncio se tornou tétrico e pesado. Baley observou o robô ao seu lado e perguntou em voz baixa:

     - O que foi que você disse?

     Enquanto Baley esperava pela resposta o tempo parecia se esticar. Ouviu uma pequena vibração longínqua que aumentou um pouco e desapareceu. Era um outro carro de patrulha. Passou ao lado, em grande velocidade, procurando um outro destino, para uma outra tarefa qualquer e desconhecida. Ou talvez era um carro de bombeiros, indo para sua luta contra as chamas.

     Uma parte do cérebro de Baley estava especulando distraidamente se ainda existia uma pessoa qualquer que conhecesse todas as rodovias que se emaranhavam em todas as direções nas entranhas de Nova Iorque. O sistema rodoviário nunca ficava completamente vazio, durante o dia ou mesmo durante a noite, mas sem dúvida existiam alguns trechos que ninguém tinha freqüentado durante muitos anos. Logo se lembrou com clareza e com chocante fartura de detalhes de um conto que tinha assistido quando ainda era garoto. O conto era sobre as rodovias de Londres e começava com um crime. O assassino se refugiava num esconderijo conhecido, num canto da rodovia empoeirada, que ninguém tinha usado há um século. Naquele esconderijo poderia esperar em segurança total até que ninguém o procurasse mais. Mas o criminoso tinha tomado o entroncamento errado, e no silêncio e na solidão dos corredores serpenteantes, pronunciou um juramento acompanhado de blasfêmias. Afirmou que apesar da Trindade e de todos os Santos, chegaria ao refúgio. A partir daquele instante nunca mais encontrou o caminho certo. Caminhou e caminhou, do Setor de Brighton, no Canal, até Norwich, e de Coventry até Cantuária. Continuou sua caminhada sem fim debaixo da imensa cidade de Londres que, de ponta a ponta, ocupava toda a região sul-oriental da Inglaterra medieval. Suas roupas ficaram em farrapos, seus sapatos se gastaram, suas forças esmoreceram, mas não o abandonaram completamente.

     Estava terrivelmente cansado, mas não podia parar. Só podia continuar, caminhando e sempre tomando os desvios errados. Às vezes ouvia o zunido de carros de passagem, mas eles sempre se encontravam em algum outro corredor ao lado, e mesmo correndo depressa, ele sempre achava os corredores vazios. Às vezes via uma saída ao longe, uma saída que poderia levá-lo de volta à vida da Cidade, mas a saída se afastava e se afastava, sem que ele pudesse alcançá-la - e quando virava a cabeça, desaparecia de repente. De vez em quando, londrinos que usavam as rodovias por motivos de serviço, entreviam um vulto que se aproximava mancando, um vulto silencioso que erguia um braço fantomático e semi-transparente para chamá-los, uma boca aberta que se mexia sem som. Quando se aproximavam, o vulto desaparecia na névoa. Este conto tinha perdido seus atributos de ficção comum e tinha sido absorvido pelo Folclore. O "londrino errante" era um termo conhecido e usado no mundo inteiro.

     Baley lembrou-se do conto nas profundezas das entranhas de Nova Iorque e sentiu uma espécie de mal estar. R. Daneel falou, e sua voz reverberou levemente nas paredes.

     - Alguém poderia nos ouvir.

     - Aqui? Tolice.  Diga-me tudo a respeito do Comissário.

     - Ele estava no local do crime, Elias. Ele é um morador da Cidade. Não podia deixar de ser suspeito.

     - Ainda é considerado suspeito?

     - Não. Sua inocência foi reconhecida sem demora. Em primeiro lugar, ele não tinha um desintegrador. Você sabe que isto seria impossível. O Comissário entrou na Cidade Espacial pelo jeito habitual, que você já conhece. Não temos dúvidas a este respeito. Como você sabe, é impossível entrar na Cidade Espacial com um desintegrador.

     - A propósito, alguém achou a arma do crime?

     - Não, Elias. Todos os desintegradores da Cidade Espacial foram examinados, mas nenhum deles tinha sido usado durante muitas semanas. A vistoria das câmaras de radiação deu um resultado positivo.

     - Neste caso, quem cometeu o crime conseguiu esconder a arma com muito sucesso, ou então...

     - É impossível que a arma esteja escondida na Cidade Espacial. Nossa busca foi radical.

     Baley respondeu com um pouco de impaciência:

     - Estou tentando considerar qualquer possibilidade. A arma foi escondida, ou então o assassino a levou quando foi embora.

     - Concordo.

     - Por outro lado, você só admite a segunda alternativa, e neste caso o Comissário não pode ser considerado um suspeito.

     - Sim. Por uma questão de segurança, ele foi cérebro-analisado.

     - Ele foi o que?

     - Quando falo em cérebro-análise, me refiro à interpretação dos campos eletro-magnéticos das células vivas do cérebro.

     - Entendo, - respondeu Baley que não estava entendendo coisa alguma. - E qual foi o resultado?

     - A cérebro-análise fornece informações sobre a estrutura temperamental e emocional do indivíduo. No caso do Comissário Enderby, ficamos cientes que ele era incapaz de matar o doutor Sarton. Absolutamente incapaz.

     - Realmente, - concordou Baley. - Enderby não é deste tipo. Poderia ter-lhe dito isto.

     - É sempre preferível dispor de informações objetivas. Naturalmente todo nosso pessoal da Cidade Espacial concordou em se submeter à cérebro-análise.

     - Suponho que todos resultaram incapazes de matar.

     - Absolutamente. Por isso, estamos convencidos que o assassino deve ser um morador da Cidade.

     - Neste caso, só resta cérebro-analisar todos os moradores da Cidade e pronto.

     - Acho que não seria muito prático, Elias. Poderíamos encontrar alguns milhões de indivíduos capazes de matar.

     - Milhões, - grunhiu Baley, lembrando-se da multidão, há muitos anos, que gritava contra os sujos Espaciais e daquela outra multidão informe e ameaçadora que na noite anterior tinha se reunido em frente ao entreposto.

     Pensou: coitado do Julius. Um suspeito! Lembrou-se da voz do Comissário, enquanto descrevia as cenas que se seguiram à descoberta do cadáver. - Foi brutal, uma coisa brutal. - Não era de se admirar que tivesse quebrado os óculos, depois de levar tamanho choque. Não era de se admirar que não estivesse com vontade de voltar à Cidade Espacial. - Detesto os Espaciais, - tinha admitido, entredentes cerrados. Coitado do Julius. O homem que sabia como tratar os Espaciais. O homem cuja maior qualidade, aos olhos da Administração, era saber como se adaptar a ela. Até que ponto esta qualidade tinha contribuído para a rapidez de sua carreira? Não era de se admirar que o Comissário tivesse encarregado Baley de levar adiante as investigações. O bom Baley, sempre leal, o velho companheiro de turma que sabia manter a boca fechada! Sem dúvida ficaria calado quando descobrisse o pequeno incidente.

     Baley pensou na cérebro-análise e como poderia ser feita. Imaginou eletrodos enormes, pantógrafos desusando sobre tiras de papel, o estalo suave de ajustes automáticos. Coitado do Julius. Se realmente já estava apavorado, como, aliás, tinha todas as razões de ficar, provavelmente já imaginava ter chegado ao fim de sua carreira, obrigado a entregar ao prefeito uma carta com um pedido de demissão.

     O carro de patrulha entrou no desvio que subia para os sub-níveis da Prefeitura. Quando Baley alcançou sua escrivaninha era duas e meia da tarde. O Comissário não estava. R. Sammy, com seu eterno sorriso, explicou que não sabia para onde tinha ido. Baley passou algum tempo entregue às suas reflexões. Não se lembrou que estava com fome. Às três e vinte R. Sammy se aproximou mais uma vez de sua escrivaninha e anunciou:

     - Ligi, o Comissário voltou.

     Baley respondeu:

     - Obrigado.

     Pela primeira vez recebeu um recado de R. Sammy sem ficar irritado. R. Sammy, afinal, era uma espécie de parente de R. Daneel, e R. Daneel não era uma pessoa - ou melhor, uma coisa - que pudesse irritá-lo. Baley começou a imaginar como poderia ser a vida num novo planeta, com homens e robôs vivendo lado a lado, mesmo que fosse numa cultura de Cidade. Procurou imaginar a situação com a maior isenção possível. O Comissário estava examinando alguns documentos. Quando Baley entrou, estava fazendo anotações. Disse:

     - O papelão que você fez na Cidade Espacial foi do tamanho de um elefante.

     Baley pensou na cena. Seu bate-boca com Fastolfe... Seu rosto triste tomou uma expressão tétrica.

     - É verdade, Comissário. Sinto muito.

     Enderby ergueu os olhos e começou a observá-lo com atenção. Parecia mais calmo que antes. Disse:

     - A coisa não tem muita importância. Fastolfe não pareceu ligar muito. Estes Espaciais são imprevisíveis. Ligi, você teve muita sorte, mais do que merece. Da próxima vez, faça me o favor de avisar antes, e não bancar o palhaço como um herói sub-etérico.

     Baley assentiu. O peso em seus ombros desapareceu de repente. Tinha feito uma tentativa, mas não dera certo. Era só. Ficou surpreso por não sentir qualquer receio. Disse:

     - Escute, Comissário, preciso de um apartamento para dois homens, para Daneel e para mim. Não pretendo levá-lo para casa hoje à noite.

     - Por que não?

     - Já está correndo o boato que ele é um robô, você não está se lembrando? É possível que não aconteça nada, mas se houver um tumulto, não quero que aconteça perto de minha família.

     - Tolices, Ligi. Já mandei investigar o boato. Ele não existe.

     - Jessie ouviu alguma coisa a respeito.

     - De qualquer forma, não existe uma propalação organizada do boato. Não tem perigo nenhum. Fiquei investigando desde que desliguei o trimensional. Foi por isso que saí. Queria encontrar um indício qualquer, e sem perda de tempo. Veja só, aqui estão os relatórios. Pode ler.  Este é o relatório de Doris Gillid.  Ela visitou uma dúzia de Pessoais femininos em várias partes da Cidade. Você conhece Doris, ela é uma moça muito eficiente. Não encontrou nada. Nada de nada, em parte alguma.

     - Então, explique-me como foi que Jessie ouviu o que ouviu.

     - A explicação é simples. R. Daneel se exibiu um pouco no entreposto. A propósito, ele realmente apontou um desintegrador, ou você exagerou um pouco?

     - Não houve nenhum exagero de minha parte. Ele mostrou o desintegrador e depois o apontou para a multidão.

     O Comissário sacudiu a cabeça.

     - Está bem. Alguém deve ter percebido que era um robô.

     - Espere aí, - se insurgiu Baley, indignado. - Ninguém conseguiria perceber que se trata de um robô.

     - Nem você conseguiu.

     - Por que não?

     - Você acha que isto prova alguma coisa? Afinal, não somos especializados no assunto. Vamos supor que no meio da multidão havia um ou mais técnicos das fábricas de robôs de Westchester. Quero dizer, profissionais que passaram a vida projetando e montando robôs. Uma pessoa assim logo poderia notar algo esquisito em R. Daneel. Não sei, talvez a maneira de falar, ou a postura, ou coisas assim.  Ao voltar para casa, poderia ter conversado com a mulher sobre suas dúvidas. A mulher pode ter mencionado o fato com algumas amigas. Estas coisas acontecem mas tendem a desaparecer depois de algum tempo. O povo não acredita nestas coisas. Em nosso caso, Jessie ouviu o boato antes que ele desaparecesse.

     - Pode ser, - respondeu Baley, sem muita convicção.  - Mesmo assim, que tal me autorizar a ocupar um alojamento de solteiro para dois?

     O Comissário ergueu os ombros e apanhou o intercomunicador. Deu algumas ordens e finalmente disse:

     - Secção Q - 27. Não dispomos de outra coisa e aquela área não é das melhores.

     - Serve, - respondeu Baley.

     - Onde se encontra R. Daneel neste momento?

     - No arquivo. Está procurando informações a respeito de agitadores medievalistas.

     - Pelo amor de Deus, temos milhões.

     - Eu sei, mas pelo menos, ele fica satisfeito.

     Baley chegou até a porta, mas parou impulsivamente e perguntou:

     - Diga-me, Comissário, o dr. Sarton alguma vez falou com você a respeito do programa da Cidade Espacial? Quero dizer, a respeito da cultura C/Fe?

     - O que é isto?

     - A respeito da introdução de robôs.

     - Sim, de vez em quando. - O Comissário não parecia estar muito interessado.

     - Alguma vez explicou qual era o intuito da Cidade Espacial?

     - Sim, melhorar as condições de saúde, elevar o padrão de vida. Estas coisas.   Nada de interessante. É lógico, eu sempre concordei. Balançava a cabeça a todas estas coisas. O que você queria que eu fizesse? Afinal, precisamos ganhar tempo e esperar que não façam exigências exageradas. Talvez, algum dia...

     Baley esperou, mas o Comissário não explicou o que poderia acontecer algum dia. Então perguntou:

     - Ele nunca disse nada a respeito da emigração?

     - Emigração? Não, nada. A emigração de um Terrestre para os Mundos Externos tem as mesmas probabilidades que encontrar um asteróide cheio de diamantes entre os anéis de Saturno.

     - Queria dizer, emigração para mundos novos.

     O Comissário só respondeu com um olhar incrédulo. Baley esperou um instante e depois perguntou sem nenhuma transição:

     - Comissário, o que é a cérebro-análise? Já ouviu alguma coisa a respeito?

     O rosto rechonchudo do Comissário não mudou de expressão, seus olhos não piscaram. Perguntou com a maior tranqüilidade:

     - Não. O que é isto?

     - Nada de especial. Só uma expressão que ouvi.

     Saiu da sala e quando chegou à sua escrivaninha continuou a refletir. O Comissário, com toda certeza, não possuía tamanho poder teatral. Neste caso...

     Às quatro e cinco da tarde, Baley ligou para Jessie e anunciou que naquela noite não dormiria em casa. Talvez ficasse dormindo fora durante algumas noites. Foi difícil desligar.

     - Ligi, aconteceu alguma coisa? Você está em alguma enrascada? Você está em perigo?

     Teve que explicar que um policial está sempre potencialmente exposto a perigos. Ela não ficou satisfeita.

     - Onde é que você vai ficar?

     Baley não explicou.

     - Se hoje à noite você se sentir só - falou - fique com sua mãe. - Desligou sem acrescentar qualquer outra coisa.

     Às quatro e vinte pediu uma ligação com Washington. Levou algum tempo para encontrar o homem que procurava, e também levou bastante tempo para convencer esta pessoa a voar até Nova Iorque no dia seguinte. Às quatro e quarenta conseguiu o que queria. Às quatro e cinqüenta e cinco o Comissário, que estava de saída, passou ao lado de sua escrivaninha com um sorriso meio inseguro. O resto do pessoal que trabalhava durante o dia também foi embora. A turma reduzida que fazia o serviço noturno começou a chegar e a cumprimentá-lo com expressões de surpresa. R. Daneel chegou com um calhamaço de papéis.

     - O que é isto? - perguntou Baley.

     - Tenho aqui uma lista de homens e mulheres que provavelmente pertencem a uma organização medievalista.

     - Quantos membros têm esta organização?

     - Tem mais de um milhão, - disse R. Daneel. - Aqui só tenho alguns nomes.

     - Você pretende investigá-los a todos?

     - Elias, isto não seria muito prático, não acha?

     - Escute, Daneel, quase todos os Terrestres são medievalistas de uma  forma qualquer. O Comissário, Jessie, eu mesmo. Veja o Comissário que... - (quase disse, que usa óculos, mas se lembrou que os Terrestres tinham a obrigação de serem solidários e que precisava resguardar o prestígio do Comissário.) - ...que costuma adornar seus olhos.

     - Sim, - concordou R. Daneel, - já tinha reparado neste detalhe. Achei, porém que seria falta de delicadeza mencionar a coisa. Não vi nenhum outro morador da Cidade com aqueles adornos.

     - Usá-lo é muito antiquado.

     - Estes adornos servem para alguma coisa?

     Baley passou para um outro assunto.

     - Como é que você conseguiu juntar esta lista?

     - Não fui eu, foi uma máquina. Aparentemente, basta ajustá-la para um crime específico, e a máquina faz todo o necessário. Regulei os controles para encontrar todas as pessoas envolvidas em desordens e protestos contra robôs, durante estes últimos vinte e cinco anos. Uma outra máquina parecida procurou em todos os jornais publicados no mesmo período os nomes de pessoas que fizeram declarações desfavoráveis a robôs ou a homens dos Mundos Externos. Fiquei estupefato ao ver quanto trabalho pode ser feito em apenas três horas. A máquina conseguiu até eliminar da lista os nomes de pessoas já falecidas.

     - Você ficou admirado? Tinha certeza que nos Mundos Externos vocês tinham computadores.

     - Sim, temos computadores de muitos tipos, e muito adiantados. Mesmo assim, nenhum computador é tão grande e complexo como este aqui. Você deve se lembrar que mesmo o maior dos Mundos Externos não chega a ter uma população do tamanho de uma Cidade terrestre, e não precisamos de máquinas muito complexas.

     Baley perguntou:

     - Alguma vez você já esteve em Aurora?

     - Não, - respondeu R. Daneel. - Fui montado aqui na Terra.

     - Neste caso, como é que você está tão bem informado a respeito dos computadores nos Mundos Externos?

     - Pensei que isto é óbvio, parceiro Elias. Meu banco de dados é baseado nos conhecimentos do falecido doutor Sarton. É claro que ele possuía vastos conhecimentos sobre os Mundos Externos.

     - Estou vendo. Diga-me uma coisa, Daneel. Você é capaz de comer?

     - Sou alimentado à base de energia nuclear. Pensei que você o soubesse.

     - Estou a par disso. Não queria saber se você precisava comer. Perguntei se você era capaz de fazê-lo. Quero saber se você consegue introduzir alimentos na boca, mastigá-los e engoli-los. Acho que este é um detalhe importante num robô que foi construído para dar a impressão de ser um homem.

     - Agora compreendo. Sim, possuo a capacidade mecânica de mastigar e engolir. É uma capacidade obviamente limitada, e sou obrigado a remover o material ingerido da parte que você chamaria de meu estômago, como você deve compreender.

     - Perfeito. Você pode regurgitá-lo ou fazer qualquer outra coisa necessária para este fim, quando chegarmos em nosso alojamento. Acontece que estou com fome. Hoje não almocei e quero que você fique comigo enquanto janto. Por outro lado, você não pode ficar sentado ao meu lado sem comer, enquanto eu como. Isto chamaria muita atenção. Então, como você é capaz de comer, vamos embora! Era isto que eu queria saber!

     As cozinhas seccionais eram iguais em toda a Cidade. Aliás, Baley já viajara para Washington, Toronto, Los Angeles, Londres e Budapeste, e as cozinhas seccionais destas Cidades também eram iguais. Talvez, na época medieval as coisas eram diferentes, porque ainda existiam diferentes idiomas e provavelmente os pratos também variavam de tempero. Nos tempos modernos, os sub-produtos de levedura eram idênticos de Xanghai a Tashkent e de Winnipeg a Buenos Aires. O idioma inglês provavelmente não era o mesmo inglês falado por Shakespeare ou por Churchill, mas era o produto final da mistura de muitas variações e era falado em todos os lugares da Terra e, com algumas modificações, também nos Mundos Externos. Além dos alimentos e do idioma, existiam também semelhanças mais profundas. Aquele cheiro peculiar, que não podia ser definido mas que era infalivelmente ligado a qualquer cozinha, também era igual. Sempre havia uma fila tríplice de espera que se movimentava vagarosamente em direção à entrada, onde convergia e depois se dividia mais uma vez, para direita, centro e esquerda. Havia o zunido das conversas, o brilho da madeira sintética e do vidro, as mesas compridas, o vapor que pairava no ar.

     Baley procedeu lentamente para frente com a fila (todo mundo sabia que sempre havia uma espera de pelo menos dez minutos) e, tomado por uma curiosidade repentina, perguntou:

     - Daneel, você sabe sorrir?

     R. Daneel estava observando atentamente o interior da cozinha e disse:

     - Desculpe, Elias, não ouvi a pergunta.

     - Fiquei curioso de saber se você sabe sorrir, Daneel. - Baley estava falando a meia voz.

     R. Daneel sorriu. Foi um gesto súbito e surpreendente. Os lábios começaram a se estirar, produzindo dobras de ambos os lados. Mas só a boca estava sorrindo. O resto das feições do robô não se mexeu.

     Baley sacudiu a cabeça.

     - Pode deixar, R. Daneel. O sorriso não o favorece.

     Chegaram à entrada. Todas as pessoas enfiavam uma chapinha metálica numa abertura, onde era examinada e depois devolvida. Clic-clic-clic. Certa vez, alguém tinha calculado que duzentas pessoas por minuto podiam ser admitidas numa cozinha bem organizada, depois do exame das chapinhas, que se fazia necessário para evitar abusos. A mesma estatística também fornecia a quantidade de filas necessárias ao pleno funcionamento das cozinhas, e quanto tempo era perdido toda vez que uma pessoa necessitava de um prato especial. Por isso, interromper aquele clic-clic-clic automático e se valer do guichê manual era quase uma calamidade. R. Daneel e Baley tiveram que se valer deste guichê para mostrar ao encarregado que tinham licenças oficiais especiais. Jessie, que já tinha trabalhado neste ramo, um dia explicou a Baley como as coisas funcionavam.

     - Qualquer caso excepcional interrompe o curso das operações automáticas, - falou. - Altera imediatamente os totais de consumo e as estimativas de inventário. Significa controles extras. É necessário comparar as fichas com as fichas de todas as outras cozinhas, para que o balanço não fique muito desequilibrado, se você entende o que quero dizer. De fato, precisamos preparar um balancete especial todas as semanas. Se alguma coisa não se enquadra e temos um aumento de consumo, eles sempre culpam a gente. Nunca culpam o governo da Cidade que distribui chapas especiais sem muito critério. Pode acreditar. Depois, quando a gente anuncia que durante aquela refeição ninguém pode escolher pratos diferentes, o pessoal das filas se irrita. Logo culpam os encarregados das cozinhas...

     Baley conhecia o funcionamento das cozinhas nos mínimos detalhes e não se admirou pelo olhar hostil da mulher do guichê. Ela fez algumas anotações: Secção domiciliar, ocupação, motivo da transferência de refeição ("assuntos de serviço", que motivo mais irritante!). Finalmente dobrou a ficha e a enfiou numa abertura. Um computador se apoderou dela e registrou todas as informações. A mulher se virou para R. Daneel. Baley deu-lhe a informação que era considerada a pior de todas. Disse:

     - Meu amigo veio de uma outra Cidade.

     A mulher não disfarçou sua indignação. Perguntou rispidamente:

     - Qual é a cidade de origem?

     Baley interferiu mais uma vez.

     - Todos os registros terão que ser creditados ao Departamento de Polícia. Qualquer detalhe é desnecessário. Questões de serviço.

     A mulher procurou um outro bloco de fichas e anotou os dados necessários em código claro-escuro, através de impressões de dois dedos da mão esquerda nos lugares requeridos. Perguntou:

     - Até quando vocês pretendem comer aqui?

     - Enquanto for necessário, - respondeu Baley.

     - Coloque suas impressões digitais aqui, - ela ordenou invertendo as fichas.

     Por um instante Baley ficou com uma pequena dúvida, enquanto os dedos de R. Daneel, com suas unhas lustrosas, comprimiam a ficha. Não era possível que tivessem esquecido de lhe fornecer impressões digitais. A mulher se apoderou das fichas que enfiou na mesma máquina. Baley ficou aliviado quando viu que nenhuma era rejeitada. Receberam pequenas chapas metálicas escarlates, cuja cor significava "temporárias". A mulher falou:

     - Vocês não poderão escolher. Esta semana nossos mantimentos são escassos. Podem ir até a mesa DF.

     Foram até lá. R. Daneel disse:

     - Tenho a impressão de que a maioria da população come regularmente em cozinhas iguais a esta.

     - Sim, é claro. Mas é sempre um pouco desagradável comer numa cozinha desconhecida. A gente não encontra pessoas que conhece. Na cozinha habitual as coisas são diferentes. A gente sempre ocupa o mesmo lugar e se encontra com a família e com os amigos. Especialmente para os mais jovens, a hora das refeições é uma das horas mais alegres do dia. - Baley sorriu enquanto lhe voltavam as recordações.

     A mesa DF era aparentemente reservada para usuários em trânsito. Os que já estavam sentados olhavam só para seus pratos e se mantinham em silêncio. Observavam de soslaio e com manifesta inveja as pessoas bem humoradas das outras mesas. Ninguém pode se sentir menos à vontade do que um homem que come longe de sua cozinha seccional, pensou Baley. Até os alimentos parecem ter um paladar mais agradável, apesar de inúmeros químicos afirmarem que o paladar é idêntico em qualquer cozinha.

     Baley escolheu uma cadeira e R. Daneel se sentou numa outra, ao lado.

     - Hoje não tem livre escolha, - explicou ao robô com um gesto de mão. - Você pode simplesmente acionar este controle e depois esperar.

     Esperaram dois minutos. Um disco se levantou, mostrando uma abertura circular na superfície da mesa. Na abertura apareceu o prato.

     - Pirão de batatas, molho de zimovitela e compota de damasco, - falou Baley.  - Ah, raios!

     Um garfo e duas fatias de pão de trigo integral apareceram logo em frente ao baixo gradil divisório que se encontrava bem ao centro da mesa e a dividia de ponta a ponta. R. Daneel murmurou:

     - Se quiser, pode comer meu prato.

     Baley ficou momentaneamente escandalizado. Logo, porém, se lembrou de tudo e murmurou:

     - Seria uma demonstração de falta de educação. Coma, vá em frente.

     Baley comeu, mas sem a calma necessária para apreciar devidamente a refeição. De vez em quando lançava um olhar curioso a R. Daneel. O robô mastigava com movimentos regulares das maxilas. Excessivamente regulares: não pareciam naturais. Parecia até esquisito: agora que Baley sabia com certeza que R. Daneel era um robô, percebia uma porção de pequenos detalhes. Por exemplo, quando R. Daneel engolia, seu pomo de Adão não se movimentava. Mesmo assim, ficou surpreso ao constatar que já não se importava muito. Era possível que estivesse se acostumando a este tipo de criaturas? Supondo que um povo começasse a viver num mundo diferente (estranho, como voltava a pensar nesta possibilidade, depois de sua conversa com o dr. Fastolfe) e supondo que Bentley decidisse emigrar, se afastar da Terra: será que ele poderia trabalhar e viver ao lado de robôs, sem se importar com isto? Por outro lado, por que não? Os Espaciais conseguiam muito bem.

     R. Daneel perguntou:

     - Elias, quero saber se olhar um outro homem enquanto está comendo, é considerado uma falta de cortesia.

     - Sim, se você o observa diretamente. Por outro lado, é lógico, não é? Um homem tem direito à sua vida particular. É permitido conversar de maneira normal, mas não se costuma observar insistentemente enquanto um homem está engolindo.

     - Compreendo. Explique-me então por que posso ver oito pessoas que nos observam sem parar.

     Baley largou seu garfo. Fez de conta que estava procurando um saleiro.

     - Não estou vendo ninguém.

     Suas palavras, porém, não expressavam convicção. Aquela multidão de pessoas ocupadas com o jantar dava-lhe uma impressão meio caótica. Por outro lado, quando R. Daneel o fitou com seus olhos castanhos e impessoais, Baley, com um certo mal estar, pensou que não estava vendo um par de olhos, mas sensores capazes de registrar com exatidão fotográfica e de analisar em poucos segundos todo aquele panorama.

     - Tenho certeza absoluta, - observou R. Daneel com muita calma.

     - Está bem, mas o que significa? É simplesmente um sinal de grosseria e nada mais.

     - Não sei, Elias. Será que é uma simples coincidência? Seis entre os oito observadores, se encontravam entre os manifestantes em frente ao entreposto, ontem à noite.

 

FUGA PELAS PISTAS

     Baley segurou seu garfo com força.

     - Você tem certeza? - perguntou automaticamente e deu-se conta, ao mesmo tempo, que a pergunta era completamente inútil. Ninguém pergunta a um computador se ele tem certeza que suas respostas são corretas, nem mesmo a um computador provido de braços e pernas.

     R. Daneel respondeu:

     - Sem dúvida.

     - Eles estão perto de nós?

     - Não muito perto. Aqui e ali.

     - Está bem. - Baley voltou a comer.  Franziu a testa enquanto pensava.

     Que tal se o incidente da noite anterior tivesse sido organizado por um grupo de fanáticos anti-robotistas: neste caso não seria uma manifestação espontânea e esporádica. Um grupo deste tipo poderia facilmente incluir agitadores que tinham pesquisado robôs com a determinação que nasce do ódio. Uma destas pessoas poderia ter reconhecido R. Daneel por um robô. (O Comissário tinha sugerido algo deste gênero. Raios, o homem parecia ter uma surpreendente inteligência). A coisa parecia bastante lógica. Considerando que na noite anterior não tinham conseguido um resultado, deviam ter planejado algo como alternativa num futuro próximo. Se eram capazes de reconhecer que R. Daneel era um robô, deviam também estar em condições de deduzirem que Baley era um policial. Um policial acompanhado por um robô humanóide deveria ser alguém bastante importante e responsável. (Baley achou fácil fazer suas deduções em retrospectiva). Por conseguinte, os observadores da Prefeitura (ou talvez agentes infiltrados) não poderiam deixar de notar Baley, R. Daneel, ou a ambos dentro de pouco tempo. Não era surpreendente que o tivessem feito dentro de vinte e quatro horas. Provavelmente teriam levado menos tempo se Baley não tivesse passado boa parte do dia na Cidade Espacial.

     R. Daneel tinha terminado de comer. Estava sentado, tranqüilo, com suas mãos perfeitas apoiadas levemente na borda da mesa.

     - Você não acha que deveríamos fazer alguma coisa? - perguntou.

     - Aqui na cozinha estamos a salvo, - respondeu Baley. - Deixe que eu me preocupe com isto, por favor.

     Baley olhou cuidadosamente ao redor e teve a impressão de ver uma cozinha pela primeira vez. Havia milhares de pessoas! Qual era a capacidade média de uma cozinha? Sabia por ter visto as estatísticas. Duas mil e duzentas pessoas, mais ou menos. Esta cozinha era bem maior que as outras. E se alguém gritasse: "Robô". Se o termo caísse, entre aqueles milhares, como um... Não encontrou um termo de comparação, mas tanto fazia. A coisa não poderia acontecer. Um tumulto espontâneo podia se produzir em qualquer lugar, numa cozinha, num corredor, num elevador. Talvez, até mais facilmente numa cozinha. As refeições implicavam um certo afrouxamento dos controles, uma vontade de brincar que podia facilmente degenerar num tumulto. Mas uma manifestação organizada era algo diferente.

     Numa cozinha, os próprios organizadores poderiam ser prejudicados e o ambiente enorme, repleto de gente, poderia se transformar numa armadilha. Quando os pratos e as mesas começassem a voar, seria difícil escapar sem prejuízo. Centenas de pessoas morreriam, e os organizadores poderiam morrer também. Um tumulto, para dar bons resultados, deveria ser planejado para acontecer nas ruas, talvez numa passagem estreita. O pânico e a histeria se propagariam vagarosamente pelos prédios e haveria tempo suficiente para fugir, talvez por alguma escada rolante local, ou por uma passagem lateral.

     Baley teve a sensação de estar acuado. Sem dúvida, devia haver outros, esperando do lado de fora. Seguiriam Baley e R. Daneel até algum lugar propício.

     R. Daneel perguntou:

     - Você está pensando em prendê-los?

     - Receio que isto poderia precipitar as coisas. Você os conhece, não é mesmo? Você não vai esquecer seus rostos?

     - Não tenho a capacidade de esquecer.

     - Então, vamos prendê-los numa outra oportunidade. Por enquanto, vamos dar o fora. Faça exatamente o que eu lhe disser.

     Levantou-se, virou cuidadosamente o prato, colocando-o acima do disco que cobria o buraco. Enfiou o garfo na depressão e R. Daneel imitou todos os seus gestos. Os pratos e os talheres desapareceram. R. Daneel observou:

     - Eles também estão se levantando.

     - Perfeito. Tenho a impressão de que tentarão nos seguir sem chegar muito perto. Pelo menos, não aqui.

     Baley lançou um olhar para trás, para toda aquela névoa de vapor e ruído e de repente, sem nenhuma razão aparente, se lembrou do dia em que tinha levado Ben a visitar o Zoológico da Cidade pela primeira vez. Já tinham se passado seis ou sete anos. Não, oito, porque Bentley tinha acabado de completar oito anos. (Por Josafá, como o tempo passa depressa!) Ben via o Zoológico pela primeira vez e estava excitadíssimo. Afinal, nunca tinha visto um gato ou um cachorro de verdade. E também, havia uma grande gaiola cheia de pássaros! Mesmo Baley, que já os conhecia, não conseguia deixar de ficar fascinado. A vista de criaturas vivas que se locomovem rapidamente pelo ar provoca sempre uma sensação de estarrecimento. Era hora da alimentação e um atendente estava jogando quirela de aveia num grande recipiente. (As criaturas humanas tinham se acostumado à alimentação feita com leveduras, mas os animais eram mais conservadores e requeriam cereais de verdade.) Os pardais desceram às centenas. As asas pareciam se entrelaçar, enquanto chilreavam sem parar e pulavam na borda do recipiente...

     Era isto: foi isto que Baley lembrou enquanto olhava para trás, no instante que saía da cozinha. Pássaros na borda de um recipiente. Ficou chocado. Pensou: por Josafá, deve existir uma maneira melhor. Mas, por que uma maneira melhor? O que estava errado? Nunca tinha se incomodado com esta maneira de viver. Perguntou bruscamente:

     - Daneel, você está pronto?

     - Estou pronto, Elias.

     Saíram da cozinha. Daqui em diante, o sucesso da fuga era da responsabilidade de Baley. Só dele. A garotada costuma brincar de "pular pistas". É um jogo muito conhecido, e apesar do regulamento variar, às vezes, de uma Cidade à outra, é basicamente igual em todos os lugares. Um garoto de San Francisco pode, sem maiores dificuldades, brincar com outro do Cairo. O intuito principal da brincadeira é passar de um ponto A para um ponto B, valendo-se do rápido sistema de transporte da Cidade, de tal maneira que o líder perca o maior número de seguidores. Um líder que chegue ao destino sem nenhum acompanhante é realmente muito habilidoso, como, por outro lado, é habilidoso o seguidor que consegue manter o contato. Esta brincadeira, em geral, é feita nas horas do rush noturno, quando o grande número de usuários acrescenta uma boa dose de perigos e de complicações. O líder sai, correndo pelas pistas de aceleração. Tenta, por todos os meios, fazer as coisas mais inesperadas, ficando parado sobre as pistas pelo máximo do tempo possível e depois pulando para qualquer outra direção. Pode, a este ponto, pular várias pistas, e ficar parado numa outra. Coitado do seguidor que, descuidadamente, pula para uma pista muito afastada. A não ser que seja muito ágil, acabará por ultrapassar o líder num piscar de olhos, e o líder aumentará sua vantagem, pulando rapidamente na direção mais apropriada. Um movimento que aumenta ainda mais a complexidade da tarefa é subir numa via local ou numa via expressa e descer logo do outro lado. Evitá-las completamente ou se demorar muito nelas é considerado desrespeito às regras.

     Os adultos não compreendem muito bem como esta brincadeira pode ter tantos adeptos, especialmente se estes adultos nunca brincaram de pular pistas quando adolescentes. Os viajantes normais ficam irritados com os jogadores que são também perseguidos pela polícia e castigados pelos pais. Em geral, são denunciados em suas escolas e pelo serviço sub-etérico. Todos os anos quatro ou cinco adolescentes morrem por causa da brincadeira, enquanto dúzias ficam feridos e muitas vezes até passantes ocasionais podem ficar machucados. Mesmo assim, qualquer medida parece insuficiente para eliminar de vez os bandos de puladores de pistas. Quanto maior o perigo, maior se torna o prêmio, ou seja o reconhecimento de liderança aos olhos de todos os puladores. Um pulador de sucesso costuma se gabar de seus resultados; um pulador muito conhecido tem até fã-clube.

     Elias Baley lembrou-se com bastante satisfação que antigamente tinha sido pulador de pistas. Era líder de um grupo de vinte que uma vez levou do Setor Concurse até a linha demarcatória de Queens, atravessando três vias expressas. Em duas horas de percurso tinha se livrado da maioria de seus seguidores, e depois do Bronx tinha continuado caminho sem qualquer companhia. A corrida foi comentada durante meses. Agora, Baley já passava dos quarenta. Há vinte anos não pulava mais pistas, mas se lembrava de muitos truques. Sem dúvida, não era mais dono da mesma agilidade, mas tinha um trunfo: era um policial. Ninguém, a não ser um outro policial, podia conhecer a Cidade tão bem, e saber onde começavam e terminavam as alamedas bordadas de aço.

     Afastou-se da cozinha a passo rápido, mas sem chegar a correr. Esperava a cada instante que o grito: "Robô! Robô" surgisse atrás de suas costas. O primeiro trecho da fuga era o mais arriscado. Contou os passos até sentir a primeira pista de aceleração. Parou até que R. Daneel se postou a seu lado.

     - Eles ainda estão nos seguindo, Daneel? - perguntou.

     - Sim. Estão chegando mais perto.

     - Só por mais um pouco, - observou Baley, confiante. Olhou para as pistas aos dois lados. À esquerda a carga humana era transportada com velocidade crescente pelas pistas mais afastadas. Todos os dias Baley usava as pistas, mas há anos não dobrava os joelhos preparando-se a correr. Sentiu um calafrio a lhe correr pela espinha. Sua respiração se fez mais rápida. Esqueceu que uma vez tinha encontrado Ben pulando pistas. Esqueceu o sermão interminável e as ameaças de fazê-lo vigiar pela polícia. Correu pela pista a passos rápidos, inclinando-se para frente, para resistir à aceleração. A via local estava passando ao lado. Por um instante fingiu querer tomá-la, mas logo se afastou para trás, pulando para pistas mais vagarosas, entre uma multidão mais densa de pessoas. Parou sobre uma pista de só vinte quilômetros horários.

     - Quantos ainda estão em nosso encalço, Daneel?

     - Só um, Elias. - O robô ao seu lado parecia plácido. Não estava respirando.

     - Este sujeito devia ser um grande pulador de pistas quando era garoto, mas vamos perdê-lo já.

     Sentia-se cheio de confiança e lembrou-se de repente do que provava nestas ocasiões, quando ainda era adolescente. Em parte, sentia-se mergulhado num rito quase místico, no meio de outras pessoas que estavam excluídas, e em parte era a sensação física do vento que batia em seu rosto e em seus cabelos, e uma vaga sensação de perigo.

     - Isto aqui é chamado de dança lateral, - explicou a R. Daneel em voz baixa.

     Começou a percorrer a pista a largos passos, evitando as outras pessoas sem esforço aparente. Sobretudo, estava se aproximando sempre mais da beirada da pista. De repente, sem aparente quebra de ritmo, deu um passo lateral e pulou para a pista ao lado. Esforçou os músculos das pernas para manter o equilíbrio. Atravessou um amontoado de usuários e passou para a pista de cinqüenta quilômetros horários.

     - E agora, Daneel? perguntou.

     - O sujeito ainda está conosco, - respondeu o robô, calmo.

     Baley cerrou os lábios. Não restava mais nada a fazer, a não ser se valer das próprias plataformas móveis. Para isto era necessária uma coordenação extraordinária  e Baley não sabia se ainda a possuía. Olhou rapidamente ao redor. Onde é que se encontravam de fato? Viu uma placa anunciando a rua B-22. Calculou rapidamente e pulou. Mais pistas até a via local. Um pulo para a plataforma. Os rostos impessoais de homens e mulheres, entediados pela viagem diária na via local, mudaram de expressão, indicando que todos estavam igualmente indignados, enquanto Baley e R. Daneel subiam e tentavam abrir caminho.

     - Ora esta, - gritou uma mulher, segurando o chapéu.

     - Sinto muito, - falou Baley quase sem fôlego. Passou pelos usuários em pé e com mais um esforço pulou do outro lado. No último instante, um passageiro indignado bateu em suas costas, empurrando-o com raiva. Baley cambaleou. Tentou desesperadamente manter o equilíbrio. Tropeçou acima de uma borda da pista e a súbita mudança de velocidade obrigou-o a cair de joelhos e depois sobre um lado. Teve uma visão repentina e assustadora de homens esbarrando nele e caindo, uns em cima dos outros, de uma grande confusão, produzindo um aterrador engarrafamento humano que poderia levar dúzias de pessoas ao hospital, com pernas e braços quebrados. De repente, o braço de R. Daneel se insinuou atrás de suas costas. O braço o ergueu com uma força sobre-humana.

     - Obrigado, - arfou Baley e não teve tempo de dizer qualquer outra coisa.

     Voltou a saltar da pista para outras de desaceleração, observando um trajeto complicado que o levou diretamente para uma via expressa em seu ponto de entroncamento. Sem perder o ritmo, caminhou pela via expressa e logo pulou do outro lado.

     - Ainda estamos sendo perseguidos, Daneel?

     - Não, já estamos sozinhos, Elias.

     - Ótimo. Você teria sido um maravilhoso pulador de pistas, Daneel. Cuidado, agora, lá vamos nós!

     Tomaram mais uma via local, e depois pelas pistas, chegaram até um portão muito grande e imponente. Um vigilante apareceu. Baley mostrou sua identificação.

     - Estou a serviço.

     Entraram.

     - Esta é uma usina de energia, - explicou Baley. - Assim conseguiremos ocultar nosso rastro.

     Baley já conhecia as usinas de energia, inclusive aquela. Mesmo assim, não conseguiu se livrar de uma sensação de desconforto. Sua angústia aumentou ainda mais quando se lembrou que, há muito tempo, seu pai dirigia uma usina parecida com esta. Isto foi antes que...

     Ouvia-se o zunido poderoso de geradores invisíveis, ocultos na parte central da usina, um vago cheiro de ozônio no ar, a ameaça silenciosa das linhas vermelhas que demarcavam as áreas e que não podiam ser transpostas, a não ser com roupas especiais. Em algum ponto daquela usina (Baley não sabia onde), meio quilo de material fissionável era consumido todos os dias. De tempos em tempos, os produtos da fissão radioativa, as chamadas "cinzas quentes" eram empurradas, por pressão, para tubulações de chumbo que levavam a cavernas submarinas, distantes vinte quilômetros do litoral e quinhentos metros abaixo do fundo do oceano. Baley às vezes ficava a se perguntar o que aconteceria quando as cavernas estivessem lotadas. Avisou R. Daneel em tom áspero:

     - Fique afastado das linhas vermelhas. - Depois refletiu e acrescentou meio constrangido: - Suponho porém que estas coisas não o atingem.

     - Trata-se de radioatividade? - perguntou Daneel.

     - Sim.

     - Neste caso, me atinge. Uma radiação gama pode destruir o delicado equilíbrio de um cérebro positrônico. Aliás, os efeitos seriam mais rápidos em mim que em você.

     - Você quer dizer que poderiam matá-lo?

     - Eu precisaria de um novo cérebro positrônico. Como não é possível fabricar dois iguais, eu seria um indivíduo diferente. O Daneel que você conhece agora estaria, por assim dizer, morto.

     Baley observou o robô, desconfiado.

     - Eu nunca imaginei... Vamos subir por esta rampa.

     - Ninguém menciona muito este fato. A Cidade Espacial deseja convencer os Terrestres que criaturas iguais a mim são úteis, e nunca menciona nossos pontos fracos.

     - Por que você me disse?

     R. Daneel encarou seu parceiro humano.

     - Você é meu colega, Elias. É preferível que você conheça todos os meus pontos positivos e negativos.

     Baley limpou a garganta, pois não sabia mais o que dizer.

     - Vamos sair por este lado, - observou depois de alguns minutos. Assim estaremos a poucas centenas de metros de nosso apartamento.

     Era um apartamento deprimente, do tipo popular. Um quartinho mirrado com duas camas. Duas cadeiras dobráveis e um guarda-roupa. Uma tela sub-etérica embutida, sem controles manuais, que funcionaria só em horas específicas, quando não poderia ser desligada. Não havia pia, nem mesmo desativada, e nenhuma possibilidade de aquecer água ou cozinhar. Num canto do quarto havia uma abertura para eliminação do lixo.

     Baley encolheu os ombros.

     - Chegamos. Acho que vai dar para agüentar.

     R. Daneel se aproximou do encanamento que servia para eliminar o lixo. Sua camisa se abriu com um toque, revelando um tórax liso e aparentemente bem provido de músculos.

     - O que é que você pretende fazer? - perguntou Baley.

     - Quero me livrar dos alimentos que tive que ingerir. Se os deixasse onde estão, acabariam fermentando e isto poderia ser muito desagradável para quem ficasse ao meu lado.

     R. Daneel colocou dois dedos abaixo de um mamilo e pressionou a pele com um movimento proposital. Seu peito se abriu em todo seu comprimento. R. Daneel enfiou uma mão na cavidade de metal reluzente e retirou um saquinho de material transparente, parcialmente cheio. Abriu o saquinho enquanto Baley o observava, quase horrorizado. R. Daneel hesitou, e depois falou:

     - Este alimento é perfeitamente limpo. Sabe, eu não mastigo e não tenho nenhuma salivação. O que colocava na boca era tragado por sucção, entende? Pode ser comido outra vez.

     - Está bem, mas obrigado, - respondeu Baley com muita amabilidade. - Não estou com fome. Pode despejar tudo.

     Baley decidiu que o saco transparente que servia de estômago a R. Daneel era de plástico ao fluoro-carbono. Os alimentos não ficavam grudando em suas paredes, mas saíam facilmente. R. Daneel colocou tudo na lixeira, dividindo-o em pequenas porções. Um desperdício de alimentos em boas condições, pensou Baley. Sentou-se sobre a cama e tirou a camisa. Disse:

     - Acho que amanhã deveríamos começar bem cedo.

     - Alguma razão especial?

     - Nossos perseguidores ainda não conhecem este apartamento. Pelo menos, espero que não. Se sairmos cedo, estaremos muito mais seguros. Quando chegarmos ao departamento, vamos ter que decidir se nossa colaboração ainda é uma coisa prática.

     - Você acha que não?

     Baley ergueu os ombros e comentou:

     - Não podemos nos dedicar a estas acrobacias todos os dias.

     - Mas tenho a impressão que...

     R. Daneel parou. Uma luz vermelha apareceu na porta, assinalando que alguém estava querendo entrar. Baley se levantou sem falar e segurou seu desintegrador. A luz vermelha piscou mais uma vez. Baley manteve o dedo no gatilho enquanto com a outra mão apertava um botão que ativou a transparência unilateral de uma pequena espia quadrada. A transparência não era perfeita e tinha um efeito destorcido, mas foi suficiente para revelar Ben, o filho de Baley, do outro lado da porta. Baley agiu rapidamente: abriu a porta, agarrou o filho pelo pulso e o arrastou para dentro, fechando a porta. O garoto levou algum tempo para se recuperar do susto. Ficou a esfregar o pulso.

     - Pai, - falou, ressentido. - Não precisava me agarrar com tamanha força.

     Baley continuou a observar o corredor através da chapa transparente. Parecia vazio.

     - Você viu alguém enquanto vinha para cá, Ben?

     - Não. Ora, pai, só vim ver se você estava bem.

     - Por que eu não deveria estar bem?

     - Não sei. Foi por causa de mamãe. Ela estava chorando e coisas assim. Precisava saber como você estava. Disse que se eu não fosse, ela mesma iria, e então não sabia o que poderia acontecer. Ela me obrigou a vir, pai.

     Baley perguntou:

     - Como foi que você me achou? Sua mãe sabia meu paradeiro?

     - Não, ela não sabia. Telefonei para seu escritório.

     - E eles lhe deram a informação?

     Ben ficou surpreso ao constatar a veemência do pai. Perguntou, intimidado:

     - Sim, mas não deveriam ter falado?

     Baley e Daneel se entreolharam.

     Baley perguntou:

     - Onde é que sua mãe se encontra agora, Ben? Está em casa?

     - Não, fomos até a casa da avó, para ficar lá. Eu agora vou ter que voltar para lá mesmo. Afinal, pai, você está bem.

     - Você vai ficar aqui. Daneel, você se lembra onde fica o inter-comunicador deste andar?

     O robô respondeu:

     - Sim. Você pretende sair para usá-lo?

     - Não tenho escolha. Preciso falar com Jessie.

     - Gostaria de sugerir que seria mais lógico se você mandasse Bentley se comunicar com a mãe. Afinal, é um risco, e ele não tem sua valia.

     Baley arregalou os olhos:

     - Escute, seu...

     Pensou: que tolice, como é que posso ficar tão nervoso? Continuou com mais calma:

     - Você não entendeu, Daneel. Entre nós, não costumamos mandar nossos filhos para enfrentar possíveis perigos, mesmo que seja mais lógico fazê-lo.

     - Perigo? - gritou Ben, ao mesmo tempo chocado e fascinado. - O que está acontecendo, pai? Vamos, pode me contar, pai?

     - Não é nada, Ben. Pare com isso, não é coisa que lhe diga respeito.    Entendeu? Prepare-se para ir para a cama. Quero que você se deite antes de eu voltar. Entendeu direito?

     - Ora esta! Você poderia me dizer alguma coisa! Não vou dizer nada a ninguém!

     - Para a cama! Ora esta!

     Parado em frente ao comunicador do andar, Baley ajeitou o casaco para poder agarrar sem demora o cabo de seu desintegrador, em caso de necessidade. Pronunciou seu número pessoal em frente ao microfone e esperou até que um computador a quinze milhas de distância controlasse se o chamado era autorizado. O tempo de espera foi mínimo, porque um investigador era autorizado a fazer todos os chamados considerados necessários para seu serviço. Então falou o número de código do apartamento de sua sogra. A pequena tela na base do aparelho se iluminou e o rosto da sogra apareceu. Baley falou em voz baixa:

     - Mãe, quero falar com Jessie.

     Jessie devia estar esperando ao lado, porque apareceu a seguir. Baley observou seu rosto e depois propositalmente escureceu a tela.

     - Está tudo em ordem, Jessie. Ben está comigo. O que foi que aconteceu?

     Baley estava olhando para todos os lados, vigiando o corredor.

     - Você está bem? Você não está em dificuldades?

     - É mais do que óbvio que estou bem, Jessie. Agora pare com estas tolices.

     - Ligi, fiquei muito preocupada.

     - Posso saber por que? - perguntou Baley em tom seco.

     - Você sabe. A respeito de seu amigo.

     - O que é que há com ele?

     - Já expliquei a você. Haverá complicações.

     - Eu já respondi que isto é bobagem. Ben ficará comigo esta noite, e você pode ir se deitar. Boa noite, querida.

     Desligou sem esperar resposta e ficou parado durante um segundo, antes de voltar ao alojamento. Seu rosto estava cinzento pela preocupação e o medo. Quando Baley entrou, Ben estava parado no centro do quarto. Uma de suas lentes de contato estava numa pequena ventosa. A outra ainda se encontrava em sua vista. Ben falou:

     - Escute pai, será que não tem um pouco de água neste lugar? O senhor Olivaw acha que não posso ir até o Pessoal.

     - Ele está certo. Você não pode ir. Coloque a lente na vista, Ben. Terá que dormir com as lentes, e por uma vez, isto não lhe fará mal algum.

     - Está bem. - Ben obedeceu e depois deitou. - Nossa, que colchão horrível!

     Baley falou com R. Daneel.

     - Acredito que você não se importará se passar a noite sentado na cadeira.

     - É claro que não. A propósito, estou interessado naquele esquisito pedaço de vidro que Ben usa na vista. Todos os Terrestres usam isto?

     - Não, só alguns, - respondeu Baley. - Por exemplo, eu não preciso deles.

     - Para que servem?

     Baley, porém, estava muito preocupado com seus próprios pensamentos e não respondeu. As luzes se apagaram. Baley ainda estava acordado. Ouvia vagamente a respiração de Ben e reparou que se tornava mais regular e profunda. Virou a cabeça e entreviu R. Daneel, imóvel, sentado na cadeira, com o rosto virado em direção à porta. Logo depois adormeceu e começou a sonhar. Sonhou que Jessie estava caindo na câmara de fissão de uma usina de energia, caindo, caindo, caindo. Seus braços continuavam estendidos para ele, enquanto gritava, mas ele só podia ficar parado ao lado de uma linha vermelha, sem conseguir se mexer, e observar aquela figura distorcida cair rodopiando, sempre mais minúscula, até que ficou do tamanho de um pontinho. Só podia observá-la, naquele sonho terrível, sabendo que era ele mesmo que a tinha empurrado.

 

PALAVRAS DE UM TÉCNICO

     Elias Baley ergueu a cabeça quando o Comissário Julius Enderby entrou no escritório e acenou para ele com ar cansado. O Comissário olhou para o relógio e grunhiu:

     - Você não está querendo me dizer que ficou aqui durante a noite toda!

     Baley só disse:

     - Não.

     O Comissário perguntou em voz baixa:

     - Alguma dificuldade durante a noite?

     Baley sacudiu a cabeça. O Comissário continuou:

     - Fiquei pensando e cheguei à conclusão que talvez estivesse minimizando a possibilidade de tumultos. Se há alguma coisa que eu possa...

     Baley respondeu, tenso:

     - Pelo amor de Deus, Comissário, se alguma coisa tivesse acontecido, eu lhe diria. Não houve nada.

     - Certo. - O Comissário se afastou e atravessou a porta que dava acesso ao seu escritório particular, que lhe proporcionava o isolamento devido às suas altas funções. Baley o acompanhou com os olhos e pensou: Ele não deixou de dormir durante a noite. Depois se dedicou à composição do relatório de rotina que devia disfarçar suas atividades dos últimos dois dias, mas as palavras se embaralhavam em sua frente. Aos poucos, percebeu um objeto parado ao lado da escrivaninha. Ergueu a cabeça.

     - O que é que você quer?

     Era R. Sammy. Baley pensou, o valete particular de Julius. Vale a pena ser Comissário. R. Sammy, com seu sorriso fátuo, anunciou:

     - O Comissário quer vê-lo com urgência, Ligi. Ele disse, com urgência.

     Baley fez um gesto com a mão.

     - Ele acaba de falar comigo. Diga-lhe que vou vê-lo mais tarde.

     R. Sammy insistiu.

     - Ele disse, com urgência.

     - Está bem, está bem. Pode ir embora.

     O robô se afastou um pouco e repetiu:

     - O Comissário quer vê-lo com urgência, Ligi. Ele falou, com urgência.

     - Por Josafá, - murmurou Baley entredentes. - Já vou, já estou indo. - Levantou-se da cadeira e se encaminhou.

     R. Sammy ficou calado. Quando entrou, Baley falou:

     - Raios, Comissário, pare de mandar aquela coisa com recados, está bem?

     O Comissário só disse:

     - Sente-se, Ligi. Sente-se.

     Baley sentou-se e ficou estupefato. Talvez fizesse mal juízo do coitado do Julius. Talvez Julius não tivesse pregado olho. Parecia muito abatido. O Comissário estava tamborilando os dedos sobre uma folha de papel.

     - Tenho aqui o registro de um chamado seu para o dr. Gerrigel em Washington, pelo cabo blindado.

     - Sim, Comissário.

     - A conversa, naturalmente, não foi gravada, porque com o cabo blindado isto se torna impossível. Qual foi o teor da conversa?

     - Estou procurando informações adicionais.

     - Ele é um roboticista, não é mesmo?

     - É, sim.

     O Comissário fechou a boca e, com o lábio inferior sobressaindo, deu a impressão de uma criança fazendo beicinho.

     - Não entendo os motivos. Que espécie de informação você queria?

     - Não tenho certeza, Comissário. Tenho a impressão de que num caso como este qualquer informação adicional sobre robôs poderia ser muito útil. - Baley fechou a boca. Não estava com vontade de especificar mais.

     - Eu não faria isto, Ligi. Não faria mesmo. Não sei se é prudente.

     - Não entendo suas objeções, Comissário.

     - Menos gente sabendo a respeito, melhor. É só isto.

     - Não pretendo dar informações, é óbvio.

     - Mesmo assim, acho que é uma imprudência.

     Baley estava desanimado e perdeu a paciência. Perguntou:

     - Você está me ordenando para não vê-lo?

     - Não, não. Faça o que você achar necessário. Você está chefiando esta investigação. Só que...

     - Só o que?

     O Comissário sacudiu a cabeça.

     - Não é nada. Onde está ele? Sabe a quem estou me referindo.

     Baley entendeu. Disse:

     - Daneel, voltou para o arquivo.

     O Comissário ficou calado por um pouco e finalmente observou:

     - Sabe, não estamos progredindo muito.

     - Não estamos progredindo de jeito nenhum, por enquanto. Por outro lado, a situação pode mudar.

     - Está bem, - falou o Comissário mas sua expressão desmentia as palavras.

     Quando Baley voltou, encontrou Daneel esperando-o ao lado da escrivaninha.

     - Então, você tem alguma coisa? - perguntou Baley, brusco.

     - Terminei minha primeira  e apressada busca nos arquivos, parceiro, e identifiquei duas pessoas entre as que ontem à noite tentaram nos seguir, e que também vi em frente ao entreposto durante o tumulto.

     - Mostre.

     R. Daneel colocou na mesa duas fichas minúsculas, do tamanho de um selo, cobertas de pontos mínimos que representavam o código. O robô tinha trazido também um decodificador portátil e colocou uma ficha na abertura apropriada. Os pontinhos possuíam características de condução elétrica, diferentes das características da ficha em si. O campo elétrico que passava pela ficha ficava assim distorcido de maneira específica, e este processo resultava em palavras que de repente encheram o pequeno visor do aparelho. As palavras poderiam ter enchido muitas laudas de papel e não poderiam ser lidas por alguém que não possuísse um decodificador oficial da polícia.

     Baley começou a ler. A primeira pessoa era Francis Clousarr, preso no ano anterior, com a idade de trinta e três anos. Motivo da prisão: ter provocado um tumulto. Funcionário da Leveduras Nova Iorque. Endereço do domicílio. Paternidade. Cabelos, olhos, sinais específicos, escolaridade, currículo, perfil psicoanalítico, perfil físico, mais dados e referência para a fotografia tridimensional no arquivo criminal.

     - Você viu a fotografia? - perguntou Baley.

     - Sim, Elias.

     A segunda ficha pertencia a Gerhard Paul. Baley examinou as informações e falou:

     - Tudo isto não serve.

     R. Daneel não concordou.

     - Tenho certeza que não pode ser assim. Se existe uma organização de Terrestres capazes de perpetrar um crime como o que estamos investigando, estes dois fazem parte dela. Você não acha óbvio? Você não acha que deveríamos interrogá-los.

     - Não conseguiríamos qualquer informação.

     - Eles estavam em ambos os lugares, no entreposto e na cozinha, e não podem negá-lo.

     - O fato de estarem em ambos os lugares ainda não é um crime. E, de qualquer forma, podem negá-lo. Podem dizer que não estavam em ambos os lugares e não temos meios para provar o contrário. Você não está vendo?

     - Eu os vi.

     - Isto não é uma prova suficiente, - retrucou Baley, furioso. - Nenhum júri acreditaria que você é capaz de se lembrar de dois rostos em meio a uma multidão.

     - Mas é óbvio que eu posso.

     - Sem dúvida. Basta que você diga o que você é. A partir daquele instante você deixa de ser uma testemunha. Na Terra os robôs não são aceitos por qualquer júri.

     R. Daneel observou:

     - Parece que você mudou de idéia.

     - Como assim?

     - Ontem, na cozinha, você afirmou que não havia necessidade de prendê-los.    Você disse que, como eu lembraria seus rostos, poderíamos prendê-los a qualquer momento.

     - Quando falei, não tinha examinado o assunto em profundidade – respondeu Baley. - Foi tolice. Não podemos fazê-lo.

     - Nem mesmo por motivos psicológicos? Eles não saberiam que não temos provas legais de sua cumplicidade na conspiração.

     Baley falou nervoso:

     - Escute, estou esperando o dr. Gerrigel, de Washington, dentro de meia hora. Você não se importa de esperar até depois de minha reunião? Está bem?

     - Vou esperar, - respondeu R. Daneel.

     Anthony Gerrigel era um homem de altura mediana, um pouco pedante e muito polido, cuja aparência não indicava ser ele um dos mais eruditos roboticistas terrestres. Chegou com um atraso de quase vinte minutos e pediu desculpas com insistência. Baley, preocupado e pálido, mandou que parasse de se desculpar, com total falta de educação. Conferiu sua reserva para a Sala de Conferências D, repetiu suas instruções para que ninguém os perturbasse durante uma hora, por motivo nenhum, e levou o dr. Gerrigel e R. Daneel por um corredor e por uma rampa, até a porta que dava acesso à sala blindada contra qualquer interferência de espias eletrônicos.

     Antes de tomar seu assento, Baley examinou cuidadosamente as paredes, conferindo com atenção o leve zunido do pulsômetro que estava segurando na mão, porque qualquer enfraquecimento do zunido poderia indicar uma falha de isolamento. Examinou também o chão, o forro e a porta. Estava tudo em ordem. O doutor Gerrigel sorriu levemente, aliás, tinha a aparência de um homem que só chegava a sorrir levemente em qualquer circunstância. Seus trajes mostravam que era bastante pedante também no que dizia respeito à aparência. Os cabelos cor de aço estavam penteadíssimos e seu rosto rosado indicava um banho recente. Sentou-se mantendo as costas rigidamente eretas, como se as recomendações de sua mãe, durante a infância, tivessem transformado sua espinha numa bengala. Observou, olhando para Baley:

     - Sua atitude parece indicar que nossa reunião é extremamente importante.

     - De fato, doutor, é muitíssimo importante. Preciso de informações sobre robôs e acho que só posso tê-las por seu intermédio. Tudo o que for falado aqui é, obviamente, reservadíssimo, e a Cidade presume que você vai esquecer imediatamente o assunto quando sair. - Baley olhou para o relógio.

     O leve sorriso do roboticista se apagou. Disse:

     - Deixe que eu lhe explique as razões de meu atraso. - Parecia muito preocupado com isso. - Decidi não vir por avião. Costumo enjoar muito durante o vôo.

     - Lastimo, - observou Baley. Guardou o pulsômetro depois de um último olhar e se sentou.

     - Quando não enjôo, fico nervoso. Um leve caso de agorafobia. Não é nada de anormal, mas acontece. Então vim pelas vias expressas.

     Baley ficou muito interessado:

     - Agorafobia?

     - Parece algo pior do que realmente é, - explicou o roboticista. - Sabe, é apenas aquela sensação que a gente tem num avião. Você costuma viajar de avião, Baley?

     - Costumo, sim.

     - Então sabe a que me refiro. Aquela sensação que não há nada em nossa volta. De estarmos separados do vazio por apenas dois centímetros de chapa metálica. É muito desagradável.

     - Então veio pela via expressa?

      - Sim.

     - De Washington até Nova Iorque?

     - Sim, é algo que já fiz em outras ocasiões. Por sinal, ficou muito mais simples desde a construção do túnel entre Baltimore e Filadélfia.

     Era verdade. Baley nunca tinha percorrido a mesma distância pela via expressa, mas sabia que isto era possível. Washington, Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque tinham se expandido muito durante os últimos dois séculos, a ponto que quase chegavam a ser uma, a continuação da outra. Todo aquele trecho do litoral era conhecido pela designação quase oficial de Área das Quatro Cidades e havia até bastante partidários de uma administração unificada, com a formação de uma Super-Cidade. Baley era contrário. A própria Nova Iorque era já quase grande demais para poder ser administrada por um único órgão central. Uma Cidade maior, com quase cinqüenta milhões de habitantes, acabaria num fracasso pela sua própria extensão.

     - Infelizmente, - continuou o dr. Gerrigel, - esqueci uma baldeação no setor de Chester, na Filadélfia, e acabei perdendo um bocado de tempo. Finalmente, tive alguma dificuldade para conseguir um alojamento em trânsito. Daí, me atrasei.

     - Não se preocupe, doutor. Acho muito interessante. Considerando sua aversão por aviões, como você consideraria a possibilidade de sair da Cidade indo a pé?

     - Por quê? - O dr. Gerrigel pareceu surpreso e até um pouco preocupado.

     - É simplesmente uma pergunta retórica. Não estou dizendo que você terá que fazê-lo. Só gostaria de saber como você encararia a questão.

     - Acho que seria sumamente desagradável.

     - Vamos supor que você tenha que se afastar da Cidade durante a noite, e para isto, precise caminhar entre os campos, por uma milha ou mais.

     - Eu acho... acho que ninguém poderia me obrigar a uma coisa destas.

     - Mesmo em se tratando de uma emergência?

     - Escute, no caso de eu ter que salvar a vida de minha família, ou minha própria vida, eu talvez poderia tentar... - Parecia estar muito sem jeito. – Posso perguntar o motivo de tudo isto, Baley?

     - Sim, vou lhe explicar. Alguém cometeu um crime, um crime bastante peculiar e preocupante. Não posso lhe adiantar nenhum pormenor. Existe uma teoria a respeito: o assassino, para cometer o crime, deveria ter atravessado um bom trecho ao léu, durante a noite e sozinho. Estou tentando descobrir que tipo de homem poderia fazer uma coisa destas.

     O dr. Gerrigel teve um sobressalto.

     - Não conheço ninguém que seria capaz de fazê-lo. Eu, não, em qualquer circunstância. Sem dúvida, entre muitos milhões de pessoas, seria possível encontrar alguns indivíduos suficientemente destemidos.

     - Na sua opinião, esta não é uma façanha que uma criatura humana perpetraria, assim, sem mais nem menos?

     - De forma alguma. Não me parece provável.

     - Acho que deveríamos levar isto em conta. De fato, deveríamos considerar a possibilidade de qualquer outra explicação, qualquer mesmo.

     O dr. Gerrigel não parecia muito à vontade, com suas costas rigidamente eretas e as mãos muito bem cuidadas, entrelaçando-se no colo.

     - Você já pensou em outras alternativas?

     - Sim. Por exemplo, um robô não encontraria dificuldades em atravessar o campo aberto.

     O dr. Gerrigel se levantou:

     - Por favor, que absurdo!

     - O que é que está errado?

     - Você afirma que um robô poderia ter cometido um crime?

     - Por que não?

     - Um assassínio? Você pensa que poderia ter morto um ser humano?

     - Sim, doutor. Faça-me o favor, fique sentado.

     O roboticista voltou a sentar. Disse:

     - Baley, isto inclui dois atos distintos: caminhar em campo aberto e matar. Um ser humano poderia matar com certa facilidade, mas não conseguiria caminhar em campo aberto. Um robô não teria dificuldade em caminhar em qualquer lugar, mas não tem nenhuma capacidade de matar. Se você tenciona substituir uma teoria absurda com outra impossível...

     - Impossível é um termo muito forte, doutor.

     - Baley, já ouviu mencionar a Primeira Lei Robótica?

     - Sim, e posso até citá-la: Um robô não pode machucar uma criatura humana e não pode deixar que ela se machuque, por sua omissão. - Baley apontou um dedo para o roboticista e perguntou: - Por que um robô não poderia ser construído sem a Primeira Lei? Ela não é sagrada.

     Gerrigel pareceu surpreso e depois soltou uma gargalhadinha:

     - Ora, Baley!

     - Então, o que é que você me diz a respeito?

     - Escute, Baley, se você tem o menor conhecimento de robótica, você deve saber que a construção de um cérebro positrônico é uma tarefa gigantesca, no sentido matemático e eletrônico.

     - Posso imaginar, - concordou Baley. Lembrou-se de uma visita numa fábrica de robôs. Tinha visto a biblioteca de livros-filmes de longa metragem, e cada volume continha análise matemática de um cérebro positrônico de um só tipo. Precisava de mais de uma hora para assistir a um filme médio à velocidade normal, apesar de todos os símbolos serem condensados. Nenhum cérebro positrônico era igual a outro, mesmo quando eram preparados obedecendo às mais rígidas especificações. Baley sabia que isto era uma conseqüência do Princípio de Incerteza de Heisenberg. Isto significava que cada filme devia ter em apêndice uma série de possíveis variações. Sem dúvida, era uma tarefa formidável. Baley só podia concordar.

     O dr. Genigel continuou:

     - Veja só, você precisa entender que qualquer projeto para um novo tipo de cérebro positrônico, mesmo que se refira apenas a inovações mínimas, não pode ser feito numa só noite. Em geral, requer a cooperação de toda a equipe de pesquisa de uma fábrica de tamanho razoável, e leva mais ou menos um ano para ser completado. Mesmo toda esta vasta quantidade de trabalho não seria suficiente, a não ser que a teoria básica destes circuitos já existisse em forma padronizada, para ser usada como base para qualquer sofisticação futura. Esta teoria-padrão básica inclui as três Leis Robóticas: A Primeira, que você acaba de citar, a Segunda, que afirma: Um robô é obrigado a obedecer a qualquer ordem de uma criatura humana, menos quando a ordem é contrária à Primeira Lei, e a Terceira Lei que diz, um robô deve proteger sua própria existência, a não ser que esta proteção contrarie a Primeira ou a Segunda Lei. Você me entende?

     R. Daneel, que até aquele ponto tinha ouvido a conversa com muita atenção, interferiu:

     - Com sua licença, Elias, gostaria de ver se entendi perfeitamente as palavras do dr. Gerrigel. O que o senhor disse, doutor, é que qualquer tentativa de construir um robô, cujo cérebro positrônico não funcione segundo a orientação das Três Leis, ia requerer em primeiro lugar o estabelecimento de uma nova teoria básica, e isso, por outro lado, levaria vários anos.

     O roboticista ficou muito satisfeito.

     - Isto é exatamente o que eu quis dizer, senhor...

     Baley esperou um instante e depois apresentou R. Daneel com muita formalidade:

     - Doutor Gerrigel, apresento-lhe Daneel Olivaw.

     - Muito prazer, senhor Olivaw. - Gerrigel estendeu a mão e apertou a mão de Daneel. Depois continuou: - Suponho que seriam necessários cinqüenta anos para desenvolver a teoria básica de um cérebro positrônico não-Aseniano - quero  dizer, um  cérebro carecendo dos pressupostos básicos das Três Leis - e depois para aperfeiçoá-lo ao ponto de permitir a montagem de robôs parecidos com os robôs atuais.

     - Quer dizer que nunca ninguém tentou fazê-lo? - perguntou Baley. - O que eu pretendo dizer é o seguinte, doutor: Há alguns milhares de anos estamos construindo robôs. Será que durante todo este tempo nenhum grupo achou que poderia gastar cinqüenta anos nesta tarefa?

     - Houve tempo suficiente, - opinou o roboticista. - Porém não acredito que qualquer equipe se dedicaria a este tipo de trabalho.

     - É quase inacreditável. A curiosidade humana pode levar a qualquer empreendimento.

     - Ainda não levou a projetar um robô não-Aseniano. A raça humana tem um violento complexo de Frankenstein, Baley. Pode acreditar.

     - Que complexo é este?

     - O nome se originou numa novela muito popular na época medieval.  Tratava-se da história de um robô que virava contra seu criador. Nunca li a tal novela, mas isto não tem importância. O que eu quero dizer é que ninguém constrói robôs sem a Primeira Lei.

     - E não existe nenhuma teoria conflitante?

     - Não é do meu conhecimento, - respondeu Gerrigel com um sorriso meio desajeitado, - e meus conhecimentos neste campo são bastante extensos.

     - Então um robô construído com a teoria da Primeira Lei não poderia matar um homem?

     - Jamais. A não ser, naturalmente, que fosse por acidente ou que fosse para salvar a vida de dois ou mais outros homens. Em qualquer um dos casos, o potencial positrônico forçado além dos limites, acabaria estragando totalmente o cérebro.

     - Está bem, - concordou Baley. - Esta é a situação aqui, na Terra. Certo?

     - Sim. Certo.

     - E o que você pode me dizer a respeito dos Mundos Externos?

     O dr. Gerrigel pareceu perder toda sua segurança.

     - Nossa, Baley. Francamente, nada posso lhe adiantar, como sendo de meu conhecimento pessoal, entende? Por outro lado, tenho certeza que se alguém projetasse um cérebro positrônico não-Aseniano, ou elaborasse a teoria matemática, teríamos ouvido falar a respeito.

     - Tem certeza? Então, deixe que lhe faça mais uma pergunta. Não se importa, não é mesmo?

     - Não, de jeito nenhum. - Olhou primeiro para Baley e depois para R. Daneel. - Afinal, se a coisa é tão importante como você disse, fico satisfeito em ajudá-lo de todas as maneiras ao meu alcance.

     - Obrigado, doutor. Quero saber por que os robôs devem ter forma humanóide? Veja, esta pergunta não me ocorreu em toda minha vida, estou acostumado com robôs, mas agora gostaria de saber o motivo. Por que um robô deve ter uma cabeça, braços e pernas? Por que deve ter uma aparência mais ou menos humana?

     - O que você quer saber é, por que um robô não é construído de maneira funcional, como qualquer outra máquina?

     - Isto mesmo. Por que? - repetiu Baley.

     O dr. Gerrigel mostrou mais um leve sorriso.

     - Para lhe dizer a verdade, Baley, você nasceu tarde demais. A mais antiga literatura da robótica está repleta com discussões e polêmicas que se referem exatamente a este assunto, e posso lhe adiantar que as discussões foram realmente ferozes. Se você deseja que eu lhe dê uma ótima referência para constatar as argumentações usadas pelos funcionalistas e pelos anti-funcionalistas, posso recomendar a "História da Robótica", de Handford. Só contém acenos mínimos à matemática. Acredito que você achará o texto muito interessante.

     - Vou dar uma espiadinha, - respondeu Baley com muita paciência. - Você poderia me dar um breve resumo?

     - A decisão foi tomada com base em razões econômicas. Escute, Baley, se você estivesse supervisionando a produção numa fazenda, você compraria um trator com um cérebro positrônico, e mais uma ceifadeira, um arado, um automóvel e outros implementos, todos providos de cérebros positrônicos, ou você acharia mais prático ter implementos comuns, manuseados por um único robô positrônico? Quero também lhe explicar que a segunda alternativa implica numa despesa igual à qüinquagésima ou centésima parte da despesa da primeira alternativa.

     - Está bem, mas qual é a razão de se adotar uma forma humana?

     - Porque a forma humana é a forma geral mais utilitária de toda a natureza.  Baley, não somos animais muito especializados, a não ser pelos nossos sistemas nervosos e mais alguns outros pormenores. Se você quiser uma forma apta a fazer uma grande variedade de coisas diferentes e a cumprir todas as tarefas de maneira satisfatória, você não poderia encontrar outra melhor que a forma humana. A mais, toda nossa tecnologia se baseia na forma humana. Por exemplo, os controles de um carro são fabricados na forma mais eficiente para se adaptarem a mãos e pés humanos de um certo molde e tamanho, juntados a um corpo por intermédio de braços, pernas e juntas de um tipo definido. Mesmo objetos mais simples, como cadeiras, garfos, mesas e facas são desenhados para se adaptarem às medidas humanas e aos movimentos humanos. É mais fácil termos robôs que imitam a  forma humana  do que redesenhar de maneira radical todos os nossos utensílios.

     - Estou vendo, realmente assim a coisa tem um sentido. Agora, diga-me mais uma coisa, doutor: é verdade que os roboticistas dos Mundos Externos fabricam robôs cuja forma é muito mais humanóide que a dos nossos?

     - Acredito que sim.

     - Você acredita que poderiam fabricar um robô a tal ponto humanóide que poderia parecer um homem, em condições normais?

     - Acho que sim, - respondeu Gerrigel, erguendo as sobrancelhas, após um instante de reflexão. - Um robô deste feitio sairia, sem dúvida, caríssimo. Duvido que sua atividade poderia amortizar os custos.

     - E você acha também que eles poderiam produzir um robô a tal ponto perfeito que mesmo você poderia se enganar a respeito?

     O roboticista deu mais uma gargalhadinha.

     - Vamos, meu caro Baley, eu duvido. Realmente, duvido. Afinal, num robô existem muito mais coisas que...

     O dr. Gerrigel parou de falar, ficou imóvel e depois virou vagarosamente a cabeça para observar R. Daneel.

     - Oh, meu Deus, - murmurou. - Meu Deus do céu!

     Estendeu uma mão e tocou levemente uma face de R. Daneel. R. Daneel não se mexeu, mas olhou para o roboticista com muita calma.

     - Meu Deus do céu, - repetiu o roboticista com algo que se parecia com um soluço. - Você é um robô.

     - Você levou um bocado de tempo para descobri-lo, - observou secamente Baley.

     - Mas eu não estava prevenido. Nunca vi um robô deste feitio. Fabricação dos Mundos Externos?

     - Sim. - respondeu Baley.

     - Agora a coisa é óbvia. Por causa da postura. A maneira de falar. Não se trata de uma imitação perfeita, Baley.

     - Mas ela é muito boa, assim mesmo, não é?

     - É espetacular. Duvido que qualquer pessoa consiga perceber o engano, à primeira vista. Sinto-me profundamente grato por ter a oportunidade de vê-lo de perto. Posso examiná-lo?  - O roboticista levantou-se, ansioso.

     Baley ergueu a mão.

     - Por favor, doutor. Espere mais um minuto. Em primeiro lugar precisamos ainda considerar o assassinato.

     - Realmente aconteceu? - Gerrigel estava muito decepcionado e não fez nada para disfarçar. - Pensei que toda aquela estória era simplesmente um truque para me distrair e ver até quando ficaria sem perceber que...

     - Não era um truque, doutor. Explique-me uma coisa. Ao construir um robô deste feitio, tão parecido com um homem como este, com o propósito de fazê-lo parecer um homem, não seria necessário acrescentar ao seu cérebro certas características que o fizessem parecer um cérebro humano?

     - Sem dúvida.

     - Ótimo. Mas um cérebro tão humanóide pode ser fabricado omitindo-se a Primeira Lei? Ela poderia ser omitida acidentalmente? Você disse que a teoria é desconhecida, mas o fato dela ser desconhecida pode significar que os construtores poderiam montar um cérebro positrônico carente de Primeira Lei. Eles poderiam não saber o que estão evitando.

     O dr. Gerrigel sacudiu energicamente a cabeça.

     - Não. Não e não. É impossível.

     - Você tem certeza? É claro, podemos fazer um teste com a Segunda Lei. Daneel, dê-me seu desintegrador.

     Baley não tirou seus olhos do robô. Sua mão segurava firmemente o cabo de seu próprio desintegrador que ainda estava no coldre. R. Daneel disse, calmo:

     - Aqui, Elias, - e estendeu a mão, segurando o desintegrador de maneira que o cabo ficasse de frente.

     Baley falou:

     - Um investigador nunca pode entregar seu desintegrador, mas um robô não tem escolha, deve obedecer as ordens de uma criatura humana.

     - Com uma exceção, Baley, - observou Gerrigel. - Quando a obediência infringe a Primeira Lei.

     - Quer saber uma coisa, doutor? Daneel apontou seu desintegrador contra um grupo de seres humanos desarmados e ameaçou atirar.

     - Mas eu não apertei o gatilho, - disse R. Daneel

     - Certo, mas a ameaça já era algo muito fora do normal, não é mesmo, doutor?

     O doutor Gerrigel mordeu o lábio.

     - Para dar uma opinião, precisaria conhecer todos os detalhes daquela circunstância. Parece bastante anormal.

     - Então, procure pensar nisto. R. Daneel estava presente na hora do crime, e se excluímos a possibilidade de um Terrestre ter caminhado pelos campos, levando uma arma, Daneel, e só Daneel, entre todas as pessoas presentes no local do crime poderia ter ocultado a arma.

     - Você diz que ele ocultou a arma?

     - Vou tentar explicar. Não foi encontrado o desintegrador usado para eliminar a vítima. É claro que uma arma não pode se evaporar como uma névoa. Só existe um lugar onde a arma poderia se encontrar, um único lugar em que ninguém poderia pensar olhar.

     - Onde, Elias? - perguntou R. Daneel.

     Baley ergueu seu próprio desintegrador e apontando-o com firmeza para o robô, disse:

     - No saco que lhe serve para guardar alimentos, Daneel!

 

ANÁLISE DE UMA MÁQUINA

     - Não é verdade, - retrucou R. Daneel, sem se alterar.

     - É mesmo? Vamos ouvir a opinião do doutor. Então, Gerrigel?

     - O que é, Baley? - Os olhos do roboticista passavam rapidamente do investigador ao robô e vice-versa, enquanto falava, e finalmente pararam sobre o homem.

     - Estou lhe pedindo uma análise deste robô. Posso lhe colocar à disposição os laboratórios do Departamento de Pesos e Medidas da Cidade. Se você precisar de qualquer outro equipamento, vou encontrá-lo para você. Só quero uma resposta rápida e definitiva e não me interesso pela despesa ou pelo tempo empregado.

     Baley se levantou. Tinha falado com suficiente controle, mas sentia-se próximo a ser dominado por um surto de histeria. Imaginou até que, se conseguisse agarrar o dr. Gerrigel pela garganta e sacudi-lo durante algum tempo, poderia ter a resposta sem necessidade de recorrer à ciência. Perguntou:

     - Então, doutor?

     O dr. Gerrigel soltou outra gargalhadinha e disse:

     - Meu caro Baley, não preciso de nenhum laboratório.

     - Por que não? - perguntou Baley desconfiado. Ficou parado, com todos os músculos tensos.

     - Não é difícil testar a Primeira Lei. Ainda não precisei  fazê-lo,  é  claro,  mas é  um  processo  muito simples.

     Baley abriu a boca, aspirou o ar e depois deixou que saísse vagarosamente.

     - Pode me explicar o que isto significa? Você quer dizer que pode proceder com o teste aqui mesmo?

     - Sem dúvida. Olhe aqui, Baley. Vou lhe dar um exemplo. Se eu fosse médico e tivesse que analisar a quantidade de açúcar no sangue de um paciente, precisaria de um laboratório químico. Se precisasse medir a taxa do metabolismo basal ou as funções corticais, ou examinar o gene para determinar alguma malformação congênita, precisaria de equipamentos complexos. Por outro lado, eu poderia me certificar de sua cegueira passando simplesmente uma mão em frente de seus olhos, e poderia ver se está morto simplesmente apanhando seu pulso. Quero dizer, quanto mais importante e fundamental a condição a ser testada, mais simples se torna o equipamento requerido. Com os robôs acontece a mesma coisa. A Primeira Lei é fundamental e se relaciona com todas as funções. Em sua ausência, um robô não saberia como reagir em pelo menos duas dúzias de circunstâncias diferentes, e bastante óbvias.

     Enquanto falava, tirou do bolso um objeto preto e achatado que depois expandiu, transformando-o num projetor de livros. Introduziu um carretel no receptáculo adequado. A seguir, tirou do bolso um cronômetro e uma série de segmentos de plástico branco, que, interligados, formavam uma espécie de régua de cálculos com três seções móveis independentes. Os sinais marcados sobre o plástico eram completamente misteriosos para Baley. Gerrigel bateu um dedo sobre o projetor e sorriu satisfeito. Disse:

     - Este é meu "Texto da Robótica". Nunca vou a lugar nenhum sem levá-lo junto. Faz parte de meus trajes. - Deu mais uma risadinha.

     Com o olho colado na lente, ajustou delicadamente os controles. O projetor zuniu e depois ficou silencioso.

     - O índice embutido, - explicou o roboticista com orgulho, mas a voz um pouco sufocada por causa da posição em que se encontrava. - Eu o construí pessoalmente. Consigo poupar muito tempo com isto. Mas este não é o ponto mais importante, não é mesmo? Deixe-me ver. Hum. Daneel, poderia aproximar sua cadeira à minha?

     R. Daneel obedeceu. Até aquele momento tinha observado atentamente os movimentos do roboticista sem dar qualquer sinal de emoção. Baley passou o desintegrador para a outra mão. O que se seguiu, o deixou confuso e desapontado. Gerrigel começou a fazer perguntas e fazer coisas que pareciam sem sentido, com referências à sua tríplice régua de cálculos e ao seu projetor.A um certo ponto perguntou:

     - Se eu tiver dois primos, com uma diferença de cinco anos entre ambos, e a caçula é uma menina, qual é o sexo da outra pessoa minha parente?

     Daneel respondeu (e Baley pensou que não poderia responder de qualquer outra maneira):

     - Impossível dizer. Dados insuficientes.

     A única reação do doutor Gerrigel, além de uma olhada para o cronômetro, foi de erguer o braço direito lateralmente e dizer:

     - Daneel, quer tocar a ponta de meu dedo mediano com a ponta do terceiro dedo de sua mão esquerda?

     Daneel obedeceu num instante, sem hesitações. O exame do dr. Gerrigel terminou em mais ou menos quinze minutos. Usou mais uma vez sua régua para um cálculo silencioso e a seguir a desmontou com uma série de cliques. Guardou o cronômetro, tirou o "Texto" do projetor, e dobrou tudo.

     - É só isto? - perguntou Baley franzindo a testa.

     - É só.

     - Mas isto é ridículo. Você não fez nenhuma pergunta que se referisse à Primeira Lei.

     - Meu caro Baley, quando um médico bate em seu joelho com um martelinho de borracha e sua perna pula, você não aceita o fato que este teste responde de maneira satisfatória a respeito da presença ou ausência de certas moléstias nervosas degenerativas? Quando um médico observa seus olhos e examina as reações da íris à luz, você não fica surpreso se ele eventualmente pode lhe dizer algo que se refere a um seu eventual uso de certos alcalóides, não é?

     Baley falou:

     - Então, qual é sua opinião?

     - Daneel está perfeitamente equipado com a Primeira Lei! - O roboticista assentiu com força.

     - Você deve estar enganado, - declarou Baley.

     Baley não pensava que o dr. Gerrigel poderia se empertigar ainda mais que o normal, mas aconteceu. O homem apertou os olhos que ficaram duros e frios.

     - Você está querendo me ensinar minha profissão?

     - Não era minha intenção insinuar que você não é competente, - afirmou Baley. Ergueu uma mão, para apaziguá-lo. - Você não poderia estar enganado? Você mesmo disse que ninguém sabe qualquer coisa sobre a teoria dos robôs não-Asenianos. Um homem cego poderia ler pelo método Braille ou por um audiovideo. Vamos supor que você não soubesse qualquer coisa a respeito de Braille ou audiovideo. Você não poderia afirmar, com toda honestidade, que um homem enxerga só porque conhece o conteúdo de um certo livro-filme, e você não estaria se enganando?

     - Sim, - o roboticista parecia ter recuperado seu bom humor. - Entendo o que você quer dizer. Mas um cego não poderia ler, usando os olhos, e eu estaria examinando seus olhos, se você me permite continuar com esta analogia. Pode confiar em minha palavra: não interessa saber o que um robô não-Aseniano poderia fazer. O que interessa é que tenho certeza absoluta que R. Daneel está equipado com a Primeira Lei.

     - Você não acha que ele poderia ter falsificado as respostas? - Baley estava perdendo terreno.

     - Absolutamente. Esta é a diferença entre um robô e uma criatura humana. Um cérebro humano, ou um cérebro de qualquer mamífero, não pode ser completamente analisado através de qualquer disciplina matemática conhecida. Por conseguinte, não podemos aceitar qualquer resposta como absoluta. O cérebro do robô é totalmente analisável, caso contrário não poderia ser construído. Sabemos com certeza absoluta quais serão as respostas a certos estímulos. Robô nenhum pode falsificar as respostas. O que você chama de falsificação é algo que não existe no horizonte mental robô tico.

     - Neste  caso,  explique-me  os  fatos. R.  Daneel apontou um desintegrador contra um agrupamento humano. Eu vi quando isto aconteceu. Estava presente. Admito que ele não deu ao gatilho, mas você não acha que por causa da Primeira Lei ele deveria ter ficado com uma espécie de neurose? Mas não aconteceu nada. Logo a seguir, ele se portou de maneira absolutamente normal.

     A mão do roboticista ficou segurando seu queixo.

     - Isto é bastante anormal.

     - Não é, não, - falou R. Daneel de repente. - Amigo Elias, quer por favor examinar o desintegrador que eu lhe entreguei?

     Baley observou o desintegrador que segurava na esquerda.

     - Abra a câmara energética, - insistiu R. Daneel. - Observe-a com cuidado.

     Baley examinou primeiro o risco que estava correndo. A seguir, colocou seu próprio desintegrador sobre a mesa. Com movimentos rápidos abriu o desintegrador do robô.

     - Está vazia, - falou estupefato.

     - De fato, não há carga, - concordou R. Daneel. - Se você quiser olhar com mais atenção, poderá perceber que este desintegrador nunca teve uma carga. A mais, falta-lhe um pino de ignição. O desintegrador não poderia ser usado.

     Baley perguntou:

     - Você apontou um desintegrador descarregado?

     - Eu precisava ter um desintegrador para que meu papel de investigador fosse mais perfeito, - explicou R. Daneel. - Por outro lado, levar um desintegrador carregado e pronto para o uso poderia me levar a machucar uma criatura humana mesmo sem querer, e isto, como você bem entende, me colocaria numa posição insustentável. Eu queria explicar isto a você logo depois daquela ocasião, mas você estava muito zangado e não me deixou falar.

     Baley observou furioso o desintegrador inútil que segurava em suas mãos e falou em voz abafada:

     - Acho que isto é tudo, dr. Gerrigel. Sou-lhe muito grato pela sua ajuda.

     Baley mandou buscar seu almoço, mas quando este chegou (torta de levedura de nozes e uma extravagância, uma fatia de frango frito sobre uma torrada) não conseguiu comer. Os pensamentos se alternavam em sua mente. Sua expressão era positivamente tétrica. Estava vivendo num mundo irreal, um mundo cruel e confuso. Como era possível? O passado próximo lhe aparecia com o um sonho nebuloso desde o momento em que tinha entrado no escritório de Julius Enderby, submergindo de repente num pesadelo de assassinato e robótica.

     Por Josafá, isto tinha começado há apenas cinqüenta horas! Sem poupar esforços, tinha logo começado a procurar a solução na Cidade Espacial. Chegara a acusar R. Daneel em duas ocasiões diferentes, primeiro pensando que fosse uma criatura humana disfarçada de robô e depois admitindo sua condição de máquina, mas sempre querendo indicá-lo como o assassino. Em ambas as ocasiões a acusação tinha sido rechaçada. Sentia-se acuado, pressionado. Embora a contragosto, sentia-se obrigado a considerar a possibilidade do assassino ser um morador da Cidade, mas não ousava. Sua mente consciente revolvia em continuação algumas perguntas, mas recusava-se a tomá-las em consideração. Sentia que não podia. Se o fizesse, não poderia deixar de responder e estava apavorado, não queria encarar as respostas.

     - Ligi! Ligi! - Uma mão sacudiu seu ombro.

     Baley se mexeu e perguntou:

     - O que há, Phil?

     Philip Norris, investigador C-5, sentou-se em sua frente, colocou as mãos sobre os joelhos e observou atentamente o rosto de Baley.

     - O que foi que aconteceu com você? Andou tomando bolinhas? Você ficou sentado com os olhos abertos, mas tinha a aparência de estar morto.

     Passou uma mão nos cabelos e seus olhos, bastante aproximados, observaram gulosamente o almoço de Baley que estava esfriando.

     - Frango! - exclamou. – Recentemente é tão difícil de encontrar, que quase precisa de receita médica para obtê-lo.

     - Sirva-se, - falou Baley, distraído.

     Norris se controlou e falou:

     - Dentro de um minuto vou sair para almoçar... Coma você. Diga, o que está acontecendo com o Comissário?

     - O que?

     Norris se esforçou para assumir uma atitude indiferente, mas suas mãos não conseguiam parar de se mexer. Disse:

     - Ora, vamos. Você sabe o que eu quero dizer. Você está praticamente vivendo ao lado dele, desde a hora que voltou. Alguma novidade? Alguma perspectiva de promoção?

     Baley franziu as sobrancelhas e começou a cair em si ao ouvir esta alusão à política interna do departamento. Norris tinha aproximadamente sua mesma ancianidade e, como era lógico, não podia deixar de prestar atenção o tempo todo, para ver se descobria algum favorecimento que beneficiasse Baley. Baley se apressou a responder:

     - Nenhuma promoção em vista, pode acreditar. Não há nada, nada mesmo. Por outro lado, se você quiser o Comissário, gostaria de poder entregá-lo a você, embrulhado para presente. Pode levar, entendeu?

     Norris disse:

     - Não me entenda mal. Não me importo se você for promovido. Quero dizer simplesmente, se você tiver alguma influência com o Comissário, por que você não a usa em favor do garoto?

     - Que garoto?

     A pergunta dispensava respostas. Vincent Barrett, o rapaz dispensado para abrir uma vaga para R. Sammy, apareceu de um canto qualquer da sala. Revirava uma boina entre as mãos, e a pele sobre as maçãs do rosto se encrespava, como se quisesse sorrir.

     - Alô, senhor Baley.

     - Alô, Vince. Como é que você vai?

     - A situação não é muito boa.

     Olhou ao redor com olhos famintos. Baley pensou: parece perdido, quase morto - desclassificado. Depois, com um surto de fúria, enquanto seus lábios quase se moviam pela violência da emoção, pensou: mas o que é que ele quer de mim? Disse:

     - Sinto muito, garoto. - Que mais poderia dizer?

     - Continuo pensando... que talvez alguma coisa apareça.

     Norris se aproximou e cochichou ao ouvido de Baley:

     - Alguém deveria acabar com estas coisas. Agora será a vez de Chen-low.

     - O que?

     - Você não sabia?

     - Não, não sabia. Raios, ele é um C-3. Já são dez anos que está neste serviço.

     - Concordo. Mas uma máquina com pernas é capaz de fazer seu trabalho. Quem será o próximo?

     O jovem Vince não estava se preocupando com os cochichos. Falou de repente:

     - Senhor Baley?

     - Sim, Vince?

     - Já ouviu o que dizem por aí? Dizem que Lyrane Millane, a dançarina sub-etérica, na realidade é um robô?

     - Que tolice.

     - Será que é? Dizem que eles conseguem fazer robôs iguais à gente, com uma pele de plástico especial.

     Baley se lembrou de R. Daneel, sentindo-se vagamente culpado e ficou em silêncio. Sacudiu a cabeça.

     O rapaz perguntou:

     - Você acha que alguém objetaria se eu der uma voltinha por aqui? Ver estes lugares me fazem sentir melhor.

     - Esteja à vontade, garoto.

     O rapaz se afastou. Baley e Norris o estavam observando. Norris disse:

     - Tenho a impressão de que os medievalistas estão certos.

     - Você quer dizer que precisamos voltar à terra? É isto, Phil?

     - Não. Eu estava me referindo aos robôs. Voltar à terra? Está brincando! Nossa velha Terra tem um futuro ilimitado! Não precisamos de robôs, é só isto!

     Baley resmungou:

     - Oito bilhões de pessoas e nossas reservas de urânio estão se acabando! O que é que é ilimitado?

     - Que importa se o urânio acabar? Vamos importá-lo. Ou então vamos descobrir outros processos nucleares. A humanidade não pode parar, Ligi. Precisamos ser otimistas e precisamos ter fé nas capacidades do velho cérebro humano. Nosso maior capital é nossa capacidade de inventiva e não vamos perdê-la nunca.

     Estava começando a se entusiasmar. Continuou:

     - Em primeiro lugar, podemos usar energia solar, e o sol só se esgotará dentro de bilhões de anos. Podemos construir estações espaciais na órbita de Mercúrio, que servirão como acumuladores de energia. Vamos transmitir energia por ondas diretas.

     Baley já tinha ouvido falar neste projeto. Os cientistas estavam examinando sua viabilidade há mais de cento e cinqüenta anos. Entretanto, até agora, ninguém tinha encontrado o meio de projetar um feixe de ondas por cinqüenta milhões de milhas sem que ele se dispersasse, tornando-se inútil. Baley fez algumas observações a este propósito.

     Norris comentou:

     - Quando a coisa se fizer necessária, será feito.

     Baley imaginou a Terra com reservas ilimitadas de energia. A população poderia continuar a aumentar. Haveria uma maior produção de levedura e culturas hidropônicas. O único elemento indispensável era a energia. Minerais podiam ser trazidos das rochas desabitadas do Sistema. Caso houvesse algum problema com a água, poderia se trazer mais das luas de Júpiter. Diacho, os oceanos poderiam ser congelados e levados para o Espaço, onde poderiam ficar na órbita da Terra, como pequenas luas de gelo. Ficariam assim sempre à disposição em caso de necessidade, enquanto os fundos dos oceanos poderiam se transformar em mais terra arável, mais espaço para morar. O carbono e o oxigênio da Terra poderiam ser mantidos e aumentados, utilizando a atmosfera de metano de Titã e o oxigênio congelado de Umbriel.

     A população da Terra poderia chegar até um ou dois trilhões. Por que não? Já houve um tempo em que a população atual de oito bilhões era considerada impossível. Houve até uma época em que mesmo a população de um bilhão parecia impossível. Os profetas que previam o fim do mundo surgiam em todas as gerações desde a Idade Média, e suas previsões sempre se demonstraram sem fundamento. Por outro lado, qual seria a opinião de Fastolfe? Um mundo com um trilhão de pessoas? Não era impossível. Mas a população dependeria de ar e água importados e de um fornecimento de energia armazenada a uma distância de cinqüenta milhões de milhas! Uma situação de incrível instabilidade. A Terra ficaria continuamente à beira da catástrofe, que poderia ser provocada por qualquer falha insignificante dentro de um mecanismo disperso na vastidão do Sistema.

     Baley falou:

     - Estou pensando que seria muito mais simples facilitar a emigração do excesso populacional. - Mais que uma resposta para Norris, era a conclusão de seus próprios pensamentos.

     - Quem  permitiria  isto?  -  perguntou  Norris sarcástico.

     - Basta escolher um planeta sem habitantes.

     Norris se levantou, bateu no ombro de Baley.

     - Ligi, coma seu frango e acorde. Você deve mesmo estar embutido de bolinhas. - Logo se afastou com uma gargalhada.

     Baley observou o colega com os lábios estirados numa careta. Norris com certeza ia comentar a conversa e durante semanas os engraçadinhos do departamento (estes sujeitos existem em todos os escritórios) iam fazer brincadeiras a respeito. Pelo menos, aquela discussão tinha afastado seus pensamentos do jovem Vince, de robôs e da desclassificação. Suspirou e apanhou o garfo para comer a fatia de frango, já fria e um pouco dura. Baley engoliu o último pedaço de torta de levedura e R. Daneel se levantou da sua escrivaninha (designada naquela mesma manhã) e se aproximou. Baley ficou a observá-lo, meio sem jeito.

     - O que há?

     R. Daneel disse:

     - O Comissário não está em seu escritório e ninguém sabe quando voltará. Expliquei a R. Sammy que vamos nos reunir no escritório e que não deixe entrar ninguém a não ser o próprio Comissário.

     - Por que precisamos usar o escritório?

     - Estaremos mais à vontade. Você, sem dúvida, concorda que precisamos planejar o que faremos em seguida. Afinal, você não pretende abandonar esta investigação, não é mesmo?

     Baley estava com muita vontade de largar tudo, mas não podia admiti-lo, por motivos óbvios. Levantou-se e ambos foram para o escritório de Enderby.

     Quando ficaram sozinhos, Baley disse:

     - Muito bem, Daneel. O que é que você pretende fazer?

     O robô observou:

     - Amigo Elias, desde ontem à noite você não parece o mesmo. Estou percebendo uma alteração em sua aura mental.

     Uma suspeita horrível surgiu na mente de Baley. Gritou:

     - Você é telepático?

     Nunca teria pensado nisto em qualquer outro momento de maior calma.

     - Não, nada disto, - respondeu R. Daneel.

     Baley se sentiu aliviado. Perguntou:

     - O que é que você pretende dizer quando se refere à aura mental?

     - Uso esta expressão para descrever uma sensação que você não partilha comigo.

     - Que sensação?

     - É meio difícil de explicar, Elias. Você deve estar lembrado que, basicamente, fui projetado para pesquisar a psicologia humana, para nosso pessoal da Cidade Espacial.

     - Sim, eu sei. Você foi adaptado para o trabalho policial por intermédio de um circuito adicional que o obriga a procurar justiça. - Baley não fez qualquer esforço para evitar o sarcasmo.

     - De fato, Elias. Entretanto, meus propósitos básicos ficaram inalterados. Fui construído para a cérebro-análise.

     - Para analisar ondas cerebrais?

     - Isto mesmo. A análise pode ser feita por medição simples, sem necessidade de contato direto de eletrodos, quando existe um aparelho receptor apropriado. Meu cérebro é um receptor. Vocês não costumam aplicar os mesmos princípios na Terra?

     Baley não sabia. Ignorou a pergunta e disse, com um certo cuidado:

     - Qual é o resultado de suas medições de ondas cerebrais?

     - Não posso ler os pensamentos, Elias. Consigo perceber as emoções e, sobretudo, posso analisar o temperamento, os impulsos e as atitudes de um homem. Por exemplo, tive a possibilidade de ver que o Comissário Enderby era incapaz de matar um homem em circunstâncias iguais às que existiam na hora do crime.

     - Então ele foi eliminado da lista dos suspeitos simplesmente porque você comunicou seus resultados.

     - Sim. Isto foi possível porque sou uma máquina especialmente sensível.

     Baley se lembrou de um detalhe. Disse:

     - Espere um minuto! O Comissário Enderby não sabia que estava sendo submetido à cérebro-análise, não é mesmo?

     - Não havia nenhuma necessidade de perturbá-lo.

     - Quero dizer, você simplesmente ficou parado, olhando para ele. Não havia nenhum equipamento à vista, nada de eletrodos, nada de agulhas e tiras de papel.

     - Claro que não. Sou uma unidade independente e auto-suficiente.

     Baley mordeu o lábio, contrariado. Desaparecia assim o último elemento inconsistente, a última possibilidade de atribuir o crime à Cidade Espacial. R. Daneel tinha afirmado que o Comissário fora cérebro-analisado, mas uma hora depois do acontecimento o próprio Comissário afirmava com a maior sinceridade que desconhecia o significado da definição. Estava fora de qualquer dúvida que homem nenhum poderia se submeter à experiência traumática de medições eletro-encefalográficas com eletrodos e tudo o mais, sob a suspeita de assassinato, sem ficar com uma lembrança duradoura do que poderia ser uma cérebroanálise. Agora tudo estava esclarecido. Realmente o Comissário tinha passado por uma cérebro-análise, sem percebê-la. R. Daneel estava dizendo a verdade e o Comissário também.

     - Então, - perguntou Baley com voz áspera, - qual é o resultado de minha cérebro-análise?

     - Você está perturbado.

     - Que descoberta formidável. É claro que estou perturbado.

     - Vou especificar: sua perturbação é provocada por um conflito de motivações internas. Por um lado, sua dedicação aos princípios de sua profissão manda que você investigue a fundo esta conspiração terrestre que provocou a perseguição de ontem à noite. Uma outra motivação, de igual força, está impelindo você na direção oposta. Tudo isto aparece com a maior clareza no campo elétrico de suas células cerebrais.

     - Minhas células cerebrais, uma pinóia, - exclamou Baley com força. - Escute, quero lhe explicar porque é inútil investigar a tal conspiração. Ela não tem nenhuma ligação com o crime. Pensei que pudesse ter, não posso deixar de admiti-lo. Ontem à noite pensei que estávamos a perigo. Mas o que aconteceu? Eles nos seguiram, conseguimos que perdessem nossos rastros, e pronto. Homens desesperados e bem organizados não agem desta forma. Meu próprio filho conseguiu encontrar nosso esconderijo sem maiores dificuldades. Telefonou ao departamento. Nem mesmo precisou se identificar. Os conspiradores, se são mesmo conspiradores, poderiam ter feito o mesmo, se tivessem realmente a intenção de nos prejudicar.

     - Você acha que eles não queriam nos prejudicar?

     - Claro que não. Se eles realmente quisessem um tumulto, poderiam tê-lo provocado no entreposto, mas se retiraram logo que viram um homem com um desintegrador. Aliás, um robô com um desintegrador, e eles deviam inclusive saber que você não ia dispará-lo, tão logo reconheceram você por um robô. Todos eles eram medievalistas. São loucos inofensivos. Você não podia sabê-lo, mas eu deveria ter reconhecido a situação, e teria conseguido, se toda esta história não tivesse me levado a encarar os fatos de uma maneira um pouco... melodramática. Sei muito bem que tipo de gente são estes medievalistas. São sonhadores, são pessoas fracas que fogem à realidade da vida refugiando-se num mundo ideal do passado, um mundo que jamais existiu. Se você conseguisse fazer a cérebro-análise de um movimento como você faz com as pessoas, você descobriria que os medievalistas são incapazes de assassinar quem quer que seja, como Julius Enderby é incapaz de matar.

     R. Daneel observou:

     - Não posso aceitar sua declaração como fundamentada.

     - Como assim?

     - Você chegou a estas conclusões muito de repente. Existem certas discrepâncias. Você marcou o encontro com o dr. Gerrigel muitas horas antes do jantar. Você não sabia nada sobre o saco de plástico que me serve para armazenar os alimentos e não podia, por conseguinte, suspeitar que eu fosse o assassino. Posso saber as verdadeiras razões para a convocação do dr. Gerrigel?

     - Eu já estava suspeitando de você.

     - Ontem à noite você falou no sono.

     Baley arregalou os olhos.

     - O que foi que eu disse?

     - Você só pronunciou o nome "Jessie", e o repetiu várias vezes. Acho que você estava se referindo à sua mulher.

     Baley relaxou os músculos. Disse:

     - Tive um pesadelo. Você sabe o que é um pesadelo?

     - Sei, sim, mas evidentemente meus conhecimentos não se baseiam em experiências pessoais. O dicionário define um pesadelo como um sonho desagradável ou penoso.

     - E você sabe o que é um sonho?

     - Só conheço a definição do dicionário. É uma ilusão de realidade que se manifesta durante a suspensão temporária do pensamento consciente, que vocês costumam chamar sono.

     - Está bem, posso aceitar esta definição. Uma ilusão. Às vezes as ilusões podem parecer muito reais. Sonhei que minha mulher estava em perigo. As pessoas costumam ter estes sonhos com uma certa freqüência. Chamei-a pelo nome. Isto também costuma acontecer. Pode acreditar.

     - Aceito com muito prazer. Isto porém me lembra mais um detalhe. Como foi que Jessie descobriu que sou um robô?

     Baley sentiu o suor brotar mais uma vez em sua testa.

     - Não vamos voltar a falar nisto, não é mesmo? O boato...

     - Amigo Elias, desculpe interromper, mas não existe boato de espécie alguma. Se realmente houvesse boato, a Cidade hoje estaria inquieta. Já conferi os relatórios que chegam de todas as partes da Cidade, e não há sinal de inquietação. Também não existem boatos. Isto nos leva de volta à pergunta inicial. Como foi que sua mulher descobriu?

     - Raios! O que é que você pretende insinuar? Será que você imagina que minha mulher faz parte de... de...

     - Exatamente, Elias.

     Baley entrelaçou com força os dedos das mãos.

     - Mas ela não é, e não desejo mais discutir este assunto.

     - Isto não é de seu feitio, Elias. Você me acusou duas vezes, porque pensou que era seu dever fazê-lo.

     - E você está querendo tirar sua desforra?

     - Não sei se compreendi bem o sentido desta sentença. Pode ter certeza que aprovei os motivos que o levaram a me acusar. Você tinha razões de sobra, mesmo que fossem  erradas. Poderiam ter sido certas. Temos indícios igualmente fortes que apontam para sua mulher.

     - Indícios que podem fazer crer que ela é uma assassina? Escute, seu imbecil, Jessie é incapaz de matar uma mosca! Seria incapaz de sair da Cidade! Não poderia... Escute, seu patife, se você fosse um homem de verdade, eu...

     - Eu disse só que temos indícios para afirmar que ela faz parte da conspiração.  Acredito que deveria ser interrogada.

     - Nunca. Pode apostar que nunca. Escute bem. Os medievalistas não pretendem nos matar. Eles não agem desta forma. Eles só querem que você saia da Cidade. Isto me parece bastante evidente. A mais, eles tentam fazê-lo com uma pressão psicológica. Tentam provocar dificuldades que podem ser desagradáveis para você e para mim, porque estou em sua companhia. Eles descobriram facilmente que Jessie é minha mulher e era natural que informassem Jessie que você é um robô.  Ela, como todas as outras criaturas humanas, não gosta de robôs. Obviamente, é contrária a qualquer envolvimento meu, especialmente se ele significa um perigo qualquer, e aposto que eles não deixaram de mencionar isto. O resultado foi que durante toda a noite ela me implorou para abandonar a investigação ou então afastar você da Cidade, de uma forma qualquer.

     - Aparentemente, - comentou R. Daneel, - você está dominado por um forte impulso de proteger sua mulher e por isso não quer que seja interrogada. Também me parece óbvio que você está tecendo toda esta argumentação sem realmente acreditar no que está dizendo.

     - O que é que você pensa que é? - rosnou Baley. - Você não é um investigador. Você é uma máquina de cérebro-análise parecida com os eletro-encefalógrafos que temos aqui no prédio. Você tem braços, pernas e uma cabeça, sabe falar, mas você é apenas uma máquina. Você não pode ser transformado num policial e num investigador só porque ligaram um circuito a mais em suas engrenagens, você me entende? Cale a boca e deixe-me pensar.

     O robô falou com muita calma:

     - Elias, acho que seria melhor se você falasse em voz mais baixa. Admito que não sou um investigador igual a você, mas mesmo assim gostaria de chamar sua atenção para um pequeno detalhe.

     - Não quero saber de nada.

     - Por favor, escute. Se eu estiver errado, você poderá me desmentir e não haverá mal nenhum nisto. É o seguinte. Ontem à noite você saiu do alojamento para conversar com Jessie pelo comunicador que se encontra no corredor. Sugeri que você mandasse seu filho. Você me disse que entre os Terrestres não existe o hábito de um pai mandar seu filho fazer alguma coisa, quando existe um perigo. Então, me diga: as mães não respeitam o mesmo hábito?

     - É claro que... - começou Baley e parou.

     - Você entende o que eu quero dizer, - continuou R. Daneel. - Em casos normais, se Jessie estivesse pensando que você estava em perigo e quisesse avisá-lo, ela arriscaria sua própria vida e não mandaria seu filho. O fato dela ter mandado Bentley só poderia significar que ela imaginava que Bentley estaria a salvo, enquanto ela não estaria. Se os membros da conspiração fossem pessoas que Jessie não conhece, isto não aconteceria, ou pelo menos ela não pensaria que pudesse acontecer. Por outro lado, se ela está tomando parte na conspiração, ela deve saber, entenda, Elias, ela deve saber que está sendo vigiada, que pode ser reconhecida, enquanto Bentley poderia passar despercebido.

     - Espere um minuto, - interferiu Baley, tomado pelo desespero. - É um raciocínio meio puxado, mas...

     Não foi necessário esperar. O sinal na escrivaninha estava piscando sem parar. R. Daneel esperou que Baley atendesse, mas o investigador ficou parado, com os olhos arregalados. O robô apertou o botão da ligação.

     - O que é?

     R. Sammy respondeu com sua pronúncia atrapalhada:

     - Uma senhora deseja conversar com Ligi. Expliquei que ele estava ocupado, mas ela insiste. Ela disse que se chama Jessie.

     - Deixe-a entrar, - falou R. Daneel, calmo. Seus olhos castanhos e desprovidos de emoção encontraram os olhos apavorados de Baley.

 

INFLUÊNCIA DE UM NOME

     Quando Jessie se aproximou correndo e o agarrou pelos ombros, encostando-se nele, Baley ficou parado, incapaz de qualquer movimento. Com os lábios rígidos, perguntou:

     - Bentley?

     Jessie observou o marido e sacudiu a cabeça, enquanto seus cabelos balançavam pela força do movimento.

     - Bentley está bem.

     - Então...

     Jessie começou a chorar convulsivamente. Suas palavras eram quase incompreensíveis por causa dos soluços:

     - Ligi, não agüento mais. Chega, não posso continuar assim, Ligi. Não consigo mais dormir, não posso comer. Preciso lhe dizer tudo, Ligi.

     - Não diga nada, - exclamou Baley, assustado. - Pelo amor de Deus, Jessie, não fale agora.

     - Preciso. Fiz uma coisa horrível. Você não pode nem imaginar. Ligi... - Voltou a soluçar.

     Baley insistiu:

     - Jessie, não estamos a sós.

     Jessie ergueu a cabeça e olhou em direção a R. Daneel sem reconhecê-lo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. R. Daneel murmurou suavemente:

     - Boa tarde, Jessie.

     Ela sobressaltou.

     - Quer dizer... que é o robô?

     Passou as costas das mãos sobre os olhos e se livrou do braço de Baley. Respirou profundamente. Logo teve um sorriso trêmulo. - É mesmo você?

     - Sim, Jessie.

     - Você não se importa que o chamem de robô?

     - Não, Jessie. Sou o que sou.

     - E eu não me importo que me chamem de tola, de idiota e... de subversiva! Eu também sou o que sou.

     - Jessie! - gemeu Baley.

     - Não adianta, Ligi, - ela disse. - Se o robô é seu parceiro, tanto faz. Não posso mais continuar deste jeito. Desde ontem, não sei mais o que fazer. Não me importo se tiver que ir para a cadeia. Não me importo se eles me mandarem para os níveis mais baixos e eu tiver que me alimentar com levedura crua e água. Nada importa mais... Você não vai deixar que isto aconteça, não é mesmo, Ligi? Não deixe que me peguem.   Eu... eu estou com medo.

     Baley apertou seu ombro e deixou que chorasse.

     - Ela não está bem, - disse olhando para R. Daneel. - Não podemos deixar que fique aqui. Que horas são?

     R. Daneel respondeu sem precisar consultar qualquer relógio:

     - Duas e quarenta e cinco.

     - O Comissário deve chegar a qualquer minuto. Escute, peça um carro de patrulha e vamos conversar na rodovia.

     Jessie levantou a cabeça:

     - Na rodovia? Oh, não, Ligi!

     Baley usou um tom bem suave para acalmá-la:

     - Vamos, Jessie, pare com estas superstições. Não podemos ir para a via expressa, você não está em condições. Seja boazinha, acalme-se, de outra forma não poderemos sequer atravessar a sala comum. Vou lhe dar um pouco de água.

     Ela enxugou o rosto com um lenço úmido e falou desanimada:

     - Olhe só, minha maquilagem.

     - Não se preocupe com isso, - respondeu Baley. - Daneel, já providenciou o carro?

     - Está à nossa espera.

     - Então, vamos, Jessie.

     - Um minuto. Só um minutinho, Ligi. Preciso dar um jeito em minha maquilagem.

     - Deixe como está.

     Ela se afastou.

     - Por favor, não posso mostrar meu rosto nestas condições. Só vou levar um segundo.

     O homem e o robô ficaram esperando. O homem estava nervoso, o robô impassível. Jessie procurou os apetrechos necessários em sua bolsa. (Baley uma vez tinha proclamado que a única coisa que tinha resistido a qualquer aperfeiçoamento mecânico desde a Idade Média, era a bolsa usada pelas mulheres. Mesmo a substituição de fechos metálicos por fechos magnéticos não tinha trazido qualquer benefício.) Jessie apanhou um pequeno espelho e um estojo de prata para cosméticos, presente de Baley. O estojo tinha várias aberturas e ela usou-as numa seqüência. Todos os jatos de cosmético, menos o último, eram invisíveis. Ela agiu com a segurança e a delicadeza de toque que parece ser uma das prerrogativas congênitas das mulheres, mesmo em momentos de grande tensão. Aplicou primeiro a base. Uma fina camada tirou todo o brilho e a asperidade da pele, envolvendo-a com uma tonalidade quente e dourada que Jessie sabia ser a mais parecida com sua tez natural e perfeita para seus olhos e seus cabelos. Um pouco de blush sobre a testa, o queixo e as maçãs do rosto, para realçar suas feições. Um pouco de sombra azul sobre as pálpebras. Finalmente um pouco de vermelho para os lábios. Foi este o único spray visível, uma leve névoa rosada que brilhou no ar, e que secou imediatamente ao contato dos lábios, deixando-os coloridos e lustrosos.

     - Pronto, - falou Jessie depois de ajeitar rapidamente os cabelos. Não parecia muito satisfeita. - Acho que não vou conseguir resultados melhores por enquanto.

     Os preparativos tinham levado apenas quinze segundos, mas a Baley pareciam uma eternidade.

     - Vamos - falou.

     Jessie mal teve tempo de enfiar o estojo na bolsa antes que ele a empurrasse em direção à porta. A rodovia estava envolvida num profundo silêncio.

     Baley falou:

     - Pronto, Jessie. Já pode falar.

     Jessie estava dando sinais de não poder mais manter a calma que se esforçava por mostrar desde o momento em que tinham saído do escritório do Comissário. Olhou para o marido e para R. Daneel, sem saber por onde começar.

     Baley insistiu:

     - Vamos, Jessie. Comece, por favor. Você cometeu algum crime? De verdade?

     - Um crime? - Jessie sacudiu a cabeça.

     - Controle-se, por favor. Nada de cenas histéricas, sim? Responda simplesmente  sim ou  não. Por acaso, você... - hesitou um pouco, - será que você matou alguém?

     A expressão de Jessie mostrou claramente sua indignação.

     - Escute aqui, Ligi Baley! O que é isto?

     - Sim ou não, Jessie?

     - Não, claro que não.

     Baley sentiu que os músculos contraídos de seu estômago se soltavam um pouco.

     - Você roubou alguma coisa? Falsificou os dados das rações? Você assaltou alguém? Você destruiu alguma coisa? Responda, Jessie.

     - Não fiz nada - pelo menos, não fiz nada de específico. Também não tive intenção de fazer qualquer uma destas coisas. - Olhou para trás: - Ligi, precisamos mesmo ficar aqui embaixo?

     - Vamos ficar aqui até terminarmos com isso. Comece pelo começo. O que era que você queria nos contar? - Baley lançou um olhar a R. Daneel, por cima da cabeça de sua mulher.

     Jessie começou em voz baixa, que se fez mais firme e mais clara enquanto fazia seu relato.

     - É este pessoal, estes medievalistas. Você sabe a quem estou me referindo, Ligi. Estão em todos os lugares, e nunca param de falar. Já era assim quando eu ainda estava trabalhando. Você se lembra de Elizabeth Thornbowe? Ela era uma medievalista. Sempre dizia que todas as nossas dificuldades eram provocadas pela Cidade, e como tudo era melhor antes do estabelecimento das Cidades. Sempre perguntava a ela como podia ter tanta certeza, especialmente depois que conheci você -você se lembra, nós conversávamos muito - e ela citava aqueles livrecos em rolos  que  todo mundo  conhece. Sabe, como "A vergonha das Cidades" escrito por aquele sujeito. Não me lembro do nome.

     Baley sugeriu:

     - Ogrinsky.

     - Sim, é este. Muitos outros rolos eram bem piores. Quando me casei com você, ela começou a ficar sarcástica. Costumava dizer: Aposto que agora você vai se transformar numa verdadeira mulher das Cidades, porque você se casou com um policial. Depois deixou de conversar comigo e eu finalmente larguei o emprego. Uma porção de coisas que ela dizia tinham o intuito de me chocar, e penso que ela falava só para parecer misteriosa. Sabe, ela era uma velha solteirona e nunca se casou. Depois morreu. Uma porção de medievalistas são simplesmente pessoas que não se adaptam de uma maneira qualquer. Você se lembra, Ligi, uma vez você falou que as pessoas muitas vezes confundem suas próprias falhas com falhas da sociedade em geral, e querem melhorar as Cidades porque não sabem como melhorar a si mesmas.

     Baley se lembrou e agora suas próprias palavras pareciam fúteis e superficiais. Recomendou:

     - Não se afaste do assunto, Jessie.

     - Bom, Lizzy sempre dizia que chegaria um dia em que as pessoas se uniriam. Dizia que a culpa era dos Espaciais, porque eles queriam que a Terra continuasse indefesa e decadente. "Decadente" era uma de suas palavras preferidas. Olhava para os cardápios que eu preparava para a semana seguinte, fungava e dizia: Decadente, decadente. Jane Myers costumava imitá-la e morríamos de rir. Ela dizia, quero dizer, Elizabeth dizia que algum dia íamos destruir as Cidades e voltar à terra, e que íamos enfrentar os Espaciais que estavam tentando nos obrigar a ficar para sempre nas Cidades, impingindo-nos seus robôs. Ela nunca usava o termo "robô", dizia: monstruosas máquinas desalmadas. Desculpe, Daneel.

     O robô respondeu:

     - Não entendo o que significa o termo, Jessie, mas de qualquer maneira, não se preocupe. Por favor, continue.

     Baley se remexeu, nervoso. Jessie era assim. Não existia emergência ou crise que pudesse levá-la a contar alguma coisa rapidamente. Só conseguia fazê-lo da maneira enrolada que lhe era peculiar.

     Disse:

     - Elizabeth sempre falava como se existissem montes de pessoas que pensavam da mesma maneira. Dizia: Durante a última reunião... e depois parava com uma expressão entre orgulhosa e apavorada, como a esperar que eu perguntasse alguma coisa. É claro, eu nunca fiz perguntas, mas foi porque não queria lhe dar a satisfação. Depois, quando me casei com você, Ligi, tudo isto acabou até que...

     Calou-se.

     - Continue, Jessie, - pediu Baley.

     - Você se lembra daquela discussão? A respeito de Jezabel?

     - O que isto tem a ver com o assunto? - Baley teve que fazer um esforço para se lembrar que aquele era o verdadeiro nome de Jessie, e não uma referência a uma outra mulher.

     Olhou para R. Daneel, com uma atitude automaticamente defensiva, e explicou:

     - O verdadeiro nome de Jessie é Jezabel. Ela não gosta deste nome e não o usa.

     R. Daneel assentiu com ar compenetrado e Baley pensou:

     - Ora, por que estou me preocupando com ele?

     - A  discussão  me  deixou  perturbada  durante muito tempo, Ligi, - continuou Jessie. - Falo sério. Acho que foi tolice minha, mas continuei a pensar e repensar no que você tinha me dito. Quero dizer, que Jezabel era apenas conservadora, que tinha lutado para manter os costumes de seus antepassados contra as novas teorias dos recém-chegados. Afinal, eu também era Jezabel, e sempre...

     Parou como a procurar uma expressão apropriada e Baley a socorreu:

     - Você sempre se identificou com ela?

     - Sim. - Logo sacudiu a cabeça e olhou para um outro lado. - Não, não completamente. Não ao pé da letra. Quero dizer, não do jeito que eu pensava que ela era.  Eu não era assim.

     - Eu sei, Jessie. Chega de tolice.

     - Mas eu pensava muito nela e a um certo ponto cheguei à conclusão de que a situação de agora era igual à de então. Quero dizer, nós, os Terrestres, tínhamos nossos hábitos e os Espaciais estavam trazendo uma porção de novidades, e procurando fortalecer os hábitos novos que nós mesmos tínhamos consagrado, e que talvez os medievalistas estavam certos. Pensei que talvez seria melhor se voltássemos aos hábitos antigos. Então, procurei Elizabeth.

     - Entendo. Continue.

     - No começo, ela me disse que não sabia a que eu estivesse me referindo e que, a mais, eu estava casada com um policial. Expliquei que isto não interferia em minhas opiniões e finalmente ela disse que falaria com alguém, depois de um mês, mais ou menos, ela me fez uma visita e disse que estava tudo em ordem, e eu me registrei e fui a uma reunião.

     Baley ficou a olhá-la com tristeza:

     - Você nunca me disse.

     A voz de Jessie tremeu:

     - Sinto muito, Ligi.

     - Isto não adianta nada, quero dizer, o fato de você agora estar arrependida. Quero saber tudo sobre estas reuniões. Em primeiro lugar, onde é que vocês se reuniam?

     Sentia-se afastado de tudo, com as emoções embotadas. Tinha tentado não acreditar, mas a realidade agora saltava aos olhos, era confirmada abertamente, admitida. Num certo sentido, era até um alívio.

     Ela disse:

     - Por aqui mesmo.

     - Aqui? Você quer dizer, neste mesmo lugar? O que é que você quer dizer, afinal?

     - Quero dizer, aqui, na rodovia. Foi por isso que não queria vir até aqui. Mas era um lugar ótimo para reuniões. Nós nos encontrávamos e...

     - Quantos eram?

     - Não sei  ao certo. Sessenta,  setenta  pessoas. Eram só reuniões de zona. Havia cadeiras dobráveis e refrescos e alguém sempre fazia um discurso, a maioria das vezes sobre como as coisas costumavam ser maravilhosas em tempos passados e como algum dia íamos destruir os monstros, quero dizer, os robôs e também os Espaciais. Os discursos eram meio chatos, para lhe dizer a verdade, porque rebatiam sempre a mesma tecla, mas a gente agüentava. Estávamos satisfeitos porque nos reuníamos e porque a gente conseguia se sentir importante. A gente fazia um monte de juramentos e tínhamos senhas secretas para nos cumprimentar em frente de outras pessoas.

     - Nunca  ninguém  interrompeu estas reuniões? Nunca passou um carro de patrulha ou um carro de bombeiros?

     - Não. Nunca.

     R. Daneel interferiu:

     - Você acha que isto é anormal, Elias?

     - Não sei, - respondeu Baley, pensativo.

     - Existem passagens secundárias que praticamente nunca são usadas. Por outro lado, é necessário saber exatamente onde se encontram, e isto requer grandes conhecimentos. Era só isto que vocês faziam, durante as reuniões, Jessie? Discursos e conspirações de brincadeira?

     - Mais ou menos. Às vezes, cantávamos. E havia refrescos. Não era nada de especial. Só sanduíches e sucos de frutas.

     - Neste caso, - ele perguntou, agressivo, - posso saber o que é que incomoda você?

     Jessie estremeceu.

     - Você está zangado.

     - Por favor, - falou Baley, controlando-se. - Responda à minha pergunta. Se tudo não passou de uma brincadeira inofensiva, por que você ficou em pânico durante estas últimas trinta e seis horas?

     - Porque fiquei com medo que eles o machucassem, Ligi. Pelo amor de Deus, por que agora você faz como quem não entende? Eu já expliquei tudo.

     - Não, você ainda não explicou coisa alguma. Você me falou a respeito de um pequeno clube de fofocas que você costumava freqüentar. Mas você não me disse se alguma vez eles fizeram uma demonstração pública. Ou se destruíram robôs? Ou incitaram ao tumulto? Ou mataram pessoas?

     - Nunca! Ligi, você sabe que eu nunca faria coisas assim! Não teria continuado a freqüentar as reuniões se eles me obrigassem a isto.

     - Mas por que então você continua repetindo que fez uma coisa horrível e está com medo de ser presa?

     - É porque... porque costumavam falar no dia em que iam fazer pressão sobre o governo. Nós deveríamos nos organizar, e a seguir teríamos greves enormes e todos iam parar de trabalhar. Deste jeito poderíamos forçar o governo a afastar todos os robôs e mandar que os Espaciais voltassem para seus mundos. Eu pensava que era só conversa, e depois começaram a ficar mais específicos. Quero dizer, a respeito de você e de Daneel. Começaram a dizer: Agora sim, vamos agir, e depois: Vamos dar uma demonstração, castigando a ambos, e vamos parar já com esta invasão de robôs. Elas falavam abertamente, no Pessoal mesmo, e não sabiam que estavam se referindo a você. Mas eu logo adivinhei.

     Parou, com um soluço. Baley amoleceu.

     - Agora chega, Jessie. Não aconteceu nada. Apenas conversa. Você pode ver que nada aconteceu.

     - Eu estava tão... tão assustada. E pensei: também estou metida nisto.   Fiquei apavorada que começassem a matar e a destruir e que matassem você e talvez também a Bentley, e eu seria, de uma certa forma, responsável por causa da minha participação e por isso deveria ir para a cadeia.

     Baley deixou que chorasse à vontade. Colocou um braço em volta de seus ombros, apertou os lábios e lançou um olhar a R. Daneel que o devolveu com a maior calma. Disse:

     - Jessie, agora quero que você me diga algumas coisas. Quem chefiava seu grupo?

     Jessie, mais calma, enxugava os olhos com um lenço.

     - O líder era um homem chamado Joseph Klemin que, na realidade, nunca teve muita importância. Tem apenas um metro e sessenta de altura e tenho a impressão que deve ser dominado pela sua mulher. Acho que é completamente inofensivo. Você não vai prendê-lo, Ligi, só porque eu lhe disse estas coisas?

     - Não estou para prender ninguém, por enquanto. Você sabe como ele recebia as instruções?

     - Não, não sei.

     - Alguma vez você viu elementos estranhos tomar parte na reunião? Você sabe o que eu quero dizer: personagens importantes do Quartel General Central?

     - Às vezes apareciam alguns sujeitos para fazer discursos. Acontecia só de vez em quando, talvez duas vezes por ano.

     - Você conhece seus nomes?

     - Não. Sempre eram apresentados como "um dos nossos" ou então "um amigo de Jackson Heights" ou qualquer outro lugar.

     - Entendi. Daneel!

     - Sim, Elias?

     - Descreva os homens que você identificou, quero ver se Jessie consegue reconhecê-los.

     R. Daneel relatou todos os detalhes. Jessie ouviu com uma expressão estupefata enquanto o robô especificava as características físicas de ambos os suspeitos e finalmente sacudiu a cabeça.

     - Não adianta, não adianta, - gritou. - Como é que posso me lembrar? Não consigo. Não posso...

     Parou de repente, surpresa. Perguntou:

     - Você disse que um deles era um produtor de leveduras?

     - Francis Clousarr, - repetiu R. Daneel, - é funcionário da Leveduras de Nova Iorque.

     - Sabe, uma vez um homem estava fazendo um discurso e eu estava sentada bem em frente, logo na primeira fileira, e de vez em quando sentia um cheiro de levedura crua. Você sabe o que eu quero dizer. Lembro-me disso porque naquele dia sentia meu estômago embrulhado, e aquele cheiro me enjoava. Finalmente me levantei e fui me sentar mais para trás e não podia explicar a ninguém por que fiz isto, você me entende. Fiquei muito sem jeito. Talvez seja este o homem que você mencionou. Sabe, as pessoas que trabalham com leveduras, acabam com as roupas impregnadas com aquele cheiro.

     Jessie franziu o nariz.

     - Você não lembra mesmo como ele era?

     - De jeito nenhum.

     - Certo. Escute, Jessie, vamos fazer o seguinte: Vou levá-la para a casa de sua mãe. Vou mandar Bentley ficar com você, e vocês não poderão sair da Secção. Ben não irá à escola e vou mandar as refeições para lá. Todos os corredores em volta ficarão sob vigilância.

     - E você? - perguntou Jessie voltando a chorar.

     - Não vou estar em perigo.

     - Até quando?

     - Não sei. Talvez apenas por um ou dois dias. - Baley também achou que sua promessa era inconsistente.

     Baley e R. Daneel voltaram mais uma vez para a rodovia. Estavam sozinhos e Baley tinha uma expressão preocupada.

     - Tenho a impressão, - disse, - que estamos enfrentando uma organização que se baseia em dois níveis. Em primeiro lugar, um nível inferior sem qualquer programa específico, cuja única função é suprir as massas para apoiar um eventual golpe. Em segundo lugar, uma elite limitada que se dedica à elaboração da estratégia do golpe. Precisamos individuar este grupo de elite. Podemos deixar de nos preocupar com os grupos maiores mencionados por Jessie.

     - Confere, comentou R. Daneel. - Por outro lado, será que podemos aceitar o relato de Jessie sem qualquer reserva?

     - Acho que podemos acreditar nas palavras de Jessie sem  qualquer ressalva, - afirmou Baley  em tom seco.

     - De fato, seus impulsos cerebrais não indicam nenhum hábito patológico. Não parecia estar mentindo, - falou R. Daneel.

     Baley observou o robô com ar indignado.

     - Claro que não, ora esta! Também, lembre-se que não será preciso mencionar o nome de Jessie em nossos relatórios. Entendeu?

     - Como quiser, Elias, - respondeu R. Daneel, calmo. - Entretanto, nossos relatórios não poderão ser completos.

     Baley disse:

     - Não faz mal, ninguém ficará prejudicado. Ela nos deu todas as informações que possuía e se o nome de Jessie aparecesse num relatório, seria logo fichado na polícia. Não quero que isto aconteça.

     - Compreendo. Então vamos omiti-lo, à condição que tenhamos certeza que as informações são completas.

     - Pode ficar sossegado, Jessie contou tudo o que sabia, eu garanto.

     - Pode me explicar então por que o nome Jezabel, apenas o som deste nome, pode levá-la a largar uma atitude e assumir outra, completamente diferente? Não compreendo as motivações.

     Estavam rodando em baixa velocidade pela rodovia cheia de curvas. Baley falou:

     - É meio difícil explicar. Jezabel é um nome raro. Uma vez pertenceu a uma mulher de má fama. Minha mulher sentia-se muito orgulhosa por isso. Isto lhe conferia uma aura gratuita de perversidade e a compensava por uma vida decente e monótona.

     - Por que uma mulher decente chega a desejar ser perversa?

     Baley suprimiu um sorriso.

     - As mulheres são apenas mulheres, Daneel. De qualquer forma, um dia eu cometi uma asneira. Estava irritado, e aproveitei para dizer a Jessie que a Jezabel histórica não era uma mulher excepcionalmente perversa, aliás, que era uma boa esposa. Nunca parei de me arrepender por este impulso tolo. Por conseguinte, Jessie sentiu-se muito infeliz. Eu tinha destruído algo que não era possível compensar.  O que ela fez a seguir - continuou Baley, - deve ter sido uma maneira de tirar uma desforra. Imagino que ela estava com vontade de me castigar, dedicando-se a uma atividade que eu não aprovaria. E ainda não estou afirmando que foi um desejo consciente.

     - Você acha que um desejo pode não ser consciente? Esta não é uma contradição?

     Baley observou R. Daneel e viu que seria inútil tentar explicar a um robô o que era a mente inconsciente. Disse:

     - A Bíblia também exerce grande influência sobre as emoções e os pensamentos humanos.

     - O que é a Bíblia?

     Baley ficou surpreso durante um instante, e depois ficou surpreso por ter ficado surpreso. Sabia que os Espaciais tinham uma filosofia pessoal totalmente mecanística e R. Daneel só podia possuir conhecimentos transmitidos pelos Espaciais. Explicou:

     - A Bíblia é o livro sagrado de mais ou menos a metade de todos os povos da Terra.

     - Não entendi o sentido do adjetivo.

     - Significa que merece muito respeito. Várias partes deste livro, interpretadas de maneira correta, contém um código de comportamento considerado, por muitas pessoas, o mais apto para conseguir a felicidade suprema para toda a humanidade.

     R. Daneel refletiu um pouco e depois perguntou:

     - Este código está incorporado em suas leis?

     - Receio que não. O código não pode ser imposto com meios legais. Deve ser obedecido voluntariamente, e todo indivíduo deve obedecer por sua espontânea vontade. Num certo sentido, este código é muito mais importante que qualquer outra lei.

     - Mais importante que a lei? Esta não é uma outra contradição?

     Baley sorriu, resignado.

     - Quer que eu cite um trecho da Bíblia? Gostaria de ouvir?

     - Sim, por favor.

     Baley diminuiu a velocidade, parou e durante alguns segundos fechou os olhos, tentando se lembrar. Teria preferido usar a linguagem sonora da Bíblia Medieval, mas aquela linguagem antiquada não poderia ser compreendida por R. Daneel. Começou então, de maneira informal, a pronunciar as palavras da Revisão Moderna, como contando uma estória da época atual e não de um passado que já era nebuloso:

     - Jesus foi até o monte das Oliveiras e quando amanheceu voltou ao templo. Todas as pessoas se aproximaram dele, e então ele se sentou e começou a pregar. Os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher apanhada enquanto cometia adultério, e quando a mulher ficou bem em sua frente, disseram:

     - Mestre esta mulher foi apanhada em adultério, foi apanhada em flagrante. A lei de Moisés ordena que este crime seja punido com o apedrejamento. Qual é sua opinião? - Falaram assim porque pensavam que poderiam conseguir algum motivo para acusá-lo.

     Jesus, porém se abaixou e começou a escrever no chão, com um dedo, como se não tivesse ouvido. Quando insistiram, endireitou-se e falou:

     - Aquele entre vocês que nunca pecou pode arremessar a primeira pedra. - Voltou a se encurvar para escrever obre o chão. Aqueles que tinham ouvido suas palavras, sentindo um peso na consciência, se afastaram aos poucos, a começar pelo mais velho. Jesus ficou sozinho com a mulher. Quando Jesus se levantou e viu que só tinha sobrado a mulher, perguntou:

     - Mulher, onde estão seus acusadores? Ninguém a condenou?

     Ela respondeu:

     - Ninguém, Senhor.

     Então Jesus disse:

     - Eu também não a condeno. Vá, e não volte a pecar.

     R. Daneel ouviu com muita atenção e depois perguntou:

     - O que é adultério?

     - Não tem importância. Naqueles tempos era um crime, punido com o apedrejamento. Quer dizer, arremessavam pedras contra o culpado até que morresse.

     - E aquela mulher era culpada?

     - Sim.

     - Então por que não foi apedrejada?

     - Os acusadores acharam que não poderiam puni-la depois de ouvir as palavras de Jesus. Esta estória serve para demonstrar que existe algo muito superior às leis que foram gravadas em seu cérebro. Existe um impulso humano chamado misericórdia e uma ação humana chamada perdão.

     - Conheço estes termos, Elias.

     - Eu sei, - murmurou Baley. - Eu sei.

     Ligou o motor e procedeu em alta velocidade. Sentiu-se comprimido contra o encosto do assento.

     - Para onde vamos? - perguntou R. Daneel.

     - Para a Secção das Leveduras, - explicou Baley. - Vamos ver se conseguimos extrair a verdade de Francis Clousarr, o conspirador.

     - Você tem um método específico, Elias?

     - Não, eu não tenho método nenhum, Daneel. Mas você tem, e é um método simples.

     O carro de patrulha continuou em alta velocidade.

 

PRISÃO DE UM CONSPIRADOR

     Baley começou a farejar o aroma da Vila das Leveduras enquanto ele se fazia sempre mais forte e penetrante. Pessoalmente, não achava que o cheiro era desagradável, como muitas outras pessoas. Por exemplo, Jessie. Achava-o até agradável. Todas as vezes que sentia o cheiro de levedura crua, surgiam automaticamente recordações de um passado que já estava afastado de trinta anos. Voltava a ser um garoto de dez anos, visitando seu tio Boris, produtor de leveduras. Tio Boris sempre tinha uma pequena reserva de guloseimas feitas com levedura: biscoitinhos, bombons de chocolate recheados de líquidos doces, confeitos em forma de gato ou de cachorro. Apesar de sua pouca idade, já sabia que tio Boris não deveria ter todas aquelas guloseimas e não poderia distribuí-las. Costumava comê-las em silêncio, sentado num cantinho e dando as costas ao resto do aposento. Comia depressa, porque tinha medo que alguém o apanhasse comendo. Por isso, aquelas guloseimas pareciam ainda mais deliciosas.

     Pobre tio Boris. Teve um acidente e morreu. Ninguém explicou quais eram as exatas circunstâncias da morte e Baley ficou a chorar amargamente, porque pensava que tio Boris tivesse morrido preso por ter roubado levedura na usina. Esperava a qualquer momento ser também preso e executado. Só depois de muitos anos, examinando cuidadosamente os arquivos da polícia, Baley descobriu a verdade. Tio Boris tinha falecido caindo debaixo das lagartas de um meio de transporte. O mito romântico terminou numa decepção. Mesmo assim, o mito surgia por instantes, todas as vezes que sentia um leve cheiro de levedura crua. Na Cidade de Nova Iorque não existia secção nenhuma oficialmente conhecida como Vila das Leveduras. Ela não resultava em nenhum mapa oficial. A região que o povinho chamava Vila das Leveduras era, para a agência dos correios, o conjunto das secções de Newark, de New Brunswick e de Trenton. Compreendia uma larga fatia do antigo estado medieval de Nova Jersey, com um certo número de áreas residenciais, mas sobretudo com uma grande quantidade de usinas onde cresciam e se multiplicavam milhares de variedades de leveduras.

     Uma quinta parte da população da Cidade trabalhava na produção de leveduras. Uma outra quinta parte trabalhava nas indústrias subsidiárias. A começar pelas enormes quantidades de madeira e de celulose que chegavam à Cidade vindo das matas fechadas dos montes Allegheny, e passando pelos tanques de ácido que, pela hidrólise, transformavam este material em glicose, e calculando ainda as vastas cargas de rochas nitradas e fosfatadas que se constituíam no mais importante dos aditivos, junto a jarras de matérias orgânicas fornecidas pelos laboratórios químicos - tudo isto produzia só leveduras e sempre mais leveduras.

     Sem leveduras, seis dos oito bilhões de pessoas que povoavam a Terra, morreriam de inanição. Baley se arrepiou pensando nesta possibilidade. Ela sempre existia, mas há três dias ela não teria provocado em Baley qualquer arrepio, mesmo se tivesse se lembrado do assunto.

     Saíram da rodovia pelo acesso do subúrbio de Newark. As avenidas quase vazias, ladeadas por quadras de construções monótonas, que eram usinas, não ofereciam qualquer motivo para diminuir a velocidade.

     - Que horas são, Daneel? - perguntou Baley.

     - Quatro e cinco minutos.

     - Neste caso, vamos ainda encontrá-lo no trabalho, se é que ele é da turma diurna.

     Baley estacionou o carro e bloqueou os controles.

     - Tudo isto representa as Leveduras de Nova Iorque? - perguntou o robô.

     - Não, é só uma parte, - respondeu Baley.

     Entraram por um corredor ladeado de escritórios de ambos os lados. Uma recepcionista cumprimentou-os com um largo sorriso.

     - Posso ser de alguma utilidade? Quem procuram?

     Baley mostrou sua carteira.

     - Polícia. Quero saber se um certo Francis Clousarr trabalha aqui.

     A moça ficou assustada.

     - Posso ver.

     Ligou o comunicador no canal marcado "Departamento do pessoal". Seus lábios se mexeram sem emitir qualquer som. Baley já conhecia os fones de garganta que traduziam em palavras as menores contrações da laringe. Falou:

     - Use a voz, por favor. Desejo ouvi-la.

     As palavras surgiram de sua boca, mas ela só terminou a sentença:

     - ...e ele alega ser um policial, senhor.

     Um homem alto e bem trajado surgiu de uma porta. Usava bigodes e tinha cabelos ralos. Sorriu e anunciou:

     - Sou Prescott, do departamento do pessoal. Qual é o problema?

     Baley o examinou com um olhar tão frio que o sorriso do homem sumiu.

     - Não desejo perturbar os operários, - explicou Prescott. - Eles não gostam muito da polícia.

     - Que lástima, não é? - comentou Baley. - Clousarr se encontra aqui?

     - Sim.

     - Então, arranje-me uma vareta. Se Clousarr desaparecer, vou responsabilizá-lo por isso.

     O homem não estava mais sorrindo. Disse:

     - Vou lhe trazer a vareta.

     A vareta direcional foi ajustada para o Departamento CG, secção 2. Baley não sabia o significado da sigla na terminologia da usina, mas não era necessário. A vareta era um objeto insignificante que podia ficar oculto na palma da mão. Uma das extremidades começava a aquecer quando apontava na direção certa e esfriava imediatamente quando apontava na direção errada. O calor aumentava com a aproximação do alvo. Esta vareta era de escassa utilidade para uma pessoa que não tivesse prática suficiente, mas poucos moradores da Cidade não tinham prática. Aprendiam a usá-la na escola, onde a brincadeira mais popular era andar pelos corredores, empunhando varetas de brinquedo.

     Baley sabia como encontrar o caminho mesmo nas construções mais maciças e com a vareta na mão sempre conseguia individuar o trajeto mais curto, como se guardasse um mapa na cabeça. Dez minutos mais tarde, quando chegou a uma grande sala iluminada, a ponta da vareta estava quase quente. Baley perguntou ao operário que se encontrava mais próximo à porta:

     - Francis Clousarr está aqui?

     O operário acenou com a cabeça. Baley se encaminhou na direção indicada. O cheiro da levedura era forte e penetrante, apesar dos aspiradores que funcionavam em continuação, fazendo um zunido característico. Na outra extremidade da sala um homem se levantou e tirou seu avental. Não era muito alto e seu rosto, apesar da pouca idade, era profundamente marcado pelas rugas. Os cabelos estavam começando a ficar grisalhos. Enxugou as mãos muito grandes numa toalha de celtex.

     - Sou Francis Clousarr, - anunciou.

     Baley lançou um olhar a R. Daneel e o robô assentiu.

     - Certo, - respondeu Baley.  - Onde é que podemos conversar?

     - Em qualquer lugar, - respondeu Clousarr, vagarosamente. - Só que meu turno acabou. Que tal você voltar amanhã?

     - Amanhã está muito longe. Vamos conversar agora. - Baley abriu a carteira mostrando-a   ao homem.

     As mãos de Clousarr não interromperam os movimentos. Continuou a enxugá-las e observou:

     - Não sei como as coisas funcionam no departamento de Polícia, mas aqui temos um horário muito apertado para o jantar. O meu é entre cinco horas e cinco e quarenta e cinco. Se eu me atrasar, adeus jantar.

     - Não se preocupe, - disse Baley. - Vou dar um jeito para que lhe tragam seu jantar.

     - Vejam só, - falou Clousarr. - Igualzinho aos aristocratas ou aos investigadores da classe C-5. O que mais você poderá me arranjar? Um banho quente? Particular?

     - Basta que responda às perguntas, Clousarr, - disse Baley. - Pode guardar as piadinhas para seu encontro com a namorada. Onde é que podemos conversar?

     - Que tal, na sala das balanças? Para mim tanto faz. Não tenho nada a dizer.

     Baley levou Clousarr até a sala das balanças. Era uma sala quadrada, de um branco anti-séptico, com ar condicionado independente (e mais eficiente). Ao longo das paredes estavam as delicadas balanças eletrônicas, enfileiradas em cubículos de vidro e que podiam ser manipuladas unicamente através de campos de força. Baley já tinha visto modelos mais simples durante seus estudos. Reconheceu um modelo capaz de pesar um bilhão de átomos.

     Clousarr explicou:

     - Acredito que ninguém vai entrar aqui durante algum tempo.

     Baley grunhiu seu assenso, virou-se para R. Daneel e pediu:

     - Você não se importa de sair e providenciar uma refeição? Gostaria também que você ficasse do lado de fora, esperando que a entreguem.

     Quando R. Daneel saiu, perguntou a Clousarr:

     - Você é um químico?

     - Se você não se importa, sou um zimologista.

     - Qual é a diferença? - Clousarr tomou um ar de superioridade. - Um químico é apenas um misturador de sopas, um operador de fedentinas. Um zimologista é um homem que cuida da vida de alguns bilhões de pessoas. Sou um especialista de cultura de leveduras.

     - Entendi.

     Clousarr, porém, continuou:

     - Este laboratório alimenta Nova Iorque. Não existe um dia e nem mesmo uma hora qualquer em que não tenhamos culturas de todos os tipos de leveduras produzidas pela companhia, amadurecendo em nossos tanques. Controlamos tudo continuamente, apurando os fatores alimentares. Queremos ter certeza absoluta que o desenvolvimento procede de maneira correta. Interferimos também com a genética para conseguir espécies novas que depois são analisadas, e remoldadas para produzir espécies ainda mais apuradas.

     “Quando, há alguns anos, os nova-iorquinos conseguiram comer morangos fora da estação, aqueles morangos não eram morangos de verdade, meu amigo. Eram uma cultura de leveduras especiais com alto conteúdo de açúcares, com cor natural e só uma pitadinha de flavorizante. A cultura se originou aqui, nesta sala”.

     “Há vinte anos, Saccharomyces olei Benedictae era simplesmente uma levedura inferior com um gosto horrível de sebo e sem nenhuma utilidade. Hoje, ainda tem gosto de sebo, mas seus componentes gordurosos foram aumentados de 15 para 87 por cento. Se você hoje usar a via expressa, lembre-se que está sendo lubrificada com S. O. Benedictae, Variedade AG-7. Também foi desenvolvida nesta sala. Por isso, não diga que sou um químico. Diga que sou um zimologista”.

     Baley, contra sua própria vontade, ficou impressionado pelo orgulho do outro. Perguntou de repente:

     - Onde você estava ontem à noite entre as seis e as oito?

     Clousarr encolheu os ombros.

     - Estava passeando. Gosto de caminhar um pouco depois do jantar.

     - Você foi ver um amigo? Ou foi ao sub-etérico?

     - Não. Só fiquei passeando.

     Baley apertou os lábios. O espetáculo sub-etérico poderia ser confirmado por uma marca na plaqueta de rações. Uma visita a um amigo implicava o envolvimento de um homem ou de uma mulher, e mais perguntas.

     - Quer dizer que ninguém viu você?

     - É possível que  alguém tenha me visto, mas ignoro quem. Não reparei em ninguém.

     - E na noite anterior?

     - Aconteceu a mesma coisa.

     - Isto significa que você não pode me oferecer um álibi para estas duas noites?

     - Escute, se eu tivesse intenção de cometer um crime, teria providenciado um.    Por que deveria ter um álibi?

     Baley não respondeu e consultou seu caderninho.

     - Consta que você foi julgado uma vez por ter instigado um tumulto.

     - Certo. Uma daquelas coisas, um R, me empurrou e eu lhe passei uma rasteira. Você acha que isto equivale incitar um tumulto?

     - O juiz achou que sim. Você foi condenado e teve que pagar uma multa.

     - Pois bem, já paguei a multa. Ou você quer me multar mais uma vez?

     - Anteontem à noite quase houve um tumulto em frente a um entreposto no Bronx. Você foi visto entre os manifestantes.

     - Quem me viu?

     Baley continuou:

     - Aconteceu no horário de sua refeição. Anteontem você jantou aqui?

     Clousarr hesitou, depois sacudiu a cabeça.

     - Meu estômago não estava em ordem. Às vezes as leveduras podem fazer este efeito, mesmo quando a gente já está acostumado.

     - Ontem à noite quase aconteceu um tumulto em Williamsburg e você foi identificado lá também.

     - Por quem?

     - Você nega sua presença em ambas as ocasiões?

     - Você não me forneceu detalhes suficientes para eu poder negar qualquer coisa. Onde aconteceram estas coisas e quem disse que me viu?

     Baley encarou o zimologista com um olhar firme.

     - Acho que você sabe perfeitamente a que estou me referindo. Penso que você é um personagem importante numa organização medievalista clandestina.

     - Não posso impedi-lo de pensar, investigador, mas seus pensamentos não servem como provas. Você deve estar a par disto. - Clousarr sorriu irônico.

     - Talvez - disse Baley, impassível. - Vou poder extrair um pouco de verdade agora mesmo.

     Aproximou-se da porta. Depois de abri-la falou com R. Daneel que estava parado do lado de fora:

     - O jantar de Clousarr já chegou?

     - Está chegando, Elias.

     - Quando chegar, traga-o para cá, por favor.

     Logo depois R. Daneel apareceu com uma bandeja metálica dividida em secções.

     - Coloque-a em frente a Clousarr, Daneel, - disse Baley.

     Sentou-se numa cadeira perto das balanças e cruzou as pernas. Observou que Clousarr ficava tenso e tentava se afastar enquanto R. Daneel colocava a bandeja sobre uma cadeira ao lado do zimologista. Disse:

     - Clousarr, quero lhe apresentar meu colega, Daneel Olivaw.

     Daneel estendeu a mão e falou:

     - Muito prazer, Francis.

     Clousarr não disse nada e não fez nenhum gesto para apanhar a mão estendida. Daneel manteve a mesma posição e Clousarr começou a enrubescer. Baley murmurou:

     - Tenho a impressão que você está sendo muito grosseiro, Clousarr. Será que você é orgulhoso demais para apertar a mão de um policial?

     Clousarr falou entredentes:

     - Se você não se importar, estou com fome. - Tirou do bolso uma faca dobrável com garfo anexo e se sentou.

     Baley insistiu:

     - Daneel, parece que nosso amigo ficou ofendido por causa de sua atitude fria. Você não está zangado, Daneel?

     - Não, Elias, não estou zangado, - respondeu R. Daneel e deu um passo para frente.

     Clousarr largou o garfo.

     - O que é isto? O que está acontecendo?

     R. Daneel, muito tranqüilo, estendeu um braço. Clousarr atingiu o braço de R. Daneel com um violento soco, afastando-o para um lado.

     - O diabo que o carregue, não me toque.

     Afastou-se com um pulo, esbarrando na cadeira. A bandeja caiu ao chão espalhando a comida. Com uma expressão dura, Baley acenou para R. Daneel que continuou a avançar, perseguindo o zimologista enquanto este se esquivava. Baley colocou-se em frente à porta. Clousarr berrou:

     - Mantenha aquela coisa longe de mim.

     - Este não é jeito de falar, - respondeu Baley com indiferença. - Aquele homem é o meu parceiro.

     - Você quer dizer que seu parceiro é um maldito robô, - se esganiçou Clousarr.

     - Pode se afastar agora, Daneel, - ordenou Baley.

     R. Daneel deixou de perseguir o zimologista e se colocou perto da porta, logo atrás de Baley. Clousarr também parou, ofegando e com os punhos cerrados. Baley falou:

     - Muito bem, espertalhão. Por que você pensa que Daneel é um robô?

     - Qualquer pessoa pode ver isto!

     - Vamos deixar que um juiz decida se isto é realmente como você afirma. Por enquanto, Clousarr, queremos ver você em nosso Quartel General. Gostaríamos que você explicasse de que forma você percebeu que Daneel é um robô, e mais algumas coisinhas. Aliás, muitas outras coisinhas. Daneel, saia e comunique-se com o Comissário. Já deve estar em casa. Diga-lhe para voltar ao Departamento. Explique que vamos lhe levar um sujeito que está muito ansioso para ser interrogado.

     R. Daneel saiu.

     Baley perguntou:

     - Como é que você pode ser assim, Clousarr?

     - Quero um advogado.

     - Vamos chamar um advogado para assisti-lo. Até lá, quer me explicar quais são as motivações de vocês, medievalistas?

     Clousarr ficou calado.

     Baley insistiu:

     - Por Josafá, homem, sabemos tudo o que é preciso sobre você e sua organização. Não estou blefando. Só estou perguntando por uma questão de curiosidade pessoal: o que é que vocês medievalistas querem?

     - Voltar para os campos, - disse Clousarr com a voz embargada. - Não é uma coisa muito complicada, não é?

     - Vamos  dizer, que parece simples, - disse Baley. - Mas não pode ser feita de maneira simples. Quer me explicar como os campos poderiam sustentar oito bilhões de pessoas?

     - Eu não disse que isto pode ser feito de um dia para o outro. Nem dentro de um ano ou em um século, não é mesmo? As coisas devem acontecer gradualmente, seu investigador. Não importa quanto tempo leve, o que importa é começar a sair das cavernas em que estamos enfurnados. O importante é voltar a sair para os campos, debaixo do céu aberto.

     - Diga-me, você alguma vez já se aventurou ao ar livre?

     Clousarr fez uma careta.

     - Está bem, eu sei que também sou incapaz. Mas as crianças não são incapazes, ainda não são traumatizadas. A todo instante nascem novos bebês. Vamos fazê-los sair, pelo amor de Deus. Vamos dar-lhes espaço, ar puro e a luz do sol. Se for preciso, vamos gradualmente reduzir nossa população.

     - Em outras palavras, - disse Baley, - vamos voltar para trás, para reencontrar um passado impossível. - Baley não sabia por que estava discutindo, a não ser por causa daquela febre estranha que estava fervendo em suas veias. - Vamos voltar à semente, ao ovo, ao útero! Por que não progredir? Por que diminuir a população? Poderíamos usá-la para exportação. Vamos voltar à terra, mas à terra de outros planetas! Vamos colonizar.

     Clousarr soltou uma gargalhada estridente.

     - Pois sim! E vamos formar mais Mundos Externos? E mais Espaciais?

     - Isto não vai mais acontecer. Os Mundos Externos foram estabelecidos por Terrestres que vinham de um planeta que ainda não tinha as Cidades, por Terrestres que eram individualistas e materialistas. Estas características foram levadas até o extremo. Agora já podemos colonizar tendo como base uma sociedade que desenvolveu a cooperação. Agora o ambiente e a tradição podem colaborar para produzir uma nova sociedade, diferente da terrestre e da outra, dos Mundos Externos. Algo novo e bem melhor.

     Sabia que estava parafraseando o dr. Fastolfe, mas as palavras fluíam como se ele tivesse desenvolvido estas teorias durante anos.

     Clousarr exclamou:

     - Tolices! Para que colonizar mundos desertos, se temos um mundo inteiro a nosso dispor? Seria uma loucura! Quem faria isto?

     - Muita gente, e ninguém seria um louco. Poderíamos nos valer do auxílio de robôs.

     - Não! - afirmou Clousarr com força. - Nunca! Nada de robôs!

     - E por que não, pelo amor de Deus? Eu também não gosto deles, mas não vou me suicidar só por causa de um preconceito. Afinal, por que estamos tão assustados com robôs? Quer saber o que eu penso? É porque provocam em nós um complexo de inferioridade. Todos nos sentimos inferiores aos Espaciais e é por isso que os odiamos. Precisamos nos sentir superiores de uma maneira qualquer, num lugar qualquer, para compensar tudo isto e ficamos irracionais só porque não conseguimos pelo menos nos sentir superiores aos robôs. Eles parecem ser melhores que nós, mas não são. Aí está toda a ironia da história. - Enquanto falava, Baley sentia o sangue começar a esquentar. - Olhe para este Daneel que está me acompanhando há dois dias. Ele é mais alto, mais forte e mais bonito que eu. Ele parece até um Espacial. Tem uma memória melhor e conhece mais fatos. Não precisa comer ou dormir. Nunca cai vítima de uma doença, do pânico, do amor ou de uma sensação de culpa.

     “Mas ele é uma máquina. Posso fazer com ele o que eu quiser, da mesma maneira que posso fazer qualquer coisa com aquela micro-balança ali. Se eu chutar a micro-balança, ela não vai me devolver um chute. Daneel também não reagiria. Posso até mandar que ele se destrua com um desintegrador, e ele vai fazê-lo. Nunca poderemos construir um robô que fique à altura de um ser humano em qualquer coisa que seja realmente importante, e obviamente não poderemos construir um robô melhor. Não podemos criar um robô que entenda a beleza, ou que compreenda o que é a ética ou que seja religioso. Não existe maneira nenhuma de elevar um cérebro positrônico um centímetro acima do mais perfeito materialismo”.

     “Não podemos, você entende, não podemos de jeito nenhum, enquanto não compreendermos o que é que faz funcionar nosso próprio cérebro. Ou enquanto existirem coisas que não podem ser medidas pela ciência. O que é a beleza, a bondade, a arte, o amor ou Deus? Ficamos eternamente à beira do que não pode ser conhecido, tentando entender ou que não pode ser compreendido. É isto que nos faz ser homens”.

     “O cérebro de um robô deve ser uma coisa finita, ou não poderia ser construído. Deve ser calculado até a mais ínfima fração de milímetro, para poder ser finito. Raios, por que você está assustado? Um robô pode ter a aparência de Daneel, pode até parecer um deus, e ao mesmo tempo não ser mais humano que um pedaço de madeira qualquer. Será que você não consegue entender?”

     Clousarr tinha tentado repetidamente interromper sem conseguir encontrar uma brecha na torrente de palavras de Baley. Quando Baley finalmente parou para tomar fôlego e porque estava exausto, Clousarr comentou em voz baixa:

     - Vejam só, um tira que virou filósofo. Quem poderia imaginar?

     R. Daneel voltou a entrar. Baley ficou a observá-lo com o cenho franzido, em parte porque sua fúria ainda não tinha se acalmado, e em parte porque encontrou um novo motivo para se chatear. Perguntou:

     - Por que demorou tanto?

     R. Daneel falou:

     - Tive uma certa dificuldade para me comunicar com o Comissário Enderby, Elias. Finalmente descobri que ele ainda se encontrava em seu escritório.

     Baley olhou para seu relógio.

     - A estas horas? Você conhece o motivo?

     - Parece que há uma certa confusão por aquelas bandas. Descobriram um cadáver no Departamento.

     - O que? Pelo amor de Deus, quem era?

     - Era o garoto de recados, R. Sammy.

     Baley quase engasgou. Encarou o robô com os olhos esbugalhados e exclamou indignado:

     - Pensei que você disse que encontraram um cadáver.

     R. Daneel emendou a sentença com a maior tranqüilidade:

     - Se você prefere assim, encontraram um robô com o cérebro totalmente desativado.

     Clousarr soltou uma gargalhada súbita e Baley se virou para o seu lado, dizendo com a voz rouca:

     - Quieto, você! Não quero ouvir uma palavra, entendeu? - Com um gesto decidido, abriu o coldre do desintegrador. Clousarr parou de gargalhar.

     Baley falou:

     - Não entendo por que deve haver tanta confusão. R. Sammy provavelmente queimou um fusível. E daí?

     - O Comissário Enderby pareceu-me muito evasivo Elias. Ele não disse claramente, mas eu tive a impressão de que ele acredita que R. Sammy foi propositalmente desativado.

     Enquanto Baley começava a refletir a respeito, R. Daneel continuou:

     - Ou se você prefere assim, que ele foi assassinado.

 

À PROCURA DE UM MOTIVO

     Baley voltou a fechar o coldre, mas continuou a segurar o cabo da arma. Disse:

     - Caminhe em nossa frente, Clousarr. Vamos para a saída B da rua 17.

     Clousarr protestou:

     - Ainda não comi.

     - Que remédio, - retrucou Baley, impaciente. - Olhe lá no chão, sua comida está ali.

     - Pois eu tenho direito de comer.

     - Vai comer no xadrez, e se não quiser, vai ficar sem jantar. Não vai morrer de inanição. Ande.

     Percorreram em silêncio o labirinto da Leveduras Nova Iorque. Clousarr ia na frente, Baley vinha atrás e R. Daneel formava a retaguarda. Baley e R. Daneel explicaram à recepcionista que já estavam de saída. Clousarr conseguiu uma breve licença e se lembrou de mandar alguém limpar o chão da sala de balanças. Quando finalmente chegaram perto do carro de patrulha, Clousarr falou:

     - Um minutinho, por favor.

     Parou, virou-se para o lado de R. Daneel e antes que Baley pudesse fazer qualquer gesto para impedi-lo, deu um passo para frente e bateu a mão espalmada no rosto do robô, com toda a força.

     - Você está louco, - gritou Baley,  agarrando Clousarr pelo braço.

     Clousarr não fez nenhuma tentativa para livrar o braço.

     - Está tudo bem. Já vou. Só queria me certificar pessoalmente disto, - falou sorrindo.

     R. Daneel tinha se esquivado, sem porém conseguir evitar completamente o impacto da mão, e estava observando tranqüilamente Clousarr. Em sua face não aparecia nenhuma marca vermelha que indicasse que tinha levado um tapa. Disse:

     - Francis, você fez uma coisa perigosa. Se eu não tivesse me esquivado para trás, você poderia ficar com sua mão muito machucada. Mesmo assim, sua mão deve estar doendo e sinto muito por ser a causa desta dor.

     Clousarr gargalhou.

     Baley disse:

     - Entre no carro Clousarr. Você também, Daneel. Sente-se atrás, ao lado dele. Cuide que ele não se mexa e lembre-se que pessoalmente não me importo se você precisar quebrar-lhe o braço. Estou lhe dando uma ordem.

     - E que tal a Primeira Lei? - perguntou Clousarr, sarcástico.

     - Acho que Daneel é bastante forte e bastante rápido para imobilizá-lo sem recorrer à violência, porém acredito que você até se beneficiaria se acabasse com um ou ambos os braços quebrados.

     Baley tomou a direção e o carro de patrulha saiu em velocidade. O vento agitava seus cabelos e os de Clousarr, mas a cabeleira de R. Daneel ficou em perfeita ordem. R. Daneel perguntou com sua voz calma:

     - Clousarr, você teme os robôs porque pensa que poderiam ameaçar seu emprego?

     Baley não podia ver o rosto de Clousarr, mas tinha certeza que devia estar expressando todo o ódio que sentia. A mais, provavelmente ficava à maior distância possível de R. Daneel.

     A voz de Clousarr falou:

     - E os empregos de meus filhos também. E dos filhos de todos.

     - Sem dúvida, existem possibilidades de adaptação, - respondeu o robô. - Por exemplo, se seus filhos aceitassem ser treinados para uma emigração...

     Clousarr interrompeu:

     - Você também? O investigador já falou em emigração. Ele deve ter recebido seu treinamento dos robôs. Ou vai ver, ele também é um robô.

     Baley rosnou:

     - Agora chega. Fique calado.

     R. Daneel, continuou com a maior calma: - Uma escola de treinamento de emigrantes poderia oferecer segurança, uma classificação garantida e boas possibilidades de carreira. Se você se preocupa com seus filhos, deveria considerar tudo isto.

     - Não tenho a menor intenção de aceitar qualquer coisa de um robô ou de um Espacial ou das hienas amestradas que estão no Governo.

     Depois disso, ninguém mais falou. Continuaram a rodar no profundo silêncio da rodovia, acompanhado somente pelo zunido suave do motor e o chiado das rodas sobre o calçamento. Ao chegar ao Departamento, Baley assinou uma ordem de detenção para Clousarr, entregando-o ao pessoal competente. A seguir tomou a moto-espiral junto com R. Daneel, e subiram para os níveis do Departamento. R. Daneel não mostrou nenhuma surpresa por não estar usando o elevador e Baley não esperava que se manifestasse. Estava começando a se acostumar com a estranha mistura de habilidade e submissão do robô e a não lhe prestar muita atenção. O elevador era o meio mais lógico para transpor os muitos andares entre a detenção e o quartel general. A escada rolante em espiral era útil para distâncias mais breves, entre um ou dois andares no máximo. Um grande número de pessoas usou a espiral por um minuto ou dois, afastando-se a seguir. Só Baley e R. Daneel continuaram nela, subindo vagarosamente. Baley achava que precisava um pouco de tempo, mesmo que fossem apenas poucos minutos, porque no quartel general havia um outro problema à sua espera e desejava desfrutar de um pequeno intervalo. Queria ter tempo para pensar e fazer um pouco de ordem naquela confusão. A moto-espiral, subia vagarosamente mas para Baley a velocidade ainda era excessiva. R. Daneel disse:

     - Parece que não vamos interrogar Clousarr imediatamente.

     - Podemos deixá-lo esperar um pouco, - respondeu Baley, irritado. - Vamos primeiro ver como aconteceu este caso de R. Sammy. - Acrescentou num murmúrio, como quem pensa em voz alta: - Não pode ser um caso independente, deve existir uma ligação qualquer.

     R. Daneel interferiu

     - Que lástima. As qualidades cerebrais de Clousarr...

     - Sim? O que há com elas?

     - Mudaram de uma forma esquisita. O que foi que aconteceu quando vocês dois ficaram sozinhos na sala das balanças e eu fiquei do lado de fora?

     Baley respondeu, sem prestar muita atenção:

     - Nada demais. Passei-lhe um pequeno sermão. Preguei o evangelho segundo São Fastolfe.

     - Elias, não entendi o que você disse agora.

     Baley suspirou e disse:

     - Escute, só tentei explicar que a Terra deveria usar robôs e que seria preferível mandar o excesso populacional para outros planetas. Tentei refutar aquelas besteiras medievalistas que embotam seus pensamentos. Não entendo por que me dei este trabalho, nunca imaginei que um dia pregaria como um missionário. Isto foi tudo.

     - Estou vendo. Isto pode explicar o fenômeno. Diga-me uma coisa, Elias: o que foi que você disse a respeito de robôs?

     - Parece que você é mesmo curioso. Expliquei que os robôs são apenas máquinas. Este foi o evangelho segundo São Gerrigel. Estou começando a ver que existe um grande número de evangelhos.

     - Será que você disse que era possível bater num robô sem precisar temer qualquer reação, como quando a gente bate em qualquer objeto mecânico?

     - Exceto num saco para punching, eu acho. Sim, eu falei isto. Como é que você chegou a esta conclusão? - Baley olhou para o robô sem disfarçar sua curiosidade.

     - Isto se ajusta perfeitamente com as mudanças cerebrais, - disse R. Daneel. - Pode também explicar o tapa que me desferiu logo depois de sair da usina. Acho que ele devia estar pensando no que tinha ouvido, então conseguiu ao mesmo tempo testar a validez de suas afirmações, descarregar seus impulsos agressivos e ter o prazer de me ver reduzido a uma condição que, para ele, era de inferioridade.   Considerando as motivações, e sem esquecer as variações delta de seu...

     Ficou calado durante um breve intervalo e disse:

     - Sim, tudo isto é bastante interessante, e já posso reunir estes dados e tirar conclusões consistentes, acredito.

     Estavam se aproximando do nível do quartel general e Baley perguntou:

     - Que horas são?

     Ao mesmo tempo, pensou, um pouco contrariado: - Raios, poderia olhar para o relógio e levaria muito menos tempo para sabê-lo. Entretanto, conhecia perfeitamente as razões que o levavam a perguntar. Seus motivos não eram muito diferentes dos de Clousarr ao desferir um tapa em R. Daneel. Ao dar uma ordem qualquer ao robô, obrigando-o a obedecer, enfatizava sua roboticidade e ao mesmo tempo realçava sua própria condição humana. Baley refletiu: - Somos todos irmãos. Debaixo da pele, acima dela e em qualquer lugar! Por Josafá!

     R. Daneel anunciou:

     - Oito e dez.

     Saíram da moto-espiral e durante alguns segundos Baley provou aquela esquisita sensação que sempre tomava conta dele quando precisava se reacostumar com um ambiente estável, depois de muitos minutos de movimento contínuo. Disse:

     - E ainda não jantei. Que porcaria de serviço.

     Pela porta aberta, Baley logo viu e ouviu o Comissário Enderby em seu escritório. A grande sala comum estava completamente vazia e a voz de Enderby ecoava nas paredes. O rosto rechonchudo parecia despido e indefeso sem os óculos que segurava numa mão, enquanto com a outra passava um lenço de papel na testa, para enxugar o suor. Vislumbrou Baley enquanto este se aproximava da porta, e sua voz petulante subiu de alguns decibéis.

     - Pelo amor de Deus, Baley, onde foi que você se meteu até agora?

     Baley encolheu os ombros e respondeu:

     - O que está acontecendo? Onde está a turma da noite? - e ao mesmo tempo percebeu a outra pessoa que se encontrava no escritório. - Doutor Gerrigel! - exclamou surpreso.

     O roboticista de cabelos grisalhos devolveu a saudação involuntária acenando com a cabeça:

     - É um prazer revê-lo, Baley.

     O Comissário colocou os óculos sobre o nariz e observou Baley de trás das lentes.

     - Todo o pessoal está sendo interrogado no andar de baixo, e assinando suas declarações. Fiquei quase louco tentando localizar você. Sua ausência chegou a parecer meio esquisita.

     - Minha ausência! - exclamou Baley, surpreso.

     - A ausência de qualquer pessoa pode parecer esquisita. O crime foi cometido por alguém do Departamento e agora vai acontecer o diabo. Que droga. Logo, tinha que acontecer aqui! Porcaria de uma droga.

     Ergueu os braços como a invocar os deuses e de repente seus olhos se pousaram em R. Daneel. Baley pensou com uma satisfação sardônica: Esta é a primeira vez que você olha diretamente para o rosto de Daneel. Dê uma boa olhada, Julius! O Comissário falou em tom abatido:

     - Ele terá que assinar uma declaração. Até eu tive que fazê-lo. Eu!

     Baley perguntou:

     - Comissário, diga-me por que você tem tanta certeza que R. Sammy simplesmente não queimou um fusível por um curto circuito espontâneo? Por que você acha que alguém fez isto propositalmente?

     O Comissário deixou-se cair sobre um assento.

     - Pergunte a ele, - respondeu apontando para Gerrigel.

     O dr. Gerrigel pigarreou.

     - Não sei por que lado começar, Baley. Pela sua expressão, vejo que está surpreso por me ver aqui.

     - Em termos, - disse Baley.

     - Não  estava  com  muita  pressa  de  voltar  a Washington, e tenho poucas ocasiões de vir até Nova Iorque, então sempre que o faço, fico com vontade de prolongar um pouco minha estadia. E tem mais um detalhe importante. Fiquei sempre mais convencido que seria um verdadeiro crime se eu fosse embora sem ter feito mais uma tentativa para conseguir uma autorização de analisar seu fascinante robô. Quero dizer, este, - olhou para Daneel com bastante entusiasmo - que está com você agora.

     Baley teve um gesto impaciente.

     - Isto é impossível.

     O roboticista não escondeu sua decepção:

     - Compreendo que agora é impossível. Talvez, um pouco mais adiante?

     O rosto de Baley se manteve impassível.

     O dr. Gerrigel continuou:

     - Tentei me comunicar com você, mas não o encontrei e ninguém parecia saber onde você estava. Então pedi para falar com o Comissário e ele me convidou para vir até aqui e esperar pela sua volta.

     O Comissário se intrometeu:

     - Pensei que o assunto era importante. Sabia que você desejava se entrevistar com o dr. Gerrigel.

     Baley assentiu.

     - Muito obrigado.

     Gerrigel continuou:

     - Infelizmente minha vareta direcional não devia estar bem ajustada, ou talvez pela pressa, errei na avaliação da temperatura. De qualquer forma, entrei no corredor errado e cheguei até um cubículo...

     O Comissário voltou a interromper:

     - Um pequeno depósito de material fotográfico, Ligi.

     - Exatamente, - confirmou Gerrigel. - Encontrei um vulto caído ao chão que, logo vi, era um robô. Após um breve exame reconheci que estava definitivamente desativado. Poderíamos dizer que estava morto. Também não foi difícil ver o que tinha provocado sua desativação.

     - O que era? - perguntou Baley

     - O robô estava segurando com a mão direita um pequeno ovóide brilhante, que mede cinco centímetros por dois, e que tem numa extremidade uma pequena abertura coberta por uma chapa de mica, - explicou Gerrigel. - A mão que segurava o objeto estava encostada no crânio, e suponho que este foi o último gesto do robô.   O ovóide é um irradiador alfa. Você sabe de que se trata, não é mesmo?

     Baley assentiu. Não precisava de dicionários ou manuais para saber o que era um irradiador alfa. Já tinha usado vários, durante as aulas de física em laboratório: os ovóides eram pequenas cápsulas de liga de chumbo com uma estreita cavidade numa das pontas. Na cavidade se encontrava um fragmento de sal de plutônio. A abertura era fechada com uma chapa de mica que permitia a saída de partículas alfa. Aquela ponta emitia radiação ativa. O irradiador alfa tinha muitas aplicações, mas o assassinato de um robô era algo que ninguém tinha previsto e neste caso, pelo menos, seu uso era ilegal.

     Baley disse:

     - Imagino que ele encostou o irradiador ao crânio, estabelecendo um contato com a ponta de mica.

     Gerrigel confirmou:

     - Sim, e o cérebro positrônico ficou imediatamente destruído. Podemos dizer que foi uma morte instantânea.

     Baley observou o Comissário, que estava pálido.

     - Não existe nenhuma possibilidade de erro? Foi mesmo um irradiador alfa?

     O Comissário assentiu, apertando os lábios.

     - Nenhuma possibilidade de dúvida. Os contadores acusam radiação a três metros de distância. Os filmes armazenados no cubículo ficaram inutilizados. O irradiador é a arma do crime.

     Pareceu refletir um pouco sobre o assunto e depois falou:

     - Dr. Gerrigel, receio que tenha que prolongar sua estadia de mais um ou dois dias, ou pelo menos até que seu testemunho seja gravado. Vou dar ordens para que seja escoltado até seu alojamento. Suponho que não se importa de ficar sob vigilância?

     Gerrigel perguntou com um certo nervosismo:

     - Acha que isto é necessário?

     - Sem dúvida, é mais seguro.

     Gerrigel, bastante perturbado, apertou a mão de todos, inclusive de R. Daneel, e saiu.

     O Comissário suspirou.

     - Um dos nossos é responsável por isto, Ligi. Isto é que me deixa preocupado. Estranho nenhum entraria no Departamento só para eliminar um robô. Tem um bocado de robôs espalhados lá fora, em lugares de acesso mais fácil. A mais, o criminoso deve ser alguém com facilidade de acesso a irradiadores alfa. Os irradiadores não se encontram à disposição de qualquer pessoa.

     R. Daneel, com sua voz calma e fria, interrompeu aquele fluxo agitado de palavras. Disse:

     - E qual é o motivo do crime?

     O Comissário lançou um olhar de óbvio desagrado em direção a R. Daneel e depois desviou o olhar.

     - Afinal, somos humanos. Imagino que os policiais não conseguem gostar de robôs da mesma maneira que qualquer outra pessoa não consegue. Agora ele não existe mais e talvez alguém esteja se sentindo mais aliviado. Você costumava ficar bastante irritado com ele, não é mesmo, Ligi?

     - Este não é um motivo suficiente para um assassinato, - afirmou R. Daneel.

     - De jeito nenhum, - confirmou Baley.

     - Mas este não é um assassinato, - retrucou o Comissário. - É apenas destruição de propriedade. É preferível usarmos os termos legais apropriados. O que me irrita é que aconteceu bem aqui, dentro do Departamento. Em qualquer outro lugar a coisa não teria importância nenhuma. Nenhuma mesmo. Mas do jeito que aconteceu, pode se transformar num escândalo de vastas proporções. Ligi!

     - Sim?

     - Quando foi que você viu R. Sammy pela última vez?

     Baley respondeu:

     - R. Daneel falou com R. Sammy depois do almoço. Calculo que isto aconteceu mais ou menos a uma e meia. Falou com ele para que pudéssemos usar seu escritório, Comissário.

     - Meu escritório? Para que?

     - Queria discutir o caso com R. Daneel dentro de uma certa intimidade. Você não estava, então seu escritório era disponível.

     - Entendo. - O Comissário não parecia convencido, mas não insistiu. - Você não o viu pessoalmente?

     - Não, só ouvi sua voz mais ou menos uma hora mais tarde.

     - Tem certeza que era a voz de R. Sammy?

     - Absoluta.

     - Quer dizer que isto foi por volta das duas e meia?

     - Pode ter sido até um pouco antes.

     O Comissário mordeu o lábio enquanto refletia.

     - Bom, de qualquer jeito, isto já parece estabelecer um fato.

     - É mesmo?

     - Sim. Aquele rapaz, Vincent Barret, esteve aqui hoje. Você já sabia?

     - Sabia, mas o rapaz nunca se atreveria a fazer qualquer coisa deste gênero, Comissário.

     O Comissário fitou Baley.

     - Por que não? Perdeu o emprego por causa de R. Sammy, que tomou seu lugar. Compreendo como ele se sente. Deve acreditar ser a vítima de uma enorme injustiça. E devia estar com vontade de se vingar. Você não faria o mesmo? Acontece, porém, que o rapaz saiu do Departamento às duas e você ouviu a voz de R. Sammy às duas e trinta. Por outro lado, é possível que ele entregasse o irradiador alfa a Sammy antes de ir embora, com instruções para que o usasse uma hora mais tarde, porém, onde poderia ter se apoderado de um irradiador? Não adianta pensar nisto agora. Vamos voltar a considerar R. Sammy. Quando você falou com o robô às duas e meia, o que foi que ele disse?

     Baley hesitou por uma fração de segundo e depois falou com cuidado:

     - Não me lembro. Saímos em seguida.

     - Vocês foram para onde?

     - Acabamos indo para as usinas de leveduras. Aliás, quero lhe falar a respeito.

     - Deixe para mais tarde. - O Comissário esfregou o queixo. - Chegou à minha atenção que Jessie hoje esteve aqui. Quero dizer, estava examinando os nomes de todos os visitantes e reparei no nome de Jessie.

     - De fato, ela esteve aqui, - respondeu Baley, distante.

     - Por quê?

     - Por motivos familiares e pessoais.

     - Terá que responder a algumas perguntas, por uma questão de rotina.

     - Conheço perfeitamente a rotina policial, Comissário. Entretanto, o que é que você pode me dizer a respeito do irradiador alfa? De onde veio?

     - Já sabemos que veio de uma usina de energia.

     - Como é que eles explicam seu desaparecimento?

     - Eles não sabem explicar nada. Escute, Ligi, a não ser pelas declarações de rotina, todo este caso não tem nada a ver com você. Preocupe-se unicamente com suas próprias tarefas. Não fosse por causa da... Deixe para lá. Concentre-se na investigação daquele caso da Cidade Espacial.

     Baley perguntou:

     - Não se importa se deixo minhas declarações para mais tarde, Comissário? Hoje à noite, ainda não jantei.

     O Comissário Enderby se virou e observou Baley através de seus óculos.

     - Pode deixar. Vá jantar, mas não saia do departamento, está bem? Mas, Ligi, seu parceiro está certo. - Parecia relutar em não querer usar o nome do robô. - Estamos precisando de um motivo.

     Baley estremeceu de repente. Algo que parecia estar fora de sua mente, uma capacidade totalmente estranha, se apoderou dos acontecimentos do dia, dos do dia anterior e do dia anterior ainda, sacudindo-os e misturando-os. Os fragmentos começaram a deslizar para seus lugares, esboçando ligações e fazendo aparecer um plano. Disse:

     - Qual é a usina de energia onde foi roubado o irradiador?

     - A usina Williamsburg. Por quê?

     - Por nada.

     Quando Baley saiu do escritório, seguido a pouca distância por R. Daneel, ouviu que o Comissário murmurava raivosamente:

     - Um motivo. Um motivo...

     Baley comeu um jantar muito frugal no pequeno restaurante do Departamento que, aliás, não era muito freqüentado. Devorou um tomate recheado com salada de alface sem perceber o que estava comendo, e depois do último pedaço, seu garfo voltou mais uma vez até o prato, raspando automaticamente sua superfície lustrosa de cartolina, à procura de mais alimento. Percebeu o que estava fazendo e largou o garfo com uma exclamação de impaciência. Falou:

     - Daneel!

     R. Daneel tinha ficado numa outra mesa, como desejando deixar em paz Baley, cuja preocupação era visível, ou então como para conseguir se concentrar em seus próprios pensamentos. Baley não se importava com o motivo.

     Daneel se levantou, se aproximou de Baley e voltou a se sentar.

     - Sim, amigo Elias?

     Baley evitou olhar para o seu lado.

     - Vou precisar de sua cooperação, Daneel.

     - De que forma?

     - Jessie e eu teremos que responder a perguntas, sem nenhuma dúvida. Deixe que responda à minha maneira. Você entende?

     - Claro, entendo o que você diz. Entretanto, se alguém me fizer uma pergunta direta, como poderia responder de maneira diferente do que preciso?

     - Se alguém lhe fizer uma pergunta direta, a situação muda de aspecto. Só quero que você não ofereça informações de sua própria iniciativa. Pode fazer isto, não é mesmo?

     - Acho que sim, Elias, com a condição que eu não esteja prejudicando uma criatura humana enquanto fico calado.

     - Se você não ficar calado vai acabar me prejudicando, pode apostar, - respondeu Baley com uma expressão severa.

     - Não consigo compreender perfeitamente seu ponto de vista, amigo Elias. Afinal, o caso de R. Sammy não tem nenhuma ligação com você.

     - Você acha? Todo o caso se baseia na motivação, não é mesmo? Você levantou a questão, eu fiz o mesmo e o Comissário também se preocupa com isto. Por que alguém desejaria matar R. Sammy? Observe que não se trata simplesmente de saber quem gostaria de destruir robôs em geral. Afinal, qualquer Terrestre gostaria. A questão é outra. Quem poderia desejar a destruição de R. Sammy? Talvez, Vincent Barrett, mas o Comissário disse que ele não poderia conseguir um irradiador alfa, e o Comissário está certo. Precisamos procurar um outro candidato, e acontece que existe uma outra pessoa que poderia alimentar este desejo. É claro, óbvio, evidente.  A coisa até cheira mal.

     - Quem é esta pessoa, Elias?

     Baley respondeu em voz baixa:

     - Sou eu, Daneel.

     O rosto de R. Daneel, completamente desprovido de expressão, não mudou ao ouvir esta admissão. Limitou-se a sacudir a cabeça.

     Baley observou:

     - Você não concorda. Minha mulher hoje esteve no Departamento. Eles já sabem. O Comissário ficou muito interessado. Não fosse que somos amigos pessoais, ele não teria desistido de me fazer perguntas. Agora descobrirão por que ela veio me ver, tenho certeza. Ela tomou parte numa conspiração. Uma conspiração tola e inofensiva, mas tanto faz. Um policial não pode se dar ao luxo de ser casado com uma mulher que se mete nestas enrascadas. Seria do meu interesse que toda esta história fosse imediatamente abafada.

     “Vamos ver, quem sabia alguma coisa a respeito? Você, eu e naturalmente, Jessie, e R. Sammy também. Ele viu Jessie em pânico. Quando disse a ela que tínhamos recomendado para que ninguém nos perturbasse, ela deve ter perdido o controle. Você viu em que condições estava quando entrou”.

     R. Daneel disse:

     - Duvido que tenha dito a R. Sammy qualquer coisa que pudesse incriminá-la.

     - É possível. Eu, porém, estou reconstruindo o caso da mesma forma que eles o farão. Afirmarão que ela disse qualquer coisa. Temos ainda minha motivação. Pode parecer que eu o matei para silenciá-lo.

     - Ninguém pode pensar isto.

     - Eles podem. O crime foi cometido de forma a lançar suspeitas contra minha pessoa. Por que usaram um irradiador alfa? Afinal, é um meio um pouco arriscado.  É difícil conseguir um irradiador, e qualquer um pode ser individuado. Acho que foi escolhido como arma exatamente por este motivo.  O criminoso até mesmo deu ordens a R. Sammy para que fosse até o depósito de filmes e se matasse lá. Para mim, é óbvio que o lugar foi escolhido para que não houvesse qualquer dúvida que se tratava de um crime. Mesmo que ninguém tivesse reconhecido, de súbito, a arma por um irradiador alfa, mais cedo ou mais tarde alguém teria reparado que os filmes estavam inutilizados.

     - E de que forma isto se relaciona com você, Elias?

     Baley mostrou um sorriso que mais parecia uma careta.

     - Perfeitamente. O irradiador alfa foi apanhado na usina de energia de Williamsburg. Você e eu atravessamos esta usina ontem. Pode apostar que alguém nos viu e nos reconheceu. Isto me coloca na situação de poder ter apanhado o irradiador, além de eu ter um motivo. Pode ser também que resulte que fomos os últimos a ver R. Sammy com vida, ou pelo menos a ouvi-lo. A não ser pelo sujeito que realmente perpetrou o crime, é claro.

     - Estive com você na usina e posso afirmar que você não teve nenhuma oportunidade de furtar o irradiador alfa.

     - Obrigado, - disse Baley com um pouco de tristeza. - Infelizmente, você é um robô e seu testemunho não tem valor legal.

     - O Comissário é seu amigo e acreditará em você.

     - O Comissário quer manter seu emprego e já se sente muito pouco à vontade por minha causa. Só tenho uma probabilidade de sair desta situação muito desagradável.

     - Como?

     - Continuo perguntando a mim mesmo, por que alguém quer me incriminar? Parece-me claro que alguém quer se ver livre de mim. Mas por que? Mais uma vez, parece claro que estou me tornando perigoso para alguém. De fato, estou fazendo o possível para me tornar muito perigoso para a pessoa que assassinou o dr. Sarton na Cidade Espacial. Isto me leva a pensar nos medievalistas, ou pelo menos no grupo de seus líderes, que poderiam saber que atravessei a usina de energia. É possível que pelo menos um entre eles tenha me seguido pelas pistas durante um trecho suficiente para nos ver, apesar de pensarmos que já estávamos livres deles. Encontrando o assassino do dr. Sarton, tenho boas probabilidades de encontrar também o homem ou os homens que estão tentando se livrar de minha incômoda presença. Se eu conseguir resolver o caso, Vou estar a salvo. E Jessie também. Não posso pensar na possibilidade dela ser... Mas não tenho muito tempo. - Apertou os punhos com força e depois abriu as mãos. - Não tenho muito tempo.

     Baley observou as feições perfeitas de R. Daneel com uma súbita esperança. Qualquer que fosse a natureza desta criatura, ela era forte, leal e desconhecia qualquer egoísmo. O que mais poderia querer de um amigo? Baley precisava de um amigo e não estava com vontade de tecer considerações sobre o fato que nesta criatura específica, um maquinismo substituía o músculo principal.

     R. Daneel, porém, estava sacudindo a cabeça. O robô falou:

     - Sinto muito Elias - seu rosto não mostrava nenhuma expressão de arrependimento - mas não podia imaginar isto. Receio que fiz algo que poderá resultar em seu prejuízo. Realmente sinto muito se o que fiz para o bem de todos resultará contrário aos seus interesses.

     - Que bem de todos é este?

     - Entrei em comunicação com o dr. Fastolfe.

     - Raios! Quando?

     - Enquanto você estava jantando.

     Baley cerrou os lábios.

     - E então? - perguntou. - O  que foi que aconteceu?

     - Você terá que encontrar outros meios para se livrar da suspeita de ter assassinado R. Sammy. A investigação para encontrar o assassino de meu criador, o dr. Sarton, já não pode servir. Com base em minhas informações, nosso pessoal da Cidade Espacial decidiu suspender a investigação, a partir de hoje, e começar a fazer planos para abandonar a Cidade Espacial e a Terra.

 

CONCLUSÃO DE UM PROJETO

     Baley consultou seu relógio quase com indiferença. Eram nove horas e quarenta e cinco minutos. Dentro de duas horas e quinze minutos chegaria a meia-noite. Baley estava acordado desde às seis da manha e durante os últimos dois dias tinha trabalhado num estado constante de tensão. Tudo em sua volta tinha um ar vagamente irreal. Procurou o cachimbo e a bolsa com seu escasso conteúdo de fumo picado e procurou manter a voz firme. Perguntou:

     - Por que tudo isto, Daneel?

     R. Daneel falou:

     - Você não compreende? Não lhe parece óbvio?

     Baley respondeu pacientemente:

     - Não, não é óbvio e eu não compreendo.

     - Estamos aqui, - explicou o robô, - e quando digo nós, me refiro ao nosso pessoal da Cidade Espacial, para eliminar a barreira que envolve a Terra e forçar seu povo a emigrar, fundando novas colônias.

     - Eu já sei. Você não precisa esclarecer este ponto.

     - Sou obrigado a me delongar sobre o assunto, porque é essencial. Quando demonstramos uma certa urgência ao pedir que o assassino do dr. Sarton fosse punido, isto não aconteceu porque esperávamos que, capturando o assassino, poderíamos devolver a vida ao dr. Sarton, como você bem entende. Foi unicamente porque um fracasso da investigação poderia reforçar a posição de certos meios políticos de nosso planeta nativo que hostilizam a constituição da Cidade Espacial.

     - Agora, porém, - interrompeu Baley com uma certa violência, - você está dizendo que vocês estão se preparando para a volta, e fazem isto de sua espontânea vontade. Por quê? Estamos nos aproximando da solução do caso Sarton. Ela deve estar muito próxima, caso contrário não teria acontecido esta tentativa de me afastar do caso com qualquer meio. Tenho a impressão que já estão em meu poder todos os elementos necessários à solução. Devem estar aqui dentro.   - Bateu com as juntas dos dedos contra sua própria têmpora. - Talvez bastaria uma frase para me ajudar a achá-la. Quem sabe, talvez apenas uma única palavra.

     Apertou os olhos com força, como se isto bastasse para clarificar suas idéias, enquanto continuava com a impressão que os acontecimentos das últimas sessenta horas se reuniam todos numa gelatina opaca que lhe impedia qualquer visão. Baley respirou profundamente e se sentiu envergonhado. Estava dando uma demonstração de fraqueza frente a si mesmo e frente a uma máquina fria e insensível que não sabia fazer outra coisa que observá-lo em silêncio. Falou em tom áspero:

     - Está bem, deixe para lá. Por que os Espaciais decidiram ir embora?

     O robô respondeu:

     - Nosso projeto está concluído. Estamos convencidos que a Terra recorrerá à colonização.

     - Quer dizer que agora vocês se tornaram otimistas? - O investigador aspirou a primeira baforada de fumaça e começou a controlar suas emoções.

     - Eu, pelo menos, estou otimista. Durante muito tempo nós, da Cidade Espacial, tentamos provocar uma mudança na Terra, mudando sua economia. Tentamos introduzir nossa própria cultura C/Fe. Seu governo planetário e vários governos de Cidades colaboraram conosco porque era conveniente para eles. Mesmo assim, durante vinte e cinco anos, fracassamos. Mais tentativas fazíamos, mais forte se tornava a oposição dos medievalistas.

     - Conheço toda esta história, - respondeu Baley. Pensou: não adianta.   Preciso deixá-lo falar à sua maneira, como se ele fosse uma gravação.   Mentalmente, gritou: Máquina!

     R. Daneel continuou:

     - O dr. Sarton foi o primeiro a afirmar que deveríamos mudar de tática. Achava que deveríamos encontrar em primeiro lugar um núcleo da população terrestre que desejasse o que desejávamos, ou que pudesse ser convencido a fazê-lo. Ajudando e encorajando este núcleo, poderíamos criar um movimento nativo, e seria melhor que um movimento de forasteiros. A dificuldade estava em encontrar o elemento nativo mais indicado para nossos propósitos. Você, Elias, nos proporcionou uma experiência interessante.

     - Quem, eu? O que é que você quer dizer? - insistiu Baley.

     - Ficamos satisfeitos quando o Comissário recomendou você. Por ter examinado seu perfil psíquico, achamos que você poderia ser um espécime interessante. A cérebro-análise que executei logo depois de nos conhecermos, confirmou esta opinião. Você é um homem prático, Elias. Você não costuma sonhar romanticamente com o passado da Terra, apesar de demonstrar um interesse sadio por este passado. Você também não se agarra teimosamente à cultura das Cidades do presente. Achamos que pessoas como você poderiam mais uma vez levar os Terrestres para as estrelas. Esta era uma das razões pelas quais o dr. Fastolfe queria se entrevistar com você ontem de manhã.

     “Por outro lado, sua natureza prática pode se tornar embaraçosa pela sua intensidade. Você não queria entender que a lealdade fanática a um ideal, mesmo a um ideal errado, poderia levar alguém a fazer coisas que normalmente exorbitam de suas capacidades habituais, como por exemplo atravessar os campos durante a noite, para destruir alguém que considera o pior inimigo de sua causa. Não ficamos muito surpresos quando vimos que você era bastante teimoso e suficientemente audacioso para tentar provar que o assassinato era uma fraude. De uma certa forma, isto confirmava que você era o homem certo para nossa experiência”.

     - Pelo amor de Deus, que experiência? - gritou Baley, batendo a mão sobre a mesa.

     - A experiência de convencer você que a colonização era a melhor solução para os problemas da Terra.

     - Certo, vocês me convenceram. Não posso deixar de confirmá-lo.

     - Sim, e com o auxílio de uma droga apropriada.

     Baley abriu a boca e mal teve o tempo de apanhar o cachimbo enquanto caía. Lembrou-se da cena na abóbada da Cidade Espacial. Estava recuperando a consciência depois do choque de saber que R. Daneel era mesmo apenas um robô. Os dedos suaves do robô apertavam a pele de seu braço: uma hipo-lasca era visível logo embaixo da pele e lembrou-se também de como ela se dissolveu.

     - Qual era a droga contida na hipo-lasca? - perguntou, quase se engasgando.

     - Nada de alarmante, Elias. Apenas uma droga que condicionou seu cérebro, tornando-o mais aberto a sugestões.

     - Quer dizer que por isso acreditei em qualquer coisa que ouvi. Não é assim?

     - Não de todo. Você não quis aceitar qualquer coisa que fosse alheia ao seu padrão habitual de raciocínio. De fato, o resultado da experiência foi um pouco decepcionante. O dr. Fastolfe esperava que você se transformasse num fanático e só pensasse em divulgar o projeto. Entretanto, você apenas ficou favorável, mas não se envolveu. Sua natureza prática se constituiu num obstáculo a qualquer coisa além disto. Chegamos então à conclusão que nossa última esperança eram os românticos, mas os românticos, infelizmente, são todos medievalistas ativos ou potenciais.

     Baley, sem ter motivos efetivos para isto, sentiu-se orgulhoso de sua própria teimosia e muito feliz por tê-los desapontado. Agora poderiam recomeçar suas experiências com uma outra pessoa. Seu sorriso era feroz.

     - Então, vocês desistiram e pretendem voltar para casa?

     - Não, não é isto. Eu disse há pouco que estamos convencidos que a Terra voltará a colonizar. Foi você que nos forneceu a resposta.

     - Eu forneci o que? E de que jeito?

     - Você falou com Francis Clousarr sobre as vantagens da colonização.    Falou com convicção, pelo menos assim julguei. Nossa experiência com você teve pelo menos este resultado. E as qualidades cérebro-analíticas de Clousarr mudaram, de maneira sutil, mas mudaram.

     - Quer dizer que eu o convenci que eu estava certo? Pois eu não acredito.

     - De fato, não é tão fácil convencer alguém, mas as mudanças cérebro-analíticas provaram de maneira definitiva que a mente dos medievalistas pode ser influenciada neste sentido. Eu pessoalmente levei adiante a experiência. Enquanto estávamos para sair da Vila das Leveduras, como já imaginava o que tinha se passado entre vocês dois e percebendo uma mudança nas ondas cerebrais, mencionei a escola de treinamento para emigrantes como um bom meio para garantir o futuro das crianças. Ele rejeitou a idéia, mas sua aura mudou mais uma vez, e pareceu-me óbvio que estava usando o método certo de ataque.

     R. Daneel esperou um instante antes de continuar.

     - O movimento que se denomina Medievalismo mostra um desejo de pioneirismo. Claro, a orientação deste desejo tem por alvo a própria Terra, porque ela está aqui, à disposição, e ainda tem o precedente de um glorioso passado. Mas a visão de mundos longínquos é algo parecido e uma natureza romântica pode facilmente mudar de alvo, como está demonstrado por Clousarr que se sentiu atraído apenas por ter conversado com você.

     “Assim você pode ver que nós, da Cidade Espacial já tínhamos conseguido nosso propósito sem mesmo sabê-lo. Por outro lado chegamos à conclusão que nossa presença, mais que qualquer outro fator, estava obstaculando a introdução de nossas idéias. Provocamos a cristalização dos impulsos românticos da Terra num movimento chamado medievalismo, e sem querer provocamos até sua organização.   Afinal, são os medievalistas que mais desejam infringir as tradições e não os funcionários da administração, que só podem ganhar com a manutenção do status quo. Se abandonarmos agora a Cidade Espacial, se não irritarmos os medievalistas com nossa prolongada presença provocando sua definitiva dedicação à Terra, e somente à Terra, além de qualquer esperança de redenção, e se ao mesmo tempo deixarmos na Terra alguns indivíduos sem importância ou robôs como eu, poderemos, junto a simpatizantes terrestres como você, fundar as escolas de treinamento para emigrantes que já mencionei, e os medievalistas acabarão por se convencer. Quando estiverem prontos para emigrar, precisarão de robôs. Então poderão obtê-los por nosso intermédio, ou até construí-los. Finalmente, poderão desenvolver uma cultura C/Fe segundo suas necessidades.

     Para R. Daneel, foi um discurso muito comprido. Provavelmente percebeu que era assim, porque acrescentou:

     - Estou falando tanto só para lhe explicar porque é necessário tomar uma atitude que poderá prejudicá-lo.

     Baley refletiu amargamente: um robô não pode prejudicar uma criatura humana a não ser que possa provar que o faz para conseguir um benefício para outras criaturas humanas. Disse:

     - Espere um minuto. Permita que eu acrescente um toque prático. Vocês voltarão aos seus mundos e dirão que um Terrestre matou um Espacial sem ser punido por isto. Os Mundos Externos exigirão uma indenização da Terra. Quero avisá-lo que a Terra não está mais disposta a aturar este tipo de tratamento. Vamos ter complicações.

     - Tenho certeza que nada acontecerá, Elias. Os elementos que, em nosso planeta, poderiam exigir uma indenização, são os mesmos que são os mais interessados em forçar a supressão da Cidade Espacial. Podemos oferecer o encerramento de atividade da Cidade Espacial para evitar um pedido de indenização. Aliás, este é nosso plano. A Terra poderá ficar em paz.

     A este ponto Baley explodiu, com a voz rouca pelo desespero.

     - E tudo isto vai me deixar de que jeito? O Comissário suspenderá as investigações do crime da Cidade Espacial, se os Espaciais fizerem o requerimento, mas a investigação do caso R. Sammy continuará, porque implica em corrupção no interior do Departamento. O Comissário porém juntará provas e mais provas contra mim. Eu sei que será assim, já posso prever o resultado. Serei desclassificado, Daneel. Preciso pensar em Jessie. Jessie será fichada como criminosa. Preciso pensar em Bentley...

     R. Daneel interrompeu:

     - Elias, não quero que você pense que não compreendo sua posição, mas para o bem da humanidade, precisamos aceitar injustiças de pequena monta. O dr. Sarton deixou uma mulher, dois filhos, pais, uma irmã e muitos amigos. Todos ficaram entristecidos e enlutados, sobretudo porque o assassino não foi preso e castigado.

     - Então por que vocês não ficam e esperam que seja descoberto?

     - Porque já não é necessário.

     Baley falou com amargura:

     - Por que você não admite que toda a investigação foi simplesmente uma desculpa para estudar-nos de perto? Vocês nunca se importaram em saber quem matou o dr. Sarton.

     - Teríamos preferido saber, - retrucou R. Daneel em tom frio - embora nunca tivéssemos a menor dúvida sobre o fato que a humanidade é mais importante que um único indivíduo. Continuar a investigação, agora, poderia interferir com uma situação que no momento presente achamos satisfatória. Não desejamos correr o risco de comprometê-la.

     - O que você quer dizer é o seguinte: poderia acontecer que o assassino resultasse ser um importante medievalista, e neste momento os Espaciais não desejam fazer qualquer coisa para antagonizar seus novos amigos.

     - Eu não me expressaria desta maneira, mas devo admitir que há muita verdade em suas palavras.

     - É como está reagindo seu circuito de justiça, Daneel? Você acha que tudo isto é justo?

     - Existem vários níveis de justiça, Elias. Quando o menor se incompatibiliza com o maior, o menor deve ceder.

     Baley teve a impressão que sua mente estava acuando o cérebro positrônico de R. Daneel, à procura de um ponto fraco, de uma saída qualquer. Disse:

     - Você não tem nenhuma curiosidade pessoal, Daneel? Você se intitulou um investigador. Você sabe o que isto significa? Você compreende que uma investigação é muito mais que uma tarefa do serviço? Uma investigação é um desafio. Sua mente está lutando contra a mente do criminoso. É uma verdadeira batalha cerebral. Você é capaz de largar a luta e aceitar o fracasso?

     - Posso, sim, se a persistência não tem um alvo útil.

     - Você não ficará decepcionado? Ou curioso? Não sentiria uma pontinha de insatisfação? Sua curiosidade não ficará frustrada?

     Baley não tinha muitas esperanças, mas elas desapareceram de todo enquanto falava. O termo "curiosidade", repetido pela segunda vez, trouxe-lhe a lembrança de suas próprias palavras enquanto conversava com Francis Clousarr. Naquela ocasião tinha encontrado muitos pontos que diferenciavam um homem de uma máquina. A curiosidade também devia ser considerada decisiva. Um gatinho de seis semanas era curioso, mas como era possível que uma máquina fosse curiosa, mesmo em se tratando de uma máquina humanóide?

     R. Daneel confirmou este pensamento quando perguntou:

     - O que é que você entende, especificamente, quando fala em curiosidade?

     Baley procurou explicar melhor que podia.

     - Chamamos de curiosidade o desejo de ampliar nossos conhecimentos.

     - Em meus circuitos existe este desejo, quando a ampliação de meus conhecimentos é necessária ao cumprimento de uma tarefa.

     - Pois sim, - observou Baley,  sarcástico. - Como quando você fez perguntas sobre as lentes de contato de Bentley, com a finalidade de aprender mais algum detalhe dos esquisitos costumes da Terra.

     - Perfeitamente, - concordou R. Daneel sem dar qualquer sinal de ter percebido o sarcasmo. - Uma ampliação desordenada dos conhecimentos, entretanto, porque penso que esta curiosidade que você menciona pode ser definida assim, só pode ser definida como ineficiência. Fui projetado para evitar qualquer ineficiência.

     Foi assim que Elias Baley ganhou a "frase" que estava esperando, e a gelatina opaca estremeceu, entornou, parou de estremecer e de repente adquiriu uma luminosidade cristalina. Enquanto R. Daneel falava, Baley deixou cair o queixo e depois se esqueceu de fechar a boca. A coisa não podia surgir em sua mente assim, completa de todos os detalhes. Não era assim que as coisas aconteciam. Devia ter reconstituído todo o caso nas profundezas de seu inconsciente, juntando com cuidado  todas as peças, mas tinha encontrado um obstáculo, um único detalhe inconsistente. Este detalhe era importante demais para ser negligenciado ou posto de lado. Enquanto perdurava esta incongruência, a solução do caso tinha ficado enterrada, fora do alcance de seus esforços conscientes. Mas a frase estava pronunciada, a inconsistência se evaporava e o caso estava resolvido. O brilho daquela luminosidade interna proporcionou a Baley novo alento. De repente descobriu qual podia ser o ponto fraco de R. Daneel, o ponto fraco de qualquer máquina pensante. Raciocinou com uma agitação febril: A coisa só sabe interpretar tudo ao pé da letra. Falou:

     - Então a partir de hoje o Projeto da Cidade Espacial está terminado, e com ele também se encerram as investigações sobre a morte de Sarton, não é isto?

     - Esta foi a decisão tomada pelo povo da Cidade Espacial, - confirmou R. Daneel, muito calmo.

     - Acontece que o dia de hoje ainda não terminou. - Baley olhou para o relógio. - Ainda falta uma hora e meia para a meia-noite.

     R. Daneel não se manifestou. Parecia estar ponderando.

     Baley falou apressadamente:

     - Então, o projeto continua de pé até a meia-noite. Você é meu parceiro e vamos continuar nossa investigação. - Tentou controlar uma tendência a falar com brevidade telegráfica: - Vamos continuar como antes. Deixe-me trabalhar. Seu pessoal não ficará prejudicado. Aliás, eles se beneficiarão com isto. Palavra. Pode acreditar. Se, a seu ver, alguma coisa pudesse prejudicá-los, avise-me. Só temos mais uma hora e meia.

     R. Daneel disse:

     - Seu raciocínio é correto. O dia de hoje ainda não terminou. Não me lembrei deste detalhe, amigo Elias.

     Baley tinha voltado ao status de "amigo Elias".

     Sorriu satisfeito e perguntou:

     - O dr. Fastolfe não mencionou um filme do local do crime, enquanto estávamos na Cidade Espacial?

     - Correto, - confirmou R. Daneel.

     Baley insistiu:

     - Você poderia conseguir uma cópia do filme?

     - Sem dúvida, amigo Elias.

     - Quero dizer, agora, neste instante?

     - Dentro de dez minutos, se eu puder usar o transmissor do Departamento.

     No fim, levou menos que dez minutos. Baley fitou o pequeno bloco de alumínio que segurava entre as mãos trêmulas. As energias sutis transmitidas da Cidade Espacial tinham fixado em seu interior um padrão atômico bem definido. Naquele instante o Comissário Julius Enderby apareceu na porta. Quando viu Baley, seu rosto expressou uma certa ansiedade que logo se transformou em sinais de tempestade próxima. Falou após uma pequena hesitação:

     - Escute, Ligi, você está demorando muito com este jantar.

     - Comissário,  estou  cansadíssimo. Sinto muito por ter me atrasado.

     - Eu poderia não ligar muito, mas... Acho melhor você chegar até meu escritório.

     Baley lançou um breve olhar em direção a R. Daneel, mas não obteve resposta. Ambos saíram do restaurante. Julius Enderby estava gastando o carpete em frente à escrivaninha, caminhando de um lado para o outro, sem parar. Baley estava a observá-lo e não se sentia muito tranqüilo. De vez em quando consultava o relógio. Dez horas e quarenta e cinco minutos. O Comissário suspendeu os óculos acima da testa e esfregou os olhos. As pálpebras ficaram avermelhadas. Logo desceu os óculos e olhou para Baley, piscando.

     - Ligi, - perguntou, - quando foi que você esteve pela última vez na usina de energia de Williamsburg?

     Baley respondeu:

     - Ontem, quando sai daqui. Calculo que deviam ser seis horas ou pouco mais.

     O Comissário sacudiu a cabeça.

     - Por que você não me disse antes?

     - Tinha a intenção de falar. Ainda não fiz minha declaração oficial.

     - O que foi fazer na usina?

     - Simplesmente a atravessei, a caminho de nosso alojamento temporário.

     O Comissário parou de repente em frente a Baley e falou:

     - Isto não serve, Ligi. Ninguém atravessa simplesmente uma usina de energia nuclear para ir de um ponto A até um ponto B.

     Baley encolheu os ombros. Achava inútil relatar a perseguição dos medievalistas e a fuga pelas pistas. Pelo menos, por enquanto. Disse:

     - Se você pretende insinuar que tive oportunidade de apanhar o irradiador alfa que acabou com R. Sammy, quero lhe lembrar que R. Daneel estava comigo e poderá dizer que atravessamos a usina sem parar, e que eu não estava carregando um irradiador alfa quando saímos.

     O Comissário se sentou vagarosamente. Não olhou para R. Daneel, e também não deu sinal de querer que falasse. Colocou as mãos gorduchas sobre a escrivaninha e começou a observá-las com uma expressão tétrica. Falou:

     - Ligi, não sei o que dizer ou o que pensar. Também não adianta citar seu parceiro para confirmar seu álibi. Seu testemunho não é válido.

     - Mesmo assim, nego ter apanhado o irradiador alfa.

     O Comissário cruzava e descruzava os dedos. Perguntou:

     - Ligi, por que Jessie quis vir até aqui ontem à tarde?

     - Você já fez esta pergunta, Comissário. A resposta é a mesma. Assuntos de família.

     - Recebi informações de Francis Clousarr, Ligi.

     - Que informações?

     - Ele afirma que uma Jezabel Baley é membro de uma sociedade medievalista cujo intuito é derrubar o governo com a violência.

     - Você tem certeza que está falando da pessoa certa? Existem muitas famílias com o sobrenome Baley.

     - Mas não existem muitas Jezabel Baley.

     - Foi ele que usou este nome?

     - Ele disse Jezabel. Eu não me enganei, Ligi, eu ouvi direito. Não estou lhe dizendo isto porque alguém me contou. Ouvi pessoalmente.

     - Está bem. Jessie foi membro de uma organização inofensiva e meio louquinha. Nunca fez coisa alguma, a não ser freqüentar as reuniões e se sentir muito importante.

     - A comissão de inquérito não vai pensar assim, Ligi.

     - O que você quer dizer é que vou ser suspenso e preso por suspeita de ter destruído propriedade do governo, na forma de R. Sammy?

     - Espero que não, Ligi, mas você está numa péssima situação. Todo mundo sabe que você não gostava de R. Sammy. Na tarde de hoje alguém viu sua mulher falar com R. Sammy. Ela estava chorando e algumas palavras foram ouvidas. As palavras não tem nenhum significado especial, mas é fácil somar dois mais dois, Ligi. É possível que você pensasse que era perigoso deixar R. Sammy em condições de falar. A mais, você teve oportunidade de se apoderar da arma.

     Baley cortou-lhe a palavra.

     - Se eu conseguisse apagar qualquer prova contra Jessie, você acha que eu traria até aqui Francis Clousarr? Ele parece saber muito mais coisas de quantas Sammy soubesse. E tem mais um pequeno detalhe. Passei pela usina de energia dezoito horas antes que R. Sammy falasse com Jessie. Será que já sabia com antecedência que precisaria destruí-lo, e por isso me preveni com um irradiador alfa, por uma questão de clarividência?

     O Comissário comentou:

     - É uma boa argumentação. Vou fazer o que estiver ao meu alcance. Sinto muito por tudo, Ligi.

     - É mesmo? Você realmente não acredita que fui eu, Comissário?

     Enderby falou com cuidado:

     - Quero ser franco com você, Ligi. Não sei o que pensar.

     - Neste caso, vou lhe dizer o que pensar, Comissário: tudo isto é o resultado de uma armadilha muito bem montada.

     O Comissário se empertigou todo.

     - Espere aí, Ligi. Não tente fazer acusações. Você não conseguirá qualquer simpatia, tentando se defender deste jeito. Você sabe que um bom número de patifes já usaram esta linha.

     - Não estou a cata de simpatias. Estou simplesmente dizendo a verdade. Estou sendo tirado da circulação para me impedir de aprender a verdade sobre o assassinato de Sarton. Infelizmente, a criatura que está tentando me prejudicar, chegou tarde demais.

     - O quê!

     Baley olhou para o relógio. Eram onze horas. Falou:

     - Sei quem está tentando me colocar nesta enrascada, sei como foi morto o doutor Sarton, sei quem o matou, e me sobra uma hora para lhe explicar os fatos, prender o homem e encerrar a investigação.

 

FIM DA INVESTIGAÇÃO

     O Comissário Enderby apertou os olhos e fitou Baley com expressão furiosa.

     - O que é que você pretende fazer? Você já tentou fazer algo espetacular ontem de manhã, com Fastolfe. Não vamos repetir a cena, por favor.

     Baley assentiu.

     - Eu sei. Eu estava errado.

     Pensou: E depois errei uma segunda vez, mas agora, não. Agora sei que estou certo... Disse:

     - Julgue por você mesmo, Comissário. Admita que as provas contra mim foram forjadas. Admita isto e veja o que acontece. Pergunte a si mesmo quem poderia ter forjado estas provas. Obviamente, é alguém que sabe que ontem à noite passei pela usina de Williamsburg.

     - Certo. Quem pode ser?

     Baley continuou:

     - Ontem quando saímos da cozinha seccional, fui seguido por um grupo medievalista. Consegui distanciá-los, ou pelo menos acreditei que assim fosse. Parece-me óbvio que um deles me viu entrar na usina. Entenda bem que só atravessei a usina para ter certeza que tivessem perdido meus rastros.

     O Comissário refletiu e depois perguntou:

     - E Clousarr? Ele estava naquele grupo?

     Baley assentiu. Enderby falou:

     - Está bem, vamos interrogá-lo. Se ele sabe de alguma coisa, vai ter que dizê-la. O que mais posso fazer, Ligi?

     - Espere um pouco. Não me largue no meio do caminho. Está vendo o que eu quero dizer?

     - Espere, deixe-me ver se eu entendo. - O Comissário entrelaçou os dedos. - Clousarr viu quando você entrou na usina de energia de Williamsburg, ou então outra pessoa do grupo viu você e lhe transmitiu a informação. Ele decidiu se valer disso para lhe preparar uma armadilha e afastá-lo do caminho. É isto que você quer dizer?

     - Mais ou menos.

     - Ótimo. - O Comissário parecia um pouco mais entusiasmado. - Ele sabia que sua mulher era ligada àquela organização, sem dúvida, e que não era necessário pesquisar muito sua vida particular. Imaginou que você ia preferir pedir demissão, antes de enfrentar uma luta contra provas circunstanciais. A propósito, Ligi, você pensou em pedir demissão? Quero dizer, se as coisas realmente começassem a ficar pretas... Poderíamos abafar o assunto e...

     - Desista, Comissário. Não pretendo me demitir.

     Enderby encolheu os ombros.

     - Onde é que eu estava mesmo? Já sei. Então ele apanhou um irradiador alfa, provavelmente auxiliado por um cúmplice que trabalha na usina, e com um segundo cúmplice executou a destruição de R. Sammy. - Tamborilou os dedos em cima da escrivaninha. - Ligi, não adianta. Não funciona.

     - Por que não?

     - Está muito fantástico. Cúmplices e coisas. Aliás, ele tem um álibi de ferro para a noite e para a manhã do crime da Cidade Espacial. Fomos conferir logo em seguida, apesar de eu ser a única pessoa que soubesse o motivo da necessidade de conferir especialmente aquelas horas.

     Baley interferiu:

     - Nunca disse que foi Clousarr, Comissário. Quem disse foi você. Podia ter sido qualquer outra pessoa daquela organização medievalista. Clousarr é simplesmente um dos homens cujo rosto ficou na memória de Daneel e que ele reconheceu. Pessoalmente, não acredito que tenha um papel importante dentro da organização. Só tem uma coisa meio esquisita a seu respeito.

     - O que é? - perguntou Enderby, desconfiado.

     - Clousarr sabia que Jessie fazia parte da organização. Você acha que ele pode conhecer todos os membros da organização?

     - Não sei. Sabia a respeito de Jessie. Talvez ela fosse mais importante que os outros porque é casada com um policial. Pode ser que ele se lembrasse deste detalhe.

     - Você está querendo me dizer que sem qualquer preâmbulo, ele logo foi dizendo que Jezabel Baley era inscrita na organização, não é? Assim, sem mais nem menos? Jezabel Baley?

     Enderby acenou com a cabeça.

     - Já lhe disse e repito que ouvi isto pessoalmente.

     - Pois sabe que isto é muito engraçado, Comissário? Jessie não usa seu verdadeiro prenome desde antes de Bentley nascer. Nunquinha. Tenho absoluta certeza. Ela se inscreveu na organização depois que passou a adotar apenas o apelido. Tenho certeza disto também. Como é que Clousarr conseguiu saber que o verdadeiro nome de Jessie era Jezabel?

     O Comissário corou e respondeu apressadamente:

     - Ora, sabe, pensando melhor, ele provavelmente disse Jessie. Devo ter pensado em seu nome verdadeiro, por isto falei assim. Sim, agora tenho certeza, Clousarr disse Jessie.

     - Até este minuto você tinha certeza absoluta que ele tinha dito Jezabel.

     O Comissário levantou a voz.

     - Você não está me tachando de mentiroso, não é mesmo?

     - Não, mas estou pensando que talvez Clousarr não disse coisa nenhuma. Estou curioso de saber se você inventou toda a história. Você conhece Jessie há vinte anos, e você sabia que ela se chama Jezabel.

     - Homem, você está doido.

     - Será? Onde é que você estava hoje logo depois do almoço? Você se ausentou durante pelo menos duas horas.

     - Você está querendo me interrogar?

     - Não é só isto, vou até fornecer a resposta: você esteve na usina nuclear de Williamsburg.

     O Comissário se levantou. Gotas de suor estavam brotando em sua testa e uma leve espuma branca apareceu nos cantos de sua boca.

     - O que diabo você quer dizer?

     - Responda. Esteve ou não esteve?

     - Baley, considere-se suspenso. Entregue-me suas insígnias.

     - Espere mais um pouco. Ainda não terminei.

     - Não pretendo ouvi-lo. Você é culpado. Você é culpado, sim senhor, mas fico indignado ao pensar nesta sua mesquinha tentativa de me incriminar, como se eu estivesse conspirando contra você. - Por um instante sua voz sumiu e só conseguiu chiar pela indignação. Arfou: - Você está preso.

     - Não, Comissário, - rosnou Baley, - ainda não estou. Estou apontando meu desintegrador para você e já está destravado. Não faça brincadeiras comigo, por favor. Estou desesperado e pretendo dizer o que for preciso. A seguir, você poderá fazer o que bem entende.

     Julius arregalou os olhos quando viu aparecer o cano do desintegrador entre as mãos de Baley. Gaguejou:

     - Vai levar vinte anos, Baley, nas mais profundas masmorras da Cidade.

     R. Daneel agiu com presteza inesperada. Agarrou o pulso de Baley e falou em voz baixa:

     - Não posso deixar que você faça isto, amigo Elias. Você não pode machucar o Comissário.

     O Comissário falou diretamente com R. Daneel pela primeira vez:

     - Você, aí! Segure-o. É a Primeira Lei!

     Baley falou depressa:

     - Não quero machucá-lo se você conseguir impedir que ele me prenda. Você disse que me ajudaria a esclarecer tudo isto. Ainda me restam quarenta e cinco minutos.

     R. Daneel não largou o pulso de Baley, mas disse:

     - Comissário, acho que deveria permitir que Elias explique tudo. Neste momento estou me comunicando com o doutor Fastolfe, e...

     - Como? De que jeito? - berrou Enderby.

     - Através de uma unidade sub-etérica embutida - explicou   R.   Daneel.

     O   Comissário   esbugalhou os olhos.

     - Como expliquei, estou em comunicação com o doutor Fastolfe, - repetiu o robô com a maior tranqüilidade, - e acredito, Comissário, que sua recusa de ouvir Elias poderia provocar uma péssima impressão. Isto poderia até parecer suspeito.

     O Comissário não conseguiu pronunciar uma só palavra e se deixou cair sobre a cadeira.

     Baley disse:

     - Afirmo que hoje você esteve na usina nuclear de Williamsburg, Comissário, onde apanhou o irradiador alfa que depois entregou a R. Sammy. Você escolheu propositalmente a usina de Williamsburg para me incriminar. Você também aproveitou o reaparecimento do dr. Gerrigel para convidá-lo a vir ao Departamento e lhe entregar uma vareta direcional já ajustada para levá-lo diretamente ao depósito de filmes, para que encontrasse os restos de R. Sammy. Você queria aproveitar a experiência que possui para ter logo um diagnóstico correto.

     Baley guardou seu desintegrador.

     - Agora, se você ainda quer me mandar prender, esteja à vontade. Saiba porém, que a Cidade Espacial não aceitará isto como uma resposta.

     - O motivo. - arfou Enderby quase sem fôlego. Seus óculos estavam embaçados e ele os tirou para limpar, transmitindo mais uma vez aquela impressão de criatura indecisa e indefesa. - Diga-me que motivo poderia ter para fazer isto?

     - Você conseguiu me meter numa enrascada, não é? Esta enrascada poderá me impedir de concluir a investigação do assassinato de Sarton, não é? E sobretudo, R. Sammy sabia demais.

     - Sobre o que, pelo amor de Deus?

     - R. Sammy sabia como um Espacial foi morto há cinco dias e meio. De fato, Comissário, quem matou Sarton da Cidade Espacial foi você.

     R. Daneel escolheu este ponto para se manifestar. Enderby só conseguia ficar agarrado à sua poltrona e sacudir a cabeça em silêncio.

     - Amigo Elias, - disse o robô, - receio que sua teoria não é viável. Como já lhe expliquei, é impossível que o Comissário Enderby tenha assassinado o dr. Sarton.

     - Agora, me escute. Escute bem o que vou dizer. Enderby pediu para que eu fizesse a investigação, preterindo todos os homens que tinham mais qualificações do que eu. Em primeiro lugar, porque éramos colegas desde a faculdade e pensava que eu nunca chegaria a imaginar que um velho amigo e, ao mesmo tempo, um superior que eu respeitava, podia ser um criminoso. Entenda bem, ele confiava em minha reconhecida lealdade. Em segundo lugar, ele sabia que Jessie era membro de uma organização clandestina e calculava que, com isto, poderia me afastar da investigação ou fazer uma chantagem e me obrigar a me calar, caso eu chegasse muito perto da verdade. Aliás, não tinha a menor preocupação a respeito. Desde o começo fez o impossível para que eu desconfiasse de você, e ainda conseguiu que você e eu trabalhássemos com propósitos contrastantes. Entenda, Daneel: Enderby sabia que meu pai fora desclassificado e imaginava saber qual seria minha reação. Como você pode ver, para um assassino é uma grande vantagem ser ao mesmo tempo encarregado de dirigir as investigações.

     O Comissário recuperou a voz. Perguntou em voz baixa:

     - Como é que eu poderia saber de Jessie? - Olhou para o robô: - Você! Se você está transmitindo para a Cidade Espacial, explique a eles que esta é uma mentira! É tudo mentira!

     Baley interferiu, levantando a voz e depois abaixando-a até conseguir um tom controlado.

     - É claro que você sabia de Jessie. Você é um medievalista e membro da mesma organização. Você, com seus óculos e suas janelas! Suas inclinações são conhecidas, mas ainda temos provas melhores. Como foi que Jessie de repente descobriu que Daneel era um robô? Durante algum  tempo isto me deixou perplexo. Agora já sabemos que ela foi informada pela mesma organização medievalista, mas isto ainda não responde inteiramente à pergunta. Como é que eles sabiam? Você, Comissário, insinuou que alguém tinha percebido a condição de Daneel durante o incidente do entreposto de calçados. Era uma solução que não me convenceu. Pessoalmente pensei que era uma criatura humana, quando o vi pela primeira vez, e garanto que enxergo muito bem.

     “Ontem pedi ao dr. Gerrigel para vir até Nova Iorque. Quando chegou, percebi que poderia ser útil por vários motivos, mas quando telefonei a Washington, eu o fiz com o único intuito de ver se o doutor poderia reconhecer Daneel por um robô, logo à primeira vista. Quer saber o que aconteceu, Comissário? O doutor Gerrigel não percebeu que Daneel é um robô. Apresentei Daneel, eles apertaram as mãos, conversamos juntos e só quando comecei a mencionar robôs humanóides, o doutor entendeu de repente. E olhe que o doutor Gerrigel é, aqui na Terra, a autoridade máxima em matéria de robôs. Você não está querendo me dizer que alguns desordeiros medievalistas poderiam individuar um robô com maior facilidade que Gerrigel, e ainda por cima no meio de um tumulto, e que com base neste reconhecimento eles mobilizariam toda sua organização? Agora já é óbvio que os medievalistas sabiam desde o começo que Daneel era um robô. O incidente no entreposto foi preparado para mostrar a Daneel, e por seu intermédio, à Cidade Espacial, que os Terrestres alimentavam uma violenta aversão aos robôs. O incidente devia também servir para confundir os assuntos e para desviar as suspeitas de determinados indivíduos, transferindo-os para toda a população”.

     “Porém, se eles conheciam a verdade sobre Daneel desde o começo, quem poderia tê-los informado? Não fui eu. A um certo ponto imaginei que fosse o próprio Daneel, mas estava errado. O único Terrestre a par do assunto era você, Comissário”.

     Enderby protestou com surpreendente energia:

     - Podia haver espiões medievalistas infiltrados no Departamento. Afinal, sua mulher também é medievalista! Se você me acusa, por que não acusa também outras pessoas no Departamento?

     Baley sorriu com crueldade.

     - Vamos parar de mencionar espiões misteriosos até chegarmos à solução mais simples e ver onde ela nos leva. Afirmo que você é o único, o verdadeiro informante. Agora, olhando para trás, acho até interessante ver como seu humor melhorava ou piorava em dependência dos meus fracassos ou progressos na investigação. Você já estava nervoso de saída. Quando, ontem de manhã, eu disse que queria visitar a Cidade Espacial e não quis especificar meus motivos, você quase entrou em pânico. Pensou que já tinha adivinhado que era você não é mesmo? Ou talvez que fosse uma cilada e que eu quisesse entregá-lo aos Espaciais? Você me disse que os odiava. Estava tão emocionado que quase chorou. Acreditei por algum tempo que fosse por causa da lembrança de humilhações de ter sido considerado suspeito na Cidade Espacial, mas Daneel a um certo ponto me explicou que você foi tratado com a maior delicadeza e o maior respeito. Você nunca percebeu que era considerado suspeito. Seu pânico era devido ao medo e não à humilhação.

     “Quando porém, assistindo pelo trimensional, você percebeu que minha solução era totalmente errada e até que ponto eu estava afastado da verdade, você recuperou sua confiança. Chegou até a discutir comigo, defendendo os Espaciais. A seguir, durante algum tempo você se controlou muito bem. Fiquei surpreso ao ver que você desculpava incondicionalmente as acusações que eu fizera aos Espaciais, embora você tivesse me recomendado antes, cuidar para não ferir suas suscetibilidades. Você se regozijou com meu erro”.

     “Então chamei o dr. Gerrigel e você quis saber por que. Quando não quis revelar minhas razões, você voltou a mergulhar no desespero.

     R. Daneel ergueu a mão de repente:

     - Amigo Elias!

     Baley olhou para o relógio. Vinte e três e quarenta e dois. Perguntou:

     - O que há?

     R. Daneel observou:

     - É possível que o Comissário estivesse nervoso pensando que você poderia descobrir suas ligações medievalistas. Entretanto não possuímos elementos para relacioná-lo com o crime. Tal atuação seria impossível.

     Baley disse:

     - Daneel, você está redondamente enganado. Ele não sabia por que eu queria falar com o dr. Gerrigel, mas podia supor que fosse para ter mais informações sobre os robôs. O Comissário ficou apavorado, porque um robô estava envolvido em seu crime maior. Não é assim, Comissário?

     Enderby sacudiu a cabeça.

     - Quando tudo isto acabar... - gaguejou, mas não conseguiu terminar.

     - Como foi cometido este crime? - perguntou Baley com raiva mal contida. - Pela fórmula C/Fe, raios! C/Fe! Estou usando seu próprio termo, Daneel. Você anda pregando os benefícios de uma cultura C/Fe com tanta convicção, Daneel, e nem consegue perceber como um Terrestre poderia ter usado estes princípios para desfrutar de uma vantagem temporária. Deixe que eu lhe explique. Ninguém se admiraria de saber que um robô atravessa os campos abertos, mesmo de noite e sozinho. O Comissário colocou um desintegrador nas mãos de R. Sammy e lhe explicou para onde deveria ir e quando. Enderby porém, entrou na Cidade Espacial como de costume, passou pelo Pessoal e entregou seu próprio desintegrador. A seguir, buscou o desintegrador trazido por R. Sammy, eliminou o dr. Sarton e devolveu o desintegrador a R. Sammy que o carregou para a Cidade, voltando a atravessar os campos. Hoje, porém, o Comissário destruiu R. Sammy, porque seus conhecimentos representavam um perigo.

     “Assim, tudo está explicado. A presença do Comissário, a ausência da arma. E não precisamos mais supor que um nova-iorquino humano chegou a se arrastar pelos campos durante a noite”.

     Quando Baley terminou, R. Daneel insistiu:

     - Sinto muito por você, amigo Elias, e ao mesmo tempo sinto-me feliz pelo Comissário: sua explicação não serve. Já lhe disse que a cérebro-análise do Comissário demonstrou que ele é incapaz de matar propositalmente. Não sei como este fato psicológico pode ser explicado em inglês, e se você usaria o termo covardia, ou consciência ou talvez compaixão. Conheço o significado pelo dicionário, mas não estou em condições de distinguir. Só sei que o Comissário não poderia matar.

     - Obrigado, - murmurou  Enderby. Sua  voz ficou mais firme: - Baley, não sei quais podem ser seus motivos e por que você quer me arruinar, mas garanto que irei até as últimas...

     - Espere, - falou Baley. - Ainda não terminei. Tenho isto.

     Bateu o cubo de alumínio sobre a escrivaninha com um estrondo, tentando sentir toda a segurança que demonstrava ter. Durante a última meia hora tinha tentado esquecer um pequeno detalhe: o fato que não sabia o que veria no filme. Estava blefando, mas não restava mais nada a fazer: precisava blefar.

     Enderby se mexeu como a se afastar do pequeno objeto.

     - O que é isto?

     - Não é uma bomba, - respondeu Baley, sarcástico. - É só um modelo comum de micro-projetor.

     - Sim? E a que serve?

     - Vamos ver, que tal? - Enfiou uma unha uma fenda do cubo.

     Um canto do escritório se iluminou, mostrando um cenário diferente em três dimensões. O cenário ia do chão ao forro e parecia se estender muito além das paredes do escritório. Tudo irradiava uma luz brilhante e acinzentada, de um tipo que as usinas da Cidade não conseguiam fornecer. Baley, com um surto de enjôo misturado a uma espécie de perversa fascinação, pensou: Deve ser a tal alvorada que já ouvi mencionar. A projeção focalizava a abóbada do dr. Sarton. Bem ao centro se encontravam os restos calcinados e retorcidos de seu cadáver. Os olhos de Enderby pareciam prestes a lhe saltar das órbitas.

     Baley disse:

     - Sei que o Comissário não é um assassino, não preciso que você, Daneel, me diga isto. Se eu tivesse conseguido conciliar isto com o resto, teria solucionado o caso muito mais cedo. Para dizer a verdade, não percebi como as coisas se passaram até uma hora atrás, quando conversei com você e, sem pensar, mencionei que uma vez você tinha manifestado curiosidade ao ver as lentes de contato de Bentley... Foi isto, Comissário. Naquele instante compreendi que sua miopia e seus óculos eram a chave do enigma. Suponho que não existe miopia nos Mundos Externos, caso contrário os Espaciais teriam resolvido o caso praticamente na mesma hora. Comissário, quando foi que você quebrou os óculos?

     O Comissário perguntou:

     - O que é que você quer dizer?

     - Quando você falou comigo pela primeira vez a respeito deste caso, - respondeu Baley, - você me disse que tinha quebrado os óculos na Cidade Espacial. Imaginei então que você os tivesse quebrado devido à sua agitação ao ouvir a notícia do crime, mas você, de fato nunca especificou isto e eu não tinha razões para imaginar o que imaginei. Afinal, se você entrou na Cidade Espacial já pensando que ia cometer um crime, você já devia estar bastante agitado antes do assassinato, a ponto de deixar cair os óculos, quebrando-os. Não foi assim que aconteceu?

     R. Daneel observou:

     - Não consigo ver a importância deste detalhe, amigo Elias.

     Baley pensou: tenho mais dez minutos para continuar a ser o amigo Elias. Preciso pensar depressa! E falar mais depressa! Começou a manipular a imagem da abóbada de Sarton. Começou a ampliá-la desajeitadamente. A tensão que o dominava não permitia que usasse suas unhas com mais habilidade. Ó cadáver começou a aumentar de tamanho aos trambecões, ficando mais largo e mais comprido, chegando sempre mais perto. Baley teve a impressão de estar quase sentindo o cheiro daquelas carnes queimadas. A cabeça, os ombros e a parte superior de um braço jaziam numa inclinação esquisita, ligados aos quadris e às pernas pelos restos calcinados da espinha que ainda segurava alguns tocos enegrecidos de costelas.

     Baley observou o Comissário de soslaio. Enderby mantinha os olhos fechados. Parecia estar com enjôo. Baley também estava com ânsia, mas era obrigado a olhar. Girou vagarosamente a imagem tridimensional usando os controles de transmissão, fazendo-a rodar em volta do corpo que ficava ao centro, mostrando os segmentos sucessivos do chão em sua volta. Sua unha escorregou e a imagem se inclinou, aproximando-se ainda mais até que, junto ao corpo, o chão se dissolveu numa espécie de névoa. Diminuiu a ampliação e eliminou o cadáver da imagem. Ainda estava falando. Precisava falar, não podia parar de falar até encontrar o detalhe que estava procurando. Se não o encontrasse, qualquer conversa seria inútil, ou pior que inútil. Sentia o coração aos pulos e a cabeça latejando. Disse:

     - O Comissário é incapaz de matar propositalmente. Isto é verdade. Eu disse, propositalmente. Entretanto, qualquer um pode matar acidentalmente. O Comissário não foi até a Cidade Espacial para matar o dr. Sarton. Ele foi porque queria matar você, Daneel, você! Você encontrou em sua cérebro-análise alguma coisa que indicasse que era incapaz de destruir uma máquina? Isto não é um assassínio, é apenas sabotagem.

     “O Comissário é medievalista por convicção. Trabalhou com o doutor Sarton e sabia qual propósito tinha motivado seu projeto e sua montagem, Daneel. Temia que o propósito pudesse se transformar numa realidade e que os Terrestres se convenceriam que era melhor emigrar. Então decidiu destruir você, Daneel. Você era o único exemplar deste tipo de robô fabricado até hoje, e o Comissário tinha boas razões para acreditar que, demonstrando a extensão e a força do movimento medievalista na Terra, cortaria o alento dos Espaciais. Ele sabia que nos Mundos Externos a opinião pública era favorável ao arquivamento do projeto da Cidade Espacial. Imaginava que a destruição de um robô poderia ser o ato definitivo para conseguir seu afastamento. Com isto ainda não quero dizer que a idéia de destruir você lhe fosse agradável. Acredito até que teria mandado R. Sammy cumprir esta tarefa se sua aparência, Daneel, não fosse a tal ponto humana que um robô primitivo como Sammy não poderia perceber ou compreender a diferença. A Primeira Lei obstacularia R. Sammy em seu desempenho. Imagino também que o Comissário teria preferido encarregar um outro Terrestre, não fosse o fato que só ele tinha livre acesso à Cidade Espacial”.

     “Deixe-me fazer a reconstrução do plano do Comissário. Admito que estou tentando adivinhar, mas estou muito perto da verdade. Enderby marcou um encontro com o dr. Sarton mas chegou propositalmente adiantado. De fato, chegou ao alvorecer, sabendo que o doutor Sarton ainda estaria dormindo mas que você, Daneel, estaria acordado. Aliás, suponho que você estava morando nos mesmos aposentos do doutor Sarton”.

     O robô assentiu:

     - Você adivinhou, amigo Elias.

     Baley continuou:

     - Vamos adiante. Você chegaria até a porta da abóbada, Daneel, e ao abri-la receberia uma descarga de desintegrador no peito ou na cabeça, e estaria acabado. O Comissário, a seguir, sairia apressadamente para as ruas desertas da Cidade Espacial, chegando até o ponto onde R. Sammy estaria à sua espera. Devolveria o desintegrador ao robô e voltaria vagarosamente até os aposentos do doutor Sarton. Em caso de necessidade, "descobriria" pessoalmente os restos, mas em qualquer caso, seria preferível que a "descoberta" fosse feita por outra pessoa. Suponho também que ao ser interrogado sobre o fato de ter chegado tão cedo, poderia sempre explicar que precisava avisar o doutor Sarton sobre um ataque que os medievalistas pretendiam fazer e incitá-lo a tomar secretamente todas as medidas para evitar uma confrontação pública entre Espaciais e Terrestres. O robô inutilizado serviria para dar às suas palavras uma aparência de verdade.

     “Ainda, se fosse interrogado sobre o notável lapso de tempo entre sua entrada na Cidade Espacial e sua chegada à abóbada do doutor Sarton, Comissário, você poderia sempre dizer que tinha visto alguém caminhando furtivamente nas ruas e se dirigindo para os campos. Você poderia dizer ter perseguido este vulto e confundir os Espaciais levando-os para uma pista falsa. R. Sammy não despertaria atenção. Um robô entre as fazendas fora da Cidade é só um robô qualquer. Como é, Comissário, até que ponto estou certo?”

     Enderby teve um sobressalto.

     - Eu não...

     - Claro que não, - disse Baley. - Você não matou Daneel! Ele está aqui, e durante todo o tempo que esteve na cidade, você não teve coragem de olhar para o seu lado ou de chamá-lo pelo nome! Olhe agora. Comissário!

     Enderby não conseguiu e cobriu o rosto cora mãos trêmulas. As mãos de Baley também começaram a tremer, a ponto que quase derrubou o projetor. Tinha encontrado o que estava procurando. A imagem agora mostrava a porta principal da abóbada do dr. Sarton. A porta estava aberta, oculta dentro da parede para onde corria sobre um reluzente trilho de metal. Agora mais para baixo, mais para baixo. Pronto! Aqui estavam! Aquele brilho era inconfundível.

     - Vou explicar o que aconteceu, - disse Baley. - Você chegou até a abóbada e deixou cair os óculos. Devia estar nervoso e sei o que você costuma fazer quando está nervoso. Você tira os óculos e começa a limpá-los. Você fez isto. Suas mãos, porém, estavam tremendo e você deixou cair os óculos. Talvez até acabou por  pisá-los. De qualquer jeito, ficaram quebrados e naquele mesmo instante a porta se abriu e você viu uma figura que lhe pareceu Daneel. Você acionou seu desintegrador, apanhou os restos dos óculos e fugiu. Eles encontraram o cadáver, não foi você, e quando foram buscá-lo, você descobriu que não tinha destruído Daneel, mas eliminado o dr. Sarton que costumava se levantar cedo. O dr. Sarton tinha feito Daneel a sua própria imagem e isto provocou o engano. Sem óculos e dominado pela grande tensão, você não conseguiu ver a diferença. E agora vou lhe mostrar a prova, porque está aqui! - A imagem da abóbada de Sarton começou a oscilar e Baley colocou o projetor sobre a escrivaninha, segurando-o firmemente com a mão.

     O rosto de Enderby estava distorcido pelo terror e o de Baley pela tensão. R. Daneel, como sempre, parecia indiferente. Baley apontou com o dedo:

     - Aquele brilho no trilho da porta. O que era isto, Daneel?

     - Dois pequenos estilhaços de vidro, - respondeu o robô. - Para nós, não tinham qualquer significado.

     - Agora vai ser diferente. São estilhaços de uma lente côncava. Basta medir seu grau e compará-lo com o grau das lentes de Enderby. Pare com isto, Comissário! Não pode quebrá-los!

     Com um gesto de improviso arrancou os óculos das mãos de Enderby. Entregou-os a R. Daneel, ofegando.

     - Acho que isto já é uma prova suficiente para demonstrar que Enderby esteve na abóbada antes da hora que ele alega ter chegado.

     R. Daneel falou:

     - Você me convenceu. Estou vendo agora que a cérebro-análise do Comissário me levou a conclusões erradas. Receba minhas congratulações, amigo Elias.

     Baley olhou para o relógio. Era meia noite em ponto. Um novo dia estava começando. O Comissário abaixou vagarosamente a cabeça, para apoiá-la sobre os braços. Suas palavras saíam abafadas.

     - Foi um mal entendido. Um erro. Nunca quis matá-lo. - De repente, deslizou da cadeira e caiu ao chão, onde ficou imóvel.

     R. Daneel se aproximou rapidamente, dizendo:

     - Elias, você o machucou. Isto é muito desagradável.

     - Mas ele não morreu, não é mesmo?

     - Não, simplesmente desmaiou.

     - Vai logo recuperar a consciência. Acho que tudo isto foi demais, mas tive que agir assim, Daneel, era necessário. Não possuía provas que pudessem ser aceitas por um júri, só suposições. Precisei pressioná-lo, aos poucos e com insistência, na esperança que desmoronasse. Aconteceu, Daneel. Você ouviu quando ele confessou, não é?

     - Sim.

     - Muito bem. Prometi que faria isto em benefício do projeto da Cidade Espacial, por isso... Espere, está recuperando os sentidos.

     O Comissário gemeu, bateu as pálpebras e abriu os olhos. Observou ambos sem dizer qualquer coisa.

     Baley perguntou:

     - Comissário, pode me ouvir?

     O Comissário assentiu, calado.

     - Certo. Os Espaciais estão se preocupando com outras coisas, e não pensam em processá-lo. Se você pudesse cooperar...

     - Como? O quê? - Os olhos do Comissário começaram a se animar um pouco.

     - Você deve ser um chefe importante da organização medievalista de Nova Iorque, talvez até da organização mundial. Você pode convencê-los a aceitar a idéia de colonizar o espaço. Sabe qual poderá ser seu slogan, não é mesmo? Podemos voltar à terra, mas em outros planetas.

     - Não entendo, - murmurou o Comissário.

     - É isto que os Espaciais querem. Depois de uma pequena conversa com o doutor Fastolfe, eu também desejo isto, e que Deus me ajude. Eles querem isto acima de qualquer outra coisa. Quando vêem até a Terra, arriscam a morte só para conseguir este propósito. Se o fato de ter morto o dr. Sarton poderá ajudar você a dirigir os esforços dos medievalistas para voltar à colonização galáctica, os Espaciais julgarão que o resultado vale o sacrifício.  Você me entende?

     R. Daneel disse:

     - Elias está certo. Pode nos ajudar, Comissário, e vamos esquecer o passado. Estou falando em nome do dr. Fastolfe e de todo o pessoal. Para o caso que você prometesse nos ajudar, mas decidisse nos trair em seguida, teremos sempre provas suficientes para levá-lo a um processo. Espero que você entenda. Sinto muito ter que falar deste jeito.

     - Não serei processado? - perguntou o Comissário.

     - Não, se você nos ajudar.

     Os olhos de Enderby se encheram de lágrimas.

     - Vou ajudá-los. Foi um acidente, acredite, um acidente. Eu acreditava estar certo.

     Baley falou:

     - Se você os ajudar, agirá da maneira mais certa. O único jeito de salvar a Terra é a colonização do espaço. Você também chegará à mesma conclusão no dia em que poderá ponderar o assunto sem preconceitos. Se você achar que não pode, aconselho você a ter uma pequena conversa com o dr. Fastolfe. Agora pode começar a ajudar, arquivando o caso de R. Sammy. Diga que foi um acidente. Encerre o assunto! - Baley se levantou - - Lembre-se também que não sou a única pessoa a conhecer a verdade, Comissário. Qualquer tentativa de se livrar de mim poderá significar seu próprio fim. A Cidade Espacial sabe. Você me entendeu, não é mesmo?

     R. Daneel interferiu:

     - Não é necessário insistir, Elias. Ele é sincero e vai nos ajudar. Vejo isto pela cérebro-análise.

     - Está  bem,  neste  caso vou voltar para  casa. Quero ver Jessie e Bentley e voltar a viver uma vida normal. Sobretudo, quero dormir. Daneel, você ficará na Terra depois que os Espaciais forem embora?

     R. Daneel respondeu:

     - Ainda não me disseram. Por que você pergunta?

     Baley mordeu o lábio e depois falou:

     - Nunca pensei que diria isto a qualquer criatura de sua espécie, Daneel, mas confio em você. Devo dizer que até chego a admirá-lo. Já não tenho idade para pensar em emigrar, mas quando as escolas para treinamento de emigrantes forem abertas, Bentley irá. Se algum dia você e Bentley, juntos, pudessem...

     - Talvez, - comentou R. Daneel com a voz desprovida de emoção.

     O robô se virou para olhar Julius Enderby que estava a observá-los e cujo rosto flácido estava começando a mostrar a volta de um mínimo de vitalidade. O robô disse:

     - Amigo Julius, tentei entender algumas observações feitas por Elias. Talvez esteja começando a entendê-las, porque de repente a destruição do que não deveria existir, ou seja, a destruição daquilo que vocês chamam o mal me parece menos justa e menos desejável que a transformação deste mal naquilo que vocês chamam um bem.

     Hesitou um instante e, como surpreso pelas suas próprias palavras, disse:

     - Vá e não volte a pecar!

     Baley esboçou um sorriso e apanhou o cotovelo de R. Daneel. Saíram de braços dados.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades